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As aventuras de Sherlock Holmes / Arthur C. Doyle
As aventuras de Sherlock Holmes / Arthur C. Doyle

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

As aventuras de Sherlock Holmes  

                          

A Banda Pintada

      Ao olhar as minhas anotações dos setenta e tantos casos em que, nos últimos oito anos, estudei os métodos de meu amigo Sherlock Holmes, vejo que muitos foram trágicos, alguns cômicos e um grande número simplesmente estranho, mas nenhum foi banal; pois, trabalhando como o fazia, por amor à arte e não ao dinheiro, recusava se associar a qualquer investigação que não levasse ao fora do comum, até ao fantástico. De todos esses vários casos, entretanto, não me lembro de nenhum que apresentasse aspectos mais originais que o da família de Surrey, muito conhecida, os Roylotts de Stoke Moran. Os acontecimentos em questão ocorreram no início de minha associação com Holmes, quando morávamos juntos, como solteiros, na Rua Baker. Teria relatado esse caso antes, mas havíamos prometido segredo na ocasião, e só fui liberado dessa promessa no mês passado, pela morte intempestiva da senhora a quem ela havia sido feita. É talvez oportuno que os fatos venham à luz agora, pois tenho razões para crer que há muitos boatos sobre a morte do Dr. Grimesby Roylott que tendem a tomar a questão ainda mais terrível que a verdade.

     Foi no início de abril do ano de 1883 que acordei uma manhã e encontrei Sherlock Holmes em pé ao lado de minha cama, completamente vestido. Em geral, costumava acordar tarde e, como o relógio acima da lareira marcava apenas sete e quinze, pisquei os olhos, surpreso e talvez com um pouco de ressentimento, pois eu também era muito regular em meus hábitos.

     - Mil perdões por acordar você, Watson, - disse ele - mas é o que está acontecendo com todo mundo esta manhã. A Sra. Hudson foi acordada e então me acordou e agora é a sua vez.

     - O que aconteceu? Um incêndio?

     - Não, um cliente. Consta que chegou uma jovem em estado de grande excitação, que insiste em falar comigo. Está esperando nesse momento na sala. Ora, quando moças de família saem andando pela cidade a essa hora da manhã e tiram as pessoas da cama, presumo que tenham algo muito importante a comunicar. Se for um caso interessante, tenho certeza que você gostaria de acompanhá-lo desde o início. Achei, de qualquer maneira, que devia chamá-lo e lhe dar essa chance.

     - Meu caro amigo, não ia perder isso de jeito nenhum.

     Era o meu maior prazer seguir Holmes em suas investigações e admirar as deduções rápidas, velozes como intuíções, entretanto sempre ancoradas em uma base lógica, com que deslindava os mistérios que lhe eram submetidos. Vesti-me rapidamente e em poucos minutos estava pronto para acompanhar meu amigo à sala. Uma senhora vestida de preto e coberta por um véu espesso, sentada junto à janela, levantou-se quando entramos.

     - Bom dia, senhora - disse Holmes alegremente. - Meu nome é Sherlock Holmes. Este é meu amigo íntimo e associado, Dr. Watson, em frente de quem pode falar com toda a franqueza. Ali, ainda bem que a Sra. Hudson teve a boa idéia de acender a lareira. Por favor, chegue perto do fogo e vou mandar vir uma xícara de café bem quente, pois estou vendo que a senhora está tremendo.

     - Não é o frio que me faz tremer - disse a moça em voz baixa, mudando de cadeira, como Holmes sugerira.

     - O que então?

     - É medo, Sr. Holmes. É terror. - Ergueu o véu enquanto falava e pudemos ver que estava realmente em estado abjeto de terror, o rosto contorcido e cinzento, os olhos agitados e amedrontados, como de animal encurralado. As feições e a figura eram de uma mulher de uns trinta anos, mas os cabelos eram prematuramente grisalhos e a expressão era fatigada, e ansiosa. Sherlock Holmes analisou-a com um de seus olhares rápidos e abrangentes.

     - Não tenha medo - disse, acalmando-a com a voz e, inclinando-se à frente, deu uma leve pancadinha em seu braço. - Vamos resolver o problema, seja o que for. Vejo que veio de trem.

     - O senhor sabe quem eu sou?

     - Não, mas vi a passagem de volta em sua mão. Deve ter saído muito cedo e andou muito tempo em um carro aberto, em estradas de terra, antes de chegar à estação.

     A moça teve um sobressalto e olhou meu companheiro, surpresa.

     - Não há mistério nenhum nisso, a senhora - disse ele sorrindo. - A manga esquerda de sua jaqueta está salpicada de lama em nada menos que sete lugares. As manchas são muito frescas. Só um carro aberto deixaria que isso acontecesse, e assim mesmo, só quando se senta à esquerda do cocheiro.

     - Seja qual for seu raciocínio, o senhor tem razão - ela respondeu. - Saí de casa antes das seis horas, cheguei a Leatherhead às seis e vinte e tomei o primeiro trem para Waterloo. Sr. Holmes, não agüento essa ansiedade nem mais um minuto, ficarei louca se isso continuar. Não tenho ninguém a quem recorrer, ninguém, exceto uma pessoa, que se importe comigo, e ele, pobre coitado, não pode me ajudar. Ouvi falar do senhor, Sr. Holmes, foi a Sra. Farintosh, que o senhor ajudou quando ela mais precisava. Foi ela que me deu seu endereço. Oh, Sr. Holmes, será que o senhor pode me ajudar também, pelo menos jogar alguma luz sobre a profunda escuridão que me cerca? No momento não tenho condições de remunerá-lo por seus serviços, mas vou me um em um ou dois meses e assumirei o controle de minha própria renda e então o senhor verá que não sou ingrata.

     Holmes virou-se para a secretária e, abrindo uma gaveta, tirou um pequeno caderno, que consultou.

     - Farintosh - disse. - Ali, sim, lembro-me do caso. Tratava-se de uma tiara de opalas. Acho que foi antes de seu tempo, Watson. Tudo que posso dizer, minha senhora, é que darei a mesma atenção a seu caso que dei ao caso de sua amiga. Quanto à remuneração, minha profissão é sua própria recompensa, mas a senhora poderá me reembolsar qualquer despesa que eu tenha de fazer, quando for conveniente. E agora, por favor, nos conte tudo que possa ajudar a formar uma opinião sobre o assunto.

     - Ali! - respondeu nossa visitante. - O horror da minha situação é exatamente que meus temores são tão vagos e minhas suspeitas dependem inteiramente de detalhes muito pequenos, que podem parecer banais para qualquer outra pessoa, e até o homem, acima de todos, a quem tenho o direito de pedir auxilio e conselhos, considera tudo que lhe digo mera fantasia de uma mulher nervosa. Ele não diz nada, mas eu vejo pelas respostas vagas que me dá, desviando os olhos para não me encarar. Mas ouvi dizer, Sr. Holmes, que o senhor tem olhos que penetram profundamente na imensa maldade do coração humano. O senhor poderá me aconselhar como atravessar os perigos que me rodeiam.

     - Sou todo ouvidos, minha senhora.

     - Meu nome é Helen Stotier e moro com meu padrasto, que é o último sobrevivente de uma das famílias mais antigas da Inglaterra, os Roylotts de Stoke Moran, na fronteira Oeste de Surrey. Holmes acenou com a cabeça. - O nome não me é desconhecido - disse.

     - Há tempos a família era uma das mais ricas da Inglaterra e propriedades se estendiam além das fronteiras de Berkshire no Norte e no Oeste. Mas no último século, quatro herdeiros sucessivos eram de disposição dissoluta e perdulária e a ruína da família foi completada eventualmente por um jogador, na época da Regência. Não sobrou nada, exceto uns poucos acres de terra e a casa de duzentos anos, soterrada sob uma hipoteca enorme. O último grande proprietário arrastou sua existência lá, vivendo a vida horrível de um aristocrata indigente; mas seu filho único, meu padrasto, vendo que tinha de se adaptar a novas situações, conseguiu um empréstimo de um parente, que lhe permitiu formar-se em Medicina e foi para Calcutá onde, devido a sua capacidade profissional e força de caráter, estabeleceu uma grande clínica. Em um assomo de raiva, entretanto, surrou o nativo que lhe servia de mordomo até matá-lo e escapou por pouco de ser condenado à morte. mesmo, ficou preso muito tempo e depois voltou à Inglaterra, um homem desanimado e amargo.

     - Enquanto Dr. Roylott estava na índia, casou-se com minha mãe, a Sra. Stoner, jovem viúva do General-de-Divisão Stoner, da Artilharia Bengali. Minha irmã Júlia e eu éramos gêmeas e tínhamos apenas dois anos quando minha nile casou de novo. Ela possuía uma quantia considerável em dinheiro, nada menos que mil libras por ano, que transmitiu ao Dr. Roylott enquanto residíssemos com ele, com a ressalva de que um certo tanto por ano fosse dado a cada uma de nós na eventualidade de nos casarmos. Pouco após voltarmos à Inglaterra, minha mãe faleceu (morreu há oito anos, em um desastre de estrada de ferro perto de Crewe). Dr. Roylott abandonou então a tentativa de clinicar em Londres e levou-nos para morar com ele na mansão ancestral em Stoke Moran. O dinheiro que minha mãe havia deixado bastava para atender a todas as nossas necessidades e não parecia haver nenhum obstáculo à nossa felicidade.

     - Mas por essa ocasião uma grande mudança se efetuou em nosso padrasto. Em vez de fazer amizades e visitar nossos vizinhos, que de início haviam ficado muito contentes de ver um Roylott de Stoke Moran novamente em comando das velhas propriedades, ele se fechou dentro de casa e raramente saía, a não ser para brigar violentamente com qualquer pessoa que surgisse à sua frente. Certa violência de temperamento, chegando quase à loucura, tem sido hereditária nos homens da família e, no caso de meu padrasto, creio que havia sido intensificada por sua longa residência nos trópicos. Sucedeu-se urna série de brigas vergonhosas e duas terminaram na delegacia até que finalmente ele se tomou o terror da aldeia e todo mundo fugia quando ele aparecia, pois é tremendamente forte e completamente incontrolável em uma de suas fúrias.

     - A semana passada jogou o ferreiro da aldeia dentro de um rio e só consegui evitar um escândalo pagando todo o dinheiro que consegui arranjar. Não Unha nenhum amigo, a não ser os ciganos e dava permissão a esses vagabundos para acampar nos poucos acres cobertos de mato que representam a propriedade da família, e aceitava em retomo a hospitalidade de suas tendas, acompanhando-os às vezes durante semanas. Tem, também, paixão por animais hindus que lhe são mandados por um agente e que passeiam livremente pela propriedade e são temidos pelos camponeses quase tanto quanto seu dono. No momento, tem um leopardo hindu e um mandril.

     - Pode imaginar por tudo isso que minha pobre irmã Júlia e eu não tivemos vidas muito agradáveis. Nenhum empregado ficava conosco e durante muito tempo fizemos todo o trabalho doméstico. Júlia só tinha trinta anos quando morreu, mas seu cabelo estava quase branco, como o meu está ficando.

     - Sua irmã morreu, também?

     - Faleceu há dois anos, e é sobre a morte dela que quero falar com o senhor. Deve compreender que, vivendo a vida que acabei de descrever, havia poucas possibilidades de ver pessoas de nossa idade e posição. Tínhamos, entretanto, uma tia, irmã solteira de minha mãe, a Srta. Honoria Westphail, que mora perto de Harrow, e ocasionalmente tínhamos permissão de visitar essa senhora. Júlia foi vê-la no Natal dois anos atrás e lá conheceu um capitão-de-corveta, de quem ficou noiva. Meu padrasto tomou Conhecimento do noivado quando minha irmã voltou e não fez objeção ao casamento. Mas quinze dias antes do dia que fora marcado para a cerimônia, ocorreu o terrível acontecimento que me privou de minha única companheira.

     Sherlock Holmes se havia recostado na poltrona e fechado os olhos, com a cabeça apoiada em urna almofada, mas abriu as pálpebras a meio e olhou nossa visitante.

     - Faça o favor de ser precisa quanto aos detalhes - disse.

     - Isso é muito fácil, pois todos os acontecimentos desse período horrível estão indelevelmente gravados em minha memória. A mansão é, corno já disse, muito velha e só uma ala ainda é habitada. Os quartos de dormir nessa ala são no andar térreo e as salas são no bloco central do prédio. O primeiro quarto é do Dr. Roylott, o segundo de minha irmã e o terceiro é o meu. Não há comunicação entre eles, mas todos três abrem no mesmo corredor. Estou sendo bem clara?

     - Perfeitamente.

     - As janelas dos três quartos abrem sobre o gramado. Naquela noite fatal, Dr. Roylott fora para o quarto cedo, embora soubéssemos que não tinha ido para a cama, pois a irmã estava se sentindo mal com o cheiro dos charutos hindus muito fortes que ele costumava fumar. Saiu de seu quarto e veio para o meu e lá - ficou por algum tempo, conversando sobre o casamento que se aproximava. As onze horas da noite levantou para sair, mas parou à porta e olhou para trás.

     - “Diga-me uma coisa, Helen”, falou, “você já ouviu alguém assoviar no meio da noite?”

     - “Nunca”, respondi.

     - “Será que você não poderia assoviar sem saber, dormindo?”

     - “Claro que não. Mas por que pergunta?”

     - “Porque nessas últimas noites, cerca de três da manhã, tenho sempre ouvido um assovio baixo, muito claro. Tenho o sono leve e isso me acorda. Não sei dizer de onde vem, talvez do quarto ao lado, talvez lá de fora. Só queria saber se você também tinha ouvido”.

     - “Não ouvi nada. Devem ser aqueles ciganos desgraçados acampados na prioriedade”.

     - Bem provável. Mas se fosse lá fora você também devia ter ouvido”.

     - “Ali, mas meu sono é muito mais pesado que o seu”.

     - “Bem, não tem muita importância”. Ela sorriu para mim, fechou a porta e poucos segundos depois ouvi a chave virar na fechadura de seu quarto.

     - Realmente? - disse Holmes. - Era seu costume trancar a porta dos quartos à noite?

     - Sempre.

     - Por quê?

     - Acho que mencionei que o Doutor tinha um leopardo e um mandril que andavam soltos. Não nos sentíamos seguras a não ser com as portas trancadas.

     - Ah, sim. Por favor, continue sua narrativa.

     - Não pude dormir aquela noite. Um sentimento impreciso de desgraça iminente me oprimia. Minha irmã e eu, como sabe, éramos gêmeas e o senhor sabe que laços muito sutis unem duas almas tão intimamente aliadas. Era uma noite selvagem. O vento uivava lá fora e a chuva batia contra as janelas. Subitamente, no meio do rumor da ventania, ouvi o grito de uma mulher aterrorizada. Sabia que era a voz de minha irmã. Saltei da cama, enrolei um xale nos ombros e corri para o corredor. Quando abri minha porta me pareceu ouvir um assovio baixo, como minha irmã havia descrito, e poucos momentos depois um som metálico, como se um bloco de metal tivesse caído. Quando me aproximei do quarto dela, vi que. a porta estava aberta balançando lentamente nas dobradiças. Fiquei olhando, horrorizada, sem saber o que estava prestes a sair do quarto. À luz da lâmpada do corredor vi minha irmã surgir na abertura da porta, com o rosto lívido de terror e as mãos estendidas, como que pedindo socorro, cambaleando como uma bêbeda. Corri para junto dela e segurei-a em meus braços, mas nesse momento seus joelhos se dobraram e caiu no chão. Contorcia-se como se estivesse com dores violentas e os braços e pernas estavam retorcidos. A princípio pensei que não havia me reconhecido, mas quando me inclinei sobre ela gritou de repente em uma voz que jamais esquecerei: “Oh, meu Deus, Helen! Era a banda! A banda pintada!” Havia mais alguma coisa que ela queria dizer e apontou o dedo no ar em direção ao quarto do Doutor, mas sofreu mais uma convulsão que abafou as palavras. Saí correndo, chamando em voz alta meu padrasto e encontrei-o saindo do quarto, vestindo um roupão. Quando chegou junto de minha irmã, ela já estava inconsciente e embora ele tivesse derramado conhaque em sua garganta e mandado buscar auxílio médico na aldeia, tudo foi em vão e ela morreu sem recobrar os sentidos. Esse foi o horrível fim da minha querida irm.

     - Um momento, - disse Holmes - tem certeza sobre o assovio e o som metálico? Está pronta a jurar sobre isso?

     - Foi isso que o juiz me perguntou no inquérito. Tenho uma impressão muito forte que ouvi isso, mas com o barulho da tempestade e os ruídos naturais em uma casa tão velha, talvez tenha me enganado.

     - Sua irmã estava vestida?

     - Não, estava de camisola. Na mão direita tinha os restos de um fósforo queimado e na esquerda uma caixa de fósforos.

     - Demonstrando que acendera um fósforo e olhara em volta quando ouviu o barulho. Isso é importante. E quais foram as conclusões do inquérito?

     - O magistrado encarregado de casos de morte suspeita investigou o caso com muito cuidado, pois a conduta do Dr. Roylott há muito tempo tinha se tomado notória em todo o Condado, mas não conseguiu encontrar nenhuma causa de morte satisfatória. Meu testemunho mostrou que a porta havia sido trancada por dentro e que as janelas estavam bloqueadas por persianas antigas com barras largas de ferro, que eram também trancadas todas as noites. As paredes foram sondadas e ficou provado que eram sólidas, e o chão também foi examinado minuciosamente, com o mesmo resultado. A chaminé é larga, mas é vedada por quatro barras. É absolutamente certo, portanto, que minha irmã estava completamente sozinha quando morreu. Além disso, não havia nenhuma marca de violência nela.

     - E quanto à possibilidade de ser veneno?

     - Os médicos a examinaram, mas não encontraram nada.

     - Então de que acha que essa pobre moça morreu?

     - Creio que ela morreu de medo e de choque nervoso, embora não saiba o que a amedrontou.

     - Os ciganos estavam acampados na propriedade nessa ocasião?

     - Sim, quase sempre tem alguns acampados lá.

     - Ah, e o que deduziu dessa referência a uma banda, uma banda pintada?

     - Às vezes penso que foi somente um delírio, outras que talvez estivesse se referindo a uma banda de pessoas, talvez os próprios ciganos. Talvez os lenços pintados que usam na cabeça tivesse sugerido essas estranhas palavras.

     Holmes sacudiu a cabeça como um homem que está longe de ter encontrado uma solução satisfatória.

     - Está bastante obscuro - comentou. - Por favor, continue.

     - Passaram-se dois anos desde então e minha vida, até há pouco, tem sido mais solitária que nunca. Mas há um mês, um amigo querido, que conheço há muitos anos, deu-me a honra de me pedir em casamento. O nome dele é Armitage, Percy Armitage, o segundo filho do Sr. Armitage, de Crane Water, perto de Reading. Meu padrasto não fez nenhuma oposição ao casamento e a cerimônia será na primavera. Há dois dias começaram a fazer uns consertos na ala Oeste do prédio e a parede de meu quarto foi parcialmente demolida, assim tive de me mudar para o quarto em que morreu minha irmã e dormir na mesma cama em que ela dormia. Imagine, então, meu arrepio de horror quando à noite passada, enquanto tentava dormir, pensando em seu terrível destino, subitamente ouvi no silêncio da noite o assovio que fora o prenúncio de sua morte. Pulei da cama e acendi a lâmpada, mas não vi nada no quarto. Fiquei abalada demais para voltar para a cama, então me vesti e assim que o dia clareou, saí de mansinho, peguei um carro na Estalagem Crown, que fica em frente, e fui até Leatherhead, de onde vim esta manhã só para ver o senhor e pedir seu auxílio.

     - Fez muito bem - disse meu amigo. - Mas contou tudo que sabe?

     - Sim, tudo.

     Srta. Stoner, não é verdade. A senhora está Protegendo seu padrasto. - O que quer dizer com isso?

     Em resposta, Holmes puxou para trás o babado de renda preta que encobria a mão que nossa visitante repousava sobre o joelho. Cinco pequenas manchas lívidas, as marcas de quatro dedos e um polegar, estavam gravadas no punho alvo.

     - Isso é uma crueldade - disse Holmes.

     A moça enrubesceu e cobriu o punho machucado. - Ele é um homem muito duro - disse. - Talvez não conheça sua própria força.

     Houve um longo silêncio, enquanto Holmes descansava o queixo nas mãos e contemplava o fogo crepitante.

     - É um assunto bem complexo - disse finalmente. - Há milhares de detalhes que gostaria de conhecer antes de decidir o que fazer. No entanto, não temos um minuto a perder. Se fôssemos a Stoke Moran hoje, seria possível vermos os quartos sem que seu padrasto soubesse?

     - Por coincidência, ele disse que vinha à cidade hoje para tratar de assuntos importantes. É provável que fique o dia inteiro e nesse caso não haveria nenhum problema. Temos uma empregada agora, mas é velha e tola e é fácil desviar sua atenção.

     - Excelente. Você não faz nenhuma objeção a essa viagem, Watson?

     - De maneira nenhuma.

     - Então iremos ambos. E a senhora, o que vai fazer?

     - Já que estou aqui, há uma ou duas coisas que gostaria de fazer. Mas voltarei pelo trem das doze horas e estarei lá à sua espera.

     - Pode nos aguardar tarde. Eu também tenho algumas coisas a fazer. Não quer esperar e tomar café?

     - Não, preciso ir. Já me sinto mais leve, desde que confiei meu problema aos senhores. Será um prazer revê-los hoje à tarde. - Desceu o véu sobre o rosto e se retirou da sala.

     - E o que acha disso tudo, Watson? - perguntou Sherlock Holmes, reclinando-se na poltrona.

     - Parece ser urna história profundamente sinistra.

     - Bastante sinistra.

     - No entanto, se a moça está certa em dizer que o chão e as paredes são sólidas e que a porta, janela e chaminé são impenetráveis, então sua irmã estava sem dúvida alguma sozinha quando chegou a seu estranho fim.

     - E o que diz dos assovios noturnos e das palavras tão esquisitas da moça ao morrer?

     - Não sei o que pensar.

     - Quando você combina a idéia de assovios durante a noite, a presença de um bando de ciganos que são íntimos desse velho médico e o fato de que temos todas as razões para acreditar que o médico está interessado em evitar o casamento de sua enteada, a referência, à hora da morte, a uma banda, ou um bando, e, finalmente, o fato de que a Srta. Helen Stoner ouviu um barulho metálico, que poderia ter sido causado por uma dessas barras de metal que seguram as venezianas ao voltar a sua posição, acho que temos base suficiente para pensar que o mistério pode ser esclarecido seguindo essa linha.

     - Mas o que foi que os ciganos fizeram?

     - Não posso imaginar.

     - Vejo muitas objeções a essa teoria.

     - Eu também. E precisamente por essa razão que vamos a Stoke Moran esta tarde. Quero ver se as objeções são fatais ou se podem ser explicadas. Mas o que é isso, diabos!

     A exclamação fora arrancada de meu companheiro porque a porta havia sido abruptamente aberta e um homem enorme surgira no vão. Suas roupas eram uma mistura curiosa de profissional e agricultor, uma cartola preta, um casaco de fraque comprido, perneiras altas e um chicote pendendo da mão. Era tão alto que a cartola tocava o topo do vão da porta e a largura dos ombros quase bloqueava a abertura. Um rosto grande, riscado de mil rugas, queimado pelo sol em uma tonalidade amarela e marcado por todos os sentimentos malignos, virava de um para o outro, enquanto os olhos fundos, biliosos e o nariz afilado e descamado lhe davam um ar de ave de rapina feroz.

     - Qual dos senhores é Holmes? - perguntou esse fantasma.

     - Meu nome, senhor, mas gostaria de saber o seu - disse meu companheiro, com toda calma.

     - Dr. Grímesby Roylott, de Stoke Moran.

     - Muito prazer, Doutor - disse Holmes, com suavidade. - Tenha a bondade de sentar.

     - Nada disso. Minha enteada esteve aqui. Eu a segui. O que ela lhe contou?

     - Está um pouco frio para essa época do ano - disse Holmes.

     - O que ela lhe contou? - berrou o velho, furioso.

     - Mas ouvi dizer que as flores da primavera estão brotando - continuou meu amigo, imperturbável.

     - Ha! Está querendo me enganar, não é? - disse nosso novo visitante, dando um passo à frente e sacudindo o chicote. - Conheço o senhor, seu bandido! Já ouvi falar do senhor. É Holmes, o intrometido.

     Meu amigo sorriu.

     - Holmes, o intruso!

     O sorriso ficou mais pronunciado.

     - Holmes, o empregadinho da Scotland Yard.

     Holmes riu gostosamente. - Sua conversa é muito divertida - disse. - Quando sair, tenha a bondade de fechar a porta, pois está criando uma corrente de ar.

     - Vou quando tiver dito o que vim dizer. Não ouse se intrometer em meus negócios. Sei que a Srta. Stoner esteve aqui. Eu a segui! Sou um inimigo perigoso. Olhe só. - Avançou rapidamente, pegou o atiçador de fogo e vergou-o ao meio com as enormes mãos morenas.

     - Tenha o cuidado de ficar fora de meu alcance - rosnou e, atirando o atiçador retorcido na lareira, arremessou-se fora da sala.

     - Parece um sujeito muito amável - disse Holmes, rindo. - Não sou tão grande quanto ele, mas se tivesse se demorado um pouco mais, ia lhe mostrar que minhas mãos não são mais fracas que as dele. - Enquanto falava, pegou o atiçador de aço e com rápido esforço endireitou-o novamente.

     - Imagine a ousadia dele de me confundir com a força oficial de detetives! Esse incidente dá mais sabor à nossa pequena investigação, entretanto, e só espero que nossa amiguinha não venha a sofrer por sua imprudência em se deixar seguir por esse bruto. E agora, Watson, vamos tomar café e depois vou dar um passeio até a Associação dos Doutores em Direito Civil, onde espero conseguir umas informações que poderão nos ajudar nesse assunto.

     Eram quase treze horas quando Sherlock Holmes voltou de sua excursão. Trazia na mão uma folha de papel azul, coberta de anotações e números.

     - Vi o testamento da esposa falecida - disse. - Para determinar seu signi-ficado exato, fui obrigado a calcular os preços atuais dos investimentos a que se refere. A renda total, que na época em que ela faleceu era aproximadamente mil e cem libras por ano, agora, devido à queda dos preços da agricultura, não passa de setecentas e cinqüenta libras. Cada uma das filhas tem direito a urna renda de duzentas e cinqüenta libras ao se casar. É evidente, portanto, que se ambas as moças tivessem se casado, aquela beleza ficaria com muito pouco dinheiro, e mesmo se só uma casasse, ele já não ficaria bem de vida. Meus esforços essa manhã não foram em vão, pois provaram que ele tem motivos de sobra para impedir que isso acontecesse. E agora, Watson, isso é sério demais para permitir demoras, especialmente porque o velho sabe que estamos interessados em seus negócios, portanto, se você está pronto, vamos pegar um carro e ir para Waterloo. Ficaria muito grato se você colocasse um revólver no bolso. Um Eley nº 2 é excelente argumento para cavalheiros que dão nós em atiçadores de aço. Isso e uma escova de dentes é tudo que precisamos.

     Em Waterloo, tivemos a sorte de pegar um trem para Leatherlicad, onde alugamos um carro na estalagem da estação e andamos seis ou sete quilômetros pelas lindas estradas rurais de Surrey. O dia estava perfeito, o sol brilhava e unias nuvens esgarçadas navegavam no céu. As árvores e as sebes se revestiam corri os primeiros pálidos rebentos da primavera e o ar estava perfumado em o cheiro agradável de terra úmida. Para mim, pelo menos, havia um estranho contraste entre a doce promessa da primavera e a investigação sinistra que nos levava por esses caminhos. Meu companheiro sentava à frente do carro, de braços cruzados, o chapéu cobrindo os olhos, o queixo afundado no peito, imerso em, seus pensamentos. De repente, teve um sobressalto, bateu em meu ombro e apontou para os campos.

     - Olhe lá! - disse.

     Um parque se estendia por uma colina suave, terminando em um bosque denso no ponto mais alto. Lá, por entre os galhos das árvores, divisava-se o telhado cinzento e alto, em várias águas, de uma velha mansão.

     - Stoke Moran? - perguntou.

     - Sim, senhor, é a casa do Dr. Grimesby Roylott - respondeu o cocheiro.

     - Estão fazendo um trabalho de construção ali - disse Holmes. - É lá que vamos.

     - Lá é a aldeia, - disse o cocheiro, apontando para um agrupamento de telhados à esquerda - mas se quer ir à mansão, é mais perto seguir o caminho que atravessa o campo. É ali, onde está aquela senhora.

     - E a senhora, se não me engano, é a Srta. Stoner - observou Holmes, protegendo os olhos com a mão. - Sim, acho melhor fazer o que sugeriu.

     Saltamos, pagamos o cocheiro, e o carro voltou para Leatherhead.

     - Achei melhor - disse Holmes, quando caminhávamos - que ele pensasse que estávamos aqui como arquitetos, ou por alguma razão profissional. Talvez assim não vá comentar nossa presença. Boa tarde, Srta. Stoner. Está vendo que cumprimos nossa promessa.

     Nossa cliente dessa manhã se apressara em vir em nosso encontro, com o rosto cheio de alegria. - Estava ansiosa à sua espera - exclamou, apertando nossa mão. - Tudo deu maravilhosamente certo. Dr. Roylott foi à cidade e é pouco provável que volte antes de escurecer.

     - Tivemos o prazer de conhecer o Doutor - disse Holmes e em poucas palavras contou o que sucedera. A Srta. Stoner empalideceu.

     Meu Deus! - exclamou. - Então ele me seguiu,

     É o que parece.

     É tão astucioso que nunca sei como me defender dele. Que será que vai dizer quando voltar?

     - Ele deve se precaver, pois talvez descubra que há alguém mais astucioso que ele em seu encalço. Deve trancar sua porta hoje à noite. Se ele ficar violento, vamos levá-la para a casa de sua tia em Harrow. Agora vamos aproveitar o tempo de que dispomos. Por favor, leve isso imediatamente aos quartos que queremos examinar.

