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O Outro Lado do Céu / Arthur C. Clark
O Outro Lado do Céu / Arthur C. Clark

 

 

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O Outro Lado do Céu

                  

OS NOVE TRILHÕES DE NOMES DE DEUS

- Este é um pedido um pouco incomum - disse o Dr. Wagner com o que esperava fosse uma atitude de discrição recomendável. - Até onde sei, é a primeira vez que alguém recebe um pedido para fornecer um Computador Seqüenciador Automático a um mosteiro tibetano. Não quero parecer indiscreto, mas dificilmente chegaria a pensar que sua... ah... instituição encontraria muita utilidade nessa máquina. Poderia me explicar o que pretende fazer com ela?

      - Com prazer - respondeu o lama, ajeitando o seu manto de seda enquanto colocava de lado, cuidadosamente, a régua de cálculo que estivera utilizando para   conversões   monetárias.   - Seu   computador Mark V pode realizar qualquer operação matemática de rotina envolvendo até dez dígitos. Contudo, para nosso trabalho, estamos interessados em letras, não em números. Assim, desejamos que modifiquem os circuitos de saída de modo que a máquina imprima palavras e não colunas de números.

      - Eu não compreendo bem...

      - Este é um projeto em que estamos trabalhando há três séculos. Na verdade, desde que a lamaseria foi fundada. É um pouco estranho para seu modo de pensar, assim, peço que escute com a mente aberta enquanto tento explicar.

      - Naturalmente.

      - É na verdade bem simples. Estamos já há algum tempo compilando uma lista que deverá conter todos os nomes possíveis de Deus.

      - Peço que me desculpe...

      - Temos razões para acreditar - continuou o lama sem se perturbar - que  todos esses nomes possam ser escritos usando não mais do que nove letras de um alfabeto que elaboramos.

      - E estão fazendo isso há três séculos?

      - Sim, esperávamos terminar a tarefa em aproximadamente 15 mil anos.

      - Oh! - exclamou o Dr. Wagner, parecendo um pouco atordoado. - Agora percebo por que desejam uma de nossas máquinas. Mas qual é exatamente a finalidade desse projeto?

      O lama hesitou por uma fração de segundo e Wagner se perguntou se o teria ofendido. Entretanto não havia sinal de aborrecimento na resposta.

      —  Chame de ritual, se desejar, mas é uma parte fundamental de nossas crenças. Todos os muitos nomes do Ser Supremo, como Deus, Jeová, Alá e assim por diante, são apenas rótulos criados pelo homem. Existe aqui um problema filosófico de alguma complexidade, o qual não me proponho discutir, mas em algum lugar, entre todas as combinações possíveis de letras que podem ocorrer, encontram-se o que podemos chamar de os nomes verdadeiros de Deus. Através de uma sistemática permutação de letras, temos tentado catalogar todos eles.

      - Compreendo. Começaram com AAAAAAA... e vão trabalhar até ZZZZZZZ...

       - Exatamente, embora utilizemos um alfabeto especial de nossa própria criação. Modificar as impressoras automáticas para lidarem com ele é evidentemente trivial. Um problema mais interessante é o de projetar circuitos adequados para eliminar as combinações absurdas. Por exemplo, uma letra não deve aparecer em sucessão mais do que três vezes.

      - Três? Está querendo dizer duas, sem dúvida.

      - Três é o correto. Receio que levaria muito tempo para explicar por quê, mesmo se entendesse nosso idioma.

      - Tenho certeza que sim - replicou Wagner apressadamente. - Prossiga.

      - Felizmente será muito simples adaptar o seu Computador Seqüenciador Automático a este trabalho, já que tendo sido adequadamente programado ele irá permutar uma letra de cada vez e imprimir o resultado. O que teria consumido 15 mil anos será feito em apenas 100 dias.

      O Dr. Wagner quase não percebia os débeis sons vindos das ruas de Manhattan lá embaixo. Encontrava-se num mundo diferente, um mundo de montanhas naturais, não construídas pelo homem. Lá em cima, em seus longínquos ninhos, esses monges haviam trabalhado pacientemente, geração após geração, compilando suas listas de palavras sem nexo. Haveria um limite para as extravagâncias humanas? Ainda assim, ele não podia deixar transparecer nenhum indício de seus pensamentos mais íntimos. O freguês sempre tem razão...

      -  Não há dúvida - respondeu o doutor - de que podemos modificar o Mark V para imprimir listas dessa natureza. Estou mais preocupado com os problemas de instalação e manutenção. Chegar ao Tibete nos dias de hoje não é fácil.

      - Podemos conseguir isso. Os componentes são suficientemente pequenos para viajar pelo ar. Esta foi uma das razões que nos levaram a escolher sua máquina. Se puder levá-la até a índia, forneceremos o transporte a partir de lá.

      - E deseja contratar dois de nossos engenheiros?

      - Sim, pelos três meses que o projeto deverá durar.

      - Não tenho dúvida de que nosso departamento de pessoal pode conseguir isso. - O Dr. Wagner tomou notas em seu bloco. - Restam apenas mais dois detalhes...

      Antes que ele pudesse terminar a frase o lama apresentou uma pequena tira de papel.

      - Este é o meu certificado de crédito no Banco Asiático.

      - Obrigado. Parece ser... ah... satisfatório. A segunda questão é tão trivial que hesito em mencioná-la... mas causa espanto o quão frequentemente os detalhes óbvios deixam de ser observados. De que fonte de energia elétrica o senhor dispõe?

      - Um gerador diesel produzindo 50 quilowatts a 110 volts. Foi instalado há cinco anos e é muito confiável. Tornou a vida no mosteiro de lamas muito mais confortável, embora, é claro, tenha sido instalado para fornecer energia aos motores que acionam os moinhos de oração.

      - É claro - respondeu o Dr. Wagner. - Eu deveria ter pensado nisso.

     

      A vista do parapeito era vertiginosa, mas com o tempo acostumamo-nos a tudo. Depois de três meses, George Hanley não se impressionava mais com a queda de 600 m no abismo nem com o remoto quadriculado dos campos no vale lá embaixo. Debruçava-se sobre as pedras polidas pelo vento e fitava de modo melancólico as montanhas distantes cujos nomes nunca se importara em aprender.

      Isso, pensava George, fora a coisa mais louca que já lhe acontecera: o "Projeto Xangri-Lá", como algum espirituoso lá do laboratório o balizara. Fazia semanas agora que o Mark V permanecia derramando acres de folhas de papel cobertas de algaravia. Pacientemente, inexoravelmente, o computador rearrumava letras em todas as combinações possíveis, esgotando cada classe antes de passar à seguinte. Quando as folhas emergiam das impressoras elétricas, os monges as cortavam cuidadosamente, colando-as em enormes livros. Dentro de mais uma semana, com a ajuda dos céus, eles terminariam. George não fazia ideia de que obscuros cálculos teriam convencido os monges a não se importarem com as palavras de 10, 20 ou 100 letras. Um de seus pesadelos mais frequentes era a respeito de uma mudança de planos, com o grande lama (que eles naturalmente chamavam Sam Jaffe*1, embora ele não se parecesse nem um pouco com este) anunciando subitamente que o projeto seria estendido até cerca de 2060 d.C. Eles eram bem capazes disso.

      George ouviu a pesada porta de madeira bater ao vento enquanto Chuck saiu para se colocar a seu lado no parapeito. Como de hábito, Chuck fumava um dos charutos que o haviam tornado tão popular entre os monges, os quais, tinha-se a impressão, estavam muito propensos a abraçar todos os pequenos e a maioria dos grandes prazeres da vida. Esta era uma das coisas que os favoreciam: podiam ser doidos, mas não eram puritanos. Aqueles passeios frequentes até a aldeia lá embaixo, por exemplo...

      - Escute aqui, George - disse Chuck, ansioso. - Descobri uma coisa que pode significar encrenca.

      - O que há de errado? A máquina não está funcionando? - Era a pior coisa que George podia imaginar. Atrasaria seu retorno e nada poderia ser mais horrível. Do modo como se sentia agora, até mesmo a visão de um comercial de tevê pareceria uma bênção dos céus. Pelo menos, representaria um elo de ligação com seu lar.

      -  Não,   não   é   nada   disso  -    disse   Chuck apoiando-se no parapeito, o que era algo fora do comum, pois normalmente ele se apavorava com a altura. - Acabo de descobrir qual a razão disso tudo.

      -  O que quer dizer? Pensei que soubéssemos.

      -  Certo, sabemos o que os monges estão tentando fazer. Mas não sabemos por quê. É a coisa mais louca...

      -  Diga   alguma   coisa   nova   -   resmungou George.

      -  Bem, o velho Sam se abriu comigo. Você sabe como ele aparece toda tarde para observar aquelas folhas saindo da máquina. Bem, dessa vez ele parecia um pouco excitado, ou pelo menos tão perto disso quanto possível. Quando eu lhe disse que nós estávamos no último ciclo ele me perguntou, naquele seu belo sotaque britânico, se eu imaginava o que eles estavam tentando fazer. Eu disse: "É claro!", e ele me contou.

      -  Prossiga: eu vou acreditar.

      -  Bem, eles crêem que quando tiverem catalogado todos os nomes do Criador - e calculam que existam aproximadamente 9 trilhões deles - a vontade de Deus será cumprida. A raça humana terá terminado o que estava obrigada a fazer desde a sua criação e não haverá mais nenhum motivo para continuar. De fato, a própria idéia de tal coisa soa como uma blasfémia.

      E o que eles esperam que façamos, então? Cometer suicídio?

      -  Não haverá necessidade disso. Quando a lista estiver completa, Deus entra em ação e simplesmente acaba com tudo... bingo!

      -  Oh, entendo. Quando terminarmos o nosso trabalho, será o fim do mundo.

      Chuck deu uma risada curta e nervosa.

      -  Foi exatamente isso que eu disse a Sam. E você sabe o que aconteceu? Ele olhou para mim de um modo muito estranho, como se eu fosse o pior aluno da classe, e disse:  "Não é nada tão simples assim."

      George pensou por um momento.

      -  Isso é o que chamo de ter uma visão ampla. Mas o que você acha que devíamos fazer? Não creio que isso faça a menor diferença para nós dois. Afinal de contas, já sabíamos que eles eram malucos.

      - Sim, mas não percebe o que pode acontecer? Quando a lista estiver completa e não soar a trombeta final, ou seja lá o que for que eles esperam, nós podemos levar a culpa. Foi a nossa máquina que eles estiveram usando. Esta situação não me agrada nem um pouco.

      -  Entendo - disse George lentamente. - Você tem um ponto de vista interessante, mas esse tipo de coisa já aconteceu antes, você sabe muito bem. Quando eu era garoto, lá em Louisiana, tínhamos um pastor excêntrico que disse uma vez que o mundo ia se acabar no domingo seguinte. Centenas de pessoas acreditaram  nele,  até  venderam  suas  casas.  No  entanto, quando nada  aconteceu, eles  não  ficaram furiosos, como era de esperar. Simplesmente concluíram que o pastor cometera algum erro em seus cálculos e continuaram  acreditando.   Creio  que  alguns   deles  ainda acreditam.

      - Bem, caso você ainda não tenha reparado, isto aqui não é a Louisiana. Existem apenas dois de nós e centenas desses monges. Gosto deles e vou ter pena do velho Sam quando o trabalho de toda a sua vida sair pela culatra. Mas ao mesmo tempo eu não queria estar por perto.

      -  Há semanas que desejo estar longe daqui, mas não há nada que possamos fazer até que o contrato termine e o transporte chegue para nos levar de volta.

      -  É claro - sugeriu Chuck pensativamente - que nós  podemos  sempre  tentar  um  pouquinho  de sabotagem.

      - Uma ova que podemos!   Isso só tornaria as coisas piores.

      -  Não do jeito que eu quero. Escute só. A máquina deverá terminar o seu trabalho dentro de quatro dias, no presente ritmo de vinte e quatro horas. O transporte chega em uma semana, certo? Então, tudo que temos de fazer é encontrar alguma coisa que precise ser substituída durante um dos períodos de inspeção. Alguma coisa que interrompa o trabalho por um ou dois dias. Nós a consertaremos, é claro, mas não com muita rapidez. Se ajustarmos nosso cronograma  adequadamente,  poderemos  nos  encontrar  lá embaixo, no campo de pouso, quando o último nome sair da máquina. Então eles não serão capazes de nos pegar.

      -  Não gosto disso - disse George. - Seria a primeira vez que eu desertaria de um trabalho. Além do mais, isso os deixaria desconfiados. Não, eu vou esperar, aconteça o que acontecer.

      - Ainda não gosto disso - repetiria ele, sete dias depois, enquanto os rijos pôneis montanheses os carregavam para baixo, ao longo da estrada tortuosa. - E não pense que estou fugindo porque tenho medo. Apenas sinto por aqueles pobres coitados lá em cima e não quero estar por perto quando eles descobrirem que trouxas têm sido. Não sei como Sam vai suportar isso.

      - Ê engraçado - respondeu Chuck - mas quando eu disse adeus tive a impressão de que ele sabia que estávamos desertando... e não se importou porque sabia que a máquina estava funcionando regularmente e que o trabalho logo estaria terminado. Depois disso... bem, é claro que para ele não vai haver nenhum depois disso...

      George virou-se em sua sela e contemplou a estrada que deixavam para trás na montanha. Aquele era o último lugar de onde se podia ter uma visão clara do mosteiro de lamas. Os prédios atarracados e angulosos apareciam delineados contra o último brilho do poente. Aqui e ali, luzes cintilavam como vigias no costado de um transatlântico. Luzes elétricas, é claro, compartilhando o mesmo circuito que o Mark V. Durante quanto tempo? perguntou George de si para si. Iriam os monges despedaçar o computador em seu ódio e frustração? Ou apenas se sentariam calmamente e recomeçariam a fazer os seus cálculos?

      Sabia exatamente o que estava acontecendo lá nas montanhas, naquele exato momento. O grande lama e seus assistentes estariam sentados, com seus mantos de seda, inspecionando as folhas de papel enquanto os monges noviços as retiravam das impressoras e as colavam nos grandes volumes. Ninguém estaria dizendo nada. O único som seria a batida incessante, o interminável matraquear dos tipos atingindo o papel, já que o próprio Mark V era inteiramente silencioso enquanto relampejava através de seus mil cálculos por segundo. "Três meses assim eram suficientes", pensava George,   "para   deixar   qualquer   um   subindo  pelas paredes."

      -  Lá está ele! - gritou Chuck, apontando para o vale. - Não é lindo?

      "Certamente que era", pensou George. O velho e surrado DC-3 parecia uma pequena cruz prateada esperando no final da pista. Em duas horas ele os conduziria em direção à liberdade e à sanidade. Era um pensamento para ser saboreado como um licor fino e George deixou que ele circulasse em sua mente enquanto o pônei trotava pacientemente ao longo do declive.

      A noite repentina do alto Himalaia encontrava-se agora praticamente sobre eles. Felizmente a estrada era muito boa, até onde podem ser as estradas naquela região, e ambos carregavam tochas. Não havia o menor perigo, apenas um certo desconforto causado pelo frio penetrante. O céu acima era perfeitamente claro, iluminado pelas estrelas familiares e amigas. "Ao menos não haveria risco do piloto ser incapaz de decolar por causa das condições do tempo", pensou George. Essa preocupação fora a única que lhe restara.

      Começou a cantar, mas logo desistiu. Essa vasta arena de montanhas, cintilando como fantasmas encapuçados de branco em todas as direções, não encorajava tanta alegria. Daí a pouco George olhou para o seu relógio.

      -  Devemos estar lá dentro de uma hora - avisou a Chuck por sobre o ombro. E então acrescentou numa reflexão tardia: - Gostaria de saber se o computador já terminou. Devia ser a esta hora.

      Chuck não respondeu, de modo que George se virou em sua sela. Só pôde ver o rosto de Chuck como uma branca silhueta oval erguida para o céu.

      - Olhe - sussurrou Chuck, e George ergueu os olhos para o céu. (Há sempre um último tempo para tudo.)

      Lá em cima, sem nenhum estardalhaço, as estrelas estavam se apagando.

 

REFUGIADO

            - Quando ele vier a bordo - disse o capitão Saunders enquanto esperava que a rampa de abordagem se estendesse -, de que diabo eu devo chamá-lo?

      Houve um silêncio pensativo enquanto o oficial de navegação e o assistente do piloto consideravam esse problema de etiqueta. Então Mitchell trancou o painel de controle principal e os múltiplos mecanismos da nave mergulharam na inconsciência enquanto a energia lhes era retirada.

      - O título correto - disse ele com voz arrastada - é "sua alteza real".

      - Argh! - resmungou o capitão. - Macacos me mordam se vou chamar alguém disso!

      - Nestes tempos de progresso - sugeriu Chambers solícito - eu creio que "senhor" é o suficiente. Mas não precisa se preocupar, caso esqueça. Já faz longo tempo desde que alguém foi mandado para a Torre.  E  além disso esse  Henrique não é tão duro quanto o outro que teve todas aquelas esposas.

      -  É opinião corrente - acrescentou Mitchell - que ele é um jovem muito agradável. E muito inteligente também. É conhecido por fazer perguntas técnicas a que as pessoas não são capazes de responder.

      O capitão Saunders ignorou as implicações dessa observação, concluindo que, se o príncipe Henrique quisesse saber como funcionava um Gerador de Empuxo por Campo de Compensação, Mitchell poderia dar todas as explicações. Levantou-se cuidadosamente. Haviam operado sob meia gravidade durante o vôo e agora que se encontravam na Terra ele se sentia com o peso de uma tonelada de tijolos. Começou a caminhar ao longo dos corredores que conduziam até a comporta inferior. Com um grande ronronar oleoso, a grande porta curva deslizou para fora de seu caminho; ele ajustou o sorriso e saiu para encontrar as câmaras de televisão e o herdeiro do trono britânico.

      O homem que um dia, presumivelmente, seria Henrique IX da Inglaterra ainda tinha pouco mais de 20 anos. Sua altura era um pouco abaixo da média e suas feições finas realmente correspondiam a todos os clichês genealógicos. O capitão Saunders, que era de Dallas e não tinha a menor intenção de se impressionar com príncipe algum, descobriu-se inesperadamente sensibilizado por aqueles olhos grandes e tristes. Eram olhos que haviam presenciado muitas recepções e paradas, que tinham de observar um número incontável de coisas completamente desinteressantes e que nunca tinham oportunidade de se desviar de percursos e roteiros oficiais cuidadosamente planejados. Olhando para aquela face altiva mas cansada, o capitão Saunders vislumbrou pela primeira vez a solidão absoluta da realeza, e toda a sua antipatia por tal instituição tornou-se subitamente trivial ante seu verdadeiro defeito: o que havia de errado com a Coroa era a injustiça de se depositar semelhante fardo sobre um ser humano.

      Os corredores da Centaurus eram muito estreitos para permitirem uma excursão em massa e logo ficou claro que agradava muito ao príncipe Henrique ter de deixar o seu séquito para trás. Assim que começaram a percorrer o interior da nave, o capitão Saunders perdeu toda a sua formalidade e circunspeção e em minutos estava tratando o príncipe como a qualquer outro visitante. Ele não percebia que uma das primeiras lições ensinadas à realeza consiste em fazer as pessoas se descontraírem.

      - Como sabe, capitão - disse o príncipe pensativo - este é um grande dia para nós. Sempre desejei que um dia fosse possível ter espaçonaves operando a partir da Inglaterra, mas ainda assim parece estranho ter o nosso próprio porto aqui, depois de todos esses anos. Diga-me, algum dia chegou a lidar com foguetes?

      - Bem, eu tive algum treinamento com eles, mas já estavam sendo aposentados quando me diplomei. Tive sorte, alguns dos mais antigos tiveram de voltar para a escola e começar tudo de novo. Ou então abandonar completamente o espaço quando não puderam se adaptar às novas naves.

      -  Fazia tanta diferença assim?

      - Oh, sim, quando os foguetes se tornaram obsoletos, foi uma mudança tão grande quanto a da vela para o vapor na navegação marítima. Essa, por sinal, é uma analogia que se ouve com freqüência. Havia um certo encantamento nos velhos foguetes, tal como acontecia com os antigos veleiros, que está ausente nessas naves modernas. Quando a Centaurus decola, sobe tão silenciosa quanto um balão - e igualmente lenta, se assim o desejar. Mas a partida de um foguete estremecia o chão por quilômetros e a pessoa ficaria surda durante dias se permanecesse muito perto da plataforma de lançamento. Mas deve saber tudo isso dos velhos registros noticiosos.

      O príncipe sorriu.

      - Sim - disse ele - freqüentemente assisto aos filmes lá no palácio. Acho que já assisti a todos os incidentes de cada expedição pioneira e também fiquei triste ao ver o fim dos foguetes. Mas com eles nós nunca teríamos um espaçoporto aqui na planície de Salisbury. As vibrações teriam derrubado Stonehenge.

      - Stonehenge? - indagou Saunders, enquanto mantinha a comporta aberta e permitia que o príncipe entrasse no porão de carga número três.

      - Um antigo monumento, um dos mais famosos círculos de pedra do mundo. Realmente impressionante e com mais de três mil anos de idade. Vá vê-lo se puder, fica a apenas uns 16 km.

      O capitão Saunders conteve o sorriso com alguma dificuldade. Que país estranho era esse. Onde mais se encontrariam contrastes assim? Fazia com que se sentisse muito jovem e rude ao se lembrar de que, lá em sua casa, Billy the Kid era parte da história antiga e não havia nada em todo o Texas com mais de 500 anos de idade. Pela primeira vez começava a perceber o significado da tradição. Ela conferia ao príncipe Henrique algo que Saunders jamais poderia possuir: autoconfiança, pose, equilíbrio. Sim, era isso, um orgulho que de algum modo estava livre da arrogância por se considerar tão assentado que jamais teria necessidade de afirmação.

      Foi surpreendente o número de perguntas que o príncipe Henrique conseguiu fazer nos trinta minutos concedidos para sua visita ao cargueiro. E não eram as perguntas de rotina que as pessoas fazem por simples polidez, totalmente desinteressadas nas respostas. Sua alteza real, o príncipe Henrique, sabia muito a respeito de espaçonaves e o capitão se sentiu completamente exaurido ao entregar seu distinto convidado nas mãos do comitê de recepção, que permanecera aguardando do lado de fora da Centaurus com uma paciência habilmente simulada.

      -  Muito obrigado, capitão - disse o príncipe, enquanto apertavam as mãos na comporta de ar. - Há eras que não me sentia tão satisfeito com uma visita assim. Espero que tenham uma permanência agradável aqui na Inglaterra e uma viagem muito bem-sucedida. - Então o séquito o arrastou para longe e os funcionários do porto, até então frustrados, puderam subir a bordo e verificar a documentação da nave.

      - Bem... - disse Mitchell quando tudo terminara. - Que acham do nosso príncipe de Gales?

      - Ele me surpreendeu - respondeu Saunders com franqueza. - Eu nunca teria adivinhado que ele era um príncipe. Sempre imaginei que eles fossem um tanto bobos, mas este sabia os princípios do Campo Impulsor. Será que ele já esteve no espaço?

      -  Uma vez, eu acho, apenas um pulo acima da atmosfera numa nave da Força Espacial, que não chegou nem a entrar em órbita antes de regressar, mas o primeiro-ministro quase teve um ataque. Houve interpelações no Parlamento e editoriais no The Times. Todos concordavam que o herdeiro do trono era muito valioso para se arriscar nessas invenções modernas. Assim, embora tenha a patente de comodoro da Real Força   Espacial,   ele   nunca   esteve   nem   ao   menos na Lua.

      -  Pobre    sujeito - murmurou  o capitão Saunders.

 

      Tinha três dias para aproveitar, de vez que não constituía trabalho do capitão supervisionar o carregamento da nave ou a manutenção antes de cada vôo. Saunders conhecia comandantes que permaneciam nas imediações, respirando fortemente junto à nuca dos engenheiros encarregados, mas ele não era desse tipo. Além do mais, queria conhecer Londres. Já estivera em Marte, em Vênus e na Lua, mas essa era a sua primeira visita à Inglaterra. Mitchell e Chambers deram-lhe todas as informações úteis e o colocaram no monotrilho para Londres antes de correrem ao encontro de suas famílias. Eles logo voltariam ao espaçoporto, um dia antes dele, para se certificarem de que tudo estava em ordem. Era um grande alívio ter oficiais em quem podia confiar totalmente: eram cautelosos e destituídos de imaginação, mas eficientes ao extremo. Se eles afirmassem que tudo estava em ordem, Saunders sabia que poderia decolar sem preocupação.

      O esguio e aerodinâmico cilindro assoviou através da paisagem bem-cuidada. Estava tão próximo do solo e movia-se tão rápido que o passageiro só poderia obter breves vislumbres, enquanto campos e cidades relampejavam ao redor. Tudo, pensava Saunders, era tão incrivelmente compacto e em tal escala liliputiana. Não havia espaços abertos ou campos com mais de um quilômetro e meio de extensão, o que era o suficiente para deixar qualquer texano com claustrofobia. Ainda mais um texano especial, que era também um piloto do espaço.

      Os limites precisamente definidos de Londres apareceram no horizonte como os baluartes de uma cidade murada. Com algumas exceções, os prédios eram todos muito baixos, talvez 15 ou 20 andares de altura. O monotrilho disparou através de um estreito canyon, por sobre um parque muito bonito, um rio que devia ser o Tamisa, e finalmente parou com um poderoso impulso de desaceleração. Um alto-falante anunciou com uma voz recatada que parecia temerosa de ser ouvida:

      - Esta é a estação de Paddington. Passageiros para o Norte, tenham a gentileza de permanecer sentados.

      Saunders retirou sua bagagem da prateleira e saiu para a estação. Ao entrar no metro passou por uma banca de jornais e olhou as revistas que exibia. Metade delas tinha na capa fotografias do príncipe Henrique ou de outros membros da família real. Isso, pensou Saunders, já era demais. Também percebeu que todos os jornais vespertinos mostravam o príncipe entrando ou saindo da Centaurus e comprou alguns para ler no metro - perdão, os londrinos chamavam seu subterrâneo de "tubo".

      Todos os editoriais apresentavam uma similaridade monótona. Pelo menos, regozijavam-se: a Inglaterra não precisaria mais ficar em segundo plano com relação às nações que dominavam o espaço. Agora era possível operar com uma frota espacial sem precisar de milhões de quilômetros quadrados de deserto. As silenciosas naves que desafiavam a gravidade poderiam pousar, se assim fosse necessário, em pleno Hyde Park, sem com isso perturbar os patos no Serpentine. Saunders achou estranho que esse tipo de patriotismo ainda conseguisse sobreviver na era espacial, mas calculou que os britânicos haviam se sentido muito mal quando precisaram conseguir por empréstimo os locais de lançamento dos australianos, americanos e russos.

      Após um século e meio, o metro londrino ainda era o melhor sistema de transporte do mundo e deixou Saunders em seu destino, com toda segurança, menos de dez minutos depois de ter deixado Paddington. Em dez minutos a Centaurus teria atravessado 75 mil quilômetros, mas, afinal de contas, o espaço não era tão abarrotado quanto isto aqui. Nem as órbitas das naves eram tão tortuosas quanto as ruas que precisou percorrer para chegar ao seu hotel. Todas as tentativas de urbanizar Londres tinham falhado completamente e ele levou 15 minutos para completar os últimos 90 metros de seu percurso.

      Tirou o casaco e desabou na cama aliviado. Três dias calmos e sossegados para aproveitar sozinho. Parecia bom demais para ser verdade.

      E era. Mal havia respirado fundo quando o telefone tocou.

      -  Capitão Saunders? Fico feliz de poder encontrá-lo. Aqui é da BBC, nós temos um programa chamado Esta noite na cidade e gostaríamos...

     

      O ruído da comporta de ar se fechando era o som mais doce que Saunders tinha ouvido nos últimos dias. Agora estava em segurança, ninguém poderia alcançá-lo aqui, nessa fortaleza blindada que logo estaria bem distante, na liberdade do espaço. Não é que tivesse sido maltratado, pelo contrário, fora tratado bem demais. Fizera quatro aparições (ou tinham sido cinco?) em vários programas de televisão, estivera em mais festas do que seria capaz de se lembrar e adquirira várias centenas de novos amigos, esquecendo (do modo como se sentia agora) todos os antigos.

      - Quem inventou aquele papo - indagou a Mitchell quando se encontraram na comporta - de que os ingleses são reservados e retraídos? Deus me ajude se eu encontrar esse inglês típico.

      - Presumo - disse Mitchell - que se divertiu à vontade.

       - Pergunte isso amanhã - replicou Saunders. - Então já devo ter conseguido reintegrar minha psique.

      - Pude vê-lo no programa  de  entrevistas  da noite passada - lembrou Chambers. - Você parecia um bocado pálido.

      - Obrigado, é o tipo de encorajamento de que preciso no momento. Gostaria de vê-lo pensar num sinônimo para insípido depois de  ter permanecido acordado até as três da madrugada.

      - Desenxabido - respondeu Chambers prontamente.

      - Insosso - acrescentou Mitchell, tentando não ficar para trás.

      - Vocês venceram. Vamos dar uma olhada naquelas tabelas de vistoria e ver se os engenheiros cumpriram o cronograma.

      Uma vez sentado diante da mesa de controle, o capitão Saunders rapidamente recuperou a sua natural eficiência. Estava em casa novamente e o seu treinamento assumiu o comando. Sabia exatamente o que devia fazer e o faria com precisão automática. À direita e à esquerda, Mitchell e Chambers verificavam seus instrumentos e chamavam a torre de controle.

      Levaram uma hora para realizar toda a complicada rotina de pré-vôo. Quando a última assinatura fora colocada sobre a última folha de instruções e a última luz vermelha no painel tornara-se verde, Saunders descansou o corpo na poltrona e acendeu um cigarro. Tinham dez minutos antes da decolagem.

      - Um dia - ele disse - vou voltar à Inglaterra incógnito e descobrir como um lugar como este pode funcionar. Não entendo como conseguem juntar tanta gente sobre uma ilhazinha sem que ela afunde.

      - Hum! - resmungou Chambers. - Devia ver a Holanda. Faz a Inglaterra parecer o Texas.

      E depois há essa questão da família real. Vocês sabem que onde quer que eu fosse as pessoas ficavam me perguntando como me saí com o príncipe Henrique, a respeito do que falamos, se eu não o achava um ótimo sujeito e por aí afora? Francamente, fiquei saturado e não sei como conseguem suportar isso há mil anos.

      - Não pense que a família real foi sempre popular - respondeu Mitchell. - Lembre-se do que aconteceu a Carlos I. E algumas das coisas que dizíamos a respeito dos primeiros Jorges eram quase tão rudes quanto os comentários que sua gente fez posteriormente.

      - É só que nós gostamos de tradição - disse Chambers. - Não temos medo de mudar quando chega a ocasião, mas, no que concerne à família real, bem, ela é única e somos bastante orgulhosos dela, exatamente como vocês com relação à Estátua da Liberdade.

      - Não é uma boa comparação. Não acho que seja direito colocar seres humanos em pedestais e tratá-los como se fossem... bem, pequenos deuses. Olhe para o príncipe Henrique, por exemplo. Pensa que ele já teve alguma oportunidade de fazer as coisas que realmente deseja? Eu o vi três vezes na televisão quando estava em Londres. A primeira vez foi inaugurando uma escola em algum lugar, depois, fazendo uma palestra na Worshipful Company of Fishmongers no Guildhall (juro que não estou inventando) e, finalmente, ouvindo um discurso de boas-vindas do prefeito de Podunk, ou o que seja o equivalente disso. Acho que preferiria estar na cadeia a viver esse tipo de vida. Por que não deixam em paz o pobre sujeito?

      Dessa vez, nem Chambers nem Mitchell se ergueram para responder. De fato, mantiveram um silêncio gélido, e Saunders pensou: "Devia ter mantido a boca fechada, agora feri os sentimentos dos dois. Devia ter me lembrado daquele conselho que li em algum lugar: ''Os ingleses possuem duas religiões: o críquete e a família real. Jamais tente criticar um dos dois.''

      O incômodo silêncio foi interrompido pelo rádio e pela voz do controlador do espaçoporto.

      - Controle para Centaurus, sua rota de vôo está livre. Tudo em ordem para a decolagem.

      - Programa  de  decolagem  começando  agora! - respondeu Saunders acionando a chave principal. Depois voltou a se reclinar para que seus olhos observassem todo o painel de controle, as mãos fora do quadro, mas prontas para ação instantânea.

      Encontrava-se tenso, mas inteiramente confiante. Cérebros melhores do que o seu, cérebros feitos de metal, cristal e feixes relampejantes de elétrons, assumiam o controle da Centaurus agora. Se necessário ele poderia assumir o comando, todavia nunca antes elevara a nave manualmente e esperava não fazê-lo nunca. Se os automáticos falhassem, ele simplesmente cancelaria a decolagem e ficaria na Terra até que o defeito estivesse consertado.

      O campo principal entrou em ação e o peso foi drenado da Centaurus. Houve gemidos de protesto da estrutura e do casco da nave enquanto as tensões se redistribuíam. Os braços curvos da plataforma de pouso não suportavam mais carga alguma e o mais leve sopro de brisa teria carregado a nave cargueira para longe no céu.

      Da torre, o controlador chamou de novo:

      - Seu peso agora é zero, verifique a calibragem.

      Saunders olhou para os medidores. O campo elevador seria agora idêntico ao peso da nave e as leituras dos medidores deveriam concordar com o total das cargas embarcadas. Pelo menos uma vez essa verificação revelara a presença de um clandestino a bordo de uma espaçonave - os medidores eram sensíveis a esse ponto.

      - Um milhão, quinhentos e sessenta mil, quatrocentos e vinte quilogramas - leu Saunders nos indicadores de empuxo. - Muito bem, confere até uma margem de 15 quilos. É a primeira vez que temos peso de menos. Você poderia ter levado uma carga extra de doces para aquela sua namorada opulenta de Port Lowell, Mitch.

      O co-piloto deu um sorriso amarelo. Nunca conseguira fazer com que esquecessem um episódio ocorrido em Marte, que lhe dera a indesejada reputação de preferir louras esculturais.

      Não havia sensação de movimento, mas a Centaurus agora entrava no céu de verão, enquanto seu peso não era. apenas neutralizado, mas invertido. Para os observadores no solo, ela seria uma estrela se elevando, um glóbulo prateado subindo através das nuvens. À sua volta, a atmosfera azul mergulhava na eterna escuridão do espaço. Como uma conta movendo-se ao longo de um fio invisível, o cargueiro seguia o padrão de ondas de rádio que o guiariam de um mundo a outro.

      Esta, pensou Saunders, era sua 26.a decolagem da Terra. Mas o encantamento não se esgotava nunca, nem ele poderia se cansar do sentimento de poder que lhe proporcionava estar sentado diante desse painel de controle, dominando forças além dos sonhos dos antigos deuses. E não havia duas partidas iguais: algumas eram na aurora, outras em direção ao poente, algumas acima da Terra rendada de nuvens, outras sobre céus límpidos e cintilantes. O espaço pode ser imutável, mas na Terra o mesmo padrão nunca se repete e nenhum homem jamais olhou duas vezes para o mesmo céu ou para a mesma paisagem. Lá embaixo, as ondas do Atlântico marchavam eternamente em direção à Europa, e ao alto, acima delas, mas muito abaixo da Centaurus, as brilhantes faixas de nuvens avançavam sopradas pelos mesmos ventos. A Inglaterra começava a se confundir com o continente e a linha costeira da Europa tornava-se enevoada e reduzida pela perspectiva, ao mergulhar abaixo da curva do horizonte. Nas fronteiras do oeste, uma mancha fugidia no horizonte era o primeiro indício da América. Com uma única olhadela, o capitão Saunders poderia abarcar todas as léguas através das quais Colombo avançara com dificuldade, meio milhar de anos atrás.

      Com o silêncio da força ilimitada, a nave se desvencilhou dos últimos elos com a Terra. Para um observador externo, o único sinal da energia que ela consumia seria o brilho vermelho das aletas irradiadoras, no equador da nave, dissipando no espaço a perda de calor dos conversores de massa.

      "14:03:45", escreveu o capitão Saunders caprichosamente em seu diário. "Velocidade de escape alcançada. Desvio de curso desprezível."

      A anotação era desnecessária. Os modestos 40 mil quilômetros horários que haviam sido quase inatingíveis para os primeiros astronautas não tinham qualquer significado prático agora, uma vez que a Centaurus ainda acelerava e continuaria a ganhar velocidade durante horas. Mas o significado psicológico era profundo. Até então, se a energia falhasse, eles teriam caído de volta à Terra. Agora, a gravidade não seria mais capaz de recapturá-los. Haviam atingido a liberdade do espaço e poderiam escolher o planeta que quisessem. Na prática, é claro, haveria o diabo se eles não escolhessem Marte nem entregassem sua carga de acordo com os planos, mas o capitão Saunders, como todos os espaçonautas, era fundamentalmente um romântico. Mesmo num vôo de rotina como esse, às vezes ele sonhava com a glória anelada de Saturno, ou com as vastidões escuras de Netuno, iluminadas pelos fogos distantes de um Sol encolhido.

      Uma hora após a decolagem, de acordo com o sagrado ritual, Chambers deixou o computador de navegação por sua própria conta e exibiu os três cálices que ficavam guardados embaixo da mesa de mapas. Enquanto fazia o tradicional brinde a Newton, Oberth e Einstein, Saunders procurava saber qual a origem dessa cerimônia. Tripulações espaciais faziam isso há pelo menos 60 anos e talvez a origem pudesse ser rastreada até aquele legendário engenheiro de foguetes que fizera a famosa observação: "Eu consumo mais álcool em 60 segundos do que você jamais vendeu neste seu bar piolhento."

      Duas horas depois, o computador foi alimentado com a última correção de curso que as estações rastreadoras da Terra poderiam fornecer. De agora em diante, até que Marte surgisse deslizando à sua frente, eles estavam sozinhos. Um pensamento que causava solidão e no entanto curiosamente agradável, a ponto de Saunders saboreá-lo em sua mente. Só havia eles três e ninguém mais num raio de 1.600.000 km.

      Nessas circunstâncias, a detonação de uma bomba atômica dificilmente teria sido mais perturbadora do que uma modesta batida na porta da cabine...

      O capitão Saunders nunca se assustara tanto em sua vida. Com um grito que já escapara de sua boca antes mesmo que tivesse uma chance de segurá-lo, disparou quase um metro acima de sua poltrona antes que a gravidade residual da nave o arrastasse para baixo. Chambers e Mitchell, por outro lado, mantiveram a tradicional fleuma britânica. Simplesmente giraram em seus assentos em forma de concha, olhando para a porta e esperando que o comandante tomasse a iniciativa.

      Saunders precisou de vários segundos para se recuperar. Tivesse sido confrontado com o que poderia ser chamado de emergência normal e ele já estaria com metade do corpo dentro de um traje espacial. Mas uma modesta batida na porta da cabine de controle, quando todos os ocupantes da nave se encontravam sentados ao seu lado, não era um teste razoável.

      Um clandestino era simplesmente impossível. O perigo fora tão óbvio, desde os primórdios do vôo espacial comercial, que as mais severas precauções eram tomadas. Saunders sabia que um de seus oficiais estaria sempre de serviço durante o carregamento, de modo que ninguém pudesse esgueirar-se para dentro sem ser percebido. Depois haveria a detalhada inspeção de pré-vôo realizada por Mitchell e Chambers. finalmente, havia o teste do peso, um momento antes da decolagem, que foi conclusivo. Não, um clandestino era inteiramente...

      A batida na porta soou novamente. O capitão Saunders fechou os punhos e comprimiu o maxilar. Dentro de alguns minutos, pensou ele, algum romântico idiota ia se arrepender.

      - Abra a porta, Sr. Mitchell - rosnou ele. Com uma única e longa passada, o co-piloto cruzou a cabine e escancarou a comporta.

      Por longo tempo, ninguém falou. Então, o clandestino entrou na cabine bamboleando ligeiramente na baixa gravidade. Ele parecia completamente calmo e muito satisfeito consigo mesmo.

      - Boa-tarde, capitão Saunders - disse ele. - Devo-lhe uma desculpa por esta súbita intrusão.

      Saunders engoliu em seco.  Então, enquanto as peças do quebra-cabeça acabavam por se encaixar, ele olhou primeiro para Mitchell, depois para Chambers. Os dois oficiais responderam com expressões de sincera e indizível inocência.

      - Então é isso - exclamou Saunders amargamente.

      Não havia mais qualquer necessidade de explicações, tudo estava perfeitamente claro. Era fácil imaginar as complicadas negociações, os encontros à meia-noite, a falsificação dos registros, a descarga dos volumes não-essenciais que seus companheiros de confiança haviam realizado às suas costas. Tinha certeza de que seria uma história muito interessante, mas não queria ouvi-la agora. Estava muito preocupado tentando imaginar o que o Manual de direito espacial diria a respeito de uma situação como essa, embora já tivesse a certeza sombria de que não iria ajudá-lo em nada.

      Obviamente, era tarde demais para voltar. Os conspiradores não teriam cometido um erro de cálculo tão óbvio. Ele teria que se sair da melhor maneira possível no que parecia ser a sua viagem mais delicada.

      Ainda tentava imaginar alguma coisa para dizer quando o sinal PRIORIDADE começou a piscar no painel do rádio. O clandestino olhou para seu relógio.

      - Eu estava esperando por isso - disse ele. - Provavelmente, é o primeiro-ministro. Acho melhor falar com o pobre homem.

      Saunders concordou.

      - Muito bem, Vossa Majestade Real - disse ele mal-humorado e com tamanha ênfase que o título soou quase como um insulto. Então, sentindo-se por demais aborrecido, retirou-se para um canto.

      Era realmente o primeiro-ministro e parecia extremamente desconcertado. Várias vezes usou a expressão "sua obrigação para com o povo" e pelo menos uma vez houve uma distinta emoção em sua voz ao dizer algo a respeito da "devoção de seus súditos à Coroa". Saunders compreendeu com surpresa que o homem realmente acreditava no que dizia.

      Enquanto prosseguia essa lengalenga emotiva, Mitchell inclinou-se para Saunders e sussurrou-lhe no ouvido:

      - O velho tem um grande problema e sabe disso. Todo mundo vai sair atrás do príncipe quando ouvirem o que aconteceu. É voz corrente que há anos ele tenta subir ao espaço.

      - Preferia que ele não tivesse escolhido a minha nave - respondeu Saunders. - E ainda não tenho certeza se isso não conta como motim.

      - Motim coisa nenhuma. Guarde bem minhas palavras: quando tudo isto estiver terminado, você será o único texano a possuir a Ordem da Jarreteira. Não será ótimo?

      - Psiu! - pediu Chambers. O príncipe estava falando, suas palavras saltavam o abismo que agora o separava da ilha que um dia governaria.

      - Sinto muito, senhor primeiro-ministro - disse -, se lhe causei preocupação. Estarei de volta assim que for oportuno. Alguém  tem de fazer tudo pela primeira vez e eu senti que chegara o momento de um membro da minha família deixar a Terra. Será uma parte valiosa de minha educação e me tornará mais apto a cumprir minhas obrigações. Adeus.

      Deixou cair o microfone e caminhou para a janela de observação, a única que se abria para o espaço em toda a nave. Saunders o observou de pé diante da janela, orgulhoso e solitário, mas inteiramente satisfeito, agora. E, ao ver o príncipe olhando para as estrelas que afinal alcançara, sentiu que todo o aborrecimento e a indignação lentamente se esvaíam.

      Por longo tempo, ninguém falou. Afinal, o príncipe Henrique afastou seu olhar do deslumbrante esplendor além da vigia, virou-se para o capitão Saunders e sorriu.

      - Onde é a cozinha, capitão? Posso estar sem prática, mas quando eu era escoteiro costumava ser o melhor cozinheiro da minha patrulha.

      Saunders relaxou-se lentamente e respondeu ao sorriso. A tensão pareceu escapar da cabine de controle e, embora Marte ainda estivesse bem longe, ele teve certeza de que, afinal de contas, a viagem não ia ser má.

 

O OUTRO LADO DO CÉU

ENTREGA ESPECIAL

      Ainda posso me lembrar do entusiasmo que tomou conta de todos em 1957 quando a Rússia lançou os primeiros satélites artificiais, conseguindo suspender alguns quilos de instrumentos acima da atmosfera. É claro que eu era apenas um garoto na ocasião, mas saía de casa ao cair da tarde, como todo mundo, tentando localizar aquelas minúsculas esferas de magnésio enquanto elas disparavam através do céu do crepúsculo, centenas de quilômetros acima de minha cabeça. É estranho pensar que algumas delas ainda estão no mesmo lugar, embora agora estejam abaixo de mim, de modo que eu teria de olhar em direção à Terra se quisesse vê-las.

      Sim, um bocado de coisas aconteceu nestes últimos 40 anos e receio que vocês aí na Terra considerem as estações espaciais como algo comum, do dia-a-dia, esquecendo-se de toda a habilidade, ciência e coragem consumidas em sua construção. Quão frequentemente vocês param para pensar que todas as suas chamadas telefônicas de longa distância e a maioria de seus programas de televisão são transmitidos através de um dos satélites? E quantas vezes dão crédito aos meteorologistas aqui em cima pelo fato de as previsões do tempo não constituírem mais piadas, como na época de seus avós, tendo agora uma precisão que chega aos 99%?

      A vida era difícil na década de 1970, quando eu subi para trabalhar nas estações externas. Elas estavam sendo construídas às pressas para abrirem os milhões de novos canais de tevê e rádio que seriam disponíveis tão logo existissem equipamentos, aqui no espaço, capazes de transmitir programas para qualquer lugar do globo.

      Os primeiros satélites artificiais giravam muito próximos da Terra, enquanto as três estações, formando o grande triângulo da Rede Retransmissora, precisam ficar a 35.200 km de altura, igualmente espaçadas em torno do equador. A essa altitude, e em nenhuma outra, elas levam exatamente um dia para completar suas órbitas, ficando assim eternamente suspensas sobre o mesmo ponto da Terra em rotação.

      Já trabalhei nas três estações, mas meu primeiro serviço foi a bordo da Retransmissora Dois. Ela fica quase exatamente sobre Entebbe, em Uganda, e fornece serviços para a Europa, a África e a maior parte da Ásia. Hoje em dia, é uma estrutura imensa, com centenas de metros de largura, transmitindo milhares de programas simultâneos para o hemisfério abaixo, enquanto lida com o tráfego de rádio de metade do mundo. Quando a vi pela primeira vez, entretanto, da janela do foguete transportador que me levara até a órbita, ela parecia uma pilha de refugo à deriva no espaço. Partes pré-fabricadas flutuavam ao redor em incorrigível confusão, e parecia impossível que alguma ordem pudesse emergir daquele caos.

      As acomodações para a equipe técnica e os grupos de montagem eram primitivas, consistindo em uns poucos foguetes transportadores fora de uso que haviam sido depenados de tudo, exceto dos purificadores de ar. Eram os "cascos", como nós os batizamos, onde um homem teria apenas espaço suficiente para acomodar a si próprio mais alguns metros cúbicos para seus pertences. Havia uma estranha ironia no fato de que, embora vivêssemos no meio do espaço infinito, mal podíamos abrir os braços.

      Foi um grande dia quando recebemos a notícia de que os primeiros alojamentos pressurizados estavam subindo ao nosso encontro. Completos, com chuveiros de jato-agulha capazes de funcionar até aqui, onde a água, como tudo mais, não tinha peso. A não ser que já tenham vivido a bordo de uma espaçonave superlotada, vocês não serão capazes de perceber o que isso significa. Poderíamos jogar fora nossas esponjas úmidas e sentir-nos verdadeiramente limpos, afinal. ..

      E os chuveiros não eram os únicos luxos prometidos. Também estavam enviando da Terra uma espaçosa sala de estar inflável, capaz de acomodar até oito pessoas, uma biblioteca microfilmada, uma mesa magnética de bilhar, jogos de xadrez de material leve e novidades similares para espaçonautas entediados. Simplesmente pensar em todos esses confortos já fazia parecer suportável a vida apertada dentro dos cascos, ainda que nos pagassem apenas mil dólares por semana para aguentá-la.

