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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMA-ME ATÉ A MORTE / Maggie Shayne
AMA-ME ATÉ A MORTE / Maggie Shayne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AMA-ME ATÉ A MORTE

              

Dia de São Valentim[1]. Vinte e dois anos atrás.

Port Lucinda, Maine

David tomou um comprido gole da garrafa. Era só vinho, e era um vinho barato tirado do porta-malas do jipe do irmão mais velho de Brad antes que esse partisse de viagem pela estrada. Nem sequer se daria conta de que faltava até que chegasse a Miami. Era ruim como o inferno, mas os mendigos (ou os ladrões, nesse caso) não podiam escolher, e nenhum dos cinco meninos, que nesse momento estavam tomando o vinho, tinha idade suficiente para tê-lo comprado legalmente. Assim tomavam o que podiam conseguir.

Mereciam uma boa bebedeira depois do que passaram. Foi a primeira vez de David, embora isso ele não admitisse na frente dos outros meninos nem que sua vida dependesse disso.

— Maldição, estou enjoado. E acredito que os lábios estão intumescendo. Isto é normal? —disse Brad então.

— O que? — perguntou Kevin. — Nunca bebeu antes?

— Infernos, não.

Kevin sorriu com malícia e disse:

— Eu tampouco.

Logo todos se puseram a rir como se fora a coisa mais divertida que tivessem escutado em suas vidas.

Estavam de pé em um pequeno círculo aos subúrbios do velho Muller Place, passando a quarta e última garrafa entre eles. David não sabia por que chamava esse lugar velho Muller Place. Não soube de nenhum pensador que vivesse no Port Lucinda, nunca conheceu ninguém que vivesse na antiga casa, ponto.

Olhavam ao lugar agora, suas degradadas paredes cinza, as janelas quebradas e o teto desabando. Algumas das persianas desapareceram, outras penduravam de uma dobradiça, prontas para cair.

— Não posso acreditar que eu fiz isso. — gemeu Mark limpando a boca com o dorso da mão enquanto passava a garrafa a direita. — Quero dizer, justo antes do dia de São Valentim.

— Sei homem. — David golpeou o ombro de seu amigo. — Deve ter estado paquerando com esse esportista.

— Muito tempo.

— Ao menos Sally teve a cortesia de terminar comigo cara a cara. — disse Brad. — Não é que isso machuque menos. Terminar é terminar.

Kevin assentiu.

— Suponho que sou o único afortunado. A minha só estará fora da cidade durante dois meses.

David olhou Randy, que estava em silêncio, e estava bebendo muito mais que qualquer um deles. A família de sua namorada mudou-se para Hong Kong, quando a empresa de seu pai prometeu uma enorme promoção se mudassem para lá. Hong Kong. Que bom, podia ser a lua.

— Ainda nenhuma palavra de Sierra? — perguntou Mark.

David piscou e sentiu a garganta apertada com só a menção de seu nome. Diferente dos outros meninos, ele não foi rechaçado, abandonado ou traído. Passou seu segundo ano inteiro tentando conseguir coragem para pedir a Sierra que saísse com ele. A semana passada estava bem preparado para fazê-lo. Fazia um plano, descobrindo o que dizer, quando e onde. E esse dia, ela não foi à escola.

Ninguém viu nem ouviu Sierra Terrance depois. E ninguém sabia onde estava. A polícia esteve dentro e fora do instituto toda a semana, interrogando os alunos, professores e o pessoal. Mas ninguém sabia uma merda.

— Dave? — Mark deu uma cotovelada, entregando a garrafa.

— Não, nada. Quero dizer, há todo tipo de rumores mais ninguém sabe uma merda.

— Sim. — disse Kevin. — Ouvi que seu pai abusava dela e que ela fugiu, mas diabos, se a polícia pensasse isso, seu velho estaria no cárcere agora.

— Ouvi que fugiu com um menino da universidade. — disse Brad, e quando Randy deu uma forte cotovelada, apressou-se a dizer. — Não é o que eu acredito. De maneira nenhuma.

— O que acredita que aconteceu com ela, Dave? — perguntou Mark.

— Não sei. Não quero falar disso. — deu um grande gole na garrafa, esvaziando-a, e logo a jogou sobre a grama da velha casa e deu uns passos instáveis para diante, olhando a casa. — Este lugar é uma monstruosidade. — só que soava como monssssssstruosssssidade.

— Seguro como o inferno que não vale a pena que todas as pessoas estejam lutando por isso, verdade? — perguntou Mark. — A Sociedade Histórica, dirigida pela mãe de Davey, está tentando salvá-la. Mas vale a pena? Quero dizer, olhem.

— Cairá sobre si mesma muito em breve. — disse Kevin. — Então, os vereadores não poderão seguir lutando por condená-la assim poderão fazer as honras.

— Isso é tudo o que minha mãe sempre diz a respeito. — disse David. — Está cansada como o inferno de ouvi-lo.

— Todos estamos. — Brad se aproximou uns passos. Logo tomou a garrafa vazia e a girou na mão. — Acredito que deveríamos fazer algo a respeito.

David franziu o cenho.

— Como o que?

Brad o olhou aos olhos e sorriu.

— Tudo o que precisa é esta garrafa, um trapo e um pouco de querosene.

— E um isqueiro. — disse Mark, o rosto separou em um amplo sorriso.

— Há querosene em minha casa. — adicionou Randy. Foi uma das poucas vezes que falou em toda a noite. — Está na esquina. Posso ir buscá-lo e estar de volta em cinco minutos.

— Sim. Sim, vamos fazer isto. Incendiaremos este velho navio e acabaremos de uma vez. — disse Mark. — Vai, Randy.

Randy saiu em um trote instável, mas poucos passos depois desacelerou caminhando. Uma desigual e oscilante caminhada. David  mordeu o lábio inferior.

— Não estou seguro a respeito disto, meninos.

— O que? Onde está o mal? — Mark olhou a esquerda e a direita da velha casa. — Não há outra o suficientemente perto como para que salte uma faísca e pegue fogo junto, verdade? Não há ninguém ao redor. Merda, David, eu diria que você gostaria de fazer isto mais que ninguém. Assim, ao menos, sua mãe deixaria de correr de um lado para outro da cidade como uma espécie de televisão-evangelica, tentando converter todo mundo da sua maneira de pensar.

— Isso deve ser realmente embaraçoso. — Kevin olhou a Dave como se sentisse pena por ele. — Merda. A semana passada estava ante a prefeitura com um megafone. Um megafone para poder gritar.

David se encolheu por dentro. Era vergonhoso. Sua mãe e um punhado de donas de casa haviam se aferrado a causa como se tratasse da paz mundial ou algo assim. E ela estava tão envolta nisso que nem sequer se inteirou que seu coração estava quebrado ou que a garota que ele deixou escapar estava desaparecida.

Não teve tempo de preocupar-se.

Sentou-se na grama. Os outros uniram-se a ele, um por um. Todos se sentaram em uma fila, na escuridão da noite, olhando o pesadelo da casa inclinada.

— As crianças pequenas têm medo de caminhar por este lugar. — disse Brad. — Estaríamos fazendo um favor à toda cidade.

David suspirou, e se sentaram ali um momento mais, todos eles somando seus argumentos de por que seria uma boa ideia, quando a verdade era que só seria uma boa maneira de expressar sua frustração.

E por diversão, para começar.

Randy retornou cambaleando com um pouco de querosene, e sem esperar que ninguém dissesse nada, encheu a garrafa de vinho vazia. Logo tomou um lenço vermelho do bolso de trás, retorceu-o e o meteu na garrafa.

Levantou-a, e os outros se levantaram do chão, um por um.

— Quem tem um isqueiro? — perguntou.

— Aqui. — Mark rebuscou no bolso de seu jeans e tirou um descartável verde.

O entregou a Randy.

Randy sacudiu a cabeça.

— De maneira nenhuma vou atirar. Eu o fiz.  Um de vocês tem que atirar este bebê dentro.

— Quem?

— Jogaremos a sorte. — disse Brad.

Alcançou a mochila onde trouxe o vinho roubado. David assumiu que estava vazia, mas Brad tirou de dentro um maço de cartas e fechou o zíper.

— Nossa, tem a pia da cozinha aí também? — perguntou David.

Sentia-se nervoso como o inferno e não sabia por que.

— Tirei do porta-malas do jipe de meu irmão, o vinho e tudo. Devo ter pegado as cartas aí. De todos os modos, a quem importa? — tomou as cartas de sua caixa e as embaralharou umas poucas vezes.

Enquanto o fazia, caiu uma, de barriga para cima, na calçada.

O ás de espadas.

David sentiu um calafrio pela coluna vertebral.

— A carta mais baixa atira a garrafa. — disse Brad. — Peguem. — desdobrou as cartas com a face para baixo e as manteve assim.

Cada um deles tirou uma carta, incluindo Brad, embora David perguntasse se o teria enganado. Estava muito bêbado para dar-se conta do que fez.

De todas as formas, não importava. Pegou um dois. E não havia nada por debaixo disso.

Quando cada menino mostrou a carta para revelar o que havia pegado, esperou um empate, mas não foi assim. Um rei, um sete, um nove e uma dama rodeavam.

Randy acendeu o isqueiro, prendeu o trapo e entregou a garrafa.

— Atira-a.

David fechou a mão ao redor da fresca garrafa, cheirava a querosene, pensou em toda as pessoas tendo uma explosão na noite de São Valentim, onde se supunha que devia estar. Ele e seus quatro amigos também. Essa noite supunha um grande problema. Não tinham que estar de pé fora, no frio da noite do Maine, com calafrios, bebendo vinho amargo e barato enquanto seus corações se sangravam.

Não era justo.

Uma repentina rajada de ira subiu, e ele a deixou mover-se. Deu um passo atrás, apontou e lançou a garrafa com todas suas forças.

Penetrou através de uma janela já quebrada e caiu no interior. E como se fossem um, os cinco meninos se afastaram correndo da casa, mas só uns poucos passos. Pararam e giraram, olhando atrás, esperando, mas sem ver resultados.

Esperaram ali cinco minutos completos, olhando a escura janela. Mas nada.

— Maldição, não, espera! — assinalou Mark. — Olhe!

Havia uma luz, uma dançante e piscante luz. Entretanto, cresceu rapidamente e logo as chamas se dispararam. O velho lugar era como lenha, seca e morta em seu interior, e o fogo rapidamente se propagou, mostrando sua cara por cada janela que podiam ver.

— Como diabo se propagou tão depressa? — murmurou David.

— Vamos. Alguém vai ver e chamará a polícia a qualquer momento, se é que não já o fez. Temos que sair daqui. — disse Mark puxando seu braço.

Mas David não podia tirar seus olhos das chamas.

Kevin lhe deu um murro no ombro, forte.

— Vamos, David.

— Sim. — disse David. — Certo. — e, voltando-se, uniu-se aos outros enquanto corriam.

E correram.

E aos poucos metros sentia-se como se estivesse sendo açoitado, e correu inclusive mais rápido quando o pânico passou gelando pela coluna vertebral.

Não pararam até que estiveram fora na casa de Randy outra vez, a única casa onde os pais não estavam essa noite, entraram todos, fecharam a porta e ficaram ali, olhando-os uns aos outros.

David ouviu as sirenes e xingou em voz baixa.

— Essa foi a coisa mais estúpida que jamais fizemos.

— Só se nos pegarem. — disse Mark. — Randy, temos que nos lavar, tirar o aroma do vinho do fôlego.

— Vão saber que fomos nós. — disse David. — Todos os outros estão nesse maldito baile. Vão saber.

Randy apertou seu ombro.

— Ninguém vai saber, porque ninguém vai dizer se fizermos um juramento, aqui, agora mesmo. Nenhum de nós vai dizer jamais o que fizemos nesta noite. Em nossas vidas. Juram-no? —estendeu um punho a frente.

Um por um, foram pondo a mão direita em cima do punho.

— Juro-o. — murmurou cada um deles.

— Bem. O banheiro está por aqui. Vamos nos lavar.

E se limparam, foram as suas casas e atuaram como se nunca tivesse acontecido nada e fingindo que tudo estava bem, apesar de que o estômago de David dizia que algo não ia bem.

Quando a polícia se apresentou ao dia seguinte na escola, ele sabia que algo não ia bem. E quando o diretor convocou uma assembleia de emergência no ginásio, estava seguro de que alguém ia assinalar diretamente com o dedo:

— Ele o fez!

Mas isso não foi o que aconteceu. O que aconteceu foi que o diretor O'Malley ficou no pódio no ginásio diante deles e  disse que Sierra Terrance foi encontrada e que estava morta. Escapou e, aparentemente, se escondeu na velha casa Muller. Noite passada, a casa foi destruída pelo fogo. Ela ficou apanhada em seu interior, e morreu pela inalação de fumaça. Arson estava investigando e se alguém sabia algo sobre isso, podiam falar com ele em privado, e em completa confiança.

David mal podia evitar vomitar ali mesmo. Conseguiu aguentar até que se dissolveu a reunião, e então correu até o banheiro dos meninos, vomitou e vomitou até que pensou que iria sair as vísceras.

Quando enxaguou a boca na pia e levantou a cabeça para olhar no espelho seus ardentes e úmidos olhos, havia um policial atrás dele.

Elevando o queixo, David se voltou e encontrou com o olhar fixo do oficial. Nem sequer esperou que o homem fizesse a pergunta. Não importava estar rompendo o juramento que havia feito com seus amigos. Nem tinha intenção de delatá-los. Tinha sido ele, de todas as formas. Foi ele que jogou o coquetel Molotov na casa Muller.

Foi ele.

— Fui eu. — disse em voz alta. — Eu comecei o fogo. Eu... Matei Sierra.

 

Atualidade

Boston, Massachussets

David Nichols levantou a viseira de seu capacete e ficou olhando o molhado e ainda fumegante montão de escombros que estava acostumado a ser uma sala de jantar, desejando que sua equipe tivesse sido capaz de fazer mais. O dono do negócio, um homem que provavelmente parecia um ciclista a maioria do tempo, ficou em silêncio, sustentando a sua esposa enquanto grandes lágrimas rodavam pela cara. A dor da esposa não era tão silenciosa. Estava soluçando abertamente.

Seus companheiros bombeiros estavam enrolando as mangueiras e recolhendo o equipamento. Foi para o casal, tirando o capacete enquanto o fazia.

— Sinto muito. Se tivéssemos chegado antes…

— É minha culpa. — disse o homem. — O sistema de alarme se descontrolou a semana passada. Deveria havê-lo arrumado, mas o apaguei e agora… — olhou os restos do que foi seu modo de vida e agitou a cabeça.

— Têm seguro, verdade? — disse David, aliviado quando a mulher assentiu com a cabeça. — Sei que parece mal agora, mas estarão bem. Estarão. Vi bastante disto para sabê-lo. E realmente, agradeçam as estrelas que não houvesse ninguém dentro. Ninguém resultou ferido ou morto. Poderia ter sido muito pior.

— Sabemos que fizeram tudo o que podiam. — disse a mulher.

Assentiu e se moveu a um lado enquanto o casal era rodeado de amigos e seres queridos que se apressavam a cena. Estariam bem.

Enquanto a ele, infernos, nunca estaria. Não teria sido diferente se tivessem salvado a estrutura. Ainda podia sentir o negro nó em seu estômago que nunca se ia. Não importava quantos meninos ou cachorros tiravam de edifícios em chamas, não importava quantas vidas salvou, nunca poderia apagar a mancha de sua alma.

Os dois anos que passou na detenção de menores não esteve perto de ser um preço justo a pagar pelo que fez quando era um menino. Entretanto, Sierra era pobre e mestiça - sua mãe era do leste da Índia e deixou Sierra e o lixo de seu pai antes de sua morte, para retornar com sua família a Delhi - enquanto ele e os meninos eram a casta superior das crianças brancas de caminho a universidade. De modo que foram julgados como menores de idade, enviando-os ao centro de menores, até que cumpriram dezoito e foram postos em liberdade com seus antecedentes limpos. Um novo começo. Uma segunda oportunidade.

Era mais do que Sierra Terrence teve.

Caminhou para o caminhão, tirando a pesada jaqueta amarela quando pôde. Subindo ao assento do condutor, olhou seu celular, situado no painel, tinha uma chamada perdida brilhando na tela.

Franzindo o cenho, agarrou-o, reconheceu o número e apertou o botão de chamada de voz.

Mas não era a voz de seu velho amigo Mark na gravação.

— David, é Janet. Mark teve um acidente. É… Sério. — essas palavras surgiram como se apenas entrassem na garganta. E sua voz estava tensa, mais profunda depois de dizer. — Está perguntando por ti. Por todos vocês. Por favor, veem… Logo.

Isso foi tudo. Não havia nada mais. Por todos vocês, disse ela. Todos vocês. E isso só podia significar seus mais próximos amigos e ele mesmo. Uniram-se vinte e dois anos atrás. Oh, eram amigos, bons amigos, antes da derrota de bêbados que havia custado à vida de uma jovem. Mas depois, sua amizade tomou uma profundidade que David sabia que poucos homens experimentavam em suas vidas. Quando ele, David, confessou, não denunciou nenhum dos outros. Mas todos seguiram, um por um, para assumir sua parte de culpa. E logo, no reformatório, a horas de Port Lucinda e rodeado de jovens inadaptados, necessitaram-se os uns aos outros só para manterem-se sãos, e a salvo.

E embora não vivessem próximo, ainda se mantinham em contato, e se reuniam em todas as ocasiões importantes. Casamentos. Nascimentos. Férias de verão. Mark era o único que ficou em Port Lucinda e assumiu a pequena mercearia de seu pai ali.

Assim quando Janet disse “Todos vocês” só podia ter significado Randy, Kevin, Brad e ele. Os piromaníacos[2] reformados que nunca poderiam lavar o sangue de uma garota de dezesseis anos de suas mãos.

Seu telefone soou de novo. Olhou a tela e viu sua hipótese confirmada. Era Randy. Respondeu com as palavras:

— Também te chamou Janet?

— Sim. Disse-te o que aconteceu? — perguntou Randy.

— Falou em um acidente.

— Foi atropelado por um caminhão, Dave.

— O que?

— Justo fora da loja. Tive a sensação de que o prognóstico não era bom.

— Sim, eu também a tive. — admitiu David, inclusive enquanto dizer as palavras fez um nó na garganta. — Assim, quando vem?

— Vou voar esta noite, um voo noturno. Mudo de avião em Detroit, e chegarei à cidade amanhã cedo. Kevin e Brad têm voos amanhã pela manhã, assim só vou alugar um carro e esperar no aeroporto, e conduziremos todos juntos a Port Lucinda.

— Alugarão um apartamento juntos ou…

— Meu pai ainda tem a casinha ali. — disse Randy. — Disse que podíamos usá-la. Há muito espaço para quatro de nós. E está só a vinte minutos do hospital.

Assentiu com a cabeça, recordando a “casinha” da que falava Randy. Era uma casa de dois andares situada sobre os escarpados, com vista à rochosa costa atlântica. Um lugar que tirava o fôlego. Os pais de Randy viveram em uma casa comum da cidade, e alugavam a casinha aos visitantes do verão para ganhar um dinheiro adicional. David nunca entendeu como alguém podia possuir uma casa como essa e não querer viver nela.

