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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Delator / Tess Gerritsen
O Delator / Tess Gerritsen

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Delator

 

Após a morte misteriosa de Gerald Martinique, um cientista cuja especialidade era pesquisa de vírus, o bioquímico Victor Holland desconfia que talvez a eliminação de seu colega esteja ligada a um motivo maior. Afinal, Gerald deixara evidências de que havia algo muito errado acontecendo na Viratek, laboratório em que ambos trabalhavam, depois que a empresa recebera uma bolsa do governo para o desenvolvimento de um projeto de defesa.

Em posse de um rolo de filme que provaria um suposto envolvimento de entidades públicas com guerra viral e decidido a fazer uma denúncia, Victor entra em contato com o agente do FBI Sam Polowsky, com quem marca um encontro para entregar as evidências. Mas a reunião jamais acontece, e Victor se torna suspeito pela morte de Gerald, sendo o motivo do crime espionagem industrial.

Após ser baleado enquanto fugia, Victor se joga na frente do carro de Cathy Weaver. Ela não tem opção a não ser levá-lo para o hospital mais próximo. Porém, ao socorrê-lo, coloca não só sua vida em risco, como a de outras pessoas que a cercam ou que possuem o mesmo nome dela...

Em uma corrida alucinante contra o tempo, Victor e Cathy precisam descobrir um meio de recuperarem o rolo de filme perdido durante a fuga para que possa ser delatada uma pesquisa proibida por leis internacionais. Mas há cada vez menos chances de atingirem seus objetivos, pois alguém com muito poder controla todos os seus passos.

 

GALHOS DE ÁRVORES AÇOITAVAM SEU ROSTO, e seu coração batia tão forte que ele achou que o peito explodiria. Mas não podia parar de correr. Já ouvia o sujeito se aproximando, quase imaginava a bala atravessando a noite e atingindo-o nas costas. Talvez já tivesse sido baleado. Talvez estivesse deixando para trás um rio de sangue. Naquele momento, estava aterrorizado demais para sentir algo além da fome desesperada de viver. A chuva escorria pelo rosto em camadas geladas e obliterantes, e tamborilava sobre as folhas mortas de inverno. Ele tropeçou em meio à escuridão e caiu de barriga sobre a lama. Fez muito barulho ao cair. Alertado pelo ruído de gravetos quebrados, seu perseguidor alterou o curso da corrida e agora vinha diretamente em sua direção. O som abafado de um silenciador, o sibilar de uma bala rente ao rosto, informou-o que havia sido descoberto. Ele obrigou-se a se erguer e virou abruptamente para a esquerda, correndo em ziguezague de volta à estrada. Ali, no bosque, seria um homem morto. Contudo, se conseguisse fazer um carro parar, se pudesse chamar a atenção de alguém, talvez tivesse alguma chance.

Um ruído de gravetos quebrados seguido de um palavrão indicaram-lhe que seu perseguidor caíra e que ele ganhara alguns segundos preciosos. Continuou a correr, seguindo apenas um senso de direção instintivo. Não havia luz para guiar o caminho, nada exceto o brilho tênue das nuvens no céu noturno. A estrada tinha de estar mais adiante. A qualquer momento seus pés estariam caminhando sobre o asfalto.

E depois o quê? E se não houver carro a parar, ninguém para me ajudar?

Então, através das árvores à sua frente, viu um vago tremular, dois indistintos fachos de luz.

Aumentando desesperadamente a velocidade, correu em direção ao carro. Seus pulmões queimavam e seus olhos estavam cegos pelo açoite dos galhos e da chuva. Outra bala passou por ele e se alojou em um tronco de árvore, mas o atirador às suas costas subitamente perdera toda a importância. Tudo o que importava eram aquelas luzes acenando para ele através da escuridão, atraindo-o com uma promessa de salvação.

Quando subitamente chegou à estrada, ficou chocado. As luzes ainda estavam longe, oscilando em algum lugar além das árvores. Teria perdido a passagem do carro? Já estaria se afastando, além da curva? Não, lá estava ele, mais claro agora. Vinha em sua direção. Ele correu para encontrá-lo, seguindo a curva da estrada e sabendo todo o tempo que, em espaço aberto, seria um alvo fácil. O som dos sapatos contra a estrada molhada tomava conta de seus ouvidos. As luzes voltaram-se em sua direção. Nesse instante, ele ouviu um terceiro disparo. A força do impacto o fez cair de joelhos e ele vagamente deu-se conta da bala rasgando-lhe o ombro, do calor do próprio sangue escorrendo pelo braço. Mas não sentiu dor. Só conseguia se concentrar em continuar vivo. Ergueu-se precariamente, deu um passo trôpego para a frente...

E foi ofuscado pelo brilho dos faróis. Não havia tempo de sair da frente, tempo sequer para registrar o pânico. Os pneus derraparam sobre o asfalto, erguendo uma rajada de água.

Ele não registrou o impacto. Quando deu por si, estava caído no chão. A chuva entrava em sua boca e ele sentia muito, muito frio.

Só sabia que tinha de fazer algo, algo importante.

Trêmulo, vasculhou o bolso do casaco e encontrou o pequeno cilindro de plástico. Ele não se lembrava bem por que aquilo era tão importante, mas ainda estava ali, e isso o aliviou. Ele o agarrou com força na palma da mão.

Alguém chamava por ele. Uma mulher. Ele não conseguia ver o rosto dela através da chuva, mas podia ouvir-lhe a voz, rouca e em pânico, em meio ao zumbido que soava dentro de sua cabeça. Tentou falar, tentou adverti-la de que tinham de ir embora dali, que a morte os espreitava no bosque. Mas tudo o que saiu de sua boca foi um gemido.

 

UMA ÁRVORE TOMBARA NA ESTRADA a uns cinco quilômetros de Redwood Valley e, por causa da chuva forte e do engarrafamento, Catherine Weaver demorou três horas para chegar a Willits. Àquela altura já eram 22h e ela sabia que não chegaria a Garberville antes da meia-noite. Esperava que Sarah não ficasse acordada a noite inteira esperando por ela. Mas, conhecendo Sarah como conhecia, sabia que haveria jantar ainda quente no fogão e fogo aceso na lareira. Perguntou-se como a amiga estaria se saindo com a gravidez. Maravilhosamente, é claro. Sarah falara daquele bebê durante anos e escolhera o nome — Sam ou Emma — muito antes de ser concebido. Estar sem marido parecia um fato de menor importância. "Há um prazo para se procurar o pai certo", dissera Sarah. "Depois, é preciso cuidar de tudo por conta própria."

Foi o que ela fez. Com o relógio biológico marcando furiosamente seus últimos anos, Sarah dirigiu até São Francisco para visitar Cathy e calmamente selecionou uma clínica de fertilidade na lista telefônica. É claro que escolheu uma clínica de mentalidade liberal. Uma que compreendesse os anseios desesperados de uma mulher solteira de 39 anos. A inseminação em si fora um assunto friamente clínico, diria mais tarde. Suba na mesa, enfie os pés nos estribos e, cinco minutos depois, você está grávida. Bem, quase. Mas foi um procedimento simples, os doadores eram comprovadamente saudáveis e, melhor de tudo, uma mulher podia satisfazer seus instintos maternais sem toda aquela bobagem de casamento.

Sim, o velho jogo do casamento. Ambas passaram por aquilo. E, após seus respectivos divórcios, as duas seguiram em frente, embora com cicatrizes de batalha.

Como Sarah é corajosa, pensou Cathy. Ao menos tem coragem de enfrentar tudo sozinha.

Uma antiga raiva voltou a tomar conta dela, ainda potente o bastante para fazê-la cerrar os lábios. Ela podia perdoar muitas coisas de Jack, seu ex-marido. O egoísmo. As exigências. A infidelidade. Mas jamais poderia perdoá-lo por negar-lhe a chance de ter um filho. Ah, ela podia ter ido contra os desejos dele e engravidado de qualquer modo, mas ela queria que ele também desejasse aquilo. Por isso, esperou a hora certa. Contudo, durante seus dez anos de casamento, ele nunca estivera "pronto", nunca sentira que era a "hora certa". O que Jack devia ter dito era a verdade: que ele era egocêntrico demais para se importar com um bebê.

Tenho 37 anos, pensou. Não tenho mais marido. Nem mesmo tenho um namorado fixo. Mas ficaria satisfeita se pudesse ter um filho em meus braços.

Ao menos, Sarah logo seria contemplada.

Mais quatro meses e, então, o bebê nasceria. O bebê de Sarah. Cathy teve de sorrir ao pensar nisso, apesar da chuva que golpeava o  pára-brisa. Caía com mais força agora. Mesmo com os limpadores em velocidade máxima, mal conseguia ver a estrada. Ela olhou para o relógio e viu que já eram 23h30. Não havia outros carros à vista. Se tivesse problemas com o motor, ela provavelmente teria de passar a noite ali, encolhida no banco traseiro, esperando a chegada do socorro.

Olhando fixamente para a frente, tentava enxergar a linha divisória da estrada, mas nada via além de uma sólida muralha de chuva. Aquilo era ridículo. Ela devia ter parado naquele motel em Willits, mas Cathy odiava a idéia de parar a apenas oitenta quilômetros de seu destino, especialmente quando já chegara tão longe.

Foi quando viu a placa: Garberville, 17 quilômetros. Então, estava mais perto do que pensava. Uns 42 quilômetros mais para a frente haveria um desvio e uma viagem de oito quilômetros através de uma densa floresta até a casa de Sarah. A idéia de estar tão perto a impacientou e ela acelerou o velho Datsun até 80km/h. Era algo arriscado, especialmente naquelas condições, mas a idéia de uma casa e de uma xícara de chocolate quente era por demais tentadora.

A estrada curvou-se inesperadamente. Assustada, ela girou o volante para a direita e o carro saiu de lado, derrapando perigosamente sobre o asfalto molhado. Ela sabia que não podia pisar no freio. Em vez disso, agarrou o volante, lutando para recuperar o controle. Os pneus escorregaram alguns metros, um trajeto de gelar o coração que a levou até a beira da estrada. Justo quando pensou que bateria nas árvores, os pneus ganharam aderência sobre o asfalto. O carro ainda estava a uns 30km/h, mas ao menos se movia em linha reta. Com mãos úmidas, ela conseguiu fazer o resto da curva.

O que aconteceu a seguir pegou-a completamente de surpresa. Em um momento ela se parabenizava por ter evitado o desastre, no outro olhava para a frente, incrédula.

O homem apareceu do nada. Estava agachado na estrada e foi iluminado pelo brilho dos faróis como um animal selvagem. Os reflexos assumiram o controle. Ela pisou no freio, mas já era tarde. O guinchar dos pneus foi entrecortado pelo ruído do impacto de um corpo humano contra o capô do carro.

Durante o que lhe pareceu uma eternidade, ela ficou imóvel, incapaz de fazer qualquer coisa além de agarrar o volante e olhar os limpadores de pára-brisa deslizando de um lado a outro. Então, quando se deu conta do que acabara de fazer, abriu a porta e saiu correndo em meio à chuva.

A princípio nada conseguiu enxergar através do aguaceiro, apenas uma faixa de asfalto molhado iluminada pelo brilho tênue de suas luzes traseiras. Onde ele está?, pensou, em pânico. Com os olhos molhados pela chuva, fez o caminho inverso tentando enxergar no escuro. Então, acima do ruído da chuva, ouviu um gemido. Vinha de algum lugar no acostamento, perto das árvores.

Mudando de direção, embrenhou-se na escuridão e afundou até os tornozelos em lama e agulhas de pinheiros. Outra vez ouviu o gemido, mais perto agora, quase ao seu alcance.

— Onde você está? — gritou. —Ajude-me a encontrá-lo!

— Aqui...

A resposta foi tão fraca que ela mal a ouviu, mas era tudo de que precisava. Voltando-se, deu alguns passos e quase tropeçou no corpo tombado no escuro. A princípio, parecia ser apenas um amarfanhado confuso de roupas encharcadas, então conseguiu localizar a mão dele e sentir-lhe o pulso. Estava rápido, embora estável, provavelmente mais estável do que o dela, que disparara. Os dedos dele subitamente agarraram a sua mão em desespero. Ele apoiou-se nela e tentou se erguer.

— Por favor! Não se mexa! — disse ela.

— Não posso... Não posso ficar aqui.

— Onde dói?

— Não há tempo. Ajude-me. Rápido...

— Não até me dizer onde dói!

Ele estendeu a mão e agarrou-lhe o ombro em uma tentativa desajeitada de se levantar. Para a surpresa de Cathy, conseguiu erguer-se até a metade. Por um instante balançaram juntos, então ele pareceu fraquejar e ambos tombaram de joelhos sobre a lama. A respiração do sujeito tornara-se áspera e irregular, e ela se perguntou quão ferido estaria. Se estivesse com uma hemorragia interna, morreria em alguns minutos. Ela precisava levá-lo a um hospital imediatamente, mesmo que tivesse de arrastá-lo para o carro.

— Muito bem. Vamos tentar outra vez — disse Cathy, agarrando-lhe o braço esquerdo e apoiando-o ao redor de seu pescoço. Ao fazê-lo, assustou-se com seu gemido de agonia e o soltou. O braço dele deixou um rastro pegajoso ao redor de seu pescoço. Sangue.

— Meu outro lado está bom — murmurou ele. — Tente outra vez. Cathy foi até o lado direito do sujeito e puxou-lhe o braço ao redor do pescoço. Se não estivesse tão assustada, aquilo teria lhe parecido uma cena cômica, os dois lutando como bêbados para se levantarem. Quando finalmente conseguiram se erguer e pairaram oscilando sobre a lama, ela se perguntou se ele ainda teria forças para pôr um pé na frente do outro. Ela certamente não conseguiria carregá-lo. Embora ele fosse magro, era muito mais alto do que ela imaginara e pesava muito mais do que seu 1,68m seria capaz de suportar.

Mas algo parecia empurrá-lo adiante, uma energia vinda de alguma reserva oculta. Apesar das roupas encharcadas, Cathy podia sentir o calor de seu corpo e a urgência que o empurrava para a frente. Diversas perguntas afloravam à sua mente, mas a respiração estava por demais ofegante para que pudesse externá-las. Todos os seus esforços tinham de se concentrar em levá-lo até o carro e, dali, para um hospital.

Agarrando-o pela cintura, segurou-o pelo cinto. Voltaram precariamente para a estrada, lutando a cada passo. O braço dele sobre seu pescoço parecia tenso como um cabo de aço. Na verdade, todo o seu corpo parecia tenso. Havia algo de desesperado no modo como seus músculos lutavam para avançar. Sua urgência parecia penetrar através da pele de Cathy. Era um pânico tão palpável quanto o calor de seu corpo e ela subitamente foi contaminada pela necessidade de fugir, necessidade ainda mais desesperadora pelo fato de não poderem andar mais rápido do que aquilo. De tempos em tempos ela precisava fazer uma pausa para afastar o cabelo encharcado e enxergar para onde estavam indo. Ao redor, a chuva e a escuridão impediam a visão de seja lá qual perigo os ameaçasse.

As luzes traseiras do carro brilhavam à sua frente como olhos de rubi piscando na noite. A cada passo o sujeito ficava mais pesado, e as pernas dela estavam tão bambas que Cathy achou que cairiam na estrada. Se caíssem, ela não teria força para erguê-lo outra vez. A cabeça dele já se inclinava contra seu rosto e a água de seu cabelo encharcado escorria pelo seu pescoço. O simples ato de pôr um pé na frente do outro era tão automático que ela nem mesmo considerou largá-lo na estrada e dar ré com o carro para buscá-lo. E as luzes traseiras já estavam bem perto, logo depois do último véu de chuva.

Enquanto o conduzia até o banco do passageiro, o braço de Cathy parecia a ponto de se desprender do resto do corpo. Com o sujeito a ponto de escorregar de suas mãos, mal e mal conseguiu abrir a porta. Ela não tinha força suficiente para ser gentil e simplesmente o empurrou para dentro do veículo.

Ele tombou flácido sobre o banco da frente com as pernas ainda para fora do carro. Ela se agachou, agarrou-lhe os tornozelos e os ergueu um a um para dentro do carro, percebendo com certo senso de distanciamento que nenhum homem com pés tão grandes poderia ser belo.

Quando Cathy se sentou ao volante ele tentou erguer a cabeça, mas logo voltou a deixá-la cair.

— Rápido — murmurou.

Ao girar a chave na ignição, o motor engasgou e morreu. Meu Deus, implorou. Pegue. Pegue! Ela desligou a chave, contou lentamente até três e tentou outra vez. Dessa vez o motor pegou. Quase gritando de alívio, ela engatou a marcha e saiu cantando pneus em direção a Garberville. Até mesmo uma cidade tão pequena tinha de ter um hospital ou, no mínimo, uma clínica de emergência. A pergunta era: poderia encontrá-la naquele temporal? E se estivesse errada? E se o auxílio médico mais próximo ficasse em Willits, na direção oposta? Ela podia estar desperdiçando minutos preciosos na estrada enquanto o homem sangrava até a morte.

Ao pensar nisso, entrou em pânico e olhou para o passageiro. Pelo brilho do painel, viu que a cabeça dele ainda estava tombada contra o assento. Ele não se movia.

— Ei! Você está bem? — gritou.

A resposta veio em um murmúrio.

— Ainda estou aqui.

— Meu Deus! Por um minuto eu pensei... — Ela voltou a olhar para a estrada, coração disparado. — Tem de haver uma clínica em algum lugar.

— Perto de Garberville... Há um hospital...

— Sabe como encontrá-lo?

— Passei por lá de carro... Vinte e quatro quilômetros...

Se veio dirigindo, onde está o seu carro?, pensou Cathy.

— O que houve? — perguntou. — Sofreu um acidente?

Ele começou a falar, mas sua resposta foi interrompida por um súbito rebrilhar. Lutando para se erguer, ele se voltou e olhou para os faróis de outro carro que os seguia ao longe. O palavrão que murmurou a fez olhar para o lado, alarmada.

— O que foi?

— Aquele carro.

Ela olhou no espelho retrovisor.

— O que tem?

— Há quanto tempo está nos seguindo?

— Não sei. Alguns quilômetros. Por quê?

O esforço de manter a cabeça erguida subitamente pareceu demasiado para ele, que a deixou tombar com um gemido.

— Não consigo pensar — murmurou ele. — Meu Deus, não consigo pensar...

Ele perdeu sangue demais, pensou Cathy. Em pânico, pisou fundo no acelerador. O carro parecia saltar através da chuva, o volante vibrando descontroladamente enquanto os pneus deixavam para trás um rastro de água vaporizada. Ela atravessava a escuridão em uma velocidade estonteante. Devagar, devagar! Ou vou matar a nós dois.

Tirando o pé do acelerador, deixou que o velocímetro baixasse para confortáveis oitenta quilômetros por hora. O sujeito estava lutando para se aprumar outra vez.

— Por favor, mantenha a cabeça baixa! — pediu Cathy.

— Aquele carro...

— Não está mais lá.

—Tem certeza? — Cathy olhou para o retrovisor. Através da chuva, viu apenas um brilho tênue, mas nada tão definido quanto a luz de faróis.

— Tenho — mentiu. E sentiu-se aliviada ao ver que ele lentamente voltou a se recostar. Quanto falta?, pensou. Dez quilômetros? Vinte? Então, um pensamento veio-lhe à mente: ele pode morrer antes de chegarmos.

Seu silêncio a aterrorizou. Ela precisava ouvir-lhe a voz, precisava se certificar de que ele não perdera os sentidos.

— Fale comigo — pediu. — Por favor.

— Estou cansado...

— Não pare. Continue falando. Qual... Qual seu nome?

A resposta não passou de um murmúrio:

— Victor.

— Victor. É um belo nome. Gosto dele. O que faz na vida, Victor?

O silêncio a certificou de que ele estava fraco demais para conversar. Mas ela não podia deixá-lo perder a consciência! Por algum motivo, parecia subitamente crucial mantê-lo desperto, em contato com uma voz viva. Se aquela frágil ligação se quebrasse, ela temia que ele se fosse para sempre.

— Tudo bem — disse Cathy, obrigando-se a manter a voz baixa e tranqüila. — Então falo eu. Não precisa dizer nada. Apenas ouça. Continue ouvindo. Meu nome é Catherine. Cathy Weaver. Moro em São Francisco, no distrito de Richmond. Conhece a cidade? — Não houve resposta, mas ela pressentiu um movimento de cabeça, um reconhecimento silencioso de suas palavras. — Muito bem — prosseguiu, preenchendo o silêncio com o que lhe vinha à mente. — Talvez você não conheça a cidade. Realmente não importa. Trabalho em uma produtora de cinema independente. Na verdade, é a empresa do Jack, meu ex-marido. Fazemos filmes de terror. Classe B. Mas dão dinheiro. O último que fizemos foi Reptiliano. Eu fiz os efeitos especiais de maquiagem. Coisas horríveis. Um bocado de gosma e escamas verdes... — Ela riu e seu riso soou de modo estranho, em pânico, com um tom indisfarçável de histeria.

Ela precisava lutar para recuperar o controle.

Um brilho a fez olhar atentamente para o espelho retrovisor. Viu um par de faróis muito tênues através da chuva. Durante alguns segundos ficou olhando para aquilo, perguntando-se se deveria alertá-lo. Então, como se fossem fantasmas, os faróis voltaram a desaparecer.

— Victor? — chamou.

Ele respondeu com um gemido ininteligível, mas era tudo o que ela precisava para ter certeza de que ele ainda estava vivo. Que estava ouvindo. Tenho de mantê-lo desperto, pensou, buscando outro assunto de conversa. Ela nunca fora boa nesse tipo de conversa-fiada tão valorizada em festas e coquetéis de cineastas. O que ela precisava agora era de uma piada, embora idiota, desde que fosse vagamente engraçada. O riso cura. Não lera isso em algum lugar? Que uma alta dose de humor podia fazer os tumores regredirem? Ah, claro, censurou-se. Basta fazê-lo rir e a hemorragia há de estancar milagrosamente... De qualquer modo, não conseguia pensar em uma piada, nenhuma maldita piada. Então, voltou ao assunto que primeiro lhe viera à mente: seu trabalho.

— Nosso próximo projeto está marcado para janeiro. Ladrões de cemitério. Vamos filmar no México, o que odeio, porque o maldito calor derrete a maquiagem... — Ela olhou para Victor, mas não obteve resposta, nem um esboço de movimento. Com medo de o estar perdendo, ela estendeu a mão para sentir-lhe o pulso, e descobriu que a mão dele estava enfiada profundamente no bolso do casaco. Ela tentou livrá-la e, para sua surpresa, ele reagiu à invasão com resistência imediata e feroz.

Acordando de súbito, ele golpeou cegamente em direção a Cathy, tentando afastá-la.

— Victor, está tudo bem! — gritou, tentando dirigir e se proteger ao mesmo tempo. — Está tudo bem! Sou eu, Cathy. Só estou querendo ajudá-lo! — Ao ouvir o som de sua voz, ele parou de lutar. Quando a tensão se esvaiu de seu corpo, ela sentiu a cabeça de Victor pousar lentamente sobre seu ombro.

— Cathy — murmurou. Parecia maravilhado, aliviado. —Cathy...

— Isso. Sou apenas eu. — Gentilmente, ela penteou para trás os fios de seu cabelo molhado. Perguntou-se de que cor seria, uma preocupação que lhe pareceu totalmente irrelevante, mas que ainda assim a perturbava. Ele tocou-lhe a mão.

Seus dedos se fecharam sobre os dela em um toque  surpreendentemente firme e reconfortante. Dizia: Ainda estou aqui. Estou aquecido, vivo e respirando. Ele levou a palma da mão dela aos lábios. O gesto foi tão carinhoso que ela se assustou com a aspereza daquele queixo não barbeado roçando contra sua pele. Era uma carícia entre estranhos que a deixou trêmula e abalada.

Cathy levou a mão de volta ao volante e concentrou toda  a sua atenção na estrada. Ele se calara outra vez, mas ela não pôde ignorar o peso da cabeça sobre seu ombro e nem a respiração dele contra seu cabelo.

O temporal amainou em uma chuva fina, embora constante, e ela acelerou para 85km/h. Passou pelo café Sunnyside Up, uma construção inexpressiva sob um único poste de luz, e teve um breve relance do rosto de Victor. Só pôde ver-lhe o perfil: testa alta, nariz reto, queixo proeminente. Então a luz se foi e ele voltou a ser uma sombra respirando suavemente de encontro ao seu corpo. Mas ela vira o bastante para saber que jamais esqueceria aquele rosto. Mesmo ao olhá-lo no escuro, seu perfil flutuava diante dela como uma imagem gravada em sua memória.

— Temos de estar perto — disse ela, mais para convencer a si mesma do que a ele. — Onde há um café, certamente haverá uma cidade. —Não obteve resposta. —Victor? — Ainda sem resposta. Engolindo o próprio pânico, acelerou para 90km/h.

Embora tivessem passado pelo Sunnyside Up havia dois quilômetros, ela ainda conseguia ver o poste de luz brilhando no retrovisor. Demorou alguns segundos para se dar conta de que não via apenas uma luz, mas duas, e que essas luzes se moviam: um par de faróis atravessando a estrada. Seria o mesmo carro que ela vira anteriormente?

Hipnotizada, Cathy observou as luzes dançando como dois espectros entre as árvores até desaparecerem subitamente em meio à escuridão. Um fantasma?, perguntou-se irracionalmente. A qualquer momento ela esperava que as luzes se materializassem outra vez, voltando a projetar seu brilho fantasmagórico contra a floresta. Ela olhava tão intensamente para o retrovisor que quase não viu a placa:

Garberville, Pop. 5.750

Gasolina — Comida — Alojamento

Um quilômetro mais adiante, avistou o brilho amarelado de postes de luz em meio à névoa e à chuva fina. Uma carreta passou na direção oposta. Embora o limite de velocidade tivesse caído para 60km/h, ela manteve o pé no acelerador e, pela primeira vez na vida, rezou para que um carro de polícia a perseguisse.

A placa Hospital pareceu ter surgido do nada. Ela freou e entrou no desvio. Algumas centenas de metros adiante, uma placa vermelha onde se lia a palavra Emergência a orientou a pegar um acesso de veículos até uma entrada lateral. Deixando Victor no banco da frente, entrou correndo através de uma sala de espera vazia e gritou para uma enfermeira que estava sentada diante de uma escrivaninha:

— Por favor, me ajude! Tenho um homem em meu carro...

A enfermeira levantou-se imediatamente, seguiu Cathy até fora do prédio, olhou para o homem no banco da frente e gritou pedindo ajuda.

Mesmo com o auxílio de um médico corpulento da emergência, tiveram dificuldade para tirar Victor de dentro do carro. Ele escorregara para o lado e seu braço estava preso sob a alavanca do freio de mão.

— Ei, senhora! — gritou o médico para Cathy. — Vá pelo outro lado e solte o braço dele!

Cathy foi até o banco do motorista. Então hesitou. Teria de mexer no braço ferido. Ela tomou-lhe o cotovelo e tentou livrá-lo da alavanca de freio, mas descobriu que seu relógio de pulso estava agarrado no bolso do casaco. Depois de liberar a correia do relógio, pegou o braço dele e o ergueu sobre o freio. Ele respondeu com um gemido de pura agonia. O braço tombou no chão.

— Muito bem! — disse o médico. — O braço está livre! Agora, apenas o empurre em minha direção que nós o pegamos aqui. — Cuidadosa, ele empurrou a cabeça e os ombros de Victor em direção à porta. Então, voltou a sair do carro para ajudar a colocá-lo na maca. Três correias foram atadas. Tudo se tornou um tumulto de barulho e movimento enquanto a maca era levada para dentro do prédio através de portas duplas escancaradas.

— O que aconteceu? — gritou o médico por sobre o ombro.

— Eu o atropelei... Na estrada...

— Quando?

— Há uns quinze, vinte minutos.

— Em que velocidade você estava?

— Uns 60km/h.

— Ele estava consciente quando o encontrou?

— Durante uns dez minutos, sim... Então apagou...

Uma enfermeira disse:

— A camisa está encharcada de sangue. Ele tem vidro quebrado no ombro.

Naquela corrida louca sob fortes luzes fluorescentes, Cathy teve a primeira visão clara de Victor. Viu um rosto magro, sujo de lama, mandíbula tensa de dor e uma testa larga coberta pelo cabelo castanho-claro encharcado. Ele estendeu o braço tentando segurar a mão dela.

— Cathy...

— Estou aqui, Victor.

Ele a segurou com força, recusando-se a largá-la. A pressão de seus dedos contra sua pele era quase dolorosa. Com olhos repletos de dor, ele murmurou:

— Preciso... Preciso lhe dizer...

— Depois! — interrompeu o médico.

— Não, espere! — Victor lutava para mantê-la à vista, para continuar ao seu lado. Tentou falar, rugas de agonia gravadas em seu rosto.

Cathy curvou-se em direção a ele, atraída pelo desespero daquele olhar.

— Sim, Victor — murmurou, acariciando-lhe o cabelo, ansiosa para aliviar-lhe o sofrimento. O vínculo que mantinham através de suas mãos, de seus olhares, parecia forjado em metal eterno. — Diga.

— Não podemos nos demorar! — gritou o médico. — Levem-no para a sala.

Imediatamente, a mão de Victor foi separada da dela e ele foi levado para a sala de trauma, um cômodo apavorante de aço inoxidável e luzes claras e ofuscantes, onde o pousaram sobre uma mesa cirúrgica.

— Pulso a 110 — disse uma enfermeira. — Pressão em 85 por 50!

— Vamos aplicar duas intravenosas — ordenou o médico. — Seis unidades de sangue. E procurem um cirurgião. Vamos precisar de ajuda...

O matraquear de vozes, o clangor metálico de gabinetes, instrumentos e suportes de intravenosas era ensurdecedor. Ninguém parecia notar Cathy de pé junto à porta, que observou horrorizada quando uma enfermeira pegou uma faca e começou a cortar as roupas ensangüentadas de Victor. A cada corte, mais pele era exposta, até a camisa e o casaco estarem em frangalhos, revelando um peito largo recoberto de pelos castanhos. Para os médicos e enfermeiras, aquele era apenas mais um corpo no qual trabalhar, outro paciente a ser salvo. Para Cathy, era um homem vivo, respirando, um homem com o qual ela se importava, com quem compartilhara aqueles últimos momentos angustiantes. A enfermeira voltou a atenção para o cinto do paciente, que rapidamente desatou. Com um puxão firme, ela tirou-lhe a calça e a cueca e as atirou em uma pilha com as outras roupas manchadas de sangue. Cathy mal lhe notou a nudez, nem as enfermeiras e auxiliares que passavam por ela para entrar na sala. Seu olhar chocado se concentrava no ombro esquerdo de Victor, que porejava sangue fresco sobre a mesa. Ela se lembrou de como todo o corpo dele estremeceu quando ela tocou naquele ombro. Apenas agora entendia a dor que ele deveria ter sentido.

Um sabor amargo inundou-lhe a garganta e Cathy começou a ficar enjoada.

Lutando contra a náusea, conseguiu se afastar e sentar-se em uma cadeira. Ali ficou alguns minutos, alheia ao caos ao seu redor. Olhando para baixo, percebeu com horror instintivo o sangue em suas mãos.

— Aí está você — disse alguém. Uma enfermeira acabara de emergir da sala de trauma, carregando os objetos pessoais do paciente. Ela acenou para que Cathy se aproximasse de uma mesa. — Vamos precisar de seu nome e endereço, caso os médicos tenham mais alguma pergunta. E a polícia terá de ser notificada. Já os chamou? — Cathy balançou a cabeça, alheia.

— Acho... Acho que devia...

— Pode usar esse telefone.

— Obrigada.

Tocou oito vezes antes que alguém respondesse. A voz que a atendeu estava grogue de sono. Obviamente, Garberville não era um lugar muito animado tarde da noite, nem mesmo para a polícia local. O atendente ouviu o relato de Cathy e disse que entraria em contato com ela após terem vistoriado o local do acidente.

A enfermeira abriu a carteira de Victor e verificou os diversos documentos em busca de informações. Cathy observou-a preencher o formulário de internação: Nome:Victor Holland. Idade: 41. Ocupação: Bioquímico. Parente mais próximo: Desconhecido.

Então esse era seu nome completo. Victor Holland. Cathy olhou para a pilha de documentos e concentrou-se naquilo que parecia ser um passe de segurança de uma empresa chamada Viratek. Uma fotografia colorida mostrava o rosto tranqüilo e sóbrio de Victor, seus olhos verdes voltados diretamente para a câmera. Mesmo que ela nunca tivesse visto o rosto dele, era assim que o imaginaria: expressão obstinada, olhar firme e direto. Ela tocou a palma da mão no lugar onde ele a beijara. Ainda se lembrava do modo como a barba lhe espetara a pele.

— Ele vai ficar bem? — murmurou.

A enfermeira continuou a escrever.

— Ele perdeu muito sangue. Mas parece ser um sujeito bem forte...

Cathy assentiu lembrando-se de como, mesmo em sua agonia, Victor de algum modo conseguira reunir forças para continuar caminhando em meio à chuva. Sim, ela sabia o homem forte que ele era.

A enfermeira entregou-lhe o formulário e uma caneta.

— Pode escrever seu nome e endereço no pé da página. Caso o médico tenha mais alguma pergunta a fazer.

Cathy abriu a bolsa, pegou o endereço e o número de telefone de Sarah e os copiou no formulário.

— Meu nome é Cathy Weaver. Você pode me encontrar nesse número.

— Vai ficar em Garberville?

— Por três semanas. Estou de visita.

— Ora, que belo modo de começar as férias, hein?

Cathy suspirou e se levantou para sair.

— É. Ótimo.

Ela fez uma pausa do lado de fora da sala de trauma, perguntando-se o que estaria acontecendo lá dentro, sabendo que Victor lutava por sua vida. Perguntou-se se ainda estaria consciente, se ele se lembraria dela. Parecia importante que se lembrasse.

Cathy voltou-se para a enfermeira.

— Você vai me ligar, não é mesmo? Quero dizer, você vai me dizer se ele...

A enfermeira assentiu.

— Nós a manteremos informada.

Do lado de fora, a chuva finalmente havia parado e uma faixa de estrelas brilhava através de uma brecha nas nuvens. Para os olhos cansados de Cathy, aquele primeiro relance do fim da tempestade era uma visão inebriante. Ao sair do estacionamento do hospital, estava trêmula de cansaço e não percebeu o carro estacionado do outro lado da rua, e nem o breve brilho do cigarro antes de ser apagado.

 

Cerca de um minuto depois de Cathy deixar o hospital, um homem atravessou as portas duplas e entrou na sala de emergência trazendo consigo os aromas de uma noite tempestuosa. A enfermeira de plantão estava ocupada com os papéis de admissão do novo paciente. Ao sentir a súbita corrente de ar frio, ela ergueu a cabeça e viu um homem se aproximar silenciosamente da escrivaninha. Tinha cerca de 35 anos, rosto encovado, cabelo escuro ligeiramente grisalho. Sua capa Burberry estava salpicada de gotas de chuva.

— Posso ajudá-lo, senhor? — perguntou a enfermeira, concentrando-se nos olhos do recém-chegado, que eram negros e brilhantes como seixos em uma lagoa.

Meneando a cabeça, ele perguntou calmamente:

— Um homem foi trazido para cá há algum tempo? Victor Holland?

A enfermeira olhou para o formulário sobre a mesa. Aquele era o nome. Victor Holland.

— Sim — disse ela. — Você é parente dele?

— Irmão. Como ele está?

— Acabou de chegar, senhor. Estão cuidando dele agora. Se esperar, posso ir ver como vai tudo...

Ela parou para atender ao telefone. Era um técnico ligando para passar os resultados dos exames de laboratório do novo paciente. Enquanto anotava os dados, ela percebeu de rabo de olho que o homem se voltara para a porta fechada da sala de trauma, que subitamente se abriu quando um auxiliar saiu dali de dentro carregando um saco plástico volumoso manchado de sangue. Um clamor de vozes emergiu de dentro da sala:

— Pressão em 110 por 70!

— O pessoal da sala de cirurgia está a postos.

— Onde está o cirurgião?

— A caminho. Teve problemas com o carro.

— Pronto para as radiografias! Todos se afastem!

A porta se fechou lentamente, abafando as vozes. A enfermeira desligou o telefone quando o auxiliar pousou o saco plástico sobre a mesa.

— O que é isso? — perguntou.

— São as roupas do paciente. Estão arruinadas. Devo jogá-las fora?

— Eu as levo para casa — atalhou o homem com a capa de chuva. — Está tudo aí?

O auxiliar lançou um olhar desconfortável para a enfermeira.

— Não estou certa se ele vai... Quero dizer, estão um tanto... é... sujas...

— Sr. Holland, por que não nos deixa jogá-las fora? — atalhou a enfermeira. — Não há nada de valor aqui. Já separei os objetos pessoais do paciente. — Ela abriu a gaveta e tirou dali um envelope de papel pardo com a etiqueta: Holland, Victor. Conteúdo: carteira, relógio de pulso. — Você pode levar isso para casa. Apenas assine este recibo.

O homem assentiu e assinou: David Holland.

— Diga-me — disse ele enquanto guardava o envelope no bolso. — Victor está consciente? Ele disse alguma coisa?

— Infelizmente, não. Estava quase inconsciente ao chegar.

O homem recebeu a informação em silêncio, um silêncio que a enfermeira achou inesperado e profundamente perturbador.

— Sr. Holland? — perguntou. — Como soube que seu irmão estava ferido? Não tive chance de entrar em contato com nenhum parente...

— A polícia me ligou. Victor estava dirigindo o meu carro. Eles o encontraram batido no acostamento da estrada.

— Ah. Que modo horrível de ser notificado.

— Sim. Coisa de pesadelo.

— Ao menos alguém conseguiu entrar em contato com o senhor. — Ela folheou a pilha de papéis sobre a mesa. — Podemos anotar seu endereço e número de telefone? Caso precisemos entrar em contato?

— Claro. — O homem pegou o formulário, que leu rapidamente antes de escrever as informações no campo "parente mais próximo". — Quem é Catherine Weaver? — perguntou, apontando para o nome e endereço ao pé da página.

— É a mulher que o trouxe até aqui.

— Terei de agradecê-la. — E devolveu o formulário.

— Enfermeira?

Ela olhou para o lado e viu que o médico a chamava à porta da sala de trauma.

— Sim?

— Quero que ligue para a polícia. Peça que venham para cá o mais rápido possível.

— Já foram avisados, doutor. Eles sabem do acidente...

— Ligue outra vez. Não foi acidente.

— O quê?

— Acabamos de receber as radiografias. O sujeito tem uma bala no ombro.

— Uma bala? — A enfermeira sentiu um calafrio, como um vento gelado erguendo-se da noite. Lentamente, ela se voltou para o homem da capa de chuva, aquele que alegara ser irmão de Victor Holland. Para sua surpresa, não havia mais ninguém ali. Ela sentiu uma rajada de vento noturno e então viu as portas duplas se fechando silenciosamente.

— Aonde diabos ele foi? — murmurou o auxiliar.

Durante alguns segundos, ela só conseguiu olhar para as portas fechadas. Então, baixou os olhos e viu o espaço vazio sobre a mesa. O saco contendo as roupas de Victor Holland havia desaparecido.

 

— Por que a polícia ligou de novo?

Cathy lentamente pousou o fone no gancho. Embora estivesse enrolada em um robe atoalhado, estava trêmula. Ela se voltou e olhou para Sarah no outro lado da cozinha.

— Aquele sujeito na estrada... Encontraram uma bala no ombro dele.

Surpresa, Sarah ergueu os olhos do chá que servia.

— Quer dizer que... alguém atirou nele?

Cathy afundou sobre a mesa da cozinha e olhou atônita para a xícara de chá de canela que Sarah acabara de empurrar à sua frente. Um banho quente e uma hora reconfortante sentada junto à lareira fizeram os eventos da noite parecerem apenas um pesadelo. Na cozinha de Sarah, em meio às cortinas estampadas e aos aromas de canela e de outros temperos que pairavam no ar, a violência do mundo real parecia estar a um milhão de quilômetros dali.

Sarah inclinou-se em direção a Cathy.

— Eles sabem o que aconteceu? Ele disse alguma coisa?

— Acabou de sair da cirurgia. — Ela se voltou e olhou para o telefone. — Eu deveria ligar para o hospital outra vez...

— Não. Não deveria. Você disse que fez tudo o que podia.— Sarah tocou-lhe o braço gentilmente. — E seu chá está esfriando.

Com a mão trêmula, Cathy afastou um cacho de cabelo molhado da frente do rosto e acomodou-se nervosamente sobre a cadeira. Uma bala no ombro dele, pensou. Por quê? Teria sido um ataque casual, um maníaco de auto estrada que disparou em um estranho pela janela do carro? Ela já lera sobre isso nos jornais, histórias sobre discussões em auto estradas resolvidas à bala.

Ou teria sido um ataque deliberado? Estaria Victor Holland marcado para morrer?

Lá fora, ouviram algo chocalhar e se chocar contra a casa.

Cathy se assustou.

— O que foi isso?

— Acredite, não é o bicho-papão — disse Sarah, rindo.

Ela foi até a porta da cozinha e levou a mão à tranca.

— Sarah! — exclamou Cathy em pânico. — Espere!

— Olhe você mesma. — Sarah abriu a porta. A luz da cozinha  iluminou algumas latas enfileiradas na garagem. Uma sombra escorregou para o chão e se afastou rapidamente, deixando um rastro de embalagens de comida pelo acesso de veículos. — Quatis — disse Sarah.— Se não travo as tampas, essas pragas espalham o lixo pelo quintal. — Outra sombra ergueu a cabeça de dentro de uma lata e olhou para ela, olhos brilhando no escuro. Sarah bateu palmas e gritou:

— Vá embora, suma! — O quati não se moveu. — Não tem mais aonde ir? — Finalmente, o quati pulou no chão e dirigiu-se calmamente em direção às árvores. — Ficam mais atrevidos a cada ano. — Sarah suspirou ao fechar a porta. Ela se voltou e piscou para Cathy. — Portanto, fique calma. Não estamos na cidade grande.

— Continue a me lembrar disso. — Cathy pegou uma fatia de pão de banana e começou a untá-la com manteiga sem sal. — Sabe, Sarah, acho que passar o Natal com você vai ser muito melhor do que qualquer Natal que eu tenha passado com o velho Jack.

— Opa. Se vamos falar de ex-maridos... — Sarah foi até um armário — ... devemos estar no estado de espírito adequado. E apenas chá não será suficiente. — Ela sorriu e balançou uma garrafa de conhaque.

— Sarah, você está bebendo?

— Não é para mim. — Sarah pousou a garrafa e uma única taça diante de Cathy. — Mas acho que você poderia tomar um gole. Afinal de contas, foi uma noite fria e traumática. E aqui estamos nós, falando de cachorros do gênero masculino.

— Bem, já que você pensa assim... — Cathy serviu-se de uma generosa dose de conhaque. — Para os cachorros do mundo — declarou antes de tomar um gole, que desceu muito bem.

— Então, como vai o velho Jack? — perguntou Sarah.

— O mesmo de sempre.

— Louras?

— Mudou para morenas.

— Demorou apenas um ano para esgotar o estoque mundial de louras? — Cathy deu de ombros. — Deve ter pulado algumas.

As duas riram, riso leve e fácil que indicava que suas feridas estavam cicatrizando, que os homens agora eram criaturas a serem discutidas sem dor, sem tristeza.

Cathy olhou para a taça de conhaque.

— Você acha que existe algum homem que preste neste mundo? Quero dizer, não deveria haver ao menos um por aí, em algum lugar? Talvez um mutante ou algo parecido? Um sujeito minimamente decente?

— Claro. Em algum lugar da Sibéria. Mas tem 120 anos de idade.

— Sempre gostei de homens mais velhos.

Elas voltaram a rir, embora dessa vez o tom não tenha sido tão alegre. Tantos anos haviam passado desde seus tempos de faculdade, tempos em que elas sabiam, em que nunca duvidaram, que o mundo era repleto de príncipes encantados.

Cathy secou a taça de conhaque e baixou-a sobre a mesa.

— Que amiga descuidada eu sou. Mantendo uma mulher grávida acordada a noite inteira! Que horas são, afinal de contas?

— Apenas 2h30.

— Ora, Sarah! Vá dormir!

Cathy foi até a pia e começou a molhar um punhado de toalhas de papel.

— O que vai fazer? — perguntou Sarah.

— Só quero limpar o carro. Não tirei todo o sangue do assento.

— Eu já limpei.

— O quê? Quando?

— Enquanto você tomava banho.

— Sarah, sua idiota.

— Ei, não perdi o bebê nem nada. Ah, quase ia me esquecendo.

— Sarah apontou para um pequeno tubo de filme sobre o balcão da cozinha. — Achei isso no chão de seu carro.

Cathy balançou a cabeça e suspirou.

— É do Hickey.

— Hickey! Aquilo sim é um desperdício de homem.

— Também é um bom amigo meu.

— Isso é tudo o que Hickey jamais será para uma mulher. Um amigo. Então, o que há nesse rolo de filme? Mulheres nuas, como sempre?

— Nem quero saber. Quando eu o deixei no aeroporto, ele me entregou meia dúzia de rolos de filme e disse que os pegaria quando voltasse. Acho que ele não queria levá-los para Nairóbi.

— Foi para lá que ele foi? Nairóbi?

— Está rodando "Lindas mulheres da África", ou algo parecido.

Cathy guardou o tubo de filme no bolso de seu roupão de banho.

— Deve ter caído do porta-luvas. Espero que não seja pornográfico.

— Conhecendo Hickey como conheço, provavelmente é.

Ambas riram da ironia daquilo. Hickman Von Trapp, cujo único trabalho era fotografar mulheres nuas em poses eróticas, não tinha nenhum interesse no sexo oposto, com a possível exceção de sua mãe.

— Um cara como o Hickey só reforça minha tese — disse Sarah sobre o ombro enquanto atravessava o corredor a caminho do quarto.

— E que tese é essa?

— A de que realmente não existe um homem que preste neste mundo!

 

Foi a luz que arrancou Victor das profundezas de seu inconsciente, uma luz mais brilhante do que a de dez sóis, afrontando suas pálpebras fechadas. Ele não queria acordar. Alguma parte obscura de sua mente sabia que, se continuasse a lutar contra aquele limbo abençoado, sentiria dor e náusea ou algo muito, muito pior: sentiria terror. De quê, ele não conseguia lembrar. Da morte? Não, não, aquilo era a morte, ou o mais perto que era possível chegar dela, e era quente, escura e confortável.

Mas ele tinha algo importante a fazer, algo que não podia se dar ao luxo de esquecer. Ele tentou pensar, mas tudo o que conseguia lembrar era de uma mão, gentil embora um tanto firme, acariciando-lhe a testa, e uma voz suave alcançando-o na escuridão.

Meu nome é Catherine...

Além da mão, da voz, o medo também tomava conta de sua memória. Não por si (ele já estava morto, não é mesmo?), mas por ela. Forte e gentil Catherine. Ele vira seu rosto apenas brevemente, mal se lembrava de como ela era, mas de algum modo sabia que era linda, do modo como os cegos sabem que um arco-íris, o céu ou o rosto de um filho querido é belo, mesmo sem o benefício da visão. Agora, ele estava com medo por causa dela.

Onde está você?, teve vontade de gritar.

— Ele está despertando — disse uma voz feminina (não a de Catherine. Essa era muito severa, muito rude) seguida de um surto confuso de outras vozes.

— Cuidado com essa endovenosa!

— Sr. Holland, fique tranqüilo. Tudo ficará bem...

— Eu disse cuidado com essa endovenosa!

— Entregue-me aquela segunda unidade de sangue...

— Não se mexa, Sr. Holland...

Onde está você, Catherine?, o grito explodiu em sua mente. Lutando contra a tentação de voltar a ficar inconsciente, forçou-se a erguer as pálpebras. A princípio, viu apenas um borrão de luz e cor, tão forte que sentiu que atravessava os seus olhos e chegava ao seu cérebro.Pouco a pouco, o borrão tomou a forma de rostos de estranhos vestidos de azul que franziam as sobrancelhas para ele. Ele tentou focar a visão, mas a tentativa lhe embrulhou o estômago.

— Sr. Holland, devagar — disse uma voz tranqüilamente mal-humorada.

— Você está no hospital... na sala de convalescença. Acabaram de operar seu ombro. Apenas descanse e volte a dormir...

Não. Não posso, ele tentou dizer.

— Cinco miligramas de morfina entrando — disse alguém, e Victor sentiu um fluxo cálido subindo por seu braço e se espalhando pelo seu peito.

— Isso deve ajudar — ouviu alguém dizer. — Agora, durma. Tudo correu bem...

Vocês não entendem, teve vontade de gritar. Tenho de avisá-la. Foi seu último pensamento consciente antes que as luzes fossem outra vez engolidas pela abençoada escuridão.

 

Sem marido, sozinha em sua cama, Sarah sorria. Não, ela gargalhava! Todo o seu corpo parecia tomado de felicidade naquela noite. Ela queria cantar, dançar. Ir até a janela e gritar a sua alegria! Tudo se devia aos hormônios, disseram-lhe certa vez, aquele pandemônio químico da gravidez que arrastava seu corpo em uma montanha russa de emoções. Ela sabia que deveria repousar, que deveria manter a serenidade, mas naquela noite ela não se sentia nem um pouco cansada. A pobre e exausta Cathy arrastara-se até o sótão para dormir. Mas Sarah ainda estava ali, bem desperta.

Ela fechou os olhos e concentrou os pensamentos na criança que repousava em seu ventre. Como vai você, meu amor? Está dormindo? Ou está ouvindo meus pensamentos?

O bebê se mexeu em sua barriga, então voltou a ficar quieto. Era uma resposta, palavras secretas trocadas apenas entre os dois. Sarah sentia-se quase feliz por não ter um marido ali deitado, enciumado, um estranho que a distraísse daquela conversa silenciosa. Havia apenas mãe e filho, o laço ancestral, o elo místico.

Pobre Cathy, pensou, mudando da alegria para a tristeza em sua montanha-russa de emoções. Sabia que Cathy desejava ter um filho tanto quanto ela, mas o tempo roubara-lhe a oportunidade. Cathy era romântica demais para se dar conta de que o homem e as circunstâncias não eram ideais. Cathy demorou dez longos anos para finalmente perceber que seu casamento era um miserável fracasso. Não que não tenha tentado fazê-lo funcionar. Ela tentara a ponto de desenvolver um ponto cego monumental para os erros de Jack, basicamente para o egoísmo dele. Era surpreendente como uma mulher tão inteligente, tão intuitiva, pôde deixar as coisas se arrastarem por tanto tempo. Mas essa era Cathy. Mesmo aos 37 anos, ainda era aberta, crédula e leal a ponto da idiotia.

O barulho de cascalho no acesso de veículos chamou sua atenção. Deitada e imóvel, aguçou os ouvidos e, durante algum tempo, ouviu apenas o ranger familiar das árvores, o arrastar dos galhos contra o telhado. Então, ouviu outra vez. Pedras rolando através do passeio e, então, um leve tilintar de metal. Eram os quatis outra vez. Se ela não os espantasse, espalhariam lixo por todo o acesso de veículos.

Ela suspirou, sentou-se na cama e tateou no escuro em busca dos chinelos. Depois, saiu do quarto em silêncio, atravessou instintivamente o corredor e entrou na cozinha. Seus olhos acharam a noite muito confortável e ela não pretendia ofuscá-los. Em vez de ligar a luz da garagem, pegou a lanterna no lugar onde sempre ficava e abriu a porta.

Lá fora, a lua brilhava através das nuvens.

Sarah apontou a lanterna para as latas de lixo, mas o facho de luz não revelou nenhum olho de quati, nenhum sinal de lixo espalhado, apenas o frio reflexo de aço inoxidável. Intrigada, atravessou a garagem e parou junto ao Datsun que Cathy estacionara no acesso de veículos.

Foi quando percebeu a luz acesa dentro do carro. Olhando através da janela, viu que o porta-luvas estava aberto. A princípio, pensou que talvez tivesse aberto sozinho ou que ela — ou Cathy — esquecera de fechá-lo. Então, viu os mapas rodoviários espalhados sobre o banco da frente.

Com o medo subitamente zumbindo em seus ouvidos, ela recuou, mas o terror tornara suas pernas lentas e rígidas. Somente então percebeu que havia alguém por perto, espreitando na escuridão. Podia sentir-lhe a presença, como um vento frio na noite.

