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O Advogado do Diabo / Morris West
O Advogado do Diabo / Morris West

 

 

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O Advogado do Diabo

 

     Na Calábria, sul da Itália, um culto não-oficial começou a desenvolver-se em torno da memória de Giacomo Nerone. Tendo em vista a possibilidade de um processo de canonização ser necessário, uma investigação foi ordenada pelo bispo de Valenta. Um sacerdote inglês, Blaise Meredith, é escolhido pelo Vaticano para desempenhar as funções de advogado do Diabo: homem cuja obrigação é encontrar e denunciar todos os fatos contra o candidato às honras da santidade.

     Meredith, "um homem que traz em seu coração a poeira das bibliotecas", vê-se envolto numa rede de intrigas e dissimulações tecidas pela gente que conhecera Giacomo Nerone: sua amante, que deu à luz um filho dele, um médico judeu, um padre sério e a condessa, rica e bela inglesa que tem algo a ocultar. Sua investigação não apenas põe a nu a verdade sobre Giacomo Nerone, como leva o próprio Meredith a uma comovente e dramática solução de seus próprios problemas como sacerdote e como homem.

    

   Sua profissão era preparar os outros para a morte; chocava-o, no entanto, o fato de estar tão pouco preparado para a sua própria.

     Era um homem sensato, e a razão dizia-lhe que a sentença de morte de um homem já está escrita na palma de sua mão no dia de seu nascimento; era um homem frio, que a paixão pouco inquietava e que, de modo algum, se molestava com a disciplina. Não obstante, seu primeiro impulso fora o de agarrar-se cegamente à ilusão da imortalidade.

     Fazia parte da decência da morte surgir sem se fazer anunciar, o rosto coberto e as mãos ocultas, num momento em que era menos esperada. Vinha lenta e suavemente, como seu irmão, o sono — ou, então, rápida e violentamente, como a consumação do ato do amor, de modo que o momento da rendição fosse uma quietude e uma saciedade, em vez da dilacerante separação do espírito e da carne.

     A decência da morte. Era a coisa que os homens esperavam, vagamente, a coisa pela qual rezavam, se estavam dispostos a rezar, ou que lamentavam amargamente, ao saber que isso lhes era negado. Blaise Meredith lamentava-o agora, sentado sob o tênue sol de primavera, a observar os cisnes lentos, processionais, sobre o Serpentine, os casais em idílio sobre a relva, os poodles, ajoujados em suas trelas, a caminhar entediados pelas alamedas, junto às saias esvoaçantes de suas donas.

     Em meio a toda aquela vida — a relva a germinar, as arvores estuantes de seiva nova, os açafrões e os narcisos a inclinar-se nos ramos, o lânguido namoro dos jovens, o vigor dos passeantes mais velhos — somente ele, parecia, tinha sido assinalado para morrer. Não havia dúvida quanto a urgência ou à finalidade do mandato. Fora escrito, para que todos o lessem, não ha palma de sua mão, mas no retângulo de uma chapa fotográfica, onde uma pequena mancha cinzenta enunciava a sentença a que ele estava condenado.

     — Carcinoma.

     O dedo insensível do cirurgião deteve-se um instante no centro da mancha cinzenta e, em seguida, moveu-se para fora, traçando a difusão do tumor:

     — De desenvolvimento lento, mas bem nítido. Vi demasiados deles, para que me engane com este.

     Enquanto observava a pequena tela translúcida e o dedo espatulado que se movia sobre ela, Blaise Meredith foi assaltado pela ironia da situação. Passara toda a sua vida a fazer com que os outros se defrontassem com a verdade acerca de si próprios, as culpas que os atormentavam, as concupiscências que os degradavam, as loucuras que os diminuíam. Agora, olhava suas próprias entranhas, onde um pequeno tumor maligno se desenvolvia como uma raiz de mandrágora, estendendo-se na direção do dia em que o destruiria.

     Perguntou, bastante calmo:

     — É operável?

     O cirurgião apagou a luz atrás do quadro de exames e a pequena morte cinzenta se extinguiu, opaca; depois sentou-se, ajustando a lâmpada de mesa, de modo a que o seu próprio rosto ficasse na sombra e o de seu paciente, iluminado, como uma cabeça de mármore num museu.

     Blaise Meredith notou o pequeno ardil e compreendeu. Eram ambos profissionais. Cada qual, em sua própria profissão, lidava com animais humanos. Cada qual devia conservar um certo desprendimento clínico, para que não se desgastasse muito e não ficasse tão fraco e medroso como os seus pacientes.

     O cirurgião recostou-se em sua cadeira, apanhou um corta-papel e segurou-o no ar tão delicadamente como se fosse um bisturi. Esperou um momento, reunindo as palavras, escolhendo esta, descartando aquela, e juntando-as, depois, numa forma verbal meticulosamente exata.

     — Posso operar, sem dúvida. Se eu o fizer, o senhor estará morto dentro de três meses.

     — E se não o fizer?

     — Viverá um pouco mais e morrerá de maneira um pouco mais dolorosa.

     — E quanto tempo mais terei de vida?

     — Seis meses. Talvez um ano, no máximo.

     — É uma escolha sombria.

     — Que o senhor mesmo terá de fazer.

     — Compreendo perfeitamente.

     O cirurgião sentou-se mais à vontade em sua cadeira. O pior já tinha passado. Não se enganara com respeito àquele homem. Era inteligente, ascético, senhor de si mesmo. Sobreviveria ao choque e procuraria conformar-se diante do inevitável. Quando chegasse a agonia, suportá-la-ia com certa dignidade. Sua Igreja atenderia às suas necessidades e o sepultaria com honra, quando morresse; e, se não houvesse ninguém para chorá-lo, isso também poderia ser contado como uma recompensa final do celibato: sair furtivamente da vida, sem lamentar seus prazeres nem temer as obrigações não cumpridas.

     A voz calma, seca, de Blaise Meredith interrompeu-lhe o pensamento.

     — Pensarei no que o senhor me disse. Caso eu decida não ser operado... e voltar ao meu trabalho... o senhor me faria a fineza de escrever um relatório ao meu médico? Um prognóstico completo, ou, talvez, uma prescrição.

     — Com prazer, Monsenhor Meredith. O senhor trabalha em Roma, não? Infelizmente, não sei escrever em italiano.

     Blaise Meredith permitiu-se esboçar um gélido sorriso:

     — Eu próprio o traduzirei. Será um exercício interessante.

     — Admiro sua coragem, monsenhor. Não professo a fé católica ou, na verdade, qualquer outra fé, mas imagino que o senhor deve encontrar nela, numa ocasião como esta, uma grande consolação.

     — Espero que possa, doutor — respondeu, com simplicidade, Blaise Meredith —, mas sou sacerdote há demasiado tempo para que alimente tal esperança.

     Agora estava sentado, ao sol, num banco de jardim, com o ar pleno de primavera e o futuro apenas uma breve e vazia perspectiva a derramar-se na eternidade. Certa vez, em seus dias de estudante, ouviu um velho missionário pregar acerca da ressurreição de Lázaro: como Cristo se detivera diante do sepulcro selado e ordenara que o mesmo fosse aberto para que o cheiro da podridão se desfizesse no ar parado e seco do verão; como Lázaro, atendendo ao chamado, saíra, a tropeçar na mortalha, e ficara de pé, a piscar sob o sol. Que sentira ele naquele momento?, indagara o velho. Que preço havia ele pago por aquela volta ao mundo dos vivos? Acaso continuou para sempre, depois, estropiado, de modo que cada rosa lhe cheirasse a podridão e cada jovem dourada lhe parecesse um esqueleto desengonçado? Ou caminhou cheio de deslumbramento diante da novidade das coisas, o coração terno de piedade e amor pela família humana?

     Essa especulação interessara a Meredith durante anos. Chegara, mesmo, em certa ocasião, a alimentar a idéia de escrever uma novela a respeito. Agora, finalmente, ele tinha a resposta. Nada era tão doce ao homem como a vida; nada mais precioso do que o tempo; nada mais tranqüilizador do que o toque da terra e da relva, o sussurro da brisa, o som de vozes, do trânsito e dos pássaros.

     Eis aí o que o perturbava. Há vinte anos era sacerdote, votado à afirmação de que a vida era uma imperfeição passageira, a terra, um pálido símbolo de seu criador, a alma, uma coisa imortal na argila mortal, a debater-se fatigada em busca de libertação nos braços acolhedores do Todo-Poderoso. Agora, que sua própria libertação lhe era prometida, com data marcada, por que não podia ele aceitá-la, se não com alegria pelo menos com confiança?

     A que se aferrava ele que já não tivesse, havia muito, rejeitado? Uma mulher? Um filho? Uma família? Não havia criatura viva alguma que lhe pertencesse. Bens terrenos? Estes eram bem poucos: um pequeno apartamento próximo da Porta Angélica, alguns objetos de adorno, uma sala cheia de livros, um modesto estipêndio da Congregação de Ritos, uma renda anual que a mãe lhe deixara. Nada que pudesse tentar um homem que se encontrava no limiar da grande revelação. Carreira? Talvez houvesse algo, aí... Auditor da Sagrada Congregação de Ritos, assistente pessoal do próprio prefeito, o Cardeal Eugênio Marotta. Era uma posição de influência, de lisonjeira confiança. A gente sentava-se à sombra do pontífice. Observava o funcionamento complexo, sutil, de uma grande teocracia. Vivia-se com simplicidade, mas confortavelmente. Tinha-se tempo para estudar, liberdade para agir sem peias dentro dos limites da prudência e da discrição. Talvez houvesse algo, aí... mas não o bastante: nem a metade do que seria necessário a um homem que ansiasse pela União Perfeita que pregava.

     Talvez estivesse aí a essência da coisa. Ele jamais ansiara por coisa alguma. Sempre tivera tudo o que desejara, e jamais desejara nada além do que estava ao seu alcance. Aceitara a disciplina da Igreja, e a Igreja dera-lhe segurança, conforto e escopo para o exercício de suas aptidões naturais. Conseguira maiores satisfações em sua vida do que a maioria dos homens — e, se não pedira jamais a felicidade, foi porque nunca tinha sido infeliz. Isso, até então...  até aquele desolado momento ali, ao sol, o primeiro sol da primavera, a última primavera que Blaise Meredith jamais teria.

     A última primavera, o último verão. O troco final da vida, mastigado e chupado até ficar seco como um bastão de açúcar-cande que se lança depois ao lixo. Havia ali amargura, o gosto azedo do fracasso e da desilusão.

     Que mérito poderia ele computar e levar consigo para o Juízo Final? Que é que deixaria atrás de si, para que os homens quisessem lembrar-se dele?

     Jamais gerara um filho, plantara uma árvore ou colocara pedra sobre pedra na construção de uma casa ou monumento. Não tivera ódios, mas também não dispensara caridade. Seu trabalho se desfaria em pó nos arquivos do Vaticano. Qualquer virtude que acaso tivesse florescido em seu ministério era sacramental, e não individual. Os pobres não o abençoariam pelo seu pão, nem os enfermos pelo consolo de suas palavras, nem os pecadores pela salvação de suas almas. Fizera o que dele haviam exigido; não obstante, morreria vazio e, dentro de um mês, seu nome seria um pouco de pó soprado sobre o deserto dos séculos.

     Súbito, sentiu-se aterrorizado. Um suor frio inundou-lhe o corpo. Suas mãos começaram a tremer, e um grupo de crianças que brincavam com uma bola junto a um banco próximo se afastou do macilento clérigo que ali estava sentado, a fitar, com olhos que não viam, as águas tremeluzentes do lago.

     Os calafrios passaram lentamente. O terror cessou e ele se sentiu de novo calmo. A razão apoderou-se dele, e pôs-se a pensar de que modo deveria organizar sua vida durante o tempo que lhe restava.

     Ao ficar doente em Roma, quando os médicos italianos fizeram, em caráter experimental, os primeiros diagnósticos, sua decisão instintiva fora voltar para Londres. Se tinha de ser condenado, preferia sê-lo em sua própria língua. Se tinha de ser reduzido o tempo de vida de que dispunha, desejava, então, passar o que lhe restava dela em meio à suave atmosfera da Inglaterra, a caminhar pelas chapadas gredosas, pelos bosques de faias, e ouvir o canto elegíaco dos rouxinóis à sombra de velhas igrejas, onde a morte era mais familiar e mais afável, pois os ingleses haviam passado séculos a ensinar-lhe boas maneiras.

     Na Itália, a morte era rude, dramática — um final de grande ópera, com coros de carpideiras, penachos ao vento e negros ataúdes barrocos a rolar diante de palácios de estuque rumo às criptas de mármore do campo-santo. Ali, na Inglaterra, seu aspecto era mais gentil: a cerimônia religiosa murmurada discretamente numa nave normanda, a sepultura aberta em grama ceifada entre túmulos batidos pelas intempéries, as libações na taberna de vigas de carvalho, situada logo do lado oposto ao portão coberto de musgo.

     Também isso, agora, provava ser uma ilusão, uma falácia patética, não constituindo, de modo algum, couraça contra o cinzento inimigo entrincheirado em suas próprias entranhas. Não podia escapar dele, como tampouco podia fugir à convicção de seu próprio fracasso como sacerdote e como homem.

     Que fazer, então? Submeter-se ao bisturi? Abreviar a agonia, truncar o medo e a solidão até um limite exeqüível? Não seria aquilo um novo fracasso, uma espécie de suicídio que os moralistas talvez justificassem, mas que a consciência não poderia jamais perdoar? Já tinha demasiados débitos para levar ao seu ajuste de contas final; este último poderia conduzi-lo inteiramente à falência.

     Voltar ao trabalho? Sentar-se à velha mesa, sob o teto decorado, no Palácio das Congregações, em Roma. Abrir os enormes in-fólios, onde as vidas, as obras e os escritos de candidatos à canonização, mortos havia muito, eram registrados pela mão de milhares de copistas. Examiná-los, dissecá-los, analisá-los e fazer suas anotações. Questionar suas virtudes e lançar dúvidas sobre as maravilhas que lhes eram atribuídas. Fazer novas anotações em novos manuscritos. E isso com que fim? Para que um novo candidato às honras canônicas talvez viesse a ser rejeitado por ter sido, em vida, menos do que heróico, ou menos do que sábio, em suas virtudes; ou para que daqui a um século, ou talvez dois, um novo papa pudesse vir a proclamar, em São Pedro, que um novo santo havia sido incluído no calendário.

     Acaso se importavam aqueles mortos com o que ele escrevia a respeito deles? Acaso se importavam que se permitisse a uma nova estátua o uso de uma auréola, ou que os impressores pusessem em circulação um milhão de pequenos cartões com seus rostos na frente e uma lista de suas virtudes no verso? Ririam de seus brandos biógrafos ou franziriam a testa diante de seus detratores oficiais? Tinham morrido e sido julgados havia muito, como ele deveria morrer e ser julgado. O resto era tudo adenda, post-scriptum, e dispensável. Um novo culto, uma nova peregrinação, uma nova missa na liturgia não os comoveriam de modo algum. Blaise Meredith, sacerdote, filósofo, canonista, poderia trabalhar doze meses ou doze anos em seus registros sem que acrescentasse um til à felicidade deles ou um único sofrimento à condenação de suas almas.

     Não obstante, aquele era o seu trabalho e ele devia realizá-lo, pois estava entregue às suas mãos — e porque ele estava demasiado cansado e doente para começar qualquer outro. Diria missa todos os dias, cumpriria diariamente sua tarefa no Palácio das Congregações, pregaria ocasionalmente na Igreja Inglesa, ouviria em confissão seus colegas em férias, voltaria todas as noites ao seu apartamento na Porta Angélica, leria um- pouco, faria suas preces e, depois, se debateria nas noites inquietas, até a áspera manhã. Durante doze meses. Depois, estaria morto. Pelo espaço de uma semana, diriam seu nome nas missas... "o nosso irmão Blaise Meredith"; depois, unir-se-ia aos anônimos e aos esquecidos na lembrança de todos... "todos os fiéis que partiram".

     Fazia, agora, frio no parque. Os namorados limpavam a relva de seus paletós e as moças alisavam as saias. As crianças eram arrastadas, indiferentes, pelas alamedas, atrás de pais que as repreendiam. Os cisnes voltavam, arrepiados, para as ilhotas, na hora máxima do zunzunar do tráfego de Londres.

     Era hora de ir embora. Hora de Monsenhor Blaise Meredith enfardar seus angustiosos pensamentos e recompor seu magro rosto, pondo nele um sorriso cortês para o chá do administrador, em Westminster. Os ingleses eram um povo civilizado e tolerante. Esperavam que um homem cuidasse recatadamente de sua salvação ou se condenasse com discrição às penas eternas, que soubesse beber como um cavalheiro e guardasse consigo mesmo os seus problemas. Desconfiavam dos santos, não viam os místicos com simpatia e quase acreditavam que o Deus Todo-Poderoso sentia da mesma maneira. Mesmo na hora de seu Getsemani privado, Meredith alegrava-se com aquela convenção social que o obrigaria a esquecer-se de si mesmo e atentar no que tagarelavam os seus colegas.

     Levantou-se entorpecidamente do banco, ficou longo momento parado, como se não estivesse seguro de habitar o seu próprio corpo e depois desceu, com passos firmes, na direção de Brompton Road.

    

     O Dr. Aldo Meyer tinha suas próprias preocupações naquela suave noite mediterrânea. Estava procurando embriagar-se — da maneira mais rápida e indolor possível.

     Tudo estava contra ele. O lugar em que bebia era uma taberna de paredes de pedra, teto baixo e chão de terra batida, que cheirava a vinho azedo. As pessoas que lhe faziam companhia eram o proprietário, camponês bronco, e uma volumosa e sólida jovem de pescoço e ancas de boi, com seios de melão a forçar o vestido negro e ensebado. A bebida era uma causticante grappa que, segundo se garantia, afogaria mesmo a mais obstinada tristeza. Mas Aldo Meyer era demasiadamente comedido e inteligente para que pudesse apreciá-la.

     Estava sentado, encurvado, diante da mesa rústica, tendo ao lado uma vela gotejante, e fitava o seu copo, traçando, desenhos monótonos na bebida derramada que fluía lentamente atrás de seu dedo. O padrone achava-se recostado ao balcão, a palitar os dentes com um raminho seco e a chupar, ruidosamente, através dos vãos, o resto do jantar. A moça, sentada na sombra, esperava o momento de encher o copo, logo que o médico o esvaziasse. Bebera, a princípio, rapidamente, a grandes sorvos; depois, mais devagar, à medida que o álcool tomava conta dele. Nos últimos dez minutos, não tocara no copo. Era como se estivesse aguardando que algo acontecesse antes da rendição final ao esquecimento.

     Tinha quarenta e nove anos mas parecia um velho. Seus cabelos eram brancos e a pele de seu belo rosto judaico estendia-se vincada sobre os ossos. Possuía mãos longas e ágeis, mas calejadas como as de um trabalhador. Usava uma roupa citadina de talhe fora de moda, punhos puídos e lapela brilhante, mas seus sapatos estavam engraxados e a camisa limpa, salvo quanto às manchas nos lugares em que haviam caído pingos de grappa. Havia nele um ar de passada distinção que se adaptava estranhamente à rudeza do ambiente e à grosseira vitalidade da jovem e do padrone.

     Gemello Minore achava-se situada muito longe de Roma, e mais longe ainda de Londres. A miserável taberna não se assemelhava em nada ao Palácio das Congregações. Não obstante, o Dr. Aldo Meyer, como Blaise Meredith, estava preocupado com a morte e, embora cético como era, via-se envolvido com a beatitude.

     Ao cair da tarde, fora chamado à casa de Pietro Rossi, cuja esposa estava em trabalho de parto havia dez horas. A parteira mostrava-se desesperada e o quarto achava-se cheio de mulheres que tagarelavam como galinhas, enquanto Maria Rossi gemia e se contorcia com contrações, mergulhando, depois, em fraco queixume, quando as dores passavam. Fora da choupana, os homens permaneciam reunidos, falando em voz baixa e passando uma garrafa de vinho de mão em mão.

     Quando ele se aproximara, calaram-se, observando-o de soslaio, com olhos especulativos, enquanto Pietro Rossi o fazia entrar. Vivia entre eles há vinte anos; não obstante, era ainda um estranho. Naqueles momentos de sua vida tribal ele talvez lhes fosse necessário, mas jamais o recebiam de bom grado.

     No quarto, com as mulheres, a história foi a mesma: silêncio, desconfiança, hostilidade. Ao debruçar-se sobre a grande cama de ferro, para apalpar e examinar o intumescido corpo, a parteira e a mãe da moça ficaram bem perto dele e, quando veio uma nova contração, houve um murmúrio de escândalo, como se ele a houvesse provocado.

     Decorridos três minutos, ele já sabia que não havia esperança de parto normal. Tinha de ser feita uma cesariana. Tal perspectiva não o preocupou demais. Já as praticara antes, à luz de velas e lampiões, sobre mesas de cozinha e bancos de madeira. Com água fervente, anestésico e os vigorosos corpos das mulheres da montanha, as probabilidades de êxito pendiam a favor da paciente.

     Esperava que houvesse protestos. Aquela gente era cabeçuda como uma mula e duas vezes mais assustadiça — mas ele não estava preparado para uma explosão como a que se verificou. Foi a mãe da moça quem a começou, uma megera corpulenta, musculosa, de cabelos escorridos, com falhas de dentes e olhos negros de serpente. Cercou-o, gritando-lhe em carregado dialeto:

     — Nada de facas na barriga de minha filha! Quero netos vivos, e não mortos! Os médicos são todos iguais. Quando não podem curar as pessoas, cortam e enterram a gente. Mas não minha filha! Mais um pouco de tempo, e essa criança saltará para fora como uma ervilha. Tive doze filhos. Devo saber o que estou dizendo. Nem sempre a coisa foi fácil, mas eu tive eles, sem precisar que nenhum açougueiro me cortasse a barriga!

     Uma explosão de risos estridentes abafou os gemidos da parturiente. Aldo Meyer ficou a observá-la, sem dar importância às mulheres. Apenas disse:

     — Se eu não operar, ali pela meia-noite ela estará morta.

     Isso havia dado resultado noutras ocasiões — o frio pronunciamento profissional, o desprezo pela ignorância dos que o cercavam — mas, dessa vez, falhou por completo. As mulheres riram-lhe na cara.

     — Dessa vez não, seu judeu! E sabe por quê? — indagou, metendo a mão dentro do vestido e tirando um pequeno objeto envolto em pano vermelho e desbotado, que lhe agitou diante do nariz: — Sabe o que é isto? Claro que não sabe, sendo um infiel e um matador de Cristo. Temos agora um santo aqui conosco. Um santo de verdade! Estão arranjando, para que ele seja canonizado em Roma a qualquer momento. Isto é um pedaço de sua camisa. Uma verdadeira relíquia viva, manchada com o sangue dele. Ele vem fazendo milagres. Milagres de fato! E estão todos escritos. Foram enviados ao papa. O senhor acha que pode fazer mais do que ele? Acha? Qual deles escolhemos, pessoal? O nosso São Giacomo Nerone ou este sujeito?

     A moça gritou na cama, tomada de súbita agonia, e as mulheres calaram-se, enquanto a mãe se debruçava sobre o leito, a proferir breves ruídos de consolo e a esfregar a encardida relíquia, debaixo das cobertas, sobre o inchado ventre. Aldo Meyer aguardou um momento, à procura das palavras exatas. Depois, quando a moça tornou a aquietar-se, disse-lhes, sobriamente:

     — Mesmo um infiel sabe que esperar milagres, sem que procuremos ajudar-nos, é um pecado. Não podemos jogar fora os remédios e esperar que os santos nos curem. Além disso, Giacomo Nerone ainda não é santo. Demorará ainda muito tempo antes que comecem sequer a discutir o seu caso em Roma. Rezem para ele se quiserem, mas peçam-lhe que me dê a mim uma mão firme e a esta moça um coração forte. Agora, deixem de ser tolas e tragam-me água quente e lençóis limpos. Não disponho de muito tempo.

     Ninguém se mexeu. A mãe interceptou-lhe os passos, impedindo-o de aproximar-se da cama. As mulheres permaneciam enfileiradas em estreito semicírculo, conduzindo-o na direção da porta, onde se achava Pietro Rossi, pálido, a observar o drama. Meyer voltou-se para ele, num desafio:

     — Você aí, Pietro! Você quer um filho? Quer sua mulher? Então, pelo amor de Deus, ouça-me. A menos que eu a opere sem perda de tempo, ela morrerá, e a criança com ela. Você sabe o que posso fazer... Há vinte pessoas na aldeia que podem dizer-lhe. Mas você não sabe o que esse tal Giacomo Nerone pode fazer... mesmo que seja um santo... do que muito duvido.

     Pietro Rossi abanou a cabeça, obstinado:

     — Não é natural arrancar uma criança como se fosse as tripas de um carneiro. Além disso, esse não é um santo comum. Ele é nosso. Ele nos pertence. Cuidará de nós. É melhor que o senhor vá embora, doutor.

     — Se eu for, sua mulher não atravessará a noite.

     A cara inexpressiva do camponês era vazia como uma parede. Meyer voltou-se e lançou um olhar àquela gente, a gente morena e fechada do sul, e pensou, com desespero, quão pouco ele a conhecia, quão pequeno era o seu poder sobre ela. Encolheu os ombros num gesto de resignação, apanhou sua maleta e caminhou para a porta. Na soleira, deteve-se e voltou-se para as pessoas:

     — Seria melhor que chamassem o Padre Anselmo. Ela não dispõe de muito tempo.

     A mãe cuspiu desdenhosamente no chão e, depois, tornou a curvar-se sobre a cama, para esfregar o pequeno trapo de seda sobre o ventre convulsivo da jovem, murmurando orações em dialeto. As outras mulheres o observavam, mudas, os rostos petrificados. Quando ele saiu e desceu pelo caminho coberto de pedras arredondadas, sentiu nas costas, como punhais, o olhar dos homens. Foi então que resolveu embriagar-se.

     Para Aldo Meyer, o velho liberal, o homem que acreditava nos homens, aquele era o gesto final de derrota. Não havia esperança para aquela gente. Eram rapaces como falcões. Criaturas capazes de arrancar o coração a alguém e deixar-lhe o corpo a apodrecer numa fossa. Ele tinha sofrido por eles, lutado por eles, vivido em sua companhia e procurado educá-los, mas eles se aproveitaram de tudo e nada aprenderam. Zombavam dos conhecimentos mais elementares, embora se deliciassem com lendas e superstições tão avidamente como crianças.

     Somente a Igreja podia dominá-los, embora não conseguisse torná-los melhores. Afligia-os com demônios, obcecava-os com santos, engabelava-os com chorosas madonas e bambini de nádegas roliças. Podia arrancar-lhes o último níquel para a aquisição de um novo candelabro, mas não podia — ou não queria — levá-los a uma clínica onde os vacinassem contra o tifo. As mães eram devastadas pela tuberculose e seus bambini tinham os braços inchados por crises intermitentes de malária. Contudo, preferiam engolir o diabo a meter na boca uma pastilha de Atebrina, mesmo que o próprio médico a pagasse.

     Viviam em choças onde um bom lavrador não alojaria o seu gado. Comiam azeitonas, farinha de pão molhada em azeite e, em dias de festa, carne de cabrito, quando podiam comprá-la. Suas colinas eram nuas de árvores e seus eirados, em socalcos, retinham apenas um solo avaro, do qual a parte nutriente escorria com as primeiras chuvas e perdia-se nas encostas pedregosas. Seu vinho era ralo e seu trigo, magro, e caminhavam com o jeito indolente de gente que comia muito pouco e trabalhava demais.

     Seus senhorios os exploravam, mas eles se agarravam como crianças à aba de seus paletós. Seus sacerdotes entregavam-se não raro à bebida e ao concubinato, mas eles os alimentavam, apesar de sua pobreza, e os tratavam com tolerante desdém. Se o verão tardava a chegar ou o inverno era inclemente, a geada queimava os olivais e havia fome nas colinas. Não tinham escolas para seus filhos, e aquilo que o Estado não lhes fornecia eles não procuravam suprir por si próprios. Não sacrificariam, na construção de uma escola, as suas horas de ócio. Não podiam pagar um professor, mas lançavam mão de suas minguadas liras para financiar a canonização de um novo santo destinado a um calendário já sobrecarregado deles.

     Aldo Meyer fitava a escura borra de sua grappa e lia apenas, nela, inutilidade, decepção e desespero. Ergueu o copo e engoliu de um trago o resto da bebida. Era acre, amarga e não continha calor algum.

     Fora para ali como exilado, quando os fascistas estreitaram o cerco em torno dos semitas, dos intelectuais esquerdistas e dos liberais demasiado eloqüentes e lhes apresentaram a sucinta alternativa de vida campestre ou trabalho forçado em Lipari. Deram-lhe o título irônico de oficial médico, mas sem salário, sem medicamentos e sem anestésicos. Chegara com a roupa do corpo, uma maleta de instrumentos cirúrgicos, um vidro de comprimidos de aspirina e um compêndio médico. Durante seis anos, batalhou, arquitetou intrigas, valeu-se de lisonjas e de chantagem, tendo em vista construir um sumário serviço médico numa região de desnutrição constante, malária endêmica e epidemias de tifo.

     Morava numa granja cuja casa, arruinada, ele restaurara com suas próprias mãos. Lavrara dois acres de terra pedregosa com a ajuda de um empregado cretino. Seu hospital era um dos quartos de sua casa. Seu anfiteatro era sua cozinha. Os camponeses pagavam-no em espécie, quando de algum modo o pagavam, e ele exigia dos funcionários administrativos locais uma contribuição em forma de drogas e instrumentos cirúrgicos, bem como proteção contra um governo hostil. Aquilo tinha sido uma amarga servidão, mas havia momentos de triunfo, dias em que lhe parecia estar penetrando, finalmente, no círculo fechado da vida primitiva da montanha.

     Quando os Aliados cruzaram os estreitos de Messina e começaram seu lento e sangrento avanço península acima, ele fugira e unira-se aos partigiani e, após o Armistício, passara breve período em Roma. Mas ficara demasiado tempo ausente. Os velhos amigos haviam morrido. Amigos novos era coisa difícil de fazer, e os pequenos êxitos daqueles anos vorazes o desafiavam agora para novos triunfos. Com liberdade, dinheiro e o ímpeto reformador, um homem de boa vontade poderia operar milagres no sul.

     E, assim, ele voltara à velha casa, à velha aldeia, com um novo sonho e uma sensação de renovada juventude dentro de si mesmo. Além de médico, tomar-se-ia professor. Estabeleceria uma organização modelo destinada ao esforço cooperativo, uma organização que, para o seu desenvolvimento, atrairia dinheiro de Roma, bem como ajuda financeira de outras organizações de além-mar. Adestraria jovens que levassem sua mensagem a distritos adjacentes. Seria um missionário do progresso onde o progresso se detivera três séculos antes.

     Doze anos passados, aquilo tinha sido um belo, um revigorante sonho. Sabia, agora, que tudo não passara de desanimadora ilusão. Caíra no erro de todos os liberais: a crença de que os homens estão prontos a modificar-se, de que há boa vontade, e de que a verdade possui por si própria uma virtude de fermentação. Seus planos soçobraram ante a venalidade de dirigentes públicos, do conservantismo de uma Igreja feudal, da rapacidade e desconfiança de um povo ignorante e primitivo.

     Mesmo através dos espessos vapores da bebida, ele via tudo de maneira bastante clara. Eles o haviam derrotado. Ele próprio se derrotara. E agora era tarde demais para remediar a situação.

     Do lusco-fusco que reinava fora, chegaram até eles longos e lamentosos gritos femininos. A moça e o padrone trocaram um olhar e persignaram-se. O médico levantou-se e dirigiu-se, vacilante, à porta, onde ficou a olhar o frio crepúsculo de primavera.

     — Ela morreu — disse o padrone, com sua voz grossa e rouca.

     — Digam isso ao santo — respondeu Aldo Meyer. — Eu vou para a cama.

     Quando ele se afastou, cambaleante, pela rua, a moça mostrou-lhe a língua e fez o sinal contra mau-olhado.

     O lamento fúnebre aumentava e diminuía, gemendo como um vento sobre a montanha adormecida. Seguiu-o pela rua de pedras arredondadas até sua casa. Batia de encontro à sua porta, esquadrinhava os postigos de suas janelas, perseguindo-o durante toda aquela noite de sono inquieto, entremeado de palavras proferidas entre dentes.

    

     Ao cair daquela mesma noite de primavera, o Cardeal Eugênio Marotta passeava pelos jardins de sua villa, em Parioli. Ao longe, bem embaixo, a cidade despertava do torpor da tarde e entregava-se de novo às suas atividades comerciais, em meio a ruídos estridentes e buzinas, motonetas barulhentas e negociantes regateiros. Os turistas voltavam compungidamente da Basílica de São Pedro, de São João de Latrão e do Coliseu. Os floristas estendiam suas flores para o derradeiro assalto dos amantes da escadaria espanhola. O sol, no ocaso, derramava-se sobre as colinas e o topo dos telhados, mas, embaixo, nas vielas, pairava pesadamente a névoa do lusco-fusco, e as paredes das casas eram cinzentas e gastas.

     Lá em cima, em Parioli, porém, o ar era claro e tranqüilas as avenidas, e Sua Eminência caminhava sob palmeiras curvadas, em meio à fragrância de jasmineiros floridos. Havia, em torno, altos muros e portões gradeados, para que o mantivessem apartado dos demais, e os bronzes heráldicos, sobre o dintel, lembravam ao visitante a dignidade eclesiástica e os títulos do Cardeal Eugênio Marotta, arcebispo da Acrópole, titular de São Clemente, prefeito da Sagrada Congregação dos Ritos, subprefeito do Supremo Tribunal da Signatura Apostólica, comissário para a interpretação do direito canônico, protetor dos Filhos de São José e das Filhas de Maria Imaculada, bem como de vinte outras organizações religiosas, grandes e pequenas, da Santa Igreja Romana.

     Eram amplos os títulos, como também o era o poder que havia por trás deles, mas Sua Eminência carregava tal poder com um tão brando bom humor que ocultava uma inteligência sutil e uma vontade dominadora.

     Era um homem baixo e corpulento, de mãos e pés pequenos, rosto com papada, cabeça arredondada calva como um ovo sob o solidéu. Seus olhos cinzentos piscavam com benevolência e sua boca era pequena e rubra como a de uma mulher, contrastando com sua tez azeitonada. Tinha sessenta e três anos, o que era pouca idade para um homem atingir o chapéu cardinalício. Trabalhava arduamente, embora sem esforço aparente, mas ainda lhe restava energia suficiente para a sinuosa diplomacia e as manipulações do poder dentro da fechada Cidade do Vaticano.

     Havia os que eram a favor de sua eleição para o próprio papado, enquanto outros, mais numerosos, eram de opinião que o próximo pontífice deveria ser um homem mais santo, menos preocupado com a diplomacia do que com a reforma da moral tanto entre o clero como entre os leigos. Eugênio Marotta aguardava, satisfeito, o resultado, sabendo que aquele que entra num conclave como papa tem probabilidade de sair dele cardeal. Ademais, o pontífice podia ser velho, mas estava ainda longe da morte e encarava com desagrado os que lhe cobiçavam os sapatos.

     Assim, Sua Eminência passeava pelos jardins de sua villa, no bairro de Parioli, a observar o sol que se punha atrás das colinas albanas e a pensar nos assuntos do dia com a atitude descansada de um homem que sabia que, no fim, teria todas as respostas.

     Podia dar-se ao luxo da despreocupação. Chegara, mediante firme progressão, ao elevado posto eclesiástico do qual nem a maldade nem o desfavor poderiam desalojá-lo. Permaneceria cardeal até o dia de sua morte, um príncipe por protocolo, bispo por irrevogável consagração, cidadão do menor e menos vulnerável Estado existente no mundo. Era muito para um homem que se achava ainda em seus vigorosos sessenta e poucos anos. Era ainda muito mais, pois não se achava preso a uma esposa, atormentado por filhos e filhas, ou escravizado aos aguilhões da paixão. Fora tão longe quanto o talento e a ambição podiam tê-lo levado.

     O passo seguinte era a cadeira de São Pedro, mas aquele era um salto muito grande, meio caminho distante do mundo, já uma antecâmara da divindade. O homem que usava o anel de São Pedro e a tríplice tiara também carregava consigo os pecados do mundo, como um manto de chumbo sobre os ombros. Permanecia sobre venturoso pináculo tendo, a seus pés, o tapete estendido das nações e, no alto, a face nua do Todo-Poderoso. Somente um tolo invejaria o poder, a glória e o terror de um tal principado. E o Cardeal Marotta estava longe de ser um tolo.

     Naquela hora de penumbra e jasmim, ele já tinha problemas suficientes para resolver.

     Dois dias antes, fora colocada sobre sua mesa uma carta do bispo de Valenta, pequena diocese de uma região arruinada da Calábria. Conhecia vagamente o bispo como sendo reformador severo, com pendores para a política. Causara agitação, dois anos antes, por haver destituído, por concubinato, dois curas rurais, e por ter afastado, por incompetência, um de seus pastores mais idosos. O resultado das eleições em sua diocese revelara acentuada inclinação a favor dos democratas cristãos e, com isso, obtivera uma carta de louvor pontifícia. Só os observadores mais sutis como Marotta haviam observado que o aumento dos votos fora devido ao Partido Monarquista e não aos comunistas, que também tinham obtido ligeiro acréscimo na votação. A carta do bispo era simples e explícita — demasiado simples para que fosse destituída de astúcia e demasiado explícita para que deixasse de despertar suspeita num político experimentado como era o Cardeal Eugênio Marotta.

     Começava com saudações, floridas e deferentes, de um bispo humilde a um príncipe da Igreja. Dizia, a seguir, que recebera uma petição assinada pelo pároco e pelos fiéis das aldeias de Gemelli dei Monti, solicitando a apresentação da causa de beatificação do servo de Deus Giacomo Nerone.

     Esse Giacomo Nerone fora assassinado por comunistas em circunstâncias que bem poderiam ser chamadas de verdadeiro martírio.

     Desde sua morte, vinham-lhe sendo prestados, nas vilas e nos campos adjacentes, espontâneos tributos de veneração, atribuindo-se à sua influência diversas curas de natureza milagrosa. Investigações preliminares confirmaram sua reputação de santidade, bem como a natureza aparentemente milagrosa de tais curas, e o bispo mostrou-se disposto a aceitar a petição e submeter o caso à investigação jurídica. Antes de fazê-lo, porém, desejava conhecer a opinião de Sua Eminência, como prefeito da Congregação dos Ritos, bem como contar com sua assistência para que fossem designados, diretamente de Roma, dois cultos e virtuosos sacerdotes — um, como postulador da causa, para iniciar a investigação e levá-la avante e, outro, como promotor da fé, ou advogado do Diabo, para submeter as provas e as testemunhas ao severo escrutínio, segundo as cláusulas pertinentes do direito canônico.

     Havia muito, muito mais, mas essa era a essência da coisa. O bispo talvez tivesse mesmo um santo em seu território — e, o que é mais, um santo conveniente, martirizado pelos comunistas. A única maneira pela qual poderia provar essa santidade era mediante uma investigação judicial, primeiro em sua própria diocese e, depois, em Roma, debaixo da autoridade da Congregação dos Ritos. A primeira investigação, porém, seria feita em sua própria sede episcopal e sob sua própria autoridade, por meio de autoridade por ele mesmo designada. Os bispos locais eram, em geral, zelosos de sua autonomia. Por que razão, pois, aquele apelo deferente a Roma?

     O Cardeal Eugênio Marotta caminhava pelos relvados bem-cuidados dos jardins de sua villa, a meditar sobre tal proposição.

     Gemelli dei Monti situava-se bem no coração da Itália meridional, onde os cultos se extinguem tão rapidamente quanto proliferam, onde a fé se acha sobrecarregada de espessa patina de superstição, onde os camponeses fazem, com a mesma mão, o sinal-da-cruz e o gesto contra o mau-olhado, onde a imagem do Bambino é dependurada sobre a cama e os cornos pagãos pregados na porta do celeiro. O bispo era um homem astuto que queria um santo para o bem de sua própria diocese, mas que declinava colocar sua própria reputação em jogo juntamente com a do servo do Senhor.

     Se a investigação corresse bem, teria não apenas um beato, mas uma vara com que castigar os comunistas. Se corresse mal, os sábios e piedosos homens de Roma bem poderiam arcar com uma parte da culpa. Sua Eminência esboçou um sorriso, diante da sutileza daquilo. Arranhe-se um homem do sul, e encontrar-se-á uma raposa que fareja armadilhas a uma milha de distância e que se desvia matreiramente delas rumo ao galinheiro.

     Mas estava em jogo mais do que a reputação de um bispo provincial. Havia também política envolvida no caso, e faltavam apenas doze meses para as eleições italianas. A opinião pública era sensível à influência do Vaticano nos assuntos civis. Os anticlericais acolheriam de bom grado uma oportunidade para desacreditar a Igreja, e já dispunham de armas suficientes para que se lhes pusesse outra nas mãos.

     Havia, no entanto, questões mais profundas, matérias que diziam menos respeito ao tempo que à eternidade. Dizer que um homem era santo era declará-lo servo heróico de Deus, apresentá-lo como exemplo e intercessor a favor dos fiéis. Aceitar seus milagres era admitir, além de qualquer dúvida, o poder divino a agir através de sua pessoa, suspendendo ou cancelando as leis da natureza. Um erro em tal assunto era coisa inconcebível. Toda a maciça maquinaria da Congregação dos Ritos se destinava a impedir que isso ocorresse. Mas uma ação prematura, uma investigação malfeita, poderia causar grave escândalo e debilitar a fé de milhões de indivíduos numa Igreja infalível que reivindicava para si a orientação direta do Espírito Santo.

     Sua Eminência sentiu um arrepio ante a friagem que descia sobre Parioli com as primeiras sombras da noite. Era um homem enrijecido pelo poder e cético quanto à devoção, mas também carregava sobre os ombros o fardo da crença e, em seu coração, o medo do demônio do meio-dia.

     Podia dar-se menos do que os outros ao luxo de errar. Pois muito mais dependia dele. O castigo do fracasso seria tanto mais rigoroso. Apesar da pompa de seu título e da dignidade secular que o acompanhava, sua missão primordial era de ordem espiritual. Dizia respeito a almas — à sua salvação ou condenação. A maldição da mó podia recair igualmente tanto sobre um cardeal que errava como sobre um cura sem fé. Assim, caminhava e refletia seriamente, enquanto a leve harmonia dos sinos subia da cidade e os grilos, no jardim, começavam o seu coro estridente.

     Concederia ao bispo de Valenta o seu pequeno triunfo. Encontraria os homens para ele: um postulador que elaborasse o caso e o apresentasse, e um advogado do Diabo para que o destruísse, se pudesse. Dos dois, o advogado do Diabo era o mais importante. Seu título oficial descrevia-o com exatidão: promotor da fé. O homem que mantinha a fé pura, mesmo à custa de vidas destroçadas e de corações partidos. Devia ser um homem culto, meticuloso, desapaixonado. Devia ser frio em seu julgamento, implacável em sua condenação. Podia deixar de ter caridade ou piedade, mas não podia faltar-lhe precisão. Tais homens eram raros, e aqueles de que dispunha já estavam ocupados em outras causas.

     Foi então que se lembrou de Blaise Meredith, o homem magro, sóbrio, que já tinha sobre si o cinzento da morte. Ele possuía tais qualidades. Era inglês, o que afastaria o perigo das embrulhadas políticas. Mas se tinha desejo ou lhe restava tempo para aquela tarefa era um outro assunto. Se o veredicto médico fosse desfavorável, talvez não se sentisse disposto a aceitar tão pesada missão.

     Contudo, aquilo era o começo de uma resposta. Sua Eminência não se sentia de todo insatisfeito. Deu mais uma volta, lentamente, pelo jardim já escuro, depois recolheu-se à villa, a fim de dizer as vésperas em companhia de seus domésticos.

    

   Dois dias depois, o Cardeal Eugênio Marotta achava-se sentado em seu gabinete de trabalho, atrás de sua grande mesa embutida, e conversava com Monsenhor Blaise Meredith. Sua Eminência dormira bem e fizera ligeira refeição matinal — e seu rosto, redondo e bem-humorado, cuidadosamente barbeado, mostrava-se fresco e brilhante. Na alta sala, com o seu teto trabalhado em caixotões, os seus tapetes Aubusson e seus nobres retratos em molduras douradas, estava ele investido da dignidade inconsciente da riqueza.

     Por contraste, o inglês parecia pequeno, cinzento e encolhido. A sotaina caía-lhe frouxamente pelo corpo magro e seus adornos escarlates não faziam senão acentuar-lhe a palidez doentia do rosto. Tinha os olhos fechados de fadiga, e profundos sulcos de sofrimento marcavam-lhe os cantos da boca. Mesmo exprimindo-se no vivo italiano de Roma, sua voz era abatida e inexpressiva.

     — Aí está, Eminência. Tenho, no máximo, doze meses de vida. A metade disso, talvez, para trabalho ativo.

     O cardeal permaneceu um momento em silêncio, observando-o com desapaixonada piedade. Depois disse com bondade:

     — Lamento muito, meu amigo. Isso acontece a todos nós, certamente; mas não deixa de ser sempre um choque.

     — Contudo, nós, dentre todas as criaturas, deveríamos estar preparadas para isso.

     E a boca, descaída, ergueu-se num sorriso irônico.

     — Não! — exclamou Marotta, a agitar as pequenas mãos num gesto de protesto. — Não devemos superestimar-nos! Somos como todos os outros homens. Somos sacerdotes por eleição e vocação. E celibatários por legislação canônica. É uma carreira, uma profissão. Os poderes que exercemos, as graças que dispensamos, são independentes do nosso próprio valor. É melhor, para nós, que sejamos antes santos que pecadores... mas, como os nossos irmãos que estão fora do ministério, somos, em geral, algo que se situa entre esses dois extremos.

     — Pequeno conforto, Eminência, quando nos encontramos à sombra do tribunal.

     — Não obstante, é a verdade — lembrou-lhe, friamente, o cardeal. — Estou na Igreja há longo tempo, meu amigo. Quanto mais alto se sobe mais se vê — e de modo mais claro. É uma lenda piedosa dizer que o sacerdócio santifica um homem, ou que o celibato o enobrece. Se um sacerdote conseguir, até os quarenta e cinco anos, conservar as mãos fora do bolso e suas pernas longe de uma cama de mulher, conta com razoável probabilidade de continuar assim até o dia de sua morte. Ademais, existe ainda no mundo grande número de celibatários profissionais. Mas todos nós estamos ainda sujeitos a orgulho, ambição, preguiça, negligência, avareza. Não raro, é-nos mais difícil salvar nossas almas do que os outros as suas. Um chefe de família tem de fazer sacrifícios, impor disciplina a seus desejos, praticar o amor e a paciência. Talvez pequemos menos, mas, no fim, temos menos méritos.

     — Sinto-me muito vazio — disse Blaise Meredith. — Não há mal de que me arrependa nem bem que possa contar a meu favor. Nada tive contra que lutar. Não posso apresentar sequer cicatrizes.

     O cardeal recostou-se na cadeira, pondo-se a mexer na grande pedra amarela de seu anel episcopal. O único ruído que se ouvia na sala era o suave tique-taque do relógio de bronze dourado sobre o consolo de mármore da lareira. Decorrido um instante, falou pensativamente:

     — Posso dispensá-lo de suas obrigações, se o amigo o desejar. Posso fornecer-lhe uma pensão, com os fundos da Congregação. Poderia viver tranqüilamente...

     Blaise Meredith abanou a cabeça:

     — É muita bondade, Eminência, mas não tenho queda para a vida contemplativa. Preferiria continuar trabalhando.

     — Mas terá de parar, algum dia. E depois?

     — Irei para um hospital. Sofrerei bastante. Depois... — hesitou, estendendo as mãos, num gesto de derrota. — Finita la commedia. Se não fosse pedir demais, gostaria de ser sepultado na igreja de Vossa Eminência.

     Apesar do domínio que tinha sobre si mesmo, Marotta sentiu-se tocado pela desconsolada coragem daquele homem. Estava cansado e enfermo. O pior de seu calvário ainda estava por vir; não obstante, caminhava ao seu encontro com uma dignidade desolada tipicamente inglesa. Antes que o cardeal tivesse tempo de fazer qualquer comentário, Meredith prosseguiu:

     — Presumo, contudo, que Vossa Eminência deseja encarregar-me de alguma tarefa. Receio... receio não poder desempenhar-me dela da melhor maneira.

     — O senhor sempre fez tudo melhor do que supõe, meu amigo — respondeu, bondosamente, Marotta. — Sempre deu mais do que prometeu. Além disso há um assunto em que poderá ajudar grandemente...  e que, talvez...  — deteve-se o cardeal um instante, ao ocorrer-lhe subitamente algo — ...e que, talvez, também possa ajudá-lo.

     Dito isso, e sem esperar resposta, contou-lhe acerca da petição do bispo de Valenta e de sua necessidade de um advogado do Diabo na causa de Giacomo Nerone.

     Meredith ouviu-o com a atenção de um advogado diante dos pormenores de uma nova ação judicial. Nova vida pareceu apoderar-se dele. Seus olhos brilharam, endireitou-se na cadeira e um ligeiro rubor animou-lhe as faces descoloridas. Eugênio Marotta percebeu-o, mas não fez comentário algum. Ao terminar o esboço da situação, indagou:

     — Bem, que é que acha disso?

     — Uma indiscrição — respondeu, preciso, Meredith. — É um gesto político e desconfio disso.

     — Tudo na Igreja é política — lembrou-lhe Marotta, com suavidade. — O homem é um animal político dotado de uma alma imortal. Não se pode dividi-lo... assim como não se pode dividir a Igreja em funções isoladas e sem relação entre si. Tudo o que a Igreja faz se destina a dar um caráter espiritual a um desenvolvimento material. Designamos um santo como patrono da televisão. Que é que isso significa? Um novo símbolo de uma velha verdade: o de que toda atividade lícita conduz ao bem ou pode ser pervertida e transformar-se em mal.

     — Um número demasiado grande de símbolos pode obscurecer a face da realidade — observou, secamente, Meredith. — E um número demasiado de santos pode desacreditar a santidade. Sempre julguei que a nossa função na Congregação dos Ritos era...  não colocá-los no calendário mas conservá-los fora dele.

     O cardeal, com ar sério, fez um aceno afirmativo com a cabeça.

     — Em certo sentido, isso é verdade. Mas, tanto neste caso como em todos os outros, o primeiro gesto não parte de nós. O bispo começa em sua própria diocese. Só muito mais tarde os papéis nos são enviados. Não temos autoridade direta para impedir a investigação.

     — Poderíamos aconselhar o contrário.

     — Baseados em quê?

     — Na discrição. Os tempos são maus. Estamos em vésperas de eleições. Giacomo Nerone foi assassinado por guerrilheiros comunistas no último ano da guerra. Que é que pretendemos fazer? Usá-lo como meio de obter uma sede provincial ou como um exemplo de caridade heróica?

     Os lábios vermelhos do cardeal contraíram-se num sorriso irônico.

     — Penso que o nosso irmão bispo gostaria de conseguir ambas as coisas. E, até certo ponto, é bem possível que o consiga. Fala-se até em milagres. Um culto aparentemente espontâneo surgiu entre o povo. Antes as coisas devem ser judicialmente investigadas. A primeira investigação já foi feita, e o veredicto inclina-se a favor da aprovação. O passo seguinte segue-se quase que automaticamente — a apresentação da causa de beatificação ao próprio tribunal do bispo.

     — Caso tal aconteça, todos os jornais da Itália estamparão a notícia. As agências de turismo começarão a organizar viagens não-oficiais. Os negociantes locais começarão a gritar de cima dos telhados. Não podemos evitá-lo.

     — Mas talvez possamos controlar a coisa. Eis aí por que resolvi conceder a Sua Excelência Reverendíssima o que ele deseja. E eis aí por que gostaria que o senhor assumisse o papel de advogado do Diabo.

     Blaise Meredith contraiu os lábios finos e exangues, considerando a oferta. Depois, decorrido um momento, abanou a cabeça:

     — Sou um homem doente, Eminência. Não poderia desempenhar-me dessa missão à altura do que Vossa Eminência espera.

     — Quanto a isso, deixe que eu o julgue — respondeu friamente, em tom de desaprovação, Marotta. — Ademais, como já disse, penso que isso poderá ajudá-lo.

     — Não compreendo.

     O cardeal empurrou para trás sua alta cadeira esculpida e pôs-se de pé. Atravessou a sala até a janela e descerrou as espessas cortinas, de modo que o sol matinal inundou o aposento, iluminando o escarlate e o dourado e fazendo com que os ricos desenhos do tapete adquirissem vida, como flores.

     Blaise Meredith, ante aquela crua luminosidade, pôs-se a piscar, abrigando os olhos com a mão. O cardeal ficou a olhar o jardim. Seu rosto estava oculto de Meredith, mas, quando falou, havia em sua voz um toque de estranha compaixão:

     — O que tenho a dizer-lhe, monsenhor, é, provavelmente, uma presunção. Não sou seu confessor. Não posso penetrar em sua consciência, mas creio que o senhor chegou a um momento de crise. O senhor, como muitos dentre nós, aqui em Roma, é um sacerdote profissional — um clérigo de carreira. Não há estigma algum nisso. Já é muito ser um bom profissional. Existem muitos que ficam muito aquém mesmo dessa limitada perfeição. De repente, o senhor descobriu que isso não é o bastante. E está desorientado, com medo. Contudo, não sabe o que deveria fazer para remediar essa falha. Parte do problema é que o senhor, eu e outros como nós vivemos afastados, durante muito tempo, de nossos deveres pastorais. Perdemos contato com o povo que nos mantém em contato com Deus. Reduzimos a fé a uma concepção intelectual, um árido assentimento da vontade, porque não vimos agindo nas vidas das criaturas comuns. Perdemos a piedade, o medo e o amor. Somos os guardiões de mistérios, mas perdemos o respeitoso temor que deveríamos sentir diante deles. Agimos movidos por cânones, e não pela caridade. Como todos os administradores, acreditamos que, sem nós, ó mundo mergulharia no caos, que carregamos em nossas costas até mesmo a Igreja de Deus. Isso não é verdade, mas alguns dentre nós acreditam nisso até o dia de sua morte. O senhor é afortunado por ter sido tocado, mesmo tardiamente, pela insatisfação... sim, até mesmo pela dúvida, pois creio que se acha agora no deserto da tentação... Eis aí por que creio que essa investigação poderá ajudá-lo. Ela o levará para fora de Roma, para uma das regiões mais miseráveis da Itália. O senhor reconstituirá a vida de um morto segundo o testemunho daqueles que com ele viveram... os pobres, os ignorantes, os esbulhados. Seja ele santo ou pecador, isso, no fim, não faz diferença alguma. O senhor viverá em meio de gente simples, falará com tais pessoas. E entre elas talvez encontre a cura para a enfermidade de seu próprio espírito.

     — E qual é a minha enfermidade, Eminência?

     A patética lassidão da voz, a desolada perplexidade da pergunta, levaram à piedade o velho sacerdote. Voltou-se da janela e viu Meredith debruçar-se para a frente em sua cadeira, o rosto afundado nas mãos. Aguardou um momento, pensando em sua resposta, depois disse, gravemente:

     — Não há paixão em sua vida, meu filho. O senhor nunca amou uma mulher, nem odiou um homem, nem sentiu piedade por uma criança. Apartou-se demasiado tempo e é, agora, um estranho no seio da família humana. Jamais pediu nada nem deu nada. Jamais conheceu a dignidade da privação, nem a gratidão de um sofrimento compartilhado com ou trem. Eis aí a sua enfermidade. Eis aí a cruz que o senhor talhou para os seus próprios ombros. Aí é que começam não só as suas dúvidas, como também os seus temores... pois um homem que não pode amar o seu semelhante tampouco pode amar a Deus.

     — Como é que se começa a amar?

     — Por necessidade — respondeu, com firmeza, Marotta. — Por necessidade da carne e por necessidade do espírito. Um homem anseia pelo seu primeiro beijo, sua primeira e verdadeira prece é feita quando ele anseia pelo paraíso perdido.

     — Estou tão cansado!... — disse Blaise Meredith.

     — Vá para casa e descanse — recomendou, com vivacidade, o cardeal. — Amanhã cedo, pode partir para a Calábria. Apresente suas credenciais ao bispo de Valenta e comece a trabalhar.

     — O senhor é um homem duro, Eminência.

     — Todos os dias morrem homens — respondeu, rude, Eugênio Marotta. — Alguns são condenados; outros conseguem a salvação. Mas o trabalho da Igreja continua. Vá, meu filho... em paz e em nome de Deus!

    

     Às onze horas da manhã seguinte Blaise Meredith deixou Roma, rumo à Calábria. Sua bagagem consistia em uma mala com roupas, uma pasta contendo o seu breviário, o seu caderno de notas e uma carta de apresentação do prefeito da Congregação dos Ritos a Sua Excelência Reverendíssima, o bispo de Valenta. Tinha pela frente dez horas de viagem e o rápido era quente, empoeirado, e estava repleto de calabreses que voltavam de uma peregrinação organizada à Cidade Santa.

     Os mais pobres foram amontoados como gado nos vagões de segunda classe, enquanto os de mais recursos se esparramaram pela primeira classe, estendendo-se, com seus pertences, sobre os bancos e as prateleiras de bagagem. Meredith viu-se firmemente ancorado entre uma corpulenta matrona de vestido de seda e um clérigo de rosto trigueiro, que chupava ruidosamente pastilhas de menta. O assento oposto era ocupado por um camponês, a esposa e quatro crianças que gritavam estridentemente, como cigarras, e se metiam entre os pés de todos. Todas as janelas estavam fechadas e o ar era viciado e sufocante.

     Meredith abriu o breviário e, com soturna concentração, procurou ler suas orações. Dez minutos após a partida da Estação Central de Roma desistiu de seu intento, desgostoso. O ar fétido causava-lhe náuseas e sua cabeça latejava, devido ao vozerio do trem e aos gritos agudos das crianças. Tentou cochilar, mas a encorpada mulher se mexia sem cessar em seu incômodo e apertado vestido, e a ruidosa mastigação do padre o incomodava quase a ponto de fazê-lo gritar. Derrotado e dispéptico, levantou-se com dificuldade e saiu para o corredor, onde permaneceu de pé, apoiado aos lambris, a olhar os campos.

     Estes estavam agora verdes, animados pelos primeiros renovos da primavera. As cicatrizes da erosão e do amanho da terra estavam cobertas de relvados novos, o estuque da fachada das casas tinha sido lavado pelas chuvas e descorado pelo sol, e mesmo as ruínas dos aquedutos e as velhas villas romanas estavam mosqueadas de musgo fresco e de ervas daninhas que surgiam de suas pedras batidas pelas intempéries. O milagre cíclico do renascimento era mais vivo ali do que em qualquer outro" país do mundo. Ali estava uma terra cansada, saqueada ruinosamente durante séculos, com seus montes carcomidos pela erosão, suas árvores decepadas, seus rios secos, e seu solo sagrado convertido em pó; não obstante, apresentava todos os anos, de algum modo, aquele breve e bravo espetáculo de folhas, relva e flor. Mesmo nas montanhas, nas ásperas encostas de tufo, demasiado pobres para a pastagem de cabras, havia ainda uns leves salpicos de verde, a lembrar a passada fertilidade.

     Se se pudesse deixar a terra em paz durante algum tempo; se se pudesse esvaziá-la, durante meio século, de suas proliferas tribos, pensou Meredith, talvez pudesse readquirir a sua fecundidade. Mas isso jamais aconteceria. Eles continuariam a gerar e a gerar filhos enquanto a terra lhes morria debaixo dos pés — lentamente, com efeito, mas, não obstante, demasiado depressa para que os técnicos e os agrônomos a restaurassem.

     As móveis paisagens banhadas de sol começaram a cansar-lhe a vista, e ele lançou um olhar para ambos os lados do corredor, aos outros passageiros que tinham sido expulsos de seus compartimentos pela fumaça de charutos, por salames e alhos rançosos e pelo cheiro de corpos que necessitavam de banho. Havia um homem de negócios napolitano com calças largas, paletó de abas curtas e um cintilante anel de zircão no dedo rechonchudo; um turista alemão de sapatos grossos e uma Leica de alto preço, duas francesas de seios achatados, um estudante americano de cabelos à escovinha e cara sardenta, e um casal de namorados provincianos, de mãos dadas junto ao toalete.

     Foram os namorados que prenderam a atenção de Meredith. O jovem era um corpulento e robusto camponês meridional, moreno como um árabe, de olhos cintilantes e mãos vivazes. Suas calças de algodão ralo modelavam-lhe os flancos e a camisa de meia colava-se-lhe ao peito de modo que toda a sua sólida masculinidade era sugestivamente visível. A moça era baixa e morena como ele, de cintura e tornozelos grossos, mas tinha "seios cheios e firmes, que se comprimiam de encontro à blusa decotada. Estavam de pé, um de frente para o outro, no estreito corredor, as mãos dadas a formar uma barreira contra qualquer intrusão, os olhos cegos a tudo o mais que não fosse eles próprios, os corpos tranqüilos a oscilar com o movimento do trem. Sua paixão era evidente; contudo, não dava impressão de urgência. O rapaz parecia vaidoso como um galo, mas consciente de sua posse. A moça estava contente com ele e consigo mesma, na pequena eternidade pessoal de um novo amor.

     Olhando-os, Blaise Meredith sentiu-se tocado pela vaga nostalgia de um passado que jamais lhe pertencera. Que conhecera ele do amor exceto uma definição teológica e uma culpa sussurrada no confessionário? Que significado tinham os seus conselhos diante dessa franca, erótica comunhão, que, por disposição divina, era o começo da vida e a garantia da continuidade da espécie humana? Logo, talvez naquela mesma noite, aqueles dois corpos jazeriam juntos na pequena morte da qual surgiria uma nova vida — um novo corpo, uma nova alma. Mas Blaise Meredith dormia sozinho, com todos os mistérios do universo reduzidos a um silogismo escolástico dentro do seu crânio. Quem estava certo — ele ou eles? Quem se aproximava mais da perfeição do desígnio divino? Havia apenas uma resposta. Eugênio Marotta tinha razão. Ele se afastara do convívio da família humana. Aquelas duas criaturas arremedam para a frente a fim de renová-la, perpetuá-la.

     Seus pés começaram a arder. Doíam-lhe as costas. Aquela dorzinha enjoada ali estava de novo, em suas entranhas. Precisava sentar-se e descansar um pouco. Ao voltar para o seu lugar, deparou com o clérigo calabrês a proferir um sermão em grande estilo:

     — Um homem maravilhoso, o Santo Padre! Um verdadeiro santo. Em São Pedro, estive bem perto dele. Se estendesse a mão, poderia tocar-lhe as vestes. A gente podia sentir o poder que dele provinha. Maravilhoso... maravilhoso!...  Devíamos agradecer todos os dias a Deus o privilégio de que desfrutamos nesta peregrinação.

     Uma onda de menta flutuava pelo compartimento. Blaise Meredith fechou os olhos e rogou a Deus lhe concedesse uma trégua, mas a voz grossa do calabrês prosseguia, monótona:

     — ...Ter estado em Roma e palmilhado o caminho dos mártires, ajoelhado junto ao túmulo de Pedro! Que outra experiência poderia igualar-se a essa? Lá, vê-se a Igreja como realmente é: um exército de sacerdotes, monges e freiras preparando-se para conquistar o mundo para Cristo...

     "Se essa é a maneira de conquistá-lo", pensou Blaise Meredith, "que Deus se apiede do mundo! Essa espécie de pantomima jamais servirá para nada. Esse sujeito fala como um caixeiro viajante. Se ele ao menos se calasse e pensasse um pouco!"

     Mas o calabrês já estava a todo o vapor e a presença de um irmão clérigo apenas o incitava a novos esforços:

     — Têm razão, quando chamam Roma de Cidade Santa. O espírito do grande pontífice paira sobre ela noite e dia. Lembrem-se de que nem todos os santos da Igreja se acham em Roma. Oh, não! Mesmo em nossa pequena província, temos um santo... não um santo oficial ainda... mas um santo de verdade. Ah, sim!... Um santo de carne e osso!

     Blaise Meredith ficou instantaneamente alerta. Sua irritação se dissipou, e aguardou com atenção o resto da história.

     — Já teve início a causa de sua beatificação. Giacomo Nerone. Acaso já ouviram falar dele? Não! É uma história estranha e maravilhosa. Ninguém sabe de onde veio, mas certo dia apareceu na aldeia como um homem enviado por Deus. Construiu, com suas próprias mãos, um pequeno eremitério, e entregou-se a orações e às boas obras. Quando os comunistas, finda a guerra, ocuparam a aldeia, o assassinaram. Morreu como um mártir, em defesa da fé. E, depois de sua morte, tem ocorrido milagre após milagre junto de seu túmulo. Enfermos têm sido curados; pecadores trazidos ao caminho da penitência... Sinais seguros do favor do Todo-Poderoso.

     Blaise Meredith abriu os olhos e indagou, inocentemente:

     — O senhor o conheceu, padre?

     O calabrês lançou-lhe um olhar rápido e desconfiado:

     — Se o conheci? Bem... não o conheci pessoalmente. Mas, claro, sei de muita coisa a seu respeito. Eu sou de Cosenza. A diocese que fica logo adiante.

     — Obrigado — disse cortesmente Blaise Meredith, tornando a cerrar os olhos.

     O calabrês mexeu-se, inquieto, em seu lugar; depois, levantou-se e dirigiu-se ao toalete. Meredith aproveitou sua ausência para esticar as pernas e recostar a cabeça dolorida no espaldar almofadado. Não se arrependia do que fizera. Agora, mais do que nunca, aquela espécie de parlapatice lhe era repugnante. Constituía assim como que um jargão eclesiástico, uma retórica aviltada que nada explicava, servindo apenas para desacreditar a verdade. Reclamava todas as questões e não respondia a nenhuma. A estrutura maciça da razão e da revelação, na qual se alicerçava a Igreja, era reduzida a palavras mágicas, informes, estéreis e essencialmente falsas. Piedade, menta. Não enganava a ninguém, exceto ao homem que a mascava. Não satisfazia a ninguém, salvo a velhas senhoras e mocinhas cloróticas. Não obstante, florescia amplamente nos lugares em que a Igreja se achava mais firmemente entrincheirada na ordem estabelecida. Era a marca da acomodação, do compromisso, da frouxidão do clero, que achava mais fácil pregar a devoção do que enfrentar os problemas morais e sociais de seu tempo. Encobria a fatuidade e a falta de instrução. Deixava o povo nu e desarmado diante de mistérios aterrorizantes: dor, paixão, morte, o grande "talvez" do além.

     O calabrês moreno voltou a abotoar desajeitadamente a batina, resolvido a tornar a impor-se aos seus ouvintes e àquele monsenhor de queixo fino. Sentou-se, assoou o nariz e bateu, confiadamente, no joelho de Meredith:

     — Vem de Roma, monsenhor?

     — Sim, de Roma.

     Desagradava-lhe aquela intrusão em seu repouso — e sua resposta foi concisa. Mas o calabrês era obstinado, cego a todos os obstáculos.

     — O senhor não é italiano, é?

     — Não. Sou inglês.

     — Ah, um visitante do Vaticano? Um peregrino?

     — Trabalho aqui — respondeu, friamente, Meredith. O calabrês lançou-lhe um sorriso fraternal, com uma boca cheia de dentes cariados.

     — O senhor tem sorte, monsenhor. Tem oportunidades que a nós, pobre gente do campo, nos são negadas. Labutamos em terreno pedregoso, enquanto o senhor lavra as pastagens luxuriantes da Cidade dos Santos.

     — Eu não lavro coisa alguma — respondeu, ríspido, Meredith. — Sou um funcionário da Congregação dos Ritos, e Roma não é a Cidade dos Santos mais do que o são Paris e Berlim. É um lugar que se mantém em relativa ordem porque o papa insiste em observar os direitos que lhe foram concedidos pela Concordata, a fim de preservar o seu caráter sagrado como centro da cristandade. Apenas isso.

     O calabrês era matreiro como uma raposa. Passou por alto a repreensão e apanhou rapidamente no ar o novo tema que se lhe apresentava.

     — Sua pessoa me interessa muito, monsenhor. O senhor, certamente, vive num mundo maior do que o meu. Tem muito mais experiência das coisas. Mas eu sempre disse que a vida simples, campestre, tem muito mais probabilidade de conduzir à santidade do que a azáfama mundana de uma grande cidade. O senhor trabalha na Congregação dos Ritos. Lida, possivelmente, com as causas de santos e beati. Não concordaria com isso, monsenhor?

     Ele caíra numa armadilha e sabia disso. Seria, no fim, à custa de importunação, levado a conversar. Poupar-lhe-ia tempo e energia ceder naquele momento... e procurar mudar de lugar em Formio ou Nápoles. Respondeu secamente:

     — Toda a minha experiência me diz que os santos são encontrados nos lugares menos prováveis... e em tempos nada promissores.

     — Exatamente! Foi isso justamente o que tanto me interessou em relação ao nosso servo de Deus, Giacomo Nerone. Conhece o lugar onde ele vivia, Gemelli dei Monti?

     — Nunca estive lá.

     — Mas sabe o que o nome significa?

     — O que significa? Julgo que seja... os montes gêmeos.

     — Precisamente. Aldeias gêmeas, a cavalgar o espinhaço de uma colina numa das regiões mais desoladas da Calábria. Gemello Minore é a aldeia menor. Gemello Maggiore, a maior. Acham-se situadas a cerca de sessenta quilômetros de Valenta, e a estrada é um pesadelo. Os aldeões são tão pobres e oprimidos como quaisquer outros em nossa província. Pelo menos o eram até que a fama do servo de Deus começou a espalhar-se.

     — E depois?

     A despeito de tudo, Meredith sentiu que seu interesse se aguçava.

     — E depois? — exclamou o padre, erguendo um dedo grosso e curto num gesto de pregador. — Aconteceu, então, uma coisa estranha; Giacomo Nerone tinha vivido e trabalhado em Gemello Minore. Foi nessa aldeia que foi traído e assassinado. Seu corpo foi conduzido secretamente para uma gruta próxima de Gemello Maggiore e lá sepultado. Desde então, Gemello Minore vem mergulhando, cada vez mais, na ruína e na pobreza, enquanto Gemello Maggiore se torna cada dia mais próspera. Há uma nova igreja, um hospital e uma estalagem para turistas e peregrinos. É como se Deus estivesse enviando castigos aos traidores e recompensando aqueles que concederam abrigo ao corpo do servo de Deus. O senhor não concorda?

     — É uma proposição dúbia — respondeu, com leve ironia, Meredith. — A prosperidade nem sempre é um sinal do favor divino. Poderia ter sido resultado de alguma astuta manobra por parte do prefeito e dos cidadãos... e até mesmo do vigário da paróquia. Essas coisas já têm acontecido.

     O calabrês, zangado, ficou afogueado com a imputação, pondo-se a refutá-la com ardor:

     — O senhor vai longe demais em sua suposição, monsenhor. Homens sábios e virtuosos já estudaram o assunto... homens que conhecem a nossa gente. O senhor se coloca em oposição a eles?

     — Não me coloco em oposição a ninguém — respondeu, com brandura, Meredith. — Simplesmente desaprovo juízos temerários e doutrinas dúbias. Os santos não são feitos por veredicto popular, mas por decisão canônica. Eis aí por que me dirijo agora à Calábria, para agir como promotor da fé no caso de Giacomo Nerone. Se o senhor tiver qualquer prova em primeira mão a apresentar, terei prazer em recebê-la, da maneira devida.

     O padre ficou a olhá-lo, por um momento, boquiaberto; depois sua confiança ruiu por terra, convertendo-se em desculpas proferidas de maneira indistinta, interrompidas, afortunadamente, pela chegada do trem, pouco depois, a Formio.

     Tinha de esperar vinte minutos pelo trem que se destinava ao norte, o que deu a Blaise Meredith oportunidade de estender as pernas...  e a graça de envergonhar-se de si mesmo.

     Que lucrara ele com aquela barata vitória dialética contra um padre do interior? O calabrês era maçante — e, pior ainda, um maçante piedoso —, mas Blaise Meredith era um intelectual dispéptico, destituído inteiramente de caridade. Nada ganhara nem dera nada — e perdera a primeira oportunidade que se lhe apresentara de saber alguma coisa a respeito do homem cuja vida estava encarregado de investigar.

     Enquanto andava de um lado para outro pela plataforma banhada de sol, a observar os viajantes camponeses que se aglomeravam em torno do vendedor de bebidas, perguntou a si mesmo, pela centésima vez, o que é que lhe impedia a livre comunicação com os seus semelhantes. Outros sacerdotes, ele o sabia, encontravam vivo prazer no rude e picante dialeto usado pelos camponeses em sua conversação. Colhiam pérolas de sabedoria e experiência sentados a uma mesa de lavrador ou diante de um copo de vinho, numa cozinha de trabalhador braçal. Falavam com igual familiaridade com as prostitutas desbocadas de Trastevere e os refinados signori de Parioli. Apreciavam tanto o humor obsceno do mercado de peixe como a finura de espírito reinante numa mesa de cardeal. Eram, ainda, bons sacerdotes, e muito faziam a favor de seu rebanho, com satisfação íntima singular.

     Qual a diferença entre ele e esses outros ministros de Deus? A paixão, dissera-lhe Marotta. A capacidade de amar e desejar, de sentir a dor de outrem, de compartilhar de suas alegrias. Cristo comeu e bebeu vinho em companhia de patifes e mulheres de taberna, mas Monsenhor Meredith, seu adepto profissional, vivera isolado entre tomos poeirentos, na biblioteca do Palácio das Congregações. E agora, "naquele seu último ano de vida, ainda estava sozinho, com uma pequena morte cinzenta a roer-lhe as entranhas — e sem nenhuma alma no mundo que lhe fizesse companhia.

     O guarda soprou o apito e Meredith tornou a entrar no trem, onde teria de suportar a longa, úmida viagem: Nápoles, Nocera, Salerno, Eboli, Cassano, Cosenza e, tarde da noite, Valenta, onde o bispo o aguardava, para dar-lhe as boas-vindas.

    

     Aurélio, bispo de Valenta, foi, em mais de um aspecto, uma surpresa para ele. Era um homem alto, enxuto de carnes, ainda vigoroso em seus quarenta e poucos anos. Tinha os cabelos grisalhos, de um tom metálico, cuidadosamente penteados, e seus traços finos, aquilinos, irradiavam inteligência e humor. Era trentino, o que parecia ser uma estranha escolha para uma diocese meridional e, antes de sua transferência para lá, havia sido auxiliar do Patriarcado de Veneza. Estava à espera, na estação, com o seu próprio automóvel e, em vez de levar Meredith para a cidade, conduziu-o a uma bela villa no campo, distante uns quinze quilômetros, erguida em meio de laranjais e oliveiras, que dava para um vale, onde um estreito rio cintilava levemente sob o luar.

     — Uma experiência, apenas — explicou ele, num inglês claro e metálico. — Uma experiência em educação prática. Essa gente imagina que o clero nasceu de batina e que seu único talento consiste em dizer padre-nossos, ave-marias e em agitar incenso na catedral. Eu nasci no norte. Minha gente era de agricultores montanheses... Bons agricultores. Comprei isto aqui de um proprietário local que estava afundado em dívidas até o pescoço, e cultivo estas terras com a ajuda de meia dúzia de rapazes, aos quais estou procurando ensinar os rudimentos da agricultura moderna. É uma batalha; mas penso que estou vencendo. Fiz disto aqui, também, minha residência oficial. A antiga era irremediavelmente antiquada... bem no centro da cidade, junto da catedral. Passei-a ao vigário-geral. Ele pertence à velha escola... e a adora!

     Meredith riu de si para si, contaminado pelo bom humor do outro. O bispo lançou-lhe um olhar rápido, astuto:

     — Está surpreso, monsenhor?

     — Agradavelmente surpreso — respondeu Blaise Meredith. — Esperava algo inteiramente diferente.

     — Barroco bourbon? Veludos, brocados e querubins dourados com a pintura das costas a descascar?

     — Sim, algo semelhante.

     O bispo parou o carro diante do pórtico da villa, revestido de estuque, e permaneceu um momento atrás do volante, a olhar a inclinação do terreno, onde o luar prateava a copa das árvores. E disse, calmamente:

     — O senhor encontrará mais do que o suficiente aqui no sul...  Formalismo, feudalismo, reação, velhos a seguirem velhos caminhos porque os velhos caminhos parecem mais seguros, e eles não estão preparados para os novos. Encaram a pobreza e a ignorância como cruzes que devem ser carregadas, e não como injustiças que devem ser remediadas. Acreditam que quanto mais sacerdotes, monges e freiras houver, tanto melhor para o mundo. Quanto a mim, gostaria de que fossem em menor número, mas melhores. Preferiria que houvesse menos igrejas e mais gente que as freqüentasse.

     — Menos santos também? — indagou Meredith.

     O bispo ergueu os olhos perspicazes e depois estourou numa gargalhada.

     — Graças a Deus pelos ingleses! Um pouco de ceticismo tramontano nos faria bem a todos, neste momento. O senhor está pensando por que um homem como eu deveria encarregar-se da causa de Giacomo Nerone?

