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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Com Todo Meu Afeto / Corin Tellado
Com Todo Meu Afeto / Corin Tellado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Com Todo Meu Afeto

 

Ruth Young, escritora famosa, pretende escrever um livro sobre a escandalosa família Swanson. Para isso, disfarça-se de homem, e candidata-se a chofer. Acaba tornando-se “amigo” e confidente de Orson Swanson, o filho playboy, que lhe conta sobre Ruth, a escritora que conheceu e se apaixonou. Mesmo assim, Ruth continua com a farsa, sendo a escritora e o chofer, até terminar seu livro ou ser descoberta.      

 

Ruth Young cruzou as pernas, aspirou sofregamente a fumaça do cigarro e enrodilhou-se na cômoda poltrona estofada de veludo vermelho.

Vestia calças compridas de cor azul e uma blusinha de malha branca, muito decotada, que deixava entrever o colo moreno e acetinado. Calçava sandálias vermelhas, sem salto.

Tinha os cabelos amarrados à nuca com uma fita e escondia os olhos azuis atrás de óculos escuros. Era uma jovem muito atraente. Embora de feições não muito harmoniosas, havia algo de sedutor na boca bem feita, úmida, vermelha e sensual, nos olhos maliciosos, no narizinho arrebitado, no corpo esbelto de mulher moderna, acentuado pela roupa masculinizada, nas mãos compridas de dedos finos, num dos quais exibia um anel de alto preço.

Adiantou o corpo um pouco mais para diante e disse devagar, com voz pastosa:

— Já decidi, Jack. Pensei muito no assunto e, embora ainda não saiba como, estou certa de conseguir o que quero.

Jack, alto, muito esguio, de olhar bondoso, cabelos negros e sorriso tímido, permaneceu sentado atrás da mesa, sobre a qual havia uma máquina de escrever e folhas esparsas. Passou a mão pelos cabelos bem penteados e meneou, desaprovando, a cabeça de um lado para outro:

— Acho uma temeridade, Ruth.

A jovem sacudiu a cabeça e sua voz soou zombeteira:

— Para você, tudo quanto faço é temerário, meu caro Jack. Acha que seria menos temerário abordar temas que não pertencem à minha idade?

— Aí é diferente. Justamente por ser a mulher famosa que é, não aprovo essa extravagância.

Ruth caminhou pelo aposento. Amassara o cigarro no cinzeiro e inclinou novamente o corpo para seu secretário:

— Não, não é extravagância, Jack. Trata-se de algo absolutamente necessário à boa marcha de minha carreira. Estou "por baixo" nesta temporada, sem inspiração nenhuma, ao passo que os editores exigem livros. Preciso cumprir um contrato, será que não entende? Dentro de três meses devo entregar um livro pronto, mas nem ao menos sei o título que vai ter.

— Antigamente você era uma escritora, mas agora é apenas uma máquina.

Ruth já devia estar habituada ao atrevimento de Jack, pois deu uma gostosa gargalhada.

— Oro, não diga tolices, Jack. Talvez eu esteja mais materialista que antes, porém meus temas são sempre humanos, repletos de interesse e humorismo. Por outro lado, não preciso de dinheiro para viver; gosto de escrever, debater-me entre os personagens que crio... Quero fazer algo profundamente humano, extraído da própria vida, mas para tanto eu mesma preciso viver a estória, entende? Vim a esta cidade instigada pelo desejo de penetrar no seio dessa famosa família.

— Famosa?

— Naturalmente. Os Swanson são conhecidos em toda a América pelos problemas de família. Ouvi falar deles na Itália, há coisa de um ano. Mais tarde, numa reunião literária, comentaram fatos extraordinários sobre a caçula dos Swanson, uma jovenzinha de dezoito anos que abandonou o lar para se unir a um saltimbanco...

— Considera isso um assunto interessante?

— E de grande importância, Jack. Que a filha de nosso porteiro agisse assim, seria natural, mas inconcebível em se tratando da filha caçula dos poderosos Swanson.

— Insisto em que não encontrará o menos interesse na estória para escrever um livro de amor.

— Não será precisamente um livro de amor — esclareceu a moça, já impaciente. — Será apenas um livro e bastante interessante. Por outro lado, estou intrigada com todos os membros dessa família.

— Estou espantado com sua audácia.

— Basta, Jack. O fato de trabalhar comigo há vários anos não lhe dá o direito de interferir em minha vida. Sou livre, sem amarras e parentes, contando apenas com minha pena, meu talento e meu talão de cheques. Você é um homem a quem pago pelo que faz. Veja se enfia isso na cabeça definitivamente!

Arrependeu-se em seguida ao perceber a tristeza do rapaz. Caminhou até ele e tocou em seu ombro:

— Desculpe, Jack. Às vezes, digo tolices.

 — Não tem importância, Ruth. Você falou a verdade.

A famosa novelista americana foi para seu quarto, irritada com a impertinência de Jack ao desaprovar algo que ela julgava muito natural. Por outro lado, sentia pena dele, que fora um companheiro constante e bondoso em todos aqueles anos.

— Janette! — gritou.

Uma criada surgiu logo em seguida.

— Vou fazer uma longa viagem, Janette. Toda a criadagem ficará aqui e todos deverão respeitar Jack como se fosse eu mesma. Entendido?

— Não irei com a senhorita?

— Não, querida. Desta vez irei sozinha.

— Sinto muito, senhorita Ruth.

— Pois eu não, Janette — e sorriu com malícia.

Voltou para junto de Jack, no salão. Queria convencê-lo, pelo menos conseguir sua aprovação. Jack sempre estivera a seu lado, desde que se entendia por gente. Os pais de Ruth morreram ainda jovens e ela ficara sob a tutela do pai de Jack. Como herdara uma grande fortuna, fora enviada para um grande colégio alemão e, já com dezessete anos, regressara a Nova York, onde mantinha residência.

Soubera então que seu tutor falecera, mas restava aquele Jack silencioso, compreensivo e resignado. Viveram sob o mesmo teto durante dois anos, findos os quais, a inquieta Ruth entediara-se com tanta monotonia. Então, para fugir à rotina, escrevera uma pequena novela, manifestando vontade de editá-la. Jack objetou:

— "Você está louca, Ruth. Uma Young não precisa escrever tolices para viver com luxo.

Ao que ela replicara, irritada:

— "Meu intuito é procurar uma distração. Para minha tranqüilidade, quero ver o livro editado.

— "E vai assiná-lo com seu nome?"

Naquela época, Jack a tratava com intimidade, como se fossem irmãos. Mais tarde, contudo, a vida independente, a forte personalidade e as vitórias de Ruth exigiram do rapaz um tratamento mais respeitoso. Não que ela o pedisse, mas intimamente parecia satisfeita com a mudança. Afinal, Jack nada mais era que seu secretário, um assalariado.

Finalmente, inventou um pseudônimo, fruto de sua própria imaginação: "Milsania". Jack leu o livro e acabou concordando com a sua publicação, numa edição por conta própria.

O resultado fora espantoso. Os jornais mencionaram a pequena novela e, dentro de um ano, foram tiradas mais cinco edições, transformando a obra de Ruth num êxito completo de livraria e publicidade. Àquela, seguiram-se outras, mais longas e completas. O nome de "Milsania" fora aplaudido, adulado, suas obras traduzidas para vários idiomas, levadas à tela, ao teatro...

Ruth jamais imaginara tanto, mas ao se ver tão lisonjeada, exigida em Hollywood, na Itália, estampada na capa de uma revista famosa, nos jornais e salões, causando sensação em todos os lugares onde aparecia, achara muito natural que o mundo se curvasse a seus pés. Desde então, dedicara-se unicamente à literatura, esquecendo que ainda era muito nova para tratar de temas além de sua idade e compreensão.

Na vida particular, era uma criatura simples e feminina, mas na rua e lugares públicos transformava-se na romancista enigmática, um tanto zombeteira e bastante audaciosa.

— Aqui estou novamente, Jack. Largue essa máquina e escute o que vou dizer — disse, sentando-se no braço de uma poltrona e fumando um cigarro com ânsia.

— Pode falar, Ruth.

— Amanhã vou deixar a cidade para introduzir-me no seio do lar dos Swanson. De que jeito, ainda ignoro.

— Por mais que faça ou diga, não me convencerá, Ruth. Vá para a casa dos Swanson, seja criada, secretária ou motorista, mas nunca terá a minha aprovação.

— Eu sei. Por você, eu não teria escrito nem meu primeiro livro. Que companhia mais consoladora, sempre a me censurar.

Jack estirou-se na cadeira. Teria trinta anos aproximadamente, todos vividos em casa dos Young. Gostava de Ruth como se fosse sua irmã e, enquanto tivesse uso da razão, diria sempre a ela o que achava certo ou errado. Contudo, para Ruth, as observações de Jack não tinham o menor peso.

— Ruth — falou ele em tom acanhado. — Muitas vezes, eu mesmo fico ruborizado ao copiar algo que saiu de sua pena.

 — De minha cabeça, Jack.

— Do demônio! Desaprovo inteiramente certas coisas.

— Ouça bem, querido Jack: você continuará morando aqui. Os empregados vão ficar. Se receber ordem para ir rapidamente para nossa casa em Nova York, leve todos com você. Virei sempre que puder, mais ai de você se, por sua causa, descobrirem quem sou! Esta cidade é suficientemente grande para que eu tenha maior liberdade de ação. Segundo, nunca diga que sou "Milsania". Se por acaso encontrar-me em uma reunião ou na rua, adotando outra personalidade, ignore-me, por favor. Terceiro, avise aos criados para que mantenham a boca fechada, sem travar novos conhecimentos. Quando eu pedir para eles irem para Nova York, vá com eles. Continuarei aqui se julgar conveniente, a menos que decida o contrário. Entendeu bem, Jack?

— Perfeitamente — assentiu ele, a contragosto.

— Então, Jack, dê-me sua mão... e até breve.

— Mas... Quem vai ajudá-la a entrar em contato com os Swanson?

— Acha que não darei um jeito de entrar naquela mansão?

 

A porta do salão foi novamente aberta. Jack media o aposento em grandes passadas. Era tão alto que se tornava desajeitado. Tinha a cabeça pequena em relação ao corpo e seus olhos de expressão bondosa eram tão diminutos que resultavam inverossímeis.

— Quem é você? — perguntou friamente, olhando para o homem parado à soleira, fitando-o com expressão séria. — Quem lhe deu permissão para vir até aqui? Que procura?

O outro deu dois passos e parou. Devia ser bem jovem. Usava um uniforme azul-marinho, de enormes botões vermelhos cruzados por um cordão da mesma cor. Tinha o quepe na mão, mantendo-se firme, como à espera de uma ordem. Era bastante alto, sem exagero, e muito magro. Os cabelos, penteados para trás, davam-lhe uma aparência de ator de cinema. Tinha olhos muito azuis, nariz arrebitado e lábios vermelhos, úmidos e sensuais.

— Que deseja? — repetiu Jack, em tom áspero.

— Você é um idiota, Jack — replicou o homem uniformizado. — Sempre o achei com mentalidade de passarinho, mas agora penso quem nem isso possui...

— Quê? Como ousa? Quem é você?

— Será que ainda não me reconheceu, estúpido? Olhe-me bem e diga se outra pessoa terá olhos como os meus. Já viu boca semelhante? E quem teria uma cabeleira tão brilhante senão a própria Ruth Young?

Jack respirou fundo, afrouxando o nó da gravata:

— Ruth! Quem haveria de dizer?

— Minha presença aqui é o bastante. Estou envergonhada de sua incapacidade, Jack.

— Esperava vê-la transformada em criada, nunca em...

— Motorista. Muito atraente o uniforme dos Swanson, não?

Jack ficou boquiaberto, estirando o pescoço no colarinho engomado para melhor observá-la:

— Quando foi que entrou para a casa dos Swanson?

— Hoje mesmo, assim que saí daqui. Já sabia que eles procuravam um motorista, entende? Foi o que li na imprensa local. Ninguém quer ser motorista da família, porque os Swanson são numerosos e o infeliz deve servir a todos. A senhorita Melânia, a mais velha, exige o chofer todas as manhãs. A senhorita Joan, que é a segunda, duas horas antes do almoço. E a senhorita Laura, três horas à tarde. Orson Swanson, o único varão da família, precisa do motorista o dia inteiro.

— E como pode um motorista fazer tal milagre?

— Aí é que está a graça, Jack. O Sr. Orson é mais esperto e rouba o motorista das irmãs. Oficialmente, as três podem dispor do chofer durante três horas, mas o irmão não lhes dá essa oportunidade.

— Muito curioso.

— Vê? Já começa a interessar-me, Jack. Eu bem dizia que os Swanson são gente pitoresca. Há dias, soube casualmente de certas coisas e vou verificá-las. Agora adeus e deseje-me boa sorte. Se puder, amanhã virei trazer-lhe alguma coisa que escreverei hoje mesmo.

— Espere um pouco!

— Não posso, Jack. Estou feliz... Se você não me conheceu que dizer deles, hem?

— Já pensou no que fará, se as tais irmãs se apaixonarem pelo motorista?

— Detalhe já previsto, Jack. Se não se apaixonassem, minha suposta personalidade seria um fracasso, não?

— Talvez se veja envolvida em encrencas, Ruth.

— Nem por sombras, Jack. A partir de hoje estou encarnando um de meus personagens masculinos.

Continuava andando, seguida por Jack. O rapaz era uma figura ridícula, com os olhinhos espantados e os braços muito compridos que não paravam de gesticular.

— E se o Sr. Orson se apaixonar?

— Pretende ter mais imaginação que eu, Jack? Juro que não pensei nisso, mas... Ora, sou um criado, meu caro. Que pensamentos estranhos meteu na cachola, Jack! Francamente, estou espantada.

 

Era um aposento amplo, luxuosamente decorado. À cabeceira da mesa comprida, coberta com uma toalha finíssima e imaculada, sentava-se o Senhor Swanson, de cabelos grisalhos, olhos vivos e penetrantes. Falava com um vozeirão autoritário, denunciando o militar reformado. Ao seu lado, a Sr Swanson, pequenina, vivaz e muito magra, elegante, movendo-se sem cessar e rindo infantilmente das piadas de sua filha Melânia.

A moça parecia com a sua mãe. Teria uns vinte e cinco anos, era também pequenina e vivaz. Mais além, Laura, alta, um tanto desajeitada, com olhos e cabelos negros, cortados como os de um rapaz. Joan era mais parecida com Melânia, ambas louras, de olhos claros e ávidos, como se esperassem por uma grande surpresa na vida.

— Orson não veio hoje — comentou Melânia com voz anasalada.

— Para ele, o lar não vale nada — replicou o dono da casa, em tom desgostoso.

— Deve estar em seu apartamento de solteiro — disse rapidamente a Sr. Swanson.