Ela se voltou para entrar em casa. Ao fazê-lo, o facho de sua lanterna voltou-se em um arco abrupto e deteve-se sobre o rosto de um homem. Os olhos que olhavam para ela eram negros e escorregadios como seixos. Ela mal notou o restante do rosto: o nariz adunco, o lábio fino e exangue. Só viu os olhos. Eram os olhos de um homem sem alma.

— Olá, Catherine — murmurou. E, naquela voz, ela ouviu a saudação da morte.

Por favor, tentou gritar quando sentiu que ele puxava seu cabelo para trás, expondo-lhe o pescoço. Deixe-me viver! Mas não saiu nenhum som. As palavras, assim como a lâmina, permaneceram enterradas em sua garganta.

 

Cathy despertou com gaios brigando do lado de fora da janela, um som que lhe trouxe um sorriso aos lábios, pois aquele adejar de asas contra as vidraças, aquele maníaco crepitar de inimigos emplumados, soava-lhe um tanto extravagante. Tão diferente do rumor matinal de ônibus e carros ao qual estava acostumada. Quando a briga dos gaios passou para o teto do sótão, ela ouviu suas garras arranhando as ripas de madeira em uma dança de combate e acompanhou o progresso da batalha, que se estendeu de um lado a outro do telhado. Então, cansada daquilo, concentrou-se na janela.

O sol matinal entrava em uma cascata de luz, inundando o sótão com uma neblina suave. Que lugar ideal para um quarto de bebê! Ela podia ver todas as mudanças que Sarah já fizera ali: as cortinas Jack-and-Jill, as aquarelas com figuras de animais. A simples idéia de que um bebê dormiria naquele cômodo a deixava tão feliz que ela se sentou na cama, sorrindo, e abraçou as cobertas sobre os joelhos. Então olhou para o relógio na mesa de cabeceira e viu que já eram 9h30. Metade da manhã perdida! Relutante, deixou o calor de sua cama e procurou um suéter e uma calça jeans dentro da mala. Vestiu-se ouvindo a briga dos gaios, que mudara do telhado para as copas das árvores. Da janela, observou-os pular de galho em galho, até um deles erguer a versão emplumada de uma bandeira branca e ir embora, derrotado. O vencedor, sua autoridade não mais questionada, emitiu um último grasnido e se acomodou para ajeitar as penas.

Somente então Cathy percebeu o silêncio na casa, uma tranqüilidade que ampliava o som de sua respiração e cada batida de seu coração.

Ao sair do quarto, ela desceu a escada do sótão e encontrou a sala de estar deserta. As cinzas da noite anterior ainda se acumulavam na lareira. Uma guirlanda de prata se soltara da árvore de Natal. Um anjo de papelão com asas de purpurina reluzia sobre o consolo da lareira. Ela seguiu o corredor até o quarto de Sarah e franziu as sobrancelhas ao ver a cama desfeita, o edredom jogado para o lado.

— Sarah?

Sua voz foi engolida pelo silêncio. Como um chalé podia parecer tão imenso? Ela voltou à sala de estar e entrou na cozinha. As xícaras do chá da noite anterior ainda estavam na pia. No peitoril da janela, uma samambaia oscilava ao sabor da brisa que entrava pela porta aberta.

Cathy saiu para a garagem, onde estava estacionado o velho Dodge da amiga.

— Sarah? — chamou.

Algo escorregou pelo teto. Assustada, Cathy ergueu a cabeça e riu ao ouvir o gaio gorjeando em uma árvore — um discurso de vitória, sem dúvida. Até mesmo o mundo animal tinha seu orgulho.

Ela começou a voltar para casa quando viu uma mancha na brita, perto do pneu traseiro do carro. Durante alguns segundos, olhou para aquela mancha marrom, cor de ferrugem, incapaz de compreender seu significado. Lentamente, caminhou ao longo do veículo, seguindo de trás para a frente a rota tortuosa da mancha.

Ao dar a volta por trás do carro, teve uma visão geral do acesso de veículos. O rastro seco e marrom tornara-se um lago carmim no qual boiava uma única nadadora de olhos abertos e imóveis.

Os gorjeios do gaio pararam subitamente quando outro som ergueu-se em meio às árvores. Era o grito de Cathy.

 

— Ei, senhor! Ei, senhor!

Victor tentou ignorar a voz, mas aquilo continuava a zumbir em seus ouvidos, como uma mosca que não se consegue espantar.

— Ei, senhor. Está acordado? — Victor abriu os olhos e, com alguma dificuldade, enxergou um rosto debochado com costeletas grisalhas. A aparição sorriu e ele viu apenas escuridão onde deveria haver dentes. Victor olhou para aquele desagradável buraco negro na boca do sujeito e pensou: Morri e fui para o inferno.

— Ei, senhor, tem um cigarro?

Victor balançou a cabeça e mal conseguiu murmurar:

— Acho que não.

— Bem, tem um dólar para me emprestar?

— Vá embora — gemeu Victor, fechando os olhos ofuscados pela luz do dia. Ele tentou pensar, tentou se lembrar onde estava, mas sua cabeça doía e a voz do homenzinho continuava a distraí-lo.

— Não se pode fumar aqui. Parece uma prisão. Não sei por que não me levanto e vou embora. Mas, você sabe, as ruas são frias nessa época do ano. Choveu a noite inteira. Aqui ao menos é aquecido...

Choveu a noite inteira... Subitamente, Victor se lembrou. A chuva. Correndo e correndo em meio à chuva.

Victor abriu os olhos.

— Onde estou?

— No hospital. Ala três leste. Terra das megeras.

Ele lutou para se erguer e quase engasgou de dor. Entontecido, olhou para o suporte de metal, viu o saco de soro pingando lentamente no tubo intravenoso e então olhou para o curativo no ombro esquerdo. Através da janela, viu que já era dia claro.

— Que horas são?

— Não sei. Acho que deve ser umas 9h. Você perdeu o desjejum.

— Preciso sair daqui. — Victor jogou as pernas para fora da cama apenas para descobrir que, além de um frágil avental hospitalar, estava completamente nu.

— Onde estão minhas roupas? Minha carteira?

O velho deu de ombros.

— A enfermeira deve saber. Pergunte para ela.

Victor descobriu o botão de chamada em meio aos lençóis. Ele apertou-o algumas vezes, então voltou a atenção para o esparadrapo que fixava o tubo intravenoso em seu braço.

A porta se abriu e uma voz feminina gritou:

— Sr. Holland! O que pensa que está fazendo?

— Estou indo embora daqui. É isso o que estou fazendo — disse Victor ao tirar a última tira de esparadrapo. Contudo, antes que conseguisse arrancar a agulha do braço, a enfermeira atravessou o quarto tão rapidamente quanto suas pernas rechonchudas permitiam e aplicou um pedaço de gaze sobre o cateter.

— Não me culpe, Sra. Redfern! — gritou o homenzinho.

— Lenny, volte para a cama imediatamente! E quanto a você, Sr. Holland — disse ela, voltando os olhos frios e azuis para Victor —, saiba que perdeu muito sangue. — Prendendo o braço dele sob um de seus bíceps, ela voltou a fixar o cateter com esparadrapo.

— Apenas traga minhas roupas.

— Não discuta, Sr. Holland. Terá de ficar aqui.

— Por quê?

— Porque está tomando soro, ora bolas! — rebateu ela, como se aquele tubo plástico fosse algum tipo de condição irreversível.

— Quero minhas roupas.

— Terei de verificar na emergência. Nada do que é seu subiu para este andar.

— Então ligue para a emergência, droga! — Ao perceber a expressão de desagrado da Sra. Redfern, acrescentou com forçada delicadeza: — Caso você não se importe.

Demorou mais de meia hora antes que uma mulher da administração aparecesse para explicar o que acontecera com os pertences de Victor.

— Infelizmente nós... Bem, parece que nós... perdemos suas roupas, Sr. Holland — disse ela, inquieta, sob o olhar atônito de Victor.

— Como assim perderam?

— Elas foram... — ela pigarreou — É... roubadas. Da sala de emergência. Acredite, isso nunca aconteceu antes. Lamentamos muito, Sr. Holland, e estou certa de que posso arranjar a aquisição de roupas novas...

Ela estava ocupada demais tentando se desculpar para perceber a expressão alarmada no rosto de Victor. Para perceber que a mente dele estava inquieta tentando se lembrar, através do borrão indefinido dos eventos da noite anterior, o que acontecera com o rolo de filme. Ele sabia que o tinha em seu bolso durante o trajeto interminável para o hospital. Lembrava de tê-lo segurado, então, lembrava de ter se debatido irracionalmente quando a mulher tentou tirar sua mão de dentro do bolso. Depois disso, nada lhe parecia muito claro, nada era certo. Terei perdido?, pensou. Terei perdido minha única prova?

— ... embora seu dinheiro tenha desaparecido, parece que seus cartões de crédito estão todos aí, de modo que acho que isso é algo pelo qual você deveria agradecer.

Victor olhou para ela, alheio.

— O quê?

— Seus objetos de valor, Sr. Holland. — Ela apontou para a carteira e para o relógio sobre a mesa de cabeceira. — Um guarda da segurança os encontrou na lixeira, no lado de fora do hospital. Parece que o ladrão só queria seu dinheiro.

— E minhas roupas. Certo.

No instante em que a mulher saiu, Victor apertou o botão para chamar a Sra. Redfern. Ela entrou carregando uma bandeja de café da manhã.

— Coma, Sr. Holland — disse ela. — Talvez seu comportamento se deva a uma hipoglicemia.

— Uma mulher que me trouxe até a emergência — disse ele. — Seu primeiro nome era Catherine. Preciso falar com ela.

— Ora, veja! Ovos e cereais! Aqui está seu garfo...

— Sra. Redfern, poderia esquecer os malditos cereais?

A Sra. Redfern bateu com a caixa de cereais sobre a mesa.

— Não há necessidade de ser grosseiro!

— Preciso encontrar aquela mulher!

Sem dizer uma palavra, a Sra. Redfern deu-lhe as costas e saiu do quarto. Alguns minutos depois voltou e bruscamente entregou-lhe um pedaço de papel. Nele estava escrito o nome de Catherine Weaver, seguido de um endereço local.

— É melhor comer rápido — disse ela. — Há um policial a caminho para falar com você.

— Ótimo — resmungou ele, enfiando na boca um garfo repleto de ovo frio e borrachudo.

— E um sujeito do FBI ligou. Também está a caminho.

Victor ergueu a cabeça, alarmado.

— FBI? Qual o nome dele?

— Ora, pelo amor de Deus, como vou saber? Parecia polonês, eu acho.

Olhando para ela, Victor lentamente baixou o garfo.

— Polowski — disse ele baixinho.

— Acho que sim. Polowski. — Ela se voltou e começou a sair do quarto. — O FBI — murmurou. — Imagino o que deva ter feito para chamar a atenção deles...

Antes mesmo que a porta se fechasse, Victor já tinha pulado da cama e começado a retirar o tubo intravenoso. Ele mal sentiu quando o esparadrapo arrancou os pelos de seu braço. Tinha de se concentrar em dar o fora daquele hospital antes que Polowski aparecesse. Estava certo de que o agente do FBI havia tramado aquela emboscada na noite anterior, e ele não esperaria para ser atacado novamente.

Victor se voltou e disse para o colega de quarto:

— Lenny, onde estão suas roupas?

O olhar de Lenny voltou-se com relutância para um armário perto da pia.

— Não tenho outra muda. Além disso, minhas roupas não caberiam em você...

Victor abriu a porta do armário, de onde tirou uma camisa puída de algodão e uma calça de poliéster. A calça era curta demais e sobravam cerca de 15cm de perna cabeluda abaixo da bainha, mas Victor não teve dificuldade para atar o cinto. O grande problema seria encontrar um par de sapatos tamanho 44. Para seu alívio, descobriu que o armário também continha um par de chinelos de Lenny. Sobravam ao menos 2,5cm de calcanhar na parte de trás, mas ao menos ele não estaria descalço.

— Essas roupas são minhas! — protestou Lenny.

— Tome. Pode ficar com isso. — Victor atirou o relógio de pulso para o velho. — Pode trocá-lo por uma roupa nova.

Desconfiado, Lenny levou o relógio ao ouvido.

— Porcaria. Não está funcionando.

— É de quartzo.

— Ah, sim. Eu sabia.

Victor guardou a carteira no bolso e foi até a porta. Abriu uma fresta e olhou para o posto de enfermagem no outro extremo do corredor. A área estava livre. Ele olhou de volta para Lenny.

— Até mais, colega. Mande lembranças para a Sra. Redfern.

Saindo do quarto, Victor desceu silenciosamente o corredor, afastando-se do posto de enfermagem. A porta da escada de emergência ficava no extremo oposto, com um aviso pintado em vermelho: O Alarme Soará se a Porta For Aberta. Ele caminhou em direção à porta, tomando cuidado para não correr e nem chamar atenção.

Quando estava quase lá, ouviu uma voz familiar ecoar pelo corredor:

— Sr. Holland! Volte aqui imediatamente! — Victor correu até a porta, abriu a tranca e entrou na escadaria.

Seus passos ecoavam contra o concreto enquanto corria escada abaixo. Quando a Sra. Redfern chegou à escadaria, ele já estava no primeiro andar e abria a última porta que o separava da liberdade.

— Sr. Holland! — gritou a Sra. Redfern.

Mesmo enquanto corria pelo estacionamento, ainda podia ouvir a voz ultrajada da Sra. Redfern ecoando em seus ouvidos.

Oito quarteirões depois, Victor entrou em uma loja de departamentos e, em dez minutos, comprou uma camisa, uma calça jeans, roupas íntimas, meias e um par de tênis tamanho 44, todos pagos com seu cartão de crédito. Em seguida, jogou as roupas de Lenny em uma lata de lixo.

Antes de sair da loja, olhou para a rua através da vitrine.  Parecia uma perfeita manhã de meados de dezembro em uma cidade pequena, transeuntes caminhando sob uma decoração natalina cafona, meia dúzia de carros esperando pacientemente o sinal abrir. Ele estava a um passo de sair pela porta quando viu um carro-patrulha arrastando-se pela rua. Victor imediatamente se agachou atrás de um manequim despido e observou através de membros de plástico enquanto o carro de polícia passava lentamente pela loja e seguia em direção ao hospital. Obviamente procuravam alguém. Seria ele? Victor não podia se arriscar a caminhar pela rua principal da cidade. Não havia como saber quem, além de Polowski, estava envolvido naquela trama.

Caminhou quase uma hora até chegar no limite da cidade e, àquela altura, estava tão fraco e trêmulo que mal conseguia ficar de pé. O surto de adrenalina que o ajudara a fugir do hospital finalmente estava declinando. Cansado demais para dar outro passo, sentou-se pesadamente sobre uma pedra no acostamento da estrada e, desanimado, ergueu o polegar. Para seu imenso alívio, o primeiro veículo a passar — uma picape carregada de lenha — parou. Victor entrou e afundou no assento, agradecido.

O motorista cuspiu pela janela, então olhou para Victor por debaixo de um boné Agway Seeds.

— Vai para longe?

— Apenas alguns quilômetros. Estrada Oak Hill.

— Certo. Vou passar por lá.

O motorista voltou à estrada. A picape cuspia fumaça negra enquanto atravessavam a rodovia, música country no volume máximo tocando no rádio do carro.

Acima do som das guitarras, Victor ouviu algo que o fez se soerguer abruptamente. Uma sirene. Ao olhar para trás, viu um carro-patrulha aproximando-se em alta velocidade. É isso, pensou Victor.

 Eles me encontraram. Vão parar esta picape e me prender...

Mas por quê? Por fugir do hospital? Por insultar a Sra. Redfern? Ou teria Polowski inventado alguma acusação contra ele? Com uma sensação de desgraça iminente, esperou que o carro-patrulha os ultrapassasse e começasse a piscar as luzes ordenando que parassem. Em verdade, estava tão certo de que seriam parados que, quando o carro de polícia passou por eles e continuou estrada acima, ele só conseguiu olhar para a frente, atônito.

— Deve ter acontecido alguma coisa séria — disse o motorista casualmente, meneando a cabeça em direção ao carro de polícia que desaparecia ao longe.

Victor pigarreou.

— Como assim?

— É. A polícia daqui não têm muita chance de usar a sirene, mas, quando a usam, cara, eles capricham.

Com o coração disparado, Victor recostou-se e forçou-se a se acalmar. Nada tinha com o que se preocupar. A polícia não estava atrás dele, estava ocupada com outro assunto. Ele imaginou que tipo de catástrofe de cidade pequena poderia obrigá-los a usar a sirene.

Provavelmente nada mais excitante do que alguns jovens divertindo-se com um carro roubado.

Quando chegaram na entrada de Oak Hill Road, o pulso de Victor voltara ao normal. Ele agradeceu a carona, saltou do carro e começou a caminhar em direção à casa de Catherine Weaver. Era uma longa caminhada e a estrada serpeava através de uma floresta de pinheiros.

De vez em quando, ele passava por uma caixa de correio ao longo da estrada e, olhando através das árvores, via uma casa. Estava se aproximando rapidamente do endereço de Catherine.

O que diabos diria para ela? Até então, somente se concentrara em chegar à casa. Agora que estava quase lá, teria que dar alguma explicação razoável para o motivo de ter se arrastado de uma cama de hospital e caminhado até ali para vê-la. Um simples obrigado por salvar minha vida não bastaria. Ele teria de descobrir se ela estava com o rolo de filme. Mas ela, é claro, desejaria saber por que aquele negócio era tão importante.

Você pode dizer a verdade.

Não, esqueça. Ele imaginava a reação dela caso contasse aquela história de vírus, cientistas mortos e agentes corruptos do FBI.

O FBI está atrás de você? Sei. E quem mais o está perseguindo, Sr. Holland?

Era tão absurdamente paranóico que ele quase teve vontade de rir. Não, ele não podia contar nada daquilo ou acabaria de volta ao hospital, dessa vez em uma ala que faria a ala três leste da Sra. Redfern parecer um paraíso.

Ela não precisava saber. Em verdade, era melhor que continuasse ignorante. A mulher salvara sua vida e a última coisa que ele desejava era expô-la a algum perigo. O filme era tudo o que ele queria. Então, Catherine nunca mais voltaria a vê-lo.

Victor estava tão ocupado pensando no que dizer para ela que só percebeu os carros de polícia após fazer a curva da estrada. Ele parou subitamente ao ver os três carros patrulha

— Provavelmente toda a frota policial de Garberville — estacionados em frente a uma rústica casa de cedro. Meia dúzia de vizinhos se aglomerava no acesso de veículos, balançando a cabeça, incrédulos.

Meu Deus, teria acontecido alguma coisa com Catherine?

Contendo a vontade de dar as costas e fugir dali, Victor forçou-se a seguir em frente, passando pelos carros de polícia, abrindo caminho através da pequena multidão de curiosos, apenas para ser parado mais adiante por um policial uniformizado.

— Lamento, senhor. Ninguém pode passar daqui.

Atônito, Victor olhou e viu que a polícia cercara o perímetro com fita vermelha. Lentamente, seu olhar se moveu para além da fita, até um velho Datsun estacionado em frente à garagem. Seria o carro de Catherine? Ele tentou desesperadamente se lembrar se ela dirigia um Datsun, mas a noite anterior fora tão escura e ele estava sentindo tanta dor que não prestou atenção. Apenas se lembrava de que era um carro compacto, com pouco lugar para suas pernas. Então, percebeu o adesivo de estacionamento desbotado no pára-choque traseiro: Passe de estacionamento, Estúdion Lote A.

Trabalho para uma produtora de cinema independente, dissera ela na noite anterior.

Era o carro de Catherine.

Sem querer, viu a brita manchada ao lado do Datsun, e embora seu lado racional soubesse que aquele vermelho cor de tijolo só podia ser sangue seco, quis negar o que estava vendo. Ele queria crer que havia alguma outra explicação para aquela mancha, para aquela sinistra reunião de policiais.

Victor tentou falar, mas sua voz soou como algo arrastando sobre cascalho.

— O que disse, senhor? — perguntou o policial.

— O que... O que houve?

O policial balançou a cabeça com tristeza.

— Uma mulher foi morta aqui na noite passada. Nosso primeiro assassinato em dez anos.

— Assassinato? — Victor ainda olhava horrorizado para a brita suja de sangue. — Mas... por quê?

O policial deu de ombros.

— Não sabemos ainda. Talvez roubo, embora eu não creia que o assassino tenha conseguido muita coisa. — Ele meneou a cabeça em direção ao Datsun. — O carro foi a única coisa arrombada.

Se Victor disse algo a essa altura, jamais se lembraria do que foi. Ele estava vagamente ciente de suas pernas levando-o de volta através da pequena multidão de curiosos, passando diante dos três carros de polícia, em direção à estrada. O sol estava tão claro que feria seus olhos e ele mal podia ver aonde ia.

Eu a matei, pensou. Ela salvou minha vida e eu a matei...

A culpa subiu-lhe à garganta e ele mal conseguia respirar, mal podia dar outro passo por causa da dor. Durante um longo tempo ficou ali no acostamento, cabeça curvada sob o sol, ouvidos tomados pelo som dos gaios, velando uma mulher que nunca conheceu.

Quando finalmente conseguiu voltar a erguer a cabeça, a raiva o estimulou a voltar à estrada. Raiva contra o assassinato de Catherine. Raiva de si mesmo por tê-la exposto a tal perigo. Era o filme que o assassino procurava, e ele provavelmente o encontrara no Datsun. De outro modo, a casa também teria sido saqueada.

E agora?, pensou Victor. Ele afastou a possibilidade de sua pasta — que continha a maioria das provas — ainda estar em seu carro batido. Aquele teria sido o primeiro lugar que o assassino revistara. Sem o filme, Victor ficava sem nenhuma prova. Seria sua palavra contra a da Viratek. Os jornais o tratariam como um simples ex-empregado insatisfeito. E, depois da traição de Polowski, ele não podia confiar no FBI.

Ao pensar nisso, acelerou o passo. Quanto antes saísse de Garberville, melhor. Ao voltar à estrada, pegou outra carona. Uma vez seguro e fora da cidade, teria tempo de planejar o que fazer.

Decidiu ir para o sul, em direção a São Francisco.

 

DA JANELA DE SEU ESCRITÓRIO NA VIRATEK, Archibald Black observou a limusine subir o acesso de veículos margeado de árvores e parar diante da entrada principal. Black sorriu, debochado. O maldito caubói voltara à cidade. E após toda aquela conversa sobre a importância de se manter segredo e discrição a respeito de sua visita, o idiota tinha a cara de pau de aparecer em uma limusine com nada menos que um motorista uniformizado.

Black saiu da janela e caminhou lentamente até a escrivaninha.

Apesar de seu desprezo pelo visitante, tinha de admitir que o sujeito o deixava inquieto, do mesmo modo como todos os chamados homens de ação o deixavam inquieto. Não havia cérebro suficiente por trás de todos aqueles músculos. Muito poder nas mãos de imbecis, pensou. Seria esse um exemplo de quem governa o país?

O interfone tocou.

— Sr. Black? — disse a secretária. — O Sr. Tyrone está aqui para vê-lo.

— Mande-o entrar, por favor — disse Black, abrandando o desprezo de seu rosto e substituindo-o por uma polida expressão de deferência quando a porta se abriu e Matthew Tyrone entrou no escritório.

Eles se cumprimentaram. O aperto de mãos de Tyrone foi mais firme do que o razoável, como se estivesse tentando lembrar a Black de sua relativa posição de poder. Sua conduta refletia a disciplina de um ex-fuzileiro, o que de fato ele era. Apenas a cintura larga traía o fato de que os tempos de fuzileiro de Tyrone já haviam passado.

— Como foi o vôo de Washington? — perguntou Black quando se sentaram.

— Serviço horrível. Vou lhe contar, os vôos comerciais já não são mais como antigamente. E pensar que o americano médio paga um bom dinheiro por esse privilégio.

— Imagino que não se compare à Air Force One.

Tyrone sorriu.

— Vamos aos negócios. Diga-me em que pé estão as coisas nessa pequena crise de vocês.

Black percebeu que Tyrone usara a palavra vocês. Então agora é problema meu, pensou. Naturalmente. E isso o que chamam de questionabilidade: quando as coisas dão errado, o outro sujeito leva a culpa. Se alguma coisa vazasse, a cabeça de Jack seria a primeira a cair. Mas, afinal, era por isso que aquele contrato era tão bem pago — porque ele — ou seja, a Viratek — estava disposto a correr tal risco.

— Recuperamos os documentos — disse Black. — E os rolos de filme. Os negativos estão sendo revelados agora.

— E seus dois empregados?

Black pigarreou.

— Não há necessidade de levar isso adiante.

— Eles são um risco à segurança nacional.

— Vocês não podem simplesmente matá-los!

— Não podemos? — Os olhos de Tyrone eram de uma frieza de metal de arma de fogo, uma cor adequada para alguém que gostava de chamar a si mesmo de "Caubói".

Você não discute com alguém com olhos como aqueles se tem algum instinto de autopreservação.

Black inclinou a cabeça com deferência.

— Não estou habituado a esse tipo de... trabalho. E eu não gosto de lidar com o seu homem, o tal Savitch.

— O Sr. Savitch já se saiu bem trabalhando para nós.

— Ele matou um de meus cientistas veteranos!

— Suponho que tenha sido necessário.

Black olhou para a mesa, insatisfeito. Só a lembrança daquele monstro do Savitch o fazia estremecer.

— Por que, exatamente, Martinique fez aquilo?

Porque ele tinha consciência, pensou Black. E olhou para Tyrone.

— Não havia como prever. Ele trabalhou no Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento Comercial durante dez anos. Nunca apresentou nenhum problema de segurança.

Somente na semana passada descobrimos que ele roubara documentos sigilosos. Então, Victor Holland se envolveu...

— O quanto Holland sabe?

— Holland não estava envolvido no projeto. Mas ele é esperto. Se viu os documentos, deve ter juntado as peças.

Agora Tyrone estava agitado, dedos tamborilando sobre o tampo da escrivaninha.

— Fale-me sobre Holland. O que sabe sobre ele?

— Dei uma olhada em seu arquivo pessoal. Tem 41 anos, nascido e criado em San Diego. Entrou para o seminário, mas saiu depois de um ano. Estudou em Stanford, depois no MIT. Doutorado em bioquímica. Trabalhou na Viratek durante quatro anos. E um de nossos pesquisadores mais promissores.

— E quanto à sua vida pessoal?

— A mulher morreu há três anos, de leucemia. Tem andado muito recluso ultimamente. Sujeito quieto, gosta de jazz tradicional. Toca saxofone em uma banda amadora.

Tyrone riu.

— O típico cientista nerd.

Era o tipo de comentário idiota que um ex-fuzileiro como Tyrone faria. Aquilo era um insulto para Black. Havia muitos anos, antes de ele criar a Viratek Industries, Black também fora um pesquisador bioquímico.

— Deve ser fácil cuidar dele — disse Tyrone. — Inexperiente. E provavelmente está com medo. — Ele pegou a pasta. — O Sr. Savitch é um especialista nesses assuntos. Sugiro que o deixe cuidar do problema.

— Claro. — Em verdade, Black não achava ter outra escolha. Nicholas Savitch era como uma força maléfica e assustadora que, uma vez desencadeada, não podia ser controlada.

O interfone tocou.

— O Sr. Gregorian do laboratório fotográfico está aqui - disse a secretária.

— Mande-o entrar. — Black olhou para Tyrone. — O filme foi revelado. Vejamos o que Martinique conseguiu fotografar.

Gregorian entrou carregando um envelope volumoso.

— Aqui estão as provas de contato que pediu — disse ele, entregando o envelope para Black. Então cobriu a boca com a mão e emitiu um som abafado parecido com uma risada.

— Sim, Sr. Gregorian? — perguntou Black.

— Nada, senhor.

Tyrone interrompeu:

— Bem, vamos ver! — Black removeu as cinco provas de contato e pousou-as sobre a mesa para que todos as vissem. Os três olharam.

Durante um longo tempo, ninguém falou. Então Tyrone exclamou:

— Isso é algum tipo de piada?

Gregorian irrompeu na gargalhada.

Black disse:

— Que diabos é isso?

— Esses são os negativos que me deu, senhor — insistiu Gregorian. — Eu mesmo os revelei.

— São essas as fotos que recuperou de Victor Holland?

— A voz de Tyrone, que começara branda, lentamente se ergueu em um berro: — Cinco rolos de mulheres peladas?

— Deve ter havido algum engano — disse Black. — É o filme errado...

Gregorian riu mais alto.

— Cale-se! — gritou Black. E olhou para Tyrone.

— Não sei como isso pôde acontecer.

— Então o rolo que queremos ainda está lá?

Black assentiu, contrariado.

Tyrone pegou o telefone.

— Temos de dar um jeito nisso. Rápido.

— Para quem está ligando? — perguntou Black.

— Para o homem que pode fazer esse trabalho — disse Tyrone ao digitar os números. — Savitch.

 

Em seu quarto de motel em Lombard Street, Victor caminhava sobre o tapete verde-abacate tentando arquitetar um plano. Qualquer plano. Sua mente bem organizada de cientista já equacionara a situação nos elementos de um projeto de pesquisa. Identifique o problema: alguém quer me matar. Sugira a sua hipótese: Jerry Martinique descobriu algo perigoso e foi morto por isso. Agora, eles acham que eu tenho a informação — e a prova. Que não possuo. Objetivo: continuar vivo. Método: qualquer um que eu conseguir!

Nos últimos dois dias, sua única estratégia consistira em se esconder em vários motéis baratos e ficar vagando a esmo sobre os tapetes. Ele não podia se esconder para sempre. Se os federais estavam envolvidos, e ele tinha motivos para acreditar que estavam, logo rastreariam seu cartão de crédito e saberiam exatamente onde encontrá-lo.

Preciso de um plano de ataque.

Ir ao FBI estava definitivamente fora de questão. Sam Polowski era o agente que Victor contatara, aquele que marcara um encontro com ele em Garberville. Ninguém mais poderia saber daquele encontro. Sam Polowski não apareceu.

Mas outra pessoa, sim. O ombro dolorido de Victor era uma lembrança constante desse encontro quase fatal.

Poderia ir aos jornais. Mas como convencer um repórter cético? Quem acreditaria em suas histórias sobre um projeto tão perigoso que poderia matar milhões de pessoas?

Achariam que sua história era produto de uma mente paranóica.

E eu não sou paranóico.

Ele caminhou até a tevê e ligou o aparelho para assistir ao noticiário das 17h. Uma âncora com penteado perfeito sorria para a tela enquanto lia uma matéria amena sobre o último dia de aula, crianças felizes, férias natalinas.

Então, sua expressão ficou séria. Transição. Victor pegou-se olhando para a tevê quando a matéria seguinte foi apresentada.

— A polícia não tem pistas na investigação do assassinato de uma mulher encontrada morta na manhã de quarta-feira em Garberville, Califórnia. Uma hóspede encontrou Sarah Boylan, 39 anos, caída no acesso de veículos, morta com facadas no pescoço. A vítima estava grávida de cinco meses. A polícia afirma estar atônita com a falta de motivo para essa terrível tragédia, e, até o presente momento, não tem suspeitos. Agora, as notícias nacionais...

Não, não, não!, pensou Victor. Ela não estava grávida. O nome dela não era Sarah. É um engano...

Ou era?

Meu nome é Catherine, dissera-lhe.

Catherine Weaver. Sim, ele estava certo quanto ao nome.

Lembraria dele até o dia de sua morte.

Ele se sentou na cama, os fatos em um turbilhão em sua mente. Sarah. Cathy. Um assassinato em Garberville.

Quando finalmente se levantou, foi com uma sensação crescente de urgência, quase de pânico. Ele pegou o catálogo telefônico do hotel e procurou a letra W. Agora ele compreendia. O assassino cometera um erro. Se Cathy Weaver ainda estava viva, poderia estar com aquele rolo de filme — ou saber onde estava. Victor tinha de encontrá-la.

Antes que alguém mais encontrasse.

 

Nada poderia ter preparado Cathy para a indescritível sensação de pesar que sentiu ao voltar para seu apartamento em São Francisco. Achou ter chorado tudo o que tinha para chorar no motel em Garberville, na noite seguinte à morte de Sarah. Mas lá estava ela, ainda aos prantos, para então cair em um estado de profunda e obscura meditação. A volta para a cidade foi um período de insensibilidade temporária. Mas assim que subiu a escada, chegou à porta de casa e confrontou o silêncio mortal de seu apartamento de segundo andar, voltou a se sentir avassalada pelo pesar. E confusa. De todas as pessoas do mundo, por que Sarah tinha de morrer?

Tentou desfazer as malas, sem muita convicção. Então, forçando-se a se manter ocupada, vasculhou a geladeira e viu que estava praticamente vazia. Era a desculpa de que precisava para sair daquele apartamento. Jogou um suéter sobre a calça jeans e, com a sensação de estar fugindo, caminhou quatro quarteirões até a mercearia do bairro. Comprou apenas o essencial: pão, ovos e frutas. O suficiente para mantê-la durante alguns dias até voltar a se aprumar e poder pensar claramente a respeito de um cardápio.

Com um saco de compras em cada braço, voltou ao seu prédio. A noite estava fria e ela lamentou não ter vestido um casaco. Através de uma janela aberta, uma mulher gritou: "O jantar está na mesa!" e duas crianças que brincavam de kickball na rua deram as costas e correram para dentro de casa.

Quando Cathy voltou ao seu prédio, estava trêmula e seus braços doíam por causa do peso dos sacos de compras.

Ela subiu os degraus com dificuldade e, equilibrando um saco sobre o quadril, conseguiu pegar as chaves e abrir a porta de segurança. Quando estava entrando, ouviu passos e viu de relance que alguém corria em sua direção. Ela foi empurrada para dentro do prédio. Um dos sacos de compras caiu de seus braços, espalhando maçãs pelo chão. Cathy tombou para a frente e apoiou-se no corrimão de madeira. A porta bateu à sua passagem.

Ela se voltou, pronta para lutar contra seu agressor.

Era Victor Holland.

— Você! — murmurou ela, atônita.

Ele não parecia muito seguro da identidade dela. Ansioso, vasculhava seu rosto, como se tentando confirmar se encontrara a mulher certa.

— Cathy Weaver?

— O que você acha que...

— Onde é seu apartamento? — atalhou ele.

— O quê?

— Não podemos ficar aqui.

— É... lá em cima...

— Vamos.

Victor tentou segurar o braço dela, mas Cathy o evitou.

— Minhas compras — disse ela, olhando para as maçãs espalhadas pelo chão.

Ele rapidamente juntou as frutas, jogou-as em um dos sacos e o empurrou em direção à escada.

— Não temos muito tempo.

Cathy deixou-se levar escada acima e até a metade do corredor antes de parar abruptamente.

— Espere um instante. Diga-me do que se trata, Sr. Holland, e diga agora mesmo ou não darei mais um passo!

— Suas chaves.

— Você não pode simplesmente...

— Suas chaves!

Cathy olhou para ele, chocada com a ordem. Subitamente, ela percebeu que o que via nos olhos dele era pânico. Aqueles eram os olhos de um homem perseguido.

Automaticamente, ela entregou as chaves.

— Espere aqui — disse ele. — Deixe-me verificar o apartamento primeiro.

Cathy observou, confusa, enquanto ele abria a porta e entrava cautelosamente. Durante alguns instantes, nada ouviu. Ela o imaginou atravessando o apartamento e tentou estimar quantos segundos demoraria para verificar cada cômodo. Era um apartamento pequeno. Por que ele estava demorando tanto? Lentamente, ela se aproximou da porta e, ao chegar lá, Victor apareceu. Cathy emitiu um gritinho surpreso. Victor mal teve tempo de aparar o saco de compras que escorregou de seus braços.

— Está tudo bem — disse ele. — Entre.

No instante em que ela entrou, Victor trancou a porta.

Então, caminhou rapidamente pelo cômodo, fechando janelas e cortinas.

— Vai me dizer o que está acontecendo? — perguntou Cathy, seguindo-o pela sala.

— Estamos em apuros.

— Você quer dizer que você está em apuros.

— Não. Quero dizer que nós estamos. Nós dois. — Ele se voltou para ela, olhar límpido e firme. — Você está com o filme?

— Do que está falando? — perguntou Cathy, confusa pela súbita mudança de assunto.

— Um rolo de filme de 35mm. Em um tubo de plástico preto. Você está com ele?

Ela não respondeu. Mas uma imagem daquela última noite com Sarah já se formara em sua mente: um rolo de filme na bancada da cozinha. Filme que ela pensava pertencer a seu amigo Hickey. Filme que ela enfiou no bolso do roupão de banho e, depois, em sua bolsa. Mas ela não lhe revelaria nada disso, não até descobrir por que ele queria aquilo. O olhar que ela lhe dedicou foi propositalmente neutro.

Frustrado, Victor se forçou a inspirar profundamente e começar tudo de novo.

— Naquela noite em que você me encontrou na estrada, o filme estava no meu bolso. Não estava mais comigo quando despertei no hospital. Devo tê-lo deixado cair no seu carro.

— Por que você quer esse rolo de filme?

— Preciso dele. Como prova...

— De quê?

— Demoraria muito para explicar.

Ela deu de ombros.

— Não tenho nada melhor a fazer no momento.

— Droga! — Ele avançou para ela e, tomando-a pelos ombros, forçou-a a olhar em sua direção. — Não compreende? Foi por isso que sua amiga foi morta! Na noite em que arrombaram seu carro, estavam procurando aquele filme!

Cathy olhou para ele com uma expressão de súbita compreensão e horror.

— Sarah...

— Ela estava no lugar errado, na hora errada. O assassino deve ter pensado que ela era você.

Cathy sentiu-se presa de seu olhar implacável. E pela ameaça inescapável daquela revelação. Seus joelhos dobraram e ela afundou na poltrona mais próxima e ali ficou, em silêncio.

— Você precisa ir embora daqui — disse ele. — Antes que a encontrem. Antes que se dêem conta de que você é a Cathy Weaver que estão procurando.

Ela não se moveu. Não podia se mover.

— Vamos, Cathy. Não temos muito tempo!

— O que há nesse rolo de filme? — murmurou Cathy.

— Já disse. Provas contra uma empresa chamada Viratek.

Ela franziu as sobrancelhas.

— Essa não é... Não é a empresa onde você trabalha?

— Trabalhava.

— O que eles fazem?

— Estão envolvidos em algum tipo de projeto de pesquisa ilegal. Não posso revelar os detalhes.

— Por que não?

— Por que não os conheço. Não fui eu quem reuniu as provas. Um colega... Um amigo... Ele as passou para mim, pouco antes de ser morto.

— O que quer dizer com "ser morto"?

— A polícia achou que foi acidente. Eu penso o contrário.

— Você está me dizendo que ele foi morto por causa de um projeto de pesquisa? — Ela balançou a cabeça. — Devia estar trabalhando com coisas perigosas.

— É tudo o que sei. Envolve armas biológicas. O que torna a pesquisa ilegal. E incrivelmente perigosa.

— Armas? Para que governo?

— Para o nosso.

— Não compreendo. Se esse é um projeto federal, isso o torna legal, certo?

— De modo algum. Sabemos que pessoas em altos cargos já desrespeitaram as regras anteriormente.

— Quão alto está falando?

— Não sei. Não "posso confiar em ninguém. Nem na polícia, nem no Departamento de Justiça, nem no FBI.

Os olhos dela se estreitaram. As palavras que ouvia soavam como delírios paranóicos. Mas a voz — e os olhos — pareciam perfeitamente sãos. Os olhos eram verde-marinho.

Tinham uma honestidade e uma firmeza que poderiam representar toda a segurança de que ela necessitava.

Não. Nem de longe.

Calmamente, ela disse:

— Você está me dizendo que o FBI está atrás de você. É isso?

A raiva brilhou subitamente nos olhos dele, mas se dissipou quase tão rapidamente quanto surgiu. Gemendo, ele afundou no sofá e passou os dedos pelo cabelo.

— Não a culpo por pensar que sou louco. Às vezes me pergunto se não estou mesmo louco. Achei que, se podia confiar em alguém, esse alguém seria você...

— Por que eu?

Ele olhou para ela.

— Porque você salvou minha vida. Você foi aquela que tentaram matar em seguida.

Cathy sentiu-se paralisada. Não, não, isso é loucura.

Agora ele a estava puxando para dentro de seu delírio, fazendo-a crer em seu pesadelo de assassinatos e conspirações.

Ela não o deixaria fazer isso! Cathy se levantou e fez menção de se afastar, mas a voz dele a fez parar outra vez.

— Cathy, pense. Por que sua amiga Sarah foi morta? Porque pensaram que ela era você. A essa altura, eles já se deram conta de que mataram a mulher errada. Eles vão voltar para fazer o serviço direito. Pela possibilidade de você saber algo. Pela possibilidade de você estar com a prova...

— Isso é loucura! — gritou Cathy, levando as mãos aos ouvidos. — Ninguém vai fazer...

— Eles já fizeram! — Victor tirou um recorte de jornal do bolso da calça. — A caminho daqui, passei por uma banca de jornais. Isso estava na primeira página.

Victor entregou o recorte para ela.

Cathy olhou, atônita, para a fotografia de uma mulher de meia-idade, uma estranha completa.

— Mulher de São Francisco baleada na frente de casa. Leia o texto abaixo.

— Isso nada tem a ver comigo — disse ela.

— Veja o nome dela.

O olhar de Cathy correu até o terceiro parágrafo, que identificava a vítima.

O nome era Catherine Weaver.

O recorte escorregou da mão de Cathy e caiu no chão.

— Há três Catherine Weaver na lista telefônica de São Francisco — disse ele. — Essa foi baleada e morta às 9h de hoje. Não sei o que aconteceu com a segunda. Pode já estar morta, o que a torna a próxima da lista. Tiveram tempo bastante para localizá-la.

— Estive fora da cidade... Só voltei há uma hora...

— O que explica por que ainda está viva. Talvez tenham vindo mais cedo. Talvez tenham decidido verificar primeiro as outras duas.

Ela se levantou bruscamente, subitamente ansiosa para fugir.

— Tenho de fazer minha mala...

— Não. Apenas dê o fora daqui.

Sim, faça o que ele diz!, gritou-lhe uma voz interior.

Cathy assentiu. Voltando-se, encaminhou-se cegamente para a porta.

A meio caminho, parou.

— Minha bolsa...

— Onde está?

Ela voltou, passando diante de uma janela com a cortina fechada.

— Acho que a deixei...

As palavras seguintes foram interrompidas por uma explosão de vidro quebrado. A cortina evitou que os estilhaços a ferissem. Por puro reflexo, Cathy já estava deitada no chão quando veio o segundo tiro. Um instante depois sentiu Victor Holland deitado sobre ela, cobrindo-lhe o corpo, quando uma terceira bala chocou-se contra a parede oposta, espalhando estilhaços de madeira e gesso.

As cortinas estremeceram, então ficaram imóveis.

Durante alguns segundos, Cathy ficou paralisada, tanto de pavor quanto pelo peso do corpo de Victor sobre o dela. Então, o pânico assumiu o controle. Ela se debateu para se livrar, para tentar fugir do apartamento.

— Fique abaixada! — gritou Victor.

— Eles estão tentando nos matar!

— Então não facilite as coisas para eles! — Ele a puxou de volta ao chão. — Vamos sair. Mas não pela porta da frente.

— Como...

— Onde é a saída de incêndio?

— Na janela de meu quarto.

— Leva ao telhado?

— Não sei... Acho que sim...

— Então vamos.

Engatinhando, atravessaram o corredor e entraram no quarto de Cathy, que estava às escuras. Sob a janela, fizeram uma pausa, escutando atentamente. Lá fora, no escuro, não ouviram nada. Então, lá embaixo, na portaria, ouviram um ruído de vidro quebrado.

— Ele já está no prédio! — sibilou Victor enquanto abria a janela. — Fora, fora!

Cathy não precisou ser empurrada. Com as mãos trêmulas, ganhou a saída de incêndio.

Victor estava bem atrás dela.

— Para cima — murmurou. — Para o telhado.

E depois o quê?, pensou ela, subindo a escada até o terceiro andar, passando pelo apartamento da Sra. Chang. A Sra. Chang estava fora da cidade naquela semana, visitando o filho em Nova Jersey. O apartamento estava às escuras, janelas trancadas. Não havia como entrar.

— Continue — disse Victor, empurrando-a.

Faltavam apenas alguns degraus.

Finalmente, ela chegou ao teto revestido de piche. Um segundo depois, Victor estava ao seu lado. Vasos de plantas oscilavam no escuro. Ali era o jardim da Sra. Chang, uma fragrante mistura de ervas e vegetais chineses.

Juntos, caminharam entre as plantas e foram até o outro extremo do terraço, onde o edifício ao lado encontrava-se com o de Cathy.

— Continuamos? — perguntou ela.

— Sim.

Pularam para o terraço do outro edifício e correram até o outro extremo, onde havia um vão de um metro até o próximo edifício. Ela não parou para avaliar os perigos daquele salto. Simplesmente pulou e continuou correndo, ciente de que cada passo a afastava cada vez mais do perigo.

No terraço do quarto prédio, Cathy finalmente parou e olhou para a rua lá embaixo. Fim de linha. Subitamente ela percebeu a distância que a separava do chão. A escada de incêndio parecia-lhe tão firme quanto um brinquedo de encaixe.

Cathy engoliu em seco.

— Essa provavelmente não é a melhor hora de eu lhe dizer isso, mas...

— Dizer o quê?

— Tenho medo de altura.

Ele ultrapassou a borda.

— Então não olhe para baixo.

Certo, pensou ela, ganhando a escada de incêndio. Não olhe para baixo. As palmas de suas mãos estavam tão escorregadias de suor que ela mal conseguia segurar os degraus. Subitamente tomada pela vertigem, Cathy ficou imóvel, desesperadamente agarrada àquele frágil esqueleto de metal.

— Não pare agora! — murmurou Victor. — Apenas continue!

Ela não se moveu. Em vez disso, pressionou o rosto contra o degrau, com tanta força que sentiu a borda áspera ferir sua pele.

— Você está indo bem, Cathy! — disse ele. — Vamos.

A dor tomara conta dela, bloqueando a vertigem, até mesmo o medo. Ao voltar a abrir os olhos, o mundo havia voltado ao prumo. Com pernas flácidas, ela desceu a escada, fazendo uma pausa na plataforma do terceiro andar para enxugar o suor das mãos na calça jeans. Então, continuou a descer para a plataforma do segundo andar.

Ainda faltavam bons cinco metros até o chão. Ela liberou a escada retrátil e começou a descer, mas a escada rangeu tão alto que Victor a deteve imediatamente.

— Muito barulhenta. Vamos ter de pular!

— Mas...

Para sua surpresa, ele pulou.

— Vamos! — murmurou lá embaixo. — Não é tão alto. Eu a amparo aqui embaixo.

Murmurando uma reza, ela se jogou.

Para sua surpresa, ele a pegou. Mas só a segurou durante um segundo. O ferimento a bala deixara seu ombro fraco demais. Ambos caíram no chão. Ela caiu bem em cima dele, pernas ao redor de seus quadris, rostos a centímetros de distância. Ambos se olharam, tão atônitos que mal conseguiam respirar.

Lá em cima, uma janela se abriu e alguém gritou:

— Seus vagabundos! Se não derem o fora daqui agora mesmo, vou chamar a polícia!

Imediatamente, Cathy saiu de cima de Victor e esbarrou em uma lata de lixo. A tampa caiu e chocou-se contra a calçada como um prato de bateria.

— Acabou o descanso — grunhiu Victor ao se levantar. — Vamos.

Eles correram pela rua, entraram em um beco e continuaram a correr. Correram por cinco quarteirões antes de finalmente pararem para recuperar o fôlego. Olharam para trás.

A rua estava deserta.

Eles estavam em segurança!

 

Nicholas Savitch aproximou-se da cama impecável e mediu o quarto com os olhos. Evidentemente era o quarto de uma mulher, com meia dúzia de vestidos simples, embora elegantes, pendurados no armário. Sobre a penteadeira, alinhavam-se pós e loções de aroma adocicado. Foi necessário apenas uma volta pelo cômodo para ele conhecer a mulher que o habitava. Era magra, manequim médio, sapato tamanho 37. Os cabelos na escova eram castanhos e caíam-lhe à altura dos ombros.

Possuía poucas jóias e gostava de aromas naturais, água de rosas e lavanda. O verde era sua cor favorita.

De volta à sala de estar, continuou a recolher informação.

A mulher assinava jornais especializados de Hollywood.

Seu gosto por música, assim como por livros, era eclético.

Percebeu um recorte de jornal no chão. Ele o pegou e leu a notícia. Ora, aquilo era interessante. A morte de Catherine Weaver I não passara despercebida para Catherine Weaver III. Ele embolsou a matéria. Então, viu a bolsa caída no chão perto da janela estilhaçada.

Bingo!

Ele esvaziou o conteúdo na mesa de centro. De lá, tirou uma carteira, talão de cheques, canetas, alguns trocados e... uma agenda de endereços. Ele a abriu na letra B. Ali encontrou o nome que procurava: Sarah Boylan.

Agora tinha certeza de que aquela era a Catherine Weaver que buscava. Que vergonha ter perdido tempo caçando as outras duas.

Savitch folheou a agenda e viu uma meia dúzia de endereços de São Francisco. A mulher poderia ter sido esperta o bastante para escapar daquela vez. Mas continuar escondida seria mais difícil. E aquele caderninho, com os nomes de seus amigos, parentes e colegas, poderia levá-lo diretamente até ela.

Em algum lugar ao longe, ouviu uma sirene de polícia.

Era hora de ir embora.

Savitch pegou o livro de endereços, a carteira da mulher, e saiu. Lá fora, caminhou calmamente rua abaixo, o hálito condensado em baforadas de vapor devido ao ar frio. Ele podia se dar ao luxo de ir com calma.

Contudo, para Catherine Weaver e Victor Holland, o tempo estava se esgotando.

 

NÃO HAVIA TEMPO PARA DESCANSAR. Atravessaram os seis quarteirões seguintes, um trajeto que pareceu representar muitos quilômetros de corrida para Cathy. Victor avançava, incansável, guiando-a através de ruas secundárias, evitando cruzamentos movimentados.

Ela o deixou pensar e escolher o caminho. Seu pavor lentamente transformava-se em apatia e em um desorientador senso de não realidade. A própria cidade parecia-lhe uma paisagem de sonho, o asfalto, os semáforos e os intermináveis meandros de concreto. A única realidade era o homem correndo ao seu lado, olhar alerta, movimentos rápidos e firmes. Ela sabia que ele também deveria estar com medo, embora não aparentasse.

Victor segurou a mão dela. O calor daquele toque, a força daqueles dedos, pareciam fluir para seus membros frios e exaustos.

Cathy acelerou o passo.

— Acho que há uma delegacia de polícia mais adiante — disse ela. — Um ou dois quarteirões.

— Não vamos à polícia.

— O quê?

Ela parou de súbito, olhando para ele.

— Ainda não. Não até eu ter a chance de pensar nisso tudo.

— Victor — disse ela lentamente. — Alguém está tentando nos matar. Tentando me matar. O que quer dizer com pensar nisso tudo ?

— Veja, não podemos ficar parados aqui discutindo. Precisamos sair da rua. — Ele voltou a segurar a mão dela.

— Vamos.

— Para onde?

— Eu tenho um quarto. Fica a algumas quadras daqui. Ela se deixou arrastar apenas alguns metros antes de reunir força de vontade para se desvencilhar.

— Espere um minuto. Apenas espere.

Victor se voltou e a encarou, o rosto uma máscara de frustração.

— Esperar pelo quê? Que o maníaco nos alcance? Que tiros voltem a ser disparados?

— Esperar por uma explicação!

— Explicarei tudo. Quando estivermos em segurança. Ela se afastou.

— Por que você está com medo da polícia?

— Não posso confiar neles.

— Tem algum motivo para estar com medo? O que você fez?

Com dois passos ele cobriu o espaço que os separava e a agarrou com força pelos ombros.

— Acabei de tirá-la de uma armadilha mortal, lembra-se?

As balas atravessaram a sua janela, não a minha!

— Talvez estivessem destinadas a você!

— Tudo bem! — Ele a soltou e deixou-a se afastar. — Quer tentar por conta própria? Vá em frente. Talvez a polícia a ajude. Talvez não. Mas eu não posso arriscar. Não até eu saber quem está por trás disso tudo.