     — Estou, francamente.

     — Deixemo-lo para a sobremesa — disse, sem malícia, Sua Excelência Reverendíssima.

     Um criado vestindo um paletó branco abriu a porta do automóvel e fê-los entrar na casa.

     — Jantar dentro de trinta minutos — disse o bispo. — Espero que seu quarto lhe pareça confortável. Pela manhã, poderá olhar o vale, embaixo, e ver o que estivemos fazendo.

     O bispo afastou-se, e o criado conduziu Meredith a um grande quarto de hóspedes no andar superior, com janelas francesas que davam para um estreito balcão. Meredith teve sua atenção voltada para as linhas claras e modernas dos móveis, o vigor ascético do crucifixo de madeira colocado, a um canto, sobre o genuflexório. Havia uma estante de livros novos em francês, italiano e inglês, bem como um exemplar da Imitação de Cristo sobre o criado-mudo. Havia no quarto uma porta que se abria para um banheiro recém-ladrilhado, dotado de toalete e box para ducha. Sua Excelência tinha o instinto de um construtor e o bom gosto de um artista. Possuía, ainda, senso de humor, virtude que só raramente se encontrava na Igreja italiana.

     Enquanto tomava banho e trocava de roupa, Meredith sentiu o cansaço e a frustração da viagem desprenderem-se dele como uma pele largada por uma cobra. Até mesmo a dor incômoda de sua doença pareceu cessar, e aguardou com prazer e curiosidade o momento de jantar em companhia de Sua Excelência. Foi uma refeição simples — antipasto, zuppa di verdura, frango assado, frutas da região e um picante queijo caseiro —, mas fora preparada com esmero e meticulosamente servida. Quanto ao vinho, era um Barolo encorpado, dos vinhedos do norte. A conversa que o acompanhou era muito mais sutil — um esgrimir entre mestres, com o bispo a fazer as primeiras arremetidas, a fim de testar o adversário.

     — Antes de sua chegada, meu caro Meredith, eu estava começando a achar que tinha cometido um erro.

     — Um erro?

     — Ao pedir assistência a Roma. Como vê, isso implicava uma concessão... um sacrifício de minha autonomia.

     — Custou tanto assim a Vossa Excelência?

     — Poderia ter custado. Os homens de idéias modernas e os reformadores são sempre encarados com desconfiança, principalmente aqui no sul. Se são bem sucedidos, convertem-se numa censura a seus colegas mais conservadores. Se fracassam, tornam-se um exemplo. Tentaram fazer demais demasiado depressa. De modo que sempre me pareceu mais sensato agir à minha maneira e cuidar eu mesmo de meus assuntos... e deixar aos críticos a iniciativa do ataque.

     — O senhor tem muitos críticos?

     — Sim, alguns. Os proprietários rurais não me apreciam, e têm voz forte em Roma. O clero julga-me demasiado severo em questões de moral e por demais indiferente quanto ao que concerne a rituais e tradições locais. Meu superior metropolitano é monarquista. Eu tendo para um socialismo moderado. Os políticos desconfiam de mim porque prego que o partido é menos importante do que os indivíduos que o representam. Eles fazem promessas. Eu gosto de vê-las cumpridas. Quando não o são, protesto.

     — E encontra apoio em Roma?

     Os lábios finos do bispo afrouxaram-se num sorriso.

     — O senhor conhece Roma melhor do que eu, meu amigo. Eles aguardam os resultados, e os resultados de uma política como a minha, numa região como esta, talvez tardem dez anos para que possam ser vistos. Se for bem sucedido, tanto melhor. Se fracassar — ou cometer um erro num momento inoportuno — abanarão sabiamente a cabeça e dirão que já esperavam que tal acontecesse havia anos. De modo que prefiro mantê-los na expectativa. Quanto menos sabem, mais livre sou.

     — Por que escreveu, então, ao Cardeal Marotta? Por que solicitou sacerdotes romanos que servissem como postulantes e promotores da fé?

     Sua Excelência pôs-se a brincar com a taça de vinho, girando-a entre os dedos longos, sensíveis, e a observar a refração da luz, através do líquido vermelho, sobre a alva toalha da mesa. E disse, pesando as palavras:

     — Porque este é um terreno novo para mim. Compreendo a bondade, mas não estou familiarizado com a santidade. Creio no misticismo mas não tenho experiência quanto a místicos. Sou um setentrional, pragmatista por natureza e educação. Acredito em milagres, mas jamais esperei que fossem realizados à minha própria porta. Eis aí por que recorri à Congregação dos Ritos. — E ajuntou, com um sorriso apaziguador: — Os senhores são especialistas nessas matérias.

     — Foi essa a única razão?

     — O senhor fala como um inquisidor — comentou Sua Excelência com perverso bom humor. — Que outra razão poderia haver?

     — Política — respondeu, categórico, Meredith. — Política eleitoral.

     Para sua surpresa, o bispo lançou a cabeça para trás e riu a bom rir.

     — Então é isso! Eu estava intrigado com a disposição de Sua Eminência em cooperar. Por que teria me enviado ele um inglês em lugar de um italiano...  e um padre secular em lugar de um barnabita de rosto comprido? Que esperto! Mas receio que ele esteja equivocado. — O riso extinguiu-se-lhe subitamente dos lábios e ficou de novo sério. Depôs a taça sobre a mesa e estendeu as mãos num gesto eloqüente de explicação: — Ele está inteiramente equivocado, Meredith. Eis aí o que ocorre em Roma. Os estúpidos tornam-se mais estúpidos ainda, e os sujeitos inteligentes como Marotta tornam-se inteligentes demais para que os outros os entendam. Há duas razões pelas quais estou interessado neste caso. A primeira é simples e oficial. Trata-se de um culto não autorizado. Tenho de investigar, para que seja aprovado ou condenado. A segunda não é assim tão simples...  e as autoridades oficiais não a compreenderiam.

     — Marotta talvez compreendesse — disse, calmamente, Meredith. — E eu também.

     — Por que haveriam de ser diferentes?

     — Porque Marotta é um velho e culto humanista... e porque devo morrer de carcinoma dentro de doze meses.

     Aurélio, bispo de Valenta, recostou-se em sua cadeira e estudou o rosto pálido e contraído de seu hóspede. E, depois de longo silêncio, disse, em voz baixa:

     — Eu estava intrigado a seu respeito. Agora, começo a compreender. Muito bem. Procurarei explicar. Um homem que se encontra à sombra da morte não deve escandalizar-se, mesmo que ouça da boca de um bispo o que vou dizer. Acho que a Igreja, neste país, está necessitando de uma reforma drástica. Penso que temos santos demais e pouca santidade, demasiadas cerimônias religiosas e ceticismo insuficiente, demasiadas medalhas de santos e remédios insuficientes, demasiadas igrejas e um número insuficiente de escolas. Temos três milhões de desempregados e três milhões de mulheres que vivem da prostituição. Controlamos o Estado através do Partido Democrata Cristão e do Banco do Vaticano; não obstante, estamos diante de uma dicotomia que proporciona prosperidade à metade do país e deixa a outra metade a apodrecer na miséria. Nosso clero é inculto e inseguro; no entanto, vivemos a vituperar os anticlericais e os comunistas. Conhece-se uma árvore pelos seus frutos... e penso que é melhor proclamar uma nova política de justiça social do que um novo atributo da Santa Virgem. A primeira é uma aplicação necessária de um princípio moral; a segunda é simplesmente uma definição de uma crença tradicional. Nós, do clero, somos mais ciosos dos direitos que nos foram conferidos pela Concordata do que dos direitos de nossa gente segundo a lei natural e divina... Escandalizo-o, monsenhor?

     — O senhor encoraja-me — respondeu Meredith. — Mas por que deseja um novo santo?

     — Não o desejo! — exclamou o bispo, com surpreendente ênfase. — Estou tratando do caso, mas espero, de todo o coração, que fracasse. O prefeito de Gemello Maggiore angariou quinze milhões de liras para levar avante essa causa, mas não consigo que ele me dê um milhão para um orfanato diocesano. Se Giacomo Nerone for beatificado, quererão uma nova igreja para alojá-lo... e eu desejo freiras-enfermeiras, um conselho agrícola e vinte mil árvores frutíferas da Califórnia.

     — Por que solicitou então auxílio a Sua Eminência?

     — Isso constitui um princípio em Roma, meu caro Meredith. A gente sempre consegue o contrário daquilo que pede.

     Blaise Meredith não sorriu. Um novo e inquietante pensamento tomava forma em seu espírito. Fez uma ligeira pausa, procurando as palavras com que formulá-lo.

     — E se o caso for provado? Se Giacomo Nerone for realmente um santo e um fazedor de milagres?

     — Sou pragmatista, como lhe disse — respondeu Sua Excelência com enviesado senso de humor. — Aguardarei os fatos. Quando gostaria de começar a trabalhar?

     — Imediatamente. Estou vivendo com tempo emprestado. Gostaria de passar alguns dias estudando os documentos. Depois, vou transferir-me para Gemelli dei Monti a fim de tomar os depoimentos.

     — Farei com que os registros sejam entregues em seu quarto amanhã. Espero que encare esta casa como seu lar e eu como seu amigo.

     — Sou grato a Vossa Excelência. Mais do que posso dizê-lo.

     — Não há motivo para gratidão — sorriu o bispo.

     — Sua companhia me dará prazer. Temos muito em comum. Oh... desejaria dar-lhe um conselho.

     — Perfeitamente.

     — Na minha opinião, o senhor não encontrará a verdade a respeito de Giacomo Nerone em Gemello Maggiore. Eles o veneram lá. Sua memória lhes proporciona lucros. Em Gemello Minore a história é diferente... contanto que o senhor consiga que a contem. Até agora, nenhum dos meus homens o conseguiu.

     — Há alguma razão para isso?

     — É melhor que o senhor mesmo descubra as razões, meu amigo. Como vê, sou um tanto suspeito... — acrescentou, afastando a cadeira e levantando-se. — Já é tarde e o senhor deve estar cansado. Sugiro que descanse até tarde, durante a manhã. Farei com que levem o café ao seu quarto.

     Blaise Meredith sentiu-se tocado com a nobre cortesia do outro. Era infenso a confidencias, cioso de sua vida íntima, mas disse, muito humilde:

     — Sou um homem doente, Excelência. Vi-me, de repente, muito só. Vossa Excelência fez com que me sentisse em casa. Obrigado.

     — Somos irmãos, pertencentes a uma grande família — respondeu o bispo, delicadamente. — Mas, como solteirões, tornamo-nos egoístas e solitários. Alegra-me poder ser-lhe útil. Boa noite... e bons sonhos!

    

     Sozinho no grande quarto de hóspedes, o luar a escoar pelas folhas abertas da janela, Blaise Meredith preparou-se para uma outra noite. Seu curso era-lhe, agora, familiar, mas, não obstante, não menos assustador. Ficaria acordado até meia-noite; depois, viria o sono; leve e inquieto. Antes que os galos começassem a cantar ao amanhecer, ele despertaria sobressaltado, com cãibras intestinais, a boca cheia de um gosto azedo de bílis e de sangue. Com esforço, caminharia até o banheiro, fraco e nauseado; depois, se empanturraria de soporíferos e voltaria para a cama. Pouco antes do raiar do dia, tornaria a dormir — uma, duas horas, quando muito — não o suficiente para refazer as energias, mas o bastante para alimentar em suas artérias o fluxo da vida, cada vez mais débil.

     Era uma estranha mistura de terrores: o medo da morte, a humilhação da dissolução lenta, a sinistra solidão do crente em presença de um Deus sem rosto que sabia invisível mas que logo deveria encontrar, esplêndido e sem véus, no dia do Juízo. Não podia fugir daqueles temores por meio do sono, nem exorcizá-los por meio da prece, pois a prece se tornara um árido ato da vontade, que não conseguia abafar a dor nem constituir um bálsamo para ela.

     De modo que, aquela noite, apesar da fadiga, tentou adiar o purgatório. Despiu-se, vestiu o pijama, calçou os chinelos, enfiou um robe e saiu para o balcão.

     A lua pairava alta sobre o vale — um navio de prata antiga, plácido, sobre um mar luminoso. As laranjeiras cintilantes como pontas de adagas que saíssem de uma confusa massa de sombra. Mais abaixo, a água estendia-se plana e cheia de estrelas por trás de uma barricada de tábuas e montes de pedregulhos, enquanto os braços das montanhas envolviam isso tudo como muralhas, impedindo a entrada do caos dos séculos.

     Blaise Meredith olhou aquilo e achou bom. Bom por si mesmo, e bom devido ao homem que havia feito aquilo. O homem não vivia apenas de pão — mas não podia viver sem ele. Os velhos monges tinham pensado do mesmo modo. Plantavam a cruz no meio de um deserto — e, depois, plantavam trigo e árvores frutíferas para que o árido símbolo florescesse numa verde realidade. Sabiam, melhor do que muitos, que o homem era uma criatura feita de carne e espírito. Quando o corpo estava doente, a responsabilidade moral do homem diminuía. O homem era um caniço pensante, mas esse caniço devia estar firmemente plantado em terra negra, as raízes regadas, aquecido pelo sol.

     Aurélio, bispo de Valenta, era um pragmatista, mas um cidadão pragmatista. Era um herdeiro da mais velha e mais ortodoxa tradição da Igreja; a de que a terra, a relva, as árvores e os animais eram resultado do mesmo ato criador que também produzira o homem. Eram, em si mesmos, perfeitos — perfeitos em sua natureza e nas leis que governam o seu desenvolvimento e decadência. Só o mau emprego do homem podia rebaixá-lo a um instrumento do mal. Plantar uma árvore era, por conseguinte, um ato divino. Fazer com que florescesse a terra árida era compartilhar do ato da criação. Ensinar essas coisas a outros homens era fazer com que também eles participassem de um plano divino... No entanto, Aurélio, bispo de Valenta, era olhado com desconfiança por muitos de seus colegas.

     Aquele era o mistério da Igreja: manter numa unidade orgânica humanistas como Marotta, formalistas como Blaise Meredith e idiotas como o calabrês, reformadores, rebeldes e conformistas puritanos, papas políticos e freiras-enfermeiras, sacerdotes mundanos e anticlericais devotos. Exigia inflexível assentimento a uma doutrina definida e permitia extraordinária divergência de disciplina.

     Impunha pobreza a seus religiosos; no entanto, através do Banco do Vaticano, agia nas bolsas de valores mundiais. Pregava o desapego pelos bens do mundo; no entanto, aumentava seus bens de raiz como qualquer companhia pública. Perdoava adúlteros e excomungava heréticos. Era áspera com os seus próprios reformadores; no entanto, assinava concordatas com aqueles que queriam destruí-la. Era a mais difícil comunidade do mundo em cujo seio se pudesse viver; no entanto, todos os seus membros queriam nela morrer, e o papa, um cardeal ou uma lavadeira, recebiam com gratidão o viático das mãos do mais humilde sacerdote rural.

     Era um mistério e um paradoxo — e Blaise Meredith estava longe de entendê-la, longe de aceitá-la como o havia feito pelo espaço de vinte anos. Eis aí o que o perturbava. Enquanto estivera bem de saúde, seu espírito se inclinava a aceitar a idéia de uma intervenção divina nos assuntos humanos. Agora, que a vida sangrava dele lentamente, via a si próprio agarrando-se desesperadamente às mais simples manifestações de continuidade física: uma árvore, uma flor, as águas de um lago, tranqüilas sob o luar eterno.

     Uma ligeira brisa estremeceu o vale, farfalhou as folhas crespas, fez com que as estrelas ondulassem na água. Meredith sentiu súbito arrepio e entrou, fechando a porta atrás de si. Ajoelhou-se no genuflexório, sob a figura de madeira do Cristo, e pôs-se a rezar: "Pater Noster qui es in Coelis..."

     Mas o céu, se é que existia, estava fechado para ele, e não houve resposta do Deus sem rosto para o seu filho agonizante.

    

   O Dr. Aldo Meyer deteve-se à porta de sua casa e ficou a observar o preguiçoso despertar da vila para um novo dia.

     Primeiro, a velha Nonna Patucci abriu a porta e espiou, em ambas as direções, a rua empedrada; depois, atravessou a rua e esvaziou o seu urinol por sobre o muro que dava para um eirado de parreiras. Feito isso, tornou a entrar, furtiva como uma feiticeira, batendo a porta com força. Como que atendendo a um sinal, Felici, o sapateiro, saiu à rua de calças, camiseta e tamancos, a bocejar, a cocar as axilas e a olhar o sol que se erguia por trás dos telhados do novo hospital, em Gemello Maggiore, duas milhas além do vale. Após um minuto de contemplação, limpou ruidosamente a garganta, cuspiu no chão e pôs-se a abrir os postigos de suas janelas.

     Abriu-se, então, a porta da casa do padre e Rosa Benzoni saiu, gorda e disforme, num vestido preto, para tirar água do poço. Mal ela se afastou, a janela de cima se escancarou e surgiu a cabeça desgrenhada do Padre Anselmo, perquiridora como uma tartaruga a realizar a sua primeira e cautelosa exploração do dia.

     Apareceu em seguida Martino, o ferreiro, atarracado, peito vigoroso, escuro como uma castanha, para abrir a porta do seu barracão e pôr os seus foles a funcionar. Quando os primeiros golpes de seu martelo começaram a soar sobre a bigorna, já toda a aldeia estava em atividade — mulheres a esvaziar baldes de água, moças de pernas nuas caminhando para a cisterna com garrafões verdes sobre a cabeça, crianças meio despidas que urinavam junto ao muro da rua, os primeiros trabalhadores braçais dirigindo-se para os eirados e o cultivo de jardins, os paletós esfarrapados lançados sobre os ombros e o seu pão com azeitonas enrolado em lenços de algodão.

     Aldo Meyer observava tudo sem curiosidade, sem ressentimento, mesmo quando voltavam a cabeça para o outro lado ao passar por ele ou faziam sinais contra mau-olhado com as mãos voltadas para a sua porta. Constituía bem a medida de sua desilusão o fato de ele poder ignorar a hostilidade daquela gente e, apesar de tudo, agarrar-se como um animal às paisagens e aos sons familiares: a batida rítmica do martelo, o ruído das carroças puxadas a burro sobre o empedrado da rua, os gritos estridentes das crianças, as repreensões das donas-de-casa; os vinhedos e os olivais a descerem pela encosta em direção ao vale, as casas em ruínas dispersas pelo caminho que conduzia à grande villa no alto do monte, o brilho do sol nascente sobre a próspera aldeia da colina oposta, onde o santo realizava maravilhas para os turistas, enquanto Maria Rossi morria de parto com a sua relíquia sobre o ventre inchado.

     A cada dia prometia a si mesmo que, no dia seguinte, faria as malas e iria embora — para um outro lugar, para um novo futuro —, deixando aquela depravada tribo entregue às suas loucuras. Mas, cada noite, aquela resolução o abandonava, e punha-se a beber até a hora de ir para a cama. A desconsolada verdade era que não tinha para onde ir nem futuro algum para construir. O melhor que havia nele ali estava: fé, esperança e caridade despendidas até a completa exaustão, sugadas e desperdiçadas numa terra estéril, palmilhada por uma gente ingrata e ignorante.

     Vindo lá do fundo do vale, ouviu o ruído abafado de uma motoneta e, ao voltar-se para o lado de onde vinha o som, viu uma pequena Vespa aos solavancos pela estrada, em meio a uma nuvem de pó, trazendo no assento de trás um passageiro. O espetáculo era bastante banal, mas constituiu para Aldo Meyer melancólica distração. A Vespa e o automóvel da condessa eram os únicos veículos a motor em Gemello Minore. Durante semanas a Vespa causara pequena perturbação na ordem pública e expressões de pasmo. O homem que a dirigia era também uma singularidade — um pintor inglês, hóspede da condessa que vivia no alto da colina e que possuía não só todas as terras de agricultura como, também, a maior parte de Gemello Minore. O pintor chamava-se Nicholas Black, e seu passageiro era um jovem do lugar, Paolo Sanduzzi, que se unira a Black como guia, animal de bagagem e instrutor de dialeto e costumes locais.

     Para os aldeões, o inglês era matto, sujeito maluco que andava de cá para lá com um bloco de desenho ou ficava horas a fio sentado ao sol, desenhando rochedos e ângulos de edifícios em ruínas. Suas vestes eram tão malucas quanto os seus hábitos: camisa de um vermelho vivo, calças desbotadas de zuarte, alpargatas e um chapéu de palha velhíssimo sob cuja aba um rosto faunesco sorria enviesadamente para o mundo que o cercava. Não tinha sequer a escusa da juventude — pois contava mais de trinta anos —, e quando as moças desistiram de lançar suspiros a sua passagem, os mais velhos começaram a tecer grosseiros comentários acerca de suas ligações com a condessa, que vivia em solitário esplendor por trás dos portões gradeados de sua villa.

     Aldo Meyer ouviu os mexericos e deu-lhes o devido desconto. Conhecia demasiado bem a condessa e, na época em que vivera em Roma, conhecera artistas demais e um número bastante grande de ingleses como Nicholas Black. Pensava mais em Paolo Sanduzzi, com seu corpo esguio de árabe, seu rosto liso e seus olhos brilhantes, astutos, bem como na tirania que exercia sobre o seu excêntrico amo. Aquilo o intrigava tanto mais quanto fora ele quem trouxera o menino ao mundo, sabendo que seu pai era Giacomo Nerone, a quem aquela gente começava a chamar de Santo...

     Na parte baixa da aldeia a Vespa parou, o jovem apeou, e Meyer ficou a observá-lo enquanto descia com dificuldade a encosta em direção à casa de sua mãe, uma tosca cabana de pedra situada no meio de um pequeno jardim e abrigada por um capão de azinheiros. A Vespa partiu de novo, ruidosa, e poucos instantes depois deteve-se à porta da casa de Meyer. O pintor, relaxando-se, desceu do selim e estendeu o braço, numa saudação teatral:

     — Come va, dottore? Como está, esta manhã? Gostaria de tomar um café, se houvesse.

     — Há sempre café — respondeu Meyer, com um sorriso. — Do contrário, como poderia eu enfrentar o nascer do sol?

     — Ressaca? — indagou, com maliciosa inocência, o pintor.

     Meyer deu de ombros com ar de pouco-caso e conduziu o recém-chegado, através da casa, a um pequeno jardim murado onde uma velha figueira formava um dossel contra o sol. Havia uma mesa rústica, coberta com uma toalha axadrezada, sobre a qual se viam xícaras e pratos de cerâmica calabresa. Uma mulher se achava debruçada sobre ela, colocando pão fresco, um pedaço de queijo branco e uma tigela com os pequenos frutos da região.

     Tinha as pernas e os pés nus, à maneira dos camponeses, e usava vestido preto e um lenço na cabeça, também preto, meticulosamente limpos. Tinha as costas eretas, os seios grandes e firmes, e seu rosto era grego puro, como se algum antigo colonizador da costa houvesse perambulado pelas montanhas e possuído uma mulher das tribos para começar aquela nova raça híbrida. Tinha, talvez, trinta e seis anos. Dera à luz um filho mas, apesar disso, não se tornara rude como as mulheres montanhesas, e sua boca e seus olhos eram curiosamente serenos. Ao ver o visitante, teve um leve estremecimento de surpresa e olhou inquiridoramente para Meyer. Ele nada disse, despedindo-a apenas com um gesto. Quando ela se afastou, o pintor seguiu-a com os olhos e sorriu com ar astuto.

     — O senhor me surpreende, doutor. Onde foi que a encontrou? Eu jamais a vi antes.

     — Ela é daqui do lugar — respondeu, friamente, Meyer. — Tem a casa dela e vive de maneira bastante recatada. Sobe até aqui todos os dias para lavar e cozinhar para mim.

     — Gostaria de pintá-la.

     — Eu não o aconselharia a fazê-lo — disse-lhe, lacônico, o médico.

     — Por que não?

     — Ela é a mãe de Paolo Sanduzzi.

     — Oh! — fez Black, encerrando o assunto.

     Sentaram-se à mesa e Meyer serviu o café. Fez-se silêncio por alguns momentos; depois, Black pôs-se a falar, volúvel e dramaticamente:

     — Grandes notícias de Valenta, dottore! Estive lá ontem, a fim de apanhar umas telas e tintas. A cidade está fervilhando com as notícias.

     — Que espécie de notícias?

     — Esse santo de vocês, Giacomo Nerone. Vão beatificá-lo, ao que parece.

     Meyer deu de ombros, indiferente, e sorveu o seu café.

     — Isso não é novidade. Eles vêm falando nisso há doze meses.

     — Mas claro que é! — exclamou o pintor, a acentuada cara de fauno iluminada por um sorriso de sardônico divertimento. — Eles deixaram de falar e iniciaram um processo oficial. Estão fazendo circular agora os anúncios... pregando-os em todas as igrejas e convocando todas as pessoas que tenham alguma prova a respeito. O bispo tem um hóspede, um monsenhor que veio de Roma e que foi designado para tratar do caso. Ele subirá até aqui dentro de poucos dias.

     — O diabo que o fará — bradou Meyer, depondo a xícara com força sobre a mesa. — Tem certeza disso?

     — Estou certo disso. Toda a aldeia o sabe. Eu próprio vi o sujeito guiando o carro de Sua Excelência Reverendíssima: macilento, murcho como um camundongo do Vaticano. É inglês, ao que parece, de modo que me encarreguei de fazer com que a condessa o convidasse a hospedar-se em sua casa. Como o senhor sabe, ela é uma mulher piedosa e solitária — ajuntou ele, reprimindo o riso, enquanto estendia a mão para servir-se de café. — Este lugar ficará famoso, dottore. E o senhor também.

     — É o que receio — respondeu, sombrio, o médico.

     — Receia? — exclamou o pintor, os olhos a brilhar de interesse. — Por que deveria recear? O senhor não é sequer católico. Não tem nada com isso.

     — O senhor não compreende — disse Meyer, irritado. — Não compreende coisa alguma.

     — Oh, pelo contrário, meu caro amigo! — disse Black, fazendo um gesto enfático com suas mãos de artista. — Pelo contrário: compreendo tudo. Compreendo o que o senhor tentou fazer aqui e a razão pela qual fracassou. Sei o que a Igreja está procurando fazer, e por que razão será bem sucedida, ao menos durante algum tempo. O que não sei — e estou morrendo de vontade de saber — é o que acontecerá quando começarem a trazer à tona o que há de verdadeiro a respeito de Giacomo Nerone. Eu pretendia partir na semana que vem; mas agora acho que ficarei aqui. Vai ser uma comédia e tanto!

     — Antes de mais nada, por que é que o senhor veio para cá?

     Havia uma ponta de irritação na voz de Meyer, e Nicholas Black logo o percebeu. Sorriu e adejou no ar uma mão peluda:

     — É muito simples. Fiz uma exposição em Roma, bastante bem-sucedida, diga-se de passagem, embora a estação já estivesse quase terminando. A condessa era uma de minhas clientes. Comprou-me três telas. Depois, convidou-me a vir para cá pintar durante algum tempo. Espero que ela me financie uma nova exposição em futuro próximo. Nada mais simples.

     — Nada é jamais assim tão simples — retorquiu, com suavidade, o médico. — E a condessa não é uma pessoa simples. Tampouco o senhor. O que encara como uma comédia provinciana pode converter-se numa grande tragédia. Aconselho-o a não se envolver nisso.

     O inglês lançou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

     — Mas já estou envolvido, meu caro doutor. Sou um artista, um observador e anotador da beleza e da loucura da humanidade. Imagine o que Goya não faria diante de uma situação como esta! Felizmente, ele já está morto há muito tempo, e agora é a minha vez. Há aqui toda uma galeria de quadros... e um título já pronto: "Beatificação", por Nicholas Black! Uma exposição individual sobre um único tema. Um santo de aldeia, os aldeões pecadores, e todo o clero, até chegar ao próprio bispo. Que é que acha disso?

     Aldo Meyer olhou as costas de suas mãos, examinando-lhes as sardas e a pele áspera e frouxa, o que lhe dizia mais claramente do que as palavras quão velho estava se tornando. Sem erguer os olhos, respondeu, em voz baixa:

     — Acho-o um homem muito infeliz, Nicholas Black. Está à procura de algo que jamais encontrará. Penso que deveria partir imediatamente. Deixar a condessa. Deixar Paolo Sanduzzi. Deixar que tratemos de nossos problemas à nossa maneira. O senhor não é daqui. Fala a nossa língua, mas não nos compreende.

     — Se compreendo, doutor! — disse o pintor, o rosto belo e efeminado iluminado pela malícia. — Se compreendo! Sei que todos os senhores vêm ocultando algo há quinze anos e que, agora, esse segredo vai ser desenterrado. A Igreja quer um santo e os senhores querem guardar um segredo que os desabona. Isso é verdade, não é?

     — É uma meia verdade... o que é sempre mais do que meia mentira.

     — O senhor conhecia Giacomo Nerone, não é verdade?

     — Sim, conhecia-o.

     — Ele era santo?

     — Nada sei a respeito de santos — respondeu, com ar grave, Aldo Meyer. — Conheço apenas os homens.

     — E Nerone... ?

     — Era um homem.

     — E seus milagres?

     — Jamais vi um milagre.

     — Não acredita neles?

     — Não.

     Os olhos vivos e sardônicos estavam fixos no rosto encovado do outro:

     — Então por que razão, meu caro doutor, receia essa investigação?

     Aldo Meyer afastou a cadeira e pôs-se de pé. As sombras da figueira caíam-lhe pelo rosto, acentuando-lhe as reentrâncias, ocultando o vivo sofrimento que havia em seus olhos. Após um momento, respondeu:

     — Jamais se envergonhou de si mesmo, meu amigo?

     — Jamais — respondeu, alegremente, o pintor. —Jamais em minha vida.

     — Eis aí o que quero dizer — comentou o outro, em voz baixa. — O senhor jamais compreenderá. Mas torno a dizer-lhe: o senhor deveria partir...  e fazê-lo o quanto antes.

     Sua única resposta foi um sorriso de melancólica irrisão, ao levantar-se para sair. Não trocaram um aperto de mão, e Meyer não procurou acompanhá-lo, ao deixar o jardim. No meio da casa, o pintor deteve-se e voltou-se para o médico:

     — Ia-me esquecendo. Há um recado da condessa para o senhor. Ela gostaria de tê-lo para o jantar, amanhã à noite.

     — Meus agradecimentos à condessa — respondeu, secamente, Meyer. — Terei prazer em comparecer. Bom dia, meu amigo.

     — Ci vedremo — disse Nicholas Black em tom casual. — Tornaremos a ver-nos... bastante breve.

     Dito isso partiu, sua figura esguia e ligeiramente apalhaçada, demasiado vivaz para os anos que já começavam a mostrar-se em seu rosto inteligente e infeliz. Aldo Meyer tornou a sentar-se à mesa e ficou a fitar, sem ver, as côdeas de pão e as migalhas escuras embebidas nas xícaras de café. Decorrido um momento, a mulher apareceu novamente e ficou a olhá-lo, os olhos calmos cheios de brandura e piedade. Quando ergueu o rosto e a viu ali de pé, disse-lhe, lacônico:

     — Pode tirar a mesa, Nina.

     Ela não fez movimento algum para obedecer-lhe, mas apenas indagou:

     — O que deseja esse cara de bode?

     — Trouxe-me notícias — respondeu Meyer, passando para o mesmo dialeto que falava a mulher. — Estão iniciando uma nova investigação quanto à vida de Giacomo Nerone. Chegou de Roma um sacerdote, a fim de ajudar o bispo durante o processo. Logo ele aparecerá por aqui.

     — E ele fará perguntas, como os outros?

     — Mais do que os outros, Nina.

     — Então ele receberá a mesma resposta: nada! Meyer abanou, lentamente, a cabeça:

     — Desta vez não, Nina. A coisa já foi longe demais. Roma está interessada. A imprensa também estará interessada. É melhor que, desta vez, saibam a verdade.

     Ela fitou-o surpresa, escandalizada:

     — O senhor diz isso? O senhor!

     Meyer encolheu os ombros com ar de derrota e disse, citando um velho provérbio da região:

     — Quem pode lutar contra o vento? Quem pode abafar a gritaria que fazem do outro lado do vale? Até em Roma a ouviram... e eis aí o resultado. Vamos dizer-lhes o que desejam ouvir e acabar de uma vez com a coisa. Talvez nos deixem, então, em paz.

     — Mas por que querem saber? — indagou ela, com ódio nos olhos e na voz. — Que diferença isso faz? Durante a vida, chamaram-no de tudo quanto foi nome; agora, querem chamá-lo de beato. É apenas um outro nome. Isso não muda o que ele foi...  um bom homem, o meu homem.

     — Eles não querem um homem, Nina — disse Meyer, fatigado. — Querem um santo de gesso com uma auréola dourada sobre a cabeça. A Igreja o quer porque isso lhe proporciona mais um meio de influenciar o povo... um novo culto, uma nova promessa de milagres para fazer com que esqueçam suas dores de barriga. O povo o deseja porque isso lhe permite cair de joelhos e pedir favores, em vez de enrolar as mangas e trabalhar por eles — ou lutar para obtê-los. É como a Igreja costuma agir... açúcar para adoçar vinho azedo.

     — Então por que quer que eu os ajude?

     — Porque se lhes contarmos a verdade abandonarão o caso. Terão de fazê-lo. Giacomo era um homem extraordinário, mas não era mais santo do que eu.

     — Então é assim que pensa?

     — E você, Nina, não pensa assim?

     Sua resposta o chocou como um tapa no rosto.

     — Eu sei que ele era santo — respondeu, em voz baixa. — Sei que fez milagres, pois eu os vi.

     Meyer ficou boquiaberto; mas, depois, gritou-lhe:

     — Santo Deus, mulher! Você também? Ele dormiu em sua cama. Deu-lhe um filho bastardo e jamais casou com você. E você fica aí a me dizer que era um santo que fazia milagres? Por que não disse ao padre, logo da primeira vez? Por que não corre ao encontro dos nossos amigos e não lhes diz que o beatifiquem?

     — Porque ele jamais teria querido isso... Porque foi justamente isso que me pediu... que eu jamais contasse a alguém o que sabia a seu respeito.

     Ele estava derrotado e o sabia, mas dispunha ainda de uma arma, e lançou mão dela sem piedade:

     — Que responderá você, Nina, quando eles apontarem o seu filho e disserem: "Eis aí um filho do santo, e serve de femminella para o inglês"?

     Não havia sinal algum de vergonha no rosto calmo, clássico, quando ela respondeu:

     — O que direi quando me apontarem na rua e disserem: "Ali vai uma que era uma prostituta de santo"? Nada. Nada, absolutamente. E sabe por quê, dottore? Porque, antes de morrer, Giacomo me fez uma promessa, em troca da minha. "Aconteça o que acontecer, cara, olharei por você e pelo menino. Podem matar-me, mas não podem impedir-me de olhar por você desde agora até a eternidade!" Acreditei nele então, e acredito nele agora. O rapaz é desmiolado, mas não está ainda perdido.

     — Mas logo estará! — exclamou, brutalmente, Meyer. — Agora vá para casa, pelo amor de Deus, e deixe-me em paz.

     Mas, mesmo depois que ela se foi, não houve paz; e ele sabia que jamais haveria, até que viessem os inquisidores e expusessem a verdade à luz do sol.

    

     Não havia ainda nenhuma insinuação de manhã no alto e barroco aposento da villa em que a Condessa Anne Louise de Sanctis dormia, atrás de cortinas de veludo. Nenhuma premonição de complicações conseguia penetrar a névoa barbitúrica além da qual sonhava.

     Mais tarde, muito mais tarde, uma criada entraria e descerraria as cortinas, para que o sol se derramasse sobre o velho tapete e o veludo ferruginoso e a opaca patina da nogueira lavrada. Não chegaria até a cama, o que era uma amabilidade, pois a condessa, pela manhã, constituía um espetáculo pouco agradável.

     Mais tarde ainda despertaria, a boca seca, entorpecida, os olhos inchados e descontentes com o advento de um novo dia exatamente igual ao anterior. Acordaria, tornaria a cochilar, despertaria de novo e enfiaria o primeiro cigarro nos lábios pálidos e descaídos. Terminado o cigarro, puxaria o cordão da sineta e a criada voltaria, sorrindo com ansioso bom humor e trazendo a bandeja da refeição matinal. Já que a condessa não gostava de comer sozinha, a criada permaneceria no quarto, dobrando as roupas espalhadas, apanhando roupas limpas, entrando e saindo atarefada do banheiro, enquanto sua patroa mantinha um fluxo constante de comentários acrimoniosos acerca da criadagem e suas deficiências.

     Findo o desjejum, a criada levaria embora a bandeja, a condessa fumaria ainda um cigarro, antes do pequeno e íntimo ritual de sua toalete. Era a única cerimônia importante de um dia sem importância, e ela a realizava em rigoroso sigilo.

     Amassava a ponta do cigarro de encontro ao cinzeiro de prata; depois, abandonava o leito, caminhava até a porta e fechava-a. Em seguida dava uma volta pelo aposento, detendo-se em cada uma das janelas, a olhar os terraços e os jardins, a fim de certificar-se de que ninguém se achava pelas imediações. Certa vez, um jardineiro inquisitivo espreitara-a pela janela, tendo sido instantaneamente demitido por sua sacrílega intrusão naqueles mistérios.

     Convencida, finalmente, de sua intimidade, a condessa dirigia-se ao quarto de banho, despia-se e entrava na grande banheira de mármore, com suas torneiras douradas e suas fileiras de sabonetes, esponjas e sais. Não havia agora prazer que se comparasse àquela primeira imersão solitária na água fumegante que espantava para longe as efusões de um sono de estupefacientes e trazia de volta a impressão de juventude a um corpo que envelhecia. Ao contrário de outros prazeres, aquele podia ser renovado à vontade, prolongado até a saciedade. Não exigia parceiro, não implicava dependência ou rendição — e a condessa agarrava-se a ele com a paixão de um devoto.

     Deitada na água fumegante, examinou-se a si própria: as linhas dos flancos, ainda esguias e juvenis, o ventre chato e não marcado pela maternidade, a cintura, engrossando um pouco mas não demasiado, os seios firmes à custa de massagens, pequenos, mas redondos e ainda jovens. Se havia rugas em torno de seu pescoço, não havia espelhos que lho dissessem, e os vincos denunciadores, junto da boca e dos olhos, podiam ainda ser dominados pela massagem. A mocidade ainda não se escoara dela por completo, e a velhice podia ainda ser mantida um pouco mais à distância, mediante uma encomenda semanal de cosméticos provenientes de um discreto instituto de beleza na Via Veneto.

     Mas o banho era apenas o começo. Havia o enxugar-se com toalhas cálidas e macias, o friccionar com outras, felpudas, o perfumar-se com loção de cheiro vivo e adstringente, a aplicação do pó-de-arroz e o ato de retirá-lo delicadamente, a primeira passada do pente nos cabelos — ainda sem fios grisalhos, mas com o dourado já esmaecido — antes de atá-los à nuca, deixando-lhe livres as faces esfregadas e brilhantes. Finalmente, estava pronta para o clímax processional do ritual.

     Nua e radiante ante a nova ilusão, voltou ao quarto, dirigiu-se ao toucador, retirou da gaveta de cima a fotografia de um homem em uniforme de coronel alpino e pô-la com a frente voltada para o aposento. Depois, consciente de si mesma como um modelo profissional, pôs-se a vestir-se diante dele, cuidadosamente, coquetemente, como se quisesse seduzi-lo, fazendo-o sair da moldura e cair-lhe nos braços expectantes.

     Depois de vestir-se, colocou de novo a fotografia na gaveta e fechou-a a chave. Em seguida, sentou-se com toda a calma diante do espelho e começou a compor o rosto.

     Vinte minutos depois, trajando elegante vestido de verão, saiu do quarto, desceu as escadas e surgiu no jardim ensolarado, onde Nicholas Black, nu da cintura para cima, trabalhava numa nova tela.

     Ao ouvir-lhe os passos, voltou-se e saudou-a com prazer teatral, beijando-lhe as mãos e fazendo-a dar uma volta diante de si, enquanto pairava como um papagaio feliz:

     — Magnífico, cara! Não sei como consegue fazê-lo. Toda manhã é como uma nova revelação. Em Roma você era bela, mas um tanto aterradora. Aqui, é uma beleza campestre reservada para a minha admiração particular. Preciso pintá-la nesse vestido. Sente-se aqui e deixe-me contemplá-la.

     Empertigou-se toda, feliz com os cumprimentos, e deixou que ele a conduzisse a um pequeno banco de pedra sombreado por uma amendoeira em flor. Com espalhafato, fê-la sentar-se na posição que ele desejava, arrumou-lhe a saia sobre o banco, inclinou-lhe a cabeça para o alto, na direção das flores, e ajeitou-lhe as mãos sobre o colo. Feito isso, apanhou um bloco de desenho e, com traços rápidos, ousados, pôs-se a desenhar, falando durante todo o tempo.

     — Tomei café esta manhã em companhia do nosso médico. Estava, como sempre, de ressaca, mas animou-se quando lhe falei de seu convite para jantar. Tive a impressão de que está bastante apaixonado por você... Não, não! Não fale, que estraga a pose. Não creio que o coitado possa evitá-lo. Viveu tanto tempo em meio aos camponeses, que você deve parecer-lhe uma princesa encantada aqui em seu castelo... Oh, outra coisa: o bispo de Valenta está iniciando uma investigação em grande escala acerca da vida e das virtudes de Giacomo Nerone. Importou de Roma um monsenhor inglês para que desempenhe o papel de advogado do Diabo. Ele virá até aqui dentro de alguns dias. Tomei a liberdade de dizer a Sua Excelência Reverendíssima que você teria prazer em recebê-lo como hóspede.

     — Não! — exclamou ela, tomada de pânico.

     Toda a sua compostura se desfez, enquanto o fitava, zangada e medrosa.

     — Mas cara — disse ele, penitenciando-se instantaneamente, ao mesmo tempo em que punha de lado o bloco de desenho e se acercava com voz e mãos solícitas. — Julguei que era isso que queria que eu fizesse. Não pude consultá-la, mas sabia de suas relações de amizade com o bispo... Além disso não havia, na verdade, outro lugar em que o visitante pudesse ficar. Não podia dormir com os camponeses, não lhe parece? Nem debaixo do balcão, lá na taberna. Ademais, é seu compatriota... e meu também. Julguei que isso lhe causasse prazer. Se a ofendi, jamais me perdoarei.

     Pôs-se de joelhos e afundou o rosto em seu colo, como uma criança arrependida.

     Era um velho, velhíssimo truque, destinado a impressionar viúvas ricas — e que mais uma vez deu resultado. Ela passou-lhe cariciosamente as mãos pelos cabelos e disse, com brandura:

     — Claro que não me ofendeu, Nick. Foi apenas surpresa, nada mais. Eu... não estou mais habituada a elas, como antigamente. Claro que agiu bem. Sentir-me-ei feliz em hospedar esse monsenhor.

     — Eu sabia! — exclamou ele, de novo instantaneamente alegre. — Sua Excelência Reverendíssima sentir-se-á grato... e não creio que o nosso visitante se mostre demasiado enfadonho. Ademais — acrescentou, com uma leve e sorridente malícia a brilhar-lhe de novo nos olhos — poderemos acompanhar a investigação de perto, não lhe parece?

     — Acho que sim — respondeu ela, o rosto de novo anuviado, a mão a puxar nervosamente as dobras da saia. — Mas que fará ele aqui?

     Nicholas Black fez um gesto no ar:

     — O que todos fazem. Fará perguntas, tomará notas, examinará testemunhas. Por falar nisso... você provavelmente será uma delas. Você conheceu Nerone, não?

     Ela mexeu-se, inquieta, no banco e não quis encontrar o olhar do pintor.

     — Apenas ligeiramente... E... eu nada teria a dizer que valesse a pena.

     — Então por que está preocupada, cara? Você assistirá de camarote a uma comédia de aldeia... bem como a alguns mexericos romanos. Agora, volte à posição de antes e deixe-me terminar o trabalho.

     Mas, apesar de todas as suas atenções, ele não conseguiu dissipar-lhe o medo e, quando se pôs a desenhar-lhe o rosto, cada traço era uma mentira. Mas todas as mulheres eram tolas. Viam apenas o que queriam ver — e Nicholas Black vinha se aproveitando de suas tolices durante quase toda a sua vida.

     Terminado o desenho, deu-o à condessa com gesto teatral, e sorriu, em seu íntimo, diante de sua expressão de alívio e prazer. Depois, com ar estudadamente casual, beijou-lhe a mão e despachou-a:

     — Você me perturba, querida. Você é uma bela amolação. Vá colher algumas flores para o quarto e deixe-me terminar o meu quadro.

     Ao vê-la afastar-se, com passos incertos, pelo gramado, sorriu para si mesmo. Ela havia sido bondosa para com ele — e ele não lhe queria mal. Mas também ele tinha seus prazeres secretos, e o mais sutil de todos era o de obter pela intriga o que nunca poderia conseguir pela posse: a carne odiosa e faminta das mulheres.

     Para Anne Louise de Sanctis, o momento presente tinha significação inteiramente diversa. Não era estúpida nem depravada, embora cedesse igualmente tanto às loucuras da meia-idade como aos vícios que um corpo ainda vigoroso lhe impunha. Quando se submetia às pequenas tiranias do pintor, fazia-o porque elas lhe despertavam a vaidade, e porque sabia que tinha ainda o poder de decidir. Ele queria que lhe financiasse uma nova exposição em Roma. Podia fazê-lo... ou podia mandá-lo embora no dia seguinte, de volta à sua vida miserável de artista medíocre e à sua busca diligente de viúvas ricas e complacentes.

     Agradava-lhe ver que ele, também, estava envelhecendo, e que cada nova conquista se tornava um pouco mais difícil. A maldade de Nicolas Black era como a maldade de uma criança, às vezes nociva mas sempre ligada a uma necessidade não reconhecida, por parte dele, de sua pessoa. E fazia muito tempo que ninguém precisava dela. Ela, também, tinha as suas próprias necessidades, mas, embora ele as compreendesse e se divertisse com elas, não tinha poder para usá-las contra ela. Ele valia-se dos seus receios e da sua solidão, mas não havia ainda descoberto o seu verdadeiro terror.

     Era esse terror que caminhava agora com ela pelo jardim pintalgado de sol do alto da colina, onde a riqueza e o trabalho barato haviam construído um oásis no solo ressequido da Calábria. A terra para o gramado e para os canteiros havia sido trazida em cestos, monte acima, nos ombros das aldeãs. A pedra havia sido arrancada do flanco da colina por pedreiros locais, as oliveiras, os pinheiros e os laranjais, plantados por rendeiros agricultores como tributo à família que os havia mantido, durante séculos, como bens herdados. Artistas napolitanos haviam decorado as paredes e os tetos cinzelados, uma dúzia de connaisseurs tinha adquirido em leilões os quadros, as estátuas e as porcelanas encomendadas pelo Conde Gabriel de Sanctis para a sua noiva inglesa.

     O muro que cercava a villa havia sido construído — e forjados os portões cristados — para que dispusesse de um retiro isolado. A criadagem fora escolhida pelo próprio conde, para que a servisse solicitamente. A casa, as terras e tudo o que havia nelas, tinham-lhe sido dados como presente de núpcias — e constituíam um retiro campestre para repouso após a vida febril de Roma, onde Gabriel de Sanctis estava galgando alta posição a serviço do Duce. Para a filha de um modesto diplomata, que acabara de passar sua primeira temporada em Londres, aquilo era como um encantamento das Mil e uma noites, mas o terror penetrara com ela aqueles portões e lá permanecera durante todos aqueles anos.

     Gabriel de Sanctis começara aquilo — mas morrera havia muito, como suicida desmoralizado, no deserto da Líbia. Nos anos decorridos desde então, uma dezena de outros homens apareceram e se foram, mas nenhum deles conseguira libertá-la daquele terror.

     Surgiu, então, Giacomo Nerone. Naquele mesmo jardim, numa manhã como aquela, ela se humilhara e pedira-lhe para que a exorcizasse. Mas ele se negara. No fim, ela se vingou, mas a vingança lhe trouxera novos tormentos: pesadelos na grande cama barroca, fantasmas que assombravam os olivais e sorriam como sátiros em meio dos laranjais em flor. Nos últimos tempos, atormentavam-na menos. Havia drogas que produziam sono e Nicholas Black para distraí-la durante o dia.

     Agora, porém, chegara um novo homem: um clérigo macilento, enviado de Roma para escavar o passado, computar velhas dívidas e registrar culpas já sepultas, pouco importando o sofrimento que disso pudesse advir. Hospedar-se-ia em sua casa e comeria de sua mesa. Esquadrinharia tudo, e nem mesmo a porta fechada de seu quarto teria segredos para ele.

     Súbito, a vida extraída do banho matinal pareceu escoar-se dela, deixando-a lassa e fatigada. Dirigiu-se com passos lentos, arrastados, a uma pequena pérgula situada na extremidade de um olival, onde um fauno de mármore se erguia sobre um velho pedestal. Diante do fauno havia um banco rústico, sobre o qual pendiam lânguidas e fartas madressilvas. Sentou-se, acendeu um cigarro e aspirou avidamente a fumaça, enchendo os pulmões, até que sentiu que sua atenção se dissipava aos poucos.

     Agora compreendia. Estivera a correr durante muito tempo. Não havia fuga para o medo que carregava em seu corpo como um inquilino. Devia haver um fim para aquilo; do contrário, mergulharia na negra loucura que ameaça todas as mulheres que chegam ao climatério infelizes e sem que estejam preparadas para tal. Mas de que modo acabar com aquilo? Derrubar todas as portas, humilhar-se diante dos inquisidores, submeter-se à catarse da confissão? Já o experimentara antes, mas fracassara por completo.

     Havia ainda uma alternativa desolada, talvez, mas segura: o vidrinho cheio de cápsulas gelatinosas que, todas as noites, a levava ao sono. Um pouquinho mais — só um pouquinho — e tudo estaria, de uma vez por todas, terminado. De certo modo, seria a conclusão de sua vingança contra Giacomo Nerone — e uma vingança contra o corpo que a traíra e a levara a ele, e ele a ela.

     Mas ainda não. Havia ainda um pouco de tempo. Que viesse o sacerdote!... Se ele não insistisse demais, aquilo seria um presságio favorável — uma promessa de outras soluções. Se o fizesse... bem, então a coisa seria fácil, irônica e final — e, quando a encontrassem, ainda estaria bela como a cada manhã, ao sair de seu banho perfumado.

    

   Para Blaise Meredith, os dias que passava na casa do bispo eram os mais felizes de sua vida. Homem frio por natureza, passara a compreender o significado do companheirismo. Arredio e auto-suficiente, via, pela primeira vez, a dignidade da dependência, o encanto de uma confiança compartilhada. Aurélio, bispo de Valenta, era um homem que possuía o dom da compreensão e um raro talento para a amizade. A solidão e a desolada coragem de seu hóspede tocaram-no profundamente e, com tato e simpatia, entregou-se à tarefa de estabelecer intimidade entre ambos.

     Pela manhã, logo cedo, dirigiu-se ao quarto de Meredith levando consigo o grosso volume que continha os registros das primeiras investigações acerca de Giacomo Nerone. Encontrou o sacerdote, pálido e fatigado, sentado na cama com a bandeja do café da manhã sobre os joelhos. Pôs o volume sobre a mesa e aproximou-se solícito, sentando-se à beira do leito.

     — Não passou bem a noite, meu amigo? Meredith abanou a cabeça, descoroçoado:

     — Um pouco pior do que o habitual. Talvez a viagem, a excitação. Devo pedir-lhe desculpas. Eu esperava auxiliar na missa de Vossa Excelência Reverendíssima.

     O bispo moveu a cabeça num gesto negativo, sorrindo:

     — Não, monsenhor. O senhor agora está sob minha jurisdição. Dispenso-o de todas as missas, exceto a dos domingos. Dormirá até tarde e recolher-se-á cedo e, se vir que está trabalhando demais, serei obrigado a afastá-lo deste caso. O senhor, agora, está no campo. Aproveite o tempo. Sinta o cheiro da terra e dos laranjais floridos. Espane de seus pulmões o pó das bibliotecas.

     — Vossa Excelência é amável — respondeu com ar grave Meredith. — Mas resta-me pouquíssimo tempo.

     — Mais uma razão para gastá-lo com a sua pessoa — respondeu-lhe o bispo. — E um pouquinho comigo. Eu também sou um estranho aqui, lembre-se disso. Meus colegas são, quase todos, boas criaturas, mas sua companhia me é enfadonha. Há coisas que eu gostaria de mostrar-lhe, coisas que gostaria de ouvir de sua boca. Quanto a isto — ajuntou, apontando o maciço volume encadernado em couro —, pode lê-lo no jardim. A metade do que aí está é repetição e retórica. O resto, o meu amigo poderá digerir em dois dias. As pessoas que deseja ver se encontram a duas horas, apenas, de automóvel... e o meu está à sua disposição a qualquer momento, com um chofer para ajudá-lo no que for preciso. Um sorriso lento, perplexo, aflorou ao rosto pálido de Meredith.

     — O senhor é bondoso para comigo e isso me parece estranho. Fico a pensar por que me trata assim.

     Um sorriso jovial iluminou o rosto do bispo: — O senhor viveu demasiado tempo em Roma, meu amigo. Esqueceu-se de que a Igreja é uma família de fiéis, e não apenas uma burocracia de crentes. Isso é um sinal dos tempos... e um sinal dos menos encorajadores. Este é o século da máquina e a Igreja fez-lhe demasiadas concessões. Eles têm, agora, no Vaticano, despertadores e máquinas de calcular, bem como telégrafos impressores de cotações da Bolsa.

     Apesar de seu cansaço, Meredith lançou a cabeça para trás e riu a bom rir. O bispo fez com a cabeça um sinal de aprovação:

     — Assim está melhor! Um pouco de riso franco só fará bem a todos. Precisamos de um ou dois poetas satíricos que nos desenvolvam o senso da proporção.

     — Nós, provavelmente, os processaríamos por injúria — observou maldosamente Meredith. — Ou os acusaríamos de heresia.

     — "Inter faeces et urinam nascimur" — citou, em voz baixa, o bispo. — Foi um santo quem o disse... e isso se aplica igualmente a papas, sacerdotes e prostitutas de Reggio Calábria. Um pouco mais de riso diante de nosso triste estado, algumas lágrimas honestas diante da tristeza das coisas... e todos nós seríamos melhores cristãos. Agora, termine o seu café e dê um passeio pelo jardim. Tenho gasto muito tempo com ele e não me agradaria que um inglês o ignorasse.

     Uma hora depois, banhado, barbeado e reanimado, Meredith saiu para o jardim, levando consigo o volume de depoimentos acerca de Giacomo Nerone. Chovera durante a noite e o céu estava limpo, enquanto o ar estava cheio do cheiro de terra úmida, folhas lavadas e florações novas. As abelhas zumbiam em torno das flores das laranjeiras e dos hibiscos escarlates, e os goivos amarelos erguiam-se, retos e agudos, junto aos rebordos de pedra dos canteiros. Novamente Meredith sentiu-se tocado por um desejo ardente de permanência nessa terra de raízes profundas, cuja beleza via pela primeira vez. Se ao menos pudesse ficar com ela um pouco mais, deitar raízes como uma árvore, ser açoitado pelas intempéries mas, não obstante, sobreviver para a chuva, e o sol e a renovação da primavera! Mas não. Ele vivera demasiado em meio ao pó das bibliotecas e, quando chegasse a ocasião, era nesse pó que o sepultariam. Não nasceriam flores de sua boca, como nasciam da boca de homens humildes; raiz alguma se estenderia em torno da forma de seu coração e de seus flancos. Encerrá-lo-iam num caixão forrado de chumbo e o levariam para a cripta da igreja do cardeal, onde ele se desfaria, estéril como sempre vivera, até o dia do Juízo Final.

     Em torno dos troncos das oliveiras, a relva era verde e o ar, cálido e tranqüilo. Despiu a batina, tirou o colarinho e abriu a camisa, para sentir o calor cair sobre o seu peito magro; depois sentou-se, recostou-se ao tronco de uma árvore, abriu o grande volume encadernado em couro e pôs-se a ler:

    

     "Depoimentos preliminares sobre a vida, as virtudes e os alegados milagres do servo de Deus Giacomo Nerone, reunidos por solicitação e sob a autoridade de S. Ex.a Rev.ma Aurélio, titular de Valenta, na província da Calábria, por Geronimo Battista e Luigi Saltarello, sacerdotes da mesma diocese".

    

     Vinha, a seguir, a cuidadosa rejeição:

    

     "Os depoimentos e informações que se seguem têm caráter não-judicial, já que, até esta data, nenhum tribunal foi estabelecido nem designadas quaisquer autoridades para examinar oficialmente a causa desse servo de Deus. Embora não se hajam poupado esforços para se chegar à verdade, as testemunhas não foram submetidas a juramento nem colocadas sob sanção canônica, a fim de que revelassem quaisquer verdades de que tivessem conhecimento. Nenhum dos procedimentos adotados por um tribunal diocesano foi observado, quer quanto ao sigilo, quer quanto ao método de registro. Não obstante, as testemunhas foram advertidas de que poderão ser chamadas a depor sob juramento num tribunal, se esse vier a ser constituído".

    

     Blaise Meredith fez um aceno com a cabeça e contraiu os lábios, satisfeito. Até ali, tudo muito bem. Ali estava a burocracia da Igreja em ação: a legalidade romana aplicada aos assuntos do espírito. Os céticos talvez pudessem zombar daquilo, os crentes sorrir diante de seus excessos, mas em sua essência aquilo era sólido. Era o mesmo gênio que dera ao Ocidente o código de civilização sob o qual, pelo menos em parte, ainda vivia. Meredith virou a página e continuou a ler:

    

     "De non cultu" (Decreto de Urbano VIII, 1634).

    

     "Em vista das informações concernentes à visita de peregrinos e à veneração tributada por membros da comunidade de fiéis junto à campa do servo de Deus, consideramos como nosso primeiro dever investigar se os decretos do Pontífice Urbano VIII, proibindo o culto público, foram observados. Constatamos que muitos fiéis, tanto visitantes como pessoas da localidade, visitam o túmulo de Giacomo Nerone e oram junto ao mesmo. Alguns deles afirmaram ter recebido, mediante sua intercessão, favores espirituais e temporais. As autoridades civis e, em particular, o prefeito de Gemello Maggiore, organizaram certa publicidade pela imprensa e melhoraram as facilidades de transporte, a fim de incentivar a vinda de visitantes. Embora isso possa constituir uma indiscrição, não transgride os cânones. Nenhuma veneração pública é permitida, no sentido canônico. O servo de Deus não é invocado em cerimônias litúrgicas. Não são expostos retratos ou imagens para veneração pública e, à parte certas notícias adulteradas pela imprensa, não circularam, até agora, livros ou folhetos contendo descrição de milagres. Certas relíquias que pertenceram ao servo de Deus circulam, privadamente, entre os fiéis, mas não se permitiu que se lhes prestasse qualquer veneração pública. Somos de opinião, por conseguinte, que os cânones que proíbem o culto público têm sido observados..."

    

     Blaise Meredith leu, um tanto sonolento, as frases formais. Aquele era, para ele, um terreno velho e conhecido — familiar mas tranqüilizador. Competia à Igreja não apenas impor a fé, mas também limitá-la; incentivar a piedade, mas desencorajar a beatice. As leis ali estavam — por mais que tivessem sido obscurecidas pela ignorância — e sua fria razão se destinava a refrear os excessos dos devotos e as ásperas exigências dos puritanos. Mas ele ainda se achava muito longe do âmago do problema: a vida, as virtudes e os alegados milagres de Giacomo Nerone. O parágrafo seguinte tampouco o aproximou do assunto. Intitulava-se "De scriptis":

    

     "Não foram encontrados escritos de qualquer espécie atribuíveis ao servo de Deus. Certas referências, anotadas depois nos depoimentos, sugerem a possível existência de um manuscrito que se teria perdido, destruído, ou deliberadamente ocultado por pessoas interessadas. Até que se inicie um processo legal e seja possível exercer pressão moral sobre as testemunhas, é pouco provável que se obtenham outras informações acerca desse importante ponto".

    

     Blaise Meredith franziu a testa, com ar de desagrado. Nada de escrito. Uma pena! Do ponto de vista judicial, as coisas escritas por um homem constituíam a única indicação segura de suas crenças e intenções e, segundo a rigorosa lógica de Roma, eram mesmo mais importantes do que os seus atos. Um indivíduo podia assassinar a esposa ou seduzir a própria filha e, não obstante, permanecer membro da Igreja; mas que ousasse rejeitar um til na verdade definida, e ver-se-ia imediatamente fora dela. Poderia ter dedicado sua vida inteira à caridade e, não obstante, chegar ao fim de seus dias sem mérito algum. O valor moral de um ato dependia da intenção com que fora praticado. Mas, morto o indivíduo, quem revelaria os segredos de seu coração?

     Era um começo pouco encorajador, e o que se seguia era ainda menos tranqüilizador:

    

"SUMÁRIO BIOGRÁFICO

     Nome: Giacomo Nerone. Há razão — anotada posteriormente nos depoimentos — para se supor que esse era um pseudônimo.

     Data de nascimento: desconhecida. As descrições físicas feitas pelas testemunhas variam consideravelmente, mas todas são acordes em que devia ter entre trinta e trinta e cinco anos de idade.

     Lugar de nascimento: desconhecido. Há testemunhas de que Giacomo Nerone foi primeiro aceito como italiano, mas que depois surgiram dúvidas quanto à sua identidade. Foi descrito como sendo homem alto, moreno e de pele bronzeada. Falava fluente e corretamente o italiano, embora com sotaque setentrional. A princípio, não se exprimia em dialeto, mas depois aprendeu-o, falando-o constantemente. Durante o período de sua vida passada em Gemelli dei Monti, unidades alemãs, americanas, inglesas e canadenses achavam-se em operações na província da Calábria. Várias suposições foram feitas quanto à sua nacionalidade, mas as provas apresentadas a favor das mesmas são, a nosso ver, inconcludentes.

     Somos de opinião, no entanto, que, por motivos ainda não suficientemente claros, ele se esforçava por ocultar, deliberadamente, a sua verdadeira identidade. Somos também de opinião que certas pessoas a conheciam e procuram ainda hoje ocultá-la.

     Data da chegada a Gemelli dei Monti: a data exata é incerta, mas todos concordam em que deve ter-se verificado em fins de agosto de 1943. Esta data corresponde mais ou menos à da conquista da Sicília pelos Aliados e às operações do Oitavo Exército inglês na província da Calábria.

     Período de residência em Gemelli dei Monti: agosto de 1943 a 30 de junho de 1944. Todas as testemunhas se referem a esse período de menos de doze meses, e quaisquer reivindicações de santidade heróica devem ser julgadas de acordo com os registros disponíveis relativos a esse período excepcionalmente breve.

     Data da morte: 30 de junho de 1944, às três horas da tarde. Giacomo Nerone foi executado por um esquadrão de fuzilamento dos guerrilheiros, sob o comando de um homem conhecido por Il Lupo, O Lobo. Tanto a data como a hora da execução são específicas, confirmadas por testemunhas oculares. As circunstâncias relativas ao acontecimento são também confirmadas por testemunho unânime.

     Sepultamento: o sepultamento realizou-se às dez e trinta da noite do dia 30 de junho. O corpo de Giacomo Nerone foi removido do lugar da execução por seis pessoas e enterrado no lugar conhecido como Grotta dei Fauno, onde se encontra atualmente. Tanto a identificação do corpo como as circunstâncias do sepultamento são unanimemente confirmadas pelo testemunho dos que participaram do enterro".

    

     Blaise Meredith fechou o grosso volume e colocou-o a seu lado, sobre a grama. Depois, recostou a cabeça no áspero tronco da oliveira e ficou pensando no que acabara de ler. Aquilo era um começo, sem dúvida, mas, do ponto de vista do advogado do Diabo, um começo bastante dúbio.

     Havia demasiados "desconhecidos", e a imputação de deliberado sigilo era perturbadora. Tudo o que os testemunhos revelavam e abrangiam era apenas um período de onze meses, numa vida de trinta ou trinta e cinco anos. Não havia escrito algum que pudesse ser examinado. Nenhuma dessas coisas excluía a santidade, mas podia muito bem excluir uma santidade comprovada, que era assunto da investigação de Meredith e do processo judicial do tribunal do bispo.

     Em casos como esse, o investigador era sempre forçado a apelar para a fria lógica dos teólogos.

     Partia ela da premissa de um Deus pessoal, eterno, auto-suficiente, onipotente. O homem era o resultado de um ato criador da vontade divina. A relação existente entre o Criador e a Sua criatura era definida primeiro pela lei natural, cujas obras eram visíveis e podiam ser apreendidas pela razão humana; depois, por uma série de revelações divinas, culminando na encarnação, pregação, morte e ressurreição do Deus-feito-Homem, Jesus Cristo.

     A perfeição do homem e sua união final com o Criador dependiam de sua conformidade com a relação existente entre eles; sua salvação dependia de achar-se o homem em estado de conformidade no momento de sua morte. Era ajudado a chegar a essa conformidade mediante o auxílio divino, chamado graça, que estava sempre a seu alcance, em grau suficiente para garantir-lhe a salvação, contanto que cooperasse com ela mediante o uso de sua livre vontade. Salvação implicava perfeição, mas uma perfeição limitada.

     Mas a santidade, a santidade heróica, implicava um chamamento especial para uma perfeição maior, mediante o emprego de graças especiais — nenhuma das quais o homem poderia alcançar pelo seu próprio poder. Cada época produziu a sua safra de santos, embora nem todos fossem conhecidos — embora nem todos fossem oficialmente proclamados.

     A proclamação oficial envolvia ainda algo: a implicação de que a Divindade desejava tornar conhecidas as virtudes do santo chamando a atenção para elas através de milagres — atos que estavam além do poder humano —, interrupções divinas das leis da natureza.

     Era essa implicação que perturbava Meredith no início do caso de Giacomo Nerone. Constituía simples axioma, reconhecido por todos os teólogos, o de que um ser onipotente não podia, por sua própria natureza, entregar-se à trivialidade ou a um sigilo trivial.

     Nada havia de trivial no nascimento de um homem, já que isso envolvia a projeção de uma alma nova nas dimensões da carne. Nada havia de trivial na progressão de sua vida, já que cada ato o condicionava para o derradeiro momento da mesma. E sua morte era o momento em que o espírito se lançava para fora do corpo na atitude irrevogável de conformidade ou rejeição.

     Assim, quaisquer que fossem as lacunas existentes na história pessoal de Giacomo Nerone, tais lacunas precisavam ser preenchidas. Se existiam fatos que estavam sendo ocultos, Blaise Meredith precisava trazê-los à luz, pois também ele logo seria chamado a juízo.

     Mas o que um homem deve fazer e o que suas forças permitem que faça são, não raro, duas coisas diversas. O ar estava cálido, o zunido dos insetos enganadoramente sedativo, e o cansaço de uma noite insone voltou de maneira insidiosa. Blaise Meredith rendeu-se a ele e dormiu, sobre a relva macia, até a hora do almoço.

    

     Sua Excelência Reverendíssima sorriu entre dentes, encantado, quando Meredith lhe confessou, pesaroso, a sua negligência matinal.

     — Ótimo! Ótimo! Ainda faremos do senhor um camponês! Teve sonhos agradáveis?

     — Não tive sonhos — respondeu Meredith, com seco bom humor. — E isso foi uma mercê tão grande quanto o sono. Mas não adiantei muito o trabalho. Corri os olhos, antes do almoço, por alguns depoimentos, mas lamento dizer que os acho um tanto insatisfatórios.

     — Insatisfatórios... de que modo?

     — É difícil de definir. Foram feitos de maneira normal. São, evidentemente, resultado de cuidadosa interpelação de testemunhas. Mas — como direi? —, não dão uma idéia clara de Giacomo Nerone, nem das próprias testemunhas. E, para os fins que temos em vista, ambas as coisas são importantes. A figura pode crescer, é claro, à medida que eu prossiga a leitura, mas, por enquanto, não há contornos nítidos.

     O bispo concordou com um sinal de cabeça:

     — Essa é também a minha impressão. É uma das razões de minhas dúvidas acerca do assunto. Os depoimentos constituem, todos, uma única peça. Não há elementos de conflito ou controvérsias. E os santos são, em geral, pessoas que despertam muita controvérsia.

     — Mas há elemento de sigilo — ajuntou, tranqüilo, Meredith.

     — Precisamente — aquiesceu o bispo, sorvendo o seu vinho e refletindo sobre a sua explicação. — Quase se diria que uma parte da população se convenceu de que esse homem era um santo e queria prová-lo a qualquer preço.

     — E a outra parte?

     — Estava resolvida a nada dizer... quer a favor, quer contra.

     — Ainda é muito cedo para que eu julgue esse ponto — observou, cauteloso, Meredith. — Ainda não li nem estudei suficientemente o processo. Mas o tom das declarações que li até agora é afetado e estranhamente irreal, como se as testemunhas estivessem falando uma nova língua.

     — E estão! — exclamou o bispo, com vivo interesse.

     — É bastante curioso, meu amigo, mas o senhor tocou num problema que há muito tempo me preocupa: a dificuldade de comunicação precisa entre o clero e os leigos. É uma dificuldade que, ao invés de diminuir, aumenta, e que inibe mesmo a intimidade purificante do confessionário. A raiz disso, penso eu, é esta: a Igreja é uma teocracia, governada: por uma casta sacerdotal, da qual o senhor e eu somos membros. Temos uma linguagem própria — uma linguagem hierática, se quiser — formal, estilizada, admiravelmente adaptada a definições legais e teológicas. Infortunadamente, também temos uma retórica própria que, como a retórica do político, diz muito e comunica pouco. Mas não somos políticos. Somos professores — professores de uma verdade que afirmamos ser essencial para a salvação do homem. Contudo, como é que a pregamos? Falamos incessantemente de fé e esperança, como se estivéssemos empregando uma forma cabalística de encantamento. Que é a fé? Um salto no escuro para as mãos de Deus. Um ato inspirado da vontade, que constitui a nossa única resposta ao terrível mistério de se saber de onde viemos e para onde vamos.

     "Que é a esperança? A confiança de uma criança na mão que a afastará dos terrores que avançam no escuro. Pregamos o amor e a fidelidade, como se se tratasse de assunto de mesa de chá... E não de corpos a contorcer-se numa cama e de palavras ardentes em lugares escuros, e de almas atormentadas pela solidão e levadas à comunhão momentânea de um beijo. Pregamos a caridade e a compaixão, mas raramente dizemos o que significam: mãos que lidam em meio à sujeira de quartos de doentes, que limpam o pus de feridas sifilíticas. Falamos ao povo todos os domingos, mas nossas palavras não chegam até os que nos ouvem, pois esquecemos a nossa língua materna. Mas nem sempre foi assim. Os sermões de São Bernardino de Siena são, hoje, quase inconvenientes, mas chegavam aos corações, pois a verdade que havia neles era aguda como um punhal e dolorosa como..."

     Interrompeu-se e sorriu, como se se desculpasse de sua própria intensidade. Depois, após um momento, disse com brandura:

     — Eis aí o que se passa com as nossas testemunhas, monsenhor; nós não as compreendemos porque falam conosco como falamos com elas. E isso, tanto de uma parte como de outra, é muito pouco.

     — Como é então que justamente eu poderei aproximar-me delas? — indagou, com irônica humildade, Meredith.

     — A língua materna — respondeu Aurélio, bispo de Valenta. — O senhor nasceu, como essas criaturas, inter faeces et urinam, e elas ficarão surpresas ao verificar que o meu amigo não esqueceu tal fato... tão surpresas, com efeito, que talvez lhe digam a verdade.

    

     Horas depois, naquela mesma tarde, enquanto o sol ardia fora das venezianas cerradas e a gente sensata do sul dormia a sesta, Blaise Meredith, deitado em sua cama, ponderava as palavras do bispo. Elas eram verdadeiras, ele bem o sabia. Mas o hábito de anos era forte nele — o eufemismo cuidadoso, o recato sacerdotal, como se sua língua devesse ser censurada por se referir ao corpo que o gerara e ao ato sublime a que devia o ser.

     E, no entanto, o próprio Cristo usara essa cunhagem comum. Falara na linguagem vulgar de símbolos vulgares: uma mulher a gritar em trabalho de parto, os gordos eunucos a caminhar bamboleando pelos bazares, a mulher a quem muitos maridos não satisfaziam e que se voltou para um homem que não era seu marido. Não invocou convenção alguma para escudar-se dos homens que Ele próprio criara. Comeu em companhia de cobradores de impostos e bebeu com mulheres públicas, não recuando diante das mãos que o ungiam e que haviam acariciado corpos de homens em meio à paixão de mil noites.

     E Giacomo Nerone? Se fosse um santo, seria como o Senhor. Se não o fosse, ainda assim seria um homem e a verdade a seu respeito seria contada na linguagem simples da alcova e da taberna.

     À medida que a tarde avançava e que a primeira friagem da noite penetrava em seu quarto, Blaise Meredith começou, lentamente, a compreender a tarefa que tinha à sua frente.

     Seu primeiro problema era de ordem tática. Embora as notícias já tivessem sido publicadas e designados os dois principais representantes oficiais, o tribunal ainda não havia sido constituído. Já que todos os depoimentos do tribunal seriam tomados sob juramento e em caráter sigiloso — e já que de nada valia estar desperdiçando tempo com gente frívola e sem qualquer vontade de cooperar — era necessário experimentar primeiro aquela gente em entrevistas particulares e sem juramento, como um advogado civil examina suas testemunhas antes de apresentá-las.

     As testemunhas já haviam sido entrevistadas, antes, por Battista e Saltarello, cujos registros estavam em suas mãos. Mas eram ambos sacerdotes locais e, segundo se presumia, imparciais...  se é que não estavam, na verdade, a favor do candidato. Sua posição era inteiramente diferente. Ele era estrangeiro, funcionário do Vaticano e promotor da causa. Era suspeito pela própria natureza de sua missão, e se estivessem envolvidos na causa interesses mundanos — como, indubitavelmente, estavam — podia estar certo de que depararia com ativa e vigorosa oposição.

     Aqueles que estavam promovendo a Causa do Santo teriam todo o cuidado de desviá-lo de qualquer informação controversa. Se haviam deposto a favor de Giacomo Nerone, não modificariam seu depoimento diante do advogado do Diabo, embora talvez pudessem sucumbir, se ele conseguisse descobrir elementos com que desafiá-los. Era idiota, claro, tecer intriga em torno do Todo-Poderoso, mas havia muita tolice e intriga não só no seio da Igreja como fora. A Igreja era uma família constituída de homens e mulheres, nenhum dos quais era garantidamente perfeito, nem mesmo por graça do Espírito Santo.

     Sua melhor oportunidade, por conseguinte, parecia residir naqueles que se tinham recusado a prestar qualquer depoimento. Não seria fácil descobrir por que certas pessoas não acreditavam em santos e encaravam os seus cultos como superstições nocivas. Era bem possível que tais pessoas estivessem dispostas a revelar algo que mostrasse os pés de barro de um ídolo popular. Certas pessoas acreditavam em santos, mas nada queriam com eles. Achavam incômoda a companhia dos mesmos: suas virtudes constituíam perpétua censura. Não havia ninguém mais obstinado, nesse sentido, do que um católico em luta com a sua consciência. Finalmente, poderia haver os que hesitavam em revelar fatos favoráveis aos candidatos porque tais fatos eram desairosos às suas próprias pessoas.

     O problema seguinte era descobrir tais pessoas. De acordo com os registros de Battista e Saltarello, todas as informações positivas vinham de Gemello Maggiore, a aldeia próspera, e todas as recusas partiam da aldeia gêmea, debilitada, situada no outro lado do vale. A distinção era demasiado óbvia para que pudesse ser ignorada e demasiado artificial para que pudesse ser aceita sem reservas. Meredith resolveu discutir a questão com o bispo, durante o jantar.

     Sua Excelência Reverendíssima abordou o assunto com cautela maior do que a habitual:

     — Para mim também esse foi um dos traços mais intrigantes da situação. Permita-me tentar apresentar-lhe essa situação dentro de certa perspectiva. Há aqui duas aldeias, gêmeas pelo nome e gêmeas pela natureza, empoleiradas nas cristas da mesma montanha. Antes da guerra, que eram elas? Aldeotas típicas calabresas — lugarejos pobres, habitados por agricultores arrendatários de senhores ausentes. Em seu aspecto exterior e em seu padrão de vida, não havia entre elas diferença perceptível... salvo que, em Gemello Minore, havia uma padrona residente, a Condessa de Sanctis...

     O bispo deteve-se ironicamente nesse parêntese e, depois, prosseguiu:

     — Mulher interessante, a condessa. Tenho curiosidade em saber o que pensará dela. O senhor será seu hóspede, quando for a Gemello Minore. Contudo, sua presença, tanto então como agora, não fez diferença quanto à situação da população local... Depois veio a guerra. Os jovens foram convocados para o exército; os velhos e as mulheres ficaram lavrando a terra. Trata-se, nos melhores sítios, de terra pobre, como o meu amigo verá — terra que se tornava cada vez mais pobre, à medida que passavam os anos. O Estado impôs tributo à agricultura e, uma vez recebido pelos proprietários o quinhão que lhes cabia, pouco sobrava para os camponeses e, não raro, estes últimos passavam fome de verdade nas montanhas. Ora... — ajuntou Sua Excelência, fazendo um gesto enfático com as mãos longas e sensíveis — a coisa estava assim, quando chegou um homem, um desconhecido, que se disse chamar Giacomo Nerone. Que é que sabemos dele?

