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FANTASIAS AO ANOITECER / Maggie Shayne
FANTASIAS AO ANOITECER / Maggie Shayne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FANTASIAS AO ANOITECER

 

Durante séculos, a solidão os acompanhou da noite para o amanhecer. Mas da escuridão surgiu a luz da vida eterna... do amor eterno.

O destino cruel condenou Eric Marquand a habitar para sempre o mundo das sombras... sozinho. Se ele possuísse sua alma gêmea, a destruiria. Mas Tamara tinha intenção de decidir seu próprio destino.

                 

 

20 de março 1793

O resto de uma vela de sebo estava equilibrada na saliência de uma pedra fria, com sua chama lançando sombras animadas e estranhas. O cheiro do sebo queimado não era agradável, mas muito mais que outros aromas que enchiam o ambiente. O ar era úmido e mofado. Cogumelos grossos esverdeados cresciam nas paredes de pedra áspera. Excrementos de ratos. Corpos humanos repugnantes. Até aquela noite, Eric tinha tido cuidado para conservar a vela, sabendo que eles não permitiriam que tivesse mais. Ele já não precisaria dela. Ao amanhecer, iria para a guilhotina.

O Eric fechou os olhos para não ver as sombras zombeteiras oscilando e trouxe os joelhos de encontro ao tórax. No outro fim da cela, um homem tossiu com espasmos terríveis. Mais perto, alguém gemeu se revirando enquanto dormia. Eric era o único acordado aquela noite. Os outros também confrontariam a morte, mas não no dia seguinte. Ele, novamente, desejava saber se o seu pai tinha sofrido daquele modo nas horas anteriores a execução. Desejava saber se sua mãe e sua irmã caçula, Jaqueline, teriam podido cruzar o Canal da Mancha e estarem seguras. Eric tinha conseguido conter aos camponeses sedentos de sangue todo o tempo que ele tinha sido capaz. Se as mulheres estivessem seguras, consideraria merecido o sacrifício da sua própria e patética vida. De todos os modos, era diferente. Eles sempre o tinham considerado um homem estranho. Duvidava que alguém sentisse sua falta. Tinha estado sozinho grande parte dos seus trinta e cinco anos.

Seu estômago doeu e se inclinou para diante, suprimindo um gemido. Fazia três dias que não comia nem bebia nada. A sujeira que repartiam naquele cárcere o mataria mais depressa que a inanição. Possivelmente morreria antes de que pudessem cortar sua cabeça. A idéia de privar a aqueles bastardos de seu passatempo barbáro o fez elevar a curva de seus lábios ressecados.

A porta da cela se abriu com um grande chiado, mas Eric não levantou a vista. Sabia que não devia chamar a atenção. Mas não era uma voz familiar que ouviu, e parecia muito culta para pertencer a um desses porcos iletrados.

     — Nos deixe! Chamarei-te quando tiver terminado — a voz transmitia uma autoridade que exigia obediência. A porta se fechou com força, mas Eric seguiu sem se mover.

Os passos se aproximaram e se detiveram frente a ele.

     — Vamos, Marquand, não temos a noite toda.

    Tentou tragar saliva, mas não sentia mais que areia seca na garganta. Levantou o rosto devagar. O homem que se erguia ante ele sorriu, acariciando distraidamente o lenço de seda do elaborado nó. A luz da vela fazia refulgir seu cabelo, negro como a asa de um corvo, mas seus olhos brilhavam com uma escuridão imensa.

       — Quem é você? — Eric conseguiu dizer. Falar resultava doloroso depois de tantos dias sem pronunciar uma palavra nem beber uma gota de água.

       — Roland. Vim te ajudar, Eric. Levante. Não temos muito tempo.

       — Monsieur, se for uma brincadeira...

       — Asseguro-te que não é — se inclinou para sujeitá-lo pelo antebraço e, com um puxão que pareceu custar um mínimo de esforço, o levantou.

       — Mas... se nem sequer me conhece. Por que quereria me ajudar? Seria um risco para sua liberdade.  Além disso, não há nada a fazer. Minha sentença é definitiva e morrerei pela manhã. Conserve sua cabeça, amigo. Vá-se.

O homem chamado Roland escutou as palavras ásperas do Eric e assentiu devagar.

     — Sim, é digno. Não fale mais, moço. Sei que te dói. Faria melhor em escutar. Conheço-te. Conheço-te desde o dia em que tomou seu primeiro fôlego.

     Eric proferiu uma exclamação e deu um passo atrás. Sentia o comichão de certa familiaridade. Procurou a vela sem apartar os olhos do Roland e a levantou.                     

          — O que diz é impossível, monsieur. Deve me haver confundido com outro — pestanejou à luz trêmula, ainda incapaz de localizar ao homem em suas lembranças.

     Roland suspirou, frustrado, e tirou a vela de seu rosto com a mão.

          — Aparta isso de minha cara, homem. Digo-te que te conheço. Digo que vim a te ajudar e replica. Poderia ser que está impaciente para que cortem sua cabeça? — Eric guardou a vela e voltou a olhá-lo — Em seu quarto ano de vida te caiu ao Canal. Por pouco te afoga, Eric. Recorda ao homem que te tirou, gritando, da água fria? A véspera de seu décimo aniversário esteve a ponto de ser atropelado por uma carroça. Não te lembra do homem que te arrancou do passo desses cascos?

     A verdade daquelas palavras sacudiu ao Eric como um murro, e se estremeceu. A cara tão branca que parecia grafite com giz, os olhos tão negros que não se distinguia a pupila da íris: era o rosto do homem que o tinha salvado nessas duas ocasiões. Entretanto, desejava negá-lo. Roland tinha algo que o assustava.

          — Não deve me temer, Eric Marquand. Sou seu amigo. Deve acreditá-lo.

     O olhar escuro prendeu o de Eric enquanto falava de uma maneira extranhamente hipnótica. Eric notou que se relaxava.

          — Acredito que estou agradecido. Mas um amigo me é de pouca utilidade agora. Nem sequer sei quantas horas faltam. Ainda é noite fechada?

          — É-o, moço, se não, não poderia estar aqui. Mas o tempo se apressa, e a alvorada se aproxima. Demorei mais do que acreditava em subornar aos guardas para poder te visitar. Se quer viver, deve confiar em mim e fazer o que te diga sem duvidá-lo — fez uma pausa, arqueando as sobrancelhas, à espera da resposta.

     Eric se limitou a assentir, incapaz de pensar com a confusão que reinava em seu cérebro.

          — Bem — disse Roland — Agora, te tire o lenço.

     Eric se levou os dedos ao tecido de linho sujo e desfiado com dedos pesados.

          — Me diga o que planeja, monsieur.

          — Vou me encarregar de que não morra — limitou a dizer, como se o desse por feito.

          — Temo que ninguém possa trocar meu destino — Eric desfez finalmente o nó e tirou o lenço do pescoço.

          —Não morrerá, Eric. Nem amanhã, nem nenhum outro dia. Me siga.

     Os pés do Eric pareceram fundir-se com o chão. Não poderia ter dado um passo adiante embora quisesse. Abriu os olhos de par em par e sentiu que fechava sua garganta.

          — Sei que tem medo, mas pensa! Eu sou mais temível que a guilhotina? —gritou, e Eric ficou rígido e olhou ao redor, mas ninguém se moveu.

          — Por que... Por que não despertam? — Roland se aproximou então e o sujeitou pelos ombros— Não o entendo. Por que não despertam? — repetiu Eric.

O guarda esmurrou a porta.

     — Acabou-se o tempo!

     — Cinco minutos mais! — Vociferou Roland, com uma potência que fez vibrar as paredes— A espera valerá a pena, soldado! Agora, vai-te!

     Eric ouviu grunhir ao guarda e afastar-se da porta enquanto gritava:

     — Dois minutos, não mais!

     —Maldição, moço, tenho que fazer. Me perdoe por não encontrar uma maneira menos temível — dito aquilo, Roland atraiu ao Eric para ele com uma força sobrenatural. Sujeitando sua cabeça com a palma da mão, e embora Eric lutava para liberar-se, afundou as presas na sua garganta.

     Quando Eric abriu a boca para proferir um grito horrorizado, algo úmido selou seus lábios. Repugnou-o compreender que era um pulso, cortado e sangrando. Roland apertou a veia aberta contra sua boca e Eric não teve mais remédio que tragar o fluido vil que enchia sua boca.

     Vil? Não, morno e salgado. Com o primeiro sorvo compreendeu, chocado, que queria mais. O que estava passando com ele? Teria perdido a prudência? Sim!  Porque ali estava ele, permitindo que o sangue de outro homem aplacasse sua dolorosa fome, sua interminável sede. Nem sequer se acovardou quando a palavra passou por seu cérebro como uma brisa fresca. Vampiro. O temor se apropriou de seu coração ao tempo que o sangue do Roland enchia seu corpo. Notou que se debilitava, que caía em um escuro abismo do que não queria escapar. Era uma morte muito melhor que a que traria consigo o amanhecer. O sangue o estava drogando, e Roland se apartou.

     Eric não podia manter-se em pé. Sentia-se vazio de tudo, e caiu ao chão. Não notou o impacto. Sua cabeça flutuava e sentia espetadas de um milhão de agulhas invisíveis na pele.

     — O que... o que me há... feito? —perguntou com muita dificuldade, arrastando as palavras, como se estivesse bêbado. Já não sentia a língua.

     —Dorme, meu filho. Quando despertar, estará livre desta cela. Prometo-lhe isso. Dorme.

     Eric tentou lutar contra o peso das pálpebras, mas fecharam. Vagamente, sentiu umas mãos frias atando o lenço manchado, ouviu o Roland esmurrar a porta e chamar o guarda.

     —Não viverá o bastante para ser executado, temo-me — a voz do Roland parecia chegar de muito longe.

     — Maldição! Estava bem...

     —Olha-o você mesmo, soldado. Olhe como está definhando! Morrerá antes do amanhecer, já o verá. Enviarei um carro a recolher o corpo. Te encarregue de transladá-lo, pode fazê-lo?

     —Por um preço, senhor.

     —Aqui, pegue. E haverá mais se fizer exatamente o que te peço.

     —Bom, se morrer, como você diz, ocuparei-me de colocá-lo em sua carruagem. Mas se não, estarei aqui para me certificar de que esteja presente a seu encontro com a guilhotina. De qualquer maneira, acabará igual. Em uma fossa, não é, senhor? —umas gargalhadas ásperas ressonaram na cela e a porta se fechou de repente.

 

Época atual

     No sonho, ela estava fugindo. De algo, para algo. Para alguém.  Abria  espaço entre a densa folhagem de sarças e novelo trepadeiras que enrolavam em suas pernas, a freavam. Nem sequer podia ver por onde pisava. E durante todo esse tempo o chamava mas, como sempre, quando despertava, não conseguia recordar seu nome.

     Tamara se incorporou depressa, apartando o cabelo úmido da testa, e lançou um olhar ao relógio da cabeceira e à luz minguante da janela.

     Não precisava. O sonho a assaltava à mesma hora todos os dias, em seu momento de descanso cada vez mais irregular. A insônia noturna, a letargia diurna e uns pesadelos quase reais e repetitivos, se converteram em uma parte previsível de sua existência. Tinha se acostumado a tomar uma sesta assim que voltava para casa do trabalho, sabendo que depois não poderia descansar. Dormia profundamente até pouco antes do entardecer, quando despertava com aquele sonho temível e persistente.

     Os efeitos se dissolveram devagar e Tamara se levantou, colocou o roupão e se dirigiu ao banheiro, deixando rastros na amaciado tapete chapeado. Abriu o grifo da ampla banheira e deixou cair um punhado de sais de banho na água. De repente, ouviu uns golpes prementes na porta e foi abrir.

     Daniel franzia suas sobrancelhas grisalhas sobre uns olhos consternados de cor azul pálido.

     —Tammy, está bem?

     Tamara fechou os olhos devagar e suspirou. Devia ter gritado outra vez. Já era terrível ter a certeza de estar perdendo o juízo, mas preocupar ao homem que tinha sido como um pai para ela durante os últimos vinte anos era demais.

     —É obvio que estou bem. Por quê?

     —Me... Me pareceu ouvir você gritar —Daniel entreabriu os olhos para avaliar seu rosto. Tamara esperava que não notasse suas olheiras— Seguro que...?

     —Sim, estou bem. Bati meu dedo na cabeceira da cama, nada mais.

     Seguia olhando-a com vacilação.

     —Está com uma cara de cansada.

     —Estava a ponto de me dar um banho quente e me deitar - sorriu para suavizar a preocupação do Daniel, mas se converteu em um cenho quando reparou no casaco que tinha pendurado do braço - Vai sair? Daniel, esteve nevando todo o dia. As estradas...

     —Não vou dirigir. Ele não me apanhará.

     Tamara endireitou as costas e suspirou.

     —Vai espiar outra vez a esse homem, verdade? Sério, Daniel, essa obsessão que tem...                

     — A espiar! É vigilância. E não o chame obsessão, Tamara. É puro estudo científico. Deveria compreendê-lo.

     Tamara arqueou as sobrancelhas.

     —É folclore. Nada mais. E se segue importunando a esse pobre homem, acabará te levando aos tribunais. Daniel leva meses seguindo-o. Ainda não tem nenhuma só prova de que seja...

     —Daniel - a voz do Curt a interrompeu. Apareceu no patamar e se reuniu com o Daniel— Está preparado?

     — E você! —Tamara seguiu falando como se Curt tivesse seguido toda a conversação— Não posso acreditar que esteja participando desta caça às bruxas. Pelo amor de Deus, estamos nos anos noventa, meninos! No Byram, Connecticut, e não na Transilvânia, no século quinze.

     Curt ficou olhando um momento. Depois, inclinou a cabeça e abriu os braços. Ela suspirou e deixou que a abraçasse.

     — Segue sem poder dormir pelas noites? —perguntou Curt com suavidade. Tamara moveu a cabeça sobre o tecido úmido do casaco.

     —Preocupa-me deixá-la só - disse Daniel, como se ela não estivesse ali.

     —Tenho experimentos que terminar no laboratório do porão - sugeriu Curt—. Poderia ficar, se quer fazer a vigilância sozinho.

     —Não necessito babá – Tamara reclamou, mas Daniel não deu atenção.

     —Parece uma  boa idéia - disse, e se inclinou para dar um beijo na sua bochecha - Voltarei ao amanhecer.

     Ela saiu dos braços do Curt e moveu a cabeça, frustrada.

     —Daniel e eu sabemos o que fazemos Tammy - disse Curt em tom suave - Levamos neste negociou muito mais tempo que você. A DIP tem montões de dados sobre o Marquand. Não é uma lenda.

     —Quero ver os arquivos — impediu as lágrimas e o olhou nos olhos. Ele apertou os lábios.

     —Seu nível de segurança não é o bastante alta.

     Era a resposta que esperava. A mesma que recebia cada vez que pedia para ver os arquivos da Divisão de Investigações Paranormais sobre o suposto vampiro, Marquand. Curt pôs a mão no seu ombro.

     —Tamara, não te zangue. É para seu próprio...

     —Sei. Para meu próprio bem. A água da banheira vai transbordar.

 Separou-se dele e fechou a porta. Curt se encerraria no laboratório do porão e não voltaria a pensar nela, estava segura. Não se preocupava com ela como o fazia Daniel. Mas ultimamente se acreditava no direito a dar mais ordens que de costume. Encolheu os ombros, decidindo não seguir pensando na atitude possessiva do Curt para ela. Fechou o grifo da água e ficou olhando durante longo tempo. Não havia banho de água quente que pudesse ajudá-la a dormir. Tinha provado de tudo, desde leite morno até uma dose dobrada do calmante que o médico tinha receitado por insistência dela. Nada funcionava. Por que continuar tentando?

Com um suspiro de frustração, dirigiu-se às portas de cristal. Abriu-as de par em par e saiu ao balcão. O céu negro púrpura, de um azul prateado no oeste, deixava cair flocos de neve com uma caótica coreografia. Ficou olhando, encantada, a singela elegância da neve. De repente, sentiu desejos de formar parte dela. Por que esbanjar toda sua energia passando a noite tombada na cama, contemplando o dossel branco? Sobre tudo, quando sabia que não dormiria até altas horas da madrugada. Possivelmente pudesse ficar bastante cansada e esquecer. Quanto tempo fazia que não desfrutava de um prazer singelo?

Entrou no dormitório, impaciente agora que a decisão estava tomada. Colocou uma calça preta, um grosso pulôver de crochê, dois pares de meias três-quartos de cor rosa e muito engraçadas. Tirou o casaco e os patins do armário, guardou-os em uma bolsa de lona, colocou também a carteira e abriu a porta do dormitório.

Ficou um momento escutando. A casa estava em silêncio. Avançou nas pontas dos pés pelo corredor e baixou as escadas. Parou na porta principal o tempo suficiente para colocar as botas e saiu sem fazer ruído.

O ar corava suas bochechas e seu fôlego formava pequenas nuvens entre a neve que caía. Vinte minutos passeando e vendo dançar a neve a conduziram aos subúrbios do Byram. Sentiu uma alegria infantil quando viu seu destino.

     A pista de gelo sobressaia entre os arbustos e as árvores cuidadosamente podadas do parque da cidade. Caminhos serpenteados salpicados de neve, bancos de ferro forjado com assentos de madeira de cerejeira, cestos de papéis pintados de um alegre verde formavam uma grinalda em torno do gelo. Tamara se apressou a aproximar-se do primeiro banco para colocar os patins.    

     Quando despertou, Eric teve a sensação de ter a cabeça cheia de algodão molhado. Pôs os pés no chão com desacostumada estupidez. Não necessitava uma janela para perceber o pálido rubor que seguia aceso no horizonte. Não tinha sido a chegada da noite o que o tinha despertado, nem aquele dia nem nas últimas semanas. Os gritos dela ressonavam em sua cabeça até que não podia seguir descansando. O temor e a confusão eram evidentes em suas súplicas dilaceradoras. Sentia seu medo, como um anzol fincado no coração, chamando-o para ela. Entretanto, vacilava. O instinto lhe advertia que não se precipitasse. Não percebia um perigo iminente nas chamadas noturnas da jovem, nenhuma debilidade física nem acidente pareciam ser a causa. Então, o que?

     Que pudesse chamá-lo resultava incrível. Nenhum humano podia invocar a um vampiro. Nada que não fosse um perigo mortal poderia despertá-lo de sua sonolência sepulcral e isso o assombrava. Desejava aproximar-se dela, mas vacilava. Fazia tempo que tinha abandonado aquele lugar, jurando manter-se afastado da jovem pelo seu bem. Tinha crédulo em que o incrível vínculo físico que os unia se debilitaria com o tempo e a distância. Mas não tinha sido assim.

     Relaxou durante uma hora na comodidade de sua guarida. Com o sumiço definitivo do sol chegou a familiar quebra de onda de energia, e seus sentidos se afiaram como uma arma letal.

     Vestiu-se e abriu os muitos ferrolhos da pesada porta. Avançou em silêncio pelo corredor em sombras e empurrou uma pesada pedra do fundo. Esta girou para dentro com facilidade e Eric atravessou a abertura para sair ao que aparentava ser uma adega. A porta, daquele lado, parecia um porta-garrafa bem provido. Fechou-o com suavidade e subiu a escada que conduzia a casa.

     Tinha que vê-la. Sabia desde fazia tempo, mas tinha fugido essa certeza. A atração era muito forte para resistir a ela. Quando sua voz doce e atormentada chegava a ele nas dobras aveludadas de seu descanso, percebia a angústia da jovem.

     Devia saber o que a atormentava tanto. Entrou no salão, dirigiu-se à janela e abriu um pouco a cortina.

     A caminhonete da DIP se encontrava do outro lado da grade principal, como todas as noites a dois meses. A Divisão se criou fazia mais de um século, por um grupo de imbecis, decididos a destruir tudo o que não compreendiam. Corriam os rumores de que naqueles tempos se encontravam sob o patrocínio da CIA, portanto, não eram uma ameaça que deveria desprezar. Ocupavam todo um edifício do White Plains, conforme Eric tinha descoberto. Dizia-se que tinham agentes por todos os Estados Unidos, e inclusive na Europa. Os que se encontravam aí fora pareciam ter tomado ao Eric como sua obsessão pessoal. Como se a grade principal fora a única saída, estacionava ali todas as noites até o amanhecer. Era tão molesto para o Eric como uma mosca varejeira.

     Vestiu um sobretudo escuro e saiu pelas portas de cristal do salão, situadas em sentido oposto à grade principal. Atravessou o jardim dos fundos, que se estendiam da casa até o escarpado rochoso que dava ao estreito do Long Island. Aproximou-se da alta grade de ferro que rodeava por completo sua propriedade e a saltou sem muito esforço. Avançando entre as árvores, saiu à estrada vários metros por detrás do homem consciencioso que acreditava estar vigiando-o tão bem.

     Percorreu uma curta distância a pé antes de parar, clarear a mente e fechar os olhos. Abriu a mente à confusão de sensações que normalmente bloqueava. Fez uma careta pelo bombardeio. Vozes de todos os tons, inflexões e potência ressonavam em sua mente. Emoções de pavor absoluto ao êxtase delirante, sensações físicas, tanto de prazer como de dor, retorciam-se em seu interior, e se protegeu contra aquele assalto mental. Não podia localizar a mente de um indivíduo de nenhuma outra maneira, a não ser que essa pessoa estivesse enviando uma mensagem deliberadamente, como ela tinha estado fazendo.

     Pouco a pouco, começou a dominar o barulho e o peneirou, procurando seus pensamentos. Em poucos momentos, sentiu-a, e se voltou para onde sabia que estava.

     Ficou sem fôlego quando se caminhou para as proximidades da pista de gelo e a viu. Girava no centro da pista, banhada na luz da lua, com o rosto elevado em atitude de súplica, como se estivesse apaixonada pela noite. Viu-a deter-se, abrir os braços com a graça de uma bailarina e patinar devagar, depois mais depressa, gravando um oito no gelo. Voltou-se então, deixando-se escorregar para trás sobre o gelo, e girou de novo, cruzando os patins, reduzindo o passo gradualmente.

     Eric sentiu uma estranha queimação na garganta enquanto a observava. Tinham transcorrido vinte anos desde que tinha abandonado, numa cama de hospital, a inocente menina de cabelo negro depois de salvar sua vida. Com que nitidez recordava aquela noite, como ela tinha aberto os olhos e se obstinado a sua mão. Ela o tinha chamado por seu nome e tinha pedido que não fosse embora. Tinha-o chamado por seu nome, embora fosse a primeira vez que o via! Foi então quando compreendeu quão forte era o vínculo que os unia e tomou a decisão de ir-se.

     Iria se lembrar dele? Iria reconhecê-lo se voltasse a vê-lo? É obvio, não tinha intenção de permiti-lo. Só queria olhá-la, sondar sua mente e averiguar o que provocava sua angústia noturna.

     Viu-a patinar até um banco próximo ao bordo do gelo, tirar a touca e deixar no assento. Moveu a cabeça com força e seu cabelo se agitou grosseiramente, como uma capa de cetim negro de cachos. Tirou a jaqueta e a jogou sobre o banco. Não pareceu preocupá-la que escorregasse até o chão. Inspirou fundo, deu-se a volta e se afastou patinando.

     Eric abriu a mente e a centrou nela. De novo, maravilhou-se da força do vínculo mental que os unia. Ouvia seus pensamentos com a mesma claridade que ela.

     O que ouvia era música... a música que ela imaginava enquanto dava voltas pelo gelo. Apagou-se um pouco, e ela falou para si mesma. “Vamos, Tammy, velha amiga. Um pouco mais depressa... Agora!”

     Eric conteve o fôlego quando a viu saltar sobre o gelo para dar uma volta e meia. Aterrissou quase à perfeição, com uma perna estendida para trás, depois, cambaleou-se e caiu sobre a pista. Eric esteve a ponto de aproximar-se correndo, mas um instinto logo que ouvido o advertiu para se conter. Devagar, compreendeu que ela estava rindo, e o som era como água cristalina escorregando sobre as pedras. Ficou em pé, esfregou-se o traseiro e se afastou patinando enquanto ele a seguia com o olhar. Foi então quando Eric divisou a caminhonete, estacionada na escuridão, ao outro lado da rua. “Daniel Saint Claire!”

     Corrigiu-se em seguida. Não podia ser Saint Claire. O teria ouvido chegar. Fixou-se um pouco mais na caminhonete branca e reparou em minúsculas diferenças: o raspão no flanco, os pneus. Não era o veículo do Saint Claire, mas sim da DIP. Alguém estava vigiando, não a ele, a não ser a Tamara.

     Teria se aproximado, teria entrado no interior escuro da caminhonete com os olhos para identificar ao observador, mas tropeçou com algo e baixou a vista. Uma bolsa. A bolsa da Tamara. Voltou a olhá-la. Estava completamente absorta patinando. Ao parecer, quem a vigiava, também. Eric se inclinou, recolheu a bolsa e se fundiu nas sombras. Além das botas, quão único havia dentro era uma carteira. Tocou a suave pele de pelica e a tirou.

     Sim, estava violando sua intimidade. Sabia. Mas se a estavam vigiando as mesmas pessoas que o vigiavam a ele, devia saber por que. Se Saint Claire tinha descoberto qual era sua relação com a jovem, aquela podia ser uma armadilha elaborada. Tirou todos os objetos da bolsa e os examinou metodicamente antes de repô-los. Dentro da pequena carteira encontrou um cartão de acesso a DIP com o nome da Tamara escrito de forma tão chamativa que feria sua vista.

     —Não - sussurrou. Voltou a olhá-la ao tempo que deixava cair o cartão na carteira, e a carteira na bolsa de lona e a deixava de novo onde a tinha encontrado. O coração encolheu enquanto a observava. “Tão formosa, tão delicada... Seria seu Judas? Uma traidora disfarçada de anjo?”

     Sintonizou sua mente com a dela com toda a força que possuía, mas as únicas sensações que encontrou foram alegria e exuberância. Quão único ouvia era a música, que cada vez soava com mais força em sua cabeça. A abertura do The Impresario. Patinava em perfeita harmonia com a veloz peça, até que a música se deteve de repente.

     Deslizou-se até deter-se e permaneceu imóvel sobre o gelo, com a cabeça levemente inclinada, como se pudesse ouvir um som que não podia identificar. Voltou-se muito devagar, realizando um círculo completo enquanto passeava o olhar pela pista. Deixou de se mover quando ficou frente a ele, embora Eric sabia que não podia vê-lo, vestido como ia de negro, envolto nas sombras. Mesmo assim, ela franziu o cenho e patinou para ele.

     “Céus! Seria o vínculo tão forte que Tamara podia perceber sua presença? Teria notado que estava explorando sua mente?” Deu-se a volta, e se teria ido de não ser pelos rápidos passes das lâminas sobre o gelo e a fricção das mesmas quando Tamara se deteve tão perto dele que sentiu suas pernas salpicadas pelos fragmentos do gelo. Percebeu o calor que emanava de seu corpo aquecido pelo exercício. Tinha-o visto. Eric sentia o fogo de seu olhar nas costas, e não poderia ter ido embora mesmo que quisesse. Possivelmente fora uma estupidez, mas se voltou para ela.

     Tamara ficou olhando um longo tempo, perplexa. Tinha as bochechas ruborizadas pelo exercício, e a ponta do nariz avermelhado. Saiam muvenzinhas brancas de seus lábios entreabertos e, mais abaixo, o pulso pulsava em sua garganta. Quando Eric arrancou o olhar do minúsculo pulso que sentia pulsar por seu corpo, surpreendeu-se sendo incapaz de arrancar o olhar de seus olhos. Mantinham-no cativo, como se possuíssem o mesmo poder de autoridade que os seus. Perdia-se naqueles círculos enormes e insondáveis, tão negros que pareciam não ter pupilas. “Meu Deus” pensou. “Já parece um de nós”.

     Tamara franziu o cenho e moveu a cabeça, como se tentasse sacudir os flocos de neve do cabelo.

     —Sinto muito. Pensava que era... —a explicação morreu em seus lábios, mas Eric sabia. Pensava que era um conhecido, alguém próximo. Era-o.

     —Outra pessoa — concluiu em seu lugar — Me ocorre sempre. Tenho uma dessas caras familiares — esquadrinhou a mente, procurando indícios de reconhecimento por parte dela. Não havia lembranças, só um poderoso desejo, algo que ela ainda não tinha identificado — Boa noite — assentiu e se obrigou a dar a volta.

     Mas quando dava o primeiro passo, ouviu seu rogo silencioso como se o tivesse gritado. “Por favor, não vá!”

     Girou de novo, incapaz de fazer outra coisa. Sua mente pragmática não fazia mais que recordar o cartão da DIP que ela levava na bolsa. Seu coração queria estreitá-la entre seus braços. Converteu-se em uma beleza. Só vislumbrando-a qualquer homem ficaria sem fôlego. As lágrimas que viu em seus olhos o deixaram atônito.

     —Estou segura de que o conheço —disse com voz trêmula— Me diga quem é.

     O desejo da Tamara atirava dele, e não percebia nela mentira nem intenção maliciosa. Entretanto, se trabalhava para a DIP, só poderia causar dano. Percebeu a atenção do homem da caminhonete. Devia perguntar-se que fazia Tamara atrasando-se ali.

     —Deve estar confundida — o rasgava pronunciar a mentira — Não, nunca nos vimos — se deu a volta, mas ela se aproximou naquela ocasião, estendendo a mão. Cambaleou-se, e só a velocidade sobrenatural do Eric permitiu girar a tempo. Apanhou-a quando se inclinava para diante. Rodeou-lhe seu esbelto corpo com os braços e a atraiu para seu peito.

     Não podia soltá-la. Sustentou-a e ela não resistiu. Tamara apoiou o rosto em seu peito, por cima de seu desbocado coração. Sua fragrância o escravizava. Pôs os braços nos seus ombros, como se quisesse sujeitar-se melhor, mas rodeou seu pescoço, e Eric soube que morreria mil vezes antes de soltá-la.

     Tamara levantou a cabeça, inclinou-a para trás e o olhou aos olhos.

     —Eu te conheço, não é verdade?

    

     Tamara pestanejou para tentar dissipar o atordoamento em que parecia estar. Erguia-se tão perto daquele desconhecido que todas as partes de seu corpo entravam em contato com as dele das coxas até os seios. Com os braços rodeava seu musculoso pescoço. Os dele, de ferro, sujeitavam-na com força pela cintura. Tinha inclinado a cabeça para trás para olhá-lo aos olhos e se sentia apanhada por eles.

     “Resulta-me tão familiar...!”

     Aqueles olhos refulgiam, como gotas de petróleo perfeitamente redondos entre grosas pestanas negras.

     “Mas não o conheço.”

     Viu-o entreabrir os lábios, como se fora a dizer algo, e fechá-los de novo. “Que suaves eram seus lábios! Que ternos, e que maravilhosos quando sorria... Ai, como tinha sentido falta de seu sorriso! O que estou dizendo? Nunca o vi”.

     Seu peito era um muro amplo e sólido. Sentia seu coração palpitando poderosamente em seu interior. Os ombros eram tão largos que convidavam a uma cabeça cansada a apoiar-se neles. O cabelo refletia à luz da lua, tão negro como o dela, mas sem os cachos alvoroçados. Em troca, caía em largas ondas sobre os ombros, quando não o recolhia com o pequeno laço de veludo em um acréscimo. Tocou o laço da nuca, sabendo que estava ali antes de tocá-lo. Sentia um impulso irracional de desfazer e de deslizar os dedos por seu glorioso cabelo...

     Tamara franziu as sobrancelhas.

     — Quem é?

     — Não sabe? —sua voz provocou outra quebra de onda de reconhecimento.

     —Tenho a sensação de que sim, mas... — franziu o cenho e moveu a cabeça, frustrada. Voltou a olhar seus lábios e desviou os olhos. Sentia como se o grande vazio de seu coração se enchera repentinamente só vendo aquele homem familiar. As palavras que se formavam redemoinhos em sua mente, e que ela se conteve apenas para não resmungar, eram absurdas. “Graças a Deus que voltou... Eu não entendi o porquê... Por favor, não me volte a deixar... Morrerei se me deixar outra vez”.

     Sentia lágrimas nos olhos, e queria dar a volta para que não as visse. Ele a observava com intensidade, como se estivesse lendo seu pensamento.

     Queria dar a volta e sair correndo. Queria que a abraçasse para sempre. “Estou enlouquecendo”

     —Não, carinho. Está perfeitamente sã, não duvide nunca disso — disse, acariciando-a com a voz. Tamara inspirou fundo. “Não tinha expresso em voz alta o pensamento, não é? Céus... ele o tinha lido.”

     “Impossível! Não pôde”. Voltou a olhar sua boca, tão sensual, e se umedeceu os lábios. Teria lido seu pensamento? “Quero que me beije”, pensou deliberadamente.

     Uma voz silenciosa sussurrou a resposta dentro de seu cérebro... A voz dele.

     “Uma prova? Não me ocorre uma mais grata”. Tamara observou perplexa, como baixava a cabeça. Relaxou a boca sobre a dela, e Tamara permitiu que a entreabrisse. Imediatamente introduziu sua língua morna e úmida para acariciá-la, e Tamara experimentou uma sacudida, uma corrente elétrica que do ponto de contato percorria o corpo até os dedos dos pés.

     Ele moveu as mãos por suas costas. Deslizou as gemas dos dedos pela nuca e mais acima, até que as enterrou em seu cabelo. Então a apertou contra ele, inclinando-a como mais convinha e impedindo que ela se apartasse enquanto afundava ainda mais a língua, acendendo fogueiras no ventre da Tamara.

     Por fim, retirou os lábios e ela pensou que o beijo tinha terminado. Entretanto, só trocou de forma. Ele deslizou seus lábios úmidos pela curva da mandíbula para acariciar com a língua a pele sensível de debaixo do ouvido. Baixou os lábios brandamente para o pescoço, e ela inclinou a cabeça para trás por própria vontade. Sujeitou sua cabeça com as mãos e o apertou contra ela. Fechou os olhos e sentiu um enjôo tão forte que acreditou estar a ponto de deprimir-se.

     Lambeu a pele tenra que estava mordiscando. Tamara sentiu o roce de uns incisivos afiados na carne suave que ele sugava. Notou-o estremecer-se, gemer, como se estivesse atormentado. Levantou a cabeça e endireitou a dela para poder olhá-la nos olhos. Durante um momento, Tamara acreditou ver luz neles... Um resplendor sobrenatural que brilhava.

     Sua voz, quando falou, soava áspera e trêmula. Já não era o mel tranqüilizador de antes.

     — O que é o que quer de mim? Não peça muito, Tamara. Temo não poder te negar nada.

     Ela franziu o cenho.

     —Eu não quero... — tomou ar pela boca e saiu de seus braços — Como sabe meu nome?

     Lentamente, o feitiço perdeu força. Ela inspirou fundo, com normalidade. “O que tinha feito? Desde quando beijava a desconhecidos na metade da noite?”

     —Você também sabe o meu — disse, recuperando parte de seu tom e força anteriores.

     — Eu não sei como te chama! E como poderia...? Por que me bei...? — moveu a cabeça com irritação, incapaz de terminar a frase. A fim de contas, tinha-o beijado tanto como ele a ela.

     —Vamos, Tamara, nós dois sabemos que me chamaste, assim deixa de fingir. Só quero saber o que a preocupa.

     — Que eu te chamei? Certamente que não! Como poderia fazê-lo? Nem sequer te conheço!

     Ele arqueou uma sobrancelha e fez outra surpreendente pergunta.

     — E a ele? Conhece-o?

     Tamara seguiu seu olhar para a rua e conteve o fôlego ao ver a caminhonete da DIP que estava estacionada ali. Sabia que era a do Curt pelo óxido de debaixo do guichê do condutor. Não podia acreditar que tivesse a audácia de espiá-la.

     —Seguiu-me. Será tão arrogante ao ponto de...

     —Muito bem, embora suspeite que saiba perfeitamente por que está aí estacionado. Isto era uma armadilha, verdade? Atrai-me aqui e, depois, seu amiguinho esperto...                

     — Te atrair aqui? Por que iria fazer isso? Já disse que nunca te vi.

     —Chama-me todas as noites. Tamara. Suplicaste-me que viesse até quase me enlouquecer.

     —Pois repito isso, não te chamei. Nem sequer sei como te chama.

     De novo, a olhou diretamente e Tamara teve a sensação de que estava escrutinando a mente. Viu-o suspirar e franzir o cenho até que as sobrancelhas entraram em contato.

     —Então, me diga o que acredita que seu amigo esteja fazendo ao te vigiar.

     —Conhecendo o Curt, certamente, acredita que é para meu próprio bem. Ultimamente não faz mais que dizer isso — sua irritação se suavizou um pouco, como se o pensasse com mais tranqüilidade — Pode que esteja um pouco preocupado por mim. Sei que Daniel é... meu tutor, sim. Sinceramente, eu também estou preocupada. Já não durmo pelas noites, e só gosto de dormir durante o dia. De fato, cochilei duas vezes sobre meu escritório. Meto-me na cama nada mais ao chegar a casa e durmo como uma morta, mas só até que anoitece. Então, tenho terríveis pesadelos e grito tanto que todos começam a acreditar que estou perdendo a cabeça. Depois me levanto e estou inquieta toda a noit... —interrompeu-se ao compreender que estava contando sua vida a um perfeito estranho.

     —Por favor, não pare — disse ele em seguida. Parecia sinceramente interessado no que estava contando— Me fale desses pesadelos — devia perceber seu receio, porque levantou a mão para tocar sua bochecha com as gemas de seus largos dedos—. Só quero te ajudar. Não pretendo te machucar — pôs a mão na parte posterior da cabeça para aproximá-la, e Tamara não resistiu. Não havia sentido tanta calma desde fazia meses. Sustentou-a com suavidade, e com uma mão acariciou o cabelo — me conte, Tamara.

 Ela suspirou, incapaz de resistir ao atrativo de sua voz ou de seu tato, embora soubesse que não tinha sentido.

     —É de noite e há uma espécie de selva, e muita névoa e bruma cobrindo o chão, assim não vejo meus pés. Tropeço muito enquanto corro. Não eu sei se eu corro para algo ou me liberto de algo. Sei que estou procurando a alguém, e no sonho sei que essa pessoa pode me ajudar a encontrar o caminho. Mas a chamo uma e outra vez e não me responde.

Deixou de acariciar o cabelo imediatamente, e ela acreditou notar que ficava tenso.

     — A quem chamas?

     —Acredito que isso é o que me está voltando louca. Não consigo recordá-lo. Acordo ofegando, como se realmente tivesse estado atravessando essa selva, às vezes, meio que pronuncio seu nome... mas não consigo recordar.

     —Tamara, como te faz sentir esse sonho?

Separou-se dele e observou seu rosto.

     — É psicólogo?

     —Não.

     —Então não deveria estar te contando nada disto — tentou arrancar o olhar daquele rosto familiar— Porque, em realidade não te conheço.

Ficou rígida quando gritaram seu nome do outro lado da pista de gelo.

     — Tammy!

     Fez uma careta.

     — Odeio que me chame assim — voltou a escrutinar os olhos do desconhecido e, de novo, sentiu-se como se acabasse de reunir-se com alguém ao que adorasse— É real ou uma parte de minha loucura? — ”Não, não me diga isso”, pensou de improviso. “Não quero sabê-lo”                       

     — Será melhor que eu vá antes que Curt enfarte pela preocupação. Tem direito a preocupar-se?

     Tamara fez uma pausa, franzindo o cenho.

     —Se o que me pergunta é se é meu marido, a resposta é não. Estamos unidos, mas não por uma relação romântica. Para mim é como... um irmão mais velho e mandão.

     Voltou-se e se afastou patinando pelo gelo para o Curt, mas sentiu o olhar do desconhecido nas costas durante todo o trajeto. Tentou voltar a cabeça para ver se seguia ali, mas não o viu. Depois, aproximou-se do Curt reduzindo o passo. Estava correndo pelo gelo, para ela.

     Sujeitou-a do antebraço com força e atirou dela até a borda da pista. Depois a arrastou ao mesmo ritmo até que chegaram ao banco mais próximo, onde a obrigou a sentar-se.

     — Quem diabos era esse homem?

     Ela se encolheu de ombros, aliviada por que ele também o tivesse visto.

     —Alguém a quem acabo de conhecer.

     — Quero saber como se chama!

     Franziu o cenho ao detectar a autoridade e a irritação em sua voz. Curt sempre tinha sido mandão, mas estava passando dos limites.

     — Não chegamos a nos dizer os nomes, mas o que importa para você?

     — Insinuas que não sabia quem era? — ela assentiu— Uma ova que não sabe! —estalou. Sujeitando-a pelos ombros, a pôs em pé e a machucou. Olhava com raiva, e a teria assustado se Tamara não o conhecesse tão bem— O que faz saindo às escondidas de noite desta maneira?

     —Patinar. Ai! — Afundou os dedos nos ombros — Só estava patinando, Curt. Sabe que não posso dormir. Pensei que um pouco de exercício...

     —Mentira. Veio para se encontrar com ele, verdade?

     — Com quem? Com o homem com quem falava? Pelo amor de Deus, Curt, eu...

     — Com quem falava? Bonita maneira de chamá-lo. Eu vi Tammy. Estava em seus braços.

     Tamara se zangou.

     —Embora me tivesse deitado com ele no centro da pista de gelo, Curt Rogers, sou uma mulher feita e direita e o que faço é meu assunto. Você me seguiu até aqui! Não me importa quão preocupado esteja Daniel, não penso permitir que me espie nem vou te dar explicações do que faço. Quem pensa que é?

     Sujeitou-a com força e a sacudiu uma, duas vezes.

     —Maldita seja, me conte a verdade! Sabia quem era, verdade? Veio aqui se encontrar com ele, verdade? Verdade?

     —Seu... me solte... Curt, me... Está me fazendo mal...

     Sua visão estava cheia de pontos negros pelas sacudidas, mas não tanto para não ver a figura escura que se colocava atrás de Curt. Sabia quem se erguia ali. Havia sentido sua presença... possivelmente inclusive antes de vê-lo. Também percebia algo mais: sua fúria cega.

     —Tire suas mãos de cima dela — grunhiu o desconhecido, com a voz tremendo de uma raiva logo que contida.

     Curt ficou rígido. Deixou cair as mãos caírem e arregalou os olhos. Tamara retrocedeu e levantou uma mão para massagear um ombro machucado. O calor do olhar do desconhecido a fez levantar a vista. Aqueles olhos negros tinham seguido o movimento de sua mão e sua fúria se acrescentou.

     “Mas como posso saber isso?”

     Curt se voltou para ele e deu um passo atrás... afastando-se da imponente figura do desconhecido. Bom, ao menos, Tamara já sabia que era real.

     — Ma... Marquand! —grasnou Curte.

     Tamara sentiu a comoção como um golpe físico. Voltou a cravar o olhar no rosto do desconhecido. Este contemplava a Curt. Um pequeno sorriso, isento de humor aflorou em seus lábios, e assentiu. Um repentino movimento chamou sua atenção, e Tamara viu o Curt metendo a mão na jaqueta, como faziam os bandidos na televisão quando procuravam uma pistola oculta. Ficou rígida, morta de pânico, mas se relaxou quando o viu tirar um pequeno crucifixo dourado, que sustentou frente a Marquand com o braço estirado e os nódulos brancos.

     O desconhecido ficou imóvel um momento. Ficou olhando fixamente o símbolo dourado quando ficou gelada. Tamara o viu tremer com intensidade enquanto se tocava involuntariamente o pescoço, e recordou haver sentido o roce daqueles incisivos. Seria realmente um vampiro?

