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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS SAPATOS DO MORTO / Lewis Haroc
OS SAPATOS DO MORTO / Lewis Haroc

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

" Histórias do F.B.I."

 

OS SAPATOS DO MORTO

 

Dois espiões alemães são presos nos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra. Anos depois um túmulo é violado em uma pequena cidade americana. Qual a relação entre os casos? Porque perturbar um morto há tanto tempo enterrado?  É o que o agente do FBI Paul Ladd, quer saber. Em sua busca por respostas, Paul irá enfrentar muitos perigos, arriscando sua vida em várias ocasiões. Mas o que este audacioso agente teme perder mesmo é o coração para uma linda jovem metida até o pescoço nessa embrulhada toda.

 

              

Luke Ford deixou escapar uma praga, e continuou pedalando com força na estrada.

A chuva caía a forte sobre suas costas quase desnudas. Eram grossas e pesadas gotas, que algumas rajadas de vento lançavam com violência contra seu rosto, formando com elas círculos, antes de pulverizá-las em finas gotas.

A estrada asfaltada parecia um rio e os raros veículos com os quais o jovem ciclista cruzava, avançavam devagar, cortando praticamente a água que corria fazendo barulhopara as valetas.

Luke nunca poderia explicar como aquela tempestade se formara com tanta rapidez e, menos ainda, de onde podia sair àquela quanti­dade de água, depois do maravilhoso dia que havia desfrutado.

Ia completamente ensopado e ainda lhe restava mais de uma milha para chegar a sua casa, na qual pensava com nostalgia.

Seu pai, sua mãe, Fred e Sheila, todos estariam abrigados da chuva, esperando que ele chegasse para o jantar, preocupados com a sua demora.

Um carro cegou-o momentaneamente com seus faróis, parecidos com dois enormes olhos, através da cortina de água que caía sem cessar. Luke fechou os olhos, deslumbrado, e resmungou um insulto quando o veiculo passou a seu lado, mergulhando-o outra vez na escuridão.

O fraco farol da bicicleta apenas iluminava uns seis ou oito metros do asfalto e isso, unido à força do vento e da chuva, obrigava o rapaz a avançar com certas precauções.

Da direita o rugido do mar. A es­trada contornava a costa naqueles lugares, de tal maneira, que, às vezes, o jovem Luke sentia o sabor salobre da água do mar que se misturava ao da chuva, depois de bater sobre as rochas.

O Atlântico rugia ameaçador. O vento levan­tava em sua superfície ondas altas, que a ausência total de luz tornava mais negras e si­nistras.

Pensou que outros poderiam estar em pior situação do que a sua, porque teriam que lutar contra a fúria do mar, sem sentirem terra firme sob os pés.

Os altos canaviais alternavam-se com grupos de rochas contra as quais as águas rebentavam. Não havia lua no céu, por causa das negras nuvens que se amontoavam sobre sua cabeça.

Em dez minutos, chegaria ao posto de vigi­lância de Santa Lúcia. Certamente Dick Caliagham estaria ali e o convidaria para um copo de "brandy", que lhe tiraria o frio do corpo.

Luke olhou para o mar. Foi um olhar sem o menor interesse, como muitos outros que havia lançado desde que rodava sob a chuva.

As ondas haviam diminuído de altu­ra, mas pareceu distinguir entre elas um vulto alargado, mais escuro ainda do que a escuridão das águas.

"O que será aquilo?" perguntou-se.

Talvez algum barco de pesca, virado pela violên­cia das águas. Luke diminuiu a velocidade e tornou a voltar à cabeça para a direita.

Sim. Agora já não havia a menor dúvida. Um vulto grande, alargado, com uma proeminência em cima. Permanecia sobre as águas, suportando a fúria das ondas.

A curiosidade foi maior em Luke do que o medo e a pressa de chegar. Saltou, em silêncio, da bicicleta, deixando-a no chão, fora da estrada, e avançou por entre o canavial até que a água chegou a seus tornozelos.

Luke estava muito intrigado para dar conta daquele detalhe. Afastou as canas e aguçou os olhos para o mar, comprovando que o estranho objeto continuava no mesmo lugar em que vira pela primeira vez. Era semelhante a uma enorme baleia que tivesse ficado sem forças nem vida para combater as ondas, mas pareceu-lhe que algumas figuras moviam-se sobre seu lombo.

O que seria aquilo? Um navio não, pois não distinguia os mastros e, além do mais, sua forma não correspondia a uma embarcação.

 Então?

Luke lia jornais todos os dias. Sabia, por exemplo, que os Estados Unidos estavam fazendo um grandeesforço para superar as agressões dos submarinos alemães, e não ignorava que estes levavam sua ousadia a ponto de se aproximarem das costas americanas.

 Pouco antes lera a notícia de que um submergível alemão penetrara no rio São Lourenço para atacar com seus torpedos os navios cargueiros. A impressão das autoridades navais era que os submarinos inimigos acabavam de desfechar uma ofensiva, indo procurar na própria costa ianque os enormes bojos de suas presas, para evitar que transportassem para a Europa os reforços necessários.

Aquela estranha forma não corresponderia a um submarino alemão?

Luke não se deteve para refletir sobre a possibili­dade de um engano. Voltou até a bicicleta e levou-a para a estrada e saltando sobre ela, pedalan­do furiosamente em direção ao posto de con­trole.

A chuva enfraquecera, transformando-se num chu­visco desagradável e penetrante, mas Luke não se dava conta de que estava ensopado até os ossos.

Seu objetivo era o posto de controle. Devia chegar lá antes que o mar acalmasse sua fúria e... E o quê?

Esta pergunta, sem resposta, não fez dimi­nuir a velocidade e apenas cinco minutos depois, quando já não caía do escuro céu nem uma só gota de água, Luke sentiu-se cegado pelos faróis de um carro.

Ia lançar uma imprecação, quando uma voz chegou a ele, perguntando:

— Ei, Luke! Onde vai a essa hora?

O moço reconheceu a voz de Dick Callagham, e deu graças aos Céus por te-lo encontrado.

O jipe parou ao lado dele, ao mesmo tempo em que Luke colocava os pés no chão.

Apague os faróis disse com aspereza. Era uma ordem estranha e sem sentido, mas o motorista do jipe obedeceu automaticamente. Luke aproximou-se do veículo e Dick perguntou:

A luz te incomoda?

Não. respondeu Luke. Ou melhor, agora sim. Escute Dick, a uma milha daqui, vi no mar algo que parece um submarino.

Sua declaração foi acolhida com um silêncio glacial. Dick deu uma seca gargalhada e res­pondeu:

Ai, você me faz perder o fôlego!

Está muito enganado se pensa que inventei esta história respondeu Luke, ofendido.

Talvez o garoto tenha razão comentou outro soldado. Sempre julgamos que nós não podemos ser ameaçados do mesmo perigo a que os outros estão expostos.

— Bem, de qualquer forma íamos fazer um reconhe­cimento replicou o motorista. Não nos custa nada verificar isso.

Pôs o jipe em marcha e Luke gritou:

Abram bem os olhos! Vou esperá-los no posto.

Se ouvir algum tiro, diga que nos enviem reforços gritou Dick.

Está certo prometeu Luke.

O jipe perdeu-se de vista. Luke verificou que ele andava devagar, mas com os faróis apagados, e concluiu que apesar de tudo, os quatro solda­dos que o ocupavam participavam de suas sus­peitas.

Não pode ir um pouco mais depressa? perguntou Dick.

Não. respondeu o motorista. A menos que acenda os faróis. Nesta marcha, se o garoto tiver falado a verdade, chegaremos tarde.

Os fachos de luz dos faróis iluminaram a es­trada. Não chovia mais e da terra molhada, subia um calor úmido.

Já pode apagar disse Dick, algum tempo depois.

O motorista do jipe assim  fez e respon­deu:

Pelas explicações de Luke, deve ser por aqui...

Ali está! exclamou Dick, que olhava com insistência a negrura do mar.

Seus companheiros olharam para onde ele mostrava e conseguiram divisar o estranho monstro que despertara a atenção de Luke. Mas só que agora seu relevo ia diminuindo aos pouco sobre as águas, até que desapareceu por completo.

— Demônios! — exclamou Dick. — Luke tinha razão.

Já não havia a menor dúvida de que se tratava de um submarino, embora não quisesse dizer ne­cessariamente, que fosse alemão, mas os soldados se alarmaram e Dick murmurou:

— Fiquem em silêncio.

Os quatro saltaram do jipe com suas armas preparadas e avançaram para o canavial, embrenhando-se nele decididos.

— Abram bem os olhos, rapazes! — disse Lo­gan, o cabo.

Os quatro homens afastaram as canas, aperta­ram as metralhadoras nas mãos e olharam para o mar.

A maré estava subindo, mas o vento cessara e a superfície das águas mostrava apenas peque­nas ondulações, indícios da fúria da tor­menta.

— Estão vendo alguma coisa? — perguntou Logan.

— Nem meus próprios dedos — resmungou Dick a seu lado.

Patrick respondeu o mesmo, mas Harper per­maneceu em silencio.

— Ali! — murmurou por fim. — Olhem!

A princípio não viram nada. Os olhos lhes doíam em consequência do vapor salgado que os cercava, mas Logan confirmou:

— Parece um bote de borracha.

Dick viu flutuar algo sobre as águas. Apenas sobressaía delas, mas fosse o que fosse, avançava lentamente para um ponto situado a uns cinquenta metros do lugar onde se encontravam.

— É um bote — confirmou Patrick. — Será do submarino?

— Não acha que tenha brotado do fundo do mar, não é? — respondeu Dick.

O bote continuava aproximando-se. A negrura do céu era menos intensa, mas a lua ainda não tinha se livrado das nuvens que a ocultavam.

— Temos que nos aproximar — disse Logan. — Devagar e sem ruído. Eu darei a voz de alto.

Os quatro deslizaram silenciosamente para o ponto onde deviam se encontrar com o bote quan­do este chegasse à costa e, por fim encontraram-se em frente à embarcação quando se achavam ape­nas a uns vinte metros de distância.

A água penetrava entre o canavial, onde es­tavam emboscados os quatro soldados ianques, com os corações batendo aceleradamente nos peitos.

Mais de uma vez se haviam queixado da inuti­lidade daquele serviço, mas agora compreendiam que as previsões de seus chefes eram acertadas.

O bote estava próximo. Os quinze metros fica­ram reduzidos a oito, depois a seis. Naquele mo­mento, um dos ocupantes disse alguma coisa numa língua estranha aos americanos, que dissipou as últimas dúvidas.

Logan não deu voz de alto. Os deixou che­gar com o bote até o canavial que os ocultava e observou com o maior interesse os movimentos dos recém-chegados.

Eles saltaram do bote e Logan e seus com­panheiros tiveram a impressão de que traziam algumas armas curtas.

Espiões e sabotadores! — Logan rangeu os den­tes de fúria e prometeu-se que nenhum deles con­seguiria entrar clandestinamen­te no país.

Um leve assobio indicou que o bote estava sendo esvaziado. Já não havia nenhuma possibili­dade de fuga. Logan ergueu-se lentamente entre as canas, com o fuzil apoiado no corpo.

Antes de se levantar inteiramente, parou e permaneceu rígido, ao ouvir um dos recém-chegados:

— O que foi Lippe? — perguntou um alemão.

— Tive a impressão de ouvir um ruído — res­pondeu Lippe.

— Devem ser seus nervos.

O terceiro permaneceu em silencio. Logan acabou de levantar e exclamou em inglês:

— Quietos! Mãos ao alto!

Os três soldados que o acompanhavam ergue­ram-se, quase ao mesmo tempo, e a luz da lua reíletiu-se nos canos dos fuzis-melralhadoras, ao sair de trás das nuvens que roubavam sua luz a terra.

A surpresa foi completa. Um dos desconhecidos lançou uma exclamação de surpresa. Logan viu-o erguer a mão e outro exclamou:

— Quieto Frolich!

O aviso chegou tarde. Frolich, deixando-se do­minar pelos nervos, apertou o gatilho da pistola que empunhava e a arma cuspiu pela boca uma pequena chispa de fogo, acompanhada de um pro­jétil.

Patrick soltou um gemido e curvou-se, sendo recolhido por Dick, antes que caísse por com­pleto.

Logan soltou uma maldição e desviou a metra­lhadora para Frolich.

O seco estampido de quatro disparos fez eco ao da pistola. Frolich saltou para o lado e o homem que estava junto dele caiu de costas, com o peito varado pelos projéteis do americano.

— Não se movam, ou...!

A voz de Logan, sinistra e ameaçadora, poderia ter sido ouvida em qualquer parte do mundo. Os recém-chegados ergueram os braços para o céu, e o cabo ordenou outra vez:

— Joguem fora as armas!

Para sua surpresa, as duas pistolas caíram na água a seus pés. Dick exclamou:

— Mas eles sabem inglês!

— Claro que sabem. Ficariam em grande dificuldade, se não falassem corretamente — comentou Harper.

— Alemães, não é? — perguntou Logan.

— Sim — respondeu o chamado Lippe.

— O tiro saiu pela culatra — disse Har­per. — E você vai passar um mau pedaço se Patrick morrer — disse a Frolich.

Este não respondeu. Logan advertiu:

— Não façam asneiras. Seria pior. Adiante! Apoiou a metralhadora nas costas de Frolich e Harper fez o mesmo com Lippe. Quanto a Dick, seguiu-os para fora do canavial, carregando o infeliz Patrick.

Uma vez junto ao jipe, Logan passou as alge­mas nos punhos de Frolich e Harper imitou-o, sol­tando um suspiro de alívio.

— Como se sente Patrick?

— Muito... Mal — replicou este. Estenderam-no na parte traseira do jipe. Lo­gan ordenou:

— Leve-o, Harper. Apresse-se. Dick e eu leva­remos estes.

— E o outro?

— Deixe. Depois mandaremos buscá-lo. De qualquer forma, nada mais se pode fazer por ele.

Harper não esperou que repetissem a ordem. Era um bom amigo de Patrick e o pensamento de que a vida deste dependia de sua rapidez o fez cerrar os dentes.

O jipe logo se perdeu de vista. Logan uniu com uma corda a algema que prendia o punho direito de Frolich com a que cingia o esquerdo de Lippe, e ordenou:

— Sigam!

Os dois alemães caminhavam á frente de seus captores, em silêncio, pensando no fracasso do desembarque clandestino, enquanto perguntavam-se o que iria acontecer com eles.

Quando chegaram ao posto de controle, o coração de Logan saltou ao ver o jipe parado na porta.

Era uma casa de troncos, mas seu interior era confortável e estava muito bem iluminada. Logan obrigou os prisioneiros a entrarem e, em uma rápida olhada pelo local, compreendeu a situação.

Todos os homens do posto, doze no total, estavam ali com Luke entre eles e voltaram-se ao ouvir seus passos, deixando descoberto o corpo de Patrick. que estava imóvel sobre a mesa.

Logan parou.

Ele... Morreu? perguntou.

Sim murmurou Harper, com um soluço.

E foi você quem o matou. Desgraçado! exclamou, saltando para Frolich.

Antes que alguém conseguisse evitar, golpeou o rosto do alemão, fazendo-o sangrar pelo nariz. Frolich limpou o sangue com a manga e respondeu com calma:

Sinto muito, são coisas da guerra.

Coisas da guerra, hem? murmurou Har­per. Quando você for fuzilado, terei muito prazer em te recordar, que são coisas da guerra.

Tiveram que segura-lo para evitar que ata­casse de novo o alemão. Os dois prisioneiros foram empurrados para uma sala sem janelas, situada no fundo do edifício, e a porta fechou-se atrás deles.

Vigie bem, Cleff disse Logan.

Não se preocupe respondeu este. Gos­taria que tentassem fugir.

Mas nenhum dos dois prisioneiros fez o menor movimento de fuga e a noite foi calma. Na manhã seguinte, sob o olhar feroz dos soldados, especialmente de Harper, os dois prisioneiros fo­ram transportados para Santa Lúcia, e dali para Tallahassee em um carro fechado.

Quando chegarmos à outra prisão lembre-me para que eu lhe diga algo a respeito de meus sapatos— disse Frolich a Lippe, durante o trajeto.

Não falem avisou um dos soldados, que vigiava seus menores gestos.

Em Tallahassee, eles foram separados. Frolich percebeu em seguida que não iriam ser presos na mesma cela e adivinhou o motivo.

Vão me fuzilar por ter matado aquele soldado Lippe disse em voz baixa. Mas, você provavelmente se salvará.

O que é que queria dizer sobre seus sapatos? perguntou Lippe.

Ah, nada. Tenho algo escondido no pé direito, mas não posso te dar porque não param de olhar para nós.

O que é? perguntou Lippe com curiosi­dade.

Não tenho tempo para lhe explicar res­pondeu Frolich. Só lhe direi uma coisa, se algum dia for libertado, procure meu tú­mulo. Em meu sapato direito encontrará algo que o fará rico para o resto de seus dias.

Terminadas as formalidades da entrega, um ofi­cial aproximou-se dos dois alemães, olhando com hostilidade.

Lippe e Frolich devolveram o olhar, sem bai­xarem os olhos. Tinham um aspecto cansado e triste, mas sabiam que o motivo para se encontrarem em tal estado, era por terem cumprido seu dever para com a Alemanha.

A uma ordem do oficial, quatro soldados le­varam Frolich. Depois de dar dois passos, o alemão voltou-se para Lippe e disse-lhe com um sorriso:

Não se esqueça de meus sapatos. Adeus!

Lippe sentiu um nó na garganta. Estava seguro que via Frolich pela última vez e sentiu compai­xão por aquele homem, muito mais velho que ele, sem saber que o motivo que o levou aos Estados Unidos, não eram patrióticos, porém outros bem mais pessoais.

Dias depois, comunicaram-lhe a morte de Fro­lich, em frente a um pelotão de execução.

Ao mesmo tempo, leram-lhe sua sentença: quatorze anos de reclusão.

Lippe deu um suspiro de alívio. Na guerra, o essencial era salvar a vida, de qualquer forma. Portanto...

 

Red Mollart, o xerife de Marylebone, tinha os pés sobre a mesa e balançava-se suavemente, movendo a poltrona ao compasso da canção que Peggy Molly cantava no rádio.

Andrews e Lyss, o primeiro um bom amigo do xerife e o segundo seu ajudante, jogavam uma enfadonha partida de cartas, dividindo sua aten­ção entre o baralho, o rádio e o que dizia Mollart.

Aqui nunca acontece nada resmungou o xerife. É tudo tão calmo que dá nojo. Eu me pergunto se de repente, o país ficou sem criminosos.

Quem dera que fosse assim! disse Lyss, jogando uma carta sobre a mesa.

Comi seu rei de espadas disse Andrews, atirando um ás sobre o rei. Se continuar assim distraído, vai perder até a camisa. Já está me de­vendo examinou um papel que tinha ao lado e disse olhando para Lyss setecentos e vinte e nove mil e doze dólares e sessenta centavos.

Lyss largou as cartas e se levantou.

Com sua permissão, vou me deitar disse a Mollart. — Estou mais chateado do que uma ostra. Nunca em minha vida ganhei tão bem um salário, como estou fazendo agora.

Andrews recolheu calmamente as cartas.

— Não se apressem — disse. — Quando me­nos esperarem, vão ter uma complicação dos diabos.

— Deus te ouça! — desejou fervorosamente Mollart. — Estou querendo demonstrar aos que me elegeram xerife, que a eleição foi acertada. Ouvi dizer que Chipp, o xerife de Paarlas, deteve a poucos dias, dois "gangsters". Isso é que se chama sorte.

— Desde que acabou a guerra, isso aqui é um paraíso — disse Andrews. — Não fiquem desejan­do que mude.

Mollart retirou os pés de cima da mesa, se espreguiçou levantou.

— Vamos — disse. — Você tem as chaves?

— Sim — respondeu o ajudante.

— Nenhum dos dois vai ficar aqui? — pergun­tou Andrews.

— Para quê? — respondeu Mollart. — Todas as celas estão vazias. Desde que colocamos em liberdade o último bêbedo, que detivemos já há mais de cem anos. Segundo minhas contas, os ratos são os únicos que as ocupam. Vamos, Lyss.

— Deixou o revólver — avisou Andrews.

A arma estava metida num coldre, pendurado num prego que sobressaía da parede. Mollart o pegou, ajustando-o à cinta e disse:

— Deve estar enferrujado.

Andrews e ele saíram. Lyss apagou as luzes antes de fazer o mesmo e girou a chave na fechadura. Sobre a porta havia um retângulo branco, recortado.

— O que é isso? — perguntou Andrews.

— Um papel com meus sinais e os de Lyss — respondeu o xerife. — Se houver algo, já sabem onde nos procurar. Mas não se preocupe An­drews. Ninguém vai atrapalhar nosso sono.

— Vamos ao bar de Dona Joana — sugeriu Andrews. — Convido vocês para uma bebida.

— Por mim, eu não poderia dormir se tomasse uma só gota de álcool — respondeu Mollart.

Lyss aceitou e o xerife, aborrecido demais para ir dormir, acompanhou-os ao bar.

As luzes de néon brilhavam na noite, fazendo empalidecer as estrelas. Marylebone era um po­voado industrial e trabalhador, e havia pouca gente nas ruas. À direita, apareceu o bar de Dona Joana, chamativo com suas luzes multicoloridas.

Ao chegar à porta, Mollart bocejou.

— Vou dormir — disse. — Até amanhã.

Foram inúteis os protestos de Lyss e de An­drews, tentando convencê-lo a aceitar a última rondada. Mollart afastou-se, agitando um braço no ar, e os outros dois entraram no bar.

Um toca discos soltava, cansadamente as notas que constituíam o prelúdio da última canção da moda e a voz rouca de Peggy Molly co­meçou a cantar. Lyss sorriu.

— Esta garota me deixa doido — disse. — Eu gostaria de vê-la em pessoa.

— Se isso acontecer, nunca mais vai conseguir dormir — respondeu Andrews. — Tenho uma fo­tografia dela em casa e a roupa que usa cabe na palma da mão. Vou lhe mostrar amanhã

— Deve ter sido tirada na praia.

— Ou para fins publicitários — respondeu An­drews, aproximando-se do bar. — Suponho que não deve andar assim pelas ruas.

Durante alguns minutos a conversa girou em torno de Peggy Molly. Andrews afirmava que tinha tudo bem proporcionado e cada coisa em seu lugar. Não faltava nem sobrava nada. Ou melhor, sobrava.

Suas palavras faziam Lyss arder em desejos de admirar a fotografia. Ia propor a Andrews que fossem buscá-la, quando Mollart surgiu na porta.

Seu aspecto sonolento havia desaparecido. Avançou para os amigos, movendo com agilidade apesar de suas curtas pernas e, quando chegou em frente de Lyss, este sorriu.

— Seu sono acabou? — perguntou.