     O prédio era de pedra cinzenta, corri a parte central alta e duas alas laterais curvas, como as garras de um caranguejo. Em urna dessas alas, as janelas estavam quebradas e cobertas com tábuas, o telhado desabado, as paredes esburacadas. A parte central estava ligeiramente melhor e a ala direita era comparativamente moderna. As persianas nas janelas e a fumaça azul saindo das chaminés mostravam que era ali que a família residia. Haviam construído um andaime na parede dos fundos e algumas pedras estavam quebradas, mas não se via sinal dos trabalhadores quando nos aproximamos. Holmes andou lentamente de um lado para o outro no gramado mal cortado e examinou minucioso em tudo.

     - Essa aqui deve ser do quarto em que costumava dormir, a do centro era do quarto de sua irmã e aquela ali é do quarto do Dr. Roylott?

     - Exatamente. Mas agora estou dormindo no quarto do centro.

     - Devido à construção, pelo que entendi. Por falar nisso, não parece haver nenhuma razão urgente para consertar aquela parede dos fundos.

     - Não havia razão nenhuma. Acho que foi só uma desculpa para me tirar do meu quarto.

     - Ali! Isso é sugestivo. Bem, do outro lado dessa ala estreita há um corredor que dá para os três quartos. Há janelas nesse corredor?

     - Sim, mas são muito estreitas, pequenas demais para dar passagem a alguém.

     - E como a senhora e sua irmã trancavam as portas à noite, não era possível entrar nos quartos daquele lado. Quer ter a bondade de ir para seu quarto, fechar as janelas e trancar as persianas com as barras.

     A Srta. Stoner atendeu o pedido e Holmes, após cuidadoso estudo, tentou de todas as maneiras forçar as persianas, sem sucesso. Não havia nem uma fresta na qual se pudesse introduzir uma mina para suspender a barra. Testou as dobradiças com a lente, mas eram de ferro sólido, embutidas na alvenaria maciça. - Hum! - exclamou, coçando o queixo, perplexo. - Minha teoria apresenta certas dificuldades. Ninguém poderia passar por essa janela com a tranca no lugar. Bem, vejamos se o interior pode nos dar alguma luz.

     Uma pequena porta lateral levava ao corredor pintado de branco, no qual as três portas se abriam. Holmes recusou examinar o terceiro quarto, então fomos diretamente ao segundo, aquele em que a Srta. Stoner estava dormindo atualmente e em que sua irmã falecera. Era um quarto pequeno e modesto, com o teto baixo e uma lareira aberta, à maneira das velhas casas de campo. Em um canto, uma cômoda escura, uma cama coberta de branco em outra parede e uma penteadeira à esquerda da janela eram toda a mobília, com duas pequenas cadeiras de vime e um tapete no centro do quarto. As tábuas do assoalho e o forro das paredes eram de carvalho escuro, tão velho e desbotado que deveria datar da construção da casa. Holmes puxou uma das cadeiras para um canto e sentou, silencioso, deixando os olhos correrem em volta, observando todos os detalhes do cômodo.

     - Essa campainha toca aonde? - perguntou finalmente, apontando para um grosso cordão pendurado junto da cama, com a borla repousando sobre o travesseiro.

     - No quarto da empregada.

     - Parece mais novo que tudo mais no quarto.

     - Sim, foi instalada há uns dois anos.

     - Foi sua irmã que pediu isso?

     - Não, acho que nem chegou a usá-la. Sempre nos servimos a nós mesmo - Realmente? Então me parece desnecessário instalar um cordão tão bonito. Desculpem-me um momento enquanto examino o chão. - Esticou-se de cara para baixo com a lente na mão, depois engatinhou. rapidamente para cá e para lá, examinando minuciosamente as frestas entre as tábuas. Terminando, fez o mesmo com os painéis das paredes. Finalmente, caminhou para a cana e ficou algum tempo olhando para ela e para a parede atrás. No final, pegou o cordão da campainha e puxou-o com força.

     - Ora, é falso - disse.

     - Não toca?

     - Não, nem está ligado a nenhum fio. Isso é muito interessante. Podem ver que está pendurado em um gancho logo acima da pequena abertura de ventilação.

     - Que absurdo! Não tinha reparado isso antes.

     - Muito estranho! - resmungou Holmes, puxando o cordão. - Há uma ou duas coisas muito esquisitas nesse quarto. Por exemplo, o construtor deve ser um idiota, fazendo uma abertura de ventilação para outro quarto, quando podia simplesmente abrir na parede externa!

     - Isso também foi feito há pouco tempo - disse a moça.

     - Na mesma época que o cordão de campainha - comentou Holmes.

     - É, houve algumas mudanças na mesma ocasião.

     - Todas são muito interessantes... cordões de campainha que não tocam, ventiladores que não ventilam. Com sua permissão, Srta. Stoner, vamos agora investigar o outro quarto.

     O quarto do Dr. Grimesby Roylott era maior que o de sua enteada, mas mobiliado com a mesma simplicidade. Uma cairia estreita, uma prateleira cheia de livros, a maioria técnicos, uma poltrona ao lado da cama, uma cadeira de madeira contra a parede, uma mesa redonda e um grande cofre de ferro eram as coisas principais. Holmes andou lentamente em volta e examinou todos os objetos com atenção.

     - O que está aqui dentro? - perguntou, batendo no cofre.

     - Os documentos de meu padrasto.

     - Ali! Viu o conteúdo, então?

     - Só uma vez, anos trás. Lembro-me que estava cheio de papéis.

     - Não há um gato lá dentro, por acaso?

     - Não. Que idéia esquisita!

     - Bem, veja só isso. - Pegou um pequeno pires com leite que estava em cima do cofre.

     - Não, não temos nenhum gato. Mas há um leopardo e um mandril.

     - Ali, sim, é claro! Bem, um leopardo é apenas um gato grande, mas um pequeno pires não parece suficiente para satisfazer sua sede. Há uma coisa que gostaria de estabelecer. - Agachou-se em frente da cadeira de madeira e examinou o assento com a maior atenção.

     - Obrigado. Isso está resolvido - disse, erguendo-se e guardando a lente no bolso. - Ora! Aqui está urna coisa interessante.

     O objeto que atraíra sua atenção era uma pequena correia de cachorro pendurada em um canto da cama. Havia sido amarrada, formando uma laçada.

     O que acha disso, Watson?

     É uma correia comum. Mas não sei por que deram uma laçada. - Isso não é comum, pois não? Ali, meu Deus, é um mundo malvado e quando um homem inteligente se vira para o crime, isso é o pior de tudo. Acho que já vi o suficiente, Srta. Stoner e, com sua permissão, vamos lá para fora, no gramado.

     Nunca havia visto o rosto de meu amigo tão sombrio e sua testa tão franzida quanto nesse momento. Passeamos para cá e para lá várias vezes e nem a Srta. Stoner nem eu ousamos interromper seus pensamentos, até que ele despertou.

     - É essencial, Srta. Stoner, - disse finalmente - que faça exatamente o que vou lhe dizer.

     - Certamente que farei tudo que disser. O assunto é grave demais para qualquer hesitação. Sua vida pode depender disso.

     - Asseguro-lhe que estou totalmente em suas mãos. - Em primeiro lugar, meu amigo e eu vamos passar a noite em seu

     A Srta. Stoner e eu o olhamos com espanto.

     - Sim, tem de ser assim. Deixe-me explicar. Creio que aquilo ali é a estalagem da aldeia.

     - Sim.

     - Muito bem. De lá pode-se ver suas janelas?

     - Certamente.

     - Retire-se para seu quarto, sob pretexto de estar com dor de cabeça, assim que seu padrasto regressar. Quando ele se deitar, abra as persianas de seu quarto, coloque a lâmpada na janela como sinal para nós e então leve tudo que poderá precisar para o quarto que costumava ocupar. Tenho certeza que, apesar das obras, pode ficar lá por uma noite.

     - Sem dúvida alguma.

     - O resto fica em nossas mãos.

     - Mas o que vai fazer?

     - Vamos passar a noite em seu quarto e vamos investigar a causa desse barulho que a vem perturbando.

     - Acho, Sr. Holmes, que o senhor já descobriu o que é - disse a Srta. Stoner, pondo a mio no braço de meu companheiro.

     - Talvez.

     - Então por piedade me diga qual foi a causa da morte de minha irmã.

     - Prefiro ter mais provas antes de falar.

     - Pode pelo menos me dizer se minha idéia está certa e ela morreu de susto.

     - Não, acho que não. Acho que provavelmente houve uma causa mais real. E agora, Srta. Stoner, temos de deixá-la, pois se o Dr. Roylott voltar e nos vir, nossa viagem terá sido em vão. Até logo e tenha coragem, pois se fizer exatamente o que lhe disse, pode ter certeza que muito em breve afastaremos os perigos que a ameaçam.

     Sherlock Holmes e eu não tivemos dificuldade em alugar um quarto e sala na Estalagem Crown. Eram no segundo andar e de nossa janela víamos claramente a ala habitada da Mansão de Stoke Moran. Ao entardecer, vimos Dr. Grimesby Roylott chegar de carro, sua figura enorme obscurecendo o rapazinho que guiava o carro. Este teve certa dificuldade em abrir o pesado portão de ferro e ouvimos os gritos roucos do Doutor e vimos a fúria com que sacudiu os punhos para o rapaz. O carro seguiu a alameda e pouco depois vimos uma luz súbita surgir entre as árvores quando a foi acesa em uma das salas.

     - Sabe uma coisa, Watson, - disse Holmes enquanto sentávamos na escuridão que se aprofundava. - Estou sentindo alguns escrúpulos em levar você comigo esta noite. Há um elemento real de perigo.

     - Posso ser útil?

     - Sua presença pode ser muito valiosa.

     - Então irei.

     - É muita bondade sua.

     - Você fala em perigo. Evidentemente viu mais naqueles quartos do que eu.

     - Não, mas creio que deduzi mais. Imagino que você viu o mesmo que

     - Não vi nada demais, exceto o cordão da campainha, e qual a finalidade daquilo, confesso que nem posso imaginar.

     - Viu a abertura de ventilação também?

     - Sim, mas não acho que seja uma coisa tão extraordinária ter uma pequena abertura entre dois quartos. Era tão pequena que nem um rato poderia passar.

     Moran.

     - Sabia que íamos encontrar um ventilador antes de virmos a Stoke

     - Meu caro Holmes!

     - Sim, sabia. Lembre-se que a Srta. Stoner dísse que a irmã estava sentindo o ' cheiro do charuto do Dr. Roylott. Isso sugere imediatamente que deve haver uma comunicação entre os dois quartos. Só podia ser muito pequena, senão teria sido notada por ocasião do inquérito policial. Deduzi que deveria ser uma abertura de ventilação.

     - Mas que mal pode haver nisso?

     Bem, há pelo menos uma coincidência curiosa de datas. Faz-se uma abertura de ventilação, pendura-se um cordão de campainha e uma senhora que dorme naquela cama morre. Isso não lhe diz nada?

     - Não consigo ver nenhuma ligação.

     - Observou alguma coisa muito peculiar naquela cama?

     - Não.

     - Estava presa ao chão. Já viu isso antes?

     - Não me lembro de ter visto.

     - A moça não podia mudar a cama de lugar. Ficava sempre na mesma posição em relação à abertura e ao cordão, que nunca fora para puxar e soar a campainha.

     - Holmes, - exclamei - começo a ver vagamente onde você quer chegar. Chegamos a tempo de evitar um crime sutil e horrendo.

     - Bastante sutil e bastante horrendo. Quando um médico envereda pelo caminho do crime, é um ótimo criminoso. Tem sangue-frio e tem conheci-mentos. Palmer e Pritchard eram profissionais de primeira. Esse homem é muito competente, mas acho, Watson, que vamos ser mais ainda. Mas veremos muitos horrores esta noite, antes que termine. Por Deus do céu, vamos fumar um cachimbo e pensar em coisas mais agradáveis por algumas horas.

     Cerca de nove horas da noite, a luz entre as árvores foi apagada e tudo ficou escuro na direção da mansão. Duas horas se arrastaram e então subita-mente, quando davam onze horas, uma única luz forte brilhou exatamente à nossa frente.

     - É o sinal para nós - disse Holmes, ficando de pé. - Vem da janela do meio.

     Ao sairmos, trocou algumas palavras com o dono da estalagem, explicando que íamos visitar um amigo e era possível que passássemos a noite lá. Em instantes, estávamos na estrada escura, com um vento frio soprando e uma luz amarela brilhando em nossa frente para nos guiar em nossa missão sombria.

     Não houve grande dificuldade em entrar na propriedade, pois a velha muralha do parque se estava desmoronando. Caminhando por entre as árvores, chegamos ao gramado, atravessamos e estamos prestes a entrar pela janela quando de uma moita de rodo emergiu o que parecia ser uma criança horrenda e disforme, que se atirou na grama com as pernas e braços contorcidos e depois correu rapidamente pelo gramado e sumiu na escuridão.

     - Meu Deus! - murmurei. - Você viu?

     Holmes ficou, por instantes, tão espantado quanto eu. Sua mão se fechou com força em meu punho, mas logo riu baixinho e chegou os lábios ao meu ouvido.

     - É uma família muito interessante - disse. - Era o mandril.

     Esquecera os animais de estimação estranhos do Dr. Roylott. Havia um leopardo, também. Talvez caísse sobre nossos ombros a qualquer momento. Confesso que me senti melhor quando, após seguir o exemplo de Holmes e tirar os sapatos, vi que estava dentro do quarto. Meu companheiro fechou as persianas sem fazer barulho, mudou a lâmpada para a mesa e olhou em volta. Estava tudo exatamente como durante o dia. Depois chegou perto de mim, fez uma trombeta das mãos e murmurou em meu ouvido, tão baixinho que apenas pude distinguir as palavras.

     - O menor ruído será fatal a nossos planos.

     Acenei com a cabeça para mostrar que entendera.

     - Temos de ficar no escuro, pois ele poderia ver a luz pelo ventilador.

     Acenei novamente.

     - Não durma; sua vida dependerá disso. Fique com o revólver à mão caso seja necessário usá-lo. Vou sentar na beira da cama; sente naquela cadeira.

     Tirei o revólver do bolso e coloquei-o no canto da mesa.

     Holmes trouxera uma bengala longa e fina, que colocou na cama a seu lado. Junto dela, botou a caixa de fósforos e um pedaço de vela. Apagou então a lâmpada e ficamos no escuro.

     Como poderei jamais esquecer aquela vigília horrível? Não ouvia nada, nem mesmo uma respiração, mas sabia que meu companheiro estava sentado ali de olhos abertos, a poucos passos de mim, no mesmo estado de tensão nervosa em que eu me encontrava. As persianas cortavam qualquer raio de luz que pudesse penetrar e aguardamos na mais completa escuridão. De fora, vinha o grito ocasional de alguma ave noturna e uma vez, bem em nossa janela, um gemido felino que nos disse que o leopardo estava em liberdade. Muito ao longe ouvimos os tons profundos do relógio da paróquia que batia as horas. Como custavam a passar aquelas horas! Meia-noite, e uma hora, e duas e três, e continuávamos sentados silenciosamente esperando que acontecesse seja o que for.

     Subitamente vislumbramos uma luz na direção da abertura de ventilação, que desapareceu imediatamente, mas foi seguida de um cheiro forte de óleo queimado e metal aquecido. Alguém no quarto ao lado acendera uma lanterna apagada. Ouvi um som leve de movimento e depois tudo ficou novamente em silêncio, embora o cheiro ficasse mais forte. Por uma meia hora fique! sentado com os ouvidos atentos. Ouvi então de repente outro ruído, um som muito leve, como de um pequeno jato de vapor escapando de uma chaleira. No mesmo instante em que o ouvi, Holmes saltou da cairia, acendeu um fósforo e bateu furiosamente com a bengala no cordão de campainha.

     - Está vendo, Watson? - gritou. - Está vendo?

     Mas não vi nada. Quando Holmes riscou o fósforo, ouvi um assovio baixo, bem claro, mas o brilho súbito em meus olhos cansados não me deixou ver o que meu amigo fustigava com tanta fúria. Só pude ver que seu rosto estava muito pálido e cheio de horror e asco.

     Parara de bater no cordão e estava olhando para a abertura quando o silêncio da noite foi quebrado pelo grito mais horrível que jamais ouvi. Foi cres-cendo e crescendo, um berro rouco de dor e medo e raiva, todos misturados. Dizem que lá na aldeia, e mesmo na paróquia distante, esse grito arrancou aqueles que dormiam de suas camas. Congelou nossos corações e fiquei olhando para Holmes e ele para mim, até que os últimos ocos morreram no silêncio de onde vieram.

     - Que quer dizer isso? - disse em voz entrecortada.

     - Quer dizer que está tudo terminado - respondeu Holmes. - E talvez, no final das contas, seja para melhor. Pegue seu revólver e vamos ao quarto do Dr. Roylott.

     Com uma expressão grave, acendeu a lâmpada e se dirigiu para o corredor. Em frente ao quarto do Doutor, bateu à porta duas vezes sem obter resposta. Então virou a maçaneta e entrou, comigo em seus calcanhares, de pistola em mão.

     Foi uma cena singular com que nos deparamos. Sobre a mesa havia uma lanterna escura com a portinhola meio aberta, jogando um feixe brilhante de luz sobre o cofre de ferro, cuja porta estava aberta. Junto à mesa, na cadeira de madeira, sentava Dr. Grimesby Roylott, enrolado em longo roupão cinzento, com os tornozelos nus expostos e os pés metidos em chinelos vermelhos. Tinha no colo a correia com a laçada que tínhamos visto durante o dia. O queixo apontava para cima e os olhos estavam fixos, num olhar rígido horrendo, no canto do teto. Rodeando a testa, tinha uma banda amarela esquisita, com pintinhas marrons, que parecia estar muito apertada. Não se mexeu quando entramos, nem fez nenhum barulho.

     - A banda! A banda pintada! - murmurou Holmes.

     Dei um passo à frente. Em um instante, a estranha banda começou a se mover e surgiu em meio o cabelo a cabeça triangular achatada e o pescoço inchado de uma serpente asquerosa.

     - É uma Arait, a cobra mais venenosa da Índia! - exclamou Holmes. - Ele morreu dentro de dez segundos da mordida. A violência, realmente, recai sobre os violentos e o que arma a armadilha acaba caindo nela. Vamos guardar essa víbora em seu covil e poderemos então levar a Srta. Stoner para um lugar seguro e notificar a polícia do Condado.

     Enquanto falava, tirou a correia do colo do morto, jogou a laçada no pelo do réptil e o arrancou do medonho poleiro, levando-o a distância para o cofre de ferro, onde o trancou.

     Esses são os verdadeiros fatos da morte do Dr. Grimesby Roylott de Stoke Moran. Não é necessário prolongar uma narrativa que já se tomou por demais extensa para dizer como demos a triste notícia à moça apavorada, como a levamos no trem da manhã para a casa de sua boa tia em Harrow e como o lento processo de inquérito policial chegou à conclusão de que o Doutor havia encontrado a morte quando brincava imprudentemente com um perigoso réptil de estimação. O pouco que ainda não soa sobre o caso me foi dito por Sherlock Holmes quando voltávamos à cidade no dia seguinte.

     - Eu chegara - disse ele - a uma conclusão totalmente errada, o que demonstra, meu caro Watson, como é perigoso raciocinar com bases insufici-entes. A presença dos ciganos, o uso da palavra “banda” pela pobre moça para explicar o que vira de vislumbre à luz de um fósforo foram suficientes para me botar em uma pista inteiramente errada. Só posso me dar o mérito de que reconsiderei minha posição imediatamente quando ficou claro que qualquer perigo que ameaçasse o ocupante do quarto não poderia vir nem da janela nem da porta. Minha atenção foi atraída rapidamente para a abertura de ventilação e para o cordão da campainha pendurado ao lado da cama, corno já comentei com você. A descoberta de que o cordão era simulado e que a estava presa ao chão dera origem à suspeita de que o cordão servia de ponte para alguma coisa que passasse pela abertura e viesse até a cama. Ocorreu-me logo a idéia de uma cobra e quando soube que o Doutor tinha uma série de animais da Índia, achei que estava na pista certa. A idéia de usar uma forma de veneno que não pudesse ser descoberta por nenhum teste químico era exatamente a que ocorreria a um homem inteligente e inescrupuloso que havia exercido a Medicina no Oriente. A rapidez com que esse veneno tivesse efeito também era, de seu ponto de vista, uma vantagem. E qual seria o policial que ia descobrir os dois pequenos pontinhos que mostravam onde as duas presas venenosas haviam feito seu serviço. Pensei, então, no assovio. É claro que tinha de chamar a cobra de volta antes que a luz do dia a revelasse à vítima. Treinou-a, provavelmente usando o pires de leite que vimos, a voltar quando chamada. Colocava-a no buraco de ventilação a hora que julgasse, apropriada, certo de que ela deslizaria pela corda e cairia na cama. Poderia ou não morder a ocupante, talvez essa escapasse todas as noites, durante uma semana, mas mais cedo ou mais tarde a cobra a atacaria.

     - Chegara a essas conclusões antes mesmo de entrar em seu quarto. Uma inspeção da cadeira mostrou que tinha o hábito de ficar em pé no assento, o que, é claro, era necessário a fim de alcançar a abertura. O cofre, o pires de leite e a laçada na correia foram suficiente para qualquer dúvida que porventura ainda tivesse. O ruído metálico ouvido pela Srta. Stoner era obviamente causado pelo padrasto, ao fechar rapidamente a porta do cofre ao colocar dentro seu terrível ocupante. Tendo chegado a essa conclusão, você já sabe que medidas tomei para obter as provas. Ouvi a criatura sibilar, como você também deve ter ouvido, e imediatamente acendi a lâmpada e ataquei-a.

     E conseqüentemente a fez recuar pela abertura.

     E também a fiz virar-se contra seu dono do outro lado. Alguns golpes da minha bengala atingiram o alvo e despertaram sua fúria, fazendo-a atacar a primeira pessoa que viu. Dessa maneira, sou, sem dúvida alguma, indiretamente, responsável pela morte do Dr. Grimesby Roylott, e posso afirmar que não vai pesar indevidamente em minha consciência.

 

O polegar do engenheiro

     De todos os problemas que foram submetidos a meu amigo Sherlock Holmes durante os anos de nossa associação, somente dois foram trazidos por mim: o do polegar do Sr. Hatherley e o da loucura do Coronel Warburton. Dos dois, o último talvez tenha proporcionado um campo maior para um observador perspicaz e original, mas o primeiro foi tão estranho de início e tão dramático nos detalhes, que talvez mereça mais ser relatado, ainda que tenha dado menos oportunidades a meu amigo para os métodos dedutivos de raciocínio com os quais; conseguia resultados tão notáveis. A história foi narrada mais de uma vez nos jornais, creio, mas, como todas essas narrativas, seu efeito é muito menor quando compactado em meia coluna impressa do que quando os fatos evoluem lentamente diante de seus olhos e o mistério é gradativamente esclarecido à medida que cada nova descoberta fornece um passo que leva eventualmente à verdade. Na ocasião, as circunstâncias deixaram profunda impressão em mim e o lapso de dois anos pouco enfraqueceu a imagem.

     Foi no verão de 1889, pouco depois de meu casamento, que sucederam os acontecimentos que vou resumir. Eu voltara a exercer minha profissão e abandonara finalmente Holmes em seus aposentos na Rua Baker, embora o visitasse constantemente e ocasionalmente até o convencesse a abandonar seus hábitos boêmios e vir nos ver. Meus clientes se haviam tomado bem numerosos e como eu morava não muito longe da Estação de Paddington, tinha alguns funcionários de lá como pacientes. Um deles, que eu havia curado de uma doença dolorosa e de longa duração, não se cansava de apregoar minhas virtudes e de me mandar todos os sofredores sobre os quais tinha alguma influência.

     Uma manhã, pouco antes das sete horas, fui acordado pela empregada batendo à porta para anunciar que dois homens haviam vindo de Paddington e estavam esperando no consultório. Vesti-me às pressas, pois sabia por experiência. Que casos de estrada de ferro raramente eram banais, e apressei-me a descer. Enquanto descia, meu velho aliado, o guarda, saiu da sala e fechou bem a porta.

     Ele está aqui dentro - murmurou, apontando com o polegar por cima do ombro. - Ele está bem.

     - O que é então? - perguntei, pois seus gestos sugeriam que era alguma estranha criatura que tinha encarcerado em minha sala.

     - É um novo doente - murmurou. - Achei que devia vir com ele aqui, eu mesmo, assim ele não podia escapar. Ele está aí dentro, são e salvo. Tenho de ir agora, Doutor, tenho meus deveres, assim como o senhor. - E assim se foi, sem me dar tempo sequer de lhe agradecer.

     Entrei em meu consultório e encontrei um cavalheiro sentado junto à mesa. Estava vestido sobriamente, com um temo de tweed mesclado, e um boné de fazenda macia que tirara e colocara em cima de meus livros. Uma das mãos estava enrolada em um lenço, que estava todo manchado de sangue. Era jovem, não tinha mais que vinte e cinco anos e o rosto era acentuadamente másculo, mas estava extremamente pálido e deu-me a impressão de um homem que estava profundamente agitado e usando toda sua força de vontade para se controlar.

     - Sinto muito acordá-lo tão cedo, Doutor - disse. - Mas sofri um acidente muito sério durante a noite. Vim de trem hoje de manhã e quando perguntei em Paddington onde poderia encontrar um médico, um camarada muito amável me trouxe aqui. Dei um cartão à empregada, mas vejo que ela o deixou em cima daquela mesinha.

     Peguei o cartão e li: “Sr. Victor Hatherley, Engenheiro hidráulico, 16-A Rua Victoria (39 andar)”. Era esse o nome, profissão e endereço de meu visitante matutino. - Desculpe por tê-lo feito esperar - disse, sentando em minha poltrona. - Acaba de chegar de uma viagem noturna, pelo que diz o que em si só é uma ocupação monótona.

     - Oh, a noite que passei nunca poderia ser chamada de monótona - respondeu, rindo. Continuou rindo em tom alto e agudo, recostando-se na cadeira e sacudindo-se todo. Todos os meus instintos de médico se revoltaram com essas gargalhadas.

     - Pare! - gritei. - Controle-se! - E enchi um copo com água de uma garrafa.

     Não adiantou nada. Era uma dessas explosões histéricas que acontecem com uma personalidade forte quando uma grande crise finalmente passa. Eventualmente voltou ao normal, muito cansado e com o rosto vermelho.

     - Fiz um papel de idiota - disse em voz rouca.

     - Não foi nada. Beba isso! - Derramei um pouco de conhaque no copo com água e a cor começou a voltar a suas faces.

     - Agora estou melhor! - disse. - Então, Doutor, tenha a bondade de tratar do meu polegar, ou melhor, do lugar onde era o meu polegar.

     Desenrolou o lenço e estendeu a mão. Até meus nervos endurecidos estremeceram-se. Quatro dedos se projetavam, e uma horrenda superfície vermelha e esponjosa onde o polegar deveria estar. Havia sido brutalmente cortado ou arrancado das raízes.

     - Céus! - exclamei. - Que ferida horrível. Deve ter sangrado muito.

     - Sim, sangrou. Desmaiei quando aconteceu e acho que fiquei desacordado muito tempo. Quando voltei a mim vi que ainda estava sangrando enrolei o lenço bem apertado no pulso, segurando com um pedaço de pau.

     Excelente! O senhor devia ter sido um cirurgião.

     É uma questão de hidráulica, sabe, e aí tenho conhecimentos.

     Isso foi feito - disse, examinando a ferida - com um instrumento pesado e afiado.

     - Com uma machadinha de açougueiro.

     - Presumo que foi um acidente.

     - De maneira nenhuma.

     - O quê, um ataque.

     - Decididamente.

     - O senhor está me deixando horrorizado.

     Limpei a ferida, lavei-a e fiz um curativo. Ele agüentou tudo sem estremecer, embora mordesse o lábio de vez em quando.

     - Que tal? - perguntei, quando terminei.

     - Excelente! Com seu conhaque e seu curativo já me sinto outro homem. Estava muito fraco, pois passei por muitas coisas.

     - Talvez seja melhor não falar no assunto. Evidentemente o deixa muito nervoso.

     - Oh, não, agora não. Tenho de contar minha história à polícia, mas, entre nós, se não fosse pela prova evidente dessa minha ferida, ficaria muito surpreso se acreditassem em mim, pois minha história é realmente extraordinária e não tenho provas para confirmá-la. E mesmo que acreditassem em mim, as pistas que posso lhes dar são tão - vagas que é muito duvidoso se jamais se poderá fazer justiça.

     - Ah! - exclamei. - Se trata de um problema que o senhor gostaria que fosse resolvido, recomendaria altamente que fosse consultar - meu amigo, Sherlock Holmes, antes de ir à polícia.

     - Oh, ouvi falar desse homem - respondeu meu visitante - e ficaria muito contente se ele se encarregasse do assunto, embora tenha de usar a polícia oficial também. Pode me dar uma apresentação para ele?

     - Farei melhor que isso. Vou levá-lo lá eu mesmo.

     - Ficaria imensamente grato ao senhor.

     - Vamos chamar um carro e iremos juntos. Chegaremos bem a tempo de tomar café com ele. Sente-se bastante bem para isso?

     - Sim. Não me sentirei aliviado enquanto não contar minha história.

     - Então minha empregada chamará um carro e estarei de volta em um instante. - Subi as escadas correndo, expliquei o sucedido à minha esposa rapidamente e em cinco minutos estava dentro de um carro, levando meu novo paciente para a Rua Baker.

     Sherlock Holmes estava, como eu esperava, descansando em sua sala de estar, vestindo um roupão e lendo os anúncios pessoais do enquanto fumava seu cachimbo de antes do café, composto de todas as sobras de fumo do dia anterior, cuidadosamente secas e amontoadas em um canto da prateleira sobre a lareira. Recebeu-nos com sua amabilidade calma, mandou vir mais ovos e bacon e nos acompanhou em uma lauta refeição. Quando terminamos, sentou nosso novo conhecido no sofá, colocou uma almofada atrás de sua cabeça e um copo de conhaque com água a seu alcance.