— Obrigado Randy. Na realidade eu adoraria ficar na casinha com vocês. Não posso pensar em um lugar melhor, de fato. Escuta, tenho que terminar o turno da noite, então pegarei algumas coisas e me porei em marcha. Dirigirei, são só umas poucas horas daqui. Devo estar ali às nove ou nove e meia de amanhã.

— Não vai dormir?

— Não acredito que pudesse embora quisesse, sem saber, entende? — David teve que tragar de novo, sua garganta seguia apertada.

— Sim. — respondeu Randy. — Escute, só tome cuidado. Não quero ter dois amigos que visitar no hospital amanhã, de acordo?

— Você também. Vejo você amanhã.

David finalizou a chamada e baixou a cabeça pensando em Mark e Janet. Tinham dois filhos gêmeos, ambos no último ano da escola secundária. E enquanto que Janet não foi a garota a que Mark desejou na noite em que foram tão idiotas, era o amor de sua vida. Infernos, nenhum dos meninos terminou com nenhuma das garotas com as que estavam saindo então. Brad conheceu sua esposa Cindy na universidade. Era uma enfermeira em práticas de quiroprática em Philly[3]. Kevin casou e se divorciou em três ocasiões, atualmente estava saindo com uma modelo magra até os ossos. Vivia em Nova Iorque e ganhava a vida dando assessoramento financeiro aos ricos e poderosos. Randy teve uma bem-sucedida carreira escrevendo canções de anúncios comerciais, embora o que realmente queria ser era estrela de rock. A seus trinta e oito anos não pode admitir que isso não fosse acontecer. Saiu do armário um ano depois de ter saído do reformatório. Vivia com seu companheiro, Albert, em São Francisco.

David nunca se casou. Converteu-se em bombeiro, e não necessitava um psiquiatra para dizer que era algum tipo de penitência auto imposta pelos enganos de seu passado. Possivelmente por isso ficou solteiro, também. Não sentia que merecesse apaixonar-se, casar, ter filhos, todas essas coisas que Sierra Terrence nunca teria a oportunidade de fazer. Assim se dedicou a trabalhar, com confusões de uma noite de vez em quando e, além de seus quatro melhores amigos, nunca deixava ninguém aproximar-se. E estava bem assim. Aceitou e estava bem.

Agora, entretanto, um deles se enfrentava a morte. E maldição, David sabia o que Mark devia estar sentindo agora. Não queria morrer sem ter arrumado o que fez, não queria encarar a seu julgamento com a morte de uma garota em um lado da balança.

David sabia. Porque ele sentia a mesma coisa cada vez que caminhava entrando em um edifício em chamas. Cada vez. Morrer não assustava. Mas o pensamento de ver de novo a Sierra -ou olhar em seus escuros e profundos olhos e ter que explicar por que a matou - aterrorizava-lhe.

O mantinha noites em branco.

Perseguia-lhe sobre tudo ultimamente. Esteve sonhando.

Durante só um instante, o sonho recorrente alagou sua mente, atirando dele as suas profundidades. Sierra, envolta em tecidos brancos, flutuava para ele, mais bela que nunca. E quando chegava a ela, dizia-lhe:

— Vou voltar, David. Vou voltar.

Saiu da fantasia com um gemido, como o fez durante as últimas cinco manhãs consecutivas.

Por quê? Deus, por que agora?

Talvez pelo Mark.

Pobre Mark. Se estiver morrendo e sabia, devia estar sofrendo os fogos de milhares de infernos agora mesmo. E não havia uma maldita coisa que David ou algum dos outros meninos fossem ser capazes de fazer para facilitar.  Só podiam saber que todos enfrentariam exatamente ao mesmo, ao final.

 

David conduziu o Jipe Wrangler pelo grande pôster de madeira de “Bem-vindos a Port Lucinda, O Povoado Onde O Tempo Se Mantém Quieto”, e sacudiu a cabeça ante quão apropriado era o nome. Demônios, ele nunca se precaveu quão preso no tempo estava seu povoado de origem, até que cresceu e tinha começado a viajar.

As fachadas das lojas não mudaram. Os toldos pintados em verde e branco, os letreiros passados de moda, o fato de que a farmácia ainda servisse sodas de fornecedor e cervejas de raiz. Muitos dos edifícios se expandiram para trás em vez de pelos lados, não querendo arruinar a pitoresca imagem das fachadas. Demônio, o salão, que hoje oferecia massagens a pedra quente, manicures, pedicures, tratamentos faciais e tudo relacionado com o cabelo, ainda tinha um antigo poste de barbeiro colocado na porta da frente. Durante a temporada de turistas, um quarteto de locais bigodudos aparecia para cantar em harmonia junto ao dito poste a cada sexta-feira, sábado e domingo pela tarde.

Não tão em fevereiro.

Passou pela mercearia Potter´s. O pai de Mark a passou para ele, justo como seu avô passou a seu pai, e estava bastante seguro que seu avô a obteve de parte de sua própria família. Foi Potter´s desde que todos podiam recordar. Mas os meninos de Mark ainda não estavam sequer fora da escola. Deus, não era o momento para que eles se fizessem cargo.

Em uns poucos minutos, David estava conduzindo fora da cidade e passando pelo último lugar que oficialmente pertencia a esta.

A velha casa Muller. É óbvio agora se chamava Casa Sierra, em honra a garota que morreu ali faz tanto tempo atrás. Servia como centro comunitário, a maior parte. Um lugar que tinha baile, shows de talento, mostrava tudo, desde bandas locais até vendas de confeitaria. Mas era também um meio para adolescentes problemáticos. Duas vezes ao mês, havia conselheiros de crise em serviço ali. Meninos com problemas podiam vir e falar confidencialmente, e seriam guiados para os recursos que necessitassem. Seriam escutados e ajudados.

O fogo não queimou o velho lugar Muller até os alicerces. Só o queimou pelo interior, e incentivou aos cidadãos a deixar de brigar por isso e ver que valia a pena salvá-lo. A restauração começou nessa mesma primavera.

David deteve o Jipe a borda nevada do caminho e ficou sentado ali por um momento. Agora havia uma cerca com estacas circundando a casa. Esta não estava antes. A calçada estava curvada e gretada, recordava tropeçar nela ao tempo que corriam das chamas florescentes essa noite. De fato, era quase impossível para ele olhar ao lugar, tudo recentemente pintado com novas persianas e cortinas nas janelas e ver qualquer outra coisa que a decrescente e desconcertante ameaça que foi naquele tempo. Odiava a Casa Muller. Odiava as pessoas por não atirá-la abaixo para começar.

Odiava-se a si mesmo por culpar a casa, ou as pessoas, ou a qualquer um pelo que ocorreu. Não era a culpa de ninguém, senão dele.

Deus, quase podia ver o rosto dela na janela do piso de cima, olhando-o, chamas saltando a seu redor ao tempo que gritava e golpeava no cristal da janela.

Não o viu então, nem antes, nem agora. Não era uma lembrança, era sua mente torturando-o. E não podia deixar de pensar na vida que tomou.

Ou na mulher em que ela se converteu.

Estando de novo com essa mulher a outra noite, em sonhos tão vívidos que o deixaram tremendo e mais exausto que antes que dormisse. Sierra. Um pouco mais velha um pouco mais formosa. Sierra. Deus, como o encantou.

Sacudiu-se, afastando a atenção da garota cuja alma parecia viver dentro da sua e pôs o Jipe em funcionamento, olhando pelo espelho. E logo se congelou devido a que por um breve instante, viu-a no espelho retrovisor, Sierra Terrence, parada no extremo oposto da rua, apenas detrás de onde estacionou, e olhando a casa do mesmo modo em que ele o estava fazendo. Foi uma olhada, nada mais. Estava parada ali com jeans desbotados, envolta em uma enorme e pesada parka, mas o capuz estava baixo e o comprido cabelo escuro movendo-se com o vento de inverno.

Ali, e depois já não.

Ele girou o Jipe em Park e se girou no assento para olhar novamente. Mas não havia ninguém. Ofegou um par de vezes com a boca aberta, examinando as calçadas de um lado da rua e outro. Procurando-a. Porque aquilo não foi sua mente, ou sua imaginação. Possivelmente o parecido tenha sido, mas alguém estava ali.

Ou também, tinha alucinações.

Maldição, levava sem dormir quase vinte horas. Provavelmente, só tivesse sido isso. Mas estava seguro como o inferno que parecia real. Bastante real já que seu coração ainda estava acelerado. Sierra. Deus, alguma vez a esqueceria?

Assim continuou conduzindo, caminho acima, sobre a rua ventosa que conduzia aos Altos, o que os locais chamaram extra oficialmente a porção de praia de Port Lucinda. Não era criativo, mas certamente acertado.

Ao tempo que o chalé do pai de Randy aparecia a vista, divisou um SUV verde no largo caminho de entrada e soube que seus amigos já tinham chegado. Momento depois estava estacionando junto a este.

Randy, Kevin e Brad saíram da porta principal antes inclusive de que saísse do Jipe, e estavam rodeando-o, aplaudindo-o nos ombros, estreitando sua mão. Brad ganhou peso e perdeu cabelo. Kevin ainda se via como um modelo masculino. E Randy, quem logo que trocou, abraçou-o fortemente. David não tinha vergonha em devolver o abraço. Estes eram mais que amigos para ele. Mais que irmãos, inclusive.

— Minha mochila está na parte de atrás. — começou.

— Por que não a deixa por agora? — disse Randy.

David franziu o cenho, e Kevin acrescentou:

— Acabamos de receber uma chamada da Janet. Disse que deveríamos nos apressar.

— Aw, inferno. Está ele…?

— Não o disse. Só disse que estava perguntando por nós. Para que cheguemos ali, rápido. Assim vamos.

— Está bem. Vamos.

Como um, subiram ao SUV e se amontoaram.

 

— Oh, graças a Deus, graças a Deus que estão todos aqui. — Janet se levantou da cadeira junto à cama de seu marido e encontrou aos quatro homens no meio do caminho através do quarto de hospital. David queria olhá-la, reconhecê-la, mas por sua vida, que não podia afastar os olhos do Mark. Devido a que não se via absolutamente como Mark.

O rosto estava vermelho, inchado, machucado até o inferno ida e volta. A cabeça estava envolta em bandagens que iam desde debaixo do queixo e circundavam o crânio completo como uma toga de monja. A perna esquerda estava engessada até a virilha, e suspensa por cima da cama. Havia intravenosas entrando em um braço, um tubo de oxigênio aderido ao nariz e outros cabos eletrônicos a seu peito e cabeça.

Janet abraçou a cada um, finalmente era sua vez. Retornou o abraço e ao tempo que ela retrocedia, olhou-a e pensou que envelheceu dez anos desde que se viram o último verão - o Dia da Independência - quanto tempo passou? Sete meses? Ninguém envelhece dez anos em sete meses. Suspeitava que a preocupação e o estresse que via nela agora ocorreram nas últimas quarenta e oito horas.

Cavou sua bochecha.

— O que podemos fazer por você, Janet? O que necessita?

Ela sacudiu a cabeça.

— Vieram. Isso é tudo o que ele queria, no que insistiu. Possivelmente se relaxe um pouco agora que estão aqui.

— Como vai, Janet? — perguntou Randy. — Realmente.

Ela encontrou os olhos de Randy, logo só negou com a cabeça, muito ligeiramente. Como se dissesse que não esperavam que Mark vivesse. E David soube que não queria dizê-lo em voz alta, não no mesmo quarto que ele.

— Está dormido? — perguntou David.

— Não sei. — sussurrou ela. — Os olhos estão muito inchados para que possa abrir. Vamos.

Ela agarrou seu braço e o aproximou da cama. Detrás dele, ouviu abrir-se de novo a porta, ouviu uma enfermeira insistir que só dois visitantes estavam permitidos ao mesmo tempo e ouviu o Brad dizendo que necessitaria mais ajuda se queria tirá-los a algum deles. Logo Randy disse:

—Não ficaremos muito, prometo.

Houve um suspiro, logo a porta se fechou. A enfermeira se retirou. Logo Kevin se deteve a seu lado, Randy e Brad no lado oposto da cama, todos eles olhando fixamente para o Mark.

— Que inferno ocorreu? — perguntou Brad. — Randy disse que foi investido por um caminhão?

A voz de Janet foi tão sem vida, que foi quase monótona.

— O condutor diz que ele só saiu de nenhuma parte, justo em seu caminho. Todos estiveram perguntando por que, mas ele não podia falar com ninguém salvo com vocês quatro.

— Não deixe que isso te fira, carinho. — disse Randy, enviando a Janet um olhar profundo. — Realmente nos unimos no centro de detenção. Aquilo era o inferno, sabe. Necessitávamo-nos mutuamente.

— Sei. — disse ela. — Sei tudo o que passaram juntos. E sei que nunca o superou. Só estou tão contente de que tenham vindo. — inclinando-se sobre a cama, cavando o rosto de seu marido, disse: — Ei, bebê. Os rapazes estão aqui, justo como pediu. Pode me ouvir? Dave, Brad, Kevin e Randy. Todos estão aqui. Vieram tão rápido como puderam.

A cabeça se moveu muito ligeiramente. A boca parecia esticar-se, logo os lábios se separaram e falou com esforço.

— Rapazes?

— Aqui mesmo, Mark. — disse David brandamente, e pousou uma mão sobre uma das de Mark, assim podia senti-lo ali. Só então se precaveu que os olhos do Mark realmente estavam abertos, meras fendas entre as inchadas pálpebras.

Mark assentiu muito ligeiramente, e girou o olhar a Janet.

— Necessito que… Espere…

— Quer privacidade. Entendo. — havia dor em seu tom, mas não argumentou. Inclinou-se e beijou uma parte exposta de seu rosto, logo se apressou a retirar-se do quarto, fechando a porta.

— Está bem, estamos sozinhos amigos. — disse Brad. — O que está acontecendo?

— Sierra.

David e Brad se olharam, e David disse:

— O que há com Sierra?

— Vi-a.

David sentiu um frio gelado direto até a medula. Quase se estremeceu.

Randy franziu o cenho a Mark.

— Quer dizer algo assim como que cruzou por alguns segundos, quando aconteceu tudo isto? Viu-a no outro lado.

— Não. Aqui. Ela está aqui. Veio por nós.

As sobrancelhas de Kevin se elevaram e realmente se afastou um passo da cama.

— Mark, vamos…

— Voltou… Por vingança.

Os outros três estavam inclinando mais e mais perto para escutá-lo melhor, mas agora Brad se endireitou com um grunhido.

— Provavelmente sonhou com ela enquanto estava inconsciente, Mark. Isso é tudo. Está bastante ferido, sabe.

— Isso sabe. — disse Mark. — Mas não é… Um sonho. Vi-a… Antes… Do acidente. Esperando por mim… Fora da loja. Parada ali na neve, esperando. Ela veio… Por minha alma… E a obteve, moços. Obteve-a.

Brad dirigiu a David um rápido olhar, logo disse:

— Espera, espera, Está-me dizendo que este delírio começou antes que fosse golpeado pelo caminhão?

— Não é um delírio! — ele tentou sentar-se na cama, mas caiu para trás. O monótono som das máquina incrementou sua frequência. Uma enfermeira entrou no quarto, alarmada.

— Ela veio… Por mim… Como também pôde me haver… Empurrado em frente desse caminhão. — suas sobrancelhas se uniram. — Possivelmente… Possivelmente sim me empurrou. Sem realmente me tocar. Porque não está… Viva. É um fantasma… Ou algo.

— Está muito agitado, senhores. — disse a enfermeira. — Realmente têm que ir-se. - abriu caminho entre eles para o lado da cama. — Realmente…

— Não! — gritou Mark.

— Vamos. — disse isto Brad. - É ridículo, Mark. Está ferido, sua cabeça está cheia de confusão. Sierra está morta. Cometemos um terrível engano, mas dissemos a verdade, e cumprimos o tempo. — a enfermeira se viu ligeiramente alarmada ante isso. — Se acabou. — insistiu.

— Realmente, senhores, têm que ir. - a enfermeira os estava movendo com seu corpo afastando da cama agora.

E então a mão de Mark saiu disparada repentinamente, e se fechou ao redor da de David com um surpreendente agarre.

— Mantive-me vivo… Todo este tempo… Assim poderia advertir… Maldição, me escutem. Ela tornou. Já teve… Sua vingança em mim… Mas estou dizendo… Que são os seguintes. — sua voz repentinamente foi ficando mais alta, uma explosão final de força deu mais poder. — Ela retornou! A garota que matamos retornou… E não descansará até que estejamos todos mortos igual a ela.

E logo sua mão se voltou flácida, e a cabeça se afundou fortemente nos travesseiros.

— Acredito que desmaiou. — disse David, inclinando-se mais perto em alarme.

— Acredito que pode ser um pouco mais que isso. — disse a enfermeira. — Saia.  Fiquem com a esposa até que chame por vocês. — logo pressionou um botão na parede. — Necessito ao Dr. Pollock, imediatamente.

Brad já se estava dirigindo a porta, e os outros o seguiram, justo quase passando antes que três indivíduos com bata branca viessem correndo pelo corredor e os empurrassem para entrar.

— Cara, Mark está fazendo uma confusão danada? — perguntou Brad.

David assentiu sabendo que Brad necessitava alguma classe de confiança, porque as palavras de Mark haviam provavelmente enviado o mesmo frio gelado subindo e descendo por sua coluna como aconteceu a David. E com seu físico, e na forma em que ficava sem fôlego ao cruzar uma sala, David não acreditava que Brad pudesse fazer frente a muitos choques.

Assim não disse nenhuma palavra a respeito do que acreditou ver para fora daquela maldita casa essa mesma manhã.

— Tem uma lesão na cabeça, amigo. Isso é tudo.

Brad parecia aliviado, logo Janet esteve ali, tomando-o do braço.

— Querem que permaneça fora do quarto enquanto o examina. — disse. — O que ocorreu ali dentro?

Brad baixou a cabeça, como fizeram Randy e Kevin quando ela olhou a cada um por turnos. Mas quando os olhos encontraram os de David, ele disse:

— Por que não encontramos um lugar para nos sentar e falar? Vê-te como se necessitasse algo para comer. Há alguma cafeteria ou…?

Janet dirigiu um olhar de saudade à porta fechada de Mark, mas assentiu.

— Está justo descendo pelo corredor.

David ficou em movimento igual a ela, e outros os seguiram. Não se sentia capaz de comer nem um bocado, mas uma vez na cafeteria agarrou um prato e procedeu a enchê-lo de todas as maneiras, esperando que Janet tentasse comer se o resto deles o faziam.

Deu pouca atenção ao que recolheu no prato. Havia frutas frescas, ovos mexidos, uma pilha de tortinhas e pilhas de toucinho e salsicha. Um bufê típico de café da manhã. Observava a Janet, ao tempo que punha uma minúscula quantidade de fruta e massa em seu prato, logo a levou a uma mesa.

Sentou-se junto a ele, e os outros três homens se uniram a eles. Kevin teve que trazer uma cadeira de outra mesa.

David esperou até que ela tivesse tomado um par de bocados, forçando-se a fazer o mesmo, logo finalmente tomou fôlego e a olhou aos olhos.

— Sabe o que Mark pensa, Janet?

— Não. Mas sei que tem algo que ver com Sierra Terrence. — olhou a cada um. — Estou certa, não?

Assentiram, quase ao mesmo tempo.