O marido não gostou:

— Apartamento de solteiro! Quando eu tinha vinte e quatro anos, como ele, já estava casado e nunca importunei meus pais com um apartamento de solteiro. Afinal, não aprecio essa batalha.

— Mas não é batalha...

— Se não é batalha, é guerra, Lina!

Como fora militar, o senhor Swanson costumava entremear a conversa com termos usados naquele meio. Para ele, a vida de Orson era uma verdadeira batalha. A indiferença de Melânia, um descuido militar; e a indecisão de Joan, uma guerra sem quartel.

— Orson é jovem, querido. Quer viver a sua vida...

Naquele momento a porta se abriu e deu passagem a um jovem alto como o pai e ainda mais robusto. Tinha o rosto queimado de sol, músculos desenvolvidos de esportista. Sorridente, aproximou-se e beijou os pais. O senhor Swanson grunhiu em resposta. O rapaz beijou as irmãs e ocupou o seu lugar habitual:

— Atrasei-me.

— De outra vez, telefone, avisando que vem almoçar em casa — disse o pai com indiferença. — Não gosto de esperar pelos outros.

— Distraí-me no clube. — Mudou de tom: — Já temos motorista, não?

— Sim, mas é meu esta tarde — disse Melânia depressa.

— Se pretende ir à modista, acompanho-a e depois fico com ele, certo?

— Essa não! Está vendo só, papai? — interveio Joan.

— Basta, meninas! E você não diz nada, Laura?

— Já fiz o que tinha de fazer por hoje.

— É um motorista bem interessante, não?

Orson deu uma gargalhada, forte e vibrante.

O senhor Swanson parecia à margem da conversa, mas ao ouvir a observação de Joan, fitou-a severamente:

— Precisarei de chofer durante toda a tarde.

Era uma família bastante pitoresca, onde cada um fazia o que bem entendia, mas onde todos, como um bloco só, respeitavam a vontade do dono da casa. Assim, esqueceram-se logo dó motorista e concluíram a refeição em boa harmonia. Passaram em seguida ao salão. Orson estirou as pernas e fumou um cigarro, ouvindo o pai mencionar um assunto financeiro que pouco lhe importava.

Depois, as irmãs foram para seus respectivos aposentos, deixando Orson com os pais. Afundada numa poltrona, a senhora Swanson parecia pensativa.

— Ouça, papai, queria falar-lhe sobre Melânia. Meu amigo Toren está apaixonado. Ama-a profundamente.

— Sim?

— Bem, suponho que você não tem objeção a fazer.

O senhor Swanson fitou o filho com olhos arregalados, como se ele tivesse dito algo inconcebível:

— E desde quando impus minha vontade no coração de suas irmãs, que já têm dado sobejas provas de independência? Quando Gina fincou pé e se casou com o maldito saltimbanco, de nada valeram meus argumentos. Você mesmo viu o resultado.

— Minha pobre Gina! — suspirou a senhora Swanson.

— Como eu dizia, Orson, sua Melânia é da mesma madeira, assim como Laura e Joan. Acha que, por meu gosto, ela comporia músicas que jamais serão ouvidas em público? E que Laura modelaria figuras mitológicas? Ou que Joan se distrairia dissecando animais asquerosos? Não, mil vezes não! Oh, que sorte infeliz tive com todos os meus filhos!

— Sou um filho modelo, papai — zombou Orson.

O pai agitou-se na poltrona. Seus olhinhos cintilaram e sua voz soou rouca:

— Um filho modelo que não disseca animais, não compõe música e nem tenta modelar figuras mitológicas. E que também não faz mais nada! O que qualifica como filho modelo? Ora, você nem terminou sua carreira! Sabe apenas exibir roupas que me custam os olhos da cara, fumar cigarros e charutos de Havana. E sabe também açambarcar todos os motoristas que contrato. De resto, é como elas, ainda menos, porque afinal, suas imãs têm uma ocupação sem nenhum benefício para a nação. Você, contudo, nem mesmo sabe ocupar um lugar de destaque em meu escritório. Estou envergonhado, profundamente envergonhado, Orson.

O rapaz levantou-se, bocejando dissimuladamente:

— Algum dia talvez eu resolva ocupar o seu lugar na fábrica, papai. Agora, entretanto, sou tão jovem...

— Diabo! Jovem aos vinte e oito anos?

 

De pé, firme e envergando o uniforme azul e vermelho, o motorista tinha o quepe na mão, enquanto com a outra mantinha aberta a porta do carro. Joan desceu a escadaria precipitadamente e acomodou-se no assento:

— Depressa, Key, antes que a senhorita Melânia desça.

— Mas é a ela que espero, senhorita Joan.

— Leve-me agora e voltará em seguida para apanhá-la.

Key fez o que o que a moça ordenava, dando partida justamente quando Melânia surgia na escadaria.

— Inconcebível! — exclamou indignada, olhando para a mãe, de pé na varanda. — Acha que está direito? Contarei a papai que Joan vem fazendo o mesmo há dois dias!

Voltou para a varanda e encarou a mãe:

— Sabia que Joan se apaixonou por ele?

— Não diga tolices, Melânia. Joan é ajuizada.

— É uma pequena audaciosa, entende?

Enquanto isso, o carro rodava pelas ruas da cidade.

— Para onde me leva, Key?

Sem virar o rosto, o chofer olhou pelo retrovisor. Pela centésima vez, Joan refletiu que nunca vira olhos tão maravilhosos como daquele chofer sério e compenetrado.

— Para onde ordenar, senhorita.

— Estou cansada de viajar aqui atrás, Key. Pare, vou passar para o banco dianteiro... Quero ir dançar.

— Posso então voltar para apanhar a senhorita Melânia?

— O quê? — indignou-se Joan. — Será que se apaixonou pelos cabelos louros de minha irmã? Quero dançar com você em qualquer lugar. Há milhares deles onde não me conhecem. Que me diz?

Key sentiu um nó na garganta e grunhiu qualquer coisa.

 — Com quem está falando, Key? Não entendi.

— Com ninguém, senhorita. Eu não sei dançar, entende? Fui um jovem sem muitas oportunidades e... não tive tempo para aprender.

— Coitadinho! Serei sua professora, Key. Gosto muito de você, sabe? Acho-o atraente e bem-educado. Nosso antigo chofer era velho, feio, resmungão... Ficava danado quando eu surripiava o carro de Melânia. Quando Laura subia então... Está falando novamente, Key?

— Não, senhorita Joan.

— Você é tão sério! Minha irmã casou-se com um saltimbanco. Não acha que fez bem, defendendo o seu amor?

— Sim, claro que sim!

— Como pode ser tão lacônico? — Ela recostou-se no assento.

Key respirou. Aterrorizava-se, sentindo-a tão perto.

Freou o carro.

— Por que parou? — indagou Joan.

— Aqui há dança, joga-se canastra e toma-se chá.

Feliz, Joan saiu do carro. Key olhou esperançosamente para os lados e logo avistou Orson Swanson, sentado junto ao balcão do bar. Já tendo ido ali várias vezes, Key sabia onde encontrar o rapaz. Era quem mais o interessava, não como homem, mas como... protagonista de seu futuro livro.

Desceu e indicou uma porta lateral a Joan. Pelo olhar zombeteiro de Orson, sabia que este pretendia arrebatar-lhe o carro. Que Joan ficasse ali, era absolutamente natural, em se tratando dos irmãos Swanson...

— Dançaremos, não é mesmo, Key?

— Estou às suas ordens, senhorita.

A atitude daquela jovem era estarrecedora. Teria agido de igual forma com seus antecessores ou os ex-motoristas da casa eram todos velhos e de má aparência?

Percebeu que Orson se levantava, e pensou:

"Irá para o carro e tocará a buzina. Joan não o viu e nem dará pela coisa."

— Sentaremos aqui, Key. Quem descobriu este antro boêmio? Gosto do ambiente. Voltaremos sempre, não?

Antes que pudesse responder, um garçom entregou-lhe uma nota, que ele leu e anunciou a Joan:

— É do guarda. Diz que o carro está estacionado ao contrário. Com sua permissão, vou lá fora manobrá-lo.

Saiu rapidamente. Minutos depois, o carro disparava pela estrada como uma flecha.

— A senhorita Joan ficará aborrecida, senhor.

— E que importa, Key? Tenho um assunto formidável para esta tarde. Afinal, papai precisa comprar outro carro. Um só não é suficiente...

— O senhor Swanson dizia ontem que pretendia adquirir um para seu uso pessoal, deixando este para os senhores.

— Para os quatro? Ora, preciso de um só para mim.

Era um belo tipo de homem. Key já vira muitos homens, convivera com rapazes bons e maus, audaciosos e corretos... Porém, jamais conhecera alguém como Orson, despreocupado, elegante, forte e decidido, com algo de bom e de ruim...

Orson fumava distraidamente a seu lado. De soslaio, Key olhava para o queixo forte que o impressionava.

— Parece-me muito jovem, Key, Qual é a sua idade?

— Vinte e dois anos, senhor.

— Já? E sem um fio de barba no rosto?

— Isso é de família, senhor...

— Curioso, nunca pensei que barba fosse algo hereditário. — Mudou de tom:  — Bem, afinal você é um homem e entre os homens não há segredos, mesmo que sejam de condição social diferente. Vamos até a casa de umas amigas, entende? Àquela granja de costume... Contudo, quem me atrai lá não é ninguém da família, mas a criada de Ketty Gaucert.

Orson riu e acrescentou:

— Estou louco por ela, Key. Apesar de não ser bonita, tem qualquer coisa que seduz.

— O senhor Swanson não aprovaria esse casamento.

Orson deu uma risada escandalosa e comentou, cínico:

— E quem disse que pretendo casar-me, Key? Adoro Susan e faria tudo por ela, mas daí ao casamento... há um abismo.

— Oh!...

— Você até parece mulher, Key. O que o assusta?

— Nada, senhor.

— Já teve alguma namorada?

— Seis, senhor.

— E deitou com todas elas?

Key pestanejou, mas tomou coragem e respondeu:

— Hoje em dia é muito fácil para um homem levar uma mulher para a cama, senhor.

— Muito interessante, Key. Acho que seremos bons amigos, rapaz. Temos gostos idênticos...

— Puxa!

— Diabo, o que há com você?

— Não viu aquele idiota que se meteu na frente do carro?

— Não vejo ninguém — disse Orson, examinando a estrada.

 — Ele saltou na valeta.

— Eu juraria que não havia ninguém, Key.

— Bem, não é a primeira vez que tenho visões, senhor.

— Isso é perigoso, amigo.

— Sim, senhor. Muito perigoso.

Finalmente, o carro parou e Orson desceu.

— Desça também, Key. Se quiser, vá namorar aquela criada que está no jardim, cuidando do cachorrinho de Ketty.

Key não esperou segunda ordem. Enquanto Orson caminhava para a varanda onde seus amigos dançavam, dirigiu-se para a criada que cuidava do cãozinho:

— Olá, beleza.

— Olá. De onde surgiu você?

— Do carro do senhor Swanson. Ouça, quem é Susan?

— Não está mais aqui. A senhorita Ketty a despediu.

— Ainda bem — disse Key, acrescentando ante o olhar interrogativo da moça: — Sim, bobinha, ela era bonita demais. Ainda bem que foi despedida...

 

Naquela tarde, ao passar por seu lado no vestíbulo, o senhor Swanson anunciou em tom afetuoso:

— Amanhã, quinta-feira, é seu dia de folga, Key. O serviço cessa desde as nove até o dia seguinte.

— Obrigado, senhor.

O dono da casa se afastou. Comprara um carro para ele e o mantinha na garagem da fábrica, por não confiar nos filhos. Contratara um chofer de mais idade, que dormia fora, de modo que Key ficara a serviço dos filhos, que continuavam a atormentá-lo com suas exigências, agora mais do que nunca.

Em seu quarto, dispunha de uma cama, uma cadeira, um armário e uma mesa. No armário, guardava centenas de folhas, lápis e borracha, que trancava a chave ao sair.

E naquela noite escrevia rapidamente, após tirar o paletó de serviço. Fechara a janela devido ao frio intenso, quando ouviu baterem repentinamente à porta. Assustado, vestiu o paletó apressadamente e perguntou:

— Quem é?

— Sou eu, Key — soou a voz rouca de Orson. — Abra.

Key enfiou precipitadamente as folhas no bolso do paletó.

— Preciso de você, Key — disse Orson, assim que ele abriu a porta. — É um caso pessoal e deve me acompanhar. Tem algum terno?

— Não, senhor.

— Sou muito mais alto e os meus não serviriam, mas arranjarei um do criado de quarto de papai.

Num abrir e fechar de olhos, Orson, voltava com ò terno:

— Mathias estava dormindo e apanhei o terno no roupeiro do corredor, destinado à criadagem. Por favor, cuidado com a roupa, Key. Mathias ficaria furioso se a estragasse.

Como vestir-se? Orson parecia decidido a ficar.

— Falta a gravata, senhor — saltou, Key triunfante.

Enquanto Orson saía em busca da gravata, Key vestiu rapidamente as calças e a camisa, estremecendo ao ouvir o assobio do outro, já de volta.

— Pronto, aqui está! — Ficou rígido na porta: — Você tem tórax de mulher!

— Sempre fui raquítico — alegou Key, amaldiçoando-se intimamente, enquanto vestia o paletó.

— Veste o paletó antes de pôr a gravata? Nunca vi isso.

— O senhor ainda não viu muita coisa...

— Epá! O fato de convidá-lo a vir comigo não lhe dá o direito de ficar insolente, rapaz.

— Desculpe, senhor.

Posta a gravata, Key passou o pente pelos cabelos e em seguida um pano pelos sapatos reluzentes.

— Caramba, Key, com o uniforme você fica melhor. De terno parece uma muIherzinha vestida de homem.

— Por favor — replicou Key, furioso. — Só porque sou um criado, não deve humilhar-me a esse ponto.

— Ora, ora, não se zangue — riu Orson. — Esta noite terá tempo bastante para mostrar que é homem. Vamos! Há meia hora que os amigos me esperam...

— Vou apresentá-lo como um amigo, Key. Nada de tratamento cerimonioso ou preconceitos, rapaz. Banque o homem, entende?

— Sempre fui homem, senhor.

Naquele instante, Ruth Young se arrependeu:

"Bem feito. Para que fui introduzir-me na casa dos Swanson? Claro, é um bom enredo para o livro, mas o temperamento dessa gente não paga o esforço que estou fazendo."

A porta se abriu, deixando à vista vários rostos excessivamente pintados, vestidos provocantes, bustos quase desnudos, olhos brilhantes pela bebida, cheiro de fumo, homens claramente excitados... Ao fundo, uma orquestra executava danças voluptuosas, enquanto pares bailavam sob a penumbra que as lâmpadas azuladas não dispersavam.

— Imagino que nunca tenha visto nada disso, mas depois de algumas taças de champanha ficará animado, Key.

