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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Mensagem do Vietname / Danielle Stel
Mensagem do Vietname / Danielle Stel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Mensagem do Vietname

 

Passaram de mão em mão, os desejos, os sonhos, as esperanças de toda uma geração, toda uma nação mandada para a guerra, com um punhado de velhos conduzindo os nossos rapazes para a morte, enquanto ficávamos a ver com horror, dor e com tristeza a descrença de termos de perder tantos dos nossos rapazes, ainda quase presos aos brinquedos, com olhares de criança cintilantes, tão cheios de esperança, um combate tão longo, tão triste, uma dor tão imensa, feridas tão profundas até que, finalmente, os nossos jovens dormem de novo nos braços do criador, com os nomes gravados na pedra para nunca mais voltarem, para nunca mais tocarem o nosso choro... mesmo que esqueçamos, mesmo que envelheçamos, os nossos corações não podem esquecer, não devemos fugir e enterrar, devemos recordar os rapazes que morreram... que não seja em vão, não devemos esquecer a dor, os gritos, as agonias, as ousadias, os heróis e os sorrisos, o tempo perdido no tempo, a tantos quilómetros de distância, num país tão verde e tão brilhante apanhados num lugar entre mentiras e esperança, não devemos esquecer, devemos prometer tê-los no coração até não mais poder, lembrem-se, amigos, lembrem-se... dos rapazes que morreram, que viveram, que choraram, dos rapazes que lutaram no Vietname.

 

          

 

Estava um dia cinzento e frio em Savannah e uma brisa áspera soprava do oceano. Havia folhas pelo chão de Forsyth Park, alguns casais passeavam de mão dada e algumas mulheres conversavam e fumavam o último cigarro antes de voltarem ao trabalho. E no liceu de Savannah os corredores apresentavam-se desertos. A campainha tocara à uma hora da tarde e todos os estudantes estavam nas salas de aula. De uma delas vinham risos e de outras o silêncio. Havia o chiar do giz, as expressões de desespero e aborrecimento nos rostos dos estudantes mal preparados para um teste surpresa em Educação Cívica. E enquanto os alunos mais adiantados ouviam falar das iniciativas para antes do Dia de Acção de Graças, lá longe, em Dallas, soaram disparos. Num cortejo de carros, um homem foi catapultado para os braços da mulher, enquanto a cabeça explodia horrivelmente atrás dele. Ainda ninguém percebera o que tinha acontecido e, em simultâneo com a voz que continuava a leccionar em Savannah, Paxton Andrews tentava lutar contra as ondas de sono e de tédio. E, de súbito, na sala tranquila, sentiu-se incapaz de continuar de olhos abertos por um momento mais que fosse.

Piedosamente, à uma e cinquenta e cinco, a campainha tocou, as portas abriram-se e os estudantes saíram em massa para os corredores, libertos de testes, prelecções, literatura francesa e faraós do Egipto. Todos avançaram para a aula seguinte, parando ocasionalmente junto a um cacifo para trocar de livros, um breve gracejo, uma gargalhada. E, em seguida e repentinamente, um grito. Um longo e angustiado lamento, um som que trespassou o ar como uma seta disparada de uma grande distância. Um troar de passos, uma corrida precipitada até uma sala de canto habitualmente usada apenas por professores, o televisor ligado, e centenas de jovens rostos preocupados aglomerando-se junto à ombreira da porta, e pessoas exclamando: «Não!», gritando, chamando e falando, e ninguém conseguia ouvir o que se dizia na televisão, enquanto outras pediam silêncio.

- Calem-se! Não conseguimos ouvir as notícias!

- Ele está ferido?... Está?... - Ninguém se atrevia a pronunciar as palavras e através da multidão, uma e outra vez, as mesmas palavras: - O que aconteceu? ... O que aconteceu?... O presidente Kennedy foi alvejado ... o presidente... Não sei ... Em Dallas... O que aconteceu?... presidente Kennedy ... Não está... - De início, ninguém acreditava. Todos optavam por pensar que se tratava de uma brincadeira de mau gosto. - Ouviste dizer que o presidente Kennedy foi alvejado? - Sim... e daí? Conta lá o resto da anedota, pá! - Não havia anedota. Havia apenas conversas frenéticas, perguntas infindáveis e nenhuma resposta.

No ecrã, apareceram imagens confusas, com replay do cortejo de automóveis que se dispersava e avançava a toda a velocidade. Walter Cronkite era o locutor de serviço e tinha o rosto cor de cinza.

- O presidente foi gravemente ferido. - Um murmúrio geral perpassou em Savannah e, aparentemente, todos os alunos e professores do liceu de Savannah se comprimiam naquela pequena sala, surgindo dos corredores.

- O que é que ele disse?... O que é que ele disse? - perguntou uma voz à distância.

- Disse que o presidente está gravemente ferido - responderam-lhe da frente, e três das alunas mais jovens começaram a chorar, enquanto Paxton se mantinha, com uma expressão sombria, a um canto, no meio dos corpos que a apertavam, observando-os.

Fez-se repentinamente um silêncio etéreo na sala, como se ninguém quisesse mexer-se, como se tivessem receio de perturbar qualquer delicado equilíbrio do ar, como se o mínimo movimento pudesse alterar o curso que a vida tomaria... e Paxton viu-se a pensar num outro dia, seis anos antes, quando tinha apenas onze... « O papá foi ferido, Pax. »

O irmão George tinha-lhe dado as notícias. A mãe estivera no hospital com o pai. Ele gostava de pilotar o seu avião sempre que ia assistir a reuniões no mesmo estado e tivera de aterrar devido a uma repentina tempestade próximo de Atlanta.

- Ele está... Ficará bem?

- Eu... - A voz de George morrera-lhe na garganta, e os olhos reflectiam uma terrível verdade de que quisera fugir e esconder-se.

Tinha, nessa altura, onze anos, e George vinte e cinco. Estavam separados por catorze anos e várias épocas. Paxton fora um «acidente»... Era o que a mãe continuava a sussurrar aos amigos: um acidente por que Carlton Andrews nunca deixara de agradecer e que ainda parecia sobressaltar a mãe de Paxton.

Beatrice Andrews tinha vinte e sete anos quando o filho George nascera. Levara cinco anos a engravidar dele e, tanto quanto lhe dizia respeito, a sua gravidez fora um pesadelo.

Sentiu enjoos diários durante nove meses e o parto foi um horror que sabia não mais ir esquecer. George nasceu, finalmente, de cesariana, após quarenta e duas horas de trabalho de parto e, embora fosse um grande e bonito bebé de cinco quilos, Beatrice Andrews prometera a si própria que não voltaria a engravidar. Tratava-se de uma experiência que não queria de forma alguma repetir e tomou as maiores precauções para que tal não acontecesse.

Carlton denotava a paciência de sempre e adorava o filho. George era o género de filho que qualquer pai gostaria de ter. Era um jovem feliz, calmo, razoavelmente atlético, com gosto pelos estudos, o que também agradava à mãe. Levavam uma vida tranquila e feliz.

Carlton era um advogado bem-sucedido, Beatrice desempenhava um papel importante na Sociedade Histórica, Liga Júnior e Filhas da Guerra Civil. Tinha uma existência preenchida. E jogava bridege todas as quintas-feiras. Foi aí que teve a primeira suspeita, que sentiu violentas náuseas pela primeira vez.

Pensou que tinha comido qualquer coisa estragada no pequeno-almoço da Liga nesse dia e foi para casa deitar-se logo a seguir ao jogo de bridege. E, três semanas mais tarde, soube. Aos quarenta e um anos, com um filho de catorze, já no liceu e um marido que nem sequer tinha a delicadeza de esconder a sua satisfação, estava grávida.

Essa gravidez foi-lhe mais fácil do que a primeira, mas nem parecia importar-se. Estava furiosa com a indignidade, o embaraço de estar novamente grávida, numa altura em que as outras mulheres já pensavam em netos. Não queria outro filho, nunca quisera outro filho e nada do que o marido disse pareceu apaziguá-la. Até mesmo a bebezinha loura, perfeita e de ar angelical que lhe puseram nos braços, ao acordar, pouco a animou.

Durante meses a fio, só conseguiu falar de quanto se sentia idiota... e deixava permanentemente a criança na companhia da enorme e meiga ama negra que tinha contratado quando estava grávida.

Chamava-se Elizabeth McQueen, mas todos a tratavam por Queenie. E não era, de facto, ama de profissão. Criara onze filhos seus, dos quais apenas sete haviam sobrevivido e era a mais rara daquelas raridades do Sul, a adorada «mãe» negra. Transbordava de amor por todos, mas sobretudo pelas crianças e bebés e amava Paxton. com uma paixão e um arrebatamento que nenhuma mãe que a tivesse dado à luz poderia superar e muito menos Beatrice Andrews. Sentia a mesma atitude de desconforto face à miúda e, por razões que era incapaz de explicar, sempre manteve a distância. A criança tinha sempre as mãos peganhentas ou queria tocar nos frágeis frascos de perfume arrumados no toucador de Beatrice e entornava-os invariavelmente; fosse como fosse, mãe e filha estavam sempre nervosas quando na companhia uma da outra.

Era Queenie quem a confortava quando chorava e em cujos braços se refugiava quando se sentia magoada ou receosa... Queenie, que nem por um momento a deixava.

Na vida de Queenie não havia folgas. Não havia nenhum lugar para onde quisesse ir num dia de folga, pois agora os filhos tinham a sua própria vida e era incapaz de imaginar o que seria de Paxxie, se ela não estivesse ali para a ajudar.

O pai fora sempre bom para ela e amava muito aquela filha, mas a mãe era outra história. À medida que Paxton foi crescendo, o abismo entre as duas aumentou e, aos dez anos, Paxton já concluíra que quase nada tinham em comum. Era difícil acreditar que houvesse laços familiares a uni-las.

Para a mãe, os clubes eram tudo, as suas amigas, auxiliares, os dias de bridege e doações às Filhas da Guerra Civil: a sua vida com essas mulheres constituía a razão da sua existência. Quase parecia desinteressada quando o marido voltava a casa e ouvia delicadamente as suas palavras à noite durante o jantar, mas até Paxton notava que a mãe dava sensação de entediada com a companhia do marido.

E Carlton também se apercebia. Embora nunca o tivesse confessado a alguém, dava-se conta de um gelo emanado pela mulher, tal como Paxton o sentia há anos. Beatrice Andrews era cumpridora, fiel, organizada, vestia-se bem, era agradável, delicada, culta e ao longo da vida nunca sentira a mínima emoção por ninguém. Pura e simplesmente, nunca possuíra qualquer tipo de emoção.

Queenie sabia isso, embora o tivesse expressado de uma forma diferente da de Carlton; há muito, comentara com as filhas que o coração de Beatrice Andrews era mais frio e mais pequeno do que pevides no Inverno. O mais próximo do amor que sentira fora o que tinha pelo filho, George.

Mantinham um tipo de relação que nunca se permitira com Paxton. Admirava-o, respeitava-o e há muito que o filho adoptara uma espécie de atitude fria, desprendida e cínica face a tudo, o que o encaminhou para a Medicina e também a impressionara. Agradava-lhe o facto de o filho ser médico. Era ainda mais brilhante do que o pai, segundo confidenciava em segredo às amigas; na verdade, recordava-lhe muito o próprio pai, que estivera no Supremo Tribunal de Jórgia, e tinha a certeza de que, um dia, George faria coisas importantes.

Contudo, Paxton, o que faria? Iria para a universidade formar-se-ia e eventualmente acabaria por casar e ter filhos. Aos olhos de Beatrice não se tratava de um percurso espantoso e tinha sido, no entanto, o que ela seguira. Por insistência do pai, fora para Sweet Briar. E casara com Carlton. duas semanas depois de se formar.

Na verdade, embora apreciasse a companhia das mulheres e a procurasse sempre que tinha oportunidade, não as respeitava muito. Eram os homens que a impressionavam, eles que realizavam grandes coisas. E não pairava a mínima dúvida no seu espírito de que a bonita rapariguinha loura que colocava as mãozinhas pegajosas em tudo o que tinha oportunidade não estava destinada a grandes empreendimentos.

A voz de Walter Cronkite continuava a ressoar, enquanto Paxton e os demais fitavam o ecrã de televisão, sem pronunciar palavra. As poucas pessoas que ainda estavam a falar faziam-no em sussurros. E, a espaços de minutos, Cronkite centrava as atenções nos jornalistas que se mantinham, de pé, no átrio do Hospital Park1and Memorial em Dallas, para onde o presidente fora transportado.

- Ainda não temos respostas concretas - declarava o rosto no ecrã. - Apenas sabemos que o estado de saúde do presidente é crítico, mas não recebemos boletins médicos nestes últimos minutos. - Nesse instante, um professor estendeu a mão e mudou de canal, mesmo a tempo de ouvirem Chet Hutitley fornecer quase a mesma informação numa outra estação televisiva.

Os estudantes fitavam-se uns aos outros, com uma expressão horrorizada. E Paxton voltou a lembrar-se de George, quando fora buscá-la à escola para lhe dar a notícia sobre o pai. O acidente, o avião a despenhar-se... e o rosto de George, pondo-a ao corrente dos factos.

Nessa altura, o irmão acabara de se formar e estava à espera de começar o estágio no Hospital Grady Memorial, em Atlanta. Conseguira manter-se no Sul durante todo o curso, embora o pai fosse diplomado por Harvard e o tivesse encorajado a ir para o Norte. Beatrice achava, contudo, que era importante ficar perto das raízes e apoiar os estabelecimentos educacionais do Sul e afirmava-o com frequência.

Eram duas horas da tarde e Paxton conservava-se, ansiosa, no canto da sala, tentando acreditar que ele estava bem, combatendo as lágrimas e sem saber se chorava pelo presidente ou pelo pai.

O pai tinha morrido um dia depois de o avião se despenhar, devido à gravidade dos ferimentos. A mulher e o filho estavam ao seu lado e Paxton aguardava, em casa, na companhia de Queenie. Às onze, acharam que ela era demasiado jovem para o ver no hospital e de qualquer maneira ele nunca recuperara a consciência. Nunca mais o vira.

Ele desapareceu, com todo o seu calor, amor e vasta sabedoria sobre o mundo, o fascínio pelas pessoas, histórias e coisas de longe, muito longe de Savannah. Tratava-se de um cavalheiro sulista da velha guarda, mas em alguns domínios secretos não se enquadrava no molde onde nascera e era disso que Paxton gostava nele.

Disso e de tudo o mais, aliás: a forma como a apertava sempre que corria para os seus braços, a forma como se expressava quando davam longos passeios e falavam de coisas sobre as quais ela se interrogava, como a guerra, a Europa, e como fora frequentar Harvard. Gostava de o ouvir falar e do seu cheiro; do perfume fresco que o after-shave deixava depois de ele ter entrado na sala... da forma como os olhos se enrugavam quando sorria, de como se orgulhava dela... Sentiu-se como se tivesse morrido quando tocaram Amazing Grace no seu funeral, e Queenie, sentada na última fila, chorava tão alto, que Paxton conseguia ouvi-la no sítio onde estava, entre George e a mãe.

A sua vida nunca voltara a ser a mesma desde a morte do pai. Era como se ele tivesse levado um pedaço de si, aquele pedaço que costumava cheirar flores silvestres na sua companhia e ir visitá-lo ao escritório quando ele tinha de trabalhar ao domingo de manhã, o pedaço que podia falar-lhe, como se ela, de facto, entendesse o mundo, e fazer-lhe todo o tipo de perguntas.

Era intuitiva em relação às pessoas, e um dia garantira-lhe que não achava que a mãe a amasse verdadeiramente. Paxton deixara de se importar com o facto. Era mesmo assim. E restavam-lhe Queenie e o pai.

- Acho... acho que ela precisa de alguém como o George... Não a enerva e fala das coisas que lhe interessam. É um pouco como ela, não te parece, paizinho? Por vezes, quando afirmo que gosto mesmo de alguma coisa, penso que fica assustada. - Era mais perspicaz do que julgava, e Carlton Andrews também o sabia, mas nunca o admitiu diante da sua única filha.

- Não expressa os sentimentos como tu e eu - arguiu com honestidade, recostando-se na cómoda e velha cadeira de cabedal, em que ela tanto gostava de girar. - Mas tal não significa que não os tenha. - Achava-se na obrigação de defender a mulher, mesmo perante Paxton, embora reconhecesse a verdade dos comentários da filha.

Beatrice era tão fria como gelo. Cumpridora, leal e uma «boa esposa» aos seus próprios olhos. Governava lindamente a casa, tratava-o com delicadeza e bondade, nunca lhe mentia, não era rude, nem o atraiçoava. Era uma senhora, da cabeça aos pés, mas, à semelhança de Paxxie, ele interrogava-se sobre se alguma vez amara alguém ou alguma coisa, excepto George; porém, mesmo nesse caso mantinha uma fria e confortável distância.

O filho era tão parecido com ela que também não esperava mais da mãe. Não era, todavia, o caso de Carlton e Paxxie; contudo, ambos sabiam que nada conseguiriam de Beatrice.

- Ela ama-te, Pax. - Mas, no próprio instante em que o pai pronunciou as palavras, Paxton achou que ele mentia. Não entendeu totalmente as subtilezas relativas àquilo de que a mulher era ou não capaz. Entendia Carlton muito melhor.

- Amo-te, paizinho! - exclamara, abraçando-o sem hesitações nem reservas. Nunca lhe escondia nada, e ele riu quando a filha quase o derrubou da cadeira giratória.

- Ei... Ainda acabas por me atirar ao chão. - Sonhava que ela um dia iria para Radcliffê e, ao apertá-la com força, imaginava-a adulta e bonita e o orgulho do fim da sua vida. A filha era tudo o que sempre desejara, calorosa, meiga, terna e responsável. Era feita à sua imagem e semelhança, embora ele não o soubesse.

E, em seguida, morreu, e Paxton ficou só com eles e com Queenie. Estudava muito e passava o tempo a ler. Escrevia cartas ao pai, como se ele estivesse ausente numa viagem e pudesse enviar-lhas pelo correio... Só que não podia. Às vezes, punha as cartas de lado e, outras vezes, limitava-se a rasgá-las. Escrevê-las era, contudo, uma ajuda. Constituía uma forma de «falar» com ele, já que não podia falar com «eles».

A mãe parecia estremecer a cada palavra sua, discordava de todas as afirmações de Paxton, e havia momentos em que ela se sentia como se tivesse vindo de outro planeta. Eram diferentes em todos os aspectos.

E George era igual à mãe. Incitava Paxton a portar-se bem e a tentar ver as coisas sob a perspectiva da mãe, a ser sensata e a lembrar-se de quem era, o que apenas servia para a confundir ainda mais. Quem era ela? A filha do pai, ou deles? Quem tinha razão? Mas, no mais fundo de si, estava tu do claro. Sabia que o seu amor por mais largos horizontes era o único caminho que lhe restava e, quando George acabou o estágio no Grady Memorial e ela fez dezasseis anos soube de imediato que queria sair do Sul e ir para Radcliffê

A mãe queria que ela fosse para Agnes Scott ou Mary Baldwin ou Sweet Briar, que ela própria frequentara, ou até para Bryn Mawr, e achara ridícula a ideia de Paxton ir para Radcliffe.

- Não precisas de frequentar uma universidade no Norte. Temos tudo o que precisas aqui. Põe os olhos no teu irmão. Teve todas as oportunidades de ir para qualquer parte do país e ficou aqui mesmo, na Jórgia. - Só de pensar nisso, Paxton teve uma sensação de claustrofobia. Queria afastar-se das suas ideias estreitas, das amigas da mãe, das coisas que ouvia sobre os «horrores da integração».

Os direitos civis era algo que discutia com as amigas ou com Queenie, sotto voce, na cozinha. Contudo, até mesmo Queenie se mantinha agarrada às antigas teorias e achava que os negros deviam ficar no lugar que lhes competia, o quanto era o mesmo do que o dos brancos. A ideia de misturar os dois assustava-a, e só os filhos e os netos queriam as mesmas mudanças que Paxton.

No entanto, Paxton considerava errados os valores com que tinha crescido e não receava afirmá-lo nem escrever sobre o assunto nos trabalhos escolares. Sabia que também o pai teria concordado com ela, sempre fora assim, o que somente incentivara o seu entusiasmo. Era um assunto que tinha aprendido a não discutir com a mãe e o irmão.

Porém, nesse Outono, candidatara-se a meia dúzia de universidades no Norte, e duas na Califórnia. Candidatara-se a Vassar, Wellesley, Radcliffê, Smith e, a oeste, Stanfor e UC Berkeley.

Não queria, na verdade, frequentar uma instituição de raparigas, e Radcliffe era a única que lhe interessava. Candidatara-se a dois estabelecimentos na zona oeste, pois a sua orientadora escolar achara que devia fazê-lo e, por fim, sem grande entusiasmo, a Sweet Briar, para apaziguar a mãe. E as amigas da mãe afirmavam-lhe, sem cessar, como seria feliz lá, como se a sua ida para Sweet Briar fosse ponto assente.

Tratava-se de algo em que não podia pensar agora, naquele momento, em que mantinha os olhos fixos no relógio. Eram só duas da tarde, meia hora depois de o presidente ter sido alvejado, dez minutos desde que tinham estado a ver televisão para ter notícias dele. E toda a nação rezava, e a família dele sabia o que Paxton soubera, há seis anos, quando o pai morrera: que tudo acabara.

Às duas horas e um minuto Walter Cronkite fitara a câmara com um olhar derrotado e informara o povo americano que o seu presidente estava morto. Na pequena sala de Savannah, ouviu-se um sussurro de tristeza que se transformou num lamento e a atmosfera depressa ressoou de soluços. As pessoas choravam, os professores e estudantes abraçavam-se e murmuravam frases incoerentes sobre como é que tal coisa podia acontecer.

Walter Cronkite continuou a falar, dois médicos foram entrevistados e Paxton sentiu-se como se estivesse a mover-se debaixo de água. Tudo parecia avançar lentamente e tudo parecia estar a acontecer a uma grande distância.

Havia pessoas a chorar por todo o lado e Paxton mal conseguia ver, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces; sentiu uma impressão de asfixia, como se alguém lhe tivesse sugado o ar e não conseguisse respirar. Era uma dor e um desgosto quase insuportáveis. Assemelhava-se, estranhamente, a perdê-lo de novo.

O pai tinha cinquenta e sete anos quando morrera e John Kenedy tinha apenas quarenta e seis; e, contudo, ambos haviam sido ceifados no auge da vida, cheios de entusiasmo, ideias e excitação, ambos tinham filhos que os amavam muito.

Jack Kennedy seria chorado por todo o mundo e Carlton Andrews fora-o somente pelos que o conheciam. Mas, nesta altura, a situação era igual aos olhos de Paxton e sentia o que os filhos dele deviam sentir: o terrível desgosto, a perda, a tristeza, a raiva. Isto era tão horrível, tão errado, como é que alguém poderia tê-lo feito?

Caminhou pelos corredores, às cegas, até à saída, sem trocar uma palavra com ninguém, percorreu a toda a velocidade a meia dúzia de quarteirões até à sua casa em Habersliam, e a porta da casa bateu quando se precipitou para o vestíbulo da frente, ainda a chorar, com o rabo-de-cavalo louro-palha abanando atrás dela.

Também se parecia com o pai, ou como ele fora em jovem, com um cabelo louro-brilhante e grandes olhos verdes, que pareciam buscar respostas em permanência. E, nesse momento, estava terrivelmente pálida quando deixou cair os livros e a pasta, dirigindo-se a correr para a cozinha, ao encontro de Queenie.

Queenie cantarolava baixinho, enquanto se afadigava à volta da cozinha de que tanto gostava. A louça de cobre brilhava, impecável, pendurada nas traves por cima da sua cabeça e pairava o odor aos seus cozinhados. Virou-se, surpreendida, ao avistar Paxton, de pé, olhando-a desesperada, com o bonito e jovem rosto assustado e manchado de lágrimas. Nesse momento, Paxton era o símbolo de uma nação.

- O que aconteceu, filha? - perguntou Queenie, assustada, movendo o corpo volumoso na direcção da jovem que criara e amava como a mais ninguém.

- Eu... - Por momentos Paxxie não soube o que responder. Era incapaz de encontrar as palavras, ignorava o que dizer. - Não viste televisão, hoje? - Queenie gostava sobretudo das novelas e limitou-se a abanar a cabeça e fitou Paxton.

- Não. A tua mãe levou o televisor da cozinha para arranjar, ontem. Está avariado. E nunca vejo televisão no aparelho grande da sala de estar. - Pareceu magoada com a sugestão. - Porquê? - Interrogou-se sobre se algo de terrível tinha acontecido na baixa de Savannah... Talvez o Dr. George... ou Mrs. Andrews... ou mesmo os próprios filhos tivessem ficado feridos... Talvez uma dessas terríveis manifestações de direitos civis... talvez... Mas não estava de forma alguma preparada para o que Paxton lhe contou.

- O presidente Kennedy foi alvejado.

- Oh, meu Deus... - Queenie afundou o volumoso corpo na cadeira mais próxima, com uma expressão horrorizada. Virou, depois, o rosto para Paxton numa pergunta silenciosa.

- Está morto. - Paxxie começou novamente a chorar e, em seguida, ajoelhou-se ao lado de Queenie e abraçou-a. Era como se voltasse a perder o pai. Aquela terrível sensação de perda, desespero, tristeza e traição... E Queenie apertou-a, enquanto as duas choravam por um homem que nunca tinham conhecido, que fora morto tão novo ainda e para quê? Porquê? Porque é que o tinham feito? Até que ponto podia ir a raiva? Que propósito serviria? E porquê ele, como exemplo? Porquê um homem com dois filhos pequenos e uma mulher jovem? Porquê alguém? E porquê alguém tão vivo, tão cheio de esperança e de promessas para tantos? Paxxie chorava-o nos braços de Queenie, e a velha mulher negra agarrava-a e embalava-a como o fizera em criança, também ela chorando por um homem que nunca conhecera mas pensava ser boa pessoa.

- Deus do céu, filha... Não consigo acreditar. Porque é que alguém havia de fazer tal coisa? Sabem quem foi?

- Não me parece. - Mas, quando se dirigiram à sala de estar e ligaram a televisão, havia mais notícias. Um homem chamado Lee Harvey Oswald tinha alvejado e morto um polícia de Dallas, que tentara interrogá-lo, e a sua pista fora seguida até ao armazém de livros de onde os tiros fatais haviam sido disparados contra o cortejo de automóveis, à uma hora e trinta minutos. E acreditava-se ser ele o assassino do presidente Kennedy.

Oswald tinha sido preso, o polícia e o presidente estavam mortos, um agente dos Serviços Secretos também, o governador do Texas, John Connally, tinha sido ferido com gravidade mas estava bem e o corpo do presidente ia a caminha de Washington num avião da força aérea, com a mulher ao lado. O presidente e Mr. Johnson também iam a bordo, e tinha corrido a notícia de que fora atingido de raspão, o que, mais tarde, veio a provar-se ser apenas boato.

Uma nação inteira encontrava-se em estado de choque, e Paxton e Queenie mantinham-se ali, de pé, sem pronunciar uma palavra, ainda incapazes de acreditar no que ouviam e viam. Continuavam imóveis, observando em silêncio, com as lágrimas a correrem-lhes pelas faces, quando a mãe de Paxton entrou em casa, cinco minutos depois. Ia ao cabeleireiro todas as sextas-feiras à tarde e acabava de voltar da sua marcação semanal. Ouvira as notícias no cabeleireiro e tinha uma expressão sombria quando se lhes juntou em silêncio.

Algumas das mulheres tinham ido para casa com o cabelo molhado, e a maioria dos cabeleireiros não teve coragem para findar o trabalho iniciado. Todos estavam debulhados em lágrimas e secavam o cabelo a Beatrice Andrews, quando ouviram as primeiras notícias. Ela ficara, no entanto, até estar pronta e tinha mesmo convencido uma das raparigas a acabar de lhe arranjar as unhas. Não lhe agradava a ideia de ficar assim mais uns dias. Tinha muito que fazer naquele fim-de-semana, antes do Dia de Acção de Graças, e o seu clube de bridege daria um jantar. Nunca lhe ocorreu que ninguém daria nada. Todas as festas imagináveis seriam canceladas enquanto as pessoas se mantinham grudadas ao ecrã dos televisores e toda uma nação continuava de luto.

Contudo, essa ideia não lhe ocorrera, e regressara a casa, sentindo-se abatida, mas de forma alguma histérica. Pensou que algumas das mulheres haviam exagerado um pouco. Sabia o que era o verdadeiro desgosto. No fundo, havia perdido o marido e era impossível acalentar o mesmo tipo de emoção por uma figura pública. No entanto, era isso o que as pessoas sentiam por ele, aquela intensa impressão de perda pessoal, como se o tivessem conhecido e amado. Ele trouxera novas esperanças para todos, a promessa de juventude renovada, a magia de um mundo que nunca conheceriam e com que apenas podiam sonhar. E a sua jovem mulher recordava uma bela princesa a toda a gente.

Beatrice Andrews mantinha-se de pé, solenemente junto da filha e da mulher que a tinha criado; sentou-se depois a ver Lyndon Johnson prestar juramento no avião da força aérea, mas não convidou Queenie a juntar-se-lhe. As câmaras mostravam a juíza Sarah Hughes, que presidia à cerimónia do juramento de Lyndon Johnson, enquanto Jacqueline Kennedy se mantinha ao lado dele e todos se apercebiam, subitamente, de que ela usava o mesmo conjunto cor-de-rosa, o tailleur que tinha quando ele fora morto e que ainda estava manchado do seu sangue. E o rosto denotava um vestígio de tristeza, no momento em que Lyndon Johnson se tornou presidente.

Paxton deixou-se cair numa cadeira ao lado da mãe. As lágrimas corriam-lhe abundantemente pelas faces e fitava o ecrã com uma expressão de descrença, incapaz de apreender o que se passara.

- Como é que alguém pôde fazer uma coisa destas? - soluçou; Queenie abanava a cabeça e, sem parar de chorar, voltou para a cozinha.

- Não sei, Paxton. Falam de conspiração. Mas não me parece que alguém saiba ainda por que motivo aconteceu. Lamento por Mistress Kenedy e pelas crianças. Que coisa horrível para elas.

Paxton, voltou a pensar no pai. Embora ele não tivesse sido assassinado, morrera subitamente, e a sua ausência continuava a magoá-la. Talvez fosse sempre assim. E tinha a certeza de que os filhos do presidente também sentiriam a ausência dele. Porque é que tudo aquilo acontecera?

- Atravessamos uma época terrivelmente conturbada - prosseguiu a mãe. - Todos estes horríveis conflitos raciais... as mudanças que tentou realizar... Talvez seja o preço que acabou por pagar... - Beatrice Andrews tinha um ar arrogante ao desligar o televisor, e Paxton fitou-a, interrogando-se sobre se alguma vez viria a compreendê-la.

- Achas que é uma questão de direitos civis? Achas que é esse o motivo por que tudo aconteceu? - irritou-se Paxton.

Porque é que a mãe pensaria assim? Porque é que gostaria de manter tudo na Idade Média? Porque é que eles tinham de viver no Sul? Porque é que ela nascera em Savannah?

_ Não afirmo que tenha sido esse o motivo, Paxton. Afirmo que é uma possibilidade. É impossível virar um país inteiro do avesso e mudar tradições com que as pessoas se sentiram bem durante centenas de anos, sem pagar um preço por isso. Talvez seja este o preço a pagar. Sem dúvida, um preço terrível.

Paxton fitou-a com um olhar incrédulo. Não era esta, contudo, a primeira vez que discutiam o assunto.

- Como podes dizer que as pessoas se sentem bem com a segregação? - replicou. - Como podes fazer uma afirmação dessas? Também achas que os escravos se sentiam bem?

- Alguns deles, sim. Alguns tinham vidas muito melhores do que agora, quando pertenciam a pessoas responsáveis.

- Oh, meu Deus! - No entanto, a mãe acreditava nas próprias palavras e Paxton tinha consciência disso. - Pensa na situação actual dos negros. Não sabem ler, não sabem escrever, trabalham como cães, são violentados, separados, segregados, não têm nenhum dos privilégios de que tu e eu usufruímos, mamã. - Era raro tratar a mãe assim. Só o fazia quando se sentia desesperada ou muito envolvida no problema, ou triste, como era o caso nesse momento, mas Beatrice Andrews não se deu por achada.

- Talvez fossem incapazes de lidar com esses privilégios, Paxton. Não sei. Apenas digo que é impossível mudar o mundo de um dia para o outro, sem que haja repercussões horríveis. E foi exactamente isso o que aconteceu.

Paxton não pronunciou nem mais uma palavra. Dirigiu-se ao quarto, deitou-se em cima da cama e chorou até à hora do jantar, quando o irmão regressou a casa. Apareceu pálida e de olhos inchados para o habitual jantar das sextas-feiras.

Ele vinha jantar todas as terças e sextas-feiras à noite, excepto quando havia impedimentos de trabalho ou tinha qualquer compromisso social importante, o que era raro. E, à semelhança da mãe, tinha uma perspectiva oposta à da sua irmã muito mais nova. Limitava-se, contudo, a sorrir quando ela expressava os seus pontos de vista ou emitia uma exclamação desdenhosa, garantindo-lhe que viria a pensar de uma maneira diferente quando fosse mais velha.

Era esse o motivo por que ela raramente dava a conhecer as suas opiniões a qualquer deles e mantinha uma distância respeitosa. Nada tinha a confidenciar-lhes, e a tentativa de discussões de teor filosófico ou político com ambos só a enlouquecia. Guardava os seus pontos de vista para as companheiras de estudo, os professores mais liberais ou as composições que escrevia. Quando achava que Queenie podia compreendê-la, conversava com ela, e a velha mulher revelava uma sabedoria contraditória com a sua educação linear. Era, contudo, entendida nas coisas do mundo e muitas vezes uma boa interlocutora para Paxton. A jovem chegara mesmo a falar-lhe das universidades a que se tinha candidatado e o que pensava das mesmas; Paxton mostrava-se obstinada quando afirmava que não queria ficar no Sul e Queenie compreendia. Entristecia-a saber que Paxxie se afastaria dali, mas sabia que lhe faria bem. Era demasiado parecida com o pai para não o fazer.

- Penso tratar-se de uma conspiração cubana - declarou George ao jantar, nessa noite. - Penso que, quando começarem a escavar, vão concluir que há muito mais para lá do que está à vista.

Paxton fitou-o e interrogou-se se existiria alguma verdade naquela afirmação. Ele era um homem inteligente, embora pouco interessante. Passava a maior parte do tempo embrenhado na medicina e nada mais o interessava de facto. Detinha opiniões marcadamente provincianas e a única vez em que se entusiasmara a sério fora com um novo projecto de pesquisa num assunto que lhe interessava, ou seja, diabetes nos adultos, o que não parecia muito atraente para Paxton.

George tinha trinta e um anos e quase ficara noivo no ano anterior, mas nada fora avante e tinha, por qualquer motivo, a sensação de que a mãe ficara aliviada, embora a rapariga pertencesse a uma família que ela conhecia. Beatrice afirmara, no entanto, mais do que uma vez, que achava que George era demasiado novo para se casar. Tinha de se instalar na vida, antes de se sobrecarregar com uma mulher e filhos.

De qualquer maneira, Paxton nunca gostava das raparigas com quem ele saía. Eram sempre bonitas, mas tontas e superficiais. Não tinham «Substância» e era impossível conversar a sério com elas.

A última que trouxera a um jantar que a mãe oferecera tinha vinte e dois anos e rira a noite toda. Explicara que não entrara na universidade dado as suas notas serem muito baixas, mas adorava trabalhar para a Liga Júnior e participaria do desfile de moda nessa semana. Acrescentou que mal conseguia esperar pelo evento e, no fim da noite, Paxton sentia vontade de a estrangular. Era tão estúpida e irritante que não percebia como é que o irmão a suportava; só que parecia muito terna e agarradiça quando saíram e continuava a rir ao entrarem no carro dele. Há muito que Paxton se tinha mentalizado que o mais provável seria odiar a rapariga com quem George eventualmente casasse. Seria meiga, simples, pouco exigente, avessa a pensar, a desafios e extremamente sulista. Paxton também era sulista, mas no caso de Paxton tratava-se de geografia e não de uma desculpa ou tormento. Ainda havia, aparentemente, muitas jovens que gostavam de ser «belas sulistas» e servir-se disso como desculpa para a ignorância ou total estupidez. Paxton odiava raparigas deste género, mas era óbvio que o irmão gostava delas.

Paxton não conseguiu dormir durante toda aquela noite e estava obcecada pela televisão. Voltava incessantemente até junto do aparelho e, por fim, às três horas da manhã, sentou-se na frente do ecrã. Viu que, às quatro horas e trinta e quatro minutos transportavam o caixão para a Casa Branca com Mrs. Kennedy caminhando ao lado. Nos três dias seguintes Paxton ficou com a sensação de nunca ter afastado os olhos do televisor.

No sábado, assistiu à chegada de membros da família e membros séniores do Governo, que tinham vindo ver o homem que amavam. E no domingo, assistiu ao transporte do caixão até ao Capitólio numa carruagem puxada por cavalos. Viu Jacqueline Kennedy e a filha Caroline ajoelharem-se ao lado do caixão e como a menina enfiava a mão por baixo da bandeira que o tapava, e nos rostos de ambas pairava a tristeza. Em seguida, Paxton viu Lee Oswald a ser abatido por Jack Ruby, no momento em que o transferiam para outra prisão; observava, surpreendida, pensando inicialmente que se tratava de qualquer erro ou confusão. Parecia-lhe impossível que mais uma pessoa tivesse sido morta naquele infindável horror.

Na segunda-feira, assistiu ao funeral e chorou, descontrolada, enquanto escutava o som lúgubre do infindo rufar dos tambores. E, ao avistar novamente a carruagem sem condutor, voltou a lembrar-se, por qualquer motivo, do pai. O desgosto parecia interminável, uma dor com sabor a eternidade, uma tristeza sem fundo, e até a mãe estava abalada na segunda-feira à noite, e ela e Paxton mal trocaram uma palavra ao jantar. Queenie ainda estava a enxugar os olhos quando Paxton foi até à cozinha falar com ela; sentou-se numa cadeira, observando-a, distraída, a lavar a louça, após o que a ajudou a limpar os pratos. A mãe subira ao andar de cima para telefonar a uma amiga. Dava a sensação de que nada tinham a dizer uma à outra, nem a encorajar-se ou consolar-se mutuamente. Estavam demasiado distantes e sempre assim fora.

- Ignoro porquê ... mas continuo a sentir-me como quando o papá morreu ... Como se esperasse que algo diferente acontecesse. Como se ele fosse aparecer em casa a qualquer momento e me dissesse que não era verdade, que tudo se tratava de uma brincadeira... Ou que o Walter Cronkite aparecesse no ecrã e comunicasse que é tudo um teste, que o presidente está a passar o fim-de-semana em Palm Beach com Jackie e as crianças e lamentam muito ter-nos preocupado ... mas tal não sucedeu. Tudo continua em cadeia... e é real ... Uma sensação estranha.

Queenie esboçou um aceno de concordância com a cabeça grisalha tão cheia de sabedoria. Sabia, como sempre, o que Paxton estava a sentir.

- Eu sei, filha. É assim, quando alguém morre. Sentamo-nos e ficamos à espera que alguém nos diga que não aconteceu. Senti-me assim quando perdi os meus bebés. Leva muito tempo a desaparecer.

Agora, era difícil pensar no Dia de Acção de Graças. Era difícil dar graças por um mundo confuso e irritado, que arrebatava as pessoas antes do tempo previsto. Era difícil conceber feriados e, ao pensar assim, Paxton imaginava como se sentiriam os Kennedy. Devia ser o pior dos pesadelos para Jacqueline Kennedy e os filhos. Organizara o funeral e desempenhara tudo na perfeição, até aos cartões impressos na papelaria da Casa Branca. Escrevera à mão as palavras «Deus, toma por favor ao teu cuidado o teu servo John Fitzgerald Kennedy» e mandara também imprimir excertos do seu discurso inaugural.

Era o fim de uma era... o fim de um momento no tempo... de um tempo que quase se tornara... efémero, flutuante, desaparecido. O facho havia sido, na verdade, passado a uma nova geração que, agora, o agarrava com firmeza, mas hesitava quanto até onde o transportar.

Nessa noite, quando Queenie apagou as luzes da cozinha e se despediu de Paxton, conservaram-se um momento no escuro, a velha e a jovem, a branca e a negra, envoltas pela tristeza da perda generalizada. Depois, Queenie dirigiu-se ao seu quarto e Paxton subiu ao andar de cima, até ao dela, para pensar no que se perdera e no que havia pela frente.

Sentia-se como se lhe devesse algo, para que não tivesse morrido em vão. Tal como devia algo ao pai... e a si própria. Tinha de ser alguém por eles... fazer algo de importante com a sua vida... algo que tivesse interesse. Mas o quê? Era essa a questão.

Deitou-se na cama a pensar em ambos, no que haviam defendido, no que tinham acreditado, o homem que amara e conhecera tão bem e o outro que só lhe permitia suposições. E, de súbito, a única coisa que desejava era iniciar a sua vida... dar-lhe um rumo... e apenas conseguia pensar no seu sonho de ir para Harvard, como eles o haviam feito. Continuou deitada, fechou os olhos e prometeu, silenciosamente, a ambos, fazer algo de si, ser alguém de quem se orgulhassem. Era o presente que lhes dava, o legado que lhe tinham deixado e uma promessa que estava certa de cumprir.

Apenas lhe restava esperar pela Primavera... e rezar para que fosse aceite em Radcliffe.


 

Os últimos sobrescritos chegaram na segunda semana de Abril. Sweet: Briar tinha aceite o pedido em Março. E Vassar, Wellesley e Smith haviam anuído nos primeiros dias de Abril. No entanto, Paxton não estava interessada em nenhuma das instituições.

Arrumou as cartas em cima da secretária e continuou a aguardar a que realmente pretendia. Radcliffê. Rezava intimamente para que a sua primeira escolha se tornasse realidade, e a perspectiva de falhar não lhe parecia muito provável.

Afinal, o pai fora para Harvard e ela tinha notas altas. Não excelentes, mas boas. Somente se sentia preocupada por não ser grande coisa no desporto e nunca ter desenvolvido interesses colaterais. Adorava escrever poesia e contos, gostava das aulas de fotografia, andara no ballet em criança e inscrevera-se no clube de arte dramática, mas desistira por achar que interferia com os estudos. E ouvira mais do que uma vez que Harvard queria gente que fosse boa em tudo e nutrisse marcados interesses extracurriculares. Mesmo assim tinha quase a certeza de que seria aceite.

A mãe ficara satisfeita quando chegara a carta de Sweet Briar e, no que lhe dizia respeito, Paxton recebera notícias do único estabelecimento interessante.

Agradava-lhe poder afirmar que Paxton tinha sido aceite pelas outras universidades; mas, tal como Paxton, nenhuma delas a entusiasmava. E, para Beatrice Andrews, as universidades da Califórnia até podiam situar-se noutro planeta. Incitou Paxton a dar o passo mais «sensato» e aceitar o ingresso em Sweet Briar, sem aguardar resposta de qualquer das outras.

- Não posso fazer isso, mãe - replicou Paxton calmamente, perscrutando com os grandes olhos verdes aquele rosto que sempre lhe parecia o de uma estranha. Há muito tempo, prometi algo a mim própria. - Era, contudo, algo mais do que uma promessa feita a si própria, era algo que sentia dever ao pai.

- Nunca serias feliz em Bóston, Paxton. O clima é horrível. E a universidade é enorme. Estarás muito melhor perto de casa, num ambiente familiar. E podes tirar um curso em Harvard mais tarde.

- Porque não esperamos para saber se me aceitam? Parece-me mais sensato.

No entanto, o que parecia sensato para ela era-o muito pouco para a mãe. Irritava-a fortemente que Paxton se obstinasse tanto por entrar numa universidade do Norte, quando podia ir para Sweet Briar e ficar muito mais perto de casa.

Uma tarde, George apareceu para dizer de sua justiça, e Paxton sorriu para si mesma, ao escutá-lo. Falar com George assemelhava-se a falar com a mãe. Ambos pensavam que a vida dela se destinava a manter-se perto deles e que era idiota da sua parte tentar abrir as asas e expandir horizontes.

- E o papá, George? Saiu-se bem, embora se tenha aventurado a ir para o Norte e frequentar uma universidade com os ianques - disse num tom trocista que a divertia, mas não a ele. Entre as suas muitas outras virtudes, o seu irmão George não herdara o sentido de humor do pai.

- Não é a mesma coisa, Pax. E sabes que não sou um apaixonado do Sul. Apenas acho que, para uma mulher, Sweet Briar é uma escolha melhor. A mãe tem razão. E não há nenhum motivo para que te desloques para tão longe, até Bóston.

- Com esse tipo de atitude, nunca teriam descoberto a América, George. Imagina se a rainha Isabel tivesse dito a Colombo que não havia qualquer motivo para que ele percorresse toda a distância que o separava do Novo Mundo... - Zombava do irmão e ele não se mostrava nada satisfeito.

- A mãe tem razão. Ainda és uma criança e é ridículo fazer tudo isto como uma prova de força. Não és um homem e nenhum motivo do mundo justifica que vás para Harvard. Não estás vocacionada para uma carreira de médica ou advogada e, por isso, não há motivo para ires para onde quer que seja. Devias ficar em casa, próximo de nós. E se a mamã adoece? Já não é tão nova como dantes e necessita da nossa presença aqui.

Fez todas as tentativas, incluindo o sentimento de culpa, o que apenas serviu para enraivecer a irmã. Era incapaz de entender porque queriam cortar-lhe as asas. Parecia, 'contudo, que se sentiam seus donos.

- Tem cinquenta e oito e não noventa e três anos, George! E não vou passar o resto da minha vida sentada aqui, à espera de cuidar dela. E o que sabes tu, afinal, das carreiras que pretendo seguir? Raios!... Por acaso, até quero ser neurologista. Isso dá-me o direito de querer estudar no Norte, ou tenho de ficar aqui a fazer bolinhos e outras coisas, só porque sou uma mulher?

- Não era o que estávamos a sugerir - retorquiu com uma expressão magoada ante a sua rudeza.

- Eu sei - replicou, tentando recuperar a calma perdida. - E Sweet Briar é maravilhosa. Só que, durante toda a minha vida, sonhei ir para Radcliffe.

- E se não fores aceite? - redarguiu, fitando-a com um olhar penetrante.

- Serei. Tenho de ser. - Fizera a promessa à memória do seu pai. Tinha-lhe prometido até mesmo antes. jurara que ele se orgulharia dela e lhe seguiria as pisadas.

- E se não fores aceite? - insistiu o irmão num tom frio. - Concordarás em ficar no Sul?

- Talvez... Não sei... - As três universidades da Ivy League também não lhe agradavam e não tinha ponderado seriamente em Stanford ou Berkeley. Não queria pôr-se a conjecturar sobre uma ida para lá e não conhecia ninguém na Califórnia. - Logo vejo.

- Acho bem que comeces a encarar a hipótese a sério, Paxton. E a pensares duas vezes, antes de dares um desgosto à mamã.

Porque é que ele lhe fazia aquilo? Porque tinha de sacrificar a vida por eles? O que pretendiam dela e porque a queriam aqui, em Savannah? Parecia tão despropositado. Só para que pudesse ir a almoços e reuniões das Filhas da Guerra Civil com a mãe e aderir, eventualmente, a um clube de bridege? Assim, Beatrice não ficaria mal vista e Paxton encaixava-se no molde. Mas ela não queria encaixar-se no molde. Queria algo mais. Queria frequentar a escola de jornalismo em Radcliffe.

Falara muitas vezes no assunto com Queenie e ela era a única que a encorajava e a amava o suficiente para estar disposta a soltá-la. Sabia do que Paxton necessitava e queria que ela voasse para bem longe das duas pessoas que, aparentemente, tanto esperavam dela e sempre lhe haviam dado tão pouco.

Tinha direito a mais do que isso na vida, e o seu cérebro estava tão clarificado, tão cheio de novas ideias, que merecia algo mais do que a vida que a esperava, se ficasse em Savannah. E mesmo que, depois de se ter afastado, quisesse voltar, Queenie estaria ali para a receber de braços abertos. Não ia, todavia, suplicar-lhe que ficasse, nem atormentá-la como os outros.

O sobrescrito chegou numa terça-feira à tarde e estava na caixa do correio quando regressou a casa, juntamente com um de Stanford. E Paxton susteve a respiração no momento em que os avistou.

Estava uma quente tarde de Primavera e fizera lentamente o percurso até casa, pensando no rapaz que a convidara para o baile de Primavera nessa mesma tarde. Era alto, moreno e elegante, e ela admirara-o durante todo o ano anterior, mas ele andara com outra. E agora ele ficara subitamente livre e a cabeça de Paxton transbordava de sonhos e desejos. Tencionava contar tudo a Queenie e chegara, repentinamente, a carta por que esperava. Todo o seu futuro estava numa folha de papel branco, dobrada e selada num sobrescrito de Harvard.

«Cara Miss Andrews, temos o prazer de informá-la que foi aceite... Cara Miss Andrews, lamentamos informá-la que... » Qual das frases seria?

As mãos tremiam-lhe quando pegou nos sobrescritos, tentando decidir qual deles abrir primeiro. Sentou-se nos degraus da frente da sólida casa de tijolo e resolveu abrir primeiro o de Radcliffe, pois era, na verdade, o único que lhe interessava, e não conseguia aguentar a expectativa de aguardar até ter aberto o outro.

Atirou o comprido rabo-de-cavalo louro para trás das costas, fechou os olhos e encostou-se às elaboradas grades de ferro forjado, pedindo a bênção do pai para a resposta...

«Por favor... oh, por favor.. que eles me aceitem ... » Abriu os olhos e rasgou o sobrescrito o mais rapidamente que pôde.

As linhas de abertura não eram, de forma alguma, o que esperava. Não deixavam transparecer nada e arrastavam-se, infindavelmente, sobre a importância de Harvard, as qualidades dela como candidata, e só no segundo parágrafo estava escrito o que procurava. O coração quase lhe parou ao ler:

«Embora tenha todas as qualificações necessárias para ser uma excelente candidata a Radcliffe, achamos que nesta altura... talvez- outra instituição... Lamentamos... Estamos certos de que alcançará óptimos resultados em qualquer outra instituição que escolher... Desejamos-lhe o maior sucesso ... »

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, e as palavras dançavam numa névoa de tristeza enquanto lhe trespassavam o coração. Falhara perante ele. Tinham-na recusado. Um único instante bastara para lhe derrubar os sonhos. Radcliffe negara-lhe o ingresso. E o que faria, agora? Para onde iria? Tinha, realmente, de ficar no Sul com toda a sua estreiteza de ideias, temas familiares e junto da mãe e do irmão? Era mesmo assim? Ou iria para Vassar? Smith? Wellesley? Achava-as a todas monótonas.

Rasgou, hesitante, o segundo sobrescrito, sentindo-se nervosa. Talvez fosse chegada a altura de pensar seriamente em Stanford. Mas não por muito tempo. Abordavam a, questão logo no primeiro parágrafo, em vez de no segundo, e a resposta era praticamente idêntica à de Radcliffe.

Desejavam-lhe os maiores sucessos, mas achavam que se enquadraria melhor noutra instituição. O que a deixava... de mãos a abanar. Com as opções que já tinha e uma quantidade desconhecida em Berkeley. Sentia-se deprimida quando se pôs de pé, subiu os degraus e entrou em casa. Receava ser obrigada a dar a notícia à mãe.

Falou obviamente primeiro com Queenie e a velha mulher começou por se mostrar desgostosa por ela, mas, por fim, filosófica.

- Se não te aceitaram, é porque não era o teu destino. Um dia, olharás para trás e saberás.

Entretanto, as perspectivas que se lhe ofereciam eram desanimadoras. Não queria ficar no Sul, não queria ir para um estabelecimento só de raparigas e nem sequer se imaginava a ir para Berkeley. E agora? No entanto, a maneira de pensar de Queenie era mais avançada do que a de Paxton.

- E a Califórnia? ripostou. - É muito longe daqui, mas talvez gostes. Uma das filhas mudara-se para Oakland há vários anos e, embora ela nunca lá tivesse estado, sempre ouvira dizer que São Francisco era maravilhoso. - Dizem-me que é bonito. Não terás frio como no Norte. - Sorriu meigamente à jovem que amara e consolara desde que nascera, custando-lhe vê-la tão amargamente desapontada. - A tua mamã matava-me se me ouvisse sugerir-to, mas acho que devias pensar na Califórnia.

Paxton esboçou um arremesso de sorriso. A mãe matava-as às duas, se ouvisse metade das suas conversas.

- Parece-me tão distante... tão... Não sei... tão estranha...

- A Califórnia? - redarguiu Queenie com um sorriso. - Não sejas tonta. Fica apenas a umas horas de avião, pelo menos é o que a minha Rosie está sempre a dizer-me. Portanto, pensa nisso também. Talvez essa escola de Berkeley seja a solução.

Todavia, nessa noite ao jantar com a mãe e George, eles continuaram a opinar que a solução se encontrava muito mais próximo de casa e, no que lhes dizia respeito, a resposta de Radcliffe colocara ponto final no assunto. Nem sequer se sentiam desapontados, mas, pelo contrário, aliviados. E, à semelhança de Queenie, afirmaram que o destino assim o quisera. Porém, contrariamente à velha negra que cuidara dela, quase pareciam satisfeitos com o ruir dos seus sonhos.

E, no meio de toda a situação, Paxton sentia-se como se, de qualquer maneira, tivesse desapontado o pai, como se o tivesse deixado ficar mal ao ser recusada pela sua alma mater. Desejava expressar tudo isto a alguém, confessar que estava deprimida, mas, por uma vez na vida, achava que Queenie não a compreenderia, e era óbvio que também a mãe e o irmão estariam longe de o fazer. E as amigas encontravam-se absortas nas suas próprias tristezas e alegrias. Todas estavam por completo obcecadas com as universidades de que esperavam notícias e o facto de serem aceites ou recusadas.

O rapaz que a convidara para o baile de finalistas telefonou nessa noite e tentou confidenciar-lhe algo do que sentia, mas ele apenas conseguia falar de ter sido aceite por Chapel Hill e nem sequer parecia ouvi-la. Aquela era uma altura para se chorar ou celebrar a sós. E, nessa noite, quando se deitou, pensou nas palavras de Queenie e interrogou-se sobre se seria uma idiotice total, ou se valeria a pena considerar a hipótese. E, mais importante, se a aceitariam.

Contudo, no final da semana, a mãe e George tinham-na esgotado; acedeu inscrever-se em Sweet Briar na semana seguinte, prometendo intimamente que iria recandidatar-se a Radcliffe no próximo ano e insistir até ser aceite, independentemente de quanto tivesse de trabalhar ou do tempo que demorasse a convencê-los. Ficou um pouco melhor depois de ter traçado esse plano e teve consciência de que lhe seria mais fácil permanecer próximo de casa, desde que soubesse que não se tratava de uma situação definitiva.

E, na segunda-feira, chegou a resposta de Berkeley. Tinham o maior prazer em informá-la de que fora aceite. E, embora ignorasse porquê, o coração pôs-se a bater com mais força e sentiu uma repentina excitação. Precipitou-se para a cozinha, a fim de mostrar a Queenie a carta que lhe tinham mandado. A velha mulher fitou-a de olhos brilhantes, como se aquela fosse a resposta a tudo e nunca tivesse duvidado de que chegaria.

- Estás a ver? Aí tens a resposta.

- O que te dá tanta certeza? - replicou ela podia saber? Como podia estar tão segura?» No entanto, nenhuma das outras opções lhe agradava.

- Como te sentes?

- Bem. De certa maneira excitada e receosa... mas feliz.

- E as outras escolas de que tens falado? Como te fazem sentir?

- Deprimida... aborrecida... bastante mal.

- Não me parece uma boa solução. Acho esta melhor. Mas pensa nisso, querida. Reza. Escuta o Senhor.. e as tuas entranhas. Escuta sempre o que sentes dentro de ti. Todos o fazemos. Sabemo-lo aqui - declarou, apontando para o volumoso ventre com uma expressão séria. - Quando nos sentimos bem, é a resposta certa, mas quando nos sentimos mal, indispostos, tristes, é porque fizemos um erro grande ou estamos quase a fazê-lo!

Paxton riu-se ante aquela sabedoria simples, mas sabia que, como habitualmente, Queenie tinha razão. A velha mulher sabia. Era muito mais esperta do que a mãe de Paxton, George, ou a própria Paxton.

- O mais estranho é que acho que tens razão, Queenie. - Sentou-se numa cadeira da cozinha, mordiscando uma cenoura e com um ar pensativo. Era jovem e bonita e o rosto emanava tranquilidade. Tratava-se de alguém que se sentia bem consigo próprio e há muito que assim era. Era calma e forte e desde a morte do pai, há sete anos, que se habituara a meditar muito. - O que vou dizer-lhes?

- A verdade, quando souberes qual é essa verdade. E não faças o que quer que seja só porque te digo que o faças. És uma rapariga esperta. Faz o que quiseres fazer e o que sabes que está certo, quando o souberes. Antes de mais, pensa. Saberás quando chegar a altura. - Voltou a apontar para o ventre e Paxxie riu e levantou-se.

Era alta, magra e elegante como o pai o fora e de uma estranha graciosidade. Era mais alta do que muitas das suas amigas, mas nunca se tinha importado. E, com grande surpresa de Queenie, não se interessava especialmente pela aparência. Era bonita e quase dava a sensação de que não sabia ou não queria saber. Interessava-se por outras coisas, assuntos do coração, do íntimo, da alma.

Assemelhava-se demasiado com o pai para ter consciência de que era bonita, e a indiferença que mostrava frente à sua beleza loura irritava muitas vezes a mãe. Queria que ela passasse nos desfiles de moda da Liga Júnior e eventos das Filhas da Guerra Civil e Paxton recusava. Era uma jovem calma e tímida e divertia-a toda a pressão e política inerentes a tais acontecimentos, mas não lhes dava importância.

Gostava de falar de assuntos sérios com os professores, dos recentes desenvolvimentos no Vietname, das ramificações da morte de Kennedy, da posição de Johnson ante os direitos civis, de Martin Luther King e das suas marchas e manifestações. Tinha uma paixão por todos os acontecimentos importantes que decorriam no mundo, as suas ligações, elos e efeitos entre si. Era sobre tudo isto que gostava de escrever, pensar e participar.

Mais tarde, nessa mesma semana, procurou um dos seus professores favoritos e perguntou-lhe o que pensava da Universidade de Berkeley.

- Acho que é uma das melhores do país. Porquê? - retorquiu, fitando-a bem nos olhos, o que a fez hesitar, mas apenas um momento.

- Estou a tentar decidir se hei-de ir para lá.

- As notícias de Radcliffe não corresponderam às tuas expectativas? - O professor sabia como ela desejara ir para lá, quanto apostara nisso e porquê e ele aconselhou-a, de imediato, a optar por Berkeley. Ele próprio era do Norte e defendia a diversificação das experiências individuais. Achava que os miúdos do Oeste deviam ir para o Leste e os miúdos do Leste deviam ir um ou dois anos para o Oeste, além de que os jovens do Sul deviam ir para o Norte, a fim de conhecer algo diferente.

- Se fosse a ti, não hesitaria um minuto, Pax. Agarra a oportunidade enquanto podes e não penses segunda vez em Radcliffe. Podes sempre tirar uma especialização lá. Por agora, esquece e segue para oeste. Vais adorar - rematou com um sorriso.

Enquanto o ouvia, Paxton sentiu uma onda de excitação por todo o corpo. Afinal, talvez Queenie tivesse razão. Talvez fosse esta a resposta.

Durante uns dias não disse nada à mãe e, no final da semana, escreveu a matricular-se. Na sexta-feira à noite, comunicou-lhes ao jantar.

- Enviei hoje a minha matrícula - declarou tranquilamente, aguardando a tempestade que sabia inevitável.

- Rapariguinha esperta - aprovou o irmão. «Afinal ela obedeceu», pensou. «Não era tão difícil como a mãe achava». - Estás orgulhosa de ti, Pax?- inquiriu. - Devias estar. - A jovem sorriu ante os pródigos elogios, consciente do que estava prestes a acontecer.

- De facto, estou. Pensei muito no assunto e acho que tomei a decisão certa. Na verdade, sei que é assim.

A mãe fitou-a prudentemente, receosa de falar de mais.

- Ainda bem que tudo correu desta maneira, Paxton limitou-se a comentar.

- Ainda bem - replicou Paxton.

- Muitas raparigas óptimas vão para Sweet Briar, Paxton. É uma universidade maravilhosa - retorquiu o irmão, feliz, enquanto Paxton os olhava tranquilamente.

- É mesmo - concordou -, mas não vou para lá. - Por momentos, tudo parou na sala de jantar. Aquilo não era o que todos haviam esperado. - Vou para a universidade da Califórnia, para Berkeley.

Por um instante, os dois mantiveram um silêncio sepulcral e, depois, o irmão recostou-se na cadeira e atirou o guardanapo para cima da mesa.

- O que te levou a tomar uma atitude dessas? - ripostou, ao mesmo tempo que Queenie abandonava a sala com um sorriso, a fim de reabastecer a travessa de rosbife.

- Falei no assunto com a minha orientadora e alguns professores. Acham que se trata de um óptimo estabelecimento e uma boa escolha, já que não vou para Radcliffe.

- Mas a Califórnia? - ripostou a mãe, desesperada. - Porque é que alguém desejaria ir para um sítio desses? Porque é que queres ir para tão longe? - No entanto, todos sabiam porquê, quer o quisessem ou não admitir.

Paxton queria afastar-se deles. Desde a morte do pai que se sentia infeliz em casa e eles tinham feito muito pouco para mudar a situação. A mãe e o irmão haviam seguido as suas próprias vidas, apenas com tentativas ocasionais para a levar ajuntar-se-lhes, quer lhe agradasse ou não o que faziam. Ela devia, supostamente, «enquadrar-se» no seu estilo de vida, quer se lhe adequasse ou não. Para eles não tinha importância. E agora queria viver a sua própria vida, seguir o seu próprio destino. E, neste momento, o caminho era a Califórnia.

- É algo que sinto que devo fazer - arguiu tranquilamente, é os penetrantes olhos verdes fixavam os da mãe.

Não estava a discutir com ela, mas absolutamente determinada quanto ao que estava a fazer. E o pai tinha-lhe proporcionado esse luxo. Deixara-lhe uma pequena herança para pagar a sua educação, e assim a mãe não podia ameaçar que não pagaria a universidade, se ela deixasse de obedecer. Tinha liberdade de escolha e servira-se dessa liberdade quando aceitara Berkeley.

- O teu pai ficaria muito desapontado - replicou a mãe friamente, o que era um golpe baixo e Paxton sentia-o.

- Tentei entrar em Harvard, mãe - redarguiu o mais calmamente possível. - Só que não consegui. Acho que talvez ele entendesse. - Recordava as histórias do pai sobre as tentativas de entrar em Princeton e Yale, ter sido recusado e ter de «optar» por Harvard. Portanto, ela «optara» por Berkeley.

- Referia-me a pensar que ele ficaria desapontado por saíres de casa tão bruscamente e ires para tão longe.

- Voltarei - replicou num tom suave mas, no próprio momento em que pronunciou as palavras, interrogou-se sobre se estaria a falar com o coração.

Voltaria? Desejava-o? Morreria por regressar a casa depois de estar longe ou apaixonar-se lá na Califórnia, desejando ficar lá para sempre? Em alguns aspectos, sentia-se ansiosa por partir, noutros, lamentava afastar-se. Sempre achara que não se enquadrava naquelas paragens. Nunca fazia o que a mãe desejava. Não podia, contudo, sujeitar-se ao que pretendiam dela. Era pedir demasiado. Não podia ficar no Sul, nem próximo deles, era incapaz de continuar a fingir ter algo de comum com eles, não sendo esse o caso. Não podia continuar a fingir. E, de súbito, ficou pronta a admitir como era diferente e a começar a sua própria vida, em Berkeley.

- E com que frequência achas que virás a casa? - inquiriu a mãe, acusadora, enquanto Queenie a observava por cima do ombro.

- Acho que virei a casa no Natal e, obviamente, no Verão. - Era tudo o que tinha a oferecer-lhes, tudo o que podia dar, e tudo o que queria deles era a sua liberdade. - Virei a casa o máximo de vezes que puder - rematou com um sorriso suave, desejando que se sentissem felizes por ela, o que não aconteceu. - E se quiserem, podem ir visitar-me à Califórnia.

- O teu pai e eu fomos uma vez a Los Angeles - replicou a mãe, com um olhar de desaprovação. É um lugar horrível. Nunca voltaria lá.

- Berkeley é mesmo à saída de São Francisco. - No entanto, foi como se tivesse dito «à saída do inferno», pela expressão do rosto da mãe. Finalizaram a refeição em silêncio.


 

Na manhã em que partiu, Paxton mantinha-se de pé na confortável cozinha, olhando em volta como se estivessem a forçá-la a sair de casa, com as lágrimas a rebentar e a cabeça apoiada no ombro terno e acolhedor de Queenie.

_ Como vou viver sem te ver todos os dias? - sussurrou, voltando a sentir-se uma criança. Acometeu-a, subitamente, a mesma impressão de tristeza e perda de quando o pai tinha morrido. Sabia que não voltaria a vê-la e, embora Queenie continuasse ali, não podia estender a mão e tocar-lhe.

- Ficarás bem - profetizou Queenie, sustendo, corajosa, as lágrimas. Estava decidida a não permitir que Paxxie se apercebesse dos seus sentimentos. - Sê boa menina na Califórnia. Lembra-te de comeres legumes, dorme muito e lava o teu belo cabelo uma vez por semana com limão. - Era algo que lhe fazia quase desde bebé e cabia-lhe o mérito de Paxton ainda continuar tão loura, dezoito anos mais tarde. - Usa chapéu ao sol e não te queimes... - acrescentou, consciente de que havia mil coisas que queria dizer-lhe, mas que a mais importante era quanto a amava. Apertou Paxton fortemente de encontro ao peito, e o calor do coração e do corpo foram o melhor porta-voz, ao mesmo tempo que Paxton correspondia ao abraço com a mesma intensidade.

- Amo-te tanto, Queenie... Toma conta... Promete-me que tomas conta de ti. E se apanhares uma constipação forte neste Inverno, como acontece quase todos os anos, desta vez, vai a um médico.

- Não te preocupes comigo, miúda. Tudo vai correr bem. Porta-te como deve ser lá na... Califórnia... - Mal se atrevia a pronunciar a palavra, e fora, contudo, Queenie quem a encorajara a partir, quem a ajudara a usufruir da sua liberdade. Em seguida, soltaram-se dos braços uma da outra e os olhos de Queenie estavam húmidos, mas pelas faces de Paxton corriam dois fios de lágrimas e tinha os olhos mais verdes do que nunca.

- Vou ter tantas saudades tuas.

- Também eu - retorquiu Queenie, limpando os olhos com o avental e sorrindo, após o que deu uma palmadinha no ombro da jovem. Amara-a como se fosse do seu sangue em criança e amava-a ainda mais, agora que crescera. Estavam unidas para toda a vida e não havia distância, tempo ou lugar que pudesse separá-las, e ambas o sabiam. Paxton apertou-lhe a mão pela última vez, beijou-lhe a macia pele negra e depois saiu da cozinha para se juntar aos outros.

- Depois telefono-te - sussurrou. - Queenie piscou-lhe o olho e, depois de ela se afastar, desceu ao quarto e soluçou com a cara escondida no avental.

A ama sentia o coração despedaçado ante o afastamento de Paxton, mas sabia melhor do que ninguém que ela tinha de ir-se embora. A vida da rapariguinha nunca mais fora a mesma desde a morte do pai e ela sabia que não a tratavam mal intencionalmente, só que eram diferentes.

Paxton era uma miúda cheia de fogo, de vida e entusiasmo por tudo. E possuía um calor e um amor que ansiava partilhar com as pessoas que a rodeavam. Contudo, o amor que tinha para dar assustava a mãe, e George não fazia a mínima ideia de como o utilizar. George e a mãe eram dois seres do mesmo género, e Paxton parecia-se demasiado com o pai.

Queenie sentia-se como se tivesse cuidado de uma rara ave tropical durante dezoito anos, mantendo-a quente, segura e viva, alimentando-a da própria alma e havendo-a agora liberto, para que fosse para um clima mais hospitaleiro. Paxton já não pertencia ali, há muito que deixara de pertencer e, embora, aos dezoito anos, ainda fosse muito novinha para sair de casa, Queenie sabia que estaria melhor sem eles.

Paxton tinha um mundo novo à sua espera e, de certa maneira, Queenie estava ansiosa por que ela o descobrisse. Mas, no fundo do coração, sentia a dor de a perder, de não poder ficar por mais tempo ao lado dela, de já não poder fixar os olhos verdes à tarde, nem beijar o cabelo sedoso do cimo da cabeça, quando ela se sentava para tomar o pequeno-almoço, todas as manhãs.

No entanto, estava disposta a fazer esse sacrifício porque a amava. E precipitou-se para a janela ao ouvi-los partir, mesmo a tempo de acenar a Paxton, que se debruçou na janela do automóvel, com o seu rabo-de-cavalo louro, a perder de vista.

A mãe manteve um ar muito solene ao longo do caminho até à saída da cidade, e George não pronunciou uma palavra enquanto se dirigiam ao aeroporto.

- Ainda estás a tempo de mudar de opinião - replicou tranquilamente a mãe, o que poderia ser a sua maneira de expressar que sentiria a sua falta.

- Acho que não o farei - retorquiu Paxton no mesmo tom, continuando a pensar no rosto de Queenie antes de partir, no calor dos seus ombros e na segurança dos braços quando a apertara de encontro ao corpo.

- Tenho a certeza de que o deão de Sweet Briar ficaria feliz por tomar as devidas disposições - acrescentou a mãe, com uma expressão severa, pois continuava a encarar o afastamento de Paxton do Sul como uma afronta pessoal. já fora um insulto bastante o facto de ela querer sair de Savannah.

- Talvez, se as coisas não correrem bem na Califórnia - redarguiu Paxton delicadamente.

Apetecia-lhe estender o braço e tocar na mão da mãe, mas, depois, pensou melhor e controlou-se. A mãe não fez qualquer menção de se aproximar dela e não houve mais troca de palavras até ao aeroporto. Paxton sabia que, supostamente, deveria estar minada de culpa e tinha pena de partir, mas também se sentia muito excitada. Nos últimos tempos, ouvira contar muitas coisas interessantes sobre a universidade e estava ansiosa por pôr os olhos na Califórnia.

Tinha enviado uma mala de porão e dois sacos na frente, e George retirou a única mala do porta-bagagens do carro, confiando-a a um carregador. Entregou, depois, o talão das bagagens a Paxton e apressou mãe e filha para que fossem procurar o portão de embarque e aguardassem o avião de Paxton com destino a Oakland.

- Suponho que o tempo estará agradável - observou a mãe num tom tenso, e Paxton esboçou um aceno de concordância. Nesse momento, fitou a mãe e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. A manhã revelara-se cheia de emoções.

O próprio facto de deixar o seu quarto em casa provocara-lhe lágrimas e passara alguns minutos no antigo escritório do pai, às seis horas dessa manhã. Tinha-se sentado em frente da secretária, continuando a vê-lo sentado do outro lado, e contara-lhe o que se passara num sussurro baixo mas audível.

- Não consegui entrar em Harvard, papá... - Era uma confissão que, de certa maneira, achava que ele já sabia. -... Mas vou para Berkeley.

Esperava que ele ficasse satisfeito. Por um lado, sentia-se triste por sair de casa, triste por deixar as pessoas e lugares que lhe eram familiares. No entanto, também sabia que, contrariamente aos outros, levaria o pai com ela para onde quer que fosse. Ele era agora uma parte dela como era uma parte do céu da manhã e dos poentes que gostava de observar, quando pedia o carro emprestado e conduzia até junto do oceano. O pai fazia parte de tudo o que ela fazia e era. Nunca o perderia.

- Mamã. - Aclarou a garganta, enquanto aguardavam o avião. - Desculpa... quanto a Sweet Briar... Quero dizer... desculpa, se te magoei.

A franqueza destas palavras apanhou a mãe momentaneamente de surpresa, e tornou-se óbvio que não sabia como responder. Quase recuou um passo e fugiu da filha, mas estava realmente a fugir à sinceridade da emoção, à intimidade que sempre a ameaçara e que era inerente a Paxton.

- Desculpa... Só queria dizer-te isto antes de me ir embora - prosseguiu a jovem. Aprendera cedo na vida que não se deixam coisas por dizer quando se gosta das pessoas, pois nunca se sabe se se voltará a ter outra oportunidade de o fazer. Era uma lição que aprendera cedo de mais e de uma forma excessivamente dura.

- Eu.. hum... - A mãe tropeçou nas próprias palavras. - ... Não tem importância. Talvez tudo corra bem para ti, Paxton. E, se assim não for, podes pedir a transferência no próximo ano. - Tratava-se de uma enorme concessão da sua parte, e Paxton sentiu-se satisfeita por isso. Detestaria que ficassem zangadas e até mesmo George não parecia muito aborrecido quando lhe deu um beijo de despedida e a aconselhou a ter juízo na Califórnia, embora soubesse que assim seria. Ela era boa rapariga, ainda que um pouco teimosa. E, em comparação com as outras raparigas da sua idade dessa época, não causara muitos problemas à mãe.

Os dois ficaram a acenar-lhe quando entrou no avião; sentiu-se aliviada e liberta deles. Apenas tinha saudades de Queenie quando o avião levantou voo e descreveu um círculo vagaroso sobre Savannah. Era uma cidade de que não sentiria a falta e, de qualquer maneira, sabia que regressaria no Natal. Muitas das suas amigas também partiriam. Iam para as universidades de todo o Sul; apenas duas haviam optado por frequentar uma universidade no Norte e ela era a única que ia para a Califórnia. Recostou-se no banco e fechou os olhos, enquanto o avião voava para oeste, rumo à Califórnia.

Devido à mudança de horário, era apenas meio-dia quando chegaram à Califórnia, e estava um dia maravilhosamente soalheiro quando Paxton desceu do avião e olhou em volta. O aeroporto era pequeno; a maioria das pessoas vestia T-shirts e calças de ganga ou camisas floridas e muitas mulheres usavam mini-saia ou vestidos leves e frescos. Todos tinham cabelos compridos; e achou-se de imediato em casa, quando levantou a mala no depósito das bagagens e se dirigiu ao exterior para chamar um táxi, sentindo-se extraordinariamente liberta.

O motorista indicou-lhe tudo o que achava que ela devia saber: os melhores restaurantes próximo da universidade, os sítios onde todos os miúdos paravam, o movimento na Telegraph Avenue. Referiu-se mais do que uma vez ao sotaque dela e vincou que lhe agradava.

 

1 Student Nonviolent Coordinating Committee: Comissão Coordenadora Pacífica de Estudantes, organização de defesa dos direitos civis, cujo objectivo era conseguir igualdade política e económica para os negros. (N. da T.)

2 Congress of Racial Equality: Congresso de Igualdade Racial. (N. da T.)

 

Quando chegaram ao complexo universitário, apontou para uma série de mesas na esquina da Telegraph com a Bancroft e explicou que se destinavam a apoiar determinadas causas. Por todo o lado havia cartazes da SNCC e CORE, símbolos de paz, e um enorme letreiro em cartão com os dizeres «Campo Feminino pela Paz». E sentiu uma repentina excitação só de estar ali. O mero facto de respirar o ar excitava-a e segredava-lhe que tomara a decisão certa ao vir. Sentia-se desejosa de dar uma volta, conhecer gente nova e ir às aulas.

Já sabia o nome do edifício onde se alojaria, e o motorista levou-a até lá, apertou-lhe a mão e desejou-lhe sorte antes de se ir embora.

Ali todos pareciam simpáticos e comunicativos. Ninguém se importava se se era branco ou negro, rico ou pobre, da Liga Júnior ou um vagabundo, nortista ou sulista; todos os rótulos de que se sentia tão farta, após ter crescido em Savannah, no meio das amigas da mãe, para quem era uma questão de vida ou de morte se o avô ou o bisavô haviam combatido na Guerra Civil e se se era ou não proprietário de uma plantação e escravos. Assemelhava-se a viver mergulhado no passado, um passado que abominava e do qual não queria participar.

O quarto que lhe tinham destinado ficava no segundo andar, ao fundo de um comprido corredor. Verificou, na verdade, que era o último quarto, ou melhor, dois quartos unidos por uma sala de estar, com duas raparigas para cada quarto. O centro da sala de estar era ocupado por um divã castanho, com almofadas coloridas a tapar os estragos de anteriores locatários. Havia posters por todo o lado, algumas peças de mobiliário bastante gastas e uma carpete laranja, com uma cadeira de braços de vinil verde.

Paxton deteve-se um momento a observar o que a rodeava. O cenário estava longe de ser bonito e contrastava com a calma elegância da casa da mãe, em Savannah. Este era, no entanto, um pequeno preço a pagar pela liberdade.

O quarto de dormir que lhe fora destinado era mais pequeno e mais austero. Era uma divisão pequena, com dois divãs de pessoa só, duas cómodas, uma cadeira de espaldar e um armário, onde mal cabia uma escova.

Teriam de ser boas amigas para viver num quarto assim, mas esperava estar prestes a conhecer três pessoas que ficariam rapidamente almas gêmeas. Avistara de relance três malas empilhadas no outro quarto e, um momento depois, quando regressou à sala; interrogando-se sobre o que poderiam fazer para a tornar um pouco menos feia, deparou com uma das colegas de quarto.

Era uma rapariga bonita, de pernas compridas e uma pele cor de café com leite; apressou-se a informar Paxton de que vinha do Alabama e se chamava Yvonne Gilbert.

- Olá! - cumprimentou-a Paxton com um sorriso caloroso. Tratava-se de uma rapariga de grande beleza, com olhos luminosos, perspicazes e muito pretos e usava um imponente penteado africano. - Sou Paxton. Andrews. - Hesitou, contudo, quando chegou a altura de falar da sua naturalidade. De qualquer maneira, a colega já estava inteirada.

- Carolina do Norte?

- Jórgia. Savannah - anuiu Paxxie com um sorriso, mas Yvonne mostrou-se, de imediato, desconfiada.

- Óptimo. Exactamente o que precisava. Um biscoitinho. Querem que voltemos a lutar numa guerra civil? Há alguém do pessoal com um espantoso sentido de humor. - Parecia muito aborrecida, mas Paxton continuava sem atribuir importância ao assunto.

- Não te preocupes. Estou do teu lado.

- Aposto que sim. Estou em pulgas para saber de onde são as outras. Que tal Mississipi e Tennessee? Talvez possam formar um grupo das Filhas da Guerra Civil. Seria divertidíssimo, querida. Vou adorar partilhar o alojamento com todas vocês.

Exagerava o sotaque; deitou um olhar maldoso a Paxxie e depois enfiou-se no seu quarto e bateu com a porta. Paxton sentou-se no divã com uma expressão triste. De qualquer maneira tudo aquilo seria interessante. E, sem dúvida, diferente.

A seguinte a chegar foi uma rapariga pálida, com um rosto etéreo e muito branca, cabelo preto azeviche até à cintura, olhos azuis e uma espécie de camisa de noite quase transparente.

- Olá - sussurrou. - Chamo-me Dawn. - Vinha de Des Moines. O verdadeiro nome era, de facto, Gertrude.

Dawn fora-lhe posto mais recentemente, com um pequeno toque de LSD, durante o último ano no liceu e decidira continuar a usá-lo. Dawn Steinberg. Era também uma óptima estudante, tocara viola com a orquestra local e tinham-lhe oferecido uma bolsa em Berkeley.

Fora-lhe destinado o outro quarto, e abriu a porta com que Yvonne batera há uns momentos; voltou a fechá-la devagar e ninguém apareceu. Não se ouviram gritos e Paxton concluiu que Miss Gilbert ficara satisfeita com a nova companheira de quarto. Des Moines não usufruía da reputação racista de que Yvonne acusara Savannah.

Sem deixar de pensar nas duas jovens que acabara de conhecer, Paxton resolveu desfazer as malas. Os dois sacos e a mala de porão tinham sido postos no quarto no dia anterior e resolveu fazer as duas camas. Assim, o quarto pareceria mais acolhedor quando a sua companheira chegasse e viu-se, de súbito, a pedir intimamente que não fosse negra nem irritada e não odiasse as mulheres da Jórgia.

«Por favor, meu Deus ... », pensou. «Sei que talvez não o mereça e tens mais que fazer hoje... mas podes fazer com que se pareça comigo?»

Às quatro da tarde, a sua companheira ainda não dera sinal de vida e Paxton resolveu abastecer o seu pequeno frigorífico. Antes de sair para fazer as compras, bateu à porta do quarto das outras raparigas e decorreu bastante tempo até que, por fim, Dawn veio abrir.

- Sim? - sussurrou para Paxton, como se tivesse medo de que alguém a ouvisse. Embora tivesse bom ouvido, Paxton achou quase impossível compreender o que Dawn dizia. E a tentação, ao falar-lhe, foi de responder da mesma forma. O próprio tom de voz normal parecia excessivo para se conversar com aquela visão etérea.

- Querem alguma coisa da loja? - sussurrou igualmente Paxton. - Vou sair e comprar comida. Estou a morrer de fome. - Sentia, repentinamente, a falta da cozinha bem recheada de Queenie. E, para ela, eram sete horas da tarde e estava pronta para jantar.

Pode traduzir-se por alvorada. (N. da T.)

- Gostaria de um chá de ervas, mel, uns limões... e talvez pão integral. - Nenhuma daquelas coisas parecia muito atraente a Paxton, mas estava disposta a trazer o que fosse

preciso para fazer amizade e anotou a encomenda de Dawn. - E a Yvonne? - inquiriu, cautelosa. - Será que quer alguma coisa? - Paxton olhou para dentro do quarto e verificou que tinham estado a desfazer as malas. Dawn tinha pendurado uns posters e Yvonne espalhara roupas por todo o lado; havia, além disso, lençóis coloridos e duas colchas de cetim rosa, que mais pareciam do Alabama do que de Des Moines, mas tornava-se difícil garantir no meio da confusão.

- Queres alguma coisa da loja? - perguntou Paxton directamente a Yvonne, quando ela se aproximou da porta e lhe deitou um olhar hostil.

- Sim. O Martin Luther King. Achas que consegues encontrá-lo, doçura?

- Não me venhas com esse tipo de conversa - ripostou Paxton, aborrecida. - Estás a fazer suposições à toa, tomando em consideração o facto de que só nos encontrámos há duas horas e não me conheces. - Paxton não a receava, e os preconceitos da outra irritavam-na.

- Que suposições deveria fazer? - retorquiu Yvonne quase a roçar-lhe o nariz, mas Paxton não recuou. Sabia que tinha de se impor agora frente à colega, ou mais valia esquecer o assunto. E não hesitou em manter a sua posição. Paxton era entusiasta, forte e tinha um tipo de coragem calma. O facto de conviver em permanência com o temperamento gelado da mãe há muito que a ensinara a ser forte, e não sentia receio da rapariga negra do Alabama. - És da Jórgia, certo? - prosseguiu Yvonne. - O que devo pensar?

- Deves, supostamente, dar-me uma oportunidade. Como devo fazer em relação a ti. Não é essa a finalidade dos direitos civis? Julgamo-nos pelo que somos, o que pensamos, aquilo em que acreditamos e defendemos e o que fazemos, não pela cor da nossa pele... ou só porque a tua pele é negra e a matrícula do meu carro é da Jórgia. Talvez nem sequer seja o meu carro. Talvez estejas completamente errada a meu respeito. Talvez haja um motivo para não ter ficado sentada no Sul a cheirar flores de magnólia e a beber uísque com hortelã. já te deste ao trabalho de pensar nisso? Aposto que nem te ocorreu. Nem todos os brancos do Sul são aparentados com o George Wallace. Dá-me uma oportunidade, céus! Talvez compense. - Era essa a ideia, não? Aquilo por que Martin Luther King se manifestara.

- Óptimo. Traz-me uma embalagem de seis Coca-Colas e um pacote de Kools. - Nem «obrigado», nem «por favor». Limitou-se a virar costas e a voltar para dentro do quarto. E Paxton acrescentou os pedidos à lista sem pronunciar uma palavra, saiu do alojamento e do edifício, a fim de procurar a loja de comida mais próxima.

«Vai ser interessante lidar com a Yvonne», pensou. Ela estava revoltada e cheia de ódio, e Paxton interrogou-se sobre se alguma vez viriam a entender-se. Tentara firmar amizade com varias raparigas negras que conhecera em acções de voluntariado e num acampamento organizado pela igreja, com grande desagrado da mãe e de Queenie. A geração delas não estava preparada para tal, e Queenie ficara ainda mais perturbada do que a mãe.

No entanto, Paxton tinha uma opinião diferente. Uma vez em que tinha ido almoçar com uma rapariga negra que conhecia mal, não as tinham servido, e Paxton ficara lívida. Tinham ido a três restaurantes e, por fim, desistiram, acabando por partilhar um pacote de batatas fritas num banco de Forsyth Park. Mas a jovem negra compreendera. Estava habituada e ficara comovida com a ternura e compaixão de Paxton.

Depois, durante muito tempo, Paxton tivera vontade de participar numa manifestação, mas até então não se atrevera, pois sabia que, se a prendessem, a mãe a fecharia à chave em casa um ano. Além disso, colocaria a mãe numa posição ingrata frente às amigas e não tivera coragem de o fazer.

No entanto, sabia que o faria um dia. E, de um momento para o outro, aqui estava a viver com uma rapariga negra, que a odiava somente porque ela era da Jórgia. Soltou uma repentina gargalhada ao atravessar a Telegraph. Riu tão alto que algumas pessoas se viraram, e apercebeu-se subitamente do que a mãe teria ripostado se soubesse que uma das suas companheiras de quarto era negra. E Queenie! Paxton sentia-se satisfeita. E ia estabelecer amizade com Yvonne, custasse o que custasse.

Comprou tudo o que constava da lista e ainda barras de chocolate para todas, algumas Coca-Colas para si, pão e outras coisas para fazer sanduíches e uma caixa de donuts. Levou o saco para o quarto e, no momento em que subia as escadas, avistou uma rapariga ruiva, baixa, um tanto gordinha mas atraente, a tentar arrastar três malas pelas escadas ao mesmo tempo, enquanto um jovem louro, alto e muito elegante lutava com uma mala de porão enorme, que parecia pesar mais do que ele.

- O que meteste dentro desta coisa, com mil diabos, Gab? Rochas? Ou halteres?

- Só uns livros... Não há nada de mais lá dentro, a sério... juro...

- Uma ova! Leva tu esta coisa. Diabos me levem se vou arranjar uma hérnia a arrastar a tua maldita bagagem por toda a universidade. - Parecia irritadíssimo enquanto Paxton tentava passar discretamente pelo meio deles; resolveu, em seguida, dar-lhes uma ajuda, embora a mala de porão não lhe parecesse muito convidativa.

- Talvez entre os três possamos levá-la? - sugeriu, hesitante, fitando ora um ora outro, ali de pé nas escadas. Apoiou o saco das compras numa das ancas e rezou, intimamente, para não corar ante o olhar observador do jovem bem-parecido.

- Não lhe faças favores - resmungou ele entre dentes. - Ela não merece. - Parecia tão irritado que, por momentos, Paxton interrogou-se se seriam casados. Mas algo na semelhança dos perfis indicava que ou eram irmãos ou familiares.

- Dou uma ajuda, se quiseres - voltou a oferecer Paxton, afastando o cabelo louro da cara e fitando a sorridente ruiva.

- É muito simpático da tua parte. O meu irmão está a ser um chato só por transportar uma malinha.

- Uma malinha! - insurgiu-se o jovem, e as suas palavras ecoaram pelas escadas. - Fazes ideia de quanto pesa esta coisa? Deve pesar uns duzentos quilos! E não tenho a certeza de que, mesmo os três, vamos conseguir transportá-la.

- Podemos tentar - replicou Paxton, e ele voltou a brindá-la com um olhar apreciativo.

- Porque é que não a deixamos aqui com este sarilho que ela arranjou e vamos os dois tomar uma cerveja ao Kips? Parece-me muito melhor ideia.

Paxton riu quando a irmã o ameaçou com um olhar que não era para brincadeiras.

- Se fores a algum lado, estrangulo-te, Peter Wilson! - exclamou. - Não te esqueças de que os teus lençóis estão no meu outro saco e, se não me transportares esta coisa, pouco me interessa que fiques a dormir no colchão durante o resto do ano.

- Destroças-me o coração - redarguiu ele, ao mesmo tempo que voltava a fitar Paxton, com um sorriso. - Vamos lá beber uma cerveja e largá-la. - Paxton também ria, mas tentava, corajosamente, levantar o outro lado da mala de porão, com a ruiva.

- Vá lá, idiota... Pega na tua ponta - instruiu-o a rapariga e, por fim, ele acedeu com um grunhido queixoso; e os três conseguiram subir as escadas, mas com muita dificuldade.

Paxton apercebeu-se de que ele tinha razão. A mala pesava uma tonelada e não conseguia imaginar o que é que a ruiva metera lá dentro.

- Onde é o teu quarto? - perguntou o irmão com uma expressão novamente aborrecida; consultou o relógio. Tinha coisas mais interessantes a fazer num domingo à tarde do que ser carregador da irmã.

- Ainda não sei.

- Céus! Será que estás no edifício certo?! - exclamou com um ar de quem tencionava matá-la, mas ela esboçou um aceno afirmativo.

- Estou, sim! - Remexeu na mala de mão de onde tirou um bocado de papel. Vestia calças de ganga, uma camisa às flores e uns ténis de marca; mas nada mais a localizava, à excepção de que devia ter metido barras de ouro na mala de porão, e toda a sua bagagem era em couro. - Cá está! - Leu o número e Paxton fitou-a surpreendida, esboçando depois um sorriso. Tinha sorte. Tudo acabara em bem. já gostava dela.

- És a minha companheira de quarto - anunciou Paxton, e o jovem alto e bem-parecido emitiu um grunhido, fitando-a com um olhar de compaixão.

- Pobrezinha. Nem sabes o que te espera - comentou, estendendo a mão e apertando a de Paxton. - A propósito. Chamo-me Peter Wilson.

- Eu sou Paxton Andrews.

- E eu Gabrielle. Gabby Wilson - retorquiu, dirigindo um sorriso afectuoso a Paxton. - De onde és? Adoro o teu sotaque.

- Nunca pensei que o tinha, até chegar aqui - riu Paxxie. - E ainda bem que alguém gosta. Como verás dentro de minutos, uma das nossas companheiras de quarto não é propriamente doida por ele.

- Manda-a dar uma volta! - replicou Gabby, despreocupada, enquanto Peter se erguia e recomeçava a luta com a mala de porão, mostrando um ar de censura.

- Cá está a minha irmãzinha, sempre uma senhora! Anda lá, fala-barato. Se conseguiste emalar esta treta, também podes levá-la. Ajuda-me a metê-la no quarto. Tenho um encontro às cinco e meia.

- Destroças-me o coração! - redarguiu Gabby, sem lhe ligar, enquanto pegava na outra ponta e Paxton a ajudava.