     - É fácil de ver que sua experiência não foi muito comum, Sr. Hatherley - disse. - Por favor, fique deitado e sinta-se completamente à vontade. Conte-nos o que puder, mas pare quando se sentir cansado, e se fortifique com um pouco desse estimulante.

     - Obrigado, - disse meu paciente - mas me sinto outro homem desde que o Doutor fez o curativo, e acho que seu café da manhã completou a cura. Vou tomar o menos possível de seu valioso tempo, por isso começarei imediatamente a relatar minhas extraordinárias experiências.

     Holmes estava sentado em sua ampla poltrona, com a expressão de cansaço, com pálpebras pesadas, que encobria sua natureza aguda e perspicaz e eu à sua frente, enquanto ouvíamos em silêncio a estranha história que nosso visitante nos contou.

     - É preciso dizer que sou órfão e solteiro, moro sozinho em quartos alugados em Londres. Minha profissão é de engenheiro hidráulico e tive considerável experiência de trabalho durante os sete anos que passei como estagiário na grande firma Venriar & Matheson, em Greenwich. Há dois anos, tendo completado meu estágio e também tendo herdado uma quantia adequada pela morte de meu pobre pai, decidi estabelecer-me por conta própria e aluguei salas na Rua Victoria.

     - Suponho que todo mundo passa pelo mesmo quando está começando a vida e abre um escritório. Em dois anos, só o que me apareceu foram três consultas e um pequeno serviço, nada mais. Minha renda bruta não passa de vinte e sete libras e dez xelins. Todos os dias, das nove da manhã até as quatro da tarde ficava em minha pequena sala, até que comecei a acreditar que nunca teria uma clientela.

     - Ontem, entretanto, quando estava pensando em fechar o escritório, meu empregado entrou para dizer que um cavalheiro queria falar comigo sobre um trabalho. Trouxe um cartão com o nome de “Coronel Lysander Stark” impresso. Logo em seguida veio o próprio Coronel, um homem bastante alto e extremamente magro. Acho que nunca vi um homem tão magro assim. O rosto se resumia em nariz e queixo e a pele das faces estava esticada sobre os ossos protuberantes. No entanto, essa magreza parecia coisa natural e não fruto de alguma doença, pois seus olhos eram brilhantes, seus movimentos cheios de energia e sua postura confiante. Estava vestido sobriamente e julguei que deveria ter uns quarenta anos.

     - 'Sr. Hatherley?’, indagou, com ligeiro sotaque alemão. “O senhor foi recomendado, Sr. Hatherley, como sendo uma pessoa eficiente em sua profissão e também ornamente discreto e capaz de guardar um segredo” Cumprimentei-o, sentindo-me lisonjeado com essas palavras, como qualquer rapaz da minha idade. 'Posso indagar quem me recomendou?-, perguntei.

     - 'Talvez seja melhor não dizer por enquanto. “A mesma pessoa me informou que o senhor é órfão e solteiro e reside sozinho em Londres.”

     - 'Terrivelmente correto’, respondi, “mas permita-me observar que nada disso tem a ver com minha capacidade profissional. Não é sobre um assunto profissional que o senhor quer falar comigo?”.

     - “Sem dúvida alguma. Mas o senhor viu que tudo que digo tem uma o de ser. Tenho um trabalho para o senhor, mas é essencial que haja segredo absoluto, entende, segredo absoluto, e naturalmente é mais fácil obter isso de um homem que mora sozinho do que um que reside no seio da família.”

     - Se prometer guardar segredo, retorquiu, “pode ter certeza absoluta que cumprirei o prometido”.

     Ele me olhou fixamente enquanto eu falava e me pareceu que nunca vira um olhar tão desconfiado e inquisitivo.

     - Então, promete? Perguntou finalmente.

     - “Sim, prometo. “

     - “Silêncio completo e absoluto, antes, durante e depois? Nenhuma referência ao assunto, nem oral, nem por escrito”?

     - “Já lhe dei minha palavra”.

     - “Muito bem.” Levantou-se de repente e, atravessando a sala como um relâmpago, abriu a porta. O corredor estava deserto.

     - Muito bem, disse, voltando. “Sei que os empregados às vezes ficam curiosos sobre os negócios de seus patrões. Agora podemos falar em segurança”. Puxou a cadeira para junto da minha e começou a me fixar novamente com aquele olhar inquisitivo e pensativo.

     - Uma sensação de repulsa e alguma coisa semelhante ao medo começou a se apossar de mim, vendo as excentricidades desse homem esquelético. Nem mesmo meu medo de perder um cliente podia me impedir de mostrar minha impaciência.

     - Teço-lhe que declare a que veio senhor disse-lhe. “Meu tempo é muito valioso”. Deus me perdoe por esta última frase, mas falei sem pensar:

     - O que acha de cinqüenta guinéus por uma noite de trabalho? Perguntou.

     - “Maravilhoso.”

     - “Estou dizendo uma noite de trabalho, mas uma hora seria mais apropriado. Apenas quero sua opinião sobre uma máquina hidráulica de estampar que não está funcionando bem. Se nos mostrar o que está errado, nós mesmos a consertaremos. O que acha de uma incumbência dessas?”

     - “O trabalho parece ser pouco e a remuneração excelente”.

     - Precisamente. Queremos que venha hoje à noite pelo último trem.

     - “Aonde?”

     - “A Eyford, em Berkshire. É um lugarejo perto da fronteira de Oxfordshire, a dez quilômetros de Reading. Há um trem de Paddington que o deixará lá aproximadamente as onze e quinze”.

     - “Muito bem.”

     - “Irei buscá-lo com um carro”.

     - “Fica longe da estação?”.

     - “Sim, nossa pequena propriedade fica no meio do mato. São uns dez quilômetros da estação de Eyford”.

     - “Então não chegaremos antes da meia-noite. Imagino que não há chance nenhuma de um trem de volta. Serei obrigado a passar a noite lá”.

     Podemos arranjar acomodações para o senhor.

     “É um pouco incômodo. Não seria possível ir a uma hora mais conveniente?”

     - “Achamos melhor o senhor ir à noite. É para recompensá-lo por qualquer inconveniência que estamos pagando ao senhor, um rapaz jovem e desconhecido, um honorário que compraria a opinião dos maiores de sua profissão. Mas é claro que se o senhor quiser desistir do negócio, tem toda a liberdade”.

     - Pensei nos cinqüenta guinéus e como me seriam úteis. “De maneira nenhuma”, respondi. O maior prazer em fazer o que deseja. Gostaria, entretanto, de entender um pouco melhor o que é exatamente que o senhor quer que eu faça.

     - 'Pois não. É muito natural que a promessa de segredo que extraímos' do senhor o faça ficar curioso. Não quero que se comprometa à coisa alguma sem saber do que se trata. Suponho que não haja risco nenhum de alguém nos escutar?

     - “Absolutamente.”

     - “Então é o seguinte. O senhor deve saber que greda de um produto valioso e que só é encontrada em um ou dois lugares na Inglaterra, pois não”?

     - “Já ouvi dizer”.

     - “Há algum tempo comprei uma pequena propriedade, muito pequena, a uns doze quilômetros de Reading. Tive a sorte de descobrir que havia um depósito de greda em um dos meus campos. Ao examiná-lo, entretanto, vi que esse depósito era relativamente pequeno e fazia ligação com dois muito maiores, um à direita e outro à esquerda, ambos nas propriedades de meus vizinhos. Esses bons homens não sabiam absolutamente que suas terras continham o que era equivalente a uma mina de ouro. Naturalmente, meu interesse seria comprar suas terras antes que descobrissem seu verdadeiro valor, mas, infelizmente, não tinha capital para isso. Compartilhei o segredo com alguns amigos meus e eles sugeriram que começássemos a trabalhar secretamente em nosso pequeno depósito e assim ganharíamos o suficiente para comprar as terras dos vizinhos. É isso que vimos fazendo por algum tempo e, para auxiliar as operações, fizemos uma prensa hidráulica. Essa prensa, como já expliquei, não está funcionando bem e queremos sua opinião. Contudo, guardamos nosso segredo zelosamente e se fosse sabido que temos engenheiros hidráulicos vindo à nossa casa isso despertaria suspeitas e se os fatos viessem à tona, seria adeus à possibilidade de adquirir essas terras e realizar nossos planos. É por isso que fiz o senhor prometer que não dirá a ninguém que vai hoje à noite. Espero que tenha explicado tudo claramente”.

     - “Compreendo” respondi. “A única coisa que não entendi bem é qual é a utilidade de uma prensa hidráulica na extração de greda de prisioneiro, que, pelo que sei, é escavada da terra como pedra de uma pedreira”.

     - “Ali!” ele disse displicentemente. “Temos nosso processo especial. Comprimimos a terra em tijolos para poder removê-los sem revelar o que contêm. Mas isso é mero detalhe. Contei-lhe toda nossa história, Mr. Hatherley, e demonstrei que confio no senhor”. Ergueu-se enquanto falava. “Vou esperá-lo, então, em Eyford. Às 1 1h15m.”

     - “Estarei lá com certeza”.

     - “Nem uma palavra a ninguém.” Lançou-me um longo olhar inquisitivo e, com um aperto de mãos, saiu apressado da sala.

     - Bem, quando pensei em tudo isso com calma fiquei, como devem imaginar muito espantado com essa súbita incumbência que havia recebido. Por um lado, é claro, estava contente, pois os honorários eram pelo menos dez vezes mais do que teria pedido se fosse eu que tivesse feito o preço e era possível que esse serviço levasse a outros. Por outro lado, a expressão e a maneira de meu cliente causaram uma impressão muito desagradável em mim e não achei que a explicação sobre a greda de prisioneiro fosse razão suficiente para essa visita à meia-noite e para justificar sua ansiedade de que eu não dissesse nada a ninguém. Mas apesar disso, pus de lado meus receios, fiz uma lauta refeição, fui para Paddington e comecei minha viagem, obedecendo fielmente à recomendação de não dizer nada a ninguém.

     - Em Reading mudei não só de vagão, mas também de estação. Consegui pegar, entretanto, o último trem para Eyford e cheguei à pequena e escura estação depois de onze horas. Fui o único passageiro a saltar lá e não havia ninguém na plataforma, exceto um porteiro sonolento, com uma lanterna. Quando pelo portão, entretanto, encontrei meu conhecido da manhã esperando no escuro, do outro lado. Sem dizer uma palavra, pegou meu braço e levou-me rapidamente para um carro, cuja porta estava aberta. Fechou as janelas dos dois lados, deu urnas pancadinhas na madeira e o carro se arremessou à frente a toda velocidade.

     - Um cavalo só? - perguntou Holmes.

     - Só um.

     - Notou de que cor era?

     - Sim, vi à luz das lanternas laterais quando entrava no carro. Era um cavalo baio.

     - Com aparência cansada?

     - Não, descansado e vigoroso.

     - Obrigado. Desculpe a interrupção. Por favor, continue sua história. É muito interessante.

     - Lá nós fomos pelo menos por uma hora. O Coronel Lysander Stark havia dito que eram somente uns dez quilômetros, mas achei, pela velocidade em que andávamos e o tempo que levamos que deviam ser pelo menos uns quinze. Sentou-se a meu lado em silêncio todo o tempo e vi mais de uma vez, quando olhei para ele, que estava me olhando com grande intensidade. As estradas pareciam não ser muito boas naquela região, pois sacudimos e balançamos de um lado para o outro todo o tempo. Tentei olhar pelas janelas para ver onde estávamos, mas o vidro era fosco e não pude ver nada, só a mancha de uma luz ocasional. De vez em quando dizia alguma coisa para quebrar a monotonia da viagem, mas o Coronel respondia em monossílabos; e a conversa morria. Finalmente os solavancos da estrada cederam lugar a um caminho de cascalho e o carro parou. O Coronel Lysander Stark saltou e, quando o segui, puxou-me rapidamente para uma varanda que se abria à nossa frente. Saímos, por assim dizer, diretamente do carro para o hall de entrada, de forma que não pude nem ver a frente da casa. No minuto em que transpus a soleira da porta, esta se fechou atrás de nós e ouvi o ruído das rodas do carro que se afastava.

     - Estava totalmente escuro dentro de casa e o Coronel tateou em volta procurando fósforos e resmungando baixinho. Subitamente uma porta se abriu na outra extremidade da passagem e uma longa faixa dourada de luz se estendeu em nossa direção. Alargou-se e uma mulher surgiu com uma lâmpada que segurava acima da cabeça, empurrando o rosto para a frente e olhando para nós. Pude ver que era bonita e pelo brilho da luz no vestido escuro que usava, vi que era de uma fazenda de boa qualidade. Disse algumas palavras em uma língua estrangeira e o tom era como se estivesse fazendo uma pergunta e quando meu companheiro respondeu com um monossílabo rude ela estremeceu tanto que a lâmpada quase caiu de sua mão. O Coronel Stark foi até ela, murmurou qualquer coisa em seu ouvido e aí, empurrando-a em direção ao quarto de onde viera, veio para mim novamente com a lâmpada na mão.

     - Teço-lhe que tenha a bondade de esperar neste quarto uns minutos disse, abrindo outra porta. Era um quarto pequeno, mobiliado simplesmente com uma mesa redonda no centro, na qual estavam espalhados vários livros em alemão. O Coronel Stark colocou a lâmpada sobre um harmônio perto da porta. “Não o farei esperar muito,” disse, e desapareceu na escuridão.

     - Lancei um olhar nos livros sobre a mesa e apesar de não saber alemão, vi que dois eram tratados sobre ciências e os outros, livros de poesia. Fui até a janela, esperando ver alguma coisa da paisagem, mas estava coberta por pesadas tábuas de carvalho. Era uma em extraordinariamente silenciosa. Ouvi o tique-taque de um velho relógio em alguma parte do corredor, mas fora isso, tudo era silêncio. Uma vaga sensação de mal-estar começou a se apoderar de mim. Quem eram esses alemães e o que estavam fazendo, morando nesse lugar estranho, tão longe de tudo? E que lugar era esse? Estava a doze ou quinze quilômetros de Eyford, era tudo que sabia, mas se ao Norte, Sul, Leste ou Oeste, não tinha a menor idéia. Reading e possivelmente outras cidades grandes talvez estivessem nesse raio e, portanto o lugar poderia não ser tão isolado assim. No entanto, tinha certeza, pela profundidade do silêncio, que estávamos no campo. Andei de um lado para o outro cantarolando baixinho para espantar o medo e sentindo que estava fazendo jus a meus honorários de cinqüenta guinéus.

     - De repente, sem o menor som preliminar que servisse de aviso no silêncio total, à porta da sala abriu-se lentamente. A mulher surgiu na abertura, a escuridão do corredor às suas costas, a luz amarela de minha lâmpada caindo sobre seu lindo e aflito rosto. Vi logo que estava aterrorizada e o sangue gelou em minhas veias. Ela ergueu um dedo trêmulo para fazer sinal de silêncio e murmurou umas palavras em inglês hesitante, lançando os olhos, como os de um animal amedrontado, para o corredor escuro.

     - “Eu iria,” disse, procurando, ou assim me pareceu ficar calma. “Eu iria. Não ficaria aqui. Não há nenhum bem para o senhor fazer aqui”.

     - “Mas, minha senhora,” respondi, “não fiz ainda o que vim fazer aqui. Não posso ir embora sem ver a máquina”.

     - “Não vale a sua pena esperar,” ela continuou. “Pode passar pela porta. Ninguém impede”. E então, vendo que sorri e sacudi a cabeça, abandonou qualquer reserva, avançou, torcendo as mãos e implorou: “Por amor de Deus! Ir embora daqui antes que seja tarde demais!”

     - Mas sou um pouco teimoso por natureza e sempre pronto a me envolver em alguma coisa quando há algum obstáculo no caminho. Pensei em minha remuneração de cinqüenta guinéus, em minha viagem cansativa e na desagradável noite que parecia me aguardar. Seria isso tudo à-toa? Por que iria embora sem ter executado minha incumbência e sem ser pago o que me era devido? Essa mulher poderia até ser uma louca. Ficando firme, por conseguinte, embora ela tivesse me abalado mais do que queria confessar, abanei novamente a cabeça e declarei minha intenção de ficar onde estava. Ela estava prestes a continuar a me implorar quando uma porta bateu acima de nós e ouvimos passos na escada. Ficou escutando um segundo, fez um gesto de desespero e sumiu tão repentina e silenciosamente quanto tinha vindo.

     - Os recém-chegados eram o Coronel Lysander Stark e um homem baixo e atarracado com uma barbicha saindo das dobras do queixo e papada, que me foi apresentado como o Sr. Ferguson.

     - Triste é meu secretário e gerente - disse o Coronel. Acidentalmente, tinha a impressão que deixara esta porta fechada. Receio que tenha sentido a corrente de ar.

     - Pelo contrário, respondi rápido, “abri a porta eu mesmo, pois achei a sala um pouco abafada”.

     - Lançou-me um de seus olhares desconfiados. “Talvez seja melhor irmos ao trabalho, então,” disse: “O Sr. Ferguson e eu vamos levá-lo para ver a máquina”.

     - “Talvez seja bom botar o chapéu”.

     - Não, não é preciso. É dentro da casa.

     - “O quê, estão escavando greda de dentro de casa?”

     - Não, não. Apenas a comprimimos aqui. Mas não importa isso! Só queremos que examine a máquina e nos diga o que está errado com ela.

     - Subimos junto, o Coronel primeiro com a lâmpada, o gerente gordo e eu seguindo. A velha casa era um labirinto, com corredores, passagens, escadas estreitas em espiral e portas pequenas e baixas com soleiras gastas por geração e geração que as haviam atravessado. Não havia tapetes e nenhum sinal de mobília acima do andar térreo, o reboco caía das paredes e a umidade emergia em manchas esverdeadas; de aspecto doentio. Tentei manter uma aparência desligada, mas não havia esquecido os avisos da linda senhora, embora os tivesse ignorado, e fiquei de olho em meus dois companheiros. Ferguson parecia ser um homem moroso e calado, mas vi pelo pouco que disse que, pelo menos, era meu compatriota.

     - O Coronel Lysander Stark parou finalmente diante de uma porta baixa, que destrancou. Dentro havia um pequeno quarto quadrado, no qual nós três mal cabíamos ao mesmo tempo. Ferguson ficou do lado de fora e o Coronel me fez entrar.

     - “Estamos agora”, disse, “dentro da própria prensa hidráulica e seria profundamente desagradável para nós se alguém resolvesse ligá-la. O teto deste pequeno quarto é, na realidade, a extremidade do Pistorn que desce com uma força de muitas toneladas para esse chão de metal. Há pequenas colunas laterais de água do lado externo que recebem a força e a transmitem e multiplicam da maneira que o senhor conhece. A máquina está funcionando, mas está um pouco dura e perdeu um pouco de sua força. Tenha a bondade de examiná-la e nos mostrar o que devemos fazer para repará-la”.

     - Tomei a lâmpada dele e examinei minuciosamente a máquina. Era realmente gigantesca e capaz de exercer enorme pressão. Quando fui para o lado de fora e apertei as alavancas que a controlavam, vi logo pelo som sibilante que havia um vazamento que permitia a regurgitação de água através de um dos cilindros laterais. Um exame sucessivo revelou que uma vedação de borracha na cabeça de uma haste encolhera e não mais vedava adequadamente o encaixe em que operava. Era claramente isso que estava causando a perda de força e mostrei a meus companheiros, que ouviram meus comentários atentamente e fizeram algumas perguntas práticas sobre a maneira de proceder para corrigir o defeito. Quando tinha explicado tudo a eles, voltei ao quartinho e olhei bem em volta, para satisfazer minha curiosidade. Era óbvio que a história da greda de prisioneiro era uma invenção, pois era absurdo imaginar que uma máquina tão poderosa era usada para uma finalidade inadequada. As paredes eram de madeira, mas o chão de ferro era cavado, como uma calha, e quando fui examiná-lo vi uma crosta de depósito mineral em todo ele. Agachei-me e estava procurando raspar um pouco para ver o que era, quando ouvi uma exclamação em alemão e vi o rosto cadavérico do Coronel me olhando.

     - O que está fazendo aí? Perguntou.

     - Fiquei zangado de ter sido enganado por uma história tão complicada como a que tinha me contado. “Estava admirando sua greda de prisioneiro,” respondi. “Acho que poderia aconselhá-lo melhor sobre sua máquina se soubesse exatamente qual é sua finalidade”.

     - No momento exato em que pronunciei essas palavras arrependi-me de minha ousadia. O rosto dele endureceu e os olhos cinzentos faiscaram.

     - “Muito bem,” disse, “vai saber tudo sobre a máquina”. Deu um passo atrás, bateu a pequena porta e virou a chave na fechadura. Corri para a porta e puxei a maçaneta, mas estava trancada e a porta não cedeu a meus pontapés e pancadas. “Olá!”, gritei. “Ou, Coronel! Abra a porta!”

     - E de repente, no silêncio, ouvi um som que gelou o sangue em minhas veias. Era o ruído metálico das alavancas e o som sibilante do cilindro que vazava. Ele ligara a máquina. A lâmpada ainda estava no chão, onde a deixara quando examinara a calha. Pela sua luz, vi que o teto negro estava descendo sobre mim, lentamente, aos arrancos, mas, como ninguém sabia melhor que eu, com uma força que dentro de um minuto me esmagaria. Atirei-me, gritando, contra a porta e tentei arrancar a fechadura com as unhas. Implorei o Coronel para me deixar sair, mas o cruel rumor de alavancas abafou meus gritos. O teto estava apenas três ou quatro palmos acima de minha cabeça e com a mão erguida podia sentir a superfície dura e áspera. Então me ocorreu que a dor da morte dependeria muito da posição em que me encontrasse. Se deitasse de rosto para baixo o peso cairia sobre minha espinha e estremeci ao pensar nos ossos se quebrando. Talvez fosse mais fácil deitar de costas, mas será que teria a coragem de ficar olhando aquela sombra negra fatal descendo sobre mim? Já não podia mais ficar de pé, quando vislumbrei algo que trouxe uma torrente de esperança para meu pobre coração.

     - Já havia dito que embora o chão e o teto fossem de ferro, as paredes eram de madeira. Quando olhei em volta apressadamente pela última vez, vi uma linha fina de luz amarela entre duas tábuas, que se alargou cada vez mais à medida que um pequeno painel era aberto. Por um instante não pude acreditar que fosse realmente uma porta que me salvava da morte, mas logo a seguir atirei-me para a abertura e caí meio desmaiado do outro lado. O painel fechou-se atrás de mim, mas o som da lâmpada. Se espatifando e logo após o ruído metálico das duas chapas de metal provaram como tinha escapado por pouco.

     - Voltei a mim com alguém puxando minha mão e me encontrei deitado no chão de pedra de um corredor estreito, com uma mulher inclinada sobre mim me puxando com a mão esquerda segurando uma vela com a direita. Era a mesma boa amiga cujos avisos tão tolamente eu havia ignorado.

     “Eles aqui estarão já, já. Verão que não está 19. Oh, não perca o tão precioso tempo, venha! “

     Dessa vez, pelo menos, não desprezei seus conselhos. Fiquei de pé, cambaleando, e corri com ela pelo corredor e por uma escada circular. Esta nos levou a outra passagem mais larga e justamente quando a alcançamos ouvimos o som de passos apressados e duas vozes gritando, uma em resposta à outra, do andar em que estávamos e do andar de baixo. Minha protetora parou e olhou em volta, como quem não vê saída. Então abriu uma porta que levava. a um quarto, onde, pela janela aberta, entrava o luar, banhando o chão.

     “É sua única chance”, disse, “é alto, mas talvez possa pular”.

     Enquanto falava, surgiu urna luz no fim da passagem e vi o vulto magro do Coronel Lysander Stark avançando rapidamente com uma lanterna em uma das mãos e uma arma parecida com uma machadinha de açougueiro na outra. Atravessei o quarto correndo e olhei pela janela. O jardim à luz da lua parecia tão calmo e doce e seguro, e estava a menos de dez metros. Subi no peitoril, mas hesitei em pular até ouvir o que ia se passar entre minha salvadora e o bandido que me perseguia. Se ela fosse maltratada, apesar de todo o perigo voltaria para socorrê-la. Mal pensara isso, quando ele chegou à porta, empurrando-a de lado, mas ela o abraçou e tentou detê-lo.

     - “Fritz! Fritz! “, exclamou em inglês. “Lembre sua promessa depois da última vez. Você disse que não ia ser assim nunca mais. Ele guardará segredo! Oh, ele guardará segredo!”

     - “Você está louca, Elise!”, ele berrou, lutando para se livrar. “Você vai estragar tudo. Ele viu demais. Solte-me, vamos!” Jogou-a de lado e, correndo para a janela, golpeou-me com a pesada arma. Eu deixara o corpo cair e estava me segurando ao peitoril com as mãos quando ele me atacou. Senti uma dor vaga, afrouxei os dedos e caí no jardim a meus pés.

     - Fiquei aturdido, mas não me machuquei com a queda. Levantei e saí correndo por entre os arbustos o mais velozmente possível, pois sabia que ainda não estava fora de perigo. De repente, enquanto corria, comecei a me sentir tonto e fraco. Olhei minha mão, que latejava e então, pela primeira vez, vi que meu polegar havia sido decepado e o sangue corria da ferida. Consegui enrolar meu lenço na mio, mas os ouvidos começaram a zumbir e caí desmaiado entre as roseiras.

     - Não sei quanto tempo fiquei desacordado. Deve ter sido por muitas horas, pois a lua já se fora do céu e começava a amanhecer quando abri os olhos. Minhas roupas estavam ensopadas de orvalho e a manga do casaco estava coberta de sangue do polegar ferido. A dor na mão me fez recordar todos os detalhes da aventura noturna e fiquei de pé, sentindo que talvez ainda não estivesse a salvo de meus perseguidores. Mas, para minha surpresa, quando olhei em volta, não vi nem a casa nem o jardim. O lugar onde caíra do era um ângulo de uma sebe próxima à estrada e logo adiante havia um prédio longo e baixo que, ao me aproximar, provou ser a mesma estação aonde chegara à noite anterior. Se não fosse pela ferida na mão, tudo que se passara durante àquelas horas horríveis poderia ter sido um pesadelo.

     - Meio tonto, entrei na estação e perguntei pelo trem da manhã. Havia um para Reading dentro de uma hora. O mesmo porteiro estava de serviço. Perguntei-lhe se ouvira falar de um Coronel Lysander Stark. Não sabia quem era. Vira um carro à noite anterior esperando por mim? Não, não vira. Havia uma delegacia perto dali? Sim, a uns quatro quilômetros.

     - Era longe demais para ir andando, fraco e doente como me sentia. Resolvi esperar até chegar à cidade para contar minha história à polícia. Passava um pouco das seis quando cheguei e fui primeiro tratar de minha mão e foi entro que o Doutor teve a bondade de me trazer aqui. Estou colocando meu caso em suas mãos e farei exatamente o que o senhor mandar.

     Ficamos ambos em silêncio após ouvir essa extraordinária narrativa. Depois Sherlock Holmes tirou da prateleira um dos grandes volumes onde guardava seus recortes.

     - Aqui está um anúncio que lhe vai interessar - disse. - Saiu em todos os jornais cerca de um ano atrás. Ouçam: “Perdido no dia 9 do corrente, o Sr. Jeremiah Hayling, de 26 anos, engenheiro hidráulico. Saiu de casa às dez horas da noite e não foi mais visto. Vestia.” etc.etc. Ali! Isso foi à última vez que o Coronel precisou consertar sua máquina, sem dúvida alguma.

     Disse. - Céus! - exclamou meu paciente. - Então isso explica o que a moça

     - Certamente. É bem claro que o Coronel era um homem calculista e desesperado, firmemente decidido que nada ia atrapalhar sua jogada, como os piratas de antigamente, que não deixavam nenhum sobrevivente nos barcos que capturavam. Bem, os minutos são preciosos e se o senhor se sente bastante bem, vamos imediatamente à Scotland Yard e em seguida a Eyford.

     Umas três horas depois estávamos a caminho de Reading e de lá à pequena aldeia em Berkshire. O grupo era composto de Sherlock Holmes, o engenheiro hidráulico, Inspetor Bradstreet da Scotland Yard, um detetive e eu. Bradstreet abrira um mapa da região sobre o assento e se ocupava em desenhar um círculo tendo como centro Eyford.

     - Aqui está - disse. - Esse círculo tem um raio de doze quilômetros partindo da aldeia. O lugar que procuramos deve estar dentro dessa linha. O senhor disse doze quilômetros, não foi?

     - Aproximadamente. Foi mais ou menos uma hora de viagem.

     - E acha que o trouxeram de volta toda essa distância quando estava inconsciente?

     - Devem ter feito isso. Tenho uma recordação confusa de ter sido carregado e posto em algum lugar.

     - O que não posso entender - disse eu - é por que não o mataram quando o encontraram desmaiado no jardim. Talvez o vilão tenha se enternecido com as súplicas da moça.

     - Não acho isso provável. Nunca vi uma cara mais implacável em toda minha vida.

     - Breve saberemos tudo disse Bradstreet. - Bem, desenhei o círculo e só gostaria de saber em que ponto dentro dele vamos encontrar as pessoas que procuramos.

     - Acho que posso determinar isso - disse Holmes calmamente.

     - Ali! - exclamou o inspetor. - Então já formou sua opinião? Bem, vamos lá. Vejamos quem concorda com o senhor. Eu digo que é no Sul, pois lá é mais deserto.

     - E eu digo Leste - aventurou meu paciente.

     - Eu acho que é Oeste - disse o detetive. - Lá há várias pequenas aldeias.

     - Minha opinião é o Norte - eu disse - porque lá não há colinas e nosso amigo não disse que o carro tivesse subido nenhuma inclinação.

     - Ora - disse o inspetor, rindo - não poderíamos divergir mais. Cobrimos todos os pontos do compasso. Sr. Holmes, qual é seu voto decisivo?

     - Estão todos errados.

     - Mas não podemos estar todos errados.

     - Ali, sim, podem. Esse é o ponto que escolho - e colocou o dedo bem no centro do círculo. - É aqui que os encontraremos.

     - Mas e a viagem de doze quilômetros? - exclamou Hatherley.

     - Seis de ida e seis de volta. Nada mais simples. O senhor mesmo disse que o cavalo não estava cansado quando entrou no carro. Como poderia ser assim se tivesse andado doze quilômetros em estradas péssimas?