      Partindo da Segunda Zona de Reabastecimento, 3.200 km acima da Terra, o foguete tão avidamente esperado levaria seis horas para chegar até nós com sua preciosa carga. Eu estava de folga naquela ocasião e me posicionei ao telescópio, onde costumava passar meus escassos períodos de lazer. Era impossível me cansar de explorar o grande mundo suspenso no espaço ao nosso lado. Com a maior potência do telescópio, a pessoa se sentia a apenas uns poucos quilômetros acima da superfície da Terra e, quando não havia nuvens, era possível distinguir objetos do tamanho de uma pequena casa. Eu nunca estivera na África, mas passei a conhecê-la muito bem enquanto estava de folga na Estação Dois. Você pode não acreditar nisto, mas eu frequentemente localizava elefantes movendo-se ao longo das planícies, e as imensas manadas de zebras e antílopes eram fáceis de ver, enquanto fluíam para lá e para cá, como marés vivas sobre as grandes reservas.

      Mas o meu espetáculo favorito era a aurora surgindo sobre as montanhas no coração do continente. A linha de luz solar vinha deslizando sobre o oceano Indico e o novo dia apagava as minúsculas e cintilantes galáxias das cidades que reluziam na escuridão abaixo de mim. Antes que o sol atingisse as terras baixas ao redor, os picos do Kilimanjaro e do monte Quênia flamejavam na aurora, qual estrelas brilhantes cercadas pela noite. E enquanto o sol se elevava mais alto, o dia marchava rapidamente ao longo de suas encostas, até que os vales se enchessem de luz. A Terra estava então em seu primeiro quarto crescente, em direção à Terra Cheia.

      Doze horas depois eu presenciaria o mesmo processo se revertendo, enquanto as mesmas montanhas recebiam os últimos raios do poente. Elas brilhariam por breve momento no estreito cinturão do crepúsculo e então a Terra giraria rumo à escuridão e a noite desceria sobre a África.

      Mas não era a beleza do globo terrestre que me preocupava agora. Nem ao menos olhava para a Terra, e sim para a penetrante estrela azul-clara que se elevava acima da borda ocidental do disco do planeta. O cargueiro automático encontrava-se eclipsado pela sombra da Terra e o que eu via era a incandescência dos foguetes que o impulsionavam em sua subida de 32 mil km.

      Tantas vezes eu já observara foguetes subindo ao nosso encontro que conhecia de cor todas as etapas de suas manobras. Assim, quando os foguetes não se apagaram, continuando a queimar ininterruptamente, em questão de segundos fiquei sabendo que alguma coisa estava errada. Numa fúria inútil e doentia, observei enquanto todos os nossos esperados confortos e, pior ainda, a nossa correspondência moviam-se com rapidez cada vez maior ao longo de uma órbita involuntária. O piloto automático do cargueiro emperrara, se houvesse um piloto humano a bordo, ele poderia ter assumido os controles, desligando o motor, mas agora todo o combustível que teria conduzido o transporte em sua viagem de ida e volta estava sendo queimado numa única descarga de força.

      Quando os tanques de combustível se esgotaram e aquela estrela distante tremeluziu e se apagou no campo de visão do meu telescópio, as estações rastrea-doras já haviam confirmado o que eu sabia. O cargueiro já se movia com demasiada rapidez para que a gravidade da Terra pudesse recapturá-lo; de fato, dirigia-se para as vastidões cósmicas além de Plutão... Levou um bom tempo para que o moral fosse recuperado, e quando alguém, na seção de computação, calculou a história futura de nosso cargueiro desgarrado, isso só tornou as coisas piores. Como vocês sabem, nada se perde realmente no espaço. Uma vez que uma órbita é calculada, você sabe onde algo vai estar até o fim da eternidade. Enquanto observávamos nossa sala de estar, nossa biblioteca, nossos jogos e nossa correspondência se afastando nos amplos horizontes do sistema solar, já sabíamos que tudo voltaria um dia, em perfeitas condições. Se tivéssemos uma nave de prontidão, seria fácil interceptar tudo na segunda vez que passasse em sua trajetória ao redor do Sol, bem no início da primavera do ano 15862 d.C.

 

UM AMIGO DE PENAS

Pelo menos que eu saiba, nunca houve um regulamento que proibisse alguém de manter bichos de estimação a bordo de estações espaciais. Ninguém nunca se importou, e se tal norma existisse eu tenho certeza de que Sven Olsen a teria ignorado.

      Com um nome como esse, vocês podem imaginar Sven imediatamente como um gigante nórdico de quase dois metros de altura, com a constituição de um touro e uma voz do mesmo teor. Se fosse assim, suas chances de conseguir trabalho no espaço teriam sido muito pequenas. Na verdade ele era um sujeitinho magro mas vigoroso, como a maioria dos primeiros astronautas, e conseguia qualificar-se facilmente para-o prémio de 150 libras que mantinha tantos de nós em dieta de emagrecimento.

      Sven era um dos nossos melhores montadores e superava a todos no trabalho difícil e especializado de recolher as vigas quando estas flutuavam ao redor em queda livre, obrigando-as a realizar o bale tridimensional em câmara lenta que as colocaria nas posições exatas, então fundindo as peças quando estivessem precisamente posicionadas dentro do padrão desejado. Eu nunca me cansava de observá-lo e a seu grupo enquanto a estação crescia sob as mãos deles como um imenso quebra-cabeça. Era uma tarefa difícil, já que um traje espacial não é uma vestimenta muito cómoda para se trabalhar. No entanto a equipe de Sven tinha uma grande vantagem sobre as turmas de construção que vocês podem ver na Terra erguendo arranha-céus. Podiam retroceder e admirar sua obra sem serem abruptamente separados dela pela gravidade.

      Não me perguntem por que Sven queria um bichinho de estimação, nem por que ele escolheu aquele. Não sou psicólogo, mas devo admitir que sua escolha foi muito ajuizada. Claribel não pesava praticamente nada, suas necessidades alimentares eram infinitesimais e, ao contrário do que teria acontecido com a maioria dos animais, ela não se afligia com a ausência de gravidade.

      A primeira vez que percebi Claribel a bordo foi quando estava sentado no minúsculo cubículo que eu ironicamente chamava de meu escritório, verificando minhas listas de estoques para decidir quais os itens que iam faltar a seguir. Quando ouvi um assovio musical junto de minha orelha pensei que fora emitido pelo sistema de intercomunicação e fiquei aguardando um comunicado. Este não veio: e em vez disso houve um longo e envolvente padrão melódico que me fez olhar para cima tão subitamente que me esqueci completamente de uma quina de viga metálica bem atrás da minha cabeça. Quando as estrelas cessaram de cintilar diante de meus olhos, tive minha primeira visão de Claribel.

      Era um pequeno canarinho amarelo, suspenso no ar, tão imóvel quanto um beija-flor, mas com muito menos esforço, já que suas asas estavam serenamente fechadas. Nós olhamos um para o outro durante um minuto e, antes que eu pudesse compreender o que estava acontecendo, ele deu um curioso salto para trás, que tenho certeza nenhum canário terrestre jamais conseguiu, e partiu com algumas preguiçosas batidas de asa. Era bastante evidente que já aprendera a operar na ausência de gravidade e não desejava se esforçar além do necessário.

      Sven não confessou que era o dono do bichinho durante vários dias e, quando afinal o fez, isso não mais importava, já que Claribel conquistara a todos. Ele o introduzira clandestinamente no último transporte da Terra, quando retornava de um período de licença, parcialmente, afirmava, por pura curiosidade científica: queria ver como um pássaro se comportaria quando não tivesse mais peso, mas ainda pudesse usar as asas.

      Claribel vicejou e engordou. De um modo geral não tínhamos muita dificuldade em ocultar nosso hóspede não autorizado quando os VIPs da Terra vinham nos visitar. Uma estação espacial tem incontáveis lugares para esconderijos, e o único problema é que Claribel ficava um pouco barulhento quando se perturbava. Às vezes tínhamos que pensar rápido para explicar os curiosos pios e assovios que saíam dos poços de ventilação e anteparos dos depósitos. Por duas vezes escapamos por pouco, mas quem sonharia em procurar um canário em uma estação espacial?

      Trabalhávamos agora em turnos de 12 horas, o que não era tão mau quanto parece, uma vez que se necessita de muito pouco sono quando no espaço. É claro que não existe "dia" ou "noite" quando se flutua em luz solar permanente, mas ainda era conveniente nos prendermos às tradições. Certamente quando acordei naquela "manhã", me sentia realmente como às seis da manhã na Terra. Tinha uma dor de cabeça persistente e vagas lembranças de uma noite de sonhos agitados. Levei séculos para desatar as correias de minha cama e ainda me encontrava apenas parcialmente acordado quando me reuni ao resto da equipe de plantão no refeitório. O desjejum foi extraordinariamente silencioso e havia um assento vago.

      -  Onde está o Sven? - perguntei não muito preocupado.

      -  Está procurando Claribel - alguém respondeu. - Disse que não consegue encontrá-lo em parte alguma. E normalmente é o canário que o acorda.

      Antes que eu pudesse replicar que, normalmente, também é ele que me acorda, Sven apareceu na porta e todos percebemos imediatamente que alguma coisa estava errada. Ele abriu lentamente uma das mãos e lá estava um minúsculo montinho de penas amarelas com duas pequeninas garras apontadas pateticamente para cima.

      - O que aconteceu? - perguntamos todos nós, igualmente preocupados.

      -  Não sei - disse ele desolado. - Já o encontrei assim.

      -  Vamos dar uma olhada - disse Jock Duncan, nosso cozinheiro-médico-dietista. Aguardamos em silêncio enquanto ele o segurava de encontro ao ouvido numa tentativa de detectar algum batimento cardíaco.

      Daí a pouco sacudiu a cabeça.

      -  Não ouço nada, mas isso não prova que ele esteja morto. Nunca auscultei o coração de um canário - acrescentou à guisa de desculpa.

      -  Dê-lhe   uma  dose   de   oxigênio  -   sugeriu alguém, apontando para o cilindro de emergência com a faixa verde no nicho ao lado da porta. Todos concordaram que era uma ideia excelente e Claribel foi acomodado dentro da máscara de oxigénio, que era suficientemente grande para servir-lhe de tenda.

      Para nossa agradável surpresa ele se reanimou imediatamente. Com um largo sorriso Sven removeu a máscara e Claribel subiu em seu dedo. Deu uma série de trinados do tipo que usava para nos convocar ao refeitório e prontamente virou outra vez de pernas para o ar.

      -  Não entendo - lamentou Sven. - Que há de errado com ele? Nunca fez isso antes.

      Naqueles últimos minutos havia alguma coisa perturbando minha mente, mas meus pensamentos pareciam demasiado retardados naquela manhã, como se por algum motivo eu fosse incapaz de despertar inteiramente. Achei que precisava de um pouco daquele oxigênio, mas antes que pudesse alcançar a máscara a compreensão explodiu em meu cérebro. Voltei-me para o engenheiro que estava de serviço e disse afobado:

      -  Jim! Há alguma coisa errada com o ar! É por isso que Claribel desmaiou. Acabo de me lembrar que os mineiros costumam levar canários para avisá-los de uma contaminação por gases.

      -  Tolice - respondeu Jim. - Os alarmes teriam disparado. Temos circuitos duplos operando independentemente .

      -  Ah... o segundo alarme ainda não foi ligado - lembrou o seu assistente. Aquilo abalou Jim e ele saiu sem dizer mais nada, enquanto continuávamos a discutir e a passar a garrafa de oxigénio como se fosse um cachimbo da paz.

      Ele voltou dez minutos depois com uma expressão de humildade. Fora um daqueles acidentes que não poderiam acontecer: havíamos sofrido um de nossos raros eclipses na sombra da Terra durante aquela noite, e parte do purificador de ar se congelara. O único alarme no circuito de emergência não funcionara e meio milhão de dólares em engenharia química e elétrica tinham nos deixado na mão. Sem Claribel logo estaríamos mortos.

      Assim, se você visitar agora alguma estação espacial, não se surpreenda se ouvir um inexplicável trinado de pássaro. Não precisa ficar alarmado, pelo contrário. Isso significará que sua segurança está duplamente garantida, quase sem despesa extra.

 

RESPIRE FUNDO

      Há muito tempo descobri que as pessoas que nunca saíram da Terra têm certas idéias fixas a respeito das condições de vida no espaço. Todo mundo "sabe", por exemplo, que um homem morre de modo horrível e instantâneo quando é exposto ao vácuo que existe além da atmosfera. Na literatura popular, você encontrará numerosas descrições sangrentas de viajantes espaciais que explodiram, e eu não vou estragar seu apetite repetindo-as aqui. Algumas dessas histórias são basicamente verdadeiras. Já puxei para dentro da comporta homens que seriam péssima publicidade para as viagens espaciais.

      E no entanto, ao mesmo tempo, existem exceções a toda regra, até mesmo a essa. Eu sei porque aprendi do modo mais difícil.

      Encontrávamo-nos nos últimos estágios da construção do Satélite de Comunicações Dois, todas as principais unidades haviam sido unidas, os alojamentos, pressurizados, e a estação iniciara o lento movimento de rotação em torno de seu eixo, o que trouxera de volta a sensação, pouco familiar, do peso. Eu disse "lento", mas em sua borda exterior a nossa roda de 60 m de diâmetro encontrava-se girando a 48 km por hora. É claro que não tínhamos qualquer sensação de movimento, mas a força centrífuga causada por esse giro nos proporcionava metade do peso que teríamos na Terra. Isso era o suficiente para evitar que as coisas ficassem flutuando à nossa volta, sem nos deixar desconfortavelmente vagarosos após semanas sem qualquer sensação de peso.

      Éramos quatro dormindo na pequena cabine cilíndrica, conhecida como barraca número seis, na noite em que tudo aconteceu. A cabine ficava no limite da estação, e se vocês imaginarem uma roda de bicicleta com um cordão de salsichas substituindo o pneu terão uma boa ideia da estrutura toda. A barraca número seis era uma dessas salsichas e nós dormíamos pacificamente em seu interior.

      Fui acordado por uma súbita sacudidela que não foi suficientemente violenta para me deixar alarmado, mas que me fez sentar e tentar descobrir o que acontecera. Qualquer coisa fora do normal numa estação espacial exige atenção instantânea: assim, estendi a mão para o botão do intercomunicador ao lado de minha cama.

      - Alô, Central - chamei. - O que foi isso?

      Não houve resposta, a linha estava muda.

      Agora completamente alarmado, pulei da cama e tive um choque muito maior. Não havia mais gravidade. Subi para o teto antes que tivesse oportunidade de agarrar um suporte, interrompendo o movimento ao custo de torcer o pulso.

      Era impossível que a estação inteira houvesse subitamente parado de girar. Só havia uma resposta. A falha no intercomunicador e, como rapidamente descobrimos, no circuito de iluminação forçou-nos a encarar a apavorante verdade. Não éramos mais parte integrante da estação; nossa pequena cabine de algum modo se soltara, sendo atirada ao espaço como uma gota de chuva caindo sobre um volante giratório.

      Não havia janelas através das quais pudéssemos olhar, mas não estávamos em completa escuridão, já que as luzes de emergência, acionadas por baterias, tinham se acendido automaticamente. Do mesmo modo, todas as aberturas de ventilação haviam se fechado quando a pressão caíra. Por ora, poderíamos continuar vivendo em nossa atmosfera particular, muito embora não estivesse sendo renovada. Infelizmente, um contínuo assovio revelou-nos que o ar estava escapando através de uma fenda em algum lugar da cabine.

      Não havia meio de saber o que acontecera com o resto da estação. Pelo que sabíamos, toda a estrutura poderia ter-se desmantelado e todos os nossos colegas poderiam estar mortos ou na mesma situação em que nos encontrávamos: flutuando no espaço em latas de ar que vazavam lentamente. Nossa única e frágil esperança era a possibilidade de que fôssemos os únicos náufragos, que o resto da estação estivesse a salvo e fosse capaz de enviar uma turma de resgate para nos encontrar. Afinal, estaríamos nos afastando a não mais do que 48 km/h e uma das motonetas-foguetes poderia nos alcançar em questão de minutos.

      Na verdade, levou uma hora, embora, não fosse o meu relógio, eu nunca teria acreditado que levasse tão pouco tempo. Estávamos agora ofegantes e a agulha no mostrador em nosso único tanque de oxigénio de emergência descera para uma divisão acima de zero.

      As batidas na parede pareciam sinal de um outro mundo. Batemos de volta vigorosamente e um momento depois uma voz abafada chamou através da parede. Alguém do lado de fora pressionara o capacete de seu traje espacial de encontro ao metal e seus gritos nos alcançavam por condução direta. Não era tão nítido quanto o rádio, mas funcionava.

      O ponteiro do oxigênio arrastou-se lentamente para zero enquanto tínhamos o nosso conselho de guerra. Estaríamos todos mortos antes que pudéssemos ser rebocados de volta à estação, e no entanto a nave de resgate se encontrava a apenas alguns metros de distância de nós, com sua comporta já aberta. Nosso pequeno problema resumia-se em cruzar aqueles poucos metros... sem os trajes espaciais.

      Fizemos nossos planos cuidadosamente, ensaiamos todos os movimentos com o pleno conhecimento de que não haveria repetições da performance. Depois, cada um de nós respirou profundamente, inspirando uma última golfada de oxigênio para os nossos pulmões. Quando ficamos prontos, batemos na parede para enviar o sinal aos nossos amigos que esperavam do lado de fora.

      Houve uma série de batidas curtas enquanto as ferramentas automotoras trabalhavam no fino casco. Agarramo-nos firmemente aos suportes, o mais longe possível da entrada, sabendo o que ia acontecer. E, quando aconteceu, foi tão súbito que a mente foi incapaz de registrar a exata sequência de eventos. A cabine pareceu explodir e um grande vento me puxou. O último vestígio de ar me escapou dos pulmões através da boca, já aberta; depois, o silêncio total e as estrelas brilhando através da abertura escancarada que nos conduziria para a vida.

      Acreditem, não parei para analisar as sensações. Acho, embora não tenha certeza se não foi a imaginação, que meus olhos estavam ardendo e havia um formigamento sobre todo o meu corpo. E eu sentia muito frio, talvez porque a evaporação já estivesse começando em minha pele.

      A única coisa de que tenho certeza é daquele fantástico silêncio. Nunca o silêncio é total em uma estação espacial; há sempre o som das máquinas e bombas de ar. Esse era o silêncio absoluto do vácuo, onde não havia o menor vestígio de ar capaz de conduzir sons.

      Quase imediatamente nos lançamos através da parede arrebentada, enfrentando o impacto direto da luz solar. Fiquei cego instantaneamente, mas isso não importava, pois os homens, esperando nos trajes espaciais, me agarraram logo, assim que saí, e me empurraram para dentro da comporta da nave. Lá, o som gradualmente retornou enquanto o ar esguichava para dentro e nos lembrávamos de que poderíamos respirar novamente. Depois me disseram que todo o salvamento durara apenas vinte segundos...

      Bem, fomos os sócios fundadores do Clube dos Respiradores de Vácuo, e desde aquela ocasião pelo menos uma dúzia de outros homens já fez a mesma coisa em emergências semelhantes. O tempo recorde no espaço é agora de dois minutos; depois disso, o sangue começa a formar bolhas enquanto ferve à temperatura do corpo, e essas bolhas logo chegam ao coração.

      No meu caso, só houve um efeito posterior. Durante talvez uns 15 segundos, fiquei exposto à verdadeira luz solar, não essa coisa débil que se filtra através da atmosfera da Terra. Respirar espaço não me feriu nem um pouco, mas eu peguei a pior queimadura de sol que já tive na vida.

 

LIBERDADE DO ESPAÇO

      Suponho que poucos entre vocês podem imaginar como eram as coisas antes que, graças aos satélites retransmissores, dispuséssemos do atual sistema mundial de comunicações. Quando eu era garoto, era impossível enviar programas de televisão através dos oceanos ou até mesmo estabelecer um contato de rádio confiável, além da curvatura da Terra, sem apanhar um ótimo sortimento de chiados e estalidos no caminho. E no entanto agora consideramos normal os circuitos livres de interferências e não achamos nada demais em ver os nossos amigos do outro lado do globo tão claramente como se estivéssemos face a face. É simplesmente um fato que, sem os satélites retransmissores, toda a estrutura mundial de comércio e indústria desabaria. Sem ter a gente aqui nas estações espaciais, para retransmitir as mensagens em torno do globo, como vocês acham que as grandes organizações de negócios manteriam contato entre seus cérebros eletrônicos altamente dispersos?

      Mas tudo isso ainda era futuro no final da década de 1970, quando terminamos o trabalho na Cadeia Retransmissora. Já lhes contei a respeito de alguns dos problemas e quase desastres, eles eram bem sérios quando aconteceram, mas por fim superamos a todos. As três estações, igualmente espaçadas ao redor da Terra, não eram mais pilhas de vigas, cilindros de ar e câmaras plásticas de pressão. Sua montagem estava terminada, havíamo-nos mudado para dentro e agora podíamos trabalhar com conforto, sem sermos tolhidos por trajes espaciais. E tínhamos gravidade novamente, agora que as estações haviam sido colocadas em lenta rotação. Não era a gravidade verdadeira, é claro, mas a força centrífuga parece exatamente a mesma coisa quando se está no espaço. Era agradável poder derramar bebidas num copo e sentar sem ser carregado na primeira corrente de ar.

      Depois que as três estações tinham sido construídas, ainda restava um ano de trabalho contínuo a ser feito para instalar todos os equipamentos de rádio e televisão, que elevariam as redes de comunicação do mundo até o espaço. Foi um grande dia quando estabelecemos a primeira ligação de tevê entre a Inglaterra e a Austrália. O sinal era irradiado para nós da Retransmissora Dois e, sentados por sobre o centro da África, nós o irradiávamos para a Retransmissora Três, colocada acima da Nova Guiné, e eles o disparavam para a Terra novamente, limpo e claro após uma jornada de 144.000 km.

      Esses, entretanto, eram os testes particulares dos engenheiros. A inauguração oficial do sistema seria o maior evento na história mundial das telecomunicações: um minucioso programa global de tevê no qual cada nação tomaria parte. Seria um show de três horas de duração, quando, pela primeira vez, câmaras de tevê ao vivo passeariam à volta do mundo proclamando à humanidade a queda da última barreira de distância.

      O planejamento do programa, acreditava-se com certo cinismo, consumira tanto esforço quanto a própria construção das estações espaciais. De todos os problemas que os planejadores precisaram resolver, o mais difícil foi a escolha do mestre-de-cerimônias, que apresentaria as atrações do minucioso programa global a ser apreciado por metade da raça humana.

      Deus sabe quanta conspiração, chantagem e até mesmo destruição de reputações ocorreu por trás dos bastidores. Tudo o que sabemos é que, uma semana antes do grande dia, um foguete não-programado subiu até nossa órbita, tendo a bordo Gregory Wendell. Isso foi uma grande surpresa, já que Gregory não era uma personalidade televisiva tão grande quanto, digamos, Jeffers Jackson nos Estados Unidos ou Vince Clifford na Inglaterra. Todavia, parece que os grandes astros se anularam mutuamente e Gregg conseguira o ambicionado trabalho através de um daqueles acordos tão bem conhecidos dos políticos.

      Gregg iniciara sua carreira como disc jockey na estação de rádio de uma universidade do Meio-Oeste norte-americano e abrira seu caminho através do circuito de clubes noturnos de Hollywood e Manhattan até conseguir seu próprio programa diário, costa a costa. À parte sua personalidade céptica mas bem-humorada, seu maior trunfo era a voz profunda e aveludada, pela qual provavelmente devia agradecer aos seus ancestrais negros. Mesmo quando você discordasse do que ele dizia, de fato até mesmo quando ele o estivesse demolindo em uma entrevista, ainda acharia um prazer ouvi-lo.

      Nós lhe proporcionamos uma grande excursão pela estação espacial e até mesmo (quebrando os regulamentos) o levamos para fora, num traje espacial, através da comporta. Ele adorou tudo, mas houve duas coisas que apreciou em particular:

      - Este ar que vocês fabricam - disse ele - supera o negócio que temos que respirar lá em Nova Iorque. Esta é a primeira vez que minha sinusite deixa de me incomodar desde que entrei para a televisão.

      Ele também gostou muito da baixa gravidade, já que, na borda da estação, um homem só tinha metade de seu peso na Terra, enquanto no eixo não teria peso algum.

      Entretanto, a nova vizinhança não distraiu Gregg de seu trabalho. Ele passava horas no Centro de Comunicações, melhorando seu texto e anotando corretamente todas as deixas, enquanto estudava as dúzias de telas monitoras que seriam suas janelas para o mundo. Eu o encontrei uma vez, enquanto ele ensaiava sua apresentação da rainha Elizabeth, que falaria do Palácio de Buckingham, bem no final do programa. Ele estava tão atento ao ensaio que nem notou que eu me encontrava ao seu lado.

      Bem, o programa agora faz parte da história. Pela primeira vez um bilhão de seres humanos observaram um único programa que chegava ao vivo de cada canto da Terra, e era como que uma lista de chamada para os maiores cidadãos do mundo. Centenas de câmaras na terra, no mar e no ar observaram, indagadoras, o mundo que girava, e no final houve aquele maravilhoso zoom da Terra, vista da estação espacial, fazendo todo o planeta retroceder até ficar perdido entre as estrelas.

      Houve algumas falhas, é claro. Uma câmara instalada no leito do oceano Atlântico não entrou no ar na hora programada e nós fomos obrigados a passar um tempo extra olhando para o Taj Mahal. Devido a uma troca errónea, subtítulos russos foram sobrepostos à transmissão sul-americana, enquanto metade da União Soviética tentava ler em espanhol. Mas isso não era nada, comparado ao que poderia ter acontecido.

      E durante aquelas três horas, apresentando os famosos e os desconhecidos com igual naturalidade, surgia a voz suave, mas nunca pomposa, de Gregg. Ele fez um trabalho magnífico, as congratulações jorraram através do feixe de transmissões no momento em que o programa terminou. Mas ele não as ouviu, fazendo uma única chamada particular para seu empresário e indo para a cama.

      Na manhã seguinte, o transporte para a Terra estava esperando para levá-lo de volta em direção a qualquer emprego que quisesse aceitar. E no entanto o foguete partiu sem Gregg Wendell, agora locutor novato da Retransmissora Dois.

      - Eles pensarão que enlouqueci - disse ele, sorrindo de felicidade -, mas por que eu deveria voltar para aquela corrida de ratos lá embaixo? Aqui tenho todo o universo para olhar, posso respirar ar livre de poluição, a baixa gravidade me faz sentir um Hércules e minhas três queridas ex-esposas não podem me alcançar. - Ele jogou um beijo para o foguete que partia, dizendo: - Adeus, Terra, voltarei quando estiver com saudade dos engarrafamentos da Broadway ou das alvoradas escuras em apartamentos de cobertura. Se tiver saudade de casa, posso olhar para qualquer lugar do planeta com um simples giro de botão. Afinal, estou mais no centro das coisas aqui do que jamais poderia estar aí na Terra, e no entanto posso me desligar da raça humana quando quiser.

      Ele ainda sorria ao observar o transporte iniciando sua longa viagem de volta para a Terra, em direção à fama e à fortuna que poderiam ter sido suas. Depois, assoviando alegremente, deixou a sala de observação, em passos de 2,5 m, a fim de ler a previsão do tempo para a Patagônia Setentrional.

 

TRANSITÓRIO

      É justo advertir-lhes, de saída, que esta é uma história que não tem fim. Mas teve um começo bem definido, pois foi quando éramos estudantes na Astrotech que encontrei Julie. Ela estava em seu último ano de física solar quando eu me formava, e durante o último ano de estudos nós nos vimos um bocado. Ainda tenho o gorro de lã que ela tricotou para que eu não batesse com a cabeça dentro de meu capacete espacial. (Não, nunca tive a coragem de usá-lo.)

      Infelizmente, quando fui mandado para a Retransmissora Dois, Julie foi para o Observatório Solar, à mesma distância da Terra, mas um par de graus para leste ao longo da órbita. Assim, lá estávamos nós: 35.200 km acima do coração da África, mas com 1 .440 km de espaço vazio e hostil a nos separar.

      No início, estávamos tão ocupados que a dor da separação foi amortecida, de certo modo. Mas, quando a novidade da vida no espaço terminou, nossos pensamentos começaram a percorrer o abismo que nos separava. E não apenas os nossos pensamentos, já que eu fizera amizade com o pessoal das Comunicações e nos acostumamos a bater rápidos papos através do circuito de tevê interestações. De certo modo, isso só tornava as coisas piores, vendo-nos face a face sem saber quantas pessoas nos estariam observando ao mesmo tempo. Não há muita privacidade numa estação espacial...

      Algumas vezes, eu focalizava um dos nossos telescópios na estrela brilhante e longínqua que era o observatório. Na claridade cristalina do espaço, eu podia usar ampliações enormes e ver cada detalhe do equipamento de nossos vizinhos: os telescópios solares, as esferas pressurizadas dos alojamentos que abrigavam a equipe, os lápis delgados dos foguetes de transporte que o visitavam, vindos da Terra. Frequentemente havia figuras em trajes espaciais, movendo-se em meio ao labirinto de equipamentos, e eu forçava a vista numa desesperada e inútil tentativa de identificação. Já é difícil reconhecer alguém num traje espacial mesmo quando se está a alguns metros de distância. Isso não me impedia de tentar.

      Resignamo-nos a esperar, com toda a paciência que poderíamos reunir, até nosso período de licença, dentro de seis meses, quando tivemos um inesperado golpe de sorte. Menos da metade de nosso turno de trabalho se passara quando o chefe da seção de transporte subitamente anunciou que ia lá fora com uma rede de pegar borboletas para tentar agarrar uns meteoros. Ele não se tornou violento, mas teve que ser despachado apressadamente para a Terra. Assumi a sua função numa base temporária e agora tinha, pelo menos em teoria, a liberdade do espaço.

      Havia dez das pequenas motonetas-foguetes de baixa potência sob o meu orgulhoso comando, além dos quatro grandes táxis interestações usados para transportar equipamento e pessoal de uma órbita para outra. Eu não tinha esperanças de conseguir um desses emprestado, mas, após várias semanas de cuidadoso planejamento, fui capaz de colocar em ação um plano que concebera dois microssegundos depois de ser informado de que agora era o chefe dos transportes.

      Não há necessidade de dizer como fraudei listas de serviço, falsifiquei diários e registros de combustível ou persuadi meus colegas a me darem cobertura. Tudo o que importa é que uma vez por semana eu poderia entrar no meu próprio traje espacial, amarrar-me à estrutura semelhante a uma aranha da moto Mark III e me afastar da estação sob força mínima. Quando estava bem longe, eu passava para empuxo total e o minúsculo motor do foguete me arremessava através do vazio de 1.440 km, até o observatório.

      A viagem levava trinta minutos e as exigências de navegação eram elementares. Eu podia ver para onde estava indo e de onde viera, todavia não me importo de admitir que frequentemente me sentia... bem, um pouquinho solitário... lá pelo ponto médio da jornada. Não havia qualquer matéria sólida além de mim num raio de quase 800 km e parecia uma queda um bocado longa até a Terra lá embaixo. Era de grande ajuda naqueles momentos sintonizar o rádio do traje na faixa geral de serviço e ouvir a conversa entre naves e estações.

      No meio do vôo, eu tinha que girar a moto e começar a frear. Dez minutos depois, o observatório já estava suficientemente próximo para que seus detalhes fossem visíveis a olho nu. Pouco depois disso, eu flutuava até a pequena bolha plástica de pressão que se encontrava em processo de ser equipada com um laboratório de espectroscopia... e lá estava Julie me esperando, do outro lado da comporta de pressão.

      Não vou fingir que restringíamos nossa conversa aos últimos progressos da astrofísica ou ao avanço no cronograma da construção dos satélites. Poucas coisas, de fato, estariam tão longe dos nossos pensamentos quanto isso, e a jornada de volta sempre parecia transcorrer a uma velocidade extraordinária.

      Eu estava à altura do meio da órbita numa daquelas viagens de retorno quando o radar começou a piscar no meu pequeno painel de controle. Havia alguma coisa grande no alcance máximo e estava se aproximando rapidamente. Um meteoro, disse para mim mesmo, talvez até mesmo um pequeno asteróide. Qualquer coisa que produzisse um sinal tão forte deveria ser visível. Li a marcação de posição e observei o campo de estrelas na direção indicada. A idéia de uma colisão nunca me passou pela mente. O espaço é tão incrivelmente vasto que eu acreditava contar com uma segurança milhares de vezes maior do que a de um homem na Terra atravessando uma rua movimentada.

      Lá estava ela. Uma estrela brilhante crescendo rapidamente junto ao pé de Orion. Já superava o brilho de Rigel e segundos depois não era mais uma estrela, começando a mostrar um disco visível. Agora, já se movia tão rapidamente quanto eu podia virar a cabeça; cresceu, tornando-se uma minúscula lua deformada, e depois encolheu, com a mesma velocidade silenciosa e inexorável.

      Suponho que tive uma visão clara daquilo durante talvez meio segundo, e aquele meio segundo me assombraria pelo resto da vida. O objeto já desaparecera quando pensei em verificar novamente o radar, e assim não tive meios de julgar qual fora a distância mínima a que ele chegara e, portanto, qual o seu verdadeiro tamanho. Poderia ter sido um objeto pequeno a centenas de metros de distância ou alguma coisa muito grande a dezenas de quilómetros. Não há senso de perspectiva no espaço e, a não ser que você saiba para que está olhando, não há meios de calcular distâncias.

      É claro que poderia ter sido um meteoro muito grande e de formato singular; nunca terei certeza de que meus olhos, esforçando-se para captar detalhes de um objeto que se movia tão rapidamente, não tenham sido confundidos. Posso ter imaginado que vi aquela proa quebrada e amassada e o aglomerado de vigias escuras, como as órbitas vazias de uma caveira. Mas de uma coisa tenho certeza, mesmo com aquela visão breve e fragmentada. Se de fato era uma nave, não era das nossas. Sua forma era totalmente alienígena e ela era muito, muito antiga.

      Pode ser que a maior descoberta de todos os tempos tenha escorregado de minhas mãos enquanto eu me debatia com meus pensamentos, a meio caminho entre duas estações espaciais. Mas eu não tinha medidas de velocidade ou direção. Fosse o que fosse que eu vislumbrara, agora estava perdido, além de qualquer possibilidade de captura, nas vastidões do sistema solar.

      O que poderia eu ter feito? Ninguém teria acreditado em mim, pois eu não tinha prova alguma. Se eu tivesse feito um relatório, haveria uma encrenca interminável. Viraria motivo de risos de todo o Serviço Espacial, seria repreendido por uso indevido do equipamento e certamente não mais poderia ver Julie. E para mim, naquela idade, nada era mais importante. Se vocês já estiveram apaixonados, certamente compreenderão; senão, nenhuma explicação servirá.

      E assim eu não disse nada. Algum outro homem (daqui a quantos séculos?) receberá a fama por provar que não fomos os primeiros a nascer dentre os filhos do Sol. O que for que estiver circulando lá fora, em sua órbita eterna, pode muito bem esperar, como já está esperando, há eras.

      E no entanto às vezes eu me pergunto: teria feito um relatório, apesar de tudo, se soubesse que Julie iria casar com outro?

 

O CHAMADO DAS ESTRELAS

      Lá embaixo, na Terra, o século XX está morrendo. Enquanto olho para o globo escurecido, bloqueando as estrelas, posso ver as luzes de centenas de cidades despertas e há momentos em que desejo poder estar entre as multidões, caminhando e cantando agora nas ruas de Londres, Cidade do Cabo, Roma, Paris, Berlim, Madri... Sim, posso ver todas com um único olhar, brilhando como vaga-lumes contra o planeta mergulhado nas trevas. A linha da meia-noite divide agora a Europa, e no Mediterrâneo ocidental uma minúscula estrela, muito brilhante, começa a pulsar quando um exuberante barco de cruzeiro acena com seus holofotes para o céu. Creio que estão apontando para nós deliberadamente, já que durante os últimos minutos as cintilações têm sido muito regulares e extraordinariamente brilhantes. Daqui a pouco vou chamar o Centro de Comunicações e descobrir qual é o navio, de modo a poder transmitir-lhe nossas próprias saudações. Passando agora para a história, recuando profundamente ao longo do fluxo do tempo, temos os 100 anos mais incríveis que o mundo já viu. Cem anos que se iniciaram com a conquista do ar, viram em seu ponto médio a divisão do átomo e agora terminam com a travessia do espaço.

       (Nos últimos cinco minutos, tenho me perguntado o que está acontecendo em Nairóbi; agora percebi que eles estão realizando uma superexibição de fogos de artifício. Foguetes de combustão química podem ser obsoletos aqui em cima, mas estão sendo usados aos montes lá na Terra esta noite.)

      O fim do século... e o fim do milênio. O que trarão os 100 anos que começam com dois e zero? Os planetas, é claro. Flutuando lá no espaço, a apenas um quilômetro e meio de distância, encontram-se as naves da primeira expedição a Marte. Durante dois anos as vi crescer, montadas peça por peça, da mesma forma como a estação espacial foi construída pelos homens com quem trabalhei há uma geração.

      Aquelas dez naves estão prontas agora, com toda a tripulação a bordo, esperando pela verificação final dos instrumentos e o sinal de partida. Antes que se passe o primeiro dia do novo século, elas estarão se livrando das rédeas da Terra para se dirigirem ao estranho mundo que um dia poderá se tornar o segundo lar do homem.

      Enquanto observo a pequena e brava frota que agora se prepara para desafiar o infinito, minha mente recua 40 anos, de volta aos dias em que os primeiros satélites eram lançados e a Lua parecia ainda muito distante. E me lembro, de fato nunca me esqueci, da luta de meu pai para me manter preso à Terra.

      Houve poucas armas que ele não tivesse usado. O ridículo foi a primeira:

      - É claro que eles podem fazê-lo - zombava ele -, mas para quê? Quem é que deseja sair para o espaço enquanto ainda há tanta coisa a ser feita na Terra? Não existe um único planeta no sistema solar onde o homem possa viver. A Lua é uma pilha de escória queimada e os outros lugares ainda são piores. É nisso que devemos viver?

      Mesmo naquela época (devia ter então uns 18 anos), eu já era capaz de enredá-lo em sua lógica. Lembro-me de ter respondido:

      - Como sabe onde devemos ou não viver? Afinal, papai, estivemos no mar durante bilhões de anos antes que nos decidíssemos a invadir a terra. Agora vamos realizar o grande salto seguinte: não sei aonde ele nos levará, assim como os primeiros peixes que se arrastaram para a praia também não sabiam.

      Assim, não podendo me vencer com argumentos, ele tentou pressões mais sutis. Estava sempre falando a respeito dos perigos das viagens espaciais e a curta vida de trabalho de qualquer pessoa suficientemente tola para se envolver com foguetes. Naquela época, as pessoas ainda se assustavam com meteoros e raios cósmicos. Como nas indicações de "Aqui há dragões" dos velhos mapas, eles eram os monstros míticos nos pontos em branco das cartas celestes. Isso não me preocupava, apenas acrescentava aos meus sonhos o tempero do perigo.

      Enquanto eu cursava a faculdade, papai ficou relativamente quieto. Meu treinamento seria valioso, não importando a profissão que escolhesse posteriormente, e assim ele não podia reclamar - embora ocasionalmente resmungasse por causa do dinheiro que eu gastava comprando todos os livros e revistas sobre astronáutica que pudesse encontrar. Minhas notas eram boas, o que naturalmente o deixava satisfeito. Talvez não percebesse que isso também me ajudaria a realizar os meus planos.

      Durante todo o meu último ano, evitei falar neles. Cheguei mesmo a dar a impressão (embora sinta por isso agora) de que abandonara o meu sonho de ir para o espaço. Sem lhe dizer nada, candidatei-me à Astrotech e fui aceito assim que me diplomei.

      A tempestade desabou quando aquele longo envelope azul com o timbre "Instituto de Tecnologia Astronáutica" apareceu na caixa do correio. Fui acusado de ingratidão e falsidade, e não creio que jamais tenha perdoado a meu pai o fato de ter destruído o prazer que eu devia sentir por ser escolhido para o treinamento mais exclusivo e fascinante que o mundo já conhecera.

      Minhas férias eram uma provação e, não fosse por minha mãe, não acredito que aparecesse em casa mais do que uma vez por ano, partindo tão rapidamente quanto pudesse. Eu esperava que, à medida que o meu treinamento progredisse, papai fosse amolecendo e aceitando o inevitável, mas ele jamais o fez.

      E então chegou o dia daquela partida difícil e desajeitada, lá no espaçoporto. A chuva derramava-se de um céu cor de chumbo, batendo contra as paredes lisas da nave, que parecia ansiosa por galgar a luz eterna, além do alcance das tempestades. Sei agora o que custou a meu pai ver aquela máquina que ele odiava engolir o seu único filho; pois entendo hoje muitas coisas que me eram ocultas então.

      Ele sabia, quando nos despedimos junto da nave, que nunca mais voltaria a me ver. E no entanto seu orgulho velho e teimoso o impediu de dizer as únicas palavras que me teriam feito retroceder. Eu sabia que ele estava doente, mas ele jamais revelou a gravidade do mal que o afligia. Era a única arma que poderia ter usado contra mim, e eu o admiro por não tê-lo feito.

      Teria eu ficado se soubesse? É mais fútil especular a respeito do passado imutável que sobre o futuro imprevisível. Tudo o que posso dizer agora é que me

sinto feliz por nunca ter sido obrigado a fazer a escolha. No final, ele deixou que eu partisse, desistiu de sua luta contra a minha ambição e, pouco tempo depois, de sua luta contra a morte.

      E assim eu disse adeus à Terra e ao pai que me amava, mas não sabia como demonstrá-lo. Ele jaz agora no planeta que posso cobrir com a minha mão, e como é estranho pensar que, dos incontáveis bilhões de seres humanos cujo sangue corre em minhas veias, eu fui o primeiro a deixar seu mundo nativo...

      O novo dia surge sobre a Ásia como um fio de fogo envolvendo a extremidade oriental da Terra. Logo ele crescerá para se tornar um crescente flamejante, na medida em que o Sol se for elevando sobre o Pacífico. E no entanto a Europa se prepara para dormir, com exceção dos foliões que ficarão acordados para saudar a alvorada.

      E agora, lá junto à nave capitânia, o foguete de transporte aparece voltando para apanhar os últimos visitantes da estação. Eis aqui a mensagem pela qual estive esperando: CAPITÃO STEVENS APRESENTA SEUS CUMPRIMENTOS AO COMANDANTE DA ESTAÇÃO. PARTIDA OCORRERA DENTRO DE 90 MINUTOS, FICARÍAMOS FELIZES EM TÊ-LO A BORDO AGORA.

      Bem, pai, agora sei como o senhor se sentiu. O tempo deu uma volta completa e no entanto espero ter aprendido com os erros que ambos cometemos há tanto tempo. Vou me lembrar do senhor quando for até a nau capitânia Starfire para dizer adeus ao neto que nunca conheceu.

 

A MURALHA DAS TREVAS

      Estranhos e muitos são os universos que deslizam como bolhas de espuma sobre o rio do tempo. Alguns, muito poucos, movem-se contra a corrente ou transversalmente a ela; e em menor número ainda são aqueles que jazem para sempre além de seu alcance, sem nada conhecerem do futuro ou do passado. O minúsculo cosmo de Shervane não era um desses e sua estranheza era de ordem diferente. Ele continha apenas um único mundo, o planeta da raça de Shervane - e uma única estrela, o grande sol Trilorne, que trazia a luz e a vida.

      Shervane nada conhecia a respeito da noite, pois Trilorne estava sempre alto acima do horizonte, descendo para junto dele apenas durante os longos meses do inverno. Era verdade que, além das fronteiras da Terra das Sombras, havia uma estação durante a qual Trilorne desaparecia abaixo da borda do mundo e vinha a escuridão na qual nada podia viver. Mesmo então, a escuridão não era absoluta, muito embora não houvesse estrelas para abrandá-la.

      Sozinho em seu pequenino cosmo, com a mesma face eternamente voltada para seu solitário sol, o mundo de Shervane era o último e mais estranho gracejo do Criador de Estrelas.

      Ainda assim, enquanto olhava através das terras de seu pai, os pensamentos ocupando a mente de Shervane eram aqueles que qualquer criança humana poderia ter. Ele sentia espanto, curiosidade e um pouco de temor, embora acima de tudo existisse o desejo de partir para o grande mundo à sua frente. Ainda era muito jovem para fazer tais coisas, mas a antiga casa ficava no ponto mais elevado daquelas vastas redondezas, e ele podia olhar muito longe sobre a terra que um dia seria sua. Quando se voltava para o norte, com Trilorne brilhando em cheio sobre seu rosto, podia ver, a muitos quilômetros de distância, a longa linha de montanhas que se curvavam para a direita, subindo cada vez mais, até desaparecerem às suas costas na direção da Terra das Sombras. Um dia, quando fosse mais velho, atravessaria aquelas montanhas, ao longo do desfiladeiro que levava às grandes terras do leste.

      À sua esquerda se encontrava o oceano, apenas alguns quilômetros distante, e às vezes Shervane podia ouvir o estrondo das ondas que lutavam e tombavam sobre o suave declive das areias. Ninguém sabia até onde o oceano se estendia. Navios haviam partido através dele, velejando para o norte, enquanto Trilorne se elevava cada vez mais alto no céu e o calor de seus raios se tornava cada vez mais intenso. Muito antes de o grande sol alcançar o zênite, eles haviam sido forçados a retroceder. Se as míticas Terras do Fogo realmente existiam, nenhum homem poderia ter a esperança de alcançar suas praias ardentes... a menos que as lendas fossem verdadeiras. Uma vez, diziam elas, existiram barcos de metal muito rápidos que podiam cruzar o oceano a despeito do calor de Trilorne e assim atingir as terras do outro lado do mundo. Agora, essas terras só poderiam ser alcançadas numa tediosa jornada, sobre terra e mar, que seria apenas ligeiramente encurtada viajando-se tão para o norte quanto alguém pudesse ousar.

      Os lugares habitados do mundo de Shervane encontravam-se todos no estreito cinturão entre o calor escaldante e o frio insuportável. Em todas essas terras, o extremo norte era uma região inalcançável, ferida pela fúria de Trilorne. E ao sul de todas elas jazia a vasta e escura Terra das Sombras, onde Trilorne nunca era mais do que um pálido disco no horizonte, frequentemente nem sendo visível.

      Essas coisas Shervane aprendeu durante os anos de sua infância, no tempo em que não desejava deixar as amplas terras entre as montanhas e o mar. Desde a aurora das eras, seus ancestrais e as raças que os haviam precedido trabalharam para tornar essas terras as mais belas do mundo. Se haviam falhado, era por margem muito estreita. Havia jardins que brilhavam com estranhas flores, havia regatos que fluíam suavemente por entre rochas cobertas de musgo até se perderem nas águas puras de um mar sem marés. Havia campos de cereais que sussurravam continuamente ao vento, como se gerações de sementes ainda não nascidas estivessem falando uma com a outra. Nos largos prados e debaixo das árvores, o gado manso vagueava sem destino, mugindo tolamente. E havia o casarão com salões enormes e corredores intermináveis, realmente grande, mas ainda maior na mente de uma criança. Esse era o mundo no qual Shervane passara muitos anos, o mundo que ele conhecia e amava. Por enquanto, o que se encontrasse além das fronteiras não preocupava sua mente.

      Mas o universo de Shervane não era um daqueles livres do domínio do tempo. A colheita amadureceu e foi recolhida aos celeiros, Trilorne oscilou lentamente, descrevendo seu pequeno arco no céu, e com o passar das estações a mente e o corpo de Shervane se desenvolveram. Suas terras agora pareciam menores, as montanhas, mais próximas, enquanto o mar se encontrava a apenas uma breve caminhada a partir do casarão. Começou a aprender a respeito do mundo no qual vivia e a se preparar para o papel que deveria desempenhar em seu ajustamento.