— Você... vai me deixar ir?

— Você nunca foi minha prisioneira.

— Não.

Ela expirou e seu hálito se condensou em uma nuvem de vapor. Cathy olhou a rua abaixo, em direção à delegacia de polícia.

— É... o mais razoável a fazer — murmurou, quase que para convencer a si mesma. — É para isso que eles servem.

— Certo.

Ela franziu as sobrancelhas, antecipando o que teria pela frente.

— Vão fazer muitas perguntas...

— O que dirá para eles?

Ela o encarou, olhar imperturbável.

— A verdade.

— Que será, na melhor das hipóteses, incompleta. E, na pior, inacreditável.

— Tenho vidro quebrado espalhado pelo meu apartamento.

— Um tiroteio fortuito. Puramente casual.

— O dever deles é me proteger.

— E se acharem que você não precisa de proteção?

— Falarei sobre você! Sobre Sarah.

— Talvez a levem a sério, talvez não.

— Eles têm de levar a sério! Alguém está tentando me matar! — Sua voz, desesperadamente estridente, ecoou pelo labirinto de ruas.

— Eu sei — disse ele calmamente.

Cathy voltou a olhar em direção à delegacia.

— Estou indo.

Victor não disse nada.

— Onde vai estar? — perguntou Cathy.

— Sozinho. Por enquanto.

Ela deu dois passos, então parou.

— Victor?

— Ainda estou aqui.

— Você salvou minha vida. Obrigada.

Ele não respondeu. Cathy ouviu seus passos se afastando lentamente e ali ficou, pensativa, perguntando-se se estava agindo corretamente. Claro que sim! Um homem com medo da polícia, com uma história paranóica como a dele, tinha de ser perigoso.

Mas ele salvou minha vida.

E, em outra ocasião, em uma noite chuvosa em Garberville, ela salvara a vida dele.

Cathy relembrou todos os acontecimentos da semana anterior. O assassinato de Sarah, nunca explicado. A outra Catherine Weaver, morta diante de casa. O rolo de filme que Sarah encontrara no carro e que Cathy guardara no bolso do roupão de banho...

Os passos de Victor sumiam ao longe.

Naquele instante, ela se deu conta de que perdera o único homem que poderia ajudá-la a encontrar as respostas para todas aquelas perguntas, o homem que estivera ao seu lado em seus piores momentos de terror. O único homem em quem, por alguma estranha intuição, ela sabia que podia confiar. Olhando para aquela rua deserta, sentiu-se abandonada e absolutamente sem amigos.

Subitamente em pânico, voltou-se e chamou:

— Victor!

No outro extremo do quarteirão, uma silhueta parou e se voltou. Parecia um refúgio seguro naquele mundo louco e perigoso. Ela começou a andar em direção a ele, cada vez mais rápido, até se ver correndo, ansiosa pela segurança daqueles braços, braços de um homem que ela mal conhecia.

Contudo, aqueles braços que a apertavam contra o peito, que lhe davam as boas-vindas e a protegiam, não pareciam os braços de um estranho. Ela sentiu o pulsar do coração de Victor, a pressão de seus dedos em suas costas, e algo lhe disse que aquele era um homem em quem ela podia confiar, um homem que não fraquejaria quando ela mais precisasse dele.

— Estou bem aqui — murmurou Victor. — Bem aqui.

Ele acariciou-lhe os cabelos levados pelo vento, os dedos afundando profundamente em seus cachos emaranhados.

Ela sentiu o calor de seu hálito contra o rosto, e sentiu sua própria reação, rápida e trêmula. Então, ele a beijou com ansiedade. Cathy correspondeu com um beijo quase tão desesperado, quase tão carente. Estranho que fosse, ele estivera do seu lado, ainda estava, seus braços protegendo-a dos horrores da noite.

Cathy pressionou o rosto contra o peito de Victor, desejando afundar cada vez mais profundamente.

— Eu não sei o que fazer! Estou com tanto medo, Victor, e  não sei o que fazer...

— Vamos resolver isso juntos, certo? — Ele segurou o rosto dela com ambas as mãos e ergueu-o em direção ao dele.

— Você e eu vamos conseguir.

Cathy assentiu. Ao buscar os olhos dele e topar com aquela expressão firme como uma rocha, encontrou toda a segurança de que necessitava.

Um vento soprou pela rua. Ela estremeceu à sua passagem.

— O que faremos primeiro? — murmurou Cathy.

— Primeiro vou aquecê-la. E levá-la para dentro de casa. — Victor tirou o casaco, jogou-o sobre os ombros dela e tomou-a pela mão. — Vamos. Um banho quente, um bom jantar e logo você estará novinha em folha.

Caminharam cinco quarteirões até o Kon-Tiki Motel.

Embora não fosse exatamente uma casa cinco estrelas, o Kon-Tiki era confortavelmente discreto e anônimo. Subiram até o quarto 214, cuja janela era voltada para o estacionamento quase deserto. Ele abriu a porta e acenou para que ela entrasse.

O fluxo de ar quente contra seu rosto pareceu-lhe delicioso.

Ela ficou de pé no centro daquele espaço absolutamente inexpressivo e desfrutou da deliciosa sensação de estar cercada por quatro paredes. Havia poucos móveis: uma cama de casal, um guarda-roupa, duas mesas de cabeceira com abajures e uma única cadeira.

Na parede havia uma fotografia emoldurada de alguma ilha anônima do Pacífico Sul.

A única bagagem que ela viu foi uma bolsa de náilon pousada no chão do quarto. A cama estava desfeita, recentemente usada, os travesseiros erguidos contra a cabeceira.

— Não é grande coisa — disse ele. — Mas é quente. E está pago. — Ele ligou a tevê. — É bom ficarmos de olho nas notícias. Talvez falem alguma coisa da tal Weaver.

A tal Weaver, pensou ela. Poderia ter sido eu. Cathy voltou a tremer, mas dessa vez não foi por causa do frio.

Ela sentou-se na cama e olhou para a tevê, alheia, sem realmente ver o que acontecia na tela. Estava mais atenta a ele.

Victor circulava pelo quarto verificando as janelas e a tranca da porta. Movia-se em silêncio, com eficiência, seu silêncio um lembrete da perigosa situação em que se encontravam. A maioria dos homens que ela conhecia começava a dizer besteiras quando estava com medo.

Victor Holland limitava-se a ficar quieto. Sua própria presença era avassaladora. Parecia preencher todo o quarto.

Ele se aproximou. Cathy fechou os olhos quando ele tomou-lhe as mãos, voltou as palmas para cima e analisou-as carinhosamente. Foi quando viu o sangue dos arranhões e os flocos de ferrugem da escada de incêndio encravados em sua pele.

— Acho que estou um lixo — murmurou Cathy.

Ele sorriu e acariciou-lhe o rosto.

— Você podia se lavar. Vá em frente. Vou pedir algo para comermos.

Ela foi até o banheiro. Através da porta, ouviu o ruído da tevê e o som da voz de Victor pedindo uma pizza pelo telefone. Ela jogou água quente sobre as mãos frias e dormentes. No espelho sobre a pia, viu uma imagem nada agradável de si mesma, cabelo despenteado, queixo sujo de terra. Cathy lavou o rosto, estimulando a circulação de suas faces geladas. Olhando para baixo, notou a navalha de Victor sobre o balcão. A visão daquela lâmina a fez ver a situação de outro ponto de vista — um ponto de vista assustador. Ela pegou a navalha pensando em quão letal parecia ser aquela lâmina e quão vulnerável ela estaria naquela noite. Victor era um homem corpulento, tinha quase 1,90m, braços poderosos.

Ela media apenas 1,68m e, comparativamente, era mais fraca do que ele.

Havia apenas uma cama no quarto. Cathy fora até ali voluntariamente. O que Victor pensaria dela? Que era uma vítima voluntária? Ela pensou em todos os modos que um homem poderia feri-la ou matá-la. Não seria necessária uma navalha para dar cabo do serviço. Victor poderia usar as mãos. O que faço aqui?, perguntou-se.

Passando a noite com um homem que mal conheço? Mas aquela não era hora de ficar indecisa. Ela tomara uma decisão. Teria de seguir seus instintos, e seus instintos lhe diziam que Victor Holland jamais lhe faria mal.

Deliberadamente, Cathy baixou a lâmina. Ela teria de confiar nele. Tinha medo de não confiar.

No quarto, uma porta bateu. Teria saído?

Abrindo uma fresta na porta, ela olhou para fora. A tevê ainda estava ligada. Não havia sinal de Victor.

Lentamente ela saiu do banheiro para se descobrir sozinha no quarto. Ela começou a vagar pelo cômodo em busca de provas, qualquer coisa que lhe dissesse mais sobre aquele homem. As gavetas da escrivaninha estavam vazias, assim como o armário. Obviamente ele não pretendia ficar muito tempo naquele lugar. Planejara apenas uma noite, talvez duas. Ela foi até a bolsa de náilon e olhou para dentro. Viu um par de meias limpas, um pacote fechado de cuecas e um exemplar da véspera do San Francisco Chronicle. Tudo aquilo lhe dizia que ele se mantinha informado e que viajava com pouca bagagem.

Como um fugitivo.

Ela vasculhou mais fundo e encontrou um recibo de caixa eletrônico. Na véspera, ele tentara sacar dinheiro. A máquina imprimira a mensagem: A transação não pôde ser efetuada. Por favor, entre em contato com seu banco.

Por que recusara-se a lhe dar o dinheiro?, perguntou-se.

Estaria sem fundos? Será que a máquina estava quebrada? O som de uma chave na porta pegou-a de surpresa. Ela ergueu a cabeça quando a porta se abriu.

O olhar de Victor a fez corar de vergonha. Lentamente ela se levantou, incapaz de responder àquele olhar acusador.

A porta se fechou atrás dele.

— Suponho que é algo razoável a ser feito — disse Victor. — Revistar as minhas coisas.

— Desculpe. Eu só... — Cathy engoliu em seco. — Eu tinha de saber mais sobre você.

— E que coisas terríveis descobriu?

— Nada!

— Nenhum segredo terrível? Não tenha medo. Diga-me, Cathy.

— Só... só que teve dificuldades para sacar dinheiro de sua conta.

Ele assentiu.

— Algo muito frustrante uma vez que, de acordo com os meus cálculos, tenho um saldo de 6 mil dólares. Agora, parece que não posso pegar esse dinheiro. — Victor sentou-se na cadeira, ainda olhando para ela. — O que mais descobriu?

— Você... você lê jornal.

— Eu e muita gente. O que mais?

Ela deu de ombros.

— Você usa cuecas samba-canção.

Ele sorriu com os olhos.

— Agora a coisa está ficando pessoal.

— Você... — Cathy inspirou profundamente. — Você está fugindo.

Victor olhou-a por um longo tempo sem dizer palavra.

— Por isso você não vai à polícia — disse ela. — Não é mesmo?

Ele desviou o olhar para a parede nos fundos do cômodo.

— Tenho meus motivos.

— Diga-me um, Victor. Um bom motivo e eu me calo.

Ele suspirou.

— Duvido.

— Tente. Tenho todos os motivos para acreditar em você.

— Você tem todos os motivos para pensar que sou paranóico. — Inclinando-se para a frente, ele passou a mão no rosto. — Meu Deus, às vezes eu mesmo acho que devo ser.

Silenciosamente Cathy se aproximou e ajoelhou-se ao lado da cadeira.

— Victor, quem são essas pessoas que estão tentando me matar?

— Não sei.

— Você disse que gente em altos escalões pode estar envolvida.

— É só uma intuição. Um caso de recursos federais aplicados em pesquisa ilegal. Pesquisa mortal.

— E dinheiro federal tem de ser fornecido por alguma autoridade.

Ele assentiu.

— Alguém que transgrediu as regras. Alguém que pode ser prejudicado por um escândalo político. Essa pessoa pode tentar se proteger manipulando o FBI. Ou mesmo a polícia local. Por isso eu não os procuro. Foi por isso que saí do quarto para fazer uma ligação.

— Quando?

— Enquanto você estava no banheiro. Fui a um telefone público e liguei para a polícia. Não queria que rastreassem a chamada.

— Você acabou de dizer que não os queria envolvidos nisso.

— Era uma ligação que eu tinha de fazer. Há uma terceira Catherine Weaver na lista telefônica, lembra-se?

Uma terceira vítima na lista. Subitamente fraca, ela se sentou na cama.

— O que você disse? — murmurou Cathy.

— Que tenho motivos para crer que ela esteja em perigo. Ela não atendeu o telefone.

— Você ligou?

— Duas vezes.

— A polícia lhe deu ouvidos?

— Eles não apenas me ouviram, como exigiram que eu dissesse meu nome. Foi quando me dei conta de que algo já devia ter acontecido com ela. Nesse ponto, desliguei e me afastei da cabine. Uma chamada pode ser rastreada em segundos. Poderiam me cercar.

— Com essa são três — murmurou. — Aquelas duas outras mulheres. E eu.

—  Desde que fique longe de seu apartamento, eles não têm como encontrá-la. Fique longe de...

Ambos ficaram paralisados, em pânico.

Alguém batia à porta.

Olharam um para o outro, o medo espelhado em seus rostos.

Então, após um momento de hesitação, Victor perguntou:

— Quem é?

— Domino's — respondeu uma voz fina.

Cuidadoso, Victor abriu a porta. Um adolescente segurava uma caixa de papelão.

— Oi! — saudou o menino. — Um combo grande com acompanhamentos, dois refrigerantes e guardanapos extras. Certo?

— Certo. — Victor entregou algumas notas ao rapaz. — Fique com o troco — disse ele antes de fechar a porta.

Voltando-se, olhou timidamente para Cathy. — Bem — admitiu. — Veja você, às vezes uma batida na porta pode ser apenas o entregador de pizza.

Ambos riram, um riso não de humor, mas de nervos à flor da pele. A liberação da tensão pareceu transformar em ternura a preocupação que ela via em seu rosto. Se essas rugas de cansaço fossem apagadas, pensou Cathy, ele poderia até ser considerado um homem bonito.

— Sabe — disse Victor —, não vamos pensar nessa confusão agora. Por que simplesmente não passamos ao assunto mais importante do dia: comida?

Assentindo, ela estendeu a mão para a caixa.

— Melhor sermos rápidos. Antes que eu coma a maldita roupa de cama.

Enquanto assistiam ao noticiário das 22h, atacaram a pizza como dois animais raivosos. Era um banquete oleoso e absolutamente satisfatório sobre uma cama de motel. Eles mal se incomodaram com a conversa: suas bocas estavam muito ocupadas em devorar o queijo e o pepperoni. Na tevê, um âncora bem-vestido anunciava uma mudança na administração municipal e a renúncia do prefeito, notícias que, dada a situação em que se encontravam, pareceram-lhes ridiculamente triviais. Escassos trinta segundos foram dedicados à morte de Catherine Weaver I naquela manhã. Até então, nenhum suspeito fora preso. Nenhuma menção fora feita a uma segunda vítima com o mesmo nome.

Victor franziu as sobrancelhas.

— Parece que a outra mulher não chegou ao noticiário.

— Ou nada aconteceu com ela.

Cathy olhou para ele, curiosa.

— E se a segunda Cathy Weaver estiver bem? Quando você ligou para a polícia, devem ter feito perguntas de rotina. Você está uma pilha, deve ter...

— Imaginado coisas? — O olhar que Victor lhe lançou quase a fez morder a língua.

— Não — disse ela calmamente. — Pode ter entendido errado. A polícia não pode dar crédito a toda ligação anônima que recebe. E natural terem perguntado seu nome.

— Foi mais que uma pergunta, Cathy. Estavam ansiosos para me interrogar.

— Não estou duvidando de você. Só estou fazendo o papel de advogada do diabo. Tentando manter as coisas equilibradas e sãs em meio a toda essa loucura.

Ele a encarou longamente. Finalmente, assentiu.

— A voz de uma mulher racional — disse Victor em meio a um suspiro. — Exatamente o que preciso agora para evitar que eu pule ao ver minha própria sombra.

— É para lembrá-lo de que deve comer. — Ela estendeu-lhe outra fatia de pizza. — Você pediu essa coisa gigante. Melhor me ajudar a terminar.

A tensão entre os dois evaporou instantaneamente. Ele se acomodou na cama e aceitou a fatia oferecida.

— Esse olhar maternal lhe cai muito bem — observou Victor com sarcasmo. — O molho de pizza também.

— O quê? — Ela passou a mão no queixo.

— Você parece uma criança de dois anos que resolveu pintar o rosto com os dedos.

— Meu Deus, pode me passar um guardanapo?

— Deixe-me fazê-lo. — Inclinando-se para a frente, ele gentilmente limpou o molho de seu queixo. Ao fazê-lo, Cathy aproveitou para estudar-lhe o rosto e viu as rugas de riso nos cantos de seus olhos, as mechas grisalhas em meio ao cabelo castanho. Ela lembrou da foto daquele mesmo rosto, colada em um crachá da Viratek. Quão sombrio parecia! Aquele era o retrato sisudo de um cientista.

Agora, porém, Victor parecia jovem, vivo e quase feliz.

Subitamente ciente de que ela estava olhando para ele, Victor ergueu a cabeça e a encarou. Lentamente, seu sorriso esvaeceu. Ambos ficaram imóveis, como se vissem, nos olhos do outro, algo que não haviam notado antes. As vozes na televisão pareceram desaparecer em uma dimensão distante. Ela sentiu os dedos dele correrem suavemente por seu rosto. Foi apenas um toque, mas isso a deixou arrepiada.

Cathy murmurou:

— O que acontece agora, Victor? Para onde vamos?

— Temos diversas opções.

— Quais?

— Tenho amigos em Palo Alto. Podemos procurá-los.

— Ou?

— Ou podemos ficar onde estamos. Durante algum tempo.

Aqui onde estamos. Neste quarto, nesta cama. Ela não se importaria. Nem um pouco.

Cathy se inclinou em direção a Victor, atraída por uma força contra a qual não podia oferecer resistência. Ele ergueu ambas as mãos e segurou o rosto dela, mãos enormes, embora extremamente delicadas. Ela fechou os olhos, sabendo que aquele beijo também seria delicado.

E foi. Aquele não foi um beijo movido pelo medo ou pelo desespero e, sim, um beijo de conjunção entre duas almas. Ela se inclinou em sua direção e sentiu que os braços dele se fechavam às suas costas para puxá-la para mais perto. Foi um momento perigoso no qual ela se sentiu no limiar da total submissão àquele homem que mal conhecia. Cathy abraçou-lhe o pescoço e suas mãos vasculharam as mechas grisalhas de sua basta cabeleira.

Os beijos dele baixaram até o pescoço de Cathy, explorando a tenra geografia de sua garganta. Todas as carências que estiveram dormentes nos últimos anos, todas as ânsias e desejos pareceram se agitar dentro dela, despertando ao seu toque.

E então, a mágica se dissipou. A princípio ela não entendeu por que ele subitamente se afastou e ergueu a cabeça. A expressão no rosto dele era de surpresa atônita. Curiosa, seguiu-lhe o olhar e viu que ele olhava para a tevê atrás dela. Então, Cathy se voltou para ver o que lhe chamara a atenção.

Um rosto extremamente familiar a encarou de volta. Ela reconheceu o logotipo da Viratek na parte superior da tela e o olhar direto do homem na fotografia. Por que diabos puseram no ar o crachá de Victor Holland?

— ... procurado, acusado de espionagem industrial. As provas agora ligam o Dr. Holland à morte de um colega pesquisador da Viratek, o Dr. Gerald Martinique. Os investigadores temem que o suspeito já tenha vendido grande quantidade de informações de pesquisa para um rival europeu...

Nenhum deles parecia capaz de sair da cama. A única coisa que conseguiam fazer era olhar, incrédulos, para o âncora com cabelo igual ao do boneco Ken. A emissora passou a exibir um intervalo comercial, uvas-passas dançando como loucas por um campo, proclamando as maravilhas do sol da Califórnia. A música, alegre e cadenciada, soava insuportável aos seus ouvidos.

Victor se levantou e desligou a tevê.

Lentamente, ele se voltou e olhou para Cathy. O silêncio entre os dois tornou-se insuportável.

— Não é verdade — disse Victor calmamente. — Nada do que disseram.

Cathy tentou ler aqueles olhos verdes e insondáveis, desejando desesperadamente acreditar no que ele dizia.

O gosto de seu beijo ainda estava quente em seus lábios.

Seriam os beijos de um ator criminoso? Seriam apenas uma outra mentira? Será que tudo o que você me disse não passou de um bando de mentiras? Quem e o que é você, Victor Holland? Ela olhou para o telefone na mesa de cabeceira. Estava tão perto. Bastaria uma ligação para a polícia para terminar com aquele pesadelo.

— É uma armação — disse ele. — A Viratek está divulgando informações falsas.

— Por quê?

— Para me acuar. A melhor maneira de me pegar é envolvendo a polícia.

Ela se aproximou do telefone.

— Não, Cathy.

Ela ficou paralisada, assustada pela ameaça em sua voz.

Victor viu o medo nos olhos dela. Calmamente, falou:

— Por favor. Não ligue. Não vou feri-la. Prometo que você pode sair por aquela porta, se quiser. Mas primeiro me ouça. Deixe-me contar o que houve. Dê-me uma chance.

Seu olhar era firme e absolutamente confiável. E ele estava bem ao seu lado, pronto para impedi-la. Ou quebrar-lhe o braço, se necessário. Ela não tinha escolha.

Assentindo, Cathy recostou-se na cama.

Victor começou a andar a esmo pelo quarto, seus pés deixando marcas no tapete verde fosco.

— Tudo isso é... uma mentira inacreditável — disse ele. — É loucura pensarem que eu matei Jerry Martinique. Ele e eu éramos os melhores amigos um do outro. Ambos trabalhávamos na Viratek. Eu no desenvolvimento de vacinas, ele como microbiólogo. A especialidade dele era o estudo de vírus. Pesquisa de genoma.

— Refere-se a... cromossomos?

— Seu equivalente viral. De qualquer modo, Jerry e eu nos ajudamos em alguns momentos difíceis. Ele teve um divórcio doloroso, e eu... — Ele fez uma pausa, a voz enfraquecendo. — Perdi minha mulher há três anos. Leucemia.

Então ele fora casado. De algum modo, aquilo a surpreendia.

Victor parecia um tipo de homem independente demais para dizer "Aceito".

— Há uns dois meses, Jerry foi transferido para um novo departamento de pesquisa — prosseguiu. — A Viratek recebera uma bolsa para um projeto de defesa. Era questão de segurança máxima e Jerry não podia falar a respeito. Mas dava para ver que ele estava incomodado com algo que estava acontecendo no laboratório. Tudo o que ele me disse foi: "Eles não compreendem o perigo. Não sabem no que estão se metendo." A especialidade de Jerry era a alteração de genes de vírus. Portanto, suponho que o projeto tenha algo a ver com guerra viral. Jerry sabia perfeitamente que tais armas são proscritas por acordo internacional.

— Se ele sabia que eram ilegais, por que participou da pesquisa?

— Talvez ele não tenha percebido a princípio qual era o objetivo do projeto. Talvez o tivessem convencido de que era apenas pesquisa de defesa. De qualquer modo, ele ficou perturbado o bastante para desejar se desligar do projeto. Jerry foi direto ao topo e procurou o fundador da Viratek. Ele entrou no escritório de Archibald Black e ameaçou levar o assunto a público caso o projeto não fosse encerrado. Quatro dias depois, sofreu o acidente.

Os olhos de Victor brilharam de ódio. Não era um sentimento dirigido a ela, mas a fúria naquele olhar era assustadora do mesmo jeito.

— O que aconteceu com ele? — perguntou Cathy.

— Seu carro foi encontrado batido no acostamento de uma estrada. Jerry ainda estava lá dentro. Morto, é claro. — Subitamente, a raiva se esvaiu, substituída por um cansaço avassalador. Ele afundou na cama. — Achei que a investigação do acidente revelaria tudo. Aquilo era uma farsa. O tiras locais fizeram o que puderam, mas então um certo federal "perito" em transportes apareceu e assumiu a investigação. Disse que Jerry devia ter dormido ao volante. Caso encerrado. Foi quando me dei conta de quão sério era o assunto. Eu não sabia a quem recorrer, de modo que liguei para o FBI de São Francisco. Disse-lhes que tinha provas.

— Refere-se ao filme? — perguntou Cathy.

Victor assentiu.

— Pouco antes de morrer, Jerry me falou de duplicatas de documentos que escondera na casa de ferramentas de seu jardim. Depois do... acidente, fui até a casa dele. Encontrei o lugar revirado. Mas não haviam revistado a casa de ferramentas. Foi como consegui as provas: um único arquivo e um rolo de filme. Combinei um encontro com um agente de São Francisco, um sujeito chamado Sam Polowski. Já falara com ele algumas vezes ao telefone. Combinamos nos encontrar em Garberville.

Queríamos manter o assunto em sigilo, de modo que marcamos em um lugar fora da cidade. Fui até lá de carro, certo de que ele apareceria. Bem, alguém de fato apareceu. Alguém que me jogou para fora da estrada. — Ele fez uma pausa e olhou fixo para ela. —  Foi nessa noite que você me encontrou.

A noite em que minha vida mudou completamente, pensou Cathy.

— Você tem de acreditar em mim — disse ele.

Cathy analisou-o detidamente, seus instintos lutando contra a lógica. A história era quase implausível, a meio caminho entre verdade e fantasia. Mas o sujeito parecia firme como uma rocha.

Exausta, ela assentiu.

— Eu acredito em você, Victor. Talvez seja louca. Ou apenas ingênua. Mas acredito.

A cama balançou quando ele se sentou ao lado dela. Não se tocaram, embora ela quase pudesse sentir o calor irradiando de seus corpos.

— Isso é tudo o que importa para mim agora — disse ele. — Que você saiba, no fundo de seu coração, que estou dizendo a verdade.

— No fundo do meu coração? — Ela balançou a cabeça e riu. — Meu coração sempre foi um péssimo juiz de caráter. Não, eu estou adivinhando. Baseio-me no fato de você ter me deixado viver. No fato de outra Cathy Weaver estar morta agora... — Lembrando do rosto daquela mulher, do rosto no jornal, ela subitamente começou a tremer. Tudo confirmava a terrível verdade.

Os tiros em seu apartamento, a outra Cathy morta. E Sarah, pobre Sarah... Ela respirava com dificuldade, à beira das lágrimas.

Cathy deixou-o tomá-la em seus braços, deixou-o deitá-la na cama ao seu lado. Victor murmurou palavras gentis de conforto contra seu cabelo. Então, desligou a luz.

No escuro, se abraçaram, duas almas assustadas unidas contra um mundo aterrorizante. Ela se sentia segura ali, recostada contra o peito de Victor. Aquele era um lugar onde ninguém poderia feri-la. Eram os braços de um estranho, mas desde o cheiro de sua camisa até as batidas de seu coração, tudo lhe parecia de algum modo familiar.

Ela não queria ir embora dali, jamais.

Cathy estremeceu quando os lábios dele roçaram sua testa. Ele acariciava seu rosto agora, seu pescoço, aquecendo-a com seu toque. Quando a mão dele entrou por debaixo de sua blusa, ela não protestou. De algum modo parecia muito natural que aquela mão pousasse sobre seu seio. Não era o toque de um predador e, sim, uma gentil lembrança de que ela estava segura.

E Cathy descobriu-se respondendo às suas carícias...

Seus mamilos se enrugaram e ficaram duros sob os dedos de Victor. A comichão se espalhou, um calor que subiu ao seu rosto e corou suas faces. Ela começou a desabotoar a camisa dele. No escuro, sentia-se lenta e desajeitada. Quando finalmente introduziu a mão sob o tecido, ambos já ofegavam de ansiedade.

Cathy acariciou os pelos do peito de Victor, que inspirou profundamente quando os dedos dela fizeram um círculo delicado ao redor de seus mamilos.

Se queria brincar com fogo, acabara de riscar o fósforo.

Subitamente Victor a beijou, ansioso, devorador. A força de seu beijo a fez tombar de costas sobre a cama, cabeça imprensada entre os travesseiros. Durante uma eternidade sentiu-se nadando em um oceano de sensações, o cheiro do calor masculino, a força daquelas mãos que aprisionavam seu rosto. Somente quando ele finalmente se afastou, ambos puderam voltar a respirar.

Victor olhou para Cathy como se pairando no limiar da tentação.

— Isso é loucura — murmurou.

— Sim. Sim, é...

— Não pretendia fazer isso...

— Nem eu.

— Você está com medo. Ambos estamos. E não sabemos o que diabo estamos fazendo.

— Não. — Cathy fechou os olhos e sentiu o aflorar de lágrimas inesperadas. — Não sabemos. Mas eu estou com medo. E só quero ser abraçada. Por favor, Victor. Abrace-me, só isso. Apenas me abrace.

Ele a puxou para perto, murmurando seu nome. Dessa vez, entretanto, abraçou-a com delicadeza, sem a febre do desejo. Sua camisa ainda estava desabotoada, o peito nu. E foi ali que Cathy deitou a cabeça, contra aquele ninho de pelos encaracolados. Sim, ele estava certo.

Seriam loucos caso fizessem amor sabendo que apenas o medo, e nada mais, despertara seus desejos. E, àquela altura, a febre já havia diminuído. Uma sensação de paz tomou conta de seu corpo. Ela se encolheu de encontro a ele. A exaustão privou-os da fala.

Seus músculos gradualmente se tornaram flácidos quando o sono a puxou para suas sombras. Mesmo que tentasse, ela não podia mover braços e pernas. Em vez disso, vagava livre, como um espectro na escuridão, flutuando em um mar quente e escuro.

Vagamente, notou luz contra suas pálpebras.

O calor que abraçava seu corpo pareceu ter se dissipado.

Não, ela o queria de volta, queria ele de volta! Logo a seguir, sentiu que Victor a sacudia.

— Cathy! Vamos, acorde!

Ela o encarou com olhos sonolentos.

— Victor?

— Algo está acontecendo lá fora.

Cathy pulou da cama e foi com ele até a janela.

Através de uma fresta na cortina, viu o que o alarmara: um carro-patrulha estacionado diante da recepção do motel.

Imediatamente ela ficou inteiramente desperta e começou a pensar em como escapar daquele quarto. Havia apenas uma porta.

— Vamos sair, agora! — ordenou Victor. — Antes que sejamos pegos.

Ele abriu a porta e ganharam o passadiço. O ar frio da noite doía-lhe como um tapa na cara e Cathy já estava trêmula, mais de medo do que de frio. Correndo agachados, atravessaram o passadiço, afastando-se da escadaria, e agacharam-se ao lado da máquina de gelo.

Lá embaixo, ouviram a porta do saguão se abrir e a voz do gerente do motel:

— É lá em cima. Puxa, ele parecia ser um cara legal...

Ouviu-se um cantar de pneus quando outro carro-patrulha chegou, luzes piscando. Victor a empurrou.

— Vá! — Entraram em uma passagem coberta e atravessaram até o outro lado do prédio. Nenhuma escadaria!

Em vista disso, pularam o parapeito do passadiço e caíram no estacionamento.

Ao longe, ouviram baterem à porta e a ordem:

— Abram! É a polícia.

Instintivamente, ambos correram em direção às sombras.

Ninguém os viu, ninguém os seguiu. Ainda assim, continuaram a correr até deixarem o Kon-Tiki Motel a quarteirões de distância, até estarem tão cansados que começaram a tropeçar.

Finalmente, Cathy parou e recostou-se em uma porta, seu ofegar condensado em nuvens de névoa fria.

— Como o encontraram? — perguntou ela.

— Não pode ter sido por causa da ligação que fiz... — Então, lamentou-se: — Meu cartão de crédito! Tive de usá-lo para pagar a conta.

— Para onde agora? Devemos tentar outro motel?

Victor balançou a cabeça em negativa.

— Estou com meus últimos quarenta dólares. Não posso me arriscar a usar um cartão de crédito.

— E eu deixei minha bolsa no apartamento. E... não estou certa se quero...

— Não vamos voltar para buscá-la. Eles estarão vigiando o lugar.

Eles. Referindo-se aos assassinos.

— Então, estamos quebrados — disse ela com um fio de voz.

Victor não respondeu. Em vez disso, ficou de pé com as mãos nos bolsos, todo o seu corpo refletindo a frustração que sentia.

— Tem amigos a quem recorrer?

— Acho que sim. Quero dizer, não. Ela estará fora da cidade até sexta-feira. E o que vou dizer? Como explicarei você?

— Não pode. Em verdade, não podemos responder a qualquer tipo de interrogatório no momento.

Isso exclui a maioria de meus amigos, pensou Cathy.

Nenhum lugar aonde ir, ninguém com quem contar. A não ser que...

Não, ela prometera a si mesma nunca descer tão baixo, nunca implorar por aquele tipo de ajuda particular.

Victor olhou para a rua.

— Há um ponto de ônibus logo ali. — Ele enfiou a mão no bolso e tirou um punhado de dinheiro. — Tome — disse ele. — Pegue isso e saia da cidade. Vá sozinha visitar alguma amiga.

— E quanto a você?

— Estarei bem.

— Sem dinheiro? Com todo mundo atrás de você?

Cathy balançou a cabeça.

— Só vou tornar as coisas mais perigosas para você. — Ele a obrigou a pegar o dinheiro.

Cathy olhou para o maço de notas, pensando: É tudo o que ele tem. E está dando para mim.

— Não posso — disse ela.

— Você tem de aceitar.

— Mas...

— Não discuta comigo.

A expressão nos olhos dele não lhe dava outra alternativa.

Relutante, Cathy aceitou o dinheiro.

— Vou esperar até você entrar no ônibus para a rodoviária.

— Victor?

Ele a silenciou com um olhar e pousou ambas as mãos sobre seus ombros.

— Você vai ficar bem. — Então, beijou-lhe a testa. Por um instante seus lábios se detiveram ali, e o calor do hálito de Victor contra seu cabelo deixou-a trêmula. — Eu não a deixaria se pensasse de outra forma.

O barulho de um ônibus se aproximando no fim do quarteirão fez ambos se voltarem.

— Aí está sua limusine — murmurou ele. — Vá. — Ele a empurrou de leve. — Cuide-se, Cathy.

Ela começou a andar em direção ao ponto de ônibus. Três passos, quatro. Então parou. Voltando-se, viu que ele já começava a se afastar em meio às sombras.

— Vá! — disse ele.

Ela olhou para o ônibus. Não vou fazer isso, pensou.

Cathy se voltou para Victor.

— Conheço um lugar! Um lugar onde nós dois podemos ficar!

— O quê?

— Não queria usá-lo, mas... — As palavras dela foram abafadas quando o ônibus parou no ponto e foi embora logo a seguir. — É uma longa caminhada. Mas teremos cama e comida. E posso garantir que ninguém vai chamar a polícia.

Victor saiu das sombras.

— Por que não pensou nisso antes?

— Pensei. Mas até agora as coisas não estavam, bem... desesperadoras o bastante.

— Não estavam desesperadoras o bastante... — repetiu ele, lentamente. Victor se aproximou, incrédulo. — ... Não estavam desesperadoras o bastante? Puxa! Gostaria de saber exatamente que tipo de crise se qualificaria!

— Você tem de entender, é uma última alternativa. Não é fácil para mim recorrer a isso.

Os olhos dele se estreitaram, desconfiados.

— Esse lugar está começando a me parecer cada vez pior. Do que estamos falando? Uma pensão barata?

— Não, fica em Pacific Heights. E o lugar pode ser classificado como uma mansão.

— Quem mora lá? Um amigo?

— Justo o contrário.

As sobrancelhas dele se ergueram.

— Um inimigo?

— Quase. — Cathy emitiu um suspiro resignado. — Meu ex-marido.

 

— JACK, ABRA! JACK!

Cathy bateu diversas vezes à porta da magnífica mansão em Pacific Heights. Ninguém atendeu. Através das janelas, viram apenas escuridão.

— Droga, Jack! — Ela deu um tapa de frustração na porta.

—  Por que você nunca está em casa quando preciso de você?

Victor olhou para a vizinhança de casas elegantes e cercas vivas bem aparadas.

— Não podemos ficar aqui a noite inteira.

— Não ficaremos — murmurou ela. Ajoelhando-se, ela começou a escavar a terra de um vaso.

— O que está fazendo?

— Algo que jurei que jamais faria. — Os dedos dela vasculharam a terra úmida, procurando a chave que Jack escondia enterrada no vaso de gerânios. É claro, lá estava ela, onde sempre estivera. Cathy ergueu-se, limpando a terra das mãos. — Mas há limites para meu orgulho e uma ameaça de morte é um deles.

Ela inseriu a chave na fechadura e ficou momentaneamente em pânico quando a chave não rodou. Mas, com algum jeito, a fechadura finalmente cedeu. A porta se abriu e toparam com um chão de madeira polida, um sólido corrimão.

Cathy acenou para que Victor entrasse. O ruído surdo da porta se fechando atrás deles pareceu deixar todos os perigos da noite do lado de fora. Cercados pela escuridão, ambos emitiram um suspiro de alívio.

— Como anda sua relação com seu ex-marido? — perguntou Victor, seguindo-a cegamente através do saguão às escuras.

— Nós nos falamos. Raramente.

— Ele não se importa que você ande pela casa dele?

— E por que se importaria? — disse ela com desprezo. — Jack deixa metade da humanidade passar pelo seu quarto. O único pré-requisito é que tenha cromossomos XX.

Ela tateou o caminho ao longo da sala de estar completamente às escuras e ligou o interruptor de luz. E ali ficou, paralisada e atônita, olhando para os dois corpos nus abraçados sobre o tapete de urso-polar.

— Jack! — exclamou Cathy.

O corpo maior se desvencilhou do menor e sentou-se sobre o tapete.

— Oi, Cathy! — Ele passou a mão sobre o cabelo castanho-escuro e sorriu. — Como nos velhos tempos.

A mulher deitada ao lado dele emitiu um palavrão grosseiro, levantou-se e correu para o banheiro em um borrão de cabelos ruivos e nádegas à mostra.

— Essa é Lulu — disse Jack em meio a um bocejo, à guisa de apresentação.

Cathy suspirou.

— Vejo que seu gosto por mulheres não melhorou.

— Não, querida, meu gosto por mulheres atingiu o seu ponto alto quando me casei com você. — Sem se preocupar com a própria nudez, Jack levantou-se e olhou para Victor. O contraste entre os dois se tornou imediatamente evidente. Embora ambos fossem altos e magros, era Jack quem era o bonitão, e ele sabia disso. Sempre soube. Vaidade não era um rótulo que se pudesse aplicar a Victor Holland.

— Vejo que trouxe uma dupla — disse Jack, olhando Victor de cima a baixo. — Então, o que vai ser, pessoal? Bridge ou pôquer?

— Nenhum dos dois — disse Cathy.

— Isso abre todo tipo de possibilidades.

— Jack, preciso de sua ajuda.

Ele se voltou e olhou-a com falsa incredulidade.

— Não diga!

— Você sabe perfeitamente que eu não estaria aqui caso pudesse evitar!

Jack piscou para Victor.

— Não acredite nela. Cathy ainda me ama desesperadamente.

— Podemos falar a sério?

— Querida, você nunca teve senso de humor.

— Vá se danar, Jack!

Todos têm um limite e Cathy atingira o seu naquele instante. Não conseguiu evitar. Sem aviso, ela irrompeu em lágrimas.

— Uma vez na vida você poderia me ouvir?

Foi quando a paciência de Victor finalmente se esgotou.

Ele não precisava ser formado em Psicologia para ver que o tal Jack era um babaca de primeira classe. Será que ele não via que Cathy estava exausta e aterrorizada? Até aquele momento, Victor admirara a força dela. Agora, doía-lhe vê-la tão vulnerável.

Pareceu-lhe natural tomá-la em seus braços e puxar seu rosto molhado de lágrimas contra o peito. Sobre o ombro dela, grunhiu um palavrão que incluía não apenas o nome de Jack, como também o da mãe dele.

O sujeito não pareceu ter se ofendido, provavelmente por já ter sido chamado de outros nomes piores, e com alguma freqüência. Ele simplesmente cruzou os braços e olhou para Victor com uma sobrancelha erguida.

— Estamos sendo protetores, certo?

— Ela precisa de proteção.

— Do quê, posso saber?

— Talvez você não saiba. Há três dias alguém assassinou a amiga dela, Sarah.

— Sarah... Boylan?

Victor assentiu.

— Hoje à noite, alguém tentou matar Cathy.

Jack olhou para ele, depois para a ex-mulher.

— Isso que ele está dizendo é verdade?

Enxugando as lágrimas, Cathy assentiu.

— Por que não me disse logo?

— Por que você se portou como um babaca desde o início!

No corredor, ouviram o clique-clique de sapatos de salto alto.

— Ela está absolutamente certa! — gritou uma voz feminina no saguão. — Você é um babaca, Jack Zuckerman! — A porta da frente se abriu e bateu com força. O estrondo pareceu ecoar por toda a mansão.

Houve um longo silêncio.

Subitamente, através das lágrimas, Cathy sorriu.

— Quer saber, Jack? Eu gostei daquela mulher.

Jack cruzou os braços e olhou-a com olhos críticos.

— Ou estou ficando gagá ou você esqueceu de me dizer algo. Por que não foi à polícia? Por que incomodar o velho Jack com esse assunto?

Cathy e Victor se entreolharam.

— Não podemos ir à polícia — disse Cathy.

— Suponho que isso tenha a ver com ele? — e apontou para Victor.

Cathy suspirou.

— É uma história complicada...

— Deve ser mesmo, uma vez que está com medo de ir à polícia.

— Posso explicar — disse Victor.

— Bem... — Jack pegou o robe embolado junto ao tapete de urso-polar. — Bem — repetiu, amarrando calmamente a faixa ao redor da cintura. — Sempre gostei de ver a criatividade em ação. Então vamos lá. — Ele se sentou no sofá de couro e sorriu para Victor. — Estou esperando. Hora do show.

 

O agente especial Sam Polowski tremia na cama enquanto assistia ao noticiário das 23 h. Cada músculo de seu corpo doía, sua cabeça pulsava e o termômetro marcava irrefutáveis 38 graus. Era o que ganhava por trocar pneu na chuva. Desejava poder pôr as mãos no palhaço que cravara aquele prego no seu pneu enquanto ele fazia uma boquinha em uma lanchonete de beira de estrada.

O culpado não apenas conseguira evitar que Sam comparecesse a um encontro em Garberville, o que transformou o caso da Viratek em confetes, como também o fizera perder a pista de seu único contato naquele caso: Victor Holland. E, agora, aquela gripe.

Ele pegou o frasco de aspirinas. Ao diabo com a úlcera.

Sua cabeça doía. E, no que dizia respeito a dores de cabeça, não havia nada que se comparasse ao confiável remédio da mamãe.

Polowski estava a ponto de ingerir três tabletes quando as notícias sobre Victor Holland surgiram na tela.

— ... novas provas ligam o suspeito ao assassinato de um pesquisador, seu colega na Viratek, Dr. Gerald Martinique...

Sam soergueu-se na cama.

— Que diabos? — resmungou para a tevê.

Então pegou o telefone. Tocou seis vezes antes que o supervisor atendesse.

— Dafoe? — disse Sam. — Aqui é Polowski.

— Sabe que horas são?

— Viu o noticiário noturno?

— Eu estava dormindo.

— Há uma matéria sobre a Viratek.

Uma pausa.

— É, eu sei. Eu autorizei.

— E que conversa é essa de espionagem industrial ? Estão tornando Holland um...

— Polowski, desista.

— Desde quando ele se tornou suspeito de homicídio?

— Olhe, considere isso uma armação. Eu o quero detido. Para seu próprio bem.

— Então você o entrega para um bando de tiras rápidos no gatilho?

— Eu já disse, desista.

— Mas...

— Você está fora do caso.

Dafoe desligou.

Sam olhou incrédulo para o telefone, depois para a televisão, então de volta para o telefone.

Vai me tirar do caso? Ele desligou o aparelho com tanta força que o frasco de aspirinas caiu da mesa de cabeceira.

Isso é o que você pensa.

 

— Acho que já ouvi o bastante — disse Jack, levantando-se.

— Quero esse homem fora de minha casa. Agora.

— Jack, por favor! — disse Cathy. — Dê-lhe uma chance de...

— Você está engolindo essa história ridícula?

— Eu acredito nele.

— Por quê?

Cathy olhou para Victor e viu o claro fogo da honestidade ardendo em seus olhos.

— Porque ele salvou minha vida.

— Você é uma tola.

Jack aproximou-se do telefone.

— Você viu o noticiário. Ele é procurado por homicídio. Se você não chamar a polícia, eu chamo.

Mas quando Jack ergueu o fone do gancho, Victor segurou-lhe o braço.

— Não. — Embora tenha falado calmamente, a voz de Victor traía um indisfarçável tom autoritário.

Ambos se encararam, nenhum deles disposto a ceder.

— Isso é mais do que um caso de homicídio — disse Victor.

— É uma pesquisa mortal. A manufatura de armas ilegais. Isso pode chegar a Washington.

— Quem em Washington?

— Alguém no controle. Alguém com fundos federais para autorizar tal pesquisa.

— Entendo. Algum servidor público de alto escalão está matando cientistas. Com a ajuda do FBI.

— Jerry não era um cientista qualquer. Ele tinha consciência. Ele era um delator que levaria o caso à imprensa para interromper a pesquisa. As conseqüências políticas seriam desastrosas para toda a administração.

— Espere. Estamos falando da Pennsylvania Avenue?[1]

— Talvez.

Jack debochou.

 

— Holland, eu faço filmes de terror de segunda classe. Eu não os vivencio.

— Mas não é um filme. É real. Balas reais, cadáveres reais.

— Então mais uma razão para eu não querer nada com isso. — Jack voltou-se para Cathy. — Desculpe, querida. Nada pessoal, mas detesto suas amizades.

— Jack — disse ela. — Você precisa nos ajudar!

— Você eu ajudo. Quanto a ele, nem pensar. Nada quero com lunáticos e criminosos.

— Você ouviu o que ele disse! É uma armação!

— Você é tão ingênua.

— Só no que diz respeito a você.

— Cathy, está tudo bem — disse Victor. Parecia muito calmo, muito tranqüilo. — Eu vou embora.

— Não, não vai. — Cathy levantou-se e caminhou com firmeza em direção ao ex-marido, encarando-o com um olhar tão direto, tão acusador que Jack pareceu a ponto de tombar sobre uma cadeira. — Você me deve isso. Você me deve isso por todos os anos que estivemos casados. Todos os anos que investi em sua carreira, em sua empresa, em seus filmes idiotas. Nunca lhe pedi nada. Você ficou com a casa. Com o Jaguar. Com a conta bancária. Nunca pedi nada porque não queria levar nada desse casamento além de minha própria alma. Mas agora estou pedindo. Esse homem salvou minha vida esta noite. Se alguma vez você se importou comigo, se alguma vez me amou, nem que fosse só um pouquinho, então me faça esse favor.

— Abrigar um criminoso?

— Até descobrirmos o que fazer em seguida.

— E quanto tempo isso vai demorar? Semanas? Meses?

— Eu não sei.

— O tipo de resposta direta que admiro.

Victor disse:

— Preciso de tempo para descobrir o que Jerry estava tentando provar. No que a Viratek está trabalhando...

— Você tinha um de seus arquivos — disse Jack. — Por que não leu?

— Não sou um virólogo. Não saberia interpretar a informação. Era algum tipo de seqüência RNA, provavelmente um genoma viral. Havia um bocado de informação codificada. Só sei o nome: Projeto Cérbero.

— E onde estão todas essas provas vitais agora?

— Perdi o arquivo. Estava no meu carro na noite em que fui baleado. Estou certo de que o recuperaram.

— E o filme?

Victor afundou em uma cadeira, rosto subitamente fatigado.

— Não está comigo. Eu esperava que Cathy... — Suspirando, ele passou a mão no cabelo. — Eu o perdi também.

— Bem — disse Jack. — A não ser que aconteça um milagre, diria que suas chances estão perto de zero. E olhe que sou conhecido por ser um sujeito otimista.

— Sei onde está o filme — disse Cathy.

Houve um longo silêncio. Victor ergueu a cabeça e olhou para ela.

— O quê?

— Eu não estava certa quanto a você. Não no princípio. Não queria dizer nada até ter certeza...

Victor levantou-se de um salto.

— Onde está?

Cathy se assustou com a rudeza na voz dele, e Victor deve ter percebido que ela ficara abalada. As palavras seguintes foram calmas, embora urgentes.

— Preciso desse filme, Cathy. Antes que o encontrem. Onde está?

— Sarah o encontrou no meu carro. Eu não sabia que era seu! Achei que era do Hickey.

— Quem é Hickey?

— Um fotógrafo... Um amigo...

Jack debochou.

— Hickey. O cara é uma dama.

— Ele estava com pressa de chegar ao aeroporto — continuou Cathy. — No último minuto ele me deixou alguns rolos de filme. Pediu que eu tomasse conta daquilo até ele voltar de Nairóbi. Mas todos os filmes dele foram roubados do meu carro.

— E o meu rolo? — perguntou Victor.

— Estava no bolso do meu roupão de banho na noite em que Sarah... na noite em que ela... — Cathy fez uma pausa, engolindo em seco ao mencionar o nome da amiga. — Quando voltei para a cidade, mandei-o pelo correio para o estúdio do Hickey.

— Onde fica o estúdio?

— Na Union Street. Enviei esta tarde...

— Então deve chegar amanhã. — Victor começou a vagar pela sala. — Tudo o que temos a fazer é esperar a chegada do correio.

— Eu não tenho a chave.

— Vamos arranjar um jeito de entrar.

— Incrível — suspirou Jack. — Agora ele está transformando minha ex-mulher em uma ladra.

— Só queremos o filme! — disse Cathy.

— Ainda assim, é arrombamento e invasão, querida.

— Você não precisa se envolver.

— Mas você está me pedindo para abrigar os arrombadores e invasores envolvidos!

— Apenas uma noite, Jack. É tudo o que lhe peço.

— Essa parece ser uma de minhas falas.

— E sempre funcionam, certo?

— Não dessa vez.

— Então aqui vai uma fala para você pensar a respeito: 1988. O pagamento de seu imposto de renda. Ou o não pagamento.

Jack ficou paralisado. Ele olhou feio para Victor, depois para Cathy.

— Esse foi um golpe baixo.

— Seu ponto mais vulnerável.

— Vou dar um jeito de atualizar...

—Mais algumas palavras para você digerir: auditoria. IR. Cadeia.

— Tudo bem, tudo bem! — Jack ergueu os braços em sinal de rendição. — Meu Deus, eu odeio essa palavra.

— Qual? Cadeia?

— Não deboche, querida. Logo essa palavra pode se aplicar a todos nós.

Ele se voltou em direção à escada.

— Aonde vai? — perguntou Cathy.

— Fazer as camas. Parece que tenho hóspedes hoje à noite...

— Podemos confiar nele? — perguntou Victor depois que Jack sumiu escada acima. Cathy afundou no sofá e fechou os olhos, toda energia subitamente drenada de seu corpo.

— Precisamos. Não consigo imaginar aonde mais podemos ir...

Subitamente ela percebeu que Victor se aproximava. Ele sentou ao seu lado, tão perto que pôde sentir a força avassaladora de sua presença. Ele não disse uma palavra, mas Cathy sabia que ele estava olhando em sua direção.

Ela abriu os olhos e encontrou o olhar de Victor, tão tranqüilo, tão intenso que parecia imbuí-la de força renovada.

— Sei que não foi fácil para você ter de pedir favores a Jack — disse ele.

Cathy sorriu.

— Sempre quis falar duro com Jack.

E acrescentou, pesarosa:

— Até hoje à noite, nunca fui capaz de pôr isso para fora.

— Acho que falar duro não faz parte de seu repertório.

— Não, não faz. No que diz respeito a confrontos, sou uma covarde.

— Para uma covarde, até que se saiu muito bem. Na verdade, foi magnífica.

— Isso porque eu não estava lutando por mim e, sim, por você.

— Você acha que não vale a pena lutar por si mesma?

Ela deu de ombros.

— É o modo como fui criada. Sempre me disseram que lutar por si mesma não era coisa de mulher. Já defender outras pessoas era bacana.

Victor assentiu com gravidade.

— Auto-sacrifício. Uma bela tradição feminina.

A frase a fez sorrir.