     - Realmente, seria um ótimo estratagema - observou Bradstreet, pensativo. - É claro que não pode haver dúvidas quanto à natureza desse bando.

     - Nenhuma - disse Holmes. - São cunhadores de moedas falsas, em grande escala, e usavam a máquina para formar a amálgama que substitui a prata.

     - Há muito tempo que sabíamos que havia um bando muito astuto trabalhando nisso - disse o inspetor. - Estavam cunhando milhares de meias coroas. Conseguimos seguir sua pista até Reading, mas lá os perdemos, pois conseguiram nos despistar de tal maneira que provavam que eram velhos profissionais. Mas agora, graças a essa oportunidade fortuita, acho que vamos pegá-los finalmente.

     Mas o inspetor estava enganado, pois esses criminosos estavam destinados a escapar à justiça. Quando chegamos à estação de Eyford vimos uma coluna gigantesca de fumaça saindo de um grupo de árvores na vizinhança, pairando como uma imensa pluma de avestruz sobre a paisagem.

     - A casa pegando fogo? - perguntou Bradstreet, quando o Um seguia sua viagem.

     Sim, senhor - respondeu o chefe da estação.

     - Quando começou?

     - Ouvi dizer que foi durante a noite, mas piorou muito e está queimando toda.

     - De quem é a casa?

     - Do Dr. Becher.

     - Diga-me - interrompeu o engenheiro - se Dr. Becher é um alemão muito magro, com um nariz fino e comprido?

     O chefe da estação deu uma boa gargalhada. - Não senhor, o Dr. Becher é inglês e não há ninguém na paróquia que tenha uma barriga maior. Mas ele tem um hóspede, ouvi dizer que é um paciente dele, que é estrangeiro e que bem precisa de um pouco da boa carne de Berkshire para cobrir seus ossos.

     Mal ele acabara de falar, estávamos todos nos apressando em direção ao incêndio. A estrada subiu uma pequena colina e à nossa frente surgiu um grande prédio baixo jorrando fogo por todas as janelas e frestas, enquanto no jardim três carros de bombeiros lutavam em vão para conter as chamas.

     - É este mesmo! - exclamou Hatherley, profundamente excitado. - Ali está a estrada de saibro e as roseiras onde caí. A segunda janela foi de onde pulei.

     - Bem, pelo menos - disse Holmes - o senhor teve sua vingança. Não há dúvida de que foi sua lâmpada de querosene que, quando comprimida pela prensa, tocou fogo nas paredes de madeira e certamente eles estavam ocupados demais em persegui-lo para notar. Agora fique de olhos abertos para ver se seus amigos de ontem à noite estão no meio da multidão, embora receie que a essas horas já estejam a muitos quilômetros de distância.

     E os receios de Holmes se realizaram, pois desde esse dia não mais se ouviu falar da linda moça, o sinistro alemão ou o moroso inglês. Aquela manhã, muito cedo, um camponês vira uma carroça com várias pessoas e umas caixas volumosas indo rapidamente em direção a Reading, mas aí se perdia a pista dos fugitivos e nem mesmo a engenhosidade de Holmes conseguiu descobrir o menor indício de seu paradeiro.

     Os bombeiros ficaram muito perturbados com as coisas estranhas que encontraram dentro da casa, especialmente quando descobriram um polegar humano recentemente decepado no peitoril de uma janela. Ao entardecer, finalmente, seus esforços foram recompensados e conseguiram dominar as chamas, mas aí o telhado já havia desmoronado e o prédio todo estava reduzido a ruínas, só se salvando uns cilindros retorcidos e canos de ferro, não restando nada mais da maquinaria que custara tanto ao nosso desafortunado engenheiro hidráulico. Descobriram grandes massas de níquel e estanho em um barracão, mas nenhuma moeda, o que pode explicar a presença das caixas volumosas na carroça.

     Como nosso engenheiro hidráulico foi levado do jardim ao lugar onde recobrou os sentidos poderia ter sido um mistério para sempre se não fosse a terra macia, que contou sua história. Fora evidentemente carregado por duas pessoas, uma das quais; tinha pés excepcionalmente pequenos e a outra, excepcionalmente grandes. O que era mais provável é que o inglês silencioso, sendo menos audaz e também menos sanguinário que seu companheiro, tivesse ajudado a mulher a levar o homem inconsciente para fora de perigo.

     - Bem, - disse nosso engenheiro, muito triste, ao tomarmos nossos lugares para voltar a Londres - que mau negócio eu fiz! Perdi meu polegar e perdi honorários de cinqüenta guinéus e, afinal de contas, o que ganhei?

     - Experiência - disse Holmes, rindo. - Indiretamente, pode ser de muito valor. É só contar sua história e ganhará a reputação de excelente companhia para o resto de seus dias.

  

O nobre solteiro

     O casamento do Lorde St. Simon, e a maneira curiosa por que terminou, há muito deixou de ser assunto de interesse nos círculos exaltados em que o infeliz noivo se movimenta. Escândalos novos o obscurec6ram e os detalhes picantes atraíram os bisbilhoteiros e os fizeram esquecer esse drama de quatro anos atrás. Como tenho razões para acreditar, entretanto, que os fatos verdadeiros nunca foram revelados ao público em geral, e como meu amigo, Sherlock Holmes, teve importante papel em esclarecer o mistério, acho que as memórias dele não ficariam completas sem um esboço desse episódio notável.

     Faltavam poucas semanas para meu casamento, nos dias em que ainda compartilhava os alojamentos de Holmes na Rua Baker, quando ele chegou em casa uma tarde após ter saído para passear a pé e encontrou uma carta na mesa da entrada esperando por ele. Eu ficara em casa o dia todo, pois o tempo virara, de repente, e chovia com ventos fortes de outono e a bala que trazia na perna como relíquia da campanha do Afeganistão estava latejando persistentemente. Sentado em uma poltrona e com as pernas esticadas em uma cadeira, havia me rodeado de jornais até que, saturado com as notícias do dia, os jogara de lado e ficara parado olhando o enorme monograma em relevo, encimado de uma coroa, que estava sobre a mesa, pensando em quem poderia ser o nobre que escrevia a meu amigo.

     - Aqui está uma epístola nobre - comentei, quando ele entrou. - A correspondência da manhã, se estou bem lembrado, consistia em contas da peixaria.

     - É, minha correspondência pelo menos tem o encanto de ser variada - respondeu, sorrindo. - E as cartas dos mais humildes geralmente são as mais interessantes. Isso parece um desses convites sociais muito pouco desejáveis, que exigem que um homem minta ou que se caceteie.

     Abriu o envelope e lançou um olhar no conteúdo.

     - Ora, talvez isso seja interessante.

     - Não é social, então?

     - Não, estritamente profissional.

     - E é de um cliente nobre?

     - Um dos mais nobres da Inglaterra.

     - Meu caro amigo, dou-lhe os parabéns.

     - Asseguro-lhe, Watson, sem pretensões, que a posição social de meu cliente vale menos para mim do que o interesse de seu caso. É possível, entretanto, que as duas coisas existam nessa nova investigação. Você tem lido os jornais assiduamente nos últimos dias, não tem?

     - É o que parece - disse com pesar, apontando a pilha de jornais no canto da sala. - Não tinha nada mais a fazer.

     - Ainda bem, pois você poder-me-á talvez pôr em dia. Não leio nada a não ser os anúncios pessoais e as notícias criminais. Os primeiros são sempre muito instrutivos. Mas se você tem acompanhado as notícias recentes deve ter lido sobre Lorde St. Simon e seu casamento.

     - Ah, sim, com muito interesse.

     - ótimo. A carta que tenho aqui é do Lorde St. Simon. Vou ler para você e então vai pegar esses jornais e me contar tudo que sabe sobre o assunto. Eis aqui o quê ele diz:

     - “Prezado Sr. Sherlock Holmes:

     Lorde Backwater me assegura que posso confiar inteiramente em seu discernimento e discrição. Decidi, portanto, fazer-lhe uma visita para consultá-lo sobre um acontecimento doloroso que ocorreu com referência a meu casamento. O Sr. Lestrade, da Scotland Yard, já está agindo nesse assunto, mas me assegurou que não tem nenhuma objeção à sua cooperação e acha mesmo que pode ser útil. Irei às quatro horas da tarde e se por acaso o senhor tiver outra coisa marcada a essa hora, espero que a desmarque, pois esse assunto é da máxima importância.

     Atenciosamente,

     ROBERT ST. SIMON”

     - É datada de Grosvenor Mansions, escrita com pena de ave e o nobre lorde manchou o dedo mindinho direito com tinta - observou Holmes, dobrando a carta.

     - Falou em quatro horas. Já são três. Estará aqui dentro de uma hora.

     - Tenho o tempo justo, com seu auxilio, para me inteirar do assunto. Olhe os jornais e arrume os artigos por ordem de data, enquanto vejo exatamente quem é nosso cliente. - Pegou um volume vermelho em uma prateleira de livros perto da lareira. - Aqui está - disse, sentando e abrindo o volume no colo. - “Pobert Walsingliam de Vere St. Simon, segundo filho do Duque de Balmoral...” - Hum! - “Armas: Azul-celeste, três estrepes na parte superior do escudo sobre uma faixa. Nasceu em 1846”. Está com quarenta e um anos, maduro para se casar. Foi Subsecretário das Colônias em uma das últimas administrações. O Duque, seu pai, foi Secretário do Exterior. Herdaram sangue dos Platagenet diretamente e dos Tudor pelo lado materno. Ha! Não há nada muito instrutivo em tudo isso. Acho que tenho de apelar para você, Watson, para algo mais sólido.

     Não há problema em encontrar o que quero porque os fatos são bem recentes e o assunto me impressionou. Não mencionei a você porque sabia que estava investigando um assunto e não gosta que outras questões interfiram.

     - Ali, está se referindo àquele pequeno problema do caminhão de mudança de Grosvenor Square - Isso já foi resolvido, embora fosse evidente desde o início. Por favor, dê-me o resultado de sua pesquisa nos jornais.

     - Aqui está a primeira notícia que encontrei, na coluna pessoal do Moming Post e datada, como vê, de umas semanas atrás. “Foi contratado o casamento que, se os boatos estiverem certos, realizar-se-á muito breve, entre Lorde Robert St. Simon, segundo filho do Duque de Balmoral, e a Srta. Hatty Doran, filha única de Aloysius Doran, de São Francisco, Califórnia”. É só.

     - Breve e sucinto - comentou Holmes, estendendo as pernas longas e finas para o fogo.

     - Saiu um parágrafo ampliando isso em um dos jornais sociais na mesma semana. Ali, está aqui. “Breve haverá um pedido de proteção no mercado de casamentos, pois o princípio atual de comércio livre está prejudicando nosso produto nacional. Urna por uma a direção das casas nobres da Grã-Bretanha está passando às mãos de nossa lindas primas do outro lado do Atlântico. A semana passada adicionou mais um à lista de prêmios que foram arrebatados por essas encantadoras invasoras. Lorde St. Simon, que demonstrou por mais de vinte anos estar à prova das setas do pequeno deus, anunciou definitivamente seu próximo casamento com a Srta. Hatty Doran, a fascinante filha de um milionário da Califórnia. A Srta. Doran, cuja figura graciosa e rosto impressionante atraíram muita atenção nas festividades de Westbury House, é filha única e dizem que seu dote será em excesso de um milhão, com mais expectativas no futuro. Como é sabido que o Duque de Balmoral foi forçado a vender seus quadros nos últimos anos e como Lorde St. Símon não tem nenhuma propriedade, exceto a pequena quinta de Birchmoor, é óbvio que a herdeira californiana não é a única a ganhar com uma aliança que permitirá que ela faça a transição fácil e comum, nesses dias, de uma dama republicana para um título de nobresa inglesa”.

     - Mais alguma coisa? - perguntou Holmes, bocejando.

     - Sim, multa. Há outra notícia no Morning Post dizendo que o casamento seria muito quieto, na igreja de St. George, Hanover Square, que só meia dúzia de amigos íntimos eram convidados e que o grupo iria para a casa mobiliada em Lancaster Gate, alugada pelo Sr. Aloysius Doran. Dois dias depois, isto é, quarta-feira passada, há umas poucas linhas dizendo que o casamento 9e realizara e a lua-de-mel seria na propriedade de Lorde Backwater, perto de Petersfield. Essas foram as notícias antes do desaparecimento.

     - Antes do quê? - perguntou Holmes, espantado.

     - Da moça desaparecer.

     - Quando foi que desapareceu?

     - No almoço após o casamento.

     - Realmente? Isso está ficando muito mais interessante do que parecia. Bastante dramático, até.

     É. Achei que era um pouco fora do comum.

     É freqüente desaparecerem antes da cerimônia e ocasionalmente durante a lua-de-mel, mas não me lembro de nenhum caso corno esse. Por favor, dê-me todos os detalhes.

     - Devo avisá-lo que são muito incompletos.

     - Talvez possamos completá-los.

     - Foi tudo relatado em uma única notícia do jornal da manhã de ontem, que vou ler para você. A manchete é: “Ocorrência Singular em Casamento Elegante”.

     - “A família de Lorde Robert St. Simon está profundamente consternada com os episódios estranhos e dolorosos que ocorreram com relação a seu casamento. A cerimônia, conforme anúncio breve nos jornais de ontem, teve lugar na manhã anterior, mas somente agora foi possível confirmar os estranhos rumores que correm tão persistentemente. Apesar dos esforços de amigos para abafar a questão, a atenção do público foi tão despertada que de nada adianta fingir ignorar o que é agora assunto discutido em toda parte”.

     - “A cerimônia na igreja de St. George em Hanover Square foi muito simples, com a presença somente do pai da noiva, Sr. Aloysius Doran, a Duquesa de Balmoral, Lorde Backwater, Lorde Eustace e Lady Clara St. Simon (o irmão mais moço e a irmã do noivo) e Lady Alicia Whittington. O casal e convidados, após a cerimônia, dirigiram-se à casa do Sr. Aloysius Doran em Lancaster Gate, onde seria servido o almoço. Parece que houve uma confusão causada por uma mulher, cujo nome não é sabido, que tentou forçar a entrada na casa, alegando que tinha uma ligação qualquer com Lorde St. Simon. O mordomo e o lacaio só conseguiram expulsá-la depois de urna cena prolongada e desagradável. A noiva, que felizmente entrara em casa antes dessa inoportuna interrupção, sentara à mesa com os convidados e de repente se queixara de mal-estar, deixando a mesa e se retirando para o quarto. Quando sua ausência se prolongou e começaram os comentários, seu pai foi ver o que acontecia e soube pela empregada que ela fora rapidamente ao quarto, pegara um casaco e um chapéu e saíra às pressas. Um dos lacaios declarou que vira uma senhora sair de casa de casaco e chapéu, mas não acreditou que fosse sua patroa, pois pensava que ela estava com os convidados. Quando verificou que a filha desaparecera, o Sr. Aloysius Doran, juntamente com o noivo, comunicou-se imediatamente com a polícia e extensas investigações estão sendo efetuadas que provavelmente resultarão em um esclarecimento rápido desse mistério. Até uma hora avançada à noite passada, entretanto, nada se sabia sobre o paradeiro da moça desaparecida. Fala-se em possibilidade de um crime e há boatos de que a polícia prendeu a mulher que causara o distúrbio, acreditando que, por ciúme ou qualquer outra razão, pode estar ligada ao estranho desaparecimento da noiva”.

     - Só isso?

     - Só mais um pequeno item em outro jornal da manhã, que é bem sugestivo.

     - E qual é?

     - Que a Srta. Flora Millar, a mulher que causou o distúrbio, foi realmente presa. Consta que foi dançarina no Allegro e que conhecia o noivo há vários anos. Não há mais nenhum detalhe e o caso está agora em suas mãos.

     - E parece ser extremamente interessante. Não o teria perdido por coisa alguma desse mundo. Mas a campainha está tocando, Watson, e o relógio marca uns minutos depois das quatro, portanto deve ser o nosso nobre cliente. Nem pense em ir embora, Watson, pois prefiro mil vezes ter uma testemunha, nem que seja só para checar minha própria memória.

     - Lorde Robert St. Simon - anunciou o criado, abrindo a porta. Entrou um cavalheiro de rosto agradável e educado, pálido e com um nariz imponente, algo de petulante na curva da boca e o olhar firme de um homem acostumado a comandar e ser obedecido. Tinha uma maneira viva e animada, mas a aparência em geral era de mais idade, pois os ombros eram um pouco curvos e os joelhos dobravam ligeiramente ao andar. O cabelo, também, quando tirou o chapéu de abas viradas, estava grisalho ao redor do rosto e ralo no topo da cabeça. As vestimentas apuradas chegavam quase ao exagero: colarinho alto, sobrecasaca preta, colete branco, luvas amarelas, sapatos de verniz e polainas claras. Avançou lentamente na sala, virando a cabeça de um lado para o outro e balançando na mão direita o cordão que prendia o pinceriê de ouro.

     - Boa tarde, Lorde St. Simon - disse Holmes, levantando e fazendo um cumprimento. - Por favor, sente-se naquela poltrona. Este é meu amigo e colega, Dr. Watson. Chegue-se mais perto da lareira e vamos conversar.

     - É um assunto muito doloroso para mim, como pode facilmente imaginar, Sr. Holmes. Estou profundamente magoado. Soube que o senhor já lidou com vários assuntos delicados da mesma natureza, embora duvide que tenham sido da mesma classe social.

     - Não, foram de classe mais alta.

     - Como?

     - Meu último cliente da mesma natureza foi um rei.

     - Oh! Não tinha nenhuma idéia. Que rei?

     - O rei da Escandinávia.

     - O quê! Ele perdeu a esposa?

     - O senhor deve compreender - disse Holmes com suavidade - que trato os assuntos de meus outros clientes com a mesma discrição que prometo ao senhor.

     - Claro! Está certo! Está certo! Por favor me perdoe. Quanto ao meu caso, estou pronto a lhe dar todas as informações que possam lhe ajudar a formar uma opinião.

     - Obrigado. Já estou a par do que saiu nos jornais, e nada mais. Presumo que a imprensa está correta. Esse artigo, por exemplo, sobre o desaparecimento da noiva,

     Lorde St. Simon lançou os olhos no artigo. - Sim, está correto, até onde vai.

     - Mas preciso de muito mais antes de poder formar uma opinião. Acho que poderei chegar aos fatos mais rapidamente se lhe fizer perguntas.

     - Por favor, prossiga.

     - Quando conheceu a Srta. Hatty Doran?

     - Em São Francisco, um ano atrás.

     - Estava viajando pelos Estados Unidos?

     - Sim.

     - Ficou noivo, então?

     - Não.

     - Mas ficaram amigos?

     - Achava sua companhia divertida e ela sabia disso.

     - O pai dela é muito rico?

     - Dizem que é o homem mais rico na costa do Pacífico.

     - Como foi que ele ganhou dinheiro?

     - Em mineração. Há poucos anos, não tinha nada. Então encontrou ouro, fez investimentos e enriqueceu rapidamente.

     - Bem, qual sua impressão pessoal sobre o caráter da jovem... de sua esposa?

     O nobre balançou o pincenê nervosamente e fitou a lareira. - Sabe, Sr. Holmes, minha esposa tinha vinte anos quando o pai ficou rico. Até então, vivia no acampamento da mina, vagava pelos bosques e montanhas e sua educação velo mais da natureza do que de uma sala de aulas. Ela é uma menina traquinas, com uma personalidade forte, livre e selvagem, liberada de qualquer espécie de tradições. É impetuosa... vulcânica, deveria dizer. Toma uma decisão rapidamente e age sem o menor medo. Por outro lado, ter-lhe-ia dado o nome que tenho a honra de possuir - tossiu discretamente - se não achasse que, no fundo, era uma mulher nobre. Acredito que seja capaz de se sacrificar heroicamente e que qualquer coisa desonesta lhe seria profundamente repugnante.

     - Tem uma fotografia dela?

     - Trouxe isso comigo. - Abriu um medalhão e mostrou-nos o rosto de uma mulher muito linda. Não era uma fotografia e sim uma miniatura em marfim e o artista conseguira transmitir o efeito do cabelo negro lustroso, os grandes olhos escuros e os lábios encantadores. Holmes contemplou-a por muito tempo, com ar grave. Depois fechou o medalhão e devolveu-o a Lorde St. Simon.

     A moça veio a Londres, então, e se encontraram novamente?

     - Sim, o pai a trouxe para tomar parte nessa última temporada social. Encontrei-a várias vezes, fiquei noivo dela e agora nos casamos.

     - Trouxe consigo, pelo que soube, um dote considerável.

     - Moderadamente. Não mais do que é comum em minha família.

     - E esse dote, naturalmente, fica com o senhor, já que o casamento é um feito de compensamento?

     - Realmente, ainda não indaguei sobre esse assunto. - Muito natural. O senhor viu a Srta. Doran na véspera do casamento? - sim. - Ela estava bem, alegre? - Muito bem. Falou longamente sobre o que íamos fazer no futuro. - Curioso. Isso é muito interessante. E quanto à manhã do dia do casamento.

     - Estava muito animada'.. isto é, pelo menos até depois da cerimônia. - E notou alguma mudança, então?

     - Bem, para dizer a verdade, notei então os primeiros sinais, que já conhecia, de que estava ficando um pouco mal-humorada. Mas foi um incidente muito trivial e não pode ter nada a ver com o caso.

     - Gostaria que me contasse, apesar disso.

     - Olhe, é muito infantil. Ela deixou cair o buquê de noiva quando saíamos da igreja. Estávamos passando por um banco e o buquê caiu nele. Demorou um instante, mas o cavalheiro que estava sentado no banco entregou-lhe o buquê, que parecia intato. Mas quando disse qualquer coisa a ela, respondeu-me abruptamente. E no carro, a caminho de casa, parecia estar absurdamente agitada com esse incidente insignificante.

     - Ali, sim? Disse que o cavalheiro estava sentado no banco. Então havia outras pessoas presentes, que não os convidados?

     - Ali, sim. É impossível evitar isso quando a igreja está aberta.

     - Esse cavalheiro não era um amigo de sua esposa?

     - Não, não. Chamei-o de cavalheiro por mera cortesia, mas era uma pessoa muito comum. Não reparei muito nele. Mas realmente acho que nos estamos desviando do assunto.

     - Então Lady St. Simon voltou do casamento menos alegre do que antes. O que fez quando entrou novamente em casa de seu pai?

     - Eu a vi conversando com a empregada.

     - E quem é sua empregada?

     - Seu nome é Alice. É americana e veio da Califórnia com ela.

     - Uma criada pessoal?

     - Sim, e me parecia que tomava muitas liberdades. Mas é claro que na América essas coisas são muito diferentes.

     - Quanto tempo ficou falando com essa Alice?

     - Ali, uns minutos. Não prestei atenção, estava pensando em outras

     - Não ouviu o que estavam falando?

     - Lady St. Simon disse qualquer coisa sobre “apossar-se das terra”. Usava muito linguagem de mineração. Não tenho a menor idéia do que queria dizer.

     - A gíria americana às vezes é muito expressiva. E o que fez sua esposa quando acabou de falar com a criada?

     - Entrou na sala de almoço.

     - Em seu braço?

     - Não, sozinha. Era muito independente nessas pequenas coisas. Quando estávamos sentados uns dez minutos levantou-se de repente, murmurou umas desculpas e saiu da sala. E não voltou.

     - Mas essa empregada, Alice, pelo que entendi, declarou que ela foi ao quarto, cobriu o vestido de noiva com um longo casaco, botou um chapéu e saiu da casa.

     - Exatamente. E foi depois vista andando em Hyde Park em companhia de Flora Millar, uma mulher que está agora presa e que já havia criado um distúrbio em casa do Sr. Doran naquela manhã.

     - Ali, sim. Gostaria de mais detalhes sobre essa moça e suas relações com ela.

     Lorde St. Simon encolheu os ombros e levantou as sobrancelhas. - Somos amigos por muitos anos. Devo dizer, amigos íntimos. Ela costumava dançar no Allegro. Fui bastante generoso com ela, e não tem razão de reclamar, mas o senhor sabe como são as mulheres, Sr. Holmes. Flora era uma pessoa encantadora, mas tinha um gênio violento e era muito dedicada a mim. Escreveu cartas horrorosas quando soube que ia me casar e, para dizer a verdade, a razão por que quis um casamento tão simples foi porque temi que houvesse um escândalo na igreja. Ela foi até a porta do Sr. Doran logo que chegamos da igreja e tentou forçar a entrada, dizendo coisas horríveis de minha esposa e chegando até a ameaçá-la, mas eu previra a possibilidade de suceder algo semelhante e dera instruções aos empregados, que logo conseguiram mandá-la embora. Ficou quieta quando viu que não adiantava fazer escândalo.

     - Sua esposa ouviu isso?

     - Não, graças a Deus.

     - E foi vista andando com essa mesma mulher depois disso?

     - Sim. É isso que o Sr. Lestrade, da Scotland Yard, considera muito grave. Acha que Flora atraiu minha esposa e armou alguma cilada horrível para ela.

     - Bem, é possível.

     - O senhor concorda, então?

     - Não disse que fosse provável. E o senhor concorda?

     - Acho que Flora não machucaria uma mosca.

     O ciúme é capaz de transformar as pessoas. E qual é sua teoria quanto ao que sucedeu?

     - Bem, na verdade vim aqui em busca de uma teoria e não para apresentar uma. Dei-lhe todos os fatos. Já que me pergunta, entretanto, posso dizer que me ocorreu a possibilidade de que toda essa excitação e a consciência de que havia dado um gigantesco passo social causaram algum distúrbio nervoso em minha esposa.

     - Em resumo, quer dizer que ela ficou subitamente louca?

     - Bem, quando penso que ela deu as costas ... não vou dizer a mim, mas a tanto que muitas pessoas aspiraram em vão ... não posso. explicar os acontecimentos de nenhuma outra maneira.

     - Essa, também, não deixa de ser uma hipótese - disse Holmes, sorrindo. - E agora, Lorde St. Simon, creio que tenho quase todos os fatos. Posso perguntar se estavam sentados à mesa de forma a poder ver pela janela?

     - Podíamos ver o outro lado da rua e o parque.

     - Muito bem. Creio que não é preciso detê-lo por mais tempo. Entrarei em contato com o senhor.

     - Se tiver a sorte de resolver esse caso - disse nosso cliente, erguendo-se.

     - Já o resolvi.

     - Hein? O que disse?

     - Disse que já o resolvi.

     - Então onde está minha esposa?

     - Isso é um detalhe que lhe darei muito em breve.

     lorde St. Simon sacudiu a cabeça. - Receio que seja preciso cabeças mais sábias que a sua e a minha - observou e, fazendo um cumprimento majestoso e antiquado, retirou-se.

     Muita bondade de Lorde St. Simon dar-me a honra de colocar minha cabeça no mesmo nível da sua - disse Sherlock Holmes, rindo. - Acho que vou tomar um uísque com soda e fumar um charuto depois de todas essas perguntas. Já chegara às minhas conclusões sobre esse caso antes de nosso cliente entrar nessa sala.

     - Meu caro Holmes!

     - Tenho anotações sobre vários casos semelhantes, embora nenhum fosse tão rápido, como já observei. Esse exame todo serviu para transformar minha hipótese em certeza. Provas circunstanciais são às vezes muito convincentes, como quando você encontra uma truta no leite, para citar o exemplo de Thoreau.

     - Mas eu ouvi tudo que você ouviu.

     - Sem ter, entretanto, o conhecimento de casos anteriores que tanto me ajuda. Houve um caso paralelo em Aberdeen alguns anos atrás e algo em linhas muito semelhantes em Munique um ano depois da guerra franco-prussiaria. É um desses casos... mas, veja, aqui vem Ustrade! Boa tarde, Lestrade! Pegue um copo no aparador e há charutos naquela caixa.

     O detetive oficial vestia urna jaqueta grossa e uma echarpe que lhe davam decididamente uma aparência náutica e carregava na mão uma sacola de lona preta. Com um ligeiro cumprimento de cabeça, sentou-se e acendeu o charuto que lhe fora oferecido.

     - O que está acontecendo? - perguntou Holmes, com os olhos brilhando. - Não parece muito contente.

     - E não estou. E esse caso infernal do casamento St. Simion. Não tem nem pé nem cabeça.

     - Realmente! Você me surpreende.

     - Quem já ouviu uma história tão confusa? Todos os indícios escapam por entre meus dedos. Trabalhei nisso o dia todo.

     - E parece que se molhou muito - disse Holmes, pondo a mão na manga da jaqueta. É, estávamos dragando o rio Serpentine. Meu Deus do céu, para quê? Em busca do corpo de Lady St. Simon.

     Sherlock Holmes recostou-se na poltrona e deu uma gargalhada.

     - Dragaram também a bacia do chafariz de Trafalgat Square? - perguntou, ainda rindo.

     - Por quê? O que quer dizer com isso?

     - Porque você tem a mesma probabilidade de encontrar a moça lá que

     Lestrade lançou um olhar zangado a meu companheiro, - Suponho que você sabe, de tudo - resmungou.

     - Bem, acabei de ouvir a história, mas já cheguei a uma conclusão.

     - Ali, é mesmo! Então pensa que o rio não tem nada a ver com o assunto?

     - Acho muito pouco provável.

     - Então talvez possa ter a bondade de explicar como é que encontramos isso no rio? - Abriu a sacola enquanto falava e jogou no chão um vestido de noiva de seda, um par de sapatos de cetim branco e uma coroa e véu de noiva, tudo desbotado e encharcado de água. - Veja só - disse, colocando uma aliança nova em cima da pilha. - Aí está uma noz para o senhor quebrar, Sr. Holmes.

     - Ali, realmente - disse meu amigo, soprando anéis de fumaça no ar. - Tirou isso tudo do rio?

     - Não. Foi tudo encontrado flutuando perto da margem por um guarda florestal. Foram identificadas como sendo as roupas dela e me parece que 9e as roupas estavam lá, o corpo estaria por perto.

     - Seguindo seu raciocínio brilhante, o corpo de qualquer um deve ser achado perto de seu guarda-roupa. E por favor diga-me onde pretende com isso?

     A algum indício ligando Flora Millar ao desaparecimento da moça.