      Algumas dessas coisas ele aprendeu com seu pai, Sherval, mas a maior parte lhe foi ensinada por Grayle, que viera das montanhas no tempo do pai de seu pai e se tornara tutor de três gerações da família de Shervane. Gostava de Grayle, embora o velho lhe ensinasse muitas coisas que não desejava aprender, e os anos de sua infância se passaram de modo bem agradável, até chegar a ocasião de atravessar as montanhas e conhecer as terras que se encontravam além. Em outras eras, sua família viera dos grandes países do leste e desde então, a cada geração, o filho mais velho fazia sua peregrinação, de modo a passar um ano da juventude entre seus primos. Era um costume sábio, já que muito do conhecimento do passado ainda permanecia além das montanhas e lá o visitante poderia encontrar homens de outras terras e estudar seus costumes.

      Na última primavera antes da partida de seu filho, Sherval reuniu três de seus servos e alguns animais, que por conveniência chamaremos de cavalos, e levou Shervane para conhecer as partes da terra que ele nunca visitara antes. Eles cavalgaram para oeste até o mar e seguiram ao longo da costa durante muitos dias, até Trilorne encontrar-se visivelmente mais próximo do horizonte. Continuaram então para o sul, suas sombras encompridando-se diante deles, e voltaram-se para o leste apenas quando os raios do sol já pareciam ter perdido toda a sua força. Estavam agora bem dentro dos limites da Terra das Sombras e não seria sensato avançar mais para o sul antes que o verão estivesse no ápice.

      Shervane cavalgava ao lado do pai, observando a mudança da paisagem com toda a ávida curiosidade de um garoto que vê uma nova terra pela primeira vez. O pai falava a respeito do solo, descrevendo as colheitas que poderiam ser desenvolvidas ali, e aquelas que falhariam em caso de tentativa. A atenção de Shervane, entretanto, dirigia-se para outro lugar: ele olhava através da desolação da Terra das Sombras, imaginando até onde ela se estenderia e que mistérios poderia conter.

      -  Pai - disse ele -, se alguém andasse para o sul, atravessando a Terra das Sombras em linha reta, poderia chegar ao outro lado do mundo?

      Seu pai sorriu.

      -  Os homens têm feito essa pergunta há séculos - respondeu ele -, mas existem duas razões pelas quais nunca conhecerão a resposta.

      -  E quais são?

      -  A primeira, é claro, é a escuridão e o frio. Mesmo aqui, nada pode viver durante o inverno. Mas existe uma  razão  melhor,  embora eu  perceba  que Grayle não lhe falou a respeito.

      - Acho que não, pelo menos não me lembro.

      Sherval não respondeu logo em seguida. Ergueu-se nos estribos e observou as terras ao sul.

      -  Houve época em que conheci este lugar muito bem - disse ele a Shervane. - Venha, eu tenho alguma coisa para lhe mostrar.

      Deixaram a trilha que haviam percorrido e durante várias horas cavalgaram uma vez mais com as costas voltadas para o sol. A terra se elevava lentamente agora e Shervane percebeu que galgavam um grande espinhaço rochoso a apontar, como um punhal, para o coração da Terra das Sombras. Dentro em pouco atingiram uma encosta demasiado íngreme para os cavalos e foram obrigados a desmontar, deixando os animais aos cuidados dos servos.

      -  Existe uma passagem ao redor - explicou Sherval. - Mas para nós é mais rápido subir do que levar os cavalos pelo outro lado.

      A elevação, embora íngreme, era pequena, e eles chegaram ao cume em poucos minutos. A princípio, Shervane não viu nada que já não tivesse encontrado antes. Havia apenas aquela mesma vastidão ondulada que parecia tornar-se mais escura e ameaçadora quanto mais aumentava sua distância em relação a Trilorne.

      Ele voltou-se para o pai um pouco confuso, mas Sherval apontou para o extremo sul e traçou uma linha cuidadosa ao longo do horizonte.

      -  Não é fácil de ver - disse calmamente. - Meu pai mostrou-a para mim deste mesmo ponto, muitos anos antes de você nascer.

      Shervane olhou para o crepúsculo. O céu ao sul era tão escuro a ponto de ser quase preto, descendo para encontrar o limite do mundo. Mas não inteiramente, pois ao longo do horizonte, numa grande curva a separar céu e terra, sem no entanto pertencer a nenhum dos dois, havia uma faixa de escuridão profunda, negra como a noite, que Shervane jamais conhecera.

      Ele olhou para aquilo com firmeza durante um longo tempo e talvez algum indício do futuro se tenha infiltrado em sua alma, pois a terra enegrecida pareceu subitamente viva e aguardando. Quando afinal afastou os olhos, sabia que nada voltaria a ser o mesmo, embora ainda fosse muito jovem para reconhecer o desafio em si mesmo.

      E assim, pela primeira vez em sua vida, Shervane viu a Muralha.

     

      No início da primavera, ele disse adeus ao seu povo e, com um servo, partiu para as montanhas, em direção às vastas terras do mundo ocidental. Lá ele encontrou homens que compartilhavam com ele os mesmos ancestrais e lá estudou a história de sua raça, as artes que haviam surgido nos tempos remotos e as ciências que haviam governado as vidas dos homens. Nos locais de aprendizado, fez amizade com rapazes que tinham vindo de terras ainda mais para o leste. Poucos dentre estes ele veria novamente, mas um deles estava destinado a representar em sua vida um papel maior do que jamais teria imaginado. O pai de Brayldon era um famoso arquiteto, mas o filho pretendia eclipsá-lo. Ele estava sempre viajando de um lugar para outro, sempre aprendendo, observando, fazendo perguntas. Embora fosse apenas alguns anos mais velho do que Shervane, seu conhecimento do mundo era infinitamente maior, ou assim parecia ao mais jovem.

      Entre eles, o mundo se dividia em peças, e eles o reconstruíam de acordo com seus desejos. Brayldon sonhava com cidades cujas largas avenidas e torres imponentes deixariam envergonhadas as maravilhas do passado, enquanto os interesses de Shervane se voltavam mais para as pessoas que habitariam essas cidades e o modo como ordenariam suas vidas.

      Frequentemente falavam da Muralha, que Brayldon conhecia das histórias de seu próprio povo, embora ele mesmo nunca a houvesse visto. E Shervane descobriu que ela se encontrava bem ao sul de todos os países, qual uma grande barreira em torno da Terra das Sombras. No auge do verão, podia ser alcançada, embora com grande dificuldade, mas em parte alguma havia modo de ultrapassá-la e ninguém sabia o que se encontrava além dela. Através do mundo inteiro, sem se interromper nem mesmo quando atingia uma altura cem vezes maior que a de um homem, ela circundava o mar invernal que banhava as praias da Terra das Sombras. Viajantes haviam pisado naquelas praias solitárias, escassamente aquecidas pelos últimos raios de Trilorne, e tinham visto como a sombra negra da Muralha marchava mar adentro, desdenhando as ondas a seus pés. E nas praias de além-mar, outros viajantes tinham-na visto surgir de dentro do oceano, para ultrapassá-los em sua jornada ao redor do mundo.

      -  Um de meus tios - contou Brayldon - certa vez alcançou a Muralha, quando era jovem. Ele fez isso para ganhar uma aposta e cavalgou durante dez dias antes de chegar à sua base. Creio que ela o assustou, de tão imensa e tão fria. Ele não era capaz de dizer se era feita de metal ou pedra, e quando ele gritava, não havia nenhum eco, sua voz se apagava rapidamente como se a Muralha estivesse absorvendo os sons. Minha gente acredita que ela é o fim do mundo e que não existe nada além.

      -  Se isso fosse verdade - ponderou Shervane com lógica irrefutável -, então  o oceano  ter-se-ia derramado sobre a orla antes que a Muralha fosse construída.

      -  Não se Kyrone a houvesse construído quando Ele fez o mundo.

      Shervane não concordava.

      -  Meu povo acredita que ela foi feita pelo homem, talvez um trabalho dos engenheiros da primeira dinastia, que fizeram tantas coisas maravilhosas. Se eles realmente possuíam navios capazes de alcançar as Terras do Fogo, e até mesmo navios que podiam voar, então podem ter tido sabedoria suficiente para construir a Muralha.

      Brayldon encolheu os ombros.

      -  Eles deviam ter uma razão muito boa. Nunca saberemos a resposta, assim, por que se preocupar?

      Esse conselho eminentemente prático, como Shervane já descobrira, era tudo o que o homem comum poderia lhe dar. Apenas os filósofos se interessavam por questões não-esclarecidas: para a maioria das pessoas, o enigma da Muralha era como o enigma da existência, algo que raramente ocupava suas mentes. E todos os filósofos que ele encontrou lhe deram respostas diferentes.

      O primeiro foi Grayle, a quem ele interrogara ao retornar da Terra das Sombras. O velho olhara para ele calmamente e dissera:

      -  Só existe uma coisa além da muralha, assim me ensinaram, e essa coisa é a loucura.

      Depois fora Artex, tão velho que quase não podia ouvir as perguntas que Shervane, nervoso, lhe fazia. Ele olhou para o rapaz, através de pálpebras que pareciam demasiado cansadas para se abrirem completamente, e respondeu depois de um longo tempo:

      -  Kyrone construiu a Muralha no terceiro dia da criação do mundo. O que jaz além da Muralha, nós descobriremos ao morrer, já que é para lá que vão as almas de todos os mortos.

      E no entanto Irgan, que vivia na mesma cidade, contradissera completamente tudo isso:

      -  Apenas a memória pode responder à sua pergunta, meu filho, pois é atrás da Muralha que se encontra a terra onde vivemos antes de nascer.

      Em quem poderia acreditar? A verdade era que ninguém sabia, e se esse conhecimento existira algum dia, já se perdera eras atrás.

      Embora essa investigação tenha fracassado, Shervane aprendeu muitas coisas em seu ano de estudos. Com o retorno da primavera ele disse adeus a Brayldon e aos outros amigos, que conhecera por tão pouco tempo, partindo pela antiga estrada que o levaria de volta à sua terra. Uma vez mais ele realizou a perigosa travessia do grande desfiladeiro entre as montanhas, onde paredões de gelo se erguiam ameaçadoramente contra o céu. Chegou ao ponto em que a estrada descia para onde havia calor e água corrente, onde a respiração não mais lutava contra o ar congelante. Aqui, na última elevação da estrada, antes da descida para o vale, a visão atingia uma grande distância, até o remoto reluzir do oceano. Lá, quase perdida entre as névoas da borda do mundo, Shervane podia ver a linha de sombras que era sua terra.

      Ele desceu pela grande faixa de pedra até chegar à ponte que os homens haviam construído sobre a catarata, nos tempos remotos em que o único caminho além desse fora destruído por um terremoto. Mas a ponte se fora: as tempestades e avalanches do princípio da primavera haviam arrastado uma das poderosas pilastras e o lindo arco de metal se reduzira a uma ruína retorcida em meio à espuma e aos borrifos da água, 300 metros abaixo. O verão chegaria e se passaria antes que a estrada pudesse ser reaberta ao trânsito. Enquanto Shervane retornava com tristeza, já sabia que outro ano iria terminar sem que pudesse ver seu lar novamente.

      Parou por vários minutos na última curva da estrada, olhando de volta para aquelas terras, agora inalcançáveis, que continham todas as coisas que amava. Entretanto, a névoa havia-se fechado sobre elas e ele não viu mais nada. Resolutamente, percorreu de volta a estrada até que as terras planas desapareceram e as montanhas o envolveram uma vez mais.

      Brayldon ainda se encontrava na cidade quando Shervane retornou. Ele ficou surpreso e satisfeito por ver novamente o amigo e ambos discutiram o que deveriam fazer no ano que tinham pela frente. Os primos de Shervane, que se tinham afeiçoado ao visitante, não lamentaram tornar a vê-lo. Todavia, a amável sugestão que fizeram, para que devotasse outro ano aos estudos, não foi bem recebida.

      O plano de Shervane amadureceu lentamente, enfrentando considerável oposição. Até mesmo Brayldon não estava muito entusiasmado no início e muita discussão foi necessária antes que ele se dispusesse a cooperar. Depois disso, o acordo de todos os outros que realmente importavam foi apenas uma questão de tempo.

      O verão se aproximava quando os dois jovens partiram em direção ao país de Brayldon. Cavalgavam rapidamente, pois a jornada era longa e devia terminar antes que Trilorne iniciasse sua queda invernal. Quando chegaram às terras que Brayldon conhecia, fizeram certas indagações que provocaram muitos acenos negativos de cabeças. Entretanto, as respostas que conseguiram eram precisas e logo a Terra das Sombras os envolvia. Pouco depois, Shervane via a Muralha pela segunda vez em sua vida.

      Não parecia muito distante, elevando-se a partir da planície solitária e desolada, quando começaram a se aproximar. Mas tiveram de cavalgar interminavelmente através da planície antes que a Muralha parecesse um pouquinho mais próxima. Chegaram quase à sua base sem perceberem que já estavam próximos, de vez que não havia maneira de julgar sua distância até que fosse possível estender a mão e tocá-la.

      Quando Shervane olhou para cima, em direção àquela monstruosa chapa de ébano que tanto perturbara sua mente, ela lhe pareceu suspensa e prestes a esmagá-lo sob seu peso. Com dificuldade, ele afastou os olhos da visão hipnótica e se aproximou para examinar o material de que era constituída.

      Era verdade, como lhe dissera Brayldon, que ela era fria ao toque. Na verdade, mais fria do que deveria ser, mesmo nessa terra faminta de luz solar. Não parecia nem dura nem macia, já que sua textura iludia o tato de um modo difícil de analisar. Shervane tinha a impressão de que alguma coisa impedia o verdadeiro contato com aquela superfície, mas não era capaz de ver nenhum espaço vazio entre seus dedos e a Muralha, ao comprimi-los contra ela. O mais estranho de tudo era o silêncio misterioso de que falara o tio de Brayldon: cada palavra era abafada e todos os sons desapareciam com uma rapidez fora do normal.

      Brayldon descarregara algumas ferramentas e instrumentos das mochilas dos animais de carga e começava a examinar a superfície da Muralha. Logo descobriu que nenhuma perfuratriz ou cortadeira poderia marcá-la de modo algum, e daí a pouco chegou à conclusão que Shervane já alcançara: a Muralha não era apenas dura, era também inabordável.

      Por fim, pegou com desgosto uma régua de metal perfeitamente retilínea e pressionou sua borda contra a Muralha. Enquanto Shervane segurava um espelho, para refletir a luz fraca de Trilorne ao longo da linha de contato, Brayldon observou a régua pelo outro lado. Era como havia pensado: um fio de luz infinitamente estreito aparecia, contínuo, entre as duas superfícies.

      Brayldon olhou para o amigo, pensativo.

      -  Shervane, não acredito que a Muralha seja feita do tipo de matéria que conhecemos.

      -  Então, talvez as lendas sejam verdadeiras - respondeu o outro -, quando dizem que ela nunca foi construída, mas criada tal como a vemos agora.

      -  Eu também acho - continuou Brayldon. - Os engenheiros da Primeira Dinastia possuíam tais poderes. Existem alguns prédios muito antigos em minha terra que parecem ter sido feitos em uma única operação, de uma substância que não mostra qualquer erosão pelo tempo. Se fosse negra em vez de colorida, se pareceria muito com o material da Muralha.

      Colocou de lado suas ferramentas, agora inúteis, e começou a instalar um simples teodolito portátil.

      -  Se não podemos fazer mais nada - disse ele com um sorriso amarelo -, então pelo menos podemos descobrir exatamente qual a sua altura.

      Quando olharam para trás, para obterem sua última visão da Muralha, Shervane perguntou a si mesmo se voltaria a vê-la. Nada mais havia que pudesse aprender e, no futuro, devia esquecer o sonho tolo de que algum dia seria capaz de conhecer o seu segredo. Talvez não houvesse segredo algum. Talvez, além da Muralha, a Terra das Sombras se estendesse ao longo da curvatura do mundo até tornar a encontrar a mesma barreira. Isso certamente parecia o mais provável, mas, se assim fosse, por que motivo a Muralha fora construída, e por que raça?

      Quase com raiva, afastou esses pensamentos cavalgando em direção à luz de Trilorne e pensando num futuro no qual a Muralha não desempenharia papel maior do que na vida de qualquer outro homem.

      E assim dois anos se passaram antes que Shervane pudesse retornar ao seu lar. Em dois anos, especialmente quando se é jovem, muito pode ser esquecido, e mesmo aquelas coisas mais próximas ao coração perdem sua nitidez de modo a não serem mais recordadas com clareza. Quando Shervane atravessou novamente os últimos contrafortes das montanhas, vendo-se uma vez mais no país de sua infância, a alegria do retorno ao lar confundia-se com uma estranha tristeza. Tantas coisas haviam sido esquecidas, coisas que ele um dia julgara que guardaria para sempre em sua mente.

      A notícia de sua volta havia chegado antes dele, e ele logo percebeu, bem adiante, uma linha de cavalos galopando pela estrada. Avançou avidamente, imaginando que Sherval estaria entre eles para saudá-lo, e foi com algum desapontamento que viu Grayle liderando o grupo.

      Shervane parou enquanto o velho cavalgava até se posicionar ao seu lado. Então, Grayle colocou a mão sobre seu ombro, embora por um momento mantivesse o rosto virado, sem poder falar.

      Dentro em pouco, Shervane descobriu que as tormentas do ano anterior tinham destruído muito mais do que a antiga ponte, pois um relâmpago havia transformado sua própria casa em ruínas. Anos antes do tempo previsto, todas as terras que Sherval possuía passaram para seu filho. E muito mais que isso, de fato, pois toda a família estava reunida no casarão de acordo com o costume anual, quando o fogo desceu dos céus sobre eles. Num único instante, tudo entre as montanhas e o mar passara para Shervane, que agora era o homem mais rico que essa região conhecia há gerações. E no entanto todas essas coisas ele daria se pudesse olhar uma vez mais nos olhos cinzentos e calmos do pai, que não veria mais.

 

      Trilorne erguera-se e descera nos céus muitas vezes desde que Shervane abandonara sua infância na estrada diante das montanhas. A terra florescera com a passagem dos anos e as possessões que se tinham tornado suas de modo tão inesperado aumentaram de valor. Ele cuidara muito bem delas e agora tinha tempo, uma vez mais, para sonhar. Mais que isso, possuía a fortuna para transformar os sonhos em realidade.

      Frequentemente chegavam, através das montanhas, histórias a respeito do trabalho que Brayldon realizava no leste e, embora os dois amigos nunca mais se tivessem encontrado desde a juventude, eles trocavam mensagens regularmente. Brayldon realizara suas ambições: não apenas projetara os dois maiores prédios erguidos desde a Antiguidade, mas toda uma nova cidade fora planejada por ele, muito embora não lhe fosse possível terminá-la em vida. Ao ouvir essas coisas, Shervane lembrava-se das aspirações de sua juventude, e sua mente recuava através dos anos, de volta ao dia em que haviam olhado, juntos, para a majestosa Muralha. Por um longo tempo, lutara com seus pensamentos, temendo reviver velhas aspirações que poderiam não ser satisfeitas. Afinal, tomou sua decisão e escreveu para Brayldon, já que não haveria utilidade na riqueza ou no poder se não pudessem ser usados para moldar os sonhos de uma pessoa.

      Depois, Shervane esperou, perguntando a si mesmo se Brayldon teria esquecido o passado durante os anos em que lhe viera a fama. Não teve de esperar muito tempo: Brayldon não poderia vir imediatamente porque tinha grandes trabalhos para completar, mas, quando os terminasse, se reuniria ao velho amigo. Shervane lançara um desafio que fazia jus a suas habilidades - um desafio que, se ele pudesse enfrentar com êxito, iria trazer-lhe mais satisfação do que qualquer coisa que já tinha feito.

      No início do verão seguinte, ele veio, e Shervane o encontrou na estrada embaixo da ponte. Eles eram garotos na última vez que se separaram, agora se aproximavam da meia-idade. No entanto, quando trocaram saudações, era como se os anos tivessem desaparecido, e cada um se sentiu secretamente feliz ao ver quão pouco o tempo mudara o amigo de quem se lembrava.

      Passaram muitos dias conferenciando e discutindo os planos que Brayldon delineara. O trabalho era imenso e levaria muitos anos para ser terminado, mas era possível para um homem com a riqueza de Shervane. Antes de dar sua aprovação final, este levou o amigo para ver Grayle.

      O velho vivia já há alguns anos na pequena casa que Shervane lhe construíra. Há muito tempo que não desempenhava nenhuma parte ativa na vida das grandes propriedades, mas seus conselhos eram sempre bem recebidos, quando necessários, e invariavelmente sábios.

      Grayle já sabia por que Brayldon viera a essa terra, e não expressou qualquer surpresa quando o arquiteto desenrolou seus esboços. O desenho maior mostrava a elevação da Muralha com uma grande escadaria subindo ao longo de sua face, desde a planície abaixo. Em seis intervalos, igualmente espaçados, a rampa, em sua lenta ascensão, nivelara-se em amplas plataformas, a última das quais se encontrava a pouca distância abaixo do topo da Muralha. Saltando da escadaria, numa vintena de pontos, havia arcobotantes que, aos olhos de Grayle, pareciam muito frágeis e delgados para o trabalho que deveriam realizar. Então percebeu que a grande rampa seria amplamente auto-sustentada e, de um lado, todo o peso lateral seria suportado pela própria Muralha.

      Ele observou o desenho em silêncio por algum tempo e então falou baixinho:

      - Você sempre conseguiu o que queria, Shervane. Eu devia ter imaginado que isto acabaria acontecendo.

      - Então acha que é uma boa idéia? - indagou Shervane. Nunca contrariara um conselho do velho e estava ansioso por tê-lo agora. Como de hábito, Grayle foi direto ao ponto.

      - Quanto é que vai custar? - indagou ele. Brayldon lhe disse e, por um momento, houve um silêncio embaraçoso.

      - Isso inclui - acrescentou o arquiteto rapidamente - a construção de uma boa estrada através da Terra das Sombras e o estabelecimento de uma pequena vila para os trabalhadores. A escadaria em si é constituída de um milhão de blocos idênticos que podem ser encaixados para formar uma estrutura rígida. Deveremos prepará-los, espero, com os minerais que podem ser encontrados na Terra das Sombras.

      Deu um suspiro.

      - Eu teria preferido construí-la com barras de metal unidas, mas isso iria custar ainda mais, já que todo o material teria de ser trazido pelo caminho das montanhas.

      Grayle examinou o desenho com mais cuidado.

      - Por que ela se interrompe antes do topo?

      Brayldon olhou para Shervane, que respondeu à pergunta sem o menor embaraço.

      - Desejo ser o único a fazer a subida final. O último estágio será através de uma máquina elevadora situada na plataforma mais alta. Pode haver perigo e é por isso que vou sozinho.

      Essa não era a única razão, mas era suficientemente boa. Atrás da Muralha, Grayle dissera uma vez, encontrava-se a loucura. Se assim fosse, ninguém mais precisaria encará-la.

      Grayle estava falando uma vez mais, em sua voz calma e sonolenta:

      - Nesse caso, o que você faz não será nem bom, nem mau, já que apenas lhe diz respeito. Se a Muralha foi construída para manter alguma coisa fora do nosso mundo, ela ainda será intransponível pelo outro lado.

      Brayldon assentiu.

      - Nós também pensamos nisso - disse ele com um toque de orgulho. - Se houver necessidade, a rampa poderá ser destruída num instante por meio de explosivos colocados em pontos selecionados.

      - Isso é bom - replicou o velho. - Embora eu não creia nessas histórias, é bom estar preparado. Quando o trabalho estiver terminado, ainda espero estar aqui. E agora devo me lembrar do que ouvi a respeito da Muralha quando era jovem como você, Shervane, quando pela primeira vez me perguntou a respeito dela.

 

      Antes que o inverno chegasse, a estrada para a Muralha já fora demarcada e as fundações da cidade temporária tinham sido estabelecidas. A maior parte dos materiais de que Brayldon necessitava não era difícil de encontrar, já que a Terra das Sombras era rica em minerais. Ele também examinara a Muralha, escolhendo o ponto para sua escadaria. Quando Trilorne começou a descer para junto do horizonte, Brayldon sentiu-se satisfeito com o trabalho realizado.

      No verão seguinte, os primeiros milhares de blocos de concreto haviam sido manufaturados e testados, para satisfação de Brayldon. Antes que o inverno viesse novamente, miríades foram produzidas e parte das fundações estava construída. Deixando um assistente de confiança encarregado da produção, Brayldon podia retornar agora ao seu trabalho interrompido. Quando um número suficiente de blocos estivesse pronto, ele voltaria para supervisionar a construção. Até então, sua orientação não se faria necessária.

      Duas ou três vezes a cada ano, Shervane cavalgava até a Muralha para observar as pilhas de armazenagem crescendo e se tornando grandes pirâmides. Quatro anos depois, Brayldon voltou com ele.

      Camada por camada, as linhas de pedra começaram a galgar os flancos da Muralha e os delgados suportes principiaram a arquear no espaço. A princípio, a escadaria progredia lentamente, mas, à medida que seu topo se estreitava, o avanço se tornava cada vez mais rápido. Durante um terço de cada ano, o trabalho tinha de ser abandonado, e vinham os meses de ansiedade, durante o longo inverno, quando Shervane permanecia nas fronteiras da Terra das Sombras, ouvindo as tempestades que passavam trovejando rumo à reverberante escuridão. Mas a construção de Brayldon era boa e a cada primavera a obra ressurgia intocada, como se pudesse permanecer por mais tempo do que a própria Muralha.

      As últimas pedras foram colocadas sete anos após o início da construção. Colocando-se a mais de um quilómetro e meio de distância, de modo a poder ver toda a estrutura, Shervane se recordava com admiração de como tudo isso pudera emergir de apenas alguns esboços que Brayldon lhe mostrara anos atrás. Ao fazê-lo, conhecia um pouco da emoção do artista ao ver seus sonhos se tornarem realidade e lembrava-se também do dia em que, ainda menino, ao lado do pai, vira pela primeira vez a Muralha distante, erguendo-se de encontro ao céu crepuscular da Terra das Sombras.

      Havia parapeitos em torno da plataforma superior, mas Shervane preferia não se aproximar das bordas. O solo estava a uma distância vertiginosa e ele tentava esquecer a altura ajudando Brayldon e os trabalhadores na tarefa de instalar a grua simples que o elevaria através dos últimos seis metros. Quando tudo estava pronto, ele subiu no mecanismo e voltou-se para o amigo com toda a confiança que podia reunir.

      -  Vou  demorar   somente   alguns   minutos disse com uma pretensa negligência. - Não importa o que encontre, retornarei imediatamente.

      Dificilmente teria imaginado quão pequena seria sua margem de escolha.

 

      Grayle estava agora quase cego e não conheceria outra primavera. Mas ainda assim reconheceu os passos que se aproximavam e saudou Brayldon pelo nome antes que o visitante pudesse falar.

      - Alegra-me que tenha vindo - disse ele. - Tenho pensado em tudo que me contou e acredito conhecer a verdade, afinal. Talvez já tenha imaginado por si mesmo.

      - Não - respondeu Brayldon. - Tenho medo de pensar nisso.

      O velho deixou escapar um ligeiro sorriso.

      - Por que alguém deveria temer uma coisa meramente por ser estranha? A Muralha é maravilhosa, sim, mas não há nada terrível a respeito dela... para aqueles que puderem encarar seu segredo sem hesitação.

      "Quando eu era menino, Brayldon, meu velho mestre me disse uma vez que o tempo jamais destrói a verdade; apenas pode ocultá-la em meio a lendas. E ele estava certo. De todas as fábulas que tenho reunido a respeito da Muralha, posso selecionar agora aquelas que são parcialmente história.

      "Há muito tempo, quando a Primeira Dinastia atingia seu ápice, Trilorne era mais quente do que é agora e a Terra das Sombras era fértil e habitada... como talvez as Terras do Fogo serão um dia, quando Trilorne estiver velho e fraco. Os homens podiam ir para o sul se o desejassem, pois não havia Muralha para barrar-lhes o caminho. E muitos devem tê-lo feito, procurando novas terras para colonizar. O que aconteceu com Shervane deve ter-lhes acontecido também, e isso deve ter arruinado muitas mentes. Tantas que os cientistas da Primeira Dinastia ergueram a Muralha para evitar que a loucura se propagasse através das terras. Não posso acreditar que isso seja verdade, mas a lenda diz que a Muralha foi feita num único dia, sem nenhum trabalho, a partir de uma nuvem que circundou o mundo.

      Grayle mergulhou em devaneios e por um momento Brayldon preferiu não incomodá-lo. Sua mente encontrava-se bem distante no passado, visualizando o mundo como um globo perfeito a flutuar no espaço, enquanto os antigos lançavam aquela faixa de escuridão em torno do equador. Falsa como fosse a imagem, em seu detalhe mais importante, ele jamais poderia apagá-la de todo de sua mente.

 

      Enquanto os últimos centímetros da Muralha se moviam lentamente, passando diante de seus olhos, Shervane precisava reunir toda a sua coragem para não gritar, pedindo para ser abaixado. Lembrava-se de certas histórias terríveis, que certa vez rejeitara com riso, já que ele vinha de uma raça singularmente livre de superstições. Mas e se apesar de tudo aquelas histórias fossem verdadeiras? E se a Muralha tivesse sido construída para manter alguma espécie de horror afastada do mundo?

      Tentou esquecer tais pensamentos e descobriu não ser difícil fazê-lo, após ultrapassar o topo da Muralha. A princípio, foi incapaz de interpretar a imagem registrada por seus olhos. Depois compreendeu estar vendo uma superfície negra e contínua, cuja largura lhe era possível calcular.

      A pequena plataforma parou e ele notou, com semiconsciente admiração, como haviam sido precisos os cálculos de Brayldon. Então, com uma última palavra tranquilizadora para o grupo abaixo, ele subiu na Muralha e começou a caminhar decididamente para a frente.

      Parecia, no início, que a planície à sua frente era infinita, já que não podia distinguir onde ela encontrava o céu. Mas caminhou sem hesitação, mantendo as costas voltadas para Trilorne. Desejava poder usar sua própria sombra como guia, mas ela se perdia na escuridão profunda sob seus pés.

      Havia alguma coisa errada: estava ficando cada vez mais escuro a cada passo que dava. Espantado, ele se voltou e percebeu que o disco de Trilorne tornara-se agora pálido e obscurecido, como se fosse visto através de um vidro escuro. Com um medo crescente ele percebeu que isso não era tudo o que acontecera: Trilorne tornara-se menor do que aquele sol que conhecera por toda a vida.

      Sacudiu a cabeça num gesto aborrecido de desafio. Essas coisas eram tolices, devia estar a imaginá-las. De fato, eram tão contrárias a todo senso comum que, de algum modo, não mais se sentia assustado, e voltou a caminhar resolutamente para a frente, permitindo-se um único olhar para o sol às suas costas.

      Quando Trilorne diminuiu até se tornar um ponto e a escuridão o envolveu por todos os lados, era hora de abandonar a arrogância. Um homem sábio teria voltado naquele ponto. Shervane teve uma súbita visão de pesadelo, imaginando-se perdido nesse eterno crepúsculo entre a terra e o céu, incapaz de encontrar o caminho de volta à segurança. Então, lembrou-se de que, enquanto pudesse ver Trilorne, não estaria em perigo de perder-se.

      Um pouco incerto agora, ele continuou seu caminho, olhando com freqüência para trás, em direção àquela luz fraca que o guiava. Trilorne desaparecera, mas ainda restava um brilho fraco no céu para marcar a sua posição. Pouco depois, já não precisava dessa ajuda, pois bem adiante uma segunda luz começava a aparecer no céu.

      De início, era apenas o mais fraco de todos os brilhos e, ao certificar-se de sua existência, Shervane percebeu que Trilorne já desaparecera. Entretanto, sentia-se mais confiante agora e, enquanto caminhava para a frente, o retorno da luz ajudava a dominar seus temores.

      Quando notou que realmente se aproximava de outro sol, quando pôde afirmar sem nenhuma dúvida que ele se expandia, tal como momentos atrás vira Trilorne se contrair, Shervane teve de dominar todo o assombro, contendo-o nas profundezas de sua mente. Iria apenas observar e registrar. Depois haveria tempo para entender essas coisas. Que seu mundo pudesse possuir dois sóis, um brilhando de cada lado, não era, apesar de tudo, algo além da imaginação.

      Agora, afinal, podia ver fracamente, através da escuridão, a linha de ébano que marcava a extremidade da borda da Muralha. Logo seria o primeiro homem em milhares de anos, talvez em toda a eternidade, a olhar para as terras que ela separava de seu mundo. Seriam tão belas quanto as suas, e nelas haveria gente que ele se sentisse feliz em saudar?

      Mas o fato de eles estarem à sua espera e daquele modo era algo além de seus sonhos.

 

      Grayle estendeu a mão em direção à escrivaninha ao lado e tateou procurando uma folha grande de papel que se encontrava sobre ela. Brayldon observava em silêncio e o velho continuou:

      - Como é freqüente ouvirmos discussões a respeito do tamanho do universo e se ele tem algum tipo de limite, não conseguimos imaginar nenhum fim para o espaço, e no entanto nossas mentes se rebelam ante a ideia do infinito. Alguns filósofos têm imaginado o espaço como limitado por uma curvatura em dimensão mais elevada. Suponho que conheça a teoria. Ela pode ser verdadeira para outros universos, se eles de fato existem, mas com relação ao nosso a verdade é mais sutil.

      "Ao longo da linha da Muralha, Brayldon, o nosso universo chega ao seu final, e no entanto não o faz”. Não havia fronteira, nada para impedir alguém de ir adiante antes que a Muralha fosse construída. A Muralha em si é meramente uma barreira feita pelo homem, compartilhando as propriedades do espaço no qual jaz. Essas propriedades sempre estiveram lá e a Muralha nada acrescentou a elas.

      Ele segurou a folha de papel na direção de Brayldon e lentamente a fez girar.

      - Aqui - disse ele. - Isto é uma simples folha de papel. Ela tem dois lados, é claro. Você seria capaz de imaginar uma que não tivesse?

      Brayldon olhou, surpreso.

      - Isso é impossível... grotesco!

      - Será que é? - disse Grayle suavemente. Levou a mão à escrivaninha uma vez mais e seus dedos procuraram nos recessos. Daí a pouco retirou uma tira de papel longa e flexível e voltou os olhos vazios na direção de Brayldon, que aguardava em silêncio.

      - Não podemos igualar os intelectos da Primeira Dinastia, mas o que suas mentes podiam abarcar diretamente nós podemos abordar por intermédio de uma analogia. Este truque simples, que parece tão trivial, pode ajudá-lo a vislumbrar a verdade.

      Grayle correu os dedos ao longo da fita de papel e então juntou as duas extremidades para criar um laço circular.

      - Aqui temos uma forma perfeitamente familiar a você. A seção de um cilindro. Percorro o lado de dentro com o meu dedo, assim... e agora faço o mesmo pelo lado de fora. As duas superfícies são absolutamente distintas: você só pode passar de uma para outra ao mover-se através da espessura da fita. Concorda?

      - É claro - respondeu Brayldon intrigado -, mas o que isso prova?

      - Nada - disse Grayle. - Mas agora observe...

 

      Este sol, pensou Shervane, era um gêmeo idêntico de Trilorne. A escuridão desaparecera completamente e não havia mais aquela sensação, que não tentaria entender, de caminhar sobre uma planície infinita.

      Movia-se lentamente agora, pois não tinha o menor desejo de chegar subitamente à borda daquele vertiginoso precipício. Dentro em pouco, já podia distinguir um horizonte distante, formado por colinas baixas, tão nuas e sem vida quanto aquelas que deixara para trás. Isso não o desapontava muito, já que um primeiro vislumbre de sua própria terra não teria sido mais atraente.

      E assim ele caminhou em frente, e daí a pouco, quando uma mão gelada se abateu sobre seu coração, ele não parou, como um homem de menos coragem teria feito. Sem hesitar, observou aquela paisagem chocantemente familiar erguer-se ao seu redor, até poder ver a planície onde sua jornada começara, a grande escadaria e, por fim, a própria face ansiosa de Brayldon, esperando por ele.

      Novamente Grayle uniu as duas extremidades da fita, mas dessa vez dera-lhe uma meia torção, de modo a que a fita parecesse enroscada. Estendeu-a para Brayldon.

      - Percorra o lado com o dedo agora - disse calmamente.

      Brayldon não o fez: podia perceber o significado na demonstração do velho.

      - Compreendo - disse ele. - Você não tem mais duas superfícies distintas. Elas agora formam uma folha única e contínua. Uma superfície de um lado só. Algo que à primeira vista parece completamente impossível.

      - Sim - respondeu Grayle. - Achei que ia entender. Uma superfície de um lado só. Talvez compreenda agora por que esse símbolo, do laço torcido, é tão comum nas antigas religiões, embora seu significado tenha sido completamente perdido. É claro que não passa de uma analogia tosca e simples. Um exemplo em duas dimensões do que deve ocorrer realmente em três. Mas é tão próximo da verdade quanto nossas mentes jamais poderão chegar.

      Houve um longo e meditativo silêncio. Depois, Grayle suspirou e voltou-se para Brayldon, como se ainda pudesse ver-lhe a face.

      - Por que voltou antes de Shervane? - indagou ele, apesar de já saber muito bem a resposta.

      - Nós tínhamos de fazê-lo - disse Brayldon com tristeza. - Mas eu não queria ver o meu trabalho destruído.

      Grayle acenou com simpatia.

      - Eu posso compreender.

 

      Shervane percorreu com os olhos a longa carreira de degraus onde ninguém caminharia outra vez. Não sentia arrependimento. Havia se esforçado e ninguém poderia ter feito mais. A vitória possível fora sua.

      Lentamente, ergueu a mão, dando o sinal. A Muralha engoliu a explosão como havia absorvido todos os outros sons, mas a lenta graciosidade com que as longas camadas de alvenaria se curvaram e caíram era algo de que se lembraria durante toda a vida.

E por um momento ele teve a súbita e tocante visão de uma outra escadaria, observada por outro Shervane, tombando em idênticas ruínas do outro lado da Muralha.

      Mas isso, percebeu, era um pensamento tolo: ninguém sabia melhor do que ele que a Muralha não possuía um outro lado.

 

VERIFICAÇÃO DE SEGURANÇA

      É costume dizer que em nossa época de produção em massa e linhas de montagem não existe mais lugar para o artesão individual, o artista da madeira ou do metal que criou tantos tesouros do passado. Como a maioria das generalizações, esta simplesmente não é verdadeira. O artesão é mais raro agora, é claro, mas com certeza ainda não se extinguiu. Na maioria das vezes tem sido obrigado a mudar de vocação, mas a seu modo modesto ainda floresce. Pode ser encontrado até mesmo na ilha de Manhattan, desde que se saiba onde procurá-lo. Onde os aluguéis são baixos e os regulamentos contra incêndio desconhecidos, as suas minúsculas e abarrotadas oficinas podem ser encontradas nos subsolos dos edifícios ou nos andares superiores de lojas em ruínas. Pode ser que ele não faça mais violinos, relógios de cuco ou caixas de música, mas as habilidades que usa são as mesmas de sempre e entre os objetos que cria nunca haverá dois iguais. Mas não despreza a mecanização: você poderá encontrar várias ferramentas elétricas portáteis sob os entulhos de sua mesa de trabalho. Ele tem evoluído com os tempos e sempre poderá ser encontrado: o biscateiro universal, que nunca tem consciência do fato ao criar alguma obra de arte imortal.

      A oficina de Hans Muller consistia em uma grande sala nos fundos de um armazém abandonado, situado nas proximidades da ponte de Queens-borough.

      A maior parte do prédio tinha sido fechada com tábuas, à espera da demolição, e, cedo ou tarde, Hans seria obrigado a se mudar. A única entrada encontrava-se do outro lado de um pátio coberto de capim, usado como estacionamento durante o dia, e muito frequentado à noite pelos delinquentes juvenis locais. Eles nunca deram trabalho a Hans, pois este não era tolo de cooperar com a polícia quando ela fazia suas investigações periódicas. A polícia compreendia perfeitamente sua posição delicada e não o pressionava, de modo que Hans ficava bem com todos. Sendo um cidadão pacato, isso lhe convinha muito bem.

      O trabalho em que Hans estava agora empenhado teria surpreendido profundamente seus ancestrais bávaros. De fato, dez anos atrás teria surpreendido o próprio Hans. Tudo começara porque um cliente arruinado dera-lhe um aparelho de tevê como pagamento por serviços prestados...

      Hans aceitara relutantemente a oferta, não porque fosse antiquado e desaprovasse a televisão, mas simplesmente por não poder imaginar onde encontraria tempo para assistir à maldita coisa. "Ainda assim", pensara na ocasião, "sempre posso vendê-la por 50 dólares. Mas, antes que o faça, vamos ver como são os programas..."

      Sua mão movera-se até o botão, a tela se enchera de formas móveis e... como milhões de homens antes dele, Hans estava perdido. Entrara num mundo que não sabia existir... um mundo de espaçonaves em combate, de planetas exóticos e raças estranhas: o mundo do capitão Zipp, comandante da Legião do Espaço.

      Quando a tediosa recitação das virtudes de Crunche, a Aveia Divina, cedeu lugar a uma igualmente tediosa luta de boxe entre dois personagens musculosos que pareciam ter assinado um pacto de não-agressão, a magia desapareceu. Hans era um homem simples. Sempre gostara de contos de fadas - e aquilo era o conto de fadas moderno, com atrativos com os quais os irmãos Grimm nunca haviam sonhado. Assim, Hans não vendeu o aparelho de tevê.

      Passaram-se algumas semanas antes que a apreciação inicial, ingênua e não-crítica, acabasse. A primeira coisa que começou a aborrecer Hans foi a mobília e o cenário geral do mundo do futuro. Como já lhes disse, Hans era um artista... um artista que se recusava a acreditar que em 100 anos o gosto estético se deteriorasse tanto quanto os patrocinadores da Aveia Crunche pareciam imaginar.

      Ele também tinha péssima opinião sobre as armas que o capitão Zipp e seus oponentes usavam. Era verdade que Hans não fingiria entender os princípios nos quais se baseavam os desintegradores portáteis de prótons, mas se aquilo funcionava não havia certamente razão pela qual devesse ser tão tosco. As roupas, os interiores das espaçonaves... apenas não eram convincentes. Como ele sabia? Sempre possuíra um senso muito desenvolvido quanto à adequação das coisas, senso que podia atuar até mesmo nesse novo campo.

      Já dissemos que Hans era um homem simples. Mas era também arguto e ouvira falar que havia muito dinheiro envolvido em televisão. Assim, sentou-se e começou a desenhar.

      Mesmo se o produtor do capitão Zipp não tivesse perdido a paciência com seu cenógrafo, as ideias de Hans Muller o teriam feito sentar-se e prestar atenção. Tinham uma autenticidade e um realismo que as tornavam extraordinárias. Eram completamente livres daquele elemento de improbabilidade que começava a perturbar até mesmo os seguidores mais infantis do capitão Zipp. Hans foi imediatamente contratado.

      Entretanto impôs suas próprias condições. O que fazia era principalmente por amor ao trabalho, mesmo que isso lhe rendesse mais dinheiro do que qualquer outra coisa que fizera antes em sua vida. Não aceitaria assistentes e permaneceria em sua pequena oficina. Tudo o que desejava era produzir os protótipos, os desenhos básicos. A produção em massa poderia ser feita em outro lugar: era um artesão, não uma fábrica.

      O acordo funcionara bem. Durante os últimos seis meses o capitão Zipp se transformara, sendo agora o desespero dos seriados espaciais rivais. Aquilo, pensavam os telespectadores, não era apenas um seriado a respeito do futuro. Era o futuro e quanto a isso não havia discussão! Até mesmo os atores pareciam inspirados por seu novo ambiente: fora do cenário, comportavam-se às vezes como viajantes do tempo, vindos do século XX e encalhados na época vitoriana, indignados por não terem mais acesso aos equipamentos que sempre fizeram parte de suas vidas.

      Mas Hans nem notava isso. Ele continuava trabalhando alegremente, recusava-se a ver qualquer pessoa, exceto o produtor, cuidava de todos os negócios pelo telefone. Sempre observava os resultados finais para ter certeza de que suas ideias não tinham sido mutiladas. O único indício de sua ligação com o mundo um tanto fantástico da tevê comercial era uma caixa de Aveia Crunche num canto de sua oficina. Ele provara um punhado desse presente enviado pelo patrocinador agradecido e então se lembrara com alívio de que, apesar de tudo, não era pago para comer aquela coisa.

      Uma noite de domingo, trabalhara até tarde dando os toques finais num novo desenho de capacete espacial quando de súbito percebeu que não se encontrava mais sozinho. Lentamente se voltou do balcão de trabalho e olhou para a porta. Estava trancada, como poderia ter sido aberta de modo tão silencioso? Havia dois homens de pé ao lado dela, imóveis, a observá-lo. Hans sentiu seu coração tentando subir pela goela e reuniu toda a coragem para enfrentá-los. Pelo menos sentia-se feliz por ter tão pouco dinheiro guardado ali. E então percebeu que isso poderia não ser uma boa coisa, afinal. Eles poderiam ficar aborrecidos...

      - Quem são vocês? - indagou. - O que estão fazendo aqui?

      Um dos homens se aproximou enquanto o outro permaneceu alerta junto à porta. Ambos usavam sobretudos muito novos e chapéus bem enfiados nas cabeças, de modo que Hans não podia enxergar seus rostos. Estavam muito bem vestidos, concluiu, para serem assaltantes comuns.

      - Não precisa ficar alarmado, Sr. Muller - respondeu o homem que estava mais perto, lendo seus pensamentos sem dificuldade. - Isto não é um assalto. É oficial. Somos... da Segurança.

      - Não compreendo...

      O outro remexeu na pasta de documentos que estava carregando dentro do sobretudo e puxou um maço de fotografias. Procurou entre elas até encontrar aquela que desejava.

      - O senhor nos deu uma boa dor de cabeça, Sr. Muller. Levamos duas semanas para encontrá-lo. Seus empregadores eram muito reservados. Não há dúvida de que estavam ansiosos por ocultá-lo de seus rivais. Mas, aqui estamos e gostaríamos que respondesse a algumas perguntas.

      - Não sou um espião! - respondeu Hans, indignado, ao perceber o significado daquelas palavras.

      - Não pode fazer isso. Sou um cidadão americano inteiramente leal.

      O outro ignorou a explosão de raiva. Estendeu a fotografia.

      - Reconhece isto? - disse ele.

      - Sim, é o interior da espaçonave do capitão Zipp.

      - E o senhor o desenhou?

      - Sim.

      Outra fotografia saiu do arquivo.

      - E quanto a isto?

      - Essa é a cidade marciana de Paldar, vista do alto.

      - Idéia sua?

      - Certamente - respondeu Hans, agora muito indignado para ser cauteloso.

      - E isto?

      - Oh,  a  arma protônica. Sinto-me orgulhoso dela.

      - Diga-me, Sr. Muller, todas essas idéias são suas?

      - Claro, eu não as roubo de outras pessoas.

      Seu interlocutor virou-se para o companheiro e falou durante alguns minutos em uma voz baixa demais para Hans poder ouvir. Eles pareceram chegar a um acordo em algum ponto e a conferência terminou antes que Hans pudesse agarrar o telefone, como pretendia.

      - Eu sinto muito - continuou o intruso -, mas houve um sério vazamento de informações. Pode ter sido... ah... acidental, talvez mesmo inconsciente, mas isso não modifica o caso. Teremos de investigá-lo. Por favor venha conosco.