     — Quase nada — disse Blaise Meredith. — Chega aqui, vindo não se sabe de onde, trajando roupas miseráveis de camponês. Ferido e atacado de malária. Diz ser desertor da luta que se desenrola no sul. Os aldeões aceitam-no pelo que parece ser. Têm filhos que também se acham em lugares distantes. Não sentem simpatia alguma por uma causa perdida. Uma jovem viúva, chamada Nina Sanduzzi, leva-o para casa e cuida dele. Surge entre eles uma ligação que é depois interrompida... bem no meio da gravidez da mulher.

     — E depois? — animou-o, astutamente, o bispo.

     — Depois, não sei o que pensar. O registro é pouco claro. As testemunhas são vagas. Fala-se numa conversão, numa volta para Deus. Nerone deixa a casa de Nina Sanduzzi e constrói, com suas próprias mãos, uma pequena choça no recanto mais desolado do vale. Planta um jardim. Passa horas a fio solitário, em contemplação. Aparece na igreja aos domingos e recebe os sacramentos. Ao mesmo tempo — note bem — parece ter assumido a liderança das aldeias.

     — Mas como é que as dirige, e com que fim? Eu o estou interrogando, Meredith, porque quero ver de que modo o senhor, um recém-chegado, compreendeu essa história. Quanto a mim, eu a sei de cor, mas sinto-me ainda desorientado.

     — Conforme li nos depoimentos — prosseguiu, cauteloso, Meredith —, ele começou a ir de casa em casa, oferecendo seus serviços a quem deles necessitasse... a um velho cujas terras estavam sendo usurpadas, a uma avozinha fraca e solitária, a um agricultor enfermo que precisava de alguém que cuidasse de sua plantação de tomates. Daqueles que podiam fazê-lo exigia pagamento em espécie — leite de cabra, azeitonas, vinho, queijo —, que era entregue por ele aos que precisavam dessas coisas. Mais tarde, quando chegou o inverno, organizou um cadastro de mão-de-obra e recursos naturais, impondo-o com rigor e, às vezes, com violência.

     — Procedimento nada santo... — insinuou o bispo, com um leve sorriso.

     — Foi o que também achei — admitiu Meredith.

     — Mas mesmo o Cristo expulsou a chicote os vendilhões do templo, não expulsou? E quando o senhor vier a conhecer os nossos calabreses, concordará em que possuem as cabeças mais duras e os punhos mais rijos de toda a Itália.

     Meredith foi obrigado a sorrir, ante a armadilha que o bispo lhe armara.

     — Anotaremos isso como crédito a favor de Giacomo Nerone — disse. — O que vem a seguir também o favorece. Cuidava dos enfermos e parece ter prestado uma espécie de tosca colaboração, no campo da medicina, a um certo Dr. Aldo Meyer, um exilado político que, de modo bastante curioso, se nega a prestar qualquer declaração sobre o caso.

     — Também tenho pensado muito sobre esse ponto — adiantou o bispo. — E isso é tanto mais interessante quando se sabe que Meyer, antes e depois da guerra, procurou organizar essa gente em seu próprio benefício, tendo malogrado por completo. É um homem de singular espírito humanitário, mas tem contra si o fato de ser judeu num país católico... bem como, talvez, ainda outras coisas. O senhor devia procurar aproximar-se dele. Talvez o meu amigo se surpreenda.... Mas prossiga, por favor.

     — Encontramos, a seguir, evidência de outras atividades religiosas. Nerone reza em companhia dos enfermos, conforta os agonizantes. Faz viagens em meio à neve para trazer o sacerdote com os últimos sacramentos. Quando não há sacerdote, ele próprio permanece até o fim com o moribundo. Mas há uma coisa estranha... — ajuntou Meredith, detendo-se, um momento, indeciso. — Duas testemunhas dizem o seguinte: "Quando o Padre Anselmo se recusou a ir..." Que significaria isso?

     — Exatamente o que diz, creio eu — respondeu friamente Sua Excelência Reverendíssima. — Já houve muito escândalo acerca desse homem. Pensei várias vezes em removê-lo, mas agora me decidi contra tal medida.

     — O senhor tem fama de rígido mantenedor da disciplina. Já removeu outros. Por que não esse?

     — Ele é velho — respondeu, em voz baixa, o bispo —, velho e, creio eu, encontra-se muito perto do desespero. Não me agradaria nada pensar ter sido eu a levá-lo a ele.

     — Desculpe-me — disse, imediatamente, Meredith.

     — Não há de quê. Somos amigos. O senhor tem o direito de fazer perguntas. Mas sou um bispo e não um burocrata. Carrego o báculo de pastor, e as ovelhas desgarradas também me pertencem. Prossiga. Leia mais acerca de Giacomo Nerone.

     Meredith passou a mão pelos cabelos ralos. Estava ficando cansado. Era um esforço, para ele, manter as idéias em ordem.

     — Em março de 1944, vieram os alemães... a princípio, um pequeno destacamento, depois um maior: reforços para as tropas que lutavam contra o Oitavo Exército inglês, que cruzara o estreito de Messina e abria caminho em direção à extremidade inferior da Calábria. Nerone foi um dos que negociaram com eles... tendo sido bem sucedido, ao que parece. Os camponeses deveriam fornecer determinada quantidade de alimentos frescos, em troca de remédios e roupas de inverno. O comandante da guarnição imporia disciplina às suas tropas e protegeria as mulheres cujos maridos e irmãos se achavam ausentes. O acordo é mantido de maneira razoavelmente satisfatória, e Nerone impõe-se como mediador respeitado. Essa ligação com os alemães foi a razão alegada para a sua execução pelos guerrilheiros. Quando os Aliados romperam as linhas inimigas e começaram a abrir caminho em direção a Nápoles, ultrapassaram as aldeias e deixaram aos guerrilheiros a tarefa de lidar com as forças alemãs, dispersas, que se retiravam. Giacomo Nerone ficou...

     O bispo interrompeu-o erguendo a mão esguia:

     — Um momento! Que é que vê, até aqui?

     — O ignoto! — respondeu, calmamente, Meredith. — O desconhecido. O homem que veio não se sabe de onde. O desgarrado que, súbito, se transforma em divino. Possui ele um sentimento de gratidão, um toque de compaixão, bem como talento e, talvez, gosto pela liderança. Mas que é ele? De onde vem e por que razão age como o faz?

     — O senhor vê nele algum santo?

     Meredith abanou a cabeça:

     — Ainda não. Bondade, talvez, mas não santidade. Ainda não examinei as provas referentes aos alegados milagres, de modo que deixo, por ora, de levar essa parte em consideração. Mas tenho uma opinião. Há um padrão na santidade, uma grande sensatez. Até agora não vi vestígio de razão aqui; apenas sigilo e mistério.

     — Talvez não haja mistério algum... mas, apenas, ignorância e má interpretação. Diga-me, meu amigo, o que você sabe das condições existentes aqui no sul, na ocasião?

     — Muito pouco — admitiu, com franqueza, Meredith. — Estive encerrado, durante toda a guerra, na Cidade do Vaticano. Sabia apenas o que ouvia ou lia... e isso mesmo de maneira bastante truncada. Deus bem o sabe!

     — Então permita que eu lhe explique...

     Levantou-se e dirigiu-se à janela, ficando a olhar o jardim, onde o vento agitava de leve os arbustos e as sombras eram profundas, pois ainda não havia luar sobre o topo das colinas. Quando falou, havia em sua voz um laivo de antiga tristeza:

     — Sou italiano e compreendo essa história melhor do que muita gente, embora ainda não compreenda as pessoas nela envolvidas. Primeiro, o senhor deve perceber que um povo derrotado não é leal para com ninguém. Seus líderes o traíram. Seus filhos morreram defendendo uma causa perdida. Não acreditam em ninguém... nem mesmo em si próprios. Quando chegaram os nossos conquistadores, a falar, aos berros, em democracia e liberdade, tampouco acreditamos neles. Olhávamos apenas a côdea de pão que tinham nas mãos e calculávamos exatamente qual o preço que nos pediriam por ela. Gente faminta não acreditava nem mesmo na côdea de pão, enquanto não a engolia em segurança e não a sentia doendo no estômago desabituado. Eis como eram as coisas aqui no sul. O povo estava derrotado, sem líderes, faminto. Pior ainda do que isso: esquecido. E eles bem o sabiam.

     — Mas Nerone não os esqueceu — objetou Meredith. — Ainda permanecia com eles. Ainda era um líder.

     — Já não o era. Havia novos barões na terra. Homens com armas novas, cartucheiras carregadas a tiracolo e autorização, por parte dos conquistadores, para vasculharem as montanhas e se apoderarem delas, mantendo a ordem, até que um novo e dócil governo pudesse ser estabelecido. Seus nomes e seus rostos eram familiares: Michele, Gabriele, Luigi, Beppi. Dispunham de pão com que negociar, bem como de carne enlatada e barras de chocolate... E tinham ainda velhas contas a ajustar — contas tanto políticas como pessoais. Saudavam as pessoas com o punho fechado da camaradagem e com o mesmo punho golpeavam o rosto dos que se atreviam a discordar deles. Eram muitos e eram fortes, pois o seu Mr. Churchill havia dito que negociaria com quaisquer pessoas que pudessem ajudá-lo a resolver a confusão reinante na Itália e lhe permitissem prosseguir com a invasão da França. Que poderia Giacomo Nerone fazer contra eles... o seu ignoto vindo não se sabia de onde?

     — Que procurou ele fazer? Eis aí o que me interessa.

     Por que razão certas pessoas se agarraram a ele, como a um santo, enquanto outras o recusaram e o traíram, entregando-o aos que o executaram? Antes de mais nada, por que eram contra ele os guerrilheiros?

     — Isso está anotado — respondeu, com um sorriso fatigado, Sua Excelência. — Chamavam-no colaborador. Acusavam-no de comércio lucrativo com os alemães.

     Meredith rejeitou enfaticamente a insinuação:

     — Isso não basta! Não é o bastante para explicar o ódio, a violência e a discórdia nem, tampouco, por que razão uma aldeia prospera, enquanto a outra mergulha cada vez mais no desalento. Não basta, também, para nós. O povo fala em martírio... numa morte em defesa da fé e de princípios morais. Tudo o que Vossa Excelência me mostrou não passa de uma execução política — talvez injusta e cruel —, mas, ainda assim, apenas isso. O que nos interessa não é a política, mas a santidade, a relação direta entre um homem e o Deus que o criou.

     — Talvez tudo não tenha passado disso: um homem envolvido na política.

     — Vossa Excelência acredita nisso?

     — E acaso importa aquilo em que acredito, monsenhor?

     O rosto astuto e aristocrático voltou-se para ele. Os lábios finos sorriam, irônicos.

     Foi então que, de súbito, compreendeu a verdade, como um jato de água fria que lhe batesse no rosto. Também aquele homem tinha uma cruz para carregar. Podia ser bispo, mas, não obstante, ainda havia dúvidas que o perseguiam e medos que o mortificavam, no alto cume da tentação. Uma estranha compaixão agitou o coração ressequido de Blaise Meredith e ele respondeu, em voz baixa:

     — Se importa? Acho que importa muito!

     — Por que, monsenhor? — indagou o bispo, os olhos profundos, sábios, a desafiá-lo.

     — Porque acho que o senhor, como eu, receia o dedo de Deus.

    

   Nicholas Black, o pintor, trabalhava num novo quadro. Era uma composição simples, mas estranhamente dramática: uma confusão de rochas nuas, desgastadas e batidas pelas intempéries, manchadas de fungos e mosqueadas como a pele largada por uma serpente; das rochas, erguia-se uma oliveira solitária, morta e despojada de folhas, cujos braços nus se abriam como uma cruz, tendo por fundo o azul-claro do céu.

     Estava trabalhando nele havia já uma hora, na ensolarada solidão de um pequeno platô situado atrás da encosta da colina, e o topo do monte, guarnecido de tufos, a elevar-se sobre ele, inundado pelo sol do meio-dia.

     O sol estava quente sobre o seu torso bronzeado, magro mas musculoso. O ar estava lânguido e seco, mas estridente de cigarras — e Paolo Sanduzzi dormitava a seus pés, a um passo de distância, sossegado como um lagarto sobre uma rocha cinzenta.

     O contentamento era algo estranho a Nicholas Black, e a plena satisfação era coisa que só de raro em raro lhe ocorria; mas, naquela hora e naquele lugar tranqüilo, em companhia do rapaz adormecido, com uma tela a surgir-lhe vigorosamente da mão, sentia-se tão próximo do contentamento como jamais o estivera antes.

     Pintava com traços seguros, satisfeito, os pensamentos voltados para a tela e para a árvore cinzenta, retorcida, que era como um patíbulo sobre um Gólgota em miniatura. Havia naquilo uma força que o seduzia — um vigor em seu tronco, músculo e osso debaixo do córtice áspero, cinzento como se, algum dia, pudesse partir-se ao meio e um homem surgir, brilhante e novo, para uma espécie de ressurreição na alvorada.

     Ele admirava o vigor — tanto mais porque havia tão pouco vigor em sua pessoa —, mas raramente conseguia traduzi-lo em seus trabalhos. Os críticos tinham notado essa falta havia muito. Admiravam o encanto de suas telas, o seu brilho forçado, o seu talento dramático, mas lamentavam sua débil estrutura e o sangue aguado que circulava sob a pele de suas brandas figuras. Mais tarde, passaram a chamá-lo raté — um homem que jamais conseguiria, devido a alguma debilidade fundamental existente em sua própria pessoa, realizar algo vigoroso. Depois disso, certamente, mostravam-se bondosos para com ele, à maneira condescendente que reservam às mediocridades afáveis e aos eternos ousados. Publicavam sempre notícias sobre suas exposições. Elogiavam-no o suficiente para que as viúvas ricas continuassem a comprar-lhe os quadros e os pequenos negociantes de arte se mostrassem ligeiramente interessados. Mas jamais o levavam a sério.

     De vez em quando, um dos "novos" afiava os dentes diante de uma exposição de Nicholas Black, e foi um deles que escreveu um epitáfio brutal, que pôs toda Londres a rir durante uma semana e que levou Black a cruzar o canal da Mancha e lançar-se aos pés de Anne Louise de Sanctis.

     "Um dos eunucos da profissão", escreveu o jovem e inteligente crítico, "condenado a viver para sempre na contemplação da beleza, mas sem jamais possuí-la."

     Em O Saco de Pregos, O Cervo e no clube da BBC, riam-se dele entre dentes, diante de suas cervejadas. Nos salões georgianos de Knightsbridge riam dele, bebericando coquetéis. Nas mansardas de Chelsea, compuseram uma canção obscena a respeito da frase — e um dos que compartilhavam seu apartamento e mais do que a metade do seu amor atirara-lhe isso na cara, ao fim de uma noite de altercação.

     Foi o momento mais amargo de sua vida e, mesmo agora, a duas mil milhas e seis meses de distância do ocorrido, tal lembrança ainda era viva e degradante. Era um terror especial, aquele; um inferno bastante particular reservado aos pobres-diabos que, por distração ou ironia do Criador, vinham ao mundo sem os atributos que definem um homem. Seus companheiros mais normais os encaram com desdém, como os poetastros desdenham uma paródia que indica a pomposidade de seus próprios trabalhos, como as esposas honestas desprezam a prostituta que vende por dinheiro o que elas recusam por amor. De modo que formam um reino entre eles mesmos, um meio mundo de amantes perdidos, de encontros furtivos e de estranhas ligações. Existe lealdade nesse meio mundo, mas não o bastante para protegê-los contra os intrigantes de dentro e os que zombam do outro lado dos frágeis portais. E quando um homem como Nicholas Black o abandona, converte-se em peregrino solitário de um culto secreto, cujos símbolos são frases rabiscadas nas paredes de toaletes, o gesto fálico e o rápido roçar em meio a um agrupamento de estranhos.

     Agora, porém, ele chegara a um oásis, em seu caminho de peregrino. Estava pintando uma árvore tão forte e viva como um homem. E um rapaz extenuado e moreno dormia ao sol, a seus pés. Deu uma última e cuidadosa pincelada; depois, largou o pincel e a paleta e ficou a olhar Paolo Sanduzzi.

     O jovem estava estendido de costas, um joelho encolhido, um dos braços atrás da cabeça, o outro pousado, lasso, sobre a rocha cálida e cinzenta. Vestia apenas um calção manchado e umas velhas sandálias de couro. No ar seco e quente, sua pele brilhava como uma madeira resinosa, e seu rosto, liso e juvenil, tinha, em repouso, uma expressão de curiosa inocência.

     Havia muito já a inocência era uma coisa estranha aos olhos de Nicholas Black. Envolvera-se, com demasiada freqüência, em seu arremedo e em sua sedução. Mas podia reconhecê-la ainda, ter ainda ciúmes dela — e ali, longe do simulacro, podia ainda lamentar a sua perda.

     Sentou-se na rocha quente, a poucos passos do rapaz, e pôs-se a fumar, pensativo, um cigarro, subjugado por aquele raro momento de satisfação entre um passado acusador e um futuro incerto.

     De repente, o rapaz sentou-se e olhou-o com olhos astutos e perscrutadores:

     — Por que me olha assim?

     Black sorriu calmamente e respondeu:

     — Você é belo, Paolino. Como o jovem Davi que Michelangelo esculpiu num pedaço de mármore. Sou um artista...  um amante da beleza. Por isso, gosto de olhá-lo.

     — Estou com vontade de urinar — disse o rapaz, sorrindo.

     Levantou-se de um salto, caminhou até a beira do platô e ficou, de pernas abertas, a urinar bem defronte de Nicholas Black, que percebeu irrisão naquilo, mas não fez nenhum protesto. Depois, o rapaz aproximou-se, gingando o corpo, e ficou de cócoras a seu lado. Estava ainda sorrindo, mas havia um olhar de viés, calculista, em seus olhos escuros. E pediu abruptamente:

     — Leva-me em sua companhia, quando voltar para Roma?

     Black encolheu os ombros, à maneira do sul:

     — Quem sabe? Roma fica muito longe e a vida, lá, é dispendiosa. Lá, posso conseguir muitos criados. Mas um amigo... isso é diferente.

     — Mas o senhor me disse que eu era seu amigo!

     A ansiedade do rapaz era tão viva e infantil que bem poderia tê-lo enganado, mas a verdade estava nos olhos de Paolo, negros como ônix.

     — Um amigo deve provar que o é — respondeu, com estudada indiferença, o pintor. — Ainda há tempo. Veremos.

     — Mas sou um bom amigo de verdade — disse Paolo, infantilmente. — Veja! Eu lhe mostrarei!

     Passou os braços pelo pescoço de Black, abraçou-o rapidamente e saltou para longe, arisco como um animal. O pintor limpou a boca com as costas da mão e levantou-se lentamente, tendo na língua o gosto de sal da desilusão. Não olhou para o rapaz, que se achava de pé sobre uma rocha saliente, a dez passos de distância, as mãos nas cadeiras. Dirigiu-se ao cavalete, apanhou o pincel e a paleta e disse, por sobre o ombro:

     — Tire a roupa!

     O rapaz fitou-o. Black gritou, áspero.

     — Vamos! Dispa-se! Quero usá-lo como modelo. É para isso que você é pago, entre outras coisas.

     Depois de um momento de inquieta indecisão o rapaz obedeceu, e Black sorriu com sardônica satisfação, ao ver de que modo a ousadia e o desafio o abandonavam, enquanto despia o calção miserável. Era ele, agora, apenas uma criança — uma criança assustada, indecisa, em presença de um patrão genioso.

     — Estenda os braços. Assim.

     O rapaz levantou, lentamente, os braços, até a altura dos ombros.

     — Agora, fique assim.

     Com pinceladas rápidas, Nicholas Black pôs-se a pintar uma figura crucificada nos galhos contorcidos da oliveira: não um Cristo atormentado, mas um jovem em plena puberdade, com o rosto e o corpo de Paolo Sanduzzi, pregado de mãos e pés ao tronco, com uma lança vermelha enfiada no peito, mas a sorrir, mesmo enquanto a vida o abandonava.

     O rapaz cansou-se muito antes de a tela estar terminada, mas Black o manteve na mesma posição, lançando-lhe impropérios sempre que ele baixava os braços. Depois, terminado o trabalho, chamou-o e mostrou-lhe o quadro. O efeito foi surpreendente. O rosto do rapaz contraiu-se numa expressão de horror, a boca escancarada, enquanto, trêmulo, apontava para a tela, proferindo, em seu jargão, uma torrente de palavras.

     — Que é que há? O que foi que o assustou? A voz do rapaz era quase um sussurro:

     — O quadro! Essa é a árvore do meu pai! O pintor olhou-o, atônito.

     — Que é que você quer dizer com isso?

     — Foi assim que eles mataram meu pai. Nessa mesma árvore. Estenderam ele assim, como numa cruz, amarrado. Depois o fuzilaram.

     — Ó Deus! — exclamou, em voz baixa, Nicholas Black. — Ó doces anjos, que história! Que doce, dulcíssima história!

     Depois, passado um instante, pôs-se a rir, e o rapaz afastou-se furtivamente, amedrontado e submisso, carregando consigo o calção e as sandálias.

    

     Nessa mesma hora, com o sol a pino, o Dr. Aldo Meyer viu restaurada temporariamente a sua autoridade em Gemello Minore.

     Martino, o ferreiro, sofrerá um ataque, enquanto trabalhava na bigorna. Caíra sobre a forja e sofrerá sérias queimaduras no peito e no rosto. Carregaram-no até a casa de Meyer, e o médico tratava agora dele, assistido por Nina Sanduzzi, enquanto a esposa de Martino o observava, assustada, de um canto, e os aldeões se aglomeravam dentro da casa, pairando como estorninhos diante daquela migalha de drama.

     O corpo vigoroso do ferreiro foi enrolado em cobertores e colocado numa prancha na cozinha de Meyer. Tinha um dos lados completamente paralisado — a perna e o braço inúteis, o rosto repuxado para os lados num ricto de medo e surpresa. Seus olhos estavam fechados e a respiração era curta e ruidosa. Enquanto Meyer examinava e limpava-lhe as queimaduras do rosto, um grito baixo e abafado saiu da boca retorcida do ferreiro. Quando terminaram de enfaixar-lhe o rosto, desenrolaram os cobertores e Meyer lançou um assobio lento e pensativo, ao ver a extensão e a profundidade das queimaduras de seu corpo. Nina Sanduzzi permanecia impassível como uma estátua, segurando a tigela de água quente e as mechas de algodão. Quando a esposa de Martino tentou aproximar-se ela largou calmamente a tigela e conduziu-a de volta ao seu canto, acalmando-a e repreendendo-a em voz baixa, confiante. Depois, voltou de novo para junto de Meyer e, atenta como qualquer enfermeira, ajudou-o a retirar o carvão das queimaduras, a limpá-las e passar sobre elas violeta de genciana e o que restava de uma pequena provisão de mertiolate.

     Terminados os curativos, Meyer tornou a auscultar o paciente e a contar-lhe o pulso, após o quê, enrolou de novo os cobertores em torno do corpo do ferreiro e voltou-se para a mulher, que chorava em seu canto.

     — É melhor que o deixe aqui durante umas duas horas — disse-lhe delicadamente. — Depois, farei com que o levem para sua casa.

     Ela rogou-lhe, lamentosa como um animal.

     — Ele não vai morrer, não é verdade, doutor? O senhor não o deixará morrer?

     — Ele é forte como um touro — respondeu, calmamente, Meyer. — Não morrerá.

     Ela tomou-lhe as mãos, beijando-as e invocando os santos para que abençoassem o bom médico. Meyer desembaraçou-se bruscamente:

     — Vá agora para casa, como uma boa mulher, e dê de comer a seus filhos. Mandarei chamá-la, se a sua presença for necessária... e, mais tarde, receberá seu marido de volta.

     Nina Sanduzzi tomou-a pelo braço e conduziu-a para fora do quarto. Ao voltar-se para o seu paciente, Meyer ouviu-a gritar com os que estavam parados junto à porta, dizendo-lhes que fossem cuidar de seus afazeres. Quando se aproximou de novo do médico, Nina perguntou, abruptamente:

     — O senhor acredita de fato no que lhe disse? Ele viverá?

     — Viverá — respondeu Meyer, alçando os ombros.

     — Mas jamais tornará a ser útil a si próprio ou a ela.

     — Ele tem seis filhos.

     — Tem filhos demais — disse Meyer, com aguçado senso de humor.

     — Mas ele os tem — insistiu ela inflexível. — Quem os alimentará, agora que ele não pode trabalhar?

     Meyer deu de ombros:

     — Há o auxílio público. Eles não morrerão de fome.

     — Auxílio público! — retorquiu Nina, desdenhosa. — Uma dúzia de entrevistas e cem fórmulas impressas para se obter um quilo de pasta! Que espécie de resposta é essa?

     — É a única que conheço hoje em dia — replicou Meyer, com fria amargura. — Antes, eu costumava ter uma porção de respostas, mas ninguém queria ouvi-las. Queriam continuar a viver à moda antiga. Bem... esta é a moda antiga!

     Nina Sanduzzi fitou-o. Havia piedade e desprezo em seus olhos negros e inteligentes.

     — O senhor sabe o que Giacomo Nerone teria feito, não sabe? Iria ele mesmo para a forja e começaria a trabalhar. Bateria em todas as portas e imploraria ou obrigaria essa gente a ajudar. Subiria até a vala e pediria à condessa dinheiro e trabalho para a mulher de Martino. Apoderar-se-ia de algumas caixas de esmolas do Padre Anselmo. Ele compreendia essas coisas. Sabia como as pessoas ficam amedrontadas. Não podia ouvir jamais uma criança chorar...

     — Era um homem notável, esse seu Giacomo — observou, conciso, Meyer. — Foi por isso que o mataram. Martino, segundo me lembro, foi um dos que fizeram parte do pelotão de fuzilamento.

     — E o senhor assinou um documento dizendo que ele havia sido legalmente executado, depois de ser devidamente julgado — lembrou ela sem ódio na voz, como se apenas recordasse tranqüilamente fatos familiares. — Mas nenhum dos senhores jamais disse a verdadeira razão pela qual ele foi morto.

     — E qual foi ela, então? — desafiou-a ele, áspero.

     — Não havia apenas uma razão. Havia vinte. Havia a razão de Martino, da condessa, do Padre Anselmo, de Battista, de Lupo, e também a sua, dottore mio. Mas os senhores não podiam admiti-la nem mesmo um para o outro, de modo que encontraram uma razão que servia a todos: Giacomo era um colaboracionista, um homem que amava os fascistas e os alemães! Os senhores eram os libertadores, os amigos da liberdade, os irmãozinhos do mundo inteiro. Trouxeram-nos a democracia. E tudo que Giacomo nos trouxe foi um pedaço de pão, uma terrina de sopa e duas mãos para trabalhar quando o homem da casa estava doente.

     Aquela calma acusação o irritou, fazendo-o explodir:

     — Aí é que está toda a maldita complicação deste país! Por isso é que ainda estamos com cinqüenta anos de atraso, em relação ao resto da Europa. Não nos organizamos, não se pode construir um mundo melhor baseado numa travessa de pasta e num balde de água benta.

     — Tampouco se pode construí-lo por meio de balas, dottore. Os senhores conseguiram o que queriam. Mataram Giacomo. E, agora, o que é que têm para mostrar! Martino não pode mais trabalhar. Quem irá alimentar sua esposa e seus filhos?

     Não havia resposta para aquela lógica brutal, e ele se voltou, envergonhado e impotente, e caminhou para a porta que dava para o ensolarado e quente jardim. Após um momento, Nina Sanduzzi acompanhou-o e pôs-lhe a mão na manga do paletó, hesitante.

     — O senhor pensa que eu o odeio, dottore. Não o odeio. Giacomo tampouco o odiava. Antes de morrer, ele veio ver-me. Ele sabia o que iria acontecer. Sabia que o senhor estava metido na coisa. Mas sabe o que ele me disse? "Esse é um homem, Nina. Procurou fazer muita coisa, mas é infeliz porque jamais aprendeu realmente o que significa amar e ser amado. Procurou organizar e reformar, mas não compreende que, sem amor, tudo isso são coisas vazias. Eu sou feliz porque tive você para me ensinar, no começo. Ele vive só há demasiado tempo. Quando eu morrer, vá procurá-lo, e ele será bondoso para com você. Se chegar uma ocasião em que você verificar que um homem lhe é de novo necessário... esse é o homem que será bom para você e para o rapaz." Ele também escreveu uma carta para o senhor e a colocou entre os seus papéis. Eu devia entregá-la ao senhor depois da morte dele.

     Meyer voltou-se e fitou-a:

     — Uma carta? Onde está ela, mulher? Onde está, pelo amor de Deus?

     Nina Sanduzzi abriu as mãos, desesperada:

     — Eu tinha todos os papéis guardados no armário. Quando Paolo era pequeno, um dia ele apanhou os papéis e misturou tudo. Rasgou alguns, amassou outros... Eu... nunca aprendi a ler! — acrescentou, enrubescendo, como se fizesse uma revelação vergonhosa.

     Aldo Meyer agarrou-a com violência pelos ombros.

     — Preciso ver esses papéis, Nina! Preciso vê-los! Você não sabe como isso é importante!

     — Seis crianças são importantes... — disse, em voz baixa, Nina. — E uma mulher cujo homem não pode mais trabalhar.

     — Se eu os ajudar, você me mostrará os papéis?

     Ela abanou a cabeça, num gesto de completa recusa:

     — Giacomo também me disse uma outra coisa: "A gente não deve nunca negociar com o cadáver dos outros". Se quiser ajudá-los, o senhor os ajudará, sem pedir nada em troca. Mais tarde, poderemos conversar a respeito dos papéis.

     Ele estava vencido e o sabia. Havia uma fortaleza de granito naquela mulher que não sabia ler, uma reserva inviolável de sabedoria que ele, que passara a vida toda a estudar, não conseguia enfrentar. O que o intrigava é que não havia raízes para aquilo em sua origem de camponesa, e ele não podia admitir que ela o tivesse adquirido de Giacomo Nerone. Não obstante, ela, do mesmo modo que Nerone, guardava a chave de um mistério que o desafiara a ele, Aldo Meyer, pelo espaço de vinte anos; por que razão certos homens de talento, boa vontade e compaixão não conseguiam estabelecer pleno contato com os seus semelhantes, despertando apenas contendas e ridículo entre aqueles que procuravam ajudar, enquanto outros, sem esforço aparente, penetravam diretamente na intimidade do seu próximo e eram lembrados com amor depois de sua morte?

     Nos papéis de Nerone, talvez lhe fosse possível ter a resposta que não tivera coragem de perguntar a Nina Sanduzzi. Mas só podia obtê-la de acordo com os termos por ela estipulados. Por isso encolheu os ombros, resignado, e disse-lhe:

     — Vou jantar esta noite com a condessa. Falarei com ela a respeito de Martino e veremos o que se pode fazer.

     Um sorriso iluminou-lhe o rosto calmo, clássico. Num gesto impulsivo, tomou a mão do médico e beijou-a.

     — O senhor é um bom homem, dottore. Direi à mulher de Martino. Não se deve deixar ninguém amedrontado durante muito tempo.

     — Você poderá, também, dizer-me uma coisa, Nina.

     — O quê, dottore?

     — Que é que você diria, se eu lhe pedisse para casar comigo?

     — Diria o que lhe disse a primeira vez, dottore. Seria melhor que não me pedisse.

     Dito isso, deixou-o rapidamente, e Aldo Meyer tornou a voltar para o seu paciente, tomando-lhe o pulso fraco, irregular, e ouvindo-lhe o rijo coração de camponês a lutar pela vida dentro do peito escalavrado.

     Paolo Sanduzzi estava junto do rio, apanhando cascalhos da água e atirando-os nos arbustos da margem oposta. O rio tinha um nome e três faces. O nome era Torrente dei Fauno, porque em outros tempos, muito antes de Cristo visitar Roma em companhia de São Pedro, os faunos costumavam divertir-se ali, rindo-se dos caprípedes jovens e perseguindo as jovens dos bosques, chamadas dríades. Depois que a igreja foi construída, foram todos embora, o que foi uma pena, pois o vale ficou insípido sem eles. Mas o nome continuou e, às vezes, os rapazes e as moças da aldeia se encontravam secretamente, a fim de entregar-se aos velhos folguedos pagãos.

     A face do rio mudava com as estações. No inverno, era escura, fria e sinistra, com suas margens franjadas de geada e montes de neve. Na primavera, era trigueira e jactanciosa, urrando tão alto com as águas do degelo, que se podia ouvi-lo lá em cima, na aldeia. No verão minguava, transformando-se em estreito e claro córrego a cantar sobre as pedras, a dormitar em tranqüilas lagoas sob a vegetação das margens. Antes da chegada do outono, tornava a secar, convertendo-se num leito crestado, cheio de pedras esbranquiçadas. Agora, exibia o seu rosto gentil, e Paolo Sanduzzi, que se assemelhava, ele próprio, a um fauno, sentia-se feliz em achar-se ali, longe da árvore patibular e do inglês cujo riso era como água a borbulhar numa negra panela.

     Jamais se sentira tão amedrontado em toda a sua vida — e ainda continuava assustado. Era como se o pintor possuísse a chave de sua vida: a chave para um passado que o envergonhava e para um futuro que ele só podia ver, vagamente, como uma visão de Roma com suas igrejas e palácios, suas ruas cheias de automóveis cintilantes e suas calçadas cheias de moças que se vestiam como princesas.

     A visão, entre agradável e sinistra, o enfeitiçava como as bruxarias que a velha Nonna Patucci fazia para as moças, a fim de atrair os seus namorados. Naquele momento, mesmo, sentia aquele encantamento a agir sobre ele, um formigamento sob a pele, uma imagem opressiva gravada em suas pupilas. Mais cedo ou mais tarde, arrastá-lo-ia de volta ao inglês, cujo sorriso, zombeteiro, o fazia, às vezes, sentir-se acanhado como uma criança e, outras vezes, despertava nele paixões estranhas, perturbadoras, sem necessidade, sequer, de uma palavra ou de um toque de mão.

     Lançou à água, distraído, uma última pedra, enfiou as mãos nos bolsos e pôs-se a descer pela margem do rio. Ao contornar uma curva, uma voz estridente o chamou:

     — Ei, Paoluccio!

     Ergueu os olhos e viu Rosetta, a filha de Martino, o ferreiro, sentada numa pedra a balouçar as pernas na água. Era magra, pequenina, um ano mais jovem do que ele, de cabelos escorridos, rosto pequeno, alerta, e seios em flor sob o vestido de algodão, única peça que usava sobre o corpo. Na aldeia, Paolo Sanduzzi ignorava-a intencionalmente, mas, naquele momento, sentiu prazer em vê-la. Fez-lhe um aceno indiferente com a mão.

     — Ei, Rosetta!

     Depois, aproximou-se e sentou-se ao lado dela, sobre a pedra.

     — Meu pai está doente. Teve um ataque e queimou-se na forja. Está na casa do médico.

     — Ele vai morrer?

     — Não. O médico diz que ele viverá. Mamãe está chorando. Deu pão com queijo a todos nós e nos mandou brincar. Quer um pedaço?

     Estendeu-lhe um pedaço de pão caseiro e uma fatia de queijo de cabra.

     — Estou com fome — respondeu Paolo.

     Ela partiu cuidadosamente o queijo em pedaços iguais e deu-lhe a sua parte. E lá ficaram a mastigar em silêncio, ao sol, a refrescar os pés na água. Decorrido um momento, ela perguntou-lhe:

     — Onde tem estado, Paoluccio?

     — Com o inglês.

     — Fazendo o quê?

     Ele deu de ombros, com ar de indiferença, como um homem costuma fazer diante das mulheres curiosas.

     — Trabalhando.

     — Que espécie de trabalho?

     — Carrego as coisas dele. Ele pinta e eu fico olhando. Às vezes, ele me pede para posar para ele.

     — O que quer dizer "posar"?

     — Fico parado e ele me pinta.

     — A Teresina me disse que, em Nápoles, existem moças que tiram a roupa para que os homens pintem elas.

     — Eu sei — disse ele, movendo a cabeça com ar experiente.

     — Você também tira a roupa?

     A pergunta o apanhou desprevenido e ele respondeu, áspero:

     — Isso não é de sua conta.

     — Mas você tira, não tira? Se você é modelo, tem de tirar.

     — Isso é um segredo, Rosetta — respondeu, sério. — Não conte a ninguém, eles não compreenderiam.

     — Não contarei. Prometo.

     Passou o braço magro em torno da cintura do rapaz e recostou a cabeça em seu ombro nu. O gesto o encabulou, embora lhe parecesse, não obstante, agradável. E, como lhe agradou, deixou que ela ali ficasse.

     — O inglês diz que sou belo, como a estátua de mármore feita por Michelangelo.

     — Isso é idiota. Só as mulheres são belas. Os rapazes são simpáticos ou desagradáveis. E não belos.

     — Mas foi o que ele disse — respondeu, na defensiva. — Disse que eu era belo, que ele amava a beleza e gostava de me olhar!

     Na sua estranha maneira de elfo, ela ficou zangada com ele. Tirou os braços da cintura dele e voltou-se para olhá-lo de frente:

     — Agora sei que está mentindo! Os homens não dizem essas coisas. Só as mulheres!

     Passou-lhe o braço pelo pescoço e colou os lábios aos dele e, quando ele tentou resistir, agarrou-o com mais força. Ao sentir, através da camisa, o contato dos seios de Rosetta, ele refletiu que aquilo, afinal de contas, era agradável. E pôs-se, também, a beijá-la.

     Decorrido um momento, ela tomou-lhe a cabeça entre as mãos e disse, com ar grave:

     — Eu o amo, Paoluccio. Eu o amo de verdade. Não como uma estátua.

     — Eu também a amo, Rosetta!

     — Sinto-me contente! — exclamou, levantando-se de um salto e estendendo a mão para ele. — Agora, leve-me para passear!

     — Por quê?

     — Porque nós nos amamos, e porque é assim que os namorados fazem. Além disso, tenho um segredo. Vamos passear e eu lhe mostrarei.

     Embora a contragosto, ele estendeu-lhe a mão. Ela a apanhou e puxou-o, até que ele ficasse de pé; depois caminharam rio acima, através da água clara, metendo-se por baixo dos verdes arbustos, a fim de compartilhar o velho segredo que as dríades contavam aos faunos que dançavam.

    

    

     Do alto platô que se erguia atrás da encosta da montanha, Nicholas Black lançava o olhar sobre a extensa configuração de seu próprio passado. Pela primeira vez em sua vida a forma desse passado se lhe apresentava clara — e dela surgia o futuro inevitável e idêntico, como os rebentos de uma árvore.

     Desde o começo, ele fora enganado, desde o oculto princípio fetal em que os elementos determinantes haviam sido traçados por um poder qualquer que decidira, no momento do cego acasalamento de um homem e uma mulher, que dali deveria surgir uma imitação de homem.

     Nascera com um irmão gêmeo, de rosto e formas idênticos, que o precedera de uma hora à saída do ventre materno. Nascera católico, de uma das velhas famílias de Fenland que conservara a sua fé intata desde o tempo da primeira Elizabeth até o último Jorge. Fora batizado com o irmão, e recebera as mesmas bênçãos que ele, na capela solarenga de cujos degraus os gramados desciam, amplos e verdes, até o juncal divisório e as águas cinzentas do paul.

     Mas aí terminava a identidade e começava a lenta desarmonia. O que nascera primeiro se tornou forte e trigueiro; o segundo, pálido e enfermiço. Eram como Esaú e Jacó — mas Esaú desfrutava do direito de primogenitura: os esportes de campo, as pescarias, os longos passeios a cavalo nos verões salpicados de sombras, enquanto Jacó ficava ao abrigo da casa, na segurança da sala de costura e da biblioteca. Na escola, ficou para trás, chegando com um ano de atraso a Oxford — e enquanto o seu irmão gêmeo partia para o deserto como oficial de artilharia, ele ficava preso a um leito de hospital atacado de febre reumática. Um deles possuía todo o vigor; o outro, toda a fraqueza. Toda a masculinidade pertencia ao que nascera primeiro; em Nicholas Black havia apenas uma beleza epicena, a suave sutileza de uma mente voltada demasiado tempo para si mesma.

     Enquanto seu irmão vivia, ainda havia esperança de que pudesse tomar-lhe emprestada alguma energia e encontrar dignidade no afeto. Mais tarde, porém, ao chegar a mensagem: "Desaparecido, julgado morto", morreu a última esperança, e a amargura oculta começou a crescer. Ele havia sido logrado: logrado por Deus, pela vida, pelo irmão gêmeo morto, pelo pai, que, após um escândalo abafado, em Londres, o aconselhara a deixar a casa, concedendo-lhe uma pequena pensão anual para que se mantivesse longe dela.

     Tornara-se, desde então, um solitário. Sua crença naufragara diante do mais difícil de todos os mistérios: o de que um Deus justo pudesse criar monstros e ainda esperar que vivessem como homens. Seu coração se empedernira nos breves amores do mundo do vício. E agora, subitamente, o poder era colocado em suas mãos — o poder de fazer a outro o que não conseguira fazer consigo mesmo: um homem, nobre em sua natureza, no talento e na ação. Ao fazê-lo, talvez pudesse reconstruir sua própria vida, chegando a atingir a dignidade, a compreensão de um amor mais puro do que qualquer outro que já experimentara.

     Estava envelhecendo. A paixão despertava mais lentamente e era mais fácil de ser dominada, exceto quando era estimulada pela vaidade e pela competição. Com o rapaz sob seus cuidados, conseguiria uma espécie de paternidade que daria à sua vida uma disciplina e uma direção que jamais tivera.

     Aquele era um momento estonteante, de elevação quase divina.

     Paolo Sanduzzi era filho de um homem considerado santo, gerado no ventre de uma prostituta de aldeia. Sua vida era tão predizível como a de milhões de outros jovens nas aldeias sem trabalho da Itália meridional. Amadureceria na ociosidade, casaria demasiado jovem, procriaria com demasiada freqüência e viveria a esmo na maior pobreza. Qualquer talento que pudesse ter seria abafado pela luta brutal pela existência. A Igreja o censuraria enquanto vivesse e o absolveria antes de morrer. O Estado arcaria com o peso de uma dúzia de reproduções dele, fecundas e famintas como coelhos, a devorar as últimas verduras de uma terra empobrecida.

     Mas, se o tirassem da aldeia, se lhe dessem oportunidade e educação, talvez pudesse vir a ser um grande homem, justificando sua própria existência e a de seu mestre. Onde seu pai falhara, onde a Igreja falhara, talvez Nicholas Black pudesse ser bem sucedido, e seu sucesso seria uma esplêndida negação das crenças que havia muito rejeitara.

     Para os críticos, Nicholas Black era um artista medíocre. Se daquela argila camponesa pudesse modelar um homem perfeito, isso seria um triunfo que ficaria além de qualquer cavilação, uma obra-prima fora do alcance da maldade humana.

     Era uma estranha ambição aquela, mas, não obstante, menos estranha do que os triunfos e as vinganças com que sonhavam os outros homens: impérios financeiros suficientemente poderosos para esmagar qualquer oposição; poder na imprensa, para fazer homens ou afundá-los na obscuridade; sonhos de mulher, sonhos de ópio, e o sonho de achar-se um dia sentado num gabinete e ouvir um inimigo dizer: "Vossa Excelência, senhor primeiro-ministro".

     A cada homem a sua própria danação, e homens mais nobres tinham tido sonhos mais baixos, em suas camisolas de dormir, do que Nicholas Black naquele platô ensolarado da Calábria.

     Era tarde e não havia ainda almoçado, mas estava embriagado pelo vinho entontecedor da expectativa, e não se importou. A aldeia estaria preparando-se para a sesta. A condessa deveria estar encerrada em seu quarto barroco e ele poderia entrar com o seu quadro na villa sem despertar demasiada atenção.

     Esperava muito daquela tela. Qual seria, diante dela, a reação de Anne Louise de Sanctis? E de Aldo Meyer, e do macilento clérigo que vinha pesquisar o passado de Giacomo Nerone? Sorriu ao imaginá-los boquiabertos, pela primeira vez, diante de seu trabalho, com os seus segredos escritos em seus olhos e em seus rostos.

     Procurou um título e encontrou-o quase imediatamente: O sinal da contradição. Quanto mais pensava nele, mais lhe agradava. Lembrava-lhe um velho grafitto em que se via um asno crucificado a representar Cristo, gracejo indecente feito por um labrego galhofeiro. Mas, para Nicholas Black, o símbolo tinha um novo significado: a juventude pregada à cruz da ignorância, da superstição e da pobreza, morta e já condenada, mas ainda a sorrir, vítima estática, narcotizada, da época e de suas tiranias.

    

   Monsenhor Blaise Meredith e Aurélio, bispo de Valenta, estavam interessados em uma contradição: os alegados milagres de Giacomo Nerone.

     Encontravam-se ambos de pé no amplo terraço lajeado da villa que dava para o vale, onde os trabalhadores se moviam lentamente de um lado para outro, vaporizando as árvores novas com aparelhos de modelo americano que traziam presos às costas. Junto ao muro da pequena represa, outros homens trabalhavam na instalação de novas comportas destinadas a controlar o fluxo da água que corria para outras plantações fora do domínio do bispo. Para além do desaguadouro, sobre uma encosta cinzenta de terra não-lavrada, mulheres de cestos à cabeça carregavam pedras destinadas à construção de novos terraços de vinhas, bem como terra para ser colocada atrás das pedras.

     Eram como formigas, pequenas e diligentes, e Meredith foi levado à irônica reflexão de que aquilo era um milagre tão grande como qualquer dos que eram narrados em sua pasta de couro: terra estéril que, lentamente, tornava a ser de novo fecunda graças à vontade criadora de um homem. Foi o que disse ao bispo cujo rosto, magro e inteligente, se contraiu num sorriso.

     — Isso é má teologia, meu amigo, mas um cumprimento agradável. Para essa gente, é uma espécie de milagre. De repente há trabalho, pão sobre a mesa e um litro extra de azeite para a panela. Eles não conseguem compreender como foi que isso aconteceu e, mesmo agora, têm a astuta suspeita de que existe uma armadilha oculta em alguma parte. Aqueles vaporizadores, por exemplo... — ajuntou, indicando os vultos arqueados que caminhavam por entre as laranjeiras — tive de comprá-los com o meu dinheiro, mas valem cada lira que gastei. Há apenas um ou dois anos essa gente ainda aguava suas árvores com um regador... Tinham, em suas casas, um balde de água no meio do assoalho e os homens cuspiam nele o sumo do fumo, quando fumavam ou mascavam tabaco. Entre os mais velhos, alguns ainda se negam a reconhecer que o meu método é melhor do que o deles. Só os convencerei quando obtiver três laranjas em lugar de apenas uma, e vendê-las pelo dobro do preço, por se tratar de laranjas cheias de sumo. No fim, eles verão!

     — O senhor me surpreende — disse, com franqueza, Meredith.

     — Por quê?

     — Que é que as laranjas têm a ver com a alma humana?

     — Tudo — respondeu o bispo, incisivo. — Não se pode cortar um homem pelo meio e polir-lhe a alma, enquanto lançamos o seu corpo a um monte de lixo. Se o Todo-Poderoso quisesse que assim fosse, teria feito dele um bípede que carregaria sua alma num saco, em torno do pescoço. Se a razão e a revelação têm algum significado, é o de que o homem realiza a sua salvação no corpo, mediante o emprego de coisas materiais. Uma árvore maltratada, um fruto de segunda classe, são defeitos no plano divino das coisas. A miséria desnecessária é um defeito ainda maior, pois constitui um obstáculo à salvação. Quando não se sabe de onde virá a nossa próxima refeição, como é que se pode pensar ou preocupar-se com a situação de nossa alma? A fome não tem moral, meu amigo.

     Meredith acenou com a cabeça, pensativo.

     — Tenho pensado, muitas vezes, por que razão os missionários são, em geral, melhores sacerdotes do que os seus irmãos que se encontram no centro da cristandade.

     Sua Excelência Reverendíssima encolheu os ombros e fez um gesto com as mãos expressivas:

     — Paulo era um fazedor de tendas e trabalhou em sua profissão a fim de não constituir um fardo para a sua gente. O próprio Cristo era carpinteiro na Galiléia dos gentios... e imagino que devia ser um bom carpinteiro. Depois de morto, eu gostaria de ser lembrado como tendo sido um bom sacerdote e um bom agricultor.

     — Isso basta — atalhou Meredith, com ar grave. — Basta para Vossa Excelência e basta para mim. Suponho que o próprio Todo-Poderoso dificilmente teria algo a dizer em contrário. Mas será o bastante para todos?

     — Que é que o senhor quer dizer?

     — Há milagres em toda parte, em nosso derredor: o milagre de uma laranjeira, o milagre do desígnio que mantém as incessantes rodas do universo a girar em torno de seus eixos. Mas, não obstante, o povo deseja ainda um sinal... um novo sinal. Se não o obtém do Todo-Poderoso, volta-se para as quiromantes, os astrólogos e as sessões espíritas. Que é que tudo isso significa — ajuntou, batendo com a mão no pesado volume de depoimentos — senão que essa gente exige maravilhas no céu e milagres na terra?

     — E os conseguem, às vezes — lembrou-lhe o bispo, mordaz.

     — É, às vezes, os criam para si próprios — redargüiu Meredith.

     — Não está satisfeito com os milagres de Giacomo Nerone?

     — Eu sou o advogado do Diabo. Minha tarefa consiste em não estar satisfeito. — E acrescentou, a sorrir, arrependido: — É uma missão curiosa, pensando bem. Examinar, por meio da razão, as alegadas operações da Onipotência, aplicar o código do direito canônico ao legislador que construiu o universo.

     Sua Excelência Reverendíssima fez um grave aceno de aquiescência com a cabeça e disse, tranqüilo:

     — Talvez seja menos perturbador pensar em Giacomo Nerone.

     Blaise Meredith tornou a adotar suas maneiras afetadas e pedantes.

     — Esse é o problema de todas as causas; aplicar a alegados milagres os métodos médico-legais do século XX. No caso de Lurdes, por exemplo, isso é bastante simples. Criou-se um departamento médico e estabeleceu-se uma série de testes que estão de acordo tanto com o conhecimento médico como com as rígidas exigências da Igreja. Um sofredor chega levando consigo uma história clínica completa. O departamento examina o paciente segundo o método aprovado: raios X, exames clínicos e patológicos. Todas as doenças de origem histérica ou neurológica são descartadas, como constituindo terreno propício a manifestações tidas como milagrosas; somente as desordens orgânicas profundamente estabelecidas, de prognósticos familiares, são aceitas. Se alguém se apresenta como tendo sido curado, o departamento médico torna a examinar o paciente e fornece um atestado provisório de cura. Mas o paciente não recebe um certificado final de cura senão dois anos mais tarde, baseado, então, em atestados médicos.

     "Até esse ponto, trata-se de método sólido. Tal método nos permite dizer que, no estado em que se encontra a ciência médica, essa cura se verificou de todo contrária ou mediante a suspensão das leis naturais conhecidas. Ora... no caso de um novo taumaturgo, esses testes não podem ser aplicados. Na melhor das hipóteses, temos apenas o relato de testemunhas oculares, acompanhado, talvez, do certificado de um médico local. Pode muito bem ser um milagre. Mas, no sentido legal exigido pelo direito canônico, verifica-se que é muito difícil prová-lo. Podemos aceitá-lo devido unicamente ao peso das provas apresentadas por pessoas leigas, mas, em geral, não o fazemos."

     — E as provas no caso de Giacomo Nerone?

     — Dos quarenta e três depoimentos que li, somente três apresentam certa conformidade com as exigências canônicas. Um é a cura de uma senhora idosa dada como sofrendo de esclerose múltipla; a segunda é a do prefeito de Ge-mello Maggiore, que afirma ter sido curado de um ferimento na espinha ocorrido durante a guerra, e a terceira é a de uma criança que já se achava nos últimos estágios da meningite e que sarou depois da aplicação de uma relíquia pertencente a Giacomo Nerone. Mas, mesmo essas... — fez uma pausa e prosseguiu em seu tom enfático de advogado do Diabo — mesmo essas exigem um exame mais severo, antes que possamos sequer pensar em aceitá-las.

     Para sua surpresa, o bispo sorriu, como diante de um gracejo. Meredith sentiu-se irritado:

     — Disse acaso algo divertido a Vossa Excelência?

     — Perguntava a mim mesmo o que acontecera em outros tempos, quando o conhecimento médico era limitado e as normas referentes a provas eram muito menos severas. É possível que muitos milagres, que não eram de modo algum milagres, tenham sido aceitos?

     — É muito provável, diria eu.

     — E que sejam venerados muitos santos cujos registros sejam tão obscuros a ponto de que sua própria existência seja duvidosa?

     — Perfeitamente. Mas não vejo aonde Vossa Excelência quer levar-me.

     — Estive lendo, recentemente — disse, com frieza, Sua Excelência —, que certos teólogos estão de novo manifestando a opinião de que a canonização de um santo constitui uma declaração infalível, por parte do papa, imposta a todos os fiéis. Na minha opinião, essa é uma proposição dúbia. A canonização baseia-se, geralmente, na biologia e no registro histórico de milagres. Ambos são passíveis de erro — e o papa só é infalível na interpretação do testemunho da fé. Nada pode acrescentar a ela. E cada novo santo é uma adição ao calendário.

     — Concordo com Vossa Excelência Reverendíssima — disse Meredith, contraindo, intrigado, o sobrolho. — Mas não vejo em quê uma opinião teológica manifestada por uma minoria possa interessar.

     — Não é a opinião que me preocupa, Meredith. É a tendência: a tendência de complicar tanto as coisas, por meio de comentários, glossários e hipóteses, a ponto de obscurecer a rígida simplicidade da fé essencial, não apenas para os fiéis, mas, também, para os pesquisadores honestos que se acham fora dela. Deploro que tal aconteça. Deploro-o grandemente, porque acho que isso ergue barreiras entre o pastor e as almas de que ele está querendo aproximar-se.

     — Vossa Excelência acredita em santos?

     — Acredito em santos como acredito na santidade. Acredito em milagres como acredito em Deus, que pode suspender as leis daquilo que Ele próprio criou. Mas acredito, também, que a mão de Deus escreve de maneira simples e clara, para que todos os homens de boa vontade possam ler. Tenho dúvidas quanto à Sua presença em meio à confusão e vozes em conflito.

     — Assim como eu duvido dos milagres de Giacomo Nerone?

     O bispo não respondeu imediatamente; afastou-se uns passos e ficou a olhar, em meio à tranqüilidade que reinava sobre o vale, as oliveiras cinzentas, as laranjeiras verdes e a plácida água onde os homens trabalhavam na instalação de comportas, despidos, sob o sol, até a cintura. Seu rosto estava anuviado, como se estivesse mergulhado numa luta íntima. Meredith observava-o, atônito e preocupado, receoso de tê-lo ofendido. Decorrido um momento, o bispo voltou para junto dele. Seu rosto estava ainda sombrio, mas seus olhos, cheios de grande bondade.

     — Tenho refletido muito nestes últimos dias, Meredith — disse, lentamente. — O senhor chegou à minha vida num momento de crise. Sou um bispo da Igreja, mas, não obstante, discordo de muita coisa que os meus colegas de Roma dizem e fazem correntemente. Não se trata de questões de fé, mas de disciplina, política, atitude. Julgo que estou certo, mas sei que existe o perigo de que, ao seguir o meu próprio caminho, possa tropeçar no orgulho e arruinar tudo o que espero fazer. O senhor tinha razão quando disse que eu receava o dedo de Deus. Eu sou... eu me encontro sobre um alto cume. Devo obediência ao papa. Sinto-me solitário e, não raro, perplexo... como diante dessa questão de Giacomo Nerone. Disse-lhe que não desejo um santo. Mas... e se Deus o quiser? Essa é apenas uma das questões. Existem muitas outras. Agora, aparece o senhor, um homem que se encontra à sombra da morte. O senhor também está desorientado e receia o dedo de Deus. Vejo em sua pessoa um irmão, a quem vim a amar e a confiar de todo o coração. Nós ambos buscamos, neste momento, um sinal...  uma luz na escuridão que nos aflige.

     — Fiquei acordado durante a noite — disse Meredith. — Sinto a vida escoando-se de mim. Quando vem a dor, choro, mas não existe prece no meu pranto. Somente medo. Ajoelho-me e digo o meu ofício e o rosário, mas as palavras são vazias... como um roçar, no silêncio, de abóboras secas. A escuridão é terrível e sinto-me tremendamente só. Não vejo outros sinais senão os símbolos da contradição. Procuro entregar-me à fé, à esperança e à caridade, mas minha vontade é um caniço partido em meio ao vendaval do desespero... Alegra-me que Vossa Excelência Reverendíssima ore por mim.

     — Oro por nós ambos — respondeu Aurélio, bispo de Valenta. — E, por meio de minhas orações, cheguei a uma decisão. Deveríamos pedir um sinal.

     — Que sinal?

     O bispo fez uma pausa; depois, muito solenemente, disse-lhe:

     — Deveríamos, nós dois, fazer esta prece: "Se é Tua Vontade, ó Deus, mostrar a virtude de Teu servo Giacomo Nerone, mostra-á no corpo de Blaise Meredith. Restaura-lhe a saúde e livra-o por mais tempo das mãos da morte, mediante Jesus Cristo, Nosso Senhor!"

     — Não! — exclamou Meredith, lançando um grito. — Não posso fazê-lo! Não me atrevo!

     — Se não pelo senhor, faça-o, então, por mim!

     — Não! Não! Não!

     Era lamentável o desespero do homem, mas o bispo insistiu, brutalmente.

     — Por que não? Nega, acaso, a onipotência?

     — Acredito nela!

     — E a misericórdia?

     — Também!

     — Mas não para o senhor?

     — Nada fiz para merecê-la.

     — A graça é concedida, e não obtida por merecimento! Concedida a mendigos, e não comprada com a virtude!

     — Não me atrevo a pedir tal coisa — disse Meredith elevando, tomado de medo, a voz. — Não me atrevo!

     — O senhor o fará — disse, em tom bondoso, o bispo. — Não pela sua pessoa, mas por mim e por todos os pobres-diabos como eu. Dirá tais palavras mesmo que elas nada signifiquem, porque eu, seu amigo, lhe peço.

     — E se elas falharem... — balbuciou Meredith, erguendo, afinal, o rosto transtornado. — Se elas falharem... encontrar-me-ei em meio a uma escuridão maior ainda, sem saber se confiei demasiado ou se não acreditei o quanto devia. Vossa Excelência coloca uma cruz nas minhas costas.

     — São costas fortes, meu amigo; mais fortes do que supõe. E o senhor talvez possa carregar nelas o Cristo através do rio.

     Mas Meredith permanecia como que petrificado, a fitar, ao longe, a terra ensolarada. Decorrido um momento, o bispo o deixou, indo falar com os jardineiros que vaporizavam as laranjeiras.

     Aquele era o momento que ele, havia muito, receava, mas que jamais compreendera inteiramente: o momento em que as ásperas conseqüências da crença se tornavam, afinal, claras.

     Para um homem nascido na Igreja, há um consolo singular na lógica cerrada da fé. Seus axiomas são de fácil aceitação. Seus silogismos são empilhados uns sobre os outros, firmes como os tijolos de uma casa bem construída. Suas disciplinas são severas, mas a gente se move livremente dentro delas, como acontece dentro dos limites de uma família bem-educada. Suas promessas são tranqüilizadoras: se a gente se submete à lógica e à disciplina, está naturalmente palmilhando o caminho da salvação. A complexa e aterrorizada relação existente entre o Criador e a criatura é reduzida a uma fórmula de fé e a um código de conduta.

     Para os sacerdotes, monges e freiras, a lógica é mais meticulosa, a disciplina, mais rígida, mas a segurança do corpo e do espírito é também incomensuravelmente maior. Assim, se um homem puder render-se por completo à vontade do Criador, tal como é ela expressa pela vontade da Igreja, poderá viver e morrer em paz — como um repolho ou um santo!

     Meredith era, por temperamento, um conformista. Observara as regras durante toda a vida — exceto uma: a de que, mais cedo ou mais tarde, deveria dar um passo além das formas e das convenções e estabelecer uma relação direta, pessoal, com os seus semelhantes e com o seu Deus. Uma relação de caridade — que é uma corruptela latina que significa amor. E o amor, em todas as suas formas e graus, é uma rendição de corpos e uma pequena morte na cama, uma rendição do espírito a uma morte maior, que é o momento de união entre Deus e o homem.

     Jamais em sua vida Meredith se entregara a quem quer que fosse. Não pedira favores a ninguém — porque pedir um favor constitui uma rendição de nosso orgulho e de nossa independência. Agora, não importava o nome que desse a isso, não conseguia decidir-se a pedir um favor ao Todo-Poderoso, em quem dizia acreditar, e com quem, segundo essa mesma crença, se mantinha numa relação de filho para pai.

     E essa era a razão do seu terror. Se não se submetesse, permaneceria para sempre, por toda a eternidade, como então se encontrava: solitário, estéril, desvalido.

    

     Aurélio, bispo de Valenta, achava-se em seu frio e austero gabinete de trabalho, a escrever cartas. Era essa uma atividade em que não confiava, mesmo quando os deveres de seu cargo o obrigavam a isso. Nascera agricultor, e preferia antes ver uma árvore crescer a escrever um tratado sobre ela. Fora educado para a diplomacia e sabia que uma coisa, uma vez escrita, não era mais passível de restauração. Muitos sujeitos infelizes haviam sido condenados por heresia simplesmente porque eram fracos em gramática ou na descrição.

     Assim, quando escrevia em caráter oficial, sobre o selo de sua diocese, mantinha-se dentro das convenções, dirigindo-se ao clero numa linguagem embotada, espessamente revestida de uma retórica meridional; quando escrevia para Roma, adotava estudados circunlóquios, cuidadosa reserva e um estilo ligeiramente florido. Aqueles que o conheciam bem riam, entre dentes, de sua astúcia. Os que pouco o conheciam — mesmo em se tratando de criaturas vivas como Marotta — estavam sujeitos a equivocar-se. Encaravam-no como um sacerdote provinciano um tanto pomposo, muito bom para o seu rebanho local, mas que seria uma tremenda amolação em Roma. E era essa precisamente a intenção do bispo. Um número demasiado grande de sacerdotes havia sido abruptamente transferido para Roma, justamente quando estava realizando coisas em suas próprias dioceses. Era a maneira pela qual o Vaticano os impelia para cima: um bispo, em sua própria sede episcopal, era uma força que se tinha de levar em conta; na cidade dos papas, era, no entanto, uma figura bastante insignificante.

     Mas as cartas, aquela tarde, eram de caráter particular, e Sua Excelência Reverendíssima as compunha com mais cuidado do que habitualmente. Para Anne Louise de Sanctis, escreveu:

    

     "... Sinto-me mais grato do que consigo dizer pelo seu oferecimento de receber Monsenhor Meredith como hóspede em sua casa, durante sua estada em Gemello Minore. Nós, clérigos, somos, não raro, um fardo para o nosso rebanho... e, às vezes, até mesmo uma amolação; mas estou certo de que a senhora condessa encontrará em Monsenhor Meredith um compatriota agradável e espirituoso. Trata-se de um homem enfermo, condenado, infortunadamente, a uma morte prematura — e o que quer que faça por ele, eu o considerarei como um favor especial.

     Ultimamente, tenho pensado muito em Vossa Excelência. Não desconheço a solidão que a aflige como castelã de uma comunidade pobre e primitiva. Tenho a esperança de que encontrará em Monsenhor Meredith um confidente para seus problemas e um conselheiro quanto aos assuntos de sua consciência.

     Creia-me, minha cara condessa,

     afetuosamente seu em Jesus Cristo,

AURELIO  ?

Bispo de Valenta".

 

     Assinou o nome com um rasgo de pena e ficou um momento a perscrutar a carta, pensando se não teria dito algo de menos ou de mais — e se havia ali palavras que pudessem tocar o coração de uma mulher como aquela.

     As mulheres constituíam o problema perene do clero. Mais mulheres do que homens se ajoelhavam na janela de Judas do confessionário. Suas confidencias eram mais francas e mais perturbadoras para o celibatário que se sentava atrás dela. Às vezes, procuravam usar o sacerdote como substituto de um marido indiferente e, o que não ousavam sussurrar no leito conjugal, o diziam livremente e, não raro, grosseiramente, no ataúde situado a um lado da igreja. Por meio das mulheres, podia-se chegar aos homens — e às crianças também. Mas freqüentemente o velho Adão que dormia debaixo da batina despertava perigosamente diante das confidencias sussurradas de uma adolescente ou da insatisfação de uma matrona.

     Aurélio, bispo de Valenta, era bastante homem, e viu prontamente a paixão que se agitava atrás da polida delicadeza da Condessa de Sanctis. Ela, também, pertencia ao seu rebanho, mas a discrição a colocava fora do alcance de seu cajado, e ele, agora, perguntava a si próprio se Blaise Meredith, o homem frio, sofredor, acaso não poderia aproximar-se mais dela.

     Ao Dr. Aldo Meyer escreveu em termos inteiramente diferentes:

    

     "... Monsenhor Blaise Meredith é um homem sensível e liberal a quem acabei por querer como a um irmão.

     Sua missão, de investigar a vida de Giacomo Nerone, é uma missão difícil, mas tenho a esperança de que o senhor talvez possa colocar à disposição dele o seu considerável conhecimento da situação local. Contudo, é possível que o senhor, não sendo católico, prefira não imiscuir-se nesse delicado assunto. Permita-me que lhe assegure que nem Monsenhor Meredith nem eu desejaríamos importuná-lo com indagações.

     Desejo, no entanto, pedir-lhe um obséquio pessoal. Monsenhor Meredith é um homem muito doente. Sofre de um carcinoma no estômago e, segundo o curso normal dos acontecimentos, pouco tempo terá de vida. É reservado, como o são os ingleses, mas dotado de bastante coragem, e receio que trabalhe excessivamente e passe por maiores sofrimentos do que os necessários.

     Apreciaria muitíssimo, pois, se o senhor consentisse em agir como seu médico conselheiro durante a estada de Monsenhor em Gemello Minore, fazendo todo o possível para cuidar dele. Encarregar-me-ei de fornecer-lhe quaisquer remédios de que o senhor possa necessitar, responsabilizando-me, pessoalmente, por todos os gastos de consulta e tratamento.

     Recomendo-o, da maneira mais calorosa, à sua caridade e zelo profissional... "

    

     "Basta!", pensou Sua Excelência Reverendíssima. "A gente não dirige homílias aos sefarditas. Eles nos compreendem tão bem quanto nós os compreendemos. São teocratas, como nós — e, como nós, absolutistas. Conhecem o significado da caridade e fraternidade; e, não raro, as praticam melhor do que nós. Foram perseguidos, como nós. Têm os seus fariseus, como nós — Deus nos proteja! — mesmo nos postos mais elevados. Meredith, meu irmão, estará em boas mãos."

     A terceira carta era a mais difícil de todas, e Sua Excelência Reverendíssima ponderou longo tempo antes de escrever, num belo cursivo, o sobrescrito:

     "Rev.mo Padre Anselmo Benincasa

     Pároco da Igreja de Nossa Senhora das Sete Dores

     Gemello Minore

     Diocese de Valenta

    

     Prezado e Reverendíssimo Padre:

     Escrevemos para informá-lo da chegada à sua paróquia do Reverendíssimo Monsenhor Blaise Meredith, auditor da Sagrada Congregação dos Ritos, designado como promotor da fé na causa ordinária para a beatificação do servo de Deus Giacomo Nerone. Rogamos-lhe conceda a Monsenhor Meredith fraternal hospitalidade, bem como toda a assistência possível, a fim de que ele possa levar a cabo a sua missão canônica.

     Estamos cientes da pobreza e da exigüidade de suas acomodações e, por conseguinte, aceitamos um convite da Condessa de Sanctis para hospedá-lo durante sua estada na paróquia. Sabemos, todavia, que Vossa Reverendíssima não se considerará dispensado, devido a isso, das cortesias devidas a um irmão sacerdote que é também emissário da corte diocesana.

     Estamos há muito informados, Reverendíssimo Padre, através de relatórios que nos chegaram às mãos, da triste situação dos assuntos espirituais em sua paróquia, bem como de certos escândalos referentes à sua própria vida privada. Dentre tais escândalos, não é menor o que concerne à sua longa associação com a viúva Rosa Benzoni, que age como governanta em sua casa.

     Normalmente, uma tal associação nos levaria a instituir um processo canônico contra Vossa Reverendíssima, mas abstivemo-nos desse passo drástico na esperança de que Deus possa conceder-lhe a graça de ver o seu erro e corrigi-lo, para que os últimos anos de seu sacerdócio possam ser gastos em penitência, dignidade e serviço devido ao seu rebanho.

     É bem possível que — Deus assim o permita! —, devido à sua idade avançada, essa associação possa ter perdido o seu caráter carnal, e que possamos estar dispostos a permitir que Vossa Reverendíssima conserve essa mulher a seu serviço, em pagamento das dívidas que com ela contraiu. Mas essa tolerância de nossa parte não o dispensa do dever moral de reparar o escândalo e dedicar-se, com renovado vigor, aos interesses de sua gente.

     Sugerimos que a presença de um sacerdote visitante em sua paróquia possa proporcionar-lhe a oportunidade de aconselhar-se com ele e pôr sua consciência em ordem sem demasiado embaraço.

     Nossa paciência data de há muito e interessamo-nos por sua pessoa como nosso filho em Cristo, mas não podemos ignorar a triste situação das almas que se acham a seu cargo. Não se pode tentar Deus durante demasiado tempo. Vossa Reverendíssima já é idoso e o tempo se torna perigosamente curto.

     Lembramo-nos diariamente de Vossa Reverendíssima em nossas preces, e o recomendamos à padroeira de sua igreja, Nossa Senhora das Dores.

     Seu, fraternalmente, em Cristo

     AURELIO ?

Bispo de Valenta".

    

     Depôs a pena e ficou longo tempo a fitar o encorpado papel timbrado e a escrita que se estendia por sobre ele, em linhas rápidas e disciplinadas.

     O caso do Padre Anselmo era um símbolo de todos os males que afligiam a Igreja mediterrânea. Não se tratava de caso isolado. Era tão comum a ponto de ter-se tornado corriqueiro nas regiões pobres do sul; mas não era demasiado raro no norte, tampouco. Em seu contexto local, constituía um pequeno escândalo, pois a Igreja se baseava na idéia de pecado e sua máxima mais antiga era a de que o hábito não faz o monge, nem a tonsura, um homem religioso. Mas no contexto de uma Igreja nacional, num país em que o catolicismo constituía a influência dominante, aquilo indicava graves defeitos, bem como uma necessidade singular de reforma.

     Um homem como Anselmo Benincasa era produto de um seminário dotado de um corpo docente incompetente, que adotava um sistema antiquado de educação. Ele chegara à ordenação apenas meio educado, meio disciplinado, sem que sua vocação tivesse sido inteiramente comprovada. Surgira como novo sacerdote num país onde havia demasiados sacerdotes e insuficiente espírito sacerdotal — e assumira imediatamente a direção de uma outra comunidade desalentada. O estipêndio que recebia da diocese era puramente nominal. Com a rápida desvalorização da moeda, não lhe daria para comprar um pedaço de pão. E a hierarquia ainda se apegava à confortável ficção de que aquele que pregava o Evangelho devia viver segundo o Evangelho — sem que se importasse de definir com bastante clareza de que modo devia fazê-lo. Ele não tinha pensão, e não havia instituição alguma que o recebesse quando chegasse à senilidade, de modo que era perseguido pelo medo constante da velhice e pela tentação incessante da avareza.

     Quando alguém como Gemello Minore chegava a uma aldeia, representava outra boca que devia ser alimentada. E, se abria demais a boca, corria o risco de passar fome. Assim, era obrigado a acomodar-se, a submeter-se ao patrocínio do proprietário rural do lugar, ou estabelecer um compromisso infeliz com o seu rebanho miserável. Em muitas comunidades calabresas havia falta de homens. A emigração de antes da guerra e o recrutamento durante a conflagração as tinham privado deles, e as mulheres viviam, anos seguidos, separadas de seus maridos, enquanto as moças casadouras eram obrigadas a aceitar amantes temporários ou maridos muito mais velhos do que elas. Mas b sacerdote lá estava. O sacerdote era pobre e dependia dos pobres para ter a sua roupa lavada, a sua comida cozida, a sua casa limpa e sua bandeja de esmolas suficientemente cheia para que pudesse comprar sua pasta da semana seguinte.

     Não era de estranhar, pois, que ele, não raro, sucumbisse, e que o bispo preferisse deplorar tal lapso como fornicação, em vez de arrastá-lo a um tribunal para um escândalo público de concubinato.

     Tanto quanto o homem, o sistema é que tinha culpa disso, e os reformadores, tais como Aurélio, bispo de Valenta, deparavam com árduas dificuldades para mudá-lo, sobrecarregados como estavam com os pecados históricos de uma Igreja feudal. A solução seria: menos e melhores sacerdotes, dinheiro para atender ao menos às necessidades básicas de uma vida independente das contribuições dos fiéis, pensões para a velhice e para os enfermos, melhor educação nos seminários e uma seleção mais rigorosa dos aspirantes às ordens sagradas. Mas faltava dinheiro, os preconceitos eram fortes e homens como Anselmo Benincasa demoravam muito tempo para morrer, enquanto os jovens criados nas aldeias eram ignorantes e incapazes.

     Um bispado como o de Valenta era pobre e obscuro. Roma era rica, distante e preocupava-se com outros problemas — e uma solicitação de fundos especiais para atender a reformas tendenciosas era friamente recebida pelos cardeais, administradores do patrimônio de Pedro.

     Assim, Anselmo Benincasa permaneceu em Gemello Minore e Sua Excelência, o bispo de Valenta, ficou com o problema de decidir o que fazer com ele ou, pelo menos, de que maneira salvar-lhe a alma imortal.

     Dobrou as cartas, colocou-as nos envelopes, lacrou-as com o selo de sua diocese e tocou a campainha, para que um emissário as levasse imediatamente, de motocicleta, a Gemello Minore. Exercia havia muito tempo o sacerdócio e compreendia que a verdade pode permanecer por cem anos estéril, até que lance raízes no coração de um homem.

    

     Na véspera de sua partida para Gemello Minore, Blaise Meredith sentiu-se mais solitário do que nunca em toda a sua vida.

     A breve e fraterna comunhão entre ele e o bispo estava prestes a interromper-se. Tinha de intrometer-se entre estranhos, como perseverante inquisidor a desenterrar fatos impopulares. Seus terrores noturnos, tinha de suportá-los sozinho. Não podia mais fazer confidencias, mas apenas procurar obtê-las de outros. Teria de trocar a elegante intimidade dos domínios do bispo pela pobreza e o desalento de uma aldeia de montanha, onde havia pouca reserva até mesmo para o nascimento, a morte e o ato de amar.

     Ele seria hóspede de uma mulher — e ao contrário de muitos de seus colegas, não tinha talento para lidar com o sexo oposto. Era celibatário por profissão e solteirão por disposição, e não lhe agradavam os esforços que teria de fazer para manter conversas triviais diante de xícaras de café. Suas energias se esgotavam rapidamente e era-lhe insuportável a idéia de ter de desperdiçá-las na vulgaridade de relações domésticas.

     Assim, enquanto os trabalhadores dormiam sob as oliveiras e Sua Excelência Reverendíssima escrevia em seu gabinete, ele entregou-se à indulgência final de um passeio em torno das plantações. Tirou a batina, o colarinho, enrolou as mangas da camisa e deixou que o sol brilhasse sobre seus braços magros, pálidos; depois, seguiu pelo caminho que conduzia à represa e aos limites das terras do bispo.

     Debaixo das árvores, o ar estava fresco e o caminho achava-se salpicado de sol, mas, quando penetrou no vale, onde a represa cintilava entre as encostas cinzentas da colina, o calor atingiu-o em cheio, como a lufada de um forno. Ao olhar em torno, viu-o erguer-se das rochas de tufo em ondas tremeluzentes. Hesitou por um momento, lamentando ter deixado o abrigo das plantações, mas, envergonhado de sua fraqueza, caminhou resolutamente, circulando a represa, até a encosta que a retinha.

     No declive situado atrás do caminho, os trabalhadores dormiam, as cabeças apoiadas em suas jaquetas, à sombra das rochas salientes. Seus corpos, curtos e trigueiros, achavam-se escarrapachados, lassos como bonecos de trapos, e Meredith, que havia muito estava alheio ao sono, sentiu inveja daquela ventura.

     Eram pobres, mas não tão pobres como muitos. Tinham trabalho, sob a direção de um senhor benevolente. Suas roupas eram manchadas, empoeiradas e usavam tamancos em lugar de sapatos, mas podiam dormir tranqüilamente e voltar para casa com dignidade, pois tinham trabalho e pasta para a mesa, e vinho e azeite para comer com ela. Numa terra pobre, com três milhões de desempregados, isso já era, com efeito, muito.