     - Receio que isso seja um pouco difícil. - É mesmo? - exclamou Lestrade, com aspereza. - E eu receio, Sr. Holmes, que não seja muito prático com suas deduções e suas hipóteses. Já cometeu dois erros em dois minutos.. Esse vestido compromete a Srta. Flora.

     - Como?

     - Há um bolso no vestido. No bolso há uma carteira. Nessa carteira um bilhete. E aqui está o bilhete. - Bateu com o papel na mesa à sua frente. - Ouça só isso: “Você me verá quando tudo estiver pronto. Venha imediatamente. F. H. W'. A minha teoria, desde o início, foi que Lády St. Simon foi levada por um ardil de Flora Millar e que esta, certamente com cúmplices, é responsável por seu desaparecimento. Aqui, assinado com suas iniciais, está o bilhete que, sem dúvida, foi enfiado sorrateiramente em sua porta, e que a levou a se entregar a eles.

     - Muito bem, Lestrade - disse Holmes, com um sorriso. - Você realmente está indo muito bem. Deixe-me ver. - Pegou o papel desinteressadamente, mas ficou logo alerta e soltou urna exclamação de prazer.

     - Isso é realmente importante - disse.

     - Ali, acha mesmo?

     - Extremamente. Dou-lhe os parabéns.

     Ustrade ficou de pé e se inclinou para olhar, triunfante.

     - Mas olhe só! - exclamou. - Está olhando o lado errado.

     - Pelo contrário, este é o lado certo.

     - O lado certo? Está louco! É aqui que está o bilhete escrito a lápis, deste lado.

     - E desse é o que parece ser um pedaço de uma conta de hotel, que me

     interessa profundamente.

     - Não tem nada de interessante nisso. Já olhei antes - disse Lestrade. - “4 de outubro, quarto 8 xelins, café da manhã 2 xelins e 6 penies, coquetel 1xelim, almoço 2 xelins e 6 penies, copo de xerez 8 penies”. Não vejo nada de importante nisso.

     - Provavelmente não. Mas é muito importante, assim mesmo. Quanto ao bilhete, também é importante, ou pelo menos as iniciais o são, portanto, humilhação; dou-lhe parabéns novamente.

     - Já perdi tempo demais - disse Lestrade, de pé. - Acredito em trabalho e não em sentar em frente da lareira elaborando lindas teorias. Uma boa tarde para o senhor, Sr. Holmes, e vamos ver qual de nós resolve esse problema. Pegou as roupas, meteu-as na sacola o foi em direção à porta.

     - Apenas uma sugestão, Lestrade - disse Holmes, arrastando as palavras, antes que sumisse seu rival. - Vou-lhe dar a verdadeira solução. Lddy St.Simon é um mito. Não existe e nunca existiu essa pessoa.

     Lestrade olhou meu companheiro com compaixão. Virou-se depois para mim, bateu na testa três vezes, sacudiu solenemente a cabeça e saiu depressa.

     Mal havia fechado a porta atrás de si e Holmes já se levantara e vestira o sobretudo. - Tem alguma razão em falar de trabalho - comentou. - Acho, Watson, que vou deixar você com seus jornais por um pouco.

     Passava das cinco horas quando Sherlock Holmes saiu, mas não tive ocasião de me sentir só, pois dentro de uma hora chegou um homem com uma enorme caixa chata. Abriu-a com o auxílio de um rapazola que viera junto e, para minha grande surpresa, uma ceia gastronômica começou a ser arrumada na modesta mesa de mogno de nosso alojamento. Um par de galinhas-d'angola, um faisão, uma torta de pâté de foie gras, com um grupo de garrafas vetustas e poeirentas. Após arrumar essas as os dois visitantes sumiram, como o gênio das Noites da Arábia, sem qualquer explicação, exceto que tudo estava pago e tinha sido encomendado para entrega nesse endereço.

     Pouco antes de nove horas Sherlock Holmes entrou, animado. As feições estavam graves, mas os olhos brilhavam, o que me fez pensar que não tinha ficado desapontado em suas conclusões.

     - Trouxeram a ceia - disse, esfregando as mãos.

     - Parece que está esperando visitas. Puseram a mesa para cinco pessoas.

     - Sim, acho que vamos ter companhia - disse. - Estou surpreso que Lorde St. Simon não tenha chegado ainda. Ali! Acho que estou ouvindo seus passos na escada.

     Era realmente nosso visitante da manhã que entrou apressadamente, balançando o cordão do pincenê mais vigorosamente que nunca, e com um ar muito perturbado nas feições aristocráticas.

     - Meu mensageiro o encontrou, então? - perguntou Holmes.

     - Sim, e devo confessar que o conteúdo muito me espantou. Está seguro do que disse?

     - Absolutamente.

     Lorde St. Simon caiu em uma cadeira e passou a mão pela testa.

     - O que dirá o Duque - murmurou - quando souber que um membro da família sofreu tal humilhação?

     - Foi mero acidente. Não concordo que haja havido nenhuma humi-

     - Ali, olha essas coisas de outro ponto de vista.

     - Não vejo como ninguém seja culpado. Não posso imaginar como a moça poderia ter agido de outra forma, embora seja lastimável que tenha usado métodos tão abruptos. Mas como não tem mãe, não havia ninguém para aconselhá-la nessa crise.

     - Foi uma ofensa, senhor, uma ofensa pública - disse St. Simon, batendo com os dedos na mesa.

     - Deve ser tolerante com essa pobre moça, colocada em situação tão difícil.

     Não serei tolerante. Estou muito zangado, realmente, e fui vergonhosarnente usado.

     - Acho que ouvi a campainha - disse Holmes. - É, ouço passos na entrada. Se não posso persuadi-lo a ser leniente nesse assunto, Lorde St. Simon, trouxe aqui um defensor que talvez seja mais bem-sucedido. - Abriu a porta e fez entrar uma dama e um cavalheiro. - Lorde St. Simon - disse - permita-me apresentar-lhe o Sr. e a Sra. Francis Hay Moulton. A senhora, acho eu, o senhor já conhece.

     À vista dos recém-chegados nosso cliente ficara de pé, muito empertigado, com os olhos baixos e uma das mãos enfiadas no peito da sobrecasaca, a verdadeira imagem da dignidade ofendida. A senhora dera um passo em sua direção e estendera a mão, mas ele continuara de olhos baixos. Tanto melhor para ele, talvez, pois o rosto suplicante dela era difícil de resistir.

     - Você está zangado, Robert: - ela disse. - Bem, acho que tem toda a razão.

     - Tenha a bondade de não pedir desculpas a mim - disse Lorde St. Simon amargamente.

     - Ali, sim, sei que o tratei muito mal, e devia ter falado com você antes de partir. Mas estava muito perturbada e desde que vi Frank não sabia o que estava fazendo ou dizendo. Foi um milagre que não caísse no chão desmaiada lá mesmo em frente ao altar.

     - Talvez, Sra. Moulton, preferisse que meu amigo e eu saíssemos da sala enquanto explica tudo?

     - Se é que posso dar minha opinião, - disse o cavalheiro desconhecido -já têm havido segredos demais nesse negócio. Por mim, gostaria que toda a Europa e a América ouvissem tudo. - Era um homem pequeno, musculoso, queimado do sol, com feições agudas e uma maneira alerta.

     - Então contarei nossa história agora mesmo - disse a senhora. - Este aqui é o Frank e nos encontramos em 1881, na mina de McQuire, perto das Montanhas Rochosas, onde o Pai estava trabalhando nas terras de mineração que arrendara. Frank e eu ficamos noivos, mas um dia o Pai encontrou um veio muito bom e ficou rico, enquanto que o pobre Frank tinha uma concessão que não deu em nada. Quanto mais rico o Pai ficava, mais pobre ficava o Frank. Finalmente o Pai não quis mais ouvir falar de nosso noivado e me levou embora para São Francisco. Frank não desistiu, entretanto, e me seguiu até lá, e nós nos víamos sem meu pai saber de nada. Ficaria muito zangado w soubesse, então nos escondíamos dele. Frank disse que iria embora fazer sua fortuna e não voltaria para me buscar enquanto não tivesse tanto dinheiro quanto meu pai. Então prometi que esperaria por ele para sempre e que não me casaria com ninguém mais enquanto ele vivesse. - “Então por que não nos casamos agora mesmo”, ele disse, “e aí ficarei o de você. E direi que sou seu marido enquanto não voltar para buscá-la”. Bem, conversamos um pouco e ele tinha, arrumado tudo tão direitinho, com o sacerdote pronto, à espera, que nos casamos ali mesmo. E então Frank foi embora em busca da fortuna e voltei para meu pai.

     - A próxima notícia que tive era de que Frank estava em Montana e depois foi trabalhar em minas no Arizona e depois disso tive notícias do Novo México. Depois veio um artigo longo no jornal sobre um acampamento de mineiros que havia sido atacado pelos índios apache e o nome do Frank estava na lista dos que haviam sido mortos. Desmaiei quando li isso e fiquei muito doente durante meses. O Pai pensou que tinha alguma doença rara e me levou a todos os médicos de São Francisco. Não tive nenhuma notícia por mais de um ano, e nunca duvidei que Frank estivesse realmente morto. Então Lorde St. Simon veio a São Francisco e nós viemos a Londres e arranjaram esse casamento, e meu pai ficou muito contente, mas eu sentia todo o tempo que nenhum homem neste mundo poderia tomar o lugar do meu pobre Frank em meu coração.

     - Mesmo assim, se casasse com Lorde St. Simon, claro que teria cumprido meu dever com ele. Não se pode ordenar o amor, mas os atos sim. Fui até o altar com ele decidida a ser a melhor esposa possível. Mas podem imaginar o que senti quando entrei na igreja e vi Frank olhando para mim de um dos bancos. Primeiro pensei que fosse um fantasma, mas quando olhei de novo, ele ainda estava lá, com uma espécie de interrogação nos olhos, como se me estivesse perguntando se estava contente ou triste de vê-lo. Foi um milagre eu não ter desmaiado. Só sei que tudo estava virando e as palavras do sacerdote eram como um zumbido de abelhas em meus ouvidos. Não sabia o que fazer. Deveria interromper a cerimônia e fazer uma cena na igreja? Olhei novamente para ele e parecia que sabia o que eu estava pensando, pois ergueu um dedo aos lábios fazendo sinal de silêncio. Depois vi que rabiscava em um pedaço de papel e sabia que estava escrevendo para mim. Quando passei pelo banco dele ao sair da igreja, deixei cair meu buquê e ele enfiou o bilhete em minha mão quando devolveu as flores. Era uma linha só, pedindo que me encontrasse com ele quando me desse o sinal. Claro que nunca duvidei por um instante que meu primeiro dever era para com ele e decidi fazer exatamente o que ele mandasse.

     - Quando voltei a casa contei à minha criada, que o conhecera na Califórnia, e sempre gostara muito dele. Mandei que não dissesse nada a ninguém, mas que arrumasse umas roupas e deixasse meu casaco e chapéu a mão. Sei que devia ter falado com Lorde St. Simon, mas era extremamente difícil em frente de sua mãe e todos os ilustres convidados. Resolvi fugir e contar tudo depois. Não fiquei sentada nem dez minutos à mesa quando vi Frank pela janela, do outro lado da rua. Fez sinal para mim e começou a andar em direção ao parque. Fui até o quarto, vesti o casaco e fui atrás dele. Uma mulher velo atrás de mim, falando qualquer coisa sobre Lorde St. Simon (parece, pelo pouco que ouvi, que ele tinha um segredo também antes do casarnento), mas consegui me livrar dela e logo alcancei Frank. Tomamos um carro juntos e fomos para um quarto que ele alugara em Gordon Square, e isso foi meu verdadeiro casamento depois de todos esses anos de espera. Frank fora prisioneiro dos apache e fugira, fora para São Francisco, descobrira que eu o considerava morto e tinha ido para a Inglaterra, seguiu-me até aqui e me encontrou na manhã do meu casamento.

     - Vi no jornal - explicou o americano. - Dava o nome dela e a igreja, mas não dizia onde ela morava.

     - Conversamos então sobre o que deveríamos fazer e Frank era a favor de contar tudo, mas eu estava tão envergonhada que só queria desaparecer e nunca mais ver nenhum deles, só mandar umas linhas para o Pai para dizer que estava viva. Era horrível para mim pensar em todos aqueles lordes e ladies sentados em volta da mesa de almoço, esperando que eu voltasse. Então Frank pegou minhas roupas e tudo, fez um pacote e, para que não servisse de pista, jogou em algum lugar onde ninguém ia encontrá-lo. Era provável que estivéssemos a caminho de Paris amanhã, mas esse cavalheiro, o Sr. Holmes, veio nos procurar esta tarde, embora não consiga imaginar como ele nos encontrou, e mostrou claramente e com muita bondade que eu estava errada e Frank tinha razão, e que devíamos contar toda a verdade. Ofereceu-nos a oportunidade de falar com Lorde St. Simon sozinho, e então viemos a seus aposentos imediatamente. Agora, Robert, você ouviu a história toda e sinto muito se o magoei, mas espero que você não fique muito sentido comigo.

     Lorde St. Simon não relaxara sua atitude rígida, mas ouvira com a testa franzida e os lábios comprimidos toda essa longa narrativa.

     - Perdoe-me, - disse - mas não é meu costume discutir assuntos pessoais íntimos em público.

     - Então não vai me perdoar? Não vai apertar minha mão antes que eu me vá?

     - Oh, claro, se isso lhe dá prazer. - Estendeu a mão e apertou friamente a mão que ela lhe estendeu.

     - Esperava - sugeriu Holmes - que nos acompanhasse em uma pequena ceia.

     - Acho que está pedindo demais - respondeu o nobre. - Posso ser forçado a aceitar esses recentes acontecimentos, mas não devem esperar que os comemore. Acho que, com sua permissão, vou me retirar agora, desejando a todos uma muito boa-noite. - Incluiu todos no cumprimento de cabeça e saiu da sala.

     - Então espero que pelo menos o casal me honre com sua companhia - disse Sherlock Holmes. - E sempre um prazer conhecer um americano, Sr. Moulton, pois sou uma pessoa que acredita que a loucura de um monarca e a idiotice de um Ministro em anos passados não evitará que nossos filhos sejam algum dia cidadãos do mesmo país debaixo de uma bandeira que será uma combinação da inglesa e da americana.

     - Esse caso foi bem interessante - disse Holmes quando os visitantes haviam saído. - Serve para demonstrar claramente como a explicação de uni mistério pode ser muito simples, mesmo quando de início pareça inexplicável. Nada podia ser mais inexplicável. Nada podia ser mais natural que a seqüência de acontecimentos conforme narrada por essa senhora, e nada mais estranho que o resultado quando visto, por exemplo, pelo Sr. Lestrade da Scotland Yard.

     - Você não estava errado, então?

     - Desde o princípio dois fatos foram muito óbvios para mim. Um era que a moça estava disposta a se submeter à cerimônia de casamento, o outro que se arrependera disso poucos minutos após voltar a casa. É evidente que alguma coisa tinha acontecido durante a manhã para fazê-la mudar de idéia. O que poderia ter sido? Não poderia ter falado com ninguém quando estava fora de casa, pois estava acompanhada pelo noivo. Então teria visto alguém? Se tivesse teria sido alguém da América, pois tinha passado tão pouco tempo neste país que não poderia ter permitido que ninguém tivesse adquirido uma importância tão grande que bastava vê-lo para mudar seus planos completamente. Veja que já chegamos, por um processo de exclusão, à idéia de que ela deveria ter visto um americano. Então quem poderia ser esse americano? E por que teria tanta influência sobre ela? Poderia ser amante; poderia ser um marido. Sua juventude havia, eu sabia, sido passada em cenas rudes e sob condições estranhas. Já havia chegado a esse ponto antes de ouvir a narrativa de Lorde St. Simon. Quando nos: contou sobre o homem no banco da igreja, da mudança no estado de espírito da noiva, da maneira tão óbvia de conseguir passar um bilhete, deixando cair o buquê, da conversa com a criada confidencial e a alusão muito significativa a se apossar de terras, que em linguagem dos mineiros quer dizer tomar posse daquilo a que outra pessoa já tem direito, a situação ficou absolutamente clara. Ela fugira com um homem, e esse homem era um amante ou um marido anterior, e as probabilidades eram a favor dessa última hipótese.

     - E como foi que os encontrou?

     - Talvez tivesse sido difícil, mas nosso amigo Lestrade tinha essa informação nas mãos e não lhe deu valor. As iniciais eram, claro, de grande importãncia, mas mais valioso ainda era saber que nessa semana ele pagara a conta em um dos hotéis mais exclusivos de Londres.

     - Corno sabia que era exclusivo?

     - Pelos preços exclusivos. Oito xelins por um quarto e oito penies por um copo de xerez mostravam que se tratava de um dos hotéis mais caros. Não há muitos em Londres que cobram esses preços. No segundo que visitei na Avenida Northumberland vi pelo registro que Francis H. Moulton, um cavalheiro americano, saíra no dia anterior e vendo os itens de sua conta encontrei exatamente os mesmos que vira na duplicata da conta. A correspondência era para ser enviada a 226 Gordon Square, por conseguinte me encaminhei para lá e tive a sorte de encontrar o casal amoroso em casa. Arrisquei dar-lhes uns conselhos paternais e lhes mostrar que seria melhor, de todos os lados, que esclarecessem sua posição ao público em geral e a Lorde St. Simon em particular. Convidei-os a se encontrar com ele aqui, e como viu, obriguei-o a comparecer.

     - Mas sem resultado nenhum - comentei. - A atitude dele não foi nada elegante.

     - Ali! Watson, - disse Holmes, sorrindo - talvez você também não fosse nada elegante se, depois de todo o trabalho de fazer a corte e se casar, você se encontrasse privado no mesmo momento de sua esposa e de uma fortuna. Acho que devemos julgar Lorde St. Simon com muita compaixão e agradecer os céus que não é provável que jamais nos encontremos na mesma situação. Puxe sua cadeira para perto e dê-me meu violino, pois nosso único problema agora é como passar essas noites sombrias de outono.

  

   A Coroa de Berilos

     - Holmes - disse uma manhã quando olhava a rua de nossa janela arredondada - tem um louco passando na rua. É uma lástima que a família dele o deixe sair sozinho.

      Meu amigo levantou-se preguiçosamente da poltrona onde reclinava e ficou junto de mim, com as mãos nos bolsos do roupão, olhando sobre meu ombro. Era uma manhã brilhante de fevereiro, fria e seca,, e a neve do dia anterior ainda cobria o chão reluzindo à luz do sol de inverno. No meio da Rua Baker havia sido mastigada pelos carros, formando uma massa escura, lamacenta, mas dos dois lados da rua e ao longo dos caminhos amontoava-se em flocos cintilantemente brancos. A calçada cinzenta havia sido limpa e raspada, mas ainda estava perigosamente escorregadia e poucas pessoas se haviam aventurado a sair. Na verdade, ninguém vinha andando da direção da Estação Metropolitana exceto esse único cavalheiro cuja conduta excêntrica atraíra minha atenção.

     Era um homem de seus cinqüenta anos, alto, cheio de corpo e imponente, com um rosto maciço, de feições acentuadas. Estava vestido em estilo sóbrio mas luxuoso, com uma sobrecasaca preta, chapéu reluzente, polainas marrons e calças cinzento-pérola muito bem talhadas. Mas seus gestos eram um contraste absurdo com a dignidade de suas roupas e feições, pois estava correndo aos arrancos, dando pulinhos de vez em quando, como um homem cansado que não está habituado a usar as pernas. Enquanto corria dessa maneira irregular, sacudia as mãos e a cabeça e contorcia o rosto em caretas extraordinárias.

     - O que há com esse homem? - perguntei. - Está olhando o número das casas.

     - Acho que está vindo para cá - disse Holmes, esfregando as mãos.

     - Aqui?

     - Sim. Creio que vem me consultar profissionalmente. Estou reconhecendo os sintomas. Ali! Não disse? - Enquanto falava, o homem chegou ofegante à nossa porta e tocou a campainha com tal força que a casa toda ressoou o clangor.

     Poucos instantes depois estava em nossa sala, ainda ofegante e gesticulando ainda, mas com um olhar tão triste e desesperado que nossos sorrisos morreram e ficamos cheios de horror e compaixão. Levou um tempo para conseguir falar, balançando o corpo e puxando os cabelos, como alguém que tivesse alcançado o limite de suas forças e estivesse prestes a ter um colapso. De repente, ficando em pé, bateu com a cabeça contra a parede com tanta força que ambos corremos para ele e o arrastamos para o centro da sala. Sherlock Holmes o empurrou na poltrona e, sentando a seu lado, deu pancadinhas; em si a mão e falou com ele em voz calma e suave, que sabia tão bem empregar.

     - Veio aqui me contar sua história, não foi? - disse. - Está muito cansado, veio tão depressa. Procure descansar um pouco e recobrar o fôlego e depois terei muito prazer em estudar qualquer problema que tenha para me contar.

     O homem ficou sentado por um minuto ou mais respirando fundo e procurando conter a emoção. Depois passou o lenço na testa, comprimiu os lábios e virou de frente para nós.

     - Naturalmente pensam que sou louco - disse.

     - Vejo que está muito abalado, que aconteceu algo muito grave - respondeu Holmes.

     - Só Deus sabe! Algo que chega a abalar minha razão de tão inesperado e tão terrível. A desgraça pública talvez pudesse encarar, embora seja um homem de caráter e reputação impecáveis. Desgraça pessoal também sucede a todos nós... mas as duas ao mesmo tempo, e de forma tão horrível, é bastante para me levar à loucura. Além disso, não sou só eu. Os mais nobres do país vão sofrer também, se não encontrarmos uma solução para esse horrível problema.

     - Por favor, controle-se, senhor - disse Holmes. - Conte-me calmamente quem é o senhor e o que aconteceu.

     - Meu nome - respondeu nosso visitante - deve ser-lhe familiar. Sou Alexander Holder, da firma banciria Holder & Stevenson, da Rua Threadneedle.

     O nome era realmente muito conhecido e pertencia ao sócio majoritári da segunda maior firma bancária privada da cidade de Londres. O que poderia ter acontecido para deixar um dos principais cidadãos da grande metrópole nesse estado lastimável? Aguardamos, cheios de curiosidade, até que, com grande esforço, ele se preparou para contar sua história.

     - Sinto que o tempo é precioso - disse - e é por isso que corri para cá quando o inspetor de polícia sugeriu que devia procurar obter sua cooperação. Vim para a Rua Baker de metrô e de lá a pé, correndo, pois vi que os carros estavam indo muito devagar, com toda essa neve. É por isso que fiquei um fôlego, pois sou um homem que não faz nenhum exercício. Estou me sentindo melhor agora e lhe vou dar os fatos o mais resumida e claramente possível.

     - Os senhores naturalmente sabem que o sucesso de uma firma bancária depende tanto de nossa habilidade em encontrar investimentos remunerativos para nossos fundos quanto da capacidade de aumentar nossos conhecimentos e o número de nossos depositantes. Uma das formas mais lucrativas de investir dinheiro é em forma de empréstimos, quando as garantias são inquestionáveis. Temos feito muito nesse campo nos últimos anos e há muitas famílias nobres a quem temos emprestado grandes quantias, usando como garantia seus quadros, bibliotecas, ou prataria.

     - Ontem pela manhã estava sentado em meu escritório no banco quando um dos empregados trouxe um cartão. Tive um sobressalto quando vi o nome, pois era... bem, talvez mesmo para os senhores seja melhor dizer somente que era um nome conhecido no mundo inteiro, um dos nomes mais altos, mais nobres, mais exaltados da Inglaterra. Fiquei assombrado com tanta honra e quando ele entrou, tentei expressar meus sentimentos, mas ele começou logo a falar de negócios com o ar de quem se quer livrar rapidamente de uma tarefa desagradável.

     - “Sr. Holder”, disse, “fui informado que o senhor tem o costume de emprestar dinheiro”.

     “A firma faz isso quando a garantia é boa”, respondi.

     “È absolutamente essencial para mim” disse, “conseguir cinqüenta mil libras imediatamente. Poderia, é claro, obter essa soma insignificante com meus amigos, mas prefiro que seja um negócio e tratar desse negócio eu mesmo. Em minha posição, o senhor há de compreender que não convém uma pessoa ficar devendo favores a ninguém”.

     - “Por quanto tempo, se me permite perguntar, vai precisar dessa quantia?” perguntei.

     - “Na próxima segunda-feira devo receber uma grande quantia que me é devida e certamente lhe pagarei então o que me adiantar agora, e mais os juros que ache de direito cobrar. Mas é absolutamente essencial que eu tenha esse dinheiro imediatamente”.

     - `feria o maior prazer de adiantar-lhe essa quantia do meu próprio bolso sem mais dizer”, eu disse, “se não fosse um pouco acima de meu alcance. Por outro lado, se for fazer isso em nome da firma, para ser justo com meu sócio devo insistir que, mesmo em seu caso, todas as precauções comerciais sejam tomadas”.

     - “Prefiro mil vezes que seja assim”, disse, levantando uma caixa de couro preto, quadrada, que depositara ao lado da cadeira. “Sem dúvida já ouviu falar da coroa de berilos?”

     - “Um dos bens públicos mais preciosos do Império”, observei.

     - “Exatamente”. Abriu o estojo e dentro, engastada em veludo macio cor-de-carne repousava a magnífica jóia a que se referira. “São trinta e nove berilos enormes”, disse, “e o preço do trabalho em ouro é incalculável. A avaliação mais baixa é o dobro do que lhe pedi. Estou pronto a lhe deixar a coroa em garantia'.

     Peguei o precioso estojo em minhas mãos e olhei um tanto perplexo da coroa para meu ilustre cliente.

     - “Duvida de seu valor?” perguntou.

     - “De maneira nenhuma. Duvido somente...”

     - “Se é correto deixá-la aqui. Pode ficar descansado quanto a isso. Nunca faria uma coisa dessas se não tivesse certeza absoluta de que dentro de quatro dias posso reavê-la. É simplesmente uma questão de tempo. A garantia é suficiente?”

     “Amplamente”.

     - 'O senhor compreende, Sr. Holder, que lhe estou dando uma grande prova da confiança que deposito no senhor, com bases em tudo que me disseram a seu respeito. Confio no senhor não só para ser discreto e não dizer uma só palavra sobre esse negócio, como também para cercar essa coroa com todas as possíveis precauções, pois é desnecessário dizer que causaria um enorme escândalo público se alguma coisa acontecesse com ela. Qualquer dano seria tão grave quanto sua perda total, pois não há no mundo inteiro berilos iguais a esses e seria totalmente impossível substituí-los. Vou deixá-la com o senhor, entretanto, com toda a confiança, e virei buscá-la pessoalmente segunda-feira de manhã'.

     - Vendo que meu cliente estava ansioso para ir, nada mais disse. Chamei o caixa e dei ordem para que pagasse a quantia de cinqüenta mil libras em notas de mil. Quando fiquei novamente sozinho, com o precioso estojo à minha frente, não pude deixar de pensar com algum receio na imensa responsabilidade que representava para mim. Não havia dúvida que, já que se tratava de um bem nacional, haveria um escândalo horrível se acontecesse qualquer coisa com a jóia. Cheguei a me arrepender de haver consentido em ficar com ela. Era tarde demais, no entanto, para mudar de idéia. Tranquei o estojo em meu cofre pessoal e voltei a meu trabalho.

     - Quando terminou o dia, achei que seria imprudente deixar uma coisa tão preciosa no escritório. Cofres de banqueiros já haviam sido arrombados no passado, por que não aconteceria o mesmo com o meu? Se isso acontecesse, em que posição terrível iria me encontrar! Decidi, por conseguinte, que nos próximos dias iria carregar o estojo comigo de um lado para outro, de modo que nunca ficasse longe de meus olhos. Tendo resolvido isso, chamei um carro e fui para minha casa em Streaffiam, carregando a jóia comigo. Só respirei livremente a levei para meus aposentos e a tranquei em uma gaveta no meu quarto de vestir.

     - Agora preciso dizer algo sobre minha casa, Sr. Holmes, pois quero que compreenda bem a situação. Meu empregado e meu lacaio dormem fora de casa, e podem ser postos de lado completamente. Tenho três empregadas que comigo há muitos anos e que são de absoluta confiança. Uma outra, Luroy Parr só trabalha para mim há alguns meses.

     Muito bonita e tem atraído muitos admiradores, que às vezes ficam rondando a casa. É o único defeito que encontrei nela, mas acredito que seja uma boa moça em todos os respeitos.

     - Isso é quanto aos empregados. Minha família, em si, é tão pequena que não levará muito tempo para descreve-la. Sou viúvo e tenho um filho único, Arthur. Ele tem sido um desgosto para mim, Sr. Holmes, um grande desgosto. Não tenho dúvidas de que a culpa é minha. Todos dizem que eu o estraguei. É muito provável que seja verdade. Quando minha querida esposa faleceu, senti que ele era tudo que me restava para amar. Não suportava ver o sorriso desaparecer de seu rosto nem por um instante. Nunca lhe neguei coisa alguma. Talvez tivesse sido melhor para nós dois se eu tivesse sido mais rigoroso, mas só queria o bem dele.

     - Naturalmente minha intenção era que ele herdasse meu negócio, mas não tinha inclinação para isso. Era muito instável, muito aloucado e, para dizer a verdade, não lhe podia confiar grandes quantias de dinheiro. Quando era ainda muito jovem, tomou-se sócio de um clube muito aristocrático onde, com suas maneiras encantadoras, logo ficou íntimo de homens com muito dinheiro e hábitos extravagantes. Aprendeu a jogar cartas com paradas muito altas e apostar em cavalos até que teve que vir a mim repetidas vezes implorando que adiantasse algum dinheiro em sua mesada para pagar as dívidas de jogo. Tentou mais de uma vez largar a companhia perigosa dessas pessoas, mas todas as vezes a influência de seu amigo, Lorde George Bumwell, foi forte bastante para trazê-lo de volta.