      Havia tamanha força e autoridade na voz do estranho que  Hans  começou   a  vestir  o  casaco  sem nenhum murmúrio. De algum modo, não duvidava mais das credenciais de seus visitantes e nem mesmo pensou em pedir alguma prova. Estava preocupado, mas não alarmado. O que havia acontecido era óbvio. Lembrava-se de ter ouvido falar a respeito de um escritor de ficção científica que, durante a guerra, chegou a descrever a bomba atômica com desconcertante precisão. Com tantas pesquisas secretas em andamento, tais acidentes eram inevitáveis. Mas não sabia exata-mente o que havia adivinhado.

      Na porta, olhou para a oficina e para os homens que o seguiam.

      - É tudo um engano terrível - disse ele. - Se mostrei alguma coisa secreta no programa, foi apenas coincidência. Nunca fiz nada que aborrecesse o FBI.

      Foi então que o segundo homem falou, afinal, num péssimo inglês e com sotaque muito estranho.

      - O que é FBI? - indagou ele.

      Mas Hans não o ouviu. Acabara de ver a espaçonave.

 

A DERRADEIRA MANHÃ

      - Mas isto é terrível! - disse o Supremo Cientista. - Certamente há alguma coisa que possamos fazer!

      - Sim, Vossa Cogniscência, mas será extremamente difícil. O planeta se encontra a mais de 500 anos-luz de distância e é muito difícil manter o contato. Acreditamos poder estabelecer uma cabeça-de-ponte. É lamentável, mas esse não é o único problema. Até agora não fomos capazes de nos comunicar com esses seres. Seus poderes telepáticos são extraordinariamente   rudimentares,   talvez   mesmo   inexistentes. Se não conseguirmos falar com eles, não poderemos ajudá-los.

      Houve um longo silêncio mental enquanto o Supremo Cientista analisava a situação e chegava, como sempre fazia, à resposta correta.

      - Toda raça inteligente deve ter alguns indivíduos telepatas - meditou ele. - Devemos colocar centenas de observadores sintonizados para captar o primeiro indício de pensamento desgarrado. Quando encontrarem uma única mente suscetível, concentrem todos os esforços sobre ela. Precisamos passar essa mensagem.

      - Muito bem, Vossa Cogniscência. Isso será feito.

      Através do abismo, sobre um golfo que a própria luz levaria meio milhar de anos para percorrer, os intelectos inquisitivos do planeta Thaar enviaram suas gavinhas de pensamento, pesquisando aflitos em busca de uma única mente humana que pudesse perceber a sua presença. Por um golpe de sorte encontraram William Cross.

      Pelo menos naquela ocasião pensaram que fosse sorte, apesar de mais tarde perderem essa certeza. De qualquer forma, não tinham escolha, A combinação de circunstâncias que lhes abrira a mente de Bill durou apenas alguns segundos, e não era provável que voltasse a ocorrer neste lado da eternidade.

      Havia três ingredientes reunidos no milagre: é difícil dizer se um foi mais importante do que outro. O primeiro foi o posicionamento acidental. Um frasco de água, com a incidência da luz solar, pode agir como uma lente tosca, concentrando a luminosidade sobre uma pequena área. Do mesmo modo, em escala imensamente superior, o denso núcleo da Terra servia de conversor para as ondas que vinham de Thaar. As irradiações de pensamento não costumam ser afetadas pela matéria, passando através dela com tanta facilidade quanto a luz através do vidro. Mas existe um bocado de matéria em um planeta e toda a Terra agia como uma lente gigantesca. Na medida em que girava, transportava Bill através de seu foco, onde os débeis impulsos de pensamento do planeta Thaar estavam concentrados centenas de vezes.

      E, no entanto, milhões de outros homens encontravam-se igualmente bem colocados, mas não receberam nenhuma mensagem: não eram engenheiros de foguetes e não haviam passado anos a sonhar e pensar no espaço, até que este se houvesse tornado parte de seu próprio ser.

      E eles também não estavam tão cegamente bêbados como Bill, agarrado à última borda cortante de consciência, a tentar escapar da realidade rumo a um mundo de sonhos. Um mundo onde não houvesse contratempos e decepções.

      É claro que ele podia perceber o ponto de vista do exército.

      - O senhor está sendo pago, Dr. Cross - disse o general Potter com desnecessária ênfase -, para projetar mísseis, não... ah... espaçonaves. O que faz em seu tempo livre não é de nossa conta, mas devo pedir-lhe que não use os equipamentos desta instalação para seu hobby. De agora em diante, todos os projetos da seção de computação terão de ser autorizados por mim. Isso é tudo.

      Não poderiam demiti-lo, é claro: ele era muito importante. Mas não tinha certeza se desejaria ficar. Não estava realmente certo de coisa alguma, exceto de que o trabalho se voltara contra ele e que Brenda finalmente havia partido na companhia de Johnny Gardner - isso para colocar os acontecimentos em sua ordem de importância.

      Oscilando ligeiramente, Bill colocou o queixo sobre as mãos e olhou para a parede de tijolos pintada de branco no outro lado da mesa. A única tentativa no sentido de ornamentá-la consistira em pregar um calendário da Lockheed e uma brilhante ampliação seis por oito da Aerojet, mostrando L'il Abner Mark I fazendo uma decolagem com impulsores. Bill olhou meio preguiçoso para um ponto entre as duas gravuras e esvaziou sua mente de todo pensamento. As barreiras caíram...

      Naquele instante, os intelectos reunidos de Thaar emitiram um grito mudo de triunfo e a parede em frente a Bill aos poucos se dissolveu numa névoa ro-dopiante. Parecia-lhe estar olhando através de um túnel que se estendia até o infinito. E na realidade estava.

      Bill estudou o fenómeno com um interesse moderado. Havia alguma novidade, mas não se igualava ao padrão das alucinações anteriores. Quando uma voz começou a falar em sua mente, deixou-a continuar por algum tempo antes de pensar em fazer algo a respeito. Mesmo quando bêbado, tinha um preconceito antiquado contra começar a conversar consigo mesmo.

      - Bill - principiou a voz -, ouça com atenção. Tivemos grande dificuldade em contatá-lo e isto é de suma importância.

      Disso Bill duvidava. Nada mais tinha importância.

      - Estamos  falando com você de  um planeta muito distante - continuou a voz num tom amigável e urgente. - É o único ser humano que fomos capazes de contatar, portanto precisa compreender o que estamos dizendo.

      Bill se sentia um pouco enfastiado, ainda que de maneira impessoal, desde que se tornara um pouco difícil concentrar-se em seus próprios problemas. "Será muito sério", ele se perguntou, "quando começamos a ouvir vozes?" Bom, era melhor não ficar muito excitado. "Você pode pegar ou largar, Dr. Cross", disse ele para si mesmo. "Vamos aceitar até que comece a nos chatear."

      - OK - respondeu com entediada indiferença. - Vá em frente e fale comigo. Não me importo enquanto for interessante.

      Houve uma pausa. Depois, a voz continuou do modo um tanto aborrecido.

      - Não estamos certos de ter entendido. Nossa mensagem não é apenas interessante. Ela é vital para toda a sua raça e você deve notificar seu governo com urgência.

      - Estou esperando, pois me ajuda a passar o tempo.

      A 500 anos-luz de distância, os Thaarns conferenciaram apressadamente. Alguma coisa parecia errada, mas não eram capazes de decidir com exatidão o quê. Não havia dúvida de que tinham estabelecido contato, e, no entanto, essa não era a espécie de reação esperada. Bem, só podiam prosseguir e ter esperança de que tudo melhorasse.

      - Escute, Bill - continuaram -, nossos cientistas acabam de descobrir que seu Sol está a ponto de explodir. Vai acontecer dentro de três dias, a partir de hoje...  74 horas, para ser exato. Nada pode impedi-lo. Mas não há razão para ficar alarmado. Podemos salvá-los, se fizerem o que dissermos.

      - Prossiga - disse Bill. Essa alucinação era engenhosa.

      - Podemos criar o que chamamos de ponte... é uma espécie de túnel através do espaço, como este que você está vendo  agora.  A teoria é  demasiado complicada para explicar até mesmo a um de seus matemáticos...

      - Espere um minuto - protestou Bill. - Eu sou um matemático e muito bom, até mesmo quando estou sóbrio. E já li tudo a respeito desse tipo de coisas em revistas de ficção científica. Suponho que está falando a respeito de algum atalho através de dimensões mais elevadas de espaço. Isso é velho: até mesmo pré-Einstein.

      Uma sensação de inconfundível surpresa infiltrou-se na mente de Bill.

      - Não tínhamos ideia de que fossem tão avançados em termos científicos - disseram os Thaarns. - Mas não temos tempo de falar a respeito da teoria. Na realidade, tudo o que importa é isto: se caminhar para dentro dessa abertura à sua frente, você se encontrará de imediato em outro planeta. Como você disse, é um atalho, neste caso através da 37.a dimensão.

      - E conduz ao seu mundo?

      - Ah, não, vocês não poderiam viver lá. Mas há no universo grande quantidade de planetas como a Terra  e  encontramos um que será  adequado  para vocês.   Estabeleceremos cabeças-de-ponte como essa por toda a Terra, de modo que seu povo só precisará caminhar através delas para ser salvo. É evidente que precisarão começar a construir uma outra civilização assim que chegarem ao novo lar, mas é a única chance que têm. Você precisa passar esta mensagem e dizer-lhes o que devem fazer.

      - Posso imaginar a cara deles me ouvindo! - respondeu Bill. - Por que não vão falar com o presidente?

      - Porque sua mente é a única que fomos capazes de contatar. As outras pareciam fechadas a nós. Não entendemos por quê.

      - Eu poderia lhes dizer - murmurou Bill, olhando para a garrafa vazia ao seu lado.

      Aquilo valia bem o preço que pagara. Que coisa extraordinária é a mente humana! É claro que não havia nada de original nesse diálogo, era fácil ver de onde vinham as ideias. Justo na semana passada estivera lendo uma história sobre o fim do mundo, e todas essas ideias esperançosas a respeito de pontes e túneis através do espaço eram uma compensação óbvia para alguém que passara cinco anos lutando com foguetes recalcitrantes.

      - Se o Sol estourasse - indagou ele, de súbito, tentando apanhar sua alucinação distraída -, o que aconteceria?

      - Como assim? Seu planeta se derreteria instantaneamente. Todos os planetas, de fato, até a órbita de Júpiter.

      Bill tinha que admitir que o conceito era bem grandioso. Deixou sua mente divagar nesse pensamento, e quanto mais o examinava, mais gostava.

      - Minha querida alucinação - ele respondeu, compassivo. - Se acreditasse em você, sabe o que eu diria?

      - Mas deve acreditar em nós! - gritou suplicante a voz que atravessava os anos-luz.

      Bill a ignorou. Estava começando a se entusiasmar.

      - Eu lhe digo isto: seria a melhor coisa que poderia acontecer. Sim, evitaria um bocado de desgraças. Ninguém mais teria que se preocupar com os russos e a bomba atômica ou o alto custo de vida. Oh, seria maravilhoso!  É exatamente o que todo o mundo quer. Vocês foram muito gentis em aparecer e nos dizer isso, mas agora voltem para casa e levem sua ponte com vocês.

      Houve consternação em Thaar. O cérebro do Supremo Cientista, que flutuava como uma grande massa de coral em seu tanque de nutriente, ficou levemente amarelo nas bordas. Algo que não lhe acontecia desde a invasão dos Xantil, há 5.000 anos. Pelo menos 15 psicólogos sofreram colapsos nervosos e nunca mais foram os mesmos. O computador principal, no Colégio de Cosmofísica, começou a dividir todos os números em sua memória por zero e imediatamente estourou todos os seus fusíveis.

      Enquanto isso, na Terra, Bill Cross prosseguia com força total.

      - Olhem para mim - disse ele, apontando um dedo trêmulo para o peito. - Passei anos tentando conseguir que os foguetes fizessem algo de útil e me dizem que só posso construir mísseis teleguiados, de modo que possamos nos explodir uns aos outros. O Sol fará um trabalho mais limpo e, se vocês nos dessem outro planeta, apenas recomeçaríamos a maldita coisa. Fez uma pausa tristonha, encadeando seus pensamentos mórbidos.

      - E agora Brenda sai da cidade sem nem ao menos me deixar um bilhete. Por isso perdoem minha falta de entusiasmo pela sua boa ação de escoteiro.

      Não teria sido capaz de pronunciar "entusiasmo", percebeu Bill, mas ainda podia pensar na palavra, o que era uma interessante descoberta científica. Enquanto ficasse cada vez mais bêbado, iria sua reflexão... opa, esta quase o derrubara... chegaria a decair até palavras de uma única sílaba?

      Num último e desesperado esforço, os Thaarns enviaram seus pensamentos através do túnel entre as estrelas.

      - Não pode estar falando sério, Bill! Todos os humanos são como você?

      Bem, essa era uma interessante questão filosófica. Bill pensou nela com cuidado... ou com tanto cuidado quanto poderia, em meio àquele brilho quente e róseo que começava a envolvê-lo. Apesar de tudo, as coisas poderiam ser bem piores. Ele poderia conseguir um outro emprego, ao menos pelo prazer de dizer ao general Porter o que devia fazer com suas três estrelas. E quanto a Brenda... bem, as mulheres são como os ônibus, sempre aparece outra dentro de alguns minutos.

      O melhor de tudo era a constatação de que havia outra garrafa de uísque dentro do arquivo de Segurança Máxima. Oh, que dia fabuloso! Ergueu-se oscilante e cambaleou através da sala.

      Pela última vez, Thaar falou para a Terra.

      - Bill! - insistiu com desespero. - Tenho certeza de que os humanos não podem ser todos como você!

      Bill olhou para trás, diretamente para dentro do túnel rodopiante. Estranho, aquilo parecia iluminado com pintas de luz estelar e, na realidade, era muito bonito. Sentiu-se orgulhoso de si mesmo. Não haveria muitas pessoas capazes de imaginar algo assim.

      - Como eu? Não, não são. - Sorriu convencido através dos anos-luz, enquanto a onda crescente de euforia o levantava acima de seu próprio desespero. - Pense nisso - acrescentou. - Existe um bocado de gente muito pior do que eu. Sim, apesar de tudo, suponho que devo ser um dos felizardos.

      Piscou surpreso. O túnel desabara subitamente sobre si mesmo e a parede pintada de branco estava de novo no mesmo lugar, como sempre estivera. Thaar sabia reconhecer uma derrota.

      - Chega dessa alucinação - pensou Bill. - Já estava me cansando. Vamos ver como vai ser a próxima.

      Na verdade, não houve uma próxima, já que cinco segundos depois ele estava completamente apagado, enquanto tentava ajustar a combinação para abrir o armário de arquivos.

      Os dois dias que se seguiram foram um tanto vagos, afetados pela ressaca, e ele esqueceu tudo a respeito da entrevista.

      No terceiro dia, havia alguma coisa a incomodá-lo, lá no fundo de sua mente. Ele teria se lembrado se Brenda não houvesse aparecido, mantendo-o ocupado enquanto se desculpava.

      É claro que não houve um quarto dia.

 

AVENTURA LUNAR

A LINHA DE PARTIDA

      A história da primeira expedição lunar já foi escrita tantas vezes que certas pessoas duvidam de que ainda exista alguma coisa nova para ser dita. Mas na minha opinião, todos aqueles relatórios oficiais, relatos de testemunhas, gravações no local e transmissões, não fornecem uma imagem completa do que aconteceu. Dizem um bocado sobre as descobertas que foram feitas, mas quase nada a respeito dos homens que as fizeram.

      Como capitão da Endeavour e comandante da equipe britânica, fui capaz de observar muitas coisas que vocês não encontrarão nos livros de história, e algumas delas, não todas, podem ser contadas agora. Um dia, assim espero, meus colegas da Goddard e da Ziolkovski darão seus pontos de vista. Mas, como o comandante Vandenburg ainda se encontra em Marte e o comandante Krasnin, em algum lugar da órbita de Vénus, parece que teremos que esperar mais alguns anos por suas memórias.

      Dizem que uma confissão faz bem à alma. Com certeza me sentirei muito mais feliz quando houver contado a verdadeira história que se esconde por trás da ordem de partida para o primeiro vôo lunar, a respeito da qual sempre houve um bocado de mistério.

      Como todos sabem, as naves americana, russa e inglesa foram montadas na órbita da Estação Espacial Três, 800 km acima da Terra, a partir de componentes transportados por uma série de foguetes de carga. Não obstante todas as partes terem sido pré-fabricadas, a montagem e o teste das naves levaram mais de dois anos, tempo no qual muita gente que não compreendia a complexidade da tarefa começou a se sentir um pouco impaciente. Haviam visto dúzias de fotos e noticiários de tevê mostrando as três naves flutuando lá em cima, ao lado da Estação Três, aparentemente completas e prontas para se afastarem da Terra num instante. O que as imagens não mostravam era o trabalho meticuloso e entediante, ainda prosseguindo, enquanto milhares de tubulações, fios, motores e instrumentos eram instalados e submetidos a todos os testes concebíveis.

      Não havia data definida para a partida. Como a Lua costuma estar sempre à mesma distância aproximada, você pode partir para lá quando quiser, desde que esteja pronto. Não faz quase diferença, do ponto de vista do consumo de combustível, se você decola na Lua cheia, na Lua nova, ou em qualquer ocasião entre as duas. Fomos muito cuidadosos em não fazer predições a respeito do momento da partida, apesar de todos insistirem em que fixássemos uma data. Muitas coisas podem sair erradas em uma espaçonave, e não íamos dizer adeus à Terra enquanto não estivéssemos realmente prontos até o último detalhe.

      Sempre me lembrarei da última conferência entre os três comandantes, a bordo da estação espacial, quando todos nós anunciamos que estávamos prontos. Como o empreendimento era cooperativo, com cada equipe se especializando em alguma tarefa particular, concordáramos em realizar os pousos dentro do mesmo período de 24 horas, no local pré-selecionado do Maré Imbrium. Os detalhes da jornada, entretanto, foram deixados por conta de cada um dos comandantes, na esperança presumível de que não copiássemos os erros um do outro.

      - Estarei pronto - disse o comandante Van-denburg - para realizar meu primeiro ensaio de decolagem às 9 horas de amanhã. E quanto aos senhores, cavalheiros? Devo pedir ao controle de Terra que fique de prontidão para todos os três?

      - Está OK para mim - disse Krasnin, que nunca se convencera de que sua gíria americana estava 20 anos fora de moda.

      Acenei concordando. Era verdade que um conjunto de medidores de combustível ainda não funcionava bem, mas isso não importava realmente. Estaria consertado na ocasião em que os tanques estivessem cheios.

      O ensaio de decolagem consistia em uma imitação perfeita da verdadeira partida, com todos realizando a tarefa que lhes caberia quando chegasse a hora da coisa real. Tínhamos praticado, é claro, nos simuladores lá na Terra, mas esta seria uma imitação perfeita do que iria acontecer conosco quando finalmente arrancássemos em direção à Lua. Tudo o que faltava era o rugido dos motores revelando que a viagem se iniciara.

      Realizamos seis ensaios completos da partida e depois desmontamos as naves para eliminar qualquer coisa que não houvesse funcionado perfeitamente. Feito isso, fizemos mais outras seis simulações. As naves Endeavour, Goddard e Ziolkovski encontravam-se nas mesmas condições de confiabilidade. Restava agora apenas o trabalho de abastecê-las e estaríamos prontos para a largada.

      A tensão vivida naquelas últimas horas não é coisa que eu deseje repetir. Os olhos do mundo estavam sobre nós; o momento da partida fora estabelecido com uma incerteza de apenas algumas horas. Todos os testes finais tinham sido concluídos e nos havíamos convencido de que nossas naves se encontravam tão preparadas quanto seria humanamente possível.

      Foi quando recebi aquela chamada urgente e secreta através do rádio, vinda de um escalão muito alto. Tratava-se de uma sugestão, feita com tamanha autoridade que não havia possibilidade de se fingir que não era uma ordem. O primeiro vôo lunar, lembraram-me, constituía um empreendimento cooperativo... mas pense no prestígio se chegarmos lá em primeiro lugar. Basta um par de horas de vantagem...

      Eu fiquei chocado com a sugestão e assim o disse. A essa altura dos acontecimentos, via Vandenburg e Krasnin como bons amigos e estávamos todos juntos nessa aventura. Dei a desculpa que pude imaginar e disse que, de vez que nossas trajetórias de vôo já estavam computadas, não havia nada que pudesse ser feito a respeito. Cada nave faria a jornada através da rota mais econômica a fim de economizar combustível. Se partíssemos juntos, chegaríamos juntos - com uma diferença de segundos.

      Infelizmente, alguém já pensara na resposta para isso. Nossas três naves, abastecidas e com suas tripulações prontas, encontrar-se-iam circundando a Terra em estado de prontidão total, várias horas antes do momento de saltarem de suas órbitas de satélite e se dirigirem para a Lua. Na nossa altitude de 800 km, levávamos 95 minutos para dar uma volta completa em torno da Terra, e apenas uma vez, a cada volta, ocorreria o momento adequado para o início da viagem. Se pudéssemos partir uma volta na frente, os outros teriam que aguardar 95 minutos antes que pudessem nos seguir. E, desse modo, desceriam na Lua 95 minutos depois de nós.

      Não vou me alongar nas discussões e ainda me sinto um pouco envergonhado por ter cedido, concordando em enganar meus dois colegas. Encontrávamo-nos na sombra da Terra, sob momentâneo eclipse, quando o instante, calculado de maneira tão meticulosa, chegou. Vandenburg e Krasnin, como pessoas honestas, pensavam que eu iria fazer mais um circuito completo ao redor do mundo, junto com eles, antes que todos largássemos juntos. Jamais me senti maior patife do que quando acionei a chave de disparo e senti o súbito impulso dos motores que me arrastavam para longe do mundo materno.

      Nos dez minutos seguintes, não tivemos tempo para mais nada, exceto nossos instrumentos, enquanto checávamos para verificar se a Endeavour estava avançando dentro de sua órbita pré-computada. Quase no mesmo instante em que por fim escapamos da Terra, podendo desligar os motores, emergimos da sombra para o brilho total do Sol. Não haveria outra noite até que chegássemos à Lua, após cinco dias de flutuação silenciosa e sem esforço, através do espaço.

      A Estação Espacial Três e as outras duas naves já deviam estar 1.600 km atrás de nós. Dentro de mais 85 minutos, Vandenburg e Krasnin se encontrariam de volta ao ponto de partida correto, decolando atrás de mim como tínhamos planejado. Todavia, nunca poderiam tirar minha vantagem, e eu esperava que não estivessem muito furiosos comigo quando tornássemos a nos encontrar na Lua.

      Liguei a câmara traseira e olhei para trás, na direção do brilho distante da Estação Espacial que só agora emergia da sombra da Terra. Passaram-se alguns instantes antes que percebesse que a Goddard e a Ziolkovski não estavam flutuando ao lado dela, como eu as deixara...

      Não, elas estavam a apenas 800 m de distância, igualando minha velocidade. Olhei para elas totalmente perplexo durante um segundo antes de compreender que todos tinham tido a mesma ideia.

      - Ora, seu par de traidores! - exclamei. Comecei a rir tanto que perdi vários minutos antes de chamar o preocupado controle da Terra para informar que tudo correra de acordo com o plano... embora de modo algum fosse o plano originalmente anunciado...

      Todos nos sentíamos muito embaraçados quando transmitimos congratulações mútuas de uma nave para a outra. E, no entanto, ao mesmo tempo, creio que ficamos secretamente satisfeitos pelo fato de tudo se resolver desse modo. Pelo resto da viagem, nunca estivemos separados por mais do que alguns quilómetros; e as manobras de pouso foram de fato tão sincronizadas que nossos três jatos de freagem atingiram a Lua ao mesmo tempo.

      Bem, quase no mesmo momento. Pode significar alguma coisa o fato de a gravação ter demonstrado que pousei 2/5 de segundo à frente de Krasnin. Mas é melhor ficar calado; afinal, Vandenburg chegou na minha frente pela mesma vantagem.

      Em uma viagem de 400 mil km, acho que podem dizer que foi um páreo decidido por fotografia...

 

ROBIN HOOD, F.R.S.2

      Pousamos na aurora do longo dia lunar e as sombras oblíquas se estendiam ao nosso redor por quilómetros através da planície. Elas se encurtariam, lentamente, à medida que o Sol se elevasse no céu, até quase desaparecerem ao meio-dia; mas ainda faltavam cinco dias terrestres para o meio-dia lunar e mais sete para o cair da noite. Tínhamos, assim, quase duas semanas de luz diurna antes que o Sol se escondesse e a Terra, com seu brilho azulado, se tornasse senhora dos céus.

      Houve pouco tempo para explorações durante aqueles primeiros dias. Tínhamos que descarregar as naves, nos acostumar ao estranho ambiente à nossa volta, aprender a manejar os tratores e pequenas motonetas elétricas, além de erguer os iglus que serviriam de casas, escritórios e laboratórios até que fosse hora de partir. Em caso de emergência, poderíamos viver dentro das espaçonaves, mas isso seria demasiado desconfortável e apertado. Os iglus não eram exatamente espaçosos, mas pareciam um luxo após cinco dias no espaço. Feitos de plástico resistente e flexível, eles eram inflados como balões e seus interiores divididos em diferentes aposentos. Comportas de pressão permitiam o acesso ao mundo exterior e um bocado de tubulações, ligadas ao sistema de purificação de ar das naves, mantinha a atmosfera respirável. É desnecessário dizer que o iglu americano era o maior de todos e viera com tudo, inclusive uma pia de cozinha (para não mencionar a máquina de lavar roupa que nós e os russos estávamos sempre pedindo emprestada).

      Só no fim da "tarde" lunar - aproximadamente dez dias após o nosso pouso - é que acabamos de nos organizar devidamente e podíamos pensar num trabalho científico sério. Os primeiros grupos fizeram rápidas e tímidas expedições à vastidão inóspita em torno da base, familiarizando-se com o território. É claro que já possuíamos mapas e fotografias da região em que pousáramos, mas é surpreendente o quão ilusórios eles podiam ser, às vezes. O que fora marcado num mapa como uma pequena colina parecia mais uma montanha para um homem avançando penosamente dentro de um traje espacial, e as planícies aparentemente lisas às vezes estavam cobertas de poeira que chegava aos joelhos, o que tornava a caminhada demasiado lenta e entediante.

      Mas essas eram dificuldades menores e a baixa gravidade, que dava a todos os objetos apenas 1/6 de seu peso terrestre, compensava bastante. Enquanto os cientistas começavam a acumular suas descobertas e amostras, os circuitos de rádio e tevê com a Terra tornaram-se cada vez mais ocupados, até se encontrarem em operação contínua. Não estávamos correndo riscos nesse ponto: mesmo se nós não voltássemos para a Terra, o conhecimento que reuníamos chegaria lá.

      O primeiro dos foguetes automáticos com suprimentos pousou dois dias antes do crepúsculo, precisamente de acordo com os planos. Observamos seus jatos chamejarem brevemente em meio às estrelas, para depois dispararem de novo, alguns segundos antes do pouso. O pouso em si ficou oculto aos nossos olhos, já que, por motivos de segurança, o local escolhido ficava a quase 5 km da base. E na Lua, esses 5 km ficavam bem sobre a curva do horizonte.

      Quando chegamos até a cápsula, vimos que estava levemente inclinada sobre o tripé absorvedor de choques, mas em perfeitas condições. Como também estava em perfeitas condições tudo o que havia a bordo, dos instrumentos até a comida. Carregamos em triunfo esses suprimentos de volta para a base, e fizemos uma festa, sem dúvida um pouquinho atrasada. Os homens tinham trabalhado duro por todos esses dias e precisavam relaxar.

      Foi uma tremenda festa. O ponto alto, creio, ficou por conta do comandante Krasnin, tentando dançar à moda dos cossacos dentro de um traje espacial. Depois, voltamos nossas mentes para os esportes competitivos, mas descobrimos, por motivos óbvios, que as atividades no exterior ficavam um pouco restritas. Jogos como croquê e boliche teriam sido possíveis se possuíssemos o equipamento, mas críquete e futebol estavam definitivamente fora de cogitação. Naquela baixa gravidade, uma bola de futebol percorreria 800 m com um bom chute, e uma bola de críquete nunca mais seria vista.

      O professor Trevor Williams foi a primeira pessoa a pensar num esporte lunar praticável. Ele era nosso astrônomo e também um dos homens mais jovens a se tornarem membros da Royal Society, tendo apenas 30 anos quando essa honraria lhe fora concedida. Sua obra sobre os métodos de navegação interplanetária o haviam tornado mundialmente famoso, mas sua habilidade como arqueiro era bem menos conhecida. Durante dois anos seguidos, fora campeão do País de Gales e, portanto, não me surpreendia encontrá-lo disparando contra um alvo colocado sobre uma pilha de escória lunar.

      O arco era bem curioso, feito com fio de aço e montado sobre uma barra de plástico laminado. Fiquei pensando onde Trevor o conseguira e então me lembrei de que o foguete de suprimento fora desmontado para aproveitamento das peças e seus pedaços estavam aparecendo nos lugares mais inesperados. As flechas, entretanto, eram o detalhe mais interessante. Para fornecer-lhes estabilidade no ambiente lunar, sem atmosfera, onde, é claro, as penas seriam inúteis. Trevor conseguira raiá-las. Havia um pequeno dispositivo no arco que as fazia girar como balas, quando eram disparadas. Assim, mantinham a direção ao deixarem o arco.

      Mesmo com esse equipamento um tanto improvisado, era possível atingir 1.600 m de distância, se alguém o desejasse. Entretanto Trevor não queria desperdiçar as flechas, que não eram fáceis de fazer; estava mais interessado em descobrir que tipo de precisão seria possível obter. Era estranho observar a trajetória quase retilínea das flechas, que pareciam avançar paralelamente ao solo. Alguém avisou a Trevor que, se ele não fosse cuidadoso, suas flechas poderiam se tornar satélites lunares e atingi-lo pelas costas quando completassem a órbita.

      O segundo foguete de suprimentos chegou no dia seguinte, mas dessa vez as coisas não correram de acordo com o plano. Ele fez um pouso perfeito, mas infelizmente o piloto automático, controlado pelo radar, cometeu um daqueles erros que tais máquinas de memória simples adoram fazer. Localizou a única colina inacessível na vizinhança, travou o feixe do radar sobre ela e se acomodou em seu cume como uma águia caída sobre o ninho.

      Nossos suprimentos, tão necessários, encontravam-se 150 m acima de nossas cabeças e dentro de algumas horas a noite cairia. O que devíamos fazer?

      Cerca de 15 pessoas fizeram a mesma sugestão de uma só vez e nos minutos seguintes houve uma correria enquanto reuníamos todas as cordas de náilon existentes na base. Logo, havia quase um quilómetro de fio, enrolado em anéis mais ou menos do mesmo tamanho, aos pés de Trevor, enquanto aguardávamos com expectativa. Ele prendeu uma extremidade à sua flecha, esticou o arco e, como experiência, apontou na direção das estrelas. A flecha ergueu-se a pouco mais de metade da altura do penhasco e, então, o peso da linha a puxou de volta.

      - Sinto muito - disse Trevor. - Não pode ser feito. Não se esqueçam de que teríamos de lançar também algum tipo de gancho para que a extremidade ficasse presa lá em cima.

      Houve um bocado de abatimento nos momentos seguintes, enquanto observávamos as laçadas de linha caindo lentamente do céu. A situação era, na verdade, um tanto absurda. Em nossas naves, possuíamos energia suficiente para nos transportar a 400.000 km da Lua, e no entanto estávamos em apuros devido a uma colina desprezível. Se tivéssemos tempo, acabaríamos por encontrar um caminho para o topo, pelo lado oposto, mas isso significaria viajar vários quilômetros. Seria perigoso e talvez impossível, nas poucas horas de luz diurna que nos restavam.

      Cientistas não costumam ficar frustrados por muito tempo, e havia muitas mentes engenhosas (algumas superengenhosas) trabalhando no problema, que decerto não ficaria sem solução. Dessa vez, era um pouco mais difícil, e apenas três pessoas chegaram à resposta ao mesmo tempo. Trevor estudou a proposta e então disse, sem demonstrar entusiasmo:

      - Bem, vale a pena tentar.

      Os preparativos tomaram algum tempo, enquanto todos observávamos ansiosos os raios do Sol declinante, deslizando até o penhasco íngreme acima de nós. Mesmo se Trevor conseguisse colocar uma linha com um gancho lá em cima, pensava comigo mesmo, não seria fácil realizar a escalada com os movimentos tolhidos por um traje espacial. Não me sinto bem nas alturas e fiquei feliz por vários entusiastas do montanhismo se oferecerem para o trabalho.

      Enfim, tudo estava pronto. A linha foi colocada com cuidado, de modo a se elevar do solo com o mínimo de impedimento. Um leve gancho fora atado alguns centímetros atrás da flecha e nós esperávamos que se prendesse nas rochas lá em cima, não nos deixando cair quando colocássemos nosso peso sobre ele.

      Dessa vez, Trevor não estava usando uma única flecha. Prendera quatro na linha, a intervalos de quase 200 m. Nunca me esquecerei do incrível espetáculo daquela figura em traje espacial, brilhando aos últimos raios do sol poente, enquanto esticava seu arco contra o céu.

      A flecha lançou-se em direção às estrelas, mas antes que subisse mais que 15 m Trevor já estava colocando outra em seu arco improvisado. Essa disparou no encalço de sua predecessora, carregando a outra extremidade do longo anel que ia sendo erguido no espaço. Quase de imediato, uma terceira a seguiu, carregando sua parte da linha, e eu juro que a quarta flecha já estava a caminho antes que a primeira demonstrasse qualquer indício de perda de velocidade.

      Agora que não se tratava mais de uma única flecha puxando todo o comprimento da linha, não era difícil atingir a altura necessária. Nas duas primeiras tentativas, o gancho não se fixou, mas depois se prendeu firmemente em alguma coisa, lá em cima, no oculto platô, e o primeiro voluntário começou a subir. Era verdade que ele pesava apenas 12 kg naquele ambiente de baixa gravidade, mas ainda assim a queda seria muito longa.

      Não caiu. E as provisões do foguete de carga começaram a descer da colina uma hora depois, com tudo o que era essencial sendo baixado antes do cair da noite. Devo confessar, no entanto, que minha satisfação diminuiu muito quando um dos engenheiros mostrou orgulhosamente a gaita que pedira para enviarem da Terra. Já naquela hora, eu tinha certeza de que estaríamos todos fartos do tal instrumento muito antes que a longa noite lunar houvesse terminado...

      Mas isso, lógico, não era culpa de Trevor. Enquanto caminhávamos juntos de volta para a nave, atravessando as grandes extensões de sombra que fluíam rapidamente sobre a planície, ele fez uma proposta que, tenho certeza, tem intrigado milhares de pessoas desde que foram publicados os mapas detalhados da primeira expedição lunar.

      Afinal, parece um tanto estranho que uma planície lisa e sem vida, marcada por uma única e pequena montanha, seja agora conhecida nos mapas como Floresta de Sherwood.

 

DEDOS VERDES

      Agora que é tarde demais, sinto muito jamais ter conhecido Vladimir Surov. Lembro-me dele como um homem calado, que podia entender inglês, mas não falava suficientemente bem para poder conversar. Mesmo para seus colegas, suspeito que fosse um enigma. Todas as vezes que eu circulei pela Ziolkovski, ele estava sentado num canto, trabalhando em suas notas ou olhando através de um microscópio. Um homem que se agarrava a sua privacidade até mesmo no mundo pequeno e apertado de uma espaconave. O resto da tripulação não parecia se importar com seu distanciamento e, quando falavam com ele, ficava claro que o consideravam com respeito e uma tolerante afeição. Isso não surpreendia: o trabalho que realizara, desenvolvendo plantas e árvores capazes de florescer dentro do Círculo Polar Ártico, tornara-o o mais famoso botânico de toda a Rússia.

      O fato de ter levado a expedição russa um botânico para a Lua provocara comentários jocosos, mas isso não era mais estranho do que a existência de biólogos nas naves americana e inglesa. Durante os anos que antecederam o primeiro pouso lunar, acumulara-se uma série de evidências que sugeriam a possibilidade de existir algum tipo de vegetação na Lua, a despeito da ausência de ar e água. O presidente da Academia de Ciências da União Soviética era um dos principais defensores dessa teoria e, sendo muito idoso para realizar a viagem, fizera a melhor coisa que podia ao enviar Surov.

      A completa ausência de vegetação, viva ou fóssil, nos milhares de quilômetros quadrados explorados por nossas várias equipes foi a primeira grande decepção que a Lua nos reservara. Até mesmo aqueles céticos, que tinham certeza de que nenhuma forma de vida poderia existir na Lua, teriam ficado felizes caso os fatos houvessem provado estarem errados... como de fato ficaram, cinco anos depois, quando Richards e Shannon fizeram sua espantosa descoberta dentro da grande planície murada de Eratóstenes. Mas essa revelação ainda era coisa do futuro; na ocasião do primeiro pouso, parecia que Surov fora à Lua em vão.

      Ele não parecia nem um pouco deprimido e mantinha-se tão ocupado quanto o resto da tripulação, estudando amostras de solo e cuidando da pequena chácara de plantas cultivadas na água, cujos tubos transparentes pressurizados formavam uma trama brilhante em torno da Ziolkovski. Nem nós nem os americanos tínhamos esse tipo de coisa, calculando que era melhor ter a comida enviada da Terra do que cultivá-la no local, pelo menos até chegar a ocasião de instalar uma base permanente. Estávamos certos em termos econômicos, mas errados em termos de moral. Aquelas pequenas estufas, dentro das quais Surov cultivava seus legumes e árvores frutíferas anãs, eram um oásis sobre o qual podíamos descansar nossos olhos quando ficávamos fartos da imensa desolação à nossa volta.

      Uma das muitas desvantagens de ser o comandante era que poucas vezes eu tinha chance de realizar qualquer tipo de exploração ativa. Estava sempre ocupado, preparando relatórios para a Terra, verificando os suprimentos, organizando escalas de trabalho, conferenciando com meus colegas das naves americana e russa, e tentando, nem sempre com muito sucesso, adivinhar o que sairia errado em seguida. Como resultado disso, eu às vezes passava dois ou três dias sem sair da base, e era voz corrente que o meu traje espacial se tornara um refúgio para traças.

      Talvez por isso possa me recordar tão nitidamente de todas as minhas expedições ao exterior. Claro que me lembro de meu único encontro com Surov. Foi próximo do meio-dia lunar, com o Sol bem alto acima das montanhas ao sul e a Terra Nova como um fio de prata, quase invisível, a alguns graus de distância. Henderson, nosso geofísico, queria fazer algumas leituras magnéticas em uma série de pontos de teste, alguns quilômetros a leste da base. Todos os outros estavam ocupados e no momento eu estava livre de meu trabalho; assim, partimos juntos, a pé.

      O percurso não era tão longo para merecer o uso de uma das motonetas, principalmente porque as cargas das baterias estavam muito fracas. De qualquer modo, sempre gostei de caminhar na superfície da Lua. Não era uma simples questão de cenário, ao qual podíamos nos acostumar, mesmo em seus aspectos mais assombrosos, depois de algum tempo. Não, eu nunca me cansava era da maneira fácil, parecendo em câmara lenta, com que cada passo me enviava, pulando, sobre a paisagem. Isso me dava uma liberdade que, antes do advento dos vôos espaciais, os homens só conheciam nos sonhos.

      Realizamos o trabalho e nos encontrávamos a meio caminho da volta quando reparei numa figura movendo-se através da planície, a uns 1.500 m de nós. Posicionei os binóculos adaptados dentro de meu capacete e olhei com atenção para o outro explorador. Mesmo a curta distância, é impossível identificar um homem dentro de um traje espacial, e por isso os nossos trajes eram sempre marcados por um código de cor e número, tornando possível o reconhecimento.

      - Quem é? - indagou Henderson, através do canal de rádio de curta distância ao qual estávamos ambos sintonizados.

      - Traje azul, número três... isso quer dizer Surov. Mas eu não entendo... ele está sozinho!

      Uma das regras fundamentais da exploração lunar é que ninguém saía sozinho pela superfície do satélite. Podem ocorrer muitos acidentes que serão absolutamente triviais se você estiver acompanhado, mas fatais se estiver sozinho. Como escapar, por exemplo, se o seu traje espacial apresenta de repente um vazamento bem no meio das costas, e você não consegue colocar o remendo adesivo? Pode parecer engraçado, mas já aconteceu.

      - Talvez o companheiro dele tenha sofrido um acidente e ele esteja indo buscar ajuda - sugeriu Henderson. - Talvez seja melhor chamá-lo.

      Sacudi a cabeça. Era evidente que Surov não estava com pressa. Havia saído em sua própria excursão e voltava calmamente para a Ziolkovski. Não era da minha conta se o comandante Krasnin permitia que sua gente saísse em passeios solitários, ainda que isso parecesse deplorável. E se Surov estivesse infringindo regulamentos, também não era da minha conta denunciá-lo.

      Nos dois meses seguintes, meus homens frequentemente avistaram Surov fazendo sua caminhada solitária pela paisagem lunar, mas ele sempre os evitava, caso se aproximassem. Fiz algumas sondagens discretas e descobri que o comandante Krasnin fora forçado a relaxar algumas das regras de segurança devido à escassez de pessoal. Mas não pude descobrir o que Surov andava fazendo e jamais sonhei que seu comandante estivesse igualmente no escuro.

      Foi com um sentimento de "bem que eu dizia" que recebi a chamada de emergência de Krasnin. Já tínhamos tido homens em dificuldades antes, sendo obrigados a enviar ajuda, mas essa era a primeira vez que alguém se perdia e deixava de responder quando sua nave enviava o sinal de chamada. Após uma rápida conferência através do rádio, uma linha de ação foi estabelecida. Equipes de busca se espalharam partindo de cada uma das três naves.

      Estava outra vez na companhia de Henderson e havíamos concordado em seguir ao longo da rota que víramos Surov percorrer. Ficava no que considerávamos como "nosso território", a uma boa distância da nave de Surov, e, enquanto subíamos as encostas arredondadas, me ocorreu pela primeira vez que o russo poderia estar fazendo alguma coisa que desejasse ocultar de seus colegas. O que era, eu não conseguia imaginar.

      Henderson o encontrou e gritou pedindo ajuda através do rádio instalado no traje espacial. Era muito tarde: Surov estava caído, de cara no chão, com seu traje desinflado, enroscado em volta dele. Estava se ajoelhando quando alguma coisa espatifou o globo plástico de seu capacete. Era possível notar como ele tombara para a frente, tendo morte instantânea.

      Quando o comandante Krasnin nos alcançou, ainda olhávamos para o incrível objeto que Surov estivera examinando antes de morrer. Tinha aproximadamente 90 cm de altura: um oval verde e coriáceo, enraizado na rocha com uma ampla rede de gavinhas. Sim, enraizado, já que era uma planta. A alguns metros de distância, havia outras duas, muito menores e aparentemente mortas, já que estavam enegrecidas e murchas.

      - Então existe vida na Lua, apesar de tudo! - foi minha primeira reação. Foi só quando a voz de Krasnin falou em meus ouvidos que percebi que a verdade ainda era mais maravilhosa.

      - Pobre Vladimir! - disse ele. - Sabíamos que era um gênio, e mesmo assim rimos quando nos falou de seu sonho. Por isso manteve em segredo o seu maior trabalho. Conquistou o Ártico com o seu trigo híbrido, mas isso era apenas o começo. Trouxe vida para a Lua... e morte também.

      Enquanto eu estava lá, naquele primeiro momento de assombrosa revelação, ainda parecia um milagre. Hoje, todo o mundo conhece a história do "cacto de Surov" (como foi inevitavelmente batizado, ainda que de forma um tanto imprecisa), e parte desse assombro se perdeu. As notas de Surov revelaram toda a história, descrevendo os anos de experimentação que afinal produziram uma planta cuja pele coriácea a capacitava a sobreviver no vácuo e cujas raízes de longo alcance, produtoras de ácido, permitiam que crescesse sobre rochas onde até os liquens teriam dificuldade em sobreviver. E já vimos a realização do segundo estágio do sonho de Surov: o cacto, que para sempre guardará seu nome, já fragmentou extensas áreas de rocha lunar, preparando o caminho para as plantas mais especializadas que hoje alimentam cada ser humano que vive na Lua.

      Krasnin se curvou ao lado do corpo de seu colega e o ergueu sem esforço, na baixa gravidade. Tocou com os dedos nos fragmentos despedaçados do capacete de plástico, sacudindo a cabeça, perplexo.

      - Que pode ter acontecido a ele? - indagou. - É quase como se a planta o tivesse feito, mas isso é ridículo.

      O enigma verde estava lá, naquela planície não mais desolada, a nos desafiar com sua promessa e seu mistério. E então Henderson falou lentamente, como se estivesse pensando em voz alta:

      - Acho que tenho a resposta. Acabo de me lembrar das lições de botânica que tive na escola.  Se Surov projetou esta planta para as condições lunares, como faria para que se propagasse? As sementes teriam que ser espalhadas por uma área muito grande, na esperança de encontrar os poucos lugares adequados para crescer. Não há pássaros ou animais para transportá-las aqui, como acontece na Terra. Eu só consigo pensar em uma solução... e algumas de nossas plantas terrestres já fazem uso dela.

      Foi interrompido pelo meu grito. Alguma coisa atingira, com uma pancada ressonante, o cinturão metálico do meu traje. Não chegou a causar danos, mas foi tão súbito e inesperado que me apanhou completamente de surpresa.

      Uma semente jazia aos meus pés, aproximadamente do tamanho e da forma de uma ameixa. A alguns metros de distância, nós encontramos aquela que arrebentou o capacete de Surov quando ele se agachara. Ele devia saber que a planta estava madura, mas, na ânsia de examiná-la, esquecera-se do que isso implicava. Eu já vi um cacto arremessar sua semente à distância de uns 400 m, na baixa gravidade lunar. E Surov fora atingido à queima-roupa por sua própria criação.

 

TUDO QUE BRILHA

      Esta história é realmente do comandante Vandenburg, mas ele está a muitos milhões de quilômetros para contá-la. Diz respeito a um geofísico, o Dr. Paynter, que se acredita ter ido à Lua para escapar de sua mulher.

      Em uma ocasião ou outra, supunha-se que todos nós tínhamos feito isso (de modo geral, eram nossas esposas que mantinham essa opinião), mas no caso do Dr. Paynter o boato tinha suficiente dose de verdade para confirmá-lo.

      Não que ele não gostasse da mulher; pode-se dizer quase o contrário. Era capaz de fazer tudo por ela, mas infelizmente as coisas que ela desejava eram muito caras. Tratava-se de uma dama com gostos um tanto extravagantes e não se aconselha a tais damas que se casem com cientistas... nem mesmo com cientistas que vão para a Lua.

      A fraqueza da Sra. Paynter eram as jóias, em particular os diamantes. Como se pode ver, essa era uma fraqueza que causava um bocado de preocupação ao marido; mas ele não só se preocupava, chegou a fazer alguma coisa a respeito. Tornou-se um dos maiores especialistas em diamantes que o mundo conhecia - do ponto de vista científico, é claro, não comercial - e, provavelmente, sabia mais a respeito de sua composição, origem e propriedades do que qualquer outro homem vivo. É lamentável que se possa conhecer um bocado a respeito de diamantes sem jamais possuir um, e a erudição do marido não era algo que a Sra. Paynter pudesse usar ao redor do pescoço quando fosse a uma festa.

      A geofísica, como mencionei, era o verdadeiro negócio do Dr. Paynter; os diamantes constituíam apenas uma ocupação secundária. Desenvolveu muitos instrumentos de sondagem extraordinários, capazes de penetrar no interior da Terra por meio de impulsos elétricos e ondas magnéticas, fornecendo uma espécie de imagem de raios X dos estratos e camadas ocultas abaixo. Não causava surpresa que fosse um dos homens escolhidos para investigar o misterioso interior da Lua.