— Esteve murmurando seu nome em sonhos. Especialmente logo depois do acidente, quando estava inconsciente. E quando despertou, parecia assustado até a morte e continuava perguntando por vocês, moços, só por vocês. Por ninguém mais.

David assentiu.

— Disse que a viu, ou seu fantasma, ou algo. É o que fez correr para a rua assim. Acreditava que ela estava atrás dele. Acredita que voltou para obter vingança sobre nós, suponho.

— Deu-se um golpe na cabeça. — disse Randy, e elevou a mão através da mesa para cobrir a dela. — Isso é tudo o que acontece. Está ferido e não sabe o que é real e o que é parte de um sonho ou uma alucinação ou o que quer que seja isto. Isso é tudo.

Janet encontrou seu olhar.

— Não acredito. Olhem, não quero assustá-lo, rapazes. Mas conheço meu marido. E acredito que viu algo.

— Não, Janet, não. Ele não recorda o que ocorreu. — disse Kevin. — Não o faz. Tudo isto é alguma classe de delírio.

Ela negou com a cabeça firmemente.

— Ele viu algo. Nunca o vi tão aterrorizado. E se aterrorizou antes que o caminhão o atropelasse. Algo o assustou o suficiente para fazê-lo correr nesse caminho. — olhou diretamente a David logo. — Quero saber o que.

David assentiu.

— Ocuparei-me disso, Janet.

— O fará? — via-se esperançada e surpreendida.

— Sabe o próximo que todos nós somos. Não vou deixar que isto só se esqueça. Ele precisa saber que não é real, e não aceitará nada menos que alguma prova. Assim, sim, tenha por seguro que me ocuparei disso. Todos nós o faremos.

Ela fechou os olhos, liberou fôlego de uma vez, e baixou a cabeça.

— Obrigado, David. — murmurou. — Obrigado a todos.

— Senhora Potter?

Todos se voltaram para ver o doutor, que entrou no quarto de Mark antes, aproximando-se a sua mesa. Levantaram todos e o medo que apareceu nos olhos de Janet rasgou os intestinos de David.

— Está bem. — disse Janet ao tempo que o Dr. Pollock olhava aos homens que a rodeavam. — São família. Pode falar na frente deles.

O doutor assentiu.

— Senhora Potter, seu marido está em coma.

Ela vacilou, os joelhos mal a sustentavam, e David rapidamente a agarrou pelos ombros e a acomodou novamente na cadeira.

— Ele tem… Tem morte cerebral? — murmurou ela.

— Não. Mas não temos forma de predizer quando ou… Ou se sairá disto. Teremos que esperar e ver.

— Oh, Deus isto não está ocorrendo. — murmurou. As lágrimas alagaram seus olhos e logo se derramaram por suas bochechas.

— Quero que sigam falando com ele, visitando, sigam respirando.

— Ainda pode nos escutar? — perguntou David.

— Essa é a ideia predominante, sim. E poderia ajudar. — posou uma mão no ombro de Janet. — O sinto. Desejaria que as notícias fossem melhores. — com um apertão final, deixou a cantina.

— Ele esperou por vocês. — disse Janet. — Era tão importante para ele que as arrumou para deter o suficiente um coma, para falar com vocês.

— Queria nos advertir que Sierra ia depois atrás de nós. — disse David, assentindo. — E sei que é uma loucura, mas para ele é real.

— Sim, e uma vez que descubramos o que viu realmente, — disse Randy. — e o digamos, realmente o convençamos que tudo está bem, sairá disto. Sei que o fará, Janet.

— Deus. — murmurou ela. — Deus, isso espero.

 

David terminou por recolher sua bolsa do Jipe muito mais tarde essa noite. Quando saíram do hospital, os quatro homens conduziram até o Potter’s Grocery, a loja de Mark, estacionaram o SUV em frente e olharam tristemente a placa de “Fechado até novo aviso” que estava pego na porta principal.

— Olhem, vamos falar com as pessoas, a ver se alguém viu algo que possa nos dar uma ideia do que realmente aconteceu ontem. — disse Randy.

Brad sacudiu a cabeça.

— Não acredita que a polícia o haverá feito já?

— Talvez devessem falar com eles, então. — apostilou Kevin.

David assentiu.

— Faremos tudo isso. Brad e Kevin ficarão aqui e falarão com qualquer um que esteja disposto. Randy pode me levar à delegacia de polícia. Há outra loja de comestíveis de caminho, assim pode comprar mantimentos para a casinha enquanto falo com a polícia. De acordo?

— Eu não gosto da ideia de nos dividir. — disse Brad.

— Por que não? — David estava desconcertado, mas logo se deu conta de que a testa de Brad parecia úmida. — Brad, não há ninguém atrás de nós, se for o que o preocupa.

— Como pode estar tão seguro? — perguntou Brad, jogando nervosos olhares acima e abaixo da rua. Havia pouca gente fora, local, entrando e saindo de várias lojas ao longo da Main Street. — Quero dizer, não um fantasma, seguro. Mas, o que tem que outra pessoa? Algum parente dela que vem em busca de vingança?

— Depois de vinte e dois anos? — perguntou David. — Vamos, Brad.

— É tão desatinado? Ouviu a Janet. Ele viu algo.

— Sim. Talvez alguém que se parecia com Sierra. E ele enlouqueceu. Talvez ele tenha remoído isso mais que o resto de nós, por alguma razão. Talvez sua mente não estivesse o suficientemente forte para fazer frente, e ver uma garota com algo parecido a ela era tudo o que necessitou para romper-se. Talvez, milhares de outras coisas, Brad, mas não é alguém nos buscando depois de todo este tempo. Não o é.

Brad manteve o olhar e sacudiu a cabeça.

— Por que poderia incomodar mais que ao resto de nós? Mais que a ti, em particular? Não poderia ter sido pior para nenhum de nós do que foi para ti. Deus estava apaixonado por ela.

— Tinha dezesseis anos.

— Ainda o está.

David teve que baixar o olhar.

— Como disse talvez sua mente não fosse capaz de dirigi-lo. Todo mundo é diferente. A saúde mental é… É espinhosa.

— Está sendo um perito e tudo. — disse Brad. Mas abriu a porta e saiu do SUV, sua barriga de cerveja primeiro. — Bem, Kev e eu iremos pelos arredores fazendo perguntas e rogando a Deus para que ela não nos encontre. Não demore, tá?

David assentiu com a cabeça e lançou um olhar a Kevin, pedindo em silêncio que mantivesse um olho sobre Brad. O rapaz se cambaleava a borda do pânico. Kevin reconheceu a mensagem tácita com uma ligeira inclinação da cabeça, e também saiu.

Randy pôs em marcha o carro de aluguel e saiu. E então se girou a David e disse:

— Então, o que pensa realmente?

— Justo o que disse. Acredito que provavelmente uma garota da cidade se parece um montão a Sierra. Acredito que Mark a viu, e algo se quebrou dentro de sua mente. E isso é tudo o que penso.

— Só perguntava.

David suspirou. Então olhou de esguelha a Randy.

— Isto é só entre nós, de acordo?

Franzindo o cenho, Randy assentiu.

— De acordo.

— Quando cheguei a cidade esta manhã, detive-me frente à casa.

—A casa Muller?

Assentiu.

— A casa Sierra agora.

— Sim, vi-o. É algo agradável o que fizeram por ela, verdade?

— Agradável, sim. — disse David. — De todos os modos, detive-me, só me sentei contemplando-a. Recordando, sabe?

— Sei.

— E quando ia, ou estava a ponto, vi essa garota em meu retrovisor. Só durante um segundo.

Randy se manteve em um silêncio morto, esperando.

David suspirou.

—Durante um instante, poderia ter jurado que estava olhando a Sierra. Não alguém parecido, a não ser ela. Sabe? Sentia-se como ela. Mas quando me girei, foi-se.

Atreveu-se a jogar uma olhada a Randy, quem estava conduzindo com os olhos muito abertos, sem pestanejar.

— Acredita que imaginei? Tudo isto, quero dizer? Foi antes que soubesse que Mark acreditou vê-la. Assim não foi instigado por isso. Mas suponho que acabava de voltar aqui, sendo este o lugar onde tudo aconteceu, o que poderia ter provocado algo. E estava funcionando vazio. Sem dormir e tudo isso. E preocupado pelo Mark, Jan e os meninos.

— Mas…?

Deu de ombros.

— Estive sonhando com ela. — enviou a Randy um olhar sério. — Não vou repetir, de acordo? Mas nos sonhos, ela diz que vai voltar.

— Merda sagrada, Dave. Acredita que o que viu, o que Mark viu, era real?

— Não sei. Não me parecia uma alucinação ou uma lembrança. Sentia-se como se tivesse visto a jovem mulher real e de carne e osso na calçada de frente do lugar Muller. Olhando-a como o fazia eu. Assim é como o senti.

—Mas quando te girou se foi.

—Correto.

—Como se, puf, desapareceu, de um modo que não poderia acontecer? Ou como se pudesse ter escondido em uma esquina ou algo assim?

David franziu mais em cenho.

— Vamos averigua-lo.

— Huh?

— Vamos fazer uma breve parada ali, amigo. Há neve no chão. Talvez deixasse um rastro ou dois.

— Agora volta a ser você. — Randy girou o carro e conduziu na direção contrária, tomando o desvio na Maple.

O único edifício cruzando a rua da casa era uma igreja, e hoje não era domingo, assim não havia ninguém ao redor. A calçada estava cheia de neve, e não havia rastros na neve ao lado da mesma.

— Suponho que não se separou da calçada. — disse David em voz baixa.

— Ou isso, ou ela não deixa rastros. — respondeu Randy.

David suspirou.

— Vamos à delegacia de polícia.

Houve tormenta essa noite. O vento uivava em torno dos beirais da casinha e a neve caía de lado durante a noite, tocando nas janelas como um milhão de pequenas unhas. O oceano golpeava contra a costa rochosa debaixo, espumando como se estivesse enfurecida.

O inferno, talvez fosse assim.

— Assim, ninguém viu nada antes do acidente do Mark? — perguntou David.

Kevin sacudiu a cabeça.

— Não. Falamos com um par de dúzias de pessoas, inclusive encontramos alguns que estavam bastante perto dele antes de perdê-lo, mas ninguém viu nenhuma garota de cabelo escuro espreitando ao redor.

— Talvez não pudesse vê-la. — disse Brad em voz baixa.

E então esmagou a lata de cerveja com a mão, deixando cair sobre a mesa e indo a geladeira por outra.

Randy agarrou a lata desprezada e a levou ao cesto de papéis de reciclagem.

— Não deveria beber tanto, Brad.

— Não? O que deveria fazer? Um exorcismo?

— Só estou dizendo que comeu frango, batatas fritas e bolo de queijo no jantar, e esteve tomando cerveja e batatas chips toda a noite. Um homem de seu tamanho…

— Assim é como cheguei a ter meu tamanho, pee-wee[4].

— Não precisa ser desagradável. — disse Randy, parecendo doído.

Kevin se sentou parecendo incômodo, assim David tentou trocar de tema.

— A polícia está tão desconcertada como nós. Assim não foram de ajuda, exceto para dizer que o condutor não teve culpa. As testemunhas que o viram passar, disseram que Mark correu pela rua como se fosse açoitado, direto a trajetória de um caminhão de partilha. Mas nenhuma pessoa viu ninguém nem nada perto dele.

— Essaaaaaaaa. — Brad tomou um gole de cerveja que provavelmente drenou a metade dela enquanto cruzava a cozinha afastando as cortinas. Ficou aí, olhando a tormenta durante um momento. E então a lata caiu de sua mão, derramando a cerveja que ficava no chão.

— Ei, Brad, tome cuidado, certo? — Randy agarrou um trapo que estava pendurado perto da pia da cozinha e correu para ele.

David se levantou lentamente.

— Brad?

— Sabe que meu pai é realmente meticuloso com este lugar. — disse Randy, ajoelhando-se perto de Brad e limpando a cerveja. — Me disse que nós…

Para então, David estava cruzando a cozinha e colocando uma mão no ombro de Brad.

—Brad, ei, o que te passa?

Brad se voltou lentamente. Sua boca estava entreaberta, corria espuma e saliva de uma comissura, até o queixo. Com os olhos abertos, estava tão branco como a neve de fora.

— Brad! Demônios, que alguém chame o 911! Acredito que está tendo um ataque do coração. Brad, me fale, homem.

Mas Brad não disse uma palavra. David tentou agarrá-lo, pensando em manobrar com ele até o sofá ou algo, mas o homem era simplesmente muito grande. Seus joelhos golpearam o chão, então se inclinou para diante e não se moveu.

Outros se reuniram ao redor dele, Kevin já com o telefone, dando o endereço, Randy ajoelhado junto a Brad no chão, afrouxando a roupa e buscando o pulso.

— Ainda respira. — disse, levantando o olhar. — Seu coração pulsa forte.

David olhou fora da janela, seguro de que Brad devia ter visto algo que o assustasse como o inferno, e já sabendo, no fundo de suas vísceras, o que esse algo devia ter sido.

E tinha razão.

Ela estava ali, nos escarpados, olhando a água sacudida pela tormenta. Oh, não podia ver sua face claramente, dada a escuridão e a neve. Mas seu cabelo escuro flutuava no vento, e se rodeava com os braços como se estivesse congelando-se.

— Acabou. Tive suficiente desta merda. — David se girou, dirigindo-se a porta.

— Dave, onde…?

— Cuidem dele, rapazes. Randy, sabe fazer um RCP[5] tão bem como eu. Se seu coração se detiver, faz-o. Enquanto isso eleve os pés, o mantenham quente e assegure que segue respirando e com pulso. Os paramédicos estarão aqui em um minuto, têm o centro só a oitocentos metros de distância.

— Mas, aonde vai?

— Vou tratar com nosso fantasma.

Agarrou sua jaqueta Carhartt do gancho próximo a porta e foi pondo enquanto irrompia no exterior.

O vento frio golpeou sua face, enviando um calafrio pelas costas enquanto caminhava rodeando a esquina da casa, sobre a terra gelada, para os escarpados. Forçando os olhos, protegendo-se da neve com uma mão, viu-a ali de pé. Quase ao mesmo tempo, ouviu as sirenes na distância, a ambulância vinda pelo Brad. Por uma vez, estava agradecido por sua velocidade e molesto porque o som a fez girar em sua direção. Já que no momento em que o viu, ela correu.

Sua trajetória era descendente, afastando-se dele enquanto se dirigia a estrada. Ele trocou rapidamente de direção e começou a correr na mesma direção, esperando alcançá-la antes que chegasse a seu carro, ou pau de vassoura, ou o que infernos fosse o modo de transporte que usava para chegar aqui.

Lançou-se, e a neve não era o suficientemente profunda para impedir muito. Baforadas de ar úmido saíam do nariz e a boca. As luzes intermitentes da ambulância se aproximaram, e enquanto se aproximavam do caminho de entrada, iluminaram ao veículo estacionado ao lado da estrada. Tinha que ser dela.

Ele sentiu um grande alívio, a ideia passou rapidamente por sua mente que se ela conduzia um carro, não podia ser um espírito sem corpo. Esquecendo essa ideia ridícula, dirigiu-se ao carro.

E quando o alcançou, olhou ao redor, não vendo nada. Alguém aproximou da estrada ou não era o carro dela, depois de tudo. Apoiou as mãos sobre seus joelhos, dando um minuto para agarrar fôlego e olhando para a cabana onde a ambulância estava estacionada e seus assistentes, presumivelmente já no interior atendendo Brad. Seria melhor que ele estivesse bem.

Um som captou sua atenção, e se girou na direção da que vinha, olhando através da escuridão como uns passos, rangendo rapidamente através da neve, aproximavam-se.

E mais perto.

E então ela surgiu dos ramos pendentes de um abeto coberto de neve, olhou para cima diretamente a seus olhos, e se deteve em seco. Não era um fantasma. Baforadas de vapor emanavam de seus lábios entre abertos.

Ela se endireitou, o cabelo negro azeviche e os grandes olhos de um profundo marrom, e sua pele que era acobreada, como foi a de sua mãe. Era formosa, e não mudou absolutamente, como podia ver. Em vinte e dois anos, envelheceu o suficiente para parecer mais adulta que adolescente. Era a única garota que sempre amou. E de algum jeito, amou-a mais depois de sua morte do que havia feito antes.

Ou possivelmente era obsessão.

Ela estava morta e, entretanto, estava ali olhando para ele.

Sierra Terrence.

 

Alguns Dias Antes.

Denton. New Hampshire.

Seus olhos ardiam. Seus pulmões ardiam. Sua pele estava começando a arder. Ela lutou por respirar, mas só aspirou fumaça abrasadora nos pulmões. Já não podia ver, e os olhos ardiam como se tivessem sido orvalhados com ácido de bateria. Os esfregava firmemente enquanto se cambaleava do dormitório ao corredor, a provas, apalpando com as mãos e movendo-se para diante mesmo que tudo o que tocava estivesse quente, e mais quente. Sua única esperança era encontrar a escada. Um caminho para baixo. Uma saída.

Deveria ter ido pela janela. Deveria voltar para o quarto, retornar até a janela. Os meninos ainda poderiam estar aí. Possivelmente…

Deixou-se cair de joelhos, repentinamente incapaz de mover um passo mais. Deve ser pela fumaça, compreendeu, inclusive enquanto sua consciência se deslizava para a escuridão e voltava de novo, até que foi impossível dizer que era o que sem a vantagem da vista. Era um passo na fumaça. Era um passo no esquecimento. A gente era quão mesmo o outro.

Moveu os lábios, porque os braços e as pernas já não cooperavam. Pensou que poderia arrumar possivelmente, gritar por ajuda, e o fez tão forte como pôde com uma voz cada vez mais rouca. O som era tão forte, tão real e tão alheio os seus próprios ouvidos que despertou sobressaltada.

Elevando a cabeça e piscando para enfocar a habitação, Sara Jensen viu dois conjuntos de olhos fixos nela. Seus companheiros de quarto pareciam mais que preocupados. Estavam assustados.

Nikki estava mais perto, aproximando-se com o cenho franzido, apalpando o pulso.

— Estou bem. — disse Sara e tentou liberar o braço.

— Sim, e eu sou uma enfermeira. Assim te cale.

— Foi só um mau sonho.

— Estava gritando, Sara. — Nikki deixou cair seu pulso e tocou sua testa. Logo, pegaria sua bolsa. — Sem mencionar, que está empapada de suor, todo o corpo treme e seu coração está funcionando aproximadamente ao dobro.

— É a quinta vez esta semana, Nikki. — disse Cami. — Estava muito preocupada com ela.

— Quinta vez? — agora Nikki se via realmente preocupada. Ela inclinou a cabeça, estudando Sara de maneira tão intensa que a fez querer retorcer-se.

— Por que nenhuma de vocês me disse isso? Quero dizer, que só me mudei ontem, mas mesmo assim…

— Estava esperando que passasse. — disse Cami. — E… Não queria que trocasse de opinião sobre aceitar a troca de quarto.

— Acredita que sou tão dura de coração?

Cami deu de ombros.

— E você, Sara? Por que não disse algo?

Sara negou com a cabeça.

— Eu não gosto de falar disso. É meu problema, eu me ocupo dele.

Nikki suspirou.

— É provavelmente induzido pelo estresse. O estresse fará estragos em todo seu corpo, sabe. E tudo isso sem falar a respeito de sua tendência a deixá-lo simplesmente crescer.

