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Esfinge / Robin Cook
Esfinge / Robin Cook

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Esfinge

                   

1301 a. C, túmulo de Tutancâmon, vale dos Reis, necrópole de Tebas, ano 10 de Sua Majestade, rei do Alto e do Baixo Egito, filho de Re, Faraó Seti I, quarto mês da estação da inundação, dia 10.

Emeni empurrou seu formão de cobre através das compactas lâminas de calcário bem à sua frente e sentiu a ferramenta bater contra a sólida alvenaria. Empurrou novamente, para se certificar. Sem sombra de dúvida, chegara à porta interna. Do outro lado jazia um tesouro cuja aparência mal podia imaginar; do outro lado estava a casa da eternidade do jovem faraó, Tutancâmon, enterrado cinqüenta e um anos antes.

Com entusiasmo renovado, abriu caminho por entre o cascalho densamente compactado. A poeira tornava difícil a respiração. O suor escorria-lhe num fluxo contínuo do rosto anguloso. Estava de bruços num túnel escuro como breu, estreito até para seu corpo delgado e rijo. Com a mão em concha, raspava o cascalho que se soltava sob ele até fazê-lo passar sob o pé. Depois, como um inseto enterrado, empurrava as lascas para trás, onde eram recolhidas numa cesta de junco pelo carregador de água, Kemese. Emeni não sentiu dor alguma quando sua mão esfolada tateou na escuridão em direção à parede calcinada à sua frente. As pontas dos dedos dele delinearam o selo de Tutancâmon na porta fechada onde ninguém mexia desde que o jovem faraó fora enterrado.

Descansando a cabeça no braço esquerdo, Emeni dei­xou que o corpo todo se relaxasse. A dor espalhou-se pelos ombros e pôde ouvir às suas costas a respiração ofegan­te de Kemese enquanto ele colocava o cascalho na cesta.

— Chegamos à porta interna — disse Emeni numa mescla de medo e excitação.

Mais do que qualquer outra coisa, Emeni desejava que a noite terminasse. Ele não era um ladrão. Mas ali estava, penetrando no santuário eterno do infeliz Tutancâmon.— Mande Iramen apanhar meu malho.

Emeni percebeu que sua voz tinha um trinado estranho dentro dos estreitos limites do túnel. Kemese gritou de alegria com a novidade, e moveu-se para trás, para fora do túnel, arrastando a cesta de junco.

Depois houve apenas silêncio. Emeni sentia as paredes do túnel fazerem pressão sobre ele. Lutou contra a claustrofobia, lembrando-se de como seu avô Amenemés supervisionara a escavação do pequeno túmulo. Emeni conjeturava se Amenemés havia tocado a superfície imedia­tamente acima dele. Virando o corpo, colocou as mãos na sólida rocha, e isso lhe deu mais confiança. As plantas do túmulo de Tutancâmon que Amenemés dera ao filho Per Nefer, pai de Emeni, que, por sua vez, as dera a Emeni, eram precisas. Emeni cavara exatamente doze côvados desde a porta externa e chegara à porta interna. Do outro lado ficava a antecâmara. Levara duas noites de trabalho extenuante, mas pela manhã estaria terminado. Emeni tencionava apanhar somente quatro estátuas de ouro. cuja localização estava também determinada nas plantas. Uma para ele e uma para cada um dos seus colaboradores. Depois selaria o túmulo novamente. Emeni esperava que os deuses entendessem. Não roubaria para si. Precisava da única estátua de ouro para o pagamento do embalsama­mento completo e dos preparativos funerários de seus pais.

Kemese entrou outra vez no túnel, empurrando na frente a cesta de junco contendo o malho e uma lamparina a óleo. Levava também um punhal de bronze com cabo de osso. Kemese era um ladrão de verdade, sem escrúpulos que detivessem seu apetite por ouro.

Com o malho e o formão, as mãos experientes de Emeni faziam um trabalho rápido na argamassa que sustentava os blocos de pedra à sua frente. Estranhava a insignificância do túmulo de Tutancâmon comparado ao cavernoso túmulo do Faraó Seti I, no qual estava empregado no momento. Mas a insignificância do de Tutancâmon era uma sorte na desgraça, pois de outra forma Emeni nunca teria condições de penetrar no túmulo. O edito formal do Faraó Horemheb, para apagar a memória de Tutancâmon, removera os sacerdotes de Ka do Amen do local, onde eram responsáveis pela guarda, e Emeni precisou apenas subornar o vigia da noite, que tomava conta das cabanas dos trabalhadores, com duas medidas de cereais e cerveja. Talvez nem isso fosse necessário, uma vez que Emeni planejara entrar na casa da eternidade de Tutancâmon durante as festas de Ope. Todos os que trabalhavam na necrópole, incluindo a maior parte das pessoas da aldeia de Emeni, o Lugar da Verdade, estavam se rejubilando, divertindo-se em Tebas, no lado leste do grande Nilo. Contudo, apesar das precauções, Emeni estava mais ansioso do que nunca na vida, e essa ansiedade levou-o a um esforço frenético com o malho e o formão. O bloco à sua frente rangeu e depois caiu no chão da câmara, do outro lado.

O coração de Emeni parou, pois teve a impressão de ser atacado por demônios do mundo subterrâneo. Em vez disso, suas narinas captaram o aromático cheiro do cedro e do incenso e seus ouvidos registraram a solidão da eternidade. Avançou com medo e penetrou no túmulo de cabeça. O silêncio era total, a escuridão impenetrável. Olhando na direção do túnel, para trás viu um fraco lam­pejo de luar enquanto Kemese avançava. Tateando como um cego, procurava passar para Emeni a lamparina a óleo.

— Posso entrar? — perguntou Kemese na escuridão, após ter entregue a lamparina e o pavio.

— Ainda não — respondeu Emeni, ocupado com a lamparina. — Volte e diga a Iramen e a Amasis que ainda vai levar cerca de meia hora antes de começarmos a tapar o túnel.

Kemese resmungou, e como um caranguejo voltou pelo túnel.

Uma chama solitária saltou da pedra e acendeu o combustível. Emeni com muito cuidado aplicou-a ao pavio. A luz ergueu-se e trespassou a escuridão, como uma súbita onda de calor entrando numa sala fria.

Emeni enregelou-se, as pernas quase arqueando. Na meia-luz bruxuleante, conseguiu divisar o rosto de um deus, Amnut, o devorador da morte. A lamparina tremeu em suas mãos vacilantes, e ele apoiou-se na parede. Mas o deus não avançou. Depois, quando a luz iluminou a cabeça de ouro, revelando os dentes de marfim e o corpo esguio, estilizado, Emeni percebeu que estava olhando para uma urna funerária. Havia outras duas, uma com a cabeça de uma vaca, a outra com a cabeça de um leão. À direita, na parede, havia duas estátuas, em tamanho natural, do menino rei, Tutancâmon, guardando a entrada para a câmara mortuária. Emeni já vira estátuas douradas seme­lhantes de Seti I sendo esculpidas na oficina.Emeni desviou-se com muito cuidado de uma coroa de flores secas caídas na soleira da porta. Moveu-se rapidamente, isolando dois relicários de ouro. Com reverência, destravou as portas e retirou as estátuas dos pedestais. Uma delas era uma primorosa estátua de Nekhbet, uma deusa-abutre do Alto Egito; a outra, de Ísis. Nenhuma das duas trazia o nome de Tutancâmon. Isso era importante.

Pegando o malho e o formão, Emeni passou por debaixo da urna funerária de Amnut e rapidamente passou para a câmara lateral. Segundo as plantas de Amenemés, as outras duas estátuas que Emeni desejava estavam num cofre situado nesse cômodo menor. Não dando importância a um estranho pressentimento, Emeni entrou no cômodo, segu­rando a lamparina na sua frente. As paredes eram rocha bruta. Emeni reconheceu a arca que queria pela bela imagem no alto. Para alívio seu, não encontrou objetos aterradores. Ali, esculpida, estava uma jovem rainha oferecendo ao Faraó Tutancâmon buquês de lótus, papiros e papoulas. Mas havia um problema. A tampa estava fechada de maneira engenhosa e não abria. Emeni, com todo o cuidado, colocou a lamparina sobre um pequeno armário de cedro castanho-avermelhado e examinou o cofre mais detidamente. Não percebeu a movimentação no túnel, atrás dele.

Kemese já chegara quase à câmara, seguido de Iramen. Amasis, um núbio enorme, tendo grande dificuldade em empurrar sua carcaça pela passagem estreita, estava bem atrás, mas os outros dois já podiam ver a sombra de Emeni dançando grotescamente no chão e paredes da antecâmara. Kemese segurou o punhal de bronze com os dentes podres e deslizou do túnel para o chão do túmulo. Sem fazer ruído, ajudou Iramen a ficar de pé ao lado dele. Os dois aguardaram, mal ousando respirar, sem fazer quase ruído algum, até que finalmente Amasis entrou na câmara. O medo prontamente metamorfoseou-se em olhos arregala­dos de ganância quando os três camponeses viram o inacreditável tesouro espalhado à sua frente. Nunca tinham visto objetos tão maravilhosos assim, e estavam todos ali, prontos para ser apanhados. Como um grupo de lobos famintos, os três se lançaram sobre as peças cuidadosamen­te arrumadas. Os cofres carregados foram abertos e esvaziados. O ouro que servia de aplique à mobília foi arrancado.Emeni ouviu o primeiro ruído e seu coração pulou no peito. Seu primeiro pensamento foi o de que fora pego em flagrante. Depois ouviu os gritos de excitação dos compa­nheiros e percebeu o que estava acontecendo. Parecia um pesadelo.

— Não, não! — gritou, apanhando a lamparina e dirigindo-se para a saída da antecâmara. — Parem, em nome de todos os deuses, parem!

O som reverberou no pequeno cômodo, fazendo com que, momentaneamente, os três ladrões ficassem meio surpresos e se detivessem em sua pilhagem. Depois Kemese pegou o punhal de cabo de osso. Vendo os gestos, Amasis sorria. Era um sorriso cruel, a luz da lamparina refletindo em seus dentes gigantescos.

Emeni avançou para o malho, mas Kemese colocou o pé em cima do instrumento, prensando-o contra o chão. Amasis esticou o braço e segurou o punho esquerdo de Emeni, firmando a lamparina. Com a outra mão, golpeou a cabeça de Emeni, continuando a segurar a lamparina depois que o escultor caiu sobre o linho real.

Emeni não tinha idéia de quanto tempo ficara desacordado, mas quando a escuridão começou a ceder, o pesadelo voltou. A princípio ouviu vozes falando baixo. Um pequeno reflexo de ouro chegou a seus olhos através de uma falha na parede, e virando um pouco a cabeça para diminuir a dor que sentia, olhou para a câmara mortuária. Agachando-se entre as estátuas betumizadas de Tutancâ­mon, Emeni conseguiu ver a silhueta de Kemese. Os camponeses estavam violando o santuário sagrado, o mais sagrado de todos.

Sem fazer ruído, Emeni mexeu cada um dos membros. O braço esquerdo e a mão esquerda estavam entorpecidos, por baixo do corpo, mas fora isso sentia-se bem. Tinha que encontrar ajuda. Calculou a distância até a saída do túnel. Estava perto, mas seria difícil chegar lá sem fazer barulho. Erguendo os pés sob o corpo, Emeni rastejou, esperando que o latejamento na cabeça passasse. Subitamente, Kemese voltou-se, segurando uma pequena estátua dourada de Hórus. Viu Emeni e estacou por um instante. Depois, com um rugido, precipitou-se para o centro da antecâmara em direção ao escultor entorpecido.

Ignorando a dor que sentia, Emeni enfiou-se no túnel, esfregando o peito e o abdômen no chão pegajoso. Mas Kemese mexeu-se rapidamente e conseguiu segurar um tornozelo dele. Firmando-se como podia, gritou chamando Amasis. Emeni virou o corpo, ficou de costas e chutou violentamente com o pé que estava livre, acertando o rosto de Kemese. A mão do outro largou o tornozelo de Emeni, que conseguiu rastejar para a saída do túnel, apesar da dor que lhe causavam os inúmeros cortes que sofrera ao se arrastar pelo cascalho. Chegou ao ar seco da noite e correu em direção à cabina de guardas da necrópole, na estrada que vai para Tebas.

Atrás dele, no túmulo de Tutancâmon, o pânico tomou conta dos outros. Os três ladrões sabiam que sua única chance de escapar era sair imediatamente, mesmo que só tivessem entrado em um dos santuários de ouro. Amasis relutantemente saiu da câmara mortuária carregado de estátuas de ouro. Kemese envolveu um punhado de anéis de ouro maciço num pedaço de pano, para não deixá-los cair no chão cheio de pedras. Rapidamente colocaram o produto de seu saque nas cestas de junco. Iramen abaixou a lamparina e empurrou sua cesta pelo túnel. Kemese e Amasis o seguiram, deixando cair um pedestal de alabastro na soleira da porta. Uma vez fora do túmulo, começaram a subir na direção sul, no lado oposto ao da cabina de guardas. Amasis estava carregado. Para deixar a mão direita livre, escondeu uma taça de alabastro atrás de uma pedra, e de­pois juntou-se aos demais. Passaram pelo caminho que levava ao túmulo de Hatshepsut, rumando em sentido contrário, na direção do acampamento dos operários. Uma vez fora do vale, tomaram a direção oeste e entraram nas vastas planí­cies do deserto da Líbia. Estavam livres, e ricos, muito ricos.

 

Emeni jamais conhecera a tortura, embora em deter­minada ocasião tivesse imaginado se suportaria ser tortura­do. Não suportaria. A dor aumentava, com surpreendente rapidez, passando de tolerável a insuportável. Disseram que ele seria submetido à vara. Não imaginou o que seria aquilo até que quatro guardas fortes, que trabalhavam na necrópole, o forçaram a se deitar numa mesa baixinha, segurando-o pelas extremidades. Um quinto guarda co­meçou a bater nas solas dos pés de Emeni sem misericórdia.

— Parem, vou contar tudo — disse Emeni, ofegante.

Mas ele já dissera tudo, cinqüenta vezes. Gostaria de poder desmaiar, mas não conseguia. Sentia como se seuspés estivessem em brasa, comprimidos contra carvão incandescente. A agonia era intensificada pelo sol forte do meio-dia. Emeni gritava como um cachorro sendo esfa­queado. Tentou morder o braço que segurava seu punho direito, mas foi puxado para trás pelos cabelos por alguém que não conseguiu ver.

Quando Emeni finalmente estava a ponto de enlou­quecer, o Príncipe Maya, chefe de polícia da necrópole, acenou casualmente com suas mãos bem-tratadas, indican­do que o espancamento deveria cessar. O guarda que estava com a vara ainda deu uma pancada, antes de sair. O Príncipe Maya, desfrutando o aroma do lótus que trazia normalmente consigo, voltou-se para seus convidados: Nebmare-nahkt, prefeito da Tebas ocidental; e Nenephta, supervisor e arquiteto-chefe de Sua Majestade, o Faraó Seti I. Ninguém disse nada, e então Maya voltou-se para Emeni, que fora solto e agora estava deitado de costas, ainda sentindo os pés em brasa.

— Conte-me outra vez, escultor, como você sabia o caminho para o túmulo do Faraó Tutancâmon.

Emeni foi empurrado, de modo que ficasse sentado, as imagens dos três nobres dançando à sua frente. Aos poucos sua vista clareou. Reconheceu o exaltado arquiteto Ne­nephta.

— Meu avô — disse Emeni com dificuldade. — Ele deu os planos do túmulo ao meu pai, que os deu a mim.

— Seu avô era escultor do túmulo do Faraó Tutan­câmon?

— Sim — respondeu Emeni. Continuou a explicar que só queria o dinheiro suficiente para embalsamar seus pais. Pediu misericórdia, enfatizando que desistira ao ver os companheiros violando o túmulo.

Nenephta observava um falcão fazendo uma espiral, sem dificuldade, no céu cor de safira. Sua mente vagava, deixando o interrogatório de lado. Estava preocupado com esse roubo do túmulo. Era um choque ver que todos os seus esforços para garantir a casa da eternidade de Sua Majestade haviam sido facilmente destruídos. Subitamente, interrompeu Emeni.

— Você trabalha no túmulo do Faraó Seti I?

Emeni assentiu. Interrompera sua súplica na metade. Temia Nenephta. Todos temiam Nenephta.

— Você acha que o túmulo que estamos construindo pode ser roubado?— Qualquer túmulo pode ser roubado desde que não esteja sendo vigiado.

A raiva tomou conta de Nenephta. Com grande dificuldade controlou-se para não espancar, pessoalmente, aquela hiena humana, que representava tudo o que ele odiava. Emeni sentiu a animosidade e encolheu-se na direção de seus torturadores.

— E o que você sugere para protegermos o faraó e seu tesouro? — perguntou Nenephta finalmente, com a voz trêmula de raiva.

Emeni não sabia o que dizer. Baixou a cabeça e suportou o silêncio esmagador. Só conseguia pensar na verdade.

— É impossível proteger o faraó — disse finalmente. — Como aconteceu no passado e da mesma forma que acontecerá no futuro. Os túmulos serão roubados.

Com uma velocidade que desafiava sua compleição, Nenephta levantou-se do lugar e esbofeteou Emeni com as costas da mão.

— Verme. Como ousa falar de modo tão insolente do faraó?

Nenephta dirigiu-se para Emeni novamente, mas a dor do primeiro soco, em sua mão, o deteve. Em vez de bater em Emeni, ajeitou a túnica de linho e acrescentou:

— Já que você é um especialista em roubar túmulos, por que sua aventura falhou?

As pupilas de Nenephta subitamente dilataram-se, ape­sar do sol forte. Seu rosto ficou lívido. A mudança foi tão evidente que até mesmo o sonolento Nebmare-nahkt per­cebeu, parando no ar a mão em que segurava uma tâmara.

— Sua Excelência está bem? — Nebmare-nahkt incli­nou-se para a frente para ver melhor o rosto de Nenephta.

Mas a mente ágil de Nenephta desafiou seu rosto. As palavras de Emeni continham uma súbita revelação. Um meio sorriso apareceu em meio às rugas do seu rosto. Voltando-se para a mesa, dirigiu-se a Maya num tom de excitação.

— O túmulo do Faraó Tutancâmon foi selado nova­mente?

— Logicamente — disse Maya. — Imediatamente.

— Abra-o de novo — ordenou Nenephta, voltando-se outra vez para Emeni.

— Abri-lo novamente? — perguntou, surpreso, Maya. Nebmare-nahkt deixou sua tâmara cair.— Sim. Quero eu mesmo entrar naquele miserável túmulo. As palavras deste escultor deram-me uma inspi­ração, lembrança do grande Imhotep. Agora sei como guardar os tesouros do nosso Faraó Seti I para toda a eternidade. Não consigo acreditar que não tenha pensado nisso antes.

Pela primeira vez Emeni sentiu uma ponta de esperança. Mas o sorriso de Nenephta desapareceu assim que ele se voltou para o prisioneiro. Suas pupilas voltaram ao normal e seu rosto fechou-se como o céu nas tempestades de verão.

— Suas palavras foram úteis — disse Nenephta —, mas elas não pagam seus atos vis. Você será julgado, mas eu serei seu acusador. Você morrerá da maneira prescrita. Será enterrado vivo sob as vistas dos seus iguais, e seu corpo será deixado para as hienas.

Acenando para que os assessores trouxessem sua cadeira, Nenephta voltou-se para os outros nobres.

— Os senhores serviram bem ao faraó por hoje.

— Esse é meu desejo ardoroso, Excelência — respon­deu Maya. — Mas não entendo.

— Não é para você entender. A inspiração que tive hoje será o segredo mais bem guardado do universo. Durará para toda a eternidade.

 

26 de novembro, 1922

Túmulo de Tutancâmon, vale dos Reis, necrópole de Tebas.

A excitação era contagiante. Mesmo o sol do Saara projetando-se diretamente do céu sem nuvens não conse­guia diminuir o suspense. Os felás aumentaram seus passos à medida que traziam cestas e mais cestas de cascalho da entrada do túmulo de Tutancâmon. Tinham chegado a uma segunda porta que ficava num corredor a cerca de dez metros da primeira. Essa também fora selada havia três mil anos. O que ficava por trás dela? Estaria o túmulo vazio como todos os demais, que tiveram as antigüidades roubadas? Ninguém sabia.

Sarwat Raman, o feitor que usava turbante, subiu os dezesseis degraus até o nível do solo, o rosto coberto com uma nuvem de poeira semelhante a farinha de trigo. Apertando a túnica, caminhou na direção da tenda, o único pedaço de sombra no desumanamente ensolarado vale.

— Peço que informe Sua Excelência de que a entrada do corredor já está toda limpa — disse Raman, curvando-se levemente. — A segunda porta, no momento, está à vista.

Howard Carter desviou o olhar da limonada, piscando sob o chapéu de feltro que insistia em usar apesar do calor estonteante.

— Muito bom, Raman. Vamos inspecionar a porta assim que a poeira assentar.

— Esperarei suas honrosas instruções. — Raman virou-se e saiu.

— Você é uma pessoa fria, Howard — disse Lorde Carnarvon, que recebera o nome cristão de George Edward Stanhope Molyneux Herbert. — Como você consegue se sentar aqui e acabar de tomar sua limonada sem saber o que há atrás daquela porta? — Carnarvon sorriu e piscou para sua filha, Lady Evelyn Herbert. — Agora posso entender por que Belzoni usou um aríete quando encontrou o túmulo de Seti I.

— Meus métodos são diametralmente opostos aos de Belzoni — retrucou Carter, na defensiva. — E os métodos de Belzoni foram devidamente recompensados com um túmulo vazio, a não ser pelo sarcófago. — O olhar de Carter desviou-se involuntariamente para a abertura do túmulo de Seti I. — Carnarvon, não estou realmente certo do que encontramos aqui. Acho que não devemos nos permitir ficar tão entusiasmados. Não tenho nem certeza se é um túmulo. O desenho não é típico de um faraó da oitava dinastia. Pode ser simplesmente um esconderijo dos pertences de Tutancâmon trazidos de Akhetaten. Além disso, os ladrões de túmulos chegaram antes de nós, não apenas uma, mas duas vezes. Minha única esperança é que tenha sido roubado na Antigüidade e que alguém tenha achado importante selá-lo novamente. De forma que não tenho idéia do que vamos encontrar.

Mantendo sua fleuma inglesa, Carter permitiu que seus olhos vagassem pelo desolado vale dos Reis. Mas seu estômago estava incomodando. Jamais estivera tão excitado em seus quarenta e nove anos. Nas seis estações anteriores de escavações infrutíferas, não encontrara nada. Duas mil toneladas de cascalho e areia haviam sido removidas e peneiradas, sem qualquer resultado. Agora, a súbita descoberta depois de apenas cinco dias de escavação era sufocante. Bebendo sua limonada, tentava não pensar nem ter esperança. Esperavam. O mundo inteiro esperava.

 

O grosso da poeira assentou no corredor inclinado. O grupo esforçava-se para não agitar o ar quando entrava. Carter foi o primeiro, seguido de Carnarvon, depois sua filha e finalmente A. R. Callender, assistente de Carter. Raman esperou na entrada depois de dar a Carter uma alavanca. Callender carregava uma grande lanterna e velas.

— Como eu disse, não somos os primeiros a penetrar nesse túmulo — disse Carter, apontando, de modo nervoso, para o canto superior do corredor. — Entraram por aquela porta e depois ela foi selada novamente. — Depois fez um círculo na parte central. — E novamente nesta área maior, aqui. Isso é muito estranho.

 

Lorde Carnarvon curvou-se para ver o selo da necrópole real, um chacal preso a nove prisioneiros.— Ao longo da base da porta há exemplos do selo original de Tutancâmon — continuou Carter.

O facho de luz da lanterna deixava ver a poeira fina suspensa no ar, antes de mostrar os selos antigos.

— Agora, então — prosseguiu Carter, tão sem emoção como se estivesse sugerindo o chá das cinco —, vamos ver o que há atrás da porta.

Mas seu estômago contorceu-se, mostrando mais ainda a presença da úlcera, e suas mãos ficaram úmidas, menos pelo calor do que pela tensão reprimida. Seu corpo tremia quando levantou a alavanca e deu os primeiros golpes no reboco antigo. Os pedaços iam caindo a seus pés. O esforço deu vazão a suas emoções, e cada estocada era mais vigorosa que a anterior. Subitamente o instrumento penetrou no reboco, fazendo com que Carter se desequili­brasse. Um ar quente saiu pelo pequeno buraco, e Carter, meio sem jeito com os fósforos, acendeu uma vela e chegou a chama perto da abertura da parede. Era um teste rudimentar para ver se havia oxigênio. A vela continuou acesa.

Ninguém disse nada quando Carter deu a vela a Callender e continuou a trabalhar com a alavanca. Cuidadosamente alargou o furo, certificando-se de que o reboco e as pedras caíam no corredor e não dentro da câmara. Pegando a vela outra vez, Carter enfiou-a pelo buraco. Ela continuou acesa. Colocou então a cabeça no buraco, os olhos lutando contra a escuridão.

Por um instante o tempo parou. Quando os olhos de Carter se adaptaram, três mil anos desapareceram num minuto. Em meio à escuridão surgiu a cabeça dourada de Amnut, com seus dentes de marfim. Outros animais de ouro surgiram aos poucos, a luz tremeluzente da vela lançando suas imagens contra a parede.

— Viu alguma coisa?

— Sim, coisas magníficas — respondeu Carter final­mente, sua voz não conseguindo esconder, pela primeira vez, a emoção. Depois substituiu a vela pela lanterna, e os que estavam atrás dele puderam ver a câmara com seus objetos inacreditáveis. As cabeças de ouro faziam parte de três urnas fundiárias. Levando a luz para a esquerda, Carter deslumbrou-se com uma mistura de peças de ouro amontoadas naquele canto. Trazendo a luz para a direita, começou a fazer conjecturas sobre o estado caótico do cômodo. Em lugar das coisas arrumadas em seus devidos lugares, parecia que os objetos tinham sido jogados ali ao acaso. Mais para a direita ficavam duas estátuas de Tutancâmon em tamanho natural, cada uma delas com um aplique de ouro, sandálias de ouro e armadas de clave e bastão.

Entre as duas estátuas havia outra porta selada.

Carter deixou a abertura, de modo que os outros puderam ver melhor o que havia lá dentro. Como Belzoni, ficou tentado a derrubar as paredes e penetrar na câmara. Em vez disso, calmamente anunciou que o resto do dia seria destinado às fotos da porta selada. Não tentariam entrar no que provavelmente era uma antecâmara até a manhã seguinte.

 

27 de novembro, 1922

Levou mais de três horas para que Carter conseguisse desmantelar o bloqueio da porta da antecâmara. Raman e alguns outros felás ajudaram nessa parte do trabalho. Callender puxara alguns fios elétricos, temporariamente, de modo que o corredor estava bem claro. Lorde Carnarvon e Lady Evelyn entraram no corredor quando o trabalho já estava quase terminado. As últimas cestas de reboco e pedra foram levadas. Chegara o momento da entrada. Ninguém falava. Do lado de fora, na boca do túmulo, centenas de repórteres de jornais do mundo inteiro esperavam, tensos, a hora de ali entrarem.

Por um breve segundo Carter hesitou. Como cientista, ele estava interessado em cada minúsculo detalhe do interior do túmulo; como ser humano estava confuso por sua intrusão no reino sagrado da morte; e como explorador estava vivendo a experiência da alegria da descoberta. Mas, britânico até o fundo da alma, simples­mente endireitou a gravata-borboleta e cruzou a soleira da porta, com os olhos atentos aos objetos que estavam no chão.

Sem fazer barulho, apontou para uma taça lótus de alabastro translúcido que estava perto da porta, de modo que Carnarvon conseguiu desviar o pé a tempo. Carter então encaminhou-se para a porta selada que ficava entre as duas estátuas de Tutancâmon em tamanho natural. Cuidadosamente começou a examinar os selos. Seu coração se decepcionou quando percebeu que essa porta também havia sido aberta pelos antigos ladrões de túmulo, e depois selada novamente.

Carnarvon entrou na antecâmara, maravilhado com a beleza dos objetos espalhados tão descuidadamente em torno dele. Voltou-se para segurar a mão da filha quando ela se preparava para entrar e nisso viu um papiro enrolado pendurado na parede, ao lado da taça de alabastro. Para a esquerda ficava uma coroa de flores mortas, como se Tutancâmon tivesse tido seu funeral no dia anterior, e ao lado da coroa uma lamparina empretecida. Lady Evelyn entrou, segura pela mão do pai, seguida por Callender. Raman curvou-se para dentro da antecâmara, mas não entrou por falta de espaço.

— Infelizmente já entraram na câmara mortuária e a selaram novamente — disse Carter, apontando para a porta à sua frente. Cuidadosamente, Carnarvon, Lady Evelyn e Callender encaminharam-se na direção do arqueólogo, seus olhos seguindo o dedo dele. Raman entrou na antecâmara.

— Curiosamente, contudo — continuou Carter —, só entraram aqui uma vez, e não duas, como aconteceu na antecâmara. Então há esperança de que os ladrões não tenham chegado até a múmia. — Carter virou-se, vendo Raman pela primeira vez. — Raman, não lhe dei permissão para entrar na antecâmara.

— Eu lhe peço perdão, Excelência. Pensei que podia ser útil.

— Realmente. Você pode ser útil certificando-se de que ninguém entre aqui sem minha aprovação pessoal.

— É claro, Excelência. — Raman silenciosamente desa­pareceu da câmara.

— Howard — disse Carnarvon —, sem sombra de dúvida Raman está tão maravilhado quanto nós com a descoberta. Talvez você pudesse ser um pouco mais generoso.

— Todos os trabalhadores poderão ver esta sala, mas eu direi quando — respondeu Carter. — Agora, como estava dizendo, a razão pela qual tenho esperanças quanto à múmia é que penso que os ladrões de túmulo foram surpreendidos no meio do sacrilégio. Há algo de misterio­so no modo como essas preciosidades estão jogadas a esmo. Parece que alguém gastou algum tempo arrumando isso depois dos ladrões, mas não o tempo suficiente para colocar tudo da maneira como estava. Por quê?

Carnarvon deu de ombros.

— Veja a bela taça perto da porta — continuou Carter. — Por que não foi colocada no lugar original? E aquele relicário de ouro com a porta entreaberta. Obviamente uma estátua foi roubada, mas por que a porta não foi fechada? — Carter caminhou de volta para a porta. — E essa lamparina ordinária. Por que foi deixada dentro do túmulo? Eu lhes digo, é melhor gravarmos a posição de cada objeto nesta sala com muito cuidado. Esses indícios querem nos dizer alguma coisa. É tudo muito estranho.

Sentindo a tensão de Carter, Carnarvon tentou ver o túmulo pela óptica do seu experimentado amigo. Realmen­te, deixar uma lamparina a óleo dentro do túnel era surpreendente, e também o era a desordem das coisas. Mas Carnarvon estava tão oprimido pela beleza dos objetos que não conseguia pensar em mais nada. Olhando fixamente para a taça de alabastro translúcido abandonada de modo tão descuidado no chão, sentiu vontade de apanhá-la e tocá-la com as mãos. Subitamente percebeu uma mudança no seu im­pulso ao olhar a coroa de flores e a lamparina. Ia dizer algu­ma coisa quando a voz excitada de Carter ecoou na câmara.

— Há outra sala. Dêem, todos, uma olhada.

Carter estava agachado, focalizando a lanterna por sob uma das urnas funerárias. Carnarvon, Lady Evelyn e Callender correram para perto dele. Lá, brilhando no círculo de luz da lanterna, estava outra sala, cheia de jóias e tesouros. Como na ante-sala, os objetos preciosos estavam caoticamente espalhados, mas, naquele momento, o impac­to da descoberta não permitiu aos egiptólogos questionar o que acontecera três mil anos antes.

Mais tarde, quando estavam prontos a explorar o mistério, Carnarvon já estava mortalmente doente, com o sangue envenenado. Às duas horas da madrugada do dia 5 de abril de 1923, menos de vinte semanas após a abertura do túmulo de Tutancâmon e durante um inexplicável blackout de cinco minutos em todo o Cairo, Lorde Carnarvon morreu. Sua doença foi atribuída a uma picada de inseto, mas começaram a surgir perguntas.

Dentro de quatro meses, pessoas associadas com a abertura do túmulo morreram em circunstâncias misterio­sas. Um homem desapareceu do convés do seu iate, que estava ancorado no plácido Nilo. O interesse nos antigos roubos de túmulo decresceu e foi substituído pela afirmação da crença dos antigos egípcios nas ciências ocultas. O fantasma da "praga dos faraós" ressurgiu das sombras do passado. O Times de Nova York escreveu sobre as mortes: "É um profundo mistério, que o ceticismo descarta facilmente demais". O medo começou a infiltrar-se na comunidade científica. Havia coincidências demais.

 

Dia 1 - Cairo, 15:00

A reação de Erica Baron foi puro reflexo. Os músculos das costas e das coxas contraíram-se e ela curvou-se para ver quem a molestara. Curvara-se para examinar um vaso de metal esculpido quando sentiu aquela mão enfiar-se por entre suas pernas, segurando-a pela roupa de algodão. Embora já tivesse sido objeto de diversos olhares lascivos, e mesmo de comentários obviamente ligados a sexo desde que deixara o Hilton Hotel, não esperava ser tocada. Foi um choque. Seria um choque em qualquer parte, mas no Cairo, em seu primeiro dia, parecia muito pior.

O rapaz tinha cerca de quinze anos, e um sorriso cínico que mostrava uma fileira de dentes amarelados. A mão com que a tocara ainda estava estendida.

Esquecendo-se de sua bolsa de lona, Erica usou a mão esquerda para empurrar o braço do rapazinho para o lado. Depois, surpreendendo-se mais que ao rapaz, fechou a mão direita e acertou o rosto do atrevido, colocando toda a sua força nisso.

O efeito foi estonteante. O soco pareceu um bom golpe de caratê, arremessando o surpreso rapaz contra as fracas mesas do vendedor de objetos de metal. As pernas das mesas arquearam-se, as mercadorias caíram na rua calçada de pedras. Outro menino, carregando café e água numa bandeja de metal suspensa por um tripé, foi pego pela avalancha e também caiu, aumentando a confusão.

Erica estava horrorizada. Sozinha no superlotado bazar do Cairo, continuou segurando a bolsa, custando a crer realmente que tinha batido em alguém. Começou a tremer, certa de que a multidão iria contra ela, mas um riso incontrolável explodiu em torno dela. Mesmo o dono da loja, cujos artigos ainda rolavam pela rua, estava gargalhando. O rapaz levantou-se do meio dos destroços e, com a mão no rosto, forçou um sorriso.

— Maareish — disse o dono da loja, o que Erica mais tarde veio a saber que significava "dá-se um jeito" ou "não se incomode". Fingindo estar furioso, ele mostrou o martelo para o rapazinho e o fez ir embora. Depois de lançar um sorriso educado a Erica, começou a recolher seus pertences.

Erica afastou-se, o coração ainda batendo apressada­mente devido à experiência que vivera, mas percebendo que tinha muito a aprender sobre o Cairo e sobre o Egito moderno. Fora treinada como egiptóloga, mas infelizmente isso significava conhecimento da civilização antiga do Egito, e não da moderna. Sua especialização em escrita hieroglífi­ca do Novo Reino não lhe dava nenhuma base para o Cairo de 1980. Desde sua chegada há vinte e quatro horas, seus sentidos foram atacados sem misericórdia. Primeiro o odor: um cheiro enjoativo de carneiro que parecia penetrar em todos os cantos da cidade. Depois foi o barulho: um ruído constante de buzinas de automóveis misturado a uma gritaria de inúmeros rádios portáteis tocando música árabe desencontradamente. Finalmente a sensação de poeira, sujeira e areia que cobria toda a cidade como um manto, acentuando a pobreza.

O episódio com o rapaz minou a confiança de Erica. Em sua mente, todos os sorrisos de homens com seus bonés e suas túnicas começaram a lhe trazer pensamentos lascivos. Era pior que em Roma. Meninos que não passavam dos dez anos davam risinhos e lhe faziam perguntas numa mistura de inglês, francês e árabe. O Cairo era estranho, mais estranho do que ela pensara. Mesmo as placas das ruas eram escritas na incompreensível e decorativa escrita árabe. Olhando por sobre o ombro, na direção de Shari el Muski, para o Nilo, Erica pensou em voltar para o lado ocidental da cidade. Talvez a idéia de vir sozinha para o Egito fosse ridícula. Richard Harvey, seu amante há três anos, e mesmo sua mãe, Janice, haviam lhe dito isso. Ela voltou-se novamente, olhando o coração da cidade medieval. A rua estreitava-se, sob a compressão da massa de pessoas.

— Baksheesh — disse uma menina que não devia ter mais de seis anos. — Lápis para a escola. — O inglês era nítido e surpreendentemente claro.Erica olhou para a menina, cujo cabelo se achava escondido pela mesma poeira que cobria a cidade. Erica curvou-se para lhe sorrir e subitamente a segurou. A menina usava um vestido velho cor de laranja e não tinha sapatos. Em torno das pestanas da garota havia três iridescentes moscas esverdeadas. A menininha não fazia nenhum movimento para espantá-las. Ela simplesmente permanecia sem piscar, com a mão esticada. Erica imobilizou-se.

— Cuidado!

Um policial em uniforme branco, com um distintivo azul onde se lia em letras bem chamativas "Polícia Para Turistas", abriu caminho até Erica. A menina perdeu-se na multidão. Os meninos com sorrisos furtivos desapare­ceram.

— Posso ajudar em alguma coisa? — perguntou, com um perceptível sotaque inglês. — Parece que a senhora está perdida.

— Estou procurando o Bazar Khan el Khalili — disse Erica.

— Tout à droite — disse o policial, apontando na direção do bazar. Depois bateu na testa com a mão. — Desculpe. É o calor. Misturei os idiomas. Bem ali em frente, como a senhora diria. Essa é a Rua El Muski, e em frente a senhora atravessará a Shari Port Said. O Bazar Khan el Khalili estará à sua esquerda. Desejo-lhe boas compras, mas lembre-se de barganhar. Aqui no Egito isso é um esporte.

Erica agradeceu e enfiou-se no meio da multidão. Logo que o policial desapareceu, os meninos milagrosamente reapareceram e os inúmeros vendedores ofereceram-lhe suas mercadorias. Ela passou por um açougue ao ar livre, onde um carneiro morto há pouco estava pendurado e esfolado, menos na cabeça, e coberto por marcas verme­lhas, que representavam os selos do governo. As carcaças eram penduradas de cabeça para baixo, os olhos esgazeados fazendo com que ela recuasse, enojada com o cheiro dos restos. O mau cheiro rapidamente se misturou ao odor de mangas passadas vindo de uma carroça de frutas e ao fedor da defecação recente de um burro, na rua. Uns poucos passos adiante, havia o vivido cheiro de ervas e temperos fortes e o aroma de café árabe fresco.

A poeira da estreita e superlotada rua subia e filtrava os raios de sol clareando de leve o céu levemente azulado e sem nuvens. As casas encobertas de poeira, de ambos os lados da rua, estavam fechadas para evitar o calor da tarde.

Quando Erica penetrou mais no bazar, ouvindo o ruído de velhas rodas de madeira no granito que calçava a rua, sentiu-se retroagir no tempo até o Cairo medieval. Sentiu o caos, a pobreza e o lado rude da vida. Estava simultaneamente assustada e excitada pela existência daquela fertilidade rústica, os mistérios universais que são tão cuidadosamente camuflados e escondidos pela cultura ocidental. Era a vida nua e crua, mas, contudo, cheia de emoção humana; o destino era recebido com resignação e até com sorrisos.

— Cigarros? — pediu um menino com cerca de dez anos. Estava vestindo uma camisa cinza e calças largas. Um dos seus amigos o empurrou, de sorte que ele foi parar mais perto de Erica. — Cigarro? — pediu novamente, usando uma espécie de canto árabe e fingindo fumar um cigarro, com gestos exagerados. Um alfaiate, ocupado em passar roupa com um ferro a carvão, sorriu, e uma fileira de homens fumando cachimbos cheios de curvas intrinca­das olharam para Erica de modo penetrante, sem piscar.

Arrependia-se de estar usando aquelas roupas de estrangeira. O conjunto de algodão e a blusa de tricô tornavam claro que ela era uma turista. As outras mulheres em roupas ocidentais que Erica vira estavam de vestido, e não de calça comprida, e a maioria das mulheres no bazar ainda usava a tradicional roupa preta. Até o corpo de Erica era diferente do corpo das mulheres locais. Embora estivesse com alguns quilos a mais, era bem mais esbelta que as mulheres egípcias. E seu rosto era muito mais delicado do que as fisionomias redondas, pesadas, que enchiam o bazar. Tinha olhos verde-acinzentados bem grandes, cabelos de um castanho luxuriante, e a boca esculturalmente desenhada e o lábio inferior carnudo davam-lhe um ar atrevido. Ela sabia que era bonita quando queria, e quando queria, os homens correspondiam.

Agora, abrindo caminho pelo congestionado bazar, lamentava que tivesse tentado parecer atraente. Suas roupas acentuavam o fato de que ela não estava protegida pela moralidade local e, mais importante ainda, ela estava sozinha. Catalisava perfeitamente as fantasias dos homens que a estavam olhando.

Segurando a bolsa de pano bem junto ao corpo, Erica apressou-se quando a rua novamente se estreitou num pedaço em que as pessoas se dedicavam a toda a sorte de manufatura e comércio. Pendurados, estavam tapetes e roupas, estendidos entre as casas para demarcar a área do comércio, protegendo do sol mas aumentando o barulho e a poeira. Erica outra vez hesitou, olhando as diversas caras largas. Os felás eram de compleição larga, com bocas bem grandes e lábios grossos, vestindo túnica e o tradicional fez. Os beduínos eram árabes puros, esbeltos, rijos, com fisionomias rudes. Os núbios eram escuros, tremendamen­te fortes e com troncos musculosos, sempre com o peito nu.

A multidão empurrou Erica para adiante e mais para o fundo do Khan el Khalili. Ela se viu imprensada contra uma grande variedade de pessoas. Alguém a beliscou por trás, mas quando ela se voltou não conseguiu ver quem tinha feito isso. Havia cinco ou seis meninos que a seguiam de modo persistente. Estava sendo seguida como um coelho numa caçada.

O objetivo de Erica no bazar era ver a seção de ourivesaria, onde queria comprar alguns presentes. Mas sua vontade diminuiu quando alguém com os dedos sujos puxou seu cabelo. Já suportara o bastante. Queria voltar ao hotel. Sua paixão pelo Egito significava a antiga civilização com sua arte e seus mistérios. O moderno Egito urbano era demais se absorvido assim de uma vez. Erica queria visitar os monumentos, como Saqqara, e acima de tudo desejava ir para o Alto Egito, para o interior. Sabia que seria como sonhara.

Na esquina seguinte dobrou à direita, desviando-se de um jumento que estava morto, ou quase. Não se mexia, e ninguém dava atenção ao pobre animal. Tendo estudado um mapa da cidade antes de sair do Hilton, ela achava que deveria chegar a uma praça em frente à Mesquita de Al Azhar se seguisse na direção sudeste. Abrindo caminho entre um grupo de vendedores barganhando pavões magros em gaiolas de bambu, Erica chegou a um lugar de onde avistava um ponto elevado à sua frente, e uma praça iluminada.

Subitamente parou. O menino que pedira cigarro e que a estava seguindo, agora, chocou-se com ela, mas afastou-se sem ser percebido. Os olhos de Erica foram atraídos para um cartaz numa janela. Em frente a ela estava uma peça de cerâmica em forma de urna rasa. Era um pedacinho do antigo esplendor do Egito reluzindo em  meio à moderna miséria. Apesar de um pouco lascado na boca, o vaso não estava quebrado. Mesmo os furinhos feitos na peça, aparentemente para pendurá-la, ainda estavam intactos. Sabendo que o bazar estava cheio de falsificações, com preços altos para atrair turistas, Erica mesmo assim ficou fascinada pela aparente autenticidade da peça. As falsificações costumeiras eram figuras mumiformes. Esse era um belo exemplo da cerâmica egípcia da época anterior às dinastias, tão bom quanto o que vira no Museu de Belas-Artes de Boston, onde estava atualmente emprega­da. Se fosse verdadeiro, teria mais de seiscentos anos.

Voltando um pouco no beco, Erica olhou para o cartaz recentemente pintado na janela. Em cima estavam os sinuosos e estranhos símbolos árabes. Abaixo estava escrito "Antica Abdul". A porta à esquerda da janela tinha uma densa cortina de fitas enfeitadas. Um puxão em sua bolsa por um dos meninos que a seguiam deu a coragem de que Erica precisava para entrar na loja.

As centenas de contas coloridas fizeram um ruído crepitante quando voltaram ao lugar depois que ela passou. A loja era pequena, cerca de três metros por três e meio, e surpreendentemente fria. As paredes eram de estuque e pintadas de branco, o chão coberto por múltiplos tapetes orientais. Um balcão em forma de L, com vidro em cima, dominava a maior parte do cômodo.

Já que ninguém apareceu para atendê-la, Erica mexeu ruidosamente nas correias da sua bolsa e abaixou-se para olhar mais de perto a surpreendente cerâmica que vira pela janela. Tinha uma cor suave, com decorações delicadamente pintadas num tom entre marrom e carme­sim. Haviam colocado um jornal árabe dentro da peça.

As pesadas cortinas vermelhas e marrons no fundo da loja abriram-se, e o proprietário, Abdul Hamdi, apareceu, arrastando-se até o balcão. Erica olhou o homem e imediatamente relaxou. Ele aparentava uns sessenta e cinco anos e tinha um aspecto agradável no modo de andar e na expressão.

— Estou muito interessada nesta urna — disse ela. — Poderia examiná-la mais de perto?

— É claro — respondeu Abdul, saindo de trás do balcão. Em seguida pegou o vaso e sem cerimônia colocou-o nas mãos trêmulas de Erica. — Traga-o para cima do balcão, se quiser. — Ele acendeu uma lâmpada que estava presa num bocal sem abajur.Erica, com muito cuidado, colocou a urna no balcão e tirou a bolsa do ombro. Depois pegou o vaso novamente, virando-o lentamente nos dedos para examinar a deco­ração. Além de desenhos simplesmente ornamentais, havia dançarinos, antílopes e barcos rústicos.

— Quanto custa? — Erica olhou com muita atenção os desenhos.

— Duzentas libras — disse Abdul, abaixando a voz como se isso fosse um segredo. Havia um brilho em seus olhos.

— Duzentas libras! — ecoou a voz de Erica enquanto ela convertia as moedas mentalmente.

Essa quantia correspondia a cerca de trezentos dólares. Decidiu barganhar um pouco enquanto tentava determinar se o vaso era falso.

—  Só posso dispor de cem libras.

— Cento e oitenta é minha melhor oferta — admitiu Abdul, como se estivesse fazendo um supremo sacrifício.

— Acho que posso subir para cento e vinte — disse Erica, continuando a estudar a peça.

— Está bem, para você... — Ele fez uma pausa e segurou o braço dela. Ela não entendeu. — Você é americana?

—  Sim.

— Ótimo. Gosto de americanos. Muito melhores que os russos. Para você farei algo especial, muito especial. Vou perder um pouco nesta peça. Preciso de dinheiro porque esta loja é muito nova. Então, para você, cento e sessenta libras. — Abdul esticou o braço, apanhou o vaso de Erica e o. colocou sobre a mesa. — Uma peça maravilhosa, a melhor que tenho. É minha última oferta.

Erica olhou para Abdul. Ele tinha as feições grossas dos felás. Ela percebeu que sob o paletó do terno ocidental ele estava usando uma túnica marrom.

Girando a urna, Erica olhou para a espiral que havia na base e deixou seu dedo um pouco úmido roçar a pintura do desenho. Um pouco da pigmentação saiu. Naquele instante Erica soube que o vaso era falso. Era muito bem-feito, mas definitivamente não era uma antigüi­dade.

Sentindo-se extremamente mal, Erica colocou a urna de volta no balcão e apanhou a bolsa.

— Bem, muito obrigada — disse, evitando olhar para Abdul.— Tenho outras peças — disse Abdul, abrindo um armário alto de madeira, encostado na parede.

Seus instintos orientais responderam ao entusiasmo inicial de Erica, e os mesmos instintos sentiram uma súbita mudança. Ele estava confuso, mas não queria perder um cliente sem lutar.

— Talvez goste deste aqui. — Apanhou uma peça de cerâmica, similar, no armário, e a colocou sobre o balcão.

Erica não desejava precipitar uma confrontação dizen­do ao homem aparentemente tão gentil que ele estava tentando trapaceá-la. De modo relutante, segurou o segundo vaso. Era mais oval que o primeiro e tinha uma base mais estreita. Os desenhos eram espirais inclinadas para o lado esquerdo.

— Tenho muitos exemplos deste tipo de cerâmica — continuou Abdul, apanhando mais cinco vasos.

Enquanto ele estava de costas para Erica, ela molhou o dedo e o esfregou sobre o desenho da segunda urna. A pigmentação não saiu.

— Quanto é este? — Erica perguntou, tentando esconder seu entusiasmo. Era possível que o vaso que estava em suas mãos tivesse seiscentos anos.

— Eles têm preços diferentes de acordo com os trabalhos que apresentam — falou Abdul, evasivo. — Por que não olha todos e escolhe o que mais gostar? Depois falamos sobre o preço.

Cuidadosamente, examinando um vaso de cada vez, Erica separou dois provavelmente autênticos dentre os sete.

— Gosto desses dois — disse, sua confiança voltando. Pela primeira vez seus conhecimentos de egiptologia tinham valor prático. Gostaria que Richard estivesse ali.

Abdul olhou para os dois vasos e depois para ela.

—  Esses não são os mais bonitos. Por que prefere esses? Erica olhou para Abdul e hesitou. Depois afirmou de modo desafiador:

—  Porque os outros são falsificações.

O rosto de Abdul ficou impassível. Lentamente um brilho apareceu em seus olhos e um sorriso levantou os cantos da sua boca. Finalmente ele explodiu numa gargalhada, chegando a lacrimejar. Erica sorria levemente.

— Diga-me... — disse Abdul com dificuldade. Teve de controlar o riso antes de continuar. — Diga-me, como sabe que esses são falsificações? — e apontou para os vasos que Erica separara.— Da maneira mais simples possível. As cores não são firmes. A tinta sai no dedo molhado. Isso nunca acontece a uma antigüidade.

Molhando o dedo, Abdul testou a pigmentação. Seu dedo ficou manchado de tinta.

— Você está absolutamente certa. — Repetiu o teste nas duas antigüidades. — Vivendo e aprendendo. Assim é a vida.

— Qual o preço dessas duas antigüidades verdadeiras? — Erica perguntou.

—  Não estão à venda. Algum dia, talvez, mas não agora. Colado na parte lateral do balcão havia um documento

que parecia oficial com selos do governo, do Departamento de Antigüidades. A Antica Abdul era uma loja cheia de licenças. Ao lado da licença havia um papel impresso dizendo que garantias por escrito, sobre as antigüidades, poderiam ser fornecidas se solicitadas.

— O que você faz quando um freguês quer uma garantia? — perguntou Erica.

— Eu a dou a ele. Para o turista isso não faz diferença. Ficam felizes com seu souvenir. Nunca verificam.

—  Isso não o preocupa?

— Não, não me preocupa. A virtude é uma luxúria da abastança. Quem vende tenta sempre conseguir o preço mais alto para sua mercadoria. Os turistas que vêm aqui querem souvenirs. Se desejam antigüidades autênticas sabem sempre alguma coisa sobre elas. É responsabilidade deles. Como você sabe sobre a pigmentação nas cerâmicas antigas?

—  Sou uma egiptóloga.

— Você é uma egiptóloga! Alá seja louvado! Por que uma mulher bonita como você quer ser uma egiptóloga? Ah, o mundo passou por Abdul Hamdi. Estou mesmo ficando velho. Já esteve antes no Egito?

— Não, é minha primeira viagem. Queria vir antes, mas era muito caro. Foi um sonho meu durante algum tempo.

— Bem, espero que aproveite bem. Está pensando em ir para o Alto Egito? Luxor?

— Logicamente.

— Vou lhe dar o endereço da loja de antigüidades de rneu filho.

— Para que ele possa me vender alguma cerâmica falsificada? — disse Erica com um sorriso.— Não, não, mas ele pode lhe mostrar coisas bonitas. Eu mesmo tenho coisas muito bonitas. O que acha disso?

Abdul apanhou uma múmia do armário e a colocou sobre o balcão. Era feita de madeira, coberta de gesso e delicadamente pintada. Uma série de hieróglifos estava na frente.

—  É falsificação — disse Erica prontamente.

—  Não — protestou Abdul, alarmado.

— Os hieróglifos não são verdadeiros. Não dizem nada. Isso é uma série de sinais sem significado.

—  Você também consegue ler essa escrita misteriosa? — Essa é minha especialidade, sobretudo a escrita do

Novo Reino.

Abdul girou a estátua, olhando os hieróglifos.

—  Paguei muito por essa peça. Tenho certeza de que é verdadeira.

— Talvez a estátua seja verdadeira, mas a escrita não. Talvez a escrita tenha sido acrescentada para fazer a peça parecer de maior valor. — Erica tentou tirar um pouco da tinta preta da estátua. — A tinta parece firme.

— Bem, deixe-me mostrar-lhe alguma coisa mais. — Abdul enfiou a mão dentro do balcão e apanhou uma pequena caixa de papelão. Retirando a tampa da caixa, selecionou um número de camafeus e os colocou em fila no balcão. Com o dedo indicador empurrou um deles para Erica.

Ela o apanhou e examinou. Era feito de um material poroso, a parte de cima delicadamente esculpida na forma de um besouro familiar, venerado pelos antigos egípcios. Virando-o, Erica ficou surpresa ao ver o brasão de um faraó, Seti I. A parte esculpida com os hieróglifos era, sem dúvida, muito bonita.

— É uma peça espetacular — disse Erica, recolocando-o no balcão.

— Você não se importaria de ter essa antigüidade?

—  Absolutamente. Quanto é?

—  É sua. É um presente.

— Não posso aceitar um presente assim. Por que você quer me dar um presente?

— É um costume árabe. Mas deixe-me adverti-la, não é autêntico.

Surpresa, Erica levantou o camafeu, levando-o à luz. Sua impressão inicial não mudou.

—  Acho que é verdadeiro.—  Não. Sei que não é porque meu filho o fez.

— É extraordinário — observou Erica, olhando nova­mente os hieróglifos.

— Meu filho é muito bom. Copiou os hieróglifos de uma peça verdadeira.

—  De que é feito isso?

— Ossos antigos. Há muitos lugares onde há múmias quebradas em Luxor e em Assuã nas antigas catacumbas públicas. Meu filho usa os ossos para esculpir camafeus. para fazer a superfície parecer velha e gasta, nós os enfiamos nas fezes dos nossos perus. Depois de passarem pelos perus, ficam com uma cor excelente.

Erica engoliu em seco, ligeiramente enojada da viagem biológica do camafeu. Mas o interesse intelectual pronta­mente superou sua repulsa física, e ela girou o camafeu várias vezes entre os dedos.

— Admito, fui enganada, e seria novamente.

— Não fique triste. Diversos desses foram levados para paris, onde pensam que sabem tudo, e foram testados.

—  Provavelmente...

— Não importa. De qualquer modo, foram declarados como verdadeiramente antigos. Bem, obviamente os ossos são antigos. Agora os camafeus do meu filho estão em museus do mundo inteiro.

Erica deixou escapar um risinho cínico. Ela sabia que estava lidando com um especialista.

— Meu nome é Abdul Hamdi, mas, por favor, trate-me por Abdul. Qual o seu nome?

— Oh, desculpe. Erica Baron. — Ela colocou o ca­mafeu sobre o balcão.

— Erica, gostaria que você tomasse um pouco de chá cie hortelã comigo.

Abdul guardou as outras peças em seus lugares, depois abriu para os lados as pesadas cortinas avermelhadas. Erica gostara de conversar com Abdul, mas hesitou um instante antes de apanhar a bolsa e dirigir-se para a entrada. A sala de trás era aproximadamente do mesmo tamanho da parte da frente da loja, mas parecia não ter portas nem janelas. As paredes e o chão eram cobertos com tapetes orientais, dando ao lugar a aparência de uma barraca. No centro do cômodo havia almofadas, uma mesa baixa e o narguilé.

— Um momento — disse Abdul. A cortina caiu novamente, e Erica ficou ali em meio a diversos objetos grandes, cobertos com panos. Ouvia o chacoalhar das contas na entrada da frente, e a voz distante de Abdul pedindo chá.

— Por favor, sente-se — disse Abdul quando voltou, indicando as largas almofadas no chão. — Não é sempre que tenho o prazer de estar em companhia de uma dama encantadora e tão inteligente. Diga-me, minha prezada, em que lugar da América você nasceu?

— Nasci em Toledo, Ohio — respondeu Erica um tanto nervosa. — Mas agora moro em Boston, ou melhor, em Cambridge, que fica perto de Boston.

Os olhos de Erica lentamente se deslocaram por toda a sala. A única luz incandescente pendurada no centro dava ao vermelho forte dos tapetes orientais uma incrível maciez, como se fosse veludo vermelho.

— Boston, sim. Deve ser bonito em Boston. Tenho um amigo lá. Nós nos correspondemos de vez em quando. Realmente, para falar a verdade, é o meu filho que escreve. Não sei escrever em inglês. Tenho uma carta dele aqui. — Abdul procurou numa pequena arca perto das almofadas, e mostrou a ela uma carta endereçada a Abdul Hamdi, Luxor, Egito. — Talvez você o conheça.

— Boston é uma cidade muito grande... — Erica começou a dizer antes de ver o nome do remetente: Dr. Herbert Lowery, seu chefe. — Você conhece o Dr. Lowery? — perguntou, incrédula.

— Eu o encontrei duas vezes e nos escrevemos de vez em quando. Ele estava muito interessado numa cabeça de Ramsés II que eu tinha há cerca de um ano. Um homem magnífico. Muito inteligente.

— É mesmo — concordou Erica, surpresa de Abdul estar se correspondendo com uma figura tão eminente como o Dr. Herbert Lowery, chefe do Departamento de Estudos do Oriente Próximo do Museu de Belas-Artes de Boston. Isso a deixou muito mais à vontade.

Como que percebendo os pensamentos de Erica, Abdul apanhou diversas outras cartas em sua arca de cedro.

— Aqui há cartas de Dubois, do Louvre, e de Caufield, do Museu Britânico.

As contas balançaram na sala de fora. Abdul curvou-se para trás e abriu as cortinas, falando algumas palavras em árabe. Um menino, numa túnica que algum dia já fora branca, e com os pés descalços, penetrou sem ruído na sala. Estava carregando uma daquelas bandejas com tripés. Silenciosamente colocou as xícaras com alças de metal perto do narguilé. Não desviou o olhar do serviço. Abdul jogou algumas moedas na bandeja do menino e segurou as cortinas para ele passar. Voltando-se para Erica, sorriu e mexeu o chá.

— Posso beber sem susto? — perguntou Erica, apontando para a xícara.

—  Se pode? — Abdul estava surpreso.

—  Fui advertida sobre beber água aqui no Egito.

— Ah, você está falando da sua digestão. Sim, pode beber sem susto. A água está sempre fervendo na casa de chá. Beba. Este é um país quente, ressecado. É um costume árabe beber chá ou café com os amigos.

Beberam o chá em silêncio. Erica ficou surpresa pela excelência do sabor, e pelo frescor que a bebida deixou em sua boca.

— Diga-me, Erica... — falou Abdul, rompendo o silêncio. Ele pronunciava o nome dela de um modo estranho, colocando o acento na segunda sílaba. — Partindo do princípio, é claro, de que você não se opõe à minha pergunta. Diga-me por que você se tornou uma egiptóloga.

Erica olhou para o fundo da xícara de chá. As folhinhas de hortelã mexiam-se lentamente no fluido quente. Ela estava acostumada à pergunta. Já a ouvira milhares de vezes, especialmente da mãe, que nunca pôde entender por que uma bela jovem judia que "tinha tudo" escolhera estudar egiptologia e não pedagogia. Sua mãe tentara fazê-la mudar de idéia, primeiro através de conversa amistosa ("O que minhas amigas vão pensar?"), depois pelo debate violento ("Você não vai conseguir se manter!"), finalmente ameaçando retirar o apoio financeiro. Foi tudo em vão. Erica continuou seus estudos, possivelmente em parte devido à oposição da mãe, mas principalmente porque adorava tudo o que se referia à egiptologia.

Era verdade que não pensara em termos práticos sobre que tipo de trabalho a esperava quando terminou o curso, e era também verdade que "dera sorte" de estar empregada no Museu de Belas-Artes de Boston, quando a maioria de seus colegas ainda estava desempregada e com poucas chances à vista. Todavia, adorava os estudos sobre o antigo Egito. Havia algo sobre as coisas distantes e misteriosas, combinado com a riqueza inacreditável e o valor material das coisas descobertas, que a fascinavam. Era particularmente apaixonada pela poesia romântica, o que fazia a Antigüidade vir até o presente. Era através dos poemas que Erica podia sentir a emoção diminuir o espaço entre os milênios, reduzindo a noção de tempo e fazendo com que conjeturasse se a sociedade tinha efetivamente progredido.

Olhando para Abdul, Erica finalmente disse:

— Estudei egiptologia porque isso me fascinou. Quan­do eu era menina e minha família fez uma viagem a Nova York, a única coisa que me lembro de ter visto foi uma múmia no Museu Metropolitano. Depois, quando, no colégio, fiz um curso sobre história antiga, gostei de estudar esse assunto.

Erica deu de ombros e sorriu. Sabia que nunca daria uma explicação satisfatória.

— Muito estranho — comentou Abdul. — Para mim isto aqui é um emprego, muito melhor do que me matar no campo. Mas para você... — Ele sacudiu os ombros. — Mas se é feliz assim, ótimo. Quantos anos você tem, minha cara?

—  Vinte e oito.

—  E seu marido, onde está ele?

Erica sorriu, tendo plena consciência de que o velho não fazia idéia do motivo por que ela estava sorrindo. O grande complexo de problemas que cercava Richard emergiu do inconsciente. Era como uma comporta aberta. Ficou quase tentada a explicar seus problemas ao simpático estrangeiro, mas não o fez. Viera ao Egito para se afastar de tudo e para pôr em prática seus conhecimentos de egiptologia.

— Não sou casada — respondeu, finalmente. — Você está interessado, Abdul? — O sorriso surgiu novamente.

— Eu, interessado? Estou sempre interessado. — Abdul deu uma gargalhada. — E além disso, o islamismo permite ao fiel ter quatro esposas. Mas para mim não seria possível repetir quatro vezes a felicidade da minha única esposa. Vinte e oito anos e sem ser casada, mundo estranho.

Observando Abdul beber, Erica pensou em quanto estava apreciando aquele interlúdio. Queria levar uma lembrança daquele momento.

— Abdul, você se importaria se eu tirasse uma foto sua?

—  Fico muito grato.

Enquanto Abdul se ajeitava em sua almofada e alisava o paletó, Erica apanhou sua pequena Polaroid e adaptou o flash. Um minuto depois que o flash clareou a sala com uma luminosidade artificial, ela retirou da câmara a foto ainda não revelada.

— Ah, se os foguetes russos funcionassem tão bem quanto sua câmara — disse Abdul, relaxando-se. — Já que você é a mais bela e a mais jovem egiptóloga que já tive em minha loja, gostaria de lhe mostrar algo muito especial.

Abdul lentamente ficou de pé. Erica olhou a foto. A revelação estava ficando perfeita.

— Você é feliz de poder ver esta peça, minha cara — disse Abdul, levantando cuidadosamente um pano de cima de um objeto com aproximadamente dois metros de altura.

Erica olhou para o objeto e admirou-se.

— Meu Deus! — exclamou, mal podendo acreditar. Em frente a ela achava-se uma estátua em tamanho natural. Ela deu um pulo e ficou em pé, para poder ver mais de perto. Abdul orgulhosamente afastou-se, como um artista revelando sua obra-prima. O rosto era feito de ouro forjado, reminiscente da máscara de Tutancâmon, mas elaborado de maneira mais apurada.

— Este é o Faraó Seti I — disse Abdul. Ele retirou o pano e sentou-se, deixando Erica apreciar sua descoberta.

— É a estátua mais bonita que já vi — sussurrou Erica, olhando para o rosto tranqüilo, imponente. Os olhos eram feitos de alabastro branco com feldspato. As sobrancelhas eram de cornalina translúcida. O tradicional penteado do antigo Egito era feito de ouro incrustado com lápis-lazúli. No pescoço havia um grande ornamento em forma de abutre, representando a deusa egípcia Nekhbet. O colar era de ouro e incrustado com centenas de turquesas, jaspe e lápis-lazúli. O bico e os olhos eram feitos de obsidiana. No cinto havia um punhal de ouro embainhado cujo cabo era primorosamente esculpido e incrustado com pedras precio­sas. A mão esquerda estava estendida, segurando uma clava também coberta de jóias engastadas. O efeito geral era deslumbrante. Ela estava pasma. Essa estátua não era falsificação, e seu valor era enorme. E qualquer jóia daquelas tinha um preço incalculável. Em pé, entre o brilho vermelho dos tapetes orientais, a estátua irradiava uma luz pura e clara como a do diamante. Lentamente, contornando a peça, Erica finalmente conseguiu falar.

—  De onde veio isso? Nunca vi nada assim.

— Veio de dentro das areais do deserto líbio, onde todos os nossos tesouros estão escondidos — disse Abdul,  falando como um pai orgulhoso. — Está aqui apenas descansando algumas horas antes de seguir viagem. Achei que você gostaria de vê-la.

— Oh, Abdul, é tão linda, não consigo dizer nada. Realmente. — Erica voltou para a frente da estátua, percebendo, só então, os hieróglifos na base. Imediatamen­te reconheceu o nome do Faraó Seti I, escrito dentro de uma pequena coluna. Depois viu outra coluna com outro nome. Achando que fosse outro nome de Seti I, começou a traduzir. Para surpresa sua, o nome era de Tutancâmon. Isso não tinha sentido. Seti I fora um faraó extremamente importante e poderoso que reinara cinqüenta anos depois do insignificante rei menino Tutancâmon. Os dois faraós eram de dinastias diferentes, de famílias totalmente distintas. Erica estava certa de que devia ter cometido algum erro, mas verificando novamente viu que estava certa. Os hieróglifos tinham os dois nomes.

O ruído crepitante das contas na sala externa da loja fez Abdul instantaneamente ficar de pé.

— Erica, por favor, dê-me licença, mas preciso ser bem cuidadoso.

O pano preto caiu sobre a fabulosa estátua. Para Erica foi como ser acordada em meio a um sonho maravilhoso. Em frente a ela ficou uma massa negra sem formas.

— Deixe-me atender os clientes. Já volto. Saboreie seu chá... talvez você queira mais um pouco.

— Não, obrigada — disse Erica, que desejava ver a estátua e não beber mais chá.

Quando Abdul se arrastou em direção à cortina e cuidadosamente olhou para a outra sala, Erica apanhou a foto da Polaroid, agora já revelada. Embora tivesse cortado um pedaço da cabeça de Abdul, o instantâneo estava bom. Ela pensou em tirar uma foto da estátua, se Abdul concordasse.

Aparentemente, quem estava lá não tinha pressa, porque, soltando a cortina, Abdul voltou e debruçou-se sobre a arca de cedro. Erica sentou-se na almofada.

— Você tem algum guia de viagem do Egito? — perguntou Abdul em tom de voz suave.

— Sim — respondeu Erica. — Consegui um guia Nagel.

— Tenho algo melhor — disse Abdul, puxando um velho livro do meio da sua correspondência. — Aqui está um Baedecker, edição de 1929. É o melhor para se percorrer os monumentos do Egito. Eu teria muito prazer se você o usasse durante sua permanência em meu país. É superior em muito ao Nagel.

— Você é tão gentil! — falou Erica, apanhando o livro. — Terei muito cuidado com ele. Obrigada.

— Fico contente de tornar sua visita mais agradável — disse Abdul, voltando para perto da cortina, e hesitando novamente. — Se tiver dificuldade para me devolver o livro quando for embora do Egito, devolva-o ao homem cujo nome e endereço estão escritos na primeira página. Viajo muito e posso não estar no Cairo. — Sorriu e foi para a loja. A pesada cortina caiu atrás dele.

Erica folheou o livro, percebendo o excesso de desenhos e mapas. A descrição do Templo de Carnac, a quem o Baedecker dava o grau máximo, quatro estrelas, tinha quase quarenta páginas. Parecia soberbo. O capítulo seguinte começava com uma série de gravuras, em cobre, do templo da Rainha Hatshepsut, seguida de uma longa descrição, na qual Erica estava particularmente interessada. Ela enfiou a foto de Abdul no livro, tanto para marcar a página quanto para proteger a foto, e o colocou na bolsa de lona.

Sozinha na sala, deixou sua mente voltar à fabulosa estátua de Seti I. Fez tudo para resistir e não se levantar, descobrir a estátua e olhar a curiosa série de hieróglifos. Conjeturou se realmente seria uma violação da confiança dele se ela olhasse a estátua. De modo relutante, decidiu que seria, e já ia apanhar novamente o livro quando percebeu uma mudança no tom da conversação que vinha da parte de fora da loja. As vozes não estavam mais altas, mas soavam aborrecidas. A princípio achou que estavam simplesmente barganhando. Depois o ruído de pratos quebrados cortou o ar, chegando à pequena e iluminada sala, seguido de um grito que foi logo abafado. Erica sentiu a sensação de pânico subir em seu peito e martelar suas têmporas. Uma única voz voltou a falar, mais baixa, mais ameaçadora.

Do modo mais silencioso que pôde, Erica foi até a cortina, e imitando Abdul alguns minutos antes, afastou um pouco a ponta da cortina para ver o que se passava na outra sala. A primeira coisa que viu foram as costas de um árabe vestido com uma túnica suja, surrada, segurando as fitas da porta de entrada, aparentemente impedindo que intrusos entrassem ali. Depois, olhando um pouco mais à esquerda, Erica abafou um grito. Abdul fora empurrado de costas, em cima do balcão quebrado, por um outro árabe, também vestido com uma túnica suja, rasgada. Em frente de Abdul havia um terceiro árabe, vestindo uma túnica limpa com listras brancas e marrons e com um turbante branco, e que estava brandindo uma cimitarra. A luz vinda da única lâmpada fazia reluzir a ponta cortante do objeto quando era levantado em frente ao rosto aterrorizado de Abdul.

Antes que Erica pudesse soltar a cortina para esconder a terrível cena, a cabeça de Abdul foi empurrada para trás e a cimitarra foi lançada na base do seu pescoço, atravessan­do a pele macia até a espinha. Um suspiro ainda escapou da traquéia mutilada antes que o sangue jorrasse, reluzente, e encharcasse o local.

As pernas de Erica arquearam-se e ela caiu ajoelhada, a pesada cortina amortecendo o barulho da queda. Assustada, olhou a sala toda à procura de um esconderijo. Os armários? Não havia tempo para tentar entrar neles. Ficando em pé, forçou um espaço entre o último armário e a parede. Não era um bom lugar para se esconder. Na melhor das hipóteses, tapava sua visão, como uma criança tapando os olhos no escuro. Mas o rosto do homem narigudo que jogara Abdul longe parecia incendiar-se em sua mente. Rodavam na sua cabeça seus cruéis olhos pretos e a boca, sob o bigode, mostrando os dentes afiados, com alguns pontos de ouro.

Houve mais agitação na sala da frente, um barulho como o movimento de móveis, seguido de um silêncio aterrorizador. O tempo corria agonizantemente lento. Depois Erica ouviu vozes vindo em sua direção. Quase parou de respirar, a pele arrepiada de medo. A conversa em árabe estava bem perto dela, atrás dela. Podia sentir a presença das pessoas, podia senti-las mexendo-se por ali. Ouviu passos, uma pancada. Alguém xingou em árabe. Depois os passos se afastaram e Erica ouviu o familiar ruído das contas na porta de entrada.

Erica soltou a respiração, mas continuou espremida no canto da parede, como se estivesse se equilibrando na beira de um precipício de trinta metros de altura. O tempo passava, mas ela não tinha idéia se tinha esperado cinco minutos ou quinze. Silenciosamente contou até cinqüenta. Nenhum ruído. Lentamente virou a cabeça e afastou-se um pouco do esconderijo. A sala estava vazia, sua bolsa não tinha sido tocada e continuava sobre o tapete, a xícara de chá à sua espera. Mas a maravilhosa estátua de Seti I tinha desaparecido!