Três amigos de Orson ergueram as taças em uma mesa. Três mulheres fitaram os recém-chegados. Uma delas zombou:

— Adotou esse menino, Orson?

Key gostaria de fulminá-la com o olhar. Encarando-a fixamente, decidiu representar seu personagem à risca:

— Vamos dançar, beleza?

Orson dirigiu-lhe um olhar de espanto e então riu.

"Tem dentes maravilhosos. Pena que seja um playboy", pensou Key, tomando a mão da moça.

— Chama-se Key e é um de meus amigos — apresentou Orson, afavelmente.

— Não dançarei com você, Key — replicou a moça desprendendo a mão. — Sou o par de seu amigo Orson.

Key pensou:

"Hei de conquistá-la e não será difícil. Interpretarei o "Homem Irresistível", meu personagem imortal que deixou todas as leitoras fascinadas. Chegaram a discutir meu sexo..."

Sentou-se junto à moça. Logo depois surgiu mais outro rapaz. Key bebeu uma taça de champanha. Sua cabeça não parava de trabalhar:

"Já bebi de tudo e nunca passei mal. Vou convencê-los de que sou um homem curtido, embora a aparente fragilidade".

— Aposto como ninguém falou ainda de seus olhos, Greta — sussurrou Key com voz pastosa ao ouvido da moça.

— Que têm meus olhos, rapaz?

— Nunca vi coisa mais linda em minha vida, Greta. Sabe? Jamais suportei mulheres vaidosas, mas você é diferente, com um pouco de tudo. Perversa e maravilhosa ao mesmo tempo. Boa para amar e dura para odiar, não?

— Como pode saber se é a primeira vez que me vê?

— Basta-me olhá-la para adivinhar sob esses olhos sonhadores sua intensa personalidade, Greta. Você gosta de fascinar e desprezar ao mesmo tempo. Por que é tão má?

Começava a conquistá-la, usando uma linguagem que ela desconhecia, delicada e sugestiva, inteiramente nova. Greta primeiro o contemplou curiosa e depois interessada, à medida que ele ia sussurrando em seus ouvidos.

— Como eu dizia, Greta...

Orson voltava-se para ela, após conversar com os amigos, mas Greta estava de costas, atenta aos lábios de Key.

— Ei, Greta!

A jovem ficou de pé num instante:

— Quero dançar com você, Key.

Os quatro homens olharam para Key, surpresos.

— Diabo, Key, isso não é permitido! — protestou Orson.

— Lamento, Orson, mas vou dançar com Greta.

— Não consentirei, ouviu. É assim que me paga um favor? Vamos, sente-se aí!

Orson estava vermelho de ódio. Key inchou o peito, decidido:

— Agora não recebo ordens. Deixe-as para amanhã!

Swanson levantou-se de punhos cerrados para brigar. Key pensou: "Imitarei minhas novelas".

— Aí está — disse, impassível. — Como não tenho luvas, atiro-lhe o lenço no rosto. Envie-me seus padrinhos amanhã.

Espantaram-se todos, mas depois gargalharam, deliciados. Orson riu:

— Você é um número, rapaz. Pode ir dançar.

Key afastou-se levando Greta para a pista de danças.

— Onde encontrou esse amigo, Orson?

— É o chofer da casa.

— Mesmo? Se Greta souber disso...

— Pois fique de bico fechado, meu caro.

Eram quatro horas da madrugada. Na mesa dos boêmios a conversa prosseguia, e a bebida também. Orson passara o braço em torno de uma mulher provocante. Uns dançavam, outros já tinham ido embora... Orson bebia sem cessar. Os pares rareavam na pista e a orquestra tocava automaticamente, já esgotada.

— Vamos embora, Orson? Isto está ficando desanimado.

— Irei sozinho, Maud. Onde está Key?

— Sumiu há duas horas com Greta e não creio que voltem.

Orson, ficou de pé, irritado. Sem Greta, tudo perdia o sabor. Era uma estouvada, mas mesmo assim, encantadora.

— Não vai me levar em casa?

— Creio que não seria um companheiro agradável, Maud. Boa noite.

— Não espera por seus amigos?

— Eu sufocaria, neste ambiente asfixiante.

— Mas é seu ambiente, Orson!

— Cansei-me. Não venho freqüentando outra coisa desde os vinte anos e agora estou com vinte e oito... Por falar nisso, acho que demorei bastante a me fartar.

Prudentemente, Maud absteve-se de responder.

O "Mercedes" estava rente ao meio-fio. Olhou para os lados esperando avistar Key. Ninguém. Avistou um papel no chão e o apanhou. Uma caligrafia miúda e apertada dançou diante dos seus olhos. Que significaria?

De repente, alguém arrebatou-lhe o papel da mão.

— Isso é meu — disse a voz anasalada de Key.

— Onde esteve?

— Passeando com aquela belezinha.

— Dê-me esse papel! — bradou Orson, estendendo a mão.

Com a maior calma, Key acendeu o isqueiro e começou a queimar a folha escrita.

— Isto é propriedade minha, senhor. Por eu ser seu criado, não tem o direito de tirar o que me pertence.

— Noto que o rapazinho humilde se transforma! Gostaria de saber de onde você saiu, quando meu pai o encontrou.

Não respondeu, esperando que Orson se fosse.

— Sabe de uma coisa, Key? — disse o rapaz subitamente. — Estou farto dessa vida e de bom grado me casaria.

— E por que não se casa, senhor?

— Porque receio não encontrar a mulher que me faça feliz. Não acredite nelas, Key. São todas iguais. Somos uma família de loucos, mas eu gostaria de encontrar uma mulher diferente de minhas irmãs; depois de casado, iria para longe daqui... Vivo sufocado pelo álcool e não suporto mais essas aventureiras. Seria formidável encontrar essa mulher que idealizo, mas onde, Key?

Key tinha a mente embotada, não pela bebida, porém pelas coisas espantosas que Orson Swanson pronunciava.

 

Era jovem, bonita e interessante, de cabelos muitos curtos e negros, com os olhos azuis encobertos por óculos escuros, de aro dourado. Tinha o narizinho arrebitado, a boca cheia e sensual, magra, mas de quadris sedutores arredondados. Vestia um elegante modelo de tarde, sob um abrigo de vison. Estava enluvada e calçava sapatos de salto.

Sentada diante do balcão, lia um jornal distraidamente.

— Quem será ela? Nunca a vi antes.

— Parece estrangeira, Orson. Também nunca a vi na cidade. E note que tenho olhos de lince para mulheres bonitas.

— Não de nossa classe.

 — Absurdo! Caso contrário, já nos teria notado...

— Gostei dela, Jim.

— Já percebi, mas não a conhecendo, não posso apresentá-la.

— Sentarei a seu lado e puxarei conversa.

— Boa sorte, camarada.

Ruth Young largou o jornal e levou um cigarro à boca. Imediatamente um isqueiro aceso surgiu diante de seus olhos.

Olhou para o homem e sorriu graciosamente.

— Obrigada — disse, exalando uma baforada.

— É forasteira, não?

— Acertou.

— Precisa de um cicerone? Considere-me à sua disposição.

— Por Deus! Tenho horror de abusar do próximo!

— Pois seria uma honra para mim...

Orson pagou a despesa dos dois e dirigiram-se a um salão de chá. Ela disse corno se chamava.

— Foi um prazer conhecê-la, Ruth. Há muito tempo procuro alguém como você.

— Deveras? Como é impetuoso!

— Engana-se, sou apenas sincero. Por acaso é casada?

— Oh, claro que não. Já ouviu falar em "Milsania"?

— Aquela romancista famosa? — surpreendeu-se Orson. — Nunca a vi, mas já conheço obras e peças de sua fecunda imaginação.

— Pois "Milsania" sou eu — disse ela com simplicidade.

 — Oh, que maravilhoso, Ruth; sempre quis conhecer "Milsania". Acho-a fabulosa.

— Prefiro ser apenas mulher. Vim passar uma breve temporada de repouso, mas irei embora amanhã.

— Partirá? Diga-me para onde e a acompanharei. Ouça, sou um apaixonado de seus livros, mas gostei mais de sua pessoa... mesmo que isso a aborreça.

— Aborrecer-me? Absolutamente. Sou mulher acima de tudo...

Como se divertia! Orson jamais a perdoaria se soubesse...

A brisa da tarde bateu em seu rosto e ela ergueu a gola do casaco. Enfiou a mão nos bolsos e caminhou ao lado de Orson, ereto como um rei, atraente, sumamente simpático.

— Quando poderei revê-la? Jamais esquecerei esta tarde tão deliciosa. Você é inigualável, Ruth.

— A quantas terá dito o mesmo?

— A nenhuma, acredite. Estou sendo sincero.

Ruth deu uma gargalhada cristalina. Orson parou.

— Sabe que de repente você me lembrou alguém que conheço?

Ela refletiu:

"Disfarce, Ruth, seria terrível ser descoberta. Ainda falta muito para terminar o romance."

— Ignora que todos temos um sósia? Quando o vi, lembrei-me de um livro, em cuja capa havia o retrato de Lorde Byron. Sabe a quem me refiro, não?

— Naturalmente, e isso me envaidece, pois Byron era um belo tipo de homem, Ruth.

Chegavam à porta da casa de Ruth. Ela estendeu a mão:

— Foi uma tarde muito agradável.

— Já lhe disse que me chamo Orson Swanson?

— Creio que sim. Bem, até mais ver, Swanson. Pode estar certo de que apreciei muito a sua companhia.

— Não poderia vê-la amanhã? Estarei pensando continuamente em você. Eu... Oh, como dizer que me apaixonei? Ou não acredita em amor à primeira vista?

— Acredito, mas penso que isso só acontece a pessoas mais sensíveis que o senhor.

Orson fitou-a nos olhos, com tal fogosidade que Ruth instintivamente deu meia-volta, esboçando um sorriso.

— Pois sou um homem sensível, Ruth. Não percebe que a amo? Você é a mulher que sempre esperei, que eu pressentia, aquela que meu outro "eu" idealizara!

— Não seja tão impetuoso, Swanson.

— Ruth, preciso vê-la todos os dias, entende? Todos!

Ela precisou desprender-se precipitadamente daqueles dedos e despedir-se com alguma brusquidão. Subiu correndo as escadas e abriu a porta do apartamento.

— Estou espantado com sua audácia, Ruth.

As censuras de Jack não a impressionavam mais.

— Isso não vem ao caso, Jack. Vamos, diga-me se já terminou com tudo que lhe trouxe esta manhã.

 — Ainda não terminei. Parece-me inexpressivo o assunto.

— Ô que você pensa não interessa. Dê-me as cópias.

Arqueou as sobrancelhas ao ler, parecendo aborrecida:

— Por que fez alterações? Estou sempre repetindo que deve copiar o que escrevo, mas você parece não entender! Se não é teimosia, deseja me fazer crer que sou idiota?

— Nessas folhas, parece ter muito pouco gosto feminino. Por que diz que o rapaz é interessante, quando é um imbecil?

— Basta! — exclamou ela, fitando com os olhos que despendiam faíscas. — Não permito que me faça observações fora de hora, entende? Copie exatamente o que escrevi e, se na próxima quinta-feira encontrar novas alterações, queimarei tudo, juntamente com essa sua linda cabeleira de leão! Muito engraçado, que meu secretário se dê ao luxo de censurar o que escrevo!!

Jack ficou tenso, mas continuou teimando:

— Ainda insiste em que Joan é uma criatura normal? E Laura, com seus passatempos macabros? E Melânia, que guarda em seu quarto músicas de tendências pagãs? Uma mulher apaixonada pela música e que chegar compor, deve ter um espírito seleto, ao passo que essa Melânia é uma mulher deste mundo, cheia de desejos e ânsias passionais.

— Perdeu o juízo, Jack?

— Limito-me a fazer observações, mesmo que você me queime os cabelos. Ouviu bem, Ruth?

— Trate-me com mais respeito, Jack!

— Respeito! Fomos criados juntos, não? E que seria de você agora sem a minha ajuda? Ajudei-a a subir, lembra-se?

— Como ousa, Jack? Será que andou bebendo?

O pobre Jack, que nada tinha de bêbedo, mas de apaixonado, deixou os braços caírem ao longo do corpo:

— Desculpe, Ruth. Na verdade, sou perfeito idiota.

Dava pena vê-lo tão abatido. E a natureza fora impiedosa com o rapaz. Sem dotes físicos, sem personalidade, um simples boneco nas mãos daquela jovem, cuja inteligência o deixava atônito... E tivera a ousadia de amar semelhante criatura, voluntariosa, apaixonada, tenaz... E lindíssima.

— Copie direitinho o que escrevo e falaremos na próxima quinta-feira. Até lá, meu caro Jack.

O esbelto chofer dos Swanson afastou-se, de cigarro na boca e uma mão no bolso, assobiando alegremente.

— Diabo! Nem parece uma mulher! — rugiu Jack.

Key caminhava pelas ruas com um sorriso nos lábios e as mãos nos bolsos, como se fosse realmente um homem.

A moda beneficiava sua transformação. Como mulher, podia pentear os cabelos com faceirice, em sua versão masculina, ajeitava-os em ondas largas bem puxado para trás. Estava de gravata e com o uniforme imaculado.

Entrou no parque da mansão dos Swanson e caminhou marcialmente pela grama.

— Key!...

Franziu a testa. Quem estaria escondido entre os arbustos? De repente, notou o vulto miúdo de Joan e cumprimentou:

— Olá, senhorita Joan.

— Você nos abandonou, Key. Passei o dia desolada.

— Devo entrar, antes que passe a hora de minha volta, senhorita.

Joan aproximou-se e segurou-o pela manga:

— Oh, Key, como você é cruel!

Pensou, irritado:

"Diabo, será que ela se apaixonou por mim? É um aborrecimento que eu não esperava."

Procurou ser persuasivo:

— Ouça, senhorita Joan. Passo o resto da semana à disposição da família. Seu pai deu-me um dia de folga e visitarei minha namorada. Estou louco por ela, sabe?

— E que me importa isso? — gritou a jovem, alterada. — Você é um idiota, Key!

Afastou-se contrariada. Ruth — ou Key — voltou a pensar:

"Para um desfecho feliz do meu caso, preciso afastar essa criatura. Engraçado... Uma mulher provocando amor em outra... Ou será que sou um homem sem saber?"

 

As três usaram o carro. Melânia de manhã, Laura à tarde e Joan ao anoitecer. Esta continuava tentando seduzi-lo, mas Key fingia nada escutar. Então, irritada, Joan ordenou que voltasse à mansão.

Foi quando Key tornou a ver Orson.

— Boa noite, senhor Orson. Como vai?

— Danado da vida.

— Não tornou a estar com Greta?

Sem responder, Orson dirigiu-se ao salão de jantar. Key rumou então para a cozinha, onde uma criada também estava caída por ele.