Sara assentiu como se estivesse totalmente de acordo, mas realmente não acreditava. Não havia nenhuma quantidade incomum de estresse em sua vida. Estava ensinando arte a estudantes de primário e amava seu trabalho. Estava pintando, e inclusive se as imagens eram inquietantes, eram boas. E mesmo assim, sentia-se apreensiva, nervosa, como se algo estivesse mau, mas era algo muito difícil de ver ou entender.

— Então, do que tratava o sonho? — perguntou Nikki. — É o mesmo cada vez?

Apesar de que Sara começou a assentir, Cami saltou:

— Está apanhada em um incêndio, incapaz de respirar, ver ou encontrar uma saída.

Nikki franziu o cenho.

— E isso é tudo?

— Isso é tudo. — disse Cami. — Exceto esta vez, ela gritou um nome, em vez de só um… Bom grito.

Sara olhou a Cami, lambendo os lábios.

— Gritei um nome?

Cami assentiu.

— David. — e olhou a face de Sara. — Significa o nome algo para você?

Um arrepio a atravessou, mas tratou de ignorá-lo.

— Diabo. Provavelmente conheço uma dúzia de Davids. Entretanto, a nenhum deles o bastante bem para gritar seus nomes enquanto durmo.

— Então, me diga mais. — disse Nikki. — Em que lugar está? Que vê ou ouve…?

— Espera, espera, pode vê-lo por ti mesma. — Cami ricocheteou na cama e cruzou o dormitório de Sara para onde estavam suas pinturas, cobertas por lençóis brancos. Uma delas estava em um tripé e outras encostadas na parede.

Sara suspirou e afastou os cabelos escuros do rosto. Estava com dor de cabeça.

Um por um e com muito cuidado, a pequena ruiva tirou os lençóis dos tecidos, mostrando as pinturas. Uma delas era de uma casa velha e grande que parecia a ponto de cair. Havia balcões arredondados se sobressaindo de várias habitações do segundo piso, e um arredondado alpendre dianteiro que fazia jogo. Havia uma espécie de torre, com um pico em forma de cone na parte superior.

As demais da série eram o mesmo, mas cada uma mostrava a casa durante uma temporada diferente. A gigantesca borda do jardim dianteiro ia desde casulos vermelhos e folhas diminutas, passando por folhas de folhagem exuberante, até a transformação escarlate e laranja do outono.

— E agora a nova. É a pior. — disse Cami. Sara lançou um olhar e retornou um sorriso tímido. — Quero dizer, a mais horripilante e horripilante. São boas, são todas boas. Só horríveis, entende-me?

— Estou contente de que não seja uma crítica de arte, Cami. Não acredito que “Bom, mas horrível” me ajude a vender nada.

— Oh, Sara, sabe que amo seu trabalho.

Nikki estava olhando o último tecido como se hipnotizada. A mais recente pintura mostrava a casa em chamas, e uma face imprecisa em uma janela de cima. Havia sombras sobre o chão coberto de neve do exterior, como se houvesse gente ali de pé, observando o lugar queimar-se.

— E, enfermeira Nikki... — disse Sara, tentando fingir um tom informal, apesar de que estava longe de sentir-se bem. — Acredita que vai chegar a um diagnóstico se olha o suficiente essa coisa?

— É a antiga Casa Muller. — disse ela.

Sara sentiu que o corpo estremecia em uma reação involuntária. A ondulação da mesma correu para a coluna vertebral ante as palavras, mas não sabia por que.

— Não é um lugar real, Nik. É simplesmente imaginário.

Nikki se voltou para ela.

— Está brincando, verdade?

— Não.

— Não, tem que havê-la visto. Possivelmente quando foi uma menina ou algo assim. É um lugar real, Diabos, eu estava acostumada a passar por ali cada dia a caminho da escola. É tudo novo e bonito agora, mas é realmente velho. E você o capturou, até a gigantesca borda no jardim dianteiro.

Sara se levantou da cama e se dirigiu para a pintura.

— Estou segura de que imaginei. Possivelmente só seja similar.

— É do Maine verdade? — perguntou Cami a Nikki. — É aí onde está?

— Sim. Port Lucinda. É uma pequena cidade na costa. — olhou a Sara. — Alguma vez estiveste ali, Sara?

— Não. Nunca. Tem que ser uma coincidência.

Nikki baixou a cabeça, afastando-se delas.

— Não me assustem certo? Mas, um… Esse lugar é famoso em minha cidade natal. Eles já não a chamam a velha Casa Muller. Agora é Casa Sierra. Um centro de crise para adolescentes.

Sara piscou e a olhou.

— Casa Sierra.

Nikki pôs uma mão em seu ombro.

— Houve um incêndio, não sei alguns vinte e tantos anos atrás. Uma garota morreu. Ela era uma fugitiva ou algo assim. A cidade restaurou o lugar e o nomeou em sua memória.

— Meu Deus. — sussurrou Cami.

Mas Sara estava sacudindo a cabeça.

— Não é o mesmo lugar. Não é. Como pode ser?

— Sara. — disse Nikki. — Eu me inclinaria a estar de acordo contigo, mas… Há cinco adolescentes que foram enviados ao reformatório por iniciar esse fogo. Minha mãe cresceu ali. Ela os conhecia, estava acostumada a falar disso todo o tempo. Que horrível foi que fizessem o que fizeram, como ninguém conhecia a garota que havia dentro, e como esses meninos teriam que viver com isso pelo resto de suas vidas. Cinco meninos, Sara. E olhe, olhe o que pintou aqui.

Cami se aproximou mais, inclinando a cabeça enquanto olhava a pintura. Então ficou sem fôlego, e colocou uma mão sobre a boca.

Sara olhou, também, nas sombras do chão coberto de neve. Cinco deles. Cinco sombras. Ela franziu o cenho, olhando de Cami a Nikki e vice versa. E soube que tinha que ir a Port Lucinda. Tinha que ver esse lugar, descobrir a história, por si mesma. Tinha que demonstrar-se que não era a mesma casa, que tudo isto era só uma coincidência.

Porque se não o era, então ela não sabia o que era. Não sabia o que podia significar. Não sabia por que teve uma sensação de náusea na boca do estômago.

Partiu essa mesma tarde, com a ajuda de Nikki, sua nova companheira de quarto e amiga fiel. Nikki deu-lhe um jogo de chaves da casa de sua mãe em Port Lucinda, e disse que se sentisse como em casa. Seus pais estavam de férias, e ela chamou para perguntar se podia usar a casa por um par de noites em sua ausência.

Não era de tudo honesto, pensou Sara. Nikki não queria utilizar o lugar ela mesma. Oh, ela e Cami teriam ido com ela, se pudessem. Mas ela era a única com um montão de dias por doença não usada ao seu dispor. O trabalho de Nikki como enfermeira no Centro de Trauma, era tão novo, como seu quarto no apartamento, por isso não podia pedir muito tempo livre. E Cami estava em grande demanda, também. Era uma dos três Chef do Denton, o restaurante de mais classe de New Hampshire. Uma das poucas Chef femininas que teve, e a mais jovem de ambos os sexos. Tinha muito que provar aos donos do Tastebud. E até agora, ia atirando para matar.

As duas companheiras de quarto de Sara queriam que esperasse até que elas tivessem tempo de ir. Ambas se comprometeram a reunir-se com ela em Port Lucinda se não retornasse no meio da semana, quando ambas tinham dias de descanso. Ambas insistiram em que tinha que estar em contato constante por telefone. E ambas estavam preocupadas de morte.

Essas coisas as tinham em comum. Mas estavam em lados completamente opostos em suas opiniões sobre os sintomas de Sara. Nikki estava convencida de que era uma combinação de estresse tendo ouvido, e logo enterrado profundamente em seu subconsciente, a história da tragédia da Casa Muller. Talvez, identificava-se com a vítima, Sierra Terrence. Certamente era isso, ou, na opinião de Nikki, um tumor cerebral.

Cami estava convencida de que era algo muito diferente. O fantasma de Sierra, rondando os sonhos de Sara, tentando enviar uma mensagem através da vida, através dela. Quando perguntaram por que uma garota morta do Maine escolheria a Sara para derrubar seus problemas, a hipótese de Cami era que possivelmente Sara era a única a que a garota morta podia chegar. Talvez o houvesse tentando com outros. Talvez inclusive tenha dado uma cotovelada a Nikki para que se viesse viver aqui, assim Sara se inteiraria da localização real da casa. Tinha uma missão que cumprir aqui, insistiu Cami. E o fantasma não a deixaria sozinha até que parecesse. Igual a Ghost Whisperer ou Medium[6].

As teorias de Cami zangavam Nikki. O ceticismo de Nikki deixava Cami louca.

E, contudo, pensou Sara, Port Lucinda, Maine, ia ser um remanso de paz da tensão em casa, inclusive se estivesse totalmente povoada por fantasmas com assuntos pendentes.

Conduzia um VW Bug amarelo canário indo pelo caminho que Nikki lhe deu sem nenhum problema graças a seu prático e pequeno sistema GPS. Sua confiada e computadorizada voz (ela escolheu a versão feminina) guiando direto a porta principal com um som quase alegre.

— Chegou a seu destino.

Aproximou-se e o desligou.

— Obrigado, Jane-Jane.

A casa era preciosa, um retângulo grande com um alpendre dianteiro coberto, um amplo caminho asfaltado, e uma garagem anexa para dois carros com espaço para um apartamento em cima dela. As luzes que fraquejavam a entrada pareciam um par de antigos faróis, pensou.

Tirou a chave e abriu a porta, sentindo-se como se fosse uma intrusa, e mesmo assim não o fora. Não tinha ido à cidade de Port Lucinda ainda. Esta casa estava nos subúrbios, chegou primeiro e se sentia inclinada a estabelecer uma base antes de confrontar o seguinte passo em sua jornada de descobrimento, como chamava a esta louca viagem, até sabendo que era provável que não houvesse uma maldita coisa para descobrir. Sentiria-se tonta por conduzir todo o caminho até aqui amanhã a esta hora. Sentiria-se ridícula.

Mas esta noite, sentia-se assustada. E não muito esperta.

E seu telefone móvel já estava soando.

Aguçando os lábios, tirou os sapatos e os deixou perto da porta, logo respondeu o telefone enquanto caminhava lentamente através da casa olhando a seu redor.

— Já está aí? — perguntou Nikki.

— Acabo de entrar pela porta dianteira. É psíquica.

— Não fale como Cami. Escuta, vá à sala de estar.

— Nik, estou cansada. Tenho fome e tenho que usar o banheiro. Poderia talvez esperar, e deixar que te chame em meia hora?

— Não, mas isto só levará um minuto. Tenho algo para ti.

Sara fechou os olhos e suspirou, mas caminhou através de um amplo corredor que desembocava em uma grande sala de estar com mobiliário antiquado mais impecável, de cor azul esverdeada.

— Vá a estante. — disse Nikkie. — A vê?

— Mmm-hmm. — cruzou o tapete, cômodo e felpudo, para a estante, construída do chão ao teto com cinco prateleiras e a longitude de toda a parede. Tinha alguns volumes ali. — O que estou procurando?

— Os anuários do secundário de mamãe. Devem estar na parte inferior, para a direita.

Sara percorreu os lombos com o olhar e viu Memórias em um punhado de volumes magros, cada um com um ano depois da palavra.

— Vejo-os. — disse.

— Bem, agarre o do ano 1988. Os meninos que iniciaram o incêndio são parte da classe de segundo grau desse ano. Mamãe era Sênior. Ela me deu seus nomes, disse que todos os conheciam, apesar de que eram muito jovens para que a imprensa pudesse fazê-los públicos. É um povoado pequeno. E o melhor de tudo, disse-me que um deles até vive ali.

Sara tirou o livro da prateleira, a seguir se dirigiu a uma cadeira azul estofada. Inclinou-se para acender um abajur antes de afundar-se quase fora da vista no suave e cômodo assento.

— Então, estou procurando estudantes de segundo grau? — perguntou enquanto abria o livro. Mas não escutou a resposta, porque se congelou na primeira página. — Meu Deus! Meu Deus! Jesus! Nikkie, que diabos?

— O que? Carinho, o que acontece? O que está acontecendo?

Sara quase não podia ver agora que as lágrimas alagaram os olhos. Na primeira página do anuário aparecia uma fotografia de toda página de uma adolescente de cabelo escuro, obviamente de origem mista, com a pele bronze, como a sua. Ela tinha grandes olhos castanhos escuro, que pareciam delineados com o Kohl, e grossas pestanas negras, como as suas. Ela tinha o cabelo comprido, perfeitamente liso, negro e brilhante, como o seu.

De fato, parecia-se o suficiente a Sara para ter sido sua irmã. Talvez inclusive sua gêmea.

Tomou vários minutos para dar conta de que Nikki  gritava no telefone, que parecia ter caído das intumescidas mãos ao colo. Sacudindo-se, Sara o recolheu.

— Primeira página do anuário, Nikki. É uma foto dela. Lê-se: Em Memória de Sierra Terrence.

— Oh, isso é tudo? Deus estava assustada. Então, como parece?

Sara respirou lentamente.

— Parece-se comigo. Ela se vê… Como eu. — Deus, ela não necessitava isto. Não agora, quando tudo o que queria era descansar, reagrupar-se, preparar-se. E agora isto? Diabos. — Que se supõe que devo pensar disto, Nikki?

— Não sei. Eu só… Não sei. Mas ainda, não quero nem pensar no que Cami vai fazer desta última revelação.

— Talvez… Talvez ela tenha uma teoria.

— Alguma vez ouvi falar de um fantasma que possa te fazer parecer como uma antiga foto dela. - disse Nikki. — Olhe, por que não fica na casa de mamãe por uns dias? Irei na quarta-feira, e então aprofundaremos.

Sara expulsou outra lenta respiração, fechando os olhos lentamente.

— Pensarei nisso. Mas primeiro, por que não me dá os nomes dos meninos para que possa olhar suas fotos? E logo, prometo-te que conseguirei um pouco de comida e dormirei um pouco antes de fazer algo.

— Tenho sua palavra?

— Sim, tem. Estou esgotada e não posso com mais impressionar esta noite. — percorreu com os olhos a sala, em busca de uma caneta e ao não ver nenhuma, abriu a gaveta da mesinha e sorriu ante a exatidão de sua procura. Uma caneta e uma caderneta. Tirou-os. — Adiante com esses nomes.

Procedeu a escrevê-los enquanto Nikki os recitava.

 

Sara não cumpriu a promessa que havia feito a sua companheira de quarto.

Tentou, realmente o fez. Pôs suas coisas no antigo dormitório de Nikki, que estava justo onde Nikki disse que estaria. Mas não exatamente da maneira que Nikki disse que estaria. Ela havia dito que estaria exatamente como o deixou. Pintura púrpura nas paredes. Uniforme de líder de torcida pendurado no exterior da porta do armário, flanqueado por pompons, pôsteres de bandas de meninos em todas as partes e sua cadeira em forma de bola laranja debaixo da janela.

Não foi assim. Era um encantado como um quarto de hóspedes limpo e brilhando. As paredes eram de cor azul pálida, combinando com o padrão azul e amarelo das cortinas e a colcha. A cama de quatro colunas de estilo colonial fazia jogo com o aparador e a mesinha de noite, tudo de uma profunda cor de madeira de cerejeira, e todas as gavetas estavam vazias, como se esperassem convidados.

Sorriu e decidiu que os pais de Nikki estavam enfrentando muito melhor sua ausência de casa do que ela acreditava. Muito melhor.

Deixou suas duas bolsas, uma grande e outra pequena, na cama, e se dirigiu para as escadas para encontrar algo de comer. O refrigerador estava bastante vazio, como esperou. A gente não deixava coisas perecíveis ao redor quando se ia de viagem. Entretanto, o congelador estava bem sortido, e os armários também o estavam. Decidiu por uma pizza tamanho pessoal congelada, colocando-a no micro-ondas. Um pouco de suco, com gelo, já que não estava na geladeira, e estaria bem para ir descansar.

Dormir, pensou.

Mas não foi dormir. Não podia dormir. Sacudiu e deu voltas na silenciosa habitação. Isso a voltou louca estar tão perto da cidade que tinha todas as respostas. Por que dormir e esperar? Por que arriscar-se a cair no repetitivo sonho de morrer em um incêndio, atormentando-se uma vez mais?

Ou ao outro sonho, que ela não contou a suas amigas.

Aquele no que estava nos braços de um homem formoso, um homem que nunca viu antes. E amando-o com tudo o que tinha dentro de si. A emoção disso atravessou tão poderosamente que sentia como se até estivesse ali, pesada em seu peito, pelo dia seguinte inteiro. E de uma semana até agora, sentiu-se a borda do pranto por um homem que nem sequer era real.

De fato, por que dormir e arriscar-se a outro sonho?

Sentando-se na cama, abriu o anuário, cuidadosa de evitar a primeira página onde seu próprio rosto parecia olhá-la. Em troca, virou as páginas que marcou, onde a classe do segundo ano estava em um grupo grande na parte superior, e logo em fotografias individuais de rosto na parte inferior e na página seguinte. Pela décima vez essa noite, jogo uma olhada a aqueles rostos, arrastando o dedo sobre eles, e detendo-se em cada um daqueles cujos nomes escreveu.

Perguntou-se se seria capaz de escolhê-los sem os nomes. Quando os escutou, não pareceu mais familiar que seus rostos. Havia sentido um calafrio estranho subir por sua coluna vertebral só uma vez, e o sentiu de novo agora, quando seu dedo e seu olhar se posaram sobre David Nichols.

Ele era um jovem formoso. Tinha o cabelo rebelde, encaracolado e castanho claro, com reflexos loiros aqui e lá que provavelmente se faziam mais loiros no verão e mais castanhos no inverno. Os olhos estavam todos rajados de marrom e verde. Quando sorria havia covinhas em suas bochechas. Covinhas profundas que estariam ali para sempre.

A imagem se fez imprecisa e vacilou ante seus olhos, e logo, quando piscou para esclarecê-la de novo, deu-se conta que a foto era em branco e preto. Sem cor. E, entretanto, ela a esteve vendo em cor. Além disso, não estava sorrindo na foto. Só em sua mente. A ela. Com algum tipo de profunda emoção em seus olhos. Estava-o vendo como se ele fosse real, e não uma fotografia. Algo mais. Algo que se sentiu horrivelmente como uma… Como uma lembrança.

— David. — sussurrou, provando o nome em seus lábios, perguntando-se se obteria algo mais.

Mas havia algo mais. Um parecido muito real entre o menino da foto e o homem de seus sonhos.

David Nichols já não estava na cidade. De acordo com Nikki, foi-se faz muito tempo. E, além disso,  estaria vinte e dois anos mais velho. Entretanto, ela não pôde explicar o estranho desejo que sentia na boca do estômago, a sensação de que tinha que encontrar-se com ele, vê-lo, falar com ele.

Possivelmente as pessoas que ainda moravam na cidade poderiam dar algumas respostas. Possivelmente Mark Potter saberia inclusive onde David Nichols estava, como chegar a ele. Possivelmente. Falaria com o Sr. Potter à primeira hora da manhã, em sua loja de comestíveis na cidade.

Mas enquanto isso tinha que ver essa casa, o antigo lugar Muller.