O ruído das contas na porta de entrada fez uma nova onda de frio correr a espinha de Erica. Quando se virou novamente para o esconderijo no canto da parede, seu pé chutou a xícara de chá. A xícara caiu e separou-se do suporte de metal. O tapete absorveu o líquido e o ruído, até a xícara rolar e ir bater na mesa. Erica imprensou-se contra a parede novamente. Ouviu a cortina pesada sendo aberta. Embora agora seus olhos estivessem fechados, conseguiu sentir o efeito da luz natural na sala. Depois a luz desapareceu. Havia alguém na sala, mas ela não sabia quem era. Houve muitos ruídos e o barulho de passos se aproximando. Prendeu a respiração outra vez.

Subitamente uma mão segurou seu braço esquerdo com força hercúlea, e a puxou do canto da parede, jogando-a para o centro da sala.

 

Boston, 8:00

O barulho do despertador interrompeu os sonhos de Richard Harvey, forçando-o a admitir a chegada de mais um dia. Ele se mexera e se agitara espasmodicamente a noite toda. Da última vez que se lembrava de ter olhado para o relógio eram quase cinco horas da madrugada. Ele tinha vinte e sete pacientes marcados para aquele dia no consultório, e sentia-se como se tivesse sido atropelado.

— Meu Deus — resmungou furioso quando socou o despertador para travá-lo. A força do soco não apenas apertou o botão que permite mais alguns minutos de sono, fazendo com que o relógio toque depois, mas também retirou o plástico que circunda o mostrador. Isso já acontecera antes, e a tampa plástica foi facilmente recoloca­da, mas mesmo assim servia para mostrar a Richard sua vida de atrasos. As coisas estavam fora de controle, e ele não estava acostumado a isso.

Jogou as pernas para fora da cama e sentou. Ao invés de mexer no alarma novamente, ele se curvou e puxou o botão. O quase imperceptível ruído do relógio elétrico parou. Perto do relógio estava um retrato de Erica sobre esquis. Em lugar de estar sorrindo, ela estava olhando para a câmara, com o lábio inferior para fora com aquela expressão que alternadamente aborrecia Richard e o enchia de desejo. Esticou a mão e virou a foto, vencendo a preguiça. Como uma moça bonita como Erica podia estar apaixonada por uma civilização que estava morta há mais de três mil anos? Mesmo assim ele sentia uma saudade terrível dela, e ela partira havia apenas duas noites. Como suportaria quatro semanas?

Richard levantou-se e foi para o banheiro completa­mente nu. Aos trinta e quatro anos ele estava em muito boa forma. Sempre fora atlético, mesmo no curso de medicina, e agora que estava dando consultas em seu consultório par­ticular há três anos, ainda jogava tênis e pólo regularmente. Com um metro e oitenta de altura, era magro e musculoso. Como Erica lhe dissera, até suas nádegas eram torneadas. Do banheiro foi até a cozinha, colocando água para ferver e preparando um copo de suco. Na sala de estar abriu os postigos que davam para a Praça Louisbourg. O sol do meio de outubro entrava filtrado pelas folhas douradas dos olmos, absorvendo o frio do ar. Richard sorriu de leve, o que acentuou as marcas no canto dos olhos e marcou mais suas covinhas. Era um homem atraente, com um rosto anguloso, um pouco diabólico, sob os cabelos cor de mel. Os olhos azuis, fundos, tinham um piscar freqüente.

— Egito, meu Deus, é como ir à Lua — murmurou Richard, lastimando-se à beleza da manhã. — Por que, afinal, ela teve que ir para o Egito?

Tomou banho, fez a barba, vestiu-se e tomou o café da manhã em grande estilo, bem demoradamente. A única interrupção da rotina foram as meias. Não tinha nenhuma meia limpa, de modo que foi obrigado a apanhar uma no cesto. Ia ser um dia terrível. Apesar disso, só conseguia pensar em Erica. Finalmente, desesperado, fez uma ligação para a mãe de Erica em Toledo, com quem se dava muito bem. Eram oito e meia e ele sabia que a encontraria antes de sair para o trabalho.

Depois de conversar um pouco, Richard foi ao assunto:

— Já teve notícia de Erica?

—  Meu Deus, Richard, faz só um dia que ela viajou.

—  É verdade. Só pensei que ela podia ter ligado. Estou preocupado com ela. Não sei o que está acontecendo. Estava tudo bem até que começamos a falar em casamento.

—  Bem, você devia ter feito isso há um ano.

— Não podia ter feito isso há um ano. Eu estava apenas começando.

— É claro que podia. Você é que não quis. É simples. E se você estava preocupado com ela agora, devia tê-la feito ficar, em vez de ir para o Egito.

—  Tentei.

— Se você tivesse tentado, Richard, ela estaria em Boston neste momento.

— Janice, realmente tentei. Disse que se ela fosse ao Egito eu não sabia o que poderia acontecer com nosso relacionamento. Ia ser diferente.— E o que ela disse a isso?

— Disse que sentia muito, mas que era importante para ela ir.

— Isso é uma fase, Richard. Ela vai superar. Você precisa relaxar.

— Acho que você está certa, Janice. Pelo menos eu espero. Se ela telefonar, avise-me.

Richard desligou, com a certeza de que não se sentia muito melhor. De fato, sentia um certo pânico, como se Erica o estivesse abandonando. Num impulso telefonou para a TWA e verificou as conexões para o Cairo, como se o simples fato de fazer isso o colocasse mais perto. Não adiantava nada, e ele já estava atrasado para o consultório. A idéia de que Erica estava se divertindo enquanto ele sofria uma depressão fê-lo ficar aborrecido. Mas havia pouco a fazer.

 

Cairo, 15:30

Erica não pôde falar durante algum tempo. Quando olhou para cima para tentar ver o rosto do assassino árabe, viu-se diante de um europeu vestindo um terno bege com colete. Eles se entreolharam pelo que pareceu uma eternidade, ambos confusos. Mas Erica estava também apavorada. Como resultado disso, Yvon Julien de Margeau levou um quarto de hora para convencer Erica de que não ia lhe fazer nenhum mal. Mesmo assim Erica falava com dificuldade, porque tremia desesperadamente. Finalmente, e com grande dificuldade, comunicou a Yvon que Abdul estava na parte externa da loja, morto ou morrendo. Yvon, que explicou que a loja estava vazia quando chegou, concordou em verificar novamente depois de insistir em voz alta para que Erica se sentasse. Ele voltou rapidamente.

— Não há ninguém na loja — disse Yvon. — Há vidro quebrado e um pouco de sangue no chão. Mas não há ninguém lá.

— Quero sair daqui — suplicou Erica. Foi a primeira vez que disse uma frase inteira.

— É claro — Yvon a tranqüilizou. — Mas primeiro conte-me o que aconteceu.

— Quero ir à polícia — continuou Erica.

O tremor recomeçou. Quando ela fechava os olhos, via a imagem da cimitarra cortando o pescoço de Abdul.

— Vi uma pessoa matar outra. Há poucos minutos. Foi terrível. Nunca tinha visto ninguém machucado. Por favor, quero ir à polícia!

Com a mente começando a trabalhar, Erica olhou para o homem que estava em frente a ela. Alto e magro, tinha quase quarenta anos, e um rosto anguloso e queimado. Havia um tom de autoridade nele, acentuado pelo azul forte dos seus olhos um pouco apertados. Mais que qualquer outra coisa, depois de ver os árabes maltrapilhos, Erica estava mais confiante em seu traje impecável.

— Eu tive o desprazer de ver um homem ser assassinado — disse ela finalmente. — Olhei pela cortina e vi três homens. Um estava na porta, o outro segurando o velho e o outro... — Erica atrapalhou-se — e o outro cortou o pescoço do velho.

— Compreendo — disse Yvon com ar preocupado. — O que os três estavam vestindo?

— Não tenho certeza se você compreende — Erica disse, aumentando o volume da voz. — O que estavam vestindo? Não estou falando de batedores de carteira. Estou tentando lhe dizer que vi um homem ser assassinado. Assassinado!

— Acredito em você. Mas esses homens eram árabes ou europeus?

— Eram árabes, vestiam túnicas. Dois estavam sujos, o outro parecia consideravelmente melhor. Meu Deus, e pensar que vim aqui passar as férias. — Erica sacudiu a cabeça e começou a se levantar.

— Você conseguiria reconhecê-los? — perguntou Yvon calmamente. Colocou a mão no ombro de Erica, tanto para tranqüilizá-la como para encorajá-la a permanecer sentada.

— Não tenho certeza. Aconteceu rápido demais. Talvez eu consiga reconhecer o homem da cimitarra. Não sei. Não consegui ver o rosto do homem que estava na porta. — Levantando a mão, Erica ficou apavorada de ver como tremia. — Não tenho certeza se eu mesma confiarei em mim. Eu estava conversando com Abdul, que é o dono da loja. Na verdade, ficamos conversando durante algum tempo, bebendo chá. Ele era cheio de vida, uma pessoa interessante. Meu Deus... — Erica passou a mão nos cabelos. — E você diz que o corpo não está lá? — ela apontou na direção da cortina. — Mas realmente houve um assassinato.

— Acredito em você — disse Yvon. Sua mão ainda estava no ombro de Erica, e, curiosamente, ela gostava daquele contato.

—  Mas por que eles levariam o corpo também?

—  O que você quer dizer com esse também?

— Eles levaram uma estátua que estava bem aqui — explicou Erica, apontando com a mão. — Era uma estátua fabulosa do antigo faraó egípcio...— Seti I — interrompeu Yvon. — Aquele velho ma­luco estava com a estátua aqui! — Yvon fechou os olhos, em sinal de desalento.

—  Você sabia sobre a estátua? — indagou Erica.

—  Sabia. Na verdade, eu vim aqui especificamente para discutir isso com Hamdi. Há quanto tempo tudo isso aconteceu?

— Não estou certa. Quinze, vinte minutos. Quando você chegou eu pensei que fossem os assassinos voltando.

— Merde — exclamou Yvon, afastando-se de Erica e caminhando pela sala. Tirou o paletó bege e jogou-o sobre uma das almofadas. — Por pouco. — Parou de andar, voltando-se para Erica. — Você viu realmente a estátua?

— Sim, vi. Era extremamente bela, sem dúvida a peça mais impressionante que já vi. Nem os melhores tesouros de Tutancâmon se comparam. Demonstra a que ponto chegou a arte do Novo Reino na décima nona dinastia.

—  Décima nona dinastia? Como você sabia disso?

— Sou egiptóloga — disse Erica, recobrando um pouco da calma.

—  Egiptóloga? Você não parece uma egiptóloga.

— E como deve ser uma egiptóloga? — perguntou Erica, desafiando-o.

— Está bem, digamos então que eu não suspeitaria — desculpou-se Yvon. — Foi por você ser uma egiptóloga que Abdul lhe mostrou a estátua?

—  Presumo que sim.

— Mesmo assim foi tolice. Grande tolice. Não entendo por que ele iria correr um risco desses. Você tem alguma idéia do valor da estátua? — perguntou Yvon um pouco aborrecido.

— Incalculável — respondeu Erica. — Esta é a melhor razão para ir à polícia. Essa estátua é um tesouro nacional egípcio. Como egiptóloga, estou atenta para o mercado negro de antigüidades. Não tinha idéia de que peças desse valor estivessem envolvidas. Alguma coisa precisa ser feita!

— Alguma coisa precisa ser feita! — Yvon riu com cinismo. — Fingimento americano. O maior mercado negro de antigüidades é a América. Se os objetos não pudessem ser vendidos, não haveria mercado negro. É o comprador, em última instância, o culpado.

— Fingimento americano! Como você pode dizer uma coisa assim sabendo que o Louvre está cheio de objetos de valor incalculável, essencialmente roubados, como o zodíaco do Templo de Dendera? As pessoas viajam milhares de quilômetros para vir ao Egito e acabam vendo apenas o lugar onde esteve o zodíaco.

— Foi mais seguro para o zodíaco ser removido — disse Yvon. — Teve uma certa validade no passado, mas não atualmente.

Erica não podia acreditar que tivesse voltado ao estado normal, pois esse era um argumento sem nexo. Ela também percebeu que Yvon era incrivelmente atraente e que ela o estava querendo pegar com algum tipo de resposta emocional.

— Está bem — admitiu Yvon friamente —, nós con­cordamos em princípio. O mercado negro deve ser controlado. Mas discordamos do método. Por exemplo, não acho que devamos ir imediatamente à polícia.

Erica estava chocada.

— Você discorda? — perguntou Yvon.

— Não tenho certeza — gaguejou Erica, frustrada com sua transparência.

— Compreendo sua preocupação. Deixe-me explicar a você onde está. Não quero ser paternal, apenas realista. Aqui é o Cairo, não Nova York ou Paris ou mesmo Roma. Digo isso porque mesmo a Itália funciona de modo incrivelmente eficiente quando comparada com o Egito, o que quer dizer muita coisa. No Cairo há uma burocracia imensa. A cilada e o suborno são a regra, e não a exceção. Se você chegar na polícia com sua história, será a primeira suspeita. Conseqüentemente, será detida ou, na melhor das hipóteses, colocada sob prisão domiciliar. Seis meses ou um ano poderiam passar antes que os documentos necessários estivessem preenchidos. Sua vida será um inferno — Yvon fez uma pausa. — Tem sentido o que digo? Digo-lhe isso para sua própria proteção.

— Quem é você? — perguntou Erica, esticando a mão até a bolsa para apanhar um cigarro. Na verdade ela não fumava; Richard odiava quando ela fazia isso, e ela comprara um maço de cigarros numa loja do aeroporto como um gesto de rebelião. Mas no momento ela queria fazer alguma coisa com as mãos. Vendo-a procurar alguma coisa na bolsa, Yvon apanhou um estojo de ouro no bolso e o abriu. Erica pegou um cigarro. Ele o acendeu com o isqueiro de ouro Dior, depois apanhou um para si. Fumaram em silêncio durante algum tempo. Erica soltava a fumaça sem tragar.— Sou o que chamam em seu país de um cidadão preocupado — disse Yvon, empurrando com a mão o cabelo castanho-escuro, que já estava praticamente no lugar. — Deploro a destruição das antigüidades e as pesquisas arqueológicas, e decidi fazer alguma coisa. Tomar conhecimento dessa estátua de Seti I foi a maior... como vocês dizem... — Yvon procurava a palavra.

Erica tentou ajudar sugerindo "descoberta".

Yvon sacudiu a cabeça, mas fez um círculo com as mãos para ajudar Erica. Erica deu de ombros e sugeriu "oportunidade".

— Para resolver um mistério — Yvon acrescentou — você precisa de uma...

— Chave, ou pista — completou Erica.

— Ah, pista. Sim. Foi a maior pista. Mas agora não sei. A estátua pode ter desaparecido para sempre. Talvez você possa ajudar se conseguir identificar o assassino, mas aqui no Cairo será difícil. E se for à polícia será definitivamente impossível.

— Como você soube da estátua, em primeiro lugar? — indagou Erica.

— Do próprio Hamdi. Tenho certeza de que ele escreveu para algumas pessoas além de mim — acrescen­tou Yvon, olhando em torno da sala. — Vim logo que pude. Na verdade, cheguei ao Cairo há poucas horas.

Ele caminhou até um dos armários maiores e abriu a porta. Estava cheio de pequenos artefatos.

— Seria útil se sua correspondência estivesse aqui — disse Yvon, pegando uma pequena múmia de madeira. — A maioria dessas peças é falsa.

— As cartas estão nesta arca — disse Erica, apontando.

Yvon seguiu o dedo de Erica, caminhou até lá e abriu a arca.

— Ótimo — agradeceu ele. — Talvez haja alguma coisa nesse material para nos ajudar. Mas gostaria de me certificar de que não existe mais correspondência escondi­da por aqui. — Dirigiu-se até a cortina e a abriu. Uma pequena claridade entrou na sala. — Raoul — gritou Yvon.

As contas na porta de entrada fizeram ruído. Yvon manteve a cortina aberta e Raoul entrou.

Era mais jovem que Yvon, com quase trinta anos de idade, a pele pálida, cabelos escuros e um ar descuidado de autoconfiança em sua masculinidade. Lembrava Jean-Paul Belmondo. Yvon o apresentou, explicando que ele era do sul da França e que, embora falasse inglês fluentemente, com seu sotaque forte era um pouco difícil entendê-lo. Raoul cumprimentou Erica e sorriu abertamente. Depois, ignoran­do Erica, os dois homens conversaram em francês rapidamente antes de começar a vasculhar a loja para ver se havia mais vestígios.

— Isso só vai levar alguns minutos, Erica — disse Yvon, subindo com cuidado num dos armários.

Erica afundou-se numa das grandes almofadas no centro da sala. Sentia-se entorpecida com a experiência que vivera. Ela sabia que vasculhar o recinto era ilegal, mas não protestou. Em vez disso, ficou olhando os dois homens de modo vago. Acabaram de examinar os armários e estavam começando a retirar todos os tapetes da parede.

Enquanto trabalhavam, suas diferenças tornavam-se evidentes. Era mais do que a aparência física. Era o modo como andavam e seguravam as coisas. Raoul era brusco e direto, sempre confiando em sua força. Yvon era cuidadoso e contemplativo. Raoul estava em constante movimento, sempre curvado, a cabeça um pouco enfiada entre os vigorosos ombros. Yvon mantinha-se ereto, e olhava os objetos um pouco de longe. Ele enrolara as mangas da camisa, revelando braços lisos que realçavam suas mãos pequenas. Imediatamente Erica percebeu o que havia de diferente em Yvon. Tinha o ar reservado, esnobe, de um aristocrata do século XIX. Um ar de autoridade elegante pairava sobre ele como um halo.

Com sua pulsação ainda disparando, Erica repentina­mente achou intolerável ficar ali sentada. Levantou-se e foi até a pesada cortina. Queria um pouco de ar, mas percebeu que estava relutante em olhar para a outra sala, apesar da confirmação de Yvon de que o corpo não estava mais ali. Finalmente estendeu a mão e abriu a cortina.

Erica soltou um grito. A poucos centímetros dela estava um rosto que se voltou para olhá-la quando ela abriu a cortina. Houve um barulho de cerâmica quebrada quando a figura na loja deixou cair os objetos que estavam em suas mãos, obviamente tão assustada quanto Erica.

Raoul reagiu imediatamente, passando por Erica para a sala da frente. Yvon o seguiu. O ladrão tropeçou na cerâmica e tentou chegar à porta, mas Raoul pulou como um gato e com um golpe de caratê entre os ombros do intruso jogou-o no chão. Ele rolou sobre um menino com cerca de doze anos.

Yvon deu uma olhada e voltou para junto de Erica.

—  Você está bem? — perguntou suavemente. Erica sacudiu a cabeça.

— Não estou acostumada a esse tipo de coisa. — Ela ainda estava segurando a cortina, com a cabeça abaixada.

— Olhe para esse menino — disse Yvon. — Quero ter certeza de que ele não era um dos três.

Colocou o braço em torno dela, mas ela polidamente o afastou.

— Estou bem — reagiu Erica, percebendo que exa­gerara porque reprimira seu primeiro susto e então explodira nesse segundo episódio.

Dando um longo suspiro, ela caminhou e olhou o menino, que estava encolhido.

—  Não — disse ela simplesmente.

Yvon falou energicamente com o menino, em árabe, e ele respondeu ficando de pé e fugindo pela porta de entrada, deixando as tiras balançando.

— Quero ir embora — falou Erica do modo mais calmo possível. — Não tenho certeza para onde quero ir, mas quero sair daqui. E ainda acho que a polícia devia ser avisada.

Yvon esticou a mão e colocou-a no ombro de Erica. Falou paternalmente.

— A polícia pode ser informada, mas sem que você se envolva. A decisão cabe a você, sei bem o que estou falando. As cadeias egípcias são como as da Turquia.

Erica estudou os olhos serenos de Yvon antes de olhar para suas mãos trêmulas. A pobreza e a desordem reinantes já haviam lhe mostrado como era o Cairo, e os comentários de Yvon tinham sentido.

—  Quero voltar ao meu hotel.

— Compreendo — concordou Yvon. — Mas por favor permita-nos acompanhá-la, Erica. Deixe-me apenas apanhar as cartas que encontramos. É um minuto só.

Os dois homens desapareceram atrás da pesada cortina.

Erica avançou até o balcão quebrado e olhou a mistura de vidro e sangue seco. Foi difícil conter a náusea, mas com um pouco de sorte logo encontrou o que estava procurando: o camafeu falso que Abdul lhe dera, tão cuidadosamente esculpido pelo filho dele. Enfiou-o no bolso, ao mesmo tempo tocando com o pé na cerâmica, que estava no chão. As duas antigüidades verdadeiras estavam entre os destroços. Depois de durarem seis mil anos, tinham sido quebradas sem necessidade, esmagadas no chão dessa deplorável loja por um ladrão de doze anos. A perda fez com que ela se sentisse fisicamente mal. Seu olhar encontrou o sangue, e teve que fechar os olhos para conter as lágrimas. Uma vida humana fora roubada por causa da ganância. Erica tentou em vão lembrar-se da aparência do homem que empunhava a cimitarra. Suas feições eram duras, como a dos beduínos típicos, a pele, da cor de bronze polido. Mas não conseguia formar uma imagem mental definitiva do homem. Abriu os olhos novamente e olhou a loja. A raiva começou a suplantar as incipientes lágrimas. Queria ir à polícia por Abdul Hamdi, para que o assassino fosse levado à justiça. Mas o conselho de Yvon sobre a polícia no Cairo era sem sombra de dúvida correto. E se ela nem mesmo podia estar certa de reconhecer o assassino se o visse novamente, então não valia o risco de ir até a polícia.

Erica abaixou-se e apanhou um dos maiores pedaços da cerâmica. Sua especialidade estava no passado, e com impressionante facilidade sua mente formou a imagem da estátua de Seti com os olhos de alabastro e feldspato. Não havia dúvida em sua cabeça de que a estátua tinha de ser recuperada. Nunca soubera que objetos de tal importância estivessem envolvidos no mercado negro.

Erica dirigiu-se para a cortina e puxou-a para o lado. Yvon e Raoul estavam enrolando os tapetes do chão. Yvon olhou para ela e fez sinal de que só demoraria um minuto. Erica observou-os trabalhar. Yvon estava obviamente inte­ressado em agir contra o mercado negro. Os franceses tinham feito um grande acordo para refrear a pilhagem de tesouros egípcios; pelo menos não levavam nada para o Louvre. Se o fato de ela não ir à polícia ajudasse a recuperar a estátua, então talvez isso fosse a melhor coisa a fazer. Erica decidiu que iria com Yvon, mas sabia que havia um pouco de racionalização em sua decisão.

 

Deixando Raoul para recolocar os tapetes, Yvon levou Erica para fora da Antica Abdul. Passar pelo Khan el Khalili com Yvon era algo bem diferente do que tentar passar por ali sozinha. Ninguém a aborreceu. Como se tentasse distraí-la dos acontecimentos, Yvon falava sem parar sobre o bazar e sobre o Cairo. Ele realmente estava bem a par da história da cidade. Retirara a gravata e a camisa estava aberta no colarinho.

— Que tal uma cabeça de bronze de Nefertiti? — perguntou, segurando um dos horríveis souvenirs que apanhara na carroça de um vendedor.

— Nunca! — exclamou Erica, horrorizada. Lembrou-se da cena depois que o rapaz a atacara.

— Você precisa ter uma — sugeriu Yvon, começando a barganhar em árabe. Erica tentou intrometer-se, mas ele comprou a estátua e lhe deu com grande cerimônia. — Uma lembrança do Egito para você não se esquecer daqui. O único problema é que acho que elas são feitas na Tchecoslováquia.

Sorrindo, Erica pegou a pequena estátua. O encanto do Cairo começou a se filtrar pelo calor, sujeira e pobreza, e ela relaxou um pouco.

O estreito beco no qual estavam caminhando abria-se mais acima, e eles saíram na Praça Al Azhar. Com uma cacofonia de buzinas de automóvel, o trânsito estava engarrafado. À direita Yvon apontou uma construção exótica com um minarete quadrado e tendo acima as cinco torres. Depois ele a fez virar. À direita, quase escondida pelo trânsito e por um mercado ao ar livre, estava a entrada da famosa Mesquita de Al Azhar. Caminharam na direção da mesquita, e quanto mais perto chegavam era mais fácil apreciar a entrada elaborada, com seus dois arcos e intrincada decoração de arabescos. Era o primeiro exemplo da arquitetura muçulmana medieval de que Erica se aproximava desde sua chegada. Na verdade, ela não sabia muito sobre o islamismo, e as construções pareciam-lhe particularmente exóticas. Yvon sentiu o interesse dela e apontou os diversos minaretes, em especial aqueles com abóbada e ornamentos de pedra. Ele continuou a falar sobre a história das mesquitas, incluindo os sultões que aderiram a elas.

Erica tentava se concentrar no monólogo de Yvon, mas era impossível. A área bem em frente à construção servia como um mercado muito movimentado e estava cheia de gente. Além disso, sua mente voltava freqüentemente a Abdul e à imagem de sua súbita e horrível morte. Quando Yvon mudou de assunto, Erica não respondeu. Ele teve que repetir:— Esse é meu carro, posso lhe dar uma carona até o hotel? — Era um Fiat preto feito no Egito, relativamente novo, mas cheio de pedaços de entalhes e de jornais velhos. — Não é um Citroen, mas está bom.

Erica ficou momentaneamente confusa. Não contava com um carro particular. Um táxi estava ótimo; ela gostava de Yvon, mas ele era um estranho numa terra estranha. Seus olhos traíram seus pensamentos.

— Por favor, entenda minha posição — prosseguiu Yvon. — Senti que você foi envolvida numa situação desagradável, desejando apenas que eu chegasse vinte minutos antes. Eu quero simplesmente ajudá-la. O Cairo pode ser difícil, e com o tipo de experiência que você viveu, poderia se tornar horrível. A essa hora você não conseguirá um táxi. Simplesmente não há carros em número suficiente. Deixe-me levá-la até o hotel.

—  E Raoul? — perguntou Erica, tentando encontrar um pretexto.

Yvon destrancou a porta do lado oposto ao do motorista e abriu-a. Em lugar de forçar Erica, caminhou até um homem com turbante que aparentemente estava tomando conta do carro, disse alguma coisa em árabe e jogou umas moedas na mão espalmada do homem. Depois abriu a porta e entrou, curvando-se um pouco para sorrir para Erica. Seus olhos azuis pareciam ternos sob o sol da tarde.

— Não se preocupe com Raoul. Ele sabe se cuidar. É com você que estou preocupado. Se você tem coragem de andar por aí sozinha, então não deveria estar preocupada em pegar uma carona comigo até o hotel. Mas se não quer, diga-me onde você está e eu vou me encontrar com você no saguão. Não estou disposto a desistir dessa estátua de Seti I, e você poderá ajudar.

Yvon colocou o cinto de segurança. Erica deu uma olhada na praça, suspirou e entrou no carro.

—  No Hilton — disse.

A viagem não conseguiu fazê-la relaxar. Antes de soltar o freio, Yvon calçou luvas de dirigir, puxando o couro sobre cada dedo com muito cuidado. Quando engrenou a marcha para dar a partida, o pequeno carro entrou bruscamente no meio do trânsito, cantando os pneus. Devido ao trânsito confuso, o freio teve que ser usado prontamente, e Erica foi obrigada a se segurar no painel. A viagem continuou com avanços e freadas, jogando Erica para a frente e para trás. Saíam de uma situação que ela pensava que fosse acabar em acidente e já estavam envolvidos em situação idêntica, o carro freqüentemente desviando-se por milímetros de outros carros, caminhões, carroças de burro e mesmo prédios. Pessoas e animais passavam por eles rapidamente já que Yvon, segurando o volante com as duas mãos, dirigia como se estivessem numa competição esportiva. Ele era determinado e agressi­vo, embora não ficasse com raiva ou exasperado com os outros. Se outro carro ou uma carroça cortavam a frente do carro, ele não ligava. Esperava pacientemente até que surgisse uma brecha e avançava.

Foram em direção sudeste, afastando-se do centro alvoroçado, passando pelas reminiscências das paredes da cidade velha e da magnífica fortaleza de Saladino. Dentro da fortaleza, as cúpulas e os minaretes da mesquita de Muhammad Ali apontavam para o céu numa flagrante afirmação do poder temporal do islamismo. Alcançaram o Nilo ao norte da ilha de Roda. Virando para a direita, tomaram a grande avenida que corria ao longo da margem leste do portentoso rio. O azul brilhante da água, refletindo o sol da tarde em milhões de diamantes, proporcionava um refrescante contraste com o calor e a miséria do centro do Cairo. Ao ver o Nilo pela primeira vez, no dia anterior, Erica ficara impressionada com sua história e pelo fato de que suas águas vinham da distante África equatorial. Hoje ela podia realmente entender que o Cairo e toda a região habitada do Egito não poderiam existir sem o rio. A opressiva areia e o calor davam força e rudeza ao deserto, que pressionava constantemente a porta dos fundos do Cairo, ameaçando como uma praga.

Yvon parou em frente à porta principal do Hilton. Deixando a chave no carro, apressou-se em afastar o por­teiro de turbante do outro lado do veículo e cavalheires­camente ajudou Erica a sair do carro. Erica, que presen­ciara as mais violentas cenas de sua vida, sorriu ao ines­perado gesto de delicadeza. Vinda da América, não estava acostumada a ver um homem obviamente másculo preocu­pado com detalhes de cortesia. Era uma combinação européia única, que Erica, embora cansada, só podia achar atraente.

— Se preferir ir até o quarto e se trocar antes de conversarmos, eu a espero — falou Yvon quando entravam no agitado saguão. Os vôos internacionais da tarde tinham chegado.

— Acho que primeiro preciso beber alguma coisa — respondeu Erica sem hesitar.

A temperatura do ar condicionado do bar estava deliciosa, era como estar numa piscina. Sentaram-se num recanto e fizeram o pedido. Quando as bebidas chegaram, Erica encostou o copo gelado de vodca com tônica no rosto durante algum tempo para aproveitar a sensação refrescante do copo gelado.

Enquanto Yvon bebia calmamente seu Pernod, ela percebeu como conseguia se adaptar ao jeito dele. Ele se sentia à vontade tanto no meio do Khan el Khalili como no Hilton. Olhando com mais atenção para as roupas dele, Erica percebeu como assentavam perfeitamente ao seu corpo. Comparando a sua elegância com a imutável aparência de Brook Brothers de Richard, ela sorriu, mas sabia que Richard não estava interessado em roupas e que a comparação não era justa.

Erica provou o drinque e começou a relaxar. Bebeu mais um pouco, demoradamente, e suspirou fundo antes de engolir a bebida.

—  Meu Deus, que experiência— suspirou.

Descansou a cabeça nas mãos e massageou as têmporas. Yvon continuou calado. Depois de algum tempo ela se ajeitou na cadeira e endireitou os ombros.

—  O que você vai fazer com relação à estátua de Seti? — Vou tentar encontrá-la — respondeu Yvon. —

Tenho que encontrá-la antes que ela saia do Egito. Abdul disse alguma coisa a você a respeito de para onde ela ia? Alguma coisa?

— Ele só disse que ela estava na loja por algumas horas e que em breve seguiria viagem. Nada mais.

— Há coisa de um ano uma estátua semelhante apareceu e...

— O que você quer dizer com semelhante? — Erica perguntou, interessada.

—  Era uma estátua de ouro de Seti I — disse Yvon.

—  Você chegou a vê-la, Yvon?

—  Não. Se tivesse visto, hoje ela não estaria em Houston. Foi comprada por um homem da indústria do petróleo através de um banco na Suíça. Tentei descobrir quem era ele, mas os bancos suíços não cooperam muito. Não consegui nada.

— Você sabe se a estátua de Houston tem hieróglifos esculpidos na base? — perguntou Erica.Yvon sacudiu a cabeça enquanto acendia um Gauloise.

—  Não tenho a menor idéia. Por que você pergunta? — Porque a estátua que eu vi tinha hieróglifos na base — disse Erica, interessando-se pelo assunto. — E o que me chamou a atenção foi o fato de que havia o nome de dois faraós. Seti I e Tutancâmon.

Tragando profundamente o cigarro, Yvon olhou para Erica interrogativamente. Seus lábios finos apertaram-se um pouco quando soltou a fumaça pelo nariz.

— Hieróglifos são minha especialidade — acrescentou Erica, na defensiva.

— É impossível os nomes de Seti I e Tutancâmon estarem na mesma estátua — observou Yvon em tom monocórdio.

— É estranho — continuou Erica —, mas tenho certeza disso. Infelizmente não tive tempo de traduzir o resto. Meu primeiro pensamento foi de que a estátua era falsa.

— Não era falsa — assegurou Yvon. — Hamdi não seria morto por uma falsificação. Será que você não confundiu o nome de Tutancâmon com outro?

—  Nunca — retrucou Erica.

Apanhou uma caneta na bolsa, desenhou o nome de Tutancâmon no guardanapo e o empurrou para Yvon, desafiadoramente.

—  Estava esculpido na base da estátua que eu vi. Olhando o desenho, Yvon continuou a fumar, em silêncio. Erica o observava.

— Por que o velho foi morto? — disse ela, finalmente.

—    Isso parece tão sem sentido. Se queriam a estátua podiam levá-la. Hamdi não precisava perder a vida.

— Não tenho idéia — admitiu Yvon, afastando o olhar do desenho do nome de Tutancâmon. — Talvez tenha algo a ver com a maldição dos faraós. — Ele sorriu. — Há um ano, segui uma pista de antigüidades egípcias até um intermediário em Beirute, o qual conseguia as peças com peregrinos que iam a Meca. Assim que eu fiz o contato, o sujeito foi morto. Fico pensando se há algo de errado comigo.

— Você acredita que ele foi morto pela mesma razão que Abdul Hamdi? — perguntou Erica.

— Não. Realmente ele foi pego entre o fogo de cristãos e muçulmanos. De qualquer modo, eu estava a caminho para encontrá-lo quando aconteceu.— É uma tragédia tão sem sentido — lamentou Erica, pensando novamente em Abdul.

— Realmente — concordou Yvon. — Mas lembre-se, Hamdi não era um mero espectador inocente, ele conhecia os riscos que corria. Aquela estátua tem um preço incalculável e, no meio de toda essa miséria, dinheiro pode mover montanhas. Por isso é que seria um erro procurar as autoridades. É difícil encontrar alguém em quem confiar nessas circunstâncias, e quando há dinheiro envolvido, os próprios policiais não agem com honestidade.

— Não estou certa do que devo fazer — disse Erica. — Mas quais são os seus planos, Yvon?

Dando outra tragada em seu Gauloise, ele deixou o olhar vagar pelo salão decorado sem muito gosto.

— Deve haver alguma informação na correspondência de Hamdi. Não é muito, mas já é um começo. Temos que descobrir quem o matou. — Voltando-se para Erica, seu rosto assumiu uma expressão mais séria. — Posso precisar que você faça a identificação final. Você faria isso?

— Lógico, se eu puder — concordou Erica. — Realmente não vi muito bem os assassinos, mas gostaria muito de ajudar.

Erica refletiu sobre o que dissera. As palavras soaram tão fracas... Mas Yvon pareceu perceber. Em vez disso, esticou o braço e segurou a mão dela.

— Fico muito agradecido — disse, ternamente. — Agora preciso ir. Estou no Hotel Méridien, suíte 800. Fica na ilha de Roda. — Yvon calou-se, mas sua mão ainda segurava a de Erica. — Gostaria muito que você aceitasse jantar comigo hoje à noite. Esse dia deve ter dado a você uma impressão horrível do Cairo, e eu gostaria de lhe mostrar o outro lado.

O convite inesperado encantou Erica. Yvon era extremamente atraente e provavelmente poderia escolher companhia entre uma centena de mulheres. Seu interesse era obviamente a estátua, mas as reações dela eram confusas.

— Obrigada, Yvon, mas estou exausta. Ainda estou com as pernas dormentes da viagem e ontem não dormi bem. Uma outra noite, talvez.

— Poderíamos jantar mais cedo. Eu traria você de volta às dez. Depois de sua experiência de hoje, acho que não deveria ficar no quarto sozinha.Olhando seu relógio, Erica viu que ainda não eram seis horas. Dez horas não seria muito tarde e ela teria mesmo que comer alguma coisa.

— Se você não se aborrecer de me trazer de volta às dez horas, então gostaria de jantar com você.

Yvon segurou, a mão dela de modo mais firme por um instante, depois a soltou.

— Entendi — disse, e apanhou o talão de cheques.

 

Boston, 11:00

Richard Harvey olhou para o volumoso abdômen de Henrietta Olson. As pontas do lençol foram separadas para que pudesse ficar à mostra a área da vesícula biliar. O resto do corpo de Henrietta estava coberto para preservar sua dignidade.

— Agora, Sra. Olson, aponte onde a senhora sente a dor — disse Richard.

A mão dela esgueirou-se para fora do lençol. Com o dedo indicador Henrietta indicou um ponto logo abaixo da costela direita.

— E aqui atrás também, doutor — disse Henrietta, virando-se um pouco para a direita e colocando o dedo no meio das costas. — Bem aqui — acrescentou, batendo com a mão em Richard bem na altura dos rins dele.

Richard fez um gesto de enfado, de modo que apenas Nancy Jacobs, sua enfermeira, pudesse ver, mas ela sacudiu a cabeça, sentindo que Richard estava sendo estranhamente rápido com seus pacientes.

Richard olhou para o relógio. Sabia que tinha mais três pacientes para atender antes do almoço. Embora em seus três anos de prática de medicina estivesse se saindo bem e gostasse da profissão, alguns dias eram um pouco penosos. Problemas ligados a fumo e obesidade consistiam em noventa por cento de seus casos. Ficava tudo muito longe da intensidade intelectual do seu período de residente. E agora, além disso, havia sua situação com Erica. Isso tornava quase impossível para ele se concentrar em problemas como o da vesícula biliar de Henrietta.

Bateram de leve na porta e Sally Marinski, a recepcionista, entreabriu a porta e enfiou a cabeça na sala.

— Doutor, sua ligação está na linha 1. O rosto de Richard iluminou-se. Ele pedira a Sally para telefonar a Janice Baron, mãe de Erica.

— Desculpe, Sra. Olson — disse Richard. — Preciso atender essa ligação. Já volto. — Fez sinal a Nancy para que ficasse.

Fechando a porta do consultório, Richard pegou o fone e apertou a tecla.

— Alô, Janice.

—  Richard, Erica ainda não escreveu.

— Muito obrigado. Sei que ela ainda não escreveu. O motivo por que telefonei é para lhe dizer que realmente vou ficar maluco. Quero saber o que você acha que devo fazer.

— Acho que você não tem muita escolha agora, Ri­chard. Vai ter que esperar Erica voltar.

— Por que você acha que ela foi? — Richard perguntou.

— Não tenho a menor idéia. Nunca entendi esse negócio de Egito, desde que ela falou que ia formar-se nisso. Se o pai dela não tivesse morrido, ele poderia ter dado melhores conselhos a ela.

Richard ficou algum tempo calado. Depois continuou:

— Bem, fico feliz por ela se interessar por alguma coisa, mas um hobby não deve ameaçar o resto da vida dela.

—  Concordo, Richard.

Houve outra pausa, e Richard distraidamente brincava com as coisas que estavam sobre sua mesa. Ele tinha uma pergunta a fazer a Janice, mas estava com medo de fazê-la.

— O que você acha de eu ir ao Egito? — arriscou finalmente. Houve um momento de silêncio. — Janice? — insistiu Richard, pensando que a ligação tivesse caído.

— Egito! Richard, você não pode largar seu consultório assim.

— Seria difícil, mas, se for preciso, farei isso. Posso correr o risco.

— Bem... talvez seja uma boa idéia. Mas não sei. Erica sempre gostou de ser independente. Você falou com ela sobre ir para lá?

— Não, nunca falamos sobre isso. Acho que ela sim­plesmente pensa que não posso viajar agora.

— Talvez isso lhe mostrasse que você se importa com ela — disse Janice, pensativa.—  Que me importo com ela! Meu Deus, coloquei todo o meu dinheiro naquela casa em Newton.

— Bem, aquilo pode não ser exatamente o que Erica tem em mente, Richard. Acho que você foi muito longe, e talvez ir ao Egito seja uma boa idéia.

—  Não sei o que vou fazer, mas obrigado, Janice. Richard desligou e olhou sua agenda para a parte da tarde. Ia ser um dia comprido.

 

Cairo, 21:10

Erica afastou-se quando os dois atenciosos garçons retiraram os pratos. Yvon fora tão ríspido e seco com eles que Erica se sentira quase embaraçada, mas era óbvio que Yvon estava acostumado a serviçais deferentes com os quais quanto menos se falasse, melhor. Haviam jantado lautamen­te, à luz de velas, iguarias com temperos locais, que Yvon pedira com muita autoridade. O restaurante tinha o nome romântico — mas não apropriado — de Cassino de Monte Bello, e situava-se no alto das colinas Mukattam. De onde Erica estava sentada, na varanda, podia ver a leste as escarpadas montanhas árabes que se estendiam pela península árabe até a China. Ao norte, via os diversos braços do delta do Nilo abrindo-se à procura do Mediterrâneo e ao sul avistava o rio vindo do coração da África como uma cobra larga, lustrosa. Mas a melhor vista ficava do lado oeste, onde os minaretes e as cúpulas rompiam a neblina que cobria o Cairo. As estrelas estavam despontando no céu acinzentado, que começava a escure­cer, como as luzes da cidade lá embaixo. Erica estava obcecada pela imagem das "noites árabes". A cidade insinuava algo de exótico, sensual e misterioso que fazia com que os sórdidos acontecimentos do dia se apagassem.

— O Cairo tem um charme poderoso, amargo — comentou Yvon. Seu rosto estava escondido pela penumbra até que a chama do cigarro tornou-se vermelha quando ele tragou, iluminando-lhe as feições perfeitamente talhadas. — Tem uma história inacreditável. A corrupção, as brutalidades, a continuidade da violência são tão fantásticas, tão grotescas quanto de difícil compreensão.

— Isso mudou muito? — perguntou Erica, pensando em Abdul Hamdi.

— Menos do que as pessoas pensam. A corrupção é um modo de vida. A pobreza é a mesma.

—  E o suborno? — Erica perguntou.

— Não mudou em nada — respondeu Yvon, batendo o cigarro meticulosamente no cinzeiro.

Erica bebeu um pouco de vinho.

— Você me convenceu a não ir à polícia. Realmente não tenho idéia se posso identificar os assassinos do Sr. Hamdi, e a coisa que menos desejo é ser envolvida no pântano de uma cilada asiática.

—  É a coisa mais sábia que você pode fazer.

— Mas isso ainda me preocupa. Fico achando que estou me esquivando de minha responsabilidade como ser humano. Quer dizer, ver um assassinato e não fazer nada. Mas você acha que o fato de eu não ir à polícia ajudará sua cruzada contra o mercado negro?

— Sem dúvida. Se as autoridades encontrarem a es­tátua de Seti antes de mim, então qualquer chance de ela me ajudar a penetrar no mercado negro estará perdida. — Yvon curvou-se e segurou a mão dela.

— Enquanto você tenta encontrar a estátua vai procu­rar descobrir quem matou Abdul Hamdi? — perguntou Erica.

— É lógico — prometeu Yvon. — Mas não me entenda mal. Meu objetivo é encontrar a estátua e controlar o mercado negro. Não se iluda achando que vou conseguir influenciar as atitudes morais aqui no Egito. Mas se eu encontrar os assassinos vou alertar as autoridades. Isso ajuda a tranqüilizá-la?

—  Sim — respondeu Erica.

Bem abaixo deles as lâmpadas se acenderam iluminan­do a fortaleza. O castelo fascinou Erica, evocando imagens das cruzadas.

— Uma coisa que você disse hoje à tarde me sur­preendeu — observou ela, voltando-se para Yvon. — Você mencionou a "maldição dos faraós". Certamente não acredita nessa coisa sem sentido.

Yvon sorriu, mas deixou que o garçom servisse o aromático café árabe antes de responder.

— A maldição dos faraós! Quer dizer, eu não desprezo de todo tal idéia. Os antigos egípcios despendiam grandes esforços para preservar sua morte. Eram famosos por seu interesse no oculto e eram especialistas em todos os tipos de venenos. Alors... — Yvon tomou o café. — Muitas pessoas que lidavam com tesouros dos túmulos faraônicos morreram misteriosamente. Não há dúvida quanto a isso.

— A comunidade científica tem muitas dúvidas.

— Certamente a imprensa se apressou em exagerar certas histórias, mas houve algumas mortes curiosas relacionadas com o túmulo de Tutancâmon, começando por Lorde Carnarvon. Deve haver alguma coisa relacionada com isso; quanto eu não sei. O motivo pelo qual mencionei a maldição foi porque dois negociantes que eram boas "pistas", como você diz, foram mortos antes que eu os encontrasse. Coincidência? Provavelmente.

Depois do jantar caminharam pelo alto da montanha até as ruínas de uma mesquita. Não diziam nada. A beleza do lugar os cercava e amedrontava. Yvon ofereceu sua mão quando subiram em algumas rochas para ficarem no in­terior das paredes sem teto daquela construção outrora magnífica. Acima deles, a Via-Láctea esparramava-se no céu azulado da noite. Para Erica a atração mágica do Egito residia em seu passado, e lá na escuridão das ruínas medievais ela podia sentir isso.

No caminho até o carro, Yvon colocou o braço em torno dela, mas continuou a falar tranqüilamente sobre a mesquita e deixou-a na porta do Hilton quase às dez horas, como prometera. Mesmo assim, enquanto subia pelo elevador, Erica admitiu para si mesma que estava um pouco apaixonada. Yvon era um homem charmoso e diabolicamente atraente.

Quando chegou ao quarto, enfiou a chave na fechadura, abriu a porta e acendeu a luz, deixando a bolsa de lona na cabine do pequeno hall. Fechou a porta, dando duas voltas na chave. O ar-condicionado estava ligado no máximo; preferindo não dormir num quarto com a temperatura artificialmente fria, caminhou até o aparelho, perto da sacada.

No meio do caminho ela parou e soltou um grito. Havia um homem sentado numa poltrona no canto do quarto. Ele não se mexeu nem falou. Tinha as feições de beduíno, mas estava cuidadosamente vestido com um terno europeu de seda cinza, camisa branca e gravata preta. Sua total imobilidade e os olhos penetrantes paralisaram-na. Ele era como uma aterradora escultura feita em bronze. Embora Erica tivesse pensado como reagiria de modo violento se alguma vez fosse ameaçada de estupro, no momento não fez nada. Sua voz não saiu; seus braços não se mexeram.

— Meu nome é Ahmed Khazzan — disse a figura, finalmente, numa voz soturna e fluida. — Sou o diretor-ge­ral do Departamento de Antigüidades da República Árabe Egípcia. Peço desculpas por essa intromissão, mas é necessária.

Enfiando a mão no bolso do paletó, apanhou uma carteira de couro preto. Ela abriu-se em sua mão estendida.

— Minhas credenciais, se você quiser.

O rosto de Erica empalideceu. Ela quisera ir à polícia. Sabia que devia ter ido à polícia. Agora estava envolvida numa grande complicação. Por que dera ouvidos a Yvon? Ainda paralisada pelo olhar hipnótico do homem, Erica não conseguia falar.

— Receio que você tenha que vir comigo, Erica Baron — falou Ahmed, levantando-se e caminhando na direção dela. Erica nunca vira olhos tão penetrantes. Num rosto tão bonito quanto o de Omar Shariff, eles a absorviam e aterrorizavam.

Erica gaguejou incoerentemente, mas por fim conse­guiu desviar os olhos do olhar dele. Gotas de suor frio apareceram em sua testa. Sentia os braços úmidos. Não tendo jamais estado envolvida em complicações com autoridades em parte alguma, sentia-se totalmente perdida. Mecanicamente vestiu uma suéter e apanhou a bolsa.

Ahmed permaneceu calado quando abriu a porta do hall: sua expressão de grande concentração não se alterou. Erica formava imagens de celas úmidas, horríveis, enquanto caminhava ao lado dele pelo saguão. Boston, subitamente, parecia muito distante.

Ahmed acenou na entrada do Hilton e surgiu um carro preto. Ele abriu a porta e fez sinal para que Erica entrasse, o que ela fez prontamente, esperando que sua colaboração reparasse seu erro de não ter comunicado o assassinato de Abdul. Quando o carro partiu, Ahmed manteve seu opressivo e intimidador silêncio, fixando o olhar em Erica de vez em quando.

A imaginação de Erica rodava em círculos de ansieda­de. Pensou na embaixada e no consulado dos Estados Unidos.

Ela deveria pedir para telefonar. E se isso lhe fosse concedido, o que diria? Olhando pela janela do carro, percebeu que a cidade ainda estava bem movimentada,com outros veículos e pedestres, embora o grande rio parecesse uma grande piscina de tinta negra.

— Para onde o senhor está me levando? — Erica perguntou, sua voz soando estranha para ela mesma.

Ahmed não respondeu imediatamente. Erica já ia perguntar outra vez quando ele falou:

— Ao meu gabinete, no Ministério dos Negócios Públicos. Não fica longe.

Confirmando suas palavras, logo depois o carro preto saiu da rua principal e passou por um semicírculo de concreto em frente a um edifício governamental. Um vigia noturno abriu o grande portão quando eles começaram a subir os degraus.

Depois começou uma caminhada tão longa quanto a viagem que haviam feito do Hilton até ali. Ouvindo apenas o barulho dos seus sapatos no chão de mármore, atravessaram um emaranhado de corredores, indo cada vez mais para o fundo do labirinto da burocracia. Finalmente chegaram ao gabinete. Ahmed destrancou a porta e penetrou na ante-sala, onde havia mesas de metal e máquinas de escrever antigas. Entrando no espaçoso gabinete do outro lado, indicou uma cadeira para Erica. Ficava de frente para uma velha mesa de mogno onde havia lápis com as pontas feitas e uma agenda nova. Ahmed manteve seu silêncio enquanto retirava o casaco de seda.

Erica se sentia como um animal enjaulado. Esperava ser levada para uma sala cheia de rostos acusadores onde poderia ficar sujeita à usual burocracia, como tirar impressões digitais. Ela previa problemas pelo fato de não estar com seu passaporte, pois o pessoal do hotel o havia guardado para o registro, dizendo que tinha que ser carimbado e não seria devolvido antes de vinte e quatro horas. Mas essa sala vazia era mais assustadora. Quem saberia onde ela estava? Pensou em Richard e na mãe e se poderia fazer uma chamada internacional.

Olhou nervosamente a sala a seu redor. Estava es­partanamente arrumada e extremamente limpa. Fotos emolduradas de diversos monumentos arqueológicos ador­navam as paredes juntamente com um pôster moderno da máscara funerária de Tutancâmon. Dois grandes mapas cobriam a parede do lado direito. Um era do Egito, e pequenas tachas vermelhas estavam espetadas em diversos pontos. O outro mapa era da necrópole de Tebas, com os túmulos marcados com a cruz de Malta.Mordendo o lábio para esconder a ansiedade, Erica olhou para Ahmed, atrás dela. Para sua surpresa, ele estava ocupado com uma chaleira.

— Gostaria de um pouco de chá? — perguntou ele, voltando-se.

— Não, obrigada — respondeu Erica, estranhando a circunstância em que se achava.

Aos poucos sua mente começou a sugerir que ela estava tirando conclusões, e agradeceu aos céus não ter feito nenhuma confissão antes de ouvir o que o árabe tinha a dizer.

Ahmed serviu-se de uma xícara de chá e a trouxe para a mesa. Mexendo lentamente os dois cubos de açúcar, mais uma vez jogou seu poderoso olhar sobre Erica. Ela rapidamente baixou os olhos para evitar o impacto, falando sem olhar para ele.

— Gostaria de saber por que fui trazida a este gabinete.

Ahmed não respondeu. Erica olhou-o para ter certeza de que ele a ouvira, e quando seus olhos se encontraram, a voz de Ahmed cortou o ar como um chicote.

— Quero saber o que está fazendo no Egito — disse, praticamente gritando.

A raiva dele pegou Erica de surpresa, e ela hesitou na resposta.

—  Estou... estou aqui... Sou egiptóloga.

— E você é judia, não é? — acrescentou Ahmed, ris­pidamente.

Erica era inteligente o bastante para saber que Ahmed queria desconcertá-la, mas não tinha certeza de ser forte o suficiente para resistir ao ataque dele.

—  Sim — admitiu, simplesmente.

—  Quero saber por que você está no Egito — repetiu Ahmed, alteando a voz novamente.

— Vim aqui... — disse, na defensiva.

—  Quero saber o objetivo de sua viagem e para quem trabalha.

— Não trabalho para ninguém, e não há nenhum objetivo em minha viagem — disse Erica, nervosa.

— Você espera que eu acredite que não há nenhum objetivo em sua viagem? — objetou Ahmed em tom cínico. — Convenhamos, Erica Baron. — Ele sorriu, e a pele queimada acentuou o contraste com a brancura dos seus dentes.— Logicamente há um objetivo — respondeu Erica, a voz trêmula. — O que eu quis dizer é que não vim aqui por nenhum motivo especial.

Sua voz se arrastava quando ela lembrava dos seus complicados problemas com Richard.

— Você não é convincente — insistiu Ahmed. — Absolutamente.

— Sinto muito — disse Erica. — Sou egiptóloga. Estudei o antigo Egito durante oito anos. Trabalho no departamento de egiptologia de um museu. Sempre quis vir aqui. Fiz planos para vir há alguns anos, mas a morte do meu pai não permitiu. Não foi possível, até que este ano eu consegui. Consegui que me dessem alguns pequenos trabalhos enquanto estivesse aqui, mas o principal motivo da viagem é aproveitar minhas férias.

—  Que tipo de trabalho?

— Pretendo fazer algumas traduções in loco dos hieróglifos do Novo Império, no Alto Egito.

—  Você não está aqui para comprar antigüidades?

—  Não! — afirmou Erica.

—  Há quanto tempo conhece Yvon Julien de Margeau?

—  Ele se inclinou, os olhos fixos nos de Erica.

— Eu o encontrei pela primeira vez hoje — respondeu Erica sem titubear.

—  Como vocês se encontraram?

A pulsação dela acelerou, e a transpiração apareceu novamente em sua testa. Ahmed saberia alguma coisa sobre o assassinato? Um minuto antes ela acharia que não, mas agora não estava certa.

— Nós nos encontramos no bazar — gaguejou Erica. Prendeu a respiração.

— Você sabe que Monsieur de Margeau é conhecido por negociar valiosos tesouros nacionais egípcios?

Erica temia que seu alívio fosse aparente. Obviamente Ahmed não sabia nada sobre o assassinato.

—  Não — disse ela. — Não fazia idéia.

— Você pode fazer alguma idéia — continuou Ahmed

—   da extensão do problema que enfrentamos tentando deter o mercado negro de antigüidades? — Ele se levantou e caminhou até o mapa do Egito.

— Não tenho idéia — repetiu Erica, confundida pelas múltiplas direções da conversa. Ainda não sabia por que fora levada ao gabinete de Ahmed.— A situação é muito difícil — prosseguiu Ahmed. — Tome-se, por exemplo, o altamente destrutivo roubo de dez placas de hieróglifos, em 1974, retiradas do Templo de Dendera. Uma tragédia, uma desgraça nacional. — O dedo indicador permaneceu na tacha vermelha espetada no mapa na localidade do Templo de Dendera. — Só pode ter sido um trabalho interno. Mas o caso jamais foi resolvido.

A voz de Ahmed se arrastava. Seu rosto revelava tensão. Cuidadosamente seu dedo indicador tocou a cabeça das outras tachas vermelhas.

— Cada uma indica um grande roubo de antigüidades. Se eu tivesse uma equipe com gente suficiente, e se tivesse dinheiro para pagar aos guardas um salário decente, então poderia fazer alguma coisa.

Ahmed falava mais para si do que para Erica. Vi­rando-se, pareceu quase admirado de vê-la em seu gabi­nete.

— O que Monsieur de Margeau está fazendo no Egito? — perguntou, sua raiva vindo à tona novamente.

—  Eu não sei — respondeu Erica.

Ela pensou na estátua de Seti e em Abdul Hamdi. Sabia que se falasse sobre a estátua teria que falar do assassinato.

—  Quanto tempo ele vai ficar?

—  Não tenho a menor idéia. Só o encontrei hoje.

—  Mas você jantou com ele hoje.

—  Perfeito — disse Erica, defensivamente.

Ahmed caminhou de volta para a mesa e olhou de modo ameaçador para os olhos esverdeados de Erica. Ela sentiu a intensidade do olhar e tentou devolvê-lo, mas sem muito sucesso. Sentiu um pouco mais de confiança ao perceber que Ahmed estava interessado em Yvon, e não nela, mas ainda assim estava amedrontada. Além do mais, ela mentira. Sabia que Yvon estava lá por causa da estátua.

— O que você ficou sabendo sobre Monsieur de Mar­geau durante o jantar?

— Ele é um homem atraente — respondeu Erica eva­sivamente.

Ahmed bateu com a mão na mesa, mandando alguns dos lápis pelos ares e fazendo Erica recuar.

— Não estou interessado em sua personalidade — disse Ahmed lentamente. — Quero saber por que Yvon de Margeau está no Egito.

— Bem, por que o senhor não pergunta a ele? — sugeriu Erica finalmente. — Fui apenas jantar com ele.— Você costuma ir jantar com homens que mal conhece? — perguntou Ahmed.

Erica analisou cuidadosamente o rosto de Ahmed. A pergunta a surpreendeu, mas quase tudo tinha sido surpreendente. A voz dele sugeria um pouco de desaponta­mento, mas Erica sabia que isso era absurdo.

— Raramente vou jantar com estranhos — afirmou de modo desafiador —, mas me senti logo à vontade com Yvon de Margeau e achei-o atraente.

Ahmed foi apanhar seu paletó e com muito esmero o vestiu. Tomando o resto do chá de um só gole, olhou depois para Erica.

— Para seu próprio bem, pediria que mantivesse essa conversa em sigilo. Agora vou levá-la de volta ao hotel.

Erica estava mais confusa ainda. Observando Ahmed apanhar os lápis que tinham caído no chão, subitamente foi vencida pelo sentimento de culpa. O homem era obvia­mente sincero em seu desejo de conter o mercado negro de antigüidades, e ela estava sonegando informações. Ao mesmo tempo, a experiência com Ahmed fora assustadora; como Yvon a advertira, ele certamente não se comportava como nenhum oficial americano que ela conhecera. Decidiu deixar que ele a levasse de volta ao hotel sem dizer nada. Além do mais, poderia entrar em contato com ele, se algum dia decidisse fazê-lo.

 

Cairo, 23:15

Yvon Julien de Margeau vestia um roupão de seda vermelha frouxamente amarrado na cintura, mostrando boa parte do peito recoberto de pêlos grisalhos. As portas de vidro de correr da suíte 800 estavam totalmente abertas, permitindo que a brisa refrescante do deserto penetrasse suavemente no quarto. Uma mesa fora colocada na varanda larga, e do lugar onde Yvon estava sentado podia olhar para o norte pelo delta do Nilo. A ilha de Gezira, com sua estreita torre de observação, de aspecto fálico, surgia a meia distância. Na margem direita Yvon podia ver o Hilton e sua mente voltava a Erica. Ela era muito diferente de todas as mulheres que ele conhecera. Estava ao mesmo tempo chocado e atraído pelo seu interesse apaixonado por egiptologia e um pouco confuso com sua conversa sobre a carreira. Após algum tempo ele deu de ombros, considerando-a no contexto em que lhe era mais familiar. Ela não era a mais bonita das mulheres com quem estivera ultimamente, e contudo havia algo nela que sugeria uma sutil, mas poderosa, sensualidade.

No centro da mesa Yvon colocara a pasta com os papéis que ele e Raoul haviam encontrado na arca de Abdul Hamdi. Raoul estava esparramado no sofá, lendo novamente as cartas que Yvon já havia examinado.

— Alors — exclamou Yvon subitamente, batendo na carta que lia com a mão que estava livre —, Stephanos Markoulis. Hamdi se correspondia com Markoulis! O agente de viagens de Atenas.

— Isso pode ser o que estamos procurando — disse Raoul, esperançoso. — Você acha que há alguma ameaça na carta?

Yvon continuou lendo o texto. Depois de alguns minutos desviou o olhar da carta.

— Não se pode ter certeza de nenhuma ameaça. Tudo o que ele diz é que está interessado no assunto e que gostaria de chegar a algum tipo de acordo. Mas não diz qual o assunto.

— Só pode estar se referindo à estátua de Seti — disse Raoul.

— Possivelmente, mas minha intuição diz que não. Conhecendo Markoulis, sei que ele seria mais direto se se referisse apenas à estátua. Devia haver mais alguma coisa. Hamdi deve tê-lo ameaçado.

—  Se esse é o caso, Hamdi não era nenhum bobo.

— Ele foi o último bobo — contestou Yvon. — Está morto.

— Markoulis também se correspondeu com nosso contato de Beirute que morreu — lembrou Raoul.

Yvon tirou os olhos do papel outra vez. Esquecera da ligação de Markoulis com o contato de Beirute.

— Acho que devemos começar com Markoulis. Sabe­mos que ele lida com antigüidades. Tente conseguir um telefonema para Atenas.

Raoul levantou-se do sofá e fez o pedido à telefonista. Depois de algum tempo disse:

— O tráfego telefônico está surpreendentemente tran­qüilo hoje à noite, pelo menos é o que a telefonista disse. Não deve haver problema com a chamada. Para o Egito é um milagre.

— Ótimo — concordou Yvon, esticando-se para fechar a sua pasta.

— Hamdi se correspondia com os maiores museus do mundo, mas Markoulis ainda é uma boa tacada. Nossa única ajuda é Erica Baron.

— E eu não acho que ela esteja querendo ajudar muito.

— Tenho uma idéia — disse Yvon, acendendo um cigarro. — Erica viu os rostos de dois dos três homens envolvidos na morte.

—  É isso mesmo, mas duvido que ela os reconheça.

— É verdade. Mas acho que isso não importa, se os assassinos pensam que ela pode.

—  Não sei aonde você quer chegar — falou Raoul. — Seria possível fazer com que o submundo do Cairo soubesse que Erica Baron presenciou o assassinato e pode facilmente identificar os assassinos?— Ah! — exclamou Raoul, seu rosto subitamente demonstrando que ele compreendera. — Sei o que você está pensando. Usar Erica Baron como um chamariz para atrair os assassinos.

— Exatamente. A polícia não tem meios de fazer alguma coisa contra Hamdi. O Departamento de Antigüida­des não fará nada, a menos que fique sabendo da estátua de Seti, de modo que Ahmed Khazzan não estará envolvido. Ele é o único oficial que poderia tornar as coisas difíceis para nós.

—  Há um problema maior — disse Raoul.

— Qual? — perguntou Yvon, tragando a fumaça do cigarro.

— É uma coisa muito perigosa. Provavelmente significa assinar uma sentença de morte para Mademoiselle Erica Baron. Tenho certeza de que vão matá-la.

— Alguém poderia protegê-la? — indagou Yvon, lembrando-se de sua cintura fina, de sua ternura e de seu amor às coisas.

—  Provavelmente, se usarmos a pessoa certa.

—  Está pensando em Khalifa?

—  Estou.

—  Ele é um problema...

—  Sim, mas é o melhor. Se você quer proteger a moça e agarrar os assassinos, precisa de Khalifa. O problema é que ele é caro. Muito caro.

— Isso não me preocupa. Quero e preciso da estátua. Estou certo de que essa é a base de que preciso. Na verdade, acho que é o único meio de que dispomos. Já olhei todo esse material de Abdul que está conosco. Infelizmente não há quase nada sobre o mercado negro.

—  Você achava que realmente haveria?

— Era um pouco demais querer que sim, admito. Pelo que Hamdi me disse em sua carta, pensei que fosse possível. Mas fale com Khalifa. Quero que ele comece a seguir Erica Baron pela manhã. Acho que vou ficar algum tempo com ela também. Não estou certo de que ela me tenha dito tudo.

Raoul olhou Yvon com um sorriso descrente.

— Está bem — admitiu Yvon. — Você me conhece bem. Há alguma coisa de atraente naquela mulher.

 

Atenas, 23:45

Curvando-se para trás, Stephanos Markoulis desligou a lâmpada. O quarto ficou banhado pela tênue luz do luar, que chegava ao quarto através da porta da sacada.

— Atenas é uma cidade romântica — disse Deborah Graham soltando-se dos braços de Stephanos.

Os olhos dela brilhavam na semi-escuridão. Ela estava intoxicada pela atmosfera e pela garrafa de vinho que jazia na mesa, logo adiante. Seu cabelo louro, liso, caía sobre os ombros, e com um gesto de cabeça ela o jogou para trás da orelha. A blusa estava desabotoada e seus seios claros contrastavam profundamente com a pele queimada pelo sol do Mediterrâneo.

— Concordo — respondeu Stephanos. Sua mão mo­veu-se para massagear os seios dela. — Foi por isso que decidi morar em Atenas. Atenas foi feita para os amantes.

Stephanos ouvira essa frase de uma outra garota numa noite qualquer e a repetira involuntariamente naquele momento. A camisa de Stephanos também estava aberta, mas ela estava sempre aberta. Tinha o peito largo com pêlos escuros, que realçavam suas correntes e medalhas de ouro maciço.

Stephanos estava ansioso para levar Deborah para a cama. Ele sempre achara as mulheres australianas fáceis e boas de cama. Muitas pessoas lhe haviam dito que os australianos tinham um comportamento mais liberado, mas ele não ligava. Estava contente de atribuir sua sorte à atmosfera romântica e à sua própria perícia, mas principal­mente à última.

— Obrigada por me convidar para vir aqui, Stephanos — disse Deborah sinceramente.

— O prazer é meu — falou Stephanos sorrindo.— Você se importaria se eu fosse até a varanda por um minuto?

— Absolutamente — respondeu Stephanos, no íntimo aborrecendo-se com esse retardamento.

Segurando a blusa, Deborah debruçou-se na varanda.

Stephanos apreciava os movimentos ondulantes de suas nádegas sob a calça de jeans desbotada. Ele achava que ela devia ter uns dezenove anos.

—  Não vá cair daí — gritou.

—  Stephanos, essa varanda só tem um metro de altura. — Vejo que você aprendeu depressa o sarcasmo — disse Stephanos. Imediatamente ficou em dúvida sobre se Deborah iria ceder. Impaciente, acendeu um cigarro, jogando a fumaça para o teto.

—  Stephanos, venha aqui me dizer o que é aquilo. — Meu Deus! — disse ele baixinho. De modo relutante levantou-se e foi até onde ela estava. Deborah estava bem debruçada, apontando para a Rua Ermon.

—  Aquilo que estou vendo é a Praça da Constituição? — É, sim.

— E ali é o Parthenon? — perguntou Deborah, apontando na direção oposta.

—  Muito bem, você acertou.

—  Oh, Stephanos, é lindo.

Olhando para ele, ela colocou os braços em torno do seu pescoço e olhou para o rosto largo de Stephanos. Ela ficara excitada com a aparência dele desde a primeira vez, no Plaka. Tinha rugas profundas no rosto, que lhe davam o aspecto de uma pessoa de caráter, e uma barba cerrada que Deborah achava realçar sua masculinidade. Ainda estava um pouco assustada por ter aceito vir ao apartamen­to desse estranho, embora o fato de estar em Atenas e não em Sydney fizesse com que as coisas parecessem certas. Além disso, o medo aumentou sua disposição e já estava incrivelmente excitada.

— Que tipo de trabalho você faz, Stephanos? — perguntou, o passar do tempo aumentando sua expectativa.

—  E isso importa?

— Só estou querendo saber. Mas você não precisa me dizer.

— Eu tenho uma agência de viagens, a Egeu Turismo, e vendo alguns contrabandos. Mas vivo mesmo é atrás de mulheres.

—  Oh, Stephanos. Falo sério.— Eu também. Tenho uma boa empresa de viagens, mas também contrabandeio peças de máquinas para o Egito, fora as antigüidades. Mas, como eu disse, vivo mesmo é atrás das mulheres. É uma coisa que nunca me cansa.

Deborah olhou para os olhos negros de Stephanos. Para surpresa dela, o fato de ele admitir ser um mulherengo aumentava o divertimento do prazer proibido. Ela se jogou sobre ele.

Stephanos era bom em quase tudo o que fazia. Sentiu as inibições dela diminuírem. Com a sensação de satisfação, levantou-a e levou-a para a parte de dentro do apartamento. Passando pela sala de estar, levou-a diretamente para o quarto. Sem resistência, ele tirou a roupa dela. Ela parecia deliciosa, assim totalmente nua sob a luz azulada do quarto.

Tirando sua calça, Stephanos curvou-se e beijou Deborah suavemente nos lábios. Ela se entregou, querendo que ele a possuísse.

De repente, o telefone que estava bem ao lado da cama começou a tocar. Stephanos acendeu a lâmpada para ver as horas. Já era quase meia-noite. Havia algo errado.

— Atenda você — disse Stephanos.

Deborah o olhou surpresa, mas prontamente pegou o fone. Disse alô em inglês, e avisou que era uma chamada internacional. Stephanos fez sinal para que ela ficasse no aparelho e, sem fazer ruído, pediu-lhe que descobrisse quem estava falando. Deborah, obediente, ouviu tudo, perguntou quem estava falando e depois tapou o fone com a mão.

— É do Cairo. Um tal de Monsieur Yvon Julien de Margeau.

Stephanos apanhou o fone da mão dela, seu rosto refletindo a súbita mudança de uma expressão de brinca­deira para um ar calculista. Deborah afastou-se, cobrindo sua nudez. Olhando para o rosto dele agora, Deborah percebeu que cometera um engano. Tentou pegar suas roupas, mas Stephanos estava sentado sobre a sua calça.

— Você não vai me convencer de que só quer ter uma conversa amistosa no meio da noite — disse Stephanos, não escondendo sua irritação.

— Você está certo, Stephanos — concordou Yvon calmamente. — Queria lhe perguntar sobre Abdul Hamdi. Você o conhece?— Claro que eu conheço esse filho da puta. O que há com ele?

—  Você fez algum negócio com ele?

— É uma pergunta muito pessoal, Yvon. Aonde você quer chegar?

—  Hamdi foi assassinado hoje.

— Isso é muito mau — comentou Stephanos com sarcasmo. — Mas o que eu teria a ver com isso?

Deborah continuava tentando apanhar sua calça. Cautelosamente colocou uma das mãos nas costas dele e puxou a calça com a outra. Stephanos percebia o movimento mas sem entender o motivo. Selvagemente ele se.virou e bateu nela com as costas da mão, jogando-a do outro lado da cama. Com as mãos trêmulas ela se vestiu com as roupas que tinha à mão.

— Tem alguma idéia de quem matou Hamdi? — perguntou Yvon.

—  Há muitas pessoas que queriam aquele filho da puta morto — disse Stephanos furiosamente. — Eu mesmo era um deles.

—  Ele tentou chantagear você?

— Ouça, Margeau, não sei se quero responder às suas perguntas. Por que você está me perguntando isso?

— Quero passar algumas informações a você. Sei de algo que você gostaria de saber.

— Vamos lá.

— Hamdi tinha uma estátua de Seti I como aquela de Houston.

O rosto de Stephanos ficou corado.

— Meu Deus! — gritou, ficando de pé, esquecendo-se de sua própria nudez. Deborah viu a oportunidade para apanhar a calça. Finalmente vestida, ela se abaixou do outro lado da cama com as costas voltadas para a parede.

— Como ele conseguiu a estátua de Seti? — perguntou Stephanos, controlando sua raiva.

—  Não tenho idéia — respondeu Yvon.

— Houve alguma publicidade oficial? — indagou Stephanos.

— Nenhuma. Cheguei lá imediatamente depois do assassinato. Peguei todos os papéis de Hamdi e sua correspondência, inclusive sua última carta.

—  O que você está fazendo com ela?

—  Nada, por enquanto.— Havia alguma coisa sobre o mercado negro em geral? Ele tentou alguma forma de publicidade?

— Ah, então ele tentou chantagear você — concluiu Yvon, triunfante. — A resposta é não. Não houve grande publicidade. Você o matou, Stephanos?

— Se eu o tivesse matado, você acha, sinceramente, que lhe diria, De Margeau? Seja realista.

— Só queria saber. Na verdade temos uma boa pista. O assassino foi visto de perto por uma testemunha.

Stephanos parou perto da porta, olhando para a varanda, do outro lado da sala de estar, meditando.

—  A testemunha pode identificar os assassinos? — Certamente. E a testemunha é uma mulher muito

bonita, que além de tudo é egiptóloga. O nome dela é Erica Baron, e está no Hilton.