     A risada do Marquand retornou, sarcástica e amarga. Inclusive riu entre dentes, um som parecido a um trovão longínquo. Alargou a mão para arrancar a cruz da mão do Curt e a girou várias vezes, inspecionando-a com atenção.

     —Impressionante — disse, e a devolveu. Curt a deixou cair ao chão e Tamara suspirou de alívio, mas só fugazmente.

     Por fim achava sentido seu encontro com ele.

     — De verdade é Marquand?

     Fez uma exagerada reverência. Ela não podia sustentar o olhar, envergonhada de suas reações anteriores ao que, para ele, só tinha sido um jogo.

     —Compreendo por que está tão zangado com meu tutor. Afinal de contas, esteve te acossando sem parar. Para sua informação, eu não tive nada que ver com isso. Defendi-te até ficar roca. Não me incomodarei em seguir fazendo-o. Agradeço sinceramente que não queira processar ao Daniel, mas sugiro que, no futuro, não tente me utilizar para fazer chegar suas mensagens.

     Viu que arqueava outra vez a sobrancelha e conteve o fôlego.

     — Seu tutor? Há-o dito antes, mas... Saint Claire?

     —Como se não soubesse antes de sua pequena atuação. —Tamara moveu a cabeça, deslizando de novo os dedos pelo ponto dolorido do pescoço — Poderia até ser engraçado, se não estivesse a ponto de... — interrompeu-se e moveu a cabeça ao sentir as lágrimas nos olhos.

     —Tamara, não era isso o que...

     Interrompeu-o movendo a cabeça com violência.

     — Me encarregarei de que receba sua mensagem. Pode que seja um imbecil, Marquand, mas o quero muito. Eu não gostaria que o levasse a julgamento — girou sobre seus talões.

     — Tamara, espera! O que aconteceu com seus pais? Como é que ele...? Tamara! —ela não fez conta, aproximou-se do gelo e se afastou patinando para a outra borda, onde tinha deixado a bolsa de lona. Cambaleou-se sobre a neve para recolhê-la, e se deixou cair sobre o banco mais próximo para soltá-los patins. Tremiam seus dedos. Logo que podia ver pelas lágrimas que nublavam sua vista.

“Por que estava reagindo daquela maneira a estratagema insensível do Marquand? Por que se sentia tão traída? Porque me estou voltando louca, por isso.”

 A irritação a fez levantar a cabeça. Tirou um dos patins, colocou o pé na bota e soltou o outro sem olhar. Tinha a vista posta no Marquand, que sustentava a Curt pelas lapelas e o sacudia como este tinha feito com ela fazia uns momentos. Quando por fim o soltou, Curt caiu para trás na neve. Tamara só podia ver as costas ao Marquand, mas ouvia suas palavras com claridade, embora não com os ouvidos.

“Se alguma vez vejo colocando outra vez as mãos nela, Rogers, pagará com sua vida. Expliquei-me bem?”

Perfeitamente, pensou Tamara. Guardou os patins na bolsa e foi embora enquanto eles seguiam discutindo.

Com uma dor semelhante a uma espada cravada no coração, Eric acariciou a engraçada touca rosa que Tamara tinha esquecido com a pressa de afastar-se dele. Também se tinha deixado o casaco. Tinha-o pendurado no braço enquanto os seguia. Rogers tinha alcançado a Tamara só uns poucos minutos depois de que se foi. Falava sem parar em seu intento de aplacá-la.

     —Sinto muito. Tammy, juro, não pretendia te machucar. Não entende que me voltei louco de medo quando a vi em seus braços? Meu Deus, não sabe o que poderia ter acontecido?

     Escaneou a mente do bastardo com a sua e não encontrou indicação alguma de que Tamara corresse perigo a seu lado. Fez o mesmo quando a viu entrar na lúgubre mansão vitoriana do Daniel Saint Claire, resistente a deixá-la em suas mãos. E nem sequer então podia partir.

     Como diabos teria arrumado Saint Claire para converter-se em seu tutor? Quando Eric a deixou, vinte anos atrás, ela tinha dois pais que a adoravam e que não suportavam a idéia de perdê-la. Ainda podia vê-los: a pequena Miranda, uma mulher de aspecto frágil com cabelo castanho claro e bonitos olhos verdes transbordantes de amor sempre que olhava a sua adorável filha. Havia-se posto histérica aquela noite no hospital. Eric a tinha visto aferrando-se à bata branca do médico, movendo rapidamente a cabeça pelo que estava dizendo enquanto as lágrimas escorregavam por seu rosto. O calado abatimento de seu marido era ainda mais doloroso de presenciar. Kenneth estava fundo, cansado na cadeira como se não pudesse voltar a levantar-se, com o cabelo loiro caindo sobre um olho.

     Que diabos teria acontecido? Deixou-se cair sobre um toco podre e com neve do exterior da mansão e enterrou a cabeça entre as mãos.

     —Não devia ter me afastado — sussurrou na noite — Meu Deus, eu a abandonei, não devia ter feito isso.

     Permaneceu ali, angustiado, até que o céu começou a empalidecer pelo amanhecer. Agora Tamara pensava que a tinha utilizado para enviar uma advertência ao Saint Claire. Era evidente que não possuía uma lembrança consciente dele nem conhecia o vínculo que os unia. Nem sequer podia recordar seu nome.

     Tamara se deteve diante da porta do escritório do Daniel para acalmar-se, com a mão posta no maçaneta. A noite anterior tinha evitado um novo embate com Curt alegando cansaço, uma mentira que ele aceitou porque sabia o pouco que estava dormindo. Aquela manhã ficou em seu quarto, fingindo dormir, quando Daniel a chamou da porta. Sabia que não a despertaria se pensava que por fim estava dormindo. Tamara aguardou a que partisse para a sede da DIP do White Pratas para logo vestir-se rapidamente e chegar tarde ao trabalho em seu adorado Volkswagen vermelho. Tinha tido o dia cheio com as tarefas corriqueiras que a atribuíam. Seu débil nível de segurança não era o bastante alto para permitir trabalhar em nenhum caso importante. Salvo pelo Jamie Bryant. Ele era importante... ao menos, para a Tamara. Não era mais que um clarividente de classe três no livro da DIP, mas para ela, era de primeira classe.

     Suspirou, sorrindo ao pensar nele, mas endireitou as costas ao iminente encontro. Sujeitou a maçaneta com mais força, mas se deteve o ouvir a voz do Curt através da porta.

     — Olha-a! Digo-lhe isso, está passando algo, e é um estúpido se não te der conta.

     —Está confundida — disse Daniel, aflito — Reconheço que a proximidade está produzindo um efeito inesperado, mas não podemos culpá-la por isso. Não tem nem idéia do que está passando com ela.

     —Isso é o que você acredita. Eu acho que terei que vigiá-la constantemente.

     A irritação da Tamara cresceu, e abriu a porta de par em par.

     — Têm idéia de quão farta estou de que falem de mim como se fosse um de seus casos?

     Os dois homens levantaram a vista, sobressaltados. Trocaram olhares incômodos, e Daniel se levantou da cadeira tão depressa que arranhou o chão de ladrilhos.

     —Vamos, Tammy, o que te faz pensar que estávamos falando de ti? Em realidade, estávamos falando de um caso. Um sobre o que discordamos.

     Tamara fez uma careta, cruzando os braços.

     — Sério? Que caso?

     —Sinto-o, Tammy — espetou Curt — Seu nível de segurança não é o suficiente para saber.

     — Quando o foi?

     —Tammy, por favor — Daniel se aproximou dela, envolveu-a com um suave abraço e beijou sua bochecha. Depois, inclinou-se para trás para escrutinar o rosto—. Está bem?

     — Por que não estaria? — sua preocupação a aplacou um tanto, mas seguia estando farta de tantos dramalhões.

     —Curt havia me dito que ontem à noite conheceu o Marquand —Daniel moveu a cabeça — Quero que me conte tudo o que aconteceu, tudo o que te disse, o que te fez. Ele...? —Daniel empalideceu ante seus olhos— Te tocou?

     —Abraçou-a como se não quisesse soltá-la jamais — estalou Curt— Já disse isso, Daniel...

     —Eu gostaria de ouvir o que ela tem a dizer — seus pálidos olhos azuis escrutinaram os da Tamara. Baixou-os ao pulôver turquesa de pescoço alto que se pôs sob o folgado pulôver branco. Tamara pensou que ia desmaiar.

     Curt reparou em seu traje no mesmo instante e conteve o fôlego.

     —Tammy, Por Deus, é que fez...?

     — É obvio que não! Têm idéia do quão loucos que parecem?

     —Me diga —Daniel disse isso com suavidade.

     Tamara moveu a cabeça e exalou o ar com força.

     —Está bem, mas antes quero explicar uma coisa. Marquand parece saber o que pensam dele. Seu encontro na pista de gelo era sua maneira de enviar uma mensagem, e a mensagem é que o deixem em paz. Não acredito que estivesse brincando —enganchou dois dedos no pescoço do pulôver e o baixou para mostrar o chupão azulado que tinha deixado Marquand.

     Daniel proferiu uma exclamação.

     —Note os dois. Não há marcas de presas, só um... Bom, sejamos claros, um chupão. Deixei que um perfeito desconhecido me fizesse um chupão, o qual deveria mostrar até que ponto estive estressada ultimamente. Entre minha insônia e seu excesso de amparo, sinto-me como se estivesse em um forno a pressão.

     Daniel se inclinou sobre ela e inspecionou a marca. Quando ficou satisfeito, colocou uma mão em seu ombro.

     — Te fez mal, carinho?

     Tamara não pôde conter o pequeno sorriso que provocou a pergunta, embora o apagou imediatamente.

     — Machucar? —Curt deu uma palmada ao escritório— Ela desfrutou de cada minuto —a olhou com irritação— Não te dá conta do que poderia ter acontecido lá?

     —É obvio que sim, Curt. Poderia me haver aberto a jugular e me haver chupado tudo o sangue para logo me deixar agonizando sobre o gelo com dois orifícios na garganta.

     —Se não o tivesse assustado... —começou a dizer Curt.

     —Seja fiel à verdade, Curt. Foi ele quem assustou a ti. Estava-me sacudindo com uma força brutal. Se Marquand não tivesse ido a meu auxílio, teria vindo a trabalhar com um colarinho.

     Curt fechou a mandíbula com força ante o olhar severo do Daniel. Este voltou a olhar a Tamara.

     — E diz que foi a te socorrer? —ela assentiu— Humm...

     —E tirou o crucifixo ao Curt da mão —prosseguiu Tamara—.Nem sequer lhe queimou a palma. É que isso não demonstra nada?

     —Sim —Curt fez uma expressão de menino mal-humorado no rosto— Que aos vampiros não afetam os símbolos religiosos.

     Tamara pôs os olhos em branco, depois, ouviu resmungar ao Daniel:

     —Interessante - se sentia como se, inclusive com seus estranhos sintomas, fosse a única pessoa sã no escritório - Sei que pensa que estamos exagerando, Tammy — disse Daniel— Mas não quero que volte a sair de casa de noite.

     Ela ficou tensa.

     —Irei onde queira e quando queira. Tenho vinte e seis anos, Daniel, e se não deixarem de uma vez com estas tolices, eu... —fez uma pausa o bastante larga para monopolizar sua atenção—... sairei de casa.

     —Tammy, você não...

     —Não, a não ser que me obriguem Daniel. E se surpreendo a ti ou ao Curt me seguindo outra vez, me sentirei obrigada a fazê-lo —sentiu um nó na garganta ao ver a aflição no rosto do Daniel, e suavizou a voz— Agora vou para casa. Boa noite.

 Os gritos mentais da Tamara despertaram aquela noite antes do pôr-do-sol e Eric fechou os olhos com força, como se fazendo isso pudesse tirá-los de sua mente. Levantar-se antes do anoitecer produzia um efeito não muito distinto ao que sentiam os humanos com uma ressaca. Apoiando uma mão no mogno liso, roçando com as gemas dos dedos o forro, pensou na Tamara. Só queria consolá-la. Se pudesse suavizar a tortura de seu inconsciente, embora ela não se precavesse de nada, sentiria-se melhor. Possivelmente até pudesse dormir. Mas não estava seguro. A fim de contas, a situação da Tamara era única.

     Centrou-se na mente dela, escutando ainda seus rogos sussurrados. “Onde está, Eric? por que não vem? Estou perdida. Necessito-te”.

     Tragou saliva e concentrou cada ápice de seu poder em um único pensamento, disparando-o através do tempo e do espaço para ela. “Estou aqui, Tamara”.

     “Não posso verte!”

     Aquela reação imediata o deixou perplexo. Não estava seguro de que pudesse ouvir seus pensamentos. De novo, concentrou a mente.

     “Estou perto. Irei vê-la logo, amor. Agora, deve descansar. Já não necessita que me chame em sonhos. Ouvi... Irei”.

     Aguardou uma resposta, mas não percebeu nenhuma. Queria tranqüilizá-la, mas tinha feito o que tinha podido, no momento. Sentia o sol, que roubava suas forças. Levou um tempo para manter o equilíbrio e se aproximou devagar da lareira, onde se inclinou para reavivar o fogo daquela manhã. Logo depois, utilizou um largo fósforo de madeira para acender três lamparinas de azeite colocadas pelo aposento. Com galhos de cerejeira exalando uma névoa aromática e a luz dourada da lamparina, os tapetes orientais sobre o chão de cimento e os quadros, o lugar parecia uma tumba nas profundezas da terra. Sentou-se com cuidado na enorme cadeira de balanço de carvalho e relaxou os músculos. Deixou cair pesadamente a cabeça para trás e procurou, sem olhar, o controle remoto na mesa que tinha ao lado. Apertou um botão. As pálpebras fecharam ao mesmo tempo em que a música o envolvia.

     Um sorriso aflorou em seus lábios quando as notas agridoces reavivaram a lembrança. Tinha visto tocar ao jovem Amadeus em Paris. Em 1775, seria? Tantos anos... Eric ficou absorto, um menino comum de dezessete anos assombrado pelo dom de outro só dois anos maior. Aquela sensação sublime o acompanhou durante dias, e falou disso até cansar a sua pobre mãe. Até Jaqueline esteve a ponto de declarar que se apaixonou por um homem ao que nunca tinha conhecido e o persuadiu para que conseguisse um lugar para o concerto da noite seguinte. Mas sua irmã não entendeu o que o tinha impressionado tanto.

     —É bom - declarou, abanando-se na sala lotada e calorosa— Mas já vi melhores.

     Eric sorriu ao recordar. Sua irmã não se referia ao talento do jovem, a não ser o seu aspecto. Tinha-a surpreso olhando por cima do bordo de encaixe do leque ao moço magro que considerava “melhor”.

     Eric suspirou. Tinha parecido trágico que um homem com tanto gênio morrera aos trinta e cinco. Ultimamente punha em dúvida que tivesse sido tão trágico. Ele também tinha morrido aos trinta e cinco, mas de outra forma completamente distinta. A sua era uma morte em vida. Pensando-o bem, não sabia se Mozart tinha sofrido o destino menos desejável. Dos dois, o do Mozart era o mais sereno. Às vezes Eric desejava que a guilhotina o tivesse alcançado antes que Roland.

     “Uns pensamentos tão deprimentes em uma noite fria tão deliciosa? Não recordo que estivesse tão ansioso por te reunir com a guilhotina aquela noite”.

     Roland! Eric levantou a cabeça, repleto de energia desde que o sol se pôs. Levantou-se e abriu rapidamente os ferrolhos para percorrer o corredor e subir os degraus de dois em dois. Abriu a porta principal de par em par justo quando seu mais querido amigo subia os degraus da entrada. Os dois se abraçaram com energia, e Eric o fez entrar.

     Roland se deteve no centro da habitação e inclinou a cabeça para ouvir a música de Mozart.

     — O que é isto? Não será uma gravação! Parece que a orquestra estivesse aqui, nesta mesma habitação.

     Eric moveu a cabeça, tinha esquecido que a última vez que tinha visto o Roland ainda não tinha instalado a equipe estérea de última geração, com alto-falantes em todas as habitações.

     —Vem, o ensinarei - conduziu seu amigo para o som, situado perto da parede do fundo, e tirou um CD do estojo. Roland girou o disco na mão, observando o balé de arco íris.

     —Não têm estes inventos onde estive — devolveu o disco ao estojo e o repôs na prateleira.

     — E onde esteve, ermitão? Passaram vinte anos. — Roland não tinha envelhecido nem um só dia. Ainda possuía a beleza morena que tinha tido a seus trinta e dois anos de mortal e a corpulência de um atleta.

     —Ah, o paraíso. Uma minúscula ilha do Pacífico Sul, Eric. Sem nenhum humano intrometido. Só singelos camponeses que aceitam o que vêem em lugar de sentir a necessidade de explicá-lo. Sério, Eric, é um oásis para os nossos. As palmeiras, as doces fragrâncias da noite...

     — Como vivia? —Eric sabia que soava duvidoso. Sempre tinha aborrecido a solidão daquela existência. Ao Roland adorava— Não me diga que estiveste sangrando a indígenas inocentes.

     Roland franziu as sobrancelhas.

     —Sabe que não. Os animais me mantinham. Os javalis em particular...

     — Sangue de porco! —Gritou Eric— Acredito que o sol deve ter penetrado em seu ataúde! Sangue de porco! Credo!

     —Javalis, não porcos.

     —Claro! Há uma grande diferença - Eric apressou ao Roland para que se sentasse no antigo sofá estofado em veludo— Sente-se. Tirarei um refresco para que recupere os sentidos.

     Roland o olhou com receio enquanto Eric entrava detrás da barra e se dirigia à pequena geladeira.

     — Por acaso tem meia dúzia de virgens recém sacrificadas armazenadas nessa coisa?

     Eric inclinou a cabeça para trás e riu, compreendendo o tempo que fazia que não ria com vontades. Tirou uma bolsa de plástico da geladeira e pinçou debaixo da barra em busca de taças. Quando aconteceu a bebida ao Roland, sentiu-se escrutinado.

     — São os gritos noturnos da jovem o que tanto te preocupam?

     Eric pestanejou.

     — Você também a ouviste?

     —Ouço seus gritos quando olho dentro de ti, Eric. É o que me trouxe aqui. Conte-me do que se trata.

     Eric suspirou e tomou assento em uma cadeira de brocado próxima à chaminé. Uns poucos carvões refulgiam na lareira. Devia reavivá-lo. Lendo seu pensamento, Roland deixou de lado a taça.

     — Eu o faço. Você fala.

     Eric voltou a suspirar. Por onde começar?

     —Conheci-a pouco depois de sua última visita. Era uma menina formosa, com cachos de azeviche, bochechas de querubim e olhos como reluzentes partes de carvão.

     — Uma Escolhida? —Roland se inclinou para diante.

     —Sim, era um desses poucos humanos que possuem um tênue vínculo psíquico conosco, embora, como a maioria, não era consciente dele. Tenho descoberto que há maneiras de detectar aos Escolhidos, além de que os percebamos de forma natural, sabe?

     Roland olhou ao redor, agachado ante a lareira.

     — Sério?

     — Sim. Todos esses humanos que podem ser transformados, os que chamamos os Escolhidos, têm um antepassado comum. O conde Vlad III o Empalador - olhou ao Roland com intensidade — Foi ele o primeiro?

     Roland moveu a cabeça.

     — Sei que amas a ciência, Eric, mas há coisas que é melhor deixarem como está. Segue com sua história.

     Eric sentiu uma quebra de onda de exasperação pela postura radical do Roland sobre o tema.

     —Também compartilham um antígeno sangüíneo pouco comum. Todos o temos como humanos. Conhece-se como Belladonna. Só aqueles que têm estes dois rasgos singulares podem converter-se em vampiros. Chamam-se os Escolhidos.

     —Não me parece um descobrimento estremecedor, Eric. Sempre pudemos receber os Escolhidos instintivamente.

     —Mas outros humanos, não. Alguns têm descoberto agora o mesmo que eu. A DIP sabe. Podem localizar humanos Escolhidos e vigiá-los, e esperar a que um de nós se aproxime. Acredito que isso é precisamente o que passou a Tamara.

     —Possivelmente tenha que te apartar um pouco, velho amigo - murmurou Roland.

     Eric se passou uma mão pelo cabelo negro, retirando-se o dos ombros.

     —Não posso me apartar dela, Roland. Que Deus me ajude, tentei-o, mas não pude. Há algo na Tamara que tira do sério. Estava acostumado a olhá-la enquanto dormia. Deveria havê-la visto então. Grossas pestanas negras sobre bochechas rosadas, lábios como um pequeno arco rosado — levantou a vista, sentindo-se absurdamente à defensiva— Sabia que nenhuma vez quis machucá-la? Como ia querer? Adorava-a.

     Roland franziu o cenho.

     —Isto não deveria preocupar-se. Ocorre a todas as horas, este vínculo invisível entre os nossos e os Escolhidos. Muitas foram as noites que te joguei uma olhada quando foi menino, embora poucas vezes te encontrava dormido. Normalmente, estava acordado e torturando a sua delicada irmã.

     Eric absorveu essa informação com nova compreensão.

     —Nunca me havia isso dito. Pensava que só ia para mim quando estava em perigo.

     —Lamento não ter falado antes deste tema, Eric. Simplesmente, não surgiu. Você só me via nessas ocasiões em que estava em perigo. Não havia tempo para a discrição quando a carruagem estava a ponto de te atropelar, ou quando te tirei cuspindo água do Canal..

     —Então, você sentia o mesmo vínculo comigo que eu com ela?

     —Sentia um vínculo, sim. Um impulso de proteger. Não posso dizer que seja o mesmo porque não experimentei o que você sente pela menina. Mas, Eric, muitos jovens ao longo dos séculos tiveram a vampiros como protetores sem sabê-lo. A fim de contas, não vamos a eles para feri-los, nem para transformá-los, nem sequer para estabelecer contato. Só para vigiar e proteger.

     Eric deixou cair os ombros para diante, tão grande era seu alívio. Logo retomou sua história.

     —Despertei uma noite e senti que seu espírito se murchava. Estava indo de forma tão rápida que quase não cheguei a tempo —se apropriou dele a mesma dor que sentiu então, e baixou a voz— A encontrei no hospital, com sua minúscula cara mais branca que os lençóis que a rodeavam. Tinha os lábios... azuis. Ouvi um médico dizer a seus pais que tinha perdido muito sangue e que seu grupo sangüíneo era tão pouco freqüente que não tinham podido localizar a nenhum doador. Disse que se preparassem. Estava morrendo. Roland.

     Roland amaldiçoou com suavidade.

     —Esse era meu dilema. Uma menina a quem adorava estava morrendo, e sabia que eu era o único que tinha o poder de salvá-la.

     — Não a transformaria! A uma menina pequena, não, Eric. Estaria melhor morta que existindo como nós. Sua mente jovem jamais poderia compreender...

     —Não a transformei. Certamente não poderia havê-lo feito embora o tivesse tentado. Não ficava sangue que mesclar com omeu. Mas vi outra opção. Simplesmente, abri-me a veia e...

     — Ela bebeu de ti?

     Eric fechou os olhos.

     —Como se estivesse morrendo de sede. Suponho que, em certo sentido, assim era. Começou a recuperar a vitalidade em seguida. Eu estava exultante.

     —Tinha direito a está-lo —Roland estava sorrindo— Salvou à menina. Nunca tinha ouvido nada parecido, Eric, mas, aconteceu, funcionou —fez uma pausa, durante a qual olhou ao Eric com intensidade— Porque funcionou, verdade? A menina vive?

     —Sim. Antes de abandoná-la abriu os olhos, me olhou e, te juro, senti como explorava minha mente. Quando me voltei para ir tomou a mão com a sua, tão pequena, e sussurrou meu nome. “Eric” disse. “Não vá ainda. Não me deixe”.

     —Deus meu —Roland se reclinou no sofá, pestanejando, como se estivesse perplexo— Ficou?                     

     —Não pude me negar. Passei a noite junto a sua cama, embora tinha que me ocultar no batente da janela cada vez que alguém entrava na habitação. Quando descobriram a melhora, armou-se um grande alvoroço durante um tempo. Mas não demoraram a compreender que a menina se restabeleceria e decidiram deixá-la descansar.

     — E então?

     Eric sorriu com suavidade.

     —Sustentei-a em meu regaço. Ela permaneceu acordada, embora precisasse descansar, e insistiu em que contasse histórias. Obrigou-me a cantar, Roland. Eu jamais cantei a ninguém em toda minha existência. Entretanto, durante todo o tempo, ela estava em minha mente, lendo meus pensamentos. Não podia dar crédito à fortaleza do vínculo que nos unia. Era ainda mais forte que o que compartilhamos você e eu.

     Roland assentiu.

     —Nosso sangue se mesclou, nada mais, mas a menina era virtualmente pura em seu pequeno corpo. Não é de sentir saudades... O que aconteceu?

     —Antes do amanhecer, dormiu e fui embora. Pensei que a confundiria se mantivesse contato. Fui o mais longe que pude, cortei toda relação com ela. Neguei-me inclusive a pensar em voltar a vê-la, até agora. Pensei que o vínculo mental se debilitaria com o tempo e a distância. Mas não foi assim. Faz só uns meses que voltei para hemisfério ocidental e ela me chama todas as noites. Algo ocorreu a seus pais quando a deixei, Roland. Não sei o que, mas acabou sob a custódia do Daniel Saint Claire.

     — É da DPI! —Roland ficou em pé, atônito.

     —Assim é - resmungou Eric, deixando cair a frente na mão.

     —Não pode ir vê-la, Eric. Não deve confiar nela. Poderia ser seu fim.

     —Não confio nela. Quanto a vê-la... Não tenho escolha.

Inclusive enquanto discutia com o Daniel e Curt, Tamara tinha estado pensando nele. Durante todo o dia tinha sido incapaz de tirar ao misterioso desconhecido, que insistia em resultar conhecido, da cabeça. Só tinha conseguido colocá-lo a um segundo plano enquanto se concentrava em seu trabalho. Uma vez de volta em casa, no seguro oásis de seu quarto, depois de despertar da sesta, sentia-se renovada, vital e livre para analisar a aventura da noite anterior. Deteve-se e franziu o cenho. Desde quando se levantava revigorada? Estava acostumada a despertar tremendo, ofegando, aterrada.  Por que aquela noite era diferente? Olhou para o céu cheio de neve e compreendeu que já era de noite. Normalmente, despertava do pesadelo ao entardecer. Esforçou-se por recordar. Ao parecer, tinha tido o sonho... ou tinha começado ao ter. Recordava o bosque e as brumas, as sarças e a escuridão. Recordava ter pronunciado esse esquivo nome...

     E ter ouvido uma resposta. Sim. Desde muito longe, tinha ouvido uma voz grave e serena, cheia de consolo e fortaleza, que tinha prometido ir a ela.  Dizendo que descansasse. Havia sentido insegura até ouvir a música. Suaves acordes do Mozart, um pouco da Elvira Madigan, tranqüilizando seus nervos. Permitiu-se sorrir um pouco. Possivelmente estivesse superando seu problema, fora qual fora. O sorriso morreu ao perguntar-se se seria certo ou se só estava trocando um problema por outro. O homem da pista de gelo voltou a encher sua mente. Marquand, que Daniel insistia em considerar um vampiro, tinha-a beijado, e por muito que detestasse reconhecê-lo, tinha reagido a esse beijo com todas as células de seu corpo.

Levantou-se devagar da cama e atou o cinto da bata de cetim vermelho. Por estúpido que parecesse, desejava a um homem que não conhecia, um homem que acreditava conhecer sempre.

     De pé no quarto, foi precavendo-se pouco a pouco de uma peculiar debilitação que se apropriava dela. Não era enjôo, a não ser a sensação de estar flutuando, embora tivesse os pés no chão. Um morno redemoinho girou em torno de seus tornozelos e subiu pelas pernas, agitando o bordo da bata de maneira que o cetim acariciou suas canelas.

     Pestanejou devagar, levando a palma à frente, esperando que acontecesse a sensação. As portas de cristal se abriram de par em par, como se soprasse uma forte rajada, e o vento que passou entre elas resultava quente, embriagador... Cheirava tenuemente a rum.

     “Impossível. Lá fora agora está a menos de dez graus”.

     Entretanto, persistiam a calidez e a fragrância. Sentiu um puxão... um ímã mental ao que não podia resistir. Voltou-se para a rajada, ao tempo que esta crescia em intensidade. O cetim ondeava a suas costas, retorcia-se em torno de suas pernas como uma serpente.

     “Como a neblina de meu sonho”.

     O cabelo revoava em torno de sua cara, e o cinto da bata estalava contra suas coxas. Avançou para as portas no mesmo tempo que se insistia a não fazê-lo. Resistiu, mas a atração era mais forte que sua própria vontade. Moveu os pés pelo tapete suave, depois pelo chão de madeira, frio e úmido do balcão. O redemoinho a envolvia, impulsionava-a para o corrimão. Ouviu que as comporta se fechavam de repente a suas costas e nem sequer se voltou. Escrutinou a escuridão do jardim. Acaso aquela mão invisível a faria jogar-se pelo balcão? Duvidava que pudesse impedi-lo.

     “Meu Deus, o que está me passando?”.

     Tamara resistiu e o vento aumentou. O cinturão da bata se desfez e esta se abriu. Nenhum pedaço de seu corpo ficou alheio a aquela tempestade. Como mãos invisíveis, giravam em torno de suas coxas, entre elas. Seus seios tremiam. Tinha os mamilos eretos e palpitantes. Ela mesma palpitava, excitada, com a pele hipersensível à carícia do vento. Seu coração acelerou, e antes de poder conter-se, inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos e gemeu com suavidade pela intensidade das sensações.

De repente, cessou. A calidez e a essência de rum, persistiam, mas o redemoinho íntimo se extinguiu lentamente, devolvendo o controle de seu corpo Tamara não conseguia explicar o que tinha ocorrido e, emocionada, passou-se as mãos pelo cabelo, sem preocupar-se de que a bata seguisse aberta e com o ombro ao descoberto. Deu-se a volta para entrar em seu quarto.

     Ele estava tão perto que esteve a ponto de se chocar contra seu impressionante peito. Levantou a cabeça depressa e conteve o fôlego. A estava devorando com seus olhos negros, podia ver brilhos chapeados atrás daqueles olhos de ônix e o calor do Marquand a tocava como o vento momentos antes. Este elevou o olhar lentamente pelas pernas dela, abrasando-a. Deteve aquele olhar candente no montículo de cachos negros do vértice de suas coxas e Tamara acreditou estar em chamas. Por fim, voltou a movê-la com deliberada lentidão por seu estômago. Tamara ordenou a seus braços que voltassem para a vida... que fechassem a bata. Estes não reagiram. Os olhos do Marquand pareciam devorar seus seios, e sabia que os mamilos estavam se pondo rígidos debaixo daquele olhar avivado. Marquand se umedeceu os lábios e ela esteve a ponto de gemer em voz alta. Fechou os olhos, mas estes se negaram a ficar assim. Abriu-os contra sua vontade. Cravou-os nele, embora não queria ver o desejo que refulgia em seu olhar. Por fim, Marquand olhou sua garganta. O machucado que tinha deixado nela pareceu cobrar vida com seu olhar. Tamara sentiu um formigamento e uma palpitação no músculo de debaixo da pele. Viu como ele tragava saliva e fechava os olhos um momento, e quando voltou a abri-los e os cravou nela, negou-se a permitir que desviasse o olhar.

     Os braços da Tamara recuperaram a sensação e se fechou a bata com um movimento que refletia sua irritação.

     —Você - sussurrou. Estava assustada e confundida. Mais que isso, sentia um puro gozo por voltar vê-lo. Não queria permitir que ele percebe-se — O que faz aqui?    

    

     —Te esperando - disse devagar, observando-a. A mente da Tamara se rebelou contra o que estava insinuando.

     —Isso é absurdo. Como podia saber que sairia ao balcão?

     A fazia cambalear-se com a intensidade de seu olhar.

     —A chamei aqui, Tamara... igual a você me chamava todas as noites com seus gritos.

     Tamara franziu o cenho e moveu a cabeça em sinal de negativa enquanto escrutinava seu rosto.

     —Disse isso antes e sigo sem saber o que significa.

     —Tamara... —levantou uma mão devagar e deslizou o dorso dos dedos pelo rosto da Tamara. Esta fechou os olhos involuntariamente pelo prazer que provocavam suas carícias, mas rapidamente se obrigou a abri-los e a dar um passo atrás— Escuta a seu coração. Quer te dizer...

     —Então, sim que te conheço! —Olhou-o aos olhos como se queria arrancar a resposta de suas insondáveis Isso profundidades pensava. — Me diga quando nos conhecemos, Marquand. Resulta-me tão... familiar —”familiar” não era a palavra que tinha nos lábios, a não ser amado. Um ser ao que tinha tido saudades e perdido.

     Viu a indecisão em seus olhos, e um brilho que poderia ser aflição.

     —Recordará-o com o tempo. Não posso te obrigar, sua mente ainda não está preparada. De momento, pediria-te simplesmente que confiasse em mim. Não te farei mal. Tamara

     Marquand percorreu seu rosto como se não pudesse saciar-se de olhá-la, como se tentasse absorvê-la pela vista. Tamara congelou sua reação à sensação e se lembrou da estratégia do Marquand da noite anterior. Quadrou os ombros e elevou o queixo.

     —Sua mensagem foi enviada, Marquand. Daniel sabe nosso encontro e sua pequena... Atuação. Assegurei-me de que o entendesse - enquanto falava tocou a pele ainda dolorida do pescoço— Mas não servirá de nada. Não me escuta no refere a ti, assim que esta conversação não dará nenhum fruto. Deixe-me tranqüila. Se tiver algo a dizer ao Daniel, vá dizer pessoalmente.

     Marquand escutava... tão bem que parecia ouvir o pensamento além das palavras. Quando ela terminou inclinou a cabeça levemente.

     —Acredita mesmo que te beijei só para ameaçar ao Saint Claire - declarou devagar, vocalizando as palavras— E a idéia te faz sofrer.

     Tamara suspirou de forma entrecortada e moveu a cabeça.

     — Por que ia fazer me sofrer? Não te conheço. Não me importa...

     —Sentiu-se drogada quando te beijei doce Tamara. Sentiu que a terra se inclinava sob seus pés e que o céu dava voltas sobre sua cabeça. Acelerou seu coração e o pulso rugia em suas têmporas. A pele te encheu de sensações. Nesses momentos, enquanto te abraçava, não existia nada mais. Não - disse quando ela moveu a cabeça com energia e entreabriu os lábios para negá-lo com fúria— Não o faça. Sei o que sentiu porque eu também o senti. O tato de suas mãos, o sabor de sua boca, o contato de seu corpo contra o meu esteve a ponto de me fazer perder o controle.

     Tamara sentiu o rubor no rosto e o familiar nó de desejo formando-se na boca do estômago. Queria dizer que estava louco se acreditava no que dizia, mas não podia formar as palavras.

     De novo, ele elevou a mão para seu rosto, e ela não se apartou. Não sabia por que, mas sentia vontade de chorar.

     —Tamara, juro, nem sequer sabia que conhecia o Saint Claire até que o disse. Fui vê-la porque você me suplicou isso. Em seus sonhos me suplicava que aparecesse.

     Tinha começado a fechar os olhos enquanto acariciava sua bochecha, mas os abriu de repente e moveu a cabeça rapidamente.

     —Não, isso não é certo.

     — O que não é certo? Que sonha cada noite antes do entardecer? Que os sonhos estão pondo a prova sua prudência, Tamara? Que chama a alguém em sonhos e não recorda o nome quando desperta? Ontem à noite me confiou todas essas coisas.

     O alívio quase a fez deprimir-se.

     —Sim, contei —por isso sabia.

     —Mas o sonho foi diferente esta noite —disse Marquand com suavidade.

     De novo, ela arregalou os olhos. Tinha sido diferente, e ele não podia sabê-lo. Tragou saliva.

     —Não posso recordar o nome que repito, mas sei que não é Marquand. Por que quer jogar com minha cabeça?

     —Só quero te tranqüilizar. É verdade, nunca me chamaste por meu sobrenome. É meu nome que pronuncia em sonhos - tinha baixado a mão para acariciar seu cabelo com suavidade. Ela sussurrou sem fôlego:

     —Nem sequer conheço seu nome, assim não pode ser...

     —Sim que o conhece, Tamara —seu olhar cobrou uma nova dimensão enquanto a olhava fixamente aos olhos— Sabe como me chamo. Diga-o.

     E o fez. Assim, sem mais, soube o nome que tinha gritado uma e outra vez em sonhos. Conhecia-o tão bem como seu próprio nome. Mas não podia ser ele. Negou com a cabeça.

     —Você não é...

     —Sou — lhe pôs as mãos nos ombros— Diga-o. Tamara.

     Engasgando-se com lágrimas sem derramar, grasnou:

     — Eric?

     Este assentiu, e relaxou o rosto com um meio sorriso aprovador.

     —Sim, Eric. Se necessitar uma confirmação, estou segura de que seu Saint Claire poderá confirmar isso.

     Tamara olhou para o chão, presa de um alívio tão grande que relaxou os músculos do pescoço. Não necessitava uma confirmação. Então, a que se devia aquele intenso alívio? E por que tinha sonhado com ele?

     —Suplicou que eu viesse. Tamara, e estou aqui.

     Aquilo era uma loucura. Moveu a cabeça ao tempo que as lágrimas escorregavam lentamente por seu rosto.

     —Isto não está passando. Não é real. Estou alucinando ou é outro sonho. Nada menos. Não é real.

     Apertou-a contra ele de improviso, rodeando-a com os braços, acariciando as costas e os ombros, levantando o cabelo, acariciando a nuca.

     —É real, Tamara. Eu sou real, e o que sente por mim é real... mais real, acredito, que qualquer outra coisa na vida —Tamara moveu a cabeça e sentiu os lábios do Eric no cabelo, justo por cima da têmpora... mais abaixo, no maçã do rosto, na bochecha. Com voz irregular, falou-lhe com ouvido— Como conseguiu Saint Claire converter-se em seu tutor? O que foi de sua família?

     Surpreendeu-se relaxando em seus braços, deixando-se consolar por sua delicadeza.

     —Tinha seis anos quando me caí por uma janela, atravessando a vidraça - disse, com uma voz apenas perceptível— Cortei as veias dos dois braços e estive a ponto de morrer sangrando. Disseram que foi um milagre quando sobrevivi, porque não tinham podido localizar a nenhum doador com o mesmo grupo sangüíneo - inspirou tremendo. Em realidade, não recordava nada do acidente, nem de sua vida até esse momento. Daniel sempre insistia em que, para ela, o melhor seria não recordar. O que estava bloqueado, estava bloqueado por uma razão, dizia.

     Tamara exalou o ar que tinha inspirado e prosseguiu.

     —Ainda estava hospitalizada quando meus pais padeceram uma infecção muito insólita e virulenta. Quando por fim isolaram o vírus e o identificaram, eles... eles já tinham morrido.

     —Sinto-o mais do que imagina - disse Eric com suavidade, acariciando a pele com seu fôlego enquanto falava— Deveria ter estado contigo.

     —Deveria - resmungou antes de poder analisar suas palavras. Pigarreou— Mas Daniel estava ali. Trabalhava a tempo parcial no laboratório de investigação do hospital. Assim que ouviu falar da menina milagrosa da área da pediatria, veio para me ver. Depois, ia todos os dias e me trazia presentes. Dizia que sempre quis uma menina como eu. Quando meus pais adoeceram, Daniel e eu fomos amigos íntimos. Quando morreram, pediu minha custódia aos tribunais e a concederam. Não tinha mais parentes próximos. Se não fosse Daniel, teria estado sozinha.

     Sentiu a rápida inalação do Eric e a leve rigidez de seu corpo.

     —Sinto-o - disse, quase com um gemido, e a balançou em seus braços.

     Céus, por que seu tato era celestial? Por que o tórax amplo e os braços fortes que a circundavam pareciam a proteção mais segura do mundo?

     —Então —disse Marquand com a voz ligeiramente mais normal— Foi Daniel quem te buscou o emprego na DIP - ela se limitou a assentir— E o que faz ali, Tamara? Trabalha com o Saint Claire?

     —Não - balbuciou contra o tecido de seu casaco— Meu nível de segurança não é... —interrompeu-se, ficando rígida, e se separou dele com um empurrão. Céus, tinha jogado bem! — A DIP é uma agência do governo, uma subdivisão da CIA, pelo amor do Deus e você é objeto de uma de suas investigações mais largas. Certamente, não penso falar contigo do que faço ali - rompeu o contato visual e moveu a cabeça, desprezando-se— Deus, é bom. Estava-me tragando tudo isto. Só queria me tirar informação.

     —Sabe que não - sua voz grave continha irritação e, pela primeira vez, Tamara sentiu medo dele. Deu outro passo atrás e sentiu o corrimão de ferro nas costas. Eric Marquand se erguia entre ela e as portas—. Só quero determinar se posso confiar em ti. Saint Claire quer me destruir. Não posso descartar a possibilidade de que você seja parte do plano.

     — Daniel não mataria nem a uma mosca! —ficou tensa ante a insinuação de que seu amado Daniel não era o homem doce e carinhoso que conhecia.

     —Sei que isso é falso. Não necessito provas de seu propósito, já as tenho. É de ti de quem preciso estar seguro. Tamara. Diga-me que responsabilidades têm - se aproximou, e Tamara ficou sem lugar aonde ir.

     —Não direi - replicou isso—. Não posso trair a Divisão... nem ao Daniel.

     — Preferiria trair a mim?

     Ela o negou, com a confusão nublando o cérebro.

     —Não poderia te trair. Não sei nada de ti.

     —Poderia, facilmente, ser o instrumento de minha destruição.

     —Mas eu não...

     —Então, fala. Responde a minhas perguntas, é vital... —ela voltou a negar com a cabeça. Ele suspirou e se passou uma mão pelo cabelo, tirando várias mechas de seda negra do acréscimo. Quando voltou a olhá-la aos olhos, a intensidade tinha ressurgido— Posso te obrigar, sabe?

     O temor lhe acariciou as costas.

     —Se me tocar, gritarei.

     —Não preciso te tocar. Posso te fazer obedecer como te tenho feito sair aqui esta noite... com minha mente.

     —Acredito que necessita ajuda, Marquand. Está mais louco que eu, se quer saber.

     Arqueou uma sobrancelha azeviche em atitude inquisitiva.

     — Dúvidas da verdade?

     Ficou olhando, e Tamara viu certo fulgor, como se as íris de cor ébano fossem repentinamente translúcidos e surgisse um redemoinho de luz de suas profundidades. Sentiu que sua mente se convertia em água, e o candente redemoinho começou a girar em torno de seus tornozelos, cobrando força enquanto se elevava e a envolvia como um ciclone. O cabelo sacudia em seu rosto. A bata de seda flagelava das canelas até a coxa. O vento a impulsionou a avançar até que só a separaram dele uns milímetros.

     Eric pôs as mãos na sua garganta e, com os polegares, acariciou-a em cima das clavículas. Deslizou os dedos por debaixo do tecido da bata, nos ombros. O vento desfez o cinturão, ao parecer, por mandato dele. Devagar, retirou o cetim escarlate dos ombros e este caiu, para horror da Tamara, em forma de cascata resplandecente a seus pés. Entretanto, era incapaz de elevar os braços para impedi-lo. Sentia-os muito pesados e não podia movê-los. Seus pés pareciam estar contagiados do mesmo mal misterioso. Não podia andar.