— Sim — respondeu secamente, o xerife.

— Sirva outro Max — pediu Andrews.

— Não bebo — respondeu Mollart. — E nem você Lyss. Venha comigo.

Seu ajudante deixou o copo sobre o bar.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou.

— Não sei ainda. Vamos ver.

— Onde é a festa? — perguntou Max.

— No cemitério — respondeu o xerife.

— No cemin... — Andrews engasgou com a be­bida e tossiu, espalhafatosamente.

— Sim. Acabo de ver uma luz lá. Talvez es­teja enganado, mas quero me certificar.

— Meu Deus Red. — exclamou Andrews. — Já faz mais de duas horas que você bebeu o último copo.

Mollart não o escutava. Com passos nervo­sos saiu do bar e Lyss o seguiu, alcançando-o em duas passadas.

A diferença de estatura entre Mollart e seu subordinado era motivo de piada em Marylebone e muitos afirmavam que o pequeno xerife havia buscado o gigantesco e desajeitado Lyss como ajudante, seguindo sem saber, a lei das com­pensações.

Mas Lyss teve dificuldades em seguir seu chefe através das ruas escuras. Os passos de Mollart ressoavam nervosamente no chão, como irregulares rajadas de metralhadoras. E, atrás dos dois homens, Andrews esforçava-se para segui-los, depois de prometer a Max que voltaria para informar do que acontecesse.

Por fim, encontravam-se no campo e Mollart se deteve de repente, apontando para longe.

— Olhe — disse.

Ao longe, sob a luz da lua em um céu sem nuvens, percebiam-se as silhuetas de algumas árvores altas e delgadas, de formas características mes­mo na penumbra. Eram os ciprestes, que marca­vam os contornos do pequeno cemitério da cidade.

Por cima da cerca surgia um brilho tão leve, que Lyss murmurou:

— Não vejo nada. Espere... Sim. Agora estou distinguindo. Parece que alguém anda por lá, com uma luz.

O reflexo oscilava levemente, e este movimento tornava-o um pouco mais visível. Andrews tam­bém afirmou que o via, e Mollart decidiu:

— Vamos até lá.

Andrews quis dizer algo, mas os dois represen­tantes da lei já caminhavam para o cemitério, e ele seguiu movido pela curio­sidade que vencia o medo que sentia.

O caminho que levava ao campo santo era liso e estava bem cuidado. Os três homens per­correram com rapidez os primeiros metros e Mollart deteve se.

A luz era perfeitamente visível diante deles. Os ciprestes recortavam-se contra o céu, mostrando o limite do muro de pedras que cir­culava o lugar povoado de tumbas. Junto ao muro, um vulto mais negro que a escuridão que os cercava, atraiu a atenção de Lyss.

— Parece um carro — disse.

— E é — respondeu Andrews.

Para o que pudesse acontecer, Mollart tirou o velho revólver do coldre, lamentando não ter dado mais atenção a sua limpeza e continuaram o avanço, procurando diminuir ao máximo o ruído de suas pisadas.

Não tardaram a encontrarem-se perto do carro, verificando que se tratava de um Pontiac, último modelo.

— E nem é deste Estado — cochichou Mollart, anotando a placa.

— Que diabos estarão fazendo? — perguntou Andrews.

Os três homens aguçaram os ouvidos, conse­guindo distinguir murmúrios de uma conversa, mantida em tom normal.

De súbito, ouviram um ruído metálico e Mollart murmurou:

— Que me enforquem se este ruído não for o de uma pá ao bater numa pedra — olhou para o carro, medindo a distância que separava a capota da borda do muro. — Lyss — disse. — Suba ao carro e de uma olhada lá dentro.

Lyss não esperou que lhe repetissem a ordem, porque estava tão intrigado quanto seus com­panheiros e tão desejoso quanto eles de satisfazer sua curiosidade.

Com grande facilidade subiu para o Pontiac, sem fazer o menor ruído e encostou seu enorme corpo junto ao muro, espichando lentamente a cabeça por cima dele.

Teve que fazer um violento esforço para abafar uma exclamação de surpresa. Mollart compreen­deu tudo ao vê-lo abaixar de repente a cabeça e saltar do carro para o chão.

— O que foi que viu? — perguntou-lhe, num sussurro.

— São... Quatro homens — murmurou seu ajudante, com voz embargada. — Estão desen­terrando... Um morto.

Andrews levou a mão à boca. Mollart apertou os lábios o murmurou:

— Era o que imaginava. Viu alguma escada?

— Não. — respondeu Lyss.

A verdade é que nem sequer havia reparado. Mollart apertou o revólver e encaminhou-se para a porta do cemitério, situada no lado oposto ao caminho. Quando chegou perto dela, deteve-se.

— Trouxe a pistola? — perguntou a Lyss.

Este confirmou com um gesto de cabeça. O xeri­fe empurrou a porta com a mão esquerda e ela girou sem ruído sobre os gonzos, obrigando-o a perguntar-se como teriam feito para forçar a fe­chadura.

Quem quer que esteja dentro do cemitério não havia ido ali guiado por algum senti­mento de devoção ou respeito com o morto. Aquilo era certo, e o que Lyss acabara de ver indicou a Andrews que o céu escutara suas súplicas e que no dia seguinte teria muito que contar em Marylebone.

Um amplo caminho arenoso, cercado de ci­prestes que nos dias de calor proporcionavam sombra às tumbas e mausoléus que se erguiam a seu lado, iniciava-se na porta, perdendo nas profundidades daquela cidade dos mortos.

Mollart meteu-se por ele sem vacilar e avan­çou guiado pelo resplendor da luz e pelo ruído que faziam os desconhecidos vistos por Lyss.

As árvores, as tumbas e os mausoléus oculta­vam sua presença, que não foi denunciada nem pelo leve rumor de seus passos sobre a grama que crescia entre os túmulos até chegar a um ponto, onde observou, que Lyss não havia se enganado.

Havia quatro homens ao redor de um túmulo aberto. Dois deles, sem camisa, esta­vam sentados no mármore de outra sepultura, fu­mando tranquilamente. Haviam tirado também, seus chapéus e afrouxado os nós das gra­vatas, e tudo levava a crer que acabavam de ser substituídos no trabalho pelos outros dois que tiravam terra da cova, naquele momento.

Mollart sentiu a boca seca, em contraste com a tranquilidade que demonstravam aquelesho­mens.

Estavam a uns cinquenta metros de distân­cia, sem saberem que eram observados, e seus movi­mentos eram perfeitamente naturais, como se nem em sonhos pudessem pensar na possibili­dade de serem surpreendidos.

Atrás de Mollart, Lyss e Andrews observa­vam a cena macabra, com a mesma agitação que o xerife.

Quem estaria enterrado ali? O que haveria na­quele túmulo para despertar a atenção de seus profanadores, a ponto de assaltarem um cemitério, de noite?

Isto é o que se perguntavam Lyss e Andrews. Mollart, porém, fazia-se outra pergunta mais concreta: O que queriam aqueles tipos no tú­mulo de George Linden?

Ele não sabia quem era George Linden, sabia das estranhas circunstâncias em que fora en­terrado ali, dois anos atrás, pouco antes de ter­minar a guerra.

Um dos homens que cavavam na fossa, disse um palavrão e parou para enxugar o suor que lhe escorria pela testa.

Todo o conjunto estava iluminado por uma lan­terna elétrica que repousava no chão, sobre um monte de terra, cujo facho de luz deixava parcial­mente na penumbra os que descansavam naquele momento.

— Tem certeza que esse tipo está enterrado aqui? — perguntou.

— Claro homem. Eu vi o nome na lápide: "George Linden". Foi com esse nome que o en­terraram.

— Não sei quando vamos dar com ele. Já es­tamos cavando há meia hora.

Os dois homens estavam mergulhados na fossa até acima dos joelhos. De vez em quando, uma pá de terra surgia da cova, juntando-se ao monte que se acumulava ao lado.

— Cavem até os pés. É o que interessa.

— A terra está macia — disse o outro, que fumava.

— Mas não estamos acostumados a fazer este trabalho.

De um momento para o outro chegariam ao corpo do morto enterrado ali. Mollart sentia seu coração bater acelerado, mas a curiosidade foi mais forte do que seu desejo de terminar de uma vez, e esperou alguns minutos mais.

De repente, um dos que cavavam ergueu-se.

— Aqui está o caixão — disse. — Escute Bholer, a madeira está arrebentada.

O chamado Bholer e o outro homem puseram-se de pé, aproximando-se da cova.

— Não é de estranhar — disse aquele. — A umidade deve ter apodrecido a madeira. Saiam dai.

Seu interlocutor pulou para fora da cova e Bho­ler saltou para dentro, enquanto o outro homem que cavava enxugava o suor da testa.

Bholer desapareceu da vista de Mollart, ao entrar na tumba, mas não demorou a sair.

— Eu... — murmurou — Não entendo.

— O que aconteceu? — perguntou outro alar­mado.

— Alguém se adiantou a nós. O morto não tem sapatos.

Todos fizeram um silêncio impressionante. Mollart per­guntou-se para que precisariam dos sapatos de George Linden, enquanto seu aju­dante fazia-se outra pergunta: Quem teria vindo antes deles?

Os quatro começaram a falar ao mesmo tempo, até que Bholer exclamou:

— Silêncio! Se alguém passar pelo caminho... — seus companheiros calaram-se e ele continuou:

— Bem, rapazes, fizemos um papel ridículo vindo aqui. Vamos embora. Temos que conversar com este maldito Kingsley, uma conversa longa e séria.

Os quatro começaram a sacudir em silêncio, a terra que lhes cobria as roupas.

— Não posso imaginar quem tenha... — res­mungou um deles.

— Kingsley sabe. Tenho certeza. Obrigou-me a pagar dois mil dólares pela informação, mas tanto quanto me chamo Bholer, juro que ele vai me contar tudo.

Mollart pensou que momentos bem amargos es­peravam aquele tal de Kingsley, se Bholer o en­contrasse.

— Tampamos isso? — perguntou um dos des­conhecidos.

— Deixe assim — respondeu Bholer. — De qualquer maneira vão descobrir. Vamos levar as ferramentas.

Já iam sair quando Mollart julgou que havia chegado o momento de apresentar-se diante deles. Deu um leve cutucão em Lyss para que estivesse prevenido e saiu de trás do mauso­léu que o ocultava, ficando diante dos qua­tro homens.

— Quietos! — ordenou, apontando a arma. — O que é que fazem aqui?

Evidentemente, a surpresa foi total. Bholer parou na tarefa de vestir o blusão. Os outros se mostraram não menos surpreendidos.

Atrás de Mollart, Lyss sustentava sua pistola, com a mão trêmula pela emoção, e Andrews não perdia uma sílaba e nem um movimento da cena.

— Quem é você? — perguntou Bholer.

— O xerife — replicou Mollart. — O que pro­curavam nesse túmulo?

— Vou lhe explicar xerife — começou a dizer Bholer, num tom conciliador, enquanto esboçava um sorriso. O caso é que aqui está enterrado um amigo nosso, que guardava documentos de grande importância para nós, quando lhe joga­ram a terra por cima e...

Estavam escondidos nos sapatos? per­guntou argutamente Mollart. — Eu ouvi o que diziam. Parece que alguém se adiantou a vocês, buscando estes papéis.

Não tivemos sorte disse Bholer.

Que espécie de documentos era?

— Referiam-se a nossos negócios.

Bholer aproximou-se do xerife, mas este pre­veniu-o:

Fique quieto aí!

Bholer lançou um rápido olhar a seus ho­mens. A presença do xerife não o preocupava muito, pois já se vira em outras situações mais comprometedoras do que aquela com o xerife de um povoado, e de todas se sairá bem.

Graças a sua inteligencia e habilidade continuava vivo e não ia deixar se prender agora por aquele tipinho que empunhava um velho revólver, que nem sequer sabia segura-lo.

Vamos! Acabem de se vestir e me acompanhem — disse Mollart.

Claro que sim xerife respondeu Bholer. A não ser o fato de termos aberto esta tumba, nada fizemos de mal. Claro que o senhor pode nos meter num embrulho danado.

E dos bem grandes respondeu Lyss. Por violar túmulos paga-se caro no Estado de Alabama.

Tenho amigos influentes que me tirarão logo desta trapalhada replicou Bholer. Mas confesso que isto pode significar um prejuízo em meus negócios, que me faria perder alguns milhares de dólares. Pois eu lhe digo xerife, que os senhores poderiam ganhar uma parte destes dólares. O que lhe parece?

Percebeu que havia ofendido a honradez de Mollart, quando o viu retrucar:

Além do mais, vou acusá-lo de tentativa de suborno. Estão prontos? Pois então, vamos!

Bholer não pensava sequer em chegar ao po­voado. Fez como se avançasse para passar junto a Mollart, mas, ao mesmo tempo, voltou um pouco a cabeça, fazendo um sinal ao homem que estava mais perto da lanterna.

Aquele deu um escorregão e desferiu um pon­tapé na lanterna, que lançou contra a parede próxima do cemitério. A paz terminara aque­la noite, em Marylebone.

Bholer e seus homens correram para a porta, protegidos pela sombra. Mollart rugiu:

Quietos ou atiro!

Ninguém obedeceu sua ordem. Ao contrá­rio, dois dos homens voltaram-se para o trio e de suas mãos surgiram armas de fogo, ao mesmo tempo em que detonações enchiam o re­cinto do campo santo.

Mollart ouviu o zumbido dos projéteis, bem per­to de sua cabeça. Provavelmente Bholer não de­sejava agravar sua situação fazendo vítimas, achando que aqueles disparos seriam mais que sufi­cientes para amedrontar Mollart e os que o acompanhavam, mas acertou só pela metade.

Andrews pensou que aquilo não era com ele. Uma coisa era satisfazer sua curiosidade e outra morrer em uma disputa que não lhe dizia respeito. Marylebone não perderia muito com sua morte, mas sua esposa e seus filhos sim , então jogou-seno chão, atrás de uma lápide, cobrindo a cabeça com os braços.

Mollart saltou para trás de um cipreste e Lyss imitou Andrews. Mas os dois homens começa­ram a disparar, simultaneamente, contra os dois que cobriam a retirada dos outros.

Um destes lançou uma praga e cambaleou. O outro parou seu ataque, ao mesmo tempo em que retrocedia entre um amontoado de árvores e tumbas, e perdeu-se de vista em direção à porta.

— Avante! — comentou Mollart.

Lyss e ele saltaram de seus esconderijos, mas o ferido descarregou sobre eles a carga de chum­bo que lhe restava na arma, obrigando-os a moverem-se com mais prudência, e não tardaram a ouvir o ronco do motor do Pontiac, do outro lado do muro.

— Fugiram — disse Mollart, com amargura. Suas esperanças de tornar-se famoso naquela noite diluíram-se no ar. Lyss exclamou:

— Sobrou este xerife.

Os dois moveram-se com precaução em direção ao ferido, constatando que ele já não atirava. Ao chegarem a seu lado, sua imobilidade indicou qual era a causa do silêncio.

— Parece que está morto — murmurou Lyss.

Mollart inclinou para ele e não tardou a er­guer-se.

— Foi em cheio — grunhiu. — Eu preferia não ter tido tão boa pontaria.

Andrews saiu do esconderijo e Mollart decidiu-se a agir.

A uma ordem sua Lyss foi buscar a lanterna e não demorou a encontrá-la. Quando voltou com ela acesa, Mollart reclamou:

— Podia ao menos, tê-la envolvido num lenço. Vai estragar as digitais que pode haver nela.

Lyss apressou-se a agir assim, e dirigiu a luz para a tumba.

Um pedaço do caixão que continha George Linden, sobressaía da terra. Era a parte corres­pondente aos pés e aparecia quebrada, deixan­do as pernas à mostra.

O tempo havia realizado sua tarefa destruidora, em combinação com a terra. Nas partes que as calças deixavam ver, as pernas apareciam desfei­tas, apresentando enormes feridas, que deixavam os ossos a vista.

Mollart olhou para os pés e verifi­cou que o morto não tinha sapatos.

Quem teria escavado na tumba, antes de Bohler o seus homens e os retirado do cadáver?

Gostaria de saber, mas não o podia adivinhar e voltou-se para Lyss:

Temos que tampa-lo disse.

Andrews ajudou-os na tarefa de cobrir comple­tamente o corpo, empurrando a terra para a cova com os pés.  

Mollart mostrou a lápide que havia sido afastada para um lado.

— Ponha aqui, Lyss ordenou. Este obedeceu e os três puderam, ler: "George Linden. Morto num acidente de auto­móvel, a 5 de julho de 1943. Descanse em paz."

Agora me lembro... — murmurou Andrews Foi aquele que...

— Exatamente — confirmou Mollart.

Não queria falar sobre aquilo. Tinha ordens severíssimas a este respeito e suspeitava que algo muito sério ocultava-se atrás de tudo aquilo.

Vamos voltar disse.

Tinha pressa de voltar a Marylebone para re­ler a ordem escrita que haviam lhe entregado, depois que George Linden fora enterrado.

Lembrava é claro, que estava assinada pelo governador e nela davam-lhe instruções a res­peito daquele túmulo.

E a ordem era categórica. Devia telefonar imediatamente, as autoridades, se observasse algo ilegal ao redor daquele pequeno retângulo de terra, onde repousavam os restos mortais de Linden.

Mollart estava intrigado e permaneceu em silên­cio durante o trajeto de volta, enquanto Lyss e Andrews falavam sem parar.

Alguns habitantes de Marylebone deviam ter ouvido os disparos e o linguarudo Max, o garçom do Dona Joana, encarregou-se de relatar a todos que algo acontecia no cemitério, pois na metade do caminho encontraram com um grupo de ho­mens que avançava para eles.

Lyss, volte ao cemitério com alguns ho­mens e traga o corpo que deixamos ali! or­denou.

Seu ajudante assim  fez.

Mollart chegou ao posto policial e aproveitou um momento em que estava só para abrir uma ga­veta da mesa e buscar entre os papéis até dar com o que buscava, que tirou do envelope e desdobrou diante de si.

Era igual ao que recordava. Se notasse algo anormal em torno do túmulo de Linden, devia comunicar imediatamente a palavra estava sublinhada ao governador do Estado.

O xerife deixou-se cair numa poltrona,fechou os olhos e reviveu aquele dia em que um carro fúnebre parou em frente ao posto, transportando um ataúde.

Um dos homens que o acompanhava apresentou-se a ele como agente federal e mostrou a ordem do governador.

Devia autorizar o enterro do morto no Cemi­tério de Marylebono. Tratava-se de George Linden, e havia morrido em um acidente de carro, no dia anterior, a sete quilô­metros do povoado.

Mollart não fez nenhuma pergunta. Sabia que aquilo era falso. Talvez o nome e a causa da morte fossem verdadeiros, mas negava-se a admi­tir que fosse necessária uma ordem especial para enterrar um homem morto naquelas circunstân­cias.

Entretanto, deu seu consentimento e Linden repousava para sempre no pequeno cemintério local. Bem, para sempre não, alguém se encarregara de perturbar sua paz.

A quem se referia Bholer?

Era evidente que outros haviam escavado o túmulo antes dele, mas deviam ter feito com mais sigilo, porquanto ninguém havia notado.

Mollart suspirou profundamente. Gostaria de saber muitas coisas, mas preferia que os agentes federais se encarregassem daquele tenebroso assunto.

Estendeu a mão para o telefone, agarrou-o e encostou ao ouvido.

 

O inspetor Ashlby acabou de ler os papéis que tinha entre as mãos e jogou-se para trás na poltrona, depois de largá-los sobre a mesa. A poltrona rangeusob seu peso. Ashley olhou para o homem que permanecia na sua frente, sentado no outro lado da mesa, e per­guntou:

— Isso é tudo?

— O que mais queria? — lamentou-se Paul Ladd. — O xerife me proporcionou toda sorte de facilidades e pude fazer uma boa inspeção pelos arredores do túmulo. Aqui tem o nome do morto e outros detalhes.

Ashley endireitou o corpo e pegou outro papel.

— Tino Bolger — leu. — Vocês se deram ao trabalho de fazer alguma averiguação sobre ele?

— Todos os seus antecedentes estão escritos no verso do papel que está em suas mãos — respon­deu Paul Ladd, com certa aspereza.

Apesar de já estar trabalhando há quatro anos sob as ordens do inspetor, não conseguia habituar-se a sua maneira de falar. Sabia que o tom áspero com que Ashley pronunciava as pa­lavras era um hábito adquirido em sua longa vida de profissional em luta constante contra os criminosos, mas, apesar disso, gostaria de ver, de vez em quando mais cordiali­dade.

O inspetor leu os antecedentes de Tino Bolger e murmurou:

— Uma boa bisca, segundo parece. A sociedade não irá chorar sua morte. Bem Ladd. Havia outro indivíduo chamado Bholer, parece. O que sabe­mos sobre ele?

— Encontramos nos arquivos, seis tipos com esse nome. As fotografias foram enviadas ao xe­rife Mollart, e estamos esperando a resposta.

— Entre em ação, logo que souber qual é o Bholer que buscamos — ordenou o inspetor. — É claro, que você ficará encarregado do caso. No momento só você. Se surgirem mais emba­raços e se precisar de ajuda, você a terá.

Paul Ladd esmagou o cigarro no cinzeiro e encarou o inspetor.

Ladd tinha vinte e sete anos de idade, e era o preferido do inspetor. Este o queria como a um filho, se tivesse tido um, mas procurava não dar a entender isso, tratando-o com mais frieza do que aos outros agentes sob suas ordens.

— Não consigo entender nada — disse o jo­vem. — Ali está enterrado um homem chamado George Linden, morto há pouco mais de um ano, num acidente de automóvel. Por que o FBI in­tervém na violação de seu túmulo? Isso é assunto que compete à polícia local.

Ashley tornou a se jogar para trás, ao mesmo tempo em que sorria.

— Ordenaram que prosseguisse com a investiga­ção. Devemos averiguar, especialmente, o que procuravam esses bandidos em seu túmulo. Fosse o que fosse, estava nos sapatos. É preciso en­contrar Bholer.

— Isso é fácil. Ponha um anúncio nos jornais e ele se apresentará ao senhor em seguida — respondeu Ladd, em tom irônico.

Ashley ficou sério.

— Temos que encontrá-lo — repetiu. — Bem Ladd, não quero que ande às cegas, nesse assunto. O homem enterrado naquele túmulo, não é Geor­ge Linden.

— Não? Então?...

— Trata-se de um alemão, aprisionado duran­te a guerra, logo que desembarcou de um subma­rino, na costa do Sul. Matou um soldado da defesa costeira, e isso  lhe custou à vida.