     À beira do desaguadouro, o caminho bifurcava-se em dois sendeiros de cabras, um que conduzia ao leito do rio e outro que levava ao dorso da colina. Meredith escolheu o caminho de cima, esperando vagamente que, do topo, pudesse descortinar a paisagem circunjacente. A picada era acidentada e fragosa, mas seguiu com sombria obstinação, como para desafiar a debilidade de seu corpo definhado pela doença e afirmar que era ainda um homem.

     A meio caminho da subida viu-se num pequeno platô, onde as paredes do rochedo formavam uma reentrância, como uma pequena caverna. Havia ali sombra, e ele sentou-se, agradecido, para descansar um pouco. Quando seus olhos se refizeram do brilho do sol, viu alguns desenhos grosseiros talhados na base da parede, reticulada à antiga maneira romana e, acima deles, outras figuras gravadas na pedra natural. Levantou-se e pôs-se a examiná-los mais detidamente, seguindo os traços esculpidos até o fim da reentrância rochosa.

     As sombras, ali, eram mais profundas, e só decorridos alguns instantes conseguiu notar uma pequena prateleira talhada na pedra, sobre a qual havia alguns cravos-de-defunto murchos e folhas desfeitas de videiras. Atrás das oferendas havia uma peça de mármore, tão velha, manchada e gasta pelo tempo que, a princípio, não percebeu o que era aquilo. Depois, viu que era parte da base de uma velha estátua, de contorno mais ou menos cúbico, da qual saía a forma crua de um falo.

     Nos tempos antigos, quando os montes eram cobertos de florestas, antes que as tribos famintas os desnudassem, em busca de lenhas e de lugares em que pudessem construir suas habitações, aquela caverna devia ter sido o santuário de um deus dos bosques. Agora, tudo o que restava dele era o símbolo da fertilidade; mas as flores eram do século XX — a primeira oferta da primavera a um velho e desacreditado deus.

     Meredith ouvira falar, com bastante freqüência, das superstições que ainda persistiam entre a gente da montanha (de encantamentos, bruxarias, filtros de amor e estranhos ritos), mas aquela era a primeira vez que via a prova com os próprios olhos. O bloco de mármore estava manchado e descolorido, mas o falo era branco e polido devido, talvez, a contatos freqüentes. Será que as mulheres ali iam, como costumavam fazer em outros tempos, à procura de uma garantia contra a esterilidade? Será que os homens ainda adoravam o símbolo de sua dominação? Haveria, ainda, entre aquela gente montanhesa, a esperança semiconsciente de que Pã pudesse fazer o que o novo deus não havia feito: tornar de novo virgem a terra violada, fecunda de relva e de árvores?

     A adoração do princípio masculino estava profundamente enraizada entre aquela gente. Os homens jovens eram arrogantes como galos novos, enquanto as moças se apresentavam pelo menos em sua suposta virgindade para inspeção e admiração. Quando casavam, levavam suas mulheres à exaustão através de sucessivas maternidades e incentivavam os filhos a uma precoce masculinidade, ao mesmo tempo em que, mediante pancadas, obrigavam as filhas à castidade. Numa terra estéril, eram os últimos símbolos da fecundidade e os primeiros símbolos de alegria para uma mulher cujo fim seria uma triste servidão numa miserável choça de montanha.

     Talvez fosse por isso que o símbolo cristão correlato não era o Cristo agonizante, mas a fecunda Madonna com o Bambino a sugar-lhe os seios de camponesa.

     Blaise Meredith sentia-se curiosamente fascinado pelo grosseiro símbolo de pedra e sua ativa sobrevivência a menos de uma milha de distância dos domínios do bispo. Talvez residisse ali a explicação de uma grande parte da anomalia da Igreja mediterrânea: a poderosa crença no sobrenatural, a espessa camada de superstição, o impetuoso zelo pelos santos latinos e a igualmente impetuosa rejeição dos comunistas e dos anticlericais. Talvez fosse aquela a razão pela qual os frios liberais e os céticos urbanos exerciam tão pouca influência sobre aquela gente — a razão pela qual um misticismo exaltado era a única resposta ao frenesi básico que despertava em seus corpos trigueiros e mal alimentados. Estaria ali a verdadeira explicação da morte de Giacomo Nerone, que sucumbira sob os cascos do deus caprino?

     E como poderia Blaise Meredith, o legalista de Roma, penetrar na mente daquela gente reservada que era velha quando Roma era jovem e que se havia aliado ao deus negro e feroz da Cartago de Aníbal?

     Apesar do calor, Meredith sentiu, de repente, frio. Afastou-se da pequena imagem obscena e saiu para o sol.

     Uma velha, quase dobrada em duas sob uma carga de galhos secos e de madeira apanhada no rio, subia com dificuldade a trilha, em direção ao topo do monte. Quando passou ao seu lado, Meredith ergueu a mão e saudou-a com o seu italiano preciso de Roma. A anciã voltou-se e fitou-o com seus olhos vagos e baços, passando por ele sem proferir uma palavra.

     Blaise Meredith ficou um momento a fitá-la; depois, voltou o rosto na direção do vale. Sentiu-se velho, cansado e estranhamente receoso de ir para Gemello Minore.

    

   Anne Louise de Sanctis despertou de sua sesta num estado de espírito de negra depressão. Ao lembrar-se de que Aldo Meyer viria jantar na villa seu estado de espírito tornou-se ainda mais sombrio — e quando a carta de Sua Excelência Reverendíssima lhe chegou às mãos, seus nervos quase cederam por completo. Aquilo era demasiado para ela. Não podia arrostar a presença daqueles intrusos na intimidade de sua casa. Até mesmo o enfado era preferível ao esforço que teria de fazer para ser-lhes agradável.

     Quando se reuniram, à tarde, para o chá, Nicholas Black notou logo o seu mau humor e, de um modo bastante sutil, sugeriu-lhe um remédio imediato.

     — Você está cansada, cara — disse-lhe ele, solícito. — É o calor... a febre da primavera. Por que não me permite extirpá-la com um exorcismo?

     — Oxalá você pudesse fazê-lo, Nicki!

     — Você me permitirá?

     — De que modo? Ainda tenho de agüentar a presença de Meyer. E, amanhã, chegará esse clérigo... — Sua voz adquiriu um petulante tom infantil: — Oh, quem me dera que eles me deixassem em paz!

     — Você tem a mim, cara — disse ele, gentil. — Eu os distrairei. Não deixarei que a aborreçam. Agora, por que não me permite que eu lhe faça uma massagem facial e lhe prepare um penteado para o jantar?

     Ela animou-se imediatamente.

     — Eu o adoraria, Nicki. É a coisa de que sinto mais falta aqui. Sinto que estou me convertendo numa velha megera.

     — Nunca, cara! Mas um chapéu novo e um novo penteado são a melhor cura para o desânimo. Onde é que o faremos?

     Ela hesitou por um momento; depois respondeu, com ar afetadamente casual:

     — Acho que o meu quarto é o melhor lugar. Tenho tudo lá.

     — Vamos, então! Mãos à obra. Dê-me uma hora e eu a deixarei arrebatadora como qualquer beldade romana.

     Tomou-lhe a mão com uma galanteria teatral e conduziu-a para cima, rumo ao quarto barroco, a sorrir intimamente de sua fácil vitória. Se houvesse segredos que se pudessem saber acerca da condessa, ele os descobriria ali, com o tempo, paciência e a perseverante habilidade de suas próprias e delicadas mãos.

     Quando a porta se fechou atrás deles, Black entregou-se à pequena cerimônia assexuada de ajudá-la a tirar o vestido e envolvê-la num négligé, fazendo com que se sentasse numa cadeira revestida de brocado, diante do toucador, onde se enfileiravam, em frascos de cristal, os produtos de toalete. Ela aquiesceu, obedientemente, fazendo observações coquetes destinadas a sublinhar a intimidade da ocasião. O pintor sorria, brandia suas toalhas e deixava-a tagarelar satisfeita. Tinha um talento de camaleão para identificar-se com qualquer situação, mesmo que seus pensamentos e planos corressem em sentido oposto. Era, naquele momento, o parrucchiere, o confidente de madame, testemunha de coisas negadas até mesmo a amantes, contador de pequenas histórias escabrosas das quais madame não precisava corar, já que os valets são refratários às melhores e pretensas virtudes.

     Penteou-lhe os cabelos para trás, limpou-lhe a maquilagem do rosto, cobriu-lhe a pele cuidadosamente com creme e começou a massagem com dedos firmes mas suaves, partindo do pescoço flácido e subindo até os cantos da boca descontente. A princípio, ela mostrou-se empertigada e cautelosa, mas logo se rendeu ao toque rítmico e hipnótico e, decorrido um momento, pôde notar a lenta sensualidade despertando nela. Dava-lhe satisfação lisonjeá-la, enquanto ele mesmo permanecia impassível — e, à medida que trabalhava, pôs-se a falar no sinuoso idioma dos salões:

     — Tem uma bela pele, cara. Flexível como a de uma jovem. Certas mulheres perdem isso muito depressa. Você é uma das afortunadas... como Ninon de Lenclos, que mantinha o segredo da juventude eterna... Essa foi uma história muito estranha. Quando ainda era a sensação de Paris, aos sessenta anos, seu próprio filho fez-lhe a corte sem saber quem era. Apaixonou-se por ela e suicidou-se, ao saber a verdade... — Esboçou um sorriso: — Você é feliz por não ter tido filhos!

     Ela deu um suspiro complacente:

     — Sempre desejei ter filhos, Nicki. Mas... talvez tenha sido bom não os ter tido.

     — Mas ainda podia tê-los, não? Ela riu — um risinho juvenil.

     — Precisaria de uma certa ajuda, não acha?

     — Às vezes, penso por que razão não tornou a casar-se... por que razão uma mulher atraente prefere enterrar-se nas selvas da Calábria. Você não é pobre. Poderia viver onde quisesse... em Londres, Roma, Paris.

     — Já estive nesses lugares, Nicki. Ainda vou regularmente a Roma, como você sabe. Mas este é o meu lar. Volto sempre para cá.

     — Não respondeu à minha pergunta, cara.

     Suas mãos, hábeis, ocultavam a malícia da pergunta. Enquanto lhe friccionava as faces e as leves rugas em torno dos olhos, ele podia sentir a tensão que se apoderava dela, ao procurar encontrar uma resposta.

     — Já fui casada, Nicki. Já amei. Tive também certos casos... bem como propostas. Nenhuma delas me satisfez plenamente. O caso é simples, como vê.

     Mas não era simples, ele bem o sabia; — aquela mulher era mais complexa do que qualquer outra que conhecera... Mas ela foi suficientemente astuta para mudar de pronto o lance, contra ele:

     — Você tampouco jamais casou, querido. Por quê?

     — Jamais precisarei de casamento — respondeu, em tom casual. — Sempre consegui obter, fora dele, o que desejava.

     — Ah, vocês, solteirões alegres!

     — Se não houvesse solteirões alegres, cara, não existiriam viúvas alegres: apenas viúvas frustradas.

     — Você jamais se sentiu frustrado, Nicki?

     Ele sorriu secretamente diante da nova nota queixosa que havia na voz da condessa. "Estranho", pensou, "como aquelas palavras surgem em todas as ocasiões; como empregam o jargão freudiano como se ele fosse uma resposta para o supremo enigma do universo. Jamais se deterioram. Jamais se irritam com um homem que não podem possuir. Jamais receiam estar demasiado velhas para topar uma parada. São apenas frustradas. Eu também o sou, de certo modo, mas o diabo me carregue se permitir que ela o saiba!"

     — Em sua companhia, cara, como é que um homem poderia sentir-se frustrado?

     Num gesto como que de gratidão por aquele cumprimento, ela estendeu o braço e tomou-lhe a mão, ainda lambuzada de creme, e levou-a aos lábios. Depois, sem qualquer advertência, puxou-a para baixo e colocou-a na curva nua do seio, sob o négligé. Apanhado de surpresa, ele reagiu com aspereza:

     — Não faça isso!

     Então, numa atitude que ele não esperava, ela pôs-se a rir.

     — Pobre Nicki! Pensava que eu não sabia?

     — Não sei do que você está falando! — exclamou ele, a voz transtornada pela irritação.

     Mas Anne Louise de Sanctis ainda ria.

     — Que você é diferente, querido. Que você, na verdade, não se interessa de modo algum pelas mulheres. Que você está completamente transtornado pelo jovem Paolo Sanduzzi. É verdade, não é mesmo?

     Ele quase chorava de raiva ali parado com a toalha nas mãos, a fitar por cima da cabeça dela os amorini dourados que havia no teto. Ela estendeu de novo a mão e o reteve. Deixou de rir e a sua voz tornou-se grave, quase acariciante:

     — Não precisa ficar zangado, Nicki. Você não deve ter segredos para mim!

     Ele desvencilhou-se dela, impetuoso:

     — Não há segredo algum, Anne. Gosto do rapaz. Penso que podia fazer muito por ele. Gostaria de tirá-lo daqui da aldeia e dar-lhe uma educação e um começo de vida decente. Não tenho muito dinheiro, Deus o sabe, mas estaria disposto a gastar nisso cada centavo de que dispusesse.

     — E o que desejaria em troca? — indagou ela, a voz ainda suave, mas cheia de mal velada ironia.

     Ele respondeu com estranha e patética dignidade:

     — Nada. Absolutamente nada. Mas não espero que acredite nisso.

     Durante um longo momento, ela o fitou com olhos vivos. Depois, disse-lhe:

     — Acredito em você, Nicki. E acho que poderei ajudá-lo a conseguir o que pretende.

     Pensativo, ele ergueu a cabeça e ficou a olhá-la, procurando inutilmente decifrar-lhe os pensamentos por trás dos lábios sorridentes, sutis.

     — Tenho minhas próprias razões, Nicki. Mas sou sincera no que digo. Você me ajuda a lidar com esse tal sacerdote e eu o ajudo quanto ao que se refere a Paolo Sanduzzi. Negócio feito?

     Ele curvou-se e beijou-lhe a mão em abjeta gratidão, enquanto ela lhe desmanchava o cabelo, com o ar meio maternal, meio desdenhoso, que adotava para com ele.

     Era uma aliança de interesses, e bem o sabiam. Mas mesmo inimigos sorriem uns para os outros, através da mesa em que está sendo discutido um tratado. Assim, quando o Dr. Aldo Meyer chegou para o jantar, a condessa estava radiante, enquanto Nicholas Black se mostrava tão deferente como um pajem a serviço de uma bem-amada senhora.

    

     Quanto a Meyer, estava cansado e pouco disposto ao convívio social. Passara toda a tarde junto de Martino, o ferreiro, aguardando um segundo e, possivelmente, fatal ataque, que bem poderia seguir-se ao primeiro. Já era quase noite quando decidira que seria mais seguro remover o paciente para sua própria casa — e, então, fora obrigado a ouvir as lamentações da esposa, que acabara de perceber a precária situação em que se encontrava sua família. Teve de assegurar que não acreditava num desenlace; que a doença não duraria muito, que alguém — talvez a condessa — se encarregaria da alimentação da família, que ele próprio combinaria com os moradores da aldeia um meio de assistência, que procuraria encontrar alguém que, sem cobrar muito, mantivesse a ferraria em funcionamento.

     Quando conseguiu escapar, já havia hipotecado vinte vezes sua alma e sua reputação, e estava mais convencido do que nunca da impossibilidade de reforma entre aquela gente ignorante, educada durante séculos para o feudalismo, que beijaria a mão do mais mesquinho barão, contanto que ele lhes mostrasse um pedaço de pão e lhes oferecesse uma ilusão de segurança contra os atos de Deus e dos políticos.

     Ao chegar a sua casa, encontrou a carta do bispo à sua espera — e aquilo era um outro peso acrescentado ao fardo das irritações do dia. Sua Excelência Reverendíssima não só solicitava os seus préstimos de médico, que seriam mais bem-pagos do que aquilo que habitualmente recebia, mas, ao mesmo tempo, sugeria muito mais: uma cortesia que poderia converter-se em pesada incumbência. Aldo Meyer, o judeu liberal, tinha saudável desconfiança do clérigo absolutista cujos predecessores haviam expulsado seu povo da Espanha, dando-lhes inquieto refúgio nos guetos do Trastevere. Mas, de bom ou de mau grado, o inglês viria e, sob seu juramento de esculápio, Meyer seria obrigado a servi-lo. Só esperava, perversamente, que não fosse seduzido, deixando-se levar à amizade.

     Não havia amizade em suas relações com Anne Louise de Sanctis. Era seu médico à falta de outro melhor. Era seu convidado à falta de outras pessoas educadas que animassem sua mesa de jantar. De vez em quando, era o porta-voz dos aldeões em seus pedidos à padrona. Mas, além dessas estreitas definições, havia entre eles uma zona de muda desconfiança e oculta animosidade.

     Ambos haviam conhecido Giacomo Nerone. Cada qual, por motivos opostos, tinha estado envolvido em sua morte. Meyer sabia muitíssimo bem a natureza da doença de sua paciente, embora jamais tivesse convertido o diagnóstico em palavras. Anne Louise de Sanctis sabia dos malogros de seu médico e o aguilhoava com eles, pois ele também conhecia muito bem os seus malogros de mulher. Mas, como só se encontravam raramente, iam tocando as suas relações para a frente dentro de razoável polidez e, de um certo modo desabrido, um era grato ao outro: Meyer, pelo bom vinho e a boa comida; a condessa, pela oportunidade de vestir-se e jantar com um homem que não era nem palerma, nem clérigo.

     Mas, àquela noite, havia algo de novo no ar. A presença de Nicholas Black e a vinda do emissário romano emprestavam à ocasião um caráter novo e levemente sinistro. Enquanto se barbeava e se vestia, à luz amarela de um lampião de querosene, Aldo Meyer se preparava para uma noite desagradável.

     Ao primeiro encontro, seus receios pareceram-lhe injustificados. A condessa estava bem-vestida, calma, encantadora. Parecia verdadeiramente satisfeita de vê-lo. No sorriso do pintor não havia sutilezas sardônicas, e conversaram fácil e amavelmente sobre os assuntos que surgiam.

     Durante o aperitivo falaram do tempo, dos costumes locais e da decadência da escola de pintura napolitana. À sopa, já haviam subido para Roma, e Black narrou com pormenores os escândalos mais agradáveis da Via Margutta, e o preço que os críticos estavam cobrando por uma nota favorável. Quando foi servido o peixe, já tinham saído do Vaticano e se achavam entre os políticos, discutindo as perspectivas das próximas eleições. O vinho soltava a língua do médico, que se achava entregue a uma viva dissertação:

     — ... a última vez em que os democratas-cristãos surgiram através do confessionário e da ajuda do dólar americano. A Igreja ameaçava de condenação eterna todos os católicos que votassem a favor dos comunistas, e Washington agitava, por outro lado, montes de notas de banco. O povo queria paz e pão a qualquer preço, e o Vaticano ainda era a única instituição na Itália que gozava de estabilidade e crédito moral. Assim, dividiram entre eles as urnas. Mas ainda possuímos o mais poderoso partido comunista fora da Rússia e uma singular divergência de objetivos entre os que votaram sob a bandeira do Vaticano. Que irá acontecer, desta vez? Os democratas manter-se-ão firmes, naturalmente, mas perderão votos numa oscilação geral para a esquerda. Os monarquistas ganharão, de certo modo, no sul, enquanto os comunistas permanecerão mais ou menos onde estão... constituindo um grande núcleo de descontentamento.

     — Serão devidas a quê as perdas dos democratas-cristãos? — indagou, com vivo interesse, Nicholas Black.

     Meyer encolheu, expressivamente, os ombros.

     — Antes de mais nada, à própria situação. Não existem reformas espetaculares, nenhuma diminuição perceptível do número de desempregados. Há equilíbrio na indústria, mantido pela infusão de dinheiro americano e pela ajuda do Banco do Vaticano. Há um aumento na renda nacional, que mal se reflete no padrão de vida da imensa maioria da população. Mas isso é o bastante para manter os financistas razoavelmente felizes e os votos estáveis para um outro período governamental. A segunda razão é que o próprio Vaticano perdeu o seu crédito devido à sua identificação com um partido. Eis aí a dificuldade, quando se trata de um papa político. Quer sempre as coisas de ambas as maneiras: o reino do céu e a maioria no parlamento terreno. Na Itália, pode obtê-lo... em troca de um preço — e esse preço é o anti-clericalismo entre o seu próprio rebanho.

     — Isso me interessa — disse Black, apanhando a ponta da afirmação. — Por toda a Itália a gente encontra mulheres que comungam todos os dias e homens que usam distintivos de uma dúzia de irmandades e, não obstante, todos repetem a velha frase: "Tutti i preti sono falsi", todos os padres são falsos. É divertido, mas tremendamente ilógico.

     Meyer riu e distendeu as mãos, com dissimulado desespero.

     — Meu caro rapaz! É a coisa mais lógica do mundo. Quanto mais sacerdotes existem, mais os seus defeitos se revelam. Um governo clerical é como um governo de saias... mau para ambas as partes. Não creio que todos os sacerdotes sejam falsos. Tenho encontrado alguns extraordinariamente bons. Mas, apesar de tudo, sou anticlerical. O latino é, no íntimo, um lógico. Está disposto a admitir que o Espírito Santo guia o papa em questões de fé e de moral; mas não engole a proposição de que fixa também o câmbio do dia.

     — Por falar em sacerdotes — interveio Anne Louise de Sanctis —, estou pensando como será Monsenhor Meredith.

     Aquilo era macio como manteiga, mas Aldo Meyer compreendeu a malícia que encerrava. Eles o haviam dirigido como carneiro de tópico para tópico — e agora o tinham encurralado e o observavam, a sorrir com sutil ironia, para ver o que faria para escapar. Que fossem todos para o diabo, pois! Não lhes daria satisfação alguma. Livrou-se da pergunta com um encolher de ombros:

     — A senhora condessa se refere ao nosso inquisidor romano? Isso não me diz respeito. Ele vem e vai-se embora. Nada mais. No momento, tenho outros problemas... a respeito dos quais gostaria de conversar com a padrona.

     — Que espécie de problemas? — indagou a condessa, contraindo o sobrolho ante a maneira pela qual o médico continha a sua zombaria.

     — Martino, o ferreiro, teve hoje um ataque. Está paralisado, incapacitado. A família vai precisar de ajuda. Pensei que a senhora talvez pudesse dispor de algum dinheiro... bem como tomar duas de suas filhas como suas empregadas. Teresina e a jovem Rosetta já têm idade suficiente para começar a trabalhar.

     — Naturalmente. Isso é o mínimo que posso fazer. Tenho pensado muito, ultimamente, nos jovens. Nada há, aqui, para eles e, se tentam emigrar, acabam nas ruas de Reggio ou de Nápoles. Pensei que deveríamos pôr em prática alguns de seus planos, doutor, e criar trabalho para eles aqui.

     — É uma boa idéia — respondeu Meyer, cauteloso, enquanto pensava: "Aonde, com os diabos, quererá ela levar-me? "

     Mas as palavras seguintes da condessa o disseram de maneira bastante clara.

     — Paolo Sanduzzi, por exemplo. Nicki me disse que o rapaz é inteligente e tem boa vontade. Parece-me um desperdício que fique a perambular a esmo por aí. Vou trazê-lo para cá e o porei a trabalhar com os jardineiros. Sua mãe, certamente, gostará de ter algum dinheiro a mais...

     Agora, sim, é que ele estava completamente preso a uma armadilha. Aceitara um favor e tinha, agora, de agüentar a parte desagradável da coisa. Ali estavam todos a sorrir-lhe por cima de seus copos, a desafiá-lo a protestar, fazendo papel de tolo. Ele, porém, sorriu e respondeu, com ar indiferente:

     — Se a condessa pode aproveitá-lo, por que não? Só que teria, naturalmente, de conversar com a mãe dele.

     — Por quê? — perguntou Nicholas Black.

     — Porque ele é menor de idade — respondeu, incisivo, Meyer. — De acordo com a lei, a mãe é ainda responsável por ele.

     O pintor enrubesceu e afundou o nariz em seu copo, enquanto Anne Louise se permitia, no íntimo, um pequeno sorriso ante o seu desapontamento.

     — O senhor poderia pedir a Nina Sanduzzi que me viesse ver amanhã, doutor — disse ela, apenas.

     — Dir-lhe-ei, certamente. Mas ela talvez não queira vir.

     — Estamos dando demasiada importância a camponeses descalços! — observou, de mau humor, Black.

     — Somos uma gente estranha — respondeu, suave, Meyer. — É preciso tempo para que nos compreendam.

     Anne Louise nada disse, limitando-se apenas a fazer um sinal a um criado para que servisse mais vinho e trouxesse o assado. Ela havia atingido o alvo. Meyer aceitaria a coisa... e, se Nicki quisesse cruzar espadas com o judeu, aquilo talvez a divertisse, embora estivesse resolvida a não participar da contenda. As palavras seguintes de Meyer trouxeram-na de volta ao tema.

     — Recebi, hoje, uma carta do bispo. Pede-me para que aja como uma espécie de médico conselheiro junto a Monsenhor Meredith. Ao que parece, está morrendo de carcinoma.

     — Deus do céu! — exclamou Nicholas Black. — Isso é um aborrecimento infernal.

     — Foi você quem o convidou, Nicki — interveio a condessa, irritada. — Não vejo por que razão tem agora de queixar-se.

     — Estava pensando em você, cara. Um doente na casa é um grande fardo.

     — Há lugar em minha casa — disse Meyer, em tom amável. — Não é muito confortável, mas serve.

     — Não quero ouvir falar nisso — atalhou a condessa, áspera. — Ele ficará aqui. Há criados para cuidar dele... e o senhor poderá visitá-lo sempre que houver necessidade.

     — Estava certo de que a senhora diria isso — comentou calmamente Meyer, sem qualquer ironia no olhar.

     Trazido o assado e servido o vinho, comeram um instante em silêncio, cada qual contando os pontos na batalha de interesses que se ocultava sob o tom polido da conversação. Decorrido um momento, a condessa depôs o garfo e disse:

     — Estava pensando que, como um gesto de cortesia para com Sua Excelência Reverendíssima, deveríamos organizar uma recepção para esse homem.

     Nicholas Black, de repente, quase engasgou com o frango:

     — Que espécie de recepção, cara? Uma procissão da Irmandade dos Mortos, das Filhas de Maria e da Sociedade do Santo Nome? Estandartes, velas e acólitos... e o Padre Anselmo a caminhar atrás com a sua suja sobrepeliz?

     — Nada disso, Nicki! — respondeu ela, em tom áspero e peremptório. — Um jantar tranqüilo, amanhã, à noite; nós dois, o doutor e o Padre Anselmo. Nada de complicado; apenas uma reunião simples, para que ele possa conhecer as pessoas da aldeia que melhor podem ajudá-lo.

     Aldo Meyer manteve os olhos estudadamente fixos no prato. De que modo enfrentar uma mulher como aquela? Um jantar simples!... com a padrona a desempenhar o papel de encantadora dama diante de um médico rural e de um rústico sacerdote que se atrapalharia com os talheres, mancharia a toalha de vinho e provavelmente adormeceria diante da sobremesa de frutas, enquanto um monsenhor romano o olharia com tolerante bom humor. E quando viesse coligir as provas, em quem se apoiaria, senão naquela mesma e graciosa senhora, que tão amavelmente lhe concedera o seu quarto de hóspede? Uma reunião simples... oh, sim, muito, muito simples!

     — Bem, doutor, que é que acha?

     Ele levantou a cabeça, frio, sem sorrir:

     — A casa é sua: ele é seu hóspede.

     — Mas o senhor virá?

     — Certamente.

     Ele percebeu que ela se descontraía, e surpreendeu um furtivo triunfo a inundar-lhe os olhos. Quando olhou para Nicholas Black, também o pintor sorria — e Aldo Meyer, subitamente, sentiu-se como se estivesse nu diante das adagas daquele estranho par de intrigantes.

     — Gostaria de saber como é ele — disse Black, sem se dirigir a ninguém em particular.

     — Quem? — indagou a condessa.

     — O nosso monsenhor procedente de Roma. Quando o vi em Valenta, pareceu-me angustiado, macilento, com um ar de toupeira.

     — Ele está morrendo — disse Meyer, sem meias palavras. — Isso costuma estragar o físico de um indivíduo.

     O pintor riu.

     — Mas não o seu gênio, espero. Odeio gente estapafúrdia na hora das refeições. Ele é inglês e isso, por certo, fará alguma diferença. Provavelmente seco, brilhante e monótono, na conversação, como um fosso de água estagnada. Espero que não seja empertigado. Alguns membros do clero romano são muito liberais. Outros gostariam que o mundo fosse recriado para que dispusessem de uma autogênese universal. Estou ansioso por ver de que modo esse monsenhor encarará o caso amoroso de Giacomo Nerone.

     Aldo Meyer voltou-se rapidamente e fitou-o:

     — Que é que sabe a respeito?

     O sorriso do pintor era como um delicado insulto:

     — Não tanto quanto o senhor, talvez. Mas o filho dele é meu empregado, enquanto a amante de Nerone cuida de sua casa. Claro que isso também poderia ser útil. As listas recentes estão cheias de virgens, confessores e rapazes imberbes que acabam de terminar o noviciado. Eles podiam usar um bom penitente como Agostinho ou Margarida de Cortona. Isso os ajuda a enfrentar os pecadores. O senhor sabe... "Há sempre uma maneira de tornar a Deus!" São grandes oportunistas, esses clérigos! Não concorda, doutor?

     — Sou judeu — respondeu Meyer, em tom acerbo e concludente. — Sinto pouca atração pelo catolicismo, mas muito menos ainda pela blasfêmia. Gostaria de mudar de assunto.

     A condessa acrescentou abruptamente:

     — Você já bebeu demais, Nicki!

     O pintor, irritado, enrubesceu, afastou a cadeira e saiu da sala. A um sinal da condessa, o criado também se retirou, e Anne Louise de Sanctis ficou a sós com o seu médico.

     Apanhou um cigarro, empurrou o maço, por cima da mesa, para Meyer e esperou que ele acendesse os cigarros de ambos. Depois, inclinou-se para a frente e soprou-lhe em cheio a fumaça no rosto.

     — Agora, dottore mio, deixe de esgrimir e diga logo o que tem a dizer.

     Meyer abanou a cabeça.

     — Você não me agradeceria, Anne. Não acreditaria em mim.

     — Experimente. Estou num estado de espírito receptivo, esta noite — disse ela, rindo, e estendendo-lhe a mão através da mesa. — Você é um indivíduo obstinado, Aldo mio, e quando lança sobre mim esse seu maldito nariz judeu, faz com que também eu me sinta obstinada. Vamos lá! Diga-me de maneira amável: o que é que se passa comigo e qual é a sua prescrição?

     Ele permaneceu um instante em silêncio, fitando aquele rosto que já fora belo; seus ossos delicados, os músculos já um tanto flácidos, as rugas em torno dos olhos, os traços repuxados pelo descontentamento, a pele cansada sob a cuidadosa maquilagem. Depois, com cínica rudeza, respondeu-lhe:

     — Dar-lhe-ei primeiro a prescrição. Deixe de empanturrar-se de barbitúricos. Deixe de colecionar curiosidades como esse tal Black, que a enche de histórias imundas e, no fim, não lhe proporciona satisfação alguma. Venda isto aqui... ou ponha aqui um administrador, e arranje um apartamento em Roma. Depois, case com um homem que a faça feliz na cama e permita, depois, que você o faça feliz.

     — Sua mente é suja, doutor — observou ela, com um sorriso.

     Aldo Meyer prosseguiu, sério:

     — Vai ficar mais suja ainda. Você não sentiu satisfação no casamento porque era muito jovem e seu marido demasiado descuidado para preocupar-se com isso. Nunca a sentiu, desde então, porque, a cada vez que o tentava, enganava a si própria e ao homem. Isso é bastante comum e bastante curável, contanto que a mulher saiba o que deseja e se prepare para consegui-lo. Mas você nunca fez isso. Enclausurou-se em seu pequeno mundo privado e o encheu com uma espécie de pornografia mental que a deixa louca de desejo mas que, não obstante, não a satisfaz. Você não está na idade para isso, minha cara. É perigoso. Acabará em companhia de gigolôs e de sujeitos como Nicholas Black e, no fim, com uma dose excessiva de sedativos. Você ainda pode ser uma amante. Mas pode ser, também, que se converta numa alcoviteira... como está fazendo com Paolo Sanduzzi.

     Ela ignorou a última arremetida e indagou, sorridente:

     — E como é que vou conseguir um marido? Devo comprar um?

     — Poderia ser pior do que isso — respondeu, grave, Aldo Meyer. — Dada a situação, talvez lhe seja melhor uma transação honesta do que um amor desonesto. Eis aí por que você tiraniza esse seu pintor: porque se acha sob a tirania de um corpo insatisfeito.

     — Algo mais, doutor?

     — Apenas uma coisa — respondeu, calmamente, Aldo Meyer. — Deixe de pensar em Giacomo Nerone. Deixe de procurar atacá-lo através de Nina e do rapaz. Você não é a primeira mulher a destruir um homem porque a rejeitou. Mas se não puder encarar esse homem frente a frente, acabará, no fim, destruindo-se a si própria.

     — O senhor esqueceu a coisa mais importante, doutor. Meyer olhou-a com vivo interesse.

     — E que coisa é essa?

     — Sempre quis ter um filho. Precisava de um filho mais do que o senhor possa supor. Meu marido não podia dar-mo. Giacomo Nerone recusou-se a tal e foi gerar um filho numa camponesa descalça. Eu o odiei por isso. Mas já não o odeio. Se o senhor não se metesse entre mim e a mãe dele, eu poderia fazer alguma coisa pelo rapaz... dar-lhe um bom começo na vida, impedir que se estragasse como o resto dos rapazes da aldeia.

     — Que é que faria com ele, Anne? — indagou, friamente, Aldo Meyer. — Entregá-lo-ia ao seu pintor?

     Sem uma palavra, ela apanhou uma garrafa de vinho que estava pela metade e lançou-lhe o conteúdo ao rosto. Depois, mergulhou a cabeça entre os braços e pôs-se a soluçar convulsivamente. Aldo Meyer enxugou o vinho que lhe escorria do rosto magro, levantou-se da mesa e tocou a campainha para que um criado o conduzisse à porta.

     Quando chegou à sua casa, surpreendeu-se de encontrar ainda a lâmpada acesa e Nina Sanduzzi sentada à mesa, a coser diante de uma pilha de roupa. A presença de Nina, àquela hora, era suficientemente rara, permitindo-lhe que a comentasse. A resposta foi bastante simples:

     — Estive fazendo companhia à esposa de Martino. Ela é tola, mas bondosa, e começa a compreender a situação difícil em que se encontra. Depois de meter a família na cama e verificar se Martino não precisava de nada, pensei em vir esperá-lo aqui, para ver que notícias trazia da condessa.

     Durante um momento sentiu-se tentado a dar vazão aos seus sentimentos, numa explosão irônica; mas lembrou-se de que ela não compreendia ironia e que ficaria apenas preocupada. De modo que respondeu, simplesmente:

     — Boas notícias para Martino. A condessa lhes dará algum dinheiro e tomará Teresina e Rosetta a seu serviço. Com seus ordenados e alguma assistência pública, não ficarão em situação inteiramente má.

     — Ótimo! — exclamou ela, dirigindo-lhe um de seus raros e calmos sorrisos. — Já é um começo. Mais tarde, talvez possamos melhorar a situação. Gostaria de tomar café?

     — Gostaria, obrigado.

     Meyer lançou-se pesadamente a uma cadeira e pôs-se a desatar os cordões dos sapatos. No mesmo instante, ela estava a seus pés a ajudá-lo. Aquilo, também, era novo; jamais assumira antes as funções de uma criada de servir. Meyer nada disse, ficando apenas a observá-la, pensativo, enquanto ela atravessava o aposento e acendia o pequeno fogareiro sob o bule de café. Depois disse, sem ênfase:

     — A condessa também gostaria de vê-la amanhã.

     — Por que quereria ela ver-me?

     — Deseja oferecer trabalho a Paolo, como ajudante dos jardineiros.

     — É essa a única razão? — indagou, curvada sobre o fogareiro.

     — Quanto a você, é. Quanto a Paolo, poderia haver outras razões!

     Ela voltou-se lentamente e fitou-o através da sala mal-iluminada:

     — Que espécie de razões?

     — O pintor inglês gosta dele. A condessa deseja usá-lo de uma maneira que não está ainda clara. Penso, também, que ela gostaria de que o rapaz lá estivesse quando o sacerdote que vem de Valenta iniciasse as investigações a respeito de Giacomo.

     — São como cães que se juntam sobre um monte de esterco — disse, em voz baixa, Nina Sanduzzi. — Não há amor em nada do que fazem. Não irei. O rapaz tampouco irá.

     Meyer assentiu com um movimento de cabeça.

     — Prometi apenas que lhe diria. Quanto ao resto, acho que está sendo sensata. Aquela é uma casa onde existe um toque de loucura.

     — Eles nos usam como se fôssemos animais — disse ela, erguendo os braços num gesto de ira. — Trata-se de uma criança... de um rapaz em quem a masculinidade começa a agitar-se... e querem usá-lo desse jeito.

     — Eu a adverti — lembrou-lhe ele, em tom sereno.

     — Eu sei — respondeu ela, falando enquanto se movia, colocando sobre a mesa as xícaras de café. — E essa é outra das razões por que vim aqui esta noite. Paolo me disse que esteve passeando com a jovem Rosetta junto da Torrente dei Fauno. Fiquei contente. São ambos jovens, e essa é uma boa época para começar o amor, contanto que comece de maneira certa. Acho que Paolo também estava contente. Sei que queria falar, mas não sabia pôr aquilo em palavras. Quis ajudar... mas o senhor compreende como são os rapazes. Jamais acreditaria que sua mãe também pudesse conhecer tais palavras. É difícil quando não há homem na casa, e pensei que talvez... que talvez o senhor pudesse ajudá-lo um pouco.

     O bule, sobre o fogo, transbordou e, enquanto ela correu para ele, Meyer teve tempo de considerar qual seria sua resposta. Deu-a de um modo gentil e hesitante:

     — Um rapaz, em seu primeiro despertar, é como um país desconhecido, Nina. Não há mapas, não existem postes indicadores. Até mesmo a linguagem é diferente. Eu poderia cometer erros e fazer-lhe mal. O que ele sente quanto ao inglês, eu não sei. O que aconteceu entre eles, também não sei. Mas, seja lá o que for, será um motivo de vergonha para o rapaz — assim como ele se sente envergonhado de seu primeiro desejo por uma jovem. Isso é que o torna furtivo como uma raposa, tímido como um pássaro. Você compreende?

     — Compreendo, claro. Mas compreendo também sua necessidade. É um mundo estranho para ele. Seu pai é chamado de santo. Sua mãe é alguém que chamam prostituta. Não procurarei justificar-me a mim, nem ao pai, perante ele. Mas como poderei explicar a coisa maravilhosa que houve entre nós? E como poderia essa coisa ser maravilhosa também para ele?

     — E como poderia eu explicar-lhe — sorriu, tristemente, Meyer — quando eu, tampouco, a compreendo?

     A pergunta que ela lhe fez a seguir despertou-o de seu cansaço:

     — O senhor odeia o rapaz?

     — Santo Deus, não! Que é que a leva a dizer isso?

     — Ele poderia ter sido seu... antes que Giacomo chegasse.

     O rosto de Meyer anuviou-se de velhas recordações.

     — É verdade. Mas jamais odiei o menino. — E a mim, odeia-me?

     — Não. Houve um tempo em que odiei Giacomo e, quando ele morreu, fiquei contente... Mas apenas durante algum tempo. Agora eu o lamento.

     — O bastante para ajudar o filho dele?

     — E você, também, se pudesse. Diga-lhe que me procure, e falarei com ele.

     — Sempre o considerei um bom homem.

     No momento, essa foi a sua única expressão de agradecimento. Depois, dirigiu-se ao fogareiro, apanhou o bule e trouxe-o para a mesa. Encheu uma xícara para ele e outra para si própria e ficou a observá-lo, enquanto ele sorvia, com cuidado, o líquido amargo e escaldante. Quanto à sua própria xícara, bebeu-a de um trago e, em seguida, afastou-se para apanhar, a um canto, os seus tamancos e a velha cesta que continha as suas compras do dia: um saco de carvão, pasta e algumas verduras.

     Feito isso, voltou à mesa e estendeu-lhe um grosso embrulho envolto em fazenda de algodão e atado com uma fita desbotada.

     — Tome — disse-lhe com firmeza. — Não quero mais isto.

     — O que é isso? — indagou ele, perscrutando-lhe o rosto calmo.

     — Os papéis de Giacomo. Em algum lugar, aí no meio, está a carta que lhe escreveu. Talvez esses papéis o ajudem a compreender a Giacomo e a mim. Talvez o auxiliem a ajudar o rapaz.

     Atônito, ele apanhou o embrulho ensebado e conservou-o entre as mãos, como o fizera, certa vez, com a cabeça inerte, com a língua para fora, de Giacomo Nerone. As recordações inundaram-lhe o cérebro, vividas e opressivas: velhos medos, velhos ódios, velhos amores, pequenos triunfos e monstruosas derrotas. Seus olhos se enevoaram, sentiu uma contração no estômago e um pequeno nervo começou a crispar-se nos cantos de sua boca.

     Quando levantou os olhos viu, afinal, que Nina Sanduzzi se fora e que o havia deixado a sós, à luz do lampião, com a alma de um morto entre os dedos trêmulos.

     Nina Sanduzzi seguiu para a casa em meio à paz de um luar de primavera. Os ásperos contornos dos montes eram suaves, sob as estrelas; a arruinada aldeia já não era uma coisa descolorida, mas algo prateado, de uma beleza antiga, e embaixo, no vale, corria o rio, uma fita azul-cinzenta em meio às sombras. O ar era revigorante e limpo, e seus tamancos batiam com estrépito sobre as pedras, acima das vozes intermitentes dos grilos e do ruído distante e abafado da água.

     Mas Nina Sanduzzi era cega à beleza e surda à música da noite. Era uma camponesa, enraizada no campo como uma árvore, rude, persistente, insensível à patética ilusão que constitui, quando muito, uma distração sentimental para o literato. A paisagem era um lugar em que ela vivia.

     Somente as figuras existentes nela eram importantes. A beleza que ela via — e via bastante — estava nos rostos, nas mãos, nos olhos, nos sorrisos e nas lágrimas das crianças, e nas recordações guardadas nela como a água numa cisterna. A primavera era uma sensação que experimentava em seu próprio corpo vigoroso. O verão era um calor sobre a pele e poeira sob seus pés descalços; o inverno, uma fria hibernação e uma cuidadosa poupança de lenha e carvão.

     Não sabia ler nem escrever, mas, não obstante, tinha sensibilidade para entender o significado da paz; já provara o amargor dos conflitos e, por isso, era receptiva à harmonia que percebia resultar gradativamente das dissonâncias da vida que a cercava.

     Naquela noite, estava em paz. Podia ver o começo da realização da promessa de Giacomo Nerone de que, mesmo depois de sua morte, alguém cuidaria dela e do filho. Eram pobres, mas a pobreza era o seu estado natural, e Giacomo Nerone jamais os deixaria sofrer muitas privações durante muito tempo. Agora, em seu momento de maior necessidade, havia Aldo Meyer, pronto a pagar, apesar de suas próprias necessidades, uma dívida a um morto.

     Também em sua vida havia harmonia — uma lenta concordância que se formava entre ela e os aldeões. Precisavam dela. Eram-lhe gratos, como a esposa de Martino, pelo auxílio que lhes prestava em momentos difíceis; e, quando se referiam a ela usando os nomes crus de antes — "a prostituta", "a mulher que dormia com um santo" —, já não havia muita maldade nisso, mas apenas a vaga lembrança de antigos ciúmes. Eram, aqueles aldeões, uma gente rude, que usava palavras rudes porque dispunha de poucas outras.

     Seus símbolos eram vulgares porque sua vida era brutal — e estômagos famintos não podem satisfazer-se com sonhos.

     Aquela noite, pois, enquanto caminhava para casa, entre os azinheiros, sentia-se grata, e toda a sua gratidão girava em torno de Giacomo Nerone, morto havia muito e sepultado na Grotta dei Fauno, onde as pessoas iam orar e voltavam curadas das enfermidades do corpo e do espírito.

     Tudo o mais em sua vida era detido pela lembrança daquele homem: seus pais, que haviam morrido de malária quando contava dezesseis anos, e que lhe haviam deixado a choupana, alguns móveis miseráveis e um baú com o seu dote; seu marido, um rapaz trigueiro, turbulento, que casara com ela na igreja, dormira com ela durante um mês e, depois, fora levado pelo exército, para morrer na primeira campanha da Líbia. Depois de sua morte, ela vivera, como as outras mulheres, em sua pequena choça, empregando-se em trabalhos no campo e serviços domésticos ocasionais, quando alguma das criadas adoecia na villa da condessa.

     Foi então que Giacomo Nerone apareceu...

    

     Era uma noite de verão, quente e pesada de trovões. Ela estava deitada, nua, em sua grande cama de metal, a virar-se de um lado para outro devido ao calor, aos mosquitos e à necessidade que despertava nela, de quando em quando, de ter em torno de seu corpo sadio os braços de um homem, e de senti-lo na cama a seu lado. Já era muito mais de meia-noite, mas, mesmo depois de um dia estafante de trabalho nos vinhedos, o sono não vinha.

     Foi então que ouviu as batidas — as batidas fracas e furtivas na porta trancada. Sentou-se na cama, tomada de súbito pavor, puxando as cobertas para os seios. Tornaram a bater e ela gritou:

     — Quem é?

     Uma voz de homem respondeu-lhe em italiano:

     — Um amigo. Estou doente. Deixe-me entrar, pelo amor de Deus.

     A débil urgência da voz a comoveu. Saltou da cama, enfiou o vestido e dirigiu-se à porta. Quando retirou a tranca e abriu cautelosamente, ele caiu para a frente sobre o chão de terra — um homem grande, moreno, com sangue no rosto e uma mancha pegajosa alastrando-se pelo ombro da camisa andrajosa. Tinha as mãos arranhadas por espinheiros e as botas rasgadas, com as solas abertas, e quando procurou levantar-se, arrastou-se dois passos e caiu de bruços.

     Ela precisou lançar mão de toda a sua força de camponesa para arrastá-lo e erguê-lo até a cama. Enquanto ele se achava ainda inconsciente, banhou-lhe os cortes do rosto, cortou-lhe a camisa junto ao ombro e lavou-lhe também o ferimento. Depois tirou-lhe as botas, cobriu-o e deixou-o dormir até que a primeira claridade matinal animasse, do lado do oriente, o céu. Ele despertou tomado do súbito pânico dos perseguidos, olhando em redor com os olhos assustados, escancarados. Mas quando a viu, sorriu e tornou a acalmar-se, fazendo uma careta de dor ao sentir o ferimento no ombro.

     Trouxe vinho, pão preto e queijo, e ficou maravilhada de que ele engolisse tudo com tanta avidez. Bebeu três copos de vinho, mas recusou-se a aceitar mais alimento, pois, disse, o pessoal do campo estava faminto e ele só tinha direito ao seu quinhão de viajante. Tornou a sorrir, ao dizê-lo — um sorriso largo, infantil, que dissipou nela os últimos receios e a fez sentar-se à beira da cama e lhe perguntar quem era, o que o trouxera a Gemello Minore e de que modo recebera aquele ferimento no ombro.

     O seu sotaque lhe era estranho e ele, por sua vez, teve dificuldade em compreender-lhe o pesado dialeto calabrês, mas os traços principais da história eram bastante claros. Ele era soldado, conforme lhe disse, de uma guarnição de artilharia sediada em Reggio, na ponta da bota da Itália. Os Aliados haviam capturado a Sicília e o exército inglês atravessara o estreito de Messina e abria caminho península acima. Reggio tinha caído. Sua unidade se esfacelara e ele se achava em fuga. Se tornasse ao seu próprio exército, cuidariam dele e o mandariam de volta às linhas de fogo. Se os ingleses o apanhassem, fariam dele um prisioneiro de guerra. De modo que estava tentando voltar a Roma, para o seio de sua própria família. Vinha-se escondendo durante o dia e viajando à noite, vivendo daquilo que conseguia roubar. Na noite anterior, deparara com uma patrulha inglesa, que atirara contra ele. A bala estava ainda em seu ombro. Precisaria ser removida; do contrário, morreria.

     Como era uma camponesa simples, aceitou a história tal qual lhe foi contada. Como gostou dele e se sentia solitária sem a companhia de um homem, mostrou-se disposta a ocultá-lo e a cuidar dele até que seu ferimento melhorasse. Sua cabana era distante da aldeia e ninguém jamais a visitava.

     Eis aí o começo da coisa — simples e sem importância, como centenas de outros casos de guerra, de viúvas solitárias e soldados em fuga. Mas a riqueza que surgiu daí e a tragédia em que tudo terminou, bem como a paz que se seguiu eram, para ela, motivo de perplexidade diária e de lembranças noturnas.

    

     Quando chegou a casa, encontrou o lampião ainda aceso, o pavio baixo, e Paolo encolhido, aparentemente dormindo, na cama de armar colocada do lado oposto do quarto, ao lado do letto matrimoniale de ferro em que fora gerado e dado à luz. Até o início da puberdade, dormira com ela, segundo o costume do sul, onde famílias inteiras dormiam numa única cama grande: marido, mulher, crianças de colo e meninos e meninas que já entravam na adolescência. Mas, em se tratando de uma mulher solitária e de um único filho, aquilo não era bom, de modo que ela comprara uma outra cama e cada qual dormia sozinho.

     Fechou a porta, pôs-lhe a tranca e correu o ferrolho; depois, largou a cesta e tirou os tamancos. O rapaz observava-a da cama, através dos olhos velados, fingindo que dormia. Todos os detalhes do ritual que se seguiu lhe eram familiares, embora, havia já muito, se recusasse a participar do mesmo.

     Nina Sanduzzi atravessou o quarto, dirigindo-se ao tosco baú que se achava junto à cabeceira da cama. De dentro de seu vestido, tirou uma pequena chave, presa com um alfinete, e abriu-o. Retirou, então, um embrulho chato, envolto em papel branco. Desembrulhou-o cuidadosamente e apanhou uma camisa de homem, velha e esfarrapada, manchada, em muitos lugares, como que de ferrugem. Levou-a, durante um momento, aos lábios e, em seguida, desdobrou-a e estendeu-a no espaldar de uma cadeira, de modo que pudesse ver os buracos feitos por balas e as manchas, que eram de sangue. Feito isso, ajoelhou-se desajeitadamente, mergulhou o rosto nas mãos, apoiadas ao assento da cadeira, e pôs-se a rezar, em voz baixa e sussurrante.

     Por mais que o tentasse, o rapaz jamais conseguira distinguir as palavras proferidas pela mãe. Quando, antes, se ajoelhava ali junto dela, Nina lhe recomendava que dissesse apenas padre-nossos e ave-marias, como fazia na igreja, pois seu pai era um santo que tinha grande poder junto de Deus — como São José, que era padrasto do Bambino. Mas jamais o admitira na intimidade de sua própria comunhão com o pai — e ele, de um modo estranho, sentia ciúmes disso. Agora, encarava tudo aquilo como uma manifestação de tolice feminina.

     Terminadas as orações, Nina Sanduzzi tornou a embrulhar a camisa e fechou-a no baú. Depois, acercou-se da cama do filho, beijou-o e afastou-se. Paolo Sanduzzi conservou os olhos fechados e continuou a respirar ritmicamente, pois, embora ele, às vezes, tivesse vontade de beijá-la e deixar que ela o abraçasse, como antigamente, sentia por ela uma repulsa que não sabia explicar. Era a mesma coisa que o fazia fechar os olhos e virar a cabeça para o outro lado, quando ela se despia ou se levantava, durante a noite, para atender a certas necessidades. Sentia vergonha dela e de si próprio.

     De modo que permaneceu imóvel, até que a mãe soprou o lampião e se meteu em sua rangente cama de ferro. Depois, também ele sossegou e mergulhou, lentamente, no sono. E sonhou... Sonhou com Rosetta, de pé sobre um rochedo, junto ao rio, a chamá-lo para si. Correu para ela, galgando o rochedo com dificuldade, vendo-lhe os lábios entreabertos, os olhos sorridentes, os braços abertos para recebê-lo. Mas, antes que os braços o envolvessem, transformaram-se nos braços de Nicholas Black; em lugar do rosto da moça, lá estava a pálida e caprina fisionomia do pintor.

     Paolo Sanduzzi mexeu-se na cama, gemeu e abriu os olhos, no momento meio doce, meio vergonhoso, em que a seiva da juventude transborda, e um rapaz não sabe se está dormindo ou acordado.

    

   Era a última noite de Blaise Meredith em Valenta: sua última noite em companhia de Aurélio, o bispo. Jantaram, como sempre o faziam, confortavelmente e bem. Conversaram, sem nostalgia, sobre vários assuntos e, terminado o jantar, Sua Excelência Reverendíssima sugeriu que tomassem café em seu escritório.

     Era um aposento grande, arejado, cheio de livros desde o assoalho até o teto, mas escassamente mobiliado com uma escrivaninha, um genuflexório e um terno de poltronas de couro junto a um fogão de majólica. De certo modo, no entanto, refletia com precisão o caráter do homem que nele trabalhava: culto, ascético, prático, com gosto pelo conforto modesto.

     O café foi trazido juntamente com uma garrafa de velho conhaque, ainda empoeirada da adega, os selos ainda intactos. Sua Excelência Reverendíssima insistiu em abri-la e servir ele próprio a bebida.

     — Uma libação — disse, sorrindo, a Meredith. — A última taça do ágape — ajuntou, erguendo o copo. — À amizade! E à sua saúde, meu amigo!

     — À amizade! — respondeu Blaise Meredith. — Lamento ter chegado a ela tão tarde.

     Beberam, como dois bons homens devem fazer, em se tratando de velha e preciosa bebida, lentamente, gozando-lhe o sabor.

     — Sentirei sua falta, monsenhor — disse, gentilmente, o bispo. — Mas o senhor voltará. Se adoecer, mande-me avisar imediatamente, e farei com que o tragam para cá.

     — Fá-lo-ei — respondeu Meredith, os olhos calculadamente fitos na taça, para ocultar a dor que havia neles. — Espero passar bem, para poupar trabalho a Vossa Excelência Reverendíssima.

     — Tenho um pequeno presente para o meu amigo — prosseguiu o bispo, enfiando a mão no bolso e tirando uma caixinha de couro florentino, lavrado, que entregou a Meredith. — Vamos, abra-a!

     Meredith apertou o fecho e a tampa abriu-se revelando, na caixinha guarnecida de cetim, uma pequena bulla, uma peça em ouro antigo, do tamanho, mais ou menos, de um polegar, presa a uma delicada corrente de ouro. Tirou-a e colocou-a na palma da mão.

     — Abra a bulla — disse Sua Excelência Reverendíssima.

     Mas os dedos de Meredith tremiam, e o bispo tirou-lhe a peça das mãos, abriu-a e a estendeu a Meredith, que lançou uma pequena exclamação de surpresa e prazer.

     Incrustada no ouro, havia uma grande ametista, em que estava lavrado o mais antigo símbolo da Igreja cristã: o peixe, com os pães sobre o dorso, cujo nome era o anagrama de Cristo.

     — É uma peça muito antiga — disse Sua Excelência Reverendíssima. — Provavelmente do começo do segundo século. Foi encontrada durante as escavações realizadas na catacumba de São Calisto, tendo-me sido presenteada por ocasião da minha sagração. A bulla, como sabe, era um adorno romano comum, e esta deve ter pertencido a um dos primeiros cristãos... talvez a algum mártir. Gostaria que a guardasse... como um testemunho de amizade.

     Blaise Meredith, o homem frio, ficou comovido como não se comovia há vinte anos. Lágrimas umedeceram-lhe os cílios, e sua voz vacilou:

     — Que posso dizer, senão "obrigado"? Guardá-la-ei até o fim de meus dias.

     — Mas, lamento dizê-lo, isto tem um preço: o meu amigo terá de ouvir um sermão final.

     — Este será o meu amuleto contra o tédio — comentou Meredith, com estranho humor.

     O bispo recostou-se na poltrona e sorveu o seu conhaque. Suas primeiras palavras pareciam curiosamente nada ter a ver com o que discutiam:

     — Estive pensando, Meredith, no pequeno santuário fálico. Que acha que eu deveria fazer a respeito?

     — Não sei... Destruí-lo, talvez.

     — Por quê?

     Meredith encolheu os ombros:

     — Bem... é um elo com o paganismo, um símbolo de idolatria e, além do mais, um símbolo obsceno. Alguém, evidentemente, lhe presta uma espécie de homenagem.

     — Fico a pensar se isso está certo... — comentou, pensativo, Sua Excelência Reverendíssima. — Ou será que se trata de algo muito mais simples?

     — O quê, por exemplo?

     — Uma manifestação bem-humorada de vulgaridade... uma superstição jovial, como o lançamento de moedas à fonte de Trevi.

     — Jamais me ocorreu que "jovial" fosse a palavra exata — disse Meredith. — Lasciva, talvez. Ou, mesmo, sinistra.

     — Todos os povos primitivos são lascivos, meu caro Meredith. Vivem em meio a tal familiaridade com as funções naturais grosseiras que seu senso de humor se torna, com efeito, bastante terreno. Ouça as conversas e as canções de um casamento de aldeia — se lhe for possível traduzir o dialeto e as alusões — e o senhor enrubescerá até as orelhas. Mas essa gente possui, também, seus próprios sentimentos de modéstia que, embora pareçam menos lógicos, são, não raro, mais sinceros do que a falsa modéstia das comunidades mais evoluídas. Quanto a "sinistro"... sim, poderia ser sinistro. Há por aqui vestígios de paganismo. Poderá encontrar, em Gemello Minore, uma mulher que vende amuletos e filtros de amor... Mas que fazer a respeito? Fazer uma grande canção e uma cerimônia? Lançar um exorcismo e partir o mármore em pedaços? Se eles realmente quiserem, poderão fazer um desenho indecente em qualquer muro da aldeia... pondo, provavelmente, a cara da gente em cima. Compreende como é?

     Apesar de si próprio, Meredith riu a bom rir e o bispo sorriu, com ar de aprovação.

     — Meu sermão vai indo bem, Meredith. E o meu amigo já tem o texto do mesmo: "piano, piano!... " Vá devagar e fale baixo. O senhor é um alto funcionário — lembre-se disso — e eles desconfiam de funcionários... principalmente de funcionários da Igreja. O senhor observa também o ponto de vista oficial. E isso constitui um obstáculo. Veja! — acrescentou, fazendo um gesto expressivo na direção das paredes cobertas de estantes. — Estão aí todos os padres da Igreja, desde Agostinho até São Tomás. Todos os grandes historiadores, todos os grandes comentadores. Todas as encíclicas dos últimos cinco pontífices — bem como uma seleção dos místicos mais importantes. O espírito da Igreja, dentro destas quatro paredes. O homem que usou essa bulla jamais ouviu falar em nenhum deles... Não obstante, era tão católico quanto o senhor ou eu. Tinha a mesma fé, embora uma grande parte dela fosse implícita e não explícita como agora. Estava mais perto dos apóstolos e do que eles haviam aprendido dos lábios de Cristo e recebido da infusão do Espírito Santo e Pentecostes. O espírito da Igreja é como o espírito de um homem, expandindo-se em novas conseqüências das velhas crenças, em um novo conhecimento brotando do antigo, como folhas que nascem de uma árvore... Quem, entre os do meu rebanho, poderá assimilar tudo isso? O senhor? Eu? Aí está o espírito da Igreja, complexo e sutil. Mas, no íntimo, esse espírito é simples, como é simples essa gente. Assim, quando entrar em contato com ela, procure agir com o coração e não com a cabeça.

     — Compreendo — disse Blaise Meredith, e suas palavras soavam de modo muito semelhante a um suspiro. — A dificuldade é que não sei de que maneira agir desse modo. Confesso-o francamente: foi só no convívio de Vossa Excelência Reverendíssima que vim a encontrar algum calor. Falta-me simpatia, creio eu. Lamento muito, mas não sei de que modo remediar tal situação. Não sei quais as palavras. Os gestos são desajeitados e teatrais.

     — É apenas uma questão de atitude, meu amigo. Se sentir piedade e compaixão, não estará longe do amor. Essas coisas se comunicam por si sós, mesmo através das palavras mais claudicantes. O caminho que conduz a essa gente é encontrado através de suas necessidades e de seus filhos. Experimente encher os bolsos de balas e descer pela rua. Experimente dar de presente uma lata de azeite ou um quilo de pasta, quando for à casa dos pobres. Descubra onde estão os doentes e vá visitá-los com um frasco de grappa no bolso de trás... E chegamos, aqui, ao fim do meu sermão!

     Inclinou-se para a frente e despejou em seus copos mais um pouco de conhaque. Meredith sorveu a suave, fragrante bebida, e olhou a pequena bulla de ouro em seu estojo guarnecido de cetim. Aurélio, o bispo, era um bom pastor. Tudo o que pregava, ele próprio praticava. E Blaise Meredith ainda não havia feito a única coisa que lhe fora pedida em nome da amizade. Confessou-o gravemente:

     — Esforcei-me várias vezes por rezar, pedindo aquele milagre. Mas não consigo fazê-lo. Perdoe-me.

     Sua Excelência Reverendíssima deu de ombros, como se a demora não tivesse importância.

     — Chegará, ao fim, a isso. Piano... piano...! Acho que agora deve recolher-se. Amanhã será um longo dia e, possivelmente, um dia difícil para o meu amigo.

     Levantou-se e, movido por súbito impulso, Blaise Meredith ajoelhou-se e beijou-lhe o grande anel episcopal.

     — Poderia Vossa Excelência Reverendíssima abençoar-me para a viagem?

     Aurélio, bispo de Valenta, levantou a mão esguia no gesto ritual:

     — Benedicat te omnipotens Deus... Que Deus o abençoe, meu filho, e o livre do demônio do meio-dia... e do terror da longa noite... em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...

     — Amém — disse Blaise Meredith.

     Mas a bênção não teve virtude alguma contra a dor que o assaltou aquela noite — a pior de toda a sua enfermidade, uma angustiosa náusea que lhe sugou todas as forças, de modo que, ao sair pela manhã, parecia um homem que se dirigia ao seu próprio funeral.

     De Valenta a Gemello Minore, a distância é de sessenta quilômetros, mas a estrada é tão sinuosa, o caminho tão ruim e esburacado, a subida tão íngreme, que a viagem de automóvel leva duas horas.

     Imediatamente após deixar a aldeia, Meredith mergulhou numa modorra inquieta, mas logo os trancos e solavancos o despertaram, e começou a tomar um interesse forçado pela paisagem. Segundo os padrões alpinos, as montanhas não eram altas, mas íngremes, escarpadas e dobradas umas sobre as outras, de modo que a estrada parecia agarrar-se precariamente aos seus flancos, ora arrastando-se para cima, ora mergulhando para baixo, numa curva muito fechada, em direção a uma velha ponte que, de tão arruinada, parecia não suportar sequer o peso de uma carroça de mula.

     Os vales eram verdes nos sítios em que os camponeses lavraram a aluvião lodosa, mas os montes tinham apenas esparsa vegetação, que mal serviria para uma pastagem de cabras. Era difícil acreditar que, em outros tempos, os romanos haviam cortado ali pinheiros para suas galeras e preparado carvão para as forjas dos armeiros. Tudo o que agora restava era uma escassa plantação a cercar esta ou aquela villa cujo proprietário ou administrador era melhor agricultor do que os seus vizinhos.

     Algumas das aldeias eram construídas nas lombadas dos montes, um aglomerado de casas cor de ferrugem ao redor de uma igreja em ruínas, construída, talvez, por algum antigo mercenário angevino que arrastava sua lança e seu insignificante título por aquele pequeno e ruidoso reino meridional. Outras, não eram mais do que uma fileira de casebres baixos acachapados nos vales, onde a água era próxima e o solo, menos ralo. Mas todas elas eram pobres, arruinadas, desoladas. Seus habitantes tinham o aspecto gasto e descorado das próprias montanhas. As crianças estavam enlameadas e magras como suas cabras, suas galinhas e suas vacas de ossos à mostra.

     Havia ali pobreza como Meredith jamais vira em outros lugares, mesmo nos becos mais miseráveis de Roma. Ali estava o que Aurélio, o bispo, queria dizer, quando se referiu à insensatez de aparecer entre aquela gente com um compêndio numa das mãos e a cruz de missionário na outra. Aquela gente compreendia a cruz... pois suportara, durante longo tempo, a sua própria crucificação; mas não podia comer idéias, e o Cristo da Calábria teria de anunciar-se com um novo milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, e com a sua velha compaixão pelos estropiados e pelos impuros.

     Viviam em casas que não eram melhores do que estábulos. Alguns deles eram como trogloditas, habitando cavernas nas rochas, onde a umidade ulcerava as paredes. Não dispunham de gás, eletricidade, esgotos ou fornecimento de água potável. Seus filhos morriam de malária, tuberculose e pneumonia. As mulheres morriam de septicemia e febre puerperal. Os homens ficavam retorcidos de artritismo antes de chegar aos quarenta anos. Num mês, o tifo podia varrer toda uma comunidade. Apesar de tudo conseguiam, de algum modo, sobreviver. Agarravam-se à crença em Deus e no outro mundo, à prece e ao mistério da Igreja — e o faziam com uma lógica feroz, pois em sua crença se encontravam as raízes da dignidade humana. Sem ela, transformar-se-iam naquilo que pareciam ser aos olhos de quase toda a gente: animais em seu aspecto, em seus hábitos.

     O coração de Meredith confrangia-se cada vez mais, à medida que se aproximava das montanhas. Uma profunda depressão se apoderara dele depois de sua provação da noite anterior, e imaginou-se desperdiçando-se irremediavelmente em meio àquela gente e pedindo à morte que o libertasse de sua companhia. Se devia morrer antes do tempo, que morresse ao menos com dignidade, entre lençóis limpos, cheiro de limpeza e o sol a entrar através das janelas. Era, aquele, um pensamento infantil e procurou afastá-lo, mas a depressão permanecia nele, até que, subitamente, no topo de íngreme subida, o motorista parou o carro e apontou, através do vale:

     — Ecco monsignore! Veja lá! Lá estão elas, Gemelli dei Monti... as montanhas gêmeas!

     Meredith desceu do automóvel e caminhou até a beira da estrada, para ver melhor. Mais abaixo a estrada descia, em acentuado declive, para um vale do outro lado do qual uma montanha, isolada, se erguia de encontro ao céu claro. Até mais da metade de sua altura, era uma massa sólida; depois, dividia-se em dois picos gêmeos, separados por enorme abertura, de cerca de duas milhas de largura. Sobre cada pico havia uma aldeia, cingida por uma muralha em ruínas, abaixo da qual começavam as terras de cultivo, estendendo-se até o fundo do vale que as separava. Naquele fundo de vale fluía um rio, que se despejava, em borbotões, pelo sólido flanco da montanha, para o vale que Meredith tinha a seus pés.

     O que mais vivamente chamou a atenção de Meredith foi a diferença entre os dois picos. Um deles estava banhado de luz; o outro, sombriamente enegrecido pelo monte gêmeo. A aldeia batida de sol parecia maior, menos arruinada; e, à direita, ao centro dela, debaixo do campanário da igreja, um grande edifício branco brilhava, em vivo contraste com os telhados queimados que o cercavam. A bifurcação da estrada que ia até ela era negra e cintilante em seu novo revestimento de asfalto e, no topo, bem ao lado dos muros da aldeia, fora construído amplo e plano espaço destinado ao estacionamento de veículos. Nesse sítio, meia dúzia de automóveis estavam parados, os pára-brisas a rebrilhar ao sol.

     — Gemello Maggiore — disse o motorista, por sobre o ombro. — Pode-se ver o que o santo fez pela aldeia. O edifício novo é o hospital para peregrinos.

     — Ele ainda não é santo — respondeu, friamente, Meredith.

     O motorista levantou as mãos num gesto de desagrado e tocou para a frente. Não se podia discutir com um sacerdote que tinha dor de barriga. Blaise Meredith contraiu o sobrolho e voltou-se para observar a aldeia gêmea mais sombria, Gemello Minore.

     Não havia automóveis no caminho poeirento que conduzia a ela, mas, apenas, uma minúscula carroça puxada por um jumento, com um velho camponês a caminhar junto de suas rodas. Os muros se achavam fendidos em muitos lugares e, em alguns dos edifícios mais altos, podiam-se ver as vigas nuas, nos sítios em que as telhas tinham sido arrancadas pelo vento, não sendo jamais substituídas. A linha dos telhados continha brechas e ruturas, contrastando com a compacta solidez de Gemello Maggiore. Meredith sabia muito bem o que deveria haver dentro dos muros da aldeia: uma única rua principal, uma praça minúscula diante da igreja, uma série de becos estreitos com tanques de lavar roupa metidos entre as paredes, a sujeira a escorrer sobre as pedras e crianças maltrapilhas a berrar entre a imundície. Por um momento, seu coração desfaleceu e ele quase teve vontade de rumar para Gemello Maggiore e lá estabelecer o seu quartel-general, na nova hospedaria ou, mesmo, na casa do prefeito, que receberia com satisfação um emissário do bispo. Mas sabia que jamais venceria a vergonha de uma tal rendição, de modo que voltou para o automóvel e disse ao chofer: — Gemello Minore. Súbito!

    

     Os trabalhadores dos campos mais baixos foram os primeiros que o viram, enquanto o automóvel passava aos solavancos pelos sulcos da estrada e derrapava nos trechos de cascalho solto. Apoiavam-se em suas enxadas à sua passagem, e alguns dos mais jovens acenavam com a mão, com ar de escárnio; mas os velhos apenas enxugavam o suor do rosto, e esfregavam as mãos nas calças e punham-se de novo a trabalhar. Um automóvel, uma carruagem puxada por duas parelhas — ou um foguete vindo da Lua — tudo era a mesma coisa. A gente sachava um sulco e começava logo outro. As mulheres empilhavam as ervas daninhas para adubo e restolhavam os galhos para lenha. E quando o último sulco era sachado, era preciso ir buscar água no rio e despejá-la, avaramente, na raiz das plantas. Havia também as pedras que tinham de ser transportadas para servir de suporte aos terraços, e as leiras que precisavam ser despejadas nas terras de pousio... A gente não podia fazer pasta com óleo de motor, nem tirar leite da teta de um sacerdote. Que ambos fossem, pois, para o diabo! O melhor era voltar à enxada!

     Paolo e Rosetta viram-no do lugar em que se achavam acocorados, sob uns arbustos onde Paolo jurara que havia visto uma codorniz, mas nos quais nada havia além do excremento da lebre que estivera a roer o mato, e um velho lagarto cinzento que dormitava numa mancha de sol. Rosetta bateu palmas, gritou e pulou de uma perna para a outra — um diabrete moreno em vestes esfarrapadas; mas Paolo permaneceu imóvel, mãos na cintura, a fitar o automóvel. Chegaria o momento em que aquele sujeito desejaria falar com ele a respeito de seu pai, e ele estava resolvido a enfrentá-lo como homem e não como um garoto ranhoso a quem se pode primeiro persuadir com bons modos e depois bater. Ademais, o assunto era importante para ele e, se Rosetta ia ser sua namorada, devia compreender isso. E se ele estava um pouco assustado, diante do furão negro que queria até as raízes da vida de sua mãe e dele próprio, transformando a aldeia num ninho de curiosidade, aquilo, afinal de contas, era assunto que só a ele dizia respeito e sua garota deveria ser a última a sabê-lo. Assim, depois que o automóvel passou, tomou-a pela mão e, apesar de todos os seus protestos, conduziu-a apressadamente, através dos arbustos, até o secreto trecho do rio onde jamais havia alguém durante o dia.

     Aldo Meyer viu-o quando o carro diminuiu a marcha bem diante de sua porta e começou a abrir lentamente caminho através de ruidosa multidão de crianças. Viu o rosto comprido, pálido, com os lábios contraídos num sorriso penoso, bem como a mão erguida que saudava, irresoluta, as crianças. Ali, se é que ele sabia reconhecê-lo, estava um homem marcado pela morte. Pensou no sinuoso raciocínio que teria induzido o bispo a aceitar um emissário como aquele, enviando-o numa missão em que seria assaltado e atormentado por todos os interesses em conflito relacionados com o caso de Giacomo Nerone. Ficou pensando que espécie de homem seria aquele e no que o sofrimento e a familiaridade diária com a morte estariam fazendo dele; que pensaria da condessa e de seus convidados para o jantar e de que modo reagiria diante das emaranhadas histórias que teria de ouvir. Depois, lembrou-se de que logo estaria tomando em suas próprias mãos o que restava do fio da vida daquele homem — e envergonhou-se de não o ter sequer cumprimentado à sua passagem.

     Quando o automóvel chegou à praça, toda a aldeia já tinha saído para a rua. Até mesmo o velho Padre Anselmo ficou a espiar furtivamente através das venezianas, com o convite da condessa na mão, pensando vagamente de que maneira deveria demonstrar "cortesia a um irmão sacerdote", como o bispo lhe pedia. Seu problema mais urgente, porém, era saber o que vestiria para jantar na villa — e, logo que o carro passou, dirigiu-se pesadamente à cozinha, gritando pela velha Rosa Benzoni, para que ela lhe lavasse um colarinho e tirasse as manchas de comida de sua melhor batina.

     Somente Nina Sanduzzi se recusou a tornar-se espectadora daquela malsinada chegada. Estava ela sentada na cama, na casa de Martino, o ferreiro, colocando sopa, com uma colher, na boca retorcida do homenzarrão e, quando a chamaram para a porta, não atendeu. Tinha a sua própria dignidade e, se o sacerdote quisesse vê-la, que viesse, e ela saberia o que lhe responder.

     Quanto a Blaise Meredith, viu-os a todos, embora não visse nenhum deles. Era uma confusão de rostos e um clamor de vozes estranhas, bem como um odor penetrante de pó, de corpos e de refugos apodrecendo ao sol. Ficou contente quando o automóvel rumou para a villa e galgou, roncando, o último trecho íngreme da estrada, ganhando o grande portão de ferro onde um criado o aguardava a fim de conduzi-lo à presença da condessa, fresca como uma flor em meio a um gramado recém-aparado.

     — Meu caro Monsenhor Meredith! Quanta satisfação em vê-lo!

     O sorriso era cordial; os olhos desanuviados; a mão, suave mas firme ao cumprimentá-lo.

     — Minha cara condessa! Obrigado por acolher-me aqui!

     — Fez boa viagem?

     — Regular. As estradas são más e já não sou, hoje em dia, um bom viajante. Mas aqui estou intacto.

     — Coitado! Deve estar exausto. Farei com que Pietro o acompanhe ao seu quarto: poderá lavar-se e descansar um pouco antes do almoço.

     — Eu o apreciaria — respondeu Meredith.

     E pensou, grato: "Deus abençoe os ingleses! Compreendem essas coisas melhor do que ninguém no mundo! Não fazem algazarra e sabem que, quando um homem está cansado, a sua primeira necessidade é água quente e a intimidade de um quarto!"

     A um sinal da condessa, o criado apanhou as malas e conduziu Meredith à casa. A condessa permaneceu no fim do gramado, observando as costas arqueadas do hóspede afastarem-se até que a sombra da porta as engolisse.

     Decorrido um momento, Nicholas Black saiu do meio dos arbustos e reuniu-se a ela. Todo o seu rosto de sátiro era um grande sorriso.

     — Bem, bem, bem! Então é isso que nos aguarda! Parece uma edição surrada de John Henry Newman. Oxford, diria eu. Talvez Magdalen, com uma pitada do English College... e um verniz de Vaticano para disfarçar... Você se saiu maravilhosamente, cara! Nem demasiado, nem pouco. A encantadora castelã a receber a Igreja, a inglesa expatriada fazendo as honras da casa a um compatriota. Você é uma atriz e tanto!

     Ela não levou em conta a ironia e disse, pensativa:

     — Ele parece muito doente.

     — As preces e o jejum também fazem isso, querida. Fico imaginando se ele não usará uma camisa de crina.

     — Oh, pelo amor de Deus, Nicki!

     Ele encolheu os ombros, irritado, e indagou:

     — Que é que você espera que eu faça? Que lhe beije as ancas clericais e lhe peça que abençoe minhas medalhas? Mas, afinal de contas, o que está acontecendo com você? Não me diga que está em pleno caminho da conversão!

     Ela o envolveu numa invectiva feroz, em voz baixa:

     — Ouça aqui, Nicki! Você é um homenzinho simpático e um pintor mediocremente aceitável. Está-se saindo muito bem comigo e eu o estou ajudando a obter certas coisas que deseja ardentemente. Mas tenho meus problemas com esse padre e não irei permitir que crie problemas maiores apenas para me mostrar quão inteligente é. Se não estiver disposto a agir bem, pode fazer suas malas e mandarei que Pietro o leve a Valenta, para que tome o próximo trem para Roma! Espero que isso fique claro.