      Estava ávido para ir, mas, ao comandante Vandenburg, ele pareceu relutante em deixar a Terra naquele momento. Alguns homens já mostraram tais sintomas, às vezes provocados por temores impossíveis de serem erradicados, e figuras tão promissoras quanto ele foram deixadas para trás. Mas no caso do Dr. Paynter a relutância era estritamente impessoal. Ele se encontrava no meio de um grande experimento... alguma coisa na qual trabalhara durante toda a sua vida, e não queria abandonar a Terra antes de terminar. A primeira expedição lunar não poderia, entretanto, esperar, e ele teve que deixar o projeto nas mãos de seus assistentes. Trocava constantes mensagens de rádio em código com eles, para grande aborrecimento da seção de comunicações da Estação Espacial Três.

      Diante das maravilhas de um novo mundo, aguardando para ser explorado, Paynter logo se esqueceu de suas preocupações terrenas. Corria de lá para cá sobre o cenário lunar em uma daquelas pequenas e práticas motonetas elétricas que os americanos trouxeram, carregando um sortimento de sismógrafos, magnetômetros, medidores de gravidade e todas as outras ferramentas esotéricas que fazem parte do trabalho dos geofísicos. Tentava aprender em algumas semanas o que os homens levaram centenas de anos para descobrir a respeito de seu próprio planeta. Era verdade que dispunha de apenas uma pequena amostra dos 36.000.000 de km2 de território lunar para sua exploração, mas pretendia fazer um trabalho completo.

      De tempos em tempos, recebia mensagens de seus colegas da Terra, ao lado de breves mas afetuosos sinais da Sra. P. Nada disso parecia interessá-lo muito. Mesmo quando não se está tão ocupado a ponto de não ter tempo para dormir, 400.000 km colocam a maior parte dos negócios pessoais numa perspectiva diferente. Acho que, na Lua, o Dr. Paynter estava realmente feliz pela primeira vez em sua vida, e não era o único.

      Não muito longe de nossa base, encontrava-se um esplêndido fosso de cratera, uma grande abertura na superfície lunar com quase 3,2 km de uma borda até a outra. Mesmo estando nas proximidades, encontrava-se fora da área de nossas operações conjuntas, e já estávamos na Lua há seis semanas quando Paynter conseguiu liderar um grupo de três homens, em um dos tratores pequenos, para dar uma olhada nela. Ficaram fora do alcance do rádio, além do horizonte lunar, mas não nos preocupamos, já que, em caso de dificuldades, poderiam chamar a Terra e ter qualquer mensagem retransmitida para nós.

      Paynter e seus homens haviam partido há 48 horas, o que é mais ou menos o tempo máximo para trabalho contínuo, mesmo com drogas estimulantes. No início, sua pequena expedição fora bastante calma, monótona mesmo, tudo acontecendo de acordo com os planos. Chegaram à cratera, inflaram seu iglu pressurizado e desembrulharam as provisões. Fizeram leituras com os instrumentos e instalaram a perfuratriz portátil para obter amostras. Foi enquanto aguardava que a perfuratriz lhe trouxesse uma bela seção da Lua que Paynter fez a sua segunda grande descoberta. Fizera a primeira dez horas antes, mas no momento ainda não sabia disso.

      Em torno da borda da cratera, havia imensas pilhas de rochas, espalhadas no local para onde tinham sido lançadas pelas grandes explosões que convulsionaram a paisagem lunar há 300 milhões de anos. Rochas que haviam sido trazidas de muitos quilômetros no interior da Lua. Qualquer coisa que pudesse fazer com sua pequena perfuratriz, pensava Paynter, dificilmente se compararia com isso. Era lamentável que os espécimes geológicos do tamanho de montanhas, caídos ao seu redor, não se encontrassem arrumados em sua ordem correta. Estavam esparramados sobre a paisagem, até onde a vista podia alcançar, de acordo com a violência arbitrária das erupções que os tinham arremessado para o espaço.

      Paynter galgou uma dessas pilhas de escória, batendo nas amostras mais adequadas com o seu pequeno martelo. Dentro em pouco, os colegas o ouviram gritar e voltar correndo com o que parecia um pedaço de vidro de baixa qualidade. Levou algum tempo antes de conseguir explicar com suficiente coerência a causa de toda aquela agitação... e mais algum tempo antes que a expedição se recordasse de sua verdadeira tarefa e voltasse ao trabalho.

      Vandenburg observou o grupo que retornava enquanto seus membros se dirigiam para a nave. Os quatro homens não pareciam tão cansados quanto seria de esperar, considerando-se que estavam acordados há dois dias. Havia uma certa vivacidade em seus movimentos que nem mesmo os trajes espaciais eram capazes de ocultar por completo. Era fácil ver que a expedição fora um sucesso, e nesse caso Paynter teria, dois motivos para congratulações. A mensagem prioritária que acabara de chegar da Terra era muito difícil de decifrar, mas era evidente que o trabalho de Paynter, fosse qual fosse, finalmente chegara à sua triunfante conclusão.

      O comandante Vandenburg quase esqueceu a mensagem quando viu o que Paynter segurava na mão. Ele conhecia a aparência de um diamante bruto e esse era o segundo maior que alguém já vira. Somente o Cullinan, inclinando as balanças até 3.026 quilates, poderia superá-lo, e assim mesmo por margem muito estreita.

      -  Nós devíamos ter esperado por isso - balbuciou Paynter com satisfação. - Diamantes sempre foram encontrados próximos a chaminés vulcânicas, mas nunca imaginei que essa analogia teria valor aqui.

      Vandenburg de súbito se lembrou da mensagem e entregou-a a Paynter. Ele leu rapidamente e seu queixo caiu. Nunca em sua vida, disse-me Vandenburg, ele vira um homem ficar tão decepcionado com uma mensagem de congratulações. O telegrama dizia: CONSEGUIMOS. TESTE 541 COM RECIPIENTE DE PRESSÃO MODIFICADO OBTEVE SUCESSO COMPLETO. NENHUM LIMITE PRÁTICO DE TAMANHO. CUSTOS DESPREZÍVEIS.

      - O que foi que houve? - indagou Vandenburg ao ver a expressão desolada no rosto de Paynter.

      - Seja o que for que isso signifique, não me parece má notícia.

      Paynter engoliu em seco umas duas ou três vezes, como um peixe fora d'água, e então olhou desconsolado para o grande cristal que quase enchia a palma de sua mão. Jogou-o para o alto e ele flutuou de volta em câmara lenta, como tudo o mais sob a gravidade lunar.

      Afinal, Paynter recuperou a voz:

      - Meu laboratório tem trabalhado nisso há anos - disse ele -, tentando sintetizar diamantes. Ontem, esta coisa valia um milhão de dólares. Hoje, vale duas centenas e não estou certo se me importo de carregá-la para a Terra.

      Bem, ele a carregou; parecia uma pena não fazê-lo. Durante três meses, a Sra. P. foi possuidora do melhor colar de diamantes do mundo, no valor de mil dólares... gastos principalmente no polimento e na lapidação. Em seguida, o método de Paynter entrou em produção comercial e, um mês depois, ela conseguiu o divórcio. A acusação foi extrema crueldade mental, e suponho que vocês sejam capazes de achar que ela tinha razão.

 

OLHEM PARA O ESPAÇO

      Foi uma grande surpresa descobrir que o mais famoso experimento que realizamos enquanto estávamos na Lua tivera seus primórdios em 1955. Naquela ocasião, a pesquisa com foguetes que atingiam altitudes elevadas vinha sendo realizada há apenas dez anos, principalmente em White Sands, no Novo México. A experiência que envolveu a ejeção de sódio na atmosfera superior ocorreu em 1955, data do mais espetacular de todos aqueles experimentos iniciais.

      Na Terra, mesmo na noite mais clara, o céu entre as estrelas não é completamente negro. Há um brilho de fundo, muito fraco, causado em parte pela fluorescência de átomos de sódio a 160 km de altitude. Como seria necessário todo o sódio de muitos quilômetros cúbicos da atmosfera superior para encher uma caixa de fósforos, pareceu aos investigadores da época que poderiam realizar uma boa exibição pirotécnica se usassem um foguete para derramar alguns gramas do material na ionosfera.

      E estavam certos. O sódio esguichado por um foguete acima de White Sands, no início de 1955, produziu no céu uma grande luminescência amarelada, que permaneceu visível, como uma espécie de luar artificial, durante mais de uma hora, antes que os átomos se dispersassem. Esse experimento não foi realizado como diversão (embora fosse divertido), mas com um sério propósito científico. Instrumentos apontados em direção ao brilho foram capazes de obter novos conhecimentos a respeito do ar nas grandes altitudes. Conhecimentos que enriqueceram a bagagem de informações que tornou possíveis os vôos espaciais.

      Ao chegarem à Lua, os americanos decidiram que seria boa idéia repetir o experimento lá, em escala muito maior. Algumas centenas de quilogramas de sódio disparadas da superfície produziriam um espetáculo capaz de ser observado da Terra, com a ajuda de um bom par de binóculos, enquanto o material fluo-rescesse em sua ascensão pela atmosfera lunar. (A propósito, algumas pessoas não percebem que a Lua tem uma atmosfera. Ela é infinitamente tênue para ser respirável, mas, com a instrumentação adequada, é possível detectá-la. Como escudo contra os meteoros, ela é de primeira ordem, pois embora tênue, sua profundidade é de centenas de quilômetros.)

      Há dias que todos falavam na experiência. A bomba de sódio chegara da Terra com o último foguete de suprimentos e era uma peça impressionante em sua aparência. Sua operação seria de extrema simplicidade: quando acionada, uma carga incendiária vaporizaria o sódio até que fosse atingida a pressão necessária. Então, seu diafragma se arrebentaria e o material seria esguichado para o céu através de uma biqueira especialmente moldada. O disparo seria logo após o cair da noite e, quando a nuvem de sódio se elevasse para fora da sombra da Lua, recebendo a luz direta do Sol, começaria a brilhar com enorme incandescência.

      O cair da noite na Lua é uma das visões mais assombrosas de toda a natureza - duplamente impressionante quando se tem consciência de que, ao observarmos o disco flamejante do Sol arrastar-se com tanta lentidão para trás das montanhas, não poderemos vê-lo outra vez antes de 14 dias. Mas o poente não traz escuridão, pelo menos neste lado da Lua. Há sempre a Terra, suspensa imóvel no céu, como o único corpo celeste que nunca nasce nem se põe. A luz, derramando-se de seus mares e nuvens, inunda a paisagem lunar com um brilho suave, azul-esverdeado, e costuma ser mais fácil caminhar à noite do que sob o Sol ofuscante.

      Mesmo aqueles que não estavam de serviço vieram olhar a experiência. A bomba de sódio fora colocada no centro de um grande triângulo formado pelas três naves, e erguia-se de pé, com o bico apontado para as estrelas. O Dr. Anderson, o astrônomo da equipe americana, testava os circuitos de disparo, enquanto todos os outros mantinham uma distância respeitosa. A bomba parecia perfeitamente capaz de justificar seu nome, embora na realidade não fosse mais perigosa do que um sifão de soda.

      Toda a instrumentação óptica das três expedições parecia ter sido reunida para gravar a performance. Telescópios, espectroscópios, câmaras de filmagem e tudo mais que se poderia pensar fora alinhado, pronto para a ação. E isso não seria nada comparado com as baterias que deveriam estar apontando para nós lá da Terra. Cada astrônomo amador que pudesse olhar para a Lua essa noite estaria de prontidão no jardim dos fundos de sua casa, a ouvir, pelo rádio, comentários revelando o progresso da experiência. Olhei para o planeta brilhante que dominava o céu acima de mim. Suas áreas de terras pareciam razoavelmente livres de nuvens; assim, a rapaziada lá em casa teria uma boa visão. Parecia justo; afinal, era o povo que pagava a conta.

      Ainda faltavam 15 minutos para o disparo. Mais uma vez, desejei que houvesse um método fidedigno de se fumar um cigarro dentro de um traje espacial sem embaçar de tal modo o capacete a ponto de não se enxergar nada. Nossos cientistas já tinham solucionado problemas bem mais difíceis; era uma pena que não pudessem fazer nada quanto a isso.

      Para passar o tempo, já que essa era uma experiência onde eu não teria nada que fazer, liguei o rádio do traje e fiquei ouvindo Dave Bolton, que realizava um excelente trabalho como comentarista. Dave era o nosso navegador-chefe e um brilhante matemático. Possuía também a língua solta e uma linguagem bem pitoresca, o que já causara a censura de suas gravações pela BBC. Não havia nada que pudessem fazer agora, quando ele transmitia ao vivo para a Terra, através das estações retransmissoras.

      Dave terminara uma breve e lúcida explicação sobre os propósitos da experiência, descrevendo como a nuvem de sódio brilhante nos possibilitaria analisar a atmosfera lunar, subindo a aproximadamente 1.600 km/h.

      - Contudo - prosseguiu ele para os milhões de ouvintes da Terra -, vamos deixar clara uma coisa. Mesmo depois que a bomba tenha estourado, vocês não serão capazes de ver coisíssima alguma durante dez minutos. Muito menos nós. A nuvem de sódio será completamente invisível enquanto estiver subindo na escuridão provocada pela sombra da Lua. Então, subitamente, vai brilhar incandescente, ao entrar nos raios do Sol que estão fluindo sobre nossas cabeças, agora mesmo, enquanto olhamos para o espaço. Ninguém tem certeza quanto à intensidade do brilho que terá, mas é uma suposição razoável que vocês poderão vê-la com qualquer telescópio maior do que 50 mm. Isto é, bastará um bom par de binóculos.

      Teve que continuar com esse tipo de conversa por mais dez minutos, e me deixou admirado pelo modo como conseguiu fazê-lo. Então chegou o grande momento, e Anderson fechou o circuito de disparo. A bomba começou a cozinhar, acumulando pressão em seu interior, enquanto o sódio se volatizava. Depois de 30 segundos houve uma súbita baforada de fumaça da comprida biqueira que apontava para o céu. Então, tivemos que aguardar mais dez minutos enquanto a nuvem invisível se elevava em direção às estrelas. Depois de todo esse suspense, pensei comigo mesmo, era melhor que o resultado fosse bom.

      Os segundos e minutos se escoaram. Então, um repentino brilho amarelo começou a se espalhar no céu, como uma vasta aurora polar que não tremulava, tornando-se cada vez mais brilhante enquanto observávamos. Era como se um artista estivesse espalhando pinceladas de tinta sobre as estrelas, usando um pincel flamejante. Enquanto observava aquelas pinceladas, percebi de repente que alguém realizara o maior golpe publicitário de toda a história. As pinceladas estavam formando letras e as letras formavam duas palavras: o nome de um refrigerante muito conhecido para necessitar de qualquer publicidade extra de minha parte.

      Como pudera ser feito? A primeira resposta era óbvia: alguém colocara um estêncil adequadamente cortado no bico da bomba de sódio, de modo que o fluxo de vapor escapando moldasse as palavras. Como não havia nada para distorcê-lo, o desenho mantivera sua forma inalterada durante a invisível ascensão rumo às estrelas. Já vi palavras escritas nos céus da Terra, mas isso era algo em escala muito maior. Sempre que penso neles, não posso deixar de admirar a engenhosidade dos homens que perpetraram aquele plano. Os "OO" e os "AA" lhes haviam dado um pouco de trabalho, mas os "CC" e os "LL" estavam perfeitos.

      Depois do choque inicial, fico feliz em relatar que o programa científico prosseguiu como planejado. Gostaria de poder me lembrar do modo como Dave Bolton descreveu o acontecimento em seus comentários; deve ter sido um esforço razoável, mesmo para seu raciocínio rápido. A essa altura, é claro, metade da Terra já podia ver o que ele descrevia. Na manhã seguinte, cada jornal do planeta exibia a famosa foto da Lua crescente com o slogan luminoso pintado sobre a parte escura.

      As letras ficaram visíveis por mais de uma hora antes que finalmente se dispersassem no espaço. Nesse momento, as palavras tinham mais de l.600 km de comprimento e estavam começando a ficar borradas-. Ainda eram legíveis, entretanto, quando afinal se apagaram no vácuo que separa os planetas.

      Foi então que começou a verdadeira explosão. O comandante Vandenburg estava absolutamente furioso e de imediato começou a interrogar seus homens. Mas logo se tornou claro que o sabotador, se é que podemos chamá-lo assim, encontrava-se na Terra. A bomba fora pré-preparada e enviada pronta para uso imediato. Não levou muito tempo para se localizar e despedir o engenheiro que fizera a substituição. Ele não deve ter se importado muito, já que todas as suas necessidades financeiras estavam asseguradas por muitos anos.

      Quanto à experiência em si, foi inteiramente bem-sucedida do ponto de vista científico. Todos os instrumentos funcionaram sem problemas enquanto registravam e analisavam a luz da nuvem de formato inesperado. Mas nunca perdoamos os americanos e temo que o pobre capitão Vandenburg tenha sido quem mais sofreu. Quando veio para a Lua, era um completo abstêmio e quase toda a sua bebida vinha de uma certa garrafinha de cintura fina. Agora, por questão de princípios, ele só bebe cerveja, muito embora odeie essa bebida.

 

UMA QUESTÃO DE RESIDÊNCIA

      Já descrevi como disputamos a posição de partida para o primeiro vôo lunar. E, como se verificou, as naves americana, russa e inglesa pousaram quase simultaneamente. Mas ninguém ainda explicou por que a nave britânica voltou quase duas semanas depois das outras.

      Ah, conheço a história oficial; tenho que conhecê-la, já que ajudei a elaborá-la. É verdadeira até certo ponto, só que não vai muito longe.

      Sob todos os aspectos, a expedição conjunta fora um sucesso total. Houve apenas uma baixa e, do modo como morrera, Vladimir Surov se fizera imortal. Reuníramos conhecimentos que manteriam os cientistas da Terra ocupados durante gerações, e que iriam revolucionar quase todas as idéias concernentes à natureza do universo à nossa volta. Sim, nossos cinco meses na Lua foram bem aproveitados e nós poderíamos voltar para receber boas-vindas num grau a que poucos heróis já tiveram direito.

      Mas ainda restava um bocado de arrumação para ser feita. Os instrumentos que haviam sido espalhados sobre a paisagem lunar ainda estavam registrando e uma boa parte da informação que reuniam não poderia ser transmitida de modo automático para a Terra. Não havia necessidade de que todas as três expedições permanecessem na Lua até o último instante; apenas uma seria suficiente para terminar o trabalho. Mas quem iria se apresentar para bancar o zelador enquanto os outros voltavam para receber as glórias? Era um problema difícil, mas que teria que ser decidido logo.

      No que se refere aos suprimentos, tínhamos pouco com que nos preocupar. Os foguetes-cargueiros automáticos continuariam a nos fornecer ar, comida e água por quanto tempo desejássemos ficar na Lua. Estávamos todos com boa saúde, embora um pouco cansados. Nenhum dos problemas psicológicos previstos se manifestara, talvez devido ao fato de estarmos todos tão ocupados com tarefas tão absorventes que não nos sobrara tempo para ficarmos malucos. Mas é claro que estávamos todos ansiosos por voltar à Terra e rever nossas famílias.

      A primeira mudança nos planos nos foi imposta quando a Ziolkovski ficou fora de ação devido ao solo, que cedeu subitamente por baixo de uma de suas pernas de pouso. A nave conseguiu permanecer de pé, mas o casco ficou um bocado torcido e a cabine pressurizada apresentou dúzias de vazamentos. Houve muito debate quanto a reparos no local, mas se acabou decidindo que era demasiado arriscado tentar decolar com a nave naquelas condições. Os russos não tinham outra alternativa senão pegar carona de volta na Goddard e na Endeavour. Usando o combustível da Ziolkovski, nossas naves seriam capazes de transportar essa carga extra. A viagem de retorno seria feita com muito aperto e desconforto para todos, que teriam que comer e dormir em turnos.

      A disputa quanto à prioridade no retorno à Terra ficou, assim, para ser decidida entre a nave americana e a nave inglesa. Durante aquelas últimas semanas, enquanto o trabalho da expedição chegava ao final, o relacionamento entre mim e o comandante Vandenburg ficou de certo modo tenso. Cheguei a me perguntar se não deveríamos resolver a questão tirando a sorte.

      Outro problema também exigia minha atenção: a questão da disciplina da tripulação. Talvez essa seja uma expressão muito exagerada. Não quero que pensem que algum dia houve probabilidade de motim, mas todos os meus homens pareciam agora um tanto retraídos e podiam ser encontrados, quando fora de serviço, escrevendo furiosamente pelos cantos. Eu sabia ao certo o que estava acontecendo porque também estava envolvido. Não havia um ser humano na Lua que não estivesse contratado com exclusividade por algum jornal ou revista e estávamos todos preocupados com os prazos-limites que se aproximavam. O radio-teletipo para a Terra mantinha-se em operação contínua, enviando dezenas de milhares de palavras por dia, enquanto quantidades maiores de prosa imorredoura eram ditadas através dos circuitos de voz.

      Foi o professor Williams, nosso astrônomo, de mente muito prática, que chegou junto de mim um dia com a resposta para o problema.

      - Comandante - disse ele equilibrando-se precariamente sobre a mesa superdesmontável que eu usava como escrivaninha dentro do iglu -, não há nenhuma razão técnica pela qual tenhamos que voltar à Terra em primeiro lugar, não é mesmo?

      - Não - respondi. - É uma questão de fama, fortuna e de ver nossas famílias de novo. Mas admito que essas não são razões técnicas. Poderíamos permanecer aqui mais um ano se a Terra continuasse a enviar os suprimentos. Mas, se deseja sugerir isso, terei grande prazer em estrangulá-lo.

      - Não é tão ruim assim. Uma vez que o corpo principal da expedição tenha retornado, a equipe que permanecer poderá seguir dentro de duas ou três semanas no máximo. E ela terá um bocado de crédito por auto-sacrifício, modéstia e virtudes similares.

      - Que será uma compensação muito pequena por chegar em casa em segundo lugar.

      - Certo, precisamos de mais alguma coisa para fazer com que valha a pena. Uma recompensa mais material.

      - Concordo. O que você sugere?

      Williams apontou para o calendário, preso na parede à minha frente, em meio aos dois posters de garotas que havíamos surrupiado da Goddard. A extensão de nossa permanência era indicada pelos dias riscados com tinta vermelha. Um grande ponto de interrogação nas próximas duas semanas mostrava quando a primeira nave estaria voltando à Terra.

      - Aí está a sua resposta - disse ele. - Se nós voltarmos depois, percebe o que vai acontecer? Eu lhe digo.

      Ele o fez e me senti um idiota por não haver pensado nisso antes.

      No dia seguinte expliquei minha decisão a Vandenburg e Krasnin.

      - Ficaremos para trás e faremos a arrumação das coisas. É uma questão de senso comum. A Goddard é uma nave muito maior que a nossa e pode carregar mais quatro pessoas, enquanto só podemos levar mais duas e, mesmo assim, teremos que nos espremer. Se você for em primeiro lugar, Van, vai evitar que um monte de gente se aflija por mais tempo do que o necessário.

      - Isso é muita generosidade sua - respondeu Vandenburg. - Não vou ocultar que fico feliz por voltar para casa. E é bem lógico, admito, agora que a Ziolkovski se encontra fora de combate. Ainda assim, significa um grande sacrifício de sua parte e eu não gostaria de tirar vantagem disso.

      Fiz um amplo aceno com a mão.

      - Não se preocupe - respondi. - Desde que os seus rapazes não fiquem com todo o crédito, nós nos aguentaremos aqui. Afinal, teremos o show todo só para nós quando vocês estiverem de volta à Terra.

      Krasnin estava olhando para mim com uma expressão um tanto perspicaz e achei difícil corresponder ao seu olhar.

      - Eu detesto parecer cínico - disse ele. - Mas aprendi a desconfiar de gente que começa a fazer grandes favores sem boas razões. E, com franqueza, não acho que as razões que deu sejam suficientemente boas. Não teria mais alguma coisa na manga, teria?

      - Ah, muito bem - suspirei -, esperava conseguir um pequeno crédito, mas percebo que não adianta tentar convencer alguém da pureza de meus motivos. Tenho uma razão e vocês podem muito bem conhecê-la, mas, por favor, não espalhem isso. Odiaria deixar o pessoal lá na Terra desiludido. Eles ainda pensam em nós como nobres e heróicos caçadores de conhecimento; vamos deixar assim para o bem de todos.

      Peguei então o calendário e disse a Vandenburg e Krasnin o que Williams já me havia explicado. Eles me ouviram, primeiro com ceticismo e depois com crescente simpatia.

      - Não fazia idéia que fosse tão mau assim - disse Vandenburg, afinal.

      - Os americanos nunca acham - respondi tristemente. - De qualquer modo, é assim que tem sido há mais de meio século e parece que não vai melhorar nem um pouco. Concordam com minha sugestão?

      - É claro, é ótimo para nós, de qualquer modo. Até que a próxima expedição esteja preparada, a Lua é toda de vocês.

      Lembrei-me dessa frase duas semanas depois, enquanto observava a Goddard decolando em direção à Terra distante. Ficou solitário quando os americanos e os russos, com exceção de dois, partiram. Invejávamos a recepção que receberam e observávamos na tevê os desfiles triunfais pelas ruas de Moscou e Nova Iorque. Então voltávamos ao trabalho e esperávamos nossa oportunidade. Sempre que nos sentíamos deprimidos, fazíamos algumas pequenas somas em pedaços de papel e de imediato recuperávamos a alegria.

      As cruzes vermelhas continuavam a ser assinaladas no calendário enquanto os curtos dias terrestres se escoavam... dias que pareciam ter pouca conexão com o lento ciclo do tempo lunar. Afinal, estávamos prontos: todas as leituras de instrumentos haviam sido feitas, todas as amostras e espécimes encontravam-se seguramente embalados a bordo da nave. Os motores rugiram de volta à vida, fornecendo-nos por um momento o peso que sentiríamos de novo ao voltar à gravidade terrestre. Abaixo de nós, a acidentada paisagem lunar, que chegáramos a conhecer tão bem, afastou-se rapidamente. Dentro de segundos, não podíamos ver mais qualquer indício dos instrumentos e construções que tão laboriosamente havíamos erguido e que os futuros exploradores voltariam a utilizar um dia.

      A viagem de volta se iniciara. Retornamos à Terra sem incidentes e em desconforto, reunindo-nos à Goddard, já meio desmantelada, ao lado da Estação Espacial Três, de onde fomos rapidamente embarcados para o mundo que havíamos deixado fazia sete meses.

      Sete meses. Esse, como Williams demonstrara, era o detalhe mais importante. Havíamos permanecido na Lua por mais da metade de um ano financeiro e, para todos nós, esse fora o ano mais lucrativo da vida.

      Cedo ou tarde, essa evasão interplanetária será interrompida. O Departamento do Imposto de Renda ainda está lutando galhardamente através de uma ação, mas estamos muito bem cobertos sob a Seção 57, parágrafo 8, do Decreto sobre Acumulação de Capital de 1972. Escrevemos nossos livros e artigos na Lua e, até que exista um governo lunar para nos impor taxas sobre rendimentos, vamos nos agarrar a cada centavo.

      E se a justiça acabar se voltando contra nós, bem, sempre nos restará Marte...

 

CAMPANHA PUBLICITÁRIA

      O choque produzido pela última bomba atómica ainda parecia prolongar-se quando as luzes tornaram a se acender. Por longo tempo, ninguém se mexeu. Depois, o assistente de produção disse inocentemente:

      - Bem, R. B., o que acha disso?

      R. B. ergueu-se de seu assento enquanto seus assistentes esperavam para ver para que lado o vento iria soprar. Foi então que perceberam que o charuto de R. B. se apagara. Assombroso, isso não acontecera nem mesmo na pré-estréia de E o vento levou.

      - Rapazes - disse ele extasiado -, nós temos alguma coisa aqui! Quanto foi mesmo que você disse que custou, Mike?

      - Seis milhões e meio, R. B.3

      - Ainda é barato. Vou lhes dizer uma coisa, comerei cada metro dessa película se não ultrapassar a bilheteria do Quo Vadis.

      Ele girou tão rápido quanto se poderia esperar de uma pessoa com seu volume e olhou para um homenzinho agachado no assento, lá no fundo da sala de projeção.

      - Acorda, Joe! A Terra está salva! Você já viu todos esses filmes espaciais. Como é que este aqui se compara com os anteriores?

      Joe recuperou a fala com um esforço óbvio.

      - Não existe comparação - disse ele. – Tem todo o suspense do Monstro do Ártico sem aquele terrível anticlímax no final, quando se descobre que o monstro é humano. O único filme que chega perto do nosso é Guerra dos mundos. Alguns dos seus efeitos eram quase tão bons quanto os nossos, mas é claro que George Pal não tinha a terceira dimensão. E evidentemente isso faz uma grande diferença! Quando a Golden Gate veio abaixo, pensei que aquela pilastra ia me atingir!

      - O pedaço que gostei mais - opinou Tony Auerbach, da publicidade - é quando o prédio do Empire State se parte ao meio. Vocês não acham que os proprietários poderão nos processar, acham?

      - É claro que não. Ninguém espera que prédio algum possa ficar de pé ante os... como é mesmo que o roteiro os chama? Demolidores de cidades. E além do mais arrasamos com o resto de Nova Iorque também. Puxa, aquela cena em que o teto do túnel Holland cede estava impressionante. Da próxima vez tomarei a barca.

      - Sim, estava tudo muito bem-feito, quase bem demais. Mas o que realmente me deixou boquiaberto foram aquelas criaturas do espaço. A animação estava perfeita. Como foi que fizeram, Mike?

      - Segredo profissional - respondeu o orgulhoso produtor. - Ainda assim, vou contar a vocês. A maior parte daquele material é genuíno.

      - O quê?

      - Oh, não me entenda mal! Não estivemos filmando em Sírius B. Mas eles desenvolveram uma microcâmara lá na Caltech e nós a usamos para filmar as aranhas em ação. Editamos as melhores tomadas e acho que vocês terão dificuldade em separar o que é microfotografia do que foi filmado em escala normal, no estúdio. Agora entende por que eu queria que os alienígenas fossem insetos, e não polvos, como o roteiro pedia no início?

      - Há um bom ângulo publicitário aqui - comentou Tony. - Mas uma coisa me preocupa. Aquela cena em que os monstros seqüestram a Gloria. Vocês não acham que a censura vai... quero dizer, do modo como fizeram, até parece que...

      - Ora, deixe de se preocupar! Isso é o que as pessoas devem pensar. De qualquer modo, nós deixamos bem claro na seqüência seguinte que "eles" realmente querem dissecá-la; portanto, tudo bem.

      - Vai ser um alvoroço! - regozijou-se R. B. ávido, o olhar distante, como se já pudesse ouvir a avalanche de dólares derramando-se nas registradoras.

      - Olhem, vamos destinar mais um milhão para a publicidade! Eu até posso ver os cartazes. Anote tudo, Tony: OLHEM PARA O CÉU! OS HABITANTES DE SIRIUS ESTÃO CHEGANDO! E faremos milhares de modelos de dar corda. Pode imaginá-los correndo com suas pernas peludas! As pessoas adoram ser assustadas e nós vamos aterrorizá-las. Quando tivermos terminado, ninguém mais será capaz de olhar para o céu sem sentir arrepios! Deixo isso a cargo de vocês, rapazes. Este filme vai fazer história!

      Ele estava certo. Monstros do espaço atingiu o público dois meses depois. Uma semana após a première simultânea em Londres e Nova Iorque, não havia ninguém no mundo ocidental que ainda não tivesse visto os posters anunciando: CUIDADO, TERRA! Ou que não houvesse estremecido ante as fotos daquelas coisas horríveis e peludas, avançando ao longo de uma Quinta Avenida deserta, sobre pernas finas e multiarticuladas. Dirigíveis habilmente disfarçados de espaçonaves cruzavam o céu confundindo os pilotos que os encontravam, enquanto os modelos mecânicos dos invasores

estavam por toda parte, assustando velhinhas até o pânico.

      A campanha publicitária foi brilhante e o filme, sem dúvida, teria permanecido meses em cartaz, não fosse uma coincidência tão desastrosa quanto imprevisível. Enquanto o número de pessoas desmaiando a cada projeção ainda era notícia nos jornais, os céus da Terra de súbito se encheram de longas e esguias sombras a deslizarem com rapidez através das nuvens.

 

      O príncipe Zervashni era de boa índole, mas inclinado a ser um tanto impetuoso, uma fraqueza bem conhecida de sua raça. Não havia razões que fizessem supor que sua atual missão, concernente a um contato pacífico com o planeta Terra, apresentasse qualquer problema. A técnica correta de aproximação fora testada através de muitos milhares de anos, enquanto o Terceiro Império Galático aos poucos expandia suas fronteiras, absorvendo planeta após planeta, sol após sol. Era raro ocorrer algum problema. Raças realmente inteligentes sempre podem cooperar, uma vez superado o choque inicial, ao aprenderem que não estão sozinhas no universo.

      Era verdade que a humanidade emergira de seu primitivo estágio guerreiro há apenas uma geração, mas isso não preocupava o assessor-chefe do príncipe Zervashni: Sigisnin II, professor de Astropolítica.

      - É uma cultura típica da classe E - disse o professor. - Tecnicamente avançada, embora um tanto atrasada em termos morais. Eles já estão acostumados ao conceito de vôo espacial e logo se habituarão conosco também. As precauções normais serão suficientes até que tenhamos conquistado sua confiança.

      - Muito bem - disse o príncipe. - Diga aos enviados para partirem de imediato.

      Infelizmente, as "precauções normais" não levavam em consideração a campanha publicitária de Tony Auerbach, que atingira agora novos cumes de xenofobia interplanetária. Os embaixadores pousaram no Central Park de Nova Iorque no mesmo dia em que um eminente astrônomo (em apuros financeiros e, portanto, sujeito a influências) anunciava em uma entrevista muito divulgada que qualquer visitante do espaço, com toda possibilidade, seria inamistoso.

      Os infortunados embaixadores, dirigindo-se ao prédio das Nações Unidas, chegaram até a Rua 60, e não mais ao sul, antes de encontrarem a multidão. O encontro foi bem desigual e os cientistas do Museu de História Natural ficaram muito aborrecidos por ter sobrado tão pouco para que examinassem.

      O príncipe Zervashni tentou uma vez mais, no outro lado do planeta, mas as notícias haviam chegado primeiro. Dessa vez, os embaixadores estavam armados e venderam bem caro suas peles antes de serem sobrepujados em número. Ainda assim, só quando as bombas e foguetes começaram a subir em direção à sua frota é que o príncipe afinal perdeu a calma e decidiu tomar medidas drásticas.

      Estava tudo acabado em 20 minutos e de modo bem indolor. Então, o príncipe voltou-se para seu assessor e disse, com considerável calma:

      - Está acabado! E agora? Pode me dizer exatamente o que saiu errado?

      Sigisnin II uniu suas dúzias de dedos flexíveis em aguda aflição. Não era apenas o espetáculo da Terra esterilizada que o perturbava, embora, como cientista, a destruição de tão lindos espécimes fosse sempre uma grande tragédia. Também era frustrante a demolição de suas teorias e, com elas, de sua reputação.

      - Eu não entendo - lamentou ele. - É claro que raças desse nível cultural costumam mostrar-se desconfiadas e nervosas quando do primeiro contato. Mas nunca haviam recebido extraterrestres antes, portanto não havia razão para serem hostis.

      - Hostis! Eles eram demônios! Acho que eram todos loucos.

      O príncipe olhou para seu capitão, uma criatura trípode que parecia uma bola de lã equilibrada sobre três agulhas de tricô.

      - A frota está reunida?

      - Sim, senhor.

      - Então vamos retornar à base na velocidade ideal. Este planeta me deprime.

      Na Terra morta e silenciosa, os cartazes ainda gritavam seus avisos numa centena de tapumes. As malignas formas de insetos, mostradas a se derramarem dos céus, não tinham qualquer semelhança com o príncipe Zervashni que, à parte seus quatro olhos, poderia ser confundido com um urso panda de pêlo arroxeado. E que além do mais viera de Rigel, não de Sírius.

      Mas, evidentemente, era tarde demais para esse tipo de explicações.

 

TODO O TEMPO DO MUNDO

      Quando ouviu a suave batida na porta, Robert Ashton verificou a sala num movimento rápido, automático. Sua austera respeitabilidade deixou-o satisfeito e deveria tranquilizar qualquer visitante. Não que ele tivesse razões para esperar a polícia, mas não havia necessidade de correr riscos.

      - Entre! - disse ele, parando apenas para agarrar os Diálogos de Platão na prateleira ao lado. Talvez fosse um gesto um tanto pomposo, mas sempre impressionava os clientes.

      A porta se abriu devagar; a princípio, Ashton continuou com sua leitura atenta, sem se preocupar em levantar os olhos. Sentiu uma leve aceleração no pulso e uma pequena, até excitante, constrição no peito. É claro que não poderia ser um tira, alguém o teria prevenido. Ainda assim, qualquer visitante inesperado era pouco comum e, portanto, potencialmente perigoso.

      Ashton colocou o livro sobre a mesa, olhou em direção à porta e falou com um tom de neutralidade:

      - Em que lhe posso ser útil?

      Não se levantou. Tais cortesias pertenciam a um passado que enterrara há muito tempo. Além disso, o visitante era uma mulher e, nos círculos agora freqüentados por ele, as mulheres eram acostumadas a receber jóias, roupas e dinheiro, mas nunca respeito.

      Mas havia alguma coisa nessa visitante que aos poucos o fez ficar de pé. Ela não era apenas bonita; possuía uma autoridade que se revelava naturalmente no porte e na atitude, e que a transportava para uma categoria bem distante das criaturas extravagantes que ele costumava encontrar no curso normal de seus negócios. Havia um cérebro e um propósito por trás daqueles olhos calmos e observadores. Um cérebro, suspeitava Ashton, equivalente ao seu.

      Não sabia que a estava subestimando de modo grosseiro.

      - Sr. Ashton - começou ela -, não vamos perder tempo. Sei quem é e tenho um trabalho para o senhor. Aqui estão as minhas credenciais.

      Abriu uma bolsa grande e elegante e tirou um grosso maço de notas.

      - Pode considerar isto - disse ela - como uma amostra.

      Ashton apanhou o maço quando ela o atirou negligentemente em sua direção. Era a maior soma de dinheiro que já segurara em sua vida. Pelo menos 100 notas de cinco libras, todas novas e com os números em série. Sentiu-as nos dedos. Se não fossem autênticas, eram pelo menos tão boas que a diferença não teria importância na prática.

      Passou o polegar ao longo da borda do maço, como se tateasse um bolo de cartas marcadas, e disse, pensativo:

      - Gostaria de saber como as conseguiu. Se não são falsas, então devem ser roubadas, e vai ser um problema passá-las adiante.

      - Elas são genuínas. Há pouco tempo se encontravam no Banco da Inglaterra. Mas, se não servem para você, pode jogá-las no fogo. Só quis demonstrar que falo sério.

      - Prossiga. - Fez um gesto em direção à única poltrona e sentou-se na borda da mesa.

      Ela tirou um maço de papéis de sua bolsa espaçosa e o estendeu para que ele pegasse.

      - Posso lhe pagar qualquer soma que deseje se conseguir as peças aí anotadas e as trouxer para mim no lugar e ocasião que eu determinar. E, o que é mais importante: vou lhe dar garantias de que poderá executar os roubos sem qualquer risco pessoal.

      Ashton olhou para a lista e suspirou. A mulher era louca. Ainda assim, era melhor agradá-la. Poderia haver mais dinheiro onde ela obtivera aquele.

      - Percebo - disse ele com calma - que todos esses itens se encontram no Museu Britânico e que, em sua maioria, são inestimáveis. Com isso quero dizer que não podem ser comprados nem vendidos.

      - Eu não desejo vendê-los. Sou uma colecionadora.

      - Assim parece!  Quanto está preparada para pagar por essas aquisições?

      - Faça o preço.

      Houve um curto silêncio, enquanto Ashton pesava as possibilidades. Tinha um certo orgulho profissional quanto ao seu trabalho, mas havia coisas que nenhuma soma de dinheiro poderia tornar realizáveis. Ainda assim, seria divertido ver até que ponto os lances poderiam chegar.

      Olhou outra vez para a lista.

      - Eu calculo que um milhão seria um preço razoável para este lote - disse ele ironicamente.

      - Acho que não está me levando a sério. Com os seus contatos, o senhor deve ser capaz de negociar um destes.

      Houve um lampejo de luz enquanto alguma coisa cintilava no ar. Ashton pegou o colar antes que ele caísse no chão e foi incapaz de evitar uma exclamação de espanto. Uma fortuna cintilava entre seus dedos. O diamante central era o maior que já vira e devia ser uma das jóias mais famosas do mundo.

      A visitante parecia completamente indiferente enquanto ele colocava o colar no bolso. Ashton estava extremamente perturbado; percebia que o desinteresse da mulher não era representação. Para ela, aquela jóia fabulosa não valia mais que um torrão de açúcar. Isso era loucura em escala inimaginável.

      - Presumindo que possa entregar o dinheiro - indagou -, como imagina que seja fisicamente possível fazer o que pede? Alguém poderia roubar um único item dessa lista, mas dentro de umas horas o museu estaria cheio de policiais.

      Já com uma fortuna no bolso, podia dar-se ao luxo de ser franco. Além disso, estava curioso por aprender mais a respeito de sua fantástica visitante.

      Ela sorriu com certa tristeza, como se estivesse se adaptando a uma criança retardada.

      - Se eu lhe mostrar como - disse, com ansiedade -, vai fazer o serviço?

      - Sim, por um milhão!

      - Reparou em alguma coisa estranha desde que entrei? Não está tudo... muito quieto?

      Ashton escutou com atenção. Por Deus, ela estava certa! Sua sala nunca era tão silenciosa, nem mesmo à noite. Sempre havia um vento soprando sobre o telhado. Para onde ele fora agora? O distante rumor do tráfego cessara. Cinco minutos atrás, estivera amaldiçoando as locomotivas que trocavam de linha no pátio de manobras do terminal ferroviário. Que acontecera com elas?

      - Vá até a janela.

      Obedeceu à ordem, afastando as cortinas sujas com dedos que tremiam ligeiramente, apesar de seu esforço para controlá-los. Então relaxou. A rua estava totalmente vazia, como devia estar a essa hora da manhã. Não havia tráfego e, portanto, isso explicava a ausência de som. Então olhou ao longo da fileira de casas sujas, em direção ao pátio de manobras.

      A visitante sorriu enquanto ele se enrijecia com o choque.

      - Diga-me o que está vendo, Sr. Ashton.

      Voltou-se devagar, o rosto pálido, os músculos da garganta se contraindo.

      -  Quem é você? - balbuciou. - Uma bruxa?

      - Não seja tolo. Existe uma explicação simples. Não foi o mundo que mudou, foi você.

      Ashton olhou outra vez para aquela incrível locomotiva, com uma nuvem de vapor imóvel acima dela, como se fosse de algodão. Percebia agora que as nuvens também estavam paradas quando deveriam deslizar pelo céu. À sua volta, em toda parte, havia a imobilidade antinatural de uma fotografia, a vívida irrealidade de uma cena vislumbrada durante o clarão de um relâmpago.

      -  Você é inteligente o bastante para notar o que está acontecendo, apesar de não compreender como é feito. Sua escala de tempo foi alterada: um minuto lá fora, no mundo exterior, equivaleria a um ano dentro desta sala.

      Abriu a bolsa de novo e dessa vez tirou o que parecia um bracelete de metal prateado, com uma série de botões e mostradores incrustados.

      -  Pode chamar isto aqui de gerador pessoal - disse ela. - Com isto preso ao seu braço, você se tornará invencível. Poderá ir e vir sem qualquer impedimento. Poderá roubar tudo o que existe naquela lista e trazer para, mim antes que os guardas do museu possam piscar um olho. Quando tiver terminado, poderá estar a quilômetros de distância antes de desligar o campo e reentrar no mundo normal. Mas agora escute com atenção e faça exatamente o que eu disser. Esse campo tem um raio de aproximadamente dois metros; assim, você deve manter, no mínimo, essa distância de qualquer outra pessoa. Segundo: não deverá desligá-lo até que tenha completado a sua tarefa e recebido o pagamento. Isso é muito importante! Agora, o plano que arquitetei é o seguinte...

     

      Nenhum criminoso na história do mundo jamais possuíra tal poder. Era inebriante e Ashton não sabia se chegaria a se acostumar com aquilo. Deixou de se preocupar com explicações, pelo menos até que o serviço estivesse feito e houvesse recebido seu pagamento. Então talvez deixasse a Inglaterra para gozar uma aposentadoria bem merecida.

      A visitante partira alguns minutos antes, mas quando ele desceu à rua a cena continuava inalterada. Embora estivesse preparado para o que via, a sensação ainda era enervante. Ashton sentia vontade de correr, como se não fosse possível perdurar tal situação, como se tivesse que completar o trabalho antes que a engenhoca esgotasse seu combustível. Embora isso, como ela havia assegurado, fosse impossível.

      Na High Street, andou mais devagar, observando o tráfego imobilizado, os pedestres paralisados. Teve cuidado, conforme havia sido advertido, para não se aproximar muito de ninguém que estivesse perto de seu campo. Como as pessoas pareciam ridículas quando vistas desse modo, desprovidas da graça que o movimento lhes proporciona, as bocas semi-abertas em tolas caretas!

      Ter de buscar ajuda era contra sua índole, mas algumas partes do trabalho pareciam grandes demais para que executasse sozinho. Além do mais, poderia pagar com liberalidade e nem se preocupar com isso. A principal dificuldade, percebeu Ashton, seria encontrar alguém que fosse suficientemente inteligente para não se assustar ou tão estúpido que não se surpreendesse com nada. Decidiu tentar a primeira possibilidade.

      O estabelecimento de Tony Marchetti ficava numa rua lateral, tão próximo ao distrito policial que se podia dizer que ele realmente levava demasiado a sério esse negócio de camuflagem. Ao passar diante da entrada, Ashton teve um vislumbre do sargento de serviço, sentado ante sua mesa, e resistiu à tentação de ir lá dentro misturar um pouco de prazer aos negócios. Mas esse tipo de coisa poderia esperar até mais tarde.

      A porta do gabinete de Tony abriu na sua cara enquanto ele se aproximava; era um acontecimento tão natural num mundo onde nada mais era normal, que Asthon levou um instante para perceber as implicações. O gerador teria falhado? Olhou rapidamente para a rua e foi tranqüilizado pelo cenário congelado, lá atrás.

      - Ora, é Bob Ashton! - disse uma voz familiar. - Que surpresa encontrá-lo de pé tão cedo. Está usando um bracelete curioso, hein? Eu pensei que possuísse o único.

      - Alô, Aram - respondeu Ashton -, parece que há muita coisa acontecendo que nenhum de nós sabe. Já contratou o Tony ou ele ainda está livre?

      - Sinto muito, mas temos um servicinho que vai mantê-lo ocupado por algum tempo.

      - Não me diga!  É a Galeria Nacional ou o Tate?

      Aram Albenkian alisou o elegante cavanhaque.

      - Quem foi que lhe disse?

      - Ninguém, mas afinal  você é o marchand mais desonesto do ramo e eu  estou começando a compreender o que está acontecendo. Por acaso uma morena alta e muito bonita não lhe deu esse bracelete junto com uma lista de compras?

      - Não vejo por que deveria lhe dizer, mas a resposta é não. Foi um homem.

      Ashton sentiu uma surpresa momentânea, depois encolheu os ombros.

      - Devia ter adivinhado que haveria mais de um deles. Gostaria de saber quem está por trás disso.

      - Tem alguma teoria? - indagou Albenkian cautelosamente.

      Ashton decidiu que valeria a pena arriscar-se a desperdiçar algumas informações para testar as reações do outro.

      - É óbvio que não estão interessados em dinheiro. Eles têm todo o dinheiro de que precisam e podem conseguir mais com este negócio. A mulher que me procurou disse que era uma colecionadora. Tomei como piada, mas agora percebo que falava a sério.

      - Então por que nos meteram no jogo? O que os impede de realizar todo o trabalho sozinhos? - indagou Albenkian.

      - Talvez estejam assustados. Ou talvez precisem do nosso... ah... conhecimento especializado. Alguns dos itens da minha lista encontram-se muito bem embalados. Minha teoria é que são agentes de algum milionário maluco.