Ashley apanhou outro papel e leu:

— Outro dos que desembarcaram com ele mor­reu na luta e o terceiro, um moço chamado Wal­ter Lippe, foi condenado a quatorze anos de pri­são, em atenção a sua pouca idade. Não chegou a cumprir a pena, porque a guerra terminou e ele foi repatriado para a Alemanha.                                                               

— Como se chama o homem enterrado ali?

— Hans Frolich — replicou o inspetor. — Vi­nham bem providos de dinheiro e documentos e, como tantos outros que desembarcaram de igual forma, vieram com o propósito de praticar es­pionagem e atos de sabotagem.

— Por que o enterraram com outro nome?

— Coisas da guerra — respondeu Ashley. — Isso foi feito com vários espiões e sabotadores e só os homens do Pentágono e alguns agentes federais sabem onde repousam seus restos. Claro que agora isso não importa, mas durante a guerra, sim.

— Por que terão violado o túmulo?

— Tenho uma teoria sobre isso — respondeu Ashley. — Naturalmente não se pode pensar que esses homens eram patriotas do morto e qui­sessem levá-lo para outro lugar. Minha opinião, de acordo com as informações que tenho, é que Frolich guardava em um de seus sapatos algo muito valioso.

Material de espionagem?

Não creio. Já não teria o menor interesse. Não consigo nem imaginar o que possa ser. A única coisa positiva é que o túmulo foi violado por duas vezes e os que fizeram isso buscavam o mesmo nos sapatos de Frolich.

Lippe pode estar envolvido nisso?

Não sei respondeu o inspetor. — Como já disse, ele foi repatriado para a Alemanha, mas é possível que tenha regressado clandestina­mente. Já mandei que investiguem isso, assim como os antecedentes de Hans Frolich, na Ale­manha.

Lippe tem que estar envolvido nesta con­fusão respondeu convencido, Ladd. Para mim, ele é quem mais probabilidade tinha de saber o que Frolich guardava nos sapatos.

Receio que esse assunto vá nos dar mais trabalho do que pensamos. O Pentágono desen­tendeu-se — disse Ashley. A guerra terminou há bastante tempo e tudo isso está começando a cair no esquecimento, mas a Central me ordenou que prosseguisse com o trabalho. Sem dúvida, te­mem algo muito sério.

Tudo porque faltavam os sapatos do morto comentou Ladd, pondo-se de pé. Coçou a nuca e acrescentou: — Garanto-lhe inspetor, que não sei por onde começar.

Vou lhe dar uma ideia, rapaz o tom de Ashley era condescendente: Frolich esteve na prisão daqui, de Montgomery, até ser julgado e condenado à morte. Foi executado na própria pri­são. Creio que poderia ir lá e procurar descobrir alguma coisa.

Ladd respondeu que faria isso, e aban­donou o gabinete, cheio da fumaça que emanava do charuto de Ashley. Este fechou os olhos, pensa­tivo, e murmurou:

— Terrivelmente difícil, mesmo para Ladd.

O mesmo ia pensando Paul, enquanto descia as escadas e saía para a rua. Estava há quatro anos na Divisão do FBI, do Estado de Alabama, e tinha a impressão de que aquele caso ia ser um quebra-cabeça.

Seu carro estava estacionado na porta da Chefatura. Entrou nele e fechou a porta, mas antes de pôr o motor em movimento, tirou do bolso um envelope que continha alguns papéis relativos ao morto.

Tino Bolger devia ter sido em vida um sujei­to sem preocupações. A única coisa que des­pertou a atenção de Ladd foi uma caderneta, onde ele havia anotado os telefones de uso frequente, mas estava cheia de números de mulheres, e Paul imaginou de que classe elas seriam.

Havia um só número pertencente a um homem, cujo nome era Peter Kingsley, mas estava meio apa­gado e era inútil tentar ler.

"Peter Kingsley — pensou — logo verei na lista."

Pôs o carro em movimento e afastou-se da Chefatura. A manhã estava agradável, e Paul condu­ziu devagar, ao longo do Parque Municipal, a cami­nho da prisão, que se erguia a uma milha da cidade, sobre a estrada de Atlanta.

Pouco depois, estava diante do edifício e pediu para ver o diretor, sendo conduzido imediatamen­te, a seu gabinete.

— Eu não estava aqui quando Frolich foi execu­tado — disse aquele. — Mas me recordo do caso. Há alguém que pode informá-lo melhor do que eu — ligou o interfone e disse: — Senhorita Criss. Diga a Burton que venha aqui.

Transcorreram alguns minutos antes que este se apresentasse. Ladd aproximou-se da janela do gabinete e pôde ver o amplo pátio da prisão, por onde passeavam alguns reclusos.

Pensou em quantos deles teria metido ali o FBI, quando Burton chegou.

Vestia um uniforme de guarda, que ficava um pouco apertado, e seu rosto denotava um homem decidido e eficiente. O di­retor do estabelecimento fez as apresentações e disse:

Burton, o senhor Ladd quer saber algo sobre Walter Frolich. Lembra-se dele?

— Perfeitamente senhor — replicou Burton, voltando-se para Paul. — Só esteve aqui oito dias. Guerra é guerra e não se podia perder muito tempo com gente como ele. Entretanto, devo di­zer que seu comportamento, durante o tempo que permaneceu aqui, foi correto e exemplar.

— Se misturou com os demais prisioneiros? — perguntou Ladd, depois de acender um cigarro.

— Não. — garantiu Burton. — Ficou isolado numa cela.

— Sozinho?

— Sim senhor.

— Ouvi dizer que junto com ele prenderam outro homem, chamado Lippe. Esteve aqui?

— Sim, mas não com Frolich. Ficou em outra cela.

— Tiveram ocasião de se verem?

— Creio que não, mas isso quem poderá dizer é Kingsley — olhou para o diretor e acrescentou: — Era ele o encarregado de vigiar as celas. Creio que até fez certa amizade com Frolich. Este o presenteou com seu relógio, quando teve a certeza de que ia ser executado.

— Disse Kingsley? — perguntou Ladd interes­sado. — Refere-se a Peter Kingsley?

— Sim — respondeu Burton. — Conhece?

— Um pouco — mentiu Ladd.

Kingsley tomava de súbito, um interesse inusitado para ele. Havia ido à prisão convencido de que ali não tiraria nada a limpo, até que Burton dera uma informação muito significativa. Peter Kingsley, o homem cujo te­lefone estava no livro de endereços do espião enterrado no Cemitério de Marylebone, prestava serviços na prisão de Montgomery e havia cui­dado de Frolich no tempo em que o alemão es­tivera preso.

O fino olfato de Paul Ladd começou a sentir o princípio de uma pista, e perguntou:

— Podem me dar o endereço e o telefone de Kingsley?

— Claro que sim — respondeu o diretor avan­çando para o fichário. —Mas não sei se o en­contrará. Está desfrutando de um mês de licença.

— Desde quando?

— Há vinte dias que pediu.

Ladd ficou em silêncio. Seria Kingsley um dos violadores do túmulo de Frolich? E se assim fosse, em qual dos dois grupos o encontraria? No primeiro, ou com Bholer?

Paul pensou que era mais certo estar no pri­meiro, ou seja, no que conseguira apoderar-se dos sapatos de Frolich.

Deram o endereço de Kings­ley. Ladd apanhou o livro de notas de Tino Bolger e verificou que os números de telefone não com­binavam.

— Estão certos de que é esse o número dele? — perguntou.

— Sim — replicou o diretor. — Não pode ha­ver engano.

Aquilo significava que Tino não telefonava para a casa de Kingsley, mas para outro lugar. Por quê?

A cada passo surgia uma interrogação, mas isso era preferível, de que permanecer na escuri­dão. Dos problemas pode às vezes surgir à luz, mas onde não existe nada se pode resolver.

Agora tinha material para começar a traba­lhar. A primeira coisa seria conseguir uma en­trevista com Kingsley. Certamente o guarda teria muito que o que contar.

Parou o carro diante da pensão onde Kingsley residia e bateu na porta, que foi aberta por uma senhora de certa idade, gorda e despenteada.

Perdoe senhora disse Ladd. Estou procurando o senhor Kingsley.

A senhora riu escandalosamente, mandando para o rosto de Ladd uma baforada de álcool, que o fez imaginar que seu café da manhã já devia ser aguardente.

Kingsley? Ponha um cão policial atrás dele moço. Não tenho a menor ideia onde possa estar. Foi embora há uns vinte dias e...

Não disse para onde ia?

Não. Desde que começou a ter dinheiro em abundância, tornou-se muito reservado. Ladd tomou mentalmente nota daquele detalhe. A se­nhora Pikss deteve-se um instante e disse: Entre, espere um pouco.

Ladd entrou para um vestíbulo sujo e mal iluminado e perguntou-se por que Kingsley conti­nuaria vivendo naquele antro, depois de sua mu­dança de sorte.

Elsa! gritou a mulher, olhando para a parte alta da escada que subiu do vestíbulo.

Já vou! replicou uma voz desgarrada de mulher.

Paul olhou para cima. Viu abrir-se a parte superior de uma porta e uma mulher de cabelos platinados, que lhe caíam sobre os ombros, debru­çou-se no corrimão.

Trazia muito pouca roupa e Ladd não teve ne­cessidade de imaginar nada que não visse. Até percebeu em seu rosto os sulcos e as marcas da vida que levava.

— O que é? — perguntou à loura, em tom de­bochado. — Será que não se pode descansar em paz?

— Este senhor está perguntando por Peter — respondeu à senhora Pikss, sem fazer caso das reclamações de Elsa. — Eu lhe disse que não sei onde ele possa estar, mas que talvez você...

— Por que é que eu havia de saber? — pergun­tou à loura. — E mesmo que soubesse, por que havia de dizer?

— É amiga dele? — perguntou Ladd.

— Sim — respondeu a dona da pensão. — E a pouco, recebeu uma carta de Peter.

Ladd propôs-se, desde aquele instante, a saber, onde estava Kingsley. A loura fulminou a outra mulher com um olhar e disse:

— Você sempre tem que se meter em tudo. O que quer com Peter? — perguntou a Ladd.

Este ensaiou seu melhor sorriso.

— Sou amigo dele — mentiu. — Trabalho com ele na prisão. Faz um mês que compramos juntos uns bilhetes para as corridas de carros de Indianópolis, e ele foi premiado.

— Esse Peter é um cara de sorte — disse a senhora Pikss. — Antes nunca tinha um centavo e agora chove dinheiro de toda a parte.

— Desço em seguida — respondeu à loura.

O cheiro de dinheiro a fazia mudar de atitude. Ladd aproveitou a ocasião para perguntar a Pikss.

Peter ganhou alguma outra aposta?

— Não sei, mas faz um mês que maneja mais dinheiro do que eu em toda minha vida. Sabe o que desconfio? Que ele não está nos Estados Unidos.

— Quer dizer que atravessou o mar?

— Isso mesmo — replicou a dona da pensão. — Peter...

O ruído dos saltos dos sapatos da loura, na escada, cortou o que ela ia dizer.

Ladd olhou para aquela e pôde comprovar que era alta e bem feita, embora seu rosto já tivesse perdido grande parte da beleza. Havia vestido sobre a combinação de nylon, um "peignoir" colorido, que fazia sobressair ainda mais a quase brancura do cabelo.

Olhou para Paul.

— Bem, mostre o bilhete e eu lhe direi onde está Kingsley.

— O bilhete? Já cobrei — respondeu Ladd. — A parte que coube a Peter, ficou no banco. São quase dois milhões de dólares.

Elsa sorriu. Tinha os dentes brancos, fortes e iguais.

— Eu direi a ele — respondeu. — Tenho que escrever para Kingsley.

Ladd perdeu o sorriso. Percebeu que nunca arrancaria o endereço que precisava.

— Nada disso belezinha — replicou, mudando de tom. — Vai dizer é a mim, e agora mesmo.

Elsa olhou-o um tanto assombrada, mas estava habituada a enfrentar situações que teriam der­rotado outras mulheres e se refez rapidamente.

— Isso é o que você pensa — respondeu de­safiante. — Mas...

— Dê uma olhada para isso — interrompeu-a Ladd. Os olhos da moça pousaram na mão direita do agente, onde brilhava uma placa que ela co­nhecia bem, e uma expressão de medo passou-lhe pelo olhar. — Hem? — perguntou Paul. — Mudou de ideia?

— S... Se eu não disser?

Elsa ainda resistia, mas Ladd sabia que ela acabaria por ceder. Sacudiu os ombros.

Então vá vestir alguma roupa. Você virá comigo. O inspetor não terá tantas delicadezas quanto eu.

Não tem motivos para...

Você sabe que sim. Se não quiser colaborar, vão deixa la por uma longa temporada num lugar onde não verá o sol. Mesmo que só seja pela espécie de vida que você leva. O que é que decide ?

Vocês abusam até de mulheres resmun­gou Elsa. Bem, Kingsley está em Havana. Hotel Negresco, quarto número trinta e quatro. Está satisfeito?

Sim respondeu Ladd. Lamento ter sido obrigado a tratá-la assim, Elsa. Se quiser te con­vido para um aperitivo.

Beba sozinho. E tomara que lhe de uma boa dor de barriga!

Elsa foi batendo os pés escadas acima, até sumir de vista. Pikss julgou-se na obrigação de explicar:

É uma boa moça.

Eu percebi respondeu Ladd, avançando para a porta. Só tem um defeito, sai demais de noite.

Estava mais do que satisfeito com o resultado de suas ações, mas não parava de se perguntar o que Kingsley teria ido fazer em Havana.

Tinha a intuição de que aquela viagem devia ter alguma relação com a violação da sepultura de Frolich, que se complicando a cada passo que dava pelo intrincado caminho do mistério.

A melhor maneira de Investigar isso é ir à busca de Kingsley disse o inspetor, quando lhe comunicou às noticias que trazia. Apanhou o telefone e disse: — Fel quero saber quando há um navio para Havana, de Pensacola. Se tardar mais de três horas, reserve um lugar no primeiro.

Ashley podia ser tão grosso quando quisesse, mas era evidente que os fios que podia manejar de seu gabinete, movia-se com bastante rapidez, o que não deixava de ser uma virtude.

Dez minutos depois, Fel chamou dizendo que o primeiro barco saía às cinco da tarde.

Isso quer dizer que tenho que ir imedia­tamente — disse Ladd.

— Você é um menino inteligente — ironizou Ashley. — Garanto que ainda vai fazer car­reira. Passe pela caixa e peça quinhentos dóla­res por conta. Interrogue Kingsley e, se notar algo suspeito, traga-o.

Ordens em telegrama. Esse era seu hábito. Ladd saiu do gabinete sem se despedir e nem esperar por uma despedida. Ashley queria fatos. Era o que contava para ele, e por esses é que valorizava a estima que tinha por seus homens.

Ladd passou pela caixa. Martin entregou-lhe os quinhentos dólares sob-recibo, e perguntou:

— Vai viajar?

— Sim, vou a Havana.

— Eu invejo. Gostaria de ir junto.

— E eu de ficar em seu lugar — respondeu Ladd.

Saiu. O carro continuava ali fora. Subiu para ele e depois de apanhar uma pequena mala com algumas roupas, seguiu pela estrada de Pensa­cola.

Conhecia bem o pequeno porto do golfo do México. Não prosperava devido à proximidade com Nova Orleans, mas seu movimento era bas­tante intenso.

O "Alondra" balançava-se no porto, mas ainda faltava uma hora para a saída.

Ladd reclamou sua passagem no guiché, e não teve dificuldade em consegui-la.

Uma hora depois, o barco levantava âncoras, e Paul se dispôs a aproveitar ao máximo possível à monótona travessia.

Quando chegou a Havana, apanhou um táxi e mandou que o conduzisse ao Hotel Negresco, que vinha a ser uma pocilga parecida com a pensão da senhora Pikss.

O porteiro, porém, falava inglês, e Ladd não encontrou dificuldades para conseguir o quarto número 36, em frente ao ocupado por Kingsley.

Era um quartinho pequeno e feio. Os únicos móveis eram a cama, a mesinha de cabeceira, um armário de porta torta e duas poltronas que não ofereciam garantia alguma.

Jogou a mala sobre a cama e perguntou-se quanto tempo teria que ficar ali.

A janela do quarto dava para um pequeno pátio estreito e malcheiroso, separado da rua por um muro de ladrilhos. Ladd se deitou sobre a cama, que rangeu sob seu peso e acendeu um cigarro, mas não tardou a compreender o que deveria fazer. Não tinha ido lá para interrogar Kingsley? Pois, o melhor era pôr mãos à obra.

Vestiu o paletó e saiu para o corredor mal ilu­minado pela luz que penetrava por uma janela, situada na extremidade. Dobrou para a esquerda e parou diante do número trinta e quatro, batendo na porta com os nós dos dedos.

— Quem é? — perguntou uma voz rouca.

— É você Kingsley?

— Sim — respondeu a mesma voz, desta vez junto à porta.

— Abra. Preciso falar com você.

A porta abriu-se algumas polegadas e pela fresta, Ladd viu a cara larga e redonda de um homem alto e forte. Não era aquela a ideia que havia formado de Kingsley, através do que lhe haviam dito sobre ele.

— O que quer? — perguntou o outro.

— Já lhe disse, falar com você.

— Sobre o quê?

— Por que não me convida a entrar? — disse Ladd. — Garanto que lhe interessa.

O outro refletiu alguns segundos.

— Está bem. Entre — disse, abrindo a porta.

Ladd entrou. Ao passar junto a Kingsley, com­provou que era mais forte do que imaginara, e pensou que teria grandes dificuldades se ele não se decidisse a segui-lo de boa vontade.

Mas, de repente, deixou de pensar, e piscou repetidas vezes diante do que estava vendo.

O quarto era parecido com o seu. Em cima da mesa viu o corpo imóvel de um homem sem sa­patos nem paletó, e outros dois que se moviam no pequeno cômodo em meio de uma confusão de roupas e papéis jogados pelo chão.

As gavetas das mesas e do armário estavam abertas e todo seu conteúdo espalhado pelo chão.

Ladd reagiu com rapidez. Deu meia volta e foi perguntar algo, mas em vez de fazer isso, limitou-se a levantar o braço direito com a maior velocidade, para escapar do golpe que lhe caía em cima.

Não conseguiu. A culatra da pistola que empunhava pelo cano o gordo que lhe abrira a porta chocou-se contra sua cabeça, fazendo-o ver milhares de estrelas de cem cores diferen­tes.

Seus joelhos se dobraram, e começou a cair lentamente, fazendo enorme esforço para so­brepor-se ao efeito do golpe.

— Dá-lhe outra vez Bholer — disse um dos outros.

— Já teve o suficiente — replicou Oste.

Agora já sabia quem era Bholer. Sabia tam­bém, que o homem que estava imóvel sobre a cama era Kingsley e que, sem dúvida alguma, tinha relação com a violação do túmulo do pre­tenso George Linden, mas antes de cair de bruços no chão, perguntou-se se poderia utilizar algum dia o que acabava de descobrir.

 

A dor martelava a cabeça e punha sons de clarins em seus ouvidos. Tinha a sensa­ção de que ia arrebentar em mil pedaços, mas foi precisamente a dor que o fez voltar a si.

Paul sentou-se no chão e segurou a cabeça com ambas as mãos, soltando um gemido, mas não tardou a recordar o que acontecera e ficou em pé tão rapidamente que a náusea esteve a ponto de vencê-lo de novo.

Apoiou-se na parede. A quietude do quarto era com­pleta. Não havia mais ninguém ali, além do morto e ele, e aquele continuava sobre a cama.

Paul aproximou-se cambaleando, com uma mão na testa e olhou-o.

Não havia sangue no travesseiro e nem na cama, e perguntou-se de que modo o teriam eliminado.

"Por que não me mataram também?" pensou.

Era quase um milagre que continuasse vivo, mas ali estava e começou a fazer uma inspeção no quarto, comprovando que não havia ficado um só papel, um só canto ou peça de roupa sem revistar.

O que procuravam aqueles homens?

Era tão ridiculamente simples que, apesar de seu estado, logo encontrou resposta para a per­gunta.

Bholer matara um homem para apoderar-se do que estava no túmulo de Frolich.

E se aquele homem era Peter Kingsley, como parecia, isso queria dizer que o primeiro violador do túmulo tinha sido o guarda.

Provavelmente, Frolich lhe contara seu segredo durante as longas e entediantes horas que tive­ram que conviver, um como prisioneiro e o outro como seu guardião.

Mas do que se tratava? Era tão importante que justificasse a morte de um homem?

Ponderava estas perguntas, quando sentiu que a porta se movia, abrindo-se lentamente.

Paul correu, até ficar atrás dela, e em­punhou a pistola, disposto a não se deixar sur­preender de novo.

A porta continuou se abrindo. Uma mão fina e delgada apareceu sobre a borda, e a pes­soa que a empurrava penetrou no quarto.

Era uma mulher. Paul pôde distinguir a silhue­ta e o odor fino e penetrante que exalava dela.

Uma vez dentro, fechou a porta sem voltar à cabeça. Era morena, alta e bem proporcionada. Paul grudou-se à parede, em silêncio, observando as reações da recém-chegada.

Uma exclamação de surpresa surgiu nos lábios ao ver o corpo estendido sobre a cama, e virou-se com rapidez, encontrando com Ladd, que lhe cortava a saída, de pistola na mão.

A moça olhou-o com os olhos arregalados pelo terror. Levou a mão à garganta e tragou a saliva. Depois perguntou, com voz rouca:

— Quem é o senhor? Matou...

Paul negou com a cabeça.

Ela era muito bonita. Tinha o cabelo curto e Isto tornava maiores seus olhos rasga­dos e expressivos. Sua mandíbula terminava num queixo redondo e suave, mas avançado, o que ex­pressava a decisão da moça.

Trazia grandes brincos nas orelhas e isto unido à cor do cabelo, aos olhos e as bocas de lábios regulares e atraentes, junto com seu sotaque, denunciavam sua origem mexicana ou es­panhola.

— Isto sou eu que lhe pergunto — disse Paul. — Quem é você? Vinha em busca de Kingsley?

— Sim... Ele me chamou... — a moça avan­çou o queixo e mudou de tom. — Não sei por que devo responder. Provavelmente matou a... — e apontou para a cama.

— Já lhe disse que não. O encontrei morto. Conhece Kingsley?

— Sim.

— É esse homem?

— Não. — assegurou a moça.

Paul franziu o cenho. Que nova confusão era aquela? Estavam no quarto de Kingsley e o homem que jazia sobre a cama não era ele. Onde estaria então?

— Tem certeza?

— Claro — respondeu a moça. — Fez um tra­balho para mim e vim para... Já disse que não sei por que tenho que responder-lhe — acres­centou. — Me deixe sair.

— Vou por partes — replicou Paul. — Eu também vim ver Kingsley. Havia aqui vários homens e um deles me atacou, me deixando sem sentidos. Acabava de acordar quando você chegou.

 A moça olhou-o de boca aberta, incrédula. Paul sorriu.

