Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Bando Terrivel / Edgar Wallace
O Bando Terrivel / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Bando Terrivel

  

Antes de cumprir sua pena de morte, o falsário Clay Shelton jurou vingança.

O inspetor Long riu. Mas, quando estranhos assassinatos começaram a ocorrer, ele se viu diante de algo poderoso e inexplicável que só lhe dava duas terríveis alternativas: elucidar o maior mistério de todos os tempos ou ser sua próxima vítima! 

 

                  

 

Harry, o Lanceiro, teve comutada de 21 meses sua pena de se.te anos e assim deixou a prisão de Dartmoor numa se­gunda-feira, apresentando-se na delegacia de Burton Street para mostrar seu alvará de soltura.

— Sargento, sou Henry Beneford, sentenciado libertado; aqui estão meus papéis.

Deparou então com o inspetor Long (cujo apelido era Betcher) e seus olhos faiscaram. Aquele encontro não foi dos mais agradáveis: o Lanceiro não esperava que Betcher con­tinuasse em atividade. Na mesma ocasião o inspetor procura­va divisar entre os circunstantes certo ladrão de lojas, muito procurado.

— Bom dia, inspetor. Então ainda está vivo...

— E sempre dando duro — replicou Long alegremente. O beiço disforme de Harry, o Lanceiro, arreganhou-se.

— Desconfio que os sete anos de desgraça que lhe devo não o impedem de dormir à noite!

— Pois olhe — retorquiu Betcher, sempre alegre —, ainda conservo a esperança de arrumar-lhe outros sete. Se dependesse de mim, Lanceiro, você estaria na cela da morte destinada aos cães danados da sua espécie. Tenho certeza de que assim o mundo andaria melhor.

O lábio superior do Lanceiro começou a tremer. Quem o conhecesse bem teria fugido diante desse sinal de perigo. Arnold Long, porém, apesar de conhecê-lo de sobra, não se deixou impressionar.

O Lanceiro havia servido dezoito meses no Regimento dos Lanceiros de S. M., vindo depois a ser preso por três anos por ter dado pontapés num cabo até deixá-lo sem senti­dos. Era desordeiro, ladrão; um homem perigoso. Betcher, por sua vez, era temido.

O ex-sentenciado tremia de raiva. Tentou falar mas não pôde, e, voltando-se para o sargento, que estava sentado à escrivaninha, nela pousou os papéis, com mão trêmula.

— Vocês todos são muito espertos. É fácil agarrar gen­te como eu. Por que não pegaram Shelton, hein? Nenhum agente da Inglaterra conseguiu segurá-lo, nem mesmo os "amadores".

Betcher calou-se porque não estava, naquele momento, interessado em Clay Shelton. Todavia compreendeu que a alusão aos "amadores" era endereçada a ele.

E, voltando à Scotland Yard, convenceu-se de que Shel­ton era realmente de vital interesse.

Não existia no mundo, com efeito, homem como Clay Shelton. Havia quinze anos que ele falsificava e emitia cartas de crédito, letras de câmbio e outros títulos negociáveis. E quinze anos não eram tão pouco. Clay Shelton, aliás, não passava de uma rubrica sob a qual se arrolavam as façanhas de um determinado indivíduo. Esse nome foi o que inscreveu no registro do White Hart Hotel, em Dorking, a 3 de setem­bro de 1899, um homem magro e míope, que retirara sete mil libras do Sussex Bank, usando o mais simples dos arti­fícios e a mais elementar das falsificações. Foi o primeiro nome pelo qual ficou conhecido: servia para designá-lo nas fichas da polícia central.

Shelton e o tenente-coronel Hillerby, da seção de fi­nanças do Exército, que levantou 25.700 libras no Banco da África graças a documentos falsos, eram, sem dúvida, a mesma pessoa, com a diferença de um bigode e um monóculo. O detetive do banco, muito familiarizado com assuntos militares, e que suspeitara do novo tenente-coronel e o se­guira até Wymberg, foi encontrado apunhalado num bos­que de pinheiros perto de Kenilworth, porque Clay não recuava diante da violência, uma vez que a julgasse necessária.

O caixa da Marinha, Corban Smith, que retirara quase a mesma importância do Portsmouth & Southern Bank, não tinha bigode, vestia uniforme de oficial e trazia condecora­ção no peito. O contínuo que levantou do Banco da Ingla­terra 65 mil libras em favor de Midland & Western tinha bigode grisalho e sotaque escocês. Frederick G. Tennycold, de Chicago, que apresentou carta de crédito de outra filial do mesmo banco e suspendeu seis mil libras, usava óculos de tartaruga e o distintivo dos Cavaleiros de Colombo. Havia dú­zias de outros nomes que a polícia inscrevia na mesma ficha. Oficialmente, porém, era Clay Shelton.

O inspetor Vansittar, homem desanimado e taciturno, teve uma entrevista com o chefe.

— Estou muito chateado, Vansittar, mas com você aconteceu a mesma coisa que atrapalhou seus colegas — disse o chefe, meneando a cabeça branca. — A única saída que vejo é incumbir outra pessoa desse caso. Felizmente você saiu ileso, enquanto todos os que se ocuparam das fal­catruas de Shelton foram mortos.

Três meses antes Shelton tinha conseguido 18.320 libras da carteira do estrangeiro do City of London Bank, por meio de uma transferência telegráfica falsificada. Os peritos reco­nheceram ter sido o trabalho mais perfeito que até então se conhecia. A polícia, porém, a despeito do artifício, achou que a hipótese não deveria se reproduzir.

— Não conseguimos apanhá-lo porque não o conhe­cemos — continuou o inspetor Vansittar — e sobretudo por­que o homem trabalha só. Se houvesse uma mulher na histó­ria, se ele tivesse esposa ou um sócio qualquer, não teria escapado durante esses quinze anos.

— Não creio que alguém possa capturá-lo, a menos que ele falhe. Há um homem, entretanto, que talvez conseguisse pegá-lo... — declarou o chefe, e ficou esperando confir­mação.

— Betcher? — acudiu Vansittar. O coronel torceu o nariz.

— Hum! Betcher! — E balançou a cabeça com desdém. Betcher Long, não obstante a alcunha vulgar e o fato de ser agente de polícia, cursara a universidade e vi­nha de família milionária. O motivo que levara o filho de sir Godley Long a entrar para a Yard tem uma história muito comprida. Em certo dia sombrio, ele foi expulso de Cambridge pelo vice-reitor, furioso porque o rapaz esbofeteara um funcionário subalterno da universidade, chamado Tom Helpford, guarda-costas de um chefe de disciplina. Os pais, encolerizados com esse humilhante incidente, advertiram Arnold Murray Long que tratasse de ganhar a vida < como pudesse. Betcher obedeceu e um mês mais tarde voltou à casa paterna, em Berkeley Square, trajando o uniforme da polícia metropolitana. Nem os pedidos, nem a irritação de sir Godley lograram fazê-lo mudar de rumo.

Chamavam-no Betcher por ser um dito favorito seu.

O pai, entretanto, não abandonara o filho único e tinha certo orgulho de sua excentricidade. Gostava de falar, no clube, de "meu filho, o tira".

Betcher não era o tipo ideal para a Scotland Yard. Não o apresentavam como modelo aos detetives novos. Incorreu em tantas infrações que uma vez foi suspenso. Uma repreensão severa, depois anulada, havia manchado sua fé de ofício. Seus métodos inconstitucionais valeram-lhe, certa vez, as censuras de um juiz.

Tinha de altura um metro e setenta e cinco e dava a im­pressão de ser um tanto magro; como lutador de boxe deteve o título de campeão de amadores por dois anos; corria como uma lebre e trepava como um gato. Dizia-se "inglês" para aborrecer MacFarlane, o chefe, que nunca permitia o emprego do termo "inglês" quando "britânico" podia ser usado.

Seu rosto era magro e comprido. Tinha nos lábios um eterno sorriso, como se a vida e o mundo fossem uma grande piada. Quando os Boylan o atiraram da barranca de Limehouse e lhe deram cinco minutos para preparar-se para uma rápida transferência para o outro mundo, foi sorrindo que ele exclamou:

— Aposto como vocês não me matarão!

Tinha razão. Nadou duas milhas com mãos e pés atados e quando foi recolhido pela polícia, no Tâmisa, as primeiras palavras que pronunciou, batendo o queixo (em meados de janeiro o rio fica cheio de gelo), foram:

— Aposto como em 24 horas apanharei Joe Boylan! — E, de fato, capturou Joe.

O coronel MacFarlane tinha razão ao torcer o nariz à idéia de entregar a Betcher Long o caso de Shelton. Na Inglaterra não é permitido o emprego de violência para obrigar o prisioneiro a fazer confissão. Betcher, porém, não levava a lei em conta. Não manteve Lew Brayley com a ca­beça debaixo d'água até que dissesse onde havia escondido o filhinho de John Brisbane, o milionário proprietário de uma frota de navios, raptado e por quem se pedia alto resgate?

O chefe refletiu sobre o assunto durante o dia todo e às cinco horas da tarde Arnold Long foi chamado a seu gabinete.


 

Numa linda manhã de primavera, o sr. Shelton vagava pela Lombard Street, inteiramente ocupada por estabeleci­mentos bancários, e, enquanto caminhava, balançando ele­gantemente o guarda-sol enrolado, reportava-se aos tempos em que essa rua regurgitava de casas de usurários alemães cujas águas-furtadas ficavam repletas de móveis dos clientes.

Parou diante de um edifício sombrio, de aparência mo­desta, a despeito da guarnição de granito polido; fixou, como qualquer curioso, a monótona fila de janelas do prédio.

— Que casa é essa? — perguntou a um guarda-civil parado na calçada.

O guarda, que como todos os colegas era bom na dire­ção do tráfego e como cicerone, informou:

— É o City & Southern Bank.

— Deus meu! — exclamou Shelton baixinho, olhando de novo o edifício.

Nesse momento um carro parou. O motorista desceu e abriu a porta. Primeiro desceu uma moça muito bonita; de­pois uma senhora de tez pálida e, por último, um belo rapaz de bigode preto e monóculo, trazendo na mão a cartola que a altura do veículo não lhe permitia ter na cabeça.

Entraram no banco e o policial dirigiu-se ao motorista:

— Quanto tempo vão ficar aí?

— Cinco minutos — respondeu o homem, espreguiçando-se.

— Se a demora for maior, trate de sair daí. — O po­licial deu ainda algumas instruções ao motorista e voltou para o interlocutor com quem conversava há pouco.

— O senhor não é de Londres?

— Acabo de voltar da América do Sul, onde estive 25... anos. O Banco Argentino fica por aqui, não?

O guarda-civil apontou-o com o dedo, mas Shelton con­tinuou no mesmo lugar.

— É difícil acreditar que nesta rua estejam armaze­nados milhões e milhões em ouro.

— Nunca vi nem a sombra desse dinheiro, mas sei que existe.

Calou-se e levantou a mão como para fazer uma conti­nência, porém logo deixou-a cair. Um táxi parará atrás do carro, e dele saltou um rapaz que fez-lhe um sinal signifi­cativo e lançou a Shelton um olhar perscrutador.

— Quem era aquele cavalheiro? Outro policial? — indagou Shelton, que percebera a continência interrompida.

— Não, senhor, é só um conhecido.

Betcher Long entrou no banco, onde durante alguns segundos foi atraído por um lindo rosto, que aparecia num dos guichês de pagamento. Depois sumiu no escritório do gerente, onde um homem de baixa estatura, gordo e calvo, ergueu-se e foi a seu encontro, apertando-lhe vigorosamente a mão.

— Espere um minuto, sr. Long. Tenho de atender a uma cliente.

Saiu às pressas da sala e poucos minutos depois voltava, esfregando as mãos, com um sorriso nas faces rosadas.

— É uma mulher de caráter — comentou, balançando a cabeça compassadamente. — O senhor não reparou?

— Achei-a bem bonita — observou Long, mas o sr. Monkford, um tanto impaciente, replicou:

— O senhor refere-se à secretária, mas eu estou fa­lando da mulher mais velha, sra. Revelstoke. Tem sido uma das minhas melhores clientes há trinta anos. Deve procurar conhecê-la. O rapaz que está ao lado dela é seu advogado. Muito almofadinha, mas está ficando famoso na profissão.

Havia na sala da gerência uma vidraça de trinta centí­metros quadrados, que dava vista para o extenso balcão onde se encontravam as três pessoas. A senhora mais velha contava com grande desembaraço as notas contidas no maço que lhe entregara o caixa. A moça, um tanto entediada, se­gundo pareceu a Long, contemplava o lindo teto esculpido do banco. Sua fisionomia era pouco comum. Certos tipos de beleza são vulgares. Ela, porém, tinha tal distinção nas fei­ções, tal vitalidade, que chamava a atenção. Quanto ao rapaz, apenas fazia presença ao lado da sra. Revelstoke.

O banqueiro tirou de uma gaveta uma grande pasta e pousou-a sobre a escrivaninha.

— Aqui estão os fatos relacionados não só ao City & Southern, mas a todos os bancos que foram vítimas desse homem. Todas as assinaturas originais se acham aí, mas não creio que lhe sirvam. Os "m" são muito parecidos.

— Todos os "m" são iguais! — interrompeu Betcher. — É uma das letras do alfabeto que não têm característica.

Ficou meia hora examinando o calhamaço, sem resultado.

— Noto que as impressões digitais foram procuradas nesses documentos. Não é assim?

O sr. Monkford fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Uma característica das falsificações é que a mão es­querda, que segurava o documento, estava sempre enluvada.

Quando Arnold Long saiu do banco, permaneceu inde­ciso um momento, olhando para todos os lados, sem saber que caminho tomar. Finalmente resolveu seguir na direção da Gracechurch Street e passar pela agência de vapores na Fenchurch Street.

Na esquina de Gracechurch e Lombard Street, deparou com um homem idoso, magro, que parecia absorto no mo­vimento da rua. Ao passar por ele, Betcher percebeu-lhe o Olhar de esguelha e teve a certeza de que fora reconhecido como detetive.

Sentiu com isso uma emoção inexplicável. Caminhou até Fenchurch Street, de onde voltou para comprar um jornal, encontrando o homem no mesmo ponto. Pareceu-lhe tratar-se de um coronel de infantaria, bonachão. Trajava terno mes­clado, de bom corte, e usava chapéu de feltro branco. Bet­cher deu uma gorjeta ao garoto que vendia jornais, a fim de poder examinar o desconhecido sem lhe chamar a atenção enquanto esperava o troco.

Mas o suposto coronel tomou um táxi e subiu a Lombard Street, desaparecendo. Mal o perdeu de vista, Betcher chamou um carro.

— Lombard Street! Depressa! — ordenou ao motorista. — Siga atrás do táxi amarelo. Você poderá alcançá-lo em frente à Mansion House.

Em poucos minutos avistavam novamente o carro e Bet­cher, que tinha aberto o jornal para esconder o rosto, viu •que sua presa espiava pelo vidro traseiro.

 

Uma semana mais tarde, atravessando a sombria cidadezinha de Chelmsford, Clay Shelton teve um pressentimento — apoderou-se dele um medo repentino, indescritível, que por um instante o impediu de respirar livremente. Pôs aembreagem em ponto morto e apertou vagarosamente os freios, parando à beira da estrada, À direita levantava-se um muro vermelho, onde se via um portão preto de aparência lúgubre.

Shelton alisou o bigode branco que tão cuidadosamente vinha cultivando nos últimos seis meses.

Estava diante da prisão de Chelmsford.

Pisou no acelerador e deu meia volta em direção à ci­dade, onde parou diante do Saracen's Head. Desceu. Era uma livraria e papelaria que tinha um anúncio na vitrine: AQUI SE ACEITAM ANÚNCIOS PARA TODOS OS JORNAIS DE LONDRES.

Entrou na loja e pediu um formulário, que lhe foi for­necido com alguma demora. Preencheu-o.

— Isso é para a seção de anúncios pessoais de The Times — disse, pagando a taxa.

O empregado recebeu o formulário e leu com cuidado, achando-o bem escrito. Shelton retirou-se com o coração ali­viado. O rapaz, para não esquecê-lo, meteu o anúncio entre as páginas do livro que estava lendo. Continuava absorto na leitura quando o patrão entrou e, irritado com seu procedimento, ali mesmo o despediu.

Ao colocar o livro na estante, o patrão não percebeu que dele caiu o formulário. O alívio de Shelton tinha sido um tanto prematuro.

Fora de Colchester, ele dirigiu o carro para um beco, tirou da caixa do assento uma maleta, que continha uma muda de roupar tesouras, creme e uma navalha, artigos que em poucos minutos lhe permitiram transformar-se num padre de modesta aparência. Examinou cuidadosamente todos esses objetos. Isso feito, desceu e encaminhou-se, com ar despreo­cupado, para o ponto de parada dos bondes, tomando um que o levou para o centro da cidade.

Às dez horas ele entrava no Eastern Counties Bank.

Apresentou um documento a um empregado de óculos, que o examinou atentamente antes de levá-lo ao gerente. Vol­tou pouco depois, sorrindo como se quisesse desculpar-se de ter parecido desconfiar dele.

Sete mil e seiscentos? — indagou amavelmente. — Como quer que lhe pague?

Em notas de cem — respondeu Shelton.

O caixa contou o dinheiro com extrema rapidez, ano­tando os números das cédulas no livro.

O sr. Shelton retirou-se depois de ter metido as notas no bolso. Havia dois homens no salão, e um outro transpondo uma das portas. O primeiro deles, encostado no balcão, tinha aspecto fatigado e Shelton não lhe deu atenção. O outro, porém, que estava de costas para a porta, disse, sorrindo:

Bom dia, Shelton!

Betcher Long! Não contava com ele! Parou e pôs-se em

O senhor dirige-se a mim? Meu nome não é Shelton.

Em todo caso é com o senhor mesmo que quero

Shelton então atirou-se sobre o interlocutor.

Num segundo três homens rolavam pelo chão.

O ladrão pôs-se em pé; o segundo homem, um policial, só fazia atrapalhar Betcher. O homem de ar cansado, que estava encostado no balcão, meteu-se na luta.

— Aqui estou eu! Que diabo é isso?

Ouviu-se um forte estampido e o segundo tira caiu no chão de mosaicos, sangrando.

— Baixe a pistola ou eu atiro!

Shelton virou a cabeça. O empregado de óculos apon­tava para ele um revólver militar, que segurava com mão firme.

Num instante Betcher Long algemou o homem pálido. Dois policiais fardados entraram no banco, enquanto um fun­cionário telefonava para o hospital.

— Está preso por falsificação! — disse Betcher. E de­pois, olhando para o corpo inanimado e a larga poça de san­gue: — Pensei que você nunca tivesse usado uma arma!

Shelton ficou calado e o detetive virou-se para o ho­mem que, sem ser chamado, entrara na briga.

— Obrigado. Fico-lhe muito grato. — E depois, reconhecendo-o: — É o sr. Crayley, não?

O elegante que se intrometera na luta tinha o rosto branco e bigodes amarelos caídos.

— O senhor podia ter sido morto. Santo Deus! —mur­murou ele. — Fiz o que pude. Diga-me se posso ser útil em mais alguma coisa. Aquele homem está morto?

— Presumo que sim — respondeu Betcher, fitando tris­temente o corpo imóvel. — Eu teria desejado que você não tivesse feito isso, Shelton. Mas provar este crime será mais fácil do que os outros assassinatos que cometeu.

O gerente conduziu o grupo, através de seu gabinete, até um pátio atrás do banco, onde existia um pequeno portão que dava para uma rua estreita.

Lá, um carro e dois policiais estavam esperando. Betcher tinha planejado antecipadamente essa retirada.

 

No dia 14 de junho, às cinco horas de uma manhã linda, o inspetor Arnold Long deixou Londres, chegando a Chelms­ford antes de as lojas serem abertas.

 Atravessava uma aldeia e descia por uma estrada reta, que corria entre campos verdes, quando passou por um ho­mem que estava sentado sobre uma porteira. Reconhecendo-o, deu meia-volta e foi ter com ele.

— Bom dia, Lanceiro. Dedica-se agora à agricultura? — Arranjei um trabalho, se quer saber. Um bom trabalho! Anda à caça, perdigueiro?

— Caçando ladrões, Lanceiro! — Lançou um olhar em volta do campo deserto. A única construção à vista era um grande celeiro negro. — Sou capaz de jurar que você não dormiu na rua! E não deve ter vindo de longe, pois não tem pó nas botinas. Lanceiro, quais são suas intenções?

O Lanceiro não respondeu. Com um gesto, apontou na direção dalongínqua Chelmsford. Rindo consigo mesmo, Arnold seguiu seu caminho.

Às sete horas seu carro parou diante do portão escuro da prisão de Chelmsford.

O diretor do presídio estava sozinho em seu pequeno gabinete.

— O capelão está com ele. Espero que não seja muito penoso para o senhor.

— Vim rezando desde Londres para que ele tivesse mudado de idéia e não quisesse me ver.

— Não acho que isso vá acontecer. A última pergunta que me fez a noite passada foi sobre quando o senhor viria. Disse-lhe ter mandado sua petição ao Ministério do Interior e ter recebido um telegrama comunicando que o senhor es­taria aqui esta manhã.

Levantou-se da cadeira e o detetive o seguiu através de um corredor comprido, no fim do qual desceram dois degraus e pararam diante de uma pesada porta de aço, fechada. O diretor abriu-a. Entraram num amplo salão, rodeado de ambos os lados por três filas de portas. Do lado de fora da cela mais próxima, um guarda estava de serviço. A porta da cela, entreaberta, deixava ver um raio de luz em seu interior.

— Espere — disse o diretor, entrando no cubículo. No mesmo instante voltou e fez sinal a Long para que o seguisse. Com o coração batendo forte, ele adentrou a cela da morte.

Shelton estava sentado na cama, com as mãos nos bol­sos; achava-se em mangas de camisa e sem colarinho. O rosto encontrava-se coberto por uma barba grisalha. O detetive não o teria reconhecido.

— Quis vê-lo antes de morrer. — Tirou uma baforada do cigarro e ficou olhando as espirais da fumaça até que de­saparecessem no teto de pedra. — Matei quatro homens e nunca me arrependi: o detetive de um banco em Capetown, um gerente de banco em Bombaim. Não tinha intenção de matar este camarada, mas o narcótico que lhe dei levou-o para o outro mundo. Depois, naturalmente, vem o caso de Selby, que me seguiu até meu iate. Foi um negócio nojento. Poderão encontrá-lo enterrado perto de dois alamos em Berham Abbey.

Betcher esperou o resto.

O quarto... — Outra vez Shelton soprou uma baforada para o teto. — Não, não vou contar este caso, pois foi muito desagradável... e sujo. E agora vocês pensam que vou pagar por tudo isso, não é? Pois estão enganados! Poderão me matar e enterrar, mas eu viverei. Hei de apanhá-lo, sr. Betcher Long! Hei de apanhar todos aqueles que me trouxeram para a morte!

Depois, vendo a expressão do detetive, teve um leve sorriso

— Você pensa que estou maluco? Há coisas neste mundo nunca apanhadas pela sua filosofia, meu amigo, e o Braço da Forca é uma delas!

"Mergulhou o olhar no chão de pedra e permaneceu carrancudo por um segundo. Depois riu de novo.

— Ê tudo — disse secamente. — Lembre-se disso, sr. Long: o Braço da Forca vai se levantar do túmulo, cedo ou tarde, e o pegará pela garganta!

 Betcher não respondeu; seguiu o diretor através do grande salão.

Não esperou o fim. Logo depois de Chelmsford há uma aldeia minúscula com uma igreja muito velha. Parou o carro ali, e, vendo que a hora da execução se aproximava, tirou o chapéu. De repente o relógio bateu: uma-duas-três-quatro-cinco-seis-sete-oito.

— Deus guarde o pobre-diabo! — exclamou Betcher Long. Sabia que naquele segundo a alma de Shelton tinha passado para a eternidade. — Braço da Força! — murmu­rou, sorrindo. Naquele instante alguma coisa bateu no pára-brisa, partindo-o em pedaços. Ele brecou bruscamente.

Ping!

Uma segunda bala levou-lhe o chapéu. Sentiu o sopro da terceira passar-lhe pelo rosto. Saiu do carro para inspecionar o lugar onde se encontrava. Não havia ninguém à vista, nem abrigos que pudessem ocultar algum assassino, exceto... Divisou uma pequena sebe acima da qual se percebia uma ligeira fumaça. Dirigindo-se para lá, ouviu um quarto tiro e deitou-se na relva. Levantou-se quase em seguida e con­tinuou a correr, ziguezagueando para a direita e para a esquerda.

Ao alcançar a sebe deu com algo que o deixou sufocado. Da relva surgiu uma grande mão branca, com os dedos crispados. Chegando mais perto, ele viu um homem deitado de costas, com uma das mãos levantadas para o céu e a outra segurando uma arma de guerra, que apertara na agonia da morte.

Era Harry, o Lanceiro, e estava morto!


 

Arnold Long fixava a face lívida do Lanceiro, sem acreditarno que se apresentava a seus olhos. Um breve exame mostrou a causa da morte do ex-sentenciado. Tinha sido alvejado, muito de perto, pelas costas. Betcher recolheu a arma, cujo cano ainda estava quente e que continha um cartucho intato no pente.

Alguns metros adiante havia uma cerca que escondia uma ribanceira, em cujo sopé existia uma estrada. Não se via viva alma. A estrada estreita, bifurcava-se a cinqüenta metros dali, notando-se marcas de rodas na poeira branca. Betcher voltou para onde jazia o cadáver e estava agachado quando ouviu o ruído de uma motocicleta e divisou o boné de couro do motociclista.

Este seguia pela estrada onde Betcher deixara o carro, e o detetive, levantando-se, fez-lhe sinal para parar. O homem, quem quer que fosse, deveria tê-lo visto. No entanto, continuou sua carreira, parecendo, todavia, ter diminuído a marcha quando passou junto do automóvel. Em poucos segundos desapareceu atrás dos alamos que margeavam a estrada.

O detetive olhou ao redor em busca de socorro. Os tiros deviam ter sido ouvidos. Então, percebeu a distância um grande celeiro negro, que lhe parecia familiar. Lembrou-se logo de que fora naquele ponto da estrada que encontrara o Lanceiro, pela manhã.

Tudo quanto podia fazer era dirigir-se à vila mais pró­xima e pedir auxílio. Voltava para o carro quando, no meio do caminho, viu uma língua de fogo subir de repente. Se­guiu-se uma forte explosão e o ar ficou cheio de estilhaços de madeira e metal.

Betcher deteve-se, paralisado pelo choque. Depois ven­ceu rapidamente a distância que o separava do lugar do de­sastre. O carro estava reduzido a um montão de ferros retor­cidos e madeira carbonizada. Por sorte aproximava-se um policial, numa moto. Ouvira a explosão e correra na direção do barulho, quando chegou junto a Betcher.

— Que aconteceu a seu carro? Explodiu?

A destruição do automóvel tinha pouca importância para Betcher. Em breves palavras explicou ao policial a tragédia e levou-o para onde se achava o morto.

— Há poucos sinais de carros na estrada baixa — disse ele —, e, a menos que possamos dispor de um avião, duvido que tenhamos condições de apanhar os dois cavalheiros res­ponsáveis por essa pequena surpresa.

Eram cinco da tarde quando Betcher chegou à Scotland Yard e contou o caso ao coronel MacFarlane, que o escutou de testa franzida.

— Tudo isso é inexplicável. Diria mesmo quase impos­sível. Shelton foi enforcado às oito horas e não pode haver dúvidas sobre a morte dele. Você não conseguiu identificar o motociclista ou a moto?

Betcher balançou a cabeça numa negativa.

— Não, senhor, nem o veículo nem o lançador da bom­ba foram vistos, e é fácil explicar por quê. A moto podia ter dobrado à direita, voltando para alcançar a estrada real a oeste de Chelmsford. O único veículo que passou pela vila foi um Ford, que certamente pertencia a um verdureiro, pois levava cestas com couves e batatas. Quanto ao motociclista, sei o que lhe aconteceu. Quero ficar escondido por uma ou duas semanas. Chefe, estamos outra vez lutando com o Bando Terrível.

MacFarlane franziu o sobrolho.

— Não o compreendo bem. Shelton trabalhava só. Não fazia parte de quadrilha nenhuma nem tinha amigos.

Betcher mordeu os lábios, pensativo.

— Está certo, mas para mim nada disso é obra do Braço da Forca; não creio em coisas sobrenaturais. Vamos ter aborrecimentos, e muitos. Não sei de onde virão eles, mas serão violentos e sangrentos. O Bando Terrível não vai des­cansar. Serviram-se do Lanceiro para dar cabo de mim, quando voltava de Chelmsford. Como ele errasse o alvo, mataram-no.

A vida de Betcher Long entrava numa fase interessante. O ano que se seguiu foi cheio de acontecimentos marcantes. Assassinatos sobre assassinatos eram tramados e executados sem que nenhum jornal desse qualquer notícia. Somente os homens da Scotland Yard estavam a par dos horríveis crimes.

O Braço da Forca, hábil no ofício, não deixava vestígios de seu trabalho demoníaco.

Nesse ínterim o destino trouxe à vida de Arnold Long uma preocupação, com a qual até então não havia sonhado. Foi motivada pelo encontro com a secretária da sra. Re­velstoke.


 

A sra. Revelstoke, uma solteirona idosa, aparentemente de poucas manias, era alta, de rosto pálido e cheio, olhos pretos impenetráveis e, na opinião de Nora Sanders, não lhe podia ser imputado nenhum defeito censurável.

Um dia, no meio do verão, a sra. Revelstoke sentou-se a sua pequena escrivaninha e anotou um endereço numa eti­queta que colou cuidadosamente num pacote oblongo.

— Você achará o sr. Monkford uma pessoa muito diver­tida — disse, com ênfase. — Já quando gerente de filial tinha tendências à galanteria. Acha que a encomenda é muito pesada?

Nora, levantando o pacote, verificou ser mais leve do que pensava.

— Provavelmente ele a convidará para tomar chá. Janto às nove, meia hora mais tarde do que de costume. O sr. Henry vem nos fazer companhia e estou certa de que nunca me perdoaria se não a encontrasse aqui. Diga a Monkford que não precisa escrever-me. Ele vai ficar muito satisfeito com a horrível negra que lhe envio. Na próxima semana nos encontraremos em Little Heartsease. Mandou reservar o apartamento?

Um táxi levou Nora até Paddington, onde devia iniciar uma extraordinária fase de sua existência. Com efeito, co­meçou uma nova vida quando comprou um bilhete de ida e volta de terceira classe para Marlow, no Tâmisa, porquanto no fim da linha e dentro dos limites da pacata cidade de Georgian conheceu o Bando Terrível e Betcher Long, o incomparável detetive.

Nora foi para Marlow sentindo apenas a alegria de passar um dia no campo.

Dirigindo-se a Harry, o canoeiro de Meakes, pergun­tou-lhe:

— Onde é a casa do sr. Monkford?

O homem olhou-a com interesse respeitoso e, levando a mão à testa para proteger os olhos do reflexo do sol, apontou rio acima. Ali a corrente desviava-se abruptamente na direção da represa de Temple. Numa das margens, um campo extenso até um vasto bosque; na outra, atrás das árvores, destacava-se a torre cinzenta da igreja de Bisham. Era na di­reção de Bisham que o canoeiro olhava.

— Não se pode ver a casa daqui — disse ele, com um grande desapontamento, deixando supor que pela primeira vez na vida verificava e lamentava a invisibilidade de Benham Manor. — É velha... a senhora pode avistá-la caminhando pelo atalho. Uma casa vermelha com duas chaminés iguais. A volta que terá de dar pela estrada é enorme... — asse­gurou, valorizando o serviço que ia prestar. — Acho melhor ir na canoa.

— Você é muito amável.

Enquanto Harry foi buscar os remos, ela percorreu o rio com os olhos. O rumor da represa era agradável, brando; o badalar do relógio da velha igreja de Marlow, batendo três horas, estava em harmonia com o lugar e a ocasião.

Harry aproximou o bote da margem e Nora pulou para dentro dele.

O canoeiro continuou a dar informações quando a ca­noa rumou rio acima.

— Esse é o iate de Shelton. — Dizendo isto, virou a cabeça para o lado da embarcação maltratada pelo tempo, que se achava ancorada no terreno de uma casa vazia. — Shelton foi enforcado por ter assassinado um policial. O maior falsário do mundo, segundo disseram os jornais.

A jovem o encarou com olhos espantados e voltou-se para examinar o trágico navio.

— Enforcado?

Harry fez que sim com a cabeça.

— A senhora não acreditaria se lesse isso num livro: o iate de Shelton e a casa do sr. Monkford logo ao dobrar a  esquina!

— Será isso uma coincidência? — perguntou ela. Evidentemente, Shelton teve um pequeno bangalô adiante de Temple, onde vivia só. Naquele barco existiu uma pequena tipografia, e algumas das famosas cartas de crédito que alar­maram os financistas dos dois continentes foram impressas no camarote do Northward.

— Tudo não passa de coincidência, penso eu. Depois que Shelton foi enforcado, seu bote e seu bangalô foram ven­didos. Um homem chamado Finney comprou a embarcação e vendeu-a a um outro senhor.

— Mas o que tem a ver o sr. Monkford com tudo isso? — perguntou Nora, interessada.

— Ele enforcou Shelton — respondeu Harry solene­mente. — Ele e o sr. Long, o célebre detetive, que agora anda por aqui. Vi-o remando num caíque, esta manhã.

A srta. Sanders sabia que Joshua Monkford era membro proeminente da Associação dos Banqueiros. Era esse o único assunto que tornava a sra. Revelstoke loquaz. A velha se­nhora conheceu Monkford quando este era gerente da filial do Southern Bank, onde ela mantinha conta corrente. O sr. Monkford fora guindado, exclusivamente por seus méritos pessoais, à posição de gerente geral do Southern e à presi­dência do conselho dos diretores da Associação dos Ban­queiros.

— Ele e Betcher Long — continuou Harry, satisfeito — enforcaram Shelton. Long o descobriu e estava prestes a dei­tar-lhe a unha quando Shelton puxou uma pistola e matou um policial chamado Lacy, que estava com Long. Acho que a senhora não vai me dizer que não ouviu falar nisso... Mas o caso se passou há um ano...

Nora sacudiu a cabeça. Não gostava de ler notícias trá­gicas de espécie alguma.

A casa estava à vista agora. Era uma enorme vivenda elisabetana de tijolos vermelhos, escuros. Ficava no meio de alamos e extenso gramado verde separava o edifício do rio.

Dois homens estavam pescando, sentados na relva, um em cada extremidade. Avistando o bote que viera para a margem, fitaram-no distraidamente. Apanhando o embrulho que trazia com a mão enluvada, Nora agarrou o corrimão da ponte.


 

A entrada da casa ficava do lado do rio. Um empregado tomou-lhe o pacote e a conduziu para um grande vestíbulo.

— O sr. Monkford está ocupado com um cavalheiro, senhorita — disse, abrindo a porta de uma saleta.

Ela mal tinha dado dois passos na direção indicada quando o homem que procurava apareceu do lado oposto do vestíbulo. Era baixo e forte, bastante calvo. Naquele mo­mento a recém-chegada não podia imaginar ninguém menos parecido com a Nêmesis do desgraçado Shelton do que aquele sujeito jovial e rubicundo, com seus óculos ridículos e seu colete de pintinhas.

— Entre, srta. Sanders. Foi a sra. Revelstoke que me mandou esta estatueta? Esplêndido! Como ela é amável!