Apertando o gancho para desligar, Stephanos discou um número local. Bateu impacientemente no telefone enquanto a ligação se completava.

— Evangelos, arrume sua mala. Vamos para o Cairo pela manhã. — Desligou antes que Evangelos pudesse responder. — Merda — gritou para a noite.

Naquele instante viu Deborah. Por um instante ficou confuso, por haver se esquecido da presença dela.

—  Saia daqui — gritou.

Deborah pulou, ficando de pé, e saiu correndo do quarto. A liberdade na Grécia parecia ser tão perigosa e imprevisível como lhe haviam dito em sua casa.

 

Cairo, 24:00

Saindo do bar enfumaçado, Erica piscou sob a luminosidade do saguão do Hilton. A experiência com Ahmed e o sentimento de intimidação do enorme edifício do ministério a enervaram de tal modo que ela decidira beber alguma coisa. Queria relaxar, mas ir ao bar não fora uma grande idéia. Não conseguiu beber em paz; diversos arquitetos americanos decidiram que ela seria um antídoto para uma noite enfadonha. Ninguém queria acreditar que ela desejasse ficar só. De modo que ela terminou sua bebida e foi embora.

Passando por um canto do saguão, conseguiu sentir os efeitos físicos do uísque, e parou por um instante para reequilibrar-se. Infelizmente o álcool não agira sobre sua ansiedade. No máximo a bebida a aumentara, e os olhos atentos dos homens no bar tocaram em sua incipiente paranóia. Imaginou se estaria sendo seguida. Lentamente deixou que seus olhos corressem pelo grande hall. Num dos sofás, um homem estava obviamente olhando para ela por cima dos óculos. Um árabe de barba, vestido com uma túnica branca, parado perto da vitrina de uma loja de jóias também a olhava com seus olhos escuros, sem piscar. Um negro, bem forte, que parecia Idi Amin, sorriu para ela do balcão de reservas.

Erica sacudiu a cabeça. Sabia que o cansaço a estava perturbando. Se estivesse em Boston, caminhando sozinha à meia-noite, estaria aterrorizada. Respirou fundo e dirigiu-se para o hall dos elevadores.

Quando chegou à porta do quarto, Erica teve uma lembrança nítida de quando viu Ahmed no quarto. Sua pulsação acelerou quando empurrou a porta. Com muito cuidado acendeu a luz. A cadeira de Ahmed estava vazia.

Depois olhou no banheiro. Também estava vazio. Dando duas voltas na chave da porta, percebeu um envelope no chão do hall. Era do Hilton. Caminhando na direção da varanda, abriu o envelope e leu o recado. Monsieur Yvon Julien de Margeau havia telefonado. Pedia que ligasse para ele a qualquer hora. Embaixo da mensagem havia um quadrado onde se lia "urgente".

Respirando o ar puro da noite, Erica começou a relaxar. A vista maravilhosa ajudava. Nunca estivera no deserto antes e estava pasma de ver tantas estrelas no horizonte e acima dele. Bem em frente a ela o vulto negro do Nilo se estendia como um desvio de estrada. Ao longe podia ver, iluminada, a misteriosa esfinge, silenciosamente guardando os mistérios do passado. Perto da criatura mítica estavam as fabulosas pirâmides, com suas pontas voltadas para o céu. Apesar da antigüidade, sua geometria sugeria alguma coisa futurista, revolucionando a idéia de tempo. Olhando à esquerda, Erica pôde ver a ilha de Roda, que parecia um navio no meio do Nilo. Do lado mais próximo da ilha viu as luzes do Hotel Méridien, e seus pensamentos voltaram a Yvon. Ela leu o bilhete novamente e imaginou se Yvon sabia da visita de Ahmed. Ponderou também se devia dizer a ele, se é que ele já não sabia. Mas sentiu uma grande necessidade de não se envolver, e lhe pareceu que contar tudo a Yvon podia significar exatamente o contrário. Se havia alguma coisa entre Ahmed e Yvon, era problema deles. Yvon podia cuidar disso.

Sentando-se na ponta da cama, Erica pediu que ligassem para o Hotel Méridien, suíte 800. Com o fone preso no ombro, Erica tirou a blusa. O ar fresco estava gostoso. Demorou quase quinze minutos para que comple­tassem a ligação, e Erica percebeu que os telefones egípcios eram abomináveis.

— Alô.— Era Raoul.

— Alô. É Erica Baron. Posso falar com Yvon?

—  Um momento.

Houve uma pausa, e Erica tirou os sapatos. Seus pés estavam cheios de poeira do Cairo.

—  Boa noite — cumprimentou Yvon em tom alegre. — Alô, Yvon. Recebi um recado para ligar para você.

Estava escrito "urgente".

—  Bem, eu queria lhe falar o quanto antes, mas não havia urgência. Tive uma excelente noite hoje e queria agradecer a você.— Muito gentil de sua parte — disse Erica, um pouco nervosa.

— Realmente achei que você estava muito bonita e estou ansioso para vê-la de novo.

—  Está? — Erica perguntou sem pensar.

— Estou, sim. Na verdade, gostaria de tomar o café da manhã com você. Eles servem ovos maravilhosos aqui no Méridien.

—   Obrigada, Yvon — disse Erica. Ela gostara da companhia de Yvon, mas não tencionava perder seu tempo no Egito com um flerte. Viera para ver os objetos dos seus anos de estudo, e não queria desviar sua atenção disso. Mais importante que isso, ainda não decidira qual a sua responsabilidade no tocante à estátua de Seti I.

— Posso mandar Raoul apanhá-la quando você quiser — sugeriu Yvon, interrompendo seus pensamentos.

— Obrigada, Yvon, mas estou exausta. Quero descan­sar bastante.

—  Entendo. Você pode me telefonar quando acordar. — Yvon, me diverti muito hoje à noite, especialmente depois da experiência que vivi à tarde. Mas acho que preciso de um pouco de tempo para mim. Gostaria de andar um pouco pela cidade.

— Eu teria muito prazer em lhe mostrar um pouco mais do Cairo — disse Yvon, insistindo.

Erica não queria passar o dia com Yvon. Seu interesse pelo Egito era muito pessoal para dividir com outra pessoa.

— Yvon, que tal jantarmos novamente? Seria o melhor para mim.

— O jantar estaria incluído na programação do dia, mas entendo, Erica. Jantar será ótimo e vou esperar por ele ansioso. Mas vamos marcar a hora. Digamos, nove horas.

Depois de uma despedida amigável, Erica desligou. Estava surpresa com a insistência de Yvon. Ela mesma não achava que estivesse com boa aparência aquela noite. Levantou-se e foi olhar-se no espelho do banheiro. Tinha vinte e oito anos, mas muitas pessoas achavam que ela parecia mais jovem. Percebeu novamente as rugas que miraculosamente apareceram em torno dos olhos em seu último aniversário. Depois viu uma pequena espinha que se formava.

—  Droga — resmungou, enquanto tentava espremê-la. Erica olhou seu corpo e pensou nos homens. Gostaria de saber do que é que eles realmente gostavam.Tirou o sutiã, depois a saia. Esperando que a água do chuveiro esquentasse, olhou o espelho do banheiro. Virando a cabeça para o lado, tocou na pequena inchação no nariz e pensou se deveria fazer alguma coisa a respeito. Afastando-se um pouco para ver como ficava, sentiu-se gratificada com seu corpo, embora achasse que precisava de mais exercício. Subitamente sentiu-se sozinha. Pensou na vida que obstinadamente deixara em Boston. Havia problemas, mas fugir para o Egito não era a solução. Pensou em Richard. Com o chuveiro escorrendo, Erica voltou ao banheiro e olhou para o telefone. Impulsivamen­te pediu uma chamada para Richard Harvey e ficou desapontada quando a telefonista lhe disse que a ligação iria demorar no mínimo duas horas, talvez mais. Erica reclamou, e a telefonista disse que ela devia se dar por feliz porque as linhas não estavam ocupadas. Geralmente levava dias para se completar uma ligação internacional; era mais fácil fazer ligações domésticas. Erica lhe agradeceu e desligou. Olhando o telefone mudo, sentiu um lampejo de emoção. Tentou evitar algumas lágrimas, sabendo que estava muito cansada para pensar em alguma coisa mais antes de dormir um pouco.

 

Cairo, 0:30

Ahmed observava a luz se refletindo no Nilo quando seu carro cruzou a Ponte 26 de Julho em direção à ilha de Geriza. Seu motorista ia buzinando, mas Ahmed não tentava mais interferir. Os motoristas do Cairo achavam que buzinar constantemente era tão necessário quanto segurar o volante.

— Estarei pronto às oito horas — disse Ahmed, saindo do carro em frente à sua casa em Shari Ismail Muhammad, no distrito de Lamalek.

O motorista assentiu, fez a manobra e desapareceu na noite.

Os passos de Ahmed eram lentos quando entrou no seu apartamento vazio do Cairo. Ele preferia sua pequena casa junto ao Nilo, em sua terra natal, Luxor, no Alto Egito, e ia para lá sempre que possível. Mas seus encargos como diretor do Departamento de Antigüidades o mantinham na cidade mais do que ele gostaria. Talvez mais do que qualquer pessoa, Ahmed estava cônscio das conseqüências negativas da enorme burocracia que o Egito criara. Com o objetivo de encorajar a educação, todos os que se forma­vam na universidade tinham um emprego garantido pelo governo. Conseqüentemente havia muita gente sem nada para fazer. A insegurança num sistema assim era freqüente, e muitas pessoas passavam as horas planejando modos de manterem seus postos. Se não fosse pelos subsídios da Arábia Saudita, tudo ruiria numa noite.

Esses pensamentos deprimiam Ahmed, que sacrificara tudo para chegar à sua atual posição. Fora designado para controlar o Departamento de Antigüidades, e agora tinha de enfrentar a grande ineficiência do departamento. E até o momento seus esforços no sentido de reorganizá-lo tinham encontrado forte oposição.

Sentou-se em seu sofá egípcio rococó e apanhou alguns memorandos em sua pasta. Lia os títulos: "Revisão dos dispositivos de segurança para a necrópole de Luxor, incluindo o vale dos Reis" e "Câmaras subterrâneas à prova de bomba para os tesouros de Tutancâmon". Abriu o primeiro porque era o que lhe interessava particularmente. Recentemente reorganizara toda a segurança da necrópole de Luxor. Essa fora sua primeira prioridade depois de assumir o cargo.

Ahmed leu o primeiro parágrafo duas vezes antes de admitir que não estava se concentrando no assunto. Lembrava-se do rosto bem-talhado de Erica Baron. Ficara encantado com sua beleza ao vê-la pela primeira vez no quarto. Planejara desconcertá-la com o interrogatório, mas ele é que ficou inicialmente desconcertado. Havia uma semelhança, não na aparência, mas no comportamento, entre Erica e uma mulher por quem Ahmed se apaixonara durante os três anos que havia passado em Harvard, e lembrar-se dela fora doloroso. A angústia que sentiu quando fora para Oxford ainda o assombrava. Saber que nunca a veria novamente foi a experiência mais difícil que viveu. E isso o afetou enormemente. Desde aquela época evitara romances, de modo que cumpriu o que sua família havia determinado para ele.

Encostando a cabeça na parede, Ahmed deixou sua mente formar a imagem de Pamela Nelson, a garota de Radcliffe. Pôde vê-la nitidamente em meio à névoa de catorze anos. Imediatamente lembrou-se daqueles momen­tos da manhã daquele domingo, o frio de Boston amenizado pelo amor que eles sentiam. Lembrou-se de como carinhosamente bateu em suas costas e no rosto com as mãos até que ela se mexesse e sorrisse.

Ahmed levantou-se e foi até a cozinha. Ocupou-se preparando chá, tentando fugir das lembranças que Erica despertara. Parecia que partira para a América no dia anterior. Seus pais o haviam levado ao aeroporto, cheios de instruções e encorajamento, insensíveis aos medos do filho. A idéia da América tinha sido realmente excitante para um menino do Alto Egito, mas Boston tornou-se um lugar solitário. Pelo menos até que encontrasse Pamela. Depois foi encantador. Aproveitando a companhia de Pamela, devorou seus estudos, terminando Harvard em três anos.Trazendo o chá para a sala de estar, Ahmed voltou a seu sofá de balanço. O líquido quente acalmou seu estômago tenso. Depois de pensar bastante, entendeu por que Erica Baron lembrava-lhe Pamela Nelson. Sentira em Erica a mesma inteligência e generosidade pessoal com que Pamela se revelara a ele. Foi o que havia de oculto nela que fez Ahmed apaixonar-se. Ahmed fechou os olhos e lembrou do corpo nu de Pamela. Ficou completamente imóvel. O único som vinha do relógio de mármore que ficava sobre a arca.

Subitamente abriu os olhos. O retrato oficial de Sadat, sorridente, apagou as lembranças ternas. O presente voltava a ocupar seu lugar, e Ahmed suspirou. Depois riu dele mesmo. Permitir que tais idéias ocorressem era raro para ele. Sabia que suas responsabilidades no departamento e com sua família davam pouca oportunidade para tais sentimentos. Chegar à sua atual posição fora uma luta, e agora estava perto do seu objetivo final.

Ahmed pegou o memorando do vale dos Reis e novamente tentou lê-lo.

Mas sua mente não estava cooperando, continuava voltando a Erica. Pensou em sua transparência durante o interrogatório. Sabia que essas respostas não revelavam fraqueza mas sim sensibilidade. Ao mesmo tempo estava convencido de que Erica não sabia nada de importante.

Subitamente Ahmed lembrou-se das palavras do assistente que lhe contara que Yvon de Margeau havia jantado com Erica. Ele dissera que Margeau a levara ao Cassino de Monte Bello e que o encontro pareceu muito romântico.

Ahmed levantou-se e caminhou pela sala. Sentia-se furioso sem saber por quê. O que Margeau estava fazendo no Egito? Em suas visitas anteriores, Ahmed não pôde mantê-lo sob a observação adequada. Agora havia uma possibilidade. Se o relacionamento com De Margeau se intensificasse, poderia segui-lo através de Erica.

Apanhou o telefone e ligou para seu segundo assistente, Zaki Riad, e ordenou que ele mandasse seguir Erica Baron vinte e quatro horas por dia, começando na manhã seguinte. Disse também a Riad que desejava que a pessoa que fosse fazer o serviço se reportasse diretamente a ele.

— Quero saber aonde ela vai e com quem se encontra. Tudo.

 

Cairo, 2:45

Foi um barulho diferente que fez Erica sentar-se, sobressaltada. A princípio não fez idéia de onde vinha: ouviu um barulho de água, e ela estava apenas de calcinha. O som metálico repetiu-se, e ela percebeu que estava no hotel e que o telefone estava tocando. O barulho de água era do chuveiro, ainda escorrendo. Ela dormira em cima da colcha com todas as luzes acesas.

Sua mente ainda estava embotada quando atendeu o telefone. A telefonista disse que ia completar sua ligação para a América. Depois de alguns ruídos distantes, o telefone ficou mudo. Gritou alô várias vezes; depois, dando de ombros, levantou-se e foi ao banheiro para desligar o chuveiro. Uma olhadela no espelho deixou-a nervosa. Ela estava horrível. Os olhos estavam vermelhos, os lábios inchados e a espinha no queixo já tinha uma pontinha.

O telefone tocou novamente, e ela correu para o quarto e o atendeu.

— Estou muito contente que você tenha ligado, querida. Como foi a viagem? — Richard parecia radiante, do outro lado.

— Terrível — respondeu Erica.

— Terrível? Qual o problema? — Richard ficou imediatamente alarmado. — Você está bem?

— Estou ótima. Só que não era bem isso o que eu esperava — disse Erica.

Imediatamente sentindo a superproteção de Richard, decidiu que provavelmente tinha sido um erro telefonar para ele. Mas já tendo cometido o erro, ela lhe contou sobre a estátua e o assassinato, sobre seu medo, sobre Yvon e depois sobre Ahmed.— Meu Deus — exclamou Richard, obviamente assus­tado —, Erica, quero que você volte imediatamente, no próximo vôo! — Fez uma pausa. — Erica, você me ouviu?

Erica jogou o cabelo para trás. A ordem de Richard te­ve um efeito negativo. Ele não estava em condições de dar ordens, não importa que motivos tivesse para fazer isso.

— Não estou pronta para deixar o Egito — disse ela em resposta.

— Escute, Erica, você já fez sua vontade. Não é preciso exagerar, especialmente se você está em perigo.

— Não estou em perigo — contestou Erica prontamen­te —, e a que vontade está se referindo?

— Sua independência. Eu compreendo. Você não precisa continuar com essa representação.

— Richard, acho que você não entendeu nada. Não é tão simples assim. Não estou representando. O antigo Egito significa muito para mim. Sonhei em visitar as pirâmides desde que eu era pequena. Estou aqui porque quero.

—  Bem, acho que você está sendo tola. — Francamente, não acho que isso seja assunto para uma chamada internacional. Você está se esquecendo de que além de ser mulher sou egiptóloga. Passei oito anos da minha vida estudando para me formar, e estou bastante interessada no que faço. É importante para mim. — Erica sentia a raiva tomar conta dela novamente.

— Mais importante que nosso relacionamento? — perguntou Richard, entre ofendido e furioso.

—  Tão importante quanto a medicina para você.

—  Medicina e egiptologia são diferentes.

— É claro, mas você se esquece de que as pessoas podem ter com a egiptologia o mesmo compromisso que você tem com a medicina. Mas não vou mais falar nisso agora, e não vou voltar para Boston. Ainda não.

— Então eu vou ao Egito — afirmou Richard em tom bombástico.

—  Não — retrucou Erica simplesmente. — Não?

— Foi o que eu disse: não. Não venha ao Egito. Por favor, se você quer fazer algo por mim, telefone ao meu chefe, Dr. Herbert Lowery, e peça que me telefone logo que puder. É muito mais fácil telefonar de fora para o Egito.

—  Gostaria de ligar para Lowery, mas você tem certeza de que não quer que eu vá até aí? — perguntou Richard, assombrado com a recusa.— Estou certa — respondeu Erica antes de dizer até logo e encerrar a ligação.

 

Quando o telefone tocou novamente, logo depois das quatro horas da madrugada, Erica não acordou tão facilmente como da primeira vez. Contudo, receou que fosse Richard ligando, e deixou o aparelho tocar várias vezes, pensando bem no que diria. Mas não era Richard. Era o Dr. Herbert Lowery.

— Você está bem, Erica?

—  Estou ótima, Dr. Lowery. Ótima.

— Richard me pareceu muito transtornado quando me telefonou há cerca de uma hora. Ele disse que você queria falar comigo.

— Exatamente, Dr. Lowery. Posso explicar — disse, sentando-se para acabar de despertar. — Queria falar com o senhor sobre algo assombroso, e me disseram que era mais fácil ligar para o Cairo do que daqui para fora. Richard lhe contou algo sobre meu primeiro dia aqui?

—  Não. Disse que você teve alguns problemas. Só isso. — Problemas não é bem a palavra — disse Erica.

Rapidamente ela relatou os acontecimentos do dia ao Dr. Lowery. Depois, com todos os detalhes de que pôde se lembrar, descreveu a estátua de Seti I.

— Inacreditável! — exclamou o Dr. Lowery quando Erica terminou. — Realmente eu vi a estátua de Houston. O homem que a comprou é extremamente rico, e trouxe Leonard e eu de Met até Houston em seu 707 para autenticá-la. Nós dois concordamos em que era a melhor escultura já encontrada no Egito. Achei que provavelmente tinha vindo de Abidos ou de Luxor. Seu estado era assombroso. Era difícil acreditar que esteve enterrada durante três mil anos. De qualquer modo, o que você está contando parece um xeque-mate.

— A estátua de Houston tinha hieróglifos na base? — perguntou Erica.

— Tinha, sim — respondeu o Dr. Lowery. Tinha algumas típicas exortações religiosas, mas também tinha uma série de hieróglifos curiosos na base.

— A estátua que eu vi também — acrescentou Erica, empolgada.

— Foi muito difícil traduzir — recordou Lowery —, mas falava em algo como "Paz eterna para Seti I, que reinou depois de Tutancâmon".

— Fantástico! — exclamou Erica. — A que eu vi também tinha os nomes de Seti I e de Tutancâmon. Eu tinha certeza, mas era tão estranho.

— Concordo que não tem nenhum sentido o nome de Tutancâmon aparecer. Na verdade, Leonard e eu conjeturamos sobre a autenticidade da estátua quando vimos isso. Mas não havia dúvida de que era real. Você percebeu qual dos nomes de Seti I foi usado?

— Acho que foi um nome associado ao do deus Osíris — tentou lembrar Erica. — Espere, posso lhe dizer com certeza. — Erica subitamente lembrou-se do camafeu que Abdul Hamdi lhe dera. Correu e foi apanhar a calça, que estava sobre uma cadeira. O camafeu ainda estava no bolso.

"Sim, era o nome de Osíris", confirmou Erica. "Lembrei que era o mesmo nome que estava num camafeu falso que eu tenho. Dr. Lowery, o senhor não poderia conseguir uma foto dos hieróglifos da estátua de Houston e enviá-la para mim?"

— Acho que posso, sim. Lembro do homem, Jeffrey Rice. Ele ficará extremamente interessado em saber que há outra estátua como a dele, e acredito que cooperará para a troca de dados.

— É uma tragédia — comentou Erica — que a estátua não possa ser estudada no lugar em que foi encontrada.

— Realmente — concordou o Dr. Lowery. — Esse é o problema do mercado negro. Os caçadores de tesouros destroem muitas informações.

— Eu sabia um pouco sobre o mercado negro — observou Erica —, mas não sabia da sua força. Realmente, gostaria de poder fazer alguma coisa.

— É um excelente objetivo. Mas os riscos são grandes, e como Abdul Hamdi ficou sabendo tarde demais, é um jogo mortal.

Erica agradeceu o telefonema do Dr. Lowery, e disse-lhe que em breve iria a Luxor para trabalhar nas traduções. O Dr. Lowery recomendou-lhe para tomar cuidado e aproveitar bem.

Desligando o telefone, Erica saboreou o gosto da excitação. A conversa a fez lembrar do que a levara a estudar o Egito. Deitando-se para dormir novamente, sentiu voltar todo o seu entusiasmo inicial pela viagem.

 

Dia 2 - Cairo, 7:55

O Cairo acordava cedo. Dos vilarejos das redondezas, as carroças puxadas por burros, cheias de mercadorias, já começavam sua viagem para a cidade antes que o leste tivesse clareado da escuridão da noite. Os ruídos eram de rodas de madeira, ranger de cargas e as sinetas dos carneiros e cabras no mercado. Quando o sol surgia no horizonte, as carroças de animais se juntavam aos veículos movidos a gasolina. O pão era amassado e o ar ficava impregnado com o delicioso aroma da massa. Por volta das sete, os táxis surgiam como insetos e começavam a tocar as buzinas. As pessoas apareciam nas ruas e a temperatura se elevava.

Tendo deixado o postigo da varanda entreaberto, Erica foi logo atingida pelos ruídos do trânsito na Ponte El Tahrir e na larga avenida, Korneish el-Nil, que corria ao longo do Nilo, em frente ao Hilton. Virando-se, viu o pálido azul do céu matinal. Sentia-se muito melhor do que esperava. Olhando para o relógio, ficou surpresa de que não tivesse dormido mais. Ainda não eram nem oito horas.

Erica sentou-se. O falso camafeu estava sobre a mesinha-de-cabeceira, perto do telefone. Apanhou-o e apertou-o, como para testar se realmente ele existia. Depois de uma noite de repouso os fatos do dia anterior pareciam um sonho.

Pedindo o café no quarto, Erica começou a planejar o seu dia. Decidiu visitar o Museu do Egito e ver algumas mostras do Velho Reino, depois seguir para Saqqara, a necrópole do Velho Reino, capital de Mennofer. Evitaria o costume dos turistas de correrem diretamente para as pirâmides de Gizé.O desjejum foi simples: suco, melão, croissants frescos e mel, e café doce. Foi servido elegantemente em sua esplêndida varanda. Com as pirâmides refletindo o sol a distância e o Nilo silenciosamente correndo, Erica experi­mentou uma sensação de euforia.

Depois de se servir de mais café, Erica apanhou seu guia Nagel do Egito e folheou-o até encontrar a parte referente a Saqqara. Havia muita coisa para ser vista num único dia, e ela tencionava planejar seu itinerário cuidado­samente. De repente lembrou-se do guia de Abdul Hamdi. Ele ainda estava no fundo da sua bolsa de lona. Abriu o livro cuidadosamente e olhou o nome e o endereço que estavam escritos no frontispício: Nasif Malmud, Shari el Tahir, 180. Isso fez com que ela pensasse na cruel ironia das últimas palavras de Abdul Hamdi: "Eu viajo muito e posso não estar no Cairo quando você for embora do Egito".

Sacudiu a cabeça, vendo que o velho estava certo. Folheando até as páginas sobre Saqqara, começou a comparar o velho Baedecker com o Nagel mais recente.

Um falcão preto passou por cima de sua janela e mergulhou num vôo rápido num beco das proximidades.

 

Nove andares abaixo, Khalifa Khalill esticou o braço e apertou o botão do isqueiro do seu Fiat alugado. Esperou pacientemente até que o isqueiro pulasse. Recostado no banco, acendeu o cigarro com aparente prazer, tragando profundamente. Era um homem anguloso e musculoso, com um nariz adunco que parecia deixar sua boca com um sorriso perpétuo. Mexia-se com certa graça, como um gato selvagem. Olhando para cima, na direção da varanda do 932, conseguiu distinguir seu alvo. Com o potente binóculo, viu Erica muito bem e apreciou as pernas dela. Muito bonita, pensou, satisfeito por ter recebido uma missão tão agradável. Erica deslocou as pernas na direção dele, e ele sorriu, o que lhe dava uma aparência distinta e espantosa, pois um dos seus incisivos superiores se partira de tal modo que ficara com uma ponta áspera. Em seu habitual terno preto e com a gravata preta, muita gente achava que ele parecia um vampiro.

Khalifa era um raro felizardo, sem conhecer o desemprego no turbulento Oriente Médio. Nascera em Damasco e fora criado num orfanato. Treinado num comando do Iraque, fora expulso porque não sabia trabalhar em equipe. Também não tinha consciência. Era um psicopata assassino que só podia ser controlado por dinheiro. Khalifa riu com satisfação ao pensar que era pago da mesma forma para tomar conta de uma bonita turista americana ou para levar rifles AK de assalto para os curdos da Turquia.

Observando as varandas vizinhas às de Erica, Khalifa não viu nada suspeito. As ordens que recebera do francês eram simples. Tinha que proteger Erica Baron de uma possível tentativa de assassinato e agarrar os executores. Afastando seu binóculo do Hilton, lentamente passou a observar as pessoas às margens do Nilo. Sabia que poderia ser difícil protegê-la contra um tiro disparado de longe por uma arma potente. Ninguém parecia suspeito. Por reflexo, para tranqüilizar-se, bateu a mão na pistola Steckin semi-automática que estava no coldre sob seu braço esquerdo. Era seu orgulho. Ele a apanhara de um agente do KGB que havia assassinado na Síria para o Mossad.

Voltando novamente a Erica, Khalifa custava a crer que alguém quisesse matar uma moça tão atraente. Ela era como um pêssego prontinho para se morder e ele imaginava se os motivos de Yvon eram estritamente os negócios.

De repente a moça levantou-se, apanhou os livros e desapareceu no quarto. Khalifa abaixou o binóculo para ver a entrada do Hilton. Havia a costumeira fila de táxis e a movimentação da manhã.

 

Gamal Ibrahim lutou com o jornal El Abram, tentando dobrar a primeira página. Ele estava sentado no banco de trás de um táxi que alugara para aquele dia, estacionado na entrada de carros do Hilton, do lado oposto ao da portaria. O porteiro reclamou, mas voltou atrás quando viu a identificação do Departamento de Antigüidades de Gamal. No banco ao lado de Gamal havia uma foto do passaporte de Erica Baron, ampliada. Cada vez que uma mulher saía do hotel, Gamal comparava seu rosto com o da foto.

Gamal tinha vinte e oito anos. Tinha pouco mais de um metro e sessenta e era um pouquinho gordo. Casado e com dois filhos, de um e de três anos, fora requisitado pelo Departamento de Antigüidades pouco antes de se doutorar em administração pública pela Universidade do Cairo, naquela primavera. Começara a trabalhar em meados de julho, mas as coisas não correram tão bem quanto ele gostaria. A equipe do departamento era tão grande que as únicas tarefas que lhe davam eram coisas estranhas como essa, seguir Erica Baron e anotar aonde ela ia. Gamal apanhou a foto de Erica quando duas mulheres saíram do hotel e entraram num táxi. Gamal jamais seguira alguém, e achava o serviço humilhante, mas não estava em condições de recusá-lo, especialmente porque deveria se reportar diretamente a Ahmed Khazzan, o diretor. Gamal tinha muitas idéias para o departamento e sentia que agora poderia ter a chance de ser ouvido.

 

Vestindo-se adequadamente para o calor que esperava em Saqqara, Erica usava uma blusa leve de algodão bege de mangas curtas e calça de algodão de um tom um pouco mais escuro, com nervuras na cintura. Em sua bolsa colocara a máquina Polaroid, a lanterna e o guia Baedecker de 1929. Depois de cuidadoso confronto, concordara com Abdul Hamdi. O Baedecker era muito superior ao Nagel. No balcão da recepção conseguiu apanhar seu passaporte, que, aparentemente, tinha sido devidamente anotado. Foi apresentada também a seu guia do dia, Anwar Selim. Erica não queria um guia, mas o hotel sugerira, e depois de ser atormentada no dia anterior, Erica finalmente acalmou-se, concordando em pagar sete libras egípcias pelo guia e dez pelo táxi e pelo motorista. Anwar Selim era um homem esquelético que tinha na lapela do terno cinza uma pequena placa com o número 113, provando que ele era um guia licenciado pelo governo.

— Tenho um itinerário magnífico — disse Selim, que tinha a afetação de sorrir no meio das frases. — Primeiro vamos visitar a Grande Pirâmide aproveitando a temperatu­ra fria da manhã. Depois...

— Obrigada — interrompeu-o Erica, afastando-se.

Os dentes de Selim tinham um aspecto feio, e sua respiração era capaz de deter um rinoceronte.

— Já fiz planos para o dia — prosseguiu ela. — Quero ir ao Museu do Egito primeiro para uma visita rápida, e depois seguir para Saqqara.

— Mas Saqqara é quente no meio do dia — protestou Selim.

Sua boca formou um sorriso forçado, a pele do rosto esticada pela contínua exposição ao sol egípcio.— Sei que será quente — concordou Erica, tentando não manter o diálogo —, mas é o itinerário que eu gostaria de fazer.

Sem alterar a expressão facial, Selim abriu a porta do velho táxi que fora designado para ela. O motorista era jovem, com barba de três dias.

Assim que saíram para o curto percurso até o museu, Khalifa colocou o binóculo no chão do carro. Deixou o táxi de Erica se misturar no trânsito antes de ligar o motor, imaginando se haveria algum modo de ter qualquer informação sobre o guia e o motorista. Logo que ligou o carro e deu a partida, notou outro táxi saindo do Hilton diretamente atrás de Erica. Ambos dobraram à direita no primeiro cruzamento.

Gamal reconheceu Erica quando ela apareceu, sem ter que recorrer à foto. Rapidamente anotou o número do guia, 113, na margem do jornal antes de dizer a seu motorista para seguir o táxi de Erica.

Quando chegaram ao Museu do Egito, Selim ajudou Erica a sair do carro, que foi estacionado à sombra de um sicômoro, para esperá-la. Gamal fez seu motorista parar debaixo de uma árvore ali perto, de onde podia ver o táxi de Erica. Abrindo o jornal, passou a ler um longo artigo sobre as propostas de Sadat para a Margem Ocidental.

Khalifa deixou o carro fora do estacionamento do museu e propositadamente passou pelo táxi de Gamal para ver se reconhecia o homem que estava lá dentro. Não reconheceu. Para Khalifa, os movimentos de Gamal eram suspeitos, mas seguindo suas ordens, entrou no museu atrás de Erica e do guia.

Erica percorria o famoso museu com grande entusias­mo, mas mesmo seu conhecimento e interesse não conseguiam suplantar a atmosfera opressiva. Os objetos, de valor incalculável, pareciam tão deslocados nos salões empoeirados quanto no Museu de Boston, na Avenida Huntington. As misteriosas estátuas e os rostos de pedra tinham um aspecto de morte e não de imortalidade. Os guardas estavam vestidos com uniformes brancos e boinas pretas, reminiscências da época colonial. Varredores com vassouras de palha empurravam a poeira de uma sala para outra sem nunca removê-la. Os únicos funcionários que estavam realmente ocupados eram os que trabalhavam em reparos, que ficavam em alguns recantos colocando remendos nas paredes ou fazendo algum trabalho simples de carpintaria com ferramentas similares àquelas desenha­das nos antigos murais egípcios.

Erica tentou desligar-se das demais coisas e se concentrar nas peças mais renomadas. Na sala 32 ela ficou deslumbrada com as estátuas de pedra de Rahotep, irmão de Khufu, e Nofrite, sua mulher, que pareciam estar vivas-. Eles tinham uma aparência atual, serena. Erica contentava-se em apenas olhar seus rostos, mas seu guia se sentiu compelido a oferecer todos os seus conhecimentos. Repetiu a Erica o que Rahotep dissera a Khufu assim que chegaram perto das estátuas. Erica sabia que isso era ficção pura. Polidamente, ela disse a Selim para apenas responder às suas perguntas e que ela realmente conhecia bem a maioria das peças.

Quando Erica contornou a estátua de Rahotep, seus olhos foram bater na porta de entrada da galeria, antes de voltarem à estátua. A imagem de um homem escuro com um dente que mais parecia uma garra chamou sua atenção, mas quando ela se voltou novamente já não havia mais ninguém na porta de entrada. Aconteceu tudo tão rápido que ela se sentiu mal. Os fatos do dia anterior a deixaram tensa, e quando ela deu a volta em torno da estátua de Rahotep olhou para a porta diversas vezes, mas a figura escura não reapareceu Em vez disso, um grupo muito barulhento de turistas franceses entrou na sala.

Fazendo sinal a Selim para irem embora, Erica saiu da sala 32 para a comprida galeria que se estendia pelo lado oeste do prédio. No corredor não havia ninguém, mas ao olhar pelo arco duplo, num dos cantos, viu novamente uma ágil figura negra.

Selim tentava levá-la para ver diversas peças famosas pelo caminho, e Erica rapidamente caminhou pela galeria até um ponto em que ela se cruzava com outra galeria similar, na parte norte do museu. Exasperado, Selim seguiu a apressada americana, que parecia querer ver o museu à velocidade da luz.

Ela parou abruptamente pouco antes de chegar ao cruzamento das galerias. Selim parou junto a ela, olhando em torno para ver o que lhe teria chamado a atenção. Ela parou junto a uma estátua de Senmut, camareira da Rainha Hatshepsut, mas, em lugar de estudá-la, olhou cuidadosa­mente para a galeria norte.

— Se houver alguma coisa em particular que a senhora deseje ver — disse Selim —, por favor...Erica silenciosamente fez sinal para que Selim ficasse quieto e, caminhando até o meio da galeria, procurou a figura negra. Não viu nada, e sentiu-se um pouco tola. Um casal alemão passou por ela, de braços dados, discutindo sobre o primeiro andar do museu.

— Srta. Baron — insistiu Selim, obviamente controlan­do-se para ser paciente —, estou muito acostumado com este museu. Se houver alguma coisa que a senhora queira ver é só pedir.

Erica ficou com pena do homem e tentou pensar em algo para lhe perguntar que o fizesse se sentir mais útil.

— Existe algum objeto de Seti I neste museu?

Selim colocou o dedo indicador no nariz, pensando. Depois, sem dizer nada, levantou o dedo no ar e fez sinal para que Erica o seguisse. Ele a levou até o segundo andar, na sala 47, que ficava sobre o hall de entrada. Parou diante de uma grande peça de quartzo cuidadosamente esculpida, com o rótulo 388.1.

— A tampa do sarcófago de Seti — informou ele, orgulhoso.

Erica olhou a peça de pedra, mentalmente comparan­do-a com a fabulosa estátua que vira no dia anterior. Não havia muito a comparar. Lembrou também que o sarcófago de Seti I fora pirateado para Londres e que estava num pequeno museu de lá. Era flagrantemente óbvio como o mercado negro dilapidara o Museu do Egito.

Selim esperou até que Erica olhasse para ele. Então pegou-a pela mão e levou-a até a porta de outra sala, instruindo-a para pagar ao guarda outras quinze piastras para que pudessem entrar. Uma vez lá dentro, Selim navegou por entre as compridas e baixas caixas de vidro até encontrar uma perto da parede.

— A múmia de Seti I — disse Selim com ar de conven­cimento. '

Fixando o olhar no rosto ressecado, Erica sentiu um pequeno choque. Era o modelo de imagem que os maquiadores de Hollywood se esforçavam para obter nos incontáveis filmes de horror, e ela percebeu que as orelhas haviam-se partido e que a cabeça já não estava ligada ao resto do corpo. Em lugar de dar idéia de imortalidade, aquilo sugeria que o horror da morte era permanente.

Olhando ao redor para as demais múmias reais que havia na sala, Erica pensou que em lugar de fazer o antigo Egito tornar-se vivo, os corpos petrificados enfatizavam o grande lapso de tempo decorrido, e como estava distante o velho Egito. Ela olhou novamente para o rosto de Seti I. Não se parecia em nada com a bela estátua que vira no dia anterior. Não havia a menor semelhança. A estátua tinha o queixo fino e o nariz retilíneo, enquanto a múmia tinha o queixo bem largo e o nariz como um bico. Isso lhe deu calafrios e ela sentiu um tremor antes de se afastar. Fazendo sinal a Selim para segui-la, caminhou para fora da sala, ansiosa para deixar o empoeirado museu e ir para o interior do país.

 

O táxi de Erica levou-a para o interior do Egito, deixando para trás a confusão do Cairo. Dirigiram-se para o sul pela margem oeste do Nilo. Selim tentou continuar a conversa dizendo a Erica que Ramsés II conversara com Moisés, mas finalmente calou-se. Erica não desejava ferir os sentimentos de Selim e tentava perguntar sobre a família dele, mas o guia não parecia querer falar sobre isso. Então, viajaram em silêncio, tendo ele deixado Erica em paz para apreciar a viagem. Ela adorou o contraste entre o azul-safira do Nilo e o verde-brilhante dos campos irrigados. Era época de colheita de amoras, e eles passavam por burricos carregados de galhos cheios de frutos vermelhos. Em frente à cidade industrial de Hilwan, que ficava do lado leste do Nilo, a estrada de asfalto se bifurcava. O táxi de Erica tomou a da direita, sua buzina soando diversas vezes, apesar de a estrada estar vazia.

Gamal estava à distância aproximada de cinco ou seis carros. Ele estava literalmente na ponta do banco do carro, conversando de vez em quando com seu motorista. Já havia tirado o paletó do terno cinza por causa do calor, que ele sabia que iria piorar.

Cerca de quinhentos metros atrás, Khalifa estava com o rádio ligado e a música dissonante enchia o carro. Agora estava convencido de que Erica estava sendo seguida, mas o método era peculiar. O táxi ia perto demais. Na entrada do museu, conseguiu dar uma boa olhada no seu ocupante, que parecia ser um estudante universitário, mas Khalifa já lidara com estudantes terroristas. Sabia que a aparência deles geralmente é apenas um disfarce para sua crueldade e audácia.

O táxi de Erica entrou num lugar cheio de palmeiras tão juntas uma das outras que parecia uma floresta de coníferas. Uma sombra fria substituía a forte luz do sol. Deram uma parada numa pequena vila. De um lado ficava uma mesquita em miniatura. Do outro havia uma área aberta com uma esfinge de alabastro de oitenta toneladas, uma porção de pedaços de estátuas quebradas, e uma grande estátua de Ramsés II, tombada. No final dessa clareira havia uma pequena construção com o nome de Café Esfinge.

— A fabulosa cidade de Mênfis — disse Selim de modo solene.

— Você quer dizer Mennofer — corrigiu Erica, olhando para os restos da cidade. Mênfis era o nome grego. Mennofer era o antigo nome egípcio. — Eu gostaria de pagar café para nós, ou chá — disse Erica, tendo certeza de que havia ferido os sentimentos dele.

Caminhando para o bar, Erica sentia-se feliz por estar preparada para as dolorosas reminiscências dessa outrora poderosa capital do antigo Egito, porque de outro modo ficaria muito desapontada. Um grande grupo de meninos maltrapilhos aproximou-se com suas coleções de falsas antigüidades, mas foram afastados, de modo eficiente, por Selim e pelo motorista de táxi. Entraram numa pequena varanda com mesas redondas de metal e pediram as bebidas. Erica pediu Orangina.

Com o suor escorrendo em seu rosto, Gamal saiu do táxi com o El Abram. Embora tivesse ficado inicialmente indeciso, finalmente convenceu-se de que precisava de uma bebida. Evitando olhar para o grupo de Erica, sentou-se numa mesa perto do quiosque. Depois de conseguir café, desapareceu atrás do jornal.

Khalifa apontou sua mira telescópica para o tronco de Gamal, mas deixou os dedos afrouxarem. Ele parara a menos de cem metros da clareira de Mênfis e rapidamente sacara seu rifle dos franco-atiradores israelenses da FN. Estava abaixado no banco de trás do seu carro, com o cano do rifle sobre a janela do lado do motorista, que estava aberta. Desde o momento em que Gamal saíra do carro, Khalifa o tinha bem sob sua mira. Se Gamal tivesse feito algum movimento na direção de Erica, Khalifa o teria acertado bem na bunda. Não daria para matá-lo, mas, como Khalifa disse para si, daria para detê-lo.

Erica não gostou da bebida por causa do enxame de moscas que infestava a varanda. Não adiantava tentar espantá-las com um aceno de mão, e por diversas vezes elas pousaram nos seus lábios. Ela se levantou, disse aos homens para não se apressarem, e caminhou pela clareira. Antes de voltar para o táxi, Erica parou para admirar a esfinge de alabastro. Imaginou que tipo de mistérios lhe contaria se pudesse falar. Era muito antiga. Fora construída durante o Antigo Reinado.

De volta ao carro, seguiram pela densa floresta de palmeiras até que ela ficasse menos espessa. Os campos cultivados reapareceram, junto a canais de irrigação cheios de algas e plantas aquáticas. Subitamente a pirâmide do Faraó Zoser surgiu com sua forma peculiar acima das palmeiras. Erica sentiu um tremor de excitação. Estava prestes a visitar a mais antiga estrutura de pedra feita pelo homem, e para os egiptólogos a mais importante localizada no Egito. Aqui o famoso arquiteto Imhotep construíra uma fabulosa escadaria de seis degraus enormes que atingia uma altura de aproximadamente sessenta metros, inaugu­rando a idade das pirâmides.

Erica sentia-se como uma criança impaciente a caminho do circo. Odiou a demora de passar por uma pequena vila antes de cruzar um grande canal de irrigação. Logo depois da ponte, a terra cultivada acabava e começava o árido deserto líbio. Não havia transição. Era como ir do meio-dia para a meia-noite sem o pôr-do-sol. De repente, dos dois lados da estrada Erica viu apenas areia e rochas e o vapor do calor subindo.

Quando o carro parou na sombra de um grande ônibus de turismo, Erica foi a primeira a saltar. Selim teve de correr para alcançá-la. O motorista abriu as quatro portas do pequeno carro para que o ar circulasse enquanto ele esperava.

Khalifa estava cada vez mais confuso sobre o compor­tamento de Gamal. Ignorando Erica, o homem levou seu jornal para a sombra da pirâmide. Nem se preocupou em seguir Erica até lá dentro. Khalifa meditou durante algum tempo, pensando o que seria melhor fazer. Achando que a presença de Gamal poderia ser algum tipo inteligente de ardil, preferiu ficar perto de Erica. Tirou o paletó, empunhou sua Steckin semi-automática com a mão direita e jogou o paletó em cima dela.

Durante a hora seguinte Erica inebriou-se com as ruínas. Este era o Egito com que ela sonhara. Seus conhecimentos faziam-na visualizar através dos restos da necrópole a forma prodigiosa que tudo aquilo tivera cinco mil anos atrás. Sabia que não poderia ver tudo num único dia e estava feliz por tocar nos objetos mais importantes e por apreciar coisas inesperadas, como os altos-relevos, sobre os quais nunca lera nada. Selim finalmente confor­mou-se com o seu papel e ficava a maior parte do tempo calado. Ficou satisfeito, contudo, quando Erica, por volta do meio-dia, fez sinal de que estava pronta para partir.

— Há uma pequena pensão aqui — sugeriu Selim, esperançoso.

— Estou ansiosa para ver alguns túmulos de nobres — disse Erica. Ela estava muito excitada para parar.

— A pensão fica perto do túmulo e do oráculo de Serápis — insistiu Selim.

Os olhos de Erica brilharam. O Serapeu era um dos mais singulares monumentos egípcios antigos. Dentro das catacumbas os restos mumificados do touro Ápis foram enterrados com toda a pompa e circunstância próprias dos reis. Foi com grande esforço que o Serapeu foi esculpido à mão na rocha maciça. Erica entendia o esforço devotado à construção dos túmulos humanos. Estava convencida de que havia um mistério associado com o túmulo do touro Apis que ainda não fora revelado.

— Estou pronta para ir ao Serapeu — decidiu ela com um sorriso.

Sendo pesado, Gamal não se dava bem com o calor. Raramente, mesmo no Cairo, ele saía ao meio-dia. Saqqara ao meio-dia estava quase além de sua capacidade. Quando seu motorista seguiu o táxi de Erica, começou a pensar em como suportaria aquilo. Talvez pudesse encontrar alguma sombra e pedir ao motorista para seguir Erica até que ela estivesse pronta para voltar ao Cairo. À frente, o táxi de Erica parou e estacionou na pensão de Saqqara. Olhando ao redor, Gamal lembrou-se de que, quando visitara a região, ainda criança, com seus pais, andara por um túnel subterrâneo assustador, escuro, construído para os touros. Embora o túnel o tivesse assustado, ele ainda se lembrava de que era deliciosamente frio.

— Aqui não é o Serapeu? — perguntou, tocando no ombro do motorista.

— Fica ali — respondeu o motorista, apontando para o início de um atalho que servia de rampa de subida.

Gamal olhou para Erica, que já saíra do carro e estava examinando a série de esfinges que havia ao longo da rampa. Imediatamente Gamal descobriu como poderia se refrescar. Além disso, pensou, seria divertido ver o Serapeu novamente depois de tantos anos.

Khalifa não estava nada satisfeito e passou a mão, agitadamente, por seus cabelos lustrosos. Chegara à conclusão de que Gamal não era o amador que ele pensara que fosse. Ele estava muito interessado. Se tivesse certeza das intenções dele, poderia atingi-lo e levá-lo vivo para Yvon de Margeau. Mas tinha que esperar Gamal fazer algum gesto. A situação era mais complicada e mais perigosa do que ele esperara. Khalifa colocou o silenciador no cano da sua automática e já ia sair do carro quando viu Gamal entrando num corredor que levava à porta de um subterrâneo. Consultou seu mapa. Era o Serapeu. Vendo Erica alegremente fotografando uma esfinge de pedra, Khalifa achou que só havia uma razão para Gamal entrar no Serapeu primeiro. Numa galeria escura ou num corredor estreito, Gamal ia ficar esperando como uma cobra venenosa para atacar quando menos se esperasse. O Serapeu era um excelente local para um assassinato. Apesar dos seus muitos anos de experiência, Khalifa não sabia o que fazer. Poderia entrar antes de Erica Baron e tentar achar o esconderijo de Gamal, mas isso talvez fosse muito arriscado. Decidiu que tinha que entrar com Erica e atirar primeiro.

Erica descera a rampa, aproximando-se da entrada. Ela não estava preocupada com grutas e na verdade não ligava para lugares fechados. Antes mesmo de entrar no Serapeu pôde sentir a friagem e a umidade, e uma sensação de formigamento anunciou que estava com cãibra nas coxas. Tinha que lutar para continuar. Um árabe sujo com feições grosseiras pegou seu dinheiro. O Serapeu dava uma sensação de mau agouro.

Uma vez na escura galeria de entrada, Erica pôde sentir o misterioso domínio que aspectos da antiga cultura egípcia exerciam nas pessoas através dos tempos. Os corredores escuros pareciam túneis para o inferno, sugerindo o misterioso poder das coisas ocultas. Seguindo Selim, caminhava cada vez mais para baixo naquele ambiente bizarro. Chegaram a um comprido corredor sem fim com paredes irregulares e toscas, fracamente ilumina­do. Nas áreas entre as lâmpadas, as sombras dificultavam a visão. Outros turistas de repente surgiam da escuridão; vozes ecoavam continuamente, batendo nas paredes do corredor. Havia outras galerias ao longo do corredor principal, cada uma delas contendo um sarcófago preto coberto de hieróglifos. Pouquíssimas galerias laterais eram iluminadas. Erica subitamente achou que já tinha visto o suficiente, mas Selim foi insistente, dizendo que o melhor sarcófago estava na parte final e que fora construída uma escada de madeira, de modo que era possível ver os trabalhos mesmo por dentro. Erica, relutante, continuou atrás de Selim. Finalmente chegaram à galeria em questão, e Selim afastou-se para o lado para deixar Erica passar. Ela estendeu a mão para segurar o corrimão de madeira e chegar à plataforma.

Khalifa estava que era só nervos, seguindo Erica bem de perto. Ele afrouxava um pouco a mão sobre a semi-automática e novamente a segurava com a mão direita sob o paletó. Por pouco não alvejou diversos turistas quando eles subitamente surgiram da escuridão.

Quando circundou a última galeria, estava apenas quinhentos metros atrás de Erica. No momento em que viu Gamal agiu por reflexo. Erica estava subindo a pequena escada de madeira construída ao lado do grande sarcófago de granito polido. Gamal estava em cima da plataforma olhando para Erica enquanto ela subia. Ele voltara para a ponta da plataforma. Infelizmente para Khalifa, ela estava entre ele e Gamal, encobrindo sua visão e tornando impossível um tiro direto. Em pânico, Khalifa avançou, empurrando Selim para o lado. Subiu a pequena escada, jogando Erica de joelhos no chão, bem em cima do surpreso Gamal.

Uma rajada de fogo saiu da pistola encoberta de Khalifa e as balas disparadas acertaram o peito de Gamal, perfurando seu coração. As mãos dele começaram a se levantar. Seu pequeno rosto contorceu-se de dor quando balançou e caiu para a frente em cima de Erica. Khalifa debruçou-se sobre o corrimão de madeira, puxando a faca do cinto. Selim gritou antes de tentar correr. Os turistas que estavam na plataforma ainda não tinham compreendi­do o que acontecera. Khalifa correu pelo corredor no sentido dos fios de iluminação. Apertando os dentes por causa de um possível choque, cortou os fios, mergulhando todo o Serapeu em completa escuridão.

 

Cairo, 12:30

Stephanos Markoulis pediu outro uísque para ele e para Evangelos Papparis. Os dois vestiam camisas de malha abertas no colarinho e estavam sentados num canto do bar La Parisienne, no Hotel Méridien. Stephanos estava aborre­cido, nervoso, e Evangelos conhecia muito bem seu patrão para ficar calado.

— Francês desgraçado — disse Stephanos, olhando o relógio. — Ele disse que desceria logo, e já se passaram vinte minutos.

Evangelos deu de ombros. Não disse nada porque sabia que qualquer coisa que dissesse inflamaria Stephanos mais ainda. Em vez de falar, esticou a mão e ajustou a pequena pistola amarrada em sua perna direita, por dentro da bota. Evangelos era um homem forte com o rosto exageradamente grande, em especial a testa, o que o fazia parecer o homem de Neanderthal, exceto pelo fato de ser completamente calvo.

Só então Yvon de Margeau apareceu na porta, com sua maleta. Vestia um blazer azul com um foulard ao pescoço e entrou seguido por Raoul. Os dois homens vasculharam a sala com o olhar.

— Esses caras ricos parece sempre que estão indo para um jogo de pólo — comentou Stephanos, sarcástico. Acenou com a mão para chamar Yvon. Evangelos levantou-se um pouco da mesa para que os outros os vissem. Yvon os viu e caminhou na direção deles. Cumprimentou Stephanos e apresentou Raoul antes de sentar.

— Como foi a viagem? — perguntou Yvon com certa formalidade assim que pediram alguma coisa para beber.

— Terrível — respondeu Stephanos. — Onde estão os papéis do velho?— Você não perde tempo, Stephanos — disse Yvon com um sorriso. — Talvez assim seja melhor. De qualquer modo, quero saber se você matou Abdul Hamdi.

— Se eu tivesse matado Hamdi, você pensa que eu viria aqui a esse fim de mundo? — retrucou Stephanos com desdém. Ele desprezava homens como Yvon, que nunca haviam trabalhado um dia na vida.

Achando que o silêncio podia ser útil com uma pessoa como Stephanos, Yvon fez uma grande encenação para abrir outro maço de Gauloise. Ofereceu cigarros a todos, mas somente Evangelos aceitou. Esticou o braço para apanhar o cigarro, mas Yvon manteve o maço fora do seu alcance, de modo a poder ver a tatuagem no antebraço cabeludo, musculoso, de Evangelos. Era uma dançarina havaiana com a palavra "Havaí" bem embaixo. Finalmente, deixando Evangelos apanhar o cigarro, Yvon perguntou:

— Você vai ao Havaí com freqüência?

— Trabalhei em cargueiros quando era novo — respondeu Evangelos. Acendeu o Gauloise numa pequena vela sobre a mesa e recostou-se.

Yvon voltou-se para Stephanos, cuja impaciência era visível. Com gestos estudados, Yvon acendeu o cigarro com seu isqueiro de ouro antes de falar.

— Não — ponderou Yvon. — Não, acho que você não viria ao Cairo se tivesse matado Hamdi, a não ser que estivesse preocupado com alguma coisa, a menos que alguma coisa tivesse saído errado. Mas para lhe falar a verdade, Stephanos, não sei em quem acreditar. Você chegou aqui muito depressa. Isso é um pouco suspeito. Além do mais, soube que os assassinos de Hamdi não eram do Cairo.

— Ah — Stephanos bateu na mesa, irritado. — Deixe ver se entendo bem. Você soube que os assassinos não eram do Cairo. A partir daí você chegou à conclusão de que eles tinham que ter vindo de Atenas. É esse o seu pensamento? — Stephanos voltou-se para Raoul. — Como você pode trabalhar para esse homem? — Bateu na testa com o dedo indicador.

Os olhos pretos de Raoul não piscavam. Suas mãos estavam sobre os joelhos. Ele estava preparado para mover-se em questão de segundos.

— Sinto muito desapontá-lo, Yvon — disse Stephanos —, mas você terá que procurar em outro lugar pelo assassino de Hamdi. Não fui eu.— Muito mal — observou Yvon. — Isso teria respondi­do a muitas perguntas. Você tem alguma idéia de quem teria feito isso?

— Não tenho a menor idéia — respondeu Stephanos —, mas tenho a impressão de que ele fez um grande número de inimigos. Que tal lermos os papéis de Hamdi?

Yvon levantou sua maleta e colocou-a em cima da mesa, com o dedo sobre o trinco. Fez uma pausa.

— Outra pergunta. Você tem alguma idéia de onde a estátua de Seti I está?

— Infelizmente não — afirmou Stephanos, parecendo furioso com o caso.

—  Quero aquela estátua — disse Yvon.

— Se eu souber de alguma coisa, direi a você — prometeu Stephanos.

— Você nunca me deu chance de ver a estátua de Houston — queixou-se Yvon, observando Stephanos cuida­dosamente.

Afastando o olhar da maleta, o rosto de Stephanos tinha um ar de surpresa.

—  O que fez você pensar que eu estive envolvido com a estátua de Houston?

— Vamos dizer apenas que eu sei — conjeturou Yvon.

— Você descobriu isso nos papéis de Hamdi? — perguntou Stephanos, furioso.

Em vez de responder, Yvon abriu o trinco da maleta e jogou a correspondência de Hamdi sobre a mesa. Recostando-se na cadeira, bebeu despreocupadamente seu Pernod enquanto Stephanos rapidamente remexia as cartas. Achou sua própria carta para Abdul Hamdi e a separou.

—  E só isso? — perguntou.

— Foi tudo o que encontrei — respondeu Yvon, voltando novamente sua atenção ao grupo.

—  Você procurou bem? — insistiu Stephanos. Yvon olhou de relance para Raoul, que assentiu.

—  Muito bem — disse Raoul.

— Tinha que ter mais — estranhou Stephanos. — Não pos­so imaginar que o velho filho da puta estivesse ble­fando. Ele disse que queria cinco mil dólares em dinhei­ro ou mostraria os papéis às autoridades. — Stephanos foi remexer nos papéis outra vez, mais lentamente.

— Se tivesse que dar uma opinião, onde você diria que está a estátua de Seti? — perguntou Yvon, tomando outro gole de Pernod.— Não sei — respondeu Stephanos, sem levantar os olhos da carta endereçada a Hamdi por um negociante de Los Angeles. — Mas, se isso ajuda em alguma coisa, posso lhe garantir que ela ainda está no Egito.

Sobreveio um silêncio incômodo. Stephanos estava ocupado, lendo. Raoul e Evangelos entreolhavam-se en­quanto bebiam. Yvon olhava para fora, pela janela. Ele também achava que a estátua ainda estava no Egito. De onde ele estava sentado podia ver a área da piscina, depois da qual estava o Nilo. No meio do rio a fonte do Nilo estava ligada, jogando água para o ar. Múltiplos arco-íris em miniatura se formavam ao longo do jato de água. Yvon pensou em Erica Baron, e esperava que Khalifa Khalil fosse tão bom quanto Raoul dissera que ele era. Se Stephanos tivesse matado Hamdi e fizesse algum gesto contra Erica, Khalifa receberia seu pagamento.

— E essa mulher americana? — disse Stephanos, parecendo ler os pensamentos de Yvon. — Quero vê-la.

— Ela está no Hilton — informou Yvon. — Mas é muito penoso para ela falar sobre esse assunto. Então, trate-a com gentileza. Ela é a única ligação que tenho com a estátua de Seti.

— A estátua não é o meu objetivo — disse Stephanos, devolvendo a correspondência. — Mas quero falar com ela, e prometo que agirei com tato, como sempre. Diga-me, você sabe de alguma coisa sobre Abdul Hamdi?

— Não muito. Ele nasceu em Luxor. Veio para o Cairo há poucos meses para abrir uma nova loja de antigüidades. Tinha um filho, que é dono de uma loja de antigüidades em Luxor.

— Você visitou o filho dele? — perguntou Stephanos.

— Não — respondeu Yvon, levantando-se. Já consegui­ra o suficiente de Stephanos. — Lembre-se de me informar se você descobrir alguma coisa sobre a estátua. Pode me interessar. — Com um leve sorriso, Yvon voltou-se. Raoul levantou-se e o seguiu.

— Você acredita nele? — perguntou Raoul quando já tinham saído.

— Não sei o que pensar — falou Yvon, continuando a andar. — Se eu acredito nele é um assunto, se confio nele é outro. Ele é o maior oportunista que já encontrei. Quero que Khalifa seja instruído para que tenha muito cuidado quando Stephanos se encontrar com Erica. Se ele tentar feri-la, quero que atire nele.

 

Vila de Saqqara, 13:48

Havia uma mosca na sala que repetidamente voava entre as duas janelas. Era barulhenta, naquele ambiente silencioso, especialmente quando batia no vidro. Erica olhou ao redor. As paredes e o teto eram pintados de branco. A única decoração era um pôster sorridente de Anwar Sadat. A única porta, de madeira, estava fechada.

Erica estava sentada numa cadeira de madeira. Acima dela havia uma lâmpada pendurada no teto por um fio preto. Perto da porta ficava uma pequena mesa de metal e outra cadeira igual àquela em que estava sentada. Erica olhou a desordem. Sua calça estava rasgada no joelho direito com uma esfoladura por baixo. Uma grande mancha de sangue pisado cobria as costas de sua blusa bege.

Juntando as mãos, tentou ver se o tremor tinha passado. Era difícil dizer. A certa altura achou que ia vomitar, mas a náusea passara. Agora sentia ondas intermitentes de vertigem, que conseguia evitar fechando os olhos bem apertados. Não havia dúvida de que ainda estava em estado de choque, mas estava começando a pensar de forma mais clara. Sabia, por exemplo, que tinha sido levada a uma delegacia da vila de Saqqara.

Erica esfregou as mãos, percebendo que elas se tornavam úmidas quando se lembrava dos acontecimentos no Serapeu. Quando Gamal caiu sobre ela, ela pensou que tivesse caído numa armadilha. Fez tentativas frenéticas para se libertar, mas não conseguiu por causa da estreita escada de madeira. Além disso, a escuridão era tão completa que ela não tinha certeza de que estava com os olhos abertos. E então sentiu o líquido quente, pegajoso em suas costas. Só mais tarde descobriu que aquilo era sangue do homem agonizante que estava sobre ela.

Erica estremeceu com outro ataque de náusea e olhou para a porta quando esta se abriu. O mesmo homem, que anteriormente levara trinta minutos para preencher um formulário governamental com um lápis quebrado, reapa­receu. Falou em inglês, mas de modo rebuscado, e fez sinal para que Erica o seguisse. A antiga pistola enfiada em seu cinto não a tranqüilizara. Estava conhecendo o caos burocrático que Yvon temia: obviamente estava sendo considerada mais como suspeita do que como vítima inocente. Desde o momento em que as "autoridades" chegaram ao local, o pandemônio começara. Em determi­nado momento dois policiais discordaram sobre uma prova, quase chegando aos socos. O passaporte de Erica fora recolhido e ela levada para Saqqara num furgão fechado, quente como um forno. Em diversas ocasiões perguntara se podia telefonar para o consulado americano, mas recebera como resposta apenas um balançar de ombros enquanto os homens continuavam a discutir o que fazer com ela.

Erica seguiu o homem com a velha arma desde a delegacia policial até a rua. O mesmo furgão que a trouxera do Serapeu à vila estava à espera, com o motor ligado. Erica tentou perguntar pelo passaporte, mas em lugar da resposta, o homem colocou-a dentro do veículo. A porta foi fechada e trancada.

Anwar Selim já estava no banco de madeira. Erica não o via desde a catástrofe no Serapeu, e ficou tão contente de vê-lo novamente que quase lançou seus braços em torno dele pedindo que lhe dissesse que tudo ia acabar bem. Mas quando ela se moveu dentro do furgão, ele a olhou furioso e virou o rosto.

— Eu sabia que a senhora ia arranjar problemas — disse ele sem olhar para ela.

— Eu, problemas? — Ela percebeu que ele estava algemado e acuado.

O furgão arrancou, e os dois tiveram de se segurar. Erica sentiu a transpiração lhe escorrer pelas costas.

— A senhora agiu de modo estranho desde o início — continuou Selim —, especialmente no museu. A senhora estava planejando alguma coisa. E eu vou contar a eles.

— Eu... — começou Erica.

Mas não continuou. O medo embotou-lhe a mente. Ela devia ter contado sobre o assassinato de Hamdi.

Selim olhou para ela e cuspiu no chão do furgão.

 

Cairo, 15:10

Quando Erica saiu do furgão, reconheceu a Praça El Tahrir. Sabia que estava próxima ao Hilton, e desejou poder voltar a seu quarto e fazer algumas ligações para conseguir ajuda. Ver Selim algemado aumentara sua ansiedade, e ela imaginava se também estava presa.

Ela e Selim foram levados para a Delegacia Geral de Segurança, que estava abarrotada de gente. A seguir, foram separados. Tiraram as impressões digitais de Erica, fotogra­faram-na e finalmente levaram-na para uma sala sem janelas.

O homem que a escoltara habilmente cumprimentou um árabe que estava lendo um dossiê numa mesa de madeira. Sem desviar os olhos do papel, ele acenou com a mão direita e o homem que escoltava Erica foi embora, fechando a porta com todo o cuidado. Erica continuou de pé. Tudo era silêncio, exceto quando o homem virava a página. As luzes fluorescentes faziam sua calva brilhar como uma maçã. Seus lábios eram finos e mexiam-se levemente quando ele lia. Estava impecavelmente vestido com um uniforme marcial branco de gola alta. Uma tira de couro preto corria pelas dragonas no ombro esquerdo e estava presa a um cinto de couro mais largo onde ficava a pistola automática dentro do coldre. Quando o homem virou a última página, Erica viu um passaporte americano preso ao dossiê, e teve esperanças de falar com alguém um pouco mais razoável.

— Por favor, sente-se, Srta. Baron — disse o policial, ainda sem levantar os olhos. Sua voz era fraca, fria. Ele tinha um bigodinho retilíneo. Seu nariz era curvado na ponta.Rapidamente Erica sentou-se numa cadeira de madeira em frente à mesa. Debaixo da mesa viu, perto das botas polidas do policial, sua bolsa de lona. Nem esperava encontrá-la mais.

O policial abaixou o dossiê, depois pegou o passapor­te. Ele o abriu na página em que estava a fotografia de Erica, e seus olhos viajaram da foto a ela diversas vezes. Depois colocou o passaporte sobre a mesa, próximo ao telefone.

— Sou o Tenente Iskander — disse o policial, cruzando as mãos sobre a mesa. Fez uma pausa, olhando diretamente para Erica. — O que aconteceu no Serapeu?

— Eu não sei — gaguejou Erica. — Estava subindo a escada para ver um sarcófago, e depois fui derrubada no chão. Depois alguém caiu em cima de mim, e as luzes se apagaram.

— Você viu quem a derrubou? — Ele falava com um leve sotaque.

— Não — respondeu Erica. — Tudo aconteceu muito rápido.

— A vítima foi alvejada. Você não ouviu os disparos?

— Não, realmente não. Ouvi diversos ruídos, como alguém batendo um tapete, mas tiros não ouvi.

O Tenente Iskander assentiu e escreveu alguma coisa no dossiê.

—  E depois, o que aconteceu?

— Eu não conseguia sair de baixo do homem que caiu sobre mim — continuou Erica, lembrando-se da sensação de terror. — Ouvi alguns gritos, eu acho, mas não tenho certeza. Lembro que alguém trouxe velas. Ajudaram-me a levantar e disseram que o homem estava morto.

—  É tudo?

—  Os guardas chegaram, depois a polícia.

—  Você viu o homem que foi baleado? — Ligeiramente. Não conseguia olhar para ele.

—  Você já o tinha visto antes?

—  Não — disse Erica.

Abaixando-se e levantando a sacola, Iskander empur­rou-a para Erica.

—  Veja se está faltando alguma coisa.

Erica verificou a bolsa. Câmara, guia de viagem, carteira — nada parecia ter sido tocado. Ela contou o dinheiro e verificou seus cheques de viagem.

—  Parece que está tudo aqui.—  Então você não foi roubada.

—  Não — confirmou Erica —, suponho que não.

— Você é formada em egiptologia. Correto? — perguntou o Tenente Iskander.

—  Sim — respondeu Erica.

— Surpreende-a saber que o homem que foi morto trabalhava para o Departamento de Antigüidades?

Desviando o olhar dos olhos frios de Iskander, Erica olhou para suas próprias mãos, percebendo pela primeira vez que estavam trêmulas. Ela as manteve paradas, pensativa. Embora sentisse necessidade de responder as perguntas de Iskander com rapidez, sabia que a pergunta que ele acabara de fazer era importante, talvez a mais importante da entrevista. Isso a fez lembrar de Ahmed Khazzan. Ele dissera que o homem morto era do Departamento de Antigüidades. Talvez ele pudesse ajudar.

— Não estou certa de como responder — disse finalmente. — Não me surpreende que o homem trabalhas­se no Departamento de Antigüidades. Podia ser qualquer um. Estou certa de que não o conhecia.

— Por que você visitou o Serapeu? — perguntou o Tenente Iskander.

Lembrando-se das acusações de Selim feitas no furgão, Erica pensou cuidadosamente em sua resposta.

—  O guia que eu contratei me sugeriu ir até lá. Abrindo o dossiê, o Tenente Iskander novamente escreveu.

— Posso fazer uma pergunta? — perguntou Erica com a voz insegura.

—  Certamente.

—  O senhor conhece Ahmed Khazzan?

— É claro — disse o Tenente Iskander. — Você conhece o Sr. Khazzan?

—  Sim, e gostaria muito de falar com ele.

O Tenente Iskander esticou o braço e pegou o telefone. Observava Erica enquanto falava. Ele não sorria.

 

Cairo, 16:05

A caminhada parecia não ter mais fim. Corredores abriam-se em frente a ela até a perspectiva os reduzir a pequenos pontos distantes. E estavam cheios de gente. Egípcios usando de tudo, desde ternos de seda a túnicas maltrapilhas, faziam filas em frente às portas ou saíam dos gabinetes. Alguns estavam dormindo no chão, obrigando Erica e quem a escoltava a pular por cima deles. O ar estava pesado, com fumaça de cigarros, alho, e o cheiro engordurado de carneiros.

Quando Erica chegou ao gabinete externo do Departa­mento de Antigüidades, lembrou-se do grande número de mesas e máquinas de escrever antigas da noite anterior. A diferença era que agora elas estavam ocupadas com funcionários civis visivelmente atarefados. Depois de uma pequena espera, Erica entrou no outro gabinete. O ar-condicionado e a temperatura baixa deram-lhe um grande alívio.

Ahmed estava de pé atrás da mesa olhando pela janela. Podia-se ver dali a parte do Nilo que ficava entre o Hilton e o esqueleto do novo Hotel Intercontinental. Ele se voltou quando Erica entrou.

Ela estava preparada para expor seus problemas como um rio correndo em seu leito, e contava que Ahmed a ajudasse. Mas algo na expressão dele fez com que desanimasse um pouco. Havia um tom de tristeza em seu rosto. Os olhos dele estavam sem brilho e o cabelo grosso despenteado, como se tivesse passado várias vezes os dedos pela cabeça.

— O senhor está bem? — perguntou Erica, sincera­mente preocupada.— Sim — respondeu Ahmed lentamente. Sua voz estava vacilante, deprimida. — Eu nunca imaginei o que seria dirigir este departamento. — Sentou-se em sua cadeira, com os olhos momentaneamente fechados.

Antes, Erica agira apenas seguindo sua sensibilidade. Agora, ela queria circundar a mesa e confortá-lo.

Os olhos de Ahmed se abriram.

—  Sinto muito — desculpou-se. — Por favor, sente-se. Erica obedeceu.

— Fui informado do que aconteceu no Serapeu, mas gostaria de ouvir a história com suas palavras.

Erica começou a relatar desde o início. Desejando contar tudo, mencionou até o homem do museu que a deixara nervosa.

Ahmed ouvia atentamente. Não a interrompeu. Só quando ela terminou ele falou.

— O homem que foi atingido chamava-se Gamal Ibrahim e trabalhava no Departamento de Antigüidades. Era um bom rapaz.

Os olhos de Ahmed reluziram com lágrimas. Ver um homem tão forte comovido, o que não era comum entre os homens americanos que conhecia, fez com que Erica esquecesse de seus próprios problemas. Essa habilidade de revelar emoção era uma qualidade poderosamente atrativa. Ahmed baixou os olhos e recompôs-se antes de continuar.

— Você chegou a ver Gamal durante a manhã?

— Creio que não — respondeu Erica, pouco convin­cente. — Talvez o tenha visto num bar em Mênfis, mas não tenho certeza.

Ahmed passou os dedos pelos cabelos grossos.

— Diga-me — salientou Ahmed. — Gamal já estava na plataforma de madeira, no Serapeu, quando você começou a subir as escadas?

—  Sim — confirmou Erica.

—  Curioso — estranhou Ahmed.

—  Por quê? — indagou Erica.

Ahmed parecia um pouco desconcertado.

— Só estou pensando — disse evasivamente. — Nada tem sentido.

— Sinto a mesma coisa, Sr. Khazzan. E quero lhe afiançar que não tenho nada a ver com o caso. Nada. E acho que devo ter permissão para ligar para a embaixada americana.— Você pode ligar para a embaixada americana — disse Ahmed —, mas francamente não há necessidade disso.

—  Acho que preciso de ajuda.

— Srta. Baron, sinto muito que tenha sido importuna­da hoje. Mas realmente o problema é nosso. Pode chamar quem quiser quando chegar ao hotel.

— Não vou ficar detida aqui? — perguntou Erica, meio temerosa de acreditar no que estava ouvindo.

—  Claro que não — assegurou-lhe Ahmed.

— Essa é uma boa notícia — disse Erica. — Mas há outra coisa que lhe devo contar. Devia ter-lhe dito na noite passada, mas eu estava com medo. De qualquer modo... — Ela respirou fundo. — Tive dois dias muito estranhos e agitados. Ontem à tarde testemunhei outro assassinato, por incrível que pareça. — Erica involuntariamente estremeceu.