Ainda tenho um galo na cabeça disse. Quer ver?

E o que queria com Kingsley? — pergun­tou ela.

Não pretendo dizer. Embora me pareça acrescentou Paul, olhando-a inquisidoramente que buscava o mesmo que você.

Você não pode saber...

Não? Vejamos; Kingsley se comprometeu a entregar algo que tirou de um túmulo viu a moça empalidecer e acrescentou sorridente: Vê como nós dois andamos atrás do mesmo?

Mas isso me pertence. A mim disse fu­riosa, batendo no peito. E não consenti­rei que ninguém me roube!

Paul sentiu-se tentado a perguntar do que se tratava, mas não o fez porque a pergunta provaria sua ignorância. Ia dizer algo, mas ela se antecipou:

Que interesse tem nisso? Para quem traba­lha?

Por conta própria. Única e exclusivamente, por minha conta respondeu Paul. Vamos embora daqui. Você e eu temos muito que con­versar... Talvez cheguemos a um acordo.

Conhecia o homem que o atacou?

Não respondeu Paul mas ouvi seu nome; Bholer. Isso lhe diz algo?

Não. assegurou a moça. Acha que pro­curava?...

Tenho certeza, mas não lhe explicarei aqui as razões que tenho para pensar assim. Vamos. insistiu Paul. Pode chegar alguém.

Ficou espantado ao ver que ela o obedecia mansamente, saindo para o corredor. Teria por acaso alguma coisa a temer, se aparecesse aque­le cadáver?

O assunto ficavacada vez mais complicado. Come­çara pela violação de um túmulo onde estava enterrado um homem com nome falso. Ago­ra havia dois cadáveres, o guarda de uma prisão que ninguém sabia onde estava, e uma bo­nita mulher morena, que tanto lhe agra­dava quanto mais a admirava.

Paul guardou a pistola. Sabia que a moça es­tava presa a ele pelo interesse e pela curiosidade de saber que papel representaria naquele caso. E ele, por sua vez, achava que ia saber por ela de algumas coisas que clareassem as tre­vas em que se movia.

A moça pôs um pé na escada, disposta a ganhar o vestíbulo, quando ouviram em baixo, um confuso barulho de passos. Paul aproximou-se da balaustra­da e o que viu cortou-lhe a respiração.

Três policiais de uniforme subiam a escada com rapidez, seguidos pelo dono do hotel e por mais dois homens.

— Venha comigo! Depressa!

Ela retrocedeu rapidamente e Ladd deduziu por seu movimento que não devia ter o menor inte­resse em ser interrogada pela polícia.

Paul segurou-a pela mão, sem que ela opusesse a menor resistência, e ambos correram até chegarem ao quarto do agente, que meteu a chave na fechadura.

— Entre — apressou-a.

A moça obedeceu e Paul entrou atrás dela, fe­chando cuidadosamente a porta a suas costas.

— De boa nos livramos — disse sorrindo. A desconhecida olhava-o com severidade.

— Ainda nega que foi você quem matou aquele homem? — perguntou.

— Claro. Não seja tola. Por que eu iria ma­tá-lo? Eu pensava que era Kingsley e este devia me entregar algo de grande interesse para mim.

— Quanto pagou por esse algo?

— Dois mil — respondeu Ladd, pensando que aquilo não o comprometia.

A moça franziu a testa. Do quarto ao lado che­gava até eles um rumor de vozes. Paul fez sinal para ficar em silêncio e se aproximou da fina parede, grudando o ouvido a ela.

— A denúncia era certa — dizia um dos que estava no quarto contíguo. — Mas o pássaro fu­giu. Quem ocupava este quarto?

— Seu nome é Peter Kingsley... Chegou a dois dias dos Estados Unidos — respondeu outra voz evidentemente a do dono do hotel.

— Alguém perguntou por ele?

— Uma moça. Faz uma meia hora.

— Deve estar morto há mais tempo.

— Onde estará esta mulher?

— Não sei — respondeu o hoteleiro. — Não a vi sair.

— Quem ocupa os quartos vizinhos?

— Um está vazio. O outro está ocupado por um americano, que chegou há umas três ou quatro horas.

— Vamos interrogá-lo. Se permaneceu em seu quarto, talvez já tenha ouvido alguma coisa.

Paul afastou-se da parede, voltando para junto da moça. Seus reflexos reagiam com rapidez, permitindo-lhe pensar intensamente.

Nada tinha a temer. Podia fingir que estivera, dormindo, em paz. No pior dos casos, poderia revelar sua identidade, mas a moça o preocupava.

A Polícia cubana poderia submetê-la a um seve­ro interrogatório e neste caso ela confessaria tudo. E isso não era o pior, mas a arrancariam de seu lado, e ficaria sem saber muitas coisas que lhe interessavam.

— Vão vir para cá — murmurou. — O dono do hotel disse que você perguntou por Kings­ley. Está numa boa enrascada...

— Mas... Este homem não é Kingsley — in­sistiu ela.

— Pior ainda. No melhor dos casos, vão lhe causar uma série enorme de aborrecimentos.

Ela olhou-o aterrorizada. Depois dirigiu os olhos para a janela e Paul viu claramente im­presso neles o desejo de fugir.

— Venha — decidiu. — Eu a ajudarei.

— Por quê? — perguntou ela receosa.

A verdade era que nem ele mesmo sabia por que desejava tira-la das garras da Polícia cubana, metendo-se assim numa complicação, que talvez, não lhe desse a adequada recompensa, com o que pudesse arrancar da moça.

Mas estava decidido e chegou a duas passa­das à janela, erguendo-a até em cima.

— Saia por aqui — disse.

A moça hesitou. Paul tomou sua maleta e jo­gou-a para o sujo e estreito pátio, pedindo aos céus que ninguém estivesse entrando ali, naquele momento.

Uma chamada ressoou sobre a porta, fazendo a moça correr para a janela.

— Não tenho medo. É pouca altura.

Ela passou as pernas sobre o parapeito e Paul agarrou-a por ambas as mãos, ajudando-a a escorregar ao longo da parede, enquanto novos golpes soavam à porta.

— Ei! Será que não nos ouve? — gritou um dos agentes.

— Talvez não esteja no quarto — sugeriu outro.

— Deve estar. Tenho a impressão de ter ouvido ruídos.

— Eu não o vi sair — replicou o hoteleiro.

Paul apoiou o peito no parapeito da janela e estirou os braços para baixo.

— Largue-se — dissse. — Não tenha medo.

A moça obedeceu caindo ao chão. Cambaleou e esteve a ponto de perder o equilíbrio, mas conseguiu recuperá-lo apoiando-se à parede, e Paul não tardou a chegar a seu lado.

— Agora corra — disse — até aquele muro.

O chão do pátio era de cimento, mas estava coberto de imundícies jogadas das janelas. Paul segurou seu braço, sem que ela fizesse obje­ção, e ambos correram para o baixo muro de ladrilhos que os separava da rua.

Ladd olhou para cima, verificando que dava para uma janela solitária e sorriu.

Adiante disse. — Tudo vai bem.

Pulou no muro, ajudou a moça a subir, a fez passar para o outro lado, seguindo o rumo de sua maleta. Depois, ele saltou e se afastaram daque­las paragens.

— Não corra agora — disse. — Já não podem nos alcançar.

A moça começou a tranquilizar-se. Com um suave movimento afastou a mão de Paul que ainda lhe apertava o braço, e perguntou:

— Por que faz isso por mim?

— É natural que eu a ajude, pois nós dois an­damos, atrás da mesma coisa. Quero tentar chegar a um acordo com você.

— Não pode haver nenhum acordo. O dinheiro é meu. Só meu.

Tratava-se de dinheiro. Já era alguma coisa, e parecia que ia ser justificada sua ação de ajudar a moça.

— Depois falaremos sobre isso. — É aqui que mora?

— Sim. No Hotel Caribe. Cheguei ontem.

— Podemos ir para lá?

— Claro, mas já lhe avisei que é inútil tentar me convencer.

— De onde veio?

— De Nova Orleans.

— De?... — Paul engasgou-se ao ouvi-la. — Cada vez a entendo menos. Foi Kingsley quem a fez vir para cá?

— Naturalmente.

— Por quê? Ele vive em Montgomery.

— Mandou me dizer em uma carta que... Escute, por que não tomamos um táxi? O Hotel Caribe fica longe daqui.

— É uma boa ideia. Não diga uma só palavra, enquanto estivermos no táxi.

Paul acenou para o primeiro taxi que passou e os dois entraram. Ela deu ao motorista o endereço do hotel, em um espanhol correto, e Paul olhou para ela in­trigado.

A moça tinha personalidade. Não era uma mu­lher vulgar e devia ter muita segurança em si mesma.

Fizeram o trajeto em silêncio e, quando chega­ram ao hotel, Paul pagou a corrida e desceram.

O Hotel Caribe era muito melhor do que o Negresco. Não era de primeira categoria, mas pelo menos estava limpo e tinha empregados. O elevador deixou-os no terceiro andar, sem que ninguém prestasse atenção, e pouco depois se encontravam no quarto da moça.

— Sirva-se de uma bebida — disse ela.

Deixou Paul no "living", entregue à tarefa de beber um Martini e desapareceu na peça ao lado, que era precisamente, o quarto, mas voltou antes que o agente tivesse tido tempo de por em ordem suas ideias.

Vinha com o mesmo vestido, um belo mo­delo branco e preto, de saia curta que deixava ver suas lindas pernas e Paul perguntou-se o que ela poderia ter feito no dormitório.

— Bem — disse, sentando-se em frente a ele. — Agora vai me dizer o que comprou de Kingsley?

— Sabe melhor do que eu, senhorita... — esperou em vão que ela lhe dissesse o nome, e continuou: — Não posso compreender o que acon­teceu. Se aquele homem não era Kingsley...

— Não era — respondeu a moça. — E você não sabe uma só palavra de tudo isso. Quer que lhe diga como adivinhei? Pois, é muito simples. Se você entregou dois mil dólares a Kingsley, teria que tê-lo visto. E se não sabe que o morto não é Kingsley, é porque nunca o viu. E se nun­ca o viu, não poderia ter lhe dado dois mil dó­lares. É muito simples, não acha?

Paul sorriu.

— Está sendo esperta demais — replicou. — Eu não lhe disse que dei o dinheiro a Kingsley, mas que ia dar. Ele me telefonou dizendo que tinha o que me interessava que era este o preço e que eu devia levar o dinheiro ao Hotel Negresco. Quanto ele lhe cobrou?

— Cinco mil, mas eu sim — a moça reforçou a afirmativa. — Eu os entreguei.

— Pelo visto, ele estava decidido a arrancar dinheiro de todos os lugares que pudesse — re­plicou Paul. — Bom, o fato é que você e eu caímos num bom logro. Ah, agora estou pensando! Kings­ley não teria mandado aquele homem ao encon­tro marcado... Conosco?

Nada mais podia dizer. Andaria às cegas, até encontrar a luz. A moça assentiu:

— É possível — disse.

— Ouviu falar em Bholer? Pois sei que também anda atrás do mesmo. Esteve em... Bem, onde você sabe. Escavou também no túmulo, mas verificou que os sapatos de Frolich tinham sumido. Quem acha que lhe disse que Frolich estava enterrado com o nome de George Linden?

Ela demorou a responder. Evidentemen­te estava impressionada com as palavras do agente especial e este se alegrou de se ter aven­turado tanto, porque agora ela o julgava mais bem informado do que na verdade estava.

— Provavelmente Kingsley, depois da visita que ele próprio fez ao túmulo de Frolich — continuou Paul. — Isso quer dizer que é um mal­dito farsante, um  chantagista.

Ela guardou silêncio e Ladd acrescentou:

— Mas eu sei onde encontrar Kingsley. E juro que ele me pagará por tudo que fez!

— Como sabe que Bholer visitou o túmulo? — perguntou ela, por fim.

— Eu o ouvi dizer, antes de perder os sen­tidos — mentiu Paul.

— Se este Bholer tivesse estado em negocia­ções com Kingsley, não teria matado o outro, julgando que fosse ele — respondeu a moça.

Paul admirou sua perspicácia.

— Suponhamos que não foi Bholer quem o matou? — respondeu.

— Mas... Então? — a moça arregalou os olhos, espantada.

— Olhe, não sei se Bholer conhece Kingsley ou não. Tudo que acabo de dizer não passa de suposição; mas me pareceu ouvi-los pergun­tarem quem teria matado aquele tipo que esta­va na cama. Tenho a impressão de que aquele quarto esteve mais concorrido do que a Quinta Avenida.

Fez-se um silêncio quase absoluto, rompido ape­nas pelo ruído do tráfego que passava na rua.

— Bem — disse Paul, por fim. — O que é que nós somos? Aliados ou inimigos?

— Disse que sabe onde encontrar Kingsley?

— Claro — respondeu Paul, embora não tivesse a menor ideia onde aquele homem pudesse estar.

Deu-lhe o endereço de Kingsley e ela repli­cou:

— Então, somos aliados.

— Voltaremos para os Estados Unidos, pelo primeiro barco.

— De acordo. Vou me Informar da hora da partida.

A moça apanhou o telefone e falou:

— Alô!... Alô... Está me ouvindo? Alô! — repetiu, tornando a fazer outra ligação, com ner­vosismo. — Deve estar enguiçado — disse a Paul. — Vou verificar.

O agente estirou-se na poltrona, admirando o meneio suave de seus quadris ao abandonar a saleta. Ao chegar à porta, ela se virou:

Volto em seguida avisou.

Paul acendeu um cigarro e deixou-se levar por seus pensamentos, enquanto contemplava os cír­culos de fumaça que se formavam sobre sua ca­beça, antes de diluírem no ar.

Agora estava metido inteiramente no assunto. Conseguira conquistar a confiança daquela mu­lher, e para saber o resto só dependeria de pa­ciência.

Pareceu que alguém estava junto à porta, e olhou naquela direção; mas certamente, en­ganara-se.

Quanto tempo poderia levar para ir até o ves­tíbulo e informar-se da saída do navio? Uns dez minutos.

E já fazia quase vinte que ela saíra. Paul en­direitou-se na poltrona e franziu a testa ao ver correr o ponteiro do relógio.

Seria possível que ela o tivesse enganado?

Cinco minutos depois a moça ainda não vol­tara e Ladd pôs-se em pé, de súbito, encaminhando para a porta.

Sem ela, não havia nada que justificasse sua presença ali. Tinha sido um idiota acreditando nas palavras daquela mulher e agora já não tinha outro remédio, e nada mais lhe restava fazer do que se afastar do hotel.

Correu para a porta, mas ainda não havia che­gado perto quando a campainha soou insistente e Paul parou, olhando para aquela direção, com certo receio.

Quem seria? A moça não, porque ela tinha a chave.

Olhou em volta; mas, antes que pudesse buscar um meio para fugir, ouviu rumor de vozes do outro lado e uma chave girou na fechadura.

Paul cerrou os lábios e seu cérebro conver­teu-se num vulcão em ebulição ao ver aparecerem dois homens, atrás dos quais percebeu o uniforme vermelho do empregado do hotel.

— Paul Ladd? — perguntou um deles.

O agente confirmou com a cabeça, e o outro disse:

— Está detido. Previno que não lhe convém fazer a menor resistência.

— Por que me detêm?

— Logo vai saber, mas posso adiantar que as acusações que pesam contra o senhor são muito graves. Assassinato!

— Quem lhes disse que eu estava aqui?

— A informação nos foi dada por telefone, faz alguns minutos.

A moça não se limitara a fugir dele, mas des­cobrira a maneira de afastá-lo na carreira para o dinheiro, ou pelo menos assim pensava.

— Foi uma mulher, não foi? — perguntou.

— Não. Era uma voz de homem.

A notícia o deixou perplexo, e alegrou-se que não tivesse sido ela quem o entregou nas mãos da Polícia cubana.

— Bem — disse um daqueles homens — estique os braços!

— Vão me algemar? — perguntou Ladd. Os agentes olharam-se.

— Bem, se nos prometer...

— Prometo.

— Saia então — advertiu um dos policiais. — Mas previno de que se fizer o menor movi­mento suspeito, atiraremos.

— Não cometi nenhum assassinato e posso provar — respondeu Ladd.

Os três abandonaram o cômodo e o empre­gado fechou a porta, seguindo escada abaixo.

Era inútil dar explicações àqueles homens. Paul compreendeu e esperou chegar à delega­cia de polícia para revelar sua verdadeira identidade, que iria lhe abrir as por­tas da liberdade.

Ao atravessarem a porta, os dois agentes se­guraram seus braços, de maneira que che­garam à saída sem despertar atenção.

Um carro negro esperava do lado de fora. Não trazia emblema de nenhuma espécie, mas Paul não co­nhecia os costumes cubanos e entrou nele, sem a menor suspeita.

— Adiante Antônio — disse um dos homens, depois de instalar-se no banco traseiro.

O carro pôs-se em movimento.

— Posso fumar? — perguntou Paul. — Obri­gado. Foram muito amáveis não me colocando as algemas.

— Não nos agradeça com antecedência — res­pondeu um dos policiais, e Paul julgou perceber em suas palavras um leve tom de ironia.

O carro atravessou várias ruas de Havana, transbordantes de transeuntes e de ruído. Depois, passou a grande velocidade pelo cais e, deixando para trás o castelo El Morro, entrou numa es­trada.

Paul viu desfilarem os campos cultivados, nos quais se erguiam algumas casas de veraneio e começou a sentir-se intrigado.

— Para onde me levam? — perguntou.

— Para o aeroporto — foi à resposta. — Ali há dois agentes norte-americanos, que se encar­regarão do senhor.

Paul voltou-se para o que havia falado.

— Mentira! — gritou. — Eu...

— Como sabe que é mentira? De fato é. Mas lhe aconselho a não tentar a menor resistência.

Duas pistolas encostaram-se às costas de Ladd, que compreendeu, tarde demais, que havia caído numa cilada. De novo, reconheceu que era um imbecil, e pensou que se continuasse a se fiar no primeiro que lhe aparecesse, sua vida seria bem curta.

Quem seriam aqueles homens?

Era forçado a reconhecer sua audácia ao se apresentarem no hotel, fazendo-se passar por po­liciais.

Deviam ter entrado no Caribe ostentando ener­gia e autoridade para que ninguém tivesse des­confiado deles e os tivessem conduzido ao apar­tamento da moça, sem o menor obstáculo.

E ele havia mordido a isca, talvez convencido pela presença do empregado, que deixava perce­ber que aqueles falsos policiais deviam ter mos­trado seus documentos na portaria do hotel.

Tinha sido enganado mais uma vez, em menos de uma hora e esse pensa­mento revoltou-o de tal forma, que jogou o ci­garro no chão e pisou nele com fúria.

— Então, para onde me levam? — tornou a perguntar.

— Para bem perto daqui. Há alguém que quer saber algumas coisas sobre você. Por exemplo; por que tem tanto interesse em Kingsley?

 

O carro fez uma curva, entrando num cami­nho estreito, mas bem cuidado, e não tardou a penetrar num jardim que cercava uma casa.

Quando parou diante da casa, Paul foi obri­gado a descer e olhou em volta, verificando o estado de abandono do jardim. A fachada da casa mostrava os estragos causados pelo tempo, e todas as janelas estavam herme­ticamente fechadas.

Seus raptores empurraram para a porta, que se abriu naquele momento, deixando ver o corpanzil de um homem, cujo rosto recordava a Paul algo que não podia definir.

— Estou vendo que o trouxeram — disse. — Entre amigo.

Foi sua voz que esclareceu a memória de Paul. Aquele homem, alto e gordo, era o mesmo que o recebera, quando batera à porta do quarto de Kingsley, no Hotel Negresco.

— É a segunda vez que nos vemos hoje — disse. — O que quer de mim?

O gordo teve um leve sobressalto e fez um sinal para que entrasse na casa, reforçado pelas pistolas que os outros dois empunhavam.

Paul hesitou um momento, mas estava certo de que, no caso de se negar, obrigariam a entrar à força.

Por outro lado, sentia o contato tranquilizador de sua "Luger" sob o braço esquerdo e decidiu que não deixaria de utilizá-la em caso de neces­sidade, se não o revistassem antes e não a ti­rassem.

Mas, pelo visto, ninguém pensara em tal coisa.

O vestíbulo estava iluminado por uma lâm­pada elétrica, apesar de ser dia. Reinava ali a sujeira e, embora os móveis estivessem cobertos por capas brancas, notava-se sobre elas uma camada de poeira, o que provava que aquela casa há muito tempo não era habitada.

Como se chamava aquele homem? Ah, sim! Bholer. Procurou retê-lo na memória, prometendo não pronunciá-lo ali, porque poderia ser perigoso.

Bholer encarou-o agressivo:

Por que estava procurando Kingsley? perguntou de supetão.

Por que não me perguntou isso antes, em vez de me agredir? A cabeça ainda dói.

Vamos! Responda a minha pergunta.

Vocês são americanos, não é? Mas não vi­vem aqui. Ocuparam esta casa só para me trazer para cá.

Não é tão idiota como pensamos res­pondeu ironicamente Bholer. Forçamos a fe­chadura. A casa está desabitada. E agora respon­da minha pergunta ou...

Bem, não precisa se irritar respondeu Paul, fingindo uma tranquilidade que estava lon­ge de sentir. Fiquei sabendo que Peter chamou Kingsley pelo prenome para dar a im­pressão de familiaridade. Estava em Havana e pensei em vir vê-lo. Bela recepção que eu tive!

— Viu o corpo de Kingsley sobre a cama?

— Claro que vi. Mas não era Kingsley — respondeu Paul. — Quem o matou?

— Não sei — replicou Bholer. — Estava mor­to quando chegamos lá. Tem certeza de que não era Kingsley?

— Plena certeza. Conheço Peter muito bem.

Paul ia adquirindo confiança, à medida que falava.

— Conhecia o morto?

— Não. Escute o que foi fazer aquele homem no quarto de Kingsley? Ou será que tomou o quarto, dando o nome de Peter?

— Eu gostaria de saber isso, tanto quanto você — replicou Bholer, de mau humor.

— Vá para o inferno! — gritou um dos homens.

— Vai acreditar em todas estas lorotas? Ele devia estar de combinação com aquele bandido.

— De combinação para o quê? — perguntou inocentemente Paul.

— Calma — aconselhou Bholer. — Esta sua ideia é boa Anthony. Talvez, devêssemos apro­veitá-la. Tem alguma ideia de onde possa estar Kingsley?

— Agora, nem a menor.

— Vamos tratar de refrescar-lhe a memória — disso Bholer. — Onde mora, em Montgomery?

— Quem, eu?

— Não. Ele.

Paul deu o endereço de Kingsley, que o outro anotou, sorrindo.

— Assim, você insiste em que não sabe nada de nada. Bem, então por que fugiu com a moça?