"Estou perdido. Que fazer para me livrar delas?"

Após a ceia, Orson foi o primeiro a sair. Dirigiu-se ao parque, onde ficaria sozinho para pensar à vontade naquela mulher. Claro, não estava apaixonado, mas somente "Milsania" o faria renunciar ao celibato.

— Olá, senhor Swanson.

— Está aí, Key? Desde quando sonha ao luar?

— Estou apenas fumando um cigarro, senhor. Já que não me enamorei de ninguém...

— Insinua que eu esteja enamorado?

Key evitou rir, a fim de não se delatar.

Poderia disfarçar a voz, amortecer o brilho dos olhos, os gestos, mas aquela risada era inconfundível, impassível de ser desfigurada.

— Que há de estranho em um homem enamorar-se, senhor? Vi-o ontem em companhia de uma bela jovem.

Orson sentou-se a seu lado no banco e acendeu um cigarro:

— Vou contar-lhe a verdade, Key. Nem à minha família eu diria, mas você tem algo que me é familiar, entende? Encontrei naquela mulher o que procurava e acho que você se parece com ela.

— Epa, senhor Swanson! Uma afirmativa temerária, não acha?

— Talvez. Não gostaria de se parecer com uma bela mulher?

— De modo algum! Se me dissesse o contrário, eu ficaria mais satisfeito.

Orson fumou nervosamente:

— Um homem pode assemelhar-se a uma mulher, sem que nada o desabone, entende? Bem, mudemos de assunto. Quero dizer a você que jamais gostei tanto de uma mulher.

— Gosta mais dela do que da criada da senhorita Ketty?

— Está zombando de mim, Key? Por vezes tenho a impressão de que você me trata como uma criança.

— De modo algum, senhor Orson. Jamais zombei de alguém, principalmente do senhor, a quem tanto admiro.

— Admira-me, você?

— Muito, senhor.

— Pois bem, Key. Gosto mais dela que da criadinha de Ketty, muito mais do que Greta. Se continuar a vê-la, terminarei apaixonado como um idiota.

— Pensei que os idiotas não se apaixonassem, senhor.

— Pare de zombarias, rapaz!

— Repito que não estou zombando, senhor. E quem é a moça? Alguma amiga de Greta?

— Acha mesmo que eu me apaixonaria por alguma amiga de Greta? Com pequenas dessa espécie, ajudamos o tempo a passar. Podemos levá-la para o apartamento de solteiro, dançar, beber despreocupadamente. Com esta pequena, é diferente.

— Entendo. É nova?

— Qual! — exclamou Orson, impaciente. — Se você não é um imbecil, é um ignorante.

Levantando-se bruscamente, Orson afastou-se, grunhindo:

— Você não serve para confidente, Key. Irrita-me os nervos, ouviu bem?

Melânia despedia-se de um homem, no portão do parque. Key a observou fixamente. A jovem tinha os olhos semicerrados e permitia que ele lhe apertasse a mão. Como sempre fazia, Key refletiu:

"Deve andar pelos trinta e oito, um pouco velho para a doce Melânia. Bem, se não for este, será outro. Como existirão homens capazes de suportar as manias de Melânia?"

Key ignorava que Melânia sabia ser sedutora. Assim, surpreendeu-se quando, três dias mais tarde, pediram-lhe a mão em casamento. Mais uma que saía. Quem iria em seguida?

— Sabe que Melânia estará casada no começo do mês que vem, Key? — perguntou Orson, sentando-se na cama do motorista.

Parecia sentir-se à vontade ali, e ao menor pretexto procurava sua companhia,

— Quer um charuto, Key?

— Obrigado, senhor. Eu ficaria enjoado.

— Incrível, ver um homem falar de enjôo! Ainda bem que Melânia se casa. Acho uma humilhação os Swanson terem tantas solteiras em casa. Mais um pouco e será Laura. Depois, Joan...

— Têm pretendentes?

 — Não, mas virão. As duas abandonarão suas manias... Seria formidável que todas se fossem, Key.

— Por que é tão cruel com suas irmãs, senhor?

— Sou razoável, homem. Estou farto de tanta mulher dentro de casa. A função delas é casar, ter filhos, um lar próprio.

— Certo, mas nem todas pensam assim.

— Pois eu conheço muitos homens que desejam ter sua casa, uma esposa boa e decente. — Inclinou-se e confidenciou: — Também eu penso assim, mas onde encontrar essa mulher? E, se depois de casados, ela me trair com os amigos?

— Seria horrível, senhor!

— Rapaz, há mulheres capazes de tudo.

Key ficou pensativo. Como podia alguém ser tão volúvel como Orson, que tão depressa admitia seus anseios, como zombava deles? Quando seria sincero?

Quanto a Melânia e suas irmãs, Key já as conhecia. Só Orson continuava sendo um enigma:

"Por que me procura sempre, como se adivinhasse a minha identidade?"

— Nunca viu meu apartamento, Key? Minhas irmãs estão tão emocionadas hoje que nem darão por sua falta. Quer ir?

Estirou-se na cama e amassou o charuto no cinzeiro:

— Verá como é confortável. Só falta lá uma mulher...

Por mais que Key argumentasse, foi inútil. Orson agarrou-o pelo braço e pestanejou, falando mentalmente:

"Mas que braço mais fino! Parece o de uma mulher! Pobre Key!"

Ele mesmo dirigiu, tendo Key ao lado, pensativo, e um tanto contrariado. No estava gostando nada daquilo.

— Em que está pensando, rapaz?

— Bem... talvez eu resolva ter a meu lar também.

— Primeiro, deve fortificar-se, Key. Acho-o bastante fraco. Engraçado como me apeguei a você. Desde que o conheci, parece que me sinto seu protetor...

"Nada mau...", pensou Key. Apreciava a companhia de Key, seu vozeirão, seu corpo de atleta. Se ele trabalhasse, seria encantador. Contudo, gostando de mulheres, já devia ter esquecido "Milsania". Arriscou, curioso:

— Não tornou a ver a romancista?

— Não. Seus criados disseram que ela partira e que retornaria esta semana. Estive lá várias vezes.

"Jack seguiu minhas ordens à risca..." Depois desse monólogo mental, comentou:

— Creio que não a ama.

— Simpatizei com ela e talvez viesse a amá-la, mas estando ausente... Bolas! Essas literatas irritam-me os nervos... Eu poderia amar sua beleza a inteligência, nunca sua fama. Imagine sair com uma mulher que todos olham, homens e mulheres, crianças! Nunca! Minha mulher será unicamente minha.

— Então, casando-se com "Milsania", ela deveria abandonar a profissão?

— Exatamente, Key. Por outro lado, as escritoras deixam nos livros toda a sua vida íntima, os sentimentos, paixões... Céus! Seria terrível casar-me com uma romancista.

— Mas se a amasse...

— Então eu teria certeza de ser correspondido. E quando uma mulher ama, faz qualquer sacrifício pelo homem amado. Você duvida?

— De modo algum, senhor.

— Bem, chegamos. Vamos, amigo, desça daí e vá subindo as escadas.

O apartamento era confortável, luxuoso e cômodo. Key apreciou a decoração e a disposição dos aposentos.

— Gosta?

— Formidável, senhor. Foi tudo idéia sua?

— Greta me ajudou.

— Ah, Greta! Excelente amiga, não?

— Era. Agora não me interessa mais!

Key não acreditou, mas preferiu ficar calado.

Havia seis aposentos ao todo. Sala ampla, com um grupo estofado, um móvel-bar, uma enorme vitrola e vários quadros artísticos, espalhados pelas paredes. Ao fundo, uma tapeçaria. Na cozinha, um fogão alvíssimo. Havia ainda geladeira, mesa de mármore, armário e algumas cadeiras, tudo branco. Na sala de refeições, além da mesa e cadeiras, quadros, tapetes e cortinas, No dormitório, uma cama colossal e mais ao fundo o enorme guarda-roupas com espelhos embutidos, duas poltronas, mesinha de cabeceira e toucador.

— Mais parece um dormitório feminino — comentou Key.

— Talvez — riu Orson, malicioso. Passaram à biblioteca. Uma comprida mesa de trabalho com vários papéis na superfície, cobertos de poeira. E atrás, ocupando toda a parede, uma estante repleta de livros.

— O senhor é um homem culto.

— Nada disso, amigo. Apenas gosto de boas obras. Veja, tenho quase todos os livros de "Milsania". Acho-a formidável na descrição de seus personagens, mas é realista demais, entende? Bem, agora passemos a meu gabinete particular.

Era um aposento comum, igual a tantos outros. Key teve vontade de rir. Para que desejaria Orson tantos livros e gabinetes, se não os usava? Ali, o necessário eram apenas a vitrola, bebida, cozinha e banheiro. O resto era supérfluo.

— Que acha disso, Key?

— Permita-me ser sincero, senhor?

— Naturalmente.

— Acho um apartamento frívolo, sem o calor de um lar. "

— Noto que é observador, Key. Se não fosse chofer de meu pai, seríamos grandes amigos.

Key olhou para ele com estranheza:

 — Quando dois homens são amigos, não reparam em diferenças sociais. Claro, em minha condição, não me compete dizê-lo, mas já conheci senhores poderosos que tratavam os humildes com afeição. E entre eles havia grande amizade.

— Não me entendeu bem, Key. Não aludi à sua condição de inferioridade, mas ao fato de ser chofer. Se eu o tivesse conhecido em outra parte que não minha casa, ocupando um cargo subalterno qualquer, sei que nos entenderíamos bem e chegaríamos a estimar-nos sinceramente.

— Pois eu gosto do senhor.

— Também gosto de você, Key. — Mudou de tom: — Você diz que este apartamento não tem o calor de um lar. Pode explicar-me o que seja esse calor?

— Talvez seja a falta de um sorriso de mulher, seus beijos cálidos, suas carícias. Incluindo-se o riso delicioso de uma criança, seus bracinhos infantis...

— Key — replicou Orson, boquiaberto — se você fosse uma mulher, eu a tomaria por esposa.

— Imaginando-se que eu concordasse com o senhor.

Orson pensou:

"Há algo que me intriga nesse rapaz. Não sei o que é, mas com o tempo talvez descubra."

Deu de ombros com indiferença e sorriu:

— É quase certo que eu o conquistaria, Key. Mas, uma vez que você é homem, deixemos isso para lá. Que me diz de fazermos o jantar, hem? Não tenho a menor vontade de rever a expressão radiosa de Melânia, a satisfação de papai e a incerteza de mamãe. Nem mesmo a excitação de Joan e Laura. Podíamos comer aqui e tirar uma soneca, com a música ligada, não?

Key estremeceu e pensou:

"Terá ele algum objetivo?"

A fisionomia de Orson era a de sempre, plácida e serena, sem nada a esconder. Com espanto, Key percebeu que sentia necessidade de ver constantemente os olhos de Orson, não a procura de intenções ocultas, mas porque se via neles tão pequenina, tão frágil. Assustou-se: "Será que estou apaixonada?"

— Acho uma boa idéia, senhor — assentiu, inquieta.

— Deve haver algo na despensa. Vamos à cozinha.

Encontraram presunto, algumas latas de conserva, lingüiça, queijo e manteiga.

— Ainda falta o pão.

— Aqui há uma caixa de biscoitos. Um tanto duros, mas...

— Substituirá o pão — decidiu Orson.

Enquanto ele abria as latas, Key arrumou a mesa da cozinha, sentindo-se como que suspenso no vácuo. Que aconteceria em seguida? Por que Orson o tratava como igual?

— Não tira o paletó, Key? Já estou suando, mesmo em mangas de camisa. Como pode suportar tanta roupa no corpo?

— Criei-me em terra quente e estou sempre com frio, senhor.

 — Você é fora do comum, rapaz. Muito original mesmo.

Key não respondeu. O suor escorria-lhe pela fronte e procurava enxugá-lo disfarçadamente. Sentia-se asfixiado.

Sentaram-se finalmente para cear. Estava tudo delicioso.

— Você é um cozinheiro ideal, Key. Se algum dia eu comprar um iate e fizer um cruzeiro pelo mundo, juro que o levarei como amigo particular. Mas terá de cozinhar para mim.

— É muita amabilidade sua, senhor.

Orson tornou a fitá-lo. Raios, como era parecido com "Milsania"! Seriam talvez irmãos sem saberem? Não quis atormentar Key com perguntas, mas continuou pensando no assunto, enquanto sorvia um copo de vinho em pequenos goles.

 

Tinham bebido demais. Key acomodara-se em uma poltrona da biblioteca, com as pernas penduradas. Orson estava sentado no chão, fitando um ponto inexistente e fumando um cigarro.

— Estou morrendo de sono, Key. Por que não vamos para a cama? Afinal, é bem grande e dá para nós dois.

Key abriu a boca para responder e passou a língua pelos lábios ressequidos.

— Por que não vamos ao cabaré, senhor? Talvez Greta esteja lá.

— Greta deixou de me interessar, Key. Agora resolvi procurar uma esposa. Fui feito para o casamento, entende? Por nada do mundo iria agora para a rua. Imagine por um momento que você fosse uma mulher e estivesse casada comigo.

— Nem quero imaginar, senhor.

— Mas procure imaginar, apenas por um momento.

"Santo Deus! Ainda acabo cometendo um disparate. E se eu lhe dissesse a verdade e em seguida desse o fora para sempre? Afinal, o livro está quase terminando. Idealizaria um fim e depois..."

— Já pensou, Key?

— Pensei, senhor — respondeu sem olhar para ele.

— E os resultados?

— Foram desastrosos.

— Pois não seriam, Key. Só me casarei quando amar apaixonadamente a mulher que será minha esposa. — Levantou-se. — E sabe como eu a amaria, Key?

— Na...ao, senhor. Não... não sei.

— Eu a amaria com loucura, com o coração, os sentidos, a alma... Diabo, onde estará minha inspiradora? Preciso encontrar "Milsania". Comecei a refletir nestas coisas depois que a vi... Raios, para que a conheci? Oh, vamos para a cama, Key. Estou meio fora de mim...

— Foi o vinho, senhor.

— Engana-se. Foi o fogo daqueles olhos de mulher. — Tomou Key pelo braço: — Você precisa engordar, rapaz.

— Sim, sim, senhor.

— Ei, você está tremendo? Ora, seja menos suscetível, homem. Tire o paletó e as calças. Vista um pijama dos que guardo no armário. Estou exausto, sem ter feito nada de extraordinário. Certamente cansei-me, pensando em Melânia e sua vida futura. Minha irmã não ama o noivo, Key; casa-se por necessidade, como fizeram nossos antepassados. Ficar solteiro é um estigma para nós. Vamos, tire essa roupa!

— Sim, sim, sim, senhor.

Orson tirou a camisa, deixando a descoberto o tórax musculoso. Depois preocupou-se com as calças. Key deu um salto para trás, amedrontado.