     Tamara tinha seguido com o olhar a queda do cetim vermelho, mas levantou o queixo. Em parte, ela queria brigar, mas ao mesmo tempo, pedia a gritos suas carícias. Eric baixou a cabeça e apanhou o lóbulo da orelha entre os lábios. O mordiscou com tanta suavidade que seu roce era quase imperceptível, mas o desejo a percorreu com feras sacudidas. Os lábios deixaram um rastro em torno de seu rosto e se detiveram somente quando chegaram aos dela. Permaneceram ali, tocando-os apenas. Com suas mãos acariciou a parte posterior das coxas e os levantou devagar, rodeando suas nádegas, espremendo, separando, deslizou uma mão para diante para rodear seu lugar mais íntimo, enquanto a outra permanecia detrás dela para mantê-la imóvel. Tamara sentiu seus dedos tocando-a levemente, separando-a, explorando-a, e ouviu um gemido afogado que devia ser dele. O fogo percorreu suas veias, esquentando o sangue até que ferveu. Desejava aquilo... Maldito, estava fazendo desejá-lo!

     Eric plantou as duas mãos no estômago e as deslizou lentamente para cima. Tamara se estremeceu com violência, consciente do que chegava a seguir e aguardando-o com um desejo crescente contrário a sua vontade. Seguia beijando-a, lambendo os lábios, mordiscando com suavidade, acariciando com rápidos movimentos com a ponta da língua, seguidos de traços lânguidos e lentos pelo contorno. Por fim, alcançou o seio da Tamara com os dedos. Colocou o polegar e o indicador em cada mamilo, tocando suavemente. Ela emitiu um gemido grave e rouco a modo de súplica, e ele os fechou, beliscando-lhe fazendo girar as pontas eretas entre seus dedos até que palpitaram como o resto dela.

     Tamara compreendeu que tinha recuperado as forças nos braços quando se surpreendeu entrelaçando-os detrás da cabeça do Eric para atraí-lo para ela. Abriu a boca, e ele afundou a língua nela para acariciar a sua, entrelaçá-la, atirar dela. Atraiu a sua própria umidade sedosa, e a lambeu como ela desejava que lambesse os seios. Estremeciam-se à espera de sua boca.

     Antes de completar a idéia já tinha posto as mãos nas suas costas, entre as omoplatas. Com os lábios, Eric deixou um rastro de calor líquido pelo queixo, pela garganta, pelo seio. Ela arqueou as costas, apoiando-se nas mãos do Marquand, umas nas costas e outra em seus glúteos. Ele se inclinou sobre ela e encontrou certeiramente uma crista cheia com a boca. Acariciou-a sem piedade, lambendo-a até que Tamara gemeu, sugando-a até que gritou e mordendo até que ela entrelaçou os dedos em seu cabelo para apertá-lo contra ela.

     Não podia recuperar o fôlego. Desejava-o tanto que tinha perdido o controle. Seu sexo palpitava com umacrescente umidade, pedia para ser cheio... dele.

     Eric levantou a cabeça e a sujeitou até que ela recuperou o equilíbrio. Em algum momento da sedução ávida soltou a mente da Tamara. Esta não sabia quando, mas a partir de certo instante poderia brigar, fugir, esbofeteá-lo. Não o tinha feito. Em troca, tinha reagido como um animal. Estava furiosa consigo mesma, com ele e com sua mente por negar-se a dar a lembrança que necessitava para dar sentido a todo aquilo.

     Eric se agachou, recolheu a bata e a pôs sobre os ombros.

     — Viu? —disse com muita suavidade.

     — Por que fez isto? —a voz quebrou ao formular a pergunta. Atou-se o cinto da bata com força. Não podia olhá-lo aos olhos.

     —Esta noite vim para ti. Para te ajudar, se me permitir.

     — E o que acaba de fazer era uma ajuda?

     Ao ver que não respondia imediatamente, olhou-o. Para surpresa dela, viu que baixava a vista.

     —Não - sussurrou por fim — Pretendia te demonstrar... Não era minha intenção ir tão longe.

     Tamara franziu o cenho e o olhou atentamente pela primeira vez desde que ele a tinha afastado. Os olhos brilhavam de paixão e os tinha entrecerrados. Respirava com dificuldade, com pequenos ofegos, igual a ela. Céus! Se deixou arrastar pela paixão! Deu-se a volta e, com mãos trêmulas, aferrou-se ao corrimão de ferro para contemplar a noite azulada e o chão coberto de neve.

  —Te fiz mal... - disse Eric devagar, com cuidado, embora ainda tinha a voz rouca— Não desejo te assustar, nem te aborrecer. Preocupo-me contigo, Tamara. E a muito tempo.

     Ela deixou que suas palavras penetrassem a confusão que reinava em sua mente.

     —Isso eu posso acreditar.

     —É verdade que vim porque ouvi seus gritos. Não tinha outro motivo. Também pode acreditar isso?

     Tamara inspirou fundo.

     —Trabalho com um menino que, algumas vezes, demonstrou possuir certos poderes psíquicos. Vários agentes mantiveram sessões com ele, além de mim. Mas seus poderes, por tênues que sejam, sempre se fazem muito mais evidentes quando está comigo. Suponho que existe a possibilidade de que eu tenha uma tendência clarividente latente que potencialize a dele. Possivelmente sim que ouviu meus sonhos. Não direi que é impossível.

     Animado, Eric prosseguiu.

     — Fui vê-la só pelo desespero de seus gritos. Juro. Não sabia que Saint Claire era seu tutor - deu um passo para diante, levantando uma mão com a palma para cima—. Imagine como me senti quando o descobri, Tamara. A mulher que me tinha estado chamando, vive sob o mesmo teto que o homem que leva meses me perseguindo implacavelmente. Como não vou suspeitar que se trate de uma conspiração para me apanhar?

     Tamara escutava. Supunha que Eric tinha razão, ela teria pensado o mesmo de encontrar-se em seu lugar. Deu a volta para olhá-lo.

     —Suponho que tinha motivos para recear - baixou a vista ao chão e se mordeu o lábio. Podia tranqüilizá-lo sem revelar informação confidencial. De fato, conhecia poucos dados classificados— Tenho um nível de segurança muito baixo. Às vezes acredito que o inventaram só para mim, de tão baixo que é —sorriu levemente ao dizê-lo— Não sei quantas vezes tentei tirar da cabeça de Daniel essa louca idéia de que é um... — por que não podia terminar a frase? —tragou saliva e prosseguiu— Sempre me replica que tem montões de provas que corroboram suas teorias. E eu sempre replico pedindo que me mostre os arquivos. A resposta sempre é a mesma. Meu nível não é o bastante alto - investigou o rosto do Marquand, mas este não dava indícios de acreditá-la. Escutava atentamente— Mas nunca falei dos sonhos. Não queria preocupá-lo.

     — É possível que o tenha averiguado de outra maneira?

     — Como, além de me lendo o pensamento? —piscou e desviou o olhar de improviso— A não ser... Havia vezes em que eu gritava, o bastante alto para alertar ao Daniel e atraí-lo ao meu quarto. Sempre me dizia que não tinha ouvido bem o que dizia em sonhos, mas possivelmente tenha escondido isso para não agravar o problema.

     —Ou porque pensava que eu acudiria e estava me esperando.

     Até aquele momento, Tamara fazia o possível por ficar em seu lugar. De repente, levantou a cabeça de repente e ficou rígida.

     —Tem que tirar essa idéia da sua cabeça. Reconheço que Daniel te segue, que vigia todos seus movimentos. Mas por que quereria te apanhar, como você diz? O que crie que faria contigo quando te apanhasse?

     —Está especializado em investigação. Tamara, não em vigilância. O que crie que faria com um espécime vivo do que ele considera uma espécie ainda sem estudar?

     A Tamara revolveu o estômago. Levou-se a mão à boca.

     — Isso é absurdo! Daniel jamais... É o homem mais amável que conheço - moveu a cabeça com tanta energia que o cabelo voou em torno dela— Não. Não, ao Daniel nem sequer passaria pela cabeça.

     —Não o conhece tão bem como acredita - Eric falava com suavidade, mas suas palavras eram brutais— Não te ocorreu pensar que poderia ter descoberto o vínculo que existe entre nós desde o começo, e que foi isso que o impulsionou a te acolher?

     Com os olhos muito abertos, ficou olhando, incrédula.

     —Jamais me ocorreria pensar isso. Daniel me ama. E eu a ele! É a única família que tenho. Como pode sugerir...? —interrompeu-se e tentou recuperar o fôlego. De repente, doía muito a cabeça. A falta de descanso parecia assaltá-la de repente. Doía todo seu corpo de puro esgotamento.

     —Ao menos, deveria considerar essa possibilidade. Conhecia minha existência inclusive naquela época. Posso demonstrar isso se...

     — Já basta! —Levantou as palmas das mãos a ambos os lados da cabeça.

     —Tamara...

     —Por favor, Eric - sussurrou muito cansada para gritar ou seguir discutindo—. Não faça isto, não me diga estas coisas. Estou tão perto de perder a cabeça que já não confio em meus sentidos. Não sei o que é real e que não é. Não posso com tudo isto.

     Tamara baixou a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas, e não o viu aproximar-se. Estreitou-a entre seus braços para oferecer consolo. Não havia desejo sexual em seu abraço.

     —Me perdoe Tamara. Falei sem pensar e acabei te fazendo mal. Perdoe-me. Minha preocupação por ti tem me feito esquecer o sentido comum – suspirou — Deus, estraguei tudo.

     Ela achava muito consolo em seus braços, mas aquilo não tinha sentido. Devia afastar-se dele. Não podia pensar quando o tinha perto. Endireitou-se e saiu de seus braços.

     —Acredito... Acredito que deve ir.

     A dor que flamejou em seus olhos de ônix era quase insuportável. O viu abaixando a cabeça.

     —Como queira.

     Com a mão nas costas, apressou-a para que avançasse para as portas de cristal. As abriu e a empurrou com suavidade. Ela entrou e se deteve repentinamente consciente do frio. Estremeceu-se e ficou imóvel um momento, depois, deu-se a volta para perguntar como tinha chegado ao balcão, uma pergunta que, bobamente, não tinha ocorrido antes, mas Eric já se foi. Moveu a cabeça com força e olhou ao redor. Parecia que nunca tivesse estado ali.

    

     Jamie Bryant se retorceu na cadeira, cravando o olhar na neve que caía ao outro lado da janela mais que na Tamara ou na caixa do centro da mesa.

     —Vamos, Jamie. Concentre-se — sentia culpa ao ordenar ao menino que fizesse o que resultava impossível. O rosto do Eric aparecia ante ela cada vez que fechava os olhos. A lembrança de suas carícias, seus beijos, a segurança de estar em seus braços a atormentava sem cessar. A dor que tinha visto em seu olhar antes que se esfumasse era o que mais a tinha atormentado.

     Jamie suspirou e cravou o olhar no cubo de cartão que descansava entre ambos. Enrugou o rosto até que a ruga de entre suas finas sobrancelhas escuras se triplicou. Inclinou-se para diante e seu rosto salpicado de sardas avermelhou até que Tamara acreditou que estava contendo o fôlego. Suas suspeitas se confirmaram um momento depois, quando o exalou com força e se recostou na cadeira.

     —Não o consigo - disse— Posso ir já?

     Tamara tentou desdobrar um sorriso alentador.

     —Detesta isto, verdade?

     Ele se encolheu de ombros, voltou a olhar para a janela e, depois, de novo para a caixa.

     —Como queria poder ser como outros meninos. Sinto-me estranho quando sei coisas. E logo, quando não sei algo que acredito que deveria saber, sinto-me estúpido. E há vezes que capto coisas que não tem sentido. É como se soubesse algo, mas não entendesse o que significa, compreende?

     —Acredito que sim.

     —Então, do que serve saber algo se não poder encontrar o sentido?

     —Jamie, não é estranho nem estúpido. Todo mundo possui alguma qualidade que o diferencia de outros. Algumas pessoas cantam notas que a outros resultam impossíveis. Igualmente, as percepções extra-sensorias são algo que você faz melhor que a maioria. O que acontece é que não são reconhecidas como iguais as outras qualidades.

     Observou seu rosto, pensando que seu bate-papo não parecia havê-lo consolado muito.

     —Possivelmente deveria me contar o que é o que te inquieta.

     Jamie suspirou e moveu a cabeça.

     —Sei que sou terrível nisto. É possível que não seja nada. Não quero... te assustar sem motivo.

     Tamara franziu o cenho.

     — Me assustar? Trata-se de mim Jamie?

     O menino assentiu, fugindo seu olhar. Tamara se levantou do assento, rodeou a mesa e fincou o joelho diante dele. Desde que tinha começado a trabalhar com o Jamie fazia seis meses, tinham criado um forte vínculo. O sempre sabia se estava deprimida ou abatida. Também tinha percebido os pesadelos e a insônia.

     —Não é terrível nisto. Ao menos, no que se diz respeito a mim. Se tiver percebido algo, diga-me possivelmente possa explicá-lo.

     Jamie torceu os lábios e a olhou com seriedade. Seu semblante intenso o fazia parecer um adulto em miniatura.

     —Não faço mais que pensar que vai acontecer algo com você... que alguém vai te machucar. Mas não sei quem nem por que, assim, do que me serve sabê-lo?

     Ela sorriu com suavidade.

     —Estiveram-me acontecendo muitas coisas ultimamente, Jamie. Coisas pessoais que me desgostaram muito. Acredito que poderia estar percebendo-o.

     — Você acredita? —Seus olhos escuros a olharam com esperança, mas voltaram a escurecer-se de preocupação— Vai tudo bem?

     —Acredito que sim — Tamara assentiu com energia— E, sim, tudo está se resolvendo. Os pesadelos que tinha desapareceram.

     —Me alegro — mas seu cenho não desapareceu— Mas ainda tenho a sensação de que há gente te perseguindo - se mordeu o lábio— Conhece alguém chamado Eric?

     Algo duro, semelhante a um tijolo, alojou-se em seu peito. Tamara proferiu uma exclamação e se levantou tão depressa que esteve a ponto de perder o equilíbrio.

     — Eric? —repetiu— Por quê? Há algo dele...?

     —Não sei. Seu nome aparece nos momentos mais estranhos. Sempre me sinto muito triste, ou muito preocupado, quando chega. Acredito que possivelmente seja assim como ele se sente, mas como te hei dito, sou péssimo nisto. Possivelmente esteja interpretando tudo ao reverso.

     Tamara deixou que o momento de pânico acabasse. Tinha esperado ouvir que Eric era quem queria machucá-la. Se perguntou se seria o caso, mas não queria que Jamie o percebesse. Inspirou fundo para serenar-se e tentou recompor o semblante antes de voltá-lo para olhar.

     —Obrigado pela advertência, mas acredito que está exagerando o perigo. Ouça, por que não abre a caixa? Agora mesmo, nem sequer recordo o que havia dentro.

     Depois de um breve olhar, como se queria assegurar-se de que não a tinha assustado, inclinou-se para diante, tomou a caixa e olhou dentro. Tirou a caixa do vídeo-game.

     — Dragões e masmorras! Minha mãe o esteve procurando por toda parte. Onde o encontraste?

     —Sua mãe não procurou tanto como acreditava. Pedi que não o fizesse.

     O menino examinou a colorida caixa com entusiasmo.

     —Obrigado, Tammy - ficou em pé, com pressas por ir-se a casa e estrear o jogo.

     —Vá, Jamie. Sua mãe te espera no final da escada —o menino assentiu e pôs-se a andar para a porta—. Jamie! —Gritou-lhe, e esperou a que voltasse a cabeça—Se perceber alguma outra vibração estranha sobre mim e que te incomoda, me ligur. Tem meu número. De acordo?

     —Claro, Tammy — dirigiu um amplo sorriso com covinhas que indicava que se ficou mais tranqüilo e saiu correndo pela porta, deixando a Tamara refletindo sozinha sobre a advertência.

     Trabalhou até tarde aquela noite, tentando encher sua mente de obrigações mundanas. Não funcionou. Por fim se foi a casa e encontrou a moradia vazia. Como não, já tinha anoitecido e Daniel e Curt tinham saído a realizar sua missão de espionagem noturna. Apesar de suas acusações infundadas contra Daniel, Tamara sentia um pouco de lástima pelo Eric Marquand. Devia estar farto de vê-los todas as noites diante de sua casa.

     Tamara freou e saiu para abrir a teimosa da porta da garagem, resmungando entre dentes. Levava três invernos tentando persuadir ao Daniel para que instalasse uma porta automática. Daniel não cedia nem um milímetro. O que não podia fazer ele mesmo na velha mansão não seria feito. Não queria uma equipe de desconhecidos farejando por ali.

     Ao colocar o carro, viu que o Cadillac do Daniel não estava. Sentiu um calafrio de preocupação. Esperava que não conduzisse aquela noite. As estradas estavam escorregadias e não tinha substituído o estepe desde que o usou há dois meses. Pensou que Curt estaria com ele e se consolou com a idéia.

     Acendeu as luzes enquanto atravessava o vestíbulo. O telefone começou a soar antes que estivesse sentada para tirar as botas. Atravessou o tapete gasto para atender.

     —Tammy, já era hora de que chegasse a casa. Onde esteve?

     Reprimiu a áspera réplica que brotou de seus lábios.

     —Curt, está com o Daniel?

     —Sim, mas isso não responde à pergunta.

     —Para sua informação, vim diretamente do escritório. Trabalhei até tarde e as estradas estão escorregadias. Não quero que conduza.

     —Eu cuidarei dele. Ouça, Tammy, vai estar em casa esta noite?

     — por quê? —perguntou, com o cenho franzido.

     Vacilou, começou a falar, interrompeu-se e começou de novo.

     —É que, depois do incidente da outra noite com o Marquand, Daniel e eu pensamos que seria melhor que, enfim, que tentasse ficar em casa de noite. Sei que te incomoda que digamos o que deve fazer, mas seria para seu próprio...

     —Para meu próprio bem, sei — suspirou e moveu a cabeça— Olhe, não tenho planos para sair de casa esta noite. Além disso, pensava que estavam vigiando todos os movimentos do Marquand.

     —Sim, mas...

     —Então, não têm que se preocuparem com nada, verdade? Vou tomar um longo banho quente e, depois, vou para a cama.

     Curt guardou silêncio um momento.

     —É que estamos preocupados, Tammy.

     —Sei. Boa noite - repôs o fone para não se zangar mais e se dirigiu a seu quarto para seguir sua própria recomendação de tomar um banho quente. Quanto a ir para a cama, sabia que não. No trabalho tinha estado sonolenta todo o dia. Uma vez em casa, estava completamente acordada e transbordante de energia.

     Enxugou-se depois de um banho calmante, mas não relaxante, ficou uns jeans cômodos, uma blusa folgada e umas meias três-quartos grossas e secou o cabelo com desinteresse antes de descer em busca de algo com que encher o estômago. Acabava de sentar-se no sofá do enorme salão com uma lata de refrigerante e um sanduíche de presunto, alface e tomate quando soou a campinha.

     Sua irritação desapareceu quando abriu a porta e Eric Marquand entrou no vestíbulo. Fechou a porta com força depois de lançar um olhar cheio de temor pelo caminho de entrada, e ficou olhando, boquiaberta.

     —Não deveria estar aqui, Eric. Meu Deus, se Daniel te visse, teria um enfarte.

     —Não. Rogers e ele seguirão vigiando a grade de minha casa como todas as noites, acredite. Não me viram sair. Tive muito cuidado.

     Tamara ficou imóvel, combatendo o borbulho de alegria que experimentava ao vê-lo, pensando que era ilógico sentir aquilo por um desconhecido.

     —Depois de meu comportamento de ontem à noite, esperava que nem me deixasse entrar. Vai me expulsar Tamara?

     Tentou arrancar o olhar dos seus, mas não pôde.

     —Não... Não vou expulsar. Entre. Estava a ponto de comer um sanduíche. Quer que te prepare um?

     —Já jantei. Se estiver interrompendo seu jantar...

     Ela moveu rapidamente a cabeça.

     —Não. Bom, não se pode dizer que um sanduíche e um refrigerante seja um jantar — a seguiu ao salão e se sentou a seu lado no sofá, apesar de que lhe tinha famoso uma cadeira próxima. Tomou a lata— Poderia te trazer um refresco.

     —Não, obrigado - Eric pigarreou—. Vim por que... —moveu a cabeça— Em realidade, não há nenhum outro motivo além de que não podia deixar de vê-la. Tamara, quer sair comigo esta noite? Dou minha palavra que não direi nada contra Saint Claire. Não farei perguntas sobre a DIP. Só quero sua companhia.

     Tamara sorriu, mas se conteve. Atreveria a sair com ele depois de todas as advertências do Daniel?

     Eric pegou mão e a acariciou brandamente com o polegar.

     —Se não poder acreditar nas minhas acusações, Tamara, deveria igualmente duvidar das do Daniel. É o justo.

     —Suponho que tem razão - assentiu— Está bem, sairei com você — se levantou depressa, mais impaciente do que queria imaginar — Devo me trocar? Aonde vamos?

     — Está bonita assim, carinho. Importaria que déssemos um passeio de carro até que nos ocorra algo melhor? Ainda não quero te compartilhar com ninguém.

     —Está bem. Irei pegar o casaco e... de carro? Não o vi. Como...?

     —Termine o sanduíche Tamara. É uma surpresa.

     Não pôde evitar sorrir por completo.

     —De qualquer jeito, não tenho fome - disse, e caminhou longe dele para abrir o armário do Hall, próximo à porta da rua— Só estava comendo para esquecer a solidão.

     Vestiu seu casaco mais grosso, de lã, um cachecol negro e guardou as luvas que faziam  jogo no bolso. Deu vários pisões. Quando voltou a levantar o olhar, ele a estava olhando fixamente.

     —Então, estiveste sozinha? —perguntou com suavidade.

     Ela pestanejou assim que as lágrimas afloraram a seus olhos para ouvir a pergunta. Não ocorreu mentir.

     —Freqüentemente penso que sou a pessoa mais solitária que conheço. Sim, tenho ao Daniel, e a Hilary e outros amigos no trabalho, mas... —olhou-o aos olhos e soube que ele o compreenderia— Não sou como eles. Sinto-me separada, como se houvesse uma barreira invisível entre nós — franziu o cenho— Contigo não me sinto assim.

     Ele fechou os olhos devagar e voltou a abri-los. Mais que um pouco alterada, Tamara atravessou a habitação e desenganchou o telefone. Sem dar explicações, subiu a seu quarto e passou uns minutos embutindo umas mantas sob a colcha para que parecesse que estava dormida. Apagou a luz do dormitório e fechou a porta antes de baixar. Eric a esperava no patamar da sala.

     Ao final da escada, no porão, Eric avistou a luz que resplandecia depois de uma soleira do fundo. Tamara tinha apagado as demais luzes, assim que tocou seu ombro e assinalou.

     — Quer apagar essa luz também?

     Ela moveu a cabeça com energia, abriu a boca para explicar-lhe, mas o pensou melhor. Embora não antes que Eric ouvisse o que estava em sua mente. Tamara era proibida de atravessar aquela porta. Saint Claire tinha instalado seu laboratório no porão e ela não podia entrar nele. Ao Eric teria gostado de baixar, examinar os arquivos e a equipe do desumano cientista, mas tinha dado sua palavra a Tamara de que tinha ido ali só para estar com ela. Como confiaria nele se traía sua confiança dessa maneira?

     Tamara fechou a porta com chave, a guardou no bolso e se voltou para ele. Eric permitiu-se ter o prazer de rodear seus ombros com o braço. Por melhores que fossem suas intenções, não podia evitar tocá-la, abraçá-la. Levava um casaco muito grosso para seu gosto, logo que podia perceber a forma de seu corpo. Apressou-a para que percorressem o caminho em curva, e percebeu sua surpresa quando avistou o veículo que os aguardava. Um cavalo levantou as orelhas e a cabeça ao ouvi-los se aproximando.

     Tamara se deteve em seco para olhar ao Eric com os olhos muito abertos. Este sorriu pelo deleite que via neles.

     —Pensei que um trenó seria muito mais agradável que qualquer outro meio de transporte.

     O sorriso da Tamara o deixou sem fôlego, e a viu correr para a carruagem, lançando pó de neve a cada passo. Deteve-se diante do cavalo e falou com suavidade no ouvido, enquanto acariciava seu focinho. O cavalo soprou, agradecido. Eric se reuniu com ela um segundo depois.

     —Este é Max. Está castrado e acredito que o encantaste assim que te viu, como a mim —Tamara o olhou nos olhos, apreciando o elogio em silêncio— E esta —se aproximou a égua dourada que estava junto ao Max— é Melinda, sua companheira.

     Tamara se aproximou e acariciou o lustroso pescoço de Melinda.

     —É formosa, os dois o são. São teus, Eric?

     —Por desgraça, não. Pude alugá-los para esta noite - observou as emoções do rosto da Tamara e as percebeu com a mente enquanto a via acariciar aos dois cavalos—Mas estou pensando em comprá-los - acrescentou. E era certo. Nada mais que ver a sua alegria ao contemplar os animais, e queria tê-los.

     Depois de ajudá-la a subir na carruagem, Eric tomou as rédeas.

     —Sempre me gostaram dos cavalos. Quando era pequena, queria ter um rancho para poder criá-los às centenas.

     Eric assentiu. Recordava o amor que sentia Tamara pelos cavalos. Acreditava que continuaria. Sacudiu as rédeas com suavidade e estalou a língua. A carruagem ficou em movimento e Tamara se acomodou no assento fofo. Eric os tirou da estrada asfaltada e saiu a uma estrada secundária coberta de neve. Tamara fazia comentários a respeito de tudo com pequenos suspiros de prazer: a lua cheia refletindo na neve, os ramos cobertos de gelo que faziam que os galhos nus e feios se convertessem em cristal esculpido. O ar limpo e frio que acariciava seu rosto e o aroma dos corpos quentes dos cavalos.

     Eric assentia, concordando, mas em realidade não era consciente de nada salvo da presença da Tamara. Rodeava seu corpo com o braço e ela apoiava a cabeça em seu ombro.

     —Isto é maravilhoso, Eric. Não tinha estado tão feliz desde... —pestanejou e ficou pensativa um momento— Não recordo me haver divertido tanto nenhuma vez.

     —Nem eu - sussurrou, convencido de que estava certo.

     Voltou a acomodar-se junto a ele, depois se incorporou e estalou os dedos.

     —É francês, verdade?

     — O que?

     —Seu sotaque.

     —Não sabia que tivesse sotaque —céus, que formosa era. Seus olhos refulgiam à luz da lua, e voltou a fixar-se na grossura das pestanas que os circundavam.

     —É muito leve. Eu apenas o noto. Estive tentando localizá-lo. Tenho razão?

     Eric assentiu.

     —Nasci na França.

     — Onde?

     Sorriu, surpreso de que ela quisesse saber.

     —Em Paris. Faz... anos que não vou lá.

     —Mas fala como se quisesse ir - disse, observando seu rosto — Por que não voltou?

     —Más lembranças, acho. Assassinaram meu pai lá. Eu estive a ponto de sofrer a mesma sorte, mas um bom amigo meu interveio e me salvou — viu que ela abria os olhos de par em par. Tinha jurado ser sincero com ela tanto como fosse possível sem revelar seu segredo. Queria que se sentisse como se o conhecesse.

     Agarrou seu antebraço com força.

     —Isso é horrível.

     —Sim, mas passou faz muito tempo, Tamara. Já o superei.

     — Está seguro? Falou com alguém sobre isso, Eric?

     Eric inclinou a cabeça, medindo as palavras.

     —Mataram-no... por motivos políticos... Foi um sacrifício absurdo. Fiquei sem família, e se não fosse por Roland, teria ficado sem amigos —a olhou e a surpreendeu escutando, encantada— Houve uma época que havia muitas pessoas ao meu redor, sabe? Sempre me senti afastado deles.

     —Não encaixava. Sei muito bem o que quer dizer.

     Olhou-a nos olhos com intensidade.

     —Sim, suponho que sim.

     —me fale de seu amigo. Seguem em contato?

     Eric riu entre dentes.

     —Às vezes demora muito em me escrever, ou em vir para ver-me. Mas dá a casualidade de que Roland se encontra em minha casa neste momento.

     Tamara levantou a cabeça, iludida.

     — Poderia conhecê-lo?

     — por que quereria fazê-lo? —repôs Eric, com o cenho franzido.

     Ficou reflexiva um momento.

     —Há dito que salvou sua vida... —baixou o olhar a sua própria mão, que descansava sobre o joelho—. Eu gostaria de agradecer.

     Eric fechou os olhos ao sentir a ternura que provocava suas palavras.

     —É um ermitão. Mesmo assim, possivelmente possa vê-lo. Ao contrário de mim, ainda tem uma residência na França, embora poucas vezes estivesse ali. Possui um amplo castelo medieval no Grillage de Loire. Escondeu-me ali durante um tempo quando fugimos de Paris.

     Quando voltou a olhá-la, surpreendeu-a observando-o com intensidade, como durante quase todo o trajeto.

     —É um homem fascinante —sussurrou Tamara.

     —Sou um homem singelo, de gostos singelos.

     —eu adoraria ver sua casa.

     —Em outra ocasião, talvez. Se te levasse ali durante a estadia de meu solitário amigo, me estrangularia—passou o braço pelo respaldo e a apertou contra seu ombro— Está mobiliada quase por inteiro com peças antigas. Há luz elétrica, é obvio, mas poucas vezes a uso. Prefiro o resplendor suave das lamparinas de azeite à luz cegadora das lâmpadas, salvo em meu laboratório.

     — É cientista?

     —me divirto com alguns projetos que me interessam.

     Ela entreabriu seus preciosos olhos.

     —Acredito que é modesto.

     Eric se encolheu de ombros, atirou das rédeas para deter o avanço dos cavalos e colocou a mão atrás do assento para tirar o recipiente térmico que tinha levado consigo.

     —Disse-me uma vez, faz muito tempo, que você adorava o chocolate quente. Segue sendo assim?

    

     Às sete da manhã, Tamara estava sentada à mesa da cozinha na frente de Daniel, com uma xícara de café forte entre as mãos e uma horrível dor de cabeça.

     —Não é mais que um resfriado - repetiu—. Estou cansada e dolorida. Passarei o dia na cama e amanhã pela manhã já estarei bem outra vez.

     Daniel apertou os lábios e moveu a cabeça.

     —Chamarei o escritório e hoje ficarei trabalhando em casa. Assim...

     —Não necessito uma babá.

     —Não disse que a necessita. Mas acredito que deveria ficar aqui, se por acaso...

     Tamara bateu a xícara ainda na metade sobre a mesa, salpicando café, e ficou em pé.

     —Daniel, isto tem que terminar.

     — O que? Tammy, estou preocupado contigo, nada mais.

     —Sei - passou a mão pelo cabelo, desejando poder suavizar as palpitações nas têmporas. Aquela manhã parecia um trapo, e sem humor para uma confrontação— Sei que é o carinho o que te motiva Daniel. Sei que se preocupa. Mas, pelo amor de Deus, me olhe. Já não sou uma menina órfã - mantinha a voz serena, e rodeou a mesa para lhe pôr as mãos nos ombros— Curt e você estão me asfixiando com toda essa preocupação. Me vigiam como se fosse Chápeuzinho vermelho e houvesse lobos atrás de cada árvore.

     Daniel baixou a vista.

     — Tão mal estamos?

     —Pior - apertou os ombros com suavidade— Mas te amo de todo jeito.

     Olhou-a nos olhos e, lentamente, moveu a cabeça.

     —Sinto muito, Tammy. Não é que queria te vigiar como a uma menina. É... É Marquand, maldição. Aterra-me que tente ver você outra vez.

     Tamara deixou cair as mãos e se endireitou. Eric acreditava que Daniel conhecia o vínculo que existia entre eles. Podia estar no certo?

     — por que pensa isso?

     Suspirou como se fora estúpida.

     —Tamara, é uma mulher formosa! Curt disse que na outra noite, na pista de gelo, sentia-se claramente atraído por ti. Teria que estar cego para não está-lo. Essas criaturas têm um poderoso impulso sexual, inclusive um tão velho como ele.

     Tamara deu as costas, tentando não rir. Eric não era uma “criatura”, e tampouco velho. Tinha a pele terna e firme. Movia-se com uma agilidade inaudita, mas sua fortaleza era óbvia. Movendo a cabeça, tomou o café.

     — Quantos anos tem?

     —Duzentos e trinta e cinco. Segui sua pista até a revolução francesa, quando foi encarcerado e deveria ter sido decapitado em Paris. O seu pai foi decapitado, sabia?

     Tamara se tinha levado a taça aos lábios, mas se engasgou com o sorvo que acabava de tomar. Eric havia dito que seu pai tinha sido assassinado em Paris por “motivos políticos”. Céus, seria possível que Daniel estivesse certo? Não, isso era absurdo.

     “Mas nunca vi ao Eric de dia”.

     Desprezou as dúvidas. Não eram mais que tolices.

     —É perigoso Tammy. É muito esperto. Não me espantaria que te utilizasse para chegar para mim.

     “E ele diz que você me está utilizando para chegar a ele”, pensou. Em voz alta, limitou-se a dizer:

     —Eu jamais o consentiria.

     —Sei, Tammy. Mas me prometa que me dirá se tenta estabelecer contato contigo. É o mal...

     —Sim, já me há isso dito. É o mal em pessoa. Está bem, direi. Contente? —Daniel observou seu rosto antes de assentir—Vai trabalhar — disse em tom brincalhão— Não pode me incomodar durante o dia, não?

     Passou a manhã tentando não repetir as palavras do Daniel em sua cabeça uma e outra vez. Só queria voltar para a cama e obter o descanso necessário. Mas era impossível. Disse que não atuaria tão impulsivamente se tivesse dormido com normalidade durante as últimas semanas, que nada a teria convencido de fazer o que, de repente, sentia a necessidade de fazer. Por desgraça, estava em jogo sua prudência, e se não esclarecia suas dúvidas de uma vez por todas, a perderia por completo.

     Devia comprovar que Eric Marquand não era um vampiro. Parecia tão lógico como tentar demonstrar que a terra não era plana, ou que a lua não era feita de queijo. Entretanto, várias horas depois, estava sentada em seu carro diante da casa de Eric Marquand.

     Consultou seu relógio. Só ficava uma hora para o pôr-do-sol. Em parte, queria adiar aquilo até o dia seguinte, inclusive indefinidamente. Mas estava ali, e sabia que se não o fizesse naquele instante, não o faria nunca.

     Não tinha sido fácil conseguir o endereço. Não podia pedir a Daniel nem ao Curt sem pô-los histéricos, e não podia ir ao escritório e penetrar nos ordenadores da DIP, carecia dos códigos de acesso apropriados. Passou quase todo o dia na capital do condado, folheando os registros catalogados “de domínio público”. Tinha começado com os certidãos de nascimento. Eric não tinha carteira de motorista nem um carro registrado em seu nome. Entretanto, tinha escriturado a casa. Obteve a informação que necessitava dos arquivos de impostos sobre bens imóveis. Viu o endereço e franziu o cenho ao advertir que se encontrava a escassos quilômetros ao sudeste da casa do Daniel, na borda norte do estreito do Long Island.

     Passou  o trajeto de volta discutindo consigo mesma. Alguma pessoa em seu são julgamento visitaria a casa de um homem durante o dia para demonstrar que não era um vampiro?

     “Muito tarde” pensou, enquanto rodeava a propriedade. “Estou aqui e vou entrar”. Deixou as chaves na ignição e se aproximou da impressionante grade de ferro forjado. Jogou uma olhada entre os barrotes e a imensidão de trepadeiras e folhas de metal. Além da grade, o caminho de paralelepípedos serpenteava para a mansão. Umas árvores enormes envolviam o caminho, assim teve que deslocar-se um pouco para avistar a casa.

     Quando a viu, conteve o fôlego. Era de três andares, construída com blocos de pedra nua. As janelas, pelo menos as que podia ver, eram pontudas e profundas. Pareciam olhos entrecerrados, vigilantes mas pouco desejosos de serem vistos. Tocou a grade e, no mesmo instante, reparou na pequena caixa de metal sujeita a um poste no interior. Uma minúscula luz vermelha piscava ao ritmo de seu pulso. Aquela não era uma grade antiga, a não ser um sistema de segurança moderno. Retirou a mão depressa, perguntando-se quantos alarmes teria feito saltar pelo mero feito de tocá-la. Esperou e observou. Não se ouviam ruídos nem movimentos no interior.

     Quando pôde respirar de novo, levantou a vista. Os pontas agudas que rematavam os barrotes pareciam de verdade, e afiados. Seria impossível subir. Mas devia haver outra maneira de entrar. Deu de ombros e começou a rodear o imóvel.

     Não encontrou nem uma só falha na grade, e se mordeu o lábio com desolação quando chegou ao final. O último barrote de ferro negro se afundava no bordo de um penhasco rochoso. Mais abaixo, as ondas rompiam contra as rochas, coroadas de branco. Aumentou o vento e  Tamara se estremeceu. Tinha que fazer algo. Voltar? Depois de tudo o que tinha feito?

     Observou o último barrote da grade. A terra em que estava ancorado não parecia muito firme, mas, sujeitava ao barrote com força, poderia oscilar o corpo e passar ao outro lado, não?

     Aferrou-se à barra com a mão direita e manteve a parte direita do corpo em contato com a grade. Se virou para dar a volta ao mar e o vento inclemente que saía dele. Tinha que estirar-se e dobrar o corpo para sujeitar a mesma barra do outro lado da grade com a mão esquerda.

     Pendurada naquela postura incômoda e dolorosa, olhou para baixo. Rochas negras e escorregadias emergiam esporadicamente de uma água da mesma cor. O cabelo açoitava seu rosto. O nariz e as bochechas ardiam por causa do frio, e tinha os olhos chorosos. Não pôde evitar olhar para baixo mais uma vez enquanto rodeava a grade de ferro, com um braço e uma perna a cada lado e o traseiro suspenso no vazio. Sentiu um enjôo quase semelhante ao das ondas que se moviam mais abaixo, e teve que fechar os olhos para combatê-lo. Tragou saliva três vezes antes de abri-los e passar a perna e a mão direitas ao outro lado.

     Durante um comprido momento permaneceu imóvel, sujeitando os frios barrotes de ferro, como que grudados neles. O corpo tremia e lamentava haver embarcado naquela louca missão.

     “Bonito momento para trocar de idéia” pensou. “Não penso sair daqui como entrei”. Teria que entrar, confessar sua loucura ao Eric e confiar que ele não riria dela. De repente, ficou séria. Possivelmente ao Eric não fizesse graça a intrusão. Possivelmente o incomodasse que estivesse farejando tanto como Daniel.

     Controlou o minúsculo calafrio que percorreu suas costas e pôs-se a andar pelo jardim nevado para a parte posterior da casa de Eric. Golpeou umas portas de cristal similares às de seu balcão. Ao não ouvir resposta, chamou com mais força. Silêncio.

     Eric não estava em casa. E ela teria que ficar em seu jardim até que voltasse, pensou, sentindo-se desgraçada.

     O vento assobiava desde mar, sacudindo a casa e a Tamara. Tremia a mão de ter estado sustentando seu próprio peso. Não poderia ficar ali muito mais tempo ou se congelaria. Não, tinha que entrar. Eric poderia zangar-se tanto como quisesse, mas não tinha escolha. As portas de cristal pareciam um bom presságio. Se tivessem sido de outra classe, não teria podido as abrir. Mas Tamara tinha tido que forçar as suas umas duas vezes, quando perdeu a chave.

     Afundou a mão no bolso do casaco confiando em encontrar... sim! Um pequeno cortador de unhas de metal. Abriu-o e se voltou para a porta. Introduziu o extremo entre os dois painéis, empurrou com dedos intumescidos no fecho e o abriu.

     Entrou e fechou as portas a suas costas. Parecia que não fazia muito mais calor dentro que fora, mas viu a enorme chaminé de mármore resplandecendo com carvões acesos. Tirou as botas, o casaco e se aproximou da promessa de calor. Havia lenha empilhada junto à chaminé, e se agachou para arrojar vários troncos, depois, estirou as mãos intumescidas para o calor. Permaneceu imóvel um momento, absorvendo o calor enquanto os calafrios deixavam de percorrê-la. As línguas de fogo lambiam com avidez os troncos, chispando e crepitando.

     Passado um tempo, baixou as mãos e olhou ao redor. Teve o impulso de esfregá-los olhos e voltar a olhar. Parecia ter retrocedido no tempo. A poltrona que estava a suas costas era uma profusão de bordados de pássaros, flores e folhas. Os braços e as pernas terminavam em curvas. Havia uma banqueta diante do mesmo desenho, e Tamara se inclinou para deslizar um dedo com reverencia pelo estofo. Todos os móveis eram do mesmo período Luis XV e estavam impecáveis.

     Entretanto, ao fundo havia prateleiras com uma sofisticado equipe estéreo e fileiras dos CDs, LPs e toca-fitas. Perto, um bar de aspecto atual destoava na habitação de móveis antigos e chãos de parqué. O sol se afundava no horizonte, e se aproximou da barra, acendeu a luz e se umedeceu os lábios. Não viria mal tomar uma taça. Ainda estava tremendo, apesar do calor da habitação. Se Eric podia perdoá-la por ter entrado em sua casa, perdoaria por roubar um copo do... o que tivesse à mão.

     Entrou atrás da barra e se agachou para jogar uma olhada às prateleiras quase vazias da parte baixa. Não havia nenhuma só garrafa. Taças, sim. Ficou em pé, franzindo o cenho, e se voltou para ouvir o zumbido quase silencioso da pequena geladeira, embutida na parede, a suas costas.

     Sorrindo pela desorientação, Tamara sujeitou a porta e abriu...

     Uma minúscula parte de gelo se alojou no centro de seu peito e foi crescendo pouco a pouco até que envolveu todo seu corpo.

     Ficou boquiaberta. Deu um passo atrás, pestanejando, incapaz de acreditar o que estava vendo. Sangue. Bolsas de plástico cheias de sangue em duas fileiras ordenadas. De repente, não viu nada mais que uma neblina vermelha, não ouviu nada salvo um estrondo ensurdecedor. Sem pensar, empurrou a portinhola, mas não se fechou de tudo e, lentamente, recuperou sua posição aberta. Tamara não se deu conta. Deu a volta, enterrou a cara entre as mãos e se apertou as pálpebras, como se assim pudesse apagar o que tinha visto.

     —Não era real. Não pode ter sido real. Darei a volta. “Se me der a volta e voltar a olhar, não estará ali porque não era real”.

     Mas não se deu a volta. Levantou a cabeça, reparou nas portas de cristal e avançou para elas. Queria correr, mas não podia. Sentia olhos observando-a por toda parte.

     Só faltava um metro para chegar à porta. Recolheria as botas e o casaco antes de sair. Não esperaria, deu um outro passo. Um dedo invisível de gelo percorreu suas costas.

     —É uma loucura —sussurrou, e se deu a volta, caminhando para trás— Este lugar, eu... Estou louca – virou para voltar, disposta a equilibrar-se para a porta, mas seu caminho foi interceptado por um peito amplo e férreo envolto em algodão branco impecável.

     Retrocedeu automaticamente, mas Eric plantou as mãos nos seus ombros. Imobilizada, ficou olhando enquanto respirava superficialmente e velozmente. Dava voltas a sua cabeça. Estudou seu rosto contra sua vontade. Viu que brilhavam os olhos, e experimentou algo mais que um terror puro daquele homem. Sentia a perda e a traíção. Daniel tinha razão. — O que faz aqui, Tamara?