Renunciando a dormir bem passada a meia-noite, decidiu que não havia tempo como o presente. Levantou-se da cama, vestiu-se, colocou sua jaqueta e se dirigiu ao povoado. Não queria conduzir. Era uma noite muito clara e fresca, e, além disso, esteve conduzindo toda a tarde.

O povoado de Port Lucinda estava a menos de um quilômetro adiante, e enquanto se movia através do silêncio, das ruas escuras, das calçadas bem mantidas, passando lojas que pareciam como se conservassem do século anterior, sentiu ondas feitas de dejá vu tantas vezes que deixou das contar. Chegavam com cada baforada de ar úmido que respirava.

Potter´s Grocery estava escuro. Vazio. Viu no aviso que abriam cedo, entretanto, imaginava que Mark Potter estaria ali inclusive antes. Assim trataria de apanhá-lo no caminho de volta.

Mas por agora, seu objetivo estava mais a frente da cidade de Port Lucinda. Todo o caminho no outro lado, de fato. Seguiu caminhando, deixando a cidade e suas lojas atrás e seguindo o sinuoso caminho para o norte, outra milha, até que finalmente, viu-a.

A casa se elevava ante ela, com a escuridão estrelada da noite como fundo. Não havia lua, e apesar das estrelas, pensou que parecia a noite mais negra que jamais viu em qualquer lugar. E aí estava essa casa, essa mesma casa que pintou uma e outra vez, de pé no meio dela.

Não havia dúvida de que era o mesmo edifício. Oh, foi pintado, e foi restaurado, mas era o mesmo. Esses balcões arredondados, a torre, o revestimento com bordas que fazia da torre um tipo de torta de aniversário. O bordo era o mesmo, só que maior. Mais velho do que tinha imaginado. A única diferença que podia ver era o letreiro no jardim dianteiro. Casa Sierra, Centro de Crise para Adolescentes. O letreiro de madeira branca pendurava de um poste, suspenso por ganchos de ferro em forma de S que rangiam com o vento.

Arrastou seu olhar para longe do letreiro, e encontrou a janela quebrada do segundo andar, e por um escasso instante, poderia ter jurado que viu seu próprio rosto olhando para ela desde essa janela.

— Assim voltaste.

Ficou sem fôlego e voltou a ver uma mulher mais velha, de pele escura e amadurecida, embora formosa. Seu cabelo negro corvo rajado de prata estava atado em um apertado coque e fixado na parte posterior de sua cabeça, levava um ordinário vestido de verão com um pesado jaquetão em cima dele, mas parecia como se estivesse em casa com um Sari[7] de cores brilhantes.

— Conhece-me? — perguntou Sara.

— Sei quem foi. Talvez não quem seja. Mas parece igual.

— Igual… A quem?

A mulher maior sorriu.

— Ela. — disse, e assinalou para a janela exata que Sara estava olhando fixamente. — Acontece algumas vezes. Quando há coisas pendentes. Mas agora retornaste. Resolverá tudo.

Sara franziu o cenho até mais.

— Não sei do que está falando. Nada está pendente.

— Algo o está, ou não estaria aqui. Nunca senti que conhecessem a história inteira. Oh, Sierra, resolverá. O fará.

— Meu nome é Sara.

— É tudo o mesmo.

Sara seguia sacudindo a cabeça.

— Quem é você?

A mulher sorriu misteriosamente.

— Sou uma tia. Economizei meu dinheiro. Vim para cá cuidar dela. Mas foi muito tarde. Já estava morta.

A voz da mulher era cálida, seu rosto sincero, mas Sara pensou que provavelmente estava um pouco louca.

— Olhe, você poderia ter sido uma tia para Sierra, mas eu não sou ela.

— É-o. — disse. — E o será, até que tudo seja resolvido. Não pode seguir adiante até que tudo se arrume. Mas já chegará a isso em seu momento. — deu a Sara uns tapinhas no ombro, e logo estendeu seu braço, apontando com um dedo torcido pelo caminho. — Eu vivo por esse caminho, perto do parque de casas rodantes onde cresceu. Seu pai segue ali, sabe?

— Não. Não, não tenho pai. Fui criada em lares de acolhida.

Ela sorriu.

— Minha casa é a amarela. É a única amarela do bloco. Quando estiver curiosa para saber quem é, Sierra veem a mim. De acordo?

— De acordo.

— Meu nome é Pakita. — uma vez mais deu uns tapinhas no ombro. E então, a mulher se voltou e se afastou pela calçada, para a casa amarela que não devia estar muito longe.

Então, Sierra - a garota morta que parecia igual a ela e que parecia estar espreitando seus sonhos - até tinha família ali. Esta tia um pouco louca, e um pai. Duas coisas que Sara nunca teve.

Sacudindo a cabeça, decidiu que teve suficiente deste lugar, e não gostava. Não sabia por que alguém gostaria. Dando a volta, dirigiu-se a cidade, e quando chegou ali às cinco da manhã, imaginou que o Sr. Potter abriria sua loja em uma hora, possivelmente em hora e meia. Assim encontrou um lugar cômodo para sentar-se ao final do beco entre o Grocery Potter e a farmácia fornecedora de Soda, onde estava mais ou menos fora de sinal. Virou uma caixa de leite e fez um assento genial, ela sentou, e esperou.

Mark Potter chegou uma hora depois, estacionou seu Cadillac em um lugar ao longo da calçada, e tomando suas chaves do bolso, aproximou-se da porta para abri-la. Os caminhões de entrega começaram seu percurso pela Main Street, seu ruído assinalando o final de uma silenciosa noite de Port Lucinda.

Ela estudou ao homem enquanto ele se inclinava sobre a fechadura. Mudou um pouco. Era mais velho, é obvio, mas ainda tinha o mesmo cabelo escuro e chamativo, com a mandíbula ampla que teve na foto do Secundário.

Ela disse em voz baixa.

— Desculpe, você é Mark Potter?

E o homem voltou lentamente à cabeça, um grande sorriso em sua face até que seu olhar se pousou sobre ela. Com o cenho franzido, entrou na agora aberta loja e moveu o interruptor. As luzes da loja se acenderam, e porque agora ela se encontrava justo diante da grande janela, derramaram-se sobre ela.

Mas deu-lhe um bom olhar, e agora seus olhos se abriram.

— É você? — perguntou. — Acredito que é você, mas é mais velho agora.

— Eu… Eu… — ele levantou uma mão.

— Sei, se que provavelmente seja um choque me ver. Sei que me pareço… Espere!

Ele não esperou. Antes de terminar a frase, deu-se a volta, com seu rosto voltando-se branco, e correu, lançou-se na realidade, de cabeça a calçada e direto à rua, inclusive quando outro caminhão de partilha se aproximava. Golpeou-o imediatamente. Correu tão diretamente a seu caminho, que com só outro micro segundo, ele teria golpeado o caminhão.

Mas em troca, golpeou-o a ele. O impacto foi brutal, e ela cobriu a boca com a mão e afastou seu rosto, mas seus olhos não podiam dar as costas. Viu o homem voar no ar, e logo desabar-se no pavimento. A gente vinha correndo, o condutor do caminhão, os proprietários de outra loja, um corredor de passagem. Reuniram-se ao redor dele, bloqueando-a, pedindo ajuda.

Sara pensou que ia vomitar.

Retrocedeu até mais no beco, emergindo nas largas áreas pavimentadas detrás dos edifícios e se dirigiu para o extremo sul da cidade, e para a casa da infância de Nikki.

Enquanto caminhava, marcou no telefone celular. E quando Cami respondeu com voz de sono, disse:

— Estou bastante segura de que acabo de matar a um homem.

 

— De acordo, de acordo, — disse Nikki. — tiveste um dia para te recuperar enquanto que eu descobria o que aconteceu, e agora te tomaste banho, está sentada e tomou um chá de camomila que mamãe guardava na vasilha do ursinho Teddy?

— Estou limpa, sentada e estou bebendo. O que descobriu, Nikki? Esse pobre homem morreu?

— Falei com mamãe, que telefonou à fofoqueira da cidade, Nellie Camaroon, quem também é a organizadora da igreja metodista.

— E não disse por que queria sabê-lo, verdade?

— E, o que deveria haver dito, Sara? Que há um fantasma acossando à minha amiga? Ou possuí-la ou… O que infernos sejam isto?

— Vida passada.

— Huh? — perguntou Nikki, então disse. — Cami, veem aqui. Estou pondo-a no alto-falante. De acordo, Sara, diz-o de novo?

— Olhe, quando estava aí fora, perto da casa Sierra…

— Quando esteve ali?

— Por volta das quatro da madrugada de ontem, antes de ir ver o Mark Potter e o fazer morrer.

— Não está morto.

— Obrigado, Deus.

— Entretanto não está longe disso.

— Oh, infernos.

— Voltando ao assunto, Sara. Foi a Casa Sierra em meio da noite. E o que aconteceu?

Sara tomou fôlego e suspirou.

— Em particular, uma senhora mais velha da Índia se aproximou. Chamou-me Sierra, afirmou ser minha tia Pakita e disse que eu havia voltado para resolver as coisas.

Ouviu a súbita inalação de Cami, e  Nikki sussurrando a palavra:

— Reencarnação?

— Penso que a isso queria chegar. Resulta que o pai de Sierra ainda vive aqui.

— Tem que lhe ver! — gritou Cami.

— Uh, não acredito. Olhe o que passou ao último homem!

— Talvez pudesse usar um disfarce. Ou inclusive falar com ele por telefone.

— Talvez. Mas voltemos para o assunto, de acordo? O que se inteirou de Mark Potter e os outros?

— As lesões de Mark são muito graves. A notícia é que ele esteve perguntando pelos outros homens, os outros quatro rapazes. Conheço uma das enfermeiras de Port Lucinda Geral, e ela diz que todos chegarão esta manhã.

— Vêm aqui? — Sara tragou saliva. — Todos?

E em sua mente, estava vendo David Nichols. Esses olhos intensos, esse cálido sorriso. E seu estômago se enredou em nós. Estava sentindo seus poderosos braços a seu redor aproximando-a, e saboreando seus desesperados beijos da maneira que esteve fazendo em sonhos, noite detrás noite, desde antes de conhecer seu nome.

— Sim. A família de Randy Madison é proprietária de um lugar nos subúrbios, no The Heights. Posso te dar o endereço até ali.

— Não sei.

— Olhe, estará ali para averiguar de que se trata. Se não falar com eles, nem falar com o pai de Sierra, nem sequer quer falar com a senhora que aparentemente quer ajudar, então, qual é o ponto? Seria o mesmo se voltasse para casa agora.

Ela tomou fôlego, suspirou.

— Sei que tem razão.

Mas Cami saltou.

— Não, não a tem. Não faça nada se tiver medo. Estaremos contigo na quarta-feira e podemos ser as que falemos com toda essa gente por ti. De acordo?

— Se não conseguir estarei esperando. — disse Sara. — Vou tirar um cochilo, passei toda a noite acordada, durante várias noites seguidas até agora. Talvez saiba o que fazer quando me levantar de novo.

— Mantenha-nos informadas, carinho. — disse Nikki.

— Farei.

Sara foi dormir. E então, voltou para a Casa Sierra, no seu carro desta vez, com a intenção de procurar a senhora, talvez falar com ela, possivelmente inclusive chamar o número de telefone do pai de Sierra. Mas a velha senhora não estava em casa, o reboque estava estacionado em um parque cheio deles e não sabia a qual aproximar-se, e encontrou a si mesma andando de volta a estrada e olhando a Casa Sierra de novo.

Até que ele chegou. Seu Jipe se deteve a um lado da estrada, e ela soube quem era ao minuto que viu. David Nichols. Mais velho que o moço do anuário. Exatamente, como o homem de seus sonhos. Ele se sentou ali, olhando a casa durante um comprido momento, e ela ficou ali, olhando a ele, com algo acontecendo em seu interior que nunca antes havia sentido. Deus estava tão confusa, tão afligida. Nem sequer acreditava na reencarnação.

— Ele era sua alma gêmea, Sierra.

Ela se girou, esperando ver a velha senhora, mas não havia absolutamente ninguém ali. E isso a sacudiu. A única coisa que não pensou durante tudo isto era que ela pudesse estar perdendo a cabeça.

Agora, entretanto, ouvia vozes e via faces nas janelas quando ninguém estava aí. Tinha que considerá-lo.

Precipitou-se para a calçada onde estacionou o carro, subiu e conduziu tão rápido como podia de volta a casa, então se encerrou dentro, tremeu, chorou e atormentou seu cérebro para pensar em uma explicação. Qualquer explicação. Ao fim, chamou por telefone a Nikki, e sem preâmbulos disse:

— Chame a sua mãe, agora mesmo.  Pergunte o nome da pessoa que vive na casa amarela da Rua Maple, a um bloco da Casa Sierra, perto do parque de caravanas.

— Não soa normal. Está bem, Sara?

— Direi isso quando me chamar com a resposta. Por favor, corre.

— De acordo. Fique aí. Deveria ser capaz de localizá-la na casa. Ligou de volta, de qualquer maneira.

Sara pendurou o telefone, tremeu, esperou, e se perguntou se precisaria ir-se a um hospital, ou algo. Seu coração estava acelerado. Sua cabeça era… Era só um desastre. Confusa, mesclando noções e ideias. E uma interminável e sempre crescente dor em seu coração, a nostalgia, desejando dolorosamente a um homem ao que nunca conheceu.

Soou o telefone. Passou três minutos, de acordo ao relógio de Sara, mas pareciam mais de trinta. Respondeu imediatamente.

— E bem?

— Sammy e Lois Sheppard vivem ali com seus três cães. Ninguém mais. Ele forma parte da tripulação de estradas do condado e ele trabalham na agência de correios.

— Está segura de que é a casa correta? — perguntou.

— É a única casa amarela na Maple — disse Nikki.

— E, não têm familiares velhos vivendo com eles?

— Não. E se fosse assim, não seriam mulheres indianas, Sara. Que é pelo que está perguntando, verdade? Essa mulher que viu, essa Pakita está te confundindo por alguma razão.

Sara negou com a cabeça.

— Não acredito isso. Acredito… Acredito que nem sequer é real.

Houve um comprido, comprido silêncio. Então, sua voz adquiriu um novo tipo de tom, o tipo que provavelmente usava para os pacientes mais agitados na sala de urgências, Nikki disse:

— Sabe o que? Não deveria estar aí sozinha. Realmente penso que talvez precise descansar agora, Sara. Só descansar. Eu vou aí de acordo?

Sara se secou as lágrimas dos olhos, e negou com a cabeça como se Nikki pudesse vê-la.

— Deus, não seja tão dramática. Não significa que pense que imaginei. — mentiu. — Significa, que não acredito que seja realmente alguma tia de Sierra. Não é realmente quem diz que é, e não vive onde diz que vive. Isso é tudo. Não que ela… Já sabe, não exista.

— Oh.

Não estava segura de se Nikki acreditou na sua mentira. Mas não estava esperta para ter a sua companheira de quarto arrastando-a a uma instituição mental para sua avaliação. Desejou não ter soltado nunca suas suspeitas em primeiro lugar. Mas maldição, estava aturdida. Pakita era um produto de sua imaginação.

Ou não?

— Vou à casa dos pais de Randy Madison. — disse. — Acredito que minha melhor opção é falar com o Dav… Falar com os outros quatro homens.

— De acordo. — disse Nikki. — Mas só… Tome cuidado, de acordo?

— Sim. Farei. Prometo-o.

 

Sara conduziu passando a cidade, para o oceano, arrastando-se até o acidentado e estreito caminho sinuoso que chegava até o The Heights, os altos escarpados sobre o Atlântico, onde os mais ricos de Port Lucinda viviam.

A casa de campo onde os homens se encontravam era justo como Nikki havia descrito. Muito mais moderna que a Casa Sierra e, entretanto, claramente prática e sólida. Não voltou para o meio-fio. Estava assustada, muito assustada. O que diriam? Culpariam-na pelo horrível acidente de seu amigo? Pensariam que estava louca? Estava-o?

Deteve o carro ao lado da estrada, precisando trabalhar em sua coragem antes de poder enfrentar-se a eles, a ele. David.

Deus, seu coração pulsava mais rápido ante a ideia de lhe ver. Seu sangue se esquentava e sua pele ardia.

Saindo do carro, seguiu um atalho que serpenteava pela colina, através de uma zona tranquila de pinheiros e chegando então ao estéril terreno rochoso até a borda dos escarpados.

Ficou ali durante um momento, olhando o oceano. O vento soprava para o interior, açoitando seu cabelo ao redor da cabeça. O ar cheirava a oceano. Debaixo, as ondas explodiam em rajadas de espuma branca que rompiam contra a costa rochosa. Estava bem aqui, decidiu. Aqui mesmo, agora mesmo, estava bem. Estaria bem se só pudessem passar uns poucos momentos mais aqui, com o vento marinho no rosto.

Eventualmente, entretanto, sentiu uns olhos sobre ela, e voltou à cabeça a esquerda. Surpreendeu-se do perto que o tortuoso caminho a levava a casa ocupada pelo David e outros. Muito perto. Não se dava conta.

E, oh, Deus, havia alguém a olhando pela janela, agora mesmo! Não David. Um dos outros, um que havia mudado tanto que não poderia dizer qual deles poderia ser. Estava pálido, calvo e gordo. E então se cambaleou com a boca aberta.

Sara franziu o cenho, forçando os olhos e movendo seu corpo de esquerda à direita tentando ver o que pensava. E um momento depois viu o rosto de David na janela, olhando-a. E viu ira crua em seus olhos.

Girando-se, correu pelo atalho, sabendo que ele estava vindo atrás dela. Sabia.

Mas ela correu. Correu, mas as rochas estavam escorregadias e teve que tomar cuidado de não cair. Correu, e os ramos das árvores tratavam de golpeá-la, assim ondeou e serpenteou entre elas, as evitando com a habilidade de um boxeador no ringue. Correu, e a estrada esteve quase a vista, a volta da próxima curva no caminho. Correu, e então ouviu uma sirene.

E então deixou de correr.

Oh, Deus, o que fez? Acreditou que o homem da janela a viu e havia reagido em estado de choque, alertando a outros e enviando a David fora para caçá-la. Mas agora, pensou de novo em sua pele pálida, sua boca aberta, cambaleando-se para trás e se perguntou se ela causou mais danos.

Por favor, pensou, não. Não me permita ter ferido a outro. Tragando saliva, afastou um ramo que pendurava e se aproximou da estrada, esperando ver só seu pequeno carro estacionado ao outro lado esperando-a. Em seu lugar, viu ele.

David.

Simplesmente tão bonito como imaginou que seria. Tão formoso para ela como sempre foi. Como ele havia, parecia nesse momento, sempre sido. Apesar de que nunca o encontrar antes. Tudo o que desejava era precipitar-se em seus braços e sussurrar “Enfim”.

De novo, ouviu a voz com forte acento de mulher da Índia, Pakita.

Sua alma gêmea.

 

David a olhou fixamente enquanto emoções que nunca soube que podia sentir turvavam seu interior. Poderosas como as ondas da costa por debaixo dos escarpados, golpearam, e não podia sequer identificar a maioria delas.

Não sabia o que dizer. Só ficou ali, olhando seu formoso rosto e procurando as palavras.

Mas ela falou antes que ele pudesse. Disse:

— Sinto muito.

Ele sentiu que o sobressalto rasgava através de si novamente, talvez, porque se ela falava significava que era real. Ela era real.