     - E, na verdade, não me espanto de que um homem como Lorde George Bumwell tivesse tanta influência sobre ele, pois o trouxe muitas vezes à minha casa e vi que eu mesmo mal podia resistir à fascinação dele. É mais velho que Arthur, um homem vivido, que já foi a toda parte, já viu tudo e fez tudo, de conversa brilhante e grande beleza pessoal. No entanto quando penso nele friamente, longe da magia de sua presença, tenho a certeza, observando sua maneira cínica de falar e a expressão que às vezes vejo em seus olhos, que é um homem em quem não se pode confiar. É isso que penso e minha querida Mary também, com sua intuição feminina.

     - Só falta descrever Mary. É minha sobrinha, mas quando meu irmão faleceu há cinco anos e a deixou sozinha no mundo, eu a adotei e desde então a considero minha filha. É um raio de sol em minha casa... doce, meiga, linda, uma excelente dona-de-casa, tudo que se pode querer em uma mulher. É meu braço direito. Não sei o que faria sem ela. Em uma coisa jamais me contrariou. Já duas vezes meu rapaz a pediu em casamento, pois gosta muito dela, mas das duas ela o recusou. Acho que se há alguém que poderia botá-lo no bom caminho, é ela, e que o casamento poderia mudar o curso de sua vida. Mas agora, meu Deus! É tarde demais, tarde demais!

     - Agora, Sr. Holmes, o senhor conhece as pessoas que moram em minha casa e posso continuar a minha triste história.

     Quando estávamos tomando café na sala aquela noite, após o jantar, contei a Arthur e Mary o que me havia acontecido e que o tesouro precioso estava naquele momento sob nosso teto, suprimindo apenas o nome de meu cliente. Lucy Parr, que servira o café, havia deixado a sala, tenho certeza, mas não posso jurar que a porta estivesse fechada. Mary e Arthur ficaram muito interessados e quiseram ver a famosa coroa, mas achei melhor não mexer nela.

     - “Onde a botou?” perguntou Arthur.

     - 'Em uma gaveta em meu quarto de vestir”.

     - “Bem, espero que não haja um roubo em casa hoje à noite”, disse Arthur.

     - “Está trancada”, observei.

     - 'Ora, qualquer chave serve para abrir aquela sua cômoda velha. Quando era mais jovem eu mesmo a abri com a chave do armário do quarto de depósito”.

     - Ele muitas vezes dizia coisas desse gênero sem falar a sério e não dei atenção ao que disse. Seguiu-me até meu quarto aquela noite, entretanto, com o rosto muito sério.

     -'Olhe aqui, papai”, disse, de olhos baixos. 'Pode me dar duzentas

     libras?”

     - 'Não, não posso!” respondi rispidamente. “Tenho sido generoso demais com você em matéria de dinheiro”.

     - “Tem sido muito bondoso”, respondeu, “mas preciso desse dinheiro, ou não poderei jamais aparecer no clube novamente”.

     - “Isso seria ótimo!” exclamei.

     - “Talvez, mas não quer que eu sala de lá desonrado”, retrucou. “Não agüentaria a desgraça. Tenho de arranjar esse dinheiro de qualquer maneira, e se não vai me dar, tenho de procurar outro jeito”.

     - Fiquei muito zangado, pois era a terceira vez que me pedia dinheiro nesse mês. - “Não verá mais um tostão meu”, gritei, e com isso ele deu um cumprimento de cabeça e saiu do quarto sem dizer mais nada.

     - Depois que ele saiu, destranquei a gaveta da cômoda, vi que meu tesouro estava. seguro e tranquei-a novamente. Em seguida percorri a casa para verificar que tudo estava trancado, um dever que cabe geralmente a Mary, mas que achei melhor que eu próprio o fizesse essa noite. Quando descia as escadas, vi Mary junto à janela do hall, que fechou e trancou quando me aproximava.

     - “Diga-me, papai”, disse, parecendo, achei, um pouco perturbada, “deu licença a Lucy para sair hoje à noite?”

     - 'Claro que não”.

     - Ela acaba de entrar pela porta dos fundos. Tenho certeza que foi só até o portão do lado para ver alguém, mas acho que isso não é muito seguro não devemos deixar que continue”.

     - “Deve falar com ela de manhã, ou, se preferir, eu mesmo falo. Tem certeza de que está tudo trancado?”

     - “Certeza absoluta, papai”. Dei-lhe um beijo de boa-noite e fui para meu quarto, adormecendo quase imediatamente.

     - Estou lhe tentando contar tudo que se possa relacionar com o caso, Sr. Holmes, mas lhe peço que faça perguntas sobre qualquer coisa que não lhe pareça bastante clara.

     - Pelo contrário, sua narrativa é extremamente lúcida.

     - A parte a que vou chegar agora é que quero que seja especialmente clara. Não tenho sono pesado e a ansiedade que estava sentindo sem dúvida concorreu para torná-lo mais leve ainda. Cerca de duas horas da manhã, fui acordado por algum ruído dentro de casa. Cessou antes que estivesse totalmente acordado, mas tive a impressão que uma janela fora fechada mansamente em algum lugar. Fiquei deitado com os ouvidos atentos. De repente, para meu horror, ouvi o som distinto de passos no quarto ao lado. Saí da cama tremendo de medo e olhei pelo canto da porta de meu quarto de vestir.

     - “Arthur! “ gritei, “seu vilão! Ladrão! Como ousa tocar nessa coroa?”

     - A lamparina de gás estava baixa, como a deixara, e meu desgraçado filho, vestindo somente a camisa e calças, estava de pé perto da luz com a coroa nas mãos. Parecia estar torcendo a ponta, ou querendo arrancá-la com toda a força. Ouvindo minha voz, deixou-a cair e ficou pálido como um morto. Peguei a coroa e examinei-a. Uma das pontas de ouro, com três berilos, estava faltando.

     - “Seu canalha!” gritei, fora de mim de tanta raiva. “Você a destruiu! Desonrou-me para sempre! Onde estão as pedras que você roubou?”

     - “Roubei!” exclamou.

     - “Sim, seu ladrão”' berrei, sacudindo-o pelos ombros.

     - “Não está faltando nenhuma pedra. Não pode estar faltando”, disse.

     - “Estão faltando três. E você sabe onde estão. Será que vou ter de chamá-lo de mentiroso, além de ladrão? Não vi você com meus próprios olhos tentando arrancar mais um pedaço?”

     - “Já me insultou demais”, disse, “não vou suportar mais nada. Não direi nenhuma palavra sobre isso, já que resolveu me insultar. Deixarei sua casa de manhã e vou tentar minha vida sozinho”.

     - “Só a deixará nas mãos da polícia!” gritei, louco de desgosto e raiva. “Vou investigar esse assunto até o fim”.

     - “Não vai conseguir arrancar nada de mim”, disse com uma violência que nunca pensei pudesse demonstrar. “Se quer chamar a polícia, então eles que descubram o que puderem”.

     - A essa altura, a casa toda acordara, pois eu gritara de raiva. Mary foi a primeira a correr a meu quarto e quando viu a coroa e a cara de Arthur, com. preendeu tudo e, com um grito, caiu desmaiada. Mandei a empregada buscar a polícia e coloquei a investigação em suas mãos imediatamente. Quando o inspetor e um polícia entraram em casa, Arthur, que estava de pé sombriamente com os braços cruzados, perguntou se era minha intenção acusá-lo de roubo. Respondi que não era mais assunto privado, que estava no domínio público, já que a coroa era um bem nacional. Estava decidido que a lei tomaria conta de tudo.

     - “Pelo menos”, ele pediu, “não me faça prender imediatamente. Seria para seu bem, assim como para o meu, se eu pudesse deixar a casa por cinco minutos”.

     - “Para poder fugir, ou esconder o que você roubou”, respondi. E então, ficando consciente da terrível posição em que me encontrava, implorei que se lembrasse que não só minha honra, mas a honra de alguém muito mais alto que eu, estava em jogo, e que ia causar um escândalo que revolucionaria a nação. Poderia evitar tudo se me dissesse o que fira com as três pedras que faltavam.

     - 'Tem melhor encarar o fato”, supliquei. - Foi pego em flagrante e nenhuma confissão tomaria sua culpa mais odiosa. Se você fizer o que está em seu poder e nos disser onde estão os berilos, tudo será esquecido e perdoado”.

     - 'Guarde seu perdão para quem o pedir”, respondeu, virando as costas com desdém. Vi que estava por demais endurecido para que minhas palavras o atingissem. Só havia uma coisa a fazer. Chamei o inspetor e mandei prendê-lo. Deram imediatamente urna busca, não só em sua pessoa, como em seu quarto e todos os lugares da casa onde poderia ter escondido as pedras, mas não encontraram vestígios delas, e nem o rapaz abriu a boca, apesar de todas as nossas súplicas e ameaças. Hoje de manhã foi removido para uma cela e eu, depois de passar por todas as formalidades policiais, vim aqui correndo para lhe implorar que use sua perícia para esclarecer o assunto. A polícia confessou abertamente que, no momento, não pode fazer nada. Pode gastar tudo 'que for necessário. Já ofereci uma recompensa de mil libras. Meu Deus, que vou fazer! Perdi minha honra, minhas pedras e meu filho, tudo em uma noite só. Olha, que vou fazer!

     Segurou a cabeça com as mãos e balançou o corpo de um lado para o outro, murmurando baixinho como uma criança cujo sofrimento se tivesse tomado insuportável.

     Sherlock Holmes ficou sentado em silêncio por alguns minutos, com a testa franzida e os olhos fixos no fogo.

     - O senhor recebe muito? - perguntou.

     - Niro, a não ser meu sócio e sua família e ocasionalmente amigos de Arthur. Lorde George Bumwell foi lá várias vezes ultimamente. Ninguém mais, acho.

     - Sai muito socialmente?

     - Arthur sai. Mary e eu ficamos em cata. Nenhum de nós dois gosta muito de sair.

     - Isso não é comum para uma moça.

     - Ela é muito quieta. Além disso, não é tão moça assim. Já tem vinte

     - O que aconteceu, pelo que disse, parece que a abalou muito também. - Profundamente! Está pior ainda do que eu.

     - Nenhum dos dois tem a menor dúvida de que seu filho é culpado?

     - Como podemos ter, quando eu o vi, com meus próprios olhos, com a coroa nas mãos?

     - Não considero isso uma prova conclusiva. O resto da coroa foi danificado de alguma maneira?

     - Sim, ela ficou torcida.

     - Não acha, então, que talvez ele estivesse tentando consertá-la?

     - Deus o abençoe! Está fazendo o que pode por ele e por míni. Mas é uma tarefa impossível. O que estaria fazendo lá, em primeiro lugar? Se sua finalidade era inocente, por que não disse logo?

     - Precisamente. E se fosse culpado, por que não inventou uma mentira? Seu silêncio, a meu ver, pode ser pelas duas razões. Há vários pontos singulares nesse caso. O que a polícia achou do barulho que o acordou?

     - Acharam que poderia ter sido causado Por Arthur, fechando a porta de seu quarto.

     - Muito pouco provável! Um homem com intenção de praticar uni crime não iria bater uma porta e acordar a casa inteira. E o que disseram do desaparecimento das pedras?

     - Ainda estão sondando o assoalho e examinando a mobília na esperança de encontrá-las.

     - Pensaram em procurar fora da casa?

     - Sim, têm demonstrado uma energia extraordinária. Já examinaram o jardim inteiro minuciosamente.

     - Bem, meu caro senhor, - disse Holmes, - não é óbvio para o senhor agora que esse assunto é muito mais complexo do que o senhor ou a polícia pensaram de início? Pareceu-lhe ser um caso muito simples; para mim, parece extremamente complicado. Considere o que sua teoria representa. O senhor supõe que seu filho saiu da cama, foi, com grande risco, a seu quarto, abriu sua cômoda, tirou a coroa, quebrou à força um pedaço, foi para outro lugar, escondeu três pedras das trinta e nove tão bem que ninguém conseguiu achá-las e depois voltou com as outras trinta e seis para o quarto onde se expunha ao mais grave risco de ser encontrado. Agora lhe pergunto, essa teoria é válida?

     - Mas não existe outra - exclamou o banqueiro, com um gesto de desespero. - Se seus motivos eram inocentes, por que não os explica?

     - É nosso dever descobrir isso, - respondeu Holmes, - por isso agora, se me permite, Sr. Holder, vamos para Streatharn juntos, passar uma hora olhando mais atentamente os detalhes.

     Meu amigo insistiu que os acompanhasse em sua expedição, o que estava ansioso por fazer, pois minha curiosidade e compaixão haviam sido despertadas pela história que tínhamos acabado de ouvir. Confesso que a culpa do filho do banqueiro me parecia tão evidente quanto a seu infeliz pai, mas ainda tinha tanta confiança na opinião de Holmes que senti que devia haver bases se ter esperança, já que ele não estava satisfeito com a explicação dada. P ai não disse uma palavra a caminho do longínquo subúrbio ao Sul da cidade. Ficou sentado com o queixo afundado no peito e o chapéu puxado sobre os olhos, imerso em profundos pensamentos. Nosso cliente parecia ter adquirido novo ânimo com o pequeno vislumbre de esperança que fora apresentado e chegou até a conversar livremente comigo sobre seus negócios. Uma curta viagem de trem e um percurso a pé ainda mais curto nos levaram a Fairbank, a modesta residência do firiancista.

     Fairbank era uma casa quadrada de bom tamanho, de pedras brancas, um pouco distante da rua. Uma entrada da largura de duas carruagens e um gramado vestido de neve se estendiam em frente até os dois grandes portões de ferro que barravam a entrada. À direita havia um agrupamento denso de arbustos que levava a um caminho estreito entre duas sebes se estendendo da estrada até a porta da cozinha e- formando a entrada de serviço. À esquerda corria a vereda que levava à estrebaria e que não ficava dentro da propriedade, era uma via pública, embora pouco usada. Holmes nos deixou parados em frente à porta e andou lentamente em redor da casa, cruzou a frente, seguiu a entrada de serviço e, dando a volta pelo jardim, a vereda que ia para a estrebaria. Demorou tanto que o Sr. Holder e eu fomos para a sala de jantar e esperamos junto à lareira. Estávamos sentados em silêncio quando a porta se abriu e uma moça entrou. Era acima da altura média, esbelta, com cabelos e olhos escuros, que pareciam mais escuros ainda em contraste com a pele muito pálida. Acho que nunca vi um rosto de mulher tão pálido. Os lábios também eram descorados, mas os olhos estavam vermelhos de chorar. Quando entrou silenciosamente na sala senti o impacto de sua profunda dor, muito mais do que com o banqueiro de manhã, o que era surpreendente, pois era óbvio que era uma mulher forte, com imensa capacidade de autocontrole. Ignorando minha presença, foi direto ao tio e passou a mão pelos seus cabelos, num gesto meigo e carinhoso.

     - Deu ordem para que soltassem Arthur, não foi, papai? - perguntou.

     - Não, não, minha filha, temos que levar essa investigação ao fim

     - Mas tenho certeza que ele é inocente. Sabe o que são os instintos de uma mulher. Sei que ele não fez nada de mal e o senhor vai se arrepender de ter sido tão severo.

     - Por que ficou calado, se é inocente?

     - Quem sabe? Talvez porque estivesse muito zangado de o senhor ter dele.

     - Como poderia deixar de suspeitá-lo, se o vi com meus próprios olhos com a coroa nas mãos?

     - Oh, mas só pegara nela para olhar. Oh, por favor, acredite em mim, sei que é inocente. Deixe isso de lado, não diga nada mais. É horrível pensar em nosso querido Arthur na prisão!

     - Não vou deixar nada de lado até as pedras serem encontradas... nunca, Mary! Sua afeição por Arthur a está cegando quanto às horríveis conseqüências para mim. Em vez de abafar o assunto, trouxe um cavalheiro de Londres para fazer uma investigação mais minuciosa.

     - Esse cavalheiro? - perguntou, virando para mim.

     - Não, seu amigo. Queria ficar só. Está andando pela vereda da estrebaria nesse momento.

     - A vereda da estrebaria? - Ergueu as sobrancelhas escuras. - O que espera encontrar lá? Ali, deve ser ele que chega. Espero, senhor, que consiga provar o que tenho certeza é verdade, que meu, primo Arthur é inocente desse crime.

     - Concordo inteiramente com a senhora e espero, como a senhora, que possa prová-lo - disse Holmes, voltando para o capacho para sacudir a neve dos sapatos. - Creio que tenho a honra de me dirigir à Srta. Mary Holder. Posso fazer-lhe uma ou duas perguntas?

     - Certamente, senhor, se é para ajudar a esclarecer esse horrível mistério.

     - Não ouviu nada à noite passada?

     - Nada, até meu tio começar a falar em voz alta. Ouvi isso, e desci.

     - Fechou todas as janelas e portas a noite anterior. Trancou todas as janelas?

     - Sim.

     - Estavam todas trancadas esta manha?

     - Estavam.

     - Tem uma empregada que tem um namorado? Acho que comentou com seu tio à noite passada que ela saíra para vê-lo?

     - Sim, e foi ela que nos serviu na sala e que talvez tenha ouvido os comentários de meu tio sobre a coroa.

     - Entendo. Está sugerindo que ela podia ter saído para contar ao namorado e que os dois podem ter planejado o roubo.

     - Mas de que adiantam todas essas teorias vagas - exclamou o banqueiro impaciente - quando lhe disse que vi Arthur com a coroa nas mãos?

     - Espere um pouco, Sr. Holder. Voltaremos a esse ponto. Com respeito a essa moça, Srta. Holder. A senhora a viu voltar pela porta da cozinha, suponho?

     - Sim. Quando fui verificar se a porta estava trancada, encontrei-a entrando sorrateiramente. Vi o homem, também, no escuro.

     - A senhora o conhece?

     - Ali, sim. É o rapaz que traz nossas verduras. Seu nome é Francis

     - Ele estava - disse Holmes - à esquerda da porta, isto é, tinha ido mais longe no caminho do que era necessário para alcançar a porta?

     - Sim.

     - E é um homem que tem uma perna de pau?

     Algo parecido com o medo invadiu os olhos escuros expressivos da moça. - O senhor é como um mágico - disse. - Como sabia isso? - Sorriu, mas o rosto magro de Holmes continuou completamente sério.

     - Gostaria muito de ir lá em cima agora - disse. - Provavelmente vou querer examinar o lado de fora novamente. Talvez seja melhor olhar as janelas de baixo antes de subir.

     Foi rapidamente de uma a outra, parando apenas na grande janela que dava do hall para a vereda da cocheira. Esta ele abriu, e examinou cuidadosamente o peitoril com a poderosa lente.

     - Agora vamos subir - disse.

     O quarto de vestir do banqueiro era mobiliado simplesmente, com um tapete cinza, uma grande cômoda e um espelho longo. Holmes foi primeiro até à cômoda e examinou a fechadura.

     - Qual foi a chave que foi usada para abri-la? - perguntou.

     - A que meu filho mesmo mencionou, a do armário no quarto que serve de depósito de lenha.

     - E onde está essa chave?

     - É essa que está aí em cima.

     Sherlock Holmes pegou a chave e abriu a cômoda.

     - É uma fechadura silenciosa - disse. - Não é de admirar que não o tenha acordado. Esse estojo, presumo, contém a coroa. Vamos dar uma vista de olhos. - Abriu o estojo e, depositou-o sobre a mesa. Era uma amostra magnífica da arte de joalheria e as trinta e seis pedras, as mais lindas que já vi. Em um dos lados da coroa havia um pedaço quebrado, deixando uma beira irregular, onde a ponta que segurava três pedras havia sido arrancada.

     - Bem, Sr. Holder, - disse Holmes - aqui está uma ponta que corresponde à que foi infelizmente perdida. Peço-lhe que tente quebrá-la.

     O banqueiro recuou horrorizado. - Nem pensaria em fazer uma coisa - disse.

     - Então eu mesmo faço. - Holmes exerceu a máxima pressão sobre a ponta, mas nada aconteceu. - Senti que cedia um pouco, - disse - mas, embora tenha uma força excepcional nos dedos, levaria um tempo enorme para quebrar um pedaço. Um homem comum não conseguiria. E então, o que penta que aconteceria se conseguisse quebrar a coroa, Sr. Holder? Haveria um estalo como um tiro de revólver. Vai me dizer que tudo isso aconteceu a poucos passos de sua cama e que o senhor não ouviu nada?

     - Não sei o que pensar. Tudo está muito obscuro.

     - Mas talvez fique mais claro à medida que prosseguirmos. O que a senhora pensa, Srta. Holder?

     - Confesso que estou tão perplexa quanto meu tio.

     - Seu filho não usava sapatos nem chinelos quando o viu?

     - Não usava nada a não ser as calças e a camisa.

     - Obrigado. Na verdade fomos favorecidos com uma sorte extraordinária nessa investigação e será inteiramente nossa culpa se não conseguirmos elucidar o mistério. Com sua permissão, Sr. Holder, continuarei minhas investigações lá fora.

     Saiu sozinho, a pedido seu, pois explicou que pegadas desnecessárias tomariam sua tarefa mais difícil. Trabalhou por uma hora ou mais, voltando finalmente com os pés carregados de neve e as feições impenetráveis como sempre.

     - Acho que vi tudo que há para ver, Sr. Holder - disse. - Posso servi-lo melhor voltando a meus aposentos.

     - Mas as pedras, Sr. Holmes. Onde estão elas?

     - Não posso dizer.

     O banqueiro torceu as mãos. - Nunca mais as verei! - exclamou. - E meu filho? O senhor me dá alguma esperança?

     - Minha opinião não se modificou em nada.

     - Mas, pelo amor de Deus, qual foi esse drama que ocorreu em minha casa ontem à noite?

     - Se o senhor pode ir me ver na Rua Baker amanhã de manhã entre nove e dez horas terei o prazer de fazer o possível para tomar tudo mais claro. Entendo que me dá carte blanche para agir pelo senhor, desde que recupere as pedras, e que não há limite para a quantia que tenha de despender.

     - Daria toda minha fortuna para reaver as pedras.

     - Muito bem. Estudarei o assunto de agora até lá. Até logo. É possível que eu tenha de voltar aqui antes de hoje à noite.

     Era evidente para mim que meu companheiro já chegara a uma conclusão, embora não tivesse a menor idéia de qual poderia ser. Várias vezes na viagem de volta à casa tentei sondá-lo nesse ponto, mas ele sempre desviou a conversa para outro assunto, até que desisti. Não eram ainda três horas quando nos encontramos novamente em nossa sala. Foi depressa para o quarto e desceu dentro de poucos minutos vestido como um vagabundo. Com a gola do casaco puído e lustroso levantada, uma echarpe vermelha suja e botas gastas, era um perfeito espécime da classe.

     - Acho que estou passível - disse, olhando-se no espelho acima da lareira. - Gostaria que viesse comigo, Watson, mas receio que não dê certo. Pode ser que esteja na pista certa ou pode ser que esteja perseguindo um fantasma, breve saberei qual dos dois. Espero estar de volta dentro de poucas horas. - Cortou uma fatia de carne do pernil que estava em cima do aparador, colocou-a entre duas fatias de pio e, enfiando essa rude refeição no bolso, partiu em sua expedição.

     Estava terminando meu chá quando voltou, evidentemente de ótimo bom humor, balançando na mão uma velha bota com elástico dos lados. Atirou-a em um canto e serviu-se de chá.

     - Só parei um instante - disse. - Vou sair de novo agora mesmo.

     - Onde vai?

     - Oh, do outro lado de West End. Talvez demore bastante. Não espere por mim, posso chegar muito tarde.

     - Como estio indo as coisas?

     - Oh, mais ou menos. Não posso me queixar. Fui até Streatham, mas não falei com ninguém na casa. É um problema muito interessante, desses que pago para solucionar. Mas não posso ficar aqui conversando, tenho de trocar essas roupas reles e voltar a ser um homem respeitável.

     Vi pelo seu jeito que tinha fortes razões para estar satisfeito, mais que suas palavras deixavam transparecer. Os olhos brilhavam e havia até um pouco de cor em suas faces amareladas. Subiu as escadas depressa e pouco após ouvi a porta do bater, o que queria dizer que estava novamente em campo.

     Esperei até a meia-noite, mas não havia sinal dele, assim recolhi-me a meu quarto. Era comum ficar fora de casa dias e noites a fio quando seguia uma pista e essa demora em nada me espantou. Não sei a que horas voltou, um quando desci para o café no dia seguinte, lá estava ele com uma xícara de café em uma das mãos e o jornal na outra, com o ar repousado e bem-arrumado corno sempre.

     - Perdoe-me ter começado sem você, Watson, - disse - mas deve se lembrar que nosso cliente tem hora marcada hoje cedo.

     - Ora, já passa das nove - respondi. - Acho que é ele que está chegando. Ouvi a campainha.

     Era, realmente, nosso amigo, o banqueiro. Fiquei chocado com a transformação que se operara nele, pois o rosto, normalmente largo e maciço, estava agora emaciado e murcho, e os cabelos pareciam bem mais brancos. Entrou de maneira cansada e letárgica que era muito mais dolorosa que a violência do dia anterior e se deixou cair na poltrona que puxei à frente para ele.

     - Não sei o que fiz para ser castigado dessa forma - disse. - 114 apenas dois dias era um homem feliz e próspero, sem nenhum problema. Agora enfrento uma velhice solitária e sem honra. Um desgosto vem atrás do outro. Minha sobrinha Mary me abandonou.

     - Abandonou-o?

     - Sim. Sua cama está manhã não havia sido ocupada, seu quarto estava vazio e havia um bilhete para mim na mesa do haR Disse-lhe ontem à noite, com pesar, sem mágoa nenhuma, que se tivesse casado com meu rapaz talvez tudo tivesse sido diferente. Talvez não devesse ter dito isso. É a isso a que ela se refere nesse bilhete: “Meu querido tio: Sinto que fui eu que lhe trouxe esses problemas e que se tivesse agido diferente essa desgraça não teria acontecido. Não posso, com essa idéia no pensamento, nunca mais ser feliz debaixo de seu teto e sinto que devo deixá-lo para sempre. Não se preocupe com meu futuro, pois está garantido. E, acima de tudo, não procure por mim, pois de nada adiantará e será mau para mim. Na vida e na morte, serei sempre a que muito lhe quer. Mary”. O que quer dizer com esse bilhete, Sr. Holmes? Acha que indica suicídio?

     - Não, não, nada disso. É talvez a melhor solução. Acho, Sr. Holder, que o senhor está chegando ao fim de suas tribulações.

     - Ah! O senhor está dizendo isso! O senhor ouviu alguma coisa, Sr. Holmes, o senhor descobriu alguma coisa! Onde estão as pedras?

     - Não considera mil libras cada uma um preço excessivo?

     - Pagaria até dez.

     - Isso não será necessário. Três mil libras são bastante. E há uma pequena recompensa, acredito. Tem seu talão de cheques consigo? Aqui está uma pena. E melhor fazer o cheque para quatro mil libras.

     Com um ar aturdido o banqueiro preencheu o cheque. Holmes foi até a secretária, tirou um pedaço triangular de ouro com três pedras cravadas e jogou-o sobre a mesa.

     Com uma exclamação de alegria, nosso cliente o agarrou.

     O senhor conseguiu! - balbuciou. - Estou salvo! Estou salvo!

     A reação de alegria foi tão violenta quanto sua dor havia sido, e apertou as pedras contra o peito.

     - Há mais uma coisa que o senhor deve, Sr. Holder - disser Sherlock Holmes, novamente.

     - Devo! - Pegou a pena. - Diga quanto e pagarei.

     - Não, a dívida não é para comigo. O senhor deve um pedido de desculpa, com toda humildade, àquele nobre rapaz, seu filho, que se portou como ficaria orgulhoso que meu próprio filho se portasse, se tivesse filhos.

     - Então não foi Arthur que roubou as pedras?

     - Eu lhe disse ontem e repito hoje que não foi ele.

     - Tem certeza! Então vamos ter com ele imediatamente, para lhe dizer que sabemos a verdade.

     - Ele já sabe. Quando esclareci tudo tive uma entrevista com ele e vendo que não ia me contar a história, eu a contei a ele. Sendo assim, teve de confessar que eu estava com a razão e acrescentou uns pequenos detalhes que ainda não estavam bem claros para mim. Suas notícias de hoje, entretanto, talvez o façam falar.

     - Pelo amor de Deus, diga-me então que mistério extraordinário é esse!

     - Vou lhe dizer e vou lhe mostrar as etapas que atravessei para chegar a uma conclusão. E deixe-me dizer em primeiro lugar o que é mais difícil de falar e mais difícil para o senhor ouvir. Houve um entendimento entre sua sobrinha, Mary, e Lorde George BumweU. Fugiram juntos.

     - Minha Mary? Impossível!

     - Infelizmente, é mais do que possível, é um fato. Nem o senhor nem seu filho conheciam o verdadeiro caráter desse homem quando o admitiram em seu círculo de família. É um dos homens mais perigosos da Inglaterra, um jogador arruinado, um vilão completamente desesperado, um homem sem coração nem consciência. Sua sobrinha não sabia nada de homens assim. Quando murmurou seu amor por ela, como fizera com centenas antes dela, ficou convencida de que só ela tocara seu coração. Só o demônio sabe o que ele lhe disse, mas finalmente ela se tomou seu instrumento e tinha o costume de vê-lo quase todas as noites.

     - Não posso, não quero acreditar nisso! - exclamou o banqueiro, de rosto lívido.

     - Vou lhe contar o que aconteceu em sua casa aquela noite. Sua sobrinha, quando viu que o senhor tinha ido para seu quarto, desceu sorrateiramente e conversou com seu amante pela janela que dá para o caminho da estrebaria. Ele ficou tanto tempo de pé ali que seus pés comprimiram a neve, deixando marcas. Ela contou-lhe sobre a coroa, despertando sua ganância por ouro e ele a convenceu a obedecer suas ordens. Não tenho dúvida alguma que ela amava o senhor, mas há mulheres que o amor de um homem destrói todos os outros amores e acho que ela era uma dessas. Mal ouvira as instruções que ele lhe dava quando viu o senhor descendo as escadas e fechou a janela rapidamente falando da empregada e seu namorado de perna de pau, o que era verdade absoluta.