— Falou como um homem que conhece bem as mulheres.

— Só duas. Minha mãe e minha esposa.

Ao ouvi-lo falar da esposa falecida, Cathy se calou.

Perguntou-se qual seria o nome dela, como seria fisicamente, o quanto ele a teria amado. Deve ter amado um bocado. Ela pressentira a dor na voz de Victor ao mencionar sua morte. Cathy sentiu uma inesperada pontada de inveja pelo fato de aquela mulher sem nome ter sido tão amada. O que ela não daria para ser amada por um homem! Mas imediatamente afastou o pensamento, horrorizada por estar com inveja de uma mulher falecida.

Cathy desviou o olhar culpado.

— Acho que Jack vai cooperar — disse ela. — Hoje à noite, pelo menos.

— Aquilo foi chantagem, certo? Aquele negócio sobre pagamento do imposto?

— Ele é um sujeito descuidado. Eu só o lembrei de algo que ele havia esquecido.

Victor balançou a cabeça.

— Você é incrível. Em um momento, está pulando pelos telhados, no outro, fazendo chantagem com o ex-marido.

— Você está certo — disse Jack, que acabava de descer a escada. — Cathy é uma mulher incrível. Mal posso esperar para ver o que ela fará a seguir.

Cathy levantou-se, enfastiada.

— A essa altura, eu faria qualquer coisa. — Ela passou por Jack e subiu a escada. — Qualquer coisa necessária para continuar viva.

Os dois ouviram os passos de Cathy se afastando pelo corredor. Então, olharam-se em silêncio.

— Bem — disse Jack, falsamente animado. — E agora? Caça-palavras?

— Tente jogar paciência — disse Victor, levantando-se do sofá. Ele não estava disposto a trocar gentilezas com Jack Zuckerman. O sujeito era escorregadio e egocêntrico e obviamente trocava de mulher do modo como a maioria dos homens troca de meias. Victor teve dificuldade para imaginar o que Cathy vira naquele cara afora sua boa aparência e excelente saúde. Não havia como negar que era um galã clássico e encantadoramente rico. Talvez tenha sido tal combinação que a conquistou.

Uma combinação que certamente jamais possuirei, pensou.

Jack atravessou a sala, então parou e se voltou.

— Zuckerman, você ainda ama sua mulher? — perguntou.

Jack pareceu ligeiramente surpreso com a pergunta.

— Se ainda a amo? Bem, deixe-me ver. Não, não exatamente.

Mas suponho que tenhamos uma ligação sentimental baseada em dez anos de casamento. E eu a respeito.

— Você a respeita?

— Sim. O talento dela. Sua habilidade técnica. Afinal, ela é minha maquiadora número um.

Era isso o que ela significava para ele. Uma ferramenta que ele podia usar. Pensando em si mesmo, o cretino. Se houvesse alguém mais a quem Victor pudesse recorrer ele o teria feito. Mas o único homem em quem ele confiava, Jerry, estava morto. Seus outros amigos já deviam estar sendo observados. Além disso, não eram ricos o suficiente para possuírem pequenos refúgios na floresta.

Jack, por outro lado, tinha recursos para levá-la para um lugar seguro. A única coisa que Victor poderia esperar era que o sujeito gostasse de Cathy o bastante para cuidar dela.

— Tenho uma proposta — disse Victor.

Jack ficou imediatamente desconfiado.

— Que seria?

— Na verdade, eles estão atrás de mim, não de Cathy. Não quero expô-la a mais perigos do que já expus.

— Grandioso de sua parte.

— É melhor eu ir embora sozinho. Se eu a deixar com você, poderá mantê-la em segurança?

Jack remexeu-se e olhou para os próprios pés.

— Bem, claro. Acho que sim.

— Não ache. Você pode?

— Veja, vamos começar a rodar um filme no México no mês que vem. Cenas na mata, lagoas negras, esse tipo de coisa. Deve ser um lugar bastante seguro.

— Isso é no mês que vem. E quanto a agora?

— Vou pensar em algo. Mas, primeiro, desapareça. Afinal, você é o principal motivo para ela estar em perigo.

Victor não podia discordar desse último argumento. Desde a noite em que eu a encontrei, só tenho lhe trazido problemas.

Ele assentiu.

— Vou embora daqui amanhã.

— Bom.

— Cuide de Cathy. Tire-a da cidade. Do país. Não espere.

— Sim, claro.

Algo no modo como Jack dissera isso, seu tom de tudo-oque-você-quiser, fez Victor se perguntar se o sujeito dava a mínima para alguém além dele mesmo. Mas quanto a isso Victor não tinha escolha. Ele tinha de confiar em Jack Zuckerman.

Ao subir a escada para o quarto de hóspedes, ocorreu-lhe que, na manhã seguinte, teriam de se despedir. Haviam criado um frágil e silencioso vínculo. Ele devia a vida a ela. E vice-versa. Era um tipo de vínculo que ninguém poderia romper.

Mesmo que nunca mais voltemos a nos ver.

No corredor do andar de cima, Victor fez uma pausa do lado de fora da porta do quarto de Cathy e ouviu-a andando pelo quarto, abrindo e fechando gavetas, fazendo ranger as molas do colchão.

Ele bateu à porta.

— Cathy?

Houve uma pausa, e então:

— Entre.

Um abajur iluminava o quarto. Ela estava sentada na cama, vestindo uma camisa masculina ridiculamente grande. O cabelo solto caía-lhe em ondas molhadas sobre os ombros. O cheiro de sabonete e xampu tomava conta do quarto em penumbra. Victor se lembrou da esposa, dos cheiros de banho, da doçura feminina. Ele ficou imóvel, sentindo uma saudade que não sentia havia um ano, saudade do calor e do amor de uma mulher. Não de qualquer mulher. Ele não era como Jack, para quem um corpo macio com o equipamento certo era suficiente. O que Victor queria era o coração e a alma. O pacote em que vinham embrulhados era algo de menor importância.

Sua mulher, Lily, não fora bela. Mas também não deixava de ser atraente. Mesmo no fim, quando a doença a deixara fraca e alquebrada, ainda havia uma luz em seus olhos, um suave brilho do espírito.

O mesmo brilho que ele vira nos olhos de Catherine Weaver na noite em que ela lhe salvara a vida. O mesmo brilho que via agora.

Cathy se sentou na cama com as costas apoiadas contra os travesseiros. Seu olhar era de expectativa silenciosa, talvez um tanto atemorizado. Segurava um punhado de lenços de papel. Porque estava chorando?, perguntou-se Victor.

Ele não se aproximou. Em vez disso, olhou-a do vão da porta. Seus olhares se cruzaram na penumbra.

— Acabei de falar com Jack — disse ele.

Ela assentiu com um menear de cabeça, mas não disse nada.

— Ambos concordamos. É melhor que eu vá embora o quanto antes. Portanto, irei embora pela manhã.

— E quanto ao filme?

— Eu vou pegá-lo. Tudo de que preciso é do endereço de Hickey.

— Sim. Claro.

Cathy olhou para os lenços de papel que segurava. Dava para ver que queria dizer algo. Victor foi até a cama e se sentou. Aquele doce aroma feminino tornara-se inebriante.

O colarinho da enorme camisa que ela vestia estava baixo o suficiente para revelar um tentador relance de sombras. Ele se obrigou a se concentrar em seu rosto.

— Cathy, você ficará bem. Jack disse que vai cuidar de você. Ele vai tirá-la da cidade.

— Jack? — Algo parecido com uma risada escapou de sua garganta.

— Você estará mais segura com ele. Nem mesmo sei para onde vou. Não quero arrastá-la para isso...

— Mas já arrastou, Victor. E além da conta. O que devo fazer agora? Não posso apenas ficar sentada, esperando você ajeitar as coisas. Devo isso a Sarah...

— E eu lhe devo não deixar que se machuque.

— Você acha que pode me entregar para Jack e tudo ficará bem outra vez? Pois muito bem, não ficará. Sarah está morta. O bebê está morto. E, de algum modo, não é apenas por sua causa. É por minha causa também.

— Não, não é. Cathy...

— A culpa é minha! Sabe que ela ficou caída no acesso de veículos a noite inteira? Na chuva. No frio. Lá estava ela, morrendo, e eu dormindo enquanto tudo acontecia... — Ela baixou o rosto sobre as mãos. A culpa que a atormentava desde a morte de Sarah finalmente aflorou. Cathy começou a chorar em silêncio, envergonhada, incapaz de continuar contendo as lágrimas.

A resposta de Victor foi automática e instintivamente masculina. Ele a puxou em sua direção e deu-lhe um lugar quente e seguro onde chorar. Assim que a sentiu aninhada em seus braços, percebeu que isso era um erro.

Era uma combinação perfeita demais. Ela sentia como se pertencesse àquele lugar, abraçada de encontro ao seu peito. Sentia que, caso fossem separados, restaria entre eles um vazio que jamais poderia ser preenchido. Victor pressionou os lábios contra seu cabelo molhado e inalou o inebriante aroma de sabonete e pele quente. Aquela suave fragrância era suficiente para afogar um homem carente. O mesmo se aplicava à maciez de seu rosto, ao brilho lustroso daquele ombro que despontava debaixo da camisa. E durante todo o tempo em que esteve acariciando-lhe o cabelo, murmurando tolas palavras de conforto, pensava: Preciso deixá-la. Devo abandonar esta mulher. Ou ambos seremos mortos.

— Cathy. — Victor teve de reunir toda sua força de vontade para afastá-la. Ele pousou as mãos sobre os seus ombros e a fez olhar para si. Ela parecia confusa e seus olhos estavam marejados de lágrimas. — Precisaremos conversar amanhã. — Ela assentiu e enxugou as lágrimas do rosto. — Quero você fora da cidade logo cedo pela  manhã. Vá para o México com Jack. Qualquer lugar. Apenas desapareça.

— O que você vai fazer?

— Vou dar uma olhada naquele rolo de filme, ver que tipo de provas contém.

— E então?

— Ainda não sei. Talvez eu o leve à imprensa. O FBI está definitivamente descartado.

— Como vou saber se você está bem? Como poderei encontrá-lo?

Ele se concentrou, lutando para não se distrair com o aroma de seu cabelo. Quando deu por si, estava acariciando a pele nua do ombro de Cathy, maravilhado com quão macia parecia sob seus dedos.

Victor atentou para a expressão de preocupação nos olhos dela.

—  A cada domingo publicarei um anúncio na seção "Pessoais" dos classificados do Los Angeles Times. Será dirigido a, digamos, Cora. Qualquer coisa que eu precisar dizer estará lá.

— Cora. — Ela assentiu. — Vou me lembrar.

Eles se olharam, um reconhecimento silencioso de que precisavam se separar. Victor segurou o rosto dela com ambas as mãos e a beijou. Ela mal correspondeu. Sentia como se já houvessem se despedido.

Victor se levantou da cama e caminhou até a porta. Lá, não conseguiu evitar perguntar outra vez:

— Você ficará bem?

Ela assentiu, mas foi um gesto automático. O tipo de menear de cabeça com o qual se responde a uma pergunta irrelevante.

— Estarei bem. Afinal, terei Jack para tomar conta de mim.

Ele não deixou de notar o leve tom de ironia nessa resposta.

Ao que parecia, Jack não inspirava confiança em nenhum dos dois. Qual a minha alternativa? Arrastá-la comigo como um alvo móvel? Ele segurou a maçaneta da porta. Não, era melhor assim. Ele já destruíra a vida dela.

Não iria agora espalhar os pedaços.

Ao sair, Victor olhou para trás uma última vez. Ela ainda estava encolhida na cama, joelhos contra o peito. A camisa enorme escorregara de um de seus ombros. Por um momento Victor achou que ela estava chorando.

Então Cathy levantou a cabeça e encontrou seu olhar. E o que ele viu nos olhos dela não foram lágrimas. Era algo muito mais impressionante, algo puro, claro e belo.

Coragem.

 

À pálida luz da manhã, Savitch observava a casa de Jack Zuckerman. Através da neblina matinal, olhou para as janelas com cortinas tentando imaginar os habitantes lá dentro. Perguntou-se quem seriam, em quais quartos dormiriam, e se Catherine Weaver estaria entre eles.

Ele logo descobriria.

Savitch guardou no bolso a agenda de endereços que pegara no apartamento da mulher. O nome C. Zuckerman e aquele endereço em Pacific Heights estavam escritos na capa interna. Então, o Zuckerman fora riscado e substituído por Weaver. Ela era divorciada, concluiu.

Na letra Z encontrou uma longa lista sob o nome de Jack, com diversos endereços e números de telefone, tanto no país quanto no exterior. Era o ex-marido dela, ele já o confirmara, após uma breve conversa com outro nome listado na agenda.

Extrair informação de estranhos era fácil. Bastava assumir um ar autoritário e exibir um documento de policial. O mesmo documento que planejava usar agora.

Ele observou a casa uma última vez, notou o gramado e os arbustos bem cuidados, os caramanchões cobertos de glicínias. Homem bem-sucedido esse tal Jack Zuckerman.

Savitch sempre admirara homens prósperos. Ele ajeitou o paletó para certificar-se de que o coldre que trazia pendurado ao ombro estava escondido. Então, atravessou a rua, foi até a varanda da casa e tocou a campainha.

 

CATHY ACORDOU À PRIMEIRA LUZ DA MANHÃ. Não foi um despertar suave, mas uma dura volta à realidade. Imediatamente percebeu que não estava em sua cama e que algo estava terrivelmente errado. Demorou alguns segundos até se lembrar do que era. E, quando se lembrou, o senso de urgência a fez pular da cama e começar a se vestir na penumbra. Tenho de estar pronta para correr... O ranger das ripas do chão de madeira no quarto ao lado indicava que Victor também estava desperto, provavelmente planejando o que faria naquele dia. Ela vasculhou o closet, procurando coisas de que talvez ele precisasse em sua fuga. Tudo o que encontrou foi uma bolsa de náilon com zíper e uma capa de chuva.

Ela procurou na cômoda ao lado e encontrou algumas meias masculinas. Também encontrou uma coleção de calcinhas. Dane-se Jack e todas as suas mulheres, pensou ela, irritada, antes de fechar a gaveta com força. O baque ainda ressoava em seus ouvidos quando outro som ecoou pela casa.

Alguém tocara a campainha.

Eram apenas 7h, cedo demais para visitas ou entregadores.

Subitamente, a porta do quarto se abriu. Cathy se voltou e viu Victor, o rosto marcado de tensão.

— O que faremos? — perguntou Cathy.

— Prepare-se para partir. Rápido.

— Há uma porta nos fundos...

— Vamos.

Estavam correndo pelo saguão e quase haviam chegado à escadaria quando ouviram a voz sonolenta de Jack resmungar lá embaixo:

— Estou indo, droga! Pare com esse barulho, já estou indo!

A campainha voltou a tocar.

— Não atenda! — sibilou Cathy. — Ainda não...

Mas Jack já tinha aberto a porta. Imediatamente, Victor puxou Cathy para fora da linha de visão de quem estivesse lá embaixo. Ambos ficaram imóveis, as costas contra a parede.

— É — ouviram Jack dizer. — Sou Jack Zuckerman. E você quem é? — O visitante falava em voz baixa. Só conseguiam perceber que era um homem.

— Então é isso? — disse Jack, a voz subitamente tomada de pânico. — Você é do FBI? E o que diabos o FBI deseja com minha ex-mulher?

O olhar de Cathy voltou-se para Victor. Ela leu a mensagem desesperada nos olhos dele: Onde é a saída? Ela apontou para um quarto no fim do corredor.

Ele assentiu. Juntos, caminharam na ponta dos pés pelo tapete, o tempo todo sabendo que um passo em falso, um ranger de madeira mais alto poderia ser suficiente para alertar o agente lá embaixo.

— Onde está seu mandado? — ouviram Jack exigir ao visitante. — Ei, espere! Você não pode entrar aqui sem uma ordem judicial ou algo assim!

Não há tempo!, pensou Cathy, em pânico, ao entrar no último quarto e fechar a porta à sua passagem.

— A janela! — murmurou ela.

— Vamos pular?

— Não. — Ela atravessou o quarto e abriu cuidadosamente a janela. — Há um caramanchão! — Ele olhou desconfiado para os ramos entrelaçados de glicínias.

— Tem certeza de que agüenta?

— Sei que agüenta — disse ela, projetando a perna para fora da janela. — Peguei uma das louras do Jack pendurada aí certa noite. E, acredite, era uma garota bem grande.

— Ela olhou para o chão lá embaixo e sentiu uma súbita vertigem quando seu antigo medo de altura voltou a atacar. — Meu Deus — murmurou. — Por que estamos sempre pendurados em janelas?

De algum lugar na casa ouviram o grito ultrajado de Jack:

— Você não pode subir! Você não me mostrou seu mandado!

— Vamos! — exclamou Victor.

Cathy desceu agarrada ao caramanchão. Ramos de glicínias arranhavam seu rosto enquanto ela descia.

Pouco depois, já pisava na grama molhada de orvalho.

Victor chegou a seguir.

Logo estavam correndo para se esconderem entre a vegetação.

No momento em que se escondiam atrás de azaléias, ouviram a janela do segundo andar se abrir e a voz queixosa de Jack:

— Conheço os meus direitos! Essa é uma busca ilegal! Vou ligar para meu advogado!

Que ele não nos veja!, implorou Cathy, escondendo-se em meio à folhagem. Ela sentiu o corpo de Victor às suas costas, abraçando-a com força, sua respiração quente e entrecortada contra seu pescoço. Durante uma eternidade, ficaram deitados na grama, trêmulos, enquanto a neblina rodopiava ao seu redor.

— Viu? — ouviram Jack dizer. — Não há ninguém aqui além de mim. Ou quer dar uma olhada na garagem?

A janela se fechou.

Victor deu um ligeiro empurrão em Cathy e murmurou:

— Vá até o fim da cerca viva. Dali em diante, vamos correr.

Arrastaram-se de quatro ao longo do grupo de azaléias.

Sua calça jeans encharcada estava gelada e as palmas de suas mãos arranhadas e sangrando, mas Cathy estava muito aterrorizada para sentir qualquer dor. Toda sua atenção estava concentrada em avançar.

Victor arrastava-se logo atrás dela. Quando Cathy sentiu o chocar-se contra ela, ocorreu-lhe a visão ridícula de que ele estaria desfrutando, seu traseiro balançando praticamente debaixo de seu nariz.

Cathy chegou ao último arbusto e parou para tirar um cacho de cabelo da frente dos olhos.

— A casa ao lado? — perguntou Cathy.

— Sim, vamos!

Ambos saíram correndo como coelhos assustados e atravessaram os vinte metros de gramado que separavam as duas casas. Ao chegarem à casa seguinte, não se detiveram. Em vez disso, continuaram a correr, passando por carros estacionados e pedestres matinais.

Cinco quarteirões depois, entraram em uma lanchonete.

Através da vitrine, olharam para a rua em busca de sinais de perseguição. Tudo o que viram foi o movimento comum de uma manhã de segunda-feira: o tráfego e os pedestres protegidos por xales e sobretudos.

Da grelha atrás deles vinha o sibilar de bacon frito. O cheiro de café recém-passado exalava da máquina no balcão. Os aromas eram quase dolorosos; lembravam a Cathy que ela e Victor provavelmente tinham um total de 20 dólares. Droga, por que ela não implorara, pedira emprestado ou roubara algum dinheiro de Jack?

— E agora? — perguntou Cathy, meio esperando que ele sugerisse gastar o restante do dinheiro que tinham com o desjejum.

Victor olhou para a rua.

— Vamos.

— Para onde?

— Para o estúdio de Hickey.

— Ah — suspirou Cathy.

Outra longa caminhada de estômago vazio.

Lá fora, um carro passou ostentando um adesivo de pára-choque que dizia: Hoje é o Primeiro Dia do Resto de sua Vida.

Meu Deus, então espero que melhore, pensou ela. E saiu com Victor em meio ao frio matinal.

 

O supervisor de campo Larry Dafoe estava sentado à sua escrivaninha, exercitando-se em uma cadeira ergométrica executiva. Manter a parte superior do corpo fortalecida, sempre dissera, era a chave de seu sucesso como homem. Exercite esses músculos. Puxe! Preencha esse paletó tamanho 44. Puxe! Assim, terá um par de ombros que impressionará qualquer mulher e intimidará qualquer rival. E com esse moderno modelo de 700 dólares, você nem mesmo terá de se levantar de sua cadeira.

Sam Polowski observou o superior exercitando-se com aquele sistema de cabos e roldanas e achou que o aparelho mais parecia um instrumento de tortura exótico.

— O que você tem de entender é que há outros — Puxe! assuntos em pauta aqui — ofegou Dafoe. — Coisas que você desconhece.

— Como o quê? — perguntou Polowski.

Dafoe soltou as manoplas e ergueu a cabeça, o rosto molhado de um suor saudável.

— Se eu tivesse liberdade de contar, não acha que já o teria feito? — Polowski olhou para as manoplas brilhantes e se perguntou se aquilo poderia lhe servir de algum modo. Talvez um par de bíceps trabalhados fosse o que ele precisava para conseguir algum respeito naquele escritório.

— Ainda não entendo por que incriminar Victor Holland.

— O ponto — disse Dafoe — é que não é você quem dá as ordens.

— Dei a Holland a minha palavra de que ele seria preservado dessa confusão.

— Ele faz parte dessa confusão! Primeiro ele alega ter provas, então desaparece.

— Tenho alguma culpa nisso. Não consegui chegar ao local do encontro.

— Por que ele não tentou entrar em contato com você?

— Não sei. — Polowski suspirou e balançou a cabeça. — Talvez esteja morto.

— Talvez apenas precisemos encontrá-lo. — Dafoe segurou as manoplas de exercício. — Talvez você devesse trabalhar no caso Lanzano. Ou talvez devesse ir para casa. Você está com um aspecto terrível.

— Sim. Claro.

Polowski deu-lhe as costas. Ao deixar o escritório, pôde ouvir Dafoe voltar a se exercitar. Ele foi até a escrivaninha, sentou-se e contemplou sua coleção de comprimidos para a gripe, aspirinas e xarope contra tosse. Tomou uma dose dupla de cada um. Então procurou o arquivo do caso Viratek dentro de sua pasta.

Era sua coleção particular de notas esparsas, números de telefone e recortes de jornal. Ele as folheou, parando para mais uma vez pensar na ligação entre Holland e Catherine Weaver. Ele primeiro vira o nome dela na ficha de entrada do hospital e, depois, ficara surpreso ao saber de sua ligação com aquela mulher assassinada em Garberville.

Muitas coincidências, muitas reviravoltas. Estaria deixando de perceber algo óbvio? Será que a mulher teria algumas respostas? Ele pegou o telefone e ligou para o Departamento de Polícia de Garberville. Eles saberiam como encontrar a testemunha. E talvez ela soubesse onde encontrar Victor Holland. Era uma aposta improvável, mas Sam Polowski era um jogador inveterado. Tinha uma queda por apostas assim.

 

O homem que tocava a campainha parecia um toco de árvore vestindo um terno de poliéster marrom. Jack abriu a porta e disse:

— Perdão, não quero comprar nada.

— Não sou vendedor, Sr. Zuckerman — disse o homem. — Sou do FBI.

Jack suspirou.

— De novo, não.

— Sou o agente especial Sam Polowski. Estou tentando localizar uma mulher chamada Catherine Weaver, ex-Zuckerman. Creio que ela...

— Vocês não sabem quando parar?

— Parar o quê?

— Um de seus agentes já esteve aqui esta manhã. Fale com ele!

O homem franziu as sobrancelhas.

— Um de nossos agentes?

— É. E acho que vou registrar uma queixa contra ele. Entrou aqui sem mandado e vasculhou minha casa.

— Como ele era?

— Ah, eu não sei! Cabelo escuro, corpulento. Mas bem que podia fazer um curso de boas maneiras.

— Tinha a minha altura?

— Mais alto. Mais magro. Muito mais cabelo.

— Ele disse o nome? Seria Mac Braden?

— Não, ele não me disse o nome.

Polowski tirou o distintivo. Jack forçou a vista e leu: Federal Bureau of Investigation.

— Ele lhe mostrou um desses? — perguntou Polowski.

— Não. Ele apenas perguntou por Cathy e por um sujeito chamado Victor Holland. Se eu sabia onde encontrá-los.

— Você disse para ele?

— Para aquele babaca? — Jack riu. — Eu não informaria as horas, caso ele pedisse. Eu certamente não lhe diria... — Jack fez uma pausa e pigarreou. — Eu não lhe diria nada. Mesmo que soubesse. O que não sei.

Polowski guardou o distintivo no bolso, encarando Jack todo o tempo.

— Acho que devemos conversar, Sr. Zuckerman.

— Sobre o quê?

— Sobre sua ex-mulher. Sobre o fato de ela estar em grande apuro.

— Isso eu já percebi — disse Jack, suspirando.

— Ela vai se ferir. Não posso lhe dar todos os detalhes porque eu também estou no escuro. Mas sei que uma mulher já foi morta. Sua esposa...

— Minha ex-esposa.

— Sua ex-esposa pode ser a próxima.

Desconfiado, Jack apenas olhou para Polowski.

— É seu dever como cidadão me dizer o que sabe — lembrou o agente.

— Meu dever. Certo.

— Veja, coopere e nós dois nos daremos muito bem. Agora, se me der trabalho, eu também lhe darei trabalho. — Polowski sorriu. Jack não. — Agora, Sr. Zuckerman. Ei, posso chamá-lo de Jack? Pois bem, Jack, por que não me diz onde ela está? Antes que seja tarde demais. Para vocês dois.

Jack olhou feio para o agente e tamborilou com os dedos contra o batente da porta. Ponderou um instante, mas finalmente cedeu.

— Como cidadão ciente de seus deveres, suponho que seja minha obrigação. — De mau humor, ele acenou para que o homem entrasse. — Ora, entre, Polowski. Vou lhe contar o que eu sei.

 

A janela se espatifou, espalhando cacos de vidro no interior em penumbra.

Cathy assustou-se com o barulho.

— Desculpe, Hickey — murmurou.

— Vamos reembolsá-lo — disse Victor, quebrando os cacos remanescentes. — Enviaremos um belo cheque para ele. Está vendo alguém? — Ela olhou para o beco. Com exceção de um jornal amarrotado voejando junto às latas de lixo, nada se movia. A alguns quarteirões dali, carros buzinavam em mais um engarrafamento na Union Street.

— Tudo limpo — sussurrou Cathy.

— Bom. — Victor jogou o casaco sobre o peitoril. — Vá.

Ele a ajudou a subir até a janela. Cathy entrou. Segundos depois, Victor estava ao lado dela, pisando sobre o vidro estilhaçado.

Estavam no camarim do estúdio. Em uma parede havia um cabideiro de lingerie feminina. Na outra, mesas de maquiagem e um longo espelho.

Victor franziu as sobrancelhas ao ver uma peça de seda na cor pêssego pendurada sobre uma cadeira.

— Que tipo de fotos tira esse seu amigo?

— Hickey se especializou naquilo que é educadamente conhecido como "retratos de boudoir".

O olhar atônito de Victor voltou-se para um negligê de renda preta pendurado em um gancho na parede.

— Isso significa o que desconfio que signifique?

— O que está pensando?

— Você sabe.

Ela foi para a sala ao lado.

— Hickey insiste que não é pornografia. É arte erótica de bom gosto...

Cathy parou de súbito ao se ver diante de uma ampliação pregada na parede. Membros desnudos — oito, talvez mais — entrelaçados como uma espécie de polvo humano. Nada restava à imaginação. Nada mesmo.

— Bom gosto — disse Victor, lacônico.

— Esse deve ser um de seus, bem... compromissos comerciais.

— Pergunto-me que produtos devam vender.

Ela se voltou e viu-se olhando para outra fotografia. Dessa vez eram duas mulheres, lindas de morrer e completamente nuas.

— Outro compromisso comercial? — perguntou Victor por sobre o ombro.

Ela balançou a cabeça.

— Nem pergunte.

Na sala da frente, encontraram uma semana de correspondência  empilhada junto à fenda da porta, catálogos de fotografia e panfletos publicitários. O rolo de filme que Cathy enviara no dia anterior ainda não havia chegado.

— Acho que deveríamos nos sentar e esperar pelo carteiro — disse ela.

Victor assentiu.

— Parece um lugar bastante seguro. Alguma chance de seu amigo ter comida por aí?

— Lembro-me que havia uma geladeira na outra sala.

Ela levou Victor até aquele lugar que Hickey batizara como sua "galeria de tiro". Cathy ligou o interruptor e o salão foi instantaneamente iluminado por diversos refletores.

— Então é aqui que ele trabalha — disse Victor, ofuscado com o brilho inesperado. Ele passou por cima de um emaranhado de fios elétricos e lentamente caminhou pela sala, olhando com descrença bem-humorada para os diversos objetos de cena. Era uma estranha coleção: uma genuína cabine telefônica inglesa, um banco de praça, uma bicicleta ergométrica. Em um lugar de honra, uma cama com dossel. A colcha, amarrotada, era vitoriana; as algemas penduradas na cabeceira, não.

Victor pegou uma das algemas e voltou a largá-la.

— Esse tal de Hickey é um bom amigo seu?

— Nenhuma dessas coisas estava aqui quando ele me fotografou há um mês.

— Ele fotografou você? — Victor voltou-se para ela.

Cathy corou, imaginando o que devia estar passando pela cabeça dele. Podia sentir o olhar de Victor despindo-a, imaginando-a de pernas abertas naquela ridícula cama com dossel. E algemada.

— Não foi como... como as outras fotografias — protestou. — Quero dizer, fiz isso apenas como um favor para ele...

— Um favor?

— Foi uma foto puramente comercial!

— Ah.

— Eu estava completamente vestida. Para falar a verdade, de macacão. Supostamente eu era uma encanadora.

— Uma encanadora?

— Foi uma situação de emergência. Um dos modelos dele não apareceu naquele dia e ele precisava de alguém com um rosto comum. Acho que sou assim. Comum. E ele só fotografou o meu rosto.

— E o seu macacão.

— Isso.

Ambos se olharam e começaram a rir.

— Imagino o que você devia estar pensando — disse ela.

— Nem queira saber o que eu estava pensando. — Victor se voltou e olhou para a sala. — Você não disse que havia comida por aqui?

Cathy foi até a geladeira, onde encontrou uma prateleira de filmes, um vidro com picles, algumas cenouras borrachudas e metade de um salame. No congelador, descobriram verdadeiros tesouros: café de Sumatra moído e um pedaço de pão.

Sorrindo, ela se voltou para ele.

— Um banquete!

Sentaram-se na cama com dossel e devoraram o salame e o pão semicongelado acompanhados por xícaras de café. Era um piquenique bizarro, pratos de papel sobre o colo contendo picles e cenouras, os refletores brilhando no teto como uma dezena de sóis.

— Por que diz isso de você? — perguntou ele, observando-a comer uma cenoura.

— O quê?

— Que você é comum. Tão comum a ponto de ser escolhida para o papel de encanadora.

— Porque sou comum.

— Não creio. E costumo ser um ótimo juiz de caráter.

Cathy olhou para um cartaz na parede onde figurava uma das modelos de Hickey. A mulher olhou-a de volta com uma expressão de confiança esfuziante.

— Bem, certamente não me equiparo àquilo.

— Aquilo é pura fantasia — disse ele. — Aquilo não é uma mulher real, mas um amálgama de maquiagem, laquê e cílios postiços.

— Ah, eu sei. Esse é o meu trabalho, transformar atores nas fantasias dos espectadores. Ou nos pesadelos, como é o meu caso. — Ela pescou o último pedaço de picles de dentro do vidro. — Não, eu me referia a debaixo de tudo isso. No fundo, sinto-me comum.

— Acho você extraordinária. Principalmente depois da noite passada.

Cathy olhou para baixo, para uma cenoura flácida caída como um cadáver sobre o prato de papel.

— Houve um tempo... Creio que para todo mundo sempre há um tempo em que ainda se é jovem e nos sentimos especiais. Quando sentimos que o mundo foi feito apenas para nós. A última vez em que me senti assim foi quando me casei com Jack. — Ela suspirou. — Não durou muito.

— Por que se casou com ele?

— Não sei. Fascínio? Eu tinha apenas 23 anos, era uma mera aprendiz no set de filmagem. Ele era o diretor. — Cathy fez uma pausa. — Ele era Deus.

— Ele a impressionou, não é mesmo?

— Jack pode ser bem impressionante. Ele usa seu poder, seu carisma, e simplesmente encanta as mulheres. Depois, vieram o champanhe, os jantares, as flores. Acho que o que o atraiu em mim foi o fato de eu não ter imediatamente me apaixonado por ele. O fato de eu não suspirar a cada olhar que ele me lançava. Jack pensava em mim como um desafio que finalmente superou. — Ela olhou para Victor com tristeza. — Assim que conseguiu, voltou-se para coisas maiores e melhores. Foi quando percebi que eu não era particularmente especial. Que eu era apenas uma mulher perfeitamente comum. Não é uma sensação ruim. Eu não passo a vida inteira me lamentando por não ser alguém diferente, alguém especial.

— Então, quem você considera especial?

— Bem, minha avó. Mas ela já morreu.

— As veneráveis avós sempre entram na lista.

— Muito bem, então. Madre Teresa.

— Essa está na lista de todo mundo.

— Kate Hepburn. Gloria Steinem. Minha amiga Sarah... — A voz dela falseou. Ela baixou os olhos. — Mas ela também está morta.

Victor segurou a mão dela com delicadeza. Surpresa, Cathy observou seus longos dedos fecharem-se sobre os dela e pensou no quanto a força que ela sentia naquele toque refletia a força do homem que a tocava. Por mais fascinante que fosse, Jack jamais inspirara uma fração da confiança que ela agora sentia por Victor. Nenhum homem conseguira isso.

Ele a olhava em silêncio.

— Fale-me de Sarah — disse Victor.

Cathy engoliu em seco, tentando conter as lágrimas.

— Ela era absolutamente adorável. E não me refiro àquilo. — Ela apontou para a foto da modelo perfeita de Hickey. — Ela era adorável por dentro. A expressão de seus olhos refletia perfeita serenidade. Como se tivesse descoberto exatamente o que queria enquanto o resto de nós ainda procurava desesperadamente por tesouros ocultos. Não creio que ela tenha nascido assim. Sarah chegou àquilo por conta própria. Na faculdade, ambas éramos muito inseguras. O casamento certamente não nos ajudou. Meu divórcio foi devastador. Mas o de Sarah só a fez parecer mais forte. Mais capaz de cuidar de si mesma. Quando ela finalmente engravidou, tudo ocorreu exatamente como planejado. Não havia pai, apenas um tubo de ensaio. Um doador anônimo. Sarah costumava dizer que a célula primordial da família não era homem, mulher e filhos. Era apenas mulher e filhos. Achei-a corajosa por ter tomado tal decisão. Ela era muito mais corajosa do que eu jamais poderia ser... — Cathy pigarreou. — De qualquer modo, Sarah era especial. Algumas pessoas simplesmente são assim.

— Sim — disse ele. — Algumas pessoas são.

Ela olhou para Victor. Ele estava voltado para a parede oposta, olhar infinitamente triste. O que teria gravado tais linhas de dor em seu rosto? Ela se perguntou se rugas tão profundas poderiam ser apagadas. Algumas perdas são insuperáveis, inaceitáveis.

— Como era sua mulher? — murmurou Cathy.

Victor não respondeu de imediato. Ela pensou: Por que perguntei isso? Por que provoquei tais lembranças?

— Era uma boa mulher. Isso é tudo o que sempre me lembrarei dela. Sua bondade. — Ele voltou-se para Cathy, que percebeu que não era tristeza que via naqueles molhos, mas aceitação.

— Como era o nome dela?

— Lily. Lillian Dorinda Cassidy. Nome demais para uma mulher tão pequena. — Ele sorriu. — Sua altura era 1,55m, com cerca de 45 quilos. Aquilo me assustava, como ela era pequena. Quase quebrável. Especialmente no fim, quando perdeu todo o peso. Parecia ter se reduzido a um par de enormes olhos castanhos.

— Ela deve ter morrido jovem.

— Tinha apenas 38 anos. Pareceu-me tão injusto. Durante toda a vida, ela fez tudo certo. Nunca fumou, raramente tocava em um cálice de vinho. Recusava-se até a comer carne. Depois do diagnóstico, ficamos tentando entender como aquilo podia ter acontecido. Então nos ocorreu o que poderia ter sido. Ela crescera em uma cidadezinha em Massachusetts. Na direção do vento de uma usina nuclear.

— Acha que foi isso?

— Não se pode ter certeza. Mas andamos perguntando e soubemos que, apenas na vizinhança dela, ao menos vinte famílias tinham alguém com leucemia. Demorou quatro anos e uma ação representativa para forçarmos uma investigação. O que descobriram foi um histórico de infrações de segurança que remontava aos tempos da inauguração da usina.

Cathy balançou a cabeça, incrédula.

— E deixaram-na funcionar durante todos esses anos?

— Ninguém sabia. As violações eram tão bem disfarçadas que até mesmo os fiscais federais não as percebiam.

— Agora está fechada, certo?

Ele assentiu.

— Não posso dizer que senti muita satisfação ao saber do fechamento da usina. Àquela altura, Lily já tinha morrido. E, bem, assim como todas as outras famílias, eu também já estava exausto por causa da briga. Embora às vezes parecesse que estávamos batendo com a cabeça na  parede, sabíamos que algo tinha de ser feito. Alguém tinha de fazê-lo, por todas as Lilys do mundo. — Ele olhou para os refletores no teto. — E aqui estou eu de novo, ainda dando com a cabeça na parede. Só que, dessa vez, a parede mais parece a Grande Muralha da China. E as vidas em jogo são a sua e a minha.

Seus olhares se encontraram. Cathy ficou absolutamente imóvel quando ele acariciou a curva de seu rosto. Ela pegou a mão dele e levou-a aos lábios. Seus dedos fecharam-se sobre os dela, recusando-se a soltá-los.

Gentilmente, Victor a puxou para si. Seus lábios se encontraram, um beijo breve que não a satisfez.

— Lamento que você tenha sido envolvida em tudo isso — murmurou ele. — Você, Sarah e aquelas outras duas Cathy Weaver. Nenhuma de vocês pediu para participar disso. E, de algum modo, eu consegui ferir a todas.

— Você não é o culpado, Victor. E esse moinho de vento contra o qual está lutando. Esse moinho gigantesco, perigoso. Qualquer outra pessoa teria baixado a lança e fugido. Você continua.

— Não tenho muita escolha.

— Mas você tinha. Podia ter ignorado a morte de seu amigo. Feito vista grossa para o que estava acontecendo na Viratek. É o que Jack faria.

— Mas eu não sou Jack. Há coisas que não posso ignorar. Sempre pensarei nas Lilys. Nas milhares de pessoas que podem ser atingidas.

Ao ouvir novamente o nome da mulher falecida, Cathy sentiu que havia uma barreira intransponível entre eles: a sombra de Lily, a esposa à qual ela jamais se igualaria.

Cathy afastou-se e imediatamente sentiu falta do toque de Victor.

— Acha que pode morrer muita gente? — perguntou ela.

— Jerry devia achar. Não há como prever as conseqüências. O mundo nunca experimentou os efeitos de uma guerra biológica. Gosto de pensar que isso se deva ao fato de sermos espertos o bastante para não lidarmos com nossa própria destruição. Então penso nas coisas loucas que as pessoas fizeram ao longo dos tempos e fico com medo...

—  Armas virais são assim tão perigosas?

— Se você alterar alguns genes, se os tornar apenas um pouco mais contagiosos, elevar seu coeficiente de mortalidade, você pode acabar obtendo uma cepa devastadora. A própria pesquisa é perigosa. Um simples descuido na segurança do laboratório e você terá milhões de pessoas acidentalmente infectadas. E sem possibilidade de tratamento. É o tipo de desastre em escala mundial que nenhum cientista deseja pensar a respeito.

— Armagedom.

Victor assentiu, olhar assustadoramente lúcido.

— Se acredita nisso, é exatamente o que será.

Ela balançou a cabeça.

— Não entendo por que tais coisas são permitidas.

— Não são. São proibidas por acordos internacionais. Mas sempre há um maluco espreitando nas sombras, alguém que quer ter aquela vantagem extra, aquela arma que mais ninguém tem.

Um louco. Somente um louco pensaria em liberar tal arma no mundo. Ela pensou em um romance que lera a respeito de uma peste que tornara as cidades desertas e decadentes, onde o próprio ar se tornara venenoso. Mas esses eram apenas pesadelos de ficção científica.

De algum lugar no prédio veio o som de alguém assobiando.

Cathy e Victor ficaram atentos. A melodia assobiada atravessou o corredor, cada vez mais perto, até parar do lado de fora da porta de Hickey. Ouviram um farfalhar, então o ruído de revistas caindo no chão.

— Chegou! — disse Cathy, levantando-se.

Ambos correram até a sala da frente. Ela o viu imediatamente, no topo da pilha: um envelope acolchoado, endereçado com sua caligrafia. Ela abriu o envelope e pegou o rolo de filme. O bilhete que ela escrevera para Hickey caiu no chão. Sorrindo, ela ergueu o pote, triunfante. — Aqui está sua prova!

— Assim espero. Vejamos o que temos neste rolo. Onde fica o quarto escuro?

— Junto ao camarim.

Cathy entregou o filme.

— Você sabe revelar?

— Já pratiquei fotografia amadora. Desde que tenha os produtos químicos adequados... — Ele parou e olhou para a escrivaninha.

O telefone tocava.

Victor balançou a cabeça.

— Ignore — disse ele, e voltou-se para o quarto escuro.

Ao deixarem a recepção, ouviram a secretária eletrônica ser acionada. A voz de Hickey, macia e sedosa, dizia na gravação: "Aqui é o estúdio de Hickman Von Trapp, especializado em imagens artísticas e de bom gosto do corpo feminino..."

Victor riu.

— Bom gosto?

— Depende do seu gosto — disse Cathy ao segui-lo pelo corredor.

Haviam acabado de chegar ao quarto escuro quando a gravação terminou seguida do bipe de mensagem. Uma voz agitada gritou no alto-falante.

— Alô? Alô, Cathy? Se estiver aí, atenda, sim? Tem um agente do FBI procurando você... um cara chamado Polowski...

Cathy ficou imóvel.

— É Jack! — disse ela, voltando-se para retornar à sala da frente.

A voz no alto-falante assumia um tom de pânico.

— Não pude evitar... ele me obrigou a falar de Hickey. Saia daí agora!

A mensagem terminou quando Cathy ergueu o fone do gancho.

— Alô? Jack? — Só ouviu o tom de discar. Ele já tinha desligado. Com mãos trêmulas, começou a discar o número do ex-marido.

— Não há tempo! — disse Victor.

— Preciso falar com ele...

Victor tomou-lhe o fone e desligou.

— Mais tarde! Temos de sair daqui!

Ela assentiu, alheia, e começou a caminhar em direção à porta. Então parou.

— Espere. Precisamos de dinheiro!

Cathy voltou à escrivaninha da recepção e revistou as gavetas até encontrar a caixinha de dinheiro trocado.

Continha apenas 20 dólares. Sempre o bastante para comprar um café decente, dizia Hickey. Ela embolsou o dinheiro. Então, pegou uma das velhas capas de chuva de Hickey do gancho na porta. Ele não sentiria falta daquilo.

E ela poderia precisar da capa para se proteger.

— Muito bem — disse ela ao vestir a capa. — Vamos.

Fizeram uma pausa de um segundo para verificar o corredor.

De outra suíte vinha o som distante de uma risada.

Em algum lugar lá em cima, saltos altos atravessavam um chão de madeira. Com Victor na dianteira, atravessaram o corredor e saíram pela porta da frente.

O sol de meio-dia parecia iluminá-los como um olho acusador.

Rapidamente se misturaram à multidão da hora do almoço, composta de homens de negócios e artistas, o chique da Union Street. Ninguém olhou para eles.

Entretanto, mesmo com tanta gente à sua volta, Cathy sentia-se exposta. Como se, naquela brilhante paisagem urbana de multidões e concreto, ela estivesse no centro do olhar do pintor.

Ela se encolheu ainda mais dentro da capa de chuva, desejando que fosse um manto de invisibilidade. Victor acelerara o passo e Cathy teve de correr para conseguir acompanhá-lo.

— Aonde vamos agora? — murmurou ela.

— Temos o filme. Agora, temos de ir para a rodoviária.

— E então?

— Qualquer parte. — Victor mantinha o olhar fixo à frente.

— Desde que seja fora dessa cidade.

 

AQUELE IRRITANTE AGENTE DO FBI estava tocando sua campainha outra vez.

Suspirando, Jack abriu a porta da frente.

— Já de volta?

— Droga, voltei. — Polowski entrou e bateu a porta à sua passagem. — Quero saber outro lugar onde encontrá-los.

— Já lhe disse, Sr. Polowski. Na Union Street há um estúdio de propriedade do Sr. Hickman...

— Eu estive no estúdio de Von sei-lá-o-quê.

Jack engoliu em seco.

— Não os encontrou?

— Você sabia que eu não encontraria. Você os avisou, não foi?

— Realmente, não sei por que está me importunando. Tentei ser...

— Fugiram correndo. A porta estava escancarada. Ainda havia comida ao redor. Deixaram a caixa de dinheiro vazia sobre a escrivaninha.

Jack olhou para ele, ultrajado.

— Está chamando minha ex-mulher de ladra?

— Eu a estou chamando de uma mulher desesperada. E estou chamando você de imbecil por estragar tudo. Agora, onde ela está?

— Não sei.

— A quem ela recorreria?

— Ninguém que eu conheça.

— Pense melhor.

Jack olhou para o rosto intumescido de Polowski e perguntou-se como um ser humano podia ser tão feio. O processo de seleção natural não deveria excluir um gene tão inaceitável? Jack balançou a cabeça.

— Honestamente não sei.

Era verdade e Polowski deve ter percebido. Após um momento de confronto silencioso, ele recuou.

— Então talvez possa me dizer por que os avisou?

— F-foi... foi... — Jack deu de ombros. — Ah, eu não sei! Depois que você saiu, não tive certeza de ter feito a coisa certa. Não tinha certeza de poder confiar em você. Ele não confia.

— Quem?

— Victor Holland. Ele acha que você faz parte de uma conspiração. Francamente, o sujeito me pareceu um tanto paranóico.

— Tem o direito de estar assim. Considerando o que aconteceu com ele até agora.

Polowski voltou-se para a porta.

— E agora?

— Vou continuar procurando por eles.

— Onde?

— Acha que eu diria para você? — disse o agente por sobre o ombro. — Não deixe a cidade, Zuckerman. Voltarei a vê-lo mais tarde.

— Não creio — murmurou Jack enquanto observava o sujeito caminhando para o carro. Em seguida, olhou para cima e viu que não havia uma nuvem no céu. Sorridente, fechou a porta.

No México também haveria sol.

 

Alguém fora embora às pressas.

Savitch caminhou pelos cômodos do estúdio fotográfico, que fora deixado aberto. Percebeu os vestígios de comida na cama com dossel: farelos de pão, parte de um salame, um vidro de picles vazio. Também percebeu as duas xícaras de café. Interessante, uma vez que Savitch vira apenas uma pessoa deixando o estúdio, um sujeito atarracado usando um terno de poliéster. O homem não estivera ali muito tempo. Savitch o vira entrar em um Ford verde-escuro estacionado no parquímetro de 15 minutos. O medidor ainda tinha três minutos de sobra.

Savitch continuou seu tour pelo estúdio, observando as fotos de mau gosto, perguntando-se se aquilo não seria outra perda de tempo. Afinal, todos os endereços que obteve na agenda da mulher não revelaram qualquer sinal dela. Por que o de Hickman Von Trapp seria diferente? Contudo, não conseguia afastar a sensação de estar perto. As pistas estavam por toda parte. Ele as lia e as relacionava. Hoje, aquele estúdio fora visitado por duas pessoas famintas, que entraram através de uma janela quebrada no camarim. Após comerem as sobras da geladeira, os dois (ou o homem com terno de poliéster) esvaziaram a caixinha de trocados.

Savitch completou seu tour e voltou à sala da frente. Foi quando notou a luz da secretária eletrônica piscando. Ele apertou o botão. A série de mensagens parecia interminável. As chamadas eram para alguém chamado Hickey, certamente o Hickman Von Trapp do livro de endereços. Savitch circulou pela sala, ouvindo a sucessão de vozes. Ligações comerciais em sua maioria, confirmando compromissos, perguntando quando as provas ficariam prontas ou se ele gostaria de fazer uma matéria para a revista Snoop. Perto da porta, Savitch parou e curvou-se para remexer a pilha de correspondência. Era um material enfadonho, todo endereçado a Von Trapp. Então notou, ao lado, uma tira de papel. Era um bilhete, dirigido a Hickey: "Estou me sentindo péssima por causa disso, mas alguém roubou todos aqueles rolos de filme de meu carro. Este foi o único que sobrou. Achei melhor enviá-lo para você antes de perdê-lo. Espero que baste para evitar um completo desperdício de seu trabalho." Estava assinado "Cathy".

Ele se levantou. Catherine Weaver? Tinha de ser! O rolo de filme! Onde diabos estava o rolo de filme? Ele vasculhou a correspondência, procurando. Encontrou apenas um envelope rasgado com o endereço de Cathy Weaver no campo de remetente. O filme não estava lá dentro.

Frustrado, começou a atirar as revistas pela sala. Então, em meio a um arremesso, ficou imóvel.

Uma nova mensagem tocava no gravador: "Alô? Alô, Cathy? Se estiver aí, atenda, sim? Tem um agente do FBI procurando por você. Um sujeito chamado Polowski. Não pude evitar. Ele me obrigou a falar de Hickey. Saia daí agora!"

Savitch correu até a secretária eletrônica e observou enquanto o mecanismo automaticamente voltava a fita. Ele ouviu a mensagem outra vez.

Saia daí agora! Não havia dúvida. Catherine Weaver estivera ali, e Victor Holland estava com ela. Mas quem era aquele agente Polowski e por que procurava Holland?

Savitch fora assegurado de que o FBI estava fora do caso.

Ele teria de verificar.

Savitch foi até a janela e olhou para o dia ensolarado, as calçadas repletas de gente. Tantos rostos, tantos estranhos.

Onde, naquela cidade, dois fugitivos aterrorizados poderiam se esconder? Encontrá-los seria difícil, mas não impossível.

Savitch deixou a suíte e saiu em busca de um telefone público. Ali, ligou para um número de Washington, D.C.

Ele não queria pedir ajuda ao Caubói, mas agora não tinha escolha. Victor Holland estava com a prova em mãos, e o valor do que estava em jogo subira às alturas.

Era hora de dar início à perseguição.

 

— Guichê ao lado, por favor! — gritou o bilheteiro. E fechou a portinhola.

— Espere! — gritou Cathy, batendo no vidro. — Meu ônibus está saindo agora!

— Qual?

— Número 23, para Palo Alto...

— Sai outro às 19h.

— Mas...

— Estou na minha hora de jantar.

Impotente, Cathy observou o bilheteiro se afastar. No alto-falante ouvia-se a última chamada do ônibus expresso para Palo Alto. Cathy olhou ao redor bem a tempo de ver o ônibus 23 se afastando do meio-fio.

— O serviço não é o mesmo de antigamente — murmurou um velho atrás dela. — Vai chegar lá mais rápido usando o polegar.

Suspirando, Cathy foi para a fila ao lado, que estava enorme e arrastava-se como uma lesma. A mulher diante do guichê tentava convencer o bilheteiro de que seu número da Previdência Social servia como comprovante de identidade.

Muito bem, pensou Cathy. Então partimos às 19h. Isso nos põe em Palo Alto às 20h. E então? Acampamos em um parque? Imploramos pelos restos de algum restaurante. O que Victor tem em mente?

Ela olhou ao redor e viu as costas largas de Victor curvadas no interior de uma cabine telefônica. Para quem estaria ligando? Ela o viu desligar e passar a mão na cabeça. Então, voltou a pegar o fone e discou outro número.

— Próximo! — Alguém deu um tapinha no ombro de Cathy.

— Vá em frente, senhora.

Cathy voltou-se e viu o bilheteiro esperando. Ela se aproximou da janela.

— Para onde? — perguntou o bilheteiro.

— Preciso de duas passagens para... — a voz de Cathy subitamente falseou.

— Para onde?