— Como…? — levantou uma mão com a pergunta sem finalizar, e estava tremendo quando a moveu mais perto; o dorso de seus dedos ligeiramente dobrados passaram pela bochecha dela, fazendo que os olhos fechassem. — Deus, em realidade esta aqui. — sussurrou.

— Não. — disse ela. — Não… Não da maneira que pensa. — moveram a cabeça aos lados, seus olhos escuros ampliados quando olhou para a casa. — O que aconteceu? — perguntou.

— Não sei.

— Sim, sabe. — olhou aos olhos de novo, e ele se sentiu disposto a ser honesto com ela. — Vi na janela, um de seus amigos. Não poderia dizer qual. Mas sei que me viu, e algo aconteceu. Foi seu coração?

— Era Brad, e sim, isso acreditamos. Os paramédicos o meteram na parte traseira da ambulância e o levaram.

Sara baixou a cabeça, agitando-a lentamente.

— Nunca quis machucar a ninguém. Só queria falar com o Mark Potter, era o único de vocês que ainda estava na cidade, e tenho tantas perguntas.

Baixou a cabeça quando as lágrimas encheram seus olhos, e um soluço sufocado ressonou em suas palavras.

— Tenho perguntas, também. — disse David. — Não… Entendo. Foi outra pessoa quem morreu nesse fogo, Sierra?

— Oh, não, isso não é…

— E se o fora, por que esperou tanto para dizer nada? Por que nos deixou - especialmente a mim - seguir acreditando…?

— Não foi…

— Sabe o que me fez? E Deus, por que não envelheceu em todo este tempo? Quero dizer, teria que estar…

— Não sou Sierra.

Ele finalmente deixou de falar, e só a olhou fixamente, piscando de incredulidade.

— Meu nome é Sara Jensen. Tenho vinte e dois anos. Sou professora de arte em New Hampshire. Não sou Sierra Terrence. Só…

— Se você não for ela, o que está fazendo aqui?

A ambulância partiu, e ele se voltou para olhá-la ir, perguntando como Brad estava e sentindo-se culpado por não estar com ele.

— Esta é uma conversa que vai levar um momento. — disse ela. — É uma que precisamos ter, quero dizer, preciso tê-la. Sierra parece estar… Envolta em minha vida agora mesmo. E não acredito que se vá até que averigue por que. Mas… — seus olhos se moveram pela face dele, uma e outra vez, quase como uma carícia. Olhava como se estivesse tendo problemas para não tocar. E ele entendia, porque sentia o mesmo. — Não vamos tê-la de pé ao lado da estrada. — disse ela.

Ele assentiu, e se deu conta que estava olhando-a da mesma maneira em que estava olhando a ele.

— Iremos para casa. — se esticou para ela como se fosse pegar a mão, como se isso fora a coisa mais natural no mundo, mas então se deteve, franzindo o cenho.

Ela se deu conta, e por alguma razão, aproximou-se até sua mão, flutuando no ar, e a agarrou. Deslizou a palma contra a dele, e sentiu uma chuva de faíscas disparando-se desde seu peito até cada parte de seu corpo quando ele a fechou ao redor da dela.

— Não quero… Causar mais problemas. — disse. — Quando os outros me virem…

— Estou bastante seguro de que todos foram ao hospital. Pegaram o carro de aluguel.

— Não quero estar aqui quando retornarem. — disse ela.

Ele assentiu com a cabeça enquanto andavam pelo meio-fio para a porta principal. Uma vez dentro, guiou-a para o sofá e abriu a geladeira.

— Posso te oferecer café, cerveja ou água.

— Nada, obrigado. — se sentou no sofá, olhando.

Ele não tomou nada tampouco, e foi sentar se a seu lado.

— Quer chamar e comprovar seu estado?

— É muito pouco tempo. — disse ele. — Além disso, os rapazes vão ligar no minuto que tenham algo que comunicar. Por que não falamos de você? Há alguma razão pela que esteja evitando o assunto do que está fazendo aqui?

Ela assentiu, para sua surpresa.

—  Vai parecer como se estivesse louca. — baixou os olhos. — Talvez esteja.

— Por que, simplesmente, não começa pelo princípio?

Ela tentou relaxar, pensou. Ao menos afrouxou os punhos e se recostou no sofá.

— De acordo. De acordo. Sou uma artista. Pinto quando não estou ensinando. Estive pintando algumas peças onde o ponto de foco é uma casa. Sempre a mesma casa.

— A Casa Muller? — perguntou ele, sabendo sem necessidade de confirmação.

Olhou aos olhos e assentiu.

— Sim, embora nunca a tivesse visto antes. Não até que vim aqui o outro dia.

— Então como podia pintá-la?

— Não sei. Tive pesadelos onde estou presa nessa casa enquanto se queima. Pintei essa cena, também, e havia cinco sombras na neve, fora, como se cinco pessoas estivessem de pé ali.

Ele não disse nada durante um comprido momento. E então, finalmente, com a culpa ardendo nas vísceras, disse:

— Nós o fizemos. Nós cinco, Mark, Brad, Kevin, Randy e eu. Nós criamos o fogo que te matou. Mas suponho que já sabia, ou não nos tivesse espreitado.

— A ela.

— O que? — ele levantou o olhar para encontrar-se com seus olhos.

— Vocês acenderam o fogo que a matou a ela. Eu não sou Sierra, recorda?

Ele assentiu lentamente, mas não podia tirar os olhos de cima.

— Deus, parece-te com ela.

— Sei. Vi uma foto dela no anuário e pensei que ia desmaiar. Mas estou dizendo isso, não sou ela. Nem sequer sabia que estava pintando uma casa real, até que minha nova companheira de quarto, Nikki, mudou-se. Ela viu as pinturas, e é daqui. Contou-me a história e realmente não podia acreditá-la. Não até que vim aqui. Não até que vi a casa, e… E a você.

— Eu?

— A foto do anuário. Era tão… Não sei. Agitou-me, tocou-me e me sacudiu de repente. As fotos de outros não… Não era o mesmo.

Ele assentiu lentamente.

— Isso teria sentido, suponho, se fosse ela. Mas não o é.

Ela se deslizou um pouco mais perto dele no sofá, e ele o notou, reagiu profundamente em um nível visceral, mas se conteve.

— Estive tendo… Outros sonhos, também. Sonhos… Diga-me, você e Sierra foram…?

— Não. — o disse muito rápido ainda emocionado pelo que havia dito. Teve outros sonhos. E então, falariam sobre sexo. Infernos estiveram sonhando as coisas que ele fez? Esclareceu-se a garganta, tentando-o de novo. — Quero dizer, infernos, não sei. Nunca namoramos. Eu queria e acredito que ela também. Fomos amigos, entretanto. E estava preparando meus nervos para dizer que queria mais quando ela desapareceu.

— Oh. — ela lançou um suspiro. — Estive ali fora, na casa.

— Pensei que a vi ali. — disse ele.

Ela assentiu.

— Vi você, também. E logo, a alguém mais. Embora esteja começando a pensar que imaginei. — baixou a cabeça entre suas mãos. — Deus. Tirei a vida de dois homens, e agora acredito que estou perdendo a prudência, também. Não posso dormir por causa dos sonhos. Mal funciono pela nostalgia que eles deixam atrás. Não posso…

— Tranquila. — ele pôs suas mãos sobre os ombros dela, surpreso de novo de que ela fosse real. Ela levantou a cabeça e fechou os olhos, e ele viu que estavam cheios de lágrimas e formados redemoinhos de emoção. — Não tirou a vida a ninguém, ao menos não pelo que sabemos. De fato, nós somos os únicos culpados disso.

— Então por que são os únicos aos que queria gritar em busca de ajuda?

Ele piscou e a olhou mais severamente, mas nessa proximidade, era mais difícil controlar as vontades loucas de trazer ela mais perto e beijá-la.

— O que quer dizer? — perguntou.

—No sonho, no sonho, estava tentado te chamar pedindo ajuda. A última vez que sonhei. Gritei seu nome, David, inclusive embora não sabia quem era nessa época.

Ele sacudiu a cabeça.

— Isso não tem nenhum sentido.

— A mulher, a indiana, disse que você foi minha alma gêmea. — olhou aos olhos, mas então pareceu que tinha que olhar a outro lado. — Mas ela pensava que eu era Sierra. Disse que eu retornara, porque havia algo que devia ser bem feito. Que não ia conhecer a paz até que não soubesse o que era, e o reparasse.

— Que mulher indiana? — perguntou ele.

— A que parece ser um produto de minha imaginação.

— Vamos, me fale sobre ela.

Ela suspirou, sacudindo a cabeça.

— Disse que vivia na única casa amarela na Rua Maple. Disse-me que meu pai estava ainda vivo, e em um parque de casas pré-fabricadas próximo. Só que ela estava falando do pai de Sierra, acredito. Disse que seu nome era Pakita.

David se sentou ali, com a boca mais aberta com cada palavra que ela dizia, e quando olhou de novo teve que vê-lo. Mas antes que ele pudesse falar, seu telefone começou a soar. Deu um puxão afastando-se, mal capaz de tirar seus olhos dos dela o suficiente para olhar para a tela. Mas então sua atenção foi captada.

— É Randy.

— Adiante, por favor. Estou tão ansiosa como você. — ela baixou a cabeça, sussurrando o que soava como uma oração enquanto ele respondia.

— Como está? — perguntou sem preâmbulos.

— Teve um ataque ao coração, mas está estável agora. Dizem que não saberão o dano que sofreu até que todos os exames fiquem prontos, mas provavelmente vá necessitar um cateterismo. Suas artérias estavam completamente tapadas.

— Isso não é nenhuma surpresa.

— Assim, encontrou a garota? — perguntou Randy.

— Está sentada aqui comigo agora, de fato.

— Está brincando, verdade?

— Não, e não é um fantasma. É só uma jovem normal que é surpreendente parecida com Sierra, e que quer saber mais sobre ela. Nunca quis fazer mal a ninguém. E não podemos jogar a culpa de que Mark enlouqueceu e correu para rua na frente de um caminhão com tão só vê-la, ou ao pobre Brad, que falhou o coração, de que abusou em longo prazo, porque o sobressaltou. Infernos, pelo modo em que ele estava bebendo, poderia haver caído antes que amanhecesse de todos os modos.

— Sim, estava ali contigo. Entretanto… Há mais em tudo isto do que me está contando, verdade?

David suspirou.

— Em realidade, não o temos descoberto ainda, Randy. Mas estamos trabalhando nisso.

— Muito bem. Olhe, vamos ficar com o Brad durante um tempo. Depois, iremos a casa. Vou acalmar a Kevin para que não tenha um derrame cerebral quando vir a alguém parecido a Sierra, em caso de que vocês ainda estejam em casa quando retornarmos.

— De acordo. — David guardou o telefone, e levantou a cabeça. — Brad está estável. Suas artérias estavam obstruídas, e não tem nada que ver com isso. O momento, talvez, mas era algo que ia acontecer, e logo, contigo ou sem você.

Ela assentiu com a cabeça.

— Obrigado por dizer isso.

— Assim, o que quer fazer, Si… Sara?

Ela piscou lentamente.

— Quero saber se estou louca ou não. Se Pakita é real ou uma alucinação. Isso é o primeiro. E então, se não estou louca, então preciso saber o que é o que precisa ser feito corretamente e… E arrumá-lo, suponho.

Ele assentiu.

— Pakita é real. Posso te levar a ela, se o desejar.

Ela levantou os olhos até os dele, surpreendida mais além das palavras.

— O que?

— Quererá vir comigo? — perguntou.

Sara assentiu fortemente.

— Sim. Deus, sim, agora mesmo, se puder. Preciso começar a encontrar algumas respostas.

— E eu também. — disse David, incapaz de tirar os olhos do rosto dela. De seu precioso e querido rosto.

 

Era, pensou Sara, totalmente ridículo que enquanto sua vida caía em pedaços e se questionava sua prudência, parecesse não poder deixar de pensar em nada mais que em David. As mãos de David. A boca de David. Os olhos de David.

Mal conheceu ao homem, mas sentia em seu interior que morreria se não a tocava. Beijava-a. Logo.

Ficou de pé ao lado dele na lápide de Pakita Kasir, gelando-se até a medula ao dar-se conta de que a mulher a que viu e falou não era uma alucinação. Foi real, uma vez. E esteve relacionada com Sierra Terrence, quem estava enterrada a sua direita. Quase tivesse sido mais fácil de acreditar que a tivesse imaginado que acreditar que viu um fantasma.

— Era real. —sussurrou. — Mas não poderia ser. Não poderia ter falado com ela.

— Como mais poderia ter sabido onde ela vivia faz vinte e dois anos? Na única casa amarela da rua? — perguntou David. — Ou inclusive que era a tia de Sierra?

— Não sei. — Sara afastou os olhos da tumba de Pakita, e estava olhando agora a lápide contigua. A lápide de Sierra.

— Deve ser difícil para você estar aqui. —  disse David em voz baixa.

Ela levantou os olhos rapidamente.

— Por que deveria sê-lo? Não é minha tumba. Não sou ela. — o vento soprava. Estremeceu-se e pôs os braços a seu redor.

— Sei, sei. Só… Está conectada a ela de algum jeito. Quero dizer, deve está-lo.

— Aparentemente.

— Mas como? — perguntou.

— Não sei.

— Não, em realidade. — David tocou o ombro, girando-a para que olhasse a ele em lugar da fria pedra cinza. E ela não queria nada mais nesse momento que ser acolhida em seus braços, contra seu amplo peito. Sentia-se como se tivesse estado sempre esperando que a encontrasse, e agora que estava aqui, não tinha coragem para dizer na realidade, prosseguiu: — Deve ter algum pressentimento sobre isto. Verdade?

Ela baixou a cabeça.

— Amava-a? — perguntou ela.

— Boa maneira de trocar de assunto. — suspirou David. — Está congelando. Vamos pra dentro. — Puxou-a pelo braço e começou a conduzir de volta ao carro. O dela ainda estava estacionado ao lado da estrada em Los Altos.

Mas depois de só três passos, plantou os pés na neve, e ele se viu forçado a deter-se. Franzindo o cenho, disse perplexo:

— O que acontece?

— Quero que me diga isso. Amava-a?

Com os lábios apertados, ele piscou lentamente.

— Tinha dezesseis anos.

— Isso não é uma resposta.

— Sei. Só que não sei. Para ser honesto, Sara, estive me perguntando a mesma coisa durante os passados vinte e dois anos. Nesse momento, pensei que a amava, mas acreditei amar as três garotas que chamaram minha atenção antes dela, também. A coisa é… Nunca deixei de pensar em Sierra. Nunca deixou de me doer, sofrendo, lamentando, desejando que tivesse sido diferente. Nunca pensei em nenhuma das outras garotas com as que saí do modo em que sigo pensando nela.

— Mas não acendeu o fogo que as matou, tão pouco. — disse.

Suas palavras doeram. Doeram muito, viu-o em seu rosto.

— Não. — disse ele em voz baixa. — Não o fiz.

— Assim que talvez por isso estivesse obcecado por ela.

— Talvez. Mas a última semana foi…

— Foi o que?

Piscou, procurando as palavras.

— Pior, suponho. Estive sonhando com ela - ou contigo - não estou sequer seguro de qual.

— O que acontecia nos sonhos? — perguntou.

Ele separou os lábios, logo os voltou a fechar, e sacudiu a cabeça.

— Vamos para o carro onde está quente.

— Porque sonhei contigo também. — disse Sara, ainda sem mover-se. — Sonhei fazendo amor contigo. — soltou-o rapidamente, forçando as palavras antes de perder a coragem. — É isso o que acontece em seus sonhos, também?

Sustentou o olhar, os olhos mostravam surpresa, e gradualmente se suavizaram a algo mais.

— Sim. Isso é o que acontece.

— Fez alguma vez amor com ela, na vida real?

— Nem sequer a beijei.

— Se me beijasse, agora mesmo acreditaria em sua mente estar beijando-a?

Ele levantou uma mão para seu rosto, os dedos afastando gentilmente o cabelo da bochecha, e deslizando lentamente. Ela deixou cair às pálpebras, e sentiu seu fôlego nos lábios como se aproximasse. E então, de repente, só frio.

— Não vou beijar-te, Sara.

Seus olhos se abriram, e então arderam, embora fosse ridículo sentir esta decepção por um homem que acabava de conhecer. Inclusive se sentia como se tivessem estado juntos toda a vida.

— Por que não? — sussurrou.

— Por que… Porque tem dezesseis anos menos que eu.

— Isso não é uma razão, e acredito que sabe. — seus olhos estavam abertos agora, e se enfocavam nele.

Ele assentiu com a cabeça.

— Talvez não. Então vamos com um. Não sei a resposta da pergunta que me fez. Não sei se estaria te beijando, Sara, ou se estaria beijando uma lembrança que criei em minha mente até que seja mais do que nunca foi, ou provavelmente jamais poderia ter sido. E isso não seria justo para ti. — girou então, começando a caminhar. — Vou para o carro.

Ela ficou onde estava.

— Pakita disse que é minha alma gêmea. Acredita que é verdade?

Deixou de caminhar, mas não disse nada.

— Falou-me como se eu fosse Sierra. Seguiu dizendo que havia retornado, para fazer as coisas bem. Acredito… Acredito que estava falando sobre reencarnação, David.

Girando lentamente, enfrentou a ela.

— Estou muito assustada agora mesmo. Porque o seguinte que preciso fazer é falar com o Frank Terrence, e por alguma razão estou petrificada de fazê-lo. Se me deixar agora, não acredito que possa fazer. E sinto que devo ir. Necessito-te, David.

O rosto dele parecia incrivelmente triste.

— Isto me rasga, sabe verdade? Voltar sobre tudo isto, abrir tudo isto de novo, está me matando.

Sara baixou a cabeça, fechou os olhos e sentiu que as lágrimas queimavam para escapar. E não levantou a vista, nem sequer quando ouviu seus passos aproximando, correndo pela neve. E então ele tomou seu rosto entre as mãos, inclinando sua cabeça para trás e baixando a boca na dela. No instante que seus lábios se tocaram, ela envolveu os braços ao redor de seu pescoço, e o som que emanou de seu peito era uma mescla de nostalgia e alívio. Abriu-se a ele, pressionando mais forte, beijando mais profundamente. Ele abraçou sua cintura e se inclinou sobre ela, e foi como se fossem absorvidos no espiral giratório de um redemoinho, onde nada mais existia, além disso. Esse ponto de contato. Esse beijo. Era tudo nesse momento. Era tudo.

Quando ele levantou a cabeça ao fim, seus olhos estavam tumultuosos. Havia desejo ali, sim, mas também havia confusão. E por cima de tudo, essa entristecedora sensação de alívio. Era um reflexo exato do que ela estava sentindo.

— Não se sentia como um primeiro beijo. — sussurrou.

Assentiu de acordo com ela.

— Talvez fosse melhor não… Tentar analisá-lo agora mesmo.

— Sei que não poderia se o tentasse.

— Não. Não, eu tampouco. — disse David. — Assim vou deixar por agora. Irei contigo para ver o Frank Terrence. Mas se não queremos que caía morto, talvez devesse fazer algo com sua aparência?

— Como? Tem uma mala cheia de disfarces em seu Jipe?

Deu de ombros.

— Não, mas tenho um boné de beisebol e uns óculos de sol.