     Ele teve vontade de gritar, dar-lhe um tapa na cara e dizer-lhe todos os nomes feios que lhe viessem à mente; mas, como sempre, teve medo. De modo que lhe tomou a mão e beijou-a, à sua maneira penitente e juvenil:

     — Sempre ajo assim, não é verdade, cara? Perdoe-me. Não sei o que se passa comigo. Saberei conduzir-me. Prometo-lhe! Por favor, por favor, perdoe-me.

     Anne Louise de Sanctis sorriu. Fizera o que queria. Experimentara de novo o sabor da flagelação e podia dar-se ao luxo de ser generosa. Passou-lhe a mão pelos cabelos finos, bateu-lhe no rosto e disse:

     — Está bem, querido. Desta vez esquecerei o que houve. Mas, no futuro, seja um bom menino.

     Depois, fez com que a tomasse pelo braço e caminhasse... com ela em torno do jardim, bisbilhotando acerca de escândalos romanos. Mas, inteligente como era, jamais conseguiu compreender por completo quanto ele a odiava.

    

     Sozinho em seu quarto de teto alto, com as venezianas corridas contra o calor do meio-dia, Blaise Meredith lavou-se, trocou de roupa e deitou-se na grande cama de nogueira.

     Novamente, parecia-lhe, tinha razão de sentir-se grato. Seu alojamento era confortável; a dona da casa, encantadora; os criados, atentos. Qualquer que fosse a miséria da aldeia, sempre poderia voltar para ali e esquecê-la. Quaisquer que fossem os seus problemas, poderia contar com a boa vontade da condessa, que o ajudaria a desenredá-los. Quando estivesse doente, não estaria só e, com uma grande criadagem, não seria fardo demasiado incômodo.

     Lembrou-se de que deveria escrever ao bispo e dizer-lhe de sua satisfação ante os arranjos que lhe haviam sido feitos. Depois, calmo, enquanto descansava, pensou em seu trabalho e na maneira como deveria realizá-lo.

     Primeiro uma conversa com a condessa, decidiu; depois um exame da aldeia e de sua gente, uma indicação das fontes mais prováveis de informação acerca de Giacomo Nerone. Ela devia saber muito. Disporia, certamente, de valiosa autoridade. Como castelã feudal, estaria in loco parentis com os camponeses, e uma palavra, da parte dela, poderia desatar muitas línguas.

     Faria, depois, uma visita ao padre da paróquia, a fim de apresentar sua carta de autorização e solicitar sua cooperação oficial. Fosse qual fosse a reputação do pastor, ele ainda tinha status canônico na matéria. Também tivera, ao que parecia, longas e belicosas relações com Nerone. Aqui, claro, também havia um problema. Se tivesse sido, mesmo durante algum tempo, confessor de Nerone, não poderia ser convidado a depor. Mesmo que seu penitente o houvesse liberado do sigilo, seu depoimento não poderia ser admitido no tribunal. Era, aquela, uma cláusula sábia da lei; mas não deixara de ser, também, um meio de evasão para um homem que tinha algo a ocultar. Poderia ficar calmamente sentado e negar-se mesmo a indicar quaisquer fontes de informação, e os canonistas lhe defenderiam a discrição. Sob todos os aspectos, parecia que Padre Anselmo iria constituir um problema para o advogado do Diabo.

     Quem é que vinha a seguir? O médico, talvez, Aldo Meyer, que era judeu e liberal decepcionado. Aqui também havia problemas. Ele deveria saber demais. Seu testemunho era admissível, já que mesmo os infiéis e os hereges podiam depor a favor ou contra a causa. Mas não poderia ser forçado a dar o seu testemunho, como no caso de um católico, mediante sanções morais. Podia-se depender apenas de sua boa vontade. Pelo menos por enquanto, Aldo Meyer devia ser deixado de lado como duvidoso.

     Havia, depois, Nina Sanduzzi, que fora amante de Giacomo Nerone e lhe dera um filho. Segundo os registros de Battista e Saltarello, ela se recusara, terminantemente, a fornecer qualquer informação. Parecia pouco provável que um sacerdote estrangeiro pudesse ser mais bem sucedido com ela. Mas, mesmo que o fosse, a inquirição prometia ser a mais desagradável possível. Envolveria uma intromissão confessional nas intimidades mais profundas que tinham existido entre ambos; suas confidencias mútuas, suas atitudes morais, as razões de sua separação, e até mesmo a natureza de seu intercurso sexual. E tudo isso entre um sacerdote que falava apenas o italiano de Roma e uma mulher cuja língua era o dialeto bastardo da Calábria, com seus elementos poliglotas de grego, fenício, árabe levantino e francês angevino...

     Blaise Meredith debatia-se ainda com esse problema quando um criado entrou e anunciou que o almoço estava servido e que a condessa o esperava embaixo.

    

     O almoço começou bem: uma conversação agradável entre gente de bom gosto e educação que, estranhamente, se encontrava numa terra estranha. A condessa conduziu com cuidado a conversa. Nicholas Black parecia contente com o seu papel de cosmopolita urbano, e Blaise Meredith, descansado após o repouso, falou, com raro charme e bastante conhecimento, de livros, música e da política da Europa e da Igreja.

     Quando já chegavam quase ao queijo e às frutas, a condessa já havia começado a sentir-se novamente à vontade. Ali estava um homem que lhe era possível compreender. Encontrara muitos como ele, em seus velhos tempos em Londres e Roma. Era polido e discreto e, o que era ainda mais importante, compreendia o idioma inglês da alusão e da exposição incompleta dos fatos. Com pouco trabalho, podia fazer com que dependesse dela para interpretar as coisas cruas da província. Contanto que Nicki continuasse a proceder bem, não haveria complicação alguma. Ela se sentia bastante confiante, a ponto de fazer-lhe, cautelosa, as primeiras perguntas:

     — Perdoe-me a ignorância, monsenhor, mas como é que o senhor começa habitualmente a trabalhar num caso como este?

     Meredith fez um pequeno gesto de pesar:

     — Lamento dizer-lhe que não existem regras de espécie alguma. É uma questão de falar com o maior número possível de pessoas e, depois, confrontar e comparar suas informações. Mais tarde, depois de estabelecido o tribunal do bispo, pode-se interrogar e fazer a acareação das testemunhas sob juramento... e em sigilo, naturalmente.

     — E por onde começará agora?

     — Esperava que a senhora pudesse ajudar-me primeiro. A senhora vive aqui há muito tempo. É a padrona. Seus conhecimentos das condições locais seriam uma boa introdução para mim.

     Nicholas Black lançou rápido e irônico olhar à condessa, mas esta sorria calmamente:

     — Terei prazer, certamente, em fazer tudo o que estiver ao meu alcance, mas acho que é perigoso recorrer a mim. Sou a padrona, como o senhor diz. Mas sou, também, inglesa. Vivo uma vida diferente. Penso diferentemente dessa gente. Minhas idéias poderiam ser inteiramente erradas. Já tive muitas provas disso. Mas desejo, por certo, ajudar, pelo senhor e pelo bispo. Como sabe, ele é um velho amigo meu.

     — Certamente — respondeu Meredith, com um aceno de cabeça, sem insistir no assunto.

     — Depois que Sua Excelência me escreveu, pensei que o mais aconselhável seria pô-lo em contato com o médico e com o padre da paróquia. Ambos sabem muito mais a respeito da aldeia do que eu. Convidei a ambos para jantar aqui esta noite. Poderemos, então, nós quatro, trocar idéias. Sentir-me-ei mais confiante, pois o senhor terá, então, uma opinião mais equilibrada. Nicki concorda comigo, não é verdade, Nicki?

     — Perfeitamente, cara. Este é um lugar estranho. Inteiramente diferente de Roma. Estou certo de que sua idéia é correta. Não lhe parece, monsenhor?

     — Os senhores é que entendem do assunto — respondeu Meredith, com ar modesto. — Sou-lhes reconhecido pelo trabalho que estão tendo por minha causa.

     A condessa afastou a cadeira:

     — Em geral, não tomo café à tarde. Estraga-me a sesta.

     Pietro servirá os senhores no terraço e, depois, Nicki lhe mostrará os jardins. Poderá desculpar-me, monsenhor? A beleza feminina, como o senhor sabe, necessita de sono... Os dois homens ergueram-se e deixaram a mesa e, depois que a condessa se retirou, Nicholas Black conduziu o hóspede para o terraço, onde o café foi servido à sombra de um guarda-sol listrado. O pintor, tirando do bolso uma cigarreira de ouro, ofereceu um cigarro a Meredith.

     — Fuma?

     — Não, obrigado. É um luxo a que renunciei desde que fiquei doente.

     — A condessa me disse que o senhor está muito doente.

     — Muito — respondeu, secamente, Meredith. Sentia-se confortável, à vontade, e não queria que lhe lembrassem da morte.

     Os criados vieram, serviram o café, e Black ficou uns instantes fumando em silêncio, pensando em seu lance seguinte. Apesar de toda a sua sedução, aquele sujeito era vivo e inteligente. Um erro de sua parte poderia ser irreparável. Após um momento disse, em tom casual:

     — Enquanto o senhor está aqui, monsenhor, espero que me deixe pintá-lo. O senhor tem um rosto interessante e mãos expressivas.

     Meredith encolheu os ombros, num gesto que o desarmou:

     — O senhor deve ter vinte temas melhores do que eu, Mr. Black.

     — Digamos, então, que o seu proporciona o contraste — disse o pintor com um sorriso. — O romano palaciano entre provincianos. Ademais, espero fazer um registro pictórico de todo o caso de Giacomo Nerone. Poderia constituir uma bela base para uma exposição individual. Pensei em chamá-la "Beatificação".

     — Pode ser que jamais haja beatificação alguma — respondeu, com cuidado, Meredith. — Mesmo que haja, poderá demorar anos.

     — Do ponto de vista artístico, isso quase não importa. São as personagens que contam... e há uma galeria fantástica delas por aqui. Estou pensando em como é que o senhor irá haver-se com elas, monsenhor.

     — Eu, também — respondeu-lhe, franco, Meredith.

     — O que me interessa, claro, é o caso amoroso. Não compreendo, realmente, como é que se pode pensar em beatificar um homem que seduziu uma aldeã, teve com ela um filho bastardo e, depois, a abandonou. Ele esteve aqui o tempo suficiente para se casar com ela. Meredith moveu a cabeça, pensativo:

     — Isso cria problemas, claro... problemas de fato e de motivos. Mas não exclui, necessariamente, o fato de se poder levar o caso ao tribunal. Há o exemplo clássico de Agostinho de Hipona, que viveu com muitas mulheres, tendo, ele próprio, um filho ilegítimo. Não obstante, tornou-se, no fim, um grande servo de Deus.

     — Depois de uma vida muito mais longa que a de Nerone.

     — Isso também é verdade. Admito, sinceramente, que as circunstâncias são embaraçosas. Espero desvendar toda a história enquanto estiver aqui. Mas, em termos de estrita teologia, não se pode ignorar a possibilidade de uma súbita e miraculosa conversão.

     — Se se acredita em milagres, por certo — disse, secamente, o pintor.

     — Se alguém acredita em Deus, acredita, necessariamente, em milagres.

     — Não acredito em Deus — afirmou Nicholas Black.

     — Sem Ele, o mundo não tem sentido — volveu Meredith. — E é um mundo bastante duro com Ele. Mas... não se pode, pela argumentação, levar um homem à fé: Assim, concordaremos em discordar um do outro, certo?

     Mas o pintor não estava acorde em ser posto de lado assim facilmente. Estava por demais interessado em descobrir que espécie de homem havia sob aquela batina negra. Voltou ao assunto:

     — Gostaria de crer. Mas há demasiada pantomima profissional. Demasiados mistérios.

     — Existem sempre mistérios, meu caro amigo. Se não houvesse mistério algum, não haveria necessidade de se ter fé.

     — Mas o senhor não está encarando Giacomo Nerone sob o ponto de vista da fé — observou Black, pertinentemente. — O senhor o está investigando do ponto de vista legal.

     — Trata-se de uma questão de fato e não de fé — disse Meredith.

     O pintor sorriu entre dentes, feliz.

     — Não obstante, encontrará uma porção de mistérios, monsenhor. Mais do que pensa, creio. E o maior mistério de todos é ninguém, em Gemello Minore, querer falar a respeito dele... nem mesmo a condessa.

     — Então ela o conheceu? — indagou Meredith, animado por novo interesse.

     — Claro que conheceu. Está procurando conseguir que o filho dele venha trabalhar aqui. Ela estava aqui quando ele vivia. Estava aqui quando ele morreu. Todos os outros também estavam. Não são todos amnésicos. Mas, de qualquer forma, são fechados como ostras. O senhor o verá esta noite, ao jantar.

     — E qual o seu interesse no caso?

     Havia um leve tom de irritação na pergunta.

     — Uma comédia de aldeia — respondeu, com brandura, Black. — E, nascendo dela, uma exposição individual de pintura. É, na verdade, bastante simples. Seja lá como for, o senhor está envolvido no caso. Eu, não. Estou-lhe dando apenas, como amigo, uma indicação... Se já terminou o seu café, mostrar-lhe-ei o jardim.

     — Ficarei aqui sentado se o senhor não se importar. Depois, irei fazer a sesta.

     — Como quiser. Sou pintor. Não gosto de desperdiçar luz. Vê-lo-ei ao jantar, monsenhor.

     Meredith ficou, sentado, a observá-lo: uma figura alta, esguia, a caminhar com indolência pelo gramado, até desaparecer atrás dos arbustos. Conhecera antes alguns homens como aquele, até mesmo de batina. Pensou onde residiria a raiz do rancor que alimentava contra a condessa e por que razão ela continuava a dar-lhe abrigo. Pensou, também, por que teria a condessa tergiversado quando lhe pedira ajuda, prometendo-lhe um jantar campestre.

    

     O Dr. Aldo Meyer, sentado em sua cozinha, observava Nina Sanduzzi, enquanto ela lhe engraxava os sapatos, passava a ferro sua camisa e limpava com uma esponja as lapelas de sua última roupa respeitável. Também ele estava preocupado com o jantar da condessa. Após a cena da noite anterior, sentira-se tentado a cancelá-lo, mas, quanto mais pensava no assunto, tanto mais se convencia de que devia ir. Era como se uma batalha estivesse em curso, e não podia dar-se ao luxo de conceder uma única vantagem à condessa e ao intrigante cavaleiro, Nicholas Black.

     A dificuldade real era que não conseguia saber pelo quê estava lutando... a não ser que fosse pelos interesses de Nina e Paolo Sanduzzi. Mas esse era um objetivo demasiado limitado para explicar a sua ansiedade de encontrar o sacerdote inglês e seu completo envolvimento no caso de Giacomo Nerone.

     Estava à procura de uma chave para o mistério de seu próprio fracasso e por um sinal indicativo qualquer no deserto de seu futuro. Tinha a curiosa convicção de que Blaise Meredith poderia fornecer-lhe ambas as coisas. Parte de sua resposta estava nos papéis de Giacomo Nerone, que se achavam ainda na gaveta de sua escrivaninha, mas ainda não encontrara coragem para abri-los.

     Várias vezes apanhara as cartas e ficara a apalpar os envelopes, mas todas as vezes recuara, receoso da dor e da vergonha que poderiam conter. Eram como as cartas de um amante rejeitado, as quais, uma vez abertas, lhe recordariam as vezes em que fora menos do que homem. Mais cedo ou mais tarde teria de enfrentar a revelação: mas não agora, não ainda.

     Nina Sanduzzi levantou os olhos do ferro de passar e disse calmamente:

     — Estive pensando em Paolo. Resolvi que, afinal de contas, ele deveria trabalhar para a condessa.

     Meyer fitou-a boquiaberto:

     — Santo Deus, mulher! Por quê?

     — Primeiro, porque Rosetta estará lá, e acho que a presença dela será boa para ele. Já é quase uma mulher, e lutará por aquilo que deseja. Além disso, ela falará e eu ficarei sabendo o que se passa na villa. Uma vez que ela comece a trabalhar, Paolo não terá outra coisa a fazer senão vadiar e andar à toa pelos montes...  e o pintor, de qualquer maneira, o agarrará.

     — A condessa também estará lá — advertiu-lhe Meyer, em tom grave. — E ela também é mulher... mais velha e mais esperta do que Rosetta...

     — Já pensei nisso — admitiu, serena. — Mas também pensei que o sacerdote estará lá na casa. Ele virá ver-me, como fizeram os outros, e lhe direi o que se passa por lá. Pedirei a ele que olhe por Paolo.

     — Mas ele poderia não acreditar em você.

     — Contarei todas as outras coisas... a respeito de Giacomo. Acho que acreditará em mim.

     Meyer olhou-a intrigado, com ar pensativo:

     — Ontem você estava resolvida a nada dizer-lhe. O que foi que a fez mudar de idéia? E sua promessa a Giacomo?

     — O rapaz é mais importante do que uma promessa. E, além disso — ajuntou, com estranha convicção na voz —, rezei ontem, como sempre faço, a Giacomo. Não o vejo, não o ouço... Há apenas a camisa que usava quando foi morto, com o buraco das balas ao redor de seu coração. Mas sei o que quer... e é isso que farei.

     — Não sabia que as pessoas mudavam de opinião depois de mortas — comentou Meyer, com gélido humor.

     Mas não houve nenhuma resposta sorridente no rosto calmo da mulher. Ela apenas disse:

     — Não se trata de ele ter mudado de opinião. É que o momento ainda não havia chegado... e agora chegou. O sacerdote me procurará quando estiver preparado. E eu lhe direi tudo.

     Meyer encolheu os ombros e ergueu os braços, tomado de ligeiro desespero:

     — Diga o que disser, você agirá como quer. Mas, antes que o rapaz vá para a villa, diga-lhe para vir falar comigo.

     — Direi. Já leu os papéis de Giacomo?

     — Ainda não.

     — Não devia ter medo de ler — disse-lhe ela, com singular brandura. — Ele não o odiou, nem mesmo no fim. Por que deverá, agora, envergonhá-lo?

     — Sinto vergonha de mim mesmo — respondeu, lacônico, Aldo Meyer, saindo para o jardim, onde as cigarras cantavam em meio ao esplendor da tarde e o pó se agarrava às folhas verdes da figueira.

    

   Quando Meredith, àquela noite, desceu para o jantar, encontrou a condessa e seus convidados já reunidos, tomando drinques no salão.

     O contraste entre eles era surpreendente. A condessa estava trajada como para uma noite romana e Nicholas Black achava-se impecável num dinner jacket negro. Meyer vestia um traje de passeio surrado, muito limpo e brilhante pelo longo uso. Usava uma camisa limpa e recém-passada a ferro, mas o colarinho e os punhos começavam a desfiar, e sua gravata era desbotada e fora de moda. Contudo, portava-se com dignidade, e seu rosto envelhecido, inteligente, mantinha-se calmo. Meredith sentiu-se imediatamente atraído por ele e cumprimentou-o com menos reserva do que habitualmente.

     — Tenho muito prazer em conhecer o meu médico conselheiro. Estarei em boas mãos.

     — Melhor reservar tal juízo para mais tarde — respondeu Meyer, com frio humor. — Tenho má reputação.

     E por aí ficou a coisa, enquanto a condessa arrastava o Padre Anselmo do seu canto e o apresentava ao seu colega romano.

     Era um homem baixo, de sessenta e muitos anos. Tinha o rosto enrugado e curtido como o dos camponeses, e seus cabelos grisalhos, longos e escorridos, caíam-lhe por sobre o colarinho. Os ombros de sua batina eram mosqueados de caspa e a parte da frente tinha velhas manchas de vinho e de gordura. Suas mãos, que ele torcia e retorcia enquanto falava, eram nodosas de artritismo. Ao cumprimentar Meredith, seu italiano tinha o sotaque carregado e rude da província.

     — Muito prazer em conhecê-lo, monsenhor. Não recebemos muitos romanos por aqui. É muito longe e muito rústico para eles, creio eu.

     Meredith sorriu, pouco à vontade, e murmurou uma observação banal, mas o velho era loquaz e não estava disposto a ficar de lado.

     — Aí é que está a dificuldade nesta parte do mundo. O Vaticano não sabe sequer o que se passa por aqui. Eles têm dinheiro a rodo, mas nós não sentimos sequer o cheiro dele. Lembro-me de que, quando estava em Roma...

     Continuaria a falar durante uma hora, não houvesse a condessa feito sinal a um criado, que lhe meteu na mão um cálice de xerez e o afastou delicadamente do visitante. Meredith sentia-se embaraçado. Mesmo em seus melhores dias, os clérigos ensebados lhe eram desagradáveis, e a perspectiva de uma longa associação com aquele lhe parecia sumamente desalentadora. Mas lembrou-se, então, de Aurélio, bispo de Valenta, e imediatamente envergonhou-se de si mesmo. Ignorando o criado que o pastoreava, aproximou-se do velho e disse-lhe, em tom cordial:

     — Sua Excelência envia-lhe suas saudações e espera que eu não lhe cause demasiado incômodo. Mas receio precisar apoiar-me muito em seus pareceres.

     Padre Anselmo tomou um longo sorvo de xerez e olhou-o com olhos lacrimejantes. Depois, abanou a cabeça e disse, impertinente:

     — Sua Excelência envia-me saudações! Quanta bondade! Sou uma pulga que tem atrás da orelha e da qual gostaria de livrar-se. Mas não pode fazê-lo sem levar o caso a um tribunal. Eis aí como são as coisas. É bom que nos entendamos bem.

     Como acontece com a maioria das pessoas educadas, Meredith não tinha defesa contra a grosseria dos outros. Aquilo o magoou, mas faltava-lhe a brutalidade para uma atitude ríspida. Apenas disse, cordialmente:

     — Eu sou o visitante; nada tenho com a política local. Não há razão para que não nos entendamos.

     E voltou-se para conversar um pouco com Anne Louise de Sanctis.

     Aldo Meyer notou prontamente a brusca troca de palavras, e marcou um ponto a favor de Blaise Meredith. O homem era bem-educado e discreto. Era bem possível que, mais tarde, revelasse também coração.

     Nicholas Black também o notou e sorriu astutamente para a condessa, cuja resposta, num simples erguer de sobrancelhas, lhe disse de maneira mais clara do que por meio de palavras: "Isso está saindo como planejei: tortuosamente e bem". E como os interesses do pintor eram, naquele momento, os mesmos que os dela, sentiu-se disposto a cooperar e a esquecer o ódio que sentia por ela. Enquanto Meredith falava com a anfitrioa e o Padre Anselmo permanecia um tanto à parte, com um olho no xerez e um ouvido na conversa, arrastou Meyer para um lado e perguntou-lhe, sorridente:

     — Então, dottore mio, que é que acha do nosso advogado do Diabo?

     — Causa-me pena. Já tem sobre ele o sinal da morte. A essa altura, já deve estar sofrendo muito.

     O pintor teve um estremecimento involuntário, como se um ganso caminhasse sobre o seu túmulo. Respondeu, em tom queixoso:

     — Não falemos de morte à mesa, meu caro amigo. Estava pensando em outra coisa. Como é que acha que ele irá agir? De modo agradável ou... ?

     Deixou a pergunta no ar, como uma ironia em suspenso. Mas Meyer nada fez para resolver a questão.

     — Por que deveríamos, o senhor e eu, preocupar-nos?

     — Sim, com efeito — disse, azedo, Nicholas Black, e deixou o assunto de lado.

     Meyer sorvia seu xerez e observava o rosto de Meredith, enquanto este falava com a condessa e com o Padre Anselmo. Notou-lhe a magreza, a lívida transparência da pele, as rugas de sofrimento traçadas cada vez mais profundamente em torno da boca, os olhos cansados, injetados, que dormiam demasiado pouco e viam demais a tristeza das coisas. Os homens reagiam de várias maneiras à dor e ao medo. Aquele que ali estava parecia estar suportando ambas as coisas com coragem, mas ainda era muito cedo para ver-se o que mais lhe estava acontecendo.

     Poucos momentos depois o jantar foi anunciado e todos se dirigiram à sala. A condessa postou-se à cabeceira da mesa, tendo Meredith à sua direita, Meyer à esquerda e o Padre Anselmo e Nicholas Black mais longe. Antes que se sentassem, ela se voltou para Meredith:

     — Quer fazer o favor de conduzir a ação de graças, monsenhor?

     Enquanto Meredith, ao recitar a breve fórmula latina, se mantinha de cabeça baixa, o pintor riu consigo mesmo. Que atriz era aquela mulher! Nenhum pormenor fora esquecido! Estava tão absorto em seu divertimento que, sem pensar, fez o sinal-da-cruz e, finda a oração, passou uns cinco minutos pouco confortáveis, pensando se Meredith havia ou não percebido. Como ateu confesso, o sacerdote o deixaria entregue à misericórdia de Deus; mas, como católico relapso, provavelmente tentaria pescar-lhe a alma, o que poderia constituir um embaraço quanto aos planos referentes a Paolo Sanduzzi.

     Como sob o efeito de uma sugestão, a condessa repetiu o nome a Aldo Meyer:

     — E o jovem Paolo, doutor? Virá trabalhar para mim?

     — Creio que sim — respondeu Meyer, cauteloso. — Sua mãe virá provavelmente vê-la amanhã.

     — Ótimo — disse ela, voltando-se para Meredith, a fim de explicar-lhe: — Isto talvez lhe interesse, monsenhor. O jovem Paolo Sanduzzi é filho de Giacomo Nerone. Foi batizado com o nome da mãe. É um tanto selvagem, mas nós... isto é, o Dr. Meyer e eu, achamos que seria bom que ele começasse a trabalhar. E eu lhe ofereci um lugar de ajudante de jardineiro.

     — Parece-me uma idéia bondosa — disse, em tom casual, Meredith. — Como é que a mãe dele vive?

     — Trabalha para mim — informou Meyer.

     — Oh!

     — Era uma mulher muito bonita — observou Padre Anselmo, a boca cheia de peixe. — Agora engordou um pouco, claro. Lembro-me dela quando fez a primeira comunhão. Uma criança encantadora!

     Engoliu o peixe com um trago de vinho e limpou a boca com o guardanapo amarfanhado. Depois, como ninguém dissesse nada, tornou a debruçar-se sobre o seu prato. Meredith voltou-se para Meyer:

     — O senhor conheceu Giacomo Nerone, não é verdade, doutor?

     — Sim, conheci-o — respondeu Meyer, com fácil franqueza. — Fui a primeira pessoa que o viu depois de Nina Sanduzzi. Ela chamou-me para extrair-lhe uma bala do ombro.

     — Ela devia confiar no senhor, doutor — interveio Nicholas Black, suavemente.

     Meyer livrou-se do golpe com um encolher de ombros:

     — Não havia razão para que não confiasse. Eu era um exilado político. Todos sabiam que minhas simpatias eram contrárias à administração.

     O pintor sorriu e aguardou a pergunta seguinte. Seu rosto se anuviou de desapontamento, quando Meredith disse, simplesmente:

     — O senhor provavelmente sabe, doutor, que numa causa de beatificação é admitido mesmo o testemunho de não-católicos, contanto que estejam dispostos a prestá-lo. Gostaria de conversar com o senhor a respeito, no momento que lhe seja mais conveniente.

     — A qualquer momento, monsenhor.

     E pensou, satisfeito: "Sua estatura é melhor do que eu julgava. Não o apanharão tão facilmente!"

     Anne Louise de Sanctis interveio logo, no silêncio que se seguiu:

     — Talvez o Padre Anselmo possa ajudá-lo muito, monsenhor. Ele está bastante ligado à nossa gente. O senhor também conheceu Nerone, não conheceu, padre?

     O Padre Anselmo largou ruidosamente o garfo e tomou outro gole de vinho. Sua voz tornava-se perceptivelmente mais grossa e seu sotaque, mais carregado:

     — Jamais me interessei muito por ele. Era por demais intrometido. Qualquer pessoa diria que também era sacerdote. Costumava bater à minha porta sempre que alguém tinha uma dor de barriga. Queria que eu saísse correndo com os sacramentos. Uma noite, quase fez com que eu fosse baleado pelos alemães. Depois disso, não tornei a sair após o toque de recolher.

     — Tinha esquecido — atalhou Meredith, com naturalidade. — Os senhores tinham os alemães aqui, claro. Isso não devia ser muito confortável.

     — Eles capturaram a villa — disse rapidamente a condessa. — Fiquei presa, sob palavra, durante quase todo o tempo. Foi terrível. Nunca senti tanto medo em minha vida.

     Nicholas Black limpou os lábios finos e sorriu por trás do guardanapo. Imaginou-a caminhando pelo jardim em companhia dos conquistadores, exercendo sua coqueteria nos braços de um capitão louro, deitando-se com ele no grande quarto barroco, atrás das cortinas de veludo, enquanto os camponeses passavam fome além dos portões de ferro e do muro de pedra. Presa sob palavra? Deveria haver outros nomes para isso. Um pouco de paciência e teria toda a história de Anne Louise de Sanctis.

     Blaise Meredith pareceu não notar a ironia e prosseguiu:

     — As primeiras provas pareciam indicar que Giacomo Nerone agia como uma espécie de mediador entre os camponeses e as tropas de ocupação. Que é que acha disso, condessa?

     — Acho que isso talvez seja um exagero. Quase toda a mediação era feita por mim. Quando as relações se tornavam tensas na aldeia, meus criados me diziam, e eu me aproximava do comandante... Em base muito oficial, é claro. Ele, em geral, procurava cooperar. Penso que talvez Nerone haja exagerado a sua influência para conseguir aumentar seu prestígio junto ao povo.

     Nessa altura, os criados começaram a mexer-se em torno da mesa, trocando os pratos já servidos. Meredith parecia não ter pressa em prosseguir no assunto. Nicholas Black aproveitou-se da pausa para fazer uma pergunta cheia de farpas:

     — Alguém já estabeleceu definitivamente quem era esse homem e de onde vinha?

     Anne Louise de Sanctis estava ocupada com os criados, Meyer permanecia esquisitamente mudo, Padre Anselmo estava ocupado com outro copo de vinho e, após um momento de embaraçoso silêncio, Meredith respondeu:

     — Isso jamais ficou muito claro. A princípio, foi tido como italiano. Mais tarde, ao que parece, alguém manifestou opinião de que podia ter sido membro de uma das unidades aliadas que operavam no sul. Inglês, talvez, ou canadense.

     — Interessante — disse o pintor, secamente. — Houve alguns milhares de desertores no teatro de operações italiano.

     — Isso também é possível — concordou Meredith. — É algo que espero descobrir de modo preciso.

     — Se ele fosse desertor, não poderia ser santo, não é?

     — Por que não? — indagou Meredith, com súbito interesse.

     O pintor estendeu as mãos, com fingida humildade:

     — Não sou teólogo, claro; mas todo soldado faz um juramento de fidelidade. Quebrar um juramento solene deveria ser um pecado, não é certo? E um desertor estaria vivendo num constante estado de pecado.

     — Como descrente, o senhor possui uma lógica muito cristã — observou Meredith, com ligeiro senso de humor.

     Um pequeno sorriso percorreu a mesa e o pintor enrubesceu, encabulado.

     — Pareceu-me uma proposição lógica.

     — Perfeitamente lógica — concordou Meredith. — Mas pode ser que haja outros fatos. Um homem não pode comprometer-se por juramento a pecar. Se se exigir dele que o faça, sob juramento, ele é obrigado a recusar.

     — Como é que o senhor estabelece o fato, monsenhor? E o motivo?

     — Temos de confiar no testemunho, sob juramento, daqueles que o conheceram intimamente. O tribunal, então, tem de examinar o valor do testemunho. — E acrescentou com um sorriso que desarmou o outro: — É uma longa tarefa.

     — Uma complicação para os senhores de Roma — interveio, subitamente, o Padre Anselmo —, que não enxergam as coisas mais simples... mesmo quando se passam debaixo de seus narizes...

     Sua voz era tão indistinta e vacilante, que os convidados se olharam tomados de viva apreensão, fitando, depois, a condessa, que se conservava rígida à cabeceira da mesa. E o velho prosseguiu, vacilante:

     — Todos estão falando como se ninguém soubesse de nada. Nós todos sabíamos quem ele era. Eu sabia. O doutor sabia. A...

     — Ele está embriagado — disse a condessa, com voz clara e dura. — Lamento este espetáculo, monsenhor, mas deviam levá-lo para casa imediatamente.

     — É velho — comentou Meyer em voz baixa. — Seu fígado está arruinado, e basta muito pouco para que seja posto fora de combate. Eu o levarei para casa.

     O velho lançou um olhar nebuloso em torno da mesa, esforçando-se por retomar o fio de suas idéias. Sua cabeça grisalha oscilava e um pequeno fio de vinho escorria-lhe pelos lábios flácidos.

     — Pietro pode ir com o senhor — disse a condessa, lacônica.

     — Eu irei — atalhou Nicholas Black.

     Meredith afastou a cadeira e levantou-se. Havia uma entonação nova em sua voz clara e precisa:

     — É um sacerdote. Eu o levarei para casa, em companhia do doutor.

     — Levem o meu carro — disse Anne Louise de Sanctis.

     — É melhor que ele ande — respondeu, baixo, Aldo Meyer. — O ar fresco lhe fará bem. Não é longe. Ajude-me a ampará-lo, monsenhor.

     Juntos, tiraram-no da cadeira e o conduziram para fora, passando pelo criado que se achava à porta e saindo para o caminho coberto de cascalho.

     Nicholas Black e a condessa ficaram ainda sentados à mesa, a olhar um para o outro. Decorrido um momento, o pintor comentou, em voz baixa:

     — A coisa chegou muito perto, cara, muito perto, não lhe parece?

     — Vá para o inferno! — exclamou a condessa, deixando-o sozinho, a sorrir como um sátiro, diante dos destroços do jantar de sua ama.

    

     Enquanto caminhavam pela estrada esburacada na direção da aldeia, com o Padre Anselmo dependurado de seus ombros, os pés a trotar a esmo ao ritmo de seus próprios passos, Meredith ficou surpreso ao verificar quão leve era o velho. Na sala de visitas e à mesa do jantar, parecia inchado e gordo; agora, era apenas um frágil velho barrigudo, de cabeça gordurosa e oscilante, que murmurava palavras ininteligíveis, babava e agarrava-se a eles, desvalido como uma criança doente.

     Meredith, que raramente se aproximava de um bêbado e jamais vira um sacerdote embriagado, sentiu-se, a princípio, revoltado, mas, depois, passou a experimentar viva compaixão. Ali estava o que acontecia a certos homens quando o terror da vida os assaltava. Eis ali em que se transformavam quando a idade lhes debilitava as faculdades, quando a decadência se lhes insinuava por entre os tecidos e a vontade fraquejava sob o fardo dos anos e das recordações. Quem poderia amar aquela trôpega ruína humana? Quem agora se importaria se ele vivesse ou morresse, ou se a sua alma fosse para sempre condenada... se é que sobrava uma alma após a longa devastação dos anos?

     Meyer se importava... o bastante, pelo menos, para afastá-lo rapidamente da sala e impedir que cometesse novas indignidades, para desculpá-lo com dignidade, dar-lhe o braço e fazer com que fosse para casa usando suas próprias pernas. Meyer se importava: o semita mal-vestido, de má reputação, que compreendia o que acontece a um homem quando o seu fígado ingurgita, quando a sua próstata falha, e quando não pode segurar direito uma colher devido ao artritismo articular. E Blaise Meredith? Também se importava? Ou estava tão preocupado com a sua dor no ventre que não conseguia ver que havia outras maneiras mais mesquinhas de morrer e sofrimentos mais agudos do que os seus?

     Ainda mastigava o mau bocado por que estava passando quando chegaram à casa do padre. Tiraram o fardo de seus ombros e seguraram-no de encontro à parede, enquanto Meyer batia com força na porta da frente. Passado um instante, ouviram, dentro, passos arrastados e, logo depois, uma velha gorda, vestindo uma bata preta e tendo à cabeça, enviesada, uma touca encardida que mal lhe cobria os cabelos desgrenhados, abriu a porta. Espiou-os sonolenta:

     — Bem! O que se passa? Não podem deixar a gente dormir? Se procuram o padre ele não está aqui. Ele...

     — Está embriagado — disse Meyer, em tom amável. — Nós o trouxemos para casa. É melhor que o leve para a cama, Rosa.

     Ela voltou-se para o médico, zangada:

     — Eu sabia que isso iria acontecer! Bem disse a ele! Por que é que não podem deixá-lo em paz? Não foi feito para meter-se com gente fina. É apenas um velho... uma criança grande que não sabe cuidar de si mesma. — Tomou a mão do padre e procurou fazê-lo entrar: — Vamos, seu maluco! Rosa o meterá na cama e cuidará de você...

     Mas o velho cambaleou, tropeçou, e teria caído se Meyer não o segurasse.

     — Vamos, monsenhor — disse o médico, lacônico. — É melhor que o carreguemos até a cama. A mulher é quase tão velha quanto ele.

     Ergueram-no pelos pés e pela cabeça e o conduziram para dentro da casa, subindo por uma escada vacilante, com Rosa Benzoni à frente, alumiando o caminho com uma vela de sebo. A casa cheirava a ranço e a bolor, como um buraco de camundongo e, ao chegarem à cama, Meredith viu que se tratava de uma grande cama de casal, de cobertas ensebadas," e que um lado da mesma já se achava em desordem. Carregaram até ela o velho e fizeram-no deitar-se. Meyer pôs-se a afrouxar-lhe o colarinho e os sapatos.

     A velha afastou-se para o lado, resmungando:

     — Deixem-no em paz! Deixem-no em paz, pelo amor de Deus! Esta noite já causaram muito dano. Posso cuidar dele. Venho fazendo isso há muito tempo.

     Após um momento de hesitação, Meyer deu de ombros e saiu do quarto. Meredith seguiu-o, descendo com cuidado os degraus rangentes, em meio ao ar abafado, até chegar ao agradável frescor da noite enluarada.

     Meyer levou um charuto aos lábios finos, acendeu-o e aspirou profundamente a fumaça. Depois, lançou a Meredith um olhar de soslaio, especulativo, e perguntou, friamente:

     — Está chocado, monsenhor?

     — Tenho pena dele — respondeu, em voz baixa, Meredith. — Profunda pena.

     Meyer encolheu os ombros:

     — A metade da culpa cabe à Igreja, meu amigo. Enviam um pobre-diabo como Anselmo para um lugar como este... Um homem de pouca educação, sem estipêndio, sem segurança de espécie alguma... e esperam que permaneça celibatário durante quarenta anos. Não passa de um campônio e, o que é mais, de um campônio não muito inteligente. Teve a tremenda sorte de encontrar uma mulher como Rosa Benzoni, que ralha com ele e lhe conserva as meias limpas.

     — Eu sei — disse Meredith, com ar absorto. — Isso é o que me comove mais do que tudo. É como uma esposa para ele. Ela... ela o ama.

     — E isso o surpreende, monsenhor?

     — Causa-me pesar... — respondeu, abanando a cabeça, como para afastar um pesadelo que o perseguisse. — Passei toda a minha vida no exercício do sacerdócio e acho... que a desperdicei.

     — Então somos dois — disse, em voz baixa, Meyer. — Vamos até minha casa e lhe farei uma xícara de café.

    

     No aposento de teto baixo, mal-alumiado, da casa de Meyer, com seus móveis camponeses e suas fileiras de vasilhas de cobre, polidas pelas mãos cuidadosas de Nina Sanduzzi, Meredith sentiu o mesmo bem-estar e intimidade que experimentara na casa de Aurélio, o bispo. Sentiu-se grato por aquilo, como se sentira antes, mas dessa vez a sensação de bem-estar foi mais rápida e menos consciente. Sabia, agora, quanto necessitava de amizade e estava disposto a avançar mais do que meio caminho ao seu encontro. Enquanto Aldo Meyer andava pela sala pondo as xícaras sobre a mesa, tirando o café com uma colher e cortando a última fatia de pão para servir com queijo, indagou, abruptamente:

     — O que significa o jantar desta noite? Tudo parecia apontar para algo, mas não consegui perceber o que era.

     — É uma longa história — respondeu Meyer. — Demorará algum tempo para que possa ficar clara para o senhor. A reunião foi idéia da condessa. Queria mostrar o tipo de gente com quem o senhor teria de lidar... e quão melhor seria se o senhor se apoiasse nela, e não em dois vagabundos do campo como Anselmo e eu.

     — Tive a impressão de que estava com medo do que pudesse ser dito.

     — Também isso — concordou Meyer, com um aceno de cabeça. — Todos nós, há muito tempo, temos sentido medo.

     — De mim? — indagou Meredith, fitando-o com ar de surpresa.

     — De nós próprios — respondeu Meyer, com um sorriso enviesado. — Todos nós que lá estávamos esta noite estivemos envolvidos, deste ou daquele modo, na vida e na morte de Giacomo Nerone. Nenhum de nós se saiu muito airosamente do caso.

     — Isso inclui o inglês... o pintor?

     — Ele se envolveu no caso mais tarde. É um indivíduo esquisito... que se sentiu atraído pelo jovem Paolo Sanduzzi. Fez com que a condessa o ajudasse a seduzi-lo.

     Meredith escandalizou-se:

     — Mas isso é monstruoso!

     — É humano — disse, calmamente, Meyer. — Soa melhor quando se trata de uma moça e não de um rapaz. Mas a idéia é a mesma.

     — Mas a condessa disse que o senhor concordou em que o rapaz trabalhasse na villa.

     — Estava mentindo. É uma mentirosa consumada. E isso torna difícil à gente ajudá-la.

     Trouxe o bule para a mesa e despejou o conteúdo fumegante em duas xícaras de barro. Depois, sentou-se diante de Meredith, que o fitou com olhos perplexos:

     — O senhor é muito franco, doutor... Por quê?

     — Aprendi alguma coisa na vida, embora tarde — respondeu Meyer, com firmeza. — Não se pode jamais enterrar tão profundamente uma verdade a ponto de que não possa ser desenterrada. Temos tentado enterrar a verdade acerca de Giacomo Nerone, e agora ela surge em torno de nossos pés. O senhor a saberá, mais cedo ou mais tarde... e acho que deveria sabê-la já. Depois, poderá voltar para Roma e deixar-nos em paz.

     — Isso significa que o senhor também está disposto a depor?

     — Perfeitamente.

     — E a verdade...  é o seu único motivo?

     Meyer levantou rapidamente a cabeça e viu, pela primeira vez, o inquisidor que vivia debaixo da pele de Blaise Meredith. Perguntou, cautelosamente:

     — E o meu motivo importa, monsenhor?

     — Dará colorido ao depoimento — respondeu Meredith. — Mas poderá obscurecer a verdade...  que é a verdade a respeito da alma de um homem.

     Meyer moveu gravemente a cabeça. Compreendia a questão. Respeitava o homem que a formulava. Após uma pausa, respondeu:

     — Tanto quanto um homem pode ser honesto acerca de seus motivos, eis os meus: compliquei tremendamente a minha vida. E não sei bem por quê. Participei, também, da morte de Giacomo Nerone. Estava errado quanto a isso. Mas não creio que estivesse enganado quanto aos outros juízos que fazia dele. Quero falar de tudo isso; quero que alguém me coloque tudo isso dentro da devida perspectiva. Do contrário, acabarei como o velho Anselmo, arranjando uma cirrose por não poder enfrentar os meus pesadelos. Eis por que estava com medo do senhor, como os outros. Se não confiasse no senhor, não poderia falar.

     Um brilho divertido animou os olhos de Meredith. Indagou, irônico:

     — E o que o leva a pensar que pode confiar em mim, doutor?

     — O fato de o senhor possuir a graça de envergonhar-se de si mesmo — respondeu, com franqueza, Meyer. — E isso é bastante raro, na Igreja ou fora dela... Agora, tome o seu café e conversaremos um pouco, antes que o mande para a cama.

     Mas não houve mais conversa para Meredith aquela noite. O primeiro gole de café fê-lo perder o fôlego, assaltou-o de novo a dor no estômago e Meyer o conduziu, cambaleante, para o jardim, a fim de desfazer-se da bílis e do sangue que o afogavam. Depois, passado o espasmo, fê-lo deitar-se em sua própria cama e começou a apalpar-lhe o ventre murcho, apertando a massa dura, mortal, que crescia em seu interior.

     — Isso acontece com freqüência, monsenhor?

     — Está-se tornando cada vez mais freqüente — respondeu-lhe, penosamente, Meredith. — Durante a noite é pior.

     — Quanto tempo de vida lhe deram?

     — Doze meses; talvez menos.

     — Reduza isso à metade! — disse-lhe, francamente, Meyer. — Torne a reduzir e se aproximará mais da verdade.

     — Tão cedo assim?

     Meyer fez um sinal afirmativo com a cabeça.

     — Na verdade, o senhor já deveria estar, nesta altura, num hospital.

     — Quero continuar de pé tanto quanto puder.

     — Tentarei mantê-lo de pé — disse Meyer, com relutante admiração. — Mas se isso se tornar demasiado freqüente, será preciso um milagre!

     — Foi o que o bispo queria que eu pedisse... um milagre.

     Disse-o em tom jocoso, procurando transformar num gracejo a dor que de novo começava a assaltá-lo. Mas Meyer agarrou-se àquilo como um cão rafeiro:

     — Diga isso de novo!

     — O bispo queria que eu pedisse um sinal... uma prova tangível da santidade de Giacomo Nerone. Algumas das curas que lhe são atribuídas poderiam ser milagres, mas duvido que possamos provar qualquer uma delas judicialmente... de modo que a minha cura talvez pudesse ser uma delas.

     — E o senhor, monsenhor? Que foi que respondeu a isso?

     — Não tive a coragem de concordar.

     — Prefere sentir a dor que sente agora... e a que ainda virá?

     Meredith fez um sinal afirmativo com a cabeça.

     — Tem tanto medo do seu Deus, meu amigo?

     — Não sei bem do que tenho medo... É... é como se me pedisse para lançar-me através de um círculo tapado com um papel, do outro lado do qual existem trevas ou uma tremenda revelação. A única maneira pela qual poderei saber é saltando. Eu...  eu... eu não tenho a coragem de fazê-lo. Isso lhe parece estranho, doutor?

     — Estranho... e, contudo, não tão estranho assim — respondeu Meyer, pensativo. — Estranho, tratando-se de um homem como o senhor; mas, para mim, bastante fácil de compreender.

     Estava pensando nos papéis de Giacomo Nerone que ainda permaneciam intactos em sua escrivaninha — e estava pensando, também, no medo que o assaltava todas as vezes que procurava abri-los.

     Mas Meredith não pediu explicações. Fechou os olhos e recostou-se, pálido e exausto, no travesseiro. Meyer deixou-o dormitar até a meia-noite e, quando despertou, levou-o a pé de volta à villa, recomendando ao porteiro que o conduzisse ao quarto.

    

     À meia-noite, Nicholas Black estava também desperto. Sentado em sua cama, fumava um cigarro e contemplava, com profunda satisfação, o retrato de Paolo Sanduzzi, colocado sobre o cavalete, diante das cortinas cerradas. Escolheu aquela posição com certo cuidado, de modo que a luz caísse sobre o mesmo vindo do ângulo certo — e a figura do rapaz se lançava para a frente, afastando-se do lenho escuro da árvore-patíbulo. Os lábios escarlates sorriam para o homem que os pintara, e os olhos eram brilhantes, na contemplação do velado e enganador futuro.

     Narciso, em seu lago, não se viu mais belo do que Nicholas Black na solitária contemplação de sua própria criação. Não obstante, nem mesmo aquele prazer podia deixar de ligá-lo ao que havia de lamentável em sua situação: que aquele era o ponto mais próximo a que podia chegar do que os outros homens possuíam por direito natural... filhos do seu próprio amor, amados e dirigidos para o desabrochar de sua masculinidade. Será que jamais haveria um fim para aquela busca, o pânico arquejante, a azeda humilhação do fracasso?

     Às vezes, com outras pessoas, aquilo deveria ter um fim. Outros buscavam, casados, as suas virgens, que lhes geravam filhos e lhes aqueciam os chinelos, enquanto se arrependiam, felizes, no veranico de suas vidas. Logo, deveria chegar ao seu próprio porto, antes que os ventos do inverno se pusessem a soprar e as folhas mortas, a farfalhar em torno das aléias do jardim.

     Lembrou-se, então, da conversa mantida durante o jantar, e a esperança de novo começou a despertar nele. Amanhã, dissera Meyer, o rapaz viria. Sua mãe falaria com Anne Louise de Sanctis e seria destinado ao serviço com os jardineiros. Durante as manhãs e as tardes, lá estaria — um camponês rústico a ser arrastado a costumes gentis, um criado a ser seduzido, devendo transformar-se em filho. Aquilo exigiria tato e delicadeza, e, também, às vezes, firmeza, de modo que desde o princípio ficasse claramente estabelecida a natureza de suas relações. Nicholas Black percebia, astutamente, a atração que exercia sobre o jovem, bem como a capacidade que o jovem tinha de atraí-lo, para ruína de ambos. Precisava fazer com que o rapaz compreendesse que todas as suas esperanças residiam numa associação disciplinada, e que qualquer tentativa que fizesse no sentido de explorar o seu patrão poderia destruí-los por completo. Contudo, dando tempo ao tempo e levando em conta a intimidade casual que entre eles poderia existir na villa, tinha esperança de que aquilo podia ser feito.

     O que o preocupava é que só podia entender a metade das razões que levavam a condessa a ajudá-lo em sua conquista. A metade dessas razões era bastante simples. Desejava sua cooperação para lidar com o sacerdote. Precisava de um aliado compreensivo que lhe desse coragem. Mas as razões que ainda permaneciam ocultas o preocupavam ainda mais.

     O mundo dos amantes perdidos é uma selva onde todo o tempo é uma estação de cio. Não existe misericórdia na fuga desesperada, completa, da solidão.

     A corrida é ganha pelos mais rápidos; a posse, pelo mais forte. A necessidade selvagem de acasalar e esquecer disfarça os gestos mais civilizados. As palavras mais simples adquirem um colorido de paixão e intriga.

    

     Nicholas Black vivera muito tempo na selva e não lhe restavam mais ilusões. Se Anne Louise de Sanctis o ajudasse, seria para atingir, no fim, os seus próprios desígnios. E quais eram eles? Paixão, talvez? Toda estação trazia sua safra de viúvas ricas que erguiam a saia e se entregavam a rapazelhos, na primavera do Mediterrâneo. As viúvas pagavam e os rapazes representavam a comédia com cinismo latino, e voltavam para suas namoradas, com os lucros, para se casar com elas. Mas a condessa era demasiado experiente para fazer papel de tola em sua própria aldeia. Capri estava logo depois da esquina. Roma era distante e mais discreta. Ela dispunha de dinheiro e de liberdade para se divertir onde quer que fosse.

     Devia haver uma outra razão. O receio que ela sentia de Meredith indicava a existência de algum caso com Giacomo Nerone. A esposa de Putifar, talvez? A liberal senhora transformou-se numa cadela quando José fugiu dela, deixando-lhe as vestes nas mãos, indo divertir-se com uma camponesa, em vez de o fazer com a padrona da villa.

     O ciúme adquiria, às vezes, formas extravagantes. Paolo Sanduzzi, o rapazote, seria uma censura perpétua ao seu fracasso como mulher e amante. Seduzi-lo, afastando-o da mãe, seria uma vingança indireta contra o pai... e um insulto cabal dirigido a Nicholas Black.

     Uma lenta onda de ódio nasceu em seu íntimo, e ele recostou-se nos travesseiros, a fitar o retrato de Paolo Sanduzzi, a odiar a mulher que, em troca de hospedagem e da promessa de uma exposição, pensava comprá-lo, mergulhando-o em tão brutal servidão.

     Anne Louise de Sanctis estendeu-se em sua banheira de mármore e sentiu a água suave mover-se sobre a sua pele como um símbolo de absolvição. O vapor perfumado erguia-se agradavelmente, tornando vagos os ásperos contornos da realidade e misturando-se à eufórica névoa dos barbitúricos que logo a mergulhariam no esquecimento.

     Aquele estreito quarto, com seus frascos de cristal e seu espelho embaçado, era o ventre do qual nascia, nova, todas as manhãs, ao qual se recolhia todas as noites de gemente confusão da solidão. Suspensa no fluido fetal, dentro das" cálidas e estriadas paredes de mármore, podia flutuar absorta em si mesma, justificada a seus próprios olhos, irresponsável, mergulhada numa ilusão de eternidade.

     Mas a ilusão se tornava cada dia mais tênue. O impacto de cada manhã era mais e mais brutal. Mãos intrusas estendiam-se na direção de sua intimidade; vozes a ameaçavam, chamando-a do crepúsculo para o rude dia, e ela sabia que não podia mais mantê-las por muito tempo afastadas.

     Meyer era o primeiro de seus adversários; o médico desmazelado, de rosto desiludido e punhos puídos, o reformador fracassado, o filósofo barato, o homem que tudo sabia e nada realizava, que era inimigo das ilusões porque ele próprio não tinha nenhuma. Em outros tempos, podia fazê-lo voltar-se contra Giacomo Nerone, mas agora toda a sua atenção estava voltada para Nina Sanduzzi, que dera à luz o filho de Nerone. Recusara-se até mesmo à piedade que ela suplicara e, com uma frase brutal, pusera a nu aquilo com que procurara iludir-se.

     Ela queria um filho. Isso era verdade. Queria Paolo Sanduzzi. Também isso era verdade. Mas queria-o para si. Era filho de Nerone, a carne de sua carne, sangue de seu sangue. Tinha amor para dispensar-lhe...  e dinheiro também. Amor que Nerone lhe lançara de volta ao rosto. Dinheiro para resgatá-lo da vida sórdida a que o pai o condenara. Mas Meyer permanecia em seu caminho. Meyer e Nina Sanduzzi — e até mesmo o macilento clérigo que viera de Roma.

     Ela vivia há muito tempo na Itália e compreendia o funcionamento sutil da Igreja em sua vida meridional. Seus príncipes entregavam-se à política com maquiavélica habilidade, mas, não obstante, eram severos quanto à observância da moralidade pública, embora governassem um povo apaixonado e recalcitrante. Não hesitava em invocar o estatuto civil como uma sanção para os dez mandamentos. Como aliado, Meredith poderia ajudá-la grandemente; como inimigo, seria implacável, invencível.

     Assim, por caminhos tortuosos, voltava para Nicholas Black. Tinha pouca fé em sua estabilidade; mas precisava de um aliado e aquele já estava comprado e era fácil de manejar. Não acreditara um momento sequer em seus protestos de puro afeto pelo rapaz. Via aquilo simplesmente como um lance calculado de sedução — e sua promessa de ajuda era igualmente calculada.

     Daria ao pintor tempo e oportunidade para agir junto a Paolo, tentando-o com amizade e a promessa de uma vida de gentleman em Roma. O rapaz cederia rapidamente, tocado, como já estava, pelos descontentamentos da adolescência. O pequeno escândalo da ligação existente entre ambos se converteria num grande escândalo. O controle materno de Nina Sanduzzi seria posto em dúvida. Então... então a condessa entraria em cena, a padrona solícita, a castelã zelosa dos interesses de sua gente. Oferecer-se-ia para afastar o rapaz de um perigo de corrupção, para educá-lo, primeiro em Roma e, depois, na Inglaterra.

     Mesmo a Igreja veria mérito em tal ação. Se Giacomo Nerone devia ser elevado aos altares, eles não desejariam que seu filho andasse a se prostituir pelas aldeias, como muitos outros jovens camponeses. Que Nicholas Black representasse, se quisesse, com íntima satisfação, o papel de intrigante mesquinho; ainda assim, seria ela quem, no fim, ganharia a parada. Caminharia pela Via Veneto, orgulhosa e realizada, em companhia de Paolo Sanduzzi como se Giacomo Nerone o houvesse gerado em seu próprio corpo estéril.

     Saiu do banho, enxugou-se, perfumou-se e vestiu-se para dormir. Depois deitou-se sob o grande dossel de brocado e deixou-se mergulhar num sono produzido por estupefacientes, sonhando com um rapaz moreno e sorridente, cuja mão estava firmemente presa à dela. E quando ele se transformou de jovem em homem, de filho em amante apaixonado, aquilo não foi senão, afinal de contas, uma ilusão noturna, de que não lhe cabia, absolutamente, culpa alguma.

    

   Logo cedo na manhã seguinte, enquanto Nina Sanduzzi varria e limpava a casa, Aldo, sentado debaixo da figueira, falava com Paolo.

     A entrevista começou desajeitadamente. O rapaz mostrava-se insociável e arredio, e as primeiras e vacilantes tentativas de Meyer nada fizeram para conquistar-lhe a confiança. Conservava os olhos fixos no topo da mesa, a mastigar nervosamente um raminho e dava suas respostas num murmúrio quase inaudível, de modo que Meyer se viu obrigado a dominar sua própria irritação e a manter sua voz num tom cordial.

     — Sua mãe falou com você acerca de trabalhar para a condessa?

     — Falou.

     — Sabe que a jovem Rosetta também vai para a villa?

     — Sei.

     — Que é que acha disso?

     — Creio que está bem.

     — Você quer ir ou não?

     — Isso não me importa.

     — O ordenado não é mau. Você poderá manter sua mãe e ainda ter alguma coisa para você.

     — Sim, eu sei.

     — Isso significa que você está ficando homem, Paolo.

     O rapaz deu de ombros e pôs-se a palitar os dentes com o raminho. Meyer tomou um gole de café e acendeu um cigarro. O lance seguinte era o mais importante. Esperava não estragar a coisa. Depois de um momento, disse, tão delicadamente quanto possível:

     — O começo da vida de um homem é a parte mais importante dela. Em geral, compete ao pai colocar o filho no bom caminho. Como você não tem pai, eu... eu gostaria de ajudar.

     Pela primeira vez, o rapaz levantou os olhos e fitou-o frente a frente. Havia desafio no olhar, bem como uma leve hostilidade. Sua pergunta foi direta e pouco cordial:

     — Por que se preocupa com isso?

     — Procurarei dizer-lhe — respondeu Meyer, sereno. — Se você não ficar satisfeito, faça-me as perguntas que quiser. A primeira coisa, é que não tenho filho. Gostaria de ter. Você poderia ter sido meu filho, pois em certa ocasião estive apaixonado por sua mãe. Gosto ainda muito dela. Contudo, ela escolheu o seu pai... e isso encerra a questão. Conheci seu pai. Durante algum tempo, fomos amigos; depois... tornamo-nos inimigos. Tive algo a ver com a sua morte. Lamento, hoje, que isso tenha acontecido. Se puder ajudá-lo, estarei pagando uma dívida para com ele.

     — Não preciso de sua ajuda — disse, rudemente, o rapaz.

     — Todos nós precisamos de ajuda — observou, calmo, Meyer. — Você precisa dela porque está metido com esse inglês e não sabe bem o que fazer.

     Paolo Sanduzzi permaneceu mudo, fitando o raminho retorcido que tinha entre os dedos.

     Meyer prosseguiu:

     — Quero explicar-lhe uma coisa, Paolo. Você sabe o que são os homens... e as mulheres. Sabe como eles se beijam e se acariciam... e o que se passa entre eles quando se amam. Sabe o que sente, quando vê uma garota cujos seios são desenvolvidos e que começa a falar como uma mulher. Mas o que não compreende é como pode sentir isso em se tratando de Rosetta e sentir a mesma coisa quando o inglês toca em você.

     A cabeça do rapaz tornou a erguer-se, defensivamente:

     — Nada existe entre mim e o inglês. Ele jamais tocou em mim!

     — Ótimo! — disse Meyer, calmamente. — Então não há nada de que deva envergonhar-se. Contudo, deve saber que quando o coração de um homem desperta... e o seu corpo também desperta... poderá inclinar-se para este ou aquele lado, como acontece com um arbusto batido pelo vento. Mas, decorrido algum tempo, o arbusto enrijece e fica vigoroso como uma árvore. Então, não pode ser mais torcido, desenvolvendo-se de acordo com a sua forma. A maneira correta de um homem desenvolver-se é na direção de uma mulher... e não de um femminella. Eis aí por que você não pode ficar com o pintor. Você o percebe, não é verdade?

     — Então por que motivo me estão mandando trabalhar na villa? Ele estará lá o tempo todo. E me assusta. Faz-me sentir-me de um modo que não sei o que quero.

     — O que você quer... ele ou Rosetta?

     — Quero ir embora de Gemello! — exclamou o rapaz, enraivecido. — Quero ir para algum lugar onde ninguém saiba nada a meu respeito, ou a respeito de minha mãe ou de meu pai. O senhor acha que me agrada ser chamado de filho bastardo de um santo... filho de uma prostituta? É por isso que quero ficar com o inglês. Ele pode fazer muito por mim. Pode levar-me para Roma, fazer-me viver uma vida nova.

     — E, em Roma, eles lhe darão um nome ainda mais sujo... do qual você não poderá mais livrar-se em parte alguma! Ouça, rapaz...  — suplicou-lhe em voz baixa, ardente. — Procure ser paciente comigo. Procure entender o que vou dizer-lhe. Sua mãe é uma boa mulher... dez vezes melhor do que aquelas que lhe dão aquele nome. O que quer que ela haja feito, fê-lo por amor... e uma prostituta é uma mulher que se vende por dinheiro. Seu pai tinha um toque de grandeza... e quem o diz sou eu...  o homem que contribuiu para que o matassem.

     — Então por que foi que ele não casou com minha mãe e não lhe deu o seu nome? Tinha vergonha disso? Ou de nós?

     — Você alguma vez já perguntou isso a sua mãe?

     — Não... como é que poderia perguntar-lhe?

     — Acho, então, que deveria perguntar-lhe agora — disse Aldo Meyer e, sem esperar resposta, chamou: — Nina! Venha cá um momento, por favor!

     Nina Sanduzzi entrou na sala, e o rapaz, com olhos assustados, viu-a aproximar-se:

     — Sente-se, Nina.

     Ela sentou-se entre ambos, olhando um e outro com olhos graves, indagadores.

     Meyer disse-lhe sereno:

     — O rapaz deseja fazer-lhe uma pergunta, Nina. Acho que tem direito a uma resposta. Você é a única pessoa que pode dar-lha. Ele quer saber por que razão o pai dele não se casou com você.

     — Você acreditará em mim se eu lhe disser, meu filho?

     O rapaz ergueu a cabeça, confuso e envergonhado, e moveu-a, afirmativamente, sem uma palavra.

     Nina Sanduzzi esperou um momento, reunindo as forças e as palavras; depois, com voz firme, disse-lhe tudo.

     Blaise Meredith também já estava cedo em atividade, naquela bela manhã de primavera. Após sua crise na casa do médico, dormira menos agitado do que habitualmente e, quando o criado lhe trouxe o café e descerrou as cortinas para o novo dia, resolveu levantar-se e começar a trabalhar.

     Tomou o seu café, comeu um pedaço de pão fresco com um pouco de manteiga caseira, salgada, banhou-se, barbeou-se e desceu para o jardim, a fim de ler, ao sol, o seu breviário. Terminado o seu dever litúrgico, estaria livre para iniciar suas entrevistas com as testemunhas. A advertência de Meyer ainda estava viva em sua mente. Seu tempo de vida estava-se escoando mais depressa do que imaginara, e não podia dar-se ao luxo de desperdiçar um minuto sequer. Alegrou-se ao verificar que a condessa e Black ainda estavam dormindo, o que o poupava dos rituais dos cumprimentos e das conversas frívolas à mesa do café.

     Terminara as matinas e estava em meio das laudes, quando ouviu ruídos de passos sobre o cascalho do jardim. Levantou os olhos e viu uma mulher e um rapaz caminhando na direção da parte de trás da casa. A mulher estava vestida à maneira camponesa, com um vestido negro e deselegante e um lenço amarrado à cabeça. O rapaz tinha uma camisa listrada, calças remendadas e usava sandálias de couro.

     Caminhava indeciso, olhando ora para um, ora para outro lado, como que ofuscado pelo esplendor de tudo o que o cercava, em contraste com o aspecto rude e desinteressante da aldeia. A mulher caminhava com altivez, a cabeça ereta, os olhos voltados para a frente, como se estivesse resolvida a cumprir com dignidade um dever desagradável. Meredith ficou impressionado com a serenidade clássica de seu rosto, que já se arredondava um pouco com a meia-idade, mas que ainda revelava traços da beleza juvenil.

     Devia ser Nina Sanduzzi, pensou. O rapaz devia ser o filho de Giacomo Nerone, o qual, segundo lhe dissera Meyer, era alvo da conspiração por parte da condessa e de Nicholas Black. Teriam de esperar muito tempo antes que a condessa se levantasse e estivesse preparada para recebê-los.

     Movido por súbito impulso, largou o livro e chamou:

     — Signora Sanduzzi!

     Os dois pararam e voltaram-se para ele. Meredith tornou a chamá-los:

     — Podem vir aqui um momento, por favor?

     A mulher e o rapaz trocaram olhares entre si, indecisos; depois, a mulher atravessou o gramado, seguida, alguns passos atrás, pelo rapaz. Meredith levantou-se para cumprimentá-la:

     — Sou Monsenhor Meredith, de Roma!

     — Eu sei — respondeu a mulher, calmamente. — O senhor chegou ontem. Este é o meu filho, Paolo.

     — Muito prazer em conhecê-lo, Paolo.

     Meredith estendeu a mão ao rapaz, que só depois de ser tocado pelo cotovelo de sua mãe retribuiu, com mão flácida, o cumprimento.

     — Sabe por que estou aqui, signora?

     — Sei.

     — Gostaria de conversar com a senhora logo que fosse possível.

     — O senhor me encontrará na casa do médico... ou em minha casa.

     — Pensei que talvez pudéssemos conversar um pouco agora.

     Nina Sanduzzi abanou a cabeça:

     — Temos de falar com a condessa. Paolo começa a trabalhar hoje.

     Meredith sorriu.

     — Terão de esperar muito. A condessa ainda não se levantou.

     — Estamos acostumados a esperar — disse ela, gravemente. — Além disso, não falarei com o senhor aqui.

     — Como quiser.

     — Mas quando Paolo estiver trabalhando aqui, o senhor poderá falar-me. Isso seria diferente.

     — Certamente. Posso ir vê-la hoje?

     — Se o senhor quiser. Estarei em casa à tarde. Agora precisamos ir. Vamos, Paolo.

     Sem proferir outra palavra, afastou-se. O rapaz seguiu-a, e Meredith ficou a observá-los enquanto se afastavam, até que desapareceram atrás do edifício.

     Apesar daquele breve encontro, a mulher o impressionara profundamente. Havia nela um certo ar... um certo ar de serenidade, de contenção, de sabedoria, talvez. Andava e falava como alguém que sabia para onde se dirigia e de que modo pretendia lá chegar. Não possuía nem a intrometida imprudência de certas camponesas, nem aquela humildade que séculos de dependência impuseram às outras. A língua que falava era o mais áspero dialeto da Itália e, não obstante, sua voz era suave e estranhamente delicada, mesmo em sua recusa mais rude. Se Giacomo Nerone lhe havia ensinado aquilo, então ele, em sua vida, devia ter sido um homem maior do que a maioria de seus semelhantes.

     Meredith viu que sua atenção se desviava da cadência latina dos salmos e se concentrava em dois elementos importantes da vida imprecisa de Giacomo Nerone.

     O primeiro era o elemento de conflito. Era um axioma, na Igreja, que um dos primeiros sinais de santidade era a oposição que despertava, mesmo entre pessoas piedosas. O próprio Cristo fora um sinal de contradição. Sua promessa não era a paz, mas a espada. Nenhum santo do calendário jamais fizera nada de bom sem que deparasse com oposição. Nenhum deixara de ter detratores e caluniadores. A ausência desse elemento, nos registros de Battista e Saltarello, o tinha preocupado. Agora começava a perceber sua existência, bem como sua força e complexidade.

     O segundo elemento era igualmente importante: o bem ou o mal tangíveis que surgem da vida, obras e milagres de um candidato às honras de santidade. Aqui também havia um axioma: o axioma bíblico de que uma árvore se conhece pelos seus frutos. A santidade de um homem deixa a sua marca, como um sinete, no coração dos outros. Uma boa obra se reproduz como a semente de um fruto, que se transforma em outro fruto. Um milagre que não produz bem algum no coração humano é uma mágica sem sentido, indigna da Onipotência.

     Se havia algo de bom em Nina Sanduzzi, e se aquele algo tinha nascido de sua ligação com Giacomo Nerone, então precisava ser levado em conta no meticuloso cômputo do advogado do Diabo.

     Curvou-se de novo sobre o seu breviário, os lábios movendo-se nas estrofes familiares do rei-poeta. Depois, terminada a leitura, fechou o livro, meteu-o no bolso da batina e dirigiu-se à aldeia, a fim de falar com o Padre Anselmo.

     A velha Rosa Benzoni o recebeu à porta e, após parlamentar, entre resmungos, com o recém-chegado, fê-lo entrar na casa, onde Meredith encontrou o velho padre, em mangas de camisa e suspensórios, a barbear-se desajeitadamente diante de um espelho rachado preso à parede da cozinha. Tinha os olhos mais turvos do que habitualmente e suas mãos nodosas tremiam, enquanto escanhoava o queixo. Usava uma velha navalha, e Meredith surpreendeu-se de que ele ainda não tivesse cortado o pescoço com ela. Sua saudação não foi nada cordial:

     — Alô! Que é que deseja?

     — Gostaria de falar-lhe — respondeu, com suavidade, Meredith.

     — Escutarei. Mas não prometo responder.

     — Seria melhor que estivéssemos a sós, não lhe parece? O velho sorriu entre dentes e, depois, lançou uma imprecação, ao dar um pequeno talho no rosto.

     — O senhor se refere a Rosa? É meio surda e duvido que compreenda uma palavra, ouvindo-o falar como se estivesse com um bago de uva romana na boca. Além disso, tem mau gênio... e tive de viver com ela. Prossiga, homem, e diga logo o que tem a dizer.

     Meredith encolheu os ombros e continuou:

     — É a respeito de Giacomo Nerone. Notei, desde os primeiros relatórios, que o senhor se recusou a prestar qualquer depoimento a respeito dele. Isso é porque era seu confessor?

     — Não. Não gostei dos sujeitos que mandaram para cá. Dois charlatães intrometidos, eis o que eram. Recitaram-me um longo sermão sobre o dia do Juízo Final e a condenação eterna. Despachei-os com uma pulga atrás da orelha. Ademais, quem se importa com o que eu diga? Sou o escândalo da diocese.

     — Não estou interessado em escândalo — disse, friamente, Meredith.

     O velho largou a navalha e enxugou o rosto com uma toalha encardida. Depois disse, áspero:

     — Então é o primeiro que encontro que não está interessado nisso! É só contar-lhes uma história suja e ficam a roê-la como cães a um osso. Recebi uma carta do bispo em que me dizia esperar que minha ligação com Rosa tivesse perdido o seu caráter carnal... — Lançou uma gargalhada alta, áspera: — Quanto tempo pensa ele que um homem continua a fazer essas coisas? Na minha idade, o melhor que a gente pode esperar é manter-se aquecido à noite.

     — Na sua idade — sugeriu, em tom brando, Meredith — a maioria das pessoas casadas dorme em camas separadas.

     — Em Roma, talvez — rosnou Padre Anselmo. — Mas aqui não temos dinheiro suficiente para comprar uma cama nova...  isso para não falar em dois jogos de cobertores. Olhe aqui...  — ajuntou, jogando a toalha com um gesto de impaciência. — Não somos crianças, monsenhor. Tanto quanto ao bispo, não me agrada a situação em que me encontro. Mas, na minha idade, como é que posso safar-me dela? Não posso atirar Rosa na rua. É uma velha. Foi boa para comigo...  quando uma porção de meus irmãos de batina pouco se importariam se eu morresse ou vivesse. Não tenho quase nada. Mas Deus sabe que ela tem direito à metade do que possuo. Sua Excelência o bispo tem alguma resposta para isso?

     Meredith sentiu-se comovido. O cru dilema em que se encontrava o homem era assustador. Pela primeira vez em sua vida sacerdotal, começou a compreender o problema real do arrependimento, o qual não é o problema do pecado em si, mas as conseqüências que proliferam dele, como parasitas numa árvore. A árvore não tem outro remédio senão continuar a alimentar o parasita, adquirindo beleza dele mas, ao mesmo tempo, morrendo lentamente, à falta de um jardineiro esclarecido. Era espantoso pensar que um homem podia mergulhar no desespero e na condenação eterna por não poder comprar dois cobertores. Subitamente, diante do caso do Padre Anselmo, o caso de Giacomo Nerone pareceu-lhe pequeno e insignificante. Se Giacomo era santo, feliz dele — pois terminara de uma vez por todas com a longa luta. Tudo o mais não passa de um glossário momentâneo. Um súbito pensamento assaltou Meredith, mas hesitou em pô-lo em palavras. Decorrido um momento disse, com cuidado:

     — Sua Excelência Reverendíssima é um homem surpreendente. Gostaria de ajudá-lo. Creio... estou certo de que se o senhor fizesse com que Rosa se transferisse para uma outra cama, num outro quarto, ele aceitaria tal medida e esqueceria o resto.

     O velho abanou a cabeça, obstinado:

     — Quem paga pela cama e pelas cobertas? O senhor parece não compreender. Vivemos, aqui, em completa miséria. É uma questão de ter o que comer.

     — Ouça uma coisa — disse Meredith, com um sorriso oblíquo. — Eu pagarei. Darei ao senhor e a Rosa o suficiente para que comprem roupas novas. Além disso, depositarei em seu nome cem mil liras no Banco di Calábria. Isso ajudaria?

     Padre Anselmo lançou-lhe um rápido olhar, desconfiado.

     — E por que razão iria o senhor se interessar tanto, monsenhor?

     Meredith deu de ombros:

     — Tenho apenas três meses de vida. Não posso levar isso comigo.

     Os olhos congestionados olharam-no, incrédulos. A rude voz camponesa tornou a indagar:

     — Que mais terei de fazer?

     — Nada. Se quiser que eu o confesse, terei prazer em fazê-lo. O senhor não poderá dizer-me muita coisa que eu já não saiba, de modo que não lhe deverá ser difícil. De nada vale fazer as coisas pela metade. Algum dia terá de pôr a sua consciência em ordem.

     — O bispo falou na necessidade de reparar o escândalo. Havia ainda dúvida em sua voz, mas a rude obstinação desaparecera.

     Meredith lançou-lhe um de seus raros, irônicos sorrisos:

     — O bispo possui personalidade própria. Creio que ele sabe que a maioria das pessoas é responsável pelos seus próprios escândalos. Os bons cristãos conservam a boca fechada e rezam pelos seus irmãos que sofrem. Logo correrá pela aldeia a notícia de que o senhor e Rosa dormem em camas separadas. O resto advirá do que fizer daqui por diante... Bem, o que é que diz a isso?

     Anselmo passou a mão nodosa pelo queixo mal barbeado. Sua boca, flácida, contraiu-se num sorriso:

     — Eu? Eu creio que é uma saída. Isso vem-me preocupando há muito tempo, mas, de certo modo, amo a velha mulher e não gostaria de fazê-la sofrer.

     — Não acho que o amor cause qualquer mal. Eu mesmo gostaria, agora, de sentir um pouco de amor.

     A voz parecia pertencer a um outro homem, e não a Blaise Meredith, o frio membro da Congregação dos Ritos.

     — Muito bem! — exclamou, bruscamente, o velho. — Pensarei a respeito. Falarei com Rosa e lhe explicarei as coisas. Mas a gente não pode fazer uma coisa dessas apressadamente. As mulheres são sensíveis... e, quando ficam velhas, se tornam também estúpidas — acrescentou, os olhos brilhando astutamente. — E quando veremos a cor do seu dinheiro, monsenhor?

     Meredith tirou a carteira e colocou trinta e uma mil liras sobre a mesa:

     — Isto é o começo da coisa. Poderá comprar os cobertores e a cama. O resto, terei de resolver em Valenta. Está bem assim?

     — Tem de estar — respondeu, com má vontade, o velho. — Gostaríamos de assentar as coisas antes de sua morte. Quando os advogados põem a mão nos bens alheios... adeus! Só sobram ninharias! Agora... que mais deseja o senhor?

     — Giacomo Nerone... Que é que pode dizer-me a respeito dele?

     — Que acontecerá, se lhe disser?

     — Tomarei nota e, depois, o senhor será ouvido sob juramento no tribunal do bispo.

     — Vou dizer-lhe uma coisa, monsenhor. Espere até que ouça a minha confissão. Contar-lhe-ei, então, toda a história. Está bem assim?

     — Um segredo confessional não serve como depoimento legal.

     O velho lançou a cabeça para trás e riu rudemente, à sua maneira.

     — Eis aí o que quero dizer, meu amigo! Já lhes proporcionei escândalo demais! O diabo que me carregue, se lhes der mais algum!

     — Como quiser — respondeu Meredith, cansado. — Virei vê-lo dentro de alguns dias.

     — E não se esqueça do que tem de fazer em Valenta.

     — Não esquecerei. Levantou-se e caminhou em direção à porta. Não houve despedidas, nem apertos de mão e, enquanto descia o monte rumo à casa do médico, Meredith teve a desagradável impressão de que havia agido como um idiota.

    

     Meyer saudou-o de bom humor, conduziu-o ao jardim e serviu-lhe uma caneca de vinho da região, despejando-o de uma jarra de barro que esfriava ao sol. Meredith notou logo a mudança que se operara nele: tinha os olhos mais claros, o rosto contraído mas descansado e o ar confortável de um homem que chegara a bons termos consigo mesmo e com sua situação.