—  Vi um velho de nome Abdul Hamdi ser assassinado por três homens e...

A cadeira de Ahmed deu um baque no chão. Ele estivera recostado.

—  Chegou a ver os rostos?

— De dois deles, sim. O do terceiro, não — disse Erica.

— Poderia identificar os que viu? — perguntou Ahmed.

— Possivelmente. Não estou certa. Mas quero me desculpar por não lhe ter falado sobre isso ontem à noite. Eu realmente estava com medo.

— Compreendo — disse Ahmed. — Não se preocupe. Cuidarei disso. Mas sem dúvida teremos mais perguntas.

— Mais perguntas... — suspirou Erica, lastimando-se.

—   Realmente eu gostaria de partir do Egito logo que possível. Esta viagem não está sendo o que planejei.

— Sinto muito, Srta. Baron — disse Ahmed, assumindo a postura de que ela se lembrava da noite anterior. — Nas atuais circunstâncias, não poderá partir até tudo ficar esclarecido ou nós termos certeza de que não pode mais colaborar. Realmente sinto muito que se tenha envolvido nisso. Mas pode se locomover livremente, como quiser... apenas me informe se planejar deixar o Cairo. Da mesma forma, fique à vontade para debater o assunto com a embaixada americana, mas lembre-se de que eles têm pouca influência sobre nossos assuntos internos.— Ficar retida no país é melhor do que ser detida — disse Erica, com um leve sorriso. — Quanto tempo o senhor acha que vai levar até eu poder viajar?

— É difícil dizer. Talvez uma semana. Embora não seja fácil, sugiro que tente ver suas experiências aqui como coincidências infelizes. Acho que deve tentar aproveitar o Egito. — Ahmed brincou com os lápis antes de prosseguir. — Como representante do governo, gostaria de lhe oferecer um jantar hoje à noite e lhe mostrar que o Egito pode ser bem agradável.

— Obrigada — disse Erica, comovida com a preocu­pação de Ahmed —, mas receio que já tenha um compromisso com Yvon de Margeau.

— Oh, compreendo — disse Ahmed, desviando o olhar. — Bem, por favor aceite as desculpas do meu governo. Mandarei levá-la ao hotel, e prometo que entrarei em contato com a senhorita.

Ele se levantou e cumprimentou Erica por cima da mesa. Seu aperto de mão era agradavelmente forte e firme. Erica deixou a sala, surpresa de que a conversa tivesse terminado tão abruptamente, e surpresa por estar livre.

Assim que ela saiu, Ahmed chamou Zaki Riad, o diretor assistente, ao seu gabinete. Riad estava no departa­mento há quinze anos mas fora promovido durante a meteórica ascensão de Ahmed a diretor. Embora fosse um homem inteligente, de raciocínio rápido, seu tipo físico era o extremo oposto do de Ahmed. Era obeso, com as feições inchadas, e seu cabelo era tão escuro quanto grosso, enrolado como o pêlo de um carneiro.

Ahmed caminhara até o gigantesco mapa do Egito e voltou-se quando seu assistente se sentou.

— O que você acha de tudo isso, Zaki?

— Não tenho a menor idéia — respondeu Zaki, franzindo a testa, que estava cheia de suor, apesar do ar-condicionado. Ele adorava ver Ahmed sob pressão.

— Não sei dizer por que Gamal foi atingido — disse Ahmed, batendo com o punho fechado na palma da outra mão. — Meu Deus, um jovem com filhos. Você acredita que a morte dele tenha alguma coisa a ver com o fato de ele estar seguindo Erica Baron?

— Não posso ver nenhuma relação — opinou Zaki —, mas creio que sempre existe uma possibilidade.O último comentário foi feito com a intenção de dar uma ferroada. Zaki colocou na boca um cachimbo apagado, sem se incomodar com as cinzas que caíam em seu peito.

Ahmed cobriu os olhos com as mãos e meneou a cabeça; depois, lentamente, deixou as mãos escorregarem pelo rosto e tocarem seu farto bigode.

— Isso não tem sentido. — Ele virou-se e olhou o grande mapa. — Fico imaginando se está acontecendo alguma coisa em Saqqara. Talvez alguns novos túmulos tenham sido descobertos ilicitamente. — Voltou e sentou-se. — O mais desconcertante é que as autoridades de migração me notificaram que Stephanos Markoulis chegou ao Cairo hoje. Como você sabe, ele não vem aqui com freqüência. — Ahmed inclinou-se para a frente, olhando diretamente para Zaki Riad. — Diga-me, o que a polícia tem sobre Abdul Hamdi?

— Muito pouco — disse Zaki. — Aparentemente ele foi roubado. A polícia conseguiu descobrir que o velho recentemente, por um golpe de sorte, mudou sua loja de antigüidades de Luxor para o Cairo. Ao mesmo tempo, conseguiu comprar mais objetos valiosos. Ele devia ter algum dinheiro. Então foi roubado.

— Há alguma idéia sobre como ele conseguiu esse dinheiro? — perguntou Ahmed.

— Não, mas há alguém que pode saber. O velho tem um filho em sua antiga loja em Luxor.

— A polícia falou com o filho dele? — perguntou Ahmed.

— Não que eu saiba — respondeu Zaki. — Era de se esperar que a polícia tivesse feito isso. Mas parece que eles não estão muito interessados.

— Eu estou interessado — disse Ahmed. — Arranje transporte aéreo para mim até Luxor, hoje à noite. Farei uma visita ao filho de Abdul Hamdi pela manhã. E outra coisa: mande diversos guardas extras para a necrópole de Saqqara.

— O senhor tem certeza de que é uma boa hora para deixar o Cairo? — perguntou Zaki, apontando com o cabo do cachimbo. — Como o senhor mesmo lembrou, se Stephanos Markoulis está no Cairo, alguma coisa está acontecendo.

— Talvez, Zaki — admitiu Ahmed —, mas eu acho que preciso sair e passar um dia ou mais em minha casa no Nilo. Não posso deixar de sentir uma enorme responsabilidade pelo pobre Gamal. Quando estou assim deprimido, Luxor é um bálsamo emocional.

— E sobre a mulher americana, Erica Baron? — Zaki acendeu o cachimbo com um isqueiro de aço inoxidável.

— Ela está bem. Está assustada, mas pareceu melhor quando saiu. Não sei como eu reagiria se tivesse presenciado dois assassinatos em vinte e quatro horas, especialmente se uma das vítimas tivesse caído em cima de mim.

Zaki deu várias baforadas, enquanto pensava, antes de prosseguir.

— Estranho. Mas, Ahmed, quando perguntei sobre a Srta. Baron, não queria saber o estado dela. Quero saber se ela deve ser seguida.

— Não — disse Ahmed, aborrecido. — Hoje à noite não. Ela vai jantar com Yvon de Margeau. — Quase no mesmo instante em que acabou de dizer isso sentiu-se embaraçado. Sua emoção estava se manifestando em lugar errado.

— Nem parece o senhor — disse Zaki, olhando o diretor bem de perto.

Ele conhecia Ahmed há diversos anos, e Ahmed nunca demonstrara nenhum interesse por mulheres. Agora, subitamente, parecia que Ahmed estava com ciúmes. Achar uma fraqueza humana em Ahmed deixou Zaki intimamente feliz. Ele passara a odiar o desempenho perfeito de Ahmed.

— Talvez seja melhor o senhor passar alguns dias em Luxor. Terei prazer em cuidar dos negócios aqui no Cairo, e vou cuidar de Saqqara pessoalmente.

 

Cairo, 17:35

Quando o carro oficial partiu em direção ao Hilton, Erica ainda não podia acreditar que tivesse sido liberada. Abriu a porta antes que o veículo parasse de todo e agradeceu ao motorista como se ele tivesse alguma coisa a ver com sua libertação. Entrar no Hilton parecia um pouco como chegar em casa.

Mais uma vez o saguão estava repleto. Os vôos internacionais da tarde tinham descarregado passageiros numa corrente permanente. A maioria deles estava esperan­do, agarradas às suas bagagens, enquanto o ineficiente hotel tentava atender a avalancha diária.

Erica percebeu como devia parecer deslocada. Estava com calor, suando, e toda emporcalhada. A mancha de sangue ainda estava em suas costas, e sua calça estava com péssima aparência, coberta de poeira e rasgada no joelho direito. Se houvesse outro caminho para seu quarto ela teria preferido. Infelizmente, tinha de atravessar o largo tapete oriental azul e vermelho sob o lustre de cristal. Era como estar num palco, sendo observada.

Um dos homens do balcão de registro a viu e acenou com a caneta em sua direção. Erica apertou o passo, e chegou ao elevador. Apertou o botão, temerosa de olhar para trás e ver alguém vindo em sua direção para detê-la. Apertou o botão do elevador mais algumas vezes enquanto o ponteiro do painel lentamente se aproximava do térreo. A porta se abriu e ela entrou, pedindo ao ascensorista o nono andar. Ele assentiu silenciosamente. A porta começou a se fechar, mas antes de estar totalmente fechada, alguém meteu a mão na porta, forçando o ascensorista a abri-la. Erica encostou-se no fundo do elevador, com a respiração suspensa.— Ei — disse um homem forte com chapéu de abas e botas de cowboy. — Você é Erica Baron?

Erica abriu a boca para responder, mas não disse nada.

—  Meu nome é Jeffrey John Rice, de Houston. Você é Erica Baron?

O homem continuava tentando impedir que a porta se fechasse. O ascensorista parecia uma estátua de pedra.

Como uma criança com sentimento de culpa, Erica assentiu.

—  É um prazer encontrá-la, Srta. Baron. — Jeffrey Rice estendeu a mão.

Erica levantou a mão como um autômato. Jeffrey Rice apertou-a vigorosamente.

— É um prazer encontrá-la, Sra. Baron. Gostaria que conhecesse minha esposa.

Sem largar a mão dela, Jeffrey Rice puxou Erica do elevador. Ela saiu segurando a bolsa de lona, cuja tira escorregara do seu ombro.

— Estamos esperando por você há horas — disse Rice, levando Erica na direção do hall de entrada.

Depois de quatro ou cinco passos desajeitados ela conseguiu soltar a mão da dele, parando.

— Eu gostaria de conhecer sua esposa, mas de outra vez. Tive um dia muito confuso.

— Você está mesmo com aparência de cansada, querida, mas vamos beber alguma coisa. — Ele estendeu a mão e segurou-a pelo punho.

—  Sr. Rice! — disse Erica rispidamente.

— Olhe aqui, doçura, demos a volta ao mundo para poder encontrá-la.

Erica olhou o rosto bronzeado, perfeitamente barbeado, de Jeffrey Rice.

—  O que o senhor quer dizer com isso, Sr. Rice? — Exatamente o que eu disse. Minha esposa e eu viemos de Houston para vê-la. Viajamos a noite toda. Felizmente tenho meu próprio avião. O mínimo que pode fazer é beber alguma coisa com a gente.

Subitamente o nome dele começou a ter sentido para ela. Jeffrey Rice tinha a estátua de Seti I. Ela falara com o Dr. Lowery tarde da noite, mas agora lembrava-se de tudo.

— Vocês vieram de Houston?

— Isso mesmo. Aterrissamos há poucas horas. Agora venha conhecer minha mulher, Priscilla. Erica deixou-se levar de volta para o saguão para ser apresentada a Priscilla Rice, uma bela sulina com decote cavado e um grande anel de diamante que brilhava mais que o lustre do salão. O sotaque do sul era mais acentuado nela do que no marido.

Jeffrey Rice levou a esposa e Erica para o bar. Seu jeito descontraído e a voz alta fizeram com que eles fossem logo atendidos, especialmente porque ele deu ao garçom algumas notas de uma libra egípcia. Sob a fraca luz do bar Erica sentia-se menos mal. Sentaram-se numa mesa de canto onde as roupas rasgadas e manchadas de Erica não podiam ser vistas.

Jeffrey Rice pediu Bourbon para ele e a esposa e vodca com tônica para Erica, que se descontraiu com a bebida, chegando mesmo a achar graça nas histórias dos texanos sobre os problemas que tiveram com a alfândega. Erica aceitou outra dose de vodca com tônica.

— Bem, vamos aos negócios — disse Jeffrey Rice, baixando a voz. — Na verdade não quero estragar esta festinha, mas fizemos uma grande viagem. Há um rumor de que você viu a estátua do Faraó Seti I.

Erica percebeu que o comportamento de Rice mudara repentinamente. Ela passou a achar que ele era um astuto comerciante sob o disfarce de um texano brincalhão.

— O Dr. Lowery disse que você queria algumas fotos da minha estátua, em especial dos hieróglifos da base. Tenho essas fotos aqui comigo. — Jeffrey Rice tirou um envelope do bolso e o balançou no ar. — Tenho muito prazer em lhe dar isso, desde que você me diga onde viu a estátua de que o Dr. Lowery falou. Veja bem, eu estava planejando dar a estátua à minha cidade, Houston, mas isso não terá nenhum significado se houver uma porção delas por aí. Em outras palavras, quero comprar essa estátua que você viu. Quero comprá-la logo. Na verdade, estou disposto a dar dez mil dólares a quem possa me informar onde ela está. Inclusive a você.

Colocando seu copo sobre a mesa, Erica encarou Jeffrey Rice. Tendo conhecido a miséria do Cairo, ela sabia que dez mil dólares lá teriam o mesmo efeito de bilhões de dólares em Nova York. Criariam uma tremenda pressão no submundo do Cairo. Desde que a morte de Abdul Hamdi estava ligada, sem sombra de dúvida, à estátua, os dez mil dólares sozinhos, oferecidos apenas para quem desse alguma informação, poderiam provocar diversas outras mortes. Era um pensamento aterrador.

Erica em poucas palavras relatou seu contato com Abdul Hamdi e com a estátua de Seti I. Rice ouviu atentamente, anotando o nome de Abdul Hamdi.

— Você sabe se alguém mais viu a estátua? — perguntou Rice, colocando o chapéu para trás.

—  Não que eu saiba — respondeu Erica.

—  Alguém mais sabe que Abdul Hamdi tinha a estátua? — Sim — informou Erica. — Um certo M. Yvon de Margeau. Ele está no Hotel Méridien. E disse que Hamdi tinha se correspondido com diversos compradores em potencial em todo o mundo, de modo que provavelmente há muita gente que sabia que Hamdi tinha a estátua.

— Parece que vai ser mais divertido do que esperáva­mos — comentou Rice, curvando-se sobre a mesa e batendo no punho da esposa. Voltando-se para Erica, entregou-lhe o envelope das fotos. — Você tem alguma idéia de onde a estátua possa estar?

Erica sacudiu a cabeça.

— Nem imagino — disse, pegando o envelope. Apesar da pouca luz, não conseguiu esperar para ver as fotos, e então as tirou do envelope e olhou a primeira bem de perto.

— É uma bela estátua, não? — disse Rice, como se estivesse falando do primeiro filho. — Faz tudo aquilo de Tut * parecer um brinquedinho de criança.

Jeffrey Rice estava certo. Olhando as fotos, Erica viu que a estátua era surpreendente. Mas notou algo mais. Até onde se lembrava, a estátua era idêntica à que ela tinha visto. Depois hesitou. Olhando a estátua de Rice, viu que a mão direita estava segurando a clava incrustada de jóias. Ela se lembrava que a estátua de Abdul segurava a clava na mão esquerda. As estátuas não eram idênticas, eram como imagens refletidas! Erica viu o resto das fotos. Havia fotos de todos os ângulos, todas muito boas. Finalmente, entre as últimas da série, estavam as fotos dos detalhes. Erica sentiu sua pulsação acelerar quando viu os hieróglifos. Estava muito escuro para conseguir ver os símbolos com clareza, mas virando um pouco as fotos conseguiu ver os dois símbolos faraônicos. Havia os nomes de Seti I e de Tutancâmon. Espantoso.

—  Srta. Baron — disse Jeffrey Rice —, seria um prazer que viesse jantar conosco. — Priscilla Rice sorriu ternamen­te quando o marido fez o convite.

— Obrigada — agradeceu Erica, colocando as fotos no envelope. — Infelizmente já tenho compromisso. Talvez uma outra noite, se vocês estiverem no Egito.

— É claro — disse Jeffrey Rice. — Ou você e seus convidados poderiam jantar conosco esta noite.

Erica pensou por um instante, depois achou melhor não aceitar o convite. Jeffrey Rice e Yvon de Margeau se misturariam tão bem quanto azeite e água. Erica já ia pedir licença para sair quando se lembrou de algo.

— Sr. Rice, como o senhor comprou sua estátua de Seti I? — Sua voz hesitou um pouco, pois não estava certa de dever fazer a pergunta.

—  Com dinheiro, minha querida!

Jeffrey Rice deu uma gargalhada, batendo com a mão na mesa. Ele realmente achara sua piada engraçada. Erica deu um leve sorriso e esperou, desejando obter outra resposta.

—  Quem me falou sobre a estátua foi um vendedor de objetos de arte de Nova York. Ele me telefonou e disse que havia uma excelente peça de escultura egípcia que ia ser leiloada a portas fechadas.

—  Portas fechadas?

— Sim, sem publicidade. Muito sigilo. Isso acontece sempre.

—  Foi aqui no Egito? — perguntou Erica.

—  Não, em Zurique.

—  Suíça — disse Erica, incrédula. — Por que na Suíça? — Nesse tipo de leilão a gente não faz perguntas — respondeu Rice. — Uma questão de ética.

— O senhor sabe como a estátua foi parar na Suíça? — perguntou Erica.

— Não — respondeu Jeffrey Rice. — Como eu disse, a gente não faz perguntas. O leilão foi arranjado por um dos grandes bancos de lá, e eles costumam ser muito sigilosos. Eles só querem o dinheiro.

Sorrindo, ele se levantou e se ofereceu para acompa­nhar Erica até o elevador. Obviamente não tinha intenção de contar mais nada.Erica entrou no quarto com a cabeça meio tonta. Tanto pelo que Jeffrey Rice dissera quanto pelos dois drinques. Enquanto ele ficara esperando o elevador, mencionou casualmente que a estátua não era a primeira antigüidade egípcia que comprara em Zurique. Comprara diversas estátuas de ouro e um maravilhoso colar, todos possivel­mente do mesmo período de Seti I.

Colocando o envelope com as fotos sobre a mesa, Erica lembrou do conceito que fazia sobre mercado negro—, alguém achava uma pequena peça na areia e a vendia para alguém que estivesse interessado naquele objeto. Agora ela era forçada a admitir que a transação final acontecera nas bem mobiliadas salas de conferência dos bancos internacio­nais. Era inacreditável.

Erica tirou a blusa, olhou a mancha e impulsivamente jogou-a na cesta de lixo. A calça também foi jogada na mesma cesta. Tirando o sutiã, percebeu que o sangue atingira sua alça. Sutiã era uma coisa difícil de comprar e ela só tinha alguns novos que vestiam bem. Antes de tomar alguma atitude precipitada, abriu a gaveta de cima da mesa para contar quantos havia trazido. Mas em vez de contar, ficou olhando seu corpo vestido apenas com as roupas de baixo. A lingerie era uma extravagância que ela se havia permitido mesmo durante seus anos mais difíceis de estudante de tempo integral. Gostava do reconfortante sentimento feminino das roupas de baixo caras. Conse­qüentemente, tinha muito cuidado com elas, e quando desfizera as malas demorara bastante arrumando tudo meticulosamente. Mas agora a gaveta estava com o aspecto diferente. Alguém mexera nas suas coisas!

Erica levantou-se e deu uma olhada geral no quarto. A cama estava arrumada, o que permitia supor que a camareira estivera lá, mas será que os empregados do hotel tinham mexido em suas roupas? Era possível. Rapidamente abriu a gaveta do meio e apanhou sua calça Levi's. No bolso lateral estavam os brincos de diamantes, o último presente que recebera do pai. No bolso de trás estava a passagem de volta de avião e o volume do talão dos cheques de viagem. Depois de achar tudo em seus devidos lugares, deu um suspiro de alívio e voltou à calça jeans.

Olhando novamente a gaveta de cima, imaginou se ela mesma teria desarrumado suas coisas pela manhã. Foi até o banheiro, apanhou a bolsa de plástico da maquilagem e examinou seu conteúdo. Obviamente ela não arrumava os produtos de beleza, contudo usava os vários produtos numa determinada ordem, jogando-os na bolsa depois de usá-los. O brilho para os lábios deveria estar quase no fundo; mas estava em cima. Em cima estavam também suas pílulas anticoncepcionais, que ela sempre tomava à noite. Erica olhou-se no espelho. Seus olhos refletiam uma sensação de violação, semelhante à que sentira quando o menino a agarrara no dia anterior. Alguém colocara as mãos em suas coisas. Erica pensou se deveria comunicar o incidente à gerência do hotel. Mas o que diria, já que nada fora levado?

Voltando ao hall, nervosa, fechou a porta, com o trinco de segurança. Depois foi até a porta de vidro, de correr, onde viu o forte sol egípcio mergulhando no horizonte. A esfinge parecia um leão faminto pronto a atacar. As pirâmides alongavam-se contra o céu avermelhado. Erica gostaria de se sentir mais feliz por estar à sombra desses monumentos.

 

Cairo, 22:00

O jantar com Yvon virou um interlúdio romântico que a tranqüilizou. Erica ficou surpresa com sua alegria; apesar do dia angustiante e do sentimento de culpa que a dominava desde que telefonara para Richard, ela conseguiu se divertir. Yvon a apanhara no hotel enquanto o ponto luminoso em que o sol morrera ainda brilhava como uma chama evanescente. Tomaram a direção sul, ao longo do Nilo, deixando o calor poeirento do Cairo, em direção à cidade de Maadi. Quando as estrelas surgiram no céu, que aos poucos escurecia, a tensão de Erica evaporou-se no ar frio da noite.

O restaurante chamava-se Cavalo do Mar, e ficava bem na margem leste do Nilo. Aproveitando o clima perfeito das noites egípcias, o salão de jantar era completamente aberto. Do outro lado do rio, e acima das palmeiras, ficavam as pirâmides iluminadas de Gizé.

Eles comeram peixe e camarão do mar Vermelho, grelhados numa fogueira e embebidos num vinho branco chamado Gianacli. Yvon achou-o horrível e tirou o gosto do vinho com água mineral, mas Erica gostou do seu sabor de frutas apenas levemente adocicado.

Ficou observando-o beber, admirando sua camisa de seda azul-escura bem-talhada, que a fez lembrar-se de suas próprias roupas de seda, de que gostava muito, e que ela só vestia em ocasiões especiais. Aquilo poderia parecer feminino, mas, no caso de Yvon, não produzia esse efeito. Na verdade, o reflexo prateado parecia aumentar sua masculinidade.

Erica demorara muito para se arrumar, mas valera a pena. Seu cabelo lavado estava jogado para trás e preso com presilhas de tartaruga. Escolhera um vestido marrom-chocolate com o decote cavado, mangas largas e elástico na cintura. Estava usando meias pela primeira vez desde que descera do avião. Sabia que tinha feito o melhor possível, e o resultado a agradava tanto quanto a suave brisa do Nilo quando lhe tocava a nuca.

A conversa começou com assuntos leves, mas logo tocaram nos assassinatos. Yvon frustrara-se em suas tentati­vas de descobrir quem matara Abdul Hamdi. Disse a Erica que a única coisa que conseguira descobrir fora que os assassinos não eram do Cairo. Depois Erica lhe narrou seu episódio angustiante no Serapeu e a experiência que tivera com a polícia.

— Eu gostaria que você tivesse deixado que eu a acompanhasse hoje — disse Yvon, sacudindo a cabeça de espanto quando Erica terminou sua história. Esticou as mãos por sobre a mesa e segurou a dela levemente.

— Eu também — admitiu Erica, olhando para sua mão, entre as dele.

— Tenho uma confissão a fazer — sussurrou Yvon, ternamente. — Logo que eu a encontrei estava interessado apenas na estátua de Seti. Mas agora acho você irresistivel­mente atraente. — Seus dentes brilharam sob a luz das velas.

— Não sei quando você está brincando — falou Erica, sentindo uma emoção de adolescente.

— Não estou brincando, Erica. Você é muito diferente de todas as mulheres que já conheci.

Erica olhou para a escuridão do Nilo. Um leve movimento perto da margem chamou sua atenção, e ela conseguiu ver apenas alguns pescadores num barquinho. Aparentemente estavam nus e a pele deles brilhava como ônix polido, em meio à escuridão. Com os olhos momentaneamente fixos na cena, Erica pensava no comen­tário de Yvon. Aquilo lhe soara como um clichê, e nesse sentido fora um pouco humilhante. Contudo, era possível que houvesse alguma verdade naquilo, porque Yvon era diferente de todos os homens que conhecera.

— O fato de você ter estudado egiptologia — continuou Yvon —, eu acho fascinante, porque, e digo isso como um elogio, você tem uma sensualidade da Europa oriental que eu adoro. Além disso, acho que você também tem a vibração de alguns dos mistérios egípcios.

— Acho que sou bem americana — disse Erica.— Ah, mas os americanos têm diversas origens étnicas, e acho que as suas são bem identificáveis. Acho isso muito atraente. Para falar a verdade, estou farto do jeito frio e aloucado das nórdicas.

Por estranho que fosse, Erica não sabia o que dizer. A última coisa que ela esperava ou queria era uma grande paixão que a deixasse emocionalmente vulnerável.

Yvon parecia perceber que ela não se sentia à vontade e mudou de assunto enquanto terminavam o jantar.

— Erica, você seria capaz de identificar o assassino do Serapeu? Você conseguiu ver o rosto dele?

— Não — respondeu Erica. — Foi como se o céu tivesse desabado. Não vi ninguém.

— Meu Deus, que experiência horrível. Não posso pensar em nada pior. E o homem caiu em cima de você! Inacreditável. Mas você deve saber que os assassinatos de oficiais do governo são uma coisa comum no Oriente Médio. Bem, pelo menos você não sofreu nada. Sei que vai ser difícil, mas você não deve mais pensar nisso. Foi uma coincidência incrível. E pensar na morte de Hamdi é pior ainda. Dois assassinatos em dois dias. Não sei se eu conseguiria suportar.

— Sei que provavelmente foi uma coincidência — disse Erica —, mas uma coisa me preocupa. O pobre homem que morreu não trabalhava apenas para o governo, trabalhava para o Departamento de Antigüidades. De forma que as duas vítimas têm alguma ligação com objetos antigos, mas de lados supostamente opostos. E mesmo assim, o que eu sei? — concluiu Erica com um leve sorriso.

— Um dos aspectos mais surpreendentes da sua aventura — observou Yvon — foi você não ter sido detida pela polícia.

— A verdade não é bem essa. Fiquei detida algumas horas, e não posso deixar o país.

Erica provou a sobremesa mas achou que não devia ingerir aquelas calorias.

— Isso não é nada. Você deve dar graças a Deus por não estar presa. Aposto que o seu guia ainda está preso.

— Acho que devo agradecer minha libertação a Ahmed Khazzan — disse Erica.

— Você conhece Ahmed Khazzan? — perguntou Yvon. Ele parou de comer.

— Não sei como explicar nosso relacionamento — acrescentou Erica. — Quando você me deixou no hotel ontem à noite, Ahmed Khazzan estava esperando por mim em meu quarto.

— Verdade? — O garfo de Yvon caiu na mesa fazendo ruído.

— Se você está surpreso, tente imaginar como eu me senti. Pensei que estivesse sendo presa por não comunicar o assassinato de Hamdi. Ele me levou para o gabinete dele e me interrogou durante uma hora.

— É inacreditável — exclamou Yvon, passando o guardanapo na boca. — Ahmed Khazzan já sabia da morte de Hamdi?

— Não sei — falou Erica. — Inicialmente eu pensei que ele já soubesse. Por que então ele teria me levado a seu gabinete? Mas ele não tocou no assunto, e eu fiquei temerosa de falar sobre isso.

—  Mas o que ele queria?

—  Queria saber principalmente sobre você.

— Sobre mim! — Yvon fez uma expressão zombeteira de inocência e encostou o dedo indicador no peito. — Erica, você teve dois dias terríveis. Eu jamais me encontrei com Ahmed Khazzan, e já venho ao Egito há alguns anos. O que ele perguntou sobre mim?

—  Queria saber o que você está fazendo no Egito.

—  E o que você disse?

—  Que não sabia.

—  Você disse alguma coisa sobre a estátua de Seti? — Não. Fiquei com medo de que, se falasse na estátua, fosse acabar falando no assassinato de Hamdi.

—  Ele disse alguma coisa sobre a estátua de Seti?

—  Nada.

—  Erica, você é formidável.

De repente ele se inclinou sobre a mesa e segurou o rosto de Erica com as duas mãos e a beijou no rosto, dos dois lados.

Aquele gesto tão efusivo deixou-a confusa e ela sentiu-se corar, algo que não lhe acontecia havia anos. Um pouco acanhada, tomou um gole do café suave.

— Não sei se Ahmed Khazzan acreditou em tudo que eu disse.

— Por que você diz isso? — perguntou Yvon, con­tinuando a comer a sobremesa.

— Quando eu voltei ao meu quarto hoje à tarde, percebi uma certa desarrumação em minhas coisas. Acho que o quarto foi vasculhado. Já que Ahmed Khazzan estava lá ontem à noite, a única coisa que posso concluir é que as autoridades egípcias voltaram. Minhas coisas de valor estavam intactas. Não fui roubada. Não tenho idéia do que eles procuravam.

Yvon mastigava, pensativo, olhando fixamente para Erica.

— Sua porta tem alguma fechadura extra que você possa trancar durante a noite? — perguntou.

— Sim.

— Então tranque-a — sugeriu Yvon. Cortou outro pedaço da sobremesa e mastigou pensativamente antes de falar outra vez. — Erica, quando você esteve com Abdul Hamdi ele lhe deu alguma carta ou documento?

— Não — respondeu Erica. — Deu-me um camafeu falso, que parece verdadeiro, e me convenceu a usar o seu guia Baedecker de 1929 ao invés do meu Nagel.

—  Onde estão essas coisas? — perguntou Yvon.

— Estão aqui — disse Erica. Enfiou a mão na bolsa e tirou o Baedecker sem a capa, que havia se destacado do volume. Erica a deixara em seu quarto. O camafeu estava na bolsinha de moedas.

Yvon apanhou o camafeu e aproximou-o da vela.

—  Tem certeza de que é falso?

— Parece verdadeiro, não? — comentou Erica. — Eu também pensei que fosse legítimo, mas Hamdi insistiu. Disse que seu filho o fez.

Yvon colocou o camafeu cuidadosamente sobre a mesa e apanhou o guia de viagem.

— Esses Baedekers são fantásticos — observou. Fo­lheou o livro atentamente, examinando cada página. — São os melhores guias já feitos sobre o Egito, especialmente sobre Luxor. — Yvon devolveu o livro a Erica. — Você se importa se eu o levar para ser examinado? — perguntou, segurando o camafeu.

— Você quer dizer examinar o camafeu? — indagou Erica.

— Sim — confirmou Yvon. — Ele me parece muito bom e tem o símbolo de Seti I. Acho que é de osso.

— Você está certo quanto ao material. Hamdi afirmou que seu filho os esculpia com ossos das múmias das antigas catacumbas públicas. O exame, então, vai acusar que o material é antigo. Hamdi disse também que dão as peças o aspecto de antigas misturando-as às fezes dos perus no quintal.Yvon achou graça.

— A antiga indústria egípcia tem muitos recursos. Mesmo assim, gostaria de examinar este camafeu.

— Não tenho nada contra, mas quero que você depois o devolva.

Erica tomou o último gole de café e perguntou, num tom amargo:

— Yvon, por que Ahmed está tão interessado em seus negócios?

— Acho que eu o preocupo — procurou explicar Yvon. — Mas por que ele falou com você e não comigo é que eu não entendo. Ele acha que sou um perigoso catador de antigüidades. Ele sabe que fiz importantes compras enquanto tentava desvendar a rota do mercado negro. O fato de eu estar interessado em fazer alguma coisa contra o mercado negro não importa. Ahmed faz parte da burocracia daqui. Em vez de aceitarem minha ajuda, ficam com medo de perder o emprego. Além disso, há o ódio aos ingleses e aos franceses. E eu sou francês e um pouco inglês.

— Você tem sangue inglês? — perguntou Erica, um pouco incrédula.

— Não é sempre que eu admito isto — respondeu Yvon, com seu forte sotaque francês. — A genealogia européia é mais complicada do que a maioria das pessoas pensa. A casa de minha família é em Château Valois, perto de Rambouillet, que fica entre Paris e Chartres. Meu pai é o Marquês de Margeau, mas minha mãe é da família inglesa Harcourt.

— Parece bem longe de Toledo, Ohio — disse Erica baixinho.

—  O quê?

— Eu disse que parece bem curioso — respondeu Erica sorrindo, enquanto ele pagava a conta.

Quando saíam do restaurante, Yvon colocou a mão na cintura de Erica. Ela gostou. A noite estava mais fria e a lua brilhava por entre as folhas dos eucaliptos que ficavam ao longo da estrada. O ruído dos insetos destacava-se na escuridão, fazendo Erica lembrar-se das noites de agosto em Ohio, quando ainda era criança.

— Que tipo de antigüidades egípcias importantes você comprou? — perguntou Erica quando se aproximavam do Fiat de Yvon.

— Algumas peças maravilhosas que eu adoraria mos­trar a você algum dia — disse Yvon. — Gosto particular­ mente de algumas pequenas estátuas de ouro. Uma de Nekhbet e outra de Ísis.

— Você comprou alguma coisa de Seti I? — perguntou Erica.

Yvon abriu a porta de passageiros do carro. — Talvez um colar. A maior parte de minhas peças data do Novo Reinado, e algumas poderiam ser da época de Seti I.

Erica acomodou-se no veículo e seu acompanhante mandou-lhe afivelar o cinto de segurança.

— Eu participei de algumas corridas de automóvel — exclamou Yvon — e sempre os usei.

— Posso imaginar — falou Erica, lembrando-se da viagem do dia anterior.

Yvon achou graça.

— Todo mundo diz que eu corro. Eu gosto de velocidade. — Apanhou as luvas de dirigir no painel. — Acho que você sabe tanto sobre Seti I quanto eu. E curioso. Sabe-se com certeza quando seu fabuloso túmulo de rocha foi pilhado na Antigüidade. Os fiéis monges da vigésima dinastia conseguiram salvar a múmia e documentaram seus esforços muito bem.

— Vi a múmia de Seti I hoje de manhã — disse Erica.

— Irônico, não é? — observou Yvon, ligando o motor. — O frágil corpo de Seti I chega até nós praticamente intacto. Seti I era uma das múmias faraônicas que havia naquele esconderijo ilicitamente descoberto pela esperta família Rasul no final do século XIX. — Yvon virou-se para olhar para trás enquanto dava marcha à ré. — Os Rasul exploraram lentamente a descoberta durante dez anos, antes de serem pegos. Uma história surpreendente.

Afastou-se do restaurante e acelerou na direção do Cairo.

— Algumas poucas pessoas ainda acreditam que há pertences de Seti I a serem descobertos. Quando você for visitar os gigantescos túmulos em Luxor, verá lugares onde certas pessoas conseguiram permissão para cavar túneis durante este século, tentando encontrar um lugar secreto. O que estimulou isso foi o aparecimento ocasional de alguns objetos de Seti no mercado negro. Mas não é de surpreender que se vejam alguns objetos de Seti. Provavel­mente ele foi enterrado com um grande número de pertences. E, mesmo que seu túmulo fosse saqueado, no antigo Egito sempre substituíam os objetos funerários furtados. Provavelmente seus bens foram enterrados e roubados sucessivamente através dos anos. Em conseqüên­cia, muita coisa ainda está debaixo da terra. Muito pouca gente tem idéia de quantas pessoas atualmente, em Luxor, fazem escavações à procura de antigüidades. Toda noite cavam um pouquinho de areia e, ocasionalmente, encon­tram algo espetacular.

— Como a estátua de Seti I? — insinuou Erica, olhando novamente para o perfil de Yvon.

Ele sorriu, e ela viu a linha branca de seus dentes em contraste com a pele queimada.

— Exatamente — admitiu ele. — Mas você pode imaginar o que deve ter sido o túmulo de Seti antes de ser pilhado? Meu Deus, deve ter sido fantástico. Os tesouros de Tutancâmon nos deslumbram, mas eram insignificantes comparados com os de Seti I.

Erica sabia que Yvon estava certo, principalmente depois de ver a estátua de Abdul Hamdi. Seti I fora o maior faraó que reinara no império, enquanto Tutancâmon fora apenas um rei menino que provavelmente nunca tivera poder algum.

— Merde! — gritou Yvon quando caiu num dos muitos buracos da estrada.

O carro estremeceu com o impacto. Quando entraram no Cairo a estrada era pior ainda e ele teve que diminuir a marcha. A cidade começava com pedaços de papelão sustentados por pedaços de pau. Eram as moradas dos imigrantes recentemente chegados. O papelão às vezes era substituído por folhas de zinco e, em alguns casos, por barris de petróleo. Finalmente a pequena favela dava lugar a casas frágeis de estuque e depois à cidade propriamente, mas a sensação de pobreza pairava no ar como uma nuvem.

— Você gostaria de ir até minha suíte para tomar um conhaque? — perguntou Yvon.

Erica olhou-o de soslaio, tentando interpretar seus sentimentos. Havia grande probabilidade de que o convite de Yvon não fosse tão inocente quanto parecia. Mas ela estava realmente atraída por ele e, depois daquele dia horroroso, a idéia de ficar junto de alguém era convidativa. Contudo, a atração física nem sempre era um guia confiável para o comportamento, e Yvon parecia bom demais para ser como ela pensava. Olhando-o, ela admitiu que ele estava querendo antecipar as coisas, e era muito cedo ainda.— Obrigada, Yvon — respondeu Erica, ternamente —, mas acho que não. Talvez você gostasse de beber mais alguma coisa no Hilton.

—  Mas é claro.

Por um instante Erica sentiu-se um pouco desaponta­da. Yvon não estava mais sendo persistente. Talvez ela fosse uma vítima de suas próprias fantasias.

Chegando ao hotel, acharam que um passeio a pé seria melhor do que o bar cheio de fumaça. De mãos dadas, atravessaram o movimentado Boulevard Korneish-el-Nil, em direção ao Nilo, e caminharam pela Ponte El Tahrir. Yvon apontou para o Hotel Méridien, na ponta da ilha de Roda. Uma felluca *solitária passou silenciosamente pelo ponto onde a lua se refletia no rio.

Yvon colocou o braço no ombro de Erica enquanto caminhavam, e Erica colocou sua mão sobre a dele. Novamente sentiu-se confusa. Fazia muito tempo desde que estivera com outro homem além de Richard.

— Um grego chamado Stephanos Markoulis chegou hoje ao Cairo — disse Yvon, parando junto ao parapeito.

Olharam as luzes tremeluzentes refletidas na superfície da água.

—  Acho que ele vai telefonar para você e tentar vê-la. Erica olhou-o de modo interrogativo.

— Stephanos Markoulis trabalha com antigüidades egípcias em Atenas. Raramente vem ao Egito. Não sei por que ele está aqui, mas gostaria de descobrir. Oficialmente veio por causa da morte de Abdul Hamdi. Mas deve estar aqui por causa da estátua de Seti.

—  E quer falar comigo sobre o assassinato?

— Sim — confirmou Yvon. Ele continuava evitando olhar para Erica. — Não sei de que modo ele está envolvido nisso, mas está.

— Yvon, acho que não quero saber de mais nada sobre o caso Abdul Hamdi. Francamente, isso me assusta muito. Já disse a você tudo que eu sabia.

— Compreendo — falou Yvon, tranqüilo —, mas infelizmente só tenho você.

—  E o que você quer dizer com isso? Yvon virou-se para ela.

— Você é a última ligação com a estátua de Seti. Stephanos Markoulis estava envolvido de algum modo com a venda da primeira estátua de Seti para o homem de Houston. Estou preocupado que ele esteja envolvido com a venda dessa também. Você sabe como é importante para mim deter o roubo de antigüidades.

Erica olhou na direção das luzes do Hilton.

— O homem de Houston que comprou a primeira estátua também chegou hoje. Estava esperando por mim no saguão do Hilton hoje à tarde. O nome dele é Jeffrey Rice.

A boca de Yvon contraiu-se de maneira perceptível.

— Ele me disse — continuou Erica — que estava oferecendo dez mil dólares a quem simplesmente lhe dissesse onde está a segunda estátua para que ele pudesse comprá-la.

— Meu Deus! — exclamou Yvon. — Isso vai fazer o Cairo virar um circo. E pensar que eu estava preocupado com que Ahmed Khazzan e o Departamento de Antigüida­des descobrissem a existência dessa estátua. Bem, Erica, isso significa que tenho de agir mais depressa. Posso entender sua posição de não querer se envolver, mas me faça o favor de se encontrar com Stephanos Markoulis. Preciso ficar sabendo mais sobre o que está para acontecer, e você pode ajudar. Com Jeffrey oferecendo essa quantia, acho que podemos ter certeza de que a estátua ainda não foi vendida. E se não me mexer depressa, ela também vai desaparecer em alguma coleção particular. Tudo o que eu peço é que você se encontre com Stephanos Markoulis e depois me conte o que ele disse. Tudo o que ele disse.

Erica olhou para o rosto suplicante de Yvon. Ela podia sentir sua sinceridade e sabia que era muito importante para ele que a fabulosa estátua fosse preservada para o público.

— Você tem certeza de que esse encontro vai ser seguro?

— É lógico — garantiu Yvon. — Quando ele telefonar, combine encontrá-lo num lugar público para que você fique mais tranqüila.

— Está bem — concordou ela —, mas você fica me devendo outro jantar.

— D'accord — prometeu Yvon, beijando Erica, dessa vez nos lábios.

Erica estudou o belo rosto de Yvon. Um sorriso terno se formava nos cantos de sua boca. Ela pensou por um instante se ele não a estava usando. Depois se repreendeu por sua suspeita. Além do mais, era possível que ela é que o estivesse usando.

 

Voltando a seu quarto, Erica sentia-se bem. Estava na melhor forma desde que chegara. Yvon a estimulara de um modo que ela não estava acostumada há muito tempo, já que até o aspecto físico do seu relacionamento com Richard não era totalmente satisfatório há vários meses. E Yvon era capaz de fazer seus desejos sexuais parecerem secundários em um relacionamento significativo. Ele estava querendo esperar, e ela achava bom. Quando chegou ao quarto, enfiou a chave na fechadura rapidamente e abriu a porta. Tudo parecia em seus lugares. Lembrando-se de centenas de filmes que vira, gostaria que tivesse deixado alguma coisa marcada para saber se alguém tinha estado ali na sua ausência. Acendendo as luzes, entrou no quarto. Estava vazio. Olhou o banheiro, rindo de sua sensação de melodrama.

Depois, suspirando aliviada, empurrou a porta e ela se fechou fazendo um barulho surdo, seguido do ruído dos trincos feitos nos Estados Unidos. Tirou os sapatos, desligou o ar-condicionado e abriu a porta da varanda. Os holofotes que iluminavam as pirâmides e a esfinge tinham sido desligados. Entrando no quarto novamente, tirou o vestido de jérsei e o pendurou. À distância ouvia o tráfego que ainda corria pelo Korneish-el-Nil, apesar da hora. Fora isso, o hotel estava em silêncio. Foi quando ela estava retirando a maquilagem do rosto que ouviu o primeiro ruído inconfundível na porta.

Ficou quieta, olhando sua imagem no espelho. Estava vestida apenas com a calça e o sutiã, e com maquilagem em apenas um olho. À distância soavam as buzinas dos carros, e depois o silêncio. Novamente ouviu o ruído de atrito de metal. Erica sentiu o sangue lhe fugir do rosto. Alguém estava enfiando uma chave na porta. Ela virou-se. O trinco de segurança da porta do hall estava aberto. Erica ficou paralisada. Ela não podia fazer barulho quando fosse fechar o trinco. Estava com medo de que não o pudesse fechar antes que a porta fosse aberta. Ouviu outro ruído na fechadura.

Depois viu a maçaneta começar a girar lentamente. Erica olhou a fechadura da porta do banheiro. Era um simples trinco na maçaneta, e a porta era muito fina. O ruído na porta de entrada fez com que ela se voltasse e visse a maçaneta continuando a girar lentamente. Como um animal assustado, seus olhos correram todo o quarto à procura de uma fuga. A varanda! Seria possível pular para a varanda do quarto vizinho? Não, ela teria que se pendurar a uma altura de nove andares. Depois se lembrou do telefone. Correu pelo quarto sem fazer barulho e pegou o telefone. Ouviu-o tocar, distante. Responda, suplicava com a voz contida. Por favor, responda.

Novos ruídos vindos da porta, mas diferentes dos outros, antecederam a entrada da chave na fechadura e sua rotação dentro do tambor. A porta foi destrancada e, sem qualquer ruído, aberta, fazendo com que a luz do hall batesse em cheio no quarto. Erica caiu de joelhos. Jogando o fone em cima da cama e estirando-se no chão, enfiou-se debaixo da cama.

Debaixo da cama, só podia ver a base da porta enquanto esta se abria. Ouviu um ruído no tone. Sabia que o fone a denunciaria, seria o indício de que estava escondida! Um homem entrou no quarto, fechando a porta suavemente atrás de si. Enquanto Erica o observava, aterrorizada, ele caminhou em direção à cama e saiu do seu raio de visão. Ela estava com medo de mexer a cabeça. Ouviu o fone ser colocado no gancho. O intruso, depois, sem fazer ruído, caminhou de volta e ficou novamente dentro do raio de visão dela e, aparentemente, foi dar uma olhada no banheiro.

Um suor frio escorria pelo rosto de Erica enquanto ela via os pés se dirigirem ao banheiro. Ele estava procurando por ela! A porta do banheiro foi aberta, depois fechada. Voltando ao centro do quarto, o homem parou, seus pés a menos de dois metros de distância da cabeça de Erica. Depois caminhou para a frente, passo a passo, parando junto à cama. Ela poderia tocá-lo, ele estava tão perto!

Subitamente a colcha foi retirada e Erica ficou cara a cara com um homem.

—  Erica, o que você está fazendo aí embaixo?

—  Richard! — gritou Erica, e rompeu em lágrimas. Embora ela estivesse muito trêmula para se mexer,

Richard puxou-a de baixo da cama e a levantou.

— Em carne e osso — disse ele, sorrindo. — O que você está fazendo debaixo da cama?— Oh, Richard! — suspirou Erica, lançando os braços em torno do pescoço dele. — Estou tão feliz que seja você. Você nem imagina como estou feliz. — Ela apertou seu corpo contra o dele, abraçando-o bem forte.

— Eu devia lhe fazer surpresas com mais freqüência — falou ele, alegre, colocando os braços nas costas nuas dela.

Ficaram abraçados durante algum tempo, enquanto ela se recompunha e enxugava as lágrimas.

— É você mesmo? — disse ela, finalmente, olhando para o rosto dele. — Não posso acreditar. Estou sonhando?

— Você não está sonhando. Sou eu mesmo. Talvez um pouco exausto, mas bem aqui com você, no Egito.

— Você parece mesmo um pouco cansado. — Erica afastou o cabelo do rosto. — Você está bem?

— Sim, estou bem. Só cansado. Problemas com o equipamento, foi o que disseram. Ficamos retidos quase quatro horas em Roma. Mas valeu. Você parece maravilho­sa. Desde quando você só passa maquilagem num olho?

Erica sorriu e o apertou ternamente.

— Eu pareceria melhor se você tivesse me avisado que ia chegar. Como conseguiu tempo para viajar?

Ela inclinou-se para trás, envolvendo-lhe os braços e com as mãos enlaçadas em seu peito.

— Eu substituí um colega quando o pai dele morreu há uns meses. Ele me devia um favor. Vai atender todos os casos de emergência e também as consultas em casa. O consultório simplesmente vai ter que esperar. Receio que não estivesse trabalhando bem mesmo. Estava com muita saudade de você.

— Eu também estava com saudade. Acho que foi por isso que telefonei.

— Gostei muito que você tivesse ligado — disse Richard, beijando-a na testa.

— Quando eu falei com você, há cerca de um ano, sobre vir ao Egito, você disse que não havia nenhum jeito de arranjar tempo.

— Bem... — justificou-se Richard — eu não me sentia tão confiante na profissão como agora. Mas isso foi há um ano, e agora aqui estou com você, no Egito. Custo a acreditar. Mas, Erica, o que você estava fazendo debaixo da cama? — Um sorriso se formou nos cantos de sua boca. — Eu assustei você? Não tinha essa intenção, e sinto muito se a assustei. Pensei que a encontraria dormindo e queria chegar aqui bem de mansinho e acordá-la como costumo fazer na sua casa.

—  Se você me assustou?

Ela sorriu como sarcasmo, soltou-se dos braços dele e foi ao banheiro apanhar seu robe branco.

— Ainda me sinto fraca. Quer dizer, você me aterrorizou.

—  Sinto muito — lamentou Richard.

— Como você conseguiu a chave? — Erica sentou-se na ponta da cama, com as mãos sobre as pernas. Richard deu de ombros.

—  Apenas entrei e pedi a chave do 932.

— E deram a chave a você? Não fizeram nenhuma pergunta?

— Não. Isso não é de se estranhar em hotéis. Esperava que realmente eles perguntassem alguma coisa, para que então pudesse surpreendê-la de verdade. Queria ver sua cara quando você soubesse que eu estava no Cairo.

— Richard, depois do que eu passei durante o dia, essa sua surpresa foi a pior coisa que você poderia ter feito. — Sua voz mudou de tom. — Para falar a verdade, foi uma estupidez.

— Está bem, está bem — disse Richard, levantando as mãos e fingindo que estava se defendendo dela. — Sinto muito se assustei você. Não tinha essa intenção.

— Você não pensou que eu me assustaria se entrasse no meu quarto à meia-noite? Realmente, Richard, não precisa nem perguntar. Mesmo em Boston isso não é coisa que se faça. Acho que você não ligou para o que eu sentiria.

— Bem, eu estava ansioso para ver você, e viajei mais de vinte mil quilômetros para isso.

O sorriso de Richard começou a murchar. Seu cabelo claro estava despenteado e a fisionomia abatida, com olheiras acentuadas.

— Quanto mais eu penso nisso, mais idiota eu acho. Meu Deus, eu poderia ter tido um ataque cardíaco. Você me deu um grande susto.

—  Sinto muito, já disse que sinto muito.

— "Sinto muito" — Erica repetiu, irritada. — Acho que dizer sinto muito significa dizer que está tudo bem. Bem, mas não está, não. Foi horrível presenciar dois assassinatos em dois dias, e depois ainda me sujeitar a uma brincadeirinha de adolescente.— Pensei que você estivesse contente por me ver — falou Richard, defendendo-se. — Você disse que estava feliz por me ver.

— Eu fiquei contente de saber que não era um assassino ou um violentador.

— Bem, isso certamente faz a pessoa se sentir bem-vinda.

—  Richard, afinal o que você está fazendo aqui?

— Estou aqui para ver você. Quase dei a volta ao mundo para vir a esta cidade poeirenta e quente porque eu queria lhe mostrar como gosto de você.

Erica abriu a boca, mas resolveu não falar. Sua irritação diminuiu um pouco.

— Mas eu fui bem clara: pedi que você não viesse — lembrou ela, como se estivesse falando com um menino levado.

—  Eu sei disso, mas conversei a respeito com sua mãe. Richard sentou-se na cama e tentou segurar a mão de Erica.

— O quê? — exaltou-se ela, retirando a mão das mãos dele. — Repita isso outra vez.

— Repetir o quê? — perguntou Richard, confuso. Ele sentiu que a irritação dela voltava, mas não sabia por quê.

— Você e minha mãe conspiraram?

—  Eu não usaria esta palavra. Discutimos se eu deveria vir.

—  Magnífico — zombou Erica. — E aposto que foi decidido que Erica, a pobre garotinha, está passando por uma fase difícil e não vai suportar isso sozinha. Ela deve apenas ser tratada como uma menininha e é preciso que se tenha paciência com ela.

— Olhe, Erica. Só para sua informação, sua mãe quer o melhor para você.

— Não tenho muita certeza disso — contestou Erica, levantando-se da cama. — Minha mãe não consegue ver mais diferenças entre a vida dela e a minha. Ela está muito perto de mim e sinto como se estivesse sugando minha vida. Você pode entender o que eu digo?

— Não, não posso — retrucou Richard, começando a demonstrar irritação.

— Não pensei mesmo que você pudesse. Estou começando a achar que isso tem alguma coisa a ver com ser judia. Minha mãe quer tanto que eu siga os passos dela que não se preocupa em descobrir quem eu realmente sou. Talvez ela queira o melhor para mim, mas ainda achoque ela quer se realizar através de mim. O problema é que minha mãe e eu somos muito diferentes; fomos criadas em mundos diferentes.

—  Só penso em você como criança quando fala assim! — Acho que você não entende nada, Richard, nada.

Nem mesmo sabe por que estou aqui no Egito. Embora eu já tenha explicado um milhão de vezes, você se recusa a entender.

—  Discordo. Acho que sei por que está aqui. Você está com medo de se envolver. E muito simples. Você quer mostrar a sua independência.

— Richard, não distorça as coisas. Você é que estava com medo de se envolver. Há um ano nem falaria em casamento. Agora, de repente, quer uma esposa, uma casa, um cachorro, e não acho que a ordem das coisas faça muita diferença. Bem, eu não sou um objeto, nem seu nem de minha mãe. Não estou aqui no Egito para demonstrar minha independência. Se eu quisesse isso teria ido para um desses clubes fechados, como o Clube Med, onde não se precisa pensar. Vim ao Egito porque passei oito anos estudando o antigo Egito e esse é o meu trabalho. Faz parte de mim, como a medicina faz parte de você.

—  Então você está tentando dizer que o amor e a família para você estão em segundo plano?

Erica fechou os olhos e suspirou.

—  Não, não vêm em segundo plano. Apenas a sua atual concepção de casamento é que representa um tipo de renúncia intelectual. Você sempre viu meu trabalho como uma forma de hobby sofisticado. Você não o leva a sério.

Richard tentou discordar, mas Erica continuou: — Não estou dizendo que você não gostou de saber que eu ia me doutorar numa matéria exótica. Mas não que você estivesse contente por mim. Meu curso fazia parte de um plano seu. Acho que assim você se sentia mais liberal, mais intelectual.

—  Erica, não acho isso justo.

— Não me interprete mal, Richard. Sei que eu tenho um pouco de culpa. Eu nunca cheguei a falar, realmente, sobre meu interesse pelo meu trabalho. Se fiz alguma coisa, foi camuflar esse entusiasmo com medo de que ele afastasse você de mim. Mas agora é diferente. Reconheço quem sou. E isso não quer dizer que eu não queira me casar. Significa que não quero assumir o papel de esposa que você tem em mente. E vim aqui ao Egito para fazer alguma coisa que envolva minha experiência profissional.

Richard cedeu aos argumentos de Erica. Ele estava cansado para discutir.

— Se você está tão preocupada em ser útil, por que escolheu um campo tão obscuro? Quer dizer, egiptologia! Hieróglifos do Novo Império! — Richard deitou na cama, mas com os pés ainda no chão.

— As antigüidades egípcias foram responsáveis por muito mais do que você imagina — disse Erica.

Caminhando até a mesinha, ela apanhou o envelope das fotos que Jeffrey Rice lhe dera.

— Aprendi isso a duras penas nos dois últimos dias. Veja isto! — Erica jogou as fotos no peito de Richard.

Richard sentou-se, fazendo algum esforço, e segurou as fotos. Olhou-as rapidamente, depois guardou-as.

— Bonita estátua — comentou ele, sem demonstrar convicção, caindo de novo na cama.

— Bonita estátua? — disse Erica em tom cínico. — Essa pode ser a melhor estátua egípcia antiga já encontrada. Eu presenciei dois assassinatos, sendo que pelo menos um deles, eu acho, tem a ver com a estátua, e você me diz apenas que ela é bonita.

Richard abriu só um olho e olhou para Erica, que estava provocativamente debruçada sobre a mesinha. Os bicos dos seios dela apareciam através da renda que ornava seu robe. Sem se sentar, Richard tirou as fotos novamente do envelope e olhou-as com mais cuidado.

— Está certo — admitiu finalmente. — Uma bonita estátua antiga. Mas o que você quer dizer com dois assassinatos? Vai dizer que viu outro hoje?

Richard recostou-se, apoiando-se nos cotovelos. Seus olhos estavam semicerrados.

— Não apenas vi, mas o morto caiu em cima de mim. Seria impossível estar mais perto e não me envolver.

Richard olhou fixamente para Erica durante alguns minutos.

— Acho melhor você voltar para Boston — sugeriu com toda a autoridade que conseguiu demonstrar.

— Vou ficar aqui — afirmou Erica secamente. — Na verdade, acho que vou fazer alguma coisa sobre o mercado negro de antigüidades. Acho que posso ajudar. E gostaria de evitar que aquela estátua de Seti fosse levada do Egito.Profundamente concentrada, Erica esqueceu-se do tempo. Ao olhar o relógio, ficou surpresa de ver que eram duas e meia da madrugada. Ela ficou esse tempo todo sentada na varanda junto à mesinha redonda que arrastara de dentro do quarto. Tinha levado também o pequeno abajur da mesa-de-cabeceira que derramava um facho de luz sobre a mesa, iluminando as fotos da estátua de Houston.

Richard estava deitado na cama, dormindo profunda­mente, ainda vestido. Erica insistira em tentar conseguir um quarto separado para ele, mas o hotel estava cheio. O Sheraton, o Shephard e o Méridien. também estavam. Enquanto ela tentava ligar para um hotel na ilha de Gezira, a respiração dele tornou-se pesada e ela percebeu que ele já havia adormecido. Erica acalmou-se. Não queria que ele passasse a noite com ela porque não queria se arriscar a fazer amor com ele. Mas já que ele estava dormindo, decidiu que encontraria um quarto pela manhã.

Muito exausta para pegar no sono, decidiu trabalhar nos hieróglifos das fotos. Estava particularmente interessada na pequena inscrição com os símbolos dos dois faraós. Os hieróglifos eram sempre difíceis, já que não havia vogais e as inscrições tinham que ser interpretadas corretamente. Mas essa inscrição na estátua de Seti parecia mais difícil do que o normal, como se quem a fez desejasse codificar sua mensagem. Erica não tinha certeza nem em que direção a inscrição deveria ser lida. Não importava que direção escolhesse, nada tinha muito sentido. Por que o nome do rei menino Tutancâmon fora gravado na efígie de um poderoso faraó?

A melhor interpretação da frase que ela conseguiu foi: "Eterno descanso (ou paz) seja dado (ou concedido) a Sua Majestade, rei do Alto e do Baixo Egito, filho de Amon-Re, amado de Osíris, Faraó Seti I, que rege (ou governa, ou reside) depois (ou após, ou designado) de Tutancâmon". Até onde podia se lembrar, essa tradução estava razoavel­mente próxima do que o Dr. Lowery dissera ao telefone. Mas ela não estava satisfeita. Parecia simples demais. Certamente Seti I reinara ou vivera cerca de cinqüenta anos depois de Tutancâmon. Mas dentre tantos faraós, por que não haviam escolhido Tutmés IV ou algum outro dos grandes? Além disso, a proposição final a preocupava. Ela não aceitava o "designado" porque não havia nenhuma ligação de dinastia entre Seti I e Tutancâmon. Não havia laços de família, tampouco. Na verdade, antes da época de Seti ela estava praticamente certa de que o nome de Tutancâmon fora apagado pelo grande usurpador, o Faraó Horemheb. Ela não aceitava o "designado" por causa da insignificância de Tutancâmon. Assim, ficava o "depois".

Erica leu a frase em voz alta. Novamente ela parecia simples demais e, por isso mesmo, misteriosamente complicada. Mas ficava excitada ao tentar entender uma mente humana que pensara há três mil anos.

Ao olhar para o quarto, vendo Richard dormindo, Erica entendeu mais do que nunca a grande distância que os separava. Richard nunca compreenderia seu fascínio pelo Egito e o fato de esse interesse intelectual ser parte importante de sua individualidade.

Levantou-se da mesa e levou o abajur e as fotos para o quarto. Quando a luz bateu no rosto de Richard, com os lábios semicerrados, ele pareceu muito jovem, quase um menino. Erica lembrou-se do início do relacionamento deles e sentiu saudade daqueles tempos, quando tudo era mais simples. Ela realmente gostava dele, mas era difícil enfrentar a realidade. Richard ia continuar sempre o mesmo. Sua profissão de médico não o deixava ver as coisas em perspectiva, e Erica tinha que enfrentar o fato de que ele não mudaria.

Desligou a luz e deitou-se ao lado dele. Ele deu um suspiro e virou-se, colocando a mão sobre o peito de Erica. Delicadamente ela retirou a mão dele. Queria manter a distância entre eles, e não queria que ele a tocasse. Pensou em Yvon, que a tratava igualmente como uma intelectual e como mulher. Olhando Richard na semi-escuridão do quarto, Erica sentiu que ia ter de contar-lhe sobre o francês, e Richard sofreria. Olhou para o teto, prevendo a reação de ciúmes dele. Ele diria que ela queria apenas fugir e encontrar um amante. Ele nunca entenderia o quanto estava interessada em impedir que a segunda estátua de Seti fosse roubada do país.

— Você vai ver — sussurrou para Richard no escuro. — Vou encontrar a estátua.

Richard deu um suspiro e virou-se novamente.

 

Dia 3 - Cairo, 8:00

Quando Erica acordou na manhã seguinte, achou que tinha deixado o chuveiro ligado outra vez, mas logo se lembrou da inesperada chegada de Richard e percebeu que ele estava tomando banho. Tirando uma mecha de cabelo da testa, deixou a cabeça rolar no travesseiro, de modo que pôde ver a varanda através da porta aberta. O ruído do trânsito lá embaixo misturava-se com o barulho do chuveiro e tinha o efeito tranqüilizante de uma cascata. Seus olhos fecharam-se novamente enquanto pensava nas decisões que tomara durante a noite. O barulho do chuveiro parou de repente. Erica não se mexeu. Pouco depois Richard apareceu no quarto, enxugando vigorosa­mente os cabelos. Virando-se na cama, mas fingindo que ainda estava dormindo, Erica olhou-o com o canto dos olhos e surpreendeu-se de vê-lo completamente nu. Ela ficou olhando enquanto ele acabava de se enxugar. Ele foi até a varanda e ficou admirando as pirâmides e a Esfinge, a guardiã, à distância. Tinha o corpo atraente. Ela olhou a curva graciosa das costas dele; suas pernas davam sensação de vigor. Erica fechou os olhos, com medo de que a familiaridade e a atração do corpo de Richard fizessem com que ela perdesse o autocontrole.

Erica sabia que iria ser delicadamente acordada por ele. Abrindo os olhos, olhou diretamente para os olhos azuis de Richard. Ele estava sorrindo com um ar diabólico, vestido com a calça jeans e com uma camisa azul-marinho de malha. O cabelo estava penteado, dentro do que o cacheado natural permitia.

— Levante-se, bela adormecida — disse Richard, beijando-a na testa. — O café vai chegar dentro de cinco minutos.

Enquanto tomava banho, Erica pensava em como poderia ser firme com ele sem parecer insensível. Estava torcendo para que Yvon não telefonasse, e pensar nele fazia com que ela se lembrasse da estátua de Seti I. Uma coisa era decidir fazer uma cruzada no meio da noite; mas realmente começar a cruzada era bem diferente. Ela sabia que tinha de traçar um plano se quisesse mesmo encontrar a estátua. Ensaboando-se com o sabonete egípcio fortemen­te perfumado, Erica pela primeira vez pensou no perigo que corria por ter presenciado o assassinato de Abdul. Pensando por que não havia atentado para isso antes, enxaguou-se e saiu do chuveiro.

— É claro — disse ela em voz alta. — Só haveria perigo se os assassinos soubessem que eu vi tudo. E eles não me viram.

Erica passou o pente pelo cabelo ainda molhado para desembaraçá-lo e se olhou no espelho. A espinha no queixo era agora apenas um ponto vermelho, e o sol do Egito já tinha dado à sua pele uma cor atraente.

Passando a maquilagem, Erica tentava se lembrar da conversa com Abdul Hamdi. Ele dissera que a estátua estava lá esperando para seguir viagem, presumivelmente para fora do Egito. Erica esperava que o assassinato de Hamdi não significasse que a estátua tivesse sido levada para o exterior. Sua suposição baseava-se no fato de que Yvon, Jeffrey Rice ou o grego de que Yvon falara saberiam se a estátua tivesse surgido em algum país neutro, como a Suíça. Ela não achava apenas que a estátua estava no Egito, mas que ainda se encontrava no Cairo.

Erica examinou a maquilagem. Estava boa. Usaria pouca coisa no rosto. Havia algo de romântico no fato de que as mulheres egípcias costumassem escurecer os cílios há quatro mil anos, da mesma forma que na moda atual.

Richard bateu na porta.

— O café está sendo servido na varanda — anunciou ele, com um sotaque britânico. Parecia muito feliz, Erica pensou. Ia ser difícil falar com ele.

Erica respondeu que já estava saindo e começou a se vestir. Ela perdera sua calça de algodão. Sabia que a calça jeans seria menos apropriada naquele clima tão quente. Enquanto tentava vestir as pernas estreitas da calça, pensava no grego. Não fazia idéia do que ele queria com ela, mas talvez pudesse utilizá-lo como uma fonte de informação. Talvez ela pudesse trocar alguma coisa que ele quisesse por uma informação sobre como funciona o mercado negro. Pelo menos podia ser um começo.

Enfiando a blusa, Erica pensou se o grego, ou outra pessoa, entenderia o significado dos hieróglifos que ela tentara traduzir na noite passada. Proteger a estátua era o mistério de Seti I. Três mil anos haviam passado desde que esse egípcio vivera. Além de conduzir uma campanha militar de grande sucesso pelo Oriente Médio e Líbia durante a primeira década do seu reinado, Erica lembrava-se também que o poderoso faraó construíra o grande complexo de templos em Abidos, fora o templo de Carnac, e um túmulo espetacular no vale dos Reis.

Admitindo que era preciso ter mais informações, decidiu voltar ao Museu do Egito e usar as cartas de apresentação que trouxera. Isso lhe daria alguma coisa para fazer enquanto esperava o grego entrar em contato com ela. Outra pessoa que devia ter informações era o filho que Abdul Hamdi mencionara e que possuía uma loja de antigüidades em Luxor. Quando abriu a porta do banheiro, Erica decidiu-se. Assim que pudesse rumaria pelo Nilo para Luxor, para se encontrar com o filho de Abdul Hamdi. Estava convencida de que fora a melhor idéia que tivera.

Richard tomara a si a incumbência de pedir um desjejum bem farto. Como na manhã passada, foi servido na varanda. Debaixo de campânulas de prata estavam os ovos e pão egípcio fresquinho, além de pedaços de mamão com sorvete. O café estava no bule. Richard circulava em torno da mesa como um garçom nervoso, arrumando os pratos e os guardanapos.

— Ah, Alteza — gracejou Richard, ainda com sotaque britânico. — Sua mesa está pronta. — Puxando uma das cadeiras, ele fez sinal para que Erica sentasse. — O que deseja? — continuou ele, levantando todas as campânulas para lhe mostrar o que havia.

Esta atitude tocou Erica. Richard não tinha a sofisti­cação de Yvon, mas seu comportamento estava sendo muito simpático. Como na maioria das vezes, Erica sabia que ele estava muito vulnerável. E sabia que o que ela ia dizer iria magoá-lo. Ela começou.

— Não sei se você se lembra bem de nossa conversa de ontem à noite.

— Lembro-me de tudo — interrompeu Richard, pegando o garfo. — Para falar a verdade, antes de você continuar, eu gostaria de fazer uma sugestão. Acho que deveríamos ir logo à embaixada americana e contar tudo o que aconteceu a você.

— Richard — retrucou Erica, percebendo que ele estava se desviando do assunto —, a embaixada americana não poderia fazer nada. Seja realista. Não aconteceu nada a mim, apenas ao meu redor. Não, eu não vou à embaixada americana.

— Está bem — admitiu Richard. — Se é assim que você vê as coisas, então está ótimo. Agora, e sobre as outras coisas? Sobre nós? — Richard calou-se e pegou a xícara de café. — Admito que há um pouco de verdade no que você disse sobre minha atitude quanto ao seu trabalho. Bem, gostaria de pedir a você que fizesse alguma coisa por mim. — Levantou os olhos para olhar de frente para Erica. — Vamos tirar um dia para nós, para ficarmos juntos, aqui no Egito, no seu métier, para conversarmos. Dê-me uma oportunidade de ver como é o seu mundo.

— Mas Richard... — começou Erica.

Ela queria falar sobre Yvon e sobre seus sentimentos.

— Por favor, Erica. Você admitiu que nunca discutimos isso antes. Dê-me algum tempo. Vamos conversar logo mais, eu prometo. Além do mais, fiz essa viagem toda até aqui. Isso devia valer para alguma coisa.

— Mas isso conta — disse Erica, cansada de discutir. Esse tipo de conversa acabava com ela. — Mas mesmo uma decisão dessas, de você vir, nós devíamos ter tomado juntos. Aprecio o seu sacrifício, mas eu ainda acho que você não entende por que eu vim para cá. Nós parecemos ver o futuro do nosso relacionamento de forma muito diferente.

— É por isso que precisamos conversar — insistiu Richard —, mas não agora. Logo mais à noite. Tudo que estou pedindo é para passarmos o dia juntos para que eu possa ver alguma coisa no Egito e para que sinta um pouco a egiptologia. Acho que mereço esta consideração.

— Está bem — concordou Erica, relutante. — Mas vamos conversar logo à noite.

— Puxa! — exclamou Richard. — Bem, isso já está acertado. Vamos discutir agora os nossos planos. Eu gostaria de ver aquelas belezas. — E apontou com um pedaço de torrada na direção das pirâmides e da Esfinge de Gizé.

— Desculpe — falou Erica. — O dia já está programa­do. Vamos ao Museu do Egito agora de manhã ver o que eles têm sobre Seti I, e à tarde vamos voltar ao local do primeiro assassinato. Antica Abdul. As pirâmides vão ter que esperar.

Erica tentou tomar seu desjejum o mais rápido possível para sair do quarto antes do inevitável telefonema. Mas não conseguiu fazer isso. Richard ficou colocando filme na sua Nikon enquanto ela atendia o telefone.

— Alô — atendeu com naturalidade.

Como temera, era Yvon. Sabia que não devia se sentir culpada, mas era como se sentia. Quisera falar com Richard sobre o francês, mas ele a interrompera.

Yvon estava alegre e cheio de palavras ternas sobre a noite anterior. Erica concordava quando podia, mas sabia que estava parecendo formal.

—  Erica, você está bem? — perguntou finalmente.

— Sim, sim, estou ótima — respondeu ela enquanto pensava numa forma de acabar com a conversa.

— Você me conta se houver alguma coisa errada? — ele perguntou, parecendo alarmado.

—  E claro — disse Erica prontamente.

Houve uma pausa. Yvon sabia que havia alguma coisa errada.

— Nós dois estávamos de acordo ontem à noite — continuou ele — de que devíamos ter passado o dia juntos. Que tal ficarmos juntos hoje? Deixe-me levá-la para conhecer alguns lugares.

— Não, obrigada — respondeu Erica. — Uma visita chegou de surpresa dos Estados Unidos ontem à noite.

— Não tem importância — disse Yvon. — Sua visita é bem-vinda.

— Acontece que a visita é... — Erica hesitou. "Namora­do" parecia muito infantil.

—  Um amante? — perguntou Yvon hesitante.

— Meu namorado — disse Erica. Ela não conseguiu pensar em nada mais sofisticado.

 

Yvon bateu o telefone.

— Mulheres! — resmungou, furioso, contraindo os lábios.

Raoul levantou os olhos do exemplar atrasado do Paris Match, fazendo força para não rir.

— A mocinha americana está dando algum trabalho, hein?— Cale a boca — disse Yvon com uma irritação que não lhe era costumeira.

Acendeu um cigarro e soltou a fumaça para o teto em grandes nuvens azuis. Ele achou que era possível que a visita de Erica tivesse chegado inesperadamente. Contudo, havia uma pequena possibilidade de ela já saber da chegada do namorado e de não lhe ter dito nada para que ele se envolvesse com ela.

Apagou o cigarro e foi até a varanda. Não estava acostumado a levar a pior com mulheres. Se elas se mostravam problemáticas, ele simplesmente as deixava. A coisa era simples. O mundo estava cheio de mulheres. Viu lá embaixo diversas fellucas se dirigindo para o sul, levadas pelo vento. Aquela paisagem tranqüila o fez sentir-se melhor.