- E tu destroças-me as costas, o que é pior - queixou-se Peter, mas, um momento depois, tinham enfiado a enorme mala de porão na sala, que pousaram na carpete laranja. Depois, os três voltaram atrás para ir buscar as outras malas. - Onde vais pôr tudo isto? - acrescentou, sabendo de antemão que não havia sítio.

- - Ainda não pensei - respondeu e, em seguida, dirigiu-se a Paxton: - Quem decorou a sala? O Drácula? Onde foram desencantar este horror, céus? Ao Exército de Salvação?

- Provavelmente ao lixo - replicou Peter alegremente. - É onde arranjamos as nossas coisas.

Gabby olhou-o e abanou a cabeça, desesperada, enquanto Paxton o brindava com mais um sorriso, transportando uma das enormes malas de Gabby. «Onde é que ela vai meter tudo isto?», interrogava-se igualmente Paxton. Tratava--se de uma pergunta interessante, depois de ter visto o armário minúsculo que tinham no quarto.

- És finalista? - perguntou Paxxie a Peter.

- Fui. Licenciei-me em junho. Estou a começar a pós-graduação em Direito. Mas há dois anos que resido fora da universidade. Graças a Deus que este fedelho não convenceu os meus pais a fazê-lo, ou teria ficado furioso a sério. - Encontravam-se novamente à entrada da sala e ele parecia prestes a sair e contente por isso. - Bom. É toda tua - prosseguiu com um olhar para a pilha de malas que tinham largado no meio da sala; serviu-se de um donut do saco de compras de Paxton e acenou, ao afastar-se. Gabby deixou-se ficar, sorrindo a Paxton.

- Obrigada pela tua ajuda. E peço desculpa por ele - replicou, mal o irmão saiu. - É um idiota chapado. Mas, na verdade, adoro-o. A ele nunca o confessaria, mas a ti posso dizer. Não tem emenda e costumava bater-me... ou, pelo menos, tentava.

Era, todavia, óbvio que gostavam muito um do outro e, por um momento, Paxton invejou-os. Ela e George nunca haviam partilhado esse tipo de afecto brincalhão. No entanto, ele era dez anos mais velho do que Peter e não tinha o mínimo sentido de humor.

A sua conversa fez com que as outras viessem até cá fora. No momento em que Paxton e Gabby se serviam dos donuts e Colas, Dawn e Yvonne saíram do quarto e puseram-se a olhar para a montanha de malas de Gabby.

- Meu Deus, de onde veio tudo isto? - perguntou Yvonne, com ar irritado. - Trouxeste os meus Kools? - perguntou a Paxton.

- Sim - respondeu esta. Entregou-lhos e Yvonne pagou-lhe. Não queria aceitar presentes de Savannah.

Dawn tirou dos sacos o resto das mercearias depois de Paxton a ter apresentado a Gabby. Yvone olhava-a com desconfiança, fumando um cigarro, e perguntou-lhe de onde vinha.

- De São Francisco. Não me aventurei para muito longe de casa - disse ela à laia de desculpa, com um encolher de ombros. - Mas adoro isto. já há quatro anos que cá venho visitar o meu irmão e todos os meus amigos estão cá, pelo menos aqueles que decidiram continuar a estudar.

Olhou para as outras três muito entusiasmada. - Vocês vão adorar.

Yvonne lançou uma olhadela a Paxton, indicando que não tinha assim tanta certeza, e até Dawn não parecia muito convencida.

- Eu não queria continuar a estudar - disse Dawn mas os meus pais insistiram para que viesse para aqui.

- O pai dela era professor de inglês.

- Preferias continuar a estudar perto de casa? – Gabby estava interessada em todas elas e parecia ser uma pessoa aberta, simpática e feliz.

- Não. - Dawn abanou a cabeça com um sorriso triste. - Queria casar-me. E queremos ir para a índia estudar religiões orientais.

- Eu quero estudar Direito - confessou Yvonne, continuando a fumar e servindo-se de um velho cinzeiro de plástico verde-azeitona meio derretido. - Espera-me, contudo, um longo caminho. Estou aqui com uma bolsa de estudos e tenho de passar os vários níveis até lá, ou irei aterrar o meu cu negro em Alabama num abrir e fechar de olhos.  E não quero voltar, até conseguir mudar a situação. E tu, Savannah?

Paxton não queria que ela a tratasse assim, mas decidiu não a antagonizar mais.

- Quero especializar-me em jornalismo - sorriu. - Para escrever sobre as mudanças que querem fazer no Sul.

- Yvonne esboçou um arremesso de sorriso involuntário e acendeu um cigarro mal apagou o outro. Era nervosa, mas era também muito bonita, e Paxton interrogou-se sobre se a jovem negra alguma vez fora modelo.

- Não sei o que quero ser - confessou-lhes Gabby. - Apenas quero divertir-me e ficar na universidade até casar.

- Tens alguém? - inquiriu Dawn com um olhar de expectativa, sentindo que encontrara uma alma gémea, mas Gabby abanou tristemente a cabeça.

- Ainda não. Não encontrei ninguém, mas ando à procura. - Paxton e Yvonne riram, e Paxton pensou, involuntariamente, que montes de rapazes não tardariam a andar atrás de Yvonne e de Gabby.

- Encontrarás em abundância o que procuras por aqui - encorajou-a Yvonne. - já pus os olhos numa série de rapazes giros.

- Também eu - admitiu Paxton com um sorriso tímido.

Tinha visto vários a caminho da loja, e o irmão de Gabby era o mais bem-parecido de todos e mesmo mais atraente por ser um pouco mais velho. Suspeitava, porém, que a maioria dos alunos mais velhos, não se interessaria por caloiras. Ficou, por conseguinte, ainda mais surpreendida quando ele voltou a aparecer no quarto delas, umas horas mais tarde.

Dawn já se tinha ido deitar e Yvonne estava a ler no divã, vestida com um roupão muito bonito, quando Peter apareceu de repente com um amigo e uma embalagem de seis cervejas. Viu Paxton a sair do outro quarto e estendeu-lhe uma cerveja com um sorriso tímido.

- Voltámos para ver se precisavam de ajuda. - Ela ficou surpreendida ao vê-lo e Gabby ainda mais.

- O que estás a fazer aqui? - inquiriu, desconfiada. -E... Não, não posso descontar-te um cheque. - Virou-se para Paxton com um ar cúmplice. - Está sempre a passar-me cheques sem cobertura. Nunca lhe descontes nenhum. - Em seguida, avistou o amigo, de pé, na ombreira da porta. - Olá, Sandy! Entra! Ninguém está nu!

- Raios! Que desilusão! - ripostou ele, embora tendo corado. No entanto, Peter parecia mais descontraído e desviou os olhos de Yvonne para Paxton.

- Esperávamos, na verdade, que assim fosse. Alguém quer uma cerveja? - inquiriu.

Até mesmo Yvonne sorriu e ofereceu um cigarro a Sandy. Os dois rapazes instalaram-se no chão e na cadeira. Gabby e Paxton sentaram-se na mala de porão de Gabby, que tinham decidido usar como mesa de café. Sandy era também UM Pós-graduado de Direito e um dos sete companheiros de quarto de Peter. Tinham uma casa em Ellsworth, que era confortável, engraçada e a maior das confusões.

- Um dia destes convidamo-las para jantar, depois de arranjarmos uma escavadora para limpar a cozinha - prometeu Peter alegremente. - Acho que ainda temos pizza do ano passado no fogão, mas receio espreitar. - Esboçou um sorriso satisfeito e acabou de beber a cerveja. - E tu? - acrescentou, fitando directamente Paxton; a intensidade dos seus olhos azuis surpreendeu-a. - Sabes cozinhar?

- Tento - respondeu timidamente.

- Sabes fazer canjica? - perguntou Yvonne com um súbito interesse, e Paxton ignorava se aquela estaria de novo a troçar dela. - Ou costeletas, ou entrecosto?

No entanto, Paxton optou por dizer a verdade. Queenie sabia, mas ela não.

- Os meus conhecimentos vão até um bife, uma omoleta e hamburgers.

- Serve - redarguiu Peter tranquilamente. - Talvez arranjemos um sítio para cozinhar uma noite destas. Ou talvez jantemos fora.

Podia ter pensado em destinos piores, e fez-se um momento de silêncio na sala enquanto Yvonne os observava com interesse. Sandy também não despregava os olhos de Yvonne. Achava-a de gritos, com grande pena de Gabby. Sempre gostara dele. As coisas tornavam-se, sem dúvida, interessantes muito cedo e muito rapidamente. Todos só tinham chegado nesse dia, mas Paxton já divisava bons momentos no horizonte.

Os rapazes ainda se deixaram ficar mais algum tempo e depois foram-se embora. Iam encontrar-se com uns amigos no Kips e, quando saíram, Paxton confessou que estava cansada. Para ela, eram duas da manhã e sentiu, repentinamente, o peso da mudança de horário.

- Não te achei cansada quando o irmão de Gabby estava aqui - troçou Yvonne. - Parecias óptima.

- E tu também em relação ao Sandy - ripostou Paxton e, desta vez, ambas riram. Yvonne continuava sentada no divã quando Gabby e Paxton se dirigiram ao quarto para vestir a camisa de noite.

- Não acredito - comentou Gabby, enfiando a camisa de noite pela cabeça, uns minutos depois. - Ele detesta sempre as minhas amigas. Não consigo lembrar-me de uma única amiga que lhe tenha agradado... e, subitamente, aparece para uma conversa amigável e com uma embalagem de cervejas. - Fitou Paxton com uma expressão surpreendida. - És tu. És mesmo. És a primeira rapariga de quem gostou e conheceu por meu intermédio. Não acredito.

- Mera curiosidade. Não voltará. Há muitas raparigas mais interessantes em Direito.

_ Duvido. - Gabby também se sentia impressionada com Paxton. Tratava-se de uma jovem muito bonita, e uma das características mais agradáveis a seu respeito era a de que parecia ignorar isso. Era calma, esperta e, depois de se começar a conversar com ela, revelava-se muito divertida. E Gabby gostava do sotaque. Havia muito mais coisas que chamavam a atenção em Paxton: sabedoria, ternura e beleza interior. Além disso, Gabby sabia que o irmão nada tinha de idiota. Fizera uma boa descoberta. Talvez mesmo excelente.

- Vai voltar. Verás. - Em seguida, Gabby soltou um leve gemido, reflectindo no assunto e mantendo-se deitada na cama estreita e desconfortável. - Na verdade, talvez o veja mais este ano do que dantes. Não estou muito certa de que me agrade.

- Acredita que nos esquecerá a todas na próxima semana, à excepção talvez da Yvonne... - E, depois, resolveu sussurrar uma confissão a Gabby: - Ela é extraordinariamente bonita, não achas? Belíssima!

- Mas uma cabra! - replicou Gabby no mesmo tom.

- Talvez não - defendeu-a Paxton. - Só acho que está de pé atrás comigo por eu ser da Jórgia.

- Não sei - redarguiu Gabby, meditativa. - Parece-me um osso duro de roer. Acho que não gostaria de acordar o seu lado mau.

- Provavelmente não teve uma vida fácil. Os negros passaram um mau bocado em Alabama. Em todo o lado, aliás, talvez excepto aqui. Se calhar, tem bons motivos para ser assim. - Gabby encolheu os ombros, sem se mostrar especialmente preocupada quando fitou Paxton.

- O que achas da Dawn?

- Parece-me assustada, coitada. Acho que não quer estar aqui.

- Passa o tempo a dormir. - Fizera duas sestas nessa tarde. - Talvez tenha qualquer doença. Narcoplesia ou qualquer coisa exótica, sabes? - Gabby parecia esperançada e Paxton riu, sentindo-se aliviadíssima por verificar que gostava mesmo da companheira de quarto. E era essa a verdade. Gabby Wilson era engraçada e divertida, e Paxton não conseguia imaginar uma pessoa melhor para ser sua companheira de quarto.

- É melhor dormirmos um pouco - murmurou, finalmente, Paxton. já estava meia a dormir e passava muito da meia-noite, Gabby continuava a tagarelar e dava a sensação de que seria capaz de prosseguir durante horas a fio, mas Paxton não conseguia manter-se acordada um momento mais que fosse. - Amanhã temos orientação e vou falar com o meu consultor e tentar escolher as aulas mais indicadas.

_ Não te preocupes. Limita-te a escolher as mais fáceis, as que já conheces do liceu. - Paxton riu ante a sugestão. - É escusado matares a cabeça enquanto estás aqui, Paxton. O que queremos é divertir-nos. Lembra-te disso. - Gabby falava a sério. Escolhera Berkeley para passar um bom bocado. E encontrar marido. - Lembra-te, Pax, de que estamos aqui para nos divertirmos.

- Lembrar-me-ei... - sussurrou Paxton, meia adormecida. Sonhava com Queenie e uma bonita rapariga negra, com um elegante príncipe que lhe oferecia uma cerveja, enquanto algures, à distância, o irmão dançava com uma endiabrada ruiva...


 

Paxton e Gabby fizeram exactamente o que haviam planeado na altura da sua vinda para Berkeley.

Gabby inscreveu-se nas aulas mais fáceis e conseguia sair quase todas as noites. Estava a divertir-se à grande, embora ainda não tivesse encontrado um marido.

Paxton, por outro lado, tinha aderido às aulas mais difíceis, sobretudo as referentes ao jornalismo ou escrita. Frequentava também uma aula de Economia Política, tão difícil que a aterrorizava, e aulas de Física, Matemática e Espanhol. Parecia estar a sair-se bem em tudo, à excepção de Física, que fazia,, aliás, parte do programa.

A jovem sentia-se, contudo, muito entusiasmada por tudo o que aprendia e fazia; arranjava ainda tempo para sair algumas vezes com Gabby e as amigas, divertindo-se quase sempre. Formavam um grupo que adorava divertir-se e parecia estar interessado em tudo.

Duas delas estavam ligadas ao CORE e várias andavam a tentar arranjar fundos para o SNCQ tratava-se de causas que também interessavam a Paxton, pois beneficiavam os negros do Sul e, uma noite, conheceu Mario Savio, o líder do Movimento de Liberdade de Expressão. Gabby parecia saber conviver com toda a gente e, embora ela conhecesse as pessoas da causa, dava-se igualmente com as mais sociais, e a maioria das amigas dela era bastante calma, o que convinha a Paxton.

No segundo mês de aulas, Paxton tivera vários confrontos com Yvonne. A rapariga negra parecia decidida a não lhe dar uma única oportunidade e supunha permanentemente que, sempre que alguma coisa corria mal, a culpa era de Paxton, e ela começava a irritar-se a sério. Tratava-se de preconceito ao contrário e sentia dificuldades em controlar-se.

Na segunda semana após o ingresso na universidade, Yvonne arranjara um namorado, o que não era de admirar, dada a sua extrema beleza. Ele era a vedeta que jogava à defesa na equipa de futebol, um enorme e elegante jovem negro do Texas; por associação e devido à sua própria personalidade, Yvonne também estava a tornar-se uma vedeta. Todos os rapazes andavam atrás dela, mas a jovem parecia realmente interessada em Deke e já vincara a vários dos seus admiradores que não queria nada com rapazes brancos.

Andava na aula de Física de Paxton, mas nunca lhe falava e raramente trocavam uma palavra, excepto quando se cruzavam na sala de estar e se viam forçadas a fazê-lo. As conversas, porém, nunca eram amáveis.

E Dawn também tinha a sua própria vida. Continuava a dormir a maior parte do tempo e Paxton interrogara-se mais do que uma vez sobre se ela ia às aulas.

- Nunca vai conseguir passar, se continua assim - comentava frequentemente com Gabby, que achava que não tinha nada a ver com isso. Tinha a sua vida para se preocupar. E andava a sair com dois dos amigos do irmão, também de Direito. E a profecia que fizera havia-se concretizado. Via agora mais vezes o irmão do que nos últimos anos e, embora se queixasse, a verdade é que sentia prazer.

Peter começara a aparecer só para se certificar de que ela estava bem ou para lhe trazer coisas, como uma embalagem de seis cervejas, uma pizza, um bolo que acabara de comprar, ou uma garrafa de vinho barato. Gabby sabia, no entanto, que ele não se preocupava com ela... Estava interessado em Paxton.

Por vezes, os dois sentavam-se no divã gasto ou no chão, conversando pela noite fora, bebendo café, cerveja ou Coca-Cola e falando das coisas em que acreditavam. Partilhavam, aparentemente, as mesmas opiniões sobre tudo; era raro discordarem e havia alturas em que Paxton quase se sentia assustada por serem tão parecidos e compatíveis numa tão variada gama de questões. Era como se estivessem destinados a conhecer-se e a tornar-se amigos.

De início, Paxton ficou preocupada, pois ao contrário de Gabby, a única coisa que não desejava era encontrar um marido. Viera para Berkeley a fim de aprender e tornar-se alguém; um dia, seria uma grande jornalista ou, pelo menos, uma jornalista esforçada, que viajaria e escreveria sobre o mundo. Queria conhecer a Europa, a África, o Oriente. Chegava mesmo a pensar em passar um ano no Corpo da Paz.

Não queria, de forma alguma, apaixonar-se, casar, mudar para os subúrbios e ter filhos. Pusera Peter ao corrente das suas ideias e ele rira-se. Até mesmo a sua beleza loura se assemelhava à dela. As pessoas observavam que ele e Paxton pareciam mais ser irmão e irmã do que ele e Gabby.

- Julgas que sou do género de me casar e ir viver para os subúrbios? Que insulto, céus! - Mas ele estava a rir-se, sentado na sala de estar dela, às duas da manhã, quando pronunciara as palavras. Gabby tinha acabado de regressar de um encontro, Dawn já estava a dormir há horas e Yvonne andava a dormir no apartamento de Deke, fora do complexo universitário.

- Terei ouvido alguém a falar em casamento? - perguntou Gabby, pondo jovialmente a mão em concha sobre a orelha e parando a caminho do quarto.

- Não, não ouviste! - apressou-se Paxton a corrigi-la.

Vestia uma T-shirt e calças de ganga, e estava sentada no chão, ao lado de Peter. Adorava estar perto dele, adorava o que ele pensava, quem ele era e o que defendia. Mas não queria ir mais longe do que isso, não queria apaixonar-se realmente por ele, pelo menos ainda não. Não podia.

- A tua amiga acabou de me insultar - comunicou Peter à irmã; enquanto falava, acariciou o cabelo louro de Paxxie e sorriu para os olhos verdes pelos quais estava a apaixonar-se. - Acho que acabou de me chamar estúpido, ou pior!

- Não chamei nada! - insurgiu-se Paxton, soltando uma gargalhada. - Só disse que não queria casar, nem mudar-me para os subúrbios ou ter filhos, Primeiro, quero ver O mundo.

- E achas que eu não? - Continuava a parecer ligeiramente insultado.

Organização americana constituída essencialmente por jovens que são enviados para os países em desenvolvimento. (N. da T.)

- Ele quer ver o mundo! - retorquiu Gabby. - Monte Carlo, Cap d'Antibes, Paris, Londres, Acapulco, Saint Moritz. Os lugares duros, sabes? - Riram os três.

- O que acham que sou? - perguntou a ambas. - Preguiçoso?

A irmã conhecia-o bem e respondeu com um aceno de cabeça.

- Não, apenas mimado. Como eu. - Esboçou um sorriso condescendente e ele atirou-lhe com a lata de Coca-Cola.

- É verdade. Consegues imaginar-nos a querer aderir ao Corpo da Paz, como a Pax? Só de pensar nisso, fico com urticária e sou incapaz de te ver a escavar trincheiras ou a construir latrinas, não é? - inquiriu francamente, e ele abanou a cabeça.

- Porque achas que estou em Direito? - redarguiu, trocista.

Havia, contudo, uma certa verdade nisso também. Peter acabaria os estudos aos vinte e cinco anos e, com sorte, poderia evitar o recrutamento até aos vinte e seis. Agradava-lhe essa situação de adiamento proporcionada pela faculdade. Não tinha o mínimo desejo de participar da acção policial no Vietname. Ainda dois meses antes, após o incidente do golfo de Tonkin, a Força Aérea americana bombardeara o Vietname pela primeira vez, depois de lá terem estado anos como consultores.

- Para te falar verdade, não me imagino no Vietname, nem em qualquer outro lugar remotamente parecido - acrescentou. - O que te leva a querer aderir ao Corpo da Paz, Pax?

- Ainda não sei se vou fazê-lo. Só quero marcar a diferença em qualquer lado - retorquiu num tom sério, e Gabby voltou a deixá-los sós. - Passei toda a minha vida a ver as pessoas preocupadas consigo próprias, sem se importarem com mais ninguém. Não quero fazer isso. O meu pai interessava-se muito pelos outros. Acho que teria feito qualquer coisa no género se tivesse tido oportunidade e não se tivesse casado.

- Devia ser um bom homem - redarguiu Peter calmamente, observando a ternura que se estampava no rosto da jovem quando pensou nele.

- Era, sim - concordou com um nó na garganta. - Gostava muito dele... A minha vida tornou-se... muito diferente... depois de ele morrer.

- Porquê? - inquiriu Peter num tom que ecoou suavemente na noite. Havia tanta coisa em Pax que ele já amava, mas que o assustava, tal como a ela.

- A minha mãe e eu... Bom, somos muito diferentes . . . - Não queria dizer mais, pelo menos por enquanto, e não valia a pena. Seria demasiado horrível afirmar que sempre tinha pensado que a mãe não a amava.

É aí que entra o Corpo da Paz? Para te afastares dela?

Não - sorriu Paxton. - Mas Berkeley foi. - Era muito honesta com ele, ambos o eram entre si. Tratava-se de pessoas desse género.

- Sinto-me contente - expressou-se Peter, beijando-a ao de leve nos lábios. Conservaram-se muito juntos no, chão, apoiados nos cotovelos.

- Também eu - sussurrou ela.

Peter abraçou-a e beijaram-se longamente, até que Gabby abriu de repente a porta do quarto, fitando-os com considerável interesse.

- Vão dormir em camas separadas ou juntos esta noite? Ou tencionam ficar aqui abraçados? Por mim, tanto me faz. Só me interrogo se devo esperar a pé pela Pax, ou ir dormir. - Peter emitiu um grunhido e Paxton riu, afastando-se para longe dele, com o cabelo despenteado e as faces coradas dos beijos.

- Alguém te disse, nos últimos tempos, que és uma chata. Gabrielle? - Sabia quanto ela odiava o nome e adorava usá-lo para a aborrecer. - Que sorte a minha a de me ter apaixonado pela companheira de quarto da minha irmã! - Levantou-se e estendeu a mão a Paxton. - Acho melhor dormires um pouco, miúda. Se a tagarela te deixar. Não sei como consegues aguentá-la.

- Quando estou cansada, adormeço logo.

- E provavelmente ela continua a falar. - Riram os três Porque era verdade, e Peter saiu, depois de ter dado um beijo de despedida a Paxton.

- É a sério, Pax? - pressionou Gabby, depois de o irmão se ter ido embora.

- Não sejas tola. Conhecemo-nos há seis semanas e dispomos de uma vida pela frente. A ele faltam-lhe três anos de Direito e a mim quatro anos antes da licenciatura. O que pode ser a sério? - No íntimo, porém, sabia que era, mas não queria admiti-lo nem a si própria nem a Gabby.

- Não conheces o meu irmão. Nunca o vi assim. Está mesmo interessado em ti. Penso que está apaixonado! - exclamou. - já alguma vez disse que te ama? - acrescentou com um olhar sério e interrogativo.

- Por amor de Deus... Claro que não... - Mas não era preciso. Paxton sabia que Gabby tinha razão. E também nunca se tinha sentido assim. Só não calhava que tudo acontecesse tão depressa e tão cedo. De momento, encontrar o homem dos seus sonhos era a última coisa que Paxton desejava.

- Merda. Não tenho mesmo sorte - queixou-se Gabby, quando se deitaram. - Quero encontrar marido e tu não e, afinal, tens o Peter todo babado por ti e aparentemente interessado num compromisso. E eu? Ninguém. Apenas um idiota de cabelo frisado até à cintura que quer ir ao. Tibete comigo no próximo Verão, desde que lhe pague o bilhete de avião. Há pessoas mesmo afortunadas.

- Karma - replicou Paxton com um arremesso de sorriso, conservando-se deitada no escuro, enquanto ouvia a amiga.

- Quem é? Não é aquele tipo que estava na mesa de alocução livre em Bancroft?

- Não, é aquela coisa de que a Dawn passa o tempo a falar. Karma. Destino.

- Devem ser comprimidos para dormir. Ouviste-a a vomitar, ontem? Acho que está a morrer.

- Talvez esteja grávida - sussurrou Paxton, hesitante.

- Quando é que teve tempo para ficar grávida? Está sempre a dormir. - E, perante esta frase, riram as duas, viraram-se e adormeceram. Excepcionalmente, Gabby nada tinha a acrescentar e esperava-a a aula de música contemporânea logo de manhã. E tinha muito mais que fazer. Era a antevéspera da Noite das Bruxas e queria ocupar-se da roupa. Seria uma abóbora de lamé dourado.

Foi também o dia em que o Vietcongue atacou a base aérea de Bien Hoa, vinte e cinco quilómetros a norte de Saigão, a primeira importante instalação militar a ser atingida.

Cinco americanos morreram e setenta e seis ficaram feridos. E Johnson não ordenou um ataque de retaliação. Estava a tentar aguentar, sobretudo antes das eleições, que seriam quatro dias mais tarde. Goldwater prometia resolver tudo à bomba e pôr fim ao envolvimento americano no Vietname, destroçando o Norte, e Johnson prometia não se envolver mais, o que era o que a população queria ouvir. E Johnson ganhou a 3 de Novembro. A ameaça de Goldwater quanto a envolver ainda mais o país no Vietname obtivera resposta.

E, na semana seguinte, Peter perguntou a Paxton o que é que ela ia fazer no Dia de Acção de Graças.

- Nada de importante. Estou longe de mais de casa para ir lá passar somente uns dias. - «Estava longe de mais e seria demasiado caro», pensou, embora o Dia de Acção de Graças sem o peru de Queenie não fosse Dia de Acção de Graças.

Paxton estava a tentar não se deter no assunto e planeava passar o dia a estudar para um teste de Física e comer, uma sanduíche de peru na cantina, se se lembrasse.

- Perguntava a mim próprio se gostarias de ir passá-lo a nossa casa. Falei nisso à minha mãe na semana passada e ela adoraria, se ficasses no quarto de hóspedes. Além disso, descansarias um pouco, sem teres a Gabby a falar a noite inteira.

- Talvez lhe sinta a falta - replicou Paxton timidamente. - Tens a certeza de que não estaria a impor-me?

- De forma alguma. O Dia de Acção de Graças é isso mesmo, as pessoas a empanturrar-se e a ver futebol. No sábado, vou assistir ao jogo com o meu pai e adoraria que fosses. E pensei que poderíamos ir de carro ;até à Stinson Beach, na sexta-feira.

- Bem gostaria - sorriu ela.

Gabby falara vagamente no assunto há uns dias, mas, depois, esquecera-se de o levar mais por diante. Paxton não conseguia, porém, pensar em nada que lhe agradasse mais do que passar o Dia de Acção de Graças com eles. Ainda não tinha conhecido os pais, mas suspeitava que gostaria deles com base no que ouvira a seu respeito.

Sentia-se também um pouco assustada com aquela ida, pois serviria para a aproximar mais de Peter. Aparentemente, porém, não havia forma de o evitar. Na maior parte do tempo, saíram com amigos e só estivera a sós com ele poucas vezes; porém, mesmo no meio da multidão, a atracção que sentiam um pelo outro era tão forte que se tornava impossível combatê-la.

Ele contou a Gabby nessa tarde, e ela entrou de rompante pela sala de estar, enquanto Paxton estava a estudar, e surpreendeu-a.

- Ouvi dizer que vens passar o Dia de Acção de Graças a nossa casa, Pax. Que maravilha! - exclamou com um sorriso caloroso. Só tinha falado com a mãe nessa tarde e Marjorie Wilson quis saber mais sobre a sua companheira de quarto e sobre se ela estava realmente interessada em Peter. Achara estranho que tivesse sido o filho, e não Gabby, a telefonar para saber se Paxton podia ir a casa com eles. - Vais adorar a minha mãe!

Estou certa que sim.

E já era verdade, pelo que sabia das histórias de Gabby. Sentiam-se as duas muito próximas e tornava-se óbvio, pela forma como Gabby se lhe referia, que era doida pela mãe. Marjorie Wilson estava ligada a causas, voluntariado e clubes de bridege como a sua própria mãe mas, contrariamente a Beatrice Andrews, gostava mesmo dos filhos. Paxton ignorava a profissão do pai deles, mas supunha que era um homem de negócios.

Peter veio buscá-las ao fim da tarde de quarta-feira e Gabby tinha, como habitualmente, uma porção de malas. Paxton levava apenas uma pequena. Pusera um vestido sóbrio azul-marinho, o casaco de Inverno cinzento e o único par de sapatos de passeio que trouxera, simples e pretos. Estava muito bonita e arranjada, apanhara o cabelo louro num rabo-de-cavalo, atara-o com uma fita de cetim azul-marinho e colocara os pequenos brincos de pérolas vitorianos da avó.

- Pareces a Alice no País das Maravilhas. - Peter sorriu quando ela entrou no seu Ford em mau estado. Andava a falar em comprar um dos novos Mustang, mas dizia que não economizara bastante o dinheiro do Verão. O pai dera-lhe a escolher entre uma viagem ou um carro como presente de licenciatura e ele optara por dois meses na Europa na Escócia, Inglaterra e França e não lamentava conduzir a mesma sucata que tivera durante todo o curso..

- Devia ter posto algo mais elegante? - perguntou Paxton nervosamente a Gabby. Poderia ter-se decidido por um vestido de veludo preto, mas estava a guardá-lo para o Dia de Acção de Graças e não para a chegada.

- Estás óptima. Não lhe ligues - respondeu Gabby, que pusera uma mini-saia de veludo vermelho e uma camisola preta, sapatos de salto alto vermelhos e tinha o cabelo ruivo penteado à Shirley Temple. - A minha mãe estará vestida com um simples vestido preto e pérolas e o meu pai com calças de fazenda e um casaco de veludo. Os respectivos uniformes.

Paxton soltou uma risada nervosa e esperou não os deixar ficar mal, sobretudo a Peter. Tudo adquirira uma súbita importância aos seus olhos, o que também a assustava. Nunca ninguém a «levara a uma casa» como potencial namorada fixa e tinha a aflitiva sensação de que era o que Peter estava a fazer.

Percorreram a Bay Bridge a toda a velocidade e seguiram para oeste rumo à Broadway, junto ao Carol Doda's e todos os bares de topless e, depois de atravessarem o Broadway Tunnel e Van Ness, começaram a passar junto às mansões da Broadway. Paxton sentia-se impressionada e ficou, de súbito, ainda mais nervosa. Depois, chegaram.

Peter travou com um guinchar de pneus, Gabby saltou para fora do carro e tocou à campainha. Um momento depois, encontravam-se na enorme entrada principal de uma casa muito grande em tijolo, e os pais de Peter, vestidos exactamente como Gabby descrevera, deram-lhe as boas-vindas- A mãe era uma mulher baixa com um cabelo outrora ruivo apanhado numa banana e olhos verde-claros parecidos com os de Paxton; e o pai era alto e elegante como o filho, com um cabelo outrora louro e agora grisalho e ar de aristocrata bem-humorado. A mulher era calorosa e parecia sincera quando abraçou Paxton.

Gabby foi mostrar-lhe o quarto e, momentos depois, estavam todos em baixo, numa elegante biblioteca forrada com painéis de madeira, cheia de livros antigos encadernados em cabedal, com mobiliário antigo, uma carpete oriental e uma lareira acesa.

Tratava-se do tipo de sala que é descrito nos romances, e Paxton não fazia ideia de que eles eram tão ricos. Voltou a sentir-se, repentinamente, pouco à vontade por causa do vestido, mas ninguém parecia importar-se com o que cada um usava. Enquanto a sua mãe teria feito comentários sobre a mini-saia de Gabby, Marjorie Wilson parecia achar graça; falavam as duas animadamente sobre a festa a que ela fora no último fim-de-semana, o rapaz que conhecera e parecia «uma esperança séria», o seu termo favorito para o tipo de rapaz com quem gostaria de casar. E, do outro lado da sala, ouviu Peter a perguntar ao pai como iam as coisas no jornal.

- Interessantes, desde a recente situação no Vietname. O ataque em Bien Hoa pode mudar um pouco as coisas agora, quer o Johnson o queira ou não. Não podemos ficar de braços cruzados para sempre.

Peter não se pronunciou muito sobre o assunto, pois sabia que o pai tinha sido um entusiástico apoiante de Goldwater, embora se tratasse de um ponto de vista que ele optara por não discutir com Peter.

- Não me parece que a presença americana lá seja uma resposta. Devíamos retirar-nos, antes que nos aconteça o mesmo que aos Franceses - ripostou Peter num tom sombrio.

Somos mais espertos do que eles, filho - arguiu o pai com um sorriso. - E não podemos deixar que os comunistas se apoderem do mundo, pois não?

Era uma conversa sem fim que mantinham há anos, e as opiniões sempre haviam diferido. Peter achava que as tropas americanas não pertenciam ali, mas, à semelhança da maioria das pessoas da sua geração, o pai tinha uma perspectiva contrária e defendia que elas podiam dar-lhes uma lição, fazer mesmo algum bem e sair sem grandes baixas. O problema residia sempre em «quantas baixas»?

Dirigiram-se, em seguida, até junto das mulheres, e Paxton divertiu-se ao ver quanto Peter se parecia com o pai. Tinha o mesmo fogo, o mesmo gosto pela vida, os mesmos olhos alegres e azuis de que gostava em Peter, os mesmos modos calorosos.

Eram todos pessoas afectuosas e alegres; e sentiu-se completamente à vontade ao jantar, mais do que alguma vez se sentira com a própria família, em Savannah. Verificou também que falavam sem cessar do jornal da manhã e, a meio do jantar, apercebeu-se de que o pai de Peter trabalhava lá. E, quando trocaram impressões sobre o que Peter ia fazer no próximo Verão, descobriu algo mais e, por momentos, ficou pregada ao chão.

Peter referia-se a trabalhar para outros jornais algures no país e, ao ouvi-lo, Paxton' compreendeu tudo, até mesmo por que razão o pai de Peter tivera de silenciar profissionalmente o seu apoio a Goldwater. O Morning Sun apoiara oficialmente Johnson e o jornal sempre tinha sido democrático. Mas o seu proprietário não o era. E o seu proprietário era o pai de Peter e de Gabby.

Na verdade, há mais de um século que o Morning Sun era propriedade da família Wilson e, à medida que tudo se lhe tornou mais claro, Paxton desatou a rir, e Peter fitou-a, confuso. Acabara de afirmar que não tinha a certeza de querer trabalhar para um jornal no Verão seguinte, mas pensava em oferecer-se como voluntário para um projecto-lei em Mississipi ou trabalhar para o Dr. Martin Luther King, sobretudo desde que ele ganhara o Prémio Nobel da paz, em Outubro. E ela estava a rir.

- O que é assim tão engraçado? - inquiriu, surpreendido, pois ela costumava levar este tipo de coisas bastante a sério e sabia que partilhava as suas opiniões na maioria das questões, sobretudo deste tipo.

- Nada. Desculpa. Apenas descobri uma coisa que ninguem se preocupou em dizer-me. julguei que estavam a falar todo o tempo do Moming Sun porque o teu pai trabalha lá- Nunca imaginei até este momento que tu... que... - Pareceu um pouco atrapalhada" e Peter esboçou um sorriso enquanto o pai desatava a rir.

- Não fique aflita, Paxton. Quando ele era miúdo, costumava dizer aos amigos que eu vendia jornais na Mississipi Strect. Pelo menos agora, a sua humildade já não vai até esse ponto, ou talvez sim. Foi o que lhe contou?

- Não - respondeu, abanando a cabeça e rindo. Gabby esboçou um sorriso. Também ela nunca explicara nada a Paxton. Nunca lhes agradara vangloriar-se diante dos amigos e, agora, Paxton percebia porquê. Embora vivessem muito bem, detestavam exibir-se. Tratava-se do tipo de riqueza e discrição antigas, que teria realmente impressionado a mãe. - De facto, nenhum deles me disse nada, nem eu nunca pensei no assunto.

- Achei que não era importante - explicou Peter calmamente, sabendo que ela gostava dele pelo que era e não pelo que o pai tinha. E Paxton apressou-se a tranquilizá-lo.

- E não é. Mas é interessante. Pelo menos, podes falar de algo inteligente em casa. Nós só falamos de quem vai casar-se, de quem comprou uma casa nova e de qual dos doentes do meu irmão está moribundo.

- O seu pai também é médico? - inquiriu Marjorie Wilson com um sorriso agradável.

- Não - respondeu Paxton num sussurro, sentindo-se muito triste no íntimo. Desejava ainda ter pai, como Gabby e Peter. - O meu pai era advogado. Morreu há sete anos, quando o avião se despenhou.

- Lamento - retorquiu ternamente a mãe de Gabby.

- Também eu.

Era tão diferente estar com eles. Era tudo tão normal e feliz. Nessa noite, jogaram dominó, brincaram e riram. Peter conversou muito tempo com o pai diante da lareira e, depois, incluiu Paxton. Voltaram a falar do Vietname, de Diem, da posição de Johnson frente aos Russos, pois o recente golpe de Estado retirara o poder a Kruschev em Setembro.

E Paxton concluiu que admirava Edward Wilson. Era inteligente, sensato e tinha uma grande percepção que ela respeitava, embora as opiniões de ambos sobre o Vietname fossem diferentes.

Abordaram as realidades da integração no Sul, de Martin Luther King e até mesmo das recentes evoluções e manifestações estudantis em Berkeley. Nos últimos dias, o Movimento de Liberdade de Expressão excedera-se e o Conselho de Regentes tinha assumido uma posição dura, recusando negociar com os estudantes. O pai de Peter mostrava-se de acordo, e Paxton também, embora esta não fosse uma perspectiva popular na cidade universitária. - O presidente Kerr era amigo dele e tinham tido uma longa conversa nessa mesma manhã.

- Ele não vai cooperar com esses miúdos. Há demasiadas coisas em jogo. Se desistir, perderão todo o controlo sobre a cidade universitária. - Peter discordava totalmente do pai e debateram o assunto muito tempo, mas Paxton achava aquelas conversas arrebatadoras e refrescantes. Era excitante estar no meio de pessoas que falavam de coisas inteligentes e tinham consciência do que estava a acontecer no mundo. Em Savannah, havia vezes em que se sentia tão desligada do mundo real, tão sufocada pelo Sul e a sua luta desesperada de se ater ao passado. E Paxton expressou a sua opinião a Ed Wilson.

- Mesmo assim, têm um jornal fantástico - retorquiu ele. - O W. S. Morris e eu somos velhos amigos.

- De qualquer maneira, espero trabalhar para ele ou para o jornal neste Verão. Estou a tirar uma especialização em jornalismo e vou acabar no próximo ano. - Peter sorriu-lhe, orgulhoso, estendeu o braço e deu-lhe a mão, o que não escapou ao pai. Ed Wilson não fez qualquer comentário, mas conversou com Marjorie nessa noite, quando estavam a despir-se, no quarto.

- Acho que o teu filho está mesmo apaixonado, querida - opinou, fitando ternamente a mulher. Ela amava tanto os filhos que se interrogou sobre se lhe custaria quando, finalmente, se casassem e tivessem vidas próprias, longe dos pais. - Algo me diz que está realmente apaixonado por aquela rapariga.

- Penso o mesmo - redarguiu ela com uma expressão meditativa, sentando-se em frente do toucador e escovando o cabelo, outrora ruivo. - No entanto, gosto dela, sabes?

É aparentemente calma, mas tem muito que se lhe diga, Também se interessa por ele, é uma rapariga decente e franca e muito honesta.

- E demasiado jovem para se casar - rematou o marido. - Aos dezoito anos, seria uma loucura pensar sequer em casar.

- Não me parece que tenha isso em mente. Algo me diz que pretende fazer muita coisa com a sua vida. Penso que é mais equilibrada do que o Peter.

- Assim espero - suspirou o marido. - Ainda não estou preparado para ter netos - acrescentou, inclinando-se e beijando o pescoço da mulher com um sorriso meigo.

- Nem eu - riu ela. - Mas, nesse caso, fala com a Gabby.

- Oh, não! Não me digas que há outro amor verdadeiro esta semana. Tenho motivo para me preocupar, ou tudo terá acabado na próxima terça-feira?

- Muito antes. Ainda ninguém levou a sério aquela miúda, graças a Deus. Vai dar cabo de mim.

- Vai? - retorquiu, voltando até junto de Marjorie, vestido com um dos pijamas que mandava fazer duas vezes por ano em Londres; tirou-lhe a escova do cabelo da mão e pousou-a em cima do toucador. - Amo-te, sabes? - Ela esboçou um aceno de cabeça e, sem uma palavra, envolveu-o nos braços e beijou-o. Depois, apagou calmamente as luzes e foi para a cama, onde ele a abraçou. Eram pessoas felizes, com uma vida que muito prezavam e uma família que sempre tinham amado.

E essa postura revelou-se no dia seguinte, quando se sentaram juntos a celebrar o Dia de Acção de Graças. Paxton pusera o vestido de veludo preto e Gabby usava um fato Chanel branco que a mãe lhe comprara no ano anterior, em Paris. Tornava-a, subitamente, adulta, e Paxton. lembrou-se da altura em que Jackie Kenedy ditava a moda.

Quando Ed Wilson procedeu à acção de graças, tinha um ar grave e distinto. E Paxton tomou consciência de um pequeno e picante sorriso entre ele e a mãe de Gabby.

Comeram um sumptuoso almoço, que os deixou satisfeitíssimos, e até Paxton se viu forçada a confessar que quase rivalizava com a cozinha de Queenie. Falou-lhes nas suas refeições do Dia de Acção de Graças e referiu-se com um amor inegável à mulher que a tinha criado.

Depois do almoço, apareceram amigos, e Paxton sentiu-se impressionada ao aperceber-se que um deles era o governador da Califórnia. Todos se referiram à manifestação que se realizava em Berkeley nessa tarde, liderada por Mario Savio e outros membros do Movimento de Liberdade de Expressão. Joan Baez iria quase de certeza cantar, e mil estudantes haviam encenado um protesto contra as posições da universidade relativamente à liberdade de expressão, impedindo-os, a eles e às outras causas, que se servissem dos terrenos universitários para arranjar dinheiro ou distribuir panfletos .

A universidade declarava que o trânsito ficava bloqueado, e havia panfletos espalhados por toda a cidade universitária. Por fim, a universidade assumira o compromisso de que podiam utilizar o mesmo espaço de antigamente, mas não defendera a acção.

Aos olhos de Paxton, tudo aquilo não passava de uma tempestade num copo de água, mas os temperamentos tinham-se exaltado, as liberdades haviam sido questionadas e a altura era propícia a um confronto de vontades e à agitação. Nessa noite, cerca de oitocentos estudantes tinham sido presos. Paxton achava fantástico estar no lar dos Wilson, onde toda a gente tinha verdadeira consciência do que se passava no mundo e contactar tão de perto com gente de acção e poder.

Todos seguiram as permanentes manifestações no telejornal do dia seguinte e, por conseguinte, ela e Peter nunca foram a Stinson. No sábado, foi assistir ao jogo de futebol com Peter e o pai, enquanto Gabby fazia compras com a mãe.

Paxton telefonara à mãe no Dia de Acção de Graças e falara com ela, George e Queenie. Pareciam bem e garantiu-lhes que estava a divertir-se no Dia de Acção de Graças, embora apenas Queenie parecesse preocupada com o facto. A ama sussurrara ao telefone que nesse ano não cozinhara a sua torta de carne picada, devido à ausência de Paxton.

No final da semana, Paxton sentia-se muito próxima de todos. Era como se fosse um membro da família, no momento em que se despediu e lhes agradeceu por aquele maravilhoso Dia de Acção de Graças. Fora o melhor de há uns anos a essa parte, o melhor desde que o pai morrera, e os olhos emitiam um brilho de felicidade quando agradeceu a Peter e a Gabby no regresso a Berkeley.

Ainda restavam vestígios da agitação quando voltaram à universidade. Via-se a Polícia de Intervenção por todo o lado, na eventualidade de se verificarem mais manifestações e, nessa noite, Paxton ficou chocada ao saber que Yvonne e Deke tinham participado na manifestação e sido presos. Nessa altura já os haviam posto em liberdade, mas Yvonne ficara com terríveis escoriações nos braços, feitas pela Polícia quando a tinham arrastado para a carrinha.

- Foi bastante duro - admitiu com um olhar sombrio. - E onde é que passaram o fim-de-semana? - perguntou num tom acusador a Paxton e a Gabby, quando Peter lhes trouxe a bagagem do carro.

- Em São Francisco - respondeu Gabby bruscamente, sem vontade de mais explicações. Não fazia tenção de se sentir culpada por não ter sido detida. - É escusado ir para a prisão como prova de que nos importamos, Yvonne. Não vai provar a ponta de um com o se ficar com nódoas negras nos braços e, para te falar verdade, pouco me interessa onde distribuem esses malditos panfletos. - Era a primeira vez que se irritava com Yvonne, mas estava cansada dos seus comentários por entre dentes e acusações veladas.

- O que é que te interessa, afinal? - ripostou Yvonne, enquanto Peter e Paxton ficavam a ouvir.

- Talvez as mesmas coisas que a ti. Interessam-me os negros e o Vietname, interessa-me que as pessoas entrem em acordo e fiquem vivas para usufruir de paz, mas não vou deixar que me arrastem pela rua e me atirem para dentro de uma carrinha a fim de o provar.

- Então, nunca serás ouvida. Não podes ficar sentada na tua sala de estar, a arranjar as unhas e a pensar que alguém te ouvirá, pois não é assim. No Sul, apenas ouviram quando as pessoas começaram a ser alvejadas, mortas e presas.

Nesse caso, porque estás aqui e não lá? - arguiu

Gabby de imediato.

- Porque estou farta. Porque estou farta de me sentar nas traseiras do autocarro, querida. Foi sempre assim toda a minha vida. E vou ficar aqui até poder voltar e instalar o cu na frente do autocarro, onde alguém prestará atenção.

- óptimo. Mas não te metas comigo enquanto estás aqui, porque também não me meto na vida de ninguém.

- De qualquer maneira, vou mudar-me no próximo mês - explodiu Yvonne, aborrecida, sem saber se fora ou não derrotada por Gabby. Talvez devesse estar no Sul. Talvez devesse estar em Birmingam, lutando contra os simpatizantes de Wallace e não ali em Berkeley. No entanto, fartara-se de tudo e era esse o motivo por que ficara tão contente ao obter a bolsa de estudos para Berkeley.

- Vais mudar para o apartamento do Deke? - indagou Gabby, apenas ligeiramente interessada. Sentia-se cansada de Yvonne e da sua agressividade. Era tão grande que lhe obscurecia a lucidez; porém, conhecendo o Sul como conhecia, Paxton hesitava em atribuir-lhe todas as culpas.

Yvonne abanou, contudo, a cabeça em resposta à pergunta de Gabby.

- Não... Eu... - Pareceu subitamente atrapalhada, como se se tivesse apercebido que fora longe de mais, como se tivesse consciência de que despejara a raiva em cima delas, sem que o merecessem. - Não vou mudar para o apartamento do Deke. Vou mudar-me para casa de amigos. - Paxton sabia que ela viveria, por opção, com pessoas como ela, que ainda estavam demasiado revoltadas para usufruir da integração que haviam conquistado e ainda ignoravam como agir.

- Fixe - apoiou Paxton calmamente. - Espero que sejas feliz.

- E o teu quarto? - perguntou Gabby, despreocupada 11 indiferente ante a declaração de Yvonne.

- Imagino que arranjarão alguém para me substituir. - E, enquanto ela ainda estava a falar, Dawn entrou no quarto, vestida de camisa de noite.

- Também vou mudar-me - declarou num tom vacilante. - ... Quer dizer... Vou... vou-me embora. - Parecia pedir desculpas mas, em simultâneo, feliz. - Vou para casa - rematou, brindando-as com um sorriso.

- Vais desistir? - surpreendeu-se Gabby, sem compreender como é que alguém podia querer afastar-se de um sítio tão divertido. Todavia, na verdade Dawn nada mais fizera do que dormir naqueles três meses.,

- Vou casar... Penso que... no Natal... Estou... - Corou e olhou-as, às suas únicas amigas em Berkeley. Quase não assistira a nenhuma aula desde que estava ali. - Vou ter um bebé em Abril.

As três raparigas fitaram-na, surpreendidas, embora Paxton se apercebesse, depois, de como eram estúpidas. Ela tinha todos os sintomas que vinham nos livros, mas fora a brincar que haviam dito que ela podia estar grávida.

- O Dave e eu vamos para o Nepal assim que o bebé nascer, para vermos o nosso guru.

- óptimo! - exclamou Gabby, ainda surpreendida, e Peter virou-se para que as raparigas não o vissem sorrir. - É óptimo, Dawn. -,E, quando as outras duas regressaram aos seus quartos, Gabby dirigiu-se a Paxton com um olhar irritado: - Merda! O que vamos fazer com o quarto dela? Se for a universidade a atribuí-lo, só Deus sabe quem nos calhará, e não conheço ninguém que queira mudar a meio do ano. E tu?

- Porque não negociamos? - sugeriu Paxton, pensativa. - Conheço quatro raparigas que têm duplos e anseiam por quartos com sala. Podíamos ceder-lhes os nossos e ficar com os delas.

- Ou podiam fazer um roupeiro do quarto delas. Ou mudarem-se para a minha casa - retorquiu Peter, esperançado, fitando Paxton.

Tinham-se entendido na perfeição naquele fim-de-semana em casa dos pais. Embora tivesse sentido vontade de aparecer no quarto dela e tentar seduzi-la, forçara-se a não o fazer. Sabia como a transtornaria fazer uma coisa dessas na casa dos pais dele e sabia, igualmente, através de Gabby que Paxton ainda era virgem. Há uns tempos que andava a pensar no assunto, interrogando-se sobre se ela estaria pronta a acompanhá-lo para qualquer lado, mas ainda não surgira a altura certa de lhe fazer a pergunta e estava disposto a protelar. Paxton era alguém que desejava ao seu lado para sempre.

- Na verdade, não é assim tão má ideia - disse às duas, antes de sair. - Talvez, no próximo ano, possamos alugar uma casa fora da cidade universitária.

A sugestão agradava a todos, mas o próximo ano parecia ainda muito longe, e Paxton interrogou-se sobre se ele continuaria a gostar dela nessa altura. Muita coisa podia mudar num ano. Era incrível pensar no que já mudara. Em três meses, ela e Gabby tinham-se tornado boas amigas, ela e Peter tinham-se apaixonado, haviam perdido duas companheiras de quarto, e uma delas estava grávida. Não conseguiu deixar de pensar em tudo isso, quando se deitaram nessa noite.

As semanas seguintes pareceram voar, antes de partirem para as férias de Natal. Depois do Natal, Peter iria esquiar com uns amigos e Gabby viajaria a Puerto Vallarta, no México, com os pais. Peter perguntara a Paxton se ela queria ir esquiar com ele, mas a jovem respondera que seria estranho deixar a família tão cedo para regressar à Califórnia, e ele compreendeu.

Levou-a no carro ao aeroporto no dia vinte e um e, quando estavam junto ao portão de embarque a conversar sobre o Natal, ele fitou-a subitamente e o coração da jovem quase parou ao ouvir-lhe as palavras, parecendo-lhe que Peter era quase tão adulto como o pai.

- Isto não vai resultar, sabes? - Era quase Natal e ele estava a informá-la de que o romance acabara...

- O quê?... Eu... eu... lamento... - Não conseguia olhá-lo, tão magoada se sentia. Resistiu ao sentir o dedo dele Por baixo do queixo, forçando-a a erguer o rosto na sua direcção, com os olhos cegos pelas lágrimas que ele lhe provocara.

- Não estás a perceber-me, pois não, Paxton? - Também ele tinha os olhos húmidos, e a jovem abanou a cabeça tristemente. - Sou incapaz de continuar a fingir que somos apenas bons amigos e tudo se resume a um flirt de caloiros. Estou apaixonado por ti, Pax. Nunca amei ninguém como te amo a ti. Quero casar-me contigo um dia. Amanhã, para a semana, daqui a dez anos. Se queres ir para o Corpo da Paz, para África ou para a Lua, tudo bem. Ficarei à espera. Amo-te.

A voz tremia-lhe, os lábios também, e apertou-a com  tanta força nos braços que lhe cortou a respiração. Desta vez, quando o beijou, ela entregou-lhe o coração. Também já não conseguia encarar tudo aquilo como uma brincadeira, Sabia quanto o amava.

- O que vamos fazer, Peter? - perguntou, sorrindo-lhe por entre as lágrimas, e ele correspondeu ao sorriso. Só de a agarrar, senti-la e beijá-la, sabia que a amava. - Tenho mais três anos e meio de universidade. Tenho de acabar - acrescentou.

- Esperaremos. Não tem importância. Talvez acabemos por ficar noivos. Só quero saber se me amas. - Olhou-a bem no fundo e ela esboçou um aceno afirmativo.

- Amo-te... Amo-te tanto... - sussurrou e ele envolveu-a num abraço e beijou-a mais suavemente.

- Odeio não passar o Natal contigo - murmurou-lhe Peter ao ouvido. - Queres que apanhe o avião para Savannah depois do Natal?

Paxton queria, mas tinha medo. Se a mãe soubesse que, aos dezoito anos, pensava a sério em alguém, sobretudo num rapaz da Califórnia, ficaria frenética.

- Não. É demasiado cedo. Não compreenderão.

- Nesse caso, volta depressa.

Estavam a chamar para o seu avião pela última vez, e todos os passageiros já haviam subido para bordo.

- Tenho de ir. Telefono-te de casa. - «Casa... Onde era, agora, a casa?» - Amo-te. - «E se ele a esquecesse durante as férias? Se encontrasse outra pessoa? Se conhecesse alguém, quando fosse esquiar?» Todos estes pensamentos estamparam-se-lhe no rosto quando se afastou dele, e Peter riu-se.

- Deixa-te disso, pateta - incitou. - Amo-te. E é bom que te lembres. Um dia, o teu nome será Paxton Wilson. - Deu-lhe um último e rápido beijo, e ela correu para apanhar o avião, acenando-lhe e gritando-lhe por cima do ombro que o amava.


 

Foi estranho chegar a Savannah nessa noite. Estava frio e escuro e era muito tarde. O avião sofrera um atraso e, dada a diferença horária, era quase meia-noite quando chegou a casa. Já estavam todos a dormir.

O irmão tinha ido buscá-la, mas a mãe deitara-se com uma forte constipação. Apenas Queenie estava acordada e à sua espera com chocolate quente e os biscoitos de aveia favoritos de Paxton, acabados de sair do fogão. Beijaram-se as duas sem uma palavra e, só de abraçar a sua velha amiga, Paxton, sentiu vontade de partilhar a sua felicidade com ela. No avião, tinha pensado constantemente em Peter e agora estava ansiosa por lhe contar.

George, porém, nunca mais se ia embora. Parecia sentir-se na obrigação de esperar até ela acabar de beber o chocolate quente. Contou-lhe as notícias das pessoas da cidade e informou-a de que a mãe recebera uma distinção das Filhas da Guerra Civil; Paxton tentou mostrar-se entusiasmada. Só conseguia, porém, fitar Queenie e sorrir, indicando-lhe com o olhar quanto a amava.

Por fim, ela foi para a cama, George regressou a casa e Paxton deitou-se a reflectir em Peter e tentando sentir-se bem. Mas nada era o mesmo, nada lhe parecia convidativo e quente e não conseguia desviar o pensamento de Peter e da Califórnia. Demorou horas a pegar no sono e, quando por fim adormeceu, sentiu a falta da tagarelice de Gabby.

E, de manhã, a situação piorou. Sentia-se uma estranha quando tomou o pequeno-almoço com a mãe. Felicitou-a pela distinção e, depois de um frio aceno de agradecimento, a mãe remeteu-se a um terrível silêncio.

Parecia não terem nada que dizer uma à outra, e Paxton esforçou-se por lhe falar das aulas. Nunca fez perguntas sobre as companheiras de quarto de Paxton, e nada no mundo a levaria a mencionar-lhe Peter. A mãe informou-a de que George tinha uma «nova amiga» e que a conheceria nessa noite ao jantar, embora George não lhe tivesse falado nela quando a fora buscar ao aeroporto.

Paxton voltou a lembrar-se de como a sua família estava distante da dos Wilson. E foi levada a interrogar-se sobre como poderiam ter sido diferentes se o pai ainda continuasse vivo para lhes aquecer os corações e torná-los a todos um pouco mais humanos.

Já a tarde ia adiantada quando conseguiu encontrar Queenie sozinha, na cómoda cozinha, e falou-lhe em pormenor de Gabby, Peter e dos Wilson.

- Não fizeste nada de que tenhas de te arrepender, pois não, miúda? - perguntou-lhe com uma expressão grave, e Paxton abanou a cabeça. No entanto, essa ideia ocorrera-lhe ,e, agora que tinham confessado o amor um ao outro, era lógico acreditar que, mais cedo ou mais tarde, algo de «sério» podia acontecer. Mas respondeu com sinceridade a Queenie, consciente de que havia pensamentos que nem sequer com Queenie se podiam partilhar.

- Não, Queenie, não fiz. Mas ele é maravilhoso. Ias adorá-lo. - Voltou a contar-lhe tudo a respeito de Peter, e a velha ama escutou-a de coração aberto e os olhos brilhantes, enquanto ela falava do rapaz por quem se tinha apaixonado na Califórnia.

- Gostas daquilo por lá? És feliz?

- Sou mesmo. É maravilhoso. É excitante. - Falou-lhe também das aulas, das pessoas que conhecera, dos lugares que vira, e Queenie conseguia ver tudo através das suas descrições. Em seguida, indagou, num tom cúmplice, sobre a nova namorada do irmão.

- Verás - riu a velha ama. - Acho que esta pode ser ,a sério. - No entanto, Paxton ficou com a sensação de que Queenie não gostava dela, fosse lá pelo que fosse.

- O que te leva a pensar assim? - indagou Paxton, intrigada; Queenie limitou-se a rir e, duas horas mais tarde, Paxton pôde ver com os seus próprios olhos porque é que Queenie não a tinha em grande conta.

A nova amiga de George, Allison, parecia a sósia da mãe deles- Usava o cabelo da mesma maneira, tinha o mesmo ar frio, a mesma arrogância, as maneiras de dama do Sul, só que era muito mais controlada. Tudo nela era tão rígido que parecia em risco de se quebrar. George mostrava-se, contudo, totalmente à vontade com ela. Estava habituado àquele tipo de mulher, embora, na juventude, até mesmo George gostasse delas um pouco mais extrovertidas.

Paxton observou-a a noite inteira. Tinha os lábios tão apertados que mal podia falar e, no entanto, não parecia tímida quanto a expressar as suas opiniões. Por fim, depois do jantar, Paxton entrou de rompante na cozinha e quando ficou só com Queenie, explodiu:

- Meu Deus! Ela é tão rígida e convencida! Como é que ele a suporta?

No entanto, Allison era exactamente o que o irmão desejava. Na sua opinião, correspondia à imagem da perfeita mulher sulista. Fora bem treinado pela mãe.

- O que é que a mamã acha dela? - acrescentou, curiosa, mas Queenie respondeu com um mero encolher de ombros.

- Não sei. Não me diz nada.

- Deve ser como olhar-se ao espelho, ou talvez ela não se aperceba.

O resto da noite foi extraordinariamente monótono para ela; tal como o resto da estadia. Na véspera de Natal foram à igreja e na manhã do dia de Natal repetiram a visita. Esteve com algumas das amigas e ficou chocada ao descobrir que duas delas, que tinham optado por não ir para a universidade nesse ano, iam casar-se; e que uma outra, que casara depois do fim do curso em junho, já estava grávida. Ah, sentia-se demasiado jovem para poder considerar responsabilidades daquelas, e elas estavam perfeitamente embaladas na vida de adultas, com maridos e filhos.

Voltou a pensar em Peter, como agora acontecia ao mínimo pretexto. Ele telefonara-lhe várias vezes, mas na maior parte do tempo era ela quem atendia; portanto, ninguém sabia a frequência com que lhe ligava. A mãe só o mencionou uma vez e declarou achar estranho que um rapaz da Califórnia telefonasse de tão longe a Paxton e que esperava que não se tratasse de nada de desagradável. «Nada de desagradável» significava um envolvimento com um rapaz que não era de Savannah, na Jórgia.

Paxton dirigiu-se ao departamento de pessoal do jornal e, embora Mr. Wilson se tivesse oferecido para lhe abrir caminho, não quis aproveitar-se e conseguiu ser contratada para um emprego de Verão, quando estivesse de férias de Berkeley, de junho a Agosto.

Sentia-se ansiosa pela experiência, mas agora tudo o que a afastasse de Peter deprimia-a. E esta situação também a incomodava. Não queria depender totalmente dele e havia tanta coisa que queria fazer com a sua vida, cumprir o que prometera a si própria. No entanto, ele garantira que estava disposto a esperar e ela sabia que o faria. Voltara a repetir a promessa vezes sem conta, quando lhe telefonara para Savannah, no Natal.

Acedera em regressar no avião um dia antes da véspera de Ano Novo e a mãe parecia tão envolvida com George e Allison e as suas amigas que Paxton achou que ela não se importava. Foi ao ponto de admitir que queria passar a véspera de Ano Novo com as amigas da universidade e, embora a mãe comentasse que achava «pouco generoso da sua parte», deu a sensação de que aceitava.

George levou-a, uma vez mais, ao aeroporto, depois de Paxton ter passado uma manhã calma na cozinha, com Queenie. Esta apanhara a sua habitual constipação do ano, e Paxton obrigou-a a prometer que iria ao médico.

A mãe de Paxton tinha ido ao cabeleireiro antes de ela partir e despedira-se de manhã cedo. E, ao despedir-se de George, pediu-lhe que desse um beijo a Allison, e o irmão quase se sobressaltou.

- É mesmo a sério entre os dois, não é? - perguntou, sem resistir à intimidade do momento. Intimidade era uma palavra que o irmão odiava.

- Não faço ideia do que queres dizer - retorquiu num tom gelado, e ela foi incapaz de resistir a soltar uma risada. O irmão acabara de fazer trinta e três anos e, se ainda não lhe passara pela cabeça, estava de facto em sarilhos. - É muito pouco senhoril da tua parte essa afirmação, Paxton.

A jovem lembrou-se do à-vontade reinante entre Peter e Gabby e ficou triste ao aperceber-se de como a sua vida era diferente e da pompa e circunstância que definiam a relação com o seu único irmão.

- Acho que ela gosta realmente de ti, George. E acho que a mãe gosta dela. - Tratava-se das únicas palavras verdadeiras que poderia pronunciar. Não queria mentir, afirmando que gostava dela.

- Estou certo disso - replicou num tom triste e desejando que a irmã não tivesse feito a pergunta.

- Cuida de ti. - Inclinou-se para a frente e beijou-o na face sem uma palavra; e, sem qualquer outra palavra, tirou-lhe o saco da mão e dirigiu-se ao avião, esboçando um último aceno amistoso.

Peter fizera muito por ela. Tornara-se incapaz de fazer o jogo deles, o jogo da ausência de emoções, Permanente controlo e infindáveis jantares silenciosos. Enquanto a via afastar-se, George pensava, infeliz, no que estava a acontecer à irmã na Califórnia.

Desta vez, quando Paxton desceu do avião em São Francisco, Peter esperava-a e quase levantou voo ao vê-lo. Ergueu-a em peso do solo, premiu os lábios nos dela e abraçou-a fortemente. Riam e beijavam-se, e os transeuntes sorriam ao observá-los. Era agradável ver jovens tão apaixonados; aquecia o coração e lembrava às pessoas o que haviam sido outrora.

- Céus! Senti a tua falta! - exclamou Peter, fervoroso, quando por fim a pousou e avançaram, de braço dado, rumo ao depósito de bagagens. - Acho que não conseguiria aguentar nem mais um minuto.

- Nem eu - replicou ela com um olhar brilhante.

- Como estava Savannah?

- Um horror! - Contou-lhe tudo sobre Allison, George e o emprego de Verão, tudo o que Queenie comentara sobre eles e mencionou, tristemente, quanto a mãe se mostrara reservada e distante. - Acho que continua a sentir-se atraiçoada com a minha ida para Berkeley. julgo que ela foi sempre assim, mas agora tenho mais consciência, por haver conhecido pessoas tão diferentes. «Como os Wilson.»

- Deixa lá, querida. Tens-me a mim.

Tratava-se de uma afirmação corajosa e sentiu-se emocionada. No entanto, uma ínfima parte de si ainda receava confiar nele por completo. «E se mudasse de opinião, se partisse ou se se apaixonasse por outra pessoa? ... » Aprendera, há muito, que era perigoso amar alguém sem reservas. Aprendera esta lição há muito tempo com o homem que amara tão profundamente, e, homem que representara tudo para ela; e, depois, tudo acabara num momento, quando o avião se despenhara.

- O que fazemos esta noite? - perguntou, feliz, ao dirigirem-se à garagem para ir buscar o calhambeque.

Não lhe interessava, na verdade, o que iriam fazer, desde que estivesse com ele. Nunca se sentira tão feliz na vida. Talvez as suas amigas de Savannah tivessem razão, aquelas que eram casadas e tinham filhos. Também lhe falara nelas e de como estava impressionada, mas Peter compreendia que ela ainda não se encontrava preparada. Ele parecia compreender tudo, e nunca o amara tanto como no momento em que se sentaram no velho carro e se beijaram até ficar sem fôlego.

- O que vamos fazer esta noite?... - Ele tentou forçar-se a pensar e ela soltou uma gargalhada. - Tencionava lêvar-te a Talioe para passarmos lá o fim-de-semana. Mas há uma tempestade e eles fecharam Dormer Pass. Teremos de esperar até amanhã de manhã e ver se o abrem. Queres ir jantar e ao cinema?

- Claro. - Levou-a no carro até à cidade e ela ignorava se passaria a noite na universidade ou no quarto de hóspedes na casa dos Wilson. Os pais dele e Gabby continuavam fora e a criadagem estava de folga; Peter insistiu em que não via motivo para que ela não ficasse. - Achas que nos portaremos bem? - perguntou-lhe, honestamente, tentando decidir-se.

- Queres que me porte bem? - replicou ele, abraçando-a meigamente.

- Já não sei o que quero, Peter... Continuo a pensar que temos de esperar... Por isso, também... E, depois, olho para as minhas amigas e acho-me estúpida.

- Não olhes para elas - ripostou o jovem, suavemente- - Olha para mim. Olha para ti. Farei o que quiseres, Paxxie.

- Dormirei no quarto de hóspedes - redarguiu ela, com um sorriso agradecido.

Não queria dormir sozinha num dormitório solitário. Na verdade, apetecia-lhe enroscar-se na cama com ele. Desejava muito mais do que isso, mas acreditava que não o faria. Tinha quase dezanove anos e ele estava quase nos vinte e três. Tinham idade suficiente para se casarem, terem filhos, fazerem um milhão de coisas e, contudo, ainda não podiam, supostamente, fazer amor por não serem casados.

Quando chegaram a casa dos Wilson, ele levou-lhe a mala para o andar de cima; depois, voltou abaixo, à procura do jornal para escolherem um filme. Paxton sentiu-se às mil maravilhas naquela casa, envolta na grandiosidade de um lugar que fora construído pelo pai de Ed Wilson.

Riu, sentou-se e vagueou o olhar pelo bonito quarto de hóspedes. Estava tudo forrado de um belo algodão estampado às flores, a alcatifa era de um amarelo-claro e a casa de banho era de mármore rosa e branco. Era o sonho de qualquer rapariga, e Peter também o era.

- Que tal Goldffinger, o novo filme do James Bond? - sugeriu ele, quando regressou com duas cervejas e um pacote de batatas fritas, que lhe estendeu. - Comeste no avião? - perguntou, apercebendo-se, subitamente, de que ela podia ter fome.

- Comi duas vezes - sorriu. - Sou incapaz de comer mais. - Tirara os sapatos e mudara para umas calças de ganga. Sentia-se como se tivesse regressado novamente a casa, só por estar ali ao seu lado. Peter sentou-se na cama e chegou-se a ela.

- Não podes imaginar como senti a tua falta.

- Também senti a tua - replicou ela meigamente, envolvendo-o nos braços. Beijaram-se, rolaram devagar na cama e ficaram muito tempo, beijando-se e abraçando-se por entre toques e carícias. Estavam calmos e em paz na confortável divisão e, decorrido algum tempo, ele parou e pôs-se a olhar em volta.

- Nunca me apercebi do quanto gosto deste quarto. Ou talvez agora pareça ser teu. - Sorriu, voltou a beijá-la e apertou-a mais de encontro ao corpo, absorvendo o subtil odor do seu perfume. Ela usava Femme e ele adorava. A própria palavra levava-o a pensar nela. Mulher. - Talvez devamnos levantar-nos. - sugeriu, hesitante e interrogativo, pois começava a não lhe apetecer sair dali.

- sim. Acho que sim - replicou ela tranquilamente.

Levantaram-se. Paxton, vestiu uma camisola quente, calçou os sapatos e foram ao cinema. Em seguida, comeram um hamburger no Hippo e chegaram a casa muito antes da meia-noite. Ele deu-lhe um beijo de boas-noites no corredor, fora do quarto, e subiu para o andar de cima.

Nessa noite, tinham, como sempre, falado de mil coisas que lhes interessavam, das famílias, dos amigos, das respectivas opiniões e do seu futuro. Ela já tinha a camisa de noite vestida e continuava a pensar nele quando ouviu uma leve pancada na porta, minutos depois de ele a ter deixado.

- Sim? - Sabia quem era, pois estavam sozinhos na casa.

- Sou eu - respondeu com um sorriso, enfiando a cabeça pela porta.

- Que boa notícia! - riu Paxton. - Imaginei que, se não fosses, só podia ser um ladrão.

Tenho saudades tuas! - exclamou com um ar de miúdo e, quando abriu a porta toda, Paxton viu que ele vestira um pijama de flanela vermelha e riu ao sentir-se observado. - Levei dez minutos a descobri-lo, ou teria chegado mais cedo. - Ambos riram e ela sentiu-se jovem, feliz e apaixonada ao avançar lentamente na sua direcção.

_ Também eu de ti - replicou meigamente. - Ele apagou a luz, sem uma palavra e ficaram, de pé, banhados pelo luar que entrava através das janelas.

- Não sei o que fazer, Pax... Não quero fazer nada que te magoe... nem agora, nem nunca... Amo-te tanto... mas é difícil manter-me à distância.

- Acho que não quero que o faças. - Sentaram-se na cama, apenas para conversar e voltaram a beijar-se, deitados na cama. Ela estava nos seus braços, e Peter despiu-lhe a camisa de noite com movimentos vagarosos.

- Só quero olhar para ti. - Expressava-se terna e suavemente e todo o corpo lhe doía ao contemplar aquela imensa beleza sob o luar. Ela era alta, esguia e bela e tinha umas curvas perfeitas, assemelhando-se a uma bonita estátua de mármore rosa. - Oh, céus... Amo-te...

Também ela o amava e, sem hesitar, desabotoou-lhe o pijama e conservaram-se deitados, por muito tempo, abraçados, sem ousarem avançar mais, desejando, contudo, muito mais, desejando tudo o que cada um tinha a dar, para sempre.

Peter acariciou-lhe os longos cabelos sedosos, percorreu suavemente as mãos pelos seios e ao longo das coxas, iniciando o percurso de volta, mal se atrevendo a aproximar-se do que desejava. Foi, no entanto, Paxton a tomar a decisão. Era incapaz de aguentar por mais tempo. Desejava-o demasiado. Desabotoou, com gestos suaves, as calças do pijama, revelando a premência, o fervor que ele deixara de poder controlar.

- Paxxie... - murmurou com voz rouca. - Tens a certeza?... - A jovem limitou-se a esboçar um aceno afirmativo e a sorrir. Em seguida, beijou-o, enquanto ele a colocava ternamente de costas, abrindo-lhe as pernas com as dele e procurando o que ela lhe guardara até esse momento.

Tratou-a com infinda delicadeza e quase não houve lugar para a dor; houve apenas paixão, desejo e juventude, e as oferendas de amor que tinham para trocar.

Conservaram-se toda a noite nos braços um do outro, fazendo amor vezes sem conta. E, de manhã, quando ele acordou, ela estava ao seu lado com os cabelos espalhados sobre o seu braço, o rosto idêntico ao de uma criança adormecida. Estavam de mãos dadas e Peter sentiu a picada de uma lágrima, ao observá-la. Ela era tudo o que ele sonhara toda a sua vida, tudo o que desejara, o que esperara encontrar um dia e só ela sabia agora quanto a amava.


 

O resto do ano pareceu voar, tendo apenas alguns acontecimentos importantes a assinalá-lo. No Natal, terroristas do Vietcongue tinham bombardeado o Hotel Brinks em Saigão, onde os oficiais americanos se encontravam alojados.

Era véspera de Natal e os oficiais tinham vindo de todo o Saigão para uma celebração que findara em choque e tristeza. Dois foram mortos e cinquenta e oito ficaram feridos.

E uma vez mais Lyndon Johnson recusou retaliar com um bombardeamento.

Seguiu-se outro ataque. E, por fim, a 7 de Fevereiro, o presidente ordenou os primeiros bombardeamentos importantes contra o Norte. E, duas semanas e meia depois, iniciou-se a Operação Rolling Thunder. Decorridas mais duas semanas, chegaram as primeiras tropas de combate em terra. No dia 8 de Março, os fuzileiros desembarcaram em Da Nang, após anos de inúteis «conselheiros».

Passadas outras duas semanas, a Embaixada americana em Saigão foi atacada e o povo americano começou a aperceber-se de que a situação no Vietname era séria.

Em simultâneo, nos EUA, a Guarda Nacional foi obrigada a proteger a Marcha da Liberdade Selma-Montgomery, e a Universidade de Michigan organizou o primeiro curso de seminários antiguerra.

Porém, este curso de seminários não deteve a guerra, nem o bombardeamento parou o Vietcongue. Os reforços continuavam a chegar ao Sul através da Pista de Ho Chi Minh. E verificaram-se mais protestos antiguerra no Dia das Forças Armadas, em Maio. Peter e Paxton participaram num deles, na Universidade de Berkeley.

Estavam quase no fim do ano escolar. E Paxton começava a ficar nervosa com a ideia de o deixar para regressar a Savannah. O pensamento de não estar com ele todos os dias quase lhe parecia assustador. Era incapaz de imaginar um dia sem Peter.

Oferecera-se como voluntário para o projecto-lei de que havia falado. E planeava passar a maior parte do tempo no Mississipi. Prometera, no entanto, ir vê-la, sempre que pudesse. E ela ia trabalhar em Savannah, no jornal.

Gabby viajaria novamente para a Europa com os pais e mostrara-se pouco receptiva à ideia de arranjar emprego quando o pai lho sugerira. Prometera arranjar um no ano seguinte, mas queria divertir-se «só desta vez» na Riviera con, as amigas e, em Paris, com a mãe. Ed Wilson ralhara com a mulher por lhe satisfazer os caprichos; porém, à semelhança de Gabby, também achava que «mais um ano» não lhe faria mal.

Os três saíram de Berkeley a 1 de junho. Peter e Paxton passaram um fim-de-semana tranquilo numa cabana que ele alugou no lago Tahoe e estiveram na cama, pela última vez, antes da separação das férias de Verão.

- Vou endoidecer sem ti - sussurrou, encostando o nariz aos longos cabelos louros. - Tudo será tão solitário no Mississipi.

- Savannah será pior - retorquiu sombriamente, mas esqueceram tudo quando se abraçaram de novo, e foi um longo e feliz fim-de-semana.

Os pais dele suspeitavam que havia algo entre eles e Gabby também, mas nem Peter nem Paxton confessaram o que quer que fosse. Passavam todo o tempo juntos e tinham notas óptimas; por conseguinte, ninguém podia queixar-se.

Peter, Paxton e Gabby já tinham combinado procurar uma casa para o Outono, a fim de que os três pudessem viver juntos fora da cidade universitária. Paxton sabia que Gabby ficaria obviamente a conhecer o segredo da ligação deles nessa altura e estariam preparados para lhe contar. Valeria a pena, só para usufruir do prazer de viverem juntos, longe dos terrenos da universidade.

Gabby viajou de São Francisco, com Marjorie. Iam de avião a Londres para visitar uns amigos e ficariam no Claridge's, antes de seguirem para Paris. E Paxton também partiu, ficando a acenar tristemente a Peter no aeroporto. Ele foi-se embora nessa mesma tarde, a tempo de chegar a Jackson, no Mississipi, para uma manifestação de protesto que causou a prisão de quase mil pessoas. Peter foi uma delas, mas saiu rapidamente sob fiança.

O contacto de Paxton com o emprego foi mais difícil e ficou muito desapontada ao descobrir que tinha sido designada para trabalhar com o editor dos assuntos sociais. Puseram-na a coordenar as notícias de quem recebia quem, quem vestia o quê e o que faziam a Liga Júnior e as Filhas da Guerra Civil.

Tratava-se de um emprego que a mãe compreendia e, na verdade, respeitava um pouco, mas proporcionava uma certa sensação de inutilidade a Paxton. Sentava-se à secretária, observava, desesperada, as notícias do telex referentes a manifestações no Alabama, ao reforço das tropas americanas no Vietname, elevando o total para uns «meros» cento e oitenta mil homens, um número assombroso.

E, nesse Verão, Johnson duplicou o recrutamento. Paxton sabia que alguns dos rapazes que se encontravam no Vietname haviam sido seus colegas do liceu e, em dois casos, os irmãos mais novos deles. Um tinha sido morto e ela ficou inconsolável. Sentiu um pânico repentino. E se conseguissem apanhar Peter?

Telefonava-lhe quase todos os dias e ele fazia-o com a mesma frequência. No fim de julho, conseguiu mesmo vir do Mississipi para passar o fim-de-semana. Tinha planeado aparecer mais cedo, mas fora preso duas vezes e o trabalho que desempenhava exigia-lhe mais do que o tempo previsto.

Paxton, porém, estava felicíssima quando apanhou um táxi para ir buscá-lo ao aeroporto. Ele abriu-lhe os braços. Estava ofegante, queimado do sol e o cabelo tinha a mesma cor do dela quando a beijou.

- Que maravilha ver-te! - declarou, sorrindo. - Estou tão cansado de tirar gente da cadeia sob fiança que mal consigo ver bem!

- Não tão cansada como eu estou de reuniões sociais e concertos! julguei que iria fazer algo significativo e, durante todo o Verão, limitei-me a escrever sobre as amigas da minha mãe.

Peter esboçou um sorriso e voltou a beijá-la, desejando que pudessem ir para a cama no caminho de regresso do aeroporto.

- A propósito, como está a tua mãe? - perguntou.

- A mesma de sempre. Está desejosa por te conhecer. - Oh! Oh! Parece-me perigoso - retorquiu, voltando a beijá-la.

Não conseguia parar de a beijar. Há quase dois meses que não a via. No entanto, ela sentia a mesma «fome» que ele. Alugara um quarto num simpático e tranquilo hotel nos arredores da cidade, onde não era provável cruzarem-se com uma das amigas da mãe, e disse-lho, quando seguiam viagem a caminho de Savannah.

- Posso fazer uma sugestão? - perguntou com um sorriso e inclinando-se para a beijar no seu carro alugado.

- Tudo o que quiseres - respondeu a jovem com um olhar luminoso.

- Que tal fazermos uma inspecção ao hotel no caminho para casa? - inquiriu, malicioso, e ela riu.

- Parece-me uma excelente ideia. - Paxton pertencia-lhe inteiramente. Tirara dois dias de folga no jornal, embora achassem que ela deveria fazer a cobertura de um casamento de gente colunável.

Pouco depois, chegaram ao pequeno hotel; Peter tinha um ar extremamente sério e responsável, de fato e gravata, quando assinou o livro de registo como Mr. e Mrs. Wilson e levou o saco para um quarto limpo e simples, que se transformou na sua suite de lua-de-mel durante as horas seguintes.

Era quase noite quando olhou para o relógio.

- Deus do céu! A minha mãe estava à tua espera para um aperitivo! - exclamou Paxton, ofegante.

- Ainda não sei se consigo aguentar-me de pé, quanto mais beber - troçou Peter, puxando-a para o seu lado na cama, mas apenas por um minuto. Em seguida, tomaram duche juntos e vestiram-se. Por breves momentos, foi como se estivessem casados.

- Ela sabe que vamos partilhar uma casa este ano? acrescentou ele, pois não queria causar algum problema, e ainda bem que fez a pergunta, pois Paxton encolheu-se ao ouvi-lo.

- És louco? Ela pensa que ficarei com a Gabby e outra rapariga e, mesmo assim, não lhe agrada muito a ideia.

No entanto, acabara por ceder.

- óptimo. Isso significa que nunca poderei tocar no telefone. - Parecia divertido e não se importava. Tudo o que queria era viver com Paxton, mesmo que isso significasse ter de aguentar a irmã. Quando lhe tinha telefonado para Jackson, a mãe contara-lhe que Gabby tinha perseguido todos os homens com mais de trinta anos, na Riviera.

- Acho que ela anda desesperada - comentou com Paxton no percurso de regresso à cidade.. - É idiota e demasiado jovem para se casar. - Paxton sorriu ante as palavras e ele inclinou-se e beijou-a. - No caso dela é diferente - prosseguiu. - A Gabby é uma miúda e tu não. Mas também acho que és demasiado jovem. Durante mais três anos. E depois... Tem cuidado!

Ambos riram. Paxton sabia como ele fora sensato e nunca se sentira pressionada. Queria que ela fizesse o que tinha necessidade, como naquele Verão, quando arranjara o emprego em Savannah. Via-se, contudo, forçada a admitir que se sentira infelicíssima sem ele.

George e a mãe esperavam-nos quando chegaram no carro, e a mãe brindou Paxton com um olhar visivelmente desaprovador.

- Julguei que estarias em casa há horas. - Allison estava presente e a mãe achava que Paxton deveria ter mudado de roupa por causa da «visita», mas Paxxie ignorou-a.

- Andei a mostrar a vista ao Peter. Peter - declarou num tom formal - é a minha mãe, Beatrice Andrews, o meu irmão George e a sua... namorada, Allison Lee.

A mãe fazia gala em comunicar a toda a gente que Allison era neta do grande general confederado. E, durante todo o Verão, Paxton esperara que George ficasse noivo dela, mas por qualquer motivo tal não acontecera. Aos trinta e três anos, não queria tomar atitudes precipitadas. Em nada. Embora, aos trinta e um anos, Allison parecesse inubitavelmente nervosa.

- Este é o Peter Wilson - explicou a todos, como se nunca tivessem ouvido falar dele. - A sua irmã, a Gabby, é a minha companheira de quarto. - Todos murmuraram um delicado: «Muito prazer», apertaram as mãos e George ofereceu uma bebida a Peter. Este pediu um gim tónico.

Estava um calor sufocante, e a ventoinha por cima das suas cabeças quase não refrescava a divisão, embora todos fingissem não se dar conta. Queenie preparara os seus melhores hors-doeuvres e Allison não os provou, ostentando o habitual ar afectado e petulante. Há muito que Paxton chegara à conclusão de que não a suportava.

Peter mostrou-se, porém, amável para todos. A mãe ostentava uma delicadeza fria, George estava com um ar aborrecido e Allison nem parecia notar que mais alguém se encontrava na sala com eles. Quase nunca dirigia a palavra a Paxton e por várias vezes confessara a George que não a compreendia. E, no íntimo, achava que Paxton era mal-educada e demasiado teimosa.

Nessa noite, Allison falou permanentemente a George dos novos cortinados que tinha acabado de encomendar para o quarto dela. Peter tentava explicar o que fazia no Mississipi, mas ninguém parecia dar atenção, e a mãe insistia, ostensivamente, em mudar de assunto. Levou algum tempo a perceber que ela desaprovava a sua actividade lá e estava a tentar impedir que ele se colocasse numa situação embaraçosa. Quando a mensagem lhe chegou ao cérebro, ficou chocado. Eles ainda eram piores do que Paxton os descrevera. Eram frios, distantes e viviam na Idade Média.

Mudou de tema e pôs-se a falar da viagem dos pais à Europa, o que parecia um terreno mais seguro. A mãe de Paxton mostrou-se impressionada ao ouvir dizer que estavam no Sul de França e perguntou-lhe, o mais suavemente possível, o que o pai fazia. Peter ficou surpreendido que Paxton não a tivesse informado.

- Ele... oh... trabalha para um jornal em São Francisco... - Achou uma indiscrição dizer que era o dono.

- Que bom! - comentou Beatrice com um ar de óbvia desaprovação. - E vai ser advogado? - Peter esboçou um aceno de concordância, sem palavras ante aquele tom gelado. Ela correspondia a tudo o que Paxton lhe dissera e a mais... ou menos, dadas as circunstâncias.

- O pai de Paxton era advogado - prosseguiu no mesmo tom glacial. O irmão... - Dirigiu os olhos para o terrível George ... é médico. - Esta era, indubitavelmente, uma profissão que considerava importante.

- É maravilhoso! - replicou Peter, interrogando-se sobre até que ponto conseguia aguentar aquele tipo de conversa e com o era possível que Paxton mantivesse uma convivência diária com eles. Era tão diferente. - E a Allison? o que faz?

- Eu... Porquê? - Ficou tão sobressaltada com a pergunta que não fazia ideia da resposta a dar. Há treze anos que andava à procura de marido, desde que saíra do liceu. - Eu... gosto muito do meu jardim.

- E executa um trabalho maravilhoso para nós na Liga Júnior, não é verdade, minha querida? - encorajou Mrs. Andrews. E, dirigindo-se a Peter: - O tio-avô dela era o general Lee. Tenho a certeza de que sabe quem é.

- Sim, na verdade. - Peter sentiu vontade de se escapar da sala aos gritos. Foi o jantar mais longo de toda a sua vida, com infindos silêncios pontuados de bocados de conversa terríveis; apenas uma piscadela ocasional ou cotovelada de Queenie ou um olhar de Paxton o alegraram.

Teve a impressão que haviam decorrido milhões de anos antes de regressarem ao hotel, onde tirou a gravata e se deixou cair na cama com um gemido que expressava ao de leve as emoções da noite. Depois, soergueu-se e fitou Paxton. Tinham fingido que iam «dançar» um pouco.

- Céus, miúda! Como é que os aguentas? - exclamou. - São as pessoas mais difíceis e arrogantes que conheci. Sei que não devia falar assim da tua família, mas pensei que o jantar nunca mais chegava ao fim.

- Eu sei - redarguiu Paxton, com um sorriso de orelha a orelha. - Não são um horror? Nunca sei o que hei-de dizer-lhes. Sinto-me sempre uma estranha.

- E és. Nem sequer pareces da família. O teu irmão é o homem mais chato que eu conheci. A namorada a mulher mais rígida e idiota... E a tua mãe... Meu Deus, assemelha-se a um icebergue.

Paxton sorriu, amando-o mais do que nunca. Sentiu-se, repentinamente, vingada, como se tivesse mais alguma coisa no mundo do que apenas Queenie. É assim, a minha manhã.

Peter continuava sem acreditar que houvesse gente semelhante no mundo. Eram totalmente diferentes da sua família e totalmente diferentes de Paxxie. - Gostava de ter conhecido o teu pai.

- Também gostava que o tivesses conhecido. Ia adorar-te.

- Tenho a certeza de que gostaria dele. Mas com base em tudo o que me contaste a seu respeito, Paxton, não consigo imaginá-lo com a tua mãe.

- Acho que não foi muito feliz. Tinha apenas onze anos quando ele morreu. Portanto, as subtilezas da relação deles escaparam-me.

- Talvez tenha sido preferível. Graças a Deus que foste para Berkeley. - Não conseguia sequer imaginar o que lhe aconteceria, se tivesse ficado em Savannah com eles. Ficaria destruída, ou psicologicamente afectada. Bebera três gins tónicos para aguentar o jantar, e era provável que pensassem que era um alcoólico.

Paxton ficou o máximo de tempo com ele e, depois, Peter levou-a a casa no carro alugado e ficou a vê-la entrar. E a jovem verificou, surpreendida, que a mãe a esperava, algo que nunca fazia e não era, necessariamente, um bom presságio.

- O que significa, de facto, esse rapaz para ti? - perguntou a Paxton, uns segundos depois de ela haver transposto a porta.

É meu amigo. Gosto dele.

Estás apaixonada por ele - trovejou a mãe, pronunciando as palavras como se fossem balas de canhão e como se esperasse que Paxton se ajoelhasse aos seus pés e implorasse piedade.

_ Talvez. - Não queria mentir-lhe, mas também não queria desencadear uma crise. A mãe estava sentada no sofá, vestida com o roupão e tinha um cálice de sherry ao lado. - Gosto da família dele. A irmã é minha amiga e os pais têm sido muito simpáticos.

- Porquê? - Era uma pergunta ridícula, e Paxton não conseguia encontrar resposta.

- O que significa esse «porquê»? Porque gostam de mim.

- Talvez achem que és um degrau para o filho. já te ocorreu? - Paxton quase soltou uma gargalhada ante a sugestão, mas não queria ser indelicada com a mãe.

- Não me parece muito provável.

- Porque não?

- Mãe. . . - Paxton não sabia muito bem o que dizer a seguir, mas a verdade parecia a única solução. - São donos do segundo jornal de maior tiragem em São Francisco. o Morning Sun. Não precisam de mim para nada. Gostam simplesmente de mim.

- Parecem vulgares - comentou a mãe num tom duro, mas, na sua opinião, todos os do Oeste o eram, incluindo, e talvez sobretudo, Peter Wilson. As pessoas do Oeste ainda eram piores do que os ianques.

- Não são vulgares - retorquiu Paxton, subitamente magoada pela falta de simpatia da mãe frente ao jovem que amava. Contrastava em absoluto com o calor que havia recebido dos Wilson. - São muito simpáticos, mãe. A sério.

- Não quero que regresses a Berkeley. - As palavras saíram-lhe da boca como chamas, e Paxton deixou-se cair pesadamente numa cadeira, desejando que não tivessem de passar por aquilo.

- Gosto de estar lá. É uma universidade fantástica. Estou a dar-me bem, mãe. Não vou ficar aqui.

- Ficarás, se eu assim o ordenar. Tens dezanove anos e não deixes que essa pequena herança do teu pai te suba à cabeça. Com a tua idade, não és independente.

- Lamento que pense assim - replicou Paxton, esforçando-se por se manter calma. - Não vou, porém, ficar em Savannah.

- Posso perguntar porquê?

- Porque não sou feliz aqui. Quero horizontes mais largos, E, quando acabar a universidade, quero ir uns tempos para o estrangeiro. - Até mesmo Peter compreendia isso-

- Andas a dormir com ele, não é? - Tratava-se de um golpe baixo que ela não esperava.

- Claro que não.

- Andas, sim. Está escrito em ti, como se fosses uma Prostituta barata. Foste para a Califórnia e transformaste-te numa vagabunda. Até mesmo o teu irmão e a Allison notaram a diferença. - Era uma afirmação desagradável e o consenso deles magoava-a.

- Lamento ouvir essas palavras - replicou Paxton levantando-se e decidida a terminar a conversa. - Agora, vou deitar-me, mãe.