— Ei, o que há com você, rapaz?

Key pensou:

"Preciso agir depressa, antes que aconteça uma catástrofe. Que fazer para sair desta situação?"

De repente, levantou os braços e sacudiu a cabeça, com a fisionomia transtornada.

— Que diabo viu você? — perguntou Orson, segurando as calças que começara a tirar.

— Aí, senhor, bem ao seu lado, vai agarrá-lo! Não está vendo? Já chegou. Deus, agora vem para mim!

— Que está dizendo, louco?

Key estirou as mãos, o rosto desfigurou-se. Pensava:

"Que grande artista sou eu. Nunca estive antes em tal apuro. Livrai-me dele, Senhor!"

— Aqui! Já o agarrei! E agora torço-lhe o pescoço e também o seu, Orson Swanson. Vamos, deixe-me sozinho! Sinto a mesma vontade de estrangular alguém que daquela vez, quando fui internado no hospício! Não. Vá embora, senhor... Já vou agarrá-lo... Fique!

Orson recuava paulatinamente para a porta, com os olhos arregalados. Foi então que Key gritou, com uma voz que parecia de além-túmulo:

— Vá embora! Vá, antes que eu o mate! Há uma força superior que me empurra. Depressa, saia deste apartamento, deixe-me só!

Orson tapou o rosto com as mãos e saiu em disparada.

Key caminhou atrás dele, com passos fortes e mecânicos...

Na porta, Orson olhou para trás e viu o "louco", que quase o alcançava. Disparou escada abaixo e logo em seguida soou o motor do carro. Key foi até a janela e viu o veículo que se afastava, rasgando a escuridão da noite.

Respirou fundo. Ajeitou os cabelos, o paletó. Sorriu e enxugou o suor da testa:

— Caramba! Que susto o coitado levou! Onde estará agora, em mangas de camisa e com as calças caindo? Bem, preciso dar o fora daqui, antes que ele volte com reforços...

Minutos depois, dormia tranqüilamente em seu quarto, na mansão dos Swanson, com a porta trancada por dentro.

Duas horas mais tarde, Orson freava o carro diante do prédio de seu apartamento. Três homens saltaram para a calçada e um deles indagou:

— É aqui?

— Sim, mas não me atrevo a subir.

Os homens dirigiram-se ao apartamento, mas logo voltavam.

— Não há ninguém lá em cima, senhor Swanson. Está tudo na mais perfeita ordem. Não terá sonhado, por acaso?

— Claro que não sonhei. Repito que era o chofer de minha casa. Teve um acesso de loucura e queria matar-me.

— Não bebeu em demasia esta noite, senhor Swanson?

— Não admito semelhante insinuação, enfermeiro.

— Desculpe-me. Bem, há muito trabalho no hospício e não podemos perder mais tempo. Quando tornar a ter essa... visão, chame-nos, senhor.

Orson ficou desconcertado e aborrecido. Pensariam que estava louco ou embriagado? Sem coragem para voltar ao apartamento, entrou no carro e, meia hora depois, batia à porta do quarto de Key.

— Quem é? — perguntou uma voz sonolenta, mas normal.

Teria sido uma alucinação? Excesso de bebida? Recordava perfeitamente que Key o ajudara a preparar a ceia. Fizeram a refeição normalmente. Foi depois, quando ele se despia...

— Sou eu, Key. Abra.

— A esta hora, senhor? Estou com muito sono. Já trabalho para os Swanson durante o dia. A noite é minha.

Orson gritou e chamou a atenção do pai que apareceu. Desculpou-se como pôde, enquanto Key ria com vontade, trancado em seu quarto.

Orson não se conformava com o ocorrido. Dirigiu-se ao gabinete do pai.

— Que há, filho? Parece-me abatido.

— Escute, papai. Houve algum louco ou retardado entre nossos antepassados? Algum doente mental?

— Bem, filho, para ser franco, houve dois loucos na família de sua mãe e um na minha. Lembro que meu pai mencionava certo retardado que tentou matar o jardineiro.

Orson deixou o copo cair numa poltrona e escondeu o rosto nas mãos, aterrorizado.

— Que tem você, filho? — preocupou-se o pai.

— Vou procurar um psiquiatra, papai.

E contou o que acontecera. O pai atribuiu à bebida. Key saíra com o carro para levar Joan ao cabeleireiro. Depois regressou, mas tomou a sair, desta vez com Laura. Só às dez da noite, Orson conseguiu encontrá-lo. O chofer lia um jornal sentado na beira da cama, fumando com um olho fechado, como se a fumaça o incomodasse. Não ouviu Orson chegar e este pôde observá-lo a vontade.

Era um jovem magro demais. Havia algo estranho naquele motorista. Talvez a expressão dos olhos. Ou o desenho da boca, tão imprópria num homem? Podia ser o cabelo muito comprido, cruzado por cima da nuca... Sim, Key era um rapaz bem estranho.

Deu mais um passo. Assustado, Key ergueu a cabeça e, dobrando o jornal, ficou de pé:

— Olá, senhor. Sente-se mais calmo agora?

Com um grunhido, Orson acomodou-se na mesa de cabeceira:

— Que fez você ontem, das seis da tarde à meia-noite, Key?

— Estive lendo, senhor.

— Pare com tanta cerimônia e responda francamente. Afinal, tudo não passou de uma brincadeira.

— Brincadeira? Que brincadeira, senhor?

Já com a paciência esgotada, Orson levantou-se precipitadamente e sacudiu Key pelas lapelas, como se fosse um boneco.

— Está me sufocando, senhor!

— Gostaria de destroçá-lo, ouviu? Que está pretendendo? Acha mesmo que acredito em sua estória? Você foi a meu apartamento, ajudou-me na cozinha e, quando íamos ocupar a mesma cama, como dois bons amigos, enlouqueceu de repente. Não é verdade?

Key conseguiu libertar-se. Ajeitou o cabelo e o paletó:

— Não devia me sacudir desse jeito, senhor...

Novamente aquela sensação endemoniada. Que havia com aquele rapaz? Que expressão tão curiosa em seus olhos?

— Está certo. Desta vez você ganhou, mas não pense que o assunto fica encerrado. — Orson caminhou para a porta. — Voltaremos a ele qualquer dia.

Key viu-o andar de um lado para outro no parque, durante boa parte da noite, antes de ir para a cama. Na manhã seguinte, quando o relógio do vestíbulo batia nove horas, levantou-se precipitadamente e foi para a rua. Era a sua folga.

Surgiria em cena como Ruth Young, durante algumas horas.

Foi procurar Jack, seu secretário, e voltaram a discutir. Ela vestia saia cinza, estreita e uma blusa branca de malha. Penteara os cabelos com simplicidade. Calçara sapatos baixos e tinha uma capa sobre os ombros. Parecia outra, mas lembrava algo daquele Key, cuja personalidade abandonara dentro do uniforme de motorista.

Jack tinha os olhos arregalados e fitava as folhas escritas. Abriu a boca para falar, mas desistiu. Parecia fora de si.

— Isto é o fruto de sua imaginação? — quase gritou.

— Foi o que aconteceu realmente, caro Jack.

— Ousou permanecer no quarto de um homem que se despia?

— Quem estava lá era Key, não eu.

— Sim, mas sob a personalidade de Key estava a dignidade de uma mulher. O que você fez até agora é simplesmente imoral, ouviu? Acha que vou copiar isto? Nunca, entendeu?

Ruth suspirou, armando-se de paciência:

— Não seja quixotesco, Jack. Deixe seus preconceitos de lado e copie literalmente o que escrevi. Por favor, não me esgote a paciência. Afinal, é meu secretário.

— Está certo, "senhorita" Ruth. Faça o que bem quiser. Talvez um dia se arrependa!

Ruth saiu, altaneira, embora desejando intimamente beijar o rosto crispado daquele rapaz a quem estimava fraternalmente. Estava tão acostumada com suas explosões e conselhos que não lhes dava mais importância, embora tremesse ao ter de comentar uma obra. Sempre terminava brigando com Jack, a fim de que ele copiasse exatamente o que escrevera.

Saiu à rua, sem saber ainda para onde ir. Sentia uma necessidade imperiosa de ver Orson, mas onde encontrá-lo?

 

Não foi difícil, porque Orson visitava sempre os mesmos locais. Por volta do meio-dia Ruth entrou num bar elegante, decidida a tomar um aperitivo no balcão. Antes mesmo de chegar até lá, um Orson feliz e sorridente, de mão estendida, caminhou apressadamente ao seu encontro.

— Oh, Ruth! Como desejava vê-la!

Levou reverentemente a mão da jovem aos lábios e foi então que suas feições se alteraram. Olhou-a fixamente, depois deu uma gargalhada para ocultar a impressão, e por fim disse, em tom afável:

 — Está mais bonita que noutro dia.

Ruth ficou inquieta, temendo que Orson a associasse a Key. Contudo, ele nada mencionou a esse respeito, de modo que voltou a tranqüilizar-se.

Dirigiram-se para uma mesinha afastada e tomaram um aperitivo. Àquela, hora, o salão estava praticamente vazio. Apenas alguns fregueses liam jornal ou fumavam, sentados diante do balcão. Outros jogavam bilhar numa sala do lado.

— Passei uma semana de incerteza, Ruth. Rondei sua casa diariamente, à espera de que você aparecesse. Onde esteve?

— Viajando.

— Uma viagem muito agradável, não?

Ruth começou a perceber um toque de ironia na pergunta e olhou fixamente para ele. Contudo, nada viu nas feições masculinas que lhe despertasse suspeitas,

No entanto, Orson Swanson fazia a si mesmo várias perguntas sem respostas. Já vira aqueles olhos, mas onde? E os dedos que repousavam sobre a mesa? A boca bem feita, o talhe esbelto... Mil detalhes acudiram-lhe à mente, porém Orson era um homem inteligente e ocultou rapidamente o que pensava.

— Sabe que a amo, não é, Ruth?

— Não, Orson. Não sabia. Você imagina que me ama, mas a realidade é bem diferente, Orson. A quantas mulheres já amou antes de mim?

— Nenhuma, Ruth. Talvez já me tenha declarado a várias, porém não era sincero. Por que não se casa comigo?

— Casar-me? E você poderia me sustentar?

— Tenho um grande capital e não preciso trabalhar.

— Também sou rica, talvez mais do que você, mas no entanto trabalho muito. E você, saberia dedicar-se a alguma coisa?

— Por você eu faria qualquer coisa, Ruth. Saiba que jamais passaria fome a meu lado.

Levantou-se, convidou-a a dar uma volta e ela aceitou.

— Convido-o a almoçar num lugar pitoresco. Temos o dia todo para nós. Talvez amanhã volte a viajar...

Ruth tornou a fitá-lo com firmeza. Embora de óculos escuros, Orson percebeu a intensidade de seu olhar, porém demonstrou absoluta indiferença. Ruth disse para si mesma que nada havia de anormal. Orson Swanson não a identificaria como Key e isso não aconteceria com facilidade.

Sentou-se no carro ao lado dele e rodaram em silêncio pela rua. Finalmente, dobraram à esquerda e penetraram num parque frondoso, em cujo centro havia uma casa. Orson estacionou diante do prédio e ajudou sua acompanhante a descer.

Um homem idoso, com um avental na cintura e um guardanapo alvíssimo pendurado ao braço, aproximou-se, obsequioso:

— Bom dia, senhores. Desejam almoçar?

— Sim, comeremos sob aquela árvore — indicou Orson, com ar satisfeito.

Era um lugar delicioso, com os raios do sol coando-se por entre os galhos e vindo cair sobre a mesa, coberta com uma toalha muito branca.

— Pensou no que eu lhe disse, Ruth?

— Sobre?...

— Nosso casamento. Jamais pedi a uma mulher que fosse minha esposa, mas pensei em você o tempo todo. Julguei enlouquecer, entende? E você foi cruel, partindo indiferente, sem pensar que eu ficava sozinho...

— Não acredito em amor à primeira vista, Orson — sorriu com faceirice. — Por outro lado... acho que o amor não explodiria tão de repente no coração de um homem como você.

As mãos do rapaz estenderam-se sobre a mesa e aprisionaram as dela:

— Por que no experimenta, Ruth? Sendo inteligente e perspicaz, deve saber que não estou mentindo.

Ruth sabia que o amava. Sentia uma profunda inclinação por ele, algo delicioso, inefável, inquietante... Já conhecera muitos homens, porém nenhum como Orson Swanson.

— Ruth...

— Comamos um pouco; estou morrendo de fome.

Comeram. Ela com ânsia, ele com indiferença, observando-a incessantemente. Por que a olhava assim? Será que?...

— Por que olha para mim desse modo?

— Porque gosto de contemplar suas feições delicadas; porque estou louco por você, Ruth.

Parecia sincero, mas Ruth pouco se importou. Ao terminarem a refeição, Orson sentou-se ao lado dela:

 — Já amou alguma vez?

— Não.

— E não gostaria de amar alguém?

— Talvez.

— Oh, Ruth, por que não me ama?

Tinha a cabeça encostada à dela, Quando Ruth ergueu a sua para fitá-lo, Orson, esmagou-lhe os lábios num beijo apaixonado. Depois, sem a largar, fitou-a nos olhos, sussurrando:

— É mesmo verdade, Ruth?

— A pura verdade, Orson.

Ruth não poderia precisar com exatidão por onde andara durante todo aquele dia. Ela, que se julgava invulnerável, fora conquistada pelo homem volúvel que talvez a esquecesse na mesma noite. Mas não estava arrependida. Tinha certeza do amor de Orson, da intensidade de seus sentimentos...

O carro deslizava suavemente para a cidade. Orson ia ao volante e ela apoiara a cabeça em seu ombro.

— Não partirá amanhã, não é?

— Partirei hoje mesmo, Orson. Estão filmando uma obra que adaptei e devo estar presente.

— Então, irei com você!

— Você atrapalharia o meu trabalho, Orson.

— E quando voltará?

— Na quarta ou quinta-feira... Não sei ao certo.

O carro parou diante da casa de Ruth. Eram dez da noite e as ruas ainda estavam úmidas de chuva que caíra.

Ruth desceu do carro e recostou-se à porta do prédio.

— Vai me condenar a ficar sem vê-la por tantos dias?

— É necessário. Para a nossa felicidade, querido.

— Não concebo a felicidade se estivermos separados. Acho-a um tanto enigmática, Ruth. Que está escondendo?

A jovem deu uma gargalhada. Fora de si, Orson apertou-a nos braços e a beijou asperamente. Estava indignado:

— Está zombando de mim!

Contudo, Ruth o amava, precisamente pelo que descobrira a seu respeito, encarnando o motorista da casa. Apertou o pescoço de Orson e devolveu o beijo, com paixão:

— E agora? Duvida de mim?

— Ruth, Ruth! Por vezes é um demônio, mas em outras...

— Continue.