— Com a moça... Ah, sim! Pois, vou lhe contar. Foi engraçado, ajudei-a a fugir da Po­lícia e...

— Sem conhecê-la? Vá contar esta história para outro moço! — o tom de Bholer tornou-se duro. — O que queria com Kingsley? Por que fugiu com a moça?

— Vocês nos seguiram?

— Sim. Desembuche de uma vez. Sabe onde está o plano?

De maneira que havia um plano. Certamente, era o que todos buscavam. Devia estar no sapa­to do morto, e era a causa daquele enredo, no qual se encontrava inteiramente metido.

— Não sei do que está falando — murmurou Paul.

Bholer estirou o braço de repente, apanhando desprevenido e seu punho, tão grande e duro como uma maca, atingiu a face esquerda de Ladd, lançando-o para trás, com a força de uma catapulta.

Por sorte, caiu sentado num sofá, do qual se desprendeu uma nuvem de poeira, que au­mentou a cortina de negrume que se interpôs entre Paul e o mundo.

A dor lacerava seu rosto e sentiu-se invadido por uma grande fúria. De boa vontade teria pu­xado a pistola para se defender daquela fera cega pela ira; mas não o fez, sabendo que não tinha a menor probabilidade de êxito e podia pôr a perder os trunfos que guardava.

— Vamos. Responda — disse Bholer. Paul ergueu-se, lentamente.

— Garanto que eu disse a verdade — repli­cou.

— Quer mais? — disse um dos comparsas de Bholer.

— Pois vai ter — grunhiu este. Desta vez seu movimento apanhou Paul pre­venido. O agente desviou a cabeça com a mes­ma celeridade com que seu inimigo estirou o braço, e o punho de Bholer passou junto à orelha.

Paul respondeu com um pontapé no baixo-ventre que fez o gordo se dobrar em dois, ao mesmo tempo em que soltava um gemido de dor e, decidido a aproveitar a oportunidade, empur­rou-o violentamente contra os outros, que já tomavam posições para atirar nele.

O agente puxou o "Luger", mas não chegou a fazer uso dela. Bholer tinha mais resistência do que calculara e, de súbito, cravou os pés no solo e lançou-se contra Paul com a cabeça avan­çada e o corpo inclinado para frente.

O golpe atingiu-o num lado, lançando-o contra a parede do vestíbulo e a pistola caiu das mãos. Bholer inclinou-se para recolhê-la, ao mesmo tempo em que seus homens se lançavam contra Paul.

Um deles golpeou fortemente com a pistola e Ladd se viu transportado, de novo, para o mun­do da inconsciência. O indivíduo ia golpeá-lo outra vez, presa da maior excitação, mas a voz de trovão de Bholer conteve-o.

— Quieto Blay!

O braço parou no ar e os dois homens vol­taram-se para ele. Bholer estendeu a pistola.

— É uma "Luger" — disse.

— E daí? — resmungou Anthony. — Temos que matá-lo.

— Tratem de não fazer isso — respondeu o gordo. — Os agentes federais utilizam a "Lu­ger". Revistem-no.

Blay assim o fez, esvaziando os bolsos de Paul. E, entre outras coisas, retirou a placa de Paul, que estendeu a Bholer.

— Tem razão — disse. — Pertence ao FBI.

Os três olharam-se com apreensão. Se o Fede­ral Bureau of Investigation tinha se metido no assunto, eles deviam trabalhar com rapidez para ganhar à dianteira.

— Como terão descoberto? — perguntou Blay.

— Foi fácil, depois que o imbecil do Bolger deixou que o apanhassem no cemitério — res­mungou Bholer. — Vamos embora.

Tomada esta resolução, os três homens saíram da casa. O carro esperava do lado de fora e o motorista ergueu-se do degrau em que estava sentado ao vê-los aparecer.

Os quatro acomodaram-se no carro, afastando-se dali. Paul não tardou a recobrar os sentidos embora a cabeça doesse terrivelmente, compreendeu imediatamente a situação.

Cambaleando saiu para o jardim e avançou para a estrada, colocando-se na beira do caminho. Pouco depois surgiu um carro e Paul fez um sinal para que parasse.

O motorista olhou-o com curiosidade.

— Poderia levar-me a Havana? — perguntou Ladd — Meu carro está enguiçado no meio da estrada.

— Suba — respondeu o homem, em inglês.

O agente acomodou-se junto ao motorista. O Lincoln desligou para Havana, sem que os dois trocassem uma só palavra. Paul ia sumido em seus pensamentos, decidido a abandonar a ci­dade, mas não antes de realizar um pequeno trabalho.

— Onde o deixo? — perguntou seu companhei­ro de viagem.

— Aqui mesmo — desceu do carro, fechou a porta e acrescentou. — Muito obrigado.

Enquanto o carro se afastava, Paul olhou em volta. Seu conhecimento de espanhol não era muito, mas estava certo de que lhe bastaria para conseguir seu objetivo. Além disso, quase todas as telefonistas costumavam falar inglês.

Entrou numa casa de comestíveis e pediu para usar o telefone. O dono, um homem gordo, de grandes bigodes negros, sorriu complacente dian­te de seu espanhol estropiado.

— Por aqui, senhor — disse-lhe.

Quando o deixou só, nos fundos da loja, Paul procurou na lista o Hotel Caribe e discou um número. Respondeu uma voz de mulher e o agente perguntou se falava inglês.

Sim senhor respondeu a telefonista.

Uma amiga minha está hospedada neste hotel respondeu Paul. — Chama-se May Kleir e creio que ocupa o quarto número 36, mas não estou bem certo. Quer me dizer se é mesmo este? Tenho que mandar-lhe alguns livros.

A telefonista levou alguns segundos para res­ponder.

May Kleir? No hotel não há ninguém com este nome. O quarto 3G está ocupado pela se­nhorita Jenny Romara. Ou melhor, estava. Há poucos minutos ela cancelou seu compromisso, por telefone.

Está certa? perguntou Paul.

Sim, senhor. Tenho a lista dos hóspedes à minha frente.

Paul agradeceu-lhe, murmurando uma descul­pa e desligou.

Jenny Romara murmurou, ao encontrar-se de novo na rua. Jenny Romara, de Nova Orleans. Vou te procurar amiguinha. E vou te encontrar. Esse nome não é muito comum, eu sei.

A cabeça ainda doía, mas sentia-se bem-humorado. Pelo menos, tinha algo para oferecer a Ashley, e não havia perdido a viagem.

De repente, teve uma ideia e chamou um táxi.

Ao Hotel Caribe disse ao motorista. Cada minuto que ganhar, será um dólar para você.

Prepare o bolso, senhor sorriu o moto­rista.

Durante a corrida, Paul teve que se agarrar umas duas ou três vezes, mas o chofer evitava os obstáculos com grande agilidade e não sofre­ram o menor acidente, apesar da grande veloci­dade em que iam.

Uma generosa gorjeta fez surgir um novo sor­riso nos lábios do homem, que perguntou:

— Está hospedado aqui? Posso servi-lo em al­guma coisa?

Paul refletiu durante alguns segundos.

— Talvez sim — respondeu. — Cinco dólares se você conseguir descobrir para onde levaram as bagagens de uma moça que se hospedava neste hotel. Chama-se Jenny Romara.

O motorista compreendeu logo. Saltou do carro e respondeu:

— Feito.

Perdeu-se de vista e Ladd tornou a se instalar no assento traseiro do carro; mal havia acen­dido um cigarro quando o chofer voltou.

— A bagagem foi levada para o cais — disse. — Ficou sabendo qual o navio que a moça vai tomar? — perguntou Paul.

— O "Alondra" — respondeu o cubano. — Sai dentro de uma hora para Pensacola.

De maneira que a moça não voltava à Nova Orleans.

"Para onde irá?" — perguntou-se. — "Com certeza para Montgomery" — respondeu a si mesmo.

— Leve-me ao porto — disse ao motorista.

— Quer chegar logo?

— Agora não há muita pressa.

O chofer começou a assobiar uma canção en­quanto se dirigia para o cais, onde não tardaram a chegar.

Dez minutos depois, Paul saboreava uma su­culenta refeição num restaurante do porto e, pouco antes que o barco levantasse âncoras, encontra­va-se na coberta, dissimulando sua presença entre outros passageiros.

Cinco minutos antes da hora assinalada para a partida do barco, viu um carro se deter junto a este, do qual desceu Jenny Romara.

Com um sorriso de satisfação, Paul viu-a subir a passarela e chegar à coberta, entregando a passagem ao marinheiro que acorreu para recebe-la.

Pouco depois, quando este regressou à coberta, Paul pôde inteirar-se do camarote que ocupava Jenny. Estava situado quatro portas depois do seu, no mesmo corredor.

Paul deitou na cama e soltou para o teto a fumaça do cigarro.

Bholer ou Romara, ou talvez os dois, com um pouco de sorte, não tardariam em pagar os golpes que recebera por culpa deles.

Mas não teria sorrido com tanta tranquilidade se tivesse se dado conta de que estava sendo observado por um homem que o contemplava de cara fechada, enquanto interrogava o marinheiro.

O homem seguiu-o com o olhar, procurando se esconder atrás de um ventilador e permaneceu por mais algum tempo em seu posto de observação, quando Ladd entrou no cama­rote.

O "Alondra" afastava-se do porto com rapidez. Havana era apenas visível ao longe, quando Blay lançou uma exclamação e se dirigiu para os camarotes, atravessando o corredor com rapi­dez.

Ao chegar diante do número 10, empurrou a porta e entrou.

Uma onda de calor veio ao seu encontro, mistu­rada ao fumo que enchia a atmosfera do cama­rote. Havia ali três homens em mangas de cami­sa, jogando cartas sobre uma maleta colocada de pé entre as duas camas, e Anthony reclamou:

Você podia ter batido Blay.

Na próxima vez farei isso, não se assuste respondeu este ofendido. Bholer disse encarando o gordo — aquele agente do FBI está a bordo.

Bholer soltou as cartas.

— Você se refere aquele, do hotel? — per­guntou.

— Ele mesmo. Acho que nos seguiu até aqui.

Os quatro homens olharam-se com apreensão, e Anthony expressou o pensamento de todos eles:

— Se  tivéssemos liquidado isso não estaria acontecendo agora.

Bholer mordeu o lábio inferior, pensativo.

— Escutem rapazes — disse. — Não sabemos até que ponto os agentes federais estão informa­dos sobre o dinheiro, de maneira que é absurdo pensar em abandonar o negócio. Mas, prometo-lhes uma coisa; se até amanhã não encontrarmos Kingsley, darei a partida por perdida.

Blay resmungou algo em voz baixa. Ele era um tipo alto, magro e nervoso. Habituado a ati­vidade e violência, não lhe agradavam as situa­ções dúbias.

— Por que não o liquidamos? — perguntou. — Assim ficaríamos de mãos livres durante algum tempo.

— Acho que seria o mais indicado — concor­dou Anthony. — Aqui, no barco, podemos fazer impunemente. Ninguém suspeitará de nós.

— Por mim, estou de acordo — disse Traute. Os três olharam para Bholer, desafiantes, como esperando sua opinião. Reconheciam que ele era o mais esperto de todos, mas esperavam que não se atrevesse a se opor à vontade deles.

— Façam o que quiserem — respondeu o gor­do, por fim, encolhendo os ombros. — Mas não contem comigo para isso. Uma morte é sempre uma morte, e com castigo muito mais sério tra­tando-se de um agente federal.

Blay sorriu:

— Não se preocupe. Vamos lhe deixar o terreno livre.

A chegada da noite surpreendeu o "Alondra" em pleno oceano, aproximadamente na metade do caminho para Pensacola.

Paul tinha estado de olhos bem abertos duran­te toda à tarde, mas sua vigilância fora in­frutífera, porque Jenny Romara não saíra do camarote.

Por outro lado, Blay exercera, uma severa vigi­lância sobre ele, revezando com Anthony e Traute, e no meio da noite, entrou no cama­rote de Bholer, que parecia ser o centro de reu­nião da quadrilha.

— Ele está na coberta. Creio que devemos aproveitar a ocasião — disse.

Anthony e Blay ergueram-se.

Bholer permaneceu no camarote, enquanto seus companheiros se dirigiam para a coberta. No mo­mento em que pisavam nesta, a sirene do "Alon­dra" soou prolongadamente no silêncio da noite, quebrado apenas para o ronco das máquinas de bordo.

Umas poucas luzes, distribuídas conveniente­mente, rompiam as trevas. Alguns passageiros gozavam a carícia do ar, sentados em espreguiçadeiras, ou acomodados pela coberta. Ao lon­ge, destacavam-se as luzes de outro barco, que se aproximava em sentido oposto.

— Onde está? — perguntou Blay.

— Foi para a popa — informou Traute.

Os três avançaram para aquele ponto, compro­vando com satisfação que as luzes ali eram mais escassas.

Antes de chegar, Blay grudou-se à parede dos camarotes, e olhou cuidadosamente, distinguindo uma forma humana, apoiada à amurada.

— É aquele? — perguntou.

Do ponto em que se encontravam, só eram vi­síveis as costas do homem, mas nenhum deles o conhecia suficientemente para saber se era ou não o agente do FBI.

— Vou ver — disse Traute. — Ele não me conhece. Se eu me voltar para vocês e acender um cigarro, é porque se trata dele.

Blay concordou. Traute saiu para a luz, as­sobiando despreocupadamente.

Enquanto avançava em sua direção, Paul afas­tou os olhos da risca de água fosforescente que o "Alondra" ia deixando para trás e olhou para o desconhecido, cuja atitude despreocupada não lhe despertou suspeitas.

— Boa noite — disse Traute, delicadamente em inglês. — Está agradável aqui. É americano?

— Sim — respondeu Paul lacónico.

Não tinha vontade alguma de conversar. Es­tava perdido em seus pensamentos e a ponto de unir alguns fios dispersos que lhe ocupavam as ideias, e a presença daquele homem o moles­tava.

— Eu também — respondeu Traute.

Tirou um cigarro e voltou-se levemente. A chama do isqueiro brilhou um instante enquanto acendia o cigarro, e depois soltou uma baforada de fumo.

Anthony e Blay observavam atentamente a cena.

— É ele — disse o primeiro.

Traute tentou iniciar uma conversa com Ladd, sem conseguir e afastou-se dele dissimuladamente, continuando debruçado à amurada, en­quanto olhava para trás, com o canto dos olhos.

Ladd voltou a mergulhar em seus pensamentos. Blay mediu com o olhar a distância que o sepa­rava do agente. Eram apenas uns quinze metros, e o melhor seria vencê-los numa corrida para caí­rem sobre o agente, antes que este percebesse sua intenção.

Assim disse a Anthony, que concordou com um gesto de cabeça, e Blay disse:

— Prepare-se... Agora!

Os dois correram para Ladd, vencendo em rá­pida carreira a distância que os separava dele.

 

Paul voltou à cabeça ao ouvir o ruído dos passos, mas os dois homens já lhe estavam em cima.

Reconheceu Blay pela escassa luz que lhe ilumi­nava o rosto e um aviso de alarma surgiu-lhe do subconsciente.

Aqueles homens queriam sua vida. Certamente haviam combinado tudo depois do que acontecera na casa, mas isso não ia ser fácil.

Agradeceu a presença daquele aborre­cido desconhecido, que continuava debruçado à amurada, dois ou três metros à sua direita, e preparou-se para a defesa, certo de que o outro o ajudaria.

Rapidamente levou a mão direita à pistola, em­bora tivesse quase certeza que não teria tempo de puxar a arma. Dada à proximidade de seus ata­cantes, e entreviu a silhueta de Traute, voltada para ele.

Teve que concentrar a atenção em Blay e Anthony e, naquele instante, sentiu que alguém lhe agarrava o pescoço por trás, impedindo-o de lançar o grito que já lhe subia à garganta.

Então compreendeu tudo. Paul deu um pontapé violento, atingindo Blay, mas Anthony conseguiu segura-lo pelos braços, ao mesmo tempo em que a pressão das mãos de Traube se intensificava, impedindo-o de respirar.

Blay, por sua vez, agarrou-o pelas pernas.

Na água! exclamou.

Os três ergueram o corpo do agente e passa­ram sobre a amurada sem dificuldade, lar­gando-o no vácuo.

Ladd caiu pesadamente na espuma branca, levantada pela hélice do "Alondra" e os três bandidos olharam para baixo.

Durante alguns segundos as ondas balançou seu corpo que, por fim, desapareceu sob as águas.

E o barco continuou navegando para a costa dos Estados Unidos, e parece que ninguém viu o que acontecera.

Está feito disse Blay. Vamos ver o que tem a dizer agora esse imbecil do Bholer.

Os três abandonaram a coberta, dirigindo-se para o camarote, onde aquele os esperava, de coração apertado.

A sirene do navio voltou a cortar os ares, anun­ciando sua presença ao outro barco que se aproxi­mava. Bholer ergueu os olhos para os companhei­ros, interrogando-os com o olhar, e Blay comen­tou:

Já não incomodará mais.

Bholer sorriu, ao mesmo tempo que de seu peito saía um grande suspiro de alívio.

Por sua vez, Ladd aspirou profundamente o ar fresco da noite enquanto caía, mas a consciên­cia do perigo não penetrou no cérebro até que a água do mar molhou suas roupas, adver­tindo que a morte se agarrava a ele.

Seu corpo afundou pesadamente no oceano e o redemoinho levantado pelas hélices sacudiu-o durante alguns segundos, mas a frieza da água acabou de reanimá-lo, e moveu os braços com­passadamente, afastando-se do redemoinho.

As roupas ensopadas, pesavam como chum­bo, assim como os sapatos e livrou-se do paletó, nadando com mais liberdade.

Ao olhar para a frente, viu que o "Alondra" afastava-se, se perdendo na distância e pensou em quanto tempo poderia se manter flutuando sobre as águas do Golfo.

A sirene do "Alondra" deixou-se ouvir. Paul voltou a olhar para ele, com a esperança de que aquele novo apito fosse o sinal de alarme, mas logo compreendeu que não era assim, e o desa­lento tornou a apoderar-se dele...

Subitamente, ergueu a cabeça ao ouvir o barulho de uma sirene que soava bem diferente da do "Alondra" e viu as luzes de outro barco que naquele momento cruzava com o que tão vio­lentamente acabara de abandonar.

A esperança de Paul tornou a renascer. Tirou os sapatos e procurou afastar-se um pouco da rota do navio que, tão providencial­mente, acabava de  aparecer.

A proa do navio avançava em sua direção. A coberta estava bem iluminada, e pouco depois, percebeu ali a presença de vários passageiros.

As luzes do "Alondra" eram apenas visíveis. Paul nadou lentamente, e o rumor da água ao ser cortada pela proa do barco não tardou a chegar aos seus ouvidos.

Tinha que gritar. Gritar com força para que ouvissem, porque se perdesse aquela oportuni­dade, podia dar adeus ao mundo dos vivos.

O navio já estava perto. Era mais alto do que parecera e Paul tornou a sentir medo que sua voz não fosse ouvida.

Já estava ali. Quase em cima dele, balançando suavemente ao impulso da velocidade. Um momento mais e...

Socorro! gritou com toda a força de seus pulmões. Socorro!

O leve ronco das máquinas pareceu um intenso rugido que abafava sua voz. Fez uma concha com a mão direita e tornou a gritar:

Socorro! Aqui na água!

Estava a ponto de chorar de emoção ao verifi­car que duas ou três pessoas inclinavam-se na coberta quando o barco passava a sua altura e tornou a gritar pedindo socorro.

O barco passou lentamente pela frente, con­tinuando a marcha, e Paul tragou a saliva.

Continuou gritando até enrouqueeer, mas a si­lhueta do navio tornava-se cada vez menos visível, e as luzes da coberta mais apagadas pela distân­cia.

Paul mordeu o lábio inferior e nadou com todas as forças atrás do barco, tentando, inutil­mente alcançá-lo. Parou esgotado pelo esforço e, naquele momento, esfregou os olhos para se convencer de que o que estava vendo era sério.

O barco parou a uns duzentos metros mais lon­ge. Por um momento, Paul julgou-se vítima de urna alucinação, mas não tardou a verificar que era verdade e redobrou suas braçadas com mais ânimo e esperança.

Apenas havia vencido a metade da distância que o separava do navio, quando uma chamada ressoou diante de si:

— Ei! Onde está? perguntou uma voz de ho­mem, surgindo da escuridão.

Aqui! exclamou Paul.

Divisou uma vaga silhueta, da qual partiu pouco depois um leve clarão, que explorou as águas em sua procura.

Agitou um braço no ar, e a luz da lanterna caiu sobre ele.

Está ali! gritou a voz de antes.

A silhueta do barco e dos homens que o era visível atrás do fraco resplendor da lan­terna.

Paul deu as últimas braçadas em direção deles e o que levava a lanterna ajoelhou-se no bote.

Teve que apagar a luz para estender os bra­ços a Paul, ao mesmo tempo em que lhe dizia palavras de ânimo e este não tardou em encontrar-se sentado atrás dos remadores.

— Pronto — disse o outro.

Dez minutos depois, Paul seguia entre eles, acompanhando o comandante do barco salvador, que era o "Orleans", com matrícula de Pensacola.

O comandante olhou-o de alto a baixo, quando chegaram a seu camarote e perguntou:

— Quem é o senhor?

— Feche a porta, por favor — pediu Paul. O marinheiro assim fez intrigado. — Meu nome Ladd e sou agente do FBI. Voltava de Havana no “Alondra”.

— Caiu ao mar?

— Me jogaram pela amurada, o que não é o mesmo.

— Quem? — perguntou o comandante.

— Homens que eu perseguia — disse Paul, para não dar maiores explicações. — Quando regressa a Pensacola?

— Amanhã de manhã.

— Pode fazer-me um favor? Eu não queria desembarcar em Cuba. Ali aconteceram coisas que podem me criar dificuldades, e...

O marinheiro olhou com desconfiança.

— Pode provar que é do FBI?

— Não — replicou Paul. — Tive que me livrar do paletó para nadar. Mas isso não é obstáculo. Pode telegrafar a meu chefe em Montgomery, o inspetor Ashley.

— Vou verificar. Enquanto isso, o senhor per­manecerá em meu camarote.

— Está bem. Escute comandante, eu ia pe­dir que quando comprovar minha identidade me permita ficar a bordo até que seu navio parta para Pensacola.

— Assim o farei se é verdade o que diz.

O comandante Johnson abandonou o camarote, mas não tardou a voltar, com um sorriso nos lábios.

— Está tudo em ordem. Ashley manda sauda­ções, mas receio que não sejam muito cordiais.

Paul engoliu em seco.

— Não se preocupe com isso — disse. — Tem algum camarote vazio?

— Claro. Vou mandar que o levem a seu camarote e que lhe deem alguma roupa.

Dormiu o resto da noite, depois de telegrafar a Ashley, fazendo um minucioso relato dos acon­tecimentos.