     Meredith comentou-o, com ar irônico:

     — O senhor parece melhor esta manhã, doutor.

     Meyer sorriu, diante da caneca de vinho:

     — Um bom começo para o meu dia, monsenhor. Falei com um rapaz como um pai; e ouvi coisas sábias de sua mãe.

     — Nina Sanduzzi?

     — Sim. Aqui entre nós: creio que fiz algo pelo rapaz.

     — Eu os vi na villa; falei-lhes durante um momento. Vou visitar Nina Sanduzzi esta tarde. Está disposta a falar.

     — Ótimo — disse Meyer, movendo a cabeça com satisfação. — Vou dar-lhe uma indicação, meu amigo. Aja delicadamente e conseguirá muita coisa dela. Está disposta, agora, a ser franca. E quer que o senhor olhe pelo rapaz, enquanto ele se encontra na villa.

     — Farei tudo o que estiver ao meu alcance. Ela me impressionou profundamente.

     — E Paolo?

     — É como qualquer outro adolescente.

     — Não é bem assim... — advertiu-lhe Meyer. — Está na idade perigosa. Sente-se atraído pelo inglês e, ao mesmo tempo, o teme. E está curioso a respeito da mãe e do pai. Não tão curioso como antes, agora que Nina já conversou com ele. Mas quando a gente é velho, nunca sabe até que ponto um jovem compreende... e que caraminholas lhe passam pela cabeça. E o que há agora, monsenhor?

     — Gostaria de falar-lhe, doutor.

     — A respeito de Nerone?

     — Sim.

     Aldo Meyer tomou um longo sorvo de vinho e enxugou os lábios com as costas da mão. Depois disse, com desolado humor:

     — Não é habitual colocar uma estola, quando ouve confissões?

     — Tirarei os sapatos, em lugar disso — respondeu Blaise Meredith.

     — É uma longa história, monsenhor. Quando ficar monótona, sirva-se de vinho...

    

     ... Era pleno verão num mundo sem homens. Manhãs quentes e tardes escaldantes, e noites em que as nuvens rolavam, suando, sobre o vale, e passavam, depois, sem transformar-se em chuva. As pessoas andavam irritadas e a vitalidade, baixa, pois os exércitos eram como gafanhotos comendo a terra, e não havia homens nas camas — exceto os velhos, que eram um aborrecimento, e visitantes ocasionais, como a polizia, os carabinieri, o inspetor agrícola e os oficiais encarregados do recrutamento para o exército. Esses também constituíam um aborrecimento, pois, quando iam embora, havia discussões nas casas e caras ensangüentadas e camisas rasgadas nos campos.

     O vale era como um ninho de gatos, almiscarado, quente e lânguido para o acasalamento, mas transformando-se, de repente, em gritos e violência. Meyer vivia ali porque era judeu e exilado e, dia sim, dia não, tinha de atravessar o vale em direção de Gemello Maggiore, a fim de assegurar à questura que não estava doente nem morto. Fosse como fosse, isso lhes era indiferente, mas o amaldiçoavam quando chegava e o ameaçavam quando deixava de comparecer — e davam-lhe vinho, queijo e cigarros se seus filhos estavam doentes ou suas filhas grávidas, ou se eles próprios eram atacados pela malária. Faziam gracejos grosseiros por ser judeu e circuncidado e o advertiam acerca de poluir o sangue puro das mulheres que, como boas calabresas, tinham sangue grego, fenício, francês, espanhol, italiano e árabe levantino... toda espécie de sangue, menos sangue judeu.

     Meyer engolia aquilo tudo, digeria-o em segredo e mantinha os ouvidos abertos aos rumores que zumbiam como abelhas ao entrar e sair do vale. Os Aliados estavam na Sicília, havia cabeças-de-ponte em outros lugares. Guerrilheiros armavam-se nos montes, desertores metiam-se em cavernas e camas amigas. Os alemães mandavam às pressas reforços para o sul. Mais cedo ou mais tarde, chegaria o fim e ele queria estar vivo para ver o que aconteceria.

     Trabalhava em suas terras áridas, visitava seus doentes, fazia a sesta e, à noite, sentava-se diante de seus livros e de sua garrafa.

     Se se mantinha livre das mulheres da aldeia, era por ser um homem difícil de contentar e, também, porque não queria enfrentar o futuro que raiava tendo uma aldeã agarrada à aba de seu casaco. Tinha esperado muito tempo. Podia dar-se ao luxo de esperar um pouco mais.

     Foi à noite, já tarde, que Nina Sanduzzi o procurou. Chegou descalça, para que a aldeia adormecida não ouvisse o ruído de seus tamancos. Pulou o muro do lado do vale, receosa de que algum retardatário abelhudo a visse bater à porta do médico. Já estava dentro do halo de luz do lampião, quando ele despertou de seus devaneios e a viu. Sobressaltou-se, zangado:

     — Nina! Que diabo está fazendo aqui?

     Ela levou os dedos aos lábios, pedindo silêncio, e, em seu rude dialeto, explicou em voz baixa:

     — Há um homem em minha casa. É um desertor e está ferido. Tem uma bala no ombro, que está todo vermelho e inchado. Vira-se de um lado para outro na cama e murmura coisas, como se tivesse febre. O senhor pode ir vê-lo, por favor? Eu trouxe dinheiro.

     Enfiou a mão no decote do vestido e tirou um pequeno maço de notas ensebadas. Meyer afastou o dinheiro com um gesto de impaciência.

     — Guarde isso, pelo amor de Deus! Alguém mais sabe onde ele está?

     — Ninguém. Ele chegou ontem à noite. Dei-lhe café pela manhã e ficou o dia todo dentro de casa. Quando voltei do trabalho estava assim.

     — Está bem. Irei.

     Fechou o livro, abaixou a luz, apanhou sua maleta de instrumentos e o seu pequeno estoque de anti-sépticos e acompanhou-a pela parte dos fundos da casa, saltando o muro e rumando para a pequena choça oculta em meio aos azinheiros.

     Encontrou o seu paciente delirando na grande cama de ferro — um sujeito alto e moreno, com uma barba de dois dias nas faces encovadas, o olhar parado, boca babosa e murmurante, a proferir palavras e frases sem nexo, que ele reconheceu como sendo inglesas. Uma bela situação! Os desertores já constituíam grande complicação, mas um soldado inglês era morte iminente. Contudo, não fez comentário algum. Inclinou-se apenas sobre a cama e pô-se a cortar as ataduras empapadas de sangue que lhe cobriam o ombro.

     Ao ver o ferimento, lançou, baixinho, um assobio de surpresa. O ombro estava flácido e inchado, e uma supuração lenta e amarelada já havia começado. Trabalho difícil e sujo. Doeria como o diabo, sem anestésico, e o sujeito bem poderia morrer ao cabo de alguns dias.  Voltou-se para Nina Sanduzzi:

     — Acenda o fogo. Ferva-me uma chaleira de água. Depois, você terá de segurá-lo para mim.

     Os dentes alvos da moça mostraram-se num sorriso:

     — Faz muito tempo que não tenho um homem nos braços, dottore. Será um prazer.

     Mas o prazer logo acabou, mesmo para ela. A bala havia atingido a omoplata e se desviado para baixo junto ao osso, e Meyer teve de gastar vinte minutos para localizá-la, enquanto o ferido gritava inutilmente de encontro à mordaça que lhe enfiaram na boca, ao mesmo tempo em que Nina Sanduzzi lançava mão de toda a sua força para segurá-lo.

     Depois, quando a operação terminou e a dor diminuiu, ajeitaram-no bem na cama, e Nina e Meyer sentaram-se um instante para tomar um copo de vinho e comer alguma coisa.

     — Você não pode conservá-lo aqui. Você sabe disso, Nina. Se alguém descobrir, você estará morta.

     Ela fitou-o, perplexa:

     — Quer, então, que o jogue na rua? Um homem doente assim?

     — Mais tarde — respondeu Meyer, cansado. — Quando estiver melhor.

     — Esperemos, então, até mais tarde — disse Nina Sanduzzi, com um sorriso.

     Olhando-a, então, à luz do lampião que pendia do teto baixo, sentira a primeira e verdadeira tentação durante anos. Seu rosto era grego puro. Seu corpo era mais esguio do que o das outras camponesas. Os seios eram cheios e firmes, e uma vitalidade animal parecia surgir de sob sua pele cor de azeitona. Tinha, ademais, inteligência e coragem. Não se desesperava nem gritava como as outras. Sabia o que era preciso fazer, e fazia-o calma e competentemente. Ele se surpreendeu de ter passado por ela uma centena de vezes sem que jamais a tivesse observado.

     Mas era um homem cauteloso, acostumado à abstinência, de modo que terminou rapidamente o seu vinho e se dispôs a partir.

     — Compreenda uma coisa, Nina. Ele está muito doente e poderá morrer. Faça uma sopa e veja se ele consegue mantê-la no estômago. Quando sair para o trabalho, feche a porta e deixe-lhe vinho e alimento. Não me atrevo a vir aqui durante o dia, mas virei à noite, depois que a aldeia já se houver recolhido.

     — O senhor é um bom homem — disse Nina Sanduzzi, baixinho. — Num lugar cheio de porcos, o senhor se destaca como um homem — ajuntou, tomando-lhe a mão e beijando-a depressa. — Agora vá, dottore mio! Não estou acostumada a ter homens pela casa.

     Enquanto subia, com dificuldade, pela encosta pedregosa, evitando a estrada, ia refletindo se a continência não seria, como todos os seus outros sacrifícios, um desperdício sem sentido... e se aquela não seria uma mulher com quem pudesse ser feliz. O que sempre receara em seu exílio, a coisa que os seus inimigos desejavam que fizesse: que ficasse desleixado, que se tornasse como os outros homens do lugar, que se entregasse à bebida e às prostitutas da aldeia, que se esquecesse de lavar suas camisas e de comer com garfo e faca. Com Nina Sanduzzi talvez ainda pudesse evitá-lo... Mas o risco já estava... e havia débeis toques de clarins a soar pelos montes. Melhor esquecer aquilo e ir para casa dormir.

     Necessitou de mais de uma semana para pôr o paciente fora de perigo. O ferimento era profundo e novas infecções irromperam, e precisou drenar o ferimento com os meios primitivos de que dispunha. Mais de uma noite permaneceu sentado em companhia de Nina observando a febre subir e baixar, até que os primeiros clarões do amanhecer tingiam o horizonte. Era, então, a hora de partir, antes que a aldeia despertasse.

     Aparecia todas as noites, pois sentia necessidade dela. Todas as vezes que saía, sentia o coração confranger-se de ciúme, por deixá-la a sós com o enfermo, que agora já começava a alimentar-se e a conversar um pouco entre as crises de febre e os longos intervalos de sono inquieto.

     A princípio, ele mostrou-se cauteloso, mas, ao compreender a situação de Meyer como exilado político e os riscos que a jovem estava correndo por sua causa, acalmou-se um pouco, embora ainda se recusasse a contar-lhes outra história diferente da que narrara, ao chegar, a Nina Sanduzzi.

     — É melhor que não saibam nada mais do que isso. Assim, se forem interrogados, poderão dizer a verdade. Embora, de todo o coração, espere que não o sejam. Sou Giacomo Nerone, um artilheiro vindo de Reggio. Procuro voltar para a minha família, em Roma. Quando é que acha que estarei suficientemente forte para viajar, doutor?

     — Daqui a quinze dias; três semanas, talvez. A não ser que contraia uma outra infecção. Mas para onde pretende ir? Dizem por aí que os Aliados desembarcaram ao norte daqui, e que estão avançando para a ponta da bota da Itália, procedentes de Reggio. Este lugar é um esconderijo na montanha. Com os seus camaradas recuando e os alemães cedendo, o senhor logo se verá em situação difícil. Seu sotaque não é da Calábria. Mais cedo ou mais tarde, alguém fará perguntas... a menos que o senhor se refugie nas montanhas. Mas, nesse caso, como irá comer?

     Nerone sorriu tristemente e viram de que modo o seu humor o transfigurava de novo num rapaz:

     — Que esperam que eu faça? Não posso ficar aqui.

     — Por que não? — indagou Nina Sanduzzi. — Há aqui uma casa, uma cama e alimento. Não é muito, mas é melhor do que morrer numa fossa, com outra bala metida em seu corpo.

     Os dois homens se olharam. Após uma pausa, Meyer acenou com a cabeça, com ar de dúvida.

     — Pode ser que ela tenha razão...  — E observou, cauteloso: — Quando as coisas mudarem por aqui, pode ser que esteja em situação de ajudar-nos. O rapaz moreno abanou a cabeça:

     — Não como o senhor pensa, doutor.

     Meyer contraiu o sobrolho e respondeu, rude:

     — O senhor não me compreende. Ouvi-o falar enquanto dormia. Sua lealdade é para com outras causas, ao que parece. E elas nos poderão ser úteis, mais tarde.

     Agora foi a moça quem se voltou, perplexa.

     — Lealdade? — indagou, ríspida. — A que é que o senhor se refere?

     — Sou inglês — disse Nerone. — E agora, que isso já foi dito, vamos esquecer o assunto.

     — Inglês! — exclamou Nina Sanduzzi, os olhos esbugalhados.

     — Esqueça-se disso! — ordenou, em tom rude, Meyer.

     — Já está esquecido — respondeu ela.

     Mas sorriu ao dizê-lo, fazendo uma outra proposta que os deixou, por um momento, mudos:

     — Se ficar aqui, não há razão por que não possa trabalhar para manter-se... Não fique assim tão surpreso! Há por aí uma meia dúzia de rapazes fazendo isso neste momento. Eles também desistiram da guerra. Dois deles são daqui mesmo; os outros vieram só Deus sabe de onde. Mas precisamos de homens, pois há muito o que fazer antes que chegue o inverno... e ninguém irá fazer barulho por causa disso. Se há alguém suspeito andando por aí, eles se escondem; posso conseguir trabalho para você com o velho Enzo Gozzoli. Ele é capataz da minha gente. Perdeu dois filhos na guerra e odeia os fascistas como o diabo. Quando estiver melhor falarei com ele...  Isto é, se quiser.

     — Pensarei nisso — respondeu Giacomo Nerone: — Sou-lhe muito grato, mas tenho de pensar no assunto.

     Recostou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos; pouco depois, estava dormindo.

     A moça serviu outro copo de vinho a Meyer, e ele o bebeu, pensativo, observando-a enquanto ela se debruçava sobre a cama, ajeitando a cabeça morena sobre o travesseiro, puxando cuidadosamente as cobertas sobre o ombro ferido e deixando-se ficar um momento a contemplar, silenciosa, o hóspede, que dormia.

     Quando ela voltou, Meyer levantou-se, tomou-a nos braços e tentou beijá-la.

     Ela afastou-o delicadamente.

     — Não, dottore mio. Agora não.

     — Eu quero você, Nina!

     — O senhor não me quer de verdade, caro — respondeu-lhe, suavemente. — Do contrário, já me teria tomado há muito tempo... e eu teria ficado contente. Estamos no verão, o senhor se sente solitário e passamos muitas noites juntos. Mas não sou para o senhor, e o senhor sabe disso... Mais tarde, me odiaria. Eu quero um homem, Deus bem o sabe! Mas quero tudo dele.

     Meyer voltou-se e apanhou sua maleta. Depois, fez um gesto rápido na direção da cama.

     — Talvez já o tenha — disse, secamente.

     — Talvez — respondeu Nina Sanduzzi.

     Dito isso, dirigiu-se à porta e abriu-a para que ele saísse. Enquanto subia o monte, Meyer ouviu a batida da porta, ao fechar-se — um som seco, nítido, na noite tépida.

    

     — E foi assim que tudo começou? — indagou Blaise Meredith.

     Meyer estendeu a mão e apanhou a jarra de vinho.

     — Três semanas depois, ele já estava de pé, a trabalhar para Enzo Gozzoli. À noite, voltava para a casa de Nina e eram amantes.

     — Mas além do fato de ser inglês, o senhor não tinha idéia de quem ele realmente era?

     — Não — respondeu Meyer, tomando um outro longo gole de vinho e limpando os lábios num lenço encardido. — Havia três coisas que poderia ser: prisioneiro fugitivo, um agente inglês enviado para estabelecer contato com os primeiros grupos de guerrilheiros, ou um desertor.

     — E, para o senhor, o que é que parecia ser?

     — Analisei cada uma dessas possibilidades, procurando ajustá-lo a elas. Um prisioneiro fugitivo? Sim. Só que não mostrava inclinação alguma para fazer o que tal homem deveria fazer: procurar voltar à sua unidade. Um agente secreto? Também podia sê-lo. Falava bom italiano... e não o argot das cantinas e do bordel militar. Era um homem educado. Sensível às características locais. Mas quando insinuei que devia unir-se a mim na tentativa de estabelecer contato com os guerrilheiros, recusou-se.

     — Deu alguma razão para isso?

     — Não. Recusou delicadamente, mas de maneira definitiva.

     — Um desertor, então?

     Meyer contraiu os lábios, pensativo.

     — Parecia muito pertencer a tal categoria. Mas um desertor é um homem que tem medo. Tem o ar do fugitivo. Vive com a convicção de que um dia ou outro terá de ser apanhado. Nerone não revelava nada disso. Uma vez curado, andava, falava e ria como um homem livre.

     — Era um oficial?

     — Parecia-me que sim. Como disse, era um homem culto. Tinha o hábito da decisão, talento para fazer com que as coisas fossem feitas. Mas não trazia consigo documento algum de identificação. Eu lhe disse que, se fosse apanhado assim, pelos alemães ou italianos, poderia ser fuzilado como espião. Apenas riu, dizendo que Giacomo Nerone era um bom italiano que não via razão alguma para a guerra. Mais vinho, monsenhor?

     Meredith acenou vagamente com a cabeça e, enquanto Meyer lhe enchia o copo, perguntou:

     — Qual o juízo que o senhor formou de seu caráter nesse primeiro período?

     — Parte dele já lhe disse: coragem, bom humor, capacidade de realização. O resto? Não estava ainda bem certo. Tinha ciúmes dele.

     — Por causa de Nina Sanduzzi?

     — Por isso e por outras coisas. Tinha vivido em meio a essa gente, trabalhando para ela durante muitos anos. E jamais chegara a estabelecer qualquer intimidade com ela. Nerone, numa semana, estava perfeitamente à vontade. Os homens confiavam nele. As mulheres amavam-no. Podia fazê-las rir retorcendo apenas a testa morena. Contavam-lhe todos os escândalos, ensinavam-lhe o dialeto e compartilhavam seu vinho com ele. E eu ainda era forasteiro... o judeu que viera de Roma.

     — Sei como se sente — disse, bondosamente, Meredith. — Fui assim durante toda a vida. Com a diferença de que jamais servi a alguém.

     Aldo Meyer lançou-lhe rápido olhar de simpatia, mas Meredith fitava, absorto, o vinho escuro que tinha em seu copo. Prosseguiu:

     — O que mais me irritava nele era que parecia aceitar tudo com naturalidade, como coisa permanente. Como se o presente fosse a única coisa que importasse. Para ele, isso era bastante natural, creio. Já tinha tido a sua guerra. Estava contente com o momento que estava vivendo. Quanto a mim, esperara tanto tempo que bradava por ação e por uma mudança.

     — De modo que viviam em desavença um com o outro?

     Meyer abanou a cabeça:

     — Eis aí a parte estranha do caso. Quando não o via, a sua pessoa me desagradava. Mas quando nos encontrávamos ao passar... ou quando, mais tarde, veio à minha casa, uma noite, a fim de tomar um livro emprestado, ele me encantava. Havia uma calma nele... uma delicadeza... O mesmo que existe hoje em Nina Sanduzzi.

     — Sobre quê conversavam?

     — Tudo... menos Nerone. Ele se recusava a falar sobre qualquer assunto que pudesse fornecer uma indicação quanto à sua identidade. O que mais interessava era este próprio lugar, sua gente, sua história, seus costumes, as relações existentes entre essas criaturas. Era como se estivesse procurando esquecer tudo o que lhe havia pertencido e absorver-se na vida da montanha.

     — E se interessava por essa gente?

     — A princípio, não. Parecia considerar-se como um deles. Mas não tinha planos, como eu. Nem projetos para lhes melhorar a situação.

     — Quais eram suas relações com Nina Sanduzzi?

     Meyer esboçou um sorriso oblíquo e estendeu as mãos num gesto como que de súplica.

     — Eram felizes juntos. Podia-se ver em seus rostos. Isso era tudo o que eu sabia. Mais do que desejava saber. Quanto ao resto, o senhor terá de falar com Nina.

     Meredith fez um sinal afirmativo com a cabeça.

     — Desculpe-me por ser assim insistente, doutor. Mas o senhor compreende qual é a minha missão.

     — Compreendo. E não me estou esquivando. Procuro dizer-lhe apenas o que sei.

     — E, por favor, prossiga.

     — A fase seguinte começa em fins de outubro... em meados do outono. Nerone veio ver-me, a fim de que eu examinasse Nina. Estava grávida de dois meses.

     — E como reagiu ele diante disso?

     c Mostrou-se alegre. Ambos estavam. Creio que jamais tive mais ciúmes dele do que naquele momento. Ele viera, ninguém sabia de onde, e obtivera o que não me fora possível obter durante toda a minha vida: — aceitação, amor, uma promessa de objetivo e continuidade.

     — Contudo, nada fez para casar com Nina?

     — Não.

     — E ela queria?

     — Indaguei de ambos — respondeu Meyer, com cuidado —, não porque isso me interessasse...  pois num lugar sem homens não é vergonhoso a uma mulher ter um filho sem pai...  mas porque desejava ver que espécie de homem era aquele.

     — E que disse ele?

     — Nada. Foi Nina Sanduzzi quem respondeu: "Há tempo de sobra para o repicar dos sinos, dottore, quando soubermos o que irá acontecer".

     — E Nerone?

     Meyer fitou as costas das mãos estendidas como aranhas sobre a cálida madeira da mesa. Hesitou um momento. Depois disse:

     — Lembro-me muito bem do que aconteceu a seguir. Justamente quando parecia ter tido uma idéia de que Nerone realmente era um hóspede noturno que se poria a caminho antes que raiasse o dia, ele de novo me surpreendeu.

     — De que maneira?

     — Disse, simplesmente, a propósito de nada: "Vamos ter um mau inverno, doutor. É melhor que o senhor e eu nos preparemos desde já para enfrentá-lo!"

    

     ... Em outros tempos, antes que os homens tivessem sido levados, antes que a guerra tivesse começado a dar para trás, quando havia ainda uma autoridade e um propósito na terra, o inverno era suportável... embora não fosse jamais uma estação agradável.

     Havia carvão armazenado, vinho e azeite nos grandes garrafões azuis. As cebolas pendiam em réstias dos caibros dos telhados, as espigas de milho eram empilhadas nos cantos e havia batatas enterradas na palha. Havia queijo para comprar, e salames e presuntos defumados e lentilhas, e os moleiros tinham à venda farinha para a pasta. A comida ali estava, mesmo que a gente tivesse de fazer um furo no bolso de tanto esfregar a mão à procura de dinheiro. Antes que a neve se adensasse, havia sempre troca de produtos entre as aldeias, e quando, aos poucos, cessava o trabalho nos campos, o povo pagava um pequeno tributo para que as estradas fossem desobstruídas e despejassem cascalho nos caminhos cobertos de gelo.

     Era vida — não uma vida muito satisfatória, com certeza —, mas se a gente se agarrasse a ela durante o tempo suficiente, acabava por ouvir a torrente a reboar, a sentir os primeiros ventos cálidos vindos do sul e o gelo a derreter dos ossos da gente com a chegada da primavera.

     Mas nessa ocasião não havia homens, as colheitas eram pobres e a arrecadação do intendente-geral levava quase tudo. As trocas em espécie eram quase nulas, pois quem se dispunha a levar sua carroça ao mercado, correndo o risco de deparar, no caminho, com ladrões, desertores e patrulhas? Melhor ficar em casa e viver tanto quanto possível daquilo de que se dispunha. Além disso, os rapazes estavam voltando, extraviados, sem chefes, desiludidos e famintos... novas bocas a serem alimentadas do pouco que restava do que se havia armazenado.

     Não havia mais governo. Os funcionários que haviam agido como sujeitos sensatos permaneciam em seus postos, à espera de que seus ordenados pudessem chegar, e, se não chegassem, esperando ao menos alguma retribuição pela sua dedicação. Os que eram bastardos estavam indo embora, juntando-se a unidades ainda ativas, ou vendendo-se, bem como o conhecimento que tinham da região, aos destacamentos alemães que se dirigiam para o sul, a fim de enfrentar o Oitavo Exército Aliado.

     E, em Gemelli dei Monti, eles sentiam o vento, os primeiros aguaceiros, contavam as primeiras nevadas e diziam: "Vamos ter um mau inverno".

     Giacomo Nerone também o dizia, fria e enfaticamente. Mas ajuntava, por sua conta, um ou dois comentários:

     — O senhor e eu somos as únicas pessoas, aqui, que têm algum cérebro ou alguma influência. Precisamos dirigir a organização.

     Meyer olhava-o, boquiaberto, atônito:

     — Pelo amor de Deus, homem! Não sei a que se refere. O senhor é um fugitivo. Eu sou um exilado político. No momento em que pusermos para fora as nossas cabeças, eles as deceparão!

     — Eles quem, doutor? — perguntava-lhe Nerone, a sorrir.

     — As autoridades. A polícia. Os carabinieri. O prefeito de Gemello Maggiore.

     Nerone lançava para trás a cabeça e ria a bom rir, como se aquilo não fosse mais do que um gracejo, como os que as lavadeiras diziam junto ao rio.

     — Meu caro doutor! Esses sujeitos estão tão assustados, neste momento, que não pensam senão em salvar a própria pele! Há já semanas que não os vemos por aqui. Além do mais, isso compete a nós e não a eles. Nós cuidaremos disso.

     — Cuidaremos do quê, pelo amor de Deus?

     — Do problema elementar de sobrevivência, durante três meses. Teremos de providenciar para que todos tenham comida e combustível suficientes para passar o inverno. Temos de arranjar mais remédios para o senhor e tentar conseguir mais alguns cobertores. Precisamos estabelecer um depósito central e fazer com que as rações sejam distribuídas eqüitativamente...

     — O senhor está maluco! — disse-lhe, sem meias palavras, Meyer. — O senhor não compreende essa gente. São todos sovinas, mesmo nas ocasiões mais favoráveis; em tempo de fome, então, são como abutres! São capazes de devorar uns os fígados dos outros, antes de permitir que um pedaço de pão passe de uma casa para outra. A família é a única coisa que conta. O resto pode apodrecer numa fossa!

     — Então teremos de ensiná-los como agir — disse, calmamente, Nerone. — Nós os transformaremos numa tribo.

     — O senhor não o conseguirá.

     — Já comecei a fazê-lo.

     — Duvido muito!

     — Já fiz com que dez famílias concordassem em depositar um quarto de seus estoques de víveres num depósito comum para o inverno. Cada uma dessas famílias vai procurar trazer um quarto mais. Depois o senhor e eu daremos uma volta por aí e procuraremos meter um pouco de bom senso na cabeça daqueles que ainda não aderiram.

     — Não compreendo como conseguiu fazer isso.

     Giacomo Nerone riu, encolhendo os ombros.

     — Falei com eles. Disse-lhes que viriam ainda novos tributos: italianos, alemães, aliados. Quando as coisas ficassem difíceis — como acontece no inverno — revistariam as casas à procura de víveres armazenados. Ora, agora, enquanto as coisas vão bem, seria melhor que cooperássemos todos e construíssemos um depósito comum num lugar secreto. Disse-lhes que Nina e eu faríamos primeiro a nossa própria contribuição, como prova de boa-fé; e que formaríamos um comitê para administrar os víveres. O senhor, eu e três outros: dois homens e uma mulher. Demorou um pouco, mas no fim, concordaram.

     — Tenho passado todo este tempo aqui — comentou Meyer, com ar sombrio — e jamais consegui fazer nada semelhante.

     — A gente tem de pagar um preço por isso, claro.

     Meyer fitou-o intrigado:

     — Que espécie de preço?

     — Ainda não sei — respondeu Nerone, pensativo. — Mas penso que será, no fim, um preço muito elevado...

    

     — Ele explicou o que queria dizer com isso? — indagou Blaise Meredith.

     — Não.

     — O senhor pediu-lhe que explicasse?

     — Pedi — respondeu Meyer, com expressão triste. — Mas foi de novo Nina quem respondeu por ele. Estava de pé atrás dele, lembro-me bem, e curvou-se e beijou-lhe os cabelos, segurando-lhe o rosto entre as mãos. Depois, disse: "Eu amo este homem, dottore mio. Ele não tem medo de nada... e sempre paga suas dívidas!"

     — E isso o satisfez?

     Meyer esboçou um sorriso e recostou-se na cadeira enquanto apanhava o vinho.

     — O senhor não percebe, monsenhor. Quando se vê um homem e uma mulher assim...  e quando a gente está apaixonado pela mulher... existe apenas uma satisfação. E a gente não pode obtê-la. Levantei-me e vim para casa. No dia seguinte, Nerone e eu tornamos a nos encontrar e começamos a preparar as coisas para o inverno.

     — E foram bem sucedidos?

     — Fomos. Antes que chegassem as primeiras neves, todos em Gemello Minore estavam de acordo, e armazenamos quase três toneladas de suprimentos na Grotta dei Fauno.

     Certas lembranças despertaram, vividas, atrás dos olhos pensativos de Blaise Meredith.

     — A Grotta dei Fauno... Foi onde o sepultaram, não foi?

     — Foi onde o sepultaram — repetiu Aldo Meyer...

    

   Enquanto Blaise Meredith falava com o Dr. Aldo Meyer debaixo da figueira, Anne Louise de Sanctis, sentada no aparatoso salão de sua villa, entrevistava Nina Sanduzzi.

     Tinha acordado tarde, mas estava mais mal-humorada do que habitualmente, e, quando a criada lhe informou que Nina Sanduzzi se achava à sua espera em companhia do rapaz, demorou-se um pouco mais a tomar sua refeição matinal e a fazer sua toalete. Conversou dez minutos com Nicholas Black, que saía para o jardim com sua caixa de tintas; depois, correu os olhos pelas despensas da casa e pelo cardápio para o jantar. Só então se instalou no salão e mandou um criado trazer Nina Sanduzzi à sua presença.

     Estavam, agora, a sós, enquanto Paolo arrastava os pés numa das aléias do jardim e observava os jardineiros que se mexiam de um lado para outro junto aos canteiros, bem como o vôo de uma borboleta amarela a adejaf preguiçosa entre os arbustos.

     A condessa achava-se sentada numa cadeira de espaldar alto, frescamente ataviada, com um leve ar de triunfo na fisionomia, as mãos plácidas sobre o colo, os olhos a perscrutar o rosto impenetrável da camponesa que tinha à sua frente, empoeirada pela caminhada, pés nus nos tamancos, mas empertigada e altiva como uma árvore à espera da investida do vento.

     — Como vês — disse-lhe Anne Louise de Sanctis —, esta é uma grande oportunidade para o rapaz.

     Empregava o tratamento "tu" para indicar o vasto abismo existente entre uma castelã e um criado.

     — É trabalho — respondeu, calmamente, Nina Sanduzzi. — Isso é bom para o rapaz. Se ele trabalhar bem, é bom também para a senhora.

     — Que acha ele disso? Está contente de vir?

     — Quem é que pode dizer o que um rapaz sente? Ele está aqui. Pronto para começar a trabalhar.

     — Não combinamos ainda o ordenado.

     Nina Sanduzzi encolheu os ombros, indiferente:

     — O doutor me disse que a senhora pagaria o que costuma pagar.

     Anne Louise de Sanctis sorriu, benevolente:

     — Faremos melhor do que isso. Mr. Black me disse que ele é inteligente e tem boa vontade. Pagar-lhe-emos um ordenado de homem.

     — Ótimo... se for trabalho de homem. Contanto que seja trabalho de homem!

     A resposta era cheia de farpas, mas a condessa, fraca em dialeto, não lhe percebeu a pungência. E prosseguiu, benigna e condescendente:

     — Se o rapaz trabalhar bem e revelar progresso, talvez possamos fazer muito por ele: dar-lhe uma educação, ajudá-lo a fazer carreira...  mandá-lo para Roma, talvez.

     Nina Sanduzzi concordou, pensativamente, com um gesto de cabeça, mas seus olhos estavam velados e inexpressivos como os de uma ave. Apenas disse:

     — O pai dele era um homem educado. Costumava dizer que se deve educar primeiro o coração e depois a cabeça.

     — Certamente! — exclamou a condessa, com vivacidade nada natural. — O pai dele! Giacomo Nerone era teu amante, não?

     — Era o homem que eu amava — respondeu Nina Sanduzzi. — Ele me amava e amava o rapaz.

     — Estranho que jamais tenha casado contigo. Nenhuma emoção se revelou nos olhos impassíveis e no rosto calmo. A frase permaneceu suspensa no silêncio que se fez entre ambas. Anne Louise de Sanctis sentiu-se irritada. Teve vontade de agredir a outra e ver as marcas de seus dedos estampados naquele rosto azeitonado. Mas aquela era uma satisfação a que não podia entregar-se, presa como estava a um compromisso diplomático, a uma aliança que exigia sorrisos e despistamentos. Disse, animadamente:

     — O rapaz ficará alojado aqui, claro. Será alimentado e terá conforto. Poderá passar os domingos em tua companhia.

     — Falarei com o monsenhor que veio de Roma — disse, serena, Nina Sanduzzi. — Pedi-lhe que falasse com o rapaz e o ajudasse. Ele está, agora, em idade difícil.

     — Não devias ter importunado Monsenhor Meredith — censurou-a a condessa. — Ele é um homem doente e tem assuntos importantes a tratar!

     — Seus assuntos dizem respeito ao meu Giacomo, signora. E o que poderia ser mais importante do que o filho de Giacomo? Além disso, o monsenhor me disse que teria prazer em ajudá-lo.

     — Podes ir, agora — disse a condessa, — Deixa o rapaz aqui e o jardineiro o porá a trabalhar.

     Nina Sanduzzi não deu sinal algum de retirar-se. Em vez disso, abaixou-se e apanhou a cesta de palha que sempre carregava. Remexeu em seu interior e retirou um pacote cuidadosamente atado, entregando-o à condessa.

     — O que é isto?

     — Meu filho vem para a sua casa. Não deve vir de mãos vazias. É um presente.

     A singela delicadeza do gesto a embaraçou. Apanhou o pacote e disse, acanhada:

     — Obrigada. Posso perguntar o que contém?

     — Somos pobres — respondeu, pesando as palavras, Nina Sanduzzi. — Damos de nosso coração e não de nossa riqueza. Algum dia, podem fazer de Giacomo um beato, e então isso lhe será precioso. É uma parte das vestes que usava quando o mataram. Tem o seu sangue. Gostaria que a senhora aceitasse...  da parte de seu filho!

     Anne Louise de Sanctis nada disse, ficando apenas ali sentada a fitar o pacote como que hipnotizada, o rosto lívido, a mover os lábios num murmúrio quase inaudível. Quando, depois de muito tempo, ergueu os olhos, Nina já tinha partido, e não havia senão a luz do sol caindo obliquamente através dos corpúsculos de poeira, e a vista de um gramado verde onde um rapaz caminhava ao lado de um jardineiro — rapaz que poderia ter sido seu filho.

    

     Aldo Meyer e Monsenhor Meredith tinham-se erguido da mesa e caminhavam, lado a lado, de uma extremidade a outra do caminho lajeado que se estendia por toda a largura do jardim. Passavam, alternadamente, do sol para a sombra, e seus sapatos produziam um ruído seco, nítido, sobre as pedras.

     — Até aqui — comentou Meredith em seu estilo preciso, jurídico —, o que é que temos? Um homem em fuga, uma mulher apaixonada, um indivíduo assumindo comando e responsabilidade na comunidade que lhe concedeu refúgio. Seu passado é um mistério. Seu futuro, uma dúvida, mesmo em seu próprio espírito. Seu presente... aquilo que me disse. Não temos indicação alguma a respeito de sua crença religiosa ou de sua atitude moral. Em face disso, é um homem vivendo em pecado. Seus atos, bons em si mesmos, não têm valor espiritual. Ora... — tropeçou numa pedra e viu-a pular para longe, na direção do muro rústico. — Ora, segundo os meus registros, chega ele a uma crise, a um momento de conversão em que, ou em resultado do que, se afasta dessa mulher e se entrega a Deus. O que sabe a respeito disso?

     — Menos do que deveria saber, talvez — respondeu, deliberadamente, Meyer. — Por certo muito menos do que Nina, com quem o senhor irá falar esta tarde. Mas sei alguma coisa. E vou dar-lhe minha opinião pelo que vale...

    

     ... O inverno foi mais severo do que tinha julgado possível. As neves desciam em rajadas enceguecedoras dos altos picos situados a oeste; empilhavam-se em montes ao longo dos caminhos e pelo vale. Obstruíam as picadas existentes nas montanhas, partiam os galhos das oliveiras e amontoavam-se de encontro às portas das casas. Convertiam-se em gelo duro, e o vento varria a sua superfície, deixando expostas arestas de gelo que se assemelhavam às águas crespas de um mar branco e morto. Depois, vinham novas calmarias e novas nevadas, de modo que uma fofa camada se formava sobre o gelo duro que havia embaixo.

     No sul, os exércitos em luta cavavam abrigos e aguardavam o degelo. As patrulhas acampadas nos montes perdiam homens devido à inclemência do tempo. Os extraviados e desertores batiam desesperados, à noite, em portas trancadas e, se estas não lhes eram abertas, morriam na neve antes do amanhecer.

     Dentro das casas as famílias, para aquecer-se, mantinham-se amontoadas nas grandes camas de ferro, levantando-se apenas para fazer suas necessidades, procurar alimento ou coar café, pois o estoque de carvão tinha de ser conservado, o chão de terra batida ficava gelado e o vento procurava, com insistência, insinuar-se pelos vãos das portas rachadas e de estranhas janelas, tapadas com barro e jornais velhos. Os velhos tossiam e resmungavam com o frio reumático a entanguir-lhes as juntas; os jovens entediavam-se com seus rostos febris, suas gargantas doloridas e seus peitos congestionados — e quando um deles morria, como acontecia a muitos, era levado para a neve e nela enterrado até que viesse o degelo, pois quem iria fabricar caixões naquele tempo horrível e remover a terra no campo-santo, cujo solo, congelado, era duro como granito?

     Viviam como animais em hibernação, cada qual uma ilha num mar de neve, tirando calor um do corpo do outro, familiarizados uns com os cheiros dos outros, ruminando cegamente a côdea de pão comum, a pensar, desoladamente, quanto tempo durariam e se veriam uma outra primavera.

     Se alguém batia à porta, não respondiam. Quem, senão ladrões, loucos ou famintos, estaria fora de casa, num tempo como aquele? Se as batidas eram persistentes, lançavam, em coro, impropérios ao intruso até que, finalmente, ele deixava de bater, e ficavam a ouvir-lhe os passos estalejantes, afastando-se pela neve congelada. Havia apenas uma batida que conheciam e uma voz a que atendiam: a de Giacomo Nerone.

     Todos os dias, de manhã à noite, ele vivia de um lado para outro, sorridente, as botas enroladas em sacos, o corpo entalado entre camadas de roupas miseráveis, a cabeça metida num gorro feito com uma das meias de Nina. Trazia às costas uma velha mochila militar, cheia de rações, e os bolsos estofados de comprimidos de aspirinas, uma garrafa de óleo de fígado de bacalhau e uma porção de remédios avulsos.

     Quando chegava a uma casa, ficava durante o tempo que precisavam dele, mas nem um minuto mais. Verificava o estoque de alimentos, cuidava dos enfermos, medicava-os quando podia, fazia um caldo para os que se achavam incapacitados, limpava a sujeira acumulada e, depois, punha-se a caminho. Mas, antes de sair, havia sempre cinco minutos para as notícias e as despedidas, e dois minutos para a piada que os deixaria rindo, quando de novo mergulhasse na desolação que reinava fora. Se tinham necessidade de Meyer, ele o trazia. Se estavam prontos para um sacerdote, procurava arranjar um, embora isso fosse um tanto mais incerto, já que o Padre Anselmo era velho, friorento e pouco inclinado a mexer-se, e o jovem cura de Gemello Maggiore tinha de haver-se, não raro, com os seus próprios agonizantes.

     Sua última visita do dia era sempre para Aldo Meyer. Bebiam um gole de grappa, trocavam anotações, e depois Nerone descia o monte, afundado na neve, em direção ao casebre de Nina.

     A princípio, mostrava-se alegre, exultante com aquele desafio ao seu vigor e vitalidade. Depois, enquanto dezembro se convertia em janeiro sem que, não obstante, o tempo melhorasse de alguma maneira, começou a ficar irritadiço, preocupado, como alguém que dormisse muito pouco e pensasse demais. Meyer insistiu com ele para que descansasse, para que ficasse em casa uns dois dias em companhia de Nina, mas ele se recusou laconicamente a fazê-lo, passando, depois, a esforçar-se ainda mais do que antes.

     Uma noite, já tarde, quando uma nova nevasca tornara o tempo ainda mais frio, apareceu na casa de Meyer, deixou cair a mochila ao chão, engoliu de um trago a sua grappa e disse, abruptamente:

     — Meyer! Preciso falar-lhe!

     — Você sempre o faz — respondeu Meyer, com suavidade. — O que há de tão diferente esta noite?

     Nerone não tomou conhecimento da ironia e prosseguiu:

     — Jamais lhe disse por que vim para cá, não é verdade?

     — Isso é assunto seu. Não precisa dizer-me.

     — Gostaria de dizer-lhe agora.

     — Por quê?

     — Porque preciso.

     — É uma boa razão — observou Meyer, sorrindo.

     — Diga-me uma coisa... você acredita em Deus, Meyer?

     — Fui criado para que acreditasse — respondeu Meyer, pondo-se em guarda. — Meus amigos fascistas fizeram todo o possível para me persuadir do contrário. Digamos que encaro a matéria com o espírito aberto. Por que me pergunta?

     — Porque poderia estar dizendo bobagem.

     — Um homem tem o direito de falar bobagem quando sente necessidade.

     — Pois bem. Pense o que quiser do que vou dizer-lhe. Sou inglês, como sabe. Sou oficial, o que você não sabia. 

     — Eu o imaginei.

     — Sou, também, desertor.

     — Que é que você quer que lhe diga? — indagou Meyer, com árido humor. — Quanto eu o desprezo?

     — Não diga nada, pelo amor de Deus. Apenas ouça. Eu fazia parte da guarda avançada durante o assalto a Messina. Era a última posição em poder do inimigo na Sicília. Para nós, nada representava. Seus compatriotas estavam derrotados. Os alemães retiravam-se rapidamente. Apenas uma operação de limpeza. Minha companhia recebeu ordens para limpar uma área de cerca de meia milha quadrada, ocupada por cortiços miseráveis, que dava para o cais. Atiradores de tocaia, uns dois ninhos de metralhadoras... nada mais. Havia um beco, com janelas que davam para nós e, numa das janelas de cima, um atirador de tocaia. Ele já nos havia detido por dez minutos à entrada do beco. Depois, achamos que poderíamos apanhá-lo. Avançamos. Ao chegarmos à casa, segui a rotina habitual e gritei-lhe que se rendesse. Ouviu-se um outro tiro... dessa vez vindo da janela de baixo. Um dos meus homens foi atingido. Lancei uma granada de mão através da janela, aguardei a explosão e depois entrei. Encontrei o atirador de tocaia... um velho pescador; com uma mulher e uma criança de colo. Todos mortos. A criança fora atingida em cheio pela explosão...

     — Isso acontece na guerra — comentou, friamente, Meyer. — É o elemento humano. Nada tem a ver com Deus.

     — Eu sei — disse Giacomo Nerone. — Mas eu era o elemento humano. Você pode compreender isso?

     — Sim, posso compreender. E você decidiu que aquilo era o fim, quanto ao que dizia respeito à sua pessoa. Você fizera o que lhe haviam pago para fazer. Você estava dispensado de todo o resto. Sua guerra estava terminada. Está certo?

     — Mais ou menos.

     — E você fugiu. Mas para onde esperava ir?

     — Eu não sabia.

     — Por que razão veio para cá?

     — Também não sei. Chame a isso um acidente, se quiser.

     — E você, acredita em Deus, Nerone?

     — Acreditava. Depois, por muito tempo, deixei de acreditar.

     — E agora?

     — Não me ponha contra a parede, homem! Deixe-me desabafar!

     Meyer deu de ombros e despejou no copo de Nerone uma dose exagerada de grappa. Quando Nerone protestou, respondeu, com gélido humor:

     — In vino veritas. Beba.

     Nerone segurou o copo com as mãos trêmulas e bebeu avidamente; depois, limpou nas costas da mão a boca gretada. E prosseguiu, melancólico:

     — Quando encontrei Nina, ela foi um refúgio. Quando nos apaixonamos, o que aconteceu foi mais do que isso — uma espécie de absolvição. Quando ficou grávida, senti-me como se estivesse desfazendo o que tinha feito, pondo uma nova vida no lugar daquela que destruíra. Quando começamos a fazer alguma coisa por essa gente, foi como uma espécie de reparação, de minha parte, ao velho pescador e à mulher morta... Mas não era o bastante. Ainda não é o bastante.

     — Nunca é — disse Aldo Meyer. — Mas onde é que Deus entra nisso?

     — Se Ele não entra, então tudo não passa de uma loucura monstruosa. A morte nada significa; a reparação, menos ainda. Somos formigas sobre a carcaça do mundo, movendo-nos agitadamente sem ir a parte alguma. Um de nós morre, os outros rastejam sobre nós em busca dos restos. Todo este vale podia morrer congelado, e isso nada significaria... absolutamente nada. Mas se existe um Deus... tudo se torna terrivelmente importante... cada vida, cada morte...

     — E a reparação?

     — Não significa absolutamente nada — respondeu, sombriamente, Nerone —, a menos que nos demos como parte dela.

     — Você está metido num poço, meu amigo — comentou, com brandura, Aldo Meyer.

     — Eu sei — respondeu Nerone, com voz apagada. — E estou quase me afogando nele.

     Apoiou a cabeça nas mãos e pôs-se a passar os dedos depois pelos cabelos. Meyer aproximou-se, sentou-se à beira da mesa e disse, bem-humorado:

     — Permita-me dar-lhe um conselho, meu amigo... um conselho médico. Você está se destroçando de cansaço e má alimentação. Nunca teve plena certeza se agiu mal ou bem afastando-se de sua guerra; e, porque está fatigado, começa a se preocupar com o assunto. Você fez um bom trabalho para nós aqui e ainda continua a fazê-lo. Agora, de repente, começa a preocupar-se com Deus. Se me perdoa dizê-lo... metade do misticismo vulgar que existe no mundo provém de má digestão, excesso de trabalho, falta de sono ou falta de satisfação sexual. Se quer um conselho de médico, fique em casa e brinque de lua-de-mel com Nina durante alguns dias. Concedam a vocês mesmos uma ração diária de alimento e façam uma festa.

     Nerone ergueu a cabeça, e a tensão de seu rosto moreno, obstinado, afrouxou-se num sorriso:

     — Aí, Meyer, é onde todos vocês, liberais, se enganam. Por isso é que já não existe mais lugar para vocês no século XX. Só há duas coisas que podem fazer com Deus: afirmar a Sua existência, como os católicos, ou negá-lo, como os comunistas. Você querem reduzi-lo a uma dor de barriga, a uma excitação, ou a uma cômoda especulação para a hora do café e dos charutos. Você é judeu. Não devia ser assim tão tolo.

     — E você, que é? — indagou Meyer, irritado.

     — Eu era católico.

     — Aí é que está a sua complicação — disse Meyer, com decisão. — Talvez você desse um bom comunista, mas jamais seria um bom liberal. Você, no fundo, é um absolutista. Contraiu a religião como uma coceira no traseiro e a carregará consigo até o dia de sua morte... Mas minha prescrição ainda permanece de pé.

     — Pensarei a respeito, doutor. Tenho de pensar nisso... com todo o cuidado.

    

     ... Meredith deixou de caminhar e ficou um momento à sombra da figueira, desfiando, absorto, uma das folhas grossas e duras, sentindo nos dedos a seiva branca e viscosa. Decorrido um momento, disse:

     — Esse é o primeiro vislumbre que tive de uma coisa que se procura em toda história individual: a entrada de Deus nos cálculos de um homem, o começo da aceitação da conseqüência da fé, o início de uma relação pessoal entre o Criador e a criatura. Se esse tema continua...

     — Repete-se — disse, lentamente, Meyer. — Mas existem hiatos na minha história. O senhor terá de preenchê-los com o que lhe disserem outras testemunhas, como Nina Sanduzzi, por exemplo.

     — Se existissem coisas escritas — disse Meredith, pensativo —, ajudariam imensamente. Podia-se seguir uma atitude pessoal que explicaria as relações exteriores.

     — Existem escritos, monsenhor. Eu os tenho. Meredith fitou-o, surpreso:

     — E são muitos?

     — Há um grande pacote. Ainda não o abri. Foi Nina quem mo deu.

     — Eu poderia vê-los?

     — Se não se importar de esperar um pouco — concordou Meyer, acanhado. — Eu próprio ainda não os li. Tenho tido medo desses escritos, assim como o senhor teve medo de pedir um milagre. Em algum lugar neles pode estar a resposta a uma porção de perguntas que há muito me perseguem. Gostaria de lê-los esta tarde, enquanto o senhor estivesse falando com Nina. Amanhã entrego-os ao senhor...  com o resto do meu depoimento. Está bem assim?

     — Certamente. Disponha do tempo que quiser.

     — Basta até amanhã — disse Meyer, com um sorriso de viés. — É um confessor, Monsenhor Meredith. Gosto de conversar com o senhor.

     Um ar de grave satisfação estampou-se nos olhos de Blaise Meredith.

     — Se soubesse como isso me alegra! Meyer fitou-o, irônico:

     — Por quê, monsenhor?

     — Pela primeira vez em minha vida, creio, começo a aproximar-me das pessoas. Aterroriza-me pensar quanto tempo desperdicei... e quão pouco tempo me resta.

     — Mais tarde — disse Meyer, com ar sério — o senhor estará perto de Deus.

     — Isso me aterroriza mais do que tudo — respondeu Blaise Meredith.

    

     Num canto diante do jardim da villa, Paolo Sanduzzi trabalhava, serrando uma oliveira caída que devia ser transformada em lenha. O chefe dos jardineiros, um sujeito taciturno, nodoso e escuro, semelhante ele próprio a uma árvore, o deixara ali com a lacônica instrução de tirar as mãos dos bolsos e trabalhar rijo, pois, ao entardecer, queria que a árvore já estivesse cortada e amarrada.

     Sentia-se contente de estar só. O lugar era novo e estranho. Aquele era o seu primeiro trabalho de homem, e suas mãos eram desajeitadas e inábeis. Seria um suplício, se rissem dele, e precisava de tempo para aprender o ritmo da ferramenta que usava, bem como a linguagem daquela nova vida entre os signori.

     Despira a camisa porque o sol estava quente e, após decepar os ramos com um machado, pusera-se a serrar os galhos mais grossos. A madeira estava seca e era fácil de cortar, mas como se achava demasiado ansioso, o serrote emperrava e se lhe torcia na mão até que, pouco a pouco, apanhou o jeito de fazê-lo e os dentes da ferramenta penetravam com facilidade na madeira, enquanto a serragem se amontoava, a seus pés, sobre as folhas. Agradavam-lhe o ruído do serrote, o cheiro da madeira e o gosto do suor que lhe escorria pelo rosto e lhe chegava até os cantos da boca.

     Seria agradável se Rosetta estivesse ali sentada, a conversar com ele e a admirar-lhe a habilidade, mas só chegaria no dia seguinte e teria de ficar na cozinha com a cozinheira, ou a espanar e a polir os móveis, em companhia das outras criadas. Dormiria no alojamento das mulheres, compartilhando a cama com uma das moças, enquanto ele teria o seu próprio quarto, um estreito cubículo junto do depósito das ferramentas, com um colchão de palha, uma cadeira e um caixote com uma vela. Mas encontrar-se-iam à hora das refeições e sairiam a passear aos domingos — e talvez pudessem, mesmo, passar juntos alguns momentos furtivos, à hora da sesta. Ele se sentiria melhor quando ela estivesse lá; menos inexperiente e menos receoso da condessa, a quem ainda não tinha encontrado, bem como do inglês, com quem se avistava com demasiada freqüência.

     Agora, que seu segredo era conhecido e compartilhado com o médico, agora, que sabia mais a respeito de seu pai, sentia-se mais seguro, mais senhor de si mesmo. O fato de ser um bastardo não constituía mais um mistério aterrador, e sentir-se atraído pelo inglês não era, ao que parecia, uma coisa tão estranha.

     Talvez até pudesse encontrar uma maneira de fazer o que desejava mais do que tudo; limpar de seus pés a poeira da aldeia e ir para Roma, onde viviam o papa e o presidente, onde as ruas eram cheias de fontes e toda gente tinha automóvel, e as moças usavam roupas e sapatos elegantes e onde toda casa tinha água corrente e, às vezes, até mesmo banheiro e toalete. Essas eram maravilhas a respeito das quais o pintor lhe falava com freqüência, e sua magia ainda era poderosa sobre ele. Dera o primeiro passo. Deixara a aldeia e penetrara no mundo verde e recluso da villa. Roma estava muito mais perto, muito mais viável.

     Ao pensar em Roma, pensou, naturalmente, em Nicholas Black, com seus olhos zombeteiros e a boca retorcida num sorriso que podia fazer que ele se sentisse homem ou criança, e que podia prometer-lhe, sem uma palavra, toda espécie de revelações. A impressão era tão vivida que, quando um ramo seco estalou atrás dele, voltou-se, assustado, esperando ver o inglês.

     Mas era a condessa quem lá estava, brilhante como uma borboleta, num vestido de primavera, com um chapéu vermelho, de praia, protegendo-lhe os olhos contra o sol.

     Sem saber o que fazer ou dizer, permaneceu boquiaberto, os braços pendidos, frouxos, ao longo do corpo, sentindo o suor escorrer-lhe pelo rosto e pelo peito, sem que ousasse fazer um gesto para enxugá-lo. Ela, então, sorriu-lhe, e o sorriso estava também em seus olhos:

     — Assustei-o, Paolo?

     — Um pouco — murmurou, acanhado.

     A condessa aproximou-se e olhou a madeira serrada:

     — Vejo que esteve trabalhando com vontade. Isso é bom. Se trabalhar bem para mim, Paolo, jamais se arrependerá.

     — Procurarei trabalhar, signora.

     O sorriso da condessa deu-lhe confiança e, quando ela segurou o vestido para sentar-se sobre o tronco da oliveira caída, ele, num impulso súbito, estendeu sua camisa sobre o áspero córtex.

     — A árvore está suja, signora. Vai sujar o seu vestido.

     — Rapaz encantador! — murmurou Anne Louise de Sanctis. — Isso é exatamente o que o seu pai teria feito. Sabia que conheci seu pai?

     — Meu pai também trabalhou para a senhora?

     — Oh, não! — exclamou ela, lançando um riso alto e tilintante. — Seu pai era meu amigo. Costumava vir aqui, às vezes, visitar-me. Era um signore...  um gran' signore!

     Ele sentiu súbita vergonha de estar ali, como criado, numa casa em que seu pai era recebido como visita. Antes que tivesse tempo de responder, a condessa prosseguiu:

     — Foi por isso que o trouxe para cá, em consideração ao seu pai. Mr. Black me disse que é inteligente e aprende as coisas com facilidade. Se isso é certo, talvez possa transformá-lo num senhor, como o seu pai.

     Notou que a condessa não fizera referência alguma à sua mãe e, mais uma vez, sentiu-se envergonhado dela, com seu rude dialeto, suas roupas miseráveis e seus pés descalços e empoeirados. Respondeu rápido:

     — Gostaria disso, signora. Trabalharei bem, prometo.

     Depois, encorajado pelo sorriso de aprovação com que ela acolheu suas palavras, disse-lhe:

     — Pouco sei a respeito de meu pai. Como era ele?

     — Era inglês — respondeu a condessa. — Como eu, como Mr. Black e o monsenhor que veio de Roma.

     — Inglês! — exclamou, parecendo não acreditar no som de sua própria voz. — Isso quer dizer que eu sou meio inglês, também!

     — Exatamente, Paolo. Sua mãe não lhe disse?

     Ele fez que não com a cabeça.

     — Ela nunca lhe disse quanto você se parece com ele?

     — Disse algumas vezes. Mas não muitas.

     — Essa é outra das razões por que desejo que se comporte bem aqui. Farei com que vá à escola em Valenta, aprender a ler, a escrever, a falar corretamente e a usar roupas adequadas. Depois, então, talvez possa ser também meu amigo. Gostaria disso?

     — E eu poderia ir para Roma?

     — Claro! — respondeu-lhe ela, sorrindo. — Você o deseja muito, não é verdade?

     — Oh, muito, signora!

     — Eu poderia pedir a Mr. Black que o levasse a Roma, a fim de que visitasse a cidade.

     Disse isso ainda sorrindo, mas havia uma espécie de estranha advertência em seus olhos. Sem saber por quê, Paolo exclamou, abruptamente:

     — Preferia ir com a senhora!

     E, quando ele abriu os braços, no gesto de súplica comum no sul, ela apanhou-lhe as mãos e puxou-o para baixo, de modo que ele ficou meio ajoelhado, meio acocorado a seus pés. O perfume dela o envolveu todo e ele podia ver-lhe os seios arfando sob o vestido fino. Ela tomou-lhe o rosto entre as mãos, inclinou-o um pouco em sua direção e disse-lhe, suavemente:

     — Antes que eu pudesse fazer isso, Paolo, precisaria confiar em você. Você teria de aprender a guardar segredos. Não tagarelar com a gente da aldeia... nem mesmo com o monsenhor ou com o Signor Black.

     — Eu aprenderei, prometo.

     — Pensaremos, então, sobre isso, Paolo. Mas nem uma palavra... nem mesmo à sua mãe.

     — Nem uma palavra.

     Suas mãos, em seu rosto, eram suaves e perfumadas, e ele teve a estranha impressão de que ela queria curvar-se e beijá-lo; mas, no mesmo instante, ouviu um ruído de passos atrás deles e a voz suave de Nicholas Black.

     — Com efeito, cara! Você é mesmo desavergonhada! O rapaz não perdeu ainda os dentes de leite e você já está procurando seduzi-lo!

     — E é justamente você quem fala em sedução, Nicki!

     As palavras eram em inglês, e Paolo não as compreendeu; mas, quando ergueu a cabeça e viu o comprido rosto de sátiro do pintor e as faces afogueadas e iradas da condessa, ele se sentiu como que numa armadilha... como um camundongo acuado num canto diante de dois gatos prontos para saltar.

    

     Logo depois do meio-dia, Blaise Meredith voltou à villa para banhar-se e descansar um pouco antes do almoço. Não deixava de estar satisfeito com o trabalho que realizara pela manhã. Meyer era uma boa testemunha, e suas lembranças eram desapaixonadas, vividas — de modo que, pela primeira vez, desde o início de sua missão, Meredith estava começando a ver Giacomo Nerone como homem e não como lenda.

     Teria preferido almoçar com Meyer, continuar a falar sobre o período crítico da vida de Nerone que se seguiu. Mas Meyer não o convidara, e Meredith percebeu que ele precisava de tempo para refazer-se e estar só para começar a leitura dos papéis do morto.

     Enquanto permanecia deitado, repousando, sentindo no ventre aquela dor que já se lhe tornara familiar, pensou em como deveria comportar-se durante a refeição em companhia da condessa e de Nicholas Black. Agora, que sabia que a condessa era uma mentirosa e que os dois formavam um par de conspiradores, sua posição lhe parecia sumamente desagradável. Como hóspede, via-se obrigado a agir com discrição e cortesia. Como sacerdote, não podia participar, mesmo pelo silêncio, da corrupção de um menor. Como advogado do Diabo, viera à procura de provas e necessitava da cooperação de suas testemunhas.

     Novamente, como acontecera na casa do Padre Anselmo, o caso de Giacomo Nerone deixou de ser importante. Havia almas em jogo, e se o sacerdócio significava algo, esse algo era o cuidado das almas. Uma enunciação simples, mas uma proposição complexa. Nada se resolvia, brandindo os mandamentos, como um cacete, sobre a cabeça das pessoas. Não havia sentido algum em ameaçar com a condenação eterna um homem que já caminhava para o inferno por sua livre e espontânea vontade. Mesmo então, tinha-se de esperar pelo lugar e pelo momento propícios — e ainda assim a gente, no fim, podia falhar. Quando se tinha o corpo enfermo e o espírito preocupado, a dificuldade era dupla.

     Quando chegou a hora do almoço, levantou-se, penteou o cabelo, vestiu uma batina leve de verão e dirigiu-se ao terraço, sob o guarda-sol listrado. Nicholas Black já se achava sentado, sozinho, à mesa. Ao vê-lo entrar, o pintor saudou-o displicentemente e disse:

     — A condessa pede-lhe que a desculpe. Está com dor de cabeça. Almoçará em seu quarto. Espera poder ver-nos a ambos durante o jantar.

     Meredith fez um aceno de cabeça e sentou-se. Imediatamente um criado abriu o seu guardanapo e despejou vinho e água gelada nos copos que estavam à sua frente.

     — Teve uma boa manhã, monsenhor?

     — Muito boa. Muito informativa. O Dr. Meyer é uma excelente testemunha.

     — É um homem inteligente. Surpreende-me que tenha sido mal sucedido em sua própria vida.

     Meredith não tomou conhecimento da insinuação. Não tinha desejo algum de ser levado a uma discussão logo no momento do antipasto. Black mergulhou em seu prato e sorveu o seu vinho, e ambos comeram em silêncio por algum tempo. Depois, o pintor tornou a indagar:

     — Como está sua saúde, monsenhor?

     — Na mesma, infelizmente. O prognóstico de Meyer, é pior do que eu esperava: três meses, diz ele.

     — O senhor sente muita dor?

     — Bastante.

     — Em três meses — disse o pintor — o senhor dificilmente terminará o seu caso.

     — Receio que não. Felizmente a Igreja não tem pressa, ao tratar dessas coisas. Um século ou dois não fazem diferença.

     — Contudo, tenho a impressão de que o senhor está ansioso para levar a sua empresa a cabo.

     — As testemunhas aí estão — respondeu, friamente, Meredith. — Algumas delas se mostraram dispostas a cooperar. Quanto maior for o número de depoimentos que consiga obter agora, melhor para todos. Além disso — ajuntou, limpando uma migalha de pão que lhe ficara junto ao canto da boca exangue —, quando o término da vida da gente já foi estabelecido, a gente se dá conta, de repente, de sua brevidade. "Chega a noite, quando nenhum homem pode trabalhar."

     — Tem medo da morte, monsenhor?

     — Quem não tem?

     Black sorriu sardonicamente:

     — Pelo menos o senhor é franco a respeito. Muitos de seus colegas não o são, como bem sabe.

     — Muitos deles não tiveram ainda de enfrentar a realidade — respondeu Meredith, com azedume. — E o senhor?

     Black sorriu entre dentes e tomou um longo sorvo de vinho; depois recostou-se na cadeira, enquanto o criado lhe trocava o prato, e disse, com falso arrependimento:

     — Eu o estou provocando, monsenhor. Perdoe-me.

     Meredith debruçou-se sobre o seu prato e nada respondeu. Decorrido um momento, Paolo Sanduzzi saiu de entre os arbustos e atravessou o gramado, em direção à cozinha. O pintor ficou a observá-lo, e Meredith a observar o pintor de soslaio, com olhos especulativos. Quando o rapaz desapareceu atrás do ângulo da casa, Black voltou-se para a mesa e comentou, em tom casual:

     — Rapaz encantador. Um Davi clássico. Dá pena pensar que irá estragar-se numa aldeia como esta. Fico pensando por que a Igreja não faz alguma coisa por ele. Não se pode deixar que o filho de um beato fique por aí a perseguir as moças e a meter-se em complicações com a polícia, como qualquer outro rapaz, não é verdade?

     A afável desfaçatez do outro foi demais para Meredith, que depôs ruidosamente a faca e o garfo e disse, com fria precisão:

     — Se o rapaz se corromper, Mr. Black, o senhor será o único culpado disso. Por que não vai embora e não o deixa em paz?

     Para sua surpresa, o pintor lançou para trás a cabeça e pôs-se a rir.

     — Meyer deve ter sido, com efeito, uma boa testemunha, monsenhor! Que mais lhe disse a meu respeito?

     — Isso não basta? — indagou, em voz baixa, Meredith. — O senhor está fazendo uma coisa detestável! Seus vícios íntimos são assunto que dizem respeito ao senhor e ao Todo-Poderoso. Mas quando se dispõe a corromper esse rapaz, o senhor está cometendo um crime contra a natureza...

     Mal as palavras lhe haviam saído da boca, Black o interrompeu:

     — O senhor já me julgou, não é certo? Já apanhou todos os fios dos boatos imundos que correm pela aldeia e já me condenou, sem sequer ouvir uma palavra em minha defesa.

     Meredith enrubesceu. A acusação, de um modo nada agradável, se aproximava muito da verdade. Respondeu, em tom sereno:

     — Se o julguei mal, Mr. Black, lamento-o profundamente. Ficaria mais do que contente se o ouvisse negar esses... boatos.

     O pintor riu, com amargura.

     — O senhor quer que me defenda perante sua pessoa? O diabo que me carregue se o fizer, monsenhor! Em vez disso, aceito o desafio em seu próprio terreno. Digamos que eu seja o que toda gente diz que sou... um homem anormal, um corruptor de jovens. Que é que a Igreja me oferece, à guisa de fé, de esperança ou caridade? — Apontou um dedo magro, acusador, na direção do sacerdote: — Vamos entender-nos, Meredith. O senhor pode tapear seus penitentes e encantar suas congregações domingueiras, mas a mim é que não engana! Também já fui católico e conheço toda essa rotina pretensiosa. Sabe por que deixei a Igreja? Porque ela responde a todas as malditas questões teóricas...  exceto àquela que a gente precisaria ver respondida...  "Por quê?" O senhor me diz que estou cometendo um pecado contra a natureza porque pensa que gosto desse rapaz e pretendo seduzi-lo. Vamos examinar esse ponto. Se o senhor puder dar-me uma resposta satisfatória, faço-lhe uma promessa: arrumarei minhas malas e partirei no primeiro transporte disponível! Concorda com isso?

     — Não posso fazer nenhum ajuste com o senhor — respondeu, incisivo, Meredith. — Ouvirei e procurarei responder. Apenas isso.

     Nicholas Black riu, áspero:

     — O senhor já está se esquivando! Mas, de qualquer modo, prosseguirei. Conheço todos os seus argumentos sobre a questão do uso ou abuso do corpo. Deus o fez, primeiro, para a procriação de crianças e, depois, para a relação amorosa entre homem e mulher. E aí termina o assunto. Todos os atos corporais devem estar de acordo com um fim e tudo o mais é pecado, segundo a natureza, é um ato que vai além do instinto natural...  como dormir com uma moça antes que casemos com ela, ou desejar a mulher alheia. Desejar um rapaz é, do mesmo modo, um pecado contra a natureza... — Riu, sardonicamente, diante do rosto pálido, concentrado, do sacerdote. — Acaso eu o surpreendo, Meredith? Também eu me abarrotei de Santo Tomás. Mas há aí um engano, e é isso que quero que me explique. E a minha natureza? Eu nasci como sou. Tinha um irmão gêmeo. Visse o senhor o meu irmão, antes que ele morresse, e teria visto o macho perfeito... talvez o macho excessivo, se assim o preferir. E eu?...  Não estava bem claro o que seria eu. Mas, dentro de pouco tempo, eu o soube. Fazia parte de minha natureza ser atraído mais pelos homens que pelas mulheres. Não fui seduzido num banheiro coletivo, nem enganado, por meio de palavras pérfidas, num bar. Sou o que sou. Não o posso mudar. Não pedi para nascer. Não pedi para nascer assim... e só Deus sabe o quanto tenho sofrido por causa disso. Mas quem me fez? Segundo o senhor — Deus! O que desejo e o que faço são coisas que estão de acordo com a natureza que Ele me deu...

     No ardor da argumentação, sua atitude, de insulto sardônico, se converteu num apelo à compreensão de Meredith. Ele próprio não tinha consciência disso, mas o sacerdote o notou prontamente e de novo se sentiu envergonhado de sua obtusidade. Ali estavam, prontos para ele, o lugar e o momento oportunos, mas, novamente, ao que parecia, por falta de sabedoria e de simpatia humana, não os aproveitara. O pintor prosseguia, as palavras a lhe saírem da boca precipitadamente, amargas.

     — Olhe para o senhor! É um sacerdote. E sabe muitíssimo bem que se eu me dispusesse, neste momento, a seduzir uma jovem, em lugar do jovem Paolo, o senhor adotaria uma opinião inteiramente diferente. Não aprovaria, certamente! E me faria um sermão sobre a fornicação e tudo o mais. Mas não se sentiria assim tão desgostoso. Seria normal... de acordo com a natureza! Mas eu não sou feito assim. Deus não me fez assim. Mas será que, por isso, necessito menos de amor? Tenho menos necessidade de satisfação? Tenho, acaso, menos direito de viver contente, apenas porque o Todo-Poderoso se enganou, algures, com uma das engrenagens de sua criação?... Que é que me responde a isso, Meredith? Qual é a sua resposta para mim? Devo, acaso, manietar-me, ou dedicar-me ao jogo de peteca e esperar até que façam de mim um anjo do céu, onde não há mais necessidade dessas coisas?... Sinto-me solitário! Tenho necessidade de amor, como qualquer outro homem! Da minha espécie de amor! Devo viver, até morrer, numa cela acolchoada? O senhor é a Igreja, e a Igreja sabe todas as respostas! Responda-me a isso!

     Interrompeu-se e ficou sentado, à espera, e seu silêncio constituía, para Meredith, um desafio maior do que o jorro de suas invectivas. Meredith fitou o pequeno caos de migalhas de pão que havia em seu prato e escolheu as palavras com que articular a sua resposta. Tentou fazer uma pequena prece silenciosa por aquela alma que se apresentava nua à sua frente — mas a prece, como o argumento que apresentou, lhe pareceu estranhamente árida e impotente. Após um momento, respondeu, grave:

     — O senhor me disse que já foi católico. Mesmo que não o tivesse sido, compreenderia minhas palavras e o que elas significam. Para o seu problema — como para uma porção de outros problemas — não existe uma resposta que não implique um mistério e um ato de fé. Não sei dizer-lhe por que Deus o fez assim, como também não sei por que motivo Ele plantou um carcinoma em meu estômago, fazendo-me morrer penosamente ao passo que outros morrem tranqüilamente durante o sono. Parece haver sempre enganos nas engrenagens da criação. Nascem crianças com duas cabeças, mães de família saem a correr, loucas, empunhando facas de cozinha, homens morrem em epidemias, de fome e fulminados por raios. Por quê? Só Deus sabe.

     — Se é que existe um Deus.

     — Aceitarei o "se" — respondeu Meredith, com tranqüilo interesse. — Se não existe Deus, então o universo é um caos sem sentido algum. Vive-se nele tão longa e agradavelmente quanto se puder, tirando-lhe o melhor proveito. O senhor pode apanhar o seu Paolo e desfrutá-lo... se a polícia e os costumes sociais o permitirem. Nada tenho a discutir com o senhor. Mas se existe um Deus — e creio que existe —, então.. .

     — Não me diga o resto, monsenhor — atalhou o pintor, com amargura. — Já sei de cor. Não importa a porcaria em que a criação se transforme, a gente a aceita e gosta dela... pois é uma cruz que Deus nos põe às costas. Se a gente a aceitar durante bastante tempo, fazem da gente um santo, como Giacomo Nerone. Isso não é resposta, Meredith.

     — O senhor tem outra melhor, Mr. Black?

     — Tenho, com efeito! O senhor fique com a sua cruz e com o seu cilício, monsenhor. Eu quero dinheiro na mão e pouco me importa o resto!

     Afastou a cadeira, levantou-se da mesa e, sem proferir qualquer outra palavra, entrou na casa. Blaise Meredith enxugou no guardanapo as mãos úmidas e tomou um gole de vinho, para umedecer os lábios. E surpreendeu-se de achá-lo subitamente azedo, como vinagre numa esponja.

    

   Às primeiras horas da tarde, na cabana que se erguia entre os azinheiros, Nina Sanduzzi conversava com o monsenhor que viera de Roma. Achavam-se sentados, frente a frente, à pequena mesa tosca, mas muito asseada, situada entre a porta aberta e a grande cama de ferro onde dormira Giacomo Nerone e em que nascera o seu filho. Depois da claridade que reinava fora, o quarto estava fresco e cheio de sombras, e mesmo o canto das cigarras era abafado, alcançando um meio-tom invariável e monótono.

     A caminhada, monte abaixo, cansara logo Meredith; tinha o rosto macilento, os lábios exangues, e sentia um nó apertar-lhe a boca do estômago. Nina Sanduzzi olhava-o com ar de ligeira piedade. Tinha pouca experiência em matéria de sacerdotes, e aqueles que conhecia, como Padre Anselmo, quase nada tinham que os recomendasse. Mas aquele era diferente; possuía compreensão e delicadeza. Não penetraria demasiado asperamente na intimidade de seu passado com Giacomo Nerone. Não obstante, mostrava-se cautelosa e, quando ele começou a interrogá-la, respondeu-lhe laconicamente, sem procurar enfeitar as palavras. Meredith, por sua vez, insistiu delicadamente:

     — Quero que compreenda primeiro uma coisa: há perguntas que precisam ser feitas. Algumas delas talvez lhe pareçam estranhas... e até mesmo brutais. Faço-as, não porque pense mal de Giacomo Nerone, mas porque precisamos tentar saber tudo, coisas boas e más, a respeito desse homem. Compreende isso, signora?

     Ela, calmamente, fez com a cabeça um sinal afirmativo.

     — É melhor me chamar pelo meu nome, Nina. É assim que o doutor me chama e o senhor é amigo dele.

     — Obrigado. Ora, estou informado, Nina, que logo depois de sua chegada a Gemello, você e Giacomo Nerone passaram a viver juntos.

     — Éramos amantes — respondeu Nina Sanduzzi. — Não é bem a mesma coisa.

     Meredith, o formalista, sorriu — ele, que antes bem poderia ter franzido o sobrolho diante de uma resposta como aquela. E prosseguiu:

     — Você era católica, Nina. Giacomo também. Não pensou que isso era um pecado contra Deus?

     — Quando a gente se sente solitária, monsenhor, e há medo bem atrás da porta, e o inverno está chegando e a gente não sabe se estará viva no dia seguinte, a gente pensa nessas coisas e se esquece do pecado.

     — Não se pode nunca esquecer inteiramente.

     — Inteiramente, não. Mas quando essas coisas acontecem com freqüência — mesmo entre sacerdotes —, não parecem tão más.

     Meredith acenou com a cabeça, afirmativamente. Uma semana atrás, talvez tivesse compreendido menos e falado mais. Agora, sabia que o coração tem razões mais profundas do que as que a maioria dos sacerdotes jamais imaginou. Tornou a perguntar:

     — Suas relações com esse homem... suas relações físicas... eram normais? Acaso ele lhe pediu alguma vez para fazer o que não deve ser feito entre homem e mulher?

     Ela o fitou, momentaneamente perplexa. Depois, ergueu a cabeça, altiva:

     — Nós nos amávamos, monsenhor. Fazíamos o que os amantes fazem e estávamos contentes um com o outro. Que mais poderia haver?

     — Nada — apressou-se a responder Meredith. — Mas, se se amavam tanto, por que não se casaram? Você ia ter um filho. Acaso não devia nada a esse filho? Que pensava Giacomo a respeito?

     Pela primeira vez, desde que a conhecera, Meredith viu um sorriso iluminar-lhe os lábios e os olhos. Era como que um eco da antiga Nina — a que queria um homem para ter em seus braços e estava disposta a enfrentar um pelotão de fuzilamento para obtê-lo. Respondeu-lhe, num dialeto vivido, cheio de gíria:

     — Todos os senhores me fazem a mesma pergunta...  como se ela fosse grande e importante, e não apenas uma verruga num melão verde. Os senhores não compreendem como eram as coisas naquela ocasião. Só era certo o dia que se estava vivendo. No dia seguinte, poderia vir a polícia, ou os alemães, ou os ingleses. Poderíamos todos morrer de tifo ou de malária. Um anel no dedo nada significava. Eu tinha um anel, mas não tinha homem algum que correspondesse a ele.

     — Giacomo se recusou a casar com você?

     — Eu nunca lhe pedi. Mais de uma vez, ele me disse que se casaria comigo, se eu quisesse.

     — E você não quis?

     Novamente a velha chama tremeluziu-lhe nos olhos, e o altivo sorriso grego contraiu-lhe o canto dos lábios:

     — O senhor ainda não compreende, monsenhor. Eu tinha tido, antes, um marido. Queria conservá-lo comigo, mas o exército o levou e ele foi morto. Agora, eu tinha um homem. Se ele quisesse ir...  podia ir, sem que anel algum o retivesse. Se a polícia ou os soldados o apanhassem, ele estaria, do mesmo modo, perdido para mim. O casamento poderia vir mais tarde, se fosse, algum dia, bastante importante. Além disso, havia uma outra coisa, sobre a qual Giacomo me falava com freqüência...