— Raoul, quero que Erica Baron seja seguida nova­mente — ele gritou.

— Ótimo — disse Raoul. — Khalifa está no Hotel Sherazade.

— Tente lhe dizer para ser mais calmo — recomendou Yvon. — Não quero mais derramamento de sangue sem necessidade.

— Khalifa insiste em que o homem que ele matou estava seguindo Erica.

— Aquele homem trabalhava para o Departamento de Antigüidades. É inconcebível que estivesse seguindo Erica.

— Bem, eu lhe garanto que Khalifa é de primeira. Eu o conheço — afirmou Raoul.

— É melhor que seja mesmo — advertiu Yvon. — Stephanos espera encontrar-se com a moça hoje. Avise Khalifa. Pode haver encrenca.

 

— O Dr. Sarwat Fakhry pode recebê-la agora — in­formou a robusta secretária de seios grandes. Devia ter cerca de vinte anos e estava cheia de saúde e de entusiasmo, um oásis na atmosfera opressiva do Museu do Egito.

O gabinete do diretor do museu parecia uma caverna escura com as janelas fechadas. Um aparelho barulhento de ar condicionado mantinha a sala com a temperatura baixa. Ela era forrada com madeira escura, como um estúdio vitoriano. Numa das paredes havia uma lareira de imitação, logicamente sem sentido no Cairo, e as demais paredes eram cobertas de prateleiras com livros. No meio da sala fi­cava uma mesa grande cheia de livros, jornais e docu­mentos. Atrás da mesa sentava-se o Dr. Fakhry, que olhou por cima dos óculos quando Erica e Richard entra­ram. Ele era um homem baixinho e nervoso, com cerca de sessenta anos, com feições finas e cabelos grossos e grisalhos. — Bem-vindo, Dr. Baron — cumprimentou ele sem se levantar. As cartas de apresentação de Erica tremiam em suas mãos. — Fico sempre contente em receber alguém do Museu de Belas-Artes de Boston. Estamos agradecidos a Reisner por seu excelente trabalho. — O Dr. Fakhry olhava diretamente para Richard.

—  Não sou o Dr. Baron — corrigiu Richard, sorrindo. Erica deu um passo à frente.

—  Eu sou a Dra. Baron, e agradeço sua receptividade.

O olhar confuso do Dr. Fakhry deu lugar a um ar de certo constrangimento.

— Desculpe-me — acrescentou simplesmente. — Pela sua carta de apresentação posso ver que a senhora tenciona fazer algumas traduções de monumentos do Novo Império in loco. Fico muito contente. Há muito trabalho, então. Se eu puder ajudar em alguma coisa, estou a seu dispor.

— Obrigada — disse Erica. — Realmente gostaria de lhe pedir um favor. Estou interessada em obter alguma informação sobre Seti I. Seria possível eu pesquisar o material do museu?

—  Certamente — aquiesceu o Dr. Fakhry.

Seu tom de voz mudou um pouco. Tornou-se mais interrogativo, como se o pedido de Erica o tivesse tomado de surpresa.

— Infelizmente não sabemos muito sobre Seti I, como a senhora, sem dúvida alguma, deve ter noção. Além da tradução das inscrições dos seus documentos, temos alguma correspondência de Seti I da época de suas primeiras campanhas na Palestina. Só temos praticamente isso. Tenho certeza de que a senhora aumentará nosso acervo com as traduções que fizer in loco. As que nós temos são antigas, e muitas foram passadas de boca em boca desde a época em que foram feitas.

—  E a múmia dele? — perguntou Erica.

O Dr. Fakhry devolveu as cartas de Erica. O tremor em sua mão aumentou quando esticou o braço.

— Sim, temos a múmia dele. Era parte do túmulo de Deir el-Bahri, ilicitamente encontrado e saqueado pela família Rasul. Ela está em exposição no andar de cima. — Desviou o olhar para Richard, que sorria novamente.

— A múmia já foi examinada minuciosamente? — perguntou Erica.

— Já, sim — respondeu o Dr. Fakhry. — Ela foi autopsiada.

— Autopsiada? — perguntou Richard, incrédulo. — Como se faz autópsia numa múmia?

Erica segurou o braço de Richard. Ele entendeu o sinal e ficou calado. O Dr. Fakhry continuou falando, como se não tivesse ouvido a pergunta.

— E recentemente uma equipe americana fez raios X na múmia. Vou arranjar para a senhora todo o material que temos em nossa biblioteca. — O Dr. Fakhry levantou-se e abriu a porta do gabinete. Ele caminhava um pouco curvado, dando a impressão de ser um corcunda, com a mão na cintura.

— Uma outra pergunta — disse Erica. — O senhor tem muito material sobre a abertura do túmulo de Tutancâmon?

Richard afastou-se um pouco de Erica e olhou para a secretária com o canto dos olhos. Ela estava atarefada, debruçada sobre a máquina de escrever.

— Ah, nisso podemos ajudá-la — disse o Dr. Fakhry quando chegaram ao hall com piso de mármore. — Como a senhora sabe, estamos planejando utilizar parte dos fundos arrecadados com a viagem dos "Tesouros de Tutancâmon" pelo mundo para construir um museu especial para guardar seus pertences. Agora temos uma série completa das notas de Carter saídas no que ele chamava "Jornal de Iniciação". Está tudo microfilmado, da mesma forma que uma volumosa correspondência entre Carter, Carnarvon e outros ligados à descoberta do túmulo.

O Dr. Fakhry deixou Erica e Richard aos cuidados de um jovem que ele apresentou como Talat. Talat ouviu atentamente as complicadas instruções do doutor, depois fez uma reverência e desapareceu por uma porta lateral.

— Ele vai trazer o material que temos sobre Seti I — informou o Dr. Fakhry. — Obrigado por ter vindo, e se eu puder ser útil em mais alguma coisa, por favor, procu­re-me.

Cumprimentou Erica, querendo controlar um espasmo facial involuntário que repuxava sua boca como que num sorriso. Depois foi embora, as mãos suspensas e os dedos ritmicamente se mexendo à procura de algum objeto invisível.

— Meu Deus, que lugar — comentou Richard quando o diretor foi embora. — Sujeito legal.

— O Dr. Fakhry fez um excelente trabalho. Sua especialidade é a religião do antigo Egito, práticas funerárias e métodos de mumificação.

— Métodos de mumificação! Eu devia ter adivinhado. Conheço uma igreja em Paris onde ele arranjaria um bom emprego *.

— Tente ser um pouco mais sério, Richard — repreendeu Erica, que apesar disso estava sorrindo.

Sentaram-se numa das velhas mesas de carvalho que havia no salão. Todos os móveis tinham uma leve camada de poeira do Cairo. Havia pequenas pegadas debaixo da cadeira de Erica. Richard disse a ela que eram de rato.

Talat trouxe consigo dois grandes envelopes de papel vermelho, ambos fechados com uma fita. Entregou-os a Richard, que sorriu com ar de desdém e os deu a Erica. No primeiro estava escrito "Seti I, A". Erica o abriu e espalhou seu conteúdo sobre a mesa. Eram cópias de artigos sobre o faraó. Alguns em francês, dois em alemão, mas a maioria em inglês.

—  Pssst! — Talat segurou o braço de Richard. Richard voltou-se, surpreso.

—  Quer camafeus das antigas múmias? São baratinhos. Estendeu a mão fechada, com a palma para cima.

Enquanto olhava por cima dos ombros como um vendedor de pornografia nos anos 50, seus dedos lentamente abriram-se deixando aparecer dois camafeus um pouco desbotados.

— Esse sujeito está falando sério? — perguntou Richard. — Ele quer vender camafeus.

— É lógico que são falsos — disse Erica, sem tirar os olhos dos artigos que estava lendo.

Richard pegou um dos camafeus.

—  Uma libra — disse Talat. Ele estava ficando nervoso. — Erica, veja isso. É um pequeno camafeu, mas bonito.

Ele está com tudo, vendendo isso aqui.

— Richard, você pode comprar camafeus por toda parte. Talvez você queira dar uma olhada no museu enquanto acabo isto aqui.

Ela tirou os olhos dos artigos e olhou para ver se ele tinha aceito sua sugestão, mas ele não lhe dera ouvidos. Estava pegando o outro camafeu da mão de Talat.

— Richard — disse Erica —, não se deixe enganar pelo primeiro camelô que encontrar. Deixe-me ver um. — Ela pegou um camafeu e rodou-o para ler os hieróglifos na parte de baixo. — Meu Deus! — exclamou.

— Você acha que é verdadeiro?

— Não, não é verdadeiro, mas é uma imitação muito boa. Muito boa mesmo. Tem o símbolo de Tutancâmon. Acho que sei quem fez isso. O filho de Abdul Hamdi. Espantoso.

Erica comprou o camafeu de Talat por vinte e cinco piastras e o mandou embora.

— Já tenho um desses feito pelo filho de Hamdi, com o nome de Seti I.

Erica lembrou-se de que tinha que apanhar o outro camafeu com Yvon.

— Fico imaginando que outros nomes de faraós ele grava.

Por insistência de Erica, eles continuaram a ler os artigos. Richard pegou algumas cópias. Ficaram em silêncio por cerca de meia hora.

— É a coisa mais maçante que já li — resmungou Richard finalmente, jogando um dos artigos sobre a mesa. — E eu que pensava que patologia era chato. Meu Deus!

— Você precisa conhecer melhor o assunto — falou Erica em tom condescendente. — Isso são algumas informações que estão sendo reunidas sobre uma pessoa poderosa que viveu há três mil anos atrás.

— Bem, se houvesse um pouco mais de ação nesses artigos, seria melhor. — Richard riu.

— Seti I reinou logo depois do faraó que tentou mudar a religião egípcia para monoteísta — explicou Erica, ignorando o comentário de Richard. — Seu nome era Akhenaton. O país mergulhara no caos. Seti mudou toda a situação. Ele foi um governante forte que decidiu restabele­cer a estabilidade do país e da maior parte do império. Subiu ao poder por volta dos trinta anos e reinou durante aproximadamente quinze anos. A não ser por algumas de suas batalhas na Palestina e na Líbia, poucos detalhes da vida dele são conhecidos, o que é uma pena, porque ele reinou durante um período muito interessante da história egípcia. Estou falando sobre um período de pouco mais de cinqüenta anos, que vai de Akhenaton a Seti I. Deve ter sido uma época fascinante, cheia de agitação, levantes e emoção. É tão frustrante não sabermos mais! — Erica bateu com a mão na pilha de cópias. — Foi nesse período que Tutancâmon reinou. E por estranho que pareça, houve um grande desapontamento na descoberta do magnífico túmu­lo de Tutancâmon. Apesar de todos os tesouros que foram descobertos, não havia documentos históricos. Nem um só papiro foi encontrado! Nenhum!

Richard deu de ombros.

Erica percebeu que ele estava tentando, mas não conseguia compartilhar da excitação dela. Ela voltou-se para a mesa novamente.

— Vamos ver o que há na outra pasta — sugeriu, e retirou o conteúdo da "Seti I, B", colocando-o sobre a mesa.

Richard pareceu ficar um pouco mais animado. Havia algumas fotos da múmia de Seti I, inclusive algumas radiografias, o laudo resumido da autópsia, e mais algumas cópias de artigos.

— Meu Deus! — disse Richard, fazendo uma expressão de horror. Ele pegou uma foto do rosto de Seti I. — É tão feio quanto o cadáver que vi no meu primeiro ano de anatomia.

— Realmente assusta a princípio, mas depois você não achará tão ruim assim.

— Que é isso, Erica, parece um monstro. Não parece tão ruim? Você está brincando. Dê-me um minuto. — Richard pegou o laudo da autópsia e começou a ler.

Erica encontrou uma radiografia de corpo inteiro. Parecia um cadáver santificado, com as mãos cruzadas no peito. Mas ela o examinou assim mesmo. De repente percebeu que alguma coisa estava estranha. Os braços estavam cruzados, como todas as múmias de faraós, mas as mãos estavam abertas, e não fechadas. Os dedos estavam esticados Todos os outros faraós foram enterrados segu­rando o mangual e o cetro, os símbolos do poder. Mas Seti I não. Erica tentava descobrir o motivo.

— Isso não é uma autópsia — afirmou Richard, interrompendo os pensamentos dela. — Quer dizer, eles não tinham órgãos internos para serem examinados. Apenas o corpo vazio. Nesses casos, o corpo é examinado superficialmente, a menos que exista alguma identificação específica. A autópsia, na verdade, é o exame microscópico dos órgãos internos. Aqui o que fizeram foi pegar um pedaço de músculo e um pedaço de pele.

Pegou a radiografia da mão de Erica e esticou o braço para vê-la.

— Os pulmões estão com boa transparência — opinou Richard, rindo.

Erica não entendeu, e então Richard explicou que, desde que os pulmões foram retirados na Antigüidade, a radiografia mostrava uma boa transparência do peito. Não pareceu tão engraçado depois da explicação, e ele engoliu o riso. Erica olhou a radiografia. As mãos abertas de Seti I ainda a preocupavam. Alguma coisa lhe dizia que isso era um dado muito importante.

 

Havia dois cartões dentro da grande vitrina. Para passar o tempo Khalifa curvou-se para lê-los. Um dos cartões era antigo e dizia "Trono de ouro de Tutancâmon, cerca de 1355 a.C." O outro era mais recente e dizia: "Retirado temporariamente como parte dos tesouros de Tutancâmon que fazem a volta ao mundo". De onde estava, Khalifa tinha uma boa visão de Erica e Richard através da vitrina vazia. Normalmente ele nunca se aproximava tanto de alguém que estivesse seguindo, mas agora ele estava intrigado. Nunca estivera numa missão dessas. No dia anterior ele sentiu que salvara Erica de certo perigo, só para que Yvon de Margeau lhe chamasse a atenção. De Margeau disse-lhe que ele havia matado um funcionário público. Mas Khalifa sabia que tinha razão. O funcionário público estava seguindo Erica, e havia alguma coisa em relação a essa moça americana que intrigava Khalifa. Ele achava que havia muito dinheiro envolvido nisso tudo. Se De Margeau tivesse agido de modo tão louco quanto parecia, certamen­te o teria matado. Mas ele lhe pagava duzentos dólares por dia e o colocara no Hotel Sherazade. E a situação evoluíra de uma forma que provocara certa complicação: o namorado chamado Richard. Khalifa sabia que o namorado não agradava a Yvon, embora o francês lhe tivesse dito que não acreditava que Richard fosse uma ameaça. Mas Yvon dissera a Khalifa para ficar de olho, e Khalifa ficava pensando se deveria se incumbir de dar fim a Richard.

Quando Erica e Richard foram ver outra coisa, Khalifa parou atrás de outra vitrina vazia onde também se lia "Retirado temporariamente..." Escondendo o rosto atrás do guia aberto, tentava escutar a conversa deles. Tudo o que conseguiu ouvir foi alguma coisa sobre a saúde de um dos grandes faraós. Mas isso também pareceu a Khalifa um assunto onde havia dinheiro envolvido, e ele prestou mais atenção. Gostava da sensação excitante e perigosa que a proximidade lhe dava, embora fosse apenas um perigo imaginário. Não havia como essas pessoas pudessem representar algum perigo para ele. Poderia matar os dois em questão de segundos. Na verdade a idéia o animou.

— A maioria das melhores peças está em exibição em Nova York — disse Erica —, mas olhe aquele pingente. — Erica apontou e Richard bocejou. — Tudo isso foi enterrado com o insignificante Tutancâmon. Imagine só o que foi enterrado com Seti I.

— Não consigo imaginar — respondeu Richard, apoiando seu peso num dos pés, enquanto descansava a outra perna.

Erica olhou para ele, percebendo seu aborrecimento.

— Está bem — disse ela. — Você se comportou muito bem. Vamos voltar ao hotel para comer alguma coisa e ver se há algum recado. Depois vamos até o bazar.

Khalifa viu Erica ir embora, apreciando suas formas apertadas dentro da calça jeans. Seus pensamentos de violência misturaram-se com outros mais íntimos e lascivos.

 

Havia um recado e um número para Erica ligar quando voltasse ao hotel. E também um quarto vago para Richard. Ele hesitou por um instante e olhou para Erica com um olhar interrogativo antes de se dirigir à recepção para preencher a ficha. Erica foi até um dos telefones públicos, mas não teve sorte com a complicada máquina. Disse a Richard que faria a ligação do seu quarto.

O recado era simples:

"Gostaria de vê-la quando você puder. Stephanos Markoulis".

Erica estremeceu só de pensar em se encontrar com alguém que realmente estivesse envolvido com o mercado negro e que podia ser até um assassino. Mas ele vendera a primeira estátua de Seti, e seria bom se ela conseguisse encontrar a outra. Lembrou-se da advertência de Yvon para que ela escolhesse um lugar público, e pela primeira vez ficou contente de que Richard estivesse com ela.

A telefonista fez a ligação rapidamente.— Alô, alô. — A voz de Stephanos tinha um tom autoritário.

—  Aqui é Erica Baron.

— Ah, sim. Obrigado por telefonar. Estou querendo encontrá-la. Temos um amigo comum, Yvon de Margeau. Bom sujeito. Espero que ele tenha lhe dito que eu ia telefonar e que gostaria de ter uma conversa com você. Podemos nos encontrar hoje à tarde, digamos, por volta de duas e meia?

— Onde seria? — perguntou Erica, preocupada com o aviso de Yvon. Ela escutou um barulho forte ao longe.

— Depende de você, querida — retrucou Stephanos, elevando a voz para superar o barulho.

Erica ficou arrepiada com a familiaridade de Markoulis.

—  Não sei — disse ela, olhando para o relógio.

Eram onze e meia. Richard e ela estariam no bazar provavelmente às duas e meia.

—  Que tal aí mesmo no Hilton? — sugeriu Stephanos. — Hoje à tarde vou ao bazar Khan el Khalili — disse Erica.

Pensou em falar em Richard, mas achou melhor não dizer nada. Parecia bom fazer um pouco de mistério.

—  Só um instante — falou Stephanos.

Erica ouvia uma conversa abafada do outro lado. Stephanos havia colocado a mão sobre o fone.

— Desculpe por tê-la feito esperar — prosseguiu ele numa voz que não demonstrava nenhum pesar. — Você conhece a Mesquita de Al Azhar, perto do Khan el Khalili?

— Sim — respondeu Erica. Lembrou-se que Yvon lhe havia mostrado a mesquita.

— Vamos encontrar-nos lá — propôs Stephanos. — É fácil de achar. Às duas e meia. Estou realmente querendo muito falar com você, querida. Yvon de Margeau me falou muito bem de você.

Erica despediu-se e desligou. Não estava gostando daquilo e sentia um pouco de medo. Mas decidira-se a prosseguir em seu intento por causa de Yvon; tinha certeza de que ele jamais permitiria que ela se encontrasse com Stephanos se houvesse algum perigo real. Mesmo assim, queria acabar logo com aquilo.

 

Luxor, 11:40

Vestindo uma camisa larga de algodão branco e slacks, Ahmed Khazzan sentia-se bem descontraído. Ainda estava perplexo com a violenta morte de Gamal Ibrahim, mas atribuía o fato à ação inescrutável de Alá, e seu sentimento de culpa diminuiu. Como chefe que era, sabia que tinha de enfrentar tais situações.

Na noite passada ele fizera a visita obrigatória à casa de seus pais. Amava muito a mãe mas não aprovava sua decisão de ficar em casa e cuidar do pai, que era inválido. Sua mãe fora uma das primeiras mulheres do Egito a obter um diploma universitário, e Ahmed preferiria que ela usasse seus conhecimentos. Ela era uma mulher muito inteligente e poderia ter sido uma grande ajuda para Ahmed. Seu pai fora gravemente ferido na guerra de 1956, a mesma guerra em que morrera o irmão mais velho de Ahmed. Ele não conhecia uma família no Egito em cuja porta a tragédia não tivesse batido em alguma das muitas guerras, e quando pensava nisso ficava trêmulo de raiva.

Depois da visita aos pais, Ahmed dormira profunda­mente durante um bom tempo em sua pequena casa de Luxor. Sua empregada preparara um magnífico desjejum com pão fresco e café. E Zaki telefonara, dizendo que dois agentes com roupas bem simples haviam sido enviados para Saqqara. Tudo parecia tranqüilo no Cairo. E talvez o mais importante: ele conseguira controlar uma crise familiar. Um primo, que ele promovera a guarda chefe da Necrópole de Luxor, rebelara-se e queria ser transferido para o Cairo. Ahmed tentou convencê-lo do contrário, mas quando viu que não adiantava, deixou a diplomacia de lado e, em tom aborrecido, mandou que ele continuasse na função. O pai desse primo, casado com a tia de Ahmed, tentou intervir. Ahmed teve que lhe lembrar que a permissão que lhe conseguira para um restaurante no vale dos Reis poderia ser facilmente revogada. Uma vez resolvido isso, Ahmed pôde ler alguns documentos que trouxera. Desse modo, o mundo parecia melhor e mais organizado do que no dia anterior.

Colocando na pasta o último documento que trouxera para ler, Ahmed teve a sensação do dever cumprido. Ele teria levado o dobro do tempo para ler o mesmo material se estivesse no Cairo. Mas estava em Luxor. Ele amava Luxor. A antiga Tebas. Para Ahmed, ali havia alguma coisa mágica no ar que o fazia sentir-se feliz e bem disposto.

Levantou da sua grande poltrona da sala de estar. A casa era toda pintada de branco por fora, e embora fosse rústica por dentro, era extremamente limpa. O edifício fora feito pela interligação de uma série de estruturas de tijolo anteriores. O resultado era uma casa estreita, com apenas seis metros de largura, mas muito comprida, com um longo corredor do lado esquerdo. Do lado direito localizava-se uma série de quartos de hóspedes. A cozinha ficava nos fundos e era bem primitiva, sem água corrente. Atrás da cozinha havia um pequeno quintal, que terminava no estábulo, onde ficava seu garanhão de estimação, um cavalo árabe preto que se chamava Sawda.

Ahmed mandara o caseiro selar Sawda para as onze e meia. Tencionava interrogar Tewfik Hamdi, filho de Abdul Hamdi, em sua loja de antigüidades antes do almoço. Ahmed achou que seria melhor ele mesmo fazer isso. Além disso, depois que o calor do meio-dia já tivesse diminuído, pretendia atravessar o Nilo e ir, sem se fazer anunciar, até o vale dos Reis para inspecionar o novo sistema de segurança que instalara. Daria tempo para voltar ao Cairo à noite.

Sawda ficou agitado quando Ahmed apareceu. O garanhão parecia uma pintura renascentista, com cada músculo definido e o dorso perfeito como um mármore esculpido. Sua cara tinha os traços marcados, com narinas arfantes. Os olhos eram tão negros quanto os de Ahmed. Uma vez em marcha, Ahmed sentia toda a força e vitalidade do exuberante animal. Foi com dificuldade que o conteve para ele não sair em desabalada carreira. Ahmed sabia que a personalidade de Sawda refletia suas próprias paixões voláteis. Devido a essas similaridades, era preciso usar palavras fortes em árabe e puxar as rédeas com força para controlar o garanhão de modo que montaria e cavaleiro pudessem seguir, como uma coisa só, pela som­bra das palmeiras plantadas ao longo das margens do Nilo.

A loja de antigüidades de Tewfik Hamdi era uma das muitas que havia num grupo de ruas poeirentas e cheias de curvas que ficavam atrás do antigo templo de Luxor. Ficavam todas perto dos maiores hotéis e dependiam dos ingênuos turistas para continuarem a existir. Vendiam em sua maioria falsificações fabricadas na margem ocidental. Ahmed não sabia com certeza a localização da loja de Tewfik; quando chegou ao local, informou-se.

Disseram-lhe a rua e o número e ele encontrou a loja sem dificuldade. Mas estava fechada. Não apenas para o almoço. Estava fechada com a porta de aço.

Com Sawda amarrado sob uma sombra, Ahmed perguntou por Tewfik nas outras lojas. As respostas eram coerentes. A loja de Tewfik não fora aberta aquele dia, e, sim, era estranho, porque Tewfik não deixava de abri-la nunca. Um outro proprietário disse que a falta de Tewfik podia ter algo a ver com a recente morte de seu pai no Cairo.

Voltando para o local onde estava Sawda, Ahmed passou bem em frente à loja. A porta de tábuas chamou sua atenção. Olhando com mais atenção, Ahmed percebeu uma pequena abertura numa das ripas. Parecia como se um pequeno pedaço tivesse sido arrancado e depois colocado novamente no lugar. Ahmed enfiou os dedos no vão entre as tábuas e puxou. Não conseguiu nada. Examinando a parte superior do rústico postigo, Ahmed percebeu que as tábuas estavam pregadas no batente e não podiam ser movidas de dentro da casa. Ele achou que Tewfik devia ter viajado com a intenção de ficar muito tempo fora.

Ahmed afastou-se da loja alisando o bigode. Deu de ombros e dirigiu-se para Sawda. Pensou que provavelmente fosse verdade que Tewfik Hamdi tivesse viajado para o Cairo. Ahmed imaginou como descobriria onde Tewfik Hamdi estava.

Enquanto caminhava até o cavalo, Ahmed encontrou um antigo amigo de família e parou para conversar; seus pensamentos, contudo, perdiam-se atrás da troca de amabilidades. Havia algo de particularmente intrigante no fato de Tewfik ter fechado sua loja dessa forma. Assim que pôde, Ahmed desculpou-se, contornou o quarteirão comer­cial e entrou no labirinto que levava à área que ficava atrás das lojas.O sol batia em cheio nas paredes de estuque, aumentando o calor e fazendo a transpiração aparecer em sua testa. Sentia o suor escorrer-lhe pelas costas.

Bem por trás das velhas lojas, Ahmed viu-se debaixo de diversas marquises malfeitas. Continuando a andar, apareceram galinhas e criancinhas nuas, que paravam de brincar para olhar para ele. Com certa dificuldade, entrando em becos sem saída, Ahmed conseguiu chegar à porta dos fundos da loja de antigüidades de Tewfik Hamdi. Pelas frestas da porta conseguiu ver um pequeno pátio cercado com tijolos.

Enquanto diversos menininhos com cerca de três anos o observavam, Ahmed colocou o ombro na porta de madeira e forçou-a até que ela se abrisse o suficiente para que ele pudesse entrar. O pátio tinha mais de cinco metros de comprimento, e havia uma porta de madeira em frente à que Ahmed abrira, além de uma outra, aberta à esquerda. Quando Ahmed fechou a porta de madeira por onde entrara, viu um rato sair da porta aberta e cruzar o pátio, entrando numa manilha. O ar era pesado, quente, nada se movia.

A porta que estava aberta conduzia a um pequeno cômodo onde Tewfik aparentemente morava. Ahmed entrou no cômodo. Sobre uma mesa simples de madeira havia uma manga podre e um pedaço de queijo de cabra coberto de moscas. Tudo o mais na sala estava aberto e remexido. Um armário no canto da sala estava sem a porta. Havia folhas de papel espalhadas desordenadamente. As paredes tinham diversos buracos. Ahmed olhava tudo com uma ansiedade crescente, tentando entender o que havia acontecido.

Rapidamente dirigiu-se para a porta que dava para a loja. Estava destrancada e abriu-se fazendo muito barulho. A loja estava totalmente às escuras. Entrava apenas um pouco de luz pelas frestas da porta de aço da frente, e Ahmed parou enquanto seus olhos se acostumavam à escuridão. Ouviu o ruído de pequenos passos. Mais ratos.

A desarrumação na loja era muito maior do que na sala. Grandes armários estavam jogados no chão, quebra­dos, e formavam um grande amontoado no centro da loja. Tudo que havia dentro deles tinha sido quebrado e espalhado. Parecia que um ciclone atingira a loja. Ahmed teve que afastar alguns pedaços dos móveis quebrados para poder entrar. Caminhou até o centro da loja; ficou enregelado. Tewfik Hamdi estava ali. Torturado. Morto. Ele fora colocado sobre o balcão de madeira, que estava todo manchado de sangue. As duas mãos tinham sido pregadas no balcão, cada uma de um lado, com um único prego cada, com as palmas voltadas para baixo. Os braços estavam abertos. Quase todas as unhas de Tewfik tinham sido arrancadas. Depois tivera os pulsos cortados. Fora obrigado a ficar vendo seu corpo se esvair em sangue até a morte. Seu rosto estava fantasmagoricamente pálido, e um pedaço de pano sujo fora enfiado em sua boca para que seus gritos não fossem ouvidos, o que fez com que seu rosto inchasse grotescamente.

Ahmed espantou as moscas, percebendo que os ratos tinham devorado parte do cadáver. A brutalidade da cena o revoltou, e o fato de aquilo ter acontecido em sua amada Luxor deixou-o furioso. Com a raiva veio o medo de que os vícios e pecados urbanos do Cairo se espalhassem como uma praga. Ahmed sabia que precisava conter a infestação.

Curvou-se e olhou os olhos de Tewfik Hamdi. Refletiam o horror que presenciaram enquanto sua vida se esvaía. Mas por quê? Ahmed levantou-se. O mau cheiro da morte estava sufocante. Cuidadosamente afastou-se por entre os destroços até o pequeno pátio. A luz do sol esquentou seu rosto, e ele ficou lá fora por um instante, respirando fundo. Sabia que não podia voltar ao Cairo antes de saber mais alguma coisa. Seus pensamentos voltaram-se para Yvon de Margeau. Onde quer que ele andasse, havia problemas por perto.

Ahmed passou pela porta dos fundos e saiu no beco, fechando a porta atrás de si. Decidira ir diretamente à delegacia policial, que ficava perto do depósito da estrada de ferro de Luxor. Montando em Sawda, ficou imaginando o que Tewfik Hamdi fizera ou o que sabia para que lhe fizessem isso.

 

Cairo, 14:05

— Loja maravilhosa — comentou Richard quando saiu da rua congestionada. — Boa seleção de mercadorias. Posso fazer todas as minhas compras de Natal aqui.

Erica não podia acreditar no que via. A loja estava vazia. Não sobrara nada da Antica Abdul, a não ser alguns pedaços de objetos de barro. Era como se nunca tivesse existido a loja. Até a janela de vidro da parte da frente fora removida. Não havia mais as contas na porta nem os tapetes, nem a cortina, nenhuma peça de roupa ou de mobiliário.

— Não posso acreditar — disse Erica, caminhando até o lugar onde estivera o balcão com tampa de vidro. Abaixou-se e pegou um pedaço de cerâmica. — Aqui ficava uma cortina pesada, dividindo a sala. — Ela voltou até os fundos da loja e virou-se para olhar para Richard. — Eu estava bem aqui quando se deu o crime. Meu Deus, foi horrível. O assassino estava em pé bem aí onde você está, Richard.

Richard olhou para os pés e saiu daquele lugar.

— Parece que os ladrões levaram tudo — observou ele. — Com essa pobreza aqui, acho que tudo tem o seu valor.

— Você tem razão — admitiu Erica, apanhando a lanterna na bolsa —, mas não parece que a loja foi apenas saqueada. Esses buracos nas paredes... não havia antes.

Ela acendeu a lanterna e começou a examinar alguns dos buracos.

— Uma lanterna! — exclamou Richard. — Você está bem equipada mesmo.

— Quem vem ao Egito e não traz uma lanterna está por fora.

Richard aproximou-se de um dos furos na parede e meteu o dedo ali, jogando pedaços de massa no chão.

—  Eu acho que isso foi um ato de vandalismo. Erica sacudiu a cabeça.

— Acho que isso aqui foi muito bem vasculhado.

Richard deu uma olhada pela sala, percebendo como o chão fora cavado em algumas partes.

— Talvez sim, mas e daí? Quero dizer, o que eles podiam estar procurando?

Erica mordeu a pontinha do lábio, um hábito que tinha quando se concentrava. A pergunta de Richard era procedente. Talvez fosse comum aos habitantes do Cairo esconder dinheiro ou objetos de valor nas paredes ou debaixo do assoalho. Mas a violação da loja fazia com que ela se lembrasse de que seu quarto também fora vasculhado. Seguindo um impulso, colocou o flash na Polaroid e tirou uma foto do interior da loja.

Richard percebeu que Erica não estava se sentindo bem.

—  Você fica chateada por voltar aqui?

—  Não — respondeu Erica.

Ela não queria estimular o sentimento de superproteção de Richard. Mas na verdade sentia-se mal com as lembranças da Antica Abdul. Aquele ambiente parecia enfatizar o assassinato de Abdul Hamdi.

— Temos dez minutos para chegar à Mesquita de Al Azhar. Quero chegar pontualmente ao encontro com o Sr. Stephanos Markoulis.

Ela saiu correndo da loja, feliz por deixar aquele lugar.

Quando eles saíram no beco congestionado de pessoas, Khalifa desencostou-se da parede em que estava apoiado. O paletó foi novamente puxado para encobrir sua mão direita, escondendo sua arma Steckin. Ela estava no lugar. Raoul dissera-lhe que Erica iria se encontrar com Stephanos na parte da tarde, e ele não queria perdê-la na confusão do bazar. O grego era conhecido por sua violência, e Khalifa estava sendo bem pago para não lhe dar oportunidade.

Erica e Richard saíram do Khan el Khalili pelo lado oeste da congestionada e ensolarada Praça Al Azhar. O calor e a poeira da praça fizeram com que eles achassem agradável o relativo frio do bazar. Atravessaram a praça em direção à 'velha mesquita, admirando os minaretes finos que se estendiam em direção ao céu azul-claro. Mas era difícil chegar até lá no meio de tanta gente; os dois tinham que ficar bem abraçados para evitar que fossem separados. A área que ficava bem em frente à mesquita fazia Erica se lembrar do Haymarket de Boston, com centenas de vendedores de verduras e frutas em suas carroças, discutindo o preço dos produtos com os fregueses. Erica sentiu-se aliviada quando ela e Richard chegaram à mesquita e entraram por sua porta principal, conhecida como Portão dos Barbeiros. O ambiente mudou imediata­mente. Os ruídos da praça movimentada não chegavam ao interior do prédio de pedra. Era frio e sombrio, como um mausoléu.

— Isso me lembra de quando nos vestimos para uma cirurgia — disse Richard sorrindo enquanto calçava as pantufas.

Cruzaram o vestíbulo de entrada, olhando para o interior de diversas salas escuras. As paredes eram feitas com grandes blocos de pedra, dando ao lugar a aparência de um calabouço, e não de uma casa de Deus.

— Acho — falou Erica — que deveria ter sido um pouco mais específica sobre o local onde nos encontraría­mos aqui na mesquita.

Passando por baixo de diversos arcos, ela e Richard ficaram surpresos de se verem banhados novamente pelo sol. Estavam no final de um grande pátio retangular cheio de colunas e cercado dos quatro lados por arcos persas pontudos. Era um lugar estranho, porque ficava no coração do Cairo; contudo, estava vazio e era quase que totalmente silencioso. Erica e Richard ficaram na parte onde havia sombra e, sem dizerem nada, examinaram o lugar com os exóticos arcos em forma de quilha e os parapeitos cobertos de videiras encimados por arabescos.

Erica não estava gostando daquele lugar. Estava nervosa pelo encontro com Stephanos Markoulis, e agora aquele lugar estranho aumentava seu medo. Richard pegou-a pela mão e levou-a pelo pátio retangular em direção a um arco levemente mais alto que os outros com sua própria abóbada. Quando cruzavam o pátio, Erica tentou olhar para as sombras violeta dos pórticos que cercavam o pátio. Havia figuras em túnica branca no chão de pedra.

Evangelos Papparis mexeu-se lentamente atrás da coluna de mármore, não perdendo Erica e Richard de vista. Seu sexto sentido o advertiu de que haveria problemas. Ele estava no lado norte do pátio, protegido pela sombra da arcada. Erica e Richard agora se afastavam dele na diagonal. Evangelos não estava certo de que Erica fosse a mulher por quem ele estava esperando, principalmente porque ela estava acompanhada, mas a descrição se encaixava bem nela. Então, quando o casal chegou ao arco da entrada do altar, ele voltou para o centro da arcada e acenou com a mão, lentamente, fazendo um gesto circular, depois levantou dois dedos. Stephanos Markoulis, que estava no vestíbulo do altar a cerca de sessenta metros de distância, acenou em resposta. Stephanos entendeu que Erica tinha vindo com outra pessoa. Sabendo disso, circulou em torno da coluna que estava em frente a ele, depois encostou-se nela, esperando. À sua esquerda estava um grupo de estudantes islâmicos em volta do professor, que estava lendo o Alcorão em tom monótono.

Evangelos já ia se dirigir para a porta principal quando viu Khalifa. Voltou a se abrigar nas sombras, tentando não deixar que o outro percebesse sua presença. Quando olhou novamente, não viu mais ninguém, e Richard e Erica tinham entrado no local das orações. Depois Evangelos lembrou-se. O homem com o paletó colocado sobre o braço de modo suspeito era Khalifa Khalil, o assassino.

Evangelos voltou ao centro da arcada, mas não conseguiu ver Stephanos. Estava confuso. Voltando-se, decidiu ir ver se Khalifa ainda estava lá.

Erica lera sobre a mesquita de Al Azhar no Baedecker, e sabia que estava vendo o altar original, ou mihrab. Ele era construído intrincadamente com minúsculos pedaços de mármore e alabastro formando complicadas figuras geométricas.

—  Este altar está voltado para Meca — sussurrou Erica.

—  Este lugar é pavoroso — observou Richard, calmamente. Na semi-escuridão do local, só conseguira ver, à direita

ou à esquerda, colunas de mármore. Seus olhos foram bater no chão, perto do altar, e perceberam que ali havia uma série de tapetes orientais superpostos.

—  Que cheiro é este? — perguntou.

—  Incenso — esclareceu Erica. — Ouça!

Havia um ruído constante de vozes murmurando, e de onde eles estavam podiam ver diversos grupos de estudantes sentados ao pé do professor.

— A mesquita já não é mais universidade — sussurrou Erica —, mas ainda é utilizada para aulas sobre o Alcorão.— Gosto do jeito como ele estuda — disse Richard, apontando para uma pessoa curvada sobre um tapete oriental.

Erica voltou-se e olhou para trás, através da série de arcos, em direção ao lugar de onde vinha a claridade. Ela queria ir embora. A mesquita tinha uma atmosfera sinistra, sepulcral, e ela achou que não era o local adequado para se encontrar com alguém.

—  Vamos, Richard.

Ela segurou a mão dele, mas Richard, interessado em conhecer mais o hall cheio de pilares, puxou-a.

— Vamos ver o túmulo do Sultão Rahman sobre o qual você leu — sugeriu ele, detendo Erica, que se dirigia para a parte aberta da mesquita.

Erica olhou para Richard.

—  Eu realmente preferia...

Não concluiu a frase. Por sobre o ombro de Richard viu um homem caminhando na direção dela, saindo de trás das colunas. Ela sabia que era Stephanos Markoulis.

Percebendo sua expressão e olhando para a direção que Erica estava olhando, Richard voltou-se para trás. Ele sentia a tensão nas mãos dela. Sabendo que ela queria se encontrar com aquele homem, ficou pensando por que estaria tão agitada.

—  Erica Baron — disse Stephanos, com um largo sorriso. — Eu a reconheceria entre cem mil pessoas. Mas você é muito mais bonita do que Yvon disse. — Stephanos não procurava esconder sua admiração.

—  Sr. Markoulis? — perguntou Erica, embora já não tivesse dúvidas.

Seu modo lisonjeiro e o aspecto pegajoso coincidiam com o que ela esperava. O que ela não esperava era o grande crucifixo de ouro pendurado no pescoço dele. Dentro da mesquita o seu brilho parecia uma provocação.

— Stephanos Christos Markoulis — disse o grego, orgulhoso.

— Este é Richard Harvey — apresentou Erica, puxando Richard para a frente.

Stephanos olhou para Richard, mas não lhe deu atenção.

— Eu gostaria de falar com você apenas, Erica. — E estendeu a mão.

Não dando importância ao gesto de Stephanos, Erica segurou a mão de Richard com mais firmeza.—  Prefiro que Richard fique.

—  Como quiser.

—  Este lugar é muito melodramático.

Stephanos riu e sua gargalhada reverberou entre as colunas.

— É verdade, mas lembre-se de que foi idéia sua não querer se encontrar no Hilton.

— Acho melhor vocês irem direto ao assunto — disse Richard. Ele não fazia idéia do que ia acontecer, mas não queria ver Erica perturbada.

O riso de Stephanos murchou. Ele não estava acostumado a ser contrariado.

—  Sobre o que o senhor quer falar comigo?

— Sobre Abdul Hamdi — disse Stephanos sem fazer rodeios. — Lembra-se dele?

Erica tencionava falar o menos possível.

—  Sim — respondeu ela.

— Bem, diga-me o que você sabe sobre ele. Ele lhe disse alguma coisa em especial? Ele lhe entregou cartas, ou documentos?

— Por quê? — retrucou Erica em tom desafiador. — Por que eu lhe diria o que sei?

— Talvez possamos nos ajudar mutuamente — propôs Stephanos. — Você se interessa por antigüidades?

—  Sim — admitiu Erica.

—  Bem, então posso ajudá-la. Em que está interessada? — Numa estátua de Seti I em tamanho natural — respondeu Erica, inclinando-se para a frente para sentir os efeitos de suas palavras em Stephanos.

Se ele ficou surpreso, não demonstrou.

— Você está falando em coisa muito séria — disse ele, finalmente. — Tem alguma idéia do dinheiro envolvido nisso?

— Sim — falou Erica. Na verdade ela não fazia idéia. Não saberia nem dar um palpite.

— Hamdi falou a você sobre a estátua? — perguntou Stephanos. Sua voz assumiu um tom mais sério ainda.

— Falou — respondeu Erica. O fato de ela saber tão pouco fazia-a se sentir muito vulnerável.

—  Hamdi falou com quem conseguiu a estátua, ou para onde ela iria?

O rosto de Stephanos estava extremamente sério, e Erica tremia um pouco, apesar do calor. Ela tentava imaginar o que Stephanos tencionava conseguir com ela.Devia ser o destino da estátua. Devia ter seguido para Atenas!

Sem levantar os olhos, Erica falou baixinho:

— Ele não me disse quem lhe vendeu a estátua...

Deliberadamente, ela deixou sem resposta a segunda parte da pergunta de Stephanos. Sabia que era um jogo, mas se funcionasse, Stephanos pensaria que ela estava de posse de alguns segredos. Aí, então, talvez conseguisse arrancar alguma coisa dele.

Mas a conversa foi abruptamente cortada. De repente uma grande figura surgiu das sombras, atrás de Stephanos. Erica viu uma grande cabeça calva com um ferimento à faca que a cortara desde o alto da cabeça, passando pelo nariz, até a face direita. Parecia que o ferimento fora feito com uma navalha; embora parecesse profundo, sangrava pouco. A mão do homem dirigiu-se para tocar em Stephanos e Erica prendeu a respiração, e apertou a mão de Richard, enfiando-lhe as unhas.

Com surpreendente agilidade, Stephanos reagiu ao aviso de Erica. Ele se afastou, jogando o corpo para a direita, a perna direita levantada no que teria sido um golpe de caratê. Finalmente ele se voltou e reconheceu Evangelos.

— O que aconteceu? — perguntou Stephanos alarma­do, ficando em pé novamente.

— Khalifa — disse Evangelos. — Khalifa está na mes­quita.

Stephanos empurrou o enfraquecido Evangelos contra uma parede para ele se segurar, e rapidamente olhou ao redor. De sob o braço esquerdo sacou um revólver pequeno, mas de aparência mortal, uma Beretta automática, e destravou-a.

Ao ver a arma, Erica e Richard se abraçaram mais ainda, custando a acreditar no que viam. Antes que pudessem responder, um grito horrível ecoou pelo grande vestíbulo do altar. Devido ao eco, era difícil determinar de onde ele viera. Imediatamente o murmúrio islâmico cessou. Fez-se um silêncio tenebroso, como a calma que precede o sacrifício. Ninguém se mexeu. De onde Erica e Richard estavam, podiam ver diversos grupos de estudantes com seus professores. Eles também estavam confusos e com medo. O que estava acontecendo?

De repente, ouviram-se tiros e o som enfraquecido das balas ricocheteando no recinto de mármore. Erica e Richard,da mesma forma que Stephanos e Evangelos, abaixaram-se, sem ao menos saber de que lado estava o perigo.

— É Khalifa! — avisou Evangelos.

Outros gritos chegaram ao altar, seguidos de um tipo de vibração. Imediatamente Erica percebeu que era o ruído de alguém correndo. Os grupos de estudantes haviam se levantado e iam na direção norte. Subitamente voltaram-se e correram. Por trás das colunas uma multidão em pânico olhava para ela. Ouviram-se mais tiros. A multidão desgarrou-se, amedrontada.

Sem pensar nos dois gregos, Erica e Richard levanta­ram-se e fugiram para o lado sul, de mãos dadas, por entre as colunas, tentando se manter à frente da multidão em pânico, que os pressionava. Corriam às cegas, até que chegaram ao final do corredor. Alguns estudantes passaram por eles, com os olhos arregalados de terror, como se o templo estivesse em chamas. Erica e Richard os seguiram quando se enfiaram numa porta estreita e correram por um corredor de pedra. Ia dar num mausoléu; do outro lado havia uma saída com a pesada porta de madeira entreaber­ta. Saíram pela rua empoeirada, onde já estava uma multidão agitada. Erica e Richard não se juntaram à massa, mas pararam de correr e, em passos rápidos, se afastaram da área.

— Que lugar maluco! — disse Richard, com a voz mais de raiva do que de alívio. — Afinal, o que estava acontecendo lá?

Ele não esperava nenhum tipo de resposta. Durante três dias seguidos Erica fora obrigada a presenciar inesperadas cenas de violência, e a cada vez os ataques pareciam ter mais relação com ela. Coincidência já não era mais uma explicação viável.

Richard segurou a mão dela, puxando-a atrás de si pelas ruas abarrotadas de gente. Ele queria ficar o mais longe possível da Mesquita de Al Azhar.

— Richard... — pediu Erica finalmente —, vamos andar mais devagar.

Pararam em frente a uma alfaiataria. Da boca de Richard só saíam palavras que demonstravam sua raiva.

— Esse tal de Stephanos. Você tinha idéia de que ele estaria armado?

— Nem podia pensar nisso. — Ela não gostou do tom de voz de Richard.— Certamente era algo em que você deveria pensar. Mas, afinal, quem é esse Stephanos Markoulis?

— É um vendedor de antigüidades de Atenas. Aparen­temente está envolvido no mercado negro.

— E como foi marcado esse encontro? Se é que se pode chamar isso de encontro!

— Um amigo perguntou se eu poderia me encontrar com Stephanos.

— E quem é esse maravilhoso amigo que manda você para as mãos de um gângster?

—  O nome dele é Yvon de Margeau. Ele é francês.

—  E que tipo de amigo é ele?

Erica olhou para o rosto de Richard, transtornado pela raiva. Ainda trêmula pela experiência por que haviam passado, Erica não sabia como lidar com as emoções dele.

— Sinto muito pelo que aconteceu — respondeu ela, não estando muito certa do pedido de desculpas.

— Bem — recordou Richard, mal-humorado —, eu poderia repetir o que você disse ontem à noite quando tentei me desculpar por assustar você. Dizer que sente muito significa dizer que "está tudo bem", mas não está. Você poderia ter nos matado. Acho que sua fuga já foi longe demais. Vamos à embaixada americana e você vai voltar para Boston mesmo que suba no avião puxada pelos cabelos.

—  Richard... — protestou Erica, sacudindo a cabeça.

Um táxi vazio estava passando lentamente pelas ruas congestionadas. Richard viu o carro e conseguiu que ele parasse quando as pessoas deram espaço para tal. Os dois entraram no banco de trás sem falar, e Richard disse ao motorista para ir para o Hotel Hilton. Erica sentia um misto de raiva e desespero. Se Richard tivesse pedido ao motorista para ir para a embaixada americana, ela teria saltado do carro.

Depois de dez minutos de silêncio, Richard finalmente falou. Sua voz estava mais calma.

—  O fato é que você não está preparada para esse tipo de coisa. Você tem que reconhecer isso.

— Com minha experiência em egiptologia — rebateu Erica — acho que estou mais do que preparada.

Contido pelo engarrafamento, o táxi passou por um dos grandes portões medievais do Cairo, e Erica o exami­nou primeiro de lado e depois pela janela de trás do carro.— Egiptologia é o estudo de uma civilização morta — falou Richard, levantando a mão como que para bater no joelho. — Não é relevante para os problemas atuais.

Erica olhou para Richard.

"Civilização morta... Não é relevante..." As palavras confirmaram o conceito de Richard sobre o trabalho dela. Isso era humilhante e revoltante.

— Você foi treinada como uma acadêmica — conti­nuou Richard — e acho que deveria aceitar isso. Essa aventura de tipo capa e espada é infantil e perigosa. É um risco ridículo por uma estátua, por qualquer estátua que seja.

— Mas não é uma estátua qualquer — contestou Erica, furiosa. — Além disso, o caso é muito mais complicado do que você imagina.

— Eu acho que é muito óbvio. Uma estátua valiosíssi­ma está perdida. O valor dela explica muito bem esse tipo de comportamento. Mas esse é um problema das autorida­des, e não dos turistas.

Erica rangeu os dentes, furiosa com a menção de "turista". Quando o táxi voltou a andar mais depressa, começou a imaginar por que Yvon deixara que ela se encontrasse com Stephanos. Nada parecia ter sentido, e ela tentava imaginar o que fazer. Não tinha intenção de desistir, apesar do que Richard dissera. Abdul Hamdi parecia ser o pivô. Depois ela se lembrou do filho dele e de sua decisão de visitar sua loja de antigüidades em Luxor.

Richard inclinou-se e bateu no ombro do motorista.

— Você fala inglês?

O motorista assentiu.

—  Um pouco.

—  Sabe onde fica a embaixada americana?

— Sim — e olhou para Richard pelo espelho re­trovisor.

—  Nós não vamos à embaixada americana — reagiu Erica, pronunciando cada palavra claramente e bem alto para que o motorista pudesse escutar.

— Receio que eu vá insistir — disse Richard, voltando-se para falar com o motorista.

— Você pode insistir o quanto quiser — afirmou Erica, sem alterar o tom de voz —, mas eu não vou lá. Motorista, pare o carro. — Ela sentou-se na ponta do banco e colocou a alça da sacola no ombro.— Continue andando — ordenou Richard, tentando fazer Erica se encostar.

—  Pare o táxi! — gritou Erica.

O motorista obedeceu, encostando o carro na lateral. Erica abriu a porta antes que o carro parasse, e saltou.

Richard a seguiu, saltando sem pagar o táxi. O motorista, furioso, seguiu Richard com o carro enquanto ele corria e a segurava pelo braço.

— Já está na hora de parar com esse comportamento de adolescente — gritou, como se estivesse ameaçando uma criança levada. — Vamos à embaixada americana. Você perdeu a cabeça. Você vai se machucar com essa brincadeira.

— Richard — reagiu Erica, colocando o dedo indica­dor no queixo dele —, você pode ir à embaixada americana, se quiser. Eu vou a Luxor. Acredite-me, a embaixada não pode fazer nada a respeito disso, mesmo que queira. Eu vou para o Alto Egito e fazer o que realmente vim fazer aqui.

—  Erica, já que você insiste, eu vou embora. Vou voltar para Boston. Quer dizer, eu vim até aqui e isso não significa nada para você. Não posso acreditar.

Erica não disse nada. Ela queria apenas que ele fosse mesmo embora.

— E se eu partir, não sei o que acontecerá ao nosso relacionamento.

— Richard — repetiu Erica, tranqüilamente —, eu vou para o Alto Egito.

 

Com o sol da tarde ainda no céu, o Nilo parecia um filete de prata. Pontos luminosos refletindo a luz do sol apareciam de vez em quando, como resultado do vento agitando a superfície da água. Erica tinha que proteger os olhos da forte luminosidade para distinguir as pirâmides. A esfinge parecia feita de ouro. Erica estava na varanda do seu quarto no Hilton. Estava quase na hora de partir. A gerência gostara muito de sua decisão de desocupar o quarto, porque, como sempre, havia muita gente querendo se hospedar. Erica já tinha feito a mala e estava pronta. O pessoal da recepção conseguira uma reserva para ela no trem noturno das sete e meia.

Pensar na viagem fez com que o medo que sentira nos últimos dias parecesse tolo e tranqüilizou-a sobre a briga que tivera com Richard. O Templo de Carnac, o vale dos Reis, Abu Simbel, Dendera — essas eram as razões pelas quais viera ao Egito. Ela iria para o sul, veria o filho de Abdul, mas se concentraria em ver os fabulosos monumen­tos em primeiro lugar. Estava contente por Richard ter-se decidido a partir. Não pensaria no relacionamento entre eles até voltar para casa. Aí então decidiriam.

Verificando o banheiro pela última vez, Erica achou o vidrinho de creme rinse atrás da cortina do boxe. Ela o guardou na mala e olhou as horas. Faltavam quinze para as seis. Já ia sair para a estação ferroviária quando o telefone tocou. Era Yvon.

— Encontrou-se com Stephanos? — perguntou ele em tom alegre.

—  Sim — respondeu Erica.

Ela fez uma pausa meio sem jeito. Não lhe telefonara por estar zangada com o fato de ele a ter submetido a tal perigo.

—  Bem, o que ele falou? — perguntou Yvon.

— Muito pouco. Mas o que disse é que foi importante. Tínhamos acabado de nos encontrar na mesquita de Al Azhar quando surgiu um sujeito careca que parecia ter apanhado. Ele disse a Stephanos que alguém com o nome de Khalifa estava lá. Depois foi um verdadeiro inferno. Yvon, como você pôde me pedir para encontrar com um homem assim?

— Meu Deus — disse Yvon. — Erica, quero que você fique em seu quarto até eu lhe telefonar novamente.

— Sinto muito, Yvon, mas já estava de saída. Para falar a verdade, estou indo embora do Cairo.

— Indo embora! Pensei que você estivesse oficialmen­te detida aqui no Cairo — disse Yvon, surpreso.

— Não posso sair do país — esclareceu Erica. — Liguei para o gabinete de Ahmed Khazzan e informei que estava indo paraLuxor. Disseram que estava tudo bem.

— Erica, espere até eu voltar a telefonar. O seu... namorado está pensando em ir com você?

— Ele está de partida para os Estados Unidos. Não gostou de eu ter encontrado Stephanos. Obrigada por telefonar, Yvon. Mantenha contato.

Erica desligou de forma decidida. Ela sabia que Yvon a usara, de certa forma, como uma isca. Embora acreditasse na cruzada de Yvon contra o mercado negro de antigüidades, não gostava de ser usada. O telefone tocou novamente, mas ela não o atendeu.

O táxi levou uma hora para ir do Hilton à estação ferroviária. Apesar de Erica ter tomado banho há quinze minutos, sua blusa estava molhada de suor e grudada na capa de vinil do banco.

A estação ferroviária ficava numa praça movimentada atrás de uma antiga estátua de Ramsés II, cuja aparência anacrônica fazia um grande contraste com a loucura da hora do rush. A estação estava superlotada, com executivos usando roupas ocidentais e fazendeiros levando caixas de frutas vazias. Embora Erica tivesse percebido alguns olhares, ninguém tentou se aproximar dela, e ela conseguiu passar facilmente entre a multidão. Havia uma pequena fila diante da bilheteria do carro-leito e Erica não demorou muito a comprar a passagem. Ela pensava em saltar numa pequena aldeia chamada Balianeh e passear um pouco por lá.

Num quiosque ela comprou o Herald Tribune de dois dias atrás, uma revista italiana de moda, e diversos livros populares sobre a descoberta do túmulo de Tutancâmon. Comprou também um exemplar do livro de Carter, embora já o tivesse lido diversas vezes.

O tempo passou bem depressa e ela escutou anuncia­rem a partida do trem que iria pegar. Um carregador núbio sorridente pegou sua mala e a colocou debaixo do seu leito. O carregador lhe disse que não esperavam que o vagão fosse totalmente ocupado, de forma que ela poderia usar a poltrona do lado. Ela colocou a sacola no chão e recostou-se, lendo o Herald Tribune.

— Alô — disse uma voz agradável, assustando-a um pouco.

— Yvon! — exclamou ela, realmente surpresa.

— Alô, Erica. Estou surpreso de ter conseguido encontrá-la. Posso me sentar?

Erica tirou os livros da outra poltrona.

— Tive o palpite de que você iria para o sul de trem. Todos os vôos estavam lotados.

Erica deu um meio sorriso. Embora ainda estivesse aborrecida, não podia deixar de se sentir um pouco lisonjeada de que Yvon a tivesse seguido, logicamente com certa dificuldade. O cabelo dele estava despenteado, como se tivesse corrido.— Erica, quero me desculpar pelo que aconteceu quando você se encontrou com Stephanos.

— Não aconteceu nada, propriamente. O que me aborreceu foi o que poderia ter acontecido. Você devia ter noção do perigo, pois recomendou que me encontrasse com ele num lugar público.

— Realmente eu tinha, mas estava apenas preocupado com a reputação de Stephanos com as mulheres. Eu não queria que você fosse incomodada.

O trem sacudiu um pouco, e Yvon levantou-se, olhando para os dois lados do corredor. Satisfeito porque o trem não tinha saído ainda, sentou-se novamente.

— Eu ainda lhe devo um jantar — recordou Yvon. — Foi o nosso trato. Por favor, fique no Cairo. Fiquei sabendo algumas coisas sobre os assassinos de Abdul Hamdi.

—  O quê? — perguntou Erica.

— Eles não são do Cairo. Tenho algumas fotos que gostaria que você visse. Talvez pudesse reconhecê-los.

—  Elas estão aqui com você?

—  Não, estão no hotel. Não deu tempo.

—  Yvon, estou de viagem para Luxor. Já me decidi. — Erica, você pode ir para Luxor quando quiser.

Tenho um avião. Posso levá-la para lá amanhã.

Erica olhou para suas próprias mãos. A despeito de sua raiva, a despeito do seu receio, sentiu que sua decisão de partir enfraquecia-se. Ao mesmo tempo, estava cansada de ser protegida, de ser paparicada.

— Obrigada pelo convite, Yvon, mas acho que vou mesmo de trem. Telefono para você de Luxor.

Ouviu-se um apito. Eram sete e meia.

— Erica... — insistiu Yvon, mas o trem começou a andar. — Está bem. Telefone de Luxor. Talvez eu vá até lá.

Ele saltou do trem, que começava a ganhar velocidade.

— Droga! — exclamou Yvon quando viu o trem se afastar da estação. Entrou na movimentada sala de espera. Perto da saída encontrou-se com Khalifa.

—  Por que você não está no trem? — perguntou Yvon. Khalifa deu um risinho.

— O combinado foi eu seguir a garota no Cairo. Não me disseram nada sobre pegar um trem para o sul.

— Meu Deus! — exasperou-se Yvon, caminhando para a porta lateral. — Venha comigo.Raoul estava esperando dentro do carro. Ligou o motor quando viu Yvon. Yvon abriu a porta de trás para Khalifa e entrou no veículo atrás dele.

— O que aconteceu na mesquita? — perguntou a Khalifa assim que o carro começou a andar.

— Problemas — respondeu Khalifa. — A garota se encontrou com Stephanos, mas Stephanos estava com um guarda-costas. Com a intenção de protegê-la, tive de interromper o encontro. Não tive outra escolha. O local foi mal escolhido, tão mal quanto o Serapeu, ontem. Mas em deferência à sua sensibilidade, ninguém morreu. Eu dei uns gritos, disparei a arma algumas vezes e evacuei toda a mesquita.

Khalifa dava boas gargalhadas.

— Obrigado por pensar em minha sensibilidade. Mas diga-me, Stephanos ameaçou ou fez algum gesto contra Erica Baron?

— Não sei — disse Khalifa.

— Mas era isso que você tinha que descobrir — falou Yvon.

— Eu tinha que proteger a garota, e depois, sim, descobrir o que fosse possível — explicou Khalifa. — Sob aquelas circunstâncias, proteger a garota me ocupou por inteiro.

Yvon virou a cabeça e viu um ciclista passar, sacudindo uma grande bandeja de pão equilibrada sobre a cabeça, e conseguindo andar mais depressa do que o carro. Yvon sentiu-se frustrado. As coisas estavam indo mal e agora Erica Baron, sua última esperança de reaver a estátua, partira do Cairo. Olhou para Khalifa.

— Espero que você esteja pronto para viajar, porque você vai para Luxor de avião hoje à noite.

— Como você achar melhor — concordou Khalifa. — Esse servicinho está começando a ficar interessante.

 

Dia 4 - Balianeh, 6:05

— Balianeh dentro de uma hora — informou o carregador, do outro lado da cortina do leito.

— Obrigada — disse Erica, sentando-se e abrindo a cortina que cobria a pequena janela. Do lado de fora, o dia começava a raiar. O céu estava púrpura-claro e ela podia ver pequenas montanhas do deserto, ao longe. O trem corria bastante, balançando. A estrada de ferro seguia ao longo do deserto líbio.

Erica lavou-se na pequena pia e passou um pouco de maquilagem. Durante a noite ela tentara ler um dos livros sobre Tutancâmon que havia comprado na estação, mas o balanço do trem a embalou e ela dormiu em pouco tempo. Só durante a madrugada foi que acordou para apagar a luz.

Serviram o desjejum à inglesa no carro-restaurante enquanto os primeiros raios de sol começaram a iluminar o horizonte. Enquanto ela olhava, o céu ia mudando de púrpura para azul-claro. Era incrivelmente belo.

Bebendo o café, Erica sentiu como se tivessem tirado um peso de seus ombros e em seu lugar houvesse uma eufórica sensação de liberdade. Sentia como se o trem a estivesse levando ao passado, ao antigo Egito e à terra dos faraós.

Passava um pouco das seis quando saltou em Balianeh. Poucos passageiros desceram ali, e o trem partiu assim que o último passageiro saltou. Com certa dificuldade verificou sua mala na sala de bagagens e depois saiu da estação e dirigiu-se para a agitação da pequena cidade rural. Havia uma alegria no ar. As pessoas pareciam muito mais felizes do que as opressivas multidões do Cairo. Mas era mais quente. Mesmo agora de manhã cedo Erica podia sentir a diferença.Alguns velhos táxis estavam esperando na porta da estação, à sombra. A maioria dos motoristas estava dormindo de boca aberta. Mas quando um deles viu Erica, todos se levantaram e começaram a conversar. Finalmente um sujeito magro adiantou-se. Ele tinha o bigode revolto e a barba maltratada, mas parecia feliz com sua sorte e fez uma saudação diante de Erica antes de abrir a porta do seu carro 1940.

Conhecia umas poucas palavras em inglês, inclusive "cigarro". Erica deu-lhe alguns cigarros e ele logo aceitou ser seu motorista, prometendo levá-la de volta à estação para apanhar o trem das cinco, que fazia conexão para Luxor. O preço era cinco libras egípcias.

Tomaram o rumo norte, depois afastaram-se do Nilo no sentido oeste. Com seu rádio portátil pendurado no painel, de modo que a antena pudesse sair pela janela do lado direito, o motorista ria de contentamento. Dos dois lados da estrada estendiam-se os canaviais, interrompidos apenas por um oásis ocasional de palmeiras.

Atravessaram um canal de irrigação na aldeia de El Araba el Mudfuna. Era uma triste sucessão de casinhas de — tijolos construídas logo além dos campos cultivados. Havia poucas pessoas à vista, exceto um grupo de mulheres vestidas de preto e carregando grandes bacias na cabeça. Erica olhou para elas novamente. Elas usavam véus.

Alguns metros adiante da aldeia o motorista parou e • apontou para a frente.

— Seti — informou ele sem tirar o cigarro da boca.

Erica saiu do carro. Então aqui estava ela. Abidos. O lugar que Seti I escolhera para construir seu magnífico templo. Assim que Erica começou a tirar seu guia de viagem da bolsa, foi cercada por um grupo de jovens vendendo camafeus. Ela era a primeira turista do dia, e apenas pagando as cinqüenta piastras para entrar no templo poderia se livrar deles.

Com o Baedecker na mão, sentou-se num pedaço de rocha e leu o capítulo sobre Abidos. O local lhe era familiar, mas ela queria ter certeza de que seções tinham sido decoradas com hieróglifos durante o reino de Seti I. O templo fora terminado pelo filho e sucessor de Seti, Ramsés II.Sem saber dos planos de Erica de visitar Abidos, Khalifa ficou em Luxor esperando os passageiros desembar­carem. O trem chegara na hora e era esperado por uma grande multidão. Havia muita agitação e gritos, particular­mente por parte dos mascates vendendo frutas e bebidas geladas, pelas aberturas dos vagões sem janelas da terceira classe, para os passageiros que iam continuar para Assuã. As pessoas que estavam descendo e as que estavam subindo esbarravam-se porque os apitos do trem começaram a soar. Os trens egípcios andam no horário.

Khalifa acendeu um cigarro, e depois outro, deixando a fumaça subir pelo nariz. Ele estava longe daquela confusão, num lugar de onde podia ver toda a plataforma e a saída principal. Alguns poucos passageiros retardatários correram para tomar o trem quando ele começou a se mover. Nem sinal de Erica. Quando terminou o cigarro, Khalifa deixou a estação pela saída principal. Dirigiu-se à agência central dos correios para fazer uma ligação para o Cairo. Alguma coisa estava errada.

 

Abidos, 11:30

Erica passava de uma sala maravilhosa para outra enquanto ia explorando o templo de Seti I. Finalmente conseguira sentir todo o eletrizante mistério do Egito. Era tudo maravilhoso. Ela planejava voltar a Abidos em anos sucessivos para fazer alguns trabalhos sérios de tradução naquela rica fonte de hieróglifos que cobriam as paredes do templo. No momento estava apenas olhando os textos para ver se o nome de Tutancâmon aparecia alguma vez nas inscrições de Seti. Não aparecia, a não ser na sala chamada Galeria dos Reis, onde quase todos os antigos faraós egípcios estavam relacionados em ordem cronoló­gica.

Quando caminhou para os recintos que ficavam no interior do prédio, onde as lajes do teto ainda estavam no lugar, usou a lanterna para ver os hieróglifos.

Silenciosamente Erica repetia uma tradução abreviada da frase na estátua de Seti I: "Descanso eterno para Seti I, que reinou depois de Tutancâmon". Admitiu que não tinha sentido ficar parada no templo de Seti I por causa da frase, da mesma forma como não teria sentido ficar imóvel em sua varanda do Hilton. Remexendo na bolsa, apanhou a foto da inscrição que havia na estátua. Procurou no templo alguma combinação similar de signos. Era um processo lento e no fim das contas não levava a resultado algum. A princípio encontrou o nome de Seti I escrito da mesma forma como estava na estátua, referindo-se ao deus Osíris. No templo seu nome era sempre associado ao do deus Hórus.

A manhã mesclou-se alegremente à tarde, mas Erica não sentia calor nem tinha apetite. Já eram mais de três horas quando passou da capela de Osíris para o santuário mais reservado do deus. Outrora existira ali um vestíbulo maravilhoso, cujo teto era sustentado por dez colunas. Agora o sol inundava o lugar de luz, iluminando os magníficos relevos referentes ao culto de Osíris, o deus dos mortos.

Não havia outros turistas no hall em ruínas, e Erica andava lentamente, apreciando com toda a calma o trabalho artesanal das esculturas dos murais. No final do hall, que estava vazio, havia uma passagem. Do outro lado estava escuro. Consultando o Baedecker, viu que aquela sala era descrita simplesmente como uma sala com quatro colunas.

Rindo-se do próprio medo, Erica pegou a lanterna e iluminou a parte de baixo da porta. Lentamente deixou a luz tocar nas paredes, colunas e no teto da sala sepulcralmente silenciosa. Com muito cuidado ela foi em frente, equilibrando-se no chão irregular e contornando as pesadas colunas. Na parede dos fundos ficavam as entradas das capelas de Ísis, Seti I e Hórus. Erica entrou logo na capela de Seti I; sua localização, dentro do santuário de Osíris, era encorajadora.

A luz do dia não penetrava na pequena capela. A lanterna de Erica iluminava apenas um pequeno pedaço do lugar. O resto da sala estava imerso na escuridão. Ela começou a apontar a lanterna para diversos pontos, mas quase imediatamente viu entre os hieróglifos o símbolo de Seti I exatamente da forma como aparecia na estátua. Seti era identificado com Osíris.

Erica examinou os hieróglifos, achando que o texto corria verticalmente da esquerda para a direita. Sem traduzir palavra por palavra, ela logo entendeu que a pequena capela tinha sido concluída após a morte de Seti I e que fora usada no ritual a Osíris. Depois, chegou a uma parte estranha. Parecia ser um nome próprio. Inacreditável. Nomes próprios não apareciam em monumentos faraôni­cos. Erica soletrou o nome. Ne-neph-ta.

Dirigiu a luz da lanterna para o chão. Queria tirar uma foto do curioso nome. Ia curvar-se, mas de repente ficou petrificada de medo. A luz da lanterna deixou-a ver uma cobra, com a cabeça em pé e o corpo enrolado, a língua se agitando no ar como um pequeno chicote, os olhos amarelados com as pupilas negras voltadas para ela, fixamente. Erica ficou paralisada. Só quando a serpente abaixou a cabeça e saiu de onde estava foi que Erica conseguiu olhar para trás, na direção da porta da capela.Depois de olhar novamente a serpente, correu para o lado de fora do templo e voltou à bilheteria com as pernas bambas.

O guarda agradeceu a Erica pela informação e disse-lhe que há anos estavam tentando matar aquela cobra. O santuário de Osíris estivera fechado temporariamente.

A despeito do incidente com a cobra, foi com relutância que saiu de lá e voltou a Balianeh. Aquele fora um dia magnífico. Seu único desapontamento era que teria que esperar para tirar uma foto do nome de Nenephta. Erica tencionava procurar referências sobre esse nome e imaginava se seria o nome de um dos vizires de Seti I.

O trem para Luxor partiria dentro de cinco minutos. Erica ajeitou-se em sua poltrona com os livros sobre Tutancâmon, mas sua atenção estava voltada para a paisagem lá fora. O vale do Nilo começava a se tornar mais estreito, de forma que em algumas partes viam-se os dois lados das áreas de campos cultivados. A medida que o sol se aproximava do horizonte, no oeste, Erica percebeu as pessoas começando a voltar para casa. Crianças montadas em búfalos. Homens puxando burros arriados debaixo das suas cangas. Erica podia ver os quintais das casas e imaginava se as pessoas que moravam naquelas casinhas sentiam segurança e amor como nos mitos pastorais, ou estariam permanentemente conscientes de sua vida precá­ria. De certa forma, a vida dessas pessoas era anacrônica, um pedaço de tempo perdido.

Em Nag Hammadi, o trem atravessou o Nilo, da margem ocidental para a margem leste, e passou por uma grande plantação de cana-de-açúcar que impedia que se vissem os campos mais além. Erica voltou para seus livros, pegando A descoberta do túmulo de Tutancâmon, de Howard Carter e A. C. Mace. Começou a ler, e apesar de sua familiaridade com o livro, ficou fascinada. Era uma surpresa que o meticuloso e seco Carter escrevesse com tanto talento. O entusiasmo da descoberta era transmitido em todas as páginas, e Erica lia cada vez com maior interesse, como se fosse um livro de aventuras.

À medida que ia lendo, Erica via as maravilhosas coleções de fotos tiradas por Harry Burton. Achou as fotos das duas estátuas betumizadas de Tutancâmon em tamanho natural, que guardam a entrada lacrada da câmara funerária, particularmente interessantes. Comparando-as com a está­tua de Seti, entendeu pela primeira vez que ela era umadas poucas pessoas que sabiam que eram duas as estátuas de Seti. Isso era muito significativo, porque a probabilida­de de se encontrarem as duas estátuas era muito peque­na, enquanto as chances de se encontrarem outros objetos que estavam sendo desenterrados agora eram muito grandes. Subitamente Erica reconheceu que o local onde as estátuas de Seti foram achadas podia ser tão importante, arqueologicamente, quanto as próprias estátuas. Talvez determinar o local fosse mais acertado do que encontrar as estátuas. Erica olhava pela janela para as plantações de cana-de-açúcar, pensando.

Provavelmente o melhor meio de saber onde as estátuas haviam sido descobertas era ela fazer-se passar por uma compradora de antigüidades do Museu de Belas-Artes. Se ela pudesse convencer as pessoas de que poderia pagar um bom dinheiro, talvez lhe mostrassem algumas peças de valor. Se aparecessem mais objetos de Seti, talvez pudesse descobrir a fonte. Mas isso era só um plano, que ela poderia pôr em prática se o filho de Abdul Hamdi não lhe desse mais informações.