Na manhã seguinte, o "Orleans" partiu para Pensacola, aonde chegou ao anoitecer. Apesar disso, Ladd viu aproximar-se dele Jim Doyle, que sorriu ao vê-lo descer a escada.

— Ashley quer vê-lo menino — disse com iro­nia. — Tenho um carro aqui. Como foi em Cuba?

— Se algum dia eu me perder, não me pro­cure por lá — respondeu Ladd. — Como está o inspetor?

Doyle pôs o motor em marcha e o carro afas­tou-se do porto, rumando para Montgomery.

— Está com vontade de lhe ver — respondeu Doyle, quando saíram de Pensacola. — Traba­lhamos duro, durante todo o dia.

Quando chegaram a Montgomery, Ladd já es­tava convencido de que seus companheiros não haviam perdido tempo, fazendo bom uso das informações que havia mandado por telégrafo.

Mesmo assim, Ashley olhou-o com severidade, do outro lado de sua mesa de trabalho. Estava rodeado por uma nuvem de fumaça do charuto que fumava, e agitou a mão no ar para clarear a atmosfera, quando viu Ladd a sua frente.

— Bem — disse. — Parece que você se portou como um idiota. Dois golpes na cabeça e um mergulho, não o recomendam. Conte o que aconteceu, com todos os detalhes.

Ladd sentou-se e obedeceu à ordem do inspe­tor. Ainda vestia as roupas de um marinheiro, mas nem Ashley nem Doyle pensaram em rir de seu aspecto.

Quando terminou de falar, o inspetor perma­neceu em silêncio.

— Menos mal — disse por fim. — Pensei que as coisas tinham sido ainda piores. Quer dizer que o morto não era Kingsley.

— Não. — respondeu Ladd. — Estava no mes­mo quarto, mas não era ele. A moça me garan­tiu e Bholer confirmou.

— A propósito, esse Bholer — recomeçou Ashley, apanhando um envelope e tirando dele uma fo­tografia. — É esse?

— Sim — respondeu Ladd, depois de a exa­minar, rapidamente. — Voltou no "Alondra".

— Já sabemos. Está sendo bem vigiado e não deve se preocupar com ele.

— E Jenny Romara?

— Também não quisemos detê-la. Teríamos feito isso, se o morto fosse Kingsley, mas tenho a impressão que o caso não iria terminar se pegássemos Bholer e a moça.

— Também acho — respondeu Ladd. — Onde ela está hospedada?

— No Hotel Washington. Tem certeza de que ela não matou aquele homem?

— Sim. A menos que tivesse estado antes no quarto e voltasse depois, o que não me parece provável.

— Então seria Bholer.

— Ele também nega. Claro que isso não quer dizer nada. Bem inspetor, o que fazemos agora?

— Você, vai descansar agora mesmo.

— Não. — protestou Ladd. — Não estou can­sado. Pode dispor de mim, assim que eu tiver mudado de roupa. Descobriram algo a respeito de Frolich?

— Sim — respondeu Ashley. — Mais do que es­perávamos. Ouça Ladd. A Polícia cubana acredita que o morto é Kingsley, e prometeu enviar o cadáver.

— Para que?

— É muito simples. O diretor da prisão irá olhá-lo e nos dirá, com certeza, se é ou não ele.

— É uma boa ideia, inspetor. O que imagina que havia nos sapatos de Frolich?

— A julgar pelo que sei e pelo que imagino algo que representa muito dinheiro. E penso mesmo, que sei do que se trata — Ladd olhou-o intrigado e o inspetor prosseguiu: — Esse nome Romara, não lhe chocou?

— Sim, mas...

Doyle andou fazendo investigações sobre ele. Júlio Romara era um homem que, durante a guerra, trabalhou para o Pentágono.

— Onde?

— Em Roma. Era italiano, e seu pai americano. Quando foi descoberto, Romara tra­tou de fugir da Itália, com a ajuda de guias aus­tríacos. Não se soube mais dele.

Ladd ficou pensando e depois se declarou ven­cido.

— Não entendo que relação pode haver entre ele e Frolich.

— Hans Frolich, com o nome de Harold Klaus — continuou o inspetor — foi um dos guias que o tiraram da Itália para levá-lo à França. O outro se chamava Otto Braun e morreu durante a guer­ra, num hospital da Baviera.

— Compreendo — murmurou Ladd. — Romara transportava algo que despertou a cobiça dos guias, não é?

Estamos tratando de hipóteses contes­tou o inspetor. — Imagino que o traíram. Prova­velmente acabaram com ele ou o deixaram aban­donado nas montanhas.

Ladd confirmou com a cabeça.

O horizonte parece começar a se desanuviar murmurou. Mas onde está Kingsley?

Eu daria meu salário de um ano para saber respondeu o inspetor. — Agora vou contar à história que construi com os dados que temos. De uma maneira ou de outra, Kingsley ficou sabendo que Frolich tinha em um dos sa­patos algo de grande valor. Possivelmente, o próprio Frolich lhe contou.

Ladd sacudiu a cabeça, num gesto negativo.

Não creio respondeu. Se quisesse aju­dar a Kingsley, ele teria dado o que tinha, em vez de...

Ashley deu um soco na mesa.

Viva! exclamou. Vejo que os golpes que recebeu não diminuíram sua pouca capaci­dade de raciocínio. Mas então, como Kingsley ficou sabendo?

Provavelmente por Walter Lippe. Refiro-me ao homem que foi aprisionado com Frolich.

É possível que você tenha razão. Seja como for, Kingsley sabia. Talvez tenha tentado es­cavar o túmulo sozinho. Mas o mais certo é que tenha feito com a ajuda de alguém. Então, aparece a moça, Jenny Romara, que anda atrás do mesmo que Bholer.

Kingsley tentou vender-lhe o segredo por cinco mil dólares.

Chegou a pagar?

Só a metade. Tinha um encontro com ele no Hotel Negresco, em Havana, para entregar o restante, em troca do que lhe interessava.

Então, meu raciocínio é exato até agora disse Ashley, satisfeito. Continuemos: Kings­ley não pensava se conformar com os cinco mil dólares, e também vendeu o segredo a Bholer, mas o enganou.

— Isso é o que deve ter acontecido. E agora tem que andar escondido para que Bholer não se vingue do logro em que caiu.

— É mais ou menos isso. Kingsley foi muito esperto com todos. Talvez até consiga mes­mo, mas sempre voltamos ao mesmo ponto de partida: o que havia nos sapatos do morto? Quem é o homem que estava na cama do Hotel Negresco?

Ladd não podia responder a nenhuma das duas perguntas. Ashley jogou se para trás na poltrona.

— Creio que Jenny Romara poderia responder às duas perguntas. Mude de roupa e vá procurá-la — resolveu de repente. — Doyle vai acom­panha-lo.

Ladd ergueu, sorrindo.

— É a missão mais agradável que podia me confiar — respondeu. — Essa e a de agarrar Bholer. Tenho que ajustar contas com ele e com seus homens.

— Tudo virá a seu tempo, menino.

Doyle e Ladd retiraram-se do gabinete. O car­ro esperava-os fora e nele se instalaram.

— Quer que o leve em casa para trocar de roupa? — perguntou Doyle.

— Para quê? — respondeu Ladd. — Estou bem assim, mudarei depois.

O Hotel Washington estava situado numa rua central de Montgomery, não longe da Chefatura. Por outro lado, Doyle dirigia muito bem e o tráfego não era muito intenso àquela hora da noite.

Quando o carro se deteve a porta do hotel, Paul perguntou:

— Quem está vigiando a moça?

— Crober — respondeu Doyle. — Vamos pro­curá-lo.

O vestíbulo era pequeno, mas limpo e acolhe­dor. Em frente à porta estava sentado o sonolen­to vigia noturno, que informou que a se­nhorita Romara havia abandonado o hotel, meia hora antes.

— Sabe para onde foi? — perguntou Ladd. O vigia não tinha a menor ideia, mas replicou:

— Talvez Riley possa dizer. É o "boy" — explicou. — Foi buscar o táxi para a senhorita Romara — tocou a campainha. Riley devia estar dormindo ou ocupado em outro trabalho, pois demorou muito para atender à chamada. Era um rapaz de quinze anos, esperto, que escutou com atenção à pergunta de Ladd.

— Eu fui buscar o taxi — disse. — Ouvi per­feitamente, o endereço que a moça deu ao chofer, mas não me lembro bem... Foi... — o rapaz pensou algum tempo — Ah, sim Grant Street, foi isso. Achei estranho que uma moça como ela...

Ladd não escutava mais. Voltara-se para Doyle, dizendo com  espanto:

— Em Grant Street mora Kingsley. O que terá ido fazer ali?

— Não posso nem imaginar, pelo menos há essa hora — respondeu Doyle. — Quer ir até lá?

— Era o que eu ia propor.

Crober não apareceu em parte alguma e ima­ginaram que tivesse ido atrás da moça. Entra­ram no carro e Doyle dirigiu para a rua onde estava situada a pensão onde morava Kingsley.

As rodas rangeram dolorosamente em uma curva fechada que os deixou na Rua Grant e o carro deteve-se no ponto em que Ladd indicou a poucos passos da pensão.

A rua estava deserta. Não se via viva alma ali e os dois agentes, sentados na parte dianteira do carro, olharam-se.

— Ninguém. Onde estará?

— Na pensão talvez — disse Doyle.

Vamos procurá-lo.

Saltaram do carro e avançaram para a pen­são, atravessando por uma  rua estreita, sem a menor iluminação.

Ladd apertou a campainha e a chamada res­soou nas profundidades da casa, mas como trans­correram alguns minutos sem obter resposta, tornou a chamar, desta vez com mais insistência.

Também foi inútil. Dentro da pensão não se notava o menor sintoma de vida, e Ladd come­çou a sentir-se preocupado.

Bem disse Doyle. Temos que fazer alguma coisa.

Vamos telefonar a Ashley.

O inspetor ainda estava em seu gabinete quan­do Ladd telefonou de um bar próximo. Seu vozeirão fez o aparelho trepidar, ao responder:

Abram a porta, de qualquer maneira. Bo­tem abaixo, se for preciso, mas entrem na pensão. Eu já vou para lá.

Os dois agentes decidiram que o melhor seria esperá-lo. O que pudesse ter acontecido dentro da pensão, já seria inevitável.

O inspetor chegou dez minutos depois, arque­jando de impaciência. Logo que saltou do carro, encarou os dois homens.

O que estão fazendo aqui parados? per­guntou. Não lhes disse que pusessem a porta abaixo?

Aqui está a porta respondeu Doyle ofen­dido. Vamos.

Ashley fulminou-o com um olhar, mas nada disse. Voltou-se para o motorista que o levara até lá e pediu-lhe:

— Me de isso.

O chofer estendeu um pacote, que Ashley tomou apressadamente, dirigindo-se para a pen­são, seguido por Ladd, que sabia o que ia acon­tecer.

O inspetor manejava com perfeição aquele aparelho de sua invenção para forçar qualquer es­pécie de fechadura, sem que nem sequer se notas­se que alguém havia tocado nela.

Doyle e Ladd ficaram a seu lado e o vi­ram mexer, durante algum tempo, na fecha­dura. Ouviu-se um clique metálico, e o inspetor disse satisfeito:

Adiante.

Empurrou a porta. O vestíbulo estava às es­curas, mas Ladd acendeu um fósforo e torceu o interruptor da luz.

Tudo estava em ordem. Ali, parecia não ter acontecido nada de anormal. Os três homens olha­ram-se perplexos, e Ashley disse:

Revistem a casa. Tem que haver alguém. Naquele momento, chegou até eles um ruído vindo de um dos quartos. Ladd correu para ele e abriu a porta, deixando penetrar a luz do ves­tíbulo.

Aqui inspetor — chamou.

A luz da única lâmpada que iluminava a peça mostrou um quadro surpreendente.

Sentada no chão, com as costas apoiadas a parede, a velha senhora Pikss contemplava-os com olhos enfurecidos. Tinha a boca tapada com um lenço, e estava completamente atada com um par de lençóis.

Doyle e Ladd a libertaram de suas ataduras. A velha mal podia manter-se em pé e eles a arrastaram para uma cadeira. Ashley ficou diante dela, interrogando impiedosamente, sem fazer caso de suas lamentações.

O que foi que aconteceu, "vovó"? Vamos, fale logo. Quem a amarrou? Kingsley?

Não. Faz muito tempo que não o vejo gemeu a mulher. Foram outros homens.

Entre eles havia um gordo e alto? per­guntou Ladd, numa súbita inspiração.

Sim respondeu à senhora Pikss. Eles o chamavam de Bholer, ou algo assim. Levaram a outra moça.

— Quem? — rugiu Ashley. — Vamos — disse mais calmo. — Comece pelo princípio, mas não vá nos esconder nada.

A senhora Pikss respirou.

— Primeiro veio ela — disse. — Perguntou por Peter Kingsley, e eu respondi que faz um mês que ele não vem aqui.

— Já sabemos. Está de licença — disse Ashley.

— Continue.

— Deve ser uma licença bem longa — repli­cou a dona da pensão. — Levou as malas e ontem Elsa se foi. Parece que ele a chamou.

— Quem é Elsa? — perguntou Ashley, cada vez mais impaciente.

— A noiva de Kingsley, ou coisa assim — respondeu Ladd. — Então, ela foi embora, hem?

— Sim. Ela disse que Kingsley manda­ra dinheiro para que comprasse algumas roupas.

— Onde devia encontrar-se com ele?

— Não sei, mas Elsa me disse que iam para a Europa.

— Para a Europa? — perguntou Ladd.

— Continue contando tudo o que aconteceu aqui — disse o inspetor — Doyle — ordenou. — Vá à Chefatura, divulgue as características de Kingsley e Elsa por todo o país. Que estejam atentos, especialmente nos aeroportos e nos portos de Leste. Vá depressa.

Doyle não esperou que repetisse a ordem e abandonou a pensão.

— Acha que vamos chegar a tempo? — per­guntou Ladd.

— Suponho que sim. Faz três dias que você esteve aqui e Elsa ainda não tinha partido. Uma viagem à Europa não se prepara tão depressa. Continue vovó.

 

A moça era bonita, mas isso não lhe dava di­reito de fazer na pensão tudo que lhe passasse na cabeça.

— Não. A senhora não pode ver o quarto que Kingsley ocupava — decidiu à senhora Pikss. — Está... Ocupado. É isso.

Era uma mentira das grandes. Desde quando Elsa havia partido, no dia anterior, chamada por Peter Kingsley, a pensão ficara vazia, e só dois empregados da usina de gás, que trabalha­vam no turno da noite, dormiam ali durante o dia.

Mas Jenny não se deu por vencida. Conhecia o domicílio de Kingsley, pelo que Ladd lhe dissera no hotel de Havana, e havia se dirigido para lá, disposta a empregar todos os recursos para en­contrar o que procurava.

— Talvez isso a faça mudar de ideia — disse, tirando da bolsa uma nota que mostrou à velha Pikss.

Esta estendeu a mão, parecida a uma garra, e apoderou-se da nota.

— Assim pode convencer qualquer um — murmurou. — Venha comigo.

A porta do quarto de Kingsley dava para o mal iluminado vestíbulo da pensão e dali subia a escada que levava ao andar superior.

Sob o olhar da Senhora Pikss, que permanecia junto à porta, a moça abriu as gavetas da mesa, do armário e de outra mesa colocada sob a janela, mas Kingsley levara tudo, ou alguém completara sua obra, pois não encontrou nenhum pedaço de papel.

Pouco esperava por isso sua desilusão foi menor. Voltou-se para a velha e perguntou:

— Sabe onde posso encontrar Kingsley?

— Não. — respondeu esta. — Quando partiu, garantiu que ia voltar dentro de um mês, mas não acredito nisso. Ontem chamou sua... Noiva, por telefone, e Elsa partiu, levando as malas dos dois.

— Não lhe disse aonde iam se encontrar?

— Não, só o que sei é que parece que iam para a Europa.

— Para a Europa?

Jenny teve um sobressalto. Kingsley parecia decidido a jogar sua última cartada, depois de ter arrancado dinheiro dela e de Bholer. Tinha de reconhecer que era uma jogada de mestre e a moça mordeu o lábio inferior, pen­sativa.

— O que há com Kingsley? — pergun­tou à senhora Pikss, rompendo o fio de seus pen­samentos. — Todo o mundo se interessa por ele, agora que tem dinheiro. Faz uns dois ou três dias, esteve aqui um homem. Falou com Elsa e quando viu que não conseguia arrancar nada dela, mostrou sua placa do FBI.

— Do FBI? — perguntou Jenny, tragando a saliva.

— Sim. Então Elsa contou que Kingsley tinha-lhe escrito do Hotel Não Sei o Que, de Havana.

Jenny apertou os olhos.

Como era esse homem?

Alto, de cabelos castanhos, penteados para trás, simpático. Mas, depois, verifiquei que era do FBI.

Para a senhora Pikss, o simples fato de ser um agente, afastava toda a possibilidade de sim­patia.

Estava com um terno cinza, Príncipe de Gales? perguntou a moça, sentindo sua descon­fiança aumentar.

A resposta foi afirmativa e Jenny ficou sa­bendo que o FBI estava envolvido no assunto e que o homem que enganara em Havana era um de seus agentes.

Vou tratar de encontrar esse homem mur­murou. Vou lhe pedir desculpas e darei todos os dados que eles ignoram.

Tomada esta resolução, ia abandonar a pensão, mas naquele momento a campainha tocou.

Um momento disse a senhora Pikss. Pode ser algum hóspede.

Dirigiu-se para a porta, abriu uma fresta e per­guntou:

Quem é?...

Não pôde continuar. A porta foi aberta com violência, empurrada por fora e quatro homens entraram no vestíbulo.

Na frente deles vinha um indivíduo alto, for­te e gordo, vestido com um terno azul-marinho e um chapéu levemente jogado para trás, que afas­tou, violentamente a senhora Pikss.

A mulher olhou-os, receosa. Bholer a encarou, ameaçador:

Se der um só grito, eu lhe corto o pescoço. Está bem? Onde é o quarto de Kingsley?

A... Aquele a dona da pensão mostrou a porta, com a mão trêmula.

Cuide dela Blay ordenou Bholer. Seguido pelos outros dois, entrou no quarto que Kingsley havia ocupado. Mas parou na por­ta, olhando para Jenny.

— Então, está aqui? — viu as gavetas aber­tas e continuou: — Chegou antes de nós? En­controu alguma coisa?

Jenny encolheu-se. Não conhecia aquele ho­mem, mas instintivamente, compreendeu que era Bholer. Seu ar era ameaçador e os rostos de Traube e Anthony, a seu lado, expressavam a re­solução de irem até o fim.

— Não vim buscar nada — respondeu a moça. — Eu só queria alugar esse quarto.

— Não diga belezinha — sorriu Bholer. — Pensa que somos bobos? Você veio buscar o mes­mo que eu, mas me parece que Kingsley foi mui­to esperto.

Jenny começou a se acalmar. Atreveu-se mes­mo a sorrir, mas não encontrou eco em Bholer. — Quanto ele lhe arrancou? — perguntou este.

— Cinco mil — respondeu Jenny. — Só lhe dei três mil e...

— Marcou um encontro em Havana, para que lhe desse o resto, não foi?

A moça afirmou com a cabeça.

— Está bem — disse Bholer. — Sabe algo desse... Cachorro?

— Só o que essa mulher me disse. Parece que resolveu ir para a Europa.

Bholer lançou uma praga.

— Escute — disse. — Por que se interessa por esse assunto? Como entrou em contato com Kingsley? — Jenny não respondeu, e Bholer prosseguiu com um sorriso. — Vamos moça, nós não queremos lhe fazer nenhum mal. Kingsley enganou a todos, e talvez unindo os dados, possamos encontrar uma maneira de recuperar nosso dinheiro.

— O dinheiro que pretendem apoderar-se é meu — respondeu a moça.

— Seu?

— Sim. Sou Jenny Romara. Meu pai...

Bholer deu um assobio.

— Então, você é filha do tipo que aqueles austríacos assassinaram? Kingsley me contou toda a história. Claro que você é a dona do di­nheiro. E agora, mais do que nunca, convém que se alie a nós.

— Não vejo por quê. Sabem que o FBI está atrás de Kingsley?

— Já imaginávamos — respondeu Bholer. — Mas os planos dos agentes federais sofreram um grande atraso, devido a certas medidas toma­das por nós, não é Anthony?

— Sim — replicou este. — Mas acho que está falando demais, Bholer. Este não é o lugar mais apropriado para se perder tempo.

— Tem razão. De uma olhada por aí. Não creio que vá encontrar alguma coisa, mas é melhor. E você, venha comigo.

Levou Jenny para fora, enquanto Traube e Anthony revistavam de novo o quarto. Mas ha­via pouco o que fazer ali, e não tardaram a aparecer.

— Nada — disse Traube.

— Era o que imaginava — respondeu Bholer.

— Vamos.

Blay olhou-o de cenho franzido. Era o mais violento dos quatro e não gostava da maneira de agir de Bholer, embora ele fosse o chefe.

— Vai deixar a moça aqui? — perguntou.

— Claro — respondeu o gordo. — Acho que não podemos arrancar nada dela.

— Se fosse eu, levava a moça — disse Blay.

— Devíamos interrogá-la, em algum lugar onde possamos conversar com toda a tranquilidade. Talvez ela nos diga alguma coisa in­teressante.

— Como quiser — resmungou Bholer. — Mas acho que é inútil.

— Para o carro! — disse Blay.

Jenny encostou na parede, enquanto a senho­ra Pikss contemplava a cena, sem conseguir compreender o que acontecia.

Bholer encarou a moça.

Vai nos acompanhar de boa vontade, ou prefere que usemos de força?

Ela não respondeu, mas apertou os dentes com ar decidido. Estava resolvida a não sair dali de boa vontade e olhou para todos os lados, em busca de uma saída.

A porta aberta de um dos quartos de cima trouxe a solução e, num salto, ela chegou  escada, subindo rapidamente.

Cuidado! gritou Blay, ao mesmo tempo. Havia observado seu olhar de desespero e, ao adivinhar suas intenções, lançou-se atrás dela, ao mesmo tempo em que gritava.

Jenny conseguiu livrar-se de suas garras e che­gou até a metade da escada. Sua intenção era entrar no quarto de cima e trancar a porta por dentro; mas Traube e Anthony não estavam dispostos a deixá-la em paz, e o primeiro pas­sou junto a Blay, subindo os degraus de quatro em quatro.

A moça se julgava a salvo, quando Traube agarrou-a pelo vestido, puxando com força.

Venha cá, fera murmurou.

Jenny voltou-se com rapidez, erguendo a bol­sa, que lançou contra a cara de Traube. Ele deixou escapar um grito de dor, mas não largou sua presa e, auxiliado por Anthony, dominou a moça, arrastando-a para baixo.