     Tentou tragar saliva, mas sua garganta era como um deserto arenoso. Tratou de largar-se, e se surpreendeu quando ele deixou cair as mãos. Ouviu uma voz estranha a suas costas que a fez girar em redondo.

     —Farejar, é obvio. Disse-te que não confiasse nela, Eric. É da DIP —o homem que se erguia junto à barra assinalou com a mão a geladeira aberta. Ao vê-lo, a Tamara quase apagou o pequeno brilho de razão que restava. Ia vestido completamente de negro, com uma capa de raso que roçava o chão e, virtualmente, envolvia-o por inteiro. movia-se como uma pantera, com uma fluidez inconcebível. Sua beleza morena contrastava com a sabedoria atemporal que brilhava no mais profundo de seus olhos de ônix. Enquanto o olhava, o homem tomou uma jarra do bar e, depois, uma taça a jogo. Colocou a mão na geladeira aberta e tirou uma bolsa.

     Tamara nunca desmaiou, mas esteve a ponto de fazê-lo naquele momento. A cabeça flutuava a um metro por cima dos ombros e os joelhos dissolveram. Durante um instante, engoliu-a uma escuridão aveludada. Não notou que caía ao chão. Eric se moveu antes inclusive de que compreendesse o que estava passando. Levantou-a em braços e a depositou com suavidade no sofá.

     “Isso não era necessário, Roland!”

     Tamara ouviu seu grito zangado, mas sabia que não tinha movido os lábios. A prudência escapou um pouco mais.

     Tamara se incorporou e se recostou em um braço duro de madeira. Eric se sentou a seu lado, apoiando a mão direita no respaldo e a esquerda, no braço no que estava recostada. Tamara se encolheu sobre o quente veludo verde.

     —Te afaste de mim - resmungou— Me deixe voltar para casa.

     —Irá a casa, Tamara. Assim que me diga o que está fazendo aqui. Tem razão Roland? Seus patrões te enviaram? Possivelmente o próprio Saint Claire?

     “Nega-o” pensou Eric com desespero. “Nega-o, Tamara, e te acreditarei. Embora me custe a existência, acreditarei-te”. Viu como seu rosto de cor giz empalidecia ainda mais. Sintonizou seus sentidos com os dela e experimentou uma sacudida de temor paralizante. Medo... dele. Foi um doloroso golpe.

     —Tamara, não tem que temer nada. Antes me faria mal a mim mesmo que a ti —olhou ao Roland— Nos deixe um momento —o disse em voz alta para assegurar-se de que Tamara o entendia.

     Tamara não teve nenhuma dúvida de que Roland fez o mesmo pelo mesmo motivo. Lançando um olhar depreciativo a Tamara, disse:

     — E se conduzir a um regimento de forças da DIP à porta depois? —saiu de detrás da barra e se aproximou— Bom, jovem. Fala. Veio sozinha? Como entraste?

     Eric ficou em pé preso da irritação.

     —Estou avisando, Roland deixa que me eu ocupe deste assunto. Está assustando-a.

     — Eu? A ela? Crie que me senti a salvo quando despertei e percebi uma presença humana nesta casa? Pelo amor de Deus, Eric, pensei que fossem atravessar me o coração com uma estaca!

     —En... Então é verdade —a voz da Tamara, trêmula e tensa, atraiu de novo o olhar do Eric—. É... São...

     —Vampiros —espetou Roland—. Não é uma palavra suja, ao menos, entre nós.

     Tamara gemeu e enterrou a cabeça entre as mãos. Roland moveu a sua com exasperação e se deu a volta. Eric voltou a sentar-se junto a ela. Queria consolá-la, mas não sabia como fazê-lo. Tomou uma de suas mãos e acariciou a palma com o polegar.

     —Tamara, me olhe, por favor —ela levantou a cabeça, mas parecia incapaz de sustentar seu olhar— Tenta ver além de seu medo e da comoção desta revelação. Me olhe. Sou o mesmo homem de ontem à noite, e da noite anterior. Sou o mesmo que te abraçava, que te beijava. Era assustador então? Dei motivos para me temer?

     Olhou-o aos olhos, e Eric acreditou que os dela se esclareciam um pouco. A viu mover a cabeça e prosseguiu.

     —Não sou um monstro, Tamara. Jamais te faria mal. Mataria a qualquer que o tentasse. Escuta a seu coração e saberá que é certo - alargou uma mão com vacilação e, ao ver que ela não retrocedia, pôs a palma na bochecha sedosa— Acredite.

     Ela franziu as sobrancelhas, como se estivesse meditando nisso. Roland pigarreou, e quando Tamara voltou a cabeça, o temor retornou a seus olhos.

     —Se for a mim que teme, não é necessário. De momento não confio em ti como o faz meu querido amigo, mas tampouco levantaria um dedo para te machucar. Minha irritação ao te encontrar aqui está diretamente relacionado com meu desejo de seguir existindo —o último o disse lançando um olhar significativo ao Eric.

     —Tamara —quando recuperou sua atenção, prosseguiu— Há quem desejaria muito nos matar enquanto dormimos. Nós pensávamos que meu sistema de segurança era infalível. Por favor, me diga como entrou aqui.

     Ela tragou saliva.

     —Onde acaba a grade —disse com voz rouca— No escarpado —posou a vista no Roland— Não trouxe ninguém. Nem sequer os informei aonde... —mordeu os lábios antes de poder terminar a frase, mas Eric não tinha ouvido as palavras.

     — No escarpado? —repetiu. Pela primeira vez, olhou-a com atenção. Tinha os jeans molhados e o cabelo alvoroçado. Percebeu o ocorrido, o temor da Tamara, seu pânico. Contraiu o estômago.

     —Tamara —disse em voz baixa— Te importaria me dizer por que vieste?

     —Tinha...Tinha que sabê-lo.

     Eric fechou os olhos e se obrigou a continuar,

     —Então, Saint Claire não sabe que vieste aqui?

     Parte do medo retornou a seus enormes olhos escuros mas respondeu com sinceridade.

     —Ninguém sabe que estou aqui.

     Eric tragou saliva e enquadrou os ombros. Tinha que fazer a seguinte pergunta, por desagradável que fora.

     — Vieste para descobrir meus segredos, Tamara, para contar a seu tutor?

     Ela negou com a cabeça com força, e se endireitou em sua esquina do sofá.

     — Eu nunca faria isso! —quando voltou a olhá-lo aos olhos, entreabriu os seus. O temor parecia substituído por outra emoção— fui sincera contigo, Eric. Surpreendi-me te contando coisas que jamais tinha contado a alguém, e todas elas eram a verdade. Confiava em ti — quebrou a voz, e teve que inspirar tremulamente para poder continuar. Naquele instante, Roland fez ao Eric um gesto com a cabeça, indicando que se convenceu de que Tamara não representava nenhuma ameaça e que os deixaria sozinhos. Esfumou-se através de uma soleira em sombras. Tamara recuperou a voz e seguiu falando— Falei dos pesadelos, de que acreditava que me estava voltando louca. Despi minha alma para você durante todo esse tempo, você me estava enganando. Daniel tinha razão. Só estava me usando para se aproximar dele.

     Eric sentiu que um ferro em brasa atravessava seu coração. A única coisa que ela queria fazer naqueles instantes era afastar-se dele. Encheu-se de dor.

     —Eu não te enganei —replicou.

     —Sim, por omissão.

     —E te teria contado o resto, com o tempo. Pensava que não estava preparada para ouvir a verdade.

     — A verdade? Que verdade?

     —A verdade de que não sou como outros homens. Tamara, se estivesse mentindo, saberia — disse devagar, e a olhou aos olhos— Temos um vínculo psíquico, Tamara. Não pode negá-lo. Há sentido seu poder. Quando me chamava em sonhos, quando te chamei no balcão. Não compreendeu ainda que pode me chamar a quilômetros de distância, usando só sua mente, e que eu te escutarei?

     Ela negou com a cabeça.

     —O sonho era uma casualidade e escapava a meu controle. Não poderia fazê-lo voluntariamente.

     —Poderia. Ponha a prova, se não me crie.

     —Não, obrigado. Só quero ir a casa e...

     —Não o diga, Tamara. Sabe que não é verdade - interveio Eric, percebendo sua afirmação antes de que a pronunciasse.

     Olhou-o aos olhos com firmeza.

     —Não quero voltar a ver você. Quero que me deixe em paz. Não posso permitir que me utilize para trair ao Daniel, ou a DIP.

     —Eu jamais te pediria que fizesse isso. Ainda não o tenho feito, verdade? —sujeitou-a pelos ombros quando ela fez gesto de levantar-se, e a reteve ali— Quanto ao resto, agora é você quem mente, Tamara... a ti mesma e a mim. Não quer que te deixe em paz. Justamente o contrário.

     Ela negou com a cabeça.

     —Deixa de racionalizar, Tamara. Sente o que há entre nós. Não pode fazê-lo desaparecer - posou o olhar em seus lábios, e antes de poder conter-se, uniu sua ávida boca a dela, envolvendo-a em seus braços e atraindo-a a seu peito.

     Ela permaneceu rígida, mas ele sentiu o tremor de seus lábios contra os seus. Sem que os tirasse, sussurrou:

     —Fecha a mente e abre o coração. Não pense, sente - voltou a beijá-la e, entreabrindo os lábios, alimentou-se da doçura que continham. Com um estremecimento que a percorreu de pés a cabeça, Tamara se rendeu. Eric notou que se tornava dócil e flexível e, depois, rodeou seu pescoço com os braços e abriu ainda mais seus suaves lábios. Enquanto ele afundava a língua em sua umidade aveludada, cravava os dedos no cabelo. Com uma mão, Tamara lutou com o laço que sustentava seu cabelo. Um momento depois, o laço se desfez, e lhe aconteceu os dedos uma e outra vez pelo cabelo, aumentando sua paixão.

     Com um braço, Eric a protegia da madeira dura do braço do sofá, e com o outro, percorria completamente sua costas para poder enredar os dedos em seu cabelo. Abriu os dedos para sujeitar a cabeça e a apertou contra seu peito. Bebeu seu elixir meloso, saboreou cada rincão que sua língua podia alcançar: o véu do paladar, a parte posterior dos dentes e o poço doce de sua garganta.

     Ela gemeu, um som profundo e gutural que provocava um incêndio. Se moveu debaixo dele até deixar uma perna, dobrada pelo joelho, afundada no respaldo do sofá, e a outra pendurada na parte detrás, para o chão. Ele respondeu imediatamente e sem pensar, apertou o joelho contra a almofada e baixou os quadris. Deslizou uma mão por detrás das nádegas da Tamara para sujeitá-la contra ele. Estava palpitando de desejo, e sabia que ela podia sentir seu membro duro movendo-se com insistência contra seu ponto mais sensível, ao tempo que com a mão massageava o traseiro. Percebia o desejo da Tamara, e saber que ela desejava o mesmo que ele aumentava o combustível do fogo que incinerava sua mente.

     Deixou um rastro ardente por seu rosto com os lábios e foi descendendo pela mandíbula até o suave oco da garganta. A jugular dava seu bem-vindo, e acelerou o pulso com a espera. Eric saboreou o sal de sua pele e o fulgor do sangue que fluía ruidosamente sob a pele produziu um formigamento nos lábios. Começou a ofegar. O coração estalava e a avidez de sangue se mesclava com sua excitação, acrescentando ambas até que as duas rugiram em seus ouvidos como uma só entidade.

     Um momento mais, um gemido mais, um movimento mais do exuberante corpo de Tamara contra sua ereção e perderia o controle. Rasgaria sua roupa e a faria sua por completo. Se enterraria dentro dela tão profundamente que gritaria, e ele beberia o néctar de suas veias até que se sentisse satisfeito.

     Reuniu toda a força de vontade que possuía e se separou dela com tanta brutalidade que esteve a ponto de cair ao chão. Aferrou-se ao bordo da mesa.

     Ouviu-a proferir uma exclamação de surpresa, e ouviu o soluço afogado que brotou de seus lábios. Quando se atreveu a olhá-la, tinha os joelhos contra o seio, o rosto sobre elas.

     — por que...? —começou a dizer.

     —Sinto muito. Tamara, me faz perder o juízo. Contigo esqueço tudo, salvo o muito que te desejo.

     —Então... —deteve-se durante um comprido momento e inspirou tremulamente—Então, por que parou?

     Eric teve que fechar os olhos. Ela tinha elevado seu rosto manchado de lágrimas para escrutinar o seu em busca de uma resposta. Quando voltou a abri-los, Tamara se estava secando as lágrimas com o dorso das mãos.

     —vim a te ajudar, a te proteger. Pediu-me ajuda. Pensava que estava te voltando louca. Tive que ir a ti, mas não para isto... Não para satisfazer minha própria luxúria insaciável.

     Ela moveu a cabeça com evidente confusão. Ele se aproximou, estendeu suas mãos e ela baixou os pés ao chão, aceitou suas mãos e ficou em pé.

     —Ainda há muitas coisas que não entende de tudo. Por muito que te deseje, e te desejo, não o duvide jamais, não posso permitir que meu desejo me nuble o juízo. Não está preparada.

     Tamara apertou os lábios e se limitou a assentir.

     —Já viveste muitos emoções por esta noite, Tamara. Dói-me te negar o que me pede mas, me acredite, é melhor assim. Me pergunte qualquer outra coisa, o que queira.

     Ela inclinou a cabeça, como se aceitasse a sugestão.

     —Disse-me que tinham assassinado a seu pai em Paris. Foi durante a revolução francesa?

     Eric suspirou, aliviado. Tinha acreditado que Tamara fugiria dele. Nem sequer a força de sua paixão a tinha espantado... ainda.

     A noite foi uma revelação. O que ao princípio a tinha assustado e comocionado, não demorou em converter-se em algo exclusivo do Eric Marquand. Era um vampiro. O que significava isso? Perguntou-se. Que o sol o mataria, como matava a um humano inalar água? Significava que necessitava sangue humano para existir. Tamara tinha visto como o adquiria. Nem matando nem mutilando a pessoas inocentes, a não ser roubando de bancos de sangue.

     À medida que passavam as horas, falou da noite em que tinha ajudado a escapar da França a sua mãe e a sua irmã Jaqueline, quando tinha sido detido. A pedido dela, tinha contado mais coisas de seu passado: anedotas graciosas de sua infância, o carinho que sentia por sua mãe. Possivelmente não fora humano, mas possuía emoções humanas. Tamara percebia um fundo sofrimento nele. Quantos séculos de existência solitária um homem podia suportar?

     Surpreendeu-se comparando sua própria solidão com a dele e experimentando uma nova cumplicidade. Quando a acompanhou ao carro, a sensação de que o conhecia sempre tinha superado sua confusão, receio da sua verdadeira natureza.

     Até que chegou a casa, passava da meia-noite, e encontrou ao Daniel e a Curt esperando como cães guardiães.

     — Onde estive? —espetaram quase ao uníssono.

     — Lá vamos nós de novo - resmungou— Saí. Tinha coisas em que pensar, e os dois sabem o quanto desfruto das frias noites de inverno. Perdi a noção do tempo.

     Ficou muda de assombro quando Curt sujeitou com força o antebraço. Abrasou a garganta com o olhar, e ela adivinhou o que procurava.

     —Viu ao Marquand esta noite, verdade Tammy?

     — Acredita mesmo que diria se o tivesse visto? Não é meu guardião, Curt.

     Soltou-a, deu-se a volta e se afundou a mão no cabelo. Daniel ocupou seu lugar.

     —Está preocupado, como eu, nada mais. Falei que tentaria ver você outra vez. Por favor, tem que me dizer se o tentou. É para seu próprio bem.

     Se contasse a Daniel a verdade, possivelmente teria um enfarte, pensou Tamara.                 

     —Esta noite não vi a ninguém, Daniel. Estou confundida e frustrada. Preciso estar sozinha, sem sua perseguição constante - o tinha feito. Tinha contado uma mentira como uma criança ao homem que mais amava no mundo. Se sentia como Judas.

     Curt se voltou de novo para ela. Sujeitou-a pelo braço, com suavidade naquela ocasião, e a conduziu ao sofá, onde a sentou.

     —É hora de que ouça umas feias verdades, menina. A primeira é esta: tenho direito a perguntar. Eu te amo, pequena idiota. Sempre pensei que você perceberia cedo ou tarde e que casaria comigo. Mas ultimamente estiveste comportando como se eu fosse um desconhecido. Estou farto. Já tive o bastante. Acabou. Não permitirei que Marquand se interponha entre nós.

     — Que se interponha? Como, Curt? Não há nenhum nós.

     Suspirou frustrado, olhando-a como se fora lerda. Sentou a seu lado.

     —Tamara, apesar do que diga, deve recordar o que é. Mentirá com tanta fluidez que escutará encantada todas as suas palavras. Acabará convencida de que se preocupa contigo, quando na verdade só se preocupa em eliminar qualquer ameaça para sua existência. E neste momento a ameaça em questão é Daniel. Não deixe que suas palavras a confundam, Tammy. Somos nós que a amamos. Somos nós que estamos do seu lado, os que te conhece.

     Queria responder, mas estava muda.

     —Sei o que está acontecendo - prosseguiu Curt— Têm uma habilidade psíquica incrível. Está usando um velho truque, Tammy. Apostaria nisso. Está plantando sentimentos em sua mente, fazendo-a acreditar que o conhece. Sente que são amigos íntimos, mas não pode recordar quando nem onde se conheceram. Confia nele instintivamente... só que é algo instintivo. É sua condenada mente ordenando à tua que confie nele. Pode te encher a cabeça com todos esses vagos sentimentos para ele e te fazer passar por cima dos que são de verdade.

     Meu Deus, poderia ser verdade?

     —Está confusa, Tammy —acrescentou Daniel devagar, com cautela— Te mantém acordada pelas noites exercendo seu poder sobre ti. Por isso tem a sensação de poder dormir durante o dia. Ele descansa a essas horas. Não pode influir em sua mente. Utilizando a suscetibilidade provocada pela falta de sonho, seu poder sobre sua mente se faz cada vez mais forte. Me acredite, carinho. Vi-o outras vezes.

     Olhou-os alternativamente, ao tempo que uma sensação nauseante crescia em seu interior. O que haviam dito tinha uma lógica perfeita. Entretanto, em seu coração sabia que se equivocavam. Ou era em sua mente... um sentimento plantado pelo Eric? Como poderia distinguir o que sentia do que ele a estava fazendo sentir?

     — Que razão teria para te mentir, Tammy? —perguntou Daniel.

     Ela moveu a cabeça. Era incapaz de contar a verdade. Ia se sentir como se estivesse traindo ao Eric se o fizesse. Mas tinha a sensação de estar traindo-os a eles lhes ocultando o ocorrido.

     —Dá igual, porque estão equivocados. Não o vi da noite na pista de gelo. Não pensei nele para nada, salvo quando vocês me acossam. E minha insônia era fruto do estresse, já me passou. Durmo perfeitamente. De fato, eu gostaria de estar dormindo agora mesmo.

     Levantou-se e passou junto a eles para refugiar-se em seu quarto. Deixou-se cair sobre a cama e afundou o rosto nos travesseiros. Não fecharia os olhos até a alvorada. Seria por culpa do Eric? Estaria tentando apropriar-se de sua mente?

     sentou-se na cama e abriu os olhos de par em par. Como poderia pôr fim a aquilo?

     —Não posso seguir vendo-o —sussurrou—Tenho que me afastar dele e me dar a oportunidade de analisar isto sem influências externas. Tenho que ser objetiva.

     Tomada a decisão, seu coração se fez em pedacinhos como se fosse de cristal e acabassem de o golpear com um martelo.

     —Não posso voltar a vê-lo —repetiu, e os pedacinhos se reduziram a pó.

    

          —Despreza-me — Eric se separou do microscópio ao ouvir seu amigo entrar no laboratório em que se escondeu pela terceira noite consecutiva.

     —Possivelmente te tema, Eric, mas recorda: criou-a um homem que nos considera monstros. Dê tempo a ela.

     —A idéia a repugna — Eric se levou quatro dedos à dor surda na testa— Não posso fazer nada para trocar isso. Mas ela segue estando em perigo.

     Roland franziu o cenho.

     — Volta a ter pesadelos?

     —Não, e já não grita meu nome. Mas não dormiu da última vez que a vi. Percebo seu esgotamento até o ponto de que me tira forças. Não pode seguir assim.

     — Desde que a viu? Passaram três noites...

     —Hoje será a quarta. Está a ponto de derrubar-se. Quero ir vê-la, mas forçar minha presença quando não é ainda capaz de aceitá-la faria mais mal que bem. Sobre tudo, em seu estado mental atual.

     —Concordo contigo —assentiu Roland— Mas não vê-la o está matando, verdade, Eric?

     Eric suspirou e inclinou a cabeça dolorida para trás.

     —Verdade. O pior é que não estou seguro de poder ajudá-la quando estiver disposta a me aceitar Por que não dorme? É a lembrança bloqueada de nossos encontros que a impede de descansar? É possível que meu sangue a trocasse de algum jeito... que o efeito só apareça agora, depois de tanto tempo? Estaria melhor se eu voltasse a ir embora do país?

     — Utiliza o sentido comum. Eric! A deixaria nas mãos desse açougueiro que se chama cientista?

     Eric moveu a cabeça

     —Não. Isso não poderia fazê-lo nunca. Se a mim me ocorrem estas idéias, a ele também. Não me surpreenderia que decidisse fazer experiências com a Tamara.

     —E não poderia já estar fazendo com ela?

     —Se estivesse sofrendo, ou angustiada, saberia.

     —Pode que a tenha sedada, inconsciente —sugeriu Roland

     —Não. Não me chama, mas a sinto. Percebo o muro que erigiu para apartar-se de mim. Não quer pensar em mim —um estranho nó formou na sua garganta, asfixiando-o  e um punho invisível oprimiu seu coração.

     As noites eram o pior. Tamara tinha tomado o costume de ficar até tarde no edifico da DIP do White Plains. Suas razões eram variadas, entre elas que trabalhava melhor depois do pôr-do-sol. Por muito esgotada que estivesse física e emocionalmente quando anoitecia, recuperava as forças, Perguntava-se por que Eric a queria torturar daquela maneira Tamara não podia ceder à necessidade de seu corpo de descansar durante o dia. Tinha convencido ao Daniel de que se sentia melhor e, no momento, este parecia acreditá-la. Ao menos, não a rondava constantemente. Claro que por volta de dias que ela não saía de casa mais que para ir trabalhar.

     Curt era outro problema completamente distinto. Ia vê-la de três ou quatro vezes ao dia na sua mesa, e supunha um grande esforço aparentar uma lucidez absoluta durante suas visitas surpresa. Não havia tornado a mencionar sua descabida sugestão de que se casasse com ele, e Tamara agradecia por isso. Sabia que não a amava, que só a queria proteger da suposta ameaça do Eric Marquand. Queria controlá-la vinte e quatro horas ao dia, em especial de noite. Dava-se conta de que Tamara estava esquivando a capacidade dele e do Daniel de controlá-la. Como marido, poderia tê-la por perto.

     Recolheu os arquivos do escritório e os levou a armário para colocá-los em seu lugar. O sol se pôs, estava completamente acordada, e isso a assustava. Quanto tempo mas poderia manter-se em pé sem dormir?

     Outra pergunta persistia no fundo de sua mente mais inquietante que a primeira. Por que se sentia tão vazia por dentro? Por que sentia tanta falta de Eric? Era uma estupidez, apenas o conhecia. Ou não? Custava muito trabalho acreditar que aquela familiaridade era fruto de uma espécie de hipnose, porque não era uma idéia, a não ser um sentimento. Como a angustiosa necessidade de voltá-lo para ver.

     Já era de noite quando saiu ao estacionamento com intenção de ir para casa. Daniel tinha insistido em deixar seu Cadillac os dias que pensava trabalhar até tarde. Escutaria a rádio durante o trajeto e não pensaria nas coisas que foram mal em sua vida. Quando chegasse, escolheria um maravilhoso livro da estante de Daniel e se perderia na leitura. Não pensaria em vampiros nem atormentaria sua cabeça com nada.

     O estouro do pneu não entrava em seus planos. Agradeceu por estar perto de uma saída da rodovia e saiu, arrastando-se pateticamente pelo acostamento. Deteve o carro assim que chegou a uma zona relativamente ampla e ficou sentada um momento, tamborilando com os dedos sobre o volante.

     —Não cheguei a substituir o estepe—recordou.

     Levantou a vista e divisou o pôster elevado e iluminado de um posto de gasolina situado a uns trezentos metros de distância. Com um suspiro de resignação, abriu a porta e se pendurou a bolsa do ombro. Quisera o atendente do posto de gasolina fosse um cavalheiro e se oferecesse a levá-la de volta ao carro... Possivelmente inclusive a trocar o pneu.

     Quase riu ao pensá-lo. Enfim, não era a primeira vez que trocava uma roda. Pôs-se a andar pelo acostamento, dando obrigado pelas luzes que iluminavam a estrada. Entretanto, seu ânimo se dissipou quando ao seu lado passou um carro repleto de jovens farristas que escutavam heavy metal a todo volume, e se deteve em seco. Dois homens, moços, em realidade, saíram e permaneceram em pé, cambaleando-se um pouco. Certamente, por isso levavam nas garrafas que ambos sustentavam.

     Voltou-se, pensando que seria melhor ir de carro ao posto de gasolina, embora destroçasse o aro. Assim que o fez, o Mustang oxidado, que parecia não ter silenciador, rodou para trás, passando de novo junto a ela. Deteve-se no acostamento e dele saiu o motorista.  Avançou devagar para a Tamara. O objeto que sustentava e que refletia a luz não era uma garrafa. Era uma navalha.

     Ficou rígida ao ver que a rodeavam. Não passou nenhum veículo naqueles segundos intermináveis. Pensou em sair correndo para um lado, mas no aterro a apanhariam mais facilmente. Seria melhor arriscar-se ali. Em qualquer momento, passaria um carro e agitaria os braços... se jogaria na frente, se fosse necessário.

     O condutor a sujeitou pelo braço e Tamara pôde ver que não era um moço, como os outros dois. Sua larga juba gordurenta lhe caía sobre os ombros, mas circundava uma lustrosa calva. Era mais baixinho que ela e bastante obeso. Sorriu. Faltavam alguns dentes.

     Sem dizer nada, arrebatou sua bolsa. Ela deu um passo atrás e ele levantou a arma rapidamente, pressionando a ponta justo por debaixo de um seio.

     —Se mexer, morre, neném —lançou a bolsa por cima de sua cabeça aos dois moços, que estavam justo detrás—O Cadillac tem um pneu furado. Vocês dois, troquem a roda. Você e eu vamos nos divertir um pouco.

     —Não há estepe —sentiu prazer em dizer Tamara, pensando que frustraria seus planos de roubar o carro.

     —Mas foi comprar um, verdade, neném?

     Tamara não respondeu, e um dos moços disse a suas costas:

     —Noventa e cinco dólares e um pouco de moedas.

     O homem da faca sorriu.

     —Vão ao posto de gasolina no Mustang e comprem o estepe. Depois, troquem —deslizou a ponta da faca pelo seio de Tamara, não o bastante para cortá-la, embora ela fez uma careta de dor e temor— Enquanto, eu farei companhia à garota.

     Ouviu seus passos e os viu passar longe do caminho do ruidoso carro. Saíram com um chiado de rodas em direção ao posto de gasolina. O homem a fez voltar-se com brutalidade, torcendo um braço às costas. Empurrou-a pelo declive para os arbustos. —Esperaremos aqui, fora da vista.

— Uma ova! —Tamara quis lhe dar um chute para trás, mas enganchou a perna, a levantou, e Tamara acabo caindo de barriga para baixo na neve, com ele sobre suas costas.

     —Se o quiser aqui mesmo, por mim, não há problema — grunhiu ao ouvido. Tamara gritou e, imediatamente, sentiu a gélida navalha na garganta. Tinha o rosto cruelmente pressionado sobre a neve, e o homem começou a sová-la por debaixo, deslizando-se dentro da blusa, atirando com ferocidade do sutiã. Quando a tocou, revolveu seu estômago.

     Não poderia escapar daquilo. Embora Daniel se inquietasse por sua demora e saísse a procurá-la, não lhe ocorreria procurá-la ali. Só tinha utilizado aquela saída pelo furo no pneu. Sentiu o fôlego do homem no rosto. Com um último beliscão vicioso, retirou a mão ardente de seu seio e tentou colocar pela frente dos jeans, enquanto retorcia os quadris contra seus glúteos.

     “Vai fazer” pensou Tamara. O pânico gerava um torvelinho em sua mente, e tentou controlar-se. Não desistiria. Não se permitiria sentir a mão que a violava. Negava-se a vomitar, porque se o fazia, se afogaria. Necessitava ajuda.

     A calma se apropriou dela quando o rosto de Eric encheu sua mente. Nos ouvidos ressonaram suas palavras tranqüilizadoras. “Jamais te faria mal. Mataria a qualquer que o tentasse”. Fechou os olhos. Realmente o havia dito a sério? “Ainda não sabe que pode me chamar a quilômetros de distância só com a mente?” Poderia fazê-lo? Responderia?

     O porco tinha conseguido desabotoar seus jeans. Baixou seu zíper. Levantou-se dela ligeiramente, retirando sua asquerosa mão, para lutar com sua própria braguilha. Tamara fechou os olhos com força e tentou pensar com coerência. “ajude-me, Eric. Por favor, se falava a sério, me ajude”. Para ouvir que abria o zíper, teve a estranha sensação de que sua mente gritava através do tempo e do espaço. Era uma sensação aterradora, mas não desconhecida que havia sentido antes... em sonhos. “Necessito-te, Eric. Pelo amor de Deus, me ajude!”

     Eric deixou de girar o líquido no tubo de ensaio e inclinou a cabeça. Franziu o cenho, moveu a cabeça e prosseguiu.

     —E bem, o que é toda esta magia?

     Lançou um olhar ao Roland com uma sobrancelha arqueada.

     —Intento isolar a única propriedade do sangue humano que nos mantém com vida.

     —E o que fará então? Fabricá-la em uma minúscula pílula e esperar que nos delas alimentemos?

     —Seria mais cômodo que roubar bancos de sangue, meu amigo —sorriu, mas o sorriso morreu quase imediatamente. Levantou a cabeça e o tubo de ensaio caiu ao chão e se fez em pedacinhos.

     Roland se ergueu, surpreso.

     — O que acontece, Eric?

     —Tamara —se arrancou as luvas de látex e a bata branca enquanto cruzava a habitação, e pôs-se a correr pelos corredores da enorme casa, detendo-se unicamente para desprender o casaco de um gancho ao sair. Quando chegou à grade, movia-se com a velocidade sobrenatural que convertia sua forma em um borrão aos olhos humanos. Empregou a velocidade e o impulso para saltar limpamente a barreira, e notou que Roland corria a seu lado. Sintonizou sua mente com a da Tamara e experimentou uma quebra de onda de temor repugnante e gélido.

     Minutos. Só demorou uns minutos em alcançá-la, mas ao Eric pareceram horas. Ficou imóvel um instante, enchendo-se de raiva ao ver o bastardo tombá-la de costas e tentar baixar seus jeans enquanto cobria a boca com a sua.

     Ela fechou os olhos com força, apartou o rosto e gemeu seu nome.

     —Eric... meu Deus, Eric, por favor...

Agarrou ao estuprador pela camisa e o separou dela, lançando-o sobre a neve. Se inclinou sobre o homem atônito, levantou-o ligeiramente e deu um soco na cara. Se apartou e voltou a golpeá-lo, e teria seguido fazendo-o se o suave gemido da Tamara não tivesse clareado a raiva assassina que o envolvia. Eric se voltou, a viu estendida na neve e deixou cair ao homem com o rosto ensangüentado.

     Aproximou-se dela e, ficando de joelhos, atraiu seu corpo trêmulo a seus braços. Levantou-a com facilidade, balançando-a.

     —Já passou. Estou aqui. Já não pode te machucar - apertou o rosto contra seu cabelo e fechou os olhos— Já não pode te machucar. Ninguém pode. Não permitirei.

     Ela exalou um suave suspiro trêmulo, e outro, e outro. De repente, rodeou seu pescoço com os braços e, apoiando o rosto no pescoço e ombro do Eric, soluçou um pranto violento e dilacerador. Aferrava-se a ele como se fora sua corda de salvamento e, durante longo tempo, Eric se limitou a sustentá-la e a deixá-la chorar. Sussurrava palavras de consolo junto a seu cabelo. Tudo tinha terminado. Estava a salvo.

     Com um soluço involuntário e espasmódico, Tamara levantou a cabeça e o olhou com olhos transbordantes de lágrimas e muito abertos pelo assombro.

     —Veio. Veio de verdade. Eu te chamei.

     Eric pestanejou para esclarecer lágrimas que nublavam sua visão e tirou os vários cachos do rosto dela.

     —Não podia fazer outra coisa. E não deveria te surpreender tanto. Eu falei que o faria, não? —ela assentiu— Não posso te mentir. Nunca te menti, e juro agora, jamais mentirei novamente - a observou, sabendo que acreditava. Tinha esmigalhado sua blusa e caía pelo ombro, feita farrapos. Tinha os jeans abertos. Estava molhada pela neve, tremendo de frio e do susto, sem dúvida. A subiu pelo aterro até a estrada. Eric viu que o pneu furado jazia no asfalto. Roland tinha o macaco nas mãos e o estava guardando no porta-malas.

     — Onde estão outros?

     Roland respondeu mentalmente, não em voz alta.

     “Fugiram como coelhos, meu amigo”.

     “Deixaste-os partir? Roland, deveria ter dado uma surra neles”, respondeu Eric em silêncio, sucumbindo à velho costume de falar assim com seu amigo.

     “E o estuprador? Mataste-o?”

     “Ainda não”. Sua fúria ressurgiu ao pensar no a ponto que tinha estado de violar a Tamara. “Mas penso fazê-lo, e a esses canalhas que o ajudaram”.

     “Matar não para você, Eric. E os outros dois não eram mais que uns pirralhos. Deixa-o estar, será o melhor”.

     Tamara levantou a cabeça e, com surpreendente calma, disse:

     —Roland tem razão, Eric. Não eram mais que crianças. Quando virem como deixou a seu amigo compreenderão como foram sortudos. E sabe que não pode matar a esse homem a sangue frio. Não é assim.

     Os dois homens a olharam. Roland com semblante atônito. Arqueou as sobrancelhas e falou em voz alta.

     —Demorará para me acostumar. É estranho pensar que um humano pode ouvir meus pensamentos, embora suponha que só ocorre quando estou falando contigo, Eric. Ela ouça o que você ouve.

     Eric assentiu. Deixando a de pé no chão, tirou-se o casaco e a tampou com ele.

     —Ouve o que ouço—repetiu— Sente o que sinto, se esforçando em olhar, verá o que vejo. Lê meus pensamentos e minhas emoções. Não posso ocultar nada — falava com o Roland, mas suas palavras foram dirigidas a Tamara. Ansiava que confiasse nele.

     — Vou levá-la para casa. Acompanha-nos?

     Roland se separou do veículo como se ele pudesse mordê-lo.

     — Nisso?

     Tamara sorriu. Desviou o olhar ao Eric e este também sorriu. Tamara ficaria bem

     —Me alegro de que aos dois resulte tão divertida minha aversão por estas máquinas —comentou Roland— Viajarei com meus próprios poderes, obrigado —com um dramático giro de sua capa negra se esfumou na escuridão. Eric ajudou a Tamara a entrar no carro, rodeou-o e se sentou a seu lado, atrás do volante. Durante um comprido momento se limitou a olhá-la, absorvendo a beleza familiar de seu rosto. Ela passeava o olhar pela dele da mesma maneira, como se também tivesse tido saudades sua companhia.

     —Não quero ir a casa ainda —disse Tamara— Poderíamos parar em algum lugar, para conversarmos um momento?

    

     Tamara não precisou dizer que necessitava limpar de seu corpo o toque do estuprador. Surpreendia que Eric a compreendesse tão bem. A levou para sua casa e estacionou o Cadillac dentro da grade e depois de uma curva do caminho, para que não pudesse ser visto da estrada. Depois, sugeriu que ligasse para Daniel e oferecesse uma explicação acreditável de sua demora. Tamara alegou a desculpa de que ela e Hilary, uma companheira e amiga do trabalho, tinham saído para jantar juntas e que não sabia quando voltaria. Daniel reclamou, mas não se zangou muito, Tamara devia reconhecer que o estava tentando.

     Quando desligou. Eric retornava ao salão com uma garrafa de conhaque e uma taça delicada de cristal em uma bandeja. Tamara o olhou, esfregando-se inconscientemente o seio em que o porco a havia meio doido.

     —Sua porcaria não pode te afetar. É muito pura para que te manche um homem tão vil

     Tamara caiu na conta do que estava fazendo e retirou a mão.

     —Sinto-me suja... poluída.

     —Sei. É uma reação normal, por isso pensei que se sentiria menos suja se tomasse um banho?

     —Sim —fechou os olhos— Quero me esfregar todo o corpo...

     —Imaginei. Preparei-te um banho enquanto falava com o Saint Claire.

     — De verdade? —perguntou, surpreendida. Eric deixou a bandeja, encheu a taça até a metade e a entregou. Passando o braço pelos ombros, a conduziu por um longo corredor de tetos altos e através de uma porta.

     O banheiro resplandecia com a luz âmbar das lamparinas de azeite e as velas altas e elegantes que ardiam em cada centímetro de espaço disponível. Havia uma banheira de cor marfim cheia de água espumosa e fumegante. Eric tirou a taça de sua mão e a deixou em um suporte próximo à banheira. Tomou o que parecia ser um controle perto do mesmo suporte e, depois de pulsar um botão, a suave música se filtrou na habitação, tão tranqüilizadora como o vapor que ascendia da água, ou o resplendor das várias chamas minúsculas.

     —Não posso acreditar que tenha feito tudo isto.

     —Quero te consolar, Tamara. Quero apagar o horror que quase te enlouqueceu esta noite. Quero substitui-lo com ternura. Eu te adoro, não sabia?

     A Tamara fez um nó na garganta. Ardiam seus olhos.

     —Não perderei o controle. Não poderia liberar minha paixão contigo depois do que experimentou esta noite. Só quero te mimar, te ensinar... —fechou os olhos e levantou a mão de Tamara aos lábios. Beijou-lhe os nódulos, um a um, e depois abriu sua mão para beijar a palma.

     Tamara deixou que a atendesse. Eric retirou suavemente a blusa rasgada, deslizou as mãos por suas costas, soltou-lhe o sutiã e baixou as alças dos ombros. Tinha o seio direito machucado, e Tamara pensou que os sinais dos dedos nunca desapareceriam por completo.

     —Os sinais são superficiais e desaparecerão — baixou os jeans ainda úmidos e a sujeitou enquanto ela os tirava.  Tirou a calcinha ela mesma e logo Eric a ajudou a inundar-se na água ensaboada. Tamara se recostou na porcelana fresca e fechou os olhos. Notou o cristal frio na palma e fechou a mão em torno da taça.

     —Bebe — indicou Eric— Relaxe. Deixa que a tensão se dissipe. Escuta o gênio do Wolfgang.

     Provou um sorvo de conhaque sem abrir os olhos.

     —Mmm... É maravilhoso.

     —Conhaque francês — respondeu. Ela ouviu o barulho da água e sentiu um pano morno no pescoço, deslizando-se até a nuca. Franziu o cenho, ainda com os olhos fechados.

     —Estava acostumado a haver uma lenda sobre vampiros e água corrente...

     Ouviu a suave gargalhada do Eric. O pano abandonou sua pele para afundar-se na água. Escorreu-o, ensaboou-o e seguiu limpando-a brandamente... a alma, ao parecer.

     —É falso — ensaboou seu seio devagar, lavando os seios enquanto acelerava o coração dela. Mas não a tocou com paixão, só de forma tranqüilizadora— Como a lenda dos alhos e do crucifixo, como você mesma viu.

     —Mas a luz do sol...

     —Sim, a luz do sol é minha inimizade. É uma das coisas que planejo descobrir no meu laboratório. O como e o porquê. O que posso fazer para mudar isso —suspirou, e passou a ensaboar seu abdômen— Não sabe quanto sinto falta do sol —sua mão, envolta no pano molhado, descendeu pelo ventre de Tamara e, por debaixo da água, para um lado. — E a estaca de madeira?

     —Não é a estaca o que acabaria comigo. Qualquer objeto afiado, usado devidamente. Um vampiro se parece com um hemofílico. Poderíamos nos sangrar facilmente — deslizou o pano entre as pernas da Tamara fugazmente, depois, seguiu massageando ritmicamente as coxas.

     — por que temos este vínculo mental? —tomou outro comprido sorvo de conhaque e abriu os olhos para observar o rosto do Eric enquanto respondia.

     —Tentarei explicar isso. Veja, não são todos os humanos que podem converter-se em vampiros. De fato, há muito poucos que podem ser transformados, e todos eles possuem dois rasgos comuns —passou a ensaboar sua virilha—. Uma é a árvore genealógica. remonta-se a um antepassado comum, mas eu acredito que vem de antes.

     — A quem?

     Tomou um dos pés da Tamara entre as mãos e o tirou da água para esfregá-lo, acariciá-lo e massageá-lo até que ficou invisível sob uma montanha sabão.

     —O conde Vlad o Empalador... mais conhecido como...

     —Drácula —murmurou, assombrada.

     —Exato. O outro rasgo —esfregou o dedão do pé com o polegar e o indicador— radica no próprio sangue. Há um antígeno chamado Belladonna.

     Tamara se incorporou rapidamente.

     —Eu tenho o antígeno Belladonna —Eric voltou o rosto para ela e cravou o olhar momentaneamente em seus seios, que se balançavam pelo brusco movimento um pouco acima da água.

     —Sim, e também tem o antepassado. São muito poucos os humanos possuem ambas as características. Chamamos de “Os Escolhidos”. Sempre há um vínculo mental entre eles e nós, embora na maioria dos casos os humanos não se dão conta. Sabemos se correrem perigo, e fazemos o possível por protegê-los. O incidente de Paris não foi a primeira vez que Roland me salvava a vida —Eric baixou a cabeça e começou a lhe massagear, com dedos e mãos mágicos, o outro pé— Aí foi onde começou nosso vínculo. Fez-se muito mais forte, e essa parte deve recordá-la por ti mesma.

     Tamara voltou a inundar-se na água. Acreditava. Já não duvidava do que tinha contado. A sensação de poder ver o que havia em sua mente era assombrosa, mas certa. Sabia, por exemplo, que não serviria de nada insistir em que falasse mais de seu passado e de seu vínculo. Não o faria pelo bem dela. E sabia quanto esforço estava custando não estreitá-la entre seus braços e beijá-la até que sua cabeça desse voltas de desejo. Eric se estava contendo por seu bem.

     A amava. Seu amor era uma manta suave e cálida que a protegia do mundo.

     —Vire-se—disse Eric com voz suave e grave. Tamara obedeceu, e cruzou os braços sobre a borda da banheira a modo de travesseiro para a cabeça. Com suas poderosas mãos, Eric ensaboou suas costas e seus ombros. Massageou-a e acariciou, e seu tato era puro êxtase. “Céus!” Perguntou-se Tamara. “Como seria fazendo amor?”

     Eric se estremeceu. Estava ouvindo seus pensamentos. Com o rosto voltado, Tamara reuniu valor para expressá-los em voz alta.