Cathy não disse nada. Seu olhar estava fixado em um cartaz colado ao lado do guichê. As palavras "Você viu este homem?" apareciam sobre uma foto carrancuda de Victor Holland. Embaixo estavam listadas as acusações: espionagem industrial e homicídio. "Se você tem alguma informação sobre este homem, por favor entre em contato com a sua polícia local ou com o FBI."

— Senhora, vai a algum lugar ou não?

— Como? — O olhar de Cathy voltou-se para o bilheteiro que a encarava, evidentemente aborrecido. — Ah, sim.

Eu... Eu quero dois bilhetes para Palo Alto. — Alheia, entregou-lhe um punhado de dinheiro. — Somente ida.

— Duas para Palo Alto. Seu ônibus sai às 19h, Portão 11.

— Sim. Obrigada... — Cathy pegou as passagens e voltou-se para deixar a fila. Foi quando viu os dois policiais bem diante da entrada principal. Pareciam estar vasculhando o terminal, procurando... pelo quê? Em pânico, seu olhar se voltou para a cabine telefônica. Estava vazia. Ela se sentiu desamparada. Você me deixou! Você me deixou com duas passagens para Palo Alto e cinco dólares no bolso! Onde está você, Victor? Ela não podia ficar ali parada como uma idiota. Tinha de fazer algo, tinha de se mover. Cathy puxou a capa de chuva sobre os ombros e obrigou-se a atravessar o terminal. Que eles não me percebam, rezou. Por favor. Eu sou ninguém. Nada. Ela fez uma pausa em um banco e pegou um exemplar descartado do San Francisco Chronicle. Então, enquanto fingia ler os classificados, passou bem ao lado dos dois policiais. Eles nem sequer olharam para Cathy quando ela saiu pela entrada principal da rodoviária.

E agora?, perguntou-se, fazendo uma pausa na confusão de uma calçada tumultuada. Automaticamente, começou a andar e dera apenas meia dúzia de passos quando foi puxada para o interior de um beco.

Ela tropeçou de costas contra latas de lixo e exclamou, aliviada:

— Victor!

— Eles a viram?

— Não. Quero dizer, sim, mas não pareceram se importar.

— Tem certeza? — Ela assentiu. Victor se voltou e socou a parede, frustrado. — O que diabos fazemos agora?

— Estou com as passagens.

— Não podemos usá-las.

— Como vamos sair da cidade? Pegando carona? Victor, nós só temos cinco dólares!

— Eles vão vigiar cada ônibus que sair. E o meu rosto está espalhado por todo o maldito terminal! — Ele se recostou na parede e gemeu. — Você viu este homem? Meu Deus, eu parecia um gângster vulgar.

— Não era sua melhor foto.

Ele tentou sorrir.

— Você já viu algum cartaz de procurado com uma boa foto?

Ela se recostou na parede ao seu lado.

— Temos de sair da cidade, Victor.

— Correção: você tem de sair.

— Como assim?

— A polícia está me procurando. Portanto você deverá pegar aquele ônibus para Palo Alto. Vou entrar em contato com alguns amigos. Eles vão providenciar que você vá para algum lugar seguro.

— Não.

— Cathy, provavelmente eles pregaram minha foto em cada aeroporto e locadora de veículos da cidade! Gastamos quase todo o nosso dinheiro nessas passagens de ônibus. Quero que as use!

— Não vou deixá-lo.

— Você não tem escolha.

— Sim, tenho. Escolho grudar em você como cola. Porque é a única pessoa ao lado de quem me sinto segura. A única com quem posso contar!

— Posso andar mais rápido sem você para me atrasar. — Ele olhou para a rua ao longe. — Droga, eu não a quero por perto.

— Não acredito em você.

— Por que devo me importar com o que você acredita?

— Olhe para mim! Olhe para mim e diga isso! — Ela segurou o braço dele, forçando-o a encará-la. — Diga que não me quer por perto!

Ele começou a falar, disposto a repetir a mentira. Cathy sabia que aquilo era mentira, podia sentir nos olhos dele.

E viu algo mais naquele olhar, algo que a deixou sem fôlego.

— Eu não... eu não quero você...

Ela apenas ficou parada, olhando para ele, esperando a verdade.

O que não esperava era o beijo. Ela jamais se lembraria como aconteceu. Só sabia que, de repente, Victor a abraçava e ela se viu arrebatada para um lugar quente e maravilhoso. Começou como um abraço, mais de desespero do que de paixão, a união de duas pessoas aterrorizadas. Mas no instante em que seus lábios se encontraram, tornou-se algo mais. Aquilo ia além do medo, além da necessidade. Aquilo era a união de duas almas inseparáveis, mesmo depois que aquele abraço terminasse, mesmo que nunca mais voltassem a se tocar.

Quando finalmente se separaram e se entreolharam, o gosto dele ainda estava fresco em seus lábios.

— Viu? — murmurou Cathy. — Eu estava certa. Você me quer por perto. Você quer.

Ele sorriu e tocou o rosto dela.

— Não sou um bom mentiroso.

— E eu não vou deixá-lo. Você precisa de mim. Você não pode mostrar o rosto, mas eu posso! Posso comprar passagens de ônibus, fazer compras...

— O que realmente preciso é de uma cara nova. — Victor olhou para a rua. — E uma vez que não há cirurgião plástico disponível, sugiro ir a uma estação de ônibus municipais. Estará lotada a essa altura. Podemos chegar a East Bay...

— Meu Deus, como sou idiota! — gemeu Cathy. — Um novo rosto é exatamente o que você precisa! — Ela se voltou para a rua. — Vamos. Não há muito tempo...

— Cathy? — Ele a seguiu pelo beco. Ambos pararam, vasculhando a rua em busca de policiais. Não havia nenhum à vista. — Aonde vamos? — murmurou Victor.

— Encontrar uma cabine telefônica.

— Ah, sim. E vamos ligar para quem?

Cathy se voltou para ele com uma careta de dor.

— Para alguém que ambos conhecemos e amamos.

 

Jack preparava a mala quando o telefone tocou. Ele pensou em não atender, mas algo no som do aparelho, certa urgência que só podia ser imaginária, o fez atender. Arrependeu-se no mesmo instante.

— Jack?

Ele suspirou.

— Diga que estou ouvindo coisas.

— Jack, vou falar rápido porque seu telefone pode estar grampeado...

— Não diga.

— Preciso de meu kit. Toda a tralha. E algum dinheiro. Juro que devolvo. Arranje isso para mim agora. Depois, deixe naquele lugar onde filmamos a última cena do Cretinoide. Você sabe onde fica.

— Cathy, espere um minuto! Já estou bem encrencado!

— Uma hora. É tudo o que posso esperar.

— Estamos na hora do rush! Não posso...

— É o último favor que lhe peço. — Houve uma pausa. Então, acrescentou em voz baixa: — Por favor.

Ele suspirou.

— Essa será a última vez mesmo, certo?

— Uma hora, Jack. Estarei esperando.

Jack desligou e olhou para a mala. Estava feita pela metade, mas teria de servir. Certamente não voltaria para casa naquela noite.

Ele fechou a mala e a levou até o Jaguar. Ao se afastar, subitamente lhe ocorreu que esquecera de desmarcar seu encontro com Lulu naquela noite. Não há tempo agora, pensou. Tenho coisas mais importantes em mente. Como dar o fora da cidade. Lulu ficaria furiosa, mas ele acabaria por acalmá-la. Talvez um par de brincos de diamante. É, isso seria o bastante. Boa e velha Lulu, tão fácil de agradar. Aquela era uma mulher que ele conseguia entender.

 

A esquina da Quinta com a Mission era um tipo de lugar de encontro informal da vizinhança. As 17h45 estava ainda mais lotada que o habitual. Corria um boato de que a instituição de caridade no fim do quarteirão serviria boeuf Bourguignonne, o que, como aqueles que viveram melhores dias e melhores refeições deviam se recordar, era feito com vinho tinto. Ninguém deixaria escapar a oportunidade de provar aquilo, mesmo sem haver uma gota de álcool no prato. Assim, esperavam na esquina, falando de refeições do passado, do clima e das longas filas nas agências de emprego.

Ninguém percebeu as duas almas miseráveis encolhidas na entrada da loja de penhores.

Sorte a nossa, pensou Cathy, ocultando-se nas dobras do casaco. A triste verdade era que ambos estavam começando a se encaixar perfeitamente naquela multidão. Não havia muito, vira seu próprio reflexo na vitrine da loja de penhores e quase não fora capaz de reconhecer a imagem desgrenhada que olhou de volta para ela. Faz tanto tempo assim que não penteio o cabelo? Tanto tempo desde que fiz uma refeição ou tive uma noite de sono decente? Victor não parecia melhor. Uma camisa rasgada e dois dias de barba no rosto apenas enfatizavam aquele indefectível ar de exaustão. Ele podia entrar no refeitório daquela instituição de caridade no fim da rua e ninguém olharia duas vezes.

Ele vai parecer ainda pior quando eu terminar com ele, pensou Cathy com um senso de humor negro.

Isso se Jack aparecesse com o kit.

— São 18h05 — murmurou Victor. — Esgotou-se o prazo.

— Dê-lhe tempo.

— Não temos tempo.

— Ainda podemos pegar o ônibus. — Ela olhou para a rua, como se fosse possível conjurar o ex-marido apenas pela força de vontade.

Mas havia apenas um ônibus municipal à vista. Vamos lá, Jack, vamos! Não me decepcione dessa vez...

— Olhem só aquilo! — resmungou alguém, seguido de murmúrios gerais de admiração da multidão.

— Ei, playboy! — gritou outra pessoa quando o grupo se reuniu na esquina para olhar. — O que é preciso fazer para se ter um carro como esse? — Através do grupo de homens, Cathy viu o claro brilho de vinho e cromo.

— Afastem-se do meu carro! — exigiu uma voz queixosa.

— Acabei de polir!

— Parece que o playboy está perdido. Entrou na rua errada, não foi?

Cathy se levantou.

— Ele chegou!

Ela e Victor abriram caminho em meio à multidão e encontraram Jack montando guarda diante do Jaguar recém-encerado.

—Não... não toquem nele! — gritou quando um dos homens passou um dedo sobre o capô. — Por que vocês não arrumam um emprego ou algo assim?

— Emprego? — gritou alguém. — O que é isso?

— Jack! — chamou Cathy.

Jack emitiu um suspiro de alívio ao vê-la.

— Esse é o último favor. Absolutamente, o último favor...

— Onde está? — perguntou ela.

Jack foi até o porta-malas, onde afastou outra mão que acariciava a lateral do Jaguar vinho.

— Está bem aqui. Todo o kit e o resto da tralha. — Ele estendeu a caixa de maquiagem para ela. — Entregue como prometido. Agora preciso ir.

— Aonde vai? — perguntou Cathy.

— Não sei. — Ele voltou a entrar no carro. — Para algum lugar. Qualquer lugar!

— Parece que vamos na mesma direção.

— Meu Deus, espero que não. — Jack ligou o motor e acelerou algumas vezes.

Alguém gritou:

— Até mais, playboy!

Jack olhou para Cathy com frieza.

— Sabe, você realmente deveria prestar mais atenção com quem anda. Ciao, docinho.

O Jaguar partiu cantando pneus, dobrou a esquina e desapareceu em meio ao tráfego.

Cathy voltou-se e percebeu que todos olhavam para ela.

Automaticamente, Victor se aproximou, um homem cansado e faminto enfrentando uma multidão cansada e faminta.

Alguém perguntou:

— Quem é o babaca no Jaguar?

— Meu ex-marido — disse Cathy.

— Se deu bem melhor que você, querida.

— Não diga. — Ela pegou a caixa de maquiagem e sorriu amarelo. — Pedi minhas roupas ao desgraçado e ele me entregou uma muda de roupas de baixo.

— Mas, querida, não é assim que a banda toca?

Aquela altura, os homens já se afastavam, reagrupando-se nos portais ou junto à banca de jornais da esquina. O Jaguar se fora, assim como seu interesse.

Apenas um homem ficou diante de Cathy e Victor, e o olhar que ele lhes lançou era de evidente simpatia.

— Isso é tudo o que ele lhe deixou, hein? Ele com aquele carro bonito e elegante? — O sujeito fez menção de ir embora, mas então voltou a olhar para eles. — Digam, precisam de um lugar onde ficar ou algo assim? Tenho muitos amigos. E detesto ver uma dama no frio.

— Obrigado pela oferta — disse Victor, pegando a mão de Cathy. — Mas temos de pegar um ônibus.

O sujeito assentiu e se afastou, uma alma gentil, embora infeliz, de quem as ruas não roubara a decência.

— Temos meia hora para pegar aquele ônibus — disse Victor, puxando Cathy. — Melhor começar a trabalhar.

Subiam a rua procurando a proteção de um beco quando Cathy parou subitamente.

— Victor...

— O que foi?

— Veja. — Ela apontou para a banca de jornais, as mãos trêmulas.

Sob o plástico, viram a edição vespertina do San Francisco Examiner. A manchete dizia: "Duas vítimas, mesmo nome. Polícia investiga coincidência." Ao lado, uma fotografia de uma jovem loura. A legenda estava oculta pela dobra, mas Cathy não precisou ler. Ela adivinhava qual era o nome da mulher.

— Duas — murmurou. — Victor, você estava certo...

— Outro motivo para sairmos da cidade. — Ele a puxou pelo braço. — Rápido.

Cathy se deixou levar. Mas enquanto desciam a rua, deixando a banca de jornais para trás, ela trazia consigo aquela imagem em sua mente: a fotografia de uma jovem loura, a segunda vítima.

A segunda Catherine Weaver.

 

O patrulheiro O'Hanley tinha uma alma prestativa. Ao contrário de muitos de seus colegas, O'Hanley entrara para a polícia movido por um verdadeiro desejo de servir e proteger. Os colegas o chamavam de "Escoteiro" pelas costas. O epíteto tanto o aborrecia quanto o agradava. Indicava que ele não se encaixava na gangue violenta da força policial. Também lhe dizia que ele estava acima de tudo isso, acima das propinas, da fofoca e das manobras em busca de promoção. Ele não estava ali para glorificar o distintivo que trazia no peito. O que queria era a chance de acariciar a cabeça de uma criança ou salvar uma vovó de um assalto.

Por isso achava tão frustrante aquela missão em particular.

Teria de ficar ali na rodoviária, procurando um homem que algumas testemunhas talvez tivessem visto havia algumas horas. O'Hanley não vira ninguém parecido. Ele prestara atenção em cada pessoa que passara por aquela porta. Gente muito infeliz, em sua maioria. Não era surpreendente que, nos últimos tempos, qualquer um que tivesse algum dinheiro preferisse viajar de avião. Pela aparência, nenhum deles tinha mais do que alguns centavos para gastar. Veja aquele casal ali, abraçado na recepção. Pai e filha, imaginou, entregues à própria sorte. A filha estava enrolada em uma velha capa de chuva, o colarinho erguido revelando apenas um tufo de cabelo revolto.

O pai era uma visão ainda mais deprimente. Rosto cadavérico, costeletas grisalhas, quase tão velho quanto Matusalém. Ainda assim, através de sua postura firme e ereta, O'Hanley podia perceber que ainda restava um resíduo de orgulho naquele velho. Deve ter sido um sujeito impressionante quando jovem, uma vez que ainda tinha bem mais de 1,80m de altura.

O alto-falante anunciou a saída do ônibus 14 para Palo Alto.

O velho e a filha se levantaram.

O'Hanley observou, preocupado, quando a dupla atravessou o terminal em direção ao portão de embarque. A mulher carregava apenas um pequeno estojo, embora parecesse muito pesado. E já tinha as mãos ocupadas, tentando guiar o velho na direção certa. Mas estavam fazendo progresso e O'Hanley achou que chegariam bem ao ônibus.

Isso até a criança esbarrar neles.

Tinha uns 6 anos, o tipo de criança que mãe alguma tinha coragem de admitir ter dado à luz, o tipo de criança que trazia uma má reputação para as outras da mesma idade.

Havia meia hora que o menino fazia bagunça pelo terminal, espalhando a areia dos cinzeiros, tropeçando em malas, batendo portas de armários. Agora, estava correndo. Só que corria de costas.

O'Hanley o viu se aproximar. O velho e a filha caminhavam lentamente em direção ao portão de embarque.

O menino avançava em sua direção. Caminhos cruzados, colisão inevitável. O menino chocou-se contra as pernas da mulher. O estojo caiu de sua mão. Ela se desequilibrou em direção ao acompanhante.

Paralisado, O'Hanley esperou que o velho caísse. Contudo, para sua surpresa, ele simplesmente amparou a mulher com os braços e voltou a equilibrá-la.

O'Hanley correu para ajudá-los. Chegou quando a mulher recuperava o equilíbrio.

— Vocês estão bem? — perguntou.

A mulher reagiu como se tivesse levado um tapa na cara. Ela o encarou com os olhos de um animal aterrorizado.

— Como? — disse ela.

— Vocês estão bem? Pareceu-me que ele os atingiu com força.

Ela assentiu.

— E quanto a você, vovô?

A mulher olhou para o acompanhante. Pareceu a O'Hanley que dizia muito com aquele olhar, coisas que ele ignorava.

— Estamos bem — apressou-se em dizer a mulher. — Vamos, papai. Ou perderemos o ônibus.

— Posso ajudá-los?

— É muita gentileza sua, policial, mas estamos bem. — A mulher sorriu para O'Hanley. Algo naquele sorriso não estava certo. Enquanto observava o casal avançando penosamente em direção ao ônibus 14, O'Hanley tentava entender o que seria. Tentava entender o que havia de errado com aquela dupla de viajantes.

Ele se voltou e quase tropeçou no estojo tombado. A mulher o esquecera. Ele pegou o estojo e começou a correr em direção ao ônibus. Tarde demais. O número 14 para Palo Alto já se afastava. O'Hanley parou junto ao meio-fio, impotente, observando as luzes traseiras desaparecerem além da esquina.

Ora bolas.

Ele entregou a caixa de maquiagem no setor de achados e perdidos. Então, voltou a se plantar à entrada da estação.

Eram 19h e ainda não vira sinal do suspeito Victor Holland. O'Hanley suspirou. Que desperdício de tempo para um policial.

 

Cinco minutos depois de deixarem São Francisco a bordo do ônibus 14, o velho voltou-se para a mulher com a capa de chuva e disse:

— Essa barba está me matando.

Rindo, Cathy estendeu a mão e deu um puxão no falso cavanhaque.

           — Funcionou, não é mesmo?

            — Brincadeira! Praticamente conseguimos escolta policial para o ônibus. — Ele coçou o queixo com força. — Cara, como os atores agüentam esse negócio? A coceira está me fazendo subir pelas paredes.

—Quer que eu tire?

—Melhor não. Não até chegarmos a Palo Alto.

Mais uma hora, pensou Cathy. Ela se recostou e olhou para a estrada do lado de fora da janela do ônibus.

— E então? — perguntou em seguida.

— Baterei em algumas portas. Verei se consigo encontrar um ou outro velho amigo. Faz muito tempo, mas acho que ainda restam alguns na cidade.

— Você morava lá?

—Há muitos anos. Quando eu estava na faculdade.

— Ah. — Ela se soergueu na poltrona. — Um homem de Stanford.

— Por que faz isso soar ligeiramente desonroso?

— Eu torcia para os Bears.

— Estou me associando a uma arqui-inimiga?

Rindo, ela afundou a cabeça contra o peito de Victor e inalou o cálido e familiar aroma de seu corpo.

— Parece outra existência. Berkeley e blue jeans.

— Futebol americano. Festas de embalo.

— Festas de embalo? — perguntou ela. — Você?

— Bem, boatos de festas de embalo.

— Frisbee. Aulas no jardim...

— Inocência — disse ele baixinho. Ambos se calaram.

— Victor? E se os seus amigos não estiverem mais lá? E se não nos aceitarem?

— Uma coisa de cada vez. É assim que devemos encarar a situação. De outra forma, tudo vai parecer insuperável.

— Já está parecendo.

 Ele a abraçou com força.

— Ei, estamos bem. Conseguimos sair da cidade. Na verdade, passamos bailando debaixo do nariz de um tira. Diria que isso é muito impressionante.

Cathy não conseguia deixar de rir ao se lembrar do jovem e honesto patrulheiro O'Hanley.

— Todos os policiais deveriam ser assim tão prestativos.

— Ou cegos — debochou Victor. — Não acredito que ele me chamou de vovô.

—Quando me disponho a mudar um rosto, faço bem-feito.

— Aparentemente.

Ela deu o braço para Victor e beijou aquele rosto barbado e carrancudo.

— Posso lhe contar um segredo?

—Qual?

— Sou louca por homens mais velhos.

Lentamente, a carranca se transformou em um sorriso dúbio.

— Quão velhos? — Ela voltou a beijá-lo, dessa vez nos lábios.

— Muito velhos.

—Hum. Então esse cavanhaque talvez não seja assim tão ruim afinal de contas. — Ele segurou a cabeça dela entre as mãos. Dessa vez foi ele quem a beijou, longa e profundamente, sem se dar conta de onde estavam ou para onde iam. Cathy sentiu-se escorregar na poltrona, em direção a um espaço inescapável e infinitamente seguro.

Alguém atrás exclamou:

— Mandou bem, vovô!

Relutantes, eles se afastaram. Em meio à penumbra do ônibus, Cathy pôde ver o brilho nos olhos de Victor, o lampejo de um sorriso irônico.

Ela sorriu de volta e murmurou:

— Mandou bem, vovô.

 

Os cartazes com o rosto de Victor Holland estavam espalhados por toda a rodoviária.

Polowski não conseguia conter a irritação ao olhar para o retrato infeliz daquele homem que, no fundo, ele sabiam ser inocente. Uma maldita caça às bruxas, foi nisso que tudo se tornou. Se Holland já não estivesse suficientemente apavorado, essa caçada pública certamente o obrigaria a se esconder, fora do alcance daqueles que poderiam ajudá-lo. Polowski só esperava que também ficasse fora do alcance daqueles com intenções menos benignas.

Com todos aqueles cartazes, Holland seria louco se tentasse caminhar pela rodoviária. Ainda assim, Polowski tinha um instinto a respeito de coisas do tipo, uma intuição de como as pessoas se comportavam quando estavam desesperadas. Se estivesse no lugar de Holland, com um assassino em sua caça e uma mulher com quem se preocupar, Polowski sabia o que ele faria: daria o fora de São Francisco. Um avião seria algo improvável. De acordo com Jack Zuckerman, Holland estava com pouco dinheiro. Um cartão de crédito estaria fora de questão. Isso também eliminava a hipótese do carro alugado. O que lhe restava? Carona ou ônibus.

Polowski apostava no ônibus.

A última informação recebida apoiava tal intuição. O grampo no telefone de Zuckerman captara uma ligação de Cathy Weaver. Ela combinara um lugar de encontro que Polowski não conseguira identificar de imediato. O agente passou uma hora frustrante perguntando para o pessoal do escritório, tentando encontrar alguém que não apenas tivesse assistido ao esquecível filme deZuckerman, Cretinoide, mas que também pudesse dizer onde a última cena fora filmada. No Mission District, dissera-lhe afinal uma arquivista louca por cinema. Sim, tinha certeza. O monstro subiu através do bueiro na esquina da Quinta com a Mission e engoliu um ou outro delinqüente antes que o herói o esmagasse com um piano. Polowski não ficou para ouvir o resto. Em vez disso, correu para seu carro.

Mas era tarde demais. Holland e a mulher já tinham ido embora, e Zuckerman desaparecera. Polowski viu-se descendo a Mission, observando as portas trancadas, as janelas com cortinas fechadas e perguntando-se quando a polícia local limparia aquelas malditas ruas.

Foi quando se lembrou de que a rodoviária ficava a apenas algumas quadras dali. Agora, ao se ver entre os cansados e atônitos viajantes da rodoviária, começava a achar que perdera seu tempo.

Todos aqueles cartazes de "Procura-se" encarando-o. E havia um policial diante da máquina de café, tomando goles furtivos de um copo de isopor. Polowski foi até o policial.

— FBI — disse ele, exibindo o distintivo.

O policial, que não passava de um menino, imediatamente se compôs.

— Patrulheiro O'Hanley, senhor.

—Muito movimento?

—Hã... Refere-se a hoje?

— É. Aqui.

—Não, senhor. — O'Hanley suspirou. — Um fracasso.

Quero dizer, eu podia estar patrulhando as ruas. Em vez disso, me puseram aqui para olhar para os rostos das pessoas.

— Vigilância?

— Sim, senhor. — Ele meneou a cabeça em direção ao cartaz de Holland. — Aquele cara. Todos estão loucos para encontrá-lo. Dizem que é um espião.

— É mesmo? — Polowski olhou ao redor. — Viu alguém aqui parecido com ele?

— Ninguém. E estou atento.

Polowski não duvidou. O'Hanley era o tipo de menino que, caso lhe fosse pedido, limparia as botas do capitão com uma escova de dentes. E faria um bom trabalho.

Obviamente, Holland não estivera ali. Polowski voltou-se para ir embora. Então, pensou em algo e voltou-se para O'Hanley.

— O suspeito pode estar viajando com uma mulher — disse. Ele pegou uma foto de Cathy Weaver que convencera Jack Zuckerman a doar ao FBI. — Você a viu por aqui?

O'Hanley franziu as sobrancelhas.

— Ué... Ela se parece com... Não. Não pode ser.

— Quem?

— Bem, havia uma mulher aqui há cerca de uma hora. Um tipo muito pobre. Um moleque trombou com ela. Eu a ajudei a se recompor. Parecia muito com essa mulher, só que em pior estado.

— Viajava sozinha?

— Estava acompanhada por um velho. O pai dela, creio eu.

Subitamente, Polowski era todo ouvidos. O instinto estava lhe dizendo algo outra vez.

— Como era esse velho?

— Muito velho. Talvez uns 70 anos. Barba cerrada, muito cabelo branco.

— Qual a altura dele?

— Muito alto. Mais de 1,80m... — A voz de O'Hanley falhou quando seu olhar se fixou no cartaz de procurado. Victor Holland tinha 1,89m. O rosto de O'Hanley empalideceu.

— Oh, meu Deus...

— Era ele?

— Eu... Eu não tenho certeza...

— Vamos, vamos!

— Eu não sei... espere. A mulher deixou cair um estojo de maquiagem! Eu a entreguei naquele guichê ali.

Bastou uma olhada no distintivo do FBI para que o encarregado de achados e perdidos entregasse o estojo. No instante em que Polowski abriu aquilo, soube que encontrara um filão. Estava repleto de artigos de maquiagem cenográfica. Gravado na tampa, lia-se: Propriedade da Jack Zuckerman Productions.

Ele fechou a tampa.

— Para onde foram? — perguntou para O'Hanley.

— Eles... entraram em um ônibus logo ali. Naquele portão. Por volta das 19h.

Polowski olhou para o quadro de partidas. Às 19h, o número 14 partira para Palo Alto.

Demorou dez minutos até ele conseguir falar com o gerente da rodoviária de Palo Alto, outros cinco para convencê-lo de que aquilo não era um trote.

— O ônibus 14 de São Francisco? — veio a resposta. — Chegou há 20 minutos.

— E quanto aos passageiros? — forçou Polowski. — Algum deles ainda está por aí?

O gerente apenas riu.

— Ei, cara. Se tivesse escolha, você ficaria em uma rodoviária fedorenta?

Murmurando um palavrão, Polowski desligou.

— Senhor? — Era O'Hanley. Parecia estar arrasado. — Estraguei tudo, não é mesmo? Deixei-o passar bem debaixo de meu nariz. Não posso crer...

— Esqueça.

— Mas...

Polowski caminhou em direção à saída.

— Você é apenas um novato — falou por sobre o ombro. — Que isso lhe sirva de lição.

—Devo relatar?

— Eu cuido disso. Estou indo para lá agora mesmo.

— Para onde? — Polowski abriu a porta de saída da estação.

— Palo Alto.

 

A PORTA DA FRENTE FOI ATENDIDA POR UMA ORIENTAL idosa com um inglês limitado.

— Sra. Lum? Lembra-se de mim? Victor Holland. Eu era amigo de seu filho.

— Sim, sim!

— Ele está?

— Sim. — O olhar dela voltou-se para Cathy, como se a mulher não quisesse que a outra visita se sentisse deslocada.

— Preciso vê-lo — disse Victor. — Milo está?

— Milo? — Finalmente, uma palavra que ela parecia entender. Ela se voltou e gritou em chinês.

Em algum lugar uma porta rangeu e ouviram-se passos na escada. Um oriental de seus 40 anos vestindo jeans e uma camisa de cambraia veio até a porta da frente. Era um sujeito gorducho e trazia consigo um vago aroma de produtos químicos, algo forte e ácido. Ele limpava as mãos em um trapo.

— O que posso fazer por você? — perguntou.

Victor riu.

— Milo Lum! Ainda enfiado no porão de sua mãe?

— Perdão? — perguntou Milo educadamente. — Eu o conheço, senhor?

—Não reconhece o velho trompetista dos Desafinados?

Milo olhou, incrédulo.

—Gershwin? É você?

— Sim, eu sei — disse Victor com um sorriso. — Os anos não foram muito gentis comigo.

—Não queria dizer nada, mas...

— Não vou levar isso para o lado pessoal, já que... — Victor tirou a falsa barba — ... esse rosto não é todo meu.

Milo olhou para a barba falsa, pendurada como um animal morto na mão de Victor. Então olhou para o queixo do amigo, ainda manchado de cola.

— Está pregando uma peça no velho Milo, certo? — Ele enfiou a cabeça para fora da porta, olhando para a calçada além de Victor. — E os outros rapazes estão escondidos em algum lugar, esperando para gritar surpresa!, não estão? É um belo trote.

— Quisera eu que fosse brincadeira — disse Victor.

Milo imediatamente percebeu a urgência na voz de Victor. Ele olhou para Cathy, então se voltou para Victor outra vez. Assentindo, ele abriu caminho.

— Entre, Gersh. Parece que preciso me atualizar.

Enquanto jantavam uma sopa de pato com macarrão e tomavam chá de jasmim, Milo ouviu a história. Falou muito pouco. Parecia mais interessado em acabar com o macarrão. Apenas quando a sempre sorridente Sra. Lum curvou-se para desejar boa-noite e foi para a cama, Milo fez seu comentário:

— Quando se mete em confusão, cara, você capricha.

— Astuto como sempre, Milo — suspirou Victor.

— Pena não podermos dizer o mesmo da polícia — desdenhou Milo. — Se tivessem se preocupado em perguntar por aí, saberiam que você é inofensivo. Ao que eu saiba, você só é culpado de um único crime.

Cathy ergueu a cabeça, assustada.

— Que crime?

— Atacar os ouvidos de vítimas que tiveram o azar de ouvi-lo tocar saxofone.

— Isso vindo de um flautista que ensaiava com protetores de ouvido — observou Victor.

— Aquilo era para abafar ruídos desagradáveis.

— Sim. Principalmente os seus.

Cathy sorriu.

— Estou começando a entender por que se chamavam Desafinados.

— Isso é apenas um pouco de humor auto-depreciativo — disse Milo. — Algo de que precisávamos quando não conseguimos ingressar na banda de Stanford. — Milo levantou-se, afastando-se da mesa da cozinha. — Bem, vamos lá. Vejamos o que há nesse misterioso rolo de filme.

Ele os guiou pelo corredor e ao longo de uma escada até o porão. O cheiro de produtos químicos, a fila de bandejas sobre a bancada de aço inoxidável e o lento pingar da água da torneira disseram para Cathy que ela estava em um enorme quarto escuro. Pregada nas paredes, uma infinidade de fotos. Rostos em sua maioria, aparentemente registrados ao redor do mundo. Aqui e ali, uma fotografia digna de nota: soldados invadindo um aeroporto, manifestantes desenrolando uma faixa.

— Você trabalha com isso, Milo? — perguntou.

— Quem dera — disse Milo, agitando o cilindro de revelação. — Não, apenas dei continuidade a um velho negócio familiar.

— Qual?

— Sapatos. Italianos, brasileiros, couro, jacaré, o que for. Nós os importamos. — Ele inclinou a cabeça em direção às fotos. — E assim que obtenho esses retratos exóticos. Em viagens para comprar sapatos. Sou especialista em peitos de pé femininos.

— Para isso — exclamou Victor — ele passou quatro anos em Stanford.

— E por que não? É um lugar tão bom quanto qualquer outro para estudar os pés do belo sexo. — Um despertador tocou. Milo derramou o revelador, retirou o rolo de filme e o pendurou para secar. — Na verdade — disse ele, verificando os negativos —, foi um pedido de meu pai em seu leito de morte. Ele queria um filho com formação em Stanford. Eu queria quatro anos ininterrupto de festa. Ambos realizamos os nossos desejos. — Ele fez uma pausa e olhou para suas fotos com tristeza. — Pena que não possa dizer o mesmo dos anos que vieram depois.

— Como assim? — perguntou Cathy.

— A festa acabou há muito tempo. Preciso cuidar dos lucros, aumentar as vendas. Nunca pensei que chegaria a tanto. O que aconteceu com todo aquele potencial revolucionário, hein, Gersh? Nós o perdemos pelo caminho. Todos nós, Bach, Ollie e Roger. Os Desafinados finalmente entraram na linha. Agora, todos marchamos ao ritmo do mesmo monótono tambor. — Ele suspirou e olhou para Victor. — Consegue ver algo nesses negativos?

Victor balançou a cabeça.

— Precisamos de ampliações.

Milo desligou as luzes, deixando apenas o brilho vermelho da luz do quarto escuro.

— É para já.

Enquanto Milo posicionava o papel fotográfico, Victor perguntou:

— O que aconteceu com os outros? Ainda estão por perto?

Milo acionou a luz do ampliador.

— Roger é vice-presidente de um banco multinacional em Tóquio. Ternos e gravatas de seda. Bach tem uma empresa de equipamentos eletrônicos em San José.

— E Ollie?

— O que posso dizer de Ollie? — Milo mergulhou a primeira impressão na bandeja do revelador. — Ainda trabalha naquele laboratório no Stanford Med. Duvido que ele veja a luz do dia. Imagino que tenha alguma câmara secreta no porão onde mantém seu assistente Igor agrilhoado à parede.

— Preciso conhecer esse cara — disse Cathy.

— Ah, ele vai adorar você. — Victor riu e apertou o braço dela. — Uma vez que deve ter esquecido como são as fêmeas de sua espécie.

Milo introduziu a ampliação na bandeja do fixador.

— É, Ollie é o que não muda nunca. A mesma coruja noturna. E ainda toca clarinete muito bem. — Ele olhou para Victor. — Como vai o sax, Gersh? Continua a praticar?

— Não toco há meses.

— Sorte dos vizinhos.

— Por que você tem esse nome? — perguntou Cathy.

— Gersh?

— Porque — disse Milo, usando uma pinça para transferir outra ampliação entre as bandejas — ele acredita firmemente no poder de George Gershwin para conquistar o coração de uma dama. "Someone to Watch Over Me" não era a música que fez Lily dizer... — Milo parou de falar subitamente. Ele olhou arrependido para o amigo.

— Você está certo — disse Victor tranqüilamente. — Era essa a canção. E Lily disse "sim".

Milo balançou a cabeça.

— Desculpe. Ainda tenho dificuldade para me lembrar que ela morreu.

— Bem, ela morreu — disse Victor, pragmático. Cathy sabia que havia dor escondida nas entrelinhas. Mas ele a disfarçou bem. — E, nesse momento, temos outras coisas em que pensar.

— É. — Milo voltou a atenção para as ampliações que acabara de revelar. Ele tirou as primeiras ampliações da bandeja e as pendurou para secar. — Muito bem, Gersh.

Diga-nos o que há nesse rolo de filme que valha a pena matar alguém.

Milo ligou as luzes.

Victor ficou silencioso um instante, franzindo as sobrancelhas para as primeiras cinco ampliações. Para Cathy, a informação ali contida não fazia sentido. Era apenas um apanhado de números e códigos rabiscados em uma caligrafia quase ilegível.

— Bem — resmungou Milo. — Isso certamente diz um bocado para mim.

O olhar de Victor voltava-se rapidamente de uma foto para a outra. Parou na quinta, onde havia uma coluna do topo ao pé da página. Continha uma lista de 27 itens, cada um com uma data seguida pelas mesmas três letras: FAL.

— Victor? — perguntou Cathy. — O que isso significa?

Ele se voltou para Cathy e Milo. A expressão de seus olhos os preocupou. A tranqüilidade.

— Precisamos ligar para Ollie.

— Hoje à noite? — perguntou Milo. — Por quê?

— Não se trata de uma experiência em tubos de ensaio e lâminas. Eles foram além disso, aos experimentos clínicos. — Victor apontou para a última página. — Esses eram macacos. Cada um foi infectado com um vírus novo. Um vírus criado pelo homem. E, em todos os casos, o resultado foi o mesmo.

— Refere-se a isso? — Milo apontou para a última coluna. — FAL?

— Quer dizer "falecido" — disse Victor. — Todos morreram.

 

Sentado em um banco na rodoviária de Palo Alto, Sam Polowski pensava: Se eu quisesse desaparecer, aonde iria em seguida? Ele viu cerca de dez passageiros correndo em direção ao ônibus 210 para San José, em sua maioria jovens com mochilas e roupas da Birkenstock.

Provavelmente eram alunos de Stanford viajando para o feriado de Natal. Ele se perguntou por que estudantes que podiam pagar uma universidade tão cara não podiam juntar dinheiro suficiente para comprar um jeans que prestasse. Ou, ao mesmo tempo, pagar um corte de cabelo decente.

Finalmente, Polowski levantou-se e automaticamente tirou a poeira do casaco, um hábito que ele adquirira durante os anos em que trabalhara no lado mais sórdido da cidade. Mesmo que a sujeira não fosse visível, ele sentia que estava ali, cobrindo cada superfície contra a qual roçasse, pronta a se agarrar a ele como tinta fresca.

O agente ligou para a secretária eletrônica de Dafoe para informar que Victor Holland fora para Palo Alto. Afinal, era sua obrigação manter o supervisor informado. Estava feliz por estar falando com uma máquina e não com ele em pessoa.

Polowski deixou a rodoviária e desceu a rua, caminhando sabe Deus para onde, em busca de um lampejo, um palpite. Era uma vizinhança bastante simpática, em uma cidade bastante simpática. Palo Alto tinha suas velhas casas de professores, suas livrarias e cafeterias onde tipos universitários, aqueles com barba e óculos com aro de metal gostavam de se sentar para discutir Proust, Brecht e Goethe. Polowski lembrou-se de seus tempos de universidade, quando, após ouvir uma hora daquela bobagem entre estudantes da mesa ao lado, ele finalmente levantou-se e gritou: "Talvez Brecht quisesse dizer isso, talvez não. Mas vocês poderiam me responder uma pergunta? Qual a diferença?"

Isso, desnecessário dizer, não aumentou sua reputação como um sério erudito.

Agora, enquanto caminhava pela rua, sem dúvida seguindo os passos de filósofos mais sérios, Polowski pensava em Victor Holland. Mais especificamente no problema de onde esse homem, em seu desespero, se esconderia.

Ele observou as luzes acesas nas casas, o brilho dos aparelhos de tevê, os carros superlotando as garagens.

Onde, nesse subúrbio, ele estaria escondido? Holland era um cientista, um músico, um homem com poucos, embora fiéis, amigos. Tinha doutorado no MIT, bacharelado em Stanford. A universidade ficava logo ali, estrada acima. O sujeito deveria conhecer a área. Talvez ainda tivesse amigos nas redondezas, gente que lhe daria abrigo e guardaria seus segredos.

Polowski decidiu dar outra olhada no arquivo de Holland. Em algum lugar nos registros da Viratek tinha de haver alguma referência, alguma recomendação de um contato de Stanford. Um amigo a quem Holland pudesse recorrer. Mais cedo ou mais tarde ele teria de recorrer a alguém.

 

Passava da meia-noite quando Dafoe e a mulher voltaram para casa. Ele estava de excelente humor, levemente embriagado de champanhe, ainda trazendo nos ouvidos a comovente ária de Sansão e Dalila. A ópera era sua paixão, uma brilhante representação de coragem, conflito e amore, uma visão da vida muito mais grandiosa do que o mundinho onde ele se encontrava. Aquilo o alçava a um plano de tal intensidade emocional que ele chegava a ver a mulher de um modo novo e excitante. Observou-a tirar o casaco e chutar os sapatos para longe. Vinte quilos acima do peso, cabelo repleto de mechas grisalhas, ela ainda tinha os seus encantos. Já faz três semanas.

Certamente ela vai deixar hoje à noite...

Mas a esposa ignorou seus olhares apaixonados e foi até a cozinha. Pouco depois, o barulho da lavadora de pratos anunciava outro de seus surtos de faxina doméstica.

Frustrado, Dafoe voltou-se e apertou o botão da secretária eletrônica que piscava. A mensagem de Polowski destruiu qualquer intenção amorosa que lhe ainda restasse.

— ... razões para crer que Holland está, ou acabou de partir da área de Palo Alto. Seguindo pistas. Eu o manterei informado...

Polowski, seu idiota. Seguir ordens é assim tão difícil?

Eram 3h no horário de Washington. Uma hora infeliz, mas ele fez a ligação. A voz que atendeu estava rouca e sonolenta.

— Tyrone.

— Caubói, aqui é Dafoe. Desculpe acordá-lo.

A voz ficou instantaneamente alerta, sem o menor resíduo de sonolência.

— O que foi?

— Nova pista sobre Holland. Não sei os detalhes, mas ele foi para o sul, para Palo Alto. Talvez ainda esteja lá.

— A universidade?

— É na área de Stanford.

— Isso pode ser uma grande ajuda.

— Faço qualquer coisa para um velho amigo. Eu o manterei informado.

—Mais uma coisa, Dafoe.

— Sim?

— Não quero interferências. Tire todo seu pessoal de lá. Assumiremos daqui para frente.

Dafoe fez uma pausa.

— Talvez... haja um problema.

— Um problema? — A voz, embora tranqüila, tornou-se afiada como uma navalha.

— É, bem... um de meus homens. Um sujeito imprevisível. Sam Polowski. Está obcecado com esse caso Holland, quer ir atrás dele.

— Vocês não respeitam esse negócio de ordem direta?

— No momento, Polowski está incomunicável. Está em Palo Alto, investigando sabe Deus o quê.

— Uma bala perdida. Não gosto de gente assim.

— Vou tirá-lo de lá assim que puder.

— Faça isso. E seja discreto. É um assunto de segurança máxima.

Depois que Dafoe desligou, seu olhar voltou-se automaticamente para a foto no consolo da lareira. Era um retrato dele e do Caubói em 1968: dois jovens fuzileiros, ambos rindo, rifles sobre os ombros enquanto caminhavam em um arrozal com lama à altura dos tornozelos. Era uma época maluca, onde sua vida dependia da lealdade dos colegas. Quando o lema Semper Fi se aplicava não apenas ao corpo de fuzileiros em geral, mas a cada um em particular. Naquela época, Matt Tyrone era um herói, e ele também.

Dafoe olhou para o rosto sorridente na foto, perturbado por uma inveja que se infiltrara em sua admiração por aquele homem. Embora Dafoe tivesse muito do que se orgulhar — sólidos 18 anos no FBI, uma possível promoção como diretor assistente em vista, não podia se igualar à trajetória de Matt Tyrone na NSA. Embora Dafoe não soubesse exatamente qual posição ocupava o Caubói na NSA, ele ouvira dizer que Tyrone freqüentava as reuniões de gabinete assiduamente, que tinha a confiança do presidente, que cuidava do sigilo e da segurança. Era o tipo de homem de quem o país precisava, um homem para quem o patriotismo era mais do que retórica e balançar de bandeiras. Era um modo de vida. Matt Tyrone fazia mais do que morrer por seu país.

Ele vivia para ele.

Dafoe não podia decepcionar um amigo assim.

O supervisor ligou para o número residencial de Sam Polowski e deixou uma mensagem na secretária eletrônica:

Esta é uma ordem direta. Você deve se retirar do caso Holland imediatamente. E está suspenso até segunda ordem.

Sentiu-se tentado a acrescentar: a pedidos especiais de meus amigos de Washington, mas achou melhor não fazê-lo. Naquele caso, não havia espaço para vaidade. O caubói dissera que a segurança nacional estava em jogo.

Dafoe não duvidava daquilo. Fora o que lhe dissera Matt Tyrone. E a autoridade de Matt Tyrone vinha diretamente do presidente.

 

— Isso não me parece boa coisa. Não mesmo.

Através de seus óculos de aro de metal, Ollie Wozniak olhou para as 24 fotografias sobre a mesa de jantar de Milo. Ele ergueu uma delas para olhar mais de perto.

Através das lentes de fundo de garrafa, enormes olhos azuis a observavam. Só dava para ver os olhos de Ollie. Todo o resto — o rosto encovado, os lábios finos e o cabelo ralo como o de um bebê — parecia oculto por trás da palidez de fundo. Ele balançou a cabeça e pegou outra foto.

— Você está certo, é claro — disse ele. — Algumas dessas fotos não consigo interpretar. Gostaria de estudá-las depois. Mas esta aqui definitivamente representa taxas de mortalidade. Acho que são macacos Rhesus. — Ele fez uma pausa e acrescentou: — Assim espero.

— Certamente não devem usar gente para esse tipo de coisas — disse Cathy.

— Não oficialmente. — Ollie baixou a foto e olhou para ela. — Mas já foi feito.

— Talvez na Alemanha nazista.

— Aqui também — disse Victor.

— O quê? — Cathy olhou para ele, incrédula.

— Estudos do exército sobre guerra bacteriológica. Liberaram colônias de Serratia marcescens sobre São Francisco e esperaram para ver como o organismo se espalhava. As infecções ocorreram em diversos hospitais da área da baía. Alguns dos casos foram fatais.

— Não posso crer — murmurou Cathy.

— Obviamente, o dano não foi intencional. Mas as pessoas morreram do mesmo jeito.

— Não se esqueça de Tuskegee — disse Ollie. — Também houve gente que morreu naquela experiência. E houve aquele caso em Nova York. Crianças retardadas mentais em um hospital público que foram deliberadamente expostas à hepatite. Ninguém morreu, mas a ética foi abalada. Portanto, já foi feito. Às vezes, em nome da humanidade.

— Às vezes não — disse Victor.

Ollie assentiu.

— Como neste caso em particular.

—De que estamos falando aqui, exatamente? — perguntou Cathy, meneando a cabeça em direção às fotos. — Isso é pesquisa médica ou desenvolvimento de armas?

— As duas coisas. — Ollie apontou para uma das fotos sobre a mesa. — Ao que tudo indica, a Viratek está envolvida em pesquisa de armas biológicas. Chamaram isso de Projeto Cérbero. Pelo que posso ver, o organismo com que estão trabalhando é um vírus RNA, extremamente virulento, altamente contagioso, que provocou mais de 80% de mortalidade nesses animais de laboratório. Esta foto aqui — ele deu um tapinha em uma das ampliações - mostra que o organismo produz lesões vesiculares nos organismos infectados.

— Vesiculares?

— Em forma de bolhas. O fluido dessas lesões pode ser uma via de transmissão. — Ele pegou outra foto da pilha.— Essa aqui mostra a evolução da doença. A contagem viral, os períodos em que é infecciosa. Em quase todos os casos, ocorre o mesmo. A cobaia é exposta aqui. — Ele apontou para o Dia 1 no gráfico de tempo. — Pequenos sinais de doença aqui, no Dia 7. Vesículas maduras no Dia 12. E aqui... — ele mostrou o gráfico do Dia 14 — começam as mortes. O tempo varia, mas o resultado é o mesmo. Todos morrem.

— Você usou o termo vesicular — disse Cathy.

Ollie voltou-se para ela, olhos como vidro azul.

— Porque é exatamente isso o que é.

— Refere-se à varicela?

— Quem dera. Nesse caso, não seria tão mortal. Quase todo mundo é exposto à varicela quando criança, de modo que a maioria de nós é imune. Mas isso é outra história.

— É um vírus novo? — perguntou Milo.

— Sim e não. — Ollie pegou uma foto tirada com microscópio eletrônico. — Quando vi essa imagem, achei que havia algo estranhamente familiar a respeito disso tudo. A aparência do organismo, as lesões de pele, o curso da doença. Todo o maldito quadro. Lembrou-me de algo que não vejo há décadas. Algo que jamais sonhei voltar a ver.

— Está dizendo que é um vírus antigo? — perguntou Milo.

— Muito. Mas fizeram algumas modificações. Fizeram-no mais infeccioso. E mais mortal. O que o torna uma arma realmente extraordinária, considerando as milhões de pessoas que já matou.

— Milhões? — Cathy olhou para ele. — De que estamos falando?

— De um assassino que conhecemos há séculos. A varíola.

— Isso é impossível! — disse Cathy. — Pelo que li, vencemos a varíola. Supostamente, essa doença foi erradicada.

— E foi — disse Victor. — A vacinação em escala mundial a erradicou. Não temos casos de varíola há décadas Nem mesmo sei se ainda fabricam a vacina. Ollie?

— Não. Não há necessidade, uma vez que o vírus foi erradicado.

— Então, de onde veio este vírus? — perguntou Cathy.

Ollie deu de ombros.

— Provavelmente, do armário de alguém.

— Ora vamos.

— Falo sério. Após a erradicação da varíola, algumas amostras do vírus foram mantidas vivas em laboratórios governamentais, para o caso de alguém precisar delas para pesquisas futuras. Seria um esqueleto no armário, por assim dizer. Suponho que tais laboratórios sejam de segurança máxima. Afinal, se algum desses vírus escapar, pode haver uma grande epidemia. — Ele olhou para a pilha de fotos. — Parece que a segurança já foi violada. Obviamente alguém se apossou do vírus.

— Ou o recebeu — disse Victor. — Cortesia do governo dos Estados Unidos.

— Acho isso incrível, Gersh — disse Ollie. — Você está falando de uma experiência perigosíssima. Nenhum comitê aprovaria esse tipo de projeto.

— Certo. Por isso eu acho que essa é uma operação independente. É fácil entender o panorama. Um bando de linhas duras na NSA. Ou um grupo de oficiais de alta patente. Ou, mesmo, a Sala Oval. Alguém diz: "A política mundial mudou. Não podemos bombardear o inimigo com armas nucleares. Precisamos de uma outra opção bélica, que funcione bem contra um exército do Terceiro Mundo. "Vamos encontrá-la." E algum sujeito naquela sala, algum robô branco, azul e vermelho, toma isso como um "vá em frente". As leis internacionais que se danem.

— E, já que não é oficial — disse Cathy —seria perfeitamente negável.

— Certo. A administração poderia alegar não saber de nada.

— Parece a volta do Irã-Contras.

— Com uma grande diferença — disse Ollie. — Quando estourou o escândalo Irã-Contras, tudo o que aconteceu foram algumas carreiras políticas arruinadas. Se o Projeto Cérbero der errado, o que teremos será alguns milhões de pessoas mortas.

— Mas, Ollie, eu fui vacinado contra a varíola quando criança — disse Milo. — Isso não quer dizer que eu estou a salvo?

— Provavelmente. Supondo que o vírus não tenha sido muito alterado. Na verdade, todo mundo acima de 35 anos provavelmente estaria a salvo. Mas, lembre-se, há toda uma nova geração depois de nós que nunca tomou a vacina. Jovens adultos e crianças. Quando conseguíssemos fabricar vacinas para todos eles, já teríamos uma epidemia galopante.

— Começo a ver a lógica dessa arma — disse Victor. — Em qualquer guerra, quem compõe o grosso dos soldados de combate? Jovens adultos.

Ollie assentiu.

— Eles seriam muito atingidos. Assim como as crianças.

— Toda uma geração — murmurou Cathy. — E apenas os velhos seriam poupados. — Ela olhou e viu o horror que sentia espelhado nos olhos de Victor.

— Escolheram um nome adequado — disse Milo.

Ollie franziu as sobrancelhas.

— Como?

— Cérbero. O cão de três cabeças do Hades. — Milo ergueu a cabeça, visivelmente abalado. — O guardião dos mortos.

Somente quando Cathy estava profundamente adormecida e Milo se retirou para o andar de cima, Victor finalmente abordou o assunto com Ollie. Aquilo o incomodara a noite inteira, e estragara cada momento desde que chegaram à casa de Milo. Ele não conseguia olhar para Cathy, não conseguia ouvir o som da voz dela ou o cheiro de seu cabelo sem pensar nas terríveis possibilidades. E, na calada da noite, quando parecia que o mundo inteiro estava adormecido, exceto ele e Ollie, Victor tomou a decisão.