     - Seu filho, Arthur, foi para a cama após o encontro com o senhor, mas não conseguiu dormir devido a sua preocupação com a dívida do clube. No meio da noite ouviu passos leves passando por sua porta, então levantou e, olhando da porta, ficou surpreso de ver sua prima caminhando pelo corredor até desaparecer em seu quarto de vestir. Completamente atônito, o rapaz enfiou umas roupas e esperou no escuro para ver o que iria acontecer. Pouco depois ela saiu do quarto e, à luz da lâmpada do corredor, seu filho viu que levava a preciosa coroa nas mãos. Ela desceu as escadas e ele, tremendo de horror, correu e se escondeu atrás da cortina perto de sua porta, de onde podia ver o que se passava no hall abaixo. Viu-a abrir a janela sorrateiramente, entregar a coroa a alguém na escuridão e fechá-la novamente, correndo de volta para o quarto e passando bem perto de onde ele se escondia.

     - Enquanto ela estava em cena, não podia agir sem expor a mulher que amava. Mas no momento em que ela desapareceu no quarto compreendeu que isso seria para o senhor e corno era importante procurar consertar a situação. Correu pelas escadas, assim como estava, descalço, abriu a janela, nem e correu pelo caminho, onde podia ver um vulto escuro ao luar. Lorde George Burnwell tentou fugir, mas Arthur o pegou e houve uma briga entro ela, nu filho puxando um lado da coroa e seu adversário, o outro. Na confusão, seu filho bateu em Lorde George e feriu-o no olho. De repente alguma coisa arrebentou e seu filho, vendo que estava com a coroa nas mãos, voltou correndo, fechou a janela, subiu a seu quarto e acabara de notar que a coroa estava retorcida e procurava consertá-la quando o senhor surgiu em cena.

     - Será possível? - balbuciou o banqueiro.

     - Então o senhor o fez insultando-o no momento em que ele achava que merecia seu mais profundo agradecimento. Não podia explicar a verdade dos fatos sem trair a quem certamente não merecia a menor consideração. Tomou o ponto de vista mais cavalheiresco, entretanto, e guardou segredo.

     - E é por isso que ela gritou e desmaiou quando viu a coroa - exclamou o Sr. Holder. - Olhe, meu Deus! Que cego idiota eu fui! E ele me pedindo para sair por cinco minutos! Meu pobre rapaz queria ver se o pedaço que faltava estava no local da briga. Como fui injusto para com ele!

     - Quando cheguei à sua casa - continuou Holmes - fui logo examinar cuidadosamente em volta para ver se havia qualquer pista na neve que pudesse me ajudar. Sabia que não caíra mais neve desde a noite anterior e também que houvera geada e a neve congelara, preservando qualquer impressão. Segui a entrada de serviço, mas essa estava pisada e repisada e as pegadas eram indistintas. Logo além, no entanto, do outro lado da porta da cozinha, uma mulher estivera falando com um homem, e uma marca redonda de um lado mostrava que tinha uma perna de pau. Pude até ver que eles haviam sido interrompidos, pois a mulher correra de volta para a porta, como provavam as impressões profundas da ponta dos pés e muito leves no calcanhar, enquanto que Perna-de-pau esperara um pouco e depois fora embora. Pensei na ocasião que se poderia tratar da empregada e seu namorado, de quem o senhor já me falara, e isso foi confirmado posteriormente. Passei pelo jardim sem ver nada além de pegadas sem direção precisa, que julguei serem da polícia, mas quando cheguei ao caminho da estrebaria encontrei

     história escrita na neve à minha frente.

     - Havia uma Unha dupla de pegadas de um homem de botas e uma segunda Unha dupla que vi com satisfação pertencia a um homem descalço. Tive imediatamente certeza, pelo que o senhor me dissera, que essa última era de seu filho. O primeiro andara em arribas as direções, mas o outro correra rapidamente e, como em certos lugares suas pegadas estavam em cima das depressões causadas pelas botas, era evidente que ele seguira o outro. Segui as marcas e descobri que levavam à janela do hall, onde o Botas havia desgastado a neve enquanto esperava. Fui então para o outro extremo, que era a uns cem metros; ou mais. Vi onde Botas virara, onde a neve estava toda pisada e amassada, como se tivesse havido uma luta, e finalmente, onde algumas gotas de sangue haviam caído, para provar que estava certo. Botas correra então pelo caminho e outras pequenas manchas de sangue mostravam que era ele que estava machucado. Quando alcançou a estrada na outra extremidade, vi que a neve havia sido retirada e foi o fim dessa pista.

     - Ao entrar na casa, entretanto, examinei, como deve se lembrar, o peitoril da janela do hall com a lente e pude logo ver que alguém havia saído por ela. Pude distinguir o esboço de dedos e calcanhar onde um pé molhado se apoiara ao entrar. Estava então começando a formar uma imagem do que havia acontecido. Um homem esperara do lado de fora da janela, alguém lhe trouxera a jóia; esse ato fora visto por seu filho, que o perseguira, lutara com ele, ambos puxaram a coroa e a combinação de seus esforços causou danos que nenhum dos dois sozinho poderia causar. Seu filho voltara com a jóia, mas deixara um pedaço nas mãos do adversário. Até aí, tudo bem. A questão agora era: quem era o homem, e quem lhe dera a coroa?

     - É um velho preceito meu que quando se exclui o impossível, o que resta, não importa quão improvável seja, deve ser a verdade. Sabia que não fora o senhor que trouxera a coroa, então só restava sua sobrinha o as empregadas. Mas se fossem as empregadas, por que seu filho se deixaria acusar em seu lugar? Não poderia haver nenhuma razão. Mas amava sua prima e portanto havia uma excelente razão para guardar seu segredo, especialmente por se tratar de um segredo vergonhoso. Quando me lembrei que o senhor a vira perto daquela janela e que ela desmaiara quando viu a coroa novamente, minha suposição tomou-se urna certeza.

     - E quem poderia ser seu cúmplice? Um namorado, evidentemente, pois quem mais poderia anular o amor e gratidão que sentia pelo senhor? Sabia que saíam pouco, que seu círculo de amigos era muito limitado. Mas Lorde George Burnwell era parte desse círculo. Já ouvira falar dele como sendo homem de péssima reputação no que diz respeito a mulheres. Deveria ter sido ele que usava aquelas botas e ficara com as pedras. Mesmo sabendo que Arthur -o desmascarara, devia estar convencido que estava seguro, pois o rapaz não podia dizer uma palavra sem comprometer sua própria família.

     - Seu bom senso lhe dirá o que fiz em seguida. Disfarcei-me como um vagabundo, fui até a casa de Lorde George, consegui fazer amizade com seu criado de quarto, soube que seu patrão havia dado um corte no rosto na noite anterior e finalmente confirmei tudo comprando, por seis xelins, um par de seus sapatos velhos. Com esses na mão, fui até Streatharn e verifiquei que correspondiam perfeitamente às pegadas.

     - Vi um sujeito mal vestido no caminho ontem à noite - disse o Sr. Holder.

     - Precisamente. Era eu. Quando vi que tinha meu homem, vim para casa e troquei de roupa. O papel que tive de desempenhar então era bastante delicado, pois sabia que não era possível processar para evitar um escândalo, e que um vilão tão astuto logo veria que estávamos de mãos amarradas. Fui vê-lo. A princípio, naturalmente, negou tudo. Mas quando lhe contei em detalhes tudo que havia acontecido, tentou me ameaçar e pegou uma arma pendurada na parede. Conhecia meu homem, entretanto, e encostei uma pistola em sua cabeça antes que pudesse me atingir. Aí ficou um pouco mais razoável. Disse-lhe que lhe pagaríamos uma quantia adequada pelas pedras em seu poder, mil fibras cada uma. Isso provocou sua primeira reação de arrependimento até então. “Que diabos!” disse, “vendi-as por seiscentos pelas três”. Consegui obter dele o endereço do comprador com a promessa de que não seria processado. Fui logo procurar o outro e depois de muito barganhar, consegui as pedras por mil libras cada. Em seguida fui ver seu filho, disse-lhe que estava tudo bem e eventualmente fui para a cama cerca de duas horas da manhã, depois do que posso chamar de um dia duro de trabalho.

     - Um dia que salvou a Inglaterra de um grande escândalo público - disse o banqueiro, levantando-se. - Sr. Holmes, não tenho palavras com que lhe agradecer, mas verá que sei expressar minha gratidão pelo que o senhor fez. Sua perícia realmente excedeu tudo que já ouvira falar. E agora vou voando para meu filho, para pedir-lhe perdão pela injustiça que cometi com ele. Quanto ao que me disse sobre a pobre Mary, estou desolado. Nem mesmo sua perícia me pode dizer onde ela se encontra nesse momento.

     - Acho que podemos dizer com certeza - retorquiu Holmes - que ela está onde está Lorde George. É também certo que, sejam quais forem seus pecados, breve receberão castigo mais que suficiente.

  

   As tiras roxas

      - Para o homem que ama a arte por amor à arte, - observou Sherlock Holmes, jogando de lado o caderno de anúncios do Daily é muitas vezes em sua manifestações menos importantes e mais humildes que encontra o maior prazer. Fico contente de notar, Watson, que você compreendeu isso tão bem que nessas narrativas de nossos casos que você teve a bondade de redigir e, devo acrescentar, algumas vezes embelezar, tem dado destaques não tanto às muitas causes e julgamentos sensacionais em que tomei parte e sim àqueles incidentes que podem ter sido triviais em si mesmos, mas que davam ensejo às faculdades de dedução e síntese lógica que Mo minha especialidade.

     - No entanto - respondi, sorrindo - não consigo ser completamente absolvido da acusação de sensacionalismo imputada a meus relatos.

     - Errou, talvez, - comentou, pegando uma brasa com a tenaz e acendendo o longo cachimbo de cerejeira que substituía o de barro quando estava em estado de espírito discursivo e não meditativo - errou, talvez, em tentar dar vida e cor a cada uma de suas declarações, em vez de se limitar à tarefa de registrar o raciocínio rígido de causa e efeito, que é realmente o único aspecto notável de tudo isso.

     - Parece-me que lhe tenho sempre feito justiça nisso - disse com alguma ftieza, pois me sentia repelido pelo egoísmo que mais de uma vez observara como sendo um fator importante no caráter de meu amigo.

     - Não, não é egoísmo, nem vaidade - disse, respondendo, como era seu costume, meus pensamentos e não minhas palavras. - Se exijo justiça para com minha arte, é porque é uma coisa impessoal, uma coisa fora de mim mesmo. O crime é comum. A lógica é rara. Portanto, deve enfatizar a lógica e não o crime. Você rebaixou o que deveria ser uma série de conferências para uma série de contos.

     Era uma manhã fria no início da primavera e estávamos sentados, após o café da manhã, em frente de um fogo crepitante na lareira da velha sala na Rua Baker. Uma neblina espessa se enrolava entre as casas pardas e as janelas em frente emergiam como manchas escuras e informes das grinaldas amarelas e pesadas. A lâmpada. estava acesa e refletia na toalha branca, reluzindo na porcelana e nos metais, pois a mesa ainda estava posta. Sherlock Holmes estivera muito quieto a manhã toda, lendo os anúncios de todos os jornais, até que afinal, desistindo aparentemente da busca, emergira como muito bom humor para me fazer uma preleção sobre minhas falhas literárias.

     - Ao mesmo tempo, - comentou, após uma pausa na qual ficou puxando por seu longo cachimbo e olhando o fogo - você não pode ser acusado de sensacionalismo, pois uma grande percentagem desses casos em que você teve a bondade de se interessar não lida com crimes, no sentido estritamente legal. Aquele assunto em que tentei auxiliar o Rei da Boêmia, a experiência singular da Srta. Mary Sutherland, o problema do homem com o lábio torcido e o incidente do nobre solteiro, foram todos assuntos que. estão fora do alcance da lei. Mas ao evitar o sensacional, temo que você tenha caído no trivial.

     - No final, talvez tenha sido, - respondi - mas acredito que os métodos são originais e interessantes.

     - Bobagem, meu caro amigo, o público, o grande público que nada observa, não sabe distinguir um tecelão pelos seus dentes nem um compositor pelo seu polegar esquerdo e não liga para as nuanças delicadas de análise e dedução! Mas, na verdade, se você é trivial, não posso culpá-lo, pois os dias dos grandes casos já passaram. O homem, pelo menos o homem criminoso, perdeu toda a iniciativa e a originalidade. Quanto ao meu negócio particular, parece que está degenerando em uma agência para reaver lápis perdidos e dar conselhos a moças de pensionato. Acho que cheguei ao fundo do barril, entretanto. Esse bilhete que recebi hoje de manhã marca o ponto zero. Leia! - Atirou uma folha de papel amassado para mim.

     Vinha. de Montague Place, datada da noite anterior, e dizia:

     “Caro Sr. Holmes: Estou ansiosa para consultá-lo sobre se devo ou não aceitar uma posição de governanta que me foi oferecida. Irei vê-lo às dez e meia amanhã de manhã, se não for inconveniente.

     Atenciosamente, VIOLET HUNTER”.

     - Conhece essa moça? perguntei.

     - Não.

     - São dez e meia.

     - Sim, e não tenho dúvida que é ela que está tocando a campainha.

     - Talvez seja mais interessante do que você pensa. Lembre-se que o caso da pedra azul, que parecia ser apenas um capricho à primeira vista, tomou-se uma investigação séria. Esse caso também pode ser assim.

     - Espero que sim! Mas as dúvidas muito em breve se dissiparão, pois, se não me engano, aqui está a pessoa em questão.

     Enquanto falava, a porta se abrira e entrara uma moça. Estava vestida modestamente mas bem arrumada e tinha um rosto alegre, alerta, cheio de sardas e a maneira enérgica de uma mulher que tem de ganhar a vida.

     - Perdoe-me por incomodá-lo, - disse, dirigindo-se a meu companheiro, que se erguera para cumprimentá-la - mas passei por uma experiência muito estranha e como não tenho pais ou parentes a quem posta recorrer, achei que talvez o senhor pudesse ter a bondade de me dizer o que fazer.

     - Tenha a bondade de se sentar, Srta. Hunter. Terei muito prazer em fazer o que estiver a meu alcance para ajudá-la.

     Vi que Holmes ficara bem impressionado com a maneira e as palavras de sua nova cliente. Examinou-a detalhadamente como era seu costume e se preparou, de olhos fechados, juntando as pontas dos dedos, para ouvir sua história.

     - Sou governanta há cinco anos - disse - da família do Coronel Spence Munro, mas há dois meses o Coronel foi transferido Para Halifax na Nova Escóda e levou seus filhos para a América com ele, de modo que fiquei sem emprego. Anunciei nos jornais e respondi a anúncios, mas sem sucesso. Finalmente o pouco dinheiro que economizara tinha quase ido embora e estava desesperada sem saber o que fazer.

     - Há uma agência muito conhecida para governantas no West End chamada Westaway e lá ia mais ou menos uma vez por semana para ver se tinha aparecido qualquer coisa que me pudesse servir. Westaway era o nome do dono da agência, mas a gerente era a Srta. Stoper. Ela fica sentada em sua pequena sala e as senhoras que estão procurando emprego esperam em uma ante-sala e entram uma por uma quando ela consulta o livro de registro e vê se tem ~a coisa que possa servir.

     - Quando estive lá a semana passada, fui levada à pequena sala, como de costume, mas vi que a Srta. Stoper não estava sozinha. Um homem imensamente gordo com rosto sorridente e papadas enormes que faziam dobras e dobras sobre o pescoço estava sentado a seu lado, com óculos pendurados no nariz, olhando intensamente cada moça que entrava. Quando entrei saltou na cadeira e virou rapidamente para a Srta. Stoper:

     - 'Essa serve”, disse, “não poderia pedir coisa melhor. Excelente! Excelente! “ Parecia muito entusiasmado e esfregava as mãos com alegria. Parecia tão satisfeito que era um prazer olhar para ele.

     - 'Está procurando um lugar, senhorita?” perguntou.

     - “Sim, senhor”.

     - “Como governanta?”

     - “Sim, senhor”.

     - “E quanto quer ganhar?”

     - “Ganhava quatro libras por mês com o Coronel Spence Munro”.

     - 'Que absurdo! Exploração... exploração!” exclamou, jogando as mãos para o ar. “Como se pode oferecer essa miséria para uma moça com todos os seus atrativos e dons?”

     - “Meus dons, senhor, são menos que o senhor pensa”, respondi. “Um pouco de francês, um pouco de alemão, música, desenho...”

     - “Ora, ora!” exclamou. Isso não interessa. A questão é, a senhora tem ou não tem as maneiras e comportamento de uma dama? É isso, em resumo. Se não tem, não serve para criar uma criança que algum dia pode desempenhar papel importante na história do país. Mas se tem, então como pode um cavalheiro pedir que tenha a condescendência de aceitar uma soma tão insignificante? Seu salário comigo, minha senhora, começaria com cem libras por ano.

     - O senhor pode imaginar, Sr. Holmes, que para mim, necessitada como estava, essa oferta parecia boa demais para ser verdade. o cavalheiro, entretanto, vendo talvez a expressão de dúvida em meu rosto, abriu a carteira e tirou urna nota.

     - “É também meu hábito”, disse sorrindo de maneira agradável até que os olhos se tomaram meras frestas entre as dobras de gordura do rosto, “fazer um adiantamento a minhas moças de metade de seu salário, afim de que possam enfrentar as despesas de viagem e de guarda-roupa”.

     - Pareceu-me que nunca havia conhecido um homem tão fascinante e com tanta consideração. Como já estava devendo a meus fornecedores, o adiantamento era muito conveniente, no entanto havia qualquer coisa de esquisito nessa transação, que me fez querer saber um pouco mais antes de me comprometer totalmente.

     - “Posso perguntar onde o senhor mora?”

     - “Em Hampshire. Um lugar rural encantador. As Falas Roxas, sete quilômetros além de Winchester. É lindo no campo, cara senhora, e a casa é uma velha casa de campo”.

     - “E minhas obrigações, senhor? Gostaria de saber quais são”.

     - “Uma criança... um garotinho de seis anos. Se pudesse vê-lo matar baratas com o chinelo! Bate! Bate! Bate! Três mortas em um piscar de olhos! Reclinou-se na cadeira e deu gargalhadas.

     Fiquei um pouco espantada com esse tipo de diversão para uma criança, mas as gargalhadas do pai me fizeram achar que talvez estivesse brincando.

     - “Então meus deveres consistem exclusivamente em tomar conta de um menino?-

     - 'Não exclusivamente, não exclusivamente, minha cara senhorita”, exclamou. “Seus deveres serão, como estou certo que seu bom senso lhe diria, obedecer qualquer ordem que minha esposa lhe der, desde que sejam sempre ordens que uma dana pode cumprir. Não vê nenhum problema nisso, pois não?”

     - “Terei prazer em ser útil”.

     - “Muito bem. Quanto a roupas, por exemplo. Temos nossas manias, sabe. Somos excêntricos, mas de bom coração. Se lhe pedíssemos para usar qualquer roupa que lhe déssemos, não faria objeção a nosso pequeno capricho, pois não?”

     - “Não”, respondi, muito espantada com suas palavras.

     - 'Ou, para sentar aqui, ou sentar ali, isso não lhe seria ofensivo.

     - 'Para cortar o cabelo bem curto antes de vir trabalhar pua

     - Não acreditei no que ouvia. Como deve ter observado, Sr. Holmes, meus cabelos são bastos e de um tom pouco comum de castanho. É muito elogiado. Nunca aceitaria a idéia de sacrificá-los, dessa maneira.

     - “Receio que isso seja impossível respondi. Estava me observando ansiosamente com seus olhinhos pequenos e vi que seu rosto escureceu com minhas palavras.

     - “Sinto muito, mas isso é essencial disse. “É uma mania de minha esposa o os caprichos das senhoras, como sabe, devem ser satisfeitos. Então não quer cortar os cabelos?”

     - 'Não, senhor, realmente não posso”, respondi com fiza.

     - “Ali, muito bem. É pena, porque em todos os aspectos a senhora nos servia bem. Nesse caso, Srta. Stoper, é melhor inspecionar mais - algumas de mas moças”.

     - A gerente estivera tempo todo ocupada com papéis, sem dizer nenhuma palavra, mas agora me olhou com uma expressão tão aborrecida que perdera uma bela comissão com minha recusa.

     - 'Quer que seu nome continue em nosso livro?” perguntou.

     - 'Por favor, Srta. Stoper”.

     - “Bem, realmente, não adianta muito, já que recusa as melhores ofertas desta maneira”, disse asperamente. 'Não pode esperar que façamos força para conseguir outro cargo desses para a senhorita. Um muito bom dia, Srta. Hunter”. Bateu na campainha, sobre a mesa e o criado me levou para fora da sala.

     - Bem, Sr. Holmes, quando cheguei em casa e encontrei muito pouco que comer o duas ou três contas sobre a meu, comecei a me perguntar se não tinha feito urna tolice. Afinal de contas, se essa pessoas tinham manias esquisitas o esperavam ser obedecidas em questões tão extraordinárias, pelo menos estavam prontas a pagar por sua excentricidade. Muito poucas governantas na Inglaterra ganham cem libras por ano. Além do mais, de que me valia meu cabelo? Muitas pessoas ficam melhor de cabelos curtos e talvez eu fosse uma dela. No dia seguinte estava inclinada a achar que cometera um erro, e no outro dia, fiquei convencida disso. Já tinha quase vencido meu orgulho e me preparado para voltar à agência e perguntar se o lugar já fora ocupado, quando recebida carta do próprio cavalheiro. Está aqui comigo, e vou ler para o senhor:

     “As Faias Roxas, perto de Winchester.

     PREZADA SRTA. HUNTER: A Srta. Stoper teve a bondade de me dar seu endereço e estou lhe escrevendo para perguntar se por acaso a senhora reconsiderou sua decisão. Minha esposa está ansiosa para que venha trabalhar para nós, pela descrição que lhe fiz. Estamos dispostos a lhe pagar trinta libras por trimestre. Isto é, cento e vinte libras por ano, para recompensá-la por qualquer inconveniência que nossas excentricidades possam lhe causar. Na realidade, não são difíceis de atender. Minha esposa gosta muito de um tom especial de azul-elétrico e gostaria que a senhora usasse um vestido dessa cor dentro de casa, pela manhã. Não é preciso gastar dinheiro adquirindo um vestido, entretanto, pois já temos um que pertenceu à minha querida filha Alice (que agora reside em Filadélfia), que acho que lhe serviria muito bem. E quanto a sentar aqui ou ali, ou se divertir da maneira que lhe for indicada, isso não deve lhe causar nenhum inconveniente. No que diz respeito a seus cabelos, é sem dúvida nenhuma uma pena, especialmente porque não pude deixar de reparar como são lindos, em nosso breve encontro, mas receio ter de ficar firme nesse ponto e só espero que o aumento de salário a recompense pela perda. Suas obrigações com a criança são realmente muito leves. Tente mudar de idéia e irei esperá-la com o carro em Winchester. Atenciosamente,

     JEPHRO RUCASTLE”.

     - Essa é a carta que acabei de receber, Sr. Holmes, e resolvi aceitar. Pensei, entretanto, que antes de dar o último passo gostaria de submeter a questão ao senhor.

     - Bem, Srta. Hunter, se já resolveu, isso encerra o assunto - disse Holmes, sorrindo.

     - Mas não me aconselha a recusar?

     - Confesso que não é um lugar que gostaria de arranjar para minha irmã, se a tivesse.

     - O que quer dizer isso tudo, Sr. Holmes?

     - Ali, não tenho fatos suficientes. Não sei dizer. Talvez a senhora tenha alguma opinião?

     - Bem, achei que só poderia haver uma explicação. O Sr. Rucastle parece ser muito bondoso e ter bom gênio. É possível que sua esposa seja doente mental e que ele queira esconder o fato para que não seja levada para algum asilo, e faça todas as suas vontades para evitar que tenha uma crise.

     - É realmente uma solução possível. Na verdade, como estão as coisas, é a mais provável. Mas de qualquer maneira, não parece uma família boa para uma moça.

     - Mas o dinheiro, Sr. Holmes, o dinheiro!

     - Sim, claro, o salário é muito bom, bom demais. É isso que me preocupa. Por que lhe pagariam cento e vinte libras por ano quando podem escolher quem quiser e pagar somente quarenta? Deve haver uma razão muito forte atrás de tudo isso.

     - Achei que se lhe contasse as circunstãncias o senhor compreenderia mais tarde, se precisar de seu auxílio. Vou me sentir muito melhor se souber que o senhor está me apoiando.

     - Olhe, pode se sentir assim, e ir em paz. Asseguro-lhe que seu pequeno problema promete ser o mais interessante que me surgiu há muitos meses. Há alguma coisa de muito original em alguns aspectos. Se sentir dúvidas ou achar que está em perigo...

     - Perigo! Que perigo está antevendo?

     Holmes sacudiu gravemente a cabeça. - Deixaria de ser um perigo se pudéssemos defini-lo - disse. - Mas a qualquer hora do dia ou da noite, um telegrama me levaria a seu lado para ajudá-la.

     - Isso é o bastante. - Levantou-se prontamente da cadeira sem um vestígio de ansiedade no rosto. - Irei para Hampshire sem nenhuma preocupação agora. Vou escrever para o Sr. Rucastle imediatamente, sacrificar meu pobre cabelo e irei para Winchester amanhã - Despediu-se de nós com umas palavras de agradecimento para Holmes e saiu.

     - Pelo menos - eu disse, quando ouvimos seus passos firmes e rápidos na escada - parece ser uma moça que sabe se defender muito bem.

     - E precisa ser - disse Holmes, gravemente. - Se não estou errado, teremos notícias dela dentro de alguns dias.

     Não demorou muito para se realizar a profecia de meu amigo. Passaram-se quinze dias e multas vezes pensei nela, imaginando em que estranho desvio da experiência humana essa moça solitária se encontraria. O salário fora do comum, as condições curiosas, as obrigações tão leves... tudo levava a crer que se tratava de alguma coisa anormal, embora fosse impossível para mim determinar se era uma excentricidade ou uma trama, se o homem era um filantropo ou um vilão. Quanto a Holmes, notei que muitas vezes ficava sentado por meia hora, com um ar abstrato e testa franzida, mas quando eu mencionava o assunto, tirava-o do pensamento com um gesto da mão. - Fatos! Fatos! Fatos! - exclamava, impaciente. - Não posso fazer tijolos sem barro. - Mas sempre acabava resmungando que nenhuma irmã dele jamais aceitaria um lugar desses.

     O telegrama que recebemos eventualmente chegou tarde da noite, justaffiente quando estava pensando em me recolher e Holmes se preparava para uma dessas pesquisas que duram toda a noite a que ele freqüentemente se entregava, quando o deixava inclinado sobre uma retorta e tubo de ensaio à noite e o encontrava na mesma posição quando descia para o café da manhã. Abriu o envelope amarelo e depois de olhar a mensagem, estendeu-a para

     MIM.

     - Veja qual é o horário dos trens no guia Bradshaw - disse, e voltou a suas experiências químicas.

     A mensagem era breve e urgente:

     “Por favor esteja no Hotel Black Swan em Winchester ao meio-dia amanhã, dizia. “Venha! Estou desesperada.

     - Você vai comigo? - perguntou Holmes, erguendo os olhos.

     - Gostaria de ir.

     HUNTER”

     - Veja os trens, então.

     - Há um trem às nove e meia - disse, olhando o Bradshaw. - Chega em Winchester às onze e trinta.

     - Esse serve muito bem. Talvez seja melhor adiar minha análise das acetonas para estar em boa forma de manhã.

     Às onze horas da manhã seguinte, estávamos quase chegando à antiga capital inglesa. Holmes se afundara nos jornais a viagem inteira, mas depois de passarmos a fronteira de Hampshire jogou-os de lado e começou a admirar a paisagem. Era um dia de primavera ideal, um céu azul-claro, salpicado de pequenas nuvens brancas felpudas que navegavam do Leste para o Oeste. O sol brilhava, mas havia um friozinho no ar que despertava a energia de um homem. Por toda a parte nos campos, até as colinas de Aldershot, os telhadinhos vermelhos e cinzentos das fazendas espreitavam por entre o verde-claro da folhagem nova.

     - Não está tudo fresquinho e lindo? - exclamei com o entusiasmo de um homem acabado de sair da neblina da Rua Baker.

     Mas Holmes sacudiu a cabeça, muito sério.

     - Você sabe, Watson, que é uma das maldições de um cérebro como o meu que vejo tudo com referência ao meu assunto especial. Você olha para essas casas espalhadas e fica impressionado com sua beleza. Eu olho para elas e a única idéia que me ocorre é a sensação de seu isolamento e da impunidade com que os crimes podem ser cometidos dentro delas.

     - Deus meu! - exclamei. - Quem iria associar a idéia de crime com essas velhas casas?

     - Elas me enchem de horror. Acredito firmemente, Watson, baseado em minha experiência, que os mais baixos e vis becos de Londres não apresentam uma história de pecados mais horríveis que os belos e sorridentes campos.

     - Você me apavora!

     - Mas a razão é óbvia. A pressão da opinião pública pode conseguir na cidade o que a lei não consegue. Não existe um beco tão vil que o grito de uma criança torturada, ou a pancada dada por um bêbedo não provoquem a simpatia e indignação dos vizinhos e o mecanismo da justiça está porto que uma palavra de queixa pode pôr em movimento e só há um passo entre o crime e o banco dos réus. Mas olhe para essas casas isoladas, cada uma cercada por seus campos, cheias na maior parte dos pobres e ignorantes que mal conhecem a lei. Pense nos atos de, crueldade demoníaca, a maldade escondida, que continuam ano após ano nesses lugares, e ninguém fica ~ do. Se essa moça que nos pediu auxílio tivesse ido morar em Winchester, não teria receio que nada lhe acontecesse. São os sete quilômetros de campo que tomam a situação perigosa. Se bem que parece que não foi ameaçada, ~ junte.

     Não. Se pode vir a Winchester para nos encontrar quer dizer que tem liberdade de sair.

     - Exatamente. Tem sua liberdade.

     - O que pode estar acontecendo, então? Pode sugerir alguma explicação?

     - Imaginei sete explicações diferentes e todas se encaixam nos fatos, até onde sabemos. Mas qual delas é correta só pode ser determinado com a informação nova que certamente vamos encontrar à nossa espera. Bem, lá está a torre da catedral e breve ouviremos tudo que a Srta. Hunter tem para nos contar.