A sra. Revelstoke e seu antigo banqueiro partilhavam da mesma mania, a coleção de antigüidades romanas. A esta­tueta que Nora trouxera tinha sido adquirida por ela.

— Venha... O pacote deve estar pesado. Se soubesse que vinha vindo eu lhe teria mandado o carro... Desejo apresentar-lhe um amigo meu. Um dos melhores... sim, um dos melhores!

O homem tinha o cacoete de repetir as sentenças finais.

— Deixe-me segurar sua sombrinha — disse, tomando­-lhe esta das mãos e colocando-a no cabide. — Uma sombri­nha num dia como o de hoje!

Seguindo-o até a grande biblioteca, que dava vista para o rio, a moça deu com um homem que, em pé a uma das janelas, contemplava melancolicamente a paisagem. Pare­ceu-lhe tê-lo visto antes num lugar qualquer. De repente o reconheceu e percebeu que também tinha sido reconhecida.

 — Srta. Sanders, apresento-lhe o sr. Long.

— Long! — Esse nome lhe era familiar, mas, de mo­mento, não podia ligá-lo à pessoa. Lembrou-se então da his­tória do canoeiro e de Shelton, que tinha sido enforcado. Betcher Long, o detetive! E Nora ficou pensando sobre se Betcher seria nome cristão, dado talvez por algum parente excêntrico.

Envolvendo Nora com o olhar, Long examinou-a dos pés à cabeça. Apesar disso, a jovem Sanders não sentiu nenhum mal-estar. Nunca tinha visto um detetive. Eles pertenciam a um mundo terrível e romântico. Pois estava ali ante seus olhos um espécime vivo, completo, real: com mãos, olhos, massa cinzenta, músculos e, sobretudo, uma individualidade transcendente. E bem no momento em que esperava que o detetive falasse... e a desiludisse, Monkford caminhou para a lareira e fez soar a campainha.

— Vamos tomar chá — disse. — O outro assunto pode esperar.

Betcher Long mostrou-se satisfeito. Voltou para a janela e continuou olhando para fora. Os pescadores lhe interessavam.

O banqueiro abriu o que Nora trouxera e deu com uma pequena caixa de madeira, cuja tampa levantou com um corta-papel. Dentro havia uma camada de serragem, de onde retirou um pequeno objeto envolto num tecido prateado. Quando o desembrulhou, exclamou, comovido:

— Maravilhoso! — Estava surpreendido.

Era mesmo maravilhoso: uma estatueta de cerca de quin­ze centímetros representando uma negra nua, de pé. O próprio Betcher achou-a mais interessante do que a paisagem e atra­vessou a sala vagarosamente.

Monkford manifestava sua admiração em termos desco­nexos. A negra era esculpida em ébano, tinha o queixo le­vantado e um ar de desconfiança. As minúsculas mãos empu­nhavam uma espada de marfim. Cercando-lhe o busto tinha um cinto de metal, do qual pendia uma bainha vazia. Um filete de ouro contornava-lhe a carapinha.

— Não vejo a inscrição.

— Está embaixo, na base do pedestal — observou Nora. Monkford virou a estatueta de cabeça para baixo. Nessa posição via-se claramente a inscrição em caracteres microscópicos.

— Latim — disse Monkford. — Pode lê-la', Long?

Com surpresa para Nora, o detetive fez um sinal afirma­tivo. Examinou a inscrição e depois leu-a em voz alta:

 

Sou a morte que espreita no fim de todas as estradas. Ao avistar-me, os homens perdem a felicidade e tombam, ví­timas de suas próprias espadas. Acautela-te, 6 estrangeiro!; com medo de meu amor, morrerás também por tuas pró­prias mãos!

 

Quando acabou de ler, Monkford exclamou:

— Belíssima! É quase única no gênero! Existe uma no museu de Cluny, o Destino negro. Atribuem-lhe toda sorte de poderes místicos. Autêntica, sou capaz de jurar. Há três na Europa e uma nos Estados Unidos. Pode dizer à sra. Revels­toke, srta. Sanders, que fiquei muito orgulhoso e satisfeito.

— Destino negro? — Betcher franziu o sobrolho. Leu de novo a inscrição. Quando acabou, levantou a ca­beça e seus olhos encontraram os de Nora.

Então esta fez uma pergunta sem compreender o que fazia. A propósito de nada. Reconheceu que foi de péssimo gosto, mas obedecera a um impulso interior que não pudera dominar.

— Quem era Shelton?

Monkford tornou-se lívido e havia uma expressão de receio e angústia em seus olhos. Sua figura rubicunda e ale­gre assumiu um ar trágico.

Qualquer que fosse o efeito da pergunta sobre Monk­ford, o detetive parecia divertir-se intimamente com isso.

— Shelton era um falsário, que matou um policial — explicou Betcher simplesmente. — Prendi-o e ele matou o agente que me acompanhava. Foi enforcado. Ninguém ima­ginaria que pudesse puxar da arma; supus que tivesse perdido o juízo. Nós o prendemos por falsificações e fraudes. O sr. Monkford e eu fomos atrás dele, preparamos uma cilada e ele caiu. A cena da arma foi uma surpresa. Se alguém é cul­pado pela execução do homem, esse alguém sou eu. Devia tê-lo morto antes que atirasse.

— Oh! Bem... mudemos de assunto — disse Monk­ford. — Aqui está o chá... conversemos sobre outra coisa.

A voz de Monkford estava rouca e vacilante. Nem mes­mo a aparente despreocupação de suas palavras podia mascarar-lhe a emoção. Seu rosto tinha adquirido uma palidez doentia; as mãos que levantaram a estatueta e examinavam a inscrição tremiam. Percebia-se que o interesse que conti­nuava a mostrar pelo mimo recebido era simulado.

— O Destino negro! Que troça! Por Deus! — Sua fala era fraca e consternada. — Mas não hei de morrer espetado na minha espada, nem na minha caneta automática!

Depois do chá, a srta. Sanders foi dar uma volta no gramado. Tinha de esperar duas horas pelo trem em que devia voltar à cidade e pensou que os homens desejassem ficar a sós. Chegando à margem do rio, ouviu uma voz que a cha­mava, e, virando-se, deu com Arnold Long.

— O sr. Monkford subiu para o quarto, a fim de des­cansar — explicou.

— Tudo por minha culpa. — A fisionomia da moça traduzia o arrependimento. — Não sei por que falei naquele desgraçado. Eu, que odeio assassinos, nunca falo neles, nem leio o que se escreve sobre eles!

— Não leio outra coisa — replicou Betcher esfregando o nariz, irritado. — É meu vício. Foi um hábito mórbido que contraí.

— Realmente, o senhor não parece um detetive. Betcher suspirou:

— Cheguei à conclusão de que sou o pior dos detetives! Um ano atrás eu andava com a consciência leve, mas hoje ela me pesa mais do que chumbo!

— Por quê?

— Porque vão matar Monkford na próxima semana e eu ainda não sei como evitar essa desgraça.


 

Nora fitou-o, com o horror e a incredulidade estampados no rosto.

Não está falando sério, está?

Digo-lhe isso porque a conheço e a senhorita me conhece. Entendimento à primeira vista é mais comum que |amor à primeira vista. Conheci-a no dia em que a vi no Sou­thern Bank. Temos afinidades. Vamos dar um passeio de caíque e esqueçamos o que diz respeito a Monkford. Ele ainda está vivo.

Nora saltou para dentro do caíque sem dizer palavra, secretamente satisfeita por estar com o rapaz.

Que idade tem?

Ele remava para o meio do rio quando fez a pergunta.

Quase vinte e três... Sou muito velha — respondeu ela, arrependendo-se em seguida por ter dado uma explicação tão desajeitada.

Não parece velha.

Está habituado a ter essa franqueza com todas as mulheres que conhece?

Eu não me preocupo muito com mulheres, não. Conheci Kate Lacrosse. Era linda. Cabelos de ouro,, formas admiráveis. A última vez que a vi ela estava pintando anjos em Aylesbury.

— Pintando... onde é Aylesbury? — inquiriu Nora, intrigada.

— Penitenciária para mulheres. Fiz com que pegasse vinte anos... — disse ele, com melancólica satisfação. — Era chantagista.

Nora Sanders ficou chocada ante a revelação. Mas Long continuou a conversa e fez uma confissão assustadora.

— Conheço tudo... menos as mulheres. Nora riu.

Betcher recolheu os remos. Olhando em torno a jovem viu, com surpresa, que estavam junto da embarcação do assassino.

O caíque seguia rio abaixo.

— Vou mostrar-lhe uma coisa — declarou Long, pu­lando no iate, de onde estendeu a mão à amiga.

O aspecto de abandono era ainda mais real, visto de perto. O soalho da coberta estava podre; a arca da bomba continha alguns centímetros de água, que se movia à menor oscilação.

— Era neste lugar que ele tinha uma tipografia. — Betcher empurrou a porta corrediça do camarote da popa. — As baterias elétricas que a faziam funcionar ainda estão aqui. Entre.

Nora seguiu-o, parando na escuridão do camarote. Long acendeu um fósforo.

Nas paredes de madeira, uma fila de datas tinha sido gravada. Havia nove, ao todo.

1.° de junho de 1854 JXTL

6 de setembro de 1862.

9 de fevereiro de 1886.

11 de março de 1892.

4 de setembro de 1896.

12 de setembro de 1896.

30 de agosto de 1911.

18 de julho de 1923.

l.° de agosto de 1924.

 

Em frente à data de julho de 1923 tinham gravado uma pequena cruz.

A moça ficou perplexa.

— Foi ele que gravou estas datas? — perguntou. — Que significam?

— A gente pode imaginar mil coisas — replicou Betcher. — 18 de julho de 1923, é fácil de explicar: foi o dia da execução de Shelton.

Nora soltou um grito e atirou-se para trás. A luz do fós­foro de cera apagou-se, deixando-os por um segundo na es­curidão. Dominada por um irresistível sentimento de terror, ela impeliu.o amigo para a porta e precipitou-se rumo à cla­ridade. Imediatamente Long a seguiu. Por sua atitude, a moça concluiu que ele era o atual proprietário do Northward. Efe­tivamente era, embora nenhum dos habitantes da vizinhança soubesse disso.

— A inscrição foi descoberta somente no ano passado, quando comprei a embarcação e comecei a raspar os painéis dos compartimentos. Viu como ficaram visíveis? O que ocul­tava esse interessante momento não estava parafusado, mas apenas pendurado. Achei a lista assim que iniciei as buscas.

— Mas ele não podia ter previsto a data da própria morte...

 — Não... Isso foi obra do Bando Terrível.

 — Nunca ouvi falar desse bando.

— Nunca ouviu falar de bruxos e de lobisomens? Es­cute, moça. Pule para o bote. Estamos muito perto do perigo para ficarmos atracados aqui.

Ele não estava gracejando; seus olhos perscrutavam o mato que se estendia frente à casa abandonada. Permaneceu agachado no centro do caíque, com as mãos na cintura, e, mesmo quando lhe estendeu uma das mãos, não olhava para ela: conservava a atenção fixa na casa, nas cortinas descidas e nos pequenos arbustos que margeavam a estrada.

— Alguém esteve lá na noite passada — disse ele. — O cordão que coloquei atravessando a porta está arrebentado.

 

Betcher matutava sobre o caso enquanto remava com energia contra a correnteza. Depois de ter passado o gramado de Bisham Abbey, dirigiu o caíque para a sombra das árvores que pendiam sobre a água e, segurando um galho, manteve a embarcação parada. Como costumava fazer quando falava, recorreu a uma indireta.

— É preciso ser uma criatura privilegiada para ter uma vida dupla. Shelton teve seis, que eu saiba. Escrevia para uma revista infantil histórias sobre cachorros que descobrem seus donos perdidos na neve. Usava então o nome de Grinstead Jackson. Seu outro nome era Shelton. Shelton... o homem que escrevia livros sobre o espírito. Em Lambeth havia uma pequena tipografia dirigida por um tal Simon Cole. E Cole e Shelton eram a mesma pessoa. Em Oxfordsline um fazen­deiro criador de bichos domésticos vendia ovos e aves. Fazia bons negócios e doze pessoas trabalhavam sob suas ordens. Na lista telefônica constava como H. P. Pearce. Na Scotland Yard nós o chamávamos Shelton. Lá em Temple Lock um velhote possuía um bangalô e um barco a motor. Gostava de pescar; era dos melhores pescadores do rio. Suas cartas vinham dirigidas a Walter James Evangeleigh... Mas esse pescador não passava de Shelton. É o que sei a respeito dessa criatura. O que eu não sei encheria uma prateleira grande da |biblioteca de Monkford. Naturalmente ele não podia ter profetizado a própria morte.

Repentinamente, Nora lembrou-se da última data 1.° de agosto. Estavam a 23 de julho!

 — Que vai acontecer a 1.° de agosto?

Ah! — exclamou Betcher, e, antes que ela pudesse insistir na pergunta, continuou: — Em verdade, ninguém conhece o Bando Terrível, exceto eu, que pouco mais sei que nada. A gente o fareja aqui e ali, julgando, algumas vezes, perceber-lhe a sombra. O velho Shelton subtraiu um milhão dos bancos, mas o alto preço de seis vidas consumiu tudo. Pode ser que jogasse nas corridas. Quase todos os trapaceiros têm esse fraco. Pagava caro aos agentes. Era dispendioso mandar um homem para os Estados Unidos receber cartas de crédito. Certa vez mandou um emissário de Nova York a Sacramento, em trem especial, encarregado de receber di­nheiro em todas as principais praças situadas entre essas duas estações. O emissário voltou a Londres antes que fosse dado o primeiro alarme. Habilíssimo... mas custou dinheiro. De qualquer modo, milhões são alguma coisa. Por trás dele esta­va sempre o Bando Terrível. Monkford tinha um irmão, que foi passar as férias em Ilfracombe uma semana depois da captura de Shelton. Pois este irmão morreu afogado. Foi-lhe encontrado o cadáver, vestido com roupa de banho, de ma­drugada. Monkford acha que foi acidente. Estava certo. Monkford foi na onda...

Nora encarou-o boquiaberta.

Assassinado? — perguntou, duvidando.

Betcher fez um sinal afirmativo.

Vai para a cidade no trem das seis e quinze? — inda­gou ele. — Eu também vou. Viajo em terceira classe. Sou muito democrata.

Ela o viu esticar-se e avançar a cabeça na direção dos arbustos emaranhados que guarneciam a margem do rio. Metendo uma das mãos no bolso, com a outra segurou firme o galho da árvore. De novo o coração dela palpitou, sua pele arrepiou-se. Ele olhava com atenção para os arbustos e a moça julgou ter ouvido um ligeiro ruído.

O caíque girava vagarosamente e Nora descobriu que a mão tinha largado o galho. No mesmo instante a embar­cação parou e Betcher levantou-se com tanta precaução que o caíque apenas se moveu. Quando o rapaz se pôs em pé, fixou exatamente o ponto entre a companheira e o lugar de onde parecia ter vindo o ruído.

Inclinando a cabeça, pôs-se a escutar. Em seguida, tão inexplicavelmente como havia se levantado, sentou-se de novo, mergulhou os remos na água e dirigiu o caíque para o meio do rio.

— Vamos ver o nosso vizinho? — perguntou, com seu modo brusco. — Deve conhecê-lo. É uma das originalidades de Marlow. Chamo-o de Hércules. A gente da redondeza dá-lhe outro nome. Ele estava no banco no dia em que pren­demos Shelton e, esquecendo sua natural apatia, atirou-se na luta! Os apáticos às vezes brigam bem. Quando eu estava em Cambridge... — Calou-se neste ponto, sem motivo aparente.

Na mesma ocasião a espessa cerca de arbustos terminou abruptamente e Nora ficou boquiaberta diante da beleza que se lhe oferecia ao olhar. Duas longas pérgulas de pilares de pedra iam do rio à casa, margeando o gramado, e com traves escondidas pelas roseiras floridas. Perto da margem havia uma tenda em forma de guarda-sol, riscada de vermelho e branco, sobre a qual se abrigava um homem espichado numa espreguiçadeira de vime. Levantou-se enfadado, quando viu chegar o caíque. Era magro, de rosto comprido e fisionomia fatigada. Pondo o monóculo, olhou para os visitantes que se aproximavam.

— Olá, Long! — exclamou quando saltaram em terra. Estendeu a mão mole para o detetive, mas seu pálido olhar voltou-se todo para a moça.

— Tenho o prazer de apresentar-lhe a srta. Sanders. Este é o sr. Crayley.

— Jackson Crayley — murmurou o homem magro. — Muito prazer. Queira sentar-se.

— Pensei que a srta. Sanders gostasse de ver seu jardim — disse Long.

— Tenho um bom jardineiro. Podem percorrer todo o jardim e a senhorita colha as flores que quiser.

Apenas tinham se afastado, Crayley voltou à cadeira e ficou novamente embebido no seu jornal.

— Como o achou?

Nora hesitou.

— Parecia algo fatigado — respondeu.

— Nasceu com esse feitio. Ele é aquilo mesmo... So­mente... Bem, o curioso é que estava no banco quando agarramos Shelton e nos ajudou a apanhá-lo, ajudou tanto quanto lhe era possível... Arremessou-se sobre Shelton quando este soltou-se de mim. Como é natural, Shelton o empurrou, pois semelhante qualidade de homem é feita para ser empurrada. Monkford gosta dele. É um leão da moda, que só permanece aqui durante a estação.

Quando voltaram à presença do dono da casa, encon­traram-no conferenciando com uma moça, que, do fundo de uma luxuosa barca, aparentemente marcava um encontro. Nora olhou para ela rapidamente, quando a barca se afas­tava. Era bastante bonita e estava encantadoramente vestida.

— Que maçada! Essa gente pedindo para visitar meu jardim! — resmungou Crayley. Compreendendo sua falta de cortesia, logo acrescentou: — Quero dizer... A moça per­guntou se podia vir quinta-feira acompanhada de alguns amigos. Já vai, senhorita? Bem, volte outro dia.

Tornou a estirar-se na cadeira. Não disfarçou nem na voz, nem na atitude o grande alívio que sentia com a partida dos visitantes.

Nos lábios de Betcher desenhava-se um sorriso quando remava de volta a Bisham Abbey.

Evidentemente, Monkford tinha desistido de descansar. Caminhava para cima e para baixo ao longo do gramado no momento em que o par voltou.

Monkford ofereceu-lhes o carro para levá-los à estação. Betcher deixou Nora esperando um momento enquanto subia com o amigo. O terreno nos fundos da casa era estreito. A distância entre a vivenda e o muro vermelho que escondia a estrada tinha três vezes o tamanho de um caminho para auto­móveis. Enquanto esperava, a srta. Sanders teve tempo de observar o muro. Não parecia ter sido construído havia muito. Tinha tríplice carreira de cacos de vidro. No grande portão verde — também novo — estava de pé um homem de com­pleição robusta. Fumava um cachimbo curto e parecia tão despreocupado quanto os pescadores. Nora olhou para ele e para o muro e ficou imaginando mil coisas...

No caminho para a estação, Betcher fez uma série de perguntas. Há quanto tempo ela trabalhava? Que fazia?

Quando o trem deixou a estação em direção a Bourne End, indagou-lhe se era capaz de guardar segredos.

Abriu a janela de um lado do vagão e espiou para fora, fazendo outro tanto do lado oposto. Sentou-se depois em frente à companheira.

— Preguei uma peça a um camarada! — exclamou. — Há um homem da chefatura que está me vigiando, como amigo. Viaja no carro dos guardas, onde há uma janela saliente de onde se pode observar o que acontece no comboio. Nunca leu Leibnitz, as Causalidades? Causas primárias etc... Não se podia prender Shelton porque não se conhecia seu ponto fraco. Porém, quando ele caiu na cilada que lhe arma­mos, uma nova série de causas primárias intervieram em suas iniciativas. Lá na Scotland Yard riem de mim e do meu Bando Terrível. Mas onde está o juiz que condenou Shelton? Morto! Onde está o promotor? Morto! Onde está o carrasco? Morto! Só Monkford e eu estamos vivos!

Plaf!

O vidro da janela voou em cacos e algo passou zum­bindo como uma abelha. Do teto do vagão caiu uma sarai­vada de estilhaços.

Betcher fez uma careta de satisfação.

— Aposto que o homem que deu o tiro está morto!

O trem parou em Bourne End e Betcher fez uma des­pedida original.

— Volto para identificar o corpo — disse, com calor. Depois, olhando para o rosto pálido da moça, acrescentou rapidamente: — Uma pequena brincadeira!

O táxi o conduziu para o lugar de onde tinha partido o tiro. Levou pouco tempo na busca. O trem passava pela casa de uma turma de conservação, à margem do leito da estrada, quando o tiro foi disparado. Não havia outra cons­trução à vista. Paralelo à linha férrea, estendia-se um campo de aveia que ficava atrás da estrada por onde viera o táxi, que trazia também um sargento da polícia chamado de Bourne End por Long.

Ele esperava encontrar o homem perto do trilho. Mas enganou-se. No campo existia uma lagoa cercada por um muro baixo, apenas da altura das espigas. Em meio às ervas açoitadas pelo vento havia um corpo imóvel, miseravelmente vestido. Devia ser o de um vagabundo qualquer, um ex-soldado, pois trazia, no colete esfarrapado, três sujas fitas de condecorações.

— Morto pelas costas — disse Betcher, depois de breve exame. — Pobre diabo... Que livro é esse, sargento?

O agente passou-lhe um livro de notas amarrotado que tinha apanhado do chão. Betcher Long, virando-lhe as pá­ginas gordurosas, deu no fim com uma anotação a lápis que o interessou:

 

Terceiro carro a contar da locomotiva.

Segunda janela.

Não atire se estiver uma moça à janela.

 

Examinando as outras páginas, Long deu ainda com o nome Joe Hanford e dois endereços, um em Sussex e outro em Londres.

— Que camarada metódico, este! — comentou, pensativo. — Registrou todas as instruções. Agora, como diabo essas informações chegaram aqui?

Olhando em torno, avistou um raio de luz no alto de uma colina, cinco quilômetros adiante. A luz tremulou por seis vezes.

— B-C-N-F-L-D — soletrou Betcher. — Beaconsfield. O sinaleiro invisível mandava uma mensagem para alguém. Por meio de espelhos.

Podia ser um destacamento em exercícios militares ino­fensivos. De novo agitou-se a luz:

L-N-G-D-N-D  B-S-C  C-M-P.

— "Long dando busca no campo"!

Betcher teria dado tudo por um par de óculos de alcance tão poderoso quanto aquele que o misterioso espião usava.

Foi o último sinal que viu. Evidentemente, o sinaleiro dera com a cara de Betcher voltada para a colina, e concluíra que sua mensagem fora lida.

O detetive fez um cálculo aproximado. O alcance de um heliógrafo é muito grande e o assassino podia se encon­trar longe de Marlow Town e, não obstante, leria o aviso. Não era provável que houvesse um telefone mais perto que o de Bourne End. Devia fazer uma tentativa... Nenhuma hipó­tese, por mais vaga que fosse, podia ser desprezada. Dei­xando o sargento com o cadáver, correu para tomar o táxi, que partiu a toda velocidade.

Houve uma grande demora até que entrasse em contato com a polícia de Beaconsfield. Ouviu então o que esperava.

— Os carros estão cruzando aqui numa média de dez por minuto — disse o oficial de serviço. — Pode dizer-me que aspecto tem o que procura?

— Destaque um homem para registrar o número dos que passarem por aí nos próximos quinze minutos — disse Betcher.

Havia pouca probabilidade de que essa medida levasse a alguma descoberta. Tudo fazia supor que o carro já tivesse passado por Beaconsfield antes de a polícia ter sido posta em guarda.

}á estava escuro quando Long deixou Bourne End. Era perto da meia-noite quando todos os jornais de Londres rece­beram uma nota de urgência para ser inserida nas novas edições:

 

AVISO AOS EX-SOLDADOS

Há no país uma organização que oferece uma grande recompensa aos ex-soldados desempregados, principalmente aos que são bons atiradores. Os serviços exigidos são de ca­ráter ilegal e perverso. Os ex-soldados ficam prevenidos de que, afora as inevitáveis conseqüências de seus atos, no caso de serem capturados pela polícia, será fatal para eles aceitar tais incumbências. Os ex-soldados que receberem ofereci­mentos dessa espécie deverão comunicar-se imediatamente com o inspetor Long, sala 709, New Scotland Yard. A soma de £ 500 será paga por qualquer informação que redunde na prisão e condenação de ditos contratantes.

 

Jackson Crayley, na manhã seguinte, por ocasião do almoço, abriu o jornal e, pondo o monóculo, leu o aviso. Le­vantou-se sem ter comido e dirigiu-se para sua elegante biblio­teca. Pegou no telefone, pediu um número e imediatamente foi atendido.

— Viu os jornais? — perguntou. E, depois de ouvir a resposta: — Devemos renunciar aos militares. Betcher vai tornar-se importuno.

Escutou o que respondia a pessoa do outro lado do fio e replicou:

— Sim, estou perfeitamente de acordo... na próxima semana, penso. Acho que podemos apanhar os dois juntos.

No centro telefônico, um agente da Scotland Yard tinha interceptado a ligação e ouvido toda a conversa. Mas de nada adiantara, pois os homens tinham falado em dinamarquês.


 

Nada havia que apaixonasse a sra. Revelstoke. Mas na­quele momento era com relativo interesse que escutava a his­tória da moça.

— Imagino o calafrio que você deve ter sentido ao entrar na lúgubre embarcação — disse, carrancuda. — Ex­tremamente impressionante, não? O sr. Long me interessa. Devemos convidá-lo para jantar um dia desses. Mas agora meu jantar está esperando e o pobre sr. Henry parece fora de si de tanta impaciência.

Quinze minutos mais tarde Nora entrava com a sra. Re­velstoke na sala de jantar. Henry estava de pé, com as costas voltadas para a lareira apagada e as mãos para trás. Logo que a sra. Revelstoke entrou e desculpou-se pelo atraso, o advogado falou:

— Fui encarregado de um caso bastante intrincado...

— Oferecendo uma cadeira à dona da casa, prosseguiu: — E, além do mais, um caso tremendo. Ouviram falar de Wallis?

— Não tive esse prazer — replicou a sra. Revelstoke.

— Mas suponho que seja famoso.

— Célebre é o termo que convém — disse o sr. Henry, um pouco sério, desdobrando o guardanapo. — Ele era, em suma, o carrasco oficial.

A sra. Revelstoke voltou-lhe seu olhar imperturbável.

— Wallis morava em Oldham e somos os procuradores de seus advogados — prosseguiu Henry. E, de repente: — Se este assunto lhes é desagradável, falarei a respeito de borboletas...

O interesse sobre o falecido Wallis era pouquíssimo. A conversa caiu sobre Marlow.

— Lá você causou excelente impressão, minha querida

— disse a sra. Revelstoke. — Telefonei a Monkford e ele se mostrou arrebatado diante de seu encanto. Telefonei a ele...

— Arrebatado por mim? — perguntou Nora surpreen­dida. — Como, se só me viu ligeiramente? Na certa a senhora o compreendeu mal. Ele deve ter falado do Destino negro.

— Que é isso de Destino negro? — perguntou Henry, erguendo os olhos do prato.

Em poucas palavras, picantes e sarcásticas, a sra. Re­velstoke descreveu a estatueta que mandara ao banqueiro.!

— Então encontrou-se com Jackson Crayley, hein? — perguntou a mulher. — Que tal o achou?

Evidentemente, Crayley não era muito apreciado pela velha nem pelo advogado. Como a conversa esfriasse, Nora disse algo de que se arrependeu. Falou no Bando Terrível. Não tinha razão para não fazê-lo, mas não pôde evitar a sen­sação desagradável de quem trai um segredo. Tão forte foi essa sensação que a moça fez um enorme esforço para que o assunto recaísse de novo sobre Monkford. Os olhos escuros da sra. Revelstoke estavam alerta, observando-a.

— Receio que seu policial a tenha impressionado, Nora — disse, de bom humor. — Acha que não devia ter falado do Bando Terrível, não?

— Não se preocupe por ter contado esses horríveis se­gredos — sossegou-a o advogado. — Já ouvi rumores a res­peito, mas a coisa é muito absurda. Shelton, de cuja vida estou perfeitamente a par... afora a Scotland Yard, sou eu, provavelmente, quem possui o maior número de dados... sempre se manteve isolado. Não tinha amigos, parentes nem colaboradores íntimos. Foi por isso que pôde fugir da polícia durante tantos anos.

Dirigia-se ao mesmo tempo às duas senhoras.

— A vingança organizada é desconhecida neste país. Aliás, por que alguém pensaria em voltar-se contra o juiz, o promotor e o carrasco, que foram apenas instrumentos no processo de que resultou a condenação de Shelton? As únicas pessoas que poderiam guardar-lhe animosidade seriam aquelas que lhe votassem forte afeição pessoal, como algum parente, e nós sabemos que o homem não tinha nenhum.

— Long contou-lhe alguma coisa, qualquer ação espe­cial que o Bando Terrível tivesse praticado? — perguntou a sra. Revelstoke.

— Não. Ele só receia...

— Quem é ele? — perguntou a sra. Revelstoke.

Foi então que Nora veio a saber que Long pertencia a uma família abastada.

— Qualquer dia virá a ser baronete e receberá perto de dois milhões de libras — respondeu Henry —, o que muito contribui para sua impopularidade na Scotland Yard, onde receiam que lhe seja conferido um cargo de favoritismo.

Para Nora, o resto daquela noite não oferecia mais in­teresse. Depois do jantar, a velha retirou-se com Henry para o gabinete contíguo à sala de visitas, a fim de tratar de seus negócios. Estavam ambos ainda conversando quando Nora bateu à porta para dar boa-noite.

Tinha muito em que pensar.

O relógio da igreja batia uma hora quando Nora caiu num sono agitado, do qual foi despertada por uma leve pan­cada na porta.

— Está dormindo?

Era a sra. Revelstoke. A moça, levantando-se, vestiu um roupão e abriu a porta.

— Sinto incomodá-la. Posso entrar?

Nora acendeu a luz. A sra. Revelstoke entrou.

— Henry perguntou-me se podia... dedicar-lhe afeto. — Falava com voz tão calma que a moça se surpreendeu.

— Afeto?

— Ele quer se casar com você e, naturalmente, res­pondi que isso não era comigo, e que eu não a influenciaria. Boa noite.


 

O chefe de polícia mostrava-se bastante aborrecido no momento em que Betcher conferenciou com ele, naquela noite.

— Bando Terrível! Betcher, estou farto de você e de seu Bando Terrível! Quem são eles? Onde estão?

— Chamo-os de Bando Terrível e tenho razões para isso. Não me pergunte quem é o chefe. O bando está invisí­vel. Do contrário, teríamos o fio da meada que procuro. A quadrilha de Shelton? Ele nunca teve quadrilha. Ao que sabemos, sempre trabalhou só. Entretanto, não juro que isso seja verdade. Ele era como um homem que se vê somente quatro dias por ano; temos que fazer conjeturas sobre o emprego dos outros 361 dias! Agentes! Centenas deles! Que aconteceu a sir James, Crewe e Wallis?

— Acidentes em todos os casos — murmurou o chefe de polícia, enfadado.

— Chama acidente o fato de eu ter sido alvejado esta tarde? Chama acidente o fato de o Lanceiro ter atirado con­tra mim e ter sido, por sua vez, liquidado?

— O Lanceiro não gostava de você; procurou abatê-lo e, vendo que errara o alvo, suicidou-se.

Era com manifesta incredulidade que na Scotland Yard se ouvia falar do Bando Terrível.

Tirando a morte do irmão mais velho de Monkford, as outras eram consideradas acidentes, dos quais Betcher dis­cordava. Sir James Cargill, o juiz que tinha julgado e con­denado Shelton, morreu repentinamente poucos meses depois da sentença, mas em circunstâncias perfeitamente naturais. Contraíra sarampo durante uma visita às províncias e estava em convalescença, quando apanhou um resfriado: sobreveio uma pneumonia que o matou. A enfermeira cometeu a im­prudência de deixar aberta metade da janela numa noite úmida de chuva.

O caso do promotor foi mais sensacional. Purley Crewe, conselheiro do rei e decano dos conselheiros do Tesouro, des­truiu todas as defesas que o assassino apresentou. Na semana emque Shelton foi executado, Crewe ia participar de uma caçada em Norfolk. Parou em Norwich, de onde partiu às nove horas para o lugar da caçada. Há um sítio chamado Eveleigh Hollow onde a estrada, depois de um declive rápido, sobe em ângulo agudo. Do alto da colina ele avistou, por cima do espesso véu de cerração que cobria o declive, a estrada que subia do outro lado. Buzinando, precipitou-se colina abaixo, em alta velocidade.

No meio da descida havia um pequeno rolo compressor, atravessado. O chofer quebrou a perna e Crewe faleceu na mesma noite, no hospital de Norwich.

O terceiro caso foi mais sensacional ainda, sob o ponto de vista público. O carrasco que executou Shelton foi William Wallis, primeiro ajudante do carrasco oficial. Wallis, nos intervalos das execuções, dedicava-se a consertar calçados numa modesta oficina fora de Oldham. Era um apaixonado do cinema. Voltava de uma de suas excursões habituais na véspera do Natal que se seguiu à morte de Shelton quando encontrou um velho camarada, Herbert Starr. Entraram juntos numa taberna e tomaram algumas bebidas antes de continuar a caminhada. A neve caía pesadamente e tinham de andar quase dois quilômetros. Na madrugada seguinte, o oficial de polícia Bently, da delegacia de Lancashire, cavalgava sozinho pela estrada erma e triste que separava Oldham da vila onde Wallis e seu amigo moravam. Passando perto de um terreno dividido em lotes, deparou com dois bonecos de neve de forma singular. Apeando, afastou a neve com o pé: achou Starr e depois o carrasco. Estavam ambos mor­tos. Uma garrafa de uísque pela metade encontrava-se junto deles. A hipótese formulada era a de que, embriagados, ha­viam sido soterrados pela tempestade de neve.

Betcher chegou ao lugar pouco depois de terem sido des­cobertos os corpos. Três fatos mais tarde vieram à luz. O primeiro foi que o uísque não provinha da taberna onde os homens haviam estado, nem fora visto em poder deles. O segundo era que a rolha fora tirada no lugar onde os ho­mens haviam sido achados e nenhum dos dois tinha saca-rolhas. O terceiro só foi descoberto muito tempo mais tarde. Um sapateiro, que trabalhava por conta própria, comprou a ferramenta de Wallis e, tendo ferido um dedo com uma sovela, apareceu uma semana depois com tétano. Betcher recolheu a ferramenta e mandou examinar. Verificou-se que quase todos os instrumentos estavam envenenados.

Betcher, por seu turno, tinha escapado duas vezes da morte, uma na cadeira de um dentista e outra nas mãos de desconhecidos. Quem substituíra o cilindro de anestésico empregado pelo dentista por outro absolutamente idên­tico, contendo o mais mortífero dos gases conhecidos?

MacFarlane puxou o bigode grisalho numa careta ner­vosa, pois pela terceira vez numa semana o inspetor Long discorria sobre a sorte dos três homens que haviam contri­buído para a condenação de Shelton.

— Admito a possibilidade de que você tenha razão. E se Joshua Monkford for assassinado, minha última dúvida se dissipará.

— Acha então que Monkford deva ser morto para con­vencer a Scotland Yard?

— Por certo que não. Sua obrigação é evitar que o fa­çam desaparecer. Já tomou providências?