     — O quê?

     — Ele havia metido na cabeça que, mais cedo ou mais tarde, alguma coisa lhe aconteceria. Era desertor e, se os ingleses ganhassem a guerra, o apanhariam. Ou os alemães. Se o fizessem, eu jamais saberia se estava vivo ou morto. Ele queria que eu fosse livre, para poder tornar a casar. Livre para repudiá-lo, a fim de que não pudessem castigar nem a mim, nem ao filho.

     — E isso lhe era importante, Nina?

     — Para mim, não. Mas para ele, sim. E se pensar assim o tornava feliz, eu também era feliz. Nada mais importava. Nunca esteve apaixonado, monsenhor?

     — Temo que não — respondeu Meredith, esboçando um sorriso. — Você terá de ser paciente comigo...  Diga-me uma coisa: quando estavam vivendo juntos, que espécie de homem era Giacomo? Era bom para você?

     Era quase fantástico ver como as recordações a invadiam e como todo o seu corpo parecia animar-se, como uma flor sob a chuva. Mesmo em sua voz havia uma espécie de esplendor.

     — Que espécie de homem?... Como espera que responda a isso, monsenhor? Tudo o que uma mulher deseja encontrava-se naquele homem. Era vigoroso na cama e, não obstante, suave como um bebê. Podia ficar zangado, de modo que a gente tremia diante de seu silêncio, mas, no entanto, jamais levantou a mão ou ergueu a voz. Quando eu o servia, mostrava-se reconhecido e agradecia-me como se eu fosse uma princesa. Quando eu tinha medo, fazia-me rir e, quando ele ria, era como o sol que nascia pela manhã. Não tinha medo de ninguém nem de nada, exceto que eu pudesse vir a sofrer...

     — Contudo — observou Meredith, com estudada rudeza —, ele a abandonou grávida e jamais tornou a viver em sua companhia.

     Sua cabeça se ergueu, altiva como uma deusa de mármore ao sol:

     — Vivemos apaixonados e separamo-nos apaixonados... e nunca, depois disso, deixei de amá-lo...

    

     ... O inverno ia-se extinguindo numa longa alternância de nevascas e calmarias geladas. Na aldeia e nas montanhas havia muita doença. Alguns morriam e outros se restabeleciam — mas lentamente, devido à umidade e à falta de ventilação das choças e, também, porque a comida se tornava cada dia mais escassa.

     A certa altura, houve uma epidemia, durante a qual as pessoas apresentavam manchas na pele, dor nos olhos e febre. A própria Nina caiu doente e lembrava-se do médico e de Giacomo a confabular gravemente a um canto a respeito de algo a que chamavam rubella. Mas ela logo melhorou e não pensou mais no caso.

     O próprio Giacomo Nerone revelava os sinais de seu esforço, durante o longo e frio inverno. As carnes iam-lhe abandonando a robusta constituição física, suas faces morenas, de barba espetada, achavam-se fundas, e tinha os olhos encovados e febris, quando caminhava penosamente para casa em meio à neve, após um dia passado na montanha.

     Nina, atacada da náusea constante e do cansaço que assaltam certas mulheres no começo da gravidez, verificou que a monotonia da comida lhe dava enjôo e, à medida que seu corpo lentamente engrossava, se sentia pouco inclinada ao ato do amor, que antes lhe causava tanto deleite e ao qual se entregava de maneira tão completa. E essas coisas a preocupavam. Um homem era um homem, e exigia que uma mulher o acalmasse e satisfizesse, sem se importar com o que sua mulher pudesse sentir. Mas Giacomo era diferente da raça a que ela pertencia. Mostrava-se gentil, quando ela estava doente. Fazia ele mesmo a comida, para que ela fosse tentada a comer. Quando não estava disposta a recebê-lo em seus braços, não a forçava a fazê-lo e, nas longas e lamentosas noites de tempestade, distraía-a com histórias de lugares e povos estranhos, bem como de cidades que se erguiam, como blocos de pedras, quase até o céu.

     Ela o amava ainda mais pelas suas atenções, pois sabia que também ele tinha seus problemas; problemas que o mantinham desperto à noite e o preocupavam durante o dia. Às vezes falava com ela a respeito deles, esforçando-se por encontrar a frase exata em dialeto e fazer com que ela lhe compreendesse o sentido. Nisso, também, era diferente dos homens da aldeia, que se aconselhavam nas tabernas e não com suas esposas, pois eram de opinião que as mulheres nada sabiam, salvo o que se referia à casa, à cama e aos aspectos mais simples da religião. Mas Giacomo falava-lhe livremente, de modo que se sentia forte e sábia em sua companhia.

     — Ouça, Nina mia, você sabe que, às vezes, um homem faz uma coisa e sua mulher o odeia, por não compreender a razão de seu gesto?

     — Sei, caro mio, mas eu compreendo você. Sendo assim, por que é que você se preocupa?

     — Mesmo que eu fizesse o que quer que fosse, você ainda me amaria?

     — Sempre.

     — Então ouça, Nina. Não me interrompa enquanto estiver falando, porque isso é difícil de dizer. Quando terminar, diga se me compreendeu. Durante muito tempo, senti-me como um homem perdido. Fui como um calabrês parado no meio de Roma e perguntando a todos: "Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou?" Ninguém lhe responde, claro, porque ninguém o compreende... E mesmo que o compreendessem, ele não saberia, porque não fala a mesma língua que os romanos. Nem sempre foi assim. Houve um tempo em que eu era como você. Sabia que vinha de Deus e que, no fim, voltaria a Ele, que podia falar-Lhe na igreja e recebê-lo em mim na comunhão. Podia agir mal e, não obstante, ser perdoado. Extraviar-me um pouco e, apesar de tudo, voltar ao caminho certo... Mas, de repente, não havia mais caminho. Havia escuridão e vozes que me gritavam: "Por aqui! Por ali!" Eu seguia as vozes e penetrava em trevas ainda mais profundas — e ouvia outras vozes. Mas nada de caminho: eu estava perdido. Não havia Deus, nem igreja, nem lugar algum para onde, no fim, pudesse ir. Eu era esses seus gritos calabreses numa cidade de estranhos...  Quando aquilo me aconteceu em Messina, não pude ser como os outros homens e exclamei: "Isto é a guerra! Este é o preço da paz! Esquecerei tudo isso e continuarei lutando por aquilo em que acredito". Não acreditava em nada: na guerra, na paz, em coisa alguma! Havia apenas uma criança, uma mulher e um velho que eu matara, sem que tivesse razão alguma para o fazer... Pus-me, então, em fuga e, subitamente, sem saber por quê nem como, eis-me aqui com você...  novamente em casa. Mas nada é exatamente como antes. Eu mudei. Já não há escuridão, mas apenas brumas, como no vale às primeiras claridades cinzentas da manhã. Eu vejo você, conheço-a, amo-a, porque você está perto e também me ama. Mas fora da porta há neblina e estranheza. Até mesmo as pessoas são diferentes. Fitam-me com os olhos espantados. Sem que eu saiba a razão, sou para elas um sujeito importante. Elas dependem de mim. Sou o seu calabrês que esteve na grande cidade e viu tudo, conhece o papa, o presidente, e sabe como fazer as coisas. Sou o seu homem de confiança. Eu devia estar orgulhoso disso, mas não estou, pois caminho em meio à bruma, ainda incerto de onde vim, para onde vou e o que deveria fazer... Você pode compreender, Nina? Ou estou falando como um louco?

     — Você está falando comigo, caro mio, e o meu coração compreende.

     — Será que compreenderá o que vou pedir-lhe?

     — Quando você me abraça assim e posso sentir o amor em suas mãos e em sua voz, nada é difícil.

     — É difícil para mim dizer-lhe...  Quando chegar a primavera e a vida for mais fácil, quero deixá-la...  afastar-me, durante algum tempo, de você.

     — Não, caro mio!

     — Não do vale. Afastar-me desta casa.

     — Mas por quê, caro mio? Por quê?

     — Há duas razões, e a primeira diz respeito a mim. Quero encontrar um lugar secreto... e construir, se precisar, com as minhas próprias mãos, um abrigo. Quero lá viver sozinho com Deus, Cuja face já não posso ver. Quero dizer-Lhe: "Vê, estou perdido. A culpa é apenas minha, mas estou perdido. Se estás aí, fala-me claramente. Mostra-me quem sou, de onde venho, para onde vou. Estas criaturas, Tuas, que Te conhecem... por que se voltam elas para mim, e não para Ti, à procura de ajuda? Há em minha testa algum sinal que não consigo ler? Se há, conta-me o que significa... " Preciso fazer isso, cara.

     — E que será de mim e de seu filho?

     — Estarei aqui durante todo o tempo. Verei você com freqüência e, se Deus falar comigo, pedirei a Ele por você... pois, se Ele conhece absolutamente tudo, sabe que eu a amo.

     — E, ainda assim, você vai embora?

     — Há amor nisso também, Nina...  mais amor do que você imagina. E existe, ademais, uma grande razão para que eu o faça. Quando chegar a primavera, os exércitos se porão em marcha. Os alemães chegarão primeiro, e haverá combates ao sul daqui. Os guerrilheiros entrarão em ação, a fim de atormentar os alemães, e os Aliados, no fim, os repelirão, fazendo-os recuar. Alguns deles, ou todos eles, virão por seu turno a Gemello. Logo terão conhecimento de minha presença aqui, devido ao que sou... Giacomo Nerone, o homem de confiança, o sujeito importante, o marcado. Se tiver sorte, aceitar-me-ão e poderei, então, ajudar o povo. Se não tiver, algumas dessas tropas, esta ou aquela, me farão prisioneiro...  e, possivelmente, me matarão.

     — Dio! Não!

     — Pode acontecer, Nina. Talvez seja isso o que se encontra atrás da bruma, e é possível que eu veja, ao mesmo tempo, a face de Deus e a face do carrasco. Não sei. Mas, aconteça o que acontecer, precisamos separar-nos, ao chegar a primavera. Você não pode envolver-se comigo, pois há a criança. Se me aprisionarem, Meyer cuidará de você. Senão, estarei aqui para isso. E se tudo correr bem, casarei com você e darei o meu nome ao menino. Vocês ambos são meus, e eu a amo, e não permitirei que você sofra por mim ou pelo povo.

     — Sofrerei de qualquer modo, quando não estiver aqui.

     — Sofrerá menos assim do que do outro modo, Nina. Haverá muito ódio... você nem pode imaginar quanto. Já vi tudo isso antes, e é terrível!

     — Abrace-me, caro mio! Abrace-me, tenho medo.

     — Abrigue-se em meus braços e ouça as batidas de meu coração. Sou o seu homem de confiança, também, e você pode dormir tranqüila.

     — Agora, talvez...  mas, quando você for embora?

     — Jamais irei inteiramente, Nina mia. Nunca, até a eternidade...

    

     ... A simplicidade bíblica de sua narrativa era mais convincente do que qualquer retórica, e Blaise Meredith, o homem seco, pertencente à Congregação dos Ritos, viu-se levado por ela como uma vergôntea ao sabor de uma torrente. Mesmo através do rude dialeto, o diálogo soava como os versos de um poeta na boca de um amante... há muito querido e há muito lembrado. Atrás deles, o rosto de Giacomo Nerone adquiria forma e convertia-se em nítida realidade — um rosto magro, moreno, sofredor, de lábios suaves e olhos profundos, cheios de bondade. O rosto de um perquiridor... uma dessas criaturas cujos ombros suportam o fardo de mistérios e que chegam, às vezes, a uma santidade. Mas isso não era o bastante para os grisalhos advogados da Congregação dos Ritos, os inquisidores do Santo Ofício. Eles precisavam ver mais do que aquilo, e Blaise Meredith precisava dar-lhes o que desejavam. Assim, de um modo mais delicado, mas não menos persistente, tornou a interrogar Nina Sanduzzi:

     — Quando foi que ele a deixou?

     — Depois do degelo, quando ia romper a primavera.

     — E, até o momento em que a deixou, ele dormia com você... tinha relações carnais com você?

     — Tinha. Por quê?

     — Nada. É uma pergunta que devia ser feita.

     Mas o que ele não lhe disse era o que aquilo provava para ele. Ali estava ainda um homem na escuridão, um homem que buscava, talvez, a verdade, mas que ainda não encontrara o seu Deus, e que não se entregara ainda à Sua vontade. Havia amor nele, mas era ainda apenas o símbolo deformado do amor que é o começo da santidade.

     — E quando ele partiu, que foi que aconteceu?

     — Ele se dirigiu à garganta do vale, onde se encontram as cavernas, e começou a construir sua cabana. Enquanto a estava construindo, dormia numa caverna, preparava sua própria comida e, durante o dia, fazia o que havia feito durante o inverno: percorria o vale trabalhando para os que não podiam trabalhar, cuidando dos doentes, levando alimentos para os necessitados.

     — Você o via durante esse tempo?

     — Ele vinha ver-me todos os dias, conforme prometera.

     — E ele estava mudado?

     — Quanto a mim? Não. Só que era mais delicado e me tratava com mais cuidado.

     — E tinha relações íntimas com você?

     Ela tornou a sorrir, sentindo uma leve pena de sua ignorância clerical:

     — Eu estava gorda, pois ia ter criança, monsenhor. Sentia-me calma e contente... e ele nada me pedia.

     — E ele próprio, havia mudado?

     — Sim. Estava magro como jamais o vira. Tinha os olhos fundos e a pele esticada sobre os ossos do rosto. Mas estava sempre sorridente e muito mais feliz do que antes.

     — E disse por quê?

     — A princípio, não. Depois, um dia, tomou-me as mãos entre as suas e disse-me: "Estou em casa, Nina. Estou de novo em casa". Tinha estado em Gemello Maggiore, onde se havia confessado com o jovem Padre Mario e, no domingo, disse-me que ia receber a comunhão. Perguntou-me se eu ia à igreja naquele mesmo dia.

     — E você foi?

     — Não. No sábado, chegaram os alemães e instalaram o seu quartel-general na aldeia...

    

     ... Chegaram de manhã cedinho, enquanto a aldeia ainda esfregava os olhos sonolentos. Havia um carro blindado, dirigido por um sargento, com um capitão de ar preocupado sentado atrás. Havia ainda dois caminhões carregados de soldados e um outro veículo, cheio de munições e suprimentos. Subiram, sacolejando, com os motores a roncar, a estrada poeirenta, parando um pouco na rua estreita; depois, lançaram algumas imprecações estranhas e, em meio à ruidosa mudança de marchas, rumaram diretamente, monte acima, até a villa da Condessa de Sanctis.

     Nina Sanduzzi ouviu-os chegar, mas prestou pouca atenção ao fato. Estava ainda cheia de sono, entregue à remota contemplação de uma mulher que sente os primeiros sinais de vida dentro de si mesma. Só acordou quando ouviu batidas insistentes à porta e a voz de Aldo Meyer, que lhe pedia para abrir.

     Quando o fez entrar, surpreendeu-se de vê-lo vestido para viagem, metido em pesadas botas e numa jaqueta de pele de carneiro, com uma mochila às costas. Primeiro pediu-lhe de comer e, enquanto ela se apressava para servi-lo, falou-lhe em frases rápidas, concisas — meio temeroso, meio exaltado:

     — Quando você vir Giacomo, diga-lhe que dei o fora. Os alemães estão aqui e não tardará muito para que ouçam falar que existe um judeu no vale. Se me apanharem, serei enviado a um dos campos de concentração, no norte. Estou levando meus instrumentos e alguns remédios, mas deixei um estoque para Giacomo Nerone numa grande caixa, debaixo de minha cama.

     — Mas para onde vai, dottore?

     — Mais para leste, nas montanhas, na direção de San Bernardino. É um esconderijo de guerrilheiros com os quais tenho estado em contato há algum tempo. Seu chefe é um homem que se chama Il Lupo. Penso que veio do norte especialmente para realizar esse trabalho. Tem o aspecto de um homem adestrado. Possui armas, munições e um bom sistema de comunicações. Se Giacomo quiser entrar em contato comigo, diga-lhe para seguir uns dez quilômetros pelo caminho de San Bernardino e, depois, virar num lugar chamado Rochedo de Satanás. É lá que se encontram as primeiras sentinelas dos guerrilheiros. Deve subir até o alto do rochedo, sentar-se e acender um cigarro... depois, tirar o lenço e atá-lo em volta do pescoço. Alguém aparecerá e entrará em contato com ele. Entendeu bem? É importante. Se se esquecer disso, corre o risco de ser baleado.

     — Não esquecerei.

     Ela colocou o café, o pão e o queijo diante dele e, enquanto Meyer comia, fez um pacote de alimentos e o pôs em sua mochila. Só quando ela viu a pistola e sentiu o contato duro dos cartuchos de munições compreendeu o que Giacomo lhe havia dito. A guerra estava chegando a Gemello Minore, bem como todo o ódio e todo o desejo de matar.

     Com a boca cheia de pão e queijo, Meyer disse-lhe:

     — Procurei fazer com que Giacomo fosse comigo e levasse também você. Os alemães não serão com ele mais amáveis do que seriam comigo. Ele poderia ser fuzilado como espião.

     — E que foi que Giacomo lhe disse?

     — Apenas riu e me disse que conhecia os alemães melhor do que eu. Espero que tenha razão. A que horas você o vê, geralmente?

     Ela encolheu os ombros e fez um gesto com as mãos:

     — Varia. Às vezes pela manhã, logo cedo, outras vezes, tarde da noite. Mas ele sempre vem.

     Meyer olhou-a ironicamente, por cima da xícara:

     — Você se sente contente com esse arranjo, Nina?

     — Sinto-me feliz com Giacomo. Nunca conheci um homem como ele.

     Meyer sorriu, azedo.

     — Pode ser que tenha razão, quanto a isso. Sabe o que ele faz lá em cima, em sua cabana?

     — Reza. Pensa. Trabalha em seu jardim... quando não está trabalhando para alguém ou andando pelos montes. Por que pergunta?

     — Fui até lá procurá-lo, outra noite, para falar-lhe disso. Chamei-o, mas não houve resposta, embora seu lampião estivesse aceso. Entrei e encontrei-o ajoelhado no meio do assoalho, com os braços abertos. Tinha os olhos fechados, a cabeça lançada para trás e apenas movia os lábios. Falei-lhe e não me ouviu. Aproximei-me e sacudi-o, mas o seu corpo estava inteiramente rígido. Não consegui mexê-lo. Passado um momento, fui embora.

     Não houve surpresa alguma nos olhos escuros de Nina. Acenou com a cabeça e respondeu, de modo inteiramente casual:

     — Ele me disse que reza muito.

     — E não come muito também — observou Meyer, com ligeira irritação.

     — É verdade. Está muito magro. Mas disse-me que a prece lhe dá a alegria de que necessita.

     — Ele devia ter mais cuidado com a saúde. Uma porção de gente depende dele. E agora, que os alemães estão aqui, vão depender muito mais. Essa história de rezar está muito bem, de certo modo... mas há homens que enlouquecem quando a coisa vai longe demais.

     — O senhor acha que Giacomo está louco?

     — Eu não disse isso. Está estranho, apenas.

     — Talvez seja porque a gente não conhece muitos homens bons. Já esquecemos como são.

     Meyer esboçou um sorriso e enxugou os lábios nas costas da mão.

     — É possível que você tenha razão, Nina mia — disse levantando-se e pondo a mochila nos ombros. — Bem, preciso ir andando. Obrigado pelo café e pelas coisas. Diga a Giacomo o que lhe falei.

     — Direi.

     Ele pôs-lhe as mãos nos ombros e beijou-a nos lábios. Ela não resistiu, pois gostava dele e ele era um homem que seguia para a sua própria guerra particular.

     — Boa sorte, dottore.

     — Boa sorte, Nina mia. Você o merece.

     Ela ficou parada à porta, vendo-o descer apressadamente para o vale. Pensou que jamais o vira assim com ar tão jovem e animado, e no que teria acontecido se Giacomo não viesse para Gemello Minore.

     Mas Giacomo lá estava e sua presença lhe enchia toda a vida — e quando apareceu, pouco antes do almoço, ela se agarrou a ele com desespero, pondo-se a chorar em seu ombro. Ele a manteve em seus braços até que toda aquela tensão se dissipasse; depois, afastou-a delicadamente e ouviu o que ela lhe contou a respeito de Aldo Meyer e de sua mensagem. Ouviu-a com ar grave e, depois, disse:

     — Tentei fazer com que desistisse disso. Esses alemães nada são... Apenas uma patrulha de destacamento. Não aborrecerão muito pessoa alguma. Mas Meyer esperou tanto tempo pela sua própria guerra, que não consegue ver o que o aguarda.

     — Talvez isso lhe seja bom, caro mio. Eu o vi partir, e estava alegre como um menino que se dirige a uma caçada.

     Nerone abanou gravemente a cabeça, o rosto anuviado:

     — Meyer não foi feito para tal companhia. Já ouvi falar em Il Lupo e bem posso imaginar de onde ele vem. É um profissional, treinado na Rússia. Deseja mais do que apenas uma vitória. Deseja um Estado comunista na Itália. Quando os alemães forem expulsos e chegarem os Aliados, pleiteará o controle da administração civil. Pelo que têm feito, talvez o consiga. Meyer está no barco errado. Pensa que Il Lupo deseja apenas mais uma arma. O que ele deseja é um homem que possa ser usado mais tarde. Estou pensando no que acontecerá quando Meyer o descobrir. — Deu de ombros, sorriu e estendeu as mãos, de palmas para baixo, sobre a mesa: — Mas, de qualquer modo, já está feito, e nós temos o nosso próprio trabalho para realizar aqui.

     Ela pôs sobre a mesa uma grande travessa de macarrão e debruçou-se sobre ele enquanto comia, observando como estava magro e quão pouca satisfação lhe causava o molho suculento.

     — E o que você vai fazer, Giacomo?

     — O que estou fazendo agora...  com a diferença de que tive de incluir os alemães em meus cálculos. Anteontem, visitei a condessa.

     Era algo que não lhe contara, e ela se sentiu tomada de vivos ciúmes. Dir-se-ia que o via voltando para o mundo que ele abandonara — um mundo em que estivera perdido e onde ela jamais poderia alcançá-lo. Mas nada lhe disse, esperando que ele contasse o resto.

     — Disse-lhe que eu era inglês. Embora nada lhe dissesse, fiz com que pensasse que eu era um agente secreto que veio para cá preparar o caminho para os Aliados. Recebeu-me com prazer. Ela se acha numa posição difícil. Sugeri que me nomeasse administrador de suas propriedades, para que eu pudesse conversar mais ou menos em pé de igualdade com o comandante alemão. Ela deu-me um quarto no alojamento dos criados.

     — Você vai viver na villa?

     — Tenho um quarto lá. Dormirei lá quando for preciso. Mas conseguirei um salvo-conduto com o comandante e poderei locomover-me livremente. Preciso disso. Toda a aldeia se converteu num acampamento militar.

     — Ótimo para a condessa! — exclamou, tomada de súbita maldade. — Poderá ter um homem todas as noites.

     O rosto de Nerone anuviou-se. Estendeu o braço, tomou-lhe ambas as mãos e puxou-a delicadamente para si.

     — Não diga isso, caríssima. Ela é uma mulher estranha, solitária, com um fogo nas veias que homem algum conseguiu ainda extinguir. Isso é um tormento e não uma brincadeira. Por que erguemos o dedo contra ela, quando temos tanto?

     — Ela come homens, caro mio. E não deixarei que coma você.

     — Ela terá indigestão, se o tentar — disse ele, com um sorriso.

     Mas, quando ele se foi, o medo ficou ainda com ela, e despertou, várias vezes, durante a noite, sonhando que Giacomo a abandonara e casara com a mulher que vivia no alto do monte, com seu ventre achatado, estéril, sua boca contraída e seus olhos vorazes...

    

     — Há ainda outra coisa que devo perguntar — disse Blaise Meredith, com sua voz seca. — Durante esse tempo, Giacomo cumpria quaisquer deveres religiosos? Ia à missa e recebia os sacramentos?

     Nina Sanduzzi fez um sinal afirmativo com a cabeça:

     — Sempre que podia... salvo quando havia gente doente nas montanhas, ou homens extraviados que precisavam ser escondidos dos alemães. Costumava assistir à missa aqui aos domingos, e eu o via, embora houvesse um acordo entre nós para que não sentássemos juntos nem nos cumprimentássemos, pois alguns dos alemães lá estavam. Provinham, ao que parecia, de uma parte da Alemanha em que há muitos católicos. Quando queria confessar ia, pelo vale, à procura do jovem Padre Mario.

     — Mas não do Padre Anselmo? Ela abanou a cabeça:

     — O Padre Anselmo não gostava dele. Às vezes, trocavam palavras ásperas, quando o Padre Anselmo se recusava, depois do toque de recolher, a ir ver os doentes.

     — E que dizia Giacomo a respeito do Padre Anselmo?

     — Que ele era digno de pena e que a gente devia rezar por ele...  mas que os homens que o mandaram para cá seriam julgados com severidade. Costumava dizer que Gesù construíra a Igreja como uma casa para a sua família viver, mas que certos homens — mesmo sacerdotes — às vezes a transformavam em mercado e em cantina. Dizia que, se não fosse pelo amor de Gesù e pela graça do Espírito Santo, ela cairia em ruínas dentro de uma geração. Dizia que aquilo de que toda casa necessitava... era muito amor e pouca discussão. Tinha razão.

     — Eu sei que tinha! — exclamou Meredith, surpreso de que sua voz soasse de modo tão veemente. — Mas diga-me uma coisa: o que é que Giacomo dizia e sentia a respeito dos alemães?

     — Isso era uma coisa sobre a qual falava com freqüência, mas que, às vezes, me era difícil de compreender. Dizia que os países são como homens e mulheres, e que o povo adquire o caráter do país em que vive. Cada país tem o seu pecado e a sua virtude especial. Os ingleses eram sentimentais mas, ao mesmo tempo, duros e egoístas, porque viviam numa ilha e queriam conservá-la para si como sempre o haviam feito. Eram corteses. Tinham muita justiça, mas pouca caridade. Quando lutavam, lutavam com tenacidade e bravura, mas sempre se esqueciam de que muitas de suas guerras tinham nascido de seu próprio egoísmo e indiferença. Os americanos eram diferentes. Eram sentimentais e rijos, também, contudo mais simples do que os ingleses, porque eram mais jovens e mais ricos. Gostavam de possuir coisas, mesmo que não soubessem, muitas vezes, de que maneira gozá-las. Eram como todos os jovens, inclinados à violência. Podiam facilmente ser enganados por belas palavras e coisas imponentes. E, com freqüência, enganavam a si próprios, porque gostavam de palavras sonoras, mesmo que não compreendessem o seu significado. Os alemães eram, por sua vez, diferentes. Eram muito trabalhadores, amantes da ordem e da eficiência, e muito orgulhosos. Mas havia neles uma grosseria e uma violência que se desencadeavam com a bebida, com os grandes discursos e com a necessidade que tinham de se impor. Giacomo costumava rir ao dizer que gostavam de sentir Deus trovejando em suas barrigas, quando ouviam tocar uma música sonora...

     — E isso era tudo?

     — Não. Giacomo gostava de falar assim. Dizia que a gente tinha de tirar a escuma da sopa, pois, do contrário, ela azedava. Mas sempre voltava ao mesmo assunto: não importava o que fossem as pessoas, ou os países, tinham sempre de viver como uma família. Era assim que Deus os tinha feito... e se um irmão levantava uma arma contra o seu irmão, acabariam, no fim, destruindo um ao outro. Havia ocasiões em que cada qual tinha de engolir o seu orgulho e ceder... ser cortês quando tinha vontade de cuspir nos olhos do outro. E foi assim que procurou viver com os alemães aqui.

     — E foi bem sucedido?

     — Penso que sim. Vivíamos em paz. Não éramos roubados. Uma moça podia dirigir-se com segurança ao poço e voltar de novo para casa. Às vezes, havia mortes, quando os guerrilheiros encontravam uma patrulha alemã...  mas isso acontecia sempre longe de Gemello. Havia toque de recolher e ficávamos, à noite, em casa. Se surgia alguma complicação, Giacomo falava com o comandante e a coisa era resolvida. Depois de algum tempo, os alemães foram embora, rumando para o sul, e os guerrilheiros os seguiram, como os lobos seguem os carneiros nos Abruzzi.

     — E depois?

     — Em maio, ouvimos notícias de que Roma caíra em poder dos Aliados, e no começo de junho Paolo nasceu...  E nasceu cego...

    

     ... Os primeiros sinais manifestaram-se uma manhã, já tarde, numa ocasião em que Giacomo se encontrava em sua companhia. Eram ligeiros e incertos, mas Giacomo mostrou-se tão preocupado que insistiu em chamar Carla Carres, a parteira, bem como Serafina Bambinelli e Linda Tesoriero. Vieram todas correndo, ruidosas, pois ele lhes dissera que se tratava de um caso urgente, mas quando viram que Nina se encontrava ainda de pé, sem complicação alguma, todas ficaram em roda, com as mãos nos quadris, e riram dele. Ele, com voz zangada, exclamou, áspero:

     — Vocês são idiotas... todas vocês! Fiquem com ela e não a deixem. Vou chamar o Dr. Meyer.

     Olharam-no, boquiabertas, e mesmo Nina Sanduzzi ficou perplexa, pois dar à luz uma criança era coisa de mulher. Os médicos eram para gente doente e eles sabiam que, se tudo corresse bem, o parto seria uma coisa simples, embora ruidosa, seguida, depois, de muita alegria. Mas, antes que tivesse tempo de dizer-lhe, Giacomo se foi, uma figura magra, pressaga, galgando a picada que conduzia ao caminho de San Bernardino.

     Nina ficou preocupada devido à longa distância que teria de percorrer; mas as mulheres logo riram dela, afastando-lhe a preocupação. A criança chegaria antes que voltasse — e ele e o médico poderiam embriagar-se juntos, como bons amigos deviam fazer quando um deles era o pai de um forte bambino.

     Tinham certa razão, afinal de contas. A criança nasceu, foi lavada, enrolada e colocada nos braços da mãe antes que Giacomo voltasse em companhia de Aldo Meyer. Mas eles não agiram como outros homens por ocasião de um nascimento. Giacomo beijou-a e teve-a nos braços durante muito tempo. Aldo Meyer também a beijou, levemente, como um irmão. Depois, Giacomo tirou-lhe a criança dos braços, levou-a para a mesa e ficou segurando o candeeiro, enquanto Meyer lhe examinava o coração, espiava-lhe os ouvidos e erguia-lhe as pequenas pálpebras, debruçando-se ainda mais para observar melhor.

     A parteira e as mulheres permaneciam de pé, em pequeno grupo, perto da cama, e Nina ergueu-se nos travesseiros para indagar, temerosa:

     — Que é que há com ele? Que é que vocês estão olhando?

     — Diga-lhe — ordenou Aldo Meyer.

     — Ele é cego, cara — disse Giacomo Nerone, com brandura. — Nasceu com catarata nos olhos. Foi a febre que você teve, aquela doença que produz manchas, chamada rubella. A mulher que a apanha no segundo ou terceiro mês de gravidez, às vezes, dá à luz uma criança cega ou surda.

     Demorou talvez meio minuto antes que ela compreendesse bem o sentido daquelas palavras. Gritou, então, como um animal e afundou o rosto no travesseiro, enquanto as mulheres se amontoavam em torno dela como galinhas, cacarejando-lhe palavras de conforto. Decorridos uns momentos, Giacomo acercou-se dela, pôs-lhe a criança nos braços e procurou falar-lhe, mas ela voltou a cabeça para o outro lado, pois sentia vergonha de ter dado uma criança defeituosa ao homem que tanto amava.

     Muito depois, quando as mulheres já haviam ido embora, Giacomo voltou para o seu lado, em companhia de Aldo Meyer. Ela estava agora mais calma, e Meyer disse-lhe, com ar sério:

     — Esta é uma coisa triste, Nina; mas aconteceu e, no momento, nada se pode fazer. Se as coisas fossem diferentes, poderia levá-la para o hospital em Valenta e depois, talvez, para Nápoles, a fim de consultar um especialista e ver se algo poderia ser feito. Mas a guerra ainda não terminou. Há ainda combates e as estradas estão atravancadas de refugiados. Unidades alemãs, destroçadas, ainda lutam em retirada, e os guerrilheiros estão em seu encalço. Nápoles está em desordem, e você seria apenas uma outra camponesa sem ninguém que a ajudasse. Giacomo é um homem que está sendo procurado e eu estou comprometido com o meu bando nas montanhas. Assim, no momento não há outra coisa a fazer senão esperar. Quando houver de novo a paz, veremos o que se pode fazer.

     — Mas o menino é cego! — era tudo o que ela sabia pensar ou dizer.

     — Os deficientes precisam de muito amor — respondeu Aldo Meyer.

     Giacomo Nerone nada disse; mas ela quase sentiu o coração despedaçar-se, ao ver a dor e a piedade que havia em seus olhos. Meyer continuou a falar-lhe em seu tom amável, profissional, mostrando a catarata nos olhos da criança, dissipando, de certo modo, por meio da razão, o terror que, a princípio, a assaltara. Giacomo serviu vinho a todos e pôs-se a preparar a comida. Os dois homens comeram na mesa enquanto Nina, com o seu prato sobre o colo, falava com eles da cama. Quando o bebê choramingou, ela o levou ao seio e, ao sentir aquele pequenino e cego fardo aconchegar-se a ela, pôs-se a chorar baixinho.

     Meyer partiu antes da meia-noite para dormir em sua própria casa, livre, por fim, da ameaça do campo de concentração. Quando Giacomo o conduziu à porta, Nina estava cochilando, mas ouviu-o dizer, nitidamente:

     — Você é meu amigo, Meyer, e eu o compreendo, mesmo que não esteja de acordo. Mas conserve Il Lupo longe da aldeia. Conserve-o longe de mim.

     E a voz de Meyer, ao responder, lacônica:

     — Mas isso faz parte da história, homem! Você não pode detê-la! Nem eu, tampouco! Alguém tem de começar a organizar...

     O resto da conversa perdeu-se, quando passaram pela porta e saíram para a noite clara. Decorridos alguns minutos, Giacomo voltou e trancou a porta. Depois, em voz baixa:

     — Você não pode ficar sozinha esta noite, cara. Ficarei com você.

     Então, todo o seu desapontamento jorrou como uma fonte e ela agarrou-se a ele soluçando, como se tivesse o coração partido, como, com efeito, quase tinha.

     Depois, quando de novo se acalmou, Giacomo acomodou-a sobre os travesseiros, diminuiu a luz do candeeiro e, através dos olhos semicerrados, ela o viu fazer uma coisa estranha. Num gesto que parecia inteiramente inconsciente, ele ajoelhou-se sobre o chão de terra, fechou os olhos e abriu os braços, como os braços de Gesù pregado à cruz, enquanto seus lábios se moviam numa prece muda. Houve um momento em que todo o seu corpo pareceu tornar-se rígido, como uma árvore, e, quando ela o chamou, assustada, ele não respondeu. Permaneceu deitada, a observá-lo, até ser vencida pela exaustão, mergulhando então no sono.

     Quando despertou, o quarto estava cheio de sol, o bebê chorava e Giacomo estava preparando o café para a refeição matinal. Aproximou-se, beijou-a, ergueu a criança nos braços e disse, com ar grave:

     — Quero dizer-lhe uma coisa, Nina mia.

     — Diga-me.

     — Daremos o nome de Paolo ao menino.

     — Ele é seu filho, Giacomo. Você pode dar-lhe o nome... Mas por que Paolo?

     — Porque Paolo, o Apóstolo, vivia longe de Deus e, como eu, encontrou-o na estrada de Damasco. Porque, como este menino, Paolo vivia cego, mas tornou a ver, graças à misericórdia de Deus.

     Ela fitou-o, incrédula:

     — Mas o médico disse...

     — Estou-lhe dizendo, cara — volveu ele, a voz forte e profunda como um sino. — O menino enxergará. A catarata desaparecerá dentro de três semanas; no tempo em que um bebê começa a ver a luz, o nosso Paolo também a verá. Você segurará o candeeiro diante de seus olhos e verá como ele piscará e começará a seguir a luz. Eu lhe prometo, em nome de Deus.

     — Não diga isso apenas para me consolar, caro. Eu não agüentaria alimentar esperança e, no fim, ser enganada.

     Havia angústia em sua voz, mas ele apenas lhe sorriu:

     — Não é esperança, Nina mia. É uma promessa. Creia nela.

     — Mas como é que você sabe? Como é que pode ter certeza?

     Ele respondeu, apenas:

     — Quando isso acontecer, Nina, faça com que os outros pensem que também para você foi uma novidade. Não conte a ninguém a respeito desta manhã. Você me promete?

     Ela, muda, fez que sim com a cabeça, pensando como é que poderia suportar a espera e ocultar a dúvida que sentia.

     Três semanas mais tarde, no momento exato, apanhou a criança no berço e despertou-a. Ao abrir os olhos, o pequeno tinha-os claros e brilhantes como os do pai, e, quando ela o ergueu para a luz, o menino piscou. Cobriu-lhe os olhos com a mão, e ele permaneceu com o olhar fixo: depois, tornou a piscar, quando ela retirou a mão.

     O espanto do momento foi como uma revelação. Teve vontade de gritar, de cantar, de sair aos gritos pela rua da aldeia e dizer a todos que a promessa de Giacomo se cumprira.

     Mas Giacomo já estava morto e enterrado. A gente da aldeia voltava o rosto para o outro lado, envergonhada, quando ela passava. Até mesmo Aldo Meyer havia ido para Roma, e ela pensou que ele jamais voltaria...

    

     — Preciso ir para casa, agora — disse Monsenhor Blaise Meredith. — É tarde e você já me forneceu muita coisa em que pensar.

     — Acredita no que lhe contei, monsenhor? Sua voz e seus olhos o desafiavam, calmamente. Ele ficou um longo momento a fitá-la; depois respondeu, com curiosa decisão:

     — Sim, Nina. Não sei ainda o que isso significa. Mas creio em você.

     — O senhor então olhará pelo filho de Giacomo... pela sua segurança?

     — Olharei por ele.

     Mal, porém, o havia dito, sua consciência o desafiou: mas de que maneira? De que maneira, santo Deus?

    

   Para o Dr. Aldo Meyer, o anoitecer estava encerrando uma tarde de estranha calma.

     Logo depois do almoço sentou-se para ler os papéis de Giacomo Nerone. Aproximou-se deles hesitante e receoso, como se se acercasse de um momento de crise ou revelação. Mas quando os abriu e os pôs em ordem, começando a ler aquela caligrafia ousada, foi como se estivesse ouvindo os velhos desafiadores argumentos do próprio Giacomo.

     Houve momentos de vergonha diante de seus próprios fracassos, momentos de lembrança pungente, de saudade de uma camaradagem que começara em conflito, que chegara, às vezes, a aproximar-se da amizade e que devia logo terminar em tragédia. Mas não havia amargura naqueles registros — como jamais tinha havido amargura no próprio Giacomo. Havia trechos de simplicidade quase infantil que comoveram Meyer quase até as lágrimas, bem como frases de exaltação mística, que o deixavam desorientado, como ocorrera com o próprio Giacomo, quanto à explicação de seu malogro.

     Mas no fim havia paz, calma e certeza, que se comunicavam ao leitor mesmo ao cabo de anos. E, no último dos escritos, na carta dirigida a Aldo Meyer, havia uma grande brandura e um tom singular de perdão. O resto dos papéis era redigido em inglês, mas a carta estava em italiano e isso, também, constituía uma delicadeza que não podia ser facilmente esquecida.

 

"Meu caro Aldo:

     Estou em casa e é tarde. Nina dorme, finalmente, e o menino também. Amanhã cedo, antes de partir, deixarei esta nota com ela, entre os meus outros papéis e, quando tudo estiver terminado e a primeira impressão de pesar haja passado, talvez ela lhe chegue com segurança às mãos.

     Encontrar-nos-emos amanhã, você e eu, mas como estranhos, cada qual entregue a uma crença oposta e uma prática oposta. Você se sentará entre os meus juízes, caminhará entre os que irão executar-me e, quando tudo estiver terminado, assinará o certificado de minha morte.

     Não o censuro por nada disso. Cada um de nós só pode seguir pelo caminho que vê diante de seus próprios pés. Cada um de nós está sujeito às conseqüências de sua própria crença — embora eu ache que chegará o dia em que virá a pensar de modo diferente. Se isso ocorrer, você odiará o que foi feito, e sentir-se-á tentado a odiar-se pelo papel que representou no caso, tanto mais que não haverá ninguém a quem possa dizer que está arrependido.

     Por isso, quero dizer-lhe, agora, que não o odeio. Você tem sido meu amigo, bem como amigo de Nina e do menino. Espero que sempre esteja ao lado de ambos e cuide deles. Sei que amou Nina. Penso que ainda a ama. E isso será uma outra cruz em seus ombros, pois jamais saberá se, ao participar de minha condenação, você o fez movido por suas crenças ou pelo ciúme. Mas eu sei e digo-lhe agora que morrerei considerando-o meu amigo.

     Mas há, ainda, um serviço que quero pedir-lhe. Quando receber esta carta, procure o Padre Anselmo e Anne Louise de Sanctis e diga a cada um deles que não tenho ressentimento algum pelo que fizeram e que, quando chegar à presença de Deus, como espero poder chegar, me lembrarei de ambos.

     E assim, dottore mio, eu o deixo. Não tardará a amanhecer, e sinto frio e medo. Sei o que deve acontecer, e minha carne se arrepia de terror ao pensá-lo. Quase não me restam forças, e preciso ainda rezar um pouco. Uma coisa que sempre desejei foi a graça de morrer com dignidade, mas jamais, até hoje, compreendi quanto isso é difícil.

     Adeus, meu amigo. Que Deus nos guarde nos momentos de treva.

Giacomo Nerone"

    

     Ao ler a carta pela terceira vez, Meyer enxugou uma ou outra lágrima, mas, depois de caminhar durante algum tempo, refletir a respeito e tornar a lê-la, a caridade que encerrava desceu sobre ele como uma absolvição. Mesmo que tivesse fracassado em tudo o mais — e seus fracassos estavam escritos no longo calendário de quinze anos —, não morreria sem amor e sem perdão. E essa era a resposta à pergunta que havia tanto tempo o perseguia: ali estava a resposta por que certos grandes homens morriam e deixavam o mundo sem que ninguém se importasse o mínimo com eles, enquanto a lembrança de outros era guardada com carinho no âmago do coração dos humildes.

     Esse pensamento permaneceu com ele durante todo o entardecer, e ainda se expandia quando alguém bateu à porta. Abriu-a e deparou com Blaise Meredith.

     Surpreendeu-o o aspecto do sacerdote. Tinha o rosto cinéreo, os lábios exangues, e pequenas bagas de suor cobrindo-lhe a testa e a parte superior da boca. Mãos flácidas, voz rouca e trêmula.

     — Sinto incomodá-lo, doutor. Será que poderia descansar um pouco em sua companhia?

     — Mas claro! Entre, pelo amor de Deus! Que foi que lhe aconteceu?

     Meredith sorriu descoroçoadamente:

     — Não aconteceu nada. Estou de volta da casa de Nina. Mas é uma longa pernada antes que se chegue à estrada, e foi um pouco demais para mim. Estarei bem dentro de um minuto!

     Meyer conduziu-o para dentro da casa, fê-lo deitar-se em sua cama e trouxe-lhe um bom trago de grappa.

     — Beba isto. É uma droga medonha, mas porá um pouco de vida em seu corpo.

     Meredith quase se afogou ao tomar a forte bebida, mas engoliu e, após alguns momentos, começou a sentir o calor estendendo-se por ele e as forças voltarem aos seus membros. Meyer, de pé, ficou a fitá-lo com olhos graves.

     — Seu estado me preocupa, Meredith. Isso não pode continuar. Estou meio inclinado a comunicar-me com o bispo e a fazer com que o levem para um hospital.

     — Dê-me mais alguns dias, doutor. Depois disso, não terá muita importância.

     — O senhor está muito doente. Por que se esforça desse jeito?

     — Ficarei morto muito tempo. É melhor gastar até as últimas forças do que enferrujar.

     Meyer deu de ombros, desanimado:

     — A vida é sua, monsenhor. Diga-me... como foi que se saiu em sua conversa com Nina?

     — Muito bem. Estou profundamente impressionado com o que me disse. Mas tenho ainda duas perguntas a fazer. Gostaria que o senhor respondesse... isto é, se não se importa.

     — Pergunte o que quiser, meu amigo. Já fui longe demais para que agora recue.

     — Obrigado. Eis a primeira pergunta: houve aqui uma erupção de rubéola no inverno de 1943? E Paolo Sanduzzi nasceu cego devido a ela?

     — Sim.

     — E quanto tempo decorreu antes que o senhor tornasse a ver o menino?

     — Três anos... não, quase quatro. Fui para Roma, como o senhor sabe.

     — Quando voltou, o menino enxergava?

     — Enxergava. A catarata tinha desaparecido.

     — Do ponto de vista médico, isso era estranho?

     — Inteiramente anormal. Nunca vi outro caso igual.

     — O senhor disse a Nina algo a respeito?

     — Disse. Perguntei-lhe de que maneira e quando aquilo havia ocorrido.

     — E que respondeu ela?

     — Apenas encolheu os ombros e disse, como os camponeses costumam dizer: "Aconteceu porque aconteceu". Nossas relações, naquela ocasião, não eram tão boas como agora. Não insisti no assunto. Mas aquilo me intrigou. E ainda hoje me intriga. Por que pergunta, monsenhor?

     — Nina contou-me que, no dia do nascimento do menino, depois que o senhor se foi, Giacomo rezou a noite toda... e que, pela manhã, prometeu-lhe que o garoto enxergaria normalmente, como as outras crianças... três semanas depois. Segundo ela, foi justamente o que aconteceu. A catarata desapareceu. A criança conseguia distinguir entre luz e sombra. E, mais tarde, a visão se desenvolveu como nas outras crianças. Qual sua opinião sobre isso, doutor?

     Meyer não respondeu imediatamente. Parecia perdido em seus pensamentos. Quando falou, era como se falasse consigo mesmo.

     — Então era isso que ela queria dizer, ao afirmar que Giacomo realizara milagres e que ela os vira.

     — Quando foi que disse isso? — indagou, incisivo, Meredith.

     — Quando estávamos discutindo a respeito de sua chegada e eu procurava persuadi-la a falar com o senhor.

     — Acha que estava dizendo a verdade?

     — Se o dizia — respondeu, com ar grave, Meyer — é porque era verdade. Ela não mentiria nem para salvar a própria vida.

     — Como médico, qual a sua opinião a respeito?

     — Assim, de improviso, diria que isso não poderia ocorrer.

     — Mas ocorreu. O rapaz hoje enxerga.

     Meyer lançou-lhe um olhar longo, indagador; depois sorriu e abanou a cabeça:

     — Sei o que o senhor quer que lhe diga, monsenhor, mas não posso dizê-lo. Não acredito em milagres, mas somente em fatos não explicados. Tudo o que posso admitir é que isso não ocorre normalmente. Poderia ir além e dizer-lhe que jamais ouvi falar em outro caso semelhante, e que não conheço explicação médica alguma para o caso. Mas não estou preparado para dar um salto no escuro e dizer-lhe que isso é um milagre causado por intervenção divina.

     — Não estou pedindo que diga — respondeu, bem-humorado, Meredith. — Estou lhe perguntando se, do ponto de vista médico, pode explicar tal fato.

     — Eu não posso. Talvez outros o possam.

     — Se pudessem, poderiam explicar o conhecimento antecipado que Giacomo Nerone tinha da cura?

     — A clarividência é um fenômeno estabelecido, embora não explicado. Mas não pode se pedir a alguém que julgue um relato de segunda mão de algo que ocorreu quinze anos atrás.

     — Mas o senhor aceita a veracidade do relato?

     — Aceito.

     — O senhor registraria o fato como sendo um fato inexplicado e, possivelmente, inexplicável segundo o estado atual do conhecimento médico?

     — ... Do meu conhecimento médico — corrigiu Meyer, sorrindo.

     — Isso basta — disse Meredith, com leve ironia. — Anotarei isso em meus apontamentos.

     — E qual é sua opinião a respeito? — indagou Meyer, em tom irônico.

     — Tenho o espírito aberto — respondeu, preciso, Meredith. — Procurarei provar por todos os meios possíveis, como o fará também o meu sucessor, que isso não é um milagre, mas simplesmente um fenômeno físico raro. Como isso se baseia apenas na declaração de uma única testemunha e em seu depoimento posterior, acabaremos, provavelmente, por recusar-nos a aceitar o fato como sendo um milagre... embora, na verdade, possa sê-lo. O ponto em que diferimos, meu caro doutor, é que o senhor rejeita a possibilidade de milagres e eu a aceito. O argumento é longo, mas atrevo-me a insinuar que a minha posição é um pouco mais defensável do que a sua.

     — O senhor daria um bom advogado, monsenhor — disse Meyer, afastando-se de tal suposição. — Qual a pergunta seguinte?

     — Quem era Il Lupo? — perguntou Meredith. — E por que razão Nerone pediu para que o senhor o mantivesse afastado da aldeia?

     Meyer olhou-o rápido, surpreso:

     — Quem lhe disse isso?

     — Nina. Ela estava meio adormecida, mas ouviu a conversa que o senhor e Nerone tiveram junto à porta.

     — Que mais ouviu ela?

     — O senhor disse: "Mas isso faz parte da história. Você não pode detê-la. Nem eu, tampouco. Alguém tem de começar a organizar..."

     — E isso foi tudo?

     — Foi. Pensei que pudesse dizer-me o que isso significava.

     — Significava muitas coisas, monsenhor. Posso apenas dizer-lhe o que significava para mim...

    

     ... O acampamento ficava numa depressão de terreno pouco profunda, no dorso das montanhas situadas a leste. Em tempos imensamente distantes, devia ter sido a cratera de um vulcão. O topo era denteado como um serrote e os montes externos eram estéreis e cobertos de seixos; mas, em seu interior, havia um pequeno lago para onde se escoavam as águas e, em suas margens, erguiam-se bosquetes, circundados por trechos de áspera e dura relva. As tendas achavam-se ocultas entre os arbustos, e as cabras e o gado que se tinham requisitado aos camponeses locais pastavam seguros dentro da concavidade do terreno, enquanto as sentinelas descortinavam toda a região em torno, abrigadas atrás das altas escarpas denteadas.

     Havia apenas um único caminho de acesso: — a trilha de cabras que começava no Rochedo de Satanás, onde se achava postada a primeira sentinela. Os vigias, de cima, podiam vê-la o dia todo — e, se um visitante fosse admitido, podiam mantê-lo sob suas vistas durante cada passo do caminho. Quando chegasse à beira da cratera seria revistado, após o quê, dois homens o conduziriam através das touceiras à tenda de Il Lupo, que era o seu chefe.

     Meyer lembrava-se vividamente dele: um homem baixo, de olhos claros, rosto redondo e boca sorridente, da qual saía uma voz clara, que ora falava no mais puro toscano, ora no mais rude dialeto provinciano. Suas roupas eram grosseiras como as de seus homens, mas tinha as mãos e os dentes imaculadamente limpos e barbeava-se com todo o cuidado, todos os dias. Falava pouco de seu passado, mas Meyer ficou sabendo que lutara na Espanha e fora, depois, para a Rússia, voltando à Itália antes de irromper a guerra. Trabalhara em Milão e Turim e, mais tarde, em Roma, embora jamais tivesse ficado muito claro em quê e de que modo o fizera. Admitira que pertencia ao Partido e discutia política com autoridade e versatilidade.

     No dia em que Giacomo Nerone fora conduzido até a sua tenda no Rochedo de Satanás, Meyer lá estava a discutir com Il Lupo acerca de uma nova operação de patrulhamento. Os guardas declinaram o seu nome e o assunto a que vinha, e Il Lupo levantou-se e estendeu-lhe a mão:

     — Então o senhor é Nerone! Muito prazer em conhecê-lo. Já me falaram muito a seu respeito. Gostaria de conversar com o senhor.

     Nerone retribuiu e disse, enérgico:

     — Poderíamos deixar isso para outra ocasião? Minha mulher está em trabalho de parto. Gostaria que o doutor a visse o mais depressa possível. É uma longa caminhada, daqui até lá.

     — Ela teve rubella — apressou-se a informar Meyer. — Receamos que haja complicações.

     Os olhos claros anuviaram-se, preocupados. Il Lupo esboçou um sorriso de simpatia.

     — É uma pena. Uma grande pena. Eis aí uma ocasião em que seria de grande ajuda um serviço médico estadual. Pode-se começar a vacinação em massa logo aos primeiros sinais de uma epidemia. Mas estou certo, Meyer, de que você não tinha soro.

     — Não tinha. Só nos resta esperar e ver como a criança nasce.

     — As parteiras já estão com ela?

     Nerone fez um sinal afirmativo com a cabeça.

     — Então ela tem, ao menos, quem cuide dela. De qualquer maneira, dez minutos não farão diferença alguma. Vamos tomar uma xícara de café e conversar um pouco.

     — Acalme-se, Giacomo — disse Meyer, em tom cordial. — Nina é forte como um boi. Recuperaremos o tempo na descida do monte.

     — Muito bem.

     Sentaram-se em cadeiras de lona rasgada. Il Lupo ofereceu-lhes cigarros e gritou para que servissem café e, após alguns momentos de tergiversação, foi direto ao assunto:

     — Meyer falou-me a seu respeito, Nerone. Sei que é um oficial inglês.

     — É verdade.

     — E desertor.

     — É certo, também.

     Il Lupo deu de ombros e lançou uma nuvem de fumaça na direção do teto de lona.

     — Isso, claro, pouco nos importa. Os exércitos capitalistas serviram ao seu propósito ganhando a guerra. Compete a nós estabelecer a paz que desejamos. De modo que sua história pessoal não constitui desvantagem alguma. Pelo contrário, poderia até ser-lhe favorável...  em nossa companhia.

     Nerone nada disse, esperando apenas, calmamente, que o outro continuasse.

     Il Lupo prosseguiu, com voz tranqüila, educada:

     — Meyer também me falou do trabalho que o senhor realizou em Gemello. Da confiança que conseguiu inspirar no povo. Isso é excelente... como medida temporária.

     — Por que temporária? — indagou, tranqüilo, Nerone.

     — Porque sua própria situação é temporária... e equívoca. Porque, quando terminar a guerra... como logo deverá acontecer, este país precisará de um governo forte e unido para organizá-lo e dirigi-lo.

     — Isso significa um governo comunista?

     — Perfeitamente. Somos os únicos que têm uma plataforma clara e a força para pô-la em prática.

     — Os senhores precisam também de uma carta constitucional... de um mandato, não é certo?

     Il Lupo fez com a cabeça um aceno afirmativo, amável.

     — Já o possuímos. Os ingleses já tornaram claro que colaborarão com todos aqueles que os ajudarem a dirigir o país. Eles nos armaram e nos forneceram ao menos meios razoáveis para operações militares. Os americanos têm outras idéias, mas são politicamente imaturos e, por enquanto, podemos deixá-los de lado. Eis aí a primeira metade do mandato. A segunda, nós próprios devemos consegui-la.

     — De que maneira?

     — Como é que qualquer partido obtém confiança? Mostrando resultados. Estabelecendo, em meio ao caos, a ordem. Desembaraçando-se de elementos dissidentes e constituindo a união baseada na força.

     — Foi o que os fascistas tentaram fazer — comentou, com voz calma, Nerone.

     — Mas cometeram o erro de construir a sua ditadura apoiados num único homem. A nossa será a ditadura do proletariado.

     — E o senhor gostaria que eu participasse disso?

     — Como Meyer o fez — acentuou, calmamente, Il Lupo. — Ele é, por natureza, um liberal, mas viu o fracasso do liberalismo. Não basta apenas fazer promessas de trabalho, educação e prosperidade, como recompensa pela cooperação. O povo não é assim. É naturalmente estúpido, naturalmente egoísta. Tem necessidade de disciplina imposta pela força e pelo medo. Vejamos o senhor, por exemplo. O senhor realizou um bom trabalho, mas do que lhe valeu isso? Continuará a correr de um lado para outro com uma cesta de ovos enfiada no braço, como uma dama caridosa, até o dia de sua morte... Deixarão que o senhor o faça. Mas que futuro há nisso?

     Pela primeira vez desde a sua chegada, Meyer viu Nerone ficar à vontade. Seu rosto magro, moreno, abriu-se num sorriso de quem verdadeiramente se divertia.

     — Não há futuro algum. Sei disso.

     — Então por que fazê-lo?

     — Porque o mundo, sem isso, se converte num lugar sinistro — respondeu, despreocupadamente, Nerone.

     — De acordo — disse Il Lupo. — Mas, no mundo que construirmos, não haverá necessidade disso.

     — É o que receio — comentou Nerone, levantando-se. — Penso que já nos entendemos.

     — Eu entendo o senhor muito bem — voltou Il Lupo, sem ressentimento. — Mas não estou certo de que o senhor me entenda. Estamo-nos transferindo para as aldeias, uma a uma, e estabelecendo a nossa própria administração. Gemello é a aldeia que vem a seguir, em nossa lista. Que é que pretende fazer a respeito?

     Nerone sorriu, recusando a proposição mesmo antes de responder.

     — Poderia convocar o povo a lutar contra o senhor. Il Lupo abanou a cabeça:

     — O senhor é soldado bom demais para fazer isso. Nós temos as armas, as munições e homens adestrados para usá-las. Poderíamos derrotá-los numa tarde. Que vantagens há nisso?

     — Nenhuma — respondeu, calmamente, Nerone. — Assim sendo, direi ao povo que aguarde sem violência os acontecimentos até que haja as primeiras eleições livres.

     A sombra de um sorriso perpassou pelos lábios contraídos de Il Lupo.

     — Nessa altura, já não se lembrarão mais das armas. Lembrar-se-ão apenas do pão, da pasta e das barras de chocolate americano.

     — E os rapazes que vocês mataram nas fossas! — exclamou Nerone, com súbita ira na voz. — Os velhos espancados, as moças com as cabeças raspadas! A nova tirania construída sobre a tirania antiga... a liberdade empenhada em troca de uma ilusão de paz. Eles se submeterão agora, porque se acham perdidos e têm medo. Mais tarde, se erguerão, num julgamento coletivo, e os expulsarão!

     — Dê a um homem um dia de trabalho, barriga cheia à noite e uma mulher em sua cama, e ele jamais pensará no dia do Juízo — disse Il Lupo, pondo-se de pé.

     Sua figura magra pareceu crescer em estatura, enchendo a tenda.

     — Há ainda uma coisa, Nerone...

     — O quê?

     — Não há lugar para nós dois em Gemello. Você tem de dar o fora.

     Num gesto surpreendente, Nerone lançou a cabeça para trás e riu a bom rir:

     — Você quer a carne sem a mostarda! Quer ver-me desacreditado e correndo como uma lebre, enquanto você entra na aldeia como o Salvador da Itália. Você é demasiado ambicioso, homem!

     — Se você quer ficar — disse Il Lupo com fria deliberação —, terei de matá-lo.

     — Eu sei — respondeu Giacomo Nerone.

     — Você quer fazer-se de mártir, não é isso?

     — Isso seria uma loucura e uma presunção — respondeu, simplesmente, Nerone. — Como qualquer homem, não desejo morrer. Mas permanecerei na terra que lavrei com minhas próprias mãos, num lugar em que encontrei amor, esperança e fé. Recuso-me a permitir que me expulsem daqui, para que você tenha uma vitória barata.

     — Muito bem — disse Il Lupo, sem ressentimento. — Sabemos em que pé nos encontramos.

     — Importa-se que Meyer agora me acompanhe?

     — De modo algum, se você esperar lá fora um momento, até que encerremos o nosso assunto.

     Quando ele se retirou, Il Lupo observou, sem ênfase:

     — Ele é um fanático. Terá de desaparecer. Meyer encolheu os ombros, preocupado:

     — É um bom sujeito. Só faz bem aos outros... não prejudica ninguém. Por que não o deixar em paz?

     — Você é mole, Meyer — disse Il Lupo, em tom cordial. — Dentro de dez dias tomaremos Gemello. Você tem tempo, até lá, para fazê-lo agir sensatamente.

     — Lavo minhas mãos — respondeu Meyer, lacônico.

     — Essa é a "deixa" de Pilatos, meu caro doutor. Os judeus têm uma outra: "É aconselhável que um homem morra pelo povo".

     Ainda sorria quando Meyer se voltou e foi ao encontro de Giacomo Nerone...

    

     ... Blaise Meredith permanecia deitado na cama, o corpo calmo, mas o espírito ativo, a seguir a narração fria, clínica, do médico. Quando Meyer fez uma pausa, indagou:

     — Esta é uma pergunta pessoal, doutor: o senhor tornou-se mesmo membro do Partido Comunista?

     — Jamais tive um cartão do Partido. Mas isso não vem ao caso. Não havia cartões, na montanha. O importante é que eu aderi a Il Lupo e àquilo que ele representava: a ditadura do proletariado, a ordem imposta pela força.

     — Posso perguntar por quê?

     — É muito simples — respondeu Meyer, expondo o seu ponto de vista com gestos eloqüentes de mãos. — Para mim, era o que mais naturalmente deveria ocorrer. Eu vira o fracasso do liberalismo. Vira as desvantagens do clericalismo. Fora vítima da ditadura de um homem. Compreendia a necessidade de que houvesse igualdade, ordem e uma re-distribuição do capital. Vira também a estupidez e a obstinação dos povos miseráveis. A resposta de Il Lupo parecia-me a única possível.

     — E a ameaça que ele fez a Giacomo Nerone?

     — Parecia-me, também, lógica.

     — Mas o senhor não estava de acordo com ela?

     — Não me agradava. Mas não discordei.

     — Falou com Giacomo Nerone a respeito?

     — Falei.

     — E o que ele disse?

     — O mais surpreendente, monsenhor, é que ele concordou com Il Lupo. — O rosto de Meyer anuviou-se, ao lembrar. — Disse, simplesmente: "A gente pode acreditar nisto ou naquilo. Il Lupo está certo. Quando se quer construir um mecanismo político perfeito, joga-se fora ás partes que não funcionam. Il Lupo não acredita em Deus. Acredita no homem apenas como entidade política. De modo que ele é inteiramente lógico. O ilógico é você, Meyer. Você quer omelete na refeição, mas não quer quebrar os ovos".

     — O senhor tinha alguma resposta para isso?

     — Não uma resposta muito boa, lamento dizê-lo. Aquilo se aproximava muito da verdade. Mas perguntei-lhe como conciliava ele a sua própria admissão de que não tinha futuro o trabalho que realizava com o fato de estar disposto a morrer por ele.

     — E que respondeu ele?

     — Ressaltou que também ele tinha a sua própria lógica. Acreditava que Deus era perfeito e que o homem, desde a sua queda, era imperfeito, que sempre haveria desordens, males e injustiças no mundo. Não se podia criar um sistema que destruísse essas coisas, porque os homens que o dirigiam também eram imperfeitos. A única coisa que dignificava o homem e o afastava da autodestruição era o fato de ser filho de Deus e de estar ligado por laços fraternos à família humana. Os próprios trabalhos de Giacomo eram uma expressão desse parentesco. Entre ele e Il Lupo o conflito era inevitável, pois suas crenças eram opostas e contraditórias.

     — E Il Lupo, sendo o homem que tinha as armas, devia destruí-lo?

     — Perfeitamente.

     — Por que razão ele não foi embora?

     — Também lhe disse isso — respondeu Meyer, com ar fatigado. — Sugeri que apanhasse Nina e o menino e fosse para outro lugar. Ele se recusou. Respondeu que nada aconteceria a Nina... e que, quanto a ele, deixara de fugir havia muito.

     — De modo que ficou em Gemello?

     — Ficou. Eu voltei para as montanhas. Na véspera do dia em que Il Lupo devia vir para cá e estabelecer sua administração, voltei. Iam usar minha casa como quartel-general e eu precisava prepará-la para isso. Pediram-me, também, que tivesse uma última conversa com Giacomo Nerone, para fazer com que ele mudasse de idéia...

    

     Corriam as primeiras horas da tarde, uma tarde quente de fins de primavera, ruidosa devido ao canto das primeiras cigarras. Caminhavam ambos pelo jardim, debaixo da figueira, a falar gravemente, como advogado e cliente, sobre o que aconteceria — quando Il Lupo descesse com os seus homens. Não houve discussão alguma entre ambos. Nerone mantinha-se firme em sua recusa de abandonar a aldeia, e as palavras de Meyer eram uma recitação monótona do que ocorreria inevitavelmente.

     — Il Lupo é bastante preciso quanto ao que será feito. Você será primeiro desacreditado e, depois, executado.

     — De que modo pretende ele desacreditar-me?

     — Deverão chegar ao amanhecer. Você será preso ali pelas nove horas e trazido para cá, a fim de ser submetido a um julgamento sumário.

     — Sob que acusação?

     — Deserção da causa aliada e cooperação com os alemães.

     Nerone esboçou um sorriso.

     — Não deve ter tido muita dificuldade para provar isso. E o que mais?

     — Será condenado e conduzido para uma execução pública e imediata.

     — De que modo?

     — O pelotão de fuzilamento. Será uma corte militar. Il Lupo é cuidadoso quanto às formalidades.

     — E Nina e o menino?

     — Nada, absolutamente, lhes acontecerá. Foi bastante claro quanto a isso. Não vê vantagem alguma em despertar simpatia, punindo uma mulher e uma criança.

     — E inteligente. Admiro-o.

     — Pediu-me que lhe dissesse que você dispõe de quase dezoito horas para sair daqui, se o desejar. Tenho comigo dinheiro suficiente para que você, Nina e o menino possam manter-se durante dois meses. Estou autorizado a assegurar-lhe que vocês, ao amanhecer, já estarão fora desta zona.

     — Vou ficar. Nada mudará esta resolução.

     — Então nada mais há a dizer, não é certo?

     — Nada mais. Sou-lhe grato por ter tentado demover-me. Temos sido bons amigos. Fico-lhe agradecido.

     — Ainda há uma coisa... ia quase me esquecendo.

     — O quê?

     — Onde estará amanhã, às nove horas?

     — Pouparei a Il Lupo o trabalho. Virei para cá.

     — Isso não serve, sinto dizê-lo. Ele quer que sua prisão seja pública.

     — Ele não pode ter tudo. Virei aqui amanhã cedo, às nove horas, usando os meus próprios pés.

     — Transmitirei a ele sua resposta.

     — Obrigado.

     Depois, como já haviam dito tudo o que havia a dizer e não sabiam bem de que modo despedir-se, continuaram a andar em silêncio de um lado para outro, pelo caminho lajeado, debaixo da figueira, até que Meyer disse, desajeitado:

     — Lamento que termine assim. Não tenho mais nada com isso, mas o que é que vai fazer agora?

     Nerone respondeu tranqüila e francamente:

     — Vou descer até a casa do Padre Anselmo, para confessar-me. Depois, vou até a cabana apanhar algumas coisas e entregá-las a Nina. Em seguida, subirei até a villa e perguntarei à condessa se permitirá que Nina e o menino fiquem lá, até que tudo esteja acabado. Ela é inglesa de nascimento e Il Lupo é bastante inteligente para não incorrer no desagrado da gente que lhe está dando armas. Depois... — interrompeu-se, o rosto encovado aberto num sorriso. — Depois, vou fazer minhas preces. Sou bastante feliz de ter tempo para preparar-me. Não é todo homem que sabe a hora e o lugar de sua morte. — Parou e estendeu a mão: — Adeus, Meyer. Não se acuse demais. Lembrar-me-ei de você na eternidade.

     — Adeus, Nerone. Olharei por Nina e pelo menino. Teve vontade de usar a velha fórmula e dizer: "Deus o guarde". Mas lembrou-se em tempo de que, no novo mundo e Il Lupo, que era agora o seu, não haveria mais Deus. Tal frase de despedida não teria, pois, sentido, e não a disse...

    

     ... Blaise Meredith indagou:

     — Que aconteceu com o Padre Anselmo? Meyer fez um gesto de indiferença:

     — Nada de mais. O velho não gostava dele. Discutiam com freqüência, como sabe. Recusou-se a ouvir-lhe a confissão. Soube disso mais tarde, na aldeia.

     — E a condessa?

     — Essa informação não é de primeira mão. Colhi-a de Pietro, o criado, que foi meu paciente. Giacomo foi à villa solicitar refúgio para Nina e o menino. Soube, também, que queria dormir lá aquela noite, para que Il Lupo não soubesse onde estava e tivesse de abrir mão de efetuar sua prisão em público. Anne Louise de Sanctis estava, ao que parece, bastante disposta a aquiescer, mas queria cobrar um preço por isso.

     — Que preço?

     — Ela é uma mulher estranha — disse Meyer, obliquamente. — Conheço-a há muito, mas não diria que a compreendo perfeitamente. É ardente por natureza e tem grande necessidade de um homem... necessidade tanto maior agora que enfrenta o terror da meia-idade. O marido decepcionou-a. Seus outros amantes vinham e iam embora como soldados em tempo de guerra. Sempre foi demasiado orgulhosa para se satisfazer com algum homem da aldeia. Nerone talvez pudesse ser o homem de que necessitava, mas já estava apaixonado por Nina Sanduzzi. Desde o começo teve ciúmes disso. De modo que toda a sua vida emocional adquiriu uma nuança de perversão. Seu preço era que Nina assinasse um documento cedendo-lhe o menino como pupilo e que Giacomo Nerone dormisse com ela aquela noite.

     — Um homem na véspera da execução? — exclamou Meredith, chocado.

     — Já lhe disse — prosseguiu Meyer, com voz inalterada — que tudo, para ela, adquire um colorido mórbido. Por isso é que esse tal pintor goza de tanta influência na villa. É uma espécie de alcoviteiro junto dela. Seja lá como for, o certo é que Giacomo, como se poderia esperar, recusou-se a tal. Ao que parece, foi suficientemente astuta para imaginar que ele passaria a noite em casa de Nina. E enviou um homem com uma mensagem para Il Lupo. Giacomo foi preso duas horas antes do amanhecer.

     — Então é por isso que ela odeia Paolo.

     — Não creio que odeie o rapaz — disse Meyer, com sombrio humor. — Na melhor das hipóteses, talvez se sinta atraída por ele. Mas ainda tem ciúmes de Nina e odeia a si própria, embora não o saiba.

     Blaise Meredith lançou as pernas para fora da cama e sentou-se, correndo os dedos por entre os cabelos ralos num gesto de cansaço e perplexidade. E, numa voz que era quase um suspiro, disse:

     — É tarde. É melhor voltar para o jantar, embora Deus saiba que não tenho vontade alguma de enfrentar a ambos esta noite.

     — Por que não janta aqui? — disse Meyer, impulsivamente. — Não comerá tão bem, mas pelo menos não precisará ser cortês. Estou quase no fim de meu depoimento, e talvez lhe fosse possível obter o resto ainda esta noite. Mandarei um rapaz à villa, a fim de apresentar suas desculpas.

     — Eu lhe ficaria grato.

     — Eu é que lhe estou grato — disse Meyer, com um sorriso. — E isso, partindo de um judeu para um inquisidor, é um grande cumprimento.

    

     Na aparatosa sala de jantar da villa, a condessa e Nicholas Black jantavam à luz das velas, numa inquieta intimidade de conspiradores. A condessa estava irritadiça e mal-humorada. Começava a compreender o quanto a situação escapava ao seu controle — com Nicholas Black a mantê-la como resgate e Meredith a colher, junto a Meyer, Nina Sanduzzi e o velho Anselmo, só Deus sabia que informações. Dentro em pouco, aproximar-se-ia dela com suas perguntas secas, pedantes, e com seus olhos encovados e perscrutadores. Quer respondesse ou permanecesse muda, ela é que ficaria desacreditada, enquanto o pintor se afastaria a sorrir, de posse do prêmio.

     Nicholas Black também se achava irritado. Meredith forçara a mão na hora do almoço e haviam sido ditas coisas que jamais poderiam ser retiradas. Agora, encontravam-se em franca oposição e, apesar de todas as suas zombarias, Black tinha grande respeito pela influência temporal da Igreja num país latino. Se Meredith metesse na cabeça que deveria invocar o auxílio do bispo, todas as espécies de influências poderiam ser postas em ação — influências que chegariam até mesmo a Roma — e, no fim, poderia haver uma visita discreta da polícia e a revogação do seu visto de permanência no país. Os democratas-cristãos estavam no poder e atrás deles se achava o Vaticano — o velho, sutil e implacável Vaticano.

     Apressou-se, pois, em valer-se do medo da condessa e a explorá-lo em seu próprio benefício:

     — Concordo em que esse sacerdote é uma terrível maçada, cara. Sinto-me culpado por tê-lo trazido para cá. Você está metida numa enrascada. Gostaria de ajudá-la a livrar-se dela.

     O rosto da condessa animou-se imediatamente:

     — Se puder fazê-lo, Nicki...

     — Estou certo de que podemos, cara — disse, inclinando-se sobre a mesa e dando-lhe uma palmadinha de encorajamento na mão. — Agora, ouça. O padre está aqui. Atravessado em nosso caminho. Não podemos livrar-nos dele sem que nos mostremos descorteses... e sei que você não quer tal coisa.

     — Eu sei — murmurou ela, com um aceno de cabeça, desconsolada. — Como sabe, há o bispo e...

     — Sei também a respeito do bispo, cara! — atalhou, rápido, Black. — Você tem de viver aqui, de modo que vale a pena ser cordial. Meredith deve ficar. Estamos de acordo quanto a isso. Mas não há nada que a impeça de ir embora, não é verdade?

     — Eu... eu não compreendo.

     — É simples, cara — disse, fazendo com a mão um gesto eloqüente. — Você não se tem sentido nada bem. O próprio Meredith sabe que tem tido enxaquecas e só Deus sabe que outras enfermidades femininas. Precisa consultar seu médico imediatamente. E vai para Roma. Você tem lá um apartamento. Precisa de criados para cuidar dele. E leva a criada e Pietro e, como um favor especial a Nina Sanduzzi, leva também o rapaz. Quer comprar-lhe roupas. Quer que ele aprenda a viver em meio a uma sociedade educada. Pode até mesmo estar pensando em fazer com que ele estude com os jesuítas...  — Sorriu, sardonicamente: — Qual a mãe que recusaria tal oportunidade? E se ela o fizesse? O rapaz trabalha para você sob contrato. A lei italiana é uma tal mixórdia que, creio, você pode levar a melhor sobre ela, contanto que o rapaz consinta. Competiria à mãe dizer por que quereria conservá-lo aqui, e que espécie de trabalho poderia encontrar para ele. Você atende também a isso, enviando à mãe, semanalmente, uma parte dos salários do rapaz, através de seu mordomo aqui.

     Os olhos da condessa iluminaram-se diante de um pensamento novo e encorajador, mas tornaram, de novo, a anuviar-se.

     — É uma idéia maravilhosa, Nicki. Mas... e você? Meredith sabe o que você quer. Ele fará tudo o que puder para criar complicações.

     — Também já pensei nisso — respondeu o pintor, com seu sorriso irônico. — Eu ficarei aqui... pelo menos durante uma semana. Se Meredith fizer quaisquer perguntas você poderá dizer-lhe francamente que acha que sou uma má influência para o rapaz. Quer agir como boa cristã afastando-o de mim. Simples, não lhe parece?

     — Estupendo, Nicki! Estupendo! — exclamou, os olhos cintilantes, batendo palmas de alegria. — Farei, amanhã, todos os arranjos e partiremos no dia seguinte.

     — Por que não amanhã?

     — Não é possível, Nicki. O trem para Roma parte de Valenta pela manhã. Não haveria tempo para fazer tudo.

     — É uma pena — disse Black em tom irritado. — Contudo, é apenas um dia. Penso que poderei, até lá, fazer frente a Monsenhor Meredith. É melhor que você mesma fale com o rapaz. Não deve parecer que estou envolvido no caso.

     — Falarei amanhã cedo — respondeu ela, estendendo a mão e enchendo-lhe o copo de vinho. — Bebamos, querido! Depois abriremos, outra garrafa e faremos uma comemoração. A que brindaremos?

     Ele ergueu o copo e sorriu-lhe por sobre a borda: — Ao amor, cara!

     — Ao amor! — repetiu Anne Louise de Sanctis. Mas engasgou ao pensar: "Mas quem me ama? E quem jamais me amará?"

    

     — Serei franco com o senhor, doutor — disse Meredith, terminando os últimos bocados do prato. — Neste momento, preocupa-me menos Giacomo Nerone do que seu filho. Nerone está morto e acha-se, assim o esperamos, entre os bem-aventurados. Seu filho passa por uma grave crise moral, sujeito, diariamente, ao perigo de sedução. Sinto-me responsável por ele. Mas como me desincumbirei dessa responsabilidade?

     — É um problema — observou, com ar preocupado, Meyer. — O rapaz já é quase um homem. Possui livre-arbítrio e é moralmente responsável, embora inexperiente. Não ignora, com certeza, o que está em jogo. Nos leitos matrimoniais as crianças amadurecem cedo. Penso que ele é um rapaz saudável: mas Black é um sujeito muito persuasivo.