      Era uma teoria que não se sustentava e Ashton sabia disso. Mas queria ver como Albenkian faria para derrubá-la.

      - Meu caro Ashton - disse o outro, impaciente, ao mesmo tempo em que erguia o pulso -, como explica esta coisinha aqui? Não conheço nada de ciência, mas sei que isto está além dos sonhos mais delirantes da nossa tecnologia. Isso só deixa uma conclusão.

      - Prossiga.

      - Esta gente vem... de algum outro lugar. Nosso mundo está sendo sistematicamente despojado de seus tesouros. Conhece todo esse negócio que se lê a respeito de foguetes e espaçonaves? Pois bem, alguém mais desenvolveu essas coisas primeiro.

      Ashton não riu. A teoria não era mais fantástica do que os fatos.

      - Quem quer que eles sejam - disse ele -, parece que sabem se movimentar muito bem por aqui. Não sei quantas equipes eles têm. Talvez o Louvre e o Prado estejam sendo examinados neste exato momento. O mundo vai sofrer um choque antes que o dia termine.

      Despediram-se amigavelmente, nenhum dos dois confidenciando qualquer detalhe de real importância a respeito de suas tarefas. Por um breve momento, Ashton pensou em tentar subornar o Tony, mas não havia razão para hostilizar Albenkian. Steve Regan faria o trabalho. Isso significava caminhar mais de um quilômetro, de vez que qualquer tipo de transporte estava fora de cogitação. Morreria de velhice antes que o ônibus completasse o trajeto! E não tinha certeza do que aconteceria se tentasse dirigir um carro enquanto o campo estivesse operando. Além do mais, fora advertido para não tentar qualquer experiência.

      Surpreendeu-o que até mesmo um comprovado imbecil como Steve pudesse aceitar com simplicidade a existência do acelerador. Devia haver algum valor, afinal, nas histórias em quadrinhos que constituíam sua única leitura. Após uma explicação muito resumida, Steve afivelou a pulseira sobressalente que, para surpresa de Ashton, a visitante também entregara sem maiores comentários. Partiram então juntos na longa caminhada até o museu.

      Ashton, ou sua cliente, pensara em tudo. Pararam uma vez para descansar em um banco de jardim e comer alguns sanduíches, enquanto recuperavam o fôlego. Quando afinal chegaram ao museu, nenhum dos dois se sentia exausto com o exercício incomum.

      Passaram juntos pelos portões - incapazes de evitar, a despeito da lógica, a conversa em sussurros - e galgaram os amplos degraus de pedra até o saguão de entrada. Ashton conhecia o caminho perfeitamente bem. Com excêntrico senso de humor, exibiu seu cartão na sala de leitura, enquanto passavam a respeitável distância dos funcionários convertidos em estátuas. Ocorreu-lhe na ocasião que os ocupantes da grande câmara tinham, em sua maior parte, a mesma aparência de sempre, mesmo com o efeito do acelerador.

      Coletar os livros indicados foi um trabalho simples e mecânico, mas tedioso. Haviam sido escolhidos, ao que parecia, tanto por sua beleza como trabalhos de arte quanto por seu conteúdo literário. A seleção fora feita por alguém que conhecia seu trabalho. Teriam eles feito isso sozinhos ou teriam subornado especialistas, como estavam subornando Ashton e os outros? Imaginou se jamais chegaria a vislumbrar todas as ramificações da trama.

      Uma destruição considerável de vidros e painéis foi necessária, mas Ashton teve o cuidado de não danificar nenhum livro, nem mesmo os que não queria. Quando reuniam volumes em número suficiente para formar uma carga razoável, Steve os levava para o jardim e os empilhava sobre as pedras do pavimento, até formar uma pequena pirâmide.

      Não importava que fossem deixados, durante curtos períodos, fora do campo do acelerador. Ninguém notaria seu momentâneo lampejo de existência do mundo normal.

      Estavam na biblioteca há duas horas de seu tempo quando se interromperam para outro lanche, antes de passar à tarefa seguinte. No caminho, Ashton parou para um pequeno negócio particular. Houve um tilintar de vidro enquanto o pequeno estojo, colocado em solitário esplendor, entregava seu tesouro. Depois, o manuscrito de Alice encontrou-se seguramente acomodado no bolso de Ashton.

      Entre antigüidades não se sentia tão seguro. Havia algumas amostras para serem retiradas de cada uma das galerias e, em algumas ocasiões, era difícil compreender as razões da escolha. Lembrou-se de novo das palavras de Albenkian: era como se essas obras de arte houvessem sido selecionadas por alguém com padrões totalmente alienígenas. Agora, com algumas exceções, ficava evidente que eles não tinham sido orientados por especialistas.

      Pela segunda vez na história, a redoma do Vaso de Portland foi espatifada. Dentro de cinco segundos, pensou Ashton, os alarmes estariam disparando por todo o museu e o prédio inteiro seria tomado pelo alvoroço. E em cinco segundos ele poderia estar a quilômetros de distância. Era um pensamento inebriante e, enquanto trabalhava com rapidez para terminar seu serviço, começou a se arrepender por ter cobrado tão pouco. Mas ainda não era tarde demais.

      Sentiu a satisfação tranqüila de um bom trabalhador ao observar Steve carregando a grande bandeja de prata do Tesouro Mildenhall para o pátio lá fora, colocando-a ao lado da pilha, agora impressionante.

      - Isso é tudo - disse. - Acertarei com você em meu escritório esta noite. Agora me dê o seu bracelete.

      Saíram pela High Holborn e escolheram uma rua lateral sossegada, onde não havia pedestres nas proximidades. Ashton soltou o fecho e se afastou do companheiro, vendo-o congelar-se na imobilidade. Steve tornara-se novamente vulnerável, movendo-se uma vez mais ao longo do fluxo do tempo, com todos os outros homens. Entretanto, estaria perdido entre as multidões de Londres antes que o alarme disparasse.

      Quando Ashton retornou ao pátio do Museu, o tesouro desaparecera. De pé, onde a pilha estivera, estava sua visitante de... quanto tempo atrás? Ainda parecia altiva e elegante, mas agora denotava um certo cansaço. Aproximou-se até seus respectivos campos se fundirem, de modo que não estivessem mais separados por um intransponível golfo de silêncio.

      - Espero que esteja satisfeita. Como removeu aquilo tudo com tanta rapidez?

      Ela tocou no bracelete em torno de seu próprio pulso e deu um sorriso cansado.

      - Temos muitos poderes além deste.

      - Então por que precisou de minha ajuda?

      - Havia razões técnicas. Era necessário separar os objetos que desejávamos da presença de outras matérias. Desse modo poderíamos colher apenas aquilo de que precisávamos sem desperdiçar nossas limitadas... como poderei chamá-las... ah... facilidades de transporte. Agora posso pegar o meu bracelete de volta? Ashton lentamente entregou aquele que estava segurando, mas não fez qualquer esforço para soltar o que usava no pulso. Poderia ser perigoso o que estava fazendo, mas ele pretendia recuar ao primeiro sinal.

      - Estou preparado para reduzir meus honorários - disse ele. - Em verdade, eu renuncio a qualquer forma de pagamento... em troca disto aqui - tocou o pulso, onde a intrincada peça de metal brilhava aos raios do Sol.

      A mulher o observava com uma expressão tão insondável quanto o sorriso da Gioconda. (Será que esse quadro, Ashton se perguntou, já se havia unido ao tesouro que juntara? Que mais eles teriam levado do Louvre?)

      - Eu não chamaria isso de redução de honorários. Todo o dinheiro do mundo não poderia comprar um desses braceletes.

      - Ou as coisas que lhe dei.

      - É bem ganancioso, Sr. Ashton. Sabe que com um acelerador desses se tornaria dono do mundo.

      - E daí? Vocês têm mais algum interesse em nosso planeta, agora que pegaram tudo de que precisam?

      Houve uma pausa. Inesperadamente, ela sorriu.

      - Então já deduziu que não pertenço ao seu mundo.

      - Sim. Sei que possui outros agentes além de mim. Você veio de Marte? Ou não pode me dizer?

      - Estou muito disposta a lhe contar. Mas você pode não gostar da história.

      Ashton olhou-a desconfiado. Que pretendia dizer com aquilo? Inconsciente do gesto, colocou o pulso por trás do corpo, protegendo o bracelete.

      - Não, não sou de Marte nem de qualquer outro planeta de que tenha ouvido falar. Você não entenderia o que eu sou. Mas posso lhe dizer isto: sou do futuro.

      - Do futuro? Isso é ridículo!

      - Verdade? Gostaria de saber por quê.

      - Se esse tipo de coisa fosse possível, nossa história passada estaria repleta de viajantes do tempo. Além do mais implicaria uma reductio ad absurdum. Ir ao passado mudaria o presente e produziria todo tipo de paradoxos.

      - São bons argumentos, talvez não tão originais quanto supõe. De qualquer modo, só refutam a possibilidade da viagem no tempo em geral, não no caso muito especial que nos interessa agora.

      - E o que ele tem de específico?

      - Em ocasiões muito raras e através da liberação de uma quantidade imensa de energia, é possível produzir uma... singularidade... no tempo. Durante a fração de segundo em que ocorre essa singularidade, o passado se torna acessível ao futuro, embora apenas de modo restrito. Podemos enviar nossas mentes até vocês, mas não nossos corpos.

      - Quer dizer - exclamou Ashton - que o corpo que estou vendo foi tomado por empréstimo?

      - Oh, paguei por ele, como estou lhe pagando. A proprietária concordou com os termos. Somos muito conscienciosos nessas questões.

      Ashton pensava com rapidez. Se essa história fosse verdadeira, isso lhe daria uma vantagem inegável.

      - Quer dizer que vocês não possuem controle direto sobre a matéria. Precisam agir através de agentes humanos?

      - Sim. Até mesmo esses braceletes foram feitos aqui, sob nosso controle mental.

      Estava explicando tudo com muita rapidez, revelando todas as suas fraquezas. Um sinal de aviso começou a piscar no fundo da mente de Ashton, mas já se comprometera demasiado para recuar agora.

      - Então parece - disse ele com lentidão - que não pode me forçar a lhe devolver este bracelete.

      - Isso é perfeitamente correto.

      - E é tudo o que queria saber.

      Ela estava sorrindo de novo, e havia algo naquele sorriso que o gelava até a medula.

      - Não somos cruéis ou vingativos, Sr. Ashton - disse ela com tranqüilidade. - O que vou fazer agora se apóia unicamente no meu senso de justiça. Pediu o bracelete, pode ficar com ele. Mas agora devo lhe dizer qual a utilidade que ele terá.

      Por um breve instante, Ashton sentiu o impulso de devolver o acelerador. Ela deve ter adivinhado seus pensamentos.

      - Não, é tarde demais agora. Insisto para que fique com ele. E posso lhe assegurar quanto a um aspecto: não vai se gastar. Vai durar - novamente o sorriso enigmático - pelo resto de sua vida. Importa-se se dermos uma caminhada, Sr. Ashton? Já terminei o meu trabalho aqui e gostaria de ter um último vislumbre de seu mundo antes de deixá-lo para sempre.

      Ela virou-se na direção dos portões de ferro e não esperou pela resposta. Tomado pela curiosidade, Ashton a seguiu.

      Caminharam em silêncio até se encontrarem em meio ao tráfego imobilizado da Tottenham Court Road. Parou por um momento, olhando para a multidão laboriosa, embora imóvel, e então suspirou.

      - Não posso deixar de sentir pena deles e do senhor. Me pergunto no que teriam se tornado.

      - Que quer dizer com isso?

      - Ainda há pouco, Sr. Ashton, o senhor disse que o futuro não pode mergulhar no passado porque isso modificaria a história. Uma observação perspicaz, mas, temo eu, irrelevante. Como vê, o seu mundo não tem mais história para ser alterada.

      Apontou para o outro lado da rua e Ashton, com rapidez, girou nos calcanhares. Não havia nada lá, exceto um jornaleiro agachado sobre sua pilha de jornais. Uma manchete estampava a incrível mensagem por entre a brisa desse mundo imóvel. Ashton leu com dificuldade as palavras toscamente impressas. SUPERBOMBA: TESTE HOJE

      A voz em seus ouvidos parecia vir de uma distância muito grande.

      - Já lhe disse que a viagem no tempo, mesmo nesta forma restrita, requer uma imensa liberação de energia... muito maior do que uma única bomba poderia liberar, Sr. Ashton. Mas aquela bomba é apenas uma espoleta...

      Ela apontou para o sólido chão sob seus pés.

      - Sabe alguma coisa sobre seu próprio planeta? Com toda probabilidade, não sabe, sua raça aprendeu muito pouco. Mas mesmo os seus cientistas já descobriram que, a 3.200 km de profundidade, a Terra possui um núcleo denso e líquido. Esse núcleo é feito de matéria comprimida e só pode existir em dois estados estáveis. Dado um certo estímulo, pode mudar de um desses estados para o outro, exatamente como uma gangorra pode virar ao toque de um dedo. Mas essa mudança, Sr. Ashton, vai liberar mais energia do que todos os terremotos que já ocorreram desde o início do mundo. Os oceanos e continentes serão lançados para o espaço e o Sol ganhará um novo cinturão de asteróides.

      "Esse cataclismo enviará seus ecos através das eras, abrindo para nós uma fração de segundo em sua época. Durante esse instante, nós estamos tentando salvar tudo o que podemos dos tesouros do seu mundo. E isso é tudo que podemos fazer. Mesmo que seus motivos tenham sido puramente egoístas e desonestos, o senhor prestou à sua raça um serviço que nunca lhe passou pela cabeça... E agora, devo retornar à nossa nave, junto às ruínas da Terra, quase 100.000 anos no futuro. Pode ficar com o bracelete.

      A partida foi instantânea. A mulher de súbito se congelou, tornando-se outra estátua na rua silenciosa. Ele estava sozinho.

      Sozinho! Ashton segurou o reluzente bracelete ante seus olhos, hipnotizado por seu intrincado acabamento e pelos poderes que ocultava. Fizera um acordo e devia mantê-lo. Podia viver por toda a extensão de sua vida, ao custo de um isolamento que nenhum outro homem jamais conhecera. Se desligasse o campo, os últimos segundos da história escoariam inexoravelmente.

      Segundos? Devia restar menos tempo do que isso. Pois percebeu que a bomba já devia ter explodido.

      Sentou-se no meio-fio e começou a pensar. Não havia razão para pânico, devia aceitar as coisas com calma, sem histeria. Afinal, ele tinha muito tempo. Todo o tempo do mundo.

 

O CASANOVA CÓSMICO

      Dessa vez eu estive fora do planeta-base cinco semanas antes que os sintomas se tornassem agudos. Na última viagem, levou apenas um mês. Não sei se a diferença se deveu à idade que avançava ou a alguma coisa que os cientistas colocaram em minhas cápsulas de comida. Ou podia ser pela simples razão de que eu estava mais ocupado. O braço da galáxia que estava explorando era densamente povoado de estrelas, separadas por apenas dois anos-luz, de modo que pouco tempo me sobrava para pensar nas garotas que deixara para trás. Assim que uma estrela era classificada e terminava a busca automática dos planetas, percebeu era hora de partir para o próximo sol. Quando os planetas apareciam, o que acontecia na proporção de um em cada dez casos, eu ficava terrivelmente ocupado por vários dias, verificando se Max, o computador eletrônico da nave, conseguira toda a informação para as suas fitas.

      Agora, entretanto, estava deixando essa região povoada do espaço e às vezes levava três dias para ir de um sol a outro. Era tempo suficiente para que o sexo invadisse a nave na ponta dos pés e as lembranças de minha última licença fizessem com que os meses que tinha pela frente parecessem demasiado vazios.

      Talvez eu tivesse me excedido lá em Diadne V, enquanto minha nave estava sendo reabastecida e eu devia estar repousando entre as missões. Todavia, um batedor-pesquisador passa 80% do seu tempo no espaço e, sendo a natureza humana o que é, deve-se esperar que compense o tempo perdido. Mas não fiz apenas isso, acumulei um considerável excesso para o futuro, embora no momento não parecesse suficiente para me fazer aguentar essa viagem.

      Primeiro, me lembrei, saudoso, fora Helene. Era loura, carinhosa e complacente, embora um pouco sem imaginação. Passamos um ótimo período juntos, até que o marido dela voltou de sua missão. Ele foi extremamente decente, mas explicou, de modo bem razoável, que agora Helene não teria tempo de sobra para outros relacionamentos. Por sorte, eu já tinha feito contato com Iris, de modo que o hiato foi desprezível.

      Íris foi demais, realmente. Mesmo agora me agito todo só de pensar nela. Quando o nosso caso terminou, pela simples razão de que um homem às vezes precisa dormir um pouco, fiquei saciado de mulher por uma semana. Então encontrei aquele tocante poema de um velho escritor terrestre chamado John Donne - vale a pena dar uma olhada se você for capaz de ler inglês primitivo -, o qual me recordou que jamais se recupera o tempo perdido.

      Fiquei tão convencido que coloquei meu uniforme de espaçonauta e dei uma volta pela praia do único oceano de Diadne V. Não houve necessidade de caminhar mais que algumas centenas de metros para localizar uma dúzia de possibilidades, ignorar várias voluntárias e por fim escolher Natalie.

      Tudo funcionou muito bem no início, até Natalie começar a implicar com a Ruth. (Ou seria a Kay?) Não posso suportar garotas que se julgam donas de um homem e assim decolei para longe, após uma cena um tanto constrangedora e bastante dispendiosa em termos de louça quebrada. Isso me deixou sem ter o que fazer durante aiguns dias, até que Cynthia surgiu para me salvar e... bem, acho que vocês já pegaram o espírito da coisa, de modo que não vou aborrecê-los com maiores detalhes.

      Portanto, essas eram as doces memórias às quais me agarrava enquanto uma estrela ia se apagando atrás de mim e a próxima brilhava adiante. Nessa viagem, eu havia deliberadamente deixado para trás todos os meus posters de garotas, após concluir, que só tornariam as coisas piores. Isso fora um erro e, sendo um bom artista, apesar de um tanto especializado, comecei a desenhar alguns de minha própria autoria. Não demorou muito e já possuía uma coleção difícil de ser igualada em qualquer planeta respeitável.

      Detestaria que pensassem que toda essa preocupação afetava minha eficiência como unidade da Pesquisa Galáctica. Só durante os longos e monótonos trajetos entre as estrelas, quando não tinha nada para fazer, exceto conversar com o computador, é que as minhas glândulas começavam a levar a melhor sobre mim. Max, meu colega eletrônico, em geral era boa companhia, mas existem algumas coisas que uma máquina é incapaz de entender. Com frequência eu feria seus sentimentos durante meus períodos de mau humor, perdendo a calma sem razão aparente.

      - Que foi que houve, Joe? - dizia Max, magoado. - Está zangado comigo porque o derrotei no xadrez de novo? Lembre-se de que o avisei disso.

      - Vá para o inferno! - esbravejava eu de volta. E então passava cinco minutos ansiosos, tentando acertar as coisas com um robô navegador que entendia tudo literalmente.

      Há dois meses fora da base e com 30 sóis e quatro sistemas solares registrados no diário de bordo, aconteceu algo que apagou todos os problemas pessoais de minha mente. O monitor de longo alcance começou a mostrar um sinal fraco, vindo de algum lugar na seção de espaço à minha frente. Consegui a localização mais precisa possível. Era uma transmissão não-modulada, em faixa muito estreita... com certeza, algum tipo de farol. Mas, que eu soubesse, nenhuma de nossas naves jamais entrara nesse canto remoto do universo. Supunha-se que eu estivesse investigando um território totalmente inexplorado.

      "É ELE", disse para mim mesmo, "o meu grande momento, o pagamento por todos os anos de solidão que passei no espaço." Adiante de mim, a uma distância desconhecida, encontrava-se outra civilização. Uma raça avançada o suficiente para possuir um híper-rádio.

      Sabia com exatidão o que devia fazer. Assim que Max confirmou minhas leituras e fez suas análises, lancei um portador de mensagens de volta à base. Se acontecesse alguma coisa comigo, a pesquisa saberia onde procurar e poderia calcular o porquê. Servia de consolação saber que, se não voltasse para casa no horário, meus amigos apareceriam em peso para apanhar os pedaços.

      Logo não havia mais dúvida quanto ao local de onde vinha o sinal e, assim, mudei o curso em direção a uma estrela amarela que parecia alinhada com as transmissões. Disse para mim mesmo que ninguém colocaria no ar uma onda tão forte, a menos que realizasse viagens espaciais. Devia estar me aproximando de uma cultura pelo menos tão avançada quanto a minha. Com tudo o que isso implicava.

      Ainda estava a uma grande distância quando comecei a chamar, com meu próprio transmissor, sem ter grandes esperanças. Para minha surpresa, houve uma reação imediata. A onda contínua logo se dividiu numa série de pulsos, repetidos seguidamente. Nem mesmo Max conseguia decifrar coisa alguma da mensagem, que devia significar: "Quem diabos é você?" - o que não constitui uma amostra de tamanho suficiente para que as máquinas tradutoras, mesmo as mais inteligentes, possam trabalhar.

      Hora após hora, o sinal crescia em intensidade e, só para deixá-los saber que ainda me encontrava nas imediações, ouvindo-os alto e em bom som, comecei a mandar de volta a mesma mensagem pelo caminho por onde viera. Foi então que tive a minha segunda grande surpresa.

      Eu esperava que eles - quem ou o que quer que fossem - mudassem para uma transmissão falada assim que me encontrasse próximo o suficiente para uma boa recepção. Foi precisamente o que fizeram. Eu não esperava era que fossem humanos e sua linguagem, uma forma inconfundível, embora para mim obscura, de inglês. Só conseguia identificar uma em cada dez palavras; as outras ou eram desconhecidas ou então distorcidas a ponto de se terem tornado irreconhecíveis.

      Deduzi a verdade quando as primeiras palavras começaram a sair do alto-falante. Não se tratava de uma raça alienígena, não-humana, mas alguma coisa quase igualmente excitante e talvez um bocado mais segura no que concerne a um batedor solitário. Acabara de estabelecer contato com uma das colónias perdidas do Primeiro Império: os pioneiros que haviam deixado a Terra nos dias iniciais da exploração interestelar, 5.000 anos atrás. Quando o império desmoronou, a maioria desses grupos isolados perecera ou mergulhara de volta no barbarismo. Aqui, ao que parecia, um deles havia sobrevivido.

      Respondi-lhes no inglês mais lento e simples que podia falar, já que 5.000 anos são um tempo demasiado longo na vida de qualquer idioma e talvez não fosse possível uma comunicação real. Eles pareciam muito excitados ante o contato - agradavelmente, pelo que eu podia julgar. Nem sempre é esse o caso. Algumas dessas culturas isoladas, abandonadas na esteira do Primeiro Império, tornaram-se violentamente xenófobas e reagem quase com histeria ao saber que não se encontram sozinhas no espaço.

      Nossas tentativas de entendimento não haviam feito muito progresso quando apareceu um novo fator que de súbito modificou minha perspectiva. Uma voz de mulher apareceu no alto-falante.

      Era a mais bela voz que já ouvira e, mesmo sem aquelas semanas solitárias no espaço, creio que teria me apaixonado por ela de imediato. Profunda, mas mesmo assim completamente feminina, com algo de cálido, acariciante, que parecia arrebatar todos os meus sentidos. Eu estava tão aturdido que levei vários minutos antes de perceber o que minha invisível sedutora estava dizendo. Ela falava um inglês do qual apenas metade era compreensível.

      Para encurtar esta pequena história, posso dizer que não levei muito tempo para aprender que o nome dela era Liala, e que ela era a única filóloga do planeta que se especializara em inglês primitivo. Assim que foi estabelecido o contato com a minha nave, ela foi chamada para realizar a tradução. A sorte, assim parecia, encontrava-se do meu lado. O intérprete poderia ter sido algum antigo fóssil de barbas brancas.

      Enquanto as horas se passavam e o sol dela se tornava cada vez maior no céu à minha frente, eu e Liala nos tornávamos grandes amigos. Como dispunha de pouco tempo, precisava operar com maior rapidez do que jamais fizera antes. E o fato de mais ninguém entender com exatidão o que estávamos dizendo um ao outro assegurava nossa privacidade. O próprio conhecimento que Liala tinha de inglês era bastante imperfeito para que eu saísse com algumas observações bem ousadas. Não há perigo de avançar demasiado com uma garota se você lhe concede o benefício da dúvida, e ela conclui que provavelmente você não queria dizer aquilo que ela pensou ter ouvido...

      É preciso dizer que me sentia muito, muito feliz? Parecia que meus interesses oficiais e pessoais estavam coincidindo às mil maravilhas. Só havia uma pequena preocupação: até agora, não pudera ver Liala. E se ela fosse absolutamente hedionda?

      Minha primeira chance de responder a essa pergunta tão importante surgiu seis horas antes da queda planetária. Agora me encontrava bastante próximo para captar transmissões de vídeo e Max levou apenas alguns segundos para analisar os sinais que chegavam e ajustá-los ao receptor da nave. Afinal, poderia ter as primeiras visões em close do planeta que se aproximava. E de Liala.

      Ela era quase tão bela quanto sua voz. Olhei para a tela, incapaz de falar por alguns momentos. Dentro em pouco ela quebrou o silêncio.

      - O que houve? - indagou. - Nunca viu uma garota antes?

      Eu tinha que admitir que já vira duas, talvez mesmo três, mas nunca uma como ela. Senti grande alívio ao perceber que suas reações para comigo eram bem favoráveis, de modo que parecia que nada se iria interpor no caminho de nossa futura felicidade - desde que pudéssemos escapar ao exército de cientistas e políticos que estariam ao meu redor logo que pousasse. Nossas chances de privacidade eram pouquíssimas, tão pequenas, de fato, que até me senti tentado a quebrar uma de minhas regras inflexíveis.

      Cheguei mesmo a considerar a possibilidade de me casar com Liala, se esse fosse o único modo de ajustar as coisas. (Sim, aqueles dois meses no espaço tinham me deixado muito tenso...)

      Cinco mil anos de história, 10.000 anos se contar com a minha também, não podem ser condensados com tanta facilidade em algumas horas. Mas, com uma professora tão encantadora, aprendi com rapidez, e tudo que eu perdia Max colocava em seus infalíveis circuitos de memória.

      Arcádia, como seu planeta fora charmosamente batizado, encontrava-se na fronteira da colonização estelar quando a maré do império recuara, deixando-o isolado. Na luta pela sobrevivência, os arcadianos perderam muito de seu conhecimento científico original, inclusive o segredo da propulsão estelar. Eram incapazes de escapar de seu próprio sistema solar, mas também tinham muito pouco incentivo para fazê-lo. Arcádia era um mundo fértil e sua baixa gravidade - apenas 1/4 da gravidade terrestre - dera aos colonizadores a força física de que necessitavam para fazê-lo corresponder ao nome. Mesmo descontando qualquer predisposição natural da parte de Liala, parecia um lugar bem atraente.

      O pequeno sol amarelo de Arcádia já mostrava um disco visível quando tive minha brilhante ideia. O comitê de recepção estava me preocupando e de súbito percebi como poderia mantê-lo afastado. O plano necessitaria da cooperação de Liala, mas a essa altura estava tranqüilo. Modéstia à parte, sempre tive um jeito com as mulheres e essa não era a minha primeira corte pela televisão.

      Assim, os arcadianos aprenderam, umas duas horas antes do meu pouso, que os batedores-pesquisadores são muito tímidos e desconfiados. Devido a tristes experiências anteriores com culturas inamistosas, eu polidamente me recusava a ir para dentro da sala de recepções deles como se fosse uma mosca. Como estava sozinho, preferia me encontrar com apenas um deles em algum local isolado, previamente escolhido. Se esse encontro fosse satisfatório, então eu voaria para a capital. Senão, voltaria para o lugar de onde viera. Esperei que não considerassem esse comportamento descortês. Eu era um viajante solitário, muito longe de casa, e tinha certeza de que, como pessoas razoáveis, compreenderiam meu ponto de vista...

      Foi o que fizeram e a escolha do emissário foi óbvia. Liala logo se tornou uma heroína mundial ao se candidatar bravamente para encontrar o monstro do espaço. Ela disse aos seus amigos que enviara uma mensagem pelo rádio uma hora depois de entrar a bordo de minha nave. Tentei combinar duas horas, mas ela disse que isso seria exagerado e que as pessoas de mente maliciosa poderiam começar a comentar.

      A nave já descia através da atmosfera arcadiana quando de repente me lembrei de meus desenhos comprometedores e tentei fazer uma rápida limpeza. (Mesmo assim, uma obra-prima muito explícita escorregou para trás do armário de mapas, deixando-me bastante envergonhado quando a equipe da manutenção a encontrou, meses depois.) Quando voltei para a sala de controle, já estava focalizada na tela uma planície aberta e despovoada, em cujo centro Liala esperava por mim. Dentro de dois minutos, seria capaz de segurá-la em meus braços, sorver a fragrância de seus cabelos, sentir seu corpo ceder nos lugares certos...

      Não me preocupei em observar o pouso, já que podia confiar que Max faria um trabalho impecável como sempre. Em vez disso, corri para a câmara de descompressão e esperei, com toda a paciência que podia reunir, até que se abrissem as portas que me separavam de Liala.

      Pareceu transcorrer-se uma era antes que Max completasse sua verificação rotineira do ar e desse o sinal "Porta Externa se Abrindo". Estava do lado de fora antes que o disco de metal terminasse de se abrir e me coloquei de pé, finalmente, sobre o rico solo de Arcádia.

      Lembrei-me de que ali pesava apenas 18 kg e portanto me movimentei com cuidado, a despeito da impaciência. Mas me esquecera, vivendo em meu paraíso dos tolos, do que uma gravidade menor pode fazer ao corpo humano no curso de 200 gerações. E num planeta pequeno a evolução pode fazer um bocado em 5.000 anos.

      Liala estava esperando por mim, e era tão adorável quanto sua imagem. Havia apenas um pequeno detalhe que a tela de tevê não me mostrara.

      Jamais gostei de mulheres grandes e gosto muito menos agora. Se ainda quisesse, suponho que poderia ter abraçado Liala. Mas teria parecido um idiota, na ponta dos pés, com os braços fechados em torno dos joelhos dela.

 

A ESTRELA

      Estamos a 3.000 anos-luz do Vaticano. Um dia, acreditei que o espaço não tinha poderes sobre a fé, assim como acreditava que os céus proclamariam a glória da obra de Deus. Agora, já vi essa obra e minha fé se encontra seriamente abalada. Olho para o crucifixo, suspenso na parede da cabine, acima do computador Mark VI, e pela primeira vez em minha vida me pergunto se não será um símbolo vazio.

      Ainda não contei a ninguém, mas a verdade não pode ser escondida. Os fatos estão lá para todos lerem, registrados em quilômetros sem conta de fita magnética e nos milhares de fotografias que transportamos de volta à Terra. Outros cientistas poderão interpretá-las tão facilmente quanto eu, e não serei eu quem vai compactuar em ocultar a verdade, fato quase sempre responsável pela má fama da nossa ordem nos velhos dias.

      A tripulação já se encontra suficientemente deprimida e não sei como eles aceitarão esta ironia final. Poucos dentre eles possuem qualquer tipo de fé religiosa e, no entanto, não encontrarão prazer em usar essa arma final em sua campanha contra mim. Aquela guerrinha particular, bem-humorada, mas de fundamental importância, que transcorreu durante todo o caminho desde a Terra. Eles achavam divertido ter um jesuíta como astrofísico-chefe: o Dr. Chandler, por exemplo, nunca se acostumou com isso (por que será que os médicos são tão ateus?). Algumas vezes ele me encontrava no convés de observação, onde as luzes eram sempre reduzidas, de modo a que as estrelas pudessem brilhar em toda a sua glória. Ficava ao meu lado na penumbra, olhando através da grande janela oval para os céus que se moviam lentamente à nossa volta, enquanto a nave girava, com a rotação residual, que nunca nos incomodaríamos em corrigir.

      - Bem, padre - dizia ele, afinal -, parece prolongar-se para sempre, não? Talvez alguma coisa o tenha criado. Mas como pode acreditar que essa alguma coisa tenha um interesse especial por nós e nosso mundinho miserável, nunca poderei entender.

      E a discussão começava enquanto, lá fora, estrelas e nebulosas giravam em seus arcos eternos e silenciosos, além do plástico claro e sem falhas da vigia de observação.

      Acredito que, em grande parte, era a aparente incongruência de minha posição que fazia a tripulação achar a coisa tão divertida. Seria inútil eu chamar a atenção para os meus três artigos publicados no Jornal de Astrofísica ou os cinco no Notícias Mensais da Real Sociedade Astronómica. Lembrava-lhes que a minha ordem era famosa há muito tempo por seus trabalhos científicos. Nós podemos ser poucos agora, mas desde o século XVIII temos feito contribuições à astronomia e à geografia que parecem fora de proporção com o número de nossos quadros. Será que meu relatório sobre a nebulosa Fénix vai pôr fim a nossos mil anos de história? Porá fim, receio, a muito mais que isso.

      Não sei quem deu esse nome à nebulosa, que me parece muito inadequado. Se contém alguma profecia, é coisa que não será verificada durante vários bilhões de anos. Mesmo a palavra nebulosa é um engano: trata-se de um objeto muito menor do que aquelas estupendas nuvens de poeira - a matéria-prima das estrelas ainda por nascer - que se espalham ao longo da Via-Láctea. Na escala cósmica, de fato, a nebulosa Fênix é algo pequeno - uma tênue concha de gás envolvendo uma única estrela...

      Ou o que sobrou de uma estrela...

      O retrato de Loyola feito por Rubens parece zombar de mim, suspenso ali, acima dos registros do espectrofotômetro. O que você teria feito, padre, com este conhecimento que veio às minhas mãos, tão longe do pequeno mundo que foi todo o universo que conheceste? Teria tua fé se erguido ante o desafio onde a minha falhou?

      Teu olhar se perde na distância, padre, mas eu viajei por uma distância além de qualquer uma que pudeste ter imaginado ao fundar a nossa ordem, há mil anos. Nenhuma outra nave de pesquisa esteve tão longe da Terra. Encontramo-nos nas fronteiras do universo explorado. Partimos para encontrar a nebulosa Fénix, tivemos sucesso e agora voltamos com o peso de nossos conhecimentos. Quisera eu poder erguer esse peso dos meus ombros, mas é em vão que te chamo através dos séculos e anos-luz que nos separam.

      No livro que seguras, as palavras são nítidas: AD MAIOREM DEI GLORIAM, diz a mensagem, mas é uma mensagem em que não mais posso crer. Poderias ainda acreditar nela se pudesses ver o que encontramos?

      Nós sabíamos, é claro, o que era a nebulosa Fénix. Apenas em nossa galáxia, a cada ano, mais de 100 estrelas explodem, queimando durante algumas horas ou dias com milhares de vezes o seu brilho normal antes de mergulharem na morte e na obscuridade. Essas são as novas normais, desastres comuns no universo, lá gravei espectrogramas e curvas de luminosidade de dúzias delas, desde que comecei a trabalhar no observatório lunar.

      Mas três ou quatro vezes a cada mil anos ocorre alguma coisa, ao lado da qual até mesmo uma nova empalidece na total insignificância.

      Quando uma estrela se torna supernova, ela pode brilhar brevemente mais que todos os sóis reunidos na galáxia. Os astrônomos chineses observaram isso acontecer no ano 1054 d.C. sem conhecerem a razão do que viam. Cinco séculos depois, em 1572, uma supernova explodiu na constelação de Cassiopéia, tão brilhante que podia ser vista à luz do dia. E houve mais três durante os mil anos que se passaram desde então.

      Nossa missão era visitar o remanescente de semelhante catástrofe, tentando reconstruir os eventos que haviam conduzido a ela para, se possível, aprender sua causa. Entramos lentamente através das conchas concêntricas de gás que haviam sido lançadas para fora há seis mil anos e ainda se expandiam. Ainda estavam imensamente quentes, irradiando mesmo agora numa violenta luz violeta, mas eram demasiado tênues para nos causar qualquer dano. Quando uma estrela explode, suas camadas externas são impulsionadas para fora com tamanha velocidade que escapam completamente ao seu campo gravitacional. Agora formavam essa concha oca, grande o suficiente para envolver mil sistemas solares. Em seu centro queimava o objeto pequeno e fantástico em que a estrela se tornara. Uma anã branca, menor do que a Terra e no entanto pesando um milhão de vezes mais.

      As conchas de gás luminoso nos envolviam banindo a noite normal do espaço interestelar. Voávamos para o centro de uma bomba cósmica que detonara há milênios, e cujos fragmentos incandescentes ainda se expandiam. A imensa escala da explosão e o fato de que os resíduos já cobriam um volume de espaço com muitos bilhões de quilômetros de diâmetro roubavam à cena qualquer movimento visível. Levaria décadas para que a visão pudesse discernir qualquer movimento nesses tortuosos filamentos e redemoinhos de gás. E, no entanto, o sentimento de uma expansão turbulenta era irresistível.

      Havíamos verificado nossa direção básica horas atrás e agora flutuávamos lentamente rumo à pequenina e fogosa estrela à nossa frente. Ela já fora um sol como o nosso, mas consumira em algumas horas toda a energia que a teria mantido brilhando por um milhão de anos. Agora se tornara avarenta e encolhida, reunindo seus recursos como se tentasse compensar os excessos de uma juventude perdulária.

      Ninguém esperava seriamente que pudéssemos encontrar planetas. Se houvesse existido algum antes da explosão, teria sido cozido em sopros de vapor e sua substância dissolvida em meio aos resíduos da estrela. Ainda assim fizemos a busca automática, como sempre fazemos ao nos aproximarmos de um sol desconhecido. Dentro em pouco localizamos um mundo pequeno, circundando a estrela a imensa distância. Ele devia ter sido o Plutão desse desaparecido sistema solar, orbitando nas fronteiras da noite. Demasiado afastado do sol central para jamais ter conhecido a vida, sua distância salvara-o do destino que consumira todos os seus companheiros.

      A passagem do fogo queimara suas rochas, dissolvendo o manto de gás congelado que devia cobri-lo nos dias anteriores ao desastre. Nós pousamos e descobrimos a Cripta.

      Seus construtores se haviam assegurado de que isso ocorreria. O marco monolítico erguido acima da entrada não passava agora de um toco fundido, mas mesmo nossas fotos de longa distância já nos revelavam existir ali o trabalho de uma inteligência. Pouco depois detectamos o padrão de radioatividade, amplo como um continente, que fora embutido na rocha. Mesmo que o pilar acima da Cripta tivesse sido destruído, essa energia teria permanecido, um eterno e irremovível farol acenando para as estrelas. Nossa nave mergulhou como uma flecha em direção a esse gigantesco alvo.

      O pilar devia ter uma altura de 1,5 km quando foi construído. Agora parecia uma vela que se derretera até formar um monte de cera. Levamos uma semana para perfurar a rocha fundida, já que não tínhamos ferramentas adequadas para essa tarefa. Éramos astrônomos, não arqueólogos, mas podíamos improvisar. Nosso propósito original fora esquecido: esse monumento solitário, erguido com tamanho esforço à maior distância possível do sol condenado, só poderia ter um significado. Uma civilização que tinha consciência de seu fim próximo fizera ali seu último apelo à imortalidade.

      Examinar todos os tesouros depositados na Cripta será trabalho para gerações. Eles tiveram muito tempo para se preparar, já que seu sol deve ter dado os primeiros avisos muitos anos antes da detonação final. Tudo o que desejavam preservar, todos os frutos de seu gênio, eles depositaram ali, naquele mundo distante, dias antes do fim, na esperança de que alguma outra raça os encontrasse, para que não fossem inteiramente esquecidos. Teríamos nos portado desse modo? Ou teríamos nos perdido em nossa própria autocomiseração, incapazes de pensar num futuro que nunca poderíamos ver ou compartilhar?

      Se ao menos eles tivessem tido um pouco mais de tempo... Podiam viajar livremente entre os planetas de seu próprio sol, mas ainda não haviam aprendido a cruzar os golfos interestelares, e o sistema solar mais próximo encontrava-se a 100 anos-luz de distância. Mas mesmo que possuíssem o segredo do impulso transfinito, não mais que uns poucos milhões poderiam ter sido salvos. Talvez tenha sido melhor assim.

      Mesmo que eles não fossem tão perturbadoramen-te humanos, como revelam suas esculturas, não poderíamos deixar de admirá-los e lamentar seu destino. Eles deixaram milhares de registros visuais, juntamente com minuciosas máquinas para projetá-los. Havia instruções pictóricas, de modo que não fosse difícil aprender a sua linguagem escrita. Temos examinado muitas dessas gravações, trazendo de volta à vida, pela primeira vez em seis mil anos, todo o calor e a beleza de uma civilização que, em muitos aspectos, deve ter sido bem superior à nossa. Talvez eles tenham deixado apenas seu lado melhor, mas ninguém poderá condená-los por isso. Seus mundos, contudo, eram adoráveis e suas cidades, erguidas com uma graça que iguala qualquer coisa já feita pelo homem. Nós os observamos no trabalho e nas diversões, ouvimos sua linguagem musical soando através dos séculos. E uma cena permanece ante meus olhos. Um grupo de crianças numa praia de estranha areia azul, brincando nas ondas como as crianças brincam na Terra. Há uma fileira de árvores exóticas, que lembram chicotes, ao longo da praia, e algum animal muito grande aparece, atravessando os baixios, sem atrair atenção.

      Mergulhando no mar, ainda cálido e generoso, vemos o sol que logo se tornaria traidor, apagando toda essa felicidade inocente.

      Talvez se não estivéssemos tão longe de casa, e portanto tão vulneráveis à solidão, não ficássemos tão profundamente comovidos. Muitos de nós já observaram as ruínas de antigas civilizações em outros mundos, mas elas nunca nos afetaram tão profundamente. Essa tragédia era única. Uma coisa é uma raça falhar e morrer, como nações e culturas já o fizeram na Terra. Mas ser descuida tão completamente, em pleno ápice de seu desenvolvimento, sem deixar qualquer sobrevivente - como tal coisa poderia conciliar-se com a misericórdia divina?

      Meus colegas já perguntaram isso e eu dei as respostas que pude. Talvez tivesses feito melhor, padre Loyola, mas nada encontrei no Exercitia Spiritualia que me ajudasse nessa tarefa. Eles não eram gente má: não sei que deuses adoravam, se é que adoravam algum. Mas tenho olhado para eles através do abismo dos séculos e vi a beleza que preservaram em seu último esforço sendo de novo trazida à luz de seu sol encolhido. Eles poderiam ter-nos ensinado tanto. Por que foram destruídos?

      Conheço as respostas que meus colegas darão quando estiverem de volta à Terra. Dirão que o universo não possui propósito ou plano, e que de vez que 100 sóis explodem, a cada ano, em nossa galáxia, neste exato momento alguma raça está morrendo nas profundezas do espaço. Se essa raça fez o bem ou o mal durante sua existência, não faz qualquer diferença no final. Não há justiça divina porque não existe Deus.

      É claro que o que vimos não prova nada disso. Qualquer um que assim afirme está sendo influenciado pela emoção, não pela lógica. Deus não necessita justificar suas açoes perante o Homem. Ele, que construiu o universo, pode destruí-lo quando quiser. Constitui arrogância - perigosamente próxima da blasfêmia - pensar que podemos dizer o que Ele pode ou não fazer.

      Isso eu teria aceito, não importando quão dolorosa fosse a perspectiva de mundos inteiros, juntamente com seus povos, sendo lançados em fornalhas. Mas chega um ponto em que até mesmo a mais profunda fé pode vacilar, e agora, quando olho para os cálculos colocados diante de mim, percebo que afinal cheguei a esse ponto.

      Não podíamos dizer, antes de alcançar a nebulosa, há quanto tempo ocorrera a explosão. Agora, partindo da evidência astronômica e dos registros nas rochas daquele único planeta sobrevivente, fui capaz de datá-la com precisão. E sei em que ano a luz desse incêndio colossal chegou à Terra. Sei o quanto essa supernova, cujo cadáver agora se apaga atrás de nossa nave em aceleração, deve ter brilhado nos céus da Terra. Sei como deve ter fulgurado, baixa sobre o horizonte do leste, antes do nascer do Sol, como um farol na alvorada oriental.

      Não pode haver mais dúvida. O mistério ancestral foi finalmente solucionado. E no entanto, ó Deus!, havia tantas estrelas que poderias ter usado. Qual a necessidade de lançar essas pessoas ao fogo para que o símbolo de sua morte pudesse brilhar acima de Belém?

 

VINDO DO SOL

      Se você só viveu na Terra, então nunca viu o Sol. É claro que não podemos olhar para ele diretamente, apenas através de densos filtros que reduzam seus raios a um brilho suportável. Ele paira eternamente acima das colinas escarpadas a oeste do observatório, sem jamais nascer ou se pôr, e continua a se mover em torno de um pequeno círculo no céu, durante o ano de 88 dias de nosso pequeno mundo. Pois não é inteiramente verdadeiro dizer que Mercúrio mantém sempre a mesma face voltada para o Sol. Ele oscila levemente em seu eixo, existindo um estreito cinturão crepuscular que conhece lugares-comuns terrestres, tais como a aurora e o poente.

      Estávamos na orla da zona do crepúsculo, de maneira que pudéssemos tirar vantagem das frias sombras e ao mesmo tempo manter o Sol sob contínua vigilância, enquanto ele flutuava acima das colinas. Era um trabalho de tempo integral para 50 astrônomos e outros cientistas diversos. Quando tivermos feito isso durante 100 anos ou mais, poderemos conhecer alguma coisa sobre a pequena estrela que trouxe a vida para a Terra.

      Não havia uma única faixa de radiação solar que alguém no observatório não vigiasse como um falcão, tendo-lhe dedicado uma vida de estudos. Estávamos prontos, com nossas arapucas e armadilhas, para capturar desde os raios X até as mais longas ondas de rádio. E, tão logo o Sol pensava em alguma coisa nova, estávamos prontos para ela. Ou assim acreditávamos ...

      O coração flamejante do Sol bate num ritmo lento de 11 anos, e estávamos próximos do auge desse ciclo. Duas das maiores manchas já registradas, cada qual suficientemente grande para engolir uma centena de Terras, haviam deslizado através do disco como grandes chaminés negras, mergulhando profundamente nas turbulentas camadas exteriores do Sol. É claro que só eram negras devido ao contraste com o brilho ao seu redor, e mesmo suas nuanças escuras e frias mostravam-se mais aquecidas e brilhantes do que um arco voltaico. Acabávamos de observar a segunda desaparecer na borda do disco e imaginávamos se ela sobreviveria, para reaparecer daqui a duas semanas, quando alguma coisa explodiu no equador.

      De início, não parecia muito espetacular, em parte por se localizar exatamente abaixo de nós, exatamente no centro do disco solar, confundindo-se, portanto, com toda a atividade à sua volta. Se estivesse próxima da borda do Sol, projetando-se assim contra o fundo do espaço, teria sido mesmo impressionante.

      Imagine a explosão simultânea de um milhão de bombas H. Não é capaz? Ninguém o é, mas era esse tipo de coisa que observávamos subindo em nossa direção, a centenas de quilómetros por segundo, saindo diretamente do equador solar, em seu eterno movimento giratório. De início, formava um estreito jato que logo se tornou desfiado em torno das bordas por efeito das forças magnéticas e gravitacionais que lutavam contra ela. O núcleo central continuou a subir e logo se tornou evidente que escapara por completo do Sol, dirigindo-se ao espaço exterior - e tendo a nós como seu primeiro alvo.

      Embora isso já tivesse acontecido uma meia dúzia de vezes, era sempre excitante. Significava que poderíamos capturar parte da própria substância do Sol quando ela passasse por nós numa grande nuvem de gás eletrifiçado. Não havia perigo, quando nos alcançasse, estaria muito tênue para causar qualquer dano, e de fato seriam necessários instrumentos muito sensíveis para detectá-la.