— Tenho dois oficiais em Marlow e dois detetives particulares da Associação dos Banqueiros. Mas não é em Mar­low que está o perigo.

— Onde, então?

— Em Little Heartsease. É uma espécie de clube de turistas dirigido por um homem chamado Cravel. É a última palavra em conforto.

MacFarlane fitou por um momento a pasta que estava sobre a escrivaninha e disse:

— Há um traço particular em Shelton. Não sei como nunca percebeu isso, Long.

— Qual é? — perguntou ele, esperando ouvir qual­quer coisa sem importância.

— Ele nunca roubou a seu pai. Betcher o encarou.

— É verdade, nunca roubou! — exclamou, surpreendido.

O pai de Long era chefe de uma das maiores associações bancárias da cidade.

— É sem dúvida estranho — continuou o detetive.

MacFarlane tinha conseguido o que parecia impossível: fornecera a seu subalterno matéria para reflexão.


 

Betcher, depois da entrevista com o chefe, tomou um táxi para Berkeley Square. Nos doze últimos meses não tinha feito sequer uma dúzia de visitas ao pai.

— É uma batida da polícia ou um ato de piedade filial? — indagou sir Godley, ao vê-lo.

— Nem uma coisa nem outra. Mas queria fazer-lhe uma pergunta: o senhor é membro da Associação dos Ban­queiros?

— Meu banco faz parte da Associação, mas não tenho cargo oficial. Weldon nos representa.

— Já ouviu falar no Bando Terrível?

— Tenho ouvido falar de muita gente terrível. A que grupo particular você se refere? Quer dizer a quadrilha sobre a qual tem escrito?

Betcher fez que sim com a cabeça.

— Não, não ouvi falar nela. Naturalmente conheci Shelton de nome. Ele nunca tentou tirar uma só moeda de nosso banco. Pensa seriamente que Monkford corre perigo?

— Penso seriamente que é um homem morto — res­pondeu Betcher, em tom tão grave que o pai estremeceu. — Quer ser franco comigo?

— Procurarei ser.

— Por que Shelton nunca tentou um golpe contra seu banco?

— Talvez não nos achasse bons o bastante. — E, de­pois de uma pausa: — Arnold, se você pensa que o Bando Terrível é perigoso, por que diabo não o larga? Não há mo­tivo nenhum para que continue nessa profissão. Você já se divertiu bastante... Bem, suponho que seja um trabalho di­vertido. Agora posso oferecer-lhe uma posição realmente boa no banco.

— Essa é a segunda oferta importante que me faz, con­tando com a do ano passado — disse Betcher pausadamente. — Quando lhe comuniquei que andava no encalço de Clay Shelton, há pouco mais de um ano, o senhor me ofereceu dez mil libras anuais para tomar conta de sua filial na América do Sul. Estava tão desejoso de que eu deixasse a polícia como agora. Por quê?

— Que camarada desconfiado! — disse sir Godley, rindo.

A conversa caiu então em assuntos sem importância. Não falaram mais em Shelton nem no Bando Terrível. Era quase meia-noite quando Betcher se retirou. O pai acompa­nhou-o até a porta. Long esperou que esta se fechasse e ca­minhou em direção a Oxford Street.

Tinha percorrido uns cinqüenta metros quando alguém correu para ele. A luz, ele viu que se tratava de uma mulher.

Um choque!

A bala passou por perto. O tiro partira de um revólver com silenciador.

Um homem estacionava no meio da rua. Seria contra a mulher que estava atirando? Outra bala passou a menos de meio metro de distância de Long. Num segundo o detetive puxou a Browning. Antes que tivesse podido apontar a arma, a mulher, gaguejando, ofegante, alcançou-o e atirou-se em seus braços.

— Salve-me, salve-me... — balbuciou — do Bando Terrível!


 

O homem do meio da rua desapareceu, como se tivesse sido engolido pela noite. Betcher pôs o revólver no bolso e amparou nos braços a jovem, já meio desmaiada. Ouvindo alguém chamá-lo, voltou-se e deu com o pai, que vinha cor­rendo na sua direção, acompanhado de um empregado.

Juntos, carregaram a jovem para o gabinete de Godley. Era bem bonita, apesar de seus traços não serem finos. Examinando-a, Betcher ficou perplexo. Parecia já tê-la visto em qualquer parte, sem poder recordar-se de onde. Trajava um luxuoso vestido de baile. Trazia no peito um grande broche de brilhantes e seus dedos cintilavam, carregados de anéis.

Foi só depois que lhe deram um pouco de vinho, atra­vés dos dentes cerrados, que a moça recobrou completa­mente os sentidos e contou sua extraordinária história. Ela e o irmão eram proprietários de um hotel no campo; man­tinham um pequeno apartamento em John Street, onde cos­tumavam parar quando vinham à cidade. Tinha ido ao teatro; como a noite estivesse bonita, decidira voltar a pé, sozinha, para casa. Quando atingiu o fim de Berkeley Square, deu com um carro parado perto da calçada. Ao passar por ele, dois homens saltaram de dentro.

— Tinham os rostos cobertos por lenços. Fiquei tão aterrorizada que não pude me mover nem oferecer resis­tência quando me empurraram para dentro do carro. Em seguida apareceu um terceiro, que não sei de onde saiu, e disse: "Vocês são uns idiotas, esta não é Nora Sanders!"

— Nora Sanders? — indagou Betcher rapidamente. — Tem certeza do nome?

A moça fez um sinal afirmativo.

— O homem que me segurava ficou tão surpreendido que me largou. Eu corri. Ouvi dizer "Segurem-na" e logo após um tiro. É só do que me lembro.

— Conhece Nora Sanders?

— De nome. É secretária da sra. Revelstoke, que habi­tualmente vem a Little Heartsease, do qual meu irmão e eu somos proprietários, para passar a semana de golfe.

Betcher chamou um táxi e conduziu a moça para o apar­tamento dela.

Cedo, na manhã seguinte, partia para Berkshire e che­gava ao clube de turistas na hora em que a maior parte dos hóspedes cuidava do banho.

A primeira coisa que fez foi perguntar pelo proprietário. Informaram-lhe que o sr. Cravel tinha estado fora nas pri­meiras horas da manhã e que naquele momento tomava café em seu escritório particular. Um rapaz, corretamente trajado e de boa aparência, veio ao encontro de Betcher.

— Sim, soube da desagradável aventura de minha irmã. Ela me telefonou na noite passada. O senhor é o inspetor Long? Penso que há um quarto reservado para o senhor, para a próxima semana. Deseja vê-lo? É vizinho ao do sr. Monkford.

— Quero saber quais os hóspedes que vai ter na pró­xima semana.

— Posso mostrar-lhe a lista.

O detetive estudou a relação.

— A sra. Revelstoke é uma visitante habitual, pelo que vejo.

— Ela não se interessa propriamente pelo golfe, mas gosta da sociedade. A moça mencionada pela quadrilha que atacou minha irmã é secretária dela.

Betcher continuou a examinar a lista.

— Jackson Crayley é assíduo na semana do golfe.

— O sr. Crayley esteve aqui no ano passado. É nosso amigo. Talvez seja mais exato dizer que é amigo de minha irmã.

O detetive subiu para inspecionar seu quarto. Quando iam descendo a escada, o gerente indagou:

— Há alguma razão especial para que o senhor venha para cá? Sei que é uma indiscrição da minha parte... mas há alguma razão especial?

— Que razão poderia haver?

— Não sei. Mas temos ouvido os rumores mais estra­nhos a respeito de Monkford. Jackson Crayley, vizinho dele, diz que o homem vive sob o terror de ser assassinado.

— Jackson Crayley parece saber muita coisa a respeito dos vizinhos.


 

A sra. Revelstoke, que tinha por costume abrir a caixa das cartas para separar a correspondência, encontrou um pa­cote registrado para Nora e o entregou na hora do café.

Nora desembrulhou a caixa; levantou a tampa e então abriu a boca, espantada. Nunca tinha visto um brilhante tão grande como o que estava incrustado no anel de ouro.

— Tenho certeza de que não é para mim!

Mas tinha o endereço diante dos olhos. O pacote trazia o carimbo do correio de West End.

— Que velho maluco!

A sra. Revelstoke não pusera malícia na exclamação pouco lisonjeira.

— Quem? — perguntou a moça, desconcertada.

— Monkford... Quem mais poderia ser? O homem é sentimental como um rapaz de vinte anos!

— Monkford não pode ter mandado isso só porque me viu uma vez na vida!

— Deve então ter vindo de Henry. Vou telefonar a ambos e indagar.

— Por favor, não faça isso! — gritou Nora, assustada. — Eu ficaria muito constrangida. Se tivesse certeza de que foi Monkford...

Calou-se.

— Devolveria, não? A propósito, não haveria alguma possibilidade de ser o seu singular detetive o remetente de tão delicada lembrança?

— Não, claro que não. Por que teria sido ele? Os de­tetives são tão endinheirados a ponto de poder mandar bri­lhantes às pessoas a quem admiram?

— Long é. Você esquece, minha querida, que o pai dele é muito rico? ,

— Que vou fazer com isso?

— Guardá-lo. A coisa acabará se esclarecendo.

Ao voltar das compras em Westbourne Grove, Nora encontrou a sra. Revelstoke na sala, em companhia do advogado.

— Não foi Henry quem mandou o anel — disse-lhe a velha, deixando-a confusa. — Eu apostaria todo o dinheiro que tenho como foi Monkford quem o mandou.

— Mas o sr. Monkford não me conhece!

— Ele é um romântico... Telefone para Heartsease e pergunte a Cravel se pode conseguir mais um quarto para quarta-feira à noite, Henry vai até lá e será o único homem no hotel que sabe jogar golfe.

A moça passou para a biblioteca a fim de cumprir as ordens que acabava de receber.

Isso feito, correu para o quarto e, apanhando a caixa de couro azul, examinou o anel de novo. Não seria mulher se, apesar de seu embaraço, não se sentisse satisfeita de possuir jóia tão bela. Desejou poder ver Betcher Long e pedir-lhe um conselho.

A sra. Revelstoke jantaria fora aquela noite. Dispensou a assistência de sua secretária. Habitualmente Nora ia com ela a toda parte. Não era costume da velha senhora aparecer sem a moça.

— Vá ao teatro ver alguma coisa alegre e bonita e es­queça tudo a respeito de gente misteriosa, especialmente da pessoa que lhe enviou a jóia da família. Sim, porque o anel é velho; não reparou?

Nora jantou só. Tinha acabado a refeição e estava lendo o jornal da tarde quando a empregada entrou.

— Pode receber o sr. Long?

— O sr. Long? — perguntou a moça, embaraçada. — Sim. Leve-o à sala de visitas.

Talvez houvesse um outro sr. Long; não era um nome pouco comum. Mas era efetivamente Betcher quem estava de pé diante da lareira apagada, olhando com calma para o grande retrato a óleo de uma linda moça vestida à moda de 1860 que estava pendurado na parede, a sua frente.

— Olá! — gritou ele, com seu modo descontraído. — A sra. Revelstoke, presumo, naquele período da vida em que tudo é cor-de-rosa, não?

Nora, reparando na pintura, descobriu então que aquele retrato que diariamente via era, de fato, da sra. Revelstoke, quando moça.

— Vai a Heartsease na próxima semana? — indagou o detetive e, ouvindo a resposta afirmativa: — Joga golfe?

— Jogo, mas não me animo a fazer isso em Heartsease. Por que me faz essa pergunta? E quais são as notícias do Bando Terrível?

Betcher suspirou.

— Esperava que tivesse esquecido tudo a esse respeito. Voltou-se novamente para o retrato da sra. Revelstoke.

— Bonita moça. Admira que nunca tenha se casado. Nora mal o escutava. Inquieta, estava na dúvida se devia ou não falar no anel. Naquela tarde se sentira ansiosa por tal oportunidade, mas agora... Se tivesse sido ele? Armou-se de coragem e perguntou:

— Costuma mandar presentes?

Ele levantou as sobrancelhas, surpreendido.

— Eu? Deus me livre! Alguém lhe mandou um pre­sente? Deixe-me vê-lo.

— Por que devo mostrá-lo?

— Porque tenho curiosidade em ver os presentes man­dados a... às moças, aos amigos, quero dizer...

Ela hesitou um segundo e depois subiu para o quarto. Trouxe a pequena caixa e levantou-lhe a tampa. O rapaz olhou por um instante e depois, pegando o anel, aproximou-se da janela.

— Quem o enviou?

— Não sei. Veio pelo correio, registrado, esta manhã, e a sra. Revelstoke pensou...

Fez uma pausa.

— Bem, acha que é presente de um amigo dela, um homem que vi uma vez só na vida.

— Monkford? Nora corou.

— Na verdade, acho que não devemos fazer conjeturas a respeito do remetente. Desejo saber quem foi só para de­volvê-lo. E depressa.

Betcher examinava o anel com atenção, virando-o e revi-rando-o entre os dedos, olhando para o interior do aro, como se estivesse procurando algum sinal que houvesse escapado à jovem.

— Experimentou-o no dedo?

— Não — respondeu ela, surpreendida.

Betcher pegou-lhe a mão e experimentou o anel. Nota­va-se que, inicialmente feito para um dedo maior, fora di­minuído mais tarde.

— Serve no seu dedo anular. Agora resta saber como teriam acertado a medida.

— Quem? Monkford?

— Não. Monkford não mandou isto; ao menos é a mi­nha opinião.

Refletiu um momento.

— Irá a Heartsease, não? — perguntou pela segunda vez. — Onde fica seu quarto lá?

— Não sei — respondeu Nora, admirada. — A sra. Re­velstoke costuma ocupar um dos melhores apartamentos.

— Quem vai ficar ao lado da senhorita e da sra. Revelstoke?

— Ninguém. Oh, sim! O sr. Henry, advogado da sra. Revelstoke, irá passar um dia lá.

— Crayley é amigo da sra. Revelstoke?

— Por quê? Naturalmente, sim. Também estará lá?

— Sim, ele irá. E eu também.

A porta abriu-se naquele instante e, com grande sur­presa, Nora viu entrar a sra. Revelstoke. Sorriu para a moça e, por um segundo, fitou o anel que ela ainda tinha no dedo, olhando depois para o detetive.

— É este o sr. Long? — indagou, com um sorriso zombeteiro. — Foi ele quem mandou a lembrança?

Nora ia responder quando, para seu espanto, Betcher Long fez um sinal afirmativo.

— Sim, senhora, e confesso isso com franqueza. Há anos que este anel está em poder da família. Meu tio com­prou-o em Copenhague em 1862! 4

Os olhos escuros da sra. Revelstoke não pestanejaram, mas seu rosto repentinamente tornou-se lívido.


 

Nora continuava em pé, paralisada, olhando para um e para outro com olhos espantados. Qual o significado da extra­ordinária mentira de Betcher? Tinha certeza de que não fora ele quem mandara o anel; aliás ele próprio tinha dito isso. Todavia, na presença da sra. Revelstoke, não só decla­rara ser o remetente como inventara a história da jóia.

O efeito das palavras do detetive sobre a sra. Revelstoke era ainda mais assombroso. Nunca, na sua convivência com a velha, Nora a vira tão abalada.

— Quer passar para o meu gabinete? Há duas coisas sobre as quais gostaria de lhe falar — disse por fim a dona da casa.

— Como não! — Betcher refletiu um momento. — Te­rei muito prazer em conversar com a senhora, mas antes gos­taria de saber se esta moça aceita o anel que lhe mandei...

A sra. Revelstoke olhou para Nora.

— E então? — perguntou asperamente.

— Penso que não devo aceitar um presente tão bonito. E Betcher, com surpresa, recebeu o estojo que ela lhe estendia.

— Receava que não aceitasse — disse, metendo a caixa no bolso. — Agora estou às suas ordens, sra. Revelstoke.

Por um segundo ela ficou imóvel. Depois, com visível esforço, voltou-se. Betcher a seguiu até o pequeno gabinete contíguo à sala de visitas.

— Naturalmente, sinto-me responsável pela srta. San­ders — principiou ela —... e quando... lhe mandam presentes caros, julgo estar autorizada, como uma senhora velha e de idéias atrasadas, a comentar a situação. O senhor é um cavalheiro, um homem de universidade, creio. Não há razão para que não possa dedicar seu afeto à srta. Sanders. Só acho um pouco estranho que...

— Que eu lhe envie presentes de valor na atual fase da nossa amizade? É realmente estranho, admito. De fato, é a coisa mais estranha que já fiz na vida. Meu tio...

— Não estou muito interessada na história de sua famí­lia. Quero é saber com certeza quais os seus sentimentos para com a srta. Sanders.

— Serei franco com a senhora. Não amo sua secretária e não me parece que venha a apaixonar-me por ela. Não é meu tipo, e nada está mais fora de meus pensamentos do que o matrimônio.

— Quase não acredito! Na verdade, tinha a impressão de que o senhor estava apaixonado... Então o presente foi um capricho momentâneo? Quer me deixar ver de novo o anel?

O detetive tirou a caixa do bolso e a entregou. Sem dei­xar perceber o que ia fazer, ela levantou-se, correu para um cofre que havia na parede e nele encerrou rapidamente a jóia.

— Acho preferível guardar este presente até que o se­nhor tome uma resolução definitiva. Possivelmente Nora, que é muito moça, mudará de idéia. Creio que não será necessário que o avise quando isso ocorrer.

Levantou-se e estendeu-lhe a mão gelada.

— Boa noite, sr. Long, e felicidades. Os olhos dele exprimiam admiração.

— Irá a Heartsease, sra. Revelstoke? No seu caso, eu não iria...

— Eu poderia muito bem devolver-lhe esse conselho — disse ela.


 

Quando Betcher Long voltou a seu gabinete na Scotland Yard, o empregado, que passara a manhã fazendo pesquisas em documentos no arquivo público e lhe dera notícias que o deixaram sufocado, comparecia agora para completar suas informações, trazendo fatos ainda mais imprevistos. Deu algumas instruções a seu ajudante, que o fizeram partir ime­diatamente para apanhar o expresso do norte. Voltando a seu apartamento em Saint James Sreet, encontrou a mala pronta e amarrada no carro. Telefonou para Marlow e soube pela governanta de Monkford que o banqueiro já havia se­guido para Heartsease. Era seu costume chegar dois dias antes do início das festas, e tinha ido para lá na companhia de um cavalheiro que hospedara, cujo nome era Rouch, sar­gento do Departamento de Investigações Criminais.

Betcher descobriu sobre a mesa uma carta e chamou o mordomo.

— Há quanto tempo isto está aqui?

— Veio pouco antes de o senhor chegar.

— Quem a trouxe?

O homem informou que havia encontrado o envelope na caixa de correspondência e o trouxera para a mesa.

O endereço estava escrito a lápis, com uma letra de quem não sabia escrever. A goma do envelope ainda era fresca. Dentro havia um papel sujo, no qual se lia:

 

Não vá a Heartsease.

 

Nada mais continha o papel. Betcher virou-o em todos os sentidos e colocou-o cuidadosamente numa gaveta, para mais tarde examinar as impressões digitais. Saiu. A chuva con­tinuava. O motorista tinha levantado o capo e estava fechando o pára-brisa quando ele apareceu.

— Não preciso de você, Marchant. Fique em Londres; é mais seguro. Você tem mulher e filhos...

E subiu no carro.

Eram nove da noite quando chegou a Heartsease. Tinha chovido durante todo o dia. Entregou o automóvel ao guarda da garagem e entrou no grande vestíbulo à moda antiga. Ape­sar de faltarem dois dias para a abertura do torneio de golfe, o hotel estava repleto. Encaminhou-se para a portaria. E a moça que estava atrás do balcão era toda sorrisos quando o cumprimentou. Era Alice Cravel.

— O sr. Monkford está a sua espera. Conhece o apar­tamento, sr. Long?

— Quer me dizer uma coisa, senhorita? — perguntou o detetive, em voz baixa. — Quem é que paga a minha conta?

— O sr. Monkford, naturalmente.

Monkford tinha jantado em sua sala particular. Estava muito alegre e amável. Na vinda, parará numa loja de curio­sidades de Guilford, onde descobrira alguns espécimes autên­ticos de vidro de Bristol.

— A propósito, o Destino negro é uma falsificação. Te­nho de escrever à sra. Revelstoke, mas ela deve chegar aqui na próxima semana. Uma falsificação! Uma imitação alemã. Os Berthini descobriram logo o embuste. Não sei se devo informar a sra. Revelstoke. Temo melindrar a querida amiga.

— A sra. Revelstoke é muito rica?

— Sim. Bastante rica. Na verdade, foi muito rica. Vive muito simplesmente e seu rendimento é grande.

— Quanto?

— Lido há muito com os negócios dela, desde o tempo em que era banqueiro no interior. Houve uma ocasião em que atingia enorme soma. Presumo que era depositária dos bens do irmão. Lembro que, quando o depósito foi transfe­rido para Londres, quase nos foi retirado. Ofereceram-no a seu pai, sr. Long, mas, por motivo que ignoro, ele não quis aceitar. Naquele tempo ela possuía quase um milhão.

Isso era novo para Betcher. Ele sabia que o pai era muito esperto em negócios e que não se pouparia incômodos para conseguir um depósito de tais proporções.

— Não é notável? Refiro-me à recusa, claro.

— Sim, extraordinária — respondeu Monkford. — Muitos banqueiros teriam se precipitado sobre o negócio e não foi por amizade a mim que Godley não aceitou.

Quando Betcher o deixava para ir dormir, disse-lhe o banqueiro:

— Gostaria de saber se a sra. Revelstoke vai trazer aquela moça...

— Refere-se à srta. Sanders?

— Sim... uma moça encantadora — disse, quase fa­lando consigo mesmo. Depois, tão bruscamente como tinha começado, mudou de assunto. — Crayley chega amanhã. Não gosta dele?

— É muito difícil gostar de uma criatura que não tem outra preocupação na vida senão parecer idiota e cultivar rosas.

Sem alarmar o banqueiro, Betcher fez-lhe uma inspeção minuciosa nos aposentos.

No dia seguinte, domingo, passando pelo salão, à noite, Betcher avistou um rosto familiar. Encaminhou-se para aper­tar a mão de Jackson Crayley.

— Tempo infame! — resmungou o homem, cofiando o bigode amarelo. — E me deram um quarto diferente este ano. Aquela Revelstoke alugou o aposento que habitual­mente ocupo. Estou profundamente contrariado.

— O senhor não gosta da sra. Revelstoke?

— Odeio! — disse Crayley, com uma veemência ines­perada. — Vou subir para ver o... "coisa".

Era uma excentricidade sua nunca se lembrar dos nomes. Betcher compreendeu que se referia a Monkford. Mais tarde, avistou Crayley conversando com a srta. Cravel, que habitual­mente, àquela hora, era substituída pela empregada. Per­guntou a si próprio que interesse comum poderia haver entre os dois...

A terça-feira chegou e o grande torneio começou. O extenso gramado desaparecia, coberto por sombrinhas de cores alegres e mesas de chá.

Não era de admirar que Monkford tivesse muitos ami­gos. Era figura popular na City, em Londres, e, como fosse homem culto, tinha relações entre escritores e artistas. As visitas formigavam em seu quarto o dia inteiro. Além do passeio que dava com Betcher de manhã, poucas vezes dei­xava o hotel.

Excetuando a noite de chegada, fazia sempre as refei­ções na grande sala de jantar, o que constituía um de seus maiores prazeres, bem como o de apreciar durante a noite a gente que se apinhava no salão. E, como os dias se pas­sassem sem sinais de perigo, ele esqueceu seus receios. Na quinta-feira, foi eleito presidente da comissão de danças e entregou-se à tarefa de organizar o baile a fantasia que devia encerrar a semana das festas.

Naquela noite o detetive, espiando de sua janela, viu o banqueiro passeando no gramado, de um lado para outro, em animada conversa com Henry e Crayley. Andaram du­rante meia hora; o assunto devia ser importante. Uma vez Monkford olhou para cima e o viu, mas não fez o cumpri­mento de mão que Betcher esperava.

Não demoraram a entrar. Pouco depois, Betcher per­cebeu que três homens conversavam na sala contígua a seu quarto. A conversa durou cerca de quinze minutos. Entrando então na sala, Betcher encontrou o banqueiro sozinho, no­tando que algo havia ocorrido que o deixara amuado.

— Algum problema?

— Em certo sentido, sim — respondeu Monkford, la­cônico. — Se quiser me procurar logo depois do jantar, po­deremos tratar de um assunto que muito me penaliza.

Betcher quase sempre jantava com Monkford. Justa­mente quanto se vestia para descer, o empregado do ban­queiro apareceu, entregando-lhe um bilhete.

Não se opõe a jantar em outra mesa esta noite? Tenho alguns assuntos a tratar com Henry e Crayley.

Long ficou mais surpreso do que aborrecido. Quais po­deriam ser as novas preocupações de Monkford? Procurou descobrir o segredo, mas não pôde lembrar-se de nada que o banqueiro lhe tivesse dito e que pudesse explicar essa ines­perada decisão.

Avistou-o no jantar. Mas o mais importante para ele era ficar instalado numa mesa perto da ocupada pela sra. Re­velstoke e sua secretária. Encarando a moça por um segundo, lembrou-se, com remorso, de que ainda não tinha lhe expli­cado (e provavelmente nunca chegaria a fazê-lo) as mentiras que forjara a respeito do anel.

A ligeira reverência que lhe fez a sra. Revelstoke era em si graciosa. Tinham os olhos da velha uma maliciosa expressão de triunfo que deu o que pensar a Betcher. Acabado o jantar, ele tomava café no salão quando Joshua Monkford chamou-o:

— Suba a meu quarto daqui a cinco minutos!

Ele esperou que passassem cinco minutos e caminhou para o elevador.

A saleta estava vazia quando entrou. Mas ouviu a voz de Monkford. Parecia falar ao telefone.

— Olá, olá... quem foi que...

Havia no seu tom de voz uma fria ameaça que impres­sionou Betcher.

Depois, escutou-se um estampido e o ruído da queda de um corpo. Betcher correu para forçar a porta e, lembrando-se de que devia estar fechada e aferrolhada pela parte de dentro, precipitou-se para o corredor. A porta de fora também estava fechada.

Atirou-se contra ela. Mas era de carvalho, sólida; resis­tiu aos esforços. Olhando em torno, ele viu Cravel, que corria escada acima, com a fisionomia consternada.

— Foi um tiro? — inquiriu à meia voz, horrorizado. Betcher fez que sim com a cabeça.

— Abra esta porta!

— Não tenho aqui com quê... Espere. — Correu para baixo.

Não demorou em voltar trazendo uma gazua, que 'meteu na fechadura, abrindo a porta.

Joshua Monkford jazia inerte no chão, com o rosto para baixo e as mãos crispadas no receptor do telefone. No quarto havia um cheiro acre de cordite.


 

Monkford estava morto. Isso o detetive verificou em seguida.

 — Chame um médico.

 — Está morto? — suspirou o gerente.

— Chame um médico. Faça o que lhe digo — insistiu Long.

Ficando só, Betcher encostou a porta. Atravessou o quarto para o banheiro: também estava fechado e aferrolhado, assim como a porta da sala. Manias de Monkford. As janelas se achavam fechadas, porque a noite estava fria, e além disso tinham sido corridos os ferrolhos.

Acima das janelas havia vitrôs estreitos, e só esses esta­vam abertos. Betcher abriu uma das janelas e olhou para baixo. O teto de vidro do restaurante estava iluminado e não mostrava sinal de escada.

Ele deu um suspiro. Ali estava um homem morto num quarto de difícil acesso; era realmente impossível entrar, a não ser pela porta que a gazua do gerente havia aberto.

Quando saía para o corredor, Cravel vinha correndo com uma expressão assustada e falando, excitado, com a empregada que o acompanhava.

— Sr. Long, acaba de acontecer algo no quarto da srta. Sanders! A camareira ouviu...

Antes que tivesse concluído a frase, o detetive já se pos­tara na metade da escada.

O quarto da moça estava fechado. Espiando pela fecha­dura, ele divisou um fio de fumaça suspenso no ar... Então ouviu às suas costas alguém que lhe perguntava:

— Que deseja, sr. Long?

Deu um pulo. Era Nora Sanders.

— Traz a chave?

Quase arrancou a chave das mãos da moça; abriu a porta e entrou. Devia ter havido qualquer explosão ali; ainda sentia-se o cheiro. Um papel branco fumegava na pedra da lareira. Betcher apanhou-o e meteu-o sem hesitar no jarro de água do lavatório.

Num segundo estava fora do quarto e subia os degraus, dois a dois. Tinha deixado o gerente no quarto de Monkford e agora o encontrava do lado de fora, no corredor. A porta estava fechada.

— Pensei que fosse melhor fechá-la, enquanto o senhor não estava.

Betcher fez um sinal de agradecimento e entraram juntos no quarto. Nesse ínterim chegava um dos detetives de ser­viço no hotel. Fazendo sair o gerente, os policiais trancaram a porta e deram início a um exame minucioso. O receptor do telefone tinha caído ao chão e estava misturado com o sangue do banqueiro. Não havia ninguém no quarto quando Betcher abrira a porta, disso tinha certeza. Não havia lugar onde um homem pudesse se esconder. Depois começou o exa­me da parede, centímetro por centímetro, batendo num pai­nel, enquanto seu ajudante examinava o outro. O teto era de estuque. Não havia cano de chaminé, exceto um respi­radouro para esgotar o ar quente produzido por uma estufa elétrica. Apanhou o telefone, secou-o numa toalha e ligou para o escritório. Foi a srta. Cravel quem atendeu.

— É o sr. Long? — perguntou. — É verdade? Falava em voz baixa; naturalmente havia outras pessoas naquela parte do edifício.

— Quem telefonou para o sr. Monkford, cinco minutos atrás? — indagou Betcher.

— Ninguém. Foi ele quem chamou. Respondi, e depois penso ter ouvido um disparo.

O detetive largou o aparelho, pois alguém batia à porta. Era o médico, também hóspede, que fora chamado às pressas. Olhou para o corpo inanimado e abanou a cabeça.

— Suicídio? — indagou, levantando-se, depois de exa­minar o corpo. — A lesão parece produzida por uma bala de pistola automática.

Essa hipótese fora a primeira que ocorrera ao detetive, mas não havia sido encontrada nenhuma arma, a não ser a pistola Browning que Monkford usava para defesa própria, Mas esta fora encontrada dentro de uma gaveta da escriva­ninha, sem sinal de uso.

Como o crime poderia ter sido cometido? Pois era evi­dente que se tratava de um assassinato.

Betcher terminou a inspeção e foi à procura de Crayley.

— Agora escute, Crayley. Vou lhe fazer algumas per­guntas. Aquele jovem advogado e você estiveram com ele hoje. Vocês lhe disseram alguma coisa que o desgostou. Qual foi o assunto da conversa?

— Não estou autorizado a falar. É melhor que pergunte a Henry. Diz mais respeito a ele do que a mim.

Betcher foi à procura do advogado e soube, então, que o sr. Henry tinha deixado o hotel imediatamente depois do jantar e devia estar a caminho de Londres.


 

A sra. Revelstoke levou a notícia a Nora. A velha esta­va visivelmente agitada e passeava pelo quarto sem parar.

— Esteve ameaçado de morte muito tempo, segundo me contou Crayley, mas naturalmente não acreditei. Era por isso que o detetive estava aqui. Belo detetive! Simpkins diz que nenhuma arma foi encontrada.

— Quem poderia tê-lo matado? Não faça perguntas tolas, menina — disse a velha com rudeza. — Está morto e basta! Tudo quanto posso desejar é que o banco não sus­penda os pagamentos. Quanto ao sr. Long... bem, ele não goza de reputação muito invejável na Scotland Yard, e isso poderá pôr fim à sua carreira.

— A senhora... a senhora não gosta do sr. Long?

— Com certeza ele vai acusar o Bando Terrível — con­tinuou a velha. — O Bando Terrível é provavelmente uma invenção dele para desculpar seus erros. Se eu gosto de Long? Herr Gott! — E, depois de uma pausa, prosseguiu: — Nora, todas as mulheres têm alguma coisa no passado que não dese­jam que venha a público. Por extraordinária casualidade, Long desentranhou uma de minhas velhas maluquices, que eu pensava estivesse morta e enterrada. Não quero lhe contar, você se aborreceria e pensaria que eu estava louca. Foi em Copenhague, quando eu era muito menina.

Soltou um profundo suspiro.

— Fiquemos nisso. Não, não gosto de Betcher Long. A moça permaneceu silenciosa.

— Que história foi essa de explosão no seu quarto, No­ra? — perguntou de repente a sra. Revelstoke.

— Eu não sabia de nada até ver o sr. Long à porta de meu quarto. Uma das empregadas disse ter ouvido três ou quatro tiros e que havia qualquer coisa queimando na lareira. Quando o sr. Long e eu entramos, vimos que o que queimava era uma tira de papel branco.

— Que aconteceu depois? — perguntou a sra. Revels­toke, com curiosidade. Nora relatou-lhe o ocorrido.

Evidentemente, a velha senhora não pareceu ter ficado muito alarmada porque não fez mais referências ao caso. Desceu para se reunir aos hóspedes, deixando a moça prepa­rando as malas. Logo que soubera da tragédia, a velha resol­vera voltar para Londres. Nora estava entregue a sua tarefa quando bateram à porta. Era Cravel.

— Todos se retiram — disse ele. — Isso é a minha ruí­na! Espero que o fato seja esquecido entre este ano e o outro. Mas pretendo fazer grandes modificações aqui. Desmancha­remos o quarto onde ocorreu esse lamentável suicídio; posso fazer a escada passar por ele sem grande dificuldade.

Nora sentiu um certo mal-estar ao ver que Cravel pensa­va na própria fortuna. Isso devia ser natural, pensou, mas a serenidade com que ele apreciava a trágica morte de Monk­ford lhe inspirava certa repulsa.

Ao voltar, disse-lhe a sra. Revelstoke:

— Vi o seu detetive lá embaixo e ele me perguntou se poderia subir para lhe falar. Não posso atinar com a infor­mação que ele pretende tirar de você. Não vê inconveniente em ficar sozinha com ele, não? Só de ver esse homem fico irritada.

Pouco depois Long apresentava-se. Nora achou-o extre­mamente cansado e dominado pela emoção. Seu coração compadeceu-se dele.

Ao contrário do que Nora esperava, a velha não se mos­trou irritada com a visita, nem deu sinal de retirada.

— Então, sr. Long, descobriu alguma coisa?

— Não, exceto, naturalmente, que Monkford foi assas­sinado.

— Mas o gerente me disse que não havia ninguém no quarto quando entraram e que a única pessoa mais próxima quando Monkford foi alvejado era o senhor!

— Era eu? Esta hipótese havia me escapado, certamen­te — disse Betcher com ironia.

— Farei notar que foi a outros que ela ocorreu — repli­cou a sra. Revelstoke. — O sr. Cravel contou-me que estava no segundo andar quando ouviu um tiro e, correndo na dire­ção dele, encontrou o senhor procurando forçar a porta do quarto de Monkford. A chave não foi encontrada e Cravel disse que a porta não tinha sido aferrolhada pelo lado de dentro, pois de outro modo não poderia tê-la aberto com a gazua. Talvez a chave estivesse na porta...

— Isso pode ser uma hipótese — retrucou Long fria­mente. — Na realidade, estava no bolso do pobre Monkford.

As sobrancelhas da sra. Revelstoke arquearam-se interrogativamente.

— Cravel disse que a chave estava pendurada na portaria e que ainda está. Se o senhor achou outra no bolso de Monk­ford, ela não deve pertencer ao hotel.