— Não é muito criativo, mas suponho que servirá.

Ele tomou sua mão e se dirigiu para o Jipe. Ela foi uns poucos passos, mas depois deteve e quando girou, ela se elevou e o beijou de novo.

Olhou-a.

— Não sei o que é isto, Sara.

— Não quer sabê-lo?

Os olhos dele eram tristes, mas também sinceros.

— Não sei. Honestamente, não sei se posso dirigi-lo.

Ela sentiu as sobrancelhas unir-se de novo, mas então assentiu com a cabeça enquanto tentava entender. Cada vez que a olhava, devia recordar seu crime, o engano que causou a morte de uma moça. Morte horrível, por certo.

E isso poderia ser muito para alguém suportar.

— Acredito que posso entendê-lo. - disse. — Tentará te expor comigo, verdade? Só até que averigue que infernos se supõem que devo estar fazendo aqui?

— Não acredito ter opção.

— Nunca tive a intenção de…

— Não, isso não é o que queria dizer. — passou um braço ao redor de sua cintura, atraindo-a para si, mantendo-a em um apertado e quente abraço, e com o rosto em seu cabelo, e ela sabia que estava sentindo, cheirando, saboreando-o, tal como ela estava desfrutando dele. — Quero dizer, não acredito que pudesse me manter afastado de ti embora o tentasse. Ao menos, não agora. Ainda não.

— Mas talvez… Mais tarde?

— Sara. — sussurrou, baixando a testa contra a sua. — Nós acabamos de nos conhecer. Por que não tentamos levar momento por momento aqui? Só por agora? Acredita que poderá fazê-lo?

— Sinto que passei a vida inteira te buscando. — sussurrou. — Sinto como que sempre estivemos juntos. E não sei nada de você. E isso não tem sentido algum, David, mas é como o sinto.

— Sei.

Sustentou o olhar durante um comprido momento, então assentiu.

— De acordo. Até que saiba.

— Certo. — com um profundo suspiro que soou como um de pesar olhou o relógio. - São passadas as nove. Ele poderia estar na cama se esperarmos muito.

 

Sara não estava surpresa de que David soubesse qual a casa pré fabricada pertencia ao pai de Sierra, Frank Terrence. Inclusive embora a casa, disse ele, tivesse mudado. Ela parou apenas detrás dele, encurvado dentro de sua jaqueta, usando um boné do Red Sox com seu comprido cabelo saindo pela abertura detrás, ao estilo de um rabo-de-cavalo, e um par de óculos de sol esportivos, ambos tomados emprestados do carro dele.

E, entretanto, quando o homem abriu a porta, ela retrocedeu, e não estava segura do por que. Esperou… Bom, não isto. Ele era alto e magro, vestia um par de calças de trabalho verde oliva e uma camiseta combinando, com seu nome no bolso. Havia lápis e um medidor de pressão de aros nesse bolso. Seu cabelo era limpo, curto e branco, mas espesso. E seu rosto estava limpo e barbeado.

— Sim? — ele olhou ao David, quase olhou a Sara, mas logo se voltou a enfocar em David. —Você… Você é o menino que matou a minha filha.

— Sou dificilmente um menino agora, Senhor Terrence.

Ele estreitou seus olhos com fúria.

— Isso não troca a história, verdade? Que infernos estão fazendo aqui?

— Quero… Perguntar… Fazer algumas perguntas a respeito de Sierra. Se estiver disposto.

— Bem, não o estou. E que infernos bem você pensa que isso vai fazer de todos os modos? Depois de todo este tempo?

— Por favor, Senhor Terrence. — disse Sara, e finalmente, pela primeira vez, o homem se centrou nela. Realmente se centrou.

Sua expressão trocou de uma de fúria a uma que parecia curiosa e perplexa.

— Quem é você? — ele perguntou.

— Sara Jensen. Sou uma professora de arte de fora da cidade. Estou visitando uns amigos, e eu… Bem, senti-me tocada pelo Centro Adolescente e como foi chamado por sua filha, e só… Queria saber mais a respeito dela. — ela deu de ombros, e notou que ele ainda se via dúbio. — Quero contar a junta de minha escola e comunidade a respeito disso, ver se eles consideram estabelecer algo similar em minha cidade. É somente… Um tão grandioso… Recurso. Para os meninos.

Depois de um momento de consideração, ele assentiu lentamente.

— Está bem. — disse. — Pode entrar. Mas só posso dar cinco minutos. Tenho coisas para fazer.

— Está bem. — disse ela. — E obrigado, Senhor Terrence. Sinto tanto o que ocorreu a sua filha.

— Seguro que o faz. — o homem se afastou a um lado e manteve a porta aberta. David entrou primeiro, e Sara o seguiu bem perto por detrás.

A casa pré-fabricada era agradável. Era uma sofisticada e de dobro tamanho, com tetos alpinos, chãos de madeira dura e brilhantes despensas. Não saberia, de dentro, que esta não era uma casa nova.

— Isto é agradável. — disse David brandamente. — É diferente da que tinha antes…

— Houve um significativo acordo. — disse Frank Terrence. — A cidade é a dona da casa. Deveria ter sido mantida sob chave, assim os meninos não poderiam ingressar.

Ele deu de ombros.

— Não é como se qualquer destas coisas trará minha filha de volta agora, não?

David baixou a cabeça.

— Nunca, jamais, me perdoarei por essa noite, Senhor Terrence. Persegue-me até estes dias.

Ele grunhiu, mas se girou e se focalizou em Sara.

— Quais são suas perguntas?

— Sabe por que Sierra fugiu?

— Estava triste pela partida de sua mãe. — disse ele. — Tammy se mudou de novo a Índia, para estar com sua família. Disse que éramos incompatíveis.

— Tammy? — Sara inclinou sua cabeça para um lado. — O nome não parece da Índia.

— Tamara. — ele disse. — Mas nunca acreditei nessa tolice Hindu.

— Já vejo.

Ele entrecerrou os olhos, inclinando sua cabeça a um lado.

— A mãe de Sierra veio ao funeral? Ou sua tia Pakita? — ante o olhar de surpresa dele, ela acrescentou. — David me contou a respeito dela. A irmã de sua esposa, certo?

Ele sacudiu sua cabeça.

— Sua mãe não me deixou nenhuma informação de contato. Não pude nem sequer contar que sua pequena menina estava morta. Não era como se ela merecesse essa consideração. Afastou-se de nós, depois de tudo.

Ela assentiu.

— Certamente, Pakita o disse.

— Não saberia dizer. Não tinha muito de que falar com a Patti.

— Patti. — ela o repetiu impaciente. — Não tem muito respeito pela herança cultural de sua filha, não é certo, Senhor Terrence?

Ele inclinou a cabeça para um lado, e rápido como uma cobra, elevou uma mão e tirou a boina e as lentes em um veloz movimento.

Sara saltou, e tentou alisar o cabelo.

Frank Terrence a olhou fixamente, elevando-se lentamente sobre seus pés.

— Jesus H. Cristo. — ele murmurou. — Quem infernos é você?

— Falei quem eu sou. Sou Sara Jensen de New Hampshire. Sou uma professora de arte.  — ao tempo que falava, David levantou, e colocou-se entre ela e o agitado homem.

— Mas você se vê… Se vê igual… — Frank Terrence passou uma mão por seu espesso e branco cabelo, e sacudiu sua cabeça. Afastando seu olhar de Sara, atravessou a David com seus olhos. — De que realmente se trata isto?

David disse algo, mas Sara não o ouviu. Havia um alto zumbido em seus ouvidos, e sua visão se voltou negra, como se estivesse em um set de televisão e que o cabo de energia tivesse sido desligado da parede. Ela como que se… Se sintonizado.

 

— Olhe, possivelmente Sara se sinta mais conectada com Sierra devido serem parecidas, mas não é tão forte como parece a princípio. — disse David. Acreditava que se pudesse aliviar a mente do homem, poderia abrandar seu aborrecimento e desconfiança.

Mas o homem estava olhando fixamente para Sara, e David se encontrou compelido a voltar-se e olhá-la fixamente também.

Só que a mulher que devolvia o olhar não se sentia como Sara. Especialmente quando começou a falar. Sua voz foi de um nível mais alto e tinha uma inflexão totalmente diferente. E suas palavras foram encantadas.

Olhando a Frank, seus olhos flamejando, disse:

— Quero saber o que fez com minha mãe, seu filho da puta!

O homem se parou tão rápido que a cadeira em que estava sentado, caiu e golpeou o chão. Elevou um braço tremendo, o comprido dedo indicador apontando a porta.

— Saiam.

Sara piscou, e esfregou os olhos.

— Saiam merda, de minha casa, agora! E não se atrevam jamais a bater em minha porta de novo. Escutaram-me? Jamais!

Sara franziu o cenho a ele, logo a David.

— O que ocorreu?

— Não importa. Vamos. — pegou-a pelo braço, a pondo de pé, empurrando-a fora da porta, que bateu no minuto que estiveram fora.

Quase chegaram ao automóvel quando perguntou de novo.

— David, me diga o que ocorreu.

— Não lembra?

— Não sei. Estava sentada aqui, fazendo perguntas, e logo tive este momento de… Não sei lapso. Quase como perdesse a consciência, só que não desmaiei nem nada.

Abriu a porta, ajudou-a a entrar, logo foi ao outro lado e se sentou atrás do volante. Tinha ao Jipe descendo pelo caminho uns segundos depois, e ele sabia que ela estava esperando, não muito pacientemente, por uma resposta.

Escolhendo suas palavras com cuidado, contou.

— Disse: “Quero saber o que você fez a minha mãe, seu filho da puta”.

Ele a olhou ao tempo que conduzia.

Ela estava franzindo fortemente o cenho.

— Não, não o fiz.

— Sim, fez. E não era sua voz. Soava… Soava como Sierra.

— Oh, vamos, David…

— Não estou inventando isto. Infernos Sara, por que o faria? — ele suspirou inclusive mais forte, sacudindo sua cabeça. — Onde está hospedada?

— Não podemos ir onde me estou hospedada. Não resolvemos nada ainda.

— Acredito que é tempo de deixá-lo por uma noite, carinho. Onde está ficando?

Franzindo o cenho, mas capitulando, Sara disse o endereço da Rua Oak, e ele sabia exatamente onde estava.

— Não entendo nada disto, — disse Sara. — por que perguntaria algo como isso? A mãe de Sierra se foi à Índia.

— Foi? — David negou com a cabeça. — Não sei. Sabe, só vi a mulher umas poucas vezes, mas ela parecia totalmente devota a Sierra. Parece estranho que uma mulher deixe a sua filha adolescente para trás. Possivelmente devemos procurar a respeito disso. Possivelmente Frank Terrence abusava da mulher, deixando nenhuma oportunidade, só fugir. Ou algo.

Sara o olhou, e ele viu tanto em seus olhos, tanto que ele queria explodir, saber. Mas ele tinha que afastar os seus, para focalizar-se em seu trabalho.

— Ele não era… O que esperava. — Sara disse ao fim.

— Não? — curioso, ele a olhava ao tempo que conduzia. — O que esperava?

Ela deu de ombros.

— Não sei. Suponho que acreditei que fosse gordo, estaria desarrumado, sem barbear, sujo, com uma cerveja em sua mão.

Ele assentiu.

— Assim é exatamente como o recordo. Levantou-se, aparentemente. Mas sim, acaba de descrever exatamente da maneira em que era, quando Sierra estava viva.  É inexplicável quão bem o descreveu.

Ela franziu o cenho ante o pensamento.

— É como se tivesse algumas de suas lembranças. — ela disse brandamente. — Deus, possivelmente este assunto da reencarnação seja… Real.

Ele a olhou.

— Talvez seja.

Não voltaram a falar pelo que restava da viagem. Não até que ele deteve o Jipe a entrada da atraente casa onde ela estava hospedada.

— Teus amigos vivem aqui? — perguntou.

— Os pais de minha companheira de quarto, Nikki, vivem aqui. Mas estão de férias.

— Assim só são você e Nikki. — por que ele estava fazendo isto? Perguntou-se. Era um idiota?

— Nikki ainda está em New Hampshire. Estará aqui amanhã de noite.

— Oh. — desligou o motor.

— Quero que entre, David.

Ele se voltou, olhou dentro dos olhos dela e assentiu, porque era incapaz de fazer nada mais. Os lábios dele se elevaram muito sutilmente nos cantos. Não um sorriso, mas tão perto como ela podia obter está noite.

Logo ela abriu sua porta e saiu, ele abriu a sua e a seguiu.

Abrindo a casa, ela entrou sem olhar para trás. David entrou, também, e tentou mostrar interesse na decoração da casa, olhando ao redor como se importasse, vendo nada salvo Sara.

— Por aqui. — disse ela, e começou a subir as escadas.

Franzindo o cenho, ele permaneceu em baixo, olhando para cima ao tempo que ela subia.

— Sara, não sei se…

Ela se volteou rapidamente, olhando a ele.

— Disse que esteve sonhando, também.

— Estive-o. — Deus, ela era formosa.

— Se teve os mesmos sonhos que eu… — deixou que sua voz se apagasse.

— Sonhos similares, possivelmente…

— Mas não os mesmos?

Ele inclinou a cabeça para um lado.

— Como poderiam sê-lo?

— Como poderia ser algo destes? — ela perguntou. E desceu um degrau. — Estou vestindo vestido branco. Você não está vestindo nada absolutamente. Estamos fora, e está chovendo. O chão está úmido, mas não parecemos notá-lo. De algum jeito nos enredamos um no outro, e estamos nos beijando como se não houvesse um manhã, e…

— Está bem, está bem. — ele sentia tudo o que ela descreveu como se estivesse ocorrendo então. E sentiu mais que isso. Sentiu-se aturdido, porque ela estava descrevendo o exato sonho que teve a noite passada, solitária noite.

Ela desceu outro degrau.

— Se também o estiveste sonhando, então deve significar…

— Poderia significar algo, Sara.

— Pakita diz que somos almas gêmeas. E se ela tiver razão?

— E se não a tem?

Ela deu de ombros, descendendo outro degrau, detendo-se agora só um degrau a cima dele, pondo os olhos de ambos ao mesmo nível.

— E o que se não importar? — perguntou ela. Deslizou suas mãos pelos ombros dele, entrelaçando seus dedos atrás do pescoço. — Agora mesmo, David necessito os braços de alguém ao redor de mim. Não acredito que haja realmente necessitado isso antes, mas o necessito agora. Pode não ser muito politicamente correto ou lógico. Mas o necessito, e você está aqui, e acredito que também o necessita. Não podemos deixá-lo assim, e não nos preocupar com o resto? Só por esta noite?

Ele não respondeu, porque ela pressionou seus lábios sobre os seus. O beijo possuía fogo e se sentiu ascender, envolvendo seus braços ao redor dela. Deslizou sua palma ao longo de suas costas, sobre seus quadris e coxas, e logo elevou as pernas dela ao redor de sua cintura e subiu as escadas. Ela envolveu seu corpo ao redor do dele como uma bonita arranha, agarrando à medida que se abraçaram  em movimento. No topo das escadas, ele murmurou contra os lábios dela:

— Por onde? — seu corpo inteiro ardia.

Ela meneou seus quadris contra os dele, esticando o agarre por suas pernas ao redor de sua cintura, e inclinou sua cabeça ligeiramente. Ele se moveu nessa direção, por volta da primeira porta. Ela pousou um braço ao redor do pescoço dele para alcançar detrás dele com a outra, girando o trinco e o empurrou abrindo. David a carregou dentro, e paralisaram sobre a cama.

Ele já não pensava no que estava fazendo. Tomaram mais a frente do pensamento. Só sentiam agora. Desejo, paixão, desejo. Sentia, por todo mundo, como um desejo que estava com ele por toda sua vida. E se sentia muito por cima e além de seu amor adolescente de Sierra, ou o arrependimento que sentiu por sua morte todo este tempo. Isto se sentia como mais.

Sentia, pensou, embora o assustasse até o inferno só de pensá-lo, como destino.

 

Sara nunca havia sentido nada como o que estava sentindo com cada toque das mãos do homem, e sua boca. O quarto estava escuro, mas não como a boca de um lobo. Mesmo assim, estavam envoltos por uma sombra suave enquanto caíam sobre a cama, tirando as roupas um do outro até que estiveram ambos nus, suas extremidades entrelaçadas, seus lábios inquisitivos, pedindo e recebendo, oferecendo e dando.

Ela sentia coisas em rajadas desarticuladas de sensações. A perna peluda passava brandamente sobre a sua. Os dedos deslizando por seu braço e depois por seu ventre. A dureza dele, pressionando contra sua coxa.

E logo, pressionando em seu interior. Tão naturalmente, tão facilmente. Moveram-se como se fossem uma só mente funcionando com ambos os corpos, unindo-os, separando-os, mas não muito, e voltando-os para unir. Agarraram-se, moveram e torceram, e seus sons foram suaves e desesperadamente famintos.

Ela não podia acreditar nos sentimentos, a paixão e, depois, a sensação de felicidade absoluta que explodiu em cada parte de seu ser. Ela gritou seu nome, afundando os dedos em seus ombros, enquanto todo seu corpo tremia na liberação.

Ele a sustentou contra si, rodando de lado, puxando-a contra seu peito, envolvendo-a com seus braços e beijando o cabelo. Quando os sentidos dela começaram a operar normalmente de novo, ouviu os lamentos do vento na noite além dos muros da casa, e a água e neve caindo brandamente contra as janelas.

Ela fechou os olhos, e pensou em dizer algo. Mas não havia palavras que pudesse ter dito que expressassem o que estava sentindo justo nesse momento, e tinha medo de que ao falar rompesse todo o feitiço.

Assim não o fez, ficou estendida ali, dormindo em seus braços.

Mas seus sonhos estiveram longe da felicidade pacífica que sentia com o David. Em seu sonho, era uma menina, aconchegada em seu quarto, enquanto ouvia os sons de vozes elevadas, e depois mãos que golpeavam carne. Seus pais, brigando. Estava-a golpeando de novo.

Não era nada ao que não estivesse acostumada. Não era nada pelo que não tivesse passado centenas de vezes. Sabia que devia se separar quando acontecia. Sabia que devia guardar silêncio, esperando que seu pai fosse com sua ira antes de sair para atender os cortes e machucados de sua mãe. Sabia que não devia contá-lo.

Mas esta vez, quando os golpes se detiveram, a casa ficou em silêncio e a caminhonete de seu pai se afastou rugindo, deslizou-se fora de seu quarto e viu que estava sozinha. Não encontrou sua mãe por nenhuma parte.

David passou uma hora tentando encontrar algum tipo de sentido a tudo o que estava acontecendo, ou inclusive nada disso, mas não parecia haver nenhuma explicação que pudesse encontrar. E o sexo entre eles, e a bela e jovem mulher entre seus braços eram mais confusos que nenhuma outra coisa.

Não era Sierra. Inclusive se sua teoria de reencarnação fosse certa, não era Sierra. Sabia isso. Não estava confuso sobre isso. Essa atração que exercia sobre ele não era seu antigo fracasso na escola secundária ressurgindo. Mas não se sentia como algo novo, tampouco. Sentia-o antigo. Mais antigo que eles, inclusive.

E não entendia isso.