- Quero que penses nas minhas palavras.

- Quanto a ser uma prostituta? - ripostou Paxton friamente, mas a mãe pareceu imperturbável.

- Quanto a ficares aqui... Quero que penses duas vezes antes de voltares à Califórnia.

- Acho que não terei de o fazer - asseverou Paxton tristemente e subiu as escadas até ao quarto.

No dia seguinte, encontrou-se com Peter no hotel e falou muito pouco do que tinha acontecido. Mas ele sabia. Lia-lhe no rosto.

- A tua mãe fez qualquer comentário, não foi? Estava perturbada?

. - Perturbada? - riu Paxton, expressando-se, pela primeira vez, num tom amargo. - Não, a minha mãe nunca fica «perturbada». Desapontada. Quer que peça uma transferência para uma universidade local. - Peter ouvia-a, horrorizado, mas Paxton apressou-se a beijá-lo para o tranquilizar.

- Afirma que me transformei numa prostituta na Califórnia e que até o meu irmão e a Allison podem vê-lo. É muito constrangedor para eles.

- Filhos-da-mãe... Eles... - Atropelava as palavras, tal, a sua irritação, e ela silenciou-o com mais um beijo, demasiado experiente para a sua idade, demasiado entristecido pelo que acontecera.

- Não interessa. Regressarei a Berkeley dentro de quatro semanas. E ignoro se alguma vez voltarei aqui. Não sei se vou conseguir. Deprime-me de mais. Estão sempre a querer magoar-me.

- Achas que pode cortar-te a mesada? - interessou-se Peter, preocupado, embora tivesse ficado feliz por remediar a situação num abrir e fechar de olhos; Paxton abanou a cabeça. Continuava triste, mas parecia, por outro lado, mais velha e mais independente.

- Não, não pode. O meu pai deixou-me dinheiro bastante para frequentar a universidade e sustentar-me enquanto a frequentar. E depois terei de trabalhar. Portanto, não me afectará em nada. É provável que me sustentasse se eu quisesse voltar para casa e passasse o resto da minha vida na Liga Junior, mas não quero. Assim, não faz qualquer diferença. Não consigo simplesmente voltar aqui. Pelo menos, para cá viver-  Parecia segura.

- E a Queenie? - inquiriu, ciente de quanto ela significava para Paxton.

- Voltarei para a ver. Terei de o fazer. - Paxton sorriu. Agora, a sua vida era na Califórnia ao lado dele. Mais importante ainda, a sua vida pertencia-lhe e ela sabia-o. E a mãe também o sabia, o que a assustava. Passara a deter muito pouco poder sobre Paxton.

Peter partiu no dia seguinte, o que muito entristeceu Paxton. Também ele detestava abandoná-la no meio de pessoas que não a amavam. Prometeu telefonar-lhe pelo menos todos os dias, mais vezes se conseguisse e não estivesse na prisão, acrescentou a rir, quando a deixou no aeroporto. Beijou-a longa e intensamente, pedindo-lhe que pensasse em quanto a amava e não se deixasse abater pela família.

No entanto, foi o que aconteceu. A mãe mostrou-se hostil depois da partida de Peter, e o irmão afirmou-lhe por várias vezes, sempre que teve oportunidade, que pela mãe, ela não devia regressar à Califórnia.

- Devo a mim própria fazer algo com a minha vida, George - ripostou com franqueza, sem ter medo nem se deixar impressionar por ele, apesar da diferença de idade que os separava.

O irmão parecia-lhe patético, um insignificante médico, que continuava preso às saias da mãe e receava ter uma ligação com alguém de peso. Tinha a certeza de que a sua relação com Peter era mais total e madura do que a dele.

- Podes ser alguém aqui - insistiu George na noite antes de ela se ir embora, quando a mãe estava no clube de bridege.

- Uma oval - explodiu. - Vê o teu exemplo. Analisa as pessoas que conhecemos. Olha para a Allison... e para as raparigas com quem andei no liceu.

- Vê como falas, Paxton! - O irmão ficara irritado com todas aquelas críticas, mas também ela o estava. Aguentara tempo de mais. - Encheste a cabeça com uma série de ideias loucas e palavras obscenas, Paxton, que não se adaptam à tua pessoa.

- Tão-pouco esta situação. Não sou eu. Nunca fui. Nem o papá o era. Ele provavelmente aguentou porque era boa pessoa e achava que tinha de o fazer.

- Não sabes nada sobre ele. Eras uma miúda quando morreu.

- Sei que era um bom homem, com um coração de ouro, e eu amava-o.

- Não sabes o que ele fez à minha mãe. - Pronunciou a afirmação como se estivesse a ocultar-lhe algo terrível, e ela achou difícil acreditar numa coisa assim ligada ao pai.

- O que é que ele pode ter-lhe feito? - Era incapaz de imaginar o que quer que fosse, mas George não conseguiu resistir a magoá-la ainda mais. Era a derradeira vingança pela sua independência, a independência que ele não tinha nem nunca teria, pois parecia-se demasiado com a mãe e não o suficiente com o pai, contrariamente a Paxton.

- Ia acompanhado de uma mulher quando o avião se despenhou.

- Ia? - repetiu Paxton, inicialmente sobressaltada, mas, depois, pensativa. O facto explicava muitas coisas. A atitude da mãe. Mas também era fácil compreender porque é que ele desejara outra mulher. Não ficara muito surpreendida. E, curiosamente, sentia-se satisfeita. Se ele tivesse encontrado alguém que o amara, merecia-o. Não merecera morrer por esse motivo. Não fora, contudo, essa a causa da morte. Fora o destino o causador. O infortúnio. O seu nome numa ardósia, escrito por uma mão do Paraíso.

- Não me surpreende muito - retorquiu calmamente, e ele pareceu desapontado. - A mamã tratou-o sempre com uma enorme frieza. Provavelmente necessitava de mais do que ela tinha para lhe dar.

- O que podes saber dessas coisas com a tua idade?

- Sei o que é ser filha dele - respondeu sem delongas, e ele ficou chocado. - E tua irmã. Somos muito diferentes.

- Sem dúvida - anuiu com um orgulho cheio de raiva. - Sem dúvida que somos. E acho bem que penses duas vezes sobre como estás a transformar-te na Califórnia. Com todas essas drogas, hippies e manifestações, todos esses loucos vestidos com os lençóis da cama e flores no cabelo, lutando a favor dos negros, quando nunca viram nenhum na vida.

- Talvez saibam mais do que tu, George. Talvez se preocupem mais. E talvez isso seja importante.

- Es uma idiota.

- Não - retorquiu, abanando a cabeça e fitando-o. - Não. Mas teria sido, se optasse por ficar aqui. Adeus, George. - Estendeu-lhe a mão, mas ele não a aceitou. Limitou-se a olhá-la e, uns minutos depois, saiu de casa. Não voltou a vê-lo até sair de Savannah.

Desta vez, custou-lhe mais despedir-se de Queenie, pois já resolvera que, nesse ano, não viria passar o Natal, embora o tivesse ocultado à ama. Queenie sentiu, todavia, que ela não voltaria durante muito tempo. Abraçou-a e fitou-a tristemente, bem no fundo dos olhos.

- Amo-te, miúda. Tem cuidado contigo - pronunciou.

- Também te amo. E vai ao médico, quando tiveres aquela tosse. - No entanto, ela parecia agora mais velha e mais lenta, mesmo sem a tosse. - Amo-te - sussurrou Paxton. Beijou as calorosas faces negras e foi-se embora.

Desta vez, a mãe não a levou ao aeroporto, e George também se poupou a esse trabalho. A mãe despediu-se dela na entrada e indicou-lhe, pelo tom de voz, que o seu regresso à Califórnia a desapontava, não porque sentisse a falta dela, mas porque falhara como pessoa, como natural da Jórgia, como filha dela e como irmã de George.

- Lá, estás a perder o teu tempo.

- Lamento que penses dessa maneira, mamã. Tento o meu melhor para que assim não seja.

- Acharam que fizeste um excelente trabalho no jornal. - Tratava-se do único elogio de que se lembrava, vindo da mãe. - Se te esforçasses a sério, poderias vir a colaborar corri o editor da secção social. - Paxton omitiu-lhe que preferia morrer a passar o resto da vida a escrever sobre os casamentos das amigas dela.

- óptimo. Tem cuidado contigo - replicou meigamente, com pena de os deixar; por outro lado, sentia-se aliviada, mas sobretudo com pena por aquilo que nunca haviam sido uns para os outros.

- Acautela-te com esse rapaz. Ele não presta.

- O Peter? - Tratava-se de uma afirmação estranha a seu respeito. Ele era tão caloroso, tão bom e tão decente, que se sentiu chocada perante as palavras da mãe. O que e que a mãe sabia que ela ignorava?

- Está escrito nele. Se deixares, irá usar-te, para depois te abandonar. - É o que todos fazem. - Era uma declaração mais pessoal do que dirigida a Paxton, e a filha lamentou-a por ela. Devia ter sofrido um grande golpe ao descobrir que o marido ia no avião com outra mulher. E ele nunca voltara a recuperar a consciência para explicar. George não mencionara de quem se tratava, nem se sobrevivera ao acidente, mas talvez não interessasse. E Paxton não desejava saber mais nada.

- Telefonarei quando souber o meu número - prometeu. Ainda tinham de encontrar uma casa ou um apartamento para alugar em Berkeley.

A mãe esboçou um aceno de cabeça e ficou a vê-la afastar-se. Não lhe estendeu os braços, nem tentou beijá-la. E, durante todo o percurso até ao aeroporto no táxi Paxton apenas conseguia pensar no regresso a Berkeley e em Peter. Depois de se encontrar a bordo do avião na viagem de volta até junto dele, não pensou mais em Savannah.


 

Quis o destino que levassem somente duas semanas a encontrar uma casa em Piedmont... e foi um achado perfeito. Dispunham de dois quartos e uma sala enorme, uma grande cozinha soalheira e um jardim encantador.

Gabby não ficou muito chocada ao descobrir que não ia dividir o quarto com Paxton, mas dormiria sozinha, enquanto Paxton e Peter partilhariam o mais amplo dos dois quartos. Ela própria perdera a virgindade, no ano anterior, com um elegante francês na Riviera e considerava-se agora uma mulher do mundo. Sentiu-se muito excitada ao aperceber-se de que o irmão e a sua melhor amiga haviam mantido uma relação durante meses, sem que ela o soubesse.

No entanto, Peter ficou menos divertido com a atitude dela frente à sua ligação e garantiu-lhe que, se contasse a alguém, comprometesse Paxxie ou revelasse aos pais que não era ela, mas ele quem compartilhava o quarto com a amiga, viria a lamentá-lo amargamente.

Tudo resultou, contudo, de uma forma brilhante. Os Wilson apareceram de visita e as jovens prepararam-lhes um jantar. Os três entendiam-se na perfeição. Os dois pombinhos enamorados davam-se lindamente, e Paxton e Gabby mantinham a proximidade de sempre.

O único problema residia em que Gabby parecia ter um novo homem na vida todas as semanas, e Peter tinha dificuldade em controlar-se e considerar-se apenas o seu companheiro de casa, em vez do irmão mais velho. Paxton, todavia, lembrava-lhe a todo o instante que não podia aproveitar-se da situação. Contudo, para ele, o silêncio constituía um estado de stress permanente.

O outro problema residia na quantidade de trabalho de que necessitava para manter notas elevadas durante o segundo ano na escola de Direito. As obrigações tinham acrescido, e Paxton também acarretava pesadas responsabilidades; passavam, assim a maior parte do tempo a estudar, na biblioteca, ou na cama, e muito pouco a divertir-se.

Nos tempos livres, Paxton desempenhava um pouco de voluntariado e escrevia, ocasionalmente, um artigo para o jornal da universidade, ficando excitadíssima sempre que via o seu nome publicado. Levavam uma vida idílica e nunca tinham sido mais felizes.

Passavam a maior parte do tempo profundamente envolvidos nas questões universitárias. E, a meio de Outubro, Peter queimou o cartão de recrutamento, com total aprovação de Paxton.

Em simultâneo, no Vietname, bombardeiros B-52 eram chamados a apoiar as tropas de terra, e a força aérea tornou-se um elemento primordial no combate ao Vietcongue, transportando helicópteros para a selva no calor da batalha. A guerra começara a atingir proporções desmedidas, e Paxton sentia-se assustada ao pensar no que estava a acontecer.

Porém, quando falaram no assunto ao pai de Peter, ele insistiu de que somente eram precisas mais bombas, mais homens e uma posição mais dura contra o Norte. Paxton e Peter apenas desejavam ver os Estados Unidos completamente libertos. Tornava-se, porém, impossível convencer o pai dele quanto à sensatez dessa posição.

Nesse ano, ela voltou a passar o Dia de Acção de Graças com a família dele e, desta vez, sentiu-se um membro da família, estando perfeitamente à vontade com os Wilson. Era difícil acreditar que há só um ano que ela e Peter mantinham uma ligação. Parecia que tinham vivido juntos desde sempre. Os pais também suspeitavam do que estava a passar-se, mas não se pronunciavam, embora Marjorie perguntasse a Ed se ele não achava que deveria dizer-lhes alguma coisa.

- Porquê? São miúdos responsáveis. Achas que, se lhes falarmos, mudará alguma coisa?

- Talvez fiquem noivos, se é verdade o que está a passar-se.

- Que diferença fará? Se quiserem casar, casarão. E se não quiserem, não o farão. De qualquer maneira, são demasiado jovens para se casarem. Peter completa vinte e quatro anos no próximo mês. E ela nem sequer tem vinte. Aguarda. Acredita que eles sabem as linhas com que se cosem.

Paxton também passou o Natal com eles e, nessa altura, ficou horrorizada ao ler no Morning Sun que a quantidade de tropas no Vietname aumentara para duzentos mil homens.

- Mas é uma loucura! - comentara com Peter ao Pequeno-almoço.

- Eu sei. - Fitou-a, entristecido, rezando para que não reprovasse na escola de Direito. Tudo estava a tornar-se tão difícil que, por vezes, sentia medo. E a perspectiva de ser recrutado ainda o assustava mais. Era aterrorizador.

- Porque é que as pessoas não tomam consciência do que está a acontecer por lá? Morrem rapazes todos os dias. Não só vietnamitas, mas os nossos rapazes também. E estão a enviar jovens de dezoito anos para os combater.

- Sou velho de mais para esta guerra - grunhiu, servindo-se de mais uma chávena de café.

- Se alguma vez te chamarem, quero que saibas, desde já, que eu própria te dou um tiro no cu, te empresto a minha roupa interior preta ou te compro um bilhete para Toronto.

- Talvez aceite. Pelo menos, a ideia da roupa interior. Desde que a tenhas vestida.

- Pode conseguir-se. - Beijou-o, enquanto tomavam o café da manhã e Gabby resmungou ao entrar na cozinha, de camisa de noite.

- Outra vez no mesmo? Vocês os dois enjoam-me. - Mas, na verdade, gostava de ambos. Só queria encontrar alguém para ela.

E, no Natal, quando foram esquiar todos juntos, aconteceu finalmente. Um dia, Gabby ia a descer as vertentes e colidiu com um homem, que voou pelos ares e aterrou em cima dela. Os dois ficaram sem fôlego, por momentos, desenvencilhando os membros e os esquis, tentando certificar-se de que nada faltava, estava partido ou danificado.

- Foi um tombo dos grandes. Sente-se bem? - inquiriu, bastante preocupado e pondo-se em pé. Estendeu-lhe a mão e ela fitou-o, surpreendida.

O estranho chamava-se Matthew Stanton, parecia uma estrela de cinema e vestia um fato preto inteiro de esquiar. Tinha cabelos pretos, olhos azuis, uma barba bem aparada e pareceu interessado por ela, quando a jovem se levantou, sacudiu a neve e se desculpou por não olhar para onde ia.

Matthew esquiou com ela de volta à cabana; convidou-a para almoçar e para jantar em todas as noites seguintes. Peter e Paxton mal voltaram a vê-la, à excepção de um aceno do elevador, ou quando vinha mudar-se a toda a pressa para sair com Matthew.

Ele tinha trinta e dois anos, trabalhava em publicidade e parecia muito divertido com as extravagâncias de Gabby. Tanto, que passou a aparecer constantemente na casa em Berkeley, quando regressaram. E, sempre que tal acontecia, Gabby só voltava na manhã seguinte.

- Achas que ele está mesmo empenhado? - perguntou Paxton finalmente a Peter, quando estavam a estudar para as finais, um mês depois do Natal.

- Quem pode sabê-lo com esses dois! Não percebo como ele a aguenta. - No entanto, sempre que Paxton via Matt com ela, pareciam muito felizes.

Confessara a Gabby que era divorciado, mas não tinha filhos e parecia gastar muito dinheiro com Gabby. Mandava-lhe constantemente flores, livros de poesia, pulseiras e coisas que sabia que ela gostava, bugigangas, bonecas e futilidades que lhe agradavam. Parecia ser imaginativo, divertido e brincalhão.

- E demasiado velho para ser enviado para o Vietname - acrescentou Paxton à lista de virtudes. - Nos dias que correm é um bónus precioso.

- Que afirmação desagradável! - comentou Peter.

No entanto, jovens eram mandados para lá diariamente, a fim de morrer pelo seu país. E, em 11 de janeiro, as manifestações estudantis haviam sido revistas e reclassificadas, o que causara verdadeira indignação na Califórnia. Três semanas depois, Johnson retomou o bombardeio no Vietname do Norte, após umas tréguas natalícias. Tinham durado exactamente trinta e oito dias e, agora, tudo recomeçava. Por vezes, Paxton só conseguia pensar na guerra e no perigo de que ela acabasse por atingir Peter.

Paxton telefonara sete vezes à família durante as férias de Natal, e a mãe deu-lhe a entender que talvez George tivesse uma surpresa para ela na Primavera. Se o irmão ficasse, finalmente, noivo aos trinta e quatro anos, seria muito mais surpreendente do que se assim não fosse.

Queenie estava outra vez doente e não parecera muito bem ao telefone. Paxton ficou preocupada, mas, durante muito tempo, não teve oportunidade de voltar a telefonar, e quando o fez, a sua velha amiga insistiu que se sentia muito melhor.

- Não estás a mentir-me, pois não?

- Seria capaz de mentir à minha miúda? - Ambas sabiam que sim, mas Paxton não o disse. ..

Em Março de 1966, as tropas governamentais voltaram a conquistar Da Nang aos comunistas, e Peter e Paxton participaram num protesto de três dias contra a guerra.

Nessa altura, Paxton já arranjara um emprego de Verão. O pai de Peter tinha-lhe oferecido um trabalho fantástico como estagiária no jornal. De início, hesitara, sem querer aproveitar-se da sua relação com Peter. Era, contudo, algo bom de mais para resistir, e o pai de Peter prometeu que ela não faria a cobertura de uma única reunião social ou desfile de moda durante todo o Verão. Agora, bastava-lhe informar a mãe de que não iria passar o Verão em Savannah.

Foi a casa nas férias da Páscoa para lhes dar essa explicação. George estava, finalmente, noivo e planeava casar-se, algures, nesse Verão. Allison não pediu, todavia, a Paxton que fosse umas das suas damas de honor, o que lhe tornou mais fácil dizer que viria apenas para o casamento e voltaria a apanhar o avião para São Francisco. Informou-as que aceitara emprego num jornal e a mãe, recordando-se do que Paxton contara sobre a família dele, culpou, de imediato, Peter pela deserção.

- Não tem nada a ver com isso. Ofereceram-me um trabalho fantástico num jornal importante. É uma oferta boa de mais para que a troque por um trabalho no jornal daqui.

Onde está a tua lealdade? acusou a mãe. - Aqui ou lá?

- Não é o que está em causa. A minha verdadeira lealdade deve ser para comigo e o meu futuro.

- É só no que pensas - replicou a mãe por entre os dentes cerrados, e Paxton tentou desviar a conversa para George, Allison e o casamento iminente. A boda teria lugar no Oglethorpe Club, e eles declararam que apenas tencionavam convidar uma centena de amigos. Allison já era tão velha que Paxton quase achava ridícula uma noiva de trinta dois anos como o centro de um enorme casamento.

Paxton teve oportunidade de visitar várias das suas amigas de outrora e surpreendeu-se ao verificar que mais algumas tinham casado, ainda mais estavam noivas e as que haviam casado primeiro já iam no segundo filho. Fez com que se sentisse antiga, embora tivesse acabado de fazer vinte anos.

- Achas que ele se casará contigo? - perguntou-lhe Queenie acerca de Peter, uma noite, e Paxton sorriu e encolheu os ombros.

Na verdade, haviam deixado de falar de casamento. Estava excluído dos seus planos de imediato, mas Paxton sabia que eventualmente o fariam, se ele não se importasse de esperar, até ela exorcizar todos os seus devaneios de independência. Estava, contudo, terrivelmente habituada à presença dele e de modo algum conseguia imaginar a sua vida sem Peter.

A visita foi agradável e só a preocupou o cansaço de Queenie quando partiu. Apesar de todo o seu tamanho, a velha ama parecia frágil, e Paxton incitou o irmão a que a vigiasse. Ninguém sabia ao certo a sua idade, mas já não era obviamente nova nem tão forte como outrora.

Havia ainda alguma tensão entre ela e a mãe quando Paxton se foi embora. Tentou, porém, não pensar no assunto e prometeu regressar a casa nesse Verão para o casamento. E, quando regressou a Berkeley, Peter estava à sua espera. Em muitos aspectos, a sua relação era como se fossem casados.

Quando Gabby voltou a casa no dia seguinte, de uma viagem ao Havai com Matt, tinha estrelas nos olhos e uma expressão que Paxton sabia ter visto antes, só que não se lembrava onde... e, quando se lembrou, Maio estava a chegar ao fim.

De um momento para o outro, Gabby passara a estar sempre deitada e a dormir. Parecia nunca querer sair, excepto com Matt, à noite, mas tinha sempre aquele ar sonolento e um olhar que Paxton reconheceu logo quando se fez luz no seu cérebro.

Um dia em que estavam sozinhas na casa e ninguém podia ouvi-las, confrontou Gabby com a situação.

A amiga acabara de se levantar às duas da tarde, e Paxton tinha regressado de uma das suas aulas. E só conseguia pensar era Dawn, a rapariga de Des Moines que dormira durante os três primeiros meses de aulas. E depois fora para casa, no Natal, a fim de ter o filho.

- Estás grávida, não estás? - Resolveu ir directa ao assunto, e Gabby girou sobre os calcanhares com uma expressão surpreendida.

- É ridículo!

Onde fostes buscar essa ideia? - redarguiu, parecendo momentaneamente assustada.

- Porque estás. Não estás?

- Eu... não, não estou... Que estupidez... Eu... eu... - Não conseguiu, porém, ir mais longe com a mentira. Deixou-se cair numa cadeira da cozinha, escondeu o rosto entre as mãos e começou a chorar, enquanto Paxton a observava.

Paxton sentou-se ao lado dela e pôs-lhe o braço por cima dos ombros.

- O que vais fazer? - perguntou meigamente.

- Não sei... Sempre pensei que o período se tinha atrasado, mas... agora não sei o que fazer.

- Disseste ao Matt? - A ruiva abanou negativamente a cabeça. - De quanto tempo estás grávida?

- Não sei. Talvez umas seis semanas. Comecei a informar-me sobre abortos na semana passada, mas todas têm histórias horríveis sobre o México ou East Oakland. Não quero fazer nada disso. E se morro?

- Podias ir a Tóquio, ou a Londres.

- Sim e dizer o que aos meus pais? Que vou em viagem de negócios? Num projecto de pesquisa para a minha aula de Arte? Merda, Paxxie. O que vou fazer?

- O que queres fazer? Queres o bebé?

- Não sei. - E não sabia mesmo. Pensara constantemente no assunto e estava tão confusa que não conseguia decidir-se- Era um alívio conversar com Paxton.

- E o Matt? Gostas dele?

- Acho que sim. É tão bom para mim. E tão meigo. Acho que o amo. - Não era o bastante. Pelo menos, aos olhos de Paxton. Mas os padrões de Gabby não eram tão elevados quanto os seus.

- Precisas de ter a certeza, especialmente se vais ter um bebé.

- Como? Como é que se sabe? Há quase dois anos que sais com o Peter e tens a certeza sobre ele?

- Tenho - respondeu Paxton honestamente. - já não tenho tanta a meu respeito. Ainda não tenho a certeza se cresci. Mas tenho a certeza que o amo.

- Sorte a tua. Mas tu és diferente de mim.

Ela, porém, só andava a sair com Matthew Stanton desde o Natal. E, por vezes, Paxton achava que ele era tão suave, tão organizado, tão perfeitamente orquestrado, que se tornava difícil julgar pela aparência. Conseguia perceber a insegurança de Gabby. E Paxton também suspeitava que para ele era muito importante sair com Gabby Wilson. Sabia: perfeitamente quem ela era e, mesmo indirectamente, parecia gostar da ligação.

- O que vais fazer? - insistiu Paxton. - É melhor decidires depressa, ou não terás opção. - Era verdade. Depois dos três meses, não poderia sequer pensar em aborto.

- Oh, meu Deus, Paxxie. Não digas isso.

- Porque não lhe contas?

- E se ele me deixa?

- Pelo menos, ficas a saber que tipo de indivíduo é, não achas? E talvez consigas a tua resposta.

- E se não me deixar?

- Nesse caso, também terás de pensar no assunto. Mas pensa no que tu realmente queres, Gabby. Um bebé é para sempre. - Tinha demasiadas amigas que, aos vinte e vinte e um anos, lamentavam os filhos que tinham ou os casamentos em que se haviam precipitado ou sido obrigadas a consumar.

Nessa tarde, ainda estavam a discutir o assunto quando Peter regressou a casa; calaram-se de imediato.

- O que se passa com vocês as duas, céus? Disse alguma coisa que não devia? - perguntou.

- Não. Não sejas tão paranóico - retorquiu Paxton beijando-o com ardor. - Como correram os exames? – Ele estava quase no fim do segundo ano e ambos sabiam que esse era o mais difícil.

- Acho que chumbei em tudo. Devia estar num avião para o Vietname, amanhã de manhã.

- Não brinques com essas coisas - ralhou Paxton, com um ar preocupado, enquanto lhe servia uma chávena de café.

- Não sejas tão sensível - retorquiu, pousando a chávena e voltando a beijá-la. Observou; em seguida, a irmã que ia a sair da cozinha. Dava a sensação de que estivera a chorar.

- Que bicho lhe mordeu? - sussurrou. - Rompeu CO`M aquele tipo? - Peter nunca conseguia lembrar-se do nome dele, o que não era bom sinal. - De qualquer maneira, é demasiado velho para ela. E está... demasiado interessado no meu pai. - Também era essa a opinião de Paxton, mas, dadas as circunstâncias, não fazia tenção de admiti-lo a Peter.

- Penso que é só uma pequena discussão. Nada de grave, tenho a certeza - retorquiu num tom despreocupado, e Peter soube imediatamente que ela estava a mentir, mas não a pressionou. Era óbvio que sabia mais, mas não lho dizia.

Quando, nessa noite, Matthew veio buscar Gabby, esta escolhera um vestido laranja-vivo de mini-saia e grandes brincos de plástico, em forma de cubo. Tinha, contudo, um ar extremamente sombrio, considerando o aparato. E parecia próximo da histeria ao regressar menos de uma hora depois. Desta vez, fixou Paxxie nos olhos, como se o irmão não existisse.

- Diz que tem de pensar no assunto. Que tal? - Rompeu em lágrimas, correu para o quarto e bateu com a porta. Peter fitou-a sem perceber, mas, de repente, fez-se luz, e olhou para Paxton.

- Merda. Ela não está... pois não? Diz-me que não... Por favor... ou vou matá-la. E, depois, vou matá-lo a ele. - O maxilar contraía-se-lhe, mas Paxton agarrou-lhe rapidamente no braço e quase o abanou. ,

- Não vais fazer nada. Vais deixar que eles resolvam.

- Oh, Paxxie... - Tinha lágrimas nos olhos quando se sentou, fitando-a, incrédulo. - Como foi possível? O tipo um idiota. Será que não percebe?

- Talvez não seja. Talvez se porte bem e fique ao lado dela. - Assim o esperava, pois, caso contrário, Gabby estava metida num grande sarilho.

- Acho que ela devia abortar. Está grávida, não é verdade? - Peter tinha, obviamente, razão e ela esboçou um aceno afirmativo. - Como deixou que isso acontecesse?

- Foi um acidente.

- Esse tipo de acidentes não acontece. A ti não te acontece. Ela não toma a pílula? - Paxton abanou, tristemente a cabeça.

- Céus! O que vão dizer os meus pais?

- Ninguém vai dizer nada. Deixa-a resolver por si própria. Ainda nem sabe o que quer.

- Estava tão desesperada por se casar e, agora, deixou-se levar por um vagabundo do esqui.

- Pára com isso - riu Paxton. - Ela conheceu-o a esquiar numa vertente e, tanto quanto sabemos, é o marido perfeito. - E, no preciso momento em que pronunciou as palavras, ouviu-se a campainha da porta e era Matthew com um ar sombrio e tenso, perguntando se podia falar com Gabby.

Ela está no quarto - respondeu Paxxie calmamente; depois, olhou para Peter, rezando no íntimo para que ele não estrangulasse o pai da criança. - Porque é que não vamos sair para comer uma pizza ou qualquer coisa.

- Porque não tenho fome - ripostou Peter, deitando--lhe um olhar fulminante. Em seguida, deixou que Paxton o empurrasse para fora de casa, pondo-se a discutir com ela, uma vez lá fora. - Porque é que não posso falar com ele?

- Porque ele não quer falar contigo. Quer falar com a Gabby. Deixa-os sós, por amor de Deus.

- Porquê? Pensa no que aconteceu, quando ficaram sozinhos antes...

- Bom. Não pode acontecer outra vez. Portanto, mete-te na tua vida.

- Ela é minha irmã.

- Acho que neste caso ele tem prioridade. Além disso, estou com fome.

- Não me digas que também estás grávida, ou vomito.

- É isso o que farias? - replicou, fitando-o, interessada, quando pararam o carro e ele ficou repentinamente sério, devolvendo o olhar.

- Não, não é o que faria, se queres saber. Se alguma vez nos acontecer uma coisa dessas, Pax, não quero que tenhas qualquer atitude estúpida. Somos praticamente casados, raios. Teríamos apenas de legalizar a situação, e eu ficava com a criança enquanto fosses para o Corpo da Paz.

- Estou quase a deixar-me tentar. - Ele estava a brincar com ela; porém, queria vincar que se casaria num abrir e fechar de olhos.

Deu a volta ao automóvel até junto dela e abraçou-a.

- Amo-te, miúda... Muito! Um dia, gostava que tivesses um filho meu.

- Também eu - sussurrou-lhe junto ao pescoço, mas sem que ainda conseguisse imaginar a situação. E também não conseguia imaginar Gabby com um filho.

Gabby e Matt estavam sentados no degrau da frente quando eles regressaram e ela não estava a chorar, o que Paxton achou um bom sinal. Matt levantou-se, nervoso, e encarou Peter.

- Gostava de falar contigo - declarou, fitando-o bem nos olhos.

- Sobre que assunto? - Peter não tinha intenção de lhe facilitar a vida, mas Gabby estava demasiado nervosa para escutar. Levantou-se de um salto e olhou para o irmão mais velho.

- Vamos casar-nos - declarou, fitando ora um ora outro, e depois começou a chorar. Paxton beijou-a, abraçou-a e disse-lhe que se sentia feliz por ela.

- Já falaram com a mãe e o pai? - inquiriu Peter, cautelosamente, sabendo muito bem que não o tinham feito.

- O Matt vai almoçar amanhã com o papá.

Peter olhou-os e notava-se que ainda estava irritado.

- Ele vai informá-lo de que estás grávida? - perguntou.

- Não - respondeu Gabby com os lábios a tremer. - Tu vais?

- Ainda não sei - replicou Peter; de súbito, Matt deu um passo em frente e colocou o braço sobre os ombros de Gabby.

- Basta. Não há motivo para informar ninguém de um assunto entre nós os quatro - redarguiu, fitando o futuro cunhado. - Não há necessidade de perturbares os teus pais ou a Gabby. Tem sido um trauma para todos. Também me abalou quando a Gabby me deu a notícia. Mas podemos tirar o melhor partido da situação. Amo-a, ama-me e vamos ter um bebé fantástico.

Voltou a apertá-la de encontro ao corpo e beijou-lhe o alto da cabeça; ela esforçava-se por suster as lágrimas e olhou-o com gratidão. Podia tê-la mandado para o inferno e não o fizera. No entanto, Peter também sabia que havia uma série de benefícios em estar casado com Gabby Wilson. Ele tinha muito menos a perder do que ela.

- Tens a certeza de que é o que tu queres fazer? - dirigiu-se Peter num tom duro à irmã.

- Sim - garantiu Gabby com um aceno de cabeça. - Só que, de início, não sabia muito bem o que fazer - acrescentou com um olhar nervoso para Paxton. Tratava-se de um passo importante. De estudante universitária, saltava repentinamente para o papel de mulher e de mãe.

- O que vais dizer à mãe e ao pai?

- Que vamos casar-nos... em breve... Dentro de umas semanas ou talvez um mês.

- Achas que não vão saber? A mamã vai ficar muito desapontada se não quiseres um grande casamento.

- Vou dizer-lhe que o Matt quer assim por ser divorciado - retorquiu Gabby, encolhendo os ombros. - E o bebé nascerá prematuro... de dois meses. Há muitos casos assim.

Sorriu, feliz, e Matt, e Paxton observava-os. Era surpreendente como a vida da amiga tinha mudado no espaço de umas horas e como, de súbito, parecia não lhes pertencer, mas a Matthew. Nessa noite, foi para casa com ele, e quando Paxton voltou a vê-la, uns dias mais tarde, parecia completamente mudada. Matt comprara-lhe um anel e ela só falava em casar-se. Conseguira, por fim, o que queria. Um marido. Mas Paxton ainda não estava muito certa de que Matt Stanton fosse a resposta indicada.

Ed Wilson pensava da mesma maneira, mas todos os pedidos para que esperassem não resultaram e, por fim, desistiu. A filha era tão teimosa que sabia que, se fosse preciso, fugiria para o México e se casaria com Matt.

A data do casamento foi marcada para junho e haviam insistido em que queriam somente alguns amigos e um almoço em casa. E, tal como Peter tinha previsto, Marjorie Wilson ficou amargamente desapontada.

No casamento, a 4 de Junho, Paxton conservou-se ao lado dela e chorou, sabendo que Gabby estava a fazer algo de que não estava segura. E, em janeiro, teriam um filho. Ed Wilson também suspeitava disso e nem mesmo Marjorie se, deixou enganar. No entanto, todos acederam, para bem de Gabby, e rezaram para que Matt se revelasse um marido decente.

Peter e Paxton regressaram, em seguida, à casa de Berkeley. Tinham de mudar dentro de uma semana e ainda lhes faltava embalar algumas coisas. Iam desistir da casa e mudar-se para outra mais pequena e deixariam de continuar a passar por colegas.

Apenas a mãe de Paxton ignorava a situação, e não havia motivo para a pôr ao corrente. Estava muito longe de acreditar na encenação que haviam montado no ano anterior. Mas, com a saída de Gabby, as coisas iriam ser um tanto diferentes.

- Bom! - exclamou Paxton num tom sério, quando tirou o chapéu ao chegarem a casa e contemplou o mar de caixas que os rodeava. Gabby e Matt já haviam partido em lua-de-mel. Nessa tarde, tinham apanhado o avião para Nova Iorque e, depois de passarem dois dias no Hotel Pierre, viajariam até à Europa. - O que achas? Ele será bom para ela?

- Não sei, Pax. - Ninguém sabia. Só lhes restava rezar pelo bem de Gabby.

Pelo menos, trata-a bem.

É melhor que o faça - resmungou Peter, e ela inclinou-se para o beijar.

- O que vamos fazer com todas estas coisas?

- Não sei. Damo-las? - A maioria era livros e muitos pertenciam a Paxton.

- Nunca terei tempo de empacotar tudo isto, antes de ir a Savannah.

- Não te preocupes. Encarrego-me disso.

- És um santo - sorriu.

Paxton viajaria na semana seguinte para assistir ao casamento do irmão em Savannah. Também eles tinham decidido casar em junho e ela sentia-se como num carrocel, fazendo e desfazendo malas, mudando e voando até Savannah para o casamento.

Quando Paxxie chegou, também não achou Queenie com bom aspecto, mas a mãe parecia um pouco mais descontraída do que o habitual. Tudo indicava que se entendia lindamente com Allison, o que aliviou um pouco Paxton.

Dois dias mais tarde, depois do casamento, Paxton regressou a São Francisco para começar a trabalhar no jornal. Peter aceitara um emprego para o Verão numa firma de advogados em Berkeley. Agora que se tinham mudado era quase como se estivessem casados.

Tinham uma simpática casinha com uma sala de estar espaçosa, uma cozinha, uma sala de jantar, um jardim e um quarto grande no andar de cima, com um pequeno escritório onde Peter guardava todos os seus livros de Direito. À noite, Paxton cozinhava para ele quando voltava do trabalho e, às vezes, encontravam-se na cidade e iam jantar fora- Ela andava entusiasmadíssima com o emprego no jornal. Davam-lhe coberturas interessantes para fazer e, por vezes, limitava-se a ficar na redacção a ler o telex, como se tivesse o dedo em cima do pulsar do mundo. Nunca se sentira tão feliz. Nem tão-pouco Gabby.

A amiga apareceu em Setembro, quando Peter e Paxton regressaram às aulas e estava entusiasmadíssima com a ideia de não frequentar a escola nesse ano. Paxton desconfiava que ela não voltaria. Os pais já sabiam do bebé e Matt tratava-a bem; portanto, todos estavam muito felizes.

Nesse ano, o tempo voou. Era o seu terceiro ano em Berkeley. Desta vez, Paxton foi passar o Natal a casa, em Savannah, e Queenie estava visivelmente doente. Parecia pálida, se é que tal era possível, e passava o tempo a tossir, mas, embora as filhas achassem que chegara a altura de se reformar, continuava a insistir em trabalhar, sobretudo enquanto Paxxie estava em casa, o que assustava Paxton. Quando a irmã o pressionou, George vincou, no entanto, que nada podia fazer por ela. De qualquer maneira, não estava muito interessado. Só pensava em Allison. Esta esperava o primeiro filho no Verão seguinte, em Agosto.

O bebé de Gabby nasceu três semanas depois de Paxton chegar de casa, após o Natal. Era uma menina de cabelo ruivo como o da mãe. Ao visitá-la no hospital, Paxton sentiu dificuldade em acreditar que Gabby era mãe. Matt, contudo, estava entusiasmadíssimo e os Wilson também. E Paxxie sentiu um estranho vazio no coração ao regressar à casa em Berkeley, com Peter.

- Sentes-te bem? - Ele apercebera-se de qualquer coisa e ela não falara muito no percurso de volta, mas, quando Peter fez a pergunta, esboçou um estranho sorriso.

- Sim. É engraçado vê-la com um bebé, não é? Estamos juntos há tanto tempo, mais de dois anos, e conhecemo-nos na perfeição um ao outro. E eles só se conhecem há um ano e ali estão, casados, felizes e com um bebé. Parece um tanto estranho, não?

- Sim, acho que sim - concordou, acrescentando com um sorriso: - Mas pode arranjar-se, se é o que queres.

- Não é. Pelo menos, agora. - Sorriu quase tristemente, pois, em alguns aspectos, queria. Queria tudo e estava cansada das aulas. Sentia a falta do emprego que tivera no Verão. E agora regressara aos exames, testes e sebentas.

Nessa época, havia quatrocentos mil rapazes americanos no Vietname e tudo deixara de fazer sentido. Era mais fácil, se se deixasse de estar atento. Mas ela estava. Preocupava-se demasiado e, dali a mais cinco meses, Peter sairia da escola de Direito.

Nessa noite, quando se foi deitar, continuava triste e, quando Peter a abraçou, tomou consciência de que tinha ciúmes do bebé de Gabby.

- Em que pensas? - perguntou-lhe Peter, no escuro, com os braços a envolvê-la.

- Em como sou estúpida - respondeu com um arremedo de sorriso e - ele riu.

- Que pensamento alegre!

- As vezes, descontrolo-me.

- Estás outra vez a pensar no bebé? - O bebé era um amor, mas o verdadeiro choque resultara de como eles eram felizes, completos; não se imaginava, todavia, a ter filhos nos próximos anos, embora soubesse que uma parte dela adorava a ideia.

~ - Se quiseres podemos casar, quando acabar o curso, em junho. Nessa altura terei um emprego... Ia adorar. - Os olhos brilhavam-lhe no escuro e do ponto de vista do recrutamento também seria mais seguro.

- Não me parece que devamos fazê-lo. Pensa na Gabby. Nunca mais voltará à universidade. Quero acabar o que comecei.

E o Corpo da Paz?

Acho que talvez sacrifique essa parte - redarguiu, sorrindo. - Não sei bem se me sentiria feliz com todas essas baratas e sanguessugas.

- Marcamos, então, uma data? - Também ele sorria. - Em vinte e seis de Junho, quando te licenciares? - Faltavam apenas dezassete meses e Paxton gostou da ideia. - O que respondes, miúda?

- Que sim... E amo-te...

- Também te amo - exultou. - Isto quer dizer que estamos noivos?

- Assim parece, não? - Quase desatou a rir.

- Posso comprar-te um anel?

- Talvez devamos esperar. - Parecia-lhe um enorme passo e significava que teria de dizer à mãe, ouvir toda a retórica e lamúria de que não ia casar com alguém de Savannah. - Porque não aguardamos até ao Natal? Depois, não faltará muito até ao casamento.

- Vou começar a poupar - decidiu Peter e aconchegou-se contra o seu corpo, após o que adormeceram na confortável casinha em Berkeley.

Peter terminou o curso de Direito em junho de 1967. os pais ofereceram um enorme almoço em sua honra, no Boherman Club, em São Francisco. Tratou-se de um acontecimento importante a que assistiram todas as pessoas conhecidas da cidade, incluindo o novo patrão de Peter, de uma firma de advogados muito conceituada.

os Wilson apresentaram Paxton a toda a gente como a sua futura nora e ela não pareceu importar-se. Matt e Gabby estavam presentes. Ela estava bonita e elegante e falava constantemente no bebé.

- Estou pronta para outro - confidenciou a Paxton, quando foram à casa de banho. E Paxton reparou que nunca a vira tão bonita, nem com melhor aspecto.

- E a universidade?


 

- De qualquer maneira, não quero voltar. Somos diferentes. Tu queres ser jornalista, queres uma carreira, queres provar algo. Com mil diabos, Paxton! Eu só quero continuar casada e ter filhos.

- Correspondes ao sonho da minha mãe - sorriu-lhe Paxton tranquilamente. - Pelo menos, a Allison servirá para afastar as atenções de mim. Vai ter o bebé em Agosto. Acho que terei de voltar lá de avião para o ver.

A jovem planeava, contudo, voltar a trabalhar para o Morning Sun no Verão. Só lhe faltava mais um ano na universidade e, depois, iam dar-lhe emprego efectivo como repórter.

- Então, para quando é o próximo? - inquiriu Paxton, trocista. Tinham chamado Marjorie Gabrielle à bebé e tratavam-na por Marjie. - Desta vez um rapaz, presumo.

- É o que o Matt quer - redarguiu Gabby com um brilho no olhar. Tinha vinte e um anos, era casada e mãe. Paxton vivia com Peter há dois anos, ele era advogado e ela não passava de uma estudante. Queria prosseguir caminho. Acabar o curso, arranjar um emprego a sério e casar-se. Por essa ordem.

- Ele trata-te bem? - interessou-se Paxton, mas sabia que não deveria ter feito a pergunta.

- Sim - respondeu Gabby com voz calma e fitando gravemente a amiga, companheira de quarto e futura cunhada. - Tive sorte. Podia ter-se revelado uma merda, mas não. E é uma maravilha com a miúda.

- Fico contente - declarou Paxton honestamente, quando, por fim, saíram da casa de banho e regressaram até junto da mesa.

- O que é que vocês duas estiveram a fazer ali? Procurei-te por todo o lado - queixou-se Peter, quando finalmente a descobriu. - Queria apresentar-te à mulher do meu patrão. É inglesa e acho que gostarias dela. - Não conseguiram, porém, encontrá-la novamente. Foi um dia longo e feliz. Ambos estavam exaustos quando regressaram à casinha em Berkeley.

Tinham decidido renovar o aluguer por mais doze meses, para facilitar a vida a Paxton no seu último ano na Universidade de Berkeley. E quando se licenciasse e fosse trabalhar para o jornal e se casassem... mudariam para a cidade.

- Foi um dia maravilhoso - comentou Paxton, sorrindo. - Sinto-me tão orgulhosa de ti... Conseguiste! - Também ele parecia contente e os pais haviam-se mostrado muito orgulhosos. Sentiam-se felizes com os dois filhos; gostavam, igualmente, de Paxton e ela deles. Conversaram toda a noite sobre aquele dia.

O resto do Verão escapou-se-lhes por entre os dedos. Peter estava ocupado no emprego e Paxton afadigava-se, dia e noite, no jornal. Depois, ela viajou no avião até casa antes de regressar à universidade para ver a mãe e o bebé de George. Fora um rapazinho e o irmão mal cabia em si de orgulho. Tinham-lhe chamado James Carlton Andrews: era um bebé muito querido e Allison estava óptima. Até a mãe cedera um pouco.

Apenas Queenie parecia ter envelhecido uma dúzia de anos e subitamente mal conseguia mexer-se com a artrite reumática.

- Porque não fazes qualquer coisa por ela? - dirigiu-se Paxton a George num tom acusador, e ele não lhe ligou. Tinha mais com que se preocupar do que com a antiga criada da mãe. - Ela não irá consultar mais ninguém, George. Confia em ti.

- Nada posso fazer. Ela está velha, Pax. Deve ter perto de oitenta anos, raios!

- E daí? Podia viver até aos cem, se alguém cuidasse dela com o deve ser. - Mas, embora não o afirmasse, não era essa a opinião dele. Há uns anos que vinha a enfraquecer e, quer Paxton o quisesse ou não admitir, não viveria eternamente.

Paxton voltou, contudo, a chamar-lhe a atenção para o caso antes de se ir embora e passou a última tarde com Queenie.

- Vais, finalmente, casar-te com ele? - inquiriu a ama, num tom rezingão, quando Paxton mencionou Peter.

- Temos falado no próximo junho, ou talvez no Verão - respondeu. Queria, de facto, começar primeiro a trabalhar. Continuava a manter fortes ideias de independência.

- De que estás à espera, miúda? Cabelo grisalho ou lua cheia? Há três anos que o amas.

- Eu sei. Mas quero acabar o que estou a fazer.

- Podes casar e continuar a estudar. És esperta bastante para fazer as duas coisas. Qual é o problema?

- Sou estúpida, acho. Continuo a pensar que tenho de fazer todas as coisas pela devida ordem.

- Não esperes demasiado. - Olhou demoradamente para a jovem que criara e verificou que Paxton estava mais bonita do que nunca. Parecia mais velha e mais madura, com os traços melhor definidos, o corpo ligeiramente mais cheio nos lugares apropriados.

- O que queres dizer? - retorquiu Paxton, subitamente preocupada.

- Talvez ele encontre outra pessoa que não queira esperar, ou talvez qualquer rapariga o cace e o apanhe... Ou... não sei... Por vezes, a vida é boa, outras leva-nos a lamentar ter esperado demasiado por alguma coisa, não ter feito qualquer coisa quando se podia e já não se pode... Acho que devas casar... miúda.

Paxton achou, contudo, que a velha ama apenas queria vê-la casada enquanto ainda estivesse suficientemente bem para usufruir da situação. E sabia que Peter esperaria. Não era do tipo de fugir com outra pessoa. Tinha a certeza. E, já que haviam esperado todo este tempo, podiam esperar mais um ano até ao Verão seguinte.

No dia em que Paxton viajou de avião ao encontro dele, o presidente Thieu foi eleito no Vietname do Sul. E, um mês mais tarde, treze mil Americanos tinham morrido no Vietname e setecentos e cinquenta e seis haviam desaparecido.

Gabby comunicou-lhe que estava novamente grávida. O bebé era esperado no próximo junho. Afigurava-se muito longe a Paxton, quase tão longe como o casamento deles.

O seu quarto ano na universidade pareceu-lhe quase um anticlímax. Paxton tinha a sensação de que os dias fugiam e ela e Peter falavam incessantemente dos planos de futuro

Nesse ano, passaram o Natal todos juntos na casa do Wilson e, depois do Natal, à semelhança de anos anteriores, Peter e Paxton foram esquiar para o Squaw Valley. Divertiram-se imenso e riram sobre o modo como Gabby conhecera Matthew ali, dois anos antes, e falaram de tudo o que lhes acontecera naqueles três anos e meio em que tinham estado juntos. A espera já não parecia longa. junho e a licenciatura de Paxton estavam ao virar da esquina. E, em seguida, ela tomaria decisões relativas a um emprego sério e iriam casar-se no fim do Verão. Agora, faltava menos de um ano.

Porém, ao regressarem a casa, havia uma carta à espera dele, da sua junta de recrutamento. Tinham-no chamado. Paxton quase sentiu o coração deixar de bater ao ler a carta.

- Céus! O que faremos? - exclamou Paxton, aterrorizada.

- Rezamos - respondeu e nessa noite telefonou ao pai. O pai declarou que não tinha influência junto da junta de recrutamento, mas perguntou-lhe sem rodeios se Paxton estava disposta a casar.

- Acho que sim - redarguiu calmamente, e Paxton adivinhou de imediato o que o pai quisera saber. - Mas, na verdade, queríamos esperar até ao próximo Verão.

Peter sabia quanto era importante para Paxton esperar e fazer as coisas pela devida ordem.

- Não acho que devam esperar. Se servir para te livrar disto, fá-lo. - E todos sabiam que assim era, mas deixara de haver certezas. Cabia à junta de recrutamento individual decidir se aceitariam ou não o casamento como um adiamento. E, recentemente, os casamentos de última hora não estavam a ser respeitados a nível de adiamentos. Era com toda a probabilidade demasiado tarde. E Peter não queria pressionar Paxton a casar-se antes da licenciatura.

- Veremos, paizinho. Talvez mudem de opinião quando me submeter ao exame físico. Vou fazer vinte e seis anos daqui a seis semanas. Eles querem os mais jovens.

Quando desligou o telefone, Paxton tinha os olhos cheios de lágrimas. Sentia-se aterrorizada ante a perspectiva de o levarem.

- Deixa-te de patetices, miúda - replicou, abraçando-a. - Sou velho de mais. Não vão apurar-me.

- E se o fizerem?

- Não o farão.

- Vamos casar. - Agora era o que desejava, mas ele não achava que fosse a solução.

- Não é maneira de agir. Não esperámos três anos e meio para entrar em pânico e fazer um casamento forçado.

- Porque não? Não quero esperar, Peter. - Lembrou-se subitamente das palavras de Queenie: «às vezes a vida leva-nos a lamentar termos esperado demasiado»... - Quero casar.

- Deixa-te de pânicos - redarguiu, tentando parecer calmo. Era a primeira vez que a via tão assustada. - Amanhã, falo com o meu patrão. - Este partilhava a opinião de Peter. Não iriam recrutar alguém a um mês da idade de dispensa, não fazia sentido. E, se o quisessem, poderia provavelmente impedi-los. Afinal, apenas faltavam seis semanas.

Porém, quando se apresentou no Centro de Instrução de Oakland, ficou apurado. Nada havia a fazer. Estava recrutado. E nenhum deles conseguia acreditar.

Paxton sentia-se como se o mundo tivesse desabado em cima dela. Queria escondê-lo, mas ele não queria. Não acreditava na guerra. Paxton lembrou-lhe que ele chegara a queimar o seu cartão militar. Mas ele respondeu que agora era um adulto responsável, o filho do proprietário do Morning Sun. E tinha de ir ou pelo menos assim o achava, embora a ideia lhe desagradasse.

E, se se casasse agora, era tarde de mais. Estava recrutado e nada havia a fazer.

Assemelhava-se a um sonho mau. E no Vietname, uma palavra que agora causava pesadelos a Paxton, vinte mil batalhões comunistas avançaram para sul, para atacar de surpresa durante o Tet, as celebrações vietnamitas do Ano Novo.

A 23 de janeiro, os Coreanos do Norte tinham tomado o pueblo americano. Nesse mesmo dia, Peter teve de se apresentar em Fort Ord para treino básico. Paxton não o veria durante oito semanas e, depois disso, só Deus sabia para onde iriam mandá-lo por barco.

A única coisa que lhe dava alento era que, na qualidade de advogado, o destacariam provavelmente para um trabalho de secretária em qualquer lado e, pelo menos, nunca entraria na guerra. Mas, embora tranquilizasse Paxton e os pais, estava assustado. Não era isto o que planeara fazer da sua vida há sete meses, depois de sair do curso de Direito.

- Peter... por favor... Vamos para o Canadá... Farei qualquer coisa - suplicou-lhe antes de ele partir, mas Peter não lhe deu ouvidos.

- Não sejas ridícula. Quero que acabes o curso. - Sabia quanto significava para ela, como estava a sair-se bem e agora não queria fugir. Enfrentaria a realidade e tentaria tirar o melhor partido. Disse para si próprio que tudo aquilo seria, sem dúvida, um obstáculo na carreira, mas dois anos também não representavam o fim do mundo. Poderia ser treinado como oficial, só que o seu tempo seria prolongado. Preferia cumprir dois anos como recruta e regressar mais depressa a casa.

Agora, os dados estavam lançados. No entanto, Paxton continuou a suplicar-lhe que não fosse até ao momento da partida. Levou-o mesmo no carro até Fort Ord e chorou copiosamente quando o deixou.

- Vemo-nos daqui a umas semanas, querida. Agora não chores. - Insistira para que ela voltasse a São Francisco e ficasse com os pais dele.

No entanto, decorridos uns dias, Paxton regressou à casa em Berkeley. Fora tão feliz com ele ali, que queria estar na casa que haviam partilhado. E ficou a aguardar todas as noites que ele lhe telefonasse. Quando, por fim, Peter conseguiu, sentiu-se como se tivesse morrido, a aguardar notícias.

haviam passado oito semanas desde que lhe ouvira a voz e não estudara uma linha. Apenas conseguia pensar em Peter. No entanto, assim que telefonou, disse-lhe que iria a casa nesse fim-de-semana. E foi, de facto, mas não levou boas notícias. Comunicou que partiria para Saigão cinco dias mais tarde.


 

Os últimos dias que Peter passou na cidade foram uma agonia para todos e, sobretudo, para Paxton. Todos queriam estar com ele, falar-lhe, mostrar-lhe quanto o amavam, O pai tentou mesmo mover algumas influências, mas sem resultado.

O seu único amigo na junta de recrutamento local disse que não podia ajudá-lo. Nessa época, todos estavam na mesma situação: havia uma quantidade excessiva de famílias desesperadas para salvar os filhos, mas ninguém podia fazer nada. Se ele fora convocado, tinha de ir e restava-lhe tentar manter-se vivo, quando lá chegasse. Tinham-no destacado para uma estada de treze meses no Vietname.

«Trezentos e noventa e cinco dias», comunicara a Paxton. Depois, seria enviado para qualquer sítio dos EUA e o pesadelo acabaria. «Tal significava um ligeiro atraso nos planos, mas nada mais», garantira.

Ambos sabiam, contudo, que seria diferente. Significava que, nos próximos treze meses, os dois teriam de suster a respiração e rezar para que nada lhe acontecesse, para q e se mantivesse vivo e regressasse novamente a casa. E Paxton sentia-se agora mais culpada do que nunca por não se ter casado mais cedo com Peter.

- Vamos para o Canadá - sussurrou-lhe uma noite, quando estavam deitados na cama do quarto de hóspedes em casa dos pais dele.

Os Wilson queriam que ele ficasse em casa nos últimos dias e tinham convidado Paxton para que se lhes juntasse. Continuavam a esperar que eles dormissem separados, mas Peter esgueirava-se, silenciosamente, à noite, até ao quarto dela e de volta ao seu, de madrugada. De qualquer maneira, eram incapazes de dormir. Paxton estava demasiado perturbada e ele tenso. Andava muito ocupado a tranquilizar todos; à noite, porém, tinha de enfrentar os seus próprios medos.

Nos últimos dois meses, tinha perdido peso em Fort ord e ganhado músculos, mas os olhos emanavam um brilho magoado, que rasgava o coração de Paxton. Tinha uns olhos que diziam: «Não quero fazer isto», mas sentia que era esse o seu dever.

- Não podemos ir para o Canadá, Pax - replicou num tom calmo, acendendo um cigarro atrás de outro. Anteriormente, quase não fumava, mas, no campo de recrutamento, tornara-se um hábito constante. - O que faria lá, raios?

- Agora, és advogado. Podias começar lá, em vez daqui

- E destroçar o coração do meu pai. Nunca mais podia voltar aqui, Pax.

- Tretas! Um dia, vão deixar que todos regressem novamente a casa. Há demasiados jovens lá fora. Têm de o fazer.

- E se não o fizerem? Nesse caso, nunca mais posso voltar. Não vale a pena, querida.

«E se nunca mais voltasse? Valeria a pena?» Sentia-se incrédula. Aquilo não podia estar a acontecer-lhes. Peter tinha vinte e seis anos, era advogado, estava noivo e mandavam-no para o Vietname! Só podia ser um pesadelo.

- Peter, por favor... - Estendeu-lhe a mão, no escuro. Ele abraçou-a por entre as lágrimas de ambos, mas não anuiu ao pedido.

Peter nunca quisera ir e não acreditava na guerra. Há anos que tinha queimado o seu cartão de recrutamento. Sabia, contudo, que tinha de ir e, chegado a este ponto, estava disposto a servir o seu país.

No campo de treinos, tinham-nos instigado contra o «Nam» e vincado quanto iria odiar «Charlie». Contaram-lhes histórias de crianças que andavam com metralhadoras, emboscadas, armadilhas, túneis cheios de vietcongues à espera de os matar. Não falaram, contudo, na agonia, na dor de perder um amigo, no horror de pisar uma mina ou de matar uma mulher grávida por se estar tão assustado que era impossível pensar racionalmente.

Mesmo assim, sentia que estava preparado e, nos últimos dias, garantiu repetidamente a Paxton que teria cuidado e não faria nenhuma loucura.

- Juras? - Arrancou-lhe mais outra promessa antes de ele regressar ao quarto, e Peter beijou-a.

- Juro. - Acrescentou depois com um arremedo de sorriso: - Juro que voltarei para ti... inteiro... e pronto a casar e a ter catorze filhos. É melhor preparares-te, Pax. Nessa altura, já serei velho. - Mas ela estava mais do que preparada e eliminara todas as ideias de independência.

- Devíamos casar-nos antes, sabes? - Estava disposta casar-se com ele de imediato e Peter sabia-o. Não queria porém, casar-se assim num frenesim, num clima de histeria e medo. E não queria correr o risco de a tornar viúva. Estava disposto a esperar e sabia que ela esperaria por ele. Era algo que não receava e, depois de terem passado todos aqueles anos juntos, ambos se sentiam casados.

- Amo-te... - sussurrou Paxton novamente, e ele beijou-a e regressou ao seu quarto, quando o Sol se ergueu.

Era o último dia de Março de 1968 e ele partia para o Vietname no dia seguinte. E ainda tinha muito que fazer nesse domingo.

Gabby, Matt e o bebé foram almoçar lá a casa. Marjie tinha quinze meses, acabara de aprender a andar e mexia em tudo. E Gabby estava grávida de sete meses. Peter passou muito tempo a falar com a irmã; depois do almoço, foram dar um passeio pelo jardim. Quando voltaram, ambos pareciam ter estado a chorar. No entanto, todos choraram nesse dia. Até mesmo o pai de Peter.

E, nessa noite, depois de Gabby e Matt terem ido para casa, ficaram todos sentados a ouvir Lyndon Johnson. O presidente prometeu voltar a diminuir os bombardeamentos e de novo prometeu a paz. Em seguida, surpreendeu todos ao anunciar que não iria recandidatar-se. Pelo menos, havia tema de conversa. Algo mais do que a partida de Peter de manhã.

Nessa noite, ele apareceu no quarto de Paxton, ainda antes de os pais se terem deitado. Não quis esperar nem mais um momento. Ficou toda a noite e abraçou-a, enquanto os dois choravam. Não queria morrer, não queria matar ninguém e não queria separar-se da jovem que amava; no entanto, sabia que tinha de o fazer.

Paxton continuava a culpar-se por não estar já casada com ele, contudo, parecera-lhe sensato esperar até acabar a universidade. Mas o que é que, nesse momento, era sensato? o que é que fazia sentido? Uma guerra a meio mundo de distância, num lugar onde ninguém se interessava que perdessem ou ganhassem, uma guerra que sabiam nunca poder ganhar, num país em que não podiam defender-se por ter demasiado medo de retaliação... Nada fazia sentido para eles, nem para ninguém. E nada disto fazia sentido para Paxton.

Conservaram-se junto à janela a observar o nascer do Sol e, em seguida, foram para a cama e fizeram amor pela última vez. Quando, por fim, Peter saiu do quarto dela para se dirigir ao seu, cruzou-se com o pai.

- Bom dia, papá - cumprimentou com um sorriso triste; havia lágrimas nos olhos de Ed Wilson ao corresponder com um aceno de cabeça. Pegara-lhe quando o filho era bebé, agora ele já era um homem e sentia um medo horrível de poder perdê-lo.

Nesse dia, tomaram o pequeno-almoço todos juntos. Estavam impecavelmente vestidos, despertos, de rostos atentos e sérios, a comer no mais absoluto silêncio. Foi Peter o primeiro a falar, depois de ter afastado um pouco a cadeira da mesa.

- Bom, minha gente. É possível que não tenhamos um pequeno-almoço como este durante muito tempo. - Sobretudo... servido por uma criada fardada, numa sala de jantar formal, num serviço de Limoges e prata, com guardanapos Porthault. Tão-pouco com as pessoas que o amavam, de roupa lavada e numa sala onde ninguém podia magoá-lo. - Vou sentir a vossa falta. - A honestidade das palavras rompeu o dique e todos começaram a chorar, Peter, os pais e Paxton, cada um prometendo aos outros ter coragem, dizendo-lhes que em breve regressaria a casa e eles como sentiriam a sua falta.

E Paxton compreendeu, mais do que todos, como tinham sorte por poderem transmitir-lhe o que sentiam. Se o irmão dela partisse, ninguém teria podido dizer que tinha medo, estava triste ou quanto o amava.

Meia hora mais tarde, partiram para a Base da Força Aérea de Travis, em Fairfield. Peter vestia um uniforme acabado de estrear e levava um grosso sobretudo. Tinham-no mandado apresentar-se ali ao meio-dia, e ignorava a hora exacta a que subiria a bordo do avião; porém, depois de os deixar, isso pouco interessava.

Estava um dia quente e soalheiro, e o motorista de Mr. Wilson não pronunciou uma palavra durante o percurso, mas, quando chegaram ao destino, saiu do carro e apertou a mão a Peter com admiração.

- Boa sorte, filho. Não os poupes. - Era um homem que tinha combatido na Segunda Guerra, e aos seus olhos a ideia da guerra ainda possuía algum significado. Quando partira, sabia quem era o inimigo, quem eram os «maus» e o motivo por que lutava. Peter estava menos seguro, quando esboçou um aceno de cabeça.

- Obrigado, Tom. Tem cuidado contigo. - Repetiu as mesmas palavras a todos e abraçou a mãe durante um longo momento. - Tem cuidado contigo, mamã... Amo-te... - Ela sentiu vontade de se deixar cair de joelhos e gritar de dor ante a ideia de ver o filho partir para a guerra, mas abanou a cabeça corajosamente, voltou a beijá-lo por entre as lágrimas e apertou a mão de Ed até julgar que quebraria os ossos dos dedos, enquanto Peter se despedia de Paxton.

- Também te amo... - sussurrou, incapaz de falar mais. - Tem cuidado... - Depois, afastou-se deles e desapareceu no cavernoso edifício. Não podiam acompanhá-lo até mais longe e Ed Wilson concordou com esse facto. já era bastante doloroso despedirem-se dele ali e achou que seria de mais para Marjorie ficar a ver o avião descolar, levando o seu filho para o perigo.

Ajudou-as a entrar de novo na limusina, e as duas mulheres choravam nos braços uma da outra.

- Devia ter casado com ele... - soluçou Paxton, e Marjorie limitou-se a abanar a cabeça, receosa e triste.

- Não podias adivinhar o que ia acontecer. - Ningué111 podia. Ninguém sabia nada sobre a guerra para onde ele ia, nem o preço que poderia pagar. - Meu Deus! Espero que tenha cuidado - sussurrou a mãe, ao atravessarem a Bay Bridge, de regresso a São Francisco.

Paxton almoçou com eles, mas estavam todos demasiado esgotados para falar e, nessa tarde, ela fez as malas e regressou à casa em Berkeley. Não conseguia lembrar-se de nada, à excepção de onde Peter estava e para onde ele ia. Apenas sabiam que ele viajaria de avião até ao Havai, depois Guam por fim, Saigão, e que se pudesse lhe telefonava.

No entanto, ainda não estava muito claro para onde iria depois de Saigão. E Paxton esperava que *não fosse para nenhum sítio. Com um pouco de sorte, dar-lhe-iam um trabalho de secretaria. Incitara-o vezes sem conta a negociar com o facto de ser advogado. Não fora, porém, destacado para o corpo legista. No Vietname não precisavam de advogados. Precisavam de soldados para travar a guerra, detectar minas e perseguir o inimigo nas grutas e túneis.

Os pais de Peter tinham-na incitado a telefonar, a aparecer para jantar ou ficar com eles sempre que quisesse.

Naquele primeiro dia, porém limitou-se a ficar deitada na cama que haviam partilhado e a cheirar o after-shave das roupas que ele deixara no armário. Peter não tivera tempo para emalar nada, embora fossem desistir da casa em julho, nem Paxton quisera que o fizesse. Queria estar ali com as coisas dele, com ele. Desta forma, não se sentia como se o tivesse perdido.

Gabby telefonou-lhe nessa tarde. E choraram as duas.

- Só quero que ele volte para casa - gemeu. Tinham sido sempre muito chegadas, sobretudo nos últimos anos, durante o tempo que ele passara com Paxton.

- Também eu - retorquiu Paxton num tom triste e vagueando o olhar pela cozinha silenciosa.

- Sabes que dia é hoje? - perguntou Gabby, mas Paxton não sabia nem se interessava, embora soubesse que nunca o esqueceria. - É o dia das mentiras.

Paxton quase sorriu.

- Isso significa que vão mandá-lo de volta esta noite com um pedido de desculpas? - replicou.

- Bem deviam... esses idiotas... - Depois, Paxton ouviu o choro de Marjorie ao longe e Gabby teve de desligar, após ter prometido telefonar-lhe mais tarde.

Em vez dela, foi Peter quem telefonou de Guam. Era meia-noite, mas Paxton não estava a dormir. Conservava-se deitada na cama a ouvir-lhe a voz através da linha pouco nítida. Assemelhava-se a uma dádiva dos deuses. Ele apenas dispunha de uns minutos entre os voos, mas só queria dizer- -lhe quanto a amava.

- Também te amo... Tem cuidado...

- Amo-te! - Em seguida, a voz calou-se, e ela voltou a deitar-se na cama, ficando acordada até de manhã.

Nesse dia, faltou novamente às aulas. Apenas precisava de um tempo e tinha dois trabalhos para entregar, contudo, ultimamente, desde que ele estivera em Fort Ord, não conseguia enfrentar a situação. O stress era demasiado e as notas do meio do período tinham-no provado. De «Muito Bom» baixara para «Medíocre» em quase todas as matérias. Mais tarde, tinha ido à biblioteca buscar uns livros, que lhe tinham guardado desde o princípio de Março. Pensou que nada havia a fazer agora e começou a sentir-se ligeiramente em pânico quanto aos trabalhos.

Na manhã seguinte, a mãe de Peter telefonou. Sabia que Paxton ainda não teria notícias dele. Gabby tinha-a inteirado do telefonema de Guam. Queria, no entanto, certificar-se se Paxton estava bem. E estava, exceptuando aquela estranha sensação, a mesma sensação que tivera quando o pai morrera e o presidente John Kenedy fora alvejado, a sensação de que se movimentava por baixo de água. Tudo parecia processar-se em câmara lenta e as vozes que ouvia pareciam vindas de muito longe.

Era quase como se não se importasse com nada, como se tudo o que acontecesse tivesse deixado de lhe interessar. Só queria hibernar algures até Peter regressar de onde quer que se encontrasse.

Embora ele tivesse prometido encontrar-se com ela no Havai ou onde quer que fosse possível, ainda ignorava quando o deixariam. No entanto, uma coisa era certa: mal pudesse ir a qualquer lado, seria ao encontro de Paxton.

- Tem cuidado contigo - recomendou a mãe dele e, tal como Peter, também Paxton prometeu que o faria. Após desligar, Paxton ainda pensou, por momentos, em telefonar a Queenie, para Savannah. Não queria, porém, perturbá-la.

Na noite seguinte, Paxton viu o telejornal, sabendo que, nessa altura, Peter já estava em Saigão. E, de súbito, tudo passou a importar-lhe, cada notícia, cada palavra, cada imagem, receosa de que um daqueles soldados pudesse ser Peter. Não foram, porém, as notícias do Vietname que a sobressaltaram nessa noite, mas algo que se lhe seguiu.

Tratava-se da nova versão de uma história que passara durante todo o dia, mas, dado ter mais uma vez ficado em casa, Paxton não sabia de nada. Falaram do Dr. King e mostraram, depois, imagens confusas no ecrã de pessoas a correrem... um hotel... alguém a gritar ... e, por fim, as palavras aterraram. Martin Luther King Jr. fora assassinado em Memphis. Assassinado. Morto. Abatido a tiro.

Fixou os olhos no televisor, sem conseguir acreditar. o mundo enlouquecera. Peter estava no Vietname, Martin Luther King tinha sido assassinado... abatido a tiro... Alguém o quisera morto e a tudo o que ele representava.

E, na casa em Berkeley, deixou-se cair lentamente numa cadeira, sem desviar os olhos do ecrã, escutando tudo o que diziam. Mas nada mais fazia sentido. E, nessa noite, quando começaram os tumultos, ouviu-os. Eclodiram nas cidades, por todo o lado: eram o grito angustiado de uma geração, que tentara ultrapassar o assassínio de Kenedy, ocorrido há cinco anos. Haviam passado o facho de mão em mão e, agora, os seus corações e as mãos estavam demasiado cansados para continuar a transportá-lo.

Paxton sentou-se na sala de estar às escuras, chorando por ele. Desta vez, quando o telefone tocou, não atendeu. Sabia que não podia ser Peter. Seriam apenas amigos, desejosos de partilhar o desgosto com ela, perguntar-lhe se sabia, dividir a descrença, e ela não queria ouvi-los. Não queria falar com ninguém. Não desejava fazer parte de um mundo que matava pessoas como ele. Sentia-se enojada ante essa ideia e quando, nessa noite, viu outra vez o telejornal, pôs-se a chorar pelos filhos de Luther King.

- Porquê? - indagou no silêncio da casa. - Porquê... - Abanou novamente a cabeça e secou as lágrimas, incapaz de compreender. - E na sexta-feira de manhã, no dia seguinte, acordou com o peso terrível da depressão. Tudo lhe parecia estar a correr mal, a começar pela partida para Saigão na segunda-feira.

Foi um fim-de-semana deprimente e, embora casa dia após dia, não conseguia estudar. No domingo à noite, teve um pesadelo horrível, envolvendo pássaros que a sobrevoavam em círculo e tentavam atacá-la no rosto. E acordou, aliviada, com a campainha do telefone na segunda-feira de manhã.

De início, não reconheceu o som quando encostou o auscultador ao ouvido e, depois, apercebeu-se que não estava ninguém do outro lado e que o toque era da porta e não do telefone. Não imaginava quem pudesse ser e vestiu rapidamente o roupão de Peter por cima da camisa de noite, antes de ir espreitar através de uma das janelas da cozinha. Não conseguiu, porém, divisar quem era e, por fim, dirigiu-se à porta da frente, descalça e com ar sonolento. Arregalou os olhos ao deparar com o pai de Peter.

- Olá... Eu... É uma surpresa... Como estás? – Ela beijou-o na face e, ao fazê-lo, detectou-lhe os olhos húmidos e recuou rapidamente com uma expressão aterrorizada, como se, afastando-se dele, o que quer que o trouxera ali não lhe tocasse.

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou. Mantinha-se de pé, jovem, bonita e muito, muito assustada. Ele apenas conseguia olhá-la e abanar a cabeça, enquanto sustinha as lá- grimas. Quisera, contudo, vir ali contar-lhe pessoalmente. Sabia que teria sido essa a vontade de Peter.

- Na noite passada, telefonaram-nos... - Marjorie continuava na cama, sob o efeito de tranquilizantes receitados pelo médico, quando ele saíra de casa para visitar Paxton. - Paxxie... O que vou dizer-te não é fácil. - Transpôs com uma passada a distância que o separava da jovem, puxou-a até ele e apertou-a, e, pelo espaço de um breve instante, ela desejou fingir para si mesma que era Peter a fazê-lo. - Ele morreu em Da Nang. - Pronunciou as palavras tão baixo, que ela quase não as ouviu. - Enviaram-no para o Norte mal chegou e saiu com uma patrulha, à noite. Apesar da sua inexperiência, fizeram-no ponta de lança. - Paxton não sabia o que isso era, nem lhe interessava. Apenas queria tapar os ouvidos com as mãos para não ter de o escutar.

- Era o que ia na frente... - prosseguiu Ed Wilson, começando a chorar. - . . . Não conquistou uma colina... Não foi alvejado... Não arrasou uma aldeia... Nem sequer pisou uma mina... Foi morto pelo que eles chamam «fogo amigável". Um dos nossos rapazes entrou em pânico, julgou que tinham ouvido um Vietcongue emboscado e abateram o Peter... Foi um engano, explicaram... um engano, Pax...

Não conseguia parar de chorar, embora tivesse vindo até ali para a ajudar.

-... Mas está morto... O nosso menino está morto... o corpo chega na sexta-feira. - Ao pronunciar as palavras, sentiu como que uma rocha a fender-lhe o peito, e ela julgou que morreria nos seus braços. Contudo, queria bater-lhe primeiro. Queria obrigá-lo a desdizer-se. Pôs-se a socá-lo no peito, enquanto as mãos e os cabelos esvoaçavam, frenéticos, à sua volta.

- Não!... não! Não aconteceu assim!... Não!... Não quero ouvir nada disso!

- Nem eu... Mas tens o direito de saber - ripostou, fitando-a tristemente. Ele, o homem que acreditara no bombardeamento como solução para o Vietname, perdera o filho no mesmo. - Morreu por nada - rematou.

Tudo o que conseguia lembrar-se agora era de como o filho parecia em miúdo e não do homem que partira apenas há uma semana, no dia das mentiras. Vivera uma semana no Vietname, menos até, pois só chegara lá na quarta-feira, segundo a hora local, e morrera no domingo. Fora morto em cinco dias. Por nada. Morto por «fogo amigável».

- O serviço fúnebre será daqui a uma semana... Mas a Marjorie achou que pudesses gostar de vir para casa comigo... Eu... penso que seria bom para ela...

Paxton esboçou um aceno de concordância sem pronunciar palavra. Também desejava estar com eles, pois eram a única família que tinha nesse momento e queria estar próximo dela. Se ficasse na sua companhia, talvez ele voltasse para lhes dizer que o telefonema do Vietname fora uma brincadeira, que os cartuchos do indivíduo eram de pólvora seca, que estava óptimo e continuava a planear encontrar-se com ela no Havai.

Paxton dirigiu-se ao quarto que tinham partilhado, sentindo-se atordoada e estranha, vestiu calças de ganga e enfiou uns ténis. Pôs uma das camisolas de Peter que ainda conservava o seu cheiro e meteu tudo de que conseguiu lembrar-se num saco, acompanhando, depois, Mr. Wilson até ao carro. Ele lembrou-lhe que fechasse a porta à chave, pegou-lhe no saco e a jovem sentou--se no carro, sozinha com ele, sentindo-se como se fosse de madeira.

- A culpa é minha, não é? - perguntou, ao atravessarem a ponte, olhando em frente, para a cidade ainda envolta em nevoeiro. A cidade tinha uma ambiência triste nesse dia, o que lhe agradava. Demasiadas pessoas haviam morrido recentemente. O Dr. King, Peter... Parecia que todos estavam a morrer.

- Não fales dessa maneira, Paxton. A culpa não é de ninguém, excepto do rapaz que puxou o gatilho. Foi um acidente. A mão do destino. Tens de o saber.

- Se me tivesse casado com ele, conseguiria o adiamento.

- Talvez não. Talvez tivesse surgido qualquer outra coisa. Podia ter ido para o Canadá, fugido, feito uma série de coisas. Acho basicamente que ele sentia que tinha de ir, porque o chamaram. Também podia tê-lo forçado a ir para Toronto, mas não o fiz. Também podia culpar-me. Não podemos... Se o fizermos, enlouquecemos.

Paxton fitou-o enquanto ele guiava, querendo arrancar-lhe a verdade.

- Odeia-me porque não me casei com ele? - inquiriu.

- Não odeio ninguém. - Tinha novamente os olhos cheios de lágrimas; deu-lhe uma palmadinha amistosa na mão e desviou o rosto. - Só queria que ele ainda estivesse connosco.

A jovem esboçou um aceno de cabeça, incapaz de pronunciar mais uma palavra e grata pela absolvição. Mantinha-se muito quieta e direita no banco, desejando que as lágrimas lhe lavassem a dor; porém, após a revolta inicial, apenas sentia ódio e ressentimento.

Quando chegaram à casa na Broadway, Gabby estava lá e Marjorie acabara de se levantar, parecendo ainda muito atordoada. Marjorie andava por todo o lado, à toa, comendo biscoitos- Mr. Wilson comunicou que tinha umas disposições a tomar, dirigiu-se à biblioteca e deixou Paxton com as duas outras mulheres.

Foi nessa altura que ela conseguiu dar largas ao seu desgosto, junto delas, das outras mulheres que o tinham amado. Choraram pelo que ele fora para elas, pelo que dissera, tencionara fazer e fizera. Passaram todo o dia a contar histórias sobre Peter, como criança, homem, filho, irmão e amante. Por vezes riam, outras choravam e também permaneceram, frequentemente, sentadas num silêncio meditativo.

Tornava-se difícil acreditar que ele já não estava vivo algures, que não ia telefonar e dizer-lhes que estava óptimo e lamentava o susto pregado. Mas, quando o telegrama oficial chegou, doze horas depois do telefonema, apenas serviu para o confirmar. E todos recomeçaram a chorar. Nessa noite, quando Gabby e a bebé regressaram a casa com Matt, Paxton recolheu ao quarto de hóspedes, sentindo-se totalmente exausta.

Passou o resto da semana na companhia deles, ajudando Mrs. Wilson a escolher algumas coisas, deixando-a falar sempre que ela necessitava, o que também e proporcionava alguém com quem falar.

Pensou, por mais de uma vez, telefonar para casa, mas a verdade é que não o desejava. Nem sequer a Queenie queria contar. O facto de lhes dizer corresponderia a tornar tudo uma realidade e ainda não queria que fosse real, nem nunca. Porém, assim o foi, quando receberam um telefonema oficial no sábado de manhã, informando-os de que poderiam ir buscar os seus «restos».

Mr. Wilson foi até à biblioteca com uma expressão sombria e, uma hora depois, Paxton e os Wilson dirigiram-se ao Departamento de Assistência aos Sobreviventes, onde se mantiveram com mais dois grupos de pais. As duas outras famílias eram negros e os filhos tinham ambos dezoito anos e eram primos. O desgosto deles tinha a mesma intensidade, a dor alojara-se-lhe nos corações, e os rapazes que amavam haviam desaparecido para sempre.

Peter encontrava-se num simples caixão de pinho tapado com a bandeira, e Mr. Wilson mandara vir um carro funerário da Halsted's. já estava à espera deles quando chegaram, e os Wilson foram levados para uma salinha, onde ficaram sós com Paxton. E ali estava... a prova... o rapaz que ele fora e já não era... no caixão.

Paxton começou a soluçar involuntariamente, e Mrs. Wilson deixou-se cair de joelhos ao lado dele, enquanto o marido se mantinha a seu lado, tentando ampará-la.

«Calma, miúda ... », ouvia Paxxie na voz de Peter. «Está tudo bem, querida ... Amo-te ... » As recordações eram tão nítidas, a voz ainda tão forte, que era impossível que ele tivesse desaparecido. Impossível e insuportável. Mas desaparecera. Para sempre.

Permaneceram assim durante muito tempo e, por fim, o pai de Peter ajudou a mulher a pôr-se de pé e, agarrando no braço de Paxton, caminharam lentamente de volta até ao sol de Abril. Agora, a vida parecia conter menos significado. Parecia interessar menos o que se fazia, para onde se ia, o que se vestia, o que se via, o que se dizia. Sem ele, nada interessava.

Regressaram a casa no automóvel e o carro funerário transportou Peter até à Halsted's. Nessa noite, quando o corpo dele foi mudado para outro caixão, numa sala tranquila, Paxton foi vê-lo. Não conseguia acreditar que era realmente ele que estava deitado na caixa de mogno, mas não queria olhar só para ter a prova. Em vez disso, ajoelhou-se ao lado dele e tocou na madeira, e nas pegas de cobre com as pontas dos dedos.

- Olá... - murmurou, sozinha na sala. - ... Sou eu...

«Eu sei ... », quase o ouviu responder com aquela voz familiar, os olhos tão azuis, o cabelo tão semelhante ao dela... Os lábios eram os mesmos que ainda a tinham beijado há uma semana. Esse mesmo rosto estava no caixão, aquele jovem era o que ela amara e sempre amaria e agora queriam que acreditasse que ele a deixara.

«Estás bem?» O coração segredava-lhe que ele lhe fazia a pergunta e só conseguiu abanar a cabeça, ao mesmo tempo que os olhos voltavam a encher-se-lhe de lágrimas. Não estava bem, nem nunca estaria. Como não havia estado, quando o pai tinha morrido. Como era possível voltar a ficar bem, depois de se perder quem se amava tanto? Em que é que se acreditava depois, exceptuando a perda, a dor e a tristeza? Uma parte da pessoa ficava vulnerável para o resto da vida e, num íntimo secreto, era algo que nunca se esquecia.

Conservou-se ajoelhada, durante muito tempo, sentindo-o próximo dela e desejando estar em paz, mas não conseguiu. Invadiam-na apenas dor, perda e raiva para com o rapaz, que puxara, acidentalmente, o gatilho. A própria terminologia estava errada. «Fogo amigável», como se tudo ficasse justificado por ele ter sido morto por um americano e não pelo Exército do Vietname do Norte. Mas o que importava, se ele agora estava morto?

O serviço fúnebre na segunda-feira foi comovedor e breve. A notícia da morte de Peter fora publicada na primeira página do Sun e em vários outros jornais. E todos os que tinham andado com ele na universidade apareceram, juntamente com professores, amigos, parentes e colegas. E os Wilson apresentaram Paxton a toda a gente.

Era quase como se ela e Peter tivessem sido casados. Agora, sentia inveja de Gabby. Se tivesse' ficado grávida de Peter, teria sempre uma parte dele ao seu lado. Tinha vinte e dois anos... amara Peter desde os dezoito e vivera três anos com ele. Sabia quem ele era e o que ele era ficaria eternamente no seu coração.

Permaneceu mais um dia com os Wilson e, depois, sentindo-se estranha, regressou a Berkeley. Agora, quase lhe parecia inútil voltar, mas sabia que tinha de o fazer. Deixara de achar possível terminar a licenciatura em junho, mas, na verdade, pouco lhe interessava.

E, em Maio, acabara de obter um prolongamento para completar os estudos no Verão, quando o irmão lhe telefonou. Não lhe ouvira a voz durante tanto tempo que, de início não se apercebeu de quem era; porém, o sotaque denunciou-o.

- Olá - saudou, e invadiu-a uma súbita tomada de consciência. - Aconteceu alguma coisa? - Foi a única ideia que lhe ocorreu. Desde que Peter morrera há um mês, parecia aguardar apenas más notícias e quase se sentia aliviada quando ninguém lhe telefonava.

- Não... Eu... - Não queria mentir-lhe, mas também, não sabia muito bem o que dizer. Nunca haviam sido íntimos e sabia que não seria fácil para ela. - A mamã achou que eu devia telefonar.

- Está doente? - Seria Allison ou o bebé? Paxton não conseguia imaginar do que se tratava e ficou à espera.

- Não. Está óptima - respondeu, arrastando as palavras e apercebendo-se de que não havia saída. Tinha de lhe dizer. - Paxton... É a Queenie. - O coração da jovem sobressaltou-se e desejou pousar o telefone antes que o irmão continuasse a falar. Não pronunciou, contudo, uma palavra, apertando o auscultador naquele compasso de espera. - Morreu durante o sono, na noite passada, Pax. Não sofreu. O coração falhou... é tudo... A mamã achou que devias saber e pediu-me que te telefonasse. - Poderia ter sido ela a fazê-lo e a dar-lhe os pêsames, mas não o fez.

- Eu... sim... Eu... - Não conseguia formular as palavras. Sentia-se como se a única pessoa que a amara tivesse desaparecido e, agora, não restasse mais ninguém. - Obrigada, George. - A voz assemelhava-se a um grasnar angustiado, e o irmão teve pena dela. - Sabes quando é o serviço fúnebre?

- Uma das filhas veio buscá-la hoje e acho que me informou que é amanhã. A mãe disse que mandaria flores em nome de todos nós, mas acho que não deverias ir, se é o que estás a pensar fazer.

O funeral seria no bairro negro, e a maioria das pessoas não teria compreendido o amor que as duas haviam partilhado. E ela seria, sem dúvida, a única pessoa branca na cerimónia.

- Sim, acho que sim - retorquiu num tom vago. Obrigada por teres telefonado.

Paxton desligou, pôs-se a vaguear pela casa e, nessa tarde, foi de carro até à cidade. Dirigiu-se à praia, caminhou à beira-mar e pensou neles, nas pessoas que tanto amara e tinham desaparecido... Queenie... e Peter.. e, onze anos antes o pai. Era como se tivesse amigos à espera «lá», algures, pessoas que amava e que sabia que, realmente, a amavam, parecia-lhe, no entanto, cruel que agora tivesse de viver sozinha. Cabia-lhe prosseguir sem ninguém a quem amar e não conseguia imaginar-se a amar novamente' Depois da morte de Peter, alguns rapazes haviam-na convidado para sair, mas sentira-se horrorizada. Não conseguia ver-se a sair com ninguém. A própria Gabby tentara apresentar-lhe um amigo de Matt, mas Paxton respondera, sem rodeios, que não estava interessada.

Nessa tarde, parou na casa dos Wilson a caminho de Berkeley, mas eles tinham saído. Viu-se a interrogar-se sobre como é que eles podiam continuar a viver sem ele, sabendo que estava morto, que morrera por nada e, em certa medida, fora assassinado. Era algo duro de engolir e havia alturas em que Paxton também desejava morrer, desejava simplesmente adormecer para não ser obrigada a estar sem ele.

No dia seguinte, telefonaram-lhe por terem sabido que ela passara por lá, e a mãe dele parecia muito, melhor. Estava muito excitada com o bebé. Falou de Peter, mas já não parecia incapaz de controlar as emoções.

A mãe de Paxton também lhe telefonou nessa tarde para lhe comunicar que lamentava a morte de Queenie e inteirar-se dos pormenores da licenciatura. Só faltava um mês, e ela, Allison e George estavam a planear ir a São Francisco. Há semanas que Paxton tinha intenção de lhes telefonar, mas não o fizera.

- Houve uma alteração de planos - anunciou, e a mãe pareceu sobressaltada.

- Qual?

- Só vou licenciar-me em Setembro. Não o farei com a minha turma. Vou acabar o trabalho e enviam-me o diploma pelo correio. - «E, depois, passarei o resto da vida a tentar descobrir por que é que Peter e eu não nos casámos». - Não é nada de importante, mamã. Apenas lamento que não vás assistir à licenciatura. - Na verdade, era-lhe indiferente. Deixara de se importar com o que quer que fosse. Nada de nada...

É assim que funcionam até Limitam-se a mandar o diploma pelo correio. Que desilusão.

- Não, não. É mesmo assim - replicou Paxton em surdina.

- Porque é que não te licencias em junho? - expressava-se num tom levemente acusador.

- Oh... Tive muito em que pensar esta Primavera. E andei muito ocupada.

- Com o quê? - Conhecia-a o suficiente para não perguntar se ainda andava com Peter. Apenas serviria para discutirem. E, no ano anterior, chegara a suspeitar de que poderiam estar a viver juntos. Desde que a filha não tentasse disparates do género em Savannah... O que fazia na Califórnia era lá com ela. Tinha mais de vinte e um anos e Beatrice Andrews estava consciente de que não poderia detê-la. - Tens ido a festas? - Estava só a arranjar tema de conversa.

- Não muito.

- Bom. Se não vais formar-te em Junho, quando é que regressas a Savannah?

Paxton suspirou.

- Não sei... Não sei nada. - Teve de engolir as lágrimas ao pronunciar as palavras, mas Beatrice Andrews não se apercebeu.- Se tiver de voltar às aulas, só começarei a trabalhar em Setembro. - Tinha planeado trabalhar para o Morning Sun. No entanto, também tinha planeado casar-se nesse ano e isso já não aconteceria. Nada iria acontecer-lhe. E, no meio do turbilhão, Savannah parecia-lhe insignificante. - Não sei quando irei a casa, mamã.

- Bom, tenta vir passar uns dias este Verão. O pequeno James Carl está engraçadíssimo. - Parecia-lhe estranho ouvi-la falar com tanto entusiasmo do neto, mas Paxton sentiu-se contente por ela. Até isso deixara de lhe interessar. A esperança de qualquer simulacro de entendimento entre elas há muito que se desvanecera.

- Tudo dependerá dos estudos - redarguiu. - No entanto, estava só a amenizar a situação. Não sentia qualquer desejo de voltar lá. Planeava acabar o curso, começar a trabalhar e talvez, se não lhe restasse alternativa, fosse a Savannah. no Natal.

Contudo, na maior parte do tempo não pensava neles.

Só pensava em Peter, enquanto tentava acabar o curso. Havia dúzias de trabalhos que não entregara, testes que tinha de repetir. Ao fazer a retrospectiva do trabalho nos últimos quatro ou cinco meses, achava um milagre que lhe dessem oportunidade de deixar que se licenciasse. Todavia, quando o reitor a chamara e quisera saber a razão da descida das notas, pusera-o ao corrente da morte de Peter em Da Nang e, para eles, chegara como explicação.

Estava quase a começar a aferrar-se à tarefa em junho, quando, uma noite, ao regressar da biblioteca, já tarde, ouviu um grito lancinante. Olhou em volta e avistou algumas pessoas a correr. Não conseguia imaginar o que acontecera. Um acidente? Uma manifestação? Mais gente tinha ouvido, e as pessoas começavam a interrogar-se umas às outras sobre o que acontecera.

E, à semelhança de 1963, as pessoas gritavam e corriam, de rádios em punho e correndo para casa, a fim de ver televisão. Ao observá-las, Paxton sentiu um calafrio a percorrer-lhe a espinha. Ignorava o quê ou a quem, mas algo de terrível acontecera.

- O que se passa? - perguntou a alguém que se encontrava perto, quando se concentraram à volta de uma jovem com um rádio, sentada a chorar nos degraus.

- RFK... foi morto a tiro... em Los Angeles.

- Kennedy? - Alguém esboçou um aceno de cabeça. Outro Kennedy. Outra morte. O irmão dele e, depois, Martin Luther King e o Vietname... e Queenie... e Peter.. e, agora isto... Era demasiado, repetira-se e prolongara-se em excesso. Todos eles se haviam preocupado tanto, com tantas coisas e, agora, todas as pessoas de quem gostavam estavam a morrer. Era uma maneira difícil de crescer, entrar na adolescência, abdicar da esperança, tornar-se «adulto». E, afinal, quem se interessava? Quem queria o que eles tinham para dar? o que era tão sagrado que matava todos os que lhe atribuíam importância? O facho acabara por queimar os dedos de todos.

- Ele está?... Chiu. - O som da rádio foi aumentado e a voz do locutor anunciou:

- Roberto Kennedy está morto. - Fora abatido a tiro, quando pronunciava o discurso da vitória depois das eleições primárias na Califórnia. Ganhara, perdera e morrera, tudo em simultâneo. E o mesmo acontecera aos filhos, à mulher e às pessoas que o amavam.

Paxton ouviu, virou costas e regressou a casa, abandonando os livros nos degraus da biblioteca. Não lhe interessava. Não os queria.

Nessa noite, sentou-se na cozinha, só, a pensar, olhando pela janela e consciente de que nada lhe restava ali, nada que quisesse fazer ou aprender, ou levar com ela. Aprendera tudo o que queria, e as lições tinham-lhe custado caro. E neste instante apenas sentia tristeza. Nem desgosto, dor ou desespero, apenas tristeza. Robert Kenedy desaparecera e um número excessivo de muitos outros com ele. Nesse preciso momento, vinte e dois mil novecentos e cinquenta e um homens tinham morrido no Vietname.

Nessa noite, Paxton embalou algumas das suas coisas e arrumou, cuidadosamente, no armário o resto dos seus pertences e dos de Peter. De manhã, meteu-se no carro até à cidade e foi ao jornal falar com Ed Wilson. Quando a jovem entrou, ele apercebeu-se, imediatamente, do presságio que carregava.

Todos no jornal andavam loucos por causa do assassínio de Kennedy. Outro Kennedy. Outro irmão. Outra vítima. No entanto, Paxton parecia estranhamente alheada e fria, tristemente mais velha. Era uma bonita rapariga, mas envelhecera. Os anos reflectiam-se nos olhos, na forma como se movimentava, nas coisas que não dizia mas sentia. Perdera demasiado e acreditara com demasiada intensidade. Acreditara no bem, na felicidade e na confiança.

E tudo não passara de mentiras. Nem sempre se verifica um final feliz. E Camelot não dura sempre. Para ninguém. Envelhece-se, morre-se, ou por vezes morre-se novo. No seu breve percurso de vida, tinham morrido demasiados, e Ed Wilson, com todo o peso dos seus anos e o desgosto pelo filho, sentiu pena dela.

- Em que posso ser-te útil, Paxton? - Tinha uma expressão grave, mas sorriu-lhe ao inclinar-se para a beijar. - Estás a emagrecer de mais. Precisas de vir jantar connosco mais vezes.

- Acabei de deixar as coisas do Peter em Berkeley.  A forma com o ela se expressou parecia-lhe estranha, e fitou-a, curioso.

Vais a algum lado? - inquiriu, franzindo o sobrolho perante a enorme tristeza que detectou nos olhos da jovem.

- Depende de si - retorquiu calmamente. - Resolvi abandonar os estudos.

- Julguei que tinhas conseguido um prolongamento para te licenciares em Setembro. - Ela informara-o quando o tinha obtido e sentira-se aliviado. Sabia o quanto significava para ela acabar o curso e, portanto, a declaração dessa manhã surpreendeu-o. - O que se passa, Paxton? - quis saber.

Quase falava como um pai, e ela sorriu. Nos últimos quatro anos, ele fora mais do que um pai para ela e interrogou-se sobre se, agora, lhe daria o que ela desejava. Mas, se não o fizesse, sabia a quem se dirigir.

- Quero um emprego.

- Tens um emprego aqui, quando quiseres. Sabes isso. Não é, porém, mais sensato ficares em Berkeley este Verão e licenciares-te? Qual é a pressa?

- Não tenciono acabar a licenciatura. - Nessa manhã, quando saíra de casa, sabia que nunca voltaria. Apenas levara as coisas de Peter com que desejava ficar. Três livros de poesia que ele lhe oferecera, o relógio que os Wilson lhe tinham dado e que ele usava desde miúdo e ela usava agora, bem como as chapas de identificação. - Quero trabalhar para si, Mister Wilson.

- Aqui? - perguntou, dando-se conta de que havia algo mais por detrás das palavras da jovem. E tinha razão. Ela abanou lentamente a cabeça.

- Não, aqui não. Pelo menos, ainda não. Quero ir para Saigão. - Pronunciou as palavras num tom calmo e tranquilo, mas ele fitou-a, de olhos arregalados.

Ela queria ir por todos os motivos errados. Para descobrir Peter. Para morrer. Talvez para o vingar. Ou talvez apenas porque tinha perdido a fé no seu país. Ele sabia perfeitamente que a morte deste segundo Kennedy, tão pouco tempo depois da de Martin Luther King, abalaria a juventude da nação até ao âmago, e tornava-se óbvio que isso já acontecera a Paxton. Ela tinha um olhar destroçado e mantinha-se sentada, muito direita, no seu escritório, a imagem de uma jovem que desistira de tudo, ou perdera tudo, ou talvez as duas coisas. No entanto, fosse o que fosse que ela tencionasse fazer em Saigão, isso não a ajudaria.

- Está fora de questão.

- Porquê? - ripostou com um olhar chispante, e ele apercebeu-se de que, por mais errada que estivesse, seguiria em frente.

- Porque é um lugar para correspondentes experientes. Por amor de Deus, Paxton. É uma zona de guerra. Sabes melhor do que ninguém o que pode acontecer por lá. Mesmo que não te enviassem para os sítios mais perigosos, podias ir pelos ares, quando estivesses sentada num bar, ou ser vítima de «fogo amigável», como o Peter.

A simples menção do nome magoou-os a ambos, mas ele sabia que assim tinha de ser para bem dela. E nenhuma das contestações da jovem poderia levá-lo a mudar de opinião, ou, pelo menos, assim o pensava, mas ela mostrou-se amargamente obstinada.

- Há pessoas que vão para lá combater e são mortas e são quatro anos mais novas do que eu.

- É isso o que queres? - perguntou-lhe, de lágrimas nos olhos. - Para morrer no mesmo lugar do que ele? É o presente que lhe dás? É tudo o que podes fazer com a tua vida, Paxton? Sei como te sentes. Tu e toda a tua geração pensam que este país vai a caminho do inferno, e não me sinto assim tão certo de não estar de acordo convosco. Contudo, ir para Saigão numa missão suicida não é a resposta.

- Quero contar a verdade às pessoas daqui, seja qual for a verdade. Quero ver com os meus próprios olhos. Quero saber o que se passa, sem que mo impinjam no telejornal da noite. Não quero ficar o resto da vida sentada numa biblioteca, confortavelmente e em segurança, lendo sobre a morte de outras pessoas.

- Queres, então, morrer? É isso? - Ele tentava arrancar-lhe a confissão, porém, mesmo que fosse essa a verdade, Paxton jamais o admitiria.

- Não. Quero a verdade. E, no seu caso, não quer sabê-la também? Não quer saber como é que ele realmente morreu? O que se passa realmente por lá? Quero ver-nos sair daquele inferno do Vietname e quero saber porque é que ainda não o fizemos. E, se partir para lá, não sou uma velha e cansada correspondente com opiniões políticas rançosas, interesses pessoais a defender e um traseiro a proteger. E não, não quero morrer, mas... e se isso acontecer? Talvez seja por uma boa causa, talvez até valha a pena.

- Paxton!... - exclamou, sacudindo a cabeça, atrás da secretária. - Nunca valerá a pena. E também não vale a pena morreres pela miséria que reina por lá. Eu estava errado. Tu tens razão. E o Peter também tinha. Não pertencemos àquele país. Não acho que possamos ganhar. Também gostaria de nos ver de lá para fora. E nunca julguei ouvir-me a pronunciar tais afirmações. Na semana passada, avistei-me em Washington, com o novo secretário da Defesa, o Clark Clifford, e ele convenceu-me. Se queres uma reportagem, vai falar com ele. Claro que te darei emprego. Vai onde quer que o desejes neste país e arranja assunto de reportagem.

«Sê uma repórter nómada, uma agitadora, sê o que quiseres - prosseguiu -, mas não vou mandar-te para o Vietname. Se alguma coisa te acontecesse, n o conseguiria sobreviver à culpabilidade. Devemos à memória do Peter cuidar bem de ti, e também lhe deves o mesmo. - Fitou Paxton com uma expressão severa, mas não a convenceu.

- Devo-lhe mais do que isso - arguiu, sem desviar os olhos semicerrados do homem que quase fora seu sogro, mas, agora, nunca o seria. - E também o senhor, Mister Wilson. - Levantou-se com uma expressão determinada. - Não tenciono ficar aqui sentada, como uma cobarde, à espera de que outras pessoas encontrem as respostas. Vou, quer n11 envie ou não para lá. Se tiver de o fazer, irei por minha conta e venderei as histórias de lá. Talvez alguém as queira. - Ele pôs-se igualmente de pé e fitou-a do outro lado da secretária, ao mesmo tempo que estendia a mão e lhe tocava no braço.

- Paxton, não...

- Tem de ser assim.

- Ele manteve-se a fitá-la ciente de que a jovem já não era a rapariguinha que iria casar com o seu filho. Crescera da forma mais dura, com dor tristeza e uma amarga desilusão.

- Não podes ser sensata? Não podes esperar? Pensa nisso durante seis meses. Talvez nessa altura já estejamos fora daquele inferno - redarguiu num tom esperançado.

- Não estaremos. Eles mentem-nos. E é isso o que agora quero ver com os meus próprios olhos.

- A tua experiência, Paxton, resume-se ao trabalho que fizeste para o jornal durante o Verão. Não fazes ideia do que é ser uma correspondente num lugar daqueles. São necessários anos de preparação para uma missão desse género.

Paxton sorriu tristemente, enquanto o escutava.

- Mas é curioso como não levam anos a preparar carne para canhão, não é verdade? - replicou. - Mandam-nos de barco para morrer, quer estejam ou não preparados. Estou preparada, Mister Wilson, sei que estou.

E uma parte dele sabia que ela tomara a atitude correcta. Estava triste, era dura, esperta e preocupava-se... por causa de Peter. O velho jornalista que vivia nele estava convencido, mas como pai de Peter sentia que tinha de fazer tudo para a deter.

- Vai mandar-me? - insistiu Paxton fitando-o bem de frente; ele voltou a sentir vontade de chorar. Queria fazer tudo excepto mandá-la, mas sabia que ela falava a sério. E, se não a mandasse, outra pessoa o faria, alguém que a enviaria para as zonas de combate, onde talvez a matassem. Talvez pudesse protegê-la, se a contratasse.

- Concordarei, se me jurares que farás apenas o que pedirmos e seguires as instruções à letra. - respondeu.

Os olhos dela iluminaram-se como o 4 de Julho e, pela primeira vez desde há meses, pareceu feliz.

- Ouviste-me? - Dirigia-se-lhe como se ela fosse uma criança teimosa a quem estavam a dar licença para ir a uma festa, mas apenas sob determinadas condições.

- Mas nada de reuniões sociais, nem desfiles de moda, combinado? - Ambos riram. Não era provável que qualquer das coisas fizesse parte do quotidiano de Saigão.

- Estás mesmo a falar a sério, Pax? Tens a certeza de que não consigo dissuadir-te? - Voltou a sentar-se pesadamente na cadeira, com uma expressão de derrota ao vê-la abanar a cabeça. E os olhos da jovem brilharam. Saíra vitoriosa. Durante a noite anterior, ficara a saber qual a atitude a tomar e, pela primeira vez desde há muito tempo, sentia-se, se não feliz, pelo menos em paz.

- Sei que executarei um bom trabalho. juro. - Parecia entusiasmada, excitada e novamente viva. De certa maneira, sentia-se aliviado por ela, mas também assustado. Teria preferido que aquela disposição resultasse de ter conhecido qualquer rapaz na biblioteca. Ou até mesmo em Berkeley. Seria mais seguro.

- Não estou preocupado com a qualidade do teu trabalho. Estou preocupado com o teu traseiro - confessou sem rodeios. - Acho bem que tomes conta dele ou aparecerei lá para eu próprio te aplicar um bom pontapé. Falo a sério. - Em seguida, soltou um grunhido e passou a mão pelo cabelo já branco mas que tanto se assemelhava ao de Peter. Tinham o mesmo cabelo, a mesma expressão, os mesmos olhos, mas Paxton tentava abstrair-se.

- A Marjorie vai matar-me por causa disto - prosseguiu. - E a Gabby... Oh, meu Deus, quase me esquecia. - Parecia horrorizado, quando olhou para Paxton. - Teve o bebé na noite passada... um menino. Vão chamar-lhe Peter. - Não era surpreendente. Nada o era já e Paxton sentiu-se feliz por ela. Uma vida por uma vida. Quando Robert Kennedy deixava o mundo, às mãos de um louco, o rapazinho de Gabby entrava nele, com uma vida cheia de esperanças pela frente e Peter observava-os, desejando-lhes tudo de bom e emprestando-lhe o seu nome, de que já não precisava* Os espíritos iam e vinham, trocando de lugar, e alguns sonhos findavam enquanto outros começavam. Era estranho pensar em tudo isto.

- Sinto-me feliz por eles. A Gabby está bem?

- Óptima. Telefonou-nos logo depois de ele ter nascido de parto natural e, segundo o Matt, foi muito fácil. Tenho a - certeza de que gostariam de te ver. - Paxton esboçou um aceno de cabeça, mas seria estranho olhar para o rapazinho que teria o nome de Peter. Paxton sabia que agora não teria filhos nem marido. Apenas desejava ir ao Vietname e descobrir a verdade sobre a guerra. Era estranho como a vida mudava. Todos os sonhos que outrora  albergava tinham desaparecido. Harvard e depois Berkeley, e Peter... Agora só queria ver o que estava, de facto, a acontecer e contar a todos os Americanos, para que eles soubessem porque é que os maridos e os filhos estavam a morrer no Vietname.

- Daqui a quanto tempo parto?

- Paxton queria levá-lo a assumir um compromisso, e ele sabia. Consultou o calendário, tomou algumas notas e, em seguida, ergueu os olhos na sua direcção.

- Estas coisas levam algum tempo. Tenho de falar com o nosso chefe de redacção de lá e ver o que precisamos...

- Não vou esperar seis meses.

- Sei que não - replicou num tom calmo. - Estava a pensar numa semana, talvez duas, três no máximo. Precisarás desse tempo para te organizares, arranjares os documentos e apanhares as vacinas necessárias. Digamos duas semanas. Parece-te razoável? - Ela esboçou um aceno de concordância, surpreendida por ter ganho. Esboçou-lhe um sorriso. Conseguira.

- Muito razoável. Pensei ir passar uns dias a casa para me despedir da minha mãe.

- Faz isso. Telefono-te para lá a dizer quando precisamos que voltes. Podes começar a apanhar as vacinas lá. Sei que precisarás de bastantes. O teu irmão pode encarregar-se disso, se estiver disposto.

Interrogou-se sobre se a família também tentaria impedi-la, mas conhecia-a o suficiente para saber que, agora que tomara a decisão, nada conseguiria detê-la. Era uma rapariga forte, com bom coração, e ele sabia melhor do que ni

guem que uma parte do mesmo ficara destroçado. Voltou a levantar-se e deu a volta à secretária, avançando ao encontro dela.

Tem sido um ano difícil para todos nós, Pax - declarou.

Só espero que não estejas a cometer um erro terrível. - Apertou-a com força e beijou-a no alto da cabeça. - Não queremos perder-te também.

- Não perderão - sussurrou, correspondendo ao abraço. E, naquele momento, invadiu-a a estranha sensação de que tudo correria bem, pois tinha a bênção de Peter.


 

Paxton chegou a Savannah numa sexta-feira à tarde, dois dias depois de Robert Kennedy ter sido assassinado a tiro, a tempo de assistir no sábado, pela televisão, ao transporte do corpo de comboio através do país, enquanto as pessoas de todas as cidades acenavam, chorando mais uma esperança perdida, mais uma dor. E, desta vez, ninguém foi esperar Paxton ao aeroporto.

Telefonara à mãe, informando-a de que chegaria de avião, mas a mãe tivera de ir a um chá oferecido pelo clube de bridege. E Paxton não se importou, pois deu-lhe oportunidade de ir para casa sozinha, sentar-se na cozinha e pensar em Queenie.

A mãe tinha contratado uma rapariga depois de ela morrer, igualmente de cor, mas mais nova. Só trabalhava a dias e fora comprar mercearias quando Paxton chegou, o que, de certa forma, constituiu um alívio. Pôde, assim, ficar sozinha na cozinha de Queenie.

Era estranho estar ali sem ela, e Paxton sentiu um desgosto terrível ao recordar-se das últimas palavras da velha ama, da última vez que viera a casa: «às vezes, quando se espera, a vida não nos dá oportunidade de fazer o que se quer». Tinha razão. Mas, agora, Queenie já o sabia pois, se existia um paraíso, decerto estaria lá com Peter.

O bater de uma porta interrompeu os pensamentos de Paxton e ouviu passos rápidos na entrada principal. Era a empregada nova e quase soltou um grito ao avistar Paxxie.

- Desculpe. Sou Paxton Andrews. Acabei de chegar da Califórnia. Não era minha intenção assustá-la. - A rapariga fitou-a, assustada, durante uns momentos e, depois, descontraiu-se. Rondava a idade de Paxton e tinha um rosto meigo, mas era baixa, pesada e não muito bonita.

- Anda na universidade da Califórnia?

- Exacto.

- Licenciou-se? - inquiriu, prudente, como se se tratasse de algo muito importante.

Paxton abanou a cabeça como resposta.

- Não, não me licenciei. - Absteve-se de lhe dizer que tinha vindo a casa para se despedir da família antes de partir para o Vietname. Tinha de dizer primeiro à mãe. Limitou-se a conversar amistosamente e ajudou a rapariga a levar as mercearias para a cozinha. A mãe chegou meia hora mais tarde.

Paxton teve a sensação de que ela envelhecera e não sabia bem porquê. Estava com bom aspecto e arranjara o cabelo, mas tinha uma expressão cansada e emagrecera, desde a última vez que Paxton a vira. Garantiu, contudo, que se sentia bem e disse à filha que a achava magra. Pediu, depois, a Emmalee que levasse chá e biscoitos de canela para a sala da frente.

Após ter bebido um gole, Beatrice Andrews fitou-a com intensidade e indagou o motivo da vinda. Não tinha nada de parva e pressentira que a viagem era mais do que uma visita amigável. Sabia que Paxton não gostava de vir a casa e que, se pudesse evitá-lo, o faria.

- Vais casar-te? - inquiriu com um olhar estranho. Era um olhar de desapontamento, pois sabia quem seria, indubitavelmente, o rapaz e ele não era do Sul. A voz denotava, por outro lado, alguma excitação, pois a sua única filha estava prestes a ficar noiva, mas Paxton limitou-se a abanar a cabeça, com pena de a desiludir.

- Não, não vou. Lamento que isso não esteja nos meus planos. - Falava calmamente, e a mãe observou-a com estranheza, pressentindo algo mais, mas Paxton não estava disposta a explicar.

- Deixaste de andar com aquele rapaz? - Peter sempre fora «aquele rapaz» para ela, e agora as palavras provocaram um sorriso em Paxton.

Há dois meses que ele morrera, e o primeiro choque da dor desvanecia-se lentamente. Apenas restava o torpor da descrença e o desgosto que sentia ir permanecer eternamente- Conseguia, no entanto, sobreviver e ninguém sabia quanto lhe doía, exceptuando talvez os Wilson e os outros que haviam sofrido perdas idênticas. No entanto e por qualquer estranha razão, agora que partiria para o Vietname, sentia-se melhor, embora a dor não a tivesse abandonado.

- Eu... Bom... - engasgou-se, buscando as palavras certas. - É um pouco difícil de explicar. Não tem importância. - «Não tem importância, mamã. Ele morreu, é só isso. » Era, contudo, incapaz de imaginar a mãe a partilhar a sua tristeza, e por isso nunca lhe contara. Teria sido doloroso de mais.

- Passa-se alguma coisa? - insistiu Beatrice Andrews, que não estava disposta a abandonar a conversa, e o seu olhar penetrante provocou um estremecimento involuntário em Paxton. Não havia forma de lhe escapar. - O que aconteceu?

- Ele... ele... - Ouvia o tiquetaque do relógio do avô num canto da sala e focou o olhar nos reposteiros para não ter de enfrentar o olhar da mãe quando lhe contasse. - Ele... foi para o Vietname... e foi morto em Da Nang, em Abril. - Seguiu-se um silêncio interminável, e Paxton amaldiçoou-se, ao mesmo tempo que os olhos se lhe enchiam de lágrimas; de súbito, apercebeu-se de que a mãe se movia ao seu lado. Virou-se, surpreendida, e viu que a mulher que fora uma estranha para ela durante toda a vida estava a chorar.

- Lamento muito... Sei como deves sentir-te... Que coisa terrível... - Colocou os braços à volta de Paxton e a jovem pôs-se a chorar, aconchegada à mãe. Chorava novamente por Peter, pelos Kenedy, Queenie e Martin Luther King... e até mesmo pelo pai... Porque é que todos tinham morrido? Porque haviam desaparecido? Porque é que o avião dele fora apanhado pela tempestade? E porque é que ela não casara com Peter quando o devia ter feito?

Tentou comunicar à mãe o que sentia, mas as palavras saíam-lhe num turbilhão. A mãe embalava-a suavemente para a frente e para trás, como nunca o fizera antes, trazendo-lhe uma estranha recordação de Queenie.

- Porque não me disseste? - Notava-se uma ligeira reprovação na voz, mas o olhar indicou a Paxton que ela se importava mais do que alguma vez suspeitara.

- Não sei. Talvez o facto de te dizer tornasse tudo mais real. Acho que simplesmente não fui capaz.

- Que coisa horrível para a família.

- A Gabby, a irmã dele, teve um filho há dois dias e chamou-lhe Peter. - No entanto, esta afirmação provocou nova torrente de lágrimas em Paxton, pois sabia que, agora nunca teria filhos dele.

Permaneceram sentadas durante horas, chorando, bebendo chá e chorando novamente. A jovem chorava, aparentemente, por todos e por tudo, buscando a compensação de uma vida. Por fim, envolveu a mãe nos braços e agradeceu-lhe. Era a primeira vez que existia qualquer ligação entre ambas.

- Sei como te sentes - replicou a mãe, e Paxton surpreendeu-se. - Lembro-me de como me senti quando o teu pai morreu... Fiquei confusa durante muito tempo... e irritada e triste. Vais levar muito tempo a recompor-te, Paxton. Pode ser uma dor eterna. Não te atormentará todos os dias e em cada minuto, mas, sempre que pensares nele, haverá tristeza no teu coração pelo que aconteceu. Um dia, surgirá outra pessoa - continuou, dando uma palmadinha na mão da filha. - Terás um marido e filhos, mas continuarás a recordá-lo e amá-lo-ás para sempre.

Paxton absteve-se de responder que não imaginava outro homem na sua vida, ou filhos que não fossem dele, mas sabia que a mãe tinha razão ao afirmar que o amaria eternamente. Em seguida, a mãe fez a pergunta que Paxton desejava só ter surgido mais tarde.

- Virás para casa em Setembro, minha querida? Não há motivo para que fiques na Califórnia.

Afinal, tinham saído vitoriosos. Ela regressaria a casa. A ligação amorosa com «aquele rapaz» terminara. Contudo, Paxton limitou-se a abanar a cabeça e esperou, buscando as palavras exactas para lhe responder. De súbito, morrera em si o desejo de a magoar. A mãe dera-lhe, finalmente, algo de que há muito necessitava e queria agradecer-lhe e não desgostá-la. Mas não lhe restava alternativa.

fui - Deixei, ontem, a universidade. - « ... e a casa onde tão feliz com o Peter... Deixei tudo... porque o Robert Kenedy foi assassinado e não consigo suportar nem mais um minuto a loucura deste país». Ia, portanto, para um país ",da mais louco mas pelo menos, ali a loucura estava a descoberto.

- Deixaste de vez? - inquiriu a mãe, parecendo chocada, pois sabia que desistir não se coadunava com o temperamento de Paxton.

- Era simplesmente incapaz de continuar. Nos próximos dez anos, não conseguiria fazer nenhum trabalho, nem submeter-me a um teste. já não faz sentido. Nem consigo lembrar-me porque é que desejei começar.

- Mas é o último período! - exclamou a mãe, confusa, interrogando-se subitamente sobre se Paxton não teria enlouquecido um pouco. - Podias licenciar-te no Outono. Não vais desperdiçar tudo por que lutaste, Paxton? Estás à beira da meta.

Paxton esboçou um aceno triste. Era verdade. A mãe tinha toda a razão. Mas não conseguia.

- Eu sei. Mas, desde que o Peter partiu, sou incapaz de me concentrar. Desde que ele saiu de casa para o treino básico em janeiro, não fiz um único trabalho.

- É compreensível. Talvez possas acabar aqui. E arranjar um emprego no jornal. Sabes como te querem lá. - Estava a tentar encorajá-la, e Paxton sentiu pena dela. Não fazia ideia do que a esperava.

- Mamã... - Estendeu o braço e tocou-lhe na mão, ainda agradecida pelo conforto que ela lhe dera relativamente a Peter. - Aceitei um emprego, ontem. - Paxton falava quase em surdina.

- Em São Francisco? - replicou Beatrice Andrews com uma expressão sombria.

Seguiu-se uma longa pausa, enquanto Paxton procurava a melhor maneira de responder.

- No Morning Sun - declarou, por fim. - Mas não em São Francisco.

- Onde então? - redarguiu, mas sem ter a mínima suspeita.

- Vou ser correspondente em Saigão. - Fez-se um silêncio interminável na sala; depois, a mãe ocultou subitamente o rosto nas mãos e começou a soluçar, e desta vez foi Paxton a ampará-la. Em seguida, virou-se para fitar a filha que mal conhecia, como se ela fosse a total estranha de sempre.

- Como podes fazer uma coisa dessas? Estás a tentar matar-te? Queres suicidar-te? Também senti o mesmo depois de o teu pai morrer - declarou, assoando-se, com elegância, a um lencinho rendado -, mas tinha de pensar em ti e no George. E no teu futuro. Sei que agora tudo te parece árido, mas vai passar, Paxton. Terás de ser paciente.

- Eu sei, mamã... Sei como tudo parece. Mas trata-se de qualquer coisa que tenho de fazer. Não posso ficar sentada aqui à espera de que a vida siga o seu curso. Quero estar no Vietname. Quero compreender o que aconteceu. Quero impedir que continue a acontecer. Quero ajudar a deter a guerra mais rapidamente. Quero chamar a atenção das pessoas. Sentamo-nos, noite após noite, vendo gente a morrer enquanto jantamos e ninguém se importa, ninguém pestaneja sequer. Mesmo que apenas consiga abolir dez minutos de guerra, bastará. Talvez cinco pessoas tivessem sido mortas nesses dez minutos.. Talvez algum dos meus actos possa salvá-las.

- E se, em vez disso, fores morta, Paxton? E se fores tu e não outra pessoa? já pensaste nisso?... E no que me fará? És uma mulher! Não tens de ir para a guerra, Deus do céu. Ainda estás sob a loucura resultante da morte desse rapaz. Tens de ficar em casa e sarar as feridas. Fica aqui. Não voltes. - Estava a suplicar-lhe, e Paxton sentia o coração despedaçado, mas sabia que tinha de ir. Era o seu destino, agora.

- Tenho de ir, mamã. Prometo-te, todavia, que serei cuidadosa. Não vou deixar que me matem. - Sabia que Ed Wilson tinha pensado o mesmo, o que a levava a interrogar-se. E havia momentos em que se sentia tentada a ir juntar-se a Peter, momentos em que, ao conduzir na ponte, pensava em parar o carro e saltar. Mas não o fazia. E agora sabia que linha de fazer algo muito mais importante do que fugir.

Não vás... Paxton, suplico-te...

Por favor, mamã. - E, pela segunda vez no que parecia ter sido uma vida, as duas mulheres abraçaram-se. o gelo quebrara-se, o elo formara-se, mas era demasiado tarde para que Paxton voltasse atrás. Viera a casa despedir-se, e a mãe sabia-o.

Passaram as duas semanas seguintes a conversar calmamente sobre o pai e como a mãe se sentira quando ele morrera. Por fim, ela foi mesmo ao ponto de falar da outra mulher. Tratava-se de uma mulher com quem ele trabalhava, e Beatrice estivera a par da ligação. Soubera como ele se sentia só, mas não era capaz de lhe dar o que ele desejava. E confessara que ficara aliviada por alguém mais poder fazê-lo. Apenas se sentira magoada quando ele morreu e toda a gente descobriu que tinha havido uma outra mulher na sua vida.

Paxton achava que era uma forma estranha de pensar; porém, mesmo agora, com aquela permuta recém-encontrada, concluía que ela e a mãe eram muito diferentes. Uma tão fria, tão distante, tão desprendida, tão receosa de se entregar, de perder o controlo, de demonstrar emoções; a outra tão franca, tão apaixonada, tão profundamente envolvida e comprometida, até mesmo no seu desgosto após a morte de Peter. E, em muitos aspectos, Paxton era muito parecida com o pai.

O irmão George também tentou dissuadi-la de ir para o Vietname, mas, tal como a mãe, apercebeu-se com o passar dos dias que era inútil. Paxton estava decidida. Ministrou-lhe as vacinas e, por fim, quando Ed Wilson telefonou e lhe disse que voltasse para receber instruções, George, Allison e a mãe acompanharam-na ao aeroporto e, desta vez, até mesmo Paxton chorou ao deixá-los.

Sentia-se como se partisse para sempre. Mesmo que voltasse, nunca mais seria o mesmo e ela sabia. Partira uma criança e regressaria diferente, com as cicatrizes da guerra, mais conhecedora, ou talvez mais amarga. Mas nunca voltaria a ser uma criança. A criança que fora Paxton Andrews desaparecia com os outros.


 

As despedidas em São Francisco não foram mais fáceis do que as de Savannah. Na verdade, embora a mãe se tivesse aproximado devido à morte de Peter, as despedidas em São Francisco revelaram-se muito mais difíceis. Gabby chorava ininterruptamente, e a mãe de Peter mostrava-se destroçada por o marido ter acedido a dar-lhe o emprego em Saigão. E acusou-o, sem rodeios, de ser tão doido como Paxxie.

Na noite em que partiu, todos a acompanharam ao aeroporto. Arranjaram-lhe lugar num avião militar que saía da Base Aérea de Travis. Tinha os certificados de vacina, o passaporte, os vistos, os documentos do Morning Sun e todas as instruções sobre quem contactar e onde, e o local de alojamento. Tinham-na registado no Hotel Caravelle na Tu Do e o Sun oferecera-lhe um dicionário vietnamita.

No entanto, as despedidas foram o que mais lhe custou. Dizer-lhes adeus foi terrível. Estar em Travis recordava a todos quando se tinham despedido de Peter. E até mesmo o pai de Peter chorou quando abraçou Paxton, a beijou na face e lhe recomendou pela milionésima vez que tivesse cuidado.

- E se chegares lá e mudares de opinião, peço-te, por amor de Deus, que não sejas idiota. Dá meia volta e regressa a casa. Acho que estás a cometer um erro crasso com a tua ida. Não sejas orgulhosa em admiti-lo e volta rapidamente.

- Assim farei - prometeu-lhe com lágrimas nos olhos. - Amo-vos. - Aprendera a dizer tudo, enquanto podia. Nunca se sabia o que ia acontecer. - Tomem cuidado. - Voltou a beijá-los a todos, enquanto chamavam o seu voo. - Tenho de ir. Prometam que escreverão.

- Tem cuidado contigo - exortou-a Marjorie, tentando não pensar no filho. - Atenção ao que comes! - Todos riram, e Gabby e Paxton abraçaram-se. Tudo começara com elas, As duas raparigas, que se amavam como irmãs, desde há quatro anos.

- Amo-te, minha doida. Tem cuidado, Paxxie, por favor- Se te acontecer qualquer coisa, morrerei... - Paxton

 

Paxton permaneceu acordada desde a Base da Força Aérea de Travis ao Havai, embora, quando chegaram, já fosse quase meia-noite para ela; e assim continuou durante a maioria do percurso até Guam, tendo mesmo falado com alguns dos homens, enquanto esperavam pela vez de ir à casa de banho.

A maioria dos rapazes era idêntica àquele com quem chocara ao subir a bordo do avião. Mal parecia terem dezoito anos: eram jovens, estavam assustados e, quando se descontraíam um pouco, tornavam-se maliciosos. Vários pediram-lhe para sair com eles, alguns mostraram-lhe fotografias das namoradas, mães e mulheres e, na sua maioria, eram dos mais inexperientes dos novos recrutas. O epítome da palavra que estavam prestes a atirar-lhes, noite e dia, após chegarem: «Sementes verdes».

Alguns dos mais velhos que viajavam com eles já haviam estado antes no Vietname e, por sua própria escolha, regressavam para mais uma incursão. Era nestes que Paxton estava interessada, e dois deles partilharam o uísque das garrafas com ela na viagem para Guam, nessa altura a metade do caminho entre São Francisco e Saigão.

. Queria saber o que se passava por lá, porque é que queriam voltar, porque é que gostavam ou detestavam o local, qual a essência e o significado para eles; porém, ao escutá-los, não estava certa de os compreender.

Referiam-se-lhe como uma merda de sítio, achavam que Os Vietcongues eram uns filhos-da-mãe, que Charlie' matara os amigos deles e falavam, em simultâneo, da beleza do país, da, montanhas, dos rios, do verde dos montes, do fedor, dos cheiros, do perfume, das mulheres, das prostitutas, dos amigos que amavam, dos camaradas mortos e do perigo.

Era difícil tirar conclusões, excepto se já lá se estivesse estado.

Charlie, era o nome dado aos habitantes ou soldados do Vietname.

E aparentavam um curioso respeito ante o inimigo sua feroz lealdade à causa, a coragem com que lutavam e por nunca desistirem até à morte. Tratava-se de uma estranha admiração pelos adversários. Referiam-se bastante a Charlie e achavam que os oficiais eram uma cambada de idiotas, que nunca sabiam o que estava a passar-se. E, mais importante ainda, achavam que não havia forma de a América poder ganhar a guerra no Vietname.

- Então, porque voltam? - replicou calmamente, e os dois homens entreolharam-se e, em seguida, desviaram o olhar; esperou o que lhe pareceu um longo espaço de tempo. E, quando eles responderam, quase compreendeu.

- Deixou de parecer justo estar nos Estados Unidos - explicou um deles. - Todos os miúdos nos odeiam por isso e sentimo-nos traidores ao voltarmos a casa. Mas, de regresso ao Vietname, os nossos camaradas morrem no lodaçal, pisam minas... - O homem que lhe falava rangia os dentes ao fazê-lo e não dava por isso. - Vi o rosto do meu melhor amigo ir pelos ares... Os meus dois outros melhores amigos desapareceram em combate ... e não posso... não posso voltar para casa e ficar sentado ... Tenho de voltar para os ajudar, pelo menos até alguém ser esperto bastante para nos tirar daquele inferno.

- Sim - concordou o outro homem com um aceno de cabeça, sabendo perfeitamente o significado daquelas palavras. - Não há espaço para nós lá. Agora, somos nós os cabeças de merda. Nem Charlie. Nem o presidente. Nós, somos nós os maus... os rapazes que morrem por eles. Mas a verdade é que ninguém se importa. Temos os traseiros pregados lá, e os tipos do alto não nos deixam fazer estragos a sério, pois receiam que os Russos ou os Chineses se chateiem. Assim, deixam que levemos um tiro nos tomates, no Vietname. Quer saber porque vou voltar? Para ajudar os meus camaradas até todos podermos regressar a casa-

Ele não tinha mulher nem filhos e apenas se preocupava com os amigos que tinha no exército.

No entanto, ela também os intrigava. E acabaram por lhe dirigir perguntas.

- E no seu caso? O que vai fazer para lá?

- Vou ver o que se passa realmente.

- Porquê? Em que é que pode interessar-lhe?

Paxton reflectiu longamente e não planeava contar a ninguém, mas era demasiado tarde e sabia que nunca mais veria aqueles rapazes. Meteu a mão por dentro da camisa e tirou do interior as chapas de identificação de Peter que trouxera com ela. Mostrou-as aos dois homens, que esboçaram um aceno de cabeça, pois sabiam o que significava.

- Morreu em Da Nang - explicou. - Quis saber o que se passava.

- É um lugar de doidos - redarguiram, com um novo aceno e, em seguida, o mais velho dos dois sorriu. - Que idade tem?

- Vinte e dois - respondeu, correspondendo ao sorriso e depois de uma breve hesitação. - Porquê?

- Sou dois anos mais velho e é esta a minha terceira ida. Garanto-lhe que vi coisas por lá que não desejaria que nenhuma irmãzinha minha alguma vez visse. Tem a certeza de que sabe o que vai fazer a Saigão? É muito longe de casa.

- Já sabia. - Na verdade, ainda não conseguia imaginar bem a situação. Despediu-se deles, regressou ao lugar e dormiu o resto da viagem, até Guam.

Aterraram em Guam às nove da manhã para eles e duas da manhã, hora local, no dia seguinte. Permaneceram uma hora a reabastecer o avião e depois continuaram rumo a Saigão. A chegada estava prevista para as cinco da manhã, hora local. E, durante o percurso, ela pensava, insistentemente que Peter fizera essa mesma viagem, há pouco mais de dois meses.

Pousaram no aeroporto de Tan Son Nhut, na principal base militar, à tabela pouco depois das cinco da manhã, e Paxton sentiu-se desapontada por não conseguir divisar a paisagem. Todos falavam do verde do Vietname. Em vez disso, apenas conseguiu avistar fogo-de-artifício quando desciam e interrogou-se sobre o que significava. O soldado que ia ao seu lado riu-se quando lhe perguntou se era feriado nacional.

- Sim. Acho que pode chamar-lhe assim. Eles chamam-lhe guerra. É a artilharia... e aquilo são projécteis luminosos disparados... oh... diria algures na proximidade de Biei, Hoa... Vai adorar isto por aqui. Temos fogo-de-artifício sempre que os nossos pássaros largam os ovos sobre Charlie.

Paxton sentiu-se irritada com a atitude dele; tratava com uma leve condescendência e parecia divertido. Era embaraçoso aperceber-se de que cometera um erro crasso.

Transportou a bagagem quando desceram, e os rapazes que lhe tinham falado pareciam esquecidos da sua presença. Tinham os seus próprios problemas com que se ocupar. E meteram-nos em camiões, praticamente assim que chegaram ao aeroporto.

Não tinha ninguém à espera dela no aeroporto e, quando pegou nas malas e se pôs à procura de um táxi, achou-se muito corajosa. Não falava uma palavra de Vietnamita e sentiu-se, subitamente, como se não tivesse um único amigo no mundo.

Havia uma fila de carros em mau estado à saída do terminal e viam-se soldados americanos por todo o lado. Aquela era a principal base militar de Saigão e, por alguns momentos, sentiu-se em segurança.

- Olá, boneca. Bem-vinda a Saigão! - soou uma voz, e ela virou-se para ver a quem se referiam, concluindo, aborrecida, que era ela o centro das atenções do negro com sotaque do interior do Sul.

- Obrigada! - replicou, acentuando o seu sotaque de Savannah.

- Luisiana? - interessou-se o negro e, desta vez, ela riu.

- Jórgia.

- Merda! - exclamou e prosseguiu caminho apressadamente.

O dia ainda não rompera, mas já havia muita gente desperta e ocupada. Fez sinal a um dos motoristas da fila de táxis. Era um Renault azul e amarelo, e o homem usava sandálias e calções, tinha um rosto magro e uma farta cabeleira preta.

Women's Army Corps: Corpo de Exército Feminino. (N. da T-)

É do Wac? - inquiriu, alto de mais.

Os barulhos ali pareciam redobrados. Até mesmo àquela hora da manhã, ouvia à distância vozes elevadas e buzinas. E pairava um cheiro acre, uma espécie de perfume feito de flores, especiarias e gasolina. Sentia o cheiro a combustível por todo o lado e, ao olhar em volta, teve a sensação de que havia uma nuvem de fumo por cima deles.

- Não, não sou do Wac - explicou, questionando-se sobre o interesse do homem.

- Do Wave?

- Não - elucidou, desejando somente meter as malas no carro, depois daquela viagem de mais de vinte horas. - Leve-me, por favor, ao Hotel Caravelle.

- Prostituta? - replicou o homem, finalmente impressionado, e Paxton não sabia se havia de rir, chorar ou dar-lhe uma simples resposta afirmativa.

- Não - respondeu num tom firme, enquanto arrumava as malas no carro. - Jornalista. - Já sabia, por intermédio de um pequeno dicionário, que era uma baochi - uma correspondente, em Vietnamita. Não se atreveu, porém, a tentar falar a língua desconhecida.

O motorista abanou a cabeça. Recusou compreender, ao mesmo tempo que se colocava atrás do volante e se virava para a observar, interrogando-se sobre quem ela era realmente.

Militar? - «Merda! Era óbvio que nunca mais chegaria a Saigão. »

- Jornal - voltou a tentar. E, desta vez, fez-se luz.

- Oh! Muito bom! - Quase lhe gritava e, ao deixarem a base, conservou a mão permanentemente na buzina. O ruído era quase ensurdecedor, mas, à volta deles e apesar da hora, parecia haver uma cacofonia de buzinas. - Quer comprar droga? - perguntou, alegremente, no caminho para Saigão.

Ali era tudo tão simples. «Prostituta? Quer comprar drogas?» Devia ter sido excitante para os jovens que tinha visto e nunca haviam saído de casa.

Wave: In . tegrante do corpo feminino da marinha denominado Wave

(Women Accepted for Volunteer Emergency Service). (N. da T.)

- Drogas, não. Hotel Caravelle. - Repetiu só para se certificar de que ele entendera. - Em Tu Do. - Era, segundo parecia, a rua principal ou, pelo menos, fora o que lhe dissera o homem encarregue dos correspondentes estrangeiros no Sun. E Ed Wilson insistira para que a alojassem lá, porque era um dos melhores da cidade e o mais limpo. A sede da CBS era nessa rua, e ele achava que Paxton estaria mais a salvo ali do que em alguns dos outros hotéis em Saigão.

- Um cigarro? - ofereceu o motorista e ela rezou para que não lhe oferecesse mais nada durante o percurso de seis quilómetros até à cidade. - Ruby Queen - acrescentou, identificando a marca favorita no Vietname.

- Não, obrigada. Não fumo - explicou, ao mesmo tempo que várias scooters e um Citroên antigo pareciam ultrapassá-los a rasar. O motorista respondeu pousando as duas mãos na buzina, à semelhança do que faziam os demais condutores. Recostou-se no banco e tentou respirar fundo, mas o cheiro dos escapes quase a sufocou.

À medida que avançavam rumo a Saigão, verificou que os prédios se tornavam mais bonitos e notava-se mesmo um certo toque parisiense ao aproximarem-se do centro de Saigão. Apesar de ser ainda muito cedo e do recolher obrigatório, havia muito movimento nas ruas. Algumas pessoas seguiam de bicicleta, outras de riquexó, e ouvia-se o som de vozes e de buzinas por todo o lado.

Vários edifícios estavam pintados de cores vivas e outros ostentavam a solenidade da pedra. Ao chegarem a Saigão, o motorista conduziu-a junto ao Palácio Presidencial e à Basílica de Nossa Senhora da Paz; seguiram pela Avenida Nguyen Hue orlada de árvores encantadoras e passaram pela Câmara Municipal. Ao deixarem ficar para trás o Edifício Salem na praça, avistou subitamente, a famosa Estátua dos Fuzileiros. E, nesse momento, Paxton começou a vislumbrar melhor onde se encontrava.

Sabia que naquela praça, no Edifício Éden, encontraria as instalações da Associated Press e da NBC. Minutos depois, identificou o Continental Palace, quando viraram para a TU Do e sabia, por intermédio do homem do Sun, que havia ali um simpático bar chamado Terrasse e os escritórios da revista Time.

Ao passarem junto da Assembleia Nacional, o motorista abrandou e virou-se para trás com um sorriso semidesdentado. Era impossível adivinhar-lhe a idade. Poderia ter entre vinte e cinco e sessenta anos.

- Quer ir ao Pink Nightclub no Hotel Catmat esta noite? Venho buscá-la para jantar.

Não, obrigada - recusou, optando por usar um tom firme. - Hotel Caravelle, por favor. Esta noite, tenho de trabalhar para o meu jornal. - Esforçou-se por parecer determinada e distante.

- Não prostituta? - insistiu, esperançado, e Paxton desejava intimamente que ele a levasse para o hotel e nunca mais viesse procurá-la.

E, subitamente, chegaram ao Caravelle e ela só queria sair, afastar-se dele, fazer o registo e deitar-se. Sentia-se exausta, mas arrebatada por estar ali. O motorista indicou-lhe a quantia a pagar e ela teve consciência de que a enganava, mas desta vez estava demasiado cansada para oferecer resistência.

Percorreu o átrio do Caravelle, transportando as malas, no momento em que o hotel começava a ganhar vida com a presença de algumas jovens vietnamitas, que limpavam o chão. Ainda era muito cedo, mas o Sol não tardaria a recortar-se no horizonte e o hotel fervilharia de gente. O átrio apresentava-se cheio de uniformes de patentes elevadas, visitantes do estrangeiro, na maioria da Europa e das belas raparigas vietnamitas, que avançavam ao seu encontro.

- Andrews - indicou à bonita recepcionista vestida com um ao dai branco, o trajo tradicional vietnamita constituído por calças e uma longa túnica justa ao corpo. Na sua maioria, esses fatos eram brancos, mas havia alguns estampados ou de cores vivas.

- Andrew? - repetiu a jovem, fitando momentaneamente Paxton com um olhar vago.

- Paxton Andrews. Do Morning Sun, em São Francisco, - Paxton estava demasiado cansada para se mostrar simpática ou paciente. Tudo o que queria era um duche e deitar-se. Até mesmo àquela hora da manhã o ar era asfixiante. Não estava preparada para o calor sufocante e as ventoinhas do tecto aparentemente em nada ajudavam, enquanto a recepcionista consultava o livro de registos e sacudia a cabeça.

- Mister Andrews ainda não está. É a mulher? A esposa?

«Merda», murmurou intimamente.

Não - explicou. - Sou Paxton Andrews.

Reparou em dois rapazes vietnamitas que a escutavam com um sorriso no momento em que dois homens se encontravam na recepção. Um deles tinha vindo no avião. O outro chegara da rua. Preparavam-se para começar o dia cedo e brindaram Paxton com um prolongado olhar apreciativo. Um era robusto, moreno e na casa dos trinta e tal, e o outro era bastante mais velho e denotava uma expressão preocupada. Reparou neles, mas não estava interessada em conversar ou saber quem eram. De momento, queria apenas o seu quarto, um duche e deitar-se. No entanto, a recepcionista não dava mostras de a compreender.

- Sou Paxton Andrews - repetiu.

- Mister Andrews? - retorquiu a jovem com uma risada e a própria Paxton viu-se forçada a rir. No espaço das duas horas que passara no Vietname, tinham-lhe chamado homem, boneca e prostituta. Era, sem dúvida, um começo interessante.

- Sim - voltou a explicar. - Sou Paxton Andrews. Tem um quarto para mim? - A jovem esboçou, por fim, um aceno de cabeça; e, enquanto os dois homens observavam disfarçadamente a cena, a recepcionista fez sinal a um miúdo que não deveria ter mais do que oito anos e entregou-lhe a chave de um quarto no terceiro andar, muito abaixo do famoso bar no último piso.

Paxton seguiu-o pelas escadas, e o rapazinho dava o seu melhor para levar o saco, enquanto ela se encarregava da mochila. Ao chegarem ao quarto, deu-lhe vinte e cinco piastras e ele esboçou um sorriso, fez uma vénia e desceu as escadas a correr. Era um miúdo muito engraçado, e tornava-se difícil acreditar que a tinham avisado relativamente àquelas crianças. Haviam-lhe dito que as crianças do Vietname eram ladrões, mendigos, vietcongues ou as três coisas. Mas este tinha um ar inocente, quando o viu precipitar-se para o átrio.

Entrou no quarto a tempo de ver um exército de baratas disparadas através da alcatifa. Soltou um gritinho e forçou-se, depois, a avançar, matar as que pudesse e a espreitar para a casa de banho. Estava limpa, era de mosaicos pretos e brancos e ainda parecia recordar a influência dos Franceses na cidade. Nada mudara muito desde que eles a tinham abandonado; pelo menos, o calor, a guerra e as baratas.

A única mudança residia nos aparelhos de ar condicionado em mau estado e agora permanentemente utilizados nos quartos. Sentou-se, grata por esta leve reminiscência doméstica. Tinha a roupa colada à pele devido à viagem, do aeroporto para o hotel, sob o calor tórrido e húmido que a deixara semelhante a um pano da louça.

Lavou a cara, pôs a água a correr na banheira e eram oito horas locais quando se enfiou na cama. Ao abrir as janelas, sentiu os fumos dos escapes e ouviu os barulhos, à medida que Saigão adquiria vida. O cheiro a gasolina parecia reinar em toda a cidade.

Já deitada, interrogou-se sobre como Peter se teria sentido ao chegar, mas provavelmente não vira muita coisa. Fora um dos rapazes metidos nos camiões e transportados, durante a noite, para lugares como Long Binh, ou Nha Trang, Pleíku, Da Nang, Vinh Long, Chu Lai, os lugares que ela tinha vindo visitar e com que agora sonhava.

Fechou os olhos, mas teve um sono agitado; havia demasiado no seu espírito, demasiado em que pensar, ver e descobrir. E, quando o Sol se erguia bem alto no céu de Saigão, estremeceu, abriu os olhos e espreguiçou-se. E, quando ergueu os olhos, sorriu ao descortinar um pássaro pousado no parapeito da janela, a chilrear.

- Bem-vinda ao Vietname. - Rolou lentamente na cama e, ao pronunciar as palavras, ouviu um som e sentiu uma presença no quarto. Sentou-se muito direita e tapou-se com um lençol ao avistar um homem alto, louro e elegante, que avançava ao seu encontro. Vestia uniforme militar mas sem nenhuma identificação e o uniforme não era do Exército americano.

- O que faz aqui? - inquiriu. Desejava gritar, mas não tinha a certeza se deveria fazê-lo, quando saiu da cama con, o lençol enrolado à volta do corpo.

- Na noite passada, deixou a chave na porta. Não o faria, se estivesse no seu lugar. - Observava quanto ela era bonita, mas nada no seu rosto o denotava. Um dos estafetas do hotel informara-o de que havia uma hóspede nova naquele quarto, «uma rapariga muito bonita», segundo as suas palavras.

E Nigel dera-lhe uma gorjeta de vinte piastras. Ouvira igualmente falar dela pela boca de dois dos seus colegas que a tinham visto de manhã cedo, na recepção. Nesse momento, entregou-lhe a chave por cima da cama com uma expressão solene.

- Ia deixá-la na mesa-de-cabeceira - retorquiu.

Paxton notou que ele tinha sotaque e hesitou, momentaneamente, em localizá-lo como inglês ou australiano.

- Eu... bom... - Corou violentamente e interrogou-se sobre se ele veria alguma coisa à transparência do lençol, enquanto se mantinha ali de pé. - Eu... Obrigada...

Ele sorriu, levemente divertido ante a sua perturbação.

- Não há problema. A propósito, chamo-me Nigel Aucliffe. United Press. Austrália. - Um brilhozinho nos olhos masculinos advertiu-a de que ele nada tinha de inocente.

- Paxton Andrews, do Morning Sun, em São Francisco - replicou, sem tentar, no entanto, apertar-lhe a mão, receosa de largar o lençol que segurava.

- Estou certo de que voltaremos a ver-nos. - Aquele duplo sentido da frase fê-la sentir-se ainda mais desconfortável e, depois de esboçar uma pequena vénia, saiu do quarto tão rapidamente como entrara.

Paxton sentou-se na cama, ainda embrulhada no lençol, com o coração a bater-lhe com força depois daquele encontro. Não ia, decididamente, viver uma experiência vulgar. E como podia ter sido tão estúpida a ponto de deixar a chave na porta, numa zona de guerra?

- E por falar em estupidez, céus! - murmurou para si. Desta vez fechou a porta do lado de dentro e olhou pela janela, na direcção da Tu Do. Semicerrando os olhos, quase parecia que se estava em Paris.

Tinha de se apresentar nas instalações da AP às duas da tarde, no Edifício Éden, na praça. Tomou banho e pôs um vestido leve de algodão azul-claro, que, dado o tempo, parecia mais apropriado do que as calças de ganga.

Em seguida, desceu rapidamente as escadas até ao restaurante, a fim de almoçar. Havia bastantes pessoas quando chegou, na sua maioria homens, vestidos de uniforme militar ou fardas semelhantes, outros de camisas de manga curta e duas mulheres vietnamitas com encantadores ao dais brancos, o trajo branco tradicional usado em cima de calças em balão, que pareciam tão largas e lhes moldavam, contudo, as formas graciosas.

De momento, Paxton era, aparentemente a única mulher ocidental na sala e, no extremo oposto, avistou Nigel Aucliffe, que ria de qualquer coisa, acompanhado por um estranho e os dois homens que tinha notado, de manhã cedo. Interrogou-se sobre se não estariam a rir-se dela. Mandou vir consommé e uma omoleta, sentindo-se extraordinariamente inexperiente e nova em tudo aquilo. O toque francês continuava a ser visível na decoração, na comida e na ementa.

Quando estava a acabar de comer a omoleta e a beber um café, tomando mentalmente algumas notas, Nigel Aucliffe e o seu grupo pararam junto à mesa.

- Mais uma vez... bom dia -, cumprimentou, e os olhos denotavam um brilho trocista, parecendo voltar a avaliá-la, enquanto os outros homens a observavam, intrigados pela sugestiva frase. Ele já lhes falara nela, dizendo-lhes que era tão «verde» como folhas de árvore na Primavera e tratava-se, sem dúvida, de alguém muito determinado. Supunha que o Vietname não demoraria a ensinar-lhe umas lições e essa ideia divertia-o. - A almoçar, segundo vejo - acrescentou con, uma expressão que parecia acariciá-la, o que aborreceu.

- Bom dia - correspondeu, num tom frio.

Ele conseguira, em certa medida, dar a sensação de que passara a noite com ela, mas a frieza com que se lhe dirigiu indicava precisamente o contrário.

Paxton fixou os outros três homens e, ao ver que ele não procedia às apresentações, estendeu a mão e apresentou-se si própria. O jovem mais novo e moreno que vira à chegada era Ralph Johnson, de Nova Iorque, da Associated Press; o indivíduo mais velho era Tom Hardgood de The Washington Post; e o terceiro era Jean-Pierre Biamet, de Le Figaro, de Paris.

Desde as sete da manhã que tinham estado ocupados com a cobertura de uma importante conferência de imprensa e haviam optado por um prolongado e preguiçoso almoço. Nigel e Jean-Pierre falavam em tirar folga o resto do dia, quando Nigel a viu e lhes contara a visão agradável que lhe oferecera, envolta no lençol da cama, ao acordá-la.

Os três homens pareciam intrigados com ela, e a maioria quase tinha idade para ser seu pai, um pensamento que teriam negado se alguém o mencionasse. Paxton levantou-se, disposta a ir embora, parecendo jovem, encantadora e escultural ao lado deles, e os quatro homens dificilmente conseguiram resistir a desejos famintos. Fez-se um estranho silêncio quando ela os fitou, consciente da observação a que a submetiam.

- O que está a fazer aqui? - inquiriu Johnson sem rodeios. Tal como os outros, também se sentia curioso a respeito dela e da sua actividade em Saigão, mas eles eram demasiado orgulhosos e arrogantes para formular a pergunta.

- O mesmo que qualquer outra pessoa, suponho. À procura de uma história. A cobertura da guerra. Ficarei seis meses para escrever para o Morning Sun, em São Francisco.

Johnson pareceu pregado ao chão. Era um bom jornal. E conhecera um outro correspondente que tinham enviado, durante uns tempos, no ano anterior. Surpreendia-o que tivessem mandado aquela jovem inexperiente, mas talvez houvesse um outro motivo.

- já alguma vez fez algo no género?

Paxton, abanou a cabeça, honestamente; por instantes, sob a capa de coragem, pareceu assustada... e estava realmente.

Não tinha a mínima ideia do que estava a fazer. Tinham--lhe indicado que se apresentasse na Associated Press e desempenhasse qualquer incumbência dada. E Ed Wilson dera-lhes instruções, específicas e pessoalmente, para que não a mandassem a nenhum sítio sozinha e a mantivessem longe da zona de combate.

- Que idade tem? - inquiriu Johnson de novo sem rodeios, e ela, por momentos, pensou na

hipótese de mentir, mas não o fez.

- Vinte e dois. Acabei a Berkeley. - Enquanto assinava a factura não mencionou que abandonara o curso, e atravessaram juntos o átrio. Em seguida, ele sorriu-lhe.

- Licenciei-me lá há dezasseis anos - redarguiu Johnson, fitando-a com uma expressão divertida. - E estava quase tão verde como você, quando comecei. Acagacei-me. The New York Times mandou-me para a Coreia. Posso, contudo, garantir-lhe que aprendi coisas que nunca teria aprendido se tivesse ficado sentado à secretária, em Nova Iorque.

E causou a surpresa geral ao estender-lhe a mão e apertando a dela.

- Boa sorte, miúda - desejou. - Como disse que se chamava?

- Paxton Andrews. - Todos lhe apertaram a mão e o grupo dispersou-se.

Nigel e Jean-Pierre tinham acabado por decidir não tirar a tarde de folga e iam, em vez disso, a Xuan Loc para fazer a cobertura de algumas manobras. E Tom Hardgood tinha uma entrevista particular com o general Abrams no quartel-general de MacVee em Tan Son Nhut, onde Paxton chegara na noite anterior.

- Vai à Associated Press? - perguntou Johnson. a Paxton, quase como uma reflexão tardia, no momento em que ela saía para a rua. A jovem respondeu com um aceno de concordância. - Mostro-lhe o caminho - acrescentou, voltando a sorrir-lhe. Os outros afastaram-se, prometendo que se veriam nessa noite, e Paxton pôs-se a caminhar ao seu lado.

As instalações da AP situavam-se no edifício que ela avistara na noite anterior, o Edifício Éden, na praça, do outro lado da Estátua do Fuzileiro, que parecia ser um ponto de referência geral em Saigão. E a AP ficava à esquina do edifício. Devia «orientar-se em Saigão» e comparecer no auditório do Serviço de Informação Americano, para aquilo que Ralph Johnson designou como «as tolices das cinco horas».

- Vejo que ou estão a poupá-la ou a pô-la na engorda. No meu primeiro dia em Seul mandaram-me, de imediato, para as linhas da frente e quase me abateram. Foi cá uma maneira de me familiarizarem com a guerra! Podiam ter sido um pouco mais simpáticos! - No entanto, ela sentiu-se um tanto preterida e interrogou-se sobre o que ele significaria com «pô-la na engorda».

- O que são «as tolices das cinco»?

- Uma série de propaganda. Dizem-nos tudo o que querem que escutemos sobre o decorrer da guerra. Perdemos uma colina, realmente não perdemos. Uma série de tipos foi morta, mas houve mais baixas no inimigo. Charlie capturou algum do nosso equipamento, mas era todo antigo, e assim... não teve importância. Contas que fazem com que as coisas pareçam um pouco melhor do que são, a treta habitual com que querem que se alimente o pessoal que ficou na pátria, para os convencer de que estão a ganhar,

- E estamos? - perguntou de chofre.

- O que acha? - retorquiu, friamente, enquanto O olhar transmitia a devida mensagem.

- É por isso que aqui estou. Quero saber a verdade.

- A verdade? - redarguiu, fitando-a cinicamente. - A verdade é que não há esperança. - Fora o que ela sempre suspeitara, o que Peter sempre suspeitara. Antes de o terem morto ali.

- Quando acha que vão admitir isso e mandar os nossos rapazes de regresso a casa? - inquiriu com um fervor inocente no olhar, e ele abanou a cabeça, desesperado.

- Essa, minha amiga, é a questão que vale um milhão de dólares. Temos aqui uma coisa chamada DMZ, que significa: «Não pisem os calos ao tio Ho», e cadáveres de rapazes que são despachados de barco, aos milhares. - Ao pronunciar as palavras, viu-a fazer uma careta e ficou aborrecido.

- Se a impressiona, o melhor que tem a fazer é ultrapassar a emoção rapidamente... ou regressar - prosseguiu. - Este lugar não é para fracos. - Interrogou-se sobre se sabiam o que estavam a fazer. Talvez ela fosse apenas a filha de alguém a brincar aos turistas. No entanto, algo lhe indicava que poderia haver uma outra razão. Ainda não tinha a certeza.

- Tenho um encontro com alguns tipos - rematou, fitando-a com uma interrogação no olhar. - Está interessada em conhecer algo do verdadeiro Vietname, ou está aqui somente para se divertir um bocado e garantir lá em casa que viu tudo?

A pergunta era honesta, e Paxton apreciou, pelo menos, a oportunidade de provar o que valia, ao aguentar o olhar, mostrando o seu profissionalismo.

- Quero ver a realidade.

Ele esboçou um aceno de concordância. No fundo sempre o suspeitara, pois apesar da elegância e do cabelo louro, não parecia uma boneca Donut. - Amanhã, vou levar uma equipa de filmagens até uma base de combate, próximo de Nha Trang. Quer vir? - Fitava-a com uma expressão dura, mas estava a dar-lhe uma oportunidade. Também ele outrora fora jovem, tinham frequentado a mesma universidade e, por qualquer motivo desconhecido, achava que a jovem o merecia.

- Adorava. - E, em seguida, acrescentou, sincera: - Obrigada.

- Tem botas?

- Mais ou menos. - Comprara as mais resistentes que encontrara na Eddle Bauer's.

- Refiro-me a botas a sério. Com protecções de aço nas solas para o caso de pisar um espigão de bambu. - Paxton tinha uma expressão desconcertada, mas ele sabia do que estava a falar. Desde 1965 que estava em Saigão. - Que número calça?

- Trinta e sete - informou, respeitosa. Se conseguisse algo aqui, achava que seria com a ajuda dele e sentia-se verdadeiramente grata.

- Arranjo-lhe um par.

- Obrigada. - E, mal pronunciara as palavras, ele desapareceu. Tinha um encontro com o subchefe de redacção, que franzia o sobrolho no preciso momento em que Ralph entrou.

- O que te aconteceu? Esta tarde, estás com um ar feliz troçou Ralph.

- Também estarias na minha situação. Esta semana recebi dez telexes de São Francisco sobre um «semente verde» qualquer, que deve ser sobrinho de alguém. Não querem que vá para o Norte. Não o querem fora de Saigão. Não querem que seja ferido. Não o querem em sítio nenhum, excepto a tomar chá no palácio.

- Descontrai-te. Talvez ele nem sequer apareça. Metade desses miúdos falam a torto e a direito em virem para aqui, mas nunca têm tomates para o fazer. A propósito, temos uma nova boneca donut no nosso meio.

- óptimo. Exactamente do que precisávamos. Tenta não despir as calças, Ralph. Preciso de ti vivo durante mais um mês. - Os dois homens trocaram um sorriso. Há anos que eram amigos e respeitavam-se muito um ao outro. - Quem é a rapariga?

- Esqueci-me. Da costa oeste. Frequentou a minha universidade. Parece esperta, mas assustada e verde. Ofereci-me para a levar a Nha Trang, amanhã.

- Para quem trabalha?

- Também me esqueci. Mas é fixe. E, se não for apanha um susto do caraças e mete-se no primeiro avião de volta a casa, amanhã.

- Tem cuidado. As coisas estão quentes por lá. Mas quero que dês uma olhada nisto. - Tratava-se de um documento «emprestado» que alguém lhe dera, indicando enormes pedidos de tropas para novos batalhões.

- Será que nunca mais vão ter juízo e começar a mandar os rapazes para casa, céus! - explodiu Ralph Johnson, parecendo desanimado ao ler o documento.

- Faz-nos interrogar, não é?

- Faz-me chorar - replicou, e passaram à análise de outras questões. Um relatório de acréscimo de acção no vale A Shau e uns relatórios idiotas sobre o «agente Orange»-

Falaram da viagem a Nha Trang no dia seguinte e, nessa altura, a rapariga já estava esquecida.

Nesse dia, Ralph Johnson parou para tomar chá nos subúrbios de Gia Dinh, por razões pessoais. Às cinco da tarde, estava de volta à cidade, foi buscar os recados à redacção e chegou apenas com dez minutos de atraso ao serviço informativo para ouvir as notícias das «tolices das cinco». Nada mudara na informação: quem fora morto onde, baixas espantosas dos vietcongues, estatísticas em que ninguém acreditava, e há muito deixara de acreditar, e um documento do inimigo a que todos tinham acesso.

Tom Hardgood estava presente e Jean-Pierre também, mas Nigel não. Jean-Pierre acenou ao avistar Paxton. Quando tudo acabou, dirigiu-se-lhe e achou que ela parecia cheia de calor, cansada e um pouco atordoada da chegada. Explicou-lhe que Nigel fora a Xuan Loc, mas ele decidira ficar em Saigão.

- Bom, mademoiselle - sorriu. - Qual a sua opinião?

Paxton esboçou um sorriso cansado. Tinha passado as duas últimas horas a explorar a cidade. Estivera um calor insuportável durante toda a tarde e ficara esmagada pelas vistas, os cheiros, os ruídos infindos, o som dos aviões e o fumo que fazia arder os olhos no bairro chinês. Tinha-se perdido várias vezes, alugara dois riquexós, apanhara boleia de pelo menos doze soldados e não conseguia entender-se com o dicionário vietnamita.

- Ainda não sei bem - respondeu honestamente com um sorriso cansado e interrogando-se sobre qual o objectivo daquelas sessões de esclarecimento das cinco horas. Pareciam tão perfeitamente orquestradas e tão artificiais. Mas, se se quisesse, tornava-se possível escrever sobre a guerra com base naquelas indicações. Sabia, porém, que não era esse o motivo por que viera.

- Posso garantir-lhe que todas estas coisas são ridículas- - Ainda tinha o uniforme vestido e parecia com calor e transpirado. Era repórter fotográfico, desde as quatro da manhã que estava fora e, depois do almoço com os outros, fizera a cobertura de uma história terrível.

Um grupo de crianças tinham sido mortas por uma bomba terrorista e tirara fotografias horríveis. Tentou explicar-lho, e a voz adquiriu um tom narrativo quase monótono. Não podia deixar-se arrastar pelas emoções. Era demasiado doloroso.

- Fiz uma fotografia incrível. De duas rapariguinhas mortas de mão dada - retorquiu num tom impassível. - O meu jornal vai ficar muito satisfeito. - Havia algo de fantasmagórico na presença deles ali, e todos o sabiam. Algo que invadia e destroçava o interior de cada um. E, no entanto, também sabiam que tinham de estar ali, independentemente dos motivos.

- Porque veio para cá? - perguntou num sussurro, ponderando no que ele dissera mas intrigada com todos eles.

- Porque queria saber o que tinha mudado. Queria saber porque é que os Americanos achavam que podiam ganhar e se o podiam, depois de nós termos falhado.

- E podem? - Parecia dirigir aquela pergunta a todos, mas queria conhecer a opinião das pessoas, pessoas que sabiam, pessoas que tinham, de facto, visto a realidade.

- Não. É impossível - garantiu, parecendo muito francês. - E julgo que agora o sabem, mas não querem admiti-lo ao seu povo. Receiam confessar o fracasso, declarar que a vitória é impossível e têm de regressar a casa. - Não é americano... não é um acto de orgulho... não é corajoso... Também nos levou muito tempo - rematou à guisa de explicação. .

Os Americanos continuavam no Vietname para não se desacreditarem, só que isso já acontecera. E, entretanto, perdiam os seus jovens diariamente. Frente ao Vietcongue, armadilhas, minas, atiradores e «fogo amigável», como no caso de Peter. E, estranhamente, agora que se encontrava no local, começara a sentir-se menos obcecada. Nesse dia mal pensara nele, pois estivera ocupada a compreender tudo, ver tudo e a descobrir Saigão. De certa maneira, era um alívio. Talvez agora, que estava Ah, a dor abrandasse, e um dia pudesse deixá-lo em descanso. Talvez tivesse feito bem em vir.

E, enquanto todas estas reflexões desfilavam pela sua cabeça, reparou que Jean-Pierre a observava a sorrir e sem saber no que ela estava a pensar.

- Este lugar é a sério. Teve muita coragem em vir. Porque o fez? - inquiriu.

- É uma longa história - explicou vagamente, olhando em volta. Nessa altura, Ralph já se afastara, bem como Tom Hardgood, e Jean-Pierre convidou-a para tomar uma bebida na esplanada do Hotel Continental Palace.

- É um lugar espantoso. O verdadeiro Saigão. Tem mesmo de ver.

- Obrigada - agradeceu timidamente e comovida ante a atitude de todos.

Embora soubesse que Nigel a encarava com uma certa condescendência, Ralph pelo menos parecia disposto a dar-lhe uma oportunidade e uma ajuda, e Jean-Pierre denotava muita simpatia. Reparou que ele usava aliança de casado, mas o convite parecia mais platónico do que sexual, e estava certa. Quando já se encontravam na esplanada, contou-lhe tudo sobre a mulher, um manequim de sucesso em Paris.

- Conheci-a há dez anos quando estava a fazer fotografia de moda e, em seguida, deixei-me fascinar por isto, a reportagem fotográfica. Ela acha-me louco. Encontra-se comigo uma vez por mês, em Hong Kong, o que mantém a minha sanidade mental. Acho que seria incapaz de ficar aqui, se não fosse isso. Quanto tempo está a planear ficar? - perguntou casualmente.

- Seis meses - respondeu, cheia de coragem e parecendo muito jovem.

- Tem namorado aqui? No exército? - sorriu Jean-Pierre. - Ela sacudiu a cabeça, mas era o caso de algumas mulheres. Conhecia muitas enfermeiras civis, que tinham vindo porque os namorados haviam sido enviados para Saigão.

Contudo, mais cedo ou mais tarde, todas acabavam por o lamentar. O lugar destroçava o coração, os namorados eram feridos ou mortos, ou enviados de volta aos Estados Unidos, e as raparigas ficavam a tratar das crianças mutiladas- Algumas sentiam-se incapazes de partir, outras faziam, mas nada voltava a ser o que era.

- Quando se esteve aqui, nunca mais se esquece - pronunciou num tom entendido. Ela esboçou um aceno de concordância, disposta a arriscar, ao mesmo tempo que olhava em volta, surpreendida.

Tinham-se sentado a uma mesa da esplanada do Hotel Continental Palace e havia mendigos mutilados por todo o lado, rastejando como insectos por entre as mesas. De início, não compreendeu o que estava a passar-se. Julgou que andavam à procura de qualquer coisa e, em seguida, um deles ergueu, subitamente, o rosto na sua direcção, com metade da cara desfeita, sem um olho, nem os braços; soltou um gemido e ela quase desmaiou.

Jean-Pierre afastou-o e Paxton sentiu-se mortificada, enquanto jovens engraxadores, prostitutas, vendedores de droga e de vários artigos os abordavam. Por todo o lado, havia o cheiro a flores, a combustível, as vozes, as buzinas, os gritos, os carros, as bicicletas, a gente. Assemelhava-se a um circo.

- Lamento - replicou num tom de desculpa pela sua fraqueza ao ser confrontada com o mendigo sem rosto.

- Vai ter de se acostumar. Há muito do género por estas bandas. Em Saigão, pode fingir-se por algum tempo que nada está a acontecer e, um dia, uma bomba explode, um dos nossos amigos é ferido ou vêem-se crianças cobertas de sangue na rua, chorando pelas mães, estendidas na nossa frente, mortas por uma bomba dos vietcongues. Não é possível fugir eternamente. E no Norte é pior. Muito pior. Ah, vê-se realmente a guerra. - Fitou-a, cuidadosamente, por cima dos copos, curioso a respeito daquela jovem, que podia ser sua filha. - Tem a certeza de que quer estar aqui?

- Sim - anuiu calmamente e segura de si, embora lhe apetecesse chorar ao ver os mendigos e as crianças estropiadas. No entanto, ainda só chegara há algumas horas. Catorze, Para ser exacta.

- Porquê? - inquiriu, sem rodeios.

Resolveu ser honesta com ele, como o fora com o jovem do avião.

- Alguém que amava, morreu aqui. Queria ver o local. Queria compreender porque é que ele morreu. Vir até cá e contar a verdade sobre a guerra por intermédio do meu jornal.

- É muito jovem e idealista - sorriu-lhe ele, tristemente. - Ninguém vai interessar-se e, quando chorar no escuro, ninguém a escutará. Quer mandar uma mensagem daqui... mas a quem? Para o seu amigo, é tarde de mais. E para os outros? Alguns virão para cá, se assim tiver de ser, alguns viverão, outros morrerão. Nada do que possa fazer mudará a situação. - Dava uma pincelada de desespero a todo o quadro, mas Paxton não acreditou nas palavras.

- Então, porque está aqui, Jean-Pierre? - Fitou-o bem fundo nos olhos, e ele interrogou-se sobre se conseguiria dormir com aquela jovem. Sabia que Nigel a desejava. Ralph tinha France e o miúdo... e ele tinha, indubitavelmente, a mulher, em Paris. Ela estava, no entanto, muito longe, e aquela rapariga era tão fresca, tão pura, tão cheia de ideais e ao mesmo tempo forte e segura. Sorriu para si mesmo; Paxton quis saber porquê e ele respondeu com uma gargalhada:

- Acho que me recorda... a Joana d'Arc. Ela acreditava nas mesmas coisas que você. A verdade, o poder da espada no nome de Deus, e a liberdade.

- Parece-me bastante sensato - sorriu Paxton. - Mas fugiu à minha pergunta. - Afinal, era uma jornalista e começava a «cheirar» o lugar e as pessoas que o habitavam.

- Quanto à minha presença aqui? Não sei. - Encolheu os ombros, parecendo e soando muito gaulês. - Quis ver como era e vim ao serviço de Le Figaro. E, depois, fui ficando porque este sítio me intriga. Queria «percebê-lo»... e gosto dele. É um lugar pecaminoso, se se quiser - prosseguiu, sorrindo. - Gosto dos meus amigos e talvez... - Encolheu novamente os ombros. - Talvez, como todos os homens, goste do perigo. Não deixe que os homens lhe mintam, Paxton. Todos nós gostamos de brincar com armas, fingir que temos um inimigo, conquistar um monte a Um amigo, ou uma casa, ou uma montanha... ou um pais. Gostamos disso. .. para nós faz sentido... até nos matar.

Havia muito de verdade naquele discurso e, instintivamente, ela sabia-o.

- Vale a pena morrer por isso?

- Não sei - redarguiu com um encolher de ombros e esboçando um sorriso triste. - Pergunte aos homens que morreram... o que lhe dirão?

Acho que me responderiam que não valia a pena retorquiu filosoficamente, mas ele discordou.

- Fala assim porque é mulher. Talvez, aos olhos deles, tivesse valido a pena. - Ele adorava a discussão, a permuta, a filosofia, e era uma faceta que agradava a Paxton. - Mas, na perspectiva feminina, nunca vale. Os homens que morrem são os seus filhos, amantes, os seus maridos. Uma mulher só pode perder na guerra, jamais ganhar, e nunca a acha excitante. Os rostos das mulheres que fotografo apresentam-se sempre pejados de dor, quando seguram nos bebés mortos, homens mortos, crianças mortas. Pouco lhes importa se forem elas a morrer. Têm muito mais coragem do que os homens. Não conseguem, todavia, suportar a perda dos seus entes queridos. E você? - interessou-se, utilizando um tom mais meigo. - O homem que perdeu? Era um amante ou um amigo? - Sentia-se curioso a respeito dela.

- As duas coisas - retorquiu, sentindo uma calma que há muito a abandonara. - íamos casar. Estávamos juntos há... há quatro anos... e devia ter-me casado com ele. - Desviou os olhos, ainda atormentada pela culpa. - Devia... mas não o fiz. - Expressava-se num tom muito suave, e ele tocou-lhe na mão.

- Se não o fez, é porque não estava predestinado. A minha primeira mulher morreu num acidente. Num avião em que eu deveria acompanhá-la. Perdi o avião. Ela foi. Morreu em Espanha. E senti-me culpado para sempre. Ela queria filhos, eu nunca quis. Depois, pensei que, se a tivesse deixado ter uma criança, ainda me restaria uma parte dela. Não estava, porém, escrito que assim fosse - concluiu, encolhendo os ombros.

- E agora tem filhos? - inquiriu Paxton, sem erguer a voz.

- Só casámos há dois anos, e a minha mulher tem vinte e oito - respondeu com um abanar de cabeça e um sorriso triste. - Quer acabar a carreira como modelo, antes de termos filhos.

«E lamentariam, se acontecesse alguma coisa? interrogou-se Paxton. «A Gabby estaria certa ao optar por uma vida simples de casada e os seus bonitos filhos? Seria louca por estar ali? E Jean-Pierre teria razão ao afirmar que o casamento dela com Peter não estava predestinado? Iria, pelo contrário, sentir-se eternamente culpada?»

- Quantos anos tem, Paxton? - perguntou o francês, sentindo-se mais atraído por ela a cada gole de Pernod. Mudou, casualmente, para uísque e Paxton mudou, casualmente, para água.

- Vinte e dois - replicou, e ele sorriu.

- Tenho exactamente o dobro da sua idade - prosseguiu, sem que, aparentemente, se importasse. - Acho que posso garantir com absoluta certeza que é a mais jovem jornalista, aqui em Saigão. E também a mais bonita - rematou, erguendo o copo.

- Ainda não me viu de manhã - replicou em tom de conversa, e uma voz nas suas costas apanhou-a de surpresa.

- Mas eu sim... - Girou na cadeira e deparou com Nigel. - Diria que é muito bonita de manhã. Porquê? É um assunto sério?

- Não propriamente - sorriu Paxton, aliviada por ele se lhes ter juntado. Nessa altura, Jean-Pierre já bebera um pouco a mais e tinha a sensação de que começaria a fazer avanços depois do uísque seguinte. A chegada de Nigel simplificou tudo. - julguei que tinha ido a Xuan Loc.

- Resolvi ir amanhã. - Na verdade, encontrara uma prostituta atraente e adiara a viagem para o dia seguinte. - Ainda não comeram? Espero que não. Morro de fome e não quero comer sozinho.

- Não, não comemos - adiantou-se Jean-Pierre, mas eram nove horas e Paxton ainda não se adaptara à diferença de horário. - Onde queres comer?

_ Não sei. Que tal uma coisa rápida em qualquer sítio e depois irmos dançar ao Pink Nightclub? - Nigel também estava de olho em Paxton, e a prostituta só lhe oferecera conforto temporário. Paxton, porém, olhou para o relógio. Tinha de se levantar às quatro da manhã.

- Acho que não vou. O Ralph Johnson prometeu ir buscar-me às cinco da manhã.

- Qual é a ideia? Nigel parecia aborrecido, e Jean-Pierre começava a ficar demasiado bêbedo para se importar. E só faltava uma semana para se encontrar com a mulher em Hong Kong. Além disso, tinha mais do que tempo para seduzir Paxton.

- Vamos a Nha Trang com uma equipa de filmagens explicou Paxton.

- Está quente por lá - retorquiu Nigel com um franzir de sobrolho e, depois, recordou-se de como ela era verde.

E não me refiro apenas ao tempo. Há montes de Victor Charlie nas redondezas. Tenha cuidado com o seu bonito traseiro. Porque, se bem conheço o Johnson, ele não se preocupará com isso. Conseguirá a história nem que o preço seja a vida. Foi ferido duas vezes e acho que está aqui para ganhar um Pulitzer, embora não o confesse. - Paxton sorriu ante a óbvia rivalidade existente entre ambos.

- Estarei atenta.

- Voltam amanhã? - Nigel parecia intrigado com ela; Paxton era, de facto, uma belíssima jovem. Não estava, contudo, interessada nele nem em nenhum dos outros. O motivo que a trouxera a Saigão era bem diferente. Viera para aprender o que pudesse e escrever boas reportagens para o jornal. No entanto, havia montes de homens por aqueles lados, se fosse esse o seu objectivo.

- Ignoro quando voltamos - respondeu à pergunta de Nigel. - O Ralph não me informou. Não teria dito qualquer coisa, se não voltássemos?

- Não necessariamente - riu Nigel.

Levantaram-se todos, e o movimento atraiu os mendigos na sua direcção. Nigel e Jean-Pierre afastaram-nos; e uma criança tocou profundamente o coração de Paxton, uma menina sem pernas, que o irmão mais velho puxava num carrinho. Paxton desviou os olhos, incapaz de continuar a observar a cena. Era impossível mudar as coisas para eles, acabar com a guerra, devolver-lhes os membros.

- Devia escrever sobre os quakers - sugeriu Jean-Pierre. - O Comité Americano de Solidariedade tem um centro fabuloso. Colocam próteses em todas estas crianças. Tirei umas fotografias fantásticas. Fazem um trabalho realmente incrível.

- Hei-de verificar. Obrigada.

Dirigiu um sorriso a ambos, agradeceu-lhes a bebida e deixaram-na no hotel antes de irem beber «à grande e à Francesa» para outro bar. Tinham decidido adiar o jantar por algum tempo e continuar a beber, já que ela não lhes faria companhia.

Quando regressou ao hotel, Paxton avistou pares muito bem vestidos que iam jantar ao restaurante do último piso. Estava, contudo, demasiado cansada para pensar- sequer em comida. Entrou no quarto, deitou-se na cama e adormeceu mal ajustou o despertador e sem mesmo se despir.

Quando o despertador tocou, teve a sensação de que só tinham passado uns momentos. Era um estranho zunido; estava a sonhar que havia insectos a persegui-la, depois abelhas, que tentava fugir de riquexó e o condutor não compreendia para onde ela se dirigia. O ruído monótono prosseguiu e, por fim, abriu um olho e passeou a vista pelo quarto de hotel.

Ainda estava escuro. Tomou banho, lavou a cabeça e enfiou o fato-macaco que trouxera para ocasiões do género. Era de caqui verde; calçou igualmente as botas, na eventualidade de Ralph não lhe ter arranjado as que prometera.

Desceu às cinco horas em ponto, e o átrio estava deserto. No entanto, as ruas já adquiriam vida, cheias de vendedores, bicicletas e carros, de pessoas que regressavam a casa, iam para o trabalho ou qualquer outro lado. Avistou mulheres com os seus pontiagudos chapéus non la e os graciosos ao dais.

Saiu para o exterior e entrou-lhe pelas narinas o intenso aroma a fruta e flores, o cheiro a gasolina e a nuvem de fumo que parecia pairar sobre a cidade. Ouviu passos mesmo atrás dela, virou-se e avistou Ralph que descia os degraus do hotel, de uniforme, capacete e botas de combate. Tinha um pesado colete vestido e trazia outro. Quando Paxton se lhe juntou, ele estendeu-lho com as prometidas botas.

Conseguiu as botas. Obrigada - agradeceu, surpreendida.

Não foram problema - retorquiu.

Estava, realmente, a falar verdade. Comprara-as no mercado negro onde se podia comprar todos os artigos roubados, desde tampões a nylon e a equipamento militar.

- Também trouxe o casaco de fogo antiaéreo - prosseguiu. - Não é má ideia, se conseguir vesti-lo. Deu-lhe também um capacete e ajudou-a a subir para o camião que os levaria até ao destino.

Levavam um motorista do exército, e Ralph tinha uma equipa de quatro elementos composta por dois cameramen, um operador de som e um assistente. Apresentou-a, e todos eles pareciam militares. Tinham roupa de camuflagem, botas e capacetes. O operador de som olhou em volta e soltou uma risada nervosa, enquanto o assistente desrolhava um termo enorme de café a ferver.

- Merda! Se os vietcongues nos apanharem pelo caminho, vão julgar-se na posse de um camião cheio de tropa. - Fitou Paxton, que tinha um equipamento semelhante.

Traz sapatos de salto alto na mala?

- Sou alta de mais. Nunca os uso.

- Eram para mim - replicou.

Todos riram e observaram o nascer do Sol, enquanto saíam de Saigão. Estava uma bela manhã de Verão. Corria o final de junho e Paxton apercebeu-se, subitamente, do que levava as pessoas a falarem da beleza do país. Ao deixarem a cidade, a paisagem era exuberante e verde e havia uma delicadeza e suavidade em tudo, recordando-lhe os antigos biombos de seda. Em seguida, avistavam-se, a espaços, crateras de bombas, ou crianças de muletas à beira da estrada.

O grupo conservava-se silencioso durante a viagem e Paxton sentia-se maravilhada com toda aquela beleza, a terra vermelha e o luxuriante verde. Manteve-se atenta ao seguirem para Norte e, por fim, Ralph Johnson inclinou-se por cima do banco e ofereceu-lhe donuts.

- Bonito, não é?

- Começo finalmente a entender o que ouvi dizer. Saigão é muito diferente. - Havia sido bonita, outrora, durante a presença dos Franceses. Agora, era suja, barulhenta, corrupta, cheia de prostitutas e miudagem suja. possuía tuna beleza natural que Paxton nunca vira até então e a emocionava profundamente. No entanto, até mesmo ali, o país apresentava--se destroçado pela guerra.

- Estava aqui quando incendiaram Ben Suc, há um ano e meio... Era um sítio espantoso. Foi um crime.

- porque o fizeram?

- Para afugentar os vietcongues, cortar-lhes as provisões e os esconderijos. Na maioria das vezes, são incapazes de distinguir os bons dos maus. Portanto, incendiaram tudo e transformaram o local num parque de estacionamento. Afirmam que realojaram toda a gente, mas é impossível substituir um lugar assim. Era encantador e antigo e mudaram toda a gente para casas préfabricadas. - Fora assim que conhecera France, mas não referiu o assunto. Ainda não conhecia Paxton suficientemente bem. - Que tal ontem? -interessou-se-

- Tudo bem. Andei a meter o nariz por Saigão e passei o tempo a perder-me - respondeu com um sorriso e decidindo soltar o cabelo. - As «tolices das cinco» são uma treta não é verdade? Para que servem?

- Propaganda para o nosso lado.

- Com que finalidade? - retorquiu, com uma expressão aborrecida. Tinha vindo ali em busca da verdade e não para que lhe mentissem. Enquanto eles falavam, tirou o capacete e prendeu o rabo-de-cavalo numa banana. Se já estava quente de mais para se ter cabelo, o que dizer de o usar pendurado sob o capacete?

- Dá-nos tema para escrever quando nos falta, o que raramente acontece - riu Ralph. - Ontem, os meus colegas da AP estavam doidos - prosseguiu, ainda com um sorriso. - O sobrinho de qualquer tipo era, segundo se supõe, esperado cá, e todos tinham instruções para o manter longe de sarilhos.

- O que vinha fazer? - interessou-se Paxton, divertida.

- Ignoro. De visita, presumo. Não deve ser muito esperto. O Vietname é um bom lugar para se ficar à distância.

- Isso significa que também sou estúpida? - inquiriu, fitando-o sem desviar o olhar, enquanto os outros tagarelavam. e comiam donuts.

- Talvez. - Era honesto com ela e sempre o seria. - Acho-a, contudo, diferente. Dou-lhe a minha opinião quando chegarmos ao fim do dia de hoje, mas penso que é uma daquelas pessoas loucas que põem o jornalismo acima de tudo, que têm de conhecer a verdade, mesmo que tal implique a Morte.

- Obrigada - limitou-se a redarguir, depois do que colocou novamente o capacete e acabou de beber o café.

Fizeram uma breve paragem em Ham Tam e seguiram rapidamente para Plian Rang e Cam Ranh-, onde ouviram fogo à distância. Assemelhava-se a uma tempestade descendo das montanhas.

O motorista do camião mantinha-se em contacto permanente pela rádio com a base em Nha Trang e avisara-os antes de chegarem ali que prosseguiriam para o interior. Dirigiam-se a uma base que se encontrava sob um pesado ataque e aproximar-se-iam pela retaguarda. Achavam seguro, pois a base estava bem protegida e equipada, mas havia suportado um fogo intenso durante toda a semana e era esta precisamente a reportagem desejada por Ralph. Levara a semana para conseguir permissão de vir até ali.

- O radiotelegrafista informa-me de que as coisas têm estado bastante quentes - explicou o motorista e, nesta altura, Paxton já sabia que «quente» significava sempre vietcongues e nunca o tempo.

O tempo era indescritível e por vezes interrogava-se como conseguiria respirar ao chegarem lá. Quando se aproximaram da base, indicaram-lhes que se baixassem nos assentos, mantivessem os casacos de fogo antiaéreo e pusessem os capacetes. Eram sete da manhã e mandaram-nos parar cinco quilómetros antes de chegarem à remota base de artilharia para onde se dirigiam.

- Tenho jornalistas comigo - explicou o condutor, quando foi detido por sentinelas da retaguarda armadas até aos dentes. Ostentavam M-16 de modelo standard que Paxton já sabia, por intermédio de Ralph, serem inferiores às AK-47 soviéticas utilizadas pelos vietcongues, pois estas e111perravam e as deles não.

As sentinelas examinaram o interior do camião e Paxton reconheceu à distância o som de uma metralhadora M-60  de um morteiro de 1 milímetros. Tentara ler sobre tudo, mas era diferente ver tudo ao vivo e mais do que assustador também. Sentiu o coração bater-lhe com força no peito, sobretudo quando a fitaram e continuaram a interrogar o condutor.

E a Delta Delta?

o mesmo - replicou o homem. - Também é jornalista, não é? - inquiriu com um sorriso aberto para Paxton.

- Exacto. Ao serviço do Morning Sun, em São Francisco - anuiu, começando à procura dos documentos, mas os homens recusaram-nos com um gesto.

Ralph e o motorista entreolharam-se com um sorriso e ela interrogou-se sobre o que acabara de passar-se entre eles.

- Que conversa foi aquela? - quis saber. - Aquela coisa do Delta Delta?

- Vai ouvir a expressão muitas vezes, enquanto estiver aqui - redarguiu Ralph com um arremedo de sorriso.

- Também lhe chamavam assim no início? - perguntou inocentemente, e ele soltou uma gargalhada.

- Pouco provável, minha querida. Acho melhor informá-la sobre o significado. Delta Delta são os sinais de rádio para D-D. Donut Dollie. - Todos os que iam no camião riram, e Paxton sentiu vontade de bater no chão do camião com as botas.

- Merda! Não percorri todo este caminho para fazer propaganda dos malditos donuts!

- Diga-lhes isso, então! - redarguiu o motorista com uma gargalhada e a própria Paxton teve de rir. Era de perder as estribeiras ao ver-se tratada como qualquer rainha de beleza que viera ver se alguém assobiaria.

. Todos sabiam que as Donuts Dollies (Boneca Donut - N. da T.) eram mulheres simpáticas que faziam tudo para levantar o moral, mas não era elogioso para Paxton.

- Acabará por se habituar - riu Ralph, e ela ameaçou bater-lhe.

No entanto, minutos depois, mandaram-nos deitar, quando o fogo da artilharia começou a zunir por cima das suas cabeças. Todos desceram desajeitadamente do camião ao receberem instruções, e os cameramen e o operador de som começaram a montar o equipamento. Ralph indicou--lhes o que pretendia e, após conferenciar com alguns do, militares, o condutor explicou a Ralph quais os acessos mais seguros para o acampamento.

Nada parecia, contudo, suficientemente claro, e um jovem soldado negro que se precipitou ao encontro deles indicou-lhes o que já sabiam, que estava «quente, quente, quente, e, ao pronunciar as palavras, fitou Paxton com intensidade.

- De onde é? - sussurrou-lhe quando se deitaram no chão próximo do camião, e Ralph confirmou-lhe que ela ouvira, de facto, morteiros à distância.

O Exército vietnamita do Sul, o ARVN, apoiava os movimentos das tropas americanas. No entanto, os americanos optavam por confiar nos seus próprios meios.

Na sua opinião, os seus elementos eram melhores e combatiam o NVA, o Exército vietnamita do Norte, contrariamente aos vietcongues, que não passavam de agricultores, embora corajosos.

Sou de Savannah respondeu, tentando aparentar calma, enquanto se dirigia ao jovem negro.

- Ah, sim? Eu também - retorquiu, indicando-lhe uma morada que não era muito elucidativa e ela sorriu, lembrando-se, subitamente, de Queenie.

- Há quanto tempo está aqui? - interessou-se.

- No Vietname? - redarguiu, sorrindo. - Faltam-me duas semanas. Tenho a DEROS' ( Date eligible for return from overseas: Data qualificada de regres, de além-mar - N. da T.) diante dos olhos. Se conseguir safar-me nas próximas duas semanas, apanho o pássaro da liberdade para a Jórgia.

Se lhe faltavam, portanto, duas semanas, significava que estava ali há 380 dias, 375 mais do que Peter vivera, quando ali chegara.

- Como se chama? - perguntou. - A jovem era bonita e apenas desejava falar-lhe e tocar-lhe. Tinha uma namorada à espera, mas tal não o impedia de querer falar com Paxton.

- Paxton.

_ Sim? - Parecia divertido e Ralph olhou-os por cima do ombro.

- Não se levante - ordenou-lhe num tom firme.

Em seguida, levaram-nos a todos até à base, que oferecia uma vista inacreditável para um pitoresco e pequeno vale, verdejante, lindíssimo e fumegante devido à permanente troca de fogo. Aviões sobrevoavam a baixa altura e outros aviões largavam bombas, à distância. Os homens chamavam-lhes «pássaros a pôr ovos». O comandante da base veio ao encontro de Ralph e da sua equipa, e Ralph deu-se ao cuidado de o apresentar a Paxton.

- São Francisco, hem? - replicou, mascando um charuto. - Bela cidade. Eu e a minha mulher gostámos dela.

Toda a gente gostava de um lugar. São Francisco, Savannah, Norte, Sul, Nova Jérsia, independentemente de onde se era natural. Estava-se vivo, era-se novo ali e eles estavam tão desesperados por regressar a casa e manterem-se vivos que tocar em algo de onde quer que fosse significava tudo aos seus olhos.

- Isto por aqui tem estado muito quente - explicou. - O NVA está determinado a avançar e não vamos deixá-los. Defendemos esta terra com bastante firmeza no ano passado e, em seguida, perdemo-la. Agora que a temos de volta, não tencionamos largá-la.

Paxton não conseguiu, todavia, deixar de se interrogar sobre quantos homens custara. A conquista de um monte, de um vale, de uma aldeia significava a perda de tantas vidas. Tantos rapazes mortos e tantos feridos. Ele explicou novamente que estavam a sair-se bastante bem. Até agora tinham perdido apenas cinco rapazes e só umas dúzias haviam ficado feridos.

«Estaria certo?», interrogou-se. «Apenas cinco rapazes» era óptimo... Mas que cinco? Como se escolhiam? Como os escolhia Deus? E porque é que escolhera Peter?»

- Querem observar um pouco mais de perto? - convido, ele- - Estamos a desmontar algumas bombas. Mantenham-se nas zonas indicadas pelos meus rapazes.

Ralph estava satisfeito. Desejava uma melhor visão para a câmara dos movimentos na frente. Ficaram pela tarde, apenas voltando às três horas para comer comida de lata antes de regressarem ao calor da acção. Até então, ninguém fora ferido. O dia revelara-se bastante calmo. Limitavam-se a manter firmemente a posição e de vez em quando afirmavam ter visto Charlie. Não era, contudo, verdade. Nada se avistava à excepção do fumo, disparos e dos arbustos.

- Então, miúda, que tal? Agora, está mesmo metida nisto - comentou Ralph, sentando-se, por minutos, ao lado dela para fumar um cigarro e acabar de beber um café.

- Como se sentiu quando o Times o mandou para a Coreia?

Cagado de medo - respondeu com um esgar.

É mais ou menos isso - confessou com um sorriso nervoso. Desde aquela manhã que sentia um nó no estômago.

- Comeu? - perguntou, e a jovem sacudiu a cabeça. - Devia fazê-lo. Ajuda. Tem de continuar a comer e a beber independentemente do que estiver a acontecer, ou pode tornar-se descuidada e fazer algo estúpido. Mantenha uma mente lúcida. É o melhor conselho que posso dar-lhe num cenário de guerra.

Paxton sentiu-se grata. Ele era um indivíduo simpático e um repórter espantoso. Era fácil perceber porque é que os outros tinham ciúmes. Era bom, muito bom mesmo e estava sempre de olho nos acontecimentos. - Obrigada pelas botas - agradeceu-lhe, e ele deu-lhe uma palmadinha no ombro.

- Não tire o capacete, mantenha a cabeça baixa e tudo correrá bem. - Com estas palavras, voltou a afastar-se, subindo rapidamente por entre as árvores que se erguiam por detrás de alguns soldados, enquanto ela se interrogava sobre se o admirava ou considerava louco.

E, nesse mesmo momento, ouviu-se uma explosão enorme. Os cameramen precipitaram-se para o local com o operador de som atrás deles e, sem pensar em mais nada, também Paxton se viu a correr. Quando lá chegou, havia homens estendidos por todo o lado e Ralph agarrava um deles, que tinha o peito aberto.

- Precisamos de médicos - replicou num tom calmo mas firme.

Alguém correu a chamar um e apareceu, subitamente, operador de rádio no meio deles.

- Tenho seis baixas - anunciou ao telefone e, no próprio momento em que ele pronunciava as palavras, Paxton sentiu que um lhe tocava.

Era um jovem que ficara sem um braço e havia sangue por todo o lado.

- Tenho sede - foram as suas únicas palavras, erguendo o rosto de criança para ela.

Paxton tinha um cantil ao lado, mas ignorava se devia satisfazer o pedido. «E se ele não pudesse beber? E se o facto de lhe dar algo o matasse? ... » Chegaram dois médicos e um padre de capacete que prestava serviço na unidade; começaram a fazer a ronda pelos rapazes que haviam sido feridos. No entanto, o rapaz que Ralph agarrava nos braços já tinha morrido e ele estava a ajudá-los com outro.

- Tenho sede. - Ninguém se aproximara ainda deste rapaz e ele fitava-a, angustiado. - Como te chamas?

_ Paxxie. - Acariciava-lhe o rosto e mantinha-lhe a cabeça apoiada no regaço, enquanto todo aquele sangue lhe escorria pelas pernas e ela tentava fingir que não o sentia. - Chamo-me Paxxie - repetiu meigamente, afastando-lhe o cabelo do rosto e sustendo o impulso de se inclinar e beijar-lhe as faces, enquanto chorava por ele. Tentou sorrir através das lágrimas, mas o jovem não a via.

- E tu como te chamas? - perguntou para que ele não deixasse de falar.

- Joe - respondeu num tom sumido, devido à perda de sangue e ao choque, e começou a fechar os olhos, amparado a ela.

- Vá lá, Joe... Acorda... Não podes dormir, agora... Isso mesmo... Abre os olhos. - Sorriu-lhe, enquanto à volta dela reinava um pandemónio.

Estavam a tentar levar os rapazes feridos para uma clareira. O padre ajudava-os, Ralph e os cameramen também, e um dos médicos carregava no peito de um deles; minutos depois, ouviu o motor de um helicóptero sobre as suas cabeças. Só que dos arbustos começaram a disparar contra ele e teve de se afastar no preciso momento em que o médico que pressionava o peito do jovem gritava:

- Merda! - Perdera-o.

- De onde és, Joe?

- Miami. - Era um mero sussurro.

Miami. óptimo. - Tinha lágrimas nos olhos e um nó na garganta, sentia-se agoniada e tinha as pernas ensopadas com o sangue dele, mas continuava a ampará-lo. o operador de rádio sentado ao seu lado dava ordens ao helicóptero para que voltasse a partir. Estava demasiado quente por aquelas bandas.

- Uma ova... - chegou-lhes uma voz. - Quantos têm aí? - A voz era firme e forte e não iria a lado nenhum sem os feridos.

- Ainda tenho quatro que precisam muito de ajuda.

E, no preciso momento em que respondeu, ouviu-se outra explosão enorme.

- Merda! - exclamou alguém; os médicos voltaram a correr e alguém regressou para falar com o operador de rádio e fazer o relatório dos feridos.

- Conte com nove. Tenho mais cinco para si, Niner Zulu. Consegue mandar-me rapidamente outro pássaro? Temos aqui uns rapazes que não vão esperar muito mais.

Paxton escutava de olhos fechados, sabendo que o rapaz que tinha no regaço era um deles. Tentou chamar a atenção do operador de rádio, mas ele estava demasiado ocupado com o telefone e há muito que Ralph se afastara para outro lado com os seus cameramen.

Estás bem? - interessou-se uma voz de passagem e surpreendeu-se ao ouvir-se a si própria:

- Estamos óptimos. Não é verdade, Joe? Não é.

O jovem estava a mergulhar no sono e ela tocou-lhe na face para o despertar, tentando não olhar para o coto sangrento, que pingava, para o solo ao seu lado. Pensou na forma de fazer um torniquete, mas receava piorar as coisas e, momento' depois, apareceu um médico.

- Estás a portar-te bem meu filho, muito bem. - E" seguida, sorriu a Paxton. ~ Você também. - Apercebeu-se, então, que o homem que a tranquilizava era o rapaz de Savannah e sentiu-se como se fossem amigos de longa data.

- Este é o Joe - replicou, tentando parecer despreocupada mas sem desviar os olhos do braço enquanto o helicóptero pairava e conseguia ouvir a voz do piloto no rádio ao seu lado.

- Daqui Niner Zulu. Vamos avançar. Mas temos de actuar rapidamente. Empurrem-nos para dentro o mais depressa que puderem para podermos descolar logo.

- Merda! - exclamou alguém. Era a palavra de ordem dessa tarde, mas parecia apropriada. pelo que vira à sua volta. - Como é que ele acha que vamos «empurrá-los», foda-se? - perguntava o operador de rádio.

- Não te preocupes - respondeu um dos homens tristemente. - Se ele esperar muito mais, não teremos de o fazer. - Dos segundos cinco, dois já haviam morrido. Restavam assim somente sete feridos para transportar e haviam morrido sete ao todo. Fora um dia lúgubre, depois de um bom começo.

No entanto, o helicóptero baixou o suficiente de forma a que os médicos e os tropas colocassem quatro homens a bordo e, em seguida, um segundo helicóptero veio buscar os restantes. Paxton ficou a observar, enquanto dois dos homens transportavam Joe e viu-se a rezar em voz alta para que ele escapasse à morte.

Ao dar meia volta, avistou, subitamente, dois dos outros por terra, de olhos abertos e sem ver, com os, rapazes, do ARVN junto deles. Afastou-se aos tropeções e vomitou nos arbustos: Ralph descobriu-a aí, um pouco mais tarde, destroçada e pálida, o uniforme coberto de sangue e até mesmo o cabelo nos sítios em que lhe tocara.

- Tudo bem, miúda. Vomitei todos os dias durante os seis meses que passei na Coreia. - Suspirou e sentou-se, Um minuto, ao lado, dela.

As coisas haviam acalmado um pouco, mas o toque da morte via-se por todo o lado, só que o bombardeio não parecia tão intenso. Ralph estava a pensar regressar a Saigão, essa noite, em vez de ficar.

- Hoje, recolhemos bom material - declarou, e Paxton, fitou-o horrorizada.

É como chama a tudo isto: «bom material»? - retorquiu, lembrando-se, subitamente, de Jean-Pierre e da sua perfeita fotografia das «rapariguinhas mortas de mão dada». Era algo de partir o coração.

- Não fui eu quem começou esta guerra - ripostou Ralph, visivelmente irritado. - Vim fazer a cobertura. E se conseguir abanar as pessoas, talvez lhe ponham termo. Se veio, contudo, para fazer a cobertura de reuniões sociais no clube dos oficiais, está no sítio errado, pois esta guerra nada tem de belo. E, se quer rir, talvez deva esperar até o Bob Hope aparecer no Natal.

- Oh, vá-se foder! - Estava cansada, irritada, deprimida e doente com tudo o que vira. - Estamos aqui pelos mesmos motivos.

- Ah, sim? óptimo, porque esta guerra precisa de mais gente como nós. Pessoas que estejam dispostas a contar a verdade sobre o que vêem e talvez a morrer por isso. Pessoas que não temam a verdade. É por isso que aqui está? - inquiriu, acalorado.

Paxton fitou-o. Ele estava a pressioná-la, mas gostava das respostas da jovem. Era rija, forte, preocupava-se e tinha coragem. Havia muitas coisas nela que lhe agradavam.

- Sim. É por isso que aqui estou - redarguiu, sem desviar os olhos. - Estou aqui para contar a verdade sobre a merda desta horrível guerra. Tal como você.

- É esse o único motivo? - arriscou Ralph quando os dois se acalmaram um pouco; ela resolveu dizer-lhe o que contara a Jean-Pierre sobre Peter.

- O meu noivo morreu aqui há quase dois meses.

Ralph reflectiu demoradamente e, depois, olhou-a e deu-lhe um conselho que a chocou:

- Esqueça-o.

- Como pode dizer uma coisa dessas? - replicou, horrorizada e magoada em memória de Peter.

- Porque, independentemente do motivo que a trouxe aqui, tem de esquecê-lo se estiver interessada em fazer um trabalho decente. Ele morreu. Não pode ajudá-lo. Mas pode ajudar outras pessoas como ele, pode ajudar todo um país através de um relato honesto e objectivo. Se apenas deseja vingá-lo, ou ater-se à sua recordação, não lhe fará qualquer bem, nem a si própria, nem às pessoas para quem veio escrever.

Era óbvio que Ralph tinha razão, e ela sabia-o, mas tal não impedia que se sentisse magoada. Esperava que ela crescesse num só dia e esquecesse o jovem que amara durante todos os anos de universidade. Mas ele estava certo. Como jornalista, tinha de contar ao mundo o que via e não a história de Peter. Ele fizera um comentário horrível, mas ambos sabiam que tinha muito de verdade.

Nessa tarde, seguiram até Hai Ninh, a meio caminho de volta a Saigão e depararam com alguns combates e uma evolução da situação que interessou a Ralph. E, quando estavam prontos para partir, o oficial de comando disse-lhes que era demasiado perigoso regressarem nessa noite. Teriam de esperar até de manhã. Dormiram nas trincheiras com os homens, e Paxton conservou-se deitada, olhando as estrelas e pensando em Peter. Também sentira o mesmo ali? Tivera medo? Achara bonito? Pensara nela? E, afinal, o que interessava? Talvez Ralph tivesse razão. Nada disto interessava, exceptuando a verdade e as pessoas que a conheciam.

- Sente-se bem? - quis saber, aproximando-se mais dela e oferecendo-lhe um cigarro, mas Paxton recusou. Estava tão cansada e agoniada com o que vira que nem sequer tinha jantado. E a comida enlatada, que lhes haviam distribuído, também não era muito apetecível. O arroz e pho, uma sopa de massa, que o ARVN comia, tinham muito melhor aspecto.

- Estou óptima.

- Não parece.

- Diria o mesmo no seu caso - sorriu Paxton, mas teve de admitir que, mesmo assim, ele estava com melhor ar.

- Desculpe se teve um dia duro. Mas este lugar não é para graças. E é impossível comprometer ideais ou esquecer porque se está aqui. Quando se personifica, está tudo estragado. E, mesmo que a sua viagem tenha começado assim, não é tarde de mais para mudar de opinião e acalentar um belo e isento objectivo em mente.

«Lembre-se apenas daqueles para quem escreve e a mensagem que pretende transmitir - prosseguiu. - Manter-se-á humana. Não pode, contudo, transformar isto numa vingança pessoal. Alguns dos soldados fazem-no. Os camaradas morrem, eles ficam meio doidos, correm para os arbustos à procura do Victor Charlie e vivem cerca de catorze segundos até pisarem uma mina e ficarem sem cabeça. Seja qual for a sua missão, nunca pode perder a cabeça. Os tipos que sobrevivem aqui não se esquecem disso um único minuto. - Era um bom conselho e ela sabia-o.

- Não consigo deixar de pensar naquele rapaz de hoje... o Joe..., de Miami... Nem sequer sei o apelido... Continuo a interrogar-me sobre se ainda estará vivo.

- Quase de certeza - tranquilizou-a Ralph. - Teve sorte. Em Nha Trang, estávamos mesmo ao lado da unidade duzentos e cinquenta e quatro do MDHA. Colocaram-no, provavelmente, numa mesa de operações, quinze minutos após o recolherem. Você deve ter contribuído.

Deu-lhe uma palmadinha no braço e tentou acalmá-la, mesmo que não fosse essa a verdade. Paxton dera o seu melhor e talvez o miúdo lhe devesse a vida. Havia tantos, e ele assistira à morte e ferimentos de uma longa série. Decorrido algum tempo, ficava-se exausto e com uma sensação de amargura. Todos aqueles miúdos transformados em pedaços de carne viva. Dava a volta ao estômago. E ficava-se a pensar porque é que uma rapariga tão bonita desejava estar ali. Todos eles eram, sem dúvida, um pouco loucos. E, se não o eram no começo, tornavam-se depois.

- Sabe que não consigo recordar-me do seu nome como deve ser? - sorriu-lhe. - Sei que o apelido é Andrews. Mas o nome próprio é algo como Pattie ou Patton, certo?

- Paxton - retorquiu, com um arremedo de sorriso. - Só não quero que me chame Delta Delta.

- Talvez tenha de o fazer, se não me lembrar de Paxton. - Em seguida, reflectiu uns momentos e soltou uma repentina gargalhada, enquanto se conservavam ali deitados na trincheira, lado a lado.

- Porquê? - retorquiu, fitando-o, irritada. - É o meu nome?

- Não, gosto do seu nome... mas ocorreu-me um pensamento divertidíssimo. Trabalha para o Morning Sun, não é verdade? - Ela confirmou com um aceno de cabeça.

Tem algum tio lá?

- Não propriamente - respondeu, corando, mas ele não se apercebeu. - Um mentor, se assim se pode chamar. o meu... quase sogro desempenha... um cargo bastante elevado no jornal. - Não queria dizer-lhe que era o dono.

- E o chefe da redacção daqui declarou que estava a receber telexes frenéticos de todas as altas entidades do Sun indicando que estava a chegar o sobrinho de alguém e queriam que o pusesse bem longe de sarilhos e da zona de combate. penso que se referiam a si, Miss Paxton - acrescentou -, e ninguém imaginou que se tratasse de uma rapariga. Merda... E o que é que eu fiz? Levei-a num só dia para dois dos lugares mais acesos.

- Sinto-me contente que isso tenha acontecido.

- Também eu - sorriu e continuaram deitados, ouvindo os disparos de um atirador ocasional. - Não conheço a sua escrita. Mas tem um espírito desportivo e coragem. O resto virá facilmente.

- Obrigada - agradeceu-lhe, correspondendo ao sorriso.

- Pode acompanhar-me em missões, sempre que quiser. Desde que não conte ao seu tio.

Voltou a sorrir e acabou por passar pelo sono. Pensou em Ed Wilson. Só estava no Vietname há dois dias e tinha a sensação de que não o via há anos... a ele, a Gabby, São Francisco... ou Peter.


 

Ralph e Paxton regressaram no dia seguinte a Saigão com a equipa de filmagens, mantendo-se silenciosos durante o percurso. Tornava-se impossível testemunhar a morte, a dor e a perda de homens, sem se sentir afectado.

- Mexe com uma pessoa, não é? - observou Ralph, sentado junto dela. Deixara que o operador de som fosse ao lado do condutor.

- É - retorquiu ela com um aceno de cabeça. Continuava a pensar no jovem de Miami. Como seria a vida dele sem um braço? Pior, se não tivesse sobrevivido? E porque estavam a lutar ali? Ninguém parecia com certezas de nada. Tudo parecia uma loucura.

- Vai receber alguma educação aqui - redarguiu Ralph. - A maioria das pessoas que fica uns tempos, não volta nunca a ser a mesma.

- Porquê? - inquiriu, continuando em busca de respostas.

- Não sei... Vêem demasiado... Preocupam-se demasiado, enquanto estão aqui... Tornam-se amargas, irritadas e desiludidas. Regressam aos Estados Unidos e as pessoas odeiam-nas e tratam-nas como assassinas... Ninguém compreende. - prosseguiu- - Lá, ouvem rádio, param pelos bares, compram carros e andam atrás das mulheres. Estão-se nas tintas para o que acontece aqui. Sempre estiveram* E não querem saber. Vietname? Onde fica isso? Quem está interessado? São um bando de idiotas a lutar uns com os outros... a lutar uns com os outros e a matar-nos. Mas todos se esquecem disso. Estes rapazes estão a ser abatidos por nada.

Acredita realmente nisso? - Sentia-se magoada ao ouvi-lo falar desta maneira, sobretudo ao pensar em Peter. Era mais fácil acreditar que ele era um herói por morrer ali. Mas, até mesmo aos seus olhos, não era essa a verdade.

- Sim. E o mais triste é que todos acreditam - replicou. - Ninguém se importa com o que acontece aqui.

Acho que nem sequer compreendem. Nem eu tenho a certeza de compreender. Estamos a tentar salvar o Sul do Norte, como o fizemos na Coreia. Não é, porém, o mesmo. As pessoas do Sul também nos combatem. Nem sequer pode afirmar-se quem é Vietcongue ou não. Merda! Na maioria das vezes, penso que todos o são. Basta pensar nos miúdos! A maioria seria capaz de nos fazer explodir o rosto com uma granada, mal nos põe a vista em cima.

«E esta percepção enlouquece as pessoas - prosseguiu. - Ninguém sabe em quem acreditar, quem respeitar, quem está a lutar. Metade dos novatos têm mais respeito pelo Charlie do que pelos seus oficiais de comando, os VC lutam mais no duro do que ninguém. E o ARVN, o exército do Sul, é uma anedota. Entende-me? É tudo uma loucura. E, se ficar o tempo suficiente, também acabará por enlouquecer. Lembre-se disto quando começar a pensar em ficar. No dia em que deixar de querer apanhar o próximo avião para casa dez vezes por dia, estará metida num grande sarilho.

Ralph estava a troçar dela, mas também lhe dissera algumas verdades importantes e ela sabia. Havia algo de estranhamente fascinante no Vietname, algo que levava as pessoas a quererem ficar, algo no ar, nos cheiros, nos sons, no povo, no bizarro contraste entre Saigão e a incrível beleza do campo, entre a inocência dos rostos e o sofrimento das pessoas. Queria-se acreditar que eram puras, que tudo aquilo as feria e pretendia-se ajudá-las. Mas era essa a questão: Poderíamos ajudá-los e salvar-nos? Ou era tudo inútil? Ao meio-dia, quando seguiram rumo a Saigão, Paxton ainda não tinha nenhuma das respostas.

Ralph deixou-a no hotel e continuou até à redacção da AP, no Edifício Éden. Ao atravessar o átrio, ela nem queria acreditar como estava suja. Ainda tinha as roupas cobertas de sangue seco, sujidade e suor, e estava com um aspecto horrível. Cruzou-se com Nigel no caminho e ele observou de cenho franzido.

- Deus do céu! Dá-me ideia de que teve um dia muito agitado ou será que se cortou a fazer a barba? - Aquele palavriado irritou-a e ripostou, enquanto tirava o capacete.

- Estivemos em Nha Trang. E houve uma série de feridos. - A ela pareciam-lhe muitos, e sentiu os olhos cheios de lágrimas no momento em que pronunciou as palavras.

- É para ficar surpreendido? julgo que é por isso que aqui estamos. - Ele era um idiota convencido e toda aquela atitude a aborrecia. - O que vai fazer esta noite, ao jantar?

- Não sei. Quero trabalhar na minha reportagem. - Dado o seu contrato com o Sun, não tinha prazos reais, mas apenas enviaria material quando o tivesse. Queria, porém, mandar-lhes algo muito em breve, mostrar-lhes que tinha ido ali para trabalhar e o fazia com seriedade.

- Talvez venhamos buscá-la mais tarde. O Ralph foi para casa ou para a redacção?

- Tenho quase a certeza de que foi para a redacção respondeu num tom exausto.

- É melhor que vá dormir um pouco. Parece muito em baixo.

- E estou... Vemo-nos depois. - Na verdade, tinha todas as intenções de escrever sobre o que vira; porém, mal tomou um banho no hotel e se estendeu « apenas por um minuto», adormeceu profundamente e, quando acordou, estava escuro e sentia-se a morrer de fome.

Desceu à sala de jantar e não avistou ninguém conhecido. E, ao tentar comer, verificou ser incapaz. O próprio sumo de ananás, que tanto lhe tinha agradado à chegada, sabia-lhe horrivelmente. Só conseguia pensar no que se lhe deparara em Nha Trang. Depois de engolir um caldo, um pouco de chao tom e pasta de camarão, voltou ao andar de cima e sentou-se a elaborar a reportagem.

Ficou a escrever até às duas da manhã e chorou ao tentar descrever o jovem de Miami e o miúdo de Savannah. Apercebeu-se de que nem sequer sabia como ele se chamava. Todavia, nem isso interessava. Ao acabar, recostou-se na cadeira, sentindo-se exausta mas aliviada. Escrever sobre ele, quase se assemelhava a uma catarse.

Tentou descrever a beleza do Vietname, o contraste do que tinha visto, mesmo em tão curto espaço de tempo, O horror daqueles estropiados, o barulho das ruas, a inacreditável beleza para norte, o verde brilhante, a rica terra verde por um lado e, por outro, todo o país destroçado, em sangue, e os rapazes sangrando com ele. Sangrando por ele. ,A peça tinha força. Sentia-se satisfeita e interrogou-se sobre o que pensariam dela em São Francisco.

Deitou-se às três da manhã e estava na redacção da AP no dia seguinte, às nove, onde se cruzou com Ralph, que tinha um ar fresco e profissional, vestido com uma camisa branca lavada e fato de caqui.

_ Onde vai, Delta Delta? - Paxton sorriu involuntariamente e ele pareceu feliz em vê-la.

- Quero mandar a minha história.

- De Nha Trang? - inquiriu, e ela esboçou um aceno de concordância. - A propósito, informei-me. Todos os rapazes que recolheram no outro dia escaparam, excepto um... - O coração dela saltou-lhe no peito. - O que não sobreviveu era um rapaz negro do Mississipi. Portanto, o seu deve estar a recuperar.

Paxton sorriu visivelmente aliviada com um brilho meigo no olhar. Era uma boa miúda, pensou Ralph. Número um, de primeira qualidade. Tinha muito que aprender, mas era esperta e gostava dela.

- Nem sempre as coisas são assim - rematou. - Talvez lhe tivesse dado sorte. Agora irá para casa. Que raio de maneira de o conseguir, ficando apenas com um braço, mas, em compensação, não regressaria dentro de um saco. - O que vai fazer hoje? - perguntou Ralph.

- Vou procurar sarilhos - respondeu, trocista, e ele riu.

- Cuidado. Nesta cidade não terá dificuldade em encontrá-los.

- Já reparei. - Quanto mais não fosse, havia Nigel Aue, ou o «ligeiramente» casado Jean-Pierre, que ia encontrar-se com a mulher nesse fim-de-semana.

- Esta noite, a revista Time dá uma festa nas instalações do Continental Palace. Quer ir?

- Claro. - Não estava certa de se tratar de algo mais do que um convite de amigo, mas não lhe interessava. Estava longe de procurar romance e todos os contactos que fizesse seriam úteis.

- Encontramo-nos lá - marcou, consultando o relógio era óbvio que tinha pressa. - Seis horas?

- Óptimo - anuiu.

Passou o resto da tarde a dar mais uma volta por Saigã.. E ficou profundamente afectada pelas crianças. Eram tão vulneráveis e novinhas e já pareciam tão destroçadas. No entanto, tentavam vender tudo a quem se sentasse nos cafés, desde heroína a cigarros e bebidas leves roubadas. Sabia que, mais tarde, escreveria sobre elas. Tratava-se de um mundo estranho e muito distante do mundo que conhecia. Todavia, ao olhar em volta, sentia-se contente por ter vindo.

Às cinco horas, regressou ao hotel e mudou para um vestido de flores estampado, calçou umas sandálias e seguiu a pé, pela Tu Do, até ao Continental Palace. Era fácil acreditar que, outrora, aquela cidade fora encantadora, no tempo dos Franceses. Ainda o era em muitos aspectos, só que se sentia uma permanente tensão. Mesmo sentadas nos cafés, as pessoas tinham consciência de que o inimigo estava por todo o lado e uma bomba podia rebentar no meio delas a qualquer momento.

Quando chegou ao hotel, atravessou a esplanada e, como habitualmente, avistou Nigel. Estava acompanhado de duas enfermeiras do exército; tinha uma delas ao colo e a outra metia-lhe os dedos pelo cabelo e ria. Paxton, não pronunciou uma palavra e subiu rapidamente as escadas até à redacção da Time Inc.

Havia bastante gente e Ralph já a esperava, conversando animadamente com o chefe de redacção sobre a iminente Convenção Democrática, em Chicago. Nesse ano, tinham ocorrido tumultos por todo o lado, desde o assassínio de Martin Luther King e a eliminação mais recente de Robert Kenedy. Ralph dedicava-se a terríveis previsões.

- Penso que vai haver uma tremenda confusão em Chi cago. - E, ao pronunciar as palavras, avistou Paxton.

Saudou-a com um sorriso caloroso, apresentou-a a todos os presentes e conduziu-a pela sala com modos práticos, mas tratando-a como se fosse uma irmãzinha mais nova. Paxton sentia-se muito comovida e confessou-lho, enquanto bebia um uísque e depois de ter conhecido todos os que ele considerava importantes.

- Falo a sério, Ralph. Se não fosse por si, ainda estaria sentada no meu quarto de hotel.

- Talvez estivesse melhor - retorquiu, bebendo um grande trago de bourbon. - Ontem, senti-me bastante culpado, quando regressámos. Talvez Nha Trang fosse pesado demais para um primeiro impacte com o que aqui se passa.

- Não acho - redarguiu, tranquila e fitando-a bem no fundo dos olhos. - É para isso que vim.

- A propósito, eu tinha razão - prosseguiu, com um ligeiro sorriso. - Ontem, fiz uma pequena «investigação», quando voltámos. É você a pessoa que todos devíamos levar a festas na embaixada e ao Golden Ghetto. - Este último fora, outrora, um elegante bloco de apartamentos na Rua Gia Long.

- Espero que isso não passe pela cabeça de ninguém - redarguiu com um sorriso.

- Não passará - sorriu em resposta. - Aqui não há tempo para se fazer de baby-sitter. A propósito - acrescentou, fitando-a cautelosamente. - Não está interessada noutra missão? Vou a Cti Chi fazer uma reportagem nos túneis. Pensei que pudesse interessá-la.

- Iria adorar. Outra vez às cinco?

Ralph riu. A jovem parecia tão séria e tão ansiosa.

- Vou buscá-la às oito. Será muito a tempo. E traga de novo o equipamento de combate.

- Não há festas no clube dos oficiais? - replicou Paxton, franzindo o sobrolho. - Os meus amigos de São Francisco vão ficar muito desapontados.

- Não se preocupe, Delta Delta. Limite-se a mandar-lhes uns donuts! - retorquiu com uma piscadela de olho. Ela fingiu que ia atacá-lo, ele baixou-se e saiu uns minutos depois.

Em seguida, falou com mais alguns repórteres, acabou por regressar até a baixo e evitou Nigel, na esplanada. Nesta altura, já ele estava muito embriagado e mostrava-se muito amoroso com uma das enfermeiras. Paxton regressou calmamente ao hotel, jantou no quarto e, às dez horas, já tinha adormecido. Na manhã seguinte, estava à espera de Ralph Johnson no átrio, às oito em ponto.

Desta vez, levava uma equipa de filmagens diferente, um co-fotógrafo e um outro motorista. Tinham um jipe cedido pelo exército e um jovem fuzileiro a conduzir. Era um jovem alto e simpático, de cabelo ruivo e olhos azuis, uma tatuagem de um cowboy no corpo e dizendo-se natural de Montaria.

Paxton tentou reter um sorriso quando ele se apresentou dizendo que se chamava Cowboy. Tinha dezanove anos e estava no Vietname desde o Natal anterior. Faltavam-lhe mais seis meses para regressar a casa, mas afirmou que se sentia muito feliz ali. Fora designado temporariamente para a agência noticiosa e transportava repórteres e dignatários de visita por todo o país.

- E, enquanto não pisarmos minas, nem formos atingidos, tudo corre bem. - Esboçou-lhes um arremedo de sorriso, e Paxton achou que ele era um jovem feliz. Podia ter estado no Norte e ter sido atingido como os outros.

A viagem até Cti Chi demorou quarenta e cinco minutos e passaram a maior parte do tempo a conversar sobre cavalos e equitação, até que Ralph e Paxton se puseram a falar da reportagem que pretendiam. O repórter fotográfico que levavam era francês. Chamava-se Yves e era amigo de Jean-Pierre. Conservava-se bastante calado e sabia pouco inglês, o que fazia com que parecesse tímido, mas não o era. Ralph já trabalhara com ele e sentia-se satisfeito por o ter na missão desse dia. Era bom, calmo e meticuloso, um pouco como Paxton.

- A base de Cti Chi é um lugar interessante - explicou Ralph a Paxxie pelo caminho. - É o quartel-general da Vigésima Quinta Divisão de Infantaria «Tropic Lightening», do Havai. Ergueram a base há mais de dois anos sobre os túneis que os vietcongues ali haviam construído e calcularam que todos estavam selados. Contudo, enganaram-se. Segundo parece, os VC continuaram a operar sob os seus pés e só têm tido dores de cabeça desde que aqui chegaram. É uma base enorme e fica mesmo do outro lado do rio Saigão, como parte do Iron Triangle, onde tivemos os mais acesos combates.

- O que estamos a fazer aqui hoje? - inquiriu, grata por toda e qualquer informação.

- Descobriram uma nova rede de túneis aqui. Achei que daria uma boa história. Os indivíduos que lidam com esta merda chamam-se ratos de túnel e formam um grupo incrível. Rijos e com nervos de aço. Não me convenceriam a entrar num desses túneis por nada deste mundo. Os VC têm ali um verdadeiro mundo subterrâneo. Tentaram destruir o máximo quando, no ano passado, deram cabo de Iron Triangle. Mas não conseguiram.

«No ano passado, chegaram mesmo a encontrar um complexo de hospital na floresta de Than Dien, a norte de Iron Triangle. Os VC são uns homenzinhos surpreendentes. - Ralph estava consciente de que havia muito mais do que se detectava à primeira vista, pois tratava-se de um povo esperto, astuto, duro e incrivelmente corajoso, que lutaria até à morte contra o ARVN, o exército do Sul, e os americanos que os ajudavam.

- Acha que eu poderia descer aos túneis? - perguntou Paxton fascinada, e Ralph abanou a cabeça, com uma expressão horrorizada.

- Não faça nada disso, Pax. É demasiado arriscado e fico claustrofóbico só de pensar nisso. - Quase se arrepiou, mas ela discordava.

- Acho que seria fascinante.

- Acho que você é louca - ripostou ele.

Percorreram o resto do caminho em silêncio. Quando chegaram, sentiu-se impressionada ante o tamanho e a organização perfeita da base de Cti Chi. Foi muito diferente da viagem até à base de Nha Trang que haviam feito dois dias antes, até os conduzirem a uma região por detrás da base, ainda coberta de vegetação. O calor parecia erguer-se do meio dos arbustos, havia tropas por todo o lado e as escavadoras derrubavam árvores e arbustos.

- Volte a pôr o colete antibalas - instruiu Ralph distraidamente, enquanto dizia algo a Yves e acenava a alguém à distância.

- Porquê? - O calor era sufocante e mais ninguém tinha coletes vestidos. A maioria dos homens trabalhava em tronco nu, vestidos apenas com as calças do uniforme e botas de combate. Uma série deles até tirara os capacetes. - Ninguém mais os pôs.

- Faça como lhe digo - ripostou Ralph. - Eles também deviam usá-los. Cu Chi é famosa pelos atiradores. - Paxton fez uma careta e obedeceu, colocando o pesado colete, e ia a tirar o capacete mas deteve-se ante mais um olhar dele.

À semelhança das tropas, começara a andar com o creme de sol e o repelente de insectos presos por dentro do capacete. A maioria dos homens também trazia ali cigarros, cartas de jogar e outras coisas de que necessitavam. Ela reparou que todos conservavam as M-16 perto e a maioria andava com os revólveres .45 enfiados nos cintos. À chegada, tinham-na avisado para não transportar armas, mas em poucos dias aprendera que muitas pessoas andavam armadas. Podia comprar-se quase tudo no mercado negro. Mas, até agora, não tinha o mínimo desejo de adquirir uma.

E, enquanto Paxton punha o colete, um homem alto e magro aproximou-se dela. Era o homem a quem Ralph acenara. Tinha cabelo louro e olhos claros, um sorriso despreocupado, mas a tensão do olhar e um ar permanentemente desconfiado atraiçoavam os seus modos casuais.

- Olá, Quinn. Parece que manténs os teus homens ocupados.

O capitão William Quinn da Vigésima Quinta Divisão de Infantaria apertou a mão a Ralph e a Yves e estendeu uma mão amiga a Paxton.

- É simpático ter-vos aqui - replicou. - Encontrámos uma beleza esta semana, depois de te ter visto, céus! Devemos ter de abrir uma clareira até ao Cansas! - Olhou com uma expressão de desculpa para Paxton e apontou para uma área que tinham estado a limpar.

Era um homem bem-parecido. Tinta trinta e dois anos, frequentara West Point e fizera carreira no exército.

Em seguida, fitou Paxton com um sorriso tímido.

- Também trabalha para a Associated Press?

Os olhos pareciam trespassá-la até ao mais fundo e, por momentos, ela esqueceu o que ele lhe perguntara. Era um homem muito elegante e emanava uma aura de poder, de controlo total; mas, por outro lado, havia algo mais, Um leve toque selvagem, de loucura mesmo.

- Eu... não. Sou do Morning Sun, em São Francisco - Bonita cidade. Instalei-me no Presídio uns tempos, antes de vir . para cá. - E era aí que deixara a mulher, mas não o mencionou.

- É a minha nova protégée - explicou Ralph com um sorriso. - Faz-me lembrar um pouco quando fui para a Coreia. Embora ache que era menos corajoso do que ela - rematou à guisa de elogio, e ela agradeceu-lhe.

- De nada, Delta Delta - troçou, enquanto seguiam o capitão Quinn até à clareira. Havia ferramentas, equipamento e homens por todo o lado e, se se olhasse para o chão, viam-se pequenos orifícios espalhados, que quase não pareciam com tamanho suficiente para alojar uma criança.

- O que é isto, meu Deus? - surpreendeu-se Ralph, ajoelhando no chão e espreitando para o interior de um deles. Por norma, estavam totalmente escondidos e não se avistava qualquer entrada; mas Quinn e os seus homens tinham destapado todas as aberturas que conseguiam encontrar e, agora, viam-se os túneis com mais clareza. Vislumbravam-se mesmo os tubos de bambu de que eles se serviam para respirar quando andavam naquelas profundezas. - Presumo que depois os alargam.

No entanto, Bill Quinn abanou a cabeça.

- Nem sempre. São uma gente surpreendentemente pequena - retorquiu quase respeitoso e com humor. - Levam-nos seis dias a expulsar os piolhos daqui. São muito teimosos.

- Sempre o foram - retorquiu Ralph com um aceno de concordância.

Bill Quinn mostrou-lhes as redondezas, e Paxton perguntou se podia descer uns centímetros para inspeccionar.

A maioria dos americanos era demasiado corpulenta para caber num sítio daqueles, dada a largura dos troncos e dos ombros. Ela era, todavia, elegante e flexível e queria ver o que se encontrava por baixo do solo.

Pediu emprestada a Yves a máquina fotográfica e a lanterna e foi atrás de um dos pequenos e ágeis ratos de túnel, um dos homens de Quinn. Decorridos uns minutos, faltou-lhe o fôlego. Estava pálida e coberta de sujidade quando reapareceu à superfície e assustadíssima. Lá em baixo, ainda pairava um cheiro a morte, e o homem que descera com ela explicou-lhe que ainda «não os tinham puxado a todos cá para fora». Era horrível pensar nos cadáveres dos VC em decomposição. Porém, tudo à volta deles o estava. Nha Trang também fora assustador à sua maneira, ainda mais devido ao fogo aberto e aos feridos em estado desesperado. Aqui, era tudo mais subtil e mais sinistro, embora o tenente lhes garantisse que todos os túneis se encontravam desimpedidos e os únicos VC lá em baixo estavam mortos.

- Utilizam cães? - perguntou, ainda impressionada pela experiência, e ele sentiu admiração por ela. Era a primeira americana que se dispusera a descer até lá abaixo. O próprio Yves, o repórter fotográfico de Ralph, não se mostrara nada entusiasmado. Ela era, contudo, jovem, esperta e interessada, o que marcava a diferença.

O capitão apercebera-se igualmente de que era muito bonita ao vê-la soltar a cascata de cabelo louro do capacete. Muito bonita. E sentiu-se como se estivesse em Cti Chi há uma eternidade.

- Utilizamos cães - anuiu. - Contudo, perdemos tantos, que tentamos não o fazer. Preferimos usar homens pois disparam para o interior dos túneis, algo que os cães não podem fazer. Pelo menos, os nossos rapazes têm uma oportunidade. «Mas não por aí além. » Era um pensamento assustador e sentiu um calafrio a percorrer-lhe a espinha quando avançaram e chegaram junto de uma outra abertura, esta rodeada por tubos de respiração em bambu.

- Este aqui era bom - prosseguiu Quinn. - Havia sete homens e uma mulher. Segundo os nossos cálculos, permaneceram aqui um ano, talvez mais. - Mesmo debaixo do nariz deles. Explicou que saíam à noite e provocavam o máximo de estragos que conseguiam na base, desde sabotagem a bombas de plástico, granadas de mão e disparos. - Tivemos um grave problema.

Tratava-se de uma importante declaração, e Paxton começou a tirar apontamentos pela primeira vez. Nessa altura, um sargento aproximou-se de Quinn e informou-o de que havia indícios de um atirador com espingarda de mira telescópica, mais à frente. Fitou Paxton, e dirigiu-se novamente a Quinn.

- Quer que eles regressem à base?

Parecia irritado com a presença de jornalistas, e o olhar com que os brindou nada tinha de caloroso nem simpático. Todavia, Bill Quinn não se mostrou preocupado. Consultou o relógio e fez qualquer comentário ao operador de rádio para saber se estava em contacto com os rapazes que andavam a revistar as áreas dos arbustos que ainda não tinham limpo.

- Não. Eles estão óptimos aqui - respondeu Bill Quinn ao sargento e continuou a falar com o operador de rádio, antes de explicar a Ralph que havia um atirador com espingarda de mira telescópica, talvez dois, e que tinham motivos para pensar que poderia existir outro túnel mais à frente.

- Talvez tenham oportunidade de ver como os «limpamos» - acrescentou com um sorriso despreocupado para Paxton.

A jovem ainda o desconhecia, mas ele era famoso no Vietname. Ajudado pelos seus homens, descobrira e esvaziara mais túneis do que alguém na história da guerra e, por varias vezes, ele próprio tinha descido. Fora ferido quatro vezes, condecorado duas e todos os seus homens o adoravam.

- Há que ter algo de loucura para se ser um rato de túnel - afirmava com frequência e era algo que procurava nos seus colaboradores. Algo de terrivelmente corajoso e violento e, no entanto, o autodomínio bastante para cumprir ordens. Tinham de estar preparados para morrer num espaço em que mal conseguiam mexer-se. E a prontidão com que Paxton se dispusera a descer tinha-o intrigado. No entanto, o seu sargento estava muito menos intrigado com ela. Mostrava-se visivelmente irritado, quando receberam a confirmação do segundo atirador.

- Agora, levo-os de volta, senhor?

- Não me parece, sargento - ripostou Quinn num tom firme. - Não me parece que tenham percorrido toda esta distância para virem almoçar. Acho que é isto o que procuram.

A semelhança do chamado Cowboy, o motorista que os trouxera, também era do Noroeste e tinha um estilo despreocupado e aparentemente lento, mas os seus homens sabiam que podia transformar-se numa cascavel, pronta a atacar de um momento para o outro.

- Apetece-lhe beber qualquer coisa? - perguntou, virando-se para Paxton.

Ela estava a morrer de sede e sentiu-se agradecida com a Coca-Cola gelada que se materializou, como por milagre, de uma arca de gelo. Arranjou outras para Ralph e Yves e, pouco depois, mudaram-se para uma tenda numa pequena clareira, a que ele chamava o seu «escritório». Respondeu-lhes a todas as perguntas e manteve-se em contacto com o seu operador de rádio. Depois de mais dois telefonemas, franziu o sobrolho e anunciou-lhes que iria voltar lá fora. Não lhe agradava o relatório sobre os atiradores.

Tinha uma expressão séria quando prosseguiram caminho e, desta vez, ordenou a Paxton e Ralph que ficassem para trás. Yves estava acocorado nos arbustos a fotografar com uma lente de longo alcance algo que lhe despertara interesse.

E, momentos depois de terem continuado a caminhar, notou-se um súbito movimento nos arbustos e ouviu-se uma explosão mesmo na frente, enquanto todos se atiravam ao chão, incluindo Paxton.

Bill Quinn avançou a rastejar e o operador de rádio tentava, freneticamente, entrar em contacto com alguém.

- Alô, Lone Ranger, daqui Tonto... Está a ouvir-me, Lone Ranger? O que tem aí?

A voz que respondeu era staccato. E o operador de rádio transmitiu rapidamente a informação ao sargento. Flavi, dois atiradores e seis VC que, segundo parecia, se tinham materializado do nada. Quinn estava certo. Eles tinham outro túnel.

Ralph observou-a, quando ela mergulhou por terra,

Paxton sentiu-se subitamente grata por ter conservado o colete e o capacete.

- Escolhemos um belo dia para vir até cá - comentou Ralph num sussurro.

- Pelo menos não é uma monotonia - sorriu, tentando não parecer assustada.

- Já esteve aqui tempo de mais - replicou acima de todo o ruído.

- Está a tornar-se um caso sério. - E! ao pronunciar as palavras, o sargento reapareceu ao lado deles, com uma expressão irritada para Paxton.

- O capitão quer que façam o favor de recuar - explicou assernelhando-se ao ascensorista de um armazém, e os seus modos provocaram de imediato uma reacção negativa em Ralph e Paxton.

- Algum motivo para que os membros da imprensa se jam excluídos? - inquiriu Ralph bruscamente, procurando com o olhar Yves, que continuava a tirar fotografias com  a sua lente de longo alcance e parecia satisfeito com os resultados.

- Diria que há um bom motivo, senhor - ripostou o jovem sargento. - Está acompanhado de uma mulher e preferíamos que nenhum dos dois apanhasse um tiro, se é que não tem objecção. - Expressava-se num sotaque muito nova-iorquino e com modos idênticos. - Acha razoável?

- Por acaso, não - arguiu Ralph sem desviar o olhar, enquanto Paxton se detinha a observar. - Não acho que o sexo da pessoa esteja relacionado com o jornalismo. Se ela está disposta a arriscar é lá com ela, amigo.

Não estava a ser duro, mas a tratá-la com respeito, e Paxton sentiu-se agradada. Na opinião dele, se estava no Vietname era para cumprir uma missão, o que correspondia à verdade. E estava-lhe grata.

- E está disposto a assumir a responsabilidade, se ela for morta? - quase rosnou o sargento de Nova Iorque. A chapa de identificação da farda indicava à nome «Campobello».

- Não, não estou - admitiu Ralph sem rodeios. - Ela própria assumiu essa responsabilidade quando aceitou esta missão, tal como eu... tal como o senhor, sargento.

- Como quiser. - O sargento deu meia volta e rastejou pelos arbustos; momentos depois, ela e Ralph aproximaram-se um pouco mais da acção. Tinham avançado bastante e o operador de rádio convocara alguns helicópteros para o local. Os VC disparavam contra eles.

- Lone Ranger... - voltou a chamar. - O que tem  Ouviu-se um grito de satisfação do outro lado.

- Olá, Tonto. Apanhei dois índios, um deles está ferido... Muito simpático... Obrigado pela ajuda e continue a mandar cartões e cartas.

E, nessa altura, ouviu-se um estrondo. A metralhadora M-60 entrara em acção... duas granadas de mão... e, num abrir e fechar de olhos, percebeu que alguém a agarrava. Um braço forte prendera-lhe os ombros e estava a ser arrastada para trás por uma força tão poderosa que ignorava o que a atingira.

Ao embater no solo, sentiu algo semelhante a uma enorme explosão. Agora, os VC estavam a lançar granadas de mão e uma delas não lhe acertara por milagre. O operador de rádio tinha abandonado o posto, e Ralph mergulhou nos arbustos, quase caindo nos braços do sargento.

No entanto, ela teria sido atingida se Bill Quinn não a tivesse agarrado e arrastado, pondo em risco a própria vida. Ao ver-se de rosto para baixo no meio da lama, com os longos membros dele a tapá-la, demorou uns momentos a tomar consciência do que acontecera.

- Magoei-a? - interessou-se, preocupado.

Paxton abanou a cabeça e moveu-se com alguma dificuldade. Ele ordenou-lhe, porém, que mantivesse a cabeça baixa, embora as tropas locais tivessem avançado contra os vietcongues e os sons dos disparos soassem a uma maior distância.

- Não. Estou óptima.

No entanto, ele tirara-lhe o fôlego. Limpou a poeira da cara e, depois, sorriu-lhe.

- Parece uma miúda que acabou de cair na lama.

- Sinto-me como uma miúda que acabou de ser salva. Obrigada - agradeceu-lhe com uma expressão séria.

Bill parecia impávido e sereno, mas era daí que lhe vinha a fama e esse o motivo por que as pessoas gostavam dele. Faria tudo pelos seus homens a qualquer preço e nunca pedia a ninguém que fizesse algo que ele próprio não faria. Era essa a razão por que o amavam e confiavam tanto nele.

- Acho que o Tony tem razão... Devia ter esperado uns dias, antes de os deixar vir até aqui. Não percebi que o Ralph ia trazer uma amiga. - Fitou-a com uma expressão de desculpa e, depois, ajudou-a lentamente a pôr-se em pé.

- Ainda bem que viemos. Os túneis são espantosos.

Ele sorriu impressionado com a sua coragem e agradado com aquele fascínio pelos túneis. Era um trabalho de que acabara por gostar, já que tinha de estar ali. Proporcionava-lhe um verdadeiro desafio, algum mistério, muito perigo e tornava-se imprescindível pensar como eles para os apanhar.

- Gosto do que faço - replicou com um sorriso tranquilo, e ela sentia-se ansiosa por escrever a seu respeito, mas tinha receio de pedir. Este era o terreno de Ralph, não o dela, e estava longe de querer aborrecer Quinn ou parecer intrometida.

O sargento deixara bem claro que todos eles eram intrusos. E, agora que tudo se tinha complicado mais, não queria aborrecê-lo.

- Terão de voltar depois de ter limpo este. Não acreditariam no que se pode encontrar lá em baixo - prosseguiu.

Paxton ainda se lembrava do fedor do túnel em que mal entrara.

- Refiro-me a armas - rematou. - A maioria das armas usadas pelos VC são roubadas ou capturadas - explicou. - Peças de artilharia, artigos soviéticos, ferramentas chinesas, equipamento médico, manuais... É uma lição. - Encarava aparentemente o material- bélico como o máximo desafio. Mas ela quase estava mais interessada nele do que na sua actividade. Que género de homem perseguia um mundo subterrâneo em busca de um inimigo que ninguém mais conseguia descobrir, mas cuja presença todos conheciam? Que género de homem conseguia ganhar uma guerra daquelas ou estava disposto a dar a vida por esse esforço?

- Há quanto tempo está no Vietname? - inquiriu num tom calmo, quando foram à procura de Ralph e de Yves. Agora, a acção mudara-se para um local mais à frente, e o sargento dedicava-se a controlar tudo, juntamente com os helicópteros. - Há umas semanas?

- Seis meses - respondeu, sorrindo. Ela já se sentia como se estivesse ali há muito tempo e só passara menos de uma semana desde a sua chegada.

- É demasiado nova para fazer a cobertura de uma guerra deste tipo - prosseguiu ele. Era uma rapariga corajosa, o que lhe agradava. Na verdade, tudo nela lhe agradava: O aspecto, a coragem, a forma como descera, sem hesitar, pelo túnel. Nunca conhecera nenhuma mulher assim. - Lamenta ter vindo?

- Não - respondeu, sem desviar o olhar. - Sinto-me contente. - Contente, triste, assustada e, por vezes, feliz. Sabia, que se encontrava no lugar certo à hora certa, o que já representava alguma coisa.

Ele preparava-se para lhe dizer quanto a admirava, mas o sargento Campobello reapareceu subitamente e comunicou-lhe que a sua presença era necessária. Os dois atiradores tinham sido feridos e capturados, dois dos outros estavam mortos e quatro haviam fugido, supostamente para o interior do túnel. Mas, se os atiradores falassem, talvez conseguissem saber a localização exacta do túnel.

- Tenho de voltar ao trabalho - redarguiu com um sorriso calmo. - Vemo-nos antes de se ir embora.

Em seguida, desapareceu com o sargento Campobello, e ela foi à procura de Ralph e de Yves. Estava coberta de sujidade e quase se assemelhava a um dos homens.

- Foi por pouco - comentou Ralph, fitando-a com um ar desaprovador. - Terá de se manter atenta... ou acabará com os miolos estoirados. - Não lhe agradara, por outro lado, que ela tivesse descido ao túnel. - Tenha cuidado, Delta Delta. Esta gente não usa cartuchos sem pólvora.

- Tenho o máximo cuidado - ripostou. - Atiraram a merda de uma granada para o sítio onde me encontrava quase atingiram o operador de rádio. O que esperava que fizesse? Que ficasse no parque de estacionamento, enquanto conseguia as reportagens? - explodiu, e ele soltou uma súbita gargalhada.

A jovem era exactamente como ele o fora na sua idade, ansiosa por pôr a cabeça de fora e conseguir a maior, a melhor e a mais arriscada história.

- Muito bem, miúda. Vá em frente. Mas depois não venha chorar para o meu ombro se a ferirem.

- Não o farei - resmungou entre dentes, sacudindo a poeira, enquanto ele continuava a rir.

- Está com um ar horrível, sabia? - E, face ao comentário, também ela se pôs a rir. Fora um dia interessante e gostava de Bill Quinn, talvez um pouco mais do que deveria. Ele regressou algum tempo depois, quando já estavam prontos para partir, agradeceu-lhes terem vindo a Cti Chi e prometeu a Paxton que, da próxima vez, lhe mostraria a base. De momento, porem, tinha de os deixar. Estavam ocupados a interrogar os prisioneiros.

- Vemo-nos em Saigão, Ralph. Talvez possamos jantar para a semana.

Ralph esboçou um aceno de concordância, e Quinn ficou a dizer-lhes adeus quando se afastaram. Não voltaram a pôr os olhos no sargento e, segundo Paxton, talvez tivesse sido preferível. Era óbvio que ele os detestava e não tinha desejo de colaborar com a imprensa. Não que fosse necessário. Haviam tido um excelente dia de trabalho e, tanto ela como Ralph, obtido boas reportagens.

Yves afirmou que também fizera boas fotos. Conseguira uma de qualidade, quando haviam atingido um dos atiradores. Aqui, a noção de qualidade era horrível. Dois mortos e uma rapariga ferida davam uma «excelente» história, uma fotografia óptima, talvez um prémio por um jornalismo brilhante. Era estranho como se ganhava um prémio por assistir à morte das pessoas.

No entanto, ao seguirem rumo a Saigão, só conseguia pensar em Bill Quinn e no seu corpo cobrindo o dela no momento da explosão da granada, no seu enorme poder ao protegê-la e na expressão com que a olhara quando ela rolara para o lado.

Sentia-se culpada com esses pensamentos. Ele era um homem casado, e Peter apenas morrera há pouco mais de dois meses. Contudo havia algo naquele homem, uma energia inegável, uma corrente eléctrica que a atraía e ela achava irresistivelmente excitante.


 

Durante a semana seguinte, Paxton não se afastou de Saigão. Escreveu a reportagem do incidente em Cu Chi e umahistória em separado, descrevendo os túneis. O jornal estava a publicar os seus artigos com o título «Mensagem do Vietname», por Paxton Andrews. Até agora, tinham saído todos e o Sun estava a vendê-los, o que significava que podiam aparecer em Savannah, impressionando, assim, sem dúvida, a mãe e o irmão. Foi, no entanto, o próprio Ed Wilson a telefonar-lhe, elogiando-a pelo poder de análise e indubitável coragem.

- Não desceste a nenhum desses túneis, pois não, Pax? - Ela sorriu ao escutá-lo e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Estava tão longe.

- Sinto-me óptima - foi a resposta dada a todas as perguntas dele.

Pediu-lhe que informasse a mãe que ela estava bem. Ainda não tivera tempo de lhe escrever e sabia que o devia ter feito. Mandou saudades a Gabby, Matt e Mrs. Wilson e, depois de ter falado com ele, sentiu saudades durante um dia. Manteve-se, contudo, ocupada a escrever mais um artigo. Alugou um carro, foi até Bien Hoa e sentiu-se incrivelmente corajosa e independente. Aos vinte e dois anos, percorrera toda aquela distância e descobria coisas com que nunca sequer sonhara.

Também se sentia fascinada com o mercado negro e, assim, dirigiu-se, uma tarde, à base de Tan Son Nhut, onde chegara para falar com algumas pessoas sobre os roubos maciços aos Correios e os artigos que eram directamente filtrados para o mercado negro, incluindo uniformes e armas. Quando atravessava, tranquilamente, a base de Tan So' Nhut ao pôr do Sol, deu por si a observar um homem alto, de uniforme de combate, que seguia na sua frente. Tinha um andar gingão e uma passada que lhe pareciam familiar.

No entanto, o sol batia-lhe nos olhos, impedindo-a de ver quem era. De qualquer maneira, conhecia tão poucas pessoas em Saigão que não conseguia imaginar de quem pudesse tratar-se. E, um minuto depois, ele parou e virou-se para falar com alguém. Ao fazê-lo, fitou-a e, em seguida, avançou lentamente na sua direcção. Era o capitão William Quinn, de Cu Chi, e tinha um ar tão elegante ao aproximar-se que Paxton sentiu, involuntariamente, que o coração lhe batia com mais força.

- Olá - cumprimentou-a, como se a esperasse. Exibia um sorriso calmo, indicativo de que raramente tinha pressa. Parecia sempre descontraído e despreocupado e emanava, todavia, bem do fundo, uma tensão quase eléctrica. - O que a traz aqui?... Está com um aspecto muito mais limpo do que na última vez que a vi - acrescentou, com um sorriso.

Paxton tinha a cara coberta de sujidade quando mergulhara no solo, tapada pelo corpo dele, a fim de evitar a granada de mão. E, agora, tinha um vestido de linho branco e calçava sandálias vermelhas.

- Obrigada. Ando a escrever um artigo sobre os roubos nos Correios de artigos que reaparecem, misteriosamente, no mercado negro.

- Oh, isso! - replicou com uma expressão intrigada. - Se conseguir solucionar esse problema, recebe a Medalha de Honra do Congresso. No entanto, penso que muita gente daqui está interessada em que isso não aconteça. Está a falar de dinheiro em grande.

- Estou a perceber. Afastou-se de Cu Chi por algum tempo?

- Apenas para uma rápida entrevista com o general - explicou com um encolher de ombros despreocupado. - Estava a pensar regressar esta noite.

. Fez uma pausa e ela ignorava porquê, mas susteve a respiração, à espera do que se seguiria. Não queria interessar-se, mas fazia-o. Sentia-se tão atraída por ele que quase não dizia coisa com coisa na sua presença. Levava-a a sentir-se terrivelmente jovem e, noutras circunstâncias, quase se teria achado tonta.

- Sei que isto é em cima da hora - prosseguiu tranquilamente. - Mas há alguma hipótese de querer comer qual-

quer coisa rápida, antes de eu voltar? Não estou com uma pressa por aí além. - Fitou-a bem no fundo dos olhos, e a enorme força que emanava quase a fez tremer. Ele possuía uma estranha combinação de firmeza e suavidade a que era difícil resistir.

- Gostava muito - respondeu, e o coração acusou.

Ele pareceu satisfeito e, depois, reflectiu por momentos.

- E que tal se fôssemos ao clube de oficiais da base comer um hamburger e um batido de leite? Tem andado a apetecer-me toda a semana - confessou com ar de miúdo, e ela riu.

Acompanhou-a pela base, enquanto conversavam alegremente sobre Saigão e o Caravelle, o hotel em que ela estava hospedada, e a universidade em que estudara. Explicou que tinha jogado futebol em West Point, no que era fácil acreditar depois do mergulho que dera naquele dia para a salvar da granada de mão.

Quando esperaram no clube, ouviam-se os Beatles na máquina de discos e muita gente estava a dançar. Pairava uma atmosfera familiar americana e sentiu subitamente saudades pela segunda vez, desde que chegara. A primeira fora quando falara com o pai de Peter, em São Francisco.

Mandaram vir hamburgers e batatas fritas. Ela bebeu uma Coca-Cola e ele uma cerveja, e ficaram a ver as pessoas que dançavam e a ouvir a música. Aos Beatles seguiu-se I Cant Get No Satisfaction, a canção favorita de todos e Proud Mary, que Paxton gostara quando estava em Berkeley.

- Quando se licenciou? - inquiriu ele, enquanto ouviam música e conversavam. ali parecia mais novo, como se se tivesse liberto da pressão e pudesse descontrair-se. Paxton deixou de sentir aquela tensão subjacente. E riu ante a pergunta dele.

- Não o fiz - redarguiu com um sorriso malicioso. Devia ter-me licenciado em junho, mas desisti.

- Perfeito! - exclamou com um sorriso. - Em perfeita sintonia com toda a sua geração! - Troçava dela com um ar despreocupado e tudo deixara de parecer tão dramático. O facto de ter ou não uma licenciatura não tinha a mínima importância.

Na Primavera passada, fui pressionada por uma série de acontecimentos e... não sei... Fiquei desiludida...

_ E agora? - insistiu, fitando-a bem de frente. Pouco lhe interessavam os seus tempos de estudante. Estava interessado nela, como adulta. Encontravam-se num mundo de adultos cheio de vida real e de premência e de pessoas que morriam de um momento para o outro, quer tivessem ou não frequentado a universidade.

- Deixou de parecer muito importante.

- O Vietname faz-nos isso - observou num tom enigmático, saboreando a cerveja, e Paxton tentou desviar a atenção do facto de ele ser tão bem-parecido. Afinal, era um homem casado. - As coisas com que nos preocupávamos deixam de interessar muito, a casa, o carro, todas as pequenas tretas que dantes eram o nosso mundo. E as coisas que se tinham como garantidas interessam muito ... pouco... É com as pessoas que nos preocupamos aqui ... Por elas é que nos mantemos vivos. - Não desviou os olhos por um só instante. - Por vezes, a pátria parece muito distante e é supostamente por ela que todos lutamos.

- E é por ela que luta? - inquiriu num sussurro.

- Já não tenho a certeza. Não tenho a certeza da razão por que lutamos aqui, se quer saber a verdade. È a minha quarta vez... e juro-lhe que ignoro porque o faço. Supostamente, deveríamos estar a conquistar o coração e a mente das pessoas, mas tudo isso é uma treta, Paxton. Não estamos a conquistar nada. Elas só vêem que lhes matamos o Povo e lhes destruímos o país. E têm razão.

- Então porque insiste? - retorquiu tristemente. Continuava a querer saber o que levava as pessoas a oferecerem-se como voluntárias para estar ali. Ninguém sabia realmente porque se encontrava no local, à excepção dos jovens que haviam sido recrutados. Os outros pareciam ignorar o motivo e, se alguma vez o tinham sabido, haviam acabado por esquecer.

- Mantenho-me aqui... porque estão a matar rapazes americanos. E, se ficar, talvez possa protegê-los. Talvez tenha feito o que faço o tempo bastante para saber como fazê-lo um pouco melhor. Ou talvez não - suspirou, acabando de beber a cerveja. - Talvez isso não contribua para a porra de coisa nenhuma.

Era um pensamento desalentado, mas todos o tinham formulado em qualquer altura. Todos, num dado momento, sentiam que a sua actividade de nada servia.

- É uma rapariga corajosa - replicou em seguida, lembrando-se de como se dispusera a descer ao túnel. - Nunca ninguém que visitou a base o fez. De qualquer maneira, nenhuma mulher. E a maioria dos homens tem um medo de morte, embora não o confesse. - Os olhos emitiam um brilho de admiração.

- Obrigada. Talvez eu seja estúpida.

- Talvez todos sejamos - redarguiu suavemente. Perdera mais dois homens, um dia depois de ela se ter ido embora, incluindo o jovem operador de rádio, cujo nome de manobra era «Tonto». Mas ocultou-lhe a informação. Não eram a altura nem o local indicado para tal e, de qualquer maneira, não interessava.

Saíram para o ar quente da noite e passearam durante algum tempo. Pelo menos na base, estavam relativamente a salvo. À excepção de que, até mesmo aqui, havia ocasional mente bombas ou atiradores.

- Um dia, agradar-me-ia mostrar-lhe um pouco deste país. É um bonito lugar, até mesmo agora. - Havia alturas em que realmente o amava.

- Bem gostaria. Na semana passada estive em Bien Hoa. Quero ver mais, mas ainda não sei bem como me movimentar.

- Poderia mostrar-lhe - redarguiu em voz baixa e, em seguida, virou-se na sua direcção. - Não sei bem o que fazer consigo - acrescentou, com uma expressão confusa. - Nunca... Nunca conheci ninguém assim. - Paxton sentiu-se elogiada e atraída por ele e também não sabia o que responder.

- E a sua mulher? - Decidiu ser franca com ele e queria que ele fosse honesto com ela. Achava-o capaz disso.

- Somos casados há dez anos, desde que me licenciei pela Point. Temos três filhos. Três raparigas, curiosamente - sorriu. - Sempre pensei que teria rapazes. E ela está farta do exército até à ponta dos cabelos. Também estava no exército, tal como eu, e julguei que soubesse no que se tinha metido, mas não foi esse o caso. Ou talvez soubesse e não lhe passasse pela cabeça que viria a fartar-se a este ponto. Agora, quer que eu volte para casa, mas ainda não me sinto preparado.

- Ama-a? - inquiriu Paxton fitando-o bem no fundo dos olhos. Desejava saber quem era aquele homem e ele desejava dizer-lhe.

- Amava. já não sei. Encontramo-nos em Tóquio algumas vezes por ano, ou em Hong Kong e discutimos o futuro. Quer que arranje um emprego e não estou certo de ser capaz. Tenho trinta e dois anos e o que é que se pode oferecer, com os diabos? O facto de se andar a rastejar quatro anos em túneis dos vietcongues? O facto de não se ter pisado nenhuma mina? O facto de se ter protegido devidamente os homens a seu cargo? Em que é que isso me tornaria? Um bom director de um acampamento de escuteiros? Ignoro. Fui treinado para isto. Acho que está aí a resposta - concluiu tristemente. - Sou um assassino treinado.

- Quantos homens salvou desde que está aqui? - replicou Paxton, calmamente. - Não é realmente o que faz melhor? Salvar os seus homens de serem mortos pelos outros?

- Talvez - anuiu.

Ela era uma jovem muito perspicaz, o que lhe agradava. Agradava-lhe também a inteligência, a franqueza, a coragem e a beleza dela. Era o pólo oposto de Debbie. A mulher passava o tempo a queixar-se e lamuriava-se por causa das miúdas, da casa onde viviam, dos pais dela, dos dele, do Vietname e do salário, até ele já não poder aguentar mais. Desejava algo mais, mas ainda não sabia o quê. Ou não o soubera. Até à semana anterior, quando conhecera Paxton.

- Quero que saiba uma coisa - replicou, querendo ser honesto com ela. - Andei com algumas mulheres. Nada de importante. Umas enfermeiras... uma Vaca em Long Binh... Uma rapariga de São Francisco uma vez... mas tudo dentro da máxima honestidade. Elas sabiam que eu era casado e se tratava de um mero encontro. Mas... nem sequer sei se gosta de mim,... Isto é diferente... Nunca conheci uma mulher assim... - E queria que ela o soubesse.

Paxton sorriu sob a luz em que se encontravam e, sem pensar, estendeu a mão e tocou-lhe na face.

- Obrigada. - Aquele gesto fez com que os olhos dele se enchessem de lágrimas. Há tanto tempo que ninguém lhe tocava daquela maneira que quase se esquecera de como era.

- Acho que estou apaixonado por si. Será possível para um homem adulto apaixonar-se por uma jovem num lugar destes e resultar em algo de bom? - Não via como e, todavia, existia uma intensidade na situação Ah, a sensação de que a vida era o momento presente.

- Não sei - respondeu, momentaneamente triste, pensando em Peter. E isto era tão diferente. Era algo momentâneo, sem promessa de mais nada, sem amanhã e provavelmente sem futuro.

- Nunca pensei que poderia deixar a minha mulher - replicou honestamente, enquanto passeavam. - E não tenho a certeza de vir a fazê-lo. Somos casados há muito tempo e amo as minhas filhas.

- Quantas vezes as vê? - inquiriu Paxton.

- Não muitas. Da última vez, ela levou-as a Honolulu, mas foi duro. Agora, somos praticamente estranhos. Esta coisa aqui foi dura para as crianças e para ela, julgo. Pelo menos, não corro muitos riscos.

- Não foi essa a ideia com que fiquei no outro dia.

Ele encolheu os ombros. Aos seus olhos, não tivera importância.

- Sabe o que quero dizer - redarguiu. - Cos diabos. Os rapazes sobem nos aviões, são abatidos pelo Charlie e, de um momento para o outro, ficam prisioneiros de guerra. Na maioria do tempo, estou muito para trás das linhas de combate.

Ambos sabiam que ali não havia linhas claramente definidas. Virou-se para ele, sentindo que tinha uma palavra a dizer-lhe.

- Não quero nada. Não tem de me fazer promessas Não espero que me diga que vai obter um divórcio para que eu ande consigo. Ainda nem sequer nos conhecemos bem Porque não aguardamos para ver o que acontece?

- A sério? Nada de promessas? Nem de acordos? Nem...

«Amar-te-ei até morrer»? - replicou, rodeando-lhe suavemente os ombros com o braço. Nessa altura, ela parou, ergueu o rosto na sua direcção.

- Promete apenas que não morres. É tudo o que peço. combinado? - perguntou, erguendo os olhos para aquele homem altíssimo e de ombros largos.

- Prometo.

- Bom. Então, tudo bem.

Prosseguiram caminho, rindo e conversando, e passaram por outros casais, que faziam o mesmo. Ela interrogou-se sobre se ele se preocupava que outras pessoas os vissem, mas não parecia ser esse o caso e, decorrido algum tempo, parou e soltou u ma gargalhada ante o olhar dela.

- Onde vamos, com mil diabos? Ia jurar que já percorremos esta base de uma ponta à outra.

Paxton riu também. Usufruía da companhia dele e achava toda a situação um pouco louca.

- Acho que devia voltar ao hotel - retorquiu.

- Eu sigo-te - anuiu tristemente, pois detestava a ideia de ter de a deixar. - Que tal uma bebida no último piso? - Ambos sentiam que tinham algo a celebrar, mas ela ainda não sabia bem o quê.

Paxton sorriu, aprovou a ideia e interrogou-se sobre se poderiam encontrar alguns dos outros jornalistas, mas era-lhe indiferente. Não tinha segredos.

Ele foi atrás do carro que ela alugara, um Renault antigo e a cair aos bocados. Estacionou no exterior do hotel e seguiu-a até ao interior, rodeando-lhe o ombro com o braço, quando subiram até ao último andar.

Fora uma tarde extraordinária para ambos, e Paxton sentia-se como se tivesse percorrido um longo caminho em pouco tempo. E era mais do que a distância de São Francisco a Saigão. Sentia-se como se a tivessem arrastado de uma outra vida para aquela e ainda não conseguia definir emoções.

Sabia que Bill Quinn a atraía e seria incapaz de se afastar dele nesse momento; e, no entanto, também existia o' medo e--- num estranho e remoto lugar no coração morava a tristeza. Havia outras pessoas na vida deles: ele ainda tinha a mulher e ela debatia-se com a memória de Peter.

Contudo, agora estavam ali e ela sentiu repentinamente que precisava dele tal como ele precisava dela e talvez isso fosse mais importante.

- Paxton?

Pronunciava o nome cuidadosamente, agora num outro contexto e ela fitou-o com um sorriso tímido.

- Sim?

- Por minutos, ficaste com uma expressão muito séria. Sentes-te bem?

- Sinto - retorquiu com um aceno de cabeça. - Estava apenas a pensar.

- Não o faças - sorriu.

Roçou-lhe depois os cabelos com os lábios, ao chegarem ao último piso. Tom Harc[good estava presente e Jean-Pierre acabara de chegar de Hong Kong, mas estava com uma rapariga. E, a um canto, Paxton avistou Ralph, calmamente sentado e a conversar com uma bela eurasiática. Sobressaltou-se ao vê-lo. Não o encontrara durante toda a semana e limitara-se a deixar-lhe uma mensagem na AP nessa manhã.

Bill Quinn também o vira e conduziu Paxton até junto dele. Ralph apresentou-a à companhia.

- France Tran... Paxton Andrews. - Ela era uma mulher extremamente bonita e, quando falou, Paxton apercebeu-se de que tinha sotaque francês. Devia ter mais ou menos a idade de Paxton, vestia um ao dai branco e parecia estar perfeitamente à vontade.

- Olá, France - cumprimentou Bill. - Como está o An?

- Óptimo - sorriu, brindando Ralph com um olhar terno. - É um monstrinho.

- É mesmo - concordou Ralph. - Na semana passada, meteu-me uma rã dentro das botas. Por sorte, verifiquei antes de as calçar.

Ralph riu, e Paxton surpreendeu-se ao descobrir aquela faceta dele, de que nunca suspeitara. Não estava muito certa de a quem se referiam, mas deduziu que se tratava de uma criança e, obviamente, o filho daquela mulher. No entanto, interrogou-se, de súbito, sobre se ela e Ralph seriam casados.

E conversaram mais uns minutos e, em seguida, ela e Bill sentaram-se. Tentava não parecer perturbada, mas inclinou-se e perguntou:

- Quem é?

- A France? - retorquiu, surpreendido por ela não a conhecer. Ela e Ralph pareciam tão íntimos. - Vive com o Ralph. Casou-se com um rapaz da Quadragésima Quinta Divisão. O An é o filho deles. - Pareceu ..hesitar e Paxton fitou-o, desejando saber o resto da história.

- Ele foi morto antes de o bebé nascer - prosseguiu Bill. - Agora, deve ter uns dois anos. E há um ano que ela está com o Ralph. Acho que vivem juntos, mas ele é muito discreto. Em Gia Dinh. - Paxton apenas sabia tratar-se de um subúrbio de Saigão.

- São casados?

- Não. A mãe dela era francesa e o pai vietnamita. Só lhe falei algumas vezes, mas parece ter ideias muito definidas sobre o casamento de raças diferentes. O exército fez-lhe a vida dura, quando o Haggerty morreu. Não sei bem se lhe deram a pensão de viúva e tentaram acusá-la de ser uma prostituta e de o An não ser filho deles.

- E a família dele?

- Nunca os informou que a desposara e acho que a família era bastante rígida. De qualquer cidade no interior de Indiana. Não a reconhecem, nem ao bebé.

- E o Ralph? - inquiriu Paxton, horrorizada. - Não casa com ela nem adopta a criança?

Bill sorriu ante a sua ingenuidade. A jovem desejava tudo bem organizado, mas nem sempre as coisas funcionavam assim ali.

- Talvez devesses perguntar-lhe - sugeriu.

- Ela é muito bonita - observou Paxton, que ficara impressionada com a sua óbvia gentileza e educação.

- Sim - admitiu Bill. - E inteligente. Mas se ele tentar levá-la para os Estados Unidos, será considerada igual às Prostitutas que param no Pink Nightclub.

- Basta olhar para ela, Bill. - Parecia exasperada, mas era ingénua e ele sabia-o.

- Talvez te baste a ti, Pax. Outras pessoas não vêem o problema assim. Para elas, estará sempre ligada aos que lhes mataram o filho, o noivo ou o irmão. Não vai ser fácil levar estas jovens no regresso à pátria.

- Mas ela é diferente! - arguiu Paxton em sua defesa, sem motivo nenhum.

- Para eles não é. - Ela não queria que fosse verdade, mas sabia que o era e sentia-se triste por aquela mulher, que mal conhecia. Sabia, contudo, que ele tinha razão. Nos Estados Unidos, a bela rapariga eurasiática seria uma «prostituta» como as outras.

Nessa noite conversaram durante muito tempo, primeiro sobre a guerra, depois sobre outras coisas, e ele não voltou a mencionar a mulher ou as filhas. Estava há tanto tempo no Vietname que começara a sentir-se preterido por todos. E ficou fascinado com tudo o que ela lhe contou sobre Berkeley.

Acompanhou-a até ao quarto, quando fecharam o bar e deixou-a à porta, sem a pressionar.

- Voltarei a Saigão daqui a uns dias - prometeu calmamente. - Telefono-te antes de vir.

E, sem mais uma palavra, inclinou-se e beijou-a, com suavidade, nos lábios. Depois afastou-se e, quando se foi embora, Paxton desejou pedir-lhe que se mantivesse vivo. No entanto, agora nem sequer se atrevia a pensar no perigo que se ocultava nos túneis de Cti Chi.


 

Bill Quinn regressou a Saigão três dias mais tarde. Telefonou a Paxton antes de ir e, quando chegou, tinha um ar elegante e impecável no uniforme militar. Paxton esperava-o no átrio.

Nas suas palavras tratava-se de um «encontro oficial» e a jovem sorriu ao vê-lo avançar na sua direcção, com um aspecto muito jovem, alto e bonito.

- Uau! - exclamou ao avistá-la.

Paxton soltara o cabelo e optara por um vestido de seda cor-de-rosa que trouxera de casa. Era muito curto, mostrava-lhe as pernas, e ela tentou esquecer que Peter sempre o apreciara.

Bill tinha feito reserva num restaurante próximo da embaixada, e ela sentiu-se muito adulta quando ele entrou na sua companhia e os conduziram a uma mesa no canto.

A sala tinha um ambiente francês, estava romanticamente iluminada e havia bouquets de flores perfumados em todas as mesas. Ali tinham finalmente escapado ao cheiro a gasolina. E encontravam-se rodeados de americanos em quase todas as mesas.

Paxton falou-lhe numa nova missão em que estivera com Ralph, próximo de Long Binh, e ele franziu o sobrolho enquanto a escutava.

- Acho perigoso. - Parecia francamente preocupado e interrogou-se sobre se agora deveria falar com Ralph.

- Também estar aqui o é. Não sejas pateta, Bill. Estou mais segura do que tu em Cu Chi.

- Uma ova! - exclamou, invadido por uma sensação de protecção e que até ele estranhava. Nunca se preocupava com o que Debbie fazia, nos Estados Unidos. Contudo, Debie estava em São Francisco e Paxton era dez anos mais nova e andava por Saigão, em busca de sarilhos.

- Andar à procura de vietcongues em túneis não é propriamente a minha noção de segurança - retorquiu.

Na verdade, forçara-se a não pensar no assunto durante toda a semana. E, quando fora a Long Binh com Ralph, este dera-lhe uma lição um tanto severa sobre «não confraternizar com as tropas», o que, de início, a divertira. Acabara, todavia, por perceber que ele falava a sério e ficara surpreendida.

- Como pode fazer uma afirmação dessas? - indagou.

Referia-se a France e ele sabia, mas não se demoveu.

- O meu caso é diferente, Pax. Sou homem. E o Bill Quinn é casado.

- E daí? Que importância tem? A mulher dele está a meio mundo de distância e nós também. E se todos estivermos mortos na próxima semana? Que importância terá, então?

No espaço de algumas semanas, aprendera a pensar como toda a gente em Saigão.

- E quando ele voltar para ela? - observara Ralph, calmamente. - Como se sentirá nessa altura? já teve um desgosto de amor na vida. Não chega?

- Não posso evitá-lo - respondera.

Desviara o olhar, sem querer dar justificações da sua vida amorosa a Ralph Johnson. Era seu amigo, mas não lhe cabia o direito de lhe indicar com quem podia ou não andar.

- Ainda não é tarde de mais para colocar ponto final no assunto. O Vietname é, contudo, um lugar estranho. As coisas assumem um carácter de seriedade com excessiva rapidez, ou por vezes nunca se tornam sérias quando deveriam, pois passamos metade do tempo com o pânico de morrermos e na outra metade vemos tanta gente a morrer que nada ou ninguém nos interessa. Não se envolva con, um soldado daqui, Paxton... Nem sequer com um correspondente. Sairá ferida. Temos todos uma ponta de loucura.

Estava a tentar avisá-la e falava a sério.

- E o que sou por estar aqui consigo? Também é um correspondente - defendeu-se, e ele sorriu. No entanto, ela ainda era muito jovem e não fora tocada pelos horrores que os outros tinham como certos.

- Ainda é nova aqui, Pax. Não é demasiado tarde. Estou a dizer-lhe que... não se envolva com o Bill. Ele é indivíduo fantástico e gosto dele. Mas seja o que for que aconteça, sairá magoada. Para quê expor-se?

- E a France? - retorquiu com intenção de o atacar, mas a expressão do rosto indicou-lhe que tocara num assunto proibido.

- Nada tem a ver com isto - redarguiu. Em seguida, meteu-se num helicóptero com uma equipa de reportagem durante as próximas três horas.

Quando regressou, nenhum deles voltou a abordar a questão e ela também não a mencionou a Bill nessa noite. De qualquer maneira, era tarde de mais para eles. Enquanto se mantinham sentados e a conversar, ele pegou-lhe na mão e falaram do tipo de coisas que as pessoas falam, quando tudo é novidade e o amor marca presença.

Estavam quase a acabar a mousse de chocolate que tinham encomendado para a sobremesa, quando uma bela rapariga vietnamita, vestida com um ao dai, entrou no restaurante e pousou uma braçada de flores. Paxton estava a pensar como eram bonitas no preciso momento em que Bill se voltou e a avistou.

Observou-a pelo espaço de um segundo, viu-a afastar-se e, depois, sem se deter com reflexões, agarrou em Paxton, arrancou-a à cadeira e puxou-a para baixo da mesa. Tapou-a com o corpo de encontro à mesa e, nesse instante, ouviu-se uma tremenda explosão.

Todas as janelas da frente do restaurante voaram em estilhaços e os corpos pareciam revolutear à volta deles. Durante um momento reinou o silêncio, depois soaram gritos e Paxton divisou uma parede de chamas que explodia à direita deles, ao mesmo tempo que Bill a agarrava e a arrastava pelo chão até onde podiam ver a luz no meio da escuridão.

Levou-a em segurança para a rua quando as sirenes começaram a fazer-se ouvir e todas as pessoas à volta deles estavam a gritar. Ouviam-se gemidos e gritos de dor e ele fez menção de a deixar em segurança na rua e precipitar-se para interior a fim de prestar ajuda, só que ela foi atrás.

Paxton tinha o braço a sangrar devido a um estilhaço que lhe rasgara o vestido, mas, à parte disso, saíra ilesa da explosão. Tinha as pernas arranhadas e o corpo dorido, mas regressou ao interior e ajudou a transportar uma mulher para fora. Ela gritava e não conseguia ver. Tinha o rosto e os braços cobertos de sangue, e Paxton viu-se restringida a confortá-la, enquanto aguardavam a chegada da ambulância.

Viu que Bill ajudava um homem a transportar dois homens para o exterior, mas ambos estavam mortos. E, por fim, a Polícia e os paramédicos tomaram a seu cargo a situação.

Era um espectáculo horrível; havia sangue e vidros partidos por todo o lado. Ela tremia dos pés à cabeça quando caminharam de volta ao carro e ele parou e a abraçou. Estavam os dois cobertos de sangue e ela começou a chorar quando Bill a beijou.

Era uma forma horrível de se apaixonar, um lugar terrível para se estar, uma guerra terrível o que os aproximara.

- O que estamos a fazer aqui? - perguntou ele num tom abalado. E não tanto pelo que vira, mas porque, se as coisas tivessem acontecido de uma outra forma, ela podia ter sido morta, sentiu, ainda mais intensamente, que não queria de forma alguma perdê-la. - Porque não estamos em qualquer sítio vulgar, como Nova Iorque, Maryland ou no Texas?

- Porque, se estivéssemos - sorriu Paxton por entre as lágrimas -, provavelmente não sabias que existo e estarias com a tua mulher. - Riu e secou as lágrimas, tentando esquecer o que tinham visto e pelo que tinham passado. - Ou algo no género.

- É um génio com as palavras, Miss Paxton Andrews - retorquiu, sorrindo também.

- Falo sempre verdade. É um dos meus grandes defeitos.

- E virtudes. Acho que não te amava tanto se não fosses assim. Uma das consequências de se estar neste sítio é o ódio que se cria a insignificâncias. É o que acontece sempre que volto aos Estados Unidos, entre missões - explico", quando entraram no carro dele. - já não consigo escutar mentiras, justificações, as coisas em que ninguém acredita e todos dizem. De certa maneira, torna-se mais fácil estar aqui.

«Pelo menos é o que acho», pensou relembrando o que tinha acontecido.

- Este tipo de coisas é muito frequente, não é? - inquiriu ela, referindo-se à explosão, e ele esboçou um aceno de cabeça. - Porque é que, sempre que estou contigo, acabo por ficar com o ar de quem andou a arrastar-se numa trincheira? - replicou depois, com um sorriso triste.

- Porque és louca bastante para estares aqui - concluiu, beijando-a de uma forma indicativa de que estava contente por ambos estarem vivos e nada ter acontecido.

Levou-a de volta ao hotel e, sem pronunciarem uma palavra, subiram ao andar de cima. Ele parara no bar para ir buscar uma garrafa de uísque e, quando Paxton abriu a porta do quarto, pousou-a em cima da mesa e virou-se para a olhar com uma expressão triste e cheia de amor.

- Queres que me vá embora, Pax? - quis saber. - Tomara providências para ficar no Rex, mas desejava estar ali com ela, enquanto pudesse, mas apenas se a jovem também o desejasse. - Vou-me embora, se o quiseres - rematou.

Paxton abanou a cabeça, sorriu e avançou lentamente ao seu encontro. Não estava bem certa do que iria fazer. Peter tinha morrido há quatro meses e pensara que lhe ficaria ligada para sempre. Mas, subitamente, ele parecia fazer parte de uma outra era, outro mundo, um lugar onde nunca mais estaria, e Bill Quinn era tudo o que lhe interessava.

- Não quero que te vás embora - pronunciou ternamente.

Ele inclinou-se, envolveu-a nos braços e ela correspondeu com a paixão nascida da perda, do medo e da tristeza. Bill acariciou-a com a intensidade de quem arrisca a vida todas as manhãs.

Quase tinham morrido nessa noite e talvez morressem no dia seguinte, mas agora, nesse instante, estavam vivos e pertenciam exclusivamente um ao outro.

Ele deitou-se ao lado dela na cama e tirou-lhe a roupa com gestos suaves. O vestido ficara reduzido a tiras de seda devido à explosão e havia sangue no uniforme dele; e tudo o que pretendiam era esquecer o passado, a dor e a solidão que os unira. Ele sentiu a pele acetinada e soltou um leve gemido.

- Oh, meu Deus, Paxi És tão bonita... - sussurrou.

Não conseguia parar de a acariciar, abraçar e beijar. Ela estendeu os braços num chamamento e quando ele a penetrou havia lágrimas nos olhos dela, não pelo passado e pelo que tinham perdido, mas pelo que tinham descoberto juntos.


 

Três semanas depois, Paxton fez outra viagem a Cti Chi na companhia de Ralph. Nessa altura, a Convenção Democrática explodira numa orgia de loucura em Chicago, e Harrinian continuava a presidir a conversações de paz sobre o Vietname, em Paris.

A ironia de toda a situação surgiu como uma piada de mau gosto a Paxton, quando leu o telex na redacção da AP, ao encontrar-se ali com Ralph antes das «tolices das cinco». Nada parecia ter sentido, à excepção do que acontecia ali e a vida que agora partilhava com Bill.

Apenas lhe interessava que ele estivesse em segurança e nada acontecesse a qualquer deles. Parecia-lhe um milagre de cada vez que ele vinha, passar a noite com ela ao hotel, o que era bastante frequente.

Ralph absteve-se de fazer comentários sobre o assunto durante a maior parte do caminho até à base de Cti Chi e, por fim, pouco antes de chegarem, virou-se na sua direcção e fez uma pergunta:

- Isso entre vocês é mesmo a sério, não é?

Paxton esboçou um aceno de cabeça, pois não desejava adiantar muito em frente do motorista. Ralph não tinha mencionado nomes, mas os boatos circulavam, rapidamente, de Saigão para todas as bases. Quem andava a dormir com quem e porquê era um tema popular de conversa. E havia muito de que falar, como doenças venéreas e uma série de doenças tropicais.

- Sim. Pode ser - anuiu. - É tudo muito recente e ainda não fizemos planos. Há algumas coisas a resolver, se... Se... - « Se durar. » Ralph sabia o que ela pretendia dizer. Abanou a cabeça com um ar de censura e olhou pela janela.

- São ambos loucos. Mas decerto o sabem.

- Porquê? - Era ainda tão ingénua e cheia de esperança; ele deu por isso quando se virou para a olhar.

- Porque sairás magoada, Pax. Todos saem. É impreterível. Não preciso soletrar-te. És uma rapariga crescida. Conheces as opções e a maioria não é agradável.

Ele referia-se a que Bill voltaria para a mulher quando fosse, eventualmente, mandado de barco para casa ou poderia ser morto. Também poderia, sem dúvida, sobreviver e deixar Debbie. Ralph não achava, contudo, esta hipótese muito provável.

- Passaste tempo de mais aqui. Tornaste-te demasiado cínico.

- Talvez - concordou, acendendo um cigarro. O pior era que acabara, na verdade, por gostar de Ruby Queens, a marca local. - já vi o filme.

- Talvez não tivesses assistido ao final certo. Talvez não te tivesses demorado o suficiente. Não sabes tudo.

- Escuta - tentou de novo, por gostar dela. - És esperta, mais esperta do que a maioria. Estás a fazer um excelente trabalho. Escreves muitíssimo bem. Poderias mesmo vir a ganhar um Pulitzer algum dia.

- Claro - redarguiu, divertida.

- Bom. Talvez não um Pulitzer. No entanto, tens qualidade e sabe-lo. Para que necessitas desta dor de cabeça? Só chegaste há seis meses. Preserva-te até voltares a casa e encontrares o «príncipe encantado» por detrás de uma secretária, algures numa bela e segura cidade como Milwaukee.

- Não posso evitar o que aconteceu - vincou, fitando-o, determinada. - Aconteceu. Existe. É impossível fingir o contrário. E porque havia de fazê-lo? É porque estavam onde estamos agora. Isto é real. O resto não passa de uma treta.

- E se o resto é que for real e isto não passar de uma treta?

- Nesse caso, estaria errada. Nunca erraste, Ralph?

Não queria mencionar novamente France, mas ele tinha-se envolvido com ela pelas mesmas razões. Ah, era duro, todos se sentiam assustados e as pessoas morriam à sua volta. Que melhor antídoto para todos do que apaixonar-se por alguém, quer se tivesse ou não essa intenção? Como é que ele não compreendia?

- Deixa-me em paz - acrescentou, virando-se de novo para ele, que apagava o cigarro. - Sei que tens boas intenções. Mas não compreendes.

- Talvez não - retorquiu, tristemente.

E quando os viu juntos, depois, nessa mesma tarde, interrogou-se sobre se ela estaria certa e ele não. Havia, inegavelnente, algo de muito intenso, terno e belo entre eles. Tentavam ocultá-lo de todos, mas tornava-se difícil. O que sentiam um pelo outro era tão forte, em certos aspectos tão resico e, em simultâneo, tão honesto, tão puro, tão apoiado na mútua admiração, ternura e amor que era quase impossível dissimulá-lo.

Tony Campobello, o sargento de Bill, também se apercebeu e sentia-se furioso, o que até ela notara. Tratava-a com um mínimo de delicadeza e, nessa tarde, quando ela apareceu, dirigiu-se num tom gelado ao superior. Bill limitou-se a um erguer de sobrolho surpreendido.

Quando, todavia, o encontraram uma tarde em Tan Son Nhut, junto aos Correios, Pax não conseguiu resistir a abordá-lo, enquanto Bill estava a pagar.

- Lamento... - começou, mas Tony cortou-lhe a palavra.

- O quê?

- O que sente - respondeu francamente, pois ele não fizera segredo da questão.

- O que sinto nada tem a ver com isto - redarguiu.

- Nesse caso, o que o irrita tanto? - insistiu, fitando-o bem nos olhos, o que era mais fácil do que com Bill, pois Tony era praticamente da sua altura. - Ou será que não gosta de mim?

- Estou-me nas tintas para si. - Estava descontrolado e tinha consciência disso, mas não se importava. Odiava-a e queria que ela soubesse. - É ele que me preocupa. Salvou-me a pele vezes sem conta. Salvou mais homens neste maldito país do que conseguirá contar e está a pô-lo em risco, sem mesmo o saber.

Paxton ficou chocada ante aquelas palavras e não compreendeu.

- Como pode fazer uma afirmação dessas? - indignou-se.

Nada fizera para lhe pôr a vida em risco e, bem pelo contrário, queria que ficasse vivo, nem que tal significasse voltar para Debbie. Mas não queria que ele morresse. Aquele homem estava louco.

Sabe o que é preciso para se ficar vivo aqui? Tem de se rastejar sobre o ventre diariamente e pensar apenas em si próprio. Se se pensar de mais no camarada do lado e não em nós mesmos, é-se um homem morto. Acaba tudo num segundo - vincou.

- Sabe no que ele pensa, quando lá está? - prosseguiu. - Não em nós, nem nele, ou no que faz, não em quem está no túnel ou se há um tipo nos arbustos à nossa espera... Pensa em si e põe-se a sorrir. E sabe qual será a consequência? Pisará uma mina ou morrerá com os miolos estoirados por um atirador. E sabe de quem será a culpa? Sua. Pense nisto na próxima vez em que ele lhe tocar.

No momento em que pronunciou estas palavras, Bill aproximou-se ao encontro deles com as compras e um sorriso nos lábios.

- Olá Tony... já conheces a Paxton, não é verdade? - Conhecia, mas não desejava conhecê-la. Algo incomodou Bill no olhar de Paxton quando o sargento respondeu: «,Sim, claro», saudou-os e foi-se embora.

Paxton não mencionou uma única palavra a Bill do que ele acabara de lhe dizer, mas sentiu-se assustada a noite inteira, deitada ao lado de Bill, a pensar no aviso do sargento.

Estariam certos? Faria mal em amá-lo? Iria destruí-los a ambos? Parecia difícil de acreditar, pois todos tinham alguém, ainda que por um momento. E embora Ralph não parasse de afirmar que ela não tinha direito a amar Bill, vivia com a rapariga eurasiática em Gia Dinh... e ia ter com ela à noite, não era? Mas porque é que ninguém apoiava a sua relação com Bill? Especialmente o irritado e jovem sargento.

- Estiveste muito calada esta noite - observou Bill, no dia seguinte.

Tinha três dias de folga, apercebera-se do silêncio e vincara-o, mas ela não lhe contou o que Tony dissera. Limitou-se a responder que estava preocupada com uma reportagem. Foram passar esse fim-de-semana a Vung Tau, a encantadora cidade costeira, que continuava a ser uma requintada estância com belas praias.

Paxton pensou que nunca fora tão feliz na sua vida. Por vezes, conversavam sobre o futuro, mas o menos que podiam. Nada havia para falar agora, à excepção do tempo que partilhavam. E, quando ele regressasse aos Estados Unidos, teria de decidir o que fazer relativamente a Debbie. Ambos deviam regressar mais ou menos na mesma altura.

Ela prometera voltar no Natal e ele acabava o tempo de serviço um mês depois. Deveria voltar a São Francisco no fim de janeiro e os dois achavam que ele já estivera o suficiente no Vietname. Quatro missões bastavam. Ia voltar a casa e esquematizar a sua forma de vida.

- Achas mesmo que conseguias suportar ser noiva de um militar? - perguntou-lhe, na cama, uma noite, em Viing Tau e falava mesmo a sério.

- Acho que sim - sorriu. - Podia escrever para o Stars and Stripes.

- És boa de mais para eles. - Embora dessem informação e toda a gente os lesse.

- Uma ova - replicou, rolando na cama, e ele beijou-a.

Passaram uns dias fantásticos em Vung Tau e voltaram lá em Outubro. E, pouco depois, ele viajou até Hong Kong para estar uma semana com Debbie. Fora algo de que ele e Paxton haviam falado demoradamente e sentira-se tentado a cancelar. No entanto, Paxton defendia que ele devia ir, embora lhe custasse. Era algo que achava que devia a Debbie. Aquela não era uma altura de confronto.

Porém, quando regressou, ficou de mau humor durante semanas. Debbie pressionara-o em relação às suas atitudes e à guerra. Envolvera-se, recentemente, com um grupo antiguerra e chamou-lhe assassino. Acrescentou que queria um carro novo e estava farta do exército.

Nessa altura, Nixon tinha sido eleito e as notícias que Paxton recebeu de casa foram boas. A mãe parecia bem, embora ansiosa por vê-la no Natal. Gabby escreveu a informar que estava outra vez grávida. As suas vidas pareciam seguir o curso normal, mas Paxton era incapaz de se imaginar com eles. Depois de cinco meses no Vietname, sentia-se como se estivesse estado a viver noutro planeta.

E pôs Bill ao corrente do que pensava, numa noite em que foram jantar fora.

- Sinto-me culpada, só de dizer isto.. Mas não me apetece ir a casa passar o Natal - afirmou.

Queria ficar com ele no Vietname. Aos seus olhos, significava mais do que ir a casa e estar com a família, em Savannah. Tratava-se de algo que odiara durante anos e agora seria pior. Tornara-se adulta de mais num ano. E era tudo diferente.

Além disso, um Natal em casa sem Queenie seria verdadeiramente horrível. E o regresso aos Estados Unidos implicava uma vaga de recordações dolorosas de, Peter. Embora agora pensasse menos no assunto, sentia que uma parte dela o amaria eternamente. As coisas eram diferentes, mas até mesmo Bill o compreendia.

- Nesse caso, porque não passas o Natal aqui? - sugeriu.

Sabia que devia tê-la encorajado a ir para casa, mas sentia-se egoísta e não queria fazê-lo. Seria o último período calmo, antes que ele regressasse a casa no mês seguinte e tentasse imaginar o que faria quanto a Debbie.

- Falas a sério? - retorquiu Paxton, fitando-o, desconfiada.

- Claro.

- Então, está combinado! - exclamou, inclinando-se e beijando-o.

Regressaram ao hotel e fizeram amor durante o resto da noite. E, de manhã, Paxton enviou um telex para o Sun: «Não posso ir a casa em Dezembro como planeado. Grandes reportagens aqui. Regresso 15 janeiro. Por favor, avisem família em Savannah. Paxton Andrews.»

Sabia que causaria uma certa agitação, mas era-lhe indiferente. Queria estar com Bill e talvez este fosse o seu primeiro e último Natal. Se ele resolvesse pôr fim a esse caso, pelo menos restar-lhes-ia isto. Encarava a realidade de uma forma muito filosófica. Mas tinha de ser assim, quando se vivia em perigo constante.

Na véspera de Natal, foram juntos à igreja e, na manhã seguinte, acordaram nos braços um do outro. Ele comprara-lhe uma camisola nos Correios e uma bonita pulseira de ouro em Hong Kong quando estivera lá com Debbie, em Outubro. Tinha um único e pequeno diamante e ele próprio a pôs no braço dela, beijando-a.

Paxton tinha-lhe comprado um bonito relógio nos Correios, alguns livros que sabia agradarem-lhe e que mandara vir dos Estados Unidos e uma roupa interior divertida que descobrira no mercado negro. Era o melhor de que podiam dispor, dadas as circunstâncias. Mas a pulseira que ele lhe oferecera era especial e gravadas, por dentro, havia as iniciais dos dois e Natal 68.

O primeiro de muitos - observou com um sorriso enigmático, beijando-a.

Nessa tarde, foram ao espectáculo de Natal de Martha Raye e todos gostaram. Bob Hope estava em Da Nang nesse dia, sendo aplaudido por dez mil soldados, homens e mulheres. Ann-Margret foi o êxito do show, embora Paxton, achasse que a exibição de símbolos sexuais apenas servisse para provocar os homens. Mas eles adoraram. E, no final do espectáculo, o general Abrams pregou a Medalha de Serviço Civil na camisa de Hope e a assistência prodigalizou-lhe uma estrondosa ovação.

Paxton e Bill encontraram Tony Campobello no show de Martha Raye e Ralph estava a fazer a cobertura para a Associated Press. Levara consigo France e o seu filho An, que era uma criança adorável e se parecia com ela.

Bill e Paxton trocaram alguns dedos de conversa com France e, depois, prosseguiram caminho. E não voltaram a vê-los depois disso. Havia um mar de gente. E também não puseram mais os olhos em Tony ou qualquer dos homens de Bill. Ele denotara uma frieza ostensiva ao deparar com o seu capitão e Paxton. Ainda não ultrapassara os seus sentimentos em relação a ela e não se esforçava por ser simpático. Não era, porém, importante. Dentro de um mês, ela e Bill regressariam a casa. Falavam muitas vezes de como seria estranho estarem na mesma cidade e separados.

. - Não será por muito tempo - repetia ele, mas Paxton interrogava-se constantemente sobre o que aconteceria quando voltasse a ver as filhas e estivesse, de facto em casa. Tinha a estranha sensação de que ele não estaria pronto para as deixar, apesar das suas palavras no calor da paixão.

Passaram uma tranquila véspera de Ano Novo no clube dos oficiais e foram tomar uma bebida ao bar do último piso. Depois, fizeram amor no quarto dela e começaram o ano com ternura e paixão.

Na manhã seguinte, ainda se encontravam nos braços um do outro, beijando-se e sussurrando palavras de amor. Dormiram quase toda a tarde e à noite ele teve de voltar a Cuchiar para se apresentar ao serviço. Bill voltaria a Saigão dali a dois dias e ela tinha de escrever mais um artigo para o sun.

A sua coluna, «Mensagem do Vietname» estava a ter muito sucesso e muitos leitores escreviam cartas favoráveis, algumas das quais lhe eram enviadas para Saigão. Proporcionava às pessoas um relato honesto do que ali se passava. E a sua honestidade e integridade pareciam reflectir-se na escrita.

Ed Wilson estava muito satisfeito e colhia agora todos os louros de ter sido o primeiro a mandá-la para o Vietname. Sentia, bizarramente, que vingara o seu filho e que Peter não morrera em vão. Ela fora até lá para contar a história dele e a de meio milhão de rapazes semelhantes. Paxton sentia-se comovida pelas cartas que recebia em resposta à sua coluna. Algumas vezes, tentava responder-lhes, mas na maior parte do tempo estava demasiado ocupada.

O artigo que tinha de escrever no dia seguinte referia-se aos pedintes de rua de Saigão e havia uma outra peça que se referia a Hue. E ainda uma outra sobre Martha Raye e o espectáculo de Bob Hope.

Passou uns dias preenchidíssimos e ainda estava sentada à máquina de escrever às oito horas na noite em que Bill deveria chegar. Estava atrasado, mas ela sabia que, por vezes, se tornava difícil escapar. E quando Tony Campobello sabia que ia encontrar-se com ela, fazia frequentemente o impossível para o deter. Era um jogo a que gostava de se dedicar e Bill mostrava-se paciente, mas a constante atitude hostil do sargento continuava a irritar a jovem.

às dez horas, voltou a consultar o relógio e sentiu-se ligeiramente preocupada, mas sabia que na qualidade de oficial no comando das operações tornava-se muitas vezes impossível planear as deslocações. Sobretudo nos últimos tempos. Havia tanto que fazer antes de partir dali a três semanas e estava a tentar treinar um colega acabado de chegar dos Estados Unidos, o que Paxxie sabia não ser fácil.

Às onze horas, olhou de novo para o relógio e começou percorrer o quarto de um lado para o outro. E à meia-noite estava seriamente preocupada. Resolveu descer à recepção e indicou à telefonista onde estaria, se Bill lhe telefonasse. Pensou que ele talvez tivesse encontrado alguém conhecido à entrada e pudesse estar no bar, o que acontecera uma ou duas vezes.

Não viu, contudo, ninguém ali nessa noite, nem mesmo Nigel. E sabia que Ralph viajara com France e An para passar o fim-de-semana de Ano Novo em Hau Bon, com familiares dela.

Deambulou, ao acaso, no átrio durante muito tempo e ele continuou sem aparecer. Não podia fazer mais nada. Era demasiado tarde para tentar telefonar para a unidade. Voltou ao quarto e ficou a pé a maior parte da noite, interrogando-se sobre se teria surgido algum problema que o impedisse de viajar, mas parecia-lhe pouco provável.

Por fim, adormeceu às quatro da manhã e acordou de novo ao alvorecer. Ele continuava sem dar sinal. Esperara que pudesse aparecer enquanto ela estava a dormir e meter-se na cama ao seu lado, pois tinha a chave e fizera isso mais do que uma vez, quando conseguia escapar-se inesperadamente e surpreendê-la.

No entanto, não houve nenhuma surpresa nessa noite. A outra metade da cama estava vazia quando acordou e, às sete e meia da manhã, foi até à redacção da AP. Verificou os telexes para ver se acontecera algo durante a noite, mas, para além de uma bomba de plástico que explodira num bar e de um combate de rua em Cholon, tudo estivera calmo.

Sabia que Ralph devia ter voltado tarde na noite anterior e telefonou-lhe, assim, da redacção da AP uma hora mais tarde,

- Sei que parece uma estupidez... - Sentia-se idiota por lhe telefonar, mas não tinha mais ninguém com quem falar - Mas o Bill não apareceu na noite passada. Tenho a certeza de que não aconteceu nada de mal, mas...

- Céus, Pax! - exclamou, virando-se na cama com um gemido. - Queres que lhes telefone?

_ Sim.

- Porque não o fazes? Tens as mesmas credenciais do que eu, com mil diabos!

- Uma ova. Toda a gente sabe que ando com o Bill .

Apesar da prudência inicial, tornara-se um dos segredos mais divulgados de Saigão.

- E daí?

- Daí, não me agrada o papel de namorada intrometida. Só quero saber se ele está okay e, depois, apareça quando aparecer, tudo bem - redarguiu.

Nunca lhe ocorrera que pudesse estar com outra mulher, A sua relação não era nada desse género e estavam tão apaixonados que a questão de uma terceira pessoa nunca surgira entre eles.

- Okay, okay, eu telefono. O que queres saber?

- Se a base de Cu Chi ainda está de pé, não foi atacada e o Bill está bem.

- Escuta, miúda - retorquiu, sentando-se na cama e sorrindo a France. Estava em simultâneo feliz e preocupado com ela. Acabara de lhe confessar, na noite anterior, que estava grávida e queria ter o filho dele. - Se a base de Cu Chi tiver ido pelos ares, estamos todos numa grande merda. Aquele lugar é maior do que Nova Iorque, raios!

- Deixa-te de piadas, Johnson, e telefona-lhes.

- Okay, okay, vou telefonar.

Desligou e inclinou-se para beijar France, que continuava deitada ao lado dele.

- Ela está bem? - interessou-se France. Também gostava de Paxton e, embora não a conhecesse bem, sempre sentira uma muda afinidade com ela.

- Está óptima. Só que o tempo voa e começa a ficar nervosa. Acontece a todos antes do regresso a casa. Todos eles me põem doido.

- E tu? - perguntou-lhe num tom quase triste, depois das notícias da noite anterior. - Quando regressas a casa, amor?

- Nunca. Excepto se fores comigo.

Contudo, ela respondeu que nunca o faria e falava a sério. Era demasiado orgulhosa para ser tratada como uma prostituta nos Estados Unidos. Ficaria em Saigão e amá-lo-ia para sempre.

Ralph sentou-se na beira da cama e telefonou para Cu Chi. Tinha um ou dois contactos na base, mas o mais importante era Bill e pediu que o ligassem directamente à unidade. Atendeu-o um jovem que ele não conhecia, que se mostrou evasivo quando perguntou por Bill e o passou a outras pessoas, sem obter resultados.

Interrogou-se, subitamente, sobre se os instintos de Paxton bateriam certo e se se passava algo de errado. Nesse momento, teve uma ideia e pediu para falar com o sargento Campobello.

Seguiu-se uma longa pausa, pediram-lhe que aguardasse e deixaram-no pendurado. E Tony só atendeu quase dez minutos depois. Ralph tivera a esperteza de não desligar. Nessa altura, já estava convencido de que Paxton tinha razão e havia qualquer problema.

- Tony? - perguntou Ralph, como se fossem velhos amigos, o que não era o caso. Tony não gostava dele, porque apresentara Paxton a Bill, e Campobello era um indivíduo de ressentimentos. - Fala o Ralph Johnson, AP em Saigão.

- Sei muito bem quem fala - retorquiu num tom áspero e frio, desinteressado do telefonema. - O que deseja?

- Eu... Nós,... interrogamo-nos particularmente sobre se aconteceu algo ontem... Quero dizer... - «Merda. Se fosse outra pessoa, podia ter-lhe perguntado sem rodeios se o Bill estava bem.» Não queria, contudo, que Campobello percebesse que estava a telefonar por causa de Paxton. E sentia-se uma criança às voltas com um problema. - Ouvimos alguns boatos de que tiveram sarilhos por aí. Está tudo okay?

Seguiu-se uma pausa interminável e depois:

- Acho que pode chamar-lhe assim. Só tivemos uma baixa durante todo o fim-de-semana. Só uma. Bastante bom, hem? - A voz era, todavia, rude e amarga.

- Óptimo.

Ralph não sabia muito bem como continuar, mas Tony resolveu a questão.

O único problema é que foi... - Quase rugiu quando pronunciou as palavras «o nosso comandante». - Lembra-se dele? Um indivíduo robusto e alto. O Bill Quinn.

 «Oh, meu Deus!», pensou Ralph, sem pinga de sangue. «Como irei dizer-lhe, raios?»

- Eu... Céus... Como é que aconteceu? - A voz de Ralph era um sussurro e teve a sensação de que Tony chorava do outro lado da linha.

- Como é que aconteceu? Muito simples. Apaixonou-se por essa cabra há uns meses e deixou de ser cauteloso. Começou a apaixonar-se pela porra do mundo e quis fazer de «príncipe encantado»... Sir Galaaz... Quer saber como aconteceu, mister? Os nossos rapazes estavam todos cagados por terem de descer a um buraco ontem e sabe quem foi? isso mesmo, o capitão. julgou que conseguiria balear o tipo do outro lado, porque sempre o fez.

«E sabe que mais, mister? - prosseguiu. - Depois de quatro missões aqui, enganou-se. Era grande de mais para o buraco, demasiado lento, demasiado velho, tinha a cabeça demasiado cheia de outras merdas, porque ia voltar para casa com ela dentro de dias para dizer provavelmente à mulher e às filhas que fossem lixar-se, e o pequeno Charlie, do outro lado do buraco, estoirou-lhe os miolos.

Enquanto o ouvia, Ralph sentia-se estonteado pela raiva, a tristeza, a amargura e a ironia do que acontecera. Faltavam-lhe menos de duas semanas para se ir embora e tinham-no morto. E acontecera o mesmo a milhares de outros. Mas este, não. Bill Quinn era um homem tão fantástico. E estava tão apaixonado por Paxton.

- Conseguiu a sua história, Mister Johnson? - inquiriu Tony amargamente, sem dissimular o choro. - Tomou apontamentos ou gostaria de vir até aqui e examinar o corpo? Ele só será enviado para casa amanhã à tarde. E acho que agora não voltará com a namorada - concluiu.

Não era o primeiro homem que se apaixonara durante a estada ali, nem era o primeiro que enganara a mulher, mas o sargento mostrara-se sempre contra. E sempre havia feito esta previsão. Assistira a repetidos envolvimentos de homens com as mulheres dali, a tal ponto que se tornavam descuidados.

Estava convencido de que Bill morrera por esse motivo e nada o faria mudar de opinião. Na sua cabeça, Paxton Andrews matara Bill Quinn e ponto final.

- Isto vai matá-la - comentou Ralph mais para si próprio do que para Campobello. E, do outro lado da linha, Tony limpou os olhos com a manga.

- Espero que sim. Bem o merece.

- Não acredita nisso a sério, pois não?

- Acredito, sim - respondeu num tom frio. - Ela matou o meu capitão.

- Ele era um homem adulto!

Ralph achava que era uma questão de honra defendê-la frente àquele homem e estava a ficar irritado. Ela não matara ninguém. Se algo fizera, tinha sido magoar-se. Apostara nele e perdera. Tal como já lhe acontecera uma vez. No entanto, a guerra era mesmo assim. Se se ficasse preso a alguém, a um cão, um soldado, ou uma criança, corria-se o risco de perder.

- Ele fez as suas opções, Campobello, tal como ela. E sabia o que estava a fazer. O facto de ter sido baleado ontem, deve-se, certamente, a uma grande astúcia do outro. Não acredito que o Bill Quinn tenha sido descuidado.

O capitão era demasiado rápido, demasiado perspicaz e sabia bem de mais o que estava a fazer. Havia muita verdade nisto, mas Tony Campobello não queria ouvir.

- Tretas. Ele nunca teria descido àquele buraco.

- Então, porque o fez? - pressionou-o Ralph.

- Talvez para provar algo... Talvez porque estava a pensar nela...

- Não era assim tão sentimental, idiota ou mesmo corajoso. - Embora todos os generais dissessem, e o próprio Bill o tivesse afirmado, que para se ser um rato de túnel era necessário um pouco de loucura.

- Ele estava loucamente apaixonado por ela.

- Sim, estava - concordou Ralph, deferente para com ambos. - Mas era algo muito pessoal que não me parece que deixasse interferir com nada. Não acredito pura e simplesmente nisso. E se tem a sua opinião sobre o assunto, Campobello, sugiro que a enterre desde já. Se gostava mesmo dele, porque é que não guarda para si essas suas ideias? A rapariga vai ficar destruída bastante para não precisar de o ouvir, se por acaso os vossos caminhos se cruzarem, o que espero que não aconteça.

- Também o espero.

- Faça-me um favor, em memória dele. Se alguma vez a encontrar, seja um cavalheiro e cale-se.

- Vá-se foder, mister - cuspiu Tony Campobello ao telefone, com uma voz cheia de lágrimas. - Essa cabra matou o meu capitão.

Assemelhava-se a uma criança, de pé ao lado da mãe morta e desejando matar todos os que se aproximassem dela. E, quando pousou o telefone minutos depois, Ralph conservou-se sentado durante muito tempo, olhando, infeliz, através da janela. Como, diabo, iria dar-lhe a notícia?

France estivera a ouvir tudo e, quando ele se levantou para se vestir, aproximou-se e pôs-lhe a mão em cima do ombro.

- Lamento pelo teu amigo. - Tinha um maravilhoso sotaque francês, um toque suave, um coração sábio e ele virou-se e abraçou-a. - Lamento pelos dois - concluiu.

- Também eu. Há muito que tentei avisá-los.

- Porquê? - inquiriu, suavemente.

Porque achei que estavam errados - O preço é demasiado alto, quando se perde alguém - aqui. Tentei passar-lhes a mensagem. Mas não me escutaram.

- Talvez não pudessem - comentou.

No fundo, ela sabia mais do que ele. Ficou a observá-lo enquanto ele se vestia. Uma hora mais tarde, Ralph estava no Caravelle, a bater à porta do quarto de Paxton com um olhar sombrio. Mas, quando Paxton abriu a porta, estava vestida com calças de ganga, uma camisa de Bill, calçara as botas de combate e emanava uma beleza quase dolorosa.

- Disseram alguma coisa? - perguntou, nervosa, recuando para lhe dar entrada. Fizera a cama e, embora não tivesse jantado na noite anterior, não tomara o pequeno-almoço nessa manhã.

- Sim - respondeu num tom despreocupado, entrando e olhando em volta. Queria, desesperadamente, evitar aquele momento.

- Então? - perguntou Paxton, e ele sentou-se pesada mente numa cadeira. A mesma cadeira em que Bill se sentara tantas vezes. - O que raio disseram?

O que disseram? Como havia de lho dizer? Fizera-o milhares de vezes antes, mas, de súbito, não conseguia fazê-lo uma vez mais, não conseguia, ou achava que morreria.

Tinha trinta e nove anos, vira, ouvira, cheirara e escrevera mais sobre a morte do que desejaria ver numa centena de vidas. Tapou o rosto com as mãos e, depois, fitou-a. Só lhe restava dizer-lhe.

- Foi morto ontem, Pax. - A voz assemelhou-se ao troar de um tambor no quarto e, por um momento, ela julgou que ia desmaiar. E só conseguia ver o rosto de Ed Wilson quando viera dar-lhe a notícia sobre Peter e o som do seu próprio coração destroçando-se em mil pedaços. Desta vez, deixou-se cair na cama e fitou-o, negando-se a acreditar.

- Não foi.

- Foi - insistiu Ralph, com um aceno de cabeça. - Desceu a um dos túneis e o Charlie apanhou-o. Foi rápido. Não sofreu. O resto não tem importância. - Ignorava se era ou não verdade, mas sentia que lhe devia isso. Estendeu-lhe a mão do sítio onde estava sentado, mas a jovem limitava-se a fitá-lo e não a agarrou.

- Posso vê-lo?

Hesitou ao pensar nas palavras de Tony sobre como Charlie estoirara os miolos de Bill.

- Não me parece sensato. Vão enviá-lo para casa, amanhã.

- Duas semanas mais cedo - observou, quase sem pensar.

Continuava sentada com o olhar perdido no vazio, muito pálida, sentindo que nada mais havia no mundo para ela. Tinha vinte e três anos e perdera os dois únicos homens que amara em prol daquela horrível guerra e, agora, achava que a sua própria vida terminara.

Eu tinha avisado que isto podia acontecer, Pax. É o risco que todos corremos aqui. Podia ter sido um de nós dois esta tarde... Foi ele. Podia ter sido qualquer pessoa.

- Mas não foi - replicou.

Em seguida, as lágrimas começaram a correr-lhe, devagar pelas faces, e Ralph aproximou-se da cama, sentou-se ao lado dela e abraçou-a, enquanto ela chorou durante o que se assemelhou a horas, presa de um desgosto, ribombando impiedoso como uma trovoada.

- Lamento tanto... Lamento tanto... - balbuciou.

Ela encontrava-se, contudo, para lá das palavras, para lá do raciocínio, para lá do conforto., Não lhe restava nada. Nada tinha. Perdera-o. Ele desaparecera. Era uma recordação. E dele apenas ficara com a pulseira que lhe tinha dado no Natal- Fitou-a com uma expressão vazia e apercebeu-se, subitamente, de que o exército enviaria todos os seus objectos pessoais para Debbie, em São Francisco. Os livros que lhe oferecera com dedicatória, as bugigangas, as fotografias que tinham tirado um ao outro em Vung Tau, as cartas.

- Oh, meu Deus... Não podem fazer isso... - Ralph julgou que ela ainda estava a chorá-lo, mas, depois, ela explicou-lhe o que estava a pensar. - Temos de detê-los declarou.

- Já aconteceu antes com outros indivíduos, Pax. Ela terá de compreender que ele estava numa zona de guerra. Esteve aqui durante muito tempo. As pessoas mudam.

- Mas não é justo. Porque haverá ela de viver com isso, agora? - redarguiu, pensando na mãe, quando o pai morreu com a outra mulher. - E as filhas! Não podemos detê-los?

- Não sei.

Ralph reflectiu uns momentos e admirou-a por ela ter pensado numa coisa daquelas, mas ignorava como actuar. O exército era bastante circunspecto no que se referia a mandar os objectos de uma pessoa para casa. Enviavam tudo, desde a roupa interior aos postais, o que provava que tinha boas razões para se preocupar.

- Com quem podemos falar?

Ocorreu-lhes em simultâneo o mesmo homem, e Ralph quase gemeu só de pensar nele, mas Paxton pronunciou o nome em voz alta:

- Campobello.

- Céus! Não tenho a certeza de que fizesse a porra de nada por mim, Pax.

- Então, telefonarei... Não... Vou falar com ele. Também deve estar desfeito.. - Era uma afirmação suave para as circunstâncias, e Ralph não queria dizer-lhe nesta altura que o tipo a odiava até ao mais fundo das entranhas e a responsabilizava pela morte de Bill.

- Porque não deixas que eu me encarregue do assunto, Pax?

Ela assoou-se e a voz tremeu-lhe novamente, quando respondeu:

- Devo-o ao Bill. Vou meter-me no carro.

- Merda. Também vou.

Paxton não fazia ideia daquilo em que estava a meter-se, mas todos os esforços dele para a dissuadir revelaram-se inúteis. E a missão de poupar Debbie ao conhecimento da relação parecia incutir-lhe nova vida e um melhor controlo do desgosto, enquanto Ralph a conduzia no carro até Cti Chi.

Todavia, quando chegaram, ele não estava preparado para o choque de encontrar Campobello quase após a chegada e para o facto de este quase ter atacado Paxton fisicamente, até Ralph o agarrar pelos ombros e abanar.

- Por amor de Deus, homem! Pare com isso! Não vê o estado em que ela está?

- Bem pode estar! - gritou, com as lágrimas a correrem-lhe pela face; ela conservou-se encostada ao carro, a tremer incontrolavelmente, ante o que ele acabara de dizer-lhe. Era ainda mais do que comunicara a Ralph antes, ao telefone, mas com maior veneno ainda. - Gostaria de ver como ele está?

- Por favor... - soluçou, caindo de joelhos e começando a vomitar, enquanto Campobello empalidecia e a observava. - Pare, por favor... Eu amava-o.

De súbito, no lugar onde se encontravam, com os recrutas de pé à distância, assistindo à cena mas sem saberem o que se passava, reinou o silêncio. Campobello mantinha-se de pé e a tremer nas mãos de Ralph, e Paxton levantou-se, fitando-o com uma expressão de ódio declarado.

- Amava-o. Não compreende? - retorquiu tranquilamente, e agora também ele soluçava.

- Também eu. Teria morrido por ele. Salvou-me a vida num desses malditos buracos... e desta vez não pude ajudá-lo.

Ninguém podia, homem - replicou Ralph, largando-o. - já ninguém pode. Acontece ou não. Pense em todos os tipos que são tão cuidadosos e pifam um dia antes de regressarem a casa, e nos outros que são descuidados e andam sempre bêbedos, sem ficarem com um arranhão. É destino. O fado. Deus. Chame-lhe o que quiser. Só que esse ódio por todos não resolverá nada - concluiu.

Campobello também o sabia, mas era exactamente isso o que o enlouquecia. Queria ter alguém a quem culpar, alguém sobre quem despejar a raiva. Um número demasiado dos seus homens tinha morrido, e agora o capitão que ele amava, o homem que lhe salvara a vida, que fora seu amigo, rira e bebera com ele, desaparecera, e alguém tinha de ser culpado. E ele queria desesperadamente responsabilizar Paxton.

Ralph explicou-lhe com calma o objectivo daquela ida, e Campobello pareceu sobressaltado.

- Pode ajudar-nos, homem? Ela tem razão. Todas essas coisas não devem chegar às mãos da mulher.

O sargento fitou-a enraivecido e de novo cheio de veneno; ela estava novamente em pé, parecendo abalada, mas determinada.

- Tem medo de ser apanhada? É isso? - perguntou-lhe.

- Não - respondeu, abanando a cabeça. - Tenho medo de a magoar e às filhas. Ele amava-as. Estávamos a falar em casar. Agora, não há nenhum motivo para que alguém o saiba.

E, embora não lhe devesse explicações, falou-lhe do pai.

- Ele morreu acompanhado de outra mulher no avião - prosseguiu -, e a minha mãe teve de viver com isso para o resto da vida. Um dia o meu irmão contou-me tudo e sempre me interroguei porquê. Todos o fizemos. No caso do meu pai, eu de certo modo sabia, mas não estava certo. Não precisávamos de o saber. Nem elas. Basta terem de lidar com o facto de que morreu... Gostaria de ter as minhas coisas de volta.

- Como, por exemplo? - Parecia desconfiado e era visível que continuava a querer odiá-la.

- Três livros de poesia em que escrevi algumas coisas e um maço de fotografias e cartas. O resto não tem importância. - Em seguida, pareceu embaraçada. - Comprei-lhe uma roupa interior engraçada para o Natal e ele tinha, algures, uma madeixa do meu cabelo. Acho que são as únicas coisas que interessam.

- Porque é que está, realmente, a fazer isto? - quis saber, aproximando-se mais dela e incapaz de acreditar em que não existia nenhum outro motivo.

- Já respondi porquê. O que aconteceu é demasiado doloroso para todos nós. Ela não precisa de conhecer a nossa relação.

E, por um instante, por um mero instante, ele acreditou que ela era boa pessoa, o que ainda o magoava mais. Magoava-o ainda mais pensar que Bill Quinn a tinha amado verdadeiramente, que talvez tivesse morrido por ela ou, mesmo que assim não fosse, poderia ter sido. Estavam todos cansados, confusos e esgotados e há demasiado tempo que se encontravam ali. Quinn e Campobello, Ralph e até mesmo Paxton.

- Vai regressar a casa depois disto? - inquiriu, quase esquecido da presença de Ralph, e os olhos dela voltaram a encher-se de lágrimas.

- Ignoro - respondeu com um vago encolher de ombros. - Acho que sim.

- Vou passar em revista as coisas dele. Espere aqui - replicou com um aceno de cabeça.

Ausentou-se durante meia hora. Paxton chorava, Ralph fumava Ruby Queens e, por fim, o sargento regressou com um pequeno embrulho.

- Tirei os livros, as fotografias, as cartas e a roupa interior. Não consegui encontrar o cabelo, mas como não está lá, é irrelevante. - Ela interrogou-se sobre se o teria com ele quando morreu, mas não quis expressar a ideia, com medo de enraivecer Campobello ainda mais.

- Obrigada - agradeceu num sussurro, tentando controlar-se e recebendo o pequeno embrulho das mãos dele. Tudo parecia tão patético, agora. Restava tão pouco do enorme amor que lhe dedicara. Restava tão pouco das esperanças e sonhos de ambos. À semelhança das cidades que o exército tinha de incendiar para afugentar os VC, deixando somente um rasto de cascalho e cinzas.

Ficou a observá-los quando caminharam de volta ao carro e, em seguida, chamou-a.

- Ei... - Não queria pronunciar o nome dela, e Paxton virou-se, fitando o homem que tanto a odiara, que pensava que ela tinha morto Bill.

- Lamento - redarguiu, com lábios trémulos.

Paxton não tinha a certeza se ele lamentava tê-la tratado com tanta rudeza ou a morte de Bill, mas, de qualquer maneira, ela também lamentava as duas coisas.

- Também eu - respondeu ao entrar no carro, e ele continuou a observá-los quando deixaram a base e iniciaram o caminho de regresso a Saigão.


 

- Tens de ir para casa, miúda - declarou Ralph, de pé no quarto dela no Caravelle.

Paxton estava de novo sentada na cama, desta vez com um ar de desafio e os braços cruzados. Nixon prestara juramento na semana anterior, há um mês que Bill tinha morrido e já passara um mês desde que deveria ter regressado.

- Aqui não há mais nada - insistiu. - Os seis meses chegaram ao fim. O jornal espera-te. O Bill não voltará. E os telexes que chegam à minha redacção estão a pôr-me louco, Pax. Querem-te de volta, Pax. Estás aqui há sete meses. Chegou a hora de regressar.

- Porquê? Há anos que estás aqui.

- É diferente. Fui destacado para cá e não tenho ninguém à minha espera. Ninguém quer saber de mim. Os meus pais morreram, há dez anos que não vejo a minha irmã e vivo aqui com a mulher que amo e vai ter um filho meu. Tenho motivos para ficar, o que não é o teu caso - prosseguiu. - E começas a enlouquecer. Pareces-te com aqueles tipos que estiveram tempo de mais nos túneis. Vai para casa, apanhar ar e, se gostas assim tanto disto, deixa que te mandem outra vez ou arranja alguém que o faça. Mas, se não te afastares rapidamente, acabarás por cometer qualquer estupidez.

Paxton já acompanhara Nigel e Jean-Pierre em duas missões, e Ralph apercebia-se pela sua escrita de que ela estava demasiado perturbada para fazer qualquer bem a si própria ou aos outros.

- Vai-te embora, antes que me veja obrigado a telefonar-lhes para que venham buscar-te - concluiu.

Sabia também que ela não prestava atenção ao que comia e tinha uma tal disenteria que andava com febres baixas. Estava com um aspecto horrível, desde a morte de Bill. Sofria, mas esforçava-se ao máximo por ocultar o seu desgosto. Era como estar morta e não o admitir.

- Estás disposta a mostrares-te sensata? Posso mandar-te para casa? Ou tenho de lhes telefonar para que venham buscar-te? Não hesitarão, sabes? O teu patrão em São Francisco está a ficar bastante descontrolado. Quer que telefonemos ao embaixador para que ele te expulse se não concordares em pores-te a mexer daqui para fora?

- Okay, okay. Vou para casa. Ganhaste.

- Meu Deus! - exclamou com um suspiro de alívio.

Andava extremamente preocupado com ela. E encontrara Campobello uma vez nos Correios e também ele não parecia muito bem. Todos haviam sentido o desgosto.

- Quando, então? - quis saber. - Amanhã está bem?

- Porquê tanta pressa?

Queria mais tempo. Não queria partir. Talvez porque Bill tinha morrido aqui. Ficar em Saigão assemelhava-se a ficar com ele, no quarto que tinham partilhado, próximo dos restaurantes que haviam frequentado.

- Porque não? - retorquiu Ralph. - Arranjarei bilhete para amanhã de manhã. Há um «Pássaro da Liberdade» que saí daqui, algures, antes do meio-dia. E quero que vás nele.

- Queres ver-te livre de mim - replicou por entre lágrimas.

. Odiava deixá-lo e às pessoas que conhecera, até mesmo os fumos e a loucura de Saigão.

- Tenho ciúmes dessa treta que escreves, miúda - troçou. - Nunca conseguirei ganhar o meu Pulitzer, se ficares por aqui.

- Virás ver-me a São Francisco? - perguntou num tom triste.

- É o lugar eleito? - quis saber, agora mais descontraído por ela ter concordado em partir na manhã seguinte.

- Acho que sim. Não sei. Ficarei por lá, se me derem emprego no jornal.

Ralph dirigiu-lhe um sorriso de admiração. Nos últimos sete meses, passara a gostar dela como se fosse uma irmã mais nova e ia sentir-lhe muito a falta.

- Seriam estúpidos, se não o fizessem. É uma repórter de gritos, minha senhora.

- Vindas de ti, essas palavras significam muito - retorquiu com uma voz cheia de respeito e amizade. - Vou ter saudades, céus! jantamos esta noite?

- Claro.

Apareceu sozinho, tendo deixado France em casa com An, com o frequentemente o fazia. Na maior parte das vezes, desagradava-lhe vê-la com os outros repórteres. E, nessa noite, queria estar sozinho com Paxton.

- Ficarás bem? - perguntou-lhe com uma expressão séria, depois de beberem o segundo uísque.

- Acho que sim - redarguiu, olhando para o interior do copo, como se ele contivesse todas as respostas. - Não sei. - Ergueu os olhos na sua direcção. - Alguém volta a ser o mesmo, quando sai daqui?

_ Não - confessou honestamente.

- Só que alguns disfarçam melhor. Mas talvez não tenhas ficado aqui o tempo suficiente. Talvez continues a ser a mesma.

_ Não o creio - discordou.

Ralph também receava por ela que assim fosse.

- Talvez essa reacção seja por causa do Bill - sugeriu, esperançado.

Tinha visto pessoas destroçadas por causa do Vietname. As drogas, os VC, o perigo, a doença, os ferimentos e as coisas estranhas que perturbavam a mente. Era tão bonito e, por outro lado, a presença americana estava tão errada. Para a maioria das pessoas era tremendamente confuso. Esperava, todavia, que ela não tivesse permanecido o tempo bastante para ficar envenenada ou haver criado uma paixão inesquecível.

- Será bom ir para casa - replicou. - Há vida depois de se ter ido ao fundo. - Sorriu, mas ela não correspondeu.

- Faria bem a toda a gente ir para casa. Talvez a ti também, um dia - observou ternamente. - Ficaria muito contente. Vai ser tão duro para mim regressar. Como se começa a contar às pessoas o que se viu por aqui?

- A tua família sabe do Bill? - inquiriu.

Paxton abanou a cabeça. Não contara a ninguém. Estava a espera de saber como Bill reagiria frente a Debbie. E talvez, afinal, acabasse por nunca a ter deixado. Fora sempre uma possibilidade entre eles.

- Acho que agora não vou dizer-lhes. É inútil.

Ralph concordou com um aceno de cabeça. Havia muita coisa que ninguém contava sobre Saigão.

Ficaram a beber até às quatro da manhã e ele voltou mais tarde para a levar ao aeroporto. Paxton tinha a mesma mochila que trouxera à chegada, a mesma mala, a mesma dor no coração, só que agora era consideravelmente maior. Perdera dois homens no Vietname. E, no entanto, apesar de tudo, acabara por amar o país.

- Faz um favor a ti própria, Pax - declarou Ralph com um sorriso triste, quando se despediram. - Esquece este lugar o mais rapidamente possível. Caso contrário, acabará por matar-te.

Uma parte dela suspeitava que ele tinha razão, mas a outra parte segredava-lhe que não se desligasse. Porque não o queria.

- Cuida de ti, Ralph - retorquiu, abraçando-o com força. - Sabes que gosto mesmo de ti.

Quando a largou, tinha lágrimas nos olhos e a última coisa que lhe disse, antes de ela subir a bordo foi:

Também eu, Delta Delta.


 

Aterrou no aeroporto de Oakland, após um voo de dezassete horas, num avião que tinha sido fretado pela World Airways. Falara com alguns militares de regresso, mas quase todos estavam tão exaustos, destroçados e assustados por voltar, que não desejavam conversar com ninguém, nem mesmo com uma bonita loura como Paxxie.

Todos tinham esperado e sonhado com aquele dia durante tanto tempo que agora se tornava aterrador voltar para casa.

O que iriam dizer? Como se explica a alguém o que se sentiu ao matar um homem? Como se explica o que foi matar um homem frente a frente, enfiando-lhe uma baioneta nas entranhas, ou atingir um atirador no rosto e verificar que se tratava de uma mulher? Como se explica que um miúdo de nove anos tinha lançado uma granada de mão e morto o nosso melhor amigo e nos havíamos precipitado para os arbustos, arrastado o miúdo cá para fora e dado cabo dele?

Como se diz tudo isto? Ou como se fala do pôr do Sol nas montanhas, do verde do Vietname, dos sons, dos cheiros e das pessoas, da jovem que nem o nosso nome conseguia pronunciar mas se tinha a certeza de amar?

Nenhum deles tinha resposta a estas perguntas. Esse o motivo por que a maioria regressava a casa em silêncio.

E quando Paxton desceu do avião de saia e blusa, com 1 cabelo apanhado numa banana e calçada com as sandálias vermelhas agora estragadas, tornava-se difícil acreditar que estava em casa.

Deixara de ter essa sensação relativamente àquele local. A casa era Saigão e um quarto no Caravelle. Ou seria ali na casa que partilhara outrora com Peter, em Berkeley? Ou na casa dos Wilson? Ou na casa da mãe, em Savannah?

Só quando desceu do avião tomou consciência de que se sentia apátrida, e um jovem, que estava ao seu lado, fitou-a, abanando a cabeça.

- Que estranho regressar do Vietname - sussurrou E ela sabia o significado daquelas palavras, pois estivera com ele.

Ed Wilson tinha mandado uma limusina buscá-la e, sentada no banco de trás, reflectiu durante todo o caminho até ao jornal. Não estava, contudo, preparada para a recepção que a aguardava.

Sentiu-se como um herói em terra estrangeira, quando os editores e gente que não conhecia lhe apertaram a mão e a felicitaram pelo magnífico trabalho que fizera em Saigão. Ficou boquiaberta, não tinha ideia do que pretendiam dizer, e as lágrimas corriam-lhe pelas faces quando lhes agradeceu.

Por fim, viu-se a sós com Ed Wilson. Ele fitou-a com um olhar demorado e grave e apercebeu-se de que Paxton sofrera terrivelmente. Tinha mudado. Estava magra e pálida, mas, para além disso, havia algo na expressão dos olhos que o assustava. Algo de triste, maduro e sábio. Vira alguns homens morrerem. Estivera no campo de batalha.

- Passaste uns tempos difíceis - comentou sem fazer perguntas, e a jovem tentou sorrir, ao mesmo tempo que esboçava um aceno de concordância.

- Sinto-me contente por ter ido - retorquiu.

E falava verdade. Por Bill, por Ralph e por si própria. Porque, estranhamente, achava que o devia a Peter e ao seu país.

- Gostava que fosses descansar um pouco para casa e depois voltasses e escrevesses sobre o que quisesses. Fizeste um trabalho fantástico e gostaríamos de contar com a tua colaboração assinada - declarou Wilson.

Sentiu-se emocionada, satisfeita e com vontade de aceder, mas ainda sentia um aperto no coração ao pensar na coluna que escrevera de Saigão.

- E a «Mensagem do Vietname»? Passará a pertencer a outra pessoa?

Ele abanou a cabeça e sorriu, consciente de que todos os jornalistas eram assim. As suas colunas eram como se fossem filhos.

- O Nixon está a prometer diminuir a intensidade da guerra. E, de momento, acho que podemos contentar com os relatórios sobre Saigão enviados pela redacção da Associated Press no local.

- Têm pessoas fantásticas lá - redarguiu Paxton, pensando em Ralph, mas Ed Wilson dirigia-lhe um sorriso orgulhoso.

E tu és uma delas, Paxton - elogiou com honestidade. Surpreendeste-me extraordinariamente. Não sabia que tinhas fibra. julguei que voltarias um mês depois, horrorizada com o que viras.

- De início, fiquei horrorizada, mas pelo menos senti que estava a fazer qualquer coisa de útil.

- Sem dúvida que estavas. E, nas últimas semanas, julguei que nunca mais regressarias a São Francisco - replicou, franzindo o sobrolho. - A que se deveu a demora?

Por um minuto, ignorou o que responder-lhe.

«O homem por quem me apaixonei foi morto... outro ... »

- Eu... Uma pessoa acaba por se envolver. Não é fácil deixar tudo e vir embora.

- Acho que não. Bom, agora descansa e volta daqui a umas semanas, quando te sentires pronta.

Interrogou-se sobre dali a quanto tempo o estaria e consultou o relógio, lembrando-se de que ainda tinha de procurar um quarto de hotel. No entanto, o jornal também se encarregara disso.

- Reservámos-te uma suite no Fairmont. A Marjorie queria que ficasses lá em casa mas achei que precisas de descansar e agora te tornaste bastante independente.

E dissera igualmente a Marjorie que, se ela tivesse trazido algumas doenças do Vietname, não as queriam no quarto de hóspedes.

Tinham-lhe arranjado também um carro e motorista, e os Wilson esperavam-na para jantar. No entanto, a hora do jantar significava quinze horas de diferença de horário para ela, e Paxton mal conseguia manter os olhos abertos à mesa. Foi um encontro comovedor para todos e quase se sentiu como se esperassem que lhes explicasse porque é que Peter morrera, só que ela não tinha respostas para lhes dar, mas apenas mais perguntas.

Gabby conversou despreocupadamente durante toda a refeição sobre como Marjie estava esperta, o pequeno Peter transbordava de energia e a maravilha da nova casa em que viviam agora. Explicou que tinham as paredes forradas com papel Brunschwig, reposteiros azuis no quarto e, por duas vezes durante o jantar, Paxton sentia-se tão cansada e confusa que lhe chamou, acidentalmente, Debbie.

Era como se não lhe fosse possível aguentar aquilo tudo. Era demasiado, e as vidas deles, nos últimos sete meses, haviam diferido em muito da sua. Mais do que uma vez, teve de engolir as lágrimas e a premência de lhes dizer que não conseguia aguentar mais. Tinha saudades dos sons, dos cheiros, do seu quarto no Caravelle, de Peter... de Bill... Tinha a cabeça a andar à roda, quando os deixou.

Quando regressou ao hotel, deitou-se em cima da cama e ficou acordada horas a fio, sentindo-se vulnerável, cansada e abalada. Por fim, adormeceu quando o Sol nasceu e, duas horas mais tarde, a telefonista acordou-a. Tinha de se levantar, tomar duche e mudar de roupa, a fim de apanhar o avião para Savannah.

E ali as coisas ainda foram piores. Trouxera a roupa errada. Não tinha nada para dizer a ninguém. E sentiu-se incapaz de lidar com a Liga Júnior, o clube de bridege da mãe e o almoço que lhe foi oferecido pelas Filhas da Guerra Civil.

Todos se mostravam interessados em saber coisas sobre o Vietname, mas não era verdade.

Nada queriam saber do cheiro fétido da morte, do rapaz de Miami que ficara sem um braço ou dos mendigos mutilados que rastejavam pela esplanada do Hotel Continental Palace ao fim da tarde. Nada queriam saber das doenças venéreas, das drogas, dos rapazes que morriam às mãos dos vietcongues, nem dos velhos e crianças que eram alvejados. Não queriam saber como se ficava com o coração despedaçado e, contudo, se aprendia a amar tudo aquilo.

Apenas conseguiu transmitir a todos que lamentava muito estar tão cansada, tão doente, tão magra, tão totalmente incapaz de pronunciar palavra. Eles apenas queriam um simples filme de guerra, com pipocas, sem ossos, nem sangue ou estilhaços de bombas, nem bocados de carne espalhados, jovens que eram mortos ou um país moribundo.

Paxton nunca se tinha sentido tão só como em Savannah Nunca estivera com tão mau aspecto, nem sentira tanto a falta de Queenie. Sabia, contudo, que também não poderia ter contado aquilo a Queenie. Estava só e era uma estranha. Era impossível falar com quem quer que fosse, excepto com alguém que lá estivesse estado.

Saiu com algumas amigas a quem lamentara ter telefonado, quando conheceu um rapaz num bar, uma noite. Começaram a falar e encontrou, por fim, alguém com quem podia relacionar-se. Falaram de Ben Suc e Cu Chi, Nha Trang, Bien Hoa, Long Binh, Hue e Vung Tau, onde ela e Bill tinham passado o seu primeiro fim-de-semana. Assemelhava-se a uma linguagem secreta entre velhos amigos e foi a única noite agradável que passou durante as duas semanas, em Savannah. Trocaram um firme aperto de mão e, nessa noite, ao regressar a casa, sentiu-se menos só.

Experimentou igualmente alguma dificuldade em falar com a mãe. Ela pensava que Paxton ainda sofria por Peter. No entanto, havia muito mais do que isso. Sofria pela sua juventude perdida, por um país que nunca mais veria, dois homens que amara e uma parte de si que eles tinham levado.

O irmão atribuiu tudo a simples cansaço. Por fim, vestida com alguma roupa nova que parecia mais adequada, do que as botas de combate, que mesmo assim levou consigo, Paxton apanhou o avião de volta a São Francisco.

Começou a trabalhar, empenhadamente, no Sun. Alojaram-na num hotel durante várias semanas, até descobrir um pequeno apartamento. Todas as noites prometia que telefonaria a Gabby e concluía que não era capaz. Nada tinha a dizer-lhe, não queria ver a sua casa nova nem os reposteiros, além de que Matt lhe parecia enfadonho, pedante e todos lhe pareciam artificiais. E tão totalmente insignificantes. Os dias em que existira uma proximidade tinham acabado. As pessoas que nessa altura amara tinham desaparecido. Não restava ninguém. E ia ao ponto de odiar o que estava a escrever para o jornal.

Devido ao que vira no Vietname, tinham-na destacado para a cobertura de acontecimentos políticos locais e aborrecia-se de morte. Mr. Wilson incitava-a a que voltasse a estudar e acabasse a licenciatura em Berkeley. Não conseguia imaginar-se a fazê-lo e tudo lhe parecia extremamente cansativo e inútil.

Estava sempre cansada e, à noite, detestava voltar a casa. Tinha vinte e três anos e sentia-se como se a sua vida tivesse chegado ao fim e as únicas pessoas com quem podia falar fossem as que tinham estado lá.

De vez em quando conhecia alguém que estivera no Vietname e caíam, subitamente, nos braços um do outro, falavam durante horas a fio e, depois, afastavam-se, e tudo ficava reduzido ao silêncio.

Tinha sempre presente que, no Vietname, as pessoas continuavam a lutar, ganhavam, perdiam e morriam. E sentia-se como se estivesse a perder tudo por não estar lá. Até tudo terminar, apenas queria estar em Saigão. Um dia tentou explicar tudo isto ao editor, mas ele limitou-se a sorrir e a elogiá-la pelo bom trabalho que executava com as incumbências locais.

Paxton continuava a ler o que acontecia no Vietname, interrogando-se sobre o que fariam Ralph e os outros. Porque é que eles ainda se mantinham por lá? Porque é que ela tivera de regressar? O que fizera de mal para merecer aquilo?

Contrariamente às promessas que ouvira como todo o povo americano, os ataques pareciam aumentar e as baixas também.

E, em Maio, três meses após ter regressado, não conseguiu aguentar mais. Nessa altura, Peter tinha morrido há mais de um ano e ela assistira à cerimónia fúnebre, junto ao seu túmulo.

O pior de tudo residia em que se sentia tão morta com o ele estava. Pelo menos, ele e Bill tinham vivido e morrido, vindo e desaparecido, mas ela andava a vegetar, a escrever sobre coisas que não lhe interessavam, sentindo que andava a desperdiçar a vida.

Por fim, no dia 1 de junho, pouco antes de Nixon se avistar com Thieu, para aceder retirar vinte e cinco mil homens do Vietname, ela tomou uma decisão. Entrou no gabinete de Ed Wilson, sem nunca se ter sentido tão bem como nos últimos meses e muito confiante. Pediu-lhe para voltar a escrever a sua Coluna e vincou-lhe delicadamente que, se não a mandassem de novo para Saigão, alguém mais o faria. Ele ficou horrorizado. E, por momentos, interrogou-se sobre se a carga não teria sido demasiada e ela não estaria um tanto louca.

- Por amor de Deus! O que te leva a querer regressar? hoje em dia, os nossos rapazes fariam tudo para o evitar,

Paxton! - exclamou. - Porquê?

- Porque preciso de estar lá - tentou explicar desesperadamente. - Porque, aqui, sou inútil. Porque ninguém compreende exactamente o que acontece por lá, excepto talvez as pessoas que o sabem.

- E tu compreendes? - redarguiu num tom céptico, ao ouvi-la falar assim.

- Não, mas vi. Sei o que se passa. Ninguém tem de mo explicar. E sou incapaz de ficar aqui, a falar de carros, dos reposteiros, bebés e churrascos, sabendo o que está a acontecer por lá. Tenho de estar lá, Mister Wilson.

Parecia-lhe uma loucura, mas ela tinha idade bastante para tomar as suas decisões e era indubitável de que a sua coluna fora rendível para o jornal. Haviam recebido uma série de queixas quando parara, mas mais ninguém quisera ir para Saigão.

- O que acha a tua família?

- Ainda não a informei.

- E se te matarem? - inquiriu de chofre.

- Foi o destino - respondeu, tranquilamente. - Como ao Peter.

Ele esboçou um aceno de concordância. Partilhava da mesma opinião, embora soubesse que Marjorie ainda não o conseguira. Continuava revoltada com o destino ante a injustiça. E ele sabia que não era justo. Mas... acontecera...

- Quanto tempo queres ficar em Saigão desta vez, Paxton?

- Não sei... - Reflectiu algum tempo, mantendo-se sentada. - Talvez um ano. Algo do género. De momento, prefiro deixar a questão em aberto. - E sorriu-lhe jovialmente, pela primeira vez desde há quatro meses. - Informá-lo-ei quando não conseguir aguentar mais. Ou quando a guerra acabar.

- Tens a certeza de que queres fazer isto, Paxton? - insistiu, fitando-a longa e gravemente.

Quando ela respondeu com um aceno de cabeça, decidiu que tinha de satisfazer a sua própria curiosidade. Não a imaginava a querer voltar para o Vietname.

- Envolveste-te com alguém? - acrescentou.

A jovem sabia o que ele pretendia implicar, mas abanou a cabeça.

- Apenas amigos, alguns outros lunáticos como eu respondeu, pensando em Ralph e nos outros -, que precisam de assistir a tudo até ao final, como eu.

- Espero que acabe depressa - replicou, tristemente após o que mencionou um ordenado que a surpreendeu. - Podes ficar no mesmo hotel, ou num melhor, se houver. Faz o que quiseres, enquanto te conservares por lá, Paxton. Tens carta branca.

Levantou-se, beijou-a e ela agradeceu. Quando saiu do gabinete dele, os olhos brilhavam-lhe.

Alguém foi aumentado - observou uma das editoras, quando Paxton passou junto deles.

- Podes apostar - anuiu, virando-se com um sorriso. - Voltaram a dar-me a minha coluna e estou de partida para Saigão.

- Merda! - exclamou a rapariga, abanando a cabeça.

Tratava-se de algo que os outros não compreendiam.

Ao regressar à secretária, Paxton redigiu um telegrama dirigido a Ralph Johnson, para a redacção da AP, Edifício Éden, Saigão: «Regresso a casa, mal consiga um voo. Prepara-te. Beijos, Delta Delta.»

Mandou o telegrama, foi para casa fazer as malas e telefonou à mãe e a Gabby. A mãe ficou atemorizada, mas intimamente pouco surpreendida. E Gabby chorou, porque o seu terceiro filho nasceria a qualquer momento.

No entanto, Paxton tinha agora a sua própria vida e, dois dias mais tarde, encontrava-se a bordo de um avião com destino a Saigão.


 

Desta vez, a chegada de Paxton a Tan Son Nhut pareceu-lhe um regresso a casa, e observou a base familiar com mais calor do que sentira quando voltara a Savannah.

Aqui, sentiu-se imediatamente em casa e sabia que agira bem quando um táxi a conduziu ao longo da Tu Do, até ao Caravelle, onde tinha vivido no ano anterior. Era estranho pensar que estivera longe cinco meses e, agora, se sentia finalmente em casa. Sentira-se entorpecida quando partira, mas agora ganhara vida ao voltar.

Largou as malas no hotel e deu instruções ao motorista para que a levasse ao Edifício Éden na praça. Sorriu ao passarem junto à Estátua do Fuzileiro. Estava ansiosa por ver Ralph.

E, quando entrou, ele estava na redacção, parecendo agitado, após ter feito a cobertura de uma missão de combate. De costas para ela, queixava-se da porcaria de motorista que tinham. Paxton avançou sem ruído por detrás e tocou-lhe no ombro. Ao avistá-la, esboçou um sorriso de lado a lado e acolheu-a nos braços.

- Delta Delta... Não acredito... tarada de miúda! O que raio estás a fazer aqui, quando podias estar de cu bem instalado em São Francisco?

- Ah, sim? Quem disse? Fiz a cobertura de todos os acontecimentos chatos que eles tinham e, se tiver de assistir a mais qualquer outro encontro político ou greve, vomito.

- Bem-vinda - declarou tranquilamente, parecendo de facto satisfeito por vê-la.

- Obrigada - agradeceu, enquanto os olhos de ambos se encontravam e fixavam.

Tinham atravessado tempos duros e ela devia-lhe tudo o que sabia sobre o Vietname.

- Cansada de mais para uma bebida? A propósito, quando voltaste?

, - Há cerca de duas horas. E não, não estou. Ignoro que raio de hora é para mim, nem quero saber. - Sentia-se contentíssima por vê-lo.

- A esplanada do Continental Palace? - perguntou rindo. Ainda se lembrava de como ela ficara horrorizada à chegada, quando Jean-Pierre a levara até lá.

Paxton perguntou por ele, enquanto voltavam a Percorrer a Tu Do.

- Como é que ele está?

- Bebe demasiado, como de costume. A mulher acabou por deixá-lo. Cansou-se de esperar que ele voltasse da guerra. Mas acho que não foi novidade para ele. - Observava-a, de vez em quando, enquanto seguiam viagem. Estava tão feliz com a presença de Paxton. Agora, era quase como família aos seus olhos, e ela sentia o mesmo em relação a ele.

- E a France?

- Está óptima. - Por momentos, pareceu estranho. - Espera o bebé para Setembro.

Paxton fitou-o demorada e atentamente, interrogando-se sobre o que sentiria a este respeito. De início, ficara perturbado. Dada a incerteza em que viviam, achava que não deviam ter um filho ilegítimo.

- Tentei dissuadi-la da ideia de ter o bebé - prosseguiu. - Mas ela quer o filho desesperadamente, portanto... Voilà. - Encolheu involuntariamente os ombros com um sorriso. - Acho que vou ser pai.

Ainda não se casara com ela, mas estava a pensar seriamente em fazê-lo com a chegada do bebé e ainda andava a tentar convencê-la.

- Que tal pelos Estados Unidos? - quis saber, consciente de que não ia lá há tanto tempo que começava a parecer-lhe um país estranho.

- Bizarro - respondeu Paxton com honestidade. - De início, detestei. Agora, as pessoas são tão diferentes ou, pelo menos, assim me pareceram. Estão debruçadas sobre si próprias e nas tintas para o que se passa. É como se isto não existisse, salvo para as pessoas que cá estiveram. Não querem que exista e, portanto, assim é.

- Interroguei-me a esse respeito. - Nessa altura, tinham chegado ao Continental Palace, e Paxton apercebeu-se de que se esquecera do calor insuportável de Saigão. Oferecia um enorme contraste com a gelada São Francisco. Mas nem sequer isso tinha importância. Estava meramente satisfeita por estar ali com o imenso ruído, o cheiro familiar a flores, fruta e gasolina.

Subiram as escadas devagar, e Paxton interrogou-se sobre se encontrariam Nigel. Transmitiu o pensamento a Ralph e, por momentos, ele pareceu distante, após o que a fitou com uma expressão estranha.

- Foi morto em Bien Hoa, há dois meses. Uma idiotice. Um carro explodiu... Era uma pequena bomba colocada pelos VC... uma coisa estúpida, que o matou.

Muitos deles morriam por coisas estúpidas como Peter e uma imensidade de outros. Até mesmo os que morriam em combate, também parecia estúpido, analisado à distância... como Bill. Mas tentou não pensar nisso agora e limitar-se a usufruir da companhia de Ralph.

- Que infelicidade! - lamentou, embora nunca tivesse, realmente, gostado de Nigel. - Andas a trabalhar muito?

- Demasiado - respondeu, com um sorriso feliz. - Mas adoro. Vai ser divertido voltarmos a trabalhar juntos. Quando queres começar? Tenho andado a adiar uma viagem a Da Nang, até encontrar alguém que me acompanhe.

- Adorava. - Nunca estivera em Da Nang e sempre hesitara por causa de Peter. Ignorava como se sentiria por estar onde ele fora morto. Mas desta vez estava pronta.

- Óptimo. Vou preparar tudo. Que tal se te arrastar comigo depois de amanhã?

- Ficarei à espera - sorriu-lhe; em seguida, ele consultou o relógio.

Tinha de voltar para junto de France, pois ultimamente não gostava muito de deixá-la sozinha. Não andava a sentir-se bem e An era um miúdo traquinas.

- Queres que te leve ao Caravelle? - inquiriu, levantando-se, mas ela sorriu e abanou a cabeça.

- Irei a pé, se conseguir manter-me acordada o tempo bastante. E, se não me sentir com forças, posso apanhar um riquexó. Não há problema.

Ralph inclinou-se e beijou-a na face.

- Bem vinda - repetiu. - Sinto-me contente.

- Também eu - retorquiu, abraçando-o com força.

- Dá saudades minhas à France. Vejo-te amanhã nas «tolices das cinco». Ainda continuam? - riu ante a ideia e pensando em todos os correspondentes que voltaria a ver.

Isto era, realmente, estar em casa, mas enquadrava-a num cenário um tanto assustador. Agora, ela era um deles, dos duros, uma das pessoas que pertenciam aqui, até a guerra acabar.

Ficou a acenar a Ralph e fechou os olhos, enquanto sorvia a bebida em pequenos goles, sentada na esplanada. A mesa ao lado estava ocupada por um boina-verde com  uma rapariga vietnamita. Ele usava o fato de camuflagem e o lenço vermelho, branco e azul de que todos eles se orgulhavam tanto.

Paxton optara por um thom xay, o sumo de ananás a que se habituara, pois sabia que, se bebesse qualquer coisa alcoólica, cairia por terra; quando pousou o copo e olhou em volta, estremeceu. Era como num sonho. Regressara e, encontrava-se, subitamente, rodeada pelos mesmos rostos familiares. Mas esta parte do sonho não era assim tão fácil.

De início, não soube o que dizer, não ia sequer pronunciar palavra, mas ele tinha parado, fitava-a e parecia pouco à vontade e nervoso. Era Tony Campobello, o primeiro-sargento de Bill Quinn.

- Julguei que se tinha ido embora - retorquiu com uma expressão de estranheza, como se também se sentisse confuso com o sonho.

- E fui - replicou, hesitante, interrogando-se sobre se ele voltaria a atacá-la verbalmente e, desta vez, Ralph não estava presente para a proteger. - Acabei de regressar. Na verdade, hoje.

- Oh! - exclamou com um aceno de cabeça. - Que tal os Estados Unidos?

Mantinha-se de pé, pouco à vontade, conversando com ela, de uniforme, e Paxton ignorava o que fazer, só que voltar a vê-lo recordava-lhe Bill e era doloroso para ambos. De certa forma, os três ainda continuavam unidos, embora Bill já tivesse morrido há seis meses.

- Foi esquisito regressar a casa - respondeu-lhe honestamente. - Ninguém entende o que se passa aqui.

- É a opinião geral. Partimos daqui como heróis e, ao regressar a casa, tratam-nos como condenados.

- São tempos estranhos - retorquiu num tom- calmo, interrogando-se sobre se deveria convidá-lo a sentar-se e a fazer-lhe companhia.

Ele parecia nervoso e agitado. Não era alto, mas emanava robustez e uma força tranquila que sempre a impressionara. E sabia que Bill gostava dele e o respeitava, embora ela nunca tivesse tido um entendimento brilhante com ele.

- Ainda está em Cu Chi? - inquiriu, pois não lhe ocorria mais nenhuma pergunta.

- Estou na minha quarta missão - explicou num tom entre o orgulho e a timidez, como era hábito entre todos eles. - O Bill sempre disse que ser rato de túnel implicava loucura e acho que ele tinha razão.

- Ou muita coragem, ou as duas coisas - redarguiu ela suavemente, voltando a pensar em Bill.

Nesse momento, o olhar cruzou-se com o de Tony e não pronunciou palavra, mas ele sabia o que estava a passar-se na sua cabeça.

- Ele era o máximo - elogiou num tom admirativo e, depois, acrescentou, novamente pouco à vontade: - Devo-lhe desculpas.

- Não, não deve.

Não queria voltar a tocar no assunto. Fora uma época horrível que queria afastar da memória... quando Bill morrera e Ralph viera contar-lhe... Sabia que era incapaz de passar outra vez por tudo aquilo e ergueu, tristemente, os olhos para Tony.

- Compreendo. Estávamos ambos perturbados - rematou ela.

- Sim, mas fez algo de muito especial. Reflecti nisso durante muito tempo e sempre desejei dizer-lhe o que pensei- Levou-me a compreender porque é que ele deve tê-la amado. E amava mesmo, sabe?

Paxton sorriu tristemente ante a recordação e questionou-se sobre o que o impressionara.

- Também eu o amava. E acho que você também. Esse o motivo por que nos passámos um bocado quando...

- Sim. Mas, quando veio buscar as coisas que lhe tinha dado para que a mulher não as recebesse, fiquei impressionado. A maioria das mulheres não o faria. Ter-se-iam estado nas tintas ou deixado que ela descobrisse, achando que já não era importante. Montes de indivíduos têm mulheres no local, mas, que eu saiba, nenhuma foi buscar as provas a fim de evitar que chegassem à mão da esposa. As miúdas representavam o mundo aos olhos dele.

Tinha os olhos cheios de lágrimas, e ela teve de engolir as dela.

- E aquilo que me contou nesse dia sobre o seu pai... prosseguiu. - Não precisava de o ter feito. - Deu um passo na sua direcção e ela pousou o copo vazio. - Apenas queria dizer-lhe que lamento. Perguntei por si uma vez ao tipo da AP, mas ele informou-me que regressara a São Francisco. Surpreende-me que me fale, depois de tudo o que lhe disse - concluiu e estendeu-lhe a mão.

- Estávamos todos sob muita pressão. Mas obrigada, Tony. - Apertou-lhe a mão e era fria, firme e forte, tal como a dele, ao mesmo tempo que os olhos a trespassavam como balas. - Obrigada. - Começava a entender porque é que Bill gostava dele. Era directo e sincero, embora muito temperamental. - Quer sentar-se? - convidou, apontando para a cadeira que Ralph deixara vaga.

No entanto, Tony abanou a cabeça, pois continuava a sentir-se pouco à vontade na sua presença.

- Tenho um encontro com uma pessoa dentro de minutos - justificou-se, ao mesmo tempo que os olhos pareciam dirigir-lhe mil perguntas. - O que a fez regressar a Saigão?

- A minha segunda missão - sorriu, e ele soltou uma gargalhada.

É corajosa. A maioria das pessoas anseia por sair daqui.

Foi o que senti relativamente a São Francisco.

É natural de lá? - interessou-se com óbvia curiosidade, pois Bill Quinn contara-lhe muito pouco a respeito dela.

- É onde fica o jornal para que trabalho e onde frequentei a universidade durante quatro anos, em Berkeley. Mas sou de Savannah.

- Merda! - exclamou, parecendo impressionado - Passei lá uma semana há uns anos,, depois de fazer o treino básico na Jórgia. Essa gente é muito rígida. Julguei que iam expulsar-me da cidade, por ter ido dançar. Sou de Nova Iorque. As coisas são um pouco mais animadas no Norte.

Paxton riu ante aquela descrição de Savannah.

- Acertou em cheio no alvo - comentou. - É por isso que não vivo em Savannah... mais ou menos... Tenho dificuldade em discutir esse assunto com a minha mãe.

- Ela deve estar excitadíssima por ter vindo para Saigão - retorquiu, enquanto ela tentava adivinhar-lhe a idade. Na verdade, Tony tinha trinta anos.

_ Não propriamente - confessou Paxton, referindo-se à mãe -, mas não lhe restava alternativa. Não consegui aguentar mais. Tinha de sair de São Francisco e regressar ao Vietname.

- Porquê? - De certa forma, não compreendia. Ela era uma rapariga bonita, jovem, tinha obviamente um bom emprego e podia ter ido para qualquer outro lado que não o Vietname. Por que raio estaria aqui?

- Ainda não sei - respondeu-lhe honestamente. - Não conheço a resposta. Algo por resolver, presumo. Apenas senti que pertencia aqui. Fui incapaz de aguentar as trivialidades lá de casa, os carros novos, os antigos empregos, os reposteiros novos de que as pessoas falam, enquanto há gente a ser morta pelos VC. Não consegui, pura e simplesmente.

Tony levou a mão ao boné no que tomou por uma saudação.

- De onde venho, chamam-lhes pazza. Doidos. Desaparafusados. - Fez uma careta nova-iorquina, e ela riu; depois, levantou-se.

Começava a sentir-se cansada. Havia nove horas de diferença horária para ela e, subitamente, mal conseguia ter-se de pé.

- Parece estoirada - comentou, quando ela se ergueu.

Deteve-se a observá-la, como que tentando decidir algo a seu respeito,. e ela tentava não ficar nervosa. Continuava a pensar quando ele lhe gritara há seis meses e como a odiara nessa altura e durante todo o tempo em que andara com Bill.

Porém, essa época perdia-se na distância, e era inútil continuar a repisar o assunto. Dava a sensação de que ele queria estabelecer uma espécie de tréguas. Não valia a pena qualquer vendetta com alguém. E sabia que Bill teria gostado que fossem amigos e, ainda que o sargento lhe parecesse um pouco estranho, estava disposta a esquecer. Não tão estranho quanto intenso e, ocasionalmente, muito nervoso. Mas quem não o era em Saigão?

- Posso oferecer-lhe boleia até ao seu hotel? Tenho um jipe roubado, lá fora. Arranjei-o no aeroporto - retorquiu friamente, e ela riu.

- Na verdade, estava a pensar ir a pé. - Mas agora sentia-se cansada só de pensar em fazê-lo. - Importa-se? - Ele abanou a cabeça. - Estou no Caravelle, mesmo ao fundo da rua.

_ É óptimo - replicou, à guisa de conversa. - jantei uma vez no último piso. A comida é muito fresca - acrescentou, rindo quando ela o fitou com uma expressão de estranheza ante o comentário.

- Eu sei. Parece ridículo - prosseguiu. - A minha família é de merceeiros por atacado. Passei toda a minha vida a ouvir se os legumes são ou não frescos em todos os sítios em que comemos. Detestava a conversa, quando era miúdo. «Que se lixem os legumes!», costumava pensar. Depois, , quando cresci, descobri que é uma maldição de família, torna-se uma obsessão.

Paxton também ria e estava tão cansada que quase desejou que fossem amigos. Era tão estranho regressar e encontrá-lo novamente, conversarem depois de toda a hostilidade e raiva durante todo o tempo em que convivera com Bill. Talvez ele se sentisse meramente ciumento. Tinham-na informado de que alguns subalternos adquiriam um estranho sentido de posse quanto aos seus capitães.

- Recordar-me-ei dessa questão dos legumes, se voltar a jantar lá - prometeu, dirigindo-lhe um sorriso cansado-

- Faça isso. - Nesse momento, tinham parado diante do Caravelle e ele ajudou-a a sair. - Está meia a dormir, céus! - Ela mal conseguia manter os olhos abertos. - Vai ficar bem?

- Desde que consiga chegar à minha cama, ficarei óptima. Obrigada pela boleia, sargento.

- Sempre às ordens, Miss Andrews - replicou com uma saudação.

Paxton lembrou-se de ter pensado que se sentia surpreendida por ele se recordar do nome dela, passado todo aquele tempo. Em seguida, foi buscar as malas à recepção, entrou no quarto, deixou-se cair na cama sem tirar a roupa e acordou, vinte horas depois, com o sol da tarde entrando pela janela.

E lembrou-se de ter conversado com o sargento na esplanada, na noite anterior. Pelo espaço de um minuto, conservou-se sentada a pensar que devia ter estado a sonhar.


 

Paxton manteve-se acordada durante duas horas, desfez as malas, tomou banho, desceu ao andar inferior para comer, voltou para a cama e dormiu até de manhã.

Ralph tinha-lhe deixado uma mensagem na recepção a indicar que viria buscá-la às sete horas da manhã seguinte, E, no outro dia, às seis, sorriu ao observar o romper do Sol. Estava um tempo bonito e escaldante quando vestiu um uniforme e uma camisola interior de caqui e apertou os atacadores das botas. Eram as mesmas que Ralph lhe tinha oferecido quando chegara pela primeira vez a Saigão, um ano atrás.

Desta vez, não receava estar ali. Parecia-lhe que tudo estava bem. E, quando desceu, sentia-se perfeitamente à vontade na- sua própria pele e confiante sobre o que estava a fazer.

Ralph foi, como sempre, pontual e vinha acompanhado de Bertie, um velho repórter fotográfico inglês, um indivíduo extraordinário com quem Paxton trabalhara e gostara. Contou anedotas enquanto saíam da cidade e Paxton sorriu, ao mesmo tempo que olhava para Ralph e se servia de uma chávena de café do termo.

Nessa altura, o Sol já se recortava claramente no céu, as ruas quase fumegavam e subsistia por todo o lado o mesmo cheiro intenso a gasolina, flores e fruta, o mesmo fumo que parecia pairar sobre eles, e o mesmo verde nas colinas quando saíram da cidade, a mesma terra vermelha que provocava o desejo de se estender a mão e apertá-la por entre os dedos... os mesmos mendigos, os mesmos órfãos, os mesmos feridos e mutilados.

O mesmo país que ela amava ao ponto de não conseguir abandoná-lo. Na noite anterior, Ralph deixara no hotel uma mensagem de que a sua missão a Da Nang mudara, mas que iria buscá-la à mesma hora, na manhã seguinte, e viajariam até um outro local.

- Apercebeste-te de que nem sequer sei para onde vamos hoje? - perguntou Paxton. - Já que falamos de confiança, qual é a missão? - dirigiu-se a Ralph, enquanto o repórter fotográfico conversava com o motorista.

Ralph interrogara-se quanto à sensatez de a levar e desejara telefonar-lhe a altas horas na noite anterior, mas nessa altura era tarde de mais. Tencionara dar-lhe uma alternativa antes de partirem; porém, na excitação de sair em reportagem com ela, esquecera-se de lhe dizer.

- Hoje, vamos a Cu Chi - respondeu, consultando nervosamente o relógio. - No entanto, ouve bem... Não há problema. Se quiseres, voltamos para trás. Não és obrigada a vir nesta missão. O mais estúpido de tudo é que não voltei lá nos últimos seis meses. E ontem, apareceram-me subitamente com uma história interessante.

Da última vez que lá tinham estado fora tudo bastante difícil. «E se aquele lunático ainda estivesse por lá?», pensou.

- Sinto-me mal com isto, Pax - começou a explicar. - Devia ter cancelado o compromisso contigo, quando me mudaram de Da Nang para Cu Chi.

- Não, não devias. Talvez precise de enfrentar isto.

- Queres voltar à cidade, Pax? - inquiriu suavemente.

Ela abanou a cabeça devagar e, durante muito tempo, ficou a olhar lá para fora. Bill estava morto há seis meses, Peter há quinze. As coisas eram mesmo assim por aqueles lados. Era impossível ficar afastado dos lugares em que haviam sido feridos ou dos lugares em que haviam estado.

Havia demasiadas recordações dolorosas. Peter fora morto em Da Nang, Bill em Cu Chi. Não podia esconder-se eternamente. Tinha de prosseguir caminho, continuar a viver.

- Estarei bem - garantiu num tom calmo.

Lembrava-se com demasiada nitidez da última vez que lá haviam estado, para ir buscar as cartas que ela escrevera a Bill

, no dia anterior a enviarem o corpo para Debbie, em São Francisco, E o facto recordou-lhe o encontro com Tony Campobello na esplanada. Respirou fundo, bebeu mais um gole de café e fitou novamente Ralph.

- Não vais acreditar quem vi ontem na esplanada do Continental Palace depois de teres ido embora - replicou.

- O Ho Chi Minh - redarguiu, despreocupado.

Sentia-se muito feliz por Paxton estar de volta a Saigão a fazer uma reportagem com ele. Da mesma forma que quisera que ela abandonasse Saigão em seu beneficio, estava satisfeitíssimo com aquela opção dela em querer voltar. Podia ver com os seus próprios olhos que os Estados Unidos lhe tinham feito bem e estava pronta para desempenhar de novo o trabalho que todos amavam tão apaixonadamente; e não poderia ir-se embora sem que a guerra no Vietname acabasse.

- Estive com o Tony Campobello - retorquiu.

O primeiro-sargento do Bill. - Podia falar novamente de Bill. Durante os cinco meses nos Estados Unidos não falara dele com ninguém, porque ninguém o conhecia.

- Esse lunático? O que te fez? Atirou-te a bebida à cara? - Recordava-se bem de mais do último encontro que tinham tido em Cu Chi e fora tudo menos agradável, quando ele lhe gritara, e Paxton chorara por Bill, apertando com força o pequeno maço de cartas.

- De facto, não vais acreditar - respondeu, ela própria com uma expressão incrédula. - Foi quase simpático. Contraído e nervoso, mas... - Hesitou, recuando até à última vez que o vira, seis meses antes. Desculpou-se pelo nosso último encontro.

Ralph fitou-a demorada e atentamente por um instante, antes de comentar:

- Houve, então, uma mudança. julguei que o filho da mãe ia tentar matar-te. Tinha-o corrido a pontapé se ele tentasse o que quer que fosse, mas, por momentos, julguei que se passara para o outro lado.

Paxton olhou para fora, enquanto reflectia nas palavras.

- Julgo que nos aconteceu a todos - declarou.

Contudo, nada houvera de loucura no seu caso. Ficara apenas com o coração despedaçado com a perda de Bill apenas Campobello perdera o controlo. No entanto, segundo Ralph dizia, os ratos de túnel eram todos assim. Viviam com os nervos à flor da pele, em demasiado stress e demasiado risco. E acabava, eventualmente, por acontecer a todos. Iam-se abaixo. Quem poderia censurá-los?

Chegaram à base, atravessaram o portão principal, Ralph informou que pretendia falar com o novo comandante da Vigésima Quinta Divisão e Paxton seguiu-o até ao interior.

Era um homem simpático e explicou que tinham descoberto recentemente uma rede de túneis completamente nova. Havia um arsenal de bombas, quartéis-generais, «gabinetes». Sem que o soubessem, os homens de Cti Chi tinham estado uma vez mais a viver numa aldeia subterrânea.

Mostrou-lhes fotografias e diagramas e, depois, chamou um ajudante para os acompanhar numa visita às instalações e convidou-os a voltar e a visitá-lo novamente, caso tivessem mais perguntas.

E, ao pronunciar as palavras, brindou Paxton com um olhar apreciativo. Ignorava de quem se tratava quando se avistaram, mas sabia que era uma rapariga de gritos, quer estivesse ou não em combate e pensou que Ralph tinha uma sorte danada.

Visitaram depois a parte das traseiras da base, e Paxton sentiu um aperto no coração ao observar o local em que Bill tinha vivido e trabalhado. A visita revelava-se muito dolorosa. E Ralph fez essa leitura no rosto dela, quando seguiram até ao mesmo sítio em que haviam ido com Bill e lamentou, subitamente, tê-la trazido.

- Desculpa, Pax. Não devia ter-te exposto a isto. Pura e simplesmente, não pensei.

- Tudo bem - acalmou-o, tocando-lhe ao de leve no braço, e reajustou a mochila. Trazia alguns apontamentos lá dentro, bem como o termo e uma caixa de primeiros socorros. A semelhança dos soldados, continuava a transportar o creme de protecção e o repelente de insectos no capacete.

Estou óptima - garantiu, quando saíram novamente do jipe.

No entanto, mentia. Estava triste e a pensar nele quando chocou, repentinamente, com alguém que quase a deitou ao chão mas ainda a apanhou antes da queda.

- Merda... - pronunciou a voz, no momento em que ela tropeçou; depois, o indivíduo apanhou-a. Ao virar-se, viu que se tratava de Tony Campobello.

- Olá - cumprimentou timidamente e tentando readquirir a compostura.

Ralph já estava a falar com outra pessoa e o repórter fotográfico colocava outro rolo na máquina.

- Não era minha intenção derrubá-la... Lamento...

E acrescentou com um sorriso, que lhe iluminou os olhos negros como tições. - Nos últimos dias, parece que lhe tenho repetido muito esta frase. Chegou bem a casa, na outra noite? Estava tão cansada que julguei que não conseguisse.

Paxton estava, agora, familiarizada com o seu sotaque nova-iorquino e quase conseguia perceber porque é que Bill gostava dele. Era nervoso e tenso, mas também inteligente, rápido e perspicaz; além de que se preocupava extraordinariamente com as pessoas que o rodeavam e tudo o que lhes acontecia.

- Dormi cerca de vinte horas depois de o ter deixado - explicou. - E nem sequer me dei ao trabalho de tirar a roupa.

- Parecia exausta - sorriu, observando a dor reflectida nos olhos dela.

Aquele regresso tornava-se muito difícil para Paxton, e ele sabia-o. Também para ele o era. Para onde quer que fosse, deparava com a memória dos homens que tinha amado e perdido. Para ele, existiam fantasmas por todo o lado e igualmente para todos os que ficavam muito tempo no Vietname. Também havia boas recordações, mas havia muitas tristes.

- Como estão hoje os legumes por aqui? - sorriu-lhe, desanuviando o ambiente.

Trocaram um olhar significativo de que ambos sentiam a falta de Bill e, pelo espaço de um louco momento, invadiu-a o desejo de estender a mão e tocar-lhe.

- Bastante frescos - riu, ficando surpreendido por ela se lembrar dos pormenores da conversa, após o que o rosto voltou a ensombrar-se. - E os atiradores também. Terno' de estar atentos a leste. O cenário está animado. um do, meus rapazes ficou ferido no braço, há umas horas. Nada de grave, felizmente. Mesmo assim, teve muita sorte. Mantenham-se bem para trás, quando espreitarem para dentro dos túneis.

Ouvira falar do motivo que os trouxera até ali e o oficial no comando instruíra-o para que lhes prestasse o máximo de colaboração. - Terei cuidado, obrigado - retorquiu Ralph virando-se irritado para ela.

O calor bulia-lhe com os nervos e não lhe agradava nada saber que os VC estavam tão acesos nesse dia. Não quisera arrastá-la para uma missão difícil. Apenas quisera incentivá-la com  uma nova informação.

- Vens comigo, Delta Delta, ou tencionas ficar para aí a falar o dia todo?

- Já vou.

- Rasteirinha, okay? O Charlie anda por aí.

- Assim me disseram. - Olhou para Tony e, depois, afastou-se com Ralph.

Apresentaram-na ao tenente que ocupara o lugar de Bill e sentiu de novo aperto no coração, mas tentou concentrar-se no trabalho. Ralph falou das fotos que queria que o fotógrafo fizesse e expôs o ângulo da história a Paxton. Estavam rodeados de homens e as pessoas movimentavam-se rapidamente; algumas dirigiram-se para o meio dos arbustos para se entenderem com os VC que sabiam estarem lá.

- Era de pensar que quando transformaram o Iron Triangle num parque de estacionamento do outro lado do rio, tudo ficara solucionado, céus! - murmurou Ralph a um dos homens, mas ele limitou-se a encolher os ombros. já sabia que não havia forma de os deter.

- Não há hipótese de nos livrarmos destes tipos. Podemos queimá-los, tirá-los cá para fora, matar os filhos da mãe, mas o Charlie continua a aparecer.

- É mesmo - concordou Ralph com um aceno de cabeça, e Paxton agachou-se; seguiu Bertie por detrás de alguns arbustos elevados para lá da clareira. Ele queria tirar algumas fotografias da troca de tiros com o atirador, antes de regressar e investigar o túnel e, por qualquer razão, Paxton seguiu-o, convicta de que se encontrava na peugada de uma história interessante.

. Nessa altura, Ralph estava ocupado com qualquer outra coisa e havia meia dúzia de soldados à volta deles e um na frente a tentar ver o que conseguia descobrir. E no momento

em que Paxton se ajoelhou no meio dos arbustos, um operador de rádio aproximou-se por detrás dela.

- Está okay?

- Estou óptima.

- Era suposto estar aqui7

- Ignorava que tinham lugares especiais para a imprensa.

No entanto, mal pronunciou as palavras, uma explosão de fogo sibilou próximo. Sem dizerem nada mais, ela e o operador de rádio atiraram-se para o chão, os braços dele a cobrirem-na e os capacetes tocando-se, ao mesmo tempo que comiam a poeira onde se deitavam.

- Já que pensei nisso - retorquiu ela num sussurro, enquanto esperavam -, talvez devessem ter lugares especiais. Foi por pouco.

Fez-lhe lembrar aquela altura em que Bill a tinha salvo da granada, quase no mesmo lugar. As balas passaram a rasar. Quando voltaram a ajoelhar-se, o operador de rádio verificou que Bertie levara um tiro em cheio no coração e jazia ao lado dele.

- Oh, foda-se... - Procurou a pulsação, mas não a encontrou, no momento em que soaram mais tiros e uma dúzia de soldados passou junto deles, empunhando as M- 16 e disparando contra o que pensavam serem mais dois atiradores.

- Ponha-se a andar - gritou o operador de rádio a Paxton. - Volte para trás.

Porém, quando ela se moveu, voltaram a abrir fogo sobre eles de um ângulo diferente, e ele tapou-a com o corpo, ao mesmo tempo que pedia freneticamente ajuda. Havia mais do que dois atiradores nas proximidades.

- Mãe Ganso... Mãe Ganso... Fala Peter Pan... Responda... Estamos na clareira e estão a alvejar-nos... Tenho uma visita e uma Delta Delta aqui... Afaste-os para a poder levar..

- Estamos a ouvi-lo, Peter Pan... Daqui Mãe Ganso.

Era o operador na base, e preparavam-se para dar instruções a algumas das tropas para que tentassem dispersar os atiradores, mas não era tarefa fácil.

- Restam-nos duas opções - explicou o operador de rádio, quase esmagando Paxton com o peso do corpo. - Podemos desatar a correr por onde viemos ou seguir em frente até às árvores, o que é um caminho mais curto.

Era, contudo, onde os atiradores se encontravam e uma alternativa muito mais perigosa para eles, e ignorava o que fazer relativamente a Paxton.

Tratava-se de um jovem mais ou menos da sua idade, do Maine, e a última coisa que queria era que a matassem e as culpas recaíssem sobre ele por ter feito o movimento errado, impulsionado pelo momento.

- Voto a favor das árvores - replicou ela calmamente, quando mais disparos explodiram próximo dos seus joelhos. - Na verdade - acrescentou, afastando-se dele e rolando no solo -, acho que devíamos mover-nos rapidamente.

No próprio momento em que pronunciou as palavras, mergulhou para diante, ele seguiu-a e o lugar em que haviam estado foi atingido por uma granada. Os VC não estavam decididamente, a brincar.

Paxton não pensou duas vezes enquanto corria. E, ao aproximarem-se das árvores, mergulhou na sua direcção e ficou deitada, ofegante, por terra, enquanto o operador de rádio deslizava para o seu lado. Nesse preciso momento, os M-60 abriram fogo e ouviu-se uma tremenda explosão.

- A matança do porco! - explicou o operador de rádio e, depois, voltou a contactar com a base.

- Fala Mãe Ganso - respondeu a base. - Onde está a sua Delta Delta, com mil raios?

- Comigo - respondeu, dirigindo um sorriso a Paxton, e ela sentiu vontade de rir.

Tudo isto era uma loucura. Os VC estavam a tentar matá-la e os seus continuavam a chamar-lhe uma «boneca donut".

- Alguns ferimentos? - A voz do outro lado parecia preocupada.

- Ela está óptima - informou o operador de rádio, examinando-a o melhor que podia. - Conseguem tirar-nos daqui?

- Estamos a tentar. Eles são mais do que pensávamos. _ Eram sempre, e em Cti Chi não cessavam, aparentemente de se infiltrar. Conheciam demasiado bem o velho sistema dos túneis, e a recente descoberta da nova rede provava que estavam sempre a aumentar. Independentemente do que se fazia, dava a sensação de que Charlie se lhes adiantava e saía vencedor.

- Devemos ser capazes de os tirar daí dentro de minutos, Peter Pan - prosseguiu a voz. - Mantenham-se sentados.

Ouviu-se uma nova vaga de disparos e a «Mãe Gansos anunciou que um dos atiradores estava ferido e fora capturado. O operador de rádio indicou a Paxton que não saísse do seu lugar, enquanto ele ia até à frente ver se podia ajudá-los.

- Volto já - anunciou.

No entanto, mal ele se afastou, Paxton ouviu tiros atrás dela e não sabia para onde se dirigir. A única alternativa parecia ser a de seguir o operador de rádio; de súbito, viu-se outra vez no meio do fogo e avistou um jovem estendido ao seu lado. As costas tinham sido abertas, a cabeça fora atingida, e Paxton verificou tratar-se do jovem do Maine, com o rádio ao lado dele.

Aproximou-se com a certeza de que ele estava morto; porém, ao estender-se junto dele, verificou que ainda respirava. Estava inconsciente e os outros dois rapazes ao lado dele também e, em seguida, o fogo prosseguiu.

Ouvia, contudo, as granadas, as M-16 e as M-60. E tirou, instintivamente, o rádio das mãos do rapaz, fazendo o que o vira fazer para contactar a base.

- Alô, Mãe Ganso - falou prudentemente para o microfone.

- Escuto... Fala Mãe Ganso... quem é?

- Delta Delta - respondeu, depois de hesitar somente uma fracção de segundo. - O operador de rádio está gravemente ferido. Tenho mais dois rapazes atingidos aqui.

- Onde está? - perguntou Mãe Ganso, parecendo em pânico.

- Não sei bem. Estamos nos arbustos, e o fogo não está muito longe. Pode haver mais do que atiradores. Conseguem tirar-nos daqui?

Expressava-se num tom firme, mas sentia que as mãos lhe tremiam. Um dos rapazes mexera-se e emitiu um gemido, e ela continuava a dizer para si própria que não devia entrar em pânico.

_ Estamos a tentar, Delta Delta... Tem foguetes?

Ia a responder negativamente, mas depois lembrou-se de que tinha um na mochila.

- Sim - replicou.

- Quero saber exactamente onde está Delta Delta. Espere um minuto. Não faça nada, sem eu lhe dizer.

- E, quando se afastou do rádio, gritou para alguém do outro lado da sala:

- Preciso que alguém chame o tenente. Tenho uma mulher com três tipos feridos e não sabemos onde raio se encontram, pois estão, algures, nos arbustos.

O tenente apareceu a correr segundos depois e, uns minutos mais tarde, alguém foi buscar Ralph, que regressou à base e se conservou, nervosamente, a escutar o rádio com os outros. Continuavam a tentar afastar os atiradores dos arbustos, mas, nessa altura, alguém tinha avistado mais vietcongues e era óbvio que estavam a braços com uma unidade do NVA ( NVA: Exército do V'etname do Norte. - N. da T. ), algures no Norte.

- Óptimo. Exactamente o que me fazia falta - gemeu o tenente. - Um exército regular de Hanói e uma jornalista de São Francisco.

Fechou os olhos por minutos enquanto pensava, dando a sensação de que estava a rezar.

- Consegue tirá-la de lá, Mac? - inquiriu Ralph, aterrorizado.

- Estou a tentar, Ralph, com mil diabos! Ignoro o que temos por lá e não sei como raio ela lá foi parar. Mas começa a parecer-me o exército inteiro do Vietname do Norte.

- Mesmo ao pé da base? - retorquiu.

- Parecia difícil de acreditar, mas acontecera. Acontecia por todo o lado. Eles surgiam, mesmo quando se estava a dormir. E degolavam ou roubavam armas, ou não o faziam. No entanto, a sua presença era constante e, onde estava, Paxton assistia ao desenrolar da acção. Agora, lançavam granadas uns aos outros e as metralhadoras M-60 não paravam.

- Daqui Mãe Ganso - identificou-se o operador de radio da base. - Está a ouvir-me, Delta Delta?

- Perfeitamente, Mãe Ganso. Pode mandar-me um transporte, por favor?

Ralph abanou a cabeça, desejando não lhe ter pedido para que o acompanhasse naquela missão a Cu Chi.

- Mandá-lo-emos a qualquer momento. - E no preciso momento em que pronunciou as palavras, o fogo pareceu afastar-se da base para as profundezas dos arbustos. Estavam, finalmente, a obter resultados. - Como vão os feridos?

Paxton tinha examinado todos. Um deles estava, agora, consciente e os outros dois continuavam a respirar.

- Estamos bem, mas com dificuldades. Podem apressar-se?

- Dê-nos mais dois minutos e pomos um Dustoff a caminho. Tem o foguete?

- Sim.

- Indicamos-lhe quando deve lançá-lo, Delta Delta.

Nos minutos seguintes, o combate afastou-se e, quase em simultâneo, ela ouviu o motor de um helicóptero e avistou o Dustoff à distância.

- Consegue ver o transporte, Delta Delta? - A voz era calma e ela sentiu os olhos cheios de lágrimas ao avistá-lo.

Fora rápido, mas muito, muito assustador. E recordava-lhe de que estava de volta ao Vietname. Aqui não era São Francisco ou Savannah. Aqui as pessoas morriam, ou voltavam a casa sem braços ou pernas, cegas, surdas, ou desfiguradas. E, pelo espaço de um minuto, julgara que iam apanhá-la. Não tinha, contudo, tempo de pensar nisso agora, mas apenas em como meter os jovens feridos no helicóptero.

- Estou a ver o transporte, Mãe Ganso.

- Lance-nos o foguete, Delta Delta.

Ralph sentia o suor a escorrer-lhe pelo rosto, enquanto escutava na sala de controlo. «Por favor, meu Deus. Não deixes que esses idiotas a matem ...

E, entre os contactos com ela, o operador de rádio da base falava, alternadamente, com os soldados nos arbustos e a unidade.

- Já a vemos, Delta Delta. Eles vão buscá-la.

Em seguida, os homens na sala de controlo ficaram a aguardar, enquanto Paxton se conservava onde estava e o helicóptero baixava, até ao ponto exacto em que Bertie fora morto. Observou-os a colocarem o corpo no helicóptero e, depois, dois homens com uma maca corrêram até às árvores, onde ela se encontrava com os três feridos.

- Está bem?

Fitaram-na quando ela esboçou um aceno afirmativo, puseram rapidamente o primeiro homem na maca, voltaram a buscar os outros dois e, em seguida, fizeram-lhe sinal.

- Venha, depressa... - ordenaram.

- Paxton correu pelo meio da enorme nuvem de poeira que eles tinham levantado, pelo meio do vento erguido pelas pás do helicóptero e, sem pronunciarem palavra içaram-na para o helicóptero, que levantou voo e percorreu a curta distância até à 159 Unidade na base, onde tinham uma série de enfermeiras e homens da corporação a espera.

- Daqui Mãe Ganso... Fale Dois Um Alfa Bravo. Têm-na aí?

- Sim - respondeu o piloto calmamente. - Parece bem. E aí por baixo?

- Até aqui tudo em ordem.

- Vamos descer, Mãe Ganso.

Paxton ainda não largara o rádio quando pousaram, e tremia dos pés à cabeça. O rádio ainda conservava o sangue do operador de rádio, mas ele estava entregue aos cuidados dos médicos. A jovem deixou que se encarregassem primeiro dos feridos, depois voltou a agradecer ao piloto e saiu, desajeitadamente, do helicóptero.

Quase no mesmo momento, sentiu-se agarrada e revolutiada com tanta força que o capacete lhe caiu da cabeça, ao mesmo tempo que o cabelo louro girava à sua volta.

- Que porra estava a fazer ali? - De início, nem compreendeu de quem se tratava. Ele abanava-a como a uma criança e, por momentos, julgou que fosse bater-lhe. – Não sabe que podia ter sido morta? Por que raio foi para ali? Toda a porra da área é restrita!

- Eu.. - E, depois, avistou-o e aos olhos negros chispando de medo. Era Tony Campobello.

- Não obedece às regras? Ou acha-se importante de mais? Podia ter sido morta e arrastado todos consigo!

No entanto, ela sentiu-se repentinamente incapaz de aguentar mais, e não ia tolerar aquele comportamento dele. já passara por isto antes e não permitiria que ele a fizesse sentir-se uma vez mais culpada. Desta vez, não tivera culpa, nem tão pouco quando Bill morrera.

- Não me venha com essas merdas! - retorquiu, também a gritar e com os olhos verdes tão fulminantes como as M-16. - Não fiz nada! Ninguém ficou ferido por minha causa! Tem todo o maldito NVA ali mister! E se os seus homens não conseguem mantê-los afastados da base, não grite comigo! Só me afastei três metros de onde supostamente deveria estar e começaram a alvejar-me!

- E que raio esperava? Senhoras a servirem chá? Estamos numa zona de guerra! - exclamou.

Os dois mantinham-se a gritar um com o outro, os feridos há muito que tinham sido levados e o helicóptero voltara a levantar voo. Continuavam a gritar, e os homens que os rodeavam presumiam tratar-se de um desentendimento pessoal e, portanto, não interferiram. E era. Datava de há muito tempo atrás.

Todavia, enquanto gritava com ele, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Eram lágrimas de raiva e de frustração.

- Não grite comigo! - enraiveceu-se. - Não tive culpa de que esses rapazes tivessem sido feridos.

- Não, mas podia ter tido! - retorquiu, ao mesmo tempo que Ralph e o tenente se aproximavam num jipe e se detinham a vê-los gritar e de punhos erguidos.

Ralph emitiu um grunhido furioso.

Tony recuou ante a chegada do tenente e Ralph fitou-o com uma raiva não dissimulada.

- Voltou ao ataque? - replicou.

Tony não tinha, contudo, medo de enfrentar Ralph.

- Ela podia ter ido pelos ares! - redarguiu, à guisa de explicação.

Graças a Deus que tal não aconteceu! - exclamou o tenente. - Era mais velho do que Bill e parecia abalado pelos eventos da manhã. - Talvez me tivesse precipitado quando convidei a imprensa a observar aquele túnel!

O repórter fotográfico deles morrera, Paxton, poderia ter tido igual destino e Ralph tinha uma expressão sombria ao contemplar o que acontecera.

- Talvez precisemos de ser um pouco mais cuidadosos - redarguiu Ralph, fitando-a com uma expressão significativa.

- O que é que te levou a avançar até ali céus?

- Não sei. O Bertie disse que queria fazer umas fotos rápidas e quis ver o trabalho dele. Acho que muito simplesmente o segui, quando alguém abriu fogo contra mim.

- Se não tivesse levado o rádio, jovem senhora, ainda estaria lá - observou o tenente num tom respeitoso. - Manteve o sangue-frio e provavelmente salvou a vida desses rapazes. - Paxton fitou Tony irritada, ainda a deitar fumo por todos os poros.

- O sargento acha que tentei matá-los - retorquiu.

O tenente sorriu ante as palavras dela. Campobello era um dos seus melhores homens, embora temperamental.

Não foi isso o que disse - rosnou. - Disse que quase perdeu a vida. - ... E ele acusara-a de matar Bill... Mas isso fora numa outra altura, era uma outra história.

- Assim já é mais verdade - comentou Ralph.

Enquanto Tony e Paxton se metiam no jipe com eles, ainda a fulminarem-se com os olhos, Ralph falava ao tenente na possibilidade de levar o corpo de Bertie para Saigão. Todos tinham gostado de trabalhar com ele e o seu desaparecimento era uma enorme perda. Outro homem que partira. Outra morte. Era algo difícil de encarar.

- Gostaria de agradecer ao seu operador de rádio da base - declarou Paxton num tom calmo, antes de partirem. E o tenente procedeu às apresentações. E, ao conhecê-lo, os olhos da jovem encheram-se, repentinamente, de lágrimas.

- Só queria agradecer-lhe... - Ignorava o que acrescentar. Ele salvara-lhe a vida com as transmissões e um comportamento racional.

- Disponha sempre, Delta Delta - retorquiu, num tom arrastado. Também era do Sul, mas ela não perguntou de onde. - Lamento tê-la metido numa embrulhada.

- Tirou-me dela, o que é mais importante.

Nessa altura, já sabia que os outros jovens estavam bem, Apenas o seu amigo Bertie não estava. E Ralph mostrou-se muito transtornado no caminho de volta a Saigão.

Não tinham voltado a ver Tony antes de partirem, mas Ralph continuava furioso com ele e libertou-se de alguma frustração, gritando com Paxton. Fora um dia duro para todos eles, um dia terrível numa guerra terrível e nem sequer tinham conseguido a reportagem de que vinham à procura.

Ralph declarou que voltariam noutro dia, mas, por agora, tinha de voltar a Saigão, comunicar o acorrido à AP e tomar algumas disposições.

- O que se passa, afinal? De cada vez que vos vejo juntos, estão a gritar um com o outro, como dois lunáticos.

Sentia-se aborrecido com ela, ou, pelo menos, parecia. Mas, na verdade, apanhara um susto de morte e agora sentia-se tão aliviado por ela estar bem que a espicaçava.

- Ele acusou-me de tentar matar aqueles tipos com o meu descuido.

- Descuidaste-te contigo, o que é pior. Estás aqui para escrever sobre esta guerra e não para seres morta e provar a tua tese. E ignoro qual é o problema dele, mas acho que não regula bem.

- E não - confirmou com um olhar rancoroso.

Estava novamente coberta de sujidade e do sangue do operador de rádio. Recordou-se de outras missões em que participara e do motivo por que regressara a Saigão. Não estava aqui por gostar, mas por saber que era essa a sua obrigação.

Mas uma obrigação para quem? Consigo própria? Para com o seu país? O jornal? Ralph? Ou Peter? Ou Bill? Era uma pergunta interessante.

No caminho de regresso a Saigão, não voltaram a pronunciar uma palavra. Fora um dia terrível para ambos. E até mesmo para Tony, que tinha ido dar um longo passeio, espumando e tentando compreender exactamente o que sentia por Paxton.


 

Ralph continuava irritado com ela quando a viu na redacção da AP no dia seguinte, mas Paxton levou-o a almoçar e, depois de umas bebidas, descontraiu-se.

- Idiota! julguei que era o fim, quando estavas deitada nos arbustos com aqueles rapazes. Imaginei que te apanharia a seguir. já estava a imaginar a história.

- Também eu julguei - confessou, bebendo um café suave. Era um café forte, suavizado com leite condensado de lata e, há um ano, detestara. Agora, achava-o óptimo.

- Tiveste medo? - sussurrou, e ela sorriu.

- Depois, sim. Na altura, não tenho a certeza... Durante um minuto, comecei a entrar em pânico, interrogando-me sobre o que seria de mim, se me agarrassem e não me matassem. Isso ainda me assustava mais.

Já acontecera, por mais de uma vez, jornalistas terem sido presos, mas habitualmente libertavam-nos. Os vietnamitas do Norte davam-lhes alguma propaganda sobre a qual podiam escrever, mas havia sempre a possibilidade de, na próxima vez, não serem tão amistosos. E as histórias de tortura e espancamentos nas mãos dos vietnamitas eram lendárias.

- Na altura, só conseguia pensar na forma de tirar dali aqueles rapazes, antes que morressem.

- Pobre Bertie! - comentou Ralph, pensando no amigo.

- Era casado? - perguntou Paxton, que não o conhecia tão bem, embora sempre tivesse gostado dele.

- Não. Tinha uma namorada aqui. Uma rapariga de Cholon, julgo. Acho que não tinha mais ninguém. Nem mulher, nem filhos. Telefonei para a embaixada a avisar. Vão mandar o corpo, amanhã, para Londres.

Paxton esboçou um aceno de cabeça, pensando na altura em que Bill fora mandado para Debbie. Em seguida, Ralph fitou-a e, por momentos, pareceu muito cansado.

- Não te sentes farta de tudo isto? - indagou. - De todas estas mortes, quero dizer. Por vezes, interrogo-me como seria viver num lugar em que as pessoas apenas morrem de coisas como cancro ou quedas a praticar esqui.

A jovem sorriu, sabendo ao que ele se referia, embora se tivesse mantido afastada por uns tempos. No entanto, continuava a ser difícil e a causar mágoa. E, contudo, nenhum deles parecia capaz de abandonar o local. Sentiam-se incapazes de regressar a casa, deixando as coisas por resolver. Fora o que lhe acontecera, quando voltara. Parecia-lhe tão errado estar, de novo, em casa, pois, no íntimo, sabia que tudo continuava.

- Claro que me farto. Acontece a todos nós.

- Há momentos em que me sinto preocupado... - comentou ele honestamente. Depois da terceira bebida, ficara toldado, o que era raro. Não o via embriagado muitas vezes. - Estou a pensar que a France vai ter o bebé aqui. É um raio de sítio para se criar uma criança.

- Podias regressar a casa com eles - sugeriu Paxton num sussurro, mas interrogando-se sobre se ele seria capaz.

Talvez Ralph já tivesse passado ali tempo de mais para poder voltar a sentir-se bem noutro lado. Havia jornalistas assim, que tinham vivido em lugares como a Turquia, Argélia e Vietname durante tanto tempo, que seriam incapazes de regressar a Nova Iorque, Chicago e Londres. Por vezes, questionava-se sobre se ele era um deles, ou se ela o era.

- Ela recusa-se a voltar comigo. Quer ficar aqui. Sabe como era tudo quando estava casada com o pai do An. O exército tratava-a como a um pedaço de merda, a família dele odiava-a. Acha que, se regressar aos Estados Unidos comigo, as pessoas vão apedrejá-la na rua e... sabes que mais, Pax? Talvez tenha razão.

- Não estou muito certo de que deva arrancá-la e estas paragens - prosseguiu. - E este é um lugar triste para se crescer. Se estivéssemos nos Estados Unidos, poderia fazer muito pelo An. Mas aqui, já fico contente se conseguir mantê-lo a salvo, decentemente alimentado e sem problemas.

An era ainda muito pequeno, mas Paxton sabia que havia crianças de cinco anos a venderem heroína na rua. Embora An estivesse longe disso, France cuidava muito bem do filho e mantinha-o em casa, com ela. Frequentava uma creche francesa católica, que anteriormente tinha sido muito selectiva, e a mãe era, em todos os aspectos, uma dama. Viviam, porém, num mundo moribundo e era a esse mundo que iam trazer um filho.

- A propósito, como é que ela está? - interessou-se Paxton.

- Gorda - riu. - Está gira.

E Ralph sentia-se excitado com o bebé. Nunca tinha sido pai e ia sê-lo aos trinta e nove anos; apesar da indiferença que tentava mostrar frente aos amigos, estava muito entusiasmado.

Depois, ele regressou à redacção e Paxton foi dar umas braçadas à piscina do Hotel Catinat, na Nguyen Hue, voltando ao Caravelle para escrever a sua história.

Ainda não tinha organizado ideias depois do que acontecera em Cu Chi no dia anterior e ia muito distraída quando atravessou o átrio do hotel. Deu um salto quando alguém lhe tocou no braço e, ao erguer os olhos, surpreendida, deu de caras com Tony.

- Eu... - Não sabia o que lhe dizer e questionou-se sobre se ele começaria novamente a gritar com ela, o que parecia ser o seu estilo de conversa favorito. - O que o traz aqui?

Desta vez, ao fitá-la, ele ficou corado até às orelhas. Era mais fácil lidar com ela quando estava de camisola interior, botas de combate e farda e tinha o bonito cabelo louro oculto sob o capacete. No entanto, ali parecia muito bonita e muito feminina e ele sentia-se idiota ao olhá-la, arrependido de ter vindo, mas sabia que tinha de o fazer.

- Devo-lhe, novamente, desculpas - Os olhos castanho-escuros fixaram os verdes dela e, por momentos, quase pareceu juvenil. - Ontem, não devia ter gritado consigo. Eu... eu senti-me cheio de medo por sua causa, depois aliviado ao ver que estava bem e... foi difícil voltar a vê-la ali. Trouxe-me recordações.

Enquanto pronunciava as palavras, tinha os olhos húmidos. Continuava a sentir a falta de Bill Quinn, mais do que a de muitos outros homens, mas tinha a certeza de que era esse o caso dela também. E não era pessoa para dissimular emoções.

- Também deve ter sido difícil para si - rematou.

Paxton esboçou um aceno de, concordância, comovida pela franqueza do que ele dissera., Tornava-se, assim mais fácil para ela falar-lhe.

- Não me apercebera de que era esse o nosso destino. Limitei-me a aceitar fazer a viagem e a cobertura e, subitamente, estávamos lá e eu apenas conseguia pensar...

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, abanou a cabeça e desviou o rosto.

- Talvez há muito tempo, tivesse tido razão - prosseguiu. - Talvez, quando se tem a cabeça demasiado ocupada por alguém, se fique magoado ou se magoe os outros...

- Nunca lho devia ter dito. Não foi por isso que ele morreu, embora eu tivesse querido culpá-la. Queria culpá-la, pois estava farto de culpar o Charlie. O Charlie matou homens tão fantásticos que conheci. E voltou a fazê-lo. A culpa foi igualmente do Bill - suspirou. - Nunca devia ter descido àquele túnel e sabia-o. Era, contudo, uma daquelas pessoas que assume sempre a responsabilidade. Tinha sempre de ser ele e nunca outro e, de todas as outras vezes, sempre teve sorte.

«E, ontem, você avançou para o perigo - acrescentou. - Tínhamos uma unidade inteira de vietcongues sentados na traseira da base e você avançou simplesmente. Saímo-nos bastante bem, dadas as circunstâncias. Mas, por momentos, pensei que iam apanhá-la e só a ideia pôs-me louco.

- Obrigada - agradeceu Paxton com um sorriso. - Por se ter preocupado. - Era fácil não se preocupar. Assistia-se a tantas mortes que deixava de se sentir o que quer que fosse por alguém. Porque, caso contrário, morria-se. - Também me senti muito assustada no regresso a casa. Quando estava lá com aqueles indivíduos, nem tempo tive para pensar antes de nos virem buscar.

- Foi à tabela - confessou-lhe Tony. Ele e o tenente tinham trocado impressões depois, e o caso podia ter ficado feio. - Tudo podia ter-se decidido para qualquer dos lados. - Ainda se sentia mal só com a ideia.

- Tive sorte. Na verdade, ia agora subir ao meu quarto para escrever a reportagem.

- Oh! - exclamou, parecendo desapontado. - Tive de ir buscar uns documentos a MacVee e pensei que talvez... Isto é... não sei... Aceita ir tomar um café a qualquer lado?

Paxton hesitou um minuto sem saber muito bem o que ele queria dela, mas a reportagem podia esperar, e ambos haviam ficado bastante abalados pelo que acontecera. Talvez não fosse má ideia ir tomar um café e fazer as pazes com ele. Apesar do mau feitio aparente, suspeitava que ele era inofensivo.

- Claro. Posso escrever a reportagem mais tarde.

Seguiu-o, e percorreram uma curta distância até uma esplanada na Tu Do.. Sentaram-se na frente, a fim de observarem o caos, o trânsito e a vida da rua.

- O Ralph afirma que passamos todo o tempo a gritar um com o outro - comentou ela com um sorriso, enquanto bebia o thom xay, e ele riu.

- É verdade, não? - retorquiu, depois, brincalhão. Acho que a culpa é minha.

- Pode dizê-lo - concordou Paxton. no mesmo tom, e ele descontraiu-se.

- Não posso evitá-lo. Tenho um temperamento muito italiano.

- Oh, as coisas são como são - retorquiu, sem deixar de rir. - O Ralph acha que é por sermos os dois loucos.

Também é possível. - Ele esboçou um sorriso, e Paxton reparou que ele tinha uma expressão agradável quando se descontraía. - Fica-se assim por estas bandas,

- Isso é um diagnóstico ou um aviso?

- Talvez as duas coisas.

Curiosamente, era fácil estar com ele, apesar de toda a angústia por que tinham passado e da dor que ele lhe causara.

- É casado? - inquiriu ela num tom coloquial. Tinha, sem dúvida, idade bastante para o ser. À luz do Sol, ela adivinhou-lhe a idade exacta. Tinha exactamente mais sete anos do que ela, ou seja trinta.

- Não - respondeu, abanando a cabeça. - já fui. Divorciei-me, antes de vir para cá. Na verdade... - Suspirou e decidiu ser honesto com ela. - Foi mais por isso que vim.

A minha mulher e eu casámo-nos quando tínhamos dezoito anos. Éramos os dois namorados do liceu. Tivemos uma menina praticamente a seguir. Mais ou menos um ano depois, quero dizer. Não foi o que nos levou a casar - apressou-se a explicar.

«E ela morreu de leucemia - prosseguiu. - Quase morremos de desgosto. Ela tinha dois anos. Como era possível que morresse? Como podia Deus fazer-nos tal coisa? - Desviou o rosto invadido por aquela recordação dolorosa.

«Em seguida, tivemos um menino - replicou, erguendo os olhos muito brilhantes. - É um miúdo incrível. O Joey. Joe. Demos-lhe este nome por causa do meu pai. E o curioso é que se parece com ele.

Estava a um milhão de quilómetros enquanto falava do filho, e Paxton sentia-se emocionada ante aquelas palavras.

- De qualquer maneira, quando ele tinha dois anos - prosseguiu com uma expressão sombria -, a Barbara, ou seja, a minha mulher, disse-me que queria o divórcio. Isso mesmo. Depois de sete anos de casamento, cinco de vivência anterior, uma filha morta e o pequeno Joey com dois anos, tudo acabava e queria ir embora. Quase morri.

Fitava Paxton com honestidade, quando rematou:

- Não sabia se queria matá-la ou matar-me.

- O que aconteceu? Porquê? Ela estava farta?

- Não - respondeu, olhando-a amargamente. - Ou talvez a resposta certa seja que sim, estava farta de mim. De qualquer forma, tinha-se apaixonado pelo meu irmão. Ele é dois anos mais velho do que eu e sempre foi a estrela da família. Tommy, o Maravilhoso, Tommy o Fantástico. O Tommy, que era o melhor nos estudos. Eu dei cabo do canastro a trabalhar com o meu pai e salvei-lhe o negócio. O Tommy tornou-se contabilista, foi trabalhar para a cidade e depois frequentou a faculdade de Direito. Agora, é advogado.

«Seja lá como for - continuou - ela deixou-me, casou com ele e decidi mandar tudo isso para o diabo. o Joey achava-o o máximo e como é que se explica a uma criança que o tio passou a ser o pai, e a mãe é uma pessoa desonesta? E os meus pais pediram-me que não fizesse muito alarido, pois destruiria a família - rematou com um gesto indefeso, muito ao jeito do seu temperamento italiano.

- Portanto, vim para cá. E ainda não voltei a casa. É esta a história.

Deixou-se ficar a observar o trânsito durante um minuto, enquanto ela absorvia o relato.

- E nunca mais esteve com o Joey? - quis saber, surpreendida com o que ele lhe contara.

- Não - respondeu Tony, abanando a cabeça e fitando-a. - O que posso dizer-lhe? Que odeio a mãe?

- E odeia? - perguntou-lhe sem rodeios.

- Dantes, sim. Agora, deixei de saber o que sinto.

À noite, costumava ficar deitado, com tanta raiva que me apetecia matá-la. Em vez disso, saía e matava o Charlie. Mas a verdade é que... ignoro se continuo a estar furioso. Talvez ela tivesse agido da melhor maneira. Tiveram mais três filhos, é feliz, o Tommy ama-a, o Joey parece óptimo nas fotografias e é doido por ele. Portanto, quem pode afirmar que erraram? E, na verdade, quase nem consigo lembrar-me das feições dela.

- O ódio é algo bizarro - observou Paxton num tom calmo. - Ficamos tão ocupados a odiar que, por vezes, nos esquecemos de como tudo começou. - Tinha acontecido no Vietname, noutros lugares, noutras vidas.

- É uma mulher interessante - redarguiu ele, tranquilamente. - Foi o que me impressionou, depois de ter partido. A Barbara nunca teria feito o que você fez pelo Bill, tendo recolhido as cartas e o resto para que não chegassem à mulher. Ela confrontou-me com o facto de andar a dormir com o meu irmão. Mas você percorreu todo aquele caminho para ir buscar as cartas que lhe escrevera para que a mulher nunca viesse a saber e não a magoasse. E nem sequer a conhecia.

- Fi-lo por ele. - «Mas por elas, também. » Fizera-o pelas filhas.

- Amava-o muito, não é verdade? - perguntou Tony, incapaz de se conter.

- Muito - confirmou com um aceno de cabeça, após o que se sentiu impelida a saber: - Porque me odiava tanto? Quero dizer, no começo.

Tony respirou fundo e tentou explicar, tanto para si próprio como para ela.

- Não sei... Penso que talvez tivesse medo de si. Que o distraísse e o tornasse desatento. Vi acontecer o mesmo a outros indivíduos, que morreram, por estarem a olhar embasbacados para a fotografia de qualquer miúda, quando pisaram uma mina e os miolos lhes estoiraram.

«Mas, para dizer a verdade, ele não era assim - pronunciou, meditativo. - Não sei, talvez muito simplesmente me aborrecesse... Quem sabe? - Voltou a parecer muito italiano. - Talvez tivesse ciúmes. A vida é por vezes, muito mais simples aqui, sem mulheres. - Era verdade. Talvez também para as mulheres fosse, por vezes, mais fácil sem homens. Por outro lado, havia alturas em que era melhor com eles.

- Ele tinha-o num elevado conceito - garantiu a Tony, como um último presente de Bill.

- E ele amava-a muito - retorquiu Tony, tranquilamente. - Lia-lhe no rosto, sempre que falava de si. Acha que ele teria acabado por deixar a mulher? - perguntou, novamente incapaz de se dominar. Interrogara-se depois sobre a questão, e Paxton também o fizera.

- Provavelmente, não - redarguiu ela com honestidade, agitando a bebida. - Não me parece que desejasse, realmente, abandonar as filhas. É fácil amar alguém no calor do momento. Aqui, é mais fácil para todos. Ignora-se se se estará vivo na semana seguinte. São inúteis as preocupações sobre se o casamento funcionará, se se gosta do emprego ou onde se quer viver. Apenas há que ficar vivo o tempo bastante para passar um fim-de-semana em Viing Tau. Em alguns aspectos, é muito simples.

Havia muito de verdade nas palavras dela, e Tony sabia-o.

- Quanto tempo vai estar aqui, desta vez? - perguntou, curioso acerca dela.

Quanto mais sabia a seu respeito, mais gostava dela, embora, por vezes, o pusesse fora de si. Enlouquecia-o com a sua independência, a coragem, a recusa de obedecer ao que lhe diziam e, contudo, ao mesmo tempo tocava-lhe o coração com a sua decência, generosidade, calor, honestidade e bondade.

- Tenciono ficar até conseguir - sorriu. - E enquanto continuarem a publicar os meus artigos.

- Consta-me que têm qualidade.

- Não sei - comentou, encolhendo os ombros. - Adoro escrever.

Eu nem mesmo cartas gosto de escrever - riu. - Escrevo ao Joey, sempre que posso. Mas é difícil. Há tanto tempo que não o vejo.

- Não acha que devia voltar um destes dias para o ver?

- Talvez - concordou. Mas a verdade é que isso o assustava. - E talvez o melhor seja deixá-lo em paz. O que tenho para lhe dar, agora? O Tommy está a portar-se lindamente. E, como o Joey tem o mesmo apelido, todos acham que ele é filho do Tommy. Para que precisa de mim?

- Continua a ser o verdadeiro pai. Como é que ele o trata quando lhe escreve?

- Paizinho - respondeu Tony com a voz embargada. E acrescentou, depois de uma longa pausa: - Talvez vá vê-lo depois desta missão.

Paxton esboçou um aceno de concordância.

- E o que aconteceu ao negócio de família? Os legumes? - interessou-se com um sorriso, a que ele correspondeu.

- O meu pai morreu no ano passado e a minha mãe vendeu o negócio. Fez bem. E o Tommy também a toma a seu cuidado. Ela dividiu o dinheiro entre mim e o Tommy. Quando me for embora daqui, poderei fazer algo com ele... No entanto, ainda não me debrucei sobre o assunto - prosseguiu. - Costumava pensar que iria para a Califórnia e compraria uma herdade... ou talvez para o vale Napa e compraria uma vinha. Algo no género. Gosto de trabalhar com a terra... - Os olhos brilhavam-lhe com a perspectiva. -.. . . é a única coisa que, de facto, gosto no Vietname... Esta rica terra vermelha... e este verde exuberante.

Sorriu para Paxton, sentindo-se um tanto idiota.

- Acho que, no íntimo, continuo a ser um fazendeiro. Talvez o Joey gostasse de me visitar se um dia comprasse um lugar desses - rematou.

- Tenho a certeza de que o faria - anuiu.

E algo nele dizia-lhe que era possível. No íntimo, era um homem simples, com ideais simples e valores decentes. Mas também era inteligente. Se o não fosse, jamais teria escapado aos VC nos túneis de Cti Chi. Interrogava-se, porém, sobre o que faria da sua vida quando regressasse aos Estados Unidos. Era óbvio que para ele não seria simples. E a história sobre Joey era muito comovente.

- Alguma vez foi casada, Paxton? - inquiriu.

Sentia-se curioso a respeito dela e acabara de contar-lhe toda a história da sua vida.

- Não, nunca.

- Que idade tem?

- Vinte e três. Vim para aqui logo depois da universidade.

- Porquê?

Paxton falou-lhe, então, sobre Peter, Gabby, a sua mãe e George. E de como se sentira distanciada de todos, quando regressara, após a morte de Bill.

- Ignoro o que faria nos Estados Unidos. E a única coisa que sei é que ainda não posso voltar.

- Tenha cuidado - avisou-a, enquanto se recostava na cadeira e inalava os vapores de Saigão. - Este lugar provoca habituação. Tal como os militares que aqui vê dependentes da droga - e havia muitos nessa época -, há pessoas como nós dependentes de uma maneira muito própria e nada consegue desintoxicar-nos.

A jovem sabia exactamente o que ele pretendia dizer, mas até esse momento não tinha solução.

- Acho que temos de permanecer aqui, até o lugar haver abandonado o nosso sistema - replicou, pensando igualmente em Ralph.

- Sim. Ou matar-nos - ripostou Tony, com um aceno de cabeça. - Também existe essa hipótese e esteve bastante próxima disso, hoje. - E a eventualidade não lhe agradava-

- E você não? Deve ter estado próximo milhares de vezes. Começo a pensar que apenas a sorte tem uma palavra a dizer. - Ambos sabiam que era uma verdade. Quantos rapazes encontravam a morte um dia antes daquele em que deveriam regressar a casa? Imensos. Acontecia.

- Talvez eu seja um homem de sorte - replicou, encolhendo os ombros. - Pelo menos, até agora. Não costumava ter essa opinião, antes de vir para cá. - Referia-se, novamente, à mulher e, em seguida, tirou uma fotografia da carteira e mostrou um retrato de Joey a Paxton. - Aqui tinha seis anos, mas agora já fez sete.

- Parece-se consigo - sorriu a jovem, ao examinar a fotografia.

- Pobre miúdo! - riu Tony.

Também tinha uma fotografia de Barbara na carteira, mas agora era raro olhá-la. E tinham existido outras mulheres desde então. Enfermeiras. Wacs. Algumas raparigas de localidades próximo de Cu Chi.

Há dois anos, fora a vez de uma bonita rapariga, quando haviam revistado Ben Stic. Mas nunca se interessara muito por elas. Nunca vivera uma experiência como ela tivera com Bill ou Peter. Pelo menos, desde Barbara. E, agora, mal conseguia lembrar-se da emoção. Apenas conhecia o que detectara nos olhos de Bill, uma espécie de brilho e paz que, há anos, nada significavam para Tony.

Percorreram, em silêncio, o caminho que os separava do hotel na Tu Do, escutando os gritos, as buzinas, os riquexós que passavam velozmente, as bicicletas com as campainhas, os guinchos e berros que eram, afinal, a essência de Saigão. Quando chegaram aos degraus do Caravelle, Tony virou-se e examinou-a com uma expressão grave.

- Obrigado por ter passado esta tarde comigo, Paxton. Sinto-me surpreendido, pois comportei-me como um idiota sempre que a vi.

Ela riu ante a sua honestidade e abanou a cabeça.

- Não seja idiota agora... - replicou.

Tony desejava dizer-lhe como ela era bonita, na eventualidade de nunca mais a ver, mas não o fez. Havia algo mais que desejava dizer-lhe em vez disso e, ao formular a pergunta, sentiu-se estranhamente nervoso.

- Não quer jantar um dia destes?

Paxton pareceu sobressaltada pelo espaço de um minuto e, depois, esboçou um aceno de cabeça. Não compreendia bem o que se passava, mas sentia que ele necessitava fortemente de um amigo.

- Claro. Gostaria muito.

- Telefono-lhe um dia destes.

- Obrigada, Tony.

Apertou-lhe a mão e subiu ao quarto para escrever a história do que acontecera no dia anterior. Mas, depois de a escrever, sentou-se durante muito tempo, de olhar perdido no vazio, pensando no rapazinho, cujo pai o deixara há cinco anos para vir para o Vietname. Ignorava porquê, mas, mesmo sem o conhecer, o coração voou-lhe até Joey.


 

Tony telefonou-lhe na semana seguinte, quando voltou a Saigão e ela tinha saído em reportagem com Ralph e alguns outros indivíduos. Mas, quando regressou, telefonou-lhe para o número que ele tinha deixado. Estava na casa de uns amigos na base de Tan Son Nhut e perguntou-lhe se ela queria ir jantar e, depois, talvez ver um filme na base. Paxton achou que poderia ser divertido. Há séculos que não via um filme.

Foi buscá-la às sete da tarde, e ela apenas tivera tempo de tomar um duche, lavar o cabelo e trocar de roupa quando ele tocou à porta. Em seguida, foram jantar ao rés-do-chão do Edifício Éden.

Era um bom restaurante francês, frequentado por muitos militares e ninguém lhes prestou atenção, enquanto conversavam, riam e trocavam piadas. Agora que se conheciam melhor, o jantar processou-se num ambiente descontraído. Ele tinha sentido de humor e, durante a maior parte do tempo, a perspectiva que lhe deu do exército levou-a a uma atitude de perplexidade.

- Mas porque é que continua a voltar a alistar-se, com mil diabos? - admirou-se.

- Não tenho mais nada que fazer. Andei dois anos à noite na universidade. Falo um espanhol fluente. Costumava mudar fraldas bastante bem. - Ele tratara, brilhantemente, uma criança moribunda. - Tenho, segundo parece, fortes qualidades de liderança e há quatro anos e meio que sou um rato de túnel. Onde é que isso me leva? Um emprego nos esgotos de Nova Iorque? Que mais posso fazer?

- E a sua herdade ou vinha no vale Napa?

- Ainda tenho muito tempo. Além de que - confessou - detesto abandonar algo a meio. - No entanto, abandonara o filho. Mas, nessa altura, tinha vinte e cinco anos e sentia-se completamente indefeso. ~ E você? - interessou-se. - O que quer ser quando for grande?

- A Dorothy de O Feiticeiro de Oz - respondeu, sem hesitar. - Tenho um fraco por sapatos vermelhos.

- Agora, sei porque gosto de si - replicou com um esboço de sorriso. - É louca! - exclamou, compondo de imediato uma expressão séria. - Quer continuar a trabalhar para um jornal, quando voltar?

- Acho que sim. Sempre quis ser jornalista e, de facto, agrada-me.

- Tem sorte. Também é uma forma agradável de ganhar a vida. - Em seguida, ambos se recordaram, subitamente, do que estivera prestes a acontecer-lhe em Cu Chi e soltaram uma gargalhada. - Não, acho que retiro o que disse. A propósito, com que é que andou ocupada esta semana?

Quando Paxton lhe contou, sentiu-se impressionado com as reportagens que ela cobrira. Não tinha medo de se sujar, ser alvejada ou enfrentar o lado horrível da guerra e, embora se assustasse por ela, também a respeitava por isso.

Por fim, resolveram esquecer o cinema. Foram, em vez disse, até ao bar do hotel dela e conversaram, horas a fio, sobre eles próprios, o Vietname, Bill, a família de Tony, a dela, e mesmo Queenie.

- Sinto como se a tivesse conhecido toda a minha vida - declarou ele, num tom admirativo, quando a deixou nessa noite.

Ela irradiava tanto calor e simpatia que se tornava fácil falar-lhe e conhecê-la.

- Também eu - confessou. - Não costumo reagir assim.

No entanto, fizera-lhes bem. Paxton fora ao ponto de lhe confessar a falta de à-vontade que tinha com a mãe. Só daquela vez, após a morte de Peter, existira algo de diferente entre elas. No entanto, ao regressar, depois de ter estado no Vietname a mãe parecera incapaz de restabelecer o contacto. Eram demasiado diferentes uma da outra.

- Não tinha uma amiga assim desde miúdo - riu, com  uma expressão feliz. - O tipo de pessoa com quem pode falar-se de tudo. - Fora assim com Barbara, quando eram miúdos. Mas muita água havia corrido desde essa altura.

- Quando tenciona voltar a Saigão? - inquiriu ela, quando ainda estavam no átrio e passava das duas horas, muito depois do recolher obrigatório.

- Ainda não sei. Telefono-lhe. - Pareceu hesitar e, em seguida, estendeu o braço e tocou-lhe no ombro.

O telefonema chegou dois dias depois. Trocara de turno com alguém e voltou a propor o cinema e, desta vez, quase chegaram à base de Tan Son Nhut. Todavia, alguém fizera explodir um carro na estrada, havia um engarrafamento enorme e, por fim, deram meia volta e regressaram a Saigão.

- O que quer fazer, então? Radio City Music Hall? Um belo espectáculo da Broadway? Um hamburger e um batido no Schrafft's?

- Cale-se! - lamuriou. - Faz-me sentir saudades de casa.

Quer ir dançar ao Pink Nightclub?

Vamos antes para o seu apartamento e ficamos a ver televisão e a comer pipocas - retorquiu, trocista e, desta vez, foi ele a lamentar-se.

- Que se lixe! Regressemos ao seu hotel para dar uns dedos de conversa.

Assim fizeram e, desta vez, quando a deixou no átrio, puxou-a para um canto escuro e beijou-a. Percorreu-lhe o cabelo com as mãos, acariciou a pele acetinada dos ombros e quase soltou um gemido, pois doía-lhe pensar nela.

- Isto está a tornar-se difícil! - exclamou com a voz dos Munclikins do Feiticeiro de Oz, ajeitando as calças e forçando-a a rir.

- És impossível - retorquiu, voltando a beijá-lo.

- Sou perfeitamente possível, garanto-te - contrapôs. - Queres experimentar? - sussurrou-lhe junto ao pescoço e ela soltou uma risada.

- Não é suposto fazeres-me rir num momento destes - murmurou, e ele beijou-a sofregamente nos lábios.

- Desculpa... - E, depois, surgido, do nada: - Vamos lá para cima, Paxxie.

- Tenho medo... - murmurou ela.

- Não tenhas.

Mas tinha. Todos os que amara haviam morrido... E se agora lhe acontecesse o mesmo? Não queria fazer-lhe isso, nem a si própria, nem era pura e simplesmente capaz. Tentou explicar-lhe, enquanto se mantinham ali e ele fitou-a meigamente e afastou-lhe o cabelo sedoso e louro, com gestos suaves, dos ombros.

- Não temos o controlo de nada, Pax. Está tudo nas estrelas, nas mãos de Deus. O que deve acontecer... acontece ... Não tens culpa do que aconteceu ao Bill... ou ao Petter .. independentemente do que afirmei nessa altura. E o que me acontece também não és tu que determinas. Temos de aceitar o que podemos, enquanto podemos - continuou. - E amarmo-nos uns aos outros, estarmos presentes uns para os outros enquanto pudermos e, se algo suceder, fazer o melhor que soubermos. Não podes esconder-te o resto da vida, só por teres receio do que acontecerá a alguém.

- Mas sinto-me como se os tivesse morto - ripostou tristemente, com lágrimas nos olhos, e ele odiou-se pelas palavras que pronunciara sem, de facto, a conhecer.

- Não mataste ninguém e sabes isso... apenas tens medo. - Envolveu-a nos braços e apertou-a. - Mas não tenhas, por favor, minha querida. Nunca amei ninguém como te amo... Não fujas de mim... por favor...

Olhou-a depois como nunca olhara antes para qualquer mulher e pronunciou algo que nunca dissera a ninguém, mas era verdade e arriscou-se:

- Preciso de ti, minha querida.

Precisavam um do outro e todos precisavam de alguém. Tornava-se impossível defrontarem a brutalidade do que viviam sem terem alguém junto de si.

Acompanhou-a ao quarto, pensando nas palavras ditas e mantendo-a agarrada a si. Quando chegaram à porta, atraiu-a de encontro ao corpo, beijou-a demoradamente e, quando a largou, fitou-a com um sorriso terno.

- Seja o que for que nos aconteça, Paxton... o que quer que decidas... sempre te amarei.

Desceu rapidamente as escadas sem se voltar para trás, enquanto ela ficava a observá-lo.


 

Na semana seguinte, recebeu um telegrama dos Wilson, em São Francisco. Gabby tivera mais uma menina, e mãe e filha estavam bem. Tinham-lhe chamado Mathilda. Paxton sentia-se feliz por ela, mas tudo parecia tão distante e afastado da vida que agora levava.

Durante o resto da semana, choveram telexes sobre uma extraordinária reunião da juventude para um concerto num lugar chamado Woodstock.

Voltara a sair com Tony e, desta vez, tinham ido, finalmente, ao cinema e visto ‘Por Favor não Matem as Velhinhas' e ambos haviam adorado. Também tinham visto um fantástico documentário sobre os homens que haviam pisado a Lua pela primeira vez há umas semanas e Tony ficou com lágrimas nos olhos.

Em seguida, comeram hamburgers e batidos na base e falaram das respectivas infâncias. A dela em Savannah e a dele em Nova Iorque eram como a noite e o dia e, quando Paxton tentara explicar-lhe o que eram as Filhas da Guerra Civil, ele recusara acreditar.

- Por favor, Paxton... Não me digas que as pessoas ainda se preocupam com coisas desse estilo. A guerra civil? Não acredito.

E ela falou-lhe de outras coisas, do pai, de como o acompanhara e das fantásticas manhãs de sábado no seu gabinete.

Ele contara-lhe como trabalhava para o pai, todos os Verões, no Bronx, da vida difícil da família e de ganhar, eventualmente, algum dinheiro. Como trabalhara duramente, sentindo-se um homem quando era uma criança, e como gostara de fazê-lo. Como se sentira quando lhe nascera o primeiro filho, a menina, como se sentira quando ela estava doente e acabara por morrer. julgara que também ele iria morrer. E como nascera, depois, o pequeno Joey, como um pequeno milagre, tão saudável, robusto e tão diferente.

Fúnie de Mel Brooks com Zero Mostel e Gene Wilder. (N. da T.)

- Desconhece a sensação - replicou Tony, de olhos brilhantes, ao recordar-se do dia em que Joey nascera, embora esse tipo de pensamento não lhe ocorresse com muita frequência. - É a coisa melhor do mundo... ter filhos.

E, logo a seguir, quase como se lhe tivesse ocorrido de momento:

- Não queres ter filhos um dia, Pax? - Ainda havia algumas coisas que ignorava a respeito dela, mas não muitas. O facto de se conviver num lugar daqueles significava ficar-se a par de muita coisa que, em circunstâncias normais, nunca se viria a saber.

- Acho que sim. Nunca pensei muito nisso. E, depois, foi-se lembrando aos poucos e acrescentou: Não, não é verdade. - Sempre quisera ser honesta com ele. Fazia parte da sua natureza. - Acho que com o Peter costumava pensar que, eventualmente, desejaria filhos... Com o Bill era diferente, pois nunca me convenci de que se casaria comigo. Portanto, não ficaria muito desapontada, se não fosse esse o caso. Mas o curioso é que sempre me senti muito distante com os filhos dos outros.

- É diferente quando são nossos - garantiu-lhe. - Tão diferente. É puro milagre, é tão difícil de explicar. E sentimo-nos tão extraordinariamente ligados ao sabermos que a criança é uma parte de nós para sempre.

- É o que sentes, agora, em relação ao Joey? - inquiriu, fitando-o, com ternura, por cima dos batidos.

Tony reflectiu e esboçou um aceno de concordância, após o que correspondeu ao olhar.

- Sim - respondeu sem ponta de dúvida, apesar do que acontecera.

- Então devias voltar e ir vê-lo.

- Sim. Acho que sim - anuiu, num tom rouco.

Nessa noite foram dançar, regressaram ao hotel dela e Tony subiu as escadas com o braço a rodear-lhe a cintura, sem esperar que ela o convidasse a entrar, quando lhe deu um beijo de despedida.

Dispunha-se a ir embora quando ela lhe puxou, suavemente, a manga. Ao virar-se para a fitar, viu que a porta para o quarto dela estava aberta. Não lhe perguntou o que isso signíficava. Não se atreveu. Limitou-se a segui-la, fechou a porta atrás dele, envolveu-a num abraço e beijou-a, como não beijava ninguém há anos, se é que o fizera alguma vez.

E Paxton correspondeu com a mesma intensidade. Tudo era diferente com ele. O que pensava, o que fazia, o que sentia. Ele levava-a a sentir-se outra vez jovem, velha, inacreditavelmente feminina e descontraída. Era como se tivesse nascido para ele, tivesse esperado toda a vida por ele, e Tony sentia o mesmo e expressou-lho, quando se mantinham deitados, lado a lado.

- Nunca amei ninguém como te amo, Pax. Fazes-me desejar fazer as malas esta mesma noite e fugir contigo, até nos vermos sãos e salvos de regresso, para sempre.

No entanto, esse tipo de pensamento ali era perigoso, e ambos o sabiam.

Tony passou a noite com ela e várias noites depois disso. E, estranhamente, no fim do Verão, era quase como se estivessem casados. Iam juntos para todo o lado quando ele tinha folga, e ela consultava-o sobre coisas de que nunca falara com ninguém, até mesmo sobre as reportagens em que ia com Ralph.

Tony contava-lhe tudo, excepto o que se referia às suas missões, quando achava que eram perigosas de mais e podiam assustá-la.

Ralph foi mesmo ao ponto de ceder na sua posição e, no começo de Setembro, foram jantar os quatro. Nessa altura, a pobre France estava enorme e Ralph troçou do seu aspecto; depois, Tony declarou que ela estava lindíssima, e Paxton sentiu-se emocionada. Não conseguia imaginar-se assim, nem ter um bebé dentro dela. Houve um momento em que lhe pareceu que o bebé dava um pontapé na barriga e fascinou-a que France parecesse despreocupada.

- Aquilo não dói? - indagou, mais tarde, a sós com Tony. - Tudo parece tão enorme e esticado que deve ser horrível.

- Não é horrível. É maravilhoso, garanto-te. - Voltou a beijá-la com suavidade. - Confia em mim.

Nenhum deles falara em casamento ou em terem filhos um do outro, mas ambos sabiam que fazia parte dos planos se alguma vez saíssem do Vietname com vida. Tratava-se, contudo, de um assunto tabu.

Falavam, em vez disso, em ir a Banguecoque e Comprar presentes de Natal para Joey. E, por fim, a meio de Setembro, ele obteve uma licença de cinco dias, levou-a a Hong Kong, comprou-lhe um anel e enfiou-lho no dedo, sem mais explicações. Era um anel de rubi, com um rubi e um coração de diamantes no centro, e Paxton adorou-o. Dizia tudo. Passaram uns dias fantásticos em Hong Kong e ficaram no Hotel Ambassador, como os outros militares e as suas mulheres e namoradas.

Quando regressaram, Paxton soube que Ralph estava em Da Nang, o que ela achou uma estupidez. O bebé podia nascer a qualquer momento e já lhe dissera uma vez que achava que ele devia estar junto de France. Ralph era, contudo, incapaz de se manter por ali à espera do nascimento.

France tinha o contacto de uma parteira e de um médico na eventualidade de algo correr mal. Ralph dera-lhe o número de telefone de Pax e, de qualquer maneira, estava certo de que voltaria de Da Nang pelo menos uma semana antes de ela ter a criança.

Uma noite, Tony e Paxton estavam na cama no Hotel Caravelle, profundamente adormecidos depois de terem feito amor, quando o telefone tocou e Paxton atendeu.

- Hum... sim? - Não conseguia imaginar quem seria àquela hora. Olhou para o relógio e verificou que eram quatro da manhã.

- Paxton? - A voz tinha um sotaque francês e, pelo espaço de um minuto, Paxton não a reconheceu. - É a France. - «Oh, meu Deus!», pensou, sentando-se na cama e interrogando-se sobre onde estaria Ralph.

- Estás bem?

- Estou óptima.

Paxton quase conseguia ver-lhe o sorriso delicado naquela escuridão. France era o tipo de pessoa que nunca se queixava, nunca dificultava as coisas, nunca pretendia impor-se. E, contudo, estava a telefonar a Paxton, que mal conhecia, às quatro da manhã.

- Lamento muito - acrescentou delicadamente e depois calou-se, enquanto Paxton se interrogava sobre o que estaria a acontecer. Não lhe ocorreu que ela pudesse estar com dores e a ter contracções. - O Ralph está fora - prosseguiu -, e não consigo contactar a parteira... e o médico para quem deveria telefonar se... - Voltou subitamente a calar-se, e Paxton começou a entrar em pânico.

- France?... France?... Estás aí? - Começou a premir, freneticamente o botão do telefone, pensando que a chamada caíra, e Tony acordou.

- O que se passa? - perguntou, erguendo a cabeça. Paxton pôs-se a explicar, mas, nesse momento, France voltou a falar, desta vez um pouco mais bruscamente.

- Não consigo encontrar o meu médico, nem a parteira ... e tenho o An comigo... Desculpa incomodar, mas talvez ... se pudesses levar-me ao hospital e ficar com o An, até o Ralph voltar para casa... - Deixou novamente de falar e, desta vez Paxton imaginou o que se passava, enquanto Tony a observava.

- Claro. Vou já. Mas tens a certeza de que estás bem? Queres que chame uma ambulância?

- Oh, não. Claro que não! - retorquiu num tom delicado. - Mas virás depressa?

- Imediatamente. Mas... France... estás a ter o bebé?

- Espero que não, até chegarmos ao hospital. Obrigada- repetiu e desligou bruscamente.

Paxton ignorava que ela estava com dores terríveis e já não conseguia andar, quando pousou o auscultador. Esperara demasiado, mas as dores tinham-na invadido muito rapidamente. E, no seu quarto de hotel no Caravelle, Paxton já estava a vestir-se e Tony saltara da cama.

Vou levar-te no carro até Gia Dirili. Não deve haver muito trânsito a esta hora - ofereceu-se Tony, também a vestir-se.

- Onde fica o hospital mais próximo daqui? - indagou ela, tentando pensar, mas sentindo-se aterrorizada. Aquilo era muito mais assustador do que ser alvejada.

- Acho que... Não sei. Pergunto na recepção, quando sairmos. Como te pareceu?

Já tinha vestido o uniforme, e Paxton enfiara uma blusa e uma saia, calçara umas sandálias e estava a escovar o cabelo quando ele lhe dirigiu a pergunta.

- Estranha. De vez em quando calava-se e eu não deixava de pensar que a chamada tinha caído, mas não era o caso.

- Se a memória não me engana, chegou mesmo a hora.

- Não me parece que ela tivesse telefonado, se assim não fosse - sorriu Paxton, estendendo a mão para a escova de dentes.

Levaram vinte minutos até Gia Dirili, e, quando chegaram ao edifício onde Ralph e France viviam, Paxton premiu a campainha do apartamento.

Durante muito tempo não obtiveram resposta, e Paxton interrogou-se sobre se ela teria ido para o hospital sem eles. Mas Tony vincou que havia luz lá em cima e, portanto, aguardaram, até que por fim ela carregou no botão do intercomunicador. Subiram, apressadamente, as escadas e foram encontrá-la, agachada junto à porta da frente, com um trilho de água atrás dela.

France pareceu mortificada ao aperceber-se de que Paxton não estava só, mas Tony actuou como se tudo estivesse normal. Deixou que a rapariga, extraordinariamente inchada, se lhe apoiasse no braço, enquanto a ajudava a voltar ao quarto. Ela vestia um roupão e tinha por baixo uma camisa de noite cor-de-rosa. No quarto ao lado do dela, Paxton avistara o seu filhinho, An, a dormir tranquilamente.

Fechou a porta do quarto devagar e perguntou a France se tentara telefonar outra vez ao médico, mas ela limitou-se a abanar a cabeça e apoiou-se a Tony. Parecia ser-lhe indiferente a quem se agarrava e não estava a prestar atenção a Paxton.

- Tens de vestir-te, France - replicou Paxton calmamente; porém, quando pronunciou as palavras, France emitiu um pequeno grito contra vontade e agarrou-se mais a Tony. Ele amparou-a com suavidade e voltou a deitá-la na cama, até ao final da contracção.

- Precisamos de tirar-te daqui, France - declarou ele, calmamente. - Vou pegar-te ao colo - acrescentou, mas ela começou a chorar e agarrou-se-lhe, novamente, emitindo um som horrível.

Estava meio enlouquecida com as dores, que haviam começado pouco antes da meia-noite. Eram, agora, cinco da manhã, e Paxton verificou subitamente que havia sangue na cama, o que a assustou. Tentou indicá-lo a Tony com um movimento de cabeça, mas ele sabia exactamente o que estava a passar-se, muito melhor do que ela, quando a fitou com a maior calma.

Não vamos a lado nenhum - decidiu, tranquilo. - Arranja-me todas as toalhas que conseguires encontrar e alguns jornais, montes deles.

Enquanto pronunciava as palavras, começou a desatar os sapatos e Paxton interrogou-se sobre se ele enlouquecera.

Depois disso, tentou deixar France por um momento, mas ela não permitiu que saísse do seu lado e continuou a murmurar:

- Oh., lamento... lamento muito....

Em seguida, as dores fizeram-na contorcer-se de novo, enquanto Paxton a observava. Não conseguia imaginar que beleza achava Tony em tudo aquilo. Parecia horrível e intoleravelmente doloroso.

Regressou com todas as toalhas que conseguiu encontrar, um par de lençóis lavados e uma pilha de jornais que descobrira na cozinha. Tony indicou-lhe que os pousasse e se ajoelhasse ao lado dele. Quando ela obedeceu, deu a volta por trás de France e amparou-a e, desta vez, quando a dor a atacou, ela agarrou com toda a força na mão de Paxton, e Paxton não a largou. As duas mulheres continuaram de mão dada, enquanto France começava a fazer força para expulsar o bebé.

- Oh, não... Oh, não! - gritava. - O bebé está a nascer!

- Eu sei que sim - replicou Tony suavemente, indicando-lhe o que fazer, ao mesmo tempo que, no intervalo das contracções, prendia um dos lençóis à volta dele, como se fosse um avental.

France continuava a agarrar as mãos de Paxton e, quando fez força, uma e outra vez, Paxton chorou com ela. Depois, Tony disse-lhe que segurasse nas pernas de France, enquanto ele lhe prendia os ombros e ela continuava a fazer força.

Paxton sentiu vontade de fugir, aos gritos. Era incapaz de aguentar vê-la a sofrer tanto. De súbito, France deu um último impulso, ouviu-se um pequeno vagido e os três olharam para a cabecinha vermelha que saía de dentro de France.

- Agora tens de fazer força novamente - indicou Tony. - Vá lá... - Desta vez, surgiram os ombros, e Tony puxou o bebé, com suavidade, para fora, segurando-o ao mesmo tempo que aparecia o resto do bebé de France e de Ralph.

Era uma menina, e Paxton chorava ao contemplar aquele milagre. Tony inclinou-se por um breve segundo e beijou-a. France estava a sorrir. E Paxton observava, surpreendida, como Tony atava o cordão umbilical com os atacadores dos sapatos.

- Chama uma ambulância - pediu, enquanto ela olhava, respeitosa, para France e o homem que amava.

Apetecia-lhe dizer como o achava maravilhoso, mas teria tempo de o fazer mais tarde.

Em vez disso, foi chamar a ambulância e, antes de eles virem, acordou An. Nessa altura, tinham tapado France, e o miúdo ficou satisfeito e surpreendido ao avistar a irmã recém-nascida.

- Ela veio enquanto a mamã estava a dormir? - perguntou, e os outros sorriram. - Acordou-te? - dirigiu-se à mãe. Ficou muito aborrecido por elas terem de ir na ambulância, mas também excitado por regressar ao hotel de automóvel com Tony, enquanto Paxton seguia para o hospital com France e o bebé.

Paxton ainda se sentia esmagada pelo que vira nessa noite, a dor horrível e insuportável, seguida do aparecimento do pequeno rosto, empurrado do seu esconderijo para o mundo, enquanto a mãe a incitava alegremente. E agora a menina dormia, tranquila, nos braços da mãe, e France tinha um ar de plena satisfação.

- Lamento ter dado tanto trabalho - desculpou-se, na ambulância.

Paxton continuava a agarrar-lhe na mão, presa a um imenso espanto frente ao que presenciara. Tudo aquilo lhe parecia irreal. A guerra era real. A morte quase se tornara normal. Mas este milagre do nascimento, esta parte da sua feminilidade, apanhou-a de surpresa.

- Tiveste tanta coragem, France - elogiou Paxton. - Lamento não ter dado uma ajuda maior... Não fazia ideia de como ajudar... - Agradeceu a Deus por Tony existir.

- Foste maravilhosa - redarguiu France, sonolenta, e fechou os olhos, sem largar a mão de Paxton.

E Paxton ficou com ela no hospital até a manhã já ir adiantada. Quando regressou ao hotel, Tony estava a brincar com An, e os dois pareciam muito felizes. - Por sorte, Tony tinha dois dias de folga, o que lhe permitira ficar à espera de Paxton.

- Como está ela? - interessou-se Tony, preocupado. - Tudo em ordem?

- Tudo óptimo - sorriu Paxton, quase timidamente. - A bebé é lindíssima, e France estava a dar-lhe de mamar, felicíssima, quando as deixei. - Ainda não conseguia acreditar bem no que tinha visto, mas sentia-se, de certa maneira, mais próxima dele.

Tony fitou-a demoradamente sem pronunciar palavra, preso de igual emoção e, em seguida, sem largar a mão de An, rodeou Paxton com o outro braço e beijou-a.

- Foste muito corajosa na noite passada - replicou. Era uma noite que ambos recordariam para sempre.

Nunca me senti tão assustada na minha vida... Meu Deus, Tony!... Como é que as pessoas fazem aquilo?

- Vale a pena! - garantiu sem hesitar.

E agora ela conhecia a verdade. Aquele momento em que a cabeça do bebé aparecera e ele emitira o primeiro vagido justificara todo o esforço. Paxton sabia que nunca o esqueceria.

- É, de facto, um milagre, não é? - Tony esboçou um aceno de concordância, após o que se baixou e colocou An aos ombros.

Ralph apareceu às cinco da tarde. Ao chegar a casa, encontrara o bilhete dela e seguira, a toda a pressa, para o hospital, a fim de ver France e o bebé. De certa maneira, Paxton sentiu pena dele, pois assistira ao nascimento da criança e ele não. Estava excitadíssimo quando chegou ao hotel e insistiu em oferecer-lhes champanhe.

Por fim, foi-se embora, levando An ao colo, agradecendo a ambos e garantindo-lhes que dariam à menina mais ou menos o nome de Paxton. Iria chamar-se Pax Tran Johnson, E Pax parecia um nome que se lhe adequava. Significava «paz» em latim.

Nessa noite, quando foram para a cama, Paxton ainda se sentia muito emocionada com o que vira e tinha a cabeça cheia com tudo o que acontecera.

- Não sei, Tony - sussurrou, enquanto se mantinham deitados no escuro. - Não sei se estou preparada para aquilo. - Continuava impressionada pela dor a que assistira. Ainda se questionava como é que France aguentara.

No entanto, Tony limitou-se a rir, virou-se para ela e beijou-a.

- Não me parece que tenhas de preocupar-te com o assunto por uns tempos. Diria que há outras coisas a que tens de dar prioridade. - Como... sobreviver no Vietname. Ambos tinham.

- Sabes ao que me refiro. Céus! Por momentos, pareceu tudo tão terrível!

- Concordo que deve ser bastante difícil - admitiu. - Mas não sei, parece que as mulheres esquecem... Tem de ser, ou não teriam mais filhos. - O facto de haver assistido ao nascimento do bebé de France fizera-o pensar nas coisas que interessam na vida, as coisas que se abandonava ao vir-se para um lugar como o Vietname e ansiou, de súbito, por uma vida diferente. - Gostaria mesmo de voltar a ser pai - confessou nessa noite.

- És bom nesse papel! - retorquiu, tristemente, pensando no momento em que o vira com An.

Quem poderia, todavia, adivinhar se alguma vez teriam essa oportunidade? Quem sabia se algum deles estaria vivo para ter filhos? Aquele fora, todavia, um elo que os ligara, um momento especial que ambos tinham partilhado e agora os unia.

- Amo-te, Paxton - sussurrou-lhe no escuro.

- Também te amo - asseverou no mesmo tom e adormeceu nos braços dele, sonhando com o bebé de France.


 

Em outubro, teve lugar uma moratória nacional nos Estados Unidos, acompanhada de uma grande manifestação para pôr fim à guerra. E ocorreu mais uma em Novembro. E a 3 de Novembro, Nixon prometeu terminar a guerra, e as pessoas que o escutaram e acreditaram nele criaram esperanças.

E a 16 de Novembro, a nação foi abalada ante a revelação do que acontecera em My Lai no ano anterior e verificou-se subitamente um imenso protesto no Vietname.

Nos EUA, o tenente Calley foi detido e, no Vietname, os generais interrogaram todos a esse respeito. Os responsáveis militares estavam indignados. E verificara-se tanta crueldade na guerra do Vietname dos dois lados que este exemplo pareceu de certa maneira enfurecer toda a gente.

Havia fotografias de bebés e crianças que tinham sido mortos a tiro. E, na redacção da AP, da Time, CBS, A13C e N13C, choviam exigências de reportagens de pesquisa. Todos andavam ocupados e a situação originou algumas histórias incríveis.

Ralph e Paxton andavam tão afadigados que mal tinham tempo de respirar, e Paxton travava uma imensa luta para poder dispensar tempo bastante a Tony.

Tony puxou alguns cordelinhos, negociou e conseguiram ir a Banguecoque passar o Dia de Acção de Graças. Ficaram no Hotel Montien e passaram quatro dos dias mais felizes que Paxton vivera, antes de regressarem a Saigão. Nunca se sentira tão próxima de alguém.

Eram tão amigos quanto amantes e pareciam capazes de nada esconder um do outro. No regresso ao Vietname, no avião, falaram de My Lai e do tenente Calley.

- Conhecia-lo? - Ela sentia-se curiosa sobre o indivíduo, e Tony ficou satisfeito por responder negativamente.

- Não, mas ouvi histórias do género. Nada de oficial, claro. Há bastantes militares que despejam a ira nos vietcongues e, por vezes, passam as marcas. Aqui não há regras,

Pax, e sabe-lo bem. Alguns dos homens não sabem lidar com a situação. Os colegas são mortos a toda a hora. Não vêem saída. O melhor amigo pisa uma mina, são incapazes de aguentar a tensão e, de repente, enlouquecem e viram-se contra o Charlie.

Assemelhava-se bastante ao que sucedera em My Lai, mas de qualquer maneira, repugnava-os. A guerra fora demasiado longa e demasiado horrível.

Nesse ano, foi assistir com Tony ao espectáculo de Bob Hope no Natal e era estranho recordar que, ainda há um ano, estivera com Bill no espectáculo de Martha Raye. só que, Ah, um ano não tinha a mesma duração do que em qualquer outro lugar.

Um ano no Vietname era uma vida. Depois, passaram uma noite tranquila no hotel dela e, nessa manhã, telefonara para a família, em Savannah. No dia seguinte, foram fazer uma visita a France e Ralph e compraram presentes para os dois, para An e para a bebé.

A pequena Pax desenvolvia-se a olhos vistos sob os cuidados de France, e era óbvio que Ralph estava louco com a filha. Parecia-se um pouco com Ralph, mas também com France. E ele não desistira de convencer France a desposá-lo, mas até esse momento ainda não conseguira.

No Dia de Ano Novo, insistiu com Paxton para que o acompanhasse numa missão ao delta do Mekong, mas ela tinha o trabalho atrasado. Nesse dia, Tony estava de serviço e queria aproveitar o tempo para escrever no seu quarto de hotel.

Em seguida, ela e Tony foram passar dois dias a China Beach, em Da Nang. Quando voltaram, foi procurar Ralph à redacção da AP, para saber se ele ouvira falar da destruição de uma base próximo de An Loc, na passagem do Ano Novo.

Aparentemente, ninguém sabia onde ele se encontrava, e Paxton voltou no dia seguinte. Nessa altura, já sabiam. E no momento em que Paxton entrou, fez-se um silêncio de morte. De início, não se apercebeu, parou e leu os telexes, após o que foi ver se Ralph estava no gabinete, mas não estava.

A divisão estava vazia e verificava pela chávena de café limpa que ele ainda não voltara. Tentou decidir se iria ou não esperar e, quando consultou o relógio, reparou subitamente neles. Nos outros, que a observavam. Todos sabiam obviamente e todos tinham medo de lhe dar a notícia. Todos a conheciam bem e estavam a par da amizade que a unia a Ralph. Por fim, o subchefe de redacção avançou devagar na sua direcção. Fez-lhe um sinal de cabeça, sem pronunciar palavra e ela seguiu-o, de cenho franzido, até ao interior do gabinete.

- O que se passa? Onde está o Ralph? - inquiriu.

Emanava juventude e jovialidade e estava, como sempre, cheia de pressa. Havia umas histórias que queria investigar nesse dia e esperava que Ralph aparecesse depressa. E então, ele informou-a. Ralph fora morto no regresso de My Tho, uma coisa estúpida, o jipe passara por cima de uma mina.

Uma coisa estúpida... uma coisa estúpida... Não era sempre uma coisa estúpida? Havia alguma maneira inteligente de morrer ali? Com «fogo amigável», uma bomba de plástico no restaurante, ou um obus ou uma mina? Havia algum brilhantismo nisso? Que diferença fazia, no fim?

Ao ouvir as palavras, Paxton, sentou-se e ficou a ouvi-lo, incapaz de acreditar no que acontecera.

Era impossível. Não podia ter acontecido a Ralph. Há anos que estava ali. Era demasiado esperto para se deixar matar, demasiado perspicaz, bom de mais, generoso e cuidadoso de mais. Tinha trinta e nove anos e acabara de ser pai pela primeira vez. Ninguém sabia disso? Ninguém o dissera ao tipo que colocara a mina? Ele não... tem uma filha... Ele não... Ninguém ouviu estas coisas? Ninguém se importava?

Não conseguia perceber o que correra mal quando, sem uma única palavra, saiu do gabinete, regressou ao hotel a pé, alugou um carro e conduziu até Cu Chi, sem pensar duas vezes no perigo que corria.

Só queria encontrar Tony e dizer-lhe. E, quando ele a viu a atravessar a base, julgou tratar-se de uma visão. Nem sequer tinha vestida a roupa de combate. Levava uma saia cor-de-rosa e uma blusa e sandálias brancas. E foi apenas por mera coincidência que a viu. Preparava-se, nesse momento, para levar alguns recrutas em manobras. Saiu do jipe e ordenou ao cabo que esperasse um minuto, depois do que correu pelo campo e a deteve.

- O que estás a fazer aqui? - indagou, assustadíssimo. Por minutos, pensou que algo de mal acontecera, mas ao ver como ela estava vestida, decidiu que não. - Quem te trouxe?

- Vim eu - respondeu com uma expressão de desespero. Parecia olhar, freneticamente, em volta à procura de alguma coisa.

- O que se passa contigo, Pax? - insistiu.

Talvez tivesse acontecido alguma coisa., Ela não o olhava de frente, parecia tão nervosa e ausente. Vira indivíduos assim, logo a seguir à morte de colegas, quase em estado de choque e prestes a perderem o juízo por completo. De súbito, adivinhou e agarrou-a. Atraiu-a fortemente de encontro ao corpo, forçando-a a olhar para ele.

- O que é, miúda? - Sentia-se satisfeito por ela ter vindo procurá-lo, mas não conseguia acreditar na loucura de ter conduzido sozinha até Cu Chi.

Porém, naquele momento, ela estava louca. Olhou-o, subitamente, e faltou-lhe o ar. Havia enormes soluços na garganta que a sufocavam e a impediam de respirar.

- Calma. Respira devagar... Vá... Assim mesmo... - Outro recruta observava-os, e Tony não queria sequer saber. Apenas conseguia pensar em Paxton, que sufocava e soluçava nos seus braços. - Conta-me o que aconteceu.

- Ralph... - Foi a única palavra que conseguiu pronunciar nos primeiros minutos, e ele sentiu como que um murro no estômago.

- Tudo bem... Respira devagar... - Pousou-a com suavidade no chão e sentou-se ao lado dela. - Estás bem... estás bem, Pax... - já passara por isto antes, sabia perfeitamente como reagir, a cena repetira-se muitas vezes... e, depois, ela contou-lhe.

- Pisou uma mina, quando voltava do delta, há dois dias. Ninguém me disse. - Tinha um rosto inexpressivo e, depois, começou a soluçar, enquanto lhe socava o peito, angustiada e presa de uma fúria cega. - Não... Raios... não! Os filhos-da-mãe apanharam-no! Depois de todo este tempo... apanharam-no!... - Sentia-se angustiado ao ouvi-la, mas para ele tratava-se de uma velha história.

- A France sabe?

- Ainda não sei. Não lhe telefonei.

Merda! Com um filho de um militar e, agora, uma bebé recém-nascida, raios! E o que lhe restava fazer em Saigão com dois miúdos mestiços, meio americanos meio asiáticos? Os pais não podiam ajudá-la, não lhes restava nada e ninguém mais poderia fazê-lo. Não lhe faltava mais nada!

Tony abraçou novamente Paxton e beijou-a com ternura.

Ouve. Detesto fazê-lo, mas preciso de ir. Tenho uma série de rapazes à espera para seguirmos em manobras. Mal regresse, vou ter contigo ao hotel. Levo-te a vê-la. E agora, quero que alguém te conduza de volta.

Paxton esboçou um aceno de concordância, como uma criança obediente, mal o vendo, e ele foi a correr buscar um praça que não tinha nada para fazer e ordenou-lhe que a levasse de regresso a Saigão.

- Tem cuidado! - gritou ela quando se foi embora, e Tony acenou e partiu com os outros.

Durante todo o caminho, Paxton manteve-se muito direita ao lado do rapaz que a conduzia. Não pronunciou uma palavra, não lhe perguntou o nome, nem respondeu a nenhuma das suas perguntas. Mantinha-se simplesmente sentada a olhar pela janela, pensando em Ralph, France, An. e na bebé Paxxie.

Após regressar ao hotel, dirigiu-se ao quarto e deitou-se. O telefone tocou e não atendeu. Quando chegou às oito da noite, Tony estava histérico; achava que podia ter-lhe acontecido alguma coisa, pois o jovem que mandara acompanhá-la ainda não voltara.

A tensão começava a desgastar todos. Estavam ali há demasiado tempo. Ao entrar no quarto, Tony foi encontrá-la onde ela estivera a tarde toda, deitada em cima da cama, fitando o tecto.

- Vá lá, miúda. - Estendeu-se na cama ao lado dela e falou-lhe com ternura: - Escuta. Ele sabia o perigo que corria. Todos sabemos e arriscamos. Ele estava disposto a fazê-lo.

- Era o melhor repórter que conheci... o melhor amigo que tive... - retorquiu, semelhante a uma miúda a empurrar pedras para dentro do rio com o bico do sapato. - Até te conhecer - prosseguiu, erguendo os olhos para Tony... Mas ele era especial. Era o irmão que George nunca tinha sido.

- Sei disso. Também gostava dele. Gostei de muitos indivíduos aqui. Alguns tiveram sorte e regressaram a casa, sem problemas, outros não. Se sentisse medo disto, há muito que se teria ido embora.

Paxton sabia que era verdade, mas isso não lhe resolvia os problemas. E como iria sentir-lhe a falta, Deus do céu!

- E France? O que vai ser dela, agora?

- Isso é outra história - retorquiu Tony com uma expressão sombria e consciente de que o futuro não lhe sorria.

Tomou duche, mudou de roupa e decidiram aparecer sem telefonar. France era tão delicada que insistira em que tudo corria pelo melhor, mesmo que assim não fosse. Serviram-se do jipe de Tony para ir até lá.

Tal como na noite em que a bebé nascera, demorou muito tempo a responder, mas ele via que as luzes estavam acesas. Por fim, tocaram para outro inquilino que lhes gritou pela janela, mas carregou no botão do intercomunicador. Ao chegarem junto à porta, também não obtiveram resposta. Insistiram e ouviam música no interior. A rádio e as luzes estavam ligadas, mas não se ouvia qualquer som e, por fim, Tony fitou Paxton com uma expressão preocupada.

- Detesto a ideia, mas tenho a sensação de que se passa qualquer coisa de estranho. Talvez esteja demasiado desgostosa para falar com quem quer que seja. - Contudo, os miúdos também não se manifestavam. - Ou talvez me engane e ela tenha saído. Queres voltar mais tarde?

No entanto, Paxton abanou lentamente a cabeça, invadida por uma sensação estranha.

- Podemos entrar? - sussurrou.

- Referes-te a arrombar a porta? - retorquiu, parecendo nervoso. - Podemos ser presos.

- Achas que há senhorio?

- Sim, talvez. Só que pelo teu lado não sei, mas o meu conhecimento da língua vietnamita não chega para dizer: «Desculpe, senhor, mas importa-se de me deixar entrar neste apartamento. » Espera aí. Vou fazer uma tentativa - redarguiu, tirando um canivete do bolso.

Andou às voltas com a fechadura durante algum tempo e estava prestes a desistir quando a porta cedeu repentinamente e se abriu devagar. Em seguida, ambos tiveram uma sensação estranha. Haviam desejado entrar, mas, agora que a porta estava aberta, não estavam certos de que deveriam fazê-lo. Parecia-lhes uma intromissão.

Tony foi o primeiro a transpor a ombreira e Paxton seguiu-o de perto. Nenhum deles sabia muito bem o que procurava, e ambos se sentiam estúpidos quando olharam em volta e verificaram que tudo estava limpo, arrumado e em ordem. Tudo estava, obviamente, muito em ordem.

A música continuava a tocar baixinho. A luz do quarto de An estava acesa e Paxton espreitou para o interior. Mas ele não se encontrava ali, e Tony olhou para o quarto principal, após o que estendeu, instintivamente, o braço para deter Paxton.

- Não entres! - apressou-se a ordenar, mas ela foi mais rápida e depois parou.

Tudo parecia, contudo, normal. Estavam somente a dormir. France, vestida com o seu ao dai, um sorriso suave e a bebé nos braços com um bonito vestidinho, que alguém lhe devia ter feito, e o pequeno An, semelhante a um anjo ao lado deles.

Tinha o cabelo penteado e vestia o melhor fato. No entanto, Paxton ainda não compreendera. Queria dizer a Tony que não fizesse barulho para não os acordar, só que nada conseguiria voltar a acordá-los.

Ele soube mal se aproximou e, depois, inclinou-se um pouco para lhes tocar nos rostos. Há bastante tempo que estavam mortos. France tinha-se envenenado e aos filhos, mal recebera a notícia da morte de Ralph.

Havia um bilhete em vietnamita e, ao lado, uma carta dirigida a Paxton. Quando ele se ajoelhou e os examinou, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e começou a soluçar. Paxton aproximou-se e ficou de pé, ao lado deles. Também ela chorava e tocou em cada um deles, como se os abençoasse em silêncio.

- Oh, céus, porquê... - sussurrou-lhe. - Porquê?

E An e a bebé. A bebé que tinham ajudado a dar à luz há apenas três meses e meio e agora estava morta... Pax... Pax... France desejara estar com ele, dizia no bilhete em vietnamita. Desejara que todos estivessem novamente juntos e sabia a vida terrível que os esperava em Saigão.

- Ela podia ter ido para os Estados Unidos... Podia ter... - prosseguiu Paxton, mas Tony abanou a cabeça. Sabia que ela nada podia ter feito em Saigão, sem a protecção de Ralph.

Portanto, partira a fim de se lhe reunir e levara os filhos. E todos eles tão bonitos, tão suaves... tão ternos, ali deitados.

Paxton e Tony detiveram-se a observá-los muito tempo e, em seguida, ele foi telefonar à Polícia e, quando eles chegaram, explicou o que julgava ter acontecido e o bilhete confirmava.

A carta dirigida a Paxton dizia mais ou menos o mesmo. Voltava a agradecer-lhe e a Tony pelo que tinham feito por eles e, depois, despedia-se e desejava-lhes uma vida boa e feliz.

Paxton pousou a carta e acolheu-se a soluçar nos braços de Tony. Nunca vira, nem sentira, algo de tão terrível. Ficou a observar, quando levaram os três. An, embrulhado num pequeno pano branco, e a bebé ligada à mãe.

Era superior às suas forças e continuava a soluçar quando Tony a levou dali e a conduziu de volta ao hotel, mandando vir um brande para os dois.

- Céus, Tony! Porque é que ela fez aquilo?

- Achou que tinha de o fazer.

Paxton foi invadida por uma sensação de perda como nunca tivera antes. Uma perda aliada a desespero e tristeza e solidão, agora que a amiga partira. Interrogava-se sobre se alguma vez voltaria a ser a mesma.

Tony sabia que, embora pudesse vir a parecê-lo algum dia, talvez isso não correspondesse à realidade. Era uma sensação comum a todos. Pedaços dos seus corações tinham caído há muito, como se fossem leprosos.

E decorreu muito tempo, antes de voltar a sentir-se mais ou menos humana. Janeiro passou semelhante a uma névoa. Fevereiro também. E, por fim, em Março, quando chegaram as monções, começou lentamente a sentir-se humana. Nessa altura, há quase dois anos que se encontrava no Vietname. E ela e Tony estavam juntos há oito meses que,

naqueles dias, se assemelhava a uma vida. Custava-lhe muito falar de Ralph, France ou das crianças. Conseguia, porém, falar dos outros que havia perdido, sem se sentir tão completamente devastada. Tony tivera, contudo, razão. Estavam diferentes.

Saíam com menos frequência do que dantes e, com o mau tempo de agora, raramente iam passar um fim-de-semana fora, mesmo quando ele tinha dispensa. Em vez disso, enfiavam-se no quarto de hotel dela, conversavam, bebiam, faziam amor e tentavam extrair algum sentido do que viam.

Os artigos de Paxton pareciam, agora, mais fortes, O jornal tinha-lhe escrito há pouco tempo, comunicando que ela estava a ser considerada para um prémio, mas era-lhe indiferente. Essas coisas, agora, não lhe interessavam.

Apenas lhe interessava ficar viva, o final da guerra e talvez, um dia, regressar a casa para ver o que restara, se é que restava alguma coisa. Falavam muito de Joey, e Paxton incitou-o a que escrevesse mais vezes ao filho.

A missão de Tony terminava em junho e sabia que não ia voltar, mas também não sabia o que fazer mais. Não queria permanecer no Vietname, mas ignorava se estava pronto para regressar a casa.

Paxton não tinha ideia do que ia fazer. Informara o jornal de que tencionava ficar mais um ano, mas não estava escrito em pedra. Poderia sempre ter regressado mais cedo ou mais tarde. E ela e Tony nunca falavam de planos futuros. Parecia demasiado arriscado falar disso agora, e ambos começavam a tornar-se supersticiosos.

Sentiam-se, contudo, mais felizes do que alguma vez o haviam sido, mais próximos e mais fortes. A morte de Ralph, de France e dos miúdos tinham-na abalado até ao mais fundo de si e feito com que se aproximasse mais de Tony.

Agora, também ele precisava mais dela. A ideia do regresso a casa assustava-o, embora falasse muito pouco no assunto. De momento, apenas sabiam que fariam mais uma viagem a Hong Kong em Maio e, em seguida, teriam de esquematizar o passo seguinte.

Paxton continuava a usar, todos os dias e em todo o lado, o anel de rubi que ele lhe oferecera na última vez que lá tinham estado. Era a sua ligação com ele. Rubis com um coração e Tony comovia-se com a atitude dela. À semelhança de Paxton, não fazia promessas nem exigências, mas entregara-lhe o coração. Para sempre.

Três semanas antes de partirem para Hong Kong, com a monção no auge, Tony foi enviado numa missão para uma área supostamente a fervilhar de VC e que estava assim há semanas. Eles gostavam de se infiltrar durante a monção, e os soldados detestavam persegui-los no meio da chuva. Detestavam as chuvas constantes e apanhavam infecções por terem sempre os pés molhados.

Estava calor, humidade e um tempo horrível para onde quer que fossem, mas tinham de continuar a perseguir os VC. Partiram, assim, numa manhã de terça-feira e caíram numa emboscada.

Quinze homens morreram quase de imediato e nove ficaram feridos. Os helicópteros pairavam, mas não conseguiam divisar nada e os aviões de movimento do inimigo nada detectavam com aquele tempo.

Uma segunda unidade foi enviada para ajudar e mataram mais rapazes. O próprio tenente foi atingido por estilhaços de granada. Reinava uma confusão total, e passaram três dias antes que conseguissem livrar-se e retirar de volta a Cti Chi com os mortos, os feridos e o que ascendia a tremendas baixas.

Regressaram ensopados, aterrorizados e horrorizados pelo que tinham passado. E regressaram sem Tony. Este foi dado como desaparecido em combate.


 

Foi o próprio tenente quem veio dar-lhe a notícia ao hotel. Paxton já sabia, porém, há muito tempo, quando ele bateu à porta para a informar de que algo acontecera.

Há dois dias que o sentira e mal tinha comido ou dormido. Apenas sabia que alguma coisa estava mal, embora ainda ignorasse o quê. E tinha a estranha impressão de que ele não estava morto, mas talvez ferido.

Quando o tenente apareceu à porta. Paxton recuou para o interior do quarto com uma expressão horrorizada.

- Não... - retorquiu, erguendo a mão, desejando que ele se fosse embora.

Era impossível que isto estivesse a acontecer-lhe novamente. Não podia ser. Não deixaria que assim fosse.

Miss Andrews - começou, pouco à vontade, mantendo-se na ombreira. - Quis vir falar-lhe pessoalmente.

- Onde está o Tony?

Seguiu-se uma pausa infindável quando os olhares se cruzaram sem se desviar e ele abanou a cabeça, com uma expressão desesperada.

- Receio que tenha desaparecido em combate - retorquiu. - Não sei dizer-lhe mais do que isto. Ninguém o viu, de facto, ser abatido ou cair... mas a confusão era total. A monção, os vietcongues, a emboscada. Deram-nos informações falsas e fomos atacados. Perdemos muitos dos nossos rapazes e receamos que o sargento Campobello apenas não tenha sido contado.

«Passámos a área a pente fino antes de nos virmos embora - prosseguiu -, e não encontrámos o corpo, mas tal não significa que esteja vivo. Apenas sei dizer-lhe neste momento que ele desapareceu em combate.

- Pode ter sido feito prisioneiro? - inquiriu.

Só de o pensar sentia um nó no estômago. Conhecia demasiadas histórias de horror dos vietcongues, sobre a forma como tratavam os prisioneiros, e um militar, que conseguira escapar, conversara com ela há uns meses atrás. Mas, pelo menos, não era dado como morto. Pelo menos, havia esperança. Talvez.

- É uma hipótese - respondeu o tenente, sem querer dar falsas esperanças. - Mas não é provável. Acho que não estavam interessados em levar prisioneiros, mas em causar-nos o máximo de baixas. E assim foi - concluiu tristemente, conservando-se junto à ombreira, sem que ela o tivesse convidado a avançar.

O tenente assemelhava-se ao anjo da morte postado ali, e ela não o queria na sua vida nem mais um momento.

- Onde estavam?

Atravessámos os bosques Hobo até Trang Bang e depois subimos rumo a Tay Nitili, muito próximo do Camboja. E foi onde o perdemos.

Paxton deixou-se cair na cadeira, enquanto o ouvia, e ocultou o rosto entre as mãos, tentando acreditar que ele morrera, mas não conseguia. Sentia-se incapaz de passar outra vez pelo mesmo. Não com ele. já fora terrível com os outros.

Com Tony, porém, vivera algo que nunca experimentara com ninguém, uma espécie de confiança, uma estranha simetria, uma cumplicidade sem palavras. Parecia sempre saberem o que o outro estava a pensar.

E agora, ela estava a pensar que ele não morrera e ignorava porquê. Não sabia o que dizer àquele homem, ali parado na ombreira da porta do quarto. Apenas conseguiu erguer os olhos na sua direcção e, por fim, agradeceu-lhe ter vindo informá-la. Teria sido pior receber a notícia da boca de outra pessoa.

A situação era, contudo, estranha. Das outras vezes, soubera que eles estavam mortos. Podia dar largas ao desgosto, fazer o luto. E, se tivesse tido coragem, poderia tê-los visto. Mas não estava em causa o que acontecera. Agora, porém, tudo o que conseguiam dizer-lhe era que Tony desaparecera numa tempestade ou algo do género. Era uma loucura. Talvez ele aparecesse de manhã.

Depois de o tenente se ter ido embora, enquanto se mantinha deitada na cama que partilhara com Tony nos últimos dez meses, invadia-a a mesma sensação de que alguém viria informá-la que se tratava de um engano e que ele estava óptimo. Só que, desta vez, acreditaria.

E sentiu-se assim durante dias. Nem sequer conseguia chorar, pois recusava acreditar que ele estava morto. Continuava a mover-se, como uma morta-viva. Escrevia artigos, lia telexes, ia à redacção da AP, redigiu um artigo sobre Saigão e chegou mesmo a participar numa pequena missão.

Quando estava na cidade, assistia às «tolices das cinco». Agora que se encontrava no Saigão há dois anos, todos a conheciam. Era, sem dúvida, a correspondente mais bonita, uma das mais jovens e, segundo parecia, uma das melhores, como atestava o prémio que lhe tinham enviado do estado da Califórnia.

Paxton não lhe atribuiu, todavia, qualquer importância e pô-lo de lado, como fazia a tudo o mais, e os que a conheciam bem sabiam porquê. Tony desaparecera, mas ela morrera. Em Abril.

E, embora continuasse a viver, fazia-o com dificuldade. Tudo o que lhe interessava, deixara de existir. As pessoas que amara tinham desaparecido ou morrido e levado o passado com elas. Sem Tony, não tinha presente nem futuro.

A 2 de Maio, o irmão telefonou a informá-la que a mãe morrera inesperadamente de uma complicação surgida após uma operação à vesícula de que Paxton nem sequer tivera conhecimento. George achava que ela deveria ir a casa e ajudar Allison com as disposições necessárias.

Prometeu que lhe telefonaria a dar uma resposta e, nessa noite, foi de carro a Cti Chi falar com o tenente de Tony para saber se tinham descoberto alguma coisa, mas não era o caso. Ninguém sabia mais do que em Abril. E a família de Tony havia sido oficialmente notificada. O primeiro-Sargento Anthony Edward Campobello desaparecera em combate.

- O que significa isso, com mil diabos? - ripostou-lhe, sem atender à sua hierarquia ou boas intenções. - Espero por ele aqui? Vou procurá-lo? Ajudo-o? Vou para casa e fico à espera? O que faço, raios? - quis saber, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe saltavam dos olhos pela primeira vez.

Não podia continuar a fugir. Ele não ia regressar, talvez nunca mais regressasse, e ela começava a compreender.

- E se ele ainda está por lá, e ferido? - insistiu num fio de voz.

- Não me parece - replicou o tenente, num tom suave. - Acho que ele está morto, Paxton. Acho que só não conseguimos encontrá-lo. Lamento.

Estendeu o braço e tocou-lhe, mas ela furtou-se para que aquele gesto bondoso não piorasse a dor.

- Quer saber a minha opinião? - prosseguiu. - Acho que devia voltar a casa. Aqui, todos temos os nossos limites. Todos nós. Os mais espertos regressam a casa quando os atingem, os outros esperam demasiado. já cumpriu o equivalente a duas missões. Não lhe parece bastante? O Tony ia regressar em junho e pensava que o acompanharia. Porque é que não volta? juro-lhe que se descobrirmos alguma coisa lhe telefono.

Paxton esboçou um aceno de cabeça, fitou-o prolongadamente, depois saiu da sala e concluiu que ele tinha razão. Chegara a altura de ir para casa. Talvez para sempre desta vez. Sem Tony. Amadurecera no Vietname. Quando chegara era uma jovem, com o coração despedaçado pelo rapaz que perdera, em busca de respostas.

E não as descobrira; apenas descobrira perguntas. Tinha vinte e quatro anos, perdera três homens naquela guerra, quatro se contasse com Ralph, e ainda amigos, colegas, e mesmo gente a que não estava ligada, como Nigel. E um pedaço de si própria, que sabia não mais recuperar.

Por outro lado, descobrira uma verdade, um país que estava moribundo, que outrora fora encantador e agora estava a ser destruído aos poucos. No entanto, conhecera-o, antes disso. E amara Tony, antes de ele ter desaparecido. E, onde quer que ele estivesse, morto ou vivo, não lhe sentiria a falta. Sabia que, tal como ao Vietname, o amaria para sempre.


 

O seu último dia em Saigão passou-lhe como um sonho diante dos olhos e era estranho como, após ter decidido que partia, lhe restava, de facto, tão pouco que fazer.

Nessa tarde, despediu-se de todos na redacção da AP e mal conseguia falar quando se foi embora, pois, ao atravessar a praça só conseguia pensar em Ralph, em France e nos dois filhos. Dirigiu-se às «tolices, das cinco» pela última vez e, em seguida, foi até à esplanada do Hotel Continental Palace.

E os mendigos que rondavam por lá já não a assustavam, mas apenas a deprimiam. Cruzou-se com Jean-Pierre e também se despediu dele. Mas não havia mais ninguém com que se preocupasse. As pessoas que amara tinham desaparecido por motivos vários.

Sentou-se e tomou uma bebida com Jean-Pierre, mas ele já estava bastante bem bebido e, por qualquer motivo, passou o tempo a falar-lhe de Nigel. Há muito que ele morrera, e Paxton começava a interrogar-se sobre se viria a acabar, caso ficasse, como Jean-Pierre, embriagada, confusa, sem objectivos, amarga.

Acontecia com frequência aos que se mantinham por ali e, por outro lado, os que partiam não mais voltavam a ser os mesmos. Portanto, quem restava? Os que morriam? Os que ficavam incólumes depois da sua estada ali? Talvez ninguém. Talvez fosse essa a conclusão, para tudo isto. A de que ninguém ganhava, nem nunca ganharia.

- Voltarás? - Ele fitou-a, por instantes, quase sóbrio entre duas bebidas, e Paxton abanou a cabeça, desta vez com a certeza de que falava a sério.

Por mais difícil que o regresso se revelasse, já não tinha respostas ali, nem tão-pouco perguntas. Tinha de voltar a casa e organizar a vida. E uma parte dela sabia que continuaria a incitá-los quanto ao Tony. Mas talvez o pudesse fazer com mais eficácia de lá. Havia outras pessoas nos Estados Unidos que se interessavam pelos homens que haviam perdido, quer como prisioneiros de guerra ou desaparecidos em combate.

- Também deveria voltar um destes dias - acrescentou Jean-Pierre, quase como se lhe tivesse ocorrido nesse instante.

No entanto e tal como ela, não tinha nada a esperá-lo. As pessoas que ela amara tinham morrido Ah, à excepção de Tony e, de momento, também ele desaparecera, talvez para sempre. E até mesmo nos Estados Unidos nada seria o mesmo. A mãe morrera. E nada havia que a detivesse em Savannah.

Disse-lhe adeus e desceu a Tu Do até ao hotel. Sentiu um aperto enorme no coração ante os sons e os cheiros e riu quando olhou para a praça e avistou um militar a tentar ensinar um bando de garotos de rua a jogar softball ( Softball: Um derivado do basebol, jogado com uma bola maior e mais leve. - N. da T. ).

Em Tan Son Nhut, havia frequentemente jogos de softball e fora a alguns com Bill, mas Tony não apreciava muito esse desporto. Era um homem nervoso e ágil de mais; gostava de conversar, pensar, discutir e filosofar, em vez de ficar sentado a ver as pessoas a jogar basebol.

Ensinara-lhe tanta coisa enquanto tinham estado ali. Sobre a vida, as pessoas, a guerra, e a cumprir os seus objectivos da melhor maneira possível, mas essa faceta também fazia parte da sua personalidade. Lembrava-se, constantemente, de coisas que ele lhe dissera... ideias que haviam partilhado... e na noite em que tinham ajudado a fazer nascer a bebé de France. Tudo isso se assemelhava, agora, a um sonho.

Atravessou a recepção do Caravelle, recordando-se da primeira vez que ele tinha vindo visitá-la e de como se haviam sentido pouco à vontade, após o difícil começo. E de como tinham acabado por ser tão felizes... do tempo maravilhoso passado em Hong Kong.

Continuava a usar o anel de rubi com o coração e sempre o faria. Tal como ainda usava a pulseira de Bill. E mantinha as chapas de identificação de Peter fechadas à chave com os seus documentos. Da mesma forma que outros usavam madeixas de cabelo, andavam com um pedacinho do uniforme de alguém ou tinham pulseiras de desaparecidos em combate con, nomes de pessoas.

Eram tudo relíquias de uma época que lhes provocara tanta dor e ao mesmo tempo lhes oferecera o amor, uma época que tanto custara e ainda não chegara ao final.

Via-se rodeada de fantasmas, enquanto fazia as malas, deixando alguns livros de lado. Destinava-os a alguns amigos. Pouco levava de precioso, exceptuando as recordações de que ninguém a privaria.

Na manhã seguinte, apanhou um táxi para a base de Tan. Son Nhut e esperou com os outros, a fim de voltar novamente para casa. Havia raparigas vietnamitas chorando pelos seus militares, e jovens altos, robustos e saudáveis ansiosos por entrar no avião, bem como alguns feridos. Estes não eram, porém, os casos complicados, pois via-se-lhes as feridas, uma mão ligada, a falta de um braço, um par de muletas novinhas em folha. Os que regressavam sem marcas visíveis constituíam os mais difíceis. As feridas existiam, como as de Paxton, só que não se viam.

Sobrevoaram Saigão em círculo, e ela susteve a respiração ao olhar para baixo.

- Chao ong - sussurrou, quando tomaram o rumo da pátria. - Adeus... Vietname... Adeus... Amei-te realmente...

Ao fechar os olhos, quase sentiu Tony, sentado ao seu lado. Sentia-se a cometer uma traição deixando-o ali, mas todos continuavam a insistir que ele desaparecera, e forçara-se a acreditar também.

De qualquer maneira, não lhe restava alternativa. Tinha de regressar para assistir ao funeral da mãe. Era, contudo, estranho. Não sentia nada por quem quer que fosse. Não sentia nada de nada, exceptuando uma pedra no coração que fora outrora o lugar onde tinha amado Tony.

Sabia que ainda o amava, sempre o amaria, mas ele levara um pedaço dela, como todos o haviam feito.

Fizeram uma única paragem a meio do percurso e seguiram para São Francisco. Não telefonou, todavia, para o jornal ou aos Wilson. Eles sabiam que ela ia voltar. Tinha, no entanto, de mudar de avião e continuar para Savannah. Dentro de dias regressaria a São Francisco, a fim de tomar decisões sobre o seu emprego no jornal. Mas a coluna «Mensagem do Vietname» existira, continuara e terminara agora para sempre.

Eram quatro da tarde quando aterrou em Travis Field, em Savannah, pegou nas malas, fez sinal a um táxi e indicou ao motorista o endereço da casa em que crescera.

Ainda tinha a chave e não havia ninguém quando chegou. A nova empregada fora-se embora depois da morte da mãe, pois deixara de haver motivo para a manter. Telefonou a George quase a seguir a ter chegado e sentou-se, com um gemido de cansaço, na cozinha familiar.

O frigorífico estava vazio e havia, surpreendentemente, muito pouca coisa nos armários. Mas Paxton não se preocupou. Deixara de se preocupar com o que quer que fosse. E o regresso àquela casa revelava-se mais doloroso do que tinha esperado. Estar ali representava uma recordação do que existira e deixara de existir e de algumas coisas que nunca tinham existido.

Tomou um duche, mudou de roupa e foi ter com George à sala do velório na baixa da cidade. Enquanto se detinha a observar a mãe, somente sentiu pena. Pena pela mulher infeliz que ela fora, incapaz de prodigalizar amor durante a maior parte da sua vida ou de o receber.

Pelo menos, o pai tinha vivido e amara-a profundamente e talvez outros também. E Queenie dera tudo o que tinha para dar ... e Ralph levara uma vida em cheio... e até mesmo France ... e Peter e Bill... e Tony... mas aquela mulher somente frequentara os seus clubes e agora tudo chegara ao fim.

- Pareces cansada - sussurrou-lhe George.

O irmão vestia um fato escuro, e Paxton apercebeu-se de que tinha alguns fios de prata no cabelo, que lhe davam um ar muito distinto.

- Acabei de fazer uma viagem de vinte e seis horas - replicou, fitando-o tranquilamente.

George parecia-se tanto com a mãe. Mal lhe dera um beijo de boas-vindas, mal a abraçara, nunca perguntara como se sentia e agora, depois de tudo por que passara, mostrava-se surpreendido que estivesse cansada.

- Pareces mais magra.

- Provavelmente estou - sorriu. - As coisas no Vietname podem ser um tanto arriscadas. - «Minas, atiradores, suicídios, indivíduos desaparecidos em combate, sabes?», pensou.

Mantinham-se a falar tranquilamente junto do caixão da mãe.

- Como estão a Allison e os miúdos? - perguntou.

Tinham tido um segundo filho enquanto Paxton estivera ausente, e Paxton sentia-se muito distanciada de tudo isso.

- Óptima. Só não veio esta noite porque os miúdos estão doentes. - Não interessava. A mãe nunca viria a saber.

Nessa noite, apareceram pessoas a apresentar condolências, na sua maioria membros das Filhas da Guerra Civil. E, no dia seguinte, o funeral realizou-se, com pompa e circunstância, na Igreja Episcopal de São João e o caixão foi transportado pelos maridos das amigas.

Tudo decorreu de uma forma respeitável e conveniente, como a mãe teria desejado. E, em seguida, o único desejo de Paxton era sair da cidade. Estar ali, na casa vazia, deprimia-a. Disse ao irmão que dispusesse da casa, que não lhe interessava minimamente; era incapaz de se imaginar de volta a Savannah.

- A não ser que tu e a Allison queiram mudar-se para lá - sugeriu.

- Não tem tamanho suficiente para nós - retorquiu delicadamente. - Queres algumas das coisas dela? - Havia alguns colares de pérolas, um relógio de diamantes que o pai lhe oferecera, vários pares de brincos, na sua maioria de valor sentimental, mas Paxton não aguentaria pôr-se a passar as jóias em revista.

- Manda-mas e guarda algumas para a Allison.

- Na verdade - pigarreou o irmão -, ela gostaria de ficar com as roupas da mamã e o casaco de peles. - Este tinha uns dez anos e estava tristemente fora de moda; Paxton, fitou o irmão com um misto de pena e tristeza, apetecendo--lhe responder que comprasse um casaco novo à mulher, mas absteve-se.

- Por mim tudo bem. - Paxton era um pouco mais alta do que a mãe e teria odiado a ideia de usar as roupas dela. Nada disso era importante aos seus olhos.

- O que vais fazer agora? - perguntou à irmã, que nunca conhecera realmente. Continuava sem entender porque é que ela passara a maior parte dos dois últimos anos no Vietname, embora tivesse ficado surpreendido por ela escrever tão bem e com o sucesso obtido pela sua coluna quando tinha sido publicada nos jornais da Jórgia.

- Ainda não sei - replicou, fitando-o com um suspiro.

Interrogava-se sobre o que Tony teria achado do irmão, concluindo, de imediato, que se teriam odiado um ao outro. Tony era demasiado franco e directo, demasiado honesto para aguentar a imbecilidade de George.

- Volto amanhã a São Francisco - prosseguiu -, e terei de ver o que me propõem. De qualquer maneira, acho que, durante uns tempos, e tal como a maioria dos militares que regressam do Vietname, serei uma inadaptada. Foi como me senti no ano passado.

- E não tencionas regressar? - inquiriu, fitando-a e interrogando-se sobre quem ela era e se alguma vez a tinha conhecido; Paxton poderia ter respondido que não.

- Não me parece. Acho que, agora, terei de ficar por cá.

- Nunca cheguei a compreender porque é que partiste... Excepto... bom, aquele rapaz que morreu... Mas isso não era motivo para ires para Saigão.

- Talvez não - anuiu. Só que esse facto a mantivera lá durante dois anos. A tristeza por causa da guerra, a necessidade de contar como era, a necessidade de permanecer por lá.

- De qualquer forma, informar-te-ei da minha decisão prometeu.

Deu-lhe as boas-noites e o irmão mal a beijou quando se despediu. E, de manhã, quando saiu, Paxton trancou a porta e meteu a chave na caixa do correio. Não precisaria mais dela e pedira-lhe que mandasse as suas coisas depois de lhe indicar onde ficaria em São Francisco.

Porém, sentia-se como uma cigana quando partiu. Era uma pessoa sem casa, sem raízes nem destino demarcado. E, caso o irmão tivesse reflectido, acharia estranho que alguém que passara uma vida inteira sob um telhado, ficasse, subitamente, tão desenraizada. Outros, que regressavam do Vietname, faziam também o mesmo. Voltavam, mas ignoravam para onde ir ou o que fazer, ou o que aconteceria quando lá chegassem.

A sensação ainda não desaparecera quando apanhou o avião para São Francisco e se registou num pequeno hotel. Desta vez não havia uma suite no Hotel Fairmont, nem tinha um convite dos Wilson para jantar.

E, depois de meditar no assunto uns dias, resolveu não telefonar a Gabby. Ignorava pura e simplesmente o que lhe dizer. O que poderia contar-lhe... sobre Ralph... sobre Bill... sobre Tony?... Como se explicava tudo isso a alguém que se mantivera tranquilamente sentado em casa, indo a jantares e jogos de futebol, e ao cinema? Não se explicava.

Foi visitar Ed Wilson ao jornal e falaram sobre os planos dela. O melhor que ele tinha para lhe oferecer era uma coluna baseada em eventos locais. Em certos aspectos, tratava-se de uma cidade pequena e de um jornal pequeno.

_ Hoje em dia o ambiente está mais tranquilo - arguiu. - As pessoas deixaram de querer ouvir falar da guerra, Paxton. Estão cansadas dela. Estão cansadas do barulho, das manifestações, das queixas. Acho que a época é de calma.

Todavia, enganava-se. Não estava a tomar em consideração o impacte dos quatro estudantes mortos e dos quatro feridos pela Guarda Nacional numa manifestação contra a guerra, na Universidade Estatal de Kent, no Ohio. E provou-se aquilo em que Paxton, ainda acreditava. Que algumas pessoas continuavam a interessar-se, e o país ainda se ressentia da ferida aberta no Vietname e que ignorava como sarar.

Porém, The New York Times facilitou a decisão. O Morning Sun tratara-a com decência. E Ed Wilson dera-lhe uma oportunidade em Saigão, quando ela era ainda tão verde como a paisagem que a rodeava.

Só que recebeu uma proposta do Times para ir a Paris fazer a cobertura das conferências de paz. Queriam que fosse a Nova Iorque primeiro discutir o assunto com eles, mas Paxton sentiu-se muito lisonjeada com o salário e a oferta. Referiram-se de forma muito simpática à coluna que ela escrevera para o Sun e pareciam considerá-la uma especialista.

Era um tanto difícil acreditar, e ela quase riu como uma criança ao pousar o auscultador. Desejou poder contar a Tony e pensou nele durante toda a noite, comunicando silenciosamente com ele, onde quer que estivesse.

Nessa noite, quando adormeceu, sonhou com ele, vendo-o rastejar através da selva e de arbustos e escondendo-se em túneis. Ao acordar, sabia que se tratava apenas de um sonho. No entanto, continuava com aquela sensação de que ele não estava morto, mas ainda vivia. Questionava-se, por vezes, sobre se isso se deveria a ser incapaz de suportar a morte. De qualquer maneira, a sensação era real.

Ed Wilson congratulou-se quando ela lhe falou na oferta do Times. E aliviado. Pressentia que, se ela ficasse, tornar-se-ia um problema. À semelhança de muitos jovens que regressavam a casa, parecia ignorar o que fazer de si, ou o que realmente desejava.

Era quase como se o Vietname lhes tivesse sugado as forças, os objectivos e o rumo. Arrancara-lhes a coragem e as entranhas e levara tudo o mais. Ou talvez fosse das drogas, pensou. Talvez fosse isso.

No entanto, e independentemente do que pudesse ser, estava contente por ela se ir embora. Não era a mesma rapariga e sabia-o. Era amarga, era forte, estava triste até ao mais fundo do coração e, numa parte secreta dela, ainda lhe detectava raiva.

Desejou-lhe sorte, e Paxton mandou saudades a Mrs. Wilson e a Gabby. Não vira nenhuma delas quando partiu e, de certa maneira, tornava-se um alívio ver-se liberta de fingir que continuava a atribuir importância às mesmas coisas do que elas. A verdade era que não atribuía.

Em Nova Iorque, teve várias entrevistas no Times e instalaram-na num hotel chamado Algonquin. Estava cheio de jornalistas, escritores e dramaturgos, alguns homens de negócios, e tratava-se de uma multidão interessante que entrava e saía, embora não falasse com ninguém.

E agradou-lhe o que o Times tinha a dizer sobre o que pretendiam dela. Queriam a verdade e o que quer que visse em Paris. Queriam as conferências de paz e uma entrevista com  o tenente Calley antes de partir, bem como tudo o mais que conseguisse pensar a respeito do Vietname e do que presenciara por lá.

Queriam palavras fortes e o género de reportagem que enviara quando partia em missões com Ralph a An Loe e Da Nang, Long Binh e Chu Lai e a outros lugares, que tinham acabado por significar tanto aos seus olhos nos últimos dois anos que ali passara.

Queriam tudo. O passado, o presente e o futuro, até que, finalmente, a guerra chegasse ao fim. Queriam considerá-la a sua editora na questão do Vietname, e Paxton sabia que não podia ter recebido melhor oferta.

- Quando começo? - perguntou com uma expressão entusiasmada.

- Amanhã - respondeu o editor chefe com um sorriso satisfeito.

Tinham receado que ela não aceitasse a incumbência. Muitas pessoas sentiam um pânico de morte relativamente a esta questão.

- Porque é que não começa pela peça do Calley na próxima semana? - sugeriu. - Usaremos dois canais apropriados para a fazer chegar lá. E, mal acabe, pode apanhar o avião para Paris. Que tal lhe parece?

- Maravilhoso. - Se é que poderia chamar-se «maravilhoso» a entrevistar um homem acusado de atrocidades de guerra.

Sentia-se, no entanto, contente por dispor de algum tempo. Havia algo que desejava fazer em Nova Iorque, antes de entrevistar o tenente Calley.

Vagueou durante um dia por Nova Iorque, sentindo-se como quando descobrira Saigão pela primeira vez, investigando novos lugares e cheiros, observando as pessoas, o movimento e o trânsito. Comprou algumas roupas de que muito precisava, sobretudo se ia, na verdade, tornar-se uma «autoridade» sobre o Vietname para The New York Times.

Por fim, regressou ao hotel e telefonou-lhe. Sentou-se na cama, fechou os olhos, susteve a respiração e rezou uma pequena oração a Tony, esperando que ele não se importasse. Achava, porém, que ele não se importaria e sabia que tinha de fazê-lo.

Ligou para o serviço informativo de Queens, soletrou o nome três vezes e, por fim, descobriram-no em Great Neck, em Long Island. Thomas Campobello. Rezou para que fosse ele. Mas tinha de ser. Não haveria, certamente, muitos Thomas Campobellos.

Marcou o número, o telefone tocou e, pelo espaço de um minuto, julgou que ninguém responderia; por fim, uma voz respondeu. Era uma mulher.

- Mistress Campobello, por favor. - Era estranho pensar que, em circunstâncias diferentes, este poderia ter sido o seu nome, mas não conseguia pensar nisso agora.

- É a própria - respondeu uma voz muito nova-iorquina, mas parecia jovem e razoavelmente simpática.

Paxton, sabia que, excepto se fosse a mãe de Tony, tinha de ser Bárbara.

- Mistress Campobello? Bárbara Campobello?

- Sim - anuiu, começando a parecer nervosa. - Quem fala? - Talvez se tratasse de um daqueles falsos inquéritos, em que se punham com conversas sujas.

- Sei... Sei que é um telefonema estranho, mas eu... -«Oh, por favor, não desligue, por favor!» - Conheci o seu ex-marido no Vietname. - Seguiu-se uma pausa infindável, e as duas mulheres conservaram-se sentadas, nos respectivos lados da linha, tremendo. - Eu... Éramos muito bons amigos e... se algo lhe acontecesse, queria que lhe telefonasse... a si e ao Joey.

Era mentira, mas não totalmente. Uma vez, a altas horas da noite, ele pedira-lhe que olhasse pelo filho, se algo acontecesse. Só não mencionara o nome da mãe. No entanto, Paxton achava que teria mais hipóteses se acrescentasse Mrs. Campobello.

- Não pretendo intrometer-me numa altura destas, mas estou casualmente em Nova Iorque e... - Hesitou.

- Como o conheceu? - Quase sussurrava, como se o nome dele fosse proibido.

Éramos... - Ignorava o que dizer. Amigos íntimos... e... ele gostava muito do Joey... Tenho a certeza de que o sabe.

- Há cinco anos que não o via - retorquiu amargamente, mas Paxton sabia mais do que ela esperava.

- Não tinha voltado aos Estados Unidos, Mistress Campobello. Depois do que aconteceu... acho que se sentia incapaz... - Um pouco de culpabilidade não iria matá-la. Já tinham passado quase seis anos e ela tinha mais três filhos do irmão de Tony. Que diferença faria, se a ajudasse a chegar a Joey? - Achava que o Joey era muito feliz consigo e com o seu marido.

- E é - defendeu-se, e Paxton sentiu que ela estava a perder terreno.

- Ele sabe o que aconteceu ao pai no Vietname?

- Apenas que desapareceu em combate. De vez em quando, costumava escrever ao Joey. Nunca guardámos qualquer segredo. Sempre lhe entreguei as cartas - replicou, tentando ilibar-se. - Acho que ficou perturbado quando lhe comunicámos a morte do pai. Qualquer miúdo ficaria. Mas é muito reservado e não fala muito.

« Quem falaria, se a mãe casasse com o tio e não se voltasse a ver o pai?», pensou Paxton. Achava, porém, interessante que Mrs. Campobello considerasse a situação de desaparecido em combate de Tony como uma declaração incontestável de que ele morrera no Vietname.

- Posso falar-lhe? - Não havia mais nada a dizer. - Importava-se?

- O que quer dizer-lhe?

- Que o pai o amava. Que lamento. Como ele era. Era um dos homens mais corajosos do Vietname. Fazia parte de uma unidade que tinha a designação não oficial de ratos de túneis e costumavam descer a esses túneis incríveis que os Vietcongues construíam para enganar as nossas tropas e o Exército Vietnamita do Sul. Talvez achasse tudo isso fascinante e um motivo de orgulho - respondeu Paxton, calmamente.

- Sim. É possível - replicou Bárbara Campobello. E acrescentou: - Tenho de perguntar ao meu marido. Como disse que se chamava?

- Paxton Andrews.

- E conheceu-o no Vietname? É enfermeira ou algo no género?

- Não. Era correspondente de um jornal em São Francisco. Agora trabalho para The New York Times e, dentro de dias, parto para Washington, Jórgia e Paris.

Debitou tudo isto para a impressionar e conseguiu. Raios, talvez escrevessem uma história sobre Tony, a sua ex-mulher e o filho...

Paxton acertara no alvo e apenas se interrogava sobre o que é que Tony vira numa mulher provinciana daquelas; porém, só tinha treze anos quando se haviam apaixonado e dezoito quando casaram, o que melhorava a situação.

- Posso voltar a telefonar? - pressionou-a Paxton.

- Nós telefonamos. Qual é o seu número?

- Estou no Hotel Algonquin, em Manhattan.

- Telefono-lhe esta noite.

- Obrigada - agradeceu e, em seguida, mais suavemente: - Prometo que tentarei não o perturbar... Só quero vê-lo... pelo Tony, porque prometi.

De certa maneira era verdade, mas também ela queria vê-lo, pois Joey era uma parte de Tony. E a mãe do miúdo detectou-lhe algo na voz e hesitou um longo momento antes de perguntar:

- Estava apaixonada por ele?

- Sim, estava - anuiu Paxton, depois de uma pausa ainda maior.

Sentia-se orgulhosa de que assim fosse, mas achava que a mulher não tinha nada a ver com isso. Só que, estranhamente, formou-se um elo entre ambas.

- Também estive, há muito tempo. Era um bom homem... e um bom pai. Tínhamos uma menina... Morreu... Talvez o Tony lhe tenha contado. Acho que foi o que pôs termo ao nosso casamento. Ninguém teve culpa do que lhe aconteceu. Mas, sempre que olhava para ele, pensava nisso. Ele ficou tão destruído que eu não conseguia esquecer. E o Tommy... Bom, fez com que me sentisse melhor.

- Sim, contou - admitiu Paxton, num sussurro.

«Aposto que sim», pensou Paxton, mas também suspeitava que existia algo de verdade nas palavras dela. O próprio Tony admitira que estava tão minado pelo desgosto e, em seguida, tão obcecado com Joey depois de ele nascer que fizera mal ao seu casamento.

Portanto, ela não estava completamente errada. Mostrara-se, contudo, insensata na escolha do segundo marido. E a sua falta de tacto impelira Tony para o Vietname e privara Joey do pai. Mas quem era ela para emitir juízos? Se Barbara Campobello não tivesse casado com o cunhado, Paxton nunca teria encontrado Tony em Saigão.

- Lamento - repetiu Paxton.

- Sim Eu telefono.

Em seguida, desligou, e Paxton passou o resto da tarde no Metropolitan Museum. Quando regressou ao hotel, havia uma mensagem da mãe de Joey. Paxton telefonou-lhe logo e verificou, surpreendida, que ela a convidava para aparecer na manhã seguinte.

Era sábado, e Joey não teria escola. A própria mãe de Tony estaria presente e queria conhecer Paxton. Barbara omitiu que o marido estava furioso, mas ela vincara que o deviam a Tony e a Joey, mais isto e aquilo, que ela era uma correspondente importante de The New York Times, que talvez armasse um grande sarilho se não a deixassem ver o miúdo, dado ser o último pedido de Tony...

O marido concordara, mas continuava furioso. Todavia, Barbara não se importara. Queria fazê-lo. Deu instruções a Paxton de como ir até lá. E, na manhã seguinte, Paxton alugou um carro no hotel e dirigiu-se a Great Neck.

Quando chegou, estavam todos à sua espera. Até mesmo Mrs. Campobello, a mãe, com um vestido preto, e três meninas com vestidinhos cor-de-rosa. Pareciam enfeites de bolo e Paxton quase soltou uma gargalhada ao fitá-las. Eram engraçadas, mas tão estranhas aos seus olhos que ignorava o que dizer. Era tudo um tanto insólito.

Barbara, a sogra e as meninas estavam cá fora quando Paxton chegou e avistou, ao longe, um homem alto e bem constituído, que não se aproximou. Áquela distância, não conseguia ver se ele se parecia com Tony. E, de qualquer maneira, não parecia ansioso por conhecê-la.

Em seguida, Barbara apresentou-a à sogra. E, quando Paxton a fitou, só conseguia ver Tony. Ela começou a chorar mal Paxton lhe tocou na mão e falava com um marcado sotaque italiano.

- Conheceu o meu filho no Vietname? - inquiriu com voz trémula, não tanto da idade como da emoção.

- Conheci, sim - respondeu Paxton, que também se esforçava por conter as lágrimas, enquanto Barbara se afastava com as filhas. - Era um homem fantástico. Tem razão para se orgulhar dele - acrescentou, num sussurro. - Era famoso em todo o Vietname pela sua coragem.

Exagerava um pouco mas não demasiado e sabia que as suas palavras significavam muito para a mãe de Tony. Depois, sentiu os olhos cheios de lágrimas, estendeu os braços e abraçou a velha senhora.

- Se ele se foi embora, a culpa é minha... Devia ter impedido, mas não o fiz.

- Seria impossível - confortou-a Paxton, sabendo o que queria dizer.

Todos haviam sido tão culpados, todos eles. Durante anos pensara que era culpada pela morte de Peter... de Bill... e agora de Tony? Matara-os a todos? Ou fora Charlie?

- O Tony não tinha ressentimentos contra ninguém - tranquilizou-a Paxton. - Era feliz.

Mrs. Campobello assoou-se e esboçou um aceno de cabeça, depois do que fitou Paxton, com uma expressão interessada.

- Era namorada dele?

Paxton sorriu ante o termo e confirmou com um aceno.

- Era um homem maravilhoso e amava-o muito.

Interrogou-se, em seguida, porque é que continuaria a falar no passado. Para manterem a sanidade mental, todos continuavam a fingir que sabiam que ele estava morto, mas não o sentiam.

- É uma bela rapariga - elogiou a mãe. - O que estava a fazer por lá? - inquiriu entre a curiosidade e a desaprovação.

- Escrevo para um jornal. Foi assim que o conheci. - Depois, sorriu e acrescentou: - No começo, discutíamos muito. - A mãe sorriu, igualmente, por entre as lágrimas ante a confissão.

- Ele também discutia comigo. Quando era miúdo, punha-me doida. - Ia a dizer que não era como o Tommy, mas pensou melhor e calou-se. Deus já a tinha castigado por isso, pois Tommy ainda estava ali e Tony não.

Barbara Campobello voltou e fitou Paxton.

- O Joey está lá dentro, se quiser falar-lhe.

- Seria óptimo - redarguiu Paxton, é Barbara levou-a até à porta da frente.

Barbara tivera, obviamente, uma boa figura e era dona de um rosto atraente, mas parecia endurecida e um tanto desapontada. Paxton seguiu-a até ao interior da casa. Lá estava ele, sentado no sofá, vestido com calças de ganga, uma camisa limpa e um boné de basebol; fitou-a precisamente com a mesma expressão de que acabara por gostar tanto no pai.

- Olá - cumprimentou tranquilamente e verificou, surpreendida, que Barbara saía, com discrição, até junto dos outros. - Chamo-me Paxton.

Joey ergueu os olhos na sua direcção, e ela sentou-se numa cadeira ao lado dele.

- Conheci o teu pai no Vietname - prosseguiu. - Pediu-me que te visitasse se alguma vez passasse por aqui. E, como estou na cidade, pensei vir até aqui falar contigo.

O miúdo esboçou um aceno de concordância, interessado nela, parecendo-se tanto com o pai que a assustou.

- Estás a escrever uma história sobre o meu papá? - perguntou. - Foi o que disse a mamã.

Paxton apressou-se, no entanto, a abanar a cabeça.

- Não, Joey - replicou, pois queria ser honesta com ele, tão honesta como fora com Tony. - Estou aqui, porque o amava. E ele amava-te muito... na verdade. - Sorriu por entre as lágrimas. - ... Ainda o amo. Ainda só regressei do Vietname há umas semanas e desejei logo visitar-te.

- O que aconteceu? - inquiriu Joey, num tom quase acusador. - Como é que ele morreu?

- Nem sequer têm a certeza de que tenha morrido. Apenas sabem que desapareceu em combate. Isto significa que houve uma batalha, ele perdeu-se e nunca mais voltou.

Pode estar vivo, pode estar morto, pode ter sido ferido e estar prisioneiro dos vietcongues, mas ninguém sabe.

- Uau! - exclamou, parecendo excitado e endireitando-se no sofá. - Ninguém me contou isso! - Tinha oito anos, e Paxton achou que lhe cabia o direito de saber e por isso lhe dissera.

- Ninguém sabe de nada. Acham que pode estar morto. E há muitas hipóteses de que assim seja. Mas a verdade é que não têm certezas.

Joey fitou-a sem desviar o olhar e fez a pergunta mais dificil de todas:

- Que achas?

- Que acho? - repetiu, interrogando-se sobre se deveria ser sincera. Em seguida, decidiu-se a fazê-lo. - Não sei explicar-te porquê e talvez me engane, mas acho que ainda está vivo. Sinto-o cá dentro... Talvez o amasse tanto que não quero que ele morra. Talvez seja esse o motivo que me leva a sentir assim. Mas sinto.

O miúdo fez um aceno de cabeça, absorvendo as palavras, e aproximou-se um pouco mais.

_ Tens retratos dele? - Paxton teve vontade de bater em si própria por não as ter trazido. Nem sequer pensara no assunto.

Tenho. No hotel. Mando-te cópias, quando chegar a Paris.

O miúdo voltou a acenar, satisfeito com a promessa.

- Vais regressar ao Vietname?

- Não me parece.

- Deve ter metido muito medo, hem? - redarguiu.

Chegou-se depois um pouco mais, fascinado por ela, pela sua beleza e pelo facto de ter conhecido o pai. Não havia ninguém com quem pudesse falar dele. A mãe reagia constantemente como se qualquer conversa sobre o pai fosse um crime e, sempre que o mencionava à avó, ela chorava e o papá gritava. Paxton era, contudo, uma emissária directa do pai, e Joey podia dizer o que lhe apetecesse.

- Muito - sorriu-lhe Paxton. - Mas nem sempre. Também tivemos bons momentos. E ele falava muito de ti - acrescentou e, ao ver que o rosto se lhe iluminava, sentiu vontade de estender a mão e fazer-lhe uma festa.

- A sério?

- Sim. A toda hora. Costumava mostrar-me a tua fotografia. Queria voltar a casa e fazer-te uma visita. - Mas não tivera oportunidade. Desaparecido aos trinta e um anos, havia muita coisa que nunca faria.

- Vens ver-me outra vez? - perguntou Joey num tom esperançado, aproximando-se ainda mais e, por fim, estendendo a mão para lhe tocar no cabelo, que era tão liso e louro e tão diferente do da mãe.

- Gostava muito, se a tua mamã e o teu padrasto não se importarem.

Joey fez uma careta.

- Ele não é o meu padrasto, é meu tio! - sussurrou.

- Eu sei. O teu pai disse-me - respondeu Paxton no mesmo tom.

- Contou-te tudo, hem?! - exclamou e, em seguida, riu-se.

Tinha uma nova amiga e gostava mesmo dela. Paxton passou-lhe a mão pelo cabelo, acariciou-lhe o rosto e tinha-lhe rodeado a cintura com o braço quando a mãe regressou.

- Foi uma visita óptima - redarguiu Paxton, agradecida por ela não se ter oposto à sua presença. - E vou mandar ao Joey algumas fotografias do pai, quando chegar a Paris.

- Isso mesmo - confirmou o miúdo.

Saíram para fora, caminhando devagar e de mãos dadas. Agora, era como se pudessem comunicar sem palavras. E, antes de se ir embora, Paxton abraçou-o e apertou-o de encontro ao corpo.

- Lembra-te de quanto ele te amava - disse.

Joey esboçou um aceno com lágrimas nos olhos, e Paxton voltou a apertá-lo, recordando-se do que se sentia ao ficar-se sem pai, mas não dissera nada disso ao rapazinho.

- Volto a telefonar-te - prometeu.

- Okay.

Avistou, então, o padrasto que se mantinha perto, a observá-lo. Era alto e moreno, mas não se parecia nada com o irmão, nem veio ao seu encontro para lhe apertar a mão e travar conhecimento. Regressou à garagem e voltou a interessar-se pelo que estava a fazer.

Paxton agradeceu novamente a Barbara Campobello, deu um beijo de despedida à mãe de Tony, e elas desejaram-lhe boa sorte em Paris, quase como se a conhecessem.

- Mandar-te-ei as fotografias - voltou a prometer a Joey, e ele continuava a dizer-lhe adeus quando dobrou lentamente a esquina, pensando nele e em como era triste que nunca viesse a conhecer o pai.

 

Chegou a Paris num belo dia de Primavera, uma semana depois de ter viajado a Washington para se avistar com entidades oficiais do Pentágono e Fort Berining, a fim de entrevistar o tenente Calley.

A entrevista com ele tinha sido breve e, em certos aspectos, muito dolorosa. Ele estava quase a tornar-se um símbolo da guerra e do descontrolo americano, da brutalidade e tristeza causadas e, ao pensar em tudo isto mais tarde, Paxton sentiu pena dele, de todos, de tudo o que acontecera.

Paris sarou, contudo, algumas das suas feridas e descobriu um estúdio simpático próximo do Sena. À noite, passeava sozinha, pensando em como aquela vida era diferente da que levara em Saigão.

Ali tinha uma vida solitária, austera e grave, tendo assistido diariamente às conferências de paz e entrevistado personalidades como Kissinger e Le Duc Tho.

E, em Saigão, embora tivesse passado momentos difíceis, a sua vida revelara-se mais feliz e facilitada do que agora, somente cheia de recordações de um lugar que não mais veria e dos homens que amara.

Enviou as cópias das fotografias a Joey, e ele escreveu-lhe com uma caligrafia cuidada, agradecendo-lhe. De vez em quando, ela mandava-lhe um postal de Paris.

Encontrava-se a par de todas as notícias relacionadas com o Vietname e, em Outubro, as baixas americanas eram menores do que até aí. Mesmo assim, teria sido melhor saber que tudo acabara.

Mantinha-se em permanente ligação com os conhecimentos que fizera para saber se havia notícias dos desaparecidos em combate, mas nunca obteve qualquer informação sobre Tony. Nessa altura, deixara de acalentar esperanças, mas aquela estranha sensação nunca a abandonava. De certa maneira, achava que era porque ele sempre estaria vivo na sua mente. Contudo, no final do ano, quase a tinham convencido de que era inútil.

Em Novembro, o Times mandou-a novamente de avião a Fort Berming, na Jórgia, para assistir ao julgamento de Calley, e foi tudo muito deprimente, com fotografias horríveis e testemunhos assustadores, que levaram finalmente à sua condenação.

Depois do julgamento, foi visitar o irmão e, como sempre, quase nada tinha para lhe dizer, nem sequer se dando ao esforço de se entender com Allison.

Em seguida, viajou até Washington para mais uma entrevista a Kissinger. E avistou-se, depois, com a sua editora em Nova Iorque. Telefonou e fez outra visita a Joey e, desta vez, levou o miúdo a almoçar.

Ele acabara de fazer nove anos e ainda se parecia mais com Tony. Levou-o ao Rádio City Music Hall, e antes tiveram um almoço de adultos. Paxton levou-o ao 21 e ele mostrou-se excitadíssimo quando ergueu os olhos e deparou com todos os aviões pendurados junto ao bar.

O chefe de mesa reconhecera-lhe o nome, pois era um dedicado leitor de The New York Times e satisfizeram-lhe todos os caprichos, oferecendo uma mochila a Joey com a inscrição «21 ».

- É um lugar fantástico - comentou, admirando-lhe o gosto e ela sorriu. - Achas que o paizinho teria gostado disto?

- Acho que teria adorado. Algumas vezes, costumávamos falar de voltar a Nova Iorque. Ou ir até São Francisco. Era onde eu vivia dantes. Frequentei a universidade lá.

Joey mostrou-se muito impressionado e pediu-lhe que lhe contasse tudo a esse respeito. Quando estavam a acabar a sobremesa, fitou-a com uma expressão séria.

- O meu pai... o meu outro pai, quero dizer... Sabes, o meu tio...

Paxton esteve prestes a soltar uma gargalhada ante aquela atrapalhação e sabia que Tony também teria rido. Na verdade, quase teria gostado.

- ... Ele diz que tudo o que disseste não é verdade... Sobre o meu pai poder estar vivo, porque desapareceu em combate. Diz que provavelmente está morto e tu és doida.

- Pode ter razão. De facto, talvez tenha razão nas duas coisas - retorquiu Paxton, tentando sorrir. - No entanto, Joey, a verdade é que ninguém sabe - prosseguiu. - É assim quando se desaparece em combate. Alguns dos homens que desapareceram foram feitos prisioneiros. Mas nem isso sabemos a respeito dele. Mantenho-me atenta, telefono para o Pentágono sempre que posso, mas o nome do teu pai não consta da lista de prisioneiros. E nunca descobriram o corpo próximo do sítio em que morreu. Portanto, a verdade é que ninguém sabe.

Era difícil para ele. Era difícil para todos. Era mortificante não saber o que acontecera.

- Então, isso quer dizer que ele pode estar vivo, não quer? - inquiriu, parecendo novamente esperançado. No entanto, depois de reflectir mais a fundo no que ouvira, ficou outra vez deprimido.

Mas o meu pai... o meu tio... diz que ele está morto. Achas que está, Paxton?

- Não - respondeu, abanando a cabeça e fitando-o honestamente. - Não, Joey.

Pegou-lhe na mão e agarrou-a com firmeza, continuando a pensar quanto ele se parecia com Tony.


 

Paxton esteve ocupadíssima ao longo de 1971 e passou a maior parte do ano em Paris. Continuava a acalentar esperanças relativamente às conferências de Paris e transmitiu essa sensação em muito do que escrevia para o jornal. No entanto, a guerra prosseguia.

E, no Vietname, as tropas começavam a revoltar-se. Estavam cansadas da guerra e parecia haver mais problemas de insubordinação frente aos oficiais do que quando lá estivera. Os casos de granadas que atingiam «por engano» os oficiais eram cada vez mais vulgares.

As questões raciais também eram agora mais tensas. E, em Fevereiro, o ARVN iniciou operações rio Laus, destinadas a destruir partes da pista de Ho Chi Minh.

E, sempre que fazia indagações, em qualquer sector, nunca havia notícias de Tony.

Em Março, Paxton regressou aos Estados Unidos para o resto do julgamento de Calley e assistiu à sua condenação. E estava em Washington quando se realizou a enorme manifestação dos Veteranos do Vietname Contra a Guerra' em que alguns dos homens atiraram as medalhas para os degraus do Capitólio. Escreveu sobre o assunto para o Times e, em seguida, regressou de avião a Paris.

Ainda estava em Paris quando o chamado «Dossier do Pentágono» foi tornado público por Daniel Ellsberg, em junho. E também em julho, quando Nixon anunciou a viagem de Kissinger à China. E, quando Thieu foi reeleito presidente do Vietname do Sul, em Outubro de 1971, ainda estava ocupada a fazer a cobertura das conferências de paz. Por fim, em Dezembro, teve a satisfação de escrever que as tropas americanas no Vietname tinham descido para cento e quarenta mil homens, menos de um terço do que eram, quando ela lá estivera, dezanove meses antes.

E, ao longo desses dezanove meses, não recebera nenhuma notícia sobre Tony Campobello. As provas falavam, agora, por si próprias. Se tivesse sido feito prisioneiro ou ficado ferido em qualquer lado, decerto alguém já saberia por essa altura. Deixara de poder oferecer mais esperanças a Joey e, contudo, quando ele a interrogava, quando falavam ou quando ela lhe telefonava, punha-o sempre a par do que sentia, ou seja, que o pai se encontrava vivo.

Nessa altura, o miúdo já tinha dez anos e conseguia entender melhor. Falara-lhe do seu próprio pai, o que firmou uma aliança especial entre ambos. Os dois tinham crescido órfãos de pai.

Para ela, no final de 1971, a vida era interessante mas estranha. Tinha vinte e cinco anos, era muito bonita e extraordinariamente admirada em Paris. Por outro lado, era como se uma parte da sua vida não existisse, nem nunca tivesse existido. Vivia em função do trabalho e de um rapazinho de quem passara a gostar, em Great Neck.

Ele era o único amor da sua vida. O resto eram recordações e fotografias que conservava numa mesa da sala de estar. Peter.. Bill... Ralph... France... Pax... An... e, sem dúvida, Tony. Era uma estranha galeria de pessoas que tinha amado e perdido, num lugar onde sabia que jamais iria regressar e de que, bizarramente, sentia saudades.

Sentia saudades do que vivera, das pessoas e do que fora quando todos existiam. Obtivera, contudo, muito sucesso na sua actividade e era muito respeitada. E invadia-a um tipo de felicidade estranha. Não era felicidade mas satisfação, e continuava a sentir-lhe a falta. Ainda usava o anel de rubi no dedo.

Em 1972, custou-lhe saber a perturbação que reinava no Vietname. As conferências de paz não haviam produzido resultados. E, em Março, os vietnamitas do Norte atravessaram a zona desmilitarizada com tanques e iniciaram uma marcha para sul pela Auto-estrada Um, num surto de terror.

Em Maio, esta mesma auto-estrada apresentava-se pejada de refugiados e militares. O ARVN do Sul não se comportou à altura das tropas do Norte, os civis eram constantemente assassinados, as crianças queimadas e as mulheres morriam. As fotografias que viu, tal como o resto do mundo, sobretudo na revista Times, eram horríveis.

Uma segunda vaga de ataques devastou as Highlands Centrais, com repercussões idênticas no Norte. Por todo o lado, havia pessoas sem pátria e a morrer de fome.

Os Americanos tentavam escapar-se e virar a guerra contra o ARVN, o Exército sul-vietnamita, e estavam a perder.

Um terceiro ataque em Abril, próximo da fronteira do Camboja, a norte de Saigão, humedeceu os olhos de Paxton quando leu os relatórios da AP. Três mil soldados vietnamitas invadiram An Loc e conquistaram toda a província.

Começava a tornar-se claro que a «vietnamização» do Vietname era um gracejo, mas um gracejo de alto custo, e ninguém no Vietname se ria.

A meio de Abril, Nixon autorizou o bombardeamento de zonas próximo de Haiphong e Hanói e, pela primeira vez em dois anos, Paxton sentiu-se agradecida por não ter continuado no Vietname. Começava a gerar-se a pergunta sobre se alguém sobreviveria. E uma carnificina geral não fazia sentido.

Paxton podia ser mais útil ali em Paris. Mas também se sentia extremamente preocupada com o que aconteceria a Tony, se estivesse prisioneiro ou escondido, algures, na região. Com os permanentes ataques do Exército norte-vietnamita, todos os prisioneiros americanos no Vietname encontravam-se em alto risco. Mantinha, contudo, a esperança de que, decorridos dois anos, Tony se encontrava entre eles em algum lugar.

A única coisa que lhe prendeu a atenção após a queda de Quang Tri, em Maio, foi a prisão, em junho, dos cinco homens que haviam assaltado o Edifício Watergate, em Washington.

Nos Estados Unidos, era o assunto do dia e, embora Paxton ainda estivesse em Paris nessa altura, escreveu um editorial com muita graça que o Times publicou e lhe valeu muitos comentários favoráveis.

Estava a tornar-se lentamente uma espécie de estrela, mas era um aspecto da sua vida que pouco tomava em consideração. Adorava o seu trabalho, mas em nada lhe interessavam os elogios. A sua missão na vida residia em informar, cortar mentiras e silvas com uma espada de verdade, e os seus amigos jornalistas troçavam dela e chamavam-lhe fanática.

Não tinha, porém, qualquer interesse em adquirir fama. E o facto de Kissinger, Nixon e jornalistas influentes de todo o mundo a terem em grande consideração, agradava-lhe, embora não achasse de importância primordial. Apenas lhe interessava que o que escrevia «agitasse a opinião».

O armistício em Paris ocorreu, finalmente, em Outubro de 1972 como resultado de encontros entre Kissinger e Le Duc Tho, embora poucos o soubessem.

Em 21 de Outubro, os Norte-Vietnamitas aprovaram o plano de paz proposto e, cinco dias depois, o próprio Kissinger prometeu, por parte da Casa Branca, que «a paz está à vista». No entanto, o presidente Thieu do Vietname do Sul recusou assinar o acordo e recusou também permitir que as tropas do Norte permanecessem no Sul, com receio do que pudessem fazer por lá.

E, menos de duas semanas depois, o presidente Thieu exigiu sessenta e nove emendas ao acordo que poderia trazer a paz ao Vietname, e Paxton, juntamente com outros importantes jornalistas, lamentou. A situação começava a tornar-se novamente desesperada.

As conferências pararam e recomeçaram por todo o mês de Dezembro. Verificaram-se bombardeios americanos a alvos militares e promessas de que menos civis seriam atingidos.

Hanói mostrou-se disposta a conferenciar, se os bombardeios parassem. Verificaram-se tréguas num único dia, no Natal. Hanói voltou a pronunciar-se. Por fim, em 30 de Dezembro, os bombardeios pararam novamente e retomaram-se as conversações.

Bob Hope deslocara-se ao Vietname para ali fazer o seu espectáculo de Natal pela última vez. Mas, nesse ano, Paxton não pensou nele. Encontrava-se totalmente absorta pelas conferências de paz em Paris e por todas as informações que pudesse obter de fontes muito elevadas, algumas delas em Washington.

Nesse ano, o ponto alto da época festiva foi um telefonema de Joey, de Great Neck, na véspera de Natal. O miúdo estava óptimo, e Paxton sentiu o coração mais quente quando ele lhe sussurrou que tinha saudades. Ela era a sua aliada especial, uma amiga especial, o anjo-da-guarda que fora enviado pelo pai, que mal conhecia, para o amar e tomar conta dele.

Por fim, a 8 de janeiro de 1973, Kissinger e Le Duc Tho reuniram-se em Paris, no dia anterior ao sexagésimo aniversário de Nixon. Exactamente uma semana depois, constou que o embaixador Ellsworth Bunker, no Saigão, informara o presidente Thieu de que, se ele não assinasse de imediato o acordo de paz, não receberia mais ajuda dos EUA.

Como resultado, o cessar-fogo iniciou-se menos de duas semanas depois, a 27 de janeiro, cinco dias depois da morte de Lyndon Johnson. Nixon exigiu que todos os prisioneiros de guerra americanos fossem libertos. E prometeu retirar todas as forças americanas do Vietname no prazo de sessenta dias, em Março.

Paxton escutou as notícias em Paris, incrédula e rezando intimamente para que talvez, talvez quando os prisioneiros fossem libertos, alguém soubesse alguma coisa sobre Tony. Quanto mais não fosse, que lhe permitissem descansar em paz. Era terrível aquela ignorância em que vivia. Mal conseguia aguentar, depois de quase três anos de espera.

Acabara, igualmente, por se aperceber de que o facto de não saber e de nunca abandonar a esperança era excessivamente duro para Joey. O miúdo ansiava por um pai que não estava presente e, com toda a probabilidade, nunca estaria; em vez de se adaptar ao que tinha, por mais falhas que este pudesse ter, o que Paxton sabia agora ser a realidade, embora fosse irmão de Tony.

Suspeitava de que albergava ressentimentos contra o miúdo por ele próprio se sentir culpado e também suspeitava de que recebera menos do que pretendia ao prender-se a Mrs. Campobello e agora estava consciente disso.

A 5 de Fevereiro de 1973, foi anunciado que 57 597 homens tinham morrido no Vietname, e esse mero pensamento despedaçava-lhe o coração e levava-a a pensar em Peter, Bill e Tony. Por vezes, sentia dificuldade em separar a mulher da jornalista. Ao ouvir dizer que os primeiros prisioneiros de guerra seriam libertos a 12 de Fevereiro, deitou-se na cama a chorar, imaginando o que deveria significar para eles e para as mulheres verem-se finalmente libertos da agonia, da perda, do terror.

Nessa altura estava em Paris, a trabalhar não só nos artigos para o Times, mas num livro que, segundo prometera a si própria há três anos, escreveria sobre o Vietname. A editora telefonou-lhe de Nova Iorque e pediu-lhe que se metesse num avião militar para Manila.

«Mas porquê? Porquê eu?», queria perguntar. Demorara três anos até a dor minorar e três anos a deixar de sonhar com crianças mutiladas vagueando pelas ruas de Saigão. E os prisioneiros regressavam a casa, cheios de todo aquele horror. Tinha mesmo de voltar lá? A longo prazo, não desejava regressar, não ansiava por aquele verde inacreditável, o cheiro a fumo ao amanhecer. E, agora, queriam que ela revivesse tudo aquilo. Voltasse a despertar recordações ao olhar para os rostos dos homens que tinham estado lá.

Os prisioneiros de guerra iriam de avião para Clark Field, nas Filipinas. E tinha dois dias para lá chegar.

- É uma ordem ou um pedido? - inquiriu num tom cansado, à meia-noite, hora de Paris. Telefonavam-lhe sempre, antes de saírem da redacção em Nova Iorque.

- Um pouco dos dois - respondeu a editora suavemente, e Paxton suspirou.

Tudo recomeçava. A dor. As preces. O desejo de que alguém o tivesse visto.

- De acordo - anuiu, depois de uma ligeira pausa. - Irei.

- Obrigada. Ficamos gratos.

No entanto, a editora sabia que ela não recusaria. Era-lhe impossível manter-se afastada. Nenhum deles conseguia. O Vietname penetrara-os até ao mais fundo, até à alma. Era uma dor constante, mesmo quando adormecia... uma tristeza... uma alegria... uma dependência.


 

Voou de Paris a Wiesbaden, na Alemanha Ocidental, onde apanhou um avião militar que a depositou em Manila, oito horas antes da chegada dos prisioneiros de guerra.

Enquanto permanecia sentada no meio de mulheres e crianças, a pensar e a tirar apontamentos, observava os rostos à sua volta, os filhos que mal os recordavam e sabia quanto tinha sido horrível para todos. Sabia demasiado bem e continuava a observar e a ouvir.

Há já algum tempo que começara a aceitar a perda de Tony. Independentemente do que sentia no coração, era impossível que ele ainda estivesse vivo, e na mente, embora não no coração, sabia-o. E dissera-o a Joey.

No entanto, todas aquelas mulheres falavam de como haviam sobrevivido de ano para ano, com fotografias, pedaços de notícias, relatos de dois homens que tinham sido libertos mais cedo, cinco que haviam escapado há dois anos. Sabiam que os seus homens estavam vivos, pelo menos de tempos a tempos e, tal como eles, tinham sobrevivido. O que agora restava deles era, obviamente, outra questão.

Paxton sentia o estômago às voltas enquanto aguardava com elas, desejando não lhes acrescer a dor, o nervosismo, nem aborrecê-las. Não dirigiu a palavra a nenhuma delas, limitando-se a ficar sentada à escuta.

Mais tarde, pediria entrevistas e falaria com os homens. No entanto, agora, apenas desejava manter-se por ali a observar e a escutar. Dizia intimamente que era imparcial, que estava ali como jornalista, que não tinha qualquer direito de interferir; porém, quando os homens desceram do avião nessa tarde, soluçou quase tão alto como as mulheres ao verem-nos.

Estavam magros, hesitantes, na sua maioria marcados pelo combate, com olhos congestionados e fungos no cabelo, os nós dos dedos inchados, do tamanho de cebolas, devido aos espancamentos, e pernas que pareciam vacilantes e instáveis.

À superfície pareciam bem, mas, se se olhasse para lá da mesma, estavam com um aspecto horrível. Amparavam-se entre si, mas tinham uma expressão orgulhosa; olharam em volta e deram vivas. Era uma vitória pela liberdade e independência, amor e sobrevivência, que tocava o coração de todos os que os olhavam.

Foi uma tarde emotiva, e Paxton passou quase tanto tempo a chorar como eles. Mas não lhe estava reservado alívio, nem aquele abraço por que haviam esperado sete anos. Como é que se sobrevivia numa altura daquelas? Como é que uma pessoa se agarrava à esperança? O que se dizia quando tudo terminava?

E se ela tivesse ficado prisioneira durante uma das missões em que participara com Ralph? Algumas vezes estivera próximo e, sabia-o. E se tivesse ficado prisioneira dos vietcongues? Duvidava que pudesse ter sobrevivido e sentia-se maravilhada por aqueles homens o conseguirem.

No dia seguinte, deu início às entrevistas, falando-lhes após haverem sido interrogados, falando com as mulheres e, em alguns casos, com os filhos. Um repórter fotográfico juntou-se-lhe para tirar algumas fotografias e, quando estava a chegar ao fim, sentiu-se esgotada.

Em seguida, ao entrevistar um deles, apercebeu-se de que fora um rato de túnel em Cu Chi e tinha sido feito prisioneiro não muito antes de Tony ser considerado como desaparecido em combate.

Ao tentar agarrar na caneta, a mão tremia-lhe tanto que não conseguia escrever o que o homem estava a dizer. Mantivera-se prisioneiro durante três anos, o que lhe parecia muito tempo e a ela também, mas Tony desaparecera mais ou menos por essa altura, e Paxton ignorava se agora estava vivo ou morto.

- Eu... - A voz tremia-lhe tanto como as mãos. - Gostava de lhe perguntar algo em particular. - O homem pareceu subitamente assustado, como se ela fosse fazer-lhe qualquer pergunta horrível e capaz de o desgraçar a ele ou à família para sempre.

Alguma vez conheceu um primeiro-sargento chamado Tony Campobello, quando estava em Cti Chi? - inquiriu.

O homem brindou-a com um olhar estranho e esboçou um aceno afirmativo, interrogando-se sobre se se tratava de qualquer armadilha. Talvez Campobello fosse um agente do inimigo.

Porquê?

... porque o amava... Estava nessa altura em Saigão replicou numa voz tão baixa e trémula como a dele, inundada pelo reviver de um passado que lhe era excessivamente doloroso. - Ele foi dado como desaparecido em combate, logo após você ter sido feito prisioneiro... e há três anos que não existe um relatório concludente sobre ele... julguei... Interroguei-me...

Começou a chorar e odiou-se por isso. Aquelas pessoas já tinham sofrido demasiado sem o seu desgosto. No entanto, ele estendeu o braço e tocou-lhe na mão com os dedos retorcidos. Ela era agora sua irmã... sua amiga... E Paxton olhou-o através das lágrimas, ao ouvir a resposta.

- Tudo o que posso dizer-lhe é que há dois anos estava vivo. Levaram-no para uma das prisões onde estive. Ignoro como se chamava e eu estava muito doente quando me puseram lá - acrescentou num sussurro, sem que ninguém à volta os escutasse.

- Sabe onde era? - perguntou no mesmo tom.

- Não... Mas ele estava lá. Conheci-o em Cu Chi... Não estava lá há muito tempo, quando fui apanhado pelos vietcongues... Ele era de força... Ainda estava vivo quando o apanharam. É tudo o que sei. Devia perguntar ao Jordan. Também estava lá e julgo que o conhecia.

Porém, quando conseguiu falar com Jordan, três dias depois, ele tinha más notícias. Tony era um dos três homens que tinha escapado e Jordan tinha a certeza de que os três haviam sido mortos. Tinham corrido breves rumores de que apenas dois corpos tinham sido recuperados, mas não sabia muito bem e garantiu-lhe que ninguém poderia ter escapado aos cães deles, às armas, às minas armadilhadas. Decerto teria sido morto. E, nos últimos dois anos, os seus caminhos nunca se haviam cruzado novamente, nem sequer ouvira o nome dele. Garantia-lhe que Tony estava morto. Tinha de estar. Enquanto lhe contava tudo aquilo, chorava e Paxton também.

Viveu uma semana terrível, uma época brutal em que se viu obrigada a encarar a dor e a morte, a esperança e a tristeza dos seus relatos de brutalidade às mãos dos Norte-Vietnamitas. Parecia um caminho infindável, e as mulheres deles eram muito corajosas.

Quando tudo chegou ao fim e regressou a França, sentia-se como se estivesse estado na prisão com eles. Fora a reportagem mais cansativa que fizera na sua vida e jurou que, se voltassem a encarregá-la de uma missão idêntica, jamais o faria.

No entanto, a peça que escreveu como resultado de todo aquele trabalho foi, inegavelmente, brilhante e granjeou-lhe o elogio dos superiores. As pessoas começaram a afirmar que, um dia, Paxton ganharia o Pulitzer. Ralph costumava atazaná-la com isto, mas há anos atrás, quando ela era jovem e verde e Tony também. Agora, tinha as dolorosas respostas sobre ele. Não podia fugir-lhes.

E a 1 de Março apanhou o avião para Nova Iorque, a fim de visitar o filho dele e passar-lhe as informações dos dois prisioneiros de guerra: do primeiro que o vira, durante um curto espaço de tempo, há dois anos, e do segundo que sabia da sua fuga e tinha a certeza de que fora morto pelos vietcongues, ao apanharem-no. E sobre tudo o que ouvira na Base da Força Aérea de Clark e agora lhe surgia como uma certeza.

Comunicou tudo isto a Joey o mais suavemente que conseguiu, antes de irem almoçar. Foram dar um longo passeio por Central Park e, por fim, sentou-se com ele num banco e contou-lhe. O miúdo tinha, agora, onze anos, a mesma idade do que ela quando o pai morrera. Era um rapaz inteligente, e Paxton sabia que iria aguentar.

- Lamento, Joey - replicou, ao mesmo tempo que os olhos voltavam a encher-se-lhe de lágrimas. - Sempre acreditei que, se não o tivessem morto nesse dia, ele conseguiria aguentar. Era tão duro, tão forte, tão esperto... tão bom...

No entanto, agora desaparecera e os dois tinham de enfrentar a realidade. Sem pronunciar nem mais uma palavra, envolveu-o nos braços, apertou-o de encontro ao corpo, e os dois choraram.

- Agora, acreditas? - perguntou-lhe com uma expressão triste, e ela esboçou um aceno afirmativo. Tanto para bem dele como para seu próprio bem. Aos vinte e sete anos, tinha amado aquele homem durante tanto tempo que era duro abdicar da esperança, mas sabia que tinha de fazê-lo.

- Sim, agora acredito, Joey. Tem de ser assim. Ele morreu. - Assemelhava-se a perdê-lo de novo, quando ouviu as palavras do homem que sobrevivera em Hanói.

- E então? - inquiriu o miúdo tristemente, agarrando-lhe na mão.

- Não sei... - Sentia-se outra vez perdida. Quase tão perdida como três anos antes. As outras mulheres tinham de novo os maridos em casa e ela não. - Recordamo-lo... pensamos nele e sorrimos, nas grandes coisas, nas pequenas coisas... Amamo-lo.

- E tu? - Joey sempre se havia questionado sobre ela e achava que tinha idade bastante para fazer a pergunta. Sabia que estivera à espera do seu pai, mas agora? O que faria? O mesmo que sempre fizera. Na mente de Paxton, tudo chegara ao fim. - Achas que vais casar com outra pessoa? - insistiu com um franzir de cenho preocupado. Talvez com alguém que a impedisse de o ver.

Contudo, Paxton leu-lhe o pensamento e abraçou-o com mais força.

- Não, não vou. Excepto se estiveres disposto a crescer rapidamente. Posso esperar, sabes?

- O que vais fazer? Vais continuar em Paris?

Joey sentia saudades quando ela estava lá. Havia algo de muito especial entre eles. Era um pouco do que ela partilhara com o pai; porém, dado não ter tido filhos seus, era diferente. E Paxton tinha boas notícias.

_ Tudo indica que voltarei a Nova Iorque muito em breve, para trabalhar para o Times aqui. Provavelmente no fim de Março, após a retirada das últimas tropas. Não falta muito.

O miúdo pareceu satisfeito. já que não podia ter o pai, pelo menos tinha-a a ela.

- Talvez a tua mãe nos deixe passar um fim-de-semana juntos em qualquer lado, quando eu voltar. Achas que sim?

- Claro - respondeu, disposto a zelar por isso, desse lá por onde desse.

E ambos estavam mais calmos quando foram almoçar. mas tristes. Tinham, finalmente, começado a libertar-se de Tony.


 

As últimas tropas americanas saíram do Vietname a 29 de Março de 1973 e, três anos mais tarde, a 1 de Abril, os últimos prisioneiros de guerra americanos foram libertados em Hanói.

No dia anterior, Paxton meteu-se num avião para Nova Iorque, após ter desistido do seu apartamento em Paris. Decidiu ficar no Algonquin até encontrar apartamento e, ao chegar ao jornal no dia seguinte, não conseguiu acreditar quando lhe pediram que se deslocasse a São Francisco, a fim de entrevistar os prisioneiros de guerra, no Presídio.

E respondeu que, muito pura e simplesmente, não iria. Tinham de mandar outra pessoa. Acabara de regressar, sentia-se cansada e tinha de procurar apartamento. Tudo argumentos pouco sólidos, e tanto ela como a editora o sabiam.

Quando a pressionaram, virou-se para a editora e respondeu que não lhe interessava que represálias pudessem exercer, mas não iria, pois era excessivamente doloroso.

Deixaram-na em paz todo esse dia e, às seis da tarde, o, editor chefe telefonou e suplicou-lhe que aceitasse. Por fim, cansada, exausta e irritada, acabou por ceder.

Viajou no dia seguinte, a tempo de apanhar o avião que chegou à Base da Força Aérea de Travis. Enquanto se detinha a observar o mesmo cenário que se lhe deparara em Manila há seis semanas, sabia exactamente como iria ser doloroso.

No entanto, desta vez sabia, pelo menos, o que a esperava e preparou-se para o que iria ouvir das mulheres, dos homens e até mesmo das crianças. Durante os dias seguintes, foi tão mau quanto esperava e ainda mais. O pior aconteceu, porém, quando um dos homens mencionou três colegas que tinham fugido e a história tinha um toque familiar.

Uma parte dela não queria saber, e a outra indicava-lhe o que tinha a fazer. Começou a fazer-lhe as mesmas perguntas que dirigira aos outros homens, em Clark, mas, desta vez, as respostas foram diferentes. Sim, tinha a certeza de que três homens haviam escapado. E dois outros tinham conseguido uma fuga com sucesso antes disso.

Achava que todos os outros, que haviam tentado, tinham sido mortos, um grupo de sete, de uma vez, e de quatro de outra. No entanto, alguns haviam conseguido e, dos três a que se referiu, um fora bem sucedido. Dois foram mortos, mas um deles nunca regressara.

- Quem era? - inquiriu com um nó na garganta, desejando nunca ter vindo, desejando não recomeçar a acalentar esperanças. Estava disposta a deixá-lo repousar, porque não a deixavam? - Sabe quem ele era?

- Não tenho a certeza.

Rebuscou na memória, que não era o que fora anteriormente. Tinham-no exposto a tudo. Choques eléctricos, tortura, perdera os dois polegares e uma perna quase gangrenaram. Como havia de saber quem escapara e vivera, raios? Como podia fazer-lhe isto? No entanto, era o que estava a acontecer, e ela susteve a respiração, esperando a resposta.

- Sei que era da base de Cti Chi... um rato de túnel... - prosseguiu. - ... Mas não estou certo do nome. Talvez me lembre se o ouvir - desculpou-se e ela sentiu-se culpada por incitá-lo, mas não deixou de o fazer.

- Tony Campobello? - sussurrou.

- Exacto! - exclamou, fitando-a. - É ele! - Parecia boquiaberto, surpreendido por ela saber o nome. - Escapou. Oh... não sei... talvez há dezoito meses... dois anos, não estou certo. E sei que ele conseguiu.

- Como sabe? - inquiriu Paxton, sentindo-se desfalecer ao ouvi-lo falar.

- Não trouxeram o corpo de volta e... - Parecia levemente atrapalhado. - Um dos guardas contou-me.

- Não podia estar a mentir? - retorquiu.

Agora, quase desejava que ele estivesse morto, não queria ser novamente torturada com a esperança, mas era impossível esquecer o que aquele homem dizia. Não podia ignorá-lo.

- Não me parece. Detestavam admitir quando alguém escapava e, sempre que o diziam, era provavelmente verdade. E torturaram um dos outros, para ensinar uma lição a toda a gente.

- Faz ideia de para onde pode ter ido?

- Lamento, mas não. Sul, suponho, se pudesse... ou talvez esteja escondido, algures, no interior. Como rato de túnel, era provavelmente bastante astuto. Ainda podia estar vivo...

Podia... e então? O que ia dizer a Joey? Que o pai «podia» estar vivo, algures, no interior? Ou que também podia estar morto num túnel, numa trincheira, em qualquer buraco ou num tronco de árvore?

Agradeceu ao indivíduo, sentindo-se atordoada. Quando acabou as entrevistas, apanhou o avião de volta a Nova Iorque, de São Francisco.

Passou os três dias seguintes fechada no quarto de hotel, sem falar com ninguém. Nada havia que pudesse fazer ou dizer. Precisava de pensar. Tinha de analisar o que eles haviam declarado. Leu os apontamentos repetidas vezes, mas nada podia fazer. E na segunda-feira tomara uma decisão.

Foi falar com a editora, e esta começou por achá-la louca. Mas, decorrido algum tempo, Paxton tinha-a convencido. Já lá estivera antes e conhecia o país. Haveria outros também, agora que os militares tinham saído. jornalistas, pessoal médico, alguns industriais estrangeiros, loucos, oportunistas. Todo o tipo de pessoas. E não existia qualquer dúvida na sua mente. Tinha de voltar e ficar até obter as respostas, independentemente do tempo que levasse ou do que lhe custasse.

Por fim, concordaram. Não tinham alternativa. A alternativa era perderem Paxton ou deixarem-na partir com a sua bênção. Portanto, concederam-lhe permissão para tudo o que desejasse.

Nesse fim-de-semana, foi dar um longo, longo passeio com Joey. Comunicou-lhe que ia regressar ao Vietname para descobrir o pai ou os seus restos, ou alguém que pudesse dar-lhe certezas sobre o que, de facto, acontecera. Falou-lhe do prisioneiro de guerra do Presídio e disse-lhe o que ele contara. O miúdo tinha o direito de saber e ela tinha de lhe contar.

- A minha mãe e o meu pai continuam a achar-te louca - replicou Joey com um sorriso, ele próprio interrogando-se a esse respeito, mas ciente de que gostava dela.

- É também o que pensas? ~ redarguiu, igualmente com um sorriso.

- Às vezes. Pouco me importa que sejas, Pax.

- Obrigada. Para te falar verdade, também acho que sou louca em voltar. Mas penso que só ficarei satisfeita quando tivermos as respostas. Por momentos, julguei que as tínhamos - redarguiu, pensando no que ouvira em Clark, da boca de Jordan. - Mas não é assim. Este homem estava tão seguro de que ele conseguiu escapar.

- Achas mesmo que ele pode estar vivo? Passaram três anos desde que foi dado como desaparecido em combate!

Desta vez, o próprio Joey parecia céptico.

- Deixei de saber, Joey.

O miúdo esboçou um aceno de cabeça preocupado.

- Quanto tempo pensas ficar por lá? - inquiriu.

- Não sei. Não quero prometer-te nada. Escrevo-te e telefono, se puder. Não sei como estão as ligações telefónicas, agora que os militares se foram embora. No entanto, farei o que puder. Só voltarei quando tiver as respostas e não antes.

Joey agarrou-lhe na mão e reteve-a com força na sua.

- Não fiques ferida, Pax... Não deixes que te aconteça nada, como aconteceu ao paizinho.

- Não acontecerá - prometeu, inclinando-se para o miúdo, beijando-lhe o cabelo e fazendo-lhe uma festa. - Não sou tão corajosa como ele.


 

O avião aterrou no aeroporto de Tan Son Nhut e, do ar, tudo parecia como dantes; porém ao voarem mais baixo, Paxton verificou que havia muito mais crateras do que há três anos.

Em Saigão, as coisas também tinham mudado. Viam-se mais crianças nas ruas, mais órfãos, mais mestiços meio americanos meio asiáticos, pedintes e abandonados pelos pais que haviam regressado a casa com os militares, deixando-os junto a mães que não os desejavam.

Havia mais drogas nas ruas, mais prostitutas, mais edifícios em ruínas. Mais caos. E o próprio Hotel Caravelle parecia mais decadente, embora se lembrassem dela e fossem muito simpáticos.

Desta vez, deram-lhe um outro quarto, o que veio mesmo a calhar. Não conseguiria suportar ocupar o mesmo quarto que antes partilhara com Tony.

A redacção da AP estava na mesma e reencontrou alguns rostos conhecidos; e, em alguns aspectos, parecia que nada tinha mudado, só que não era assim. Os soldados americanos tinham partido, e esse facto provocara uma modificação subtil.

Começou por restabelecer os seus contactos e, estranhamente, continuava a sentir-se em casa. No entanto, aquele lugar apresentava-se pleno de recordações e passara tempo de mais no Ocidente.

Era frequente ficar acordada durante a noite, a pensar em Joey. Talvez também tudo fosse diferente agora, por estar mais velha. Aos vinte e sete anos, não tinha tanta ânsia de arriscar a vida como há cinco anos atrás. Também estava diferente nesse aspecto.

E o pensamento recuava até Ralph e às missões em que tinham participado. De vez em quando, ia até aos arredores, sozinha, em carros alugados, com um motorista, ou um repórter fotográfico que requisitava na AP e, onde quer que fosse, em todas as cidades, em todos os baldios, em todas as ruínas, perguntava por Tony.

Ninguém o tinha visto. Sentia, contudo, que, se interrogasse bastantes pessoas durante bastante tempo, alguém saberia eventualmente notícias dele, caso estivesse vivo. Talvez tivesse medo de se expor, talvez estivesse demasiado aleijado, mutilado ou ferido e, nesse caso, ela levá-lo-ia para casa a fim de o curar... Se ele estivesse vivo--- o que se mantinha na incerteza.

Ao começar a inteirar-se dos prejuízos causados pelas tropas do Norte e os bombardeamentos dos Americanos antes de terem partido, percebeu como teria sido difícil sobreviver e fugir, sem dar nas vistas, para qualquer lado.

Até mesmo saber que ele estava morto seria um alívio. Algo. Um pedaço de tecido, um osso, cabelos... Qualquer coisa... que tivesse, outrora, pertencido a Tony.

Em Abril, Graham Martin chegou a Saigão, a fim de substituir Ellsworth Bunker como embaixador. E, em junho, o caso Watergate explodiu nos Estados Unidos, para grande fascínio de Paxton.

Nesses dias, a política parecia complicar-se por todo o lado, e ela aplicava-se na leitura de todos os telexes em Saigão, enquanto continuava a escrever artigos e a procurar Tony.

Em julho, o Senado realizou sessões sobre os bombardeamentos no Camboja e que pararam em Agosto. Oito dias depois, Nixon nomeou Kissinger como secretário de Estado em substituição de Rogers. Nesse Verão, o ambiente ficou mais calmo no Vietname. Chovia constantemente, e Paxton continuava a percorrer de carro toda a região, mostrando fotografias dele e perguntando se alguém o vira, acabando por ficar de cama com uma pneumonia.

Em Setembro, melhorou e recomeçou a busca. E relatava tudo nas cartas que escrevia, semanalmente, a Joey. Tudo começava a parecer-lhe para lá da própria loucura. Só que, no Vietname, sempre fora assim.

Continuava a cruzar-se nas ruas com crianças que eram meio americanas e tinham sido abandonadas; dava-lhes sempre todo o dinheiro e comida que podia, mas para eles a situação era desesperada. Este era, afinal, o destino que France temera quando se tinha envenenado e aos filhos, depois da morte de Ralph. Era difícil acreditar que ela tinha razão, mas quem podia sabê-lo? Quem sabia o que quer que fosse? Pessoalmente, Paxton não possuía respostas.

Em Outubro, Agnew demitiu-se como vice-presidente de Nixon e, em Novembro, o Congresso ignorou o veto de Nixon da lei destinada a limitar o direito do presidente quanto à guerra. Não queriam que a mesma situação voltasse a repetir-se. Os Americanos tinham perdido no Vietname, mas desejavam poder pensar duas vezes quanto a meter-se outra vez em algo idêntico. E o Congresso pretendia manter o controlo do presidente para sempre.

Paxton passou o Natal em Saigão, oito meses após a sua chegada ali. Dizia para si mesma que regressaria, mal descobrisse algo de concreto, ou um ano depois de haver vindo, se nessa altura continuasse sem resposta.

Porém, um dia antes de se completar um ano, alguém reconheceu a fotografia de Tony, e o processo reactivou-se. Tratava-se de uma velha camponesa do Norte. Afirmou que o tinham encontrado num bosque e dado comida, após o que fora levado por soldados.

Portanto, havia sido feito novamente prisioneiro, mas levado para onde e por quem e o que acontecera depois? Poupou este relato a Joey. Não valia a pena fazê-lo. Continuou, todavia, a sua busca.

Três meses mais tarde, em Agosto de 1974, Nixon demitiu-se, Ford tomou-se presidente, o Times pediu-lhe que regressasse, e ela recusou. Estava a escrever excelentes artigos do Vietname e, aparentemente, não se interessava por mais nenhum assunto.

Nesse ano, voltou a passar o Natal em Saigão, o segundo desde que voltara. Nessa altura, o irmão deixara, completamente, de dar notícias. E Ed Wilson sentia-se intrigado sempre que lia os seus artigos assinados. Os artigos eram brilhantes, mas Paxton parecia obcecada pelo país até onde viajara quando era uma jovenzinha e que a ferira... e a muitos outros tão gravemente.

O próprio Joey começava, então, a interrogar-se. Talvez ela gostasse do país e fosse incapaz de enfrentar o facto de que o seu pai estava morto, talvez fosse mesmo mais do que um pouco louca, como os seus pais tinham sugerido. Há quase dois anos que não a via, mas, curiosamente, segundo confessava por vezes em segredo à avó, ainda sentia a falta dela. Perguntava a si próprio se ela alguma vez voltaria, mas deixara de ter certezas.

O rapazinho tinha, agora, quase treze anos; há quase cinco anos que o pai desaparecera e há dez que se afastara dele. Era um caminho longo de mais para que alguém transportasse uma tocha. Mas, aparentemente, Paxton não queria desistir, mesmo que acabasse por morrer.

E, de vez em quando, alguém reconhecia uma das fotografias que mostrava. Mas nunca sabia realmente se falavam verdade, se mentiam, ou queriam uma gorjeta, uma recompensa, ou meramente agradar-lhe. Era impossível adivinhar.

De uma coisa estava, porém, certa e continuava a escrever sobre o assunto no Times: o Vietname do Sul vivia sérios problemas. Escrevia sobre as promessas secretas dos Americanos quanto a tirarem um milhão de pessoas do Vietname do Sul, antes que caísse nas mãos dos comunistas, o que, obviamente, não tardaria a acontecer. E, nessa altura, sabia que teria de regressar e deixar Tony ali, quer estivesse ou não vivo. Nessa altura, teria de regressar e desistir. Entretanto, porém, não o faria.

Em Fevereiro de 1975, a situação agravou-se e, em Março, mais ainda. Os refugiados do Norte estavam a invadir Saigão e, mais a norte, mais de um milhão de refugiados fugiu aos comunistas e entrou em Da Nang, quando Hue caiu e os foguetões norte-vietnamitas devassavam a cidade e os civis.

A população chorava, fugia, caía por terra, sangrava. As crianças perdiam-se e eram esmagadas pela multidão. Os soldados americanos receberam ordem de saída e Paxton com eles. Os telexes choviam na AP. Informavam que todos tinham de ir embora, desde que Hue fora derrubado. Três dias depois, as pessoas congestionavam-se em aeroportos, cais e praias, tentando sair do Vietname por qualquer meio possível.

Nos últimos dias, Paxton esqueceu a sua procura inútil e tornou-se, uma vez mais, correspondente.

No domingo de Páscoa, Da Nang caiu em poder dos comunistas e, em Abril, os americanos começaram a fazer as malas para se ir embora e Paxton com eles. Chegara a hora da partida. Era somente uma questão de dias, antes que tudo terminasse. O país que outrora fora tão encantador e lhes custara tanto estava prestes a cair e, no íntimo, todos o sabiam.

Os americanos que ainda se mantinham em Saigão estavam ansiosos por sair antes da chegada dos comunistas, e os vietnamitas que haviam estado intimamente ligados aos americanos receavam ser vítimas de represálias.

Cinquenta mil americanos e vietnamitas conseguiram fugir durante Abril. No entanto, mais de um milhão de vietnamitas recebera a promessa de poder partir para os EUA e, nas últimas semanas de Abril, tornou-se óbvio que tal era impossível e muito poucos o- conseguiriam.

Paxton recebeu novo aviso do Times de que devia sair, mas depois de contactar o embaixador, ele prometeu-lhe um lugar no último avião que saísse, independentemente do que pudesse acontecer. Com uma mala feita, pronta a partir, continuou a fazer a cobertura da queda de Saigão com a sua máquina fotográfica. Nessa altura, abandonara completamente a busca de Tony. Aceitara, finalmente, o destino. Ele estava morto, e as pessoas do país que afirmavam tê-lo visto haviam mentido. Tinham dito o que achavam que ela gostaria de ouvir. E, quando os últimos dias de Saigão chegaram, sabia que ele tinha de estar morto. Sentia-se tão esgotada que já nem conseguia pensar nele. Apenas queria regressar aos Estados Unidos, uma cama de lavado, uma cidade segura e visitar Joey.

A 25 de Abril, o presidente Thieu partiu para Taiwan. E, a 28 de Abril, as tropas comunistas defrontaram o Exército sul-vietnamita em Newport Bridge, às portas de Saigão. Nessa altura, Paxton encontrava-se na embaixada, à espera dos últimos boletins. Se tivesse de partir, queria ser uma das últimas a abandonar Saigão.

Sob uma chuva fina, a 29 de Abril, os adidos da embaixada declararam solenemente que a Opção IV ia entrar em acção. Tratava-se da maior evacuação por helicóptero que constava da história.

O milhão de vietnamitas a quem fora prometido asilo seriam abandonados e só iriam os que os americanos conseguissem fazer sair de helicóptero, mas não seriam muitos. Durante todo o dia, Paxton assistiu ao início da operação, enquanto helicópteros transportavam refugiados e americanos até porta-aviões que os aguardavam ao largo, e os comunistas continuavam a atingir o aeroporto de Saigão.

Ao longo de dezoito horas, a 29 de Abril, segundo Paxton mais tarde relatou, setenta helicópteros americanos transportaram pessoas entre a embaixada e os porta-aviões, que as aguardavam. Mil americanos e seis mil vietnamitas saíram. Não o milhão que havia recebido esta promessa.

Em redor da cidade, havia autocarros para levar as pessoas até aos terrenos da embaixada, mas gerou-se um tal pânico que os autocarros foram virados, nunca chegaram a parte alguma, e as pessoas começaram a correr pelas ruas, aos gritos, histéricas, e viam-se, por todo o lado, crianças perdidas e abandonadas.

Paxton tentou sair ao meio-dia, a fim de ajudar algumas pessoas nas ruas. Foi-lhe impossível chegar onde quer que fosse. Não havia hipótese de se movimentar no meio da multidão frenética.

Há horas que os portões da embaixada tinham sido forçados e a multidão invadira os terrenos da embaixada, tentando abrir caminho à força até aos helicópteros. Eram as pessoas da cidade, do campo, das montanhas, alguns americanos, na maioria, vietnamitas, desesperados por escapar aos comunistas, antes que estes se apoderassem do poder.

Ela sabia que tinha de partir em breve e, ao recuar através dos terrenos da embaixada, sentiu os braços e o corpo presos quando tentou percorrer o caminho por onde viera e até onde sabia que o embaixador estava à espera. Um braço puxou-a, subitamente, e era um homem, um velho vietnamita que a arrastava com ele enquanto ia abrindo caminho. Ao tentar libertar-se dele, verificou que o homem estava quase inconsciente.

Cheirava mal, tinha um aspecto horrível, estava coberto de lama e, quando Paxton lutou para se libertar, ele caiu-lhe de novo nos seus braços. E, em seguida ela viu... Era impossível... Não podia ser... Era um cruel gracejo do destino... Perdera, finalmente, o juízo no meio da queda de Saigão.

- Não... - Não era. Ela apenas desejava que fosse.

O homem disse-lhe qualquer coisa em vietnamita ao mesmo tempo que se endireitava. Paxton estendeu, instintivamente, os braços e ele quase desfaleceu nos seus, mas, nessa altura, não lhe restou qualquer dúvida. Era Tony.

- Oh, meu Deus!...

As pessoas comprimiam-se à volta deles para subirem para os helicópteros e a maioria não ia conseguir.

- Como chegaste aqui? - perguntou, ainda confusa e boquiaberta, fitando-o e tentando certificar-se de que não tinha sonhado.

Ele voltou a pronunciar algo em vietnamita e, ao ouvi-la, também ele soube. Não sabia de quem se tratava, mas sabia que era americana e que agora estava a salvo, quando ela o conduziu até um dos edifícios.

- Primeiro-sargento Anthony Campobello, Base Cti Chi, Vietname - recitou, enquanto ela o arrastava fisicamente até ao sítio onde estavam a carregar os helicópteros.

Não podiam esperar mais. E ela tinha a sua história. Não ia ficar ali nem mais um minuto com ele. Tinha de o tirar dali, antes que alguém os detesse.

Ele tinha um golpe horrível no braço e, em seguida, fitou-a estranhamente, e as lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces, enquanto ela o levava, o arrastava na direcção dos helicópteros.

- Anda - gritou-lhe Paxton acima da confusão, ao mesmo tempo que alguém tentava colocar-lhe um bebé à força nos braços. No entanto, ela só o levaria a ele. Lutara demasiado e tempo de mais por aquele momento. Tinha-o procurado cinco anos, e o filho também o esperava.

- Anda, Tony!

Ele estava quase a desfalecer antes de chegarem ao helicóptero e tinham de subir uma escada estreita que Paxton não sabia se ia conseguir. Também não podia arrastá-lo, nem havia ninguém que a ajudasse.

- Raios... Levanta os pés... Anda, sobe... - gritava-lhe, chorando em simultâneo.

E também ele chorava de alívio. Levara dois meses a descer do seu esconderijo nos túneis que descobrira e usara até chegar aos arredores de Saigão e tinha conseguido. E ela estava ali sem que ele compreendesse como ou porque é que a encontrara. Mas já não interessava. O importante é que acontecera. E estavam juntos, mesmo que ele morresse agora.

- Este homem é um prisioneiro de guerra! - gritou a alguém que não a ouviu e, depois, um robusto par de braços içou-o, libertando-o da multidão e empurrando-o para dentro do helicóptero.

De súbito e em resultado de um enorme empurrão, ela viu-se atrás dele, e foram içados para a segurança e o mar livre. Estavam livres, enquanto o Vietname diminuía de tamanho atrás deles.

Quando partiram, ainda havia gente que gritava, gente que chorava, gente que suplicava. Ela não podia, contudo, ajudá-los mais. Escrevera sobre eles. Estivera ali durante sete anos. Fizera tudo o que estava ao seu alcance por eles. E fora demasiado. Custara-lhe demasiado. Tinham morrido demasiados. Mas não Tony.

Fitou-o com uma expressão incrédula, ao homem que tinha nos braços, ferido, cheio de marcas e cicatrizes, quase irreconhecível. No entanto, era ele e sorriu-lhe quando iniciaram a descida para o convés do porta-aviões e para a segurança.

- Onde estiveste, com mil raios? - inquiriu com um esgar no rosto coberto de sujidade.

Tinha vivido em túneis que construíra, descobrira e usara nos últimos dois anos e sobrevivera mediante estratagemas e horrores em que ela nem se atreveria a pensar. E agora, por puro milagre, por mera sorte ou pela mão de Deus, descobrira-a.

- Tenho andado à tua procura - respondeu meigamente, limpando-lhe a sujidade do rosto. Ele escondera-se num camião cheio de terra e sujidade, que se dirigia à cidade. - Tenho andado à tua procura, há muito, muito tempo... - E o Joey, também.

- Bem-vindos a casa - acolheu-os uma voz, ao mesmo tempo que alguém os ajudava a descer. - Bem-vindos a casa! - exclamavam as vozes, enquanto eram recebidos do helicóptero para a segurança e Tony chorava, abraçado a ela, com a bandeira sobre as suas cabeças. Por fim, sussurrou:

- Amo-te, Delta Delta...

Às onze da manhã do dia seguinte, a 30 de Abril de 1975, Saigão caiu e os Sul-Vietnamitas renderam-se ao Norte. A batalha que os Americanos tinham travado durante tanto tempo chegara ao fim.

Paxton e Tony regressaram a bordo do navio americano Blue Ridge, até ao seu país, do filho e do mundo que haviam perdido durante tanto tempo. Um mundo que quase tinham esquecido. Mas agora o Vietname desaparecera. Era uma memória distante... um pesadelo... um sonho. Para eles e para os demais, acabara finalmente.

 

                                                                                            Danielle Stel

 

 

                      

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