     Meredith mexia, absorto, num pedaço de pão, esmigalhando-o no prato e fazendo, com as partículas cinzentas, minúsculas figuras.

     — Mesmo no confessionário, é difícil chegar-se ao íntimo de um adolescente. São ariscos como lebres e muito mais complexos do que os adultos. Se pudesse chegar-me à condessa ou ao próprio Black, talvez conseguisse ser bem sucedido.

     — Já o tentou?

     — Com Black, sim. Mas o homem está cheio de amargura e ressentimento. Não pude encontrar um termo comum de acordo. Quanto à condessa, ainda não tentei.

     Meyer lançou-lhe um sorriso melancólico:

     — O senhor talvez constate que isso é ainda mais difícil, monsenhor. Mesmo nas condições mais favoráveis, não há lógica nas mulheres, e essa tem em si uma doença: a doença da meia-idade e de um velho amor que azedou e se transformou em vergonha. Há cura para uma dessas coisas, mas a outra... — Deteve-se um momento, franzindo a testa com ar de dúvida... — De uma coisa estou certo, Meredith. Padre algum poderá curar o seu mal.

     — Como ela terminará, então?

     — Entorpecentes, bebida ou suicídio — respondeu, categórico, Meyer. — Três palavras para a mesma coisa.

     — E é essa a única resposta?

     — Se quiser que eu lhe diga que Deus é a resposta, monsenhor, não posso fazê-lo. Há ainda uma outra, mas é uma palavra feia, que talvez o senhor não gostasse de ouvir.

     Para sua surpresa, Meredith ergueu o rosto pálido e sorriu-lhe, bem-humorado:

     — Eis aí, Meyer, o dilema dos materialistas. Surpreende-me que tão poucos, dentre eles, o vejam. Riscam Deus do dicionário e sua única resposta para o enigma do universo é uma palavra feia.

     — Diabos o levem! — exclamou Meyer, com um sorriso enviesado. — Diabos o levem, como inquisidor abelhudo! Vamos tomar café e falar sobre Giacomo Nerone...

    

     ... Às oito horas da manhã, prenderam Giacomo Nerone em casa de Nina. Não o trataram com demasiada grosseria, mas ensangüentaram-lhe o rosto e rasgaram-lhe a camisa, para dar a impressão de que ele havia reagido. Na verdade, porém, não esboçou reação alguma; ficou apenas parado, mudo, enquanto dois homens lhe seguravam os braços e um terceiro o agredia, ao mesmo tempo que outros agarravam Nina, que gritava, que gritava como uma selvagem e que, quando o levaram, se atirou gemendo sobre a cama. A criança não chorou; permaneceu quieta em seu berço, mexendo, com as mãozinhas rechonchudas, nas dobras do travesseiro.

     Marcharam, então, colina acima, até ganhar a estrada e, para que o espetáculo melhorasse, dobraram-lhe os braços atrás das costas e fizeram-no caminhar, quase inclinado, através da aldeia. O povo permanecia imóvel às portas de suas casas, mudo, a olhar fixamente, e mesmo as crianças emudeciam à sua passagem. Voz alguma se levantou em protesto, mão alguma se ergueu para ajudá-lo. Il Lupo calculara tudo com exatidão. Os famintos não davam prova de lealdade. Aquela gente tinha visto demasiados conquistadores, que chegavam e iam embora. Aquela era uma terra áspera, com uma história áspera. Não era herança dos mansos.

     Quando chegaram à casa de Meyer, empurraram-no rudemente para dentro e fecharam a porta. O povo veio correndo como formigas e postou-se fora, mas os guardas o fizeram retroceder, entre imprecações, de volta às suas casas. Il Lupo queria um julgamento ordeiro, sem tumultos que o perturbassem.

     Dentro da sala, Giacomo Nerone ficou por um momento a distender seus braços endurecidos e a limpar o sangue do rosto. Depois, olhou em torno. A sala estava disposta como se fosse um tribunal. Il Lupo, Meyer e outros três homens achavam-se sentados à mesa, tendo atrás de si, enfileirados, os guardas, homens morenos, de barbas por fazer, jaquetas de couro e boinas enviesadas, de pistolas à cinta e fuzis automáticos que lhes pendiam negligentemente das mãos. Dois outros guardas se achavam de pé entre Nerone e a porta e, entre eles e a mesa, havia um espaço ocupado apenas por uma cadeira.

     Todos os rostos se achavam sérios e compenetrados como convinha a homens que presenciavam um ato histórico. Somente Il Lupo sorria, o olhar claro, delicado como um anfitrião num jantar de cerimônia. E disse, com sua voz fria:

     — Sinto que o tenham tratado mal, Nerone. Não devia ter resistido à prisão.

     Nerone nada respondeu.

     — O senhor tem o direito, claro, de saber quais as acusações que lhe são feitas — prosseguiu, apanhando sobre a mesa um papel e lendo-o em apurado toscano. — Giacomo Nerone, o senhor é acusado, diante deste tribunal militar, de deserção do exército inglês e de colaboração ativa com unidades alemãs em operação na região de Gemelli dei Monti.

     — Depôs o papel sobre a mesa e continuou: — Antes de ser julgado por tais acusações, tem a liberdade de dizer o que quiser.

     Nerone fitou-o com olhos calmos:

     — Minhas palavras serão anotadas?

     — Certamente.

     — Quanto à acusação de deserção, este tribunal não tem jurisdição alguma. Somente uma corte marcial instituída pelo exército inglês pode julgar-me por isso. O procedimento correto seria que os senhores me mantivessem sob custódia e me entregassem ao comando inglês mais próximo.

     Il Lupo acenou com a cabeça, placidamente:

     — Anotaremos sua objeção, que me parece bem fundada, a despeito do fato de o senhor não possuir documento algum que o identifique como soldado britânico. O senhor, porém, será julgado de acordo com a segunda acusação.

     — Duvido que os senhores tenham autoridade também para isso.

     — Baseado em quê?

     — Este não é um tribunal legal. Seus membros não possuem autoridade para tal.

     — Discordo do senhor — respondeu Il Lupo, sereno.

     — Os guerrilheiros são grupos que operam em apoio dos Aliados. Possuem uma identidade de jacto como unidades militares e jurisdição sumária sobre os teatros de guerra. Sua autoridade provém, em última análise, do Alto Comando Aliado e das autoridades de ocupação na Itália.

     — Nesse caso, nada tenho a dizer.

     Il Lupo fez, cortesmente, um aceno com a cabeça.

     — Bem. Estamos ansiosos, claro, para que se faça justiça. Ser-lhe-á concedido tempo para que prepare sua defesa. Proponho que se evacue a sala. Trar-lhe-ão café e algo para comer. O Dr. Meyer está aqui pronto para agir como seu advogado de defesa. Como presidente deste tribunal estou disposto a considerar quaisquer pontos que o senhor possa querer debater comigo. Está claro?

     Pela primeira vez desde sua chegada, Nerone sorriu:

     — Perfeitamente claro. Apreciarei o café.

     A um sinal de Il Lupo, os guardas saíram para o jardim e os três homens ficaram a sós. Meyer nada disse, mas dirigiu-se ao fogão e pôs-se a preparar o café. Nerone sentou-se e Il Lupo ofereceu-lhe um cigarro, acendendo-o ele próprio. Depois, sentou-se à beira da mesa e disse, em tom amável:

     — O senhor fez mal em ficar.

     — Já está feito — respondeu Nerone, lacônico. — Para que discutir?

     — O senhor me interessa, eis aí por quê. Admiro-o muito. Mas não consigo vê-lo desempenhando o papel de mártir.

     — Foi o senhor que escolheu.

     — E o senhor aceitou.

     — Exatamente.

     — Por quê?

     — Gosto das máximas — respondeu Nerone, com sombrio humor. — Principalmente da última delas: "Consuma-tum est".

     — O senhor... e sua obra! — disse Il Lupo. Nerone deu de ombros:

     — A obra não é importante. Um milhão de outros homens podem fazê-la melhor. O senhor mesmo talvez a execute melhor. A obra morre. Quantos homens Cristo curou? E quantos deles estão vivos hoje? A obra é uma expressão daquilo que um homem é, do que sente, daquilo em que acredita. Se dura, se se desenvolve, não é devido ao homem que a começou, mas porque outros homens pensam, sentem e crêem da mesma maneira. Seu próprio partido é um exemplo disso. Os senhores também morrerão, como bem sabem. E depois?

     — A obra prosseguirá — disse Il Lupo, os olhos claros subitamente iluminados como ante uma grande revelação. — A obra prosseguirá. Os velhos sistemas perecerão devido à sua própria corrupção, e o povo tomará conta do que lhe pertence. Aconteceu na Rússia. Acontecerá na Ásia. Á América ficará isolada. A Europa será obrigada a entrar na linha. Acontecerá. Pode ser que eu não esteja aqui para ver, Nerone, mas minha pessoa não importa.

     — Eis aí a diferença entre nós — respondeu Giacomo Nerone, suavemente. — O senhor diz que sua pessoa não importa. Mas eu lhe digo que a minha importa... O que me acontece é eternamente importante, porque desde a eternidade eu já estava no espírito de Deus... eu! Eu, o cego, o fútil, o tateante, o fracassado. Estava, estou, estarei!

     — Acredita, realmente, nisso? — indagou Il Lupo, fitando-o com olhos penetrantes como um bisturi.

     — Acredito.

     — Morrerá por isso?

     — Parece que sim.

     Il Lupo amassou a ponta do cigarro e levantou-se.

     — É uma loucura monstruosa! — exclamou, com plena convicção.

     — Eu sei — respondeu Nerone. — É uma loucura que já dura dois mil anos. Imagino se a dos senhores durará tanto.

     Il Lupo não respondeu. Olhou o relógio e depois disse, enérgico:

     — Tomaremos café e depois o senhor pode descansar durante a manhã. O julgamento começará à uma hora. Vai confessar-se culpado ou inocente?

     — E isso importa?

     — Não, realmente. As provas são claras. A execução está marcada para as três horas.

     O rosto de Nerone anuviou-se momentaneamente.

     — Por que tão tarde? Gostaria que isso acabasse logo.

     — Lamento — respondeu Il Lupo. — Não estou sendo cruel. É apenas uma questão de política. Haverá menos tempo para tumultos ou demonstrações. Quando souberem da notícia e começarem a pensar nela, já estarão à espera do jantar. Espero que compreenda.

     — Perfeitamente — disse Giacomo Nerone.

     Meyer trouxe o café e o restante da refeição matinal e ficaram sentados juntos à mesa comendo em silêncio, como uma família. Quando terminaram, Il Lupo perguntou-lhe:

     — Ainda uma coisa: o senhor deseja fazer algum discurso antes da execução?

     Nerone abanou a cabeça:

     — Jamais fiz um discurso em minha vida. Por quê?

     — Isso me alegra — respondeu Il Lupo, com brandura. — Do contrário, teria de fazer com que o espancassem antes de sair. Uma coisa que não posso permitir é heroísmo.

     — Não sou herói — disse Nerone.

     Pela primeira vez, desde sua chegada, Meyer falou-lhe. Sem levantar os olhos da mesa disse, com voz rouca:

     — Se quiser ficar a sós durante alguns momentos, use o outro quarto. Ninguém o perturbará. Eu o chamarei, quando estivermos prontos para começar.

     Nerone olhou para ele agradecido, os olhos sombrios:

     — Obrigado, Meyer. Você tem sido um bom amigo. Lembrar-me-ei de você.

     Levantou-se da mesa e dirigiu-se ao outro quarto, fechando a porta atrás de si. Os dois homens trocaram um olhar. Após um momento, Il Lupo disse, sem pressa:

     — Eu o dispensarei do serviço após a execução. Se quiser ouvir o meu conselho, deixe-nos durante algum tempo. Você não foi feito para essa espécie de coisa.

     — Eu sei — respondeu Meyer, com voz abafada. — Não creio o bastante... nem de um jeito, nem de outro.

    

     — ... E o resto? — indagou Blaise Meredith.

     As longas mãos de Meyer fizeram um gesto concludente:

     — Foi bastante simples. Foi julgado e condenado. Conduziram-no monte acima, até a velha oliveira, amarraram-no a ela e o fuzilaram. Todos estavam lá, até as crianças.

     — E Nina?

     — Também estava. Aproximou-se dele, beijou-o e afastou-se. Nem quando atiraram proferiu uma palavra; mas, quando todos os outros se foram, ela lá permaneceu. Estava ainda lá quando o grupo de pessoas que o sepultou apareceu, naquela noite, para levá-lo.

     — Quem o sepultou?

     — Anselmo, a condessa, dois homens da aldeia, Nina...  e eu.

     Blaise Meredith contraiu o sobrolho, intrigado:

     — Não compreendo.

     — É bastante simples. Nós três queríamos odiá-lo... mas, no fim, ele fez com que nos envergonhássemos e passamos a amá-lo.

     — Contudo — insistiu Meredith —, vocês todos o temiam, quando aqui cheguei.

     — Eu sei — respondeu, com voz rouca, Meyer. — O amor é a coisa mais terrível que existe no mundo.

    

     Eram mais de onze horas quando Blaise Meredith deixou a casa do médico e voltou à villa. Antes que se fosse, Meyer mostrou-lhe a última carta de Nerone e entregou-lhe um pacote contendo o resto dos documentos. Despediram-se e Meredith pôs-se a subir lentamente a rua empedrada, à luz cinzenta do luar.

     Uma sensação de solidão e de isolamento apoderou-se dele, como se estivesse caminhando para fora de seu próprio corpo, num lugar estranho e num outro tempo. Não havia mais dúvidas nem tormentas; apenas uma grande tranqüilidade. Cercavam-no, por todos os lados, as tempestades, mas ele permanecia calmo diante do ciclone, num prodígio de silêncio e de água serena.

     Como Giacomo Nerone, estava no fim de sua busca. Do mesmo modo que Nerone, via como sua morte devia vir numa rajada de violência, inevitável mas breve como o pôr-do-sol. Receava-a, mas, não obstante, caminhava ao seu encontro, com os seus próprios pés, envolto na paz de uma decisão final.

     Chegou aos portões de ferro da villa e passou adiante, firmando o passo, num esforço para vencer a última e íngreme elevação que conduzia ao lugar da execução de Nerone — o pequeno platô onde a oliveira se erguia como uma cruz, negra, tendo ao fundo a alva lua. Quando lá chegou, colocou no chão o pacote e apoiou-se à árvore, sentindo o coração batendo forte e, de encontro às mãos, o contato áspero do tronco. Ergueu os braços lentamente, de modo que ficaram entre os ramos emaranhados, enquanto os galhos secos lhe picavam a pele das mãos.

     Giacomo Nerone ficara assim, os punhos e os tornozelos atados, os olhos vendados, no momento da rendição final. Agora era a sua vez — a vez de Blaise Meredith, o frio sacerdote do Palácio das Congregações. Seu corpo enrijeceu, o rosto contraiu-se na agonia da decisão, enquanto lutava para concentrar toda a sua vontade naquele ato de submissão. Teve a impressão de que havia passado muito tempo, antes que conseguisse arrancar de si, com voz grave e angustiada, as palavras:

     — Toma-me, ó Deus! Faze comigo o que quiseres... um milagre ou uma zombaria! Mas dá-me o rapaz... pelo amor de seu pai!

     Tudo estava terminado...  feito, acabado! Um homem vendera sua alma, como num leilão, ao seu criador. Era hora de voltar para a cama, mas não para o sono. O tempo corria. Antes que amanhecesse, tinha de ler os papéis de Giacomo Nerone e escrever uma carta a Aurélio, bispo de Valenta.

     

   Para Blaise Meredith, o formalista — que mesmo naquele momento de clímax não podia abandonar o hábito mental de toda uma existência —, os escritos de Giacomo Nerone foram, sob muitos aspectos, um desapontamento. Nada acrescentavam, salvo por inferência, à biografia do seu passado, e pouco ao glossário dos pormenores conhecidos de sua vida, obras e morte em Gemello Minore.

     O que Aldo Meyer neles encontrara — uma recordação pungente, um vislumbre da mente de um homem outrora conhecido, outrora odiado e, finalmente, amado — se apresentava sob outro aspecto aos olhos do advogado do Diabo. Blaise Meredith lera os escritos de centenas de santos, e todas as suas angústias, todas as suas revelações e todos os seus ardentes desabafos tinham, para ele, a familiaridade de coisas há muito conhecidas.

     Ajustavam-se todos à mesma crença, a um modelo básico de penitência e devoção, à mesma progressão que ia da purgação à revelação, da revelação a uma união direta com o Todo-Poderoso no ato da prece. Era essa conformação, justamente, o que ele agora procurava, pois cada um dos examinadores e assessores também a procuraria, como ocorria em cada um dos processos que devem seguir-se à apresentação de provas ante o tribunal do bispo.

     Para o biógrafo, para o dramaturgo, para o pregador, a personalidade de um homem era importante. Suas peculiaridades, esquisitices e caráter individual eram as coisas que o ligavam ao comum dos homens e faziam com que esses se voltassem para ele como padroeiro e exemplo. Mas para a Igreja, para os teólogos e inquisidores meticulosos que a representavam, a importância residia em seu caráter como cristão — em sua semelhança com o protótipo, que era Cristo.

     Assim, pois, nas lentas horas da noite, Blaise Meredith entregou-se, fria e analiticamente, àquele exame. Mas mesmo ele não conseguia fugir ao impacto pessoal — ao homem vivo que surgia das folhas amarelecidas e da caligrafia vigorosa, máscula.

     Os escritos eram desarticulados: anotações apressadas de um homem dividido entre a contemplação e a ação, que ainda sentia a necessidade de esclarecer seus pensamentos e tornar suas afirmações claras para si mesmo. Meredith imaginou-o sentado, tarde da noite, numa pequena cabana de pedra, friorento, faminto mas, não obstante, estranhamente contente, escrevendo uma ou duas páginas antes de começar a longa vigília de orações que cada vez mais se tornava um substituto para o sono.

     Contudo, apesar de seu caráter errático, os escritos tinham um ritmo e uma unidade peculiares. Cresciam à medida que o homem crescia. Terminavam como o próprio homem havia terminado, com dignidade, calma e um estranho contentamento.

    

     ... Escrevo devido à necessidade comum que o homem tem de comunicação, mesmo que seja através de uma folha de papel — e porque o conhecimento que tenho de mim mesmo é um peso sobre os meus ombros, e não tenho o direito de descarregá-lo todo sobre a mulher que amo. Ela é simples e generosa. Suportaria tudo e ainda estaria pronta para mais, mas encobrir certas coisas faz parte do amor tanto quanto a rendição. Um homem deve pagar pelos seus próprios pecados; não pode tomar emprestado a absolvição a outrem...

     ... Nascer no seio da Igreja (e só posso falar de minha própria Igreja, pois não conheço outra) é, ao mesmo tempo, um fardo e uma consolação. O fardo é o que primeiro se sente. O fardo do rito religioso, das proibições e, mais tarde, da crença. O consolo vem depois, quando se começa a fazer perguntas — e quando somos presenteados com uma chave para todos os problemas da existência. Aceite-se o primeiro ato de fé consciente, aceite-se a primeira premissa, e toda a lógica se acomoda em seu lugar. Pode-se pecar, mas peca-se dentro de um cosmos. É-se levado ao arrependimento pela simples ordem que nele prevalece. É-se livre dentro de um sistema, e tal sistema é seguro e consolador, contanto que a vontade esteja voltada para o primeiro ato de fé...

    

     ... Quando indivíduos católicos têm ciúmes de descrentes como, não raro, ocorre, é porque o fardo da crença ja2 pesadamente sobre eles e as coerções do mundo começam a ferir. Começam por sentir-se enganados, como ocorreu comigo. Perguntam a si próprios por que razão um acidente de nascimento deva fazer da fornicação um pecado para uns e uma recreação de fim de semana para outros. Diante das conseqüências da crença, começam por lamentar a própria crença. Alguns acabam por rejeitá-la, como se deu comigo ao sair de Oxford...

     ... Ser católico na Inglaterra é submeter-se a um estreito conformismo, em lugar de um conformismo mais amplo, mas nem por isso menos rígido. Se se pertence às velhas famílias como eu, aos últimos elisabetanos, aos últimos Stuarts, é possível usar a fé como uma excentricidade histórica — como certas famílias que exibem o bar sinister1, a devassidão ao tempo da Regência ou uma viúva que se entregara ao jogo de azar. Mas, em meio ao choque dos conformismos, isso não basta. Mais cedo ou mais tarde, somos forçados a voltar ao primeiro ato de fé. E, se nos recusarmos a isso, estamos perdidos...

     ... Estive muito tempo perdido, sem o saber. Sem fé, a gente é livre e essa é, a princípio, uma sensação agradável. Não existem questões de consciência, nem sujeições, exceto as sujeições impostas pelos costumes, pelas convenções e pela lei, mas essas são bastante flexíveis para a maioria dos propósitos. Só mais tarde é que chega o terror. É-se livre — mas livre em meio ao caos, num mundo inexplicado e inexplicável. É-se livre, num deserto, do qual não há recuo senão para dentro, para o âmago oco do nosso próprio ser. Nada há sobre que se construir, salvo a pequena rocha de nosso próprio orgulho, e isso é um nada, baseado em nada... Penso, logo sou. Mas que sou eu? Um acidente de desordem, indo para parte alguma...

     ... Há muito venho-me examinando, para compreender a natureza do meu ato de deserção. Na época, isso tinha um significado moral. O juramento militar termina com a invocação da deidade. Mas, para mim, não havia deidade alguma. Se preferia arriscar minha liberdade, minha reputação e sofrer as sanções do Estado, isso era coisa que só a mim dizia respeito. Se escapasse às sanções, tanto melhor. Mas não raciocinei assim na ocasião. Minha ação foi instintiva — uma reação irrefletida a algo que violentava minha natureza. Mas, a julgar por aquilo em que então acreditava, nada tinha que se pudesse chamar natureza. Era moldado numa forma comum, como uma centelha que sai de um forno, mas, se tal centelha estalejasse e se extinguisse, que é que isso importava? Já estava perdido... e só podia mergulhar um pouco mais profundamente nas trevas...

     ... Depois, surgiu Nina. Despertei para ela como se desperta para as primeiras luzes matinais. Como o ato de fé, o ato do amor é uma rendição — e creio que um condiciona o outro. Em meu caso, pelo menos, assim foi. Não posso lamentar o fato de tê-la amado, pois o amor é independente de sua expressão: somente a minha expressão dele foi contrária à lei moral. Isso eu o lamento, e tenho confessado e rezado para ser perdoado. Mas, mesmo no pecado, o ato de amor — feito com amor — tem algo de divino. Entregar-se a ele pode ser uma falta, mas sua natureza não é modificada, e sua natureza é criadora, comunicativa, esplêndida na rendição...

     ... Foi no esplendor de minha rendição a Nina, e em sua rendição a mim, que primeiro compreendi que um homem poderia render-se a Deus... se existisse Deus. O momento de amor é um momento de união — de corpo e espírito — e o ato de fé é mútuo e implícito...

     ...  Nina tinha um Deus, eu- não tinha nenhum. Ela estava em pecado, mas dentro do cosmos. Eu estava, além de no pecado, no caos... Mas nela vi tudo o que havia rejeitado, tudo de que necessitava, e que, não obstante, lançara para longe de mim. Nossa união era imperfeita devido a isso e, algum dia, ela o compreenderia e poderia vir a odiar-me...

     ... De que modo se volta à crença, partindo da incredulidade? Partindo do pecado, é fácil: basta um ato de arrependimento. Uma criança que erra volta ao pai porque o pai lá está, porque a relação não é interrompida. Mas, na incredulidade, não existe pai, não existe relação. A gente não vem de parte alguma, não vai para parte alguma. Nossos atos mais nobres são destituídos de significado. Procurei servir ao povo. Servi-o. Mas quem era o povo? Quem era eu?

     ... Procurei, por meio da razão, reportar-me a uma primeira causa, a um primeiro ato, como uma criança enjeitada poderia procurar reportar-se, pelo raciocínio, à existência de seu pai. Ele devia ter existido, pois todas as crianças têm pais. Mas quem era ele? Qual o seu nome? Qual o seu aspecto? Acaso me amava... ou se esquecera de mim para

     sempre? Esse era o verdadeiro terror e, ao olhar agora para trás, da segurança a que cheguei, temo, suo e rezo desesperadamente: "Aperta-me em Teus braços! Jamais me deixes de novo partir. Jamais ocultes Tua face de mim. É terrível viver nas trevas!"...

     ... De que modo me aproximei d'Ele? Só Ele o sabe. Procurava-O, às cegas, e não conseguia encontrá-Lo. Rezava-Lhe, desconhecido, e Ele não me respondia. Soluçava, à noite, por tê-Lo perdido. Lágrimas perdidas e dor inútil. Até que, um dia, Ele lá estava de novo...

     ... Deveria haver uma ocasião, eu sei. Dever-se-ia poder dizer: "Foi esse o momento, o lugar, a maneira como ocorreu. Essa foi a minha conversão à religião. Falou-me um bom homem e tornei-me bom. Vi a criação no rosto de uma criança e acreditei". Mas não foi assim. Ele lá estava. Eu sabia que Ele lá estava, que Ele me havia criado e que ainda me amava. Não havia palavras a registrar, pedra alguma a ser talhada com um dedo incandescente, trovão algum a reboar sobre o Tabor. Eu tinha um pai, Ele me conhecia e o mundo era uma casa que Ele havia construído para mim. Eu nascera católico, mas jamais compreendera, até aquele momento, o significado das palavras "o dom da fé". Depois daquilo, que outra coisa poderia eu dizer, senão: "Aqui estou; guia-me; faze o que quiseres comigo. Mas, rogo-Te, fica comigo, sempre"...

     ... Temo por Aldo. Há muito mérito em sua cética honestidade, mas, quando os outros o apanharem, não sei o que lhe acontecerá. Essa é a diferença entre os dois absolutos — a Igreja e o comunismo. A Igreja compreende a dúvida e ensina que a fé é um dom — um dom que não se adquire nem por meio da razão, nem por meio de mérito. O comunismo não admite dúvida e diz que a crença pode ser implantada como um reflexo condicionado... Até certo ponto tem razão, mas o reflexo condicionado não responde a perguntas — e as perguntas estão sempre presentes. De onde? Onde? Por quê?...

     ... A questão da reparação preocupa-me grandemente, às vezes. Estou mudado. Mudei. Mas não posso mudar nenhuma das coisas que fiz. Os males que causei, as injustiças, as fornicações, os amores que recebi, que joguei fora. Essas coisas modificaram e estão modificando a vida de outras pessoas — e hoje me entristeço por elas. Mas a tristeza só não basta. Tenho de reparar, tanto quanto puder, o mal que lhes fiz. Mas de que maneira? É inverno. Os caminhos estão fechados diante e atrás de mim. Sou um prisioneiro neste pequeno mundo que construí. Posso apenas dizer: quando o caminho estiver desimpedido, farei o que se exija de mim. Mas o caminho nunca está desimpedido. Há apenas o momento presente, em que se pode viver com certeza. Por que razão temo tanto? Porque o arrependimento é apenas o começo. Há ainda uma dívida a pagar. Peço luz, rezo pela submissão, mas a resposta não é clara. Só posso prosseguir no presente...

     ... Meyer ri das boas obras. Diz-me que não têm continuidade. Os doentes morrem e os famintos serão famintos amanhã. Não obstante, Meyer faz o mesmo instintivamente. Por quê? Homens como Meyer duvidam da existência de Deus e, por conseguinte, duvidam de tudo, salvo da existência de uma relação pragmática entre homem e homem. Contudo, tenho visto Meyer entregar-se ao seu trabalho de maneira mais completa do que eu jamais o fiz. O homem que faz o bem em meio à dúvida deve ter muito mais mérito do que aquele que o pratica à luz brilhante da fé. "Possuo outras ovelhas que não pertencem a este rebanho..." Uma advertência contra a presunção da Fé herdada...

     ... Nina me diz que estou emagrecendo. Não como o suficiente, não durmo o suficiente e rezo demais à noite. Procuro explicar-lhe de que modo a necessidade de alimento e de sono parece diminuir, quando se está absorto neste novo milagre de Deus. Ela parece compreender melhor quando ressalto que não sente necessidade de mim, fisicamente, devido à criança que lhe enche o ventre...  Pergunto a mim mesmo o que deve ser feito quanto a essa questão de casamento. Estamos, agora, separados de corpo, mas perto no coração e no espírito. Sinto que me estão sendo preparadas coisas que fogem ao meu controle e que, por conseguinte, o casamento poderia constituir uma injustiça maior do que aquela que já cometi. Estou pronto a fazer o que parece certo. Disse-lhe que tem o direito de decidir, mas que me parece sensato esperar...  Receio tanto estes últimos meses — tanto amor, felicidade, consolação espiritual! Devo pagar por isso algum dia. Não sei de que modo se me exigirá o pagamento. Rezo e procuro preparar-me...

     ... O Padre Anselmo preocupa-me. Tive uma discussão com ele e arrependo-me. Nada se resolve com ira. Devo compreender que um sacerdote é apenas um homem dotado de faculdades sacramentais. Essas dificuldades independem de seu valor pessoal. Anselmo carrega a sua própria cruz, a carga de um erro, multiplicado pelas suas conseqüências. Mas mesmo no pecado há um elemento de amor, e isso, eu o sei, constitui um bem que não se deve desprezar. O celibato do clero é uma disciplina antiga, mas não um artigo de fé. A gente compreende o seu valor, mas não se deve julgar demasiado asperamente os que tropeçam sob o seu peso. A pobreza é um estado que certos homens aceitam para tornar-se santos. Outros, porém, podem ser por ela levados à condenação eterna. Se houvesse uma maneira de falar com Anselmo como amigo... mas isso é outro problema, em se tratando de um sacerdote. Ele é adestrado para dirigir os fiéis, mas não para aceitar conselhos deles. Esse é um defeito do sistema...

     ... Encontrei, hoje, o homem que se chama Il Lupo. Estranho quão depressa e com que facilidade nos entendemos. Eu creio em Deus. Ele não crê em Deus algum. Não obstante, as conseqüências de cada uma de nossas crenças são igualmente rígidas e inescapáveis. Ele é honesto quanto àquilo em que crê. Não espera que eu seja menos honesto em minha própria fé. Sabe que não pode haver coexistência entre nós. Um deve destruir o outro. Ele é o príncipe deste mundo e tem poder de vida e morte. Que poder tenho eu contra ele? "Meu reino não é deste mundo." Eu podia reunir o povo. Podia fazer com que o povo me seguisse e resistisse ao bando de Il Lupo. Mas com que fim? O fratricídio não é cristianismo. Balas não geram amor... Il Lupo gostaria que eu discutisse e agisse. Não devo discutir. Devo apenas aceitar. Mas receio o que possa acontecer a Meyer. Ele é um homem demasiado delicado para toda essa embrulhada. Devo procurar fazer com que veja que eu compreendo. Mais tarde, terá muito o que sofrer. O peso da dúvida é muito grande para um homem honesto...

     ... Tenho um filho e o menino é cego. A dor de Nina aflige-me muito. Compreendo agora como a fé pode vacilar diante do mistério da dor. Compreendo agora por que os velhos maniqueus podiam facilmente cair em sua heresia — já que é difícil compreender de que modo a dor e o mal podiam entrar numa criação da qual um Deus onipotente era o único autor. Momento negro para mim. Parece-me que voltei de novo para a escuridão e rezo desesperadamente, apego-me ao primeiro ato de fé e digo: "Não posso compreender; mas creio. Ajuda-me a agarrar-me a isso!"...

     ... Se a fé pode remover montanhas, também pode abrir olhos cegos. Se Deus o quiser. Como posso saber o que Ele quer? Fala-me, ó Deus, pelo Teu filho...  Amém...

     Havia mais coisas, muito mais, e Blaise Meredith as examinou meticulosamente, como deve fazer um bom advogado, mas já havia encontrado a essência da coisa — e essa essência era firme e sólida. A aceitação da doutrina lá estava, uma aceitação que envolvia mente, coração e vontade. E havia sido feita a rendição segundo a qual um homem se afasta de todo apoio material para repousar, com espírito de fé, esperança e caridade, nas mãos que o formaram.

     Na última página Giacomo Nerone redigira o seu próprio obituário:

     "... Se houver criatura que, após minha morte, leia o que escrevi, que saiba o seguinte de minha pessoa:

     Nasci na Fé, perdi-a, fui trazido de volta a ela pela mão de Deus.

     Se prestei algum serviço, fui levado a isso por Ele. Não me cabe, pois, mérito algum.

     Amei uma mulher e gerei um filho, e ainda os amo em Deus e para toda a eternidade.

     Àqueles que injuriei, rogo que me perdoem.

     Aqueles que me matarão, recomendo-os a Deus, como irmãos a quem amo.

     Aqueles que me esquecerem farão bem. Aos que se lembrarem de mim, rogo rezem pela alma de

Giacomo Nerone,

que morreu na Fé".

    

     Blaise Meredith depôs sobre as cobertas as folhas amarelecidas, recostou-se nos travesseiros e cerrou os olhos. Sabia agora com segurança que chegara ao fim de sua busca. Mergulhara na vida de um homem e vira os seus traços típicos: um longo rio a fluir sinuoso, mas com segurança, em direção ao mar. Examinara a alma de um homem e vira-a crescer, como uma árvore, da escuridão da terra para o sol.

     Vira os frutos da árvore: a sabedoria e o amor de Nina Sanduzzi, o esforçado espírito de humanidade de Aldo Meyer, o relutante arrependimento de Padre Anselmo. Eram frutos bons e, em seu desabrochar, viu o sinal do cuidadoso dedo de Deus. Mas nem todos os frutos estavam ainda maduros. Alguns podiam ainda murchar nos ramos, outros podiam cair, ainda verdes, e acabar podres, pois o jardineiro era negligente. E ele, Blaise Meredith, era o jardineiro.

     Pôs-se a rezar, lenta e desesperadamente, por Anne de Sanctis, Paolo Sanduzzi e Nicholas Black, que haviam escolhido para sua caminhada o mesmo deserto, como Giacomo Nerone. Mas, antes que sua oração estivesse terminada, a velha enfermidade o acometeu, viva e dilacerante, fazendo-o gritar de dor, até que o sangue lhe subiu, quente, sufocante, à garganta.

     Muito tempo depois, fraco e tonto, arrastou-se até a escrivaninha e, com mão trêmula, pôs-se a escrever:

    

     "Senhor bispo,

     Estou muito doente e creio que possa morrer antes que tenha tempo de registrar inteiramente os resultados das investigações que aqui empreendi. Apesar de todas as predições médicas, sinto que a vida me foge rapidamente e oprime-me a idéia do pouco que me resta. Desejo, porém, que Vossa Excelência Reverendíssima saiba que minha submissão a Deus se verificou, como Vossa Excelência prometeu que ocorreria, e que, se não corajoso, permaneço contente quanto ao resultado.

     Antes de mais nada, permita que lhe diga o que constatei. Creio, da maneira mais firme possível, baseado no testemunho das pessoas que o conheceram e em escritos que encontrei, que Giacomo Nerone era um homem de Deus, que morreu na fé e numa atitude de martírio. O que o tribunal decidir é outra coisa... uma formalidade, baseada nas regras canônicas concernentes a provas, e irrelevante, parece-me, quanto aos fatos fundamentais, pois o dedo de Deus aqui está e a levedura de bondade que existia nesse homem ainda age na vida de sua gente.

     As melhores testemunhas para Vossa Excelência Reverendíssima serão o Dr. Aldo Meyer e Nina Sanduzzi. Esta última apresentou provas de uma cura que bem pode ser milagrosa, embora eu duvide seriamente seja aceita como tal pelos assessores. Os escritos de Nerone, que seguirão com esta carta, são autênticos e definitivos, constituindo, em minha opinião, sólida corroboração quanto à reivindicação que se lhe faz de santidade heróica.

     Confesso-lhe, Excelência Reverendíssima, em tom de amizade, que me preocupa menos, neste momento, esta causa de beatificação, que o bem-estar de certas almas aqui de Gemello Minore. Falei com o Padre Anselmo, tomando a liberdade de insinuar que se ele se separasse fisicamente de Rosa Benzoni, mesmo que continuasse ainda a abrigá-la em sua casa, e se fizesse uma sincera confissão, Vossa Excelência Reverendíssima encararia tais fatos como um indício de regeneração. Ele me causa pena. Trata-se de uma questão de dinheiro e de segurança, para um homem que vive na miséria e é bastante ignorante. Prometi-lhe a quantia total de cem mil liras a ser tirada de meus bens, assim como dinheiro suficiente para a compra de uma cama e outros objetos destinados à instalação de um quarto separado para Rosa Benzoni. Parece-me, agora, que não terei tempo de cuidar dessas coisas. Poderia solicitar a Vossa Excelência Reverendíssima que as fizesse por mim, usando esta carta como documento junto aos meus executores testamentários. Faltar agora à minha palavra a Anselmo seria para mim uma idéia intolerável.

     Os outros assuntos dizem respeito à Condessa de Sanctis, Paolo Sanduzzi, que é o filho de Giacomo Nerone, e a um pintor inglês que se acha hospedado na villa. O que ocorre é demasiado sórdido para que eu o relate pormenorizadamente nesta carta. Ademais, receio que Vossa Excelência Reverendíssima pouco pudesse fazer a respeito. Recomendei-os todos a Deus, pedindo-Lhe aceitasse minha rendição como o preço da salvação de suas almas. Espero poder, amanhã, planejar medidas mais ativas; mas estou tão fraco e doente, que não posso contar com coisa alguma.

     Tenho dois favores a pedir-lhe, esperando que Vossa Excelência Reverendíssima não os ache molestos. O primeiro é pedir-lhe que escreva a Sua Eminência, o Cardeal Marotta, explicando-lhe minha situação e apresentando-lhe minhas desculpas pelo que considero um fracasso em minha missão. Queira transmitir-lhe minhas saudações e pedir-lhe que se lembre de mim em suas preces. O segundo é que Vossa Excelência Reverendíssima permita que eu seja sepultado aqui em Gemello Minore. Pedi, certa vez, para ser sepultado na igreja de Sua Eminência, o Cardeal Marotta, mas Roma é muito longe... e aqui, pela primeira vez, encontrei a mim mesmo como homem e como sacerdote.

     É muito tarde, Excelência, e sinto-me cansado. Não posso mais escrever. Perdoe-me e, em sua caridade, ore por mim.

     Sou, de Vossa Excelência Reverendíssima, o mais obediente servo em Cristo.

Blaise Meredith"

    

     Dobrou a carta, lacrou-a num envelope e jogou-a sobre a mesa. Depois, arrastou-se de volta à cama e dormiu, só despertando quando o sol já se achava alto sobre os verdes gramados da villa.

    

     Paolo Sanduzzi estava trabalhando no jardim do rochedo, atrás da villa. Os terraços tinham-se fendido em certos lugares em que a argamassa havia sido arruinada pelas intempéries, e o solo escorria pelo monte abaixo. Quando chovia, o solo se perdia e, naquela terra fragosa, era demasiado precioso para isso. O velho jardineiro ensinara-lhe de que modo misturar a cal à negra areia vulcânica do rio, bem como de que maneira tapar e alisar as fendas com uma colher de pedreiro.

     Era uma coisa nova que aprendia, uma nova profissão de que podia orgulhar-se, e lá estava ele ajoelhado, com o sol brilhando sobre suas costas, a assobiar contente. A cal queimava-lhe os dedos e fazia com que sentisse suas próprias mãos ásperas e rudes, mas isso também era um outro pequeno motivo de orgulho: suas mãos estavam ficando vigorosas como as de um homem. O jardineiro, também, sentia-se satisfeito com ele. Às vezes, parava e punha-se a falar-lhe com sua voz rouca, mastigando as palavras, e dizia-lhe os nomes das plantas e como cresciam, e por que razão os insetos comiam umas e não outras.

     À hora das refeições, na grande cozinha lajeada, o velho protegia-o do papaguear das mulheres, que gracejavam acerca de sua jovem masculinidade e lhe diziam o que as moças fariam com ele, quando o agarrassem. A única que não ria dele era Agnese, a cozinheira, uma montanha oscilante de mulher, que lhe servia porções duplas de pasta e que tinha sempre um pedaço de queijo ou uma fruta para meter-lhe nos bolsos da calça.

     Ele não sabia como descrever aquilo, mas compreendia que era uma maneira boa de viver. Tinha um lugar onde estar, um trabalho a realizar e vivia em meio a gente amiga e, ainda, no fim do mês, tinha algumas liras para meter no bolso e levar à mãe. Até mesmo Roma começava a recuar para uma distância cada vez mais vaga. A condessa não tornara a falar-lhe e o pintor o deixara em paz, dirigindo-lhe apenas uma ou duas palavras amáveis ao passar. O medo que sentia deles começara a diminuir, e eles se fundiam agradavelmente em seus devaneios de fontes, moças que usavam sapatos e ruas cheias de automóveis cintilantes.

     Estava sonhando, naquele momento, ao som de seu próprio assobio e ao ruído áspero de sua colher de pedreiro sobre a pedra cinzenta, quando subitamente o sonho se converteu em realidade. A condessa estava de pé atrás dele e dizia-lhe, com sua voz mais suave:

     — Paolo! Quero falar-lhe.

     Ele ergueu-se imediatamente, largou a colher de pedreiro e desceu, ágil, das pedras, colocando-se diante dela com viva consciência de seu suor, do torso nu e de suas mãos sujas.

     — Sim, senhora. Às suas ordens.

     Ela lançou rápido olhar em torno, a fim de certificar-se de que estavam a sós. Depois, disse:

     — Amanhã, Paolo, parto para Roma. Não me sinto muito bem e preciso consultar o meu médico. Vou levar Zita e Pietro, para que cuidem de meu apartamento, e pensei em levar também você.

     Ele ficou boquiaberto e pôs-se a gaguejar diante daquela súbita maravilha — e a condessa lançou o seu riso alto e tilintante:

     — Por que está tão surpreso? Eu lhe prometi, não prometi? E você tem trabalhado bem.

     — Mas... mas...

     — Mas você não acreditou em mim? Bem, é verdade. A única coisa que falta é você pedir permissão a sua mãe. Você lhe dirá que ficará ausente durante uns dois meses e que parte de seu dinheiro será pago a ela, aqui, a cada mês. Está claro?

     — Está, sim, senhora!

     Estava claro e brilhante como o verão.

     — Você lhe dirá que Pietro e Zita também vão, e que Pietro continuará a ensinar-lhe jardinagem durante todo o tempo.

     — Sim, senhora. Mas...

     — Mas o quê, Paolo?

     Ele não sabia o que dizer, mas, afinal, conseguiu responder, atropelando rapidamente as palavras:

     — Minha... mãe não gosta do inglês, o Signor Black. Ela talvez não me deixe ir.

     Ela tornou a rir, expulsando todos os receios dele:

     — Diga a sua mãe, Paolo, que o Signor Black vai ficar

     aqui trabalhando. E é por isso que estou levando você comigo, pois é melhor que você não o veja.

     — Quando... quando poderei dizer a ela?

     — Agora, se quiser. Depois volte e diga-me o que ela acha.

     — Obrigado, signora. Obrigado, mil vezes obrigado. Agarrou a camisa, vestiu-a tão estabanadamente que a rasgou e, depois, disparou pelo caminho de cascalho abaixo, em direção aos portões de ferro. Anne Louise de Sanctis ficou a observá-lo, sorrindo de sua impaciência de menino. Aquilo era uma coisa boa de ver, agradável de ter perto da gente na casa. Deveria ser aquilo que outras mulheres encontravam em seus filhos, no outono do casamento, quando a seiva da paixão ia secando e um marido era, talvez, um companheiro, mas não mais um amante jovem.

     Súbito, ela compreendeu claramente o que fizera — a maldade, a sujeira daquilo, a terrível condenação eterna a que fora levada pelo braço de Nicholas Black. Ao pensá-lo, sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Estremeceu e afastou-se, mas, ao dobrar por trás da casa, quase caiu nos braços de Blaise Meredith, que subia pelo gramado com uma pasta de papéis na mão.

     Quando ele, tranqüilamente, a saudou, ficou chocada ante o seu aspecto. O rosto parecia ter-se encovado mais durante a noite. Os olhos eram como brasas engastadas profundamente em seu crânio. Sua pele tinha a cor de velhos pergaminhos e seus lábios estavam exangues. Tinha as costas arqueadas, como se carregasse pesados fardos, e suas longas mãos tremiam sobre o fundo negro da batina.

     Por um momento, ela esqueceu os seus próprios pensamentos e exclamou:

     — Monsenhor! O senhor está doente!

     — Muito doente, lamento dizê-lo — respondeu ele. — Não creio que disponha ainda de muito tempo. Poderia caminhar um pouco comigo?

     Ela teve vontade de recusar, de fugir dele e ocultar-se em seu quarto, ao alcance de seu vidrinho de esquecimento, mas ele a tomou delicadamente pelo braço, e ela se viu, de repente, caminhando a seu lado, ouvindo-lhe as palavras e respondendo-lhe numa voz que não parecia dela.

     — Vi o jovem Paolo descer correndo pela estrada. Parecia estar excitado por alguma coisa.

     — Estava... muito excitado. Vou levá-lo comigo a Roma amanhã, se sua mãe permitir.

     — Mr. Black também vai?

     — Não. Permanecerá aqui.

     — Mas irá ao seu encontro depois, não é assim?

     — Eu... eu não sei quais são os seus planos.

     — A senhora sabe — disse Meredith, com voz cansada mas gentil, que a manteve hipnotizada. — A senhora sabe, minha cara condessa, pois planejou tudo com ele. Planos terríveis. Terríveis para a senhora, para ele... e para o rapaz. Por que fez isso?

     Os pés da condessa moviam-se ao ritmo monótono dos passos de ambos. Mesmo contra sua vontade, as palavras lhe saíram da boca:

     — Eu... eu não sei.

     — A senhora ainda quer vingar-se de Giacomo Nerone?

     — Então o senhor também sabe?

     — Sim. Sei.

     Agora isso não importava. Nada importava. Ele podia perguntar o que quisesse e ela responderia e, quando aquilo acabasse, subiria ao seu quarto, tomaria um banho, deitaria para dormir e jamais despertaria. Esse era o seu último terror. Mas logo estaria terminado.

     As palavras que o sacerdote proferiu a seguir fizeram com que ela voltasse, com um choque, à realidade. Meyer poderia tê-las dito, mas não aquele sacerdote já marcado pela morte. Na boca de Meyer, faltar-lhe-ia alguma coisa... um tom de intimidade, de bondade, de amor, talvez? Era difícil dizer.

     — A senhora bem sabe, minha cara condessa, que a Itália é um mau país para uma mulher como a senhora. É um país de sol, agressivo em sua adoração do processo de reprodução. É um país primitivo e ardente. Predomina o símbolo masculino. A mulher que não é amada, que não tem um companheiro, que não tem filhos, é alvo da zombaria dos outros, é um tormento para si mesma. A senhora é uma mulher ardente. Tem grande necessidade de amor...  grande necessidade também da relação sexual que o acompanha. Tal necessidade se converteu, na senhora, num frenesi... e esse frenesi a leva a atos viciosos, ao mesmo tempo que a inibe em sua própria satisfação. A senhora se sente envergonhada disso e comete coisas piores, por não saber o que fazer... Não é verdade?

     — É.

     Foi só isso o que respondeu — mas gostaria de acrescentar: "Sei de tudo isso, e o sei de uma maneira mais terrível do que o senhor. Mas não basta saber. Para onde vou? Que é que faço? Como encontrar aquilo de que preciso?"

     Meredith prosseguiu, sua voz seca tornando-se mais cálida à medida que falava:

     — Eu poderia recomendar-lhe que rezasse... e isso não seria nada mau, pois a mão de Deus chega até os infernos íntimos que criamos para nós mesmos. Poderia dizer-lhe que fizesse uma confissão geral... e isso ainda seria melhor, pois lhe tranqüilizaria a consciência e a poria em paz com o seu Deus e com a senhora mesma. Mas não seria uma resposta completa. A senhora continuaria ainda amedrontada, ainda insatisfeita, ainda solitária.

     — Que é que faço, então? Diga-me! Pelo amor de Deus, diga-me!

     Até que enfim aquela súplica lhe fora arrancada! Meredith respondeu-lhe, calmamente:

     — Deixei este lugar durante algum tempo. Parta daqui. Não para Roma, que é uma cidade pequena e lhe poderá ser prejudicial. Volte para Londres e fique lá algum tempo. Dar-lhe-ei um bilhete para um amigo meu de Westminster, que a porá em contato com um especialista que trata de problemas como os seus... problemas do corpo e do espírito. Deixe que ele cuide da senhora. Não espere muito; não espere que os resultados sejam demasiado rápidos. Vá a teatros, faça novos amigos, descubra alguma obra de caridade que lhe interesse... Talvez encontre também um homem, não um homem que apenas durma com a senhora, mas que se case com a senhora e que a ame. A senhora ainda é atraente... principalmente quando sorri.

     — Mas se não o encontrar? — indagou, com uma nota de pânico na voz.

     — Permita que lhe diga algo muito importante — respondeu Meredith, paciente. — Não é novidade alguma a gente ser solitário. Isso ocorre com todos nós, mais cedo ou mais tarde. Os amigos morrem, os membros de nossa família morrem. Amantes e maridos também. Ficamos velhos, doentes. A última e a maior solidão é a morte, com que agora me defronto. Não existe pílula alguma que a cure. Não existe fórmula mágica que a afaste. É uma condição a que os homens não podem fugir. Se procurarmos afastar-nos dela, acabaremos num inferno ainda mais tenebroso: nós próprios. Mas se a enfrentarmos, se nos lembrarmos de que existem milhões de outras pessoas como nós... se procurarmos estender-lhes a mão e confortá-las, e não a nós próprios, acabamos por ver, no fim, que não estamos mais sozinhos. Estamos no seio de uma nova família, a família humana, cujo pai é Deus Todo-Poderoso... A senhora se importa que eu agora me sente? Estou... estou muito cansado.

     Coube agora à condessa tomar-lhe o braço e conduzi-lo a um pequeno banco de pedra, debaixo de uma madressilva. Meredith sentou-se, mas ela continuou de pé, olhando-o com um lento espanto e com uma piedade que jamais sentira senão por si mesma. Após um momento, perguntou-lhe:

     — Como é que compreende tudo isso? Jamais ouvi um sacerdote falar assim antes.

     A boca exangue de Meredith contraiu-se num sorriso fatigado:

     — As pessoas exigem demasiado de nós, minha cara condessa. Somos humanos, também. Alguns-, dentre nós, são estúpidos, e é necessário uma vida inteira para aprender as lições mais simples.

     — O senhor é o primeiro homem, em minha vida, que já me ajudou.

     — É porque a senhora tem encontrado homens errados — respondeu Meredith, com árida ironia.

     Ela, então, sorriu-lhe, e Meredith viu, pela primeira vez, quão bela tinha sido.

     — O senhor... o senhor ouviria a minha confissão, padre?

     Meredith abanou a cabeça.

     — Ainda não. Não creio que esteja preparada para ela. Ela o fitou, contraindo o supercílio, quase assustada.

     Ele prosseguiu, grave:

     — A confissão não é o divã do psiquiatra, um expediente para encorajar revelações íntimas, para promover bem-estar mediante uma catarse da memória. É um sacramento judicial, no qual se dá perdão ante a admissão da culpa e uma promessa de arrependimento e regeneração. Para a senhora, a primeira parte é fácil... já está quase feita. Quanto à segunda, precisa preparar-se, por meio da prece e da auto-disciplina... começando por reparar o mal que já causou.

     Ela fitou-o, com olhos perturbados:

     — O senhor se refere a Nicki... a Mr. Black?

     — Refiro-me à senhora, minha cara condessa...  aos seus desejos, à inveja que tem de Nina Sanduzzi e do filho. Quanto a Mr. Black — interrompeu-se, hesitando por um momento. Depois, seus olhos se anuviaram e sua boca adquiriu uma expressão dura: — Eu próprio falarei com ele. Mas receio muito que não me dê ouvidos.

    

   Ao chegar à metade da aldeia, Paolo Sanduzzi pôs-se a correr, com todas as suas forças, ao encontro da mãe. Esta estava parada fora da ferraria, conversando com a esposa de Martino. Rosetta achava-se presente, com seus atavios domingueiros, pronta para ser levada, pela primeira vez, à villa. Nina fitou-o perplexa:

     — Onde é que você pensa que vai? Você devia estar trabalhando. Que pressa é essa?

     A resposta saiu-lhe da boca numa torrente de palavras:

     — Não preciso trabalhar. A condessa me disse. Vou para Roma. Ela me disse que devia pedir sua permissão e que Pietro e Zita também vão... e que eu continuarei a aprender o meu trabalho...

     — Um momento! — exclamou Nina Sanduzzi, com voz áspera. — Diga tudo de novo! Quem disse que você vai para Roma?

     — A condessa. Ela vai consultar o seu médico. Ficará lá dois meses.

     — E ela quer levar você?

     — Quer.

     — Por quê?

     — Ela precisa de criados, não precisa?

     — Você é um jardineiro, filho. Não há jardineiros em Roma.

     Os lábios do rapaz descaíram, amuados:

     — Seja lá como for, ela quer levar-me. Mandou-me pedir sua permissão.

     As duas mulheres olharam-se significativamente. Nina Sanduzzi respondeu, positiva:

     — Então você pode voltar e dizer-lhe que não irá. Sei muito bem que quem quer você em Roma não é a condessa.

     — Mas não se trata de nada disso! Ela me disse que lhe dissesse. O inglês vai ficar aqui.

     — Por quanto tempo? — indagou, o ódio surgindo lentamente por trás de seu rosto clássico. — Uma semana... dez dias, talvez! Depois, fará as malas e seguirá para a grande cidade... ao seu encontro, Paolo mio. Esse truque não enganaria nem mesmo uma criança. — Segurou-lhe, fortemente, o braço: — Você não irá. Está dito. Sou sua mãe e não o permitirei.

     — Então irei de qualquer modo.

     Ela levantou a mão e deu-lhe forte bofetada no rosto.

     — Quando você for homem, puder pagar sua própria passagem e encontrar o seu próprio trabalho... então poderá falar assim. Se a condessa falar comigo eu lhe direi isso na cara. E se alguém fizer alguma tolice, pedirei ao doutor que se comunique com a polícia em Gemello Maggiore. Isso conservará o seu inglês quieto durante algum tempo. E, agora, esqueça-se disso, como um bom rapaz!

     — Não esquecerei! Não esquecerei! Ela me pediu e eu quero ir. Ela é a padrona e a senhora não é ninguém. A senhora não passa...  não passa da prostituta de um santo!

     Desvencilhou-se dela e desceu a rua a correr, com as fraldas da camisa balouçando sobre as ancas. Nina Sanduzzi ficou a olhá-lo, o rosto como o de uma máscara de mármore. A mulher de Martino esfregou no chão o pé descalço e comentou, desajeitada:

     — Ele não quis ofendê-la. É apenas um menino. Ouve certas coisas...

     — O pai dele era um santo — respondeu, com amargura, Nina Sanduzzi. — E o filho quer transformar-se numa femminella.

     — De modo algum! — exclamou, com sua voz alta e clara, Rosetta. — Ele é apenas uma criança. Não sabe o que quer. Vou trazê-lo de volta e fazer com que diga que está arrependido.

     Antes que sua mãe pudesse protestar, saiu correndo, rápida, em seus sapatos domingueiros, e o que por último viram dela foi uma agitação de saia e um par de pernas morenas erguendo-se por cima do muro que separava a estrada do rio.

    

     Num canto ensolarado do jardim, Nicholas Black dava a última demão de verniz no retrato de Paolo Sanduzzi crucificado na oliveira. Ao ouvir os passos de Meredith, levantou a cabeça e enviou-lhe uma saudação irônica:

     — Bom dia, Meredith. Espero que tenha dormido bem.

     — Nem tanto, lamento dizê-lo. Espero que não o esteja incomodando.

     — Absolutamente. Já estou terminando. Gostaria de vê-lo? Penso que é, até hoje, o meu melhor trabalho.

     — Obrigado.

     Meredith deu a volta, parou diante do cavalete e olhou o quadro. O pintor sorriu, ao ver-lhe a expressão do rosto.

     — Gostaria de ficar com ele, Meredith?

     — É uma blasfêmia, Mr. Black — respondeu, com voz fria, o sacerdote.

     — Isso depende do ponto de vista que se adote, claro. Para mim, é um símbolo. Intitulei-o: O sinal da contradição. Um título apropriado, não lhe parece?

     — Muito — respondeu Meredith, afastando-se da tela. — Vim dizer-lhe, Mr. Black, que nem a condessa nem Paolo Sanduzzi irão a Roma. A condessa gostaria que o senhor deixasse a villa o mais breve possível.

     O pintor enrubesceu, furioso!

     — Ela poderia ter tido a delicadeza de me dizer pessoalmente.

     — Ofereci-me para fazê-lo em seu lugar — respondeu Meredith, sereno. — Ela é uma mulher infeliz que necessita de muita ajuda.

     — Ajuda que a Igreja está mais do que pronta a dar-lhe! Ela é bastante rica, creio eu.

     — A Igreja também gostaria de ajudá-lo, Mr. Black... e o senhor é, com efeito, bastante pobre.

     — Vá para o diabo com a sua ajuda, Meredith. Nada quero de sua pessoa. Não se importaria, agora, de ir embora? Estou ocupado.

     — Trouxe-lhe algo que talvez possa interessar-lhe.

     — De que se trata? Algum folheto da Sociedade Católica da Verdade?

     — Não é bem isso. Trata-se dos papéis pessoais de Giacomo Nerone. Gostaria de examiná-los?

     A despeito de si mesmo, o pintor sentiu-se interessado. Limpou a mão num pedaço de pano e, sem proferir palavra, tomou a pasta de papéis das mãos de Meredith. Abriu a capa de papel manilha e examinou, em silêncio, algumas páginas. Depois fechou a pasta e indagou com voz estranha, tensa:

     — Por que me mostra isto?

     Meredith ficou intrigado pelo que havia nele de estranho, mas respondeu, simplesmente:

     Isso constitui uma documentação comovente...  o registro espiritual de um homem que, como o senhor, perdeu a fé, e que depois tornou a ela. Achei que isso poderia ajudá-lo.

     Nicholas Black fitou-o por um momento; depois seus lábios se abriram num sorriso que mais parecia um esgar de angústia:

     — Ajudar-me! O senhor possui um maravilhoso senso de humor, Meredith! O senhor sabe o que fez, não sabe? Fez com que me expulsassem da casa. Privou-me da última oportunidade que me restava de que alguém me financiasse uma exposição que talvez pudesse restabelecer minha reputação como artista. E cobriu de lama a única coisa decente que jamais procurei fazer na vida.

     Meredith olhou-o boquiaberto, atônito:

     — Não o compreendo, Mr. Black.

     — Então eu lhe explicarei, monsenhor — respondeu o pintor, com a mesma voz tensa. — Como todos os outros nesta maldita aldeia, o senhor está convencido de que o meu único interesse por Paolo Sanduzzi é seduzi-lo. Isso é verdade, não é?

     Meredith acenou afirmativamente com a cabeça, mas nada respondeu. O pintor voltou-se para o outro lado e ficou longo tempo a olhar o gramado mosqueado de sol que se estendia em direção à villa. Quando, afinal, falou, fê-lo com estranha, distante suavidade:

     — A ironia de tudo isso, Meredith, é que em qualquer momento, nos últimos quinze anos, o senhor poderia ter tido razão. Mas não agora. Gosto do rapaz... sim. Mas não da maneira que o senhor pensa. Vi nele tudo o que falta em minha própria natureza. Queria levá-lo comigo, educá-lo e fazer dele o que eu jamais poderia ser... um homem completo, em corpo, intelecto e espírito. Se isso significasse renunciar a todos os impulsos da paixão e a toda a necessidade que sinto de amor e afeto, estava disposto a fazê-lo. Mas o senhor jamais acreditaria nisso, não é certo?

     Então, sem refletir, Meredith fez a observação mais brutal de toda sua vida. Respondeu, grave:

     — Eu talvez acreditasse, Mr. Black, mas o senhor jamais poderia fazê-lo... exceto mediante uma graça singular de Deus. E como poderia o senhor pedi-la, se não acredita?

     Nicholas Black nada respondeu. Fitava a figura de Paolo Sanduzzi, pregado à negra oliveira. Decorrido um instante, voltou-se para Meredith e disse, com gélida polidez:

     — Quer fazer o favor de ir embora? Nada há que possa fazer por mim.

    

     O almoço foi uma refeição horrível para ele. Zunia-lhe a cabeça, tinha as mãos pegajosas e, sempre que respirava profundamente, sentia uma dor aguda sob as costelas. A comida não tinha sabor, o vinho tinto tinha algo de azedo. Mas era obrigado a sorrir e a conversar com a condessa, cujo medo por ele se dissipara e se mostrava disposta a ser palradeira.

     Nicholas Black não apareceu. Mandou um recado pelo criado, desculpando-se e pedindo que lhe mandassem a refeição ao quarto. A condessa tinha curiosidade de saber o que se passara entre eles, e Meredith foi obrigado a enganá-la com a delicada mentira de que haviam trocado algumas palavras ásperas e que Black, com toda a certeza, se achava demasiado desconcertado para participar do almoço.

     Terminada a refeição Meredith subiu, a fim de repousar durante as horas quentes do dia. A subida das escadas lhe disse, mais claramente do que um médico, quão doente se achava. Cada degrau era um esforço. O suor cobria-lhe o rosto e o corpo, e a dor nas costelas era como uma punhalada sempre que respirava profundamente. Conhecia o bastante de medicina para saber que isso era o que ocorria com os doentes de câncer. O desenvolvimento da moléstia e as hemorragias os debilitavam tanto, que eram atacados pela pneumonia, que os matava rapidamente. Mas, segundo todas as normas, ele se achava ainda longe dessa fase. Estava ainda de pé e desejava permanecer assim tanto tempo quanto possível.

     Ao chegar ao patamar, no topo da escada, não se dirigiu diretamente ao seu quarto, mas dobrou pelo corredor, na direção do que era ocupado por Nicholas Black. Podia ouvir o pintor movendo-se em seu interior; mas, ao bater à porta, não obteve resposta. Tentou girar o trinco, mas viu que a porta estava fechada. Tornou a bater, aguardou um momento e, depois, dirigiu-se ao seu próprio quarto.

    

     Sozinho em seu alto quarto, o sol atravessando obliqua-mente a janela de rótula e caindo sobre a pintura de Paolo Sanduzzi, Nicholas Black mergulhou silenciosamente no vazio final do desespero. Não havia loucura alguma naquele ato, nenhuma ruína violenta da razão sob o impacto de terrores inexplicáveis. Foi uma admissão simples, final, de que a vida era um enigma sem resposta, um jogo que não valia a vela que pingava suas gotas de cera sobre os seus últimos e inúteis lances.

     Aqueles que ganhavam talvez tivessem de render-se um pouco mais tarde à ilusão do jogador; mas os que perdiam, como ele perdera, não tinham outro recurso senão afastar-se, tão dignamente quanto possível, das cartas espalhadas, da bebida derramada e do ar viciado pela fumaça dos últimos charutos.

     Ele apostara tudo naquele último jogo: dinheiro, a proteção da condessa, a oportunidade de refazer sua reputação como artista, a esperança de justificar até mesmo a estropiada e incompleta masculinidade com que a natureza o dotara. Mas sabia agora que estivera jogando, como sempre, contra cartas marcadas e com todas as apostas feitas contra ele. Sua própria natureza, a lei, a Igreja, tudo conspirava para excluí-lo da mais simples e da mais necessária dentre todas as satisfações da existência. Ele estava a zero...  falido mesmo de esperança. Não tinha para onde ir, exceto aquele submundo, de onde já fora expulso em meio a chacotas.

     A Igreja o receberia de volta, mas exigiria um preço brutal: submissão do intelecto e da vontade, arrependimento e, durante toda a vida, uma amarga abstinência. Os inquisidores cinzentos, como Meredith, purificá-lo-iam implacavelmente e, depois, o impeliriam para a frente, atraindo-o com as cenouras velhas da eternidade. Não podia enfrentar tal coisa... e não a enfrentaria. Homem algum deveria ser obrigado a pagar pelas extravagâncias e os caprichos de um Criador sardônico.

     Levantou-se, caminhou até a escrivaninha, puxou uma folha de papel, garatujou três linhas apressadas e assinou-as. Depois, apanhou um estilete, aproximou-se do quadro, que estava sobre o cavalete, e pôs-se, fria e metodicamente, a cortar a tela em pedaços.

    

     Jamais em sua vida Meredith se sentiu tão envergonhado. Quaisquer que tivessem sido os pecados de Nicholas Black, quaisquer que tivessem sido as loucuras de sua frustrada natureza, ele, não obstante, havia sido vítima de calúnia, tendo revelado, no íntimo, um impulso para o bem que não deixava de ser nobre. A bondade talvez houvesse alimentado tal impulso, a brandura talvez o houvesse desviado para um propósito melhor. Contudo, o seu único comentário, a única coisa que lhe oferecera como sacerdote, fora uma indiscrição estúpida e brutal. Não havia escusa para tal. Inventá-la seria uma hipocrisia. A caridade que julgava haver adquirido através de Giacomo Nerone fora uma monstruosa impostura, que falhara justamente no momento em que dela mais necessitava. Ele era o que fora desde o começo: um homem vazio, destituído de bondade e de espírito humanitário.

     Esse pensamento o perseguiu em seu sono superficial e, quando despertou, nas horas já frias da tarde, ainda o assaltava. Havia apenas uma coisa a fazer. Devia apresentar desculpas pela sua grosseria e procurar de novo estabelecer um contato humano com Black, que devia estar sofrendo muitíssimo.

     Levantou-se, lavou-se, arrumou-se e seguiu de novo pelo corredor, em direção ao quarto do pintor. Dessa vez a porta estava entreaberta, mas, quando bateu, não houve resposta alguma. Abriu-a e espiou. Não havia ninguém. A cama estava intacta. Mas o retrato de Paolo Sanduzzi, sobre o cavalete, junto à janela, estava em tiras.

     Meredith entrou no quarto e aproximou-se para ver melhor. Ao passar pela escrivaninha, chamou-lhe a atenção uma simples folha de papel, sobre a coberta de baeta verde. Na parte superior, viu o seu próprio nome:

    

     "Meu caro Meredith, Suportei durante toda a vida os gracejos do Todo-Poderoso. O seu é demais para mim. Poderá fazer, a meu respeito, o velho sermão: Galileu, tu venceste. Todos os melhores pregadores o usam.

Seu,

Nicholas Black".

    

     Os segundos passavam sem que os percebesse, enquanto ali, de pé, Meredith fitava o papel em suas mãos pálidas. De repente, porém, o pleno horror daquilo explodiu em seu entendimento — e saiu correndo do quarto, desceu as escadas, atravessou a alameda coberta de cascalho e gritou ao porteiro que lhe abrisse o portão. O velho descerrou o postigo, esfregou os olhos sonolentos e, depois, correu para o meio do caminho, ficando a observar o amalucado monsenhor a subir, arquejante, a montanha, a batina a farfalhar-lhe sobre os calcanhares.

     Era já bastante tarde quando deram pela sua falta, e mais tarde ainda quando os dois foram encontrados — Nicholas Black, oscilando de um lado para outro, dependurado de um galho da oliveira, e Blaise Meredith caído de borco, junto ao seu tronco. A princípio, pareciam ambos mortos, mas Aldo Meyer ouviu as débeis pulsações do coração de Meredith e mandou chamar o Padre Anselmo, enquanto Pietro dirigia como um louco o automóvel da condessa rumo ao palácio do bispo, em Valenta.

     Agora a coisa que ele mais receava devia acontecer. Procurava explicar-se — e não justificar-se, pois sabia que qualquer justificação era impossível —, procurava explicar a Deus como aquilo acontecera, e de que modo fracassara, sem qualquer intenção maldosa.

     Mas não havia Deus: havia apenas névoa, silêncio e, fora do silêncio, o eco de sua própria voz.

     — ... Eu estava dormindo... não sabia que ele se fora. Corri à sua procura e ele já estava dependurado. Não pude descê-lo, não tive forças para tal. Pensei que talvez pudesse ainda estar vivo e procurei rezar com ele. Disse os atos de contrição e de amor... de fé e de caridade, na esperança de que os ouvisse e me acompanhasse na oração. Mas não ouviu. Depois, não me lembro do que aconteceu...

     — Mas Deus decerto ouviu e se lembrará...

     A voz chegava até ele vinda da névoa, familiar, mas distante.

     — Eu fracassei. Quis ajudá-lo, mas fracassei.

     — Ninguém, senão Deus, pode julgar se alguém fracassou.

     — Um homem precisa julgar primeiro a si próprio.

     — E depois entregar-se à misericórdia divina.

     A névoa desfez-se lentamente e a voz aproximou-se mais — e viu, então, inclinado sobre o leito, o rosto de Aurélio, bispo de Valenta. Estendeu a mão descarnada e o bispo segurou-a entre as suas.

     — Estou morrendo, Excelência.

     Aurélio, o bispo, sorriu-lhe, com o seu velho, fraternal e irônico sorriso:

     — Como um homem deve morrer, meu filho. Com dignidade e entre amigos.

     Olhou por sobre o ombro do bispo e viu-os todos reunidos ao pé da cama. Anne de Sanctis, Aldo Meyer, Nina

     Sanduzzi e o velho Anselmo em sua batina cheia de manchas, com a estola sacramentai em torno do pescoço. Perguntou, debilmente:

     — Onde está o rapaz?

     — Com Rosetta — respondeu Nina em dialeto. — Eles são amigos.

     — Isso me alegra — disse Blaise Meredith.

     — Não. devia falar tanto — observou Meyer.

     — É A minha última oportunidade, doutor — murmurou, rolando a cabeça no travesseiro e voltando-se de novo para o bispo: — Nicholas Black... Vossa Excelência lhe dará um sepultamento cristão?

     — Quem sou eu para repudiá-lo?

     — Eu... eu dirigi uma carta a Vossa Excelência.

     — Eu a recebi. Tudo será feito.

     — Como estão as laranjas?

     — Amadurecendo bem.

     — Deveria... enviar algumas a Sua Eminência... Talvez o ajudem a compreender. Um presente de minha parte.

     — Farei isso.

     — Poderia Vossa Excelência confessar-me, por favor? Estou muito cansado...

     Aurélio, bispo de Valenta, tirou a ensebada estola do pescoço do Padre Anselmo e pô-la sobre os seus próprios ombros; depois, quando os outros saíram do quarto, inclinou-se para ouvir o resto dos últimos pecados de Monsenhor Blaise Meredith. Após a absolvição, chamou os que se haviam retirado, e todos se ajoelharam ao redor da cama, segurando pequenas velas, enquanto o velho Padre Anselmo lhe dava o viático, que é o único alimento para a viagem mais longa do mundo.

     Depois de recebê-lo, Meredith recostou-se no travesseiro, cerrou os olhos e cruzou as mãos, enquanto o quarto se enchia lentamente do murmúrio das velhas orações para os espíritos que partem. Decorrido muito tempo, quando já haviam terminado, Meredith abriu os olhos e disse, com voz bastante clara:

     — Tive medo durante tanto tempo! Agora é fácil... Teve um leve estremecimento e sua cabeça pendeu frouxamente para o lado, sobre o alvo travesseiro.

     — Está morto — disse Aldo Meyer.

     — Está com Deus — comentou Aurélio, o bispo.

     O Cardeal Eugênio Marotta achava-se sentado em sua cadeira de espaldar alto, atrás de sua mesa entalhada, sobre a qual o seu secretário acabara de colocar a correspondência do dia. Ao seu lado, estava uma pequena caixa de madeira polida, contendo seis laranjas douradas, cada qual aninhada em algodão. Em suas mãos, tinha uma carta que lhe fora enviada por Sua Excelência Reverendíssima, o bispo de Valenta. Ele a estava lendo, lentamente, pela terceira vez:

    

     "... Lamento informar a Vossa Eminência que Monsenhor Blaise Meredith faleceu ontem, às nove horas da manhã, em plena posse de suas faculdades e após receber todos os sacramentos de nossa Santa Madre Igreja.

     Sinto pela sua morte um pesar que só a morte de poucos homens me causou. Pranteio-o como a um irmão, que foi o que se tornou para mim. Possuía grande coragem, singular honestidade de espírito e uma natureza de cujas riquezas jamais se apercebeu. Sei que seu falecimento constituirá grande perda para Vossa Eminência e para a Igreja.

     Antes de morrer, encarregou-me de apresentar a Vossa Eminência suas desculpas pelo que chamava o malogro de sua missão. Não foi um malogro. Suas pesquisas lançaram grande luz sobre a vida e o caráter do servo de Deus Giaco-mo Nerone, provando que o mesmo era, se não no sentido canônico, pelo menos no moral, um homem de grande santidade. Estou ainda em dúvida sobre se se obterá algum benefício em se apresentar esta causa até mesmo ao Tribunal Ordinário, mas não tenho a menor dúvida sobre o bem que já se obteve devido à influência de Giacomo Nerone e do extinto Monsenhor Meredith. Um sacerdote transviado voltou a Deus, uma criança foi livrada de grande dano moral, e uma mulher desorientada e infeliz recebeu luzes suficientes para procurar remediar sua situação.

     No sentido terreno, essas são coisas pequenas, insignificantes. Mas, no verdadeiro sentido de nossa fé, são muito importantes e nelas eu, que sou em geral cético, vi claramente o dedo de Deus.

     As laranjas que lhe envio são um último presente de Monsenhor Meredith. São de meu próprio pomar — os primeiros frutos de uma nova variedade que importamos da Califórnia. No ano que vem, se Deus quiser, esperamos ter mais dessas árvores para distribuir, em base cooperativa, aos plantadores locais. Monsenhor Meredith interessou-se muito por esse trabalho e, se tivesse vivido, creio que gostaria de participar do mesmo. Seu pedido para que enviasse este presente foi feito em seu leito de morte. Disse ele — eu o cito com exatidão: 'Talvez o ajudem a compreender. Vossa Eminência, sem dúvida, compreenderá a alusão.

     O corpo de Monsenhor Meredith se encontra agora na Igreja de Nossa Senhora das Dores, em Gemello Minore, de onde sairá amanhã para ser sepultado em terra recém-consagrada, junto à tumba de Giacomo Nerone. Eu próprio oficiarei a missa e acompanharei o sepultamento.

     Serão ditos, certamente, os ofícios usuais, e eu próprio farei uma recomendação especial, permanente, em minhas missas, como Vossa Eminência, sem dúvida, desejará fazer nas que oficiar.

     É de meu conhecimento que Monsenhor Meredith certa vez pediu a Vossa Eminência para ser sepultado em sua igreja, em Roma. A razão da mudança que se operou em sua decisão talvez tenha algum interesse final. Na última carta que me escreveu, na véspera de sua morte, disse-me: 'Roma é muito longe... e aqui, pela primeira vez, encontrei a mim mesmo como homem e como sacerdote'.

     Sinto-me humilhado ao pensar que muitos dentre nós viveram muito mais e fizeram muito menos.

Seu fraternalmente em Cristo,

 Aurélio ?

Bispo de Valenta".

    

     Sua Eminência pôs a carta sobre a mesa e recostou-se em sua cadeira, pensando nela. Estava ficando velho, ao que parecia. Ou talvez tivesse vivido demasiado tempo em Roma. Não sabia ler uma carta nem julgar um homem.

     O homem que morrera não era o mesmo homem que enviara para lá: um pedante ressequido, com o pó das bibliotecas a cobrir-lhe espessamente o coração.

     O bispo que fizera o primeiro pedido, solicitando um advogado do Diabo, não era esse Aurélio, com seu espírito incisivo e com aquela ironia mais do que visível.

     Ou talvez fossem os mesmos homens, e somente ele houvesse mudado — outra vítima das tentações insidiosas dos príncipes: orgulho, poder, cegueira e frieza de coração. Cristo fizera bispos e um papa — mas jamais um cardeal. A própria palavra contém mais do que uma sugestão de ilusão: cardo, gonzo. Como se fossem os gonzos sobre os quais foram colocadas as portas do céu. Talvez pudessem ser gonzos, mas os gonzos eram metal inútil, a menos que firmemente gravados na estrutura viva da Igreja, cujas pedras eram os pobres, os humildes, os ignorantes, os que pecavam e os que amavam, os esquecidos dos príncipes, mas jamais os esquecidos de Deus.

     Aquele era um pensamento perturbador e ele prometeu voltar a ele à hora do seu exame de consciência vespertino. Era um homem metódico e agora tinha outras coisas a fazer. Tirou do bolso um caderno de notas, com capa de couro, e escreveu, sob a data do dia seguinte: "Recomendação na missa... Meredith".

     Depois guardou o caderno no bolso, examinou rapidamente a correspondência e tocou a campainha, ordenando que seu automóvel o aguardasse à porta. Faltavam quinze minutos para as onze. Era a segunda sexta-feira do mês e o prefeito da Sagrada Congregação dos Ritos tinha uma audiência com Sua Santidade, o papa, para tratar, entre outras coisas, da beatificação e canonização dos servos de Deus.

 

                                                                                            Morris West

 

 

                      

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