     — por que sempre... se controla?

     —Não seria sábio falar disso te tendo nua, molhada e relaxada pelo conhaque.

     Massageou suas nádegas com mãos ensaboadas, mas as retirou logo. Ela se deu a volta e observou seu rosto à luz das velas.

     — Deseja-me?

     —mais do que desejo respirar.

     —Então, por que...?

     —Fique quieta —resmungou. Levantou-se e pegou uma toalha grande. Sustentou-a nas mãos e esperou— É para seu bem. Tamara — disse.

     Tamara se levantou e saiu da banheira para o grosso tapete ao lado. Eric a rodeou com a toalha e se afastou.

     —Te deixarei sozinha para que se vista.

     —Não me deixaste sozinha para que me despisse — alfinetou. Não sabia o que a zangava mais, se saber que a desejava ou que se negasse a satisfazê-la.

     —Tem a blusa destruída — assinalou a prateleira em que tinha deixado seus objetos depois de quardá-los. — Pode pôr uma de minhas camisas — se virou e saiu do banheiro.

     —Para meu próprio bem —resmungou Tamara quando ficou sozinha. Colocou a mão na água com sabão e atirou a tampa—. Por que o que mais detesto sempre é para meu próprio bem? Como se eu não soubesse o que é bom para mim e o que não é.

     Apertou a toalha desajeitadamente sob os braços para que não caísse. Sabia o que convinha a ela. Era uma mulher feita e direita, não uma menina. Desejava ao Eric, era fato. Toda aquela galante contenção a estava voltando louca. Já só se sentia bem quando o abraçava, quando o beijava.

     Aquela noite... Aquela noite mais que nunca necessitava aquela sensação de bem-estar, de posse. Saiu pela porta muito devagar, percorreu o corredor e retornou ao salão. Eric estava de costas a ela, ajoelhado diante da lareira, colocando pequenos troncos. Tamara não fez ruído, descalça como ia sobre o chão e o colorido tapete oriental, mas ele sabia que se estava aproximando. Tamara o sentia. Parou justo atrás dele e pôs as mãos úmidas sobre seus ombros. Eric havia tirado a jaqueta quando chegou e tinha enrolado as mangas para banhá-la. Os braços, nus até os cotovelos e com a musculatura tensa, ficaram imóveis ao sentir seu tato.

     Eric ficou em pé devagar. Virou-se, e quando a olhou, tinha os olhos quase cheios de dor.

     —Não me está pondo isso fácil.

     Tinha os dois primeiros botões desabotoados da camisa. Tocou a parte do seio que ficava à vista.

     — Faça amor comigo, Eric.

     Com voz tão rouca que não poderia havê-la reconhecido, respondeu:

     — Não sabe que o faria se pudesse?

     —Então, me explique, me faça compreender...

     — Não sou humano! O que mais precisa saber?

     — Tudo! —fechou sua mão em torno do pescoço, deslizando os dedos entre o cabelo curto e encaracolado da nuca para depois jogar com o acréscimo— Quer me amar, Eric. Dá para perceber cada vez que me olha. E não me diga o que é o melhor para mim. Sou uma mulher feita e direita. Sei o que quero, e quero a ti.

     Eric deslizava o olhar desajeitado por seu rosto. Ela sentia sua contenção, e sua ousadia a abandonou. Começou a tremer de desejo e ficou sem forças. Eric a rodeou com os braços. Com as mãos, acariciou seus ombros por cima da toalha, e as pontas úmidas do cabelo.

     —Eric, tinha tanto medo... Em minha vida nunca tinha estado com tanto medo. Apertou-me o rosto contra a neve... Não podia respirar... e estava sobre mim, com suas mãos...

     —Já passou —a tranqüilizou— Ninguém voltará a te machucar.

     —Mas o vejo. Em minha mente o vejo, e ainda posso cheirar... Céus, fedia.

     —Fique quieta.

     —me faça esquecer, Eric. Sei que pode — Tamara falava com o rosto apoiado na curva de seu pescoço, deslizando as mãos por seu cabelo. Levantou o rosto e viu a paixão em seus olhos negros— Esta noite te necessito, Eric.

     Uniu seus lábios aos dela com suavidade, tremendo pelo contato fugaz. Se afastou. Olhou-a nos olhos e ela viu o resplendor do fogo refletido nos dele. Eric gemeu seu nome em voz baixa, antes de voltar a beijá-la. Ela inclinou a cabeça para trás e entreabriu os lábios para permitir sua voraz invasão. Ele introduziu a língua dentro dela, como tinha feito outras vezes, como se pudesse devorá-la se fosse capaz. Enrolou-a em torno da língua da Tamara e a introduziu em sua boca para sugá-la. Ela respondeu saboreando a boca do Eric enquanto seus dedos ansiosos desfaziam o pequeno laço negro da nuca. Levantou o lustroso cabelo negro dele e tomou um punhado para sentir sua suavidade na bochecha. Depois, arrancou os lábios dos do Eric para enterrar o rosto em sua juba e permitir que seu aroma a envolvesse e afogasse a lembrança do outro aroma. Voltou então, para beijar seu pescoço e deixar um rastro quente e úmido até o v de sua camisa.

     Eric tremeu e enredou as mãos no cabelo dela. Tamara baixou as suas para desabotoar desajeitadamente a camisa que se interpunha entre eles. Apoiou as palmas das mãos no tórax firme e sem pêlo. Moveu-as sobre sua ampla extensão, seguindo com os lábios o rastro chamejante que deixava. Fez uma pausa em um mamilo masculino distendido e o lambeu, e quase se enjoou de deleite quando ele inspirou com brutalidade, apertando os dentes. Seguiu baixando as mãos, pelos peitorais que se moviam sob a pele firme, até o ventre tenso e plano. Tocou com os dedos a cintura das calças e os deslizou por debaixo.

     Um momento depois, Tamara fechou a mão em torno de seu membro ardente e cheio. Eric inclinou a cabeça para trás, como se os músculos do pescoço não pudessem o sustentar. Gemeu com a carícia da Tamara e ela o espremeu e o acariciou louca pela reação dele. Voltou a levantar a cabeça, tinha os olhos quentes quando a olhou. Com uma mão, tomou a ponta da toalha e, com um movimento, o grosso tecido caiu a seus pés. Rodeou sua cintura com os braços e atraiu seu corpo para o dele, pele contra pele. A sensação acelerou o pulso a Tamara. O tórax firme e másculo, a pele tensa e cálida pressionando seus suaves seios. Seus braços fortes em torno dela, com as mãos deslizando-se sobre sua costa nua, apertando-a contra ele. Tamara se prendeu a seus ombros e se excitou ainda mais com a firmeza que encontrou ali.

     Atacando de novo a boca da Tamara, Eric a tombou com suavidade no chão. Ela descansava de costas, estendida ante ao fogo, e ele se colocou a seu lado, com um braço debaixo dela, fazendo de travesseiro para sua cabeça. A outra mão deslizava ardentemente por seu corpo. Tomou e espremeu os seios, beliscando com suavidade os mamilos até que tremeram contra seus dedos. Deslizou a mão para baixo, acariciando seu ventre com as gemas dos dedos para depois enterrá-los nos cachos entre suas coxas.

     Com uma lentidão torturante, entreabriu as suaves dobras. Tamara fechou os olhos enquanto a explorava, e notou a crescente umidade que emanava dela. Desejava-o. Entreabriu as pernas e arqueou as costas para seus dedos para dizer a ele o quanto o desejava. Fechou os olhos quando ele retirou a boca da sua e a baixou para acariciar um seio. Notou-o tremer quando mordiscou seu mamilo, e apertou sua cabeça com uma mão e lutou com o zíper de suas calças com a outra.

     Eric abaixou o zíper e se desfez das calças para ficar tão nu como ela. Tamara abriu os olhos para contemplá-lo à luz do fogo. Parecia o homem mais formoso que nunca tinha visto antes. Cada centímetro dele era músculo sólido e desenvolvido. Tinha a pele terna e firme, elástica e quase sem pêlo. Percorreu seu corpo com o olhar e foi ao encontro de seus olhos candentes. “Está segura?” parecia perguntar, embora não chegou a formulá-la.

     Para o responder, uniu sua boca a dele, atraindo seu corpo ao dela. Eric a cobriu com suavidade. Instintivamente, ela plantou os pés, dobrou os joelhos e se abriu para ele. Ele a encheu devagar, e Tamara conteve o fôlego pela sensação. Aquilo era mais que sexo, pensou ternamente, enquanto a penetrava com suavidade. Era a consumação de uma espécie de ciclo cósmico. Eram um do outro. Aquilo estava certo. Eric se retirou, com cuidado de não machucá-la, e começou a penetrá-la de novo. Tamara pôs as mãos em seus firmes glúteos e o empurrou. A plenitude de seu sexo a deixava sem fôlego, mas arqueou as costas para ir ao encontro de sua seguinte investida poderosa.

     Eric acelerou o ritmo, e Tamara não pensou em nada durante um tempo, só sentia. Eric deslizava a boca por sua garganta, queixo, seios. Lambia, sugava e mordia, fazendo ferver seu sangue. Tinha deslizado as mãos por debaixo dela para rodear as nádegas e levantá-la para ele. Massageou-a e a balançou. Seu rígido membro acariciava seus recantos mais profundos, já sem vacilação, com força e rapidez. Tamara sentia a tensão que se retorcia dentro dela. Os movimentos do Eric se fizeram mais intensos, e ela tremeu pela força dos mesmos. Ele percebia as reações de seu corpo e atuava de acordo com elas, ajustando os movimentos para prolongar a deliciosa tortura. Tamara corcoveou debaixo dele, procurando um êxtase que ficava justo fora de seu alcance, e percebeu um desejo similar nele.

     Eric se moveu dentro dela mais depressa, com respirações curtas e rápidas. Abriu a boca, ardente e úmida sobre o pescoço da Tamara, e ela notou o contato afiado de seus incisivos e o tamborilo de seu próprio pulso. Experimentou um desejo sem precedentes, e arqueou o pescoço e os quadris simultaneamente para ir ao encontro do Eric. Gritou com frenética necessidade e atraiu a cabeça dele a seu pescoço.

     A tensão crescia. Tanto, que pensou que logo explodiria. Ele se retirou devagar, mas ela suplicou.

     —Por favor, Eric... Faz... agora... —a penetrou, retirou-se e voltou a penetrá-la, como se o ímpeto de suas investidas estivesse descontrolado. Penetrou-a com tanta violência que a teria levantado do chão se não a tivesse mantido imóvel, obrigando-a a tomá-lo dentro dela com toda a força que podia reunir. E ela não teria se retirado embora tivesse sido capaz. Desejava aquilo... e mais. Outra investida e notou que alcançava o abismo. Ele a deixou ali, prolongando a sensação até que os gemidos da Tamara eram os de um animal ferido gravemente. Ele fechou os dentes sobre sua garganta, e ela sentiu os incisivos na pele ao tempo que o aferrava ainda mais.

     Eric perfurou seu pescoço enquanto voltava a afundar-se nela e a levava mais além do limite. A dor era êxtase na agonia do clímax que a percorria. Convulsionou-se em torno dele e, depois, com mais força ao sentir que lambia a garganta. Seu corpo o espremeu, e se estremeceu de cima abaixo, com violência, com uns espasmos de prazer cuja existência desconhecia até esse momento. Eric se estremeceu dentro dela, e Tamara soube que também tinha alcançado o topo. Sentiu sua semente ardente derramando-se dentro dela enquanto prosseguia seu próprio clímax. Com a boca aberta na garganta, movendo a língua com avidez para saboreá-la, Eric se estremeceu com a força do êxtase. Emitiu um gemido comprido e lento, e caiu sobre ela com um último estremecimento físico. Retirou com cuidado os dentes.

     Começou a apartar-se dela, mas Tamara o envolveu rapidamente com os braços. Ele tinha a cabeça apoiada em seus seios, e o reteve ali.

     —Não te mova ainda —sussurrou— me abrace.

     Largou-se apesar de suas palavras, e se incorporou para olhá-la com olhos cintilantes que refletiam as chamas. Tocou seu pescoço com os dedos e fechou os olhos com força.

     —meu Deus, o que tenho feito? —Suas palavras não eram mais que um sussurro afogado—. Que classe de monstro sou para me permitir...?

     —Não diga isso —Tamara começou a incorporar-se, mas ele pôs as mãos nos seus ombros.

     —Não, não te mova. Descansa —passou a mão pelo seu cabelo, uma e outra vez—. O sinto muito. Muitíssimo, Tamara.

     Com o cenho franzido, Tamara movia a cabeça.

     —Não me tem feito mal, Eric. Meu Deus, foi incrível!

     — bebi que ti!

     —Sei o que tem feito. O que não sei é por que te comporta como se me tivesse atravessado o coração com uma faca. Perco mais sangue quando me depilo com gilete — suavizou a voz ao ver que a dor não abandonava seu olhar. Levantou a mão para acariciar seu rosto com a palma — Eric —sussurrou— Tem efeitos secundários? Me converterei em um vampiro?

     —Não, para isso é necessário mesclar...

     — Ficarei doente?

     —Não. Possivelmente se sinta um pouco enjoada quando te levantar, mas te passará.

     —Então, por que tem tantos remorsos? —incorporou-se devagar, inclinou a cabeça e uniu seus lábios aos dele— Me encantou o que fez, Eric. Desejava-o tanto como você.

     —Não podia...

     —Sim. Não esqueça que sinto o que você sente. Agora compreendo por que se continha antes. Para ti forma parte da paixão, verdade? É outra espécie de clímax —Eric a olhou aos olhos, como se estivesse assombrado—. O vê? Entendo-o. Eu também o hei sentido.

     Ele negou com a cabeça.

     — Não te repugna?

     — me repugnar? Eric, eu te amo — pestanejou e, compreendendo o que acabava de dizer, olhou-o aos olhos—Amo.   

    

     Eram as duas da madrugada. Tamara jazia contemplando o dossel branco da cama, desejando poder fechar os olhos. Eric tinha insistido em levá-la a casa depois de sua declaração de amor. Ficou mudo e atônito uns momentos. Depois, incômodo, como se não soubesse muito bem o que dizer. Tamara estava confundida. O que queria dela? Uma relação física sem emoções? Mas já havia emoções entre eles, emoções profundas que ela só começava a compreender. E acreditava que ele a amava. O tinha insinuado.

     Virou e deu um murro no travesseiro. De novo, lançou um olhar ao conhaque no criado mudo. Eric tinha insistido em dar a ela porque tinha gostado muito. Não era de se estranhar, pensou. Tinha sido engarrafado em 1910. Devia valer uma fortuna. E ali estava ela, apurando outra taça com a esperança de usá-lo como calmante. Se não dormia logo, desmaiaria no trabalho, diante de todos e, então, o que faria Daniel? Certamente, a internaria em uma clínica.

     Foi de novo ao banheiro, ainda completamente acordada meia hora depois. O que ia fazer com o Eric? Daniel morreria se soubesse a verdade. Amava-o. Não desejava magoá-lo. Céus, a mente funcionava a cem por hora aquela noite.  Abriu o estojo de primeiro socorros e procurou até que encontrou o frasco marrom. Tinha provado antes os malditos tranqüilizadores. Uma, dois, inclusive três doses. Nem sequer a tinham ajudado a bocejar. Abriu-o e verteu quatro cápsulas na mão. As meteu na boca contemplando com cinismo seu reflexo. A quem queria enganar? Não fecharia os olhos até o amanhecer.

     Digeriu os tabletes com um copo de água. Vagou de novo para a cama, compreendeu que ainda sustentava o frasco na mão e o deixou com despreocupação na mesinha.

     —O matarei por isso.

     “Daniel? Era a voz do Daniel a que acariciava a beira de seu subconsciente? Notava-o zangado, e tenso”

     —Tentei falar sobre isso — a voz do Curt era mais sonora, mais calma— Deveria ter estado sob vigilância constante. Se a tivéssemos seguido, teríamos apanhado a esse bastardo.

     —Se seu tranqüilizador funcionar. Nem sequer o provamos, Curt. Não pode saber se o imobilizará.

     — E como diabos sugere que o provemos? Pedindo voluntários? Olhe, fiz tudo o que me ocorreu. Funcionará, só falta prová-lo.

     “Provar o que? Com quem? E por que estavam os dois tão zangados?”

     —Violou-a, Curt —ao Daniel tremia a voz de raiva— Não bastava chupar seu sangue, também tinha que possuí-la. O desgraçado a violou... deixou marcas na sua pele. Meu Deus, não sente saudades que não suportasse a idéia de nos ver esta manhã.

     —Nunca pensei que Tammy procuraria essa saída. Tranqüilizadores e conhaque! —Curt falava com aspereza— Por que diabos não nos disse isso para que nos ocupássemos dele?

     “Violá-la?” Tamara se lembrou do canalha da rodovia... suas mãos, seu asqueroso fôlego na cara. Mas não a tinha violado. Chegou Eric e... Céus, pensavam que Eric tinha provocado aqueles machucados. Lutou para abrir os olhos. Moveu os lábios, mas não saiu deles nenhum som. Tinha que contar a eles. Moveu a cabeça com frenesi no travesseiro. Era muito rígido e grosso e ela notou o caso engomado. Não era o travesseiro dela.          

     —Está voltando em si —notou que Daniel se aproximava e se obrigou a abrir os olhos. Via tudo impreciso e o intento a deixou enjoada, com uma forte dor de cabeça. Notou suas mãos na testa, mas tinha a sensação de que a testa não estava unida a ela. Tudo aparecia distorcido

     — Tamara? Tranqüila, carinho. Curt e eu estamos contigo. Marquand já não pode te machucar.

     Moveu a cabeça com frenesi sobre o travesseiro. Era muito rígida e grosa, e notava a capa engomada. Não era seu travesseiro.

     —Não... Eric... ele não... —maldição, por que não podia articular nenhuma só frase?

     —Eric —se burlou Curte—Te disse que se lembrava. Esteve fingindo. Não me surpreenderia que se entregou a ele voluntariamente, Daniel. Sempre soubemos que viria por ela, não? E eu sempre disse que ela nunca seria como nós. Colocou-a dentro da DIP. Pelo amor de Deus, quantos segredos já terá revelado?

     —Ela não nos trairia, Curt —disse Daniel, mas tinha a voz impregnada de dúvida.

     —Então, por que mesclou essas pílulas com o álcool? É a culpa, acredite. Vendeu-nos e não pôde suportá-lo.

     — O que poderia ter dito? Não sabe nada da investigação!

     —Que nós saibamos —disse Curte, em tom significativo— A ele nada gostaria mais que assassinar aos dois, Daniel. Somos os líderes em investigação sobre vampiros. Desfaz-se de nós e este campo da ciência retrocede mais de vinte anos.

     — Acredita mesmo que eu não sei?

     Tamara lutava contra a escuridão que a envolvia, mas era inútil. Sussurrou seu nome uma vez mais antes de cair no quente abismo. As vozes dos dois homens se perdiam.

     —Virá a vê-la... como da outra vez.

     —Estaremos preparados. Vê pelo tranqüilizador e te reúna aqui comigo.

     Eric deu outra volta pela habitação, passando-a mão pelo cabelo, acrescentando seu desalinho.

     — Onde está? Sintonizo minha mente com a sua mas não sinto nada!

     —Possivelmente tenha conseguido dormir um pouco. Não a perturbe.

     —Não — Eric moveu a cabeça—. Não, aconteceu alguma coisa. Sinto muito.

     Roland franziu as sobrancelhas com preocupação, apesar de seu fingido suspiro de exasperação.

     —Essa tua menina começa a ser um chateação. Em que confusão crie que se colocou esta vez?

     —Quisera saber — se voltou, pôs-se a andar para a lareira, girou sobre os calcanhares e voltou. Deteve-se e olhou ao Roland nos olhos— Não devia deixado que ocorresse. Estava em um frágil estado mental. Seguro que quando compreendeu o que tinha feito à fria luz do dia se sentiu manchada, infectada por meu tato, convertida...

     —Cale-se, a não ser que possa dizer algo razoavelmente inteligente, Eric. Se não importou ontem à noite, não importará agora. Crie que a jovem não sabe o que sente? Minha interpretação dos fatos é esta: seu sangue, que deu faz tantos anos, alterou-a em certa medida. Selou o vínculo entre vós e a fez sentir uma aversão natural para a luz do sol e uma energia transbordante com a noite. É uma hipótese lógica, pois, que não a repulse a sucção de umas quantas gotas no momento da paixão, como ocorreria a um humano qualquer.

     Eric exalou um fundo suspiro.

     —Acredita que está apaixonada por mim. Te falei isso?

     —Só uma centena de vezes desde que despertamos, fará uma hora... Claro que não fico contando. O que te surpreende tanto? Você acredita que estar apaixonado por ela, não?

     —Não é que o acredito. A amo com todo meu ser.

     — E quem pode dizer que ela não sente o mesmo?

     Eric fechou os olhos devagar.

     —Espero que não. Já é bastante que eu tenha que suportar a dor de nossa futura separação. Não desejaria essa agonia para ela — abriu os olhos e contemplou o cenho do Roland— É inevitável.

     —Não necessariamente. Ela poderia...

     —Nem sequer o sugira —Eric deu as costas a seu amigo, lançando olhadas a todas partes— Esta existência foi minha maldição. Não a desejaria a ninguém.

     Roland falou em voz mais baixa e rouca.

     —Se te referir à solidão, Eric, ninguém a compreende melhor que eu.

     —A tua é procurada. Você gosta. A minha é uma condenação interminável de confinamento solitário. Não me relaciono porque não posso confiar em ninguém... não com a DIP procurando sempre a maneira de me destruir.

     —Minha solidão... —Roland se interrompeu e, de uma vez, fechou sua mente à curiosidade do Eric. Quando seguiu falando, fez com voz mais serena— Minha solidão não é o assunto que nos ocupa. Sua existência não seria solitária se tivesse a alguém com quem compartilhá-la.

     Eric fechou os olhos e moveu a cabeça.

     —Já analisei essa possibilidade, Roland. Minha decisão está tomada.

     —A decisão, meu amigo, não tem que ser tomada por você.

     Eric sentiu uma pontada de irritação. Levantou a cabeça e se voltou devagar para o Roland para dizer exatamente o que pensava desse comentário, mas nesse momento o aroma se moveu devagar em torno de sua mente. O segurou como um homem seguraria uma corda de salvamento, e centrou todo seu ser nessa única sensação que chegava de Tamara. O aroma. ..Franziu o cenho... limpo... estéril... terrivelmente familiar.

     Abriu os olhos de par em par.

     — meu Deus, hospitalizaram-na!

     Eric se equilibrou para a porta, mas Roland se interpôs.

     —Um momento, Eric. Revista perder a cautela em tudo o que concerne a Tamara —tomou sua capa de couro e a jogou sobre os ombros — Não me atrevo a imaginar em que confusão se colocaria se não te acompanhasse.

     —Bem —Eric se deteve o chegar à porta— Roland, não pode vestir isso para ir a um hospital. Pareceria que tivesse saído das páginas desse Stoker.

     —Não tenho intenção de entrar. Não suporto esses lugares.

     Fiel a sua palavra, Roland ficou espreitando nas sombras do exterior enquanto Eric seguia seu afiado sentido da Tamara até o andar correspondente. Subiu pelas escadas e lançou os dedos de sua mente a reconhecer o terreno, sempre alerta à presença do Saint Claire ou Rogers. Não demorou para perceber um ápice de sua presença, muito perto de Tamara, embora não a sentia tão forte como desta vez.

     Percorreu o corredor do quarto andar com o olhar e não demorou para divisar o quarto. O teria sabido sem ajuda, mas o homem corpulento de traje cinza situado na porta o evidenciava. Eric não o reconhecia, mas soube imediatamente que era da DIP. Se queria ver a Tamara, teria que encontrar outra maneira de entrar. Estava mas tranqüilo. Embora percebia que ela ainda estava aturdida, encontrava-se bem.

     Seu alívio foi tão intenso que esteve a ponto de não reparar na pasta, onde anotavam as enfermeiras. Um etiqueta na parte frontal  levava as palavras “Dey, Tamara” escritas em tinta negra. Eric ficou rígido. Devia ver aquela pasta. Só assim conheceria o alcance das feridas e saberia o que tinha provocado sua hospitalização. Fechou os olhos.

     “ Roland? Segue aí fora?”.

     “ Onde vou estar se não aqui?”, foi a tediosa resposta.

     “Não me viria mal uma distração” disse Eric.

     “Feito”.

     Eric esperou uns trinta segundos, olhando com desconforto para esquerda e direita, meio que esperando que Saint Claire aparecesse a qualquer momento.

     Depois, ouviu um grito horripilante no quarto de outro corredor e todas as enfermeiras saíram correndo. Nos corredores ressonou uma voz masculina:

     —Estava-me sorrindo... através da janela! Juro-o! E tinha presas... e os olhos...

     Eric sorriu levemente, contra sua vontade. Aproximou-se correndo ao arquivo e abriu a pasta da Tamara. Não precisou olhar muito. De acordo médico que a tinha atendido, tinha ingressado na emergência aquela manhã, inconsciente e com as constantes vitais muito tênues. Tinha ingerido uma grande quantidade de tranqüilizadores mesclados com álcool. Segundo o atestado do médico, tinha mantido relações sexuais fazia pouco tempo. Também reparou nos machucados do torax e concluiu que a tinham violado em algum momento da noite anterior. As pílulas e o álcool tinham sido, em sua opinião, uma tentativa de suicídio.

     A folha dançou ante seus olhos, e a Eric retorceu o estômago. Se estivesse sozinho, teria rugido como um leão ferido. Tal como estavam as coisas, devia controlar sua angústia. Não era a violação o que a tinha feito perder o controle, era algo muito mais inerente para a alma. Fazia o amor apaixonadamente com um monstro. Quase cego de dor, fechou a pasta e saiu do hospital.

     Roland acabava de descender do batente.

     — Ouviste o grito desse idiota? —Soltou uma gargalhada— Fazia anos que não me divertia tanto —deixou de rir e pigarreou—. Bom, que tal está nossa garota? Viu-a? Eric, Por Deus, tem um aspecto horrível. O que ocorre?

     Eric tragou saliva e se obrigou a falar. Não resultava fácil.

     —Não... Não pude vê-la. Há um guarda na porta. Da DIP —divisou um banco não muito longe e se dirigiu a ele. Precisava se sentar— Tentou tirar a vida, Roland.

     — O que? —Roland se sentou a seu lado imediatamente e lhe aconteceu o braço pelas costas. Eric apenas o sentia.

     —Disse que lamentaria o que... o que eu fiz, quando pudesse pensar com claridade. Mas não sabia que a repugnaria até o ponto de querer tirar sua vida.

     — Pois engana-se —a violência da voz do Roland não penetrou o muro de dor que envolvia ao Eric. —Tranqüilizadores mesclados com álcool. Está escrito nas folhas.

     Roland sujeitou ao Eric pelos ombros e o obrigou a olhá-lo aos olhos.

     —Não. Ela não faria isso.

Eric negou com a cabeça.

     —Apenas a conhece.

     —Certo, mas conheço a desolação que impulsiona a alguém a chegar a esse extremo. Eric, fui testemunha presencial disso, conheço os sintomas —suavizou a voz—Só desejaria havê-los reconhecido a tempo —o sacudiu— Eric, não aceite nada mais que suas próprias palavras para confirmar essa teoria. Sei que é um engano. Vá vê-la. Fale com ela.

     Eric moveu a cabeça por enésima vez.

—Sou a última pessoa a quem iria querer ver.

—Nesse caso, acabará falando isso e terá sua resposta. Se não, seria uma injustiça que a deixasse nesse quarto com um guarda da DIP a impedindo de sair. — Eric ficou rígido.

     —Suponho que poderia entrar pela janela. Mas temo que Saint Claire e Rogers estejam na habitação com ela.

     —Me dê um minuto —disse Roland, soltando ao Eric e ficando em pé—Já me ocorrerá algo.

     Tamara pestanejou para dissipar a neblina de sua mente e compreendeu que Daniel estava sentado a seu lado, sustentando sua mão. Perguntou-se por que parecia estar em um quarto de hospital ao mesmo tempo que recordava retalhos da conversa que tinha escutado antes.

     —Acordou—Daniel se inclinou para ela— Disseram que voltaria em si a qualquer momento. Não deveria ter estado tanto tempo inconsciente, mas todos pensaram que o descanso faria bem, assim que a deixamos tranqüila.

     Tinha feito bem, pensou Tamara, que tinha a cabeça mais limpa. Sentiu a ascensão de energia e desejou poder apartar os lençóis e sair dali. Umedeceu-se os lábios ressecados.

     —É de noite, verdade? Meu Deus, quanto tempo levo dormindo?

     —Te encontrei na cama esta manhã —tragou saliva— Ao princípio, pensei que estava dormindo, mas logo vi as pílulas e o conhaque —Deslizou a  mão fresca por sua testa— Neném, devia ter me falado Não teria te julgado. Não foi tua culpa.

     Incorporou-se na cama tão depressa que a mão do Daniel caiu. Por fim recordava as palavras que tinha ouvido aquela manhã. Todos pensavam que tinha tentado suicidar-se. Pior ainda, que Eric, nem mais nem menos, tinha-a violado. Tinham visto os sinais que tinha deixado na garganta sua paixão desmedida.

     —Daniel, tenho que te contar o que oconteceu ontem à noite.

     —Não te torture, céu. Já sei. Eu... —um soluço brotou em sua garganta, mas o conteve— O matarei pelo que te tem feito, Tammy. Juro-o.

     — Não! —ficou em pé imediatamente— Daniel, tem que me escutar —sentiu um forte enjôo, e se Daniel não tivesse estado ali para sujeitá-la, teria desmaiado— Me Escute, por favor.

     —Está bem. Está bem, carinho, te escutarei se quer falar. Mas volta para a cama, de acordo?

     Ela assentiu e, quando esteve outra vez reclinada sobre os travesseiros, tentou serenar-se. — Onde está Curt?

     —Fora. Percorre o perímetro uma vez cada hora. Não permitiremos que Marquand se aproxime outra vez a ti, carinho. Não se preocupe por isso. Tamara pôs os olhos em branco.

     —Curt também deveria ouvir isto, mas não pode esperar. Promete-me que contará tudo o que falar? Daniel assentiu. Tamara pigarreou e tentou reunir valor suficiente para ser sincera com ele. Deveria havê-lo sido desde o começo.

     —Vi ao Eric Marquand várias vezes depois da noite da pista de gelo —resmungou por fim. Daniel abriu a boca, mas ela levantou as duas mãos—. Por favor, me deixe terminar —se umedeceu os lábios—. Uma noite me levou a dar um passeio em trenó e me deu chocolate quente e conhaque do bom. De fato, o conhaque que tinha ontem à noite era um presente dele. Também estive em sua casa. Estivemos sentados diante do fogo, falando durante horas. Não é um monstro, Daniel. É um homem maravilhoso e atento.

     —Meu Deus...

     —Ontem à noite, ao voltar para casa do trabalho, furou o pneu. Tive que tomar a saída da rodovia mais próxima e me aproximar a pé ao posto de gasolina. Me... —fechou os olhos pela lembrança— atacaram. Lutei contra ele, mas não serviu de nada. Era muito forte. Acredito que me teria matado ao terminar. Mas Eric chegou bem a tempo —abriu os olhos depois da lembrança mais horrível da noite anterior—. Tirou o homem de cima de mim e o deixou inconsciente. Levou-me de carro e me cobriu com seu próprio casaco. Teria me levado diretamente a casa, mas pedi que não o fizesse. Necessitava tempo para me acalmar —tomou a mão—. Daniel, ontem à noite Eric me salvou a vida.

     Daniel ficou olhando durante comprido momento.

     —Mas como...? Eu não…

     —Não é o monstro que diz que é. É mais humano que muitos homens.

     Daniel se mostrou inseguro um instante mas, depois, entreabriu os olhos:

     —Não pode negar as marcas que te deixou na garganta. Provam o que é.

     —Não as negarei —repôs Tamara baixando os olhos—, mas tampouco mentirei a respeito. Não vou contar coisas que não concernem, Daniel. Mas deve saber que tudo o que ocorreu entre o Eric e eu ontem à noite ocorreu porque eu quis, sabendo o que ele era. Não me fez mal e nunca o fará.

     —Tamara, o que diz? Reconhece que é um vampiro e mesmo assim o defende?

     Olhou-o sem pestanejar. Não se envergonharia do que sentia pelo Eric. Mas acreditava ter dado a seu tutor muitos desgostos por uma noite.

     —O que digo é que não tem que preocupar-se por mim. Com o Eric nunca me ocorrerá nada mau —pôs uma mão no braço e a apertou— Quero que pense em uma coisa, Daniel. Durante muito tempo pensaste que, porque é diferente, é malvado por natureza. Equivoca-te. Tem que compreender quão intransigente é essa forma de pensar.

     Moveu a cabeça e ficou em pé. Olhava-a com acusação nos olhos.

     — É que Curt e eu não prevenimos contra o controle mental que poderia exercer sobre ti? Não te supliquei que me dissesse se tornaste a vê-la? Tamara, não pode acreditar em suas mentiras! Me mataria se tivesse a oportunidade, e você é quem pode ajudá-lo. Está utilizando você para chegar até mim, Tamara. Teria que estar cega para não vê-lo!

     Tamara inspirou com brutalidade ao sentir a fúria de sua voz e de seu rosto. Era como se o tivesse traído. Nunca o tinha visto tão zangado.

     —Daniel, equivoca-te...

     Interrompeu-a o bip do cinturão do Daniel. Este pulsou um botão.

     —Tenho que ir. Curt... —mordeu-se o lábio.

     —Curt, o que? —Tamara sentiu um calafrio pelas costas. Tinha algo que ver com o Eric, estava segura. Daniel havia dito que Curt estava percorrendo o terreno, ou algo assim. Teria visto Eric? O que fariam se o apanhassem? Em lugar de responder, Daniel saiu disparado pela pesada porta de madeira. Ao abri-la, Tamara viu o guarda apostado fora e acelerou seu coração.

     A porta se fechou e Tamara começou a dar voltas, combatendo o enjôo que, esporadicamente, tentava ressurgir. Fechou os olhos e tentou chamar o Eric como tinha feito outras vezes, com a mente.

     “Eric, se estiver aí fora, tome cuidado! Daniel e Cur...”

     Seus pensamentos se interromperam quando sentiu uma brisa fresca e ouviu uma suave voz familiar.

     —Agora mesmo, Roland os está despistando —ao abrir os olhos, Tamara o viu acontecer as pernas por cima do batente e aterrissar charmoso no chão. Ficou imóvel um momento, como se aguardasse sua permissão para aproximar-se.

     Tamara correu para ele e se jogou em seus braços.

     — Eric! —os braços dele pareceram vacilar um pouco, depois, a afastou e a sentou de novo na cama. Tinha uma expressão de desolação no rosto, e o olhar úmido e observador. Fincou um joelho junto à cama, e disse com voz grosa:

     —Doce Tamara, não era minha intenção... meu Deus, não pretendia conduzi-la a isso. Juro-o. Se soubesse... Mas deveria saber, não? Nunca devia ter feito o que fiz —se engasgou com as palavras e derramou uma só lágrima pelo rosto.

     A Tamara encolheu seu coração.

     —Não pense o que pensa, Eric. Nem sequer um minuto. Foi um acidente, nada mais —a olhou aos olhos e ela viu a dúvida neles— Explora minha mente, já que não acredita. Melhor ainda, olhe dentro de meu coração. Como pode pensar iria querer te deixar? —Notou que Eric seguia sua sugestão, e enquanto explorava a mente, explicou o que tinha feito— Sabia que não poderia dormir a noite toda e tinha que ir ao escritório no dia seguinte ou Daniel saberia que algo ia mau. Tomei um pouco de conhaque, mas não me ajudou. Então tentei com os tranqüilizadores que levavam mais de um mês no estojo de primeiro socorros. Tinha-os tomado antes sem que fizessem efeito. O problema foi que não estava pensando com claridade e não me parei a considerar as conseqüências de mesclá-los com álcool. Isso foi tudo, Eric. Juro.

     Ele a estreitou entre seus braços.

     —Pensei que tinha acordado e lamentado ter se entregue a mim. Se alguma vez se arrepender, Tamara,  diga-me. Não serei a causa de seu desespero. Irei agora mesmo, se me pedir isso. — Tamara o abraçou com mais força e sussurrou: —Não, não me deixe, Eric. Não... —franzindo o cenho com uma sensação de dejá vu tão forte que a fez enjoar-se um pouco, separou-se dele— meu Deus, hei-lhe isso dito antes. Em uma cama de hospital igual a esta. Supliquei-te que não me deixasse... mas se foi. —Eric assentiu, observando-a com atenção. —Pensei que era o melhor para ti, de verdade. Me enganei. Não voltarei a cometer esse engano. Embora me ordenasse que me separasse de ti, jamais iria tão longe como naquela época. Teria meu amparo. Saint Claire nunca se teria apropriado de você se eu tivesse sido mais sábio então.

     —Então foi quando tive o acidente. Foi quando te conheci? Todas essas lembranças e familiaridade vem da época em que tinha seis anos?

     —Sim. Agora está vindo tudo. Logo recordará o resto.

     Tamara assentiu, desejando compreender. Mas não o pressionaria, Eric não deveria estar ali. Não estava a salvo.

     —Eric, tive que contar ao Daniel que não foi você quem me atacou e machucou, mas não pude ocultar os sinais do pescoço. Disse-lhe que estive contigo voluntariamente, que não me violou. Ele insiste em que me enfeitiçaste. Eric, ele está furioso. Não é boa idéia que esteja aqui.

     Eric apertou os lábios, e ela o observou um momento.

     —Ama esse homem, e tentei me abster de falar em seu contrário por seu bem, Tamara. Esta noite, não posso. Prefiro suportar sua fúria que permitir que continue confiando cegamente nele. Tamara, recorda as características que expliquei, os que a  fazem diferente do resto dos humanos?

     — O antígeno Belladonna e um antepassado comum?

     Ele assentiu.

     —Saint Claire já os conhecia.

     Tamara o olhou pestanejando.

     — De verdade? Então por que não me há isso dito alguma vez?

     Eric lhe sustentou a mão.

     —Tamara, há muitas possibilidades de que só te adotasse porque sabia que foi um dos Escolhidos. Conhecia seu vínculo com os de minha espécie e sabia que, enquanto te tivesse, um de nós poderia aproximá-lo bastante para ser capturado.

     — Capturado? —Tamara escrutinou seu rosto, sua mente, enquanto falava, mas não viu indícios de que estivesse mentindo. Moveu a cabeça, pestanejando pelas lágrimas que alagavam os olhos—. Sei que o diz a sério, que acredita... mas está equivocado. Daniel me quer como a uma filha —baixou a vista e moveu a cabeça— Tem que fazê-lo. É a única família que tive durante todos estes anos. Se tudo foi uma mentira... Não. Enganou-se.

     Eric suspirou, mas assentiu.

     —Não seguirei insistindo. Mas recorda, Tamara, ele não é sua única família. Você tem a mim . Independente do que ocorra, sempre me terá. Acredita?

     Tamara assentiu. Experimentou um comichão na mente, e pestanejou com força, tentando recordar.

     —Eric, antes, quando voltei em mim, estavam dizendo algo a respeito de... de um tranqüilizador.

     —Nenhum tranqüilizador conhecido surte efeito em um vampiro, Tamara.

     Ela o negou com força.

     —Acredito que era algo novo, algo no que Curt esteve trabalhando —o olhou nos olhos, e seu temor se impôs sobre qualquer duvida— Eu estou a salvo com eles, Eric, mas você não. Por favor, vai antes de que voltem.

     —Não penso me acovardar...

     —Mas possivelmente Roland tampouco esteja a salvo. Se existir algum tipo de droga e deixa que se aproximem muito...

     Eric franziu o cenho naquele momento e assentiu.

     —Então, irei... por esta vez —a atraiu para lhe beijar o pescoço—. Mas me resulta intolerável te deixar.

     Tamara fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Eric tomou sua boca como se fora sua última comida. Quando por fim se apartou, Tamara se aferrou a ele e aproximou os lábios úmidos a seu ouvido.

     —Ah se você pudesse ficar. Desejo-te tanto que me dói —o notou tremer em resposta a suas palavras.

     —É muito logo. Hoje foi um dia muito duro — com suavidade a recostou sobre o travesseiro— A deixarei, mas não irei longe. Se alguém tentar te machucar, me chame. Sabe que te ouvirei.

     —Sei.

     Foi por onde tinha chegado, levando uma parte da Tamara com ele.

    

     Tamara fechou a janela, retornou à cama e fingiu dormir, embora estivesse completamente acordada e cheia de energia. Daniel retornou poucos minutos depois que Eric a deixou e se sentou perto da janela. Tamara não fez conta. Ainda não estava preparada para uma confrontação, mas sabia que teria que chegar. Precisava ouvir de seus próprios lábios que as suspeitas do Eric não eram verdadeiras.

     Chegou a alvorada e Tamara não pôde evitar as trepadeiras do sonho. Envolveram-na gradualmente e a arrastaram ao torpor. Quando abriu os olhos um momento depois, foi ver o último fulgor laranja do sol no horizonte. A cadeira do Daniel estava vazia.

     Aguardou imóvel e preguiçosa, ao tempo que a vida parecia retornar a seu corpo. Era incrível que tivesse dormido dois dias seguidos. Descansada e revitalizada, retirou os lençóis e começou a abrir gavetas e portas de armário em busca de sua roupa. Já estava farta daquele confinamento. Os únicos objetos que encontrou foram sua camisola e o casaco de pata de galo. Suspirou de alivio ao ver as botas no chão do armário.

     Não havia guarda naqueles momentos, e deduziu que Daniel só acreditava necessária a vigilância depois do pôr-do-sol. Provocou bastante revôo quando anunciou às enfermeiras que ia embora.

—Terei que assinar a alta e avisar ao médico.

Não podia ir-se sem mais. Tamara solicitou que arrumassem os papéis imediatamente. Já tinha pedido um táxi por telefone e pensava estar pronta quando chegasse.  

     Menos de meia hora depois, abriu a porta principal da descuidada casa a que tinha chamado lar durante os últimos vinte anos. Daniel se encontrava no vestíbulo, ficando o casaco. Levantou a vista, surpreso de vê-la. Seu sorriso se extinguiu devagar ao ver que ela não o devolvia.

     —Temos que conversar — disse a modo de saudação.

     Daniel fugiu o olhar. Assentiu e exalou o ar devagar.

     — Por que havia um guarda na porta do meu quarto no hospital, Daniel?

     —Não mentirei. Temia que Marquand tentasse aproximar-se de ti outra vez.

     — Porque já se aproximou de mim uma vez em um hospital?

     Daniel levantou a cabeça e abriu muito os olhos.

     — Lembrou?                                             

     Deu as costas, atravessou o vestíbulo e entrou no enorme salão. Sabia que ele a seguia. Voltou-se para ele.

     —Não, Daniel. Em realidade, não me lembro. Durante os últimos meses estive perdendo a cabeça lenta e sistematicamente porque não posso recordar. Estou tentando... —a garganta ameaçou fechando-se o e se mordeu os lábios, tragou saliva duas vezes e se obrigou a continuar— Mas você conhecia meu vínculo com o Marquand desde o começo, verdade? Pelo amor de Deus, Daniel, como pudeste me ocultar algo assim?

     Ele arqueou as sobrancelhas e enrugou a frente.

     —Tammy, só fazia o que considerava melhor para ti. Tentava te proteger...