— Preciso lhe pedir um favor — disse ele.

Ollie olhou-o através da mesa de jantar, vapor exalando de sua quarta xícara de café.

— Que tipo de favor?

— Tem a ver com Cathy.

O olhar de Ollie voltou-se para a mulher que dormia no chão da sala de estar. Parecia muito pequena, muito indefesa, encolhida sob o edredom.

— É uma bela mulher, Gersh.

— Eu sei.

— Não houve ninguém depois de Lily, não é mesmo?

Victor balançou a cabeça.

— Acho que não me sentia preparado. Sempre havia outras coisas em que pensar...

Ollie sorriu.

— Sempre há desculpas. Eu devia saber. As pessoas ficam me dizendo que há um bocado de mulheres da geração do pós-guerra dando sopa. Eu ainda não vi nenhuma.

— E eu nunca me incomodei em prestar atenção. — Victor olhou para Cathy. — Até agora.

— O que fará com ela, Gersh?

— Por isso preciso de você. Andar comigo não tem sido algo muito seguro ultimamente. Uma mulher pode se ferir.

Ollie riu.

— Diabos, um homem pode se ferir.

— Sinto-me responsável. Se algo acontecer com ela, não sei o que... — Ele emitiu um longo suspiro e esfregou os olhos vermelhos. — De qualquer modo, acho melhor que ela vá embora.

— Para onde?

— Ela tem um ex-marido. Ele estará trabalhando no México durante alguns meses. Acho que ela estaria bem segura por lá.

— Você vai mandá-la para o ex-marido?

— Eu o conheci. É um babaca. Mas ao menos ela não ficará sozinha.

— Cathy concorda com isso?

— Não perguntei.

— Talvez devesse.

— Não estou dando essa escolha para ela.

— E se ela quiser escolher?

— Não estou a fim de conversa-fiada, certo? Estou fazendo isso pelo bem dela.

Ollie tirou os óculos e limpou-os com a toalha de mesa.

— Desculpe-me dizer, Gersh, mas se fosse eu, eu a quereria por perto, em um lugar onde eu pudesse ficar de olho nela.

— Refere-se a poder vê-la ser morta? — Victor balançou a cabeça. — Lily foi o bastante. Não vou passar por isso com Cathy.

Ollie pensou por um momento, então assentiu.

— O que quer que eu faça?

— Quero que a leve ao aeroporto amanhã. Compre uma passagem para o México. Deixe-a usar seu nome. Sra. Wozniak. Assegure-se de que ela decole em segurança. Pagarei quando puder.

— E se ela não quiser entrar no avião? Devo forçá-la a embarcar?

— Faça o que for preciso, Ollie. Conto com você.

Ollie suspirou.

— Acho que posso fazer isso. Vou ligar para o trabalho amanhã e dizer que estou doente. Conseguirei o dia de folga. — Ele olhou para Victor. — Só espero que saiba o que está fazendo.

Eu também, pensou Victor.

Ollie levantou-se e enfiou o envelope com as fotos debaixo do braço.

— Volto a falar com você pela manhã, depois que mostrar essas duas últimas fotos para Bach. Talvez ele possa identificar o que são esses diagramas.

— Se for algo eletrônico, Bach descobrirá.

Caminharam juntos até a porta. Ali fizeram uma pausa e se entreolharam, dois velhos amigos que tinham ficado um tanto grisalhos e, como Victor esperava, um tanto mais espertos.

— De algum modo isso vai funcionar — disse Ollie. — Lembre-se: o sistema está aí para ser derrubado.

— Voltou a falar como o velho radical de Stanford.

— Faz muito tempo. — Sorrindo, Ollie deu um tapinha nas costas de Victor. — Mas ainda não estamos velhos demais para aprontar uma pequena confusão, não é mesmo, Gersh? Vejo você pela manhã.

Victor acenou enquanto Ollie desaparecia em meio à escuridão. Então, fechou a porta e desligou todas as luzes.

Na sala de estar, sentou-se ao lado de Cathy e observou-a dormir. O brilho da luz de um poste atravessava a janela e iluminava seu cabelo. Comum era o que ela achava de si mesma. Talvez, se fosse uma estranha com quem cruzasse na rua, ele também teria pensado o mesmo. Um encontro casual em uma autoestrada chuvosa em Garberville tornara impossível que ele considerasse aquela mulher comum. Em sua gentileza, sua bondade, ela se parecia muito com Lily.

Em outras coisas, era muito diferente.

Embora gostasse da esposa, embora nunca tivessem deixado de ser bons amigos, ele achava Lily estranhamente desprovida de paixão, um ser puro, espiritual, preso dentro de um corpo humano. Lily nunca se sentira confortável com o próprio corpo. Ela se despia e fazia sexo — nas raras vezes em que o fizeram — no escuro. Então, a doença roubara o pouco que lhe restava de desejo.

Olhando para Cathy, não conseguia evitar perguntar quais paixões abrigava aquele corpo em repouso.

Mas logo deixou de especular. O que aquilo importava agora? Amanhã ele a mandaria embora. Livre-se dela, pensou com rudeza. Era necessário. Victor não conseguia pensar direito com ela por perto. Não conseguia se concentrar no trabalho que tinha em mãos: expor a Viratek.

Jerry Martinique contara com ele. Milhares de vítimas potenciais contavam com ele. Ele era um cientista, um homem que privilegiava a lógica. Sua atração por aquela mulher em particular era evidentemente irrelevante no contexto geral.

Era isso o que dizia o cientista dentro dele.

Resolvido esse problema, ele decidiu descansar um pouco enquanto podia. Tirou os sapatos e esticou-se para dormir ao lado de Cathy. O edredom era largo o bastante.

Podiam dividi-lo. Ele entrou debaixo da coberta e ali ficou um instante, sem tocá-la, quase com medo de compartilhar de seu calor.

Ela gemeu durante o sono e voltou-se para ele, seu cabelo sedoso roçando-lhe o rosto.

Aquilo era mais do que Victor podia resistir. Suspirando, ele a abraçou e sentiu-a encolher-se contra seu peito. Era sua última noite juntos. Bem podiam passá-la aquecendo um ao outro.

Foi assim que ele adormeceu, com Cathy em seus braços. Victor só despertou uma vez durante a noite. Estivera sonhando com Lily. Caminhavam juntos em um jardim de flores brancas. Ela não falou absolutamente nada. Simplesmente olhou para ele com profunda tristeza, como se dissesse: Aqui estou, Victor. Voltei para você. Por que não está feliz? Ele não sabia o que responder, de modo que simplesmente a tomou em seus braços e a abraçou.

Ao despertar, percebeu que abraçava Cathy.

A alegria instantaneamente inundou seu coração e aqueceu os recessos mais escuros de sua alma. Foi tomado de surpresa por aquele surto de felicidade. Também se sentiu culpado. Mas lá estava. E era uma alegria efêmera.

Ele se lembrou de que ela iria embora naquele mesmo dia.

Cathy, Cathy. Que complicação você se tornou.

Victor se virou de lado, para longe dela, mentalmente erguendo uma parede entre os dois.

Ele se concentrou no sonho, tentando se lembrar do que acontecera. Ele e Lily caminhavam juntos. Tentou imaginar o rosto de Lily, seus olhos castanhos, seu cabelo preto encaracolado. Era o rosto de uma mulher com quem estivera casado durante dez anos, um rosto que ele deveria conhecer bem.

Mas o único rosto que via ao fechar os olhos era o de Catherine Weaver.

 

Nicholas Savitch demorou apenas duas horas para fazer as malas e ir de carro até Palo Alto. Segundo Matt Tyrone, Holland fugira para o sul, para a área de Stanford, talvez para procurar velhos amigos. Afinal de contas, Holland era um homem de Stanford. Talvez não do tipo tradicional, mas certamente um homem de Stanford. Tais vínculos universitários podiam ser profundos. Mas isso era apenas uma especulação de Savitch; ele nunca passara do ginásio. Sua educação consistia naquilo que um menino faminto e ambicioso podia conseguir no lado sul de Chicago. Principalmente naquela perspicácia, naquela habilidade quase sobrenatural de entrar na mente de outro homem, de imaginar o que um homem em particular pensaria e faria em determinada situação.

Chamemos isso de psicologia de rua avançada. Sem passar um dia na faculdade, Savitch se formara.

Agora estava pondo em prática a habilidade.

O descobridor era como o chamavam. Ele gostava do nome. Savitch sorriu enquanto dirigia, as mãos enluvadas segurando o volante. Nicholas Savitch, o adivinho de almas humanas, o caçador que consegue encontrar um homem no esconderijo mais remoto.

Na maioria das vezes era uma simples questão de lógica.

Mesmo fugindo, a maioria das pessoas segue antigos padrões.

É o medo que as faz agir assim, procurando antigos confortos, aferrando-se aos seus hábitos. Em uma cidade estranha, a familiaridade era algo precioso, mesmo que fosse apenas a visão daqueles onipresentes arcos dourados.

Como qualquer outro fugitivo, Victor Holland procuraria aquilo que lhe era familiar.

Savitch entrou na Palm Drive e estacionou em frente ao Arco de Stanford. O campus estava silencioso. Eram 2h. Savitch ficou sentado um instante, observando os prédios silenciosos, a alma mater de Holland. Ali, Holland se voltaria para velhos amigos, visitaria lugares do passado. Savitch já fizera o dever de casa. Em sua pasta, trazia uma lista de nomes que ele recolhera dos arquivos do sujeito. Pela manhã, olharia para aqueles nomes, bateria em portas de vizinhos, mostraria sua carteira do governo, perguntaria por novos rostos na vizinhança.

A única complicação possível era Sam Polowski. De acordo com o último relatório, o agente do FBI também estava na cidade, seguindo a pista de Holland. Polowski era um agente rebelde. Seria uma situação complicada remover um homem do FBI. Mas Polowski era apenas um coadjuvante, do mesmo modo que a tal Weaver era apenas uma coadjuvante em um contexto bem mais amplo.

Ele não perderia nenhum dos dois.

 

NAS HORAS CLARAS E FRIAS ANTES DO NASCER DO SOL, Cathy despertou tremendo, ainda presa pelos fios de um pesadelo.

Ela estivera andando em um mundo de concreto e sombras, de portais escancarados e silhuetas aglomeradas nas esquinas das ruas. Ela vagou entre elas, mais uma entre a multidão sem rosto, refugiando-se na penumbra, instintivamente evitando a luz. Ninguém a perseguiu; nenhum agressor emergiu dos becos. O terror real estava no interminável labirinto de concreto, no eco das ruas, na busca frenética por um lugar seguro.

E na certeza de que jamais o encontraria.

Por um momento, ficou deitada no escuro, encolhida embaixo do edredom no chão da sala de estar de Milo.

Ela mal se lembrava de quando fora dormir. Devia ter sido em algum momento após as 3h. A última coisa de que se lembrava era de Ollie e Victor ainda sentados na sala de jantar, discutindo as fotografias. Agora, havia apenas silêncio. A sala de jantar, assim como o resto da casa, estava às escuras.

Cathy virou-se de costas e seu ombro bateu em algo quente e sólido. Victor. Ele se espreguiçou, murmurando algo que ela não entendeu.

— Está acordado? — murmurou ela.

Ele se voltou para ela e, em sua sonolência, a abraçou.

Ela sabia que era apenas instinto o que o atraía para ela, a necessidade de um outro corpo quente. Ou talvez fosse a lembrança da esposa dormindo ao seu lado, sempre na mente dele, sempre esperando para ser abraçada. Ela o deixou se apegar ao sonho. Enquanto estiver semi-desperto, deixe-o crer que sou Lily, pensou. Que mal pode haver? Ele precisa da lembrança; e eu preciso do conforto.

Cathy se acomodou entre seus braços, no lugar seguro que certa vez pertencera a outra mulher. Fez aquilo sem medir as conseqüências, desejosa de ser arrebatada pela fantasia de ser, naquele momento, a única mulher no mundo que ele amava. Como era bom, como se sentia protegida e bem-tratada! O próprio cheiro de sabonete e suor de seu peito e o toque áspero do tecido de sua camisa transmitiam-lhe uma sensação de segurança. Ele respirava em seu cabelo agora, murmurando palavras que ela sabia que eram dirigidas a outra pessoa, beijando o topo de sua cabeça. Então, ele segurou seu rosto em suas mãos e beijou-lhe os lábios com tanta sofreguidão que acendeu o desejo dentro dela. Sua resposta foi instintiva, repleta com todas as carências de uma mulher há muito tempo sem amor.

Cathy correspondeu ao beijo dele com outro beijo, igualmente profundo, igualmente apaixonado.

Ela se entregou imediatamente, sugada por um grande e glorioso redemoinho. Victor acariciou-lhe o rosto, o pescoço. As mãos dele se moveram até os botões de sua blusa. Ela se curvou em direção a ele, seios subitamente desejosos de ser tocados. Fazia tanto, tanto tempo...

Ela não viu como sua blusa se abriu. Em um instante os dedos dele acariciavam o tecido e, no outro, tocavam-lhe a pele. Foi aquele contato proibido e inesperado de pele contra pele, o mágico tormento dos dedos dele acariciando-lhe os mamilos, que derrubaram suas últimas resistências. Quantas chances teriam? Quantas noites juntos? Ela queria que fossem muitas, uma eternidade, mas aquela podia ser a única oportunidade que teriam.

Ela deu-lhe as boas-vindas, com toda a paixão de uma mulher a quem foi permitido um último gosto do amor.

Consciente do que fazia, abriu os botões da camisa de Victor, desceu a mão através dos pelos de seu peito até chegar à cintura da calça. Ali fez uma pausa, sentindo sua respiração entrecortada, sabendo que ele também havia passado do ponto de recuar.

Juntos, livraram-se de botões e zíperes, ambos subitamente ansiosos para se desnudarem. Suas roupas tombaram em um monte de algodão e renda. Assim, quando a última peça de roupa foi removida, quando nada havia entre eles afora a escuridão aveludada, ela o puxou em sua direção, para dentro de si.

Foi um preenchimento de grande satisfação, como se, naquela primeira e profunda estocada, ele também tivesse atingido um espaço que há muito tempo estava vazio em sua alma.

— Por favor — gemeu ela.

Ele ficou instantaneamente imóvel.

— Cathy? — perguntou, suas mãos segurando o rosto dela com ansiedade. — O que...

— Por favor. Não pare...

O leve sorriso de Victor foi toda a segurança de que ela precisava.

— Não tenho intenção de parar — murmurou Victor. — Não mesmo...

E ele não parou. Não até levá-la ao longo de todo o caminho, até um lugar além do pensamento e da razão, mais intensa e profundamente do que qualquer homem jamais conseguira levá-la. Apenas quando veio o alívio em ondas sucessivas é que ela se deu conta de quão alto e quão longe haviam ido.

Uma doce exaustão tomou conta de ambos.

Lá fora, na penumbra matinal, um pássaro cantou. Ali dentro, o silêncio só era quebrado pelo som de sua respiração.

Cathy suspirou sobre o calor do ombro de Victor.

— Obrigada.

Ele tocou o rosto dela.

— Pelo quê?

— Por me fazer sentir... desejada outra vez.

—Oh, Cathy.

— Faz tanto tempo. Jack e eu, nós... Nós paramos de fazer amor muito antes do divórcio. Na verdade, fui eu. Não podia suportar tê-lo... — Ela engoliu em seco. — Quando você não ama mais alguém, quando essa pessoa não a ama mais, é difícil deixar-se... tocar.

Victor roçou os dedos no rosto dela.

— Ainda é difícil? Ser tocada?

— Não por você. Ser tocada por você é como... ser tocada pela primeira vez.

Pela fraca luz que atravessava a janela, ela o viu sorrir.

— Espero que sua primeira vez não tenha sido tão terrível.

Agora ela sorria.

—Não me lembro bem. Foi uma coisa desajeitada e ridícula no chão de um dormitório na faculdade.

Ele estendeu a mão e tocou o tapete.

— Vejo que melhorou muito.

— Não é mesmo? — Ela riu. — Mas o chão pode ser um lugar terrivelmente romântico.

— Meu Deus. Uma perita em tapetes. Qual a diferença entre o chão de dormitórios estudantis e o de salas de estar?

— Não sei dizer. Faz muito tempo desde a época em que eu tinha 18 anos. — Ela fez uma pausa, pairando no limiar de omitir a verdade. — Para ser sincera — admitiu —, faz muito tempo desde a última vez em que estive com alguém.

— Faz muito tempo para nós dois.

Cathy deixou a revelação pairar no ar um instante.

— Desde... Desde Lily? — perguntou afinal.

— Sim.

Uma única palavra que, entretanto, era muito reveladora.

Três anos de lealdade à mulher morta. O luto, a solidão.

Como ela pretendia preencher aquela carência! Como desejava ser sua salvadora, e que ele fosse seu salvador.

Conseguiria fazê-lo esquecer? Não, esquecer não; não poderia esperar que ele esquecesse Lily. Mas ela queria um espaço particular no coração de Victor, um espaço bem grande projetado para uma vida inteira. Um espaço que nenhuma outra mulher, morta ou viva, pudesse reivindicar.

— Ela deve ter sido uma mulher muito especial — disse Cathy.

Victor segurou um cacho de seu cabelo.

— Ela era muito inteligente, muito lúcida. E era carinhosa.

Algo que não se costuma encontrar nas pessoas.

Ela ainda é parte de você, certo? Você ainda a ama.

— É o mesmo tipo de carinho que encontro em você — disse ele.

Os dedos dele acariciavam-lhe o rosto. Ela fechou os olhos, saboreando-lhe o toque, o calor.

— Você mal me conhece — murmurou Cathy.

— Conheço sim. Naquela noite, depois do acidente, sobrevivi apenas por causa do som de sua voz. E do toque de sua mão. Eu os reconheceria em qualquer lugar.

Cathy abriu os olhos e olhou para ele.

— Verdade?

Victor beijou-lhe a testa.

— Até mesmo dormindo.

— Mas não sou Lily. Jamais poderei ser Lily.

— Verdade. Não pode. Ninguém pode.

—Não posso substituir o que perdeu.

—O que a faz pensar que pretendo substituí-la? Ela era minha mulher. E, sim, eu a amava. — Pelo modo como ele disse isso, via-se que sua resposta não pedia réplica.

Ela não replicou.

Um telefone tocou em algum lugar na casa. Depois de dois toques, parou. Então, ouviram a voz de Milo no andar de cima.

Cathy sentou-se e automaticamente recolheu suas roupas.

Ela se vestiu em silêncio, de costas para Victor. Uma nova modéstia surgia entre eles, a vergonha de um estranho.

— Cathy — disse Victor. — As pessoas seguem em frente.

— Eu sei.

— Você superou Jack.

Ela emitiu um sorriso cansado.

— Nenhuma mulher supera Jack Zuckerman. Mas, sim, já superei o pior. Contudo, sempre que uma mulher se apaixona de verdade, algo é tirado dela. Algo que nunca pode ser reposto.

— Também pode acrescentar algo.

— Isso depende da pessoa por quem você se apaixona, certo?

Ouviram-se passos na escada, que atravessaram a sala de jantar. Milo, completamente desperto, apareceu no vão da porta, seu cabelo despenteado parecia uma escova.

— Ei, vocês dois! — disse em surdina. — Levantem-se! Rápido.

Cathy levantou-se alarmada.

— O que foi?

— Era Ollie ao telefone. Ele ligou para dizer que tem um sujeito na área perguntando por você. Já esteve na vizinhança de Bach.

— O quê? — Victor levantou-se e começou a vestir a calça apressadamente.

— Ollie acredita que o sujeito virá para cá em seguida.

Acho que sabem quem são seus amigos.

— Quem era o sujeito?

— Alegou ser do FBI.

— Polowski — murmurou Victor, vestindo a camisa. — Tem de ser ele.

— Você o conhece?

— O mesmo sujeito que me incriminou. O sujeito que vem nos seguindo desde então.

— Como soube que estava aqui? — perguntou Cathy. — Ninguém pode ter nos seguido...

— Não precisava. Eles têm o meu currículo. Sabem que tenho amigos aqui. — Victor olhou para Milo. — Desculpe, cara. Espero que isso não lhe cause transtornos.

Milo riu, evidentemente tenso.

— Ei, não fiz nada de errado. Só dei abrigo a um criminoso.

— A bravata desapareceu subitamente. — Que tipo de transtorno devo esperar?

— Perguntas — disse Victor, abotoando a camisa rapidamente. — Muitas. Talvez até queiram revistar a casa. Apenas fique tranqüilo, diga-lhes que não tem notícias de mim. Acha que pode fazê-lo?

— Claro. Mas não sei se minha mãe...

— Sua mãe não é problema. Diga-lhe para falar apenas em chinês.

Victor pegou o envelope com fotografias e olhou para Cathy.

— Pronta?

— Vamos sair daqui. Por favor.

— Porta dos fundos — sugeriu Milo.

Eles o seguiram até a cozinha. O caminho estava livre. Ao abrir a porta, Milo acrescentou:

— Quase ia me esquecendo. Ollie quer vê-lo esta tarde. Tem a ver com as fotos.

— Onde?

— No lago. Atrás da casa de barcos. Você conhece o lugar.

Eles saíram em meio à fria umidade matinal. O silêncio e a neblina pairavam no ar. Será que algum dia vamos parar de fugir?, perguntou-se Cathy. Nunca vamos parar de ouvir passos?

Victor deu um tapinha no ombro do amigo.

— Obrigado, Milo. Fico lhe devendo essa.

— Um dia desses vou cobrar! — murmurou Milo quando eles se afastavam.

Victor ergueu a mão, despedindo-se.

— Vejo você por aí.

— É — murmurou Milo em meio à neblina. — Vamos esperar que não seja na cadeia.

O chinês estava mentindo. Embora sua voz não evidenciasse hesitação ou culpa, ainda assim Savitch sabia que aquele tal Sr. Milo Lum estava escondendo alguma coisa.

Seus olhos o traíam.

Estava sentado no sofá da sala de estar, diante de Savitch.

Ao seu lado estava a Sra. Lum, sentada em uma poltrona, sorrindo sem nada compreender. Savitch talvez usasse a velha. No momento, era o filho que detinha seu interesse.

— Não vejo por que estão atrás dele — disse Milo. — Victor é um sujeito honesto. Ao menos era quando eu o conheci. Mas isso faz muito tempo.

— Quanto tempo? — perguntou Savitch educadamente.

— Ah, muitos anos. Não o vejo há muito tempo, senhor. Savitch ergueu uma sobrancelha. Milo remexeu-se no sofá, ajeitou os pés e olhou a esmo pela sala.

— Você e sua mãe moram aqui sozinhos? — perguntou Savitch.

— Desde a morte de meu pai.

— Nenhum inquilino? Ninguém mais vive aqui?

— Não. Por quê?

— Houve relatos na vizinhança de um homem que se encaixa na descrição de Holland.

— Acredite, se Victor está sendo procurado pela polícia, ele não viria para cá. Acha que eu deixaria um suspeito de homicídio entrar na minha casa? Estando apenas eu e minha velha mãe por aqui? — Savitch olhou para a Sra. Lum, que simplesmente sorriu. A velha tinha olhos argutos e sábios. Olhos de uma sobrevivente.

Era hora de Savitch confirmar seu palpite.

— Perdão — disse ele, levantando-se. — Tenho uma longa viagem até a cidade. Posso usar seu banheiro?

— Bem, claro. Fica no fim daquele corredor.

Savitch entrou no banheiro e fechou a porta. Em segundos encontrou a prova que buscava. Estava caída no chão de azulejos: um longo fio de cabelo castanho. Muito sedoso, muito fino.

Na mesma tonalidade do cabelo de Catherine Weaver.

Era toda a prova de que precisava para prosseguir. Ele levou a mão ao coldre sob o paletó e tirou a semi-automática.

Então, deu um tapinha tristonho sobre a camisa impecavelmente branca. Interrogatórios eram um negócio sujo. Teria de tomar cuidado com as manchas de sangue.

Savitch saiu no corredor carregando a pistola casualmente ao lado do corpo. Primeiro se dirigiria à velha.

Apontaria o cano para a cabeça dela, ameaçaria puxar o gatilho. Havia um vínculo estranhamente forte entre aquela mãe e aquele filho. Eles protegeriam um ao outro a todo custo.

Savitch estava na metade do corredor quando a campainha tocou. Ele parou. A porta da frente se abriu e uma nova voz disse:

— Sr. Milo Lum?

— E quem diabos é você? — Foi a pergunta cansada de Milo.

— Sou Sam Polowski. FBI.

Cada músculo do corpo de Savitch se contraiu. Não lhe restava alternativa agora: teria de matá-lo. Ele ergueu a pistola. Sem emitir som, desceu o corredor em direção à sala de estar.

— Outro? — disse Milo com irritação. — Veja, um de seus homens já está aqui...

— O quê?

— É, ele está no... — Savitch surgiu na sala e apontou a pistola para a porta da frente. A Sra. Lum gritou.

Milo ficou imóvel. Polowski não. Ele rolou para o lado no exato momento em que a bala se chocou contra o batente da porta, espalhando estilhaços de madeira.

Quando Savitch deu o segundo tiro, Polowski estava se arrastando atrás do sofá e a bala chocou-se sem efeito contra o estofado. Basta de confiar na sorte. Polowski estava armado.

Savitch decidiu que era hora de desaparecer.

Ele se voltou e saiu correndo pelo corredor, em direção ao quarto dos fundos. Era o quarto da mãe. Cheirava a incenso e a perfume de mulher idosa. A janela se abriu facilmente. Savitch chutou a tela, pulou o peitoril e afundou até os tornozelos na lama do canteiro de flores.

Amaldiçoando, afastou-se dali, deixando camadas de lama pelo gramado.

Ouviu ao longe:

— Alto! FBI! — Mas continuou a correr, controlando a raiva enquanto voltava para o carro.

Milo olhou atônito para os amores-perfeitos pisoteados.

— Que diabos foi isso? — perguntou. — E algum tipo de pegadinha do FBI?

Sam Polowski não respondeu. Estava muito ocupado analisando as pegadas sobre a grama. Levavam à calçada, então desapareciam no asfalto granuloso da rua.

— Ei! — gritou Milo. — O que está acontecendo?

Polowski voltou-se.

— Eu não o vi. Como ele era?

Milo deu de ombros.

— Não sei. Um sujeito tipo Efrem Zimbalist.

— Como?

— Alto, bem-vestido, corpulento. Típico do FBI.

Houve um silêncio quando Milo olhou para a barriga protuberante de Polowski.

— Bem — corrigiu-se Milo —, talvez não seja típico...

— E quanto ao rosto?

—Deixe-me pensar. Cabelo castanho? Talvez olhos castanhos?

— Você não tem certeza.

— Sabe como é. Todos vocês, brancos, parecem iguais para mim.

Uma voz falando chinês muito rapidamente fez os dois se voltarem. A Sra. Lum os seguira até o jardim e falava e gesticulava.

— O que ela está dizendo? — perguntou Polowski.

— Ela disse que o homem tinha cerca de l,86m, cabelo liso castanho-escuro dividido no lado esquerdo, olhos castanhos, quase negros, testa alta, nariz e lábios finos, uma pequena tatuagem na parte interna do pulso.

— Ahn... e isso é tudo?

— A tatuagem exibia as letras PJX.

Polowski balançou a cabeça, impressionado.

— Ela é assim tão observadora?

— Ela não consegue conversar fluentemente em inglês. Por isso, observa muito.

— Claro. — Polowski pegou uma caneta e começou a anotar as informações em um bloco de notas.

— Então, quem era aquele cara? — sondou Milo.

— Não era do FBI.

— Como saber que você é do FBI?

— Pareço com um agente do FBI?

— Não.

— Apenas prova o que quero dizer.

— O quê?

— Se eu quisesse fingir, ao menos não tentaria parecer que sou um agente do FBI? Por outro lado, se eu fosse mesmo um agente, não faria isso.

— Ah.

— Agora. — Polowski guardou o bloco de notas no bolso. — Você vai insistir em dizer que não viu ou ouviu falar de Victor Holland?

Milo se empertigou.

— Certo.

— E não sabe como entrar em contato com ele?

— Não faço idéia.

— Isso é muito ruim. Porque eu sou a pessoa que pode salvar a vida dele. Já salvei a sua.

Milo não disse nada.

— Por que diabos acha que aquele sujeito estava aqui? Para fazer uma visita social? Não, ele buscava informações. — Polowski fez uma pausa e acrescentou, ameaçador: — E, acredite, ele as teria obtido.

Milo balançou a cabeça.

— Estou confuso.

— Eu também. É por isso que preciso de Holland. Ele tem as respostas. Mas preciso dele vivo. Isso significa que preciso encontrá-lo antes do outro sujeito. Diga-me onde ele está.

Polowski e Milo se encararam durante um longo tempo.

— Eu não sei — disse Milo. — Eu não sei o que fazer.

A Sra. Lum voltou a falar. Ela apontou para Polowski e meneou a cabeça.

— O que ela está dizendo agora? — perguntou Polowski.

— Ela disse que você tem orelhas grandes.

— Isso eu posso ver no espelho.

— O que ela quer dizer é que o tamanho delas indica sagacidade.

— Como?

— Ela disse que você é um sujeito esperto. Ela acha que eu devo ouvi-lo.

Polowski voltou-se e sorriu para a Sra. Lum.

— Sua mãe é uma grande juíza de caráter. — Ele voltou a olhar para Milo. — Não quero que nada aconteça com ela.

Ou com você. Ambos têm de ir embora da cidade.

Milo assentiu.

— Nesse ponto em particular, concordamos.

Ele se voltou para a casa.

— E quanto a Holland? — perguntou Polowski. — Vai me ajudar a encontrá-lo? — Milo pegou o braço da mãe e a guiou pelo gramado. Sem sequer olhar para trás, ele disse:

— Estou pensando a respeito.

 

— São essas duas fotos. Não consigo entendê-las — disse Ollie.

Estavam na casa de barcos do cais, diante do leito do Lagunita. O lago estava seco agora, como ficava a cada inverno, reduzido a um charco de juncos até a primavera.

Os três estavam sozinhos, compartilhando o lugar com apenas um ou outro pato ocasional. Na primavera, aquele seria um ponto idílico, a água lambendo as margens, namorados a bordo de barcos a remo, aqui e ali um poeta caminhando sob as árvores. Hoje, porém, sob nuvens negras, com uma neblina fria emanando dos juncos, era um lugar de completa desolação.

— Sei que não são dados biológicos — disse Ollie. — Continuo a achar que são algum tipo de diagrama elétrico. Portanto, esta manhã, logo depois que saí da casa de Milo, levei-as para Bach, em San José. Peguei-o durante o café da manhã.

— Bach? — exclamou Cathy.

— Outro membro dos Desafinados. Grande fagotista. Abriu uma empresa de produtos eletrônicos há alguns anos e agora trabalha com gente graúda. De qualquer modo, a primeira coisa que ele me disse quando entrei foi: "Ei, o FBI já o procurou?" Eu disse: "O quê?", e ele: "Acabaram de ligar. Por algum motivo, estão atrás do Gershwin. Provavelmente irão procurá-lo a seguir." Foi quando percebi que tinha de tirá-los da casa de Milo imediatamente.

— E o que ele disse sobre as fotos?

— Ah, sim. — Ollie pegou as fotos na pasta. — Muito bem. Essa aqui é um diagrama de um circuito elétrico. Um sistema de alarme eletrônico. Muito sofisticado, muito seguro. Foi projetado para ser interrompido através de um código em um teclado, localizado nesse ponto aqui. Provavelmente em um portal. Viu algo parecido na Viratek?

Victor assentiu.

— Prédio C-2. Onde Jerry trabalhava. O teclado fica no corredor, junto à porta do Departamento de Projetos Especiais.

— Já entrou lá?

— Não. Apenas aqueles com acesso ilimitado, como era o caso de Jerry, podem entrar nesse lugar.

— Então teremos de visualizar o que vem a seguir. De acordo com o diagrama, há outro ponto de segurança aqui, provavelmente outro teclado. Após a primeira porta, instalaram uma câmera.

— Como uma câmera de banco — perguntou Cathy.

— Similar. Só que acho que essa é monitorada 24 horas por dia.

— Coisa de alto nível, hein? — disse Victor. — Duas portas de segurança, mais a vigilância de um guarda. Isso para não mencionar o guarda do portão do lado de fora.

— Não se esqueça dos sensores a laser.

— Como?

— Essa sala interna aqui. — Ollie apontou para o centro do diagrama. — Feixes de laser, direcionados em vários ângulos. Detectam movimento de qualquer coisa maior que um rato.

— Como os lasers são desligados?

— Têm de ser desligados pelo guarda da segurança. Os controles estão nesse painel.

— Você consegue ver tudo isso a partir desse diagrama? — perguntou Cathy. — Estou impressionada.

— Sem problema. — Ollie sorriu. — A empresa de Bach projeta sistemas de segurança.

Victor balançou a cabeça.

— Isso parece impossível. Não podemos atravessar todos esses dispositivos.

Cathy franziu as sobrancelhas para ele.

— Espere um minuto. Do que está falando? Você não está pensando em entrar naquele prédio, certo?

— Discutimos isso na noite passada — disse Victor. — Pode ser o único meio...

— Você está louco? A Viratek quer nos matar e você quer invadi-la?

— É a prova de que precisamos — disse Ollie. — Se você for à imprensa ou ao Departamento de Justiça, eles exigirão provas. Pode apostar que a Viratek negará tudo. Mesmo que alguém inicie uma investigação, tudo o que a Viratek tem a fazer é se livrar do vírus e bum! Sua prova já era. Ninguém poderá provar nada.

— Você tem as fotos...

— Claro. Algumas páginas de dados sobre animais. O vírus não é identificado. E todas essas provas podem ter sido fabricadas por algum ex-empregado descontente.

— Então o que é prova? Precisam de outro cadáver? O de Victor, por exemplo?

— O que precisamos é do vírus, um vírus que supostamente está extinto. Um único frasco e formalizamos um caso contra eles.

— Um único frasco. Certo. — Cathy balançou a cabeça. — Não sei por que estou preocupada. Ninguém pode passar por aquelas portas. Não sem os códigos dos teclados.

— Ah, mas isso nós temos! — Ollie foi até a segunda foto. — Os números misteriosos. Veja, finalmente fazem sentido. Dois grupos de sete dígitos. Não são telefones! Jerry estava apontando o caminho para vencer a segurança máxima da Viratek.

— E quanto aos lasers? — destacou Cathy, cada vez mais agitada. Eles não podiam estar falando sério! Certamente podiam ver a futilidade daquela missão. Ela não se importava em demonstrar medo. Precisava ser a voz da razão. — E há os guardas — prosseguiu. — Dois. Tem como passar por eles? Ou Jerry também deixou uma fórmula de invisibilidade?

Ollie olhou para o amigo com uma expressão embaraçada e disse:

— Bem, talvez eu devesse deixar vocês dois discutirem o assunto, antes de fazermos qualquer plano.

— Eu pensei que fazia parte disso — disse Cathy. — Que participaria de cada decisão. Mas vejo que pensei errado.

Ollie e Victor não se manifestaram. Seu silêncio apenas aumentou a raiva de Cathy, que pensou: Então vocês estão me deixando de fora. Vocês não respeitam minha opinião o suficiente para me perguntarem o que penso, o que desejo.

Sem dizer palavra, ela deu as costas para eles e se afastou.

Algum tempo depois, Victor a procurou. Cathy estava no passeio de terra batida, abraçando os próprios ombros por causa do frio. Ela ouviu-o se aproximar, sentiu sua incerteza, sua luta para encontrar as palavras certas. Durante algum tempo Victor apenas ficou ao seu lado, sem nada dizer.

— Acho que devemos fugir. — Cathy olhou para o leito seco do lago e estremeceu. O vento que açoitava os juncos estava gelado e atravessava-lhe o suéter. — Eu quero fugir. Quero ir para um lugar quente. Algum lugar onde brilhe o sol, onde eu possa me deitar na praia sem me preocupar se alguém está me espreitando em meio à vegetação... — Subitamente lembrando-se das terríveis possibilidades, ela se voltou e olhou para os carvalhos que se erguiam atrás deles. Viu apenas folhas mortas levadas pelo vento.

— Concordo com você — murmurou Victor.

— É mesmo? — Ela olhou para ele, aliviada. — Vamos, Victor! Vamos embora agora. Esqueça essa idéia louca. Podemos pegar o próximo ônibus para o sul...

— Ainda esta tarde, você estará a caminho.

— Eu estarei a caminho? — Cathy o encarou, sem querer acreditar no que ouvia. Então, compreendeu o significado de suas palavras.

— Você não vem.

Ele balançou a cabeça lentamente.

— Não posso.

— Não quer.

— Cathy, você não entende? — Ele a tomou pelos ombros, como se tentando incutir-lhe algum juízo. — Estamos encurralados. A não ser que façamos algo, que eu faça algo, estaremos sempre fugindo.

— Então vamos fugir! — Ela o agarrou pelo casaco. Queria gritar com ele, arrancar aquela máscara fria e racional e expor as emoções cruas que escondia. Tinham de estar ali, no fundo daquele seu cérebro lógico.

— Podemos ir para o México — disse ela. — Conheço um lugar no litoral, na Baja. Um hotelzinho perto da praia. Podemos ficar lá alguns meses, esperar até as coisas ficarem seguras...

— Nunca ficarão seguras.

— Sim, ficarão! Eles vão se esquecer de nós.

— Você não está pensando claramente.

— Estou. Estou pensando que quero continuar viva.

— Exatamente por esse motivo, preciso fazê-lo. — Victor segurou o rosto de Cathy entre as mãos de modo que ela não pudesse olhar para nenhum outro lugar a não ser para ele. Não era mais o amante, o amigo. Sua voz estava fria, autoritária, e ela odiou o modo como ele disse:

— Estou tentando mantê-la viva. Com um futuro pela frente. E o único modo de eu fazer isso é revelar tudo o que sei, para que o mundo também fique sabendo. Devo isso a você. E ao Jerry.

Cathy quis contestá-lo, implorar para que ele a acompanhasse, mas sabia que seria inútil. O que ele dissera era verdade. Fugir seria apenas uma solução temporária, algo que lhes daria alguns meses de segurança. Mas seria uma segurança passageira.

— Desculpe, Cathy — murmurou Victor. — Não consigo pensar em nenhuma outra solução...

— ... exceto se livrar de mim — atalhou ela.

Ele a soltou. Cathy deu um passo atrás e o espaço que se abriu entre eles doeu-lhe fisicamente. Não conseguia olhar para Victor, pois sabia que a dor que sentia naquele momento não se refletiria nos olhos dele.

— Então, como vai ser? — perguntou ela com frieza. — Parto hoje à noite? Irei de avião, trem ou automóvel?

— Ollie a levará até o aeroporto. Pedi que comprasse uma passagem em nome dele. Você viajará como Sra. Wozniak. Ele terá de levá-la. Achamos que seria mais seguro, caso eu não a acompanhasse até o aeroporto.

— Claro.

— Você irá para o México. Ollie lhe dará dinheiro bastante para se manter durante algum tempo. O suficiente para ir aonde quiser. Baja. Acapulco. Ou apenas ficar com Jack, se achar melhor.

— Jack.

Ela se voltou para esconder as lágrimas.

— Certo.

— Cathy.

Ela sentiu a mão de Victor sobre o ombro, como se quisesse voltá-la em sua direção, abraçá-la pela última vez. Mas Cathy se recusou a se mover.

Passos se aproximaram. Ambos olharam e viram Ollie a alguns metros dali.

— Pronta? — perguntou.

Houve um longo silêncio. Então Victor assentiu:

— Ela está pronta.

— Bem... Vejam — murmurou Ollie, subitamente se dando conta de que chegara em má hora. — Meu carro está ali junto à casa de barcos. Se quiserem, eu posso... posso esperá-los lá...

Cathy afastou as lágrimas com raiva.

— Não — disse ela, subitamente determinada. — Estou indo.

Victor a observou, visão obliterada por uma neblina fria e impenetrável.

— Adeus, Victor.

Ele não respondeu. Apenas continuou a olhá-la através daquela terrível neblina.

— Se eu... Se eu não voltar a vê-lo... — Ela parou, lutando para ser tão corajosa, tão invulnerável quanto ele. — Cuide-se. — Então ela se voltou e seguiu Ollie.

Através da janela do carro, Cathy olhou para Victor, ainda em pé no passeio ao redor do lago, mãos enfiadas nos bolsos, costas curvadas contra o vento. Ele não acenou adeus. Apenas observou-os se afastarem.

Aquela era uma imagem que ela carregaria para sempre, a última visão do homem que amara. Do homem que a mandara embora.

Quando o carro de Ollie ganhou a estrada, ela ficou sentada, tensa e silenciosa, punhos fechados sobre o colo, a dor em sua garganta tão terrível que mal conseguia respirar. Agora, Victor ficara para trás. Ela não podia mais vê-lo, embora soubesse que ele ainda estava ali, tão imóvel quanto os carvalhos que o cercavam. Eu o amo, pensou. E nunca mais voltarei a vê-lo.

Cathy se voltou para olhar outra vez. Victor era agora um vulto distante, quase perdido em meio às árvores. Em um gesto de adeus, ela ergueu a mão e tocou a janela do carro.

O vidro estava frio.

— Tenho de parar no laboratório — disse Ollie, entrando no estacionamento do hospital. — Acabo de me lembrar que deixei o talão de cheques na escrivaninha. Não posso comprar sua passagem sem ele.

Cathy assentiu, apática. Ainda estava em estado de choque, ainda tentando aceitar o fato de que agora estava por conta própria. Que Victor a mandara embora.

Ollie estacionou em uma vaga reservada onde lia-se "Wozniak".

— Só vai demorar um segundo.

— Devo entrar com você?

— É melhor esperar no carro. Trabalho com um pessoal barulhento. Se me virem com uma mulher, vão querer saber de tudo. Não que haja algo a saber. — Ele saltou do carro e fechou a porta. — Volto já.

Cathy observou-o se afastar e desaparecer por uma entrada lateral do prédio. Teve de rir ao pensar em Ollie Wozniak acompanhando uma mulher — qualquer mulher.

A não ser que fosse uma mulher com doutorado que agüentasse seus monólogos científicos.

Um minuto se passou.

Lá fora, um pássaro cantou. Cathy olhou para as árvores ao longo do acesso de veículos do hospital e viu o gaio empoleirado em um ramo de árvore. Nada mais se movia, nem mesmo as folhas.

Ela se recostou no assento e fechou os olhos.

Pouco sono e muita correria tinham seu preço. A exaustão tomou conta de seu corpo, tão intensa que ela achou que jamais poderia voltar a mover os membros. Uma praia, pensou. Areia quente. Ondas lambendo meus pés...

O galo parou de cantar em meio a um trinado.

Vagamente, Cathy deu-se conta do súbito silêncio. Então, embora semi-adormecida, sentiu a sombra na janela, como uma nuvem que passasse diante do sol.

Ela abriu os olhos. Um rosto a olhava através do vidro.

O pânico a fez tentar travar a porta. Antes que conseguisse fazê-lo, a porta se abriu. Um distintivo lhe foi apresentado.

— FBI! — gritou o sujeito. — Saia do carro, por favor.

Lentamente, Cathy saiu e recostou-se contra o carro com as pernas bambas. Ollie, pensou ela, olhar voltado para a entrada do hospital. Onde está você? Se ele aparecesse, ela teria de estar pronta para correr, atravessar o estacionamento e sumir em meio ao bosque. Cathy duvidava que o sujeito com distintivo conseguisse alcançá-la.

Suas pernas atarracadas e sua cintura larga não condiziam com as de um atleta.

Mas ele deve ter uma arma. Se eu correr, ele vai atirar nas minhas costas?

— Nem pense nisso, Sra. Weaver — disse ele.

O sujeito tomou-lhe o braço e deu-lhe um empurrão em direção à entrada do hospital.

— Vamos. Entre.

— Mas...

— O Dr. Wozniak está nos esperando no laboratório.

Esperando não descrevia exatamente a situação de Ollie.

Amarrado e imobilizado seria uma melhor descrição.

Cathy encontrou Ollie algemado ao pé da escrivaninha de seu escritório, enquanto três de seus colegas de laboratório observavam, atônitos.

— De volta ao trabalho, pessoal — disse o agente enquanto guiava os curiosos para fora da sala. — Apenas um assunto de rotina. — Ele fechou a porta e a trancou.

Então, voltou-se para Cathy e Ollie.

— Preciso encontrar Victor Holland — disse ele. — E preciso encontrá-lo logo.

— Cara — murmurou Ollie. — Esse sujeito parece um disco arranhado.

— Quem é você? — perguntou Cathy.

— Meu nome é Sam Polowski. Trabalho no escritório de São Francisco. — Ele tirou o distintivo e pousou sobre a mesa. — Dê uma olhada mais de perto, se quiser. É legítimo.

— Ahn, perdão? — disse Ollie.— Será que eu poderia ficar em uma posição mais confortável?

Polowski ignorou-o. Sua atenção estava voltada para Cathy.

— Não creio que seja preciso lhe dizer, Sra. Weaver, que Holland está em apuros.

— E você é um de seus maiores problemas — respondeu Cathy.

— É aí que se engana. — Polowski aproximou-se, o olhar imperturbável, a voz absolutamente firme. — Sou uma de suas esperanças. Talvez sua única esperança.

— Você está tentando matá-lo.

— Eu não. Outra pessoa, alguém que vai conseguir. A não ser que eu possa detê-lo.

Ela balançou a cabeça.

— Não sou idiota! Sei tudo sobre você. O que você está tentando...

— Eu não. O outro cara. — Ele pegou o telefone sobre a escrivaninha. — Aqui — disse ele, estendendo-lhe o aparelho.

— Ligue para Milo Lum. Pergunte o que aconteceu na casa dele pela manhã. Talvez ele possa convencê-la de que estou do seu lado.

Cathy olhou para o sujeito, perguntando-se que tipo de jogo era aquele. Perguntando-se por que ela estava caindo naquela conversa. Porque quero muito acreditar nele.

— Holland está sozinho — disse Polowski. — Um homem lutando contra o governo dos Estados Unidos. Ele é novo nesse jogo. Logo vai cometer um erro, fazer algo estúpido. E será o fim. — Ele discou um número e estendeu o telefone para ela. — Vá em frente. Fale com Lum.

Ela ouviu o telefone tocar três vezes.

— Alô? Alô? — atendeu Milo.

Lentamente ela pegou o aparelho.

— Milo?

— É você? Cathy? Meu Deus, esperava que ligasse...

— Ouça, Milo. Preciso lhe fazer uma pergunta. É sobre um homem chamado Polowski.

— Eu o conheci.

— É mesmo? — Ela ergueu a cabeça e viu Polowski assentindo.

— Sorte a minha — disse Milo. — O cara tem o charme de um sapato velho, mas salvou minha vida. Não sei do que Gersh estava falando. Gersh está por aí? Preciso...

— Obrigada, Milo — murmurou ela. — Muito obrigada.

Ela desligou.

Polowski ainda olhava para ela.

— Muito bem — disse Cathy. — Quero ouvir sua história. Desde o começo.

— Vai me ajudar?

— Ainda não decidi. — Ela cruzou os braços. — Convença-me.

 Polowski assentiu.

— É exatamente o que pretendo fazer.

 

PARA VICTOR A TARDE FORA LONGA E MISERÁVEL. Após deixar o lago, ele vagou pelo campus durante algum tempo e acabou chegando ao quadrante central. Ali, no pátio, entre os prédios de arenito e telhas vermelhas, lutou para se concentrar no assunto em pauta: denunciar a Viratek.

Mas seus pensamentos insistiam em voltar para Cathy, para aquele olhar que ela lhe lançara, repleto de mágoa e abandono.

Como se ele a tivesse traído.

Se Cathy ao menos conseguisse entender o bom-senso de seus atos... Ele era um cientista, um homem cuja vida e trabalho eram orientados pela lógica. Mandá-la embora era o mais lógico a ser feito. As autoridades estavam se aproximando, o gargalo se estreitava. Victor podia aceitar o perigo ao qual se expunha. Afinal, ele escolhera levar a batalha de Jerry até o fim.

O que ele não escolhera fora colocar a vida de Cathy em perigo. Agora, ela está fora dessa confusão, a caminho de um lugar seguro. Uma coisa a menos com o que me preocupar. É hora de tirá-la da mente.

Como se fosse possível.

Ele olhou para um dos arcos romanescos do pátio e mais uma vez se lembrou do acerto de suas atitudes. Ainda assim, persistia a inquietação. Onde ela estava? Estaria a salvo? Cathy se fora havia apenas uma hora e ele já estava com saudades.

Victor deu de ombros como se, com aquele gesto, pudesse afastar seus medos — que entretanto permaneceram, constantes e corrosivos. Ele encontrou um lugar sob os beirais e sentou-se nos degraus de uma escada para esperar por Ollie.

Ao escurecer, ainda esperava. Enquanto as últimas luzes do dia se esvaíam, caminhou a esmo pelo pátio. Nesse tempo, contou e recontou o número de horas necessárias para Ollie ir até o aeroporto de San José e voltar. Acrescentou o tempo do engarrafamento, dos sinais vermelhos, dos atrasos nos pedágios. Certamente três horas seriam suficientes. Cathy estaria em um avião àquela altura, a caminho de climas mais quentes.

Onde estaria Ollie?

Ao ouvir os primeiros passos, ele se voltou e, por um momento, não conseguiu acreditar no que via, não conseguiu entender como ela podia estar ali, sua silhueta destacada sob o arco de arenito.

— Cathy? — exclamou, surpreso.

Ela entrou no pátio.

— Victor.

Ela caminhou em sua direção, lentamente a princípio, mas logo corria, feliz, ao encontro de seus braços. Ele a ergueu, rodou-a, beijou-lhe o cabelo, o rosto. Victor não compreendia por que ela estava ali, mas estava feliz por isso.

— Não sei se fiz certo — murmurou. — Peço a Deus que sim.

— Por que voltou?

— Eu não estava certa... ainda não estou...

— Cathy, o que faz aqui?

— Você não pode fazer isso sozinho! E ele pode ajudá-lo...

— Quem?

Em meio à penumbra ouviu-se uma voz mal-humorada:

— Eu posso.

Imediatamente, Victor se contraiu. Seu olhar voltou-se para o arco atrás de Cathy. Um homem emergiu e caminhou lentamente em direção a ele. Não era alto. Tinha aquele tipo de corpo que, em um anúncio de perda de peso, seria rotulado como "Antes". Ele se aproximou de Victor e parou sobre o chão de pedras do pátio.

— Olá, Holland — disse ele. — Fico feliz que finalmente tenhamos nos encontrado. Meu nome é Sam Polowski.

Victor voltou-se e olhou para Cathy, incrédulo.

— Por quê? — perguntou, contendo a raiva. — Apenas me diga. Por quê?

Cathy sentiu como se ele a tivesse agredido fisicamente. Ela tentou segurar-lhe o braço, mas Victor se esquivou.

— Ele quer ajudar — disse ela, a voz tomada pela dor. — Ouça o que ele tem a dizer!

— Não creio que ouvir seja importante. Não agora.

Victor sentiu o corpo esmorecer, derrotado. Não compreendia aquilo, jamais compreenderia. Estava tudo acabado: a fuga, o debater-se entre o medo e a esperança.

Tudo porque Cathy o traíra. Ele se voltou para Polowski.

— Imagino que eu esteja preso — disse ele.

— Acho difícil — disse Polowski, meneando a cabeça para o arco. — Uma vez que ele está com minha arma.

— O quê?

— Ei, Gersh! Aqui! — gritou Ollie. — Olhe, ele está na minha mira!

Polowski fez uma careta.

— Cara, pare de balançar essa droga!

— Desculpe — disse Ollie.

— Agora está convencido, Holland? — perguntou Polowski.

— Acha que eu entregaria minha arma para um idiota como aquele se não quisesse conversar com você?

— Ele está dizendo a verdade — insistiu Cathy. — Ele entregou a arma para Ollie. Dispôs-se a correr o risco, apenas para encontrá-lo pessoalmente

— Péssima idéia, Polowski — disse Victor com amargura.

— Sou procurado por homicídio, lembra-se? Espionagem industrial? Como sabe que não vou acabar com você?

— Porque sei que você é inocente.

— Isso faz diferença?

— Para mim, sim.

— Por quê?