     O Hotel Black Swan é uma estalagem de grande fama na Rua High, pertinho da estação e lá encontramos a moça esperando por nós. Alugara uma sala e o almoço nos aguardava sobre a mesa.

     - Estou tão contente de terem vindo - disse com fervor. - É tanta bondade sua. Mas não sei mesmo o que fazer. Seus conselhos são de imenso valor para mim.

     - Por favor conte-nos o que aconteceu.

     - Vou contar e tenho de ser rápida, pois prometi ao Sr. Rucastle que voltaria antes das três horas. Consegui sua permissão para vir à cidade hoje de manhã, embora ele não saiba o que vim fazer.

     - Dê-nos tudo em sua devida ordem. - Holmes estendeu as longas pernas magras para o fogo e se preparou para ouvir.

     - Em primeiro lugar, devo dizer que, de modo geral, não tenho sido maltratada pelo Sr. e Sra. Rucastle. Faço apenas justiça em dizer isso. Mas não os compreendo e estou preocupada com eles.

     - O que não compreende?

     - A razão de sua conduta. Mas vou contar exatamente como sucedeu. Quando cheguei, o Sr. Rucastle foi me encontrar e me levou de carro a Faias Roxas. É, como ele dissera, lindamente situada, mas não é bonita, é apenas urna casa grande, quadiuda, pintada de branco, mas toda manchada de mofo e limo. Tem bastante terreno em volta, bosques de três lados e no quarto um campo que desce até a estrada de Southampton, que faz uma curva a uns cem metros; da porta da frente. O terreno em frente pertence à casa, mas os bosques em volta fazem parte da propriedade de Lorde Southerton. Um grupo de faias roxas logo em frente da porta deu nome à casa.

     - Meu patrão mesmo me levou até lá, amável como sempre, e àquela noite me apresentou à sua esposa e à criança. Não há verdade nenhuma, Sr. Holmes, na hipótese que nos pareceu provável em seus aposentos na Rua Baker. A Sra. Rucastle não é louca. É urna mulher calada, pálida, muito mais jovem que o marido, acho que não tem mais que trinta anos, enquanto ele deve ter uns quarenta e cinco. Deduzi, pela conversa, que estão casados cerca de sete anos, que ele era viúvo, e que sua única filha do primeiro matrimônio é a Ma que foi para a Filadélfia. O Sr. Rucastle me disse particularmente que a razão por que ela os deixou é que sentia uma aversão irracional pela madrasta. Como a filha não podia ter menos de vinte anos, imagino que sua posição junto à jovem esposa de seu pai não pode ter sido muito confortável.

     - A Sra. Rucastle parecia desbotada mentalmente quanto fisicamente. Não me causou impressão favorável nem desfavorável. Era completamente apagada. Era fácil de ver que se dedicava apaixonadamente ao marido e ao pequeno filho. Seus olhos cinzento-claros iam de um a outro constantemente, notando e antecipando todos os seus desejos. Ele era muito bondoso com ela, de sua maneira rude e expansiva, e em geral pareciam muito felizes. No entanto, essa mulher tinha - algum desgosto secreto. Multas vezes ficava perdida em seus pensamentos, com uma expressão profundamente triste. Mais de uma vez a surpreendi chorando. Pensei algumas vezes que fosse a disposição do filho que a preocupava, pois nunca vi uma criança tão mimada e de tão mau gênio. E pequeno para a idade, com urna cabeça desproporcionalmente grande. Parece passar a vida inteira alternando entre acessos de fúria e intervalos de mau humor. Sua única idéia de divertimento é torturar qualquer criatura menor e mais fraca e demonstra considerável talento em planejar a captura de camundongos, passarinhos o insetos. Mas prefiro não falar dessa criança, Sr. Holmes, e na verdade, não tem nada a ver com a minha história.

     - Gosto de todos os detalhes, - disse meu amigo - mesmo que pareçam irrelevantes.

     - Procurarei não omitir nada importante. A única coisa desagradável na casa, que me impressionou logo, é a aparência e conduta dos empregados. Há só dois, um homem e sua mulher. Que é o nome do homem, é um homem rude, grosseiro, de cabelos e barba grisalhos, que cheira sempre à bebida. Duas vezes, desde que estou com elos, ficou completamente bêbedo, o Sr. Rucastle pareceu nem notar. Sua mulher é muito alta e forte, de cara amarrada, tão calada quanto a Sra. Rucastle e muito menos amigável. Foi um casal muito desagradável, mas felizmente passo a maior parte do tempo no quarto de crianças e em meu próprio quarto, que ficam um ao lado do outro em um canto do prédio.

     - Nos primeiros dois dias após chegar em Falo Roxas minha vida correu mansamente. No terceiro, a Sra. Rucastle desceu logo após o café da manh11 e murmurou algum coisa no ouvido do marido.

     - “Ali, sim”, - disse ele, virando para mim, “a senhora, Srta. Hunter, por ter atendido nonos caprichos e cortado seus cabelos. Garanto-lhe que não alterou em nada sua, bela aparência. Vamos ver agora como lhe assenta o vestido azul-elétrico. A senhora vai encontrá-lo estendido em sua cama e se quiser ter a bondade de vesti-lo, ficaremos ambos muito gratos .

     - O vestido que encontrei à minha espera em de um tom peculiar de azul. A fazenda era excelente, mas mostrava sinais evidentes de já ter sido usam do antes. Não podia um servir melhor se tivesse sido feito para mim O Sr. o a,

     Sra. Rucastle expressaram uma admiração, quando me viram, que me pareceu muito exagerada, de tão veemente. Estavam me esperando no salão, que é muito grande, estendendo-se por toda a frente da casa, com três grandes janelas que vão até o chão. Uma cadeira estava colocada perto da janela do meio, com as costas viradas para ela. Pediram que sentasse nela e então o Sr. Rucastle, passeando de um lado para o outro, começou a contar as histórias mais engraçadas que jamais ouvira. Não podem imaginar como era cômico e ri até ficar cansada. A Sra. Rucastle, entretanto, que não possui senso humorístico, evidentemente, nem sequer sorriu e ficou sentada com as mãos no colo e uma expressão triste e ansiosa. Após cerca de uma hora, o Sr. Rucastle subitamente comentou que estava na hora de começar os deveres do dia e que eu podia trocar de roupa e ir ter com o pequeno Edward no quarto de crianças.

     - Dois dias depois a mesma coisa aconteceu em circunstâncias exatamente idênticas. Novamente troquei de vestido, novamente sentei em frente da janela, mas de costas, e novamente ri às gargalhadas das histórias engraçadas que meu patrão contava. Depois deu-me um romance de capa amarela e, `virando minha cadeira um pouco de lado para que minha própria sombra não caísse sobre a página, pediu-me que lesse em voz alta. lá por uns dez minutos, começando no meio de um capítulo e de repente, no meio de uma frase, mandou que eu parasse e fosse mudar de roupa.

     - O senhor bem pode imaginar, Sr. Holmes, como fiquei curiosa quanto ao significado dessa encenação. Tinham sempre o cuidado, observei, de que eu nffo ficasse de frente para a janela e fiquei obcecada pelo desejo de ver o que estava acontecendo nas minhas costas. A princípio parecia impossível, mas logo descobri uma maneira. Meu espelho de mão havia quebrado, então tive a idéia feliz de esconder um pedacinho no lenço. Na próxima ocasião, no meio de uma gargalhada, levei o lenço aos olhos e consegui, com jeito, ver o que estava atrás de mim. Confesso que fiquei desapontada. Não vi nada.

     - Pelo menos, essa foi minha primeira impressão. Ao olhar de novo, entretanto, percebi que havia um homem parado na estrada de Southampton, um homem pequeno, barbado, vestido de cinzento, que parecia olhar em minha direção. A estrada é muito usada e geralmente há alguém passando por ela. Mas esse homem estava encostado na grade que cercava nosso campo e olhando com toda a atenção. Abaixei o lenço e lancei um olhar para a Sra. Rucastle, vendo seus olhos fixos em mim atentamente. Não falou nada, mas tenho certeza que adivinhou que tinha um espelho na mão e vira o que estava atrás de mim. Levantou-se imediatamente.

     - “Há um homem impertinente na estrada que está olhando para a Srta. Hunter”.

     - “Algum amigo seu, Srta. Hunter' ele perguntou.

     -'Não. Não conheço ninguém nessa região”.

     - “Ora! Que hnpertinència! Por favor, vire o faça sinal para ele ir embora .

     - “Não seria melhor ignorá-lo?”

     “Não, não, ele ficaria por aí para sempre. Por favor, vire e faça um sinal com a mão”.

     - Fiz o que mandava e ao mesmo tempo a Sra. Rucastle fechou a cortina. Isso foi há uma semana e desde então não sentei mais à janela nem usei o vestido azul, nem vi o homem na estrada.

     - Tenha a bondade de continuar - disse Holmes. - Sua narrativa promete ser muito interessante.

     - Receio que seja um pouco desorganizada e talvez não haja muita relação entre os diferentes incidentes de que vou falar. No primeiro dia que passei em Faias Roxas o Sr. Rucastle me levou a um pequeno anexo que fica perto da porta da cozinha. Ao nos aproximarmos, ouvi o retinir agudo de uma corrente e o som de algum grande animal se mexendo.

     - 'Olhe aqui!” disse o Sr. Rucastle, mostrando-me uma fresta entre de duas tábuas. “Não é uma beleza?”

     - Olhei e vi dois olhos brilhantes e um vulto vago encolhido na escuridão.

     - “Não tenha medo”, disse meu patrão, rindo de meu sobressalto.

     À apenas Carlo, meu cão mastim. Digo que é meu, mas na verdade o velho, Toller é a única pessoa que pode fazer qualquer coisa com ele. Só come uma vez por dia, e muito pouco assim mesmo, de modo que está sempre faminto.

     Toller o solta todas as noites e Deus ajude o invasor que ele pegue com seus dentes. Por favor, nunca, por razão nenhuma, ponha o pé fora da porta à noite, pois sua vida não valerá nada”.

     - O aviso não foi à toa, pois duas noites depois estava olhando pela janela de meu quarto aproximadamente às duas horas da manhã. Era uma noite linda de luar e o gramado em frente da casa estava prateado e quase tão vivo quanto de dia. Estava enlevada pela beleza pacífica da cena quando percebi que alguma coisa se movia sob a sombra das faias roxas. Quando emergiu no luar vi o que era. Era um cão gigantesco, do tamanho de um bezerro, castanho-amarelado, de mandíbulas pendentes, focinho preto e ossos imensos quase perfurando a carne. Atravessou lentamente o gramado e desapareceu nas sombras do outro lado. Essa sentinela horrivelmente silenciosa gelou meu sangue nas veias, o que acho que nenhum ladrão poderia fazer.

     - E agora tenho urna experiência muito estranha a lhes contar. Como sabem, cortei o cabelo em Londres e coloquei-o, em um grande cacho, no fundo da mala. Uma noite, depois da criança ir para a cama, comecei a me distrair examinando a mobília de meu quarto.

     Havia uma velha cômoda no quarto, com as duas gavetas de cima vazias o abertas e a de baixo trancada. Já enchera as duas primeiras com minha roupa e ainda tinha umas coisas para guardar. Fiquei, naturalmente, irritada por não poder usar a terceira gaveta. Ocorreu-me a idéia de que poderia ter sido trancada por mero acaso, então peguei minhas chaves e tentei abrir a gaveta. Logo a primeira serviu perfeitamente e abri-a. Só havia uma coisa dentro, mas tenho certeza que nunca poderão adivinhar o que era. O meu cacho de cabelo.

     - Peguei-o e examinei-o. Era da mesma cor peculiar e da mesma espessura. Mas então vi corno era impossível. Como poderia meu cabelo estar trancado naquela gaveta? Com mãos trêmulas, abri minha inala, tirei o que estava dentro e lá no fundo estava o meu cacho. Coloquei os dois juntos e garanto-lhes que eram idênticos. Não é extraordinário? Por mais que pensasse, não consegui entender o que significava. Coloquei o cacho estranho de volta na gaveta e não disse nada aos Rucastles, pois achei que fora errado de minha parte abrir uma gaveta que eles haviam fechado.

     - Sou por natureza muito observadora, como deve ter notado, Sr. Holmes, e logo tinha mentalmente uma idéia clara da disposição de todos os aposentos da casa. Havia uma ala, entretanto, que parecia não ser habitada. Havia uma porta em frente da porta dos aposentos dos Tollers que dava para essa ala, mas estava sempre trancada. Um dia, entretanto, quando eu subia as escadas, encontrei o Sr. Rucastle saindo dessa porta com as chaves na mão e uma expressão no rosto que o tomava muito diferente do homem gordo e jovial a quem estava acostumada. As faces estavam vermelhas, a testa franzida de raiva e as veias salientes. Trancou a porta e passou por mim apressadamente sem dizer uma palavra, nem olhar para mim.

     - Isso despertou minha curiosidade, e quando passeava com a criança, fui até o lado de onde podia ver as janelas dessa parte da casa. Havia quatro em fileira, três das quais estavam somente sujas, mas a quarta estava tapada com tábuas de madeira. Todas estavam evidentemente desertas. Enquanto passeava de um lado para o outro, o Sr. Rucastle chegou até mim, alegre e jovial como sempre.

     - “Ali!” disse, “não me julgues rude se passei pela senhora sem dizer nenhuma palavra. Estava preocupado com assuntos de negócios”.

     - Garanti que não ficara ofendida. “Por falar nisso”, disse, “parece que tem muitos quartos vazios lá em cima e um deles tem uma janela coberta de madeira”.

     - “Meu hobby é fotografia”, respondeu. “Lá é minha câmara escura. Mas, meu Deus! Que moça observadora! Quem podia imaginar isso? Quem podia imaginar isso?” Falou em tom brincalhão, mas não havia nada de brincalhão em seus olhos ao olhar para mim. Só vi suspeita e irritação em seu olhar.

     - Bem, Sr. Holmes, do momento em que compreendi que havia alguma coisa naqueles quartos que eu não devia ver, fiquei ansiosa para revistá-los. Não era só curiosidade, embora seja muito curiosa. Era más como que um de obrigação, um sentimento de que alguma coisa boa poderia acontecer se conseguisse entrar naqueles quartos. Fala-se muito do instinto feminino. Talvez fosse o instinto feminino que me fazia sentir isso. Seja como for ele era o que sentia. E fiquei atenta a qualquer possibilidade de atravessar a porta proibida.

     - Foi ontem que tive essa chance. Devo dizer-lhes que além do Sr. Rucastle, tanto Toller quanto sua mulher têm alguma coisa a fazer nesses quartos desertos e urna vez o vi sair com uma sacola preta grande. Ultimamente ele tem bebido muito e ontem à tarde estava completamente bêbedo. Quando subi, lá estava a chave na porta. Não tenho dúvida nenhuma que foi ele que a deixou lá. O Sr. e a Sra. Rucastle estavam lá embaixo e a criança com eles, portanto a oportunidade era ótima. Virei a chave devagar, abri a porta o entrei.

     - Havia um pequeno corredor à minha frente, sem papel nas paredes e sem tapete, que virava à direita na outra extremidade. Nesse trecho havia três portas; a primeira e a terceira estavam abertas. Davam para quartos vazios, empoeirados, um com duas janelas e o outro com uma, tão sujas que a luz da tarde mal penetrava. A porta do meio estava fechada e atravessada por uma barra de ferro larga, corri um cadeado preso a um anel de ferro fixo na parede em uma ponta e amarrada com uma grossa corda na outra. A porta também estava trancada. e não havia sinal de chave. Essa porta fortificada correspondia claramente à janela coberta de tábuas, mas pude ver pelo pouco de luz que escapava por baixo que o quarto não estava totalmente às escuras. Enquanto estava parada olhando essa porta sinistra e pensando em que segredo esconderia, ouvi de repente o som de passos dentro do quarto e vi uma sombra passar de um lado para o outro, delineada pela luz debaixo da porta. Um medo louco e irracional se apossou de mim, Sr. Holmes. Meus nervos tensos não agüentaram mais, virei e corri como se uma mão horrenda estivesse atrás de mim, agarrando a saia de meu vestido. Corri pelo corredor, atravessei a porta e caí nos braços do Sr. Rucastle, que estava do lado de fora.

     - , 'Então”, disse com um sorriso, “era a senhora. Achei que devia ser quando vi a porta aberta”.

     - 'Estou com tanto medo!” disse ofegante.

     - Minha cara senhora! Minha cara senhora! “ Não imagina corno sua voz era suave e acariciante. “O que lhe deu tanto medo, minha cara?”

     - Mas a voz era macia demais. Ele exagerou. Fiquei prevenida contra

     - “Fiz a tolice de entrar nessa ala deserta”, respondi. “Estava tudo tão escuro, tão calado que fiquei com modo e saí correndo. Olhe, corno é solitário aí dentro! “

     - “Foi só isso?” disse, olhando-me atentamente.

     - 'W, por que pergunta?”

     - “Por que acha que tranco esta porta?”

     - “Claro que não sei”.

     'Para evitar a entrada de pessoas que não têm nada a fazer lá dentro. Entende?” Sorria ainda da maneira mais amável.

     “Estou certa'de que se soubesse...”

     - “Bem, agora sabe. E se ousar atravessar essa porta de novo...” em um segundo o sorriso se transformou em uma careta de raiva e me olhou com a cara de demônio, “eu a jogo ao mastim”.

     - Fiquei tão aterrorizada que não sei o que fiz. Suponho que passei por ele correndo e fui para meu quarto. Não me lembro de nada até me encontrar na cama, tremendo dos pés à cabeça. Então pensei no senhor, Sr. Holmes. Niro podia continuar a morar lá sem alguma ajuda. Estava com medo da casa, do homem, da mulher, dos empregados, até da criança. Todos me pareciam horríveis. Se conseguisse trazer o senhor aqui, tudo estaria bem. Naturalmente, podia ter fugido da casa, mas minha curiosidade era tão forte quanto meu medo. Tomei logo uma decisão. Ia lhe mandar um telegrama. Coloquei o chapéu e o casaco, fui até o telégrafo, que fica quase a um quilômetro da casa e voltei me sentindo muito melhor. Senti uma dúvida terrível quando me aproximei da porta de que o cão podia estar solto, mas me lembrei que Toller havia bebido tanto que estava inconsciente e sabia que ele era o único que tinha alguma influência sobre a criatura selvagem, ou que se aventuraria a soltá-la. Entrei sem que nada me acontecesse e fiquei acordada metade da noite de alegria, sabendo que ia vê-lo. Não tive problema em obter permissão para vir a Winchester hoje de manhã, mas tenho de voltar antes das três, pois o Sr. e a Sra. Rucastle vão sair para fazer uma visita e só voltarão à noite e tenho de tomar conta da criança. Essas são as minhas aventuras, Sr. Holmes, e ficaria muito grata se me dissesse o que tudo isso significa e, acima de tudo, o que devo fazer.

     Holmes e eu ouvíramos essa extraordinária história estupefatos. Meu amigo se levantou e andou de um lado para o outro com as mãos nos bolsos e uma expressão profundamente grave.

     - Toller ainda está bêbedo? - perguntou.

     - Sim. Ouvi a mulher dele dizer à Sra. Rucastle que não podia fazer nada com ele.

     - Isso é bom. E os Rucastles vão sair hoje à tarde?

     - sim.

     - Existe um porão com uma boa fechadura?

     - Sim, a adega.

     - A senhora agiu, aparentemente, em tudo isso como uma moça muito corajosa e sensata, Srta. Hunter. Acha que pode realizar mais uma proeza? Não lhe pediria isso se não achasse que é uma mulher excepcional.

     - Posso tentar. O que é?

     - Iremos a Faias Roxas às sete horas, meu amigo e eu. Os Rucastles já teria saído a essa hora e Toller estará, espero, incapacitado. Só resta a Sra. Toller, que poderá dar o alarma. Se pudesse mandá-la à adega, sob algum pretexto, e trancá-la à chave facilitaria imensamente tudo.

     - Isto posso fazer.

     - Excelente! Examinaremos cuidadosamente o assunto. Naturalmente, só há uma explicação admissível. A senhora foi levada lá para se fazer passar por outra pessoa, e essa pessoa está presa no quarto trancado. Isso é óbvio. E quanto à identidade da prisioneira, não tenho dúvidas de que se trata da filha, Srta. Alice Rucastle, que, se estou bem lembrado, diziam tinha ido para a América. A senhora foi escolhida, evidentemente, porque se parecia com ela em altura, corpo e cor de cabelo. O dela fora cortado, provavelmente por alguma doença e portanto o seu tinha de ser cortado também. Por um acaso a senhora encontrou o cacho de cabelo dela. O homem na estrada era, sem dúvida, um amigo dela, talvez seu noivo e certamente como a senhora usava o vestido da moça e se parecia tanto com ela, ficou convencido pelas suas gargalhadas, quando a via, e depois pelo seu gesto, que a Srta. Rucastle estava perfeitamente feliz e que não mais desejava suas atenções. O cão é solto à noite para evitar que ele tente se comunicar com ela. Até aí está tudo claro. O que há de mais sério nesse caso é o gênio da criança.

     - Que diabos tem isso a ver com o resto? - exclamei.

     - Meu caro Watson, você como médico está sempre procurando entender as tendências de uma criança pelo estudo dos pais. Não vê que o inverso é igualmente válido? Freqüentemente começo a compreender a personalidade dos pais pelo estudo de seus filhos. O gênio dessa criança é incrivelmente mau e cruel, uma crueldade sem razão e quer herde isso de seu sorridente pai, como suspeito, ou de sua mãe, isso é um mau agouro para a pobre moça que está em suas mãos.

     -'Estou certa que o senhor tem razão, Sr. Holmes - exclamou nossa cliente. - Estou me lembrando de mil coisas que confirmam que o senhor encontrou a solução. Oh, não devemos perder um segundo em levar algum auxílio a essa pobre criatura.

     - Devemos ser circunspectos, pois estamos lidando com um homem muito astuto. Não podemos fazer nada até às sete horas. Aí estaremos lá com a senhora e não levará muito tempo para resolvermos o mistério.

     , Cumprimos nossa palavra, pois às sete em ponto chegamos a Faias Roxas, deixando o carro em uma hospedaria na estrada. O grupo de árvores, com suas folhas escuras brilhando como metal polido à luz do sol poente, era suficiente para distinguir a casa, mesmo que a Srta. Hunter não estivesse na porta, sorrindo.

     - Conseguiu? - perguntou Holmes.

     Pancadas altas vieram de algum lugar embaixo da casa.

     - É a Sra. Toller presa na adega - disse, - O marido está roncando no chão da cozinha. Aqui estão as chaves dele, que são duplicatas das do Sr. Rucastle.

     - A senhora trabalhou muito bem mesmo! - disse Holmes, com entusiasmo. - Agora nos mostre o caminho e logo veremos o final desse negócio negro.

     Subimos as escadas, abrimos a porta, seguimos um corredor e nos encontramos em frente da porta que a Srta. Hunter descrevera. Holmes cortou a corda grossa e retirou a barra. Experimentou, então, várias chaves, sem sucesso. Nenhum som vinha de dentro do quarto e o silêncio fez Holmes franzir a testa.

     - Espero que não seja tarde demais - disse. - Acho, Srta. Hunter, que é melhor entrarmos sem a senhora. Vamos, Watson, ponha o ombro contra a porta e veremos se não conseguimos entrar.

     Era uma porta velha e frágil e cedeu aos nossos esforços unidos. Juntos entramos no quarto. Estava vazio. Não havia nenhuma mobília, exceto um colchão de palha, uma pequena mesa e uma cesta cheia de roupas. Uma clarabóia no teto estava aberta e a prisioneira fugira.

     - Houve alguma coisa criminosa aqui - disse Holmes. - O vilão adivinhou as intenções da Srta. Hunter e carregou sua vítima.

     - Mas como?

     - Pela clarabóia. Logo saberemos como conseguiu. - Segurou-se nas bordas da abertura e olhou o telhado. - Ali, sim - exclamou. - Aqui está uma escada, encostada na beira do telhado. Foi assim que a levou.

     - Mas é impossível - disse a Srta. Hunter. - Essa escada não estava aí quando os Rucastles saíram.

     -Ele deve ter voltado então. Estou lhe dizendo que é um homem esperto e perigoso. Não ficaria surpreso se esses passos que estou ouvindo na escada fossem dele. Acho, Watson, que seria aconselhável você ficar de pistola em punho.

     Mal acabara de falar, quando surgiu um homem à porta do quarto, um homem muito gordo com um cacete na mão. A Srta. Hunter gritou e se encolheu junto à parede quando o viu, mas Sherlock Holmes avançou e enfretou-O.

     - Vilão! - disse. - Onde está sua filha?

     O homem gordo olhou em volta e depois para a clarabóia aberta.

     - Eu é que tenho de perguntar isso! - berrou. - Ladrões! Espiões e ladrões! Peguei vocês, não é? Estão em meu poder. Tornarei conta de vocós! - Virou de costas e desceu as escadas o mais rápido possível.

     - Foi buscar o cão! - exclamou a Srta. Hunter.

     - Tenho meu revólver - eu disse.

     - É melhor fechar a porta da frente - disse Holmes e descemos as escadas correndo. Mal chegamos quando ouvimos os latidos do cio e em da um grito de agonia, com o ruído horrível de dentes triturando, que arrepiava de ouvir. Um homem idoso de cara vermelha e membros trêmulos saiu cambaleando de uma porta lateral.

     - Meu Deus! - gritou. - Alguém. soltou o cão. Ele não come há dois dias. Depressa, depressa, ou será tarde demais!

     Holmes e eu saímos correndo para casa, com Toller correndo atrás. Lá estava o imenso e faminto animal com o focinho preto afundado na garganta de Rucastle, enquanto este se retorcia no chão e gritava. Chegando perto, estourei seus miolos e caiu de lado com os dentes brancos ainda agarrados nas dobras do pescoço do vilão. Com muito esforço, separamos os dois e carregamos o homem horrivelmente estraçalhado mas ainda vivo para dentro de casa, colocando-o no sofá da sala. Despachamos o Toller repentinamente sóbrio para dar a notícia à sua mulher e fiz o que podia para aliviar sua dor. Estávamos todos em seu redor quando a porta se abriu e uma mulher alta e magra entrou na sala.

     - Sra. Toller! - exclamou a Srta. Hunter.

     - Sim, senhora. O Sr. Rucastle me soltou quando voltou, antes de subir. Ali, senhora, é urna pena que não tivesse me dito o que estava indo, pois eu lhe diria que todo seu esforço seria em vão.

     - Ah! - disse Holmes, olhando atentamente para ela. É claro que a Sra. Toller sabe mais sobre isso que qualquer outra pessoa.

     - Sim, senhor, sei, e estou pronta a contar tudo que sei.

     - Então, por favor, sente-se e fale, pois há vários pontos em que devo confessar que ainda estou no escuro.

     - Vou deixar tudo claro para o senhor - respondeu - e já teria feito isso se tivesse conseguido sair do porão. Se houver um inquérito policial sobre isso, lembre-se que fiquei de seu lado e que era amiga da Srta. Alice.

     - Ela nunca se sentiu feliz em casa, a Srta. Alice, desde que o pai se casou novamente. Ela ficou meio abandonada e não podia dar opinião em coisa alguma. Mas só ficou muito ruim para ela depois que conheceu o Sr. Fowler em casa de uma amiga. Pelo que pude saber, a Srta. Alice tinha herdado alguma coisa diretamente, mas era tão quieta e paciente que nunca falava nisso e deixava tudo nas mãos do Sr. Rucastle. Ele sabia que estava seguro, mas quando surgiu a chance de um marido, que pediria tudo a que tinha direito por lei, então o pai achou que estava na hora de acabar com tudo isso. Queria que ela assinasse um papel de forma que, casasse ou rifo, ele poderia usar o dinheiro dela. Quando ela recusou, ficou atrás dela até que ela teve uma febre cerebral e durante seis semanas ficou entre a vida e a morte. Finalmente melhorou, magra como um esqueleto, e com o lindo cabelo cortado rente. Mas isso não alterou o rapaz que gostava dela e continuou fiel como poucos homens são.

     - Ah, - disse Holmes - acho que o que teve a bondade de nos contar esclarece bem as coisas e posso deduzir o resto. O Sr. Rucastle, presumo, recorreu então a essa forma de prisão?

     - Sim, senhor.

     - E trouxe a Srta. Hunter de Londres para se livrar da persistência de828radfivel do Sr. Fowler.

     - Foi isso mesmo, senhor.

     - Mas o Sr. Fowler, sendo perseverante, corno todos os homens do mar devem ser, cercou a casa e, travando conhecimento com a senhora, conseguiu com certos argumentos, metálicos ou não, convencê-la que seus interesses eram iguais aos dele.

     - O Sr. Fowler era um cavalheiro de palavras bondosas e mão aberta -disse a Srta. Toller serenamente.

     - E dessa forma conseguiu que seu marido tivesse bastante bebidas à niffo e que uma longa escada estivesse pronta assim que seu patrão saiu.

     - O senhor está certo, senhor, foi assim mesmo que aconteceu.

     - Estou certo que lhe devemos uni pedido de desculpas, Sra. Toller -disse Holmes. - A senhora certamente esclareceu tudo que nos perturbava. E aí vem o médico do Condado e a Sra. Rucastle e acho, Watson, que é melhor levarmos a Srta. Hunter para Winchester, pois parece que nosso ZOCUS Standí no momento é altamente duvidoso.

     E assim foi solucionado o mistério da casa sinistra com as faias roxas em frente. O Sr. Rucastle sobreviveu, mas ficou para sempre um homem al. quebrado, mantido vivo somente pelos cuidados de sua devotada esposa. Vivem ainda com seus velhos empregados, que provavelmente sabem tanto sobre o passado de Rucastle que ele acha difícil se separar deles. O Sr. Fowler e a Srta. Rucastle casaram, por licença especial, em Southampton no dia seguinte ao de sua fuga e ele agora foi designado pelo governo para um posto na Ilha de Mauritius. Quanto à Srta. Violet Hunter, meu amigo Holmes, para meu grande desapontamento, não manifestou mais nenhum interesse nela desde que cessou de ser o centro de um de seus problemas, e é agora diretora de uma escola particular em Walsall, onde creio que faz grande sucesso.

 

                                                                                            Arthur Conan Doyle

 

 

                      

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