Nora viu Betcher estremecer e um sorriso despontar-lhe no rosto.

— Aí é que está a coisa!

Seu repentino entusiasmo não passou despercebido à sra. Revelstoke.

— Aí é que está a coisa! — repetiu ela. — A que se refere o senhor?

— Sra. Revelstoke — ele estava quase jovial —, a se­nhora acaba de me fornecer a mais clara das soluções a este terrível e estranho mistério. Menti para a senhora quando lhe disse que havia encontrado a chave no bolso de Monkford. Menti intencionalmente e sei que a mentira provoca declara­ções...

Voltou-se para Nora:

— Ia fazer-lhe uma série de perguntas sobre a explosão, mas não é necessário. Agora sei de tudo, exceto como o homem que matou Monkford escapou do quarto.

— Essa — disse a sra. Revelstoke com um sorriso glacial — parece mais importante do que qualquer outra pergun­ta.

— É e não é — disse Betcher, falando mais consigo mesmo. — A indagação mais importante para a qual não achei resposta é: por que o sr. Henry esteve na delegacia de polícia de Staines às quinze para as nove, dando parte ao ins­petor de serviço do desaparecimento de seu relógio de pulso, que deixara aqui em seu quarto?

Os olhos da velha estavam desmesuradamente abertos e o sorriso tinha desaparecido de seu rosto.

— O senhor é terrivelmente misterioso, sr. Long.

— Mais misterioso ainda é que, no minuto em que Henry entrava na delegacia de polícia, Monkford era assassi­nado. Nunca vi álibi melhor!


 

Arnold Long fez uma rápida visita à cidade e ao voltar encontrou apenas meia dúzia de pessoas no grande refeitório. A estação estava evidentemente terminada.

Por insistência de Cravel, três marceneiros, desde manhã cedo, estavam removendo os painéis do quarto onde se dera o crime. O trabalho era executado sob a fiscalização do sargen­to Rouch.

Betcher subiu para inspecionar a demolição. As paredes tinham sido desguarnecidas até os tijolos, parte do soalho fora levantada, e o detetive não necessitava ser arquiteto para compreender que era impossível a quem quer que fosse ter entrado no quarto ou dele saído.

— Minha opinião — disse o sargento — é que o pobre Monkford foi alvejado por um atirador de Grundley Hill, que fica apenas a quinhentos metros daqui.

— As janelas estavam fechadas, e a bala que matou Monkford foi disparada a centímetros de distância — disse Betcher secamente.

Sacou do bolso um pequeno pacote, desdobrou-o e tirou de dentro o resto do papel que apanhara na lareira do quarto de Nora.

— Que é isso? — indagou Rouch com curiosidade.

— É tudo o que resta de um busca-pé, que foi atirado pela janela do quarto da srta. Nora para me afastar dos apo­sentos de Monkford. E eu, como um tolo, me deixei enganar. Enquanto estava ausente, algo aconteceu.

— O assassino fugiu?

— O assassino não podia ter fugido, porque o assassino não esteve lá. Rouch, você tem tudo o que um homem pode desejar, menos cabeça!

— Então, como ele foi morto? É muito fácil dizer que eu não tenho cabeça, sr. Long; mas encontra-se um homem morto num quarto fechado, e o único homem presente nas proximidades era o senhor...

— Você também cismou com isso? Sente-se, Rouch. Onde ouviu esse "o único homem presente nas proximida­des"? Quem esteve conversando com você?

— Em todo caso, é o que pensa Cravel — contestou encafifado o sargento. — Ele disse que era muito curioso que o senhor fosse a única pessoa que estava perto quando o tiro foi disparado.

— Traga Cravel aqui. Quero ter uma conversa com ele. Cravel não tardou em vir.

— Lembra-se, Cravel, de que, quando subiu, depois de ter ouvido o tiro, era eu quem estava em pé diante da porta, tentando abri-la, não?

— Não vá tomar a sério o que eu possa ter dito a Rouch. Apenas fiz notar que, tanto quanto se sabe, o senhor era a pessoa mais próxima de Monkford quando ele foi mor­to. Esse fato é tão evidente que não lhe permitirá pensar que sugeri...

— Não estou me preocupando a respeito do que você pudesse ter sugerido. Vou apenas fazer-lhe umas perguntas. Recorda-se de que me virei para você, perguntando se tinha a chave da porta?

Cravel acenou afirmativamente, tenso, com todos os sentidos em alerta.

— Recorda-se também de que desceu e voltou com uma gazua?

— Sim...

— Quem foi que a arranjou?

— O responsável pelo andar.

— Vá procurá-lo — ordenou Betcher a Rouch.

Não falou mais até o funcionário entrar no quarto.

— Você tem uma gazua para este pavimento? O rapaz fitou o patrão um instante e respondeu:

— Sim.

— Mostre-a...

De má vontade, o moço tirou a ferramenta do bolso e entregou a Betcher, que a meteu na fechadura da porta, ten­tando dar-lhe a volta.

— Não serve. Não é a do terceiro andar, não é verdade?

O rapaz não respondeu. Novamente olhou furtivamente para o patrão.

— Quem é que tem a gazua do terceiro andar?

O funcionário ficou sem jeito.

— Não sei... Provavelmente o outro responsável pelo andar.

— Vá chamá-lo — ordenou Betcher de novo, despedindo o moço com um gesto.

— Qual é a sua idéia, Long? — perguntou Cravel, quan­do ficaram a sós.

— Vou confiar-lhe o meu segredo — respondeu Long calmamente. — Quando Monkford foi para o quarto, depois de me convidar a segui-lo, não fechou a porta. Por que teria feito isso? E é óbvio para a inteligência mais medíocre que ele não poderia ter fechado a porta se não possuísse a chave. Portanto, é lógico pensar que a porta foi fechada por outra pessoa qualquer, ou por dentro ou por fora. Ouvi o sr. Monkford telefonar para o escritório e estou convencido de que ele ligou porque descobriu que a porta tinha sido fe­chada por fora. Ouvi-o dizer: "Quem foi que..." e depois o tiro. O que ele tentou dizer foi: "Quem fechou a porta?" Cravel estava branco como cal.

— Presumo ainda que quem fechou a porta foi você. A gazua estava no seu bolso, e sua corrida para ir buscá-la foi apenas um expediente para me iludir.

Nesse momento Rouch voltou para dizer que o funcio­nário que estava de serviço na noite do crime tinha saído de licença.

— Esperava qualquer desculpa desse gênero.

— Pretende também dizer — indagou Cravel — que, enquanto você lá estava, abri a porta e matei Monkford?

— Na minha opinião, você fechou a porta antes de ele ser morto, sabendo o que ia acontecer.

— É mentira! — berrou o gerente. — Nunca cheguei perto da porta. Por que a teria fechado? Você tem culpa no caso e está engendrando toda sorte de hipóteses fantásticas para salvar a pele!

Betcher avançou a cabeça para a frente até quase tocar na do seu irado interlocutor.

— Tenho hipóteses, como você diz, suficientes para pôr a corda em volta do seu pescoço! Hipóteses suficientes, de qualquer modo, para prendê-lo pelo assassinato de Joshua Monkford. Posso prendê-lo agora mesmo, mas vou dar-lhe um pouco mais de corda. Mais cedo ou mais tarde, você terá de pôr a corda onde eu quero. Se não matou Monkford, foi pelo menos um dos responsáveis. Se tudo o que penso é exa­to, colocarei seus pés no alçapão onde estiveram os de Clay Shelton.

Tinha atingido o alvo!

— Você quer, quer... — As palavras estrangulavam-se na garganta de Cravel. — Você!

Betcher desviou-se para o lado, evitando o golpe de mar­telo que o homem ia desferir. Rápido como um raio, passou o braço em volta do pescoço de Cravel e com a mão empur­rou-lhe a cabeça para trás. O gerente começou a debater-se e, perdendo o equilíbrio, caiu por terra, sem poder respirar.

Betcher sorria, satisfeito. O homem levantou-se lenta­mente. Todos os seus membros tremiam. Dominou-se, porém.

— Peço-lhe desculpas — disse ele. — Você me exaspe­rou demais. Ninguém quer ser comparado a um assassino, e muito menos acusado disso! Comunicarei este incidente à Scotland Yard.

— Vá correndo procurar o chefe. Ele terá muito prazer em vê-lo.

O gerente nada disse. Rodou nos calcanhares e cami­nhou titubeando para fora do quarto.

— Por Deus! — murmurou Rouch, contemplando o chefe com respeito e admiração. — Vai haver baderna grossa quando ele se queixar.

— Aposto como ele nunca se queixará!

Betcher foi para o quarto, arrumou a mala e carregou-a até o vestíbulo. Um empregado tinha trazido o carro da gara­gem; Long prendeu a mala na traseira do veículo. Já estava com o pé no estribo quando ouviu seu nome ser chamado. Virou-se: era Alice Cravel, que trazia um papel na mão.

— Não pagou sua conta, sr. Long.

O detetive pegou a nota, examinou-a e depois riu até ficar sem forças. A exorbitância da soma não deixava de ter graça. Devolveu-a à moça.

— Mande-a aos testamenteiros do sr. Monkford. E queira dizer a seu irmão que nos encontraremos em Chelmsford um dia destes. O Lanceiro não era meu amigo, mas eu me prometi o prazer de enforcar o homem que o matou. Até a vista.


 

O escritório de Francis Henry ficava em Lincoln's Inn Fields. Ocupava o andar térreo do número 742, um edifício tão elegante quanto se poderia esperar de um jovem tão dis­tinto.

Estava de pé junto à janela, olhando para os alegres jar­dins, quando o secretário anunciou a chegada de Betcher Long. Henry olhou para o cartão e sorriu.

— Faça-o entrar.

Ofereceu uma cadeira ao visitante e sentou-se à escriva­ninha.

— Agora, sr. Long, que deseja saber?

— Serei muito franco com o senhor. Poucas horas antes de Monkford ser assassinado, eu o vi com o sr. Crayley. Os senhores passeavam no gramado por baixo da minha janela. Quando logo depois tornei a ver Monkford, suas maneiras para comigo eram acentuadamente frias. Desejo saber qual foi o assunto de sua conversa e por que Monkford adotou essa extraordinária atitude para com uma pessoa que até então havia sido um bom amigo.

— Creio que isso pode ser facilmente explicado — retorquiu o advogado. — Monkford soube por mim que o senhor era um admirador da srta. Sanders e a presenteara com um anel caro.

— E por que isso teria melindrado Monkford?

— Porque Monkford estava apaixonado por ela.

— Apaixonado por ela? — repetiu Betcher, incré­dulo.

— Tão apaixonado — disse o advogado, acentuando cada palavra — que na tarde que precedeu sua morte fez um testamento em favor da srta. Sanders, deixando-lhe toda a sua fortuna.

Betcher ergueu-se como uma mola.

— A troco de que santo ele fez isso? O advogado deu de ombros.

— Tenho o testamento em meu poder. Foi lavrado a pedido de Monkford e testemunhado por mim e por Crayley.

— Quem são os testamenteiros? — perguntou o detetive, após um momento de reflexão.

— A srta. Sanders é a única testamenteira. Naturalmen­te, aconselhei-o a não fazer esse testamento e sugeri-lhe que chamasse seu próprio advogado. Opus-me fortemente a que a srta. Sanders fosse a única testamenteira; desejava que o espó­lio fosse administrado pelo Testamenteiro Público. Ele não quis ceder nesse ponto. Disse que pretendia ver o senhor depois do jantar e explicar-lhe o que havia feito. Penso que temia a morte imediata e queria que o testamento fosse lavra­do sem demora. Aconselhei-o a não...

— O senhor já me disse isso — interrompeu Betcher. — Onde poderei encontrar seu amigo Crayley?

— No clube que freqüenta.

— O Clube de Artes e Ciências, não é? Completamente inadequado para Crayley, que não é nem artista nem cientis­ta. Se ele não for um delator, então não sei o que é.

— Um delator? — repetiu Henry, afagando o bigodinho negro. — Nunca desconfiei de que Crayley fosse um delator, como o senhor diz. Vai torturá-lo? E, se o fizer, o que espera saber? Que o testamento é falso e falsa a assinatura de Monk­ford? Realmente, sr. Long, nunca imaginei que essa qualidade de detetive existisse fora dos melodramas!

— Melodrama, disse o senhor? Pois é o que vai acon­tecer. Um melodrama com todos os vilões presos no último ato e a indefectível vitória da virtude.


 

Depois de conferenciar com Henry, a sra. Revelstoke mandou chamar Nora à presença de ambos, no seu gabinete. As notícias que lhe deram deixaram-na atordoada.

— Dois milhões de libras... para mim! Não é possível que seja verdade!

Sentou-se, pálida e trêmula. Henry sorria, com ar divertido.

— Receio que tenha de aceitar a responsabilidade do inventário. Queria que a senhorita me passasse procuração para sustentar a validade do testamento. A maior parte dos bens deve ser paga em dinheiro, conforme os termos do testa­mento. Você receberá um milhão e vinte mil libras imediata­mente.

— Mas... mas... — gaguejou Nora, ainda perplexa.

A velha pousou a mão no ombro dela e, sem saber por que, Nora estremeceu.

— Suba. Vá descansar um pouco. Desejo conversar com Henry sobre esse legado. — E depois, dirigindo-se ao advoga­do: — Não é de esperar que ela possa compreender a razão de sua boa sorte.

Documente, Nora consentiu que a velha a conduzisse até o quarto. A sra. Revelstoke retirou-se, fechando a porta e deixando-a sozinha para que pudesse pensar melhor.

Dois milhões de libras... era inacreditável! Parecia estar sonhando. Olhou em volta do quarto, catalogando os objetos: a pequena escrivaninha, o retrato do pai pendurado acima da janela aberta... De repente viu que um homem estava do lado oposto da rua. Sentiu o coração palpitar quando ele levantou a mão para cumprimentá-la.

Era Betcher Long! Com o dedo nos lábios, ele fez sinal de silêncio. Depois apontou-lhe para a rua e mostrou três dedos. Três horas! Ela olhou para o relógio da escrivaninha, que marcava meio-dia e meia. Respondeu com um sinal afir­mativo. Mas onde? Ele pegou um jornal que trazia debaixo do braço, desdobrou-o e mostrou-lhe uma página de anúncio, reproduzida em todos os jornais da manhã. Era o anúncio de um baratilho em Cloches. Nora deu a entender que havia compreendido.

De novo ele pôs o dedo nos lábios: não devia dizer nada à sra. Revelstoke. Nora fez sinal de que tinha compreendido e ele se retirou com um aceno de adeus.

Ela desceu quando o gongo para o almoço soou. Passan­do pela porta aberta da sala, onde não tinha entrado desde a visita de Betcher Long, Nora notou com surpresa que fora retirado da parede o retrato da sra. Revelstoke quando jovem, substituído por uma pintura a óleo. A velha, percebendo o seu espanto, explicou:

— Era um fantasma, sempre a recordar a mocidade per­dida... Eu devia ter mandado retirá-lo há mais tempo. — E, mudando de assunto: — Nora, minha querida, estivemos comentando a sorte feliz que você teve. Aceite meu conselho e nomeie Henry seu procurador.

Sobre a escrivaninha havia dois documentos manuscri­tos.

— Você assina na linha pontilhada — disse Henry, citando por troça uma frase de certa comédia norte-america­na então em voga. — O primeiro é um termo formal de res­ponsabilidade e o segundo uma carta autorizando-me a agir na qualidade de seu procurador. Mais tarde, deverá ser assina­da uma procuração em cartório. Por enquanto a carta é suficiente. Logo que tenha assinado, metade das suas preo­cupações e dúvidas terão passado para os meus ombros.

Nora sentou-se à escrivaninha e pegou a pena, hesitante.

— Devo assinar agora? Estou tão tonta que ainda não me dei conta do que está acontecendo. Quer deixá-los comigo até a noite, quando me sinta mais senhora de mim?

Como estivesse fitando Henry, ela não percebeu o olhar de entendimento que a sra. Revelstoke lançou na direção deste.

— Pois não, certamente! Não podemos fazer nada hoje. A sra. Revelstoke lhe explicará tudo... Prefiro que compre­enda bem, antes de assinar. Não há pressa. Contanto que eu receba os papéis amanhã de manhã, está tudo bem.

A sra. Revelstoke guardou os documentos no cofre.

— Agora vamos almoçar — disse ela alegremente.

Henry retirou-se às duas e meia e pouco depois a moça perguntou à patroa:

— Posso sair por uma hora? Acho que uma boa cami­nhada me ajudará a esclarecer as idéias.

A velha encarou-a:

— Uma boa lembrança — disse, mordendo os lábios, pensativa. — Creio não ser prudente que você fale a outros no assunto até que Henry tenha legalizado o testamento. E a última pessoa do mundo a quem deve falar é a Long. Não sei se é prevenção contra ele... A verdade é que não gosto do pai... Uma vez me deixou numa posição muito embaraçosa, com sua grosseria.

Era uma novidade para a moça que a sra. Revelstoke tivesse tido alguma vez relações com Godley Long.


 

Cloches é uma grande loja e, como não tivesse sido pos­sível a Betcher Long marcar exatamente o lugar onde deviam encontrar-se, Nora deteve-se um momento na entrada prin­cipal e, não vendo o amigo, entrou.

Nisto, um mensageiro de bigodinho aproximou-se dela e tocou no boné:

— Achamos sua bolsa, senhorita. Está na seção dos obje­tos perdidos. Queira vir por aqui.

— O senhor está enganado. Não perdi bolsa alguma. Ele, como resposta, abriu a porta de uma pequena sala de espera e disse:

— Queira ter a bondade de entrar, senhorita.

— Já lhe disse que não perdi nada.

Nora começava a se irritar com a estupidez do sujeito, que, sem se alterar, empurrou-a para dentro e fechou a porta.

— Desculpe ter aparecido como detetive de cinema — disse Betcher, arrancando o bigodinho. — Mas a senhorita deve ter perdido uma bolsa.

Ela o encarou, espantada.

— Detesto lançar mão destes expedientes — acrescen­tou Betcher. — Sinto que estou violando o direito e a proprie­dade de alguém. Mas o velho Cloches é um grande amigo nosso e não havia outro meio para me aproximar de você sem dar uma porção de informações ao cavalheiro que a está seguindo na loja e que provavelmente a seguirá por toda a tarde.

— Seguindo-me? — perguntou ela, incrédula. — Está certo do que diz?

— Tanto não estou enganado que até sei nome e ende­reço da pessoa, bem com seus primeiros crimes. O uniforme de mensageiro foi alugado para a circunstância, e Cloches tem tantos empregados de libré que um a mais ou a menos não é notado. Já soube da sorte que lhe coube?

Ela fez que sim.

— E é verdade? Ainda não posso acreditar.

— É perfeitamente exato. A existência do testamento está fora de discussão. Dizem que Monkford o assinou na tarde de sua morte: primeiro de agosto. Não lhe parece muito significativo? Não é singular que ele tenha morrido a primeiro de agosto?

Nora lembrou-se instantaneamente da velha embarcação amarrada perto do terreno de Monkford e das datas gravadas atrás do painel movediço.

— Oh! — exclamou, empalidecendo.

— Simplesmente a profecia realizou-se. Se tivesse ocor­rido em 2 de agosto, teria sido um dia depois e a inscrição ficaria sem significado. — Depois, bruscamente, perguntou: — Que documento Henry lhe pediu que assinasse?

— Por Deus! Como foi que soube?

— Assinou alguma coisa?

— Ainda não.

— Então lhe pediram para assinar algo... Que foi?

— Para falar com franqueza, não entendi bem, mas pare­cia uma coisa perfeitamente legal. O sr. Henry mostrou-me dois papéis; um era uma espécie de procuração, e o outro um compromisso...

— Você não assinará nenhum. Entende?

— Mas o sr. Henry é advogado e está trabalhando a meu favor.

— Ele não deve tratar de seus interesses e você não assinará coisa alguma... compreendeu bem? — Tirou do bolso um papel dobrado e abriu-o sobre a mesa. — Vou pôr à prova sua confiança em mim. Esta é uma carta que confere poderes aos srs. Wilhins, Harding & Bayne, advogados de meu pai. Em outras palavras, você põe seus negócios nas mãos de um escritório de advogados isento de suspeitas. Desejo que assine esta carta-procuração. Tentarei entregá-la esta tarde.

A moça pegou a pena que estava sobre a mesa, molhou-a no tinteiro e, sem ler o documento, assinou.

— Vai haver uma cena desagradável quando eu contar à sra. Revelstoke o que acabo de fazer.

— Acha que não poderá pregar uma mentira? Pois diga à sra. Revelstoke que decidiu entregar seus negócios nas mãos dos advogados de seu pai e que estes consultarão Hen­ry. Pode acrescentar, para justificar-se, que, sendo Henry uma das testemunhas do testamento, você achou melhor que al­guém de fora cuidasse de seus interesses.

Havia uma pequena bolsa sobre a mesa. Betcher apa­nhou-a, sorrindo, c colocou-a nas mãos dela.

— Você encontrou o objeto perdido. O cavalheiro que a está vigiando já deve estar impaciente. Vá.

— Quando poderei tornar a vê-lo, sr. Long? Estou bas­tante apreensiva com toda essa história.

— Vou vê-la de novo dentro de cinco minutos, e há todas as probabilidades de que na próxima semana eu esteja muito perto de você.

Um segundo mais tarde, Nora circulava na movimentada loja, curiosa por descobrir quem a vigiava. Todos estavam ocupados com as compras quando ela percebeu um homem que a mirava furtivamente e que, vendo-se pressentido, des­viou o olhar. Compreendeu que era o espião.

Ao chegar em casa, não esperou que a sra. Revelstoke lhe lembrasse dos documentos, e. logo que mudou de roupa, desceu à procura da velha.

— Decidi entregar meus negócios nas mãos dos advo­gados de meu pai — disse, sem mais preâmbulos.

— Quando tomou essa decisão, Nora?

— Esta tarde. Estive refletindo sobre o caso e lembrei-me de que não era conveniente que o sr. Henry, que tomou parte tão direta na redação desse extraordinário testamento, fosse meu procurador.


 

— Este foi um ato de prudência de sua parte — disse a velha, com uma ponta de ironia na voz. — Estou certa de que Henry apreciará sua consideração. Infelizmente, já disse a ele que prosseguisse e pusesse em ordem os negócios de Monkford. Receio, pois, minha querida, que você tenha de mudar de idéia.

— Já escrevi aos advogados de meu pai.

— É pena. Pensei que você se deixasse guiar por mim nesse assunto. Eis-me agora numa situação embaraçosa... Queira dizer a Jennings que vou precisar do carro dentro de meia hora.

A velha parecia ter encarado o assunto com muita calma, mas Nora, que a conhecia, não teve ilusões. A sra. Revelstoke estava furiosa, como provara o rubor que lhe assomara às faces, apesar de não ter tremido a mão que segurava a agulha e de conservar a voz tão firme e descansada como de costume.

Eram quase seis horas quando a sra. Revelstoke voltou. O passeio havia dissipado sua ira, pois estava de muito bom humor.

Mandou chamar a moça logo que chegou.

— Fui ver Henry. Não sem razão, ele mostrou-se agastado, mas compreendeu perfeitamente seu ponto de vista e, afi­nal de contas, pensa que você tem razão. Quer escrever-lhe? Como se chamam os advogados de seu pai? Ele perguntou.

Nora verificou, desapontada, que não sabia. O detetive havia dito, mas esquecera quase instantaneamente. Tivesse ou não a sra. Revelstoke percebido sua confusão, o fato é que não insistiu no assunto.

— Felizmente Henry não tinha se adiantado muito — disse ela. — Já se comunicou com os advogados de Monk­ford, que também estão aborrecidos. O pior é que todos que­rem o seu quinhão de um espólio como o de Monkford. O testamento não será impugnado, como você terá o prazer de saber. Monkford não tinha parentes e no seu primeiro testa­mento deixara quase toda a fortuna a obras de caridade.

Levantou-se, sorrindo.

— Sua fortuna veio colocar-me, por assim dizer, numa posição subalterna. Ontem você era apenas minha secretá­ria... uma moça muito boa, porém, se me permite, de pouca importância. Hoje, nem ouso dar-lhe uma ordem.

— A senhora já me deu várias...

A resposta pareceu ter picado a velha.

— Então, vou dar-lhe outra. Telefone ao empregado de Henry. Diga que mudei de idéia e irei jantar com ele. Encon­trei aquele desgraçado Crayley na cidade, que perguntou se podia vir esta noite tomar café, pois tinha alguma coisa de interessante para me dizer. Quer fazer o favor de entretê-lo, se vier, e livrar-se dele o mais depressa possível? Pode comu­nicar-lhe que tive um chamado inesperado. O fato é que não posso agüentar Crayley uma noite inteira!

A sra. Revelstoke só saiu às quinze para as sete. Nora jantou sozinha, às sete e meia, refletindo sobre os aconteci­mentos do dia.

Soavam as oito no relógio de prata da lareira quando a empregada entrou.

— Um cavalheiro deseja falar-lhe, senhorita.

— O sr. Crayley?

— Não, senhorita, é um desconhecido. Não me lembro de tê-lo visto antes.

Nora dirigiu-se à sala, verificando que o visitante lhe era igualmente desconhecido.

— Srta. Sanders? — indagou ele, num tom autoritário.

— Sim — respondeu ela, admirada. — Sou a srta. Sanders.

— Venho da parte do inspetor Long para ter uma con­versa com a senhorita, caso isso não a incomode. Sou o sar­gento Smith, do CID.

— Um detetive?

— Essa é minha profissão, senhorita. — Olhou para a bandeja de prata e a cafeteira. — Esperarei até que termine seu café. Não tenho pressa.

A moça olhou para o relógio da sala e hesitou. O sr. Crayley devia chegar de um momento para outro, e a presen­ça do homem de Betcher seria um pouco embaraçosa.

— Não quer tomar café, sargento? — indagou ela, enchendo uma xícara.

— Não, obrigado, senhorita.

Nora esperou que o homem continuasse a falar.

— O inspetor pediu-me para escoltá-la até a Scotland Yard. Ele quer vê-la esta noite.

— Não posso ir. Estou esperando um amigo da sra. Re­velstoke.

O sargento sorriu:

— Não deve preocupar-se com o sr. Crayley. Ele não virá esta noite. Está com o sr. Long.

A moça punha açúcar no café enquanto ele fazia essa declaração.

— Com o sr. Long?

— Sim. Para um pequeno interrogatório. O inspetor precisa que a senhorita vá para confirmar a declaração que Crayley fez. Tem os papéis que Henry queria que a senhorita assinasse?

— Creio que estão no gabinete da sra. Revelstoke.

E retirou-se para ir procurá-los.

Estavam debaixo de um peso de papéis na escrivaninha da velha, e Nora voltou com eles na mão.

— É isto que o sr. Long deseja?

— Sim, senhorita. Creio que ele gostaria de ver esses documentos. — Olhando para o relógio, acrescentou: — Ele não a reterá por muito tempo. Queira terminar seu café e iremos num instante.

Nora bebeu metade do conteúdo da xícara e disse:

— Estarei pronta num momento.

Deu dois passos em direção à porta, sentindo tudo rodar. Caiu nos braços do homem.


 

O sargento Smith acomodou numa poltrona a moça desmaiada e dirigiu-se para o vestíbulo, que encontrou vazio. Voltou à sala, tocou a campainha e foi esperar a empregada no hall.

— Quer fazer o favor de ir aprontar a mala da srta. Sanders? Ela e a sra. Revelstoke vão passar a noite no campo. Há outra empregada na casa além de você?

— Somente a cozinheira. A sra. Revelstoke deu folga às outras por esta noite. Que roupas a srta. Sanders deseja?

— As mesmas que levou para Heartsease — respondeu o sargento com desembaraço.

Ficou observando a moça até que desaparecesse no pata­mar superior.

Voltando para junto de Nora, tomou-a nos braços e, rápido, atravessou o vestíbulo, entrando no gabinete da sra. Revelstoke, o qual tinha uma porta que abria sobre uma pe­quena escada, dando para o pátio da casa, onde existia um galpão de material, que servia de garagem. Na ausência da sra. Revelstoke outro carro fora colocado ali: uma velha limusine, com as cortinas descidas. O sargento abriu a porta desse carro e, com alguma dificuldade, acomodou Nora. Fechou a porta a chave e pôs em movimento o veículo, fazendo-o passar pela antiga cocheira. Uma vez na rua, desceu e passou a chave no portão, partindo em velocidade moderada até Ladbroke Grove. Aí virou para a esquerda, tomando a estra­da real, que percorreu na extensão de uns duzentos quilôme­tros e, aumentando a velocidade, tomou a direção da estrada de Great West.

Olhou algumas vezes para dentro do carro, verificando que Nora não se movera. A nova estrada corria no meio dos campos, mas sua importância atraíra a atenção dos construto­res, pois em determinado ponto havia uma casinha solitária de tijolos vermelhos, aparentemente nova. A limusine, então, deixou a pista, passou pelos fundos da casa e parou diante de uma porta, que devia ser a da cozinha. Da estrada não se via o carro, oculto pelo prédio, atrás do qual se estendia um cam­po deserto. O sargento abriu a porta da casa, tirou a moça e levou-a para dentro, deitando-a no chão poeirento.

Nora começara a voltar a si antes de o carro parar. Sen­tia a cabeça latejar. Quando abriu os olhos, a luz da janela a ofuscou. Virou o rosto para o lado da parede, soltando um gemido. Só então se tornou vagamente consciente de sua infe­liz situação e, levantando-se nos cotovelos, fixou os olhos espantados no homem que cuidava dela com indiferença.

Olhou em torno. A cozinha, que cheirava a pintura fres­ca, não possuía nenhum móvel.

— Onde estou? — perguntou, sentando-se, aturdida, com a cabeça entre as mãos. i

O sujeito tirou do bolso um frasco e derramou o líquido cor de ouro num copo de alumínio, que levou aos lábios de Nora.

— Beba. Não precisa ficar assustada; é apenas brandy. A moça tentou empurrar o copo, mas o homem virou-o

à força entre seus dentes. A bebida era desagradável, mas teve o efeito de fazê-la voltar inteiramente a si. Ela olhou para a porta e de novo para o homem, que repunha o frasco no bolso.

— Onde está o sr. Long?

— No inferno, se tivemos sorte — respondeu ele. — Mais morto do que Harry, o Lanceiro...

Harry, o Lanceiro? Quem era Harry, o Lanceiro? Ela tentou em vão recordar-se. O nome lhe era vagamente fami­liar.

— Por que motivo estou aqui?

— Porque eu a trouxe. E está longe de qualquer socorro, de modo que, se gritar, só conseguirá perder o fôlego.

Não havia o que responder. Tudo quanto restava a Nora, cheia de espanto e medo, era aguardar que a noite, com todas as suas horríveis possibilidades, viesse envolver sua prisão nas trevas.

 

Long tinha muito o que fazer na Scotland Yard, e seu gabinete, naquele momento, funcionava como agência central de informações, pois era para ali que os agentes traziam seus relatórios a cada quinze minutos. Pouco depois das oito horas, o detetive destacado em Corville Gardens avisara que um estranho fora recebido ali. Às oito e meia, comunicava que o desconhecido não se retirara. Às nove e meia repetia a mesma informação.

Betcher sabia que a sra. Revelstoke tinha ido jantar com Henry. Um visitante noturno na casa nada tinha de extraor­dinário. Nora Sanders provavelmente possuía um largo círculo de relações a respeito das quais ele nada sabia... Parecia lembrar-se de que ela lhe dissera estar tomando lições de espanhol, e o aparecimento do indivíduo descrito pelo espia nada tinha de alarmante. Mas...

Naquele instante o sargento Rouch atendia ao telefone.

— Venha para fazermos uma visitinha a Corville Gar­dens, Rouch.

Desceram juntos a escadaria da Scotland Yard e dirigi­ram-se para o Embankment. Caía o crepúsculo. Estavam para­dos na beira do passeio quando viram um carro com faróis acesos que vinha a toda velocidade por Whitehall, rente à calçada.

— Como corre aquele camarada! — disse Rouch em tom de censura. — E o excesso de velocidade não é permitido dentro...

O carro já estava a menos de doze metros. De repente, Betcher, agarrando Rouch, puxou-o para trás no momento exato. O carro, que vinha numa velocidade altíssima, virou bruscamente para a esquerda e trepou na calçada. Os dois homens escaparam da morte por um triz. Com uma travada de freios, o radiador esmigalhou-se de encontro à grade de ferro que estava atrás dos detetives. O carro passara tão perto que uma borda dentada do pára-lama tinha apanhado o punho da camisa de Long, rasgando-o.

A um policial que acudiu, correndo, Betcher ordenou, apontando para o motorista:

— Prenda aquele homem e conserve-o incomunicável até que eu o interrogue.

Depois segurou Rouch pelo braço e voltou, correndo em direção à Scotland Yard.

A chefatura de polícia tem duas entradas, uma por Whi­tehall e outra pelo Thames Embankment. Rouch ficou intri­gado quando Betcher passou pela porta de seu gabinete e continuou em direção ao Embankment.

— Caminhe — segredou-lhe Betcher. — Ou antes, corra...

— Mas o que...

— Não faça perguntas, execute o que lhe digo e apron­te-se para saltar.

Estavam agora no Embankment e pararam à beira da calçada, como quem vai tomar um carro. Enquanto esperavam, Betcher viu um automóvel grande vindo na direção deles, do lado da Câmara dos Comuns, aumentando de velocidade a cada segundo. O roncar do acelerador destacava-se de todos os ruídos do tráfego.

Aproximava-se cada vez mais.

Então Betcher gritou:

— Salte!

E pulou.

O carro precipitou-se sobre a calçada, desviou e derrapou. Os pneus explodiram. Num segundo Betcher pulou no estribo e, pegando o motorista pela gola, puxou-o para fora do carro. O homem lhe era desconhecido; um indivíduo de cara chu­pada, de queixo para dentro, atordoado com o choque. Cinco minutos mais tarde respondia a interrogatório.

Como era natural, atribuiu tudo a mero acidente.

— Havia um homem em cada entrada para avisar quan­do eu saísse — explicou Betcher a Rouch. Os dois detetives se achavam agora num carro de polícia, correndo em direção à residência da sra. Revelstoke. — Feito o sinal, os veículos, que estavam à espera, avançaram a fim de provocar um aci­dente fatal. O Bando Terrível sabia que costumo tomar táxis quando estou aqui. Provavelmente esperaram horas por essa oportunidade.

Chegaram enfim a Corville Gardens.

Quando Betcher viu a fisionomia da empregada que veio lhe abrir a porta, seu coração disparou.


 

— Não, a srta. Sanders saiu há uma hora. Não a vi partir. Ali está a sua maleta — disse a moça.

Do outro lado da rua houve uma breve consulta, e o espia continuava afirmando categoricamente que ninguém tinha saído da casa.

— Estou aqui desde as sete e meia, e juro que nem o homem nem a srta. Sanders saíram — insistia ele.

Betcher voltou para interrogar a empregada, que lhe relatou o que sabia.

— Quando desci com a maleta, a srta. Sanders já não estava — disse ela. — Mas não a vi sair.

Betcher entrou na sala de visitas. A bandeja de prata continuava onde a moça a deixara. Apanhando a cafeteira, que ainda estava pelo meio, levou-a ao nariz.

— Cheire, Rouch.

— Isso, sem dúvida, não falha — disse o sargento. Betcher encaminhou-se para o vestíbulo.

— Não há outra saída na casa?