Finalmente, dando-se conta de que Sara estava profundamente adormecida, David se deslizou da cama, movendo-se cuidadosamente e tentando não despertá-la. Procurou por todo o chão, localizando suas roupas, colocou as calças jeans e então, saiu descalço pelo corredor e desceu pelas escadas, tirando seu telefone móvel do bolso pelo caminho.

Andou pela cozinha enquanto marcava, abrindo os armários procurando um lanche.

Randy respondeu ao terceiro timbre.

— Ei, amigo, sou eu.

— Dave? Onde infernos está, estivemos muito preocupados!

— Ainda estou com ela.

— Ela? — e então... — Oh.

— Escuta, como está Brad?

— Vai estar bem. Assim que quem é ela, Dave? O que tem que ver com Sierra?

— Parece-se com ela.

Houve uma longa pausa, como se Randy estivesse esperando mais, e quando só houve silêncio, disse:

— E?

— Não sei. Eu… Eu não sei. — ouviu Sara movendo-se, baixando as escadas. Levava uma camisola branca, comprida e vaporosa, que chegava até os pés. Recordou vê-la pendurada no poste da cama como um fantasma, e se estremeceu.

— Sara? — chamou.

Mas não respondeu. E Randy estava falando de novo.

— O doutor disse que as artérias do Brad estavam tão obstruídas, que isto poderia ter acontecido em qualquer momento. E quanto mais tempo tivesse demorado para acontecer, pior poderia ter sido.

— Sim? — voltou a procurar um lanche.— Cindy já chegou?

— Estará aqui pela manhã.

—Excelente. — David ouviu o vento de repente mais forte, e sentiu uma úmida brisa percorrendo a casa. — Tenho que ir, colega. Falarei contigo manhã.

— Mas… O que ela disse? Por que está aqui?

— Direi isso amanhã.

Desligou enquanto passava pela porta, olhando para o vestíbulo e a porta principal, que estava totalmente aberta com a chuva salpicando o interior.

— Sara?

Guardou o telefone no bolso e colocou de uma vez a camiseta, correndo para a porta aberta. Um frente quente se deslocou, convertendo a neve em chuva. Sara estava caminhando rua abaixo, arrastando-se pela água de chuva enlameada.

— Sara!

Mas ela não respondeu. David se calçou rapidamente e, desejando uma jaqueta, correu atrás dela. Mas desapareceu. Não podia vê-la por nenhum lado. Desesperado, correu para seu Jipe, abriu a parte de atrás e agarrou uma lanterna. Logo subiu a parte dianteira e arrancou, conduzindo pela estrada na direção em que a viu pela última vez. Abriu o vidro e apontou a lanterna para a noite empapada de chuva, gritando seu nome.

— Sara! Onde está?

Finalmente, captou um brilho de algo branco, longe, na distância. Desaparecendo na densa área arborizada da cidade muito longe da estrada.

Estacionou o Jipe e saiu, levando a lanterna com ele e correndo por entre o bosque.

— Sara, por favor, espera.

Mas ela não o fez. Entretanto, uma olhada disse que caminho seguir, e ele se movia muito mais rápido que ela. De modo que a alcançou logo.

Estava ajoelhada no chão úmido, escavando através da neve até a terra debaixo.

— Sara!

Mas ela não respondeu. Não até que a alcançou e pôs uma mão sobre seu ombro. Então tragou um forte ofego, e sua cabeça se disparou rapidamente, com os olhos muito abertos e aterrorizados. Olhou, piscando através das gotas de chuva.

— David? O que… O que estamos fazendo fora na chuva?

Agachou junto a ela, agarrando-a pelos ombros.

— Não sei. Você me trouxe aqui fora. Estava escavando na terra. — assinalou com a cabeça as suas mãos.

Ela olhou, com a gelada e úmida terra que os cobria, sacudindo a cabeça lentamente. Mas então se deteve, e olhou no chão de novo.

— Acredito… Acredito que alguém está enterrado aqui.

— O que?

— Acredito que é minha… A mãe de Sierra. Tamara.

— Jesus. Sara o que te faz pensar…

— Sonhei… Mas não era eu, em meu sonho, era ela. Estava em meu quarto, escutando como brigavam. Batia nela. E depois se ia, saí para ver se ela estava bem, mas foi-se. Ela só se foi. Ao dia seguinte, ele me disse que voltou para a Índia. Mas sabia que a havia assassinado. Sabia.

David jurou em voz baixa.

— Levou-me um momento averiguar onde poderia ter posto seu corpo. Mas então meu gato adoeceu, e me perguntei se poderia morrer, e lembrei do lugar no bosque onde sempre enterrávamos nossos bichinhos. — olhou ao redor. — Este lugar.  — disse. — Vim aqui com uma pá, estava decidida a encontrar a minha mãe, encontrar uma prova. Mas ele me viu, e me seguiu. Sabia que tinha razão quando encontrei um terreno de terra removida. Mas me viu cavar, e começou a gritar, soava como nunca o ouvi antes. E pensei que ia me matar, também. Assim corri.

David assentiu lentamente.

— Correu. Escondeu-te na velha Casa Muller.

— Sim. — ela olhou ao chão. — Mas nunca encontrei a minha mãe.

Levantando a cabeça, ele disse:

— Tenho uma pá no Jipe.

— Traga-a, poderia?

Ele agarrou sua mão, ela tomou, e se deixou levar de volta ao Jipe pela pá. Então, sob a chuva, ela sustentou a lanterna enquanto ele cavava no lugar indicado, o lugar onde Sierra esteve cavando quando tinha dezesseis anos porque a terra foi removida ali.

Não passou muito tempo. O primeiro osso surgiu facilmente, só ao redor de quinze centímetros para baixo. Era branco, com partes de cetim rosa grudado a ele.

Sara deixou cair a lanterna.

— Mamãe. — sussurrou.

E então houve um terrível som, um golpe úmido, e David caiu de boca na terra.

— David! — gritou, lançando-se para ele, mas logo se congelou no lugar quando viu Frank Terrence ali de pé, com uma pá nas mãos. Ela sacudiu a cabeça enquanto retrocedia.

— Matou a sua esposa. — disse brandamente. — Por isso Sierra escapou.

Sustentou o olhar.

— Como soube vir aqui? A este lugar?

Devolveu o olhar.

— Lembrei que estávamos acostumados a enterrar nossos bichinhos aqui.

— Recorda?

— Buttons, esse pequeno cão raro com olhos de gato. Gretta, a beagle. Esse feio e velho gato guia de ruas que chamávamos Bob.

— Como…?

— Por que a matou? Por quê?

Frank agitou a cabeça, então de repente se equilibrou sobre ela, com a pá voando. Esta bateu em sua cabeça, a pesar que tratou de desviar o golpe, e Sara viu estrelas. E logo tudo se sumiu na escuridão e mais.

Ela estava ali de novo. Voltou para passado a última noite de sua vida ocultando-se de seu pai na Casa Muller. Esteve ali durante uma semana e, até agora, ninguém a havia encontrado. Mas era só uma questão de tempo. Sabia.

Mas essa noite, estava distraída. Essa noite, David veio, junto com seus quatro melhores amigos. Estavam animados, e bebendo no jardim dianteiro, e ela estava observando as escondidas, desejando ter o descaramento de sair e falar com David. Estava caída por ele durante muito tempo.

E, entretanto, não o fez. Simplesmente, ficou dentro e olhou, desejando, desejando e sonhando.

Quando os meninos lançaram uma bomba incendiária caseira por uma janela, assustou-se. Saltou e entrando em pânico, correu para apagá-lo. Mas a coisa piscou e se extinguiu por si mesmo. Ela se deu conta, e então riu de si mesma, pela ineficácia da brilhante ideia de bêbados. Graças a Deus não funcionou, pensou.

E então escutou a voz de seu pai detrás dela, dizendo:

— Isto não poderia ser mais perfeito, verdade? — estava jogando gasolina de uma lata e, quando olhou, lançou um pouco de líquido em sua direção. Então, lançou a lata vazia para ela e a golpeou na cabeça, enviando sobre seus joelhos. — Não tinha intenção de matá-la. — a voz do homem era quase um gemido. — Ela golpeou a cabeça com a maldita estátua Kwin Yon a que sempre estava…

— Kwan Yin. — sussurrou ela, vendo-a em sua mente, de porcelana branca e bonita.

Mas Frank não pareceu ouvi-la.

— Foi um acidente. Não vou para prisão por um acidente. Mas o farei, se te deixo viver. Farei-o.

Ela foi vagamente consciente de que ele acendia fósforos e os jogava sobre os atoleiros do chão. A gasolina a apanhou e se acendeu com um poderoso whoosh! E Sierra cobriu os olhos e retrocedeu. Seu pai correu pela porta de atrás, e viu seu pé caindo por um ponto débil no chão. As chamas cresceram entre ela e sua via de escapamento, e ela gritou por ajuda.

Frank atirou de sua perna fora do buraco do chão. Saiu descalço, com um corte que sangrava na perna. E, entretanto, girou, e partiu coxeando, sem nem sequer olhar atrás. Deixando-a morrer.

Ela se retirou escada acima e se dirigiu a janela, mas os meninos, vendo as chamas, deram meia volta e correram. Estava muito longe para saltar. Correu para o corredor, asfixiando-se pela fumaça. Mas as escadas se derrubaram, e não havia maneira de sair. Então, a fumaça se apoderou dela e caiu ao chão, com o nome de David nos lábios.

Como de novo agora. Ela gemeu o nome de David e abriu os olhos, despertando do pesadelo só para encontrar que não despertou dela.

Não era mais o passado. Não era mais uma lembrança ou um sonho. Estava na velha Casa Muller, Casa Sierra, agora. E estava ardendo, justo como antes. Estava no segundo andar, jazendo sobre o vestíbulo, engasgando-se com a fumaça. E desta vez David deitado a seu lado.

Arrastou-se para ele, sacudindo para tratar de despertá-lo, ofegando procurando ar e tentando não sentir o enjoativo calor das chamas que abaixo começavam a subir as escadas para eles.

— David! David, por favor, acorda!

Não o fez. Mas enquanto sacudia, sentiu o vulto duro de seu telefone móvel em seu bolso, e rapidamente, tirou-o e pulsou o botão de chamada sem sequer introduzir um numero pelo pânico.

Para sua surpresa, ouviu soar ao outro lado, e aproximando o telefone, olhou a tela, onde punha “Chamando o Randy…”

Uma voz de homem respondeu.

— Dave?

— Socorro! — gritou Sara.

— O que… Quem é…?

— Nos ajude, por favor! Estamos na casa. Está ardendo. Estamos presos. Por favor…

— Sierra?

— David está inconsciente. Não foi ele. Não foram vocês, nenhum de vocês, foi meu pai. Oh, por favor, por favor… — se engasgou com a fumaça, mas ouviu o Randy gritando ordens a alguém antes de cair e desmaiar.

Quando despertou, dois homens vagamente familiares se inclinavam sobre ela.

— Vamos, vamos! — gritavam.

Um deles já estava ajudando a David, sacudindo para despertá-lo. E o outro estava agarrando Sara em seus braços. O grupo junto se dirigiu para a escada, mas ouviu David dizer:

— Não podemos sair por esse caminho. Toda a planta baixa está engolida pelas chamas.

Ela elevou a cabeça, engasgando-se com as palavras.

Justo como a última vez. Agitou a cabeça.

— O que estão fazendo aqui, meninos?

— Chegamos aqui antes que os bombeiros, o que íamos fazer, ficar aí fora e esperar? — disse Kevin. — Se cairmos cairemos juntos.

— Sobre meu cadáver. — disse David. — Me dê isso, Kevin, e agora me siga.

Tomou Sara dos braços de Kevin, e encabeçou aos três pelo corredor do segundo andar até o final, então entrou em uma sala fechando a porta atrás deles.

Parecia ser uma biblioteca. Randy correu as janelas, abrindo as de par em par. A rajada de ar fresco era muito boa para acreditá-la. Sara aspirou fôlego detrás fôlego enquanto David a levava perto da janela e a deixava no chão.

— O chão está quente! — gritou, soprando ar entre os dentes e ficando de pé. Mas seus pés estavam descalços, e se queimavam.

— Só respira. Respira tanto como possa. — David arrancou as cortinas das janelas, as pondo contra a parte de debaixo da porta fechada, enquanto Sara aproximava uma cadeira a janela e se ajoelhava sobre ela para proteger seus pés do ardente chão.

— Sirenes! — disse Randy. — Ouço sirenes!

— Bem. — David retornou a janela, pondo o rosto no ar de fora. — Mais vale que se deem pressa. Está muito alto para saltar.

Kevin disse:

— Vamos ter que saltar. Não acredito que tenhamos escolha.

E enquanto que morrer com ela esta vez poderia ser uma ironia poética, possivelmente inclusive justa, preferiria não fazê-lo.

— Não foram vocês. — disse Sara, mas tinha a garganta rouca pela fumaça. — A bomba incendiária que jogaram se apagou. Vi-o. Foi meu pai. Seu pai. Foi Frank. Estava aqui, também, com gasolina. Acendeu o fogo. Matou-me, a ela, porque sabia que assassinou a sua mãe.

— O que? — disseram Kevin e Randy de uma vez.

Os três homens se olharam, e depois a ela. David disse:

— Temos que sair daqui, ou não vai haver nenhuma diferença. É só o segundo andar. Podemos te baixar metade da distância, Sara. Vamos, sobe.

— Mas…

— Faça. — ordenou Randy.

E não houve tempo de argumentar. Sara se colocou fora da janela, e tirou as pernas. David a agarrou pelo antebraço, e ela fechou sua mão na dele. Randy fez o mesmo com o outro braço, e os dois homens se inclinaram na medida em que puderam, até que ela pendurou tão baixo, que seus pés tocavam a parte superior do piso de abaixo.

— No três, vamos. — disse David. E ela ouviu o rugido das chamas além dele, e soube que o fogo de algum jeito entrou na sala onde se refugiaram. — Um, dois…

Ela soltou sua mão no três e caiu sobre a terra, golpeando-a muito mais rápido do que acreditou possível. O impacto tirou o ar, mas ficou de pé novamente, movendo o olhar até a janela.

Mas esta vez, ela só viu chamas do outro lado.

— David! — gritou.

E então houve sirenes e luzes, mãos duras afastando-a e a água jorrando a maldita casa. Mas não havia sinal de David.

Ela soluçou enquanto dizia aos bombeiros onde estavam os três homens, e empurrou contra a máscara de oxigeno que pressionavam contra sua face.

E finalmente, viu. Os três, dando tombos desde detrás da casa, com as caras sujas e as costas dobradas. Do braço, vieram, então levantaram a vista e a viram, e sorrisos brancos apareceram em suas sujas caras enquanto se arrastavam para perto.

Quando finalmente a alcançaram, os três homens a envolveram em um abraço de grupo. Estavam todos soluçando. Ela chorava, também. Algo poderoso aconteceu aqui. Finalmente, Randy e Kevin retrocederam um pouco, mas David continuou abraçando-a, e ela não acreditava que tivesse intenção de deixá-la ir logo.

Ao olhar os rostos dos homens, viu o assombro em seus olhos, e o entendeu. Não era uma noite normal, pensou enquanto os bombeiros faziam seu trabalho, tentando salvar o antigo lugar Muller de novo. Essa noite, a história se repetiu. Os homens que viveram com uma culpa fora do lugar tiveram uma oportunidade de voltar a viver a pior noite de suas vidas, e fazer que saísse bem esta vez. Ela não morreu no fogo esta vez. Viveu.

E ela sabia por que. Ela viveu para contar a história. Para dizer a verdade.

David a olhou nos olhos. Ela piscou através das lágrimas quando levantou a vista.

— Acabou-se, verdade? — perguntou.

Ele passou um polegar por sua bochecha, agarrando uma lágrima e, provavelmente, um pouco de fuligem junto com ela.

— Não, Sara. Espero que não. Espero que acabe de começar.

E logo se inclinou e a beijou, e ela se relaxou contra seu forte peito, colocando-se no abraço de seus poderosos braços e sentindo como se fora ali onde pertencia.

 

Sara estava de pé com o pequeno grupo no cemitério, onde o corpo da mãe de Sierra, Tamara, estava tendo um enterro digno, justo ao lado de sua filha e sua irmã, Pakita.

Tamara foi assassinada com um golpe na cabeça, determinou a autópsia. E quando foi detido para ser interrogado, Frank Terrence confessou tudo… O assassinato de sua esposa, o incêndio que matou a sua filha por volta de vinte e dois anos e o incêndio mais recente com a intenção de matar a jovem mulher que era parecida com ela. Disse que ela havia voltado para fazer pagar pelo que fez. Mas a maioria das pessoas pensava que os anos de culpabilidade por fim o conduziram a loucura.

Nikki e Cami estavam ali, igual aos cinco homens que nas últimas duas décadas culparam-se pela morte da jovem. Mark estava em uma cadeira de rodas dirigida por sua esposa, Janet. Mas se via bem, e esperava que se recuperasse completamente. Brad estava andando por seus próprios meios, ao redor de cinco quilos mais magro desde seu ataque. Os cinco homens pareciam anos mais jovens, só pela eliminação da carga que estavam levando em suas almas.

David e Sara estavam de braço dado, e ficaram na tumba depois que os outros se foram. Sara disse:

— É estranho. Cresci em orfanatos. Nem sequer recordo ter mãe própria. Mas sinto que talvez o faça agora.

David assentiu, aproximando-a mais.

— O que vai fazer agora, Sara?

— Isso depende de você. — disse ela em voz baixa. Voltou-se e o olhou aos olhos. — Poderia voltar para New Hampshire e continuar minha vida onde moro. Ou… Poderia começar a procurar emprego onde precisam de professora de arte em Boston.

A tensão que havia em seu rosto desapareceu, substituída por um cálido e real sorriso.

— Faria isso?

— Sim, faria. Quero dizer, talvez como acabamos de nos conhecer…

— Ou talvez não. — disse ele.

— Mas de qualquer maneira, quero ver aonde vai isto. É… É poderoso, o que há entre nós. Poderia ser… Poderia ser uma coisa real. Quero sabê-lo.

— Eu também, Sara. Eu também. — sustentou-a mais perto. — Devolveu-me a vida.

— Bom, devolvi o favor. — sorriu. — Então, o que vai fazer durante o resto dela?

— Se for à minha maneira, um montão disto. — disse, e se inclinou sobre ela e a beijou como se não houvesse amanhã. Mas pela primeira vez, realmente sentiu que sim, havia.



 

[1] São Valentim é um santo reconhecido pela Igreja, que dá nome ao Dia dos Namorados em muitos países, onde celebram o Dia de São Valentim. O dia 14 de fevereiro, festa do santo, é considerado, em muitos países, como o dia dos namorados.

[2] Piromania, para a Psiquiatria, consiste no desejo mórbido e incontrolável de provocar incêndios ou de atear fogo às coisas.

[3] Abreviatura da Universidade da Philadelphia.

[4]Pee-wee é um personagem cômico, não muito inteligente.

[5]Ressucitação cardio pulmonar são as manobras realizadas na tentativa de reanimar uma pessoa vítima de parada cardíaca "e/ou" respiratória.

[6]Ghost Whisperer e Medium são séries de TV em que espíritos tentam se comunicar para resolver algo pendente e só assim poder descansar em paz.

[7]O sári é um traje nacional das mulheres indianas, constituído de uma longa peça de pano que envolve e cobre todo o corpo.

 

                                                                                            Maggie Shayne

 

 

                      

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