— É uma criatura deliciosa!

Desprendendo-se do abraço, Ruth subiu a escada correndo.

Orson suspirou e, furioso, voltou para o carro. Dirigiu vagarosamente e parou dois quarteirões adiante. Então postou-se numa porta e, escondido, com os olhos brilhantes e um sorriso nos lábios, ficou esperando...

Agora, entendia muita coisa. Percebia algo que o deixava aturdido de espanto. Viu então aproximar-se um jovem magro e esbelto, envergando um uniforme de chofer, o quepe puxado sobre os olhos, caminhando apressadamente pela rua. Um homem que saíra da casa de Ruth!

Recordou as iniciais de um isqueiro de grande valor que Key possuía: "R.Y.", ou seja, Ruth Young. Deu uma gargalhada. E aquela loucura? E as visões de Key?

Entrou numa rua transversal e, minutos depois, tomava a direção de casa, certo de que encontraria Key caminho. Freou assim que o avistou.

— Caramba, Key, de onde vem a essas horas?

O chofer sobressaltou-se, como que apanhado em falta.

— Entre, Key. Vou levá-lo para casa. Hoje foi seu dia de folga, não?

— Exatamente, senhor.

— Tem namorada?

— Algo parecido.

— Precisa casar-se, Key. Já tem idade e ganha o suficiente para manter um lar.

Parecia o Orson costumeiro e, nem por um instante, Key imaginou que ele descobrira sua verdadeira personalidade. Readquiriu a calma e sacudiu os ombros:

— Talvez me case qualquer dia.

— Que a sua definição sobre o amor, Key?

— Amor não tem definição — replicou o motorista muito sério. — O senhor nunca amou?

— Eu? — exclamou, como se falasse sozinho. — Hum... acho que nunca amei em minha vida.

Key remexeu-se no assento. Por que Orson fazia tal afirmativa com tanta segurança, se pouco antes jurara a ela exatamente o contrário? Quando teria sido sincero? Sentiu um suor frio banhar-lhe a testa e vacilou ao responder:

— Certo dia, o senhor confessou-me que amava "Milsania".

— Pobre "Milsania"! — gargalhou Orson. — Acabei de estar com ela, meu caro. E fiquei decepcionado. Não pretendo revê-la, sabe? Nunca mais!

Key espirrou.

— Que tem você, rapaz?

— Nada, nada... Eu... bem...

— Pobre Key! Veja, já chegamos...

Key pulou para o chão e correu para seu quarto. Um sorriso entreabriu os lábios de Orson:

 — Fique sabendo que o estratagema vai sair bem caro, querida Ruth. Nunca o esquecerá enquanto viver. Diabo, que pretenderá nesta casa? Qual o seu objetivo?

Ninguém requisitara o carro naquele dia. Melânia saíra com o noivo, Laura fora para a biblioteca, enquanto Key, de pé na varanda, arregalava os olhos de espanto ao avistar Joan aparecendo no parque, em companhia de um jovem simpático e esbelto.

Era Orson, sorrindo zombeteiramente, um pouco atrás.

— Não entendo o que viu Joan nesse tipo! É um sujeito importante, sabe, Key? Depois de casados, ela o levará para a Inglaterra. Restará Laura, mas não acredito que demore muito...

— Pelo visto, todas fizeram um casamento melhor que a irmã mais nova — comentou Key.

Orson abriu os olhos. Então o espertinho do Key estava a par dos assuntos íntimos da família?

— Para mim, foi a mais inteligente, Key. Casou-se por amor. Bem, vou sair com o carro. Visitarei Greta. É encantadora!...

De lábios apertados, Key viu-o dirigir-se ao parque e correu para o seu quarto, onde chorou de raiva. As lágrimas escorreram-lhe pelo rosto, livres e silenciosas.

— Nunca pensei que um homem chorasse com tanta facilidade — disse uma voz as suas costas.

— Quem está chorando? — perguntou, desafiante.

— Ora, não é que o senhor Key tem gênios? E como é sensível! Não quer vir comigo? Há muitas jovens apetitosas no apartamento de minha amiguinha.

— Vá embora, ouviu? Saia daqui!

— Primeiro, quero saber por que estava chorando.

— E quem é o senhor para interrogar-me? Fora de meu quarto!

— Bonita maneira de tratar seu patrão!

— Patrão? — gritou Key, no auge da indignação. — Pois agora mesmo deixarei esta casa e nunca mais trabalharei para alguém como o senhor!

— É assim que paga o bem que lhe fiz?

Orson sentia prazer em vê-la sofrendo.

Precisava lhe dar uma lição, mas não sabia como.

— Bem, até já, amigo. Quando estiver mais calmo, tornarei a visitá-lo.

Decidida, recolheu as folhas que guardara no armário, enfiou-as no bolso das calças e saiu precipitadamente. Bateu à porta do gabinete do senhor Swanson e entrou:

— Senhor, vim pedir a minha demissão.

— Vai embora? Por quê? Não conseguiu aturar meus filhos?

— Deixo o serviço porque pretendo me casar, senhor. Minha futura esposa é fazendeira... e trabalharei no campo.

— Está certo, Key. Você é um bom rapaz e eu estava satisfeito com seus serviços, mas já que sai para melhorar, nada tenho a dizer.

Dessa maneira, Key deixou o serviço em casa dos Swanson, embora ali ficasse o seu coração. Que importava agora? Arrancaria do peito a lembrança de Orson e viveria sua vida.

Contudo, ao passar junto à sala de refeições, ouviu uma voz familiar e estacou, como que pregada ao chão.

— Sim, pensa que me enganou, mas sei que é uma mulher.

— Uma mulher? Ficou louco, Orson?

— Sei lá...

— E que pretende com isso? Você a conhece? — soou a voz alterada de Laura.

Ficou paralisada ao ouvir a resposta:

— É a única coisa que ignoro.

Bem, se ele descobrira que era mulher, tanto melhor. Se Orson ignorava quem fosse, haveria de dar-lhe boas dores de cabeças. Correu para o jardim. Nunca mais voltaria à mansão dos Swanson, mas vaguearia pela cidade em seus trajes masculinos e só queria ver quem era o engraçadinho capaz de reconhecê-la.

À hora do almoço, o senhor Swanson deu a notícia com naturalidade, mas Orson ficou precipitadamente de pé e rugiu:

— Por que a deixou ir embora? Não sabia que é uma mulher?

O dono da casa arregalou os olhos. Sua esposa deixou escapar uma exclamação sufocada. Joan sobressaltou-se:

— E que pretende essa mulher?

Sem responder, Orson deixou a sala rapidamente e foi para a rua. Pronto, agora ela estava perdida para sempre! Julgara fazer um bem e fracassara...

Caminhou apressado. Bateu à porta e disse à criada que o atendeu:

— Desejo ver a senhorita Ruth.

— A senhorita Ruth está viajando, senhor.

— Deixe-me entrar, vamos! — empurrou-a e entrou. — Preciso vê-la imediatamente!

Jack veio ao seu encontro:

— Que acontece? Que maneiras são essas?

Orson ficou rígido. Quem seria aquele indivíduo magro e esticado que o fitava por cima dos óculos?

— Quero falar com Ruth Young.

— A senhorita Ruth está viajando, como lhe disseram.

— Viajando? Afirmo que ela estava em minha casa até há pouco!

— Então deve estar ainda por lá — foi a resposta impassível de Jack.

— Escute, senhor: se pretende zombar de mim, está muito enganado. Ruth Young esteve em minha casa, trabalhando como motorista de minhas irmãs, entende?

Jack achou divertida aquela cena: "Oh, então é isso... O rapazinho é nada mais nada menos que Orson Swanson..."

— Ouça, meu rapaz...

— Trate-me com respeito! — indignou-se Orson.

— Certo, mas não fique melodramático. Não temos nenhum chofer aqui. A senhorita Young reside nesta casa, mas jamais lhe passou pela cabeça a idéia de transformar-se em homem. É feminina demais para isso.

— Quer que eu enlouqueça?

— Talvez esteja embriagado — disse Jack com indiferença.

Orson segurou-o pela gola, sacudiu-o, mas nada conseguiu.

— Vou estrangulá-lo, ouviu? Está zombando de mim, mas juro por minha honra...

Vendo que Jack continuava impassível, largou, desanimado. Passou a mão trêmula pela fronte. Naquele momento, a porta da rua se abriu e surgiu Key, vestindo um terno irrepreensível, chapéu de feltro, camisa branca, sapatos pretos e gravata clara. Parou ao avistar Jack.

— Que veio procurar aqui? — gritou Jack, pálido de raiva. — Já lhe disse inúmeras vezes que sua irmã não o quer em sua casa!

Key estirou o busto:

— Estou precisando de dinheiro, Jack. Fale com Ruth. Ela sempre me socorre. Negou-se ontem à noite, mas disse que você me daria alguma coisa hoje cedo. Ruth não pode me largar ao desamparo! Nascemos no mesmo dia, na mesma hora... Que culpa tenho, se me apaixonei por sua criada? E fique sabendo que jamais me casarei com outra, mesmo que Ruth ordene o contrário. Ela teve mais sorte do que eu, pois enquanto passeia em Nova York, eu me esfalfo trabalhando como chofer.

— Oh! Então era a você que este senhor se referia! — exclamou Jack, em tom desdenhoso.

Pálido e crispado, Orson surgiu em cena.

— Senhor Swanson! — gritou Key, alterado. — Ignorava que estivesse aqui...

Sem responder, Orson pisou forte e caminhou para a porta:

— Por um momento, imaginei-o sendo a própria Ruth. Desculpe-me, Key. Se quiser voltar para minha casa, pode vir agora mesmo.

— Pensarei nisso, senhor. Na realidade, vim pedir dinheiro a Ruth, a fim de partir para longe. Tenho o direito de defender o meu amor, como todo mundo!

— Seu amor! — grunhiu Jack, severo. — Sabe perfeitamente que Ruth jamais concordaria com tal casamento. Por que trabalha como chofer, tendo tantas outras aptidões? Ruth jamais o perdoaria ser humilhado desse modo. Está envergonhada de você, entende? Vá embora. Nesta casa não há dinheiro para você, rapazinho!

Sim, agora não havia dúvida. Key era um homem, frágil realmente, mas tão homem como ele próprio.

— Venha comigo, Key. Prometo falar seriamente a Ruth sobre o seu caso. E então, vamos?

— Primeiro quero falar com Jack sobre o dinheiro que Ruth me prometeu, senhor.

— Está certo. Espero-o em casa, Key.

— Eu voltarei, senhor.

Prometido. Orson saiu e Jack estirou-se em todo o seu comprimento.

— Estou envergonhado de mim mesmo — vociferou, entrando no gabinete seguido por Key. — Você me faz representar papéis indignos de nós dois, ouviu? Chamarei esse homem e vou contar-lhe toda a verdade.

— Nem pense nisso, meu caro. Fique aí quietinho, esperando outra oportunidade para exibir sua capacidade como ator. Estou assombrada com o seu sangue frio, Jack... Ninguém representaria com tanta naturalidade como você...

— Deixe-me em paz e cale essa boca!

— O importante é que conseguimos enganá-lo. Agora retornarei à mansão dos Swanson.

— Para que, se já abandonou o emprego em definitivo?

— Pensei que ele me tivesse identificado, Jack, mas agora preciso convencê-lo de que Ruth e Key são duas pessoas diversas.

— Não acha que já o convenceu?

— Apenas mais ou menos, Jack. Adeus e seja bonzinho.

Key decidira confundir Orson Swanson e estava prestes a isso. Para a imaginação fértil de Ruth Young, seria fácil desempenhar a comédia, igual a tantas que já urdira com sua pena. Assim pensando, vestiu o uniforme bem passado, enfiou o quepe na cabeça e retornou à mansão dos Swanson. O caso não interessava mais ao término da novela, agora era algo absolutamente pessoal.

Orson zombara de Ruth e Key tinha o dever de vingá-la. É verdade que estava apaixonada, porém Orson Swanson ferira seu amor próprio. Então, pagaria na mesma moeda e depois partiria pelo mundo, continuando com sua vida de viajante sobrecarregada de triunfos literários.

Refletia, enquanto caminhava. Naquele curto espaço de tempo, Orson afirmara não amar Ruth, mas não a associara a Key. Pelo menos, assim dissera à irmã, revelando que tinham um motorista de personalidade feminina, cuja identidade ignorava.

Então, por que fora à sua casa, alegando o contrário? Por que o pai lhe participara que o motorista deixara o emprego? Bem, Key poderia ir embora a qualquer momento, sem significar que ele e Ruth fossem a mesma pessoa. Contudo, por que fora Orson à sua casa?

"Bem, o tempo dirá. Por enquanto, volto à minha nova personalidade", pensou.

Não havia ninguém no parque ou nas janelas. Caminhou em frente e entrou no vestíbulo. Disse para a criada:

— Olá, Mary. Posso falar com o senhor Swanson?

— Deve estar em seu gabinete — foi a resposta indiferente.

Odiava Key, por seu cinismo em não corresponder ao amor que lhe dedicara. E Key sabia disso.

Tirou o quepe e, não encontrando ninguém na saleta, subiu diretamente para o gabinete do dono da casa.

 — Entre!

Key plantou-se diante do homem, esperando. O senhor Swanson estava surpreso:

— De onde saiu você, Key? Disseram-me que você é uma mulher.

— Eu sei, senhor. Confundiram-me com minha irmã.

— Ruth Young?

— Exatamente, senhor. Voltei para lhe pedir que me permita trabalhar novamente em sua casa.

— Pode voltar quando quiser, rapaz. Bem, tenho muito serviço e não posso perder tempo. Você é de casa. Vá.

Key desceu novamente ao vestíbulo, onde avistou Orson, fumando diante do janelão.

— Olá, senhor.

— Oh, é você, Key? — respondeu, Orson, dando meia-volta. — Pensei que ainda não tivesse voltado. Onde está sua irmã?

— Não sei, senhor.

— Estive pensando bastante, Key. Decidi averiguar se realmente existe uma irmão ou se você encarna as duas personalidades.

Key estremeceu.

— Não acreditei numa só palavra daquela comédia e foi por isso que lhe pedi para voltar, sabe? Há muita coisa que me dá a entender que você e Ruth são a mesma pessoa, Então, embora não goste muito, vai dizer tudo agora mesmo!

— Não vejo inconveniente. Sou Key e ela é Ruth. A maldita!

— Muito interessante... chegue aqui, para que eu o veja.

Precisava enfrentá-lo com ousadia. Contudo, Ruth ignorava que ele estava a par de seu segredo... As mãos de Orson caíram em seus ombros; observou-lhe os olhos e, de repente...

— Pronto! — gritou, com raiva, rasgando a camisa de Key e deixando à mostra os maravilhosos seios de Ruth.

— Maldito!

— É inútil, Ruth. Ignoro o que pretende, mas agora será minha esposa.