— Há uma porta no gabinete da sra. Revelstoke que dá para a garagem.

Mostrou-lhes o caminho.

A porta achava-se escancarada. Desceram para a gara­gem, cujo portão também estava aberto. Betcher tirou uma lanterna do bolso e examinou o local. Não encontrando nenhu­ma pista, deixou a porta aberta e saiu para a antiga cocheira.

Ali teve mais sorte. A mulher de um motorista que ocupa­va dois quartos na antiga cocheira tinha visto o carro sair e o homem descer para fechar o portão. Era um Daimler anti­quado, disse ela, pois, sendo mulher de motorista, entendia de automóveis.

O detetive que estivera vigiando a casa, e que agora se achava presente, lembrou-se de ter visto o Daimler passar em frente à casa quinze minutos depois de o desconhecido entrar.

— Trazia as cortinas abaixadas, e pareceu-me um des­ses confortáveis carros de excursão...

Vira-o passar ao longo de Elgin Crescent até perdê-lo de vista. Um oficial de polícia de serviço em Landbroke Grove, por sua vez, tinha visto o carro, o que Betcher soube mais tarde. Ia na direção oeste. Reparara no veículo porque a chapa de trás estava avariada, e procurara fazê-lo parar a fim de chamar atenção do motorista.

Só restava uma esperança. Tinha havido muitos roubos de carros na semana anterior e os policiais receberam ordem de fiscalizar as principais avenidas a fim de capturar um Rolls que fora subtraído do pátio sagrado das Casas do Par­lamento. Betcher sabia que havia de topar com esses investi­gadores no ponto onde termina em Londres a estrada de Great West. Por felicidade, alcançou aquela movimentada artéria justamente quando o segundo dos oficiais terminava o turno.

— Sim — disse ele —, lembro-me do tal Daimler. Ti­nha cortinas azuis, abaixadas.

Ele também pensara que se tratasse do carro de um excursionista.

Betcher seguiu pela estrada larga, parando em cada posto policial para prosseguir seu inquérito. Descobriu o rastro do Daimler em Bath Road, onde um escoteiro, que vinha de carro, lhe deu informações.

— Ia no prolongamento de Staines — disse ele. — Não há engano possível, o carro tem os números da chapa traseira apagados. O policial do posto me perguntou se não o tinha notado.

A meio caminho entre Staines e o término de Bath Road, fora visto de novo mas, quando alcançaram o último trecho e chegaram ao posto de gasolina de Hounslow Road, perderam a pista.

O escoteiro e o policial que tinham estado de serviço na mesma ocasião afirmaram que o carro não havia passado por eles. Estavam certos do que declaravam, porque o oficial do posto anterior lhes telefonara, pedindo para fazer parar o veículo por causa da chapa irregular.

O carro da polícia voltou por onde viera. Havia dois caminhos laterais por onde o Daimler poderia ter passado. Ali existiam seis lances de casas recém-construídas. Uma, isolada, estava evidentemente vazia. Long dirigiu-se para o grupo de casas e procedeu a um inquérito que não deu re­sultado satisfatório. Encaminhou-se, então, para a casa isolada.

A construção ainda não estava terminada. Havia um monte de cascalho no lugar destinado à rampa dos automó­veis. Na terra fofa subsistiam marcas recentes de pneus, que se prolongavam até os fundos da casa. Betcher, auxiliado por sua lanterna, deparou com um carro poeirento.

Era o velho Daimler!

Espiou. O carro estava vazio. Verificou que o motor já esfriara. Forçou a porta dos fundos da casa; estava fe­chada a chave; as janelas, aferrolhadas.

Os dois detetives projetaram a luz das lanternas através das vidraças, num quarto de aparência desordenada, não des­cobrindo nenhum sinal de vida. Sem hesitar, Betcher, com sua Browning, rebentou os vidros da janela e puxou o ferrolho. Os dois entraram. O quarto apresentava sinais de ter sido recentemente ocupado. No chão havia um papel com restos de sanduíche. O pão era fresco.

De repente, Rouch, projetando a luz da lanterna na pa­rede, soltou uma exclamação:

— O que é isso?

Betcher Long parou e leu, gravada na cal da parede, a palavra: Marlow.

Deu uma rápida busca na casa. Não continha nenhum móvel. Evidentemente, tinha sido construída para pouso de pouca demora. Existia, porém, naquele pequeno retiro, uma coisa que não esperava encontrar: um telefone, recentemente instalado. Betcher ligou para a central e se identificou.

— Alguém telefonou daqui esta noite? Seguiu-se uma pausa. Depois a operadora informou:

— De Londres chamaram por duas vezes. Uma às oito e meia e outra logo depois das dez. A chamada das oito e meia não foi atendida.

Betcher ligou para o posto de polícia local. Quando voltou para junto do sargento, Rouch ainda continuava as pesquisas, sem encontrar quaisquer outras pistas.

— Requisitei um homem para guardar o carro esta noite e prender qualquer pessoa que venha buscá-lo, apesar de ser pouco provável que os diabos se arrisquem a tanto.

— E daqui, para onde vamos? — perguntou Rouch, quando subiram no carro da polícia.

— Para Marlow. Para a casa do sr. Jackson Crayley. E Deus o proteja se aconteceu alguma desgraça à moça!


 

Nora Sanders ainda sentia doer-lhe a cabeça quando o telefone tocou. O homem que havia uma hora estava sen­tado a seu lado, em silêncio, levantou-se ruidosamente.

— Não procure saltar por esta janela, porque, se o fizer, vai se machucar — recomendou ele. Pelas pisadas sonoras no chão, sem tapete, ela presumiu que tivesse ido para o vestíbulo.

Ouviu o barulho produzido pelo receptor ao ser reti­rado do gancho. Sentiu que o homem falava em voz baixa. Sem dúvida discutia alguma coisa, com o que pareceu aca­bar concordando de mau humor, exclamando, descuidada-mente:

— Marlow? Está certo.

Depois o homem voltou para junto dela.

— Apronte-se para caminhar.

— Para onde vamos?

— Não importa. Você terá de caminhar uns dois qui­lômetros, pelo menos. Aquele seu amigo está perto demais. Ele nos seguiu até o fim da estrada.

O coração da moça disparou. "Aquele seu amigo" só poderia significar um homem. Que poderia ela fazer? Con­fiava em que, mais cedo ou mais tarde, ele achasse a casa. Não lhe seria possível deixar-lhe um aviso? Não dispunha de lápis nem de papel. Tocou então com a mão a parede caiada, onde escreveu com a unha uma palavra.

— Que está fazendo? — perguntou o homem, descon­fiado, projetando a luz da lanterna sobre ela.

— Nada — respondeu, hesitante. — Não posso cami­nhar. Estou muito cansada e a cabeça me dói.

O homem abriu a porta.

— Você vai caminhar e dê-se por muito satisfeita de ainda poder fazê-lo — disse em tom sinistro. Agarrou-a pelo braço e levou-a para fora.

O ar fresco da noite a reanimou, e, obediente, cami­nhou ao lado dele, atravessando um portãozinho na cerca que dava para o descampado atrás da casa.

O homem parecia muito familiarizado com a topografia do lugar.

Uma vez quase caíram numa lagoa, que contornaram depois, chegando afinal a um atalho que levava a um sítio que a moça não conhecia. Na frente, à direita, viu as luzes de uma casa e ouviu o ladrar de um cão de guarda, o que pareceu contrariar seu guia, que a arrastou para fora do ata­lho. Embrenharam-se no capim alto, tão carregado de orvalho que suas meias e sapatos ficaram logo molhados.

Quinze minutos de caminhada levaram-nos a uma ponte, que atravessaram, procurando saída. Pouco depois passa­ram um portão que dava para uma mal conservada estrada de carroças.

— Chegamos — disse ele, com um ar de alívio.

Rumaram então para a direita e, no fim de vinte mi­nutos de andança num terreno acidentado, atingiram uma estrada. Muito antes de alcançarem o portão que conduzia a ela, Nora pôde enxergar as luzes dos carros, que passavam de um lado para outro.

A certa distância ele parou.

— Pode sentar-se no chão. Temos de esperar um pouco. Nora ficou satisfeita. Tinha os pés inchados e os mem­bros doloridos..Atirou-se ao solo, cansada e ofegante.

Somente agora começava a compreender a extensão do perigo que corria.

Não valia a pena apurar por que motivo havia sido raptada. Vagamente imaginava que tivesse alguma relação com o legado de Monkford.

— Levante-se — disse a voz do raptor. — Aqui está ele.

Um automóvel, com faróis tão baixos, que a moça só per­cebeu quando ouviu o ranger dos freios, parará diante do portão. Pegando-lhe o braço, o homem impeliu-a para a fren­te. O portão estava fechado com uma corrente e um cadeado; o desconhecido ajudou-a a transpô-lo. A porta do carro es­tava aberta e Nora foi empurrada para dentro. Ele entrou logo atrás.

Estavam na estrada de Bath; não tardaram em atravessar uma cidade que Nora reconheceu ser Slough. Em determi­nado ponto foram intimados a parar, a fim de dar passagem a um grande caminhão. Nora sentiu um impulso irresistível de gritar, chamando a atenção do inspetor de veículos. O homem, pressentindo-lhe o gesto, imediatamente agarrou-lhe o braço.

— Grite e verá o que lhe acontece! — murmurou-lhe ao ouvido em tom ameaçador.

Passaram por Maidenhead. Virando à direita, subiram a colina que conduz a Quarry Wood e Marlow. Para onde a estariam levando? Não era para a casa de Monkford. Para onde seria então? Lembrou-se de Jackson Crayley, da casi­nha branca atrás do gramado coberto de rosas e pareceu-lhe que era esse o destino, porque dobraram bruscamente antes de chegar a Marlow. Pela vidraça, Nora avistou as duas chaminés da residência do infeliz Monkford. A próxima casa devia ser a de Crayley. Para sua surpresa, porém, o carro não diminuiu a marcha, continuando até parar na cerca de um prado. Seguraram-na com firmeza pelo braço e fizeram-na correr pelo capim. A pobre moça percebeu o reflexo da água do rio e, mais longe, a luz de uma lanterna chinesa osci­lando na proa de uma catraia de recreio, ancorada. Fundeada perto da margem, estava uma grande lancha para dentro da qual ajudaram-na a descer. Não havia mais ninguém ali.

Acocorada num canto do pequeno camarote, ela escuta­va o ruído da máquina, que lutava contra a correnteza. Nisso ouviu um homem gritar: "Represa na frente!" A lancha dimi­nuiu a marcha e parou, continuando depois cautelosamente. Ouviu o barulho do fechamento das comportas.

A oeste de Temple, o rio fazia uma curva brusca, e a margem estava obscurecida pelas árvores que se inclinavam sobre a água. Foi para esse lado que a lancha se/dirigiu. Olhando disfarçadamente, ela adivinhou, mais do que viu, um bangalô de madeira. Achava-se tão perto da água que era construído sobre pilares enterrados no rio.

— Desembarque — ordenou o homem. Ela obedeceu. O desconhecido a seguiu. Tirou uma chave do bolso e

 

meteu-a na fechadura, abrindo a porta com dificuldade. Ausentou-se o tempo suficiente para amarrar a lancha e, vol­tando, entrou e aferrolhou a entrada. Riscando um fósforo, acendeu uma vela.

Estavam num dos dois quartos do bangalô. Eram bem mobiliados, mas todos os móveis se achavam co­bertos por uma espessa camada de pó. Nas paredes mancha­das de umidade estavam penduradas algumas gravuras. As cortinas das janelas eram de veludo pesado, carregadas de poeira.

— Creio que conheço este aposento. Era de Shelton — disse o homem.

De Shelton! Um medo indescritível assaltou-a.

O homem consultou o relógio de pulso, caminhou pelo quarto e olhou para a janela. Quando afastou uma das cor­tinas, Nora viu que as janelas estavam trancadas com fortes postigos de pau.

— Vou lá fora ver a embarcação. Fique aqui!

O raptor, ao sair, fechou a porta sem ruído e deu volta à chave. Nora ouviu o ruído da máquina da lancha e veri­ficou que a tinham deixado sozinha. Mas naquele instante seus pensamentos estavam concentrados no quarto empoeirado e no homem que outrora o ocupara.

Era aquele o covil do Braço da Forca!

Estremeceu. Uma tétrica combinação de sombra e luz povoava o aposento de figuras que se agitavam. Tão real era a ilusão que ela fechou os olhos por um instante.

Estava de pé em frente à porta que, pensava, devia dar para um dormitório. Quando abriu de novo os olhos, fitou-os no trinco e viu, horrorizada, que se mexia devagar. Lenta­mente a porta abriu-se, revelando uma grande mão amarela.


 

Nora jogou-se para trás, olhando apavorada para a ater­radora aparição. Depois surgiu um punho duro e branco, com uma abotoadura esmaltada e a ponta de uma manga preta.

— Não se assuste... Era Jackson Crayley.

Logo depois o homem apareceu, com seu rosto com­prido e sombrio e seu bigode amarelo pendendo tristemente. Vestia smoking, o que contrastava com o compartimento sujo e desolado.

Lançou um olhar ansioso em volta do quarto e perguntou:

— Onde está o homem que a trouxe?

— Foi embora — respondeu ela com firmeza. — Sr. Crayley, por que estou aqui?

— Não sei — respondeu ele, desajeitado. — A se­nhora ficará bem.

Houve uma pausa durante a qual o recém-chegado a observava, sem que se mudasse a lúgubre expressão de sua fisionomia. Nora foi aos poucos compreendendo que ele estava com mais medo do que ela.

— Foi-se, então? — indagou ele, referindo-se ao ho­mem que partira.

Puxou um pigarro, com esforço.

— Temo que esteja numa posição desagradável, srta. Nora.

Fez uma pausa, como que para coordenar as idéias, e depois acrescentou:

— Não creio que haja alguém numa situação tão crí­tica quanto a da senhorita.

A repetição daquelas palavras provocou um sorriso fugitivo na fisionomia da moça.

— Bem, não devo estar numa situação tão má, agora que o senhor está aqui para cuidar de mim.

Ele evitou-lhe o olhar.

— Queira sentar-se, sim?

Puxou um grande lenço de seda da manga do casaco e sacudiu o pó de uma cadeira.

Nora sentou-se, conjeturando sobre o que iria ouvir.

— O único meio pelo qual poderá sair desta dificul­dade é... o casamento — principiou ele, acentuando cada palavra. — Case-se comigo, amanhã, e tudo fica claro como água. Terá alguém para ocupar-se da senhorita e o mais que for preciso...

A prisioneira fez que não com a cabeça.

— Nunca poderei me casar com o senhor — disse. O olhar espantado que o outro lhe deitou era quase cômico.

— Seria melhor... por Deus, seria melhor! — ele insis­tiu. — Por Deus, não sei o que vai acontecer!

A fisionomia de Nora traía perplexidade.

— Não passo de um comparsa — continuou o homem. — Odeio o maldito ofício! Meu Deus! Se pudesse ao me­nos sair! Se pudesse ao menos deixar este maldito rio, esta maldita região! Quase fiz isso uma vez, mas não tive coragem...

— Nada entendo dessa história, sr. Crayley, mas pa­rece-me que o senhor está procurando me ajudar. Casar é absolutamente impossível. Não quer me auxiliar a sair daqui? Por que me trouxeram para cá?

De repente o interlocutor ergueu a cabeça e levantou um dedo, em sinal de aviso.

— Fique aqui — murmurou. Atravessando a peça, ten­tou abrir a porta e achou-a fechada. Com passos largos, retor­nou ao quarto de onde ela o tinha visto surgir e cerrou a porta. Agora a moça ouvia o som de vozes tão baixas que, apesar de ter se aproximado, não podia distinguir as pala­vras. Três homens estavam conversando, e um deles falava em tom sibilante.

Em dado momento Crayley levantou a voz:

— Meu Deus! Não posso fazer isso!

Nora ouviu um dos homens proferir uma feroz ameaça. Depois sentiu uma confusão de passos. Pé ante pé, voltou para o lugar onde Crayley a deixara. Se pudesse sair pela porta ou pela janela! O rio não a amedrontava, pois nadava como um peixe e, se o medo não a tivesse paralisado, teria tentado fugir durante a travessia.

O trinco da porta girou devagar e Crayley penetrou no aposento. Estava lívido. De novo levou o dedo trêmulo aos lá­bios, recomendando silêncio. Escutou atentamente e pareceu satisfeito de que os dois com quem estivera falando tivessem partido.

— Sente-se — disse. — Tem duas horas para decidir. Depois eles voltarão.

— Quem são?

— Ninguém que a senhora conheça. São o Bando Terrível!

— O senhor está sob o domínio deles?

— Sim... e de alguma coisa mais!

Parecia ter dificuldade em falar e mesmo em respirar. Uma ou duas vezes levou a mão à garganta.

— Quer casar-se comigo para salvar a vida? A jovem abanou a cabeça, negando.

— Ama outra pessoa?

Parecia interessado, como se nessa curiosidade houvesse descoberto um meio de desviar o pensamento, por um ins­tante, da apavoradora perspectiva que tinha diante de si.

— Acho que não. Penso em casar-me algum dia. Inesperadamente, Crayley levantou-se e, na ponta dos pés, entrou no quarto dos fundos. Quando voltou, Nora viu que trazia um grande revólver, cujo tambor examinava atentamente.

— Siga-me.

Ela obedeceu sem discutir e acompanhou-o até o quar­tinho, que era, como suspeitava, um dormitório. Passaram depois por um corredor estreito que tinha uma porta para o exterior. Uma lua pálida rondava no céu e a moça viu um atalho que conduzia a uma estrada estreita paralela ao bangalô.

— Espere aqui.

Ela o seguiu com os olhos até vê-lo desaparecer na escuridão. Ouvindo, depois, sua voz chamá-la, caminhou, tropeçando, pelo jardim cheio de ervas até alcançar outro atalho coberto de pedregulhos.

Crayley estava à espera à beira da água, curvado sobre alguma coisa. Nora ouviu o ruído de uma corrente, e, depois:

— Pode ver a ponta da catraia? Não tenho luz e de qualquer modo é melhor não acendermos nenhuma.

Estava escuro como breu, pois os galhos entrelaçavam-se acima de suas cabeças. Curvando-se, Nora sentiu a borda de aço da catraia e começou a procurar com o pé o fundo, até que o achou.

— Encolha-se — cochichou ele, guiando-a por dentro da embarcação até alcançarem o outro extremo.

A catraia oscilou um segundo; depois começou a mover-se.

— Sabe remar? Perto da senhora há um remo. Continuava a falar em voz baixa.

Nora, com um gesto, fez que sim, apesar de saber que o outro, de onde estava, não podia vê-la. Apalpando, achou o remo e começou a cortar a água. Em poucos segundos esta­vam no meio da correnteza.

— Rio abaixo — cochichou ele.

À direita ela viu a silhueta do bangalô.

— Não faça barulho — recomendou Crayley, em voz abafada.

Ela movia os remos sem tirá-los da água. Passaram por um trecho do rio na extensão do qual não havia bangalôs nem embarcações ancoradas. Diante deles destacava-se o perfil negro de uma colina, que Nora lembrava-se de ter visto quando subira o rio.

Uma lanchinha descia as águas quando estavam quase alcançando a represa. Crayley não tornou a falar até alcan­çarem a represa de Temple, rumando na direção de Marlow. Aproximando-se de Nora, disse:

— Só corremos um perigo. Eles têm um barco a motor perto da represa de Temple e, dando por falta de nós, poderão cortar-nos a passagem.

Um vulto branco, como um cisne de proporções gigan­tescas, lançou-se da margem direita.

— Reme! — A voz dele parecia um soluço. — Para a margem... Podemos correr...

O vulto esguio e luzente avançava rapidamente. Esta­vam a seis metros da margem quando foram alcançados. Alguém curvou-se por cima da borda do bote e agarrou a moça pelo braço. Nora gritou. Apesar de sua resistência, foi, num ápice, trasladada para o barco a motor. Debatia-se desesperadamente, sem poder desvencilhar-se do homem que a segurava. Num momento de inspiração, lembrou-se de um golpe de jiu-jítsu e, aplicando a palma da mão debaixo do queixo do assaltante, forçou-lhe a cabeça para trás. Instan­taneamente ele a soltou e, como um relâmpago, Nora atirou-se na água, mergulhando por baixo do bote em direção ao meio do rio. Voltando à tona, avistou o clarão de uma lâm­pada e uma luz verde e vermelha, que vinha da direção de Marlow. Uma lancha!

Nora lançou um grito com toda a sua força, e o barco singrou em seu rastro. De novo a nadadora mergulhou, surgindo à direita da embarcação. O barco continuava a per­segui-la. Mas as luzes verde e vermelha se aproximavam. Um homem gritou, ao mesmo tempo que um raio de luz branca projetava-se da lancha. Deram um tiro... outro tiro... Nora ouviu o assobio das balas sobre sua cabeça. Alguma coisa bateu na água a um palmo dela, salpicando-lhe de espuma o rosto.

Focada por um raio de luz, sentiu alguém segurar-lhe o braço.

Deu um grito e tentou escapar. Em vão. Ao levantar os olhos, avistou Betcher Long.


 

Os dois detetives chegaram à casa de Jackson Crayley às dez e meia. Um pacato empregado os fez entrar para a saleta, onde um copo com um resto de uísque e um charuto apagado num cinzeiro de prata testemunhavam que o amo es­tava perto.

— Vou comunicar ao sr. Crayley que estão aqui. Voltou, entretanto, em poucos minutos, dizendo que seu patrão não se encontrava em casa.

— Há pouco menos de uma hora estava aqui.

Foram ao galpão, onde habitualmente era guardado o carro, e acharam-no vazio.

— Ninguém esteve aqui esta noite? — perguntou Bet­cher.

— Ninguém.

— Tem certeza?

— Absoluta.

O detetive refletiu um momento.

— Quantas chamadas de telefone houve esta noite?

No princípio o empregado não se mostrou disposto a dar informação alguma, até que Long se identificou como detetive.

— Creio que foram duas.

Dando com um telefone na saleta, Betcher chamou a central. Foi o chefe da equipe da noite quem atendeu.

— Duas chamadas, sr. Long, ambas de Londres. Inter­ceptei-as, mas eram no idioma de costume, em dinamarquês.

— Pode precisar os horários?

— Uma foi há cerca de meia hora e a outra mais cedo. Betcher estava agora convencido de que fora a última chamada que tinha feito Crayley sair para o rio.

De modo que não havia sido para Marlow que tinham levado a moça. Mas para onde então? Sabia que Shelton tinha esconderijos na margem do rio; mas só conseguira des­cobrir um deles. Mandou Rouch alugar uma lancha na casa de botes de Meakes. Batiam onze horas na igreja de Marlow quando a embarcação começou a subir a corrente.

Estavam a meio caminho, entre Marlow e a represa de Temple, quando Betcher ouviu um grito e virou o leme na­quela direção.

O grito repetiu-se. Bem à proa, Betcher deu com o barco e ouviu um brado de socorro. Projetando a lâmpada so­bre a água, imediatamente distinguiu uma cabeça de mulher.

O zumbido de uma bala passou pela lancha. Alguém ati­rava contra ele. Mas não apagou a luz. Aproximando-se cada vez mais da nadadora, reconheceu-a. Puxou-a quase des­maiada para as almofadas da lancha. Estava salva.

O barco a motor havia desaparecido. Estivesse ele menos ocupado com Nora e teria visto a embarcação fugir em di­reção ao moinho, desaparecendo na sombra das árvores que margeavam o rio.

— Volte para a "casa de Crayley.

E o condutor tocara a lancha corrente abaixo.

Nora já tinha voltado completamente a si quando atin­giram a margem. Amparada, pôde caminhar até a casa. Só muito depois foi que conseguiu relatar os horrores da noite.

Houve nisso uma demora lamentável. Em resposta ao pedido de auxílio feito de Marlow por telefone, fora enviado um inspetor. Marlow, porém, fica em Buckinghamshire e a margem sul do rio em Berkshire. Decorreu uma hora antes que o primeiro contingente chegasse de Maidhead. Dois botes foram requisitados e os homens dividiram-se em dois grupos, seguindo um pela margem sul e outro pela margem norte. O barco a motor foi encontrado no meio do rio. Tinha sido aban­donado muito mais cedo, do lado oposto ao jardim de Cray­ley, pois flutuava à deriva rio abaixo. Não havia sinal de Crayley, apesar de terem sido cuidadosamente explorados os juncais da margem.

O guarda da represa informou que nenhum outro bote passara por ali e que nada tinha visto.

Transposta a represa, chegaram ao velho bangalô de Shelton, e Betcher forçou a porta com uma alavanca. Não havia na casa vestígio humano.

— Não há ninguém aqui, e é pouco provável que vol­tem — disse ele. — Acendam a vela ou isso — apontou para um empoeirado lampião de azeite que se achava pendurado acima da mesa.

Examinou minuciosamente os objetos existentes nos dois quartos, mas não encontrou documentos nem papel de espé­cie alguma.

— Dentro de uma hora o dia terá nascido, sr. Long — disse o chefe de polícia de Berkshire. — Penso que será me­lhor esperarmos até lá para continuar as investigações.

A claridade era suficiente para que se percebessem mar­cas de rodas no caminho, mas só muito tempo depois desco­briram, num matinho a cem metros do bangalô, o carro que trouxera Crayley. O casaco que usara estava ali, atirado sobre o assento.

Betcher conhecia bastante os hábitos do homem para avaliar quanto não teria sofrido com aquela corrida noturna. Sentia uma secreta admiração por aquela criatura sem ener­gia, que afrontara perigos incalculáveis com o fim de ajudar a moça.

Mas onde estaria Jackson Crayley? Ele era a chave da posição e o elo fraco da cadeia do Bando Terrível.

Saiu para o terraço da frente da casa e ficou na contem­plação silenciosa do despontar da aurora. As árvores con­trastavam em silhuetas negras com o céu claro da manhã. Pendurada a uma delas, viu qualquer coisa oscilando compassadamente.

Pediu depressa a lancha e, saltando nela, seguiu em direção ao objeto. Era o corpo de um homem vestido de smoking, com as mãos amarradas atrás das costas. Na camisa engomada estava escrito em vermelho: Sorroeder. Betcher pouco conhecia de dinamarquês, mas sabia que aquilo queria dizer "traidor".


 

— O pobre-diabo foi morto, antes de ter sido enfor­cado, com uma bala no coração — disse o médico.

— Esse pessoal é dinamarquês? — perguntou o coro­nel MacFarlane.

— Não, senhor — disse Betcher. — Tenho ainda de determinar a nacionalidade exata deles. Alguns foram edu­cados na Dinamarca por motivos que são suficientemente claros para mim. Já lhe mostrei isto?

Betcher Long tirou do bolso um pequeno cartão no qual estavam inscritas diversas datas.

1.° de Junho de 1854 JXTL

6 de setembro de 1862

9 de fevereiro de 1886

11 de março de 1892

4 de setembro de 1896

12 de setembro de 1898

30 de agosto de 1901

18 de julho de 1923

1.° de agosto de 1924

16 de agosto de 1924

 

— Sim, já o tinha visto...

O coronel MacFarlane, um homem metódico, contou as datas.

— Por que tem uma a mais? — indagou. Betcher esboçou um sorriso.

— Acrescentada muito recentemente, há dois dias apenas...

— A data de 1.° de agosto correspondia a Monkford — disse o chefe, pensativo. — Deve compreender que 16 de agosto...

— Refere-se à minha humilde pessoa — completou Betcher. — Eles decidiram que devo passar desta para me­lhor e 16 de agosto foi a data escolhida. De modo que tenho mais ou menos uma semana de vida. Por um lado estou satisfeito.

— Cansado da vida?

— Sim, cansado "desta" vida. Chefe, lembra-se de me ter chamado a atenção para o fato curioso de meu pai nun­ca ter sido vítima de Clay Shelton?

— Lembro-me. Falou a seu pai a respeito? Betcher fez um sinal afirmativo.

— Tornarei a falar hoje.

— Você e seu pai são bons amigos, não?

— Excelentes amigos, mas meu velho pai vem me aborre­cendo desde algum tempo e penso que chegou a oportunida­de de dar-lhe o troco.

Voltando à cidade, naquela manhã, ele encontrou uma carta do pai. Foi essa carta que decidiu seu plano de ação.

Foi diretamente, como costumava fazer, da Scotland Yard para Berkeley Square. Godley, que se vestia para uma festa, fez com que subisse a seu quarto.

— Digeriu minha carta? — perguntou ao filho.

— A carta que me escreveu — disse Betcher, atirando-se na cadeira mais cômoda do quarto —, longe de ser digerível, me fez adoecer.

— Hum! — fez Godley, lutando com o nó da gravata.

— Recorda-se da minha observação de como me era estranho que Clay Shelton nunca o tivesse roubado?

— Parece... lembro-me de qualquer coisa nesse sentido.

— E, no entanto, ele subtraiu oitenta mil libras do seu banco. Somente agora tive conhecimento do fato.

Godley não se virou.

— Você tem a envergadura de um grande detetive — ironizou.

— Sua ironia não me atinge — retrucou Betcher, cal­mo. — Respeitável ancião, descobri seus segredos crimino­sos. Na realidade, há muito que os descobri, mas ainda não tivera tempo para fazer explodir a bomba na sua presença. Quem foi que nasceu a 1.° de junho de 1854?

— Deus o sabe! — disse o pai, mirando-se cuidadosa­mente no espelho.

— Quem era JXTL? John Xavier Towler Long? — perguntou Betcher serenamente. — Para evitar que negue a verdade a seu único filho, vou dizer-lhe: John Xavier Towler Long era Clay Shelton!

— É mesmo? — Sir Godley colocou com esmero um alfi­nete na gravata de seda. Não mostrou grande interesse pelo que o rapaz dizia.

— E Clay Shelton, que eu mandei para a forca, era seu irmão!

Sir Godley não demonstrou o mínimo sinal de emoção.

— Como veio a saber?

— No iate de Shelton encontrei algumas datas grava­das e presumi que cada uma tivesse um significado. A pri­meira não me deixou dúvida de que devia representar o nascimento de um homem-: 1.° de junho de 1854. Em frente estavam as iniciais JXTL. O X é uma inicial muito pecu­liar, que se refere a uns cinco nomes. Procurei no arquivo público os nomes de todas as crianças nascidas a 1.° de junho com essas iniciais. Não foi preciso muito para descobrir que John Xavier Towler Long tinha nascido naquele dia. Towler era nosso nome de família, o nome de meu bisavô, se não me engano.

Godley inclinou a cabeça afirmativamente.


— Por que nunca me contou isso? O pai riu-se.

— Realmente não é coisa agradável ter ligação e paren­tesco com um homem da laia de John. Na verdade, mal o conheci. Era dez anos mais velho do que eu. Só me recordo dele como um jovem que estava sempre em encrencas, que roubou meu pai e desapareceu depois de um caso particular­mente escandaloso, provavelmente o mais vergonhoso de sua vida dissoluta.

— Não sabe mais nada a respeito dele?

— Nada. Antes de lhe ver o retrato nos jornais, não desconfiava que fosse meu parente. Mesmo assim, não o teria reconhecido...

— Sempre soube que ele era Clay Shelton? Godley virou-se. Seu rosto estava um pouco pálido.

— Sim, soube há muito tempo que era o maior vilão que já existiu. Deu um grande desgosto a meu pai e quase me arruinou e à nossa família. Era por isso que eu queria que você mudasse de rumo. Naturalmente não me era grato que perseguisse até a morte um homem em cujas veias cor­ria o sangue de meu pai. E muito especialmente quis que você renunciasse quando vim a saber que ele deixou uma quadrilha para continuar seu trabalho.

— Falsificações? Pensei que isso tivesse acabado.

— Acabou e não acabou. Clay, como o chamarei... e que, seja dito de passagem, era como o chamávamos quan­do menino... deve ter sido um trabalhador infatigável. Pro­vavelmente deixou grande número de documentos falsos, alguns dos quais já devem ter sido explorados. A quadrilha está sem dinheiro. Clay não era homem de fazer economia, nem para si nem para os companheiros. Pode acreditar que o Bando Terrível está em má situação financeira e é esta a razão por que vai haver problemas.

— Que problemas?

Godley deu de ombros.

— Acredito que Monkford foi assassinado, e pode es­tar certo de que o motivo do crime foi o dinheiro. Você está cheio de notícias, Arnold. Conte-me agora o que aconteceu.

Escutou em silêncio até que o filho concluísse a narrati­va. Depois abanou a cabeça pausadamente.

— Andou atrás do dinheiro de Monkford e, natural­mente, a moça é apenas um instrumento de que se querem servir. Pobre Crayley.

— Conheceu-o?

— Se o conheci! Quem não conhecia Crayley? Diz você que suspeitava dele? Desde quando?

— Desde o dia em que prendi Clay Shelton em Colchester. Crayley estava lá, e para auxiliar o falsário, disso estou certo. Clay Shelton nunca andava armado. Examinei-lhe a roupa depois de preso e não havia indício de que tivesse tido uma Browning no bolso. Era o guarda-costas quem leva­va a arma, e o guarda-costas nesse caso era Crayley, que pôs tudo a perder. Quando entrou na briga foi apenas para passar uma pistola às mãos de Clay Shelton. Meu pai, conhe­ce a sra. Revelstoke?

O baronete fez que sim com a cabeça.

— É uma senhora de caráter irrepreensível, segundo as informações que tive.

— Uma perfeita dama — suspirou Arnold. — Quer que lhe diga quem é ou quem foi? Era a tesoureira da quadrilha de Shelton. Monkford contou que uma vez ela teve quase um milhão no banco dele, pseudoproduto da venda de bens de um irmão. Nunca teve irmãos, segundo pude verificar. Seu papel era o de "mão de gato"; todavia, podia estar agin­do sem o menor conhecimento de que, materialmente, ajuda­va o Braço da Forca.

— As mulheres daquela idade são em geral idiotas. Pro­vavelmente Clay organizou essa extraordinária confederação porque tinha nascido estrategista. Mas por que o bando não se dispersou após sua morte?

— O senhor já me forneceu o motivo. Essa gente está quebrada. Possuem documentos de que podem dispor. An­dam à cata de dinheiro e a vingança é apenas uma questão acessória. Mataram Monkford para que sua fortuna passasse para a srta. Sanders.


 

Se havia um lugar no mundo pouco apropriado para Nora Sanders era uma casa de saúde. Assim foi que ela protestou contra seu internamento, mas Arnold Long mostrou-se inflexível.

— Não me sinto fraca, nem tive um ataque de nervos. Acho completamente desnecessária minha presença aqui — dizia ela.

— Pouco importa. Vou fazer as vezes de médico e in­sisto para que fique nesta casa de saúde sem receber nin­guém, lembre-se, sem receber ninguém durante uma semana.

— Preciso ver a sra. Revelstoke. Betcher cocou o queixo, hesitante.

— Você quer me ver fora de perigo e julga que, se me enclausurar, com um detetive de sentinela à porta do quarto e um policial passeando embaixo da janela, não terei proble­mas.

— Tudo isso é perfeitamente exato.

Quando deixou o quarto espaçoso, que dava para Dorset Square, onde Nora estava prisioneira, Betcher chamou à parte a diretora da casa de saúde e deu-lhe certas instruções.

— Nada de jornais, quaisquer que sejam. Magazines e todas as novelas que ela quiser, mas nada de jornais e de mexericos.

Telefonaram-se mais tarde, durante o dia, dizendo que a sra. Revelstoke iria visitar sua secretária às seis horas. Cin­co minutos antes, Betcher foi esperá-la na sala de visitas da casa de saúde. A senhora de nenhum modo se mostrou sur­preendida por encontrá-lo ali. Suas maneiras eram cordiais e até graciosas.