      Um desses instrumentos era o radar do observatório, usado continuamente para mapear as invisíveis camadas ionizadas que circundavam o Sol por milhões de quilômetros. Esse era o meu departamento, e assim que houve uma chance de captar a nuvem, que se aproximava contra o fundo do Sol, apontei meu gigantesco espelho de rádio em direção a ela.

      Surgiu, nítida e clara, na tela de longo alcance. Uma vasta ilha luminosa, ainda se afastando do Sol a centenas de quilômetros por segundo. A essa distância, era impossível ver seus detalhes mais sutis, já que minhas ondas de radar levavam minutos para completar a viagem de ida e volta, trazendo-me a informação apresentada na tela. Mesmo com sua velocidade, próxima de 1.500.000 km horários, levaria quase dois dias para que a protuberância fugitiva alcançasse a órbita de Mercúrio e nos ultrapassasse em seu caminho rumo aos planetas exteriores. Mas nem Vênus nem a Terra registrariam sua passagem, já que não se encontravam próximos à sua linha de vôo.

      As horas se passaram. O Sol se acalmara após a imensa convulsão que lançara tantos milhões de toneladas de sua substância para o espaço, de onde nunca mais retornariam. O resultado dessa erupção era agora uma nuvem com 100 vezes o tamanho da Terra, que aos poucos girava e se entrelaçava. Logo estaria suficientemente próxima para que o radar de curto alcance pudesse revelar detalhes de sua estrutura.

      Apesar de todos os meus anos de prática, ainda sinto uma emoção ao observar a linha luminosa pintando sua imagem na tela, enquanto gira em sincronia com o estreito feixe de rádio do transmissor. Às vezes me imagino como um cego, explorando o espaço ao seu redor com uma bengala que pode chegar a ter 150 milhões de quilômetros de comprimento. Pois o homem é de fato cego para as coisas que estudo; essas grandes nuvens de gás ionizado movendo-se para longe do Sol são completamente invisíveis ao olho humano e mesmo às mais sensíveis chapas fotográficas. São fantasmas que assombram o sistema solar durante as poucas horas de suas existências. Se não refletissem nossas ondas de radar nem perturbassem nossos magnetômetros, nunca saberíamos a respeito delas.

      A imagem na tela não parecia muito diferente da fotografia de uma nebulosa espiral, já que a nuvem girava devagar, arrastando braços esfarrapados de gás por 15.000 km a seu redor. Ou também poderia ter sido um furacão terrestre observado de cima, enquanto girava na atmosfera do planeta. A estrutura interna era por demais complicada e mudava de minuto para minuto sob a ação de forças que nunca entenderemos por completo. Rios de fogo fluíam em padrões curiosos, movidos por algo que poderia significar tão-somente a influência de campos elétricos. Mas por que pareciam surgir de parte alguma e desaparecer outra vez, como se porções de matéria estivessem sendo criadas e destruídas? E o que eram aqueles nódulos brilhantes, cada um deles maior do que a Lua, sendo carregados como pedras em uma enxurrada?

      Agora, estava a menos de 1.500.000 km de distância e nos alcançaria em pouco mais de uma hora.

      As câmaras automáticas registravam cada varredura completa do radar, armazenando evidências que nos manteriam discutindo durante anos. De fato, a perturbação magnética adiante da nuvem já nos alcançara. Quase não havia instrumento no observatório que não estivesse reagindo de algum modo ante a aparição que se aproximava.

      Mudei para a varredura de curto alcance e a imagem da nuvem se expandiu tanto que apenas sua porção central permaneceu na tela. Ao mesmo tempo, comecei a mudar a freqüência, sintonizando através do espectro para diferenciar entre os vários níveis. Quanto mais curto o comprimento de onda, mais profundamente é possível penetrar em uma camada de gás ionizado. Através dessa técnica, esperava obter uma espécie de imagem de raios X do interior da nuvem.

      Ela pareceu mudar ante meus olhos quando fiz um corte através de seu tênue envoltório externo, com seus braços arrastando-se, e me aproximei do núcleo mais denso. Denso, é claro, era uma palavra puramente relativa. Pelos padrões terrestres, mesmo suas regiões mais compactas ainda eram um vácuo razoavelmente perfeito. Quase chegara aos limites de minha faixa de freqüências quando percebi um pequeno e curioso eco, não muito longe do centro da tela.

      Era oval e com limites muito mais definidos do que os nós de gás que eu observava flutuando nos rios flamejantes da nuvem. Mesmo naquele primeiro vislumbre, já percebi que se tratava de alguma coisa muito estranha e alheia a todos os registros anteriores de fenômenos solares. Eu a observei durante uma dúzia de varreduras do feixe de radar, e então chamei meu assistente e lhe pedi que abandonasse por instantes o radioespectógrafo, no qual analisava as velocidades do gás rodopiante que girava em nossa direção.

      -  Olhe, Don - indaguei -, você já viu alguma coisa como essa?

      -  Não - respondeu ele depois de um exame cuidadoso. - O que a mantém condensada? Não mudou de forma nos últimos dois minutos.

      -  É isso que me intriga. Seja o que for, devia ter começado a se fragmentar agora, com todas aquelas perturbações ocorrendo ao seu redor. Mas parece absolutamente estável.

      -  De que tamanho você diria que é?

      Mudei para a grade calibradora e fiz uma rápida leitura.

      -  Tem cerca de 800 km de comprimento e metade disso de largura.

      -  Essa é a imagem mais ampliada que pode conseguir?

      -  Acho que sim. Teremos que esperar até que esteja mais próxima para descobrir o que a faz funcionar.

      Don riu, nervoso.

      -  É loucura - ele disse -, mas sabe de uma coisa? Sinto-me como se estivesse olhando para uma ameba através do microscópio.

      Não respondi, pois o mesmo pensamento já entrara em minha mente com uma sensação que só posso descrever como vertigem intelectual.

      Esquecemo-nos do resto da nuvem, mas felizmente as câmaras automáticas continuaram a funcionar e nenhuma observação importante foi perdida. De agora em diante, só tínhamos olhos para aquela lente gasosa, de bordas nítidas e definidas, crescendo minuto a minuto enquanto corria em nossa direção. Quando não se encontrava mais distante do que a Lua da Terra, começaram a aparecer os primeiros indícios de uma estrutura interna, revelando a aparência de um estampado que nunca era idêntico em duas varreduras sucessivas do radar.

      A essa altura, metade da equipe do observatório se havia reunido a nós na sala de radar, e no entanto se fazia um silêncio completo enquanto o enigma que se aproximava crescia rapidamente na tela. Vinha direto para nós e dentro de alguns minutos atingiria Mercúrio em algum lugar no centro do lado diurno. Isso seria o seu fim, fosse o que fosse... Desde o momento em que obtivemos nossa primeira visão detalhada do fenómeno até a tela ficar branca outra vez, não podem ter-se passado mais do que cinco minutos. Para cada um de nós, foram cinco minutos que nos assombrariam pelo resto da vida.

      Olhávamos para o que parecia ser um oval translúcido, cujo interior surgia entrecruzado por uma teia de linhas quase invisíveis. Onde essas linhas se cruzavam, apareciam pequenos nódulos de luz pulsante. Não podíamos ter certeza quanto à existência deles porque o radar levava quase um minuto para pintar uma imagem completa na tela e, entre uma varredura e outra, o objeto atravessava vários milhares de quilômetros. Não havia dúvida, entretanto, de que a rede existira; as câmaras eliminaram qualquer discussão a esse respeito.

      Tão forte era a impressão de que estávamos olhando para um objeto sólido que eu me afastei por alguns momentos da tela do radar e, às pressas, focalizei um dos telescópios ópticos no céu. É evidente que não havia nada para ser visto. Nenhum indício delineado contra o disco manchado do Sol. Esse era um caso em que a visão falhava inteiramente e apenas os sentidos elétricos do radar tinham algum uso. A coisa que vinha em nossa direção, saída do Sol, era tão transparente quanto o ar... e muito mais tênue.

      Enquanto aqueles últimos instantes se escoavam, tenho certeza de que cada um de nós chegou à mês ma conclusão... esperando que outro falasse em primeiro lugar. O que víamos era algo impossível e, no entanto, a evidência se encontrava ali, ante os nossos olhos. Estávamos vendo a vida onde ela não poderia existir...

      A erupção lançara a coisa para fora de seu ambiente natural, situado nas profundezas da atmosfera flamejante do Sol. Era um milagre que aquilo houvesse sobrevivido à sua jornada pelo espaço. Já devia estar morrendo, uma vez que as forças que controlavam seu imenso e invisível corpo perdiam o domínio sobre o gás eletrifiçado que constituía sua única substância.

      Hoje, depois que já assisti mais de 100 vezes aos filmes que fizemos, a idéia não me parece mais tão estranha. Pois o que é a vida senão energia organizada? Será que importa a forma que essa energia assuma? Seja ela química, como nós a conhecemos na Terra, ou puramente elétrica, como parecia existir ali? Apenas o padrão é importante, a substância em si carece de significado. Mas, na ocasião, não pensei nisso; estava consciente apenas de uma coisa assombrosa, vasta e opressiva, enquanto observava essa criatura do Sol vivendo os momentos finais de sua existência.

      Seria inteligente? Poderia compreender seu estranho destino? Existem milhares de perguntas como essa que talvez nunca sejam respondidas. É difícil entender como uma criatura nascida nos fogos do próprio Sol pudesse conhecer alguma coisa a respeito do universo exterior, ou mesmo sentir a existência de algo tão incompreensivelmente frio quanto a matéria rígida, não-gasosa. Aquela ilha viva, caindo sobre nós do espaço nunca poderia ter concebido, não importa quão inteligente pudesse ser, o mundo do qual se aproximava com tanta rapidez.

      Agora ela cobria o nosso céu... e talvez naqueles últimos segundos tenha percebido a existência de algo estranho à sua frente. Pode ter sentido o campo magnético de Mercúrio, ou o puxão gravitacional de nosso pequeno mundo. Pois começou a se modificar; as linhas luminosas que deviam ser o seu sistema nervoso começaram a se agrupar em novos padrões, e eu daria tudo para conhecer seu significado. Podia ser que estivesse olhando para o interior do cérebro de alguma besta desprovida de mente... ou de um ser divino, fazendo as pazes com o universo.

      E então a tela do radar estava vazia, totalmente limpa durante uma única varredura do feixe. A criatura caíra abaixo de nosso horizonte e agora se encontrava oculta, além da curva do planeta. Lá longe, no ardente lado diurno de Mercúrio, no inferno em que apenas uma dúzia de homens se havia aventurado, um número menor ainda conseguindo retornar com vida, a coisa se esmagara de forma silenciosa e invisível contra os mares de metal derretido e as colinas de lava em lento movimento. O mero impacto não significaria nada para tal - o que ele não poderia suportar seria o primeiro contato com o inconcebível frio da matéria sólida.

      Sim, frio. A coisa descera sobre o lugar mais quente do sistema solar, onde a temperatura nunca desce abaixo de 390 graus centígrados e algumas vezes se aproxima de 530 graus. E isso era muito, muito mais frio para ela do que o inverno antártico seria para um homem nu.

      Não a vimos morrer, lá, em meio ao fogo congelante. Encontrava-se além do alcance de nossos instrumentos agora, e nenhum deles gravou seu final. E no entanto cada um de nós soube quando esse momento chegou, e é por isso que não nos interessamos quando aqueles que vêem apenas os filmes e as gravações dizem que observamos algum fenómeno puramente natural.

      Como alguém poderia explicar o que sentimos, naquele último momento, quando metade do nosso pequeno mundo se encontrava enredado nas gavinhas em dissolução daquele cérebro imenso, mas imaterial? Só posso dizer que foi um grito mudo de angústia, uma agonia de morte que se infiltrou em nossas mentes sem ter passado pelos portais dos sentidos. Nenhum de nós duvidou na ocasião, nem duvida agora, de que houvéssemos testemunhado o fim de um gigante.

      Podemos ter sido os primeiros e também os últimos homens a testemunharem tão majestosa queda. Não obstante o que eles possam ser em seu mundo inimaginável dentro do Sol, é possível que os nossos caminhos e os deles nunca venham a se cruzar. É difícil imaginar como poderíamos até mesmo fazer contato com eles, ainda que suas inteligências se igualem às nossas.

      Será? Talvez seja melhor que nunca venhamos a conhecer a resposta. Talvez eles estejam vivendo lá, dentro do Sol, desde que o universo nasceu, e já tenham alcançado cumes de sabedoria que nunca chegaremos a escalar. O futuro pode pertencer a eles, não a nós. Talvez já estejam conversando através dos anos-luz, falando com seus primos distantes, de outras estrelas.

      E um dia eles podem nos descobrir, através dos estranhos sentidos que possuam, enquanto nós circundamos seu lar antigo e majestoso, orgulhosos de nossos conhecimentos, a nos julgarmos senhores da criação. E eles podem não gostar do que encontrarem.

      Para eles, não seríamos mais do que vermes, arrastando-nos sobre a pele de mundos demasiado frios para se purificarem da podridão da vida orgânica.

      E então, se possuírem tal poder, eles farão o que considerarem necessário. E o Sol liberará suas forças, lambendo as faces de seus filhos. Depois os planetas seguirão em suas órbitas tal como eram no início. Limpos, brilhantes... e estéreis.

 

TRANSIÊNCIA

      A floresta, que chegava quase até a orla da praia, erguia-se na distância sobre as encostas das colinas baixas e nevoentas. Embaixo, a areia era grossa e misturada com miríades de conchas partidas. Aqui e ali, a maré em retirada largara longas fitas de algas por sobre a praia. A chuva, que raramente cessava, dirigira-se por um momento para o interior, mas logo suas gotas tornariam a perfurar minúsculas crateras na areia.

      Era quente e abafado, pois a guerra entre o Sol e a chuva nunca acabava. Às vezes as névoas se erguiam brevemente e as colinas surgiam, nítidas, acima da terra que guardavam. Colinas que se arqueavam num semicírculo ao longo da baía, seguindo a linha da praia. Além delas, era possível ver, de quando em quando, a uma imensa distância, uma muralha de montanhas erguida sob nuvens perpétuas. Árvores cresciam em toda parte, suavizando os contornos do solo, de modo que as colinas pareciam fundir-se uniformemente uma na outra. Apenas num único lugar podia ser vista a rocha nua e descoberta, onde há muito tempo alguma falha enfraquecera as fundações das colinas, fazendo com que, por mais de um quilômetro, a linha do horizonte descesse abruptamente, caindo para o mar como asa partida.

      Movendo-se com a vigilância cautelosa de um animal selvagem, a criança surgiu entre as árvores atrofiadas na extremidade da floresta. Por um momento ela hesitou, depois, como não houvesse qualquer perigo visível, caminhou lentamente para a praia.

      Estava nua e tinha constituição robusta, cabelos negros e grossos emaranhados sobre os ombros. Seu rosto, bruto como era, quase teria passado despercebido na sociedade humana, mas os olhos a teriam traído. Não eram os olhos de um animal, pois havia alguma coisa em suas profundezas que nenhum animal jamais conhecera. Mas não passava de uma promessa. Para essa criança, assim como para toda a sua raça, a luz da razão ainda permanecia por despontar. Vivia separada por um fio das bestas entre as quais levava sua existência.

      Fazia pouco tempo que a tribo chegara a essas terras e o menino era o primeiro a colocar o pé sobre a praia solitária. O que o atraíra dos perigos conhecidos da floresta para os perigos desconhecidos, portanto muito mais terríveis, desse novo elemento, ele não poderia dizer, mesmo que possuísse o dom da fala. Aos poucos caminhou até a beira da água, sempre olhando rapidamente para a floresta às suas costas. Enquanto o fazia, pela primeira vez na história, a areia exibia sobre sua superfície as pegadas que tão bem conheceria um dia.

      Já encontrara água antes, mas sempre presa e confinada pela terra. Agora ela se estendia interminavelmente diante dele, e o som de seus movimentos bateu-lhe nos ouvidos sem cessar.

      Com a infinita paciência do selvagem, ficou de pé na areia úmida que a água acabara de abandonar e, enquanto a linha da maré se movia para fora, ele a acompanhava lentamente, passo a passo. Quando as ondas avançavam sobre seus pés, num súbito acesso de energia, ele recuava um pouco em direção à terra. Mas algo o mantinha ali, à beira d'água, enquanto sua sombra se prolongava ao longo da areia e o vento frio da noite começava a aumentar à sua volta.

      Talvez em sua mente houvesse penetrado algo do esplendor do mar, um indício de tudo que ele um dia significaria para o homem. Embora os primeiros deuses de seu povo ainda se encontrassem bem distantes no futuro, ele percebeu um fraco sentido de veneração começando a se agitar em seu interior. Agora sabia que se encontrava na presença de alguma coisa maior do que todos os poderes e forças que um dia encontrara.

      A maré estava retornando. Bem longe na floresta, um lobo uivou uma vez, depois silenciou. Os ruídos da noite erguiam-se à sua volta e era tempo de ir embora.

      Sob uma lua baixa no céu, duas fileiras de pegadas entrelaçavam-se através da areia. Rapidamente, a maré enchente as apagou. Mas elas retornariam, aos milhares e milhões, nos séculos do porvir.

 

      A criança brincando nas poças entre as rochas nada sabia a respeito da floresta que um dia dominara toda a terra ao seu redor. Não deixara qualquer traço de sua existência. Tão efémera quajnto as névoas que freqüentemente desciam das colinas, ela também as cobrira por um breve momento e agora se fora. Em seu lugar surgira um xadrezado de campos, legado de mil anos de trabalho pesado. E assim a ilusão de permanência continuava, muito embora tudo se houvesse alterado, exceto a linha das colinas contra o céu. Na praia, a areia era agora mais fina e a terra tinha se elevado, de modo que a antiga linha da maré estava bem longe do alcance das ondas.

      Além do dique e do passeio, a pequena cidade cochilava durante um dourado dia de verão. Aqui e ali, ao longo da praia, pessoas se deitavam, sonolentas devido ao calor, embaladas pelo murmúrio das ondas.

      Do outro lado da baía, surgindo branco e dourado sobre as águas, um grande navio movia-se lentamente para o mar. O menino podia ouvir a batida fraca e distante de suas hélices e ver as minúsculas figuras movendo-se ao longo da superestrutura e dos conveses. Para a criança, e não apenas para ela, era algo belo e maravilhoso. Sabia seu nome e o país para onde se dirigia. Mas não sabia que esse esplêndido navio era o último e o maior de seu tipo. Quase não notou, perdidos contra o brilho do sol, os finos rastros de vapor branco que significariam o fim daquele gigante altivo e adorável.

      Logo, o grande transatlântico não era mais que uma mancha negra no horizonte, e o menino voltou sua atenção para a brincadeira interrompida, a incansável construção de muralhas na areia. No oeste, o Sol já iniciara seu longo declínio, mas a noite ainda estava distante.

      Afinal ela chegou, quando a maré avançava de novo para a terra. Ao ouvir o chamado da mãe, a criança reuniu seus brinquedos, cansada, mas contente, e começou a seguir os pais de volta da praia. Olhou uma vez mais para os castelos de areia que construíra com tanto trabalho e que nunca mais tornaria a ver. Sem tristeza, deixou-os para as ondas que avançavam, já que amanhã retornaria e o futuro se estendia interminável à sua frente.

      Ele ainda era muito jovem para saber se haveria um amanhã, fosse para ele ou para o resto do mundo.

 

      Agora, até mesmo as colinas se haviam modificado, gastas pelo peso dos anos. Mas nem todas as mudanças tinham sido obra da natureza, pois uma noite, no passado agora esquecido, alguma coisa viera deslizando das estrelas e a pequena cidade desaparecera numa torre rodopiante de chamas. Isso fora há tanto tempo que se encontrava além de qualquer mágoa ou arrependimento. Como a queda da lendária Tróia ou a destruição de Pompéia, era parte de um passado irremediável e não poderia despertar agora qualquer sentimento de piedade.

      Na linha acidentada do horizonte, surgia um comprido prédio de metal suportando um labirinto de espelhos que se voltavam, cintilantes, para o Sol. Ninguém de uma época anterior teria imaginado seu propósito. Era tão sem significado quando um observatório ou uma estação de rádio teriam sido para o homem primitivo. E não era nenhuma dessas coisas.

      Desde o meio-dia, Bran estivera brincando entre as poças rasas deixadas pela maré vazante. Sentia-se muito solitário, embora estivesse acompanhado por um robô que o vigiava lá da praia, sem interferir. Apenas alguns dias antes, tinha havido outras crianças brincando ao lado das águas azuis dessa baía adorável. Bran algumas vezes se perguntava por que elas haviam desaparecido, mas era uma criança solitária e não se importava muito. Perdido em seus próprios sonhos, estava contente por ficar sozinho.

      Nas últimas horas, unira as pequenas poças com uma intrincada rede de canais. Seus pensamentos voavam muito distantes da Terra, no espaço e no tempo. À sua volta, existiam agora as areias baças e vermelhas de um outro mundo. Ele era Cardenis, príncipe dos engenheiros, lutando para salvar seu povo dos desertos que se expandiam. Pois Bran havia olhado para a face devastada de Marte, conhecera a história de sua longa tragédia e da ajuda da Terra, que chegara muito tarde.

      Até o horizonte, o mar estava vazio, sem ser perturbado por navios como o fora durante eras. Por um curto período, próximo da aurora dos tempos, o homem havia lutado sua breve guerra contra os oceanos do mundo. Agora parecia que apenas um instante separava a vinda das primeiras canoas e a passagem do último grande megatério dos mares.

      Bran nem ao menos olhou para o céu quando a monstruosa sombra deslizou sobre a praia. Há dias que aqueles gigantes prateados se elevavam sobre as colinas num fluxo interminável, e agora Bran quase não pensava neles. Toda a sua vida observara as grandes naves subirem pelos céus da Terra a caminho de mundos distantes. Costumava vê-las retornando dessas longas jornadas, mergulhando entre as nuvens com cargas além da imaginação.

      Às vezes se perguntava por que elas não voltavam mais. Todas as naves que agora via estavam partindo. Nenhuma descia do céu para se aninhar no grande porto além das colinas. Por que devia ser assim, ninguém lhe dissera. E ele aprendera a não falar a respeito, percebendo a tristeza que suas perguntas provocavam.

      Lá da areia, o robô agora o chamava suavemente:

      - Bran - vinham as palavras, ecoando os tons da voz de sua mãe -, Bran, é hora de partir.

      A criança olhou para cima, seu rosto cheio de indignada recusa. Não podia acreditar nisso. O Sol estava alto no céu e a maré bem distante. E, no entanto, seu pai e sua mãe já vinham pela praia, caminhando em sua direção.

      Andavam rapidamente, como se o tempo fosse curto. De vez em quando, seu pai olhava para o céu por um instante e então abaixava a cabeça, ligeiro, como que já sabendo não existir nada que pudesse ver. Mas um momento depois ele olhava de novo.

      Inconformado e furioso, Bran esperou entre seus lagos e canais. A mãe parecia estranhamente calada, mas, daí a pouco, o pai o tomou pela mão e disse tranquilamente:

      - Venha conosco, Bran. É hora de partir.

      Aborrecida, a criança apontou para a praia.

      -  Mas ainda é muito cedo. Eu não terminei.

      A resposta de seu pai não demonstrava qualquer sinal de aborrecimento, apenas grande tristeza.

      -  Existem muitas coisas, Bran, que não serão terminadas agora.

      Ainda sem entender, o garoto voltou-se para a mãe.

      -  Então posso voltar amanhã?

      Com um sentimento de desolado espanto, Bran viu os olhos de sua mãe se encherem de lágrimas e compreendeu, afinal, que nunca mais brincaria nas areias, ao lado das águas azuis. Nunca mais sentiria o bater das pequenas ondas ao encontro de seus pés. Havia descoberto o mar demasiado tarde e agora devia abandoná-lo para sempre. Vindos do futuro, gelando sua alma, chegavam os primeiros indícios das longas eras de exílio que havia pela frente.

      Não olhou para trás nem uma vez enquanto caminhavam juntos, silenciosos, sobre a areia aderente. Esse momento permaneceria com ele por toda a sua vida, mas agora estava muito atordoado para fazer mais do que caminhar cegamente rumo a um futuro que ainda não podia compreender.

      As três figuras diminuíram na distância e desapareceram. Muito tempo depois, uma nuvem prateada pareceu se elevar acima das colinas, movendo-se lentamente em direção ao mar. Num arco extenso, como que relutante em deixar seu mundo, a última das grandes naves subiu em direção ao horizonte e se encolheu, a caminho do nada por sobre os confins da Terra.

      A maré retornava com o fim do dia. Como se seus construtores ainda caminhassem entre suas paredes, o prédio baixo de metal começou a brilhar cheio de luz. Próximo ao zênite, uma estrela não aguardara que o Sol se escondesse. Já luzia com um brilho forte e branco contra o céu do poente. Logo, suas companheiras, não mais os escassos milhares que o homem um dia conhecera, começaram a encher o céu. A Terra encontrava-se agora perto do centro do universo e áreas inteiras do céu exibiam um brilho contínuo.

      E no entanto, elevando-se do mar em dois braços compridos e curvos, surgia uma coisa negra e monstruosa eclipsando as estrelas, parecendo lançar uma sombra sobre o mundo inteiro. Os tentáculos da Nebulosa Negra já roçavam as fronteiras do sistema solar...

      No leste, a grande Lua amarela erguia-se por entre as ondas. Embora o homem houvesse demolido suas montanhas e trazido ar e água para sua superfície, sua face ainda olhava para a Terra tal como sempre fizera desde o início da história, e era ela ainda a senhora das marés. Através da areia, uma linha de espuma moveu-se sempre em frente, submergindo os pequenos canais e apagando as pegadas entrelaçadas.

      Na linha do horizonte, as luzes do estranho prédio metálico se apagaram subitamente e os espelhos giratórios deixaram de refletir o luar. De algum lugar de dentro da terra, veio o cegante clarão de uma enorme explosão, depois outro e mais outro.

      Daí a pouco o chão tremeu de leve, mas nenhum som perturbou a solidão da praia deserta.

      Sob a iluminação uniforme da Lua, debaixo de miríades de estrelas, a praia esperava pelo fim. Estava só agora, como estivera no início. Só as ondas se moviam, e apenas por mais algum tempo, sobre suas areias douradas.

      Pois o Homem viera e se fora.

 

AS CANÇÕES DA TERRA DISTANTE

      Lora, debaixo das palmeiras, aguardava observando o mar. O barco de Clyde já aparecia como minúscula saliência no horizonte distante, a única falha numa união perfeita entre o céu e o mar. Foi crescendo em tamanho de minuto a minuto, até se destacar do globo azul uniforme que abrangia o mundo. Agora já podia ver Clyde de pé na proa, uma das mãos segurando as cordas do velame, imóvel como uma estátua, enquanto seus olhos a procuravam entre as sombras.

      - Onde você está, Lora? - Clyde indagou com a voz queixosa, saindo do radiobracelete que ele lhe dera por ocasião do noivado. - Venha me ajudar. Vamos levar para casa uma grande pescaria.

      "Então" - Lora disse a si mesma -, "foi por isso que você me pediu para correr até a praia." Só para punir Clyde e reduzi-lo ao estado adequado de ansiedade, ela ignorou seus chamados até que ele os repetisse meia dúzia de vezes. Mesmo então, não comprimiu a linda pérola dourada colocada no botão "Transmitir", preferindo sair lentamente da sombra das grandes árvores e descer o declive da praia.

      Clyde olhou para ela aborrecido, mas lhe deu um beijo agradável assim que saltou para a praia e prendeu o barco. Depois, ambos começaram a descarregar juntos o produto da pescaria, colhendo os peixes grandes e pequenos de dentro de ambos os cascos do barco. Lora tapou o nariz mas ajudou valentemente, até que o trenó de areia ficou cheio das vítimas da destreza de Clyde.

      Foi uma boa pescaria. Quando estivesse casada com Clyde, pensou Lora, orgulhosa, nunca passaria fome. As desajeitadas criaturas blindadas do mar desse jovem planeta não eram verdadeiros peixes; 100 milhões de anos ainda se passariam aqui antes que a natureza inventasse as escamas. Mas eram bons como alimento, e os colonizadores os rotularam com os nomes que haviam trazido, junto com tantas outras tradições da inesquecível Terra.

      - Isso é tudo - grunhiu Clyde, enquanto jogava uma razoável imitação de salmão para cima da pilha cintilante. - Eu prenderei as redes depois. Agora vamos!

      Tendo alguma dificuldade para se firmar, Lora saltou para o trenó atrás dele. Os cilindros flexíveis giraram contra a areia por um momento e então conseguiram apoio. Clyde, Lora, mais 45 kg de peixes variados, partiram deslizando na praia recortada pelas ondas. Haviam completado metade de sua breve jornada quando o mundo simples e despreocupado que conheceram durante toda a sua curta existência chegou abruptamente ao fim.

      O primeiro indício do final apareceu escrito no firmamento, como se uma gigantesca mão tivesse riscado o céu azul com um pedaço de giz. Enquanto Clyde e Lora observavam, o brilhante rastro de vapor começou a se esfiapar nas bordas, partindo-se em ténues fios de nuvem.

      E agora eles escutavam, vindo de quilômetros acima de suas cabeças, um som que esse mundo não ouvia há gerações. Instintivamente, deram-se as mãos enquanto olhavam para aquele sulco branco como neve, riscado no céu, e ouviam o grito agudo oriundo das fronteiras do espaço. A nave em descenso já desaparecera no horizonte antes que ambos se voltassem, um para o outro, pronunciando, quase que com reverência, a mesma palavra mágica:

      - Terra!

      Após 300 anos de silêncio, o mundo materno estendera uma vez mais a sua mão para tocar Thalassa...

      "Por quê?", perguntou-se Lora quando terminou o longo instante da revelação e o grito do ar ferido deixara de ecoar nos céus. Que teria acontecido, após todos esses anos, para trazer uma nave da poderosa Terra até esse mundo calmo e satisfeito? Não havia mais espaço para colonos nessa única ilha de um planeta aquático, e a Terra sabia disso muito bem. Suas naves-pesquisadoras automáticas haviam sondado, e mapeado Thalassa a partir do espaço, cinco séculos atrás, nos primeiros anos da exploração interestelar. Muito antes que o próprio homem se aventurasse nos vazios entre as estrelas, seus servos eletrônicos o haviam precedido, circundado mundos de sóis alienígenas e então retornando ao lar com seu estoque de conhecimentos, como as abelhas levam o mel para a colmeia.

      Um desses batedores encontrara Thalassa, uma aberração entre os mundos, com sua única ilha num oceano sem fronteiras. Um dia os continentes nasceriam ali, pois esse ainda era um planeta novo e sua história ainda aguardava para ser escrita.

      A nave automática levara 100 anos para completar a jornada de volta, e durante outro século o conhecimento que ela reunira permaneceria inerte nas memórias eletrônicas dos grandes computadores que armazenavam a sabedoria da Terra. A primeira onda de colonização deixou Thalassa intocada. Havia mundos mais proveitosos para serem desenvolvidos, mundos que não eram 90 por cento água. Afinal, vieram os pioneiros. A apenas 19 km de onde ela se encontrava agora, os ancestrais de Lora haviam pisado nesse planeta pela primeira vez, dele tomando posse em nome da humanidade.

      Eles nivelaram colinas, prepararam plantações, modificaram rios, construíram cidades e fábricas, e se multiplicaram até atingir os limites naturais de sua terra. Com seu solo fértil, mares abundantes, um clima ameno, muito previsível, Thalassa não era um mundo que exigisse demasiado dos filhos que adotara. O espírito pioneiro durou, talvez, por duas gerações; depois os colonizadores se contentaram em trabalhar tanto quanto fosse necessário (mas não mais que isso), sonhar nostalgicamente com a Terra e deixar que o futuro cuidasse de si mesmo.

      A aldeia fervia de especulações quando Clyde e Lora chegaram. Notícias vindas da extremidade norte da ilha informavam que a nave já reduzira sua enorme velocidade e agora voltava a baixa altura e, como era óbvio, buscava um local para o pouso.

      - Eles ainda possuem os velhos mapas - disse alguém. - Aposto como vão descer onde a primeira expedição pousou, lá nas colinas.

      Era uma suposição astuta e em questão de minutos todos os meios de transporte disponíveis moviam-se para fora do povoado, para o oeste ao longo da estrada que quase nunca se usava. Como convinha ao prefeito de um centro cultural tão importante quanto Baía das Palmas (população: 572 habitantes; ocupação: pesca hidropônica; indústria: nenhuma), o pai de Lora liderava o grupo em seu carro oficial. O fato de a pintura anual encontrar-se no final de seu tempo de validade talvez fosse um pouco inconveniente. Esperava-se que os visitantes não reparassem nos ocasionais trechos de metal nu. Afinal, o carro era bem novo e Lora lembrava-se distintamente de todo o entusiasmo que sua chegada despertara, há apenas 13 anos.

      A pequena caravana de carros diversos, caminhões e até mesmo um par de trenós de areia passou sobre o topo de uma colina e parou ao lado de uma placa gasta pelo tempo, com as palavras simples, mas imponentes:

LOCAL DE POUSO DA PRIMEIRA EXPEDIÇÃO A THALASSA

1.° DE JANEIRO, ANO ZERO (28 de maio de 2626 d.C.)

      A primeira expedição, Lora repetiu para si mesma. Nunca houvera uma segunda - mas aqui estava...

      A nave aproximou-se, tão baixa e silenciosa que se encontrou quase sobre eles antes que a percebessem. Não havia ruído de motores, apenas um breve sussurro de folhas se mexendo enquanto o ar deslocado agitava as árvores. Então, tudo ficou quieto outra vez, mas parecia a Lora que o reluzente ovóide pousado na relva era um grande ovo de prata prestes a chocar, trazendo alguma coisa nova e estranha ao pacífico mundo de Thalassa.

      -  É  tão pequeno - sussurrou  alguém  atrás dela. - Eles não podem ter vindo da Terra naquela coisa!

      - É claro que não - respondeu de imediato o inevitável especialista autoproclamado. - Aquilo é apenas um bote. A verdadeira nave está lá em cima, no espaço. Não se lembra de que a primeira expedição. ..

      -  Psiu! - protestou mais alguém. - Eles estão saindo!

      Aconteceu no espaço de uma batida de coração. Num segundo o casco sem costuras parecia tão liso e contínuo que o olho buscava em vão qualquer indício de uma abertura. E então, um instante depois, havia uma porta oval com uma rampa curta estendida até o solo. Nada se movera, mas alguma coisa havia acontecido. Lora nem podia imaginar como fora feito, mas aceitou esse milagre sem qualquer surpresa. Tais coisas deviam ser esperadas em uma nave que viera da Terra.

      Havia figuras se movendo na entrada escurecida. Nenhum som partiu da multidão à espera enquanto os visitantes saíam, piscando os olhos ante a luz forte de um sol estranho. Havia sete deles, todos homens, e não pareciam nem um pouco os superseres que ela esperava. Era verdade que todos ficavam um pouco acima da média em altura e tinham feições regulares, mas eram tão pálidos que suas peles pareciam quase brancas. Além disso, mostravam-se preocupados e incertos, o que deixou Lora muito intrigada. Pela primeira vez lhe ocorreu que esse pouso em Thalassa poderia ter sido involuntário e que os visitantes estivessem tão surpresos por estar ali quanto os ilhéus, ao saudá-los.

      O prefeito de Baía das Palmas, próximo ao momento supremo de sua carreira, deu um passo à frente para fazer o discurso no qual estivera trabalhando freneticamente desde que o carro deixara o vilarejo. Um segundo antes que abrisse a boca, foi acometido por uma dúvida que apagou sua memória. Todos haviam presumido, de modo automático, que essa nave viera da Terra, mas isso era pura suposição. Podia tão facilmente ter sido enviada até ali por uma das outras colônias, unia dúzia das quais, pelo menos, muito mais próxima do que o mundo pátrio. Em seu pânico diante do protocolo, tudo o que o pai de Lora conseguiu dizer foi:

      - Dou-lhes as boas-vindas a Thalassa. Vocês são da Terra... eu presumo... - Esse "eu presumo" tornaria imortal o prefeito Fordyce, e se passaria um século antes que alguém descobrisse que a expressão não era inteiramente original.

      Em toda aquela multidão ansiosa, Lora foi a única pessoa a não ouvir a resposta afirmativa, pronunciada num inglês que parecia ter se acelerado um pouco durante os séculos de separação. Isso porque, naquele instante, ela viu Leon pala primeira vez.

      Ele saiu da nave movendo-se com tanta discrição quanto possível para se unir aos seus companheiros ao pé da rampa. Talvez houvesse permanecido lá dentro para fazer algum ajuste nos controles, ou então, o que parecia mais provável, estivera relatando o desenvolvimento do contato para a grande nave-mãe que devia estar suspensa lá no espaço, além das fronteiras superiores da atmosfera. Fosse qual fosse a razão, daí em diante Lora só tinha olhos para ele.

      Mesmo naquele instante inicial, ela já sabia que sua vida nunca mais seria a mesma. Havia algo novo e além de toda a sua experiência, enchendo-a ao mesmo tempo de admiração e medo. O medo devia-se ao amor que sentia por Clyde; a admiração, a essa coisa nova e desconhecida que entrara em sua vida.

      Leon não era tão alto quanto seus companheiros, mas muito mais robusto, transmitindo uma impressão de poder e competência. Seus olhos eram escuros e cheios de vivacidade, profundos, em meio a feições brutas que ninguém poderia ter chamado de belas, mas que Lora achava perturbadoras e atraentes. Ali estava um homem que vira paisagens as quais ela nem poderia imaginar. Um homem que talvez tivesse caminhado pelas ruas da Terra e visto suas lendárias cidades. O que fazia ele aqui, na solitária Thalassa, e qual a razão daquelas linhas de tensão e preocupação em torno de seus olhos irrequietos?

      Ele olhara para ela uma vez, mas seu olhar movera-se adiante sem vacilar. Agora estava de volta, talvez estimulado pela memória, e pela primeira vez se tornou consciente da presença de Lora, enquanto ela estivera todo o tempo consciente dele. Seus olhares se cruzaram através dos abismos do tempo, do espaço e da experiência. Os vincos de ansiedade desapareceram da testa de Leon e as linhas de tensão aos poucos se relaxaram. Daí a pouco ele sorriu.

 

      A noite caía quando terminaram os discursos, banquetes, recepções e entrevistas. Leon estava cansado, mas sua mente permanecia muito ativa para permitir que dormisse. Após a tensão das últimas semanas, quando despertara ante o clamor agudo dos alarmes e lutara com seus colegas para salvar a nave ferida, era difícil se convencer de que afinal haviam alcançado a segurança. Que incrível boa sorte que esse planeta habitado estivesse tão próximo! Mesmo que não pudessem consertar a nave e completar o voo de dois séculos que ainda os aguardava, pelo menos poderiam permanecer entre amigos. Nenhum náufrago, do mar ou do espaço, podia pedir mais do que isso.

      A noite era fria e calma, cheia de estrelas pouco familiares. E no entanto ainda existiam algumas velhas amigas, muito embora os antigos padrões das constelações estivessem inapelavelmente perdidos. Lá estava a poderosa Rigel, nem um pouco mais fraca, apesar do acréscimo de anos-luz que seus raios precisavam agora cruzar para atingirem os olhos de Leon. E aquela devia ser a gigantesca Canopus, quase em linha com seu destino, mas tão remota que, quando atingissem seu novo lar, ela não lhes pareceria mais brilhante do que nos céus da Terra.

      Leon sacudiu a cabeça para tirar da mente essa imagem de imensidão atordoante, hipnótica. "Esqueça as estrelas", disse ele para si mesmo, "breve você terá que enfrentá-las. Agarre-se a esse pequeno mundo enquanto está nele, mesmo que ele seja um grão de poeira na estrada entre a Terra, que você nunca mais verá, e o objetivo que o espera no fim da jornada, daqui a 200 anos."

      Seus amigos já estavam dormindo, cansados e contentes como tinham o direito de estar. Logo se uniria a eles, assim que seu espírito inquieto o permitisse. Mas primeiro iria olhar um pouco desse mundo aonde o acaso o levara, esse oásis povoado por seus semelhantes em meio aos desertos do espaço.

      Deixou a comprida casa de hóspedes, de um único andar, que fora preparada para eles com óbvia pressa, e caminhou pela única rua de Baía das Palmas. Não havia ninguém, embora uma música sonolenta saísse de algumas das casas. Parecia que os moradores acreditavam na conveniência de ir cedo para a cama, ou talvez também estivessem exaustos com a excitação e a hospitalidade daquele dia. Aquilo convinha a Leon, que desejava ficar sozinho até que seus céleres pensamentos se acalmassem um pouco.

      Em meio à quietude da noite, ele se tornou consciente do murmúrio do mar, e esse som atraiu seus passos para longe da rua vazia. Estava muito escuro entre as palmeiras quando as luzes da cidade minguaram atrás dele, mas a menor das duas luas de Thalassa encontrava-se alta acima do horizonte sul, e seu curioso brilho amarelo forneceu-lhe toda a orientação de que precisava. Daí a pouco atravessava a linha das árvores e lá, no fim da praia íngreme, se encontrava o oceano que cobria quase todo esse mundo.

      Uma fileira de barcos de pesca fora arrastada até a beira da água e Leon caminhou lentamente em direção a eles, curioso para ver como os artífices de Tha-lassa haviam resolvido um dos mais antigos problemas apresentados ao homem. Olhou de modo aprovador para os elegantes cascos de plástico, o estreito flutuador de suporte, o guincho para erguer as redes, o motor pequeno e compacto, o rádio com o laço do localizador direcional. Essa simplicidade quase primitiva, e no entanto completamente adequada, exercia sobre ele profunda atração. Era difícil pensar num contraste maior em relação às labirínticas complexidades da poderosa nave, suspensa lá em cima, sobre sua cabeça. Por um momento ele se divertiu com uma fantasia: como seria agradável esquecer todos os anos de treinamento e estudo, e trocar a vida de engenheiro de propulsão em naves estelares pela existência pacífica e pouco exigente de pescador. Eles deviam precisar de alguém para manter os barcos em ordem, e talvez pudesse imaginar algumas melhorias. ..

      Encolheu os ombros ante esse sonho cor-de-rosa, sem se importar em destacar todas as suas falhas óbvias, e começou a caminhar ao longo da movediça linha de espuma onde as ondas gastavam suas últimas forças de encontro à terra. Sob seus pés se encontravam os resíduos da vida recém-nascida nesse oceano. Conchas vazias e carapaças que deviam ter enchido as praias da Terra há bilhões de "anos. Aqui, por exemplo, estava uma espiral compacta de pedra calcária que, com certeza, já havia visto em algum museu. Bem, poderia ser; qualquer desenho que servisse a seus propósitos, a natureza repetia interminavelmente, mundo após mundo.

      Um brilho fraco, amarelado, começava a se espalhar com rapidez na parte leste do céu. Enquanto Leon observava, Selene, a lua interior, surgiu acima do horizonte. Com espantosa velocidade, todo o seu disco se ergueu para fora do mar, inundando a praia com uma luz súbita.

      E naquele brilho Leon percebeu não estar sozinho.

      A garota estava sentada em um dos barcos na praia, a uns 50 m dele. De costas para ele, ela olhava o mar, parecendo inconsciente de sua presença. Leon hesitou, não desejando invadir-lhe a solidão, e também incerto quanto aos costumes locais nessas questões. Parecia bastante provável, nessa hora e lugar, que ela estivesse esperando alguém, e seria mais seguro e mais discreto voltar-se sem fazer barulho e caminhar de volta para a vila.

      A decisão veio muito tarde. Como que espantada pelo novo fluxo de luz ao longo da praia, a garota olhou para cima e o viu imediatamente. Levantou-se com lenta graciosidade, sem demonstrar qualquer sinal de alarme ou aborrecimento. De fato, se Leon pudesse ver-lhe o rosto claramente, à luz do luar, teria ficado surpreso com a calma satisfação que exprimia.

      Apenas 12 horas atrás, Lora teria ficado completamente indignada se alguém sugerisse que ela se encontraria com um homem completamente estranho, ali, naquela praia solitária, quando o resto do mundo já estava dormindo. Mesmo agora, poderia tentar racionalizar seu comportamento, afirmando que estava agitada e não conseguia dormir, e por isso resolvera sair para uma caminhada. Mas sabia de coração que isso não era verdade. O dia todo, estivera assombrada pela lembranca do jovem engenheiro, cujo nome e posição conseguira descobrir sem, assim esperava, despertar muita curiosidade entre seus amigos.

      Nem mesmo fora sorte tê-lo visto deixando a casa de hospedagem. Ela estivera observando a maior parte da noite, da varanda da casa de seu pai, no outro lado da rua. E certamente não havia sido a sorte, mas um planejamento deliberado e cuidadoso, que a conduzira até esse local da praia assim que tivera certeza quanto à direção que Leon tomava.

      Ele parou a 12 passos de distância. (Será que a teria reconhecido? Iria supor que se tratava de um encontro acidental? Por um momento, a coragem quase a abandonou, mas agora era muito tarde para recuar.) Então ele sorriu de um modo curioso, que parecia iluminar todo o seu rosto e torná-lo mais jovem do que na realidade era.

      -  Olá - disse ele. - Não imaginava encontrar ninguém a esta hora da noite. Espero não estar incomodando.

      -  Claro que não - respondeu Lora, tentando manter a voz tão firme e sem emoção quanto possível.

      -  Eu sou da nave, sabe? Pensei em dar uma olhada em Thalassa enquanto ainda estou aqui.

      Nessas últimas palavras pareceu ocorrer uma mudança de expressão no rosto de Lora, e a tristeza que Leon viu deixou-o intrigado, pois não podia perceber sua causa. E então, com um instantâneo choque de reconhecimento, ele percebeu que já vira essa garota antes e compreendeu o que ela estava fazendo ali. Essa era a garota que sorrira para ele, ao sair da nave. Não, não era verdade, fora ele que sorrira para ela...

      Parecia não haver nada para ser dito. Eles olharam um para o outro por sobre a areia ondulada, cada um se admirando ante o milagre que os unira através da imensidão do tempo e do espaço. Então, como num acordo inconsciente, se sentaram um diante do outro, por sobre a amurada do barco, ainda sem dizer uma palavra.

      "Isso é loucura", pensou Leon. "O que estou fazendo aqui? Que direito tenho eu, um viajante passando por este mundo, de alterar a vida de uma pessoa daqui? Devia pedir desculpas e deixar essa garota com a praia e o mar, que são seus por direito, não meus."

      Entretanto, não arredou pé. O brilhante disco de Selene já subira um palmo acima do mar quando ele finalmente perguntou:

      -  Qual é o seu nome?

      -  Eu sou Lora - respondeu ela com o sotaque suave e cadenciado dos ilhéus, muito atraente, mas nem sempre fácil de compreender.

      - E eu sou Leon Carrel, engenheiro-assistente de propulsão da nave estelar Magalhães.

      Lora deu um pequeno sorriso enquanto ele se apresentava, e naquele instante Leon teve certeza de que ela já sabia seu nome. Ao mesmo tempo, um pensamento completamente irrelevante e excêntrico lhe ocorreu. Até alguns minutos atrás, estivera morto de cansaço, pronto a voltar em busca de seu sono atrasado. E no entanto agora estava completamente desperto e alerta. Preparado à beira de uma nova e imprevisível aventura.

      Mas a observação de Lora, a seguir, era bastante previsível.

      - Que está achando de Thalassa?

      - Preciso de mais tempo - respondeu Leon. - Só pude ver Baía das Palmas, e não muito.

      - Vão ficar aqui muito tempo?

      A pausa fora quase imperceptível, mas o ouvido de Leon a detectara. Essa era a pergunta verdadeiramente importante.

      -  Não tenho certeza - ele respondeu sinceramente. - Depende do tempo que levem os reparos.

      -  O que saiu errado?

      -  Oh, nós batemos em alguma coisa muito grande para o nosso escudo meteórico e então... Bang! Foi o fim do escudo. Assim, temos que fazer um novo.

      - E acha que pode fazê-lo aqui?