Eu devia matá-la por causa disso amea­çou Blay.

— Leve-a para o carro ordenou Bholer.

A senhora Pikss estava encolhida contra a pa­rede, incapaz de fazer o menor movimento, cheia de terror. Traube e Anthony arrastaram Jenny para a porta, mas antes de chegar a ela, Blay exclamou:

— Esperem. Temos que amordaçá-la. Se tiver a ideia de gritar...

— Seria o último grito de sua vida — replicou o irritado Traube.

— É melhor evitar isso — disse Blay. Tiveram que sujeitar Jenny, entre os quatro para passar-lhe um lenço em volta do rosto, que tampasse a boca. A moça movia-se e se debatia como uma fera, mordendo e dando pontapés em todos que chegavam a seu alcance; mas, por fim, foi dominada.

— Leve ela de uma vez.

Blay abriu a porta e seus companheiros obrigaram Jenny a sair, aos arrastões da casa.

O carro esperava na calçada e, enquanto atravessava a rua, Jenny teve a esperança que algum transeunte percebesse o que estava sucedendo; mas isso não aconteceu e ela se viu jogada no fundo do carro.

Traube e Anthony caíram sobre ela, reduzindo-a a impotência. Dentro da pensão, Bholer disse:

— Vamos embora. Já perdemos muito tempo

— Espere — avisou Blay.

Sua voz denunciava certa dose de irritação como se aborrece pensar que era ele que devia cuidar de todos os detalhes. Olhou para a velha Pikss e ordenou-lhe, ao mesmo tempo em que a empurrava para o quarto de Kingsley:

— Vamos, entre aí vovó!

A mulher gemeu e Blay disse, com brutalidade:

— Cale essa boca, idiota! Não vamos lhe fazer nada de mal!

Ele e Bholer transformaram-na em um pacote utilizando os lençóis da cama e depois a jogaram ao chão, onde ela se arrastou como pode até ficar apoiada a parede, enquanto os dois saíam da pensão.

Blay instalou-se ao volante. Seu rosto tinha expressão sombria que não agradou a Bho­ler, que ao sentar a seu lado, pensou que seria obrigado a enfrentá-lo.

No banco de trás, Jenny, apertada entre An­thony e Traube, sentia o coração bater acelerado.

 Estava em uma cidade desconhecida e ninguém sabia que ela se encontrava ali. Encontrava-se a mercê daqueles homens e agora não iria ser como em Havana, onde aquele rapaz ajudara a fugir da polícia.

O que teria acontecido com ele? Se não esti­vesse numa situação tão trágica, teria sorrido ao se lembrar da facilidade com que o enganara, mas agora, precisava se concentrar na situação em que se encontrava.

 Como adivinhando seus pensamentos, Bholer olhou para ela. O carro atravessava ruas mal iluminadas e os lampejos de luz que penetra­vam por intervalos no interior do veículo mal permitia ver seus rostos.

   — Quem foi que ajudou a fugir da Policia em Havana? — perguntou.

— Não sei — respondeu a moça, com voz serena. — Quando entrei no quarto de Kingsley, ele me surpreendeu. Estava escondido atrás da porta e pensei que fosse ele quem tivesse matado o homem que estava sobre a cama. 

— Não, não foi ele — Bholer riu com gosto. — Aquele tipo já era um cadáver quando nós chegamos lá, mas não fomos nós que o matamos. Então, não sabe que aquele tipo pertencia ao FBI?

— Ao FBI? — o espanto de Jenny foi tão bem fingido que nem o desconfiado Blay teve a menor dúvida de que a moça ignorava a identidade de Paul Ladd.

— Sim — replicou Bholer. — Isso quer dizer que os agentes federais estão investigando o as­sunto. De maneira, que o que mais lhe convém, é se aliar a nós para chegarmos antes deles.

Jenny não respondeu logo. Refletia intensa­mente para examinar, por todos os ângulos, a proposta de Bholer e acabou afastando-a por completo, mas, era conveniente ganhar tem­po e respondeu:

— Seria inútil. O FBI iria nos apanhar, antes que pudéssemos fazer qualquer coisa. Aquele agente estava muito bem informado. Por exem­plo, sabia que o senhor escavou o túmulo de Frolich.

— É verdade — concordou o gordo. — Mas garanto-lhe que não vão andar mais depressa do que nós. Sabe por quê? Aquele agente que a ajudou em Havana, já não pode contar a nin­guém as coisas que sabe. Nós nos encarregamos de dar um leve empurrão de certa al­tura e deu-se a casualidade de ao cair, não ter encontrado terra onde firmar os pés.

— O que quer dizer? — perguntou Jenny, alar­mada.

— Que caiu no mar. Em pleno oceano e de noite. A estas horas, suponho que estará... — Blay deu-lhe um cutucão dissimulado e Bholer mudou de assunto. — Bem, qual é sua resposta para minha proposta de paz?

Jenny já sabia mais do que o necessário sobre a moral dos homens em cujas garras se encon­trava. Se haviam assassinado um agente federal para afastarem um obstáculo de seu caminho, o que não fariam com ela?

— Creio que aceitarei — respondeu lentamen­te. — Mas quem me garante que terei minha par­te no dinheiro, se chegarmos a encontrá-lo?

— Eu — respondeu Bholer, com dignidade. —Acelere Blay, devemos chegar logo em casa. 

— Já estamos quase chegando — respondeu o motorista.

Na verdade, poucos minutos depois, o carro penetrava na escura ruela de um dos mais hu­mildes bairros de Montgomery, parando dian­te de uma casa de aparência humilde, cuja porta era baixa e estreita.

Sobre esta havia um postigo, cujas fres­tas a luz se escoava.

Bholer abriu a porta que rangeu ao ser em­purrada e Jenny foi arrastada para fora do carro. Blay fechou as portas deste e entrou também na casa.

Do estreito corredor, subia uma escada velha de madeira, que gemeu sob o peso dos cinco e Jenny Romara preparou-se para o pior, pensan­do em Paul Ladd, o único homem que poderia ajudá-la na situação em que se encontrava.

Mas, pelo que soubera, Ladd estava no fundo do mar e não podia esperar ajuda de ninguém. De ninguém mais, a não ser de si mesma.

E o que poderia fazer ela, sozinha, contra aqueles quatro homens, desprovidos de escrú­pulos?

Mas ela se teria sentido mais tranquila se ti­vesse podido ver, na entrada daquela rua, os dois homens que vigiavam na escuridão.

Mal eles haviam entrado na casa, um dos ho­mens voltou-se para o outro:

— Quem vai avisar o inspetor? — perguntou.

— Vá você. Enquanto isso, eu ficarei vigian­do — respondeu o outro.

Este se afastou do companheiro e perdeu-se na escuridão.

 

Ronald Crober gozava no FBI da fama de nunca haver perdido o rastro de nenhuma de suas presas. E se não haviam conseguido enganá-lo os mais espertos delinquentes, menos ainda pode­ria Jenny Romara, uma pobre moça perdida em Montgomery que, além do mais, não tinha motivos para suspeitar que estava sujeita a mais cuidadosa e dissimulada vigilância.

Por isso, quando ela saiu do hotel e tomou um táxi, não percebeu que estava sendo seguida por outro ocupado pelo agente do FBI, encarregado por Ashley de vigiá-la, desde que colocara os pés fora do barco que a havia trans­portado de Havana a Pensacola.

Crober não teve dificuldade em segui-la até a pensão da senhora Pikss e como Jenny des­pedira o táxi, ele fez o mesmo, ocultando-se na penumbra do portal que se abria em frente a casa, do outro lado da rua.

Devia estar ali há uns dez minutos, quando um grande carro, provavelmente um "Lincoln", parou diante da porta da pensão e quatro homens  saltaram dele.

Crober franziu o cenho e já ia dirigir-se para o carro, quando percebeu os furtivos movimentos de outro homem que se aproximava do veiculo, procurando não se tornar muito visível.

"Isto parece bem interessante", pensou.

O outro deu uma volta lenta pelo veículo. Depois, atravessou a rua e Crober notou alarmado, que se dirigia para seu lado.

Mergulhou ainda mais no vão da porta, mas não tardou a compreender que suas precauções seriam inúteis, porque o desconhecido parecia ter escolhido especialmente aquele lugar, só Deus sabe com que objetivo.

De qualquer forma, Crober decidiu não se des­cuidar e empunhou a "Luger", disposto a tomar a iniciativa.

O outro percebeu sua presença, quando se en­contrava a dois passos de distância.

Parou um instante, surpreendido, e aquele momento foi aproveitado por Crober para sair do esconderijo e encostar-lhe a "Luger" nas costas.

— É uma pistola o que tenho nas mãos — advertiu-o. — Por que lhe interessa tanto este carro?

Ficou espantado ao ouvir uma gargalhada como resposta. Depois, foi à voz do recém-chegado:

— Que me matem se não é Ronald Crober! Estou enganado?

Crober afastou a pistola.

Farrell! — disse surpreso. — O que faz por aqui?

— Ashley me ordenou que seguisse os ocupan­tes deste carro, não se lembra?

    — Sim, mas eu não sabia que eram eles. Aquela moça, Jenny Romara, também está lá dentro. — Farrell assobiou baixinho.   — Pelo pouco que sei, acho que ela não vai passar nada bem. O que fazemos?

Os dois agentes tinham ido juntos a Pensacola, separando-se no porto, para esperarem a che­gada do "Alondra".

Depois, Farrell pegou-se aos calcanhares de Bholer e de seus homens, e Crober converteu-se na sombra de Jenny, para ambos informarem ao inspetor todos os seus movimentos.

Isso lhes permitira trocar ideias e, embora não conhecessem profundamente o assunto, sabiam o suficiente para deduzir que Bholer devia ter sen­tido uma grande alegria ao encontrar a moça na pensão.

— Pois... Não sei — replicou Crober. — O que você acha?

— Acho que devíamos ajudá-la — respondeu Farrell.

Já iam atravessar a rua, quando a porta da pensão foi aberta e Anthony e Traube saíram arrastando a moça para o carro.

Os dois agentes mergulharam, de novo, na es­curidão do portal.

— Vou buscar um táxi — murmurou Farrell.

— Podíamos agarrá-los.

— Creio que o mais interessante é segui-los. Sempre podemos ir ao auxílio da moça, se considerar que ela está correndo perigo.

Crober deu razão ao companheiro, e Farrell afastou-se do portal, enquanto Crober continuava sem perder o carro de vista.

E se Farrell não chegasse a tempo com o táxi?

Tal probabilidade parecia impossível, mas não seria demais tomar algumas precauções e Crober deslizou para o extremo da rua, para onde estava voltado o carro.

Uma vez ali, procurou sinais de seu compa­nheiro e não tardou a ver avançar a negra forma de um carro, com as luzes apagadas.

— Farrell! — chamou.

— Aqui, Crober — respondeu ele. — Pare — ordenou ao chofer.

Este obedeceu, estacionando o carro junto à calçada e Crober entrou, sentando-se ao lado do companheiro.

Nenhuma palavra foi trocada entre eles, até que o outro carro apareceu.

— Está ali — disse Farrell.

O veículo dobrou na direção oposta a que eles estavam, e Crober disse ao motorista:

— Siga-o. Não acenda os faróis, enquanto isso for possível.

— Mas... A lei...

— Não se preocupe, nós respondemos por você. O táxi pôs-se em marcha. O motorista, talvez percebendo a importância da missão que seus ocupantes deviam cumprir, conseguiu ficar a cinquenta metros do outro carro, apesar das dificuldades do tráfego.

Para a sorte deles, Blay evitava as ruas concor­ridas e não foi muito difícil segui-los até a entra­da da rua.

— Siga — disse Farrell.

— Não há saída do outro lado — disse o moto­rista. — É um beco.

— Pare então.

Os dois agentes saltaram, chegando diante da entrada da ruela, cujo fundo via-se o vulto de um carro e o movimento de pessoas a sua volta.

— Chegamos — disse Farrell. — Bem, quem vai avisar o inspetor?

— Vá você — respondeu Crober. — Enquanto isso, eu ficarei vigiando.

Farrell sumiu de vista. Chegou junto ao táxi, entrou nele e ordenou ao chofer:

— Vamos, deixe-me no primeiro lugar onde possa haver um telefone.

Poucos minutos depois, o táxi parava dian­te de um bar bem iluminado. Farrell entrou, vendo que só um casal escutava as notas de uma radiola automática e dirigiu-se para a cabina telefônica.

Fechou a porta, introduziu a moeda e pergun­tou depois de discar um número:

— Central F? Ligue-me com o inspetor Ashley. Aqui é Farrell.

— Saiu — respondeu a voz, na outra extremidade. Deixou um recado se você chamasse, era para lhe dizer que está em...

Farrell sorriu ao ouvir o endereço da pensão da senhora Pikss. Estava visto que Ashley não dormia com toda a sua corpulência, e enquanto o táxi o levava de volta até a pensão, acendeu um cigarro, satisfeito.

Quando desceu diante da pensão, Ashley ia saindo de lá, mal-humorado, seguido por Ladd, mas mudou de expressão ao ver Farrell.

— O que é que há? — perguntou com avidez. O agente relatou os acontecimentos e a cara do inspetor reluziu como a lua cheia.

— Magnífico menino! — exclamou num mo­mento de alegria, bem raro nele. — Vamos para lá.

Farrell despediu o táxi esse acomodou junto ao inspetor, enquanto Ladd sentava-se ao lado do chofer.

— Você disse que são quatro? — perguntou Ashley. — Então estamos bem. Não haverá ne­cessidade de chamar mais ninguém.

Habilmente conduzido, o carro do FBI não tar­dou a chegar diante da ruela e Crober saiu das sombras, colocando a cabeça na janelinha.

— Não se moveram dali — disse.

— É preciso agir com rapidez — respondeu Ashley. — A moça pode estar em perigo.

Ladd apertou os lábios e jurou exterminar Bholer e os demais, se Jenny Romara sofresse o mais leve arranhão.

Os quatro homens avançaram cautelosamente pela rua estreita rua, detendo-se diante da porta da casa.

Ashley ia manobrar na fechadura, mas Ladd murmurou ao seu ouvido:

— Espere inspetor.

Abriu a porta do carro e instalou-se no assen­to, tornando a fecha-la cuidadosamente. Depois, pôs o motor em marcha e Ashley, ao compreen­der sua intenção, sussurrou:

— Encostem-se a parede.

Crober e Farrell obedeceram. O ronco do mo­tor acentuou-se, rompendo o silêncio que pesava sobre a rua e, como Ladd esperava a janeli­nha de cima da porta logo se abriu e Traube apareceu no vão.

— Diabos! — exclamou, tornando a entrar. — Alguém está tentando roubar o carro.

Desceu correndo as escadas, seguido por Antho­ny, enquanto Bholer e Blay permaneciam com Jenny, no sujo casebre onde se encontravam.

Ladd aumentou o barulho do motor, como se dispusesse a dar marcha ré, e isto fez os pés dos bandidos criarem asas.

Ashley ouviu a chave ranger suavemente na fechadura e Traube e Anthony correrem para o carro.

Mas não conseguiram dar mais do que um passo fora da casa, porque mãos de aço apode­raram-se deles, arrastando-os para a sombra pro­jetada pelo muro, ao mesmo tempo em que Ladd desligava o motor do carro.

Traube e Anthony foram advertidos de que não deviam fazer a menor resistência.

— Seria pior para vocês — disse suavemente Ashley.

Logo compreenderam que acabavam de cair nas garras do FBI e, intimamente, os amaldi­çoaram.

Ladd juntou-se a eles.

— Para dentro — ordenou Ashley.

Ladd obedeceu e o inspetor seguiu de pis­tola na mão. Em cima, Bholer falou para Blay.

— Devem tê-lo agarrado — assegurou. — Ago­ra vão trazê-lo.

Acreditavam que se tratava de um ladrão. Ouviram passos nas escadas e Bho­ler perguntou:

— Agarraram o homem, Traube?

Como única resposta, a porta abriu-se com vio­lência e Ashley e Ladd irromperam na peça, em­punhando pistolas.

— Quietos! — gritou o inspetor. — Crober — chamou — suba aqui!

Bholer resmungou uma maldição e o rosto de Blay tornou-se lívido como o de um cadáver ao reconhecer Ladd, enquanto Jenny Romara lan­çava um grito de surpresa e se afastava um pouco para trás.

— Então, não conseguiram lhe fazer nenhum dano, hem? — disse o inspetor. — Bonita reu­nião. Bem Bholer, acabou a brincadeira.

O gordo sorriu.

— Não podem nos acusar de nada — respon­deu. — Exceto...

— Exceto de profanação de túmulo e tentativa de assassinato — interrompeu Ashley. — Mas para vocês é melhor que ele — mostrou Ladd — não tenha morrido. Desarme-os.

Ladd avançou para Bholer, enquanto Anthony e Traube irrompiam na sala empurrados por Crober, Farrell e pelo chofer do carro dos agen­tes.

Paul arrancou a pistola do coldre que Bholer tinha sob o braço esquerdo, entregando-a a Cro­ber.

De súbito, Blay lançou-se para a porta. Seu movimento surpreendeu a todos, mas a reação foi tão fulminante quanto seu gesto. Ele já estava junto à escada quando o corpo de Ladd atravessou o vão como um projétil, lançando-se para ele e segurando-o pela cintura.

Os dois homens rolaram escadas abaixo, con­fundidos num abraço, do qual cada um procura­va maiores vantagens do que seu rival. Ashley não perdeu a serenidade.

— Quietos aí! — ordenou.

Saiu da peça e a luz de sua lanterna iluminou a luta. Blay havia conseguido cair em melhor po­sição que Ladd e já tinha este apertado contra a parede, mas Paul conhecia vários golpes para se livrar, e Ashley não teve motivos para intervir.

O terrível golpe de joelho do agente fez com que Blay se dobrasse para frente, ao mesmo tempo em que sentia uma violenta dor, acompanhada pelo estalar dos ossos de seu braço es­querdo, e Ashley sorriu orgulhoso, ao ver como Ladd havia assimilado os ensina­mentos de lutas.

— Faça-o subir, meu filho — disse.

Quando Blay passou a seu lado, já perdida a vontade de resistir, o inspetor lhe deu um pontapé no traseiro que acelerou sua entra­da no cômodo.

Anthony, Bholer e Traube já estavam conve­nientemente algemados e Blay também não demorou a ficar da mesma maneira, apesar de seu estado.

Ashley ficou contemplando a moça.

— O que é que eu faço com você? — pergun­tou.

— Não é perigosa — respondeu Ladd. — Ape­sar de ter me enganado.

Jenny dirigiu-lhe um olhar de agradecimento e Ashley ordenou:

— Para o carro. Vocês tem muito que nos con­tar.

Pouco depois, acomodaram-se nos dois carros. Ladd tomou o volante do que pertencia aos ban­didos, e a moça se acomodou a seu lado.

No assento traseiro iam Traube e Bholer, vigia­dos por Crober, que não tirava os olhos de cima. A caminho da Chefatura, Ladd perguntou:

Por que decidiu me deixar plantado lá?

Eu não sabia quem você era replicou Jenny. Como souberam onde estávamos?

Ladd explicou e a moça abençoou as pre­visões do inspetor.

Chegaram no momento oportuno disse.

Eu tive que inventar uma série de mentiras, mas Blay não acreditou nelas.

O que iam fazer com você?

Blay propôs que me fizessem desapare­cer. Creio que os outros acabariam pensando como ele.

Assim vai aprender que o melhor, é recorrer a Políciarespondeu Ladd. Suponho que já está bem convencida.

Estou sim respondeu ela, com simplici­dade.

Assim é que me agrada.

Ladd enfiou a mão no bolso do paletó, tirando um pacote de cigarros, que ofereceu a Jenny.

A moça tomou um e acendeu, passando-o para o agente. Depois, acendeu outro para si e aspirou a fumaça com prazer.

Ladd sentia a proximidade da moça. Uma vez a olhou de soslaio e seus olhos se encontraram, pro­vocando um sorriso em ambos.

Devo ter parecido um idiota, quando ma enganou com tanta facilidade disse Ladd.

Isso foi o que pensei quando fiquei saben­do que era um agente especial respondeu a moça. Para ser franca, você confiou demais em mim.

— Não foi essa a única vez que o fiz — res­pondeu Ladd. — Estes tipos estiveram a ponto de terminar comigo. — Contou a maneira como tinha se salvado, e acrescentou: — Garan­to que isso servirá de lição para o futuro.

Dez minutos depois, estavam todos reunidos no gabinete do inspetor, sem que ninguém pensas­se em descansar.

Os bandidos e a moça acomodaram-se em al­gumas cadeiras ao redor da mesa e os agentes ficaram atrás deles, embora já nada tivessem a temer de sua parte.

Ashley acomodou-se perto da mesa e apontou para Jenny:

— Comece você — disse. — Sabemos quem era seu pai. Conhecemos muitas outras coisas, mas ainda ignoramos outras tantas.

— Meu pai não foi um traidor da sua pátria — disse a moça, com voz trêmula. — Metade de seu sangue era americano e a outra metade italiano, mas ele sempre se sentiu inclinado para os Estados Unidos. A prova é que quando sus­peitou que fosse haver uma guerra, nos mandou para cá, eu e minha mãe.

Fez uma pausa. Olhou para todos e prosseguiu:

— Minha mãe morreu dois anos depois que começou a guerra, mas continuei recebendo re­gularmente, o dinheiro que meu pai manda­va, pela Suíça. Um dia, chegou uma noticia dele. Íamos nos ver muito breve, segundo dizia. Mas esperei em vão.

Ashley confirmou com a cabeça. Ladd bebia as palavras da jovem.

— Não tornei, a saber, nada dele. Ao terminar a guerra, fiquei sabendo que saíra clandestina­mente da Itália e um de seus amigos íntimos in­formou de que ele tentara atravessar a frontei­ra suíça, com uns guias austríacos, chamados Harold Klaus e Otto Braunn. Busquei-os por toda parte até localizar Braunn, gravemente feri­do num hospital aliado.

Prossiga disse Ashley. E procure ser breve.

Serei o mais possível. Braunn confessou que Klaus e ele tinham assassinado meu pai, despojando-o de tudo de valor que ele trans­portava, que era muito. Disse que Klaus havia alistado no exército alemão.

Onde estava o dinheiro?

Braunn não sabia. Estava certo de que Klaus o havia enganado, porque quando foram buscá-lo no sítio onde o haviam deixado, tudo havia desaparecido. Aquilo deixou-o furioso e mais ainda quando Braunn acusou-o de ter ti­rado o dinheiro do esconderijo. Klaus negou.

E era verdade?