— O senhor é a pessoa que eu procurava, sr. Long. Que foi que aconteceu a essa pobre menina? O sr. Rouch, que não gosta muito de dar informações, contou-me que ela foi raptada. Isso, porém, não é verdade, não?

À luz do dia, Betcher a examinava detidamente. No es­paço de uma semana, a idosa senhora tinha envelhecido ainda mais.

— Crayley morreu, disseram-me... Betcher moveu a cabeça afirmativamente.

— Não diga nada à srta. Sanders — advertiu ele. A velha abanou a cabeça.

— É horrível. Primeiro Monkford e depois Crayley... Estou muito pesarosa.

— Esqueceu Clay Shelton — disse Betcher com ar ino­cente, observando-a. — Meu malogrado tio...

Tinha atingido o alvo. O olhar da velha tornou-se fixo e duro. Os olhos pretos estreitaram-se, incrédulos. Depois en­carou-o.

— Creio que não ouvi bem. Seu... o quê?

— Meu tio. Irmão de meu pai por parte de pai. Pensei que soubesse. Seu verdadeiro nome era John Xavier Towler Long. Talvez a senhora ignorasse isso também. Sei muita coisa a respeito do tio John. — Sorriu tristemente. — Ele se casou em 1883, com uma moça chamada Paynter, a quem abandonou de maneira infame. Meu pai me contou que ela morreu há poucos anos.

Num segundo a mulher voltou ao normal.

— Nunca imaginei que tivesse parentes tão desacredita­dos, sr. Long. — Olhou para o relógio. — Não acha que já posso subir para ver Nora?

— Vamos subir juntos — disse Betcher. Isso pareceu não agradar à velha.

— Preciso conversar com ela em particular.

— Taparei os ouvidos — disse Betcher, cortês. Com relutância a senhora acompanhou-o até o quarto de Nora.

— Pobre menina! — A voz da velha era cheia de compaixão. — Realmente, você está quase tão doente como o sr. Long, que se move eternamente numa atmosfera de melodrama! Sente-se mal?

— Nunca me senti tão bem, mas insistem para que eu fique aqui.

— Naturalmente o culpado é o sr. Long. Que sorte para você, Nora, ter quem lhe vote devoção tão fraternal.

— Maternal — corrigiu Betcher. A velha encarou-o por um instante.

— Permite-me ficar a sós com Nora um momento?

Ele dirigiu-se para a outra extremidade do quarto e pôs-se a olhar para Dorset Square. Tinha um ouvido extraordinário, e a sra. Revelstoke, consciente disso, baixou a voz até transfor­má-la num cicio.

— Henry pode vir vê-la?

A moça hesitou e lançou um olhar na direção de Long.

— Não lhe pergunte, porque ele odeia Henry — disse a sra. Revelstoke. — Quero que o veja a sós. Será possível?

— Não sei. Creio que foram dadas instruções para que eu não veja ninguém. Poderia dizer-me o que ele deseja?

— Tem algo para comunicar-lhe. Alguma coisa que Monkford disse, momentos antes de assinar o testamento.

Notando que os olhos da moça vagavam de novo para o detetive, sorriu:

— Está bem. Não quero aborrecê-la e, por favor, não conte o que lhe perguntei.


 

Na manhã seguinte dois homens ocupavam o banco dos réus na Corte de Polícia de Westminster. Eram acusa­dos do mesmo delito: má direção de automóveis e falta da devida licença. Foram condenados a seis meses de prisão, o que ouviram sem queixa, e, antes, com aparência de alívio.

— Camaradas, vocês deviam ser enforcados — disse Betcher Long quando os avistou no corredor, depois de pro­nunciada a sentença. — Vocês foram mandados para me assassinar e eu não costumo usar complacência para com os que procuram atentar contra minha vida. Se disserem tudo o que sabem sobre o assunto...

O homem- de queixo para dentro ficou visivelmente embaraçado.

— Confessamos tudo o que sabíamos, sr. Long. Rece­bemos a incumbência de um velho camarada que queria meter-lhe medo...

— Ei! Bico calado! — interrompeu o outro. — Você fala demais.

Havia muita coisa a respeito do Bando Terrível que intrigava Long. Mas nenhuma tão grande como a misteriosa ligação existente entre um dos membros da quadrilha com a baixa ralé. Quanto ao "velho camarada", também chamado Professor, dava-lhe pouco crédito e o considerava uma gros­seira invenção.

O próprio Bando Terrível era uma entidade à parte.

Quem era o agente de ligação? A essa pergunta não podia achar resposta. Quem quer que fosse, devia estar em posição de manter relações com a baixa ralé dentro de sua esfera de ação, sem criar suspeitas ou atrair a atenção da polícia. Henry, como advogado, estaria em posição favorá­vel, mas não trabalhava no crime e, em verdade, lidava pou­co com os delitos comuns. Dedicava-se mais ao cível.

Rouch, apesar de todas as suas falhas, era uma autori­dade em matéria de gatunagem vulgar. Conhecia todos os malandros de Londres. Quando Betcher tocou no assunto, abanou a cabeça.

— Não sei — confessou.

Apesar de desanimado, Betcher continuou seu inquérito. Mandou dois homens, um para Deptford e o outro para Notting Dale, os quais foram reforçados por uma turma de investigadores da polícia.

Quando chegou em casa, à noite, encontrou uma carta. Reconheceu no envelope a letra de Cravel.

Abriu-a. Era datilografada:

 

Prezado sr. Long. Como bem pode imaginar, a estação acabou de um modo bastante desastrado para nós. O sr. Monkford, porém, foi tão nosso amigo que o pesar de sua morte suplanta todos os nossos prejuízos. Quisera saber se o senhor está interessado numa idéia minha que poderá pa­recer um tanto fantástica. Se está disposto a se encontrar comigo num lugar qualquer lá pelo dia 16, época em que estarei de volta a Heartsease, terei muito prazer em tratar do assunto com o senhor...

 

Betcher fez uma careta: 16 de agosto! Resolveu morder a isca. Talvez o Professor estivesse lá para lhe dar as boas-vindas.

Dobrou a carta e guardou-a no bolso. Mas, apesar de sorrir, não estava muito satisfeito. A data na parede... a data da carta... essa coincidência só podia dar lugar a uma interpretação. A data fora gravada e o convite enviado para chamar sua atenção e despertar-lhe um sentimento de segu­rança até 16 de agosto. Entre aquele momento e o dia 16 de agosto é que estava o perigo. O Braço da Forca, que ti­nha se esticado para apanhá-lo, havia prostrado o modesto carrasco, vitimado o juiz, assassinado o conselheiro e morto o banqueiro cujo engenho tinha feito Clay Shelton cair na cilada. Já estava se aproximando para deitá-lo por terra. Achava-se tão certo da proximidade do perigo que, quando seu mordomo abriu a porta, deu um pulo.

— Opa! — exclamou, impressionado com o próprio nervosismo. — Estou me desconhecendo! Entre!

O homem entrou e, depois de fechada a porta, pergun­tou em voz baixa:

— Quer receber a srta. Alice Cravel?


 

Alice Cravel estava, como de costume, lindamente ves­tida. Sua fisionomia, dura e pálida, deixava ver que não tinha dormido por uma semana. Ficou a olhá-lo em silêncio até que o mordomo deixasse a sala.

Betcher ofereceu-lhe uma cadeira.

— Obrigada, fico de pé.

As palavras que a srta. Cravel pronunciou em seguida eram bastante aterradoras.

— Tem muito amor à vida?

— Bastante.

Dizendo isto, Long olhou rapidamente para as mãos enluvadas da moça, que segurava uma bolsa de lamê.

— Jackson Crayley tinha amor à vida... O senhor o julgava um tolo. Pensava que o seu jardim fosse uma osten­tação e que Crayley não se interessava por ele. Mas nas cores e perfumes desse jardim era que ele reconhecia o valor da vida. Jackson gostava do que era belo.

Long pôs-se em guarda e seus olhos não se despregavam das mãos da interlocutora.

— Suponho que deve haver outras coisas mais de que o senhor goste na vida... além de mandar gente para a pri­são... e para a forca.

Tapou os olhos com uma das mãos enluvadas e camba­leou. Betcher, pensando que ela fosse cair, aproximou-lhe uma cadeira.

— Não. Não é preciso. Agora ouça uma coisa, Betcher Long. Odeio-o! Mas não quero que morra... acredita? Estou farta disso tudo... Quer abandonar a partida, ir em­bora, deixá-los entregues a si mesmos, todos eles?

— Suponha que eu abandone a partida: como poderei escapar?

— Poderá sumir por quatro meses... por dois me­ses... por um mês seria suficiente. Vou revelar-lhe algo. Uma noite, por pouco o teriam apanhado. Fui mandada na frente para impedi-lo de atirar. Denunciei-me, não? Ouviu o que eu lhe disse? Estava na trama para assassiná-lo!

— Quem era o seu companheiro?

— Não posso dizer. Bem sabe que não posso dizer. Mas tomei parte na conspiração... Não é suficiente? Não pode prender-me? Foi para isso que eu vim! Para isso e para avisá-lo...

— Quem era o seu companheiro?

— Que lhe importa isso? Como pôde pensar, por um momento, que eu lhe dissesse?

— Foi seu irmão?

— Meu irmão estava em Heartsease naquela noite e você sabe disso. No dia seguinte foi vê-lo e mandou um de seus auxiliares interrogar os empregados. E, não satisfeito com isso, seu agente interrogou os hóspedes um por um.

— Henry?

— Henry! — Os lábios dela contraíram-se. Depois fi­cou muito séria. — Arrisquei-me muito, vindo aqui. Você tem estado em minhas mãos desde que cheguei. Quase o ma­tei por três vezes. Supõe que eu esteja me gabando. Não lhe digo mais do que a verdade. Qualquer dia provarei o que estou dizendo.

A fisionomia do detetive devia mostrar certa increduli­dade.

— Você me respeita porque sou mulher e hesitaria em agredir-me. Mas, mesmo que eu fosse um homem, você não me seguraria nem atiraria contra mim!

Levantou a mão acima da cabeça e pareceu mover os dedos. Sobreveio um clarão que cegou o detetive e o fez cambalear. Quando abriu de novo os olhos, não pôde enxer­gar nada por causa das centelhas que lhe dançavam diante do olhar. Apenas percebia uma tênue nuvem de fumaça branca subindo lentamente para o teto.

— Uma explosão de magnésio — disse ela calmamen­te. — Meus olhos estavam fechados, enquanto os seus esta­vam abertos. Eu podia tê-lo matado como a um cachorro, se quisesse. Acredita agora em mim?

Arnold respirou profundamente.

— Ganhou, acredito na senhorita. Essa é uma coisa nova para mim, srta. Cravel.

— Nova? Há centenas de coisas novas! — disse ela com desdém. — Eles erraram três vezes, Betcher Long, mas acabarão por apanhá-lo.

Encarava-o com firmeza.

— Tenho um fito honesto, hoje, e vou contar-lhe algo. Temo duas coisas: que o matem e a queda deles! Se falha­rem, você não tardará em capturá-los e será o fim de tudo. Tenciona prender-me, Long? Seria de joelhos que neste momento lhe pediria que o fizesse. Não estou louca. Nunca me senti com o juízo tão perfeito, mas estou farta, farta!

Betcher tirou a carta do bolso e a entregou à moça. Ela leu algumas linhas e devolveu-a.

— Já sei — disse ela. — Você vai?

Ele fez que sim.

— No dia 16?

Repetiu o gesto.

— Que espera?

— Aborrecimentos.

— E não faltarão! — acrescentou ela, cerrando os den­tes. — Você não imagina o que o aguarda em Heartsease!

A advertência provocou-lhe um arrepio. Mas ele não replicou, observando-a enquanto ela se desfazia das luvas enegrecidas e calçava outro par que tirara da bolsa.

— Nada posso conseguir de você — disse ela. — E é isso que temo. Onde está Nora Sanders?

— Numa casa de saúde — respondeu ele, sabendo não contar uma novidade.

— Está a salvo lá, não?

A moça sorria ao fazer essa pergunta.

— Perfeitamente'. Um detetive ronda a casa e outro monta guarda a noite toda, sentado à porta do quarto.

— Isso, porém, não a livraria de ser raptada, se eles quisessem.

— Aposto como não o farão!

— Você perde.

Fez menção de dizer mais alguma coisa; depois mudou de idéia. Virando-se, abriu a porta e, encostada ao umbral, fez uma derradeira advertência:

— Nora Sanders é de grande importância para o Ban­do Terrível. Vitalmente necessária. Você nunca imaginaria por quê.

— Porque eles estão falidos — contestou Betcher pron­tamente. Viu a fisionomia dela mudar.

— Falidos? Quem lhe disse? Tremia-lhe a voz, pasmada do que ouvira.

— Eles estão falidos. Houve quem avançasse nas re­servas, que estão agora procurando restaurar.

A moça olhou-o, pensativa.

— Será? — murmurou em voz baixa. — Mas cuide bem de sua Nora Sanders!

Betcher reconhecia que em parte ela falava a verdade. Muito tempo depois da partida da moça, ele caminhava de um lado para outro no quarto, parando de vez em quando para observar os vãos esforços do mordomo para fazer sair pela janela a fumaça deixada pelo magnésio.

Sentando-se à escrivaninha, desenhou a lápis uma plan­ta da casa de saúde onde estava Nora. Parecia-lhe haver tomado todas as precauções a fim de prevenir a repetição do atentado que, por um triz, não terminara desastrosamente para a moça.

Examinou todos os ângulos da casa, pesando todas as hipóteses formuláveis. O fim do Bando Terrível anunciava-se próximo. A seu ver, a quadrilha se esfacelava, embora ainda lhe restasse um último golpe.

Saiu para interrogar a diretora da casa de saúde, que zombou da idéia de um rapto:

— Naturalmente, ela se acha em completa segurança. Ainda mais guardada como está pelos detetives.

Quando passaram pelo vestíbulo, chegou-lhes aos ouvidos um gemido que vinha do andar de cima.

— Não é nada grave — disse a diretora. — Trata-se de uma histérica que foi trazida esta tarde. Na verdade não tem outra coisa a não ser histeria. Pensa que está muito doente, e acabará ficando mesmo, se continuar com essa obsessão.

— Ela não incomoda os outros doentes?

— Vai ser transferida esta noite. Já disse a seu médico que não posso conservá-la aqui. Essa infeliz pode caminhar tão bem quanto eu, mas insiste em ser tratada como inválida.

Betcher voltou para o apartamento, sentindo-se mais descansado em relação a sua jovem protegida, embora achan­do que não deveria desprezar a advertência de Alice Cravel.

Seu mordomo havia saído, deixando um bilhete sobre a mesa: Faça o favor de telefonar ao sargento Rouch.

Depois de uma pequena demora, Betcher conseguiu comunicar-se com o seu ajudante.

— Penso ter descoberto a ligação entre o Bando Terrí­vel e os rapazes. — Rouch, quando dizia "rapazes", referia-se à baixa ralé. — Posso ir até aí?

— Venha já.

Quinze minutos mais tarde chegava o sargento Rouch, trazendo um homem em sua companhia, conhecido no sub­mundo como Chefe. Era o único entre os delatores que tinha o respeito do próprio pessoal que traía.

— Repita ao inspetor o que me contou, Chefe.

O homem olhou, desconfiado, de um para outro, lam­beu os beiços secos e, com sua voz constantemente rouca, disse:

— É o Professor que os senhores procuram. Tenho-o visto muitas vezes lá em Bermondsey e Deptford, e ele co­nhece todos os cabeças: Kalim, Jacob e Paulo, o grego.

— Como ele é?

— Não tão alto como o senhor; um pouco mais alto do que eu, magro, sempre de preto, com uma grande gravata.

— Que idade tem?

— Não sei. — O homem pensou um pouco. — Bas­tante idoso. Tem cabelos brancos e abundantes. É por isso que o chamam de Professor. É sempre encontrado na rua. Um dos seus pontos favoritos fica perto do canal Bridge. Dizem em Deptford que é o maior comprador de roubos de West End, mas nunca ouvi dizer que tivesse comprado qual­quer coisa dos rapazes, e sei que nunca contratou ninguém a não ser para provocar arruaças.

— Conhece Ruffy, o motorista?

— Como não! É um camarada de Deptford. Está gra­mando seis meses de cadeia por uma corrida desastrada. Dizem que o Professor lhe deu cem libras por um serviço em West End.

— Não há lugar nenhum em que o Professor possa ser visto?

— Não. Quando ele tem que vir, avisa a um dos cabe­ças onde deve ser encontrado. Eles são mais fechados do que ostras. Vou dizer-lhe quem ele teve a soldo por muito tempo: Harry, o Lanceiro.

Betcher deu instruções ao Chefe para que, em qualquer ocasião em que o Professor aparecesse ou fosse provável que aparecesse, nos seus postos favoritos, notificasse a Sco­tland Yard. Pela primeira vez desde que a sombra de Clay Shelton atravessara seu caminho, Betcher estava preocupa­do. Não era de admirar, pois agora Nora Sanders se tornara o alvo para o qual convergiam todo o engenho e a perversi­dade do misterioso Bando Terrível.

Estava exausto e, enquanto despia o casaco e desatava a gravata, lembrou-se de que se gabava de poder agüentar quatro noites acordado. Em todo caso, podia roubar uma noite de sono a que tinha direito. Tirando o colarinho, diri­giu-se para o banheiro e abriu a torneira.

Devido ao barulho da água corrente, não ouviu a cam­painha do telefone senão depois que voltou ao quarto de vestir para procurar os chinelos. Levou o fone ao ouvido.

— Ligue para o escritório — disse a telefonista.

"Deve ser Rouch", pensou ele. Mas a voz era feminina e, apesar de disfarçada, reconheceu-a como de Alice Cravel.

— É você, Long? Retire Nora Sanders da casa de saúde o quanto antes.

— Por quê?

— Não pergunte por quê. Faça o que lhe digo. Você tem quando muito uns vinte minutos. Se não é tolo, siga o meu conselho!

— Mas..,

Quando ia prosseguir, viu que cortaram a ligação.


 

Um golpe! Seria uma trama para tirar a moça da casa de saúde e torná-la um alvo mais fácil? Mas não podia duvi­dar da sinceridade de Alice Cravel, visto o tom insistente com que lhe falara.

Telefonou para a casa de saúde; a diretora tinha ido dormir, mas a irmã de serviço deu-lhe informações satisfa­tórias:

— Sim, seu agente está aqui. Nada aconteceu, e a srta. Sanders está dormindo.

Falou também com o detetive, que lhe deu idêntica resposta.

Voltou calmamente para o banheiro, fechou a torneira, hesitou um segundo e começou a vestir-se de novo. O sono lhe havia fugido.

Somente depois de estar completamente vestido foi que começou a sentir-se ridículo. Não podia fazer mais na casa de saúde do que o homem que deixara de guarda. Não obstante, decidiu dar uma caminhada até Dorset Square. A noite estava bonita e West End cheio de gente, por ser a hora da saída dos teatros. Pelas ruas circulava grande nú­mero de carros.

Prolongou o passeio até Berkeley Square e Berkeley Street. Ocorreu-lhe fazer uma visita ao pai, o qual, apesar da hora tardia, devia achar-se em seu gabinete. Havia luz no vestíbulo. Apertou o botão da campainha e foi recebido pelo mordomo, cuja fisionomia perturbada o fez suspeitar de algo anormal.

— Onde está meu pai?

— Não sei, sr. Arnold. Saiu há quase uma hora para pôr uma carta no correio. Sir Godley costuma levar a cor­respondência para o correio à noite, aproveitando a ocasião para dar uma volta. Mas geralmente não demora mais de cinco minutos.

Arnold dirigiu-se para a biblioteca, onde todas as luzes estavam acesas.

Uma das gavetas da escrivaninha de Godley achava-se meio aberta. Betcher puxou-a. Estava vazia. Assobiou baixi­nho. Naquela gaveta Godley costumava guardar uma pistola Browning.

Então chamou o mordomo.

— Sir Godley costuma levar uma pistola quando sai à noite para ir ao correio?

— Ultimamente sim.

Os olhos do detetive foram atraídos para a lareira. A grelha estava cheia de papéis carbonizados. Abaixando-se, recolheu-os. No meio deles conseguiu descobrir um manus­crito não inteiramente inutilizado, que continha um endereço e data. O endereço não estava completo, mas ele pôde ler a palavra "Hagen" e a data de 12 de janeiro de 1881.

Conseguiu ler meia dúzia de palavras, escritas com uma bonita letra: o menos que puder fazer... ajude... irmão... crise...

Preso a esse papel, evidentemente, estivera uma espécie de memorando, cujos remanescentes carbonizados Betcher examinou à luz da lâmpada. A tinta ainda estava visível. Era uma letra de câmbio contra seu pai. Mas não pôde dis­tinguir o nome do sacador. Atirou-a de novo na lareira, en­quanto o mordomo o observava.

Saindo à praça, dirigiu-se para a caixa do correio mais próxima e ali encontrou o guarda de plantão, verdadeira mina de informações sem a qual a descoberta dos crimes seria infinitamente mais penosa.

O policial tinha visto Godley e falado com ele. Deu uma informação alarmante.

— Devo dizer que seu pai procedeu de um modo muito estranho. Enquanto falávamos, um carro passou e desconfio que ele reconheceu o cavalheiro que ia dentro. Também o vi: era um velho de cabelos brancos, com uma grande gravata preta esvoaçando e óculos de tartaruga.

Betcher ficou boquiaberto. Era a descrição fiel do Pro­fessor.

— Que fez meu pai?

— Foi isso que achei ainda mais estranho. Correu para tomar um táxi, a cujo motorista vi dar instruções. Na minha opinião, queria alcançar o velho.

Arnold Long voltou da casa do pai sem saber o que fazer. Disse algumas palavras animadoras ao mordomo e di­rigiu-se para Dorset Square.

A praça estava deserta, exceto no extremo, sede da Great Central, onde chegavam os táxis com as pessoas que vinham do teatro, de volta para os subúrbios. O detetive destacado na porta da casa de saúde cumprimentou-o e disse:

— A histérica... Oh, sim. — Lembrava-se da descrição feita pela diretora de sua nova paciente. A irmã da noite que descia naquele momento disse-lhe que a moça dormia sossegada.

— Espiei-a antes de descer.

— Posso vê-la?

Por que fez essa pergunta ridícula, nem a si mesmo.podia explicar. A irmã não se espantou, porque na sua pro­fissão acostuma-se a surpresas. No entanto hesitou.

— Não sei se a diretora consentiria. Mas,o senhor pode­ria apenas olhá-la, sem falar-lhe.

Betcher subiu com a irmã, sentindo-se um tolo. No grande patamar do primeiro pavimento a enfermeira reco­mendou-lhe silêncio e, abrindo a porta do quarto de Nora, retirou-se.

A lamparina acesa no aposento permitia apenas distin­guir um vulto na cama. A enferma tinha as costas voltadas para a porta, e só um cacho solto de cabelo aparecia na beira do lençol.

Um cacho? Betcher franziu a testa.

Um cacho, e era preto!

— Quem é você?!

Sentindo-se sacudida pelo ombro, a mulher, que não estava dormindo, voltou-se, espantada. Seus olhos eram escu­ros e as faces mirradas.

— Sr. Long, o que está fazendo? — começou a enfer­meira. Mas, ao ver o rosto da outra, exclamou:

— Esta não é a srta. Sanders!

E efetivamente não era. Nora Sanders, naquele instan­te, era transportada numa ambulância, a toda velocidade, em direção a Berkshire, onde o gerente do Heartsease se preparava para recebê-la.

Dessa vez ela não iria estar com Crayley, mas com um homem que não conhecia compaixão nem medo.


 

Betcher Long imaginou o que acontecera antes que a mulher tivesse começado a gaguejar as suas desculpas.

— Levante-se e vista-se. Está presa por cumplicidade. E voltando-se para a irmã de caridade que o acompa­nhava:

— Mande uma enfermeira ficar com essa mulher até que esteja pronta para ser removida.

Desceu com a irmã, que lhe narrou o ocorrido.

A moça fora trazida depois do meio-dia, por indicação de um médico. Parecia em estado de histeria. Gemera e cho­rara até a tarde. Quando o médico fez a visita, antes do jantar, a diretora pediu-lhe para removê-la, pois estava inco­modando os outros doentes, e ele prometeu mandar uma ambulância à noite para levá-la. A ambulância chegou, devi­damente acompanhada por dois padioleiros de uniforme, e, sob a vigilância do médico, a paciente foi colocada na padiola.

— Estive presente até então — disse a irmã —, mas o doutor pediu-me para ir buscar mais um cobertor, lá embaixo.

— E durante esse tempo os padioleiros narcotizaram a srta. Sanders ou obrigaram-na a silenciar, colocando-a na padiola em lugar da outra. Ouviu algum grito?

— Sim, no momento em que chegava ao pé da escada. Pensei que fosse a srta. Stimson.

O detetive estava branco como cal.

— Compreendo. Não posso recriminá-la. Devia ter pre­visto qualquer coisa como o que aconteceu quando soube dessa doente que tinha sido trazida para cá durante o dia. Certamente o quarto dela era contíguo, não?

Betcher não podia fazer outra coisa senão a notificação de praxe para a Scotland Yard, a fim de que fossem avisados todos os postos para dar caça à ambulância, cujo número fora anotado pelo agente à porta da casa de saúde.

Esqueceu o pai até que, às três da madrugada, quando recebia informações na Scotland Yard, o mordomo lhe tele­fonou.

— Sir Godley ainda não voltou.

Betcher sentiu que o sangue gelava nas veias.

Necessitava agora de toda a sua coragem e energia. Recostou-se na cadeira e, com um tremendo esforço de von­tade, varreu todo o sentimentalismo de seu espírito. Era um detetive encarregado de saber o paradeiro de um homem chamado Godley e da secretária da sra. Revelstoke. Se pen­sasse neles de outro modo, enlouqueceria.

Essas não eram as duas únicas pessoas que haviam desa­parecido naquela noite. A sra. Revelstoke tinha saído à tarde, para uma festa, e até então não voltara. Henry, o advogado, também estava fora; talvez tivesse acompanhado a sra. Revelstoke. Mas um homem estava a postos. Às quatro horas da madrugada, respondendo à chamada telefônica de Bet­cher, Cravel falou:

— Long, não é? Houve alguma coisa?

— Estou ligando desde a meia-noite. Onde estava?

— Telefonando desde a meia-noite, você? Isso é men­tira! Deitei-me às onze horas e o aparelho fica à cabeceira. Que deseja?

A voz não era a de um homem que despertara naquele momento: era clara e alerta.

— Sigo agora para aí. Sua irmã está em casa? Houve uma pausa.

— Não, minha irmã não está aqui. Está na cidade. Conhece o apartamento dela? Deu-lhe o endereço?

— Estarei aí dentro de uma hora.

Já tinha telefonado à moça sem resultado. Quando mandou um agente buscá-la para conduzi-la à Scotland Yard, ela havia partido poucos minutos antes.

O dia vinha despontando tristemente. Caía uma chuva fina quando o carro da polícia rodava para a estrada de Great West, a caminho de Berkshire.

Aquele era o grande golpe, planejado quase repentina­mente. Tinham garantido o dinheiro de Monkford por meio da moça e agora procuravam o modo de transferi-lo, com segurança, para eles. Nora tinha de casar-se com um dos parceiros e, feito isso, em condições que não permitissem dar queixa, esperavam colocar Betcher diante do fato consumado e provocá-lo a arcar com as conseqüências que se seguiriam à sua intervenção.

O detetive saíra de Egham e descia a colina em dire­ção à estrada de Ascot com o sargento Rouch, que cochilava a seu lado. De súbito viu um vulto de pé à beira da estrada. Era uma mulher e fazia-lhe sinal que parasse. Brecou o carro, que patinou, derrapando perigosamente, e parando a cerca de um metro da moça. Antes de chegar perto dela, Betcher havia reconhecido Alice Cravel. Um pequeno veículo caído num fosso explicava a presença dela ali.

— Desconfiava que fosse o senhor. Para onde vai?

— Para Heartsease, ver seu irmão.

Ela discordou com um gesto de cabeça.

— Pelo amor de Deus, não vá! — Juntou as mãos, em súplica. — Não vá, sr. Long! Tentei chegar antes do senhor, mas os freios de meu carro se partiram ao descer a colina. Não vá... Prometa que não irá!

Achava-se num estado lamentável, completamente encharcada, pois a chuva caía com abundância, e a pobre moça não tinha sequer levantado a capota do carro!

— Que receia? Que ele pode fazer? Sabe que Nora foi raptada na noite passada?

Ela fez que sim.

— Eu sabia.. eu avisei. Mas não complique a situa­ção. Encontrará a morte em Heartsease. Sr. Long, nunca pensei que viesse a me empenhar em lhe salvar a vida, mas é essa a verdade.

— Para onde a levaram? A moça abanou a cabeça.

— Não sei... com sinceridade, não sei. Se soubesse, provavelmente não lhe diria, mas não sei.

— Entre. Eu lhe dou uma carona. Ela negou.

— Leve-me até Sunningdale, onde poderei alugar um carro.

— Não vai a Heartsease?

— Não.

Rouch passou para o banco traseiro e Alice sentou-se ao lado do motorista.

Betcher percebeu que ela tremia de frio e, apanhando uma manta, colocou-lhe nas costas.

— Sabe que meu pai também desapareceu?

— Seu pai? Ah! Sir Godley Long, não é? Para onde foi?

Sem dúvida Alice Cravel não tomou o desaparecimento de Long como obra do Bando Terrível, tanto assim que se mostrou pouco impressionada.

Do outro lado da barreira da estrada de ferro, em Sunningdale, a pedido de Alice, Betcher parou o carro diante da garagem, onde não se via sinal de vida.

A moça deu-lhe adeus com a mão.

— Até logo, sr. Long. Não devia desejar que saísse bem desta história, mas desejo.


 

Ao cabo de dez minutos de corrida, Betcher chegava aos grandes portões do parque de Heartsease.

Quando subia o sinuoso caminho que levava ao hotel, teve um pressentimento de perigo.

Cravel estava esperando debaixo do pórtico e, apesar da hora, achava-se barbeado e vestido com esmero.

— Por acaso viu minha irmã, sr. Long?

— Não. Cravel sorriu.

— Ela me telefonou há cinco minutos, de Sunningdale, e disse que o senhor a levou até a garagem.

— Nesse caso — replicou Betcher friamente — devo tê-la visto.

No vestíbulo, sobre uma pequena bandeja, fumegava uma cafeteira.

— Imaginei que apreciasse uma bebida quente depois da viagem, com esse frio. Posso assegurar-lhe que não contém veneno nem narcótico. — Como Betcher parecesse indeciso, acrescentou: — Talvez queira fazer o sargento Rouch provar primeiro...

O café era bem-vindo e foi de bom grado que Betcher bebeu uma xícara.

— Mandei acender a lareira no número 7 — disse Cravel. — É o antigo apartamento de Monkford. Impres­siona-se?

— Por que lá?

O gerente deu de ombros.

— Não creio que o senhor tenha vindo aqui às cinco da madrugada para mandar reservar um quarto para o ano que vem — disse secamente. — De fato, espero uma entre­vista bastante desagradável e, como tenho algum amor-pró­prio, preferia que nossa conversa fosse mais ou menos pri­vada.

O elevador não estava funcionando. Subiram os três andares pela escada. Cravel afastou-se para o lado a fim de que o detetive passasse para a saleta.

Um fogo ardia na lareira. Betcher despiu o sobretudo. Olhou para Rouch, pensativo.

— Acho melhor que fique lá embaixo, sargento.

O obediente Rouch retirou-se da sala.

Evidentemente, Cravel levava avante a sua intenção de transformar o apartamento em patamar de escada. No cami­nho para o hotel, Betcher tinha notado a mão operária. Fora da fachada via-se um muro de construção recente, e ele dedu­ziu, pela desordem geral do salão, que os trabalhadores já tinham começado a transformar o apartamento.

— Agora, Cravel, desejo algumas palavras de explica­ção da sua parte. Previno-o de que você está muito perto do fim de sua via-sacra... Onde está Nora Sanders?

Cravel sorriu.

— Por que devo saber?

— Ela foi raptada da casa de saúde na noite passada. E o responsável é seu amigo, o Professor...

— Quem é esse meu amigo professor?

— Não discutirei com você. Ando à procura de Nora Sanders e você vai me dizer onde ela está.

Encararam-se.

Nos olhos de Betcher havia um brilho que Cravel já tinha visto uma vez. Mas não recuou. Seus lábios grossos ainda estavam engatilhados num sorriso.

— É possível que esteja um pouco perturbado, sr. Long — disse pausadamente —, e, até que haja recuperado mais calma, acho inútil conversarmos, sobretudo porque a única informação que lhe posso dar resultará num choque para o senhor.

— Ah, sim? — disse Betcher, sem se alterar. — Qual é a natureza do choque?

Cravel aproximou-se do fogo e ficou de pé diante do detetive, com as mãos nas costas.

— Aconteceu uma grande desgraça — disse vagarosa­mente — e confesso que sei pouco, muito pouco, acerca deste assunto. A srta. Sanders, seja dito de passagem, é minha amiga... O senhor provavelmente não sabia disso, mas tenho diversas cartas dela que provam sua confiança em mim. Pare­cia que já estava aborrecida com as reiteradas atenções que o senhor lhe dispensava.

Betcher fez uma inclinação com a cabeça.

— A srta. Sanders não queria magoá-lo. Suas atenções, entretanto, eram tão insistentes que ela se alarmou e pediu a um amigo meu para ajudá-la a escapar de sua vigilância, um tanto embaraçosa. Não conheço exatamente os pormenores do caso, mas compreendi que meu amigo conseguiu libertá-la na noite passada. Infelizmente...

Fez uma pausa e Betcher esperou, com os olhos fitos nele.

— Infelizmente, o choque da aventura de que foi víti­ma há poucos dias abalou-a muito e, no caminho para Heartsease...

— Ela está aqui? Cravel fez sinal que sim.

— No caminho para cá teve um colapso e, apesar dos socorros que lhe foram prestados por um médico da cidade... morreu!

— Morreu? — Os olhos de Betcher estavam semicerrados. — Você é um mentiroso, Cravel! Está procurando me tirar do sério. Pode continuar. E, se ela está morta, cum­prirei minha promessa e nada poderá salvá-lo!

De novo o gerente deu de ombros.

— É lamentável. Pensei que você soubesse. Minha irmã não é, habitualmente, tão discreta.

— Ela sabia? — perguntou Betcher, com voz quase ininteligível.

Cravel acenou afirmativamente.

— Onde está Nora Sanders?

Para espanto de Betcher, Cravel indicou a porta que dava para o quarto onde Monkford fora assassinado.

— Nós a pusemos ali. Seu amigo, o professor, está com ela. Que moço inteligente você é — continuou jocosamente — em vir direitinho a este lugar! Você deve ter um instinto de apaixonado!

— Caminhe! — ordenou Betcher secamente, com a arma apontada para o peito do homem e a outra mão indi­cando a porta. — Acho que tudo isso é uma miserável brin­cadeira sua.

Cravel atravessou vagarosamente a sala e deu volta ao trinco da porta de comunicação com o quarto, abrindo-a de par em par.

— Entre! — disse Betcher. E seguiu atrás dele com todos os sentidos alerta.