      - É o que esperamos. O problema principal será erguer um milhão de toneladas de água até a Magalhães. Felizmente, acho que Thalassa poderá dispor desta água.

      - Água? Não compreendo.

      - Bem, você sabe que uma nave estelar viaja quase à velocidade da luz. Ainda assim, leva anos para chegar a qualquer lugar, e nós temos que entrar em animação suspensa, deixando que os controles automáticos governem a nave.

      Lora assentiu com a cabeça.

      - É claro, foi assim que nossos ancestrais chegaram aqui.

      - A velocidade não seria problema se o espaço fosse realmente vazio. Mas não é. Uma nave estelar varre milhares de átomos de hidrogênio, partículas de poeira e às vezes fragmentos maiores a cada segundo de seu vôo. A uma velocidade próxima à da luz, esses fragmentos  de  lixo  cósmico   possuem  uma  energia enorme e logo queimariam nossa nave. Assim, carregamos um escudo cerca de um quilômetro e meio adiante de nós, e deixamos que ele se queime em vez de nós. Vocês usam guarda-chuvas neste mundo?

      - Sim, por quê? - respondeu Lora, obviamente confusa ante a pergunta incongruente.

      - Então pode comparar uma nave estelar a um homem movendo-se de cabeça para a frente através de uma tempestade, sob a cobertura de seu guarda-chuva. A chuva é a poeira cósmica entre as estrelas, e nossa nave teve a má sorte de perder seu guarda-chuva.

      - Vocês podem fazer um novo com água?

      - Sim, é o material de construção mais barato do universo. Nós a transformamos num iceberg que viaja à nossa frente. Que poderia ser mais simples do que isso?

      Lora não respondeu, seus pensamentos parecendo desviados para uma nova trilha. Dentro em pouco, falou com uma voz tão baixa e pensativa que Leon teve que se inclinar para a frente a fim de poder ouvi-la contra o ruído das ondas.

      - E vocês deixaram a Terra há 100 anos?

      - Cento e quatro. É claro que parecem apenas algumas semanas, uma vez que dormimos profundamente até que o autopiloto nos reanimasse. Todos os colonizadores ainda se encontram em animação suspensa. Eles não sabem o que aconteceu.

      - E dentro em breve você se reunirá a eles, para dormir em seu caminho até as estrelas.

      Leon assentiu, evitando-lhe o olhar.

      - Certo. A queda planetária ocorrerá alguns meses atrasada, mas isso não importa em uma viagem de 300 anos.

      Lora indicou a ilha atrás deles e depois o mar sem fronteiras em cuja praia se encontravam.

      - É estranho pensar que seus amigos adormecidos lá em cima não vão conhecer nada disto aqui. Sinto pena deles.

      - Sim, apenas uns 50 engenheiros terão alguma lembrança de Thalassa. Para todos os demais na nave, nossa parada aqui não será mais que um registro com 100 anos de idade num diário de bordo.

      Olhou para o rosto de Lora e notou outra vez a tristeza em seus olhos.

      - Por que isso a deixa infeliz?

      Ela sacudiu a cabeça, incapaz de responder. Como alguém poderia exprimir o sentimento de solidão que as palavras de Leon lhe haviam trazido? As vidas dos homens, com todas as suas esperanças e temores, pareciam tão insignificantes ante as inconcebíveis imensidões que eles se atreviam a desafiar. Pensar naquela jornada de 300 anos, que ainda não estava sequer na metade, era algo que lhe enchia a mente de terror. No entanto, em suas veias corria o sangue dos antigos pioneiros que haviam seguido a mesma trilha para alcançarem Thalassa, séculos atrás.

      A noite não lhe parecia mais amistosa. Sentia urna súbita ansiedade por voltar ao seu lar e à sua família, ao pequeno quarto que continha tudo que ela possuía e que constituía todo o mundo que conhecia e desejava. O frio do espaço gelava seu coração e ela agora desejava nunca ter embarcado nessa aventura louca. Era hora, mais do que hora, de partir.

      Quando se levantou, percebeu que se haviam sentado no barco de Clyde. Imaginou que impulso inconsciente a trouxera justamente para aquele e não para qualquer outro barco da pequena frota alinhada na praia. Ante a lembrança de Clyde, um espasmo de incerteza, de culpa mesmo, percorreu-lhe o corpo. Nunca na sua vida, exceto durante breves momentos, havia pensado em qualquer outro homem que não ele. Agora não podia mais fingir que isso fosse verdade.

      - O que foi? - indagou Leon. - Está com frio? - Estendeu a mão para ela e pela primeira vez seus dedos se tocaram, enquanto ela respondia automaticamente. Mas no instante do contato ela se assustou, como um animal espantado, e recuou.

      - Estou bem - respondeu quase com raiva. - É tarde, devo ir para casa. Adeus!

      Sua reação foi tão repentina que tomou Leon de surpresa. Teria dito alguma coisa para ofendê-la? Lora já se afastava rapidamente quando ele chamou.

      - Verei você de novo?

      Se ela respondeu, o som das ondas abafou-lhe a voz. Ele a observou se afastando, intrigado e um pouco magoado, enquanto refletia, não pela primeira vez em sua vida, como era difícil entender a mente de uma mulher.

      Por um instante, pensou em segui-la e repetir a pergunta, mas, em seu coração, já sabia não ser necessário. Tão certo quanto o sol se ergueria amanhã, eles se encontrariam de novo.

 

      E agora toda a vida na ilha era dominada pelo gigante estropiado a 1.500 km, lá no espaço. Antes da aurora e após o poente, quando o mundo já mergulhara na escuridão, mas a luz do sol ainda fluía acima, era possível ver a Magalhães como uma estrela brilhante, o objeto mais luminoso do céu, excetuando as duas luas. E mesmo quando não podia ser vista, perdida no clarão do dia ou eclipsada pela sombra de Tha-lassa, ela nunca se encontrava distante do pensamento dos homens.

      Era difícil acreditar que apenas 50 tripulantes da nave estelar houvessem despertado e que nem mesmo metade deles estivessem em Thalassa ao mesmo tempo. Eles pareciam encontrar-se em toda parte, geralmente em pequenos grupos de dois ou três, caminhando rapidamente em misteriosas missões ou movendo-se nas pequenas motos antigravidade, que flutuavam a alguns pés do solo, passando tão silenciosamente a ponto de tornarem a vida no vilarejo um pouco arriscada. A despeito dos convites insistentes, os visitantes ainda não haviam tomado parte nas atividades sociais e culturais da ilha. Haviam explicado polidamente, mas com firmeza, que não teriam tempo para outros interesses até que a segurança de sua nave estivesse garantida. Depois, com certeza, mas não agora...

      Assim, Thalassa precisou aguardar, com toda paciência que podia reunir, enquanto os homens da Terra instalavam seus instrumentos, faziam suas pesquisas, perfuravam profundamente as rochas da ilha e realizavam dúzias de experiências que pareciam não ter conexão alguma com seus problemas. Por vezes, consultavam os cientistas de Thalassa, mas de modo geral se mantinham reservados. Não que fossem inamistosos ou indiferentes, mas estavam trabalhando com uma intensidade e um interesse tão grandes que quase não notavam as pessoas ao seu redor.

      Após o primeiro encontro, passaram-se dois dias antes que Lora falasse outra vez com Leon. Ela o via de tempos em tempos, quando ele passava apressado pela aldeia, quase sempre com uma pasta volumosa e uma expressão distante, sendo capaz de trocar com ela apenas um breve sorriso. Isso era o suficiente para manter as emoções de Lora em desordem, tirando-lhe a paz da mente e envenenando seu relacionamento com Clyde.

      Até onde se podia lembrar, ele sempre fora parte de sua vida. Haviam tido seus desacordos e brigas, mas ninguém mais lhe tomara o lugar no coração. Dentro de mais alguns meses, iriam se casar, mas agora ela não tinha mais certeza nem mesmo disso. Ou de coisa alguma.

      Uma "louca paixão" parecia algo capaz de ocorrer apenas a outras pessoas. Mas de que outro modo poderia explicar esse anseio por estar com um homem que aparecera de súbito em sua vida, vindo de lugar nenhum, e que deveria partir dentro de alguns dias ou semanas? Não havia dúvida de que sua origem fascinante e romântica era, até certo ponto, responsável, mas apenas isso não era justificativa. Havia outros homens da Terra mais atraentes do que Leon e, no entanto, ela só tinha olhos para ele. Sua vida parecia agora vazia a não ser quando se encontrava perto dele.

      No final do primeiro dia, apenas sua família sabia de seus sentimentos, mas, ao cabo do segundo, todos por quem ela passava davam-lhe um sorriso de compreensão. Era impossível manter um segredo em uma comunidade coesa e loquaz como Baía das Palmas, e Lora sabia ser inútil tentar.

      Seu segundo encontro com Leon foi acidental... até onde tais coisas podem ser acidentais. Estava ajudando seu pai a despachar a correspondência e os pedidos que se haviam derramado sobre a vila, desde a chegada dos homens da Terra. Procurava colocar um pouco de sentido em suas anotações quando a porta do escritório se abriu. Abrira-se com tanta freqüência nos últimos dias que ela deixara de olhar para cima quando isso acontecia. Sua irmã mais moça estava atuando como recepcionista e atendia todos os visitantes. Então ouviu a voz de Leon e os papéis se tornaram indistintos ante seus olhos, como se as anotações tivessem sido escritas em alguma língua estrangeira.

      -  Posso ver o prefeito, por gentileza?

      -  Claro, senhor... ?

      - Engenheiro-assistente Carrel.

      - Vou chamá-lo. Não quer se sentar?

      Leon afundou-se, cansado, na antiga poltrona, a melhor que a sala de recepção poderia oferecer aos visitantes pouco freqüentes. Só então ele percebeu Lora, que, do outro lado da sala, o observava em silêncio. Imediatamente se livrou da sensação de cansaço e ficou de pé.

      - Oi! Não sabia que trabalhava aqui.

      - Moro aqui. Meu pai é o prefeito.

      Essa auspiciosa novidade não pareceu deixá-lo muito impressionado. Ele caminhou até a mesa e apanhou o grosso volume que Lora estivera folheando nos intervalos de suas tarefas de secretariado.

      - História sucinta da Terra - ele leu. - Da aurora da civilização aos primórdios do vôo interestelar. E tudo em apenas 1.000 páginas! É uma pena que termine 300 anos atrás.

      -  Esperamos que vocês nos atualizem dentro em breve. Aconteceu muita coisa desde que essa foi escrita?

      -  O bastante para preencher 50 bibliotecas, eu suponho. Mas antes de partirmos nós deixaremos cópias de todos os nossos registros, de modo que seus livros de história ficarão com apenas  100 anos de atraso.

      Estavam evitando a única pergunta de fato importante: "Quando poderemos nos encontrar de novo?" Os pensamentos de Lora martelavam silenciosamente, incapazes de romperem a barreira da vocalização. "Será que ele gosta mesmo de mim ou só está conversando por educação?"

      A porta interna se abriu e o prefeito apareceu desculpando-se.

      -  Sinto tê-lo deixado esperando, Sr. Carrel, mas o presidente estava ao telefone. Ele deve chegar esta tarde. Em que lhe podemos ser útil?

      Lora fingiu trabalhar, mas datilografou a mesma frase oito vezes enquanto Leon transmitia a mensagem do capitão da Magalhães. Quando terminou, ela não se encontrava muito mais bem-informada do que no início. Parecia que os engenheiros da nave estelar pretendiam construir algum tipo de equipamento num promontório, a 1.500 m do povoado, e queriam ter certeza de que não haveria objeções.

      - É claro! - respondeu o prefeito, comunicativo, com um tom de voz que transmitia a impressão de que "nada é suficientemente bom para os nossos hóspedes". - Vão  em frente, aquela terra não pertence mesmo a ninguém e ninguém vive lá. O que vocês querem fazer com ela?

      - Estamos construindo um inversor de gravidade e o gerador precisa ser ancorado em rocha sólida. Pode ser um pouco barulhento quando começar a funcionar, mas acho que não incomodará vocês aqui na vila. E é claro que nós desmontaremos o equipamento quando terminarmos.

      Lora tinha que admirar o pai. Ela sabia muito bem que o pedido de Leon era tão sem significado para ele quanto para ela, mas ninguém teria percebido isso.

      - Então, tudo está perfeitamente bem. Fico feliz em ser de alguma ajuda. Dirá ao capitão Gold que o presidente deve chegar às cinco desta tarde? Eu mandarei meu carro apanhá-lo; a recepção será às 5:30 no salão.

      Depois de Leon agradecer e partir, o prefeito Fordyce aproximou-se da filha e apanhou a delgada pilha de correspondência que ela datilografara sem muita precisão.

      - Parece um rapaz agradável - comentou. - Mas será boa ideia gostar demasiado dele?

      - Não entendo o que quer dizer.

      - Ora, vamos, Lora. Afinal, sou seu pai, e não sou completamente desatento.

      - Ele não está... - e começou a fungar - ... nem um pouco interessado em mim.

      - E você está interessada nele?

      - Não sei. Oh, papai, me sinto tão infeliz!

      O prefeito Fordyce não era um homem corajoso; assim, só havia uma coisa que podia fazer. Deu seu lenço à filha e correu de volta ao escritório.

      Era o problema mais difícil que Clyde já enfrentara em sua vida e não existiam precedentes que pudessem ajudá-lo. Lora lhe pertencia, todo o mundo sabia disso. Se seu rival fosse outro morador da vila ou alguém de outra parte de Thalassa, ele saberia com certeza o que fazer. Mas as leis da hospitalidade e, acima de tudo, sua admiração natural por qualquer coisa da Terra o impediam de pedir educadamente a Leon que desviasse o foco de suas atenções para algum outro lugar. Não era a primeira vez que tal coisa acontecia, e nunca houvera o menor problema nas ocasiões anteriores. Talvez porque Clyde tivesse 1,80 m, fosse proporcionalmente forte e sem qualquer excesso de gordura em seus 85 kg.

      Durante as longas horas no mar, quando não tinha nada mais a fazer exceto meditar, Clyde brincava com a ideia de uma luta curta e violenta com Leon. Seria uma briga bem curta. Embora Leon não fosse tão franzino quanto a maioria dos homens da Terra, ele compartilhava sua aparência pálida, desbotada, e é óbvio que não seria páreo para uma pessoa que levava uma vida de atividade física. Esse era o problema: não seria uma luta justa. E Clyde sabia que a opinião pública ficaria indignada se ele brigasse com Leon, não importa quanta razão tivesse.

      E quanta razão tinha ele? Esse era o grande problema que preocupava Clyde, assim como preocupara muitos bilhões de homens antes dele. Parecia que Leon já era praticamente um membro da família. Cada vez que passava na casa do prefeito, o homem da Terra parecia ter ido lá com um pretexto ou outro. Ciúme era uma emoção que nunca antes afligira Clyde, e ele não gostava dos sintomas.

      Ainda estava furioso quanto à dança. Fora o maior evento social dos últimos anos; de fato, não parecia provável que Baía das Palmas chegasse a repeti-lo em toda a sua história. Ter o presidente de Thalassa, metade do conselho e 50 visitantes da Terra em um vilarejo, ao mesmo tempo, não era coisa que pudesse tornar a acontecer deste lado da eternidade.

      Apesar de seu tamanho e força, Clyde era um bom dançarino, principalmente com Lora. Mas naquela noite ele tivera poucas oportunidades de demonstrar isso. Leon estivera ocupado demais mostrando os últimos passos de dança da Terra. (Últimos se fosse possível esquecer o fato de que eles já deviam estar fora de moda há mais de 100 anos - a não ser que a moda tivesse voltado e fossem agora a última novidade.) Na opinião de Clyde, a técnica de Leon era muito pobre, e as danças que demonstrara, feias. O interesse de Lora a respeito era perfeitamente ridículo.

      Fora uma grande tolice dizer isso a ela assim que surgira a oportunidade. Essa fora a última dança que tivera com ela naquela noite. Daí por diante, no que dizia respeito a Lora era como se ele não estivesse lá. Clyde aguentou o boicote enquanto pôde, depois partiu para o bar com um único objetivo em mente. Logo o atingiu, e só ao recobrar os sentidos, na manhã seguinte, descobriu o que havia perdido.

      A  dança  terminara  cedo,  depois  houvera  um curto discurso feito pelo presidente, o terceiro naquela noite, apresentando o comandante da nave estelar e prometendo uma pequena surpresa. O capitão Gold também fora breve, tratando-se, é claro, de um homem mais acostumado a dar ordens do que a fazer palestras.

      - Amigos - ele começou -, sabem por que me encontro aqui e não preciso dizer o quanto aprecio sua hospitalidade e bondade. Nunca os esqueceremos e apenas sentimos ter tão pouco tempo para ver mais de sua linda ilha e de seu povo. Espero que nos perdoem por qualquer descortesia aparente, mas os reparos de nossa nave e a segurança de nossos companheiros devem ter prioridade em nossas mentes.

      "A longo prazo, o acidente que nos trouxe aqui pode ser vantajoso para nós e para vocês. Forneceu-nos lembranças felizes e também inspiração. O que aqui vimos pode nos servir de lição. Que possamos fazer com que o mundo que nos espera, no final de nossa jornada, se torne um lar tão belo para a humanidade como vocês fizeram de Thalassa.

      "E antes que retornemos à nossa viagem, é ao mesmo tempo um dever e uma satisfação deixar com vocês todos os registros que possam preencher o vazio que ficou desde seu último contato com a Terra. Amanhã convidaremos seus cientistas e historiadores para subirem até a nossa nave, de modo que possam copiar qualquer informação que desejem de nossas fitas... Assim esperamos deixar um legado que enriquecerá seu mundo por gerações. Isso é o mínimo que podemos fazer.

      "Mas esta noite, ciência e história podem esperar, pois nós temos outros tesouros a bordo. A Terra não permaneceu indolente nos séculos que se seguiram a partir de seus antepassados. Ouçam agora um pouco da herança que compartilhamos e que deixaremos em Thalassa antes de prosseguirmos em nosso caminho."

      A iluminação foi reduzida e a música começou. Ninguém que estivesse presente jamais esqueceria aquele momento. Num transe de admiração, Lora ouviu o que os homens haviam forjado em sons durante os séculos de separação. O tempo perdeu o significado e ela se tornou inconsciente até mesmo da presença de Leon, que, ao seu lado, segurava-lhe a mão enquanto a música fluía e refluía em torno deles.

      Eram coisas que nunca conheceria, que pertenciam à Terra e somente à Terra. O lento bater de poderosos sinos, subindo como fumo invisível das velhas agulhas das catedrais; o canto paciente dos remadores, em mil idiomas agora perdidos para sempre, remando de volta ao lar contra o fluxo da maré na última claridade do dia. Canções de exércitos marchando para batalhas das quais o tempo roubara toda dor e maldade; o murmúrio fundido de dez milhões de vozes enquanto as maiores cidades do homem despertavam ao encontro da alvorada; a dança fria da aurora polar sobre intermináveis mares gelados; o rugir de motores poderosos subindo na estrada para as estrelas. Tudo isso ela ouviu transmitido na música e nas canções que saíram da noite... Canções da Terra distante transportadas até ela através de anos-luz...

      Uma clara voz de soprano, arremetendo e subindo como um pássaro até os limites da audição, cantou um lamento sem palavras que lhe feriu o coração. Era um canto fúnebre dirigido a todos os amores perdidos na solidão do espaço, a todos os amigos e lares que nunca mais seriam vistos e que deviam, afinal, se apagar na memória. Era uma canção dirigida a todos os exilados, e falava tão claramente àqueles separados da Terra por uma dúzia de gerações quanto aos viajantes para quem seus campos e cidades ainda pareciam afastados há apenas algumas semanas.

      A música morrera na escuridão. Com os olhos turvos e evitando as palavras, o povo de Thalassa retornou lentamente às suas casas. Mas Lora não foi para a sua. Só havia uma defesa contra a solidão que penetrara em sua própria alma. E daí a pouco ela a encontrou na noite cálida da floresta, enquanto os braços de Leon se apertavam em torno dela e suas almas e corpos se fundiam. Como caminhantes perdidos em uma vastidão hostil e desolada, eles buscaram calor e conforto ao lado do fogo do amor. Enquanto esse fogo queimava, estavam seguros das sombras que rondavam na noite, e todo o universo de estrelas e planetas se encolhia para virar um brinquedo que podiam conter entre as mãos.

 

      Para Leon, não parecia completamente real. A despeito de toda urgência e perigo que o conduziram a esse lugar, algumas vezes imaginava que seria difícil de se convencer, no final da jornada, que Thalassa não tivesse sido apenas um sonho durante o longo sono. Esse amor intenso e condenado, por exemplo, se lançara sobre ele sem ser solicitado. E no entanto poucos homens não o teriam aceito ao pousarem nesse mundo pacífico e agradável, após semanas de tortu-rante ansiedade.

      Quando podia escapar um pouco do trabalho, saía para longas caminhadas com Lora, indo até os campos, bem longe do povoado, onde os homens não costumavam ir e apenas os robôs agricultores perturbavam a solidão. Durante horas, Lora lhe indagava a respeito da Terra... mas nunca sobre o planeta que constituía o objetivo da Magalhães. Ele compreendia muito bem suas razões e fazia o melhor que podia para lhe satisfazer a interminável curiosidade a respeito de um mundo que ainda era o "lar" para muitos homens que nunca o tinham visto com seus próprios olhos.

      Lora ficou amargamente desapontada ao ouvir que a era das cidades terminara. Apesar de tudo que Leon lhe pudesse dizer a respeito da cultura completamente descentralizada que agora cobria o planeta de pólo a pólo, ela ainda pensava na Terra em termos de gigantes desaparecidos, tais como Chandrigar, Londres, Astrograd, Nova Iorque. Era difícil compreender que haviam desaparecido para sempre e que com elas se fora o modo de vida que representavam.

      - Quando deixamos a Terra - explicou Leon -, os maiores centros populacionais  eram cidades universitárias como Oxford, Ann Arbor ou Camberra. Algumas delas possuíam 50 mil estudantes e professores. Não restavam outras cidades que tivessem sequer metade desse tamanho.

      - Mas o que aconteceu com elas?

      - Bem, não houve uma causa única, mas o desenvolvimento das comunicações foi o início de tudo. Logo que qualquer pessoa na Terra se tornou capaz de ver e falar com qualquer outra apenas apertando um botão, a principal razão da existência de cidades desapareceu. Então, inventaram a antigravidade, e já era possível transportar mercadorias e casas ou qualquer outra coisa através dos céus, sem se incomodar com a geografia. Isso completou o trabalho de eliminação das   distâncias   que  o   avião   iniciara   séculos  antes. Depois disso, os homens começaram a viver onde desejavam e as cidades foram decaindo.

      Por um momento, Lora não respondeu. Estava deitada sobre a grama, observando o comportamento de uma abelha cujos ancestrais, assim como ela, haviam sido cidadãos da Terra. O animalzinho tentava, em vão, extrair néctar de uma das flores nativas de Thalassa. Os insetos ainda não haviam surgido nesse mundo e as poucas flores existentes não tinham, portanto, desenvolvido atrativos para visitantes aéreos.

      Frustrada, a abelha desistiu da tarefa sem esperanças e zumbiu com raiva, voando para longe. Lora esperava que ela tivesse o bom senso de retornar aos pomares, onde encontraria flores mais amigáveis. Quando tornou a falar foi para expressar um sonho que assombrava a humanidade há quase 1.000 anos.

      - Você supõe - disse ela pensativa - que algum dia conseguiremos romper a barreira da luz?

      Leon sorriu, sabendo para onde esses pensamentos a conduziam. Poder viajar mais rápido que a luz, poder viajar para a Terra e depois retornar ao seu mundo nativo enquanto seus amigos ainda estivessem vivos. Cada colonizador, em uma ocasião ou outra, sonhava com isso. Não havia problema em toda a história da humanidade que atraísse tantos esforços e entretanto permanecesse inteiramente insolúvel.

      - Não, não acredito. Se pudesse ser feito, a esta altura alguém já teria descoberto como. Não, temos que fazê-lo de modo lento, pois não existe nenhum outro. É desse modo que o universo é construído e não há nada que possamos fazer a respeito.

      - Mas certamente ainda poderíamos manter o contato!

      - É verdade - assentiu Leon. - E temos tentado. Eu não sei o que saiu errado, mas vocês já deviam ter recebido notícias da Terra há muito tempo. Temos enviado robôs mensageiros para todas as colónias, com a atualização histórica de tudo o que aconteceu até o dia da partida, mais um pedido para que mandem um relatório de volta. Quando as notícias retornam à Terra, tudo é transcrito e enviado de novo pelo mensageiro seguinte. Com isso temos uma espécie de serviço noticioso interestelar, com a Terra como centro de despachos. É lento, evidentemente, mas não existe outro modo de fazê-lo. Se o último mensageiro para Thalassa se perdeu, deve haver outro a caminho, talvez vários, com 20 ou 30 anos de intervalo.

      Lora tentou visualizar essa vasta rede de portadores de mensagens abarcando as estrelas, indo e vindo entre a Terra e sua prole dispersa, e se perguntou por que Thalassa fora esquecida. Com Leon ao seu lado, isso não parecia importante. Ele estava aqui, e a Terra e as estrelas estavam muito, muito distantes. E assim também se encontrava o amanhã, com qualquer infelicidade que pudesse guardar...

      Ao final da semana, os visitantes haviam construído uma pirâmide de vigas de metal, atarracada e pesadamente escorada, contendo algum mecanismo obscuro, sobre o promontório rochoso acima do mar. Lora, junto com os 571 habitantes de Baía das Palmas e vários milhares de espectadores que tinham descido para o vilarejo, estava observando quando o primeiro teste foi realizado. Ninguém podia chegar a menos de 400 m da máquina. Uma precaução que suscitara um bocado de inquietação entre os mais nervosos. Será que os homens da Terra sabiam o que estavam fazendo? Suponha que alguma coisa saísse errada. E, afinal, eles estavam fazendo o quê?

      Leon encontrava-se lá com seus amigos, fazendo os ajustes finais dentro da pirâmide de metal. Ele explicara a "focalização grosseira" para Lora, deixando-a sem compreender. E ela observou, com a mesma incompreensão ansiosa de todos os outros ilhéus, até que as figuras distantes emergiram da máquina e caminharam para a extremidade do rochedo achatado sobre o qual fora construída. Lá eles permaneceram, um pequeno grupo delineado contra o oceano, a observar o mar.

      A  1.500 m da praia, alguma coisa estranha estava acontecendo com a água. Parecia o início de uma tempestade, mas uma tempestade contida dentro de uma área de apenas algumas centenas de metros de extensão. Ondas majestosas erguiam-se, esmagando-se umas contra as outras, e depois desmoronando com rapidez. Dentro de alguns minutos, as ondulações provocadas por esse distúrbio chegaram até a praia, mas o centro da minúscula tormenta ainda não demonstrava sinal de se movimentar. Lora achou que era como se um dedo invisível se tivesse estendido do céu para remexer o mar.

      De súbito, todo o padrão se modificou. Agora, as ondas não golpeavam mais umas às outras, mas marchavam em passo sincronizado, avançando com velocidade cada vez maior num círculo apertado. Um cone de água se elevava do mar, tornando-se mais alto e estreito a cada segundo. Já tinha 30 m de altura e o som de seu nascimento era um rugido furioso, que enchia o ar e levava o terror aos corações de todos os que o ouviam. Todos, exceto o pequeno grupo de homens que havia invocado esse monstro das profundezas e que ainda o observava com calma confiança, ignorando as ondas que agora se quebravam quase aos seus pés.

      A torre de água rodopiante subia para o céu com rapidez, perfurando as nuvens como uma seta enquanto tomava seu caminho rumo ao espaço. Seu topo coroado de espuma já se perdera além do alcance da vista e começava a cair do céu uma contínua pancada de chuva, com gotas anormalmente grandes, como num prenúncio de tempestade. Nem toda a água erguida do único oceano de Thalassa chegara a seu destino. Parte dela escapara ao poder que a controlava e caía de volta do espaço.

      Aos poucos, a multidão de observadores ia se dispersando, o espanto e o medo cedendo lugar a uma calma aceitação. O homem era capaz de controlar a gravidade há 500 anos e esse truque, embora espeta cular, não poderia ser comparado ao milagre que constituía arremessar uma grande nave estelar, de sol a sol, quase à velocidade da luz.

      Os homens da Terra agora caminhavam de volta para sua máquina, satisfeitos com o que ela fizera. Mesmo a essa distância, era possível notar que estavam felizes e descontraídos, talvez pela primeira vez desde que chegaram a Thalassa. A água destinada a reconstruir o escudo da Magalhães estava a caminho para o espaço, onde seria moldada e conge lada pelas estranhas forças que esses homens dominavam. Dentro de mais alguns dias, estariam prontos para partir com sua nave interestelar, agora tão boa como se fosse nova.

      Até esse momento, Lora tivera esperanças de que fracassassem. Nada restava dessa hipótese agora, enquanto ela observava a tromba-d'água feita pelo homem erguer sua carga do mar. Algumas vezes, a coisa oscilava ligeiramente, sua base movia-se para a frente e para trás, como se estivesse no ponto de equilíbrio entre forças imensas e invisíveis. Tudo sob controle, realizando a tarefa que lhe fora destinada. Para Lora, isso significava apenas uma coisa: logo teria que dizer adeus a Leon.

      Ela caminhou lentamente em direcão ao distante grupo de homens da Terra, ordenando seus pensamentos e tentando dominar as emoções que sentia. Leon se afastou dos amigos e veio a seu encontro. O alívio e a felicidade eram evidentes em seu rosto, mas se apagaram rapidamente quando viu a expressão de Lora.

      - Bem - falou em tom de quem se desculpava, como se fosse um menino apanhado em alguma travessura -, nós o fizemos.

      - E, agora, por quanto tempo ficará aqui?

      Ele remexeu a areia com o pé, evitando olhar para ela.

      - Uns três dias, talvez quatro.

      Ela tentou assimilar as palavras com calma. Afinal, estava esperando ouvi-las, isso não constituía nada de novo. Mas falhou completamente e foi melhor que não houvesse ninguém por perto para ouvir.

      - Você não pode partir! - chorou Lora. - Fique aqui em Thalassa!

      Leon tomou-lhe as mãos com delicadeza e então murmurou:

      - Não, Lora, este não é o meu mundo, eu nunca me adaptaria a ele. Metade de minha vida foi consumida treinando para o trabalho que faço  agora. Eu nunca estaria feliz aqui, onde não existem mais fronteiras. Eu morreria de tédio dentro de um mês.

      - Então me leve com você!

      - Você não fala sério.

      - Falo, sim!

      - Apenas pensa que sim. Você estaria mais deslocada em meu mundo do que eu no seu.

      - Eu poderia aprender... muitas coisas eu poderia fazer. Desde que pudéssemos ficar juntos!

      Ele a segurou na extremidade de seus braços, olhando em seus olhos. Eles espelhavam tristeza e também sinceridade. Lora realmente acreditava no que estava dizendo e Leon se convenceu. Pela primeira vez, sua consciência o afligiu. Esquecera-se, ou preferira não se lembrar, do quanto essas coisas poderiam ser mais sérias para uma mulher do que para um homem.

      Nunca pretendera magoar Lora. Gostava da moça e se lembraria dela com afeto por toda a vida. Agora descobria, como tantos homens antes dele haviam descoberto, que nem sempre é fácil dizer adeus.

      Só havia uma coisa a ser feita. Melhor uma dor forte, mas rápida, do que uma longa amargura.

      - Venha comigo, Lora - disse ele -, tenho uma coisa para lhe mostrar.

      Nenhum dos dois falou enquanto Leon a conduzia para a clareira que os homens da Terra usavam como campo de pouso. Encontrava-se repleta de enigmáticas peças de equipamento, algumas delas sendo reembaladas, enquanto outras eram abandonadas para que os ilhéus as usassem como desejassem. Várias motos antigravidade encontravam-se estacionadas em uma sombra abaixo das palmeiras. Mesmo quando não usadas, elas desdenhavam o contato com o solo, flutuando a uns 60 cm acima da grama.

      Mas não era isso que interessava a Leon. Ele caminhou decididamente para o reluzente oval que dominava a clareira e disse algumas palavras para o engenheiro que se encontrava de pé ao lado dele. Houve uma rápida discussão e então o outro capitulou com razoável boa vontade.

      - Ainda não está com a carga toda - explicou Leon, enquanto ajudava Lora a subir na rampa. - Mas nós vamos subir assim mesmo. A outra nave estará aqui dentro de meia hora, de qualquer modo.

      Lora já se encontrava num mundo que nunca havia conhecido antes. Um mundo de tecnologia onde o cientista ou engenheiro mais brilhante de Thalassa ficaria perdido. A ilha possuía todas as máquinas de que necessitava para sua vida e felicidade, mas isso era algo completamente além de seus horizontes. Lora tivera oportunidade de ver uma vez o grande computador que virtualmente governava seu povo e de cujas decisões eles não discordavam nem uma vez em cada geração. O cérebro gigante era imenso e complexo, enquanto aqui nessa máquina havia uma assombrosa simplicidade que impressionava até a mente não-técnica de Lora. Quando Leon se sentou diante de um painel de controle demasiado pequeno, suas mãos pareceram nada fazer, exceto repousar levemente sobre ele.

      E contudo as paredes, de súbito, se tornaram transparentes. Lá estava Thalassa diminuindo abaixo deles. Não houvera sensação de movimento, nem mesmo um som, e no entanto a ilha já era pequena lá embaixo, enquanto ela observava. As bordas enevoadas do mundo, como um grande arco dividindo o azul do mar do veludo negro do espaço, tornavam-se mais curvas a cada segundo.

       - Olhe! - disse Leon, apontando para as estrelas.

      A nave já era visível e Lora sentiu um súbito desapontamento ao notar como era pequena. Podia ver um aglomerado de vigias em torno da seção central, mas não pareciam existir quaisquer outras descontinuidades em seu casco anguloso e atarracado.

      A ilusão durou apenas um segundo. Então, com um choque de incredulidade que fez seus sentidos vacilarem e a levou à beira da vertigem, viu como seus olhos tinham sido enganados. Aquelas não eram vigias, a nave ainda se encontrava a quilômetros de distância. O que estava enxergando eram as comportas através das quais os transportes poderiam penetrar e sair em suas viagens entre a nave estelar e Thalassa.

      Não há senso de perspectiva no espaço, onde todos os objetos parecem nítidos e definidos, não obstante a distância a que se encontrem. Mesmo quando o casco da nave se ergueu ao lado dela, como uma interminável parede de metal curva a eclipsar as estrelas, ainda não havia como julgar seu tamanho. Lora só podia supor que aquilo devia ter pelo menos 3 km de comprimento.

      O transporte acomodou-se sem qualquer intervenção de Leon, ao menos pelo que Lora podia julgar. Ela o acompanhou para fora da pequena sala de controle e. quando a câmara de ar se abriu, descobriu surpresa que poderia caminhar diretamente para dentro de um dos corredores da nave estelar.

      Encontraram-se de pé dentro de um longo corredor tubular que se estendia em ambas as direções, até onde a vista podia alcançar. O piso se movia sob seus pés, transportando-os de modo rápido e tranquilo. Estranhamente, Lora não sentira qualquer arrancada ao pisar sobre essa esteira rolante que agora a conduzia através da nave. Mais um mistério que nunca poderia explicar. Haveria muitos outros antes que Leon terminasse de lhe mostrar a Magalhães.

      Uma hora se passou antes que encontrassem outro ser humano. Nesse período de tempo, deviam ter percorrido quilómetros, às vezes sendo levados por corredores móveis, outras sendo erguidos através de tubos em cujo interior a gravidade parecia ter sido abolida. Era óbvio o que Leon estava tentando fazer: dar-lhe uma fraca impressão do tamanho e complexidade desse mundo artificial, construído para carregar até as estrelas as sementes de uma nova civilização.

      A sala de máquinas, com seus monstros encobertos e dormentes de cristal e metal, devia ter 800 m de comprimento. Enquanto se colocavam em uma plataforma bem alta, acima daquela vasta arena de poderes latentes, Leon disse com orgulho e talvez sem muita precisão:

      - Esses são meus.

      Lora olhou para baixo, em direção às formas imensas e sem significado que tinham transportado Leon até ela, através dos anos-luz, e ficou em dúvida quanto a se deveria abençoá-las pelo que haviam trazido ou amaldiçoá-las pelo que logo levariam para longe.

      Passaram com rapidez por porões cavernosos, abarrotados com todas as provisões, máquinas e instrumentos necessários para modificarem um planeta virgem, tornando-o o lar adequado para a humanidade. Havia metros após metros de prateleiras de estocagem, guardando em fitas, microfilmes e outras formas ainda mais compactas toda a herança cultural da humanidade. Ali encontraram um grupo de especialistas vindos de Thalassa, parecendo um tanto aturdidos enquanto tentavam decidir o quanto dessa riqueza poderiam pilhar nas poucas horas que lhes restavam.

      Lora se perguntava se seus ancestrais teriam partido tão bem-equipados para sua travessia do espaço. Duvidava disso. A nave deles fora menor e a Terra devia ter aprendido muito a respeito das técnicas de colonização interestelar nos séculos decorridos desde que Thalassa fora desbravada. Quando os viajantes adormecidos da Magalhães atingissem seu novo lar, teriam êxito assegurado se possuíssem espírito equivalente aos seus recursos materiais.

      Agora chegavam a uma grande porta branca que se abriu, deslizando silenciosamente, para lhes revelar, entre todas as coisas incongruentes passíveis de serem encontradas dentro de uma espaçonave, um vestiário, com fileiras de grossas peles pendendo de ganchos. Leon ajudou Lora a vestir uma delas e depois selecionou outra para si mesmo. Ela o seguiu sem compreender, enquanto caminhava em direção a um círculo de vidro coberto de geada no meio do piso. Ele se voltou e disse:

      - Não existe gravidade no lugar aonde vamos, portanto fique junto de mim e faça tudo o que eu fizer.

      O alçapão de cristal girou para cima como um tampo de relógio se abrindo e, saindo das profundezas, rodopiou um vento frio como Lora nunca sequer imaginara. Delgados fios de umidade se condensaram no ar congelante, dançando em torno dela como fantasmas. Ela olhou para Leon como se dissesse: "Com certeza, não espera que eu entre aí!"

      Ele segurou-a pelo braço de modo tranquilizador e disse:

      - Não se preocupe. Não notará o frio depois de alguns minutos. Eu irei na frente.

      O alçapão o engoliu. Lora hesitou por um momento e então desceu atrás dele. Desceu? Não, esse era um termo incorreto. Acima e embaixo não existiam mais aqui, a gravidade fora abolida. Ela encontrava-se flutuando sem peso nesse frígido universo, branco como neve. À sua volta, em todas as direções, brilhavam favos de vidro, formando milhares, dezenas de milhares de celas hexagonais. Encontravam-se unidas por aglomerados de tubulações e fardos de fios, e cada cela era grande o suficiente para conter um ser humano.

      E de fato continha. Lá estavam eles, dormindo ao redor de Lora, os milhares de colonizadores para os quais a Terra ainda era uma lembrança de ontem. Que estariam sonhando, a meio caminho num sono de 300 anos? Será que o cérebro poderia sonhar nessa vaga terra de ninguém entre vida e morte?

      Estreitas e intermináveis cintas, com alças separadas a intervalos de alguns centímetros, encontravam-se esticadas sobre a face da colmeia. Leon agarrou uma delas e deixou que os arrastasse rapidamente através do grande mosaico de hexágonos. Duas vezes mudaram de direção, passando de um cinturão para outro, até terem percorrido uns 400 m desde o ponto de partida.

      Leon soltou a alça e os dois flutuaram até parar ao lado de uma cela igual às miríades de outras. Mas, quando Lora viu a expressão no rosto de Leon, percebeu por que a levara até lá, e soube que sua batalha estava perdida.

      A garota flutuando em seu caixão de cristal tinha um rosto que não era belo, mas cheio de personalidade e inteligência. Mesmo nesse repouso de séculos, ela mostrava determinação e desenvoltura. Era o rosto de uma pioneira, uma mulher de fronteira que poderia se colocar ao lado de seu marido e ajudá-lo a manejar quaisquer ferramentas fabulosas que fossem necessárias para construir uma nova Terra, além das estrelas.

      Por um longo tempo, inconsciente do frio, Lora olhou para a rival adormecida, que nunca saberia de sua existência. "Teria algum amor, em toda a história do mundo, terminado num lugar tão estranho?" - ela se perguntou.

      Afinal falou, com a voz baixa como se temesse despertar essas legiões adormecidas.

      - É a sua esposa?

Leon assentiu.

      - Sinto muito, Lora, não pretendia feri-la...

      -  Agora não importa. Foi falha minha também.

      - Ela parou de falar, olhando mais de perto para a mulher adormecida. - O filho também é seu?

      - Sim. Vai  nascer três meses depois de pousarmos.

      Corno era estranho pensar em uma gestação que durasse nove meses e 300 anos! E no entanto era tudo parte de um mesmo padrão. Um padrão onde não existia lugar para ela.

      Essas pacientes multidões lhe assombrariam os sonhos pelo resto da vida. Enquanto o alçapão de cristal se fechava atrás dela e o calor retornava ao seu corpo, Lora desejou que o frio que penetrara em seu coração pudesse ser afastado com tanta facilidade. Um dia talvez o fosse, mas muitos dias e noites solitários deveriam se passar antes disso.

      Não se recordou de nada a respeito da jornada de volta através do labirinto de corredores e câmaras ressonantes. Ficou surpresa ao se encontrar uma vez mais dentro da cabine da pequena nave transportadora que a trouxera de Thalassa. Leon caminhou até os controles, fez alguns ajustes, mas não se sentou.

      - Adeus, Lora, meu trabalho está  terminado. É melhor que eu fique aqui.

      Segurou-lhe as mãos e, naquele último momento que passariam juntos, Lora não encontrou palavras que pudesse dizer. Nem ao menos podia ver o seu rosto, já que as lágrimas lhe turvavam a visão.

      As mãos dele se apertaram uma vez e então relaxaram. Soltou um soluço estrangulado e, quando pôde ver com nitidez, a cabine estava vazia.

      Um longo tempo depois, uma voz sintética, uniforme, anunciou, partindo do quadro de controle: "Acabamos de pousar. Por favor, saia pela comporta dianteira." Abrindo-se, as portas lhe guiaram os passos e dentro em pouco ela olhava para a clareira atribulada de onde partira há uma existência.

      Uma pequena multidão observava a nave com interesse, como se ela já não houvesse pousado uma centena de vezes. Por um momento, Lora não entendeu a razão; então, a voz de Clyde rugiu:

      - Onde está ele? Já aguentei o suficiente!

      Com alguns saltos, ele subiu a rampa e a segurou pelo braço, com força.

      - Diga-lhe que saia como homem!

Lora sacudiu a cabeça, apática.

      - Ele não está aqui. Eu lhe disse adeus. Nunca mais vou vê-lo.

      Clyde olhou para ela, descrente, e então percebeu que falava a verdade. No mesmo momento, ela desabou em seus braços, soluçando como se seu coração fosse partir. Enquanto ela tombava, a raiva de Clyde também desmoronava dentro dele, e tudo que pretendera dizer-lhe desapareceu de sua mente. Lora lhe pertencia uma vez mais, nada mais importava agora.

 

      O gêiser rugiu diante da costa de Thalassa por quase 50 horas, até que seu trabalho estivesse completo. Toda a ilha observou, através das lentes de televisão, a moldagem do iceberg que avançaria na frente da Magalhães em seu caminho rumo às estrelas. Que o novo escudo a servisse melhor do que aquele que trouxera da Terra, foi o que todos os observadores desejaram. O grande cone de gelo era protegido, durante essas poucas horas em que permaneceria próximo ao sol de Thalassa, por uma tela de metal polido, fino como papel, que o manteria sempre na sombra. O pára-sol seria deixado para trás assim que a jornada se iniciasse, sendo desnecessário nas vastidões interestelares.

      O último dia chegou e passou. O coração de Lora não foi o único a sentir tristeza agora que o sol se punha e os homens da Terra se despediam daquele mundo que nunca poderiam esquecer... E que seus amigos adormecidos nunca iriam lembrar. No mesmo silêncio em que pousara da primeira vez, o ovo reluzente elevou-se da clareira, inclinou-se por um momento em saudação, acima do povoado, e subiu de volta ao seu elemento natural.

      A noite foi despedaçada por uma silenciosa detonação luminosa. Um ponto de brilho pulsante, não maior do que uma única estrela, apagara todos os outros corpos celestes e agora dominava o firmamento. Seu brilho era mais intenso do que o pálido disco de Selene e lançava sombras definidas sobre o solo. Sombras que se moviam enquanto as pessoas observavam. Lá em cima, nas fronteiras do espaço, os fogos que impulsionavam os próprios sóis queimavam agora, preparando-se para arremessar a nave estelar na imensidão da última etapa em sua jornada interrompida.

      Com os olhos sem lágrimas, Lora observou a silenciosa glória em que metade de seu coração partia para as estrelas. Estava vazia de emoções, agora, e se tivesse lágrimas, elas só viriam depois.

      Leon já estaria adormecido, ou talvez estivesse olhando para Thalassa, pensando no que poderia ter sido. Acordado ou dormindo, o que importava agora...?

      Sentiu os braços de Clyde fechando-se em torno de si e agradeceu o conforto que proporcionavam contra a solidão do espaço. Esse era o lugar a que ela pertencia, seu coração não se afastaria de novo.

      Adeus, Leon. Que seja feliz no mundo distante que você e seus filhos conquistarão para a humanidade. Mas pense às vezes em mim, 200 anos atrás de você no caminho para a Terra.

      Virou as costas para o céu flamejante e enterrou a face no abrigo dos braços de Clyde. Este lhe acariciou os cabelos com desajeitada ternura, desejando ter palavras para confortá-la, mas sabendo que o silêncio seria melhor. Não tinha qualquer sentimento de vitória. Embora Lora fosse sua uma vez mais, seu velho e inocente companheirismo perdera-se além de qualquer recuperação. As lembranças de Leon também se apagariam, mas nunca morreriam de todo. Clyde sabia que por todos os dias de sua vida o fantasma de Leon estaria lá, entre ele e Lora. O fantasma de um homem que não seria nem um dia mais velho quando eles já se encontrassem em suas sepulturas.

      A luz começava a se apagar no céu enquanto a fúria da propulsão estelar se afastava por sua estrada solitária. Apenas uma vez, Lora voltou-se para fitar a nave que partia. Sua jornada mal começara, e ela já se movia através do céu com mais rapidez do que qualquer meteoro. Dentro de alguns instantes, teria desaparecido no horizonte, enquanto mergulhava para fora da órbita de Thalassa, ultrapassando os desolados planetas exteriores e entrando no abismo.

      Agarrou-se com força aos braços poderosos que a envolviam e sentiu contra o rosto a batida do coração de Clyde. O coração que lhe pertencia e que ela nunca mais rejeitaria. De silêncio da noite veio um súbito suspiro da multidão que observava, e Lora soube que a Magalhães havia desaparecido além dos confins do mundo. Estava tudo acabado.

      Olhou para o céu vazio ao qual as estrelas retornavam. As estrelas que nunca poderia fitar sem se lembrar de Leon. Mas ele tinha razão, aquele caminho não era para ela. Sabia agora, com uma sabedoria que ultrapassava sua idade, que a nave estelar Magalhães estava partindo rumo à história, uma história na qual Thalassa não mais desempenharia papel algum. A história de seu mundo começara e terminara com os pioneiros de 300 anos atrás, enquanto os colonizadores da Magalhães prosseguiriam para obter vitórias e conquistas tão grandes quanto qualquer uma já escrita nas sagas da humanidade. Leon e seus companheiros estariam movendo mares, nivelando montanhas e conquistando perigos desconhecidos, enquanto seus descendentes, daqui a oito gerações, ainda se encontrariam sonhando debaixo de palmeiras encharcadas de sol.

      Que caminho era o melhor, quem poderia dizer?

                                                                                            Arthur C. Clark

 

 

                      

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