O fiscal do trem veio pelo vagão avisando que estavam chegando a Luxor. Erica sentiu a emoção invadi-la. Ela sabia que Luxor é para o Egito o que Florença é para a Itália: a sétima maravilha. Fora da estação houve outra surpresa. Os únicos táxis eram carruagens puxadas a cavalo. Sorrindo de prazer, Erica já estava apaixonada por Luxor.

Quando chegou ao Winter Palace Hotel entendeu por que tinha sido tão fácil fazer reserva apesar do número de turistas. O hotel estava sendo reformado, e para chegar ao quarto ela teve que passar pelo hall sem tapete, no segundo andar, que estava cheio de material de construção. Somente uns poucos quartos podiam ser usados. Mas a reforma não alterou seu estado de espírito. Ela adorou o hotel. Ele tinha um elegante charme vitoriano. Do outro lado do jardim ficava o Novo Winter Palace Hotel. Em contraste com o prédio em que ela estava, a outra.ala era um prédio moderno e alto com poucos detalhes. Estava satisfeita de estar onde estava. Em lugar de ar-condicionado, o quarto de Erica tinha um ventilador de pás que giravam lentamente. As portas da varanda eram divididas ao meio, de sorte que serviam também como janelas. A varanda era cercada com grade de ferro fundido e dali se descortinava o Nilo.Não havia chuveiro; o banheiro, inteiramente azuleja­do, era ocupado em sua maior parte por uma grande banheira, que Erica imediatamente encheu até a borda. Ela já estava pronta para entrar no banho quando o antigo telefone soou no quarto. Por um instante ela pensou em não atender. Mas aí a curiosidade venceu a preguiça, e apanhando a toalha foi até o quarto e atendeu o chamado.

— Bem-vinda a Luxor, Srta. Baron. — Era Ahmed Khazzan.

Por um instante a voz dele devolveu-lhe todos os seus medos. Embora estivesse decidida a procurar a estátua de Seti, achava que tinha deixado a violência e os perigos no Cairo. Agora parecia que as autoridades a estavam seguindo. Apesar disso, o tom de voz dele era cordial.

— Espero que aproveite bem sua visita à cidade — acrescentou ele.

— Acho que aproveitarei, sim — respondeu Erica. — Eu avisei no seu gabinete.

— Sim, recebi o recado. É por isso que estou telefonando. Pedi ao hotel que me avisasse quando você chegasse, para que eu pudesse lhe dar as boas-vindas. Entenda, Srta. Baron, tenho uma casa em Luxor e venho aqui sempre que possível.

— Compreendo — disse Erica, imaginando aonde ele queria chegar.

Ahmed pigarreou.

— Bem, Srta. Baron, eu estava pensando se gostaria de jantar comigo hoje à noite.

—  É um convite oficial ou social, Sr. Khazzan? — Puramente social. Posso mandar uma carruagem apanhá-la às sete e meia.

Erica resolveu rapidamente. Não parecia haver incon­veniente.

—  Está certo. Terei muito prazer.

— Ótimo — disse Ahmed, visivelmente satisfeito. — Diga-me, Srta. Baron, gosta de cavalgar?

Erica refletiu um pouco. Na verdade, não cavalgava há muitos anos. Mas quando era criança adorava, e a idéia de ver a velha cidade a cavalo a entusiasmou.

— Sim — respondeu finalmente, para ver o que ele diria.

— Melhor ainda — disse Ahmed. — Vista alguma coisa com que possa cavalgar, e eu lhe mostrarei um pouco de Luxor.Segurando-se bem, Erica afrouxou a rédea do garanhão preto quando chegaram perto do deserto. O animal respondeu ao gesto dela começando a correr e subiu a pequena colina arenosa, galopando pelo topo do pequeno monte por quase um quilômetro. Finalmente Erica o deteve, para aguardar Ahmed. O sol já tinha se posto, mas ainda estava claro e Erica conseguiu ver lá embaixo as ruínas do Templo de Carnac. Do outro lado do rio, as montanhas de Tebas levantavam-se abruptamente logo depois dos campos irrigados. Ela podia mesmo ver alguns dos caminhos para a entrada dos túmulos dos nobres.

Erica ficou hipnotizada pelo espetáculo, e o animal em que estava montada fazia com que ela se sentisse como se tivesse sido transportada ao passado. Ahmed parou atrás, mas não disse nada. Ele compreendia o que se passava na cabeça dela e não queria interrompê-la. Erica deu uma rápida olhada no perfil dele, aproveitando os últimos raios de luz. Ele estava vestido com uma roupa larga de algodão, com a camisa aberta até a metade do peito e as mangas dobradas até o cotovelo. Seu cabelo, negro e lustroso, estava desarrumado pelo vento, e gotas de suor marcavam sua testa.

Erica ainda estava surpresa pelo convite dele, mas não conseguia esquecer sua postura como funcionário do governo. Ele fora cordial desde sua chegada, mas não comunicativo. Imaginava se ele estaria interessado apenas em Yvon de Margeau.

— Bonito aqui, não? — comentou ele, finalmente.

— Deslumbrante — disse Erica. Ela lutava para deter o cavalo, ansioso para correr.

— Eu adoro Luxor. — Voltou-se para Erica, com o rosto sério, contudo enigmático.

Erica tinha certeza de que ele ia dizer alguma coisa mais, mas ele apenas olhou para ela durante vários minutos e depois virou-se para ver o Nilo novamente. Enquanto ficavam olhando a paisagem, calados, aumentavam as sombras dentro das ruínas, anunciando a chegada da noite.

— Desculpe — falou ele, finalmente. — Você deve estar exausta. Vamos jantar.

Voltaram à rústica casa de Ahmed, passando pelo Templo de Carnac e cavalgando ao longo do Nilo. Passaram por um ancoradouro de fellucas, onde havia alguns homens cantando baixinho enquanto enrolavam as velas das embarcações. Quando chegaram à casa de Ahmed,Erica ajudou a recolher os cavalos. Depois os dois lavaram as mãos numa tina de madeira, no quintal, antes de entrar em casa.

A governanta de Ahmed havia preparado o jantar e o serviu na sala de estar. O prato mais apreciado por Erica foi uma sopa de feijão, lentilha e berinjela. Era coberta com óleo de gergelim e temperada levemente com alho, amendoim e alcaravia. Ahmed ficou surpreso de que ela ainda não tivesse comido isso antes. O prato principal foi de ave, que Erica pensou ser galinha. Ahmed explicou que aquilo era hamama;, ou pavão. Tinha sido feito na brasa.

Dentro de casa Ahmed relaxou e a conversa tornou-se fácil. Ele fez muitas perguntas sobre sua educação em Ohio. Ela se sentiu um pouco embaraçada quando revelou sua ascendência judia, e ficou surpresa de que isso não fizesse nenhuma diferença para Ahmed. Ele explicou que no Egito o confronto entre os dois países era um assunto político no qual estava envolvido Israel, e não os judeus. As pessoas não pensavam nos dois como sinônimos.

Ahmed estava particularmente interessado no aparta­mento de Erica em Cambridge e a fez descrever todos os detalhe-s do lugar. Somente quando ela terminou de falar ele lhe disse que tinha estado em Harvard.

Durante a refeição, ela o achou reservado, mas não um homem misterioso. Estava disposto a falar de si, se ela perguntasse, e tinha um jeito maravilhoso de falar, com um leve sotaque britânico de seus tempos de Oxford, onde se doutorara. Era um homem sensível, e depois de Erica lhe perguntar se ele tinha namorado moças americanas, ele lhe falou de Pamela, mas com tamanha emoção, que ela sentiu lágrimas se formarem em seus olhos. Mas depois ficou chocada com o final da história. Partira de Boston para a Inglaterra e rompera com ela.

— Quer dizer que vocês nunca se corresponderam? — perguntou Erica, descrente.

— Nunca — respondeu Ahmed tranqüilamente.

— Mas por quê? — indagou Erica. Ela adorava os happy ends e detestava os finais tristes.

— Eu sabia que precisava voltar para cá, para o meu país — justificou Ahmed com o olhar distante. — Precisavam de mim aqui. Esperavam por mim para cuidar do Departamento de Antigüidades. Naquela época, não havia tempo para romances.—  O senhor chegou a ver Pamela novamente? — Não.

Erica bebeu um pouco do chá. A história sobre Pamela despertou nela pensamentos sobre homens e abandono. Ahmed não parecia desse tipo. Ela queria mudar de assunto.

— Alguém de sua família o visitou em Massachusetts?

— Não... — Ahmed fez uma pausa, depois acrescentou: — Na verdade, meu tio foi à América pouco antes de eu viajar.

— Ninguém o visitou e o senhor não visitou sua família durante três anos?

— Exatamente. É muita coisa, pensando-se na distância entre o Egito e Boston.

—  O senhor não sentia saudades?

—  Demais, até aparecer Pamela.

—  O seu tio conheceu Pamela?

Ahmed explodiu. Jogou a xícara contra a parede e ela se quebrou em mil pedaços. Erica ficou assustada.

O árabe mergulhou a cabeça nas mãos, e ela ouvia sua respiração pesada. Um silêncio incômodo tomou conta do ambiente, e Erica internamente dividia-se entre o medo e a empatia. Pensou em Pamela e no tio dele. O que acontecera, capaz de ainda provocar aquelas emoções?

— Desculpe-me — disse Ahmed, com a cabeça ainda curvada.

— Sinto muito se falei alguma coisa errada — disse Erica, abaixando sua xícara. — Talvez fosse melhor eu voltar ao hotel.

— Não, não se vá, por favor — pediu Ahmed, levantando a cabeça. Seu rosto estava enrubescido. — A culpa não é sua. Eu é que ando tenso. Não se vá. Por favor.

Ahmed levantou-se para apanhar mais chá para Erica e pegar outra xícara para ele. Depois, numa tentativa de melhorar o ambiente, foi buscar algumas antigüidades que o departamento confiscara recentemente.

Erica gostou muito dos objetos, especialmente de uma escultura em madeira. Ela já estava se sentindo melhor.

— Foi confiscado no mercado negro algum objeto de Seti I? — Colocou com todo o cuidado as peças numa mesinha.

Ahmed ficou olhando para ela durante algum tempo, pensando.

—  Não, acho que não. Por que pergunta?— Bem, por nada, apenas porque visitei o templo de Seti em Abidos hoje. A propósito, o senhor sabia de uma cobra que havia lá?

— As cobras são um problema em potencial em toda parte, especialmente em Assuã. Acho até que deveríamos avisar aos turistas. Mas nos lugares mais freqüentados não há nenhum problema. Nem se compara com as dificulda­des que temos com o mercado negro. Há quatro anos houve um grande roubo de esculturas no Templo de Hathor, em Dendera, em plena luz do dia!

Erica meneou a cabeça, demonstrando compreender a situação.

— Mesmo que essa viagem não sirva para mais nada, pelo menos me mostrou a força destrutiva do mercado negro. Na verdade, além de fazer algumas traduções, estou decidida a ajudar nesse campo também.

Ahmed levantou os olhos subitamente.

— É um negócio perigoso. Eu não o recomendo. Para lhe dar uma idéia, há cerca de dois anos um jovem americano, idealista, de Yale, veio para cá com os mesmos propósitos. Desapareceu sem deixar vestígios.

— Bem — disse Erica —, não sou nenhuma heroína. Apenas tenho algumas idéias. Gostaria de saber se o senhor sabe o endereço, aqui em Luxor, da loja de antigüidades do filho de Abdul Hamdi.

Ahmed virou o rosto. A cena do corpo seviciado de Tewfik Hamdi refluiu-lhe à mente. Quando se voltou para Erica, seu rosto estava tenso.

— Tewfik Hamdi, como o pai, foi assassinado recente­mente. Há algum problema no ar, que eu ainda não entendi, mas meu departamento e a polícia estão investi­gando. Você já enfrentou algumas dificuldades, de modo que eu lhe peço que se dedique apenas às traduções.

Erica ficou alarmada com a notícia sobre Tewfik Hamdi. Outro assassinato! Tentou pensar no que aquilo poderia significar, mas no momento já era demais para aquele longo dia. Ahmed percebeu seu cansaço e ofereceu-se para levá-la até o hotel, ao que Erica agradeceu prontamente. Chegaram ao hotel antes das onze, e depois de agradecer a Ahmed por sua hospitalidade, Erica entrou no quarto, trancando-se com todo o cuidado.Despiu-se lentamente. Enquanto retirava a maquila­gem, pensou em Ahmed. Sua emotividade a impressionara, e, a despeito da explosão, ela gostara daquela noite. Depois de completar seu ritual noturno, enfiou-se debaixo das cobertas. Pouco antes de dormir, pensou em Ahmed e Pamela; imaginava... Mas seu último pensamento foi um nome do passado: Nenephta.

 

Dia 5 - Luxor, 6:35

O excitamento de estar em Luxor fez Erica acordar antes do amanhecer. Pediu o café da manhã, que foi servido na varanda. Na bandeja veio um telegrama de Yvon:

 

"CHEGO NOVO WINTER PALACE HOJE PT GOSTARIA MUITO VER VOCÊ ESTA NOITE".

 

Erica ficou surpresa. Ela estava certa de que o telegrama seria de Richard. E depois de ter saído com Ahmed, estava confusa. Era inacreditável pensar que há apenas um ano ela estava esperando ansiosamente que Richard lhe propusesse casamento. Agora sentia-se atraída por três tipos diferentes de homem. Embora fosse tranqüilizador para Erica ver-se capaz de reagir, o que fora um problema para ela quando seu relacionamento com Richard começara a ruir, a situação atual era também enervante. Bebeu o resto do café de uma só vez e decidiu deixar de lado todos os assuntos emocionais. Levantando-se da mesa, voltou ao quarto e preparou-se para sair.

Esvaziando sua sacola, encheu-a com o pacote de lanche que pedira, por sugestão do hotel, a lanterna, os fósforos e cigarros, e o Baedecker de 1929, de Abdul Hamdi. A capa do livro e outros papéis foram deixados sobre a mesinha do quarto. Antes de sair, Erica viu novamente o nome na capa: Nasef Malmud, Shari el Tahrir, 180, Cairo. Sua ligação com Abdul Hamdi não se rompera completamente, com a morte de Tewfik! Erica iria procurar por Nasef Malmud quando voltasse ao Cairo. Com todo o cuidado, resolveu colocar a capa do livro na bolsa.

Era uma pequena caminhada do Winter Palace Hotel até as lojas de antigüidades de Shari Lukanda. Algumas ainda não estavam abertas, a despeito do fato de haver alguns turistas com roupas coloridas passeando por ali. Erica escolheu uma loja ao acaso e entrou.

A loja era ao estilo de Antica Abdul, mas com um número bem maior de objetos. Erica escolheu os mais expressivos, separando os verdadeiros dos falsos. O proprietário, um homem atarracado de nome David Jouran, a princípio ficou atrás dela, mas depois voltou para trás do balcão.

Entre diversos vasos alegadamente antigos, Erica só encontrou dois que considerou verdadeiros, e eram comuns. Ela levantou um deles no ar.

—  Quanto custa?

— Cinqüenta libras — disse Jouran. — O outro custa dez.

Erica olhou o outro vaso. Tinha bonitos desenhos. Muito bonitos: espirais, mas na direção errada. Erica sabia que as peças de barro da época da pré-dinastia tinham espirais, mas em sentido anti-horário. As espirais desse vaso eram todas no sentido horário.

— Estou interessada apenas nos antigos. Para falar a verdade, achei poucas peças genuínas aqui. Quero algo especial. — Recolocou no balcão o pote falso. — Fui enviada para comprar algumas peças de valor, especialmen­te do Novo Império. Estou em condições de fazer um bom pagamento. O senhor tem alguma coisa para me mostrar?

David Jouran olhou Erica por um instante sem responder. Depois curvou-se, abriu um pequeno armário e colocou no balcão uma cabeça de Ramsés II feita de granito. O nariz havia se quebrado e o queixo estava rachado.

— Não — recusou ela, olhando ao redor. — Isso é a melhor coisa que o senhor tem?

—  Por enquanto. — Jouran afastou a estátua quebrada. — Bem, vou deixar meu nome — disse Erica, escrevendo num pedaço de papel. — Estou no Winter Palace. Se o senhor souber de alguma coisa especial, entre em contato comigo.

Ela fez uma pausa, com um pouco de esperança de que o homem fosse lhe mostrar alguma coisa, mas ele simplesmente deu de ombros, e depois de um silêncio embaraçoso, ela foi embora.

Aconteceu a mesma coisa nas cinco lojas seguintes em que ela entrou. A melhor peça que viu foi uma pequena estatueta lustrosa do tempo da Rainha Hatshepsut.Em todas as lojas ela deixou seu nome, mas não estava com muita esperança. Finalmente desistiu e foi até o pequeno cais.

Custava apenas alguns centavos atravessar para a margem ocidental no velho barco, que estava cheio de turistas com suas câmaras penduradas ao pescoço. Assim que saltaram do outro lado, o grupo foi cercado por uma turba de motoristas de táxi, falsos guias e vendedores de camafeus. Erica tomou um ônibus com o letreiro "Vale dos Reis" pintado de qualquer jeito num pedaço de papelão. Quando todos os passageiros do barco foram conquistados, de um modo ou de outro, o ônibus partiu.

Erica estava empolgada. Além dos verdes campos cultivados, que terminavam abruptamente no começo do deserto, ficavam as íngremes colinas de Tebas. Ao sopé das colinas Erica pôde ver alguns dos famosos monumentos, como o gracioso Templo de Hatshepsut em Deir el-Bahri. Imediatamente à direita do Templo de Hatshepsut ficava uma pequena aldeia chamada Qurna, construída na escarpa da colina. As casas de tijolinhos tinham sido construídas no deserto, além dos campos irrigados. A maioria delas tinha a cor quase igual à das colinas arenosas. Umas poucas eram pintadas de branco e destacavam-se bastante das demais, principalmente uma pequena mesquita com um grosso minarete. Entre as casas havia algumas aberturas. Eram as entradas que levavam às miríades de antigas criptas. O povo de Qurna vivia entre os túmulos dos nobres. Foram feitas muitas tentativas para transferir a aldeia, mas o povo tenazmente resistira a todas.

O ônibus fez uma curva fechada e depois virou à direita numa bifurcação. Erica passou os olhos no templo mortuário de Seti I. Havia muita coisa para ver.

O deserto começava com uma linha bem nítida de demarcação. Rochas e areia apenas, sem uma única vegetação, substituíam as verdejantes plantações de cana-de-açúcar. A estrada era reta até chegar às montanhas; depois tornava-se serpenteada, seguindo por um vale que ficava cada vez mais estreito. O calor era intenso e não havia vento para amenizar a sensação de opressão.

Depois de passar por uma pequena guarita feita de pedra, o ônibus parou numa grande área onde estavam estacionados outros ônibus e táxis. Apesar do calor de mais de quarenta graus, o lugar estava cheio de turistas. Numa pequena elevação à esquerda, um restaurante estava fazendo excelente negócio.

Erica usava um chapéu cáqui que comprara para protegê-la do sol. Ela nem acreditava que finalmente chegara ao vale dos Reis, local da descoberta do túmulo de Tutancâmon. O vale era cercado por montanhas que haviam sido coitadas em alguns pontos, e lá no alto estava o abrupto e triangular pico que mais parecia uma pirâmide natural. As montanhas íngremes de cor escura lançavam-se no vale e fundiam-se com os caminhos cercados de pedra que irradiavam do estacionamento. Na junção dos penhas­cos com as trilhas ficavam as aberturas escuras dos túmulos dos reis.

Embora a maioria das pessoas do ônibus tivesse ido ao restaurante à procura de alguma coisa gelada, Erica correu para a entrada do túmulo de Seti I. Ela sabia que esse era o maior e o mais espetacular de todos os do vale, e queria visitá-lo de imediato, para ver se conseguia encontrar o nome de Nenephta.

Prendendo a respiração, cruzou a linha do passado. Apesar de saber que toda a decoração do interior estava em perfeito estado, quando viu as cores originais preserva­das ficou surpresa. A pintura parecia que tinha sido aplicada no dia anterior, tão fresca era sua aparência. Caminhou lentamente pelo corredor de entrada, depois desceu uma escada, com os olhos grudados na decoração das paredes. Havia imagens de Seti na companhia de todas as divindades egípcias. No teto, grandes abutres com as asas abertas formavam um desenho. Grandes textos em hieróglifos do Livro dos Mortos corriam entre as figuras.

Erica foi obrigada a esperar por um grupo de turistas para poder atravessar uma ponte de madeira que se estendia sobre uma vala. Olhando para as profundezas das grandes escavações, imaginava se tinham sido feitas para evitar os ladrões de túmulos. Logo além ficava uma galeria sustentada por quatro grossos pilares. Depois, outra escada, a qual fora fechada e escondida na Antigüidade.

Quanto mais descia dentro do túmulo, mais Erica ficava maravilhada com o esforço hercúleo que devia ter sido perfurar aquela rocha. Quando desceu a quarta escada e estava alguns metros dentro da montanha, percebeu que o ar estava muito mais rarefeito. Imaginou como os antigos operários tinham conseguido ficar ali. Não havia ventilação, apesar das permanentes levas de turistas, e a falta de oxigênio deu a Erica a sensação de sufocamento. Ela não so­fria de claustrofobia, mas não gostava de ficar trancada e ti­nha que, conscientemente, suprimir seu medo.

Uma vez dentro da câmara funerária, Erica tentou se esquecer da dificuldade de respirar e inclinou o pescoço para admirar as pinturas astronômicas no teto abobadado. Percebeu também um dos túmulos abertos numa época relativamente recente por um homem que tinha a certeza de saber a localização de outros cômodos secretos. Não se encontrou nada.

Embora estivesse ficando cada vez mais ansiosa no fundo do túmulo, decidiu que deveria visitar uma pequena sala lateral onde havia uma representação bem conhecida da deusa Nut, no formato de uma vaca. Passou por todos os turistas e foi para a entrada da sala, mas olhando lá para dentro viu que o cômodo estava cheio de gente e decidiu deixar de ver Nut. Virando-se subitamente, esbarrou num homem que ia entrar na sala.

— Desculpe — disse Erica.

O homem sorriu antes de se virar e entrar na câmara mortuária. Um outro grupo de turistas entrou e Erica, contra a vontade, viu-se forçada a também entrar na sala. Ela tentava se acalmar, mas o homem que havia barrado seu caminho a deixara nervosa. Ela já o vira antes: cabelo escuro, terno preto; e um sorriso fingido deixando aparecer um dente pontudo que a fez lembrar do Museu do Egito, no Cairo.

Sabendo que os turistas freqüentam os mesmos lugares, Erica imaginava por que o homem a fizera ficar alarmada. Ela sabia que estava agindo de um modo absurdo e que seu receio era apenas uma combinação dos estranhos acontecimentos dos últimos dias e mais o calor e o ambiente fechado do túmulo. Ajustando a alça da sacola no ombro, Erica lutou para sair da câmara mortuária. O tal homem não estava à vista. Uns poucos degraus levavam para o segundo andar da sala, onde ficava a saída. Erica começou a subir as escadas, observando tudo ao seu redor. Tinha que evitar correr. Parou. Saindo rapidamente de trás de uma pilastra quadrada que ficava à sua esquerda estava o mesmo homem. Foi apenas uma simples olhadela, mas agora Erica estava convencida de que não estava imaginan­do coisas, de que o homem estava agindo estranhamente. Ele a estava seguindo. Num gesto impulsivo, subiu os últimos degraus e se escondeu atrás de uma coluna.A sala tinha quatro pilastras, todos os lados de cada pilastra decorados com um alto-relevo colorido de Seti em tamanho natural, ao lado de uma gravura de um deus egípcio.

Erica esperou, com o coração aos pulos, não querendo se lembrar de como a violência acontecera ao seu redor nos últimos dias. Não sabia o que esperar. Então o homem apareceu novamente. Contornou a pilastra que estava em frente a ela, olhando o gigantesco mural que havia na parede. Embora seus lábios estivessem apenas um pouco abertos, Erica pôde ver que o incisivo direito era pontudo. Ele passou sem olhar para ela.

Logo que suas pernas conseguiram se mexer, Erica começou a andar, depois correu, passando pelos corredo­res e subindo as escadas por que passara até chegar à claridade do dia, lá fora. Assim que chegou lá, o pânico desapareceu e ela se achou tola. Sua certeza das más intenções do homem pareceu-lhe pura paranóia. Ela ainda olhou para trás, mas não voltou ao túmulo de Seti. Iria procurar o nome de Nenephta no outro dia.

Já passava do meio-dia e o restaurante e a pensão estavam cheios. Em conseqüência, o túmulo de Tutancâ­mon — comparativamente muito mais pobre — estava quase vazio. Mais cedo houvera uma fila para entrar nele. Erica aproveitou a "calmaria" e desceu os famosos dezesseis degraus até a entrada. Antes de entrar, olhou na direção do túmulo de Seti. Não viu ninguém. Enquanto caminhava, ia pensando na ironia de que o menor túmulo, o do mais insignificante faraó do Novo Império, fosse o único que estava consideravelmente intacto. E o próprio túmulo de Tutancâmon fora violado duas vezes na Antigüidade.

Quando cruzou a porta da antecâmara, tentou revisar em sua mente o magnífico dia de novembro de 1922, quando o túmulo fora aberto. Como devia ter sido excitante o momento em que Howard Carter e seu grupo penetraram no mais fascinante tesouro arqueológico jamais descoberto.

Com os conhecimentos que tinha, Erica sabia localizar mentalmente a maioria dos objetos descobertos no túmulo. Ela sabia que as estátuas de Tutancâmon em tamanho natural ficavam na entrada da câmara mortuária, uma de cada lado, encostadas na parede. Depois lembrou-se da estranha desarrumação que Carter encontrara no túmulo.Aquilo era um mistério que nunca fora explicado. Possivelmente o caos era conseqüência da ação dos ladrões, mas por que os objetos funerários não haviam sido recolocados em seus lugares?

Afastando-se do caminho de um grupo francês que estava saindo, Erica teve que esperar para entrar na câmara mortuária.

Enquanto esperava, apareceu o homem de terno preto que a havia assustado no túmulo de Seti, segurando um livro aberto nas mãos. Involuntariamente Erica ficou tensa. Mas conseguiu espantar o medo, convencendo-se de que estava apenas imaginando coisas. Além disso, o homem pareceu nem percebê-la quando passou por ela. Ela olhou bem no nariz adunco dele, o que lhe dava um aspecto de ave de rapina.

Reunindo toda a sua coragem, entrou na câmara mortuária repleta. O cômodo era dividido por uma grade e o único lugar vago na grade ficava do lado do homem de terno preto. Hesitou por um instante mas depois caminhou até a grade e olhou para o magnífico sarcófago rosado de Tutancâmon. As pinturas das paredes eram todas insignifi­cantes se comparadas com a perfeição estilística das gravuras do túmulo de Seti. Quando os olhos dela correram pela sala, foram bater no livro que estava na mão daquele homem. Era um guia para turistas e estava aberto na página que mostrava o primeiro andar do Templo de Carnac. Não tinha nada a ver com o vale dos Reis, e os temores de Erica voltaram rapidamente. Afastando-se logo da grade, Erica saiu correndo da sala. Novamente sentiu-se melhor sob a luz do sol e ao ar livre, mas agora estava convencida de que não era paranóica.

Não havia mesas vazias perto, no restaurante, que ficava a cerca de dez metros da entrada do túmulo de Tutancâmon, mas Erica estava no meio da multidão; isso a fez sentir-se segura. Sentou-se num degrau da escada do restaurante com uma lata de suco gelado que comprara e com a comida que levara do hotel. Não perdia de vista a entrada do túmulo de Tutancâmon, e, quando olhou novamente, viu o homem saindo de lá e caminhando em direção a um carro preto que estava no estacionamento. Sentou-se no carro, deixando a porta entreaberta, com os pés do lado de fora. Ela conjeturava o que a presença dele significava; se a sua intenção fosse fazer mal a ela, tinha tido muitas oportunidades. Concluiu que ele devia estar apenas seguindo-a, talvez trabalhando para as autoridades. Erica respirou fundo e tentou não pensar mais nele. Mas mesmo assim decidiu ficar na companhia dos outros turistas.

Seu almoço eram sanduíches de fatias de carne de carneiro, que ela comia pensativamente enquanto olhava para a entrada do túmulo de Tutancâmon. Ajudava-a a se relaxar pensar nos milhares de visitantes que iam ao vale dos Reis e que, sem a menor consciência do seu valor, bebiam sua limonada a dez metros da entrada do maior tesouro enterrado do mundo. O túmulo de Seti I também ficava relativamente perto do restaurante.

Mordendo o segundo sanduíche, calculava a proximi­dade entre os túmulos de Ramsés VI e de Tutancâmon. O de Ramsés ficava um pouco acima e para a esquerda. Erica lembrou-se de que foram as cabanas que os operários fizeram sobre a entrada do túmulo de Tutancâmon, durante a construção do túmulo de Ramsés VI, que retardaram a descoberta de Carter. Fora somente depois de abrir uma trincheira naquela área que encontrara a escada com os dezesseis degraus.

Erica parou de comer, digerindo também todos esses dados. Sabia que os antigos saqueadores haviam entrado no túmulo de Tutancâmon pela entrada original, pois Carter descrevera as rachaduras na porta. Mas devido à localização das cabanas dos operários a entrada do túmulo de Tutancâmon teve de ser coberta e esquecida quando começou a construção do túmulo de Ramsés VI. Isso significava que o túmulo de Tutancâmon só poderia ter sido saqueado no início da vigésima dinastia ou durante a décima nona. E se o túmulo de Tutancâmon tivesse sido saqueado durante o reinado de Seti I?

Erica bebeu um gole do suco. Poderia haver alguma ligação entre a profanação do túmulo de Tutancâmon e o fato de que o nome de Tutancâmon aparecesse na estátua de Seti? Enquanto sua mente se agitava com esses pensamentos, Erica levantou os olhos e viu um falcão fazendo um vôo em espiral com as asas paradas.

Começou a guardar os papéis dos sanduíches. O homem do carro não se mexia. Vagou uma mesa perto de Erica e ela foi sentar-se, colocando a sacola no chão.

A despeito do forte calor que se abatia sobre o vale como um grosso cobertor, a mente de Erica não parava de trabalhar. E se as estátuas de Seti tivessem sido colocadas dentro do túmulo de Tutancâmon depois de ele ter sido saqueado? Mas logo abandonou a idéia como absurda; não tinha sentido. Além disso, se as estátuas estivessem no túmulo, teriam sido catalogadas por Carter, que tinha fama de ser muito minucioso. Não, Erica sabia que estava na pista errada, mas percebeu que se havia dado pouca importância à questão dos roubos do túmulo de Tutancâ­mon devido à grandeza da descoberta de Carter. O fato de que o túmulo do rei menino tivesse sido profanado podia ser significativo, e o fato de entrarem no túmulo durante o reinado de Seti I era intrigante. Subitamente Erica desejou estar novamente no Museu do Egito. Decidiu que iria ler as anotações de Carter, que o Dr. Fakhry dissera estarem microfilmadas nos arquivos. Mesmo que não descobrisse nada de surpreendente, serviria para tema de um bom artigo. Ela também pensava se algumas das pessoas que tinham estado na abertura do túmulo de Tutancâmon ainda estariam vivas. Sabia que Carnarvon e Carter haviam morrido, e pensando na morte de Carnarvon, lembrou-se da "maldição dos faraós" e sorriu do desembaraço da imprensa em tratar desses assuntos e da crença do povo.

Tendo terminado o almoço, Erica abriu o Baedecker para decidir qual dos muitos túmulos iria visitar a seguir. Um grupo de turistas alemães passou por ela, que se apressou em se juntar a eles. Lá no alto o falcão mergulhou abruptamente para agarrar alguma vítima.

Khalifa esticou o braço e desligou o rádio do carro alugado quando viu Erica caminhar para o fundo do vale.

— Karrah — xingou quando saiu da sombra do au­tomóvel. Não conseguia entender como alguém, por sua própria vontade, se metia num lugar quente assim.

 

Luxor, 20:00

Quando Erica atravessou o jardim que separava a ala antiga do Winter Palace da ala nova, entendeu por que tanta gente escolhera passar o inverno no Alto Egito. Embora o dia tivesse sido quente, depois que o sol se pusera a temperatura baixara a um nível agradável. Quando contornou a piscina, percebeu que ainda havia algumas crianças americanas brincando.

Fora um excelente dia. As antigas pinturas que ela vira nos túmulos eram inacreditáveis. Além disso, depois que chegara da margem ocidental, encontrara dois bilhetes, dois convites. Um de Yvon e outro de Ahmed. A decisão fora difícil, mas aceitara ver Yvon, desejando que ele tivesse novas informações sobre a estátua. Pelo telefone ele lhe dissera que jantariam no restaurante do Novo Winter Palace Hotel e que chegaria por volta das oito horas. Impulsiva­mente, disse-lhe que preferiria encontrá-lo no saguão.

Yvon usava um blazer azul-escuro e slack branco, com o cabelo castanho cuidadosamente penteado. Deu o braço a Erica quando entraram no salão do hotel.

O restaurante não era velho, mas parecia decadente, com sua decoração desarmoniosa sugerindo uma tentativa fracassada de parecer um salão cosmopolita. Mas Erica logo esqueceu o ambiente quando Yvon começou a contar histórias de sua infância na Europa. O modo como ele descrevia seu relacionamento formal e muito frio com os pais fazia tudo parecer mais engraçado do que triste.

— E você? — perguntou Yvon, procurando o cigarro no bolso do paletó.

— Eu nasci em outro mundo — Erica baixou os olhos e rodou o copo de vinho. — Fui criada numa casa de uma cidadezinha do meio-oeste. Éramos uma família pequena mas muito unida. — Apertou os lábios e deu de ombros.

— Ah, mas não deve ser só isso — falou Yvon com um sorriso. — Mas não quero ser grosseiro e não se sinta obrigada a contar o resto.

Erica não estava querendo esconder nada. Simples­mente não achava que Yvon estivesse interessado em ficar ouvindo histórias de Toledo, Ohio. E ela não queria falar sobre a morte do pai num acidente aéreo ou nos problemas que tinha com a mãe por serem muito iguais. De qualquer modo, preferia ouvir Yvon.

—  Você já foi casado? — perguntou Erica. Yvon riu e ficou estudando o rosto de Erica.

—  Eu sou casado — disse com naturalidade.

Erica desviou o olhar, certa de que seu desapontamen­to se revelaria em seus olhos. Ela devia saber.

— Tenho dois filhos maravilhosos — continuou Yvon —, Jean-Claude e Michelle. Nunca os vejo.

—  Nunca? — A idéia de não ver um filho era incompreensível para ela. Erica levantou os olhos; ela já se controlara.

— Eu os visito raramente. Minha mulher decidiu morar em St.-Tropez. Ela adora fazer compras e viver em lugares ensolarados, duas coisas que eu acho limitantes. As crianças estão num colégio interno, e gostam muito de St.-Tropez no verão. Mas...

— Então você mora sozinho no seu château — disse Erica, um pouco mais animada.

— Não, lá é um lugar muito triste. Tenho um bonito apartamento na Rue Verneuil, em Paris.

Somente quando começaram a tomar café foi que Yvon quis tocar no assunto da estátua de Seti I e na morte de Abdul.

— Trouxe essas fotos para você ver — disse ele, tirando cinco fotos do bolso e colocando-as em frente a Erica. — Eu sei que você viu os homens que mataram Abdul Hamdi só por um segundo, mas será que reconhece algum desses rostos?

Pegando uma foto de cada vez, Erica estudava os rostos.

— Não — disse ela logo. — Mas não quer dizer que não tenham sido estes.

— Entendo — observou Yvon, pegando as fotografias. — Era só uma possibilidade. Diga-me, Erica, você teve algum problema depois que chegou ao Alto Egito?— Não... apenas tenho quase certeza de que estou sendo seguida.

—  Seguida? — admirou-se Yvon.

— É a única explicação que posso dar. Hoje no vale dos Reis vi um homem que acredito já ter visto no Museu do Egito. Ele é um árabe de nariz adunco, com um sorriso disfarçado, e um dente pontudo aqui na frente.

Erica abriu a boca e apontou para seu incisivo do lado direito. O gesto dela fez Yvon sorrir, embora não tivesse gostado de que ela tivesse percebido.

— Isso não tem graça — continuou Erica. — Ele me assustou fingindo ser um turista, mas estava lendo a página errada do guia. Yvon — perguntou ela, mudando de assunto —, e o seu avião? Você veio nele para Luxor?

Yvon sacudiu a cabeça, confuso.

— Sim, é claro. O avião está aqui em Luxor. Por que você pergunta?

— Porque quero voltar ao Cairo. Preciso fazer uma coisa que vai me tomar a metade do dia.

—  Quando? — perguntou Yvon.

—  Quanto mais cedo melhor — respondeu Erica.

— Que tal hoje à noite? — Ele queria Erica de volta à cidade.

Erica ficou surpresa com a oferta, mas ela confiava em Yvon, especialmente agora que já sabia que ele era casado.

—  Por que não?

 

Embora ela nunca tivesse entrado num jatinho antes, achava que seria maior do que na verdade era. Sentou-se num dos quatro bancos largos de couro e apertou o cinto. No banco ao lado de Erica estava Raoul, tentando manter uma conversa com ela, mas Erica estava mais interessada no que estava acontecendo e em saber se já iam decolar. Ela não acreditava no princípio da aerodinâmica. Nos grandes aviões isso não a preocupava porque a simples idéia de o monstro voar era tão absurda que ela nem pensava no assunto.

Yvon tinha um piloto, mas desde que aprendera a pilotar geralmente preferia tomar conta dos controles. Não havia tráfego aéreo e eles foram logo liberados. O jatinho correu pela pista e lançou-se no ar enquanto os dedos de Erica empalideciam.Quando já estavam no alto, Yvon soltou os controles e voltou a conversar com Erica. Começando a relaxar, ela disse:

— Você disse que sua mãe era inglesa. Será que ela conheceu os Carnarvon?

— Conheceu, por quê? Eu conheço o Conde Carnar­von — afirmou Yvon. — Por que você quer saber?

—  Na verdade, estou interessada em saber se a filha de Lorde Carnarvon ainda está viva. O nome dela é Evelyn, eu acho.

— Não tenho a menor idéia — falou Yvon —, mas posso descobrir. Por que você quer saber? Agora se interessa pela "maldição dos faraós"? — Ele deu um sorriso na semi-escuridão da cabina.

— Talvez — respondeu Erica, sem achar muita graça. — Tenho uma teoria sobre o túmulo de Tutancâmon que gostaria de investigar. Quando eu tiver mais dados lhe conto o que é. Mas se você realmente puder descobrir para mim alguma coisa sobre a filha de Carnarvon, eu adorarei. Ah, mais uma coisa. Você já viu o nome Nenephta?

—  Em que situação?

—  Com relação a Seti I.

Yvon pensou, e depois sacudiu a cabeça.

—  Nunca.

Tiveram que dar muitas voltas sobre o Cairo antes que recebessem autorização para a aterrissagem, mas as formalidades de praxe foram rápidas, uma vez que o avião já tinha voado no país. Passava um pouco de uma hora quando chegaram ao Hotel Méridien. O gerente foi muito atencioso com Yvon, e, embora o hotel estivesse suposta­mente lotado, conseguiu arranjar um quarto para ela ao lado da suíte de cobertura de Yvon. Yvon a convidou para beber alguma coisa depois que ela se acomodasse.

Erica trouxera apenas a sacola de lona, com o mínimo de roupas, a maquilagem e o material para estudo. Deixara os guias de viagem e a lanterna em seu quarto de Luxor. Não tendo nada mais a fazer para se acomodar, caminhou até a porta de ligação com o aposento principal da suíte de Yvon.

Ele havia tirado o paletó e dobrado as mangas e estava abrindo uma garrafa de Don Pérignon quando Erica entrou. Ela segurou a taça de champanha e por um instante seus dedos se tocaram. Erica num minuto voltou a se aperceber de como ele era atraente. Sentia como se os dois tivessem caminhado para essa noite desde o dia em que se encontraram. Ele era casado, certamente não queria nenhum compromisso, mas nem ela desejava algo assim. Resolveu se descontrair e deixar a noite seguir seu curso. Mas começou a sentir uma pulsação estranha entre suas coxas, e para não pensar naquilo foi impelida a falar.

— O que o tornou tão interessado em arqueologia?

— Começou quando eu ainda estudava em Paris. Alguns amigos falaram em entrar para a Escola de Línguas Orientais. Fiquei fascinado e pela primeira vez trabalhei feito um mouro. Eu nunca tinha estudado muito na vida. Estudei árabe e copta. Era o Egito que me interessava. Acho que isso é mais uma explicação do que o motivo propriamente dito. Você gostaria de dar uma olhada na paisagem do terraço? — Estendeu a mão para ela.

— Gostaria muito — respondeu Erica, com a pulsação acelerada.

Era isso que ela queria. Ela não se importava de que ele a estivesse usando, se era simplesmente compelido a levar para a cama toda mulher atraente que encontrasse. Pela pri­meira vez na vida deixou-se levar pelo sabor de um desejo.

Yvon abriu a porta do terraço e Erica saiu para a noite. Aspirou o perfume das rosas enquanto divisava toda a cidade do Cairo esparramada sob o cintilar das estrelas. A fortaleza com seus minaretes pontiagudos ainda estava iluminada. Bem diante deles ficava a ilha de Gezira, cercada pelo negro Nilo.

Erica sentiu Yvon atrás dela. Quando olhou para seu rosto anguloso, viu que ele a estava observando. Esticou o braço lentamente e passou os dedos pelo cabelo dela, depois segurou-lhe a cabeça por trás e a puxou para si. Beijou-a para experimentá-la, sensível às emoções dela, depois beijou-a com mais intensidade, e finalmente com verdadeira paixão.

Erica ficou impressionada com a intensidade de sua reação. Yvon era o primeiro homem que beijava desde que estava com Richard, e não tinha certeza de como seu corpo reagiria. Mas por enquanto abriu os braços para Yvon, misturando a excitação dele com a sua própria.

Suas roupas escorregaram naturalmente quando afun­daram no tapete oriental. E sob a tênue luz da noite egípcia abandonaram-se ao amor com toda a intensidade, a vibrante cidade servindo de testemunha muda àquela paixão.

 

Dia 6 - Cairo, 8:35

Erica acordou em sua cama. Tinha uma vaga lem­brança de Yvon dizendo que preferia dormir sozinho. Virando-se na cama, pensando na noite passada, ficou abismada por não estar se sentindo culpada.

Quando saiu do quarto eram cerca de nove horas. Yvon estava sentado na varanda com um robe de listras azuis e brancas, lendo o El Ahram, em árabe. Os raios do sol matinal chegavam aos pedaços, barrados pela gradinha da varanda, salpicando o chão com pedaços de luz como um quadro impressionista. O desjejum estava esperando, coberto por campânulas de prata.

Ele se levantou quando a viu e abraçou-a ternamente.

— Estou muito feliz por estarmos no Cairo — disse ele, puxando a cadeira para ela se sentar.

—  Eu também — falou Erica.

Foi uma refeição agradável. Yvon tinha um humor sutil de que Erica muito gostava. Mas depois do último pedaço de torrada, ela ficou impaciente para continuar suas investigações.

— Bem, vou ao museu — decidiu ela, dobrando o guardanapo.

—  Gostaria de companhia? — perguntou Yvon.

Erica olhou para ele lembrando-se da impaciência de Richard. Não queria fazer as coisas às pressas. Era melhor ir sozinha.

—  Para dizer a verdade, o trabalho que vou fazer é um pouco chato. A menos que você deseje passar a manhã nos arquivos, prefiro ir sozinha.

Erica circundou a mesa e tocou no braço de Yvon. — Está bem — concordou ele. — Mas vou mandar Raoul levá-la.—  Não é preciso — protestou ela.

—  Cortesias de francês — insistiu Yvon em tom alegre.

 

O Dr. Fakhry levou Erica para um cubículo abafado que ficava do lado de fora da biblioteca. Numa mesa encostada à parede estava a máquina de leitura de microfilmes.

— Talat vai trazer o filme que a senhora deseja — informou o Dr. Fakhry.

—  Sua ajuda está sendo muito útil — agradeceu Erica.

— O que a senhora está procurando? — interrogou o Dr. Fakhry. Sua mão direita sacudiu-se espasmodicamente.

— Estou interessada nos saqueadores que entraram no túmulo de Tutancâmon na Antigüidade. Não acho que esse assunto tenha recebido a atenção que merece.

— Ladrões de túmulos? — perguntou ele, e depois desapareceu da sala, arrastando-se.

Erica sentou-se diante da máquina de leitura de microfilmes, tamborilando os dedos sobre a mesa. Esperava que o Museu do Egito tivesse muito material. Talat apareceu e deu a Erica uma caixa de sapatos cheia de filmes.

—  A senhora compra camafeu, moça? — sussurrou ele. Sem responder nada, Erica começou a olhar os filmes,

que estavam convenientemente com os nomes em inglês, com cartões do Museu Ashmolean, que guardava os documentos originais. Ficou sinceramente surpresa com a qualidade do material, e acomodou-se melhor na cadeira, já que iria ficar ali durante algum tempo.

Mexendo na máquina, Erica introduziu o primeiro rolo de filme. Felizmente Carter escrevera seu diário com uma letra bem legível. Erica focalizou a parte que descrevia as cabanas dos operários. Não havia dúvida de que elas haviam sido construídas bem em cima da entrada do túmulo de Tutancâmon. Erica agora estava certa de que os ladrões deveriam ter profanado o túmulo de Tutancâmon antes do reinado de Ramsés VI.

Continuou passando o filme até chegar à parte em que Carter relacionava os motivos que lhe deram a convicção de que o túmulo de Tutancâmon existia. A prova que Erica achou mais fascinante foi uma taça de louça azul com a marca de Tutancâmon, descoberta por Theodore Davis.Ninguém jamais conjeturara por que a taça fora achada escondida debaixo de uma pedra.

Quando terminou o primeiro carretel, Erica colocou outro. Agora estava lendo sobre a descoberta propriamente dita. Carter descrevera de imediato o modo como as portas externas e internas tinham sido fechadas novamente, na Antigüidade, com um selo da necrópole; o selo original de Tutancâmon só podia ser visto na base de cada porta. Carter explicava em detalhes por que tinha certeza de que as portas tinham sido abertas e seladas novamente, mas não dava nenhuma explicação.

Fechando os olhos, Erica descansou por um instante. Sua mente a levou para a solene cerimônia do enterro do jovem faraó. Aí então sua cabeça tentou imaginar a presença dos ladrões de túmulos. Estariam confiantes durante o roubo, ou teriam ficado aterrorizados com a possibilidade de irritar os guardiões do mundo das trevas? Depois pensou em Carter. O que teria visto ele quando entrara no túmulo pela primeira vez? Pelas anotações Erica confirmou que ele entrara acompanhado do assistente, Callender; Lorde Carnarvon; a filha de Carnarvon; e um dos guias, de nome Sarwat Raman.

Durante as horas seguintes Erica quase não se mexeu. Podia sentir a sensação de medo e mistério que Carter experimentara. Com grande minúcia ele descrevia a localização de cada objeto: a taça de alabastro e a lamparina a óleo que estava perto ocupavam muitas páginas. Enquanto ia lendo a parte sobre a taça e a lamparina, Erica lembrou-se de alguma coisa que lera em algum lugar. Em sua descrição do que acontecera após a descoberta, Carter mencionara que a curiosa colocação desses dois objetos fizera com que ele os considerasse a chave para um mistério maior que ele esperava fosse descoberto com o completo exame do túmulo. Chegara a dizer que o conjunto de anéis de ouro que descobrira espalhados sugeria que os intrusos tinham sido surpreendidos no meio do roubo.

Levantando os olhos da máquina, Erica percebeu que Carter achava que o túmulo fora roubado duas vezes, já que fora aberto duas vezes. Mas isso era uma suposição, e poderia haver outra explicação igualmente plausível.

Depois de começar a ler as anotações de Carter, Erica colocou na máquina um rolo intitulado "Lorde Carnarvon: documentos e correspondência". O que ela mais encontrou foram cartas de negócios sobre seus esforços para apoiar a arqueologia. Passou o filme rapidamente até as datas dos papéis coincidirem com a descoberta do túmulo. Como esperava, o volume de correspondência de Carnarvon aumentara depois que Carter comunicou ter achado a escadaria da entrada. Erica parou numa longa carta que Carnarvon escrevera a Sir Wallis Budge, do Museu Britânico, a 1º de dezembro de 1922. Para caber numa única ficha, a carta fora muito reduzida. Erica foi obrigada a se curvar para ler o texto. A caligrafia também não era tão nítida quanto a de Carter. Na carta, Carnarvon descrevia empolgado a "descoberta" e relacionava diversas peças famosas que Erica vira na exposição itinerante dos pertences de Tutancâmon. Leu rapidamente, até que uma frase lhe chamou a atenção: "Não abri as caixas, e não sei o que há dentro delas; mas há algumas cartas em papiros, louças, jóias, perfumes, velas em candelabros". Erica olhou para a palavra 'papiro". Pelo que sabia, não fora encontrado nenhum papiro no túmulo de Tutancâmon. Na verdade, isso fora um dos desapontamentos. Esperava-se que o túmulo de Tutancâmon fosse trazer algum esclareci­mento sobre a complicada época em que ele vivera. Mas, sem documentos, essa esperança fora destruída. No entanto, Carnarvon estava se referindo a um papiro na carta a Sir Wallis Budge.

Erica voltou às anotações de Carter. Releu tudo relacionado com o dia em que abriram o túmulo e com os dois dias seguintes: Carter não mencionava nenhum papiro. Na verdade, ele aludia ao seu desapontamento por não haver documentos. Estranho. Voltando à carta de Carnarvon a Budge, Erica pôde fazer uma relação entre os outros artigos que as notas de Carter revelavam. A única diferença era o papiro.

Quando Erica finalmente saiu do sombrio museu, já era tarde. Caminhou lentamente até a movimentada Praça Tahrir. Embora seu estômago estivesse vazio, queria fazer mais uma coisa antes de voltar ao Hotel Méridien Na bolsa apanhou a capa do Baedecker e leu o nome e endereço: Nasef Malmud, Shari el Tahrir, 180.

Atravessar a congestionada praça exigia um grande esforço, pois havia filas de ônibus empoeirados e muita gente. Do outro lado de Shari el Tahrir, ela dobrou à esquerda."Nasef Malmud", repetiu para si. Não sabia o que esperar. A Shari el Tahrir era uma das mais bem freqüentadas avenidas, com lojas ao estilo elegante da Europa e prédios comerciais; o número 180 era um edifício alto com fachada de mármore e vidro.

O escritório de Nasef Malmud ficava no oitavo andar. Subindo sozinha no elevador, Erica lembrou-se do prolon­gado horário de almoço da cidade e receou que não pudesse ver Nasef Malmud antes do final da tarde. Mas a porta do seu escritório estava entreaberta e ela entrou, percebendo o cartaz que dizia: "Nasef Malmud, Direito Internacional, Divisão de Importação-Exportação".

A recepção estava vazia. Bonitas máquinas de escrever Olivetti sobre mesas de mogno demonstravam aue os negócios iam bem.

— Alô — disse Erica.

Um homem forte apareceu numa porta, elegantemente vestido com terno e colete. Tinha cerca de cinqüenta anos e não pareceria deslocado se caminhasse pela área financeira de Boston.

— Posso ajudá-la em alguma coisa? — perguntou em tom comedido.

— Estou procurando o Sr. Nasef Malmud — respon­deu Erica.

—  Eu sou Nasef Malmud.

—  O senhor poderia me atender por um instante? Nasef virou-se para trás, olhando para seu escritório, enrugando a boca. Ele estava com uma caneta na mão direita, e era óbvio que estava ocupado com alguma coisa. Voltando-se para Erica, falou como se não tivesse se decidido.

—  Bem, só um instante.

Erica entrou no espaçoso escritório, de onde se divisava a Shari el Tahrir até a praça e o Nilo. Nasef acomodou-se na sua cadeira de espaldar alto e fez sinal para que Erica se sentasse perto dele.

— O que posso fazer por você, jovem? — perguntou ele, juntando as pontas dos dedos das duas mãos.

— Eu gostaria de saber alguma coisa sobre um homem chamado Abdul Hamdi.

Erica calou-se, para ver se recebia alguma resposta. Não recebeu.

Malmud esperou, pensando que ela fosse falar mais. Mas já que Erica não continuou, ele disse:

— Não me lembro desse nome. Essa pessoa está ligada a quê?

— Eu imaginei que ele poderia ser seu cliente — falou Erica.

Malmud retirou os óculos e os colocou sobre a mesa.

— Se ele fosse um cliente, não sei por que eu não lhe diria — disse ele sem ser grosseiro. Como advogado, ele estava mais interessado em receber informações do que em dá-las.

— Tenho algumas informações que lhe interessariam se ele fosse seu cliente. — Erica tentou ser igualmente evasiva.

— Como você conseguiu meu nome? — perguntou ele.

— Com Abdul Hamdi — respondeu Erica, sabendo que era uma pequena distorção da verdade.

Malmud estudou Erica por alguns instantes, foi até a outra sala, e voltou com um arquivo de mão. Sentando-se em sua mesa, recolocou os óculos e abriu o arquivo. Tinha apenas uma folha de papel, que ele leu rapidamente.

—  Sim, parece que eu represento Abdul Hamdi.

Olhou para Erica por cima dos óculos, esperando ouvir alguma coisa.

— Bem, Abdul Hamdi está morto. — Erica decidiu não usar a palavra "assassinado".

Malmud olhou para Erica pensativamente, depois releu o papel que tinha nas mãos.

— Obrigado. Terei que ver o que me cabe fazer. — Ele se levantou e estendeu a mão, demonstrando que os minutos que concedera a ela tinham terminado.

Enquanto caminhava para a porta, Erica disse:

—  O senhor sabe o que é um Baedecker?

—  Não — disse ele, fazendo com que ela saísse logo.

— O senhor alguma vez teve um guia Baedecker? — Erica parou na porta..

—  Nunca.

 

Yvon estava esperando quando ela chegou ao hotel. Ele tinha uma outra série de fotos para Erica examinar. Um homem lhe pareceu vagamente familiar,, mas ela não estava certa. Admitiu — que as suas chances de reconhecer os assassinos eram muito poucas, e tentou dizer isso a Yvon, mas ele insistia.— Eu preferia que você colaborasse em vez de me dizer como agir.

Caminhando para a varanda, Erica lembrou-se da noite anterior. O interesse de Yvon parecia agora estritamente comercial, e ela estava satisfeita por ter entrado nesse caso de olhos abertos. Os desejos dele haviam sido satisfeitos momentaneamente e sua atenção voltara-se para a estátua de Seti.

Erica aceitou a realidade com calma, mas deu-lhe vontade de sair do Cairo e voltar a Luxor. Voltou para dentro da suíte e contou a Yvon seus planos. Inicialmente ele se queixou, mas ela sentia certo prazer em contrariá-lo. Obviamente ele não estava acostumado a um tratamento assim. Mas no final ele cedeu, chegando mesmo a oferecer o avião a Erica. Ele se encontraria com ela logo que pudesse.

Voltar a Luxor foi uma delícia. Apesar da lembrança do homem do dente pontudo, Erica sentiu-se infinitamente melhor no Alto Egito do que em meio à brutalidade do Cairo. Quando chegou ao hotel encontrou alguns recados de Ahmed pedindo que lhe telefonasse. Colocou todos os papéis perto do telefone. Caminhando até a porta da varanda, abriu-a. Passava um pouco das cinco, e o sol da tarde já não trazia calor.

Erica tomou um banho para tirar a poeira e o cansaço, embora a viagem de avião tivesse sido confortavelmente curta. Quando saiu da banheira, telefonou para Ahmed, que pareceu aliviado e feliz por ouvir a voz dela.

— Eu estava muito preocupado — falou Ahmed. — Especialmente quando me disseram no hotel que você não tinha sido vista.

— Fui para o Cairo ontem à noite. Yvon de Margeau me levou de avião.

—  Entendo — disse Ahmed.

Fez-se um silêncio incômodo entre os dois quando Erica se lembrou de que ele reagira de forma estranha com relação a Yvon desde a primeira vez.

— Bem — acrescentou Ahmed finalmente —, telefonei para saber se você gostaria de visitar o Templo de Carnac hoje à noite. Há lua cheia e o templo vai ficar aberto até a meia-noite. Vale a pena ver.

—  Eu gostaria muito — disse Erica.Acertaram que Ahmed a pegaria no hotel às nove horas. Iriam visitar o Templo de Carnac e depois jantariam. Ahmed conhecia um pequeno restaurante no Nilo, cujo proprietário era seu amigo. Assegurou que ela gostaria do lugar, e então desligou.

Erica colocou o vestido de jérsei marrom de decote cavado. Com o bronzeado um pouco mais forte e com a presilha nos cabelos, sentia-se muito feminina. Pediu uma garrafa de vinho no quarto e sentou-se na varanda com o Baedecker, com a capa rasgada bem diante dela.

O nome escrito na folha rasgada do livro de Abdul Hamdi era o de Nasef Malmud. Não havia erro. Por que Malmud mentira? Pegou o livro e examinou-o cuidadosa­mente. Era um volume bem-acabado, realmente costurado, e não apenas colado. Tinha muitos diagramas e desenhos a bico de pena de diversos monumentos. Erica folheou o livro, parando muitas vezes para ver uma ilustração ou ler um pequeno trecho. Havia também alguns mapas dobra­dos, de página dupla: um do Egito, um de Saqqara, e um da necrópole de Luxor. Ela os examinou, um de cada vez.

Quando tentou dobrar novamente o mapa de Luxor, teve alguma dificuldade para fechá-lo. Depois percebeu que o papel era diferente dos outros mapas. Olhando mais de perto, viu que ele era impresso em folha dupla. Erica esticou o mapa contra a luz do sol: havia um documento escondido atrás do mapa da necrópole de Luxor.

Entrando no quarto, Erica fechou uma das portas da varanda, e encostando o mapa no vidro deixou que o sol iluminasse o papel por trás. Pôde ver então a carta que havia lá dentro. A letra 'era fraca e pequena, mas em inglês e legível. Era endereçada a Nasef Malmud.

 

"Prezado Sr. Malmud:

Esta está sendo escrita por meu filho, que traduz minhas palavras. Não sei escrever. Sou um velho, de modo que se o senhor ler esta carta, não se preocupe com minha sorte. Em lugar disso, use essas informações anexas contra esses indivíduos que resolveram me calar em vez de me pagarem. A seguinte rota mostra como nos últimos anos os mais valiosos tesouros têm sido levados de nosso país. Fui contratado por um agente estrangeiro (cujo nome prefiro não revelar) para me infiltrar na rota do contrabando a fim de que ele possa obter os tesouros.Uma vez encontrando-se uma peça de valor, Lahib Zayed e seu filho Fathi, da Loja de Antigüidades Curio, enviam algumas fotos a compradores em potencial. Os interessados vêm a Luxor e combinam os preços. Uma vez fechado o negócio, o comprador deve deixar o dinheiro numa conta do Banco de Crédito de Zurique. A peça então é enviada para o norte por pequenos barcos e remetida para o escritório da Egeu Turismo Ltda., no Cairo, de propriedade de Stephanos Markoulis. Lá as antigüidades são colocadas junto com a bagagem de grupos de turistas insuspeitos (grandes peças separadas) e enviadas para Atenas pelas Linhas Aéreas Jugoslwenski. O pessoal da companhia aérea recebe dinheiro para deixar certas bagagens no avião para Belgrado e Liubliana. As peças são enviadas, por terra, para a Suíça, para a troca.

Foi criada uma nova rota recentemente na Alemanha. A firma de exportação de algodão, Futures Ltd., controlada por Zayed Naquib, embala as antigüidades em fardos e as manda para a Galeria Pierre Pauve, em Marselha. Essa rota não foi testada por este que lhe escreve.

Seu fiel servo Abdul Hamdi."

 

Erica dobrou o mapa e o guardou no Baedecker. Sem sombra de dúvida a estátua de Seti que Jeffrey Rice tinha fora enviada pela conexão de Atenas, como ela desconfiara quando se encontrara com Stephanos Markoulis. Era um método inteligente, porque a bagagem de grupos de turismo não era nunca sujeita ao mesmo tipo de vistoria que a de um viajante sozinho. Quem desconfiaria que uma senhora de sessenta e três anos, de Joilet, estivesse carregando antigüidades egípcias de valor inestimável em sua mala Samsonite colorida?

Voltando para a varanda, Erica debruçou-se no parapeito. O sol finalmente sumira por detrás das distantes montanhas. No meio dos campos irrigados na margem ocidental ficava o Colosso de Mêmnon, encoberto em meio à sombra. Ela pensou se daria o livro a Ahmed ou a Yvon — provavelmente a Ahmed. Mas talvez devesse esperar até que estivesse pronta para deixar o Egito. Seria o mais seguro. Tão importante quanto mostrar a rota do mercado negro, era também, para Erica, a estátua de Seti I em si e o lugar onde estava. Com empolgação ela imaginou o que mais poderia ser encontrado nesse lugar. Não queria que suas investigações fossem interrompidas pela polícia.

Erica tentou ser realista sobre o perigo que represen­tava ficar com o livro. Era óbvio, agora, que o velho fora um chantagista, mas fora pego. Era igualmente óbvio que Erica fora a gota d'água para seus planos. Ninguém sabia, de fato, que ela possuía qualquer informação, e até esse momento, nem ela mesma sabia. Confirmou sua decisão de não pensar em nada até estar pronta para deixar o país.

Enquanto a noite lentamente caía sobre o vale do Nilo, Erica revia seus planos. Continuaria com seu disfarce de compradora de museu e visitaria a Loja de Antigüidades Curio, que, pelo que sabia, ela já tinha visto, pois não se lembrava de todos os nomes. Depois tentaria descobrir se Sarwat Roman, o guia de Carter, ainda estava vivo. Deveria estar, no mínimo, com quase oitenta anos. Desejava conversar com alguém que tivesse entrado no túmulo de Tutancâmon no primeiro dia, e perguntar sobre o papiro que Carnarvon descrevera em sua carta a Sir Wallis Budge. Enquanto isso, esperava que Yvon procurasse descobrir o paradeiro da filha de Carnarvon, como prometera.

 

— Essa é a Chicago House — disse Ahmed, apontando para um prédio encantador à direita. A carruagem os levava tranqüilamente pela Shari el Bahr, em direção ao estuário do Nilo. O som ritmado das patas dos cavalos era repousante, como o quebrar das ondas na praia. Estava muito escuro, porque a lua cheia ainda não atingira o alto do penhasco do deserto. A leve brisa que soprava do norte não chegava a agitar as águas do Nilo, plácidas como um espelho.

Ahmed mais uma vez estava impecavelmente vestido com uma roupa de algodão branco. Quando Erica olhava para seu rosto queimado, via apenas seus olhos brilhantes e os dentes brancos.

Quanto mais ela ficava com Ahmed, mais confusa se achava sobre os motivos pelos quais ele saía com ela. Ele era gentil e terno, e contudo mantinha uma boa distância. A única vez em que a tocara fora para ajudá-la a subir na carruagem, segurando a mão dela e dando um leve empurrão em suas costas.

— O senhor já foi casado? — perguntou Erica, esperando conhecê-lo um pouco melhor.— Não, nunca — respondeu Ahmed secamente. — Acho que o casamento não foi feito para mim.

Ahmed levantou o braço e o colocou por trás de Erica, sobre o banco.

— Está certo. Não é nenhum segredo. — Sua voz estava outra vez solta. — Não tive tempo para romances, e acho que fiquei frustrado quando estive na América. As coisas não são iguais aqui no Egito. Mas isso provavelmente é apenas uma desculpa.

Passaram por um conjunto de casas alinhadas, ao estilo ocidental, construídas às margens do Nilo, cercadas por muros brancos. Em frente de cada casa havia um soldado, em traje de combate e com uma pistola. Mas os soldados não eram muito cuidadosos. Um deles chegara mesmo a colocar a arma sobre o muro para conversar com um transeunte.

—  Que casas são essas? — perguntou Erica.

—  As casas de alguns ministros — disse Ahmed.

—  Por que têm guardas?

—  Ser ministro pode ser um cargo perigoso neste país. Não se pode agradar a todos.

— O senhor é um ministro — lembrou Erica, preocupada.

— Sim, mas infelizmente o povo não liga muito para o meu departamento.

Eles estavam calados quando os primeiros raios de luar lançaram-se pelas folhas das palmeiras, que sussurra­vam ao sabor do vento.

— Essa é a sede, em Carnac, do Departamento de Antigüidades — disse Ahmed apontando para um prédio à beira do rio.

Erica viu os primeiros grandes pilares do Templo de Amon, iluminados pelo luar. Pararam na porta e saltaram. Subindo o pequeno caminho da entrada, ladeado de esfinges com cabeças de carneiro, Erica ficou maravilhada. A meia-luz provocada pela lua escondia o aspecto de ruína do templo, fazendo-o parecer ainda em funcionamento.

Tiveram de caminhar com muito cuidado em meio às sombras para chegarem ao pátio. Repentinamente, Ahmed segurou a mão de Erica quando atravessavam o imenso pátio e passavam para o pequeno hall. Era como ser transportada ao passado.

O hall era uma floresta de grandes colunas de pedra que pareciam encostar no céu. A maior parte do teto já não existia mais, e raios do luar penetravam ali, iluminando com luz prateada as pilastras e seus extensos textos em hieróglifos e altos-relevos.

Eles não diziam nada; apenas caminhavam de mãos dadas. Depois de cerca de meia hora, Ahmed levou Erica para fora, por uma entrada lateral, até a primeira pilastra. Do lado norte ficava uma escada de tijolos que os levou ao alto do templo, a cerca de quarenta metros de altura. Lá do alto Erica pôde ver toda a área de Carnac. Era muito bonito.

— Erica...

Ela se virou. A cabeça de Ahmed estava um pouco virada para o lado, os olhos dele a admirando.

—  Erica, acho-a muito bonita.

Ela gostava de elogios, mas eles sempre a faziam ficar um tanto constrangida. Desviou os olhos quando Ahmed estendeu a mão e passou os dedos em sua testa.

—  Obrigada, Ahmed — disse ela, simplesmente. Levantando os olhos, percebeu que Ahmed ainda a

perscrutava. Ela sentia um conflito interno.

— Você me faz lembrar de Pamela — acrescentou ele, finalmente.

—  É? — disse Erica.

Fazê-lo lembrar-se de uma antiga namorada não era o que ela desejava, mas podia jurar que ele dissera isso como um elogio. Ela deu um leve sorriso e olhou para algum ponto distante onde a lua estava batendo. Talvez o fato de ser parecida com Pamela fosse o motivo para Ahmed vê-la.

— Você é mais bonita. Mas não é sua aparência que me faz lembrar dela; é sua franqueza e seu entusiasmo.

— Veja bem, Ahmed, não sei se compreendi bem. Da última vez em que estivemos juntos eu lhe fiz uma pergunta inocente e você estourou. Agora você insiste em falar nela. Não acho justo.

Ficaram em silêncio por algum tempo. As maneiras de Ahmed eram intrigantes, mas ao mesmo tempo amedrontadoras, e a lembrança da xícara quebrada não era agradável.

— Você acha que poderia morar num lugar como Luxor? — perguntou Ahmed sem tirar os olhos do Nilo.

— Não sei — respondeu Erica. — Nunca pensei nisso. É muito bonito.

—  É mais do que bonito. É eterno.

—  Eu sentiria falta da Praça Harvard. Ahmed riu, aliviando a tensão.— Praça Harvard. Que lugar maluco. A propósito, Erica, pensei em sua decisão de tentar fazer alguma coisa sobre o mercado negro. Não sei se minha advertência foi forte o suficiente. Realmente me assusta pensar em você envolvida nisso. Por favor, não se envolva. Não posso suportar a idéia de que algo de mal lhe aconteça.

Ele se inclinou e suavemente beijou-a na testa.

— Venha. Você precisa ver os obeliscos de Hatshepsut com o luar. — E levando-a pela mão, voltaram pela escada de tijolos.

 

O jantar foi maravilhoso. Tendo caminhado uma hora e meia no esplendor de Carnac, não começaram a refeição antes das onze. O pequeno restaurante que ficava à margem do Nilo fora construído sob uma cobertura natural de altas tamareiras. As tâmaras estavam quase na época da colheita, e o frutinho vermelho estava pendurado nas árvores aos cachos.

A especialidade do restaurante era carne picada com pimenta, cebola e carneiro ao escabeche com alho, salsa e hortelã. A carne era servida com tomate, alcachofra e arroz. Era um restaurante ao ar livre e popular entre a classe média de Luxor, cujas conversas eram acompanhadas por gesticulação e risos. Não havia turistas ali.

Ahmed tornara-se bem mais descontraído desde a conversa que tiveram ao pé da pilastra. Alisou o bigode pensativamente quando Erica lhe contou sobre sua tese de doutoramento recentemente defendida: A evolução sintáti­ca dos hieróglifos do Novo Império. Ele riu com satisfação quando ela lhe disse que usara as antigas poesias românticas egípcias como sua primeira fonte. Usar poemas de amor como base para uma tese esotérica era muito irônico.

Erica perguntou a Ahmed sobre sua infância. Ele lhe disse que tinha sido muito feliz por ter sido criado em Luxor. Por isso é que ele gostava de voltar lá. Depois que fora para o Cairo, sua vida tornara-se complicada. Contou que seu pai fora ferido e o irmão mais velho morto na guerra de 1956. Sua mãe fora uma das primeiras mulheres do país a conseguir diploma de segundo grau e diploma universitário. Ela tentara trabalhar no Departamento de Antigüidades, mas naquela época não conseguira por ser mulher. Agora ela morava em Luxor e trabalhava em meioexpediente para um banco estrangeiro. Ahmed disse que tinha uma irmã mais moça que fizera o curso de advocacia e que trabalhava na divisão de alfândega do Departamento do Interior.

Depois do jantar, tomaram café. A conversa tinha um tom bem natural e Erica decidiu fazer uma pergunta.

— Aqui em Luxor existe alguma central de informação através da qual se possa localizar o paradeiro de uma pessoa?

— Tentou-se fazer um recenseamento há uns anos, mas receio que não se tenha obtido muito sucesso. A informação colhida estaria disponível num prédio ao lado dos Correios. Por que você pergunta?

—  Curiosidade, apenas — disse Erica evasivamente.

Ela conjecturava se deveria falar com Ahmed sobre seu interesse nos antigos ladrões do túmulo de Tutancâmon, mas receava que ele tentasse dissuadi-la, ou, o que seria pior, risse dela se ela dissesse que estava procurando por Sarwat Roman. Quando ela pensou nisso, pareceu-lhe um pouco difícil. A última referência que obtivera era de cinqüenta e sete anos atrás.

Foi nesse momento que ela viu o homem de terno escuro. Não pôde ver seu rosto porque ele estava de costas, mas o modo como se sentava à mesa era inconfundível. Ele era uma das poucas pessoas que não usavam traje árabe. Ahmed percebeu a reação dela e perguntou:

—  Qual o problema?

— Ah, nada — respondeu Erica, saindo do seu transe. — Não foi nada.

Mas era desconcertante. Estar com Ahmed fez cair por terra sua suposição de que o homem de terno escuro trabalhava para as autoridades. Quem seria?

 

Dia 7 - Luxor, 8:15

O som da gravação daquela voz, vindo da pequena mesquita do Templo de Luxor, despertou Erica de um sonho agitado. Ela estava fugindo de uma criatura aterrorizante, que contudo não podia ver, mas parecia não sair do lugar onde estava. Quando acordou, estava toda enrolada nas cobertas e imaginou que devia ter-se agitado muito.

Levantou-se e abriu as janelas para receber o frescor da manhã. Com a brisa batendo em seu rosto, seu pesadelo desapareceu. Tomou um banho rápido de chuveiro, dentro da banheira. Por algum motivo não havia água quente, e ela estava tremendo quando saiu do banho.

Depois do café, Erica saiu para ir à Loja de Antigüidades Curio. Levou a bolsa com a lanterna, a máquina Polaroid e os guias de viagem. Estava vestida com uma calça nova de algodão que comprara no Cairo para substituir a que rasgara no Serapeu.

Desceu pela Shari Lukanda e percebeu os nomes das lojas que já visitara. A Loja de Antigüidades Curio não estava entre elas. Um dos proprietários que ela reconheceu disse-lhe que a Loja de Antigüidades Curio ficava na Shari el Muntazah, perto do Hotel Savoy. Erica encontrou a rua e a loja em pouco tempo. Perto da Curio ficava uma loja de aspecto tosco. Embora não pudesse ler seu nome todo, viu a palavra "Hamdi" e soube logo que loja era aquela.