As cortinas do quarto estavam descidas até a metade, e a luz cinzenta que passava através do pequeno espaço aberto dava um ar tétrico ao aposento. Isso, porém, Long não percebeu. Ficou de pé, paralisado de espanto, na soleira da porta.

Em frente a ele havia uma cama encostada à parede e nela, com as faces brancas, os lábios sem cor, os olhos fecha­dos, estava Nora.

Betcher olhou, boquiaberto, completamente atordoado.

Então era verdade! Ela estava morta! Para que outro fim a teriam trazido para ali?

Do lado, aos pés da cama, viu na sombra da alcova um vulto que não lhe era familiar: um homem velho com os cabelos brancos caindo sobre o rosto. A luz se refletia nos seus grandes óculos e ele fitava o detetive com uma car­ranca de ódio.

— Ninguém se mova! Fique aí, Cravel! Se algum de vocês puxar uma arma, eu atiro!

Seus olhos voltaram-se para a figura imóvel no leito. Morta! Não podia acreditar. A dor sucedeu-se à ira.

— Cão! — exclamou.

Deu um passo avante. Mais outro passo o colocou no centro do tapete, ao lado da cama. Sentiu que o chão lhe fugia debaixo dos pés. Tentou retroceder, mas em vão, pois tinha perdido o equilíbrio antes de se poder agüentar. Esten­deu a mão para alcançar a borda do grande buraco no chão, escondido pelo tapete, mas, não conseguindo, afundou. A cabeça bateu violentamente contra um pau de andaime. Perdeu os sentidos.


 

Poucos minutos mais tarde Cravel descia a escada e encaminhava-se a passo descansado para o pórtico, onde Rouch estava de pé, olhando melancolicamente a chuva que caía.

— O inspetor Long vai ficar para almoçar.

— Ah, sim? — retrucou o sargento em tom descortês. — Ele quer que eu suba?

— Ainda não. Pediu-me certos documentos que está examinando e nos quais, presumo, espera encontrar a prova de minhas intenções criminosas.

— Ah, sim? — repetiu o sargento com indiferença. Cravel abriu a porta do escritório e entrou. Pouco depois Rouch ouviu-o voltar e torcer a chave. Mas não olhou para trás: foi a sua desgraça.

O golpe que Cravel lhe desfechou teria dado cabo de qualquer pessoa, mas o sargento Rouch usava um espesso chapéu-coco. Com a violência da pancada, caiu de joelhos. Cravel deu-lhe mais uma paulada e, abaixando-se, agarrou-o por baixo dos braços e puxou-o para fora, onde estava o carro de Betcher. Içou-o para dentro e atirou-lhe a manta por cima. Retirou do escritório uma motocicleta, atou-a por uma correia ao carro, descansando as rodas no estribo. Feito isso, subiu no automóvel e deixou o hotel.

Quinze minutos mais tarde o carro passava por Egham e, virando bruscamente, tomava a estrada de Windsor, que corre paralela ao rio. No ponto em que a margem tem um declive para as águas, Cravel desceu, deixando o motor liga­do. Desamarrou a motocicleta. Torcendo o guidão, engrenou o carro, que se precipitou para a frente, oscilando um momen­to num montículo de terra e escorregando pelo declive até capotar e mergulhar no rio.

Consultou o relógio. Eram cinco e meia e, montando na motocicleta, voltou para Heartsease.

Quando tornou ao quarto de Monkford, a moça e o velho já não estavam ali. Olhando em volta, viu na borda do buraco a pistola que o detetive deixara cair. Metendo a Browning no bolso, enrolou o tapete e levou-o para a sala. A roupa da cama já tinha sido removida; lançando um últi­mo olhar pelo aposento em desordem, ele fechou a porta e desceu.

Tinha muito que fazer. No seu escritório havia uma escada estreita, que dava acesso a uma adega da qual tinham retirado o vinho há poucos dias. Segurando uma lanterna e armado de um cassetete, Cravel desceu a escada e caminhou ao longo do muro de tijolos até chegar embaixo, perto de um buraco retangular aberto pelos operários no teto abobadado. Olhando para cima, via-se, através dos andaimes, a abertura por onde caíra Betcher Long. Subindo em outro andaime, ele perdeu a respiração quando, ao projetar a luz da lanterna em todas as direções, não descobriu o homem que pensava encontrar morto ou moribundo no chão de tijolos.

Betcher Long desaparecera! E sem deixar vestígios! Não havia manchas de sangue. Cravel abafou no peito uma imprecação. Era impossível que o detetive pudesse ter esca­pado às conseqüências de uma queda tão séria. Talvez os outros o tivessem levado. Deu nova busca na adega, revis­tando um compartimento contíguo sem nada encontrar.

Desvairado com o que acabava de verificar, exclamou:

— Betcher Long vivo!

Nunca, em sua vida, esse homem empedernido tinha experimentado a tortura do medo, mas agora estava aterro­rizado. Voltando ao escritório, fechou a porta a chave e, despejando num copo uma boa dose de brandy, bebeu-a de um só trago. Bateram à porta. Era a cozinheira, que vinha pedir-lhe a chave da cozinha.

A velha era surda e fora ela a única empregada que dor­mira em Heartsease naquela noite, por estarem no meio da semana e não haver hóspedes no hotel.

Cravel subiu ao segundo andar e caminhou até o fim do corredor, metendo uma chave na fechadura de uma porta disfarçada na parede. A porta era de aço e atrás havia um apartamento que não figurava na lista de aposentos de hós­pedes. Consistia em dois quartos, um exíguo banheiro e uma pequena cozinha. Eram os aposentos de Cravel, no inverno, quando o hotel estava fechado. Abriu a porta e entrou no menor dos dois quartos. Uma moça jazia na cama, imóvel, e, não fosse o débil arfar do peito, que só uma vista muito penetrante descobriria, dir-se-ia que estava morta.

Cravel levantou-lhe o braço nu e examinou as três marcas de injeção, uma das quais era recente. Na mesa, ao lado da cama, havia um frasco verde e um estojo de seringa hipodérmica. Levantou-lhe uma das pálpebras com o dedo e observou que a pupila não reagia. Satisfeito, passou para o outro quarto.

Estava vazio. Em cima da mesa havia uma nota escri­ta a lápis, que, depois de ler, ele queimou na lareira.

Onde estaria Betcher Long? Poderia supor-se que se encontrava morto num lugar qualquer e fora transportado depois de haver sido escrita a nota? Certamente não haviam de começar a procurá-lo senão quando já bem avançada a manhã. Encontrariam o carro dentro da água, com o corpo de Rouch, o que levaria a polícia a investigar no leito do rio, para ver se não encontrariam também o corpo do dete­tive. E isso demandaria tempo.

Não podia compreender o que acontecia com Alice. Por que teria voltado ao apartamento em vez de vir tomar parte na cena? Alice lhe dava que pensar. Ela sempre havia se mostrado tão cruel e sem remorsos como qualquer um deles, afrontava todos os riscos e nada a atemorizava. Agora fra­quejava justamente no momento em que seria de tanta utili­dade!

Quando partia do pavimento térreo, ouviu que o cha­mavam. Abriu a porta e correu para a balaustrada que dava para o vestíbulo. Era sua irmã, com a roupa ensopada, colada ao corpo. Tinha o rosto úmido voltado para cima.

— Desça! — ordenou ela. Cravel obedeceu.

— Onde esteve? — começou ele.

Alice interrompeu-o com impaciência.

— Onde está Long?

Cravel abanou a cabeça.

— Não sei; foi-se embora.

Ela não lhe deu crédito.

— Estive na estrada de Sunningdale, onde encontrei algo... O motorista de um táxi!

— Acabe com os mistérios! Que tem um motorista a ver comigo?

— Muita coisa, penso eu. Estava no caminho junto ao parque e parecia muito satisfeito. Tinha deixado o carro debaixo dos alamos e disse que estava ali desde pouco depois da meia-noite. Trouxe alguém para cá.

— Quem?

A moça sacudiu a cabeça.

— Era isso o que eu queria saber. Tentei fazê-lo falar, mas ele apenas disse que se tratava de um homem grisalho, que embarcara na esquina de Berkeley Square. Presumo que poderia ter contado mais. Há alguém nesta casa de quem você nada sabe.

Perturbado, Cravel pestanejou.

— Conversa fiada! Não há ninguém aqui! Exceto... Alice logo compreendeu de quem se tratava.

— Ela está aqui, então? Você está brincando com fogo, e com um fogo muito perigoso — disse com energia. — Salve-se enquanto é tempo. Se demorar mais uma hora será tarde. Fugir não será fácil, mas é a única esperança. Quer tentar?

Um sorriso despontou na fisionomia dura de Cravel.

— Quando temos nas mãos tudo o que desejamos? — perguntou ele com desprezo. — Estarei louco? Fomos muito longe. Só há uma coisa a fazer agora: ir até o fim.

Alice olhava-o, pensativa, dando a impressão de que não se interessava mais pela sorte dele. Mudou de assunto, com seu modo brusco:

— Estou molhada. Preciso trocar de roupa.

Seu apartamento ficava logo embaixo e assemelhava-se em todos os pontos ao do irmão, exceto quanto à porta secreta.

Cravel esperou, caminhando de um lado para outro, até que a irmã voltasse. Viu então com surpresa que sobre as roupas secas ela vestia uma capa de borracha.

— Vai sair de novo?

— Sim. Disse ao homem da garagem que voltaria. Meu carro deve ter sido levado para lá e a garagem poderá ser útil. Fica na estrada real e tem telefone. Penso ficar lá a ma­nhã toda.

Ele sorriu.

— Que espera?

— Problemas e mais problemas — disse ela em voz baixa. — Os outros já se retiraram?

Ele acenou afirmativamente com a cabeça.

— Você perdeu a coragem, menina. Talvez por causa de Jackie... Foi um acidente... Ele deu-se um tiro na luta, o pobre idiota! — E, observando a palidez da moça: — Juro, Alice. Ele estava morto quando o retiramos da água. O en­forcamento foi sinistro, mas, como você sabe, o Professor nunca perdoou Jackie do caso de Colchester. Odiava-o.

— Uma pistola automática o matou. Jackie só possuía um velho revólver militar; saiu em todos os jornais que foi uma bala de Browning que o matou. Mas não vale mais a pena falar no assunto.

Ela foi até a porta, olhando para um e outro lado. A chuva caía forte, mas não era o tempo que ela observava.

— Se ele não estiver na casa, deve estar no parque. No seu caso, eu não faria investigações. Fugiria.

— Eu não sou você — disse ele.

Alice tinha vindo numa bicicleta que tomara empres­tada na garagem. Cravel seguiu-a com os olhos até perdê-la de vista. Em seguida subiu para o quarto. Pegou a pistola de Betcher e meteu-a no bolso do impermeável. Depois, lan­çando um olhar à moça narcotizada, fechou a porta a chave e desceu para revistar o parque.

Começou pesquisando minuciosamente as vizinhanças do hotel. Nada encontrou. Parte do terreno à frente da entrada principal tinha sido escavada para enterrar o cabo que fornecia eletricidade ao estabelecimento. Na terra fofa viam-se pegadas deixadas por um sapato de sola quadrada e salto de borracha.

Diante disso, seu interesse pela história contada pela irmã começou a crescer. Encontrou ainda mais duas pegadas num trecho de terreno onde o capim estava mais ralo. Vi­nham do lado do caminho para automóveis.

Acendeu um cigarro com dificuldade e ficou um mo­mento a considerar o problema.

Quem seria o homem que viera no táxi e qual seu objetivo? Atravessou um atalho até um portão de grades que dava para o caminho que marginava a propriedade.

Viu então o táxi, em cujo estribo estava sentado o mo­torista, que fumava, distraído.

O homem virou-se e fez menção de levantar-se ao ouvir passos. Mas, ao ver Cravel, continuou sentado.

— Pensei que fosse o meu freguês. Espero que não demore muito. Tenho de voltar com o carro para entregá-lo a meu motorista às oito horas.

Explicou que o carro era seu mas que tinha um motorista para guiá-lo durante o dia.

— Receio que seu freguês vá demorar — falou Cravel. — Não quer estacionar o carro no hotel?

O homem não se deixou convencer.

— Ele me pediu para esperar aqui e aqui fico espe­rando. Se perder o freguês, perco dez libras.

Olhou curiosamente para Cravel, que se apresentou.

— Não posso atinar bem quem seja o seu freguês — disse, tentando colher mais algumas informações. Não foi, porém, bem-sucedido. A descrição dada pelo motorista dei­xou-o na mesma. Depois o homem disse algo que fez Cravel estremecer.

— Espero que ele não me engane. Não gosto desses negócios de andar seguindo carros, apesar de eu ter andado ao lado do Fiat durante todo o caminho. Era um seis cilindros!

Fiat!

Fora esse o carro que trouxera o Professor e seu com­panheiro!

— A que horas saíram?

O motorista disse. Também sabia a que hora o seu carro e o que seguia tinham chegado a Heartsease. Cravel respirou pesadamente. Tinham sido espionados!

O perigo estava agora patente, e a advertência da irmã ressoava-lhe aos ouvidos enquanto voltava para o parque.

Estava perto do lugar onde a terra fora cavada quando viu uma coisa brilhando na relva. Parou para apanhá-la. Era um pince-nez de tartaruga.

Foi direto ao escritório e, fechando a porta, desceu até a adega. Na hipótese de que o desconhecido houvesse so­corrido o detetive, devia haver marcas de lama no solo. Mas procurou-as em vão. Desconcertado, subiu para o quarto. Atravessava o pequeno patamar entre as duas escadas quando parou. No tapete vermelho, bem à vista, deu com uma pe­gada de lama que não existia quando saíra!


 

Não se ouvia ruído algum, nem havia outros que reve­lassem a presença de um intruso. Curvando-se, ele tocou a lama com os dedos e verificou que era fresca. Tomado de pânico, voou pela escada, só parando na porta de seu apar­tamento, onde encontrou numa bandeja, no chão, o café tra­zido durante sua ausência.

Seu primeiro pensamento foi a moça. Ela permanecia na mesma posição em que a deixara, com os olhos fechados, imóvel. Mas as cores começavam a voltar-lhe às faces.

Cravel levou a bandeja para a saleta e bebeu uma xí­cara de chá quente com satisfação; naturalmente, pensava, a pegada que tinha visto era da velha cozinheira. De quem mais? Antes Alice não lhe tivesse falado no táxi! Estava quase arrependido de haver interrogado o motorista.

Zombava da própria fraqueza. Ele, o mais terrível do Bando Terrível, amedrontado! Encaminhou-se para a janela e abriu-a de par em par.

Despindo o impermeável, colocou a pistola sobre a mesa, ao alcance da mão, entregando-se aos pensamentos desagradáveis que o assaltavam.

Vamos que Betcher Long estivesse vivo... Vamos que o desconhecido que seguira o Professor se achasse naquele momento no hotel... Vamos...

Ouviu, então, um ruído que o fez saltar da mesa: o mo­vimento de uma chave girando na fechadura. Rápido como um relâmpago, virou-se.

— Não se mova, ou mato-o!

Mas não pôde senão encarar a surpreendente aparição que defrontava, momentaneamente incapacitado de falar ou mover-se.

Ali estava um perigo e uma ameaça que jamais lhe havia ocorrido.

Era Nora Sanders.

Por trás dela, Cravel devassava o comprido corredor, porque a porta de comunicação estava aberta. Fora o ruído da chave volteando na fechadura que lhe dera o alarme.

— Não se mexa!

Estava na mira de uma pistola Browning empunhada por mão que não tremia.

Cravel ficou estupefato diante da visão inesperada. O rosto da moça estava branco. Vestia apenas uma camisola. A mão que segurava a arma conservava-se extraordinaria­mente firme. Era a de Betcher Long; ela devia tê-la tirado da mesa.

— Não se mexa!

Ela abriu ainda mais a porta. No fim do corredor estava a escada e a salvação. Cravel ouviu a voz de seu funcionário, embaixo, no vestíbulo. Nora quase tinha alcançado o pé da escada. O gerente precisava agora contemporizar, para a pró­pria salvação.

— Srta. Sanders... a senhorita... a senhorita não sabe o que está fazendo. A senhorita esteve muito doente.

— Sei muito bem o que estou fazendo — disse ela com firmeza. Mas sua voz estava extremamente fraca.

Talvez tivesse mais consciência disso do que ele. Era como se outra pessoa estivesse falando e ela escutasse o som de uma voz estranha.

— A senhorita vai apanhar friagem e morrer se não tiver cuidado. Deixe-me arranjar-lhe um casaco.

Despendurou um do cabide do pequeno vestíbulo e o ofereceu, mas a moça recuou para o corredor com a arma apontada, enquanto ele se aproximava.

— Suba, senhorita. Há uma lareira acesa no número 6. Aqui está a chave.

E atirou-a aos pés dela.

— Não tocarei na senhorita; juro que não tocarei.

Apanhou o casaco e, como ela hesitasse, atirou-o sobre o braço armado. Num segundo afogou o grito que lhe esca­pava da garganta. Ela se debatia debilmente, por estar ainda sob o efeito do narcótico. Arrastou-a para trás e, fe­chando a porta com o pé, atirou-a sobre o leito.

— Se ficar quieta, não lhe faço mal. Se gritar, mato-a! — murmurou-lhe ao ouvido com ferocidade.

Nora fitava-o por cima da grande mão que lhe tapava a boca. Estava desamparada e seus olhos exprimiam de­sespero.

Com uma das mãos, o homem pegou a seringa hipodér­mica que ainda continha um pouco do líquido verde-pálido e, segurando a moça com a outra mão, fincou-lhe a agulha no braço alvo, esgotando a seringa. Ela tentou inutilmente safar-se de suas garras, mas acabou ficando imóvel.

Cravel estava branco de medo. A moça devia ser remo­vida de uma vez. Olhou para o relógio; era muito cedo para conseguir o pessoal de que precisava, mas devia tirá-la de Heartsease o quanto antes. Tratou de fazer desaparecer os sinais da luta; mudou o colarinho, que Nora havia amarro­tado, e saiu, fechando a porta.

O efeito do narcótico devia durar uma hora. Mesmo assim, ele tratou de ver-se livre dos poucos empregados que havia no hotel. Quanto ao desconhecido cujas pegadas havia descoberto, tinha de varrê-lo da mente, sob pena de ficar maluco.

A cozinheira não tinha importância; era surda e, além disso, não saía mais da cozinha uma vez servido o chá. Dis­pensou imediatamente um dos funcionários, mandando-o para Londres sob um pretexto qualquer. Finda a estação, o ho­mem da garagem era aproveitado no serviço do hotel, cujo pessoal se limitava a ele, o homem do restaurante e o ajudante de cozinheiro. Receava que seu procedimento fosse tomado como suspeito. Mandou o motorista para o portão interceptar os empregados quando chegassem, sob o pretexto de que seus serviços não eram necessários naquele dia.

Tudo isso tomou tempo. Concluindo suas disposições, dirigiu-se para o escritório, onde discou um número no tele­fone. Foi com alívio que ouviu uma voz familiar responder; durante cinco minutos conversaram em dinamarquês.

— Não há o que discutir, vocês têm de levá-la daqui. Pouco importa como. Não, não sei o que lhe aconteceu. Procurei-o na adega mas não encontrei ninguém. Mande Billy para cá o mais depressa que puder. Se tudo terminar hoje, estamos salvos.

Pendurou o fone no gancho e voltou ao seu apartamento. Nada dissera a respeito das pegadas que vira. Teria perdido muito tempo para contar tudo.

A porta do quarto da moça estava fechada, como dei­xara. Sentou-se, procurando uma nova explicação para o desaparecimento de Betcher Long.

Recapitulou sua conversa com o detetive, tentando re­cordar-se dos mais ínfimos pormenores. Lembrava-se de que Godley tinha desaparecido. Mas nada sabia com referência a Godley, exceto que era pai de Betcher Long e que o Pro­fessor inventara um plano para explorar o banqueiro. Era na­tural que não pensasse haver relação entre Godley e a pegada.

Compreendeu que não podia permanecer ali. Devia ha­ver alguém na porta de entrada para receber o carteiro, quando viesse. A todo custo era preciso manter uma atitude que não desse motivo a suspeitas.

Espiou para o quarto da moça e verificou que ela con­tinuava imóvel no leito. Por segurança, deu-lhe outra injeção e desceu satisfeito, para aguardar os acontecimentos, que não tardaram em sobrevir.

Saindo para o parque, deparou com um grande carro, que subia a estrada. Parou diante do portão. Desceram dele três homens.

— Sou o inspetor Glaves, da delegacia de Berkshire — disse o mais velho. — Devido à queixa apresentada esta ma­nhã e à requisição da Scotland Yard, foi expedido um man­dado de busca neste hotel.

Exibiu o documento, assinado por um juiz de paz. Cravel ficou petrificado, sem compreender.

— Dar uma busca no hotel? Que... que significa isso?

— Não sei do que se trata, sr. Cravel, mas tenho que cumprir meu dever e espero que não me oponha dificuldades.

Cravel fez que concordava em silêncio e percebeu que estava ladeado pelos outros dois detetives.

— Não há hóspedes no hotel?

— Nenhum.

A voz saía tão rouca que ele próprio não a reconhecia. Iam dar uma busca no hotel e a moça continuava lá em cima!

Percorreram, um por um, os quartos do pavimento tér­reo, e depois subiram ao primeiro andar. O apartamento que a sra. Revelstoke ocupara nada continha. O quarto con­tíguo que dava para o corredor estava fechado.

— Tem a chave desse quarto?

— Tenho uma gazua no escritório.

— Vá buscá-la — ordenou o oficial secamente.

Cravel desceu, acompanhado por um dos detetives. Pro­curou-a na escrivaninha, mas a gazua, que estava guardada numa das gavetas pequenas, não foi encontrada. Entretanto, achou na portaria a própria chave do número 3 e levou-a.

Tinha a cabeça fervendo. Era-lhe impossível pensar clara ou logicamente. Tudo o que sabia era que, por uma pouca sorte sem nome, todos os planos habilmente elaborados pelo Bando Terrível tinham falhado e iam sendo descobertos um após outro.

Por que a polícia estaria dando busca no hotel? De onde teriam partido as informações?, conjeturava tristemente enquanto o inspetor abria a porta do número 3. Havia ali um amontoado de andaimes e material de construção. Um grande buraco quadrado fora aberto no soalho. Cravel pôde apenas relancear o aposento, porque o inspetor, que demo­rou pouco, logo saiu e fechou a porta.

— Que é isso aí?

— É o novo elevador que estou instalando — gague­jou Cravel. — Mantenho este quarto fechado porque, ha­vendo uma abertura no chão, os empregados se arriscam a um acidente. — E seguiu, estonteado. Talvez não notassem a porta falsa. Era uma manhã sombria e a parede aparentava ser inteiriça.

Sentiu o coração desfalecer quando o inspetor foi direto à porta disfarçada do apartamento. Desta feita recobrou a voz.

— Não podem entrar aí!

Falava com dificuldade e estava consciente de que sua agitação era visível.

— Tenho... tenho um amigo... Ele está doente...

— Dê-me a chave.

— Estou dizendo que tenho um amigo que... O oficial pegou-lhe o braço.

— Venha, Cravel. Não crie problemas. Não tem nada que esconder; não é assim?

Ele pôde apenas sacudir a cabeça e, como um sonâmbulo, entregou a chave ao inspetor, que abriu a porta, en­trando na saleta.

— Há um outro quarto aqui, não? Cravel não respondeu.

O inspetor, sem precipitação, abriu a porta do dor­mitório.

Cravel cerrou os dentes. O oficial não tardou em voltar.

— Não há ninguém aqui — disse ele.

Pela porta aberta, Cravel verificou que o leito onde tinha deixado Nora Sanders estava vazio!


 

O resto da busca pareceu levar uma eternidade. O gerente seguiu os detetives de quarto em quarto, hipnotizado por aquele novo choque. Por fim chegaram ao vestíbulo. O inspetor entregou-lhe a chave.

— Essas buscas são muito desagradáveis sob todos os pontos de vista — disse ele num tom quase respeitoso. — Mas o senhor deve compreender que tenho de cumprir as ordens que recebo.

Cravel não respondeu. Só tinha em mente o leito vazio e não podia pensar em outra coisa.

Os dois oficiais saíram para tomar o carro, ficando apenas o chefe.

— Penso já termos visto tudo, sr. Cravel. Posso convidá-lo a acompanhar-me a seu apartamento? Desejo fazer-me algumas perguntas.

O detetive entrou no gabinete com o decepcionado gerente e, depois de fechada a porta, perguntou:

 — Esta casa é muito antiga, não?

— Data do tempo dos Tudor. Algumas partes são ve­lhas — respondeu Cravel, desejando intimamente saber aonde o outro queria chegar. — Poderia dizer-me o que o trouxe aqui?

— Quer-me parecer que foi a morte de Joshua Monk­ford. — O oficial falava devagar e olhava fixamente para Cravel. — De repente, tanto a polícia de Berkshire como a Scotland Yard resolveram fazer um inquérito a respeito, e estou me perguntando se o senhor poderia dar informa­ções sobre esse assunto.

— Já fui interrogado a respeito e prestei todos os es­clarecimentos de que dispunha.

Durante quinze minutos Cravel foi sabatinado com uma série de perguntas estúpidas, sem relação com o que lhe dominava o espírito. Foi somente no fim que o interroga­tório começou a revestir-se de importância.

— Fui informado de que o inspetor Long e o detetive sargento Rouch vieram para este hotel, esta manhã. Onde estão?

— Foram embora. O sr. Long não é meu amigo e me acusa de toda espécie de canalhice, que nunca me passou pela imaginação. Parece que a secretária da sra. Revelstoke, que é muito minha amiga, desapareceu na noite passada da casa de saúde. E como ele soubesse — puxou um pigarro — que eu me interessava muito por ela, veio me procurar às cinco da madrugada, demorando-se cerca de vinte minutos. Depois não os vi mais.

— Eles partiram de automóvel, não?

— Tinham um carro, e é de presumir que não fossem a pé — disse Cravel, sarcástico.

Bateram à porta. O inspetor levantou-se e foi abrir. Teve uma conversa em voz baixa com seu subordinado.

— Muito bem, sr. Cravel, era tudo quanto desejávamos saber. Agora me retiro.

Desceram de novo para o vestíbulo e, com um alívio indescritível para Cravel, o carro da polícia partiu com seus fleugmáticos passageiros.

Podia finalmente refletir com calma.

Primeiro Betcher Long e agora a moça. Os dois haviam simplesmente evaporado! Estava correndo perigo, e grande perigo. As coisas tinham chegado a um ponto em que a senha era: salve-se quem puder!

Havia uma pequena escrivaninha na saleta e, na última gaveta, forrada de aço, um cofrezinho. Retirou-o e abriu-o. Estava abarrotado de notas americanas, que espalhou sobre a mesa. Do cofre tirou um punhado de notas inglesas. Feito isso, dirigiu-se para o quarto onde havia deixado a moça. Mudou de roupa rapidamente, vestindo um terno mesclado. Seu carro se achava na garagem do hotel e seus planos já estavam feitos. Semana por semana, durante três anos, to­mava nota dos vapores que saíam da linha de Gênova para Nova York e tinha um passaporte norte-americano em ordem.

Um dos divertimentos de Clay Shelton era o de falsificar passaportes. Não havia membro da quadrilha que não tivesse os papéis necessários para salvar-se quando ameaçado de perigo real. E o perigo real estava ali.

Ouviu passos apressados no vestíbulo, correu para a sala de jantar e meteu todo o dinheiro no bolso. Quando a chave deu volta na fechadura e Alice Cravel entrou, nada denunciava que o irmão estivesse preparando uma fuga precipitada.

 — A polícia esteve aqui!

— Encontrei-os na estrada — disse ela. — Fizeram-me parar, dirigindo-me uma série de perguntas tolas. Nada disseram sobre Long e a moça. Onde estão eles?

Cravel deu de ombros.

— Sabe Deus!

Alice ficou espantada.

— Não estão aqui?

— Pelo que sei, não.

— Onde estão os outros? Levaram a moça?

Cravel sorriu.

— Seria melhor se lhes perguntasse — disse ele, com um ar de suspeita.

Pouco a pouco ela começou a compreender.

— Levaram-na. Encontrei a ambulância na estrada de Sunningdale, há dez minutos. Não a fiz parar porque não tinha certeza.

Por sua vez, Cravel ficou atônito.

— A ambulância? Por onde ia?

— Em direção a Londres.

Traindo a surpresa, Cravel passou a mão pela cabeleira. Não compreendia mais nada.

— A menos que eles tivessem voltado enquanto a polí­cia estava aqui, levando-a clandestinamente... Mas como?

Em poucas palavras contou à irmã o que acontecera.

— E Betcher Long? Ele resmungou.

— Não me pergunte por Betcher Long. Já lhe disse que caiu no buraco e devia ter morrido, mas não morreu.

— Quero ver o quarto de onde caiu.

De má vontade, Cravel acompanhou-a ao apartamento de Monkford.

— Aí está a abertura por onde o fiz cair. Se isso não é suficiente para matar um homem, não sei o que seria preciso.

Alice olhou para baixo. Os ângulos da cavidade eram ocupados por linhas de andaimes e havia suportes em cruz em três pontos para conservá-las no lugar.

— Ele podia ter batido nisso — Alice apontou para um dos suportes —, e ter sido projetado num dos quartos de baixo.

— Verificada essa hipótese, só podia ter sido no nú­mero 3, onde aliás a polícia nada encontrou. Além disso, devia ter perdido os sentidos. Tudo isso é misterioso. Não encontro explicação.

— Para onde vai? — perguntou ela, observando a roupa que o irmão usava.

— Vou à cidade — respondeu ele de modo vago —, onde tenho alguns assuntos a tratar.

— Você vai é fugir!

— Não diga tolice! Por que eu iria fugir?

— Quem deveria fugir senão você? Quem tem mais a perder? Quem está mais enterrado do que você nesse la­maçal de sangue? Que foi que fez com Rouch? Você es­pancou-o e pensa que nesse momento ele está no fundo do rio, debaixo do carro de Long. Mas está muito enganado!

Cravel encarou-a.

— Onde está ele então? — perguntou em voz abafada. — Quem foi que lhe contou?

— Ele se acha vivo e não estava no interior do carro quando você o fez capotar dentro do rio. Caiu perto da barreira da estrada de ferro em Sunningdale, recuperando depois os sentidos.

Sobreveio um silêncio mortal. Depois Cravel perguntou:

— Como soube disso?

— O homem da garagem em Sunningdale me contou. Esta é a razão por que me encontro aqui. Da garagem, Rouch telefonou para a polícia de Berkshire. Aí está por que eles vieram. Por que motivo pensou que tivessem vindo?

Cravel passou a mão pelos lábios sem sangue.

— Que desastrado fui! — Depois ergueu os olhos va­garosamente para Alice. — Você tem dinheiro, não?

— O suficiente.

— O que tem a fazer é sair da Inglaterra do melhor modo possível.

— Poderá indicar-me o "melhor modo"? — murmurou a moça gravemente, fitando-o com seus olhos escuros.

— Que quer dizer?

— Qual é melhor escape para o rato, quando o gato está rondando? Pois essa é a nossa situação.

Cravel olhou em torno, nervoso.

— É melhor que ligue para eles, avisando...

— Acabo de falar no telefone do vestíbulo — replicou Alice. — E sabe quem atendeu? Um oficial da polícia. Dei­xar a Inglaterra! Só há um caminho para fugir, filhinho: o caminho que Jackie tomou!

Cravel baixou a vista diante dos olhos da irmã. Já não se defendia mais.

— Fui obrigado a isso — disse em voz baixa. — Você sabe...

— Eu sei. Mas não há outra saída. Aonde vai?

— Buscar meu carro.

— Quer que lhe diga que trajeto poderá percorrer com seu carro? — perguntou ela, com as mãos nos quadris.

— Bem, fale.

— Sei que há dois policiais de Berkshire em cada por­tão e um deles é motociclista. Não há mais probabilidade de sair de Heartsease do que do inferno!

Alice deixou o irmão, abatido e acovardado, sentado à mesa. Assim estava ele, planejando e rejeitando cada plano tão depressa quanto era concebido, quando uma voz o cha­mou do corredor.

Correu para abrir a porta e deu de cara com Betcher Long.


 

Duas tiras ponto falso mantinham um pedaço de gaze na testa; mas, além da equimose que ultrapassava o curativo, ele não trazia outro sinal da queda. Nos modos e na arrogância, era o antigo Betcher Long.

 — Você é o pior guarda de necrotério que já existiu! Por fim Cravel recobrou a fala.

 — De onde veio?

— Venho de não sei onde, bebezinho. E, se quiser sa­ber onde é que fica não sei onde: fica no número 3. Podia ter morrido, mas deu-se o acaso de lá estar o melhor de todos os bons samaritanos.

 — Onde se acha Nora?

— A srta. Sanders, quer dizer, não? Está a caminho de Londres. A que motivo atribuiu você o fato de o inspetor o levar para seu quarto e ficar conversando por um bom tempo? Estávamos levando a srta. Sanders para fora daqui, Um amigo meu tomou emprestada a gazua, de manhã cedinho, e, enquanto você estava lá embaixo, aproveitei para fazer uma inspeção no seu quarto. Estimei muito que não tivesse subido naquela ocasião, pois do contrário eu usaria de um recurso que teria anulado a ação da justiça. Em outras palavras, teria torcido seu pescoço. Sabe, agora, por que estou aqui?

— Posso imaginar...

Estava, então, completamente calmo. Tinha perdido o medo como por encanto, em face da realidade, do perigo.

— Vim dar-lhe uma pequena esperança — disse Bet­cher Long. — Mas nada posso prometer. Quero saber como Monkford foi assassinado e, se você não foi o instrumento dessa morte, terá uma atenuante em seu favor.

— Se eu alterar as provas de que dispõe a justiça — disse Cravel, rindo com desprezo. — E você pensa, por um instante, sabendo de tudo como sabe, que eu seja homem capaz de delatar meus amigos? — Refletiu um momento antes de prosseguir: — Então a gazua estava em seu poder, hein? Não dei pela falta dela até que aquele maldito ins­petor me fez descer para procurar a chave do número 3.

— Na sua ausência, eu abri a porta do número 3 pelo lado de dentro e mostrei-me ao inspetor atônito — disse Betcher. — Você se lembra de que o inspetor de Berkshire entrou sozinho para dar busca no quarto? Ele agiu assim por saber que três pessoas estavam escondidas lá. Isso me permitiu dar-lhe algumas instruções.

— Onde está minha irmã? — perguntou Cravel.

— Foi-se com um amigo meu.

— Presa?

Betcher fez que sim.

— Acredito que escape à condenação. Mas presumo que será a única. Jackson Crayley também teria escapado. Mas você precipitou o curso da justiça, julgou-o e o executou.

Cravel baixou a cabeça, evitando o olhar firme do de­tetive. Betcher viu as cores voltarem-lhe às faces, mas não eram as cores do brio. Repentinamente ergueu a cabeça.

— Quer saber como foi morto Monkford? Suponho que o melhor que tenho a fazer, nas atuais circunstâncias, é falar. Ele se matou.

E, diante do sorriso incrédulo de Betcher, insistiu:

— Matou-se, repito. — De repente inclinou a cabeça e disse: — O telefone está tocando. Posso descer?

Betcher acenou afirmativamente. Não havia probabili­dade de que o homem fugisse. A frente e os fundos da casa estavam guardados.

Pouco depois ouviu Cravel correr escada acima e foi esperá-lo na porta.

— Era para o senhor — disse o gerente, um tanto sem fôlego. — Transferi para este aparelho.