Cega de raiva, Ruth esbofeteou-o com violência.

— Está certo! Sou realmente mulher, mas jamais me casaria com você!

— E qual o motivo desta comédia? Por que ficou nesta casa, ocupando um lugar que não lhe pertencia?

Ruth, apesar do traje masculino, cobrira os seios, recompondo a camisa que ele rasgara. Olhou-o com fúria:

— Meu objetivo não lhe diz respeito. Agora irei embora. Tudo terminou. Sinto muito, porém não resta alternativa.

— E pensa que vou deixá-la ir embora sem mais nem menos?

Ruth deu uma risada nervosa e fez meia-volta. Orson segurou-a pelo braço:

— Espere. Você zombou de todos nós... Por quê? Preciso saber. Vamos, responda! Depois, pode ir embora. Para que eu iria retê-la?

— Sim, seria absurdo que um farrista como você amasse uma mulher como eu. Você precisa de alguém como Greta. Pois fique cora ela. Algum dia perceberá o quanto errou!

— Será que foi o amor que a trouxe a esta casa, Ruth?

— Ora, não diga asneiras! — riu ela, mais nervosa ainda. — Eu, apaixonar-me por um boneco de salão como você?

Orson quis retê-la, mas pensou melhor. Naquela noite, quando a apanhasse em casa, talvez... Antes queria refletir bastante sobre o propósito que a induzira a penetrar naquela casa, com personalidade suposta.

Viu-a caminhar, altiva e desafiante. Depois, pensativo, subiu a escada e, na hora do almoço, contou tudo à família.

Riram dele, acreditando que o objetivo de Ruth só poderia ser o próprio Orson. Contudo, ele sabia que havia algo mais.

Ansioso por desvendar o mistério, foi à casa de Ruth naquela mesma noite. Quando Jack veio ao seu encontro precisou conter-se para não esmurrá-lo.

— Onde está Ruth?

— Partiu — disse Jack, com indiferença.

Impaciente com aquela comédia, Orson abriu caminho.

— Oh, entre, senhor Swanson e verifique pessoalmente. Ruth viajou esta tarde e talvez agora viajemos também. Nossa missão aqui já terminou. Vamos, entre e veja.

Entrou. Queria ver o ninho onde ela vivera durante o tempo em que o mantinha iludido. Estava tudo em rebuliço, com malas pelo chão, roupas pelas cadeiras e camas...

— Para onde viajarão vocês?

— Não temos rumo fixo, senhor Swanson — informou Jack, com expressão fatigada. — Talvez voltemos a Nova York ou Itália... Somos como bonecos em mãos de uma inteligente romancista.

— Que pretendia Ruth, trabalhando como chofer para nós?

— Ignoro inteiramente, senhor Swanson.

Orson insistiu, mas foi inútil. Saiu dali mal-humorado e, durante muitos dias, ficou atento aos jornais, esperando notícias da escritora. Nada, era como se o mundo a tivesse engolido.

Melânia e Joan casaram-se no mesmo dia. Contaram com a presença de grandes personalidades na suntuosa festa realizada após a dupla cerimônia. Contudo, Orson não se divertia. Era como se lhe faltasse alguma coisa.

Percebeu Laura conversando muito com um amigo seu, sinal de que dentro em pouco haveria outro casamento na mansão. Laura era de decisões rápidas em relação ao próprio futuro. Vagou a esmo, cônscio de que sentia falta daquela mulher, daquela Ruth que zombara deles sem a menor piedade.

 

Os meses foram se passando. O Orson despreocupado de outrora foi sofrendo uma mudança lenta que ele próprio não notava. Até que um belo dia percebeu-se caminhando para a fábrica do pai, com uma pasta debaixo do braço. Depois, quase sem dar pela coisa, viu-se a braços com os negócios do senhor Swanson, tomando conta de tudo.

Seu pai agora podia refestelar-se na mansão, sentado junto à lareira, afundado na poltrona e com um livro na mão. Passava dias e dias conversando com a esposa e fumando, de olhos perdidos em um ponto inexistente.

— Estou surpreso comigo mesmo e com meu filho — comentou certo tarde, fitando docemente a mulher. — E você, querida?

 — Claro que penso o mesmo, Fred — sorriu ela.

— Não sei quem transformou meu filho. E há algum tempo venho notando que a biblioteca de Orson aumentou bastante. Está atulhada de obras de Ruth Young.

— Pobre Orson!

— Pobre Orson? Agora é que se tornou um verdadeiro homem. Nunca o imaginei capacitado para os negócios, mas trata de tudo como se fosse eu em pessoa. Veja com que facilidade acostumei-me à inatividade. Hoje sou um homem feliz, querida.

E Orson também era feliz, envolto no turbilhão de negócios, porque esquecia o problema sentimental de sua vida.

Finalmente, aconteceu o casamento de Laura e a casa ficou solitária. Os senhores Swanson e o silencioso Orson vagavam pelo lar como se faltasse algo a todos eles.

O pai conversou a respeito com o filho, enquanto este observava as evoluções de um criado, indo de um lado para outro a fim de arrumar uma mala.

— Precisa encontrar uma mulher e casar-se, Orson. A princípio, pensei que suas irmãs não se casariam, mas depois todas bateram as asas quase ao mesmo tempo...

— Estou apaixonado por uma mulher, porém ela nunca será minha esposa, papai — replicou com naturalidade.

— Refere-se ao motorista, não?

— Exatamente. Refiro-me a Ruth Young.

— Talvez você a encontre em Nova York, filho.

— Viajo a negócios — replicou secamente.

Não a viu. Soube que Ruth estava em Hollywood, rodando um filme. Tentou divertir-se, inutilmente. Então, após concluir todos os negócios que o haviam levado à grande cidade, tomou um avião e rumou para a Meca do cinema. Sabia antecipadamente que de nada adiantaria, mas estava ansioso por vê-la, nem que fosse um breve momento.

Vestira um terno cinzento e tinha um chapéu de feltro da mesma cor, camisa branca e sapatos pretos. Era um homem elegante, de porte altivo e másculo. O cabaré estava cheio, resplendente de luzes, cores vivas e mulheres belas.

Sendo o único sem traje a rigor, logo chamou a atenção. Ruth o viu assim que entrou. Estava sentada sozinha, com um lápis na mão. Vestia um traje de noite negro, com os cabelos caindo sedosos sobre as costas. Estremeceu ao vê-lo, mas nada fez que delatasse sua presença. Orson, entretanto, avançou decidido:

— Não me diga que está resolvendo palavras-cruzadas — comentou apenas, sentando-se à mesma mesa.

Era como se a separação fosse na véspera, embora não se vissem há vários meses. Ruth estava belíssima. Ergueu os olhos cheios de vida, para encará-lo fixamente:

— Procurava afastar o tédio, mas já que você chegou, poderá me distrair, contando algo de sua família.

— Não vim aqui para isso. Muito menos para vê-la.

— Oh, entendo... Simplesmente curiosidade pela capital do cinema. Aliás, um lugar sempre sedutor para os desocupados...

— Como você?

Ruth riu também, com faceirice. Orson percebeu então que começara a amá-la sem se aperceber. E como era feminina!

— Estou ganhando muitos milhares de dólares — replicou ela, afetando indiferença.

 — Julguei-a menos prosaica.

— Tenho um pouco de tudo. Sou poética quando a vida é poesia, mas a vivo em prosa, se for em prosa. E quando não me interessa, deixo de lado.

— Você é uma mulher adaptável e inteligente. — Mudou de tom: — Por que está sozinha? Falta de admiradores?

— Detesto os admiradores. Amanhã mesmo deixarei Hollywood por um lugar talvez mais vulgar, porém mais encantador para mim. Aqui já terminei.

Levantou-se e Orson apressou-se em colocar-lhe o abrigo. Ao tocar nos ombros dela, deixou que as mãos permanecessem ali e sussurrou:

— Gostaria de despedaçá-la, Ruth. Que mulher mais estranha! Por vezes, acho-a sensível, mas depois...

— Acompanha-me? Não trouxe meu carro e devo caminhar um bom trecho até o hotel.

— Irei com você.

Saíram. O ar frio da noite reconfortou-os, ao deixarem o ambiente sufocante do cabaré. Ruth encolheu-se no abrigo e Orson lhe deu o braço, apertando-a contra si. Para sua surpresa, ela não se afastou. Não pôde se controlar:

— Estou apaixonado por você, Ruth.

Segunda surpresa: Ruth não riu. Respondeu simplesmente:

— Também estou apaixonada por você.

Beijou-a ali mesmo, no meio da rua. Foi um beijo longo, interminável, apertado...

— Agora chega.

— Foi como se seu cãozinho a beijasse, não foi?

Ela o fitava sorrindo, feliz, mas sem emoção.

Continuaram caminhando muito juntos sob a noite fria e estrelada.

— Quero me casar com você.

— Quem falou em casamento? Claro, estou apaixonada por você, mas daí a casar-nos...

— Por que recusa, Ruth?

— Sei lá! Talvez eu me explique amanhã.

No dia seguinte, quando Orson foi buscá-la no hotel, um mensageiro da casa entregou-lhe uma carta.

— E a senhorita Ruth? — perguntou.

— Partiu, senhor. Ignoramos para onde.

Só leu a carta quando novamente no avião, a caminho da cidade de onde jamais deveria ter saído. Dizia o seguinte:

"Orson:

Não posso casar-me com você porque os enganei. Introduzi-me em sua casa para escrever sobre a família Swanson. Foi minha melhor obra, que será publicada brevemente. Pensei muito antes disso. Agora sei que prefiro o êxito a seu amor.

Seus beijos são maravilhosos, suas promessas magníficas, mas estou embriagada pelo triunfo. Adeus, Orson. Jamais esquecerei tudo quanto me disse ontem. Também não o esquecerei, embora seja um boneco elegante que ama apenas suas diversões."

Diversões! Teve vontade de saltar ao espaço, correr atrás dela, matá-la ou dominar sua vaidade de mulher famosa.

Mergulhou a fundo no trabalho assim que chegou, e quase nunca deixava a fábrica. Transferira seu apartamento de solteiro para o prédio e corria do trabalho para lá, onde passava os dias à espera de que editassem o livro sobre os Swanson.

Nada mencionou ao pai a fim de não aborrecê-lo. Preferia aguardar que a obra viesse a público, para então fazer um protesto em regra. Estava certo de que o triunfo de Ruth não seria nada lisonjeiro para a mulher que preferia o êxito a seu amor.

Certa noite, decidiu sair, farto daquele apartamento e da solidão. Trabalhara demais e queria mostrar como sabia ser um homem elegante de sociedade, mesmo sendo um grande financista.

Não esperava encontrar Dick, seu bom amigo repórter, que trabalhava num jornal.

— Há quanto tempo não nos vemos! — comentou o jornalista. — Acho que desde aquela noite em que Key sumiu com Greta.

— Sabe quem era Key?

 — Você disse várias vezes, mas sempre achei que Ruth Young era feminina demais para um papel masculino por tanto tempo.

— Pois era ela. Queria escrever um livro sobre a família.

— Assunto bastante temerário, não?

— Também foi o que pensei.

Então, olhando para Orson, Dick comentou, como se não dissesse nada de importante:

— Vi Ruth ontem à noite

— Onde?

 — Está num hotel das redondezas. Penso que veio passar um verão sossegado. Não falei com ela, porque só a conheci como Key, mas o diretor encomendou-me uma entrevista. — Fez uma pausa e em seguida acrescentou: — Não quer ir em meu lugar?

— Nada entendo de jornalismo.

— Mesmo assim, é fácil entrevistar alguém. Por outro lado, interroga-se melhor a mulher a quem se ama, não acha?

Orson deu de ombros, irritado com a perspicácia de Dick.

— Não me diga que não ama Ruth Young — insistiu.

— Admiro-a como escritora. Daí ao amor, temos um abismo.

Levantou-se, sem querer prolongar uma conversa que lhe era penosa.

Dick sorriu, entregando-lhe um papel:

— Tome. Faça a entrevista quando bem entender.

— Não pretendo entrevistá-la, Dick.

— Por que não? Veja, ali está ela, sentada a um canto.

Orson Swanson virou-se, como se uma mola o impelisse.

— Há muito que a estou vendo — continuou Dick. — Bem às suas costas, rapaz. Está mais bonita do que nunca. E já nos viu, sabe? Neste momento, leva uma taça de champanha aos lábios.

Orson acendeu rapidamente um cigarro e exalou uma espessa baforada. Depois, enfiando as mãos nos bolsos, sorriu de um modo indefinível:

— Até outro dia, Dick. Sou um homem cortês e devo cumprimentar uma velha amiga.

 

Estava mais longe do que nunca, em seu traje de noite negro, muito decotado, deixando ver parte do colo e das costas. Um abrigo, largado sobre a mesa, os cabelos mais compridos que da última vez, caindo sobre uma face, tinham um encanto novo para o homem que a contemplava avidamente. Ela cumprimentou:

— Olá, Orson. Como vai? Há muito que não nos vemos, hem?

Orson apertou a mão estendida e depois a levou aos lábios. Não houve qualquer emoção em seu gesto, o que surpreendeu a jovem. Julgava que ele jamais a esqueceria. Orson sentou-se a seu lado e a olhou detidamente:

— Está mais bonita que da última vez. Quando chegou?

— Ontem à noite.

— Veio com intenção de escrever outro romance?

— Não. Um tema tão interessante como o anterior eu só poderia encontrar em casa dos poderosos Swanson — sorriu. — É bem possível que daí eu tenho um grande êxito, não só financeiro, como também literário.

— Jamais darei meu consentimento para que publique a obra!

— Seu consentimento é dispensável, Orson. Sou uma mulher de recursos.

O rapaz inclinou-se para ela, encarando-a:

— Ainda prefere um êxito efêmero a meu amor?

— Ignorava que continuasse a me amar...

Zombaria dele? Orson acendeu outro cigarro e ficou contemplando as espirais de fumaça que subiam para o espaço.

Conversaram bastante e depois saíram. No dia seguinte, ele foi esperá-la no hotel. Quando Ruth chegou, passaram para uma sala e sentaram-se. Discutiram e Orson disse, quando ela tentou sair, mas não pôde porque ele a segurou:

— Preciso ficar a seu lado, Ruth. Para admirá-la...

— Mesmo depois da publicação da novela sobre os Swanson?     

Orson inclinou-se para ela, com os olhos chispando:

— Não foi publicada e você jamais a publicará, Ruth. Sabe que nascemos um para o outro e isso cavaria um abismo entre nós. Não acredita?

E Orson, inclinando-se ainda mais, beijou-a na boca, sôfrega e desesperadamente. Ruth libertou-se, sufocada.

 — E agora? Acredita? — perguntou ele, docemente.