     — Vendo que ficava louca? Meu Deus, os pesadelos, a insônia... Devia saber que tudo girava em torno de Eric. Sabia e nunca disse uma palavra.

     Tamara fez uma pequena pausa.

     —É obvio que não. Não podia dizer nada que tranqüilizasse meus temores, verdade, Daniel? Não como Eric fez. Não podia me dizer que não me estava voltando louca, que existia uma razão para tudo o que me estava passando e que o compreenderia assim que minha mente estivesse preparada para recordar. Você, em troca, não queria que recordasse, verdade, Daniel? Porque sabia. Sabia que tínhamos estado unidos, Eric e eu e sabia que viria para ver-me algum dia. Durante todos estes anos estiveste esperando, vigiando.

     Aguardou uma negativa furiosa, mas só viu remorsos no rosto do Daniel. Tamara devia prosseguir. Precisava formular a pergunta definitiva, embora temesse ouvir a resposta.

     — Por isso me adotou, Daniel? Era a isca perfeita para atrair ao Eric?

     Durante comprido momento, Daniel não respondeu. Quando Tamara deu as costas, contrariada, pôs a mão suavemente no seu braço para girá-la de novo para ele.

     —Faz vinte anos estava cego de ambição, Tammy. O trabalho era minha vida. Faria qualquer coisa para me aproximar do Marquand... , mas não agora — baixou a mão e se afastou dela devagar, com a cabeça encurvada— Cheguei a te querer, carinho. Como não faria? E não demorei a desejar que ele não voltasse. Inclusive temia que chegasse o dia. Aterrava-me que viesse e te separasse de mim.

     Tamara manteve a raia as lágrimas. Não sabia de onde tirava forças para fazê-lo.

     —Minha vida foi uma mentira. Do momento em que apareceu em minha habitação de hospital estava levando a cabo uma trama fria e calculada — moveu a cabeça— O que faria com Eric quando o apanhasse?

     Não havia remorso em seus olhos quando a olhou naquela ocasião. Só o gélido brilho do ódio.

     —Não tenha pena. Tammy. Não é melhor que um animal... um lobo raivoso que deve ser detido antes que espalhe sua enfermidade. Sim, tempos atrás eu tinha grandes planos. Ia averiguar a resposta a todas as perguntas que tinha sobre ele... sobre os de sua espécie. Agora, quão único quero é impedir que te faça mal.

     —Machuque-o e será como se estivesse fazendo a mim, Daniel —se aproximou dela, movendo devagar a cabeça enquanto observava seu rosto— Estou apaixonada por ele.

     Daniel fechou os olhos com força e emitiu um grunhido gutural, como se tivessem dade um forte murro no estômago. Tamara não teve piedade.

     —Diz que me ama, mas duvido. Acredito que esteve me utilizando desde o começo e agora não pode reconhecê-lo.

     Ele voltou a mover a cabeça.

     —Isso não é certo. Te amo... não poderia amar mais a minha própria filha.

     —Então, demonstra-o — a olhou, atônito, como se soubesse o que ia pedir lhe.

     —Tamara, eu...

     —Abandona a investigação, Daniel. Renuncia seu plano de capturar ao Eric, ou a qualquer um deles —deu um passo para ele— Ele não é como pensa. É amável, sensível e divertido. Se o conhecesse na rua não o distinguiria de outros. Não quer ferir ninguém, só que o deixem tranqüilo. Se quiser obter as respostas as suas perguntas, Eric estaria disposto a dar as respostas se pudesse confiar em você.

     — Isso é absurdo! Se me aproximasse dele, seria homem morto. Tamara, é você quem não conhece esse homem. É ardiloso e cruel. Acusa-me de te haver utilizado, mas é ele quem te está utilizando a ti... para apanhar a mim, acredito.

     Tamara piscou devagar.

     —Já vejo que não quer me compreender —sentindo o coração ferido de maneira irreparável, voltou-se para a escada em curva.

     — Aonde vai?

     —vou tomar banho e me trocar. Depois, sairei. Amanhã voltarei para recolher minhas coisas.

     — Não pode ficar com ele Tammy! Meu Deus, não faça isso comigo...

     — Não posso ficar, a não ser que aceite meu pedido. Leve em conta que esteve me enganando  todo este tempo, Daniel. O que eu pedi a você durante toda minha vida? Se me ama, fará isso por mim. Se não, minha partida não fará mal algum.

     Dirigiu-se à escada e fez exatamente o que tinha dito. Daniel não tentou detê-la. Quando, chegou o momento, Tamara saiu pela porta principal, não viu Daniel em lugar algum.   

     Tamara se deixou cair nos braços do Eric assim que ele abriu a porta. Eric tinha percebido seu tumulto interior e sentia uma irritação crescente pelos responsáveis. Saint Claire e seu protegido, sem dúvida. Abraçou-a e as lágrimas da Tamara molharam sua camisa.

     Ao longe, pela soleira aberta, sentiu que alguém o observava e fechou a porta com o pé. Rogers, compreendeu devagar. Tinha-a seguido. Eric sentia a raiva daquele homem como um vento desértico abrasador, e não só dirigido a ele, mas também a Tamara. A idéia o sacudiu. Deu-se conta no momento em que se afastava a caminhonete e decidiu centrar-se em Tamara.

     Abraçou-a com mais força e a conduziu ao salão, onde a aguardavam um alegre fogo e uma jarra de chocolate quente. Instalou-a no sofá, sobre seus joelhos, como faria com uma menina pequena. Apoiando a cabeça no ombro, acariciou seu cabelo enquanto sentia os dolorosos batimentos do coração em suas têmporas e a umidade das lágrimas.

     —Ai, Eric, tinha razão. Daniel sabia sobre nós desde o começo. Sabia que você voltaria algum dia, e essa foi a única razão pela que me adotou quando morreram meus pais.

     — Reconheceu-o?

     — Sim. Mal podia olhar em meus olhos.

     Eric exalou um suspiro, desejando poder acabar com a vida daquele bastardo sem coração por haver causado a Tamara tanto dor.

     —Sinto-o muito, carinho. Ojala me tivesse equivocado.

     —Dói saber a verdade. Quero-o tanto, Eric...

     Queria-o, em presente. Eric franziu o cenho. Tamara levantou a cabeça de seu ombro.

     —Não posso deixar de amá-lo só porque mentiu para mim. Acredito... Acredito que, a sua maneira, ele também me ama — pestanejou e alisou sua camisa branca com os dedos— Está empapado.

     —De boa vontade apanharia todas as lágrimas que derramasse, se você permitisse, Tamara.

     Viu-a elevar as comissuras dos lábios, mas eles tremiam.

     — A não ser que Daniel mude de atitude e abandone a investigação, amanhã será o último dia que porei o pé nessa casa — o olhou e sorriu com muita suavidade — A não ser que me esteja precipitando. Você não me convidou...

     — Quer que me ponha de joelhos? Quer que eu suplique para que fique?

     —Só tem que me dizer que me deseja — disse em apenas um sussurro, e ao Eric brilharam os olhos com paixão.

     —Em minha existência vi mulheres de tanta beleza que eram capazes de enlouquecer a um homem. A seu lado, empalideceriam como a chama de uma vela junto ao sol. Nunca me afetou uma mulher tanto como você — baixou a cabeça e, levantando seu queixo com a mão, posou seus lábios sobre os dela. Acariciou-os com suavidade, primeiro acima, logo abaixo. Levantou a cabeça só o justo para falar, e para ver seu glorioso rosto enquanto o fazia—. Dizer que te desejo não basta. Seria melhor dizer que o deserto seco e ermo deseja a carícia da chuva. É essa parte de mim que me faltou durante mais de dois séculos.

     —Eric, faz o amor com as palavras tanto como com o corpo —uniu sua boca a dele, entreabriu os lábios e o convidou a invadi-la. Eric aceitou de boa vontade, e seu sabor o excitou ainda mais que a última vez que a tinha beijado. Ao final, levantou a cabeça para respirar— Não posso expressá-lo tão bem como você — disse ela, quase sem fôlego — Mas sinto o mesmo. Minha vida estava vazia, e pensava que nunca deixaria de me perguntar por que. Depois, encontrei-te e soube. Não sei o que como aconteceu, Eric, não sei por que estamos tão unidos mas, seja o que seja, une-nos. É parte de mim, tão crucial para minha existência como meu próprio coração. Se voltar a deixar... —interrompeu-se com um soluço.

     Eric a levantou em braços ao tempo que ficava em pé.

     — Te deixar? Te deixar? Olhe dentro de meu coração e ponha fim a suas dúvidas. Por ti nadaria nu em um rio de pedaços de vidros. Arrastaria-me sobre carvões ardendo, pelo mesmo inferno, para chegar a ti. Levo-te dentro, como uma febre no sangue.

     Tomou a boca da Tamara com ferocidade e, ao mesmo tempo, avançou para a escada. Quando chegaram ao patamar, os dois estavam ofegando. Ela entrelaçava os dedos no cabelo do Eric, saboreava-o com a língua, como se fosse um fruto exótico e prezado... algo que necessitava para sobreviver.

     Eric abriu de um chute a porta do dormitório, passou com ela em braços, reparando vagamente nas velas e as lamparinas que banhavam com seu resplendor dourado a cama que tinha preparado para ela. Depositou-a com suavidade sobre o colchão alto, depois, endireitou-se e permitiu que seu olhar a devorasse. Não apreciava os jeans que usavam as mulheres na atualidade. Entretanto, nela resultavam atrativos, aderia-se a suas pernas como uma segunda pele.

     Tamara pestanejou e rompeu o contato visual para passear o olhar pelo quarto. A colcha de raso sobre a que jazia teve a fortuna de receber uma larga carícia de sua mão igual de suave. Contemplou a enorme cama com dossel e a madeira esculpida, depois, a multidão de velas e as duas lamparinas fragrantes.

     — Preparou tudo isto para mim?

     Eric assentiu.

     — Você gosta?

     O sorriso de Tamara foi a resposta. Manteve cativos os olhos de Eric enquanto começava a desabotoar sua blusa com seus delicados dedos. Eric deu um passo para ela, mas ela o deteve com um pequeno movimento de cabeça. Tragando saliva, obedeceu. Permaneceu onde estava, embora o fogo que ardia nele começava a descontrolar-se.

     Ela encolheu seus ombros para que a blusa escorregasse para baixo, e Eric viu o sutiã de seda branca que usava. Levantou-se da cama para tirar o jeans e, depois, olhou-o como um doce preparado especialmente para seu deleite. O sutiã acariciava seus ombros e deixava aparecer as curvas de seus seios. Enquanto Eric se esforçava para articular palavras, Tamara repetiu as dele.

     — Você gosta?

     Eric só pôde emitir um grunhido rouco antes de estreitá-la entre seus braços e apertá-la contra ele. Quando tirou as mãos do sutiã para tirar a calcinha, encontro-a sem, Tamara fazia aquilo para ele. Para agradá-lo. Para excitá-lo até o raiar a loucura, pensou. Moveu os quadris para que o membro inchado que apertava a calça entrasse em contato com a vagina da Tamara. Levantou uma mão para tirar o delicado bojo e deixar livre um seio. Enquanto com a mão atormentava o mamilo para reduzi-lo a um tenso monte, falou, deslizando os lábios por seu pescoço.

     — Quer me voltar louco, mulher? Espero que esteja segura. Passei o ponto de retorno.

     Depositou-a novamente na cama e ela o viu lutar com a camisa. Sem vacilar, Eric se despiu por completo. Estava impaciente por invadir o delicioso corpo da Tamara. Viu que ela cravava o olhar em sua ereção enquanto subia ao colchão, ansioso por possuí-la. Então, conteve-se. Tinha-a para toda a noite. Não precisava fazê-la sua apressadamente. Podia amá-la devagar, pô-la tão frenética como ele a ela.

     Tamara alargou os braços, com os olhos nublados pela paixão.

     — Está com pressa, doce Tamara? Negaria-me a oportunidade de te saborear primeiro?

     — Quer voltar a beber de mim? Faz-o, Eric. Esta noite sou sua escrava. Faz o que quizer.

     —O que quero fazer é te devorar. Cada suculento centímetro de ti. A meu prazer. Permitirá-me isso?

     Ajoelhou-se no colchão junto a ela e levantou seu minúsculo pé. Deixou um rastro de beijos em torno do tornozelo, mordiscando o osso com os dentes e deslizando a língua pelo contorno. Ela respirava cada vez mais depressa. Depois, os lábios de Eric subiram lentamente pela pele suave da panturrilha. Levantou sua perna para lamber a curva. Ela se estremeceu com violência, e Eric viu que tinha fechado os olhos. “Sim, meu amor. Esta noite te ensinarei o que significa o prazer”. Mordiscou e lambeu a coxa, deslizando a boca mais acima, em linha reta, para que ela não duvidasse de suas intenções. Quando chegou a sua vagina, o desejo de Tamara era tão intenso que gemia com cada fôlego que exalava. Uma carícia com a língua e a ouviu gritar.  Se abre para mim, amor. Me dê seu doce néctar”.

     Fez-o. Eric deslizou as mãos por debaixo de seus trêmulos glúteos e a levantou, depois, deu o que ela suplicava silenciosamente. Saqueou-a com a boca, afundando-se nela com a língua. Seu sabor o embriagava. Tamara se estremecia, ofegava, movia a cabeça sobre os travesseiros, sacudindo os quadris. Empurrou-a sem piedade até o bordo do precipício, e a obrigou a atirar-se. Tamara chiou de êxtase... e ele persistiu. Viu-a estremecer-se de forma incontrolada até que lhe apartou a cabeça, ofegando.

     —Não, já não mais. Não posso...

     —Claro que pode. Quer que eu mostre? —elevou-se para cobri-la por completo com seu corpo e a abriu com sua ereção. Estava úmida e ainda pulsava pelo clímax. Penetrou-a sem prévio aviso. Tamara se estremeceu enquanto a investia uma e outra vez. Não lhe deu tempo a recuperar-se da primeira explosão. Conduziu seu corpo trêmulo ao seguinte orgasmo. Sujeitando-a com os braços, obrigou-a a aceitar cada investida. Cobriu sua boca com a dele e afundou a língua, ainda revestida do sabor da Tamara. Penetrou-a mais depressa, e quando ela afundou as unhas nas suas costas, Eric soube que estava outra vez ao limite. Quando o passou, afogou seus gemidos com a boca, caindo ao precipício com ela. Todo seu corpo tremeu com a sacudida da liberação.

     As réplicas do prazer ainda o percorriam quando começou a mover-se de novo dentro dela.  

         

     “Tão rápido”, pensou Tamara quando viu que se aproximava o amanhecer. Observou o perfil do Eric, deitado a seu lado, e pensou de novo que nunca tinha visto um homem tão bonito. Não havia barba incipiente em sua mandíbula. De fato, tinha o rosto tão liso como horas antes. Ele a olhou e sorriu.

     —Terei que te deixar logo —disse, dando voz aos pensamentos da Tamara. Esta se aproximou a ele.

     — Aonde vai? Descansa em... em um caixão?

     Eric assentiu e se incorporou levemente para recolher a camisa.

     —A idéia é repugnante para você?

     —Nada de ti poderia me repugnar, Eric —se incorporou ela também e começou a lhe grampear a camisa— Mas não acredito que eu goste de vê-lo nele. Por que um caixão, afinal? É uma espécie de tradição vampírica? Por que não uma cama, pelo amor de Deus?

     Eric riu inclinando a cabeça para trás. Tamara se surpreendeu cravando o olhar nos fortes músculos de seu pescoço e se aproximou para beija-lo e acariciou seu cabelo.

     —É por amparo. Há mais humanos que conhecem nossa existência do que imagina. A muitos adorariam acabar conosco. Poderíamos dormir em criptas, ou depois de uns ferrolhos, imagino. Mas nada oferece mais amparo que um caixão, que se fecha de dentro e tem um alçapão debaixo.

     — Um alçapão? —Terminou de abotoar a camisa e elevou a vista, interessada— Está consciente o bastante para usá-lo?

     —O aroma do perigo iminente me arrancaria inclusive do sonho mais profundo. O botão está situado no ponto onde descansa minha mão. Quando o toco, o fundo acolchoado se abate e me joga em um quarto oculto situado debaixo. Volta a colocar-se em seu lugar automaticamente. Os únicos efeitos secundários são um ou outro machucado pela queda.

     —Então, sente dor?

     —Sinto tudo com mais intensidade que um humano. Calor, frio, dor... —atraiu-a a seus braços e acariciou a nuca— Prazer —sussurrou ao seu ouvido— A dor pode me incapacitar, mas as feridas que recebo se curam enquanto descanso. É um sonho reparador, sabe? —deslizou os lábios à têmpora da Tamara. Beijou suas pálpebras, as bochechas e depois a boca, profunda e exaustivamente— Acredito que o necessitarei depois de esta noite.

     Tamara sorriu pela pequena brincadeira, mas o sorriso morreu quando compreendeu que estava começando a clarear. Olhou em seus olhos entrecerrados e percebeu sua crescente letargia.

     —Precisa descansar —saiu de seus braços e, recolhendo sua roupa, a passou—Vamos, não demorará para amanhecer.

     —Muito logo —disse, mas aceitou as calças e se levantou da cama para ficar os Continua não me agradando que esteja com o Saint Claire hoje.

     —Sei —Tamara abotoou os jeans e rodeou a cama para aproximar-se dele— Mas devo fazê-lo. E te amo ainda mais por não tentar me dizer o que tenho que fazer. Sei que não tem a Daniel em grande estima, mas como ele se equivoca contigo, você te equivoca com ele, Eric. Não é tão má pessoa.

     Ao longe, o cinza do céu começava a tingir-se de rosa. Baixaram juntos a escada e se abraçaram uma última vez na soleira aberta, onde Eric deu um beijo de despedida.

     Tamara combateu a sonolência na volta a casa. Pensou que teria tempo para dormir antes de ter que ir ao escritório. Tinha se decidido a pedir demissão. Não podia seguir trabalhando para a DIP sabendo como tinham patrocinado a perseguição constante de Eric ao longo dos anos. Além disso, tratava-se de um claro conflito de interesses. Estava apaixonada pelo sujeito de sua investigação mais antiga.

     Entrou e ficou boquiaberta. Daniel, completamente vestido, jazia no sofá, com um braço e uma perna pendurando. Tinham-lhe jogado uma manta por cima, mas se tinha retorcido com ela. Tinha o cabelo alvoroçado e, quando se aproximou, percebeu o aroma do álcool e viu a garrafa vazia de uísque no chão.

     —Hummm, finalmente voltou para casa hein?

     Tamara levantou a vista. Curt estava apoiado na soleira que comunicava com a enorme sala de jantar, com uma xícara de café na mão.

     — O que faz aqui, Curt? —lançou um olhar ao relógio da parede. Eram quinze para as seis.

     — Esteve com ele toda a noite, verdade?

     Havia algo em seus olhos, uma frieza em sua voz, que a assustava.

     —Sou maior de idade, Curt. O que eu faço é meu assunto.

     Endireitou-se, cruzou a habitação e plantou a taça sobre a mesa.

     — Não te dá conta de quão asqueroso é? É um animal repugnante! E você é igual... comporta-te como uma cadela no cio. Por Deus, Tammy, se queria tanto, não tinha mais que pedir...

     Alcançou-o com grande rapidez e deu uma bofetada.

     — Saia daqui!

     —Não —permaneceu frente a ela, e Tamara viu o ódio absoluto em seu olhar. “Como tinha acreditado ter um verdadeiro amigo naquele homem?” Mas Curt pestanejou e trocou o tom de voz— A enfeitiçou, Tammy.

     — O que aconteceu aqui esta noite? —passou pela sala de jantar, sabendo que ele a seguiria. Na cozinha se serviu uma xícara de café e acrescentou açúcar, confiando em que proporcionasse um aumento de energia.

     —Daniel se embebedou até ficar inconsciente —Tamara se voltou e, com a xícara na mão, franziu o cenho— Me chamou por volta da meia-noite, balbuciando algo sobre ti e Marquand. Não entendi nem a metade. Quando cheguei tinha bebido toda a garrafa. Dizia que ia deixar a investigação para não te perder para sempre. É esse seu plano, Tammy? Empregar a chantagem emocional com um tipo que foi como um pai para ti? Obrigá-lo a renunciar a quarenta anos de trabalho para que possa viver seu retorcido caso de amor?

     Tamara não sentia irritação por suas palavras, só alegria.

     —Então, há dito que ia abandonar?

     O olhar do Curt se encheu novamente de ódio.

     —Estava muito bêbado para saber o que dizia. Mas me deixe que te diga uma coisa, Tammy. Eu não vou abandonar. Daniel me ensinou tudo o que sabe, e se ele quer jogar a toalha, eu a recolherei. Não me manipulará como o manipulaste.

     Tamara abriu a boca para replicar, mas viu o Daniel entrar fracamente na cozinha.

     —Curt, você fará o que eu digo. Eu o coloquei na DIP e posso tirá-lo de lá da mesma maneira.

     Alcançou uma cadeira e se deixou cair nela.

     —Daniel, está bem? —Tamara se voltou para servir uma xícara de café e a colocou na frente dele — Posso te preparar alguma outra coisa? —olhou-a durante um longo momento, como se procurasse algo. Por fim, negou com a cabeça e ficou olhando a xícara de café.

     —Eu devo, Curt. Sabe tão bem como eu.

     —Está mordendo o anzol, verdade? —Curt dava voltas pela cozinha— Não te dá conta de que te vendeu? Aliou-se com o inimigo, Daniel. É a ela a quem deveríamos ter estado estudando. Sempre te disse que era mais vampiro que humana!

     — O que significa isso? —Tamara soltou sua taça de café, derramando a metade.

     — Quer dizer que ainda não sabe?

     — Que não sei o que?

     Daniel tentou ficar em pé, massageando a testa.

     —Já basta, Curt. Será melhor que vá. Tamara e eu temos que conversar.

     Curt olhou a Tamara com olhos entreabertos.

     —Me escute bem. Tammy. Se seguir com essa aventura doentia, acabaremos todos mortos. Tem minha vida em suas mãos —assinalou ao Daniel com a cabeça— E a dele Recorda que adverti isso—girou isso sobre seus calcanhares e se afastou. Um momento depois, ouviu-se a porta batendo que fez vibrar os cristais.

     Daniel moveu a cabeça.

     —Vai superar, Tammy. Dê tempo.

     —Está enganado, Daniel —se sentou frente a ele e cobriu sua mão com a dela— Eric é o homem mais amável que conheci. Quero... —inspirou fundo e seguiu— Quero que o conheça. Que fale com ele. Quero que veja que não é o que você acredita.

     —Imaginava que me pediria isso, e suponho que devo fazê-lo. Não me importa dizer isso Tammy, sinto medo. Embora ao cientista que levo dentro fique emocionado com a idéia. Estar tão perto de... —assentiu e prosseguiu— Farei o possível por fazer as pazes com ele, Tammy. Estou dando voltas toda a noite, e tudo se reduz a uma coisa —pôs a mão no rosto— Não quero te perder —fechou os olhos devagar— Quando a trouxe para minha vida, tudo mudou, Tamara. Antes era... —abriu os olhos, e Tamara se surpreendeu ao ver as lágrimas que brilhavam neles—... um homem distinto. Um canalha, Tamara. Mais monstro do que Marquand poderia ser jamais. E o lamento. Mais do que imagina.

     Ela moveu a cabeça, não sabia o que dizer. Aquele era o momento mais sincero que tinham compartilhado.

     Bebeu o café e foi à cama, e Daniel não despertou. De fato, foi o telefone o que a arrancou do sonho, e ficou aturdida ao ver a hora no despertador. Tirou o fone e o aproximou do ouvido, sentindo lástima por Daniel não ter atendido.

     — Tammy?

     Ao ouvir a voz familiar, sua irritação se dissolveu.

     — Jamie? Por que não está no colégio?

     —Matei aula. Tammy... —suspirou com voz trêmula. Tamara se incorporou na cama.

     —Aconteceu alguma coisa? —o medo relegou a letargia a um canto de sua mente— Está ferido? Quer que chame a sua mãe?

     —Não, não é nada disso —outro suspiro trêmulo—. Não sei muito bem o que é.

     —Tudo bem, Jamie, acalme-se. Me diga onde está e...

     —Vim em táxi. Estou em um telefone público do Byram. Não queria ir a sua casa.

     Isso era normal. A desmantelada casa vitoriana sempre tinha arrepiado os cabelos de Jamie.

     — se apresse, Tammy, ou será muito tarde.

     O medo suavizou sua voz.

     — Muito tarde para que Jamie?

     — Não sei! Se apresse, ok?

     —Está bem.

     Quinze minutos depois, estava pegando Jamie. O moço entrou rapidamente no carro antes de que este parasse por completo. Subiu, com cara pálida e os olhos muito abertos.

     —Acredito que estou ficando louco —anunciou.

     —Eu pensei o mesmo de mim —observou seu jovem rosto. Onze anos era muito pouco para suportar o peso de tantos problemas— Diga o que está acontecendo.

     — Se lembra de quando perguntei se conhecia alguém chamado Eric? —Tamara ficou rígida, mas assentiu— Pois espero que saiba onde mora. Temos que ir lá.

     Tamara não o pôs em dúvida. Acelerou e seguiu rodando pela rua.

     — Sabe por quê?

     Jamie fechou os olhos e se esfregou a frente como se lhe doesse.

     —Acredito que alguém tenta matá-lo.

     —Meu Deus —Tamara pisou fundo no acelerador, trocando rapidamente de marcha.

     —Não deixou de me vir à cabeça desde que desliguei o telefone. Não acontecerá até que estejamos lá... mas não fz sentido.

     —por quê?

     —Por que... tenho a sensação de que ele já está morto.

     Tamara conduziu o mais depressa possível. Mesmo assim, demoraram vinte minutos para chegar à grade de entrada da casa de Eric. Sentiu desejos de gritar quando viu o carro do Curt estacionado de má maneira na estrada próxima. Pisou no freio, desligou o motor e abriu a porta totalmente. Correu para a grade com o Jamie seguindo-a.

     Tinham-na quebrado com um objeto pesado. O bonito emparrado de ferro estava dobrado ou quebrado, a grade, aberta e a caixa eletrônica do interior, esmagada. Os rastros de uma pessoa se desenhavam na neve, em direção à casa.

     — Eric! —o lamento da Tamara reverberou na quietude enquanto a realidade esmurrava sua mente. Uma mão pequena e firme pegou a sua e a fez franquear a grade.

     — Vamos, Tammy! Corre!

     Tamara pestanejou para frear as lágrimas, mas seguiram caindo, incontroladas. Corria sem ver por onde pisava. Em questão de segundos, chegaram à porta, que se encontrava aberta.

     Tamara secou seus olhos e entrou. Os apreciados móveis antigos estavam caídos, e alguns, esmagados.  Uma das cadeiras bordadas faltava uma perna. Havia vasos quebrados no chão da sala. As mesas de mármore estavam caídas como árvores derrubadas.

     Avançou às cegas, atravessando a sala de jantar, e entrou na cozinha, onde tinham arrancado as portas dos armários. Ouviu ruído de cristais quebrando e deu a volta. Reparou em uma porta aberta cuja escada só podia conduzir à adega. Os sons provinham da escuridão do fundo. Não tinha nem idéia de onde estava o caixão de Eric, mas supunha que era ali. Aproximou-se da porta.

     A mão que sentiu no ombro a sobressaltou tanto que esteve a ponto de cair pelas escadas. Jamie a sujeitou com a outra mão.

     —Chamei à polícia —disse com suavidade.

     —Bem. Os espere na porta principal, ok?

     Olhou-a, mas não respondeu, e permaneceu na soleira da cozinha, ela descia devagar. Ao notar a mudança de superfície, Tamara soube que tinha chegado ao final. O local estava na completa escuridão e com o forte aroma do vinho. Ouviu mais ruídos de cristais e se obrigou a aproximar-se.

     — Curt! —gritou seu nome e o ruído cessou de repente— Já basta, Curt. Para com esta loucura.

     Tamara esperou a acostumar-se à escuridão. Por fim, distinguiu sua silhueta. Ficou mais clara. Curt se erguia junto a um porta-garrafas demolido, sustentando uma tocha. Havia garrafas rotas dispersadas pelo chão, e poças de vinho. As prateleiras da porta-garrafas pareciam estilhaçadas.

     — Vá embora, Tammy! Isto não é assunto seu! É entre o Marquand e eu! —voltou a levantar a tocha.

     Tamara se jogou sobre suas costas e se aferrou a seus ombros para impedir que causasse mais estragos. Curt soltou a tocha e jogou a mão para trás para sujeitá-la pelo cabelo e afastá-la dele. Tamara se cambaleou e caiu no chão empapado de vinho, mas voltou a levantar-se. Olhou-o, ofegando, mais por medo que por esgotamento.

     —A polícia está a caminho, Curt. Acabará no cárcere se não sair daqui agora mesmo.

     Ele a sujeitou tão depressa que não teve tempo de esquivá-lo. Levantando-a pelo frente do casaco, a fez girar e a lançou contra os restos do porta-garrafas. Tamara golpeou a testa contra uma prateleira quebrada e a dor atordoou sua mente.

     — Onde está, Tammy?

     Piscou, sentindo seus joelhos fracos. Apertou as mãos contra a parede que tinha atrás, depois, ficou gelada. Notava uma dobradiça sob a palma. Aquilo não era um porta-garrafas, a não ser uma porta. Ao final das contas, para que iria um vampiro querer vinho? Por que não o tinha adivinhado antes? E quando Curt descobriria?

     Inspirou entre dentes.

     —Eric não... não está aqui —Curt deu um soco no seu rosto.

     —Perguntei onde ele está. Você sabe e vai me dizer, maldita.

     Tamara deixou escapar um soluço involuntário. Curt soltou o casaco, mas a sujeitou pelos ombros.

     —Deus, Tammy, não quero te machucar. Maldição, está sob seu controle. Até que desapareça não o verá tal como ele é. Se não, matará a todos.

     Olhou-o de frente e moveu a cabeça.

     — Está enganado!

     —Nem sequer é humano —replicou Curt.

     — É mais humano do que você jamais será!

     Curt voltou a levantar a mão, mas a apanharam por trás.

     — A deixe em paz! —gritou Jamie.

     — Que diabos...? —Curt voltou a cabeça e se desfez da mão do Jamie com facilidade. Depois, arremeteu contra ele— Pequena aberração...

     — Curt, não! —mas antes de que pudesse golpear ao menino, Jamie baixou a cabeça e se equilibrou contra o ventre do Curt como uma bola de canhão. Os dois caíram em uma confusão de braços, pernas e garrafas quebradas. Tamara sujeitou ao Curt pelo braço e tentou afastá-lo.

     — Parado! —uma luz brilhante os iluminou do alto da escada, e ouviram uns passos descendo rapidamente. Um policial segurou Tamara pelo braço e a apartou, enquanto que outro levantou o Curt, não com muita delicadeza, e depois se inclinou sobre o Jamie.

     — Está bem, filho?

     —Sim. Fui eu que os chamou —assinalou a Curt com um dedo acusador—. Ele entrou... com isso —apontou o dedo à tocha no chão.

     O policial assobiou, ajudou ao Jamie a ficar em pé e se voltou para o Curt.

     — É isso certo? —apressou ao Curt para que subisse as escadas, enquanto o segundo policial fazia com que Tamara e Jamie o precedessem. No alto, à luz natural, o policial a conduziu ao salão e disse que se chamava Sunner.

     — Você é a proprietária?

     —Não. O dono... está fora da cidade e eu estava vigiando a casa durante sua ausência —mentiu com fluidez. Jamie permanecia a seu lado, em silêncio.

     —Necessitarei seu nome e seu número de telefone para localizá-lo tirou o típico bloco de notas do bolso.

     —Está a caminho —disse Tamara—. Deveria estar de volta esta noite.

     O policial assentiu, anotou o nome da Tamara, sua direção e telefone e depois inclinou a cabeça e cravou o olhar na sua mandíbula.

     — Foi ele?

     Tamara tocou a pele machucada. Assentiu, e viu a labareda de irritação nos olhos verdes do policial.

     —Tenho que levar Jamie para casa e... e me serenar. Sei que necessita uma declaração detalhada, mas não poderia ser mais tarde?

     O homem assentiu.

     — Quer denunciá-lo por agressão?

     — E isso vai mantê-lo no cárcere esta noite?

     —Eu garanto —respondeu o policial com uma piscada.

     —Então, suponho que sim —o policial assentiu, anotou o nome do Eric e aconselhou a Tamara que fosse ao médico. Logo entrou na sala de jantar e falou com seu companheiro. Momentos depois, Curt era guiado à porta principal com as mãos algemadas à costas.

     —Lamentarão —repetia uma e outra vez— Sou agente federal.

     —Sem ordem judicial para entrar aqui, isto é invasão de moradia, vandalismo e agressão —afirmou Sumner enquanto franqueavam a porta.

     Jamie parecia encontrar-se em estado de shock. Tamara se aproximou dele e Passou uma mão pelo seu cabelo escuro e encaracolado.

     —Tem garra, menino —ele levantou a vista, mas não sorriu—. Detesto reconhecê-lo, Jamie, mas me alegro muito de que estivesse comigo.

     Jamie esboçou um sorriso.

     — O que acontece? Por que Curt queria matar o Eric?

     Olhou-o sem pestanejar.

     —Por muitas razões. Os ciúmes poderiam ser uma, e o medo. Curt teme ao Eric, não há dúvida —não queria mentir a Jamie. Não sabia por que, mas o menino formava parte de todo aquilo— Eric é diferente... distinto do resto. E há pessoas que temem o que não entendem.

     Jamie se limitou a assentir. Tamara saiu com ele pela porta e a fechou. Aproximou uma pedra grande à grade para, ao menos, dissuadir assim a qualquer possível intruso.

     — Acredita que acontecerá algo até que eu volte?

     Jamie a olhou com o cenho franzido.

     —Não tenho mais sensações estranhas saltando por meu cérebro, se for isso o que me pergunta —sorriu de orelha a orelha pela primeira vez.

     —Sabe, Jamie, é possível que me tenha salvado a vida aí dentro. Se não tivesse chamado à polícia... —Moveu a cabeça—E, certamente, também salvaste a do Eric e a de seu amigo Roland.

     Jamie se voltou para a casa com uma mão na porta do carro.

     —Estão aí dentro, verdade? —Não esperou a que ela respondesse— Teriam ajudado, mas não podiam. Se Curt os tivesse encontrado, os matariam.

     Não pediu a Tamara que confirmasse ou negasse suas palavras. Entrou no carro e permaneceu em silencio até chegar a sua casa.

     Tamara contou a Kathy os fatos simples, tentando adoçar o pior. Jamie tinha visualizado que alguém entrava na casa de um amigo. Tamara e ele tinham chegado bem a tempo de impedi-lo. O suspeito estava detido e tudo se resolveu. Tamara manteve o rosto inclinado para que não visse o machucado e inventou uma desculpa para não entrar. Kathy Bryant, embora alterada, fez-se cargo da situação.

     Tamara retornou a casa de Eric pouco depois das cinco da tarde.

    

          Eric abriu os olhos e, lentamente, percebeu o aroma da terra que o rodeava. Descansava em uma posição incômoda, não em sua cama no caixão, a não ser no áspero chão de madeira do quarto secreto situado debaixo. Franziu o cenho, com a cabeça ainda espessa, e beliscou a ponta do nariz com o indicador e o polegar. Recordava a repentina sensação de perigo que o tinha arrancado do sono profundo. Tinha flexionado automaticamente o dedo indicador sobre a mola oculta para jogar-se naquele lugar. Estava a salvo e a sensação de perigo mortal tinha desaparecido.

     Eric se ergueu sobre a pequena banqueta, colocada ali para tal propósito, e alcançou a manivela da faxe inferior do colchão. Atirou para baixo e, depois, estirou ainda mais a mão para soltar o fechamento da tampa. Um momento depois, subiu com facilidade e aterrissou facilmente no chão. Afinou seus sentidos e, ao não perceber ameaça alguma, cruzou a estadia para o caixão que Roland tinha disposto sobre uma base. Deu um batida à tampa e não se surpreendeu quando Roland emergiu de uma porta oculta na própria base. Endireitou-se e se sacudiu a roupa enrugada.

     — Pode-se saber o que passou?

     —Não estou seguro —Eric permanecia imóvel— Tamara está em casa.

     Roland também se concentrou.

     —E outros estiveram. Três... Não, mais quatro pessoas. Já se foram.

     Assentindo, Eric abriu a porta. Atravessaram rapidamente a passagem em sombras, e Eric soltou e empurrou o porta-garrafas que fazia de porta. Este cedeu uns quantos centímetros e, depois, trancou-se. Eric incrementou a pressão e conseguiu abri-lo. Os dois homens se detiveram o sair à adega.

     A lâmpada de luz elétrica refulgia com intensidade. O que tinha sido um porta-garrafa bem provido era um desastre, e só ficava um par de garrafas intactas. O aroma assaltou ao Eric, e moveu a cabeça até que viu os sacos de lixos com pedaços de vidro e de madeira. Contra os sacos estavam apoiados uma vassoura e uma pá. O chão estava impregnado de vinho. Outro aroma chegou ao olfato do Eric e girou em si, vendo imediatamente a leve mancha na parede próxima à porta oculta. No momento, soube que era sangue, o sangue da Tamara.

     Subiu as escadas a toda pressa e atravessou a casa, mas se deteve em seco ao chegar ao salão.

     Tamara estava endireitando uma mesa. Deslizando os dedos pela borda quebrada, suspirou e se inclinou para recolher um velho relógio dourado. O aproximou do ouvido, depois, depositou-o brandamente sobre a mesa de mármore. Eric absorveu a cena e compreendeu que já tinha endireitado quase tudo.

     —Tamara —avançou para ela devagar. Tamara elevou a vista para ouvir sua voz e correu para seus braços. Eric a estreitou com força. Roland tinha entrado na habitação e contemplava as imperfeições em silêncio.

     — Quem é o responsável por isto? —Eric se separou da Tamara o suficiente para levantar o queixo com dedos suaves e examinar seu rosto machucado.

     — Foi... foi Curte, Eric, mas estou bem. Não é tão terrível como parece.

     — Te bateu? —repôs com raiva. Ela assentiu. Eric tocou a sua nuca e, quando a viu fazer uma careta, soube que tinha encontrado o corte.

     —Entrou aqui como um touro raivoso —comentou Roland.

     —Nunca o tinha visto tão zangado —disse Tamara.

     —Nem voltará a vê-lo —Eric baixou os braços e deu um único passo para a porta. Roland o interceptou com rapidez e elegância.

     —Acredito que, antes de atuar, deveríamos saber o que passou, Eric.

     Em poucos momentos, Roland tinha sentado em uma cadeira enquanto Tamara sustentava uma taça de vinho na mão. Eric seguia em pé, desejando poder estrangular ao canalha do Rogers.

     Tamara tomou um sorvo de vinho.

     —O começo não é tão terrível. Convenci ao Daniel de que abandonasse a investigação. Concordou quando disse que o abandonaria para sempre se não o fizesse.

     Eric franziu o cenho.

     — Concordou?

     —Sim, e isso não é tudo. Pedi-lhe que se rencontrasse contigo, que falasse contigo. Quero que te veja como eu e saiba que nunca me faria mal. Também concordou com isso.

     Eric se sentou com força.

     — Será possível...!

     —Eu não estou tão convencido de que seja boa idéia —disse Roland—. Mas deixarei isso para mais tarde. Continua, querida.

     Eric escutou o relato da Tamara sobre a reação de Curt à notícia e a repentina chamada do menino clarividente, Jamie. Depois, a resistência na adega e a oportuna chegada da polícia.

     — O menino se machucou? —de novo, foi Roland quem falou. Eric estava ocupado observando as expressões conflitantes do rosto da Tamara e lendo as emoções que havia detrás. Naqueles momentos, reduziram-se a uma raiva silenciosa. Notou que subia dentro dela, e sua ferocidade o surpreendeu. Não tinha acreditado que era capaz de gerar um só pensamento violento. Com voz estranhamente baixa. Tamara disse:

     —Se Curt tivesse machucado ao Jamie, o teria matado.

     Eric lançou um olhar perplexo ao Roland, que parecia estar observando-a com a mesma intensidade. Tamara pestanejou duas vezes e o fogo de seu olhar se extinguiu lentamente.

     —Denunciei-o por agressão. Passará a noite na prisão.

     —Será uma desgraça para ele, se decidir renunciar tão logo ao amparo de uma cela.

     —Eric, não pode... fazer nada a ele. Só daria mais motivos a esses idiotas da DIP para que o acossassem.

     — Acredita mesmo que me importa?

     —A mim, sim —Tamara o olhou aos olhos—. Penso estar contigo de agora em diante, Eric, vá aonde vá. Eu gostaria que fôssemos livres de ir e vir quando quiséssemos, para poder visitar o Daniel de vez em quando. Quero desfrutar de nossa vida em comum. Por favor, não permita que sua irritação a estrague antes inclusive de que tenha começado.

     Suas palavras esfriaram a raiva de Eric como se fossem água gelada. Tamara tinha razão, e embora seguia pensando que Saint Claire era um sádico, sabia que ela o amava. E quanto a Curt Rogers, já planejaria um castigo apropriado. Não tinha sentido discutir com a Tamara. Não possuía uma só célula vingativa em seu formoso corpo... exceto no referente a esse menino, Jamie. E isso era estranho.

     —Quanto à grade e à porta —disse, intuindo a preocupação da Tamara por sua segurança— posso fazer umas ligações e ter aqui uma equipe pela manhã.

     —Mas Curt já entrou uma vez, Eric —protestou ela.

     —Então, instalarei uma linha direta com a polícia. Um alarme que salte assim que quebrem as medidas de segurança. Detesto ter que depender deles, mas só será necessário até que... —interrompeu-se e olhou a Tamara de soslaio— até que me ocorra algo melhor. Enquanto isso, por que não vamos à delegacia de polícia para dar sua declaração? Quanto mais cedo o fizermos, mais cedo voltaremos. Tinha tantos planos para esta noite...

     Quando Tamara e Eric retornaram da delegacia de polícia, a casa tinha recuperado a ordem, dentro do possível. Roland tinha deixado um alegre fogo na chaminé, e um vaso descansava no centro da habitação, com doze graciosas rosas brancas. De um caule pendurava um cartão. Tamara a levantou e leu: “Em agradecimento por seu heroísmo desta manhã. Roland”.

     Moveu a cabeça e se voltou para ouvir os sons de música que enchiam a sala.

     —Seu amigo é muito cavalheiro.

     —Você inspira esse sentimento — disse. Ela sorriu e correu a seus braços.

     — O que me diz desses planos que mencionou antes?

     —Pensei que poderia querer dançar.

     Tamara inclinou a cabeça para trás e beijou seu queixo.

     —Sim.

     —Mas não poderia dançar contigo vestida assim.

     Tamara franziu o cenho, separou-se dele e olhou seu jeans e o moleton.

     —Reconheço que não estou muito elegante esta noite, mas...

     —Tenho uma surpresa para ti, Tamara. Vem —a conduziu escada acima até o quarto que já conhecia e a deixou esperando na soleira enquanto acendia duas lamparinas. Voltou-se para o armário e o abriu com um gracioso movimento.

     Picada pela curiosidade, Tamara se aproximou enquanto ele introduzia a mão nos escuros limites e retirava com cuidado um objeto. O coração de Tamara deu uma pequena parada. Era um vestido desenhado para Cinderela, em reluzente tecido de cor jade. O decote tinha forma de coração e a saia era bem rodada. O cetim verde estava sujeito a intervalos com minúsculos laços brancos para deixar aparecendo o encaixe branco inferior.