Segurando a bolsa com firmeza, entrou na Loja Curio. Havia algumas excelentes antigüidades, embora com um exame mais apurado ela viesse a descobrir que a maioria era falsificada. Um casal de franceses que estava na loja pechinchava ferrenhamente uma pequena figura em bron­ze.

A peça mais interessante que Erica viu foi uma estátua preta com forma de múmia, tendo o rosto delicadamente pintado. Já não tinha mais a base, de forma que a estátua estava encostada na parte lateral da prateleira. Assim que o casal francês saiu, sem comprar a peça de bronze, o proprietário da loja aproximou-se de Erica. Era um árabe de aparência distinta com cabelos grisalhos e um bigode bem-tratado.

— Sou Lahib Zayed. Posso ajudá-la em alguma coisa? — disse ele, deixando de falar francês e usando o inglês. Erica ficou pensando como teria ele acertado sua nacionali­dade.

— Sim — respondeu Erica. — Eu gostaria de ver aquela estátua de Osíris.

— Pois não. Uma das melhores peças que tenho. Do túmulo dos nobres. — Pegou a peça delicadamente com a ponta dos dedos.

Enquanto estava de costas, Erica molhou a ponta dos dedos. Quando ele lhe entregou a estátua ela estava pronta.

— Tenha muito cuidado. É uma peça delicada — falou Zayed.

Erica assentiu e passou o dedo de um lado para outro. A ponta do dedo continuou limpa. A tinta estava firme. Olhou a peça mais de perto, vendo como fora feita e a maneira como os olhos foram pintados. Esse era o ponto crítico. Ela ficou certa de que aquela estátua era antiga.

— Novo Império — informou Zayed, segurando a es­tátua longe de Erica para que ela pudesse vê-la à dis­tância. — Só tenho algo assim uma ou duas vezes por ano.

— Quanto custa?

— Cinqüenta libras. Normalmente eu pediria mais, mas você é muito bonita.

Erica sorriu.

— Eu pago quarenta — pechinchou ela, sabendo muito bem que ele não esperava conseguir o preço que pedira inicialmente. Ela sabia também que era um pouco mais do que deveria gastar, mas acima de tudo era importante provar que sua intenção era séria. Além disso, gostara da estátua. Mesmo se mais tarde visse que a peça era uma boa imitação, ainda assim era bem decorativa. Acabaram acertando em quarenta e uma libras.

— Na verdade, estou aqui representando um grande grupo — disse Erica — e procuro algo de muito especial. O senhor tem alguma coisa assim?— Posso ter algumas coisas que lhe interessem. Talvez deva lhe mostrar essas peças num lugar mais agradável. Você gostaria de tomar um pouco de chá de hortelã?

Erica sentiu um pouco de ansiedade quando entrou na sala dos fundos da Loja de Antigüidades Curio. Teve que se esforçar para não se lembrar da cena da degolação de Abdul Hamdi. Felizmente a Loja de Antigüidades Curio tinha outra disposição, abrindo-se num pátio à luz do sol. Esta não tinha o aspecto fechado da Antica Abdul.

Zayed chamou o filho, de cabelos pretos, um fac-símile imperfeito do pai, dizendo-lhe que mandasse preparar chá de hortelã para a visita.

Sentando em sua cadeira, Zayed fez a Erica as perguntas de sempre: se gostava de Luxor, se já tinha ido a Carnac, o que pensava do vale dos Reis. Disse a ela que gostava muito dos americanos, que eram muito amistosos.

Erica acrescentou mentalmente: "... e muito crédulos".

O chá foi servido, e Zayed mostrou algumas peças interessantes, inclusive algumas pequenas estatuetas de bronze, uma cabeça de Amenenat III, quebrada mas identificável, e diversas estátuas de madeira. A mais bonita era a de uma jovem com hieróglifos na parte de baixo da frente da saia e um rosto tranqüilo que desafiava o tempo. Custava quatrocentas libras. Depois de examinar a peça cuidadosamente, Erica tinha quase certeza de que era autêntica.

— Estou interessada na estátua de madeira e possivel­mente na cabeça de bronze — afirmou em tom sério.

Zayed esfregou as mãos com grande alegria.

— Eu vou pedir aprovação das pessoas que represento — explicou Erica. — Mas sei de uma coisa que eles gostariam que eu comprasse imediatamente, se eu desco­brisse.

—  O que é? — perguntou Zayed.

— Existe uma estátua de Seti I em tamanho natural comprada há cerca de um ano por um homem de Houston. Meus clientes ouviram dizer que foi descoberta uma estátua similar.

— Não tenho nada assim — respondeu Zayed, sem colorido na voz.

— Bem, se o senhor ficar sabendo de alguma peça assim, eu estou no Winter Palace Hotel. — Erica escreveu seu nome num pedaço de papel e o entregou a ele.

—  E essas peças aqui?— Como eu já disse, vou entrar em contato com meus clientes. Gosto muito da estátua de madeira, mas preciso falar com eles.

Erica pegou o que comprara, embrulhado em jornal árabe, e voltou— para a parte da frente da loja. Ela estava convencida de que desempenhara o papel muito bem. Quando saiu, percebeu o filho de Zayed e um cliente pechinchando. Era o árabe que a estava seguindo. Sem diminuir o passo ou olhar para ele, Erica saiu da loja, mas sentiu um arrepio na espinha.

Logo que seu filho acabou de atender o cliente, Lahib Zayed fechou a porta da frente da loja e a trancou.

— Venha aqui nos fundos — ordenou ao filho. — Essa é a mulher sobre a qual Stephanos Markoulis nos avisou quando veio aqui outro dia — disse, quando estavam seguros dentro da sala dos fundos. Ele chegara até a fechar a porta de madeira do pátio.

— Quero que você vá até o posto e telefone para Markoulis; diga a ele que a mulher americana veio à loja e perguntou especificamente sobre a estátua de Seti. Vou até Muhammad dizer para ele avisar os outros.

—  O que vai acontecer com ela? — perguntou Fathi. — Acho que está bem claro. Isso me faz lembrar daquele jovem de Yale há dois anos.

—  Eles vão fazer o mesmo com a mulher?

—  Sem dúvida que sim — confirmou o pai.

 

Erica ficou assustada com o caos do prédio da administração de Luxor. Algumas pessoas esperavam há tanto tempo para serem atendidas que estavam dormindo no chão. No canto de um saguão ela viu uma família inteira acampada como se todos estivessem ali há dias. Atrás dos balcões os funcionários públicos ignoravam a multidão e conversavam entre si. Todas as mesas tinham pilhas de papéis esperando alguma assinatura impossível. Era terrível.

Quando Erica encontrou alguém que falasse inglês, ficou sabendo que não existia sequer uma administração central. A Muhãfazah * da região ficava em Assuã, e todos os dados do recenseamento estavam lá. Erica disse à mulher que queria localizar um homem que vivera na margem ocidental há cinqüenta anos. A mulher olhou para Erica como se ela fosse louca e disse que era impossível, embora pudesse averiguar com a polícia. Havia sempre a possibilidade de a pessoa que ela procurava ter tido problemas com as autoridades.

Era mais fácil lidar com os policiais do que com os funcionários públicos. Pelo menos aqueles foram simpáti­cos e atenciosos. Na verdade, todos os funcionários uniformizados estavam olhando para ela quando ela chegou ao balcão. Todos os cartazes eram escritos em árabe, de modo que Erica dirigiu-se a uma seção onde não havia fila. Um jovem simpático de uniforme branco levantou-se de trás da mesa para ajudá-la. Infelizmente ele não sabia falar inglês. Mas encontrou um homem da polícia de turistas que sabia.

— O que posso fazer pela senhora? — perguntou ele com um sorriso.

— Estou tentando descobrir se um dos guias de Howard Carter, chamado Sarwat Raman, ainda está vivo. Ele morava na margem ocidental.

— O quê? — disse o policial, sem acreditar. Ele achou graça. — Já me fizeram perguntas estranhas, mas essa, certamente, é uma das mais interessantes. A senhora está falando no Howard Carter que descobriu o túmulo de Tutancâmon?

—  Exatamente.

—  Mas isso aconteceu há cinqüenta anos.

—  Eu sei disso. Quero saber se ele ainda está vivo. — Madame — disse o policial —, não se sabe nem quantas pessoas moram na margem ocidental, quanto mais saber de uma família específica. Mas vou lhe dizer o que eu faria se fosse a senhora. Vá até a margem ocidental e visite a pequena mesquita da aldeia de Qurna. O chefe é velho, e fala inglês. Talvez ele possa ajudar. Mas duvido. O governo tentou reconstruir a aldeia de Qurna e retirar as pessoas daqueles túmulos antigos. Mas tem sido uma grande luta, e há muito antagonismo. Não são um grupo amistoso. Portanto, tenha cuidado.

 

Lahib Zayed olhou para os dois lados, para se certificar de que não estava sendo visto, antes de entrar no beco. Entrou correndo e bateu numa porta de madeira. Sabia que Muhammad Abdulal estava em casa. Era hora do almoço e Muhammad sempre tirava um cochilo. Lahib bateu outra vez. Estava com receio de que pudesse ser visto por algum estranho antes de ter conseguido entrar na casa.

Uma portinhola abriu-se, e apareceu ali um olho avermelhado de sono. A tranca foi levantada e a porta se abriu. Lahib entrou e a porta se fechou atrás dele.

Muhammad Abdulal estava usando uma túnica toda amarrotada. Ele era grande, com feições grosseiras. Suas narinas estavam dilatadas e arfavam.

— Eu disse a você para nunca vir a esta casa. É bom que tenha um ótimo motivo para correr um risco desses.

Lahib cumprimentou Muhammad formalmente antes de falar.

—  Eu não teria vindo se não julgasse importante. Erica Baron, a americana, foi hoje de manhã na Curio, dizendo que representava um grupo de compradores. Ela é bem firme. Conhece antigüidades e na verdade comprou uma pequena estátua. Depois perguntou especialmente pela estátua de Seti I.

— Ela estava sozinha? — perguntou Muhammad, agora mais alerta do que furioso.

— Acho que sim — disse Lahib.

—  E perguntou pela estátua de Seti?

—  Exatamente.

— Bem, isso deixa pouca escolha. Vou acertar tudo. Você diga a ela que pode ver a estátua amanhã à noite, com a condição de que vá sozinha e não seja seguida. Diga que vá à mesquita de Qurna ao anoitecer. Devíamos ter dado fim nela antes, como eu queria.

Lahib certificou-se de que Muhammad tinha termina­do, antes de falar.

— Mandei que Fathi entrasse em contato com Stephanos Markoulis e lhe contasse a novidade.

Muhammad bateu com a mão no lado da cabeça de Lahib.

— Karrab! Por que você decidiu sozinho que devia avisar a Stephanos?

Lahib encolheu-se, esperando outro tapa.

— Ele me pediu para avisar se a mulher aparecesse. Está tão preocupado quanto nós.

— Você não recebe ordens de Stephanos — gritou Muhammad. — Você recebe ordens de mim. Que isso fique bem claro. Agora vá embora daqui e dê o recado a ela. Precisamos tomar cuidado com essa americana.

 

Necrópole de Luxor, aldeia de Qurna, 14:15

O policial estava certo. Qurna não era um lugar agradável. Quando Erica subiu a colina que separava a aldeia da estrada asfaltada, não sentiu a sensação de boas-vindas que as outras cidades que visitara apresenta­vam. Viu poucas pessoas, e aquelas por quem ela passava a olhavam e desapareciam nas sombras. Até os cachorros eram sarnentos, vira-latas rosnadores.

Começou a não gostar do lugar já no táxi, quando o motorista não queria ir para Qurna e sim para o vale dos Reis ou algum outro lugar distante. Ele a fizera saltar no sopé da colina arenosa e suja, dizendo que o carro não agüentava subir.

Estava demasiadamente quente, a mais de cinqüenta graus, e não havia sombras. O sol egípcio inundava tudo, fazendo as rochas arderem e refletindo-se de forma brilhante no chão arenoso. Nem uma folhinha que fosse ou um animal sobreviveria a esse calor. Contudo, o povo de Qurna se recusava a sair dali. Queriam viver como seus avós e bisavós haviam vivido através dos séculos. Erica pensou que se Dante tivesse conhecido Qurna a teria incluído no inferno.

As casas eram feitas de tijolinhos, conservados na sua cor natural ou pintados de branco. Quanto mais Erica subia a colina, mais podia ver as aberturas feitas na rocha entre as casas. Aquilo eram as entradas dos antigos túmulos. Muitas casas tinham quintal com estruturas curiosas dentro delas: plataformas com cerca de dois metros de compri­mento sustentadas apenas por uma coluna fina a uma altura de aproximadamente um metro e meio. As colunas eram feitas de lama seca e da mesma cor dos tijolinhos.A mesquita tinha apenas um andar e era pintada de branco, e o seu minarete era bem largo. Erica notara o prédio na primeira vez em que estivera em Qurna. Como o resto da aldeia, ela era feita de tijolinhos, e Erica ficou pensando se uma boa chuva não varreria tudo aquilo. Entrou por uma pequena porta de madeira e foi dar num pequeno pátio, tendo à sua frente um pórtico alto sustentado por três colunas. À direita ficava uma porta de madeira.

Indecisa se deveria entrar ou não, Erica esperou na porta até seus olhos se adaptarem à escuridão. As paredes internas eram pintadas de branco e tinham complicadas figuras geométricas. O chão era revestido com tapetes orientais. Ajoelhado diante de uma sacada virada para Meca, estava um velho de barbas vestindo uma túnica preta larga. Suas mãos estavam abertas junto ao rosto e ele cantava.

Embora o velho não tivesse se voltado, devia ter sentido a presença de Erica, porque logo se curvou, beijou a página, e levantou-se para ver quem era.

Ela não tinha idéia de como cumprimentar um idoso líder do islamismo, e então improvisou. Abaixou um pouco a cabeça e disse:

— Eu gostaria de lhe perguntar sobre um homem, um homem velho.

O velho líder estudou Erica com seus olhos escuros e fundos, depois fez sinal para que ela o seguisse. Atravessa­ram o pequeno pátio e entraram na porta que Erica tinha visto. Essa porta abria-se numa pequena e austera sala com uma cama de um lado e uma pequena mesa do outro. Ele indicou uma cadeira para Erica e sentou-se também.

— Por que você quer localizar alguém em Qurna? — perguntou o líder religioso. — Suspeitamos de estrangeiros aqui.

— Sou egiptóloga e queria saber se um dos guias de Howard Carter ainda está vivo. O nome dele é Sarwat Raman. Ele morava em Qurna.

—  Sim, eu sei — disse o velho.

Erica sentiu uma pontinha de esperança até o velho continuar.

—  Ele morreu há cerca de vinte anos. Era um dos fiéis. Os tapetes dessa mesquita são uma generosidade dele.

— Entendo — falou Erica com um aparente desaponta­mento. Levantou-se. — Bem, tinha sido uma boa idéia. Obrigada por sua ajuda.—  Ele era um bom homem — comentou o velho.

Erica assentiu e saiu da sala para a brilhante luz do sol, pensando em como iria conseguir um táxi para voltar à estação dos barcos. Quando já ia sair do pátio, o velho religioso a chamou.

Erica voltou-se. Ele estava na porta do seu quarto.

— A viúva de Raman ainda é viva. Gostaria de falar com ela?

—  Ela falaria comigo?

— Estou certo que sim — afirmou o velho. — Ela trabalhou como empregada de Carter e fala inglês melhor do que eu.

Enquanto seguia o velho ladeira acima, Erica pensava em como uma pessoa podia usar túnicas tão pesadas com um calor daqueles. Mesmo com as roupas leves que usava, suas costas estavam molhadas de suor. O velho levou-a a uma casa pintada de branco que era mais alta que as demais, e ficava no lado sudeste da aldeia. Bem atrás da casa os penhascos se projetavam abruptamente. À direita, Erica viu um caminho que começava na colina e que, supunha, ia até o vale dos Reis.

A fachada branca da casa estava cheia de desenhos de carros, barcos e camelos feitos pelas crianças.

— Raman gravou sua peregrinação a Meca — explicou o velho, batendo na porta.

No pátio estava uma das plataformas que Erica vira antes. Ela perguntou o que era aquilo.

— As pessoas às vezes dormem do lado de fora nos meses de verão. Usam essas plataformas para evitar os escorpiões e as cobras.

Erica sentiu um arrepio na espinha.

Uma senhora idosa abriu a porta. Reconhecendo o velho, ela sorriu. Falaram em árabe. Quando terminaram de falar, a mulher se voltou para Erica.

— Seja bem-vinda — disse com um forte sotaque britânico, abrindo mais a porta para Erica entrar. O velho pediu licença e saiu.

Como a pequena mesquita, a casa era surpreendente­mente fresca. Ao contrário da parte externa, o interior era aconchegante. O assoalho de madeira estava coberto com um tapete oriental. A mobília era simples mas bem-feita, as paredes emassadas e pintadas. Em três paredes havia fotos emolduradas. Na quarta, estava pendurada uma pá de cabo comprido com a lâmina cinzelada.A senhora apresentou-se como Aida Raman. Disse a Erica, com orgulho, que faria oitenta anos no próximo mês de abril. Com a verdadeira hospitalidade árabe, ela serviu uma bebida gelada, explicando que fora feita com água fervida e que Erica não precisava ficar com medo dos germes.

Erica gostou da mulher. Tinha os cabelos negros despenteados, caídos para trás, o rosto redondo e usava um vestido de algodão largo e estampado com cores alegres. No punho esquerdo usava uma pulseirinha de plástico. Ria muito, mostrando apenas dois dentes no maxilar inferior.

Erica explicou que era egiptóloga, e Aida ficou visivelmente contente por falar em Howard Carter. Contou a Erica como o adorava, muito embora ele fosse um pouco estranho e muito solitário. Lembrou-se de como Howard Carter gostava de seu canário e como ficou triste quando uma cobra o comeu.

Enquanto Erica bebia, sentia-se cativada pelas histórias. Era óbvio que Aida estava gostando tanto do encontro quanto ela própria.

— A senhora se lembra do dia em que foi aberto o túmulo de Tutancâmon? — perguntou Erica.

— Oh, sim — respondeu Aida. — Foi o dia mais maravilhoso. Meu marido ficou muito feliz. Pouco depois, Carter concordou em ajudar Sarwat a conseguir o alvará para instalar um restaurante no vale. Meu marido achava que os turistas em breve visitariam o lugar aos milhares para ver o túmulo que Howard descobrira. E ele estava certo. Ele continuou a ajudar no túmulo, mas gastava quase todo o seu tempo na construção do restaurante. Na verdade, ele o construiu praticamente sozinho, mesmo tendo que trabalhar à noite.

Erica deixou Aida falar um pouco, e depois perguntou:

— A senhora se lembra de tudo que aconteceu no dia em que o túmulo foi aberto?

— É claro! — disse Aida, um pouco surpresa com a interrupção.

— O seu marido alguma vez disse algo sobre um papiro?

Os olhos da senhora por um instante se turvaram. A boca mexeu mas nenhum som foi articulado. Erica sentiu uma onda de excitação. Prendeu a respiração, observando a estranha reação da senhora.Finalmente Aida falou:

—  Você é do governo?

—  Não — respondeu Erica.

— Por que fez essa pergunta? Todos sabem o que foi descoberto. Há livros a respeito.

Colocando o copo sobre a mesa, Erica explicou a Aida a curiosa discrepância entre a carta de Carter a Wallis Budge e o fato de que as anotações de Carter não mencionavam o papiro. Ela não era do governo, acrescen­tou para tranqüilizar a outra mulher. Seu interesse era puramente como estudiosa.

— Não — continuou Aida depois de um incômodo silêncio. — Não existe papiro nenhum. Meu marido nunca apanharia um papiro do túmulo.

— Aida, eu nunca disse que seu marido apanhou o papiro.

—  Disse, sim. Você disse que o meu marido...

— Não. Apenas perguntei se alguma vez ele tinha falado nesse papiro. Não o estou acusando.

— Meu marido era um homem bom. Tinha um nome respeitado.

— Eu sei. Carter era uma pessoa exigente. Seu marido tinha que ser muito bom mesmo. Ninguém quer manchar o nome do seu marido.

Fez-se outro longo silêncio. Por fim Aida voltou-se novamente para Erica.

— Meu marido já morreu há vinte anos. Ele me disse para nunca falar no papiro. E eu nunca falei, mesmo depois que ele morreu. Mas ninguém também tinha me falado nele. Por isso fiquei tão chocada quando você falou nisso. De certa forma, é um alívio poder contar a alguém. Você não contará para as autoridades?

— Não, não contarei nada — prometeu Erica. — Depende da senhora. Então havia mesmo um papiro e seu marido o tirou do túmulo?

—  Sim — disse Aida. — Há muitos anos.

Agora Erica fazia uma idéia do que acontecera. Raman apanhara o papiro e o vendera. Ia ser difícil descobri-lo.

— Ele me disse que o apanhou no túmulo logo no primeiro dia. Estavam todos interessados nos tesouros. Ele pensou que aquilo contivesse algum tipo de maldição e ficou com medo de que parassem o projeto se soubessem. Lorde Carnarvon era muito interessado em ocultismo.

Erica tentou imaginar os fatos daqueles dias de excitação pela descoberta. Carter não devia ter visto o papiro a princípio, devido à sua pressa em averiguar se as paredes da câmara mortuária estavam inteiras, e os demais estavam maravilhados pelo esplendor dos objetos.

— O papiro continha alguma maldição? — perguntou Erica.

— Não. Meu marido disse que não. Ele nunca o mostrou a nenhum dos egiptólogos. Em vez disso, ele copiava algumas partes e pedia aos especialistas para traduzirem. Depois juntou tudo. Mas disse que não era nenhuma maldição.

—  Ele disse o que era? — perguntou Erica.

— Não. Disse apenas que fora escrito por um homem inteligente que queria registrar que Tutancâmon fora ajudado por Seti I.

O coração de Erica disparou. O papiro associava Tutancâmon com Seti I, como na inscrição da estátua.

— A senhora faz alguma idéia do que aconteceu ao papiro? O seu marido o vendeu?

—  Não. Ele não vendeu. Está comigo.

O sangue sumiu do rosto de Erica. Enquanto Erica estava imobilizada, Aida arrastou-se até a pá pendurada na parede.

— Howard deu essa pá de presente ao meu marido — disse Aida. Ela tirou o cabo de madeira da lâmina. Havia um buraco na ponta do cabo.

"Esse papiro não é tocado há cinqüenta anos", continuou Aida enquanto tentava tirar o velho documento. Ela o desenrolou sobre a mesa, usando as duas partes da pá para prender as pontas do papiro.

Levantando-se lentamente, Erica deixou seus olhos se regalarem com o texto em hieróglifos. Era um documento oficial com selos do Estado. Imediatamente Erica reconhe­ceu os símbolos de Seti I e de Tutancâmon.

— Posso fotografá-lo? — perguntou Erica, quase não querendo respirar.

—  Desde que o nome do meu marido não seja denegrido — observou Aida.

— Eu lhe prometo que não será — garantiu Erica, apanhando a Polaroid. — Não farei nada sem sua permissão.

Tirou várias fotos e certificou-se se estavam boas para que depois pudesse trabalhar com elas.— Obrigada. Agora vamos guardar o papiro, mas, por favor, com cuidado. Ele deve ter muito valor, e pode tornar o nome de Raman famoso.

— Estou mais interessada na reputação do meu marido — objetou Aida. — Além disso, o nome da família morre comigo. Tivemos dois filhos, mas os dois morreram nas guerras.

— Seu marido tinha mais alguma coisa do túmulo de Tutancâmon? — perguntou Erica.

— Oh, não! — respondeu Aida.

— Está bem — disse Erica. — Vou traduzir o papiro e lhe dizer o que contém e então a senhora decidirá o que deseja fazer com ele. Não direi nada às autoridades. Isso dependerá da senhora. Mas por enquanto não o mostre a ninguém. — Erica já sentia ciúmes da sua descoberta.

Saindo da casa de Aida Raman, ficou pensando na melhor maneira de voltar ao hotel. A idéia de caminhar cinco quilômetros até a estação dos barcos desanimou-a, e ela decidiu arriscar o caminho que havia atrás da casa de Aida Raman e ir até o vale dos Reis. Lá certamente conseguiria um táxi.

Embora estivesse quente e fosse cansativo subir até o alto da colina, a vista era espetacular. A aldeia de Qurna ficava bem no sopé. Logo além da aldeia estava a imponente ruína do Templo da Rainha Hatshepsut, incrus­tado nas montanhas. Continuou a subir e a olhar para baixo. Todo o vale verde se estendia bem abaixo dela, com o Nilo serpenteando pelo centro. Cobrindo os olhos por causa da claridade do sol, Erica virou para o oeste. Bem à frente estava o vale dos Reis. De onde estava podia ver, além do vale, os picos avermelhados das montanhas de Tehas, onde elas se misturavam com o Saara. Ela teve uma sensação de grande solidão.

Descer para o vale era muito mais fácil, embora Erica tivesse que ter cuidado nas panes mais íngremes do caminho. A estradinha se fundia com outra vinda das ruínas da Aldeia da Verdade, onde ela sabia que os antigos operários das necrópoles moravam. Quando chegou no final da descida, já no vale, estava sentindo muito calor e muita sede. Apesar do seu desejo de voltar para o hotel e começar a traduzir o papiro, foi até o barzinho para beber alguma coisa. Subindo os degraus do bar, não podia deixar de pensar em Sarwat Raman.Era uma história realmente maravilhosa. Um árabe que roubara o documento receoso de que ele contivesse uma maldição. Ele estava com medo de que esta maldição pudesse suspender os trabalhos de escavação!

Erica pediu uma Pepsi-Cola e encontrou um lugar vazio na varanda. Olhou em torno do prédio. Era feito de pedras do local. Erica admirou-se de que Raman o tivesse construído sozinho. Ela adoraria tê-lo conhecido. Havia uma pergunta que gostaria de ter feito de viva voz. Por que Raman não dera um jeito de devolver o papiro depois que soubera que ele não representava nenhuma maldição? Obviamente não o queria vender. A única explicação em que Erica podia pensar era que ele ficara com medo das conseqüências. Ela bebeu um longo gole de Pepsi e apanhou uma das preciosas fotos do papiro. Pelo que viu, os hieróglifos deviam ser lidos do modo normal, da direita para a esquerda, de baixo para cima. Parou num nome próprio logo no começo, quase não acreditando em seus olhos. Lentamente repetiu o nome para si: "Nenephta... Meu Deus!"

Ao perceber um grupo de turistas entrando num ônibus, Erica pensou que talvez pudesse pegar uma carona com eles até a estação de barcos. Guardou as fotos na bolsa e rapidamente procurou o toalete. Um garçom disse que ficava embaixo da pensão, mas depois de achar a porta ela desistiu, devido ao forte cheiro de urina. Decidiu que poderia esperar até chegar ao hotel. Correu quando viu os últimos passageiros entrarem no ônibus.

 

Luxor, 18:15

Em pé na beira da varanda do seu quarto, Erica esticou os braços para cima e suspirou com alívio. Terminara de traduzir o papiro. Não fora difícil, embora ela não estivesse certa de ter entendido o significado.

Olhando para o Nilo, viu um grande navio de luxo passar lentamente. Depois de ter mergulhado na Antigüida­de através do papiro, a moderna embarcação parecia deslocada. Era como ver um disco voador aterrissando em Boston.

Erica voltou à mesa com tampo de vidro em que estivera trabalhando, pegou a tradução e leu-a:

 

"Eu, Nenephta, arquiteto chefe do Deus Vivo (que tenha vida eterna), Faraó, Rei de nossas duas terras, o grande Seti I, de modo reverente reparo a perturbação do descanso eterno do menino Rei Tutancâmon dentro dessas modestas paredes e com essas poucas provisões para toda a eternidade. O indiscutível sacrilégio da tentativa de profa­nação do túmulo do Faraó Tutancâmon pelo pedreiro Emeni, que nós justamente matamos e cujos restos espalhamos no deserto ocidental para os chacais, serviu para um nobre fim. O pedreiro Emeni abriu meus olhos para compreender os gananciosos e os injustos. Assim, eu, arquiteto chefe, agora sei de que modo garantir a eterna segurança do Deus Vivo (que tenha vida eterna), Faraó, Rei de nossas duas terras, o grande Seti I. Imhotep, arquiteto do Deus Vivo Zoser e construtor da Pirâmide das Escadas, e Neferhotep, arquiteto do Deus Vivo Khufu e construtor da Grande Pirâmide, seguiram o modo em seus monumentos, mas sem uma total compreensão. Em vista disto, o descanso eterno do Deus Vivo Zoser e do Deus Vivo Khufufoi perturbado e os túmulos violados e destruídos na primeira fase. Mas eu, Nenephta, arquiteto chefe, sei como agir, e conheço a avidez dos ladrões de túmulos. E assim farei, e o túmulo do menino deus Tutancâmon é selado novamente neste dia.

Ano 10 do Filho do Rei, Faraó Seti I, segundo mês da germinação, dia 12."

 

Erica colocou o papel sobre a mesa. A palavra com a qual tivera mais problema fora "modo". Os sinais de hieróglifos sugeriam "método" ou "modelo" ou mesmo "engano", mas a palavra "modo" tinha mais sentido sintaticamente. Mas o que ela significava deixou-a frustrada.

Traduzir o papiro dera a Erica uma grande sensação de realização. Além disso fez a vida do antigo Egito tornar-se incrivelmente vivida, e ela sorriu da arrogância de Nenephta. Apesar de supostamente ele conhecer a avidez dos ladrões de túmulo e o "modo" de evitá-los, o magnífico túmulo de Seti fora profanado antes de cem anos depois de fechado, enquanto o modesto túmulo de Tutancâmon permanecera imperturbável por mais de três mil anos.

Pegando a tradução novamente, Erica releu a parte que mencionava Zoser e Khufu. Subitamente ficou pesarosa por não ter visitado a Grande Pirâmide. Na época, sentira-se muito bem por não ter corrido para as pirâmides de Gizé como os outros turistas. Agora gostaria de ter ido. Como Neferhotep pode ter usado o "modo" para construir a Grande Pirâmide sem um total conhecimento? Erica olhava para as distantes montanhas. Aos misteriosos significados atribuídos à forma e ao tamanho da Grande Pirâmide, Erica acrescentara mais um, mais antigo. Mesmo na época de Nenephta, a Grande Pirâmide já era uma antiga estrutura. Na verdade, pensava Erica, Nenephta provavelmente sabia muito mais sobre a Grande Pirâmide do que ela. Decidiu então visitá-la. Talvez ficando em sua sombra ou caminhan­do em suas profundezas pudesse compreender o que Nenephta quisera dizer com a palavra "modo".

Erica viu as horas. Poderia tranqüilamente pegar o trem noturno das sete e meia para o Cairo. Com grande excitação encheu a sacola de lona com a Polaroid, o Baedecker, a lanterna, a calça jeans, e as roupas de baixo. Depois tomou um banho rápido.Antes de deixar o hotel telefonou para Ahmed e disse-lhe que estava indo para o Cairo para passar um dia ou dois, porque estava com um desejo insaciável de ver a Grande Pirâmide de Khufu.

Ahmed por um instante suspeitou.

— Há tanta coisa para ver aqui em Luxor. Não pode esperar?

—  Não. Quero vê-la logo.

—  Você vai se encontrar com Yvon de Margeau? — Talvez — disse Erica evasivamente. Conjeturou se

Ahmed estava com ciúmes.

—  Quer que eu diga alguma coisa a ele? — Ela sabia que o estava provocando.

— Não, claro que não. Nem toque em meu nome. Telefone quando voltar. — Ahmed desligou antes que ela pudesse dizer adeus.

 

Quando Erica subiu no trem para o Cairo, Lahib Zayed entrou no Winter Palace Hotel. Tinha uma mensagem confidencial para Erica, dizendo que ela veria uma estátua de Seti I na noite seguinte, desde que seguisse tudo à risca. Mas Erica não estava no quarto, e ele decidiu que voltaria mais tarde, com medo do que Muhammad pudesse fazer com ele se não desse o recado.

Depois que o trem partiu, Khalifa entrou na agência dos Correios e telegrafou para Yvon de Margeau informan­do que Erica Baron estava a caminho do Cairo. Acrescentou que ela agira muito estranhamente e que esperava instruções no Hotel Savoy.

 

Dia 8 - Cairo, 7:30

A pirâmide de Gizé abria às oito horas da manhã. Com trinta minutos para esperar, Erica entrou na Mena House para um segundo café da manhã. Uma garçonete de cabelos pretos apontou-lhe uma mesa no terraço. Erica pediu café e melão. Havia poucas pessoas comendo, e ninguém na piscina. Bem em frente a ela, acima de uma fila de pés de eucaliptos, estava a Grande Pirâmide de Khufu. Com uma simplicidade elementar sua forma triangular projetava-se contra o céu matinal.

Erica ouvira falar na Grande Pirâmide desde criança, e por isso mesmo se preparava para um pequeno desaponta­mento quando finalmente visse o monumento. Mas não aconteceu isso. Ela já estava enlevada e seduzida por sua majestade e simetria. Não tanto pelo tamanho propriamente dito, embora essa fosse uma das razões, mas pelo fato de que a estrutura representava uma tentativa do homem de deixar sua marca na implacável face do tempo.

Retirando o Baedecker da bolsa, Erica encontrou a parte relativa à Grande Pirâmide e estudou o esquema do seu interior. Tentava pensar em Nenephta e em como ele olharia o desenho. Concluiu que sabia algo que provavel­mente Nenephta não sabia. Uma cuidadosa investigação demonstrou que a Grande Pirâmide, como a maioria das outras pirâmides, passara por significativas modificações durante a construção. Na verdade havia uma hipótese segundo a qual a Grande Pirâmide passara por três estágios distintos. No primeiro estágio, quando fora planejada uma estrutura muito menor, a câmara mortuária seria subterrâ­nea, e fora cavada na rocha bruta. Depois, quando a estrutura foi aumentada, uma nova câmara mortuária foi planejada para dentro da estrutura. Erica olhou para esse cômodo no diagrama. Fora erroneamente cognominado Câmara da Rainha. Erica sabia que não poderia visitar a cripta subterrânea, a menos que conseguisse permissão do Departamento de Antigüidades. Mas a Câmara da Rainha era aberta ao público.

Olhou o relógio. Eram quase oito horas. Erica queria ser uma das primeiras a entrar na pirâmide. Quando chegassem os ônibus carregados de turistas, sabia que seria horrível andar por aquelas estreitas passagens.

Recusando insistentes ofertas para andar de burro ou em camelos, Erica caminhou até o platô onde ficava a pirâmide. Quanto mais perto chegava da estrutura, mais monumental ela parecia. Embora soubesse dos dados sobre as toneladas de pedras usadas na construção, esses dados nunca a haviam entusiasmado. Mas agora que estava à sombra da pirâmide, andava como se estivesse em transe. Mesmo sem uma fachada de pedra branca, o efeito do sol na pirâmide era grande.

Erica aproximou-se da abertura, que era um alarga­mento da abertura mandada escavar em 820 d.C. pelo Califa Manum. Não havia ninguém na entrada, e ela passou por ali rapidamente. À forte luminosidade do dia sobreveio uma mistura de sombras e lâmpadas incandescentes.

O túnel do califa ligava-se à estreita rampa de subida que ficava logo depois dos granitos que a selaram na Antigüidade e que ainda estavam em seus lugares. O teto da rampa tinha pouco mais de um metro e meio de altura, e Erica teve que se curvar para poder andar. Para facilitar a subida, haviam sido colocados pedaços de madeira, horizontalmente, no chão. O corredor tinha cerca de trinta metros de comprimento, e quando Erica saiu na base da grande galeria ficou aliviada de poder ficar em pé novamente.

A grande galeria também era inclinada como a rampa. Com seu teto levantado a cerca de seis metros de altura, era bastante espaçosa, depois daquele estreito corredor. À direita de Erica, uma grade cobria a entrada da câmara mortuária subterrânea. A sua frente ficava a abertura que ela queria. Mais uma vez ela se curvou e entrou no longo e horizontal corredor que levava à Câmara da Rainha.

Uma vez lá, pôde novamente levantar-se. O ar estava pesado, e Erica lembrou-se de como se sentira mal no túmulo de Seti I. Fechou os olhos e tentou ordenar os pensamentos. O lugar não tinha decoração, como o interior dos demais cômodos da pirâmide. O teto era em forma de ogiva, feito de imensos blocos de calcário.

Erica abriu o Baedecker no esquema da pirâmide. Novamente tentou imaginar o que um arquiteto como Nenephta pensaria se entrasse na Grande Pirâmide, lembrando-se de que mesmo no tempo dele a estrutura tinha mais de mil anos. Pelo diagrama ela ficou sabendo que se ficasse na Câmara da Rainha estaria bem acima da câmara mortuária original e abaixo da Câmara do Rei. Fora durante a terceira e última modificação da pirâmide que colocaram a câmara mortuária mais em cima. A nova sala foi denominada Câmara do Rei, e Erica decidiu que era tempo de visitá-la.

Curvando-se para entrar novamente no corredor que levava à galeria, Erica notou que vinha uma figura em sentido contrário. Cruzar com alguém naquele corredor estreito seria difícil, e então ela esperou. Com a saída momentaneamente fechada, experimentou uma sensação de claustrofobia. De repente, lembrou-se dos milhares de toneladas de pedra acima dela. Fechou os olhos, respirando fundo. O ar estava pesado.

— Meu Deus, é apenas uma sala vazia — reclamou um turista americano louro. Ele usava uma camiseta onde estava escrito em inglês: "No escuro não se enxerga".

Erica assentiu, depois começou a seguir pelo túnel. Quando chegou à grande galeria, ela já estava cheia. Subiu para o alto da pirâmide atrás de um alemão gordo e subiu os degraus de madeira para chegar ao andar da passagem para a Câmara do Rei. Lá então tinha que passar por baixo de uma parede baixinha. Os espaços para grandes portas movediças ficavam visíveis nas laterais.

Erica viu-se numa sala de granito rosado com cerca de cinco metros por dez. O teto era feito de oito pedaços de pedra colocados horizontalmente. Num dos cantos estava um sarcófago bastante danificado. Havia mais ou menos vinte pessoas ali, e o ar era opressivo.

Novamente Erica tentou imaginar como a estrutura sugeriria um modo de se evitarem os ladrões de túmulos. Ela examinou a área das portas movediças. Talvez fosse isso que Nenephta quisesse dizer: granito para fechar o túmulo. Mas as portas movediças foram utilizadas em muitas pirâmides. Não havia nada de especial a esse respeito na Grande Pirâmide. Além disso, não foram usadas na Pirâmide dos Degraus, e Nenephta dissera que o modo fora utilizado nas duas.

Embora a Câmara do Rei fosse um cômodo de bom tamanho, não era grande o suficiente para conter todos os objetos que costumavam ser enterrados com um faraó da importância de Khufu. Erica calculou que as demais câmaras haviam sido utilizadas provavelmente para os tesouros do faraó, em especial a Câmara da Rainha, que ficava no andar de baixo, e talvez até a grande galeria, embora muitos egiptólogos sugerissem que a grande galeria fora construída para que nela se colocassem os blocos de pedra que barrariam o corredor de subida.

Erica não tinha idéia de como explicar os comentários de Nenephta. Como todos os seus outros mistérios, a Grande Pirâmide permanecia muda. Mais pessoas chegavam à Câmara do Rei. Erica achou que precisava de um pouco de ar. Guardou o guia, mas antes de sair queria ver o sarcófago. Delicadamente forçou passagem entre as pes­soas, e olhou o túmulo de granito. Sabia que havia uma grande controvérsia sobre sua origem, idade e propósito. Era muito pequeno para acomodar o caixão real, e alguns egiptólogos duvidavam de que fosse um sarcófago.

— Srta. Baron... — uma voz alta mas ressoante a chamou suavemente.

Erica virou-se, abismada de ouvir seu nome. Olhou as pessoas ao seu redor. Ninguém parecia estar olhando para ela. Depois olhou para baixo. Um menino com carinha de anjo, com cerca de dez anos, usando uma túnica toda suja, estava sorrindo para ela.

—  Srta. Baron?

—  Sim — disse Erica, hesitante.

— Você precisa ir à Loja Curio para ver a estátua. Precisa ir hoje. Tem que ir sozinha.

O menino virou-se e desapareceu no meio da multidão.

— Espere! — gritou Erica. Ela abriu caminho entre a multidão e olhou para a galeria, no andar de baixo. O menino já tinha descido três quartos da rampa. Erica começou a descer, mas era mais difícil se firmar nas madeiras do chão na descida do que na subida. O menino parecia não ter dificuldade para descer, e rapidamente desapareceu na entrada da rampa.

Erica diminuiu o passo. Sabia que nunca o alcançaria. Ela pensou no recado e sentiu uma grande excitação. A Loja Curio! Seu plano funcionara. Ela encontrara a estátua!

 

Luxor, 12:00

Com um violento tapa, Lahib Zayed foi jogado de pé. Evangelos apertava sua túnica como se tivesse as mãos de ferro.

—  Onde está ela? — gritou na cara assustada do árabe. Stephanos Markoulis, vestido à vontade com uma camisa com o colarinho aberto, abaixou a pequena imagem de bronze que estava olhando e virou-se para os dois.

— Lahib, não posso entender por que, depois de me dizer que Erica veio à loja perguntar pela estátua de Seti, você não quer me dizer onde ela está.

Lahib estava aterrorizado, sem saber quem o assustava mais, Muhammad ou Stephanos. Mas sentindo os dedos de Evangelos se apertarem em sua túnica, achou que era Stephanos.

—  Está bem, eu vou dizer.

—  Solte-o, Evangelos.

O grego abriu a mão abruptamente, de modo que Lahib caiu para trás e só depois se equilibrou.

—  E agora? — perguntou Stephanos.

— Não sei onde ela está agora, mas sei onde está hospedada. Tem um quarto no Winter Palace Hotel. Mas, Sr. Markoulis, a moça vai andar direitinho. Fizemos um trato.

— Eu gostaria de tomar conta dela pessoalmente. Para ter certeza. Mas não se preocupe, voltaremos para nos despedir. Obrigado por nos ajudar.

Stephanos acenou para Evangelos, e os dois foram embora. Lahib não saiu do lugar até os dois desaparece­rem. Depois correu à porta e ficou olhando-os até sumirem de vista.— Vai haver problema aqui em Luxor — disse Lahib para seu filho quando os dois gregos já se tinham ido. — Quero que você leve sua mãe e sua irmã para Assuã hoje à tarde. Assim que a americana aparecer e eu lhe der o recado vou me encontrar com vocês. Quero que vocês partam agora.

 

Stephanos mandou Evangelos esperar do lado de fora do saguão do Winter Palace Hotel enquanto ele mesmo ia até a recepção. O funcionário era um núbio de boa aparência, com pele escura.

— Existe alguma Erica Baron registrada aqui? — perguntou Stephanos.

O funcionário virou-se para o livro de registros, correndo o dedo pelos nomes.

— Sim, senhor.

— Ótimo. Eu gostaria de deixar uma mensagem. Pode me arranjar papel e caneta?

— É claro, senhor. — O funcionário deu a Stephanos um pedaço de papel, envelope e uma caneta.

Stephanos fingiu escrever o bilhete. Em vez disso, apenas rabiscou alguma coisa no papel e colou o envelope. Entregou-o ao funcionário, que se virou e o colocou na caixinha do número 218. Stephanos agradeceu e foi encontrar-se com Evangelos. Juntos, subiram a escada.

Ninguém respondeu quando bateram na porta do 218, de modo que Stephanos mandou Evangelos usar a chave falsa enquanto ficava de guarda. O antigo mecanismo era fácil de manusear, e conseguiram entrar no quarto quase tão rapidamente quanto se tivessem a chave certa. Stephanos fechou a porta e olhou o quarto.

— Vamos vasculhar — disse. — Depois esperar até ela voltar.

— Vou matá-la imediatamente? — perguntou Evan­gelos.

Stephanos sorriu.

— Não, vamos conversar um pouco com ela. Só que eu vou falar com ela primeiro.

Evangelos riu e abriu a gaveta de cima da cômoda. Lá estavam as calcinhas de náilon de Erica.

 

Cairo, 14:30

— Tem certeza? — perguntou Yvon, descrente. Raoul levantou os olhos da revista.

— É quase certo — garantiu Erica, gostando da surpresa de Yvon. Depois de receber a mensagem na Grande Pirâmide, Erica decidira ver Yvon. Ela sabia que ele gostaria de saber da estátua, e sabia também que era certo que iria querer levá-la de volta para Luxor.

— É quase inacreditável — estranhou Yvon, com seus olhos azuis brilhando. — Como você sabe que eles planejam mostrar a estátua de Seti?

—  Porque foi o que eu pedi para ver.

— Você é incrível — observou Yvon. — Fiz tudo que era possível para encontrar essa estátua e você a localiza assim... — Ele fez um gesto com as mãos para demonstrar o que dizia.

— Bem, ainda não vi a estátua — disse Erica. — Devo ir à Loja Curio hoje à noite, e devo ir sozinha.

—  Podemos partir dentro de uma hora.

Yvon pegou o telefone. Estava surpreso de que a estátua estivesse em Luxor; na verdade, isso o fez suspeitar um pouco.

Erica levantou-se e se espreguiçou.

— Passei a noite toda no trem, e gostaria de tomar banho, se você não se incomodar.

Yvon apontou para o outro quarto. Erica pegou sua bolsa e foi para o banheiro enquanto Yvon falava com o piloto.

Yvon acabou de acertar tudo sobre a viagem, depois parou para ouvir se o chuveiro ainda estava aberto, antes de voltar-se para Raoul.— Essa talvez seja a oportunidade que esperávamos. Mas devemos ter muito cuidado. Agora é que precisamos contar com Khalifa. Ligue para ele e diga que iremos chegar por volta das seis e meia. Diga-lhe que Erica vai se encontrar hoje à noite com as pessoas que queremos. Diga também que provavelmente haverá encrenca e para ele estar preparado. E que se a garota morrer ele está liquidado.

 

O jatinho inclinou-se levemente para a direita, depois mergulhou graciosamente, passando por sobre o vale do Nilo numa curva bem aberta a cerca de dez quilômetros ao norte de Luxor. Voava a trezentos metros de altura, depois endireitou o curso, rumando para o norte. No momento exato, Yvon diminuiu a velocidade, ergueu o nariz do avião e aterrissou tranqüilamente. O freio do motor sacudiu o avião e colocou o aparelho na velocidade de taxiar em pouco tempo. Yvon largou os controles para voltar a conversar com Erica, enquanto o piloto taxiava em direção ao terminal.

— Agora vamos repetir tudo outra vez — disse ele, virando uma das poltronas de passageiros para encarar Erica. Sua voz estava séria, deixando-a desagradavelmente ansiosa. No Cairo, a idéia de ir ver a estátua de Seti fora excitante, mas aqui em Luxor dava medo.

— Logo que chegarmos — continuou Yvon — quero que você pegue um táxi sozinha e vá para a Loja de Antigüidades Curio. Raoul e eu vamos esperar no Novo Winter Palace Hotel, suíte 200. Acho, contudo, que a estátua não estará na loja.

Erica o olhou incisivamente.

—  Por que você diz que ela não estará lá?

— Seria muito perigoso. Não, a estátua estará em algum outro lugar. Eles a levarão até lá. Vai ser assim. Mas estará tudo bem.

—  A estátua esteve na Antica Abdul — protestou Erica. — Aquilo foi por acaso — disse Yvon. — A estátua estava em trânsito. Desta vez tenho certeza de que eles levarão você a alguma parte para ver a estátua. Tente se lembrar do lugar, para que possa voltar lá. Depois, quando lhe mostrarem a estátua, quero que você pechinche com eles. Se você não pechinchar eles suspeitarão. Mas lembre-se, pago o que eles pedirem, desde que garantam a entrega fora do Egito.

—  Por exemplo, via Banco de Crédito de Zurique?

—  Como você sabe disso? — perguntou Yvon.

— Do mesmo modo que soube da Loja de Antigüida­des Curio — disse Erica.

—  E como foi isso? — quis saber Yvon.

— Não vou lhe dizer — esquivou-se Erica. — Pelo menos por enquanto.

—  Erica, isso não é um jogo.

— Sei que não é um jogo — falou ela com a voz firme. Yvon a deixava cada vez mais ansiosa. — É exa­tamente por isso que não vou lhe dizer, pelo menos agora.

Yvon a olhou, perplexo.

— Está bem — concordou finalmente —, mas quero voltar ao meu hotel logo que possível. Não podemos deixar a estátua desaparecer novamente. Diga a eles que o dinheiro estará depositado em vinte e quatro horas.

Erica assentiu e olhou pela janela. Mesmo já passando das seis, o calor ainda irradiava do asfalto. O avião parou e os motores foram desligados. Erica respirou fundo e soltou o cinto de segurança.

De um lugar perto do terminal do aeroporto, Khalifa viu quando a porta do jatinho se abriu. Logo que viu Erica, virou-se e caminhou rapidamente para o carro, colocando a mão na sua arma automática antes de se sentar no volante. Certo de que à noite receberia seu salário de duzentos dólares por dia, engrenou o carro e o pôs em marcha, dirigindo-se para Luxor.

No quarto de Erica, no Winter Palace Hotel, Evangelos tirou sua Beretta de sob o braço esquerdo e passou o dedo pelo cabo de marfim.

— Guarde isso — resmungou Stephanos, que estava sentado na cama. — Fico nervoso de ver você segurando isso. Relaxe, pelo amor de Deus. A garota vai aparecer. As coisas dela estão todas aqui.

A caminho da cidade, Erica pensou em parar no hotel. Não havia motivo para carregar a câmara nem as roupas que estavam na bolsa. Mas temendo que Lahib Zayed pudesse fechar a loja antes que ela chegasse lá, decidiu ir para a loja, como Yvon sugerira. Mandou o motorista pa­rar num dos lados da congestionada Shari el Muntazah. A Loja de Antigüidades Curio ficava a meio quarteirão.Erica estava nervosa. Yvon conseguira aumentar seus temores sobre o encontro. Ela não conseguira deixar de pensar que vira um homem ser assassinado por causa dessa estátua: o que ela iria arranjar vendo a estátua? Quando chegou mais perto, viu que a loja estava repleta de turistas, e então passou sem entrar. Algumas lojas depois ela parou e voltou-se, observando a porta da entrada. Logo depois saiu um grupo de turistas alemães, brincando muito, falando alto em meio às pessoas que passavam pela calçada. Era agora ou nunca. Erica suspirou fundo, com os lábios apertados, e partiu em direção à loja.

Depois de tanta preocupação, surpreendeu-se de ver Lahib Zayed bem animado, em lugar de furtivo ou dissimulador. Ele saiu de trás do balcão como se Erica fosse uma amiga que não via há muitos anos.

— Fico muito feliz em vê-la outra vez, Srta. Baron. Nem sei como expressar-lhe o meu contentamento.

Erica ficou circunspecta a princípio, mas a atitude de Lahib parecia sincera e ela agiu de modo gentil.

—  Gostaria de tomar chá?

— Obrigada, mas não quero. Vim logo que pude depois de receber o recado.

— Ah, sim — disse Lahib. Ele juntou as mãos, agitado. — A estátua. Você tem muita sorte mesmo, porque vai ver uma peça maravilhosa. Uma estátua de Seti I, do seu ta­manho. — Lahib fechou um olho, medindo o tamanho dela.

Erica não podia acreditar que tudo aquilo fosse fingimento. Isso fez com que ela achasse seus temores ridículos e infantis.

—  A estátua está aqui?

— Oh, não, minha querida. Vamos mostrar a estátua a você sem que o Departamento de Antigüidades saiba. — Ele piscou o olho. — De modo que precisamos ter muito cuidado. E já que é uma peça grande e maravilhosa, não podemos deixá-la aqui em Luxor. Está na margem ocidental, mas podemos entregá-la onde vocês quiserem.

—  Como faço para vê-la? — perguntou Erica.

— Muito simples. Mas é preciso que você saiba que tem de ir sozinha. Não podemos mostrar esse tipo de peça para muitas pessoas. Se você for acompanhada, ou seguida, perderá sua chance de vê-la. Está claro?

—  Está — concordou Erica.— Muito bem. Tudo que você precisa fazer é atravessar o Nilo e pegar um táxi até a pequena aldeia chamada Qurna, que fica...

—  Conheço a aldeia — disse Erica.

— Isso facilita as coisas — riu Lahib. — Existe uma pequena mesquita na aldeia.

—  Eu conheço — disse Erica.

— Ah, maravilhoso, então você não deve ter problema. Chegue à mesquita à noite, no crepúsculo. Um vendedor como eu se encontrará lá com você e mostrará a estátua. Viu como é simples?

—  Está bem — falou Erica.

— Mais uma coisa — acrescentou Lahib. — Quando chegar à margem ocidental é melhor alugar um táxi para esperar por você lá embaixo na aldeia. Ofereça a ele algum dinheiro por fora. De outro modo você terá problemas em conseguir um táxi para voltar à estação de barcos.

— Muito obrigada — disse Erica. Os cuidados de Lahib agradaram-na.

Lahib viu Erica descer a Shari el Muntazah em direção ao Winter Palace Hotel. Ela virou-se uma vez e ele acenou. Depois, rapidamente fechou a porta da loja e reforçou-a com uma tranca de madeira. Num vão debaixo do assoalho ele guardou suas melhores antigüidades e as porcelanas antigas. Depois fechou a porta e partiu para a estação. Estava certo de que pegaria o trem noturno de sete e meia para Assuã.

Quando Erica se dirigiu ao hotel, sentia-se bem melhor do que antes de visitar a Loja de Antigüidades Curio. Seus temores eram infundados. Lahib Zayed fora franco, amistoso e preocupado. Seu único desapontamento era não poder ver a estátua até a noite. Erica olhou para o céu, calculando quanto tempo faltaria para o sol se pôr. Ela teria mais uma hora, tempo suficiente para voltar ao hotel e trocar a calça jeans para a viagem a Qurna.

Aproximando-se do majestoso Templo de Luxor, o qual agora estava cercado pela cidade moderna, Erica subitamente parou. Não havia pensado na possibilidade de estar sendo seguida. Se estivesse, estragaria todo o plano. Virando-se rapidamente, olhou para ver se havia alguém atrás dela. Esquecera-se do homem por completo. Havia muita gente a pé, mas não viu o homem de nariz curvado e terno escuro. Erica olhou o relógio outra vez. Ela precisava saber se estava sendo seguida. Voltando-se para o templo novamente, comprou um ingresso e entrou no corredor entre as torres da pilastra da frente. Entrando na sala de Ramsés II, majestosamente cercada por uma fileira dupla de papiros, virou-se para a direita e entrou numa pequena capela do deus Amon. Dali Erica podia ver a entrada e o pátio também. Havia cerca de vinte pessoas ali, fotografan­do a estátua de Ramsés II. Erica decidiu esperar quinze minutos. Se não aparecesse ninguém, ela esqueceria o assunto.

Olhou para a capela para ver os altos-relevos. Haviam sido feitos na época de Ramsés II e não tinham a mesma qualidade dos trabalhos que vira em Abidos. Ela reconhe­ceu a imagem de Amon, Mut e Kunsu. Quando voltou sua atenção para o pátio, ficou paralisada. Khalifa contornara a pilastra a uma distância de cerca de um metro e meio dela. Ele ficou igualmente surpreso. Enfiou a mão no paletó para segurar a pistola, mas caiu em si e retirou a mão, contorcendo-se num meio sorriso. Depois foi-se embora.

Erica piscou. Quando se recobrou do choque, saiu correndo da capela e olhou para o corredor que ficava por trás da fila dupla de colunas. Khalifa desaparecera.

Colocando a alça da bolsa no ombro, Erica saiu correndo do templo. Sabia que tinha um problema, a pessoa que a seguia poderia estragar tudo. Chegou à esplanada que ficava às margens do Nilo e olhou para os dois lados. Tinha que despistá-lo e, olhando o relógio, viu que já estava ficando atrasada.

A única vez em que Khalifa não a seguira foi quando ela visitou a aldeia de Qurna e caminhou por uma trilha deserta até o vale dos Reis. Erica pensou que poderia pegar aquela trilha no sentido contrário. Poderia ir até o vale dos Reis e lá tomar aquele caminho, dizendo ao motorista do táxi para esperar por ela no começo da aldeia, no sopé da colina. Depois percebeu que o plano era ridículo. Provavelmente a única razão pela qual Khalifa não a seguiu ao vale dos Reis foi porque ele sabia onde ela estava indo e não queria se sujeitar ao calor e ao sacrifício da caminhada. Ele não fora enganado. Se ela queria realmente despistar Khalifa tinha que fazê-lo em meio a uma multidão.

Olhando novamente o relógio, teve uma idéia. Já eram quase sete horas. Havia um trem expresso para o Cairo às sete e meia, o mesmo que ela tomara na noite anterior. A estação e a plataforma ficavam cheias. Foi a melhor idéia que lhe veio à mente. O único problema era que dessa forma ela não poderia ver Yvon. Talvez pudesse lhe telefonar da estação. Erica fez sinal para uma carruagem.

Como ela esperava, a estação estava fervilhando de passageiros, e foi com dificuldade que chegou ao guichê. Passou por uma fila de caixas de vime cheias de galinhas. Um pequeno rebanho de cabras e ovelhas estava amarrado a uma coluna, e seus berros misturavam-se à cacofonia de vozes que ecoava naquele saguão empoeirado. Erica comprou uma passagem de ida para Nag Hamdi. Eram sete e dezessete.

Foi mais difícil chegar à plataforma do que tinha sido aproximar-se do guichê. Erica não olhara para trás. Ela se meteu entre as pessoas chorosas se despedindo e chegou à relativa tranqüilidade do corredor perto das cabinas de primeira classe.

Erica foi direto para o toalete. Estava trancado. O outro, em frente, também estava trancado. Sem hesitar, ela entrou na cabina 3 e correu pelo corredor central. Havia um toalete vago, e ela entrou. Fechando a porta e tentando não respirar muito por causa do mau cheiro, Erica desabotoou a calça de algodão e tirou-a. Vestiu a calça jeans, batendo o cotovelo na pia enquanto trocava de roupa. Eram sete e vinte e nove. Ela ouviu o apito da máquina.

Quase em pânico vestiu uma blusa azul, rapidamente prendeu o cabelo e colocou o boné cáqui na cabeça. Olhando-se no espelho, esperava que sua aparência tivesse mudado bastante. Depois saiu do toalete e literalmente correu pelo corredor central até um outro vagão. Era de segunda classe e tinha mais pessoas. A maioria ainda não tinha sentado e estavam todos ocupados guardando suas coisas nas prateleiras acima dos bancos.

Erica passou de vagão em vagão. Quando chegou ao de terceira classe, encontrou galinhas e gado entre as poltronas e foi impossível prosseguir correndo. Olhando para fora viu a multidão. Eram sete e trinta e dois. O trem sacudiu e pôs-se em movimento, enquanto ela descia para a plataforma e pela primeira vez procurava por Khalifa.

A multidão começou a se dispersar. Erica deixou a massa humana levá-la para a rua. Uma vez lá fora, atravessou para um pequeno bar e sentou-se numa mesa de frente para a estação. Pedindo um cafezinho, ficou com os olhos grudados na porta de entrada.

Não precisou esperar muito. Empurrando as pessoas para o lado, Khalifa saiu da estação. Mesmo de onde estava Erica pôde sentir a raiva quando ele entrou num táxi e desceu a Shari el Mahatta na direção do Nilo. Erica engoliu o café. O sol já morrera e o crepúsculo tomava seu lugar. Ela estava atrasada. Pegando a bolsa, saiu correndo do café.

 

— Deus todo-poderoso! — gritou Yvon. — Para que eu lhe pago duzentos dólares por dia! Você pode me responder?

Khalifa franziu o cenho e ficou olhando as unhas da mão esquerda. Ele sabia que não precisava ouvir essa ladainha, mas sua missão o fascinava. Erica Baron o enganara, e ele não estava acostumado a perder. Se estivesse, já teria morrido há muito tempo.

— Está bem — admitiu Yvon com um tom de aborrecimento. — O que vamos fazer?

Raoul, tendo indicado o nome de Khalifa, sentia-se mais responsável do que Khalifa.

— Você deveria mandar alguém esperar o trem — disse Khalifa. — Ela comprou passagem para Nag Hamdi, mas não acredito que tenha ido no trem. Acho que tudo não passou de um disfarce para se ver livre de mim.

— Está bem, Raoul, mande alguém esperar o trem — ordenou Yvon em tom decidido.

Raoul foi para o telefone, feliz por poder fazer alguma coisa.

— Ouça, Khalifa — acrescentou Yvon —, perder Erica de vista colocou em risco toda essa operação. Ela recebeu as instruções na Loja de Antigüidades Curio. Vá lá e descubra aonde a mandaram ir. Não me interessa como você vai fazer isso, mas faça!

Sem dizer nada, Khalifa afastou-se da mesa onde estava encostado e deixou o hotel, sabendo que faria o dono da loja falar, nem que tivesse de matá-lo.

 

Do sopé dos penhascos, a aldeia de Qurna já estava mergulhada na escuridão quando Erica subiu o longo caminho desde a entrada. O táxi que ela alugara para a noite a esperava lá embaixo, com a porta entreaberta.

Caminhava penosamente, passando pelas casas de tijolinhos. Nos quintais das casas, podiam-se ver fogueiras feitas com estéreo seco de animais, iluminando as plataformas de dormir no verão com suas formas pronun­ciadas. Erica lembrou-se dos motivos pelos quais elas foram construídas — cobras e escorpiões — e sentiu um arrepio, apesar do calor da noite.

A mesquita toda escura, com suas paredes brancas, parecia de prata. Ficava a cerca de cem metros à frente. Erica parou um pouco para respirar. Olhando para o vale, atrás de si, viu as luzes de Luxor, principalmente as do grande prédio do Novo Winter Palace Hotel. Uma série de luzes coloridas, como decoração de Natal, assinalava a área da mesquita de Abul Haggag.

Erica já ia recomeçar a caminhada quando houve um movimento súbito no escuro, perto dos seus pés. Soltando um grito de medo, ela pulou para trás, quase caindo no chão arenoso. Estava quase correndo quando um latido, seguido de um rosnar feroz, cortou o ar. Ela foi cercada por um pequeno grupo de cachorros rosnando. Abaixou-se e pegou uma pedra. Devia ser um gesto familiar, porque os cachorros se dispersaram antes que ela jogasse a pedra.

Algumas pessoas passaram por Erica quando ela cruzou a aldeia. Estavam todas usando túnica preta, silenciosas e sem mostrar suas faces, no escuro. Erica percebeu que se não tivesse ido a Qurna durante o dia, provavelmente não saberia o caminho durante a noite. Um súbito zurro rouquenho de um burro interrompeu o silêncio, mas ele se calou tão repentinamente quanto começara. De onde ela estava andando podia ver a silhueta da casa de Aida Raman, tendo ao fundo a escarpa da colina. A chama fraquinha de uma lamparina brilhava em sua janela. Atrás da casa avistou o caminho que ia dar no vale dos Reis, cavado na montanha.

Agora ela estava a uns quinze metros da mesquita. Não havia luzes lá. Seus passos diminuíram. Ela sabia que estava atrasada para o encontro. Já não havia mais o crepúsculo; era noite. Talvez eles achassem que ela não iria. Talvez ela devesse virar e voltar para o hotel ou visitar Aida Raman e lhe dizer o que havia no papiro. Erica parou e olhou o prédio. Parecia deserto. Depois, lembrando-se de Lahib Zayed e de seu modo descontraído, deu de ombros e caminhou para a porta.

Ela abriu-se lentamente, deixando ver o pátio. A fachada da mesquita parecia atrair e refletir o luar, e o pátio estava mais iluminado do que a rua. Não viu ninguém.

Silenciosamente Erica entrou, fechando a porta atrás de si. Não ouviu nada, nada se mexia. Tudo que conseguiu ouvir foi um latido ocasional lá embaixo, na aldeia. Finalmente caminhou para a frente e passou por baixo de um arco. Tentou abrir a porta da mesquita. Estava trancada. Caminhando pelos pequenos pórticos, bateu na porta do quarto do velho chefe religioso. Não obteve resposta. O lugar estava deserto.

Erica voltou ao pátio. "Devem ter achado que não viria", pensou, e olhou para a porta da rua. Mas em vez de ir embora, voltou ao pórtico e sentou-se, com as costas apoiadas na frente da mesquita. Em frente a ela o arco emoldurava o pátio. Além das paredes, Erica via o céu, que já estava claro, antecipando o surgimento da lua.

Erica remexeu na bolsa até encontrar o cigarro. Acendeu um para criar coragem, e olhou o relógio com a ajuda do fósforo. Eram oito e quinze.

Enquanto a lua caminhava no céu, as sombras no pátio ficavam cada vez mais escuras. Quanto mais o tempo passava, mais Erica pensava que tinham lhe pregado uma peça. Todo ruído vindo da aldeia fazia com que ela se sobressaltasse. Depois de quinze minutos achou que já era o suficiente. Levantou-se e sacudiu o traseiro da calça. Depois caminhou para o pátio e abriu a porta de madeira que dava para a rua.

— Srta. Baron — disse uma figura com albornoz preto. Ele estava na rua imunda, logo depois da porta do pátio. Com a lua batendo em cheio sobre seu ombro, Erica não podia distinguir-lhe o rosto. Ele saudou-a com a cabeça antes de continuar. — Peço-lhe desculpas pelo atraso. Por favor, siga-me. — Sorriu, revelando dentes enormes.

Não falaram mais nada. O homem, que Erica achava ser um núbio, levou-a ladeira acima, além da aldeia. Seguiram uma das várias trilhas existentes, e era fácil caminhar, com a lua refletindo-se nas pedras e na areia. Passaram por algumas aberturas retangulares de túmulos.

O núbio estava agora com a respiração pesada, e foi com visível alívio que ele parou perto da rampa de um túmulo feito na montanha. No início dessa subida havia uma entrada fechada com uma pesada grade. O número 37 estava pendurado no portão.— Peço-lhe desculpas, mas você vai ter que esperar aqui por um instante — disse o núbio. Antes que Erica pudesse responder, ele voltou na direção de Qurna.

Indo até o portão, Erica o segurou e o sacudiu. O número 37 balançou mas o portão não se abriu. Estava trancado. Erica conseguiu ver algumas antigas decorações egípcias nas paredes.

Afastou-se do portão, e a ansiedade que sentira antes de entrar na Loja de Antigüidades Curio abateu-se novamente sobre ela. Subiu na beira do túmulo, de onde pôde ver o núbio chegando lá embaixo, na aldeia. Ao longe alguns cães latiram. Atrás dela podia sentir a presença constante da ameaçadora montanha.

De repente ela ouviu um barulho metálico às suas costas. Suas pernas bambearam de medo. Depois ouviu um agoniante ranger de metal sobre metal. Queria correr mas não conseguia, imaginando vultos horríveis levantando-se do túmulo. O portão de ferro fechou-se atrás, e ela ouviu passos. Lentamente, virou-se.

— Boa noite, Srta. Baron — disse uma figura que se aproximava dela.

Estava usando um albornoz preto como o núbio, mas com o capuz sobre a cabeça. Sob o capuz ele usava um turbante branco.

— Meu nome é Muhammad Abdulal. — Ele saudou-a com a cabeça, Erica reanimou-se um pouco. — Eu quero me desculpar por esses atrasos, mas infelizmente eles são necessários. A estátua que lhe vou mostrar é muito valiosa, e estamos receosos de que você tenha sido seguida pelas autoridades.

Erica compreendeu como fora importante desvencilhar-se de sua "sombra".

— Por favor, siga-me — disse Muhammad quando passou por Erica e começou a subir mais a ladeira.

Erica deu uma última olhada na aldeia, abaixo dela. Mal podia localizar seu táxi esperando-a na estrada asfaltada. Teve que se apressar para alcançar Muhammad.

Ele dobrou à esquerda quando chegaram à base de uma outra subida. Tentando olhar para o alto da rocha, Erica quase caiu para trás. Andaram mais quinze metros e contornaram uma grande rocha. Mais uma vez ela teve que correr para se aproximar de Muhammad. Do outro lado da pedra havia uma rampa similar à que levava ao túmulo 37. Havia também uma pesada grade de ferro, mas sem número. Erica parou atrás de Muhammad enquanto ele procurava a chave num grande chaveiro. Ela perdera a coragem, mas estava igualmente receosa de demonstrar medo.

Não imaginara que a estátua estaria guardada num lugar tão isolado assim. O portão de ferro rangeu nas dobradiças, desacostumado de ser aberto.

— Por favor — disse Muhammad simplesmente, fazendo sinal para que Erica entrasse.

Era um túmulo sem decoração. Ela voltou-se e viu Muhammad fechar o portão atrás de si. O cadeado fez um ruído ressoante quando se fechou. Pálidos raios de luar penetraram pela grade.

Muhammad acendeu um fósforo e passou por Erica, dirigindo-se para um estreito corredor. Movia-se num pequeno círculo de luz, e ela teve a inútil percepção de que as coisas ali corriam à sua revelia.

Entraram numa antecâmara. Erica conseguiu ver desenhos meio apagados na parede. Muhammad curvou-se e acendeu uma lamparina a óleo. A luz tremeluzia, fazendo a sombra dele dançar entre as divindades egípcias nas paredes.

Um forte brilho chamou a atenção de Erica. Estava ali a estátua de Seti! O ouro da estátua irradiava uma luz muito mais poderosa que a da lamparina. Nesse momento uma sensação aterradora suplantou o simples medo, e Erica caminhou em direção à escultura. Aqueles olhos de alabastro e feldspato verde eram hipnóticos, e ela teve que forçar seu olhar para baixo, para ler os hieróglifos. Havia os símbolos de Seti I e de Tutancâmon. A frase era a mesma da estátua de Houston: "Vida eterna para Seti I, que reinou depois de Tutancâmon".

— É magnífica — exclamou Erica com sinceridade. — Quanto o senhor quer por ela?

— Temos outras — respondeu Muhammad. — Espere até ver as outras antes de se decidir.

Erica voltou para olhar para ele, tencionando dizer que estava satisfeita. Mas não disse nada. Mais uma vez ficou paralisada pelo medo. Muhammad empurrara o capuz para trás, deixando à mostra o bigode e os dentes com ponta de ouro. Era um dos assassinos de Abdul Hamdi!

— Temos uma seleção maravilhosa de estátuas na outra sala — disse Muhammad. — Por favor — ele curvou um pouco a cabeça e apontou a porta estreita.Um suor frio umedeceu o corpo dela. A grade do túmulo estava trancada. Ela precisava ganhar tempo. Virou-se e olhou a porta estreita, não querendo descer mais no túmulo, mas Muhammad aproximou-se dela:

— Por favor — insistiu, e a empurrou delicadamente para a frente.

As sombras dos dois mexiam-se grotescamente nas paredes enquanto desciam o corredor. Mais à frente havia um recuo dos dois lados da parede do corredor. Uma grande trave ia do chão até a alcova. Quando Erica passou, percebeu que a trave sustentava uma grande porta levadiça feita de pedra.

Logo depois o corredor terminava, e uma escada escavada na rocha mergulhava na escuridão.

— Até onde vamos? — perguntou ela. Sua voz estava mais alta do que de costume.

— Só um pouquinho mais.

Com a luz vindo por trás, a sombra de Erica projetava-se na escada diante dela, bloqueando sua visão. Ela esticou o pé para sentir onde pisava. Foi nessa hora que sentiu algo nas suas costas. Primeiro pensou que fosse a mão de Muhammad. Depois percebeu que ele colocara os pés bem no meio das suas costas.

Erica só teve tempo de se segurar nas paredes lisas da escada. A força do empurrão a desequilibrara, e ela começou a cair. Caiu sobre as nádegas, mas a escada era tão íngreme que ela continuou rolando, sem conseguir deter sua queda na escuridão absoluta.

Muhammad prontamente colocou sua lamparina no chão e apanhou uma marreta de pedra no vão da parede. Com diversos golpes certeiros deslocou a trave, deixando cair a grande porta levadiça. Lentamente o bloco de granito de cinqüenta e cinco toneladas caiu, com um ruído surdo, e selou o antigo túmulo.

 

— Nenhuma americana saltou do trem em Nag Hamdi — disse Raoul — e não havia ninguém no trem que sequer se aproximasse da descrição de Erica. Parece que fomos enganados.

Ele estava em pé na porta da varanda. Do outro lado do rio o luar se abatia sobre as montanhas, acima da necrópole.

Yvon estava sentado, esfregando as têmporas.— Será que essa é minha sina? Chego perto e depois as coisas não dão certo, escorregam pelos meus dedos? — Voltou-se para Khalifa. — E o que o poderoso Khalifa descobriu?