— Você se meteu em algo grande, Holland. Algo que o comerá vivo. Algo que tem feito o meu supervisor rebolar para me manter fora do caso. Não gosto de ser retirado de casos. Fere o meu ego delicado.

Os dois se mediram com os olhos através da penumbra.

Finalmente, Victor assentiu. Ele olhou para Cathy, um pedido de desculpas silencioso por não ter acreditado nela. Quando finalmente ela veio para seus braços, ele sentiu como se o mundo tivesse voltado a entrar nos eixos.

Victor ouviu um pigarro deliberado. Voltando-se, viu Polowski estender-lhe a mão. Victor aceitou o cumprimento que bem poderia ser a sua desgraça. Ou a sua salvação.

— Você me obrigou a uma longa e difícil caçada — disse Polowski. — Acho que é hora de começarmos a trabalhar juntos.

— Basicamente, o que temos aqui é uma missão impossível de rotina — disse Ollie.

 

Estavam todos reunidos no quarto de hotel de Polowski, um grupo de cinco pessoas que Milo batizara de "Os Desafinados Mais Velhos e Mais Malucos", ou DVMs, para abreviar. Na mesa no centro do quarto havia batatas chips, cerveja e fotografias detalhando o sistema de segurança da Viratek. Havia também um mapa do complexo da empresa, quarenta acres de prédios e bosques, tudo circundado por uma cerca elétrica.

Estudavam as fotos havia já uma hora, e o trabalho a que se propunham parecia sem esperança de sucesso.

— Não há um modo fácil de entrar — disse Ollie, balançando a cabeça. — Mesmo que esses códigos ainda sejam válidos, terá de passar por um elemento de reconhecimento humano. Dois guardas, duas posições. Não o deixarão passar.

— Tem de haver um meio — disse Polowski. — Vamos, Holland. Você é o crânio. Use essa sua mente criativa.

Cathy olhou para Victor. Enquanto os outros trocavam idéias, ele falara muito pouco. E ele é quem mais tem a perder: a vida, pensou ela. Era preciso muita coragem — ou imprudência — até mesmo para considerar uma atitude tão desesperada. Entretanto, lá estava ele, calmamente analisando o mapa como se estivesse planejando algo tão inofensivo quanto um passeio dominical.

Victor deve ter sentido seu olhar, porque a abraçou e a puxou para mais perto. Agora que estavam juntos novamente, ela saboreava cada momento que compartilhavam, guardava na memória cada olhar, cada carícia. Logo ele podia ser arrancado de seus braços.

Agora mesmo estava fazendo planos para entrar em algo que parecia ser uma armadilha mortal.

Victor beijou o topo da cabeça de Cathy. Então, relutante, voltou a atenção para o mapa.

— Não estou preocupado com a eletrônica e, sim, com o elemento humano — disse ele. — Os guardas.

Milo inclinou a cabeça para Polowski.

— Ainda digo que nosso J. Edgar aqui podia conseguir um mandado e vasculhar o lugar.

— Certo — debochou Polowski. — Quando a ordem chegar ao juiz, a Dafoe e ao primo de sua tia Minnie, a Viratek terá transformado o laboratório em uma fábrica de leite infantil. Não. Precisamos entrar por conta própria. Sem ninguém saber. — Ele olhou para Ollie. — Está certo de que essa é a única prova de que precisamos?

Ollie assentiu.

— Um frasco será o bastante. Então, o levamos até um laboratório confiável para que confirmem que é varíola e você terá um caso fechado.

— Eles não têm como se safar?

— Não. O vírus está oficialmente extinto. Qualquer empresa flagrada manipulando uma amostra viva estará inevitavelmente ferrada.

— Gosto disso — disse Polowski. — Esse negócio de inevitavelmente. Nenhum advogado almofadinha da Viratek poderá safá-los.

— Mas primeiro você precisa se apoderar de um frasco — disse Ollie. — E, pelo que vejo, parece impossível. A não ser que tentemos assalto à mão armada.

Por um momento assustador, Polowski pareceu considerar aquilo seriamente.

— Não — concluiu. — Não pegaria bem no tribunal.

— Afora isso — disse Ollie —, eu me recuso a atirar em um ser humano. É contra os meus princípios.

— Contra os meus também — disse Milo.

— Mas roubo é aceitável — disse Ollie.

Polowski olhou para Victor.

— Um grupo com altos padrões morais.

Victor sorriu.

— Remanescentes dos anos 60.

— Parece que voltamos à primeira opção — disse Cathy. — Teremos de roubar o vírus.

Ela se concentrou no mapa do complexo, notando a cerca eletrificada que o circundava. A estrada principal levava diretamente para o portão da frente. Exceto por uma estrada de serviço não pavimentada, rotulada como sem manutenção, não havia nenhuma outra abordagem aparente.

— Muito bem — disse ela. — Suponhamos que vocês passem pelo portão da frente. Ainda terão de passar por duas portas trancadas, dois guardas em lugares distintos e uma grade de laser. Ora, vamos!

— As portas não são problema e, sim, os guardas — disse Victor.

— Talvez uma distração? — sugeriu Milo. — E se começássemos um incêndio?

— E acionar os bombeiros locais? — disse Victor. — Não é uma boa idéia. Além disso, já conversei com esse guarda noturno que fica no portão da frente. Eu o conheço. E ele reza pela cartilha. Nunca deixa a cabine. Ao menor sinal de algo suspeito, ele aperta o botão do alarme.

— Talvez Milo pudesse falsificar um passe de segurança — disse Ollie. — Você sabe, como ele costumava fazer com aquelas carteiras de motorista.

— Ele falsificava carteiras de motorista? — perguntou Polowski.

— Ei, eu só mudei a idade para 21! — protestou Milo.

— Também fazia ótimos passaportes — disse Ollie. — Tenho um do reino de Booga Booga com o qual passei facilmente pelas autoridades aduaneiras em Atenas.

— É mesmo? — Polowski pareceu impressionado. — O que acha, Holland? Funcionaria?

— Sem chance. O guarda tem uma lista mestra dos funcionários de segurança máxima. Se ele não conhecer o rosto, vai verificar.

— Mas ele deixa algumas pessoas passarem automaticamente?

— Claro. Os chefões. Aqueles que ele reconhece... — Victor subitamente fez uma pausa e olhou para Cathy — ... de vista. Meu Deus, pode dar certo.

Cathy olhou para o rosto dele e imediatamente leu sua mente.

— Não — disse ela. — Não é fácil! Preciso ver o sujeito! Preciso de moldes do rosto dele. Fotos detalhadas de todos os ângulos...

— Mas você pode fazê-lo. Você faz isso todo o tempo.

— Em filmes funciona! Mas isso será cara a cara!

— Será de noite, através do vidro de um carro. Ou através de uma câmera de vídeo. Se você conseguir me fazer passar por um dos executivos...

— Do que estão falando? — perguntou Polowski.

— Cathy trabalha com maquiagem. Você sabe, filmes de terror, efeitos especiais.

— Mas isso é diferente! — disse Cathy. A vida de Victor estava em jogo. Não, ele não podia pedir que ela fizesse aquilo. Se algo desse errado, ela seria responsabilizada.

Ter a morte dele na consciência seria intolerável.

Ela balançou a cabeça, rezando para que ele percebesse a mortal sinceridade de seu olhar.

— Há muito em jogo — insistiu. — Não é tão simples como... como filmar Slimelords!

— Você fez Slimelords? — perguntou Milo. — Filme incrível!

— Além disso — disse Cathy —, não é fácil copiar um rosto. Terei de fazer um molde para obter os traços corretos. Para isso, preciso de um modelo.

— Refere-se ao próprio sujeito? — perguntou Polowski.

— Isso. O próprio sujeito. E eu duvido que vocês consigam convencer um executivo da Viratek a se sentar e me deixar cobrir o rosto dele com gesso.

Houve um longo silêncio.

— Isso apresenta um problema — disse Milo.

— Não necessariamente.

Todos se voltaram e olharam para Ollie.

— O que tem em mente? — perguntou Victor.

— Estou pensando em um cara que trabalha comigo de vez em quando no laboratório... — Ollie ergueu a cabeça com evidente sorriso de satisfação. — Ele é veterinário.

 

Os acontecimentos das últimas semanas pesaram sobre Archibald Black. Tanto que ele estava achando difícil realizar as tarefas do dia a dia. O simples fato de ir até o escritório na Viratek era um tormento. Já se sentar à escrivaninha, olhar para a secretária e fingir que nada, absolutamente nada estava errado, era algo que ele mal era capaz de fazer. Ele era um cientista, não um ator.

Nem um criminoso.

Mas era assim que o rotulariam, caso as experiências na Ala C viessem a público. Seu instinto lhe dizia para fechar o laboratório e destruir o conteúdo daquelas incubadoras.

Mas Matthew Tyrone insistiu que o trabalho continuasse.

Estavam tão perto de terminar. Afinal, o Departamento de Defesa endossara o projeto e esperava o resultado. O assunto Victor Holland era apenas um problema menor que logo seria resolvido. O que tinham a fazer era seguir em frente.

Fácil para Tyrone dizer isso, pensou Black. Tyrone não tem uma consciência para incomodá-lo.

Tais pensamentos o atormentaram o dia inteiro. Agora, ao guardar seus objetos na pasta, Black sentiu uma ânsia desesperada de fugir para sempre daquele escritório de teca e couro, encontrar refúgio em algum trabalho seguro e anônimo. E foi com um suspiro de alívio que ele saiu pela porta.

Estava escuro quando entrou em seu acesso de veículos coberto de brita. A casa, um chalé de cedro e vidro encravado em meio às árvores, parecia fria e precisando dos cuidados de uma mulher. Talvez devesse chamar a vizinha, Muriel. Ela parecia gostar de um inesperado jantar a dois. Seu espírito vivaz tipo salada de gelatina verde quase compensava o fato de ela ter 75 anos. Que vergonha sua geração não ter produzido várias Muriels.

Ele saiu do carro e começou a caminhar para a porta da frente. A meio caminho, ouviu um suave sibilar e, quase simultaneamente, sentiu uma dor aguda. Instintivamente, levou a mão ao pescoço e encontrou algo. Surpreso, olhou para um dardo, tentando compreender de onde viera e como aquilo se cravara ali. Mas descobriu que não conseguia pensar com clareza. Então, percebeu que estava tendo problemas de visão, que a noite subitamente escurecera em um denso negror, que suas pernas estavam sendo sugadas por algum tipo de areia movediça. A pasta escorregou de sua mão e caiu no chão.

Estou morrendo, pensou. Será que alguém vai me encontrar aqui?, foi seu último pensamento consciente antes de tombar sobre o passeio coberto de folhas.

— Está morto?

Ollie curvou-se e ouviu a respiração de Archibald Black.

— Definitivamente, está vivo. Embora gelado. — Ele olhou para Polowski e Victor. — Muito bem, vamos com isso. Ele ficará desacordado por mais ou menos uma hora.

Victor segurou as pernas, Ollie e Polowski, os braços, e carregaram o sujeito desacordado alguns metros através da floresta, em direção à clareira onde a van estava estacionada.

— Você... Você tem certeza de que temos uma hora? — ofegou Polowski.

— Mais ou menos — respondeu Ollie, também ofegante. — O tranqüilizante foi criado para animais grandes, portanto a dose usada foi apenas uma estimativa. E esse cara é mais pesado do que eu esperava. Ei, Polowski, ele está escorregando. Puxe do seu lado, está bem?

— Estou puxando! Acho que o braço direito dele é mais pesado do que o esquerdo.

A porta lateral da van já estava aberta. Eles levaram Black para dentro e a fecharam. Uma luz clara subitamente se acendeu, mas o sujeito nem mesmo piscou.

Cathy ajoelhou-se e examinou-lhe o rosto.

— Pode fazer? — perguntou Victor.

— Ah, eu posso — disse ela. — A pergunta é: você conseguirá se passar por ele? — Cathy olhou para o sujeito e depois olhou para Victor. — Parece ter o mesmo peso e altura. Teremos de escurecer seu cabelo, aumentar as suas entradas. Acho que passa. — Ela se voltou e olhou para Milo, que já estava com a câmera a postos. — Tire as fotos. Algumas tomadas de cada ângulo. Preciso de muitos detalhes do cabelo.

Enquanto o flash de Milo espocava seguidas vezes, Cathy vestiu luvas e um avental. Ela apontou para um lençol.

— Cubra-o para mim — pediu. — Tudo, menos o rosto dele. Não quero que acorde com gesso nas roupas.

— Supondo que ele de fato venha a acordar — disse Milo, olhando para o corpo inerte de Black.

— Ah, ele vai acordar — disse Ollie. — Bem onde o encontramos. E se fizermos o serviço direito, o Sr. Archibald Black nunca saberá o que o atingiu.

 

A chuva o despertou. As gotas geladas caíam sobre seu rosto e entravam em sua boca entreaberta. Gemendo, Black virou-se e sentiu a brita ferir seu ombro. Mesmo ainda grogue, ocorreu-lhe que aquilo não fazia sentido.

Lentamente ele se deu conta de que nada estava certo: a chuva caindo do teto, a brita na cama, o fato de ainda estar com os sapatos calçados... Afinal, conseguiu despertar completamente. Para sua surpresa, viu-se sentado em seu acesso de veículos, e que sua pasta estava caída ao seu lado. Àquela altura, a chuva tornara-se um aguaceiro e ele foi obrigado a sair dali. Meio se arrastando, meio andando, Black conseguiu chegar aos degraus da varanda e entrar em casa.

Uma hora depois, encolhido em sua cozinha, uma xícara de café em mãos, tentou entender o que acontecera.

Lembrou-se de ter estacionado o carro. Ele pegou a pasta e estava a meio caminho de casa. Então... o quê?

Deu-se conta de uma dor remota e esfregou o pescoço.

Foi quando se lembrou de que algo estranho acontecera pouco antes de ele desmaiar. Algo associado àquela dor no pescoço.

Black foi até o espelho e olhou. Ali estava, um pequeno furo na pele. Um pensamento absurdo ocorreu-lhe: Vampiros. Claro. Droga, Archibald. Você é um cientista. Encontre uma explicação racional.

Ele foi até o cesto de roupas sujas e pegou a camisa molhada. E se assustou ao ver uma gota de sangue no colarinho.

Então viu o que a provocara: um simples alfinete. Ainda estava encravado lá, sem dúvida esquecido pela tinturaria. Essa era sua explicação racional. Ele fora picado por um alfinete e a dor o fizera desmaiar.

Contrariado, largou a camisa de volta no cesto. No dia seguinte, pela manhã, se queixaria à tinturaria Tidy Girl e exigiria que lavassem seu terno de graça. Vampiros, com certeza.

 

— Mesmo com pouca iluminação, vai ter sorte se conseguir passar — disse Cathy. Ela deu um passo atrás e lançou para Victor um olhar longo e crítico. Lentamente, ela deu a volta ao redor dele, observando o cabelo recém-escurecido, o rosto reesculpido, a nova cor dos olhos. Era o melhor que podia fazer, mas não era bom o bastante. Nunca seria bom o bastante, não com a vida de Victor em jogo.

— Acho que está a cara do sujeito — disse Polowski. — Qual o problema agora?

— O problema é que subitamente percebi que é uma idéia maluca. Acho que devemos desistir.

— Você trabalhou nele a tarde inteira. Fez até as sardas no nariz. O que mais pode melhorar?

— Não sei. Apenas não me sinto bem a esse respeito! — Houve um silêncio quando ela se voltou para os outros quatro.

Ollie balançou a cabeça.

— Intuição feminina. É algo perigoso de se ignorar.

— Bem, eis a minha intuição — disse Polowski. — Acho que vai funcionar. E acho que é a nossa melhor opção. Nossa chance de fechar o caso.

Cathy voltou-se para Victor.

— Quem irá se ferir será você. A decisão é sua. — O que ela realmente queria dizer era: Por favor, não faça isso. Fique comigo. Fique vivo, em segurança e comigo. Contudo, ao olhar nos olhos de Victor, ela sabia que ele já decidira, e não importando o quanto ela o desejasse, ele nunca seria realmente dela.

— Cathy — disse ele. — Vai funcionar. Você tem de acreditar nisso.

— A única coisa em que acredito é que você vai ser morto. E não quero estar perto para ver.

Sem mais palavras, ela deu-lhe as costas e saiu.

Lá fora, no estacionamento do Rockabye Motel, Cathy abraçou os próprios ombros em meio à escuridão. Ela ouviu a porta se fechar e os passos dele sobre o asfalto, caminhando em sua direção.

— Você não precisa ficar — disse ele. — Há aquela praia no México. Você podia voar para lá esta noite, sair dessa confusão.

— Quer mesmo que eu vá?

Uma pausa, e então:

— Sim.

Ela deu de ombros numa débil tentativa de demonstrar pouco caso.

— Tudo bem. Acho que tudo faz sentido. Fiz a minha parte.

— Você salvou minha vida. No mínimo, devo-lhe alguma segurança.

Cathy se voltou para ele.

— É isso o que mais pesa na sua mente, Victor? O fato de você estar me devendo?

— O que mais pesa em minha mente é que você pode ser vítima do fogo cruzado. Estou preparado para atravessar aquelas portas na Viratek. Estou preparado para fazer diversas coisas estúpidas. Mas não estou preparado para vê-la se ferir. Isso faz algum sentido? — Ele a puxou em  sua direção, para um lugar que lhe parecia infinitamente quente e seguro. — Cathy, Cathy. Não sou louco. Não quero morrer. Mas não vejo outra saída...

Ela pressionou o rosto contra o peito dele, escutou seus batimentos cardíacos, tão firmes, tão regulares. Ela estava com medo de pensar naquele coração não batendo, daqueles braços inertes, incapazes de abraçá-la.

Ele era corajoso o bastante para levar adiante aquele plano maluco. Será que ela não poderia de algum modo reunir a mesma coragem? Cathy pensou: Vim até aqui com você. Como posso pensar em ir embora? Justo agora que sei que o amo? A porta do motel se abriu, um arco de luz foi projetado no chão do estacionamento.

— Gersh? — disse Ollie. — Está ficando tarde. Se vamos prosseguir, teremos de ir agora.

Victor ainda olhava para ela.

— Bem? — disse ele. — Quer que Ollie a leve ao aeroporto?

— Não. — Ela ajeitou os ombros. — Vou com você.

— Tem certeza de que é isso o que quer fazer?

— Não estou certa de nada ultimamente. Mas já me decidi. Vou ficar. — Ela tentou sorrir. — Além do mais, talvez você precise de mim no set de filmagem. Caso seu rosto caia.

— Preciso de você para muito mais do que isso.

— Gersh?

Victor pegou as mãos de Cathy. Ela deixou que ele a pegasse.

— Nós iremos — disse ele. — Os dois.

 

— Estou me aproximando do portão da frente. Um guarda na guarita. Ninguém mais ao redor. Está me ouvindo?

— Alto e claro — disse Polowski.

— Muito bem. Aqui vou eu. Deseje-me sorte.

— Estaremos ligados. Boa sorte. — Polowski desligou o microfone e olhou para os outros. — Bem, pessoal, ele está a caminho.

De quê?, pensou Cathy. Ela olhou para os outros rostos em torno. Havia quatro pessoas espremidas na van. Estavam estacionados a cerca de um quilômetro do portão da frente da Viratek. Perto o bastante para ouvir as transmissões de Victor, mas longe demais para ajudá-lo.

Através do rádio, podiam acompanhar seu progresso.

Também podiam acompanhar sua morte.

Em silêncio, esperaram pelo primeiro obstáculo.

— Boa noite — disse Victor, parando junto à guarita.

O guarda olhou através da janela. Tinha cerca de 20 anos, boné impecável, colarinho abotoado. Aquele era Pete Zahn, o Sr. Extraordinário que Reza pela Cartilha. Se alguém podia estragar a operação, seria ele. Victor forçou um sorriso e implorou para que a máscara não se partisse. Aquela troca de olhares pareceu durar uma eternidade. Então, para alívio de Victor, o homem sorriu de volta.

— Trabalhando até tarde, Dr. Black?

— Esqueci algo no laboratório.

— Deve ser importante, hein? Para fazer uma viagem especial à meia-noite.

— Esses contratos com o governo. Precisam ser fechados a tempo.

— É. — O guarda acenou para que ele passasse. — Tenha uma boa noite.

Coração disparado, Victor atravessou o portão. Apenas ao fazer a curva para entrar no estacionamento vazio, permitiu-se emitir um suspiro de alívio.

— Primeira base — disse ele ao microfone. — Vamos, pessoal. Falem comigo.

— Estamos aqui. — Foi a resposta de Polowski.

— Estou entrando no prédio, não sei se o sinal de rádio vai ser capaz de atravessar essas paredes. Portanto, se não me ouvirem...

— Estaremos ouvindo.

—Quero falar com Cathy. Chame-a.

Houve uma pausa, então ele ouviu:

— Estou aqui, Victor.

— Só queria lhe dizer o seguinte: vou voltar. Prometo. Você me ouviu?

Ele não estava certo se era apenas uma oscilação de sinal, mas achou ter detectado um princípio de choro em sua resposta.

— Ouvi.

— Estou entrando agora. Não vá embora sem mim.

 

Demorou apenas um minuto para Pete Zahn verificar a placa do carro de Archibald Black. Ele tinha um Rolodex na guarita, embora pouco recorresse a ele uma vez que tinha boa memória para números. Ele sabia de memória a placa de cada executivo. Era seu joguinho mental particular, um teste de sua esperteza. E a placa no carro do Dr. Black não parecia certa.

Ele encontrou a ficha. O carro conferia: um Lincoln sedã 1991, cinza. E ele estava certo de que era mesmo o Dr. Black ao banco do motorista. Mas o número da placa estava errado.

Pete se recostou e pensou naquilo um instante, tentando esgotar todas as explicações possíveis. Que Black simplesmente estava dirigindo um carro diferente. Que Black estava pregando-lhe uma peça, testando-o.

Que aquele não era Archibald Black.

Pete pegou o telefone. O jeito era ligar para a casa de Black. Já passava da meia-noite, mas ele tinha de fazê-lo.

Se Black não atendesse o telefone, então devia ser ele mesmo naquele Lincoln. Mas se ele atendesse, então algo estaria terrivelmente errado e Black gostaria de saber o que era.

Dois toques. Foi o quanto demorou antes de uma voz sonolenta atender:

— Alô?

— Aqui é Pete Zahn, vigia noturno da Viratek. Falo com... o Dr. Black?

— Sim.

— Dr. Archibald Black?

— Veja, é tarde! O que foi?

— Não sei como lhe dizer isso, Dr. Black, mas... — Pete pigarreou. — Seu dublê acabou de entrar de carro pelo portão...

 

— Atravessei a porta da frente. Subindo o corredor a caminho da ala de segurança. Caso alguém esteja me ouvindo.

Victor não esperava resposta, e não ouviu nenhuma. O prédio era uma monstruosidade de concreto, projetado para durar para sempre. Ele duvidava que um sinal de rádio atravessasse aquelas paredes. Embora estivesse por conta própria no momento em que entrou pelo portão da frente, ao menos tinha o conforto de saber que seus amigos estavam acompanhando seu progresso. Agora, porém, estava verdadeiramente só.

Ele se moveu em um passo casual até a porta trancada onde se via a placa Somente Pessoal Autorizado. Havia uma câmera pendurada no teto, a lente apontada diretamente para ele. Ele a ignorou propositalmente e voltou sua atenção para o teclado de segurança montado na parede. Os números que Jerry lhe dera fizeram-no passar pela porta da frente; será que a segunda combinação o faria passar por aquela? Suas mãos estavam suadas quando ele digitou os sete números. Sentiu um surto de pânico quando um bipe soou e uma mensagem piscou na tela: Código de segurança incorreto. Acesso negado.

Ele sentiu o suor se acumular sob a máscara. Será que os números estavam errados? Teria simplesmente invertido alguns dígitos? Victor sabia que alguém deveria estar observando através da câmera, perguntando-se por que ele estava demorando tanto. Ele inspirou profundamente e tentou de novo. Dessa vez, digitou os números lenta e deliberadamente. Ele se preparou para um bipe de advertência.

Para seu alívio, uma nova mensagem apareceu na tela: Código de segurança aceito. Por favor, entre.

Ele entrou na sala seguinte.

Terceiro obstáculo, pensou aliviado quando a porta se fechou atrás dele. Agora, era correr para o abraço.

Outra câmera montada em um canto estava apontada para ele. Consciente de suas lentes, ele atravessou a sala em direção à porta interna do laboratório. Ele girou a maçaneta e um alarme disparou.

E agora?, pensou. Somente então notou a luz vermelha brilhando sobre a porta e a advertência Grade de laser ativada. Ele precisava de uma chave para desligá-la. Ele não via outro meio de desativá-la, nenhuma maneira de atravessá-la e entrar naquela sala.

Era hora de tomar medidas desesperadas, hora de uma pequena ousadia. Ele apalpou os bolsos, então se voltou para a câmera.

— Olá? — acenou.

Uma voz respondeu no interfone:

— Algum problema, Dr. Black?

— Sim. Não encontro minhas chaves. Devo tê-las deixado em casa...

— Posso desligar os lasers daqui.

— Obrigado. Puxa, não sei como isso aconteceu.

— Sem problema.

Imediatamente, a luz vermelha se apagou. Cuidadoso, Victor abriu a porta. Ele acenou para a câmera e entrou na última sala.

Lá dentro, para seu alívio, não havia câmeras — ao menos nenhuma que ele pudesse ver. Um pouco de espaço de manobra, pensou. Victor entrou no laboratório e deu uma rápida olhada ao redor. O que viu foi uma exibição estonteante de equipamento da era espacial — não apenas as centrífugas e microscópios, mas instrumentos que ele jamais vira, todos novos e brilhantes. Ele passou pela câmara de descontaminação, pela unidade de fluxo laminar, e foi direto para as incubadoras. Ele abriu a porta.

Frascos de vidro tilintaram em seus compartimentos. Ele pegou um deles. Um fluido rosado brilhou lá dentro. O rótulo dizia: Lote n° 341. Ativo.

Deve ser isso, pensou. Era isso o que Ollie lhe dissera que deveria procurar. Ali estava a matéria dos pesadelos, a morte em massa destilada em elementos sub-microscópicos.

Ele retirou dois frascos, colocou-os em uma cigarreira especialmente acolchoada e guardou-a no bolso. Missão cumprida, pensou triunfante, enquanto voltava pelo laboratório.

Tudo o que faltava era voltar casualmente para o carro. Então, o champanhe... Ele estava na metade da sala quando o alarme disparou.

Victor ficou paralisado, o ruído agudo ecoando em seus ouvidos.

— Dr. Black? — disse a voz do guarda através de algum interfone oculto. — Por favor, não saia. Fique exatamente onde está.

Victor voltou-se rapidamente, tentando localizar o alto-falante.

— O que houve?

— Acabaram de pedir que eu o detivesse. Se esperar, vou saber o que... —Victor não esperou para saber o motivo.

Em vez disso, correu para a porta. Ao alcançá-la, ouviu o zumbido do laser sendo acionado, sentiu algo lhe cortar o braço. Ele atravessou a primeira porta, correu pela ante-sala e saiu no corredor através da porta de segurança.

Em toda parte os alarmes soavam. O prédio inteiro se tornara uma câmara de eco de campainhas tocando. Seu olhar se voltou para a entrada da frente. Não, por ali não.

Havia um guarda ali postado.

Victor correu para a esquerda, em direção ao que lhe parecia ser uma saída de incêndio. Em algum lugar às suas costas uma voz gritou:

— Alto!

Ele a ignorou e continuou a correr. Ao fim do corredor, empurrou a barra de abertura da porta e viu-se em uma escadaria. Nenhuma saída, apenas degraus levando para cima ou para baixo. Como não queria ficar preso como um rato no porão, subiu a escada.

Ao alcançar o primeiro lance, ouviu a porta da escadaria do primeiro andar se abrir. Outra vez, uma voz ordenou:

— Alto ou vou atirar!

Um blefe, pensou.

A pistola disparou e o tiro ecoou pela escadaria de concreto.

Não é blefe. Com desespero renovado, abriu a porta que levava ao corredor do segundo andar. Uma fileira de portas fechadas se estendia à sua frente. Qual? Qual?

Não havia tempo para pensar. Ele se escondeu na terceira sala e cuidadosamente fechou a porta atrás de si.

Em meio à penumbra, viu o brilho de aço inoxidável e provetas de vidro. Outro laboratório. Só que esse tinha uma janela ampla sobre a bancada dos fundos, agora iluminada pelo luar.

Do fim do corredor veio o som de uma porta sendo arrombada e o grito do guarda:

— Parado!

Restava-lhe apenas uma rota de fuga. Victor pegou uma cadeira, ergueu-a acima da cabeça e arremessou-a contra a janela. O vidro se estilhaçou, fazendo chover estilhaços iluminados pelo brilho prateado da lua. Ele nem olhou antes de pular. Preparando-se para o impacto, pulou da janela e aterrissou em meio à vegetação.

— Alto! — veio a voz lá de cima.

Foi o que bastou para Victor voltar a se erguer. Ele atravessou o gramado correndo, protegido pelas árvores. Ao olhar para trás, viu que nenhuma sombra o perseguia. O guarda não arriscaria o pescoço pulando daquela janela.

Preciso sair pelo portão... Victor circundou o prédio sob a proteção de árvores e arbustos, até chegar a um grupo de carvalhos. Dali, podia ver o portão da frente, ao longe.

E o que viu fez gelar seu coração.

Holofotes iluminavam a entrada, revelando os quatro carros de segurança que bloqueavam o acesso de veículos. Agora, uma van estacionava. O motorista foi até a traseira e abriu as portas. Ao seu comando, dois pastores alemães saltaram do veículo, latindo e dançando aos seus pés.

Victor recuou, aprofundando-se entre os carvalhos. Não há saída, pensou, olhando para a cerca atrás dele, encimada por espirais de arame farpado. Os latidos dos cães se aproximavam. A não ser que eu crie asas e aprenda a voar, sou um. homem morto...

 

— HÁ ALGO ERRADO! — GRITOU CATHY quando o primeiro carro da segurança passou por eles.

Polowski tocou-lhe o braço.

— Calma. Pode ser uma patrulha de rotina.

— Não. Veja! — Através das árvores, viram outros três carros, todos descendo a estrada em alta velocidade em direção à Viratek.

Ollie murmurou um palavrão surpreendentemente grosseiro e pegou o microfone.

— Espere! — Polowski segurou a mão dele. — Não podemos arriscar uma transmissão. Deixe que ele nos contate primeiro.

— Se ele estiver em apuros...

— Então ele já sabe. Dê-lhe a chance de sair sozinho.

— E se ele estiver acuado? — perguntou Cathy. — Vamos apenas ficar aqui sentados?

— Se bloquearam o portão da frente, não temos escolha...

— Nós temos escolha! — disse Cathy, sentando-se no banco do motorista.

— O que diabos está fazendo? — gritou Polowski.

— Dando uma chance para ele. Se nós não...

Todos se calaram imediatamente ao ouvirem uma transmissão no rádio.

— Parece que estou preso aqui, pessoal. Não vejo saída. Estão ouvindo?

Ollie pegou o microfone.

— Pronto, Gersh. Qual a sua situação?

— Ruim.

— Especifique.

— Portão da frente bloqueado e iluminado como um campo de futebol. Alarmes disparados. Acabam de trazer cães...

— Pode chegar até a cerca?

— Negativo. É eletrificada. Baixa voltagem, mas mais do que posso suportar. É melhor irem embora sem mim.

Polowski agarrou o microfone e gritou:

— Pegou o negócio?

Cathy voltou-se e exclamou:

— Esqueça isso! Pergunte onde ele está. Pergunte!

— Holland? — disse Polowski. — Onde você está?

— No perímetro noroeste. Há cercas em volta de todo o complexo. Veja, vão embora. Vou dar um jeito de...

— Diga-lhe para ir para o meio da cerca leste! — disse Cathy.

— O quê?

— Apenas diga!

— Vá para a cerca leste — disse Polowski ao microfone. — Bem no meio.

— Entendido.

Polowski olhou atônito para Cathy.

— No que está pensando?

— Este é um carro de fuga, certo? — murmurou ela enquanto ligava o motor. —Vamos usá-lo com esse propósito!

Ela engatou a marcha e voltou para a estrada.

— Você está indo para o lado errado! — gritou Milo.

— Não, não estou. Há uma estrada de serviço em algum lugar à esquerda. Lá está.

Ela deu uma guinada brusca e entrou no que não passava de uma estrada de terra batida. Chacoalharam ao longo do percurso, chocando-se contra galhos e arbustos, um trajeto tão violentamente acidentado que não lhes restava alternativa senão se segurarem.

— Como encontrou essa estrada maravilhosa? — conseguiu perguntar Polowski.

— Estava no mapa. Eu a vi quando estávamos estudando a planta da Viratek.

— É uma estrada panorâmica ou vai dar em algum lugar?

— Leva à cerca leste. Era a entrada de serviço dos construtores do complexo. Espero que ainda esteja livre o bastante para atravessarmos...

— E daí, o que acontece?

Ollie suspirou.

— Não pergunte.

Cathy contornou um matagal que apareceu à sua frente e bateu em um arbusto. Seus passageiros caíram no chão da van.

— Desculpe — murmurou ela, dando a ré e voltando à estrada. — Deve estar bem adiante...

Uma cerca de metal apareceu subitamente à sua frente. Ela desligou os faróis. Através da escuridão, puderam ouvir os latidos dos cães que se aproximavam. Onde estaria Victor? Então eles o viram, correndo ao luar. Em algum lugar à esquerda, um sujeito gritou e tiros varreram o chão.

— Segurem-se! — gritou Cathy. Ela atou o cinto de segurança e agarrou o volante. Então acelerou.

A van avançou como um garanhão através da vegetação rasteira e bateu na cerca, que cedeu. Fagulhas elétricas sibilaram na noite. Cathy engatou a ré, recuou e voltou a pisar no acelerador.

Dessa vez, a cerca caiu e o arame farpado arranhou o pára-brisa.

— Atravessamos! — disse Ollie. Ele abriu a porta corrediça da van. — Venha, Gersh! Venha!

Um vulto ziguezagueou através da grama. Ao redor dele, tiros espocavam. Ele pulou o emaranhado de arame farpado e tropeçou.

— Vamos, Gersh!

Os tiros choviam sobre a van.

Victor voltou a se levantar. Ouviram ruído de pano rasgado, e então ele foi puxado para a segurança do interior do veículo.

A porta se fechou. Cathy deu a ré, fez a volta com a van e acelerou.

O veículo avançou sobre a vegetação. Outra salva de tiros atingiu a van. Cathy ignorou-a. Concentrava-se apenas em voltar à estrada principal. O som dos tiros tornou-se distante. Finalmente, as árvores deram lugar a uma faixa de asfalto. Ela dobrou à esquerda e acelerou, ansiosa para se afastar o mais que podia da Viratek.

Ao longe, ouviram uma sirene.

— Temos companhia! — disse Polowski.

— Para onde agora? — gritou Cathy. A Viratek estava bem atrás deles. As sirenes se aproximavam pela frente.

— Não sei! Apenas dê o fora daqui!

Por enquanto, a visão dos carros de polícia estava bloqueada pelas árvores, mas ela podia ouvir as sirenes se aproximando. Vão nos deixar passar? Ou vão nos parar?

Quase tarde demais, ela viu uma clareira em um dos lados da estrada. Em um impulso instantâneo, ela saiu da estrada e a van chacoalhou em um campo de mato ralo.

— Não me diga — gemeu Polowski. — Outra estrada de serviço?

— Cale-se! — exclamou Cathy enquanto dirigia-se em direção a um matagal. Com uma rápida guinada do volante, ela deu a volta por trás da vegetação e desligou os faróis.

Foi bem a tempo. Segundos depois, dois carros-patrulha com as luzes piscando passaram em alta velocidade. Ela ficou sentada e imóvel, ouvindo enquanto as sirenes sumiam ao longe. Então, na penumbra, ouviu Milo dizer baixinho:

— O nome dela é Bond. Jane Bond.

Meio rindo, meio chorando, Cathy voltou-se para Victor, que se sentara ao seu lado, no banco do carona. Logo estava nos braços dele, lágrimas molhando sua camisa, soluços abafados pelo seu abraço. Ele beijou suas faces molhadas de lágrimas, sua boca. O toque dos lábios dele aplacaram seus tremores.

Lá atrás, alguém pigarreou.

— Ãhn, Gersh? — disse Ollie educadamente. — Não acha que deveríamos ir? — A boca de Victor ainda estava pressionada contra a de Cathy. Relutante, ele se afastou, embora sem deixar de olhar para o rosto dela.

— Claro — murmurou, pouco antes de puxá-la para outro beijo. — Mas alguém se incomodaria em dirigir...?

— Aqui é onde a coisa fica perigosa — disse Polowski. Ele estava ao volante agora enquanto iam para o sul, em direção a São Francisco. Cathy e Victor estavam sentados na frente, ao lado de Polowski. Na traseira da van, Milo e Ollie dormiam como dois cachorrinhos exaustos. Pelo rádio ouviam uma música country. O painel brilhava com um verde vivido em meio à escuridão.

— Finalmente temos a prova — disse Polowski. — Tudo o que precisamos é evitá-los. Estarão desesperados. Prontos a tentarem qualquer coisa. Daqui para frente, pessoal, será um jogo de gato e rato.

Como se já não estivesse sendo, pensou Cathy ao se aninhar junto a Victor. Desejava uma chance de ficar a sós com ele. Não houve tempo para reencontros chorosos, nenhum tempo para juras de amor. Haviam passado as últimas duas horas em uma viagem difícil através de estradas secundárias, sempre evitando a polícia. Aquela altura, a invasão da Viratek já teria sido reportada às autoridades. A polícia do estado estaria atenta a uma van com danos na parte dianteira.

Polowski estava certo. As coisas só estavam ficando mais perigosas.

— Assim que chegarmos à cidade — disse Polowski —, levaremos esses frascos para diferentes laboratórios. Confirmação independente. Isso afastará qualquer dúvida. Conhece alguém, confiável, Holland?

— Um colega de faculdade em New Haven. É diretor do laboratório do hospital. Confio nele.

— Yale? Ótimo. Tem reputação.

— Ollie tem um amigo na UCSF. Cuidarão do segundo frasco.

— E, quando chegarem os relatórios, conheço certo jornalista que adora uma boa história.

Polowski deu um tapinha de satisfação no volante.

— Viratek, vocês estão ferrados.

— Você gosta disso, não é mesmo? — disse Cathy.

— Trabalhar do lado certo da lei? Faz bem para a alma. Mantém a mente e o corpo alertas. E ajuda você a se manter jovem.

— Ou morrer jovem — disse Cathy.

Polowski sorriu.

— Mulheres. Nunca compreenderão o jogo.

— Não mesmo.

— Aposto que Holland entende. Ele mantém sua taxa de adrenalina bem alta, certo?

Victor não respondeu. Ele olhava para o asfalto que se estendia diante dos faróis.

— Bem, não foi legal? — perguntou Polowski. — Ir ao inferno e voltar outra vez sabendo que o conseguiu usando apenas sua inteligência?

— Não — disse Victor calmamente. — Ainda não acabou.

O sorriso de Polowski esvaeceu. Ele voltou a atenção para a estrada.

— Quase — disse ele. — Está quase acabado.

Eles passaram por uma placa que dizia: "São Francisco: 20km"

Quatro da manhã. As estrelas eram meros pontinhos em um céu lavado pelas luzes da cidade. Em uma lanchonete em North Beach, cinco almas cansadas se reuniam ao redor de xícaras de café e queijo dinamarquês. Havia apenas uma outra mesa, ocupada por um homem com olhos injetados e mãos trêmulas. A menina atrás do balcão estava sentada, entretida com um livro de bolso.

Atrás dela, a máquina de café sibilava.

— Aos DVMs — disse Milo, erguendo a xícara. — Ainda a melhor banda das redondezas.

Todos ergueram as xícaras.

— Aos DVMs!

— E ao nosso mais novo e mais belo integrante — disse Milo.

— A bela... A intrépida...

— Ora, por favor — disse Cathy.

Victor abraçou-a.

— Relaxe e sinta-se honrada. Nem todo mundo entra para nosso grupo seleto.

— A única exigência é tocar mal algum instrumento musical — disse Ollie.

— Mas não sei tocar nada.

— Sem problemas. — Ollie pegou um pedaço de papel manteiga da pilha de queijo dinamarquês e o enrolou ao redor de seu pente de bolso.

— Combina — disse Milo. — Afinal, era o instrumento de Lily.

— Ah. — Ela pegou o pente. O instrumento de Lily. Sempre voltavam a ela, o fantasma que estaria sempre por perto.

Subitamente, o clima de celebração acabou, como se levado pelo vento frio do amanhecer. Cathy voltou-se para Victor, que olhava através da janela para as ruas parcamente iluminadas. No que está pensando? Gostaria que ela estivesse aqui? Que fosse ela a ganhar esse pente ridículo? Ela levou o pente aos lábios e tocou uma versão adequadamente desafinada de "Yankee Doodle".

Todos riram e bateram palmas, até mesmo Victor. Mas quando o aplauso acabou, ela notou a expressão triste e cansada nos olhos dele. Discretamente, Cathy pousou o pente sobre a mesa.

Lá fora, passou uma van de entrega. Eram 5h. A cidade despertava.

— Bem, pessoal — disse Polowski, baixando sobre a mesa um dólar de gorjeta. — Temos de acordar um repórter.

— Então, você e eu... — ele olhou para Victor — ... teremos de fazer algumas entregas. Quando sai o vôo da United para New Haven?

— As 10h15 — disse Victor.

— Muito bem. Vou comprar as passagens para você. Nesse meio-tempo, veja se consegue fazer crescer um bigode novo ou algo parecido.

Polowski olhou para Cathy.

— Você vai com ele, certo?

— Não — disse ela, olhando para Victor.

Cathy esperava uma reação, qualquer reação. Mas o que viu foi uma expressão de alívio. E, estranhamente, de resignação.

Ele não tentou fazê-la mudar de idéia. Simplesmente perguntou:

— Para onde vai?

Ela deu de ombros.

— Talvez eu devesse manter o plano original. Você sabe, ir para o sul. Ficar um tempo com Jack. O que acha?

Era a chance que ele teria para detê-la. Sua chance de dizer: Não, quero você por perto. Não deixarei que vá embora, nem agora e nem nunca. Se ele realmente a amava, seria exatamente isso o que diria.

Para sua decepção, ele simplesmente assentiu e disse:

— Acho que é uma boa idéia.

Cathy afastou as lágrimas antes que alguém as percebesse. Com um sorriso indiferente, voltou-se para Ollie.

— Então, acho que vou precisar de uma carona. Quando você e Milo irão para casa?

— Agora mesmo, eu acho — disse Ollie, parecendo perplexo. — Uma vez que nosso trabalho acabou.

— Você me daria uma carona? Pegarei um ônibus em Palo Alto.

— Sem problema. Na verdade, pode se sentar no lugar de honra, no banco da frente.

— Desde que não a deixe assumir o volante — resmungou Milo. — Gostaria de uma viagem tranqüila de volta para casa, se não se importa.

Polowski levantou-se.

— Então, estamos combinados. Todos têm para onde ir. Vamos.

Lá fora, em uma rua tomada pelo tráfego matinal, com os amigos a apenas alguns metros de onde estavam, Cathy e Victor se despediram. Não era lugar para uma despedida sentimental e talvez tenha sido melhor assim.

Ao menos, poderia partir com algum resquício de dignidade. Ao menos, poderia evitar ouvir a verdade brutal dos lábios dele. Ela simplesmente iria embora apegada à fantasia de que ele a amava. Que, no breve período em que estiveram juntos, ela havia conseguido um pequeno espaço no coração de Victor.

— Você ficará bem? — perguntou ele.

— Sim. E você?

— Vou tentar ficar.

Ele meteu as mãos nos bolsos e olhou para um ônibus parado junto à esquina.

— Vou sentir sua falta — disse ele. — Mas não faz sentido ficarmos juntos. Não nessas circunstâncias.

Eu ficaria com você, pensou Cathy. Sob qualquer circunstância.

Se ao menos eu soubesse que você me quer...

— De qualquer modo — disse ele em meio a um suspiro —, eu a informarei quando as coisas voltarem a ficar seguras. Quando poderá voltar para casa.

— E então?

— Então, continuaremos dali em diante — disse ele.

Eles se beijaram, um beijo desajeitado, polido e apressado, pois sabiam que os amigos estavam olhando. Não houve paixão naquele gesto, apenas lábios frios e secos de um homem que se despedia. Ao se afastarem, ela viu a imagem do rosto dele distorcida pelas lágrimas.

— Cuide-se, Victor — disse ela. Então, ajeitou os ombros, voltou-se e caminhou em direção a Ollie e Milo.

— Pronta? — perguntou Ollie.

— Sim. — Ela passou a mão bruscamente sobre os olhos.

— Estou pronta para ir.

— Fale-me sobre Lily — disse Cathy.

A primeira luz da manhã já iluminava o céu ao passarem pelas fileiras de casas atarracadas de Pacífica, pelos penhascos açoitados pelas ondas e pelas gaivotas que mergulhavam em busca de peixes.

De olho na estrada, Ollie perguntou:

— O que quer saber?

— Que tipo de mulher ela era?

— Era uma pessoa legal — disse Ollie. — E muito inteligente. Embora não se preocupasse em impressionar as pessoas, provavelmente era a mais inteligente de todos nós. Definitivamente, era mais inteligente que Milo.

— E muito mais bonita que Ollie — reclamou uma voz no banco de trás.

— Uma mulher realmente gentil e decente. Quando ela e Gersh se casaram, lembro-me de ter pensado: "Ele conseguiu ficar com uma santa." — Ollie olhou para Cathy, subitamente percebendo seu silêncio. — E claro que nem todo homem deseja uma santa — acrescentou. — Eu ficaria feliz com uma mulher que fosse um pouco tola. — Ele sorriu para Cathy. — Alguém que, só de curtição, arremessasse uma van contra uma cerca eletrificada.

Era uma gentileza da parte dele dizer isso, um comentário feito para elevar seu espírito. Mas não foi capaz de abrandar sua dor.

Cathy se recostou e observou a manhã iluminar o céu.

Como precisava ir embora dali! Ela pensou no México, em águas cálidas, areias quentes e no sabor de peixe fresco com limão.

Ela se jogaria de cabeça no trabalho daquele novo filme.

E claro, Jack estaria no set, Jack com sua última perua a tiracolo, mas ela agora podia administrar a situação. Jack jamais seria capaz de voltar a feri-la. Ela estava imune àquilo, imune à possibilidade de ser magoada por qualquer homem.

O trajeto até a casa de Milo pareceu interminável.

Quando finalmente entraram no acesso de veículos, a aurora já havia se transformado em uma manhã clara e fria. Milo saiu do veículo e foi ofuscado pelo sol.

— Então, pessoal — disse ele através da janela do carro. —Acho que daqui seguimos caminhos diferentes. — Ele olhou para Cathy. — México, certo?

Ela assentiu.

— Puerto Vallarta. E você?

— Vou me encontrar com minha mãe na Flórida. Talvez dar um pulo na Disney World. Quer vir, Ollie?

— Outra hora. Vou dormir um pouco.

— Não sabe o que está perdendo. Bem, foi uma aventura. Quase lamento ter terminado. — Milo voltou-se e caminhou para casa. Na varanda, acenou e gritou: — Nos vemos! — Então entrou pela porta da frente.

Ollie riu.

— Milo e a mãe, juntos? A Disney World nunca mais será a mesma. — Ele levou a mão à ignição. — Próxima parada, rodoviária. Tenho gasolina suficiente para ir até lá e...

Ele não teve a chance de girar a chave.

Um cano de arma foi introduzido através da janela aberta do carro e tocou a têmpora de Ollie.

— Desça, Dr. Wozniak — disse uma voz.

A voz de Ollie saiu rouca.

— O que... O que quer?

— Saia agora.

Bastou o clique da arma sendo engatilhada para Ollie obedecer.

— Tudo bem! Estou saindo! — Ele saiu e se afastou de mãos erguidas.

Cathy também fez menção de sair, mas o pistoleiro disse:

— Você não! Você fique dentro do carro.

— Veja — disse Ollie. — Pode ficar com a droga do carro! Você não precisa dela...

— Mas eu preciso. Diga ao Sr. Holland que entrarei em contato para falarmos a respeito do futuro da Sra. Weaver. — Ele deu a volta e abriu a porta do carona. — Vá para trás do volante! — ordenou.

— Não. Por favor...

Ele pressionou o cano da arma contra o pescoço dela.

— Preciso pedir outra vez?

Trêmula, Cathy obedeceu. Seu joelho roçou as chaves do carro, ainda penduradas na ignição. O homem sentou-se ao seu lado. Embora o cano da arma ainda estivesse em seu pescoço, ela se concentrou nos olhos do sujeito.

Eram negros, insondáveis. Se havia alguma fagulha de humanidade naquelas profundezas, ela não conseguia ver.

— Ligue o motor — disse ele.

— Aonde... Aonde vamos?

— Faremos um passeio. Algum lugar panorâmico.

Os pensamentos dela estavam a mil, buscando uma forma de fugir, mas nada lhe ocorria. Aquela arma era insuperável.

Cathy girou a chave na ignição.

— Ei! — gritou Ollie, segurando a porta. — Você não pode fazer isso!

Cathy gritou:

— Ollie, não!

Mas o pistoleiro já tinha apontado a arma para fora da janela.

— Deixe-a! — gritou Ollie. — Deixe...

A arma disparou.

Ollie cambaleou para trás, atônito.

Cathy avançou contra o pistoleiro. Pura raiva animal, animada pelo instinto de sobrevivência, a fez tentar ferir os olhos dele. No último segundo, ele se esquivou e as unhas arranharam-lhe o rosto, arrancando sangue. Antes que ele pudesse virar a arma em sua direção, Cathy agarrou-lhe o pulso, lutando desesperadamente para ficar com a arma. O pistoleiro reagiu. Nem com toda sua força ela conseguiria manter a arma afastada, evitar que o cano se voltasse em sua direção.

E essa foi a última imagem que registrou: aquele buraco negro voltando-se lentamente para o seu rosto.

Algo a atingiu de lado. A dor explodiu em sua cabeça, fragmentando o mundo em mil estilhaços de luz que se apagaram um a um na escuridão.

 

— VICTOR ESTÁ AQUI — DISSE MILO.

Pareceu ter demorado uma eternidade até Ollie dar-se conta de sua presença. Victor lutou contra a vontade de sacudir-lhe até recobrar a consciência, arrancar as palavras da garganta do amigo. Foi forçado a esperar, o silêncio quebrado apenas pelo sibilar do oxigênio, pelo gorgolejar do tubo de sucção. Finalmente, Ollie estremeceu e voltou-se com olhos repletos de dor para os três homens ao lado de sua cama.

— Gersh. Eu não... não pude... — Ele parou, exaurido pelo esforço de falar.

— Calma, Ollie — disse Milo. — Vá devagar.

— Tentei detê-lo. Ele tinha uma arma... — Ollie fez uma pausa, reunindo forças para continuar.

Victor esperou, temeroso, pelas próximas terríveis palavras a serem proferidas. Ele ainda estava em estado de descrença, ainda esperando que aquilo que Milo lhe dissera fosse um grande engano, que Cathy estava, naquele exato momento, em um ônibus a caminho de algum lugar seguro. Havia apenas duas horas ele estava pronto para embarcar em um avião para New Haven. Foi quando recebeu uma mensagem no portão da United. Era endereçada ao passageiro Sam Polowski, o nome que constava em sua passagem. Consistia de poucas palavras: Ligue para Milo imediatamente.

O passageiro "Sam Polowski" nunca embarcou naquele avião.

Duas horas, pensou angustiado. O que teriam feito com ela naquelas duas longas horas?

— Esse sujeito... Como ele é? — perguntou Polowski.

— Não o vi muito bem. Cabelo escuro. Rosto um tanto... magro.

— Alto? Baixo?

— Alto.

— Ele levou seu carro?

Ollie assentiu.

— E quanto a Cathy? — exclamou Victor, descontrolado. —Ele... a machucou? Ela está bem?

Houve uma pausa que, para Victor, pareceu uma eternidade no inferno. O olhar de Ollie voltou-se para ele com tristeza.

— Eu não sei.

Era o melhor que Victor podia esperar. Eu não sei. Aquilo abria a possibilidade de ela ainda estar viva. Subitamente agitado, começou a vagar a esmo pelo quarto.