     Tamara abriu a boca, mas não pôde articular nenhuma palavra.

     —Era de minha irmã —  disse Eric—. Estava acostumada a usar espartilhos, mas não era tão miúda como você. Ficará bem em você sem espartilho.

     Tamara tirou o olhar do vestido, comovida.

     —De sua irmã... Jaqueline. E o guardou todo este tempo.

     —Suponho que sou um pouco sentimental. Usava este vestido na noite que me acompanhou a uma interpretação do jovem Amadeus em Paris.

     — Do Mozart? —inquiriu Tamara, impressionada.

     —O mesmo. Mas não a agradou muito —sorriu—. Eu gostaria de vê-la com este vestido, Tamara.

     —Mas não... É tão importante para você... Céus, deve ter custado uma fortuna conservá-lo tão bem.

     —Nada é mais importante que você, amor. Me fará feliz vê-lo em você. Faz por mim.

     Assentiu, e Eric saiu do quarto. Tamara tirou sua roupa, inclusive o sutiã, já que as curvas superiores de seus seios ficariam expostas com o decote ousado. Tocou o vestido com reverência e o pôs com supremo cuidado, temerosa de rasgá-lo. Introduziu as mãos nos buracos dos braços e o ajustou nos ombros.

     — Eric!

     Retornou, e ela o esperou de costas. Sem dizer nada, Eric atou os laços. Deu dois passos atrás e Tamara se voltou devagar. Com o olhar cintilante de emoção, contemplou-a de cima abaixo. Piscou e moveu a cabeça.

     —Parece uma miragem Tamara. Muito formoso para ser real. Temo que desapareça se eu piscar.

     — Ficou bom, de verdade? —apertava-lhe, e levantava tanto seus seios que quase saiam do decote.

     Eric sorriu, deu-lhe a mão e a fez voltar-se para as portas do armário, que seguiam abertas. Tamara não tinha reparado nos espelhos interiores, mas não pôde evitar conter o fôlego. Não era Tamara Dey a do reflexo, a não ser uma beleza de cabelo negro do século dezoito.

     Não podia dar crédito à transformação. E o vestido! Parecia mais a uma obra de arte que a um objeto. Olhou ao Eric com gratidão, depois, ficou imóvel e voltou a olhar para o espelho.

     — É verdade! Não tem reflexo!

     —Uma raridade que intento resolver, amor —fechou as portas e deu sua mão—Agora, quanto ao baile...

     Conduziu-a ao salão, apertou um botão e a sonata de piano cessou bruscamente. Um momento depois, pelos alto-falantes soou um minué. Eric se voltou para ela, tirou um pé e fez uma reverência formal. Tamara riu e fez uma profunda reverência, como as que se viam nos filmes. Deu a mão e a ajudou a levantar-se.

     —Me olhe enquanto giramos — indicou momentos depois—. Os olhos são tão importantes para o baile como os pés.

     Cravou o olhar nele e tentou seguir o ritmo enquanto dava outra volta.

     —Seguro que dançaste com todas as jovens bonitas de Paris.

     —Nem muito menos — Eric sorriu ligeiramente—. Sempre detestei dançar —levantou sua mão por cima de suas cabeças, pôs a outra nos seus glúteos e a apressou para que girasse sob seus dedos entrelaçados—. Possivelmente faltava a parceira ideal.

     —Entendo perfeitamente. Nunca gostei de dançar, nem sequer no segundo grau —disse Tamara, e se deteve bruscamente.

     —Quebrou o ritmo. Teremos que começar de novo.

     —Não, acredito que agora é minha vez de ser a professora —se afastou dele e correu ao aparelho de som, desligou o cd e mudou para o rádio. Trocou de emissora até que ouviu a música familiar dos Righteous Broüiers—. Perfeito —retornou junto ao Eric, rodeou seu pescoço com os braços e apertou seu corpo contra o dele tanto como o permitia o vestido—Assim é como dança minha geração... quando encontram o parceiro ideal.  Rodeie minha cintura com as mãos e me aperte contra ti —Eric obedeceu, e ela apoiou a cabeça em seu ombro e, muito devagar, começaram a balançar-se ao ritmo do Unchained Melody.

     —Seu método tem suas vantagens. Isto é tudo? Aprende-se facilmente

     —Bom, há variações —para demonstrar-lhe Tamara voltou o rosto para ele e acariciou seu pescoço com os lábios. Ele deslizou as mãos para baixo até rodear seus glúteos. Depois, mordiscou o lóbulo da sua orelha — Aprende rápido —comentou.

     —Tenho uma professora excelente —repôs Eric. Levantando a cabeça, beijou seu queixo e, depois, capturou sua boca. A beijou profundamente, deixando-a sem fôlego e morna por dentro. Com as mãos na parte inferior de suas costas, inclinou-se sobre ela e deslizou seus tentadores lábios pela frente de sua garganta para beijar seus seios.

     Ela se inclinou para trás, enredando as mãos no cabelo do Eric. Habilmente soltou o laço e afundou os dedos nas grossas ondas negras. Ele elevou uma de suas mãos para tirar um seio dos limites do decote e aproximar-lo à boca. Lambeu o mamilo com a língua, palpitante e duro como estava, depois, fechou os lábios em torno dele e sugou com força. Tamara não se deu conta de que a tinha apoiado contra a parede até que se chocou com ela. Abriu os olhos, resmungando as palavras apesar dos suspiros de prazer que arrancava de seus lábios.

     —Eric... E Roland?

     —Sabe que não deve interromper —teve que deixar o que estava fazendo para responder, mas retomou rapidamente seu intento de avivá-la. Quando ela apertou seu seio contra a boca do Eric, ele respondeu fechando os dentes sobre o mamilo. Tamara se estremeceu de prazer. Ele a sujeitou contra a parede com o corpo e utilizou as mãos para levantar as volumosas saias para cima, uma tarefa nada fácil. De qualquer jeito, não demorou para tocar a suas coxas nuas e à umidade que se achava entre elas.

     Eric deteve a mão ao não encontrar a barreira de nylon. Tamara não tinha considerado necessário colocar a calcinha, consciente de como acabaria a noite. Moveu os dedos sobre ela, abriu-a e os introduziu dentro, acariciando-a até o frenesi. Quando por fim os retirou, foi só para se livrar de suas próprias barreiras e, depois, seu membro, quente e sólido, roçou sua coxa. Ele deslizou as mãos para as coxas da Tamara e a levantou. Penetrou-a com uma só investida certeira, e Tamara inclinou a cabeça para trás, ficando sem ar. Aquele movimento deixou seus seios mais uma vez ao alcance da boca de Eric e este aproveitou a vantagem.

     Tamara fechou as pernas em torno do corpo dele, os braços em torno de seu pescoço, e cavalgou como um garanhão indômito. Eric a penetrava, segurando seus glúteos como força e puxando ela para baixo a cada investida.  Em poucos minutos, Eric se estremeceu, e ela estava ao limite de um êxtase violento. Ele fechou os dentes em torno do seio, e em lugar de dor, ela sentiu um prazer intenso. Aquela outra classe de clímax a aproximou do êxtase. Eric seguiu penetrando-a até que por fim, todo seu corpo tremeu de prazer e ele emitiu um gemido comprido e lento junto a seu seio.

     Como se não pudesse manter-se em pé, Eric se deixou cair devagar ao chão, arrastando-a consigo. Tombou-a sobre ele, ainda sem separar-se dela. Soltou-lhe o seio e a balançou contra seu peito.

     —meu Deus, mulher —sussurrou junto a seu cabelo—. Me transporta mais alto do que acreditava possível. Aviva-me. Hei-te dito quanto te amo?

     —Sim, em silêncio. Mas não me importaria que me dissesse isso outra vez.

     Acariciou sua pele com os lábios, justo por cima da têmpora.

     —Mais que minha própria existência, Tamara. Não há nada que não fizesse por ti. Morreria por ti.

     Ela se umedeceu os lábios.

     — Verá o Daniel?

     —Isso não trocará nada —respondeu, contraindo a mandíbula.

     —Eu acredito que sim —Tamara levantou ligeiramente a parte superior de seu corpo e o olhou aos olhos—. Significaria muito para mim.

     Eric rodeou sua cabeça com a mão para atrai-la de novo para ele, enterrou o rosto em seu cabelo e inspirou sua fragrância.

     —Se é tão importante para você, eu farei. Quando chegar o amanhecer e retorne a casa do Saint Claire, diga que irei logo depois do anoitecer.

     Tamara procurou suas mãos e entrelaçou seus dedos com os dele.

     —Obrigado, Eric. Funcionará, você vai ver.

         

     Com o céu resplandecendo com o sol nascendo, Tamara apareceu no quarto de Daniel. Este dormia sobre o edredom, completamente vestido, roncando ruidosamente. Havia uma garrafa meio vazia caída sobre o chão, junto à cama.

     Com o cenho franzido, Tamara entrou em silencio no quarto, recolheu a garrafa e o copo e voltou a sair. O que o impulsionava a beber até cair rendido todas as noites? Durante todos os anos que o conhecia nunca o tinha visto beber mais de uma taça ou duas seguidas. Jamais o havia visto bêbado. Algo parecia estar consumindo-o, e não era só saber que ela estava passando todas as noites com seu inimigo de toda a vida.

     Afastou aquele pensamento preocupante de sua cabeça, decidida a concentrar-se só nos bons momentos que estavam por chegar. Aquela noite, Daniel e Eric se encontrariam. Não tinha dúvidas de que, com o tempo, seriam amigos. E Curt repensaria. Possivelmente tivesse perdido a cabeça um tempo, mas era um homem inteligente. Reconheceria a verdade quando a tivesse na sua frente.

     Mergulhou em um banho fumegante e aromático. Pensava lavar-se, vestir roupa limpa e retornar à casa do Eric para ver se estavam arrumando seu sistema de segurança. Com o brilho cegador do sol, chegou o esgotamento físico e emocional e dormiu na banheira contra sua vontade, embora foram uns sonhos intranqüilos. Via-se mais velha, com o cabelo branco e o rosto profundamente enrugado. Depois, o sonho mudava e via uma lápide com seu nome gravado nela. Via Eric, dobrado de dor, de pé junto à lápide, rodeado do amargo frio de uma noite lúgubre de inverno.

     Despertou com sobressalto e compreendeu que a água se ficou geada. As imagens do sonho persistiam.

     —Não tem por que ser assim —disse em voz alta, com firmeza. Sabia que estava certa. Eric tinha explicado o que significava ser um Escolhido. Podia ser transformada. A idéia a fez estremecer-se como uma folha em uma tormenta. Podia converter-se no mesmo que ele...

     Levou sua mão à testa. Depois. Pensaria nisso depois. Era mais do que podia processar naqueles instantes. Secou-se vigorosamente e se vestiu depressa. Uma olhada ao relógio da parede apartou qualquer outro pensamento de sua cabeça. Meio-dia! A aquela hora, Curt já haveria...

     Baixou as escadas de dois em dois e ficou paralisada quando chegou ao último degrau e viu o Curt comodamente sentado em uma poltrona tomando café. Daniel, acordado e sentado com o Curt, ficou em pé e deslizou o olhar pelo cabelo ainda úmido da Tamara. Cravou os olhos em seu rosto machucado, e girou em redondo para olhar a Curt com irritação.

     — Foi você que fez isso?

     Curt baixou a vista ao chão.

     —Não sabe como me sinto mal, Tammy. Lamento-o... lamento mais ter te machucado que lamento qualquer outra coisa na vida. Ontem perdi a cabeça. Poderá me perdoar?

     Tamara avançou cautelosamente para ele, escrutinando seu rosto. Não via nada mais que sincero remorso nele.

     —Ainda temo por ti —prosseguiu Curte—.Temo por todos nós, mas...

     —Sei que tem medo, Curt, mas não há motivo. Se Eric quisesse te machucar, já o teria feito. Não percebe? Em todos os meses que levam perseguindo-o, jamais levantou uma mão contra vocês.

     Daniel pigarreou e se aproximou. Tamara advertiu que se barbeou e que se vestiu impecavelmente. Queria ocultar seu problema com a bebida? Como podia acreditar que ela não se daria conta?

     —Devo reconhecer —começou a dizer— que me custa muito pensar que pude estar equivocado todo este tempo, depois dos extremos aos que cheguei —o viu tragar saliva convulsivamente e pestanejar antes de prosseguir—. Como cientistas, Curt, devemos considerar todas as possibilidades. Por essa razão, e porque amo Tamara, vou dar ao Marquand o benefício da dúvida.

     —Não posso acreditar que vá vê-lo, Daniel —resmungou Curte, movendo a cabeça—. Mas, claro, se já decidiu...

     — Ele concordou Tammy? —interveio Daniel.

     Tamara assentiu, olhando com receio a Curt.

     — Esta noite? Aqui, depois do pôr-do-sol? Concordou com tudo? Não estou disposto a me reunir com ele em nenhum outro lugar, apesar de todas as suas garantias.

     —Não precisa de tantas recomendações—replicou Tamara—. Ele mesmo sugeriu isso.

     Curt inclinou a cabeça para trás e ficou olhando o teto. Exalando um suspiro, voltou a olhar os de frente.

     —Está bem, se for inevitável, quero estar aqui.

     —Não! —gritou Tamara, com tanto ímpeto que os dois homens se sobressaltaram—. Depois do acontecido ontem, não quero que te aproxime do Eric.

     Curt a olhou pestanejando, abrindo os olhos com aparente dor.

     — Não confia em mim? — escrutinou seu rosto durante um comprido momento, depois, voltou a suspirar—. Suponho que é compreensível, mas... —deslizou o olhar para o Daniel, embora suas palavras foram dirigidas a Tamara—. Espero sinceramente que esteja certa em respeito ao Marquand.

     —Estou —disse Tamara. Olhou para a porta, recordando sua pressa por ir-se. Queria dar uma olhada às reparações da casa do Eric, embora Curt parecesse ter recuperado a prudência— Tenho que sair um momento.

     Curt agarrou seu braço quando ela se dava a volta.

     —Ainda não há dito que me perdoa por meu estúpido comportamento de ontem —baixou o olhar ao hematoma: depois, voltou a olhá-la aos olhos—. Me revolve o estômago quando penso no que fiz a você.

     Tamara fechou os olhos devagar. Não queria mais raiva nem rancor. Não queria que nada mau interferisse em sua felicidade.

     —foi uma semana tensa, Curt. Compreendo que não soubesse o que fazia. Perdoei quase assim que aconteceu.

     —É uma entre um milhão, Tammy.

     Partiu, decidida a fiscalizar as reparações da casa de Eric.

     Encontrou duas caminhonetes e um carro junto à estrada. Uns homens jovens e musculosos trabalhavam com camisetas, apesar da neve que cobria o chão. Deteve o carro atrás da caminhonete e se acomodou no banco. Não pensava partir dali até que acabassem.

     Em duas ocasiões durante sua guarda, notou que fechava os olhos e se obrigou a abri-los. Saiu e passeou para que o vento frio a mantivesse acordada. Os operários não partiram até passadas às quatro e meia. Ao cabo de uma hora, o sol começaria a baixar e Eric despertaria.

     Decidiu ir-se ela também. Queria ter tempo para vestir algo bonito e fazer algo novo no cabelo antes de que Eric se apresentasse para falar com o Daniel.

     Soube que algo ia mal nada mais que dar uma olhada ao rosto consternado do Daniel.

     — O que acontece? —Correu para ele sem tirar jaqueta nem sacudir a neve das botas—. Diga, o que aconteceu?

     —Estou seguro de que não é nada, Tammy. Não quero que se preocupe até que...

     — Fale logo

     Daniel baixou a vista ao chão.

     —Kathy Bryant ligou faz mais ou menos uma hora.

     —Kathy Bry... — a garganta de Tamara ressecou—. Se trata do Jamie, verdade?

     Daniel assentiu.

     —No colégio afirmam que saiu à hora normal mas... não voltou para casa.

     — Jamie desapareceu?

     Jamie permanecia imóvel, porque era doloroso mover-se. Tinha os braços fortemente atados às costas, uma atadura nos olhos e uma fita adesiva nos lábios. Parecia fita isolante, mas não estava seguro.

     Depois do colégio, foi caminhando para sua casa, como fazia sempre, atravessando a parcela vazia de detrás da loja de ultramarinos. Alguém o tinha sujeito por detrás e tinha posto um pano úmido sobre seu nariz e sua boca. Jamie soube que era clorofórmio. Não tinha reconhecido o aroma nem nada parecido, mas havia visto suficientes filmes para adivinhá-lo.  Emprestava. E o tinha fundo em um poço de escuridão.

     De repente, estava ali, embora ignorava onde. Não podia ver, e logo que podia mover-se. Imaginava que se encontrava dentro de um edifício, pela superfície plana e dura sobre a que estava sentado e recostado. Um chão e uma parede, adivinhou. encontrava-se em um lugar velho, porque percebia o aroma de fechado. Apesar de estar dentro, fazia frio. Soprava a brisa de vez em quando e não sentia calor algum. Alegrava-se de haver fechado a jaqueta e de haver colocado o gorro assim que saiu à rua. Naquele momento, não podia mover-se.

     Só podia pensar. Tinha estado pensando muito desde que havia voltado a si. Sobre tudo, na identidade de seu seqüestrador. Havia sentido uma chama de reconhecimento no instante em que o cara, porque sabia que era um homem, o tinha pego. Tinha estado a ponto de reconhecê-lo quando tinha feito efeito o clorofórmio. Se tivesse consciente de uns segundos mais...

     Mas possivelmente o recordasse mais tarde. Naquele momento, sua principal preocupação era dupla: o estômago vazio e o frio crescente.

     Tamara escutou, aturdida de preocupação, enquanto Daniel relatava os detalhes do desaparecimento de Jamie. Tinha saído do colégio para ir andando a casa às três e meia. Sua mãe tinha percorrido o caminho, igual à polícia, e não tinha encontrado nada. Tinham interrogado a seus amigos, mas não tinham descoberto nada de util.

     Sabia que devia ficar onde estava e esperar ao Eric. Este poderia falar um momento com o Daniel e, depois, explicaria o ocorrido e pediria que adiassem o encontro. Ele a ajudaria a encontrar ao Jamie. Racionalmente sabia que essa era a ação mais sábia. Mas suas emoções não o permitiam. Apesar da serenidade da Kathy Bryant quando tinha falado com ela por telefone e da garantia da polícia de que Jamie apareceria são e salvo em poucas horas. Tamara tinha a terrível intuição de que ocorria algo muito grave. Quando fechava os olhos e tentava se concentrar em Jamie, não sentia nada mais que frio e temor. Devia encontrá-lo em seguida. Jamie tinha frio, medo e se sentia sozinho...

     —Já vejo que quer ir, Tammy —disse Daniel, pondo uma mão suave no seu braço. Ela negou com a cabeça.

     —Não posso. Eric não demorará para chegar, e sei quão nervoso está.

     —Para falar a verdade, pensei que seria melhor para os dois que conversássemos a sós. Você vá procurar ao menino. Eu explicarei ao Marquand assim que chegue.

     Tamara vacilou.

     — Está seguro?

     —Vai —repetiu.

     O abraçou pelo pescoço.

     —Obrigado, Daniel — beijou sua bochecha com lábios trêmulos — Te amo.

     Deu a volta e correu para seu carro, depois, trocou de idéia e pegou o dele, sabendo que não se oporia. Seria mais rápido.

     Kathy havia descrito o caminho que Jamie costumava usar para voltar para casa, assim foi ao colégio, estacionou e a percorreu a pé, procurando qualquer indício do menino.

     Algo a fez parar quando começou a andar pela calçada da mercearia. Levantou a cabeça e esperou. Seus olhos se desviaram por conta própria à entrada detrás da loja, um lance de sarças salpicado de lixo que qualquer pai proibiria seu filho de cruzar. Entretanto, reparou em um caminho serpenteado. Extraiu da bolsa a lanterna que tinha tirado do porta-luvas do carro e, dirigindo o feixe de luz para a trilha, avançou pelo caminho apenas perceptível.

     O vento arrastava pedaços de papel e de lixo. Tamara procurou pegadas, mas não viu nenhuma e compreendeu que, se havia, o vento já as teria apagado. Viu passar pedaços de tecido de cor pastel, e logo uma mancha branca que parecia um pano. Franziu o cenho e seguiu seu trajeto com a luz. Não era um pano, a não ser gaze.

     Seguiu-a até apanhá-la e, quando a recolheu, tomou cuidado de tocar só a esquina do material, e de fazê-lo com as unhas. Girou-a sob o feixe de luz. Não a tinham usado para secar uma ferida. Não havia rastro de sangue em nenhuma parte. Devagar, como um fantasma, o aroma chegou a seus sentidos. Enrugou o nariz.

     —Clorofórmio —sussurrou, mas a palavra se perdeu no vento.**

     Eric subiu os degraus da casa de Saint Claire e apertou a campanhia para anunciar sua chegada. Moveu os pés enquanto esperava, e franziu o cenho ao ver que ninguém abria a porta.  Havia dito a si mesmo repetidas vezes que poderia confrontar qualquer surpresa que Saint Claire pudesse ter preparada. Mesmo assim, em sua mente vibravam as advertências. Voltou a apertar a campanhia.

     —Hei-lhe dito isso, é uma armadilha — Roland saiu de seu esconderijo entre as árvores e se ergueu junto ao Eric.

     —E eu falei que te mantivesse fora da vista. Se ver você, acreditará que viemos  assassiná-lo.

     — Não te dá conta, meu ardiloso amigo, de que ninguém responde a campanhia?

     Eric assentiu.

     —Paciência, Roland. Chamarei a Tamara —franziu o cenho enquanto sintonizava seus sentidos com os dela, mas não percebeu sua presença dentro da casa. O vento trocou naquele instante, e os dois detectaram claramente um aroma de sangue. Eric olhou ao Roland com surpresa, e os dois rodearam a casa correndo, procurando a origem.

     Detiveram-se na parte posterior, perto de uma janela aberta com cortinas que ondeavam para dentro. Sem vacilar, Eric saltou ao batente e depois ao interior, caindo brandamente sobre o chão. O aroma era onipresente, e quando passeou o olhar pela habitação teve que reprimir a comoção. Saint Claire estava caído no chão, em uma poça de seu próprio sangue. Ainda gotejava de um corte irregular na garganta, mas a julgar por seu aspecto, não ficava muito por sair.

     — Decidiu se unir à festa, Marquand? Chega um pouco tarde. Já servimos as bebidas, como pode ver.

     Eric levantou a vista e viu Curt Rogers de pé em um canto nas sombras.

     —Você — grunhiu. Equilibrou-se sobre ele, mas Curt esquivou o primeiro ataque e lançou algo morno e pegajoso no seu rosto. Sangue. E o tinha lançado com um copo. Eric se passou uma manga pela cara automaticamente e sujeitou ao canalha sorridente pelo pescoço. Sentiu uma espetada afiada no abdômen. Não era uma faca, disse-se. Era...”Maldição, uma seringa”.

     Fez uma careta ao sentir a dor, mas se recompôs, retirou a mão do pescoço de Curt e, fechando-a, afundou o punho no seu rosto. Rogers caiu ao chão, derrubando uma mesa e quebrando um abajur. Eric avançou para ele, consciente de que Roland tinha entrado na habitação. Sentiu a mão de seu amigo no ombro.

     — É uma armadilha, acredite. Devemos ir antes de...

     — Não! —Eric se largou e deu outro passo para o homem do chão, que não fez gesto de apartar-se. De repente, Eric compreendeu por que. Sentiu um enjôo. Dobrou um joelho ao mesmo tempo em que Rogers retrocedia como um caranguejo. Notou que nublava sua mente e, de repente, sua cabeça pesava muito para sustentá-la direito.

     Vagamente notou que Roland o sujeitava por debaixo dos braços. Viu que Rogers ficava em pé e que tirava outra seringa de alguma parte. Tentou resmungar uma advertência, mas não pôde. Roland o soltou de uma mão ao ver a aproximação do Rogers e deu um golpe quase com naturalidade. Este saiu voando pelo ar e se chocou contra a estante antes de cair no chão, sob uma avalanche de livros.

     — Drogou-te, Eric! —a voz do Roland parecia muito longínqua—. Luta, amigo. te levante.

     Tentou-o, mas as pernas não o sustentavam. Roland o levantou de novo e o arrastou para a janela. Eric lhe lia o pensamento. Suspeitava que Rogers tinha disposto um exército de agentes da DIP armados com aquela nova droga. Entretanto, em sua mente nebulosa, no único que Eric podia pensar era na Tamara. Por que não estava ali? Poderia suportar a dor de perder ao Saint Claire daquela maneira? Céus! Adorava-o.

     Mas estava ali! De repente, percebeu sua aura. Tentou chamá-la, mas Roland já o estava tirando pela janela.

     —Nnno —balbuciou, sem saber se tinha emitido som algum.

     Ouviu os passos da Tamara, a viu abrir a porta. Levantou a cabeça e tentou vê-la. Conseguiu. Parecia desfocada, uma silhueta imprecisa, mas seus olhares se cruzaram um instante. Depois, Tamara baixou a vista e Eric ouviu seus gemidos agonizantes.

     —Tenho... que ir... com ela.

     Ficou inconsciente enquanto Roland o arrastava.

    

     Tamara sentiu a comoção como um golpe físico. Tinha levantado a vista nada mais ao abrir a porta da biblioteca, sentindo a presença do Eric como uma força magnética sobre ela. Tinha-o visto. Ele a tinha cuidadoso fugazmente, com o rosto manchado de vermelho. Tamara também tinha avistado manchas escarlates em sua típica camisa branca, antes que se afastasse da janela. Baixou o olhar, atraída por uma certeza interior a que não dava crédito. O chiado de horror emergiu de sua garganta por vontade própria quando viu o atoleiro de sangue sob o corpo do Daniel...e o corte na garganta.

     Jogou-se no chão, sem pensar no sangue, e pôs a cabeça em seu colo, acariciando o rosto enquanto a vista nublava pelas suas lágrimas e sua mente ficava aturdida, incapaz de confrontar a realidade. Balbuciou suaves palavras de consolo, alheia ao que dizia.

     Notou as mãos do Curt nos ombros, sujeitando-a com força, sacudindo-a. Este disse algo em tom brusco, mas ela se negou para ouvi-lo ou a reconhecê-lo.

     —Chama uma ambulância —disse Tamara com a língua de trapo própria de um bêbado—. Está ferido. Chama uma ambulância.

     —Está morto, Tamara.

     Mantendo os olhos fechados, ela moveu a cabeça.

     —Está ferido, nada mais. Necessita...

     Curt fechou as mãos a ambos os lados de seu rosto e a inclinou para baixo.

     —Olha-o. Abre os olhos, maldita!

     A crescente pressão a fez obedecer e se surpreendeu olhando uma pele cinzenta, uns olhos entrecerrados e frágeis e o corte irregular do jugular. Começou a ficar sem forças e Curt a pôs em pé assim que deixou de sustentar ao Daniel.

     —Disse-te que isto acabaria assim.

     Tamara pestanejou e o olhou.

     —Viu você mesma,Tammy. Era Marquand. Quando ouvi Daniel gritando dei um chute à porta. Não podia acreditar o que estava vendo. Marquand estava... estava chupando seu sangue. Equilibrei-me sobre ele, mas já tinha cortado a veia... a tinha esmigalhado. Daniel sangrou muito enquanto eu lutava contra Marquand.

     Com expressão hermética, Tamara voltou a olhar para a janela, recordando a visão fugaz que tinha tido do Eric... o sangue no rosto. Não, não era verdade. Não podia ser. Mentalmente, chamou-o gritos, suplicando que dissesse a verdade, que contradissesse a de Curt. Eric não respondeu. Seu silêncio a fez perder o controle e, sentindo-se curiosamente desvinculada, se viu empapada em sangue enquanto seu corpo cedia à loucura. Rasgou sua roupa, arranhou seu rosto com as unhas ensangüentadas, puxou seus cabelos e gritava como uma possessa. Curt teve que dar duas bofetadas à mulher antes de ficasse reduzida a um monte trêmulo no chão. Ele saiu da habitação, mas retornou rapidamente e lhe injetou algo. As proporções do quarto se distorceram e Tamara fechou os olhos.

     Quando os abriu, o brilho inconfundível do sol da manhã entrava delicadamente  por sua janela e cruzava a cama. Sua cabeça palpitava, mas estava sã e levava uma suave camisola de algodão branco. Seu rosto doía, e ao olhar-se no espelho viu outro machucado púrpura que combinava com a da mandíbula. Movendo a cabeça, soltou o espelho de mão e se levantou da cama. O golpe o tinha dado Curt para acabar com sua histeria. Mas nada daquilo era real, não tinha ocorrido de verdade...

     Em silêncio, Tamara saiu pela porta e baixou as escadas. Durante todo o caminho, não deixava de pensar que tinha sido um sonho, uma ilusão. Deteve-se diante das portas duplas da biblioteca de Daniel e as abriu. Seus olhos se posaram em seguida no tapete do centro. Percebeu um aroma intenso e metálico ao tempo que reconhecia as manchas de sangue e via a silhueta do corpo do Daniel marcada com tinta.

     — Tammy?

     Voltou-se para o Curt, sentindo saudades de seu atordoamento. Por que não gemia de dor? Daniel tinha morrido.

     —Céu, não quero que seja consumida pela culpa. Não podia saber que Marquand tinha estado te utilizando desde o começo. O muito canalha devia havê-lo planejado faz meses. Até o Daniel acreditou.

     “Verdade.” Pensou Tamara. “Eric não a tinha amado, tinha-a seduzido. Tinha-a utilizado para chegar ao Daniel e assassinar brutalmente a um ancião indefeso. Virtualmente, tinha o pego fazendo, não?”

     “Não, não é possível. Não posso acreditar... Não penso acreditá-lo”.

     —Terá que resolver isto com rapidez e delicadeza —prosseguiu Curt, alheio a confusão de pensamentos da Tamara— A DIP não quer que a polícia local fareje por aqui.

     Tamara pestanejou, procurando um pensamento racional em seu cérebro.

     —Mas se tiver sido assassinado.

     —Constará como um enfarte.

     Tamara voltou a olhar o tapete ensangüentado e moveu a cabeça.

     — Um enfarte?

     —Nossa equipe de forenses se ocupará de Daniel. Vão cremá-lo esta manhã... nas instalações, assim que Rose Sversky dê uma olhada. Celebraremos o funeral esta tarde.

     Tamara franziu o cenho à menção da chefa da equipe forense da DIP. Os pacientes da doutora Sversky se alojavam em um laboratório frio e subterrâneo. Fechou os olhos ao imaginar ali ao doce Daniel.

     —Sinto te deixar sozinha. Tammy, mas há muitas coisas que fazer. Devemos atuar depressa para que ninguém faça perguntas. Se escapar os boatos, Byram será um circo. A verei as duas no Saint Bart para o funeral.

     O telefone começou a soar enquanto Tamara tentava digerir o que Curt estava contando. Este se voltou para o salão, em lugar atender o da biblioteca.

     —Não entre aqui Tammy. Esta tarde virá a equipe de limpeza.

     Sim, pensou Tamara. A velha equipe de limpeza da DIP. Quando terminassem, não poderiam encontrar uma só célula sangüínea com um microscópio. Mais que limpar, apagavam rastros mas, que diabos...?

     A voz do Curt rasgou a nuvem negra que envolvia seu coração.

     —Não, senhora Bryant. Tamara não está em condições de ficar ao telefone, mas passarei...

     Correu para ouvir o nome da Bryant e arrancou de Curt o telefone da mão antes de que este pudesse terminar a frase. Como podia ter esquecido do Jamie, apesar do ocorrido?

     — Kathy? Estou aqui. Não há...? Não? —suspirou, desolada, ao descobrir que Jamie seguia desaparecido — O encontrarei, Kathy, prometo isso. Ligarei depois, de acordo?

     Fechou os olhos e permaneceu imóvel um comprido momento depois de desligar. Aquele dia, faria o possível por encontrar ao Jamie Bryant. Aquela noite, iria ver o Eric e escutaria o que tivesse que dizer. Não acreditaria que tinha matado ao Daniel até que o ouvisse de seus lábios.

     Curt estava detrás dela quando se dirigiu novamente à escada.

     —Assim, para quem quer que o pergunte, foi um enfarte. Não o esqueça. As únicas pessoas que conhecem a verdade são Hílary Garner, que veio e me ajudou a te colocar na cama, e Milt Kromwell, o superior do Daniel. E, é obvio, a doutora Sversky. Seguro que está bem?

     Tamara assentiu, quão único desejava era poder concentrar-se na busca do Jamie. Estava acima, em seu quarto, vestindo-se quando o carro do Curt se afastou pelo caminho. Colocou a mão no bolso da jaqueta e assentiu ao apalpar o pedaço de gaze.

     Jamie sabia que era de dia porque sentia que a luz do sol esquentando seu corpo. Menos mal que tinha o saco de dormir. Teria congelado se não tivesse sido por ele. Seu seqüestrador tinha aparecido em metade da noite com o saco e o tinha abafado com ele. Também tinha levado um sanduíche de presunto, uma xícara de sopa de frango e um pouco de chocolate quente. Tinha soltado suas mãos para que pudesse comer, mas não tinha tirado a atadura. Tinha tirado a fita da boca com tanta brutalidade que parecia que tivesse arrancado sua pele. Depois, tinha aproximado algo frio e cilíndrico à sua têmpora e com voz rouca e distorcida tinha murmurado ao ouvido:

     —Um só movimento em falso e explodo a sua cabeça. Entendido, menino?

     Jamie tinha assentido com força. Acreditava sinceramente que Curt Rogers era capaz de atirar. Qualquer homem capaz, de bater em uma mulher como Curt tinha batido em Tamara não o pensaria duas vezes. E sabia que era Curt. Não o tinha visto nem o ouvido falar com sua verdadeira voz, mas sabia que era ele. Assentiu como um bom refém e se tomou a sopa sem vê-la. Pôde fazer suas necessidades em um balde antes que voltasse a amarrar suas mãos e pôr a fita nos lábios.

     “Deus, detestava aquela fita”. Curt havia dito que retornaria pela manhã, e Jamie pensava esperá-lo. Tinha um plano. Não era grande coisa, mas era melhor que nada.

     Não teve que esperar muito. O sol não levava muito tempo brilhando quando Curt se apresentou com outra xícara de chocolate quente e um sanduíche de queijo. Não disse grande coisa, e Jamie não teve tempo para fazer perguntas. Comeu, fez suas necessidades e permaneceu tranqüilamente sentado enquanto voltava a atá-lo. Mas quando Curt se foi, Jamie tinha os sentidos afiados como uma faca. Escutou com cuidado, memorizando o ruído de quão pisadas atravessavam o porão. Esperou então, só para assegurar-se de que Curt não voltaria. Depois, arrastou-se pela habitação na direção em que Curt se foi. Deslizando-se sobre os quartos traseiros, flexionava os joelhos e se impulsionava cravando os calcanhares no chão. Avançou bastante até que se chocou contra uma parede.

     Ficou sentado, confundido. Depois, deduziu que encontraria uma porta. Uma porta, não, já que não tinha ouvido que Curt abrisse nenhuma. Deu-se a volta como pôde para apoiar as costas na parede e poder deslizar as mãos por ela arrastando-se de lado. Pensou que tinha desgastado as calças e que havia um montão de rasgões no traseiro quando por fim as mãos tocaram espaço vazio. A soleira! Tinha encontrado!

     Estava tão emocionado que nem sequer se incomodou em dar a volta. Fez força com os pés e saiu pela porta de costas... para o nada.

     “Não é uma soleira, idiota, a não ser uma escada. Maldição, uma escada...”    

     Rose Sversky era uma mulher minúscula de cabelo curto branco e óculos de fundo de garrafa. Dava a impressão de estar mais cômoda cortando bolo que corpos. Tamara estava sentada em uma cadeira de assento duro entre o caos organizado de cromo, aço e mesas cobertas com lençóis, dolorosamente consciente de que uma dessas mesas estava o corpo de Daniel fazia somente algumas horas. Possivelmente minutos.

     A doutora Sversky pegou o pedaço de gaze, naquele momento protegido por plástico.

     —Tinha razão com relação ao clorofórmio. Por desgraça, a gaze é um mau receptor de rastros. Não pude achar nenhum rastro —Tamara exalou um fundo suspiro, mas Rose não tinha terminado—. Há um leve rastro de sangue. Certamente, do menino, embora não posso estar segura sem um elemento de comparação. Sabe a que grupo sangüíneo pertence?

     —Não —Tamara franziu o cenho—. Deve constar em seus arquivos, mas será mais fácil perguntar-lhe a sua mãe. Direi-lhe isso. Mas tem porque, eu não vi sangue.

     —Sem um microscópio, difícil. Não era mais que um rastro. Possivelmente se mordeu a língua quando o imobilizaram —permanecia sentada em silencio depois do enorme escritório, depois, alargou a mão para cobrir a da Tamara—. Sinto que esteja passando por tudo isto. Daniel era um bom homem. Sentirei sua falta.

     Tamara pestanejou. Não tinha querido pensar no Daniel... ali. Entretanto, não pôde evitar posar o olhar na mesa mais próxima.

     —vai certificar sua morte, verdade?

     —Sim, já o tenho feito antes e suponho que, enquanto siga na DIP, farei mais vezes.

     — Não te incomoda trocar a causa de uma morte tão violenta por um simples enfarte?

     Rose franziu o cenho.

     —Em realidade, a não ser que alguém já tenha ouvido o rumor, faremos passar por um acidente —Tamara levantou a vista e Rose seguiu falando—. Sempre é melhor atê-lo mais próximo à verdade. Quando vi o golpe na parte posterior da cabeça, pensei que poderíamos usá-lo como causa da morte.

     Tamara ficou olhando.

     —Não me falaram que nenhum golpe na cabeça.

     Sversky se tirou os óculos e se beliscou o nariz.

     —Espero que te tranqüilize sabê-lo. Golpearam-no com um objeto sólido para deixá-lo inconsciente antes de cortar a jugular. Certamente, nem sequer o sentiu — moveu a cabeça—. Nunca tinha feito uma autópsia a uma vítima de um vampiro. Não é como eu acreditava. Nos filmes sempre se vêem dois buracos bem definidos no pescoço das vítimas. Isto era... —interrompeu-se e moveu a cabeça—. Mas será melhor que não conte isso a você.

     Não, pensou Tamara, já o tinha visto. Levantou-se devagar, agradeceu a Rose Sversky e se foi. Enquanto descia no elevador se tocou as minúsculas marcas do pescoço. Apenas se notavam. Franziu o cenho quando as portas se abriram na garagem e caminhou para o Cadillac, ainda aturdida. Continuando, dirigiu-se à igreja do centro do Byram e se sentou no primeiro banco para escutar o breve sermão.

     Quando terminou, permaneceu sentada com um sorriso plastificado, aceitando as condolências de todos os assistentes. Quase todos, colegas de trabalho do Daniel, vieram.

     Quando terminou, Curt se aproximou e, tomando as mãos, pô-la em pé.

     — Vai a casa? —perguntou Tamara assentiu.

     —Estou esgotada. Ainda não digeri o ocorrido.

     — Que tal vai a busca do menino?

     —Não vai — suspirou—.vou pedir ao Kromwell que fale com o FBI. Tem amigos lá.

     —Eu também — se apressou a dizer Curt—. Por que não me deixa ajudar?

     Tamara entreabriu os olhos. Seu sorriso parecia um tanto falso. Claro que o dela, certamente, também.

     —Está bem, agradeço — tragou a saliva ao sentir que crescia sua intranqüilidade—. Foi muito amável ao ficar em casa ontem à noite, Curt. Mas se não te importa, eu gostaria de estar sozinha. Necessito... esclarecer minhas idéias.

     Curt assentiu.

     —me chame se necessitar — se inclinou, deu um fugaz beijo nos seus lábios e apertou seus ombros.

          Ela o viu partir e vestiu a jaqueta. Dirigia-se à porta quando a deteve uma mão suave. Voltou-se, e ao ver o olhar compassivo da Hilary, rompeu a chorar. Hilary a abraçou com afeto.

     —Já sabe que se necessitar algo...

     —Sei — Tamara assentiu e se secou o rosto com a mão impaciente.

     — averiguaste algo sobre o menino?

     Tamara olhou a Hilary aos olhos e combateu a nova quebra de onda de lágrimas.

     —Ainda não. Encontrei um pedaço de gaze com restos de clorofórmio no lugar em que foi visto a última vez. Havia um rastro de sangue, e poderei confirmar que é dele assim que pergunte a sua mãe qual é seu grupo sangüíneo.

     — Quer dizer que não sabe qual é o grupo sangüíneo do Jameson Bryant?

     —Não, não sei. Suponho que está nos arquivos, mas...

     —E tanto que sim —corroborou Hilary—, Foi uma das primeiras coisas que se anotaram sobre ele. Tem seu mesmo grupo sangüíneo, Tamara. O Belladonna. Não posso acreditar que não soubesse.

     — Belladonna? —Tamara não dava crédito ao que ouvia—. Hilary, como sabe?

     —Fui eu quem recebi a ordem de introduzir todos seus dados nos computadores da DIP com o nível um de segurança. Lembraque me pareceu um nível bastante alto para uns simples relatório médico, mas...

     — Quem deu a ordem?

     —Não sei —Hilary franziu o cenho—. Ouça, não deveria estar te contando tudo isto, Tammy. Enfim, é um nível um, e seu nível de segurança...

     —Não é o bastante alta — disse Tamara devagar. partiu então, deixando a Hilary perplexa. Subiu ao carro e se afastou da igreja sem logo que dar atenção ao tráfico—Tem o antígeno —balbuciou para si—. Terá também a linhagem? É obvio, por isso seu vínculo psíquico é mais forte comigo que com qualquer outro.

     A pessoa que tinha encarregado os relatórios médicos do Jamie os tinha classificado deliberadamente acima do seu nível de segurança para que esta não soubesse.

     —Mas eles sabiam. Sabiam que estávamos unidos e que, se Jamie se metia em confusões, eu iria buscá-lo — pestanejou depressa—. Seqüestraram ao Jamie para me tirar da casa... E assassinar ao Daniel.

     Eric jamais poderia fazer mal a um menino. Além disso, ao Jamie o tinham seqüestrado a plena luz do dia. Eric não tinha assassinado ao Daniel, mas alguém o tinha feito... alguém que tinha acesso aos dados de nível um e que queria que parecesse a obra de um vampiro.

     —E alguém que sabia que Daniel ia ver o Eric — sussurrou Tamara. Mordeu o lábio— Curt?

     Esteve a ponto de passar a entrada da casa. Freou diante da casa, saiu correndo e fechou a porta ao entrar.

     —meu Deus, será certo? Estaria Curt o bastante furioso para assassinar a Daniel? —levou-se os dedos às têmporas—. Que diabos fez com o Jamie?

     Conteve um soluço e subiu as escadas até o quarto do Daniel. Encontrou suas chaves em questão de minutos e baixou de novo, com elas tilintando na mão. Não vacilou ante a porta do porão. Inseriu a chave, girou-a e empurrou a porta.