— Não havia ninguém na Loja de Antigüidades Curio. As outras lojas ainda estavam abertas e havia muitos turistas. Aparentemente a loja se fechou logo depois que Erica saiu. O nome do proprietário é Lahib Zayed, e ninguém parecia saber aonde ele tinha ido. E fui bastante insistente. — Khalifa deu uma gargalhada.

— Quero que vigiem atentamente a loja e o Winter Palace Hotel. Nem que vocês dois tenham que passar a noite inteira lá.

Quando Yvon ficou sozinho, caminhou até a varanda. A noite estava calma e agradável. O som do piano no salão de jantar subia até sua suíte. Nervoso, começou a andar de um lado para outro no pequeno terraço.

 

Erica caiu sentada, no final da escada, sobre uma das pernas dobrada para trás. Suas mãos mal podiam se mexer, mas afora isso não se machucara. Quase tudo que estava em sua bolsa tinha virado. Ela ainda tentou olhar ao redor naquela escuridão infernal, mas não conseguia ver nem as mãos diante do nariz. Como um cego, tateou na bolsa à procura da lanterna. Não estava lá.

Esforçando-se para ficar de quatro, começou a passar a mão pelo chão. Achou a câmera, que parecia intacta, depois o guia de viagem, mas não a lanterna. Sua mão bateu numa parede, e ela a encolheu com medo. Toda sua fobia de cobras, escorpiões e aranhas ressurgiu para deixá-la amedrontada. A lembrança da cobra em Abidos a pertur­bou. Tateando pela parede até encontrar outra parede, voltou à escada e achou o maço de cigarros. A caixa de fósforos estava dentro do papel celofane.

Ela riscou um fósforo e examinou o local. Estava num lugar com cerca de quatro metros quadrados, com duas portas, além das escadas atrás dela. As paredes apresenta­vam desenhos de cenas do dia-a-dia do antigo Egito. Estava num dos túmulos dos nobres.

Perto da parede, à sua frente, Erica localizou a lanterna antes que o fósforo se apagasse. Acendeu outro e foi apanhar a lanterna. O vidro se partira, mas a lâmpada ainda estava no lugar. Erica apertou o botão e a lanterna acendeu.Sem tempo para pensar em sua situação, voltou à escada, subiu até o alto e correu o facho de luz da lanterna pela porta movediça. O granito se fechara com incrível precisão. Ela o empurrou. Era frio e imóvel, como a própria montanha.

Descendo a escada novamente, começou a fazer um reconhecimento do túmulo. As duas portas da antecâmara iam dar uma na câmara mortuária, e a outra numa despensa. Entrou primeiro na câmara mortuária. Exceto por um sarcófago malfeito, a sala estava vazia. O teto era pintado de azul-escuro com centenas de estrelas douradas de cinco pontas, e as paredes eram decoradas com cenas do Litro dos mortos. Na parede de trás Erica pôde ler de quem era o túmulo em que estava. Ahmose, escriba e vizir do Faraó Amenemat III.

Iluminando o sarcófago, Erica viu um crânio jogado no chão entre as pedras. Hesitante, ela se aproximou. As cavidades oculares eram dois buracos escuros e a mandíbu-la se separara, dando à boca uma expressão de agonia continuada. Todos os dentes estavam nos lugares. Não era tão velha assim.

Em pé perto do crânio ela compreendeu que estava diante dos restos de um corpo inteiro. O resto do corpo estava encolhido ao lado do sarcófago, como se estivesse dormindo. Costelas e vértebras apareciam pelo pano rasgado. Embaixo do crânio Erica viu um brilho de ouro. Hesitante, ela se abaixou e pegou no objeto de ouro. Era um anel de formatura de Yale, 1975. Com cuidado ela o recolocou no lugar e levantou-se.

— Vamos ver a outra sala — disse ela em voz alta, esperando que sua voz a tranqüilizasse. Não queria pensar, não naquele momento, e enquanto houvesse lugares para explorar, poderia deixar sua mente longe da realidade da situação. Agindo como uma turista, foi para a segunda e última câmara. Era do mesmo tamanho da câmara mortuária, e estava completamente vazia, a não ser por algumas pedras e um pouco de areia. A decoração mostrava cenas do cotidiano, como na antecâmara, mas não estavam terminadas. A parede da direita fora preparada para uma cena de colheita e as figuras eram desenhadas em ocre. Havia uma grande faixa branca, para receber os hieróglifos, na parte de baixo. Depois de correr a lanterna pela sala, Erica voltou à antecâmara. Estava procurando o que fazer, e um grande medo ameaçou aflorar. Começou a apanhar o resto das suas coisas no chão e a recolocá-las na bolsa. Pensando que talvez tivesse esquecido alguma coisa, subiu a escada até a barreira de granito. Uma opressiva sensação de claustrofobia abateu-se sobre ela, e sem conseguir controlar suas emoções, empurrou a pedra com as duas mãos.

— Socorro! — gritou a plenos pulmões. O som reverberou na rocha e ecoou nas profundezas do túmulo. Depois o silêncio a encobriu novamente, sufocando-a com sua absoluta mansidão. Ela se sentia como se precisasse de mais ar. A respiração tornou-se difícil. Bateu na rocha com a mão espalmada, com mais e mais força, até sentir dor. As lágrimas brotaram e embaciaram seus olhos, e ela continuou a socar a pedra, o choro sacudindo seu corpo.

O esforço a deixou cansada, e ela lentamente escorregou até cair ajoelhada, ainda chorando desesperada­mente. Todos os temores de morte e abandono brotaram em sua mente, provocando mais choro e soluços. Subita­mente ela se apercebeu de que fora enterrada viva!

Enfrentando a dura realidade da situação, Erica começou a recobrar um pouco a razão. Apanhou a lanterna e desceu os degraus de pedra até a antecâmara. Imaginava quando Yvon começaria a conjeturar se alguma coisa tinha acontecido a ela. Se ele suspeitasse, provavelmente iria à Loja de Antigüidades Curio, mas Lahib Zayed saberia onde ela estava? E o motorista do táxi contaria que levara uma americana a Qurna e que ela não aparecera? Erica não tinha resposta para essas perguntas, mas só de pensar nas perguntas surgia nela um pouco de esperança que a manteve até que sua lanterna começou a dar mostras de pilha gasta.

Ela a desligou e remexeu na bolsa até encontrar três caixas de fósforos. Não era muito, mas enquanto procurava os fósforos achou uma caneta tipo pincel atômico. Ao tocar na caneta teve uma idéia. Poderia deixar uma mensagem na câmara inacabada, explicando o que lhe acontecera. Podia escrever em hieróglifos, de sorte que seus algozes provavelmente não entenderiam o significado. Ela não se iludia achando que isso serviria para deixar sua mente ocupada. Mas já era alguma coisa. O medo convertera-se em desespero e num amargo remorso. Fazer alguma coisa serviria pelo menos para distraí-la.

Com a lanterna apoiada sobre algumas pedras, começou a escrever a mensagem. Depois que escreveu tudo, começou a desenhar figuras. Estava quase na metade quando a lanterna diminuiu bem de intensidade. Depois aumentou de novo, mas só por um instante. Finalmente tornou-se um ponto amarelado.

Mais uma vez Erica recusou-se a se abater. Acendeu fósforos para continuar o texto em hieróglifo. Estava acocorada, escrevendo na parte de baixo da parede, o texto correndo em colunas que iam do chão até a base do desenho inacabado sobre colheita. Ela ainda chorava de vez em quando, admitindo que sua esperteza a colocara nessa situação. Todos a haviam advertido sobre seu envolvimento e não dera ouvidos a ninguém. Fora uma tola. A formação em egiptologia não lhe dera conhecimentos para lidar com criminosos, especialmente alguém como Muhammad Abdulal.

Com apenas uma caixa de fósforos agora, Erica não queria pensar em quanto tempo ainda tinha... em quanto oxigênio haveria para ela. Curvou-se para desenhar um pássaro, já quase no chão. Antes que pudesse acabar, o fósforo subitamente apagou. Fora muito rápido, e Erica xingou em meio à escuridão. Acendeu outro fósforo, mas quando se debruçou para escrever, esse também se apagou. Erica acendeu um terceiro e com muito cuidado aproximou-se do lugar onde estava escrevendo. O fósforo queimou tranqüilamente e depois a chama tremeu, como se houvesse vento. Molhando o dedo com saliva, Erica sentiu uma pequena entrada de ar vindo por uma pequena rachadura na parede, perto do chão.

A lanterna ainda tinha um restinho de luz, e Erica usou-a para iluminar uma das rochas em que a deixara pendurada. Era um pedaço de granito, talvez parte da tampa do sarcófago. Erica levou-a para perto do desenho e acendeu outro fósforo.

Segurando a tênue luz com a mão esquerda, bateu na parede na região da rachadura. Não aconteceu nada. Continuou a bater ali com toda a força, até o fósforo se apagar. Depois, localizando com a mão a rachadura, no escuro, bateu ali por mais de um minuto.

Finalmente, acalmando-se, acendeu outro fósforo. No lugar onde havia a rachadura existia agora um buraco, onde dava para ela enfiar o dedo. Havia um vazio depois e, mais importante, uma corrente de ar frio. Mesmo sem ver, Erica continuou a bater naquele lugar com um pedaço de granito até sentir alguma coisa se mexer. Acendeu um fósforo. Havia agora uma rachadura no ângulo da parede com o chão, e por trás, uma abertura maior. Concentrou-se em bater nesse pedaço, segurando o fósforo com a mão esquerda.

De repente um pedaço de reboco desprendeu-se e sumiu. Depois de um instante Erica ouviu-o bater no chão. O furo agora tinha cerca de trinta centímetros de diâmetro. Quando tentou acender outro fósforo, a corrente de ar não o permitiu. Cuidadosamente colocou a mão sobre o furo, como se estivesse segurando a boca de um animal selvagem. Sentiu uma superfície lisa por dentro. Virando a palma da mão para cima, verificou que havia um teto. Acabara de descobrir outra sala construída diagonalmente abaixo da sala em que estava.

Com renovado entusiasmo Erica lentamente aumentava a abertura. Trabalhava no escuro, sem querer gastar outros fósforos. Finalmente o furo estava grande o suficiente para que ela pudesse enfiar a cabeça. Depois de achar alguns seixos, deitou-se de bruços no chão da câmara, enfiando a cabeça na abertura. Deixou os seixos caírem e ouviu o ruído. A outra sala não parecia ser muito funda, e devia ter o chão de areia.

Erica tirou os cigarros do maço e ateou fogo ao papel. Quando pegou fogo, ela o enfiou no buraco e o deixou cair. O fogo apagou, mas o papel incandescente caiu em espiral. Quando chegou lá embaixo ela calculou que a sala tivesse cerca de dois metros e meio de altura. Achou mais pedras e, com a cabeça enfiada no buraco, jogou-as em várias direções, tentando captar uma noção de espaço. Parecia ser uma sala quadrada. E o que mais agradou a Erica: havia uma constante movimentação de ar.

Sentada na mais completa escuridão, pensava no que devia fazer. Se descesse até a sala que descobrira, havia a possibilidade de não conseguir voltar ao túmulo em que estava. Mas que diferença fazia? O problema mesmo era ter coragem de passar pelo buraco. Ela só tinha meia caixa de fósforos.

Erica pegou a bolsa. Contando até três, meteu-se no buraco e forçou sua passagem por ali. Dentro do buraco, suas pernas projetavam-se para o outro lado. Imaginou que estivesse sendo sugada. Lentamente ela se projetava cada vez mais, até a ponta dos pés tocar em uma parede lisa. Como um mergulhador tentando mergulhar na água fria, Erica forçava seu corpo para passar pelo buraco e se projetar no vazio. Quando finalmente caiu, parecendo que não chegaria nunca a lugar algum, seus braços balançaram no ar, procurando manter-se na vertical. Ela caiu, sem se machucar, no chão arenoso, onde havia alguns cascalhos.

O medo do desconhecido fez com que ficasse logo de pé, mas desequilibrou-se novamente, dessa vez para a frente. Ela levantou muita poeira com o tombo. A mão direita, esticada, foi bater num objeto que ela pensava ser um pedaço de madeira. Ela pegou o objeto, desejando que ele pudesse se acender como uma tocha.

Finalmente ela se levantou. Passou a madeira para a mão esquerda para apanhar os fósforos no bolso do casaco. Mas o objeto não parecia mais um pedaço de madeira. Segurando-o com as duas mãos, percebeu que estava segurando um antebraço e uma mão mumificados, com pedaços de pano pendurados. Com desapontamento ela jogou aquilo longe.

Tremendo, Erica tirou os fósforos do bolso e acendeu um. Quando sua luz irradiou-se, viu que estava numa catacumba com base lisa, sem decoração e cheia de múmias parcialmente enroladas. Os corpos haviam sido quebrados e todos os objetos de valor retirados, com os pedaços espalhados ao acaso.

Virando-se lentamente, Erica distinguiu provas de que o teto fora parcialmente cavado na rocha. No canto havia uma pequena porta escura. Pegando a bolsa, esforçou-se para andar até lá, pisando em escombros que lhe chegavam à altura do joelho. O fósforo queimou seu dedo e ela o jogou fora, apoiando-se na parede com as mãos, depois na porta. Passou para outra sala. Acendendo outro fósforo, viu-se numa sala igualmente repleta de imagens grotescas. Um vão na parede continha diversas cabeças mumificadas. Havia sinais evidentes de outras escavações.

Na parede em frente a Erica havia duas grandes portas. Caminhou até o centro da sala e, segurando o fósforo à sua frente, achou que o ar vinha da porta menor. O fósforo apagou, e ela continuou a andar com as mãos à frente.

De repente sentiu uma grande agitação. Uma gruta! Erica se lançou contra a parede, sentindo alguns pedaços de rocha baterem em seus ombros.

Mas não houve nenhum choque. Ao invés disso, o ar continuava a entrar e a atmosfera tornou-se saturada de poeira e de guinchos altos. Aí então algo pousou no ombro de Erica. Estava vivo e tinha garras. Quando sua mão empurrou o animal do ombro, sentiu asas. Não era nada desmoronando. Eram milhares de morcegos assustados. Cobriu a cabeça com os braços e agachou-se, encostada à parede, procurando respirar do melhor modo possível. Aos poucos os morcegos acalmaram-se e ela conseguiu alcançar a outra sala.

Erica percebeu que caíra num labirinto de túmulos populares dos antigos habitantes de Tebas. As catacumbas tinham sido abertas progressivamente na montanha, em forma de labirinto, para dar espaço a milhares de mortos. Mas inadvertidamente, havia ligação com outros túmulos, nesse caso com o túmulo de Ahmose, no qual Erica fora enterrada. A ligação fora tapada e esquecida.

Erica prosseguiu sua exploração. Embora a presença dos morcegos fosse aterradora, era também encorajadora. Deveria haver uma saída. Finalmente ela se arriscou a tocar fogo num pedaço do pano que enrolava as múmias e viu que ele ardeu facilmente, propiciando uma boa iluminação. Na verdade, Erica descobriu que os pedaços de múmias enrolados nos panos ardiam como tochas e foi apanhar mais. Os antebraços se prestavam melhor para isso, porque eram mais fáceis de segurar. Com o auxílio de uma melhor iluminação, conseguiu caminhar por diversas galerias e subir a diversos níveis até sentir o ar puro. Abaixando a tocha, caminhou os últimos passos com a luz do luar. Quando saiu na quente noite egípcia, estava a muitas centenas de metros do local onde entrara com Muhammad. Bem abaixo dela estava a aldeia de Qurna. Havia poucas luzes acesas.

Durante algum tempo Erica ficou parada, tremendo, na entrada da catacumba, apreciando a lua e as estrelas num céu como ela jamais vira. Sentia-se muito feliz por estar livre.

A primeira coisa de que precisava era um lugar para descansar, refazer-se, e beber alguma coisa. Sua garganta estava esfolada devido à poeira sufocante. Queria também lavar-se, como se a experiência a tivesse deixado suja, e mais do que tudo, ansiava por ver um rosto amigo. A fonte mais próxima de tais desejos era a casa de Aida Raman. Ela podia vê-la lá no alto da colina. Ainda havia luz na janela.

Saindo do isolamento da catacumba, Erica caminhou cuidadosamente pelo sopé do penhasco. Antes de regressar a Luxor, ela não daria oportunidade de ser vista por Muhammad ou pelo núbio. O que realmente queria era voltar para Yvon. Ela lhe daria todas as indicações de que se lembrasse sobre a localização da estátua e depois partiria do Egito. Já fizera sua parte.

Quando chegou bem acima da casa de Aida Raman, Erica começou a descer. Depois de muitos metros, era a primeira vez que pisava em areia funda e depois em cascalho solto; ficou com medo de fazer barulho, pois com aquele luar, chamaria atenção sobre ela. Finalmente chegou à casa, pela parte de trás.

Erica esperou um pouco, oculta nas sombras, obser­vando a aldeia. Não viu nenhum movimento. Satisfeita de que estivesse tudo claro, circundou a casa pelo pátio, e bateu na porta.

— Vá-se embora — gritou Aida do lado de dentro da porta.

Erica ficou surpresa. Aida fora tão amável e gentil.

— Por favor, Sra. Raman — insistiu ela, do outro lado.

—  Preciso beber um pouco de água.

A porta foi destrancada e abriu-se. Aida estava usando o mesmo vestido de algodão da primeira visita.

— Obrigada — disse Erica. — Sinto muito por perturbá-la. Mas estou com muita sede.

Aida parecia mais velha do que há dois dias. Seu bom humor desaparecera.

— Está bem — concordou —, mas espere aqui na porta. Você não pode entrar.

Enquanto a mulher foi lá dentro, Erica deu uma olhada na sala. O ambiente familiar era reconfortante. A pá com o cabo grande estava pendurada no lugar. As fotos emolduradas pendiam da parede. Muitas eram de Howard Carter com um árabe de turbante, que Erica pensou ser Raman. Havia um pequeno espelho entre as fotos, e Erica ficou chocada com sua aparência.

Aida Raman trouxe um pouco do suco que lhe dera na primeira visita. Erica bebeu lentamente. Engolir fazia arder a garganta.

— Minha família ficou furiosa quando eu contei que você me iludiu, fazendo com que lhe mostrasse o papiro

—  disse Aida.

— Família? — surpreendeu-se Erica, já reanimada pela bebida. — Pensei ter ouvido a senhora dizer que era a última Raman.

— E sou. Meus dois filhos morreram. Mas tive duas filhas também, que têm suas famílias. Foi a um dos meus netos que falei sobre sua visita. Ele ficou muito irritado e apanhou o papiro.

—  E o que fez com ele? — perguntou Erica, alarmada. — Não sei. Disse que aquilo precisava ser guardado com muito cuidado e que o colocaria em lugar bem seguro. Disse também que o papiro era uma maldição, e que agora que você o viu deveria morrer.

— A senhora acredita nisso? — Erica sabia que Aida Raman não era boba.

—  Não sei. Não é o que meu marido dizia.

— Sra. Raman — disse Erica —, eu traduzi o papiro todo. Seu marido estava certo. Não tem nada a ver com maldição. O papiro foi escrito por um antigo arquiteto do Faraó Seti I.

Um cachorro latiu bem alto na aldeia. Uma voz gritou com o animal.

— Você deve ir embora — falou Aida Raman. — Você deve ir embora, porque meu neto pode chegar. Por favor.

—  Qual o nome de seu neto? — perguntou Erica.

— Muhammad Abdulal.

A resposta atingiu Erica como um tapa.

—  Você o conhece? — perguntou Aida.

— Acho que o encontrei hoje à noite. Ele mora aqui em Qurna?

—  Não, mora em Luxor.

— A senhora o viu esta noite? — indagou Erica, nervosa.

—  De dia, agora à noite, não. Por favor, vá embora.

Erica apressou-se. Estava mais nervosa do que Aida. Mas parou na porta. As coisas estavam se encaixando.

—  Que tipo de trabalho Muhammad Abdulal faz?

Erica estava se lembrando de que Abdul Hamdi escrevera, naquela carta secreta que estava dentro do livro, que havia um funcionário público envolvido.

—  Ele é o chefe da guarda da necrópole e ajuda o pai no restaurante do vale dos Reis.

Erica assentiu, compreendendo tudo. Chefe da guarda era o cargo perfeito para controlar uma operação do mer­cado negro. Depois Erica pensou no restaurante e em Raman.

— E esse restaurante é o mesmo que seu marido, Sarwat Raman, construiu?

—  Sim, sim. Srta. Baron, por favor, vá embora.Imediatamente tudo se tornara claro. Imediatamente ela achou que podia explicar tudo. E tudo dependia desse restaurante no vale dos Reis.

— Senhora — disse Erica com uma grande excitação —, escute-me. Como seu marido disse, não existe a maldição dos faraós, e posso provar isso, desde que a senhora me ajude. Preciso só de tempo. Só peço que não diga a ninguém, nem mesmo à sua família, que voltei aqui para vê-la. Eles não perguntarão, posso garantir. Então o que peço é que não toque nisso. Por favor. — Erica segurou o braço de Aida para enfatizar a gravidade do pedido.

—  Você pode provar que meu marido estava certo?

—  Posso — afirmou Erica. Aida meneou a cabeça.

—  Está bem.

— Ah, tem mais uma coisa — acrescentou Erica. — Preciso de uma lanterna.

—  Tenho apenas uma lamparina.

—  Serve — disse Erica.

Quando partiu, Erica deu um abraço em Aida, mas a mulher continuou impassível e afastou-se. Segurando a lamparina e diversas caixas de fósforos, Erica ficou na sombra da casa observando a aldeia. Estava adormecida. A lua passara do zênite e estava agora no oeste. As luzes de Luxor ainda brilhavam, cheias de vida.

Tomando o mesmo caminho de há dois dias, Erica subiu o contraforte da montanha. Era muito mais fácil subir ao luar do que sob o sol escaldante.

Erica sabia que estava violando sua recente resolução de deixar o resto do mistério com Yvon e a polícia, mas a conversa com Aida reacendera seu interesse pelo passado. Ir do túmulo de Ahmose às catacumbas públicas dera-lhe uma explicação para todos os fatos dispersos, incluindo o mistério da inscrição na estátua e o significado do papiro. E, sabendo que Muhammad Abdulal nunca imaginaria que ela estava viva, sentia-se razoavelmente segura. Mesmo se ele quisesse ver o túmulo de Ahmose, levaria dias para levantar a porta movediça. Erica acreditava ter tempo, e queria visitar o vale dos Reis e o restaurante de Raman. Se estivesse certa, descobriria a verdade que faria o túmulo de Tutancâmon tornar-se insignificante.

Chegando ao topo da subida, parou para respirar. O vento assobiava entre os picos desnudos, aumentando a sensação de desolamento. De onde estava via o escuro e desértico vale dos Reis com seus reservatórios de água.

Erica conseguiu ver seu objetivo. O restaurante e a pensão estavam bem visíveis numa pequena elevação. Ao vê-los, sentiu-se encorajada e prosseguiu descendo cuida­dosamente, para evitar provocar pequenas avalanchas de seixos. Não queria alertar ninguém que pudesse estar no vale. Tendo tomado o caminho que levava à aldeia dos antigos operários da necrópole, onde o chão era mais plano, podia andar muito mais facilmente. Antes de entrar numa das bem conservadas alamedas cercadas de pedras, que havia entre os túmulos, Erica parou e ouviu. Só conseguiu escutar o vento e guincho ocasional de um morcego voando.

A passos leves, caminhou até o centro do vale e subiu as escadas da frente do restaurante. Como esperava, estava com as portas e janelas fechadas e trancadas. Voltando à varanda, Erica formou um triângulo com o olhar, unindo o túmulo de Tutancâmon, o de Seti I e o restaurante. Depois foi até os fundos do prédio, e tapando o nariz para evitar odores desagradáveis, entrou no toalete feminino. Acenden­do a lamparina de Aida Raman, investigou o recinto, seguindo a linha da fundação do prédio. Não havia nada estranho no tocante à construção.

No banheiro dos homens o forte cheiro de urina era muito mais intenso. Vinha de um mictório comprido feito de tijolos queimados e localizado ao longo da parede da frente. Acima do mictório havia uma pequena abertura que dava embaixo da varanda; o banheiro dos homens não encostava na fundação da frente do prédio. Erica caminhou em direção ao mictório. A ponta de tal saliência batia na altura dos ombros. Colocando a lamparina na abertura, tentou olhar por ali, mas a luz só iluminava até cerca de um metro e meio, no máximo, dois metros. Viu uma lata de sardinha aberta e algumas garrafas jogadas no meio da sujeira.

Com a ajuda de um tambor, Erica subiu até a abertura. Deixou a bolsa pendurada na ponta. Evitando os detritos, arrastou-se como um caranguejo até chegar à parede de alvenaria. O cheiro do banheiro era pior ali dentro, e o entusiasmo de Erica rapidamente esvaneceu. Mas chegando até ali, esforçou-se um pouco mais para ver de perto a parede de um lado ao outro. Nada!Descansando a cabeça sobre os punhos, Erica admitiu que estava errada. Tinha se achado tão esperta. Respirou fundo, depois tentou virar-se. Era difícil, e então ela começou a voltar para o toalete. Segurando a lamparina numa das mãos, tentou empurrar o corpo para trás com a outra, mas a terra era fofa e não permitia que ela desse impulso. Tentou enfiar a mão mais fundo para ver se a firmava, e então sentiu algo liso sob a terra.

Erica virou-se e olhou para baixo. A mão direita tocou uma superfície metálica. Limpando um pouco a terra, viu um pedaço de metal. Pousou a lamparina e com as duas mãos começou a escavar a terra. Viu que o metal fora colocado no fundo de um buraco escavado na rocha. Foi preciso retirar muita terra antes que pudesse levantar a ponta da peça e puxá-la. Embaixo do metal, havia uma abertura feita na rocha.

Segurando a lamparina acima do buraco, Erica viu que ele tinha cerca de um metro e meio de profundidade e era o início de um túnel que ia dar na parte da frente do prédio. Ela estava certa! Levantou a cabeça lentamente, olhou para a escuridão. Uma sensação de satisfação e excitamento tomou conta dela. Agora podia avaliar como Howard Carter se sentira em 1922.

Rapidamente puxou sua bolsa. Depois desceu ao fundo do buraco e levou consigo a lamparina. Ele descia e logo depois se alargava. Respirando fundo, ela avançou. A princípio teve que praticamente se arrastar de quatro, mas logo conseguiu caminhar apenas parcialmente curvada. Enquanto avançava, tentava calcular sua extensão. O túnel dirigia-se diretamente para o túmulo de Tutancâmon.

 

Nassif Boulos atravessou a escura e vazia área de estacionamento do vale dos Reis. Ele tinha dezessete anos e era o mais novo dos guardas do turno da noite. Enquanto caminhava, ajeitou no ombro a bandoleira do seu velho rifle, que fora abandonado no Egito durante a Primeira Guerra Mundial. Estava furioso porque não era sua vez de andar até o final do vale e voltar à guarita, onde podia descansar e beber alguma coisa. Mais uma vez seus colegas aproveitaram-se da sua juventude e do pouco tempo de serviço para mandá-lo cumprir o turno.

A noite enluarada logo acalmou sua raiva, deixando-o simplesmente agitado e ansioso por algo que quebrasse seu enfado. Mas o vale estava calmo, e todos os túmulos estavam selados com seus portões de ferro. Nassif adoraria usar seu rifle contra um ladrão, e sua mente perdeu-se numa de suas fantasias, na qual ele protegia o vale contra um grupo de salteadores.

Ele parou em frente à entrada do túmulo de Tutancâmon. Desejou que o túmulo estivesse sendo descoberto agora em vez de há cinqüenta anos. Olhou para o restaurante, porque fora ali que ele estivera de guarda no dia da homenagem a Carter. Ele tinha se escondido atrás do parapeito da varanda e ninguém poderia se aproximar do túmulo sem sucumbir à sua bala certeira.

Olhando para o alto, Nassif percebeu que porta dos lavatórios estava entreaberta. Percebeu que ela nunca tinha sido deixada aberta antes, e ficou conjecturando se deveria ir até lá. Depois olhou para o vale e decidiu ir até os lavatórios quando voltasse. Enquanto caminhava, imaginou-se indo ao Cairo com um grupo de homens que tivesse prendido.

 

Erica achou que devia estar bem perto do túmulo de Tutancâmon. Ela caminhara pouco por causa do chão irregular do túnel. Em frente a ela havia uma curva abrupta à esquerda, e ela não conseguiu ver o que havia à frente até fazer a curva. O chão depois descia e projetava-se numa sala. Com as mãos pressionando as paredes rústicas do túnel, abaixou-se até seus pés tocarem o chão. Entrou numa câmara subterrânea.

Agora Erica achava que estava bem abaixo da antecâmara do túmulo de Tutancâmon. Levantou a lampari­na acima da cabeça, e a luz se espalhou pelo ambiente, iluminando as paredes lisas e sem pintura. A sala tinha sete metros de comprimento por quatro de largura, e o teto era feito de um gigantesco bloco único de pedra. Quando os olhos de Erica bateram no chão, viram um enorme amontoado de esqueletos, alguns com pedaços de tecido naturalmente mumificados. Chegando a luz um pouco mais perto, viu que todos os crânios tinha sido quebrados e penetrados pelo golpe de um pesado instrumento.

— Meu Deus! — sussurrou Erica. Ela sabia o que estava vendo. Esses eram os restos do massacre dos antigos operários que haviam construído a câmara em que agora ela estava.

Lentamente passou pela sala com sua marca de antiga crueldade, e começou a descer uma longa escadaria que levava a uma parede de tijolos. Raman abrira um grande buraco, e Erica entrou em outra sala muito maior. Quando a luz penetrou na escuridão, Erica respirou fundo e encostou-se na parede. Em frente a ela estava um verdadeiro conto de fadas arqueológico. A sala era sustentada por grandes colunas. As paredes eram pintadas com imagens estranhas do antigo panteão egípcio. Em frente a cada divindade estava a imagem de Seti I. Erica encontrara o tesouro do faraó. Nenephta percebera que o lugar mais seguro para um tesouro era debaixo de outro.

Cuidadosamente, Erica avançava, segurando a lampari­na de forma que a luz tremeluzente iluminasse todos os objetos maravilhosos guardados com todo o cuidado naquela sala. Em contraste com o pequeno túmulo de Tucancâmon, não havia desordem. Estava tudo no lugar. Coches dourados inteiros estavam ali como que aguardan­do serem atrelados a um cavalo. Grandes cofres e arcas de cedro com ébano no interior enfileiravam-se na parede direita.

Uma pequena arca de marfim estava aberta, e seu conteúdo — jóias de rara beleza — fora espalhado cuidadosamente no chão. Obviamente aquilo fora uma fonte para os roubos de Raman.

Contornando as pilastras centrais, Erica descobriu que havia outra escada. Essa ia dar numa outra sala com as mesmas dimensões, também cheia de tesouros. Havia diversas entradas para outras salas.

— Meu Deus — exclamou Erica novamente, só que dessa vez de surpresa, não de horror. Percebeu estar num complexo de câmaras construídas para cima e para fora em direções desorientadoras.

Sabia que estava olhando um tesouro cujo valor estava além de qualquer cálculo. Enquanto andava, pensava no famoso esconderijo de Deir-el-Bari, descoberto no final do século passado e cuidadosamente saqueado pela família Rasul durante dez anos. Aqui a família Raman e a família Abdulal estavam aparentemente fazendo o mesmo.

Entrando em outra sala, Erica parou. Estava numa câmara relativamente vazia. Havia quatro arcas de ébano construídas com o formato de Osíris. A decoração nas paredes era feita com cenas do Livro dos mortos. O teto abobadado era pintado de preto e cheio de estrelas douradas. Em frente a Erica estava uma porta cuidadosa­mente bloqueada com alvenaria e selada com os antigos selos da necrópole. De cada lado da porta ficavam pilastras de alabastro com hieróglifos esculpidos em alto-relevo na parte da frente. Erica leu a frase na hora. "Vida eterna a Seti I, que descansa sob Tutancâmon."

Imediatamente Erica percebeu que o verbo era "descansar" e não "reinar", e que a preposição era "sob" e não "depois". Percebeu ainda que estava vendo a locali­zação original de duas estátuas de Seti. Ficaram de frente uma para a outra diante da parede de alvenaria durante três mil anos.

Subitamente Erica percebeu que estava diante da porta fechada da câmara mortuária do poderoso Seti I. O que ela descobrira não era apenas um tesouro abandonado, mas um túmulo faraônico completo. A estátua de Seti que ela vira tinha sido uma das que guardavam a câmara mortuária, como as estátuas com betume encontradas nos túmulos de Tutancâmon. Seti I não fora enterrado num túmulo construído como o dos outros faraós do Novo Império. Fora o último artifício de Nenephta. Um outro corpo fora enterrado no túmulo publicamente proclamado como sendo o de Seti, quando na verdade Seti fora enterrado num túmulo secreto debaixo do de Tutancâmon. Nenephta conseguira agradar as duas partes. Deu aos ladrões profissionais um túmulo para roubarem, e a proteção soberana que nenhum outro faraó teve. Nenephta, prova­velmente, também acreditava que mesmo se alguém encontrasse o túmulo de Tutancâmon jamais imaginaria que ele servisse como abrigo para um valioso tesouro. Ele compreendia "os modos dos gananciosos e dos injustos".

Balançando a lamparina para ver quanto ainda tinha de óleo, Erica decidiu que era melhor voltar. De forma relutante, virou-se e fez o caminho de volta, ainda maravilhada com o estratagema de Nenephta. Ele realmente fora esperto, mas fora arrogante também. Deixar o papiro no túmulo de Tutancâmon fora a parte mais fraca do plano. O que dera a chave do mistério para o igualmente esperto Raman. Erica imaginava se o árabe tinha ido à Grande Pirâmide como ela e percebera que as câmaras tinham sido construídas umas sobre as outras, ou se, ao visitar um dos túmulos dos nobres, descobrira um túmulo por baixo.Subindo a estreita passagem, Erica pensou na impor­tância da descoberta, e nos grandes riscos que isso implicava. Não precisava nem pensar se já havia morrido alguém por causa disso. O pensamento fez Erica deter-se. Ficou imaginando quantos assassinatos teriam acontecido. Por mais de cinqüenta anos o segredo fora mantido. O jovem de Yale... imediatamente Erica estabeleceu a asso­ciação desses crimes com a maldição dos faraós. Talvez as pessoas tivessem sido assassinadas para proteger o segredo. E Lorde Carnarvon?

Chegando à câmara mais alta, Erica parou para olhar as jóias retiradas da arca de marfim. Embora tivesse sido escrupulosamente cuidadosa em não tocar em nada, com medo de alterar o aspecto arqueológico do túmulo, gostaria de tocar em algo que já tivesse sido mexido. Pegou um pingente com o símbolo de Seti I feito em ouro maciço. Ela gostaria de ter alguma coisa para o caso de Yvon e Ahmed se recusarem a acreditar em sua história. Então levou o pingente com ela quando subiu a escada para a sala cheia de esqueletos dos infortunados operários da Antigüidade.

Subir pelo túnel era mais fácil do que descer. Quando chegou ao final, colocou a lamparina sobre a lama e pulou para dentro da abertura que ficava debaixo do restaurante. Tinha que decidir a melhor maneira de voltar a Luxor. Passava um pouco da meia-noite, de forma que eram pequenas as probabilidades de Muhammad ou o núbio voltarem. Sua maior preocupação era a guarda oficial que trabalhava sob o comando de Muhammad. Na estrada de asfalto no vale ela lembrava-se de ter visto uma guarita. Conseqüentemente, não podia ir embora pela estrada, mas teria que pegar o caminho de volta para Qurna.

Manipular o pedaço de metal naquele espaço pequeno era difícil. Erica teve que arrastá-lo pelo chão e deixá-lo cair no fundo da cova que havia lá. Depois, com a lata de sardinha que vira antes, começou a jogar terra por cima.

Nassif estava a muitos metros do restaurante quando ouviu o barulho de metal batendo na pedra. Imediatamente tirou o rifle do ombro e apontou para a porta dos lavatórios, parcialmente aberta. Com o cabo do rifle ele abriu a porta. O luar penetrou no pequeno saguão dos lavatórios.

Erica ouviu a porta abrir e apagou a lamparina com a mão. Ela estava a cerca de dez metros do banheiro dos homens. Seus olhos se adaptaram à escuridão rapidamente e conseguiu enxergar a porta do lavatório. Seu coração começou a bater da mesma forma que batera quando Richard entrara no seu quarto do hotel.

Enquanto observava, uma silhueta avançou para o saguão. Mesmo com a pouca luz Erica pôde perceber um fuzil. Uma sensação de pânico começou a tomar conta dela quando aquele homem dirigiu-se lentamente em sua direção. Ele estava curvado, andando como um gato aproximando-se de sua presa.

Sem idéia do que o homem podia ver, Erica deitou-se no chão. Ele parecia olhar diretamente para ela quando chegou junto à parede dos mictórios. Depois parou, e, no que pareceu levar horas, ficou olhando atentamente. Finalmente esticou o braço e apanhou um pouco de terra. Levantando o braço, ele jogou a terra de novo na abertura. Erica fechou os olhos quando um pouco de terra foi bater neles. O homem repetiu o gesto. Alguns seixos bateram no pedaço de metal ainda exposto.

Nassif levantou-se.

— Harrah! — murmurou. Estava furioso porque não tinha nem um rato em que atirar.

Erica sentiu um pouco de alívio, mas percebeu que o homem não fora embora. Ficara ali, olhando para ela no escuro com o rifle pendurado no ombro. Erica ficou perplexa até ouvir o ruído de urina.

 

A luminosidade do luar na vela da felluca era suficiente para Erica ver as horas. Já passava de uma hora. A travessia pelo Nilo foi tão tranqüila que ela poderia até ter cochilado. Atravessar o rio era o último obstáculo, e ela deixou o corpo relaxar. Tinha certeza de que Luxor era seguro. A excitação causada pela descoberta tinha suplanta­do a angustiante experiência no túmulo e era a vontade de revelar o que vira que a deixava acordada.

Olhando para trás, na direção da margem ocidental, Erica sentia-se satisfeita. Ela subira do vale dos Reis, passara pela aldeia de Qurna e atravessara os campos cultivados até as margens do Nilo sem problemas. Quando encontrou alguns cachorros simplesmente abaixou-se e apanhou uma pedra. Esticou as pernas cansadas.

A embarcação adernou um pouco com uma rajada de vento, e Erica apreciou a beleza da vela inclinada contra o céu coberto de estrelas. Não tinha certeza sobre a escolha daquele a quem gostaria mais de contar sua história: Yvon, Ahmed ou Richard. Yvon e Ahmed apreciariam mais, Richard ficaria mais surpreso. Mesmo sua mãe ficaria, pela primeira vez, genuinamente satisfeita: nunca mais teria que pedir desculpas, no Country Club, pela carreira da filha.

De volta à margem oriental, ficou satisfeita por encontrar o saguão do Winter Palace Hotel vazio. Precisou gritar na recepção para que o funcionário acordasse.

O sonolento egípcio, embora com ar de surpresa, deu-lhe a chave e um envelope sem dizer nada. Erica subiu a larga e atapetada escadaria enquanto o funcionário a olhava, imaginando o que ela teria feito para estar tão imunda. Erica olhou o envelope. Era do próprio hotel, endereçado a ela com uma caligrafia grossa. Quando chegou no corredor, rasgou a ponta do envelope, abrindo-o enquanto caminhava entre o material de cons­trução. Na porta, já ia enfiar a chave na fechadura quando desdobrou o papel que estava dentro do envelope. Tinha apenas uns rabiscos sem significado algum. Olhando a parte externa do envelope, Erica imaginou se seria algum tipo de brincadeira. Se fosse, ela não entendeu nem gostou. Era como telefonar para alguém e não dizer nada. Era enervante.

Erica olhou a porta. Aprendera durante a viagem que os hotéis não eram lugares seguros. Lembrou-se de ter encontrado Ahmed em seu quarto, da chegada de Richard, do quarto revirado. Com uma renovada sensação de incerteza enfiou a chave na porta.

De repente achou ter ouvido um ruído. Em seu atual estado, era tudo de que precisava. Retirando a chave da fechadura, Erica seguiu pelo corredor. Na pressa, sua bolsa bateu num monte de tijolos fazendo grande barulho. Atrás de si ouviu sua porta sendo destrancada por dentro.

Ao ouvir o barulho da chave, Evangelos correra e ficara atrás da porta.

— Mate-a — gritou Stephanos, despertado pelo baru­lho. Puxando a Beretta, Evangelos abriu a porta a tempo ainda de ver Erica descer a escada principal.

Ela não fazia idéia de quem estava em seu quarto, mas não tinha a ilusão de que pudesse ser protegida pelo sonolento funcionário da recepção. Além disso, ele nem estava na recepção. Ela teria que ir se encontrar com Yvonno Novo Winter Palace. Saiu correndo pelos fundos do hotel em direção ao jardim.

Apesar do seu tamanho, Evangelos movia-se como um falcão, especialmente quando era preciso. E quando recebia uma ordem para praticar violência, era como um cachorro feroz.

Erica correu por um jardim florido e chegou à piscina. Tentando contorná-la correndo, escorregou nos ladrilhos molhados. Levantando-se, largou a bolsa e começou a correr novamente. Ouviu passos se aproximando dela.

Evangelos estava perto o suficiente para um tiro certeiro.

— Pare! — gritou ele, apontando a arma para as costas de Erica.

Erica sabia que era inútil. Ainda faltavam cerca de cinqüenta metros para chegar ao Novo Winter Palace. Parou, exausta, com o peito ofegante, e virou-se para olhar o homem que a perseguia. Ele estava a cerca de dez metros. Ela o reconheceu da mesquita de Al Azhar. O grande corte que ele sofrera naquela noite estava com pontos, fazendo-o parecer Frankenstein. Sua arma estava apontada para ela, o cano acoplado a um silenciador.

Evangelos tentava resolver que tipo de tiro dispararia. Finalmente, com o braço esticado, apontou para o pescoço de Erica e lentamente começou a puxar o gatilho.

Erica viu o braço dele se esticar um pouco mais, e seus olhos arregalaram-se quando percebeu que ele ia atirar, mesmo tendo parado como ele mandara.

A arma abafada pelo silenciador fez um barulho seco. Erica não sentiu dor, e sua vista não escureceu. Depois aconteceu algo estranho. Uma pequena flor vermelha surgiu no meio da testa de Evangelos e caiu sobre seu rosto, a mão dele tombando.

Erica não pôde se mexer. Suas mãos estavam inertes, caídas. Atrás dela ouviu um movimento entre as folhagens. Depois uma voz:

— Você não devia ter sido tão espertinha e fugido de mim.

Erica virou-se lentamente. Em frente a ela estava o homem com o dente pontudo e o nariz adunco.

— Foi por pouco — disse Khalifa, apontando para Evangelos. — Acho que você deve estar procurando Monsieur de Margeau. E melhor se apressar. Vai haver mais encrenca.Erica tentou falar mas não conseguiu. Assentiu e passou por Khalifa, com passo trôpego. Não se lembrava de como chegar ao quarto de Yvon.

O francês abriu a porta, e ela jogou-se em seus braços, contando-lhe sobre o tiro, o encarceramento no túmulo, a descoberta da estátua. Yvon estava calmo, alisou os cabelos dela, sentou-a e disse que começasse do início.

Ela já ia começar quando alguém bateu na porta.

— É Khalifa.

Yvon abriu a porta e Khalifa jogou Stephanos dentro do quarto.

— Você me pagou para proteger a garota e lhe trazer a pessoa que tentasse matá-la. Aqui está. — Khalifa apontou para Stephanos.

Stephanos olhou para Yvon, depois para Erica, que estava surpresa por Khalifa ter sido contratado por Yvon para protegê-la, já que Yvon deliberadamente a colocara em risco. Erica começou a não se sentir bem.

— Olhe, Yvon — disse Stephanos finalmente. — É ridículo você e eu começarmos a brigar. Você está com raiva porque eu vendi a primeira estátua de Seti para o homem de Houston. Mas o que eu fiz foi apenas levar a estátua do Egito para a Suíça. Realmente não há competição entre nós dois. Você quer controlar o mercado negro. Ótimo. Eu quero apenas proteger o meu lado. Posso tirar tudo o que é seu do Egito com um método infalível. Devíamos trabalhar juntos.

Erica olhou rapidamente para Yvon para ver a reação dele. Queria ouvi-lo rir e dizer a Stephanos que ele estava errado, que ele, Yvon, queria destruir o mercado negro.

Yvon passou a mão pelo cabelo.

— Por que você estava ameaçando Erica? — per­guntou.

— Porque ela sabe muita coisa sobre Abdul Hamdi. Eu queria proteger minha rota. Mas se vocês dois estão trabalhando juntos, tudo bem.

— Você não tem nada a ver com a morte de Hamdi e com o desaparecimento da segunda estátua? — perguntou Yvon.

— Não — afirmou Stephanos. — Juro. Nem mesmo sabia da segunda estátua de Seti. Foi isso que me preocupou. Eu estava com medo de estar sendo passado para trás e que a carta de Hamdi fosse acabar na polícia. Fechando os olhos, Erica deixou que a verdade dos fatos penetrasse nela. Yvon não era um defensor das peças antigas. Sua idéia de controlar o mercado negro significava controlá-lo para seu benefício próprio, não para o benefício da ciência, do Egito, ou do mundo. Sua paixão por antigüidades superava quaisquer valores morais. Erica fora ingênua, e o que era mais grave, podia ter sido assassinada. Enterrou as unhas no sofá. Sabia que tinha que sair dali. Tinha que contar a Ahmed sobre o túmulo de Seti.

— Stephanos não matou Abdul Hamdi — disse Erica subitamente. — Quem matou Abdul Hamdi foram as pessoas que controlam as antigüidades aqui em Luxor. A estátua de Seti foi trazida de volta para Luxor. Eu a vi e posso levar-nos até lá. — Ela teve cuidado ao usar o pronome "nos".

Yvon olhou para Erica, um pouco surpreso de sua súbita manifestação. Ela sorriu para ele de modo tranqüili­zador. Seu instinto de autopreservação deu-lhe uma força inesperada.

— Além do mais — continuou Erica —, a rota de Stephanos pela Iugoslávia é muito melhor do que tentar levar as peças em fardos de algodão a partir de Alexandria.

Stephanos assentiu quando começou a falar com Yvon.

— Mulher esperta. E ela está certa. Meu método é muito melhor do que embrulhar as peças em fardos de algodão. Era isso realmente que você havia planejado? Meu Deus, isso iria durar quando muito duas remessas.

Erica insistiu. Ela sabia que precisava convencer Yvon de que tinha interesses pessoais em antigüidades.

— Amanhã eu posso lhe mostrar o lugar onde se encontra a estátua de Seti I.

— Onde está? — perguntou Yvon.

— Num dos túmulos dos nobres sem identificação, na margem ocidental. É muito difícil descrever sua localização. Tenho que lhe mostrar. Fica em cima da aldeia de Qurna. E há muitas outras peças interessantes. — Erica procurou no bolso do casaco o pingente de ouro de Seti. Ela o apanhou e o jogou sobre a mesa, casualmente.

— Meu prêmio por achar a estátua de Seti será Stephanos conseguir tirar do país esse pingente para mim.

— É muito delicado — disse Yvon, examinando o cordão.

— Há muitas peças lá, algumas muito melhores do que esta. Este pingente foi o que consegui apanhar. Agora eu gostaria de tomar banho e descansar. Se você não percebeu, eu tive uma noite e tanto. — Erica chegou perto de Yvon e deu-lhe um beijo no rosto. Foi a coisa mais difí­cil que fez. Agradeceu a Khalifa por tê-la salvo no jardim. Depois, atrevidamente, caminhou até a porta.

—  Erica... — disse Yvon tranqüilamente. Ela voltou-se.

— Sim?

Fez-se silêncio.

— Talvez você devesse ficar aqui — sugeriu Yvon. Estava claro que ele estava decidindo o que fazer com ela.

—  Esta noite estou muito cansada — respondeu Erica.

A conclusão era óbvia. Stephanos escondeu o sorriso atrás das mãos.

— Raoul! — chamou Yvon. — Quero que você se certifique de que a Srta. Baron estará a salvo esta noite.

— Acho que não haverá problema — disse Erica, abrindo a porta.

— Só para ter certeza — insistiu Yvon —, quero que Raoul vá com você.

O corpo de Evangelos ainda jazia ao luar, perto da piscina, quando Erica e Raoul passaram de volta em direção ao Winter Palace. Parecia que ele estava dormindo, a não ser pelo mar de sangue que havia debaixo de sua cabeça, escorrendo para a água da piscina. Erica virou o rosto quando Raoul foi até ele para ver se Evangelos estava morto mesmo. De repente ela percebeu a semi-automática de Evangelos ainda caída sobre os ladrilhos.

Erica olhou para Raoul. Ele esta lutando para virar o corpo de Evangelos. Sem olhar para Erica, ele disse:

— Meu Deus. Khalifa é fantástico. Acertou-o entre os olhos.

Erica abaixou-se e apanhou a arma. Era mais pesada do que ela esperava. Seu dedo ajeitou-se em torno do gatilho. Ela detestava aquilo, e a arma a assustava. Nunca segurara uma arma antes e só pensar em sua capacidade letal fez com que tremesse. Ela não se enganava. Sabia que não conseguiria jamais puxar o gatilho, mas voltou e olhou para Raoul, que estava se levantando e sacudindo as mãos.

— Ele morreu antes de cair no chão — observou Raoul, virando-o na direção de Erica. — Ah, vi você apanhar a arma dele. Entregue a arma para mim e eu a colocarei na mão dele.

—  Não se mexa! — disse Erica lentamente.Os olhos de Raoul hesitaram entre a arma e o rosto de Erica.

—  Erica, o quê?

—  Cale a boca. Tire o paletó.

Raoul obedeceu. Jogou o blazer no chão. — Agora coloque a camisa sobre a cabeça — ordenou Erica.

—  Erica... — disse Raoul.

— Vamos! — Ela estendeu o braço, segurando a arma de Evangelos.

Raoul puxou a camisa de dentro da calça e com certa dificuldade cobriu a cabeça com ela. Debaixo da camisa ele usava uma camiseta. Sob o braço esquerdo estava uma pistola. Erica chegou perto dele e apanhou sua arma no coldre. Jogou-a na piscina. Ouvindo-a bater na água, ela hesitou, temerosa de que Raoul ficasse com raiva. Depois achou a idéia absurda. Logicamente ele iria ficar com raiva. Ela estava apontando uma arma para ele.

Ela deixou Raoul abaixar a camisa para que visse para onde estava indo. Depois, ordenou que ele fosse para a frente do hotel. Ele tentou falar e novamente ela mandou que ele calasse a boca. Erica pensou como era realmente fácil, nos filmes, imobilizar um homem com uma pancada na cabeça. Na verdade ela não podia fazer nada. Se Raoul tivesse se virado, ele podia ter pego a arma. Mas não se virou, e os dois caminharam, um atrás do outro, pelas sombras da frente do hotel.

Diversas luminárias antigas jogavam uma luz pálida sobre os táxis parados na rua. Seus motoristas há muito tinham ido embora para dormir. O principal trabalho deles era ir e vir entre o hotel e o aeroporto. Mas como o último vôo chegava às nove e dez da noite, não havia nada para eles fazerem. Os turistas preferiam as românticas carrua­gens para passear pela cidade.

Com a arma de Evangelos tremendo em sua mão, Erica levou Raoul até a fila dos velhos táxis, olhando para a chave de ignição dos carros. Muitos dos carros estavam com a chave no lugar. Ela queria ir até Ahmed, mas tinha que decidir o que fazer com Raoul.

O carro que estava no início da fila era igual aos demais, com a exceção da moldura do vidro de trás. A chave estava no lugar.

— Deite-se — ordenou Erica. Ela temia que alguém saísse do hotel.Raoul achou que era para deitar-se no gramado que havia ali perto.

—  Depressa! — falou Erica, tentando parecer furiosa. Apoiando-se nas mãos, Raoul deitou-se. Manteve as

mãos debaixo do corpo, pronto para se levantar, sua confusão transformando-se em raiva.

—  Estique os braços — exigiu Erica.

Ela abriu a porta do táxi e sentou-se ao volante, que era forrado de vinil. Um par de dados de plástico vermelho estava pendurado no painel.

O motor custou muito para pegar, soltou fumaça preta e finalmente pegou. Apontando a arma para Raoul, Erica procurou o botão do farol e o puxou. Depois jogou a pistola no banco, ao seu lado, e engrenou o carro. Ele deu um solavanco para a frente e começou a andar penosamen­te, fazendo a pistola cair no chão.

Com o canto dos olhos Erica viu Raoul ficar de pé e correr atrás do táxi. Ela apertou o acelerador com força, tentando dar maior velocidade ao carro quando ele subiu no pára-choque traseiro e segurou-se no porta-malas.

O carro estava em segunda quando Erica entrou na larga avenida iluminada. Não havia nenhum outro carro circulando, e ela acelerou o quanto pôde ao passar em frente ao Templo de Luxor. Quando o motor já estava bem acelerado, Erica passou para a terceira. Ela não fazia idéia da velocidade porque o velocímetro não funcionava. Pelo espelho retrovisor viu Raoul ainda se agarrando no porta-malas. Seu cabelo escuro agitava-se ao vento furiosa­mente. Erica queria que ele caísse do carro.

Ela fazia o carro balançar, virando o volante para um lado e depois para o outro. O táxi andava serpenteando pela rua, com os pneus cantando. Mas Raoul agarrava-se ao carro e mantinha-se bem seguro.

Erica passou para quarta e apertou o acelerador. O táxi avançou mais, mas a roda dianteira da direita vibrou. A vibração era tão forte que ela precisou segurar o volante bem firme com as duas mãos quando passava em frente à casa de dois ministros. Os guardas que vigiavam as casas apenas sorriram quando viram o táxi se sacudindo a alta velocidade e com um homem pendurado atrás.

Pisando no freio, Erica fez o carro parar abruptamente. Raoul escorregou pela janela de trás. Engrenando a primeira, Erica acelerou novamente, mas Raoul continuava firme, segurando-se na moldura da janela de trás. Erica ainda podia vê-lo pelo retrovisor, de modo que deliberada­mente procurava os desníveis da estrada, caindo em buracos, onde o carro batia com toda a força. A porta do lado direito abriu-se, os dados vermelhos caíram do painel.

Raoul agora estava sobre o porta-malas, com os braços sobre a janela traseira, e as mãos presas às janelas das portas traseiras. O impacto do carro nos buracos fazia sua cabeça e o corpo baterem contra a carroçaria. Ele estava determinado a ficar com Erica. Ele achou que ela havia ficado maluca.

No desvio para a casa de Ahmed, os faróis do táxi iluminaram uma parede de tijolos ao longo da estrada. Erica fez cantarem os pneus quando parou e engrenou a marcha à ré. A súbita parada fez com que Raoul escorregasse. Ele se agarrou numa maçaneta, a mão esquerda segurando a janela bem perto do rosto de Erica.

Erica deu marcha à ré, o carro ondeando bastante antes de bater na parede. O pescoço dele foi para trás, curvando-se como um chicote. A porta dianteira da direita abriu-se ao máximo, quase saindo da dobradiça. Raoul segurou-a.

Engrenando a primeira, Erica fez com que o carro corcoveasse para a frente. Com a súbita aceleração a porta da direita se fechou, prendendo a mão de Raoul.

Ele gritou de dor e puxou a mão para trás por reflexo. Ao mesmo tempo, o carro subiu no asfalto da estrada, e o solavanco jogou Raoul no acostamento de areia. Quase que no mesmo instante que caiu no chão ele ficou de pé.

Segurando a mão machucada, correu atrás de Erica, percebendo que ela estava estacionando numa casa de tijolinhos pintados de branco. Ele parou quando ela desceu do carro em direção à porta da casa. Depois de se certificar para onde ela estava indo, ele virou-se e voltou para se encontrar com Yvon.

Erica estava com medo de que Raoul estivesse atrás dela quando chegou à porta de Ahmed. A porta estava destrancada, e ela se projetou para dentro da casa, deixando a porta entreaberta. Tinha que convencer Ahmed da conspiração, o mais rapidamente possível, para que fosse pedida proteção policial adequada.

Correndo diretamente para a sala de estar, ficou contente de que Ahmed ainda estivesse acordado, conver­sando com um amigo.

— Estou sendo seguida — gritou Erica.Ahmed levantou-se, confuso, quando reconheceu Erica.

— Depressa — continuou ela —, precisamos de ajuda.

Ahmed recobrou-se da surpresa e correu para a porta da casa. Erica voltou-se para o amigo de Ahmed para lhe pedir que chamasse a polícia. Ela abriu a boca e depois seus olhos arregalaram-se com espanto e terror.

Fechando a porta atrás de si, Ahmed voltou e segurou Erica em seus braços.

— Está tudo bem, Erica — assegurou ele. — E você está salva. Deixe-me vê-la. Não acredito; é um milagre.

Mas Erica não respondeu, apenas esticou-se para olhar por cima do ombro de Ahmed. Seu sangue congelou. Ela estava olhando para Muhammad Abdulal! Agora ela e Ahmed seriam assassinados. Ela achava que Muhammad estava igualmente surpreso em vê-la, mas ele manteve-se firme e disparou uma torrente de palavrões em árabe.

A princípio, Ahmed não percebeu a atitude de Muhammad. Perguntou a Erica quem" a estava seguindo, mas antes que ela pudesse responder, Muhammad disse alguma coisa que provocou em Ahmed a mesma súbita violência de quando ele quebrara a xícara de chá. Seus olhos turvaram-se e ele os apertou para olhar para Erica. Falou em árabe, e no início sua voz estava baixa e ameaçadora, mas aos poucos aumentou até chegar a gritar.

Erica olhava de um lado para outro, encarando os dois homens, esperando que Muhammad sacasse uma arma. Para alívio seu, ela percebeu que em vez disso ele estava submisso. Aparentemente ele recebia ordens de Ahmed, porque sentou-se quando Ahmed apontou para uma cadeira. Depois do alívio, sobreveio o medo. Quando Ahmed voltou para Erica, ela perscrutou os olhos poderosa­mente profundos. O que estava acontecendo?

Ahmed falou educadamente.

— Erica, é realmente um milagre que você tenha voltado...

A cabeça de Erica estava começando a achar que havia algo errado. O que Ahmed estava dizendo? O que ele quis dizer com "voltado"?

— Deve ser a vontade de Alá que nos faz ficar juntos — prosseguiu — e estou querendo aceitar a decisão dele. Estou falando com Muhammad sobre você há horas. Eu ia procurar você, conversar com você, pedir a você...

O coração de Erica disparou; seu senso de realidade a estava abandonando.—  Você sabia que eu fui trancada dentro do túmulo? — Sim. Foi uma decisão difícil para mim, mas você precisava ser detida. Ordenei que você não fosse machuca­da. Eu ia ao túmulo convencer você a se unir a nós. Eu a amo, Erica. De uma outra vez, tive que desistir da mulher que amava. Meu tio deixou claro que não havia outra escolha. Mas dessa vez, não. Quero que você entre para minha família, minha família é a família de Muhammad.

Fechando os olhos por um instante, Erica tentava assimilar seus pensamentos contraditórios. Ela não podia acreditar no que estava acontecendo e no que estava ocorrendo. Casamento? Família? Sua voz soou insegura.

—  Você é parente de Muhammad?

— Sim — confirmou Ahmed. Ele a levou lentamente até o sofá e sentou-a. — Muhammad e eu somos primos. Aida Raman é nossa avó. Ela é mãe da minha mãe.

Ahmed explicou de modo paciente a complicada genealogia da família, começando por Sarwat e Aida.

Quando terminou de falar, Erica lançou um olhar assustado para Muhammad.

— Erica... — disse Ahmed para que ela se voltasse para ele. — Você conseguiu fazer algo que ninguém conseguiu há uns cinqüenta anos. Ninguém fora da família tinha visto o papiro de Raman, e todos que tinham algum conheci­mento sobre ele acabaram mal. Graças à imprensa, as mortes foram atribuídas a alguma misteriosa maldição. Foi o mais conveniente.

— E todo o segredo se resume em não revelar a existência do túmulo? — perguntou Erica.

Ahmed e Muhammad entreolharam-se.

—  A que túmulo você se refere? — perguntou Ahmed. — O verdadeiro túmulo de Seti, embaixo de Tutancâmon — respondeu Erica.

Muhammad avançou e descarregou outra série de xingamentos em árabe. Dessa vez Ahmed ouviu e não o mandou calar. Quando Muhammad acabou, Ahmed voltou-se novamente para Erica. Sua voz continuava calma.

— Você é mesmo maravilhosa, Erica. Agora você sabe por que são tão grandes os riscos. Sim, estamos guardando um túmulo não violado de um dos maiores faraós egípcios. Com sua experiência no assunto, você sabe o que ele significa. Um valor inacreditável. Então você pode com­preender que nos colocou numa posição embaraçosa. Mas se você se casar comigo, então ele vai ser um pouco seu evocê poderá ajudar a esclarecer essa grande descoberta arqueológica.

Erica tentou pensar novamente num modo de fugir. Primeiro tivera que fugir de Yvon, agora de Ahmed. E Raoul provavelmente tinha ido ao encontro de Yvon. Haveria um terrível confronto. O mundo estava maluco. Para ganhar tempo ela perguntou:

—  Por que o túmulo ainda não foi limpo?

— O túmulo tem tantas coisas preciosas que para retirar alguma coisa de lá é preciso um planejamento cuidadoso. Meu avô Raman sabia que se passaria uma geração inteira para que se montasse o esquema através do qual se pudessem negociar os objetos do túmulo e colocar a família num lugar de onde pudesse controlar a saída desses ricos objetos daqui do Egito. No final da vida do meu avô, só tiramos do túmulo o suficiente para educar a geração seguinte. Foi só no ano passado que fui nomeado diretor do Departamento de Antigüidades e Muhammad chefe de guarda da Necrópole de Luxor.

— Então é como a família Razul no século XIX — disse Erica.

—  Há uma semelhança superficial — disse Ahmed. — Nós trabalhamos de forma muito sofisticada. Os interesses arqueológicos estão sendo levados em conta. Na verdade, Erica, você poderia cuidar dessa parte.

— Lorde Carnarvon foi uma das pessoas "que se deram mal"? — perguntou Erica.

— Não estou certo — respondeu Ahmed. — Isso já foi há muito tempo, mas acho que sim. — Muhammad assentiu. — Erica — continuou Ahmed —, como você conseguiu descobrir tudo isso? Quero dizer, o que fez...?

Subitamente as luzes da casa se apagaram. A lua estava encoberta e a escuridão era total, como num túmulo. Erica não se mexeu. Ouviu alguém pegar no telefone, depois desligar. Ela achava que Yvon e Raoul tinham cortado os fios.

Ouviu Ahmed e Muhammad falarem baixinho em árabe. Depois seus olhos começaram a se acostumar com a escuridão, de modo que ela conseguiu ver alguns vultos. Uma figura avançou na direção dela e ela se afastou. Era Ahmed, que a segurou pelo punho e a colocou de pé. Ela só conseguia ver os olhos e os dentes dele.

— Novamente eu lhe pergunto, quem estava seguindo você?Sua voz era um meio sussurro com tom de urgência.

Ela tentou falar, mas gaguejou; estava aterrorizada. Estava entre dois fogos cruzados. Ahmed sacudia seu punho impacientemente. Finalmente Erica conseguiu falar.

— Yvon de Margeau.

Ahmed não soltou o punho de Erica enquanto falava com Muhammad. Erica viu a ponta de uma arma na mão de Muhammad. Teve a inútil sensação de que os acontecimen­tos novamente escapariam do seu controle.

Sem dizer nada, Ahmed puxou Erica pela sala de estar e depois pelo mesmo corredor escuro, em direção aos fundos da casa. Ela tentava soltar o braço, sem conseguir nada e com medo de tropeçar e cair. Mas a mão de Ahmed segurava-a como um gancho de aço. Muhammad seguia atrás deles. Saíram da casa para o quintal, onde estava um pouco mais claro. Contornaram o estábulo, chegando ao portão de trás. Ahmed e Muhammad falaram alguma coisa rapidamente; depois Ahmed abriu a porta de madeira. O beco que havia em frente era deserto e mais escuro do que o quintal, por causa de uma fila dupla de árvores. Muhammad cuidadosamente avançou, com a arma aponta­da, os olhos vasculhando as sombras. Satisfeito, voltou, deixando espaço para Ahmed passar. Sem largar o braço dela, Ahmed puxou Erica para a frente, levando-a pela porta em direção ao beco. Muhammad ia logo atrás.

A primeira coisa que Erica sentiu foi o aperto da mão de Ahmed em seu punho estreitar-se. Depois ouviu o barulho de um tiro. O mesmo barulho seco que ouvira quando se encontrara com o furioso Evangelos. Era o barulho de um tiro com silenciador. Ahmed caiu para o lado, de encontro à porta, puxando Erica para cima dele. Mesmo na semi-escuridão ela conseguiu ver que ele fora alvejado como Evangelos, entre os olhos. Seu rosto estava coberto com pedaços do cérebro, espalhados.

Erica ajoelhou-se, em estado de torpor. Muhammad passou correndo por ela, enfiando-se no beco, abrigando-se entre as árvores. Erica, sem demonstrar nenhuma emoção, viu-o virar-se e disparar a arma em direção ao beco. Depois virou-se e atirou na posição contrária.

Confusa, ela se levantou, os olhos voltados para o corpo inerte de Ahmed. Voltou para as sombras até bater na parede do estábulo. Estava de boca aberta e ofegante. Vindo da parte da frente da casa ouviu um ruído de algo sendo quebrado e depois uma pancada. Do outro lado ela ouvia Sawda agitado, no estábulo. Ficou paralisada.

Bem em frente a ela, Erica viu alguém passar correndo, agachado. Quase imediatamente, novos disparos do lado direito. Dentro da casa ouviu o barulho de alguém correndo, e seu estado de imobilidade começou a se transformar em terror. Ela sabia que era ela que Yvon desejava. Ele estava desesperado.

Erica ouviu a porta dos fundos da casa ser aberta. Prendeu a respiração quando surgiu a pessoa, silenciosa­mente. Era Raoul. Ela o viu curvar-se sobre Ahmed e depois ir na direção do beco.

A imobilidade de Erica durou mais cinco minutos, depois o barulho do tiroteio no beco cessou. De repente afastou-se da parede e foi tropeçando pelo escuro, por dentro da casa, e saiu pela porta da frente.

Atravessou a estrada e passou por, um corredor feito de tijolos. Correu cem metros, mais cem, fazendo com que algumas casas acendessem as lâmpadas quando ela passava com o passo pesado. Esbarrou em entulhos, num engradado de galinhas e caiu dentro de uma vala. Ao longe ouvia novos tiros e um homem gritando. Correu até sentir que ia arrebentar. Mas só descansou quando chegou ao Nilo. Tentava pensar aonde ir. Não podia confiar em ninguém. Desde que Muhammad Abdulal era chefe dos guardas, tinha medo até da polícia.

Foi nesse momento que se lembrou das duas casas de ministros vigiadas por soldados. Com esforço virou-se para a direção contrária e começou a caminhar para o sul. Manteve-se nas sombras, longe da estrada, até chegar às casas com os soldados. Depois, como um autômato, dirigiu-se para a rua iluminada e contornou a parede da frente da primeira casa. Os soldados estavam lá, conversan­do a uma distância de quinze metros, que era o intervalo entre os dois portões. Os dois viraram-se e olharam Erica se dirigir ao primeiro deles. Era jovem, com um uniforme marrom largo e as botas bem engraxadas. O rifle estava pendurado no ombro. Ele pegou na arma quando Erica se aproximou, e começou a dizer algo.

Sem intenção de parar, Erica passou pelo jovem, que ficou surpreso, e foi em direção à casa.

— O af andak! — gritou o soldado, que partiu atrás dela.Erica parou. Depois de reunir toda a sua coragem, gritou.

— Socorro! — e continuou gritando até uma lâmpada se acender na escuridão da casa. Logo apareceu alguém de túnica na porta, careca, gordo, descalço.

—  O senhor fala inglês? — perguntou ela sem fôlego.

— É claro — respondeu o homem, surpreso e um pouco irritado.

—  Trabalha para o governo?

—  Sim. Sou assistente do ministro da Defesa.

—  O senhor tem alguma coisa a ver com antigüidades? — Nada.

— Ótimo — disse Erica. — Tenho uma história incrível para lhe contar.

 

Boston

O 747 da TWA inclinou-se levemente e depois preparou-se para descer no Aeroporto Logan. Com o nariz encostado no vidro da janela, Erica admirava a vista de Boston no final de outono. Para ela estava tudo muito bem. Sentia uma genuína satisfação em voltar.

As rodas do jato tocaram na pista, sacudindo de leve a cabina. Alguns passageiros bateram palmas, felizes por terminar o longo vôo transatlântico. Quando o aparelho taxiou em direção ao prédio de desembarques internacio­nais, Erica admirou-se das experiências que vivera desde que partira. Ela agora era uma pessoa diferente, sentindo que realmente tinha feito a passagem do mundo teórico para o mundo real. E com o convite do governo egípcio para de­sempenhar um papel de destaque na abertura do túmulo de Seti I, sentia-se confiante numa próspera carreira.

Houve mais uma e última sacudidela quando o avião parou no terminal. O barulho dos motores sumiu, e os passageiros começaram a abrir os compartimentos de pequenas bagagens que ficavam por cima das janelas. Ela ficou na poltrona e olhou para as nuvens da Nova Inglaterra. Lembrou-se do imaculado uniforme branco do Tenente Iskander quando foi levá-la ao embarque, no Cairo. Contou-lhe o resultado daquela decisiva noite em Luxor; Ahmed Khazzan morrera dos ferimentos — o que ela já sabia desde que ele fora ferido; Muhammad Abdulal ainda estava em estado de coma; Yvon de Margeau, contudo, recebera autorização de viajar. Tinha saído do país, tornando-se persona non grata ao Egito; Stephanos Markoulis simplesmente desaparecera.

Agora que ela estava em Boston tudo isso lhe parecia absurdo, especialmente quanto a Ahmed. A experiência também fez com que ela questionasse sua habilidade em julgar as pessoas, em especial por causa de Yvon. Mesmo depois do que acontecera, ele tivera a coragem de telefonar para ela, de Paris, quando ela chegara ao Cairo, oferecendo-lhe grande soma para que ela lhe desse mais informações sobre o túmulo de Seti I. Ela sacudiu a cabeça, assombrada, enquanto pegava a bagagem de mão.

Erica deixou-se levar pela multidão. Passou pelo controle de imigração rapidamente e apanhou as malas. Depois retirou-se para a sala de espera.

Eles se viram ao mesmo tempo. Richard correu e levantou-a, enquanto Erica deixou as malas caírem no chão, fazendo com que as pessoas que vinham atrás esbarrassem nelas. Abraçaram-se sem dizer nada, a emoção de ambos manifestando-se com a mesma intensidade.

Finalmente Erica soltou-se dos braços dele.

— Você estava certo, Richard. Eu estava muito empol­gada desde o início. Tenho sorte por estar viva.

Os olhos de Richard encheram-se de lágrimas, algo que Erica nunca vira.

— Não, Erica, nós dois estávamos errados e certos. Isso significa apenas que temos muito que aprender sobre nós e, acredite-me, é o que eu quero.

Erica sorriu. Ela não tinha certeza do que isso significava, mas fez com que ela se sentisse bem.

— Ah, a propósito — disse Richard, apanhando as malas dela —, está aí um homem de Houston que quer ver você. Está bem ali — apontou Richard.

— Meu Deus! — exclamou Erica. — É Jeffrey John Rice.

Como sabendo que falavam nele, Jeffrey Rice aproxi­mou-se, tirando o chapéu florido de abas largas.

— Desculpe interromper vocês nessa hora, mas, Srta. Baron, aqui está seu cheque, por descobrir aquela estátua.

— Não estou entendendo. Você não pode comprá-la.

— Este é o motivo. Isto faz com que a minha seja a única fora do Egito. Por sua causa ela vale mais do que antes. Houston está muito agradecida.

Erica olhou para o cheque de dez mil dólares e deu uma gargalhada. Richard, que não estava entendendo nada do que acontecia, viu a expressão de espanto dela e começou a rir também. Rice deu de ombros e, ainda segurando o cheque, acompanhou-os em direção ao radiante sol de Boston.



 

* Referência ao Faraó Tutancâmon. (N. do T.)

* Embarcação típica do Mediterrâneo. (N. do T.)

* Referência ao corcunda de Notre-Dame. (N. do T.)

* Sede administrativa. (N. do T.)

 

                                                                                            Robin Cook

 

 

                      

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