Sim respondeu Jenny. Segui a pista de Klaus até que a perdi e encarreguei uma agência de detetives para acha-lo, que me infor­mou que ele havia se alistado na marinha ale­mã, com o nome de Hans Frolich, fazendo parte das unidades que recebiam instruções para o desembarque de sabotagem.

Alguns pontos escuros, começaram a clarear. Por exemplo, a identidade de Klaus, que utilizara dois nomes em vida, para ser enterrado com outro diferente.

Tive que gastar muito tempo e dinheiro, antes de saber que Klaus fora capturado ao de­sembarcar de um submarino e executado aqui, em Montgomery, por ter matado um soldado do serviço da guarda costeira.

Como entrou em contato com Kingsley? perguntou Ashley.

Comecei a pensar que talvez, algum dos homens que tivessem estado em contato com Klaus, poderia saber algo do que este fizera com o dinheiro. Alguém me encaminhou para Kingsley, e ele me garantiu que o outro homem capturado com Klaus já estava em liberdade, e que procuraria saber dele tudo que me inte­ressava.

— E fez isso?

— Sim, e demasiado bem — respondeu Jenny, com amargura. — O outro alemão chamado Lippe, antes de morrer, havia aconselhado que, ao ficar livre, procurasse em seus sapatos. Kings­ley pareceu muito interessado e me prometeu procurar o túmulo de Klaus e o que me interes­sava, se era verdade que estava nos sapatos do morto.

— Quanto lhe pediu?

— Cinco mil dólares, e uma parte do dinheiro de meu pai, se encontrasse o que eu queria. Concordei, dando um adiantamento de três mil dólares e, três dias atrás, me chamou por telefone para me di­zer que tinha o que me interessava. Marcou um encontro no Hotel Negresco, em Havana, para me entregar, prevenindo-me que levasse os dois mil dólares restantes. O resto os senhores já sabem — acabou Jenny, com um suspiro.

O inspetor afirmou com um gesto de cabeça e transferiu o olhar para Bholer.

— Como entrou nesse jogo? — perguntou.

— É muito simples. Conhecia Kingsley, porque era ele o guarda, quando estive na prisão — res­pondeu o gordo. — Há uns cinco ou seis dias, foi me procurar, oferecendo vender por dois mil dólares, algo que me faria rico. Explicou, do que se tratava e eu julguei que faria um bom negócio aceitando. Entrei em contato com estes — mostrou os cúmplices. — Fomos a Marylebone. Abrirmos o túmulo do alemão. Quando compreendemos que Kingsley nos enganara, já era tarde demais.

— Assim mesmo, vocês se apresentaram no Hotel Negresco. Como sabiam que Kingsley ia para lá?

— Fiz algumas investigações — respondeu Bho­ler. — Eu estava furioso e queria me vingar dele, ou pelo menos, obrigá-lo a devolver os dois mil dólares que havia me arrancado. Uma ami­ga minha, que é também amiga de Elsa, a noiva de Kingsley, nos disse que ouvira ela contar que seu noivo estava em Havana, e o resto foi fácil.

O horizonte ia clareando. Ashley sorriu e disse:

— Vocês se meteram numa enrascada. Quem matou o homem que estava no quarto de Kings­ley?

— Não foi nenhum de nós. Juro — foi à res­posta de Bholer. — Estava morto quando chega­mos ao quarto. Nós o revistamos de alto a baixo, sem encontrar o que procurávamos.

— Kingsley jogou com vocês como um gato com um rato — riu Ashley. — Não é difícil de­duzir que, desde o primeiro instante, ele deci­diu fazer o negócio sozinho. Para isso precisava de dinheiro e conseguiu facilmente. Bem, su­ponho que há essa hora estará a caminho do lugar onde Klaus escondeu o dinheiro que roubou de Romara.

— Não vai fazer nada para detê-lo? — murmu­rou Bholer. — Olhe inspetor, sabemos que va­mos para a prisão por uma temporada, mas seria um grande prazer para nós se encontrássemos Kingsley ali.

— Se o agarrarmos, ele irá para a cadeira elé­trica — respondeu o inspetor. — Ou muito me engano, ou será julgado por crime de morte.

— O que o leva a supor que foi ele? — per­guntou Ladd.

— Pois... Não sei, palavra. Não sei, mas minha intuição está avisando.

Ladd sabia que o instinto do inspetor raramente o enganava. Mas, estava certo de que Ashley ocultava algo.

Os prisioneiros foram retirados do gabinete, só permanecendo ali Ashley, Paul e Jenny.

— Bem, inspetor, por que não conta agora? — perguntou Ladd, apoiando-se na mesa.

Ashley sorriu.

— Você eu não consigo enganar — disse, brincando com um grampeador. — O cadáver daquele homem já chegou. Chamei o diretor da prisão para que confirmasse que não era Kingsley e...

— Reconheceu-o?

— Sim. Tratava-se de Walter Lippe, o alemão que foi capturado com Frolich ao desembarcar.

Jenny aproximou-se da mesa. Fez-se um curto silêncio e Ashley continuou:

— Para mim está tudo tão claro quanto água. Kingsley falou com Lippe e este contou a his­tória dos sapatos de Klaus. Depois, ficou saben­do onde estava o sapato direito. Logo arrancou seu  dinheiro — disse a Jenny — e o desses tipos.

— Por que matou Lippe?

— Lippe foi posto em liberdade há uns dez ou doze dias — recomeçou Ashley. — Provavel­mente, exigiu uma grande quantia de Kingsley e este não teve outro remédio senão despachá-lo para o outro mundo. Saberemos quando encontrarmos Kingsley... Se é que conseguiremos agarrá-lo.

Jogou-se para trás, se espreguiçando levemente e se ergueu.

— Bem, acho que está na hora de dormir — disse. — Nada podemos fazer com Kingsley. To­das as saídas estão vigiadas. Avisarão se o agarrarem.

Os três abandonaram o gabinete. Na rua, Ash­ley despediu-se dos dois jovens e se afastou, as­sobiando.

— Vou chamar um táxi — disse Ladd.

— Espere — respondeu Jenny. — Está can­sado? Por mim, prefiro ir a pé.

A proposta agradou Ladd. A verdade era que Jenny estava começando a interessá-lo e os dois saíram caminhando em silêncio, à luz da lua, pelas ruas já quase desertas da cidade.

— O que pensa fazer com o dinheiro, se o en­contrar? — perguntou Paul.

Jenny ergueu os olhos para ele, e o agente a achou mais encantadora do que nunca.

— Não sei — respondeu. — Na verdade, nun­ca pensei nisso. Só posso dizer, é que estou farta desta história.

— O que faz em Nova Orleans?

— Trabalho. Dirijo uma casa de roupas de confecção. Estou satisfeita.

— É de esperar que Kingsley apareça. Não tem ideia de quanto seu pai conseguiu retirar da Itá­lia?

— Não. Fui informada que os aliados decidiram me entregar o dinheiro que ficou lá e que estava bloqueado pelo governo italiano, durante a guerra.

— Então, você é rica?

— Quase, quase — replicou Jenny, com serie­dade. — Mas isso não quer dizer nada.

Voltaram a recordar como enganara Ladd em Havana. Quando chegaram diante do hotel onde a moça se hospedava, tinham a im­pressão de já se conhecerem a muito tempo.

— Adeus — disse Jenny, estendendo-lhe a mão, que Ladd tomou entre as suas.

— Adeus? — perguntou ele protestando. — Não será melhor, até logo?

Ela sorriu.

— Foi o que eu quis dizer — respondeu.

Ladd a viu desaparecer dentro do hotel e se afas­tou assobiando alegremente, com as mãos me­tidas nos bolsos das calças.

E Jenny Romara também sorria enquanto o elevador levava-a para o quarto andar e con­tinuava sorrindo quando abriu a porta do quarto e entrou.

Seu sorriso logo se transformou numa canção que, por casualidade era a mesma que Ladd as­sobiava alegre, a caminho de casa.

 

Peter Kingsley estava bem contente consigo mesmo. E tinha bons motivos  para isso. Em um mês sua sorte mudara inteiramente. Sempre desejara ter um bom carro e uma bela casa, conviver com homens de negócios e tornar-se importante na sociedade, mas isso só o dinhei­ro poderia proporcionar, e eis que agora po­dia transformar em realidade seus desejos insa­tisfeitos.

A ambição despertara o lado mau de seu cará­ter, que adormecido esperava a ocasião para dominá-lo, e quando Jenny Romara confiou-lhe apenas uma parte de seus desejos a perversa inteligência de Kingsley percebeu que ali podia haver um grande negócio.

Hans Frolich, cujo verdadeiro nome era Harold Klaus, não dissera uma só palavra durante o tempo em que estivera na prisão de Marylebony, a respeito daquele papel de incalculável valor, que havia passado dos sapatos do morto para seu bolso.

Limitou-se a oferecer seu relógio quando caminhava para o ponto em que esperava o pelotão de execução, mas Kingsley pressentiu a verdade. Frolich não iria levar o segredo para o túmulo, de maneira que alguém devia conhe­cê-lo, e este não podia ser outro que seu compa­nheiro Walter Lippe.

Custou muito trabalho arrancar a verdade de Lippe, mas acabou conseguindo e, quando teve em seu poder o plano com as indicações necessá­rias para encontrar o dinheiro roubado de Júlio Romara, não tardou em encontrar uma maneira de conseguir o dinheiro para chegar ao ponto em que se encontrava.

A própria Jenny Romara contribuiu com uma boa quantia e aquele estúpido Bholer, que se jul­gava mais esperto do que qualquer outro se deixou conquistar por suas palavras, com­pletando a soma que ele necessitava.

Mas Kingsley não sabia que o ponto falho de seu plano era o fato de ter in­dicado a Bholer o lugar onde estava enterrado Frolich com o nome de George Linden, porque, ao ser descoberto este, o FBI ficou na pista do  negócio.

Kingsley não sabia que os agentes federais estavam atrás dele, dispostos a impedir que aban­donasse o país. Ashley conhecia bem seu traba­lho e uma fotografia de Kingsley, conseguida no fichário da prisão, já se encontrava em poder de todas as divisões do FBI, cujas jurisdições havia portos de mar e aeródromos.

Mas isso ele ignorava, esperando tranquilamente no bar do aeroporto de Idlewild, em Was­hington, o momento em que o "DC-6" da Swissair o levasse para a Europa.

Era uma questão de minutos. O "DC-6" esten­dia suas asas diante dele, do outro lado do vi­dro, na pista de cimento onde havia de decolar. Os motores já roncavam suavemente, como se preparando para a longa viagem e Kingsley contemplava sorridente, enquanto termina­va de beber o gin que pedira no bar.

A seu lado, Elsa estava muito mais nervosa do que ele, não só porque sabia que acabava de se aliar a um fugitivo da Justiça, como também pela perspectiva da viagem.

Nem sequer perguntou-se porque Kingsley se lembrara dela, agora que ia ser rico, e nem lhe ocorreu pensar que era mais fácil para um ho­mem fugir, sem despertar suspeitas, estando em companhia de uma mulher.

— Quando embarcamos? — perguntou impa­ciente.

Kingsley olhou para o relógio.

— Faltam poucos minutos — respondeu.

Desceu do alto banquinho do bar. Era um in­divíduo de estatura média e muito corpulento. Os olhos um pouco saltados davam a impressão de não poderem permanecer quietos nas órbitas e davam-lhe o aspecto de estar num continuo so­bressalto, o que não era verdade, pois Peter Kings­ley era tão frio quanto uma barra de gelo.

A música suave que emitia o alto-falante apa­gou-se para dar lugar a uma cristalina voz de mulher.

— Atenção. Pede-se aos senhores passageiros para a Suíça que se apresentem ao balcão da Alfândega... Atenção...

— Vamos — disse Kingsley.

Elsa suspirou aliviada. Tinha medo, mas a pers­pectiva de desfrutar uma situação folgada para o resto da vida diminuía os temores e, to­mando a pequena valise de mão, avançou para a saída do bar, seguindo Kingsley.

Os passageiros do "DC-6" já formavam fila diante da Alfândega.

Eram mais ou menos quarenta pessoas, Kingsley e Elsa encon­travam-se, aproximadamente, no meio da fila.

As maletas de mão eram deixadas em cima de um balcão onde, uma vez abertas, eram detidamente revistadas por um empregado da Alfân­dega, enquanto outro examinava os passaportes dos passageiros.

Quando chegou a vez de Kingsley, este largou a maleta sobre o balcão e, depois de abri-la, apre­sentou seus documentos, que o empregado exami­nou com particular atenção.

Peter Kingsley? perguntou.

Sim respondeu este, com um sorriso. Não percebeu que o empregado apertava com o pé um botão que havia debaixo do balcão. Depois, estendeu os documentos a Kingsley e pediu:

O passaporte da senhora?

A senhora era Elsa, que sorriu ao ser chamada assim. O empregado olhou para o documento e voltou um pouco para trás, verificando que dois homens jovens e fortes avançavam em sua direção.

Tudo em ordem disse. Podem passar.

Kingsley e Elsa atravessaram a estreita pas­sagem. O empregado afastou-se para um lado e o coração de Kingsley começou a bater acelera­damente, porque cada minuto que passava apro­ximava-o mais de sua meta e, pelo visto, aca­bava de transpor o último obstáculo.

Nem Elsa nem ele perceberam o leve sinal do empregado para os dois homens. Estes mudaram de direção e aproximaram-se do casal.

Por favor disse um deles. — Acompa­nhem-nos.

Peter sentiu um brusco sobressalto. Seu  rosto largo franziu-se pelo efeito do ato estranho e perguntou:

Nós? Onde?

À Chefatura. Não é Peter Kingsley?

Ele mesmo.

Então é quem procuramos. Vamos, venham conosco.

O tom do homem tornou-se, de súbito, duro, ao mesmo tempo em que os olhava com severidade e Elsa, mais acostumada do que seu noivo a tratar com a Polícia, compreendeu que, naquele momento, acabavam de ruir todas as suas espe­ranças de se tornar rica.

— São da Polícia? — perguntou Kingsley, por fim.

Mais do que reconhecê-los, era seu coração culpado que lhe dizia que era chegado o fim quan­do menos se esperava. Embora estivesse coordenado tudo bem, que não podia haver a menor possibilidade de a Lei lhe embargar os passos.

— Do FBI — respondeu seu interlocutor. — Vamos, sigam-nos.

Foi como um golpe que Kingsley recebia em plena cabeça. Conhecia os homens do FBI e não ignorava que era muito difícil escapar de suas mãos e sabia das provas que eles costumavam juntar, antes de darem um passo como aquele.

E o cadáver de Walter Lippe estava sobre sua cabeça, mostrando a sombra da forca.

Insensivelmente mordeu o lábio inferior en­quanto os seguia, sem encontrar uma forma de se livrar daquele enredo.

Na metade do caminho, parou e protestou:

— Mas isso é um absurdo! Vou perder o avião e...

— Não vai precisar tomar esse avião e nenhum outro. Vamos, siga! — foi a rude resposta.

Um dos agentes olhou agressivamente. Depois, voltou-se para o companheiro que estava atento a todos os movimentos de Kingsley, desde que este começara a mostrar certa resistência.

— Explique-lhe, Potter — disse.

— Violação de sepultura, tentativa de extorsão, além de duas já consumadas e, possivelmente, assassinato.

Tudo fora descoberto! Kingsley olhou dissimuladamente em volta, enquanto Elsa, pálida como uma morta, engolia em seco.

Naquele momento um carrinho mecânico, con­duzido por um homem, de pé na parte traseira, passou por eles, carregado de bagagens, ofere­cendo a Kingsley a esperada oportunidade.

Seu movimento foi tão imprevisto que surpre­endeu Potter e Dunning, apesar de estarem pre­venidos.

Kingsley jogou a mala contra o rosto do pri­meiro e saltou para frente do carrinho que, no mesmo instante, enquanto Potter lançava um grito de dor, ficou entre o fugitivo e os agentes.

O condutor do carrinho gritou algo que se con­fundiu com uma exclamação de Elsa, mas não era ela quem lhes interessava e sim Kingsley e os dois agentes reagiram com a maior rapidez, correndo atrás do fugitivo.

Kingsley correu para a saída do aeroporto, onde já rugiam os motores do "DC-6".

Ia como um louco, correndo desesperadamente, sem saber bem que direção tomar e penetrou na pista de cimento, onde o aparelho já come­çava a deslizar.

Um grito soou as suas costas. Olhou para trás e viu Potter saltar a vala de madeira que sepa­rava a pista de cimento das dependências do aeroporto, enquanto Dunning dispunha-se a fazer o mesmo.

Talvez ainda pudesse escapar. A terra estava firme sob seus pés e...

Outro grito ressoou às suas costas. Kingsley voltou de novo a cabeça para frente e deteve-se em seco, ao mesmo tempo que um grito de terror surgia em seus lábios.

O avião estava em cima dele, ganhando velo­cidade rapidamente. Kingsley levou ambas as mãos ao rosto para não ver a cara da morte, que sorria sinistramente a seu lado, e a asa do "DC-6" bateu contra seu corpo, apesar dos esfor­ços do piloto para evitá-lo.

Uma das enormes rodas passou por cima e Kingsley contraiu-se, ao mes­mo tempo em que lançava um gemido de dor, que foi acompanhado por gritos histéricos e aterrori­zados dos espectadores.

O avião prosseguiu sua marcha, detendo-se pou­co mais adiante, enquanto Potter, Dunning e algumas pessoas se aproximavam de Kings­ley.

Potter ajoelhou-se a seu lado. Ao levantar sua cabeça, verificou o enorme ferimento causado pelo avião no corpo de Kingsley e espantou-se ao vê-lo abrir os olhos.

— Já não... — começou a dizer.

A morte veio buscá-lo, impedindo-o de pronun­ciar mais alguma palavra. Potter ficou em pé e olhou-o respeitosamente, pensando nosdesígnios do Destino, que matava Kings­ley com os mesmos meios que ele pensara usar para sua salvação.

Dunning, enquanto isso, não perdera tempo e, pouco depois, a ambulância do aeroporto trans­portava o corpo de Kingsley, e sobre o cadáver foi depositada a maleta que ele jogara no rosto de Potter.

Ashley endireitou-se na poltrona.

— Isso é tudo — disse a Jenny Romara. — O avião matou Kingsley, mas consegui reconstruir a história, graças a Elsa Torgan. Foi ele quem matou Walter Lippe.

— Por que fez isso?

— Aconteceu como imaginamos. Lippe exigiu sua parte no negócio, mas a ambição de Kings­ley já não tinha limites. Mandou Lippe a Havana, encarregado de entrevistar-se com ele. Lippe devia esperá-lo no Hotel Negresco, onde Kings­ley tinha reservado um quarto em seu próprio nome.

— Por quê?

— Para que Lippe não desconfiasse. Era o mesmo que dizer: "Para que não desconfie de mim, prossiga você mesmo com o negócio que eu iniciei." Devia ser a única maneira de vencer os receios do alemão.

Ladd confirmou com um movimento de ca­beça.

— Kingsley seguiu-o a Havana e quando Lippe entrou no quarto matou-o, deixando o cadáver sobre a cama. Depois chegaram Bholer e seus homens, mais tarde, você — o inspetor apontou para Ladd — e, por último, você — disse a Jenny.

— Este Kingsley era muito esperto — reco­meçou Doyle. — Fez tal confusão que só por verdadeira casualidade...

Ashley não o deixou prosseguir:

— Protesto! — exclamou, dando um soco sobre a mesa. — A casualidade só ajuda aos que sabem coloca-la ao seu lado. Nós aproveitamos todas as oca­siões que nos oferecem para esclarecer um caso. O primeiro erro partiu de Kingsley. Se tivesse se conformado com o dinheiro da senhorita Romara, tudo lhe teria saído bem, mas meteu Bholer na confusão e quando ele foi descoberto escavando o túmulo de Klaus...

— Tem razão inspetor — concordou Ladd. — Foi isso que nos levou a intervir.

Jenny estava como sobre brasas, desejando perguntar alguma coisa. Encontrou, por fim, o momento oportuno.

— Kingsley tinha... O plano? Ashley confirmou com a cabeça.

— Sim — disse. — Mas, infelizmente, não lhe servirá de nada. Estava em um envelope, junto com o passaporte e outros documentos, mas a roda do avião passou, justamente, sobre eles.

Deteve-se um instante e sorriu ao observar a expressão de curiosa expectativa que se refletia nos rostos de seus ouvintes.

— Tudo ficou esmagado, feito massa, entre a carne e o sangue. Será impossível tentar decifrar aquele papel.

Houve um curto silêncio. Jenny suspirou, aliviada.

— Não me importa — respondeu. — Na ver­dade, eu já estava com receio que isso me obrigas­se a fazer uma viagem à Europa.

— Suíça e Áustria são muito bonitas na pri­mavera — sorriu Ashley.

Jenny ia responder, mas, naquele momento o telefone tocou. O inspetor apanhou-o.

— Alô! Sim, é Ashley... Wallace?... Bem. Obrigado.

Desligou o aparelho e olhou para Jenny.

— Bem como eu lhe disse. Não espere nada desse papel. No laboratório não conseguiram decifrar uma só linha. Sinto muito.

Jenny encolheu os ombros.

— Já lhe disse que não me importa — ergueu-se e o inspetor imitou-a. — Bem — acrescentou a moça — suponho que tudo terminou.

— Pode ser que ainda tenhamos necessidade da senhorita, quando Bholer e os outros tipos forem julgados — respondeu o inspetor. — Até lá, pode fazer o que quiser, mas deixe seu endereço.

— Paul já sabe — respondeu Jenny, com um sorriso.

Ashley olhou para o agente.

— Está bem. Parece que fomos mais espertos do que em Havana, hem?

Paul ia responder a ironia de seu superior, mas Jenny interveio:

— Posso ir embora?

— Sim, claro. Outra vez já sabe, conte à Polícia tudo o que acontecer. Garanto que é o melhor caminho. Adeus senhorita! — acrescen­tou, estendendo-lhe a mão. — Foi um grande prazer conhecê-la, mas acho que outros ainda tiveram maior prazer do que eu. Acompanhe-a, Ladd.

Este saiu atrás de Jenny. Ao chegar à porta, olhou para o inspetor e o viu sorrir, ao mesmo tempo em que lhe piscava um olho. Ladd fechou a porta e Ashley voltou-se para Doyle:

— Não vai deixar que ela voltasse para Nova Orleans, se não me engano. Seria um tolo se a perdesse e creio que Ladd não é tão tonto como parece.

Doyle sorriu e ia responder, mas Ashley olhou-o com severidade.

— Que diabos está fazendo aqui, parado? — perguntou — Será que não tem nada para fazer?

Doyle suspirou e saiu do gabinete com a rapidez de um raio. Quando fechou a porta, Ashley riu baixinho. Sacudiu a cabeça, tor­nou a sorrir e mergulhou na leitura de alguns papéis.

 

                                                                                            Lewis Haroc

 

 

                      

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