— Eu sei o que ele deseja — disse. — Sei o que devo dar para ele...

— Você não pode estar falando sério! — disse Polowski. — É a nossa prova! Você não pode simplesmente entregá-la.

— É exatamente o que farei.

— Você nem ao menos sabe como entrar em contato com ele!

— Ele vai entrar em contato comigo. — Victor se voltou para Milo. — Ele devia estar vigiando a sua casa todo o tempo. Esperando que um de nós aparecesse. É para lá que ele vai ligar.

— Se ligar — disse Polowski.

— Ele vai ligar. — Victor tocou o bolso do casaco, onde estavam os dois frascos da Viratek. — Tenho o que ele precisa. Ele tem o que desejo. Acho que estamos prontos para fazer uma troca.

 

O sol, claro e implacável, brilhava sobre os olhos de Cathy.

Ela tentou evitá-lo, tentou fechar as pálpebras com mais força, evitar que aquele raios atravessassem o seu cérebro. Mas a luz a perseguia.

— Acorde. Acorde!

Ela sentiu água gelada no seu rosto e acordou engasgada, tossindo, fios de água escorrendo de seus cabelos.

Cathy tentou ver o rosto que pairava acima dela. A princípio, tudo o que viu foi um oval negro contra o círculo de luz que a cegava. Então, o sujeito se afastou e ela viu olhos negros como ágata, uma boca fina como um traço.

Um grito ficou preso em sua garganta, para ser instantaneamente calado pelo cano de uma arma contra o seu rosto.

— Nenhum som — disse ele. — Entendeu?

Aterrorizada, ela assentiu.

— Bom. — O sujeito afastou a arma e a guardou no interior do paletó. — Sente-se.

Ela obedeceu. Instantaneamente a sala começou a rodar.

Ela segurou a cabeça dolorida, o medo temporariamente superado por ondas de dor e náusea. O encanto durou apenas alguns instantes. Então, a náusea se foi e ela se deu conta de um segundo homem na sala, um sujeito grande de ombros largos que ela nunca vira. Estava sentado a um canto, calado, mas observando atentamente cada um de seus movimentos. A sala era pequena e sem janelas. Ela não conseguia ver se era dia ou noite. O único móvel era uma cadeira, uma mesa de carteado e o catre no qual estava sentada. O chão era uma laje nua de concreto. Estamos em um porão, pensou. Não ouvia qualquer outro som, dentro ou fora do prédio. Ainda estamos em Palo Alto? Ou a cem quilômetros dali? O homem na cadeira cruzou os braços e sorriu. Sob outras circunstâncias, ela talvez achasse aquele sorriso afetuoso. Agora, parecia-lhe assustadoramente desumano.

— Ela parece suficientemente desperta — disse ele. — Por que não continua, Sr. Savitch?

O homem chamado Savitch se aproximou.

— Onde ele está?

— Quem? — disse ela.

A resposta foi secundada por um tapa em seu rosto. Ela tombou de costas sobre o catre.

— Vou tentar outra vez — disse ele, voltando a sentá-la. — Onde está Victor Holland?

— Eu não sei.

— Você estava com ele.

—Nós... nos separamos.

— Por quê?

Cathy tocou os próprios lábios. A visão do sangue em seus dedos a fez se calar temporariamente.

— Por quê?

— Ele... — Ela baixou a cabeça. — Ele não me queria por perto.

Savitch emitiu um sorriso debochado.

— Cansou rápido de você, não é mesmo?

— Sim — murmurou Cathy. — Acho que sim.

— Não sei por quê.

Ela estremeceu quando a mão do homem correu por seu rosto, sua garganta, e parou sobre o primeiro botão de sua blusa. Não, pensou ela. Isso não.

Para seu alívio, o homem na cadeira subitamente interveio:

— Isso não nos levará a nada.

Savitch voltou-se para o outro sujeito.

— Tem alguma sugestão, Sr. Tyrone?

— Sim. Vamos tentar usá-la de outro modo.

Temerosa, Cathy observou quando Tyrone voltou-se para a mesa de carteado e abriu uma sacola.

— Uma vez que não sabemos onde ele está — disse ele —, faremos com que Holland venha a nós. — Ele voltou-se e sorriu para ela. — Com a sua ajuda, claro.

Cathy olhou para o telefone celular que o sujeito empunhava.

— Já disse. Não sei onde ele está.

— Estou certo de que algum de seus amigos haverá de encontrá-lo.

— Ele não é idiota. Ele não voltaria por minha causa...

— Você está certa. Ele não é idiota. — Tyrone começou a discar um número. — Mas é um homem consciencioso. E esse é um defeito fatal. — Ele fez uma pausa, então disse ao telefone: — Olá? Sr. Milo Lum? Gostaria que passasse a seguinte mensagem para Victor Holland. Diga-lhe que tenho algo que lhe pertence. Algo que não ficará vivo por muito tempo...

— É ele! — sibilou Milo. — Ele quer fazer um acordo.

Victor levantou-se.

— Deixe-me falar...

— Espere! — Polowski segurou-lhe o braço. — Temos de fazer isso devagar. Pense no que nós...

Victor livrou o braço e arrancou o aparelho da mão de Milo.

— Aqui é Holland. Onde está ela?

A voz do outro lado fez uma pausa, um silêncio projetado para enfatizar quem estava com as cartas.

— Está comigo. E está viva.

— Como posso saber?

— Terá de aceitar a minha palavra.

— Palavra coisa nenhuma! Quero uma prova!

Outra vez, um silêncio. Então, através da estática da linha, veio outra voz, tão trêmula, tão amedrontada que quase lhe partiu o coração.

— Victor, sou eu.

— Cathy? — Ele quase gritou de alívio. — Cathy, você está bem?

— Estou... bem.

— Onde está?

— Eu não sei... Acho que... — Ela parou de falar. O silêncio era desesperador. — Não tenho certeza.

— Ele a feriu?

Uma pausa.

— Não.

Ela não está me dizendo a verdade, pensou Victor. Ele fez algo com ela...

— Cathy, eu prometo. Você ficará bem. Eu lhe juro que...

— Falemos de negócios — disse o homem, de volta à linha.

Victor agarrou o aparelho, furioso.

— Se você a ferir, se você a tocar, juro que...

— Você não está em posição de barganhar.

Victor sentiu uma mão agarrar-lhe o braço. Ele se voltou e viu o olhar de Polowski. Mantenha a calma foi a mensagem que viu ali. Converse com ele. Faça um acordo. É o único meio de ganhar tempo.

Assentindo, Victor lutou para recuperar o controle. Quando voltou a falar, sua voz estava calma.

— Muito bem. Você quer os frascos, são seus.

— Não é o bastante.

— Então eu entro na barganha. Uma troca. É aceitável?

— Sim. Você e os frascos em troca da vida dela.

Ouviu-se um grito angustiado ao fundo:

— Não! — Era Cathy, em algum lugar ao fundo, gritando. — Não, Victor! Eles vão...

Através do aparelho, Victor ouviu o ruído de um tapa, seguido de gemidos de dor. Ele perdeu o controle. Estava gritando agora, amaldiçoando, implorando, qualquer coisa para fazer o sujeito parar de feri-la. As palavras se atropelavam, sem fazer qualquer sentido. Ele não conseguia ver ou pensar com clareza.

Outra vez, Polowski segurou-lhe o braço e o sacudiu. Com a respiração ofegante, Victor olhou para ele através de olhos embaçados de lágrimas. Os olhos de Polowski aconselhavam: Faça o acordo. Vá.

Victor engoliu em seco e fechou os olhos. Dê-me forças, pensou. Então, conseguiu dizer:

— Quando faremos a troca?

— Hoje à noite. Às 2h.

— Onde?

— No setor leste de Palo Alto. No antigo teatro Saracen.

— Mas está fechado. Está fechado há...

— Estará aberto. Apenas você, Holland. Se eu vir alguém, a primeira bala terá o nome dela gravado. Certo?

— Quero uma garantia! Preciso saber que ela...

A resposta foi o silêncio. Então, segundos depois, ouviu o tom de discagem.

Lentamente, ele desligou.

— Bem? Qual o acordo? — exigiu Polowski.

— Às 2h. Teatro Saracen.

— Em meia hora. Isso mal nos dá tempo de armar uma...

— Vou sozinho.

Milo e Polowski olharam para ele.

— Com certeza — ironizou Polowski.

Victor pegou o casaco do armário. Deu um tapinha no bolso. A cigarreira estava onde ele a deixara. Ele se voltou para a porta.

— Mas, Gersh! — disse Milo. — Ele irá matá-lo!

Victor fez uma pausa à porta.

— Provavelmente — disse ele. — Mas é a única chance de Cathy. E é um risco que eu tenho de correr.

 

— Ele não virá — disse Cathy.

— Cale-se — disse Matt Tyrone enquanto a empurrava para a frente.

Caminhavam pelo beco repleto de vidro quebrado atrás do teatro Saracen, e Cathy pensava desesperadamente em um meio de sabotar aquele encontro fatal. E seria fatal, não apenas para Victor, como também para ela. Os dois homens que agora a escoltavam pela escuridão não tinham intenção de deixá-la viver. O melhor que ela podia esperar era que Victor sobrevivesse. Ela precisava fazer o possível para melhorar as chances dele.

— Ele tem as provas — disse ela. — Acha que abriria mão delas por mim?

Tyrone olhou para Savitch.

— E se ela estiver certa?

— Holland virá — disse Savitch. — Sei como ele pensa. Ele não deixará a mocinha para trás. — Savitch acariciou o rosto de Cathy com falsa ternura. — Não quando souber exatamente o que faremos com ela.

Cathy fechou os olhos com desagrado, enojada por aquele toque. E se ele realmente não vier?, pensou. E se ele fizesse o certo e me deixasse morrer? Ela não o culparia.

Tyrone deu-lhe um empurrão escada acima em direção à entrada do prédio.

— Entre. Vamos.

— Não enxergo nada — protestou ela, tateando ao longo de uma passagem completamente escura. Ela tropeçou sobre caixas velhas e roçou o corpo em algo que parecia ser uma cortina pesada. — Está muito escuro...

— Então, que se faça a luz — disse uma outra voz.

As luzes subitamente se acenderam, tão brilhantes que Cathy ficou temporariamente cega. Ela ergueu a mão para proteger os olhos. Através do brilho, pôde ver um terceiro homem diante dela. Além dele, o ambiente estava tomado pela escuridão.

Estavam no palco de um teatro. Era óbvio que nenhum artista pisava ali havia anos. Cortinas rasgadas pendiam como teias de aranha dos caibros do teto. Painéis de um cenário antigo representando as ameias repletas de trepadeiras de um castelo medieval ainda estavam encostados contra a parede dos fundos do palco, ladeados por um par de esfregões.

Tyrone perguntou:

— Algum problema, Dafoe?

— Nenhum — disse o sujeito. — Eu verifiquei o prédio.

Uma porta na frente, outra nos fundos. As portas laterais de emergência estão bloqueadas. Se fecharmos ambas as saídas, ele não terá por onde fugir.

— Vejo que o FBI merece a reputação que tem.

Dafoe sorriu e inclinou a cabeça.

— Eu sabia que o Caubói desejaria o melhor.

— Muito bem, Sra. Weaver. — Tyrone empurrou Cathy para a frente, para uma cadeira situada diretamente sob um refletor. — Vamos sentá-la onde possamos vê-la. No centro do palco.

Foi Savitch quem a amarrou à cadeira. Ele sabia exatamente o que estava fazendo. Cathy não teria como se livrar de nós tão apertados, tão profissionais.

Ele deu um passo atrás, satisfeito com o trabalho.

— Ela não vai a parte alguma — disse ele. Então, pensando melhor, cortou uma tira de pano e a amordaçou. — Assim, não teremos surpresas — disse ele.

Tyrone olhou para o relógio.

— Quinze para as 2h. Em suas posições, cavalheiros.

Os três ocultaram-se nas sombras, deixando Cathy sozinha no palco vazio. O refletor sobre seu rosto era quente como o sol de meio-dia. Ela já podia sentir gotas de suor formando-se em sua testa. Embora não pudesse vê-los, podia adivinhar a posição dos três sujeitos através de suas vozes. Tyrone estava mais perto. Savitch estava nos fundos do teatro, perto da entrada da frente do prédio. E o homem chamado Dafoe estava em algum lugar acima, em um dos camarotes. Três diferentes linhas de fogo. Não havia escapatória.

Victor, não seja tolo, pensou. Fique longe daqui...

E se ele não vier? Ela também não conseguia considerar tal possibilidade, pois significaria que ele a estava abandonando. Significaria que ele não se preocupava com ela o bastante para vir salvá-la. Cathy fechou os olhos para se proteger do refletor e afastar as lágrimas.

Eu o amo, Victor. Posso suportar qualquer coisa, até mesmo isso, se ao menos eu soubesse que você também me ama.

Suas mãos estavam dormentes por causa das cordas.

Cathy tentou afrouxar os nós, mas só conseguiu ferir os pulsos. Ela se esforçou para manter a calma, mas a cada minuto que passava seu coração parecia bater mais forte.

Uma gota de suor escorreu por sua têmpora.

Em algum lugar na escuridão adiante, uma porta rangeu ao se abrir e fechar. Passos se aproximaram, passos lentos e deliberados. Cathy se esforçou para ver através do brilho do refletor, mas só conseguia ver um vestígio de sombra movendo-se contra as sombras de fundo.

A madeira do chão do palco rangeu atrás dela quando Tyrone saiu de onde estava.

— Pare exatamente onde está, Sr. Holland — disse ele.

 

 

OUTRO REFLETOR ACENDEU-SE SUBITAMENTE, iluminando Victor. Ele parou no meio do corredor, uma figura solitária no centro de um círculo de luz.

Você veio por mim!, pensou ela. Eu sabia! De algum modo eu sabia que você viria...

Se ao menos pudesse gritar, avisá-lo sobre os outros dois homens. Mas a mordaça fora aplicada com tanta força que o único som de que foi capaz foi um gemido.

— Solte-a — disse Victor.

— Primeiro nos entregue o que precisamos.

— Eu disse solte-a!

— Você não está em posição de barganhar. — Tyrone saiu da platéia e subiu no palco. Cathy fechou os olhos quando o cano gelado de uma arma foi pressionado contra sua têmpora. — Quero ver o que tem, Holland — disse Tyrone.

— Desamarre-a primeiro.

— Eu poderia balear vocês dois e acabar logo com esse assunto.

— Então é isso? — gritou Victor. — Dólares federais para assassinar civis?

— É tudo uma questão de custo e benefício. Alguns civis terão de morrer agora. Mas se o país for à guerra, pense nos milhões de americanos que serão salvos!

— Estou pensando nos americanos que você já matou.

— Mortes necessárias. Mas você não compreenderia isso. Você nunca viu um soldado seu colega morrer, não é mesmo, Holland? Você não sabe a sensação de impotência ao ver bons meninos de boas cidades americanas serem mutilados. Com essa arma, não precisarão morrer. Será o inimigo que morrerá em vez de nós.

— Quem lhe deu tal autoridade?

— Eu me dei tal autoridade.

— E quem diabos é você?

— Um patriota, Sr. Holland! Faço o tipo de trabalho que ninguém na administração quer fazer. Alguém diz: "Pena que nossas armas não tenham uma maior taxa de mortalidade." Eis a deixa para eu desenvolver uma. Não precisam nem pedir. Podem alegar total ignorância.

— Então eles o usam.

Tyrone deu de ombros.

— Faz parte de ser um bom soldado. O desejo de sucumbir sob a espada de outrem. Mas ainda não estou pronto para isso.

Cathy ficou tensa quando Tyrone engatilhou a arma. O cano ainda estava voltado para sua cabeça.

— Como pode ver — disse Tyrone —, as cartas não estão exatamente a seu favor.

— Por outro lado — disse Victor calmamente —, como sabe que eu trouxe os frascos? E se estiverem escondidos em outro lugar, uma bomba-relógio pronta para ser revelada para a opinião pública? Mate-a agora e jamais os encontrará.

Impasse. Tyrone baixou a pistola. Ele e Victor se encararam um instante. Então, Tyrone enfiou a mão no bolso, e Cathy ouviu o clique de um canivete.

— Ganhou esse round, Holland — disse ele enquanto cortava as cordas. O súbito fluxo de circulação nas mãos de Cathy foi quase doloroso. Tyrone tirou a mordaça da boca de Cathy e a empurrou da cadeira.

— Ela é toda sua! — Cathy cambaleou para fora do palco.

Com pernas instáveis atravessou o corredor, em direção ao círculo de luz onde estava Victor. Ele a puxou para seus braços. O mero pulsar de seu coração indicou a Cathy quão perto ele estava de entrar em pânico.

— Sua vez, Holland — disse Tyrone.

— Vá — murmurou Victor para ela. — Saia daqui.

— Victor, ele tem dois outros homens...

— Entregue os frascos! — gritou Tyrone.

Victor hesitou. Então, enfiou a mão no casaco e tirou uma cigarreira.

— Eles estarão olhando para mim — murmurou ele. — Vá para a porta. Agora.

Cathy ficou imóvel, paralisada pela indecisão. Ela não poderia deixá-lo morrer. E sabia que os outros dois pistoleiros estavam em algum lugar no escuro, observando cada um de seus movimentos.

— Ela fica onde está! — disse Tyrone. — Vamos, Holland. Os frascos! — Victor deu um passo adiante, então outro.

— Fique onde está! — ordenou Tyrone.

Victor parou.

— Você quer os frascos, não quer?

— Ponha-os no chão.

Lentamente, Victor baixou a cigarreira aos seus pés.

— Agora, empurre para mim.

Victor deu um empurrão na cigarreira, que escorregou pelo corredor e parou junto ao poço da orquestra.

Tyrone desceu do palco.

Victor começou a se afastar. Pegando a mão de Cathy, conduziu-a lentamente corredor acima, em direção à saída.

Imediatamente, o clique de pistolas engatilhadas ecoou pelo teatro. Instintivamente, Victor voltou-se, tentando localizar os outros pistoleiros. Era impossível ver algo com clareza contra o brilho daquele refletor.

— Você ainda não vai sair — disse Tyrone, baixando para pegar a cigarreira. Cuidadoso, removeu a tampa. Em silêncio, observou o conteúdo.

É isso, pensou Cathy. Ele não tem mais motivos para nos deixar viver agora que tem o que quer...

Tyrone ergueu a cabeça.

— Traição — disse ele. Então, furioso: — Traição! Mate-os!

— Sua voz ainda ecoava pelos recessos do teatro quando, imediatamente, as luzes se apagaram. A escuridão tomou conta do lugar, tão impenetrável que Cathy teve de estender as mãos para a frente para achar o caminho.

Foi quando Victor a puxou para o lado, em direção a uma fileira de poltronas da platéia.

— Detenha-os! — gritou Tyrone em meio à escuridão.

O tiroteio pareceu irromper de toda parte. Enquanto Cathy e Victor engatinhavam pelo chão, podiam ouvir as balas atingindo os assentos com encosto de veludo. Atiravam às cegas pelo teatro.

— Não atirem! — gritou Tyrone. — Ouçam!

O tiroteio cessou. Cathy e Victor ficaram imóveis no escuro, com medo de revelar sua posição. Afora o bater do próprio coração, Cathy só ouvia o silêncio.

Estamos encurralados. Fazemos um único movimento e saberão onde estamos.

Mal ousando respirar, ela tirou um sapato, que atirou com força através do teatro. O ruído do sapato ao cair provocou uma nova série de disparos. No tumulto de balas ricocheteando, Victor e Cathy terminaram de atravessar a fileira de poltronas e chegaram ao corredor lateral.

Mais uma vez, o tiroteio cessou.

— Não há saída, Holland! — gritou Tyrone. — Ambas as portas estão vigiadas! É apenas questão de tempo...

Em algum lugar na galeria, uma luz subitamente se acendeu. Era Dafoe, erguendo um isqueiro. Enquanto a chama brilhava, projetando uma luz terrível contra as sombras, Victor empurrou Cathy para o chão, atrás de uma poltrona.

— Sei que estão aqui! — gritou Tyrone. — Você os vê, Dafoe?

Enquanto Dafoe movia a chama, as sombras se deslocavam, revelando novas formas, novos segredos.

— Eu os verei a qualquer momento. Espere. Acho que estou vendo...

Ouviu-se um disparo e Dafoe foi projetado para o lado. A luz da chama iluminou seu rosto quando ele oscilou contra o parapeito da galeria. O supervisor tentou se apoiar no parapeito, mas a madeira, podre, cedeu sob seu peso e ele caiu sobre uma fileira de poltronas.

— Dafoe! — gritou Tyrone. — Quem diabos...

Uma língua de fogo subitamente ergueu-se do chão. O isqueiro de Dafoe incendiara as cortinas! As chamas se espalhavam rapidamente, abrindo caminho ao longo do tecido pesado, em direção aos caibros que o sustentavam.

Quando as chamas atingiram a madeira, o fogo aumentou.

Sob a luz infernal, tudo se revelou: Victor e Cathy, agachados no corredor. Savitch, perto da entrada, a semi-automática a postos. E, no palco, Tyrone, expressão demoníaca iluminada pelo incêndio.

— São seus, Savitch! — ordenou Tyrone.

Savitch apontou. Dessa vez, não havia onde se esconderem, nenhuma sombra onde se ocultarem. Cathy sentiu Victor abraçá-la, tentando protegê-la.

A explosão de um tiro fez ambos fecharem os olhos.

Outro tiro. Ainda assim, ela não sentiu dor alguma. Cathy olhou para Victor. Ele olhava para ela, incapaz de acreditar que ambos ainda estavam vivos.

Os dois ergueram a cabeça e viram Savitch tombar de joelhos, camisa ensangüentada.

— É a sua chance! — gritou uma voz. — Mova-se, Holland!

Eles se voltaram e viram uma silhueta familiar contra as chamas. De algum modo, Sam Polowski aparecera magicamente por trás das cortinas. Rapidamente, agarrando a pistola com ambas as mãos, ele se voltou e apontou para Tyrone.

Não teve chance de apertar o gatilho.

Tyrone atirou primeiro. A bala derrubou Polowski de encontro às poltronas de veludo.

— Saia daqui! — gritou Victor, empurrando Cathy em direção à saída. — Vou buscá-lo...

— Victor, você não pode! — Mas ele já estava a caminho.

Através da fumaça ela o viu engatinhar entre as fileiras de poltronas. Ele precisa de ajuda. E o tempo está se esgotando...

O ar estava tão quente que queimava sua garganta. Tossindo, ela se jogou no chão e inspirou aquele ar relativamente livre de fumaça. Ela ainda tinha tempo de fugir.

Tudo o que tinha de fazer era subir o corredor e sair pela porta do teatro. Todos os seus instintos lhe diziam para fugir enquanto ainda tinha chance.

Em vez disso, deu as costas para a saída e seguiu Victor.

Mal e mal podia vê-lo movendo-se furtivamente diante de uma sólida muralha de fogo. Cathy ergueu o braço para proteger o rosto contra o calor. Sentindo os olhos ardendo pela fumaça, ela engatinhou para a frente, aproximando-se ainda mais das chamas.

— Victor! — gritou.

Como resposta, ouviu apenas o rugir das chamas e um som ainda mais terrível: o ranger de madeira. Ela olhou para cima. Para seu horror, viu que os caibros do teto estavam cedendo e a ponto de ruir.

Em pânico, ela avançou cegamente em direção ao lugar onde vira Victor pela última vez. Ele não estava mais à vista. Em seu lugar havia apenas um redemoinho de fumaça e chamas. Teria escapado? Estaria ela sozinha em meio àquela fogueira abrasadora? Algo se chocou contra seu rosto. Sem entender a princípio, ela olhou para a mão pendurada diante de seu rosto. Lentamente ergueu os olhos ao longo do braço ensangüentado, até encontrar os olhos inertes de Dafoe. Seu grito de terror pareceu ter sido engolido pelo furor da voragem.

— Cathy? — Ela voltou-se em direção ao grito de Victor.

Foi quando o viu, agachado no corredor, alguns metros mais à frente. Ele lutava para arrastar Polowski em direção à saída. Mas já estava a ponto de desmaiar por causa do calor e da fumaça.

— O teto está a ponto de ruir! — gritou Cathy.

— Saia!

— Não sem você! — Ela pegou os pés de Polowski. Juntos arrastaram-no corredor acima, através do tapete que já estava repleto de fagulhas. Pouco a pouco, aproximaram-se do topo do corredor. Faltavam apenas alguns metros!

— Eu cuido dele — ofegou Victor. — Vá... Abra a porta...

Cathy se voltou meio curvada.

Matt Tyrone estava em pé bem à sua frente.

— Victor! — gemeu Cathy.

Com o rosto coberto de suor e fuligem, Victor voltou-se e encontrou o olhar de Tyrone. Nenhum dos dois disse uma palavra. Ambos sabiam que o jogo estava quase acabado.

Agora, era hora de terminá-lo.

Tyrone ergueu a arma.

Ao fazê-lo, ouviram um ruído de madeira quebrando.

Tyrone olhou para cima quando um dos caibros do teto cedeu, espalhando uma chuva de madeira em chamas.

A breve distração era todo o tempo que Cathy precisava.

Em um ato de puro desespero, atirou-se contra as pernas de Tyrone, derrubando-o de costas. A arma escapou de sua mão e escorregou para debaixo de uma fileira de poltronas.

Tyrone levantou-se imediatamente e desferiu um chute violento. O golpe atingiu as costelas de Cathy, um impacto tão doloroso que ela não teve fôlego para gritar.

Simplesmente tombou no corredor, atônita e incapaz de se proteger de qualquer outro golpe.

Através da escuridão que tomava conta de seus olhos, ela viu duas pessoas lutando. Victor e Tyrone. Emoldurados por um mar de fogo, tentavam agarrar a garganta um do outro. Tyrone desferiu um soco e Victor cambaleou alguns passos para trás. Tyrone avançou contra ele como um touro. No último momento, Victor esquivou-se e Tyrone só encontrou o vazio. Ele tropeçou e caiu para a frente sobre o tapete incandescente. Furioso, o pistoleiro ergueu-se de joelhos, pronto para atacar novamente.

O ruído de madeira o fez olhar para cima.

Ainda olhava para cima, atônito, quando a viga atingiu sua cabeça.

Cathy tentou gritar o nome de Victor, mas nenhum som saiu de sua boca. A fumaça deixara sua garganta muito seca e inchada. Ela tentou ficar de joelhos. Polowski estava deitado ao lado dela, gemendo. Havia chamas por toda parte, erguendo-se do chão e queimando as últimas cortinas intactas.

Então ela o viu, caminhando precariamente em sua direção através daquela visão infernal. Victor segurou o braço de Cathy e a conduziu em direção à saída.

De algum modo, conseguiram sair pela porta, arrastando Polowski atrás de si. Tossindo, engasgando, arrastaram-no através da rua até a calçada oposta. Ali, tombaram.

O céu noturno subitamente se iluminou quando uma explosão tomou conta do teatro. O teto ruiu, erguendo uma coluna de chamas tão brilhantes que pareciam atingir o céu. Victor jogou-se sobre Cathy quando as janelas do edifício acima se estilhaçaram, fazendo chover cacos de vidro sobre a calçada.

Por um momento ouviram apenas o som das chamas que estalavam do outro lado da rua. Então, em algum lugar ao longe, ouviram o ruído de uma sirene.

Polowski estremeceu.

— Sam! — Victor voltou a atenção para o companheiro ferido. — Como você está, cara?

— Estou... Estou com uma tremenda dor aqui no lado...

— Você vai ficar bem. — Victor lançou-lhe um sorriso tenso. — Está ouvindo as sirenes? A ajuda está a caminho.

— É. — Com olhos estreitados de dor, Polowski olhou para o céu tomado pelas chamas.

— Obrigado, Sam — murmurou Victor.

— Eu tinha de fazê-lo. Você é... muito idiota para ouvir...

— Nós a resgatamos, não é?

O olhar de Polowski voltou-se para Cathy.

— Nós... fizemos o certo.

Victor passou a mão sobre o rosto sujo e exausto.

— Mas voltamos à estaca zero. Eu perdi as provas...

— Milo...

— Ficou tudo lá.

Victor olhou para as chamas que agora tomavam completamente o antigo teatro.

— Milo está com as provas — murmurou Sam.

— O quê?

— Você não estava vendo. Eu as dei para Milo.

Victor recostou-se, atônito.

— Quer dizer que você pegou os frascos?

Polowski assentiu.

— Seu... Seu idiota filho de uma...

— Victor! — disse Cathy.

— Ele roubou meu elemento de barganha!

— Ele salvou as nossas vidas!

Victor olhou para Polowski, que lhe devolveu um sorriso dolorido.

— A moça tem a cabeça no lugar — murmurou. — Ouça o que ela tem a dizer.

As sirenes, que já estavam altíssimas, subitamente foram desligadas. Vozes de homens sobrepuseram-se ao rugir das chamas. Um bombeiro corpulento pulou do caminhão e ajoelhou-se ao lado de Polowski.

— O que temos aqui?

— Ferimento a bala — disse Victor. — E um paciente idiota.

O bombeiro assentiu.

— Sem problemas, senhor. Podemos cuidar dele.

Quando Polowski foi embarcado na ambulância, o teatro Saracen já estava reduzido a uma fogueira moribunda.

Victor e Cathy observaram as luzes traseiras da ambulância desaparecerem ao longe, ouviram a sirene se afastar e o sibilar da água sobre as chamas.

Victor se voltou para ela. Sem dizer uma palavra, ele a puxou ao seu encontro e a abraçou com força, duas figuras silenciosas emolduradas por um mar de chamas e caos. Estavam tão cansados que ninguém sabia quem abraçava quem. Apesar da exaustão, entretanto, Cathy sentiu a mágica daquele momento. Eram sobrenaturalmente belas aquelas últimas chamas refletidas nos prédios ao redor. Belas, assustadoras e definitivas.

— Você veio me buscar — murmurou ela. — Oh, Victor, eu estava com tanto medo de que não viesse...

— Cathy, você sabia que eu viria!

— Eu não sabia. Você tinha as provas. Poderia ter me deixado...

— Não, não podia. — E beijou-lhe os cabelos chamuscados.

— Graças a Deus eu não embarquei naquele avião. Eles teriam você, e eu estaria a três mil quilômetros de distância.

Ambos ouviram passos se aproximando sobre a calçada repleta de vidro quebrado.

— Perdão — disse alguém. — Você é Victor Holland?

Ambos se voltaram e viram um homem vestindo uma jaqueta amarrotada e com uma câmera pendurada no ombro.

— Quem é você? — perguntou Victor.

O homem estendeu-lhe a mão.

— Jay Wallace. San Francisco Chronicle. Sam Polowski me ligou dizendo que haveria um espetáculo de fogos de artifício caso eu decidisse verificar. — Ele olhou para o que sobrara do teatro Saracen e balançou a cabeça.

— Parece que cheguei um pouco tarde.

— Espere. Sam ligou para você? Quando?

— Há cerca de duas horas. Se ele não fosse meu ex-cunhado, eu desligaria na cara dele. Há dias ele vem me dando dicas de que tinha uma matéria para mim. Mas não deu seguimento. Eu quase não vinha esta noite. Você sabe, é um longo trajeto da cidade até aqui.

— Ele falou a meu respeito?

— Disse que você tinha uma história para contar.

— Todos não temos?

— Algumas histórias são melhores do que as outras. — O repórter olhou ao redor, procurando. — Onde está Sam, afinal de contas? O idiota não apareceu?

— Aquele idiota — disse Victor, voz tomada pela raiva – é um maldito herói. Escreva isso na sua matéria.

Mais passos se aproximaram. Dessa vez, eram dois policiais.

Cathy sentiu os músculos de Victor se contraírem ao se voltar para a dupla.

O policial mais velho disse:

— Acabamos de ser informado que uma vítima de tiroteio foi levada à emergência. E que vocês estavam na cena do crime.

Victor assentiu. Sua expressão tensa subitamente foi substituída por outra, de avassaladora exaustão. E resignação.

— Eu estava presente — disse ele. — E, se revistarem o prédio, encontrarão três cadáveres.

— Três? — Os policiais se entreolharam.

— Deve ter sido um tremendo espetáculo — murmurou o repórter.

O policial disse:

— Talvez seja melhor nos dizer seu nome, senhor.

— Meu nome... — Victor olhou para Cathy. Ela leu a mensagem naqueles olhos cansados: Chegamos ao fim.

Preciso dizer para eles. Agora, vão me separar de você e nunca mais voltaremos a nos ver...

Cathy sentiu a mão de Victor apertar a sua com mais força. Ela correspondeu, sabendo que logo ele seria tirado dela.

O olhar ainda voltado para o rosto de Cathy, ele disse:

— Meu nome é Victor Holland.

— Holland... Victor Holland? — disse o policial. — Não é aquele...

Victor ainda olhava para ela enquanto lhe puseram as algemas e o levaram em direção a um carro-patrulha.

Ela foi deixada desamparada, tremendo entre as brasas que se extinguiam.

— Senhora, terá de vir conosco.

Ela ergueu a cabeça para o policial.

— O quê? — exclamou, estupefata.

— Espere aí, ela não tem de ir! — interrompeu Jay Wallace.

— Vocês nada têm contra ela!

— Cale-se, Wallace.

— Sei como funcionam os tribunais. Conheço os direitos dela!

Calmamente, Cathy disse:

— Não importa. Irei com você, policial.

— Espere! — disse Wallace. — Quero falar com você primeiro! Tenho apenas algumas perguntas...

— Ela poderá falar com você depois — rebateu o policial, tomando Cathy pelo braço. — Depois que falar conosco.

Os policiais foram educados, até mesmo gentis. Talvez por causa do modo dócil com que ela aceitou a situação, talvez por perceberem que ela estava operando com suas últimas reservas de energia.

Cathy respondeu a todas as perguntas. Deixou-os examinar os ferimentos de corda em seus pulsos. Falou sobre Ollie, Sarah e as outras Catherine Weavers. E durante todo o tempo em que esteve sentada naquela sala na delegacia de Palo Alto, esperou ver Victor. Ela sabia que ele estava por perto. Estariam fazendo as mesmas perguntas para ele naquele momento?

Pela manhã, ela foi liberada.

Jay Wallace a esperava do lado de fora, junto aos degraus da frente da delegacia.

— Preciso falar com você — disse ele quando Cathy saiu.

— Por favor. Agora não. Estou cansada...

— Apenas algumas perguntas.

— Não posso. Preciso... Preciso... — Ela parou de falar e ali, na rua fria e vazia, irrompeu em lágrimas. — Não sei o que fazer. Não sei como ajudá-lo. Não sei como entrar em contato com ele.

— Refere-se a Holland? Já o levaram para São Francisco.

— O quê? — Ela ergueu o olhar assustado para Wallace.

— Há uma hora. Os maiorais do Departamento de Justiça vieram para escoltá-lo. Ouvi dizer que o enviarão para Washington. Tratamento de primeira classe ao longo de todo o trajeto.

Cathy balançou a cabeça, atônita.

— Então ele está bem... Não está preso...

— Droga — disse Wallace, rindo. — O homem agora é um verdadeiro herói.

Um herói. Mas ela não se importava como o chamassem, desde que ele estivesse em segurança.

Cathy inspirou o ar gelado profundamente.

— Você tem um carro, Sr. Wallace? — perguntou.

— Está estacionado ali na esquina.

— Então pode me dar uma carona.

— Para onde?

— Para... — Ela fez uma pausa, perguntando-se para onde ir, pensando em um lugar onde Victor pudesse procurar por ela. Claro. A casa de Milo. — Para a casa de um amigo — disse ela. — Quero estar lá quando Victor ligar.

Wallace apontou o caminho para o carro.

— Espero que seja um longo trajeto — disse ele. — Tenho um bocado de pontos a esclarecer antes de essa história ser publicada.

 

Victor não ligou.

Durante quatro dias ela aguardou junto ao telefone, esperando ouvir a voz dele. Durante quatro dias, Milo e sua mãe lhe trouxeram chá e biscoitos, sorrisos e simpatia.

No quinto dia, ainda sem ter notícias dele, dúvidas terríveis começaram a persegui-la. Ela se lembrou daquele dia junto ao lago, quando ele tentou mandá-la embora com Ollie. Pensou em todas as palavras que ele poderia ter dito, mas não disse. É verdade, ele voltara por ela. Entrara por vontade própria em uma armadilha no teatro Saracen. Mas não teria feito o mesmo por qualquer um de seus amigos? Ele era assim. Cathy salvara sua vida uma vez. Ele se lembrara daquilo e pagara sua dívida. Tinha a ver com honra.

Podia não ter nada a ver com amor.

Cathy deixou de esperar pelo telefonema de Victor.

Voltou para seu apartamento em São Francisco, onde limpou os vidros quebrados, substituiu as janelas, engessou as paredes. Nos dias seguintes, fez longas caminhadas e visitou Ollie e Polowski diversas vezes no hospital.

Qualquer coisa para ficar longe daquele telefone silencioso.

Recebeu uma ligação de Jack.

— Vamos começar a filmar na semana que vem — queixou-se. — E o monstro está horrível. Toda essa umidade!

O rosto dele fica derretendo em uma gosma verde. Venha até aqui e faça algo a respeito, está bem?

Ela respondeu dizendo que pensaria a respeito.

Uma semana depois, decidiu-se. Estava precisando trabalhar.

Gosma verde e atores mal-humorados eram melhores do que esperar por um telefonema que jamais viria.

Cathy reservou uma passagem só de ida de San José até Puerto Vallarta. Então fez a mala, jogando lá dentro todo o seu guarda-roupa. Uma longa estadia, era o que planejava, férias prolongadas.

Contudo, antes de ir embora, iria de carro até Palo Alto.

Ela prometera fazer uma última visita a Sam Polowski.

 

(AP) WASHINGTON.

O porta-voz da administração, Richard Jungkuntz, repetiu hoje que nem o presidente e nem ninguém de seu gabinete tinha qualquer conhecimento sobre as pesquisas de armas químicas realizadas na Viratek Industries, na Califórnia.

O Projeto Cérbero da Viratek, que envolvia desenvolvimento de vírus geneticamente alterados, violava claramente a lei internacional. Provas recentes, recolhidas pelo repórter Jay Wallace do San Francisco Chronicle, revelaram que o projeto recebia fundos autorizados diretamente pelo falecido Matthew Tyrone, um assessor veterano do secretário de Defesa.

Na audiência de hoje no Departamento de Justiça, atrasada em quatro horas devido à forte nevasca, o presidente da Viratek, Archibald Black, testemunhou pela primeira vez, prometendo revelar tudo o que sabia sobre os vínculos diretos entre a administração e o Projeto Cérbero. O testemunho de ontem, dado por um ex-funcionário da Viratek, Dr. Victor Holland, traçou um quadro perturbador de dissimulações, ocultação de escândalos e possível assassinato.

A Procuradoria-Geral continua a resistir às exigências do deputado Leo D. Fanelli, que pede que seja nomeado um promotor especial...

Cathy baixou o jornal e sorriu para seus três amigos no solário do hospital.

— Bem, pessoal. Não acham que têm sorte por estarem na ensolarada Califórnia em vez de estarem congelando os seus traseiros em Washington?

— Está brincando? — queixou-se Polowski. — Daria tudo para comparecer a essas audiências. Em vez de estar atrelado a todos esses... esses troços. — Ele deu um puxão no tubo intravenoso, fazendo o frasco se chocar contra o suporte.

— Paciência, Sam — disse Milo. — Você irá para Washington.

— Rá! Holland já contou para eles a melhor parte. Quando ouvirem o meu testemunho, isso já será notícia velha.

— Não creio — disse Cathy. — Acho que será notícia de primeira página durante um longo tempo. — Ela se voltou e olhou pela janela para o sol que brilhava sobre a grama.

Um longo tempo. Era o quanto demoraria antes que ela voltasse a ver Victor. Se é que voltaria a vê-lo. Três semanas já haviam se passado desde a última vez em que estiveram juntos. Através de Jay Wallace, em Washington, ela soubera que Victor provocava comoção toda vez que aparecia em público, atraindo bandos de repórteres, procuradores federais e autoridades do Departamento de Justiça. Ninguém podia se aproximar dele.

Nem mesmo eu, pensou Cathy.

Era um conforto ter aqueles três amigos com quem conversar. Ollie se recuperara rapidamente e recebera alta — ou fora expulso do hospital, como dissera Milo — apenas oito dias após ser baleado. Polowski passara por um aperto pior. Infecções pós-operatórias, além de um quadro severo de inalação de fumaça, prolongaram sua estadia a ponto de cada dia ter se tornado um tormento para ele. Ele queria sair. Queria voltar ao trabalho. Queria comer um bom Cheeseburger e fumar um cigarro.

Mais uma semana, disseram os médicos.

Ao menos há um fim à vista para a sua espera, pensou Cathy. Já eu não sei quando verei Victor outra vez.

O silêncio era previsível, dissera-lhe Polowski. Isolamento de testemunha. Custódia de proteção. O Departamento de Justiça queria que o caso fosse inviolável e, por isso, manteria sua testemunha principal incomunicável. Para as demais, bastaram os depoimentos. Cathy havia prestado seu testemunho havia duas semanas. Depois, disseram-lhe que ela estava livre para deixar a cidade quando quisesse.

Agora, tinha uma passagem de avião para o México dentro da bolsa.

Cathy se cansara de esperar por telefonemas e de se perguntar se ele a amava ou sentia falta dela. Já passara por aquilo com Jack, as dúvidas, os medos, a lenta, embora inevitável, consciência de que algo estava errado.

Ela não se deixaria ferir outra vez, não desse modo.

Ao menos, apesar de toda a dor, encontrei três novos amigos. Ollie, Polowski e Milo, o trio mais improvável da face da Terra.

— Veja, Sam — disse Milo, remexendo em sua mochila. — Nós trouxemos algo para você.

— Nada de cuecas samba-canção com dançarinas de hulahula, certo? As enfermeiras debocharam de mim até não poder mais.

— Não. É algo para os seus pulmões. Para lembrá-lo de respirar profundamente.

— Cigarros? — perguntou Polowski, esperançoso.

Milo riu e ergueu o presente.

— Um pente!

— Eu estava mesmo precisando.

— Vai precisar — disse Ollie, abrindo o estojo de seu clarinete. — Uma vez que hoje trouxemos nossos instrumentos e não o deixaríamos de fora desse ensaio em particular.

— Você está brincando.

— Que lugar melhor para tocarmos? — disse Milo, acariciando seu flautim. — Todos esses pacientes doentes e deprimidos necessitando de um pouco de estímulo. Um pouco de boa música.

— Um pouco de paz e tranqüilidade! — Polowski voltou-se para Cathy com olhos de quem implora. — Eles não estão falando sério.

Ela olhou para ele e pegou seu pente.

— Seríssimo.

— Muito bem, pessoal — disse Ollie. — Vamos lá!

Nunca antes o mundo ouvira uma interpretação de "Califórnia, Here I Come!" como aquela. E, se o mundo tivesse sorte, jamais voltaria a ouvir. Quando tocaram a última nota, enfermeiras e pacientes haviam acorrido ao solário para verificar a fonte daquele barulho horrível.

— Sr. Polowski! — disse a enfermeira-chefe. — Se suas visitas não conseguem se comportar...

— Vai mandá-las embora? — perguntou Polowski, esperançoso.

— Não precisa — disse Ollie. — Estamos mesmo de saída.

A propósito, pessoal, estamos disponíveis para festas particulares, aniversários, coquetéis. Apenas entrem em contato com nosso empresário — ao ouvir isso, Milo sorriu e acenou — para marcarmos uma apresentação especial para vocês.

Polowski gemeu:

— Quero voltar para a minha cama.

— Ainda não — disse a enfermeira. — Você precisa de um estímulo extra. — Então, com um maroto piscar de olhos para Ollie, ela se voltou e saiu da sala.

— Bem — disse Cathy. — Acho que fiz a minha parte para alegrá-lo. Agora, preciso pôr o pé na estrada.

Polowski olhou para ela, surpreso.

— Vai me deixar com esses lunáticos?

— Tenho de fazê-lo. Preciso pegar um avião.

— Para onde vai?

— México. Jack ligou dizendo que já estão filmando. Então acho que vou até lá preparar alguns monstros.

— E quanto a Victor?

— O que tem ele?

— Achei... quero dizer... — Polowski olhou para Ollie e Milo. Ambos apenas deram de ombros. — Ele vai sentir sua falta.

— Não creio.

Ela se voltou outra vez para olhar pela janela. Lá embaixo, no passeio, havia uma velha sentada em uma cadeira de rodas, rosto pálido voltado para o sol. Logo Cathy estaria desfrutando daquele mesmo sol, em algum lugar em uma praia mexicana.

Pelo seu silêncio, ela percebeu que os três não sabiam o que dizer. Afinal, Victor também era amigo deles. Não podiam defendê-lo ou condená-lo. Nem ela. Ela simplesmente o amava, de um modo que tornava sua decisão de partir ainda mais acertada. Ela já amara antes e sabia que a pior coisa que uma mulher poderia sentir em um homem era a indiferença.

Ela não queria estar por perto para ver aquilo nos olhos de Victor.

Cathy pegou a bolsa e disse:

— Pessoal, acho que é isso.

Ollie balançou a cabeça.

— Realmente gostaria que você ficasse por aqui. Ele voltará algum dia. Além do mais, você não pode desfalcar nosso pequeno grande quarteto.

— Sam pode ocupar o meu lugar como tocador de pente.

— Nem pensar — disse Polowski.

Cathy deu um beijo na cabeça ligeiramente calva do agente.

— Fique bom. O país precisa de você.

Polowski suspirou.

— Fico feliz que alguém precise.

— Escreverei do México!

Cathy pendurou a bolsa no ombro e se voltou. Só conseguiu dar um passo antes de parar, atônita.

Victor estava no vão da porta segurando uma mala. Ele inclinou a cabeça, confuso.

— Que história é essa de México?

Ela não conseguiu responder. Apenas ficou olhando para ele, pensando em quão injusto era o fato de aquele homem, de quem ela tanto tentava escapar, ser tão maravilhoso.

— Chegou bem a tempo — disse Ollie. — Ela está de partida.

— O quê? — Victor baixou a mala e olhou para Cathy, consternado. Somente então ela percebeu suas roupas amarrotadas e a barba de um dia obscurecendo seu rosto.

A ponta de uma meia despontava de um canto da mala fechada.

— Você não pode ir embora — disse ele.

Ela limpou a garganta.

— Foi inesperado. Jack precisa de mim.

— Aconteceu alguma coisa? Alguma emergência?

— Não. Só que eles estão filmando e, bem, as coisas estão uma bagunça no set... — Ela olhou para o relógio, um gesto projetado para acelerar sua fuga. — Olhe, vou perder meu avião. Prometo ligar para você quando...

— Você não é a única maquiadora dele.

— Não, mas...

— Ele pode filmar sem você.

— Sim, mas...

— Você quer mesmo ir embora? É isso?

Cathy não respondeu. Só conseguia olhar para ele sem dizer nada, a angústia evidente em seus olhos.

Gentilmente, embora com firmeza, Victor segurou-lhe a mão.

— Desculpem, pessoal — disse para os outros. — Eu e essa moça vamos dar uma voltinha.

Lá fora, as folhas voejavam pelo jardim queimado pelo inverno.

Caminharam sob uma fileira de carvalhos, através de trechos de sol e sombra. Subitamente ele parou e a voltou para si.

— Diga-me agora — disse ele. — Por que teve essa louca idéia de ir embora?

Ela baixou o rosto.

— Não achei que fizesse muita diferença para você.

— Achou que não faria diferença? Cathy, eu estava subindo pelas paredes, pensando em mil maneiras de fugir daquele quarto de hotel e voltar para você! Você não faz idéia do quanto me preocupei. Perguntava-me se você estava em segurança... se essa loucura havia realmente acabado. Os advogados não me deixavam ligar, não até as audiências terminarem. Consegui escapar e liguei para a casa de Milo. Ninguém atendeu.

— Provavelmente estávamos aqui, visitando Sam.

— E eu estava ficando maluco. Fizeram-me responder as mesmas malditas perguntas diversas vezes. A única coisa em que eu podia pensar era no quanto sentia sua falta. — Cathy balançou a cabeça. — Na primeira oportunidade, peguei um avião. Fiquei horas em Chicago, por causa da neve. Mas consegui. Estou aqui. Bem a tempo, ao que parece. — Ele a tomou pelos ombros com delicadeza. — Agora, diga-me. Ainda vai atrás do Jack?

— Não estou fazendo isso pelo Jack e, sim, por mim mesma. Porque sei que isso não vai funcionar.

— Cathy, depois de tudo o que passamos, podemos fazer qualquer coisa funcionar.

— Não... Não isso.

Lentamente, ele baixou as mãos. Mas seu olhar permaneceu voltado para o rosto dela.

— Naquela noite em que fizemos amor — disse ele. — Aquilo não lhe disse algo?

— Mas você não estava fazendo amor comigo! Você estava pensando em Lily...

— Lily? — Ele balançou a cabeça, confuso. — O que ela tem a ver com isso?

— Você a amava tanto...

— E você já amou Jack. Lembra-se?

— Eu me apaixonei por você. Você não se apaixonou por mim. Não importando o quanto eu tente, nunca me igualarei a ela. Não serei inteligente o bastante, carinhosa o bastante...

— Cathy, pare.

— Nunca serei ela.

— E eu não quero que seja! Eu quero a mulher que se pendurou em escadas de incêndio comigo e me arrastou do acostamento de uma estrada. Quero a mulher que salvou a minha vida. A mulher que se acha comum. A mulher que não sabe quão extraordinária realmente é. — Victor segurou o rosto dela e voltou-o em sua direção. — Sim, Lily era uma mulher maravilhosa. Era sábia, gentil e carinhosa. Mas não era você. E ela e eu... não éramos o casal perfeito. Eu achava que era culpa minha, que se eu fosse um melhor amante...

— Você é um amante maravilhoso, Victor.

— Não. Você não entende? Você é maravilhosa. Você desperta isso em mim. O desejo. — Ele aproximou o rosto do dela e sua voz tornou-se um sussurro. — Quando fizemos amor naquela noite, senti como se fosse a primeira vez. Não, foi ainda melhor. Porque eu a amava.

— E eu o amava — murmurou Cathy.

Ele a abraçou e a beijou, dedos afundando profundamente em seu cabelo.

— Cathy, Cathy — murmurou. — Estivemos tão ocupados tentando sobreviver que não tivemos tempo de dizer tudo o que devíamos...

Os braços de Victor ficaram subitamente tensos quando uma salva de palmas irrompeu acima deles. Ambos ergueram a cabeça. Três rostos sorridentes olhavam para baixo da varanda do hospital.

— Vamos lá, pessoal! — gritou Ollie.

Um clarinete, um flautim e um pente começaram a tocar.

A melodia era desafinada. Ainda assim, Cathy achou ter reconhecido os familiares acordes da música "Someone to Watch Over Me", de George Gershwin.

Victor resmungou:

— Acho que devemos tentar outra vez, mas com uma banda diferente. E sem platéia.

Ela riu.

— México?

— Definitivamente.

Ele segurou a mão dela e a puxou em direção a um táxi estacionado junto ao meio-fio.

— Mas, Victor! — protestou ela. — E quanto à nossa bagagem? Todas as minhas roupas...

Ele a fez calar com outro beijo, que a deixou tonta, sem fôlego e ansiosa por mais.

— Esqueça a bagagem — murmurou Cathy. — Esqueça tudo. Apenas vamos embora...

Eles entraram no táxi. Nesse momento, a banda na varanda do hospital mudou abruptamente de melodia, tocando uma canção que Cathy não reconheceu a princípio.

Então, em meio aos acordes desafinados, o pente entoou um solo que, durante algumas notas, soou perfeitamente afinado. Tocavam Tannhäuser. Música de casamento!

— Que diabos é esse barulho horrível? — perguntou o motorista.

— Música — disse Victor, sorrindo para Cathy. — A mais bela música do mundo.

Cathy se recostou de encontro a Victor e ele a acolheu em seus braços.

O táxi se afastou do meio-fio. Mas mesmo a distância, mesmo depois de deixarem o hospital para trás, acharam poder ouvir ao longe o som do pente de Sam Polowski tocando uma última nota de despedida.



 

[1]Avenida que liga a Casa Branca ao Capitólio. (N. do T.)

                                       

 

                                                                                            Tess Gerritsen

 

 

                      

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