Embora o quarto tivesse sido demolido em parte, o te­lefone ainda estava ligado. Betcher inclinou-se e levou o fone ao ouvido.

— Não respondem. Não há ninguém na linha.

— Aperte o gancho.

O dedo de Betcher estava sobre o gancho quando um estranho pressentimento de perigo o fez estremecer.

Era muito tarde para suspender o gesto. O gancho já estava meio apertado. Long, porém, inclinou um pouco o receptor, e então...

A explosão o ensurdeceu. Atirou o aparelho no chão e deu meia-volta, com uma das mãos no ouvido. Cravel estava de pé contra a parede oposta, com uma expressão de sur­presa no rosto pálido. O sangue corria-lhe do rosto, e no centro da testa havia uma minúscula mancha vermelha. Va­cilou um momento, caindo depois como uma massa no chão — morto!

Correndo para o patamar, Betcher chamou o agente que estava de guarda lá embaixo e juntos colocaram o ho­mem na cama.

— Que foi que aconteceu? — perguntou o agente.

Arnold não respondeu. Apanhou o telefone e examinou o receptor. No centro, como em todos os receptores de tele­fone, havia um orifício de cerca de meio centímetro de diâ­metro, mas que, em vez de ser ocupado, como os outros, pelo diafragma sensitivo, possuía um cano de arma. Desparafusado o tampo, desvendou-se o mistério. O receptor era modelado no padrão de uma arma de fogo, com uma câmara para o cartucho. A certa altura havia um percursor para a deflagração da cápsula, ao ser apertado o gancho.

Ele compreendia agora por que havia sido atirado o foguete no quarto de Nora e por que Cravel distraíra sua atenção. Era para substituir o instrumento de morte pelo verdadeiro telefone. Por essa razão nada notara quando, logo depois da morte de Monkford, pegou o telefone e falou com o escritório.

De volta à cidade, parou na delegacia de polícia local para comunicar o fato a Alice Cravel. Com surpresa e alívio, viu a moça receber com grande calma a notícia da morte do irmão.

— Estou satisfeita. Foi melhor assim. Cravel deveria ter-se colocado atrás do senhor, do lado do receptor. Escapou por pouco, sr. Long.

— Sabia que me haviam preparado aquela armadilha? Ela abanou a cabeça.

— Não! Nunca imaginei que pudessem persuadi-lo a falar ao telefone. Tinha receio de... de alguma coisa mais, também.

Finalmente, ao meio-dia, Betcher recolheu-se a seu apar­tamento.

— O mordomo de sir Godley telefonou a manhã toda — disse o empregado. — Para avisá-lo de que seu pai voltou.

— Que surpresa!

Ainda lhe restava algo a fazer. Interrompendo o almoço de um magistrado da polícia metropolitana, ele obteve certas autorizações necessárias e, às três e meia, acompanhado do intrépido Rouch, que oficialmente figurava na lista dos en­fermos, foi dar em Lincoln's Inn Fields, sendo introduzido no elegante escritório de Henry.

Ao avistar Betcher, Henry sentiu-se aniquilado. Era a primeira notícia que tinha de que o detetive escapara à cilada.

Não tinha o poder de dissimulação nem os nervos de aço de Cravel.

Sentou-se, abatido e trêmulo, na cadeira da escrivaninha, incapaz de mover-se ou de falar.

— Lamento desapontá-lo. Suponho que tivesse certeza de que eu havia passado desta para melhor. Você me co­nhece, Henry, e presumo que imaginará o motivo que me trouxe aqui. Vou levá-lo preso sob a acusação de cumpli­cidade no homicídio de Joshua Monkford.


 

A sra. Revelstoke tivera uma manhã desesperadora. Via-se privada da secretária no momento em que sua corres­pondência era excepcionalmente mais numerosa e não estava inclinada a abrir o monte de cartas que a esperava na escri­vaninha. Algumas eram registradas e todas urgentes, porque continham letras vencidas há muitos meses.

Sua situação financeira não era nada boa. Tivera de vender títulos com prejuízo; suas despesas haviam sido muito pesadas e algumas de suas letras, protestadas. Um dos efeitos imediatos à morte de Monkford, que ela não previra, foi o fato de o bando exigir a cobertura de seu débito, avisando-a em seguida da penhora de algumas hipotecas.

Entre os aborrecimentos dessa manhã, figurava a difi­culdade que tivera de falar ao telefone. Por três vezes ten­tara comunicar-se com Heartsease, e todas as vezes o nú­mero estava ocupado. Não foi mais bem sucedida quando quis falar com seu advogado, a quem enviara um bilhete por uma empregada, num táxi, pois o bilhete nunca foi entregue, coisa que ela ignorava.

Nos momentos difíceis," a sra. Revelstoke tinha como lenitivo entregar-se à costura. Abriu a cesta de trabalho, de onde tirou uma peça de delicada cambraia, enfiou a agulha e começou a coser.

Estava assim trabalhando, quando, ao olhar pela janela da frente, viu parar um táxi, de onde saiu Betcher, acom­panhado de dois homens, que não duvidou serem agentes da polícia.

Uma empregada correu para atender ao toque de cam­painha, mas a sra. Revelstoke a fez parar:

— Volte para a copa. Eu abrirei a porta.

Ficou observando a moça até perdê-la de vista.

Trazia uma tesoura na mão, e o fio que ia da copa à cam­painha da porta corria pela parede, ao alcance de seu braço. Ela o cortou.

Voltou ao gabinete para apanhar a bolsa de cima da mesa e pôr o chapéu.

Depois dirigiu-se para o pátio atrás da casa. Entrou na garagem, subiu no carro e ligou o motor, dirigindo não para a direita, que a levaria à frente da casa, mas para a esquerda, fazendo o veículo correr, por uma rua larga, até Ladbrokegrove, perto da estação da estrada de ferro. Parando lá, entrou na estação e comprou um bilhete para Liverpool Street. Quinze minutos depois o expresso de Clacton deixava a estação, conduzindo num vagão de primeira classe uma senhora que sistematicamente examinava todos os jornais da tarde que comprara.

Estava sozinha no compartimento.

Servindo-se de um pente e de uma caixa de pó, trans­formou sua aparência.

Clacton-on-Sea é uma praia popular muito freqüentada naquela época do ano por excursionistas e pessoas em férias. E três vezes por semana um vapor vindo de Tilbury faz escalas ali. Por uma soma insignificante era possível ir até Ostende, passar a noite e voltar na manhã seguinte.

O vapor partiu uma hora depois da chegada da sra. Revelstoke. Ela era uma das passageiras. Não levava baga­gem a não ser um guarda-sol e duas bolsas fortemente amar­radas, presas à saia de baixo, que usava durante o dia e dobrava sob o travesseiro, à noite.

Os excursionistas não precisavam de passaporte. Se ne­cessário, a sra. Revelstoke tinha um para apresentar.

Caminhou pelas ruas empedradas de Ostende até che­gar a uma avenida larga repleta de gente alegre.

A sra. Revelstoke não estava alegre, mas adaptava-se com facilidade a qualquer ambiente. As lojas de roupas femininas eram numerosas. Na Place des Armes havia algu­mas onde se podiam comprar vestidos como os que usam as camponesas abastadas. Além de um gorro preto, de que não gostava, comprou um mantelete fora de moda, uma saia grossa comprida e um par de botinas de elástico. Isso e mais um par de óculos de ouro e uma bolsa de aparência pesada completaram o disfarce de que necessitava.

Depois que mudou de roupa no pequeno hotel onde alugara um quarto, e tirou um pouco da pintura do cabelo com uma forte solução de soda, o próprio Betcher não a teria reconhecido.

Reuniu a roupa num embrulho, que carregou debaixo do braço e, pagando a conta (a dona do hotel estava tão preocupada com seus próprios negócios que não notou sua transformação), dirigiu-se para a estação marítima. No ca­minho comprou um grande guarda-sol que lhe completava a caricatura.

Chegou naquela noite a Bruxelas, onde dormiu num hotel de terceira classe.

Não foi além de Liège, onde se instalou num dos bons quarteirões da cidade.

Gastava o tempo lendo os jornais ingleses, cujos títulos tinha o cuidado de pronunciar horrivelmente quando os com­prava na estação da estrada de ferro.

Cravel estava morto. Alice e Henry presos. Ela afligia-se por causa de Henry, pois lhe queria muito bem. E mais aflita ficou quando soube que o prisioneiro estava incapacitado de comparecer em juízo: os médicos atestaram que era tal seu estado mental que não poderia responder a processo.

Passou-se um mês. O interrogatório preliminar dos dois era transferido de semana para semana. Depois a sra. Re­velstoke viu, franzindo a testa, que o procurador da Coroa resolvera não apresentar provas contra Alice e por isso ela fora impronunciada.

Nunca havia gostado de Alice, amiga de Jackson Crayley, e por vezes mostrara-se cheia de escrúpulos.

Madame Pontiere, como se fazia chamar, passava por natural de Liège. Obtivera uma carteira de identidade da polícia, devidamente preenchida. Nada lhe parecia perturbar a tranqüilidade, pois os jornais a tinham dado como desapa­recida, presumindo-se que houvesse partido para os Estados Unidos.

Certa manhã, quando saía da catedral com o livro de orações na mão enluvada, deparou com um homem que a cum­primentou, tirando o chapéu: ,

— Sra. Revelstoke, se não me engano? — disse ele com polidez.

E foi na companhia de Betcher Long que ela teve de seguir dali para a delegacia de polícia, sem protestar ou ofe­recer qualquer resistência.

Betcher Long sentiu que tinha a seu lado o assassinato personificado.

Não tardou em ser concedida a extradição. Certa ma­nhã a sra. Revelstoke saía da chefatura acompanhada por uma mulher, oficial de polícia, que a conduziu para um trem expresso com destino a Bruxelas, passando-se tudo num abrir e fechar de olhos. A transferência de Bruxelas não foi menos rápida e, às cinco horas de uma manhã nublada, ela desem­barcava em Dover.

Foi somente ali que se dirigiu a Betcher. Durante toda a travessia mantivera um silêncio de pedra; quando ele lhe fa­lava, fingia não ouvir. Ao dirigirem-se à plataforma para tomar o trem, virou-se rapidamente:

— Como está Henry?

— Receio que seu filho não possa responder em juízo.

A velha não replicou. Apenas uma contração das pálpebras traiu o desespero dessa mulher de vontade de ferro. Quando o trem atravessava Bromley, ela tornou a falar:

— Alice com certeza deu com a língua nos dentes, não? Ela nasceu assim, mole que nem manteiga. Nem mesmo o doutor pôde torná-la mais enérgica.

Foi essa a primeira vez que Betcher teve notícia da pro­fissão de Cravel.

A sra. Revelstoke foi condenada à prisão perpétua e o jovem idiota que sorria a seu lado no banco dos réus ficou à discrição do rei.

Betcher Long entrou no gabinete do chefe e entregou-lhe uma carta manuscrita.

O coronel MacFarlane leu com atenção.

— Lamento muito, Betcher. justamente agora que ia ser promovido... Coube-lhe o maior dos recordes, pois você chegou a detetive-chefe aos 27 anos. Mas se acha que deve retirar-se, não me cabe retê-lo. Afinal, tem razão em deixar a polícia para dedicar-se às finanças. Quando deseja ser exonerado?

— Imediatamente, se possível.

O coronel MacFarlane pôs a carta na cesta dos docu­mentos urgentes.

— Vou ver o que posso fazer. Levará uns dois ou três dias para conseguirmos sua demissão definitiva. Por que tanta pressa?

Betcher deu uma resposta evasiva.

Alcançou Berkeley Square no momento em que o carro do pai parava à porta e Godley e Nora desciam. Ela vinha do campo e ainda não tivera notícias do resultado do pro­cesso. Quando, mais tarde, Betcher a informou, estremeceu.

— É horrível — disse em voz baixa. — Apesar de tudo, lamento...

— Suponho que, por minha vez, deva lamentar — disse Godley, escolhendo um charuto. — No entanto, não posso...

— E por que razão deveria lamentar? — indagou Nora, surpresa.

 — Explique-lhe por quê — disse Arnold calmamente.

 — Porque...

Naquele momento o telefone tocou. Godley levou o receptor ao ouvido e escutou. Betcher viu a fisionomia do pai contrair-se.

— Mas isso é extraordinário! — disse Godley. Alguém, na outra extremidade do fio, falava com insistência — mais tarde soube que era o capelão da prisão.

 — Muito bem... eu irei.

Pendurou o fone. Os olhares do pai e do filho cruzaram-se.

 — Ela deseja me ver.

 — Ao senhor? Por quê? — começou a moça.

Mas alguma coisa na fisionomia do velho a fez calar-se.

— Penso que será melhor que eu a veja — disse Godley.

E retirou-se da sala.


 

Era uma linda tarde.

Mas, se trovejasse ou nevasse, daria no mesmo, porque o baronete não estava prestando nenhuma atenção ao tempo enquanto o automóvel corria pelo caminho marginal de Re­gente Park e chegava à pobre e tristonha Camden Town.

Os vendedores de jornais, únicos a animar as ruas, apre­goavam: "Revelstoke condenada" ou "O castigo da Mulher Terrível", pois assim os repórteres a haviam batizado.

A prisão de Holloway tinha aparência medieval. Um grande portão, por onde era proibida a passagem, fechava o arco central.

Munido da necessária licença, ele foi admitido na ante-câmara do guarda.

O capelão de serviço o esperava. Era um moço nervoso, que estava substituindo o capelão da prisão, em férias.

A sra. Revelstoke ocupava uma cela espaçosa no andar térreo.

O guarda puxou os ferrolhos e empurrou a porta.

— Pode deixar aberta — disse o capelão. — Ficarei do lado de fora.

Era necessário um esforço consciente. E o banqueiro o fez, entrando na cela clara e arejada mas miseravelmente mobiliada.

A velha estava de pé, junto à parede frente à porta, muito senhora de si. Habitualmente o prisioneiro troca a sua roupa pela da prisão, mas ela trajava o vestido do dia do júri — um elegante costume azul. Godley soube depois que a sra. Revelstoke seria transferida para uma penitenciária de mulheres, fora de Londres, porque as autoridades julgaram conveniente.

— Boa tarde, Godley. Foi muito gentil em ter vindo. — Ele inclinou ligeiramente a cabeça e ela continuou: — Seu filho é muito inteligente. Suponho que seja herança da mãe, não?

A insolência estudada do elogio não o surpreendeu.

— Naturalmente nunca sonhei que ele fosse parente de Clay — prosseguiu ela. — Tomei o nome como mera coin­cidência. Se eu soubesse, teria sido muito diferente, tanto para mim como para você.

Se procurava fazê-lo falar, devia estar desapontada.

— Quero que olhe por Alice e Henry — disse ela com calma.

— Farei isso por você — respondeu prontamente o banqueiro.

Ela o fitava de modo estranho.

— Você mudou, mas sua voz é a mesma. Eu a reco­nheceria em qualquer parte. A vida é estranha, não? Clay morto... e os outros. Foi o seu filho quem provocou tudo! Todas as vezes em que entrava em cena, a morte surgia.

A velha falava sem calor e sem amargura.

— Os oficiais de polícia com quem falei chamam-no Long, o Felizardo, e presumo que a sorte tenha influído muito. Godley, por que motivo pensa que recebi tão facil­mente o castigo? Não lhe parece estranho, sabendo como Clay era atilado?

— Já pensei nisso.

Ela o observava com seus olhos escuros.

— Ele era tão extraordinário — prosseguiu — que estava preparado para todas as emergências. Nunca deveria ter sido enforcado. Mas, na luta com seu filho, rasgou o casaco nas costas. E os idiotas do posto policial forneceram-lhe outro.

Ele não compreendeu o que ela queria dizer.

— Tanto quanto me lembro — disse ele —, só foram achados alguns papéis no bolso do casaco.

A resposta pareceu diverti-la.

A fisionomia ansiosa do capelão apareceu diante da porta. Trazia o relógio na mão. O tempo estava contado.

— Quero que pese bem os fatos — continuou a velha. — Clay estaria vivo, Sonny Cravel, Jackson Crayley, todos vivos. Henry, o coitado, estaria são, gozando os prazeres da vida e eu cosendo no meu quarto, em Colville Gardens, se não fosse seu filho.

Ele fixou-a com dureza.

— E Monkford e os outros que eles mataram? — per­guntou asperamente. — O juiz, o advogado, o executor! Di­go-lhe, Alice, que sou grato a Deus por Arnold haver apa­nhado esse homem, grato por tudo quanto fez para a ruína de seus comparsas!

A velha não se melindrou.

Seus olhos ainda estavam sorridentes quando ela pegou um papel dobrado que se achava sobre a mesa e o mostrou.

— Este testamento exprime meu ponto de vista — anunciou.

Quando ele estendeu a mão para receber o papel, ela o deixou cair.

Godley adiantou-se, abaixando-se para apanhá-lo.

A velha ergueu a mão que ocultava na prega do vestido. Alguma coisa brilhou por um segundo e foi arremessada com força. O grito de aviso do capelão fez Godley inclinar o corpo para o lado. A aguda faca raspou-lhe o ombro. Num instante a fúria lutava com ele. A sra. Revelstoke tinha a força de um homem. Por duas vezes a faca quase lhe atingiu o rosto.

De súbito, com um supremo e desesperado esforço, ela o empurrou para trás e, rasgando a gola do próprio casaco, levou a mão à boca.

Vários guardas acudiram, mas ela não ofereceu resis­tência.

A faca caiu com ruído no chão duro e então viram que o cabo tinha o formato de um salto de sapato.

Clay era mesmo um chefe fantástico, pois fora a seu conselho que aquela afiada lâmina de navalha tinha sido escondida entre a sola e a palmilha do sapato que a sra. Revelstoke usava.

Godley, pálido e trêmulo, foi para o gabinete do diretor da prisão e permaneceu a sós com ele por longo tempo.

O diretor voltou, visivelmente contrariado:

— Deu alguma coisa à velha? Veneno? O banqueiro ficou petrificado:

— Santo Deus! Claro que não! Ela... O diretor acenou com a cabeça:

— Ela morreu — disse simplesmente. E depois, re­fletindo: — Falta-lhe um botão no casaco... O veneno devia estar ali.

Agora o banqueiro compreendia por que motivo a mu­dança do casaco de Clay Shelton havia contribuído para que ele não escapasse à forca.


 

Passaram-se quinze dias. O inquérito fora um período de apreensões, agora esquecido. Betcher não tinha visto o pai, mas Nora foi sua companheira de todos os dias. Ela precisava de seus conselhos, pois havia decidido não reque­rer a validade do testamento de Monkford.

— A assinatura pode ter sido falsificada — argumentava.

Betcher, que não tinha dúvidas sobre o caso, concordou.

Godley voltou outro de Bournemouth, apesar de res­sentido da agressão.

Naquela noite, quando acabavam de jantar e os empre­gados já se haviam retirado, o banqueiro descansou os coto­velos sobre a mesa e virou-se para a moça:

— Leu o resultado do inquérito? Nora abanou a cabeça.

— Arnold não quis que eu visse os jornais mas, mes­mo que tivesse deixado, não os teria lido! A única coisa que notei foi uma grande manchete que anunciava: Extraor­dinária história de um banqueiro. Seria o senhor?

— Era eu — respondeu Godley, carrancudo. — E a história extraordinária era a que ia lhe contar quando fui interrompido pelo telefonema.

— Quem era a sra. Revelstoke? — indagou ela.

— Minha esposa.

Diante do dramático silêncio dos ouvintes, continuou:

— A história completa do Bando Terrível não apareceu nos tribunais, e, graças a Deus, minha presença não foi ne­cessária. Clay Shelton era meu irmão por parte de pai. Era um jovem desregrado e sem escrúpulos que roubou meu pai e depois tentou roubar-me. Quando fugiu, porque meu pai descobrira o roubo, eu era noivo de uma linda moça dina­marquesa, a srta. Ostlander, que viera para a Inglaterra como professora na casa de alguns vizinhos. Encontrei-a numa festa e apaixonei-me por ela. Pouco depois da partida de meu irmão, casamo-nos.

Bateu a cinza do charuto e sorriu tristemente.

— No dia em que nos casamos, ela me revelou algo que me deixou aturdido. Amava meu irmão e só havia se casado comigo a fim de que a criança que estava esperando tivesse um nome. Passamos a lua-de-mel em Copenhague e foi no vapor que cruzava o mar do Norte que ela me fez tão inesperada revelação. Três dias depois de termos chegado à capital dinamarquesa, ela me abandonou. Saiu para fazer compras, e já fazia uma hora que a esperava para jantar quando recebi um bilhete em que minha mulher me comunicava que não voltaria e que ia para onde achara a verdadeira felicidade, imediatamente requeri divórcio, alegando a existência de um amante, que jurei ser desconhecido. Obtive o divórcio.

Eu creio que se casaram...

— A 9 de fevereiro de 1886 — atalhou Betcher. — Era a terceira data gravada no painel do camarote. A segunda era a data do nascimento de sua mulher. A quarta era do aniversário de Crayley, ou, em outras palavras, de Jackson Crayley Long.

— Crayley, seja dito de passagem, era o nome da propriedade de nossa família, em Yorkshire — prosseguiu Godley. — Não tinha mais ouvido falar neles até que um dia seu gerente veio ter comigo, muito exaltado, e informou que tínhamos pago oitenta mil libras contra uma letra falsa. Meu primeiro pensamento, como era natural, foi apresentar queixa à polícia. Mas, examinando o documento da fraude, verifiquei que tinha nas costas duas letras escritas a lápis, que haviam escapado à atenção do caixa: JX. Reconheci, pela originalidade, o X de John, diferente de qualquer outro X no mundo, e me convenci de que o falsário era meu irmão, que havia posto aquelas iniciais ali como provocação. Paguei as sessenta mil libras de meu bolso e mandei publicar um anúncio no The Times, encimado por JX: Desta vez paguei, mas na próxima vez apresentarei denúncia. Ele nunca mais voltou à carga. Mas pouco depois começou a série de escroqueries internacionais que infamaram o nome de Clay Shelton. Havia uma coisa nele que eu admirava: sua disciplina de ferro. Estava casado e a família crescia. Só permaneciam juntos durante três semanas por ano, quando se encontravam em uma pequena estação balneária dinamarquesa, no Báltico. As crianças cresceram na Dinamarca e aprenderam a falar a língua tão bem quanto a sua própria. Depois de crescidos, Clay teve a coragem de revelar-lhes a sua profissão. Sabia que, se vivessem juntos, mais cedo ou mais tarde seriam des­cobertos. E a desgraça cairia sobre todos os membros da fa­mília. Assim foi que achou esse novo expediente: cada membro foi se habituando a considerar-se uma entidade distinta. Nin­guém devia demonstrar ser parente dos outros, exceto quan­do se encontravam na reunião anual. A mãe veio para a In­glaterra, onde se estabeleceu como solteirona independente e rica. Os rapazes foram cada um para uma escola, sob nomes diferentes. Quando cresceram, cada qual abraçou uma profis­são. Crayley tornou-se proprietário rural; compraram-lhe uma fazenda, que ele perdeu com prejuízo da família. Compra­ram-lhe também uma casa na margem do rio. Sua ocupação era viajar para o continente, entrar em contato com gente rica, procurando não só obter-lhes as assinaturas como tam­bém inteirar-se de tudo quanto fosse útil conhecer a respeito da vida privada de cada um. Henry formou-se em direito; ad­quiriram-lhe uma banca de advogado, mas isso só depois que o segundo filho, Cravel, se estabeleceu como proprietário de Heartsease. Cravel não só dobrou o capital com os lucros como também ali arranjou um ninho para a única filha do casal, Alice. Cravel era o braço direito do pai. Jackson Crayley era o idiota da família. Atrapalhava tudo. Até mesmo contri­buiu para a morte do pai, pela estupidez de passar-lhe uma pistola no momento em que foi preso. A mãe odiava-o e aca­bou mandando matá-lo. Crayley era um bom sujeito, que abo­minava a profissão e procurava todas as oportunidades para livrar-se das tramóias dessa abjeta associação e poder viver decentemente. Nisso era ajudado por sua irmã Alice. Os dois eram muito amigos. O homem de pulso, depois da morte do pai, era Cravel, apesar de ser a sra. Revelstoke quem contra­tava a baixa ralé para executar o trabalho do Bando Terrível. Era ela que, vestida de homem, usando uma cabeleira branca, enfrentava os malfeitores. Cravel estava sempre por perto para liquidar o assassino que falhasse ou fosse bem-sucedido. Cravel, por ter visão defeituosa, não atirava. Na manhã em que Arnold voltava da prisão de Chelmsford, Henry andava numa motocicleta. Sua tarefa era jogar a bomba no carro de meu filho, caso o atirador falhasse. Tudo muito simples, não, Arnold?

Betcher acenou com a cabeça.

— Bem — prosseguiu Godley —, um carro de verdureiro os esperava na estrada, e logo que Harry, o Lanceiro, foi morto, o carro recolheu Henry e a motocicleta, rugindo. Eles mataram um por um os homens que concorreram para a morte de Shelton, e Cravel era a alma danada de tudo. Formou-se em medicina antes que o pai lhe comprasse Heartsease. É quase certo ter sido ele quem contaminou o juiz e organizou o acidente, bem planejado, que deu cabo do conselheiro. Ele e Henry, de emboscada, mataram Wallis, o carrasco. Pobre Crayley! Era um trapalhão. Até seu sinal de heliógrafo foi uma asneira que quase custou a liberdade a Cravel. Atrás de Cravel e de Henry estava sempre o quartel-general de Corville Gardens!

— Seria obedecendo a algum plano que me tomaram como secretária? — perguntou Nora, perplexa.

Godley negou com um gesto de cabeça.

— Isso foi acidental, mas, uma vez que você estava na casa, procurou aproveitá-la. Foi no dia em que visitou Monk­ford que a sra. Revelstoke decidiu isso. Você nos contou que na volta ela lhe disse que Monkford a havia elogiado por telefone, com entusiasmo. Monkford não usou o telefone. Seguiu-se a isso a remessa do anel misterioso; ainda Monk­ford. Tudo com a intenção de contestar o testamento, que já tinha sido lavrado por Henry, com a assinatura falsificada. Infelizmente para a maldita velha, o anel que ela lhe deu era o mesmo que Arnold tinha visto no dedo de um retrato dela, quando moça. O mesmíssimo anel. Foi essa descoberta que o pôs no rastro. Quando Arnold me des­creveu a jóia, eu informei-o de que era um anel idêntico ao que eu comprara para minha mulher no dia em que che­gamos a Copenhague! Alice Long nos relatou o que aconteceu na tarde do assassinato de Monkford. Henry e Cravel — sus­peito que à idéia foi de Henry — contaram a Monkford que Arnold tinha espalhado histórias referentes a ele e a você, Nora. Monkford, naturalmente, ficou furioso. Mesmo que gos­tasse de você, não tinha a mínima intenção de amor ou de casa­mento. Era um solteirão inveterado. Eles necessitavam dessa atitude de Monkford para evitar que consultasse Arnold. Eis aí o ardil diabólico da intriga. Sabiam que, se estivesse ressentido com Arnold, conservaria meu filho a distância, e era isso mesmo que queriam, até que tivessem consumado seus planos miseráveis. Como ele morreu, você sabe. O te­lefone foi provavelmente invenção de Cravel, que era muito engenhoso. Posso dizer com sinceridade que ignorava quem fosse a sra. Revelstoke mesmo depois do caso do anel. Até que uma noite saí para pôr uma carta no correio e um táxi passou por mim, conduzindo um cavalheiro idoso. As mãos do velho descansavam na beira da portinhola. Quando o carro passou, pude reparar na sua fisionomia. Por um segundo seus olhos escuros se cruzaram com os meus. Quase caí! Apesar dos anos, não pude apagar da mente a lembrança de Alice Ostlander, e instintivamente reconheci que Alice Ostlander e a sra. Revelstoke eram a mesma pessoa, embora não houvesse razão que as associasse. Tomei um táxi e segui aquele em que ia o velho até Corville Gardens, onde o veículo dobrou numa an­tiga cocheira. Cessaram, então, minhas dúvidas. Tive uma pe­quena conversa com o motorista e perguntei-lhe se seria capaz de seguir o automóvel dela naquela noite, se saísse de novo. Enquanto falávamos, o carro saiu da antiga cocheira e passou tão perto que vi o rosto de quem o guiava, ficando ainda mais certo de tudo. Chegamos enfim a um lugar que presumi fosse Heartsease, de que tanto ouvira falar. O carro transpôs o por­tão e ali deixei o motorista, seguindo meu caminho a pé. Chovia abundantemente e abriguei-me debaixo de um cedro. A velha tinha desaparecido no hotel e depois vi um homem sair e levar o carro, provavelmente para a garagem. Esperei muito tempo, sentindo-me um tanto ridículo e imaginando o que o motorista estaria pensando de mim. Por fim achei que seria melhor voltar para casa, por causa de meu pessoal, que estaria alarmado. Descia a estrada para tomar o táxi quando duas luzes apareceram na minha frente e tive apenas tempo de me esconder. Era uma grande ambulância que pas­sou como um raio, parando não em frente ao pórtico, mas na porta do lado, por onde entrara a sra. Revelstoke. Voltei, pronto para me esconder, e vi retirarem uma padiola. Um dos homens, que julgo fosse Cravel, levantou uma criatura nos braços e carregou-a para o hotel. Quase no mesmo instante a ambulância voltou, tomando o caminho por onde viera. Minha curiosidade estava aguçada e, apesar de não ser moço, ainda encontrei ânimo para o que desse e viesse. A porta da frente do hotel achava-se fechada, mas havia o alpen­dre, e, em cima, uma pequena sacada. Aí escapei por pouco de um acidente que podia ter sido sério. Tinham cavado a terra e tropecei num buraco fundo. Caí, perdendo meus óculos e estragando irreparavelmente meu smoking. Cinco minu­tos de intenso esforço levaram-me ao alpendre e a uma janela, que abri e me pareceu dar para um corredor do primeiro andar. Ouvi vozes que não sabia de onde vinham. Estava no escuro e pus-me a caminhar ao longo da parede, experimen­tando cada porta. Estavam todas fechadas. Subi ao segundo andar e depois ouvi a voz de alguém. Ao primeiro som da voz da sra. Revelstoke, meus pensamentos reportaram-se a quase trinta anos atrás e lembrei-me do dia em que ela emitiu sua franca opinião sobre mim a bordo do paquete em que viajá­vamos. Mas o que a ouvia dizer interessava-me mais ainda; discorria sobre um plano tão bárbaro e tão horrível que senti meus poucos cabelos ficarem de pé. Tornava-se imperioso achar um esconderijo e tentei abrir todas as portas naquele andar, mas também as encontrei fechadas. Descendo, cheguei ao vestíbulo que dá para o salão e, como você sabe, a primeira coisa que vi, com a fraca luz da lamparina que estava sobre a mesa, foi a porta aberta do escritório. Entrei, levando a lamparina, por saber que nos escritórios dos gerentes se en­contram algumas chaves. Por felicidade, deparei com uma gazua dependurada num pequeno gancho dentro da escriva­ninha. Apanhei-a e subi tão depressa quanto pude. Tinha alcançado o primeiro patamar quando vi uma luz e, abrindo a porta mais próxima, entrei e fiquei esperando até que ti­vessem partido.

Godley sorriu tristemente.

— Minha narrativa podia, muito facilmente, ter acaba­do aí. Movendo um pé, senti um vão. Tinha uma caixa de fósforos no bolso e, riscando um, vi pela primeira vez o bura­co no chão. No teto acima desse buraco havia uma abertura do mesmo tamanho, coberta com o que me pareceu o avesso de um tapete. Não era muito difícil imaginar que estivessem fazendo obras na casa, como testemunhavam os andaimes e as ferramentas que se achavam no quarto. Esperei por um tempo considerável que as três pessoas que se achavam no hotel partissem. No correr da noite, porém, ora uma ora outra parecia estar na escada ou a distância, mas sempre ao alcance do ouvido. Só podia fazer conjeturas a respeito da infeliz cria­tura trazida na ambulância, mas sabia agora que minhas supo­sições eram exatas. Horas e horas se passaram quando, com surpresa e alegria, ouvi a voz de Betcher. Ao subir a escada, ele passou a poucos metros de mim e fiquei à espera, calculando o que iria acontecer.

Depois de um longo silêncio, ouvi vozes no quarto de cima e sua voz, bem distinta. A abertura no teto estava, como você sabe, coberta com um tapete, e, coisa estranha, a pri­meira impressão que tive, quando vi Arnold em cima, foi que ele ia cair no buraco. Ouvi meu filho falar e Cravel responder. Percebendo depois que ele caminhava em direção ao tapete, abri a boca para preveni-lo, mas o tapete afundou e qualquer coisa tombou no escuro, bateu numa peça do andaime e tocou em mim, de raspão. Imediatamente o peguei e puxei-o para lugar seguro. Eis aí a razão pela qual Cravel não encontrou nada quando o procurou. Comecei a compreender que eu e'o meu rapaz estávamos numa situação das mais difíceis, e sen­tia-me particularmente satisfeito com a idéia de ter minha pis­tola, que vinha usando desde algum tempo. Felizmente Betcher estava desmaiado e não pôde trair sua presença. Depois de meia hora de passos e conversas em cima da escada, fez-se silêncio. Não havia água. Não pude curar-lhe o ferimento, mas verifiquei que não era grave.

Quando ele conseguiu falar, as pessoas que estavam lá em cima tinham partido. Contei-lhe o que acontecera e falei-lhe na gazua. Havia uma janela no quarto e por ela vi um car­ro que, evidentemente, levava a sra. Revelstoke e seu filho Henry. O primeiro pensamento de Arnold foi para você, Nora, e quando, depois de uma pequena espera, vi Cravel levar o carro do meu filho, começamos a dar uma busca na casa, principiando no andar térreo e subindo gradualmente. Foi um trabalho demorado e eu pensava, sem maiores razões, que você estivesse num dos quartos do andar térreo. Penso que foi por vê-la sem sentidos que imaginei que seria muito tra­balhoso carregá-la para cima. Tínhamos alcançado o primeiro andar quando ouvimos Cravel voltar e de novo nos esconde mos no número 3. Esperamos muito tempo. Uma vez Arnold julgou ter ouvido sua voz, Nora, mas isso passou e depois Cravel desceu. "Vamos arriscar", disse meu filho. Subimos. A primeira porta que abrimos foi a do apartamento de Cravel. Enrolamos você num cobertor e a levamos para baixo, para o número 3. Podíamos, naturalmente, ter enfrentado o homem, mas Betcher pensou que Cravel, desesperado, poderia atirar. E então,, muito providencialmente, chegou a polícia de Berkshi­re, em resposta ao chamado telefônico de Rouch. Foi quando eles chegaram ao número 3 e Cravel desceu para ir buscar a gazua que Arnold abriu a porta, pelo lado de dentro, mostrando-se ao inspetor e persuadindo-o a manter uma conversa com o vilão enquanto nós a transportávamos, minha querida, para lugar seguro. Essa é a história.

— Ê uma boa história — disse Betcher — e, se falta alguma coisa, é que minha destreza e meu valor não foram suficientemente louvados, mas não faltará tempo para que você os reconheça.

Nora riu.

Ela já havia dado ordem, do próprio punho, a seus ad­vogados, para não requererem a validade do testamento falso. E realmente ficou evidenciado não haver necessidade da he­rança. Na véspera do casamento, Godley deu a Nora um dote que até espantou Arnold.

E Betcher Long não se espantava por qualquer coisa!

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades