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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Arlequim / Morris West
Arlequim / Morris West

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Arlequim

 

     George Arlequim e eu somos amigos há mais de vinte anos. Contudo, devo confessar que ele é o único homem que realmente sempre invejei. Houve um tempo em que cheguei a pensar que o odiava, sendo curado de tal sentimento por sua virtude e espírito sadio.

     Ele é tudo o que eu não sou. Sou alto, corpulento, desajeitado, quase como partes reunidas ao acaso, o desespero dos alfaiates. Ele é esbelto, elegante, o cavaleiro clássico, um jogador de tênis que dá gosto apreciar. Eu sou alfabetizado o suficiente em uma única língua. Arlequim é poliglota, excepcional em meia dúzia de idiomas. E mais do que isso: ele usa uma cultura prodigiosa, com o encanto espontâneo de um cortesão da Renascença. Eu sou seu antípoda, impaciente, impulsivo, predisposto a ser rigoroso ou simplista em meus julgamentos. Arlequim é um europeu, frio, conciliatório, sutil, paciente até mesmo com os imbecis.

     Ele nasceu para o dinheiro. Seu avô fundou a Arlequim et Cie., Merchant Bankers, com sede em Genebra. O pai fez alianças internacionais e abriu filiais em Paris, Londres e Nova York. Arlequim ampliou a área de atuação e depois herdou a presidência e a maior parte das ações com direito a voto. A tradição da casa era-lhe sagrada. O caráter do cliente era mais importante que os outros fatores de garantia. O risco, uma vez assumido, não podia ser revogado. Jamais se esquivava ao cumprimento de um contrato por expedientes legais. Um simples aperto de mãos encerrava as mesmas obrigações de um documento formal. E se o cliente ou sua família atravessavam horas difíceis, o lema do banco provava ser verdadeiro: Amicus certus in re incerta (Um amigo certo nas coisas incertas).

     Eu, por outro lado, comecei como um aventureiro, pura e simplesmente. Abri meu caminho por entre os mercados financeiros, ganhei muito dinheiro e perdi-o. Nos anos difíceis que se seguiram, senti-me humilhado pela preocupação que Arlequim demonstrava por mim, incrédulo ante as somas consideráveis que ele arriscava a uma simples palavra minha. Quando recuperei a fortuna, entreguei-lhe o dinheiro para investir, enquanto fazia uma cura prolongada da úlcera péptica que também adquirira e aprendia algumas das artes do prazer.

     Casei-me cedo e não deu certo. Arlequim divertiu-se até os trinta e cinco anos e então casou-se de repente com Juliette Gerard, a quem ele conheceu em meu iate, quando eu ainda estava tentando persuadi-la a casar-se comigo. Depois disso, não nos encontramos durante três anos. Permanecemos banqueiro e cliente, mas reticentes e constrangidos, até que o filho deles nasceu e deram-lhe o meu nome, Paul Desmond, convidando-me para padrinho. No mesmo dia Arlequim ofereceu-me um lugar no conselho diretor do banco. Num impulso emocional, aceitei imediatamente e tornei-me o embaixador itinerante de Arlequim et Cie. e o padrinho apaixonado de uma criaturinha loura, parecida demais com a mãe para servir-me de consolo.

     Preciso deixar claro: éramos amigos de coração, mas eu continuava a ter ciúmes de Arlequim. Ele era por demais o árbitro da elegância, mas também judicioso o suficiente para que até os homens experientes do mundo das altas finanças lhe prestassem um respeito como o que se presta a um rabino. Ele era afortunado demais, possuía virtudes demais. Suponho que se possa dizer que ele era também, obviamente, feliz. Dirigia automóveis, velejava, montava purossangues, colecionava quadros e porcelanas. Era cortejado por lindas mulheres e adorado por sua esposa. Ele era tão impressionante em seus atributos que intimidava as pessoas de menor importância. Em momentos de desânimo e abatimento, eu me perguntava por que ele se importava com um tipo confuso e difícil como eu. Sentia-me um bobo da corte, circulando em torno do mais requintado dos príncipes.

     Não escrevo isso para depreciá-lo. Deus me livre! Devo deixar claro que o bobo da corte adorava o príncipe e, para mal de seus pecados, continuava apaixonado pela princesa. E o que eu quero mostrar aqui é o quão alto Arlequim estava, quão visível e vulnerável, quão alheio aos perigos de ser ele próprio. Mesmo eu não via isso então com muita nitidez. Juliette podia apenas adivinhar. Mas, sendo mulher, ela encarava o fato por outro ângulo.

     — ... sinto-me tão inútil, Paul! Não posso dar a ele nada senão a mim mesma na cama, e outro filho, quando ele o desejar. Há pelo menos vinte mulheres que poderiam tomar o meu lugar amanhã mesmo. Não importa que George não o veja, pois eu vejo. Não lhe sou necessária e um dia ele vai descobrir...

     Não sou nenhum lago, se bem que algumas vezes tenha desejado sê-lo. Disse-lhe a única verdade que conhecia.

     — Está casada com um homem venturoso, Julie. Seja feliz com ele. Para George, tudo é alegria, sendo que você é a maior alegria de todas. Aceite isso e mande o futuro para o inferno.

     Arlequim chegou então, exuberante e feliz, com uma nova tela debaixo do braço e um novo cliente em seu banco, com planos para um fim de semana em Gstaad, onde a neve estaria profunda e o tempo prometia ser bom e ensolarado para o prazer do beautiful people.

     Pouco depois chegou o mês de abril e Arlequim e eu fomos para Pequim, porque os chineses estavam querendo fazer negócios com a Europa, e Arlequim queria uma fatia para seu banco e para seus clientes. Fiquei imaginando como ele, o mandarim dos mandarins, iria reagir diante dos padrões espartanos da República Popular. Mas, como sempre, subestimei-o. Ele imediatamente se sentiu em casa, inteiramente à vontade. Falava fluentemente, era hábil na caligrafia. Sua cortesia era impecável, a paciência, ilimitada. Em um mês já mantinha os contatos mais tranqüilos com os altos escalões da hierarquia, sendo respeitado igualmente pelos políticos e pelos tecnocratas. Comprou muitas antigüidades, peças de jade, tapetes. Discutiu projetos de fabricação de antibióticos, drogas sintéticas e instrumentos de precisão. Fez amigos entre os estudiosos e os arqueólogos. Aprendeu as sutilezas do humor oriental, mas jamais perdeu a dignidade, nem a alegria. Foi um desempenho impecável, e nossos anfitriões não fizeram segredo de sua plena aprovação.

     Mas nem tudo foi encantamento e alegria. Arlequim ficou profundamente comovido com a experiência. As mesmas coisas que me deprimiram, a imensidão da terra, o vulto dos empreendimentos tribais, despertaram nele o poeta e o sonhador. Ele passava uma hora inteira contemplando extasiado os vultos épicos na paisagem: um barqueiro voltando para casa ao pôr-do-sol, as mulheres acionando um moinho para irrigar os arrozais. Fazia então um comentário apaixonado, mas um pouco incoerente.

     — ... Existe muito de insensatez em nossa existência, Paul...Vivemos por fantasias e fragmentos de realidade. Destruímos os princípios tribais e nos condenamos à solidão das cidades. Esforçamo-nos arduamente para conquistar coisas supérfluas e depois lançamo-nos a batalhas sangrentas para defender o de que não precisamos. Acumulamos dinheiro e depois depreciamos o que possuímos. Afastamo-nos do Deus de nossos pais para freqüentar as salas dos magos e dos charlatães...Sabe que algumas vezes eu sinto medo? Vivo num jardim murado, bastante agradável, com gramados e canteiros de flores. Mas, em pesadelos, me pergunto se não é esse o vale dos assassinos...

     Depois de Pequim, fomos a Hong Kong e Tóquio e em seguida ao Havaí e a Los Angeles, onde Arlequim caiu de súbito doente. O médico determinou-lhe que se internasse imediatamente num hospital, onde as radiografias revelaram uma infecção maciça em ambos os pulmões. A princípio os médicos suspeitaram de tuberculose. Mas quando os testes se mostraram negativos, eles iniciaram toda uma série de exames. Juliette veio de avião de Genebra e eu voltei para a Europa. Arlequim melhorou por alguns dias, mas logo teve uma recaída. Examinaram-no para ver se estava com febre de Queensland, psitacose e outras enfermidades mais exóticas. E um dia Juliette telefonou-me, com notícias inquietantes. Os médicos suspeitavam de que Arlequim estivesse com câncer linfático, recomendando uma biópsia. Arlequim recusara.

     — Mas por quê, Julie, por quê?

     — Ele diz que se ressente da idéia. Prefere esperar o que chama de veredicto da natureza. É um direito dele e não pretendo convencê-lo do contrário.

     — Ele está deprimido?

     — Por mais estranho que possa parecer, não. Está até bastante calmo. Diz que chegou a um acordo com a experiência.

     — E você, como está?

     — Estou terrivelmente preocupada. Mas ele precisa de mim, Paul. E pelo menos com isso estou satisfeita.

     — Continue pensando assim, menina. Dê um abraço nele por mim. Diga-lhe que o menino está indo muito bem e que ainda estaremos no negócio quando ele voltar para casa...

     Tal promessa eu podia fazer com bastante convicção. O que não podia era prometer livrar-me dos abutres que já estavam circulando sobre nós. Todos os dias alguns colegas prestimosos indagavam-me pelo telefone ou pelo telex a respeito da saúde de Arlequim. Falava-se em alterações de orientação política e na possibilidade de fusões no caso de morte ou incapacidade de Arlequim. Eu fui subitamente inundado de convites, para almoços, jantares, coquetéis, conferências particulares, em meia dúzia de capitais. Mais de um amigo há muito desaparecido surgiu de repente com uma informação útil sobre o mercado ou um lote de ações a preço reduzido. O fato mais significativo, porém, foi a intervenção pessoal de Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated. Seu telex de Nova York foi lacônico e objetivo:

     "Em Genebra amanhã. Solicito conferência particular às dez horas. Confirme, por favor. Yanko".

     É claro que confirmei. Arlequim et Cie. havia subscrito todas as iniciativas da Creative Systems Incorporated e suas empresas afiliadas. Nossa participação em seu esquema acionário equivalia a uma licença para imprimir dinheiro. Por recomendação deles, havíamos conquistado uma dúzia de contas da maior importância. Basil Yanko poderia pedir-me que dançasse um tango numa corda bamba e eu prontamente o atenderia.

     Não que eu gostasse dele. Muito pelo contrário. Até mesmo sua aparência me desagradava. Era um homem alto e esquelético, desengonçado, de pele cinzenta como a de um rato, a boca pequena e fina como um alçapão, olhos pretos e pequenos, nos quais não havia absolutamente o menor indício de humor. Era arrogante, autoritário, desprovido de quaisquer virtudes de convívio social. Mas, por outro lado, era universalmente reconhecido como o mais brilhante cérebro em tecnologia de computador. Começara como criador de sistemas difíceis para a Honeywell, mas logo fundara a Creative Systems Incorporated e passara a projetar programas para grandes instituições, como órgãos governamentais, corporações internacionais, bancos, empresas aéreas e até para a polícia. Suas companhias mantinham atividades em todos os países da Europa, América do Sul,

     e Austrália, Japão e Grã-Bretanha. Sua riqueza já se tornara legendária. Seus sistemas eram os fios que controlavam milhões de vidas-marionetes. Nós mesmos os utilizávamos. Basil Yanko, porém, fazia questão de deixar bem claro a todo mundo que eram os sistemas que nos usavam e não nós a eles. Mal começáramos a reunião quando ele jogou um envelope na minha frente.

     — Leia isto. É o relatório médico sobre George Arlequim.

     Fiquei furioso e demonstrei-lho.

     — Esse é um documento particular. Como diabo conseguiu obtê-lo?

     — Foi fácil. O hospital em que ele está internado é também um instituto de pesquisa, que aluga tempo de um de nossos computadores.

     — Mas isso é contra toda e qualquer ética!

     — Mesmo assim, leia. Indica duas possibilidades. Ou Arlequim está com câncer linfático ou com infecção de um vírus extremamente raro. Se ele por acaso se recuperar, terá uma convalescença prolongada e será obrigado a reduzir drasticamente suas atividades durante um longo período.

     — E daí?

     — Se ele morrer, os herdeiros naturais são a esposa e um filho ainda pequeno. A direção de Arlequim et Cie. será delegada aos atuais diretores e quaisquer talentos novos que eles possam descobrir. Não é muito fácil encontrar bons banqueiros. A conseqüência lógica é uma redução no valor das ações e nos lucros em potencial.

     — Essa é a sua lógica, Sr. Yanko.

     — Estou disposto a apostar que essa é a conseqüência inevitável. Se Arlequim morrer, quero comprar as ações dele. Cobrirei qualquer proposta que seja feita.

     — Esse é um problema que competirá aos executores testamentários.

     — Dos quais você é o principal.

     — Isso é novidade para mim.

     — Pode aceitar a informação como verdadeira.

     — E se Arlequim viver, como eu não tenho a menor dúvida de que acontecerá?

     — A mesma proposta continua de pé. Solicito que a transmita a ele, assim que estiver em condições de examiná-la.

     — Estou certo de que ele recusará.

     — Como alternativa, estou preparado para comprar as ações de seus sócios, muitos dos quais se mostram dispostos a vender.

     — Pelos estatutos de Arlequim et Cie., George Arlequim tem opção para comprá-las.

     — Eu sei. Ele pode estar disposto a renunciar à opção ou a vendê-la.

     — Duvido também que isso aconteça.

     — Está sendo muito positivo, Sr. Desmond. Deixe-me informar-lhe que se pode hoje computar, com uma precisão de setenta e cinco por cento, o comportamento futuro de pacientes não-psicóticos.

     — E Arlequim é um dos pacientes dos seus computadores?

     — Um dos mais importantes.

     — Ele ficará lisonjeado ao sabê-lo.

     — Não o superestime, Desmond. E também não me subestime. Eu geralmente consigo tudo o que desejo.

     — E por que está querendo Arlequim et Cie.?

     A boca pequena retorceu-se num arremedo de sorriso.

     — Sabe de onde vem o nome Arlequim? O trisavô dele era um truão que fazia o papel de Arlecchino na commedia dell'arte. Pode ter certeza de que é a pura verdade. Conheço a fundo a história da família. Houve uma transformação e tanto em quatro gerações. Mas, afinal, assim é o papel, tradicionalmente. Arlequim transforma o mundo com um golpe do seu porrete de palhaço, depois ri furtivamente de toda a aflição que provocou. Por falar nisso...

     Ele fez uma pausa e tirou da maleta uma pasta volumosa, acrescentando:

     — Vocês nos pagam para efetuarmos uma verificação de segurança em suas contas. Este é o relatório dos últimos seis meses. Os computadores mostraram algumas anomalias curiosas. Descobrirá que algumas estão a exigir ação imediata. Se precisar de mais algum esclarecimento ou ajuda, o meu pessoal está à sua disposição.

     Ele levantou-se. A mão que me estendeu era frouxa e fria como um peixe morto.

     — Obrigado por dispor do seu tempo. Por gentileza, apresente meus respeitos a Madame Arlequim e diga-lhe que espero uma recuperação rápida do seu marido. Bom dia, Sr. Desmond.

     Ao acompanhá-lo até o elevador, senti um tênue calafrio, como se um vento gelado tivesse passado sobre a minha tumba. Os primeiros banqueiros foram sacerdotes e o dinheiro ainda possui uma linguagem ritual. Assim, quando se diz a um banqueiro que existem anomalias nas contas que ele opera, é como apontar um osso em sua direção ou lançar uma praga mortal sobre sua cabeça. Na teoria, é claro, o computador deve proteger o banqueiro de tal desastre primitivo. O computador é um cérebro poderoso, que pode acumular séculos de conhecimento, efetuar milagres de matemática num piscar de olhos e fornecer respostas infalíveis às mais intrincadas equações. O computador seduz o homem a uma fé cega por ele e depois o denuncia à sua própria idiotice.

     Não podemos comprar o cérebro. Alugamos o seu tempo. Contratamos analistas de sistemas e lhes explicamos as nossas necessidades. Recorremos a programadores para fornecer ao cérebro os fatos e os números. Baseamos decisões de fundamental importância nas respostas que nos foram proporcionadas pelo computador. Mas, porque vivíamos atormentados pela possibilidade de os programadores cometerem erros ou serem subornados, utilizamos monitores para controlarem o cérebro em busca do menor indício de erro ou fraude. E assim acreditávamos, como homens religiosos o fariam, que o sistema era seguro e sagrado, à prova de tolos e escroques.

     Havia apenas um único problema: o cérebro eletrônico, os programadores e os monitores eram todos membros da mesma família, a Creative Systems Incorporated, que sonhava em ter-nos a todos sob o seu controle, ao comando do seu chefe, Basil Yanko. Quer gostássemos quer não, estávamos presos dentro de um círculo mágico, traçado por um mago do século XX. O relatório que estava em cima da minha mesa, esperando ser aberto, era um documento de magia, cheio de encantamentos e perigosos mistérios. Eu precisava reunir toda a minha coragem para abri-lo, precisava de silêncio e tranqüilidade para examiná-lo. Disse a Suzanne que não me passasse nenhum telefonema, tranquei a porta e comecei a ler o relatório. Duas horas depois eu enfrentava a brutal realidade: Arlequim et Cie. fora sangrada em quinze milhões de dólares. E quem a sangrara fora o próprio George Arlequim.

     Surgia-me agora uma questão das mais simples: como o rabino que falta à sinagoga e vai jogar golfe no sabá, acertando um buraco com uma só tacada, a quem eu poderia contar o fato? O réu — ou a vítima — estava a doze mil quilômetros de distância, internado num hospital, esperando que um homem de jaleco branco lhe dissesse se iria viver ou morrer. De qualquer forma, porém, eu precisava cobrir os quinze milhões antes que os auditores entrassem em ação. Mesmo que eu utilizasse todos os meus recursos, poderia cobrir cinco milhões, faltando ainda dez. A quem eu poderia explicar a necessidade? Quem poderia entrar com tanto dinheiro, em confiança? Há poucos heróis no mundo das altas finanças. Os banqueiros são sensíveis como anêmonas-do-mar. Basta encostar um dedo neles e se encolhem todos, tremendo com o ultraje, e de apreensão.

     Eu precisava também comprovar se o relatório era falso ou não. Mas em quem poderia confiar para isso? O pessoal de computadores também é fechado. Casam-se e promovem casamentos entre si, encontrando-se nos bailes do condado. Além do mais, a informação dos computadores é como sexo. Pode-se vendê-la dez vezes e ainda se continua a possuí-la. E quem pode sabê-lo ou com isso se importar, desde que não se negocie a mercadoria diante dos olhos de um guarda que está passando? Um de nossos clientes gastou vinte milhões de dólares em pesquisas de petróleo em plataforma continental, apenas para descobrir que seus rivais já estavam perfurando no local antes mesmo que os últimos dados fossem gravados em fita.

     Era uma hora da tarde. À uma e meia eu deveria almoçar e falar no Clube Comercial de Genebra. Eu sabia que, se deixasse escapar a menor palavra de dúvida ou desânimo, ela daria a volta ao mundo antes que a Bolsa de Nova York abrisse. Tranquei o relatório em minha maleta, lavei-me no banheiro de Arlequim, destranquei a porta e chamei Suzanne. Já que eu tinha de explicar-lhe alguma coisa, o melhor era fazê-lo rapidamente.

     Suzanne é a secretária de Arlequim. Está com quarenta anos de idade, mais um ou menos um, e ama Arlequim desde o dia em que entrou em seu escritório, quinze anos atrás. Está ficando um pouco grisalha, mas ainda é uma mulher bonita, com um bom corpo e uma mente brilhante, tendo uma atitude muito prática em relação ao sexo e à amizade. Por algum tempo fomos amantes por descuido, hoje somos amigos por opção. Eu poderia confiar-lhe minha vida, mas não tinha o direito de fazer o mesmo com a de Arlequim. Por isso, contei-lhe apenas metade da verdade. E a medida do seu valor é que ela aceitou sem fazer nenhuma pergunta, nem demonstrar o menor ressentimento.

     — Suzy, estamos metidos numa enrascada, das grandes.

     — Basil Yanko?

     — Exatamente.

     — Detesto esse homem.

     — Eu também. Mas não tenho outro jeito senão tratar com ele. Tenho de agir depressa e ir para muito longe. Ninguém, à exceção de você, deve saber onde estou, nem a quem fui procurar. Certo?

     — Mais do que certo.

     — Telefone para a Executive Charter e mande que preparem um avião para as três horas da tarde. Chame também Karl Kruger, em Hamburgo. Ligue para o clube e diga que chegarei um pouco atrasado para os drinques, mas a tempo de fazer o discurso. Depois vá ao meu apartamento, arrume algumas roupas para eu levar e apanhe-me depois do almoço para conduzir-me ao aeroporto. Quero também ditar um telegrama, a ser enviado em código a todos os gerentes de filiais. Alguém está manipulando nossos computadores. Estamos com uma diferença de caixa de quinze milhões de dólares.

     — Oh, meu Deus! E George já sabe disso?

     — Não.

     — Vai dizer-lhe?

     — Não, enquanto não soubermos o veredicto médico.

     — Ele está envolvido?

     — Até o pescoço. Você terá que confiar em mim, Suzy.

     — E pode ter certeza de que eu confio, Paul. Mas deve também confiar em mim.

     — O que você ignora, ajuda a todos nós. Por enquanto, vamos deixar a situação neste pé.

     — Só quero que não se esqueça, Paul, de que Arlequim é muito mais resistente do que você imagina.

     — E vai precisar mesmo sê-lo, Suzy... Agora seja uma boa menina e faça as ligações que eu lhe pedi.

     Karl Kruger, presidente da Kruger & Co. AG, ainda estava em sua mesa de trabalho, tomando cerveja e comendo Knackwurst, enquanto seus diretores almoçavam com clientes nos melhores restaurantes. Eu podia imaginá-lo, em seus sessenta e cinco anos, grisalho como um urso do Báltico, resmungando diante da minha intrusão.

     — Also! Em Genebra vocês se divertem com o dinheiro, aqui nós trabalhamos duro para ganhá-lo. Que diabo você está querendo?

     — Jantar, cama e uma conversa esta noite.

     — Não há condição. Hilde está na cidade, e você sabe perfeitamente o que isso significa. Ela é a única mulher com quem eu ainda consigo fazer alguma coisa.

     — Então conversaremos primeiro e depois nós dois a levaremos para jantar. Por favor, Karl!

     — Você parece preocupado, Paul. Algo errado?

     — Tudo. Arlequim está num hospital da Califórnia e eu tenho um abacaxi a descascar. Preciso de você, amigo velho!

     — Então apareça às seis horas em minha casa. E, se me atrasar, terá que dormir com Hilde. Wiedersehen.

     — Wiedersehen. E obrigado, Karl.

     Estava na hora de eu partir para o almoço. Falei durante vinte minutos sobre generalidades otimistas, o que daria meia coluna nos jornais da manhã. Às três e quinze levantamos vôo e faltavam cinco minutos para as seis horas quando bati na porta da fortaleza de Kruger, no Parque Alster.

     Se vocês conhecessem Karl Kruger, certamente não gostariam dele. São bem poucos os que simpatizam com ele. Os ingleses afirmam que ele é um junker da velha escola, que integrava a camarilha de Hitler e subornou os americanos para que lhe dessem uma ficha limpa, empenhando-se a partir daí na recuperação da sua fortuna na Bundesrepublik. Talvez seja verdade, talvez não. Eu simplesmente não sei. O que sei, porém, é que Helli Anspacher jura que ele gastou milhões para salvar seu marido dos carrascos, depois da conspiração de Schellenberg, que Chaim Herzl, em Tel-Aviv, diz que lhe deve a vida, e que Jim Brandes escondeu-se em sua casa durante três semanas, depois que seu avião foi derrubado durante um ataque a Lübeck. Mas tudo isso agora pertence ao passado, remoto demais para que se possa decifrar. Portanto, posso apenas falar sobre Karl Kruger neste ano do Senhor que ora atravessamos, como o conheço agora.

     Ele é tão largo quanto alto, com uma basta cabeleira cinzenta, punhos gigantescos, um caminhar desengonçado e o rosto salpicado de pintas vermelhas. Parece tão avariado quanto um velho lutador de boxe, mas sua mente é lúcida e pelo menos metade mais rápida do que a de vocês ou a minha. Recebeu-me como a um irmão há muito desaparecido, passou o braço pelos meus ombros e empurrou-me, cambaleando, para junto do fogo.

     — Ora essa, Paul, você está pálido como uma freira assustada! Vamos ter que pôr um pouco de fogo nessa sua barriga. Disse a Hilde que você estava vindo e ela declarou que guardaria todo o seu amor até encontrá-lo...Toma um scotch, não é?...Sabe, Paul, conheci Hilde quando ela fazia filmes especiais para Gregory em Munique. Isso foi há vinte anos, e Hilde continua linda. Portanto, vamos cuidar logo dos negócios. Sobre o que está querendo falar-me?

     — Quinze milhões de dólares.

     — O que está vendendo?

     — Nada. Essa quantia é o quanto está faltando em nossa caixa. Sofremos um desfalque, Karl.

     — E quem o deu?

     — Os registros dizem que foi George Arlequim.

     — E o que você diz?

     — Eu digo que não foi ele.

     — Já lhe perguntou?

     — Ainda não, mas o farei assim que souber se ele vai viver ou morrer.

     — Então não foi George. Quem poderia ter sido?

     — Alguém que tivesse acesso ao nosso sistema de computadores.

     — Quem?

     — Digo que foi Basil Yanko.

     — Por quê? Ele tem dinheiro que não acaba mais.

     — Ele quer assumir o controle de nosso banco. Disse-me isso hoje, ao entregar-me o relatório de segurança.

     — E o que está querendo de mim, Paul?

     — Que cubra dez milhões, imediatamente, deixando-nos a limpo, até que eu possa arrumar as contas e fazer as necessárias transferências.

     — E de onde virão os outros cinco milhões?

     — Eu mesmo os porei. É tudo o que eu tenho.

     — Você é um tolo sentimental, Paul. Está procurando salvar Arlequim de qualquer maneira. Mas não se esqueça de que, mesmo que cubra, Yanko continuará a ter provas do desfalque.

     — Se estivermos cobertos, será mais difícil para ele usar as provas de que dispõe. Se o fizer, isso tornará evidente sua cumplicidade. Talvez eu não tenha que usar os fundos de emergência, Karl, pois, afinal de contas, somos sólidos como Gibraltar. Mas tenho que ganhar tempo até conversar com Arlequim e receber autorização para iniciar uma investigação independente.

     — E por que procurou a mim e não a seus próprios acionistas?

     — Yanko disse que os tem sob controle. Você é o único homem em quem posso confiar, que tenho certeza de que nada dirá, quer resolva ou não emprestar o dinheiro para cobrir o déficit.

     — E quem vai realizar a sua investigação?

     — Esse é outro problema. Preciso de um técnico internacional ou de uma firma de segurança bem conhecida. Mas o mercado é bastante fechado e Yanko certamente saberá assim que eu começar a procurar.

     — E comprará imediatamente o homem que você contratar.

     — Ou talvez faça pior ainda. Pessoas são mortas por muito menos nesse negócio, Karl.

     — Quem foi que disse que o dinheiro não tinha cheiro? Você está bastante abalado, meu jovem Paul. Sirva-se de outro uísque. Tenho que pensar um pouco.

     Karl Kruger pensando era como uma britadeira triturando concreto. Andava de um lado para outro da imensa sala, ofegando e arrotando, murmurando para si mesmo. Abriu as cortinas, plantou o vulto corpulento diante da janela e ficou um longo tempo contemplando as luzes da velha cidade hanseática, tão profundamente enraizada no dinheiro da burguesia e na lama do Báltico que sobrevivera até mesmo ao cataclismo do bombardeio maciço e à divisão do Reich no pós-guerra. Seus habitantes são banqueiros e comerciantes, armadores e marinheiros esfuziantes, ciumentos da sua cidade e das suas liberdades históricas. São espertos e fleumáticos, amigos dedicados e inimigos obstinados. Se Karl Kruger resolvesse apoiar-me, eu poderia começar a lutar. Se ele recusasse, no entanto, seria como se eu ficasse nu em meio à mais terrível tempestade. Finalmente ele virou-se para mim, o rosto sério.

     — Conheci Basil Yanko e creio que o compreendo. Ele é um gênio, mas só tem cabeça e mais nada. Por isso dedica-se totalmente ao jogo do poder. O seu George Arlequim, por outro lado, o que é? Um playboy, um bufão, um amador? Dinheiro é negócio de homem. Esta cidade é prova disto. Mas o seu Arlequim se comporta como se isso fosse uma brincadeira de criança.

     — Você também sente inveja dele, Karl?

     — Inveja? Oh, meu Deus, claro que não! Como posso sentir inveja de um homem que precisa de uma cobertura de quinze milhões porque não sabe vigiar suas próprias contas?

     — Deixe disso, Karl! Você sabe muito bem que qualquer sistema pode ser corrompido. Existe em Londres um técnico de segurança que consegue seus clientes provando justamente isso. Se o contratar, ele demonstra sua habilidade desviando dinheiro durante seis meses a fio, sem que você o perceba, depositando o que tirou num fundo de investimento. O que você está realmente querendo saber é se vale a pena ou não salvar Arlequim. Eu digo que vale. Não é necessário ser asceta para ser bom banqueiro. Pode-se sê-lo levando uma vida como a de Arlequim. No seu tempo, você fazia até mais do que ele. E é capaz de liquidá-lo só porque não aprecia seu estilo de vida?

     — Não é esse o problema. Por que Yanko o escolheu? Por que não a mim ou a meia dúzia de outros que ambos poderíamos enumerar? Ele escolheu Arlequim porque há uma fraqueza no homem, assim como em seu sistema. E eu quero saber precisamente qual é.

     — Sou o homem errado para responder, Karl.

     — Por quê?

     — Porque ele é meu amigo, sou padrinho de seu filho e estou apaixonado pela esposa dele.

     — Deus Todo-Poderoso! E em vez de roubar-lhe a esposa, você prefere ser o mártir no altar da amizade? E muito mais tolo do que eu imaginava, Paul.

     — Agora que já sabe, Karl, qual é sua resposta?

     — Darei a cobertura, mas com uma condição.

     — Qual?

     — Quer esteja à porta da morte quer não, Arlequim terá que saber de tudo. E quero a primeira opção sobre suas ações e seus direitos de preferência em relação aos outros acionistas. Se ele não concordar, então não há negócio.

     — Está sendo muito exigente, Karl.

     — Isto é Hamburgo, irmãozinho. Aqui não se dá nada por nada. E quem não andar com a braguilha abotoada, pode pegar uma doença.

     — Apresentarei a proposta a Arlequim.

     — Está certo. Agora, quanto a seu investigador...Não pode realmente procurar alguém no campo dos computadores, pois Yanko iria antecipar-se a todos os seus atos. Concorda?

     — Concordo.

     — Poderia recorrer à polícia.

     — Operamos em muitos países e em todos eles haveria um escândalo se agíssemos dessa forma.

     — Pode usar investigadores particulares.

     — Mesmo assim, ainda precisaríamos de um técnico em computação para verificar todo o sistema.

     — Acho que precisa muito mais do que isso.

     — Não estou entendendo...

     — Yanko tem de tudo à sua disposição: dinheiro, informação, influência. Tem, em suma, o poder. Pode criar uma mentira e impingi-la da noite para o dia à metade do mundo. No momento em que começarem a enfrentá-lo, deverão procurar arruiná-lo, antes que ele os destrua. Foi por isso que eu quis saber se George Arlequim é um homem de coragem. Se não for, é melhor vender o que tem agora, enquanto ainda encontra quem compre.

     — Eu também lhe direi isso, Karl.

     — Se ele está disposto a lutar, então há um homem cm Nova York que poderá ajudá-lo. Usa diversos nomes, mas o verdadeiro é Aaron Bogdanovich. Ele é também uma espécie de gênio, mas seu maior mérito é o de não se deixar comprar.

     — O que ele faz?

     — Ele organiza o terror.

     Naquele momento saímos da velha mansão do parque Alster e mergulhamos dois mil anos no passado. Estávamos de volta à floresta escura, conhecida como Hamma, as fogueiras acesas, os guerreiros embriagados e entregues à luxúria, depois da matança. Compreendi então qual era o verdadeiro nome do nosso ofício, uma batalha sangrenta por dinheiro e poder, com os lobos à espreita, esperando pelo que os guerreiros deixariam atrás de si.

     Karl Kruger deixou-se cair pesadamente numa cadeira, pôs um pouco de uísque no copo e esvaziou-o de um só gole. Depois lançou-me um olhar sardônico e perguntou:

     — Acha que estou brincando, não é mesmo?

     — Não.

     — Quer fazer alguma pergunta?

     — Quero. Como veio a conhecer esse Aaron Bogdanovich?

     — Eu sou o agente dos banqueiros dele.

     — Quem o emprega?

     — O Estado de Israel.

     — E por que ele aceitaria um serviço particular?

     — Porque tem para comigo uma dívida pessoal. Tirei seu irmão e sua irmã de Latvia.

     — E o que ele poderia fazer por nós?

     — Acho que quase tudo. O terror é um negócio bastante flexível. O público vê apenas seu lado mais tosco, como o assassinato de um agente ou o seqüestro de um avião. Mas, na verdade, todos nós vivemos sob a pressão da chantagem. Os especuladores desvalorizam a moeda, os árabes cortam o fornecimento de petróleo. Nessa base, o relatório que Yanko lhe apresentou também é um ato terrorista.

     — E como posso entrar em contato com esse Aaron Bogdanovich?

     — Ele tem uma loja de flores na Third Avenue, entre as ruas 49,h e 50lh. Basta você entrar e apresentar-lhe meu bilhete. E melhor escrevê-lo agora mesmo. Hilde deve estar chegando e teremos uma noite movimentada.

     Eu estava mais do que disposto. Era um homem livre e há muito que já passara da idade de precisar de consentimento. Se Karl e Hilde queriam divertir-se a noite inteira na cidade, iria acompanhá-los. Jantamos em casa, porque Karl possui o melhor cozinheiro de todo Scheswig-Holstein. Hilde, que é gorducha, agradável e de voz estridente, como uma franguinha, tocou Wirtin para nós. Depois, Karl, entusiasmado e afoito, decidiu invadir Saint Pauli. Não pude dissuadi-lo e Hilde nem tentou. E assim, entre meia-noite e quatro horas da madrugada, percorremos a Reeperbahn: bares particulares, shows de sexo, boates de lésbicas e clubes de invertidos, indo também a antros de marinheiros, onde Karl tocou acordeão e sapateou no chão coberto de serragem. Eu esperava que a qualquer momento ele desabasse com um ataque de apoplexia. Em vez disso, contudo, ele encerrou a noite com um floreio de ator. Enquanto Hilde lhe desabotoava a camisa e eu lhe tirava as meias, ele abriu um olho e declamou:

     — Sabe, meu jovem Paul, se não se pode combatê-los, então é melhor fazer a outra coisa. Mas, se não pode fazer nenhuma das duas, só resta deitar e morrer.

     Era um sentimento encorajador para encerrar uma noitada alegre. Mas eu duvidava que pudesse torná-lo apetecível a George Arlequim, o menos combativo e o mais civilizado dos homens.

    

     Trinta e seis horas depois estava em Los Angeles, passeando pelos jardins do Bel-Air Hotel em companhia de Juliette, partilhando sua alegria diante da notícia de que George fora salvo da sentença de morte, que receberia alta do hospital dentro de uma semana e dentro de um mês estaria pronto para recomeçar a trabalhar, moderadamente.

     Juliette relatava-me os planos que tinham feito.

     — ... Decidimos ir para Acapulco. Lola Frank emprestou-nos a villa que possui lá. Teremos toda uma equipe para cuidar de nós. A casa tem uma lancha e...Oh, Paul, será como uma segunda lua-de-mel! Mal posso esperar o momento de seguirmos para Acapulco. As últimas semanas foram terríveis. Cada vez que o telefone tocava, eu pulava sobressaltada. George parecia-me completamente estranho, de tão calmo e distante. Era como se ele estivesse procurando conservar todas as suas forças para o dia do veredicto final. Ele jamais se queixou. Mostrava-se extremamente cuidadoso para comigo, bastante atencioso, mas vivia em seu próprio mundo. Mesmo quando lhe deram a boa notícia, ele mostrou-se tão reservado que foi quase sobrenatural. Sorriu e agradeceu ao médico por seus cuidados. Quando ficamos a sós, ele abraçou-me e chorou um pouco. Depois disse uma coisa estranha: "Agora eu sei o nome do anjo". Quando lhe perguntei o que aquilo significava, disse que era algo que preferia não explicar...

     — Quando posso visitá-lo?

     — Esta tarde. Por que não vai sozinho fazer-lhe uma surpresa?

     — Se acha que...

     — Não há o menor problema. Isso me dará uma oportunidade de ir a um cabeleireiro e fazer algumas compras. Mas não o deixe falar de negócios, está certo?

     — Prometo que não o deixarei alongar-se muito no assunto.

     — Ele ficará na maior alegria em vê-lo! Oh, Paul, não está fazendo um dia maravilhoso?

     Eu achava que o dia era infernal e repugnante. Compreendia agora por que, nos velhos tempos, mandavam cortar a garganta dos portadores de más notícias. Ao seguir para o centro da cidade a fim de visitar Arlequim, tinha vontade de cortar minha própria garganta. Pensei em reter as notícias por mais algum tempo, mas sabia que não poderia fazê-lo. Sem o consentimento de Arlequim, não tinha poderes para entrar em ação.

     Meu coração contraiu-se quando o vi. Estava sentado numa poltrona, usando um pijama de seda e roupão, parecendo transparente de tão pálido. Quando lhe apertei a mão, verifiquei que estava seca e encarquilhada. Apenas seu sorriso permanecia o mesmo, luminoso, grave, com a eterna expressão de malícia. Ele não procurou atrair a atenção para si mesmo, como os doentes costumam fazer. Afastou minhas perguntas sobre a doença com um sacudir de ombros.

     — Já passou, Paul. Tive muita sorte e estou contente por Julie. Agora quero sair daqui o mais depressa possível. Disseram-me que a convalescença será demorada. Pode defender o forte por mais algum tempo?

     — Claro. Mas vou precisar importuná-lo com o exame de alguns negócios. Acha que agüenta?

     — Não há problema. Pode falar.

     — São más notícias, George. Ele sorriu e sacudiu os ombros.

     — Pode contar-me o pior e mesmo assim continuarei a sentir-me um homem de sorte.

     Contei-lhe tudo. Ele ouviu-me em silêncio, de olhos fechados, a cabeça caída de encontro ao peito, as mãos placidamente no colo. Quando acabei, ele perguntou calmamente:

     — Como foi que aconteceu, Paul?

     — Está tudo no relatório. Precisaremos de um técnico para verificar os detalhes, porque há uma ampla série de transações implícitas. O método, porém, é essencialmente simples. Suborna-se um programador para fornecer informações fraudulentas ao computador. A menos que elas sejam canceladas, o computador a partir daí desenvolve todos os seus cálculos tendo-as por base, até o juízo final...Sabe como operamos no mercado. Compramos e vendemos em bloco para grupos de clientes, separando depois as ações de cada um, os lucros e as despesas. Nosso computador foi programado para apresentar despesas falsas nas transações, o lucro daí proveniente sendo depositado numa conta numerada do Union Bank, de Zurique. E essa conta está em sem nome.

     — Mas eu nunca tive, em toda a minha vida, nenhuma conta no Union Bank!

     — O relatório declara que é sua a assinatura na abertura da conta e nos cheques.

     — Está dizendo que a conta tem sido operada?

     — Retiraram todo o dinheiro.

     — Mas então falsificaram o meu nome!

     — Teremos de prová-lo e descobrir também quem o fez. Teremos também que descobrir quem forneceu informações falsas ao computador, em todas as nossas filiais, e quem pagou para que isso fosse feito.

     — Por que nós mesmos não descobrimos a diferença?

     — Porque consideramos o computador como coisa garantida. Enquanto as transações diárias se ajustam, nem mesmo questionamos os seus resultados. E temos uma tão ampla variedade de operações que somente os contadores e os auditores preocupam-se com os números finais.

     — Mas isso é uma loucura, Paul! Fazer com que pareça que eu estou roubando minha própria empresa...Não estou entendendo nada.

     — Alguém quer fazê-lo de alvo, e creio que esse alguém se chama Basil Yanko.

     — Se isso é verdade, podemos nos livrar dele e contratar os serviços de outros.

     — O diabo que podemos! Já se esqueceu quanto tempo demora para instalar e treinar operadores num determinado sistema? Além disso, o que está acontecendo é apenas um aviso, um primeiro bilhete de chantagista.

     — Mesmo assim, é um ato criminoso.

     — Se pudermos prová-lo. E temos também que cobrir os fundos que estão faltando. Preciso de instruções suas quanto a isso. No momento, Karl Kruger e eu estamos dando as garantias necessárias, mas Karl quer muita coisa em troca.

     — Não tem importância, Paul.

     — Neste caso, precisarei de uma procuração plena, para poder movimentar todos os seus bens, pelo menos enquanto não for capaz de viajar e agir por si mesmo. Sei que isso é um risco muito grande e não me incomodarei se você não quiser assumi-lo.

     — Tenho que confiar em alguém, Paul. E se não puder confiar em você, quem mais me restará?

     — Então vamos enfrentar Basil Yanko.

     — Eu não disse isso.

     Engasguei, incrédulo. Arlequim sorriu, um sorriso lívido e desalentado.

     — Não fique tão chocado, Paul! Acabei de caminhar até a beira da morte e voltei. Sei agora de quão pouca bagagem um homem realmente necessita. Devo confessar-lhe que não tenho muita certeza se desejo manter Arlequim et Cie. Não gostaria de que ela ficasse com Basil Yanko, mas não me recusaria a vendê-la para Karl Kruger. É uma ótima solução, pois assim Julie e o menino não teriam que se preocupar com mais nada e eu estaria de fora da corrida de ratos.

     — Se vender agora, será uma atitude tomada sob coação.

     — Esse é apenas um dos lados da moeda.

     — Então eu lhe direi qual é o outro. Se ceder agora, os miseráveis ganham. E se ganharem agora, tentarão novamente. E não pode esquecer-se de que nem todas as vítimas conseguirão escapar com a mesma sorte que George Arlequim.

     Subitamente ele ficou nervoso e começou a suar. Eu me sentia um criminoso por pressioná-lo tanto. Ajudei-o a ir para a cama, molhei-lhe o rosto e esperei até que lhe voltasse um pouco de cor. As únicas palavras que encontrei para dizer eram banais e lamentáveis.

     — Sei que exagerei, George. Desculpe. O que quer que decida, continuaremos amigos.

     Ele pôs a mão fraca sobre o meu pulso.

     — Vou contar-lhe um segredo, Paul. É muito difícil enfrentar o anjo da morte, porque ele não quer que a gente lute. Tudo o que nos pede é que descansemos, durmamos um pouco. E é muito tentador fechar os olhos e esquecer tudo o mais. Não fique tão revoltado comigo, Paul! Dê-me um pouco mais de tempo...

     — É que não temos muito tempo, George. , — Eu sei.

     — Quer que eu conte tudo a Julie?

     — Ainda não. Ultimamente temos tido alguns problemas pessoais.

     — Quer que eu fique mais um pouco?

     — Não, obrigado. Estou muito cansado. Venha verme amanhã, com Julie.

     Ainda era cedo. Eu não queria voltar para o hotel, com suas starlets artificiais e os agentes de cabelos grisalhos. Queria ser anônimo, livre para conversar sobre coisas superficiais, como o preço de um bife, a dor de barriga de um cavalo de corridas e o fato de as garotas de hoje não serem mais como as de antigamente. Gosto desse tipo de vida modesta. É mais simples de viver e se tem mais amigos para partilhá-la. Parei num bar na Strip, escuro e quase deserto. Pedi um bourbon, paguei uma cerveja para a casa e durante meia hora empenhei-me num lamento lacônico com o barman.

     Acabáramos de sair do Oriente Médio e estávamos começando a falar sobre os escândalos da Administração quando o telefone tocou.

     O barman atendeu e depois virou-se para mim.

     — Seu nome é Paul Desmond?

     — Isso mesmo.

     — Nova York está ao telefone.

     — Nova York?

     — Foi o que o homem disse. Vai atender?

     Ele empurrou o telefone na minha direção. Peguei o fone e disse estupidamente:

     — Alô...

     — Sr. Desmond? Aqui é Basil Yanko. Liguei para dar-lhe as boas-vindas aos Estados Unidos.

     — Como soube onde encontrar-me?

     — Temos uma organização muito eficiente, Sr. Desmond. Já tem alguma novidade para mim?

     — Um conselho, Sr. Yanko: não invada minha vida particular.

     Ele riu, sem a menor alegria.

     — Há algum serviço que lhe possamos oferecer durante sua estada?

     — Nenhum.

     — Então divirta-se bastante durante sua permanência aqui, Sr. Desmond. Continuaremos em contato. Au revoir.

     Desliguei e voltei a concentrar-me em meu bourbon. O barman fitou-me, os olhos espertos a sondarem minha reação.

     — Más notícias?

     — Estou apostando num perdedor.

     — Isso é mau, mas a verdade é que não se pode ganhar todas. Quer outra dose?

     — Obrigado.

     Tomei a segunda dose lentamente, enquanto ele me contava, demoradamente e com todos os detalhes, como acertara o jackpot em Las Vegas na noite em que se divorciara e passara a melhor noite em vinte anos com uma corista desempregada.

     Sua sorte reanimou-me tanto que decidi procurar meu amigo e cliente, Francis Xavier Mendoza, que vive em Brentwood. Ele é um resquício da Velha Califórnia, dos poços de alcatrão, dos sinos das missões, das garrafas de Capistrano. É um verdadeiro milagre em pequena escala: um cavalheiro de Castela não manchado pela vulgaridade da costa do Pacífico. Possui três filhos e uma linda filha. Assiste à missa nos domingos e dias santos, fabrica um dos melhores vinhos do Napa Valley e, nas horas vagas, empenha-se em traduzir para o inglês os poemas de Alonso Machado. Na política californiana, ele é uma espécie de camaleão, sempre presente, sempre poderoso, mas nunca fácil de identificar.

     Quando lhe disse que precisava vê-lo, deu-me as boas-vindas no velho estilo:

     — Minha casa é sua. Venha agora mesmo, se não puder vir antes.

     Quarenta minutos depois, descansando em seu jardim, apresentei-lhe a pergunta:

     — O que sabe dizer-me sobre Basil Yanko e a Creative Systems Incorporated?

     Ele fez uma expressão de repugnância.

     — É um bruto, mas um bruto poderoso. Metade das empresas da costa usa os seus serviços e lambe suas botas na hora de pagar a conta. Mas eu não tomaria banho no mesmo oceano que ele.

     — O que há de errado com ele?

     — Legalmente, nada. Ele fornece os melhores serviços de computadores deste país — sistemas, programas, segurança, tudo enfim. É o chamado garoto prodígio. Mas, uma vez entrando em algum lugar, não se consegue mais tirá-lo de lá. Ele controla todos os sistemas e fica sabendo de cada movimento de seus clientes. Ao menor indício de fraqueza, ele se instala prontamente no gabinete do presidente. Já fez assim com três amigos meus e um inimigo, que bem o mereceu. Mas por que está perguntando, Paul?

     — Nós também o usamos e achamos que adulterou nossos registros.

     — Ay de mi! Mas isso é terrível!

     — Ele já fez o mesmo com alguém por aqui? Há rumores de que sim, mas nenhuma prova.

     — E, se procurarmos, não encontraremos as provas necessárias?

     — Na Califórnia de hoje? Perca as esperanças. O presidente está desacreditado, o Congresso está com medo, o povo desmoralizado. Duvido muito que eu consiga relacionar vinte pessoas nesta cidade que jamais tenham sido compradas por alguém. Eu não poderia nem mesmo enumerar dez pessoas que pudessem enfrentar uma investigação pública de seus negócios.

     — É uma triste conclusão.

     — Triste e sinistra. Posso descobrir-lhe um assassino muito mais depressa do que um homem honesto ou um homem corajoso.

     Ele fez uma pausa, abrindo os braços num gesto de desespero.

     — Sei que estou exagerando um pouco, como sempre o faço. Mas é que sou como Diógenes, enfiado em sua barrica. Não se pode negar, contudo, que assim são os tempos em que vivemos. Quando se vive do crédito, como nós, americanos, o fazemos, sempre se pode ser pressionado. À medida que -se sobe a escada das corporações, fica-se com medo do homem que está acima e do que está abaixo. É esse o poder que Yanko utiliza. Ele conhece os segredos de todo mundo. O que ele não sabe, trata de inventar, alimentando com mentiras os seus computadores, e depois apresenta-as como um evangelho, no momento em que julga mais conveniente.

     — E como então se pode vencê-lo?

     — Só há uma maneira: viver em seu mundo. É preciso espreitá-lo nas sombras, talvez durante anos, até o dia em que se possa forçá-lo a sair em campo aberto, derrotando-o então. Mas para fazer tal coisa é indispensável ter nervos fortes. E quando sair para jantar num restaurante, não se pode esquecer de ficar de frente para a porta, as costas contra uma parede sólida de tijolos. Estou lhe dando um bom conselho, Paul, jamais se esqueça disso. Vou verificar por aí. Se ouvir algo de útil, eu lhe informarei imediatamente.

     — Você me surpreende, Francis, como um legítimo cavalheiro cristão.

     — O mérito não é meu. Tive uma mãe — que Deus a tenha! — que me puxou as orelhas e ensinou-me boas maneiras. Agora, deixe-me oferecer-lhe um sherry. É o melhor que tenho e sinto o maior orgulho dele.

     Ele serviu-me a bebida e fez o brinde: saúde, dinheiro, amor e tempo para gozar as três coisas. Ao beber, experimentei a sensação sobrenatural de que Basil Yanko espreitava por cima do meu ombro, sorrindo da ironia.

    

     Anos atrás, quando eu estava em Tóquio, negociando um minério de ferro que ainda estava debaixo da terra e gastando a minha comissão antes mesmo de recebê-la, fiz amizade com Kiyoshi Kawai, o decano dos gravadores japoneses. Ele já era um homem idoso então, mas cheio de vitalidade e com uma extraordinária sagacidade. Sempre que eu me sentia infeliz, o que acontecia com freqüência, ia a seu estúdio e lá ficava sentado durante muitas horas, vendo-o cortar os blocos e misturar as cores, censurando os aprendizes se as definições não fossem absolutamente perfeitas.

     Quando Kiyoshi estava deprimido, um acontecimento raro mas cataclísmico, arrastava-me para um clube de travestis em Shinjuku, onde os rapazes se vestiam como gueixas e as poucas moças presentes pareciam os sete samurais. Todos adejavam em torno do mestre, enquanto este os desenhava. Serviam-lhe intermináveis copinhos de saque, enquanto Kiyoshi improvisava haiku e reproduzia-os em maravilhosas pinceladas. Eu achava a experiência enervante, porque, depois de uma longa sessão de saque e de cerveja Kirin, era difícil distinguir os rapazes das moças. Eu tinha sempre que levar o velho para casa, antes que ele começasse a assinar promissórias e as distribuísse, como souvenirs.

     E numa dessas excursões que ele me deu a receita para uma boa vida. Quando ficou sóbrio, fiz com que a transcrevesse em caracteres kanji. Agora, aonde quer que eu vá, sempre levo o pergaminho comigo. Diz o seguinte: "Nunca misture as cores quando o vento do oeste está soprando e jamais faça amor com uma mulher que tenha cara de raposa". É difícil explicar o significado de tal inscrição, mas aqui a reproduzo como prólogo a um dia péssimo.

     Começou com uma série de pequenos desastres. Acordei cedo e fui dar um mergulho na piscina, escorreguei nos ladrilhos molhados e torci o tornozelo. Logo depois baixou um nevoeiro intenso e em cinco minutos eu estava com os olhos turvos e espirrando. Às oito horas, Suzanne telefonou-me de Genebra. Transmiti-lhe a boa notícia da recuperação de Arlequim e ela reagiu com um despacho da frente doméstica. Nossos gerentes de filiais tinham ficado extremamente nervosos com meu cabograma. Estavam subitamente preocupados com os interesses de seus clientes e com os próprios pescoços. Será que eu poderia prestar alguns esclarecimentos sobre as instruções? Como eu nada poderia fazer sem a autorização expressa de Arlequim em meu bolso, ditei uma mensagem tranqüilizante, dizendo-lhes que o presidente estava passando bem e em recuperação, e em breve iria apertar-lhes as mãos. Novas instruções seriam transmitidas dentro de quarenta e oito horas. Pelo menos era o que eu esperava. Para coroar tudo, Juliette telefonou e pediu-me que fosse tomar o café da manhã em sua companhia. Achava-se bastante nervosa porque o pequeno Paul estava com catapora e a idiota da babá celebrara o acontecimento num telegrama de cem palavras, escrito em alemão-suíço e mutilado em trânsito. Tinha ainda outras preocupações e escolheu-me para padre confessor.

     — Somos amigos há bastante tempo, Paul. Entre nós, não existem segredos.

     — Existem, minha cara, pois não podemos viver sem eles. Comece novamente.

     — Está sendo detestável agora, Paul.

     — Então estou de mau humor e com uma péssima disposição. Hoje não é meu dia. Qual é o próximo item?

     — Estou preocupada com George.

     — George e você ou apenas George?

     — Apenas George.

     — Ontem você me falava sobre uma segunda lua-de-mel. O que aconteceu para fazê-la mudar assim?

     — Ele disse-me ontem à noite que estava pensando em vender a Arlequim et Cie.

     — Ele lhe disse por que ou a quem?

     — Não. Achei que talvez você soubesse.

     — Olhe, Julie, vamos ser francos. Gosto muito de vocês dois, mas estou no negócio com seu marido e não vou dizer coisa alguma fora das salas de reunião.

     — Isso quer dizer que ele já lhe falou.

     — Eu não disse isso.

     — Vá para o inferno, Paul Desmond!

     — Já estou a caminho, minha querida...

     — Não, por favor, espere!...Desculpe. Sei que estou agindo como uma louca. Mas estou realmente preocupada. George mudou bastante e você não faz idéia do quanto.. .

     — Ora, Julie, não se esqueça de que ele passou muito tempo doente. Está distante e deprimido, mas isso é normal. Não se podia esperar que ele agora se pusesse a dançar fandangos, não é mesmo?

     — Por que ele está querendo vender Arlequim et Cie.?

     — Talvez ele queira pegar o dinheiro e investir, a fim de poder sair passeando pelo mundo tranqüilamente. Por que não?

     — O que será dele sem o negócio?

     — Um homem feliz?

     — Ou mais um rico ocioso.

     — Em todos estes anos de nossa amizade, jamais o vi na ociosidade.

     — Seria então um diletante, sem estar comprometido com coisa alguma.

     — Ele está comprometido com você.

     — Será mesmo? Às vezes, tenho minhas dúvidas.

     — Olhe, Julie, quanto a isso nada lhe posso dizer. Sou apenas um solteirão, que sente coceira nos pés.

     — Eu o detesto quando você se esquiva dessa maneira, Paul.

     — O que quer que eu faça? Você é uma mulher adulta e casada. Conhece a letra e a música, pode cantar para George.

     — Eu cantaria fora do tom.

     — Não creio. Apenas você não está querendo tomar uma decisão.

     — Decisão sobre o quê?

     — Se deve tentar reduzir George Arlequim às dimensões de um menino ou se você mesma se torna uma mulher amadurecida.

     — Sabe por que isso acontece?

     — Nem quero saber. O problema é seu e não meu...Só-mais uma coisa: Arlequim quer ver-nos a ambos no hospital, esta tarde. Virei buscá-la às três horas.

     Deixei-a olhando para o seu café já frio e fui passear no jardim. Estava furioso com ela, comigo mesmo, com Arlequim e com o mundo inteiro, irremediavelmente indigesto. Eu precisava de uma crise conjugai tanto quanto precisava de uma terceira perna. Se não conseguíssemos traçar uma orientação política nas próximas quarenta e oito horas, teríamos uma revolução palaciana em nossas mãos. E o pior de tudo era que Arlequim, o homem equilibrado em todas as situações, parecia estar desmoronando. Três pessoas haviam sentido uma fraqueza nele e estavam empenhadas em explorá-la: Basil Yanko, Karl Kruger e sua esposa. Eu era o único que não a estava enxergando. Seria eu o prodígio de um olho só, rei numa terra de cegos, ou seria o estúpido Paul, aparvalhado e aturdido com o esplendor de um falso príncipe? Tinha que descobri-lo, no mínimo para manter o respeito próprio.

     E porque estava furioso e porque me torno impetuoso e obstinado quando estou furioso, decidi iniciar minha própria guerra particular. Liguei para o escritório de Nova York da Creative Systems Incorporated e pedi para falar com Basil Yanko. Tive que identificar-me para quatro pessoas diferentes antes que ele entrasse na linha, macio como manteiga.

     — É um prazer imenso, Sr. Desmond. Em que posso servi-lo?

     — Irei a Nova York depois de amanhã. Gostaria de conversar com o homem que preparou nosso relatório.

     — Não é um homem, Sr. Desmond, e sim uma mulher. O nome dela é Valerie Hallstrom.

     — Está certo, Eu gostaria de conhecê-la. Depois, gostaria de conversar com o senhor.

     — Ótimo. Não quer sugerir algum horário?

     — Ainda não fiz nenhuma reserva. Não seria melhor eu telefonar-lhe assim que chegar a Nova York?

     — Combinado. Já transmitiu minha proposta ao Sr. Arlequim?

     — Já. Ele está pensando no assunto. Devo receber uma resposta no final desta tarde.

     — Ótimo. Como ele está?

     — Bastante abatido, mas agora já está começando a se recuperar.

     — Fico satisfeito. Diga-lhe que desejo uma rápida recuperação.

     — Certo. Até nosso encontro...

     Eu não tinha a menor idéia do que ia dizer-lhe no dia marcado nem em qualquer outro dia, mas pelo menos lhe pusera uma pulga atrás da orelha e esperava que ele ficasse a se cocar por algum tempo. Voltei para meu quarto e pedi que me providenciassem uma estenografa. Sentei-me junto com ela à beira da piscina e ditei-lhe as procurações que George Arlequim deveria assinar. Era uma tarefa longa e tediosa, mas teve o mérito de manter-me ocupado até meio-dia, quando fui para o bar a fim de tomar um coquetel antes do almoço.

     O barman cumprimentou-me pelo nome e apontou para um homem que estava sentado sozinho junto à janela.

     — Aquele cavalheiro chegou aqui um minuto atrás e perguntou pelo senhor.

     Ele era jovem, não tinha mais do que trinta anos, trajava um terno de corte italiano. Levantou-se quando me aproximei e apresentou-se respeitosamente:

     — Sr. Desmond? Prazer em conhecê-lo. Sou Alex Duggan, da Creative Systems Incorporated. Nosso escritório de Nova York pediu-me que lhe entregasse uma mensagem urgente. Liguei para sua suíte e, como não estava lá, calculei que poderia encontrá-lo aqui no bar. Não quer sentar-se?

     Sentei-me. O barman trouxe minha bebida para a mesa. Só depois é que perguntei:

     — E qual é a mensagem que tem para mim?

     — É um telex do gabinete de nosso presidente. Se tiver alguma resposta, ficarei feliz em transmiti-la para o senhor.

     A mensagem era um documento, formal e objetivo:

    

     "Tendo por base os dados atuais e uma projeção de três anos, avaliamos Arlequim et Cie. à razão de oitenta e cinco dólares por ação. Este comunicado constitui uma proposta formal de compra à vista da totalidade das ações, à razão de cem dólares cada uma. Solicitamos que transmita a proposta imediatamente ao Sr. George Arlequim e informe-o também de que estamos dispostos a negociar, em termos generosos, a venda ou renúncia às opções existentes. Os outros acionistas já foram devidamente informados. Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated".

    

     Meti a mensagem no bolso do paletó e rabisquei a resposta no envelope:

    

     "Comunicação recebida. Paul Desmond".

    

     O jovem dobrou o envelope reverentemente e guardou-o na carteira.

     — Mandarei sua resposta assim que voltar para o escritório.

     — Aceita beber alguma coisa, Sr. Duggan?

     — Não, obrigado. Nunca bebo quando estou trabalhando. É essa a política da companhia.

     — Há quanto tempo trabalha para a Creative Systems, Sr. Duggan?

     — Há três anos.

     — E o que faz?

     — Relações com os clientes.

     — E isso significa precisamente o quê?

     — Tenho um setor exclusivo. Visito todos os clientes uma vez por mês, verifico as queixas, sugiro melhorias, faço projeções para a ampliação dos nossos serviços, que são projetados, é claro, para crescerem com os negócios do cliente.

     — E é bem pago?

     — Muito bem. Temos um sistema de gratificações, opções para compras de ações e tudo o mais. É de fato um excelente emprego, com boas perspectivas.

     — E está sempre com o Sr. Basil Yanko?

     — Quase nunca. Mas a gente sabe que ele está presente. E como! Ele sabe o que cada um está fazendo, até o pessoal da limpeza. E quem não está preparado, não fica muito tempo na Creative Systems.

     — Quer dizer então que a movimentação da equipe é muito grande?

     — Nem tanto. Acho que só o bastante para nos manter alerta. Eles ainda dizem que os funcionários que rejeitamos são melhores do que a maioria. Todos parecem encontrar emprego com bastante facilidade.

     — Isso é interessante. E onde eles vão procurar emprego?

     — A maioria do pessoal mais experiente em computação registra-se em três agências de empregos de Nova York e duas aqui na costa do Pacífico.

     — E a sua companhia também recorre a uma agência de empregos?

     — Não, senhor. Treinamos e recrutamos pessoal apenas para nós mesmos e para nossos clientes. O Sr. Yanko é inflexível com relação a isso.

     — Muito obrigado, Sr. Duggan. Agora não vou prendê-lo por mais tempo.

     — Foi um prazer, senhor. Pode estar certo de que sua mensagem estará em Nova York dentro de meia hora.

     Ele era um jovem simpático, mas ingênuo demais para ser real. Apertei-lhe a mão e acompanhei-o até a porta, voltando depois, pensativo e infeliz, para acabar minha bebida. Agora a pulga estava atrás da minha orelha. Yanko sabia de tudo a respeito do comportamento dependente de pessoas não-psicóticas. Sabia mesmo! Uma proposta vaga deixa um homem inquieto, uma proposta concreta deixa-o ganancioso...e uma oferta dezoito por cento acima do mercado fá-lo sair correndo para assinar os papéis, antes mesmo que Papai Noel possa sair da chaminé!

     Arlequim podia se recusar a vender. Mas a verdade absoluta é que ele não poderia comprar todas as suas opções e ainda por cima cobrir um desfalque de quinze milhões de dólares. Karl Kruger poderia comprar a noventa dólares por ação, mas não daria um cent acima disso e eu não podia culpá-lo por tal atitude. Arlequim poderia tentar travar uma batalha por procuração. Nesse caso, Yanko jogaria seu trunfo: a prova documentada de fraude e apropriação indébita. Quando tal acontecesse, nossos amigos, clientes e aliados nos abandonariam em massa.

     Era realmente um quadro animador para se pintar num quarto de doente.

     Arlequim resumiu a situação com um sorriso triste:

     — Estamos presos entre garras de caranguejo. Há apenas um consolo nisso tudo: o preço é justo.

     Juliette ficou furiosa, desafiando-o:

     — Arlequim et Cie. foi-lhe entregue numa bandeja de ouro. E vai vendê-la sem a menor preocupação só porque o preço é justo? Estou envergonhada de você, George.

     Ele corou, irritado, virando-se em seguida para mim.

     — Qual é o seu conselho, Paul?

     — A razão diz para vender, o instinto diz para lutar.

     — E podemos vencer?

     — Podemos.

     — Mas, mesmo que isso venha a acontecer, sairíamos bastante abalados, não é mesmo?

     — Pelo amor de Deus, George!

     Juliette voltava a enfrentá-lo, fria e com uma expressão de desprezo.

     — Pare de fazer rodeios e admita logo de uma vez! Você nunca teve que lutar por coisa alguma em toda a sua vida. Recebeu tudo de presente, até mesmo o talento que possui. E agora estão-lhe propondo outro presente: quinze dólares a mais por ação para entregar a companhia que seu avô fundou e que deveria, por direito, passar para seu filho.

     Arlequim ficou a fitá-la por algum tempo, rígido como uma estátua de pedra. Eu sentia-me triste por ele e envergonhado por todos nós. Por fim, ele disse asperamente:

     — Sente-se, Julie. Você também, Paul.

     Sentamo-nos. Arlequim ficou de pé, encostado na janela, o rosto mergulhado nas sombras, dominando a nós dois. Então ele começou a falar, lentamente, relutante, como se cada frase fosse arrancada com dificuldade de algum recesso secreto em seu interior.

     — Parece que lhe falhei, Julie. Não tinha consciência disso. Sinto muito. Sei que você também tem dúvidas, Paul. Mas existem muitas razões e tentarei explicá-las. Há algum tempo que estou desiludido com esse nosso negócio, onde cultivamos dinheiro como se fosse repolho e o negociamos como mascates no mercado internacional. Olho para os recursos que fluem pelas nossas mãos e cada vez penso mais de onde eles provêm: as transferências da Flórida são dólares dos gângsteres, fato que sabemos perfeitamente, embora nunca o admitamos; o dinheiro do petróleo que vem dos emirados árabes, onde ainda se vendem escravos e os homens têm suas mãos cortadas por uma simples cesta de tâmaras; os fundos que fogem dos países pobres; o saque dos ditadores e dos tiranos locais. Sei muito bem que quando esse dinheiro nos chega já está limpo e desinfetado, cheirando a água de rosas. E vivemos como reis dos lucros que ganhamos. Não sinto o menor orgulho disso e a cada dia que passa fico mais envergonhado. Enquanto eu estava deitado aqui, esperando que os médicos viessem apresentar-me a sentença de morte, fiquei imaginando como poderia defender o meu comportamento na vida diante de um julgamento que talvez tivesse de enfrentar do outro lado...E quando tudo isso aconteceu, pareceu-me a melhor saída transformar as minhas fichas em dinheiro, comprar tempo e lazer para tentar decifrar o enigma deste mundo e meu lugar dentro dele. Por outro lado, sei que sou um bom banqueiro e que homens honestos confiam no nome e na tradição de Arlequim et Cie. Mas aqui surge o dilema e você o expôs com bastante clareza, Paul: se resolver enfrentar Yanko, terei que lutar no mundo dele, em seus termos, com suas próprias armas. Tenho medo disso, Julie, mas não pelas razões que você imagina. Sabe, Julie, gosto da luta, gosto do risco e da brutalidade, da crueldade sem lei e implacável desse outro mundo. Creio que posso transformar-me no maior pirata entre todos, capaz de sorrir enquanto limpo o sangue de meu alfanje. Mas a questão fundamental é se poderei viver comigo mesmo depois disso. Será que continuarei a ser para você o homem que admira, Julie? Será que você e Paul poderão continuar a passear de iate em minha companhia, tomando vinho no tombadilho, conversando e rindo despreocupadamente?

     Ele sorriu e sacudiu os ombros, num gesto de zombaria.

     — Bem, essa foi a fala da defesa. Nunca mais tornarei a fazer nenhuma.

     Julie fitou-o, o rosto inexpressivo.

     — Ainda está disposto a vender?

     — Não, meu amor. Você é uma mulher bastante persuasiva. Vou lutar. É a única maneira de eu saber se o jogo vale o que custa.

     Aquela declaração não pareceu a clarinada sonora de chamada às armas. Como tema musical para uma segunda lua-de-mel também não era dos mais propícios. E mesmo enquanto planejávamos a campanha, parecia mais uma conspiração do que a batalha dos justos contra os pecadores.

     Ao voltarmos para o hotel, o vento de Santa Ana soprava forte. Juliette ia sentada no carro ao meu lado, em silêncio e distante. Eu ansiava por tomá-la em meus braços e fazê-la sorrir novamente. Mas ela estava distante, na terra dos devaneios, onde os espíritos das mulheres choram os amores que perderam ou os amantes que desdenharam. Gastei quatro horas e uma pequena fortuna em telefonemas. Quando acabei, fui pegar o avião da meia-noite para Nova York.

    

     Sinto-me inteiramente em casa em Nova York, um capitalista descarado a gozar os despojos da livre iniciativa. Tenho um apartamento, um criado japonês, um bom clube e uma miscelânea de amigos, de ambos os sexos. Adoro a cidade por todas as suas loucuras e delírios. Regozijo-me com sua ostentação espalhafatosa, seu lacônico cinismo e suas bruscas e péssimas maneiras. E um lugar arriscado para se viver, um lugar muito fácil para se morrer. Mas sinto-me mais feliz em Nova York do que em qualquer outra cidade do mundo.

     Possuo também em Nova York um abençoado isolamento, porque o telefone não está no catálogo, na portaria do prédio consta o nome de outro homem e uso também o apartamento do banco, no Salvador, onde posso receber os importunos, evitando assim que eles ingressem em meu refúgio. O arranjo possui suas vantagens diplomáticas. O Salvador é bastante público, onde todo mundo é visto e se fica especulando sobre os negócios ali realizados. Lanço as insinuações que desejo num lugar e posso tranqüilamente descansar em outro.

     Às oito horas da manhã, amarrotado e sonolento, registrei-me no Salvador. Às nove já estava em meu próprio apartamento. Às dez, graças aos cuidados de Takeshi, estava barbeado, banhado, alimentado, novamente com uma forma humana. Às dez e meia estava descendo a Third Avenue, a fim de entrar em contato com Aaron Bogdanovich, que negociava com o terror e com flores exóticas e caras.

     O comércio de flores era bastante próspero. Duas moças, armadas de tesouras grandes e arames, estavam fazendo arranjos de mesa. Um jovem exótico estava arrumando um buquê numa caixa. Uma dama opulenta, com óculos de ouro, uma túnica amarelo-limão e um sorriso voraz, indagou-me o que eu desejava e já estava me mostrando um catálogo de flores da primavera antes mesmo que eu tivesse tempo de respirar. Quando pedi para ver o proprietário, o sorriso dela instantaneamente desapareceu, não mais queria saber o que me agradava e sim meu nome e ofício.

     A informação não lhe proporcionou nenhuma satisfação visível. Quando lhe entreguei a carta de Karl Kruger, ela segurou-a cuidadosamente, quase como se fosse explosiva, colocando-a numa pequena bandeja e levando-a para uma sala nos fundos. Voltou momentos depois, dizendo que eu deveria atravessar a rua, até a Taverna Ginty's, e esperar por uma chamada no telefone público. Saí rapidamente, sentindo-me leproso e indesejável.

     No Ginty's, tomei um suco de tomate e contei todas as garrafas nas prateleiras, até que o telefone tocou e uma voz me ordenou que seguisse até a Catedral de Saint Patrick e me ajoelhasse no primeiro confessionário do lado direito. A essa altura já estava começando a achar que toda aquela rotina era um absurdo total. E foi o que eu disse. A voz censurou-me asperamente:

     — Quando precisamos de um banqueiro, vamos procurá-lo. Em nosso negócio, somos os especialistas. Entendido?

     A coisa colocada naqueles termos, claro que estava entendido. A Catedral de Saint Patrick não ficava muito longe e uma pequena oração poderia ajudar — contanto que eu me lembrasse das palavras certas. O confessionário estava escuro e com um cheiro de ranço de muitos pecados. A grade que separava o penitente do confessor estava coberta por uma tela opaca. A voz que me falou através dela era anônima, um murmúrio suave:

     — Você é Paul Desmond?

     — Sou.

     — Eu sou Aaron Bogdanovich. Possuo uma memória fotográfica. Irá dizer-me os serviços que deseja. Eu lhe direi se, aceito e em que termos poderemos aceitá-los. Comece, por favor.

     Contei-lhe tudo, numa confissão monótona. Foi um exercício interessante, pois fez-me ver o quão vagamente eu definira minha própria posição e quanta razão existia para as dúvidas e hesitações de Arlequim. Aaron Bogdanovich era um bom ouvinte e um hábil inquisidor. Fez-me algumas perguntas constrangedoras.

     — Como classificaria suas necessidades em ordem de importância?

     — Evitar que assumam nosso negócio, investigar a operação fraudulenta e limpar nosso sistema, provar que Basil Yanko é culpado de conspiração criminosa.

     — As duas primeiras operações são defensivas. A terceira é ofensiva. Por quê?

     — Se empreendermos uma guerra defensiva, estaremos fadados a perder.

     — Já imaginou o custo possível?

     — Em dinheiro? Não. Partimos do princípio de que poderá ser bastante dispendioso.

     — O dinheiro não é o problema fundamental.

     — E qual é então?

     — Vida e morte. Quando se vai à polícia ou a uma empresa de reconhecida segurança, contrata-se um homem com uma arma para defender a vida e a propriedade do cliente. A procuração que eles recebem é limitada. São responsáveis perante a lei por tudo o que fazem. O mesmo não acontece conosco, porque operamos fora da lei. Contudo, temos alguns princípios morais e não somos assassinos de aluguel. Pode comprá-los, se quiser, num mercado que funciona abertamente. A taxa começa em vinte mil dólares por assassinato.

     — Não estamos querendo contratar assassinos.

     — Mas talvez haja alguma violência implicada na operação e a morte é a conseqüência inevitável da violência. Por isso terá que decidir primeiro — e nós depois — se o problema é grave o suficiente para justificar um risco de morte.

     — Temos que discutir isso?

     — Não agora. Gostaria que primeiro definisse à vontade sua posição. Depois tornaremos a nos encontrar.

     — Frente a frente?

     — Por que quer saber?

     — Falou em princípios morais. Precisamos saber quais são os que temos em comum. Nunca fiz contrato com um homem que não conhecesse. Jamais assinei um contrato em aberto. Portanto, a próxima reunião terá que ser frente a frente ou terminamos tudo agora mesmo.

     — Concordo.

     — Sugiro que seja em meu apartamento. Pode escolher o dia e a hora que mais lhe convierem.

     — Esta noite, às onze e meia. Tem documentos que eu possa estudar?

     — Estão aqui, em minha maleta.

     — Deixe-a aberta aí no chão, com seu endereço e telefone. Eu a pegarei depois que sair. Só mais uma coisa.

     — Pois não?

     — Sirvo antes de mais nada a um país. Ajudo os seus amigos e os meus por concessão e corolário. Não posso pôr meu trabalho em risco. Portanto, deve comprometer-se a manter sigilo absoluto.

     — Está certo.

     — Deve saber também qual a penalidade por qualquer violação.

     — E qual é?

     — A morte, Sr. Desmond. E não receberá um segundo aviso.

     É impressionante como um homem pensa lucidamente quando a sua própria morte está em jogo. Ao percorrer a Fifth Avenue, abrindo caminho por entre a multidão do meio-dia, avaliei minha própria posição em relação à de meu sinistro confessor. Aaron Bogdanovich tinha uma razão plausível para seu ofício. Uma morte ou uma centena de mortes eram cifras insignificantes diante dos seis milhões de assassinados no grande holocausto. Nenhuma vida era mais importante que a sobrevivência de uma nação sitiada. Mas o que dizer de um banco? Será que uma sociedade anônima, dedicada exclusivamente a ganhar dinheiro, tinha o direito de fazer um sacrifício humano para preservar seus bens? Quem escolheria a vítima e por que critério? E que direito tinha Paul Desmond, encastelado na segurança de sua propriedade e de sua riqueza, de designar-se juiz e júri e delegar atribuições ao carrasco?

     Quando parei para admirar os diamantes na vitrina da Cartier, um cego, com um cartaz pendurado no pescoço, sacudiu uma caneca de lata diante de mim. Eu não tinha moeda alguma e por isso peguei uma nota amarrotada no bolso. Ao colocá-la na caneca verifiquei, tarde demais, que era uma nota de dez dólares. Lamentei o fato tão irracionalmente que aquela esmola absolutamente não representou uma absolvição.

    

     Tinha um almoço marcado no Salvador com nosso gerente de Nova York, Larry Oliver, um bostoniano de fina educação e um respeito quase fanático pela tradição. Ele seria o mais feliz dos mortais se pudesse aparelhar o escritório com escriturários encurvados, mesas altas e penas de escrever. Certa ocasião Arlequim deixara-o no escritório de Londres durante seis meses. Ele voltara chocado e profundamente desapontado com a deterioração moral do sistema bancário inglês. Os bárbaros de Wall Street faziam piadas a seu respeito, mas o fato é que nos fizera atravessar a crise de 1970 sem que nossa carteira sofresse nenhum abalo de maior vulto. A mais simples imprecisão constituía para ele um tremendo anátema. Um engano em nossas contas era um horror inimaginável. Por tudo isso é que eu esperava um almoço difícil. E, a dizer a verdade, foi um desastre total. Com uma expressão de infelicidade, Oliver mal provou sua comida, enquanto eu lhe explicava a situação, até o ponto em que ele precisava saber, fornecendo os detalhes referentes ao escritório de Nova York. Ele não provou o café, levantou-se e, com as mãos nas costas, por baixo do paletó, ficou andando de um lado para outro da sala, como um advogado a fazer uma preleção para um cliente difícil.

     — Eu compreendo tudo, Paul. Pode ter certeza de que compreendo perfeitamente a gravidade da situação. Mas por que não me informaram antes?

     — Pelo amor de Deus, Larry, nós só soubemos do ocorrido quatro dias atrás! Passei imediatamente um cabo-grama para você e para todos os outros gerentes. Levei dois dias conferenciando com George Arlequim e o resto -do tempo estive viajando. Seja razoável, meu caro!

     — Estou tentando sê-lo, Paul. Mas minha reputação está envolvida, o nome de minha família...

     — Arlequim e eu jamais tivemos a menor dúvida sequer a seu respeito, Larry.

     — Mas assim que a história transpirar...

     — Isso nunca vai acontecer, Larry! O desfalque já está coberto. E vim a Nova York para tratar de uma ampla e minuciosa investigação do ocorrido.

     — Mas através de uma agência particular.

     — Provavelmente mais de uma.

     Ele estacou bruscamente e sacudiu-me um dedo reprovador.

     — Infelizmente isso não deixará tudo acertado, Paul.

     — Como assim?

     — A menos que eu esteja interpretando a lei de forma errada, creio que fomos vítimas de uma fraude. Certo?

     — Em face da lei, está certo.

     — Então é um caso para o FBI. Por que eles não foram chamados?

     — Porque, embora suspeitemos de fraude, ainda não tivemos tempo de conferir e analisar todas as provas. Além disso, operamos em diversas jurisdições. Pode ser que o FBI não seja a principal agência envolvida no caso. Mas terei uma reunião com o pessoal da Creative Systems para examinarmos juntos o relatório e depois voltarei a encontrar-me com o Sr. George Arlequim, quando então será decidido se chamaremos ou não os agentes federais.

     — Enquanto isso todo o nosso pessoal e eu próprio estamos sob suspeita. Acho tal situação intolerável.

     — Compreendo, Larry. Mas peço-lhe que seja paciente. Temos que coordenar nossa ação com todas as demais filiais.

     — Sei disso, Paul. Mas será que muita coisa já não transpirou?

     — Espero que isso não tenha acontecido.

     — Não tenho muita certeza. Ontem almocei no clube numa mesa de quatro pessoas. Fizeram-me algumas perguntas estranhas.

     — Tais como...?

     — Se Arlequim estaria apto a um trabalho ativo novamente.

     — Estará, muito em breve.

     — Se eu sentia qualquer fraqueza em nossas operações de Genebra.

     — E você assegurou-lhes que não havia nenhuma?

     — Ao que eu soubesse...Nunca faço declarações precipitadas.

     — Eu sei, Larry, eu sei. Quais foram as outras perguntas?

     — Se estávamos aceitando propostas para a transferência de controle e se era verdade que já fora formulada uma. Eu respondi "não" a ambas.

     — Novamente ao que você soubesse...

     — Claro. Depois me perguntaram se eu estaria propenso a uma mudança. Respondi que estava bastante satisfeito com Arlequim et Cie., e muito mais ainda com minhas relações com o nosso presidente. Temos muitas coisas em comum, como o interesse pela pintura e o respeito aos antecedentes sólidos. E, se assim posso dizê-lo, somos ambos descendentes de famílias tradicionais.

     — Fico satisfeito em ouvi-lo dizer isso, Larry. Arlequim está contando com seu apoio neste momento difícil.

     — Pois então, por favor, assegure-lhe que pode contar comigo. Mas eu não seria honesto se não dissesse também que a menor sombra de suspeita sobre a reputação do banco ou sobre mim pode levar-me a reavaliar minha posição.

     — Agradeço sua sinceridade, Larry. E tenho certeza de que Arlequim irá procurá-lo assim que chegar a Nova York. Até lá, estarei em contato com você diariamente. E, Larry...

     — O que é, Paul?

     — Este é o momento de todos mostrarem o que realmente são. Sabe disso, não é?

     — Sei, Paul. E obrigado por sua confiança. Agora é melhor eu voltar e cuidar dos negócios.

     Ele saiu da sala de cabeça erguida, o rosto brilhando de dedicação, um bom bostoniano, no qual, como dizia Tom Appleton, o vento leste encontrava abrigo. A informação que ele me fornecera era desoladora. A notícia de nosso problema já transpirara. Haveria novos rumores a cada dia que surgisse. Os boatos dos bares iriam rapidamente espalhar-se pela cidade e muito em breve uma proposta de cem dólares por ação pareceria um maná no deserto. Eu estava precisando tomar um conhaque bem porte. Mas decidi não tomá-lo, porque Valerie Hallstrom ficara de chegar às três e meia e eu precisaria de toda a minha lucidez quando nos sentássemos para analisar o relatório.

     Valerie Adele Hallstrom — seu nome completo, conforme pude verificar no cartão de visitas — era realmente um fenômeno. Alta e loura, possuía um desses rostos escandinavos francos e saudáveis que os agentes de viagens usam para seduzir os incautos a um cruzeiro pelo Báltico em pleno inverno. O corpo era um incitamento ao motim. Não que ela procurasse exibi-lo, muito pelo contrário. A roupa que usava era um milagre de discrição. Os gestos eram comedidos, a voz de um contralto suave. Ela sabia o que pensava e tinha na ponta da língua todas as palavras necessárias para expressar seus pensamentos. A princípio, deixou-me um pouco perturbado. Mas à medida que analisamos o documento, item por item, o efeito que me causou foi apavorante.

     — Espero que compreenda, Sr. Desmond, que se resolver tomar medidas legais, este documento terá que valer como prova nos tribunais. No momento em que o assinei, o documento passou a contar com minha reputação profissional e a da corporação onde trabalho.

     — Conclui então, como o documento declara categoricamente, que as fraudes ocorreram dentro de nossa própria organização.

     — Não temos a menor dúvida quanto a isso.

     — Poderia explicar-me novamente qual o processo que pode ter sido utilizado?

     — Tomemos como exemplo a matriz de vocês em Genebra. O sistema de computadores está localizado em Zurique. Vocês alugam tempo de uso, quatro horas por dia, cinco dias por semana. Usam duas linhas diretas para o computador central, comunicando-se através de um código exclusivo. Quem quer que conheça esse código, pode usar as linhas de vocês ou as de qualquer outro para fornecer informações e instruções ao computador ou para retirar informações.

     — Isso tudo está claro, mas há algumas brechas. Ou nossos operadores cometeram a fraude ou alguém de fora o fez, usando nossa palavra-código.

     — A qual só poderiam obter com alguém de dentro de sua organização, não é mesmo?

     — Possivelmente...Segundo estou entendendo, no momento em que uma instrução é fornecida ao computador, fica depositada no banco de memória e é automaticamente executada. *

     — Exatamente.

     — E ninguém sabe que a instrução existe, exceto a pessoa que a transmitiu ao banco de memória.

     — Isso mesmo. E essa é a base de todas as fraudes clássicas. Por exemplo: se a pessoa possui um limite de saque a descoberto de dois mil dólares, pode aumentá-lo para duzentos mil, apenas acrescentando dois zeros ao programa. Depois que tal dado foi incluído no registro, o correntista pode operar tranqüilamente dentro do falso limite, * sem que ninguém o ponha em dúvida — a menos e até que alguém vá verificar a instrução original. Posso dar-lhe outro exemplo. Alguém pode ordenar ao computador que registre um saldo de cem mil dólares em sua conta num dia determinado, apagando a transação do banco de memória no dia seguinte. Retira o dinheiro da conta com um cheque marcado "saldo de conta" e sai tranqüilamente do país. A menos que possa ser provado que a pessoa foi quem deu a instrução ao computador para cometer a fraude, é muito difícil provar que tal pessoa foi culpada de algum crime. Afinal, a pessoa não declarou ter um dinheiro a que não tinha direito. O erro foi cometido pelo computador, agindo e operando pelo banco.

     — Gostaria, senhorita, de repassar o que aconteceu exatamente em nosso escritório de Genebra. Alguém, supostamente o próprio George Arlequim, abriu uma conta numerada no Union Bank. A conta foi aberta pelo correio, usando documentos assinados ou aparentemente assinados por George Arlequim. As assinaturas conferem. Arlequim, no entanto, nega ter qualquer conhecimento de tal conta. Portanto, podemos concluir que as assinaturas são falsificadas. Em seguida, alguém, usando nosso código, dá ordens ao computador para cobrar uma despesa de um por cento em cada transação, depositando os lucros, semanalmente, na suposta conta de Arlequim no Union Bank. Como as despesas bancárias estão ficando cada vez mais complicadas, uma decorrência da ganância cada vez maior dos banqueiros, tal despesa poderia facilmente passar despercebida até o momento de uma auditoria. Certo?

     — Certo. Mas, por ocasião da auditoria, ela teria que ser justificada por uma instrução original.

     — E então, se fosse Arlequim que tivesse emitido tal instrução, ele estaria imediatamente sujeito a um processo criminal.

     — Certo.

     — Mas ele não é estúpido e não precisa desse dinheiro. Portanto, senhorita, qual sua conclusão?

     — Que seria impróprio para mim fazer qualquer comentário, Sr. Desmond. Nosso contrato com vocês é para descobrir anomalias e fraudes. Compete a vocês tirar as conclusões apropriadas e tomar as iniciativas adequadas.

     — Ótimo. Mas deixe-me formular a pergunta sob outro ângulo. Somos um homem e uma mulher sozinhos numa suíte de hotel. Não há testemunhas. Espero que não haja também microfones ocultos, a menos que a senhorita esteja carregando algum. Estaria disposta a expressar, sem o menor preconceito, uma opinião particular?

     — Não, Sr. Desmond.

     — Mas tem alguma?

     — Tenho: a de que devo ater-me exclusivamente ao relatório que assinei.

     — Mas esse é um problema extra-relatório.

     — Um problema de opinião, Sr. Desmond, não de fato. Se deseja debatê-lo com a Creative Systems Incorporated, deve procurar diretamente o Sr. Yanko, sob cuja orientação eu trabalho. Gostaria agora de analisar o que aconteceu nas filiais?

     — Não. As transações variam, mas o método é praticamente o mesmo e o resultado idêntico. George Arlequim supostamente cometeu uma fraude.

     — Posso perguntar quais as medidas que já tomaram para evitar a continuação de tal situação?

     — Anulamos todas as instruções ao computador indicadas em seu relatório.

     — Ótimo.

     — E estamos iniciando uma investigação minuciosa para descobrir quem foi o autor da fraude. Seu relatório afirma que não pode deixar de ser alguém de dentro ou ligado a Arlequim et Cie. Mas não existe a menor menção à possibilidade de ter sido alguém da Creative Systems Incorporated.

     — Pelo contrário, Sr. Desmond. Na página 85, terceiro parágrafo, fazemos uma menção específica a tal possibilidade. Aqui está: "Todos os funcionários da Creative Systems ligados a essas operações foram meticulosamente investigados e estamos convencidos de que nenhum deles, sob forma alguma, está envolvido nas operações fraudulentas".

     — E espera que aceitemos integralmente tal afirmativa?

     — À falta de provas em contrário, é precisamente o que esperamos.

     — Srta. Hallstrom, gostaria de fazer-lhe um elogio.

     — Faça-o então, Sr. Desmond, por gentileza.

     — É uma mulher muito bonita.

     — Obrigada.

     — Gostaria de que estivesse trabalhando para nós.

     — Mas eu estou, Sr. Desmond. Espere até receber a conta. Meus serviços têm um preço consideravelmente elevado.

     — Costuma ter folgas?

     — Freqüentemente.

     — Gostaria de retribuir-me o elogio e ir jantar comigo uma noite dessas, se eu prometer não falar de negócios?

     — Seria um prazer.

     — Para onde posso telefonar-lhe?

     — Eu lhe darei meu cartão. Telefone-me por volta das sete horas, no dia que lhe aprouver.

     — Obrigado.

     — Mais uma coisa: o Sr. Yanko pediu-me que lhe dissesse que amanhã, entre dez horas e meio-dia, estará à sua disposição.

     — Diga-lhe que me espere às onze horas.

     — Au revoir, Sr. Desmond. Foi um prazer conhecê-lo.

     — O prazer foi meu, Srta. Hallstrom.

     O diabo que foi! Achava-a uma cadela descarada, mas pelo menos tinha agora seu telefone e endereço e um meio convite para intrometer-me em sua vida íntima.

     Era uma pequena vitória, mas não necessariamente uma frivolidade. Quando se enfrenta uma corporação gigantesca, é preciso ter amigos dentro dela. Algumas companhias são mais poderosas que as nações nas quais operam. Elas ultrapassam as fronteiras e passam por cima das jurisdições locais. Utilizam os melhores cérebros, compram os melhores serviços jurídicos em cada país. Muitos diplomatas e políticos estão a serviço delas...Mas, quando se procura uma resposta objetiva para uma questão objetiva, pode-se levar dois anos para obtê-la, sendo necessária uma imensa biblioteca só para abrigar a correspondência a respeito. Assim, o jantar com Valerie Hallstrom poderia não dar em nada. Por outro lado, porém, poderia ser a chave para a descoberta de importantes segredos, porque, quanto maior é a corporação, mais diluídas estão as lealdades e mais encarniçada é a luta travada pelas facções existentes nos escalões superiores.

     Eram seis horas da tarde. Subitamente eu me sentia cansado, deprimido e velho. Saí do Salvador e percorri dez quarteirões até meu próprio apartamento, dormindo até Takeshi chamar-me, às onze horas.

     Às onze e meia, pontual como o Juízo Final, Aaron Bogdanovich apareceu. Era um homem alto, esguio, bronzeado e musculoso. Parecia ter quarenta anos, mas poderia perfeitamente ter cinqüenta. Era impossível dizê-lo, sem uma certidão de nascimento. Vestia-se de forma negligente, mas impecável. Sorria com facilidade. O aperto de mão foi bastante firme. Depois de um olhar avaliador para o apartamento, ele disse:

     — Temos um homem vigiando a porta do edifício. Há outro aqui no corredor. Gostaria de chamá-lo para ele verificar se há microfones ocultos no apartamento. Faz alguma objeção?

     — Absolutamente nenhuma.

     Seu agente entrou, um jovem silencioso que examinou todos os cômodos com um detector, sacudiu a cabeça num gesto de satisfação e depois saiu do apartamento, sem dizer uma palavra sequer.

     Bogdanovich relaxou visivelmente.

     — Agora podemos conversar.

     — Quer beber alguma coisa?

     — Um suco de frutas, por gentileza.

     Takeshi serviu as bebidas e retirou-se. Aaron Bogdanovich sorriu-me por cima de seu copo.

     — E então, Sr. Desmond, o que decidiu?

     — Estamos encurralados e vamos ter que lutar. Aceitamos a possibilidade de conseqüências drásticas.

     — Seu superior concorda com tal decisão?

     — Ele me deu carta branca.

     — As despesas são as seguintes: terá que pôr à nossa disposição, imediatamente, duzentos e cinqüenta mil dólares em dinheiro; manterá de reserva uma quantia igual, para pôr à nossa disposição em qualquer moeda e na capital que indicarmos. O total é de meio milhão de dólares, podendo haver um acréscimo que não superará dez por cento.

     — Ganhando ou perdendo?

     — Exatamente. É um ato de fé. O outro lado da barganha é que assumimos todos os nossos riscos e nunca, em quaisquer circunstâncias, os transferimos para o cliente. Se houver sangue na operação, nós mesmos trataremos de limpá-lo. Pode comprometer-se a nos pagar tal quantia?

     — Posso.

     — L'chaim, Sr. Desmond!

     — Saúde!

     Fizemos o brinde e fechamos o acordo. Sentamo-nos para jantar e Bogdanovich discorreu sobre a campanha, como se fosse um general a instruir seu estado-maior.

     — Li o documento e concordo com suas conclusões. A fraude está relacionada com a proposta de venda do controle acionário da companhia. Yanko é o provável instigador. Para prová-lo, teremos que trabalhar dentro da organização dele e também da sua.

     — E podem fazê-lo?

     — Podemos. Vamos ter também que montar uma operação de cobertura, para desviar as atenções de nossas atividades.

     — E como o faremos?

     — Vocês devem solicitar os serviços de uma organização regular de segurança.-Sugerimos que usem a Lichtman Wells, que tem âmbito internacional. Deverão pedir que a operação seja dirigida pessoalmente pelo Sr. Saul Wells. Ele aceitará a incumbência.

     — Por quê?

     — Por ter certeza de que ele o fará e designará os agentes adequados.

     — Seus agentes, não é mesmo?

     — Eu não disse isso. E também não deveria perguntar...Espero que compreenda, Sr. Desmond, que não é de todo impossível que um dia seja pressionado para revelar o que sabe sobre esta operação. Considerando a sanção sobre a qual já discutimos, não acha que é melhor não ter nada para dizer? ...É por acaso casado, Sr. Desmond?

     — Não.

     — Tem parentes ou ligações íntimas pelas quais possa ser chantageado? Uma amante, talvez? Ou então um filho?

     — Não. Mas Arlequim tem esposa e um filho.

     — Então ele também deve ficar a par dos riscos.

     — Tratarei de informá-lo.

     — Quero também conhecê-lo pessoalmente.

     — Ele recebeu alta do hospital esta manhã. Tencionava tirar umas férias e passar alguns dias em Acapulco com a esposa. Mas agora os dois virão para Nova York. Ficarão no apartamento do banco, no Salvador. Já providenciamos a supervisão médica necessária durante seu período de convalescença.

     — É uma medida sensata, pois é bem possível que ambos tenham de viajar bastante num futuro próximo.

     — Como assim?

     — O banco está em crise. Precisarão, evidentemente, visitar todas as filiais. Além disso, para segurança de vocês e de nossas operações, talvez seja necessário mantê-los em permanente movimento.

     — Confesso que é uma idéia alarmante.

     — Eu sei que é. Mas pense no assunto, Sr. Desmond. A sua empresa é um grande prêmio e as corporações não possuem princípios morais. É muito fácil providenciarem-se acidentes fatais. Hoje em dia seqüestram-se executivos e diplomatas por resgate. A tortura foi elevada à categoria de ciência. Leia qualquer jornal diário e verá que não estou exagerando. E o que não aparece nos jornais é ainda mais sinistro. Neste momento, por exemplo, há um corpo flutuando no rio East. É o corpo de um pistoleiro que foi contratado para assassinar esta noite um delegado árabe junto à ONU. Ele deveria matar o referido delegado às oito e meia, quando saltasse do carro para comparecer a um jantar em sua homenagem. E meu povo, obviamente, seria responsabilizado por sua morte...Espero estar sendo bastante claro, Sr. Desmond.

     — Claro demais para que eu me sinta tranqüilo.

     — Dinheiro é poder, Sr. Desmond. Não há tranqüilidade em nenhum dos dois.

     — Quer dizer então que Arlequim e eu talvez tenhamos que viajar bastante. O que mais?

     — Aja o mais normalmente que puder. Yanko espera que entrem em negociações com ele a propósito da venda das ações. Pois negociem. Ele espera que realizem uma investigação. Façam-na. E seus gerentes e executivos devem permanecer ignorando minhas atividades e prosseguir em seus negócios normais. Deverá transmitir-nos imediatamente qualquer informação nova que venha a ter.

     — De que jeito?

     — Aqui em Nova York, pelo telefone, falando de uma cabine pública. Eu lhe darei dois números que deverá decorar. Deverá identificar-se pelo nome de Weizman. Quando deixar Nova York, deverá providenciar tudo através de uma agência de viagens que lhe indicarei. Quando for pegar suas passagens, receberá as indicações sobre seus contatos nas cidades para onde for.

     — Pois já tenho uma informação nova para lhe fornecer. Conversei esta tarde com uma mulher, Valerie Hallstrom. Ela trabalha para Yanko e foi quem preparou o relatório.

     — Ela lhe contou algo útil?

     — Pelo contrário. Recusou-se a ir um passo além do que já constava do relatório. Mas convidei-a para jantar e ela não recusou. Deu-me um cartão com seu endereço e telefone.

     — Poderia mostrar-me, por gentileza?

     Ele olhou o cartão por um momento e depois devolveu-me. Não pude resistir à pergunta:

     — Possui realmente memória fotográfica?

     — Possuo.

     — Devo encontrar-me com essa mulher?

     — Ela é bonita?

     — Bastante.

     — E acessível?

     — É o que gostaria de descobrir.

     — Gostaria apenas de que me informasse de qualquer encontro que marcasse.

     — O que provoca outra pergunta: como vai entrar em contato comigo? Eu me movimentarei bastante nos próximos dias.

     — Aonde quer que vá, Sr. Desmond, eu saberei. Nossos preços são elevados, mas proporcionamos atendimento vinte e quatro horas por dia...Por falar nisso, há quanto tempo esse empregado trabalha para o senhor?

     — Seis anos.

     — E evidente que confia nele. Mas o que sabe a respeito de suas origens?

     — Quase nada. Ele trabalhou para um amigo meu durante cinco anos. Quando esse amigo partiu de Nova York, fiquei com seu apartamento e com Takeshi. Há muitas coisas valiosas aqui dentro e, além disso, é ele quem cuida das despesas da casa. Até agora, não tive a menor razão de queixa.

     — É uma boa ficha, mas mesmo assim iremos verificá-lo. O senhor possui algum vício, Sr. Desmond?

     — É uma pergunta difícil de responder!

     — Mas tenho que saber.

     — Digamos que a resposta é negativa. Não jogo. Gosto de beber, mas há vinte anos que não fico embriagado. Não compro sexo, gosto apenas de mulheres e não costumo dizer seus nomes no clube.

     — Algum segredo culposo?

     — Um casamento malsucedido.

     — Dívidas?

     — Nenhuma.

     — Obrigado, Sr. Desmond. No momento, isso é tudo de que preciso saber.

     — Mais café?

     — Não, obrigado.

     — Queria fazer-lhe também uma pergunta, Sr. Bogdanovich.

     — E qual é?

     — Por que concordou em aceitar essa tarefa?

     — No fundo, Sr. Desmond, o que está realmente querendo saber não é por que não procurei quem me pagasse mais?

     — Não. Desejo saber exatamente o que perguntei.

     — Há duas respostas, Sr. Desmond. A primeira é simples. O senhor foi recomendado por um bom amigo, Karl Kruger, e está em condições de pagar pelos serviços que lhe vamos prestar. A segunda é um pouco mais complicada. Tenho muito pouca fé na integridade dos seres humanos. Sei que cada homem tem seu preço e só morrerá honrado se ninguém o oferecer. Sei que cada homem tem um medo, através do qual pode ser destruído. Deixei de acreditar em Deus porque vejo uma criação fundada numa luta destrutiva pela existência. No entanto, sei que a ordem é necessária para que a vida permaneça pelo menos meio tolerável. Se um homem razoavelmente justo é atacado por um arrogante, todos nós estamos sendo também atacados. E a única maneira de deter um arrogante é arrebentar-lhe todos os dentes. E se a pessoa atacada é pequena demais para tanto, então ela me contrata...

     Ele ofereceu-me aquele sorriso pronto e fácil e sacudiu os ombros.

     — É claro que se trata de um argumento capcioso. O senhor seria um tolo se o aceitasse por completo. Mas, mesmo em nossa selva, precisamos de um vestígio de razão para justificar o que fazemos. Agora, deixe-me dar-lhe os telefones e o nome de nosso agente de viagens.

     Depois que ele se foi, Takeshi resumiu-o numa única frase, um tanto assustadora:

     — Tenho a impressão de que aquele homem dorme dentro de um túmulo, senhor.

    

     A sede da Creative Systems Incorporated ocupava seis andares de um reluzente edifício de vidro e alumínio na Park Avenue. Havia três andares repletos de máquinas, patrulhados por guardas armados, e dois de escritórios imaculados, por onde circulavam jovens de rosto grave, deslocando-se por entre uma multidão de secretárias. O sexto andar era o domínio particular de Basil Yanko, um lugar sagrado revestido de lambris de madeiras exóticas, silencioso por causa dos grossos tapetes, ornado com quadros e artefatos caríssimos. A recepção era dominada por uma duquesa de meia-idade e dois guardas, um dos quais conduzia os visitantes através dos corredores silenciosos, enquanto o outro permanecia vigilante contra os intrusos.

     Quando cheguei, faltavam dois minutos para as onze horas. O guarda verificou meu nome numa relação datilografada; a duquesa anunciou-o pelo aparelho de intercomunicação e depois pediu-me que me sentasse por um momento. Às onze horas em ponto acendeu-se uma luz vermelha no painel e a duquesa fez um sinal para o guarda, que me conduziu ao santo dos santos, uma sala imensa onde Basil

     Yanko estava sentado atrás de uma vasta mesa, sobre a qual não havia nenhum papel. O guarda retirou-se e a porta se fechou silenciosamente. Percorri quase meio quilômetro de tapete para apertar a mão fria do senhor daquele império.

     Ele se mostrou brusco como sempre, mas favoreceu-me com um sorriso e com uma preocupação rápida por meu bem-estar.

     — Espero que esteja descansado, Sr. Desmond.

     — Estou, sim, obrigado.

     — E como está George Arlequim?

     — Já recebeu alta do hospital e deve chegar hoje a Nova York. Não estou muito satisfeito com isso, mas ele insistiu. Deverá continuar por algum tempo sob cuidados médicos.

     — Lamento que isso ainda seja necessário. Ele já chegou a alguma decisão com relação à minha proposta?

     — Já. Pediu-me que lhe dissesse que está preparado para negociar, assim que estiver recuperado o suficiente para empenhar-se em discussões de negócios.

     — E quando isso pode ser?

     — Espero que muito em breve. Mas o médico dele aqui em Nova York é que poderá dar a resposta definitiva.

     — Compreendo. Até lá, nós dois podemos fixar as bases para as discussões, não é mesmo?

     — Arlequim deu-me uma diretiva a esse respeito.

     — E qual é?

     — Ele não está preparado para iniciar qualquer negociação enquanto estiver sob dificuldades. Determinou-me que iniciasse uma ampla investigação sobre as fraudes dos computadores, usando uma organização independente. Escolhemos a Lichtman Wells. Terei meu primeiro encontro com eles esta tarde.

     — É uma excelente organização. Seus agentes são muito bem treinados.

     — Foi o que me disseram.

     — Estamos prontos, é claro, a ajudá-los, de todas as formas possíveis.

     — Obrigado.

     — Mas não podemos esquecer que o elemento tempo é muito importante para todos nós, Sr. Desmond.

     — Sabemos disso perfeitamente.

     — Acho, portanto, que devemos fixar um limite.

     — Como assim?

     — Nossa proposta de cem dólares por ação continua de pé. Contudo, temos que fixar um limite para sua validade. Como sabe muito bem, o mercado de dinheiro é hoje muito inconstante. Não podemos manter indefinidamente o ágio que oferecemos.

     — E que prazo sugere?

     — Trinta dias a partir de hoje.

     — É muito pouco, Sr. Yanko. Representa apenas vinte e dois dias úteis. Provavelmente não conseguiremos concluir uma investigação internacional em período tão exíguo. Precisamos de noventa dias, no mínimo.

     — Da maneira como o mercado anda atualmente? Não há condição.

     — Seu telex declarava que a proposta era formulada tendo por base uma projeção de três anos.

     — A avaliação, não o ágio.

     — Mesmo assim, não podemos fazer por menos de três meses.

     — Sessenta dias, não mais do que isso.

     — Esse detalhe não consta de minhas instruções. Terei que conversar com Arlequim.

     — Faça-o então, por favor. E quando posso contar com a resposta?

     — Isso compete a ele. No entanto, sei que Arlequim é um homem suscetível à cortesia.

     — Coisa que às vezes me falta. Sei disso, Sr. Desmond. Vamos pôr a coisa nos seguintes termos: se Arlequim desejar adiar sua resposta, estarei livre para reduzir meu limite de tempo por um período equivalente. Não acha justo?

     — Está sendo muito duro, mas transmitirei sua posição a Arlequim.

     — Também é um homem duro, Sr. Desmond. Mas respeito-o por isso. Se algum dia sentir vontade de mudar de ritmo ou de cenário, ficarei feliz em poder oferecer-lhe condições das mais generosas.

     - E assim, ao melhor estilo de negócios, de forma sóbria e legal, a ameaça fora finalmente formulada. Se não pudéssemos ser comprados nem enganados, seríamos espremidos entre as pedras de um moinho. A habilidade sardônica do predador era uma afronta. Tive vontade de cuspir-lhe no olho. Em vez disso, porém, agradeci-lhe a cortesia e saí novamente para a loucura humana da Park Avenue.

     Às três horas da tarde compareci à reunião na Lichtman Wells. A experiência não foi nada confortadora, já que o pessoal de segurança, assim como os corretores de seguros, vive da perspectiva de desastre. O sócio mais velho, um ex-coronel da polícia militar, de cabelos brancos, leu-me uma lista aterrorizante de casos existentes em seus arquivos, nenhum dos quais teria acontecido se as vítimas tivessem usado os serviços da Lichtman Wells. Saul Wells, o sócio mais novo, ficou sentado pacientemente durante toda a reunião. Depois que o contrato foi assinado, reanimou-me com um café em sua própria sala. Era um homem pequeno e agitado, ruivo, que mastigava incessantemente um charuto apagado e pontuava sua fala com piscadelas e gestos.

     — Não deixe que o velho o preocupe, Sr. Desmond. Ele é o vendedor da organização e precisa fazer um discurso. De minha parte terá ação, sem muita conversa. Gostaria de saber como operamos? Bem, internamente é uma investigação direta. Nosso agente entra pela porta da frente, sem segredos, sem disfarces, verifica todos os procedimentos, interroga as pessoas, procura falhas e contradições. Externamente? ...Bem, aí a coisa é um pouco diferente. Procuramos descobrir quem dorme onde, quem gasta mais do que ganha, quem se entrega excessivamente ao sexo ou gosta de jogar nas corridas, coisas assim...É como um quebra-cabeça, sabe? Ao final, todas as peças têm que se ajustar. Se fica faltando uma peça, deve estar no bolso de alguém ou fugiu pelo ralo. Lembro-me de uma vez...

     Ele lembrou e lembrou, quase interminavelmente, representando cada episódio como um comediante. De certa forma, porém, simpatizei com ele. E, ao final de duas horas, compreendi que sua dissertação sobre método arrancara-me uma considerável massa de detalhes que, de outra forma, eu jamais teria pensado em fornecer-lhe. Finalmente ele jogou a ponta apagada de charuto no cinzeiro e anunciou jovialmente:

     — Agora já me conhece e eu o conheço. Creio que nos daremos muito bem. Portanto, podemos parar com a comédia. Ponha seus gerentes de sobreaviso, pois entraremos em ação imediatamente. Não existe problema de língua. Tenho até mesmo uma moça que fala esquimó. Só mais uma coisa, Sr. Desmond: daqui por diante, o negócio será bastante duro. Se alguém começar a pressioná-lo, procure no mesmo instante o nosso amigo mútuo.

    

     Até então tudo estava correndo bem. De um lado tínhamos Yanko. Sabíamos exatamente o que ele queria e como pretendia agir para consegui-lo. De outro lado tínhamos promessas e mais promessas, um custo elevadíssimo e uma série de discursos sobre os perigos envolvidos e do quanto precisávamos de proteção.

     Atravessei a cidade em direção à First Avenue, onde o meu amigo Gully Gordon dirige um bar sossegado e toca piano para os fregueses na hora dos coquetéis. Gully é jamaicano e o único preto que conheço com sotaque escocês. Ele também fala com sotaque irlandês, créole, de Nebraska, e italiano, porque já foi ator. Costuma dizer freqüentemente:

     — Fiquei esperto, companheiro, e arrumei uma audiência cativa.

     Eu caminhava rapidamente pelo lado esquerdo da rua quando, de repente, fui violentamente empurrado e cambaleei na direção de um homem parado num portal. Caí de joelhos e, quando tentei levantar-me, recebi um golpe no pescoço. Devo ter perdido os sentidos momentaneamente, pois a coisa seguinte de que me lembro é de estar encostado na parede, com um homem de aspecto miserável, usando blue jeans e uma suéter esfarrapada, limpando a poeira de minha roupa. Instintivamente levei a mão ao bolso do paletó.

     Ele sorriu e sacudiu a cabeça.

     — Não, eles não levaram sua carteira. Tremendo, perguntei quem eram "eles".

     — Assaltantes. Um o empurra e o outro tira a carteira. Teve sorte de eu estar bem atrás. Está bem agora?

     — Acho que sim. Obrigado. Gostaria de tomar um drinque comigo?

     — Em alguma outra ocasião. Tome cuidado, Sr. Desmond.

     Ele deixou-me e desapareceu no meio da compacta multidão. Eu ainda estava aturdido e abalado e nem mesmo me ocorreu perguntar-lhe como sabia meu nome. Estava dominado por um único pensamento, assustador: como a violência era simples, quão rápida e súbita, como não atraía a atenção da multidão que passava!

     O segundo pensamento delineou-se lentamente, enquanto tomava meu drinque, encostado no piano, ouvindo a música sonhadora de Gully. Eu pertencia àquele mundo de viajantes solitários e rudes aventureiros. Não importava o quanto me tivesse afastado dele anos atrás, descansando agora à sombra do dinheiro e do conforto. Sabia-o por dentro, pela inquietação permanente, pela atração por prostitutas, pelo gosto amargo do sangue, pelos contatos furtivos, pelo dialeto empregado no mercado. Algumas vezes, desesperado e solitário, eu voltava a esse mundo, vestindo o passado como um velho casaco mofado mas confortável.

     Já meu amigo Arlequim pertencia a outro mundo. Era um erudito e um cavalheiro, criado dentro dos velhos princípios de decência da Europa. Claro que ele podia representar meu papel e vinte outros diferentes, pois ainda era o Schauspieler, o ator, atuando através do entrecho, sem nenhum outro compromisso que não o de entreter a si mesmo e à sua audiência. Perguntei-me como ele se sairia sem um roteiro, sem um ponto, quando as lâminas deixassem as bainhas e somente o vencedor voltasse para casa, após o duelo.

 

     Gully Gordon levantou os olhos do teclado e disse suavemente:

     — Está triste esta noite, companheiro. Os filhos da mãe acertaram-no de jeito?

     — Foi mesmo, Gully.

     — Está precisando de uma boa mulher.

     — Tem toda a razão.

     — Há uma lá no bar.

     Olhei e vi Valerie Hallstrom, sozinha, tomando um drinque e conversando com o barman. Virei-me antes que ela me visse.

     — Já a conheço, Gully. Fale-me mais a respeito dela.

     — É solitária, pelo que sei. Costuma tomar dois drinques, que duram uma hora inteira. Portanto, não é de se embriagar. Depois vai para casa. Pelo menos é o que eu penso.

     — Sozinha?

     — Sabe como é, companheiro. Este é um bar de gente sozinha. As pessoas vêm aqui procurar. Quando encontram o que estão querendo, passam a ficar em casa.

     — E há muito tempo que ela está procurando?

     — Há uns seis meses. Mas disse que já a conhecia...

     — Tenho negócios com o patrão dela. Fico imaginando se a presença dela aqui não faz parte de algum plano.

     — De jeito nenhum. Ela é uma cliente constante.

     Gully dedilhou uma cadência suave e começou a cantarolar a melodia, murmurando-me por entre as frases musicais:

     — Ela gosta disso, companheiro. Suave, suave, a gente vai atraindo a presa. Venha, menina, venha...Se você per-

     der essa chance, Paul, nunca mais vou perdoá-lo...Boa noite, Srta. Hallstrom. Tem algum pedido especial?

     Estávamos lado a lado, os copos quase encostando, antes que ela me reconhecesse.

     Ficou surpresa, mas pude sentir também que o fato não a desagradou.

     — Mas que surpresa, Sr. Desmond! Como este mundo é pequeno!

     Que Deus abençoe Gully Gordon! Ele sabia aproveitar habilmente a menor deixa.

     — Ele é um velho amigo, Srta. Hallstrom. Só que não o vejo com muita freqüência, pois anda ocupado demais empilhando seu dinheiro.

     — Está ficando cada vez mais difícil, Gully. Acho que estou envelhecendo. Vem aqui com freqüência, Srta. Hallstrom?

     — Ela também é uma velha amiga — interveio Gully. — O que gostaria que eu tocasse para você, menina?

     — Está indo muito bem, Gully. Continue apenas a tocar. Teve um dia agradável, Sr. Desmond?

     — Paul...E meu dia foi comprido e desagradável.

     — Então fomos dois.

     — Mas meu dia ainda não terminou. Se não fosse isso, eu a convidaria para jantar.

     — Não há nenhum compromisso firmado.

     — Mas importa-se de assinar um para amanhã?

     — Se quiser...

     — Onde posso apanhá-la?

     — Em meu apartamento, às sete e meia.

     — Contrato assinado e selado.

     — Sabe, é um homem bastante delicado...

     — Eu sei. Meu irmão gêmeo é que é o miserável. Mas esta noite ele está de folga.

     Era uma tirada antiga, mas arrancou um sorriso dela e uma piscadela de Gully, levando-nos até um reservado, onde nos sentamos com nossos copos, enquanto a música se espalhava ao nosso redor.

     Depois de algum tempo, ela comentou:

     — O bar de Gully é um lugar muito especial para mim.

     — Para mim também. Estive aqui na noite da inauguração. Tudo o que eu possuía então era uma pilha de dívidas e o pouco dinheiro que tinha no bolso.

     — E...?

     — Ele deve ter-me dado sorte. No dia seguinte o mercado deu um pulo e tive um lucro considerável.

     — Talvez tenha sorte novamente.

     — Já tive: basta ver o que encontrei.

     — Agora vai certamente perguntar o que uma moça como eu está fazendo num bar de gente desacompanhada.

     — Não, não vou. Acho que esta é uma cidade solitária e é bom ter um lugar aonde se possa ir, sem que ninguém lhe pergunte quem é e o que faz. É melhor do que ser um número num computador de banco.

     — Um filósofo ainda por cima!

     — Não, apenas um homem de meia-idade, que já viveu muita coisa.

     — Pois acho que se conservou muito bem. Não está muito gasto.

     — E você, minha jovem Valerie, não o está nem um pouco.

     — Não foi o que pensou ontem.

     — Não se esqueça de que hoje estou um dia mais velho.

     — Desculpe o momento difícil que o fiz passar ontem.

     — É seu comportamento usual?

     — Não. Ordens. E recebo setecentos e cinqüenta dólares por semana, com benefícios adicionais, para fazer o que mandam.

     Era uma isca que eu não pretendia morder. Se fosse uma indiscrição, bastava esperar, que outras se seguiriam. Decidi que estava na hora de partir.

     — Detesto ter que retirar-me, Valerie, mas não há outro jeito. Meu presidente chegou a Nova York esta tarde. Tenho que mudar de roupa e ir jantar com ele, às oito horas. O que me deixa um pouco de tempo para acompanhá-la à sua casa, se quiser.

     — Obrigada, mas vou ficar mais um pouco.

     — Então até amanhã.

     — Estarei à sua espera. Boa noite, Paul.

     Tudo terminou com um sorriso e um aperto de mão. Paguei a conta e levei uma bebida para Gully no piano. Ele continuou tocando com a mão esquerda, erguendo o copo com a direita num brinde.

     — Saúde, companheiro. Quer dizer que vai agora aparecer mais vezes, não é?

     — Vou, Gully. Dê uma olhada na moça por mim.

     — Pode deixar, companheiro. Divirta-se.

     Quando cheguei ao Salvador para jantar, encontrei Arlequim e Julie relaxados e alegres. Arlequim dormira durante quase toda a viagem. Já havia um pouco de cor em seu rosto. Ele estava inquieto e ansioso por ouvir meu relatório, mas Julie declarou com firmeza que não poderíamos tratar de negócios durante o jantar. Depois, ela nos deixaria a sós, contanto que eu mandasse George para a cama antes da meia-noite. Achei a idéia esplêndida. Não tinha a menor vontade de falar sobre Aaron Bogdanovich enquanto comia mos as costeletas à francesa, e havia também alguns assuntos difíceis sobre os quais eu precisava conversar com Arlequim. Apresentei o relatório completo enquanto tomávamos café.

     Arlequim ouviu em silêncio e passou a interrogar-me minuciosamente.

     — Temos então duas investigações paralelas; uma aos cuidados de Lichtman Wells, que seguirá os padrões convencionais, a outra a cargo de Aaron Bogdanovich, que poderá envolver ilegalidade e violência. É isso mesmo?

     — É.

     — E, enquanto duram as investigações, temos uma equipe apreensiva, que devemos tentar manter satisfeita e leal, não é mesmo?

     — Essa tarefa compete a você, George. Não pode ser feita por procuração.

     — E, externamente, temos Yanko, que está pressionando para tomarmos uma decisão em sessenta dias.

     — Talvez até menos. Ele está aguardando um encontro com você, assim que estiver apto a tratar de negócios.

     — Já estou. Poderemos encontrar-nos dentro de um dia ou dois.

     — Por que não o deixa esperar mais um pouco? Vamos fazê-lo suar.

     — Só que ele não está suando, Paul. Nós é que estamos. E não gosto disso. Conte-me agora o resto da estratégia.

     — Primeiro vamos deixar clara a nossa posição. A Lichtman Wells está investigando as fraudes do computador. É uma ação defensiva, para limpar o nome do banco e o seu. Aaron Bogdanovich está investigando Yanko. Isto é ataque, para incriminá-lo e à sua companhia como responsáveis pelas fraudes, desacreditando-os.

     — Mas isso ainda não é suficiente, não é mesmo?

     — Não. Representa apenas quarenta e oito horas de trabalho da minha parte. Mas sou somente um procurador, não o diretor principal.

     — Vamos a outra questão. Yanko quer comprar um banco. Por que escolheu o nosso? Por que não o de Herman Wolff ou o de Laszlo Horvath, já que ambos estão dispostos a vender?

     — Arlequim et Cie. é uma instituição mais antiga e mais tradicional. Temos mais filiais: Londres, Paris, Hamburgo, Nova York, Buenos Aires, Rio, Lisboa e México.

     — São boas razões, mas não justificam inteiramente a atitude dele.

     — Usamos os sistemas dele. Portanto, somos mais vulneráveis.

     — Continue.

     — É o máximo que pude pensar até agora, George.

     — Então eu lhe darei mais duas razões. Como subscritores, adquirimos e ainda conservamos blocos substanciais de ações da Creative Systems e de suas filiais internacionais. Portanto, representamos uma voz dissidente nos negócios da corporação.

     — Eu não sabia que havia qualquer dissensão.

     — Pode ter certeza de que há, Paul. Embora as divergências ainda não estejam formalizadas, são profundas e pessoais. Os maiores projetos da Creative Systems, nos quais Yanko está pessoalmente interessado, estão relacionados com dois setores: a documentação policial e o que é chamado delicadamente de controle urbano. Na verdade, o que se procura é a vigilância, controle documental estratégico e a manipulação de amplas massas da população, em todos os continentes do globo. Os instrumentos para isso já existem, o pessoal necessário está sendo treinado, os sistemas estão sendo ampliados e melhorados. Tudo isso está sendo utilizado não apenas contra os criminosos, mas também contra os dissidentes políticos e para determinar o destino cotidiano das pessoas comuns. O resultado inevitável é o terrorismo, a repressão, o contraterrorismo, as câmaras de tortura. A companhia que projeta tais sistemas está em situação privilegiada, de imenso poder, em todos os países onde opera, até mesmo naqueles de sistemas e regimes opostos. E se tal companhia consegue entrar no mercado financeiro internacional, manipulando dinheiro e crédito, transforma-se num império, extravasando além das fronteiras geográficas. Há muito tempo que estou vendo tal situação se desenvolver. Falei sobre isso no ano passado, num jantar de banqueiros em Londres. Procurei fazer uma distinção entre o uso legítimo das facilidades proporcionadas pelos computadores e aquelas que constituem uma ameaça para a liberdade da pessoa humana. Meu discurso foi amplamente divulgado. Mandei imprimi-lo e distribuí-lo por entre amigos e conhecidos. Nem todos o receberam de boa vontade. Mandei uma cópia para Yanko, mas ele nunca acusou seu recebimento. Creio agora que foi nessa ocasião que ele traçou sua atual estratégia contra mim e contra a companhia.

     — Admito que isso é bem possível, George. Yanko é um canalha sardônico. É o tipo de piada que ele adoraria. Mas não vejo como isso pode alterar nossa atual situação.

     — E não altera. Simplesmente serve para me indicar o caminho a seguir.

     — Deixe-me repetir, George, que não podemos fazer coisa alguma sem provas. Precisamos de provas que inocentem você e incriminem Yanko.

     — Não concordo com você, Paul. Tenho que dirigir um negócio e enfrentar abertamente uma situação pública. Não posso permitir que Yanko, você ou quem quer que seja, determine o papel que devo representar.

     — Mas já contratamos Bogdanovich. Você concordou em que precisaríamos dele. Acho que deveria conversar com ele e, pelo menos, procurar agir em coordenação.

     Arlequim ficou pensando no assunto por um momento, depois ofereceu-me seu sorriso malicioso, que desarmava qualquer um.

     — As toupeiras se entocam debaixo dos muros, enquanto Arlequim representa em praça pública, para distrair a atenção do populacho. Isso tem sentido. Marque a reunião com Bogdanovich o mais breve possível.

     Na saída, parei numa cabine telefônica que havia no saguão e liguei para Bogdanovich. Não sei por que — talvez porque estivesse cansado e com disposição para conversar — citei a observação de Arlequim sobre as toupeiras e os comediantes. Bogdanovich divertiu-se com o comentário e rematou-o:

     — E somos mesmo comediantes! Morreremos todos rindo a valer. Vamos encontrar-nos amanhã, às dez horas, junto à jaula dos micos, no Central Park.

    

     Por mais estranho que possa parecer, o encontro daquelas duas personalidades tão diferentes foi um sucesso. Por um longo momento, na presença dos micos agitados, eles se mediram um ao outro; depois sorriram, apertaram-se as mãos e saíram andando sob o sol da primavera. Eu seguia meio passo atrás enquanto os dois guarda-costas, dois rapazes com a barba por fazer, vinham dez passos atrás, um em cada flanco. Arlequim e Bogdanovich caminhavam lentamente, como se o tempo não tivesse o menor significado para eles. A princípio foram reticentes, depois falaram fluentemente, mas sempre de maneira respeitosa, como se cada um tivesse necessidade da compreensão do outro. Arlequim, o eloqüente, estava quieto e súplice. Bogdanovich, o apologista da violência, sentia necessidade de justificar a si mesmo e a seu ofício.

     — Espero que compreenda, Sr. Arlequim, que a violência começa quando a argumentação racional se torna impossível.

     — Sei disso. Mas não podemos esquecer o outro lado. Eu posso permanecer cego, saboreando meu conhaque, enquanto alguém morre diante de minha porta, suplicando por um copo de água. Entre nós dois fica o mordomo traidor, que assim procura agradar-me e o deixa morrer, só para ganhar algum dinheiro. Como resolvemos esse impasse?

     — Eu o resolvo pela fórmula antiga. Olho por olho, vida por vida. Sem questionar, sem piedade, sem sentimento de culpa.

     — Enquanto eu quero a absolvição por tudo o que faço. Vou contar-lhe um segredo: procuro refúgio em meu nome, Arlequim, o bufão. O bufão é sempre perdoado, porque até mesmo sua maldade arranca risadas da platéia.

     — Enquanto o carrasco público é um homem sem nome, que vive por trás de uma máscara. Acha que seria capaz de matar um homem, Arlequim?

     — Eu poderia ser levado a fazê-lo.

     — Mas acha que é capaz de cometer o ato, o ato final e irrevogável, o dedo apertando o gatilho, o polegar segurando a lâmina enquanto a mão sobe de baixo para cima, sim ou não?

     — Como posso saber, antes de chegado o momento?

     — Tem razão, não pode. Só depois. Fica então muito fácil: o estímulo, a reação, a racionalização, o sono. Os assassinos, como os adúlteros, sempre dormem muito bem. Mas basta uma simples migalha no colchão para deixá-los quase loucos.

     — O que acha que devo fazer, Sr. Bogdanovich?

     — Seu amigo Desmond disse-me que se considera um comediante. Deve então entreter a cidade, enquanto nós minamos as muralhas.

     — Isso foi apenas uma fantasia, mas reconheço que há nela um pouco de verdade. Tenho encargos, obrigações, um papel para representar. O papel acarreta uma obrigação? A obrigação o cria. Basil Yanko está no mesmo barco. Ele é um gênio. Uma vez reconhecido, precisa justificar-se a todas as horas de todos os dias.

     — É como pensa então tratar com Yanko, Sr. Arlequim?

     — Tenciono negociar, se for possível, ganhar tempo para suas investigações. Se não for possível, irei desafiá-lo e empenhar-me até o pescoço para cobrir a oferta dele.

     — Espero que saiba que há muitos perigos implícitos no que estamos fazendo, Sr. Arlequim.

     — Paul já me explicou.

     — Tem uma esposa e um filho. Compreende que está arriscando a vida de ambos?

     — Minha esposa aceita o risco, está disposta a corrê-lo.

     — Por quê?

     — Porque é algo que pode partilhar comigo plenamente.

     — Foi difícil admitir tal coisa?

     — Sabe perfeitamente que foi. Alguma coisa lhe é difícil, Sr. Bogdanovich?

     — Muitas.

     — Quais?

     — Por exemplo: passear ao sol e contemplar as moças, desejando-as; saber que, ao deitar-me com uma delas, acordarei gritando, por ter dormido com um cadáver. Ver crianças e querer que fossem minhas, mas saber que não posso atrever-me a ter filhos, pois os monstros ao final terminariam devorando-os. Não nos devemos encontrar com muita freqüência, Sr. Arlequim.

     — Tem razão. Compreendo os motivos.

     — O Sr. Desmond funcionará como o elemento de ligação entre nós.

     — Está certo.

     — Quando for tratar com Basil Yanko, não se esqueça de uma coisa: ele não compreende os palhaços e por isso os teme.

     — Por quê?

     — Ele nunca aprendeu a rir de si mesmo. E é capaz de matar quem quer que ria dele.

     — O que me faz sentir pena dele.

     — Ele é capaz de matá-lo por isso também. Fico satisfeito de tê-lo conhecido, Sr. Arlequim. Lamento que o preço seja tão elevado.

     — É apenas dinheiro.

     — É essa justamente a vergonha de tudo, Sr. Arlequim. O dinheiro é a medida de um homem. Boa sorte.

     — Obrigado, amigo.

     — Eu é que lhe agradeço. Mantenha-se em contato comigo, Sr. Desmond.

     E então ele se foi, um vulto alto e esguio, caminhando pela grama, com os dois sabujos a formarem o séquito.

     George Arlequim ficou parado a observá-lo, em silêncio, até que ele desapareceu além de uma pequena elevação. Depois virou-se em minha direção e indagou:

     — Como vamos contar a Julie, Paul?

     — Acha que devemos fazê-lo?

     — Creio que sim.

     Eu estava presente quando ele contou. Não o queria, mas ambos insistiram, como se eu fosse um intérprete, um dicionário ao qual podiam recorrer para se explicarem um ao outro. Juliette fez poucas perguntas, não levantou nenhum protesto. Era como se ela compreendesse, pela primeira vez, todas as conseqüências de suas próprias atitudes agressivas. Arlequim, por outro lado, mostrou-se veemente e exaltado, como se tivesse experimentado uma revelação particular.

     — Foi como se eu conversasse com um homem que voltou do outro lado, Julie, alguém que compreendeu a continuidade das coisas, a terrível repetição da maldade e da tragédia humanas. Até hoje, você e eu nunca tivemos de enfrentá-las. Agora somos obrigados a isso. E é por algo inútil, um banco, um simples repositório de papéis — florins, francos, dólares. É justamente isso o que eu desprezo, a coisa perecível. Chegamos ao mundo sem ela e saímos também sem ela. Mas compreendi também que se trata de algo com propriedades mágicas. Se a tiver nas mãos, terá um gênio às suas ordens. É isso o que homens como Yanko estão querendo: o gênio que pode extrair exércitos dos dentes do dragão. Mas nós dizemos que não! Somos os exorcistas do bem. Vamos dar trigo em vez de espadas. Vamos mesmo? É o que estamos fazendo? Não posso jurá-lo. E, contudo, também não posso vender a lâmpada e ficar de lado, observando os janízaros se erguerem do pó. Mas por que não, Julie? Os janízaros guardarão a mim, a você e ao menino. Por que nos deveremos importar com os outros, com os quais nunca nos importamos antes? Por quê, Paul?

     Eu estava muito cansado. Queria terminar logo aquela discussão e ir embora.

     — Por que deveremos fazê-lo? Não sei muito bem. Porque nós...Por Deus, é isso mesmo! Porque um dia, antes de o sol se levantar, os canalhas estarão em minha porta, à minha procura, porque tenho um nariz errado ou a pele errada, porque estou na lista errada e ninguém sabe quem me pôs nela. Quero então ter amigos. Quero ter irmãos e irmãs. Ponha-me no inferno e mais ainda hei de querer tê-los! Acho que é isso. Agora, vou embora, pois tenho muito trabalho a fazer. Encontro-o no banco depois do almoço, George. O garoto de Boston quer que você segure a mão dele.

     Ao atravessar o saguão do Salvador, parei diante do telex, a fim de dar uma olhada nas cotações. Entre os diversos números, apareceu uma notícia:

    

"Yanko faz proposta para compra de banco europeu. O Sr. Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated, anunciou esta manhã que fez uma oferta de pagamento à vista, na base de cem dólares por ação, para a compra da totalidade das ações de Arlequim et Cie., banco comercial sediado na Suíça. A proposta, com um ágio substancial, é válida por sessenta dias. O Sr. Yanko ressaltou que a estrutura de sua organização possibilita-lhe atender às exigências da lei suíça com relação às corporações locais. O Sr. George Arlequim, presidente de Arlequim et Cie., acaba de receber alta do hospital, depois de uma grave doença, não estando disponível para quaisquer comentários. Outros acionistas confirmaram ter recebido a oferta, mas se recusaram a manifestar qualquer reação no atual estágio".

    

     Rasguei o pedaço de papel, dobrei-o e entreguei-o a um porteiro, para que o levasse a George Arlequim. O serviço custou-me um dólar. Mas, que diabo! O que era um dólar em comparação com todos aqueles janízaros brotandoem todos os quadrantes? Era meio-dia e um lindo dia de primavera. Concentrei as minhas energias, ergui o queixo, endireitei os ombros e fui enfrentar nossos colegas no clube. Nos dez minutos iniciais, após a minha chegada, ofereceram-me bebida suficiente para embalsamar um faraó em álcool. Nos vinte minutos seguintes fui assediado por amigos, conhecidos e corpos sem nomes. Todos faziam as mesmas perguntas:

     — Estão vendendo? O ágio existe mesmo? Não a Yanko? Pelo amor de Deus, Paul, por que não nos procuram antes de tomarem qualquer atitude? Arlequim já está de pé? A doença é fatal? Ouvimos dizer...

     Eles tinham ouvido, imaginado, sonhado e continuariam a fazê-lo, a cada novo boato que surgisse. Sabendo que não acreditariam, contei-lhes simplesmente a verdade:

     — A oferta foi realmente feita. Existe de fato um ágio. Não, não vamos aceitar. E achamos que é jogo sujo divulgar a oferta antes mesmo que ela seja discutida entre as partes interessadas. Não, a doença não é fatal. Arlequim já se recuperou e está lutando como um louco. Se não acreditam em mim, convidem-no para falar no próximo jantar dos associados.

     Não sei o que me fez acrescentar a última frase, mas Herbert Bachmann ouviu-a e usou-a como pretexto para arrancar-me do meio da multidão e levar-me para almoçar em sua mesa. Herbert é um lutador temível, cujos antepassados andavam pelas ruas com as notas de câmbio enfiadas dentro do chapéu. Foi um negociador implacável em seu tempo, mas nunca soube que tivesse cometido o menor deslize com quem quer que fosse. Eu preferia ter a garantia de seu aperto de mão do que as assinaturas, com firma reconhecida, da maioria de seus colegas mais novos. Suas perguntas foram contundentes, mas sua preocupação era genuína. Eu estava disposto a ser tão sincero quanto me fosse possível.

     — O que acha desse tal de Basil Yanko, Paul?

     — Ele é um gênio. Mas é também um homem perigoso e seu comportamento é digno de uma pocilga.

     — Mas talvez a mãe dele tenha visto algo de bom no filho, não é? Está bem, ele é um porco. Arlequim subscreveu as ações de sua companhia e utiliza seus serviços. Por quê?

     — Porque, se não o fizesse, você e os outros rapazes iriam roubar-lhe a conta.

     — O que torna Arlequim um prostituído como nós.

     — A diferença é que ele se prostitui com muito mais categoria, Herbert.

     — Eu entendo...A elegância suíça, a paixão pela precisão, igualzinho a um desses malditos relógios de cuco...Mas que história é essa que me contaram a respeito de um desfalque?

     — Não sei. O que foi que ouviu, Herbert?

     — Vocês contrataram investigadores, não é?

     — Onde foi que soube disso?

     — Por aí...Não fique zangado, Paul. Sabe muito bem como são as coisas nesta cidade. Se você der um beliscão no traseiro de sua secretária, dez segundos depois a notícia já se espalhou. A situação está muito ruim?

     — Este é um almoço de negócios ou de prazer, Herbert?

     — Para você, Paul, pode ser de prazer. Para mim, é de negócios. Vivo aqui. Participo de comitês para tentar manter limpas as nossas atividades. É muito difícil em certas ocasiões, mas depois de Vesco e Cornfeld precisamos de Yanko assim como da peste bubônica. Seja franco comigo, Paul. Se Arlequim está precisando de ajuda, providenciarei para que ele a receba.

     — Precisamos de sigilo, Herbert, de discrição absoluta.

     — Pode estar certo de que de mim não terá outra coisa. A esta altura, já deveria sabê-lo.

     — Ótimo. O desfalque é de quinze milhões de dólares.

     — É uma quantia considerável.

     — Mas podemos dar um jeito. Quanto a isso, não há problema. A dificuldade é que suspeitamos de que nossos computadores foram manobrados fraudulentamente.

     — Isso é óbvio. Mas por quem?

     — Os registros dizem que pelo próprio Arlequim. Achamos que foi Yanko.

     — Até que possam prová-lo, Paul, isso constitui um crime de injúria.

     — Eu sei. O fato é que no mesmo dia em que me apresentou o relatório sobre o desfalque, Yanko anunciou também que desejava comprar Arlequim et Cie. A proposta já foi formalizada: cem dólares por ação.

     — E quanto vale realmente cada ação?

     — Oitenta e cinco dólares...Talvez noventa, com um pouco de otimismo.

     — A proposta não é má. Nossos técnicos calcularam o valor entre oitenta e três e oitenta e sete dólares. Arlequim vai aceitar?

     — Não.

     — E os acionistas minoritários?

     — Alguns devem vender, por causa do ágio. Outros venderão por terem ouvido o rumor de que alguém deu um desfalque.

     — Então por que Arlequim não compra as partes dos acionistas minoritários?

     — Ele teria que se empenhar todo para fazê-lo. Não pode pagar cem dólares por ação e ao mesmo tempo cobrir o desfalque de quinze milhões de dólares.

     — E assim vocês terão Yanko no conselho...

     — Só por cima de nossos cadáveres.

     — Até assim...Quais as providências que Arlequim está pensando em tomar?

     — Desculpe, Herbert, mas isto você terá que perguntar diretamente a ele.

     — É o que farei. Diga-lhe que telefone esta noite para minha casa. Aqui está o número.

     — Obrigado, Herbert.

     — Não me agradeça, pois sou parte interessada. Tremo só de pensar em todo o poder e conhecimento armazenados dentro de uma máquina. Não se pode desencadear uma greve contra um computador, não se pode levá-lo ao banco dos réus. Mas é um absurdo que um homem que você nunca viu possa ler a qualquer momento informações sobre o que você costuma jantar e a maneira como faz amor com sua esposa. Às vezes fico contente de ser um homem velho e poder assim evitar quase todas as conseqüências. Vamos pedir um conhaque, pois estou começando a ficar mórbido.

    

     Passava um pouco das três horas quando cheguei ao banco. Arlequim já estava lá, despejando simpatia e ungüentos no espírito contundido de Larry Oliver. Foi um desempenho admirável, com lisonjas sutis, apelos à tradição e ao código dos cavalheiros, à necessidade de resistir contra a invasão dos bárbaros. Ao final, Larry ronronava como um gatinho, o leite pingando dos bigodes.

     Lá fora, na sala de reuniões, Saul Wells orientava os trabalhos de dois aprendizes de gênio, que estavam com-

     parando os impressos dos computadores com o relatório de segurança. Ele levou-me até a janela e, com melancólica admiração, disse:

     — É tudo tão simples que é até vergonha pegar o dinheiro. Foram três instruções codificadas: a primeira, para fazer as deduções; a segunda, para que os lucros daí provenientes ficassem numa conta suspensa; a terceira, para que fossem remetidos todas as segundas-feiras, por telex, para Zurique. As instruções originais foram transmitidas aos computadores no dia 1.° de novembro do ano passado. Já verificamos o livro de registros diários da gerência. O Sr. Oliver estava de férias na ocasião. Estava sendo substituído pelo Sr. Standish, que não fez a menor referência às instruções. Contudo, o Sr. Arlequim estava em Nova York nessa data. Esse é o ponto número um. O número dois é que a operadora do computador pediu demissão em janeiro, por motivos de saúde. Temos o nome dela, Ella Deane, o número do seu registro no seguro social e seu último endereço, em Queens. Vamos checá-la imediatamente. Agora, se eu pudesse conversar com o Sr. Arlequim...

     A conversa logo se transformou num interrogatório cerrado, que surpreendeu até a mim. Arlequim, no entanto, submeteu-se com uma resignação sorridente. Estivera realmente em Nova York na ocasião. Escrevera realmente memorandos e ditara cartas sobre diversos assuntos. Estavam todos arquivados, num arquivo trancado à chave na casa-forte. Poderia mostrá-los? Com prazer. Trouxeram o arquivo. Juntos, examinaram todos os documentos. Arlequim olhava cada um e depois o entregava a Wells, que o marcava com seu próprio código. Todos versavam sobre problemas de orientação política de Arlequim et Cie. Não havia nenhum que pudesse ser identificado ou mesmo interpretado como uma autorização para a transmissão de instruções aas computadores.

     Saul Wells pediu então que Arlequim escrevesse sua assinatura e sua rubrica meia dúzia de vezes, em rápida sucessão. Mesmo quando escrita rapidamente, a letra era firme e arrojada, com um pequeno floreio de desafio ao final da última letra.

     Wells resmungou, com uma expressão infeliz.

     — É como atirar contra um celeiro a cinco metros de distância...Eu mesmo posso falsificar essa assinatura com cinco minutos de prática. Vejam só!

     Durante cinco minutos, contados no relógio, ele praticou a assinatura de Arlequim, terminando por nos apresentar um fac-símile bastante aceitável. Mesmo assim, ele ainda não estava satisfeito. Pediu o talão de cheques de Arlequim e preencheu e assinou um cheque de mil dólares. Levei-o para Larry Oliver e pedi que o rubricasse para ser descontado. Escrupuloso como sempre, Oliver verificou a data, a cifra, o número escrito em palavras, a assinatura. Depois rubricou o cheque e tocou uma campainha, chamando o chefe dos caixas.

     Tirei-lhe o cheque da mão.

     — Desculpe, Larry, mas isto foi um teste. Este cheque é falsificado.

     Tentamos a mesma coisa com o caixa, sendo o resultado idêntico. Eu não pude resistir ao comentário de que a reputação das melhores pessoas podia ser manchada sem que elas soubessem. Oliver teve pelo menos a delicadeza de assumir uma expressão de humildade. Wells estava se divertindo com a situação. Já Arlequim parecia profundamente infeliz.

     — Mas este tipo de coisa pode acontecer a todo momento! Quantos milhares de assinaturas minhas não estarão rodando por aí, em cartas, cheques e abonos de cartões de crédito? Isso é um pesadelo terrível!

     — Mas bastante instrutivo.

     Saul Wells ficou subitamente pensativo.

     — A assinatura é muito fácil de falsificar. Por que será então que eles não puseram um memorando incriminador no arquivo, só para completar o quadro?

     — Tenho a resposta para isso — declarou Arlequim, enfático e recuperando um pouco de sua segurança. — Todos sabem que eu jamais assinaria tal memorando. Seria passar por cima do gerente, coisa que eu nunca faço. Além disso, a fraude foi repetida em outras filiais. Não havia garantias de que eu fosse, por exemplo, a Buenos Aires. O melhor era deixar alguma confusão na fonte e fabricar uma certeza absoluta no local onde o dinheiro era recebido, o Union Bank, de Zurique.

     Saul Wells meteu um charuto novo no canto da boca e deixou-se envolver por uma nuvem de fumaça.

     — É, deve ter sido isso mesmo. Mas assim a promotoria também tem uma explicação. É algo, aliás, em que temos de pensar, Sr. Arlequim. Até agora já verificamos que pelo menos seis milhões de dólares foram desviados somente de

     Nova York. Cada um de seus clientes foi atingido pela cobrança de taxas ilegais. Qualquer um deles pode mover-lhe um processo aqui em Nova York. As acusações podem ser derrubadas no tribunal, mas serão terrivelmente embaraçosas.

    

     Eram cinco e meia quando voltei ao meu apartamento. Havia três recados à minha espera: a Srta. Hallstrom pedia-me que me encontrasse com ela às oito horas em vez de sete e meia; o Sr. Francis Xavier Mendoza telefonara da costa do Pacífico; o Sr. Basil Yanko pedia-me que telefonasse para seu escritório, antes das sete horas. Decidi que era melhor receber primeiro as boas notícias — se é que havia alguma —, e por isso liguei para Mendoza. Ele se mostrou um pouco misterioso, mas animador:

     — É sobre nosso conhecido comum...Eu lhe disse que três amigos meus haviam-se queimado. Um deles é um homem muito obstinado. Passou dois anos compilando um dossiê. Já o li. O material é fascinante, embora nem tudo possa ser admitido como prova pela lei. Convenci-o a tirar duas cópias fotostáticas, trancando uma num cofre e entregando-me a outra, que mandarei para você por um portador de confiança. Há pessoas na política e no Pentágono que adoram Yanko, enquanto outras o detestam como um veneno mortal. Fiz uma lista, que também lhe remeterei. Lembre-se de que eu lhe dei um aviso. Ao ler o documento, compreenderá o motivo. Como estão indo as coisas aí em Nova York?

     — Estamos sendo bastante pressionados.

     — Era o que eu calculava. Acabei de ler a notícia. Se precisar de ajuda aqui na costa do Pacífico, pode contar comigo. Vaya con Dios!

     Desliguei, abençoando-o pela decência que demonstrava num mundo cão. Liguei então para Basil Yanko. Por uns poucos momentos, pelo menos, ele mostrou-se quase humano.

     — Obrigado por telefonar-me, Sr. Desmond. Estou aguardando ansiosamente uma notícia do Sr. Arlequim.

     — Ele trabalhou pouco hoje, mas está exausto agora.

     — Isso é natural. Pensei em telefonar-lhe, para apresentar-lhe meus respeitos.

     — Sugiro que espere até amanhã de manhã.

     — Claro. É Madame Arlequim, está passando bem?

     — Está sim, obrigado.

     — Leu a notícia que distribuímos à imprensa?

     — Li.

     — Algum comentário?

     — Nenhum. Meu superior já assumiu o controle da situação.

     — O que é o correto. Mas hoje o senhor fez alguns comentários impróprios em seu clube.

     — O que eu disse em meu clube, Sr. Yanko, não é de sua conta.

     — Posso reproduzir literalmente suas palavras, Sr. Desmond: "Não vamos aceitar. E achamos que é jogo sujo divulgar a oferta antes que ela seja discutida entre as partes interessadas". A oferta foi discutida com o senhor, na qualidade de diretor de Arlequim et Cie. Sua declaração pode ser considerada como passível de ação judicial, Sr. Desmond.

     — Na base do que ouviu de um informante? Duvido muito. Mas, se quiser dar-me o nome dele, ficarei feliz em confrontá-lo com o comitê diretor do clube. Mais alguma coisa, Sr. Yanko? Tenho um compromisso para o jantar.

     — Só mais um pequeno problema, Sr. Desmond. Arlequim et Cie. aplicou uma parte de nossos fundos para investimentos.

     — E creio que bem lucrativamente.

     — É verdade. Mas as transações referentes a esses fundos foram oneradas por comissões fraudulentas. Nossos advogados afirmaram que existem bases para ações civil e criminal.

     — Então não tenho a menor dúvida de que discutirá o assunto amanhã com o Sr. Arlequim. Boa noite, Sr. Yanko. Bati o telefone e amaldiçoei-o. Estava furioso comigo mesmo. Eu, um veterano de mais de uma centena de incursões no mercado, com cicatrizes nas costas e lucros no banco, saltando como o cão de Pávlov quando Yanko apertava o botão de choque. Era a mais simples de todas as técnicas de terror: o informante onipresente, a advertência imediata, a ameaça de destruição ao virar a esquina. Subitamente caí na risada, andando rapidamente pelo apartamento como um estudante, a jogar almofadas para o ar e a gritar para Takeshi que me trouxesse uma bebida, preparasse um banho, arrumasse meu melhor terno, reservasse uma mesa no Cote Basque, pedisse uma limusine na Colby Cadillac e mandasse entregar rosas à Srta. Valerie Hallstrom, antes das oito horas. Aquilo era completamente errado, num mundo faminto. Mas, se eu poupasse o dinheiro e o aplicasse através dos computadores de Yanko, haveria um grão a mais no prato de arroz de um indiano? Sabia que não haveria. Disse a mim que não estava preocupado. Mas, lá no fundo, havia a convicção de que, se um homem ao telefone podia fazer-me procurar refúgio, assustado, na cama, então estava na hora de largar as cartas em cima da mesa e ir estourar os miolos no primeiro beco disponível.

     Estava me barbeando quando me lembrei de que tinha de ligar para Bogdanovich. Por um momento senti-me tentado a deixar isso de lado, mas depois pensei melhor e mudei de idéia. Disquei o número que me fora dado, apresentando-me como Weizman. Um momento depois, Bogdanovich estava ao telefone.

     — De onde está chamando?

     — De meu apartamento.

     — Foi avisado de que deveria usar um telefone público.

     — Eu sei. Mas é muito tarde e tinha me esquecido de telefonar.

     — Desta vez está com sorte, pois eu já ia entrar em contato com o senhor. Há um homem vigiando a porta de seu prédio.

     — Agente seu?

     — Há um meu e um outro. Ele está estacionado do lado esquerdo da rua, num Corvette verde.

     — Isso é um embaraço, pois vou jantar com a dama sobre a qual conversamos.

     — Qual é o programa?

     — Às sete e quarenta e cinco uma limusine estará diante de meu edifício. Fiquei de apanhá-la às oito horas. Vamos ao Cote Basque.

     — Mude a ordem. Telefone para ela e diga que vai se atrasar um pouco. Mande a limusine apanhá-la e levá-la ao Cote Basque. Quanto ao senhor, deverá caminhar até o Saint Regis e entrar no King Cole Bar, onde receberá uma mensagem. Depois poderá seguir para o Cote Basque. Entendido?

     — Perfeito. Mas o que me diz de levá-la para casa?

     — Em que casa está pensando?

     — No apartamento dela, espero.

     — Se houver algum problema, nós o avisaremos. Senão, aja normalmente.

     — É uma instrução bastante objetiva.

     — Nem tanto assim. O apartamento dela é território inimigo, até termos a oportunidade de examiná-lo centímetro por centímetro.

     — Com espelhos de duas faces e microfones ocultos nas azeitonas dos martínis, não é?

     — Fico contente ao verificar que ainda pode rir. Por isso vou contar-lhe uma piada. O homem que está no Corvette verde é Bernie Koonig. Ele já matou dois homens e uma mulher. Divirta-se, Sr. Desmond.

     A medida da loucura da América foi o fato de que a notícia me deixou consideravelmente assustado, mas não me causou realmente nenhuma surpresa. Quando um sociólogo respeitado escreve com o maior desembaraço sobre "níveis aceitáveis de violência", quando um astro da televisão pode entrevistar um homem mascarado que alega ter matado trinta e oito pessoas, sob contrato e na maior impunidade, não restam muitas surpresas, apenas a difusão do terror, como se as paliçadas tivessem sido derrubadas e as bestas selvagens rondassem livremente pelo enclave humano. Por isso, fiz exatamente o que me mandaram.

     Ao sair do edifício, vi que o Corvette verde estava bloqueado junto ao meio-fio por uma radiopatrulha. Dois guardas tinham obrigado o motorista a se debruçar em cima do capo. Eu, macaco velho, nada vi, nada ouvi. Caminhei até o Saint Regis e sentei-me no King Cole Bar, esperando até que um recém-chegado empurrasse o pratinho de amendoins na minha direção e murmurasse o aviso de que eu já estava livre para seguir em frente.

     Quando cheguei ao restaurante, Valerie Hallstrom já estava acomodada, com um coquetel à sua frente e conversando com o maltre. Deu-me um sorriso caloroso e um aperto de mão de boas-vindas. Agradeceu-me pelas flores e mostrou-se indulgente para com meu atraso. Conversamos sobre assuntos superficiais durante os coquetéis e enquanto escolhíamos os pratos. Quando a refeição foi servida, estávamos à vontade. Eu repassava todo o repertório das minhas histórias de viajante. Ela estava divertida e interessada, agradecida por aquela trégua nas invasões convencionais de sua vida profissional.

     — Depois de algum tempo, Paul, esta cidade começa a nos sufocar. É tudo urgente, tudo impessoal, sem ter o menor sentido. Sou uma moça do interior. Meu pai ainda cria cavalos na Virgínia. Não podia esperar o momento de sair de lá e conquistar a cidade grande. Pois bem, eu o consegui, só que agora sonho cm voltar para casa. Mas isso não é possível, não acha? A casa da gente não mudou, mas nós mudamos bastante. E você, Paul?

     — A minha casa é onde penduro meu pergaminho kanji.

     — Ainda não me contou essa história.

     Contei então. Falei da antiga lenda das mulheres que se transformavam em raposas, deixando seus amantes mutilados e desolados. Falei dos gravadores e dos ceramistas, dos maravilhosos artesãos japoneses, da gente dos rios da Tailândia, do homem de Rangum que me ensinara a distinguir entre os rubis bons e os que não prestavam, da assombrosa beleza das selvas de Arnhem, com as pessoas de pele escura cantando ao redor das fogueiras.

     E quando terminei ela me perguntou:

     — E o que você é agora?

     — Um comerciante, um homem rico.

     — Mas não apenas isso.

     — Tem razão. Mas, se eu não tivesse comerciado, não teria viajado. E, se não tivesse viajado, não teria tudo isso.

     — E como é seu amigo Arlequim?

     — George é muito diferente de mim. Ele sabe das coisas. Possui a espécie de cultura pela qual eu daria meu braço. Conhece línguas, história, pintura...Quando viajamos juntos, ele sempre está instantaneamente por dentro das coisas. Tenho que esforçar-me ao máximo ou deixar que ele me leve. No ano passado, por exemplo, viajamos pelas ilhas gregas. Eu era o comandante do veleiro. Mas no momento em que tocávamos em terra, George imediatamente se punha a conversar com os pescadores, com o sacerdote local, com o antiquário. Invejo-o por isso.

     — Mas gosta dele?

     — Como um irmão.

     — E, no entanto, está sentado aqui, comigo.

     — Como assim?

     — Eu represento o inimigo, pois trabalho para Basil Yanko.

     — O tempo inteiro?

     — Quase.

     — Mesmo quando vai ao bar de Gully Gordon?

     — Não, lá não.

     — E agora?

     — Agora também não. Amanhã, talvez. Não sei.

     — Yanko sabe que está jantando comigo?

     — Não. Se descobrisse, perderia meu emprego.

     — Está brincando...

     — Não, é verdade. E jamais conseguiria outro emprego na área. Aonde quer que eu fosse, ele continuaria atrás de mim.

     — Tem uma ficha no sistema?

     — Todos nós temos. É assim que Yanko trabalha. Aliás, creio que toda a grande indústria trabalha assim. A ficha segue-nos por toda parte, embora nunca a vejamos. E, enquanto ela existir, nunca se é livre.

     — Isso é chantagem, tirania e escravidão.

     — Eu aceitei submeter-me.

     — Para quê? Por setecentos e cinqüenta dólares semanais e benefícios adicionais?

     — Estou segura onde estou.

     — Tem certeza? Esta noite havia um homem vigiando meu apartamento. Tenho razões para acreditar que foi contratado por Basil Yanko.

     A cor desapareceu do rosto dela. Deixou cair o garfo, estrepitosamente, e por um momento pensei que fosse desmaiar. Depois, com grande esforço, ela se recuperou.

     — Isso é verdade?

     — É.

     — Oh, meu Deus!

     — Relaxe, mulher. Não fui seguido até aqui e você também não. Foi por isso que mudei um pouco o que havíamos combinado. Temos também nosso próprio sistema de proteção, funcionando dia e noite. Vamos, agora tome seu vinho...Assim está melhor! O que quer que Yanko possa fazer contra você, não é pior do que esse terror permanente.

     — Por favor, não quero mais conversar sobre esse assunto.

     — Está certo. Mas agora podemos fazer um joguinho. Digo para você: "Valerie Hallstrom, conte-me seu segredo

     sombrio e eu a libertarei e a protegerei". Você então diz para si mesma: "Está vendo? Ele quer apenas usar-me". Está mais segura com o diabo que já conhece. Então eu tento persuadi-la. Você recusa. E de manhã, volta para o escritório e conta tudo a titio Basil, que a pune um pouco, mas depois a consola e a manda de volta ao trabalho, penitente mas feliz, para escrever um relatório confidencial para o cérebro...Portanto, o melhor é não fazermos esse joguinho, não acha? Vamos tomar café e um calvados e em seguida eu a levarei para casa na minha reluzente limusine, deixando-a segura e inocente em sua porta.

     — Você é um miserável, Paul Desmond.

     — Não, Valerie, você continua enganada. Aquele é meu irmão gêmeo.

     Mais uma vez a observação provocou um sorriso ligeiro e incerto. Ficamos sentados em silêncio, de mãos dadas, contemplando o torvelinho de garçons em torno das mesas e tentando ler as expressões dos outros fregueses, antes de termos coragem para tentar novamente ler a expressão um do outro. Trouxeram-nos café e o calvados. Enquanto tomávamos o licor forte, Valerie Hallstrom disse:

     — Devo avisá-lo, Paul, de que Basil Yanko é um homem bastante perigoso.

     — Eu já sabia disso.

     — E George Arlequim é uma obsessão para ele.

     — Por quê?

     — Acho que pelas mesmas razões pelas quais você o admira. Arlequim já nasceu com sorte; é um homem altamente civilizado e as pessoas sentem-se atraídas por ele. Yanko teve que arrastar-se para fora de uma favela de Chicago. Ele é um gênio, um grande gênio, mas é também rude e feio. Ele é como um sapo com uma coroa de ouro na cabeça c sabe disso. É isso o que o torna perverso e cruel. A princípio eu sentia pena dele. Por algum tempo, cheguei a pensar que estivesse apaixonada por ele. Não acha romântico? E a linda princesa beijou o sapo feio e ele transformou-se num belo rapaz...

     — Só que isso não aconteceu, não é mesmo?

     — Não.

     — E é por isso que você vai ao bar do Gully Gordon, noite após noite? E não pode apaixonar-se porque o sapo-rei está sempre presente, rindo, porque sua vida está presa em seu cérebro mecânico.

     — Isso não é nenhuma brincadeira, Paul.

     — E por acaso está me ouvindo rir?

     — Acho que está na hora de irmos embora.

     Se esta fosse uma história de amor — o que não é! —, eu contaria agora como fomos até seu apartamento e ela convidou-me a entrar, como dançamos ao som de música suave e depois fizemos amor até que os pardais começassem a cantar pela manhã, como eu tinha todos os segredos de Basil Yanko em minhas mãos ao partir. A um quarteirão de seu apartamento, Valerie pediu que o motorista parasse o carro. Queria seguir a pé o resto do caminho. Ofereci-me para acompanhá-la. Ela recusou com um sorriso e com um comentário enigmático:

     — Algumas vezes Deus gosta de saber como os seus filhos passam suas noites. Obrigada pelo jantar e boa noite, Paul.

     Ela beijou-me rapidamente no rosto e saiu do carro. Mandei que o motorista a seguisse lentamente até a casa, a fim de mantê-la a salvo de assaltantes e viciados. Depois que a porta do prédio se fechou atrás dela, atravessei a cidade e fui até o bar do Gully Gordon, onde fiquei sentado entre os meus pares, ouvindo a música triste e suave, até uma hora da madrugada.

     E nas horas frias da madrugada tive um sonho. Vi uma planície imensa, circular, inteiramente vazia, iluminada por uma lua fria. E no centro dessa planície, pequeno e solitário, havia um vulto agachado. Eu não podia dizer se era humano ou animal. Sabia apenas que me sentia atraído por ele com um anseio profundo, sendo porém contido por uma ameaça visível. Em torno dos limites externos da planície circular havia uma multidão de cavaleiros, alguns negros, recortados contra a lua, outros brancos como fantasmas ao seu brilho. Ao lado de cada cavaleiro havia um cão, completamente imóvel. Estavam a uma distância incomensurável, mas eu podia vê-los nitidamente, como se estivessem ao alcance de minha mão. Os cavaleiros não tinham rostos, apenas máscaras, vazias como cascas de ovos. Tentei distinguir as feições do vulto agachado, mas meus olhos pareciam comprimidos e eu não conseguia focalizá-los.

     Então os cavaleiros e os cães começaram a se deslocar, lentamente, em ritmo de funeral, convergindo inexoravelmente para o vulto solitário. Os cavaleiros estavam em silêncio, os cães não latiam. Não se ouvia o menor ruído dos arreios ou das batidas dos cascos. O vulto moveu-se, espreguiçou-se, levantou-se. Era uma mulher nua, que se virou lentamente, girando como um manequim num pedestal, até que seu rosto me ficasse visível. Era Valerie Hallstrom, sorridente, sedutora, indiferente ao perigo que corria.

     Senti-me dominado por um intenso desejo sexual. Chamei-a, mas nenhum som saiu de minha boca. Tentei alcançá-la, mas fui contido por mãos gigantescas. E então os cavalos iniciaram um galope desabalado, com os cães pulando em seus flancos. Senti, mais do que ouvi, os gritos para açular os cães, os latidos, a terra tremendo sob os cascos dos cavalos, o tropel irresistível para esmagá-la...

    

     Eu estava iniciando os primeiros rituais do meu despertar quando Saul Wells telefonou. Ele estava excitado e loquaz. Quase podia ver-lhe o charuto no canto da boca, pois ouvia-o perfeitamente mastigá-lo. E misteriosamente o cheiro impregnou meu quarto.

     — O que há, Saul?

     — Ella Deane.

     — Quem?

     — A tal moça do computador, a que deixou o emprego em janeiro, por motivo de saúde.

     — Ah, sim...O que há com ela, Saul?

     — É muito triste e muito ruim para nós: ela morreu.

     — Quando?

     — Duas semanas atrás, num acidente. Foi atropelada e o carro fugiu.

     — O que diz a polícia?

     — A mesma coisa de sempre. As investigações prosseguem. Não acha que a morte dela foi bastante conveniente para alguém?

     — Como sempre acontece. Mais alguma coisa?

     — Só uma confirmação. Os nossos agentes começam a agir em todas as outras filiais amanhã.

     — Está trabalhando rápido, Saul. Obrigado.

     — E mais uma coisa: Ella Deane morreu rica.

     — Quanto?

     — Com trinta mil dólares, aproximadamente.

     — Onde foi que ela os conseguiu? E quando?

     — É o que estamos procurando descobrir. O impossível demora mais um dia. Ficarei em contato. Ciao.

     Pouco depois, enquanto limpava a gema de ovo que respingava em meu queixo, Aaron Bogdanovich chegou,

     vestido como entregador e com uma cesta de flores nas mãos.

     — As flores acrescentam fragrância à vida, Sr. Desmond.

     — Não pensei que se importasse com tais coisas, Sr. Bogdanovich.

     — Conte-me o que aconteceu na noite passada.

     A pergunta foi formulada bruscamente, como se ele esperasse surpreender-me e assim levar-me a alguma confissão inesperada.

     — Nada aconteceu. Jantamos, conversamos. Ela me disse que perderia o emprego se Yanko soubesse que se encontrara comigo em particular. Disse-me também que já esteve apaixonada por ele, mas o caso terminou mal. Avisou-me de que ele era um homem perigoso e obcecado com relação a George Arlequim. Depois pediu-me que a levasse para casa e insistiu em percorrer a pé, sozinha, o último quarteirão. Nós a seguimos na limusine. Depois fui ao bar de Gully Gordon, para tomar um último drinque antes de dormir.

     — E como foi que voltou para casa?

     — Na limusine.

     — A que horas?

     — Uma e quinze.

     — Pode prová-lo?

     — Claro. Assinei o registro do motorista. Takeshi ainda estava acordado quando cheguei. Tomei um banho de chuveiro, vesti o pijama e ele serviu-me uma xícara de chá antes que eu me deitasse. Mas por que todas essas perguntas?

     — Valerie Hallstrom está morta. Foi assassinada logo depois que chegou a casa.

     — Deus Todo-Poderoso!

     — Espero que consiga assumir a mesma expressão chocada quando a polícia lhe transmitir a notícia.

     — A polícia? Não estou entendendo...

     — Nós dois, Sr. Desmond, fomos as últimas pessoas a vê-la com vida. Sobrou um pouco de café?

     — Sirva-se à vontade. Olhe, vai ter que voltar ao princípio. Estou inteiramente perdido...

     Ele deu-me aquele seu sorriso típico, frio e sepulcral, servindo-se de café, creme e açúcar. Só depois é que me disse:

     — Enquanto vocês dois jantavam, fui à casa de Valerie Hallstrom. Já a viu, do lado de fora. É um desses prédios cinzentos e antigos com um porão e três andares. Ela é dona de todo o prédio e tudo lá dentro é muito caro. Há um Matisse no quarto e um Armodio no salão. Há muitas porcelanas de Dresden e muitas coisas do que acredito chamarem de bijouterie. O armário está repleto de casacos de peles e vestidos de alta moda. Ela possui dois telefones, sendo que um não consta do catálogo. O que está no catálogo está sendo vigiado. O outro está escondido dentro do armário, por trás das roupas, onde existe também um cofre de parede, que consegui abrir. Depois lhe direi o que encontrei lá dentro. Demorei-me de oito e meia até as nove e meia nessa inspeção. Às nove e meia o telefone do catálogo tocou. Esperei até que parasse e depois saí do prédio, pelo porão. Sentei-me em meu carro, estacionado do outro lado da rua, e fiquei esperando. Por volta das dez e meia um homem entrou na casa, levando um pequena valise. Usou uma chave e não saiu mais, nem acendeu qualquer luz. Esperei até que Valerie Hallstrom chegasse a casa. Vi-o passar na limusine, e logo se acenderam, dentro da casa, as luzes da sala de estar e do quarto. Não pude ver o interior, porém, porque as cortinas estavam fechadas. Cerca de dez minutos depois o homem saiu, carregando ainda a valise. Saiu caminhando para oeste e eu o segui. Fez então sinal para um táxi e embarcou. O táxi avançou o sinal no primeiro cruzamento, por isso perdi-o de vista. Mas anotei o número da placa. Parei então numa cabine telefônica e liguei para Valerie Hallstrom. Ninguém atendeu. Voltei para a casa. As luzes continuavam acesas. Entrei e encontrei-a no chão da sala de estar. Levara um tiro na cabeça. O epílogo é bastante simples. Voltei à cabine telefônica e avisei a polícia. Eles ainda estavam trabalhando quando passei por lá esta manhã. Fico imaginando o que teria acontecido se você tivesse entrado na casa junto com ela.

     — Quem era o homem? Reconheceu-o?

     — Não. Mas tenho certeza de que o reconheceria imediatamente, se o visse de novo.

     — O que encontrou no cofre?

     — Dinheiro. Cerca de vinte e cinco mil dólares. E também um arquivo de impressos de computador. Havia um caderninho com uma relação de empresas e os respectivos códigos de computador. Todas as filiais de Arlequim et Cie. estão relacionadas, com os seus próprios códigos. Creio que todas as outras companhias relacionadas são também clientes da Creative Systems. Tirei o caderninho e deixei o resto.

     — O senhor...O quê?

     — É preciso ter algo para se negociar, Sr. Desmond. Não tínhamos nada antes. Agora temos, num cofre absolutamente seguro.

     — Mas nada disso tem sentido.

     — Pelo contrário, Sr. Desmond, vai descobrir que tem muito sentido. Suponhamos que a Srta. Valerie Hallstrom estivesse agindo por conta própria, extraindo informações dos computadores e vendendo-as a gente de fora. Suponhamos que Yanko tenha descoberto. O que faria ele?

     — Mandaria prendê-la.

     — E permitiria que fosse levada a julgamento, expondo publicamente a fraqueza de sua organização? Isso seria um golpe terrível para a Creative Systems e para o próprio Yanko. Ele levaria anos para recuperar-se. Não, Sr. Desmond, existem precedentes, precedentes demais. Algumas empresas chegaram até mesmo a subornar os empregados corruptíveis e ofereceram-lhes as melhores referências para arrumarem outro emprego, preferindo agir assim a processá-los e depois enfrentar prejuízos no valor de alguns milhões de dólares. Mas eu não creio que seja esse o caminho que Yanko escolheria. O que acha?

     — Concordo com sua opinião.

     — Portanto, ele deve livrar-se desses empregados pelo método mais barato. O cofre foi encontrado vazio. A polícia pensa que a Srta. Hallstrom surpreendeu um intruso em sua casa e foi alvejada. Isso acontece todos os dias com mulheres ricas que vivem sozinhas. E o estilo de vida da Srta. Hallstrom contribui para reforçar a história.

     — Mas nós sabemos...

     — Eu sei, Sr. Desmond. Mas tudo o que lhe contei é um conto de fadas, que irá esquecer no momento em que eu partir. Esse foi o nosso acordo, lembra-se? Mais tarde, quando encontrar o homem que matou a Srta. Hallstrom, veremos o que é melhor.

     — E acha que irá encontrá-lo?

     — Tenho certeza absoluta, Sr. Desmond. A profissão prima pela discrição, mas os bons profissionais são todos bastante conhecidos. Eu o descobrirei.

     Ele saiu sorrindo, mas deixou atrás de si uma baforada de enxofre e uma amostra do que era o inferno. E, lentamente, vi-me forçado ao mesmo dilema em que se encontrava George Arlequim. Éramos banqueiros, limpávamos todo o dinheiro que passava por nossas mãos. Mas não conseguíamos fugir à mancha que aparecia no dinheiro. Foi então que George Arlequim telefonou, enérgico e objetivo, tão diferente de sua personalidade habitual que nem eu mesmo pude adivinhar qual o papel que escolhera para desempenhar naquele dia.

     — Paul? Importa-se de vir agora para o Salvador? Poderia chegar dentro de vinte minutos? Vou almoçar com Herbert Bachmann e gostaria antes de conversar com você. Às três horas Basil Yanko também virá aqui. Gostaria de que você estivesse presente ao meu encontro com ele. Até lá, há outras pessoas que estão ansiosas por falar-lhe... Meia hora? Tente chegar antes, se lhe for possível. Oh, só mais uma coisa: importa-se de levar Juliette para almoçar? Ela está começando a ficar cansada de minhas sucessivas reuniões e não posso culpá-la por isso. Obrigado, Paul. À bientôt.

     As pessoas que desejavam ver-me eram dois jovens e muito bem-educados detetives do Departamento de Polícia de Nova York. Explicaram-me, em frases alternadas, que haviam ligado para o banco, sendo encaminhados ao Sr. Arlequim, que delicadamente consentira em chamar-me. Esperavam, sinceramente, que não representasse muita inconveniência para mim. Assegurei-lhes que isso absolutamente não acontecia. Será que o Sr. Arlequim não se importaria de deixá-los a sós comigo por um momento?

     Arlequim se importava. E muito. Disse-o em frases extremamente diplomáticas. Eu era seu amigo de longa data, diretor de absoluta confiança, representante de um banco internacional. Estávamos pisando uma propriedade do referido. E os dois estavam calcando também sua dignidade. A menos que eu, especificamente, expressasse o desejo de que ele se ausentasse, continuaria ali na sala. Não foi uma argumentação muito longa, mas proporcionou-me o tempo necessário para equilibrar meu espírito aturdido e planejar um relato simples e objetivo.

     — Deixei meu apartamento quando faltavam quinze minutos para as oito horas e caminhei até o Saint Regis. Por volta de oito e quinze segui para o Cote Basque, onde jantei com uma moça. Deixamos o restaurante de carro por volta das onze e meia. Deixei a moça em casa e o motorista levou-me para o bar de Gully Gordon, na First Avenue. Fiquei lá até uma hora da madrugada, quando o motorista

     me levou para casa. Meu criado pode confirmar minha chegada, por volta de uma e quinze. Ele estava preparando um lanche para si e eu comi também...Agora posso saber qual o motivo para essas perguntas?

     — Tenha um pouco mais de paciência, Sr. Desmond, por favor...Disse que jantou com uma moça. Como se chama ela?

     — Valerie Hallstrom.

     — Conhece-a há muito tempo?

     — Três dias. A Srta. Hallstrom trabalha para a Creative Systems Incorporated, cujos sistemas utilizamos e da qual somos acionistas e banqueiros de investimentos. Ela preparou um relatório sobre nossas operações de computação e encontramo-nos para discuti-lo. Foi bastante prestimosa e deu todos os esclarecimentos necessários. Convidei-a então para jantar.

     — Mas não foi buscá-la em sua casa? ' — Não. Mandei o carro apanhá-la.

     — Alguma razão para isso?

     — Era mais simples e eu queria esticar um pouco as pernas, pois tinha passado quase o dia inteiro sentado.

     — Disse que acompanhou a Srta. Hallstrom até a casa dela. Ela não o convidou para entrar?

     — Muito pelo contrário. Pediu-me que a deixasse a um quarteirão de sua casa.

     — Não achou isso estranho?

     — Muito. Mas, por outro lado...

     — O quê, Sr. Desmond?

     — A Srta. Hallstrom é uma conhecida de negócios. Não tenho o menor conhecimento de sua...vida particular. Nova York é uma cidade estranha, por isso achei melhor acatar seu capricho e não fazer pergunta alguma. Pedi ao motorista que acompanhasse a Srta. Hallstrom até a porta de sua casa. Só depois que a vimos entrar em segurança foi que nos afastamos. Tenho certeza de que poderá confirmar tudo isso com a empresa onde aluguei o carro e com o motorista que o dirigia.

     — Quais serão seus movimentos nos próximos dias, Sr. Desmond?

     — Isso depende inteiramente do Sr. Arlequim.

     — O que nos diz, Sr. Arlequim?

     — É impossível definir qualquer coisa neste exato momento, senhores. Estamos empenhados em algumas negociações internacionais, altamente delicadas. Podemos ficar aqui durante uma semana inteira. É possível também que, a qualquer momento, tenha que mandar o Sr. Desmond para a Europa ou para a América do Sul.

     Um dos detetives tirou do bolso um envelope pardo, abriu-o e pegou lá de dentro duas fotografias, entregando uma a Arlequim e outra a mim.

     Embora eu já estivesse preparado, senti um choque de repugnância e horror. Valerie Hallstrom parecia uma boneca desengonçada, estendida no chão de sua sala de estar, o rosto, uma massa ensangüentada.

     O detetive tirou a fotografia de minhas mãos.

     — Ela levou um tiro, Sr. Desmond. À queima-roupa, com uma pistola de calibre 38.

     — Eu...eu não entendo...Quando? Como?

     — Estamos investigando. Importa-se, Sr. Desmond, se dermos um pulo a seu apartamento para conversarmos com seu criado e verificarmos seus pertences?

     — Em absoluto. Mas certamente não estão pensando que...

     — É apenas rotina, Sr. Desmond. Irá ajudá-lo também.

     — Tem razão.

     — Esperem um momento, senhores!

     George Arlequim levantou-se, um homem de ferro, dominando a todos nós com sua presença.

     — Sou testemunha desta entrevista. O Sr. Desmond respondeu livremente a todas as perguntas que lhe fizeram. Ofereceu-lhes também livre acesso a seu apartamento, sem um mandado judicial. Relatou-lhes os fatos e os meios de comprová-los. Agora, porém, estou precisando dos serviços do Sr. Desmond. Desejo que ele permaneça aqui, para algumas reuniões de negócios, que envolvem os interesses urgentes de clientes internacionais. Portanto, com toda a deferência devida à autoridade policial, gostaria de fazer uma sugestão: que o Sr. Desmond telefone para seu criado e o instrua para deixá-los entrar no apartamento. Ele permanecerá aqui, à disposição, caso queiram interrogá-lo novamente...E então, senhores, o que me dizem?

     Eles pertenciam à nova raça de policiais, cautelosa, educada e racional. Depois de uma rápida conferência, terminaram concordando com a sugestão. Telefonei para Takeshi e entreguei as chaves do apartamento aos dois detetives, prometendo esperar no Salvador até que eles voltassem.

     Quando Arlequim e eu ficamos sozinhos, ele perguntou-me abruptamente:

     — Você deixou algo de fora, Paul. O que foi?

     — Nada, George.

     Ele ficou magoado, mas procurou não demonstrá-lo. Disse apenas, calmamente:

     — Lembre-se apenas de que não precisa comprometer-se por minha causa, Paul.

     — Não me estou comprometendo em nada, George. Vamos esquecer o assunto? Você vai encontrar-se com Yanko esta tarde. O que pretende dizer-lhe?

     — Vou recusar a oferta.

     — E o que fará então?

     — Vou exercer meus direitos de opção e comprar as partes dos acionistas minoritários.

     — Mas não tem condições de fazê-lo.

     — Herbert Bachmann acha que pode levantar os recursos necessários. Vamos discutir o assunto durante o almoço.

     — Mesmo que ele o consiga, você ficará endividado durante dez anos. E com o custo elevado do dinheiro, como está atualmente, talvez demore ainda mais. Além do mais, Yanko pode aumentar sua oferta. Sabe perfeitamente que isso é possível, se ele negociar com ações da Creative Systems em vez de dinheiro. Há um limite para o que até mesmo Herbert Bachmann pode fazer em Wall Street, sem assustar o mercado.

     — Então vamos descobrir que limite é esse, Paul. E vamos procurar também determinar quanto tempo poderemos ganhar para nossas outras operações. Creio que Bogdanovich poderá surpreender-nos.

     — Há uma coisa que ele deixou bem claro, George: não quer que você tenha uma confrontação com Yanko, pelo menos por enquanto.

     Arlequim ficou irritado. Sua resposta foi áspera e categórica:

     — Estamos pagando para receber informações, ajuda e assistência. Como usar tudo isso, eu é que decido. Recuso-me a permitir que me manipulem.

     — Não vamos começar a discutir, George. O dinheiro é seu. Mas não se esqueça de que não estamos na Europa e que o cenário americano está bastante turvo neste momento.

     — Então vamos ser bem claros, Paul: o risco é meu, a decisão é minha.

     — Vai precisar de minha presença no encontro com Yanko?

     — Vou. Eu lhe disse que você estaria presente. Convidei-o a trazer também um dos seus diretores, se assim o desejasse. Ele disse que não precisava da ajuda de ninguém, mas que compreendia perfeitamente que eu ainda estava sob cuidados médicos.

     — Filho da mãe arrogante!

     — Mas isso bem que ajuda, Paul. Não posso mais curvar-me diante dele. Estou comprometido. Com tudo o que sou, com tudo o que tenho. Se homens como Yanko controlarem as máquinas, não restará a menor esperança para nenhum de nós.

     — Como Julie está se sentindo?

     — Estamos agora mais ligados do que nunca. Mas algumas vezes eu me pergunto se ela não seria mais feliz se tivesse casado com um homem mais simples...

     Aquele era um terreno perigoso e eu não queria pisá-lo. Antes que tivesse tempo de formular um comentário, o telefone tocou. George Arlequim fez-me um sinal para que atendesse.

     Era Basil Yanko.

     — Sr. Arlequim?

     — Não. É Paul Desmond quem está falando...

     — Como vai, Sr. Desmond? Como sabe, temos uma reunião marcada para esta tarde. Infelizmente, porém, estou envolvido num acontecimento trágico, relacionado com uma das minhas funcionárias. Será que não poderíamos transferir a reunião para amanhã?

     — Certamente. Falarei com o Sr. Arlequim. À mesma hora, aqui no Salvador?

     — Obrigado...

     Ele hesitou por um momento, mas logo continuou:

     — Nas circunstâncias, acho que é melhor informá-lo de que a funcionária em questão é a Srta. Valerie Hallstrom. Ela foi assassinada ontem à noite.

     — Eu já sabia. A polícia veio procurar-me. Vi até as fotografias.

     — É mesmo, Sr. Desmond?

     Ou ele era um magnífico ator ou então estava realmente chocado.

     — Não estou entendendo...

     — Jantei com a Srta. Hallstrom ontem à noite. Aparentemente, fui a última pessoa a vê-la com vida.

     — Ela disse alguma coisa? Viu...?

     — Não, Sr. Yanko. A polícia já está de posse das poucas informações que pude fornecer. Estou bastante deprimido. Gostaria de que houvesse algo que eu pudesse dizer ou fazer...Bem, Sr. Yanko, até amanhã.

     — Até amanhã...— A voz dele foi-se apagando num murmúrio vago. — Adeus, Sr. Desmond...

     Quando desliguei, Arlequim perguntou-me suavemente:

     — Acha que agiu com sensatez?

     — Não pude evitá-lo.

     — Ele ficou perturbado?

     — Acho que sim. Pelo menos é o que eu espero.

     — Creio que você deveria entrar em contato com nosso amigo Bogdanovich.

     — Prefiro esperar até que a polícia termine de revistar meu apartamento.

     Os dois detetives voltaram cinqüenta minutos depois. Tinham revistado meu apartamento, falado com o motorista da limusine e conversado com Gully Gordon. Agradeceram-me a cooperação. Tudo de que precisavam agora era uma breve declaração assinada. Escrevi-a à mão, em papel timbrado do Salvador, assinei-a e pedi a George Arlequim que assinasse também, como testemunha. Agradeceram-me novamente, declarando que esperavam não me incomodar mais.

     Havia apenas mais um pequeno detalhe: eles desejavam saber por que eu não mencionara meu encontro com Valerie Hallstrom no bar de Gully Gordon. Contei-lhes um pouco de verdade e um pouco de mentira. O encontro fora acidental e sem o menor significado. Eles compreendiam, é claro. O que eu não havia compreendido é que moças que freqüentam bares desacompanhadas encontram com freqüência companheiros de cama bem estranhos. Concordei em que isso era bem possível, mas que esperava que não se estivessem referindo a mim. Claro que não. Mas mesmo o solteiro mais respeitável dificilmente consegue provar que dormiu a noite inteira em sua própria cama...

     George Arlequim zombou do meu embaraço. Convenceu os dois detetives de que já estavam de folga e bem que podiam aceitar um aperitivo, antes do almoço. Eu não me sentia absolutamente animado, mas consegui ensaiar um sorriso de solteiro feliz, contando uma historinha escabrosa sobre os dias de minha juventude em Tóquio. Quem nos ouvisse rir, não teria imaginado que fôramos todos reunidos por um assassinato.

    

     Juliette voltou à uma hora da tarde, corada e alegre, depois de uma manhã inteira a correr Nova York como uma mocinha. Fora ao cabeleireiro, tomara café com uma amiga e fizera compras. Ficou deliciada ao saber que eu a levaria para almoçar no Fleur de Lys. Julie, quando está bem disposta, ainda é capaz de fazer os homens virarem a cabeça para admirá-la. E a minha se vira mais facilmente ainda que a da maioria. Descemos pela Fifth Avenue, de braços dados. Paramos para ver as vitrinas da Bergdorfs, da Van Cleefs e da Harry Winston's. Brincamos de "Você se lembra..." e "Não seria maravilhoso se ..." Bebemos martínis imensos e analisamos o cardápio como se aquela fosse nossa última refeição. Enquanto comíamos, fizemos planos para uma noitada no teatro e para um passeio de carro pelo campo no domingo. Conversamos sobre um coquetel para receber os amigos e os colegas e discutimos qual seria a melhor mulher para me fazer par. A conversa era agradável e divertida e eu não me importava em alimentá-la, se isso a deixava feliz.

     Ela de nada sabia sobre o drama da manhã e não seria eu quem iria informá-la. George Arlequim queria tomar suas próprias decisões. E uma delas era determinar o quanto sua esposa deveria saber. Além disso, eu estava começando a ficar cansado do papel de padrinho, de amigo da família, de pau-para-toda-obra. Meu dinheiro estava comprometido, a polícia estava se intrometendo em minha vida particular, havia pessoas respirando audivelmente em meu telefone. Enquanto isso, tudo o que eu queria era ser um homem sem compromissos, saindo à francesa quando as mulheres eram muito feias ou quando a bebida se acabava. Não era pedir muito. Ao final da refeição, descobri que absolutamente não podia compreender as mulheres. Na hora da sobremesa, Juliette cansou-se da conversa superficial e quis fazer-me uma confissão:

     — Estou feliz, Paul, feliz como há muito tempo não me sentia. George está ficando mais forte a cada dia que passa e está gostando da batalha. Somos mais francos um com o outro. Agora, quando está cansado, ele fica irritado. Houve um tempo em que ele se mostrava tão suave e delicado que eu pensava que nem mesmo um furacão poderia abalá-lo. Gosto mais dele assim. E também torna-se mais fácil conviver...

     Se estivesse na mesma situação que eu, o que diria você? Que estava na maior satisfação, que tinha certeza, o tempo todo, de que as coisas iam terminar dando certo, que o casamento nem sempre é um mar de rosas. Tudo isso e mais alguma coisa. É claro, porém, que isso não era suficiente, pois a confissão mal começara.

     — Vou ser bastante franca, Paul...

     Quando uma mulher diz que vai ser franca, o homem deve imediatamente sair correndo e esconder-se na primeira moita. Mas nunca é o que a gente faz. Continua-se sentado no mesmo lugar, paciente, sorridente. Afaga-se a mão dela e se murmura algo simpático, preparando-se para ouvir pela centésima vez o canto da sereia.

     — Sinto um ciúme imenso de George. Sou por demais insegura. Eu o amo desesperadamente, mas só o fato de ser casada com um homem como ele constitui uma ameaça constante. Ele sabe demais, sempre vê tudo com extrema lucidez. Sinto que me está avaliando a todo momento e sempre fico aquém das suas necessidades. Esta crise reuniu-nos, mas pode também levá-lo para mais longe ainda de mim, a um ponto em que não poderia segui-lo. Se ele for batido, então estarei a seu lado para levantá-lo, tirar-lhe a poeira, amá-lo. Mas, se ele vencer, então ficará novamente a um milhão de quilômetros de mim. Você está me entendendo, Paul?

     Era uma pergunta tola. Por que mais eu estaria ali se não fosse para compreender e calar o que não se podia dizer? Que Julie Gerard casara-se com um homem abençoado, que podia não estar feliz mas tinha que continuar em frente, até descobrir se o marido era ou não capaz de descer ao inferno como o resto de nós. Mas não se pode dizer uma coisa dessas no Fleur de Lys. Eu não podia dizer a Julie que, se tivesse casado comigo, seria uma mulher caseira e feliz, com um garoto irrequieto agarrado às suas saias, sem sentir a menor falta do Cézanne na sala de estar ou do Hieronymus Bosch no salão de banquetes. A única coisa que eu podia fazer era sorrir e assentir, imaginando o que aconteceria quando George Arlequim chegasse a casa com sangue nas mãos e ferimentos na boca de poeta.

     Lá fora, o ar estava carregado e trovejava. Os nova-yorkinos continuavam em sua peregrinação ruidosa e ressentida para lugar nenhum. O ressentimento estava estampado nos rostos carrancudos e cautelosos. A convicção que tinham era tão nítida como se a manifestassem em cartazes: Manhattan era um lugar terrível. E não havia condição de melhorar. Pelo contrário, a tendência era piorar. Era uma cidade enlouquecida, de gente faminta por dinheiro, faminta por homens, faminta por mulheres. Rosnava para cada um de seus habitantes em todos os minutos de todas as horas. Se não se rosnasse em resposta, a cidade tragaria o indivíduo, corpo, alma, roupa e tudo. Entretanto, ela encerrava um desafio. Quem conseguisse vencer aquela cidade, poderia caminhar ereto como um rei em qualquer parte. Mas era preciso vencê-la o dia inteiro, todos os dias do ano. Quem não o conseguisse, quem se sentisse enfraquecer e ficasse esperando por um sorriso, tinha que se curvar, voltar ao rebanho submisso e lá permanecer.

     Não era necessário um grande exército de lógica para se concluir que, ao final, todos acabavam sendo derrotados. A idade avançando inexoravelmente e os jovens bravos e ambiciosos sempre à espreita para se alimentarem com nosso sangue. O dinheiro transformara-se num monstro enlouquecido, mastigando sua própria cauda, devorando-se até a extinção. A propriedade, em Nova York, era algo que se empenhava para se obter crédito, com o qual se comprava mais propriedade para se empenhar em novas compras, para por fim capitalizar, na esperança de que existisse ao final um porto seguro na rua sinuosa. Estávamos todos irremediavelmente condenados a rodar para sempre numa roda de moinho de tortura: algum despertar, um pouco de sono, a purificação pelo terror e pela piedade, algum amor, muita solidão, dois banhos por dia para nos manter limpos, embora jamais o estejamos. E finalmente chegava o momento em que se começava a imaginar se não se estava apenas matando o tempo, até que o tempo nos matasse.

    

     O almoço de Arlequim com Herbert Bachmann resultou em esperanças bem modestas. Era possível levantar o dinheiro necessário para Arlequim cobrir o desfalque e comprar as ações dos acionistas minoritários. Mas, mesmo a taxas mínimas, os juros seriam altíssimos e os lucros do banco seriam drasticamente reduzidos por um longo período. O mais prejudicial, contudo, seria o fato de que uma ampla parcela dos negócios de subscrição de ações estaria perdida, tendo em vista que a operação se baseia na promessa de que, se todas as ações não forem vendidas no mercado, o próprio banco subscritor ficará com o resíduo. Não seria esse o único prejuízo grave: os investidores tendem a se afastar de um banqueiro que precisa tomar dinheiro emprestado para se manter à tona.

     Basil Yanko calculara tudo com a maior precisão. O ágio era elevado o suficiente para atrair o vendedor ganancioso e para assustar o comprador prudente. Não havia confusão suficiente para provocar um escândalo, mas o bastante para fazer com que os novos clientes fossem procurar outro estabelecimento. George Arlequim podia vender e ficar rico ou então lutar e sair pobre, com uma vitória estéril. Arlequim via a situação com lucidez, definindo-a com mais precisão do que eu. Mas via também uma esperança, embora mínima, de melhorar sua posição.

     — Até agora, Paul, estamos pressupondo o pior: que todo acionista minoritário vai querer vender. Baseamos todos os nossos cálculos nessa suposição. Mas eu tenho opção. Minha idéia é procurar todos os acionistas, apresentar minha oferta e uma recomendação para não vender, em hipótese alguma, a quem quer que seja. Quero ter encontros pessoais sempre que for possível, a fim de não deixar muita coisa no papel. Já estou trabalhando nisto e é claro que precisarei de sua ajuda. Telefonei para Suzanne em Genebra. Nós três deveremos conseguir falar com todos os acionistas no prazo necessário. Assim que eu tiver a relação dos acionistas, fixaremos um plano de operação.

     — Mas continua decidido a rejeitar a oferta de Yanko imediatamente?

     — Claro. Sinto-me insultado por esse homem e por suas táticas. Por que está tão hesitante, Paul?

     — Porque, até que as investigações estejam concluídas e Bogdanovich nos forneça as informações de que precisamos, estamos sem trunfo nenhum para jogar. Yanko repete sua oferta e você lhe diz um "não" definitivo: isto encerra toda e qualquer discussão. Ficamos assim numa situação pior do que aquela em que estamos agora. Yanko é rancoroso. Se você o encostar na parede, ele irá enfrentá-lo como um rato furioso.

     — Tem que confiar em mim, Paul.

     — Que assim seja, George. Já disse o que penso.

     Ligarei para você amanhã de manhã e estarei aqui às três horas da tarde.

     — O que está pensando em fazer agora?

     — Vou até o clube tomar um banho a vapor. Depois telefonarei para Mandy Ducaine, descobrirei o que há de quente esta noite e irei até lá. Estou ficando embotado, George. Preciso de uma pausa.

     — Até amanhã, então. Dê minhas lembranças a Mandy.

     Eu estava furioso quando o deixei. Sentia que ele me excluía, que meus conselhos já não tinham a menor importância. Sentia falta da velha urbanidade, da antiga sutileza, o senso cômico de proporções. Arlequim estava agora brusco e inflexível, não passava de mais um mercenário numa cidade de mercenários. Desejei, ardentemente, poder liberar-me do fardo da amizade e retornar às rotinas agradáveis, se bem que insípidas, da vida de solteiro.

     Depois de uma hora no banho a vapor, eu me sentia menos irritado e mais bem disposto em relação à humanidade. Liguei para Mandy, uma viúva jovial com um coração tão grande quanto sua fortuna e cujo único medo é ter uma data em branco em seu calendário social. Ela ia à ópera. Mas, se eu quisesse, podia aparecer para a ceia. Iria encontrar Louise, Monty, aquela nova e maravilhosa soprano brasileira e uma dúzia de outras pessoas. Disse-lhe que faria o possível para comparecer; se não pudesse, contudo, mandava-lhe beijos e abraços até a próxima vez. E assim eu continuava sem ter com quem jantar e com a convicção de que estava ficando velho demais para a dança de acasalamento das borboletas sociais. Desci até o salão de bilhar do clube e ganhei dez dólares de Jack Winters, que nunca fez nada mais pesado em toda a sua vida do que podar roseiras e sempre evitou casar-se. Ele mais uma vez deixou-me assustado, como sempre acontecia. Nele podia ver-me dentro de dez ou quinze anos, o primeiro a chegar, o último a partir, uma figura patética, sempre ansioso por encontrar parceiros para o bridge ou companhia para o bar.

     Ao voltar para casa, através dos primeiros clarões dos anúncios luminosos e da última disparada de formigas pela cidade, estava oprimido por uma terrível sensação de solidão, um medo pânico da violência e do desastre. O terreno da lei, no qual eu caminhara com tanta segurança durante anos, estava se rompendo sob meus pés, como um rio congelado num degelo súbito. Eu estava envolvido em roubo, conspiração e homicídio. Contratara gente para semear o terror, porque me sentia encurralado por um sistema além do alcance da lei, um sistema que corrompia a lei, mantendo-a na impotência e subserviência.

     Era uma máquina terrível. Ela dizia: "Alerta amarelo"; e logo todas as grandes potências preparavam-se para a guerra. A máquina expelia um cálculo astronômico e logo uma moeda era desvalorizada. Mesmo Deus é capaz de perdoar nossos pecados, mas a máquina nos humilha com eles até o Juízo Final, o qual, aliás, também vai acabar determinando ...E assim se criava a grande ilusão de que o homem não deveria assumir nenhuma responsabilidade, já que não podia exercer nenhuma, de que deveria ser submisso porque seu destino já estava determinado e impresso, de que somente a máquina podia controlar as correntes cósmicas. O que ninguém dizia, porque todos se empenhavam laboriosamente em ocultá-lo, é que as máquinas são alimentadas por mecânicos humanos, tão diabólicos, bons, sensatos ou estúpidos como o resto de nós. A máquina apenas multiplica os erros cometidos por tais mecânicos, numa matemática enlouquecida, além da qual não há recurso possível...A menos, é claro, que se ataque a máquina com machadinhas, bombas, foguetes e um desprezo mortal, o que constitui a própria essência do terror moderno, a essência do desespero comum que hoje existe.

     Surpreendi-me de repente refletido na vitrina de uma loja. O que eu via era um homem de meia-idade, sombrio e hostil, fechado a qualquer contato humano. Virei-me e abri caminho apressadamente por entre a multidão, numa vã tentativa de livrar-me do fantasma de mim mesmo.

    

     Quando cheguei a casa, todas as misérias do dia foram suplantadas pelas atribulações domésticas. Takeshi estava num dos seus maus dias. Devo explicar agora que quando Takeshi está de bom humor é um modelo a ser apreciado acima do vinho, das mulheres e das esmeraldas. Ele cozinha melhor do que Escoffier. Passa uma camisa de forma a que fique parecendo como uma segunda pele. Tira o pó, lustra, dá polimento, como se fosse o guardião do mais valioso tesouro imperial. Por outro lado, Takeshi de mau humor é simplesmente intolerável. Ele arrasta os pés como um caso geriátrico, amarra a cara como um demônio do templo, funga, geme e se lamúria numa sinfonia de dores. Quando se digna abrir a boca, parece um idiota ou um insubordinado. A única solução que já encontrei é expulsá-lo de casa e deixá-lo ir purificar-se com saque, pôquer e uma visita à mama-san que dirige um estabelecimento para cavalheiros japoneses na West 58th Street.

     "Reconheci imediatamente os sinais no momento em que entrei. Cinco minutos depois eu já expulsara Takeshi de casa. Meia hora mais tarde estava de banho tomado, barbeado e pelo menos parcialmente humano, refestelado num sofá, com um copo ao meu lado e ouvindo Von Karajan reger a Patética. Chegara o pacote despachado por Francis Xavier Mendoza, mas eu ainda não o abrira. Há muito que só me movimentava de acordo com as engrenagens da máquina e achava que tinha direito agora a um pouco de descanso, entregue apenas a mim mesmo.

     Folheei uma revista de iatismo e deixei-me dominar pela fantasia de um longo cruzeiro. Iria da Europa para o Caribe, atravessaria o Panamá, chegaria às Galápagos, Papeete, Tonga e Fidji. Podia fazê-lo. Deveria fazê-lo, ao invés de me debater no estéreo do mercado. Poderia tirar um ano inteiro de folga. Até mesmo dois, se quisesse. Tripulação não era problema. Havia muitas alternativas para a escolha de companhia agradável. Jenny Latham estava livre e ansiosa ...Talvez Paulette...Mas por que deveria prender-me a alguém? Por que não me renovar em cada vez que aportasse em alguma terra? Despertei de meu devaneio com o toque insistente da campainha. Tropecei até a porta, ressentido, para atender.

     George Arlequim estava em pé no capacho, com um sorriso de arrependimento.

     — Estou passeando há uma hora e resolvi verificar se você estava em casa. Se não o encontrasse, teria deixado um bilhete.

     — Mas entre logo, George! Isto é um absurdo! Simplesmente não se pode passear à noite nesta cidade.

     — Eu sei, mas precisava espairecer um pouco, para poder pensar direito. Discutimos hoje, Paul. Isso não deveria ter acontecido. Peço que me desculpe.

     — Esqueça, George. Nós dois andamos muito nervosos. Aceita um café?

     — Quero sim, por favor. Você acabou não saindo?

     — Mandy foi à ópera. Sugeriu que fosse cear em sua companhia, mas eu não estava com a menor vontade. E ao chegar a casa ainda descobri que Takeshi está de veneta. Onde está Julie?

     — Esperando por Suzanne. Ela deverá chegar aqui de madrugada.

     — Contou a Julie o que aconteceu?

     — Contei.

     Ele deu-me seu sorriso infantil e malicioso, acrescentando:

     — Julie ficou admirada de você não lhe ter contado coisa alguma durante o almoço. Mas acho que, a esta altura, ela já deve tê-lo perdoado.

     — Espero que sim...Ali em cima do sofá, George, há um pacote. É um dossiê completo sobre Basil Yanko, que Mendoza enviou-me lá da Califórnia. Por que não o abre e dá uma olhada, enquanto faço o café?

     Fiquei pela cozinha durante dez minutos, satisfeito pelo fato dé Arlequim ter aparecido, perturbado por ainda não lhe haver relatado minha conversa com Bogdanovich. Não era o medo que me retinha, era ressentimento e ciúme, o triunfo menor de possuir uma informação que até então ele ignorava. Não era fácil explicar, mas, envergonhado pela cortesia de seu pedido de desculpas, tive que fazê-lo. Ele ficou chocado com os detalhes da morte de Valerie Hallstrom, mas recusou-se a permitir que eu me humilhasse.

     — Não, Paul! Deixei que você suportasse coisas demais por muito tempo. Você assumiu os riscos, enquanto eu bancava o crítico e o juiz. A partir de agora, trabalharemos juntos, sem segredos, sem discussões. Certo?

     — Certo.

     — Tive algumas notícias ruins esta noite. Larry Oliver foi procurar-me. Recebeu a oferta de outro emprego e apresentou seu pedido de demissão.

     — E quando ele quer ir embora?

     — No fim do mês. Tem direito a três meses de licença por tempo de serviço, o que cobre o período de aviso prévio.

     — Mas que diabo! Isso nos prejudica bastante, George.

     — Pedi a Standish que assumisse o comando. Ele ficou feliz, naturalmente.

     — Standish não tem muito peso, mas não há outro jeito.

     — Há uma coisa que me incomoda, Paul: legalmente nossa posição é muito fraca. Antes de mais nada, existem fortes indícios de culpabilidade contra mim, como presidente. Contratando a Lichtman Wells, estamos ganhando tempo para responder a qualquer possível acusação. Mas qualquer cliente que se considerar lesado poderá apresentar uma queixa a qualquer momento, em qualquer uma das jurisdições em que operamos. Oliver sabe disso e foi o motivo pelo qual pediu demissão, pois não queria sujar suas mãos imaculadas. A rigor, não se pode culpá-lo. E estamos também empregando Bogdanovich, que opera fora da estrutura legal e é na verdade o agente ilegal de uma potência estrangeira. E você, Paul, está agora na situação de reter provas num caso de homicídio. E como se isso não fosse suficiente, Basil Yanko telefonou-me hoje, dizendo que tinha um problema de ética profissional...

     — Que coisa admirável: Basil Yanko falar em ética profissional!

     — Foram as palavras dele. Disse-me que a Srta. Valerie Hallstrom tinha acesso a informações altamente secretas, relacionadas com a segurança nacional. Em conseqüência, tinha sido obrigado a chamar o FBI. Inevitavelmente, eles solicitariam, e ele não poderia negar, um livre acesso a todos os arquivos, inclusive os de Arlequim et Cie. Ele esperava que eu não interpretasse tal atitude como um ato hostil de sua parte, como uma tentativa de exercer pressão em nossas negociações. O assunto estava fora de seu controle...Compreende agora por que eu estava precisando dar uma caminhada para espairecer?

     Compreendia muito mais do que isso. Via manchetes garrafais e um mercado abalado, batalhões de clientes a nos desertar, como se fosse a retirada de Mons. E ali, em primeiro plano, estava George Arlequim, a xícara de café bem firme em sua mão, plácido como um mestre zen que acabasse de propor um enigma insolúvel.

     Tentei, hesitante, formular uma resposta:

     — Vamos falar primeiro sobre os aspectos legais. Você e eu somos ambos súditos estrangeiros. Não existe nenhuma prova de que você tenha cometido qualquer crime em Nova York. Há apenas um indício de que sua assinatura foi utilizada para colher os lucros de um crime na Suíça...Eu sei de um homicídio apenas pelo que me contaram. Ninguém sabe que estou a par de fatos concretos, à exceção de você e de Bogdanovich. Ninguém sabe também que contratamos Bogdanovich, além de nós e de Saul Wells, que trabalha em cooperação com ele. E mesmo que soubessem, seria muito difícil provar qualquer intenção criminosa de nossa parte.

     Temos toda a liberdade de contratar até um lixeiro, se assim o desejarmos, contanto que não conspiremos com ele para cometer algum crime. Já com o FBI a situação é diferente. Eles podem ter acesso a nossas transações, legalmente ou não, se alegarem que a segurança nacional está envolvida. É inevitável que nos venham procurar. O que lhes diremos então?

     — A verdade, Paul. Estamos investigando uma fraude internacional. Eu estou envolvido, apesar de inocente. Uma antiga funcionária nossa, Ella Deane, morreu subitamente num acidente, deixando uma quantia elevada, fato bastante suspeito. Acho que podemos ainda acrescentar que estamos relutantes em aceitar o relatório que absolve a Creative Systems pela simples declaração de que seus funcionários foram devidamente checados.

     — Acha que é uma medida sensata levantar tal questão?

     — Acho que sim. Não vamos formular acusações, apenas expressar uma dúvida razoável. Podemos até ir mais além, ressaltando a coincidência da proposta de Basil Yanko para comprar-nos.

     — Isso nos compromete, George.

     — Eu sei. Mas, inocente ou culpado, Yanko ficará preocupado. O FBI, a esta altura, também estará preocupado, porque Valerie Hallstrom tinha acesso a segredos governamentais e morreu violentamente.

     — Assim que tudo isso estiver às claras, George, nossas atividades ficarão consideravelmente restringidas.

     — Por quê, Paul? Nós agimos exclusivamente dentro da lei.

     — Antes de falarmos o que quer que seja, acho que Bogdanovich deve ser informado.

     — Concordo. Por que não o chamamos agora?

     — Tenho que usar um telefone público para entrar em contato com ele.

     — Ainda é cedo. Por que não se veste e me leva até o bar do Gully Gordon? Pode telefonar no caminho. Se Bogdanovich estiver livre, poderemos encontrar-nos esta noite.

     — E o que me diz do relatório de Mendoza?

     — Vou levá-lo comigo e estudá-lo. Quando não o estiver usando, eu o guardarei num cofre. Não é o tipo de coisa que se possa deixar à mostra. Especialmente agora...

     Não pude resistir a um sorriso e a uma pontada de ironia:

     — Está aprendendo depressa, George!

     Para minha surpresa, ele levou o comentário a sério.

     — Não, Paul, eu sempre soube. Mas tinha a vaidade pessoal de que poderia eternamente esquivar-me aos canalhas e trapaceiros, de que poderia insular-me contra a maldade através de urbanidade, de que poderia afastar a violência com uma muralha de dinheiro e privilégio. Esta noite, andando pelas ruas, compreendi que isso era uma ilusão. O mal é uma realidade e está sempre à nossa espreita, de emboscada, pronto para invadir nossa casa. Mais cedo ou mais tarde tem-se que enfrentá-lo, em luta corpo a corpo. Para mim, esse momento é agora. E fico contente por sermos amigos novamente...

     Tomamos dois drinques e ouvimos meia hora do piano de Gully Gordon. Ao sairmos, uma limusine com motorista estava nos esperando junto ao meio-fio. Aaron Bogdanovich estava no banco de trás. Seguimos até Washington Square, no centro da cidade, voltando depois para os subúrbios, lentamente, enquanto Bogdanovich absorvia as informações que lhe prestáramos e nos contava outras novidades.

     — Concordo com o senhor: não se pode brincar com o FBI. Podem dar todas as informações que eles puderem deduzir dos arquivos. E creio que não é prejudicial expressar uma certa intranqüilidade quanto às operações da Creative Systems. Podem ter certeza de que o próprio FBI também está preocupado com isso. Mas lembrem-se de que são estrangeiros e de que não compreendem perfeitamente as atitudes e procedimentos americanos. Isso ajuda bastante ao tratarem com órgãos governamentais... A única coisa que não podem mencionar é a ligação comigo. Eles sabem que existo. A política do governo é favorável a Israel, por isso eles me deixam em paz, contanto que mantenha a maior discrição com relação a meus atos e distribua de vez em quando umas gratificações generosas. Mas tenho certeza de que não permitirão que eu trabalhe para particulares. Ainda não tenho muitas novidades. Localizamos o táxi. O motorista admitiu que pegou nosso passageiro. Levou-o para o terminal da TWA no Aeroporto Kennedy. Depois disso, é claro, não pudemos seguir-lhe a pista. Ele pode ter apanhado um avião da própria TWA, ter apanhado outro táxi e voltado para o centro da cidade ou embarcado num avião de outra companhia. Não há condições de sabê-lo. Contudo, estamos investigando meticulosamente o mercado de assassinos de aluguel...Estamos também investigando os empregados pessoais de Yanko — seu motorista, o mordomo, a criada, a secretária particular. A polícia está investigando a vida particular da Srta. Hallstrom. Um amigo meu irá transmitir-me o que for descoberto, no momento conveniente. Ah, já ia me esquecendo de uma coisa, Sr. Desmond. O camarada que estava vigiando seu apartamento no Corvette verde...

     — Bernie Koonig. O que há com ele?

     — Meus rapazes o pegaram para uma conversinha. Ele disse que foi contratado por um amigo para segui-lo e informar todos os seus movimentos.

     — E quem é esse amigo?

     — Um homem chamado Frank Lemmitz. É o motorista de Yanko.

     — Finalmente, a primeira falha. Podemos usá-la?

     — Estive pensando nisso. É um risco, mas talvez valha a pena corrê-lo. Por que não jogar o nome na cara de Yanko, quando o encontrarem?

     — Confesso que ficaria deliciado em fazê-lo.

     — Deixe para mim — pediu George Arlequim, ansiosamente. — Pode ser uma tremenda surpresa. Não dizem, no teatro, que em todas as piadas deve haver sempre duas risadas?

     — Três, Sr. Arlequim — disse Aaron Bogdanovich. — Mas deve certificar-se de que a última não seja a seu respeito.

    

     Estávamos atrasados, mas não demais, para o jantar no Salvador. Suzanne estava presente e tomei-a nos braços e ali a mantive por mais tempo do que o usual, já que Arlequim não podia fazê-lo e ela estava precisando, assim como eu, de mais amor do que tinha. O relatório que ela nos trouxera de Genebra não era muito animador.

     O Union Bank mostrava-se cauteloso quanto a seus direitos e cioso de sua posição legal. A conta Arlequim fora aberta da forma apropriada. Todas as transações tinham sido formalmente corretas. O dinheiro fora pago contra uma assinatura verificada. A responsabilidade do banco terminava aí. Desde que tal posição fosse reconhecida, eles estavam dispostos a ajudar o honrado colega de todas as formas legais.

     A polícia suíça também não pudera prestar muita ajuda. Haviam examinado a alegada falsificação, comparando-a com uma assinatura genuína. Admiraram bastante a habilidade do falsificador. Ressaltaram que era quase impossível seguir a pista do dinheiro sacado do banco, pois ele podia inclusive ser legalmente exportado da Suíça. A posição de Arlequim era clara e difícil. As perdas estavam cobertas. E, a menos que alguma queixa formal fosse apresentada por uma terceira pessoa, não haveria acusações contra ele.

     As notícias do mercado também eram sombrias. Na cidade do bom Calvino, o trabalho era coisa sagrada. O dinheiro era seu fruto santificado. E qualquer coisa que manchasse a santidade do dinheiro era um anátema. George Arlequim ainda não fora excomungado e nem mesmo estava sob uma moção formal de censura. Mas na Associação dos Bancos Suíços já havia gente sacudindo a cabeça e os murmúrios corriam livremente. Ainda não perdêramos nenhum cliente, mas o fluxo de dinheiro para investimento diminuíra consideravelmente.

     Suzanne relatou tudo isso em seu estilo firme e prosaico, como se estivesse falando de artigos de uma mercearia e não de calamidades. Juliette ficou furiosa, cortando um nome depois do outro de sua lista de visitas. Arlequim resumiu tudo com brevidade:

     — Uma coisa é clara: não podemos simplesmente ganhar e voltar mancando para casa. Vamos precisar de bandeiras e fanfarras, de arrastar nossos inimigos pela lama. Mas já é tarde demais para retóricas. Voltaremos a nos reunir às dez horas da manhã, para um conselho de guerra...Durmam, crianças. Tenham lindos sonhos!

     Era um desejo agradável, mas não encerrava nenhuma bênção, pelo menos para mim. Assim que paguei o táxi, diante da porta do edifício onde morava, três homens saíram das sombras e convergiram em minha direção. Um deles disse-me:

     — Temos um recado de Bernie para você.

     Outro agrediu-me com um cassetete de borracha. Tentei reagir, mas eles eram por demais experientes para mim. Acordei em minha cama, com as costelas enfaixadas, uma dor terrível nos rins, um médico à minha cabeceira e dois guardas esperando para tomarem meu depoimento.

    

     O médico foi encorajador. Eu tinha uma costela quebrada, escoriações generalizadas e um galo imenso na cabeça. Ele achava que o resto de mim estava intacto, mas deveria chamá-lo imediatamente, caso sentisse enjôos, tivesse dificuldade em respirar ou constatasse a presença de sangue na urina. Deu-me algumas pílulas e seu cartão, apresentando também a conta pela consulta a domicílio, bem mais cara que a do consultório. Recomendou-me que tirasse dois dias de repouso absoluto e foi-se embora, para retomar seu próprio repouso interrompido.

     Os guardas fizeram-me um rápido resumo das últimas horas. Takeshi, voltando para casa de sua noite de folga, encontrara-me na porta, esparramado e desmaiado. Chamara a polícia e o médico, e eles haviam me levado para a cama. Agora, se eu já estava me sentindo capaz, poderia prestar alguns esclarecimentos? A sensação que eu tinha era de ter sido atropelado por um tanque, mas mesmo assim procurei atendê-los.

     Eles se referiram imediatamente ao nome de Bernie: eu conhecia alguém com esse nome? Não. Bernie Koonig significava alguma coisa para mim? Não. Deveria? É que na noite anterior eles haviam apanhado um homem com esse nome bem em frente ao prédio. Alguma relação? Absolutamente nenhuma. Eu não teria sido confundido com outra pessoa? Provavelmente. Vinha constantemente a Nova York, mas não circulava nos meios do crime, como dezenas de amigos meus, todos respeitáveis, poderiam confirmar. Poderia reconhecer os atacantes? Duvidava muito. Tudo acontecera muito depressa. Normalmente é o que acontece. Poderia verificar a minha carteira? Não estava faltando nada. Bem, eles registrariam a ocorrência com esses dados. Se me lembrasse de mais alguma coisa, deveria telefonar para o sargento de plantão na delegacia. E agora, Sr. Desmond, procure dormir; foi um schlamming e tanto!

     Takeshi acompanhou-os até a porta, serviu-me uísque para tomar os analgésicos, trouxe o telefone para junto de minha cama, fez alguns ruídos solícitos e finalmente deixou-me como Jó em seu monturo, sozinho com minhas misérias. Cochilei irrequieto até as sete horas da manhã, quando me esforcei para sair da cama, a fim de verificar os danos. Não era uma visão das mais agradáveis. Meu rosto estava todo machucado e inchado. O galo na cabeça era do tamanho de um ovo. Os nós dos dedos estavam esfolados e as ataduras no peito faziam-me parecer um bife enrolado. Todos os músculos doíam intensamente, mas pelo menos eu conseguia respirar com normalidade, não sentia enjôo e não havia sangue. Depois que tomei um banho de esponja e me barbeei, fiquei convencido de que iria sobreviver, mas não sabia ao certo se o trabalho valeria a pena. Contudo, depois de uma xícara de café e uma torrada, decidi fazer o esforço. Liguei para Aaron Bogdanovich e contei-lhe a saga de um schmuck chamado Paul Desmond. Ele disse que estaria em meu apartamento dentro de vinte minutos e desligou.

     Chegou sem flores e não expressou condolências.

     — Foi pura vingança. Meus rapazes trabalharam em Bernie Koonig. Ele culpou você e resolveu retribuir o cumprimento.

     — Mas por que ele haveria de responsabilizar-me?

     — E quem mais havia? Não costumamos anunciar-nos a gângsteres, Sr. Desmond.

     — Pensei que estivéssemos pagando por proteção durante vinte e quatro horas por dia.

     — E estão. Meu homem vinha logo atrás de seu táxi. Quando o viu caído na porta, seguiu adiante. Foi um erro, pelo qual ele será punido. Sinto muito.

     — Nós estamos pagando meio milhão de dólares. Levo uma tremenda surra e a única coisa que você diz é que sente muito. Essa é boa!

     — Sugiro que tire algum proveito do ocorrido, Sr. Desmond.

     — Como?

     — Decidimos ontem que contaríamos a Yanko que sabíamos da existência de Koonig e do homem que o contratara. Agora temos a prova. Foi vítima de um ataque criminoso, que pode ser investigado até se chegar a Yanko.

     — Mas eu disse à polícia que não conhecia Bernie Koonig.

     — Yanko não sabe disso. Sabe apenas que o senhor reteve a informação e que está preparado para usá-la como um argumento nas negociações.

     — Isso pode acarretar-me coisas bem piores.

     — É possível. Mas deverá informar também a Yanko que existe um depoimento seu, com firma reconhecida, pronto para ser enviado à polícia, caso algo lhe aconteça. Gostaria de estar presente quando falasse com ele.

     — Creio que tem água gelada nas veias, Sr. Bogdanovich.

     — Houve um tempo em que eu urinava sangue, Sr. Desmond. É então que a gente começa a ficar preocupado. Quero que me informe como foi a reunião. Mas só me telefone à noite, pois terei um dia bastante atarefado.

     — Com o negócio de flores, é claro.

     — Não, Sr. Desmond. Desta vez o problema é de mísseis SAM. Há três soltos por aí, nas mãos dos terroristas da Setembro Negro. Sabemos que dois estão na Europa e achamos que o terceiro talvez esteja aqui em Nova York. Se não o encontrarmos, uma porção de pessoas pode acabar morrendo numa explosão.

     Depois disso, evidentemente, nada mais havia para se dizer. Vesti-me penosamente, li os jornais matutinos e às dez horas apresentei-me no Salvador, sentindo-me como um palhaço que perdera o trem do circo. Juliette já saíra para passar o dia com amigas, poupando-me assim o embaraço de ter que explicar-lhe meu estado. A Arlequim e Suzanne contei toda a história e como Bogdanovich sugerira que a usássemos.

     Arlequim franziu o cenho por um momento e depois concordou bruscamente:

     — Façamos assim! Vejamos se os nervos de Yanko são realmente fortes! E agora vamos tratar de nosso programa para esta manhã. São três horas da tarde na Europa, Suzy. Vamos telefonar para todas as pessoas que estão em sua lista. Falarei pessoalmente com cada uma. Paul, você e eu vamos preparar um telegrama para todos os acionistas e a carta que o confirmará. Depois vamos elaborar duas declarações: uma para Yanko e outra para a imprensa especializada em assuntos econômicos. O ponto principal de ambos é a recusa da oferta, com a recomendação de que os outros acionistas também não aceitem e a exposição dos motivos. Nossos advogados estarão aqui à uma e meia, para analisar os rascunhos.

     Foi um trabalho lento e frustrante. Os ramais para a Europa estavam sobrecarregados. Das quinze pessoas da lista de Suzanne, conseguimos falar apenas com cinco. Três estavam dispostas a vender e duas concordavam em esperar, se Arlequim pudesse apresentar-lhes boas razões para tanto. E isso era a grande dificuldade: tínhamos muitas razões, mas não podíamos apresentá-las sem nos tornarmos passíveis de processos de calúnia. Podíamos objetar ao controle americano de uma tradicional empresa européia. Podíamos contestar a sabedoria de se entregar um banco ao controle de uma companhia que planejava sistemas de policiamento e vigilância. Podíamos demonstrar as táticas de polvo de Yanko. Mas, sem um forte conjunto de provas, não podíamos pôr em dúvida o caráter pessoal de Yanko. Era o velho adágio: o dinheiro faz o homem, torna-o mais puro que os anjos. Para se provar o contrário, é preciso ter pelo menos tanto dinheiro quanto ele.

     Enchemos uma cesta de papel com tentativas. Mas quando os advogados chegaram, tínhamos certeza de haver concluído uma verdadeira obra-prima de meias verdades. Os advogados ficaram horrorizados. O que era razão pura em Genebra, não passava de horrenda difamação em Nova York. De jeito nenhum eles podiam permitir que divulgássemos aqueles documentos, que nem mesmo os transformássemos em cartas confidenciais. Em hipótese alguma! Levariam nossas minutas para o escritório e iriam reescrevê-las.

     Arlequim concordou, relutante, e disse-lhes:

     — Por acaso já pararam para dar uma olhada no Sr. Desmond, cavalheiros?

     Eles então examinaram-me atentamente, expressando em coro o pesar que sentiam. Abri a camisa. O coro silenciou.

     Arlequim continuou:

     — O Sr. Desmond foi barbaramente espancado ontem à noite. Podemos seguir a pista desse crime até Basil Yanko.

     — Como, Sr. Arlequim?

     — Foi o motorista dele que contratou o homem que ordenou o espancamento.

     — Pode prová-lo?

     — Posso.

     — Pode provar também que o motorista estava agindo por ordem de Yanko?

     — Sabemos que é essa a verdade, mas não podemos prová-la diante da lei.

     — Então não temos um caso contra ele, Sr. Arlequim.

     — Exato. A lei é impotente. O Sr. Desmond não pode obter uma reparação, a não ser contra um subalterno. Queremos o conselho que nos podem dar nesta emergência, cavalheiros. Como podemos obter uma reparação e proteger o Sr. Desmond e a mim de novas agressões? Já sei a resposta: não podem comprometer-se, recomendando um recurso ilegal. Mas os senhores não se limitam a isso, vão mais além, recomendando-me que preserve a reputação de Yanko, a fim de não ser processado por difamação. Faço isso e ele nos agride ainda mais violentamente. Quando a lei é impotente, cavalheiros, como se pode fazer justiça? Pensem nisso, por favor. E tragam-me, por gentileza, os novos documentos até as seis horas da tarde.

     Eles saíram, hesitantes e infelizes, abalados com o que lhes parecera uma diatribe inútil.

     Suzanne não fez o menor segredo de seu desagrado.

     — Mas que diabo, George, o que esperava que eles dissessem? Eles não podem desafiar a lei, pois são seus servidores. Você sabe disso, sempre o soube.

     A resposta de Arlequim foi enérgica e imediata:

     — Não! Esse não é o ponto fundamental, Suzy. A questão precisa ser respondida, porque o dilema é universal. Os palestinos não podem voltar para casa, pois existe hoje um kibutz onde outrora era seu lar. Os judeus não podem render-se, pois serão mortos numa masmorra síria. O vietcongue na cadeia não pode falar porque lhe dão urina para beber e cal viva para comer. Os famintos nos bairros miseráveis transformam-se em bandidos porque não conseguem encontrar trabalho nem comida para seus filhos. E, enquanto tudo isso acontece, os advogados balançam-se nos poleiros de papagaio das câmaras de torturas! Eu não tenho um caso .perante a lei! O que quer que aconteça, viverei e morrerei rico, embora sem ter feito por merecer um só franco de minha fortuna. Mesmo assim, a lei é impotente para defender meu direito mais simples, o direito a preservar meu bom nome. Este é que é o ponto fundamental e no qual me torno irmão dos fora-da-lei; talvez eu mesmo me transforme num fora-da-lei...

     Eu nunca vira Arlequim tão veemente e desenfreado. Era como se uma fonte começasse a jorrar dentro dele e ele simplesmente não a conseguisse reprimir. O desafio que lançava dirigia-se não apenas a nós, do seu grupo, como também a si próprio. Depois ele disse algo estranho e perturbador:

     — Neste momento estou olhando para o cano da arma e posso até ver a bala na culatra. Fico imaginando o que irei sentir quando for eu o homem que estiver com o dedo no gatilho.

    

     Basil Yanko chegou vinte e cinco minutos depois das três horas, tarde demais para justificar uma desculpa e apenas o suficiente para sugerir uma descortesia deliberada. Ele pediu desculpas, é claro, mas de forma tão negligente que serviu apenas para acentuar o insulto. Esperava que pudéssemos concluir a reunião com alguma rapidez, pois tinha um encontro em Pleasantville às seis horas da tarde e queria evitar o tráfego da hora do rush. Seu carro estava estacionado na garagem subterrânea e queria que seu motorista fosse avisado pouco antes de terminar a reunião. Era tudo calculado para nos deixar irritados e fazer com que a reunião começasse nervosamente. Fiquei furioso, mas Arlequim permaneceu tranqüilo.

     Só depois que nos ajeitamos em torno da mesa é que Yanko fez uma referência à minha aparência.

     — O que aconteceu com seu rosto, Sr. Desmond?

     — Um acidente. Tenho também uma costela quebrada. Mas o médico disse que sobreviverei.

     — Espero que esteja segurado.

     — Estou, sim.

     — Pois vamos logo tratar dos negócios. Acredito que já tenha pensado sobre minha oferta, Sr. Arlequim.

     — Já, Sr. Yanko.

     — Então concorda que é uma oferta generosa?

     — Concordo.

     — Isso quer dizer que vai aceitá-la?

     — Não, Sr. Yanko. Eu a recuso.

     — Está esperando que eu aumente a oferta?

     — Pelo contrário, espero que a retire.

     Por um instante uma sombra de surpresa surgiu em seu rosto, mas logo os lábios se contorceram num sorriso.

     — E por que eu deveria fazê-lo, Sr. Arlequim?

     — Talvez venha a descobrir que essa é a atitude mais prudente.

     — Isso não é uma ameaça, não é mesmo, Sr. Arlequim?

     — É um conselho, Sr. Yanko. E, a esta altura, ainda amigável.

     Basil Yanko recostou-se na cadeira, juntou as mãos, dedo contra dedo, erguendo-as depois à altura dos lábios descorados, os olhos velados. Tornou então a sorrir e disse suavemente:

     — Sei o que está pensando, Sr. Arlequim: que sou um homem ganancioso, vulgar e grosseiro, um colega nada adequado para um cavalheiro europeu como o senhor. Pensa em levantar dinheiro suficiente para confirmar suas opções e comprar todas as ações minoritárias, mesmo que isso signifique um prejuízo irreparável. Se assim agir, tenho duas alternativas. Posso elevar a oferta de forma a que lhe seja impossível cobri-la. Ou posso também mover-lhe uma série de processos, civis e criminais, em todas as jurisdições onde opera. Processos por perdas e danos, por fraudes, por estelionato, enfim, por todos os crimes previstos na lei. E nem preciso ganhar os processos, Sr. Arlequim. No momento em que as queixas forem apresentadas diante de um tribunal, o senhor estará arruinado. O banco enfrentará uma crise de confiança. E, ao final, de qualquer maneira, eu terminarei me apoderando dele...Não acha que é melhor sermos razoáveis, Sr. Arlequim?

     Era a mais arrogante exibição de poder, nua e crua, a que eu já assistira. Senti-me envergonhado, humilhado e furioso o bastante para cometer um assassinato.

     George Arlequim, no entanto, pareceu não se abalar. Não havia o menor vestígio de tremor na mão ou na voz, o menor indício de paixão em sua resposta:

     — Estou surpreso, Sr. Yanko. Parece que eu o respeito mais do que o senhor a si mesmo. É um homem de inteligência excepcional. Por isso, não posso compreender como pode empenhar-se numa tática tão grosseira. A menos, é claro, que seja uma tática de desespero...

     Basil Yanko riu. Não era um som agradável de se ouvir, mas um ruído dissonante e áspero, cruel, de zombaria.

     — Desespero nenhum! Arlequim, você está meio século superado. Isto é negócio! Ao estilo americano, da década de 70! Não sou um gnomo suíço a perder tempo com frivolidades no Clube dos Banqueiros! Você não encontrará, em qualquer mercado do mundo, um negócio melhor do que o que estou lhe oferecendo. Se quer discuti-lo, muito bem!

     Estou aqui para ouvi-lo. Mas, se recusar a minha oferta, então terá que agüentar as conseqüências!

     — Dê-me licença por um momento. Arlequim levantou-se e foi até a porta.

     — Preciso tomar um copo de água. Yanko virou-se para mim.

     — Pelo amor de Deus, Sr. Desmond! Ele é seu amigo e o senhor conhece as regras do jogo. Veja se consegue fazer com que entre um pouco de juízo naquela cabeça!

     — De que maneira, Sr. Yanko? Possuo apenas uma participação nominal. Quando deixar de ser diretor, terei que devolvê-la, pois está em usufruto. A idéia foi sua, Sr. Yanko. Divirta-se agora.

     Arlequim voltou logo depois, enxugando os lábios com um lenço. Sentou-se, esticou as pernas por baixo da mesa e retomou a conversa:

     — Onde estávamos? Ah, sim! No ponto em que eu teria de agüentar as conseqüências caso recuse sua oferta. Mas antes que tome qualquer iniciativa precipitada, Sr. Yanko, permita-me que lhe enumere alguns fatos. Primeiro: tenho em meu poder um dossiê completo sobre sua vida e suas atividades profissionais. Levaram dois anos compilando todos os fatos e devo dizer que nem tudo lhe faz crédito. Alguns detalhes apontam-no até como um colega altamente indesejável. Segundo: sou, como bem sabe, um acionista substancial da Creative Systems Incorporated e de suas subsidiárias. Tenho direito a voto nas assembléias e certos direitos para proceder a investigações legais nos negócios de suas companhias. Terceiro: a Creative Systems depende da confiança pública tanto quanto a Arlequim et Cie. E depende muito mais da confiança política, para manter e executar vultosos contratos governamentais. Quarto: a confiança política ficaria profundamente abalada se eu provasse que os altos escalões da Creative Systems ou até mesmo seu presidente estão ligados ou empenhados em atividades criminosas. Quinto: acredito que, se tais provas existem, é meu dever, como acionista e como honrado homem de negócios, solicitar uma investigação por parte dos órgãos governamentais. Sexto: e tais provas existem, Sr. Yanko, e estão à minha disposição.

     Basil Yanko sacudiu os ombros e ergueu as mãos, num gesto de desprezo.

     — Então cumpra seu dever, Sr. Arlequim. Use-as!

     — Infelizmente não está acreditando em minhas palavras, Sr. Yanko.

     — Para dizer a verdade, não.

     — Então vou referir-me apenas a um pequeno assunto. O seu motorista está esperando lá embaixo. Minha secretária acaba de telefonar-lhe, como havia pedido. O nome dele é Frank Lemmitz. Agindo por ordens suas, ele contratou um criminoso conhecido, chamado Bernie Koonig, para vigiar o apartamento do Sr. Desmond. Ele assim o admitiu a investigadores particulares que trabalham para mim. Foi esse mesmo Bernie Koonig o responsável pelo bárbaro espancamento de que o Sr. Desmond foi vítima na noite passada. Temos depoimentos assinados sobre a ocorrência, prontos para serem entregues à polícia...Mas isto é apenas a ponta do iceberg, Sr. Yanko. Há muito mais por baixo da água. Compreende agora por que lhe aconselhei prudência?

     Que se dê ao diabo o crédito que merece: Yanko absorveu o golpe muito melhor do que eu esperava. Conseguiu até ensaiar um sorriso débil e gelado de aprovação. Suas primeiras palavras foram endereçadas a mim:

     — Lamento que se tenha machucado, Sr. Desmond. Pode estar certo de que não tive nada a ver com isso. Também tenho que pedir-lhe desculpas, Sr. Arlequim. Parece que o subestimei.

     — Isso é sempre perigoso num mercado incerto como este em que operamos.

     — Mas prometo que não tornará a acontecer. Aconselha a que retire minha oferta, não é mesmo? Suponhamos que eu retire a ameaça e mantenha a oferta?

     — Então estaremos mantendo um relacionamento de negócios normal, contra o qual não há objeção na lei, nem na prática usual.

     — E de sua parte, Sr. Arlequim?

     — Posso declarar que não é necessário que eu tome nenhuma iniciativa oficial, tendo em vista que a Creative Systems está sob investigação pelo FBI, e enquanto nosso relacionamento comercial permanecer normal. A informação à minha disposição será apenas, digamos assim, uma política de segurança.

     — Não gostaria de cedê-la a um bom preço?

     — Não.

     — Eu já sabia que ia recusar. Bom, vamos resumir a situação. Fiz-lhe uma oferta. Recusou-a; aconselhou seus acionistas a fazerem o mesmo. É uma pena que tenhamos chegado a este impasse, mas em sessenta dias muita coisa pode acontecer...Boa tarde, senhores.

     Não havia tempo para comentários, pois tínhamos que despachar os telegramas para os acionistas, as cartas de confirmação tinham de ser datilografadas e postas no correio. Os advogados chegaram, com uma declaração tão fraca e lamuriosa que Arlequim amassou-a num gesto de desprezo. Resolvemos ficar com nosso segundo rascunho. Julie voltou no meio da confusão e pediu que lhe relatássemos os acontecimentos do dia. Queria saber também por que eu me parecia com um ferido em combate, o que trouxe à baila, de forma final e definitiva, o problema do quanto lhe deveríamos contar.

     A opinião de Arlequim era de que ela deveria saber de tudo. Aleguei que era um privilégio meu mantê-la na ignorância de certas coisas, porque fora minha cabeça que se colocara no cepo e Aaron Bogdanovich não iria gostar. Julie argumentou, com bastante razão, que era muito difícil dormir com um homem se não pudesse conversar com ele; que, se havia riscos a correr, ela deveria compreendê-los; que, se ele podia confiar numa secretária, por que não numa esposa? Insisti num argumento que me provocou calafrios: quanto mais ela soubesse, mais vulnerável se tornaria; eu tinha até as cicatrizes para provar que não estávamos brincando. Ao que Julie respondeu, com extrema compostura, que éramos um pequeno grupo de amigos enfrentando um mundo hostil. Se a confiança não fosse partilhada, o grupo não conseguiria permanecer unido. Capitulei então e Arlequim contou-lhe tudo. Julie ficou chocada ao ver quão profundamente estávamos comprometidos e o quão perto estávamos da selva impiedosa. Ficou também envergonhada por sua leviandade, furiosa por a termos deixado tanto tempo na ignorância. Ela se recusava a ser novamente protegida e mimada.

     Arlequim ficou mais feliz. Podia agora raciocinar abertamente na assembléia familiar. Podia admitir suas necessidades, ao invés de escondê-las por trás de uma máscara de sorrisos e polidez. Até mesmo sua aparência ficou diferente. A fala tornou-se mais vigorosa, os gestos, menos contidos. De certa forma, mais simples e também mais singular, ele era como um monge que descobrira subitamente a chave para seu próprio coração.

     Jantamos espaguete e vinho no Bertolo's. O espaguete foi idéia de Julie. Ela calculou que eu teria mais facilidade

     em mastigar espaguete do que um bife. Pedimos ao acordeonista que tocasse canções antigas e sentimentais. Demo-nos as mãos e cantamos. Brindamos à morte e à perdição dos ímpios, enquanto Arlequim entoava maldições em tantas línguas quantas se podia lembrar, a fim de que Basil Yanko não pudesse escapar ileso. Éramos como pessoas em tempo de peste, reunidas em torno da fogueira e da garrafa, cantando para expulsar o Demônio da nossa porta. Mas o Demônio estava presente e nós o sabíamos perfeitamente: era a infecção de violência e terror que se alastrava. No momento em que deixássemos o círculo mágico, seríamos novamente presas dele.

     Ao voltarmos para o Salvador, de braços dados, as tensões do dia subitamente me dominaram e senti-me fraco e nauseado. Descansei por um momento na suíte de Arlequim, mas não melhorei. Suzanne declarou que iria levar-me de táxi para casa e passaria a noite em meu apartamento. Protestei, mas fui firmemente vencido. Meia hora depois, estava acomodado em minha cama e dopado por sedativos, enquanto Suzanne e Takeshi preparavam chá na cozinha. Não podia acontecer e sabia que jamais aconteceria, mas não pude deixar de pensar, sonolento, como seria ter uma mulher em minha casa todos os dias.

    

     Pela manhã, cedo demais, recebi uma visita inesperada de Aaron Bogdanovich. Takeshi levou-o até meu quarto, onde ele se sentou na beira da cama com uma xícara de café nas mãos, começando imediatamente a interrogar-me:

     — Não me telefonou ontem à noite. Por quê?

     — Estava passando mal. A secretária de Arlequim teve que trazer-me para casa. Ela está dormindo no quarto de hóspedes.

     — Se eu lhe disser para telefonar, não poderá deixar de fazê-lo. Meus esquemas dependem de informações sistemáticas. O que aconteceu ontem?

     Contei tudo, item por item.

     Ele avaliou nossas atitudes e aprovou-as.

     — Ótimo. Eu estava querendo saber como Arlequim se iria comportar. O que vai acontecer em seguida?

     — Vamos esperar as respostas dos acionistas. Vamos reunir fundos aqui em Nova York para comprar as ações dos hesitantes. E quais são as notícias que tem para nós?

     — Já sabemos quem matou Valerie Hallstrom. O nome dele é Tony Tesoriero e está agora em Miami. Em breve estaremos conversando com ele.

     — Como foi que o descobriram?

     — Essa pergunta é indevida, Sr. Desmond.

     — Desculpe. Não sou muito esperto a esta hora da manhã.

     — Saul Wells transmitiu-me todas as informações que descobriu sobre Ella Deane. Ela fez três grandes depósitos em dinheiro, em novembro, dezembro e janeiro. Durante esse período, manteve um relacionamento bastante cordial com Frank Lemmitz.

     — Acho que está na hora de conversar com esse homem.

     — Tentamos a noite passada, mas ele não foi para casa. E hoje de manhã não se apresentou para o trabalho.

     — Provavelmente foi despedido logo depois da reunião que Yanko teve conosco.

     — Na verdade, ele seguiu para Londres no vôo especial da meia-noite. Amigos meus irão procurá-lo lá.

     — Pode ser que ele continue voando pela Europa.

     — A passagem dele era só de ida até Londres, classe econômica. E agora, Sr. Desmond, poderia dizer-me como estão seus nervos?

     — Um pouco abalados. Por quê?

     — Receberá esta manhã, entre sua correspondência, um envelope pardo comum. Dentro encontrará o caderninho de anotações de Valerie Hallstrom e um bilhete datilografado dizendo apenas "Com os cumprimentos de Valerie Hallstrom". Deverá chamar imediatamente o Sr. Arlequim e seu investigador particular, Saul Wells. Este chamará a polícia, em seu nome. Entregará o caderninho à polícia. O Sr. Arlequim telefonará para o Sr. Yanko e lhe transmitirá a notícia.

     — E será então que os problemas irão começar. A polícia e o FBI irão concentrar-se em mim.

     — Exatamente. E lhes dirá a verdade, que encontrou o caderninho em sua caixa de correspondência. Tanto o FBI como a polícia irão interrogá-lo sobre sua breve associação com a Srta. Hallstrom. Durante esses interrogatórios, mas não logo no princípio, irá recordar-se da única coisa que esqueceu de dizer à polícia: o medo que a Srta. Hallstrom tinha de Basil Yanko.

     — E como poderei explicar minha péssima memória?

     — De forma bem simples: com um comentário de que não queria lançar suspeitas sobre um homem inocente. Enquanto isso, estaremos conversando com nosso amigo Tony Tesoriero, em Miami. Qualquer informação que consigamos será, de um modo ou de outro, transmitida ao FBI. Isso deve manter todo mundo ocupado por algum tempo.

     — Detestaria ter que enfrentá-lo, Sr. Bogdanovich.

     — Tenho certeza de que isso jamais acontecerá, Sr. Desmond. Quanto a essa secretária...

     — É uma velha e querida amiga.

     — Ótimo. Não haveria mal algum se ela o visse abrindo a correspondência. O que acha de ela mesma ir apanhá-la?

     — Takeshi é quem costuma fazê-lo.

     — Melhor ainda. Boa sorte, Sr. Desmond...Ah, sim! Em nossa próxima reunião, gostaria de receber cem mil dólares.

     — Não há problema. Quando devo chamá-lo?

     — Dessa vez, eu o chamarei. Talvez passe um ou dois dias fora da cidade...Boa sorte!

     Eu aceitara a loucura e sabia disso, mas num mundo lunático os loucos estão mais seguros do que os sãos. Eles se acostumam ao caos e esperam todas as monstruosidades: bombas na correspondência, veneno na água, crianças sem cabeça nas ruas, assassinatos em massa. Eles sabem que se pode ser alvejado nos aeroportos, violentado nos elevadores, torturado por profissionais pagos com dinheiro público. É normal os presidentes mentirem assim como os policiais cometerem perjúrio, é rotina companhias telefônicas patrocinarem revoluções.

     Dentro do contexto da insanidade de massa, Aaron Bogdanovich era o mais razoável dos homens. A matemática fria pela qual ele trabalhava era o único sistema viável num mundo de princípios morais conflitantes e leis desacreditadas. Se Deus não existia ou se ausentava por um tempo longo demais, Aaron Bogdanovich e sua espécie eram os substitutos lógicos. Mesmo no inferno era necessário manter a ordem, e o terror era o instrumento mais refinado para tal. Não era preciso usá-lo com muita freqüência, bastava apenas exibi-lo, numa constante ameaça e com alguns exemplos sangrentos ocasionais. O único recurso contra isso era um terror ainda maior. Ao final, a humanidade acabaria por se render, pelo menos para poder viver em paz numa terra devastada. Era uma lógica de pesadelo. Mas, uma vez aceitas as premissas, não havia como escapar à conclusão inevitável.

     Suzanne veio ver-me então e, pelo menos por um momento, o pesadelo dissipou-se. Ela estava calma e carinhosa. Beijamo-nos e ficamos de mãos dadas, recordando, sem qualquer arrependimento, um passado apaixonado.

     Quando lhe perguntei, jovialmente, se não gostaria de revivê-lo, Suzanne sorriu e sacudiu a cabeça.

     — Não, chéri. Nossos corações não estariam empenhados numa nova ligação e já não somos bastante jovens para mentir um ao outro. Nós dois perdemos o trem e estamos agora de pé na estação, de mãos dadas. Foi o que sonhei na noite passada.

     — Fico contente por sua presença, Suzy. Obrigado.

     — Não há o que agradecer, Paul. Fiquei satisfeita por poder sair do hotel. Sorrio quando o vejo travando discussões de apaixonado com Juliette, mas quase esqueço que tenho de controlar-me ao máximo toda vez que George aparece. Sob o mesmo teto, é quase intolerável...

     — Se quiser, pode vir morar aqui.

     — Obrigada, Paul, mas não posso aceitar. Se precisar de companhia, virei sempre que me chamar.

     — Que Deus a abençoe, mulher! Agora saia daqui e deixe que me vista. Temos um dia atarefado pela frente. Eu lhe falarei a respeito durante o café.

     Felizmente para nossos propósitos, Takeshi era um escravo da rotina. A mesa do café estava posta, as torradas embrulhadas como um presente de casamento, a manteiga enrolada, o suco acondicionado em gelo picado. A correspondência e o jornal da manhã foram trazidos logo depois do bacon com ovos e antes da segunda xícara de café. Takeshi rasgou os envelopes tirando os selos estrangeiros para seu sobrinho de San Francisco. Recolheu as contas domésticas a fim de pagá-las com sua verba especial. Peguei o jornal e minha correspondência pessoal, seguindo para a sala de estar, onde Takeshi serviu outro café, em xícaras limpas. Depois ele saiu, para dedicar-se às suas tarefas domésticas.

     O envelope pardo era o último da pilha. Takeshi tinha observado que ele não trazia selo nem carimbo postal. Fingi surpresa. Sopesei-o e entreguei-o a Takeshi, que voltara à sala, para que o abrisse, observando que não tinha nenhum endereço de remetente. Certifiquei-me de que ele lesse o bilhete e partilhasse minha surpresa pelo recebimento de uma correspondência enviada por uma mulher morta. Pedi-lhe então que ligasse para Arlequim, a quem eu disse:

     — Acaba de acontecer algo muito estranho, George. Precisamos tomar uma decisão urgente. Suzy e eu estaremos aí dentro de trinta minutos. Não, é melhor não discutirmos o assunto por telefone. Creio que é um problema para a polícia. E acho que vamos precisar também de Saul Wells...

    

     Saul Wells falava cem palavras por minuto, andando de um lado para outro, soltando baforadas e espalhando cinzas e frases esparsas de conselho.

     — Ambos são estrangeiros. Estão me pagando para descobrir as coisas. Assim, quando o barulho começar, deixem que eu fale tudo...Tudo o que precisam dizer é que o caderninho caiu na caixa de correspondência como dinheiro chovendo do céu. É claro que sabem o conteúdo dele. Eu também sei. Tenho cópias fotostáticas de todas as páginas. Isso é normal. Sou um agente de segurança, registrado e licenciado. Mas sou também um homem de negócios, à procura de novos clientes. Entro em contato com as outras empresas relacionadas no caderninho, contatos de alto nível, na base do mais estrito sigilo, e com sua permissão, Sr. Arlequim. O senhor levou um golpe, o mesmo pode acontecer com as outras empresas. Os diretores ficam agradecidos...e também assustados. Assim que eu saio, eles telefonam para Basil Yanko. Ele fica preocupado...e é exatamente isso o que estamos querendo. Enquanto isso, a polícia se apodera do caderninho e o FBI também toma conhecimento dele. A polícia está preocupada com um assassinato. O FBI está preocupado com a segurança nacional, fraude internacional e uma porção de grandes companhias a pressioná-lo. Terá que responder a duas perguntas embaraçosas, Sr. Desmond: quem poderia ter-lhe enviado o caderninho e por quê? Eles tentarão descobrir as respostas por vinte caminhos diferentes, mas sempre voltarão a procurá-lo. A resposta será sempre a mesma: o senhor não tem a menor idéia.

     — Terei então que mentir.

     — Viu o envelope sendo entregue?

     — Não.

     — Pode ler mentes?

     — Não.

     — Como poderá então estar mentindo? Não se sinta culpado, amigo, pois isso é fatal. Não matou ninguém, não roubou nada. É um banqueiro estrangeiro, que contratou ajuda local e quer agir rigorosamente de conformidade com

     a lei...Agora a sua parte, Sr. Arlequim. Disse a Yanko que estava de posse de um dossiê sobre ele. Mande copiá-lo agora mesmo. Se o FBI lhe pedir o original, terá que entregá-lo... isso pressupondo que Yanko lhes fale a respeito.

     — Ele seria tolo o bastante para isso?

     — Não seria uma tolice, Sr. Arlequim. Pelo contrário, seria uma manobra bastante esperta. Yanko opera alguns contratos consideravelmente delicados e já foi investigado uma centena de vezes. Quando se trabalha para o governo, não é necessário ter uma ficha limpa, contanto que se façam confissões honestas nos interrogatórios. Está chocado? Meu caro Sr. Arlequim, quando se contrata um homem para projetar um sistema de mísseis, compra-se o seu talento e esquecem-se seus pecados. Enquanto tais pecados estiverem arquivados, o esquema é seguro para os dois lados. Terá que responder também algumas perguntas embaraçosas, Sr. Arlequim. Por exemplo: suspeita de que Yanko tenha cumplicidade nas fraudes? Vê alguma relação entre as fraudes e a morte da Srta. Hallstrom?

     — Estou preocupado apenas com a coincidência de sua oferta para comprar meu banco.

     — Ótimo. Essa é precisamente a linha que deverá seguir. O fato de ter chamado a polícia suíça ajudará bastante.

     — Há outro problema, Sr. Wells. Disse a Yanko que minhas investigações haviam constatado uma ligação entre Bernie Koonig e Frank Lemmitz. Os ferimentos do Sr. Desmond ainda são bastante evidentes. Provavelmente o problema será levantado.

     — Esse ponto está coberto, Sr. Arlequim. Tem um contrato escrito com a Lichtman Wells. Pode apresentar algum contrato com outro investigador?

     — Não.

     — Então relaxe.

     — A impressão que tenho, Sr. Wells, é de que estou vivendo em outro planeta.

     — Está enganado, Sr. Arlequim — disse Saul Wells alegremente. — Ê a mesma velha Terra de sempre. O único problema é que o senhor não tem circulado o bastante. Agora respire fundo, pois vou chamar a polícia. Depois contaremos até dez e telefonará para o Sr. Yanko. Só quero ver a cara dele quando chegar aqui!

     Esse prazer, no entanto, lhe foi negado. O Sr. Basil Yanko seguira para a Europa na noite anterior. Sua secretaria não sabia informar quando voltaria. A polícia mostrou-se grata, mas bastante vaga. Ouviram em silêncio as explicações eloqüentes de Wells. Pediram-me que as confirmasse. Tomaram anotações. Examinaram o envelope, ficaram com o caderninho, assinaram um recibo por ele, agradeceram-nos pela ajuda prestada e partiram.

     Saul Wells ficou desconcertado e infeliz.

     — Nós lhes entregamos dinamite e eles a trataram como se fosse fogo de artifício! Yanko está mergulhado até o pescoço no fracasso e parte inesperadamente para a Europa! Não estou gostando. Algo está me cheirando mal.

     Arlequim recusou-se a ficar perturbado.

     — Isso é teatro, Sr. Wells. O silêncio é mais assustador que a fala. Não podemos ficar hesitantes e temerosos. Até agora, nossos depoimentos estão sendo integralmente confirmados. Por favor, mantenhamos a calma.

     Foi então que o telefone tocou. Atendi.

     Karl Kruger estava na linha, falando de Hamburgo.

     — Olá, meu jovem Paul! Como vão as coisas?

     — Estamos lutando, Karl. E até agora estamos conseguindo resistir.

     — Aí, talvez. Aqui acho que estão se precipitando rapidamente. Foi por isso que resolvi telefonar. Pediram-me que reunisse um grupo de subscritores para a emissão de um bônus municipal da Bundesrepublik. Não é nada grande, mas é uma operação importante. Incluí o nome de Arlequim na relação, mas eles o cortaram.

     — Por que motivos?

     — E quem dá as razões? Você sabe perfeitamente como é o mercado, Paul. E como o menino está se comportando?

     — Maravilhosamente.

     — Ouvi dizer que ele pretende exercer as opções, a cem dólares por ação. Isso o transforma num idiota. Onde ele está?

     — Aqui ao meu lado. Gostaria de falar com ele?

     — Quero, sim. Há uma reunião em Frankfurt amanhã. Foi Yanko que a convocou. Alguns dos acionistas de vocês estarão presentes.

     — São todos minoritários. E não podemos esquecer também que Arlequim tem opção para comprar suas participações. A segunda opção é sua. O que eles podem fazer?

     — Podem gritar que o peixe está podre e provocar uma reviravolta no mercado, só isso. Arlequim deve ser informado. Acho até que ele deveria vir participar da reunião. Diga-lhe isso.

     — Diga-o você mesmo. Vou chamá-lo...George, é Karl Kruger quem está ao telefone.

     Arlequim pegou o telefone e iniciou uma conversa longa e animada, em alemão. Saul Wells levou-me para a ante-sala e fez-me uma preleção queixosa.

     — Ouça-me com atenção, Sr. Desmond! Conheço esta cidade. Conheço a polícia e o FBI, sei como eles trabalham. Nos jornais, tivemos apenas uma notícia de meia coluna, depois mais nada. E da polícia, o que foi que tivemos? Muito obrigado pela informação, perguntas de rotina, tudo suave como o diabo! Daqui por diante, verifique seus telefones e não fale coisa alguma diante dos empregados. Vou mandar um homem verificar diariamente este apartamento e o seu, à procura de microfones ocultos. Se quiser falar algo em particular, vá para um parque ou até uma biblioteca.

     — Está certo, Saul. Seguiremos seu conselho. Mas que diabo, nós não somos criminosos!

     — Eu sei que não. Mas estão agora de posse de informações da maior importância. Não conhecem todas as companhias relacionadas naquele caderninho, mas eu conheço. Pelo menos cinco delas são organizações de alta segurança, trabalhando em projetos de defesa nacional. Portanto, mesmo sendo irmãos de sangue do presidente, os telefones de vocês poderão ser controlados. Ambos são estrangeiros, e nós temos medo dos estrangeiros, Sr. Desmond. Preferimos proteger uma meretriz nascida aqui como Yanko a um par de virgens estrangeiras...Não faz a menor idéia de como é fácil incriminar uma pessoa. Já fizeram negócios com a Cortina de Ferro? Já estiveram na China? Alguma vez já tiveram qualquer ligação com agentes de alguma potência estrangeira? E como podem explicar as informações de Yanko sobre o banco? Não é necessário que sejam verdadeiras. Pode ser uma simples opinião, mas, uma vez impressa nos cartões de um computador, passa a ser encarada como um evangelho sagrado. Espero que me perdoe o comentário, mas a verdade é que basta uma simples palavra para transformar a Virgem Maria em Maria Madalena. O Sr. Arlequim talvez não compreenda tal situação e...

     — Eu compreendo perfeitamente, Sr. Wells. Arlequim estava parado na porta, vermelho e indignado.

     — Procurarão intimidar-nos até a rendição final.

     — Não quis ofendê-lo, Sr. Arlequim. Está me pagando para prestar-lhe um serviço completo, e é precisamente isto o que estou tentando fazer.

     — Eu sei, Sr. Wells, e aprecio devidamente seus esforços. Não estou zangado com o senhor. Estou é afrontado por todo esse caso sórdido, incluindo essa reunião em Frankfurt e o suborno de colegas meus. Prefiro padecer no inferno a ceder às pressões de Basil Yanko. Quantas cópias fotos-táticas nós temos do caderninho de anotações de Valerie Hallstrom?

     — O senhor tem uma e eu tenho três.

     — Dê-me mais uma.

     — O que pretende fazer?

     — Sr. Wells, sou um suíço extremamente bem considerado. Vou fazer uma visita a meu embaixador em Washington. Acho que devemos ir todos nós, Paul. A mudança de ares nos fará bem. Tenho seu telefone, Sr. Wells. Pode deixar que o informarei onde poderá encontrar-me.

     — Quero avisar-lhe, Sr. Arlequim, que Basil Yanko tem muitos amigos em Washington.

     — Eu sei. Mas nós temos também uma relação de seus inimigos.

     — Experimente-os antes de lhes dizer qualquer coisa. Washington tem um clima engraçado, a que algumas pessoas não se acostumam muito bem. Desejo-lhe boa sorte.

     Dez minutos depois que ele se foi, o chefe da portaria ligou para a suíte. Um cavalheiro desejava falar com o Sr. Arlequim. Suzanne desceu para encontrá-lo e descobrir o que ele desejava. Poucos minutos depois ela apresentou-o pessoalmente: o Sr. Philip Lyndon, do FBI. Ele era jovem, bronzeado, bem-vestido. A princípio, suas maneiras foram impecáveis. Ficou satisfeito ao encontrar-me também, dizendo que isso lhe pouparia tempo e repetição. Em primeiro lugar, queria deixar bem claro que aquela era uma reunião confidencial, de parte a parte. Estava relacionada com a Creative Systems Incorporated, com a qual Arlequim et Cie. mantinha ligações como subscritora, acionista, banqueiro e cliente. Informara-se que a Creative Systems apresentara uma oferta para assumir o controle de Arlequim et Cie. O Sr. Arlequim era o presidente e o maior acionista, não é? E o Sr. Desmond, também presente...

     — Não é suíço, não é, Sr. Desmond?

     — Não. Sou australiano. Tenho um visto de negócios.

     Portanto, devem ter detalhes pessoais a meu respeito nos arquivos.

     — Temos, sim. Qual é sua posição em Arlequim et Cie.?

     — Sou diretor executivo.

     — Ele é o meu colega de diretoria mais importante e um amigo de longa data.

     — Obrigado, Sr. Arlequim. Agora vamos poupar tempo. Estamos cientes de suas dificuldades, Sr. Arlequim. Lemos o relatório de suas operações de computador. Sabemos que contratou a Lichtman Wells para investigá-las. Tais operações podem vir a ser investigadas também por outros aspectos.

     — Talvez ainda não saiba, Sr. Lyndon, que a polícia suíça já foi informada de todo o ocorrido e está trabalhando no caso. A operadora de Nova York implicada no caso, Srta. Ella Deane, está morta. Nossos advogados informaram-nos que não temos mais nenhum recurso legal nesta jurisdição, a menos e até que recebamos mais informações de nossos investigadores.

     — Compreendo. Tendo em vista que contratou investigadores particulares, posso supor que não está satisfeito com o relatório da Creative Systems?

     — Eu não disse isso, Sr. Lyndon. O relatório estava de acordo com o contrato, que estipula a verificação da segurança do sistema e a indicação de quaisquer anomalias no funcionamento do programa.

     — Certo. Mas foram cometidas fraudes em todas as suas filiais, e até agora o senhor identificou apenas uma única operadora.

     — Os investigadores ainda estão trabalhando nas outras filiais.

     — Está convencido de que a Creative Systems não está envolvida na fraude?

     — É difícil responder a essa pergunta sem criar uma falsa impressão. Há dois pontos a destacar. Primeiro: o relatório exime de culpa todos os funcionários da Creative Systems, mas não apresenta nenhuma prova a corroborar tal afirmativa. Segundo: existe a curiosa coincidência de se haver apresentado uma oferta para assumir o controle de Arlequim et Cie. logo depois da entrega do relatório.

     — Isso pode ser, é claro, apenas um ato de oportunismo empresarial, não* muito ético, é verdade, mas também não criminoso.

     — É possível.

     — Suponho, Sr. Desmond, que tenha agido em todo este caso como procurador do Sr. Arlequim, não?

     — Exatamente.

     — Inclusive quando discutiu o relatório com a Srta. Valerie Hallstrom?

     — Inclusive.

     — E inclusive quando se encontrou com ela em duas outras ocasiões?

     — Aí, não. O primeiro encontro foi puramente acidental, o segundo foi um encontro social.

     — Depois do qual ela foi assassinada. Sobre isso, é claro, estamos a par das investigações da polícia. Sr. Desmond, pediu por acaso à Srta. Hallstrom que explicasse ou comentasse o relatório?

     — Pedi.

     — E ela o fez?

     — Ela explicou-me o significado. Convidei-a a enunciar suas conclusões, mas ela recusou, alegando que não tinha ordens para fazê-lo.

     — E pressionou-a?

     — Não.

     — Pediu ou induziu-a a fornecer quaisquer informações sobre a Creative Systems?

     — Não.

     — Ela sugeriu que estava disposta a fazê-lo, sob determinadas condições?

     — Não.

     — Por que procurou ter um encontro social com ela?

     — Sou um homem solteiro. E ela é...era uma mulher atraente.

     Arlequim interveio suavemente:

     — Acho que poderíamos poupar um tempo precioso ao Sr. Lyndon, se o informássemos do que aconteceu esta manhã.

     — Agradeceria a informação, Sr. Arlequim.

     — Esta manhã o Sr. Desmond encontrou em sua caixa de correspondência um envelope pardo comum, sem carimbo postal nem endereço do remetente. O envelope continha um caderninho preto e um bilhete com as palavras "Cumprimentos de Valerie Hallstrom". O caderninho continha os nomes de diversas empresas, entre as quais a nossa, com os respectivos códigos de computador. O Sr. Desmond telefonou-me imediatamente. Encontramo-nos aqui com o Sr. Wells e logo depois entregamos o caderninho à polícia. Imaginamos que ele seria posteriormente encaminhado ao FBI. Mas suas perguntas ao Sr. Desmond parecem indicar que ainda não o receberam.

     — Ainda não, Sr. Arlequim.

     O Sr. Philip Lyndon estava visivelmente abalado.

     — Isso...isso é algo inteiramente novo para mim. Tem certeza quanto ao conteúdo do caderninho?

     — Tenho. Se me der licença por um minuto, irei buscar o recibo da polícia e uma cópia fotostática dos registros. Sugeri ao Sr. Wells que se comunicasse com as companhias relacionadas, no caso de elas terem sofrido também uma quebra da segurança...

     — Infelizmente tal atitude é bastante irregular.

     — Irregular!

     Arlequim, que já ia saindo da sala, estacou bruscamente.

     — Irregular como, Sr. Lyndon?

     — Os códigos de computador são informação confidencial.

     — Eu também pensava que fossem, Sr. Lyndon. E tal erro custou ao meu banco quinze milhões de dólares...Pronto, aqui estão o recibo e a cópia fotostática.

     — Terei que ficar com eles.

     — Não, Sr. Lyndon. Por lei, esses documentos me pertencem. Mas pode perguntar, delicadamente, se permito que os leve.

     — Peço desculpas. Poderia levá-los?

     — Pode, Sr. Lyndon. Mas, naturalmente, terá que assinar um recibo.

     Ele fechou as páginas, franzindo o cenho e deixando escapar pequenos murmúrios de aflição. Depois, virou-se para mim.

     — Sr. Desmond, poderia informar-me, com detalhes, como esse caderninho chegou às suas mãos?

     Ele queria detalhes e conseguiu-os. Falei sobre meus hábitos matutinos, a rotina de Takeshi, a coleção de selos de seu sobrinho e, para rematar, a presença de Suzanne. Ele então formulou a pergunta que realmente importava:

     — Quem lhe enviou o caderninho, Sr. Desmond?

     — Não sei.

     — Mas deve ter pensado a esse respeito.

     — Que horas são, Sr. Lyndon?

     — Meio-dia em ponto. Por quê?

     — Recebi o caderninho durante o café da manhã, há quatro horas. Desde então tenho estado numa roda-viva, com o Sr. Arlequim, com Saul Wells, com a polícia e agora com o senhor. Não tive muito tempo para pensar. E, por favor, gostaria que considerasse todos os fatos. O que eu iria fazer com esse caderninho? Vendê-lo? Comê-lo? Trata-se de uma prova material num caso de homicídio. Quis livrar-me dele o mais depressa possível.

     — Não o comprou, por acaso?

     — De quem, Sr. Lyndon?

     — Talvez da própria Srta. Hallstrom.

     — E ela estava vendendo segredos?

     — A possibilidade está sendo analisada.

     — Mas por que haveria de querer comprá-los?

     — Talvez para desacreditar a Creative Systems. Li a declaração que distribuíram à imprensa esta manhã. Suponho que não estão dispostos a vender. Mas hão de convir que o preço é bastante atraente para alguns acionistas.

     — Está fazendo uma pergunta ou uma afirmação, Sr. Lyndon?

     — É apenas uma hipótese, Sr. Desmond, para estimular a discussão.

     — Não haverá mais discussão alguma.

     As palavras de George Arlequim eram categóricas. Ele levantou-se e foi ao telefone, ligando para a telefonista do hotel e pedindo uma ligação para o embaixador suíço em Washington.

     O Sr. Philip Lyndon era um bom interrogador, mas perdeu a calma no último instante.

     — Por favor, Sr. Arlequim, espere um instante. Eu exagerei. Peço desculpas.

     Mas Arlequim estava inflexível.

     — Sinto muito, Sr. Lyndon. A reunião está encerrada. Nós lhe dissemos a verdade. Se não aceita tal fato, em nada mais podemos ajudá-lo. Considero sua insinuação como extremamente ofensiva. Tenho razões para acreditar que talvez seja inspirada. Se assim é, isso o desacredita inteiramente como funcionário do governo...Alô? Erich? Aqui é George Arlequim. Estou em Nova York. Preciso falar-lhe sobre um problema diplomático de alguma importância. Mas é melhor falarmos em nossa língua.

     Ele conversou durante cinco minutos em alemão-suíço, desligando em seguida.

     — Vamos para Washington, Paul. Sugiro que procure também sua embaixada assim que chegarmos lá. E agora, Sr. Lyndon, vamos ser claros. Estamos e estaremos sempre dispostos a fornecer-lhe quaisquer fatos à nossa disposição sobre assuntos relacionados com sua investigação, a qual, segundo o Sr. Yanko me informou, versa sobre problemas de segurança nacional. Por outro lado, porém, devo declarar-lhe que não nos iremos submeter a interrogatórios insolentes e trataremos de nos proteger, se necessário através de intervenção diplomática.

     — É um direito seu, Sr. Arlequim.

     O Sr. Lyndon já recuperara suas boas maneiras e um pouco de sua coragem.

     — Extra-oficialmente, não o culpo por isso. Usou a expressão "insinuação inspirada". Não poderia explicá-la?

     — Vou defini-la, Sr. Lyndon: é uma forma de assassinato, pela qual se sufoca um homem com insinuações malévolas. Bom dia.

     Nunca vira Arlequim tão furioso. Estava totalmente branco e os olhos pareciam duros como pedra. Ficou andando de um lado para outro da sala, batendo com o punho fechado na palma da outra mão e despejando uma torrente de palavras iradas, enquanto Julie e Suzanne o contemplavam, chocadas e em silêncio, paradas na porta.

     — Estou simplesmente revoltado. Karl Kruger acha que devo ir a Frankfurt. Para quê? Para suplicar a homens a quem enriqueci...para provar-lhes que não sou um vilão nem um idiota!...É agora somos intimidados por burocratas e agentes, assustados como criancinhas a ouvirem sussurros na escuridão!... Não! Não! Não! Prefiro antes morrer numa fossa!...Julie, arrume nossas malas. Vamos partir para Washington. Suzanne, faça reservas para todos nós. Iremos de trem. Arrume acomodações no...

     — Espere um momento, George. Eu é que faço as reservas. Isso é parte de nosso acordo com Bogdanovich.

     — Faça-as então, Paul. Mas tem que ser agora mesmo. Suzy, ponha Herbert Bachmann ao telefone. Depois...

     — George, por favor!

     Julie plantou-se diante dele, pondo as mãos em seus ombros, procurando acalmá-lo.

     — Agora é você quem está bancando o arrogante. Você não é assim, querido. Pare com isso!

     Passou-se um longo momento antes que Arlequim conseguisse dominar-se. O esforço que ele fez foi visivelmente doloroso. Quando finalmente falou, sua voz era áspera e tensa:

     — Lamento muito se estou parecendo agressivo. Vocês queriam que eu lutasse. Avisei que talvez não fossem gostar do homem que vive dentro de mim. Agora eu tenho que conviver com ele. Vocês têm outras alternativas.

     Juliette fitou-o por um instante, pálida e assustada. Depois desatou a chorar e saiu correndo da sala. Suzanne lançou um olhar de censura para Arlequim e seguiu atrás dela. Eu enfrentei-o, furioso também.

     — Pelo amor de Deus, George! Por que tinha de dizer uma coisa tão brutal?

     — Será que foi mesmo? Ao final de toda essa história, Julie talvez pense que foi apenas um momento de delicadeza. E o mesmo talvez lhe aconteça também, Paul.

    

     A Agência de Viagens Apex não era absolutamente um lugar em que alguém pudesse esperar providenciar acomodações de primeira classe numa viagem, muito menos conseguir suítes de luxo em Embassy Row. Era uma loja pequena e cheirando a mofo, na parte ainda não recuperada de Greenwich Village, com cartazes pregados com percevejos e folhetos dobrados. A recepcionista tinha cara de cigana, usava um vestido de brim e muitas contas. Mas quando eu enunciei meu nome e declarei que estava no negócio de flores, a loja pareceu subitamente adquirir vida. A cigana parecia dez anos mais moça, seu sorriso era a promessa de boa sorte. Washington era uma cidade permanentemente cheia, mas ela tinha certeza de que arrumaria alguma coisa. Dentro de uma hora as passagens de trem estariam no hotel. Haveria uma limusine à nossa espera assim que chegássemos a Washington.

     As outras providências demoraram um pouco mais para serem explicadas. Nosso contato em Washington seria um certo Kurt Saperstein, que também estava no negócio de flores, com uma loja chamada Bernard's Blooms. Ao que parecia, suas atividades tinham âmbito nacional. Portanto, as comunicações não constituiriam problema. Assim que nos acomodássemos, eu deveria informar-lhe os números de nossos quartos. Talvez houvesse um contato no próprio Embassy Row, mas Kurt me informaria a respeito no devido tempo. Ele seria o responsável pela transmissão das informações a Aaron Bogdanovich. Mas era preciso ser cauteloso.

     Washington era uma cidade muito sensível, na qual os agentes secretos eram mais numerosos que a grama num gramado. As medidas de segurança eram rigorosas e compensava ser supercuidadoso. Entreguei os cartões de crédito à cigana e voltei para meu apartamento.

     Takeshi ficou contente ao ver-me. Ele também fora visitado pelo Sr. Philip Lyndon, que o interrogara a respeito da correspondência. Ouvira falar sobre a agressão e queria saber também a respeito disso. Mas aparentemente o que mais o interessava era saber os nomes e as descrições de meus visitantes mais recentes. Ele ficara furioso porque Takeshi o deixara de pé no capacho, sem convidá-lo para entrar a fim de poderem conversar mais à vontade.

     Esse, é claro, fora seu grande erro. Takeshi possui um orgulho desmedido de sua cidadania americana e uma sensibilidade japonesa com relação à dignidade. Quando se sente insultado, descobre que lhe é difícil compreender o inglês mais simples e muito mais difícil ainda falá-lo inteligivelmente. Recordar nomes e rostos torna-se então uma impossibilidade absoluta. E assim o Sr. Lyndon partira mais infeliz do que chegara e sem saber de mais nada. Como eu ia partir, pareceu-me uma medida sensata despachar Takeshi numas pequenas férias, à custa do banco. Seu sobrinho devia estar sentindo saudades. Takeshi confirmou que isso de fato acontecia. Fez minha mala e a sua também. Saímos juntos do apartamento.

     A viagem para Washington foi uma lúgubre peregrinação. George sentou-se numa extremidade do vagão, ditando cartas para Suzanne, enquanto eu me sentava na outra extremidade, bebendo bourbon e jogando gin rummy com Juliette. Ela estava calma, mas pálida e distante como se vivesse no mundo da lua. Jogou com uma concentração profissional, desencorajando qualquer conversa que não fosse sobre assuntos triviais. Fiquei satisfeito por não ter que envolver-me no que parecia ser uma crise conjugai de amplas proporções. Eu ainda estava furioso com Arlequim. Ressentia-me de sua pressuposição que o fazia tratar-me como um simples servidor sempre às suas ordens, como um acompanhante eventual para sua esposa. Empenhara toda a minha fortuna para ajudá-lo, assumira até mesmo riscos pessoais. Não fazia parte da barganha ter que assumir o papel de substituto que sofria os dissabores no lugar dele.

     Além disso, eu estava bastante preocupado com a súbita ruptura de seu autocontrole. Estávamos empenhados numa

     estratégia complicada e perigosa. Até aquele momento, traváramos apenas simples escaramuças. E se os nervos já começavam a lhe faltar, então corríamos grave perigo. Até mesmo Suzanne, a tolerante, a ponderada, estava preocupada. O cavalheiro galante, sorridente e sempre bem-humorado que ela amara por tanto tempo era agora um homem de lábios cerrados e arrogante, não se apercebia mais da afeição que lhe dedicavam.

     Juliette estendeu a mão por cima da mesa e colocou-a sobre a minha. Estava extremamente fria.

     — É sua vez de jogar, Paul.

     — Desculpe. Estava a muitos quilômetros de distância.

     — Já se cansou de jogar?

     — Se não se importa...

     — Você parece estar muito triste.

     — Não estamos seguindo exatamente para um piquenique, menina.

     — Por favor, Paul, não culpe George.

     Fitei-a, perplexo. Aquela era outra Julie, grave como uma freira, fria, uma completa estranha.

     Ela continuou imediatamente, impassível:

     — Sei que é difícil de entender, mas você tem que procurar fazê-lo. Para mim também é muito difícil. Mas hoje fui obrigada a aceitá-lo. Nós todos sempre consideramos George pelas aparências. Ele é tão bom em todas as coisas que nunca perguntamos o que o fazia tão bom. Eu, inclusive, menos do que qualquer outra pessoa. Você ouviu o que eu lhe disse no hospital, que tudo que ele tinha ganhara-o de presente, que nunca precisara lutar por nada. Mas não é verdade...Quando ele faz algo, tem que ser perfeito, tão perfeito que parece não ter exigido o menor esforço. E assim esquecemos o esforço que ele na realidade fez. Montar a cavalo, velejar, falar muitas línguas, é tudo a mesma coisa. Comecei a recordar uma porção de coisas. Muito antes de viajar para a China, George passou muitas noites acordado, praticando os ideogramas e entoando a fala cadenciada dos chineses, como se fosse um cantor de ópera a exercitar-se. Já o vi no lago, sozinho, amarrado num trapézio, em dias de muito vento, fazendo circuitos intermináveis numa prancha de wind-surf. Quando o vemos nas corridas de cavalos, esquecemos que ele conhece de cor o stud-book. Há muito que eu achava tudo isso normal. E, ao atacá-lo, não me apercebi da ferida profunda que estava abrindo...George está fazendo a mesma coisa agora, e é terrível assistir a isso. Mas não podemos esquecer que ele nos avisou, chegou mesmo a dizer: "Creio que posso transformar-me no maior pirata entre todos, capaz de sorrir enquanto limpo o sangue de meu alfanje". Ele inclusive está praticando também para isso. Está querendo afastar-nos, porque o amor que sentimos por ele é uma desvantagem. Está procurando tornar-se um homem impiedoso, para ser exatamente aquilo que mais detestava, que mais tinha medo de ser. Ele nos disse a verdade. Nós é que estávamos cegos demais para enxergá-la...Era o discurso mais longo que já ouvira Julie fazer, e também o mais triste. Era uma confissão de fracasso pessoal e uma premonição de desastre, mais terrível que a perda de um império financeiro. Expressava também uma solidão além de nossa experiência: a solidão do exorcista que, ao esconjurar os demônios, está consciente de que ele próprio pode ser a qualquer momento possuído.

     — ...Compreende, agora, Paul, por que não deve deixá-lo? O que quer que ele diga, o que quer que faça, você não pode deixar que ele se afaste. Você o adora e ainda não o perdeu. Eu o amo, mas ele está agora muito longe de mim e não sei se algum dia poderei tê-lo de volta. Ao final, é possível que nosso filho volte a nos unir. Talvez mesmo Suzanne...Não, não precisa sacudir a cabeça. Eu sempre soube que ela estava apaixonada por George. Nunca compreendi por que ele jamais o viu.

     — É que ele estava apaixonado por você, Julie. E ainda está.

     — Paul, você não está compreendendo!

     Ela estava agora desesperada. Sua mão era como um torno a apertar-me o pulso.

     — Ele está rejeitando o amor! Está tentando arrancá-lo de dentro de si mesmo, porque ingressou nesse mundo novo, onde não existe amor, apenas ganância, inveja e terror. Mas você é um homem diferente, meu querido Paul. Usa a vida como se fosse um terno velho, com manchas e tudo. George não pode fazê-lo, nunca o fez. Para ele, é o paraíso ou o inferno, sem nada entre os dois...Sei que você me ama, Paul. E é por isso que lhe suplico: fique com ele!

     Eu ainda estava procurando palavras para dizer quando o chefe do trem surgiu ao nosso lado e anunciou a chegada iminente à Union Station.

    

     Em Washington, descobri que a mulher com cara de cigana fora extremamente generosa comigo. Arlequim e Juliette ficaram alojados numa imensa suíte do quinto andar, onde poderiam receber um regimento, se assim o desejassem. Suzanne e eu ganhamos dois quartos, com uma sala de estar comum, no andar inferior. A geografia era importante. Estávamos isolados do atrito doméstico. Suzanne tinha um lugar para trabalhar. Poderíamos ficar sozinhos ou fazer companhia um ao outro, conforme tivéssemos vontade. A gerência nos enviara chocolates e frutas e eu recebera também um exótico arranjo de flores da Bernard's Blooms. O bilhete dizia: "Seja bem-vindo a Washington. Cumprimentos de Aaron". Eu acabara de desfazer as malas quando o telefone tocou, com um novo voto de boas-vindas.

     — Sr. Desmond? Quem está falando é Arnold, chefe da portaria. Estou telefonando para saber se recebeu as flores e o bilhete.

     — Recebi, sim, obrigado.

     — Às ordens, senhor. Fazemos muitos negócios com Bernard e gostamos de manter seus clientes sempre satisfeitos. Se precisar de alguma coisa, não hesite em chamar-me pessoalmente. Desejo que sua estada aqui seja a mais agradável possível.

     Esperava que fosse, mas estava propenso a duvidar. Um momento depois, Suzanne entrou em meu quarto, corada e irritada. Estava exausta da viagem, e Arlequim ainda queria que todas as cartas que ditara estivessem datilografadas e prontas para serem assinadas antes de ele partir para a embaixada, às dez horas da manhã seguinte. Ela não se importava com o trabalho, mas por que ele tinha de ser tão frio? Nunca fora assim antes e não tinha necessidade de sê-lo agora. Fi-la sentar-se e abasteci-a de scotch e simpatia. E então, distraidamente, ela contou-me que Arlequim estava se preparando para descarregar no mercado todas as ações que o banco possuía da Creative Systems e de suas subsidiárias. As únicas considerações que ainda o retinham eram os interesses dos seus clientes e o fato de que possuía também uma parcela considerável das referidas ações.

     Fiquei furioso, porque ele não discutira o assunto comigo e porque tal operação é tão moral quanto um assassinato, muitas vezes até mais brutal que um assassinato. O princípio é o mesmo, embora seja necessário muito dinheiro e muito sangue-frio, muito mais que num assassinato. Quando se começa a vender grandes quantidades de ações de uma determinada empresa, imediatamente se desvaloriza a cotação. Se se continua a vender, provoca-se um pânico entre outros acionistas, que saem correndo para vender também. A cotação desce então até o porão. Se se começa a comprar novamente, no mercado exato e com dinheiro suficiente para cobrir o mercado, pode-se terminar, senão com o controle, pelo menos com um lucro considerável e possivelmente com votos suficientes para se conquistar um lugar na diretoria da empresa. Isso é ótimo para o autor da manobra, mas pode ser ruinoso para outras pessoas menos afortunadas, que vêem as economias de toda uma vida liquidadas da noite para o dia, ou os seus limites de empréstimos drasticamente reduzidos a uma simples penada de um banqueiro.

     Podia compreender o raciocínio de Arlequim. O banco possuía uma grande quantidade de ações da Creative Systems. Muitos dos seus clientes também. Alguns haviam dado ao banco plena liberdade para movimentar seus investimentos, de forma que Arlequim podia vender as ações deles sem consultá-los. Se todas essas ações fossem lançadas no mercado, haveria pânico. Basil Yanko ficaria alguns milhões mais pobre. Para evitar a débâcle, ele teria que começar a comprar e continuar comprando até que o mercado se estabilizasse novamente. Acrescentando-se a isso seus outros problemas — uma investigação federal, uma lista de clientes cheios de suspeitas, problemas políticos em Washington —, ter-se-ia uma reversão de sua ameaça a Arlequim, com a crise de confiança atingindo uma escala global.

     Eu já vira isso ser feito antes. Ouvira também as justificativas, cínicas como as explicações dos exploradores de mulheres, a alegação de que era uma operação normal do mercado. Vira também algumas das conseqüências: um amigo que pulara de uma janela do décimo andar, outro tão abalado que fugira para sempre à realidade, enquanto alguns canalhas conhecidos tornavam-se tão ricos quanto Midas. O fato de Arlequim poder sequer cogitar de tal tática enchia-me de desgosto e desilusão. Já estava me preparando para invadir sua suíte e desafiá-lo, mas Suzy me conteve.

     — Por favor, Paul! Se ele souber que eu lhe contei, nunca mais confiará em mim. Além disso, tenho certeza de que ele não tomaria essa iniciativa sem consultá-lo primeiro. Sei que ele conversou com Herbert Bachmann a respeito e pediu-lhe que fizesse alguns cálculos sobre os efeitos no mercado. Ainda não recebeu os cálculos e não transmitiu quaisquer instruções aos nossos gerentes. É uma operação grande e ele tem que prepará-la minuciosamente.

     — Se ele fizer isso, Suzy, para mim acabou. Para sempre! E estou falando sério. Não sei o que deu nele!

     Ela lançou-me um olhar demorado e inquisitivo e disse categoricamente:

     — É muito diferente do que você mesmo está fazendo, Paul? Só que você o está fazendo por procuração, através de Aaron Bogdanovich. E é muito diferente do que Basil Yanko está fazendo, exceto pelo fato de ele estar querendo aumentar as cotações ao invés de baixá-las?

     — É muito diferente, Suzy. A nossa é uma guerra particular. Yanko atacou-nos e estamos reagindo com suas próprias armas. Mas, se George iniciar essa operação, muitos espectadores inocentes acabarão sofrendo as conseqüências.

     — Se eles jogam no mercado, sabem que estão correndo riscos.

     — É pirataria pura e simples. E George sabe disso. No mesmo instante Suzanne incendiou-se, com a ira dos justos.

     — Por que você está bancando Simão, o Puro, enquanto George transforma-se subitamente num monstro? Vou lhe dizer por quê! É porque você quer ver George nas alturas, empoleirado num pedestal, como o protetor dos fiéis. Ele o faz sentir-se bom, mesmo que você não o seja. Você é como Julie. Nenhum dos dois acredita que ele seja um homem. Querem que ele seja algo de que possam ao mesmo tempo orgulhar-se e sentir inveja. Querem olhar pela janela e vê-lo de pé lá fora, todos os dias o mesmo, faça sol ou chuva, com os pombos empoleirados em sua cabeça. Para vocês, ele tem que ser como o cavaleiro de bronze do Capitólio. Enquanto ele estiver lá, Roma estará segura. Mas George não é de bronze nem de mármore. Ele é de carne e osso, com um sangue mais quente do que vocês jamais admitiram. Se ele quer lutar, deixem-no lutar! Não lhe amarrem as mãos. Não quero que ele seja motivo de zombaria nesse antro de salteadores a que vocês chamam pomposamente de mercado. E não me importa que ele esteja certo ou errado! Eu o amo, entende? Eu o amo...

     De todos os idiotas do mundo, eu era certamente o maior. De todos os apaixonados do mundo, era certamente o mais cego. Tivera aquela mulher em meus braços, dia após dia, mês após mês, e nunca fora capaz de encontrar o talismã que abriria a caverna do tesouro de seu amor. Pois bem, agora eu o tinha, só que, para mim, era a mesma coisa que tê-lo no fundo do Potômac. Servi-nos de outra rodada e fiz um brinde secular:

     — Ao crime!...Até que ponto nós iremos?

     — Até que ponto você irá, Paul?

     — Acho que até o ponto em que meus nervos agüentarem.

     — Ou sua consciência.

     — Pensa mesmo que tenho uma?

     — Meio confusa, mas tem.

     — Como assim?

     — É que ela sempre se interpõe entre você e George, entre você e Julie...Não, chêri, não fique zangado. Você e eu passamos muito tempo juntos. Foi bom, mas não foi o melhor. Ambos sabemos por quê. Ambos estamos vendo o que há de errado naquele casamento. Se ele terminar, você provavelmente ficará com Julie. Eu não ficarei com George, pois sou apenas uma parte da mobília, para a qual ele nem olha mais. Além disso, já estou muito velha para o jogo do amor. Por isso, prefiro vê-lo feliz a infeliz.

     — Prefiro ver ambos felizes. Julie conversou comigo no trem. Ela sabe que fez uma porção de coisas erradas. Não sabe, porém, como desfazê-las. Acho que você poderia ajudar.

     Suzanne lançou-me um olhar impiedoso, igual ao de todas as mulheres no ápice de seu descontentamento. Sacudiu a cabeça lentamente e disse-me com frieza:

     — Não, Paul. Sou a querida e boa Suzy, mas não sou tão boa assim. Se você quer ser o galante cavaleiro servidor de Julie, eu baterei palmas para você e o estimularei, e ajudarei a montá-lo na sela do fogoso corcel...Quanto ao resto...não! Não! Não!...Pelo menos sou uma cadela honesta, chéri. E agora será que você poderia levar-me para jantar?

     George Arlequim chamou-me às oito horas da manhã. Ia sair do hotel às nove e quarenta e cinco para fazer uma visita matutina ao embaixador. Ele gostaria de almoçar comigo. Esperava que eu tivesse descansado bastante. Tinha, sim, obrigado. Recebera alguma notícia de Nova York? Nenhuma. Eu passaria a manhã andando de um lado para outro e lhe informaria tudo ao meio-dia e meia, quando nos encontrássemos. Não estava fazendo uma linda manhã? Eu ainda não vira, mas ficava satisfeito por saber que pelo menos havia um pouco de sol em nossas vidas. Até mais tarde... E se era tudo o que ele queria dizer-me, que fosse para o inferno!

     No quarto ao lado, Suzanne estava datilografando as cartas, com o ritmo firme de uma boa máquina suíça. Meti a cabeça dentro do quarto para desejar-lhe bom-dia. Ela fez-me uma saudação distraída e continuou a bater à máquina. Senti-me como o último dos lanceiros na brigada dos esquecidos e sem amor. Desci rapidamente para o saguão, esperando travar conhecimento com Arnold, o homem que me telefonara na noite anterior. Mas deparei-me com um caos de hóspedes de partida, todos gritando por suas contas, por quem lhes pegasse as malas, por quem lhes providenciasse táxis. Saí então para o sol, peguei um táxi e segui para o Tidal Basin, tão descansado quanto qualquer turista provinciano, a fim de encontrar-me com o velho Thomas Jefferson, em seu santuário entre as cerejeiras.

     Vou contar-lhes um segredo sentimental. Esse é o lugar da América que realmente amo. Esse é o único homem, de toda a turbulenta história americana, que realmente me comove até a admiração e, de vez em quando, até a meditação. Fragmentos de sua sabedoria e de seu código tolerante perduram por mais tempo em minha memória que as vozes estridentes de nosso tempo. Ele detestava "a raiva mórbida da discussão". "Se eu não puder ir para o céu com meus amigos, então não irei para lá...Alguns homens encaram as Constituições com uma reverência hipócrita e consideram-nas, como a Arca da Aliança, sagrada demais para ser tocada ..." Suponho que, mais jovem e mais aberto, eu teria encontrado nele a mesma coisa que encontrara — e perdera — em George Arlequim: uma largueza de espírito, a sagacidade, o bom humor e uma alma hospitaleira a toda a experiência da humanidade.

     Mesmo tão cedo, já havia namorados e famílias nos gramados. Invejei-os. Fiquei satisfeito ao descobrir que o

     santuário estava vazio, pois assim poderia meditar na solidão do passado, que é como a solidão do mar, lava e cura todos os males. Era uma pena que o passado pertencesse tão-somente àqueles que o tinham vivido. Jefferson também sabia disso. "...Conheço bem essa época, pois pertenci a ela e em seu favor envidei todos os meus esforços. E ela fez jus a seu país..." Eu, Paul Desmond, pertencia à minha época, lucrava com ela e não fazia jus a coisa alguma. Daquele lugar partiria para um outro, onde se vendiam flores e cumprimentos por telegrama, onde homens recebiam um tiro ao abrir a porta para receber o telegrama. Outros tempos, outros costumes! Tom Jefferson tivera sorte em não ter vivido para vê-los, pois teria então perdido muitas de suas nobres ilusões.

     O Sr. Kurt Saperstein, da Bernard's Blooms, não tinha a menor semelhança com o Thomas Jefferson do Condado de Albermale. Ele era baixo, gordo e maneiroso, a cabeça calva, cercada de um tufo de cabelos negros. Usava um terno azul-escuro, gravata borboleta e óculos grossos de míope. A mão rechonchuda era úmida e o sorriso largo, como que recortado numa melancia. Falava com um sotaque forte e num ritmo cadenciado, como se estivesse entoando versos.

     — Meu caro senhor!...Seja bem-vindo, seja bem-vindo! Espero que tenha gostado das flores. Foi um de nossos melhores trabalhos. Um dos melhores! Arnold lhe telefonou? Ótimo! É um bom elemento, muito bom mesmo. E agora, meu caro senhor, posso sugerir-lhe uma caminhada? Está fazendo um dia maravilhoso...

     No momento em que saiu para a rua, ele mudou completamente. Caminhava rápido e falava com calma. Apesar de sua estranha aparência, passava despercebido como um lagarto numa rocha. Juro que teria passado por ele sem vê-lo. Suas instruções foram objetivas e lacônicas:

     — As instruções primeiro, Sr. Desmond. Não haverá mais contatos entre nós dois. Já o vi, já o conheço. Arnold me trará suas mensagens. Mandarei as minhas com flores. Podemos fazer quase tudo o que desejar: aluguel de carros, acompanhantes de confiança, um guarda-costas, caso venha a precisar. Temos amigos em quase todos os lugares: no Pentágono, nos órgãos de segurança nacional, nas embaixadas. Somos muito bons em matéria de documentos, mas lembre-se de que isso demora um pouco...Tenho algumas notícias. Aaron está viajando, mas Tony Tesoriero já foi localizado em Miami. Não pode nem cuspir sem que alguém o veja. O FBI esteve conversando com Saul Wells. Ele está convencido de que em breve virão procurá-lo aqui. Também deu os telefonemas que prometeu, e o gato neste momento está se divertindo entre os pombos. Ele acha que seu presidente deverá receber alguns telefonemas de outros presidentes preocupados...É tudo o que tenho a dizer-lhe até agora. Está precisando de alguma coisa neste exato momento?

     — Conhece um bom jornalista que possa divulgar uma história e esquecer a fonte onde a obteve?

     — Claro. Esta cidade está fervilhando de jornalistas, bons e maus. Deixe-me pensar um pouco a respeito. Quando gostaria de vê-lo?

     — Esta noite, se possível. Mas em particular, longe do hotel.

     — Pode deixar comigo. Arnold lhe dará a informação sobre hora e local.

     — Preciso de um homem que depois não saia falando por aí.

     A observação ofendeu-o. Ele precisou dar dez passos para recuperar-se. Depois censurou-me um tanto asperamente.

     — Já esteve no Yad Vashem, Sr. Desmond?

     — Nem mesmo sei o que é.

     — Fica em Israel. É um monumento a seis milhões de mortos. Não queremos construir outro.

     — Desculpe-me.

     — Mas como poderia saber? Como alguém que não cheirou a fumaça de um holocausto poderá saber? Agora tenho que voltar para minhas queridas flores e para meus caros fregueses...São pessoas muito estranhas, Sr. Desmond! O teto do mundo pode estar desabando sobre suas cabeças que elas não ouvem absolutamente nada!... Shalom!

     Ainda me restava algum tempo, por isso continuei passeando e fui juntar-me à pequena multidão de ociosos e turistas nos limites da Casa Branca, onde o presidente vivia, sitiado, entre as ruínas de sua própria reputação e as esperanças de um grande povo. Eu não tinha o direito de julgá-lo, era um estranho, um flibusteiro de muito longe. Mas não consegui escapar à assustadora reflexão de que aquele homem também procurara construir um aparato de terror. Recrutara uma equipe indigna, de delatores, espiões, chantagistas, ladrões e perjuros, amparando-os com o manto do poder, que os cidadãos lhe haviam reverentemente colocado nos ombros no dia de sua posse.

     Ao final, o aparato se desmoronara e os lacaios haviam-no abandonado. O terror, porém, persistia. Se o próprio presidente escarnecia da lei, qual a ordem escrita que podia ser cumprida, qual o contrato que podia ser mantido? Se a autoridade estava desacreditada, os centuriões mantinham o forte e os anarquistas estavam no comando das ruas. Se um homem não podia viver em sua intimidade, se não podia andar pelas ruas e morrer tranqüilamente no tempo que o bom Deus lhe fixara, então o mal era rei e os seus emissários iriam assolar e devastar a terra impunemente...Era quase meio-dia. O gosto da infâmia era rançoso em minha boca. Virei-me e voltei rapidamente para o hotel.

     Precisava apresentar-me a Arnold. Mas, ao parar na portaria para pegar a chave do quarto, fui cumprimentado pelo Sr. Philip Lyndon, chegado de Nova York, bancando a ama-seca do Sr. Milo Frohm, que se parecia com um banqueiro mais que a maioria de nossos colegas e falava como o Venerando Médico numa consulta domiciliar de urgência. O Sr. Frohm esperava que eu pudesse dispor de algum tempo. Disse-lhe que estaria livre até meio-dia e meia, quando deveria almoçar com o Sr. Arlequim. Onde eu gostaria de conversar? No bar? Eles preferiam um lugar mais reservado. A minha suíte? Ótimo. Eles me agradeciam por tal. Ao subirmos no elevador, falei-lhes de minha visita matutina a Thomas Jefferson, descobrindo que o Sr. Frohm o apreciava tanto quanto eu. Fiquei deliciado ao encontrar uma alma irmã, que sabia tudo sobre a vida, a liberdade e a busca da felicidade, que estudara os alicerces morais do organismo político.

     Suzy ainda estava trabalhando na suíte, mas concordou em afastar-se para ceder lugar a nós quatro. Perguntei-lhe, incisivamente, se Arlequim já voltara de sua reunião com o embaixador. Ela compreendeu a deixa e respondeu que não, que o Sr. Arlequim previra um encontro demorado. E por falar nisso, havia um recado para ligar para minha própria embaixada. Depois ela perguntou-me se íamos querer café ou um coquetel, já que o almoço estava próximo. O Sr. Frohm e o Sr. Lyndon escolheram suco de tomate. Decidi-me por um bourbon com água. O Sr. Frohm elogiou meu gosto pela boa bebida sulista. O Sr. Lyndon limitou-se a sorrir, sem nada dizer. Depois de fazermos um brinde, o Sr. Frohm iniciou a exposição do caso da República.

     — Antes de mais nada, Sr. Desmond, quero declarar que apreciamos sua franqueza na reunião anterior com o Sr. Lyndon. Lamentamos que a formulação de certas questões tenha causado uma ofensa involuntária ao senhor e a seu presidente. Em nosso trabalho, tratamos com tantas pessoas diferentes que alguma falta de tato é inevitável. Espero que compreenda, não é mesmo?

     — Claro que compreendo, Sr. Frohm. Nem o Sr. Arlequim nem eu temos qualquer ressentimento com relação ao Sr. Lyndon. Mas, como estrangeiros, ficamos algumas vezes chocados com os métodos americanos. Mas...o que posso fazer pelos senhores agora?

     — Infelizmente terá de responder a mais algumas perguntas, Sr. Desmond.

     — Posso fazer uma primeiro?

     — Claro.

     — Verificou as respostas que lhe dei em nosso primeiro encontro, Sr. Lyndon?

     — Verifiquei, Sr. Desmond.

     — E viu que eram todas corretas? Dessa vez o Sr. Frohm respondeu por ele:

     — Em todos os aspectos, Sr. Desmond. Contudo, existem algumas lacunas na narrativa. Gostaríamos de preenchê-las, se for possível. Vamos voltar a seu jantar com Valerie Hallstrom. Foi um encontro puramente social?

     — Foi.

     — Poderia dizer-nos sobre o que conversaram?

     — As banalidades usuais. Contei-lhe a história de minha vida. Ela não me contou a sua, dizendo apenas que o pai criava cavalos na Virgínia e que muitas vezes ela se perguntava se setecentos e cinqüenta dólares semanais valiam o desgaste de Nova York.

     — Ela então lhe falou sobre dinheiro?

     — Disse que ganhava setecentos e cinqüenta dólares por semana e tinha benefícios adicionais.

     — Ela especificou qual era o desgaste a que se referia?

     — De certa forma, suponho que sim.

     — De que forma, Sr. Desmond?

     — Bem...Primeiro ela disse que, se seu empregador descobrisse que estava jantando comigo, perderia o emprego e jamais conseguiria outro igual.

     — E não achou isso estranho?

     — Bastante. Disse a ela que era chantagem, tirania e escravidão.

     — Por que chantagem, Sr. Desmond?

     — Ela explicou-me que já estivera apaixonada por seu empregador e que o caso não terminara muito bem. Chamou-o...deixe ver se me lembro...de sapo com uma coroa de ouro na cabeça. Avisou-me também que ele poderia transformar-se num homem perigoso.

     — Mais alguma coisa?

     — Só mais uma. Quando ela saltou do carro a fim de seguir a pé o resto do caminho até sua casa, disse-me: "Algumas vezes Deus gosta de saber como seus filhos passam suas noites".

     — Ela costumava dizer frases surpreendentes.

     — É mesmo, não é?

     — Por que não as mencionou em seu primeiro depoimento para a polícia e no segundo que fez para o Sr. Lyndon?

     — Vou explicar, Sr. Frohm. A polícia estava investigando um homicídio. Essas frases eram simples rumores. Embora inadmissíveis como provas, poderiam lançar suspeitas sobre um homem inocente. A observação sobre Deus sugeria que era Basil Yanko quem a estava esperando no apartamento. Não gosto do que ele faz em matéria de negócios, mas não tenho o direito de insinuar que ele possa ser um assassino. Quer saber também por que não as mencionei para o Sr. Lyndon. A resposta é bem fácil. A última pergunta que ele fez, aquela que provocou o fim de nossa reunião, implicava a suspeita de termos comprado o caderninho de anotações de Valerie Hallstrom, para desacreditarmos um rival em negócios...

     O Sr. Frohm levou algum tempo meditando sobre minha declaração, mas finalmente pareceu aceitá-la.

     — Está bem, Sr. Desmond. Agora, vamos falar sobre o caderninho. Aceitamos seu relato sobre a maneira como foi parar em suas mãos. Na ausência de provas em contrário, temos que aceitar também que não sabe quem o enviou nem por quê. Contudo...

     Fez uma pausa deliberada, para deixar-me em suspense.

     — Contudo, o fato é que os senhores ou os investigadores que contrataram, agindo de acordo com ordens, estão, neste momento, tirando proveito dele.

     — Proveito em que sentido, Sr. Frohm?

     — O Sr. Saul Wells está divulgando o conteúdo do caderninho para as partes interessadas. Esta manhã já fomos procurados por cinco grandes empresas, informando-nos de quebra em sua segurança. Tenho certeza de que haverá outras. Tendo em vista as suas relações com a Creative Systems e com Basil Yanko, isso não indica um esforço para assegurarem vantagens táticas?

     — Representa uma tentativa, gratuita e não solicitada, de evitar que outras empresas respeitáveis sofram o mesmo destino que nós.

     — Não teria sido mais aconselhável que o próprio Sr. Basil Yanko fizesse isso...ou mesmo nos solicitasse que o fizéssemos?

     — Temos algumas restrições quanto à ética profissional de Basil Yanko.

     — Não poderia especificá-las?

     — Neste momento, não.

     — Vamos então à segunda parte da pergunta, Sr. Desmond: por que não nós?

     — Sou um simples visitante em seu país, Sr. Frohm. Prefiro não deixá-lo embaraçado.

     — E não deixará, Sr. Desmond. Por favor, seja tão franco quanto o quiser.

     — Serei então o mais polido possível: representam um organismo doméstico americano, preocupado com muitos problemas, políticos e criminais. Nós somos de uma organização européia, cujos interesses podem, em determinados pontos, conflitar com os seus. Em vez de solicitar a ajuda do FBI, achamos que era melhor exercer o nosso direito de livre comunicação. Esta é a posição de meu presidente e a minha também.

     — Em outras palavras, Sr. Desmond: não confia em nós.

     — Pelo que se vê em seus comitês e tribunais, Sr. Frohm, os senhores não confiam uns nos outros.

     Para minha surpresa, ele sorriu e sacudiu a cabeça, numa concordância relutante.

     — Eu pedi por isso, não é mesmo? É uma excelente testemunha, Sr. Desmond.

     — Tenho bastante prática. Os kempeitais1 trabalharam em mim durante mais de um mês, em Cingapura.

     — Espero que nos ache mais civilizados do que eles foram.

     — Acho, sim.

     — Obrigado. Agora vamos conversar sobre outra lacuna em seu relato. Foi agredido do lado de fora de seu apartamento. Disse à polícia que não podia identificar os agressores. Isso é verdade?

     — Era verdade na ocasião. Fui posteriormente informado de que os agressores tinham sido contratados por um homem chamado Bernie Koonig, que por sua vez tinha sido contratado por um certo Frank Lemmitz.

     — Quem lhe deu essa informação, Sr. Desmond?

     — Nossos investigadores. Suponho que já tenha conversado a respeito com o Sr. Saul Wells.

     — Já.

     — Então deve saber tanto quanto eu, possivelmente até mais.

     — O que sabe exatamente, Sr. Desmond?

     — Somente o que me informaram. Frank Lemmitz, que é motorista do Sr. Yanko, contratou Bernie Koonig para vigiar-me. Nossos investigadores objetaram a isso e Koonig, em represália, mandou que me espancassem.

     — Mencionou o fato ao Sr. Yanko?

     — O assunto foi abordado em nossa reunião com ele, no Salvador.

     — E o que foi que ele disse?

     — Que lamentava eu ter-me machucado e que nada tinha a ver com o espancamento.

     — Mas admitiu que mandara vigiá-lo?

     — Digamos que se esquivou à pergunta.

     — Por que o senhor não o pressionou?

     — Não precisava fazê-lo. Foi devidamente informado de que eu me reservava o direito de apresentar uma queixa contra todas as pessoas envolvidas.

     — Mas não apresentou queixa alguma. Por quê?

     — Prefiro não expressar minhas razões para isso.

     — Sr. Desmond, por que Basil Yanko mandou vigiá-lo?

     — Não sei. Recordando os acontecimentos, parece-me que ele suspeitava de uma associação minha com Valerie Hallstrom.

     — E por que ele suspeitaria disso?

     — Foi o Sr. Lyndon quem me deu a idéia. Disse que Valerie Hallstrom talvez estivesse vendendo material do banco de memória dos computadores. Não é verdade, Sr. Lyndon?

     O Sr. Lyndon ficou embaraçado, mas enfrentou a situação com a galhardia de um escoteiro.

     — Pode ter interpretado nesse sentido uma observação minha.

     O Sr. Frohm sorriu debilmente, e virou-se para mim.

     — E então, por extensão, Basil Yanko pensou que o senhor fosse um possível comprador.

     — Talvez.

     — Mas não era, não é mesmo?

     — Estou sendo interrogado oficialmente, Sr. Frohm. Nenhuma proposta foi apresentada, nenhuma solicitação foi feita.

     — O que nos leva à grande lacuna, Sr. Desmond: quem lhe mandou o caderninho e por quê? E sua resposta terá também caráter oficial. Mas vamos tentar uma hipótese. Valerie Hallstrom lhe diz que tem medo de Basil Yanko. Age como se soubesse que havia alguém à espera dela no apartamento. Ela lhe entrega o caderninho para guardar. Sabe que é um artigo quente e resolve então encenar a pequena comédia de mandá-lo a si mesmo, a fim de poder usar a informação legalmente...O que me diz, Sr. Desmond?

     — Só posso fazer um comentário, Sr. Frohm: isso é um absurdo total! E já que está falando em lacunas, acho que está deixando de lado a maior de todas: quem matou Valerie Hallstrom e por quê?

     — Estamos investigando. A lacuna está ficando cada vez menor. Sabemos que dois homens entraram no apartamento dela naquela noite. Um deles era, evidentemente, o assassino. O outro era o homem que telefonou para a polícia. Talvez tenha sido ele quem lhe enviou o caderninho...Se se recordar de algo, informe-nos imediatamente, por favor.

     — Pode deixar que o farei, Sr. Frohm. Aceita outro suco de tomate?

     — Não, obrigado. Temos que ir agora. Ajudou-nos bastante, Sr. Desmond...Essas flores são muito bonitas. Onde as arranjou?

     — Isso, Sr. Frohm, é algo que nunca deveria perguntar.

     — Agora é assim, hein? Normalmente é o homem quem tem de comprar as flores. Mas, afinal, é possível que o Women's lib signifique alguma coisa. Vamos, meu jovem Lyndon. Estamos entrando de folga. Vou lhe pagar um drinque e um hambúrguer.

     Se isso foi uma insinuação, fingi que não entendi. Acompanhei-os até a porta, fechei-a e encostei-me nela, suando por todos os poros. Milo Frohm não era nenhum noviço. Pelo contrário, era bastante experiente em interrogatórios, astucioso e inteligente, a expressão sempre inabalável. Não precisava de nenhuma bola de cristal para saber que muito em breve teria novamente notícias dele. Isso, porém, não me preocupava. Achara-o extremamente simpático. Usávamos o mesmo dicionário e o mesmo manual de lógica elementar. O único problema era que a lógica não funcionava mais. Não podia dizer como nem por quê, mas sentia que a nossa premissa maior estava repleta de falhas e que a menor estava desaparecendo sem deixar vestígios. O que, é claro, não era lógica absolutamente, mas puro instinto animal.

    

     Arlequim atrasou-se para o almoço. Às doze e quarenta e cinco paguei um drinque para as meninas e depois despachei-as para a churrascaria do hotel. Passavam quinze minutos de uma hora da tarde quando Arlequim finalmente me telefonou, dizendo que pegasse um táxi e fosse encontrá-lo numa traí torta em Foggy Bottom. Quando lhe pedi uma explicação, ele disse que estava com vontade de comer spaghetti alia carbonara e cervelli ai burro, o que me fez pensar que era seu próprio cérebro que estava amanteigado. Era uma e quarenta quando nos sentamos a um canto do que devia ser o restaurante mais escuro e menos popular de todo o Distrito de Colúmbia. O espaguete estava queimado, o vinho era vinagre puro. Mas isso não tinha a menor importância. A partir do momento em que Arlequim começou a falar, tudo o que eu podia sentir era o gosto de cinzas.

     — Antes de partirmos de Nova York, Paul, liguei para Herbert Bachmann e pedi-lhe que procurasse delinear um panorama do que aconteceria se eu começasse a despejar no mercado nossas ações da Creative Systems. Ele telefonou-me às sete horas da manhã de hoje. Todo corretor da cidade tem uma lista de ordens de compra, todas grandes. Pelo que Herbert pôde calcular, a soma vai a mais de dez milhões de dólares.

     Não pude resistir. Disse-lhe o que pensava sobre aquela operação e sobre ele, por ter sequer cogitado de executá-la. Ele ouviu-me em silêncio e depois continuou, inalterado:

     — Essas ordens de compra são bastante significativas, Paul. E já vou lhe explicar por quê. Esta manhã passei três horas na embaixada. Erich Reiman é um velho amigo meu. Mostrou-se extremamente simpático, mas, a princípio, não estava muito prestativo. Sua atitude só mudou depois que lhe mostrei as cópias fotostáticas do caderninho. Foi uma mudança completa, Paul, de cento e oitenta graus! Ele quis saber de tudo...

     — Espero que não lhe tenha contado!

     — Não contei tudo, mas falei mais do que você teria aprovado.

     — Oh! Céus!

     — Fiz uma troca com ele, Paul, item por item. Não tinha outro jeito.

     — Pois estava negociando com minha vida, George!

     — Sei disso. E Erich agora sabe também.

     — E como bom diplomata, ele esquecerá tudo, enquanto isso lhe for conveniente. Eu nem mesmo sou suíço. Não passo de um joão-ninguém dispensável, lá de baixo...Agora conte-me o que conseguiu descobrir com as trinta moedas de prata.

     Essa estocada atingiu o alvo. A haste do copo de vinho escorregou de seus dedos e o líquido derramou-se como sangue pela toalha branca. Um instante depois ele estava me censurando, com palavras duras e uma argumentação irresistível:

     — Vai ter que me ouvir primeiro, Paul, e só julgar depois. Se então quiser largar-me, pode fazê-lo. O que soube esta manhã torna todo o nosso raciocínio inteiramente inócuo. Somos peões de um jogo global, que eu ainda não tinha começado a compreender. Foi-me explicado esta manhã por um amigo — não tão íntimo quanto você, mas mesmo assim um amigo —, e acreditei no que ele me contou, porque é pago para saber e mora aqui, o lugar do mundo mais apropriado para se tomar conhecimento das coisas...Garçom!

     Arlequim estalou os dedos imperiosamente e o garçom veio correndo.

     — Por favor, limpe essa sujeira e traga-me outro copo. Fiquei esperando que o garçom cuspisse em sua cara e confesso que isso me deixaria na maior alegria. Em vez disso, porém, ele saiu correndo para buscar guardanapos limpos, colocando um em cima do outro, até que a mancha ficasse escondida. Trouxe depois um copo limpo e uma nova garrafa de vinho, servindo com mais reverência do que o necessário. Devia ter chegado recentemente do Velho Mundo, pois inclinou-se e pediu desculpas antes de se retirar. Arlequim bebeu todo o vinho de seu copo de um só gole e limpou a borra dos lábios. Estava mais calmo agora, embora não menos insistente.

     — Estamos assistindo este ano, sem que a maioria acredite, ao fim de um milênio. E termina onde começou, na bacia do Mediterrâneo...Oh, não, isto não é uma mera preleção política. E a dura realidade. Os príncipes do deserto descobriram que podem parar o mundo, simplesmente fechando as bicas do petróleo. Os proscritos do Crescente Fértil descobriram que podem aterrorizar o mundo, com pistolas, granadas e explosivos plásticos. É verdade e todos nós o sabemos. Todo aeroporto do mundo se transformou num acampamento fortemente armado. Temos que sofrer uma revista minuciosa para podermos ir visitar nossa mãe agonizante!... O outro fato é essa besta fabulosa a que deram o nome de "crise de energia". O que isso significa exatamente? Significa que, se os mineiros ingleses pararem de trabalhar, a nação inteira irá morrer de frio. Significa que o Japão precisa curvar-se em vassalagem aos xeques do petróleo, caso contrário sua indústria será paralisada e o horror se apossará das ruas de uma centena de cidades. Na África e na América do Sul, o progresso, lento e árduo, cessa por uma década ou mais. E o que acontece então? Aqueles que aprenderam as lições de terror estão preparados para disseminar o pânico e a confusão. Aqueles que detêm o poder tentarão recolocar o tufão dentro da garrafa e isso provocará também outro tipo de terror. Os exércitos particulares de agentes de segurança irão transformar-se nos Block-Führers e nas forces de frappe2 de amanhã...Sabe qual foi o nome que deram ao próximo ano no calendário dos serviços secretos? O Ano dos Assassinos! Diante disso tudo, meu amigo Paul, onde nos situamos, você, eu e Arlequim et Cie.?

     Eu não sabia, por isso não podia dizer-lhe. Sua eloqüência silenciara minha língua vulgar. Ele arrasara completamente minhas defesas, em seu acesso de paixão e convicção. Nada podia fazer, a não ser sacudir os ombros e dizer:

     — Diga-me. Estou escutando.

     — O preço do petróleo dobrou e triplicou. E o que acontece com o dinheiro? Os príncipes do deserto não são tolos. Eles já viram que o dinheiro é o sonho de um louco, um pesadelo de papel. O que mais eles vão querer depois que seus arsenais estiverem cheios de armas, as estradas militares construídas e os aeroportos atulhados de caças a jato? Sua própria indústria? Sua própria tecnologia? Alguns vão querer exatamente isso. Mas a industrialização cria um proletariado e atrai uma força de operários nômades, que rapidamente aprenderão as técnicas do terror. O que os príncipes mais querem é segurança, por isso preferem investir na Europa e na América. Mas não querem apenas ações e bônus, simples papéis. Querem assumir o controle! Provas? Os sauditas cortaram as vendas de petróleo aos holandeses. Agora estão negociando para construir uma refinaria saudita em solo holandês. O que está sendo discutido em segredo possui um significado ainda maior. Os italianos estão oferecendo vinte e cinco por cento de sua companhia nacional de petróleo em troca da garantia de fornecimento do petróleo bruto. Podem-se fazer todas as leis possíveis e imaginárias para se excluírem os estrangeiros do controle das empresas domésticas, mas as leis não passam de dragões de papel levados pelas ruas por homens venais e invisíveis. O que nos leva imediatamente a Basil Yanko...Ele sabe, Paul! Ele está vendo o que acontece! Tem o mundo inteiro encerrado em seus bancos de memória. Ele me comprará com um ágio e me venderá pelo dobro aos árabes, usando o dinheiro deles. Venderá também parte de si. Herbert Bachmann identificou algumas das ordens de compra. Elas vieram do Oriente Médio, através de vias tortuosas. Yanko vai mais longe. Ele pode equilibrar-se entre os assassinos e os príncipes, porque, em todos os mercados, existem também ofertas da Líbia...Meu amigo Erich explicou-me o padrão e vi que todos os detalhes se ajustam. Karl Kruger, por exemplo: por que ele mantém um relacionamento tão íntimo com os israelenses? Suas atividades bancárias o explicam apenas pela metade; o sentimento é uma parte ínfima. Hamburgo vive de navios. Os navios vivem de cargas. Uma Europa em depressão significa uma Hamburgo agonizante. Os israelenses são o último posto avançado da Europa no Levante. Eles não escondem sua intenção de responder ao terror com o terror. Por que Aaron Bogdanovich se dispôs tão prontamente a ajudar-nos? Por amizade? Não! É que nosso dinheiro lhe permite sobreviver. Ele alega que trabalha para nós, mas estamos também trabalhando para ele.

     Arlequim fez uma pausa e um arremedo de sorriso contorceu-lhe os cantos da boca.

     — Estamos vivendo num mundo sórdido, Paul. A única moeda estável é a mentira política. Se isso o faz sentir-se um tolo, lembre-se de que não é o único. Eu também me senti um tolo, inclusive porque o FBI entrou em contato com Erich Reiman muito antes de eu procurá-lo. Eles queriam saber o quanto eu sabia. Erich convenceu-os de que era muito pouco, mas até ele ficou chocado com minha ignorância total. Sabe o que ele me disse? "George, você está no teatro errado. Isto não é a commedia deli'arte. É drama em seu ponto máximo. E você não tem muito tempo para aprender o texto."

     — Mas por que temos que continuar a ler as falas escritas por outras pessoas? Por que nós mesmos não escrevemos a peça que vamos representar?

     — E como sugere que o façamos, Paul?

     — Vamos deixar que a imprensa a escreva para nós.

     Foi preciso meia hora de argumentação para convencê-lo, mas, ao final, ele acabou consentindo. Poderíamos estar cavando nossos próprios túmulos, mas pelo menos teríamos um funeral vistoso.

     De volta ao hotel, tive meu primeiro encontro com Arnold, o chefe da portaria. Alto, triste, com cara de cavalo, o mesmo rosto inexpressivo dos comediantes do cinema mudo. Tinha dois recados para mim. O primeiro era um convite para um coquetel às sete horas da noite, num endereço em Arlington. Estava assinado por um certo L. Klein. Não conhecia nenhum Klein, Arnold também não. Mas o convite viera através da Bernard's Blooms e parecia que o melhor era aceitá-lo. O segundo recado era simplesmente uma tira rasgada de telex. Era um telegrama da UPI, vindo de Londres, datado da última quinta-feira. O texto era curto mas informativo:

     "Um turista americano, identificado como Frank Lemmitz, da cidade de Nova York, foi encontrado morto esta manhã, com um tiro, num elegante hotel do West End. A polícia londrina está tentando descobrir uma moça que acompanhou Lemmitz a dois conhecidos cassinos da capital e que provavelmente retornou ao hotel em sua companhia. Mais informações..."

    

     Dessa vez, pelo menos, Aaron Bogdanovich contara a verdade. Rasguei a mensagem em pedacinhos e joguei-a no vaso. Sentia-me como um estudante solitário, brincando de espião na enfermaria. Juliette apareceu nesse momento. Arlequim estava ditando correspondência e ela queria companhia. Por que não? Eu também estava precisando de companhia. Ela tirou os sapatos e acomodou-se num sofá. Liguei o rádio num programa de músicas antigas e acomodei-me também, numa poltrona, de pés para cima e pronto para relaxar. A música era suave, sem lágrimas, sem paixão, sem grandes profundidades. Era um passeio pelos escaninhos da memória, um ou outro toque ocasional nas cordas do coração. Juliette estava com um aspecto bem melhor, mais tranqüila e menos perplexa. Sentia-me mais velho e devia aparentá-lo, pois logo Juliette franziu o cenho e disse:

     — Está parecendo cansado, Paul. Há algo errado? Não, não havia nada errado. Minhas costelas doíam de vez em quando, ainda não podia mastigar um bife. Mas não restava a menor dúvida de que eu estava prontinho, como dizia meu avô, para casar com a Viúva McGonigle. Achei que George também estava com um ótimo aspecto. E pensar que só duas semanas antes...

     — Paul!

     — O que é, minha cara?

     — Acho que em breve voltarei para casa.

     — O que George acha disso?

     —- Ele deixou a meu critério. Desejaria que não o tivesse feito.

     — Se quer um conselho do tio Paul, fique por aqui mais algum tempo.

     — Razões especiais?

     — Algumas. A previsão de hoje é de tempo muito ruim.

     — Não sabia. Assim que voltou, George imediatamente chamou Suzanne e começou a ditar cartas. Quando lhe perguntei o que acontecera na embaixada, disse que explicaria depois. Fiquei magoada, mas não procurei demonstrá-lo. Foi por isso que desci para visitá-lo.

     — Está aprendendo, não é, querida?

     — Não me esconda nada, Paul, por favor...

     — Prometo que não o farei. George lhe contará todas as notícias. É uma história longa e leva tempo para explicar.

     — Mas ele contou-lhe tudo.

     — Contou. E eu disse que ele me vendera pelo dinheiro de Judas.

     — Oh, Paul, isso não!

     — Foi um erro, mas eu disse. Por isso não o culpe se ele estiver de mau humor...e não volte logo para casa.

     — Paul, tenho que pensar no bebê e...

     — O bebê ainda tem toda uma vida pela frente e um padrinho bastante viajado para ajudá-lo. Ouça, querida: se você se vir na chuva e não tiver ninguém para levá-la para casa, pode ter certeza de que estarei a seu lado. Mas se Colombina ama Arlequim, é melhor ela vestir-se e preparar-se para o momento em que a cortina se abrir. Caso contrário...

     — A substituta toma seu lugar, não é?

     — Exatamente, Julie. E há muitas garotas maravilhosas esperando ansiosamente por isso. E agora por que você não sobe e pede café para dois, dizendo a George que quero tomar Suzanne emprestada por meia hora? Ele não deve monopolizá-la, mesmo sendo o presidente.

     Ela não se foi imediatamente. Veio sentar-se no braço de minha poltrona e pegou meu rosto entre as mãos, beijando-me na testa, dizendo como eu era maravilhoso, gentil, bondoso, como era o melhor amigo que uma mulher podia ter. Mais três palavras e estaríamos embolados no tapete. Não sou nenhum santo, pelo contrário. Mas isso...não, muito obrigado! A menos que estivéssemos dentro de uma cápsula a caminho da Lua, com passagem só de ida. Fiquei grato pelo beijo, agradeci-lhe os elogios e levei-a ajuizadamente até a porta, despachando-a para o andar de cima. Tentei sentir-me virtuoso, mas não consegui. Sentia-me como um sacerdote Judas, rondando e resmungando diante dos portões do convento à meia-noite.

     Isso devia estar estampado em meu rosto, porque, ao descer, Suzanne ficou parada com as mãos nas cadeiras, como se eu fosse uma forma de vida muito rara e muito baixa. Depois deu-me seu sorriso suave e cúmplice, dizendo meigamente:

     — É duro, não é, chéri?

     — Se o sabe, não precisa perguntar.

     — Eu sei, querido, eu sei. E acho que, quanto mais cedo voltarmos para casa, melhor será.

     — Pode demorar um mínimo de sessenta dias.

     — E será que você agüentará esse tempo todo?

     — Duvido muito. E você?

     — Não. Diga-me algo suave, Paul.

     — Suzy, querida, por que não nos apaixonamos um pelo outro?

     — Eu tentarei, se você tentar também.

     — E como começamos?

     — Você me beijando.

     Depois disso, as regras foram flexíveis. E embora não estivéssemos com muita prática, foi um jogo agradável para uma tarde quente em Washington, D.C. Se vocês se dispõem a sorrir diante de duas pessoas, há muito já passadas da juventude, empenhando-se no jogo do amor no Embassy Row, então apreciem a comédia integralmente — e vejam se podem fazê-lo melhor quando a solidão também as dominar.

    

     Às sete horas em ponto eu estava tocando a campainha de uma casa modesta mas até que bonita, em Arlington. A porta foi aberta por uma mulher pálida, cujos óculos lhe davam uma aparência de coruja hostil. Disse-lhe meu nome, expliquei que tinha um encontro marcado com o Sr. Klein. Ela declarou que o encontro era com a Sra. Leah Klein e que era a dama em questão. Levou-me para uma pequena sala, atulhada de livros, revistas e arquivos desarrumados de recortes. A um canto havia uma escrivaninha coberta de papéis, em outro havia um pequeno armário com bebidas. Havia duas poltronas na sala, uma das quais estava ocupada por um gato. Não vi nenhum cabo de vassoura, mas a Sra. Leah Klein parecia uma bruxa, imensa e estranha, os dedos manchados de nicotina e uma voz profunda e áspera. Ela preparou dois drinques, um bourbon para mim e uma dose de rum com coca-cola para si mesma. Depois do primeiro gole, entrou direto nos negócios:

     — Kurt Saperstein disse-me que deseja divulgar uma história. Certo?

     — Certo.

     — Fato ou boato?

     — Alguns fatos, um pouco de inferências. Gostaria, se possível, de que a história parecesse oriunda de Londres.

     — Por quê?

     — Porque a situação política assim o exige.

     — Pode ditar a história?

     — Posso fazer um esboço.

     — É tudo o de que preciso.

     Ela sentou-se diante da máquina de escrever, pôs papel, acendeu um cigarro, pendurou-o no canto da boca e disse:

     — Nenhum comentário, apenas os fatos. Certo?

     — Certo. A UPI despachou hoje de Londres um telegrama contando que um certo Frank Lemmitz, turista americano, foi encontrado morto num hotel do West End. A polícia está à procura de uma moça que foi vista em sua companhia em dois conhecidos cassinos londrinos. Aqui termina a história que eles tinham para contar. Agora começa a minha. Frank Lemmitz era motorista de Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated. Ele era conhecido por possuir contatos no submundo do crime, especialmente um certo Bernie Koonig. Basil Yanko no momento está em Frankfurt, participando de uma reunião internacional de banqueiros. Está me acompanhando?

     — Estou na sua frente. Continue falando.

     — Uma funcionária da Creative Systems, a Srta. Valerie Hallstrom, foi assassinada em seu apartamento há três dias. A notícia saiu nos jornais. Mas os seguintes fatos não foram divulgados: o FBI está investigando a divulgação de segredos dos bancos de memória da Creative Systems; diversas grandes empresas americanas estão envolvidas; os nomes delas são...

     — Soletre, por favor.

     Soletrei os nomes de todas as companhias, uma por uma, inclusive a nossa. Ela batia à máquina como se estivesse enfrentando um inimigo mortal.

     — Arlequim et Cie. foi lesada em uma soma considerável, pelo mau uso de seus serviços de computadores, controlados pela Creative Systems e por suas subsidiárias em outros países. Já se identificou a autora da fraude no terminal de Nova York. Seu nome era Ella Deane. Morreu há duas semanas, atropelada por um carro não identificado. Deixou um dinheiro considerável, quase todo depositado nos últimos três meses que passou no emprego. Um de seus namorados era Frank Lemitz. Por coincidência, Basil Yanko está neste momento tentando assumir o controle de Arlequim et Cie. A oferta que ele fez já é do conhecimento público. O acionista majoritário recusa-se a vender. Os minoritários ainda estão indecisos. Até aqui, relatei fatos comprováveis. Pode verificá-los pessoalmente. Daqui por diante, uma parte é constituída de fatos e a outra de inferências.

     — E quais são os fatos?

     — Todos os principais corretores de Nova York possuem inúmeras ordens de compra das ações da Creative Systems. Algumas das ordens maiores são de clientes do Oriente Médio...

     — Dinheiro do petróleo!

     — Pode verificar. E alguns são líbios.

     — E quais são as inferências?

     — Os árabes querem ter uma base em atividades bancárias e industriais, na Europa e nos Estados Unidos. Isso é patente por tudo que têm falado e feito. E eles possuem dinheiro bastante para consegui-lo. Acreditamos que Basil Yanko os está ajudando. A pretensão é legal, os meios é que são escusos. Em nosso caso, são criminosos. Trouxe-lhe uma cópia de um dossiê que preparamos sobre o passado de Yanko. Devem tê-lo também em seus arquivos. E esse é o final da história.

     — Diga-me agora, por que deseja vê-la divulgada?

     — Queremos atenuar a pressão em cima de nós e aumentá-la sobre Yanko. Queremos vê-lo totalmente desacreditado.

     — Muitas outras pessoas estão querendo a mesma coisa.

     — E essa história é suficiente para consegui-lo?

     — Não. Mas não resta a menor dúvida de que irá agitar o formigueiro. Pode dizer-me mais alguma coisa a respeito da morte de Valerie Hallstrom?

     — Poderia, mas não vou fazê-lo. Se quiser saber por quê, pergunte a Kurt Saperstein.

     Ela girou a cadeira para encarar-me. Deu uma tragada profunda no cigarro. A cinza caiu em seu colo e ela limpou-a distraidamente.

     — É por acaso judeu?

     — Não. Sou um goy.

     — Essa história, Sr. Desmond, é muito quente. E poderá ficar ainda mais quente para o senhor.

     — Eu sei. Quando a história será publicada?

     — Hoje é sexta-feira. Com um pouco de sorte, tê-la-ei preparado para sair nos jornais de domingo na Inglaterra. De lá, ela se espalhará. Os serviços telegráficos a mandarão de volta para cá a tempo de sair nos jornais de segunda-feira. O mesmo acontecerá na Europa. Será como jogar merda no ventilador. Talvez fosse aconselhável que o senhor tirasse um longo fim de semana.

     — Obrigado pela sugestão. Vou pensar no assunto.

     — Aceita outra dose?

     — Não, obrigado. Vou terminar esta e depois irei embora. Importa-se de me dizer uma coisa?

     — O quê?

     — Parece que aceitou muita coisa em confiança. Por quê?

     Ela jogou a cabeça para trás e riu, um riso áspero, zombeteiro e sem o menor humor, um riso típico de homem.

     — Confiança? Não confiaria nem em minha própria irmã num assunto deste...Se o senhor não tivesse sido meticulosamente checado, não teria chegado nem a dez quarteirões desta casa. Antes de sua história ser divulgada, será devidamente examinada por peritos. Se não se ajustar aos fatos, está liquidado, Sr. Desmond. E, se não se ajustar à nossa política, então simplesmente não será publicada.

     — Então eu a levarei para algum outro lugar.

     — Para onde quer que a leve, precisará de alguém que a reescreva e de um editor simpático. Em mim, encontrou ambas as coisas. Não abuse de sua sorte.

     — É que também não gosto de que abusem de mim.

     — Se não gosta de feijões, então não abra a lata... L’chaim!

    

     Havia um recado para mim na portaria do hotel: Saul Wells acabara de chegar de Nova York de trem e estava me esperando no bar. Empoleirado num tamborete alto, inclinado sobre seu drinque, ele se parecia mais do que nunca com um furão, rabugento, inquieto e combativo. Seu rosto se iluminou quando me viu. Fomos sentar-nos num canto escuro, longe dos ouvidos dos outros fregueses. Ele tirou o celofane de um charuto novo, enfiou-o no canto da boca e acendeu-o. Entre uma baforada e outra, cada uma formando nuvens de fumaça, foi-me dando as notícias:

     — Já recebi os primeiros relatórios de suas filiais. A operação em todas foi a mesma, com variações locais. Nos países em que vigoram restrições à exportação de recursos locais, somente as contas estrangeiras foram atingidas. Em três casos, como a Cidade do México, por exemplo, suas operadoras pediram demissão logo depois do acontecimento. Em outras duas filiais elas continuam no emprego, o que pode levar à suposição de que a fraude foi efetuada no próprio sistema. Na Inglaterra, tivemos mais sorte. A operadora era uma mulher chamada Beverly Manners. Ela pediu demissão para casar-se. Promoveram-lhe uma grande festa no escritório e o gerente deu-lhe uma gratificação. Ela está viva e com saúde, morando numa casa grande no Surrey. Segundo o relatório, ela está grávida de cinco meses.

     — E isso é relevante, Saul?

     — Creio que sim. Não podemos pressionar uma mulher grávida. O mais importante, porém, é que o marido dela trabalha para a subsidiária inglesa da Creative Systems.

     — Isso é um tanto estranho.

     — As coisas são mais estranhas do que está pensando. A dama em questão e seu marido são quase vizinhos do seu gerente em Londres, e costumam jogar golfe com ele. As transações fraudulentas foram justificadas por uma instrução de telex recebida de Genebra e assinada por George Arlequim.

     — E já verificou nossos arquivos de telex em Genebra?

     — Já. Não encontramos a menor pista. O telex foi despachado de outro terminal.

     — O negócio é mesmo uma conspiração...

     — Se quiser descobrir mais alguma coisa, terá que recorrer à polícia britânica.

     — Ainda não chegou o momento. Procure ir o mais longe que lhe for possível sem a ajuda da polícia. Não podemos nos dar ao luxo de perder mais funcionários ou aumentar a publicidade sobre o caso. Como se saiu com o FBI?

     — Eles me fizeram suar. E como foi o encontro deles com o senhor?

     — A mesma coisa.

     — Alguma novidade?

     Falei-lhe de minha conversa com a Sra. Leah Klein. Ele mordeu o charuto com força e fitou-me com uma surpresa indisfarçável.

     — Irmão, foi procurar sarna para se cocar! Circule por Washington e irá descobrir que todo mundo a chama de coveira, porque enterrou algumas figuras importantes e escreveu alguns obituários espetaculares. Se ela está do seu lado, então está com sorte. Caso contrário, está na hora de sair da cidade.

     — De qualquer forma, Saul, ela quer que deixemos mesmo a cidade.

     No mesmo instante ele ficou alerta e extremamente sério:

     — Se ela disse isso, Sr. Desmond, é melhor comprar

     logo as passagens. Quando Leah começa a disparar da cintura, até mesmo o pessoal da Casa Branca sai correndo em busca de cobertura. Ela dá apenas um único aviso: o último.

     — Falarei com Arlequim a esse respeito.

     — Uma sugestão, Sr. Desmond: há bons aviões para a Cidade do México. Tenho aqui as informações sobre sua filial de lá. É um pretexto, se precisar de um.

     — Eu o usarei, se for necessário. Se não tem mais nada a dizer-me de urgente, poderemos encontrar-nos em minha suíte para tomar o café da manhã e então repassar os relatórios.

     — É melhor encontrarmo-nos no restaurante.

     — Alguma razão especial?

     — A melhor possível. A Srta. Suzanne deixou-me dar uma olhada nos quartos que estão ocupando. Eles estão quentes como o interior de um reator nuclear. Mas a suíte de Arlequim está limpa, o que é bastante estranho.

     — Não é tão estranho assim. Há sempre gente lá, quase o dia inteiro.

     Saul sorriu e fez alguns movimentos cômicos com o charuto.

     — Se andou fazendo alguma coisa diferente lá em cima, está agora tudo gravado e os monitores devem ter tido uma diversão maravilhosa.

     — E quem serão os monitores, Saul?

     — Há duas alternativas, Sr. Desmond: o FBI ou o pessoal de Basil Yanko.

     — Dê um palpite.

     — Sou capaz de apostar que é Yanko. Motivo: o FBI sabia que Arlequim ia visitar o seu embaixador e que o senhor também deveria encontrar-se com o seu. Nessa circunstância, creio que eles agiriam de acordo com os regulamentos.

     — O FBI entrevistou-me esta manhã em meu quarto.

     — Se eles voltarem, como provavelmente acontecerá, fale-lhes sobre os microfones. Há um dentro do telefone. O outro está debaixo da mesa, ao lado do sofá.

     — E por que não os arrancamos logo de uma vez?

     — Porque fazem com que o senhor pareça inocente, Sr. Desmond...mesmo que não o seja. Trabalhando com Aaron Bogdanovich e Leah Klein, está jogando muito alto. Esse é outro motivo pelo qual eu gostaria de vê-lo fazendo uma viagem ao México.

     E com essa observação confortadora nos separamos,

     Saul para passar a noite do Sabbath com os amigos e eu para transmitir a Arlequim o relato de minhas ações e tentar persuadi-lo de que o clima da Cidade do México era muito mais saudável que o de Washington. Ele concordou com o roteiro de minha história, embora receasse que Leah Klein ou outra pessoa qualquer o alterasse. Não queria também partir porque precisava ficar em contato com o mercado de Nova York. Talvez precisasse ter mais algumas conversas com Herbert Bachmann. Detestaria dar a Yanko a impressão de que estávamos fugindo. Argumentei que teríamos de visitar a Cidade do México de qualquer maneira. Por que então não íamos no fim de semana, quando todos os negócios estavam paralisados por dois dias? Estávamos pagando para receber os conselhos de peritos; por que não aceitá-los? Julie acrescentou calmamente a sugestão de que poderia voar até Acapulco e fazer uma visita a Lola Frank. Assim, se tivéssemos que voltar a Nova York às pressas, não teríamos de nos preocupar com ela. Finalmente Arlequim concordou e desci até a portaria para providenciar as reservas com Ar-nold. Quando fiz o pedido, um pouco de cor surgiu em seu rosto impassível e ele disse:

     — Como foi que recebeu o aviso, Sr. Desmond?

     — Que aviso? Vamos fazer uma viagem de negócios, pois temos um escritório na Cidade do México.

     — Ahn!...

     — Algum problema, Arnold?

     — Nenhum. É que é uma coincidência. Acabei de saber que um amigo seu está a caminho do México e queria que entrasse em contato com ele por lá. Tenho o telefone dele aqui.

     Entregou-me um cartão e começou a folhear os horários de vôo, falando o tempo todo em tom monótono:

     — ...Creio que gostarão de ficar no Camino Real. O mesmo arranjo que aqui, certo? Ligarei para lá assim que confirmar o vôo. Ah, aqui está! A Braniff tem um vôo que sai daqui às três e quinze da tarde, faz escala em Dallas e San Antônio e chega à Cidade do México às nove e meia. Primeira classe e uma limusine esperando no aeroporto? Não, creio que seu próprio pessoal irá esperá-lo. Quanto tempo pretendem ficar? Quatro, cinco dias? Vamos calcular uma semana. Sempre poderão cancelar as reservas. Endereço para correspondência? O escritório de seu banco, está certo? Providenciarei para que seu amigo tome conhecimento das

     disposições. É engraçado como as coisas acontecem, não acha?

     Quanto mais eu pensava no caso, mais engraçado achava: um humor fúnebre, que fazia meus nervos formigarem e os cabelos da nuca arrepiarem. Estávamos de volta ao que George Arlequim chamava de jogos de fantasmas: sussurros no escuro, rangidos no revestimento de madeira, toda uma cabala de sinais e símbolos para confundir o jogador principiante. Ao seguir para o elevador, ouvi uma voz familiar chamando-me. Virei-me para ver o Sr. Milo Frohm dois passos atrás de mim. Ele estendeu a mão em cumprimento e apertei-a distraidamente.

     Disse-me então:

     — Ia subir para falar com o Sr. Arlequim.

     — Eu também.

     — Espero que não seja muito tarde.

     — Mas é. Amanhã estaremos partindo para a Cidade do México.

     — É mesmo?

     A porta do elevador se abriu e fizemos rapapés de mandarim para ver quem entrava primeiro. O Sr. Frohm era um homem muito bem-educado e deixou para insistir em suas perguntas diante de George Arlequim, que o recebeu com café e conhaque e explicou a viagem súbita com sua habitual franqueza desarmante:

     — Não há mistério algum em nossa viagem, Sr. Frohm. O Sr. Wells acaba de entregar seu relatório sobre nossa filial na Cidade do México. Precisamos conversar com o gerente e com os acionistas locais. Enquanto estivermos trabalhando, minha esposa visitará amigas em Acapulco. Isso me causa algum problema?

     — Problema nenhum, Sr. Arlequim. Fico apenas preocupado.

     — Fico contente em ouvi-lo. Depois de minha conversa com o embaixador esta manhã, senti-me como se estivesse, por assim dizer, em território inimigo. Neste momento, o seu Departamento de Estado não anda muito feliz com os europeus...Oh, Julie! Este é o Sr. Frohm, do FBI. Sr. Frohm, minha esposa.

     — Prazer em conhecê-la, madame. Lamento muito vir aqui incomodar a uma hora tão tardia.

     — Há algo errado, George?

     Ela estava de olhos arregalados numa expressão de inocência.

     — Não, querida. Fique aqui conosco. Pode continuar, Sr. Frohm.

     — Suponho, Sr. Arlequim, que seu embaixador se tenha referido às bases políticas do problema, não?

     — Ele o fez.

     — Referiu-se também, sem a menor dúvida, a certos elementos de violência na situação.

     — Falou a respeito.

     — Sr. Arlequim...

     Ele tossiu, hesitante, como se estivesse à procura da frase certa.

     — Eu...isto é, nós...temos certas opiniões...pode até chamar de posições...que não estou autorizado a divulgar. Contudo, quero declarar que os senhores não estão, como o disse, em território inimigo. Pode sentir, Sr. Arlequim, com alguma razão, que tem um inimigo pessoal em Basil Yanko. Podemos achar, embora eu não afirme que isso aconteça, que suas táticas em questões de negócios são rudes e até mesmo repreensíveis, mas não podemos intervir. Temos dois assassinatos nas mãos e uma situação política altamente tensa, aqui no país e no exterior. Em nossa sociedade, a violência é endêmica e pode tornar-se epidêmica. O senhor pode também ser ameaçado por ela, Sr. Arlequim. É nosso dever avisá-lo de que não poderemos protegê-lo em todos os momentos. E é bom que Madame Arlequim também compreenda isso.

     Arlequim ficou em silêncio por um momento, olhando para as costas de suas mãos longas e delicadas. Disse então, gravemente:

     — Não está generalizando demais, Sr. Frohm? Por quem estamos sendo ameaçados?

     — Pergunte a si mesmo, Sr. Arlequim, quem mais deverá lucrar com sua morte. E pense também que, se o senhor, ou as pessoas que trabalham com o senhor, identificar-se com alguma facção de fanáticos, então estará dobrando' seu risco pessoal. Sabe que Frank Lemmitz foi assassinado em Londres?

     — Ouvimos falar. Quem o matou?

     — O senhor mesmo. Matou-o com uma palavra intempestiva.

     Ele franziu o cenho e estendeu as mãos num gesto de súplica.

     — É exatamente isso o que estou tentando mostrar-lhe. É um estranho nesta cidade, não fala o mesmo idioma.

     É um suíço, vem de um país pequeno e bem-organizado, no qual se precisa de licença até mesmo para tossir, embora seja um homem de tão boas maneiras que não costuma fazê-lo...Posso perguntar-lhe se já providenciou proteção para seu filho?

     — Já solicitei a vigilância da polícia. E estou certo de que é adequada.

     — Espero que sim. Perdoe-me, Sr. Arlequim, mas isto é a América no último rolo do Sonho americano, que se transforma num pesadelo em tecnicolor. Não sinto o menor prazer em estar aqui a pedir desculpas por meu país e também por mim mesmo, mas estou preparado para fazê-lo, desde que isso o faça ver a verdade.

     — E qual é a verdade, Sr. Frohm?

     — As leis são inadequadas. As "forcas da lei são mais inadequadas ainda. Algumas delas são corruptas, embora nem todas. A corrupção se dissemina à medida que a confiança declina. Estou lhe pedindo que confie em mim, Sr. Arlequim. Peço-lhe a mesma coisa, Sr. Desmond.

     Era a minha vez. Não ia deixar passar aquela oportunidade, não podia.

     — Sr. Frohm?

     — Pois não, Sr. Desmond.

     — Acredito, porque quero acreditar, que é um homem honesto. Responderia a duas perguntas?

     — Se me for possível, claro que sim.

     — Tem ordens para escutar meu telefone e pôr microfones em meu quarto?

     — Não.

     — O senhor ou algum de seus agentes tomou então essa iniciativa por conta própria?

     — Ao que eu saiba, não.

     — Pois alguém o fez, Sr. Frohm. O Sr. Wells descobriu os microfones no início da noite.

     — Ele verificou este quarto também?

     — Verificou. Está inteiramente limpo.

     Ele sacudiu a cabeça lentamente. Fitou-me e depois a George Arlequim e a Julie. Levantou-se e foi ao telefone. Completada a ligação, disse lenta e raivosamente:

     — Carl? ...Milo Frohm. Sabe onde estou. Traga Pete e sua caixa de ferramentas até aqui, o mais depressa possível.

     Voltou a sentar-se. George Arlequim serviu-lhe uma dose de uísque. Ele bebeu lentamente, colocando o copo em cima de uma mesinha, com extremo cuidado, quando acabou.

     — Compreende agora nosso problema, Sr. Frohm? — disse Arlequim gentilmente.

     Milo Frohm assentiu, sacudindo a cabeça para cima e para baixo, repetidas vezes. Parecia uma dessas velhas estatuetas de Buda que os marinheiros costumam trazer de Xangai.

     — Compreendo, Sr. Arlequim. Neste momento, não tenho certeza do que nós vamos fazer. Uma coisa, porém, é certa: quando chegarem à Cidade do México, devem todos ter muito cuidado.

    

     Nossa partida de Washington nada teve de gloriosa. Chovia forte, o céu estava cinzento, as nuvens, baixas. O êxodo do fim de semana já começara e éramos apenas mais quatro cordeiros sendo levados à imersão de desinfetantes e despachados o mais rapidamente possível. Nossa bagagem de mão foi revistada, tivemos que passar por um portão especial de detecção. Fomos apalpados e interrogados, levados para um curral, enquanto agentes de segurança revistavam o avião, à procura de engenhos letais. Bons cordeiros que éramos, dissemo-nos uns aos outros que aprovávamos os cuidados que estavam sendo tomados para salvar nossas vidas. Deploramos a violência que tornava a precaução necessária e nos entregamos, com fé absoluta, aos cuidados de nossos guardiães armados e anônimos. Minha fé se tornara mais frágil com o passar dos anos e, assim que levantamos vôo, pedi minha ração de coquetéis, mergulhando imediatamente na leitura do relatório de Mendoza sobre a fabulosa carreira de Basil Yanko.

     A primeira parte era o folclore padrão: filho de imigrantes pobres da Boêmia, ele vendera jornais e fora entregador de mercadorias para custear os estudos, enveredando, com muita coragem e inteligência extraordinária, pela nova ciência da tecnologia de computação. Sua carreira nas grandes companhias fora rápida e imaculada. Era muito bem pago e economizava tudo o que podia. Sua parcimônia era, aliás, a única característica notável de sua vida particular. Não tinha filiações políticas e aparentemente quase não precisava de amizades. Submetia-se, sem qualquer queixa, à disciplina das grandes corporações. Não pedia favores para si mesmo. Não era indulgente com os subordinados. Recusava-se a participar das intrigas da companhia. Sua única declaração registrada era um julgamento sumário numa disputa entre executivos:

     "Nós fabricamos cérebros e ensinamos as pessoas a usá-los. Vamos ver se conseguimos usar também nossos próprios cérebros".

     Tinha trinta e dois anos quando resolvera estabelecer-se por conta própria. Tinha então economizado um quarto de milhão de dólares, comprando um terço de uma pequena organização de processamento de dados de Nova York. No mesmo ano casara-se com a filha do sócio majoritário. No ano seguinte, a esposa viajou para Nevada e divorciou-se dele. Ela também era citada no relatório, com uma descrição um tanto histérica da personalidade do marido:

     "Ele não era cruel. Também não era um homem bom. Simplesmente não existia. Casei-me com ele com estrelas nos olhos, mas o que eu realmente estava vendo eram refletores a se acenderem e se apagarem, fitas de computadores a girarem...Quando o procurava, tudo o que encontrava e podia tocar era esmalte ressecado. Não era um homem. Era um monstro mecânico".

     Seis meses antes do divórcio, Basil Yanko fundara uma pequena companhia, chamada Creative Systems Incorporated. Ela nada fazia, exceto existir. Seis meses depois do divórcio, seu sócio mais velho morreu de uma dose excessiva de barbitúricos. Houvera rumores de escândalo: fraude nas contas, espionagem industrial, vendas de informações aos competidores dos clientes. O homem morto abdicara de sua defesa. Basil Yanko defendera-o tão vigorosamente que adquirira a imagem de homem justo e amigo leal, conseguindo manter a maioria dos clientes. A Creative Systems Incorporated comprara então a outra companhia, por uma bagatela. Basil Yanko era agora o único dono de uma companhia de processamento de dados. Podia oferecer os serviços exclusivos de um gênio, sem estar preso à submissão a espíritos menores. As grandes corporações começaram a mandar-lhe negócios. Ele expandiu-se, lentamente, mas com uma espécie de certeza inexorável, comprando talentos, vendendo idéias, oferecendo sempre mais do que estava estipulado no contrato.

     Seu modo de vida também mudou. Passou a viver mais luxuosamente, esbanjando ao receber, mas cercando-se, ao mesmo tempo, de uma aura de mistério faustiano. Era uma atitude que atraía as críticas, pois sugeria charlatanismo. Mas essa atitude foi compensada, sem dúvida, quando se comprovou que ele era realmente um mago dos computadores. Companhias poderosas passaram a basear-se em suas pesquisas. Homens nas mais altas posições procuravam seus conselhos e ele, em troca, dotava-os com os instrumentos do poder.

     Casou-se novamente com a filha de um deles, uma mulher de trinta anos que tinha a fama de gostar de mocinhas, sendo rica o suficiente para se permitir essa excentricidade. Ela morreu ao dar a partida em sua lancha no lago Tahoe, tendo a gasolina explodido. Basil Yanko estava no momento em Nova York. Ele pegara um avião para ir prantear a esposa falecida junto ao seu túmulo, receber o seguro e ouvir a leitura de um testamento que tinha apenas três meses e o deixava oito milhões de dólares mais rico.

     Passou a expandir-se mais rapidamente, devorando as pequenas companhias, despojando-as de seus bens, mantendo os melhores funcionários e mandando o resto para seus rivais. Nos dias prósperos de meados da década de 60, quando todos os pequenos reis estavam pagando fortunas por roupas invisíveis, Basil Yanko saiu em público e ganhou outra fortuna. Comprou outras companhias. Invadiu a Europa, comprando ações e propriedades imobiliárias, fazendo aliados e criando subsidiárias. Havia rumores insidiosos de que ele estava também vendendo informações, em troca de participação em empreendimentos europeus. O relatório de Mendoza citava diversos casos, mas em nenhum havia provas irrefutáveis. Num exemplo sinistro, um laboratório europeu fora acusado de roubar segredos de concorrentes. Três dias depois, um analista-chefe da Creative Systems morrera num acidente de automóvel nas Dolomitas.

     De certa forma, era tudo conhecido, dêjà vu, uma reedição das histórias dos barões do tabaco, dos imperadores do petróleo, dos traficantes de armas. A gente sabia que tinha acontecido, mas seria necessário uma fortuna e três vidas para provar. E quando finalmente alguém conseguisse provar, ninguém lhe daria uma medalha, mesmo que ainda estivesse vivo para aceitá-la...O que não importava, contanto que tivesse acontecido ontem e com outra pessoa qualquer. Mas, na verdade, estava acontecendo hoje e conosco. O pessoal do mercado sabia disso, mas enquanto os seus próprios bolsos não fossem atingidos, eles dificilmente iam se importar. Se ganhássemos, talvez ficassem mesmo constrangidos. Se perdêssemos, continuariam a jantar com Basil Yanko no Clube dos Banqueiros, esquecendo-nos com o epitáfio que desculpava qualquer coisa: negócios são negócios. Acendeu-se o aviso para apertarmos os cintos. A aeromoça informou que estávamos descendo para aterrissar em Dallas, a cidade em que mataram John Kennedy e enterraram a verdade com o seu assassino, e todo mundo viveu em paz e felicidade depois disso.

    

     Eu estava adormecido e sonhando quando atravessamos o rio Grande. Acordei para ver o pico do Popocatepetl, coberto de neve e sereno, recortado contra um céu cheio de estrelas. Lá embaixo havia montanhas menores e lagos de escuridão, pontilhados pelas luzes de aldeias. À frente e à distância podia-se distinguir a presença da Cidade do México, um brilho dourado que se difundia por entre o nevoeiro e se erguia até a altura dos campos estrelados. Experimentei uma estranha sensação de libertação e alívio, como se tivesse acabado de emergir de um longo túnel e encontrasse uma selva vasta mas cordial. Suzanne, a meu lado, irradiava também a mesma excitação e assombro súbitos. Segurou minha mão e começou a conversar como uma criança, cheia de fantasias e histórias lembradas pela metade: a serpente emplumada, a cidade de ouro no lago, as pessoas para quem o tempo era um mistério sagrado, Cortês, que fora recebido como um deus e era humano demais para percebê-lo.

     George Arlequim veio partilhar aquele momento conosco. Estava obcecado pelas pequenas luzes nos grandes vales, tesouros de memória racial que jamais seriam registrados, pois aqueles que os detinham não sabiam ler nem escrever e a língua que falavam morreria com eles. Falou sobre a estranha amnésia que aflige a raça humana, capaz de jogar ao vento, numa única geração, toda a sabedoria adquirida em uma era inteira. Pairando entre o céu e a terra, vimos fragmentos de visões, por um momento tivemos poeira de estrelas em nossas mãos.

     Quando aterrissamos, as visões se dissolveram num nevoeiro acre, a poeira de estrelas transformou-se em poeira da terra, áspera em nossos dedos, seca em nossas bocas. Arrastamo-nos lentamente pelo controle de passaportes. Esperamos como peões pacientes que nossas bagagens fossem desembaraçadas pela Alfândega. Depois fomos envolvidos por um mar agitado de homens, mulheres, crianças e animais domésticos diversos. Quando já estávamos prestes a nos entregar ao desespero, o mar se abriu e José Luis Miramón de Velasco deu-nos as boas-vindas na terra dos astecas.

     Pelos nossos registros, ele tinha trinta e cinco anos, era solteiro, formara-se pela Universidade Nacional Autônoma e pela Escola de Administração de Negócios de Harvard, e pertencia a uma velha família gachupin — o que significava que seus ancestrais usavam sapatos e falavam castelhano, enquanto o resto do país andava descalço e falava nahua ou espanhol deturpado. Significava também que ele era rico de nascença, belo e orgulhoso como Lúcifer, podendo caminhar de olhos fechados pelo labirinto da administração mexicana.

     Sua recepção foi a mais cortês possível. Apresentou-nos no hotel com uma pompa real. Colocou imediatamente à nossa disposição a si mesmo, a seus serviços, a sua casa. Percebi que as mulheres ficaram surpresas pelo fato de um homem tão másculo e tão bonito ter conseguido ficar tanto tempo solteiro. Antecipei-me em dizer que um rico gachupin, que dirigia um banco de investimentos na Cidade do México, precisava de casamento tanto quanto precisava de pulque e tamales para o jantar.

     Antes de partir, solicitou o obséquio de uma conversa particular comigo e com Arlequim. Estava insultado com o que acontecera ao banco, não podia dormir em paz enquanto não fosse removida a nódoa em sua reputação. Conhecendo seu orgulho inabalável, receei que estivéssemos fadados a ter uma reedição em castelhano da arenga de Larry Oliver. Mas, pelo contrário, sua preocupação imediata era para com George Arlequim.

     — ...Esteve doente, meu amigo. É monstruoso que tenha de se envolver tão cedo nessa...nessa sofisteria! Mas é assim que os negócios funcionam com os ianques. Se alguém não concorda em vender ao preço que eles fixam, começam a assediá-lo por todos os meios possíveis, assustam-no com processos e espiões a escavarem sua vida privada. Mas aqui, pelo menos, conseguimos mantê-los à distância. Não há dúvida de que fomos prejudicados. Quero que saiba disso antes de mais nada. Argumenta-se que um bom banqueiro pode cheirar uma fraude antes mesmo que aconteça. Argumenta-se também que vendemos ações da Creative Systems, que contratamos seus serviços; se agora estamos encontrando dificuldades, o erro foi nosso e não deles...

     Amanhã, você e Madame Arlequim estão convidados a almoçar com Pedro Galvez e dois outros de seus acionistas mexicanos. Galvez é o homem forte. Convença-o e conseguirá sair das sombras, voltando aos negócios. Ele está querendo financiamento para a exploração de novas minas e a construção de novas estradas de acesso. Preferiria obtê-lo na Europa ou no Japão a ir buscá-la ao norte da fronteira. Existem aqui algumas características difíceis de se perceber, mais difíceis ainda de se interpretar. Nossas raízes estão na Europa e na velha vida indígena deste país. Nossas lealdades são apenas para conosco mesmos. Nossas inimizades remontam ao Álamo. O próprio Hernán Cortes ainda não foi absolvido...Perdoe-me, não estou sabendo explicar-me muito bem. Tenho mais uma coisa a dizer-lhe. Muito embaraçosa, mas não posso calar...

     Ele parou de falar bruscamente, como se estivesse esperando o perdão antecipado, enquanto procurava pôr em ordem uma declaração difícil. Finalmente falou:

     — George, meu amigo, fui um idiota! Com um sorriso triste, Arlequim comentou:

     — É um lamento comum, José. Acontece a mesma coisa com todos nós.

     — Mas desta vez, George, você é que está sofrendo as conseqüências. Nos últimos dois dias estive trabalhando com seus investigadores no banco. Ficou evidente que a operadora que codificou as falsas instruções foi uma moça chamada Maria Guzmán, que nos deixou em janeiro. Disse a seus investigadores que ela desaparecera de circulação e que seria muito difícil descobrir-lhe a pista...Mas isso foi uma mentira.

     — Tenho certeza de que teve uma boa razão para dizê-la, José.

     — Deixarei isso para seu julgamento. Essa Maria era. .. é uma mulher muito bonita. Por algum tempo eu...eu a namorei. Quando ela começou a levar o caso muito a sério, tratei de deixá-la. Isso aconteceu em setembro, outubro, do ano passado. É claro que continuou conosco, pois era muito eficiente em seu trabalho. Ganhava muito bem. Em janeiro, anunciou-me que gostaria de sair do banco. Recebera uma oferta bem melhor na Petróleos Mexicanos. Dei-lhe uma recomendação de primeira e deixei-a ir. Para mim, o assunto estava encerrado, da melhor maneira possível. Não é nada agradável quando se tem que encontrar todas as manhãs com uma antiga paixão. E Maria não fazia nada para facilitar a situação.

     — Você é um idiota, José — disse George Arlequim mansamente.

     — Eu sei. Se assim quiser, eu lhe entregarei minha cabeça numa bandeja.

     — Prefiro ter os fatos, José.

     — Pois eu os tenho, George. Antes de transmiti-los, porém, queria pedir-lhe um favor. Não tenho o direito de fazê-lo, mas pedirei assim mesmo. A moça é culpada, não há a menor dúvida. Peço-lhe, contudo, que não a leve perante a lei. Se conhecesse o interior das prisões mexicanas, compreenderia por que o estou pedindo. Empenharei tudo o que possuo para cobrir suas perdas. Mas eu lhe imploro...

     — Ainda está apaixonado por ela, José?

     — Claro que não! Acho que ela é uma cadela estúpida, mas a verdade é que fui mais estúpido do que ela.

     — Está certo. Não haverá acusações. E a última coisa que desejo é seu dinheiro, José. Agora conte-me o que você tem.

     — Tenho uma confissão em espanhol, uma tradução inglesa e duas fotografias, tudo assinado e com firmas reconhecidas.

     — Como as obteve?

     — Preferiria que não me perguntasse, George. Também não sinto muito orgulho disso. Apenas leia o documento.

     George Arlequim leu a confissão bem devagar, depois passou-a para mim. Era cristalina como uma lágrima.

    

     " ...Apaixonei-me por um homem que não estava apaixonado por mim. Quando ele me disse que nosso caso estava terminado, senti-me uma tola, magoada, furiosa. Mas continuei no emprego porque sabia que isso o constrangia, embora tampouco me fizesse bem algum. Um dia, um jovem visitou o banco para verificar o funcionamento de nossos sistemas de computação. Chamava-se Peter Firmin. Disse que ia passar um mês no México, visitando clientes. Convidou-me para jantar. Depois disso, passamos a nos encontrar constantemente. Abri-lhe meu coração. Tornamo-nos amantes. Ele disse que queria casar-se comigo, mas teria primeiro que divorciar-se de sua esposa e que isso custaria muito dinheiro. Eu nada tinha, não podia ajudá-lo. Então ele me disse que, se eu fornecesse certas instruções ao nosso computador, receberia uma soma elevada: dez mil dólares. Disse que isso não seria um crime, que não estaria roubando coisa alguma. Quando a história fosse descoberta, seria uma terrível pilhéria contra José Luis, pois ele teria que assumir a responsabilidade pelo ocorrido. Concordei, mas não fiquei com o dinheiro. Entreguei-o a Peter, para que ele pudesse assim obter seu divórcio. Ele foi-se embora e nunca mais tornei a vê-lo. Escrevi-lhe muitas vezes, para sua companhia e para o endereço que ele me dera na Califórnia. Minhas cartas foram devolvidas, com o carimbo de endereço ignorado. Ninguém jamais pôs em dúvida as instruções que eu transmitira ao computador. Mas, em janeiro, resolvi deixar o banco. Tudo o que me restava de Peter Firmin eram algumas fotografias que tirara dele num domingo no parque Chapultepec. Afirmo e declaro que este depoimento é verdadeiro e que o fiz por minha livre e espontânea vontade, na presença de..."

    

     Uma das fotografias mostrava um jovem, numa roupa esporte de verão, posando ao lado de um vendedor de balões. Na outra, estava agachado, diante de uma indiazinha, que lhe oferecia uma flor. Ele parecia jovial e simples, como qualquer próspero jovem executivo a passear com sua namorada numa tarde de verão. Eu já vira dezenas iguais, em dezenas de cidades. E, no entanto...no entanto...

     — Está reconhecendo-o, Paul?

     — Creio que não. Mas ele tem algo que me parece familiar.

     — Eu o conheço — declarou de repente José Luis Miramón de Velasco.

     Deu-nos um sorriso embaraçado e sacudiu os ombros, num gesto de desculpas.

     — Eu próprio fiz algum trabalho de detetive. Ele assinou um contrato de um mês de aluguel desses apartamentos mobiliados, especiais para turistas e homens de negócios. Para fazê-lo, tinha que apresentar o passaporte e dar uma referência comercial. Seu verdadeiro nome é Alexander Duggan e ele trabalha para a Creative Systems em Los Angeles, Califórnia. Disse que a garota era estúpida. Ela própria poderia ter descoberto essas mesmas informações.

     Lembrei-me então. Era o mesmo rapaz de aparência ingênua que me encontrara no bar do Bel-Air Hotel, o camarada inocente que achava que o sol brilhava a cada movimento de Basil Yanko e pensava que gratificações e opções caíam do céu para a compra de ações. Comecei a balbuciar excitado, mas Arlequim interrompeu-me no meio da frase:

     — É uma informação útil, Paul, muito útil mesmo, embora nem de longe seja conclusiva. Vamos pensar um pouco...José, eu lhe agradeço. Julie e eu vamos almoçar com Galvez amanhã e voltaremos a nos encontrar no banco, na manhã de segunda-feira. E não diga uma palavra disso a ninguém. Compreendido?

     Ele compreendia. Sentia-se punido, mas não podia esquecer a sua dignidade. Fez um discurso breve e sóbrio de agradecimento e depois uma reverência, como um cortesão que acabara de ser salvo do carrasco.

     Assim que ele se retirou, George Arlequim recostou-se na cadeira e suspirou pesadamente.

     — O que acha, Paul? Tenho a impressão de que, por muito tempo, José não se esquecerá de sua leviandade.

     — Isso não tem a menor importância, George. O que importa é que ele nos proporcionou a primeira prova sólida contra Basil Yanko.

     — Correção. Temos apenas um depoimento sem outras provas a corroborarem-no, feito por uma mulher desapontada.

     — Essa não, George! Basta pôr Alexander Duggan no banco dos réus e confrontá-lo com a confissão de Maria. Vai causar a maior sensação.

     — E como o levaremos ao banco dos réus, Paul?

     — Mande prendê-lo sob a acusação de conspiração para nos lesar.

     — A conspiração foi cometida na Cidade do México. Não podemos extraditá-lo sem provas do crime. E não podemos obtê-las sem acusar Maria Guzmán, o que prometemos não fazer. Não, Paul, a situação é delicada. Nosso amigo José Luís é um homem muito distinto. Ele tratou de limpar seu nome e incriminou uma moça, assegurando-se antes de que não a chamaríamos para depor. Deu-nos o nome de um homem que não podemos acusar oficialmente. O que isso lhe diz?

     — Que devemos entrar em contato com Saul Wells, mandando-lhe uma cópia da confissão e as fotografias, para que ele comece a investigar Alexander Duggan.

     — Isso é tudo?

     — É o melhor que posso imaginar, à meia-noite, depois de um dia extremamente cansativo.

     — Então eu lhe darei algumas coisas para meditar enquanto dorme, Paul. Um homem não entra num banco como se fosse um mecânico de telefone e diz que vai verificar o sistema do computador. Ele telefona primeiro, marcando um encontro. Apresenta-se ao gerente. Suas credenciais são verificadas na fonte e por seus documentos pessoais...

     — Então Maria Guzmán estava mentindo...

     — Não. Pelo que imagino, José Luis foi negligente. Ele recebeu um telefonema de um certo Sr. Peter Firmin, da Creative Systems, marcou uma reunião e, ao melhor estilo latino, não se preocupou em verificar as informações, acreditando que o homem era tudo o que dizia ser.

     — Ele pode ter participado também da conspiração.

     — Não, Paul. José Luis é rico demais para precisar disso.

     — Nesse caso, é também rico demais para nós. Vamo-nos livrar dele o quanto antes, George.

     — Ainda não, Paul. Vamos deixá-lo primeiro salvar as aparências. Neste momento, precisamos disso tanto quanto ele. Este é um país diferente. A vida aqui não é apenas feita de negócios. O estilo também é muito importante.

     Ele provavelmente estava certo. De qualquer forma, eu estava cansado demais para discutir. Tudo o que pude dizer é que se podia comprar estilo que não acabava mais por quinze milhões de dólares, e que um gerente que não conseguia manter as mãos longe das funcionárias não era absolutamente meu estilo. O que, é claro, era uma completa hipocrisia, pois ao voltar para minha suíte encontrei Suzanne vestida para sair, querendo que eu lhe mostrasse como era a vida na Cidade do México numa noite de sábado.

     

     Acordei exausto e arrependido, com a impressão de que a boca estava cheia de carvões em brasa. Estava cego também, o que provavelmente era uma bênção. Certamente não estava surdo, porque a campainha do telefone era um tormento em meus ouvidos. Encontrei-o finalmente e consegui emitir um grunhido subumano.

     Quem me telefonava era um velho habitante do mundo das trevas.

     — Bom dia, Sr. Desmond. Aqui é Aaron.

     — Oh...

     — Fiquei esperando que me telefonasse a noite passada.

     — Chegamos muito tarde...

     — E divertiu-se até mais tarde ainda. Ela é uma mulher muito bonita.

     — Direi a ela.

     — Quero vê-lo hoje.

     — Onde e a que horas?

     — Conhece a Praça das Três Culturas?

     — Eu a encontrarei.

     — Às três horas da tarde, do lado de fora do portão da igreja.

     — Estarei lá.

     — Sozinho, Sr. Desmond.

     — Seja como quiser. Conhece alguma cura infalível para ressaca?

     — A melhor de todas: não beba. E especialmente não beba tequila. Hasta luego, amigo!

     A única cura para viver era morrer, por isso eu tive que agüentar. Barbeei-me com as mãos trêmulas, tomei banho lentamente e vesti-me com dificuldade, procurando ignorar as explosões ensurdecedoras que ocorriam dentro de minha caixa craniana. Quando finalmente consegui deslocar-me até a sala de estar, encontrei Suzanne milagrosamente viçosa, vestida para sair, acabando de remover os guardanapos que cobriam os pratos do café da manhã. Ela emitiu alguns ruídos de piedade, desculpou-se por manter-me acordado até tão tarde e depois ficou parada a meu lado, como uma górgona, enquanto eu comia o que ela ficou satisfeita em classificar como um desjejum civilizado. E então, quando comecei a sentir dentro de mim, ainda bastante débeis, os primeiros impulsos de vida, Suzanne anunciou que eu estava era precisando de ar fresco e um pouco de exercício. Protestei em vão, argumentando que o único ar fresco que por ali havia era no próprio interior do hotel e que, a três mil metros de altitude, até mesmo esse era rarefeito demais para proporcionar algum conforto. Consegui atrasar o ordálio por meia hora, enquanto telefonava para Saul Wells e informava-o a respeito de Alexander Duggan. Ganhei mais dez minutos com uma rápida visita a Arlequim e a Julie. Depois, ainda protestando, fui empurrado quase à força para o esplendor dominical da Cidade do México.

     Os mexicanos dizem que a sua capital é infestada — infestada de gente rica, de gente pobre, de monumentos, igrejas, história, doenças, animais, crianças, cores, barulho, lendas, polícia, fantasmas, turistas e uma centena de línguas diferentes. Tente absorver tudo de uma vez e ficará apenas aturdido e ofegante. Vá aprendendo as coisas lentamente, caminhe ao ritmo de domingo, com uma mulher participante pelo braço, e logo o mosaico começará a ter sentido. Os astecas ainda estão lá, caminhando pelo asfalto que cobre sua antiga capital de Tenochtitlán. Os conquistadores ainda estão lá, dirigindo Mercedes e Fiats e vivendo como os senhores da criação, à distância de uma pedrada das favelas sórdidas. A Virgem de Guadalupe ainda vela sobre a cidade católica entre as católicas, a serpente-deus ainda sobrevive, no fundo da memória popular. Entre num pátio cheio de sombras, sente-se num banco de pedra e terá a sensação de que está de volta à velha Sevilha. Meta a cabeça para dentro de uma porta de porão e verá certamente um amontoado de vítimas, mais desesperançadas que todas as outras que ficavam esperando que seus corações fossem arrancados no alto da pirâmide sagrada. Preste atenção à conversa dos estudantes e ouvirá falar numa revolução mais feroz que em qualquer outra parte do mundo. Sente-se numa sala de reuniões com industriais e eles lhe dirão que existem mais riquezas sob a terra do que Montezuma jamais sonhou. Compre um balão, jogue uma moeda para os mariachis a fim de que eles toquem longe de você; procure acreditar que nunca houve e jamais poderá haver nenhum lugar mais alegre para se passar um domingo.

     Chegou o momento em que até mesmo Suzanne se entregou, e sentamo-nos para tomar cerveja gelada num café de cadeiras na calçada, contemplando o desfile incessante e sentindo-nos agradavelmente distantes de tudo o mais.

     Subitamente, a propósito de nada, Suzanne disse:

     — Paul, tenho a sensação de que estamos sendo vigiados.

     — Claro que estamos. Somos estrangeiros, caras-pálidas...

     — Estou falando sério, Paul. Não olhe agora, mas há um homem parado ao lado de um carro vermelho, do outro lado da rua. Já o vi em pelo menos quatro lugares diferentes esta manhã.

     — Como é ele?

     — É bastante jovem, usa uma calça azul e camisa aberta no pescoço...Vem vindo uma camioneta. Quando passar por ele, eu aviso para você se virar...Agora!

     Virei-me na cadeira e fiquei olhando diretamente para a rua. Assim que a camioneta passou, vi o rapaz encostado a um poste, fumando um cigarro. Poderia passar perfeitamente por um jovem ocioso num domingo, tentando conquistar as garotas que passavam — se não fosse o fato de as garotas passarem pela calçada às suas costas. Chamei o garçom, paguei a conta e nós dois descemos rapidamente a rua, na direção do Paseo de la Reforma. O rapaz jogou o cigarro fora e atravessou a rua rapidamente. Paramos cinqüenta metros adiante e fizemos sinal para um táxi. Ele ainda estava atrás de nós. Ao nos afastarmos, pude vê-lo procurando, frenético, outro táxi. Suzanne estava abalada. Tentei tranqüilizá-la com uma conjetura.

     — Aaron Bogdanovich está na cidade. Vou encontrar-me com ele hoje. Talvez o rapaz seja um dos agentes dele.

     — E se não for?

     — Então contrataram um espião muito desajeitado.

     — O que está acontecendo conosco, Paul? Não reconheço mais ninguém, nem mesmo a mim. Somos como personagens saídos de Kafka, vivendo num mundo de insinuações e alusões, de terrores desconhecidos. Não temos que nos submeter a isso. Nenhum de nós, especialmente George. Por quê, Paul...por quê?

     Era uma pergunta difícil de responder num táxi sacudindo-se todo e seguindo em alta velocidade pelo Paseo. Esperei até voltarmos ao hotel e subirmos para nosso pequeno refúgio, tranqüilo e temporário.

     — Não posso dizer-lhe que tenha a resposta certa, Suzy, nem mesmo que tenha uma resposta. O melhor que posso fazer é tentar raciocinar com você, assim como estou tentando raciocinar comigo e assim como o próprio George está tentando fazer. Pergunte-me se Arlequim et Cie. ou uma plantação de repolhos valem a vida de um homem e eu lhe responderei que não. Pergunte-se se temos o direito de ficar sentados calmamente aqui no Camino Real, enquanto lá fora doze crianças estão amontoadas num porão e o pai não consegue encontrar trabalho para alimentá-las, e eu lhe responderei que absolutamente não. Nós estamos errados. O sistema está completamente errado e desmoronado sob nossos pés. É como esta cidade, que flutua sobre um lago de esgotos. Se as bombas quebrarem, as ruas ficarão inundadas de sujeira até a altura dos joelhos...Por isso tentamos fazer com que o inexeqüível se torne exeqüível. Procuramos manter o terror acuado, enquanto tentamos criar uma espécie de vida melhor para todos. Há os que dizem que isso é impossível, que é melhor explodir logo toda a confusão e recomeçar do nada. Essa é uma ilusão maior que a Utopia, porque, depois da explosão, os saqueadores também voltarão, assim como os exploradores e os tiranos. Esse é o terrível paradoxo: os humildes herdarão a Terra, mas os tiranos e os assassinos é que irão dirigi-la. Num certo sentido, eles são necessários. A ação provoca a reação. E quando a gente luta, alguém ou alguma coisa acaba morrendo. Uma morte acarreta uma vendeta. A maioria das pessoas acha-se confusa demais para ver o que está acontecendo debaixo de seus narizes. Vou contar-lhe algo que nunca disse a ninguém, Suzy. Lutei na Guerra do Pacífico. Estávamos ocupando uma posição na encosta de uma colina na Nova Guiné. Há três dias que os japoneses nos bombardeavam. No dia seguinte eles atacariam. Recebemos ordens para recuar, levando os feridos. Conseguimos tirar a maioria. Mas dois estavam tão feridos que não podiam ser removidos. Estavam a poucas horas da morte. Se os levássemos, sofreriam uma agonia insuportável por nada. Se os deixássemos, seriam chacinados logo na primeira investida. Imploraram para que os matássemos. E eu os matei, Suzy, dois amigos meus! Estava certo ou errado? Nunca o soube com certeza. Nunca ninguém pôde dizer-me, na ocasião nem depois. Chega um momento em que a razão desaparece e somente o coração pode comandar...Desculpe, menina, mas isto é o melhor que posso fazer.

     Ela não disse nada. Aproximou-se de mim, inclinou-se e beijou-me nos lábios, saindo depois do quarto. Olhei para o relógio. Eram duas e meia, tempo para arrumar-me e ir ao encontro de um homem que tinha todas as respostas, porque dormia num túmulo.

    

     A Praça das Três Culturas foi apropriadamente denominada. Fica dentro dos limites da antiga Tlaltelolco, onde se realizou a carnificina final e sangrenta dos astecas. Uma placa de mármore assinala o acontecimento e destaca a ironia de suas conseqüências:

    

     "No dia 13 de agosto de 1521, Tlaltelolco...caiu sob o poder de Hernán Cortês. Não foi um triunfo nem uma derrota, mas o doloroso nascimento de uma raça mista que é o México de hoje".

    

     O México de hoje é celebrado em quarteirão após quarteirão de aço, concreto e vidro, construções iguais, impessoais, sem características definidas. A memória dos astecas está mantida numa grande pirâmide mutilada, de pedras já gastas. Entre elas, mais alta que a pirâmide e mais baixa que as construções de concreto, situa-se a Igreja de Santiago, com suas torres desproporcionadas e suas muralhas com ameias, dando mais a impressão de uma fortaleza.

     A praça estava bastante tranqüila quando cheguei. Os que podiam dar-se ao luxo de comer em restaurantes ainda estavam sentados à mesa. Os que não podiam, estavam cochilando a siesta ou flertando sonolentamente nos gramados do parque Chapultepec, esperando a hora da tourada. Aaron Bogdanovich estava sentado, relaxado e melancólico, nos degraus da igreja mastigando um pedaço de cana-de-açúcar. Tirei a poeira do degrau e sentei-me a seu lado.

     Cumprimentou-me rápido e foi direto aos negócios:

     — Disseram que andou muito ocupado. Conte-me tudo.

     Relatei os acontecimentos, dia a dia, hora a hora. Bogdanovich interrompia-me de vez em quando, pedindo que repetisse uma frase ou interpretasse uma determinada atmosfera. Mas, quase o tempo todo, ele ficou sentado em silêncio e com uma expressão impassível, mastigando a cana-de-açúcar e contemplando a pirâmide asteca. Quando acabei, ele jogou fora o pedaço de cana, cuspiu a polpa na poeira e disse, sem a menor ênfase:

     — Aprovei a reportagem de Leah Klein. Saiu esta manhã nos jornais de Londres, em meia página. As reações foram intensas. Amanhã sairá em Nova York.

     — Está satisfeito?

     — A divulgação da reportagem ajuda-os...e é para isso que estou sendo pago.

     — Como Yanko irá reagir?

     — Ele já começou a reagir. Neste momento, deve estar voltando para Nova York.

     — O FBI avisou-nos que deveríamos esperar por problemas na Cidade do México.

     — E eles estavam certos.

     — O quanto eles sabem?

     — Sobre o quê, Sr. Desmond?

     — Sobre Frank Lemmitz e Valerie Hallstrom, por exemplo.

     — Menos do que eu, mais do que o senhor.

     — Isso realmente responde minha pergunta!

     — Não fique zangado, Sr. Desmond, pois isso prejudica a capacidade de julgamento. O senhor disse que foi seguido esta manhã. Descreva o homem novamente, por gentileza.

     Descrevi.

     Bogdanovich franziu o cenho e sacudiu a cabeça.

     — É novo para mim. Meu homem também não o reconheceu.

     — Eu não vi seu homem.

     — Se o tivesse visto, ele não estaria mais trabalhando para mim. É melhor eu adverti-lo logo de uma vez: os problemas de vocês começarão realmente no momento em que Yanko chegar a Nova York. A partir de amanhã, o senhor e Arlequim passarão a ter guarda-costas, dia e noite. E não aceito objeções de nenhum dos dois. Se as mulheres saírem do hotel, juntas ou sozinhas, serão também acompanhadas.

     — Se acha que assim é melhor...Teve alguma notícia de Tony Tesoriero?

     — Nós o trouxemos aqui para o México. Quero que vá visitá-lo amanhã, juntamente com Arlequim. A essa altura, ele já deverá estar preparado.

     Por tudo o que eu imaginava, ele podia estar brincando comigo. Fitei-o, com uma expressão perplexa. Pela primeira vez, ele lançou-me um sorriso frio e outonal, explicando:

     — O contrato para matar Valerie Hallstrom foi fechado aqui na Cidade do México. Muitos negócios semelhantes são feitos aqui. Através de amigos, comunicamos a Tony Tesoriero que havia outro contrato para ser discutido. Nós lhe mandamos uma passagem e o dinheiro para as despesas, indo depois buscá-lo no aeroporto. Desde então o guardamos numa hacienda no interior.

     — E por que precisa de nossa presença?

     — Faz parte da estratégia. Queria também lembrar-lhe que estão me devendo dinheiro. Gostaria de receber um quarto de milhão amanhã, em dólares.

     — Tinha falado em cem mil.

     — As despesas têm sido muito elevadas.

     — Vamos precisar de vinte e quatro horas para providenciar.

     — Certo. Vamos então marcar para depois de amanhã. Às nove horas da manhã, mandarei um carro apanhá-los no hotel. É uma viagem de oitenta quilômetros até a hacienda. Receberão as instruções quando chegarem lá.

     — Queria falar-lhe sobre Alex Duggan. Mandei que

     Saul Wells começasse a investigá-lo, mas não sei ao certo se é o suficiente.

     — E por que não seria?

     — Digamos que Saul é apenas um investigador convencional.

     — E nós temos métodos diferentes?

     — Algo parecido.

     — Poderia indicar qualquer método que julgue ser útil em tal circunstância?

     — Bem...não.

     — Espero que compreenda, Sr. Desmond, que é preciso muito tempo para treinar gente para a espécie de trabalho que fazemos. E são bem poucas as pessoas que servem. Estava pensando em Frank Lemmitz, não é mesmo? Eu lhe disse que meus homens iriam encontrá-lo em Londres. E realmente o encontraram. A moça que a polícia londrina está procurando trabalhava para nós. Estamos procurando por ela também, mas achamos que está morta. Quando eles voltaram para o hotel, depois de fazerem a ronda dos cassinos, alguém os esperava no quarto. Foi esse alguém que matou Lemmitz e saiu com a moça do hotel, certamente apontando-lhe uma arma.

     — E por que não a mataram também logo de uma vez?

     — Parece que foi melhor assim como fizeram. Além do mais, nossa agente podia ser induzida a falar. Nada é tão simples como parece. Vocês compram petróleo da Líbia para fazer seus aviões levantarem vôo. Os líbios fornecem passaportes e asilo para as pessoas que explodem esses mesmos aviões. Nós treinamos soldados para o xá da Pérsia e fanáticos japoneses disparam contra a multidão no Aeroporto de Lod... Em Israel, temos judeus que espionam a favor dos sírios. Os ingleses recusam-se a nos enviar peças para nossos tanques, enquanto seus próprios soldados são mortos no Ulster por guerrilheiros treinados pelos árabes. Basil Yanko conspira como um don da Máfia e Tio Sam torna-o cada vez mais rico, com contratos de defesa. Não tente ensinar-me meu negócio, Sr. Desmond. Eu próprio ainda o estou aprendendo. Quanto a Saul Wells, deixe-o fazer seu trabalho, à sua própria maneira. Entrarei em contato com ele, no momento oportuno, e lhe direi o que fazer com Alex Duggan, apenas para ter certeza de que ele continua vivo!

     Por uma fração de instante ele suavizou-se e vi ou pensei ver um lampejo de humanidade em seus olhos, enquanto acrescentava sardonicamente:

     — Encare a realidade, Sr. Desmond! A guerra continua, mesmo depois que as armas silenciaram. Vocês ganham vinte por cento sobre seu dinheiro, jamais o investem num orfanato. Pelo contrário, investem-no nos homens que estão fabricando armas para manter os orfanatos sempre cheios. Até terça-feira de manhã, às nove horas. E não se esqueça de providenciar o dinheiro.

     Afastou-se e fiquei observando-o descer a rampa de concreto, passar pela pirâmide asteca e encaminhar-se para o outro lado da praça. Levado por um impulso súbito, entrei na igreja. Estava frio lá dentro, um ambiente turbulento de imagens e ornamentos barrocos, mas igualmente tranqüilo, como se a paixão que criara tudo aquilo se tivesse esgotado e restasse apenas o mistério, ainda sem solução, para sempre insolúvel. Eu não podia rezar. Não havia nada no mundo que eu pudesse glorificar, muito menos a mim. Também não havia nada que eu pudesse pedir. Tinha tudo o que o dinheiro podia comprar, mas não era o suficiente. Se Aaron Bogdanovich estava certo, não restava a menor esperança, apenas a de um adiamento do desastre final. A fé existia, alguns homens morriam por ela, outros também matavam em seu nome. Amor?... O amor ainda existia, estranho, confuso, egoísta, nobre ou perverso. Mas existia e era o último ponto de apoio antes do salto irreversível para o caos. Ajoelhei-me e enterrei o rosto nas mãos, encerrando-me no mundo dos sonhos com o pouco de amor que ainda me restava.

    

     Ao cair da tarde, encontramo-nos na suíte de Arlequim para tomar uns drinques. Durante vinte minutos Juliette ocupou o palco, com o relato de um almoço com os hidalgos da Nova Espanha.

     — ... Eu juro, Suzy, que é melhor a gente se entregar às mãos de Deus do que cair nas mãos das matronas mexicanas! Quantos filhos eu tinha? Não pretendia ter mais nenhum? Meu marido era fiel? Como se reage em Genebra ao problema da amante? E o problema das filhas? Eu devia agradecer a Deus todos os dias por não ter uma filha. Com os meninos é muito diferente. Tendo um pai bom como Pedro, que compreende essas coisas, eles se arrumam sem grandes riscos. No começo, uma mulher mais velha é sempre melhor! Eu ainda não tinha um amante? Com um marido que viaja tanto, devia pelo menos considerar a idéia de um amante. Ay de mim. Essas norte-americanas, com suas idéias de libertação das mulheres! O que elas fazem senão se escravizar ao trabalho? Mas o meu Pedro...Vamos, George, conte-lhes sobre o nosso Pedro!...

     George Arlequim também tinha uma comédia a representar: os conflitos domésticos latentes, as ordens imperiosas, o formalismo dos cumprimentos, a lenta e indireta aproximação do assunto que motivara o almoço.

     — ...O problema é mais complexo do que parece, Paul. Nosso amigo José Luis não está muito nas boas graças das famílias tradicionais, que há dez anos vêm tentando casá-lo com suas filhas. Dizem também que ele joga, o que é novidade para mim e não das melhores, se for verdade. Pedro Galvez é uma personagem saída diretamente de Calderón. Ele é capaz de condenar o papa ao inferno e ajoelhar-se em seu leito de morte para receber a extrema-unção. Despreza Yanko por ser um arrivista e trampista. Desprezará muito mais a mim se eu não puder trapacear melhor. Detesta computadores e de bom grado os dispensaria, se pudesse encontrar quem lhe fizesse uma contabilidade honesta. Quando lhe disse que estava empenhando tudo o que possuía para exercer meus direitos de opção e comprar as ações, ele classificou-me de romântico do século XIX...mas, não obstante, fez um brinde à minha decisão. Quando lhe falei em violência, limitou-se a sacudir os ombros e dizer que se não se matasse a fera, não haveria carne para o jantar. Sua promessa é ótima. Manterá suas ações até o último momento e insistirá para que seus colegas façam o mesmo. Se vencermos, ele nos entregará uma porção de negócios. Se perdermos, mandará rezar uma missa por nossas pobres almas. Estas são minhas notícias, Paul. Quais são as que você tem?

     — A história foi publicada hoje em Londres. Amanhã sairá na América. Basil Yanko está voltando para Nova York. A partir de amanhã, teremos guarda-costas. E na terça-feira teremos que entregar duzentos e cinqüenta mil dólares em dinheiro.

     — Não quero saber de guarda-costas! Arlequim estava sendo categórico.

     — Sou um homem civilizado e não quero saber de viajar cheio de capangas!

     — Mas Bogdanovich insiste na necessidade da medida. Concordo com ele. Suzanne e eu fomos seguidos durante nosso passeio desta manhã. Poderíamos ter sido alvejados. Você tem que concordar. Deve isso a todos nós...e também a seu próprio filho.

     — A polícia está guardando o menino...Quer dizer então que teremos guarda-costas? Amém! O que mais?

     — Não marque nada para terça-feira. Eu e você teremos uma reunião no interior.

     — Para quê?

     — Para nos encontrarmos com o homem que matou Valerie Hallstrom.

     — Com que objetivo, Paul?

     — Não sei. Bogdanovich não quis dizer-me.

     — Mas o que somos nós, pelo amor de Deus? Simples marionetes?

     — Somos estrangeiros, George.

     Juliette interveio, censurando-o com firmeza.

     — Somos estrangeiros numa estranha cidade. Você mesmo disse isso, ao voltarmos para casa. E gostaria de lembrar-lhe, meu caro marido, que tudo o que vi até agora foi bastante sombrio!

     — Esta noite então, meu amor, iremos dançar. Não quer ir também, Paul? E você, Suzanne? Então estamos combinados. Paul, por que você não liga para José Luis e o chama para ir conosco, levando a moça com quem esteja se distraindo neste momento?

     José Luis lamentava muito, mas naquela noite era de todo impossível. Tinha que participar de uma reunião de família e amigos da família, reunião que se realizava periodicamente. Talvez, mais tarde...Nem que fosse apenas por uma hora. Disse-lhe que poderia encontrar-nos na San Angel Inn. Ele afirmou que era uma escolha esplêndida: excelente música, ótima comida. Tornou a pedir desculpas e expressou seus votos de que nos divertíssemos bastante. Fiz uma prece silenciosa a fim de ainda estar de pé para apreciar a noite.

     As mulheres se retiraram e Arlequim pediu que eu ficasse mais um pouco, para uma conversa em particular. Galvez entregara-lhe uma cópia da carta de Yanko aos acionistas minoritários, um documento que deixava implícito muito mais do que dizia:

    

     "... O desenvolvimento de Arlequim et Cie. tem sido limitado pelas e para as aspirações da família que a fundou. E existe apenas uma criança pequena na lista de sucessão. O próprio Sr. Arlequim tem-se mostrado um presidente capaz e até mesmo ousado, mas tem negligenciado o treinamento de um substituto que possa assumir o controle, na eventualidade de sua morte ou incapacidade. Seu colaborador mais chegado é o Sr. Paul Desmond, que reuniu uma considerável fortuna particular através de negócios de especulação, mas que, provavelmente, jamais poderia indicar a si mesmo como uma peça central estável de qualquer conselho diretor...

     Arlequim et Cie. possui uma base segura para desenvolver-se. Em seu presente estado, porém, não tem o ímpeto necessário para crescer, nem o acesso a novos investimentos que poderiam ser proporcionados pela Creative Systems Incorporated...

     Seus sistemas de informações e resgates estão superados. E, como ficou demonstrado numa recente experiência, não são seguros contra manipulações fraudulentas. Numa nova estrutura da empresa, trataríamos imediatamente de atualizar esses sistemas, numa escala de preço de nações favorecidas, operando-os com mais segurança e numa base mais lucrativa...

     A reputação de Arlequim et Cie. foi bastante prejudicada por recentes manipulações fraudulentas por gente da própria companhia, que ainda está sendo investigada. O preço de compra das ações está fixado com um ágio, a fim de reparar tais prejuízos, restaurar a confiança do mercado e permitir à nova administração operar numa atmosfera de confiança, harmonia e desenvolvimento agressivo..."

     Havia mais coisas, tudo na mesma linha. O carrasco público não teria feito um serviço mais limpo. Era um trabalho sem sangue, sem rancor, um assassinato extremamente profissional, sem nem ao menos um toque de misericórdia.

     Dobrei a carta e devolvi-a a Arlequim.

     — Não acha que isso explica tudo? Os rumores, as dúvidas, a queda dos negócios...Tudo o que nos falta agora é um sino amarrado no pescoço.

     — Acha que a reportagem de Leah Klein responderá a todas as perguntas?

     — Só amanhã é que o saberemos, George...Não, espere um pouco! Passe-me o catálogo!

     — Para quê, Paul?

     — Vamos descobrir quais são as agências de notícias que possuem escritório na Cidade do México. Elas devem ter recebido a notícia pelo teletipo...

     — E acha que a entregarão a você?

     — Não custa tentar. E, se estiver difícil, vamos lançar uma pequena isca, a existência de ameaças contra a vida de George Arlequim e também contra as de seus acompanhantes. Temos a autoridade do FBI por trás de nós...

     Lançamos a isca e conseguimos obter a história, entregue por um plantonista ansioso, que anunciou para o mundo que o Sr. George Arlequim, atualmente na Cidade do México, fora alertado pelo FBI, antes de sair de Washington, que corria perigo físico. Ele até mesmo contratara guarda-costas profissionais; recusara-se, porém, a fazer quaisquer comentários sobre a fonte das ameaças ou se elas tinham alguma relação com a notícia divulgada em Londres. Assim que o jornalista partiu, começamos a examinar os métodos cirúrgicos de Leah Klein. Para uma mulher tão áspera e rude, ela até que manejava o bisturi com extrema precisão.

    

     "... A polícia de Londres está investigando o assassinato de um certo Frank Lemmitz, encontrado morto por um tiro de revólver, em sua suíte de hotel, na semana passada...Frank Lemmitz era um criminoso e estava intimamente ligado a criminosos. Foi condenado por assalto à mão armada em Chicago, em 1960, cumprindo uma sentença de dois anos de prisão. Em 1965, em Miami, foi condenado sob a acusação de assalto com arma letal. Essa condenação foi suspensa, depois de um apelo do réu, por erros processuais. Por ocasião de sua morte, Frank Lemmitz estava empregado como motorista e guarda-costas do Sr. Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated, uma organização internacional de computação, que manipula contratos de alta segurança para os Estados Unidos e para outros governos, além de trabalhar também para empresas internacionais.

     Dois dias antes da morte de Frank Lemmitz, outra empregada do Sr. Basil Yanko foi assassinada em Nova York. Chamava-se Valerie Hallstrom, era analista de sistemas muito bem remunerada e durante algum tempo foi amiga íntima do Sr. Yanko. Ela foi morta com um tiro na cabeça, em seu próprio apartamento. As circunstâncias de sua morte estão sendo investigadas pela polícia de Nova York e pelo FBI.

     Um caderninho de anotações, pertencentes à Srta. Hallstrom e contendo os códigos secretos de acesso aos computadores de diversos clientes, foi posteriormente entregue a um desses clientes, que imediatamente o entregou à polícia.

     As empresas relacionadas no caderninho estão profundamente preocupadas com essa quebra de segurança. O governo dos Estados Unidos está ainda mais preocupado, por causa da natureza delicada dos contratos manipulados pela Creative Systems.

     Inevitavelmente será levantada a questão de se os negócios altamente lucrativos de Basil Yanko com governos estrangeiros e seu envolvimento com a política do petróleo no Oriente Médio estão integralmente de acordo com seu papel de guardião dos segredos e projetista dos sistemas essenciais à defesa dos Estados Unidos...

     O Sr. Yanko fez recentemente uma oferta espetacular para assumir o controle de uma tradicional organização bancária européia, Arlequim et Cie. A oferta foi firmemente rejeitada pelo presidente, Sr. George Arlequim; mas com dois assassinatos dentro da sua própria organização, o Sr. Yanko ainda gasta tempo cortejando os acionistas minoritários da referida empresa, em Frankfurt...

     A proposta do Sr. Yanko possui algumas características surpreendentes. A Creative Systems fornece serviço de computador para Arlequim et Cie. Um relatório de segurança, assinado pela Srta. Valerie Hallstrom, revelou que o sistema fora fraudulentamente adulterado, resultando num prejuízo de quinze milhões de dólares para Arlequim et Cie. No dia em que o relatório foi apresentado, o Sr. Yanko fez sua primeira proposta para comprar o banco. Essa tática é interessante para todos os que acompanharam a carreira desse homem brilhante e original. Aparentemente, o fato está também interessando ao FBI. Indagado por esta repórter sobre o que achava de todas essas coincidências, um porta-voz do FBI declarou: 'Se as coisas coincidem, então é possível que estejam relacionadas; estamos investigando todas as possibilidades'. A carreira de Basil Yanko, considerada..."

    

     O resto era uma colcha de retalhos de biografia padrão e dos trechos mais maliciosos do relatório de Mendoza. Arlequim soltou uma risada brusca e rápida.

     — Se não fosse por todas aquelas ordens de compra, eu começaria a vender minhas ações da Creative Systems no momento em que a Bolsa abrisse...

     No primeiro impulso de júbilo, inclinei-me a concordar. Mas depois, pensando melhor, não tive tanta certeza assim.

     — Vamos examinar a realidade, George. Essa história ajuda-nos bastante junto aos acionistas. Mas não se pode saber o que fará por nós no mercado. Lembre-se de que ainda não existe um escândalo. Apenas cheira como tal. Depois de dois anos de Watergate, as pessoas andam muito céticas. Os políticos e os homens de negócios são como os atores: espera-se que sejam competentes, não castos. O único pecado real é a estupidez, e Basil Yanko não é absolutamente estúpido. — Eu sei que não — murmurou George Arlequim, pensativo. — Mas ele é incapaz de compreender os palhaços...

    

     Chega-se à San Angel Inn como se fosse um peregrino a caminho do paraíso, a pé, por ruas estreitas de pedras e praças antigas, cheias de sombras. À entrada, é-se recebido num jardim cheio de flores. Depois, conduzido através de pátios calçados, cheios de caramanchões com trepadeiras em flor, é-se introduzido cerimoniosamente no passado imperial. Nada ali é novo, exceto a comida, as pessoas e a música mariachi. O resto é venerável pela idade, as vigas esculpidas, as grades de ferro, as pratarias, os quadros, as mesas pesadas e as imensas cadeiras de couro, fabricadas para acomodar confortavelmente os traseiros dos fidalgos da Espanha.

     As luzes são abafadas e as câmaras cavernosas absorvem o som, de modo que as pessoas podem comer em paz e contar os segredos que desejarem. Se alguém quiser música, os mariachis tocarão para ele. Se quiser dançar, eles o seguirão até o pátio, onde a mais vigilante das duenas teria dificuldades para controlar um apaixonado impetuoso. Depois da agitação da cidade, aquele era um oásis bem-aventurado de cortesia e repouso.

     Foi ali que, pela primeira vez em muitos meses, vi George Arlequim completamente à vontade. Em pouco tempo ele conhecia todos pelo nome, do garçom ao chefe dos músicos. Logo mantinha longos colóquios com o chef e fazia pilhérias pessoais com o barman. À meia-noite, quando os músicos fizeram uma pausa, ele pegou uma guitarra emprestada e tocou durante dez minutos algumas sevillanas passáveis, ganhando uma salva de palmas da multidão e uma rodada de drinques por conta da casa.

     Juliette estava deliciada. Quando dançamos juntos, ela confessou-me:

     — Eu já tinha esquecido o que era rir assim e dizer tolices despreocupadamente. É quase como se nós estivéssemos divididos em várias partes e não conseguíssemos mais ajustar umas às outras. Estou quase desistindo de seguir para Acapulco...

     Suzanne tinha uma opinião mais cética:

     — Ele está representando, Paul. Tudo o que está fazendo é cuidadosamente planejado. Julie vai embora e ele quer vê-la feliz e contente. É o mesmo erro que sempre cometeu. George assumirá os riscos e ela saboreará os primeiros frutos. E ela não irá agradecer-lhe, porque George está lhe roubando a oportunidade de ser sua mulher. Ó Deus, como é que pessoas inteligentes podem ser tão cegas?

     À uma hora da madrugada José Luis ainda não aparecera e por isso decidimos partir, em meio a um coro de agradecimentos e bênçãos. Voltamos lentamente para a rua principal, onde o carro estava à nossa espera. Era um passeio agradável e sossegado. As pequenas praças achavam-se agora desertas. As persianas estavam fechadas, as luzes eram fracas e esparsas. Os becos estavam imersos em silêncio. Nossos passos ecoavam nas pedras do calçamento e nossas vozes, nas paredes nuas. Suzanne e eu íamos na frente, de braços dados, com Arlequim e Juliette seguindo poucos passos atrás de nós.

     Paramos à entrada da última aléia, debaixo de um lampião, para admirar a perspectiva estranha e secular: os balcões de ferro, com seus padrões intrincados e as plantas penduradas, os lampiões balançando-se em seus suportes enferrujados, as poças de ouro reluzente nas pedras do calçamento, os relevos esculpidos das arcadas, tudo convergindo para o poste com luz de neon que assinalava a entrada da rua principal.

     Num momento a aléia estava deserta, no outro ali estava um homem, um vulto escuro contra a luz, uma arma na altura da cintura. Gritei e atirei-me na direção das mulheres, tentando arrastá-las para o chão comigo. Ouvi o matraquear dos disparos automáticos, o zumbido das balas, a imprecação de um homem, um grito de mulher, passos correndo. E depois o silêncio. Quando Arlequim e eu nos levantamos, a aléia estava vazia. Suzanne estava ajoelhada ao lado de Julie, estendida no chão, gemendo, com sangue por todo o vestido.

    

     Às seis horas da manhã, no Hospital de Jesus Nazareno, o médico deu seu diagnóstico:

     — Ela levou dois tiros, Sr. Arlequim: um na coxa e outro no abdome inferior. Felizmente não houve danos na espinha. Mas tudo o mais foi atingido: o útero, os intestinos e o tecido do peritônio. Fizemos o que era possível no momento. Se não houver complicações, esperamos pôr tudo em ordem mais tarde. Infelizmente, contudo, ela nunca mais poderá ter filhos...Perigo? Sim, Sr. Arlequim, há algum perigo. O choque profundo, o trauma, a hemorragia...Ficaremos observando-a atentamente pelos próximos dias. Se quiser, poderá vê-la por um momento. Ela, porém, não o reconhecerá...

     Arlequim entrou sozinho no quarto, enquanto eu e Suzanne ficamos esperando no corredor, com um guarda, um detetive e um par de repórteres. Ao sair, parecia um homem talhado em pedra, cinzento, sombrio e impiedoso. Quando os jornalistas insistiram em que fizesse uma declaração, ele recitou em tom monótono:

     — Creio que sabem que foi feita uma oferta para assumir o controle de minha organização. Sabem também que um homem foi assassinado em Londres e uma mulher em Nova York e que ambas as mortes estavam relacionadas com a Creative Systems Incorporated. Declaro agora que a tentativa contra nossas vidas está relacionada com todos esses acontecimentos...Podem dizer que declarei ainda que não descansarei enquanto o homem — e peço-lhes que destaquem a frase —, enquanto o homem que a ordenou não for levado perante a justiça. Neste momento, não tenho mais nenhum comentário a fazer.

     O detetive apoderou-se dessas palavras e começou a esmiuçá-las como um cão de caça faz com a presa.

     Arlequim interrompeu-o, com frieza e implacavelmente:

     — Tenente! Já lhe falamos durante quase três horas. Dissemos-lhe para entrar em contato com a polícia suíça e com o FBI. Aqui terá que procurar apenas por um assassino de aluguel. O verdadeiro culpado está fora de seu alcance. Não direi agora quem é, pois nada posso provar. Leve as declarações para o hotel e nós as assinaremos. Fico-lhe agradecido por sua assistência, mas, pelo amor de Deus, agora deixe-nos ir!

     De volta ao hotel, ordenou que fôssemos tomar café e depois o procurássemos para uma conferência, dentro de uma hora. Eu argumentei, Suzanne suplicou: ele tinha que descansar um pouco. Mas George recusou. Não nos deixaria descansar, enquanto certas coisas essenciais não fossem feitas. Se precisássemos de estimulantes para nos manter de pé, chamaria um médico para ministrá-los. Parecia um homem possuído por um demônio do inverno, frio e obstinado, sem qualquer toque de compaixão. Quando voltamos a seu quarto, ele já estava trabalhando. Fiquei horrorizado com o que nos pediu e que já começara a executar.

     — Suzanne, quero que despache imediatamente, com a máxima urgência, o seguinte telegrama, para todas as nossas filiais, em meu código pessoal. Abre aspas: Minha esposa em estado crítico depois tentativa de assassinato na Cidade do México ponto Essa tentativa relacionada recentes atividades Creative Systems Incorporated ponto Ordeno que venda imediatamente todas repito todas as nossas ações e todas as ações de nossas contas discricionárias da Creative Systems e suas subsidiárias ponto Continuará vendendo quaisquer que sejam os prejuízos envolvidos ponto Avisará os clientes não-discricionários de nossas intenções ponto Não cumprimento desta ordem por qualquer razão ou por qualquer conselho resultará em demissão imediata ponto Assinado: George Arlequim, presidente.

     Não pude conter-me e explodi num protesto:

     — Isso é uma loucura, George! Não pode fazer tal coisa!

     — Já fiz, Paul. Transmiti ordens verbais a Londres, Genebra, Paris e Nova York. Informei também a Herbert Bachmann e a Karl Kruger, a fim de proporcionar-lhes a oportunidade de se protegerem. Com relação às suas ações, determinei a Genebra que as vendesse. Eu lhe cobrirei pessoalmente os prejuízos que porventura tiver.

     — Pelo amor de Deus, George! Você vai se arruinar!

     — Talvez...Mas neste momento, Paul, não me importo. Compreenda isto: não me importo com nada! Suzanne, passe outro telegrama para os nossos acionistas minoritários. As duas primeiras frases iguais: Minha esposa etc. etc. Depois continue. Abre aspas: Recomendo insistentemente rejeite oferta de Yanko ou pelo menos adie aceitação até resultado investigações policiais ponto Impossível no momento excluir possibilidade atividade criminosa por parte do comprador ponto Assinado: George Arlequim.

     — Se esse telegrama for divulgado, George, o que é inevitável, Yanko poderá processá-lo por crime de calúnia.

     — Pois quero que ele me processe, Paul! Peço-lhe que telefone para Leah Klein e conte-lhe exatamente o que aconteceu e o que estamos fazendo. Quando tiver acabado, ligue para José Luis. Ele ainda não soube do acontecido, pois caso contrário já nos teria procurado. Diga-lhe para providenciar os dólares de que estamos precisando e vir encontrar-se aqui comigo ao meio-dia. Depois marque um encontro com Aaron Bogdanovich para o mais breve possível.

     Era como contemplar um homem preparando-se para o seppuku, abrindo o tapete vermelho, colocando a espada curta sobre a mesinha, preparando-se com um ritual inflexível para enfiá-la na barriga. Eu seria o kaishaku, o amigo que lhe deceparia a cabeça no momento em que a lâmina lhe perfurasse a carne. Só que eu não o faria. Fiz uma última e desesperada tentativa de trazê-lo de volta à razão:

     — George, suplico que me ouça! Devo-lhe muito, mas você também me deve alguma coisa. E estou cobrando o pagamento agora. Quero que ouça...

     —- Suzanne, por favor, datilografe esses telegramas. E poderia também poupar-nos tempo, dando aquele telefonema para José Luis e outro para Pedro Galvez. Conte-lhe o que aconteceu e pergunte se poderia fazer a fineza de vir ver-me agora.

     Assim que ela saiu do quarto, Arlequim iniciou um monólogo rápido e desordenado:

     — Paul, você não vai dizer nada! Eu já sei de tudo. Podemos discutir até o dia do Juízo Final e eu não mudarei sequer uma palavra, nenhum ato dos que me proponho fazer. Você está pensando que estou desvairado, fora de mim pela dor que estou sentindo. Mas não estou. Se Julie morrer, também estarei morto. Eu a tenho amado de uma maneira que nem mesmo ela jamais compreendeu plenamente. Se ela viver, serei como Lázaro, a voltar do mundo dos mortos para descobrir que seu mundo mudou para sempre, embora nem um graveto ou uma simples pedrinha tenha mudado de lugar. Neste momento, nada posso fazer por Julie. Absolutamente nada! Os médicos vão operá-la, as enfermeiras cuidarão dela. Ela nem mesmo poderá saber agora o quanto eu a amo. Depois, se tivermos sorte, poderei segurar-lhe as mãos e levar-lhe flores...E durante todo esse tempo Basil Yanko estará sentado em Nova York, fazendo equações financeiras da tragédia alheia. Mas não permitirei que seja assim. Não permitirei que ele acredite por um só momento mais que poderá continuar a agir impunemente. A melhor arma dele é o segredo e o medo que o segredo engendra. Não mais! Vou trazê-lo para uma luta em campo aberto. É certo que isso reduz minha vantagem. Mas, por outro lado, dá-me outra vantagem. Posso suportar a luz da atenção pública e ele não pode. No mercado, dirão que sou um tolo, que sou um palhaço. Pois que falem! Eu seria muito mais tolo se não pudesse me livrar das correntes com que querem prender-me: as posses, o prestígio e tudo o mais. Mais uma coisa, Paul, só mais uma, um aviso para você: se Julie morrer, eu matarei Basil Yanko. E não vou querer que você esteja por perto quando isso acontecer...

     Depois disso, não tinha mais nenhum lugar onde me apoiar, nenhum lugar onde cair, mais nada me restava dizer. Suzanne voltou com o telegrama. Fui para meu quarto, a fim de telefonar para Leah Klein e para Aaron Bogdanovich.

     O desastre era um prato habitual para Leah Klein. Ela lamentou, embora fosse delicada o suficiente para não dizê-lo, não termos um cadáver. No entanto, os detalhes da operação também serviriam. A venda das ações daria também uma boa reportagem. Um amigo dela possuía umas poucas ações e ficaria contente com a oportunidade de vender antes que o pânico começasse. Ela faria o que fosse possível para dissuadir compradores e para lançar o temor de Deus nos corações dos corretores. Quando citei a frase de Arlequim sobre "atividade criminosa", ela deu uma risada gutu-ral e comentou:

     — Então ele está furioso a esse ponto? Diga-lhe que tem companhia aqui em Washington. Recebi também a visita de um amigo de vocês, Milo Frohm. Ele queria saber onde obtive minhas informações. Nada lhe disse, é claro. Continue em contato comigo, Sr. Desmond. Estão indo muito bem. E não se esqueça de que uma reportagem exclusiva escrita por mim recebe mais espaço nos jornais do que o proporcionado pelos rapazes das agências telegráficas. Por isso, se a moça morrer, avise-me em primeiro lugar...

     Aaron Bogdanovich já sabia do ocorrido. Manifestou seu pesar, mas sem nenhuma emoção.

     — Um de meus agentes seguiu-os até o restaurante na noite passada. Enquanto vocês comiam, ele percorreu o caminho por duas vezes. Disse que em ambas não encontrou absolutamente ninguém. Quando vocês saíram, tornou a segui-los. Estava logo atrás quando o atentado ocorreu. Não apareceu depois, porque seria apanhado como testemunha. Para ser franco, não esperava que surgissem problemas tão cedo.

     Quando lhe relatei o que Arlequim estava fazendo, mostrou-se apenas ligeiramente interessado. Sua preocupação básica era a segurança de sua própria operação. Recusou-se a mudar o momento do encontro, pois o horário era muito importante. Fiquei furioso e o disse. Ele recordou-me, friamente, que eu mesmo fixara as prioridades do contrato e que Arlequim as endossara. O carro estaria à nossa espera às nove horas da manhã seguinte, a menos que, até lá, Madame Arlequim morresse. Como consolo, deu-me apenas um aforismo conciso:

     — Posso abrir portas, Sr. Desmond. Mas não posso garantir o que encontrarão do outro lado. Tenho a certeza de que o Sr. Arlequim compreenderá isso.

     Essa foi a coisa mais próxima de um pedido de desculpas que jamais o ouvi dizer.

     Ao voltar para o quarto de Arlequim, encontrei-o em reunião com um homem que eu nunca vira antes. Ele era mais alto do que eu, corpulento como uma árvore, os cabelos brancos e as sobrancelhas hirsutas, o rosto da cor de madeira velha, enrugado e marcado pelo passar do tempo. As roupas eram de um estilo antiquado, mas cortadas por um alfaiate exímio. Usava um alfinete de gravata de esmeralda e no dedo tinha um anel de sinete asteca, de jade. De capacete e couraça, poderia perfeitamente passar por um lugar-tenente do próprio Hernán Cortês. Arlequim apresentou-o como Pedro Galvez. Sentamo-nos todos e Galvez prosseguiu em seu discurso interrompido:

     — Como estava dizendo, esqueça a polícia e esqueça esse pistoleiro contratado. Poderão encontrá-lo ou não. É até mais provável que não. Numa cidade deste tamanho, com tantos imigrantes e tantos desempregados, pelo menos metade da população masculina vive fora da lei. Confesso que ontem, quando almoçamos, não me sentia muito confiante com relação a você. Sempre me parecera muito suave, por demais civilizado. Não digo que isso seja errado. Mas aqui, no Novo Mundo, não é o suficiente. Não se pode transformar um celerado num homem honesto pelo simples fato de se lhe dar um colarinho duro e uma gravata. É por isso que agora o aprovo plenamente, quando me diz que vai lutar e como pretende fazê-lo! Eu apoiarei, pelo menos aqui, onde o nome Galvez ainda significa alguma coisa. Diga-me agora do que está precisando. Depois lhe direi o que penso que está precisando.

     — Quero que traga um homem de Los Angeles para a Cidade do México.

     — Quer que ele seja seqüestrado?

     — Quero que ele seja atraído até Tijuana, do outro lado da fronteira, e de lá trazido para a Cidade do México. Se necessário, estou preparado para mandar prendê-lo no momento em que puser o pé em solo mexicano, acusando-o de conspiração para lesar-me. Preferiria, no entanto, falar com ele antes que a polícia o agarrasse.

     — Deixe-me pensar um pouco a respeito. Tudo é possível. O que deseja em seguida?

     — Disse-me que nosso amigo José Luis anda jogando.

     — Bem...Talvez eu tenha tido uma impressão errada. É verdade que ele joga, nos cavalos e nas mesas, algumas vezes apostas bem elevadas, mas não enfrenta a menor dificuldade. O pai deixou-o rico e ele continua rico. Mas a maneira como ele vive não é a mais apropriada para um homem a quem se confiou o dinheiro de outras pessoas. Ele anda em companhias estranhas. Acho que conhece os tipos que são atraídos por nossa cidade: organizadores de empresas, especuladores, intermediários de dinheiro fácil. Ele os trata como príncipes. Costuma introduzi-los onde não deveria. Algumas vezes usa o nome do banco para tanto. Sei que o senhor não é um homem dessa espécie, nem eu tampouco. Não aprovo esse comportamento. Posso apontar-lhe pelo menos três homens que lhe serviriam muito melhor.

     — Preciso dele agora — disse George Arlequim firmemente. — Preciso dele leal e feliz, até poder confrontá-lo com Alex Duggan e obter, sem coação, um depoimento, na presença de testemunhas.

     — Por que não levá-lo para a Califórnia e fazer lá a acareação?

     — Porque lá não temos nenhum recurso legal contra Duggan e nenhuma maneira de forçá-lo a contar a verdade.

     — Parece-me, meu amigo, que tem tantas dúvidas a respeito de José Luis quanto eu.

     — Dúvidas sim, certezas não.

     — Deixe-me ver então se lhe posso descobrir algumas. Até lá, concordo em que o melhor é mantê-lo feliz e confiante. Quanto a esse Alex Duggan...

     Fez uma pausa, o rosto contraído se iluminando num sorriso astucioso e divertido.

     — Certa vez um yanqui roubou-me em vinte mil dólares e voltou para a Flórida para gozá-los. Nós lhe mandamos cem gramas de heroína pelo correio. Quando ele abriu o pacote para a inspeção do pessoal da Alfândega...he aqui! Há muitas outras maneiras de se cozinhar um coelho, além de recheá-lo com pimentas vermelhas!

     Virou-se então para mim, cordial e um tanto condescendente:

     — Não está falando muito, Sr. Desmond. Talvez esteja achando tudo isto um pouco fastidioso...

     — É verdade, Sr. Galvez. Estou um pouco aborrecido.

     — Por quê?

     — Ontem José Luis era um jogador. Hoje ele se cerca de companhias vulgares. É uma mudança, se não uma contradição.

     — É um modo de dizer — observou George Arlequim com aspereza. — E eu o compreendo perfeitamente.

     — Então essa é minha resposta. Desculpe-me, Sr. Galvez.

     — Não há de quê, Sr. Desmond. Cada um de nós é vítima de sua própria história.

     Ele levantou-se, alisando os vincos da roupa, e dirigiu-se a George Arlequim:

     — Vou começar a trabalhar imediatamente. Suplico-lhe, meu caro amigo, que procure descansar um pouco. Telefonei para o cardeal e pedi-lhe que providenciasse uma novena de missas pela recuperação de sua esposa. Sabe o que eles costumam dizer: "Deus cura e o médico recebe o pagamento". Em breve receberá notícias minhas...

     Ele acabara de sair do quarto quando José Luis telefonou do saguão. Arlequim estava quase dormindo em pé e eu também. Suzy entrou, pálida mas controlada. Ela acabara de telefonar para o hospital. Julie ainda estava na sala de recuperação. Tendo em vista a natureza do caso, seu estado era bastante satisfatório. Concordamos em que, assim que tivéssemos acabado de falar com José Luis, todos nós dormiríamos um pouco.

     Ele entrou no quarto como um penitente, lamentando-se e flagelando-se. Se ao menos nos tivesse acompanhado na noite anterior, se ao menos tivesse percebido toda a perversidade que havia naquela história, se ao menos...

     Arlequim não estava com disposição para ouvir lamentações.

     — Já tem o dinheiro, José?

     — Ele será entregue esta tarde, pelo Banco Central.

     — Precisarei tê-lo comigo às nove e meia da manhã. Passaremos para apanhá-lo. Mantive minha promessa: a polícia nada sabe a respeito de Maria Guzmán. Contudo, devo saber todo o resto da história. Encontrou-se pessoalmente com esse homem que disse chamar-se Peter Firmin e que alegou ter vindo verificar os computadores?

     — Não. Naquela semana eu estava de cama, fortemente gripado. Cristóbal Enriques é que estava no comando.

     — E como foi que ele admitiu um homem com nome falso e documentos falsos?

     — Os documentos estavam em ordem. Isso está no diário. Cristóbal ligou para o escritório da Creative Systems. Eles confirmaram o nome e o número do documento. As fotografias combinavam. Temos uma cópia da carta de apresentação em nossos arquivos.

     — Cristóbal não lhe pediu o passaporte?

     — As instruções de segurança não especificam que se deva pedir o passaporte. Dizem que basta apenas a carteira funcional da companhia, com uma fotografia e o número, além da carta de apresentação.

     — Obrigado, José. Gostaria de que me providenciasse duas declarações com testemunhas, uma sua e outra de Cristóbal Enriques, enunciando esses fatos. Poderia também indagar à Creative Systems como um homem que eles identicaram como Peter Firmin passou a chamar-se Alex Duggan ao voltar para a Califórnia?

     Intervim então na conversa.

     — Sugiro, George, que por enquanto fiquemos longe da Creative Systems.

     Ele hesitou por um momento, mas acabou concordando.

     — Paul está certo, José. Providencie-me apenas as duas declarações.

     — Com prazer. Elas estarão prontas pela manhã. Por favor, o que posso agora fazer por você, por sua pobre esposa...?

     — Talvez rezar.

     — Ah, se ao menos eu acreditasse em orações!

     — Diga-me francamente, José: quem você acha que poderia ter feito uma coisa dessas?

     — Não sei, George. Por dinheiro, jóias...Isso mesmo! Quando um homem está faminto o bastante ou ganancioso em demasia, o assassinato é uma coisa muito simples. Por vingança, em conseqüência de uma desonra a si mesmo ou à sua esposa, também se mata. Mas isso...Não, não, não! Parece coisa de gângsteres. Creio que terá de procurar fora do México. O que diz a polícia?

     — Eles estão procurando um homem com uma arma.

     — Uma agulha num palheiro! Não há a menor condição de encontrá-lo!

     — Tem amigos que possam ajudar?

     Por um momento ele pareceu desconcertado, mas logo sorriu, pesaroso, ao compreender a insinuação.

     — Ah, minhas más companhias! Tenho de fato uma inclinação por gente vulgar. Se tivesse vivido na minha família, talvez sentisse a mesma inclinação. Jogo com eles e choco os meus amigos com eles. Algumas vezes, porque eles são espertos e ousados, ganho dinheiro com eles. Mas não são gângsteres, George, meu amigo...Oh, não, isso nunca! Agora quero que seja também franco comigo: quer que eu peça demissão? Posso pedir hoje mesmo ou mais tarde, quando melhor lhe aprouver.

     — É muito generoso de sua parte, José, mas preciso de você. E agora mais do que nunca!

     — Está me fazendo um elogio. Algum dia eu o retribuirei. Como se saiu com Pedro Galvez?

     — Melhor do que eu esperava. Temos um pouco de tempo para respirar.

     — Ele é um homem estranho, um bom amigo, um inimigo implacável. Se precisar de mim, estarei no banco. À noite, estarei em casa.

     Ele deu um sorriso amargurado e acrescentou:

     — E desta vez sozinho. Estou começando a pensar que me curei dos pecadilhos da juventude. Agora procure descansar um pouco, por favor...

     Assim que ele saiu do quarto, Suzanne assumiu o comando. Não haveria mais conversas, não receberíamos mais nenhum visitante até as seis horas. Se houvesse algum telefonema do hospital, ela atenderia. Comprara sedativos na farmácia. Arlequim teria que tomar um e dormir até ser chamado. Exausto, ele concordou, seguindo para a cama. Olhei para o relógio. Passava meia hora do meio-dia. Todos nós estávamos acordados há trinta horas.

     Ao descermos para nosso andar, Suzanne começou a tremer incontrolavelmente. Apressei-me em levá-la para o apartamento, sentei-a numa poltrona e procurei reanimá-la com um drinque. Ela engasgou ao primeiro gole, depois correu para seu quarto e bateu a porta. Fui para meu quarto, vesti o pijama e um roupão, servi-me de uma dose dupla e fui ver Suzanne. Encontrei-a deitada na cama, os cabelos em desalinho, o rosto contorcido e manchado de lágrimas. Sabia como ela estava se sentindo. Toda aquela história era uma confusão cruel e sangrenta, com amostras de mentiras e brutalidade, um rosário de esperanças perdidas. Julie estava além de nossa ajuda. Arlequim recusara-a e retirara-se para a solidão dos fanáticos. Nem com todo o amor que existisse no mundo, alguém poderia alcançá-lo. Nada havia que eu pudesse dizer a Suzy, a não ser as palavras simples e suaves que se usam para com as crianças. Nada havia que eu pudesse fazer, a não ser mostrar-me gentil com ela até que a dor e o pânico se dissipassem. Depois voltei para meu próprio quarto e dormi irrequieto até o anoitecer.

     À noite Arlequim foi visitar Julie sozinho. Telefonou para dizer que ela estava consciente, embora bastante fraca e sentindo fortes dores, apesar das doses maciças de sedativos. Haviam lhe oferecido uma cama para passar a noite no hospital, a fim de poder ficar perto dela. Pediu-me que lhe mandasse um pijama, os artigos de toalete e uma muda de roupa de baixo. Pela manhã eu deveria apanhar o dinheiro no banco e depois ir buscá-lo no hospital, a fim de irmos ao encontro marcado com Bogdanovich. Suzanne deveria ficar de vigília até que voltássemos. Se o estado de Julie piorasse, eu deveria ir ao encontro sozinho.

     Pouco depois, Saul Wells telefonou de Los Angeles. Localizara nosso amigo, Alex Duggan, que vivia um tanto luxuosamente num bloco de apartamentos no Olympic, com uma linda esposa e um filho. Havia um apartamento vago no mesmo edifício, e Saul estava pensando em alugá-lo como base de operações. Iria dedicar-se a manter Alex Duggan com uma saúde perfeita. Tinha também outras notícias para mim. Os jornais vespertinos e os noticiosos da televisão haviam divulgado a tentativa de assassinato ocorrida na Cidade do México. Os jornais matutinos iriam dar uma grande cobertura na manhã seguinte. A tônica era a da história de Leah Klein, falando em "Fusões e homicídios". Falava-se em Washington de uma investigação do Congresso sobre a segurança dos bancos de memória dos computadores. Até aquele momento Basil Yanko recusara-se a fazer qualquer comentário. Em Wall Street, o mercado estava em baixa e os corretores mostravam-se cautelosos. Esperavam para ver o que aconteceria na terça-feira...Até aquele momento, tudo estava indo muito bem. Já se podiam ouvir as trovoadas, mas ainda não começara a chover.

     Depois disso, tínhamos toda a noite para nós mesmos...e um desejo profundo de passá-la em segurança. Sentamo-nos no bar e ficamos bebendo margaritas, ouvindo a conversa dos turistas. Jantamos num canto distante e tranqüilo e conversamos sobre George e Juliette, sobre o futuro incerto que todos tínhamos pela frente.

     Suzy resumiu a situação com uma declaração melancólica:

     — Está tudo mudado, Paul. Nenhum de nós jamais voltará a ser o mesmo.

     — Se Julie ficar curada, minha querida, todos nós vamos melhorar rapidamente.

     — E se ela morrer?

     — Não saberei como controlar George. Você conseguirá fazê-lo?

     — Houve uma ocasião em que sonhei que poderia consegui-lo.

     As palavras saíram lentamente, arrancadas do fundo de um poço de tristeza.

     — Agora, sei que é impossível. Nunca antes tinha visto esse lado sombrio de George. Julie o conhecia. E talvez fosse exatamente isso o que amava nele e queria acima de todo o resto...Engraçado, sempre achei que ela era a mulher errada para George. Agora sei que eu é que seria. Mesmo assim, continuo a amá-lo. É um inferno, não acha? Quando tudo isso tiver acabado, acho que vou fazer uma mudança em minha vida, antes que seja tarde demais. Você me dará uma boa referência, Paul?

     — Se quiser ir comigo, eu lhe darei inclusive um emprego, muito melhor do que o que tem agora.

     — Não está também pensando em deixar tudo, não é?

     — Não há nada para deixar, minha querida. Tenho apenas uma participação e uma boa retirada, da qual não preciso. Estou é cansado do mundo dos negócios e dos miseráveis que o infestam, inclusive eu. Mas não posso largar tudo enquanto George não tenha superado todas as dificuldades e volte outra vez a pastagens mais tranqüilas...

     — Se é que conseguiremos ajudá-lo a transpor as dificuldades...

     — Você confia em mim, Suzy?

     — Sabe que sim. Você nunca me magoou, Paul. Poderia fazê-lo, mas nunca o fez. Por que pergunta?

     — Um dia... e se esse dia chegar, será muito em breve...posso pedir-lhe que me apóie contra George. Estarei agindo assim não por mim, mas pelo próprio bem dele. Você fará o que eu pedir?

     — Terei que saber primeiro qual o motivo.

     — Ele pode tentar matar Basil Yanko.

     Ela não demonstrou o menor sinal de choque ou surpresa. Ficou em silêncio por um momento e depois disse calmamente:

     — É precisamente o que estava dizendo: nenhum de nós jamais voltará a ser o mesmo...Sim, Paul, farei qualquer coisa que me pedir. Agora, por favor, pague-me um conhaque e vamos mudar de assunto.

     O resto da conversa foi apenas bobagem, simples banalidades. Ficamos por lá até tarde, bebemos muito e terminamos a noite estranhamente sóbrios. Quando subimos e eu a abracei para um beijo de boa-noite, ela disse com a maior simplicidade:

     — Por favor, Paul, fique comigo. Não poderia agüentar passar esta noite sozinha.

     O mais triste é que eu queria ficar sozinho e não tive coragem de dizer-lhe. Nosso amor foi afetuoso e ela não viu os fantasmas que assombravam os cantos escuros do quarto. Depois adormeceu em meu ombro. Puxei as cobertas para cima dela e ficamos enlaçados a noite inteira, duas pessoas solitárias, encolhidas como crianças num bosque escuro.

    

     Às nove horas da manhã, pontual como a morte, a limusine parou diante do hotel. Suzanne e eu seguimos para o banco e recebemos uma sacola de lona, dentro da qual havia duzentos e cinqüenta mil dólares em dinheiro. Chegamos ao hospital às nove e meia. George Arlequim estava esperando-nos na porta. As notícias que tinha não eram boas nem más. Julie continuava na mesma. Havia uma infecção pós-operatória, mas os médicos esperavam debelá-la. O cirurgião que a operara não estava insatisfeito. Havia um quarto em que Suzanne poderia descansar e ler. Se Julie acordasse, ela poderia vê-la por um momento. Afastamo-nos do hospital e mergulhamos no tráfego tumultuado e feroz, seguindo para o norte, ao longo da Avenida dos Insurgentes.

     Nosso motorista era um sujeito idoso e taciturno, com o rosto moreno de índio. Contudo, consentiu em dizer-nos que nosso destino era quinze quilômetros além de Tula e que, no caminho, veríamos alguns monumentos antigos dos mais interessantes: as serpentes emplumadas de Tenayuca, a Pirâmide de Santa Cecília e a Procissão dos Jaguares. Tempo houvera em que Arlequim teria insistido em escalar a pirâmide. Agora limitava-se a ficar sentado no canto, mudo e cego, querendo apenas que a viagem fosse a mais rápida possível e que resolvêssemos logo o assunto de que íamos tratar. Procurei interessá-lo na paisagem, mas ele não prestou a menor atenção. Quando lhe relatei minha conversa com Saul Wells, resmungou uma aprovação e caiu novamente no silêncio. Somente quando lhe perguntei sobre Julie é que demonstrou alguma animação.

     — Ela parece pálida e pequena, como uma boneca de cera. Quase não tenho coragem de tocá-la. Eles estão alimentando-a com soro intravenoso, mas ela se queixa de que a boca está sempre seca...Perguntou por você, Paul. Disse-lhe que iria visitá-la assim que ela estivesse mais forte. Julie está preocupada também com o bebê. Cheguei a pensar se não seria melhor trazê-lo para cá de avião, junto com a babá. Mas o médico aconselhou-me o contrário...O pessoal do hospital é muito bom. De meia em meia hora alguém ia vê-la. Fiquei sentado ao lado dela quase a noite inteira. Senti-me inteiramente impotente, mas ela podia segurar minha mão ao acordar...Apareceu também um padre. Era muito jovem e queria dar uma bênção a Julie. Eu lhe disse que ambos nascêramos calvinistas. Ele respondeu que os homens é que mantinham listas e faziam distinções...Deixei-o pôr as mãos em Julie...É algo bastante primitivo, mas a verdade é que, depois, ela pareceu sentir menos dor...Ó Deus! Por que a vida tem que ser tamanha blasfêmia?

     Gostaria de poder explicar-lhe, mas faltavam-me a sabedoria e as palavras. O rosto dele endureceu-se e ele caiu num silêncio meditativo.

     Depois de Tula, seguimos pela encosta de um penhasco escarpado e atravessamos um desfiladeiro alcantilado, que se abria num platô circular, a cratera de um vulcão há muito extinto. No centro do platô havia um lago, cercado por um pântano cheio de juncos, a terra erguendo-se abruptamente para pastos verdes e terraços de cultura de milho e outros cereais. A casa da hacienda ficava na orla mais distante da cratera, um prédio comprido e baixo, de pedras, com gramados e canteiros de flores na frente, com anexos nos dois lados, e logo depois as casas dos camponeses, os estábulos e os cercados para carneiros e bois. Parecia uma rica propriedade particular e feudal, como um ducado antigo que sobrevivera a muitas revoluções e continuava a ignorar os democratas.

     Aaron Bogdanovich estava nos esperando à entrada da casa. Disse-nos algumas palavras de saudação e perguntou por Julie. Depois levou-nos a uma sala ampla, com chão de cerâmica, uma lareira de pedras, tapetes coloridos e pesados móveis coloniais espanhóis. Apontou para algumas peças toltecas muito raras e em seguida chamou um criado para nos trazer café. Explicou vagamente que a hacienda era propriedade de amigos diplomatas. Observei, como já o fizera em Nova York, que se dirigia a Arlequim com deferência e com a preocupação de ser respeitado. Depois que o café foi servido, ficou de pé junto à lareira e explicou-nos a missão daquele dia:

     — Vocês vão conhecer um homem que, sob muitos aspectos, é bem parecido comigo. Isto é, faz do assassinato uma profissão. A diferença entre nós dois não é muito grande. Tenho uma educação melhor. Ele é um bruto inteligente. Eu alego em minha defesa que sou um patriota. Ele não alega coisa nenhuma, reconhece-se tão somente um mercenário. Quando conversarem com ele, acreditarão que é perfeitamente lúcido. No momento, ele está profundamente desorientado, por sedativos fortes, privações sensoriais e métodos de sugestão. Não pode ainda distinguir entre a realidade e a ilusão. O senhor irá confirmar-lhe, Sr. Arlequim, a ilusão. Veio aqui contratar os serviços dele para matar um homem em Nova York. Está disposto a dobrar o preço pedido, mas primeiro quer saber de todas as credenciais dele. Eu orientarei a conversa. O senhor intercalará algumas perguntas, sempre que lhe fizer sinal para isso. O Sr. Desmond permanecerá em silêncio, a menos que o convide a falar. Alguma pergunta, Sr. Arlequim?

     — Vamos encontrar-nos frente a frente com ele?

     — Exatamente.

     — E não é perigoso?

     — Deve aceitar minha palavra de que não há o menor risco.

     — Falou em privação sensorial. Ele sabe o que lhe aconteceu?

     — Apenas fragmentos... Vou explicar. Fomos encontrá-lo no aeroporto, como amigos, e o trouxemos para cá, a fim de aguardar esta reunião. Ele concordou. Foi narcotizado durante o jantar. Quando acordou, estava suspenso em pleno ar num porão, amarrado e com um capuz negro na cabeça. Não havia o menor ruído, nenhuma alteração da temperatura. Sempre que se mexia, girava no vazio. O resultado foi uma rápida desorientação. Foi narcotizado novamente e alimentado por soro intravenoso. Ao acordar, estava novamente suspenso na escuridão, mas dessa vez sujeito a sons cacofônicos e notas de alta freqüência, entremeadas de vocábulos. O resultado foi uma alucinação profunda. Esta manhã acordou em seu próprio quarto, assistido por uma linda enfermeira, que lhe explicou que fora atacado por uma virulenta febre local. Ele acredita que esteve delirando, mas que poderá, com a ajuda de estimulantes, encontrar-se com seus prováveis clientes...Esse, em resumo, mas não em profundidade, é o método refinado da tortura moderna. Pode-se ser treinado para resistir a ele por um período muito limitado. Tony Tesoriero nunca teve tal treinamento. Acreditamos que ele esteja suficientemente preparado para esta reunião. Se tal não acontecer, talvez eu tenha que recorrer a outras medidas. Se sentirem algum escrúpulo, lembrem-se de como ganha a vida — muito boa, por sinal, como irão verificar. Esperem aqui um momento, por gentileza!

     Ele já saíra da sala há uns dez minutos. George Arlequim continuava sentado, plácido e de rosto vazio, olhando para as achas na lareira. Fui até a porta e lá fiquei parado, contemplando a terra verde a se estender até a orla da cratera, bastante escura e recortada contra o céu pálido do meio-dia.

     Atrás de mim, Arlequim disse:

     — Não há necessidade de você ficar, Paul. Isso tudo não me causa a menor impressão.

     Causava em mim, mas era covarde o suficiente para mantê-la para mim mesmo. Eu é que o iniciara naquela jornada para o inferno. O mínimo que podia fazer agora era continuar a acompanhá-lo e tentar trazê-lo de volta ainda humano. Aquele era o verdadeiro terror do momento: estávamos, por consentimento mútuo e depois de uma deliberação racional, apoiando-nos no rompimento e fragmentação de outro ser humano. Não importava o quão degradado e animalesco ele fosse, mesmo assim ainda era um ser humano, nascido de uma mulher, amamentado num seio, erguido um dia diante da tribo como a promessa de sua continuidade.

     Quando Tony Tesoriero entrou, apoiado no braço da enfermeira e acompanhado por Aaron Bogdanovich, não parecia absolutamente animalesco. Devia ter entre trinta e quarenta anos, era magro e pequeno, com a graça aquilina e morena que se encontra entre os albanesi de Puglia e da Sicília. Os olhos estavam inexpressivos e inchados, ele movia-se lentamente e a voz era engrolada, como se a língua fosse grande demais para a boca. O sotaque era do Brooklyn, de Little Italy. Ele afundou-se pesadamente numa poltrona. A enfermeira ficou parada atrás dele. Bogdanovich foi encostar-se no parapeito de pedra da lareira e ficou brincando com uma estatueta tolteca que representava um jaguar. Poderia perfeitamente passar pelo presidente de uma organização de caridade, cuidando das últimas providências para uma feira beneficente no domingo.

     — Tony, estes são os cavalheiros que desejam contratá-lo. Senhores, este é Tony Tesoriero. Ele esteve doente nos últimos dias, devido a mordidas de carrapatos. Encontramos picadas no braço dele, a confirmar que foi mordido por insetos. Contudo, dentro de dois ou três dias ele já estará inteiramente recuperado. Agora, para começarmos, Tony, o dinheiro já está aqui...

     — Quanto?

     — Mostrem-lhe, por favor.

     Arlequim abriu a sacola de lona e derramou alguns maços de notas no chão de cerâmica. Depois, ele disse:

     — E agora, Sr. Tesoriero, quero fazer-lhe algumas perguntas.

     — Chame-me de Tony. É assim que todo mundo me trata. Quais são as perguntas?

     — Quero matar um homem em Nova York. Pode fazê-lo?

     Tony mostrou uma expressão indolente, tolerante e divertida.

     — Você paga e eu executo o serviço. Esse é o contrato.

     — Garante os resultados?

     — Esse é meu trabalho. Até agora cumpri vinte e três contratos, todos sem o menor problema nem reclamações dos clientes.

     — Qual é o preço?

     — Começa em vinte mil dólares e sobe até cinqüenta mil, mais as despesas. Terá também que pagar o seguro.

     — O que significa isso?

     — Se eu for apanhado, terá que pagar os advogados e trezentos dólares por semana à minha garota, enquanto estiver preso... se é que ficarei.

     — E como posso ter certeza de que não irá dizer alguma coisa?

     — Se falar, você manda me matar; por isso eu não falo. Sabe disso, caso contrário não me teria chamado, não é mesmo?

     Ele hesitou nas últimas palavras e uma expressão desconcertada surgiu-lhe nos olhos apáticos.

     — Isso...é isso o que gostaria de saber. Quem foi que me indicou?

     Aaron Bogdanovich sorriu pacientemente.

     — Eu já lhe disse, Tony...O caso Hallstrom, aquela mulher em Nova York...

     — Ah, sim...Uma loura alta. O contrato dela foi firmado na Cidade do México...Como era mesmo o nome do cara?

     — Basil Yanko.

     — Não, não...Era outra pessoa...Mexicano...Como é que pode conhecê-lo e não saber o nome?

     — Nós sabemos, Tony — disse Bogdanovich, a gentileza em pessoa. — Estamos apenas tentando descobrir se você é tão esperto quanto diz.

     Tony fitou-nos atordoado e hostil, como um lutador de boxe sonado.

     — O que está querendo dizer? Aceitei o contrato e recebi trinta mil dólares. Fiz o serviço. Será que isso me torna estúpido ou algo parecido?

     — Pois acaba de provar que foi, Tony. O preço do contrato era de cinqüenta mil. Sei porque Basil Yanko me contou. Tenho a impressão de que você foi roubado em vinte mil...E tenho certeza de que Yanko também não ficará muito satisfeito.

     — Porca madonna! Depois de tantos anos, Tony Tesoriero foi passado para trás! Mas não há de ser nada. Assim que eu sair daqui, terei que fazer um acerto de contas particular.

     — Não, se quiser este trabalho, Tony. Bogdanovich comportava-se como um mestre-escola paciente, diante de um aluno por demais ansioso.

     — Meus amigos precisam de um trabalho limpo, sem risco algum. Receberá por ele sessenta mil.

     — Mas fui enganado em vinte mil! Isso não é direito!

     — É por isso que estamos querendo saber o que saiu errado, Tony. Foram despachados cinqüenta mil de Nova York para um cara na Cidade do México. Nós o conhecemos e sabemos que é um intermediário honesto. Mas talvez ele tenha passado o contrato por intermédio de outra pessoa, que ficou então com uma parte do dinheiro...É exatamente isso o que estamos procurando determinar.

     Era doloroso assistir à sua tentativa de recolher as lembranças e impressões dispersas em sua mente. Começou a raciocinar lentamente, destacando os itens nas pontas dos dedos:

     — Está certo, vamos começar do princípio. Um cara em Miami disse-me que tinha um amigo na Cidade do México que queria acertar um contrato comigo, exatamente como vocês mesmos fizeram. Encontrei-o. Aceitei o serviço. Recebi o pagamento. Não me encontrei com dois caras, apenas com um. Ele é velho, parece um don, de cabelos brancos e um anelão verde no dedo...Ah, sim! Agora estou me lembrando também: tinha um alfinete de gravata com uma esmeralda do tamanho de uma noz. O nome do cara era Pedro Galvez, o mesmo que me deram em Miami. É sobre esse sujeito que estão falando?

     — Esse mesmo.

     Não havia o menor vestígio de emoção na voz de Arlequim.

     — Pedro Galvez...

     — Ele é amigo de vocês?

     — Não é mais, Tony.

     — Como posso então recuperar meu dinheiro?

     — Aceite meu contrato — disse Arlequim — e eu o farei recuperar seu dinheiro.

     — Está falando sério?

     — Claro. Sessenta mil, mais as despesas e o seguro. Acertaremos os detalhes amanhã, quando estiver melhor e mais alerta. Aqui está o dinheiro.

     Abaixou-se e contou alguns maços de notas, empurrando-os com o pé sobre o chão de cerâmica.

     — Quando voltar amanhã, eu lhe trarei os vinte mil. Mas precisarei de um bilhete seu para recebê-los.

     — Que espécie de bilhete?

     — Algo bem simples..."Para Pedro Galvez: Basil Yanko deu-lhe cinqüenta mil dólares para pagar-me pelo contrato de Valerie Hallstrom. Ainda está me devendo vinte mil. Entregue-os ao portador deste bilhete. Se não o fizer, eu mesmo irei recebê-los..." Depois basta assinar. O que lhe parece?

     — Perfeito.

     Aaron Bogdanovich ajudou-o a levantar-se e a ir até uma escrivaninha, ficando a seu lado enquanto ele escrevia o bilhete, bem devagar e com a caligrafia laboriosa de uma criança.

     Quando acabou, Bogdanovich pôs o bilhete dentro de um envelope e entregou-o a Arlequim, indagando em seguida:

     — Está satisfeito com Tony?

     — Inteiramente.

     — Não há mais nada que deseje saber dele?

     — Não.

     — Tony, você deve agora descansar um pouco. Esse trabalho é dos grandes e amanhã você tem que estar completamente recuperado. Além disso, está na hora de sua injeção, não é mesmo?

     — Mas que droga! Estou parecendo uma almofada de alfinetes!

     — Mas esta será a última injeção, Tony — disse a enfermeira jovialmente.

     — Está certo. Eu os verei amanhã.

     Ele abaixou-se e pegou os maços de notas, enfiando-os na frente da camisa e fazendo piadas desconexas sobre como aquilo ia melhorar sua aparência. Depois, rindo e balbuciando, apoiou-se no braço da enfermeira e saiu da sala.

     Arlequim virou-se para Bogdanovich e indagou:

     — O que vai acontecer com ele agora?

     — Exatamente o que ouviu, meu amigo. Ele vai receber sua última injeção: uma bolha de ar na veia. Quando chegar ao coração, ele morrerá.

     Não pude conter uma exclamação de horror. Bogdanovich girou rapidamente em minha direção, desafiando-me.

     — Está chocado, Sr. Desmond? Ouviu-o dizer que já matou vinte e três pessoas. E pensa que poderia ser condenado simplesmente pelo que ouviu dizer nesta sala? Nunca!.. . Além disso, há algo que ainda não sabe. Valerie Hallstrom era minha agente. Treinei-a e plantei-a na organização de Yanko. Tony Tesoriero matou-a. Uma vida por uma vida. Essa é a lei. Sabia disso quando começou.

     Fez uma pausa para respirar e virou-se para George Arlequim.

     — Quem é esse Pedro Galvez?

     — Um amigo. É também um de meus acionistas.

     — E o quanto ele sabe sobre seu negócio?

     — Bastante. Falei-lhe a respeito de Alex Duggan.

     — Má notícia...

     — Minha esposa é também uma das vítimas dele.

     — Podemos eliminá-lo, mas assim perderemos um dos elos em nossa cadeia de provas. Deixe-me pensar um pouco sobre o melhor caminho a seguir.

     — Eu gostaria de mandar-lhe um presente.

     — Que espécie de presente, Sr. Arlequim?

     — O corpo de Tony Tesoriero. Acha que poderia providenciá-lo?

     — Posso, mas não vou fazê-lo.

     Bogdanovich foi categórico, acrescentando logo a seguir:

     — Fale-me mais a respeito de Pedro Galvez...

     — Uma família tradicional, muito rico pelas minas que possui e arrogante, pelo poder que detém...

     — Mas não louco, nem estúpido?

     — Não.

     — Então por que ele faz contratos com matadores profissionais...não para si mesmo e sim para Basil Yanko?

     — Ele precisa de milhões de dólares para investimento em novos empreendimentos. Um dinheiro de risco e a longo prazo, duas coisas muito difíceis de se conseguir hoje em dia. As taxas seriam elevadíssimas. Eu calculo que Yanko lhe tenha oferecido dinheiro do petróleo, assim que nosso caso estivesse encerrado...

     — Mas isso ainda não explica, Sr. Arlequim, por que um velho aristocrata como Pedro Galvez iria negociar diretamente com Tony Tesoriero.

     — Isso é fácil de compreender.

     Arlequim fez uma pausa curta, o cenho enrugado numa expressão de autozombaria.

     — A idéia certamente o atrairia, como aconteceu comigo. Há algo exótico em se possuir um carrasco particular. .. É um privilégio de rei.

     Ele mexeu na pilha de notas com a ponta do sapato e acrescentou:

     — Uma pilha de papel compra a morte de um homem.

     — O que ela não pode comprar-lhe — observou Aaron Bogdanovich — é o adiamento de sua própria morte.

     George Arlequim digeriu o pensamento lentamente. Não havia o menor indício pelo qual se pudesse determinar se o achava amargo ou doce. Depois de algum tempo, ele disse:

     — Se foi Galvez, por que ele teria dado seu verdadeiro nome?

     Bogdanovich sorriu.

     — Está esquecido, Sr. Arlequim, de que esse é um relacionamento profissional. Envolve, acima de tudo, segurança. E o contratado teria que saber se de fato existia o dinheiro para pagar a apólice do seguro.

     — Existe um telefone nesta casa? — indagou subitamente Arlequim. — Gostaria de ligar para o hospital.

     — Ali no canto. A linha não é muito boa e talvez tenha que ter um pouco de paciência.

     Enquanto ele telefonava, Bogdanovich e eu saímos da casa e começamos a passear juntos pelo pátio. Bogdanovich comentou:

     — Galvez é uma surpresa desagradável. Ele constitui também uma ameaça para Alex Duggan, que se torna agora um homem muito importante. Temos que decidir o que fazer com ele.

     — Não creio que Arlequim esteja num estado apropriado para decidir o que quer que seja.

     — Discordo, Sr. Desmond. Se falarmos em termos de princípios morais, é evidente que ele está atuando dentro de um sistema de valores completamente novo. Se estamos falando sobre sua capacidade de planejar e executar uma estratégia, creio que no momento ela está consideravelmente maior, porque agora não está limitada por considerações morais. Evidentemente, isso o perturba. Seu problema, Sr. Desmond, é que é um homem confuso, desnorteado, meio acreditando, meio negando, a procurar eternamente um compromisso. Seu amigo Arlequim não é absolutamente assim. Ele pega a vida ou a morte com as duas mãos. Mas compreendo suas dúvidas. Aceito ter que ser condenado à inutilidade de tudo. Arlequim irá condenar-se a um propósito determinado. E quando o realizar e compreender sua inutilidade...O que acontecerá então? É essa sua dúvida, não é mesmo?

     — Suponho que sim.

     — Não tenho resposta para ela, Sr. Desmond. Tampouco é-me exigido que tenha. Como Tony, eu aceito um contrato, executo-o e depois me preparo para o próximo trabalho...Ah, Sr. Arlequim! Conseguiu dar o telefonema?

     George Arlequim estava parado na porta, o rosto lívido, os olhos vidrados.

     — Consegui. Julie morreu há quinze minutos. Eles disseram que foi uma embolia nas coronárias.

     Aaron Bogdanovich cravou um punho de ferro em meu braço e murmurou:

     — Leve-o de volta à cidade. Eu lhe telefonarei mais tarde. Não posso controlar um marido de luto.

    

     Vou contar-lhes agora que fui eu quem mais chorou. Ao lado da cama, chorei sem o menor constrangimento. Inclinei-me e beijei-lhe os lábios frios, disse-lhe adeus e murmurei um requiescat. Arlequim ficou parado ao meu lado, rígido, distante, sem lágrimas, esperando que eu estivesse pronto para sair. O que se passou entre eles depois, se ele esbravejou ou chorou, eu simplesmente não sei — e, por algum tempo, nem me importei em saber. Foi tudo muito estranho. A morte de Julie era a grande morte. Eu sentia a pequena morte da separação, o patético do nunca-mais, do jamais-apreciado, a esperança para sempre irrealizada. E, contudo — como os mortos são felizes por jamais saberem-no! —, eu me sentia aliviado. Ela não podia mais sofrer. Eu estava libertado de uma servidão que carregava há tempo demais, uma tentação que se tornara mais aguda com o passar dos anos. Estava finalmente livre — se bem que num deserto frio e árido — mas livre.

     Enquanto esperávamos por Arlequim, Suzy e eu sentamo-nos juntos, mantendo a conversa vazia e rememorativa que se segue a cada morte. As lágrimas dela há muito que se haviam esgotado e, como todas as mulheres, em todos os funerais, precisava pensar nos cuidados da casa.

     — Espero que George resolva enterrá-la aqui mesmo. Do contrário, a situação se arrastará por um tempo excessivo. Vamos precisar de um agente funerário, Paul. Você poderia cuidar disso? Pedi alguns sedativos ao médico. George vai precisar deles esta noite. Você passará a noite com ele na suíte, não é, Paul? Eu mesma passaria, de boa vontade, mas não é muito apropriado...Talvez ele esteja disposto a terminar tudo agora, a esquecer toda essa história sórdida e voltar para casa. O verão está para começar. Você poderá levá-lo para fazer um cruzeiro em seu iate...Tenho que emalar também as roupas dela. Seria terrível para George ter que fazê-lo...Oh, Paul, sinto-me tão triste por ele...

     Não podia sentir-me triste por ele porque, naquele momento, estava odiando-o. Senti-me tentado a dizer-lhe que agora tinha outro cadáver para jogar diante da porta de Pedro Galvez. E por que não? Uma morte era bastante parecida com outra qualquer. As flores iriam desabrochar tanto da boca aberta de Tony Tesoriero quanto do ventre estraçalhado de Juliette Gerard. E durante todo o tempo eu odiava a mim mesmo, porque era o bravo guerreiro com a trombeta de bronze que convocava os heróis para a luta e depois soprava um toque de silêncio sobre os corpos dos derrotados, afugentando os abutres para longe de seus cadáveres.

     Suzanne segurou-me a mão direita e apertou-a entre as suas.

     — Paul...por favor! Não se culpe. Nem culpe George. Podemos apenas percorrer o caminho que avistamos diante dos nossos pés. Por favor, chéri...!

     Muito tempo depois é que Arlequim veio ao nosso encontro. Ele estava tranqüilo agora, raso e vazio como um lago na Lua. Agradeceu-nos a ambos, por si mesmo e por Juliette. Já tomara as primeiras decisões necessárias:

     — Vamos enterrá-la aqui mesmo. Paul, você poderia por gentileza providenciar os melhores arranjos possíveis? Ela deve ter uma missa. Devemos informar ao embaixador suíço, a José Luis, a Pedro Galvez e sua família e aos funcionários do banco. Suzy, por favor, telegrafe a todos os nossos escritórios e determine que fechem por um dia. Peça aos gerentes locais que mandem inserir um aviso fúnebre nos jornais. Já telefonei para os pais dela. Depois...

     — Vamos falar sobre isso mais tarde, George.

     — Como preferir, Paul.

     — Vou chamar um táxi — disse Suzanne.

     — Voltarei para o hotel a pé.

     — Nós iremos com você.

     — Não, Paul, obrigado. Prefiro ficar sozinho por algum tempo.

     — George, você quer realmente que Galvez seja convidado para o enterro?

     — Quero. Ele é amigo nosso. Pediu ao cardeal que mandasse rezar missas pela recuperação de Julie.

     Se lhe for possível fazer a escolha — o que está ficando cada vez mais difícil no ano dos assassinos —, suplico que não opte por morrer violentamente numa cidade latina. Os documentos exigidos para consigná-lo fora desta existência são horrendos e terá que esperar no limbo até que todos eles estejam preenchidos. Fui obrigado a abdicar da tarefa de providenciar o funeral de Julie, deixando-a ao encargo de José Luis Miramón de Velasco, que a aceitou como um dever sagrado e como a menor das penas por seus pecados. Precisaria somente da assinatura de Arlequim. Quanto ao resto, providenciaria para madame uma cerimônia digna e um lugar tranqüilo para repousar, perto do jazigo de sua própria família...

     E então o mundo voltou a invadir-nos uma vez mais. Havia uma pilha de telegramas e uma lista de telefonemas com um metro de comprimento. Nossos gerentes locais estavam em pânico. O mercado estava em estado de choque. A imprensa queria comentários e esclarecimentos. Todo mundo queria saber se George Arlequim era um gênio ou se era um louco rematado e sem mãe. Enquanto Suzanne cuidava dos telegramas, batalhei com telefonistas e diferenças de horário, para responder aos telefonemas mais importantes. Em Nova York, era o fim da tarde. Em Londres, era a hora do jantar. Na Europa continental, era a hora do café e do conhaque, das notícias do dia na televisão em cores, enquanto o custo de vida continuava a subir e as possibilidades de uma sobrevivência decente continuavam a diminuir. Acabara de desligar o telefone pela décima vez quando Suzanne entrou, com um telegrama na mão.

     — Acho que deve tomar conhecimento deste telegrama. É de Milo Frohm.

     Liguei para Aaron Bogdanovich e li o telegrama para ele. Seu comentário foi seco como folhas mortas:

     — Se precisar dele, chame-o. O problema é saber o quanto deverá contar-lhe.

     — Não tem mais nada a dizer?

     — Vou voltar amanhã para Nova York.

     — Há ainda negócios inacabados por aqui.

     — Poderão ser concluídos em Nova York. Telefone-me assim que chegar lá.

     O que deixava o problema de Milo Frohm ainda em aberto. Meu primeiro pensamento foi adiá-lo até que o próprio Arlequim estivesse preparado para resolvê-lo pessoalmente. O segundo foi telefonar para Washington e verificar quais as bases em que Milo Frohm estava disposto a atuar. Se fossem flexíveis, poderíamos perfeitamente cooperar. Se ele quisesse apenas bancar o policial cordial da vizinhança, não haveria a menor condição. Eu não tinha o menor ressentimento contra os policiais, especialmente contra os que se mostrassem amigáveis. O único problema era que eles cuidavam de bem poucas coisas: a lei e a ordem e um sono tranqüilo à noite, deixando de lado muitas causas em disputa e toda uma fossa de injustiça cheirando mal aos raios do sol.

     Milo Frohm ficou na maior satisfação ao receber meu telefonema. Agradeci-lhe o telegrama e ressaltei que era muito difícil falarmos de negócios numa linha aberta. Ele achava que, pelo que andara lendo nos jornais, eu exagerava a dificuldade. Não poderíamos ter sido mais abertos se tivéssemos anunciado na televisão. Rumores de fontes de confiança diziam que estávamos prestes a ser processados. Eu lhe afirmei que já esperávamos isso, até mesmo queríamos que acontecesse. Contei-lhe então sobre a morte de Julie'.

     Por um longo momento ficou em silêncio, depois disse:

     — Como o Sr. Arlequim está aceitando o fato?

     — Biblicamente.

     — O Velho ou o Novo Testamento?

     — O Velho...

     — E quais são seus sentimentos, Sr. Desmond?

     — Eu gostaria de continuar a agir de acordo com as regras. Mas receio que, se o fizermos, os corvos poderão devorar-nos.

     — Suponhamos que as regras fossem ligeiramente contornadas...

     — Tem que ser mais do que um simples suponhamos...

     — Então asseguro que vamos contorná-las.

     — Estamos sendo gravados?

     — Desde o início...

     — Então aqui vai a história. Valerie Hallstrom foi morta por um matador profissional chamado Tony Tesoriero, que agora também está morto. Ele foi pago por um homem chamado Pedro Galvez, uma figura muito importante aqui no México, ligado à nossa organização e a Basil Yanko. Como prova, temos uma declaração assinada por Tony Tesoriero. Não serve para um tribunal, mas acho que poderá servir-lhe. Estamos imaginando, sem provas, que Galvez foi também o responsável pelo assassinato de Madame Arlequim. As fraudes em nosso banco na Cidade do México foram cometidas por uma mulher, Maria Guzmán, paga por um certo Alexander Duggan, que trabalha para a Creative Systems em Los Angeles, Califórnia. Sobre isto temos depoimentos com testemunhas e fotografias que o identificam, também assinadas por testemunhas. Galvez foi informado de que conhecíamos a existência de Duggan. Saul Wells está neste momento vigiando Duggan. Seu endereço é o seguinte...

     Quando acabei, Milo Frohm indagou:

     — Contou toda essa história às autoridades mexicanas?

     — Não.

     — Por que não?

     — Oferecemos imunidade a Maria Guzmán. Duggan está fora da jurisdição mexicana e o resto é confidencia de um homem morto.

     — Obrigado pelas informações, Sr. Desmond. Quando pretende voltar aos Estados Unidos?

     — Isso vai depender de Arlequim. Provavelmente logo depois do enterro...

     — Gostaria de ser informado do vôo assim que fizerem a reserva. São pessoas por demais perigosas para se estar junto num avião e terei que tomar providências para proteger os outros passageiros.

     Pensei que ele estivesse brincando e dei-lhe uma resposta irreverente. Mas estava profundamente sério.

     — Política e dinheiro fazem uma mistura explosiva, Sr. Desmond. Acrescente-lhes petróleo e terá uma fogueira de grandes proporções. Por favor, atenda meu pedido.

     Pelo menos ele estava sendo franco. Podia contornar as regras, mas não podia alterar os fatos fundamentais da vida naquele ano da graça duvidosa, em que nenhuma fortaleza era à prova de dinheiro, em que um pouco de explosivo plástico podia estourar um avião nos céus, em que uns poucos homens desesperados podiam manter uma nação como refém. O que nos levava em rápidas passadas de volta à era do obscurantismo, da justiça sumária e da lei de talião, do privilégio real do carrasco particular...

     Como se lesse meus pensamentos, Suzanne aproximou-se nesse momento e passou os braços ao redor do meu pescoço, encostando o rosto no meu.

     — Já chega, Paul...Você também precisa de um pouco de tempo para dar vazão à sua dor.

     — É engraçado, mas não sei como fazê-lo. Existe dentro de mim apenas um espaço em branco, como se alguém tivesse tirado um quadro da parede...George já voltou?

     — Já. Acabou de chegar. Liguei para o quarto dele. Está descansando e não quer ninguém junto de si por enquanto. Mandei transferirem para cá todas as ligações para ele.

     — Ele em breve vai estourar, Suzy.

     — Não, Paul.

     Ela sacudiu a cabeça, enfaticamente.

     — Lembrei-me de uma coisa que meu pai costumava dizer-me: Der grõsste Hass ist still...O maior ódio é o silencioso. George é agora um homem que odeia. Ele está perdido para nós, foi-se para sempre.

     — Relaxe, amor. As pessoas ficam cansadas de odiar.

     — O ódio dura mais tempo que o amor, Paul.

     — Um uísque a ajudaria agora?

     — É bem possível. Oh, chéri! Não me deixe. Estou muito assustada.

     Enquanto servia o uísque, o pensamento ocorreu-me como um malho a cair com toda a força sobre minha cabeça.

     Outrora, num ontem já distante, sentíramos medo do mago poderoso, Basil Yanko. Agora sentíamos mais medo ainda de George Arlequim, que sucumbira ao seu encantamento e estava num quarto escuro com um estilhaço de gelo enterrado no coração. E porque eu não podia enfrentar a verdade, procurei refúgio nas banalidades. Estávamos no meio de um desses diálogos tolos e consoladores sobre amor e misericórdia e de como, se se compreender tudo, se pode perdoar quase tudo, quando o telefone tocou e a recepção anunciou que o Senor Pedro Galvez desejava ver o Sr. George Arlequim. Suzanne — que Deus abençoe suas sóbrias maneiras suíças! — pediu-lhe que esperasse um momento, enquanto eu me comunicava com Arlequim pelo telefone do quarto. Esperava a raiva ou um desespero vago. Em vez disso, porém, foi-me dada ordem de receber o nosso hóspede com toda a cortesia, oferecer-lhe um drinque e suplicar-lhe a fineza de esperar alguns momentos, enquanto Arlequim se preparava para recebê-lo. Transmiti o recado. Suzanne desceu para o saguão. Arrumei a escrivaninha e providenciei copos limpos, imaginando o que diabo se podia dizer a um assassino, quando o corpo de sua vítima ainda nem estava frio. Eu não precisaria ter-me preocupado.

     George Arlequim já estava pronto e esperando quando Suzanne introduziu Pedro Galvez. A recepção que ofereceu ao mexicano foi aparatosa e emocional.

     — Meu caro Pedro! Foi muita bondade sua ter vindo! Não era necessário, mas estou profundamente comovido!

     — George, meu amigo, o que posso dizer? O que posso fazer?

     — Nada, Pedro! Sua presença já é o suficiente! Aceita um drinque? Café? Não é estranho como voltamos aos velhos costumes? Servimos comida e bebida aos pranteadores. Por favor, por favor, sente-se...Suzanne! Café para o Senor Galvez!

     Pedro Galvez ajeitou-se numa poltrona, um rochedo de conforto num oceano de dor.

     — Meu caro George! Estava plenamente convencido de que isso jamais poderia acontecer!

     — Era o que todos nós pensávamos, Pedro.

     — E os arranjos? Talvez eu possa...

     — Já está tudo providenciado. De qualquer forma, obrigado. Ela será enterrada aqui mesmo, nesta sua linda cidade. Ela sempre a amou.

     — George, isso é assassinato. Temos que fazer alguma coisa!

     — O quê, Pedro? Não posso sair pelas ruas, gritando por sangue e vingança. Prefiro antes deixá-la dormir em paz.

     — Entendo, mas isso não é o bastante.

     — Deixe-me enterrá-la primeiro.

     — Claro, claro. Mas deve haver uma cerimônia, George, a coisa apropriada. Tem aqui amigos e clientes. Eles vão querer apresentar-lhe seus votos de pesar. Posso trazê-los?

     — Se quiserem vir...

     — Continuará por aqui depois do enterro?

     — Acho que não muito. Solicitam minha presença em outros lugares. Há pessoas que dependem de mim. Ainda estou sendo atacado e tenho que prosseguir na luta. Agora, até a luta é alguma coisa.

     — Tem alguma idéia, George, uma suspeita que seja, de quem possa ter feito essa coisa terrível? Se tem, diga-me. Prometo, por minha alma imortal, que o encontrarei.

     — Aprecio sua boa vontade, Pedro, mas já sei quem é o responsável.

     — E já contou à polícia?

     — Não.

     — Mas deve contar! É essencial que eles saibam.

     — Eu queria dizer-lhe primeiro, Pedro.

     — Por que logo a mim?

     — Você tem amigos entre as altas autoridades. Não deixaria que uma coisa destas ficasse enterrada nos arquivos.

     — Nunca!

     — Pedro, você tem que saber como me estou sentindo. Você ama sua esposa, seu filho, suas filhas...

     — Amo muito todos eles.

     — Um dia eu terei que contar a meu filho que sua mãe morreu, alvejada por um assassino na Cidade do México. Ele é agora um bebê, mas um dia terá que saber. E então perguntará o que fiz com o homem que matou sua mãe. E o que lhe direi, Pedro?

     — Por enquanto ainda não tem nada para dizer.

     — Por enquanto.

     Arlequim meteu a mão no bolso do paletó e tirou o envelope que continha o bilhete de Tony Tesoriero, entregando-o a Pedro Galvez.

     — Leia isto, meu amigo, e depois diga-me o que devo fazer a respeito.

     — Está colado, George.

     — Foi um equívoco. Abra, por favor.

     Pedro Galvez enfiou o dedo sob a aba do envelope e rasgou-a. Desdobrou o bilhete e leu-o. Não houve o menor indício de emoção no rosto enrugado. Dobrou cuidadosamente o bilhete, colocou-o novamente dentro do envelope e devolveu-o a George Arlequim. Levantou-se, ajeitou o colete e abotoou o paletó. Depois, sem o menor tremor, apresentou suas despedidas:

     — Senor Desmond, senorita, com licença...George, compreendo sua dor. Eu mesmo já a experimentei. Por isso, perdôo-lhe esta brincadeira de mau gosto.

     — Espere um momento antes de partir!

     George Arlequim estava parado diante da porta, uma das mãos na maçaneta e a outra erguida para detê-lo.

     — A brincadeira ainda não terminou. Aonde quer que vá, a partir de agora, haverá um homem a vigiá-lo. Aonde quer que sua esposa vá, seu filho ou suas filhas, haverá também alguém a vigiá-los. Um dia, um deles será morto. Mais algum tempo e chegará a vez de outro. Mas nunca você, Pedro Galvez, nunca você...Você é intocável. Sabe perfeitamente que posso fazê-lo, porque você mesmo o fez e porque, hoje, assisti à morte de Tony Tesoriero. E sabe que o farei, porque você mesmo me ensinou que não há outro jeito. A menos que se mate a fera, não haverá carne para o jantar...E da próxima vez em que telefonar para Basil Yanko, conte-lhe tudo o que acabei de dizer. Adias, amigo!

     Pedro Galvez estava rígido, vigoroso e firme como um velho carvalho resistindo ao vento da tempestade.

     — Posso oferecer-lhe um negócio melhor, George.

     — Sei que pode. Sente-se e escreva. Suzanne, ligue para a portaria e peça que providenciem um tabelião.

    

     É do conhecimento público que Pedro Galvez morreu em sua cama, entre a meia-noite e a madrugada do dia seguinte. É fato sabido também, sendo confirmado por seu médico, que ele há muito tempo sofria de sintomas cardíacos agudos, agravados pelas tensões de uma vida ativa e produtiva. Foi sepultado, com uma pompa muito maior, no mesmo cemitério e no mesmo dia que Juliette Arlequim.

     A nossa foi uma pequena e triste cerimônia, conduzida numa língua estrangeira por um jovem e nervoso pastor da Igreja Luterana, o evangelho mais próximo do nosso que pudemos encontrar na cidade da Virgem de Guadalupe. Havia poucas pessoas presentes ao enterro. E todas elas, com exceção de nós mesmos, ali estavam por obrigação, intranqüilas com o serviço fúnebre, sentindo-se ligeiramente culpadas por participarem da encomenda de uma mulher a um Deus protestante. O elogio fúnebre foi misericordiosamente breve, uma migalha insossa para aqueles que a amavam, um pálido panegírico para aqueles que nunca a tinham conhecido.

     Arlequim ficou em pé a um dos lados do túmulo, com José Luis, Suzanne e eu no outro. Arlequim estava extremamente pálido, mas sereno, os olhos ocultos por trás de óculos escuros. Suzanne chorava baixinho. Quando o caixão foi baixado, fechei os olhos, tentando conter as lágrimas. Ouvi os baques da terra caindo sobre a tampa do caixão, os passos dos presentes se afastando, o rangido das pás enquanto os coveiros enchiam a sepultura.

     Depois, de mãos dadas com Suzanne, virei-me. Arlequim já se fora. Estava parado junto aos carros, apertando as mãos dos que haviam comparecido, expressando seus agradecimentos ao pastor luterano. Do cemitério, seguimos direto para o aeroporto, onde um jato fretado estava esperando para levar-nos a Los Angeles. Milo Frohm fizera questão de que fossem tomadas todas as medidas de segurança. Arlequim aceitara, sem levantar a menor objeção. Não éramos mais pessoas comuns, o sinal da morte estava impresso nas palmas de nossas mãos.

     Arlequim ficou trabalhando sozinho durante toda a viagem, incessantemente, cobrindo página após página de anotações à mão. Ele estava agora totalmente distante de nós, misterioso e lacônico. Não mais discutia suas decisões, limitava-se a dar ordens. Recebia as informações e recusava-se a comentá-las ou sequer indicar como tencionava usá-las. No dia anterior ao enterro, eu o acusara de falta de cortesia para comigo, como colega, e para com Suzanne, como uma funcionária dedicada. Respondera, com frieza, que lamentava a descortesia, mas não podia mais continuar a envolver-nos em atos pelos quais somente ele devia ser responsável. Eu já estava sujeito a ser acusado de conspirar para obstruir a ação da justiça e de ser um acessório no assassinato de Tony Tesoriero. Ele não queria expor-me ainda mais. Para o futuro — se é que eu me importava agora em prever algum futuro — deveria limitar-me às transações comerciais normais da companhia.

     Argumentei que eu já era o intermediário com Aaron Bogdanovich, Saul Wells e Milo Frohm. Ele determinou então que, dali por diante, trataria pessoalmente com Bogdanovich. Saul Wells fora contratado abertamente e Milo Frohm era um agente do governo: eu continuaria a tratar com ambos, sob sua orientação...Muito bem! Se era assim que ele queria...Era. Glória ao Senhor! Amém! Comecei a sonhar, ansiosamente, com as águas azuis e as velas brancas a se enfunarem enquanto velejávamos por mar aberto na direção do inferno.

     Suzanne achou-o mais fácil de tratar do que eu. Ela nada tinha para argumentar. Refugiou-se em formalismos europeus e renunciou até mesmo ao privilégio há muito adquirido de tratá-lo por seu nome cristão de batismo. Arlequim não fez o menor comentário sobre a mudança, embora eu notasse que se tornou um pouco menos autoritário e mais delicado com relação a Suzanne. Forçosamente lançados para a companhia um do outro, eu e Suzanne ficamos cada vez mais íntimos e unidos, mais receosos do desespero frio que implacavelmente consumia nosso ex-amigo.

     Já estava escuro quando aterrissamos em Los Angeles. Fomos recebidos na própria pista por dois funcionários da Imigração e da Alfândega, que rapidamente registraram nossa entrada no país com o mínimo de formalidades e depois entregaram-nos nas mãos de Milo Frohm. Ele conduziu-nos em seu próprio carro até o Bel-Air Hotel e instalou-nos em bangalôs contíguos, que afirmou estarem seguros, livres de quaisquer mecanismos eletrônicos.

     Estava grato por termos decidido cooperar. Seria tão franco conosco quanto o permitiam as circunstâncias peculiares do caso. Se não tivéssemos nenhuma objeção, ele viria jantar conosco. Sugeriu também que seria uma boa política atrasar por algum tempo nossa reunião com Saul Wells. Talvez, enquanto tomássemos um banho e mudássemos de roupa, ele pudesse examinar os documentos que trouxéramos do México. Franziu o cenho primeiro e depois sorriu quando George Arlequim lhe entregou diversas cópias fotos-táticas e disse que preferia guardar os originais em seu poder. Ele achou também que era melhor excluir Suzanne de nossas discussões. Mais tarde, enquanto tomávamos café e comíamos alguns sanduíches, ele fez-nos uma pequena preleção:

     — Em nosso primeiro encontro, falamos sobre um conflito de interesses: os nossos como uma agência doméstica e os dos senhores como uma corporação estrangeira. Creio que todos chegamos à conclusão de que nossos interesses convergem, mesmo que não sejam e jamais venham a ser idênticos. É uma avaliação justa da situação?

     Concordamos em que era. Arlequim acrescentou que estava menos convencido do que eu. Milo Frohm anotou a observação e continuou:

     — Nosso Departamento de Estado está em atrito com os europeus porque eles estão fazendo acordos de petróleo em separado com os árabes. Os israelenses estão irritados com os europeus porque os franceses e os noruegueses liquidaram com sua rede de espionagem e com o sistema de aviso prévio contra os terroristas. Estão irritados também conosco, por acharem que cedemos demais nas negociações de cessar-fogo. E é dentro desse panorama que devem encarar a situação de vocês com relação a Basil Yanko. Politicamente, ele tem-nos sido útil. Proporcionou-nos alguns pontos de apoio na Europa. Foi bem sucedido em atrair o dinheiro e a boa vontade dos árabes para nosso país, ao invés da Europa. Isso é alta política e comércio implacável. Significa também que uma certa quantidade de sujeira tem que ser varrida para debaixo do tapete. Sabemos disso. Lamentavelmente, aceitamos tudo se der certo e gritamos que é um crime se não funcionar. Em termos políticos, ficaríamos felizes se Yanko conseguisse assumir o controle de Arlequim et Cie. Na realidade, estamos terrivelmente chocados porque ele jogou duro demais e porque vocês estão agindo com muita habilidade e a cada dia que passa há uma nova peça de roupa suja no varal. Em suma, Sr. Arlequim, criou-nos um escândalo de primeira grandeza, no exato momento em que precisávamos disso como que de um buraco de bala na cabeça...

     — Está por acaso tentando dizer, Sr. Frohm, que querem enterrar o assunto?

     — É o que gostaríamos de fazer, porém não é possível. Basil Yanko tem agora duas alternativas: lutar contra o senhor até o fim ou cortar a própria garganta. Pelas cotações de hoje, as ações dele já sofreram uma queda de vinte e oito por cento. E cairão ainda mais. Ele vai processá-lo por perdas e danos acima de vinte milhões de dólares, exigindo ainda pagamentos punitivos. O senhor apresentará esses documentos que trouxe do México nos tribunais e a seus acionistas, além de outros fatos que tenha descoberto e dos quais não me falou...E então a administração terá outro mar de lama pela frente, antes mesmo que esteja esquecido o escândalo Watergate. E isso é algo que todos nós queremos evitar.

     — E pode fazê-lo, Sr. Frohm.

     — Como? — indagou Milo, ansiosamente.

     — Devolva-me minha esposa.

     — Desejaria poder fazê-lo, Sr. Arlequim. Juro por Deus que desejaria...

     — Como alternativa, Sr. Frohm, já que não pode fazer o impossível, prenda Basil Yanko por conspiração para homicídio e deixe-o trancado atrás das grades.

     — Com base na confissão de Pedro Galvez? Não há a menor possibilidade.

     — É um documento autêntico.

     — O homem que o assinou está morto. Era seu amigo, um acionista de sua companhia. Pode-se alegar que ele conspirou com o senhor para oferecer-lhe essa confissão como um último gesto de amizade. Pode-se alegar também que fez essa confissão sob ameaça. Aliás, Sr. Arlequim, é exatamente isso o que penso que aconteceu, embora não tenha os meios nem o desejo de prová-lo. Mas possui também um bilhete hológrafo de Tony Tesoriero, o qual também está morto. Estamos felizes por nos vermos livres dele, por isso não estamos perguntando quem o matou. Contudo, sabemos já há algum tempo que Valerie Hallstrom era uma agente israelense trabalhando para uma rede cuja existência toleramos, tendo em vista nossos próprios propósitos...O que me lembra de uma coisa, Sr. Desmond. Mandou seu criado passar umas férias em San Francisco. Determinamos que um de nossos homens fosse conversar com ele. Takeshi declarou que o patrão gosta muito de flores, que lhe são normalmente enviadas por uma loja da Third Avenue...

     Ele suspirou e abriu os braços, num desespero momentâneo, logo acrescentando:

     — Como dizem meus colegas ingleses, é uma confusão majestática. Mas, de alguma forma e com o máximo de brevidade, teremos que resolver tudo.

     — Há uma maneira segura de fazê-lo, Sr. Frohm. E pode perfeitamente usá-la. Não há a menor dúvida quanto aos documentos que vinculam Alex Duggan às fraudes ocorridas no México. Precisa apenas de mais um: a confissão dele de que agiu por sugestão ou determinação de Basil Yanko.

     — Infelizmente também teremos um problema quanto a isso. Alex Duggan saiu de casa na manhã de terça-feira para visitar um cliente em San Diego. Não chegou lá e desde então ninguém sabe de seu paradeiro. A companhia onde trabalha e sua esposa já o incluíram na relação de pessoas desaparecidas.

     — Você me disse que Saul Wells estava vigiando-o, Paul!

     — E estava.

     — Então como diabo isso pôde acontecer?

     — Foi muito simples — explicou Milo Frohm, a voz cansada. — Houve uma batida de vários carros na estrada e Saul Wells meteu-se nela. É o azar do jogo. Pobre Saul! Seu orgulho está mais amassado que seus pára-lamas.

     Eu teria ficado feliz se pudesse largar tudo naquele momento, encerrar o caso para sempre e voltar para casa. Arlequim, porém, era obstinado como uma mula numa trilha de montanha.

     — Mandou-nos um telegrama, Sr. Frohm, com uma frase que posso citar de memória: "Creio que precisa de mim". Por sua insistência e pela do Sr. Desmond, consenti em encontrar-me com o senhor. Se julgasse seus conselhos apropriados, iria segui-los. Mas o que me está aconselhando? A esquecer o assassinato de minha esposa? Não o farei em hipótese alguma. A deixar que Basil Yanko me compre, integralmente, vendendo tudo em seguida para os xeques do petróleo? Não! A cessar de hostilizá-lo pela imprensa, com medo de que ele ganhe os processos de perdas e danos movidos contra mim? Se não puder provar a validade desses documentos nos tribunais, então eu os levarei ao julgamento da opinião pública. Não cometi crime algum. Meus crimes morais são problemas que só a mim dizem respeito!

     Arlequim desferiu um soco violento na mesa antes de continuar.

     — Não serei dissuadido de jeito nenhum, Sr. Frohm! Se o senhor ou seu governo querem mover um processo contra Basil Yanko, ajudarei de todas as formas possíveis. Mas se querem protegê-lo, eu os enfrentarei ferozmente e morrerei lutando, se necessário for. Agora, pelo amor de Deus, exponha sua proposta...ou vá embora!

     — Minha proposta começa com um dilema, Sr. Arlequim. Nosso governo efetua contratos com Yanko porque ele é um gênio e oferece os melhores serviços do mercado. Nossa agência está convencida de que Basil Yanko é culpado de conspiração em muitas fraudes, homicídios e gangsterismo em alta escala. Há uma loucura em nosso sistema pela qual permitimos os vícios de um homem. Não podemos provar sua culpabilidade porque não podemos contornar todas as leis. Se infringíssemos as leis, estaríamos derrotando nossas próprias finalidades. Queremos informações. Se o senhor puder fornecê-las, não perguntaremos onde nem como as conseguiu. Não queremos inibir seu acesso a fontes que não podemos alcançar. Não nos preocuparemos com o que fizer fora de nossa jurisdição. Mas, se infringir a lei nos Estados Unidos, será por sua própria conta e risco. Estou sendo bastante claro?

     — Até agora, sim.

     — Há também outros riscos, Sr. Arlequim.

     — Gostaria de saber quais são.

     — Avisei-o de que seria perigoso ligar-se a interesses guerrilheiros. Mas preferiu ignorar o conselho e aliou-se a Aaron Bogdanovich, um agente israelense, e a Leah Klein, uma conhecida, para não dizer notória, jornalista com simpatias sionistas. Está agora incluído, juntamente com o Sr. Desmond, entre os alvos dos ataques terroristas. Não abra nenhuma correspondência suspeita. Não receba visitantes não-identificados. Não ande sozinho à noite.

     — Uma pergunta, Sr. Frohm.

     — Qual?

     — Como fomos incluídos nessa lista de alvos?

     — Foram computados, Sr. Arlequim, como simpatizantes sionistas. É esse o tipo de informação que o Sr. Yanko fornece, a custos elevados, a assinantes selecionados. Não é maravilhoso o que se pode fazer com um banco de memória de computador? Pode-se até programar um genocídio...E agora, o que me diz: podem cooperar?

     — Podemos. Vamos discutir os detalhes.

     Meia hora depois, assim que ele partiu, George Arlequim expôs-me sua avaliação pessoal da situação:

     — Milo Frohm é como você, Paul. Quer uma solução, mas prefere a segurança. É capaz de tolerar o crime, mas não de cometê-lo. Esquecerá tudo, se eu perdoar. Yanko vitorioso é Yanko inocente. Ele não pode devolver-me minha esposa, mas quer que eu lhe forneça um remédio doce e cômodo para um inconveniente público. Encontra falhas em documentos embaraçosos, mas recusa-se a levá-los diante de um tribunal. O que tudo isso lhe diz?

     — O mesmo que alguém já disse muito melhor que eu, George: ele é dotado de uma versatilidade prudente.

     — Ao diabo com a versatilidade!

     — Certo.

     — Qual é sua resposta então?

     — Não tenho nenhuma, George. Você está decidido a fazer o que quer. Pois então faça-o.

     — Quero ver Yanko morto.

     — Pois então mate-o. Ou ponha um contrato em cima dele. Sabe agora como se faz isso.

     — Eu mesmo o farei, Paul.

     Poderia tê-lo matado naquele momento. Era maior do que ele, mais corpulento e estava sentindo uma raiva como nunca experimentara antes em toda a minha vida. Empurrei-o e encostei-o na parede, com os dedos em sua garganta, lançando-lhe todas as maldições que conhecia.

     — Agora ouça, seu miserável! Eu amava Julie tanto quanto você. Poderia tê-la feito mais feliz do que você. Seu filho poderia ter sido meu filho. Mas, pelo menos, agora sou responsável também por ele neste mundo nojento! A mãe dele está morta. Quer que o menino tenha também a desgraça de ter por pai um assassino? Quer? Você está inteiramente podre, George! Não é mais um homem! É apenas um miserável charlatão! Tire a máscara e nada encontrará por baixo! Não tem rosto, não tem coração, apenas ódio, e isso é menos que...

     Menos do que eu podia lembrar. Houve um intervalo de escuridão e depois acordei em minha cama, com um saco de gelo na cabeça e Suzanne a me esfregar as mãos. George Arlequim estava parado ao pé da cama, como Mefistófeles vindo reclamar o pagamento de sua conta. Eu perdera minha voz e, ao reencontrá-la, descobri que estava reduzida a um sussurro rouco:

     — Saia daqui!

     Ele não se mexeu. Talvez não me tivesse ouvido. Aproximou-se e sentou-se na beira da cama.

     — Lamento, Paul. Mas você poderia ter-me matado. Desejei tê-lo feito e tentei dizer-lhe isso, mas minha voz estava presa na garganta como uma espinha de peixe. Tossi e engasguei, terminando por cuspir um pequeno coágulo de sangue. Suzanne ficou pálida. Arlequim sacudiu a cabeça.

     — Ele sobreviverá, Suzy. Ainda lhe restam uma ou duas vidas.

     — Lamento ter desperdiçado esta com um canalha como você, George.

     Inclinou a cabeça de lado e fitou-me como a um espécime sob o microscópio, dizendo com um humor ácido:

     — Saul Wells estará aqui às nove horas da manhã. A essa altura já deverá ter-se recuperado. Trate-o bem, Suzy. Ele ainda está um pouco fraco...

    

     Conhecendo bem Saul Wells, eu não esperava que fosse muito longa a sessão do Muro das Lamentações. Ele tinha o bolso cheio de provérbios para todos os eventos de morte e desastre. Madame Arlequim estava morta, ele lamentava mas não ficaria permanentemente marcado. Alex Duggan desaparecera, mas terminaria aparecendo assim que precisasse de dinheiro ou algo mais. Enquanto isso, Saul Wells, o superdetetive, prosseguia em suas incansáveis investigações.

     — Alex Duggan, é claro, pode estar morto. Eu digo que não está, porque Yanko não se pode dar ao luxo de ter outro cadáver em seus estábulos. Portanto, está vivo. Então, onde se meteu? Quando o perdi de vista, ele seguia para o sul, em direção a San Diego. O México ele nunca mais vai querer ver. Ter-se-ia metido em algum lugar do interior? O diabo que foi! Nosso Alex é um garoto da cidade, adora os confortos domésticos e um drinquezinho ocasional com as garotas, antes de voltar para casa, para os braços da mamãezinha. A qual, diga-se de passagem, é um maravilhoso ornamento doméstico. Minha impressão é que ele se meteu em algum lugar da costa, junto com uma coelhinha das praias. Contudo, ele tem que comer, dormir e comprar gasolina, talvez mesmo alugar outro carro, porque sabe que conhecemos a placa do que está dirigindo...Temos também fotografias suas e cópias de uma descrição, além da relação de todos os cartões de crédito que lhe foram entregues através da companhia. Tudo o que precisamos agora é de um pouco de sorte...

     — Gostaria de conversar com a esposa dele — disse George Arlequim.

     — Pessoalmente, Sr. Arlequim?

     — Por que não? Sabe qual é o telefone dela?

     — Sei de tudo a respeito dela, Sr. Arlequim, exceto o que usa na cama.

     — E onde está seu marido — acrescentou Arlequim secamente. — Dê-me o número do telefone. Vou ligar agora mesmo para ela.

     — Por que não vamos direto até a casa dela?

     — Por favor, Sr. Wells! Sei o que estou fazendo!...Sra. Duggan? Meu nome é George Arlequim. Não me conhece, mas minha companhia usa os serviços da Creative Systems. Seu marido fez alguns trabalhos para nós na Cidade do México. Soube no escritório dele que está desaparecido há dois dias. Tenho algumas informações que talvez possam ajudá-la...Se preferir, posso transmiti-las à polícia ou à companhia onde ele trabalha...Estou hospedado no Bel-Air. Posso mandar um carro ir buscá-la? Esplêndido. Digamos, dentro de meia hora...

     Saul Wells ainda estava em dúvida e foi o que expressou em palavras rudes:

     — Disse que sabia o que estava fazendo, Sr. Arlequim. Espero que esteja certo. Se errar agora, talvez perca Alex Duggan definitivamente.

     — Eu assumo o risco, Sr. Wells.

     — Ele é uma testemunha sua. Quer que eu esteja presente ao conversar com a esposa dele?

     — Prefiro que não esteja. Seu trabalho é descobrir Alex Duggan, e o mais depressa possível.

     Saul Wells partiu com uma expressão de infelicidade, mastigando seu charuto. Arlequim folheou seu caderninho de anotações e verificou um telefone. Pediu a ligação. Poucos momentos depois, ouvi-o dizer:

     — É George Arlequim quem está falando. Gostaria de falar com o Sr. Basil Yanko...É mesmo? Obrigado. Telefonarei para lá.

     — Que diabo você está fazendo, George?

     Ele fitou-me, com um sorriso onde não havia o menor indício de humor:

     — Estou ligando para Basil Yanko. Ele está aqui na costa do Pacífico.

     — E o que pretende dizer a ele?

     — Vou convidá-lo para uma reunião.

     — Acho que você perdeu completamente o juízo.

     — Quando eu telefonar, pegue a extensão e ouça nossa conversa.

     Como sempre, demorou um longo tempo para se chegar ao grande homem. Foi quase um choque ouvir novamente aquela voz seca e áspera, na qual havia um tom ligeiro de desprezo.

     — Ora, ora, Sr. Arlequim! É uma surpresa e tanto. Por favor, aceite meus pêsames pelo falecimento prematuro de sua esposa.

     — Obrigado. Estou hospedado no Bel-Air, juntamente com o Sr. Desmond. Chegamos ontem à noite. Creio que seria oportuno que nos encontrássemos agora.

     — Pelo contrário, Sr. Arlequim. Creio que seria bastante inoportuno... a menos que seja na presença de meus advogados.

     — Não faço a menor objeção a isso. Se eles desejam apresentar-me alguma citação — e creio que o desejam —, talvez seja este também o momento oportuno. Contudo, se prefere não realizar a reunião, não há problema.

     — Dá-me algum tempo para pensar no assunto?

     — Claro. Estarei em Los Angeles até amanhã à noite. Pode procurar-me no hotel a qualquer hora. Se eu por acaso tiver que sair, deixarei instruções com minha secretária para marcar a reunião, a qual acho que deve realizar-se em território neutro.

     — Eu preferia, Sr. Arlequim, que fosse em meu escritório.

     — É mais seguro aqui. Meu bangalô foi verificado pelo FBI. Eles asseguram que não existe nenhum tipo de dispositivo eletrônico. Depois de Washington, passamos a tomar certas precauções. Deixo a decisão a seu critério, Sr. Yanko.

     — Voltarei a procurá-lo, Sr. Arlequim. Obrigado por telefonar-me.

     Foi um diálogo breve e estéril, não vi nele a menor vantagem. Pelo contrário, vi sérios riscos numa confrontação com advogados, antes mesmo que chegássemos aos tribunais.

     Arlequim afastou as objeções com um sacudir de ombros e um comentário sibilino:

     — Se não esperamos justiça, os advogados não podem ajudar-nos nem prejudicar-nos.

     — Este é um país de litígios legais, George. Qualquer coisa serve de arma nos tribunais. Pelo amor de Deus, você já tem problemas demais. Não comece a comprar mais barulho.

     — Não estou comprando, Paul, estou criando...Avise-me assim que a Sra. Duggan chegar. Vou dar uma volta pelos jardins.

     Foi então que mencionei a Suzanne a idéia de que provavelmente iria deixar minha diretoria no banco, assim que voltássemos a Nova York. Não era apenas por vaidade e ressentimento. Se ele não podia enterrar seus mortos, eu certamente queria enterrar os meus e deixar as margaridas desabrocharem sobre o túmulo. Se ele queria guardar segredo do que pretendia fazer, era um direito que lhe assistia. Eu estava velho demais para lutas corporais, muito desgastado para batalhas verbais. Suzanne revelou-me que também estava muito perto de uma decisão semelhante. Não pedia para ser amada, mas não podia trabalhar para o estranho que vivia agora sob a pele de Arlequim. Ele não ficaria sem ajuda. Tinha incontáveis funcionários à sua disposição. E talvez fosse exatamente disso que estivesse precisando: novos relacionamentos, não manchados pelas antigas recordações. Concordamos em que eu deveria discutir o assunto com ele, explicar-lhe como nos sentíamos e dar-lhe bastante tempo para tomar as providências necessárias. Ao final, a cirurgia da amputação poderia ser muito melhor que as constantes ventosas e sangrias.

    

     A Sra. Alexander Duggan parecia-se com todas as moças que aparecem nos comerciais de cozinha: bronzeada, ansiosa e apaixonada pelo mundo maravilhoso que a cercava, o qual, sem nenhum motivo, subitamente virará de pernas para o ar. Até mesmo sua aflição tinha uma qualidade de admiração arregalada, como Cinderela depois da meia-noite, esperando pelo retorno da boa fada madrinha. Arlequim foi gentil com ela, mas os documentos, os fatos e as fotografias constituíram uma revelação brutal. Ela dissolveu-se em lágrimas e gritos impotentes de surpresa. Suzanne teve que levá-la para o quarto, a fim de acalmá-la. Assim que ela voltou, começou uma inquisição fria e impiedosa, com Arlequim inteiramente à vontade no papel de Torquemada.

     — Sra. Duggan, minha esposa está morta. Foi assassinada. Quatro outras pessoas envolvidas neste caso também morreram. Seu marido será a próxima vítima, a menos que o encontremos o mais depressa possível.

     — Mas eu não sei onde ele está! Tem que acreditar em mim!

     — Sra. Duggan, deixe-me explicar-lhe uma coisa. A fraude foi cometida no México. Seu marido não pode ser julgado por ela aqui. Não farei acusações contra ele no México, contanto que obtenha dele uma declaração, dizendo quem lhe determinou que organizasse a fraude. Estou sendo claro?

     — Está.

     — Acredita em mim?

     — Quero acreditar.

     — Se não acredita, nada posso fazer. Essa visita ao cliente de San Diego foi rotina ou algo especial?

     — Rotina. Ele tem uma relação de visitas mensais. San Diego era uma das regulares.

     — Ótimo. Ele estava fazendo algo normal. Antes de partir, aconteceu algo anormal? Ele estava aborrecido? Tirou dinheiro do banco? Qualquer coisa assim pode ser útil...

     — Não houve nada de anormal.

     — Ele levou alguma muda de roupa?

     — Saiu apenas com a roupa do corpo. Era uma viagem de um dia. Levou apenas um calção de banho e uma toalha. Sempre gostou de dar um mergulho na volta para casa.

     — Onde costumava tomar banho de mar?

     — Em La Tolla. Há um motel lá chamado Golfinho Azul. Tem uma piscina e uma praia. Mas a polícia já verificou. Ele não esteve lá.

     — E o que me diz de dinheiro?

     — Pedi algum antes de ele partir. Tinha consigo cerca de cento e cinqüenta dólares. Deu-me oitenta e ficou com o resto.

     — E a conta no banco?

     — Tem apenas as retiradas normais. Mas eu já contei tudo isso à polícia.

     — E o que me diz de outras mulheres, Sra. Duggan?

     — Oh, isso...

     Ela conseguiu dar um sorriso débil e choroso.

     — Ele não precisaria fugir para encontrar-se com outras mulheres. Somos pessoas muito liberais.

     — E se ficasse assustado, ele fugiria?

     — Fugiria.

     — Ele estava assustado, Sra. Duggan?

     — Se estava, não o percebi.

     — Já vasculhou os papéis dele?

     — Nunca guardava nenhum documento em casa. Era supersticioso em relação a isso. Dizia que sua casa era um lugar para espairecer. Ficava furioso se tinha que trabalhar em casa.

     — E o que me diz de cartas, cartões-postais, contas...esse tipo de coisas?

     — Nós as líamos, respondíamos e depois destruíamos. As contas eu guardo numa pasta que tenho na cozinha.

     — E o que me diz de documentos como títulos de propriedade, ações ou bônus?

     — Guardamos tudo isso num cofre que temos no banco.

     — E quem tem acesso a esse cofre?

     — Nós dois.

     — Quem ficava com a chave?

     — Eu tenho uma e Alex guardava a outra em seu chaveiro.

     — Ele levava o chaveiro quando saiu de casa?

     — Claro. Ele o usa preso numa corrente de ouro que lhe dei de presente de aniversário.

     — Sra. Duggan, como Alex estava indo nos negócios?

     — Maravilhosamente. No próximo mês deveria ser promovido a superintendente de área. A promoção foi determinada por um memorando assinado pelo próprio Sr. Yanko.

     — Tem algum problema financeiro?

     — Nenhum. Vivemos muito bem, temos inclusive dinheiro guardado no banco e não devemos nada a ninguém.

     — Então não têm problemas financeiros, não existem problemas conjugais e ele está indo muito bem no emprego. Mas seu marido cometeu um ato criminoso no México. Por que haveria de fazê-lo?

     — Alguém deve ter-lhe pedido que o fizesse.

     — O que isso significa?

     — Bem, alguém na companhia...

     — Quem?

     — Não sei. Essa era outra das superstições de Alex. Ele dizia que falar de negócios em casa provocava úlceras e enfarte.

     — O que aconteceu com os dez mil dólares que ele recebeu de Maria Guzmán?

     — Nunca soube da existência desse dinheiro.

     — Ele começou a gastar mais dinheiro do que o normal depois que voltou do México?

     — Não.

     — Há quanto tempo não abre o cofre que têm no banco, Sra. Duggan?

     — Eu? Há um ano ou mais. Se precisamos de alguma coisa, é Alex quem normalmente vai buscar.

     — Sra. Duggan, não tenho o direito de pedir-lhe isso. Se quiser, tem todo o direito de recusar. Mas não concordaria em abrir o cofre agora, comigo?

     — O que está esperando encontrar?

     — Não sei, Sra. Duggan. Neste momento, tudo o que posso fazer são conjeturas. Mas aposto que ambos estamos tentando adivinhar a mesma coisa: se seu marido está vivo ou morto.

     — Não sei...Suponho que não haja problemas...

     — O cofre é seu, tem acesso legal a ele. Se acha que precisa de proteção, posso pedir a um agente do FBI que nos acompanhe.

     — Não! Isso não é necessário. Eu o levarei até o banco agora mesmo.

     — Obrigado, Sra. Duggan...Suzanne, se Yanko telefonar, marque a hora que ele sugerir, contanto que nos encontremos aqui. Paul, entre em contato com Milo Frohm e peça-lhe para encontrar-se comigo, para almoçarmos, no Verita's, em Santa Mônica. Diga-lhe que é muito importante.

     Liguei para Milo Frohm, que ficou feliz com o convite para almoçar. Basil Yanko telefonou para informar que estaria no hotel, juntamente com seus advogados, às seis horas da tarde. Era um triste desperdício da hora dos coquetéis de antes do jantar, mas tivemos que concordar. Depois Suzy e eu bancamos os ociosos. Fomos para a piscina, nadamos, tomamos Bloody Marys e comemos sanduíches, cochilando sob as flores vermelhas das buganvílias. Antes que o percebêssemos, já eram quatro horas da tarde. Fomos correndo mudar de roupa. George Arlequim ainda não voltara. Eram cinco horas da tarde quando ele telefonou para dizer que já estava de volta. Às cinco e meia Suzy foi convocada para preparar a reunião, providenciando canetas e blocos e pedindo drinques e canapés. Cinco minutos depois das seis horas, barbeado, sóbrio e razoavelmente equilibrado, apresentei-me para a reunião com Basil Yanko e seus advogados.

     Formavam um trio curioso: Basil Yanko, um sábio de cabelos grisalhos e terno de seda e um advogado júnior de cabelos cacheados, com o rosto magro e um ar de misteriosa malícia. Suzanne estava sentada à parte, o lápis suspenso sobre um bloco de anotações e uma pasta de documentos no chão, a seus pés. George Arlequim, vestindo uma camisa de seda e calça esporte, presidia a reunião como se fosse um diretor de uma casa de modas extremamente elegante. Basil Yanko abriu a reunião com uma exigência impertinente:

     — E então, Sr. Arlequim, qual é a ordem dos negócios?

     — Primeiro, Sr. Yanko, não quer apresentar-me nenhuma citação?

     — Neste momento, não. Preferimos fazê-lo em Nova York, se lhe for mais conveniente.

     — Não há problema. Se eu não estiver presente, o Sr. Desmond poderá aceitar a citação, pois ele tem uma procuração minha. A procuração ainda é válida, não é, Paul?

     — Ainda tem dois meses de validade, George.

     — Ótimo. É um arranjo satisfatório, senhores? Cabelos-grisalhos e júnior concordaram em que era. Hesitante, George Arlequim perguntou:

     — Prejuízos e indenizações? Está somando as duas coisas, Sr. Yanko?

     — Não. Mas o faremos, Sr. Arlequim, se for necessário. Agora poderia informar-nos qual o propósito desta reunião?

     — Presumo que vai querer um registro dela, não é mesmo?

     — Se não for incômodo.

     — Suzanne vai taquigrafar tudo o que acertarmos e passará à máquina antes de partirem. Podemos então concordar com todos os termos e assinar. Isso é aceitável?

     Era aceitável para Basil Yanko, e seus sequazes compulsoriamente concordaram.

     George Arlequim recostou-se na cadeira, esticou as pernas, construiu uma pirâmide com as mãos e sorriu por cima de seu cume.

     — Sr. Yanko, declaro diante de testemunhas e subscrevo por escrito o seguinte: o senhor conspirou para lesar minha organização em quinze milhões de dólares e, ao assim agir, desacreditar-me e assumir o controle da mesma organização; conspirou também para assassinar Frank Lemmitz em Londres, Valerie Hallstrom em Nova York e minha esposa na Cidade do México. Proponho, nos próximos dias, tornar públicas essas acusações e apresentá-las diante de um tribunal. Compreendo que, se não puder provar as acusações, terei cometido o mais flagrante crime de calúnia e estou pronto para aceitar todas as penalidades em que possa incorrer. Este é o fim de minha declaração. Ficarei satisfeito em ouvir seus comentários, oficiais ou não.

     — Falarei oficialmente, para ser registrado — disse Basil Yanko friamente. — Acho que é um louco criminoso.

     — Também para ser registrado. — O advogado mais velho avaliou suas palavras cuidadosamente. — Poderia dizer-nos por que escolheu fazer essa declaração extraordinária neste momento e desta maneira?

     — Fui informado hoje, pelo FBI, de que o Sr. Desmond e eu podemos ser alvo de ataques terroristas, como simpatizantes sionistas. Fomos assim classificados num documento emanado dos serviços de computação do Sr. Yanko. Meu filho foi colocado sob a proteção da polícia, em Genebra. Queria que o Sr. Yanko soubesse, caso alguma coisa venha a nos acontecer, que ele não ficará imune à ação da lei, pois eu já tenho provas que apóiam essas acusações.

     O advogado júnior agitou-se de súbito e disse suavemente:

     — É claro que as provas são insuficientes, caso contrário o Sr. Yanko estaria agora preso, como em breve deverá acontecer-lhe, Sr. Arlequim. Com toda a deferência a meu colega, sugiro que, à luz das recentes informações passadas para a imprensa, estamos assistindo aqui a uma tentativa um tanto tosca de chantagem e coação.

     — Concordo com a parte referente à coação — disse George Arlequim tranqüilamente. — Estou tentando impedir o assassinato de Alex Duggan. Encontrei-me com a esposa dele esta manhã. Ela foi bastante prestativa...De nada lhe adiantaria matá-lo agora, Sr. Yanko.

     Yanko fez um gesto de repúdio.

     — Repito: perdeu inteiramente o juízo. Vamos embora, senhores.

     — Com todo o respeito, Sr. Yanko...

     O advogado mais velho hesitou por um momento, mas logo acrescentou:

     — ...por que não esperamos que a declaração seja datilografada e assinada? Não é sempre que um homem oferece a própria corda com que será enforcado.

     — Então esperem vocês — disse Basil Yanko. — Eu tenho mais o que fazer!

     Ele partiu intempestivamente, deixando os dois advogados, constrangidos, a esperarem durante dez minutos, enquanto Suzanne datilografava suas anotações taquigráficas.

     Arlequim sorriu.

     — Por favor, senhores, permitam que lhes ofereça um drinque. É uma pena que seu cliente esteja com tanta pressa. Tenho um documento para mostrar-lhes...somente para demonstrar que não sou tão tolo quanto posso parecer.

     Ele abriu sua maleta e entregou a cada um uma cópia fotostática da confissão de Pedro Galvez.

     Eles a leram com os rostos impassíveis. O advogado mais velho finalmente perguntou:

     — Podemos ficar com isto?

     — Infelizmente não.

     Relutantes, devolveram as cópias fotostáticas. Ficaram subitamente mais ansiosos pelos drinques e singularmente ansiosos pelo que classificaram de uma "serena troca de opiniões". Estavam num terrível dilema e sabiam disso. Tinham que insistir na total inocência de seu cliente. Mas estavam também perturbados pelos aspectos agora sinistros do desaparecimento de Alex Duggan, sobre os quais tinham sido avisados, na presença de testemunhas. Começaram a falar em "mediação e acerto amigável das disputas pendentes".

     Arlequim deixou-os falar e depois perguntou o irrespondível:

     — E como se pode chegar a uma mediação com o assassinato, senhores? Como se pode oferecer uma reparação aos mortos?

     Eles partiram às sete horas, dois homens perplexos, cada um com uma cópia datilografada e assinada da declaração de Arlequim e com idéias muito confusas sobre o que fazer com aquele documento. Assim que eles saíram, Arlequim pediu a Suzanne que arrumasse sua mala. Milo Frohm ia telefonar-lhe às oito e meia e os dois voariam juntos para Londres. Aquela notícia era surpreendente e ele tratou de explicá-la:

     — Frohm estava certo, Paul. Basil Yanko providenciou muitas cercas ao seu redor, para proteger-se. Todas as investigações vão terminar num intermediário: Galvez, To-ny Tesoriero, Alex Duggan e quem quer que tenha matado Frank Lemmitz em Londres. É essa a maneira pela qual Yanko sempre trabalha. Ele delega poder e ab-roga a responsabilidade, sempre que isso lhe convém. Contudo, Alex Duggan não estava preocupado com homicídios, apenas com sua carreira. Recebeu ordens para efetuar a fraude na Cidade do México, mas foi esperto o bastante para tomar algumas precauções. Deixou um relato assinado do caso em seu cofre no banco, demonstrando que estava trabalhando sob as ordens da Creative Systems. Isso não o ajudaria num tribunal, mas protegeria sua carreira na companhia. Tinha também no cofre uma grande reserva de dinheiro, provavelmente o mesmo que recebeu para pagar a cooperação de Maria Guzmán e que ela lhe entregou. Os registros do banco mostram que, pouco antes de seu desaparecimento, ele abriu o cofre, evidentemente para pegar um dinheiro cuja origem não poderia ser identificada. Achamos que, depois que Galvez telefonou para Yanko, Duggan foi aconselhado a esconder-se. Foi o que ele fez, sabendo que o documento que deixara no banco iria garantir sua segurança. Sua esposa não poderia entregá-lo, porque ignorava sua existência. Também não pode fazê-lo agora, porque temos o documento em nosso poder. Há um guarda protegendo permanentemente a Sra. Duggan e seu filho e Yanko recebeu a advertência que acaba de ouvir. Saul Wells continua procurando por Duggan. Milo Frohm e eu vamos para Londres, a fim de pegarmos o homem que serviu de intermediário entre Duggan e Yanko. Se ele falar, teremos as provas de que precisamos.

     — As provas da fraude, não dos assassinatos. O que significa que você acaba de apor seu nome ao crime de calúnia do século. Concordo com Yanko. Você perdeu completamente o juízo, George. Mas quem é esse tal camarada de Londres?

     — O mesmo que se casou com Beverly Manners, nossa antiga operadora do computador. Ela está esperando um bebê — lembra-se? — e o marido joga golfe em Surrey com nosso gerente de Londres.

     — Vamos torcer para que ele não decida tirar umas férias antes de vocês chegarem lá.

     — Não poderá fazê-lo. Frohm entrou em contato com a Scotland Yard e eles o detiveram para interrogatório sobre a morte de Frank Lemmitz. Isso o manterá ocupado até nossa chegada.

     — O que você quer que nós façamos?

     — Os dois podem ir para Nova York. Tirem dois ou três dias de folga no caminho, se assim o desejarem. Fiquem lá até eu voltar.

     — Nada mais?

     — Nada mais, Paul. Procure divertir-se um pouco. Proporcione a Suzanne umas pequenas férias. Nada mudará até eu voltar. E é melhor que você não se envolva nas intrigas.

     Parecia tudo muito simples, mas eu sabia que não era bem assim. Era uma solução por demais fácil para tudo aquilo que ele estava arriscando. Ele ainda não revogara seu voto de matar Basil Yanko. Estava simplesmente preparando o cenário para a execução.

    

     Era fácil dispensar-nos da amizade e do dever. Não era possível remover a memória de acontecimentos recentes e o medo constante do desastre iminente. Era um insulto sacudir um bastão de palhaço e declarar:

     — Muito bem, muito bem...O mundo está transformado. Por que não vão se divertir entre as flores?

     O que iríamos fazer? Comer, beber, ver as lojas, assistir aos espetáculos, pegar um ônibus de turistas para conhecer as mansões das estrelas?

     Nós víramos a parte de baixo do tapete, com toda a sujeira do mundo presa aos fios emaranhados. Agora éramos convidados a admirar a beleza do padrão, ajoelhar-nos nele para rezar, deitar-nos sobre ele para fazer amor. Estava tão furioso com George Arlequim que mal pude suportar acenar-lhe em despedida. Suzanne estava também ressentida com ele e muito triste, o que me deixou mais furioso ainda e estragou um excelente jantar que poderíamos ter apreciado. Ao final, ela estava decidida a não pôr os pés em Nova York. Sentir-se-ia mais feliz em voar de volta a Genebra, arrumar sua mesa, pedir demissão e passar o verão descalça, na Sardenha.

     Sentados ali, sombrios e infelizes, tomando café, pensei em Francis Xavier Mendoza e, antes que a graça me fosse retirada, tratei de telefonar-lhe. Ele lera as notícias publicadas pelos jornais. Toda a história era um prato pútrido. Como sempre, seu coração e sua casa estavam à minha disposição. Pela manhã voaria até seus vinhedos. Por que não íamos juntos, passando um dia e uma noite na fazenda, bebendo um bom vinho e conversando sobre banalidades? Cumulei-o de bênçãos e disse que ficaríamos deliciados. Suzanne sentiu-se feliz como se tivesse sido convidada a visitar um cemitério. Meus amigos eram meus. Sua vida dizia respeito apenas a si mesma. Ela preferia passar sozinha o resto da noite. Não se mostrou áspera, apenas polida e determinada. Deu-me um leve beijo na testa e partiu, deixando-me sozinho para ir reunir-me aos outros rejeitados masculinos que estavam no bar.

     Por volta da meia-noite Saul Wells apareceu à minha procura. Disse que estava exausto e realmente o aparentava. Instalou-se num tamborete no bar, pediu uma dose dupla de vodca com gelo e esvaziou a metade num único gole. Contou-me então as notícias que tinha. Encontrara Alex Duggan.

     — Onde, pelo amor de Deus?

     — Você acreditaria se eu lhe dissesse que foi num hospital? Ele estava internado numa luxuosa clínica particular de San Diego.

     — O que há com ele?

     — Nada.

     — Não estou entendendo.

     — Ele próprio pediu para ser internado. Disse que queria fazer um checkup médico completo e ter duas semanas de repouso, após uma exaustiva viagem de vendas. Está num quarto particular, cercado de livros e de enfermeiras maravilhadas.

     — E como diabo conseguiu descobri-lo?

     — Rotina e um pouco de sorte. Normalmente procuramos apenas os hospitais que cuidam de acidentados. Mas depois me lembrei de um caso que tive no ano passado, quando um cara conseguiu manter-se escondido durante seis meses, passando de uma clínica particular para outra. Elas oferecem as camas, se a pessoa tem o dinheiro. Proporcionam exames primários, secundários e terciários, exames do cólon, dietas especiais, testes de esterilidade, tudo enfim que o cliente quiser e puder pagar. Conheço uma romancista que costuma internar-se num hospital para escrever seus livros. Ela diz que é a melhor coisa do mundo. Não tem que cuidar da casa, não precisa preocupar-se com as criadas, pode usar todas as suas camisolas e eles até penduram na porta um cartaz de "Visitas proibidas" quando seu namorado vai vê-la. De qualquer maneira, encurtando a história, comecei a ligar para todas as clínicas particulares e encontrei-o na quarta tentativa.

     — Já falou com ele?

     — Não. Quero primeiro receber instruções a respeito. O Sr. Arlequim deixou-me com uma pulga atrás da orelha essa manhã. A partir de agora, só vou agir de acordo com o que me mandarem. Deixei três agentes vigiando a clínica... Acho que pode imaginar o quanto isso lhes está custando, não é?

     Quando lhe contei o que acontecera durante sua ausência, deixou escapar um assovio da mais pura alegria.

     — Que diabo! Aquele rapaz está quente como molho de chili e não sabe disso. Agora, vamos analisar a situação de acordo com a lei. Não podemos tirá-lo lá de dentro, pois isso seria seqüestro. Se ele partir por sua própria iniciativa, poderemos segui-lo...e podemos perder-lhe a pista novamente. Creio que só temos uma coisa a fazer: ligar para o FBI e descobrir quem está substituindo Milo Frohm, passando-lhe então o problema. Peça-me outra vodca enquanto vou dar o telefonema. Se Duggan escapar desta vez, eu é que vou me internar, mas numa clínica psiquiátrica!

     Ele voltou esfregando as mãos de contentamento e com um sorriso amplo estampado em seu rosto.

     — Grande, grande! É prioridade número um. Eles assumiram plena responsabilidade pelo caso e vão mandar um aviso a Frohm no avião. Os agentes do FBI vão tomar o lugar de meus homens o mais breve possível. E agora, Sr. Desmond, nós dois podemos entregar-nos tranqüilamente ao feio vício da bebida.

     — E o que me diz da esposa de Duggan?

     — O que há com ela?

     — Alguém não deveria informá-la?

     — Alguém deve mesmo. E acredito que, ao final, alguém se lembrará de fazê-lo. Mas não seremos nós. Não, senhor! O que ela não sabe, não pode prejudicá-la e também não pode prejudicar-nos...Mas posso dizer-lhe uma coisa: na Califórnia já encerrei meu trabalho, no México não tenho mais nada a fazer...

     — Mas ainda tem que descobrir respostas sobre o caso Ella Deane, em Nova York.

     — É um beco sem saída, Sr. Desmond. Com Lemmitz morto, duvido muito que consigamos descobrir alguma coisa.

     — Já pensou em Bernie Koonig?

     — O que lhe dá essa idéia?

     — Minhas costelas ainda estão doendo. E todo mundo fala em Lemmitz-Koonig-Lemmitz. O que tem a perder, exceto nosso dinheiro?

     — Como acabou de dizer, o que tenho a perder? Talvez agora estejamos na trilha da vitória, não é mesmo?

     Comece logo a beber, Sr. Desmond, pois já estou na sua frente.

     Já era muito tarde quando fui deitar-me. De manhã bem cedo Suzanne subiu em minha cama para dizer-me que o sol já raiara, os passarinhos estavam cantando e não havia nada que ela mais gostaria de fazer agora do que passar um dia inteiro entre fabricantes de vinho. Bem, quase nada...

    

     Francis Xavier Mendoza declarou ao ver-me que eu estava inapto para o convívio humano. Admirava-se de como alguma mulher, em seu juízo perfeito, podia sequer admitir a idéia de ser vista em companhia daquele equívoco genético, em cujo rosto estavam gravados todos os males do mundo. Eu precisava de sol, ar fresco, uma absolvição ampla e geral, antes de chegar a um quilômetro de seus preciosos vinhedos. A Suzanne ele receberia com tapetes vermelhos e flores. A mim...Ah, se ele não acalentasse uma débil esperança pela minha salvação, iria consignar-me, impenitente, às trevas exteriores!

     Era bom estar com ele. Ele conseguia extrair o que de bom havia na gente, assim como extraía a fertilidade do solo e o buquê dos vinhos, com amor e muita paciência. As videiras já estavam com muitas folhas e as primeiras uvas começavam a intumescer lentamente. Ele conduziu-nos pelos terraços plantados e através das adegas, mostrou-me os laboratórios assépticos e reluzentes, falando durante o tempo todo sobre o ritual que levava finalmente ao momento sacramentai em que se obtinha um excelente vinho.

     Recitou seus nomes como uma litania: Cabernet, Chardonnay e Chenin Blanc, Sauvignon, Semillon e Zinfandel, que o Coronel Agoston Haraszthy trouxera da Hungria em 1857 e que continuava ainda único na Califórnia. Falou de Robert Louis Stevenson, que bebera Souverain e Schamsberg e fizera o elogio de ambos, para vergonha dos esnobes da Europa. Como uma repreensão a mim, citou Tom Jefferson:

     — Nenhuma nação se embriaga quando o vinho é barato; nenhuma nação é sóbria quando um vinho caro faz com que seja substituído como bebida comum por outras mais ardentes.

     Arrancou uma risada de Suzanne ao recitar o brinde do velho Matthias Claudius:

     — Wer liebt nicht Weiben, Wein und Gesang...

     Quem não ama as mulheres, o vinho e as canções, permanece um tolo ao longo de toda a sua vida.

     Antes que se passasse metade do dia, ele a encantara mais do que se possa imaginar e me arrancara da depressão que há muito me envolvia, como um nevoeiro fétido. Depois do almoço, deixando Suzanne a cochilar no pátio, levou-me a um passeio sob um dossel de árvores, ao fim do qual havia uma pequena imagem jovial do Povenelli, conversando com um par de pombos empoleirados em suas mãos estendidas. Contei a Mendoza tudo o que acontecera em Nova York e no México. Nada daquilo deixou-o chocado, tudo o entristeceu.

     — Paul, meu amigo, somos como camponeses vivendo numa zona conflagrada. A morte está ao nosso redor e nossos sentimentos se endureceram por sua presença constante. Nem mesmo procuramos ignorá-la. Pelo contrário, fazemos dela nosso divertimento principal. Achamos que os romanos eram selvagens, porque encenavam jogos mortais na arena. Agora nós os simulamos para nossos filhos na televisão e nos filmes...Milhões de pessoas entram em fila para assistir a uma criança se masturbar com um crucifixo...Uma grande companhia mandou assassinar pessoas? Mas claro que isso acontece...Acredito em tudo o que me contou. Estou apenas surpreso por não ter ocorrido mais violência...

     — Mas poderá haver mais. George Arlequim jurou matar Basil Yanko.

     — Depois de todo o resto, será que isso ainda o surpreende? Não deveria...O assassinato, como a peste, é epidêmico. O freio legal está mais fraco do que nunca. E como poderia ser de outra maneira? Depois de cada revolução, da direita ou da esquerda, os assassinos fazem as leis e os torturadores obrigam ao seu cumprimento. Somente as peias morais é que ainda nos seguram, que ainda resistem, o conceito de coisa sagrada que tem a vida, o homem. Se abdicarmos disso, se o abandonarmos em desespero, como Arlequim o fez, então o assassinato é o recurso natural...Mas você não pode permitir que isso aconteça, Paul.

     — Não posso detê-lo. Ele isolou-se de mim. Como não quero participar, vou deixá-lo. E Suzanne vai fazer a mesma coisa.

     Francis Xavier Mendoza estacou bruscamente. Pôs as mãos em meus ombros e fez-me virar para encará-lo. Estava sombrio como o velho Moisés a despedaçar as tábuas.

     — Paul, eu mal conheço esse homem. Ele é seu amigo, não meu. Mas eu juro que, se você o deixar agora, se não ficar com ele até o último momento e tentar evitar essa coisa terrível, você nunca mais porá os pés em minha casa...Jamais! Você tem um dever a cumprir! Você tem que ter amor dentro de seu peito! Se ele estivesse morrendo de fome, você lhe recusaria uma migalha de pão? Agora ele está mergulhado no mais profundo desespero. Vai repeli-lo e deixar que se afunde em sua loucura suprema? Não pode fazê-lo! Você não o fará!

     — O que devo fazer, Francis? O que posso dizer-lhe?

     — Qualquer coisa, tudo, nada! Mas fique com ele! Não permita que ele o afaste de si. Engula todos os insultos, mas fique com ele. Se isso algum dia acontecesse comigo — e sei que é possível, pois sou um homem passional e meu avô matou muitos homens nessas colinas —, desejaria que algum amigo me impedisse de cometer esse terrível ato final.

     Ele segurou meu braço e recomeçamos a andar, lentamente.

     — Fale-me sobre Suzanne, Paul. Gostei muito dela.

     — Não há muito o que contar. Houve um tempo em que fomos amantes. Permanecemos sempre amigos. Agora, por causa de tudo o que está acontecendo, voltamos a ser amantes. Não sei por quanto tempo isso vai durar.

     — E por que não deveria durar?

     — O dia já está chegando ao fim, meu querido amigo Francis.

     — Mais razão ainda para ser cuidadoso e procurar preservar as coisas boas. Apaixonar-se é coisa de crianças. Mas amar é como saborear o melhor vinho...deixá-lo decantar lentamente, segurá-lo gentilmente, saborear gole por gole. Não se cultiva uma grande vindima. É preciso criá-la...Vejo a maneira como ela olha para você. Vejo como você se apóia nela. Daria um bom casamento.

     — Meu primeiro casamento foi um desastre. Não quero ter de enfrentar outro fracasso.

     — E por que tem de ser um fracasso? Vocês dois tiveram tempo para aprender. O que quer que os antigos teólogos tenham ensinado, não se faz um sacramento com a simples pronúncia de palavras. Fazemo-lo pelo exercício do sacramento e pelo amor. Você é meu amigo e detesto vê-lo solitário nos melhores anos de sua vida. Pense nisso...E pare de pensar em Arlequim. Isso está acertado, não é?

     — Se acha que é o melhor, amigo.

     — Ótimo. Agora vamos desejar um bom dia ao Poverello e eu lhe servirei um vinho que o faria descer de seu pedestal, se ao menos pudesse persuadi-lo a experimentar.

     À noite, quando o frio do deserto avançou pela terra, jantamos à luz de velas, contemplando a face escura do vale, os picos negros e a lua se erguendo acima deles. Ouvimos Segóvia e Casais e depois Mendoza leu-nos algumas de suas traduções. Era uma noite de sereno encantamento, e Suzanne expressou o que ambos estávamos sentindo:

     — É uma pena que George não esteja aqui. Ele teria apreciado intensamente este dia maravilhoso.

     — Mas ele está aqui — disse Mendoza gravemente. — Ele está no coração de vocês e agora também no meu. O que estamos fazendo é um ato de amor e ninguém está excluído dele. Antes que se vá, Suzanne, eu lhe darei um vinho ao qual dou imenso valor. Só restam seis garrafas dele. Eu lhe darei uma, mas só poderá bebê-la quando vocês três estiverem juntos para partilhá-la. Paul prometeu que ficará com Arlequim. Acho que você também deveria ficar. E quando essa praga acabar, creio que você e Paul deveriam casar-se.

 

     — Sei que se preocupa com os outros — disse Suzanne gentilmente. — Mas por que demonstra tanto interesse por estranhos como George e eu?

     — Vou explicar. Sou o mais afortunado dos homens. Deus fez as videiras. Eu faço o vinho. Você o bebe e ele se transforma em você. É uma verdade maravilhosa. Quando eu a analiso em todo o esplendor de seu significado, fico tão feliz que tenho vontade de chorar...Esta é a comunhão que nos mantém sãos e humanos. Rejeite-a e seremos apenas solitários e acossados. Derrame o vinho da vida e para sempre estará condenada como Caim à solidão...Mas estou falando demais. Já chega! Durmam bem, meus amigos. Eu não deveria aprovar, mas o faço. Espero que se amem em plena felicidade sob meu teto...

     No dia seguinte estávamos em outro mundo. Havia um boato de bomba no aeroporto de San Francisco e todos os vôos foram atrasados em uma hora. Fomos revistados, engaiolados, exigiram que identificássemos nossa bagagem antes de ser embarcada. O ambiente era de tensão e hostilidade. As vozes se alteavam com facilidade, quando funcionários atormentados tentavam controlar os passageiros cujos nervos estavam tensos a ponto de uma explosão.

     Quando finalmente levantamos vôo, Suzanne enterrou-se numa revista de modas, enquanto eu tentava pôr-me em dia com as notícias. Nenhuma delas era boa: havia crise na Inglaterra, com uma greve dos mineiros de carvão e eleições gerais; os japoneses estavam trocando terroristas pelas vidas do pessoal de sua embaixada no Kuwait; os italianos tinham cercado o Quirinal de tanques e os vietnamitas tentavam reclamar seus direitos à exploração do petróleo das ilhas Paracel, de que ninguém tinha ouvido falar até o momento em que os chineses afundaram uma canhoneira em suas águas. O presidente estava cinco passos mais próximo do impeachment. O mercado de ações estava em baixa. A queda das ações da Creative Systems já era de trinta por cento. Não havia a menor menção ao nosso caso. A ameaça de um processo de calúnia tornara os editores cautelosos. Além disso, com tal excesso de desastres, o público estava saciado e precisava de novos estímulos a cada dia. Estava se praticando agora um novo jogo em San Francisco. Dizia-se bom-dia a um desconhecido, disparava-se um tiro em seu coração e saía-se andando tranqüilamente, assoviando.

     Eu estava folheando as páginas de notícias financeiras, para verificar o quanto estava mais pobre, quando deparei com uma pequena notícia que atraiu minha atenção. O Sr. Karl Kruger, da Kruger & Co. AG, estava em Nova York, hospedado no Regency. Mostrei a notícia a Suzanne, que concordou em que deveríamos convidá-lo para jantar. Ela gostava daquele urso velho e podia também tolerar Hilde — a menos, é claro, que Karl tivesse decidido experimentar os talentos de Nova York. Eu só esperava que ele não resolvesse divertir-se pela Broadway afora e acabasse por se meter na mesma trapalhada que seu compatriota famoso.

     Takeshi estava em casa e de bom humor, embora ligeiramente deprimido por ter falado demais em San Francisco. Contudo, depois que lhe assegurei que seu prestígio e minha situação legal não tinham sido afetadas, tornou-se extremamente animado e pairou em torno de nosso jantar como um espírito guardião.

     Suzanne esticou-se voluptuosamente no sofá, oferecendo-me um sorriso suave e demorado.

     — Você não pode renunciar a tudo isto, não é?

     — Renunciar a quê?

     — A ter tudo isto e a liberdade também!

     — Isso é por acaso uma proposta?

     — Não, chéri, apenas uma questão acadêmica.

     — Gostaria de debatê-la agora?

     — Esta noite não. Estou confortável demais.

     — E poderia responder-me a uma pergunta?

     — Se não for muito difícil.

     — Quer casar-se comigo, Suzy?

     O sorriso desapareceu imediatamente. Ela ficou imóvel, olhando além de mim, para as sombras lá fora.

     — Eu nunca fixei um preço, Paul.

     — Sei disso.

     — Desde mocinha que sou apaixonada por George Arlequim.

     — Sei disso também.

     — Portanto, você não fará um grande negócio.

     — E foi o que eu pedi?

     — Não...Mas por quê, Paul? Por que eu? Por que agora? Estou aqui e feliz por estar aqui. Você não tem rivais, embora eu desejasse que tivesse pelo menos um...Não, por favor, fique onde está! Poderia derreter-me em seus braços e dizer sim, arrependendo-me de manhã...Diga-me, Paul, por quê?

     — Por vinte razões diferentes, Suzy. Mas só uma realmente válida: não há nada nem ninguém no mundo que eu ame tanto quanto você...Pode não ser suficiente. Como lhe posso explicar? Vivi muito tempo e aprendi muito pouco. De qualquer forma, como se diz no mercado, é uma oferta firme.

     — E normalmente não se acrescenta também para pegar ou largar?

     — Acrescenta-se, mas não é o que estou fazendo. Quando tudo isto acabar, Suzy querida, sairei para sempre do mercado, sacudindo a mão, na despedida do marinheiro que vai para muito longe. Não há pressa. Pense bastante.

     — Tenho pensado muito sobre isso, Paul. Tenho pensado quando estou sozinha e quando estou em seus braços, feliz por assim estar. E sei apenas de uma coisa: gosto muito de você para oferecer-lhe um coração dividido. Quero esperar até que tudo isto acabe, não para ganhar George, pois estou certa de que isto jamais acontecerá, mas para ter certeza de que estou curada dele, de que estou curada de meus sonhos de adolescente, pronta para ser uma mulher adulta para um homem adulto...Você é muito melhor do que se imagina, Paul. Gostaria que sentisse o maior orgulho da mulher com quem se casar. Por favor, vamos esperar mais um pouco.

     Ela sorriu, um pouco radiante demais, estendendo-me os braços.

     — E, quem sabe, você pode-se cansar de mim muito antes de chegar a hora da decisão...

     Bom, não era a Lua, mas pelo menos eu tinha os seis vinténs em meu bolso. Estava aprendendo a sentir-me agradecido pelas pequenas dádivas — e, talvez, estivesse tão aliviado quanto ela por adiar o momento da decisão final. Dessa forma não havia fantasmas com que lutar, apenas um homem possuído por um demônio sombrio, frio, sem amor e implacável.

     Pela manhã fomos comprar flores na Third Avenue. Desta vez não fomos mal recebidos. Compramos alguns botões e um verdadeiro jardim num vaso imenso, para ser entregue no apartamento. Não vimos Aaron Bogdanovich. Ele tirara a manhã de folga. Algumas vezes — a senhora sorriu por trás dos óculos de aros de ouro — ele gosta de sentar-se nos jardins do Museu de Arte Moderna e admirar as esculturas, passando horas a pensar simplesmente. Se não o encontrássemos lá, ela de qualquer forma daria nosso recado.

     Ele não estava lá, por isto saímos a passear pelas lojas, seguindo depois para o Buccellati, na Fifth Avenue, onde, para meu gosto, ainda se podem comprar os melhores trabalhos de ourivesaria do mundo, peças maravilhosas como as que os velhos mestres costumam fazer na Ponte Vecchio e em suas cavernas de Aladim, no Lungarno. Uma hora depois, curvei-me aos protestos de Suzanne e saí de mãos vazias, mas com um anel, brincos e um bracelete guardados em segurança no cofre-forte, às minhas ordens.

     Ao sairmos para a rua, Aaron Bogdanovich começou a caminhar ao nosso lado e disse:

     — Suíte 66 do Saint Regis. Estão sendo esperados para o almoço. A anfitriã é a Sra. Larkin. Telefonem do saguão.

     Um momento depois ele desapareceu no meio da multidão. Continuamos em frente e fomos até a Madison. Depois fizemos a volta e seguimos direto para o Saint Regis. Quando liguei para a suíte 66, do saguão, uma voz de mulher atendeu:

     — Suíte da Sra. Larkin.

     — O Sr. Weizman e uma amiga. Fomos convidados para almoçar.

     — Subam, por favor.

     Fomos recebidos na porta por uma matrona de cabelos grisalhos, que nos levou à pequena sala de estar onde estava Aaron Bogdanovich sentado numa poltrona, alerta e sério. Quando comecei a apresentar-lhe Suzanne, ele interrompeu-me bruscamente:

     — Sei quem ela é. A Sra. Larkin a levará para almoçar no restaurante.

     Ensaiou um arremedo de sorriso e acrescentou:

     — Não fique ofendida, mademoiselle. Isto é necessário. Além disso, o almoço é por minha conta. Aprecie-o devidamente. O Sr. Desmond irá encontrá-la lá embaixo assim que tivermos acabado.

     O nosso almoço, meu e dele, foi café e sanduíches, a conversa girando exclusivamente sobre negócios.

     — Primeira pergunta, Sr. Desmond: o quanto exatamente contou a Milo Frohm a meu respeito?

     — Nada. Ele é que me contou.

     — O que precisamente?

     — Que eu tinha comprado flores na Third Avenue.

     — E como foi que soube disso?

     — Mandou um homem conversar com Takeshi em San Francisco.

     — Mais alguma coisa?

     — Que nós, Arlequim e eu, nos aliáramos a um agente israelense e a Leah Klein. Que sabia que Valerie Hallstrom era uma agente israelense. Que Arlequim e eu somos agora alvos terroristas.

     — E o que foi que vocês lhe disseram?

     — Nem que sim, nem que não. Nada.

     — E ele aceitou isso?

     — Era o trato. Sua agência quer agarrar Yanko. Se pudermos fornecer-lhes as provas necessárias, ele não perguntará como nem onde as obtivemos. Neste momento está viajando para Londres, com George Arlequim. E o FBI já pegou Alex Duggan, em San Diego.

     — Eu já sabia.

     — E sabe do resto também?

     — Quero ouvi-lo do senhor. Com um pouco de sorte, poderão agora incriminar Yanko por conspiração.

     — Conspiração nas fraudes, mas não cumplicidade nos assassinatos.

     — Não seja muito ganancioso, Sr. Desmond.

     — Eu não estou sendo. George Arlequim é que quer matá-lo.

     — Para isso, ele precisa permanecer vivo. Ambos são homens marcados. Não sabemos qual dos dois eles atacarão primeiro.

     — E quem são "eles"?

     — Uma combinação formidável, Sr. Desmond: a Frente Popular para a Libertação da Palestina e o Exército Vermelho do Japão. O primeiro creio que conhece bastante. O segundo talvez não lhe seja tão familiar. É chamado de Rengo Sekigun. Se está lembrado, foram eles que mataram vinte e sete pessoas no Aeroporto de Lod. Seqüestraram um avião de passageiros que voava de Tóquio e o levaram para a Coréia do Norte. Torturaram e mataram doze de seus próprios dissidentes, no Japão. São totalmente dedicados ao niilismo e à violência...Tem um criado japonês, Sr. Desmond...

     — Takeshi? Ora, faça-me o favor...

     — Eu lhe disse que iríamos verificar. Foi o que fizemos. O FBI também o fez, pois eles não estão na verdade interessados no lugar onde comprou flores. Takeshi tem um sobrinho que voltou recentemente do Japão, onde manteve contatos com membros conhecidos do Rengo Sekigun...Será que isso não lhe sugere nada, Sr. Desmond?

     — Que devo sair correndo?

     — Tem agora uma mulher vivendo em sua companhia. Alguém muito íntimo do senhor e de George Arlequim.

     — Espere um instante! Mostre-me a lógica de seu raciocínio.

     — Está certo. Yanko está relacionado com os xeques do petróleo e com a Líbia. A Líbia financia o terror. Vocês atacam Yanko e estão a um passo de derrotá-lo. Subitamente ambos aparecem numa lista de alvos para ataques terroristas. Pode ter certeza de que a lógica é irrefutável, Sr. Desmond.

     — E o que devemos fazer então?

     — Sirva-se de mais um pouco de café, pois isso pode demorar algum tempo...O terror é uma forma de cirurgia social, na qual se utiliza uma ampla variedade de técnicas. Neste caso, há duas que podem ser consideradas: poderão ser assassinados, para provocar o medo e o pânico, ou poderão ser seqüestrados, para se arrancar um resgate. Não creio que sejam assassinados pura e simplesmente. Não são judeus e, portanto, não têm muita utilidade como propaganda. Contudo, são muito ricos e proeminentes, bastante apropriados para uma tentativa de resgate: suas vidas contra um monte de dinheiro e a libertação de prisioneiros políticos neste ou em outros países. Se o resgate não for pago, evidentemente serão mortos.

     — Evidentemente...

     — Agora vamos examinar como devemos agir. Vou ser bastante claro: estou metido nesse jogo e sou bom nele, muito bom mesmo. Não há sistema no mundo que não possa ser batido por um grupo de homens e mulheres determinados, que não se importam em viver ou morrer. Posso colocar homens para vigiá-lo vinte e quatro horas por dia. Neste momento, é o que está acontecendo. Posso trancá-lo em completo isolamento. Posso fornecer-lhe uma pistola e uma caneta-tinteiro cheia de um gás letal. Posso treiná-lo em judô e caratê. Tudo isso ajuda, mas não constitui uma apólice infalível para garantir sua vida. Minhas possibilidades são muito maiores do que as suas, porque não tenho quaisquer códigos que me possam frear. Sou condicionado para matar e sobreviver. Minhas reações são totalmente diferentes. Mesmo assim, nunca estou seguro. Sua melhor proteção é reconhecer o risco, aceitá-lo calmamente e adotar algumas medidas simples de precaução. Se for seqüestrado, não resista, fique calmo e espere que as negociações cheguem a bom termo. Não tente escapar, pois isso seria suicídio...Não tenho dúvida de que Milo Frohm deu as mesmas instruções a George Arlequim.

     — E o que me diz de Suzanne?

     — Uma pergunta apenas, Sr. Desmond: se ela fosse vítima de um seqüestro, os senhores iriam pagar resgate por ela?

     — Claro que sim.

     — Eis sua resposta. Ela corre os mesmos riscos que ambos. Explique a ela. Deixe-a tomar sua própria decisão. Ela pode sentir-se mais confortável em Genebra ou em Elba, mas não estará mais segura, em nenhum lugar.

     — Vamos falar sobre Takeshi.

     — Não há o que falar. Ele é um bom criado, continue com ele. É o sobrinho que nos incomoda. Continuaremos examinando essa situação.

     Deu-me seu habitual sorriso frio e sem humor e acrescentou:

     — Temos outro quarto de milhão de dólares para receber dos senhores, em prazo indeterminado...Estamos fazendo o melhor possível por merecê-lo. Outra coisa: já pensaram no que Yanko fará enquanto estão se preparando para incriminá-lo, com base nos testemunhos de Alex Duggan e do cúmplice lá de Londres?

     — Tenho pensado nisso. É difícil ver o que ele pode fazer, exceto livrar-se das testemunhas, o que tornaria excessiva a enxurrada de cadáveres. E, mesmo assim, ainda teríamos os documentos.

     — O que faria no lugar dele?

     — Deixe-me pensar...Primeiro, eu venderia o máximo de bens que pudesse, no mais curto prazo possível. Depositaria o dinheiro, com toda a segurança, num banco suíço. Depois descobriria um refúgio qualquer, numa praia maravilhosa, que não tivesse tratado de extradição, investiria algum dinheiro junto às autoridades locais e riria na cara de Tio Sam...Nos últimos anos, algumas figuras bastante conhecidas no mundo do crime fizeram exatamente isso.

     — Não é má idéia. Mas não posso ver Basil Yanko como um fugitivo sorrateiro. Não é seu estilo. Além disso, a lei é um animal arisco e ele sabe, melhor do que ninguém, como cavalgá-la. Minha suposição é que ele tentará livrar-se das dificuldades na base do suborno.

     — E a quem ele poderá subornar?

     — Se George Arlequim retirar as acusações, o governo e o mercado ficarão felizes em esquecer todo o assunto. Yanko conhece segredos demais.

     — Essa não! Ele deve saber que Arlequim quer vê-lo morto, quaisquer que sejam as conseqüências que possam advir para si próprio.

     — Ele deve pensar que é possível negociar. Sabe que Arlequim está no limite máximo de suas forças. Sabe também que possuem documentos perigosos. Foi por isso que ele pediu a Karl Kruger que viesse a Nova York, para mediar um acordo.

     — Ele está completamente louco!

     — Não. Ele computou todas as possibilidades e verificou que elas o favorecem. Se algo acontecer ao senhor, ou a Arlequim, ou àquela sua linda mulher, as chances dele numa negociação ficam ainda maiores...Nesse sentido, Arlequim está absolutamente certo. Se não querem negociar, a única alternativa é matar Basil Yanko. Pense nisso, Sr. Desmond. Converse com Karl Kruger e converse também com Arlequim, se ele voltar são e salvo...

     Karl Kruger estava dando uma festa. Era uma festa grande, uma festa importante. Começaria às sete horas e se prolongaria até às dez ou onze horas. Depois de termos embriagado todos os convidados, poderíamos conversar em seu quarto. Mas claro que eu deveria levar Suzanne. Que espécie de festa estava pensando que era? Não, Hilde não estaria presente, ela não era feita para esse tipo de coisa. Ele tinha alguém para conhecermos, uma inglesa dessa vez, muito elegante, que acabara de se divorciar de um lorde, que era muito rico mas não podia saldar suas dívidas conjugais. E continuou falando incessantemente durante mais cinco minutos, até obter minha rendição. Depois resmungou à sua maneira áspera:

     — Não é suficiente estar com a razão, Paul. No mercado, é preciso também ser popular...o que não acontece neste momento com Arlequim et Cie. Por isso, vista suas melhores roupas e sorria sem parar...E, se Basil Yanko estiver presente também, não lhe vá cuspir no rosto. Faça isso por mim, pelo amor de Deus! E não tome qualquer decisão enquanto não tivermos conversado...

     Parecia odioso. Mas, como meu bisavô me aconselhava, se tiver que comer corvo, certifique-se de que seja cozido num bom molho de vinho...Por isso, telefonei para a Buccellati e mandei que entregassem as jóias, ordenando depois a Suzanne, sob pena de punição, que comprasse o melhor vestido que combinasse com elas. Fui então a um salão de barbeiro. O tratamento custou-me vinte dólares, mas disseram-me que era garantido para fazer-me parecer dez anos mais moço. Eles estavam mentindo, o que não era nenhuma surpresa, mas pelo menos fizeram com que me sentisse mais apto para a companhia de meus semelhantes, tirando-me um pouco a sensação de um conspirador de terceira classe com o machado do carrasco suspenso sobre a cabeça. Pedi que uma limusine da Colby fosse apanhar-nos e depois liguei para George Arlequim em Londres. Era meia-noite lá, e ele estava se preparando para ir para a cama. Fiz-lhe um resumo cauteloso de minha conversa com Bogdanovich e depois falei-lhe sobre a festa de Karl Kruger.

     Para minha surpresa, disse:

     — Deixe todas as opções em aberto, Paul. Talvez precisemos delas.

     — Problemas, George?

     — Sim. O rapaz é muito esperto. Nós lhe apresentamos os documentos, mas ele recebeu bons conselhos legais e recusou-se a admitir o que quer que fosse. Não temos nada para ligá-lo às fraudes em Londres, exceto sua esposa, mas ela está coberta por um memorando forjado. A declaração de Alex Duggan liga-o apenas a uma conspiração na Califórnia para cometer uma fraude no México — e não existe, é claro, nenhuma queixa na polícia mexicana. A polícia de Londres está cooperando ao máximo e eles estão examinando com Milo Frohm todas as possibilidades. Nossos advogados em Londres avisaram que podemos ter muito trabalho para obter uma ordem de extradição. O FBI prendeu Alex Duggan e ele está sendo mantido em custódia, a seu próprio pedido. Mas ele pode descobrir que é uma proteção muito duvidosa. É tudo muito incômodo, Paul. Temos uma série de provas, mas podemos ser derrotados por artifícios técnicos legais, no que diz respeito a Yanko. Amanhã vou conversar novamente com Frohm, os advogados e a polícia. Depois de amanhã voarei para Genebra, a fim de ver o bebê e encontrar-me com a polícia e com os diretores do banco. Eu lhe telefonarei de lá. Dê lembranças a Suzanne. Au revoir!

     As notícias eram desencorajadoras, outra amostra da fragilidade da lei e do poder daqueles que tinham dinheiro e conhecimento bastante para manipulá-la a fim de atingir seus próprios objetivos. Cinco pessoas tinham morrido. Havia documentos que ligavam Basil Yanko a cada uma das mortes, mas que não serviam como provas para os tribunais. E assim Yanko iria a uma festa no Regency, muitos homens lhe apertariam a mão, as mulheres iriam cortejá-lo. E ele sairia de lá desprezando a todos.

     Por outro lado, havia em tudo aquilo um mínimo de consolo. Se George Arlequim resolvesse negociar e abdicasse de sua ameaça, todos nós poderíamos voltar a viver em paz...talvez. Existiam agora outras ameaças. E, ao sairmos para a rua e entrarmos na limusine, descobri que fungava e cheirava o ar, como uma raposa a procurar os sinais de perigo trazidos pelo vento.

     Quando chegamos, a festa estava animada e Karl Kruger dominava-a, como um antigo caudilho. Suas boas-vindas foram afetuosas e vociferantes. Ele contemplou Suzanne e deixou escapar um rugido de aprovação, arrancando-a de mim e levando-a a circular em sua companhia, como um novo troféu de batalha. Providenciei um drinque e comecei a circular também, lenta e cautelosamente. Logo encontrei Herbert Bachmann, que me apertou a mão cordialmente e expressou sua simpatia sincera.

     — Pobre George...Fiquei chocado com o acontecimento. Diga-lhe que sentimos muito. Você também deve ter tido momentos muito difíceis.

     — Tive mesmo, Herbert.

     — E a situação agora ainda está pior. A venda maciça das ações prejudicou uma porção de gente. O dinheiro é como uma rosa, não se pode machucar as pétalas. Mas até agora conseguimos manter nosso grupo unido. Os recursos estão à disposição de George, para quando ele precisar. Diga-me...

     Ele arrastou-me para longe da multidão.

     — O que há de verdade nessa história que os jornais estão falando a respeito de homicídios?

     — É tudo verdade, Herbert. Temos documentos para provar.

     — O que então Yanko está fazendo na lista de convidados?

     — É que os documentos ainda não são suficientes para incriminá-lo, Herbert.

     — Então a situação pode se deteriorar ainda mais?

     — É possível. Kruger veio a Nova York para servir como mediador, a pedido de Yanko. Isso ainda é segredo.

     — Obrigado por contar-me. Seria uma boa coisa. Não a melhor, mas necessária...

     — Yanko já chegou?

     — Eu ainda não o vi. E, Paul, quando ele chegar, tenha calma, está bem?

     — Claro...Falarei com você mais tarde.

     Nem todos os cumprimentos foram cordiais como o de Herbert Bachmann e alguns foram gelados como os martinis que os haviam induzido.

     — Pelo amor de Deus, Paul, você poderia pelo menos ter-nos dado um aviso, até mesmo uma simples insinuação...Olhe, companheiro, uma guerrinha particular não tem problema algum, mas não desse modo!...Sabe o quanto baixamos naquela quarta-feira?...As páginas financeiras, está certo, são o nosso fórum, mas as colunas policiais são coisa para a Máfia...Francamente, meu caro, gostamos muito de George e não simpatizamos com Yanko, mas...

     De alguma forma, consegui avançar, passar por cima, contornar, até que Suzanne veio em minha salvação, com palavras gentis e um cumprimento para cada um. Foi então, no momento preciso em que as conversas atingiam o auge e o álcool jorrava copiosamente, que Basil Yanko chegou. Entrou sozinho, sem a menor pompa. Apertou a mão de Karl Kruger e conversou com ele por um momento, logo desaparecendo no meio da multidão, sorrateiro como um gato. Lentamente, Suzanne e eu fomos abrindo caminho por entre a multidão, em direção a ele. Até que finalmente o encontramos, conversando em voz baixa com Herbert Bach-mann.

     Herbert viu-nos primeiro e acenou para que nos aproximássemos.

     — Sr. Yanko, creio que já conhece esses dois...

     — Conheço de fato. Mademoiselle, Sr. Desmond...Ele fez uma pequena mesura, mas não nos estendeu a mão.

     — O Sr. Arlequim não veio?

     Foi Suzanne quem respondeu, cerimoniosamente:

     — Não. Ele está em Londres, Sr. Yanko.

     Ela pôs a mão no braço de Herbert e pediu-lhe:

     — Acha que poderia arrumar-me um outro drinque, Sr. Bachmann?

     — Com prazer. Com licença, senhores.

     Assim que os dois se afastaram, Basil Yanko ergueu seu copo.

     — É uma mulher muito bonita, Sr. Desmond. Meus parabéns.

     — De nada, Sr. Yanko...como dizem no México.

     — Está uma festa muito animada.

     — Karl é um excelente anfitrião.

     — E também um banqueiro muito esperto.

     — Tem razão.

     — Sr. Desmond, gostaria de dar-lhe uma opinião oportuna. Em negócios, ganha-se alguma coisa e espera-se perder um pouco menos do que se ganhou. Neste momento, todos nós estamos perdendo demais. Está na hora de transformarmos os prejuízos em lucro.

     — Lucro é sempre uma palavra bem-vinda.

     — Eu ficaria agradecido se transmitisse essa opinião a George Arlequim.

     — Eu o farei.

     — Outra boa palavra é compromisso.

     — Também direi a ele.

     — A vida é de uma variedade infinita. Pode-se substituir qualquer coisa, menos a si mesmo.

     — Tudo menos a si mesmo...Gosto disso.

     — Algumas vezes as personalidades se chocam, as ambições também. Um mediador pode ser muito útil. Karl Kruger é um homem que eu respeito.

     — Nós também o respeitamos.

     — Então vamos parar por aqui, está certo?...Com licença, Sr. Desmond...

     Ele se afastou, desgracioso como sempre. Suzanne voltou com Herbert Bachmann. Ele fitou-me longamente com uma expressão inquisitiva.

     — Espero que tenha sido delicado com ele, Paul.

     — Acima e além do estritamente necessário. Alguém deveria dar-me uma medalha.

     — Em vez disso, eu lhe darei um beijo — disse Suzanne. — Posso dizer-lhe uma coisa? Acho que já tivemos o bastante desta festa.

     — Mas Karl disse...

     — Alterei a combinação. Vocês vão se encontrar aqui amanhã, às onze horas. Vamos embora, chéri.

     — Ela é a mais sensata de todos nós — comentou Herbert Bachmann. — Faça o que ela está dizendo, Paul.

     Às onze horas da manhã, Karl Kruger estava de olhos avermelhados, com dor de cabeça e era um autocrata. Arrotou e resmungou, ficou andando para um lado e outro da sala, vociferando para mim como se fosse o Chanceler de Ferro.

     — Realidades, Paul! É sobre isso o que temos de falar: realidades! Na guerra, perdi uma esposa durante os bombardeios e um filho na frente russa. Agora faço negócios com as pessoas que os mataram. Realidade! Se não chegarmos a um meio-termo e não cooperarmos, o mundo se acaba numa grande exibição de fogos de artifício. Ponha todos os assassinos no cadafalso e não haverá no mundo corda suficiente para enforcá-los. Realidade novamente! Arlequim tem que compreender. E você deve ajudá-lo a compreender...

     — Karl! A esposa dele ainda nem esfriou no túmulo!

     — Por isso ele não pode raciocinar e não vai fazê-lo. Mas você pode!

     — Posso raciocinar até ficar roxo de tanto pensar que isso não irá alterar absolutamente nada.

     — Então trate de agir.

     — Acho que você não entendeu o que eu disse, Karl.

     — Ouça, Dummkopf! Pelo amor de Deus, ouça!...Se você, Paul Desmond, pudesse assumir agora o controle da situação, o que faria? Pense nisso. Você ouviu o que disseram na festa onde à noite. Eles não dão a menor importância a princípios morais, só querem saber de dinheiro. E havia muito poder lá...Você conversou com Yanko. Ele está abalado e vocês poderão abalá-lo ainda mais, mas não conseguirão destruí-lo. E ele está disposto a um acordo. Agora me diga: se pudesse, qual seria o acordo que iria propor?

     — Se pudesse...Primeiro ponto: ele teria que retirar sua oferta para nos comprar. Segundo ponto: teria que cobrir os quinze milhões e todas as despesas decorrentes. Terceiro ponto: pagaria o custo de instalar um novo sistema de computadores e de treinar os operadores, mas não ficaria com o contrato. Quarto ponto: retiraríamos as queixas contra seus funcionários e esqueceríamos os documentos que temos, mas somente depois que os outros itens fossem cumpridos. Isso é o mínimo. Dê-me algum tempo e poderia pensar em mais alguma coisa.

     — Agora, meu amigo, está começando a ser sensato.

     — Mas de nada adianta, sem o consentimento de Arlequim.

     — Nem tanto. Você tem uma procuração dele que ainda é válida. Yanko sabe disso, eu também. Disse-me que Arlequim deseja que mantenha todas as opções em aberto. E essa é a melhor maneira de fazê-lo. Feche as saídas para o problema e teremos apenas uma carnificina, com prejuízos para todo mundo.

     — Eu sei disso, Karl. Mas dê-me um só argumento para convencer um homem cuja esposa foi assassinada.

     — Você me disse que também a amava.

     — E amava mesmo.

     — E o que está fazendo agora? Um escultor mexicano ainda está fazendo a lápide e você já está na cama com Suzanne. O que é a melhor coisa que já fez na vida. Não estou zombando, Paul. Pelo contrário, estou na maior satisfação. Arlequim também acabará fazendo o mesmo. E é melhor que não demore muito. E então, Paul, o que me diz?

     — Você é um velho schlem, Karl...mas tentarei.

     — Ótimo. Finalmente alguém está sendo um pouco sensato. Eu o procurarei assim que tiver sondado Yanko sobre os termos. Ó Deus, minha cabeça parece que vai estourar!

     Telefonou-me às três horas da tarde. Yanko estava pronto para iniciar as conversações. Convidava-me para jantar em sua casa. Eu também estava disposto a conversar, mas não via motivo para comer o pão e beber a água do desgraçado.

     Karl Kruger resmungou, furioso:

     — Se você é mineiro de carvão, é inevitável que entre poeira na sua marmita. Que importância isso pode ter? Por falar nisso, é black-tie.

     Nesse momento Suzanne arrancou-me o telefone das mãos e disse calmamente:

     — Ele estará presente, Karl. Cuidarei disso. Ela desligou e virou-se para mim.

     — Paul, chéri, se você não for e tudo sair errado, nunca mais se perdoará a si mesmo. Por favor...

     E assim, às oito horas em ponto, com meu orgulho no bolso e a raiva reduzida a umas poucas brasas ainda fumegantes, fui jantar com Basil Yanko.

     Não sei muito bem o que esperava encontrar: profusão, certamente, o mesmo ar de grandiosidade que caracterizava seu escritório, talvez algumas engenhocas, inevitavelmente tudo em excesso. Confesso que tive uma das maiores surpresas de minha vida. O apartamento era muito bonito, mas sobriamente bonito, com uma espécie de perfeição matemática que era ao mesmo tempo austera e repousante. Basil Yanko não era um colecionador. Escolhia as coisas e colocava-as no lugar em que falassem por si mesmas; um catálogo não traria a menor referência, a não ser para dizer que havia dinheiro nas paredes e nenhuma mancha de sangue. Não podia compreender como um homem tão inquieto e sinistro como Basil Yanko tinha conseguido uma atmosfera de tanta serenidade.

     Fui recebido por uma criada negra. Um mordomo filipino serviu-me um drinque e logo me deixou sozinho. Basil Yanko apareceu logo depois. O dinner jacket fazia-o parecer mais anguloso e cadavérico do que nunca, mas seu aperto de mão era menos frouxo e sorriu-me sem esforço aparente. Fiz-lhe um elogio pela casa e ele recebeu-o com uma farpa de ironia.

     — Surpreso, Sr. Desmond?

     — Fascinado, Sr. Yanko.

     — Colecionar pode ser uma mania. Mas a verdadeira arte da apreciação está na seleção...o que implica, é claro, julgamento, erro e rejeição, até se chegar a um relacionamento estável. Está interessado nos quadros, Sr. Desmond?

     Eu estava interessado em qualquer coisa que pudesse ajudar-me a atravessar a abertura e ir direto à ópera, por isso falei-lhe do meu gosto por artefatos e peças de ourivesaria, a mística das pedras coloridas. Era um bom ouvinte e mais cortês do que eu jamais acreditaria que fosse possível, embora, quando lhe chamava a atenção para algo, suas perguntas continuassem a ter um tom firme e peremptório. Ao jantar, ele comeu parcimoniosamente e bebeu apenas um copo de vinho, mas mostrou-se orgulhoso de seu cozinheiro e exigiu um serviço meticuloso. Só então pôs-se a falar sobre política:

     — Há um sonho no exterior, Sr. Desmond, de que podemos voltar ao tempo do barril de bolachas e da bomba paroquial, das pequenas comunidades auto-suficientes. É uma linda ilusão, mas não há maneira de convertê-la em realidade. Somos agora, compulsoriamente, um mundo só, mutuamente dependente de complexos padrões comerciais e da distribuição dos recursos naturais em rápido decréscimo. Portanto, temos que racionalizar e controlar uma multidão de variáveis. O computador pode fazê-lo. O homem, sem ajuda alguma, não pode...

     O que nos levou, por etapas e sutilezas, ao café e ao problema em questão, que ele expôs com a maior simplicidade :

     — Cometi um erro, Sr. Desmond. Escolhi o alvo errado. Usei os meios errados. As premissas sendo erradas, os erros se acumularam. Por isso temos que apagar todo o sistema e começar tudo de novo, sendo esse o propósito deste nosso encontro. Mais café?

     — Não, obrigado.

     — Um conhaque?

     — Não...

     — Bem, então...Karl Kruger sugeriu uma estrutura dentro da qual podemos negociar. Serei franco: não pretendo discutir os detalhes financeiros, insignificantes. Uma avaliação dos prejuízos e dos custos é coisa bastante simples. Para mim, o ponto fundamental é saber o que me podem oferecer como garantia de imunidade para o futuro. Diria que é uma enunciação justa de nossa posição?

     — Creio que precisa ser esclarecida, Sr. Yanko. Está querendo imunidade contra o quê?

     — Contra qualquer acusação no tribunal.

     — Acusação contra o quê?

     — Por fraude e conspiração para assassinato. É o que estão neste momento tentando provar contra mim, embora eu tenha ouvido dizer que estão encontrando certas dificuldades.

     A desfaçatez dele deixou-me, por um momento, sem fala.

     Ele sacudiu a cabeça, pesaroso.

     — Sr. Desmond, estamos sozinhos. Não há testemunhas, ninguém nos está escutando. Aqui posso admitir tudo e o faço. Está chocado, eu sei. Como é possível que eu, um respeitável homem de negócios, conspire e consinta em assassinatos? Sr. Desmond, os contribuintes deste país financiaram um gigantesco e desnecessário holocausto no Vietnam. Alguns protestaram. Muitos aprovaram, ainda o aprovam e continuarão a fazê-lo. Calley foi para a cadeia, mas os generais continuam em liberdade. Não tenho o menor respeito pelas pessoas, Sr. Desmond. Elas simplesmente vivem e morrem. Algumas vezes, para fazer uma equação social funcionar, precisam ser removidas. Nós dois poderíamos debater o problema até o dia do Juízo Final e não conseguiria convencer-me. Portanto, concordemos na divergência e voltemos à questão que nos interessa: o que podem oferecer como garantia?

     — Podemos concordar em não indiciá-lo nem a seus funcionários por fraude e conspiração para fraudar. Quanto à questão dos assassinatos, não podemos negociar. O problema está fora de nossas mãos. O FBI já está de posse de todos os documentos.

     — Que são altamente prejudiciais, mas não conclusivos.

     — Mas que permanecerão num arquivo em aberto, já que não existe proscrição legal para o crime de homicídio.

     — Certo, Sr. Desmond. Mas vamos analisar a situação caso por caso. Valerie Hallstrom é uma batata quente política e ninguém vai querer segurá-la.

     — Ella Deane?

     — Assunto encerrado. Não há problema.

     — E Frank Lemmitz?

     — O caso é da jurisdição inglesa e provavelmente não se irá estender por muito tempo... O que nos deixa apenas com o problema de Madame Arlequim, que morreu no México. Vamos então examinar esse caso e verificar onde podemos concordar. Meus advogados viram, embora eu pessoalmente não tenha visto, uma confissão de Pedro Galvez, incriminando-me. Poderiam levar-me a ser julgado tendo por base esse documento, mas certamente não obteriam uma condenação. Eu inegavelmente iria sofrer, mas acabaria recuperando-me. O Sr. Arlequim não ficaria em melhor situação do que está agora, com um imenso ônus financeiro e um mercado a se retrair para ele. Mas, se se abstiverem de qualquer ação legal, divulgação de fatos e rumores e investigações adicionais, poderão recuperar tudo, sem nenhuma discussão quanto aos detalhes. Pode garantir-me isso, Sr. Desmond?

     — Arlequim pode, eu não.

     — Por que não?

     — Ele pode retirar-me a procuração a qualquer momento.

     — E...?

     — Posso e tentarei persuadi-lo a concordar. Contudo, mesmo que Arlequim consinta, isso não lhe garantirá imunidade diante da polícia e do FBI...

     — Ora, Sr. Desmond!

     Estava sendo paciente e bondoso diante de minha ignorância.

     — Se há alguma coisa que conheço a fundo é o que a imprensa gosta de chamar de "a consciência da América". Posso resolver esses problemas e garantir-me toda a segurança necessária.

     — O que nos leva a outro item das negociações, Sr. Yanko.

     Isso arranhou um pouco seu verniz. O sorriso desapareceu instantaneamente e ele sacudiu a cabeça como um lagarto surpreendido.

     — Creio que já falamos de todos os itens mencionados por Karl Kruger.

     — E falamos. Mas esse último eu preferi deixar para debater em particular. Num documento oriundo de seus computadores, George Arlequim e eu fomos relacionados como alvos em perspectiva de ataques terroristas.

     — O documento em questão, Sr. Desmond, é um relatório particular de informações confidenciais, preparado por técnicos, que circula exclusivamente entre uns poucos assinantes.

     — Mas, como todos os relatórios, contém especulações destinadas a provocar ações, as quais, quando ocorrem, o senhor certamente alega que as tinha previsto. Em termos objetivos, o senhor disse que os mais novos alvos dos ataques terroristas são Paul Desmond e George Arlequim. A FPLP e o Rengo Sekigun nunca ouviram falar em nós. Então perguntam: "Quem são eles?" E lá estamos nós, embrulhados em papel de seda, prontos para entrega...É por isso, Sr. Yanko, que também precisamos de uma cláusula de imunidade no contrato. Pode garantir-nos isso?

     — Posso transmitir uma solicitação à direção executiva da FPLP. Através de amigos, é claro.

     — E teria uma resposta?

     — Normalmente, sim.

     — E quanto tempo demoraria até recebê-la?

     — Cerca de três dias.

     — Então deixemos as respostas para daqui a três dias.

     — Ótimo! E, se até lá tiver algum ponto sobre o qual deseje esclarecimentos, telefone por favor para meu escritório ou para este número. Se estiver em casa, atenderei.

     Foi até a escrivaninha, escreveu um número de telefone num cartão e entregou-me. Levantei-me para partir.

     — Sr. Yanko, obrigado por um excelente jantar e por uma conversa construtiva.

     — O prazer foi meu, Sr. Desmond. Meu motorista irá levá-lo para casa. Não se sinta ofendido se ele não lhe dirigir a palavra. O pobre rapaz é mudo.' Estamos cooperando com o programa de emprego dos deficientes físicos. Boa noite, Sr. Desmond.

     Eu levava ao sair um lindo ramo de oliveira, envolto em celofane e amarrado com uma fita rosa, entregue por pombos a arrulharem. Se não o aceitássemos, ele o empunharia como uma lança e o cravaria em nossas entranhas, enterrando-nos sob sete palmos do asfalto de Wall Street. Que Deus os tenha em paz, alegres cavalheiros — e que os mantenha em segurança através das horas sombrias!

    

     Não voltei para casa. Pedi ao motorista que me deixasse no Regency, onde Suzanne estava jantando com Karl Kruger. Sua rosa inglesa provara ser tão cheia de espinhos que ele a despachara de volta para Londres, embrulhada num bracelete de diamantes, e agora suspirava por Hilde. Ficou feliz ao saber que o acordo era possível. Ficou infeliz ao saber, pela primeira vez, que nós fôramos apontados como alvos para ataques terroristas. Consentira em efetuar uma diplomacia pessoal, não em se imiscuir numa situação política que tanto afetava seu próprio país. Viu também um mérito na decisão de Arlequim de eliminar Yanko. Sugeriu mesmo, gravemente, que talvez Aaron Bogdanovich estivesse disposto a assassiná-lo. Mas eu tinha certeza de que Bogdanovich não poria em risco sua organização com o ataque a um preeminente industrial americano.

     Suzanne ficou ouvindo em silêncio, chocada. Depois atacou-nos a ambos, furiosamente.

     — Chega! Não quero ouvir nem mais uma palavra! Estão falando como se vocês próprios também fossem assassinos! Se o acordo puder ser feito, façam-no logo de uma vez. Do contrário, não haverá um ponto final em toda essa insanidade.

     Karl Kruger murmurou um pedido de desculpas.

     — Eu sei, eu sei...Não vai acontecer novamente, liebchen. Mas é uma espinha atravessada em nossa garganta o fato de Yanko ficar sentado tranqüilamente ditando termos para pessoas decentes. Mas o que temos que nos perguntar agora é o que vai acontecer caso Arlequim recuse o acordo.

     — Que horas são, Karl?

     — Uma hora da madrugada. Já é tempo de pensarmos em ir para a cama...

     — Em Londres, são seis horas da manhã. Paul, telefone para George e vamos acabar logo com isso.

     — Suzy, querida, ele vai precisar de tempo para pensar...

     — Neste caso, quanto mais tempo tiver, melhor será. Vamos, telefone para ele!

     Poucos momentos depois a ligação para Londres era concluída e George Arlequim estava ao telefone. Parecia ter acabado de acordar. Pedi desculpas por estar incomodando-o tão cedo. Perguntou-me então:

     — Eles já entraram em contato com você também, Paul?

     — Não sei do que você está falando, George. É uma hora da madrugada aqui. Acabei de jantar com Basil Yanko e agora estou ceando com Suzanne e Karl Kruger...

     — Então quer dizer que você ainda não sabe...

     — Não sei de nada, George. O que aconteceu?

     — O pequeno Paul e a babá foram seqüestrados. Antes que eu tivesse tempo de dizer qualquer coisa,

     Milo Frohm entrou na linha.

     — Sr. Desmond, ouça com atenção e faça exatamente o que eu disser. A notícia ainda não foi divulgada. Não sabemos o que isso significa exatamente, embora possamos imaginar. Estamos esperando as exigências que serão feitas. Volte para seu apartamento e ligue para nosso escritório de Nova York, mandando chamar Philip Lyndon. Ele lhe dará as instruções necessárias. Quando soubermos de mais alguma coisa, voltaremos a lhe telefonar, para sua casa. Agora, por favor, poderia desligar? Precisamos manter a linha aberta.

     Fizemos exatamente o que fora determinado. Uma hora depois, estávamos em meu apartamento, com o Sr. Philip Lyndon gravando o relato da intervenção de Karl Kruger e da minha conversa ao jantar com Basil Yanko.

     O relato que Lyndon fez do seqüestro foi rápido, pois havia muito pouca coisa a contar. Às três horas da tarde a babá saiu com o menino para um passeio no parque junto ao lago de Genebra. Como sempre, o detetive acompanhava-os. Durante o passeio, duas mulheres e um homem haviam-nos abordado, desarmando o detetive e obrigando a babá e o menino, sob a mira de revólveres, a entrarem num carro que estava esperando. À meia-noite, alguém em Londres telefonara para Arlequim e informara-o de que o menino e a babá estavam em mãos da Frente Popular para a Libertação da Palestina. Ele deveria aguardar em Londres que entrassem novamente em contato. A intervenção da polícia seria inútil e perigosa para a criança e para a mulher. Era simples, formal e ameaçador como uma espada desembainhada.

     O que poderíamos fazer? Nada, disse o Sr. Lyndon firmemente; nada senão esperar, permanecer em silêncio e fazer tudo o que fosse ordenado. Pensei em telefonar para Yanko e transmitir-lhe a notícia. O Sr. Lyndon debateu a idéia por um momento e depois sugeriu que eu esperasse até as sete horas da manhã, quando traria um técnico para instalar um dispositivo para gravar a conversa. Às quatro horas da madrugada ele ofereceu-se para levar Karl Kruger de volta ao hotel em seu automóvel. Suzanne e eu ficamos sozinhos, contemplando o amanhecer de um dia sem esperanças. O Sr. Philip Lyndon voltou às seis horas, trazendo o técnico. Às sete eu estava ligando para Basil Yanko.

     Ele ficou surpreso ao ouvir-me tão cedo.

     — É bastante diligente, Sr. Desmond. Já falou com o Sr. Arlequim?

     — Já-

     — E como ele reagiu às minhas sugestões?

     — Não pude transmiti-las.

     — Alguma razão em especial?

     — Sim. O filho do Sr. Arlequim, juntamente com a babá, foi seqüestrado a noite passada, em Genebra.

     O ofego foi genuíno. Nenhum ator do mundo poderia ter representado o choque ou veemência da obscenidade:

     — Oh, que merda!

     — Os seqüestradores identificaram-se como sendo da FPLP. Arlequim recebeu instruções para permanecer em Londres, até um contato posterior. Isso é tudo o que sei.

     — Por favor, transmita minha solidariedade ao Sr. Arlequim e acrescente que estou pronto a ajudar por todos os meios ao meu alcance. Sabe onde pode encontrar-me.

     — Tendo em vista nossa conversa de ontem à noite, pensei...

     — Pelo que eu me lembre, Sr. Desmond, discutimos negócios e não política de terror.

     — ...pensei que, com seu conhecimento do mundo árabe, poderia sugerir um meio de se chegar a uma solução desse problema trágico.

     — Pensarei imediatamente no assunto. Contudo, devo ressaltar que mantenho relações tão somente com governos legalmente constituídos e com empresas. Mas, de boa vontade, pedirei conselhos a meus amigos, nesta emergência.

     — Era o que eu esperava do senhor.

     — Obrigado por telefonar. Entrarei em contato com o senhor posteriormente.

     O Sr. Philip Lyndon deixou escapar um esgar amargurado de admiração.

     — Ele não se deixou abalar! Parece feito de aço inoxidável!

     — Acha que foi ele quem organizou o seqüestro?

     — Não. Creio que ele armou uma situação para uso futuro e a FPLP antecipou-se. Agora a situação está fora do controle de Yanko. Ele ajudará, se isso lhe convier. Caso contrário, cruzará os braços e não fará absolutamente nada.

     — E o que me diz de meu testemunho e do de Karl Kruger?

     — Karl Kruger conversou apenas sobre um acordo de negócios. Suas declarações confirmam isso. A parte sobre assassinato e terror conta apenas com sua palavra.

     — É a mesma história de sempre!

     — O senhor deveria fazer meu trabalho por algum tempo, Sr. Desmond. Se não existe Deus e nenhum julgamento final, eu serei um homem bastante desapontado. Se receber algum telefonema de Londres, avise-me imediatamente. Farei o mesmo e lhe informarei tudo o que souber...Deixe o gravador ligado ao telefone. Vou colocar agora uma fita nova...E por que não aproveita para descansar um pouco?

     Havia mais uma coisa que eu tinha de fazer antes de poder descansar. Saí e fui até um telefone público, liguei para Aaron Bogdanovich e contei-lhe toda a história.

     Ele ficou apenas ligeiramente surpreso e nem um pouco comovido.

     — Londres e Genebra...Interessante...

     — Isso é tudo o que tem a dizer?

     — No momento é. Se precisa de algo mais, ligue para Peça-Uma-Oração-Pelo-Telefone. Algumas pessoas acham que isso ajuda bastante.

     — Não há nada de divertido.

     — Então experimente um velho provérbio chinês: quando estiver esperando a visita do carrasco imperial, é aconselhável tomar grandes quantidades de vinho de arroz...Relaxe, Sr. Desmond. Essa espécie de coisa sempre leva tempo para ser resolvida.

     Esperamos o dia inteiro, cochilando de vez em quando, assistindo à televisão, aguardando que o telefone tocasse. Nada. Telefonamos para Philip Lyndon meia dúzia de vezes. Ele também não sabia de nada e suplicou que não ocupássemos sua linha. Karl Kruger apareceu às seis horas da tarde para tomar um drinque e ficou para o jantar de Takeshi, sombrio como uma festa fúnebre. Às dez horas — as notícias de última hora, em cima da hora! — vimos o fato na televisão: um apartamento de quinto andar perto do aeroporto de Genebra, com a babá segurando o bebê diante da janela, tendo a seu lado um jovem árabe com uma metralhadora. O comentário foi uma narrativa no estilo enfático e emocionado dos locutores americanos:

    

     "Hoje, em Genebra, o menino Paul Arlequim, de três anos, e sua babá, Hélène Huguet, de trinta anos, foram seqüestrados e estão sendo mantidos como reféns por dois homens da Frente Popular para a Libertação da Palestina e um casal de japoneses, membros do Rengo Sekigun, organização terrorista japonesa. Os terroristas estão exigindo a libertação de dois prisioneiros árabes, um na Inglaterra e outro na Itália, condenados recentemente por acusações de seqüestro, posse ilegal de armas e outros crimes. As exigências dos terroristas foram apresentadas esta tarde. Querem também um avião para levá-los a um Estado árabe amigo, uma soma de dois milhões de dólares e imunidade contra ataques ou prisão. Eles fixaram um prazo de quarenta e oito horas. Se as exigências não forem atendidas, matarão primeiro a babá e, vinte e quatro horas depois, a criança. Paul Arlequim é filho do banqueiro George Arlequim, que recentemente figurou..."

    

     Karl Kruger estendeu a mão e desligou a televisão.

     — Pronto! Agora já sabemos. O dinheiro é fácil de conseguir. Dobrar os governos não é tão fácil assim. Os ingleses são pescoços-duros. Os italianos talvez demorem um pouco, mas acabarão concordando. Ó Deus meu, mas que mundo!

     Suzanne chorava baixinho. Ele envolveu-a num abraço de urso e censurou-a gentilmente:

     — Liebchen, liebchen! Eles não vão matar uma criança. São espertos demais para isso. Também precisam de simpatia. 0 bebê é quem menos corre perigo. Se eles lhe fizerem algo, a multidão enfurecida irá estraçalhá-los.

     Ele ainda estava consolando-a quando o telefone tocou. Liguei o gravador e atendi. Era Basil Yanko.

     — Sr. Desmond, arranquei meus banqueiros da cama. Liguei para a UPI, que transmitirá a notícia imediatamente. Haverá dois milhões de dólares à disposição, no Union Bank de Genebra, amanhã de manhã. Um presente, um presente sem qualquer compromisso. Estou fazendo todos os esforços possíveis, no terreno diplomático, para evitar essa tragédia...

     Enquanto eu ainda procurava decidir se devia amaldiçoá-lo ou agradecer, ele desligou.

     Karl Kruger começou a andar pela sala, explodindo de raiva.

     — O filho de uma meretriz! Ele faz tudo, ele desfaz tudo! E ainda quer se transformar em herói!

     Suzanne gritou-lhe:

     — Eu não me importo! Isso não tem nenhuma importância! Pelo menos ele está fazendo alguma coisa, enquanto nós ficamos apenas sentados aqui...

     Novamente o telefone tocou. Era Milo Frohm, de Londres. A voz soava exausta, mas polida como sempre.

     — Desculpe não ter telefonado antes. Estivemos ocupados, como pode perfeitamente imaginar. São três horas da madrugada aqui. Arlequim está em Genebra. Seu gerente de Londres e eu passamos o dia inteiro em negociações com o secretário do Interior. Achamos que ele vai terminar cedendo, mas o negócio está duro. Os italianos vão concordar...pelo menos é o que esperamos...

     Eu lhe falei da oferta de Yanko. Sua risada foi como o chocalhar da morte.

     — Santo Deus! Mas que artista! Não posso esperar pelo momento de pregar-lhe uma medalha no peito. No meio de tudo isso, só tenho uma notícia boa: o amigo de Alex Duggan está começando a ceder. Sua esposa está grávida e está apavorada com que algo possa acontecer ao filho de Arlequim. Continuem rezando e de boca fechada.

     — Sr. Frohm, recebeu o relatório sobre meu jantar?

     — Recebi.

     — E qual é a instrução a respeito?

     — Mantenha o negócio em aberto e procure também manter o Sr. Kruger em Nova York.

     — Como está George?

     — Não muito mal, considerando tudo.

     —- Gostaria que eu fosse para aí ou mandasse Suzanne?

     — Não. Fiquem ambos onde estão. Quanto mais difícil for, mais Arlequim vai resistir. E espero também agüentar. Sabe o que me aconteceu esta noite? O subsecretário convidou-me para jantar em seu clube, dizendo que lá se fazia o melhor lombo de carneiro de Londres. Lombo de carneiro, meu Deus! Mas, como diz a Bíblia, estamos todos trabalhando numa vindima. Boa noite ou bom dia, conforme for o caso aí.

     Pelo menos ele ainda conseguia rir. Tentei transmitir seu humor a Suzanne e Karl. Não foi uma boa transmissão, mas pelo menos arrancou um sorriso espectral de Suzanne e um resmungo de Karl.

     — Lombo de carneiro! E o melhor clarete do clube, senhor! Como eu me lembro disso! Por que ele quer que eu fique em Nova York?

     — Ele não disse, Karl. Mas a decisão compete a você.

     — Terei que mandar Hilde vir para cá. Tenho pesadelos se passar duas noites sozinho na cama. Vou telefonar agora mesmo para Munique.

     — Ora, Karl! Em Munique são agora quatro horas da madrugada!

     — E daí? Se ela estiver sozinha, ficará contente em ouvir-me. Se não estiver, então não merece estar dormindo. Vamos, passe-me o telefone!

     Suzanne desatou numa risada frouxa.

     — Não pode, Karl! Todas as conversas estão sendo gravadas.

     — Em alemão vai soar maravilhosamente...Ei, tenho uma idéia! Por que você não fala com ela primeiro? Diga-lhe que está na cama comigo e...

     Era uma brincadeira tola, mas nós continuamos nela com um fervor histérico e, depois que acabou, recordamo-la durante todo o jantar, até extrairmos a última gota. Karl acabou desmaiando no quarto de hóspedes, e Suzy e eu nos abraçamos num esquecimento misericordioso.

    

     O drama do seqüestro transformou-se numa peça importante do teatro político. Se você for um cínico, pode em uma hora ditar toda a seqüência. O que não pode imaginar, a menos que esteja pessoalmente envolvido, é a angústia insuportável da vítima e dos parentes, as tensões cruciantes tanto dos negociadores como dos seqüestradores.

     Os seqüestradores são os comandos de um grupo político, totalmente comprometidos, cuidadosamente instruídos, plenamente conscientes dos riscos pessoais. Se fracassarem, não podem esperar misericórdia. Serão estraçalhados por uma turba enfurecida, metralhados pela polícia ou encerrados numa prisão pelo resto da vida. A sanção sob a qual vivem, como a ameaça que impõem, é absoluta. Se suas exigências forem recusadas, eles matarão, porque a morte torna-se então inconseqüente para eles, mas consideravelmente conseqüente para o movimento que representam. O problema é que o ato de execução deve sempre ser levado a cabo a sangue-frio, mas a tensão que o precede pode tornar-se insuportável...É por isso que a presença de assassinos japoneses é um sinistro fenômeno. Os japoneses possuem uma filosofia da vida muito confusa, mas possuem uma filosofia da morte tradicional e extremamente objetiva.

     Os negociadores estão sempre em desvantagem, já que não são, e nem podem ser, absolutamente decididos ou resolutos. Todos concordam em que a vítima ou as vítimas devem ser salvas. O dinheiro é uma consideração de menor importância. Mas os dilemas envolvidos formam uma legião. Um governo não pode ceder a gângsteres políticos, mas não pode também concordar com a chacina de inocentes. Se os culpados forem escoltados para fora do país como diplomatas, a lei torna-se objeto de escárnio e novos ataques serão feitos. Se se impede a polícia de agir, destrói-se sua lealdade e, ao final, acaba-se por corrompê-la. Se se fabricam mártires, estão-se semeando dentes de dragão. Se se defendem os direitos das minorias oprimidas, não se pode sufocar pela força bruta a expressão de suas queixas.

     Para as vítimas propriamente ditas, não há recurso possível. Seus captores podem ser delicados. Mas são também implacáveis. Os libertadores parecem impotentes. A salvação depende exclusivamente de um sentimento de decência, que eles viram ser abdicado. Aaron Bogdanovich não estava brincando quando dissera que se podia ligar para pedir uma oração ou então embriagar-se. Ele estava sendo piedoso ao ignorar a alternativa que restava: ficar sentado quieto e esperar que o carrasco tivesse a mão firme.

     Estávamos a mais de seis mil quilômetros de distância, mas Suzanne e eu acompanhamos intensamente todos os atos do drama. A televisão ficava ligada o dia inteiro e metade da noite. Compramos todos os jornais e lemos todas as linhas das notícias que se escreveram a respeito, em alemão, inglês, francês e italiano. Um de nós estava sempre no apartamento. Quando Suzanne saía, Takeshi a acompanhava. Philip Lyndon telefonava quatro vezes por dia, com um sumário das notícias que recebera pelo telex. Karl Kruger entrava e saía a toda hora do apartamento. Hilde chegaria dentro em breve. Milo Frohm estava ocupado e era impossível entrar em contato com ele. Tudo o que soubemos de George Arlequim foram as palavras que ele disse aos repórteres. Ele mais parecia um fantasma ambulante, mas comportava-se com dignidade e falava quase sempre com moderação e extremo autocontrole. Ofereceu-se como refém em lugar da criança e da babá. A oferta foi recusada.

     À medida que se aproximava o término do primeiro prazo fatal, a espera tornou-se uma angústia terrível. Novas personagens apareceram em cena, delegados das embaixadas árabes, diplomatas japoneses, emissários da Inglaterra e da Itália. Suplicaram mais algum tempo. Mostraram o dinheiro do resgate e enviaram-no para o apartamento, o portador trajando apenas um calção, a fim de que os seqüestradores pudessem ver que ele estava desarmado. Enquanto subia, o japonês pendurou o menino para fora da janela, ameaçando largá-lo ao primeiro sinal de traição.

     No último momento, o prazo fatal foi estendido por mais vinte e quatro horas. Foi entregue leite fresco para a criança. Uma tripulação suíça apresentou-se como voluntária para o avião que levaria os seqüestradores a lugar seguro. Os italianos atravessaram a fronteira com seu prisioneiro e mostraram-no, sorridente e triunfante, para os seqüestradores. O prisioneiro inglês ainda não chegara, e o secretário do Interior sempre se recusando a fazer qualquer comentário. Finalmente ele chegou também. George Arlequim e seu gerente suíço ofereceram-se novamente como reféns substitutos. Dessa vez a oferta foi aceita. Eles desapareceram no interior do prédio. Houve cenas histéricas quando, longos minutos depois, a babá e a criança saíram, sendo apressadamente levadas para um carro da polícia e retiradas do local.

     E então, finalmente, o ordálio terminou. Os seqüestradores e seus reféns, sob a mira das armas, emergiram do prédio e seguiram para o aeroporto. Entraram juntos no avião. Os prisioneiros foram trazidos para o pé da escada. Riram e acenaram, fizeram sinais de vitória. E logo o avião decolou. Os reféns seriam devolvidos quando o avião voltasse.

     Suzanne finalmente desmoronou e chorou incontrolavelmente por mais de uma hora. Liguei para um médico e pedi que lhe desse um sedativo. Enquanto ela dormia, saí de casa e fui sentar-me no último banco da Catedral de Saint Patrick. Não rezei. Parecia não ter o menor sentido dizer que eu lamentava ou estava grato. Era apenas um lugar limpo e sossegado para estar, num mundo sórdido e turbulento.

    

     Dez dias depois George Arlequim voltou para Nova York. Veio com uma comitiva: os pais de Julie, uma nova babá, o bebê e três jovens, todos suíços, muito quietos, sempre vigilantes, nada comunicativos. O apartamento no Salvador não podia acomodar todo mundo, por isso alugamos as suítes adjacentes, e Saul Wells recrutou outra equipe de segurança, para guardar todos os acessos e verificar os visitantes e os empregados do hotel. Suzanne deixou meu apartamento e foi instalar-se junto da família. Arlequim queria que eu me mudasse também. Disse-lhe que não havia necessidade e, além disso, fazia questão de manter minha independência. Pediu-me que o informasse do que acontecera durante sua ausência. Ouviu atentamente, tomou anotações, elogiou meus atos e encerrou o assunto. Não era o momento de pressioná-lo para decisões. Quando ele estivesse pronto, eu estaria à sua disposição.

     Ele estava profundamente mudado. As têmporas estavam grisalhas, a pele do rosto repuxada por cima dos ossos. Os olhos tinham uma expressão contemplativa. Falava pouco, serenamente, ponderadamente, como alguém que tivesse passado muito tempo isolado de seus semelhantes. Seus movimentos também estavam diferentes, não eram mais elásticos e impacientes como nos velhos tempos, mas calculados, deliberados, quase furtivos.

     Recusava todos os contatos sociais. Durante o dia, trabalhava no Salvador, pedindo que as pessoas fossem vê-lo. O que, é claro, todos faziam, quando mais não fosse, em atenção a suas aflições recentes. À noite jantava com os pais de Julie e brincava com o bebê. Eram as únicas ocasiões em que eu o via sorrir, um sorriso terno, mas terrivelmente triste, como se ele sentisse vergonha de ter trazido uma criança para um mundo tão brutal. Só ficava zangado quando encontrava alguma falha nas complexas medidas de segurança. Então punia o responsável com palavras frias e cortantes. Tratava Suzanne com muita delicadeza, mas com cerimônia. Comigo ele não podia ser formal, mas deixou patente que queria manter uma certa distância. Três dias se passaram antes que ele me telefonasse e pedisse que fosse encontrá-lo, para tratar do que classificou de "assuntos pessoais". Quando cheguei, implorou-me que ouvisse sem nenhum comentário o que tinha a dizer.

     — Paul, você já fez bastante por mim, mais do que qualquer homem tem o direito de pedir a outro. Sei que você amava Julie e apoiou-a no momento em que ela careceu de meu próprio apoio. Não sinto ciúmes por isso. Pelo contrário, sou-lhe grato. Fico contente por meu filho ter o tio Paul. E fico contente também por tê-lo como meu maior amigo. E quero manter nossa amizade. Mas do jeito que as coisas estão atualmente, receio que possa vir a perdê-la. Por isso, gostaria que renunciasse ao cargo de diretor da Arlequim et Cie.

     — A qualquer hora, George. Hoje mesmo, se você quiser.

     — Hoje então. Mandarei Suzanne datilografar o pedido de demissão. Poderá assiná-lo antes de ir embora. Vou também cancelar sua procuração. Terá uma indenização integral pelo período em que exerceu o cargo de diretor. Você e Karl Kruger cobriram-me em quinze milhões de dólares. Já substituí essa cobertura e creditei-lhe o dinheiro, inclusive os juros correspondentes.

     — No meu caso, George, isso não era necessário.

     — Mas era apropriado, Paul. Creditei-lhe também a soma correspondente aos prejuízos que sofreu com a venda de suas ações na Creative Systems. Assim que acabarmos nosso trabalho aqui em Nova York, vou aposentar Suzanne, com o que penso ser um prêmio generoso por sua dedicação. Acho que ela precisa ter liberdade, tem suas próprias decisões a tomar...

     — E aonde tudo isso o leva, George?

     — Onde estou no momento, com um filho para criar e um negócio para reconstruir.

     — Posso perguntar-lhe como se propõe a fazê-lo?

     — Claro. Vou entrar num acordo com Basil Yanko.

     — Está querendo dizer que pretende vender-lhe Arlequim et Cie.?

     — Não. Vou apenas fazer um acordo com ele. Você e Karl Kruger já discutiram os termos fundamentais do acordo. Posso melhorá-los um pouco, numa negociação pessoal. Tudo dependerá, em parte, do sucesso que Milo Frohm obtiver em Londres e do compromisso que puder estabelecer entre a administração e sua agência. Essa parte, porém, está fora de meu controle.

     Ele estava sendo deliberadamente vago, mas eu não estava com disposição para pressioná-lo. Queria afastar-me de qualquer maneira. Ele estava me proporcionando a oportunidade de fazê-lo com dignidade. Poderíamos continuar amigos, mas a amizade nunca mais seria a mesma, porque ele mudara e eu não podia fazê-lo. O melhor era esperar que as coisas se acomodassem. Eu lhe disse então:

     — Já sabe que pedi a Suzy para casar-se comigo?

     — Não, ainda não sabia. Mas fico contente. Acho que é uma excelente idéia.

     — Mas ela ainda não aceitou.

     — Por que não?

     — É que ainda está apaixonada por você. Sempre esteve.

     Ele fitou-me com uma ligeira expressão de surpresa, como se eu estivesse falando sobre o preço dos tomates.

     — Mas não estou apaixonado por ela.

     — Era tudo o que eu queria saber. Obrigado, George. Esperarei em Nova York até que ela termine seu serviço e depois a levarei para longe...E agora vamos tratar dos documentos, está certo?

    

     Nos dias que se seguiram, senti-me estranhamente desamparado e sem objetivo. Terminara toda uma era de minha vida. Eu não sabia como, nem por onde iniciar outra. Fiquei longe do mercado financeiro e do clube, porque não queria responder a perguntas sobre meus planos, nem participar de conversas sobre Arlequim. Não lia os jornais, porque as notícias eram todas ruins e o mercado estava em baixa. Quanto menos eu operasse, melhor seria.

     Para preencher as horas vagas, fiz a ronda dos arquitetos navais e dos estaleiros, conversando sobre um velho sonho: um veleiro a motor que pudesse levar-me através do Pacífico. Percorria também as docas à procura de barcos esquecidos ou negligenciados que me pudessem servir. À noite, ia para o Salvador, tomava um drinque com Arlequim, brincava com meu afilhado e depois levava Suzanne para o bar de Gully Gordon.

     Ela também estava aturdida e constrangida. Seu trabalho agora era temporário. Não podíamos partilhá-lo. A decência exigia que eu não me imiscuísse em assuntos confidenciais dos quais fora formalmente excluído. Nosso relacionamento tornou-se tenso e irritadiço. Houve algumas trocas de palavras ásperas. Senti que ela estava se afastando de mim. Ela acusou-me de pressioná-la, de não lhe dar tempo para tomar uma decisão livremente, conforme prometera. Uma noite, depois de um jantar ligeiramente turbulento com Karl Kruger, e Hilde, ela prorrompeu em lágrimas e disse que era melhor passar alguns dias sem me ver. Entrei num turbilhão de festas com Mandy Ducaine e seus amigos, que me deixaram exausto, com dor de cabeça e mais solitário do que nunca. Ao chegar a casa às três horas de uma madrugada, encontrei um bilhete enfiado debaixo da porta. "Chéri, desculpe-me. Preciso vê-lo. Suzy." Telefonei-lhe na hora do café e conversamos durante meia hora, marcando um jantar em minha casa para aquela noite.

    

     Naquela mesma manhã, por vontade de ter algo melhor para fazer, caminhei até a loja de flores da Third Avenue e pedi para falar com Aaron Bogdanovich. Dessa vez fui convidado a passar para uma sala nos fundos, atravancada, onde o mestre do terror estava empenhado na tarefa prosaica de calcular suas contas.

     Ele acenou para que me sentasse, escreveu mais alguns números e depois recostou-se na cadeira, contemplando-me com uma expressão sardônica.

     — E então, Sr. Desmond, qual é a sensação de estar desempregado?

     — Estou começando a me acostumar. E como se sente, Sr. Bogdanovich?

     — Os agentes funerários e os floristas têm sempre trabalho. Além disso, continuo na folha de pagamento de Arlequim et Cie.

     — Isso é surpresa para mim.

     — Imaginava que seria. Por que deixou a companhia?

     — Pediram-me que me demitisse.

     — Sabe por quê?

     — Foram-me dadas algumas razões.

     — E elas o satisfizeram?

     — Não.

     — Por que ainda continua em Nova York?

     — Estou esperando para casar-me com Suzanne. Pelo menos, é o que espero.

     — Ela é uma ótima escolha.

     — Obrigado.

     — Por que veio até aqui?

     — Gostaria de pagar-lhe um almoço.

     — Obrigado, mas eu nunca almoço. Como está aqui, no entanto, vou lhe dar alguns conselhos.

     — Quais?

     — Não tenho amigos, Sr. Desmond. Não posso dar-me ao luxo de tê-los. Há poucas pessoas que respeito. Seu amigo Arlequim é uma delas. Ele é o tipo de homem que eu gostaria de ter sido, se as circunstâncias fossem diferentes. Por outro lado, não está preparado para ser o homem que eu sou...

     — Continue.

     — Ele pediu-lhe que renunciasse para que não fosse acusado de cumplicidade em seu plano.

     — Que é...?

     — O que sempre foi: matar Basil Yanko!

     — Não acredito! Não posso acreditar! Ele me disse...

     — Que ia fazer um acordo com Yanko. E vai. Depois ele o matará. Nenhuma outra coisa poderá satisfazê-lo. Depois, é claro, descobrirá que nada foi resolvido. Pediu-me que o ajudasse. Eu o farei, porque minha gente quer que Yanko seja eliminado. Posso agora imaginar, como não o conseguia antes, um meio de fazê-lo. Não poderá impedi-lo. Seria inútil tentar. Mas sugiro que fique por perto, para recolher os restos de George Arlequim ou pelo menos cuidar de seu filho.

     — Ter-me-ia contado tudo isso se eu não tivesse aparecido aqui esta manhã?

     — Teria. Só ontem à noite é que soube o que ele se propõe fazer.

     — Isso é engraçado, realmente engraçado...

     — O quê, Sr. Desmond?

     — Arlequim me desobriga de qualquer compromisso, e agora o senhor torna a me vincular, Sr. Bogdanovich.

     — E é exatamente isso o que nunca desejou, Sr. Desmond! Quer ambas as extremidades e o meio da salsicha. Quer a respeitabilidade sem a virtude, a posse sem a ameaça, o prazer sem o pagamento. Quer mercenários para executar suas mortes e cegos para enterrar seus mortos. Não é possível, isso não é mais possível no mundo de hoje. Mártir ou matador, eis as únicas alternativas! A menos que queira juntar-se à legião dos acorrentados, que se arrastam do nascimento à morte, chorando pelo Messias que nunca vem!

     Se ele não tivesse sido tão veemente, não o teria percebido. Se ele não tivesse sido tão positivo, eu teria ignorado a dúvida importuna que há muito se alojara no fundo de minha mente. Era uma dúvida tão tênue que tive de procurar as palavras para expressá-la:

     — Acho...acho, Sr. Bogdanovich, que o senhor está nos usando, a mim e a Arlequim.

     Não houve o menor indício de emoção em seu rosto taciturno. Os olhos eram janelas vazias para uma alma vazia.

     — O que está querendo dizer com isso, Sr. Desmond?

     — Valerie Hallstrom...

     — O que há com ela?

     — Vamos voltar à seqüência dos acontecimentos. Revistou o apartamento dela. Saiu. Viu um homem entrar. Viu-a chegar a casa. Viu o homem sair. Voltou e encontrou-a morta. Foi isso o que me contou.

     — Exatamente.

     — Mas ela era sua agente. Enquanto ela estava sendo assassinada, o senhor ficou esperando do lado de fora...

     — E daí?

     — Sabia o que estava acontecendo e deixou que acontecesse.

     — Tem razão.

     — Por quê, Sr. Bogdanovich?

     — Valerie tinha chegado ao fim. Andava bebendo no bar de Gully Gordon e falando demais, como fez com o senhor. Sua identidade tinha sido descoberta. Yanko mandou matá-la. Deixei que acontecesse, como o disse. Agora estou acertando as contas. Yanko morrerá muito em breve. Arlequim e eu já acertamos todos os detalhes. Será uma solução perfeita para todos nós. Creio que compreenderá que fizemos jus aos nossos honorários.

     — Ainda acho que está nos usando...

     — Está me insultando, Sr. Desmond. Além do mais, esquece nosso contrato: se houver sangue no tapete, eu limpo depois; por outro lado, ambos se comprometeram ao silêncio. Se não tem estômago para o que está acontecendo, volte para casa. É um privilégio que ainda lhe resta.

     — Vou falar com Arlequim.

     — Pode fazê-lo. Mas não se esqueça de que não era sua a esposa assassinada na Cidade do México, não é seu o filho que foi pendurado para fora da janela de um quinto andar em Genebra.

     Ele não estava zangado, nem mesmo estava enfático. Poderia estar lendo uma cartilha de criança. Ao levantar-me para partir, fez um gesto para que ficasse mais um instante e murmurou com uma ironia estranha e condescendente:

     — Eu estava falando a sério, Sr. Desmond. O menino vai precisar de seu apoio. E talvez o senhor tenha que recolher o que restar de seu amigo. Fique por perto. Não será tão ruim quanto está pensando. A morte é um acontecimento muito banal.

    

     Deixei-o calculando os custos e os lucros da loja de flores e caminhei durante uma hora através do tumulto de Nova York na hora do almoço. Não havia ninguém pedindo minha companhia, não havia lugar algum que ficasse vazio sem minha presença. Olhei as vitrinas e vi apenas um amontoado de objetos sem significado. Olhei para os rostos e vi apenas máscaras de atores. Senti o cheiro de comida e não me apeteceu. Lambi os lábios e desejei beber, mas sabia que engasgaria ao primeiro gole. Queria companhia, mas fugiria à primeira palavra de cumprimento. Não estava com medo, não me sentia envergonhado. Estava apenas vazio e descrente. Minha frágil filosofia estava em frangalhos, meu código irracional estava tão cheio de buracos quanto um queijo suíço. Aaron Bogdanovich abalara-me até a alma, mas eu não pudera demovê-lo um centímetro sequer da firme convicção de que a vida era uma inconseqüência, mais fácil terminada do que consertada.

     Depois de algum tempo, minha cabeça latejava e os pés doíam, e por isso voltei para casa. Takeshi preparou-me um café. Eu não queria pensar em mais nada. Peguei um livro na estante ao acaso e, sem olhar para o título, comecei a ler a primeira página que abri:

     "... Não sei quem ou o que fez com que a pergunta fosse formulada. Não sei quando ela se formulou. Nem mesmo me lembro de tê-la respondido. Mas, em algum momento, respondi sim a alguém ou a alguma coisa. E a partir desse momento tive certeza de que a vida tinha um sentido e que, em conseqüência, minha vida em submissão.. . tinha um objetivo..."

     Olhei para o título da página. O livro era Anotações, os apontamentos pessoais do homem estranho e complexo que foi Dag Hammarskjõld. Continuei a ler:

     "... Daquele momento em diante, soube o que significa não olhar para trás e não pensar no amanhã. Segui...através do labirinto da vida, chegando a um tempo e um lugar em que compreendi que o caminho leva a um triunfo que é uma catástrofe, que a única elevação possível ao homem encontra-se nas profundezas da humilhação..."

     Não compreendi muito bem, mas fiquei estranhamente comovido. Senti a necessidade de copiá-la nas folhas de rascunho de minha agenda de bolso, onde não poderia deixar de ver aquela idéia todos os dias. Tinha acabado de fazê-lo quando Takeshi entrou, tossiu delicadamente, assoviou baixinho, fez uma mesura e suplicou um momento de meu valioso tempo.

     — Pois não, Takeshi. O que é?

     — Tenho algo para dizer-lhe, senhor. Não é muito fácil.

     — Sente-se então e disponha do tempo de que precisar.

     — Não, senhor, obrigado. As coisas que aconteceram ao senhor e a seus amigos...

     — As coisas que aconteceram...sim?

     — Na televisão. No dia em que eles penduraram o bebê pela janela...

     — Continue, Takeshi.

     — O homem que estava segurando o bebê era meu sobrinho, aquele para quem sempre mando os selos de suas cartas.

     — Você sabia antes que ele pertencia ao Rengo Sekigun?

     — Só tive certeza quando o FBI veio fazer-me perguntas. Antes não sabia.

     — Por que não lhes disse?

     — Tenho família na Califórnia e no Havaí. São todos boas pessoas. Bons japoneses, bons americanos. Durante a guerra, foram colocados em campos de prisioneiros, como se fossem inimigos.

     — Por que não me contou?

     — O senhor estava no México, na ocasião.

     — Mas depois? Aqueles homens poderiam ter-me apanhado ou à Srta. Suzanne. Fomos alertados de que isso era possível.

     — Se meu sobrinho tivesse vindo aqui, eu o teria matado.

     — Ele o teria matado primeiro, Takeshi.

     — A gente sabe dessas coisas, senhor, mas não acredita nelas. Agora, quando já é tarde demais, é que eu acredito que seja possível.

     — Deveria ter-me contado antes.

     — Tem razão, senhor, mas eu me sentia por demais envergonhado. Se lhe for conveniente, senhor, partirei pela manhã.

     — Takeshi...

     — Senhor?

     — Por que quer ir embora?

     — Meu sobrinho me desonra, eu desonro o senhor.

     — A honra é como um caniço, Takeshi, que se verga quando nos apoiamos nele.

     — Em que então nos podemos apoiar, senhor?

     — Sente-se, Takeshi, pelo amor de Deus! Fico cansado de estar olhando para cima para vê-lo...Lembra-se do homem que dorme num túmulo?

     — Lembro-me, senhor.

     — Ele me disse hoje que não há meio-termo para viver. A gente tem que morrer por uma verdade ou matar por ela. Devo acreditar nele?

     — É exatamente isso o que meu sobrinho diz.

     — E o que você acha, Takeshi?

     — Não se corta uma flor para fazê-la desabrochar. E de que adianta a verdade para um homem morto...Por acaso, o senhor sente vergonha por não dormir também num túmulo?

     — Não...porque não tenho coragem para fazê-lo.

     — Durante a guerra, quando líamos sobre as cargas banzai e os pilotos kamikaze, meu pai costumava sacudir a cabeça e comentar que um sábio covarde era melhor que um idiota herói. Acho que ele estava certo.

     — Você precisa mesmo ir embora, Takeshi? Tem um emprego melhor em vista?

     — Não, senhor.

     — Então fique mais um pouco e vamos nos apoiar um no outro.

     Ele não se iria rebaixar a demonstrar prazer, mas fez três reverências e assentiu. Depois indagou se me faltava fé em suas habilidades culinárias ou em seus cuidados domésticos. Se tal não acontecia, por que a Srta. Suzanne não ficava no apartamento, ao invés de se meter em algum hotel apinhado? Era bom senso puro, se eu ao menos pudesse persuadi-la a percebê-lo.

    

     Às cinco horas da tarde Saul Wells veio visitar-me. Ele estava apresentando relatórios regularmente a George Arlequim. Tinha a impressão de que seus serviços não eram mais de grande valia. Não fazia idéia dos motivos que me tinham levado a renunciar. Estava ganhando um bom dinheiro, mas estava se formando uma situação que ele simplesmente não entendia. Não queria continuar na ignorância e esperava que eu pudesse esclarecê-lo.

     Contei-lhe metade da verdade. Arlequim era um homem cheio de cicatrizes, tinha que se manter ocupado, precisava estar no controle absoluto de tudo. Eu não queria que nossa amizade fosse prejudicada por conflitos de orientação política. Saul aceitou com alguma reserva. E perguntei-lhe a respeito de Bernie Koonig. Ele instantaneamente se animou.

     — A história de Koonig é muito estranha. Ele é um malfeitor de pouca monta e costuma alugar seus músculos para os rapazes dos jogos de azar e para os agiotas. Frank Lemmitz costumava usá-lo, coisa que já sabíamos. Mas o que não sabíamos, e levei todo este tempo para descobrir, é que ele antes trabalhava na Califórnia para Basil Yanko, casado então com sua segunda esposa, aquela que morreu quando sua lancha explodiu. Koonig tinha o mesmo emprego que Lemmitz aqui em Nova York: era motorista, guarda-costas, tudo o que imaginar. Depois do acidente, ele deixou a Califórnia e veio para o leste. Tinha dinheiro então, muito dinheiro, mas esbanjou tudo e começou a trabalhar para os gângsteres. Desde que Lemmitz morreu ele anda apavorado.

     — Falou com ele?

     — Não, mas Bogdanovich falou.

     — Estive com ele esta manhã. Não me disse nada. Saul Wells lançou-me um olhar estranho, desembrulhou outro charuto, demorou bastante para cortar a ponta e acendê-lo. Finalmente, um tanto embaraçado, disse-me:

     — Sou um rapaz judeu muito simples, Sr. Desmond. Mando dinheiro para Israel e freqüento a sinagoga. Aaron nada tem de simples e faz coisas diferentes. Como ele as faz ou por que as faz são coisas que nunca lhe perguntei. E, mesmo que ele me contasse, eu saberia que era apenas uma parte da verdade. Ele é como um mágico, que põe uma bala de hortelã na boca e tira limonada do cotovelo. É um truque. A gente fica esperando,encontrar uma relação entre os dois fatos, mas não existe nenhuma. Com Aaron, porém, sempre há uma relação. Como a que existe entre uma moça que vai para a cama com um sujeito em Paris, o homem que compra uma passagem de avião em Lima, Peru, e o cadáver que aparece flutuando no rio Delaware quatro dias depois...Então Bogdanovich conversou com Bernie Koonig e não lhe disse nada. Pois bem: deixe por isso mesmo!

     — O que mais pode dizer-me, Saul?

     — Basil Yanko entrou em contato comigo.

     — Mas que diabo! O que ele quer?

     — Ele quer que a Lichtman Wells trate dos problemas de segurança da Creative Systems. É um contrato muito grande.

     — Você seria um tolo se o recusasse, Saul.

     — Não é mesmo? Ele também me ofereceu uma gratificação pessoal de cem mil dólares.

     — Para quê?

     — Para receber cópias de todos os meus relatórios para Arlequim et Cie. e todos os demais documentos de que eu me puder apossar. Disse-lhe que iria pensar a respeito e depois falei com Aaron.

     — E o que foi que ele disse?

     — Achou que era uma boa idéia, contanto que pudesse adulterar os documentos antes de eu entregá-los a Yanko.

     — Arlequim já sabe disso?

     — Claro. E parece que não se importou. Se Aaron o aconselhava, ele concordava.

     — Por que então veio contar-me, Saul?

     — Porque acho que estamos no mesmo barco, Sr. Desmond, subindo contra a correnteza e sem nenhum remo. Arlequim assumiu seu lugar, Aaron assumiu o meu. Eles formam uma dupla terrível. Não gostaria de ser apanhado nas garras de ambos. Quando conversei com Aaron, ele me disse: "Receba seu dinheiro em espécie, Saul. Não se pode assinar cheques na cadeia e, quando a pessoa morre, o banco suspende os pagamentos".

     — Perguntou-lhe o que isso significava?

     — Acho que não me entendeu, Sr. Desmond. Com Aaron, se não se compreende as palavras, simplesmente não se merece sabê-las.

     Eu ainda estava tentando engolir essa espinha atravessada em minha garganta quando Karl Kruger e Hilde chegaram, ofegantes, de uma surtida às lojas da Fifth Avenue. Hilde tinha os pés doendo, três vestidos novos e um broche de diamantes. Karl tinha um rombo na carteira e uma sede violenta. Saul Wells esbugalhou os olhos diante dos fartos encantos de Hilde. Quando ela se acomodou no sofá, ele sentou-se o mais perto que pôde e começou a falar pelos cotovelos, enquanto Hilde tomava seu drinque e sorria sonhadora ao longo do monólogo. Sou mico de circo se ela entendeu uma palavra em cada dez, mas Saul era um homem, e Hilde não pediria mais nada até o momento em que ele o fizesse — e então Saul precisaria recorrer até ao último cent de seus cem mil dólares.

     Karl Kruger espalhou seu vasto corpo numa poltrona, engoliu uma garrafa de cerveja em tempo recorde, arrotou alegremente e depois exigiu um uísque para acalmar os nervos. Declarou solenemente que as mulheres eram as mais esplêndidas criaturas de Deus, contanto que não se tivesse nada a fazer com elas senão depois do escurecer. Fazer compras era um passatempo para cretinos, entre os quais ele era o menos inteligente. Quando lhe perguntei como iam as coisas entre Arlequim e Basil Yanko, ele resmungou, irritado.

     — E por que tem que perguntar a mim, hem? Eu disse a George que ele era um idiota por deixá-lo ir...As coisas estão progredindo. Os dois já elaboraram um esboço de acordo e recomendaram a seus advogados que preparassem o contrato formal. Falo com George, falo com Yanko. Durante todo o tempo fico me perguntando por que a polícia e o FBI não intervém. O homem, afinal, é um criminoso.

     — Não é, não, Karl, enquanto eles não o provarem.

     — E será que eles querem mesmo prová-lo, hem? Eu nunca tinha ouvido falar, em toda a minha vida, em leis tão "complicadas. Se a gente é rica o suficiente neste país, pode praticamente reescrever o código com a ajuda das autoridades.

     — Somente quando isso lhes convém, Karl...que é precisamente o que acontece nas atuais circunstâncias. Como está George?

     — Eu lhe disse um dia que havia uma fraqueza nele. Pois não existe mais! Ele está duro como granito. Ouve. Medita. Decide. Depois disso, nada mais consegue demovê-lo. 'Yanko está arrependido de sequer tê-lo conhecido.

     — Mas eles vão chegar a um acordo?

     — Vão. Mas devem fazê-lo com decoro. Arlequim precisa disso, se é que deseja recuperar seu lugar no mercado. Não é suficiente ganhar, precisa também ganhar com generosidade. Foi o que lhe disse. Herbert Bachmann também.

     — E Arlequim concordou?

     — Concordou. Ele me disse: "Karl, sou um excelente ator. As pessoas acreditarão no que pensarem que estão vendo. Todo mundo ficará satisfeito, exceto eu mesmo".

     Hilde saiu do sofá, atravessou a sala de pés descalços, enlaçou-me pelo pescoço e sussurrou:

     — Pelo amor de Deus, Paul, salve-me daquele Klumpen!

     Saul Wells seguiu-a, apenas para ser agarrado por Karl Kruger, que lhe segurou o pulso com a mão imensa e lhe disse:

     — Quero falar-lhe, Sr. Wells! Ouvi dizer que é um homem muito esperto em questões de segurança. O que significa isso, meu amigo? Segurança para quê e contra quem?

     Hilde encurralou-me a um canto do bar, segurou minha mão e exigiu que eu lhe contasse tudo.

     — Paul, o que está pensando em fazer com relação a Suzanne? Ela está encarcerada como uma freira naquele maldito hotel. Martela o dia inteiro na máquina de escrever. Olha para George Arlequim com aqueles seus olhos de corça mansa e diz: Sim, senhor! Não, senhor! Ele não perceberia se ela estivesse falando sânscrito! Deus do céu, que desperdício! Não gosto de mulheres, mas ela é uma das boas. Ouça, schatz! Todos nós ficamos azedos e cheios de rugas. Não desperdice os melhores anos de sua vida. E também não desperdice os dela!

     — Hilde, querida, eu já a pedi em casamento. Ela disse que precisa de tempo para pensar.

     — Paul, você é um Klumpen maior do que aquele ali! Nenhuma mulher precisa de tempo. Sem um homem, ela não sabe o que fazer com o tempo de que dispõe. Olhe só para Karl. É gordo, muito velho e um dia cairá morto a caminho do escritório...mas eu o amo! Quando ele se for, irei definhar como uma macieira no inverno!

     — Hilde, eu a amo, mas você está completamente embriagada.

     — Eu o amo, schatz, mas você está sóbrio demais para seu próprio bem. Quando você verá Suzy de novo?

     — Esta noite... se conseguir tirar todos vocês daqui a tempo.

     — Então diga a ela! Não pergunte, apenas diga: "agora ou nunca". E, se ela quiser argumentar, mande-a para casa e chame-me. Karl! Vamos, de pé! Paul tem visitas. Levante-se também, Sr. Wells. Fora...fora...E quanto a você, meu Paul, assim que tudo estiver resolvido, telefone-me imediatamente, dê-me sua carteira e eu lhe trarei de volta a mais linda noiva que já viu em toda a sua vida...Ó Deus, como os homens são estúpidos! Sr. Wells, traga meus sapatos. Karl, seu grande tolo, vamos indo. Agora!

     Eles saíram, numa agitação de despedidas, numa nuvem de fumaça de charuto e exalações de uísque. Rapidamente tomei um banho, barbeei-me e vesti-me, enquanto Takeshi, murmurando irritado, arejava e arrumava a sala. Quarenta minutos depois ela estava fresca e tranqüila como o jardim de um templo. A mesa estava posta, os coquetéis misturados, as velas acesas e Oistrakh tocava Beethoven, mas Suzanne ainda não chegara.

     Chegou atrasada uma hora, nervosa e à beira das lágrimas. Não mudara de roupa. O cabelo estava desarrumado. Trouxera roupas e objetos de maquilagem numa valise. Precisava de outra hora para tomar banho e mudar de roupa. Takeshi, nobre filho dos samurais, assegurou-lhe que o jantar poderia ser servido à meia-noite, se assim o desejasse. Servi-lhe dois drinques, exultando secretamente enquanto ela se livrava das atribulações de um dia horrível.

     A manhã fora preenchida por negócios do banco: o afastamento de Larry Oliver, uma longa conferência com Standish, telegramas de Genebra e das filiais estrangeiras, informações do mercado, problemas dos clientes, movimentos financeiros, telefonemas frenéticos para colocar ordens e aceitar comissões na Europa. À tarde chegara Milo Frohm, vindo de Londres, o que queria dizer que ela ficara na ociosidade enquanto George Arlequim e ele se trancavam, incomunicáveis, durante duas horas. O bebê estava com eólicas, o que implicava caçar um médico e acalmar dois avós franceses extremamente preocupados. E então, às cinco e meia — certamente não havia outro país tão pouco civilizado no mundo inteiro! — houvera uma conferência entre Arlequim e Yanko, com a presença dos advogados de ambos, e ela tivera que esperar até que chegassem às conclusões, para anotá-las em taquigrafia, depois passar o esboço à máquina, tornando a datilografá-lo depois de meia hora de emendas e correções...E, ao final de tudo, George se fora sem uma palavra sequer de agradecimento ou desculpas. Era demais. Ela mal podia esperar até...até...

     Não perguntei o que aconteceria então. Tranquei-a no quarto e deixei que reparasse os estragos do dia, enquanto lia mais algumas anotações de Dag Hammarskjõld e Takeshi cantava, desafinado, junto às suas panelas e frigideiras.

     O jantar foi fácil. Comer, beber, ouvir música, fazer um elogio a Takeshi sempre que ele metia a cabeça pela porta. Não conversamos muito, porque as palavras se interpunham no caminho da harmonia. Era mais simples sorrir, tocar as mãos e olhar um para o outro, sorrir novamente, erguer o copo e beber o vinho seco, num contentamento fugaz. Depois, quando Takeshi se retirou, acomodados confortavelmente, como gatos em semi-escuridão, perguntei:

     — Vai passar a noite aqui?

     — Vim preparada para isso...se não se importa.

     — É esse o problema, querida: não tem que ir para casa.

     — Eu o magoei, chéri. Sinto muito.

     — E eu perdi a cabeça. Desculpe-me também.

     — Paul, você costuma pensar em Julie?

     — Durante o dia, não. Mas, à noite, algumas vezes tenho pesadelos, vejo-a caída no chão, no hospital, eu amarrado, sem conseguir chegar até ela. Por que pergunta?

     — Na noite que passamos na casa de Francis Mendoza fizemos amor e depois você adormeceu. Fiquei acordada durante muito tempo. Você falou no sono, chamando o nome dela, não o meu. Fiquei assustada...Quando George me pediu para ficar no Salvador, exultei. Tive uma porção de fantasias infantis: ele iria acordar durante a noite, solitário, e viria à minha procura; eu o ouviria, inquieto e murmurando desesperado, depois iria para ele...Nas primeiras noites fiquei acordada durante horas, esperando, cheia de esperanças...Nada aconteceu. Foi por isso que discuti com você. Na noite seguinte sonhei com ele, como você deve ter sonhado com Julie. Ele estava lá, mas eu não podia alcançá-lo. De repente eu estava livre, mas ele já se fora...Quando acordei, estava tudo acabado — pata sempre. Vim aqui na noite seguinte, bem tarde, mas você tinha saído. Deixei um bilhete debaixo de sua porta. Isso é um absurdo, não acha?

     Nós sonhamos com outras pessoas e não conseguimos ficar afastados um do outro!

     — Querida, já vivemos muitas experiências, eu mais do que você. Não podemos apagá-las. Nem mesmo devemos tentar. É precisamente isso o que nos torna ricos para nós mesmos e para as outras pessoas. Quem está interessado num livro cheio de páginas em branco? Todos temos amantes fantasmas. Todos temos sonhos dourados — e tenebrosos também. Mas, nos sonhos, somos sombras a perseguir sombras. Quando acordamos...

     — É isso o que me preocupa, chéri. O que acontece quando despertamos?

     — Procuramos pelo rosto conhecido, pelo sorriso familiar. Tocamos o corpo conhecido, cheiramo-lo, experimentamo-lo, confortamo-nos um ao outro. O conhecimento é indispensável para o amor. Sem ele, não sabemos ao certo nem se somos nós mesmos. Sonhamos com coisas que poderiam ter sido, mas voltamos agradecidos ao que é e a quem é. Não nos podemos unir a fantasmas. Não há substância neles e absolutamente nenhum calor...Mas que diabo! Eu estou falando como um filósofo de algibeira!

     — Como eu gostaria de que você tivesse dito tudo isso muito tempo atrás!

     — Eu não sabia antes...Ou talvez soubesse e fosse orgulhoso demais para dizer. Suzy, querida, não vamos esperar mais. Diga-me sim e vamos começar logo a ter uma vida própria, juntos. Estamos desperdiçando o tempo e a nós também.

     — Só mais uma pergunta, Paul. Prometo que será a última. Podemos ficar junto de George até que tudo isso esteja terminado?

     — Podemos e ficaremos.

     — Então, sim, meu amor...Sim! Ó chéri, é tão bom estar em casa!

     Foi estranho: não houve absolutamente o menor drama no momento. Foi simples, calmo, fácil, como ficar em terra, ao abrigo do vento, do mar tumultuado. Ainda podíamos ouvir a tempestade, ainda podíamos ver as nuvens escuras amontoando-se no alto das colinas. Mas estávamos seguros em nosso refúgio e capazes, finalmente, de dizer uma prece pelos outros pobres marinheiros.

     Pela manhã fomos juntos para o Salvador e contamos a George Arlequim. Disse que se sentia feliz por nós dois e agradecido por Suzy esperar até que todos os seus negócios em Nova York estivessem acertados. Perguntou onde e quando nos íamos casar. Dissemos-lhe que esperaríamos até que todos estivéssemos de volta a Genebra, a fim de podermos comemorar juntos o acontecimento. Ele demonstrou alguma dúvida, pois ainda não fizera planos. Deveríamos acertar tudo sem contar com ele. Se pudesse estar conosco, ficaria encantado, é claro.

     Ao lhe perguntar quando estava pensando em fechar o acordo com Yanko, mostrou-se deliberadamente vago. Muito breve, dentro de uma semana, talvez mais. Ainda tinha assuntos a acertar com Milo Frohm. Não disse quais eram, também não perguntei. Mas decidi que eu tinha o direito de perguntar a Milo Frohm. Liguei para ele do telefone público do saguão. Disse que poderia dispor de uma hora inteira, antes do almoço, e estaria preparado, se não feliz, para encontrar-se comigo em meu apartamento. O preâmbulo foi mais constrangedor do que eu imaginava.

     — Sr. Frohm, encontro-me numa situação muito difícil. Como já sabe, não tenho mais nenhuma posição legal em Arlequim et Cie. Minha posição pessoal também se alterou. Arlequim deixou claro que não deseja que eu me envolva ainda mais. Contudo, continuo seu amigo e estou preocupado com ele. Gostaria de falar-lhe, portanto, em particular. Tem alguma objeção?

     — Nenhuma. Contanto que compreenda que tenho de reter certas informações.

     — Compreendo e aceito.

     — Qual é seu problema, Sr. Desmond?

     — Se eu tentar defini-lo, certamente não o farei com muita clareza. Vamos começar pelo fato de que George perdeu a esposa e passou por uma experiência brutal com o filho. Fechou-se dentro de si mesmo, numa espécie de inferno particular...

     — E o senhor gostaria de tirá-lo de lá.

     — Tenho receio pelo que ele possa fazer enquanto estiver dentro desse inferno.

     — Continue, Sr. Desmond.

     — Sei que está sendo discutido um acordo com Basil Yanko. Fui eu que fixei os termos iniciais para as negociações.

     — E...?

     — Agora não vejo como poderá dar certo. Temo que possa ser o prelúdio para uma tragédia pior do que qualquer uma a que já assistimos.

     Milo Frohm analisou lentamente a sugestão, mas não a rejeitou. Começou uma explicação cautelosa e indireta:

     — Vamos conversar sobre o acordo, que na verdade não é um acordo e sim um negócio delicado...A idéia não me agrada, mas estou sendo pressionado a torná-la realidade. Arlequim também não se sente muito feliz, mas está sob uma pressão muito maior...Nenhum de nós tem a menor dúvida de que Yanko está por trás de tudo o que aconteceu. Algumas coisas podemos provar, outras não. E o que podemos provar exigirá longas investigações e provavelmente terminará em ações legais abortivas. Todas as coisas de que sabemos têm conseqüências políticas agudas...A justiça é a menor de nossas preocupações, porque simplesmente é impossível dispensá-la. Não podemos trazer os mortos de volta. Portanto, o que tentamos é alcançar uma ilusão de que a justiça foi feita, através de um compromisso mútuo, fora dos tribunais. Mas eu acho que isso está errado, pois desacredita a lei. Enfraquece também a ordem pública, que, neste momento, repousa num aparato muito frágil de coação. Contudo, sou um homem que obedece a ordens. Investigo, relato, aconselho. Não posso determinar uma ação. De fato, sou forçado a curvar-me a opiniões contrárias, que dizem que, se não se pode fazer com que uma acusação seja mantida, então o melhor é nem apresentá-la, que é melhor tolerar um criminoso nas altas esferas do que demonstrar, publicamente, que se é impotente contra ele. A teoria é de que é melhor desgastar seu poder do que lançá-lo num confronto direto...A conseqüência é que isso completa o divórcio entre a política e a moral — e ao final se pagará um preço infernal por isso.

     — Mas assim também não desvirtua a lei, Sr. Frohm?

     — Não é bem assim, Sr. Desmond. Seria melhor dizer que se usa a lei de forma incorreta. Um exemplo disso é a confissão de Pedro Galvez. É um documento autêntico. Leve-o aos tribunais e a defesa irá atacar sua credibilidade. Em nossa posição, tudo o que precisamos dizer é que achamos que essa prova não resistirá nos tribunais. Não há nada de ilegal nisso. Arlequim e a República são os autores da queixa. Eles têm liberdade de escolha das provas que desejarem apresentar, mesmo num caso de homicídio. Não estamos dizendo que Yanko ficará imune a um julgamento, agora ou mais tarde. Estamos simplesmente negando o valor de nossas próprias provas...

     — Contra um vultoso acordo financeiro com Yanko, o que vem a ser suborno.

     — Seria mesmo, se fosse considerado como tal. Na realidade, está sendo expresso como uma reparação voluntária dos danos...

     — Causados por conspiração criminosa...

     — ...por parte de empregados, os quais o Sr. Arlequim, generosamente, declina de processar.

     — E isso é o fim de tudo?

     — Sabe perfeitamente que não, Sr. Desmond. Mas, para que seja viável, tudo depende de uma combinação de atitudes políticas, pressões do mercado e manobras legais. É preciso uma conspiração de silêncio para atingirmos os objetivos desejados.

     — Ou seja: um crime de omissão.

     — O que é uma coisa muito difícil de provar. Tentei uma vez e nada consegui...Não, Sr. Desmond, se o acordo for feito, terá que ser mantido.

     — Mas não o será. Ficará em aberto de ambos os lados. Yanko consegue uma suspensão da ameaça, mas não uma impunidade total. E George Arlequim recebe dinheiro por uma esposa morta. Não acredito que nenhum dos dois possa ou vá satisfazer-se com tal situação.

     — Yanko está sob a mira de uma arma. Ele aceitará.

     — E George Arlequim aceitará também, mas...

     — Mas o quê, Sr. Desmond?

     A partir desse ponto, eu estaria pisando em ovos, e ambos sabíamos disso.

     Cuidadosamente, disse:

     — Estou sugerindo, sonhando ou inventando o próximo passo: outro acordo, pelo qual Yanko seja eliminado e George Arlequim obtenha a impunidade.

     Novamente o pensamento era-lhe familiar. Foi mais direto:

     — E isso o deixaria preocupado, Sr. Desmond?

     — Destruiria o homem que é meu amigo há vinte anos.

     — Mas, segundo sua invenção, ele ficaria impune.

     — Não de si mesmo, Sr. Frohm...Agora estamos sozinhos e conversando em particular. Acha que esse sonho pode transformar-se em realidade?

     — Pode.

     — E, como agente da lei, concordaria com isso?

     — Não. Eu disse apenas que poderia acontecer.

     — Se Arlequim fosse seu amigo...

     — Ele é, Sr. Desmond. Tornamo-nos muito ligados. Tenho a maior admiração por ele.

     — Já tentou dissuadi-lo desse próximo passo?

     — Apontei-lhe os riscos existentes.

     — E...?

     — Concordamos num princípio. Foi enunciado por um certo George Mason, delegado da Virgínia na elaboração da Constituição dos Estados Unidos: "Deve algum homem ficar acima da justiça? Deve algum homem ficar de tal modo acima da justiça que possa cometer a mais ampla injustiça...?"

     — George Arlequim falou em assassinato.

     — Não para mim — disse Milo Frohm calmamente. — E se lhe falou, como parece que aconteceu, foi em particular e num acesso de emoção... O senhor foi muito franco comigo e aceito esse fato como um elogio. Irei retribuir: transmitirei sua preocupação a George Arlequim.

     — É preciso muito cuidado, Sr. Frohm.

     — Sou um homem cuidadoso, Sr. Desmond. Tenho que ser, pois ando numa corda bamba. Gosto de ser um instrumento de justiça. Sou pago como agente da lei, o que não é absolutamente a mesma coisa...

     Ele deixou-me desconcertado com esse enigma, procurando em vão por alguma pista para resolvê-lo. Em Nova York era meio-dia, na Califórnia deveriam ser nove horas da manhã. Liguei para Francis Xavier Mendoza e dei-lhe a boa notícia de meu próximo casamento com Suzanne. Ele ficou na maior alegria. Estaria em Nova York no sábado e promoveria um jantar para celebrar nossos esponsais. Ri diante daquela palavra antiquada. Ele disse que talvez até fizesse uma canção a propósito, para ser cantada durante o jantar. Telefonaria para seu distribuidor em Nova York, a fim de que reservasse os vinhos imediatamente. O cardápio ele escolheria pessoalmente, com o maior prazer.

     ...E como estava o meu amigo? Ele vira todo o horror do seqüestro. Rezara todas as noites para que houvesse uma solução misericordiosa. Compreendia meus atuais temores. Talvez, quando viesse a Nova York, pudesse encontrar-se com George Arlequim. Achei que seria uma idéia proveitosa...Já esgotara toda a minha estratégia e não restava graça nenhuma para emprestar ou gastar. Mendoza censurou-me, dizendo que eu era o mais abençoado dos homens. Deveria ficar perto de Arlequim e continuar a fazer-lhe perguntas. Deveria guardar Suzanne como uma jóia preciosa e não fazer absolutamente pergunta alguma...Ele estava certo de que, em breve, iríamos partilhar aquela preciosa garrafa de vinho que dera de presente a Suzanne.

     Desejei ter um pouco que fosse de sua fé. Estava plenamente convencido de que George Arlequim estava condenado ao inferno e à autodestruição.

    

     Na quarta-feira daquela semana Basil Yanko emitiu uma declaração que foi publicada integralmente pela imprensa financeira.

    

     "... A oferta feita pela Creative Systems Incorporated para a compra de Arlequim et Cie. foi agora retirada. Recentes comentários da imprensa e uma série de acontecimentos trágicos, envolvendo o Sr. George Arlequim e sua família, criaram um clima desfavorável para a proposta fusão, afetando os interesses de ambas as partes. Investigações realizadas, em diversos países, revelaram graves falhas na segurança dos serviços de computadores fornecidos pela Creative Systems a Arlequim et Cie. Essas falhas foram agora remediadas e a Creative Systems aceitou a responsabilidade pelas perdas e danos sofridos por seus estimados clientes. Um acordo para reparar essa responsabilidade, mediante um substancial pagamento em dinheiro, será assinado ao final desta semana pelos senhores Basil Yanko e George Arlequim. O acordo encerrará todos os litígios pendentes entre as duas partes."

    

     A declaração era seguida por um cauteloso comentário editorial. Elogiava o bom senso dos dois homens e a moderação com que haviam conduzido uma negociação difícil. Ressaltava a "franqueza com que os erros tinham sido reconhecidos e a presteza com que reclamações legítimas tinham chegado a bom termo". Acentuava o valor da "cooperação entre os organismos encarregados do cumprimento das leis e todos aqueles preocupados com a integridade da prática dos negócios". Previa "uma alta imediata na cotação das ações da Creative Systems e um novo respeito por Arlequim et Cie. no campo dos investimentos internacionais". Nas entrelinhas, a declaração representava um profundo suspiro de alívio e uma súplica para não se abalar ainda mais o mercado.

     Naquela noite fiz uma rápida visita ao clube e fui recebido como um irmão há muito desaparecido. Todo mundo tinha lido a declaração. A maioria reconheceu que era uma hábil peça de confissão. Ninguém lamentava que terminasse assim, inocuamente, um episódio sórdido. Era bom ver Basil Yanko humilhar-se um pouco para variar. Seria melhor ainda para quem tivesse comprado ações da Creative Systems no fechamento do mercado, pois teria um lucro substancial na tarde seguinte. Ninguém queria falar em assassinatos, seqüestros ou fraudes. Naqueles dias, havia uma opinião corrente de que a melhor coisa era baixar a cabeça e guardar para si as opiniões políticas. Arlequim saíra-se muito bem. Aquele rapaz tinha muita classe! O toque europeu, hem? Por que não o trazia para tomar alguns drinques no clube uma noite qualquer? Parti uma hora depois, banhado na glória refletida de um operador esperto que conseguira bater o mercado.

     Na volta para casa, passei pelo Salvador, a fim de apanhar Suzanne. Ela ainda estava trabalhando e George Arlequim queria falar comigo.

     — Amanhã será o fim de tudo, Paul. Yanko já reservou o dinheiro no banco. Ele nos será entregue assim que os documentos forem assinados, às cinco horas da tarde. Eu ficaria agradecido se você pudesse vir. Karl Kruger e Herbert Bachmann também estarão presentes.

     — E Basil Yanko?

     — Claro que sim.

     — Por que a festa?

     — Não é uma festa. É uma condição do acordo. Yanko concordou em emitir a declaração para a imprensa. Nós prometemos providenciar a documentação fotográfica da reconciliação. Karl Kruger representa os europeus. Herbert representa Wall Street. Você é o mundo flutuante. Já contratei o fotógrafo. Sei que é uma concessão lamentável, mas era o mínimo que Yanko podia exigir e o máximo que eu podia tolerar.

     — Está certo, estarei presente. Quanto Yanko está pagando?

     — Somando tudo, vinte e cinco milhões de dólares.

     — E quanto estamos lucrando?

     — Depois de cobertos os prejuízos da venda de ações, ainda nos sobram cerca de dois milhões.

     — Então o assunto está encerrado e podemos todos ir para casa.

     — Exatamente. Eu sigo na segunda-feira, de navio. Os pais de Julie têm medo de avião. Eu também tenho um pouco, depois de tudo o que aconteceu...Seu amigo Mendoza telefonou-me, convidando-me para jantar com você e Suzanne no sábado, comemorando o noivado. Eu lhe disse que ficaria imensamente feliz em poder comparecer. Eu próprio gostaria de poder oferecer o jantar, mas isso agora não é possível.

     — E poderá comparecer ao casamento em Genebra?

     — Espero que sim.

     — George, Milo Frohm relatou-lhe a conversa que teve comigo?

     — Contou, Paul. Agradeço sua preocupação, mas não há motivo para ela.

     — Fico satisfeito em ouvi-lo dizer isso, George. Mas há outra coisa que me está perturbando. Aaron Bogdanovich disse...

     — ...que nós lhe estamos devendo mais dinheiro. Isso já está providenciado. Também não tem que se preocupar.

     — Eu não estava pensando no dinheiro, George. Ele me disse que vocês dois combinaram matar Basil Yanko.

     — E combinamos mesmo, Paul.

     Fitei-o, olhos arregalados, a boca aberta. Ele sorriu, tolerantemente.

     — Não estava pensando que eu tinha esquecido, não é mesmo?

     — Mas George, isso é loucura! Não lhe trará Julie de volta, não irá mudar nada do que aconteceu. É apenas uma insanidade sangrenta!

     — É mais do que isso, muito mais...

     — Pelo amor de Deus, ouça-me! Fui eu que o iniciei nessa estrada. Sou responsável por tudo o que aconteceu. Viverei com esse conhecimento até meu último alento. Mas estou lhe dizendo, implorando para que compreenda que isso é uma horrível inutilidade: uma vida por uma vida por uma vida...E para quê? Há vinte anos, George, que o admiro e o amo como a um irmão. Se minha vida pudesse trazer Julie de volta, eu a daria alegremente. Mas não pode — nem cem ou um milhão de vidas! O único pagamento que lhe posso fazer...

     — Eu sou o credor — disse George Arlequim friamente. — Eu estipulo os termos. Esteja aqui amanhã, às cinco horas da tarde. Depois, todas as dívidas estarão liquidadas!

     Eu estava batido e ambos o sabíamos. Não podia acusá-lo, porque não tinha testemunhas. Não podia impedi-lo, porque seria sutil demais e Aaron Bogdanovich conhecia a fundo seu ofício. Não podia persuadi-lo, porque ele se afastara do sistema humano e ingressara na anarquia dos destruidores. Sua própria vida ou a de um outro qualquer não tinha agora mais valor algum. Deixei-o de pé no meio da sala, surdo e cego, destituído do último vestígio de piedade.

     Naquela noite discuti durante uma hora com Suzanne. Eu não queria ter mais nada a ver com George Arlequim. Ela também não, tinha que pedir demissão imediatamente. Não precisava de salário ou pensão, não precisava do dinheiro manchado de sangue dele. Arlequim estava além de qualquer compaixão, além de argumentos, além da razão. Realizara sua própria profecia, como sabia e prometera que aconteceria, desde o primeiro momento. Adorava a conspiração, estava feliz por se juntar às hostes dos assassinos. Pois que fosse!

     Suzanne enfrentou-me passo a passo. Está certo, ele jurara matar. Mas poderia voltar atrás. Podia ser impedido, até o último momento. Era um homem complexo demais para ser repudiado como alguém privado da razão. Ela trabalhara com ele durante muitos anos. É verdade que ele podia conspirar, mas será que meu julgamento não estava sendo rigoroso em demasia? O que quer que ele próprio acreditasse, ela não julgava que ele fosse capaz de cometer um assassinato. De qualquer forma e apesar de tudo, ela trabalharia para ele até o último dia do contrato. Eu tinha a obrigação de atender ao pagamento que ele me exigira, comparecendo à reunião. Achava que ele estava tentando envolver-me? Não, nunca dissera isso. Então eu deveria comparecer. Se não fosse, ela nunca mais poderia confiar em qualquer coisa que eu prometesse. Disse que tinha feito tudo o que prometera. Não, não fizera. Ambos havíamos jurado acompanhar George até o último passo do último quilômetro. E esse último passo ainda estava para ser dado...E assim por diante, até que todas as nossas palavras se esgotaram e ficamos sentados em silêncio, teimosos e hostis, cada um esperando que o outro se rendesse. Como sempre, Suzanne deu a última palavra:

     — Nada pode acontecer na reunião, Paul. A sala estará cheia de testemunhas. Você será uma delas. Quando a reunião terminar, pedirá a Yanko para esperar em minha sala. Depois conversará em particular com George. Dirá a ele que, a menos que lhe prometa solenemente que Yanko nada sofrerá, irá alertá-lo antes que saia do hotel. Você se verá então eximido de toda e qualquer responsabilidade. E eu também. Isso lhe parece razoável?

     — Há uma falha em seu raciocínio: se George está preparado para matar, então está também preparado para mentir.

     — Nesse caso, se você tiver a menor dúvida, alertará a Yanko e dirá a George que vai fazê-lo.

     — Se eu alguma vez for levado a julgamento, querida, espero tê-la em minha defesa.

     — Depois que me apanhar, chéri, terá que me aturar para sempre. Se quer escapar, a ocasião é esta.

     Fomos pacificamente para a cama. Mas eu acordei num momento qualquer entre a meia-noite e a madrugada, assaltado por um novo e aterrorizante pensamento. E se a reunião não se realizasse? Os documentos estavam prontos, a intenção era clara, pela declaração distribuída aos jornais, o dinheiro já estava reservado. Se Yanko não chegasse, se a morte o surpreendesse no caminho, o acordo podia e provavelmente seria assinado pelo novo presidente da Creative Systems. Nesse caso, o triunfo seria completo, com Yanko morto e o dinheiro seguro no bolso de Arlequim. Aaron Bogdanovich e George Arlequim tinham ambos uma inclinação pelas ironias. E essa era tentadora demais para seus paladares sensíveis.

    

     Cheguei ao Salvador às dez para as cinco. Fiquei alguns momentos com Suzanne e depois fui juntar-me a Arlequim, que estava conferindo alguns documentos com seus advogados. Pontualmente às cinco horas, chegaram Karl Kruger e Herbert Bachmann. Logo atrás deles apareceu um jovem moreno e barbado, com duas máquinas fotográficas penduradas no pescoço. Cinco minutos depois chegaram os advogados de Yanko e começaram a conferir os documentos com seus colegas.

     Passaram-se dez minutos e Yanko ainda não aparecera. George Arlequim fez um comentário ácido sobre os hábitos impontuais dos gênios. Às cinco e quinze, ele ainda não tendo aparecido, seus advogados começaram a ficar embaraçados. Um deles telefonou para o escritório de Yanko, onde lhe informaram que ele já partira. Murmurou um pedido de desculpas e voltou a mergulhar nos documentos.

     Às cinco e vinte Arlequim estava andando de um lado para outro da sala, vermelho e irritado. Karl Kruger ansiava desesperadamente por um drinque. Herbert Bachmann e eu tentávamos conversar sobre assuntos superficiais, numa das janelas. Às cinco e vinte e cinco Basil Yanko entrou na sala, improvisando uma desculpa sobre o tráfego congestionado do centro da cidade.

     Arlequim retrucou:

     — Nosso tempo é valioso também, Sr. Yanko. Yanko mostrou-se imperturbável.

     — Esta visitinha está me custando vinte e cinco milhões de dólares. Agora, por favor, posso ver os documentos?

     Ele já os vira uma dezena de vezes antes, mas aprazia-lhe analisá-los novamente, o que fez durante uns dez minutos, antes de anunciar que estava pronto para assiná-los. George Arlequim insistiu então para que os advogados de Yanko enunciassem verbalmente os principais itens do acordo.

     "As duas partes se comprometem a não estabelecer qualquer condição que seja uma infração à lei...

     "Nos itens em que as duas partes se abstenham de ação legal não se inclui nenhuma omissão criminosa...

     "Nenhuma das partes fica imune ou garante imunidade à outra de ação legal por parte de terceiros...

     "A responsabilidade admitida pela Creative Systems Incorporated fica estritamente limitada aos termos do presente acordo. Os prejuízos concordados e ora pagos são aceitos como tendo ressarcimento total...

     "Arlequim et Cie. e o Sr. George Arlequim pessoalmente concordam em não formular acusações de fraude ou conspiração para fraudar contra qualquer funcionário da Creative Systems Incorporated. As acusações já apresentadas serão retiradas...

     "As investigações determinadas por Arlequim et Cie. e realizadas sob sua conta serão imediatamente encerradas...

     "As partes concordam em não divulgar, sob qualquer forma, comentários, especulativos ou não, que possam ser considerados prejudiciais ou controversos pela outra..."

    

     Havia muitos outros itens. Depois da leitura interminável, os dois homens finalmente sentaram-se à mesa, tendo seus advogados ao lado. O fotógrafo indagou se poderiam mudar de posição. Yanko recusou, irritado. Não era a assinatura do acordo que era importante e sim o grupo, a ser fotografado depois: cinco respeitáveis homens de negócios, com drinques nas mãos, parecendo felizes por seu dinheiro. A assinatura resolvia um conflito. Os drinques e os sorrisos diziam tudo o que o mercado precisava saber que existia agora: confiança, segurança, amor fraternal, respeito mútuo. Arlequim sacudiu os ombros, concordando. Karl Kruger observou que era uma maneira muito elegante de dispor de tanto Geld. Herbert Bachmann comentou, gravemente, que o Geld era muito menos importante que a boa vontade.

     Quando a desprezível cerimônia acabou, os advogados de Yanko entregaram um cheque visado no valor de vinte e cinco milhões de dólares. Arlequim dobrou-o e meteu-o na carteira, com a mesma indiferença que teria para com um cartão de estacionamento. O que levou Yanko a fazer o comentário azedo de que era melhor não perdê-lo, pois não receberia outro.

     Os advogados arrumaram suas pastas e saíram juntos. Arlequim acompanhou-os até o elevador e voltou com um de seus agentes de segurança suíços, que iria recolher os pedidos de drinques. Todos nós pedimos uísque, à exceção de Yanko, irritante como sempre, que exigiu um suco de tomate, com uma pitada de Tabasco, uma gota de limão, nenhum sal e um raminho de hortelã. O suíço saiu da sala. O fotógrafo começou a se movimentar de um lado para outro, verificando a luz e os diversos ângulos.

     Houve um intervalo constrangedor e logo a babá apareceu com o pequeno Paul, que acabara de tomar banho e estava pronto para jantar. Arlequim pegou o menino nos braços, beijou-o, brincou um pouco e depois levou-o para dizer boa-noite a todos os presentes. Quando chegou a vez de Basil Yanko, ele perguntou:

     — Tem algum filho, Sr. Yanko?

     — Não, Sr. Arlequim. Nunca fui tão afortunado. É uma linda criança.

     — Ele é bem parecido com a mãe.

     — Nunca tive o prazer de conhecer Madame Arlequim.

     — E meu filho também não o terá, Sr. Yanko...Pronto, babá, pode levá-lo. Boa noite, querido. Depois vou até seu quarto para contar uma história.

     Karl Kruger resmungou, infeliz. Herbert Bachmann assoou o nariz ruidosamente. Virei-me para ocultar o ódio expresso em meus olhos.

     Arlequim virou-se para o fotógrafo.

     — Pode começar assim que os drinques forem servidos. De quanto tempo vai precisar?

     — Dez minutos. Basta que o senhor e seus amigos ignorem minha presença e ajam normalmente. Eu ficarei batendo as fotos.

     Poucos momentos depois que o agente suíço entrou com uma bandeja de drinques e uns pratos de canapés, Arlequim ordenou-lhe:

     — Não recebo telefonemas nem visitantes, até terminarmos aqui.

     Herbert Bachmann levantou seu copo num brinde:

     — Ao fim de uma dissensão, senhores! Arlequim fez a segunda saudação.

     — Meus agradecimentos, Karl, por seus esforços.

     — Eu também beberei a isso — disse Basil Yanko.

     — E a você também, Herbert. Obrigado por terem vindo aqui hoje.

     — Eu vim por George — disse Herbert Bachmann secamente. — Além disso, porque tenho também algumas obrigações para com meus colegas do mercado.

     Basil Yanko mostrou-se tolerante, mas magoado.

     — Meu caro Herbert, sou o único homem do mundo a quem você não pode fazer cara feia. A minha será sempre mais feia que a sua. Sou feio demais, desde criança. Mas já me acostumei a isso. Quanto ao resto, sei o que sou e o que faço. Quantos de seus respeitáveis colegas podem dizer o mesmo?

     — Pensei — disse George Arlequim mansamente — que deveríamos parecer felizes.

     Basil Yanko fitou-o com desprezo.

     — Receio que eu seja o pesadelo de sua festa, Sr. Arlequim. Se me der licença, eu me retirarei.

     O fotógrafo protestou:

     — Por favor, senhor, só mais algumas chapas!

     — Dispensarei alegremente as fotografias — disse George Arlequim. — A idéia foi sua, não minha.

     Basil Yanko tornou a levantar o copo.

     — Esperarei...Diga-me, Sr. Desmond, quanto tempo ainda pretende demorar-se em Nova York?

     — Talvez mais uma semana. Não mais do que isso.

     — Ouvi dizer que está para se casar.

     — É verdade.

     — Você é um homem de sorte, Paul — comentou Herbert Bachmann. — Espero que saiba disso.

     — Eu sei, Herbert.

     — Quando o conheci — disse Karl Kruger —, ele não tinha juízo suficiente sequer para sair da chuva.

     — E agora está se retirando de Arlequim et Cie. — disse Basil Yanko, quase cordialmente. — Gostaria de lembrar-lhe que minha oferta ainda está de pé.

     — Eu a recuso, Sr. Yanko.

     George Arlequim fez um comentário áspero.

     — Creio que está sendo sensato, Paul. É um emprego perigoso.

     Yanko ficou vermelho de raiva.

     — Suas palavras são controversas, Sr. Arlequim. Devo recordar-lhe que constituem uma infração ao acordo que acabamos de assinar?

     — Não ouvi nada — disse Karl Kruger. — Você ouviu, Herbert?

     — Não, Karl. Na verdade, minha audição anda meio deficiente.

     Basil Yanko esvaziou o resto do suco de tomate de um só gole e pôs o copo em cima de uma mesinha.

     — Estou muito velho para brincadeiras de crianças, senhores. Devo ir agora.

     — Se se mexer — disse o fotógrafo jovialmente —, é um homem morto.

     Ele estava apontando a maior das duas máquinas fotográficas para a cabeça de Yanko.

     — Esta é uma arma letal. Dispara seis balas de cianureto.

     — Que diabo isso significa? — indagou-lhe George Arlequim.

     — Por favor!

     O fotógrafo acenou-lhe a mão, impaciente.

     — Sentem-se todos à mesa e ponham as mãos em cima dela.

     — Um andar cheio de agentes de segurança e isso tinha que acontecer — murmurou Yanko, irritado. — O que você está querendo? Dinheiro?

     — Sente-se!

     Sentamo-nos num semicírculo ao redor da mesa, com as mãos sobre a superfície envernizada. O fotógrafo sentou-se à nossa frente, a máquina sobre a mesa, seu dedo sempre no disparador. Ele explicou descaradamente:

     — Se alguém se mexer ou gritar, leva imediatamente um tiro. Se formos interrompidos, Sr. Arlequim, dispensará o visitante. Estamos em conferência e não podemos ser interrompidos.

     — Eu já dei essa ordem.

     — Talvez tenha que repeti-la. E agora querem saber quem sou eu? O Senhor Ninguém. Querem saber o que estou fazendo aqui?

     Ele tirou do bolso um papel datilografado e dobrado, juntamente com uma caneta, colocando-os sobre a mesa, à sua frente.

     — Estou aqui para esperar, como todos estão também...Sr. Yanko, acaba de beber um simples copo de suco de tomate. Lamento informá-lo de que estava envenenado.

     Houve um momento em que todos ficaram paralisados de surpresa, seguida por um suspiro geral de horror.

     Somente Basil Yanko ficou indiferente, uma expressão de desprezo no rosto.

     — Não acredito em você.

     — Não estou pedindo que acredite — disse o fotógrafo calmamente. — Estou simplesmente enunciando um fato. Muito em breve irá sentir-se dormente e sonolento. Depois perderá todo o controle muscular. Vai então dormir e em seguida morrerá. Não vai demorar muito. Mais quinze minutos e estará inconsciente.

     — Não pode fazer isso! — disse George Arlequim. — Você não pode ficar sentado aí, vendo um homem morrer!

     — Correção, Sr. Arlequim: nós todos vamos ficar vendo-o morrer!

     — Não ficaremos!

     Karl Kruger ergueu o punho imenso. O fotógrafo apontou-lhe a máquina. O punho baixou.

     — Mas por que Yanko? Por que não um de nós?

     — Por isto...

     O fotógrafo levantou o papel dobrado que estava sobre a mesa.

     — Isto aqui é a lista dos mortos. Há seis nomes nela, com um relato de como morreu cada um. Lerei os nomes: Sra. Basil Yanko, morta na explosão de uma lancha; Srta. Ella Deane, atropelada por um carro; Srta. Valerie Hallstrom, morta por um tiro; Sr. Frank Lemmitz, também alvejado; Srta. Audrey Levy, seqüestrada em Londres, presumivelmente morta; Sra. George Arlequim, alvejada...Todas essas mortes foram planejadas e financiadas por Basil Yanko.

     Basil Yanko ficou rígido na cadeira. Soltou uma risada estridente e sem humor, sacudindo a cabeça.

     — Oh, não! O mais velho dos truques! Organizou tudo isso, Sr. Arlequim? Ou terá sido o Sr. Desmond?

     — Nunca antes vi esse homem — declarou George Arlequim. — Nunca troquei uma palavra sequer com ele, até esta noite.

     — É verdade, Sr. Yanko. Valerie Hallstrom era uma colega minha. Audrey Levy, incumbida de vigiar Frank Lemmitz em Londres, também...Faz uma política implacável, Sr. Yanko. Nós também.

     — Não pode provar absolutamente nada e sabe disso!

     — Somente a polícia precisa provar as coisas. Nós não.

     Como se sente? Um pouco dormente? Isto é normal...Não, Sr. Yanko! Se tentar levantar-se, eu atirarei e isso será bastante doloroso...Até agora está sendo mais privilegiado do que qualquer uma das pessoas que matou. Está morrendo, mas está morrendo serenamente, sem dor, sem tumulto...Está suando, Sr. Yanko. Isso significa que está procurando resistir. Não vai adiantar coisa alguma. Relaxe.

     — Que diabo está querendo de mim?

     — Nada. Foi interessante o que aconteceu com sua esposa. Bernie Koonig contou-nos tudo. O senhor estava em Nova York. Ele derramou gasolina no arranque da lancha. Quando ela apertou o botão...BUM! Ficamos admirados de não tê-lo liquidado, como fez com Frank Lemmitz. Provavelmente era mais frouxo naquele tempo...ou menos experiente. Como se sente? Flexione os dedos. As reações são um pouco lentas. Está resistindo muito bem...

     Ele empurrou o papel e a caneta por cima da mesa.

     — Deveria ler isso, enquanto ainda pode focalizar...O veneno que usamos é bastante curioso, senhores. Poderíamos extraí-lo a qualquer momento dos próximos quinze minutos e ele se restabeleceria completamente. Se não o fizermos, ele está liquidado. Como está vendo, Sr. Yanko, o documento é em forma de confissão. Não gostaria de assiná-lo?

     — Prefiro vê-lo no inferno!

     — Isso não acontecerá, Sr. Yanko. Nós é que ficaremos aqui a assistir à sua ida para lá.

     — Pelo amor de Deus, homem! — disse Herbert Bach-mann, a voz trêmula. — Isso é tortura!

     — Eu sei, senhor.

     O fotógrafo estava sendo o mais razoável possível.

     — Mas o Sr. Yanko é impermeável ao sofrimento. Madame Arlequim morreu com uma bala no ventre. O filho dela foi pendurado para fora de uma janela do quinto andar...a mesma criança que viram aqui esta noite. Audrey Levy provavelmente foi torturada antes de morrer...Contudo, se o Sr. Yanko deseja acabar com o sofrimento para os senhores e para si mesmo, precisa apenas assinar a confissão. Eu partirei então e ainda terão tempo de chamar-lhe um médico.

     Yanko ainda tinha forças para lutar. A voz estava en-grolada, mas a zombaria era objetiva:

     — Eu não lhe disse que era uma armadilha?

     — E se não assinar, Sr. Yanko, a armadilha será fechada. Cairá por um buraco sem fundo para lugar nenhum

     — e não me importo qual seja a direção que tome. Sua voz está ficando engrolada. Provavelmente está começando também a perder a sensibilidade nas pontas dos dedos.

     — Assine, homem! — disse Herbert Bachmann, já desesperado. — É sua única chance!

     — É sua vida — disse Karl Kruger. — Deixe-o fazer o que lhe aprouver com o documento.

     Sem a menor malícia, George Arlequim comentou:

     — O que quer que eu diga, não me acreditará.

     Houve um longo momento de silêncio, enquanto observávamos Basil Yanko tentar controlar os músculos frouxos, segurar a caneta e assinar seu nome ao pé da página.

     — Devolva-me o documento, por favor — pediu o fotógrafo.

     Ele dobrou-o cuidadosamente e guardou-o no bolso. Depois, disse:

     — Sr. Yanko, poderá alegar que assinou essa confissão sob coação. Portanto, não é ainda o suficiente para salvar-lhe a vida. Em torno desta mesa estão quatro testemunhas. Excluo a mim mesmo, porque irei desaparecer assim como apareci. Responda a uma pergunta com uma única palavra. Planejou as mortes dessas pessoas? Sim ou não?

     — Mas você disse...prometeu...

     — Desta vez, manterei a promessa. Sim ou não?

     — Sim.

     — Obrigado, Sr. Yanko...Não! Não se mexam, senhores! Ele estará morto dentro de cinco minutos!

     — Mas você prometeu...

     Eu não podia agüentar mais. Empurrei minha cadeira para trás, levantei-me e caminhei na direção de Yanko. Ouvi o clique do disparador da máquina fotográfica sendo puxado para trás e a voz do fotógrafo, cortante e fria:

     — Sente-se, Sr. Desmond.

     A câmara estava apontada para meu peito. Voltei lentamente para a cadeira e sentei-me. Basil Yanko estava afundando na cadeira, de língua para fora, murmurando como um homem embriagado. Ficamos observando, num silêncio impotente, até que ele desmaiou, caindo de cara no tampo da mesa.

     — Pelo amor de Deus! — gritou Herbert Bachmann.

     — Já tem o que queria! Agora deixe-nos chamar um médico!

     O fotógrafo sorriu e sacudiu a cabeça.

     — Ele não precisa de um médico. Basta que durma e tudo passará. Ele tomou apenas uma variante moderna do velho Mickey Finn...um narcótico misturado na bebida para dormir. A propósito, senhores, é melhor darem uma olhada nisso, caso sejam chamados a testemunhar. Ele abriu a máquina fotográfica e entregou-nos.

     — Como podem ver, é uma câmara fotográfica comum. Nada tem de letal. Podem querer dizê-lo a Yanko, quando ele acordar.

     Herbert Bachmann olhou de um para outro, chocado e furioso.

     — Quem foi que organizou esse...esse horror?

     — Eu — disse o fotógrafo. — Não é nada agradável de se assistir, não acha? Mas é um método bastante normal, se bem que um pouco tosco, de interrogatório. Ensinam-no nas escolas de polícia e nas forças armadas. Paga por isso, Sr. Bachmann. E também subvenciona as pessoas que o ensinam a seus aliados, alguns dos quais nem precisam de lições.

     Ele tirou a confissão assinada do bolso e entregou-a a George Arlequim.

     — Isto deve ir para as mãos de Milo Frohm.

     — Obrigado. Eu a entregarei. Diga a Aaron que entrarei em contato com ele.

     — Quem é Aaron? — indagou Herbert Bachmann.

     — Ninguém de quem jamais tenha ouvido falar, senhor — disse o fotógrafo. — Shalom!

     Karl Kruger pegou a mão flácida de Yanko, sentiu o pulso e depois tornou a deixá-la cair em cima da mesa, com um baque surdo.

     — O que vão fazer com ele?

     — Meus rapazes irão levá-lo lá para baixo. O motorista dele o levará para casa e o porá na cama. Gostaria de poder estar presente quando ele acordasse, a fim de conversar com ele.

     Todo mundo estava fazendo perguntas, mas eu senti que era meu o direito de fazer a última:

     — Já tem o dinheiro dele, George. Tem uma confissão, que não resistirá como prova nos tribunais, mas irá desacreditá-lo para sempre. O que lhe resta para dizer a ele?

     — Ele morreu esta noite — disse George Arlequim sombriamente. — Sempre tive curiosidade de saber o que Lázaro deve ter sentido ao sair de seu túmulo.

     — Pois eu posso dizer-lhe o que ele sentiu, George. Olhou o que as pessoas estavam fazendo umas às outras e implorou para voltar.

     Foi um grito de desespero, uma expressão de extrema desolação. Muito tempo depois de Herbert e Karl terem partido e de Yanko ter sido removido, as palavras ainda pairavam na sala como a blasfêmia final, para a qual não há perdão. O círculo de minha própria condenação estava completo. Eu insistira na violência. Eu cooperara para a violência. Eu vira a vida sendo destruída. E terminara por negar a tudo, como uma obscenidade.

     Quando olhei para o relógio, esperava descobrir que o tempo tinha parado. Fiquei chocado ao verificar que ainda eram sete horas da noite, que Suzanne estava batendo à máquina, que George Arlequim estava contando histórias de fadas a uma criança de olhos arregalados, que as pessoas estavam voltando para casa para jantar. Eu não podia suportar a espera. Saí da sala, passei pelos agentes de segurança e atravessei a cidade às cegas, para ir juntar-me a outras almas penadas no bar de Gully Gordon.

     Podia ter-se passado uma hora, talvez duas, era impossível dizer, porque o bar se encontrava quase vazio, Gully estava jantando fora e eu me achava isolado a um canto, mórbido, quando George Arlequim entrou, acompanhado por Suzanne. Sentaram-se, um de cada lado, de forma que eu não podia escapar.

     Suzanne segurou minha mão frouxa e disse:

     — George quer falar com você, chéri.

     — O que há para dizer? Está tudo acabado. Vamos tratar de esquecer.

     — Precisamos também de perdão, chéri.

     — Não o merecemos, mulher. Somos tão assassinos quanto Basil Yanko...Não você, mas George e eu. Não é verdade, George?

     — Quanto a mim, sim. Mas não você, Paul. Você tentou impedir-me, mas não poderia consegui-lo. E continuou tentando até o último momento.

     — O que é você agora, George, um padre confessor? — Não. Estou tentando ser um penitente. Não é tão fácil como parece.

     — E esperava que fosse fácil?

     — Possível, pelo menos.

     — George, esgotei todas as minhas absolvições e indulgências. Não as tenho nem mesmo para mim.

     — Pois eu tenho — disse Suzanne gravemente. — Amo a ambos...Este é o último passo, Paul. Dê-o por mim.

     — E quanto mais você vai querer?

     — Tudo, Paul. É isso o que significa o amor.

     — Ó Deus...!

     George Arlequim ficou sentado um longo tempo a olhar para o copo. Depois, lentamente, penosamente, começou a fazer sua confissão.

     — Eu queria vê-lo morto...Queria vê-lo despojado e trêmulo, esperando pela execução. Falei com Aaron Bogdanovich. Ele ofereceu-me uma dúzia de alternativas. Nunca tinha imaginado quantas maneiras simples e engenhosas existiam para se matar um homem: uma baforada de fumaça no rosto enquanto ele desce a escada, a picada de uma caneta envenenada, uma bomba no carro, uma carta que lhe explodirá nas mãos, uma bala de um atirador de tocaia, uma cultura de vírus no drinque...senti prazer em examiná-las, em imaginar as seqüências, como num jogo de xadrez. Esse é o símbolo, é claro: o jogo de xadrez. As peças são inanimadas, simples pedaços de madeira, metal ou marfim. Possuem nomes, mas não têm vida, nem alma...Pode-se analisar seu destino como um exercício intelectual. Os argumentos apresentados tinham muito sentido, e Aaron Bogdanovich esmiuçou cada um. A lei não pode reparar a injustiça; portanto, tem-se que trabalhar fora da lei. O sistema político está além de qualquer reforma; portanto, é preciso destruí-lo antes de se poder construir outro melhor. Não se pode alcançar o ideal; portanto, é preciso contentar-se com o conveniente. O torturador é triunfante; portanto, é preciso eliminá-lo. O assaltante ri sobre seus despojos; portanto, deve-se sufocá-lo com o ouro que roubou. A democracia é uma fraude, porque o povo é logrado em seu voto e enganado por políticas que não compreende. Todos os homens são traidores e todas as mulheres são prostitutas, contanto que se chegue ao preço certo...Não há respostas para esses argumentos, exceto um ato de fé, que eu não mais podia fazer...É estranho! Você, Suzy, e você, Paul, fizeram-no por mim. Vocês acreditaram que eu era melhor do que eu desejava ser. Não puderam convencer-me, pois há muito estavam na minha intimidade. Pude enganá-los e enganar a mim mesmo, construir ilusões...Mas não pude enganar a Aaron Bogdanovich e ele não permitiria que eu me enganasse a mim mesmo...Chegou o dia em que a decisão tinha que ser tomada. Fui vê-lo na loja de flores. Ele estava brincando com um gatinho desgarrado, que passava pela rua e resolvera entrar na loja. Pediu-me que declarasse exatamente o que queria. Eu disse-lhe: meu dinheiro de volta e a vida de Yanko pela vida de Julie. Ele não contestou a decisão. Simplesmente quebrou o pescoço do gatinho e colocou o corpo sobre a mesa, na minha frente. Depois disse: "É isto o que está querendo fazer, Sr. Arlequim. É capaz?..." Eu soube que não era. Mal podia tocar no corpo...

     — Mas pôde assistir a todas as agonias de um homem morrendo...

     — Pude. E é a vergonha maior. Pude e o fiz, e pensei estar vendo a justiça ser feita.

     — Ainda acredita nisso?

     — Não. Vi o terror sendo esmagado pelo terror...Bem, isso é tudo! Nada mudou. Mas pensei que você tinha o direito de saber, Paul.

     Ele tentou levantar-se, mas estava preso no reservado apinhado. Segurei-lhe o braço e o retive.

     — Fique, George...Peço desculpas. Eu também não me sinto orgulhoso. Bogdanovich julgou-me também. Disse que eu queria a respeitabilidade sem virtude, a posse sem a ameaça, o prazer sem pagamento...Um cidadão comum, conivente com todos os horrores do mundo, contanto que isso não lhe perturbe o descanso, nem o' jantar. Não formamos uma bela dupla?

     — Pois tenho algo a dizer para vocês dois — disse Suzanne gravemente. — Tentam prescindir da lei e, no entanto, ficam sentados aqui, humilhados pelo julgamento de um assassino. Acho que estão precisando de uma mudança de companhia...

     E paramos nesse comentário amargo, porque Gully Gordon voltou, deu-nos as boas-vindas e indagou qual a música que desejaríamos ouvir.

    

     As próximas quarenta e oito horas foram um limbo de não-acontecimentos. Suzanne estava ocupada, pondo em ordem os negócios de Arlequim antes de ele embarcar para a Europa. Eu vagueava pelo apartamento esbarrando a todo momento em Takeshi, pegando livros e largando-os depois de ler apenas uma página, atordoando-me com planos e projetos para um futuro que era agora tão vago quanto o tempo que fizera no ano anterior. Lia os jornais e admirava-me por não encontrar nenhuma notícia sobre a prisão de Yanko. Tocava música e não ouvia um único acorde dela. Eu era como o rapaz do conto de fadas, que perdera a alma e não podia viver feliz enquanto não a encontrasse.

     Eu perdera mais do que uma sombra. Perdera pequena parte de mim mesmo que permanecera intacta ao longo de muitos anos de andanças e de batalhas inconclusas. Perdera um amigo, um dos poucos a que eu me entregara com uma confiança total. Encontrara uma mulher para amar, mas liquidara o respeito, sem o qual o amor não pode durar. E agora eu tinha que enfrentar o ordálio de um jantar oferecido por um homem a quem não poderia magoar por nada neste mundo, para comemorar uma promessa que eu duvidava de que algum dia viesse a se concretizar. Por três vezes peguei o telefone para cancelar o jantar. Mas em todas elas perdi a coragem e outro fragmento do respeito por mim mesmo. Suzanne mostrava-se amorosa e solícita, mas, mesmo quando respondia, eu sentia que estava representando o falso apaixonado, de mãos e coração vazios, receoso demais para confessá-lo.

     Não era apenas meu mundo particular que desmoronara. O mundo lá fora era também hostil. Nunca mais poderia enfrentá-lo inocente e desarmado. Para sempre eu teria que carregar os grilhões do céptico, a adaga e as pistolas do viajante cauteloso. Deveria morder cada moeda antes de aceitá-la, obrigar cada homem a seu contrato com uma ameaça, não confiar em mulher nenhuma e olhar duas vezes para o espelho para ter certeza de que ainda era eu mesmo. E foi nesse estado de espírito adequado para um homem de minha idade, mas impróprio para alguém que ia comparecer à sua festa de esponsais — que parti com Suzanne para o jantar em companhia de Francis Xavier Mendoza e George Arlequim.

     Nossa reunião foi num desses velhos cantos de Nova York ainda preservados da investida dos bárbaros — um porão da First Avenue, com prateleiras do chão ao teto repletas de vinhos selecionados, com uma mesa grande de refeições, servido por um único chef, dois garçons e um encarregado dos vinhos, todos dedicados à proposição de que o comer e beber é um rito sagrado, o primeiro e o último de nossa peregrinação mortal. Arlequim já estava presente, ouvindo Mendoza, reverente como um discípulo com seu guru.

     Mendoza recebeu-nos como mártires salvos dos leões. Beijou Suzanne nas duas faces, apertou-me a mão efusivamente, olhou-me de cima a baixo e anunciou:

     — Nada mau! Pelo menos você sobreviveu! Arlequim já me contou a história. Admiro-me de que ambos ainda estejam inteiros. Agora deixe-me mostrar-lhes o que preparamos ...Para começar, um canapé de roquefort e castanhas, acompanhado de meu Palomino e por uma conversa tranqüila. Suzanne, querida, eu sei que eles conseguiram levá-la à lona! Já abriu minha garrafa?

     — Ainda não, Francis. Eles ainda não estão preparados para ela.

     — Ay de mi! E eu que pensava que eles fossem homens civilizados. Mas não se preocupe. Eu e você iremos domá-los. George, eu sei que Paul é um visigodo, mas esperava mais de você.

     — Eu sou um tolo — disse George Arlequim. — E leva tempo para desaprender.

     — Tempo e vinho: temos as duas coisas em quantidade. Agora, vou falar sobre a entrada: uma mousse de salmão com um Pinot, muito seco, uma safra da qual muito me orgulho...George, você nunca pensou que o islamismo é uma fé muito sábia? Suas promessas são as que compreendemos, águas cristalinas, flores, vinho e mulheres generosas...Nós, cristãos, prometemos harpas, que ninguém pode tocar, e uma visão de beatitude, que ninguém consegue compreender.

     — Mas ansiamos por isso, Francis. O conhecimento mais simples, o prazer mais simples...

     — Ah! Agora você está compreendendo, George! Simplicidade... harmonia. Esse é o segredo que levamos a vida inteira para aprender.

     — E sempre deixamos de compreender.

     — Suzanne, por que as mulheres são mais simples que os homens?

     — São mesmo, Francis?

     — Em toda parte e em todos os tempos. Nós, homens, somos estúpidos e complicados. Acordamos no seio de uma mulher. Morremos, se temos sorte, num abraço semelhante. Caminhamos um milhão de quilômetros para voltar ao ponto de partida. Paul, o que você me diz?

     — É um excelente Palomino, Francis.

     — Ótimo. Não há melhor, até você conseguir o Jerez de Ia Frontera — e até lá é difícil encontrá-lo...Em seguida, meus amigos, teremos um filet de beuf en croüte com um sauce Pérígueux, acompanhado pelo meu Cabernet de 65...um ano maravilhoso, sem geadas, a chuva certa, o sonho de um fabricante de vinhos! Vamos bebê-lo agora, oito anos depois, um tempo certo para todos nós. Meus amigos, não importa o que tenha acontecido, não importa o que possa acontecer amanhã, somos felizes — felizes por sabermos, felizes por apreciarmos, felizes por podermos agradecer. Gostariam de se juntar a mim numa ação de graças?

     Levantamo-nos, demo-nos as mãos, baixamos as cabeças, enquanto ele dizia:

     — Nós comemos enquanto outros estão famintos. Nós rimos enquanto outros estão tristes. Por tudo o que temos, nós somos gratos. Permita-nos sempre lembrar o que os outros não têm, para que procuremos reparar isso sempre que nos for possível. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!

     Ele indicou-nos a disposição certa que queria que tivéssemos à mesa: Suzanne à sua direita, Arlequim à esquerda, eu à sua frente. Depois disse:

     — Nunca sei qual a ação de graças que devo dizer. Jamais entendi por que o Todo-Poderoso é tão desigual em suas dádivas.

     — Talvez Ele seja cego — disse eu, irreverentemente.

     — Ou talvez nós é que sejamos — disse Suzanne.

     — Ou talvez estejamos usando as medidas erradas — disse George Arlequim.

     — É o mais provável — disse Mendoza. — Bom apetite, meus amigos!

     Comemos, bebemos, falamos de frivolidades, felizes por um momento, na presença de um homem bom, que era como a sombra de uma imensa árvore numa terra crestada. Contamos piadas tolas, rimos como há muito nos esquecêramos de rir. E então, cedo demais para mim, chegou o momento dos brindes, os quais, declarou Francis Xavier Mendoza, deviam ser feitos não com o vinho de um país novo e sim com o vinho de um país antigo, um Porto velho, suave, a cor dos melhores rubis.

     Éramos um pequeno grupo, mas ele se levantou para a cerimônia. Para George Arlequim, o poliglota, ele falou primeiro em espanhol, depois em francês para Suzanne e finalmente para mim em inglês:

     — Caros amigos! Este é um momento de promessa, de compromisso, o compromisso assumido entre Suzanne e Paul, que aprenderam tarde a amar-se um ao outro, entre todos nós que tanto precisamos uns dos outros. Se eu não pudesse partilhar este vinho com vocês, seria o homem mais solitário do mundo e o vinho morreria, sem ser provado, dentro de sua garrafa. Se não puderem partilhar uns com os outros a dor que sofreram e o perdão de que todos necessitam, então também viverão solitários e o vinho da vida lhes será para sempre amargo. Eu os abençoei quando chegaram. Peço que me abençoem quando se forem, amigos, juntos...

     — Que assim seja — disse Suzanne.

     Eu não tinha palavras para dizer. George Arlequim ficou sentado em silêncio por um longo tempo e então se levantou lentamente. Ele também falou primeiro em espanhol e em seguida em inglês:

     — Francis, fomos honrados à sua mesa e abençoados com sua companhia. Nós lhe agradecemos, todos nós. Agradeço a meus amigos, que ficaram comigo numa hora sombria e partilharam minha dor, viram-me praticar o mal sob o sol e mesmo assim ainda continuaram a meu lado e me perdoaram. Com sua permissão, gostaria de oferecer um presente a Paul e a Suzanne. Ofereço-o com o lema de meu ancestral que era um bufão: "Se vocês rirem, eu comerei. Se vocês chorarem, que Deus nos ajude a todos!"

     Tirou um envelope do bolso e entregou-mo, por cima da mesa. Segurei-o, avaliei-o, rezei para que não fosse o que parecia: um título de propriedade, uma dotação financeira. Se ele tentasse comprar-me agora, eu o odiaria por toda a eternidade.

     — Abra-o, Paul!

     Francis Xavier Mendoza entregou-me a faca de queijo. Cortei o envelope e entreguei-o a Suzanne. Ela olhou-o por um momento e então despejou o conteúdo em seu prato. Era um segundo envelope, cheio de pedaços de papel, rasgados até parecerem quase confete. Olhamos para Arlequim. E pela primeira vez, num milênio, reencontramos seu sorriso zombeteiro. Alguém tinha que formular a pergunta. E esse alguém tinha que ser Paul Desmond.

     — O que é isso, George?

     — Não é capaz de adivinhar?

     — Eu adivinho — disse Suzanne.

     Disse ao leitor, no começo, que era um pateta rematado. Esquecera por completo que George Arlequim era um palhaço e ilusionista. Não entendi a piada senão no momento em que Suzanne empilhou os pedaços de papel num prato e Francis Xavier Mendoza despejou em cima seu melhor conhaque, ateando fogo em seguida e transformando em cinzas a confissão de Basil Yanko.

 

                                                                                            Morris West

 

 

                      

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