    

     Jamie moveu a cabeça para clarear a mente mas aquilo produziu uma dor dilaceradora. Ficou inconsciente... embora ignorava quanto tempo. Estava caído de costas e os braços, que ainda estavam amarrados nas costas, estavam insensíveis. Tentou incorporar-se, mas uma dor sem precedentes atravessou seu peito. Pensou que o rasgaria ao meio. Deteve-se com o corpo meio levantado, mas aquela postura era ainda mais dolorosa e, apertando os dentes, incorporou-se ainda mais. Sentiu um grande alívio ao apalpar uma parede a sua direita. Recostou-se nela e permaneceu imóvel até que a dor diminuiu.

     Quando o sangue escorregou sobre seus braços, sentiu uma ardência insuportável. Teria gritado se tivesse podido, mas a fita permanecia sobre seus lábios. Sentia algo estranho nos pulmões, e era algo mais que a terrível pontada que experimentava cada vez que inalava. Notava-os igual a quando nadava e entrava um pouco de água pelo nariz. Sentia um desejo contínuo de tossir, mas o atemorizava ceder a ele. Se tossia, com a fita sobre os lábios, engasgaria até morrer... sobre tudo, se essa estranha sensação dos pulmões era o que ele pensava. Acreditava ter um algo fundo no peito: uma faca, uma madeira de ponta afiada contra a qual tinha se chocado ao cair, algo assim. E acreditava que o que tentava deslizar-se por sua garganta era sangue. Se fosse isso, tinha se colocado em uma boa confusão.

     Tamara jogou o arquivo no chão, contrariada, e se voltou com intenção de abandonar o pequeno escritório que tinha descoberto. Nem sequer tinha chegado ao laboratório propriamente dito, que devia encontrar-se no outro lado da porta com o cadeado. Já tinha descoberto suficientes revelações. Nos arquivos se encontrava o que Daniel tinha classificado como “estudos práticos”. Em realidade, eram relatos detalhados da captura e subseqüente tortura de três vampiros.

     Dois tinham sido apanhados em 1959, pelo Daniel e seu sócio naquele tempo, William Reinholt. Descreviam aos dois como “exemplares jovens e, portanto, menos poderosos do que tinham pensado a princípio”. Tinham sido “desprovidos de bastante sangue para debilitá-los, e assim garantir nossa segurança. Entretanto, foram incapazes de suportar a perda e expiraram durante a noite”. Outro estudo era o de uma mulher que se fazia chamar Rhiannon e que “não colaborava nada, lançava insultos constantemente”. Devido aos dois casos anteriores, extraíram menos sangue, deixando-a muito forte.

     Daniel tinha retornado ao laboratório depois de  horas de “testes e estudos” e tinha encontrado a seu companheiro morto, com o pescoço quebrado, as barras arrancadas da janela e a “espécie”, desaparecida.

     Tamara se alegrava pela misteriosa Rhiannon, e sentia desejos de chorar pelo homem que Daniel tinha sido. Um monstro, tal como ele mesmo tinha confessado.

     Seguiu passando os arquivos do armário. Não havia nenhum com o nome do Jamie, mas se deteve o tocar um com seu nome. Tirou-o devagar. Em poucos momentos, desejou não havê-lo feito. Depois de passar várias páginas, deteve-se o ver os nomes de seus pais, e percorreu com o olhar uma única passagem antes de que alagassem seus olhos de lágrimas.

     Decidiram que teriam que conseguir a custódia desta menina. Ela será a isca para o Marquand e, possivelmente, para outros espécimes imortais. Os pais, como era de esperar, negam-se a colaborar. Entretanto, são dispensáveis, e de menos valor que as incontáveis vidas que se salvarão se este experimento dá fruto. Escolheu-se um vírus muito pouco conhecido. Seu âmbito de ação será muito restringido. A morte terá lugar em menos de vinte e quatro horas.

     —Não —sussurrou Tamara—. meu Deus, não... —o arquivo caiu de seus dedos e as folhas se dispersaram pelo chão. Tamara agarrou a borda da gaveta aberta, com a cabeça inclinada sobre ela. Daniel tinha matado a seus pais.

     Ofegando, obrigou-se a abrir os olhos. Pestanejou para conter as lágrimas e viu a culatra lustrosa de uma pistola que sobressaía por debaixo dos arquivos da gaveta. Justo quando se dispunha a tirá-la, uma mão se fechou sobre seu ombro e a jogou para trás. Tamara girou em redondo.

     — Curt!

     Olhou-a de cima abaixo e depois, reparou nas gavetas abertas e arquivos dispersados.

     — estiveste explorando um pouco Tammy?

     Por que tinha posto em duvida ao Eric, embora só fora um segundo? Perguntou-se em silêncio. Por que não tinha ido diretamente a sua casa ao compreender que Curt tinha matado ao Daniel? Ele a teria ajudado a encontrar Jamie. Mas era muito tarde para lamentar-se. Ainda ficava uma hora de luz e seguia sem saber onde estava o menino.

     — O que tem feito com o Jamie, Curt?

     Ele arqueou as sobrancelhas.

     —estiveste ocupada. O que te faz pensar que fui eu?

     —Não o penso, sei. Onde está?

     —a salvo. Não se preocupe, eu não faria mal ao menino... a princípio. Eu gostaria de estudá-lo um pouco. Mais adiante. Quando tiver terminado contigo e com o Marquand. Tranqüiliza-te isso?

     Tamara moveu a cabeça com tanta força que seu cabelo ondeou em torno dela como uma nuvem escura.

     —Se fizer mal a ele, Curt, juro que...

     —Seria melhor que se preocupasse contigo, Tammy — deu um passo para ela e Tamara retrocedeu. Curt deu outro passo, e ela também. Rapidamente compreendeu que a tinha feito retroceder até a porta com cadeado. Ficou rígida. Curt tirou uma chave do seu bolso e a passou.

     —Abre-a.

     —Não.

     —Quer ver o pirralho, não?

     — Jamie? —Lançou um olhar à porta—. Está aí dentro?

     — Onde eu iria escondê-lo?

     Tamara sentiu um alívio enorme e arrebatou a chave, inseriu-a na fechadura e a girou. Tirou o cadeado e empurrou a porta. Se conseguisse ver o Jamie, pensou, não passaria nada. Não demoraria para anoitecer e Eric iria buscá-los. Entrou na habitação às escuras.

     — Jamie? Sou Tammy, estou aqui. Tudo bem... Jamie?

     A porta se fechou e a Tamara tomou um choque quando ouviu o ferrolho. Pulsando um interruptor, Curt acendeu uma luz tão cegadora que a fez pestanejar. Percorreu o local com o olhar, convencida de que Jamie não estava ali. Havia uma mesa no centro, com correias para os punhos, tornozelos e cabeça. Também uma bandeja com instrumentos reluzentes e, acima, um abajur cirúrgico. Tamara tragou saliva ao sentir o pânico crescer em seu interior. Aquela era o local em que tinham morrido os dois jovens vampiros à mãos do Daniel, e onde Rhiannon tinha sido torturada até fazê-la gerar uma raiva assassina antes de fugir.

     Voltou-se para Curt quando o ouviu aproximar-se, e este agarrou seus ombros sem piedade. Empurrou-a para trás, sem se importar que desse chutes nas suas pernas. Quando suas costas entraram em contato com a mesa, inspirou.

     —meu Deus, Curt, o que você está fazendo?

     Juntou seus braços, sustentou-os em uma mão e pegou uma garrafa. Tirou a tampa com os dentes e a aproximou do seu nariz. Ela apartou a cabeça do aroma familiar, mas não demorou a sentir o enjôo provocado pelo clorofórmio. Curt aproveitou sua debilidade para tombá-la sobre a mesa e, logo depois, encontrou-se com os braços e os pés atados. Pestanejou para dissipar o enjôo, e apartou o rosto rapidamente quando Curt aproximou uns sais no seu nariz.

     —Isso. Não vai desmaiar agora. Estragaria a experiência. Pode chamá-lo mentalmente, não?

     Tamara franziu os lábios e se negou a olhá-lo. Ele a obrigou.

     —Me responda Tammy. Arrumado a que pode. Logo o averiguaremos, verdade? —leu corretamente a expressão da Tamara e sorriu — Acredita que Marquand me assusta, Tammy? Quero que o chame. Quando chegar, eu estarei esperando.

     —Não penso fazê-lo.

     Curt sorriu devagar e Tamara sentiu um calafrio pelas costas.

     —Acredito que o fará — disse, e se inclinou sobre ela para atar a correia da frente, deixando-a virtualmente paralisada — Acredito que gritará seu nome quando eu tiver terminado — alargou a mão para a bandeja e levantou um bisturi reluzente. Olhou-o um momento e moveu o braço para consultar seu relógio— Dentro de uns vinte minutos, carinho.

     Eric ficou completamente rígido no caixão ao sentir a onda de dor. Abriu os olhos de par em par e empurrou a tampa. No momento seguinte, estava em pé, com a testa franzida pela concentração. Concentrou-se na Tamara. Chamava-a. Esperou uma reação, mas não sentiu nenhuma.

     Durante um instante fugaz se perguntou se Tamara teria acreditado no que Rogers tinha pretendido fazê-la acreditar: que ele tinha assassinado o seu amado Saint Claire. Desprezou a idéia imediatamente. Ela o conhecia muito bem, e sabia que só precisava olhar em sua mente para conhecer a verdade. Não acreditaria em sua culpabilidade sem lhe dar a oportunidade de explicar-se. Por isso tinha esperado encontrá-la em sua casa aquela noite. Em troca, só percebia vazio. Voltou a chamá-la, mas seguia sem receber resposta.

     Roland se levantou com sua elegância habitual, mas quando olhou a seu amigo Eric viu uma tensão pouco familiar em seu rosto.

     — O que ocorre?

     —Não estou seguro —respondeu Eric.

     — tiveste notícias da Tamara?

     —Não responde a minha chamada.

     —Então, vá vê-la. É possível que esteja desconcertada depois do de ontem à noite, mas aceitará a verdade assim que a conte. Se... —deteve-se e inclinou a cabeça, como se estivesse escutando— Maldição!

     Eric arqueou uma sobrancelha, esperando uma explicação, mas Roland se limitou a mover a cabeça.

     —Ainda não estou seguro do que acontece. Sairei um momento, para decifrar o mistério. Poderá arrumar isso sozinho?

     —Sim, é obvio, mas...

     —Bem. Saúda nossa garota de minha parte.

     Roland girou sobre seus calcanhares e se foi, deixando ao Eric pasmo. Encolhendo-se de ombros, este voltou a concentrar-se na Tamara.

     “ Por que me ignora, meu amor?”

     Não percebia nenhuma resposta, depois, experimentou outro espasmo de dor que deixou rígida suas costas. Pestanejou rapidamente ao compreender que a dor devia ser dela.

     “Tamara, se te negar a responder, irei vê-la. Devo saber o que...”.

     “ Não!”

     A resposta da Tamara ressonou em sua cabeça.

     “Está sofrendo, amor. O que te passou?”

     “Nada. te afaste, Eric. Se me quiser, te afaste”. De novo, uma dor tão intensa que quase o fez cair de joelhos, e soube que alguém a estava fazendo sofrer. Rogers?

     —Eu deveria tê-lo matado na primeira vez que  o vi.

     Virtualmente, arrancou a porta das dobradiças com a pressa de chegar a ela. Sua força sobrenatural o deu a velocidade de um leopardo, inclusive mais. Correu para a Tamara, e teria atravessado a porta principal se um pensamento não tivesse vibrado em sua mente.

     “É uma armadilha, Eric. Se afaste. Por favor, se afaste”.

     Deteve-se, com o coração acelerado, não pelo esforço, mas sim pela raiva. Uma armadilha, dizia. Utilizou a mente para localizar a Tamara e rodeou a casa devagar, procurando outra entrada. Por fim, ajoelhou-se junto a uma janela com barras oculta depois dos arbustos.

     Tamara jazia atada a uma mesa sob uma luz cegadora. Tinha a blusa aberta pelo centro, ao igual ao sustento. Levava uma saia negra e tinha os pés nus. Umas partes de pele gotejavam sangue em distintos pontos de seu torso. Rogers se tinha entretido tomando amostras de pele, compreendeu Eric. Naquele momento, estava empunhando o que parecia ser uma furadeira.

     —Nem sequer assim o chamaste, né Tammy? Bom, guardo outros truques na manga. Não me viria mal uma amostra de medula óssea —pulsou a tecla e a furadeira girou. Levantou o dedo e o aproximou da parte inferior da perna—. O que diz Tammy? O chamas ou a furadeira?

     Tamara estava pálida. Tremia sua mandíbula, mas olhou ao Rogers aos olhos.

     —Morro  — murmurou. Encolhendo-se de ombros, Rogers se cobriu os olhos com uns óculos de plástico e baixou a furadeira. Com um feroz grunhido, Eric fez pedacinhos o cristal e arrancou uma barra. Ao segundo seguinte, estava dentro—. Eric, não! Fuja!

     Eric se equilibrou sobre Curt, que soltou a furadeira e levantou um pouco parecido a uma pistola. Imediatamente, o dardo se cravou no peito. Eric cambaleou para trás, abrindo a boca como um peixe fora da água, e caiu de joelhos. Tirou o dardo do peito e o olhou, depois, reparou na careta triunfante do Rogers. A droga. Esperava uma seringa, não uma pistola. obrigou-se a levantar-se e avançou para o Rogers com passo cambaleante.

     —Morrerá... por isso —ofegou. Deu outro passo e se afundou em um poço sem fundo de neblina negra.

     Roland se movia como uma sombra, percorrendo ruas escuras, detendo-se para escutar, para depois seguir avançando. Aproximando-se cada vez mais do menino. Sua tênue percepção o tinha feito cócegas desde que tinha chegado à casa do Eric. Mas tinha sido tão tênue que apenas a havia sentido. Como era natural, compreendia que os Escolhidos estavam acostumados a conectar unicamente com um vampiro. Ele era o único que tinha recebido o Eric de menino. Outros o teriam reconhecido se o tivessem encontrado, é obvio, mas não o ouviam chamar. Não sentiam a atração.

     Aquele menino chamava a alguém... não ao Roland. Se tivesse estado chamando o Roland, teria sido muito mais singelo. Tal como estavam as coisas, com o mais tênue rastro de sinal e sem que o menino fora consciente de estar transmitindo-a, teria sorte de encontrá-lo a tempo.

     Aquilo era o pior, pensou Roland enquanto se detinha de novo para tentar perceber o sinal. Debilitava-se a cada momento que passava. A certeza de que estava morrendo ocultava a atração como um alarme que ressonasse em sua cabeça. Se pudesse percebê-lo com mais claridade...! Se o moço estivesse alargando esses dedos invisíveis para ele em lugar de outro... alguém que, ao parecer, não estava escutando. Roland não podia acreditar que um de sua espécie pudesse fazer caso omisso dos gritos desesperados de um menino que, possivelmente, morreria antes de que acabasse a noite.

     Eric abriu os olhos e se encontrou preso à mesma mesa que Tamara tinha ocupado com antecedência. Ao contrário que ela, seguia completamente vestido. Sem dúvida, o canalha do Rogers duvidava da efetividade da droga e não queria arriscar-se a morrer. Não queria que Eric despertasse antes que o tivesse imobilizado por completo... como se aquelas correias pudessem freá-lo. As puxou e ficou atônito quando o esforço o deixou débil e inclusive enjoado.

     “Tirou-te sangue, Eric. Por isso está tão débil”.

     A explicação chegou a sua mente pela Tamara, e com ela, uma dor persistente e completa desolação. Curt devia estar na habitação, por isso não tinha falado em voz alta.

     “ O que o canalha fez a você?”

     “Me... tirou pedaços de pele. Também tirou meu sangue. E matou a Daniel. Queria que acreditasse que foi você. E raptou ao Jamie, Eric. Não sei o que tem feito com ele...”

     Seus pensamentos cessaram bruscamente para ouvir que Curt se aproximava. Este se inclinou sobre o Eric.

     — Por fim despertou? A droga não durou tanto como esperava mas, claro, ainda está em fase experimental.

     —Acaba com minha paciência, Rogers.

     —Mas agora mesmo não pode fazer grande coisa para evitá-lo, verdade? Também necessitarei amostras tuas, sabe? um pouco de medula óssea, de fluido cerebral. Depois, veremos quanta luz do sol pode suportar.

     Eric sentiu o terror que experimentava Tamara enquanto Rogers descrevia seus planos em detalhe explícito. Também sentia que os efeitos do narcótico perdiam força.

     —Curt, não pode fazer isso com ele. Pelo amor de Deus, se alguma vez sentiu algo por mim, pare.

     Rogers se separou da mesa. Eric não podia olhar, mas sabia que a estava tocando. Sentiu o estremecimento de repulsa da Tamara e ouviu as gélidas palavras.

     — Ainda não sabe? Nunca senti nada por ti... somente como objeto de estudo. Um meio vampiro Tammy. Isso é o que você é. Só equivale a objeto de análise científica. Sim, possivelmente valha para alguma coisa mais. Penso averiguá-lo antes que tenha terminado contigo.

     Ela soluçou involuntariamente, e Eric lutou com as correias. O movimento fez que Rogers retornasse rapidamente.

     —Mm... Segue muito vivo para meu gosto — disse, e moveu os instrumentos da bandeja. Um momento depois, Eric fez uma careta ao sentir a seringa de injeção que lhe cravavam no braço. Sentiu que a força vital o abandonava lentamente com cada pulso de sangue que emanava no recipiente. Aos poucos momentos, estava enjoado e muito fraco para flexionar os dedos. Estava perdendo a consciência. As pálpebras fecharam, e ouviu gemer vagamente a Tamara:

     —Já basta, Curt. Meu Deus, está matando-o...

     Tamara lutava contra suas ataduras, mas era inútil. Tinha as mãos atadas detrás da cadeira e os tornozelos, sujeitos às patas da cadeira. Todo seu corpo pulsava de dor devido às amostras que Curt tinha tirado de sua pele, e estava fraco pela falta de sangue. Viu como tirava mais ao Eric, e como este empalidecia e ficava sem forças. Por fim, Curt tirou a agulha, levantou as pálpebras do Eric e, iluminando-os com uma lanterna lápis, assentiu, satisfeito.

     Surpreendeu-se quando Curt consultou seu relógio e começou a fechar as venezianas.

     —Será mais seguro trabalhar com ele durante o dia, não, Tammy? —voltou-se para um armário, tirou uma garrafa nova e uma seringa e Tamara se estremeceu automaticamente—. Tranqüila — disse com suavidade—. Quero dormir um pouco. Sei que ele não vai a lugar nenhum, mas devo me assegurar de que você fique quietinha, verdade? —sujeitou seu braço e afundou a agulha com mais força da necessária em sua carne. Tamara ficou rígida, tentando resistir o enjôo que começava. Curt passou a mão pelos seios antes de se afastar. Tamara teria fechado sua blusa se tivesse podido mover os braços. O tato do Curt a fazia vomitar.

     —Odeio você... por isso —conseguiu dizer, antes de sucumbir ao sonho. Deixou cair a cabeça para frente.

     Não sabia quanto tempo tinha passado quando voltou a levantá-la. As frestas das venezianas se viam cinzas, em lugar de negras, como antes, de modo que estava se aproximando o amanhecer.

     Olhou ao Eric. Seguia convexo, tão pálido e imóvel como... Não, não completaria o pensamento. Eric estava bem. Tinha que estar. Tamara fez provisão de forças e saltou com a cadeira para chegar até ele.

     —Eric, acorda. Temos que sair daqui —o que não reagisse o mais mínimo não a desalentou. Alcançou a mesa e se voltou para lhe dar as costas. inclinou-se para baixo e estirou as pernas para levantar a cadeira e, apalpando com os dedos, tocou os dele e os sujeitou.

     — Sente meu toque? Acorda Eric. Solte-me. Vamos, sei que pode. Desperta o bastante para pulsar seu maldito botão oculto, assim pode despertar para afrouxar um simples nó. Nossas vidas dependem disso, Eric. Por favor —inspirou ao notar que ele flexionava os dedos—. Bem, é isso —moveu a mão para que o nó entrasse em contato com as gemas de seus dedos e seguiu falando enquanto ele o desfazia. Sabia que era um esforço terrível. Depois, notou que a correia caía de suas mãos.

     Imediatamente, inclinou-se para soltá-los pés. Ergueu-se, voltou-se para o Eric e soltou as correias dos tornozelos, braços e testa. Inclinou-se e acariciou sua cabeça com a palma.

     —Me diga o que tenho que fazer, Eric — queria ajudá-lo, mas não sabia muito bem como, umas lágrimas ardentes escorregavam por seu rosto e caíam sobre o dele. Eric pestanejou e, por fim, manteve os olhos abertos.

     —Vá — sussurrou— Deixe-Me... — suas pálpebras fecharam.

     —Não faça isso comigo, Eric. Não me deixe.

     Conteve o fôlego quando a lembrança surgiu como uma chama em sua mente. Não era Eric quem jazia na mesa, a não ser Tamara, uma Tamara muito pequena e assustada. Tinha os braços enfaixados e sabia que as ataduras não a ajudariam. Ia morrer, pressentia-o.

     Até que o homem alto e moreno apareceu junto a sua cama. Conhecia seu rosto incluso então. Não sabia como se chamava, mas não importava. Era seu amigo... tinha-o visto outras vezes, até fingindo não reparar nele. Intuía que não queria ser visto e ela não queria espantá-lo. Estava acostumado a aproximar-se dela durante as noites. A fazia sentir-se segura, protegida. Sabia que a queria. Sentia-o, como qualquer um pode sentir o calor de uma chama que se aproxima da mão.

     Alegrava-se tanto de vê-lo aparecer... Mas também a entristecia vê-lo chorar. Ele permaneceu junto à cama um longo tempo, acariciando seu cabelo e sentindo-se muito triste. Tamara queria falar com ele, mas estava muito débil e logo que podia abrir os olhos. Passado um tempo, ele fez algo. Se machucou. Tinha um corte no pulso e o aproximou dos lábios.

     Ao princípio, Tamara acreditou que queria que beijasse sua ferida, como sua mãe fazia às vezes com ela. Mas assim que o sangue entrou em contato com sua língua, sentiu que algo a sacudia... como o choque que tinha sentido ao tocar o cabo desgastado do abajur. Só que aquilo não doía nem assustava e, de repente, soube que estava dando o remédio que a faria recuperar-se, e tomou.

     Com cada sorvo, sentia-se mais forte. Tempo depois, ele se apartou e envolveu seu pulso com um lenço branco. Deixou-se cair na cadeira junto à cama, muito pálido. Tamara sabia que ficaria bem. E quando voltou a olhá-lo, soube como se chamava. Para falar a verdade, sabia tudo sobre ele. Incorporou-se na cama e escutou enquanto contava histórias e cantava canções de ninar. Era seu herói e o adorava. Partiu sua alma vê-lo partir.

     Tamara se estremeceu e se secou as lágrimas.

     — Me lembrei —disse—. Eric, me lembrei.

     Sua única resposta foi um leve pestanejo. Com os lábios formou a palavra “Fuja”.

     —Sem ti, não —disse Tamara.

     —Muito... fraco —lhe custava horrores pronunciar as palavras— Fuja.

     —Jamais —sussurrou— Embora tenha que te carregar sobre minhas costas. Prefiro cortar as veias que te deixar aqui com... —interrompeu-se.

     Eric se obrigou a abrir os olhos e a olhou.

     —Não... Está muito... débil. Poderia perder... muito sangue —fazendo caso omisso dele, Tamara posou o olhar na bandeja e tomou um bisturi—. Não... —ele pronunciou a palavra com toda a força possível—. Poderia... morrer.

     Tamara apertou os dentes e se fez um corte no antebraço. Depois, aproximou-lhe a ferida à boca. Muito fraco para opor-se, Eric não teve mais remedeio que chupar. O sangue fluía a ele devagar, mas ela não demorou para enjoar-se. Eric a apartou, resgatou a tira com que Rogers a tinha pacote e a fechou com força em torno de seu braço, por cima do corte.

     Tamara ouviu vagamente que se abria a porta, justo antes de que a separassem do Eric. Curt a fez girar e lhe atirou um murro na têmpora que a fez cair de joelhos. Pestanejando, tentou ver o que estava passando. Eric se tinha levantado. Curt estava tirando uma seringa de injeção da prateleira, disposto a equilibrar-se sobre ele. Eric aguardava, alerta.

     Tinha que ajudar ao Eric, pensou, aturdida. Não poderia lutar contra o novo narcótico do Curt, e se este ganhava, mataria-o. Os dois morreriam. E o que seria do Jamie?

     Sem que nenhum dos dois se desse conta, Tamara retrocedeu pelo chão para a porta que Curt tinha deixado aberta. Quando chegou a ela, agarrou-se a machaneta e ficou em pé. O enjôo a fez cambalear-se, mas com um impulso desesperado alcançou o arquivo, rezando para que estivesse aberto. Ouviu que algo caía ao chão no laboratório, ruído de vdrosi quebrados e de metal. Abriu a primeira gaveta, colocou a mão e, fechando-a em torno da culatra, tirou devagar a pistola. Cambaleando-se, retornou à porta. Curt estava de costas a ela. Erguia-se entre a Tamara e Eric, que tinha retrocedido até a parede do fundo. Ela empunhou a arma.

     —Já basta, Curt. Solta a seringa ou... Curt! —este se equilibrou sobre o Eric com a seringa na mão. Tamara apertou o gatilho e, antes de dar-se conta, tinha disparado duas vezes.

     Curt se estremeceu como uma marionete a que tivessem amarrado as cordas de improviso, caiu devagar ao chão e ficou imóvel. Eric se esparramou contra a parede como se o tivessem golpeado. Tamara viu o sangue que se estendia por seu peito e, depois, ele também caiu ao chão.

     — Eric! — gritou, e soltou a arma— Meu Deus, Eric!

     Roland se deteve diante de um edifício em ruínas. O sinal do menino tinha sido mais forte que nunca fazia só um segundo. De repente, apagou-se por completo. Teria morrido? Desesperado, entrou e sua visão noturna permitiu ver a pequena forma que jazia fracamente contra uma parede.

     Ajoelhou-se junto a ele e, com um rápido movimento de dedos, cortou as cordas de bonecas e tornozelos. Retirou-lhe a atadura e lhe separou com suavidade a cinta dos lábios. Levantou-o em braços e saiu andando do edifício ao tempo que seus sentidos tentavam decifrar o problema.

     O menino estava entrando no que os médicos modernos chamavam estado de shock, tinha a pressão sangüínea perigosamente baixa, a pele fria e úmida. Sangrava internamente de um pulmão, perfurado por uma costela rota. Tinha um traumatismo craniano... mas duvidava que fosse grave.

     Sustentando ao pequeno com um braço, tirou-se a capa com o outro e envolveu rapidamente ao menino com ela. O calor era vital. E a rapidez. Correu com o menino ao hospital mais próximo. Enquanto atravessavam a noite, o menino abriu os olhos.

     — Quem é? —disse com suavidade.

     —Roland. Não se preocupe, ficará bem. — “O amigo do Eric?” Roland franziu o cenho. —É Jamie, o amigo da Tamara, verdade? O menino assentiu e se tranqüilizou um pouco, depois, abriu os olhos de par em par.

     — Está bem?

     —Eric está com ela — respondeu Roland. Entraram na emergência e as enfermeiras não demoraram a rodeá-los. Alguém lhe tirou ao menino e o colocou sobre uma maca.

     —Chama a minha mãe — disse Jamie com suavidade. Roland assentiu e procurou na memória o sobrenome do menino. Bryant, Tamara havia dito. Foi a recepção e pediu um telefone.

     Enquanto aguardava, compreendeu que Tamara devia ser o vínculo perdido. Era a ela a quem o menino chamava inconscientemente. Tamara não o tinha ouvido. Nem sequer era um deles. Possivelmente, entretanto, estivesse destinada a sê-lo.

    

     Tamara caiu de joelhos junto ao Eric e levantou sua cabeça. Pensava que estava morto. A angústia a tinha feito esquecer o enjôo e a debilidade, assim como o braço dolorido. Ficou atônita quando Eric falou com os dentes apertados.

     —Não são as balas, Tamara. É... a hemorragia.

     —A hemorragia —franziu o cenho. Recordou que Eric havia dito com que facilidade podia sangrar até morrer. O deitou, abriu sua camisa e ficou em pé com dificuldade. Enjoada, dirigiu-se à fileira de armários e abriu três portas antes de encontrar ataduras, gaze e esparadrapo. Com os braços cheios, retornou cambaleante. Torpemente, com uma mão, fechou duas pequenas feridas com gazes e as selou com ataduras.

     Voltou a enjoar-se, mas Eric se incorporou e a segurou pelos ombros antes que caísse. A obrigou a sentar-se a seu lado, e enfaixou com cuidado a pequena ferida do seu antebraço para logo tirar a tira que tinha amarrado em torno do braço.

     Ajudaram-se mutuamente a ficar em pé e saíram devagar do laboratório, desviando do corpo imóvel de Curt e subindo a escada. Quando saíram à luz pálida que antecedia o amanhecer, Roland apareceu no caminho da entrada e se aproximou deles.

     —Suspeitava que pudessem me necessitar. Já vejo que estava equivocado — os olhou aos dois— E Rogers?

     —Morto — disse Eric em tom lúgubre.

     —Eu atirei —Tamara se obrigou a pronunciar as palavras—E a única coisa sinto é que já não poderá me dizer o que fez com... com o Jamie — quebrou sua voz, e sentiu a ardência das lágrimas nos olhos.

     —Agora mesmo o estão atendendo. Eu mesmo o levei ao hospital.

     Tamara levantou a cabeça depressa, e sentiu a pressão do braço do Eric em torno dela.

     —Vai com ele, amor. De todas formas, necessita que dêem uns pontos no seu braço.

     —Não penso te deixar até que esteja recuperado — olhou ao céu e franziu o cenho— Será melhor que nos apressemos ou os dois terão problemas.

     Roland pôs uma mão no seu ombro.

     —Prometo-te, menina, que Eric estará como novo quando anoitecer. Podemos chegar a casa em menos tempo do que demoraria se nos levasse de carro. Vamos, vá ver o menino.

     Olhou ao Eric e este a abraçou. Seus lábios, embora pálidos e frescos, se juntaram aos dela e a deixaram com uma promessa.

     —Vá, amor. Até esta noite.

     Tamara assentiu e correu para o carro. Encontrou uma jaqueta no assento de atrás e a pôs para cobrir a blusa rasgada antes de partir. Não voltaria a pôr o pé naquela casa. Percebeu que Eric e Roland ficavam vendo como se afastava no carro antes de desaparecer.

     Horas mais tarde, com o braço suturado e enfaixado, a cabeça limpa e as perguntas da polícia temporariamente respondidas, Tamara se ajoelhou em frente a chaminé do salão de Eric e jogou troncos as brasas. Ali se sentia segura, sabendo que ele estava perto.

     Quando absorveu suficiente calor para tirar o frio do corpo, vagou para o som estéreo e deslizou um CD no reprodutor. A música do Mozart encheu toda a casa, e Tamara começou a percorrer as habitações, acendendo tudo os abajures. O dia começava a cair. A noite se aproximava e estava impaciente. Tomou seu tempo no primeiro andar, desfrutando de um banho aromático. Quando terminou, não resistiu o impulso que a fez subir ao dormitório para tirar o vestido que Eric tinha dado a ela com amor. O vestiu com cuidado, localizou uma escova e o passou pelos seus cabelos até ficarem brilhantes. Quando voltou a se sentar junto ao fogo, o sol roçava o horizonte, a ponto de afundar-se.

     No quarto oculto depois da adega, Eric olhou para a camisa rasgada e ensangüentada e fez uma careta.

     —Não teve tempo de te lavar antes do descanso, verdade, Eric? —o sorriso do Roland o irritou ainda mais.

     — É divertido para você?

     —Absolutamente. E esta manhã me encarreguei de preparar isso para quando saísse do caixão —Roland assinalou com a mão a muda de roupa limpa e a bacia de água que descansava junto ao fogo. O mau gênio do Eric se dissolveu.

     —Só um verdadeiro amigo pensaria nestas necessidades corriqueiras.

     —Algum dia pedirei que me devolva o favor. Eric se lavou depressa, sabendo que Tamara o estava esperando acima. Vestiu-se rapidamente e subiu as escadas para reunir-se com ela. Roland teve o tato de atrasar-se um pouco.

     Tamara o esperava junto ao fogo, luzindo o vestido de festa. Levantou-se depressa ao ouvir que chegava, e o olhou com evidente preocupação.

     —Eric, está...?

     —Completamente recuperado, amor. Já disse que o sono é reparador, não? Espero que não tenha estado preocupada comigo.

     —Estive preocupada com muitas coisas — reconheceu, mas relaxou em seus braços.

     Eric a abraçou com força um longo momento, com os olhos fechados, desfrutando de sua proximidade, de sua fragrância e do contato de seu corpo. Depois, endireitou-se, tomou sua mão e examinou o braço ferido.

     — Deram os pontos? —Ela assentiu, e Eric levantou o queixo para olhar seu rosto— E as demais feridas? Continuam doendo?

     —Estou bem — respondeu com um sorriso.

     —Aos meus olhos está muito mais que bem —disse Roland com sua voz potente quando se reuniu com eles no salão— Uma imagem arrebatadora como nenhuma outra. Tamara sorriu para Roland e baixou as pestanas.

     — É que todos os homens do século dezoito são tão perfeitos com as adulações?

     —Sou muito mais velho que isso, querida, assim que minhas adulações só podem ser genuínas — justo quando Eric sentia uma leve pontada de ciúmes, Roland prosseguiu— Já vejo que os dois têm assuntos importantes que tratar, e eu tenho um encontro, assim que me porei em caminho.

     —Sei sobre seu encontro — disse Tamara. Eric a olhou enquanto ela saía de seus braços, aproximava-se do Roland e o segurava pelo braço.

     — O que é isso? —Eric manteve o tom jovial— Estiveram compartilhando secretos?

     —Nenhum que eu saiba, Eric — Roland olhou a Tamara enquanto esta o conduzia ao sofá e o obrigava a sentar-se— Você também sabe ler a minha mente, pequena?

     —Não, mas hoje falei com a mãe do Jamie —Roland assentiu como se compreendesse. Eric, entretanto, não entendia nada. Tamara retornou a seu lado, arrastou-o ao sofá e se sentou junto a ele— Ontem à noite, Roland salvou a vida do Jamie. Curt o tinha seqüestrado porque é como eu, um dos Escolhidos. Por isso sempre estivemos tão unidos Jamie e eu. Estive-me voltando louca me perguntando o que podia fazer para pôr ao Jamie em segurança... para que um lunático como Daniel não decidisse assassinar a sua mãe e adotá-lo. Isso é o que fez Daniel, sabe? As mortes de meus pais não foram acidentais.

     Eric assentiu. Levava tempo suspeitando-o. Tamara olhou ao Roland.

     —Kathy diz que propôs que morasse em um de seus imóveis franceses. Que necessita uma governanta em tempo integral e que você gostaria que fosse ela. Diz que ofereceu mais dinheiro do que podia rechaçar —Tamara moveu a cabeça— O teria feito de graça quando devolveu  Jamie são e salvo.

     —Não estava são e salvo quando o vi da última vez —comentou Roland—. Que tal se encontra agora?

     —ficará bem.

     Eric franziu o cenho.

     —Não acompanho. Se o menino for um Eleito, onde estava seu protetor quando se encontrava em apuros? — Roland lançou ao Eric um olhar significativo.

     —Eu me perguntei o mesmo, até que compreendi a verdade. O menino tem a sorte de ter um guardião como Tamara.

     — O que diz?

     Tamara não parecia perceber a tensão entre ambos. Tomou a mão do Roland e a apertou.

     —Obrigado, Roland. Jamie significa muito para mim.  Irá se assegurar de que viagem logo, não é? Antes  que alguém relacione Jamie com Curt e comece a farejar.

     —Tem minha palavra, jovenzinha. E, agora, será melhor que vá antes que meu melhor amigo se converta em meu assassino — piscou um olho para Eric— Nem pense em se opor ao destino, Eric. Acredito que o destino determinou faz muito tempo — os deixou sem acrescentar nada mais.

     Tamara ficou em pé de forma brusca e se aproximou do fogo.

     —Nós também teremos que partir em seguida, Eric. Quando encontrarem o corpo do Curt, suspeitarão de mim porque vivia na casa e não informei da sua morte. De ti também, porque rompeu a janela. Deveríamos partir  — se deteve diante das chamas e se voltou para ele— Mas antes há algo mais, e acredito que você sabe tão bem como eu.

     Eric ficou em pé, aproximou-se dela e olhou seu rosto. Era mais formosa, mais apreciada por ele que o diamante mais perfeito. Amava-a além de toda lógica. Mais que tudo, desejava estar com ela sempre. Tragou saliva.

     —É uma existência de solidão infinita. Tamara. Uma noite eterna. Um mundo sem sol.

     — Como poderia ser solitária se estivermos juntos? — segurou as lapelas com os punhos— Se devo escolher entre você e o sol, Eric, escolho você sem duvidar. Não sente o mesmo por mim?

     —Sabe que sim, Tamara. Mas a imortalidade não é um dom, a não ser uma maldição. Viverá vendo como todos seus seres queridos se convertem em pó...

     —Todos meus seres queridos morreram, exceto dois. Você e Jamie. E embora o adore, ele não forma parte de minha vida — pestanejou ao sentir que lhe umedeciam os olhos—. Por favor, se me negar isso, estarei realmente sozinha. O que terá que fazer, Eric?

     As lágrimas da Tamara o comoviam.

     —Necessita tempo para pensá-lo

     — O que tive durante os últimos vinte anos a não ser tempo? —Disse com voz trêmula— estive vagando sem rumo por um mundo ao que não pertencia. Não estava destinada a estar aqui, Eric, a não ser a estar contigo. A ser como você. Roland sabe. ouviu o que disse, a decisão não é nossa. Meu destino... — colocou uma mão trêmula na bochecha, com as lágrimas escorregando pelo seus dedos —... está aqui mesmo, diante de mim.

     O resplendor do fogo fazia que o vestido de raso parecesse uma suave chama verde. O cabelo da Tamara brilhava, inclusive sua pele. Ouviu-a pigarrear e soube que estava fazendo um esforço por seguir falando.

     —Já sei... Tem que beber de mim —sussurrou— Mas isso não é mais que uma das partes, não? Que bebes de mim?

     Eric não pôde evitar cravar o olhar no pescoço nu da Tamara.

     — E...e você de mim —disse Eric. Nada mais pronunciar as palavras, o desejo de sangue vibrou em suas veias, palpitando nas têmporas e na virilha.

     Tamara ficou nas pontas dos pés, rodeou seu pescoço com os braços e ofereceu os lábios entreabertos. Eric a agradou, e seu desejo por ela cresceu. Tamara abriu a camisa com dedos hábeis e estendeu as mãos sobre seu peito depois rodeou-o para poder beijá-lo.

     —Toda minha vida —sussurrou, deslizando os lábios por sua pele, com o fôlego ardente e úmido—.Toda minha vida esteve caminhando para este momento... para ti. Não me negue isso, Eric. Já sou mais parte de ti que deste mundo.

     —Tamara —gemeu. Ela levantou a cabeça e ele voltou a tocar seus lábios, alimentando-se da doçura de sua boca. Levantou suas saias e deslizou as mãos pelas coxas e glúteos nus—. Céus, quanto te desejo. É uma fogueira em meu coração, cada vez mais intensa. Temo que nunca se apague. É uma sede insaciável em minha alma.

     Ela deslizou a mão para abrir suas calças. Em poucos segundos, o tinha liberado e acariciou o membro com mãos reverentes.

     —Eu gostaria de desfrutar da eternidade para saciar sua sede insaciável, Eric. Diga-me que me dará isso.

     O calor que ela despertava nele o abrasava. Eric pôs as mãos nas coxas e a levantou. Tamara entrelaçou os tornozelos nas costas, segurou em seus ombros e fechou os olhos enquanto ele se afundava nela. Investiu com tanta força que a fez proferir um pequeno grito. Mas isso não bastaria. Aquela vez, não.

     Cavalgou sobre ele, sem se deixar afastar por suas investidas, e ele se agarrou a ela, segurando seu suave traseiro. Tamara inclinou a cabeça para trás, arqueando a pele de cetim pálido para ele, deixando a garganta a apenas milímetros de seus lábios. Beijou-a ali, incapaz de fazer outra coisa. A jugular palpitava justo embaixo da pele. Lambeu-a ali, e enquanto tomava sua pele entre os dentes, ela gemeu com suavidade. Quando a mordeu, Tamara se estremeceu e o apertou com mais força.

     —Me faça tua, Eric. Me faça tua para sempre, por favor.

     Eric gemeu em sinal de rendição. A espera produziu uma nova onda de desejo e tentou afundar-se ainda mais nela, uma e outra vez.

     Tamara arqueou as costas, presa a um êxtase inexprimível. As investidas de Eric marcavam o fluxo da essência de Tamara dentro de seu corpo. Sentir que lambia seu pescoço produzia formigamentos.

     Tamara começou a debilitar-se. Estava evaporando como a névoa sob o sol, até que já não existia nada fora daquela sensação, daquele êxtase.

     Só vagamente reparou no momento em que Eric levantava a mão e, sem afastar sua boca do pescoço dela, aproximou o rosto da Tamara a sua própria garganta. Se apropriou dela uma desconhecida ansiedade até então e mordeu o pescoço do Eric para beber.

     Estavam unidos, ele se movia dentro dela e com suas mãos sujeitava os quadris e a cabeça. O clímax iminente era como uma locomotiva fumegante que estava a ponto de invadi-los. Tamara gemeu e depois gritou junto à garganta de Eric. Este se estremeceu com violência, gemendo e caindo de joelhos, ainda sujeitando-a.

     Permaneceram abraçados enquanto as ondas de sensações remetiam e os deixavam mornos e saciados. Tamara sabia que tinham intercambiado gota por gota. Estavam saciados... e eram um.

     Com cuidado, Eric estendeu as pernas e se tombou, mantendo-a sobre ele, sustentando-a como se fora um pouco prezado. Tamara se relaxou, presa a umas sensações muito estranhas. Sentia formigamentos na pele, como se estivesse experimentando pequenas descargas elétricas nas terminações nervosas. A cabeça dava voltas pelas múltiplas percepções sensoriais. Tudo parecia mais intenso. A luz do fogo, a essência da madeira enquanto se queimava...

     —Eric, me sinto estranha... Como se estivesse mais viva que nunca e, ao mesmo tempo... sonolenta —abriu os olhos. Até sua voz soava distinta.

     Ele riu com suavidade, acariciando seu cabelo. Tamara podia sentir cada linha de sua palma ao passar pelas mechas.

     —Obrigado por me convencer, meu amor. Não poderia ter seguido em frente sem você, sabe?

     — já acabou? —Tamara lutava por permanecer acordada.

     —Quase. Agora deve dormir. Esperei dois séculos para te encontrar, Tamara. Só a ti. Agora compreendo. Posso esperar uma noite mais, um dia mais. Quando despertar, estará feito.

     Tamara enterrou a cabeça no seio do Eric.

     — Me diga...

     —Será mais forte que dez humanos — com as mãos acariciava seu cabelo, as costas, e sua voz hipnótica a transportava como um tapete mágico— Será mais forte à medida que envelheça, e esse será o único indício que o tempo está passando, que notará. Se aguçarão os sentidos, mais que agora. E terá habilidades psíquicas.  A ensinarei como controlar, como utilizar. Ensinarei tantas coisas. Minha Tamara... Viverá para sempre.

     —Contigo — murmurou, virtualmente incapaz de mover os lábios.

     —Comigo. Sempre comigo, amor.    

 

                                                                                            Maggie Shayne

 

 

                      

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