 

Apareceu em público com um rapaz que conhecera no hotel, talvez para provocar ciúmes em Orson. Frank era um bom amigo, e sabia que nada podia esperar de Ruth. Contudo, o resultado da encenação foi o previsto. Orson ficou furioso quando, ao ir buscá-la na manhã seguinte, viu-a sair do hotel em companhia de um rapaz muito elegante. Ruth passou a seu lado como se não o conhecesse.

Imediatamente, Orson planejou um contra-ataque e procurou a ajuda de seu amigo Dick. Confessou:

— Estou mesmo louco por ela, entende? Se não me casar com Ruth, nem sei o que farei. Vim pedir sua ajuda.

— E como poderia eu ajudá-lo?

— Você tem uma casa de campo, não? Pois muito bem: quero-a emprestada.

— Pretende raptar a moça? Não diga tolices, homem!

— Pois o final será uma maravilha, Dick. Tentei a entrevista, mas fui um fracasso como jornalista...

— A casa de campo fica muito isolada, Orson. Não cometa uma tolice de que mais tarde se arrependeria.

— E então? Empresta-me a chave?

— Primeiro, quero saber suas intenções...

Orson foi franco. Finalmente, Dick entregou-lhe as chaves.

Naquela noite, postou-se junto ao hotel, pretendendo surpreender Ruth, quando ela chegasse. Por fim, avistou os dois vultos que se aproximavam e adiantou-se para eles, sem aparentar nenhuma intenção determinada. Disse, com naturalidade:

— Oh, é você Ruth... Vinha justamente buscá-la para que fosse cear com meus pais. Desejam cumprimentá-la.

Surpresa e depois confusa, Ruth fitou Frank e sorriu:

— Vai me desculpar, não? São bons amigos meus...

Depois, virando-se para Orson:

— Descerei em seguida. Também gostaria de rever seus pais.

Pouco depois, vestida com simplicidade mas elegantemente, a jovem se aproximava de Orson, que lhe disse:

— Meu carro está logo ali.

— Sua casa fica perto. Podemos ir caminhando.

— Não posso deixá-lo estacionado aqui, Ruth.

O luxuoso veículo penetrou numa rua solitária e subitamente tomou o rumo da estrada.

— Não disse que íamos à sua casa?

— Durante o verão, minha família vai para o campo. — E após um silêncio: — Quem é aquele homem?

— Refere-se a Frank?

— Você o ama?

— Ainda não.

Ele não gostou da resposta e chamou-a de fria e incapaz de amar.

Ruth inclinou-se para observá-lo. O carro penetrava numa estradinha pedregosa e esburacada, mas ela não percebeu.

— Que sabe você do que existe em meu coração? Sou perfeitamente capaz de amar, Orson... e ninguém amará com tanta intensidade como eu.

— Houve um tempo em que dizia me amar...

— Falta muito para chegarmos?

Ruth endireitou-se no assento e sorriu:

O carro parou diante de uma casinha branca, muito pequenina, cercada de arbustos.

— Sua família está aqui?

Sem responder, Orson empurrou-a brandamente para diante. De repente, Ruth viu-se no interior de uma salinha em estilo colonial, mobiliada com simplicidade e bom-gosto.

— Que significa isto, Orson?

O rapaz fechou a porta e guardou a chave no bolso. Só então olhou para Ruth de frente, pela primeira vez:

— Um dia você zombou de mim, conheceu-me como mulher alguma conheceu. Foi homem para passar uma noite ao lado de uma amiga e, como agora não sabe se realmente me ama, trouxe-a aqui para que descubra. Sente-se, por favor, e não me olhe desse modo. Não lhe faltarei ao respeito, sossegue. Quero apenas saber, ter certeza de que esse livro jamais será publicado e, ao mesmo tempo, ouvi-la dizer que poderá vir a me amar.

Ruth teve vontade de esbofeteá-lo, mas pensou melhor. Estava em poder dele e, furioso, um homem pode ultrapassar os limites, prejudicando profundamente uma mulher. Sendo corajosa, não lhe foi difícil sentar-se tranqüilamente, acender um cigarro e expelir a fumaça com faceirice. Comentou, zombeteira:

— Uma estratagema delicioso. Precisamente o que faltava para eu terminar a minha obra. Será publicada assim que você me libertar da prisão.

— Não se importa então de passar uma temporada comigo?

— Por que me importaria, se você é um companheiro delicioso, Orson?

De testa franzida, com a mente cheia de pensamentos loucos, Orson fumava ansiosamente seu cachimbo. Do outro lado, Ruth fumava calmamente um cigarro, estendida no sofá, olhando para o teto. Parecia absolutamente indiferente ao que sucedia. Há muito que o relógio marcara três de madrugada. Tinham comido algumas conservas, sem que ela demonstrasse a menor inquietação ou temor. Depois fumara um cigarro e, após comentar assuntos banais, refestelara-se no sofá, onde pretendia passar o resto da noite.

De repente, ele indagou, com a voz alterada:

— Sabe quantos dias ficaremos aqui, Ruth?

— Para lhe ser franca, há muito que eu precisava de alguns dias de repouso, meu caro. Fico feliz com esta quietude. Só espero amanhecer para contemplar um belo panorama...

— Ignora que, saindo daqui, terá de ser minha esposa forçosamente?

— Uma bela idéia, querido. Você é um companheiro agradável e desejo me casar. Que diferença faz com quem seja?

Orson pisoteou o chão, furioso. Ruth queria desconcertá-lo e estava tendo sucesso. Correria de bom grado para junto dela e...

— Não faça isso, Orson — disse ela, com voz suave. — Seria contraproducente, porque correção é algo que sempre admirei em você. Leio em seus olhos o que está pensando. Se deseja chegar ao meu coração, escolheu o meio errado, Orson.

— Não sabe que a amo?

Falou com paixão, com intensidade. Ruth desviou os olhos, procurando sufocar as batidas furiosas de seu coração. Não queria, de modo nenhum, enredar-se no feitiço daquele amor, terrivelmente perigoso em paragens to solitárias. Replicou, com voz firme:

— Há milhares de mulheres mais interessantes do que eu. Qualquer uma o amaria com mais intensidade.

— Só quero o seu amor, entende? Trabalhei por você, lutei e venci. Foi o que exigiu de mim, lembra-se?

Estava junto dela, sentado na beira do sofá, fitando-a ansiosamente. Ruth empalidecera um pouco.

— Ruth...

 — Largue-me, Orson. Parece que nos iludimos mutuamente. Por que não me leva para a cidade? Terminaremos esta conversa amanhã, quer?

— E amanhã, onde estaria você? Sei que minha atitude não é muito correta, mas se me abandonar novamente, acabarei sendo um trapo nas mãos de Greta ou outra qualquer do tipo dela. Case-se comigo, Ruth! Teremos nosso lar, filhos... Encontrarei a mão amorosa que apertará a minha quando houver necessidade. Ouça-me...

— Não me toque, Orson. Seria horrível...

— Repugno-a a esse ponto?

— Não é isso.

— Que é então, Ruth? Acha que viverei toda a vida assim? Preciso de você a meu lado, preciso de seus beijos, suas carícias, seus olhos, suas mãos... Oh, por que sou tão imbecil? Nunca imaginei que chegasse a implorar deste modo...

Ruth deu meia-volta e ficaram frente a frente.

— Leve-me para a cidade, Orson! Por favor. Amanhã...

— Amanhã! — repetiu ele com amargura, abraçando-a e puxando-a para si. — Para onde viajará você amanhã?

Os lábios de Orson coloram-se sofregamente aos de Ruth. Afinal ela conseguiu libertar-se, ofegante. Olhava com desespero para ele, os olhos lacrimosos e os lábios doloridos pelo beijo.

— Não chore, Ruth. Juro que...

— Leve-me daqui, ouviu? Nunca mais quero vê-lo e você terá uma recordação bem pouco agradável destas horas.

— Então diga que será minha esposa.

— À força? Nunca! Prefiro ficar sozinha o resto da vida. Leve-me para a cidade. Amanhã conversaremos. Prometo não desaparecer desta vez.

Orson enfiou as mãos nos bolsos e ficou quieto, rígido. Tinha a testa franzida e uma expressão de desespero no olhar.

— Não a levarei, Ruth. Você tornaria a sumir, eu talvez não a encontrasse mais e preciso de você. Oh, como preciso!

— Se eu não o amasse, que importaria o seu amor por mim? Que dignidade é essa, quando obriga a mulher amada a um casamento que talvez lhe repugne? Introduzi-me em sua casa como motorista para fazer uma obra literária. Achei que sua família daria um bom assunto, mas vi que são tão vulgares como eu mesma. Tanto assim, que não terminei o livro. Este estratagema seu poderia fornecer um fecho de ouro, mas considero tudo isto uma estupidez. Não, o livro não vale a pena ser publicado, tranqüilize-se. O que escrevi não tem valor... Quatro irmãs, uma se casa precipitadamente, outra pouco depois e a terceira segue o exemplo. Casaram-se todas com homens comuns, semelhantes a milhares de outros. Você, o único que sobrou, rapta uma mulher, pretendendo transformá-la à força em sua esposa. Qual, Orson, não é tema para uma obra de peso. Portanto, leve-me para a cidade e amanhã vá me visitar.

Como única resposta, Orson abandonou-se numa poltrona e acendeu o cachimbo. Parecia indiferente:

— Levo-a ao amanhecer. Pode dormir, não a incomodarei.

Ruth dirigiu-lhe um longo olhar. Então, sentando-se na beira do sofá, ficou quieta e silenciosa.

Quando abriu os olhos, perdera a noção do tempo. Olhou em torno, percebendo que o sol entrava a jorros pela porta entreaberta. Levantou-se de um salto e correu para lá. O carro continuava no mesmo lugar, mas tudo o mais estava mudo, quieto. Correu de um lado para outro, procurando e gritando por Orson, mas foi inútil.

Voltou para a casinha, percorreu os aposentos e, quando se certificou de que estava sozinha, retornou ao jardim. Entrou no carro e verificou que a chave estava ali. Então, pisando no acelerador, embrenhou-se pela estradinha pedregosa. Uma vez na estrada principal, pisou fundo e o carro disparou pelo asfalto como um raio.

 

O encontro seguinte só teve lugar após Ruth dormir por várias horas seguidas, nas quais procurou esquecer o tempo que transcorrera.

Foi num salão de chá. Estava sozinha, lendo um jornal calmamente, quando Orson sentou-se a seu lado.

— Como vai? — perguntou após alguns momentos.

— Bem, como sempre.

— Quer dançar?

 — Prefiro contemplar os que dançam.

Curioso: Orson não comentou aquele rapto. Entretanto, já que não o mencionava, ela também fez o mesmo.

— Viajarei para Londres — disse ele, após um longo silêncio. — Se quiser alguma coisa, é só dizer, Ruth.

— Eu também viajarei — disse ela, inquieta. — Tenho assuntos urgentes a tratar em Nova York.

— Talvez nos vejamos por lá. Vou para a Inglaterra, mas um avião encurta bastante as distâncias...

Era uma conversa insípida, mas Ruth não encontrava outro assunto e Orson não queria mencionar algo que, segundo ela mesma, fora proibido para ambos.

Saíram para a rua e caminharam em direção ao hotel de Ruth. Chegando ao vestíbulo, Orson parou e estendeu-lhe a mão:

— Até a vista, Ruth. Talvez nos encontremos dentro de alguns dias, mas também pode ser que isso jamais aconteça.

Não largava a mão dela e Ruth também não a retirava.

— Por que você foi embora e deixou o carro para mim, Orson? — indagou finalmente, tocando no assunto que a preocupava. — Como se arranjou para voltar a pé e sozinho?

— Mudemos de conversa, quer? Bem, isso já passou, acho eu. Adeus e felicidade, Ruth.

— Orson, escute...

— Sim?...

— Oh, nada, nada... Adeus, Orson.

Quando ele desapareceu na rua, Ruth levou as mãos ao rosto e ficou rígida, com os olhos brilhantes. Uma idéia acudira repentinamente a seu cérebro e ia levá-la a cabo.

Entrou no hotel, trocou precipitadamente de roupa e, minutos depois, batia à porta da mansão dos Swanson.

— Olá, Mary. Quero falar com o senhor Orson.

— Está bem, Key, mas... mas...

— Que está havendo aí, Mary? — A voz era inconfundível.

Orson surgiu diante de Key. O "motorista" tirou o quepe e uma cascata de cabelos lhe caiu pelas costas.

— Olá, senhor. Desejo um emprego.

— Não precisamos de chofer, Key — replicou ele, como se na realidade não a conhecesse.

Ruth precisou esforçar-se para conter a raiva e a humilhação. Olhou para Orson e disse, em tom áspero:

— Foi minha última tentativa.

— Parece que chegou tarde, Key. Já tenho motorista...

Key deu meia-volta bruscamente e abandonou a mansão sem olhar para trás.

O senhor Swanson aproximou-se do filho:

— Por que fez isso? Agora, a perdeu para sempre.

— Talvez, papai, mas antes isso que ser um joguete em suas mãozinhas. Ruth sabe que a amo há muito tempo. Deliciou-se com o meu sofrimento, mas agora terminou. Logo estarei consolado da decepção.

 

Jack indagava dela por que não publicava o livro sobre os Swanson. Ela respondia que não ia publicar, mas que ia mandar a obra para a família dentro de alguns meses. Não queria destruí-la.

— Já se passaram dois anos desde que você foi à cidade pela última vez. Se você o ama, por que não confessa, Ruth?

Ela se irritou e Jack acabou saindo. Estava namorando uma moça e Ruth ficara satisfeita com isso, embora de certa forma se sentisse enciumada. Tinha inveja dessa moça de quem ele gostava, porque era amada...

Ruth sabia que Jack a amara em outros tempos, mas agora seu amor pertencia a outra mulher, talvez mais simples e humilde, mais feminina...

Dois anos sem ver Orson! Uma eternidade!...

Chamou a criada. Queria que ela lhe preparasse um vestido. Ia a uma festa. O sucesso literário já não lhe interessava.

Saiu. Acomodou-se no assento traseiro e a chofer, de uniforme, deu partida, rumando para a mansão dos Powell, família que Ruth conhecera na Escócia. Agora, de volta a Nova York, eles a tinham convidado para uma festa.

Cruzou a porta precisamente quando um homem descia do carro e subia a escadaria, passando a seu lado sem vê-la. Entretanto, pouco depois, Orson Swanson olhava para Ruth com espanto, vacilando ligeiramente. Depois, estendeu-lhe a mão:

— Não esperava encontrá-la aqui, Ruth. Como vai? Há muito não nos víamos, hem?

— Quase dois anos.

— Acho-a mais bonita do que nunca.

— É um galanteio?

— Claro, foi um prazer revê-la. Pensei muito em você.

— Em mim ou em Key?

— Em Ruth, claro. Key cometeu uma tolice, fazendo-me esquecer o que mais amava.

Atravessaram o vestíbulo e foram recebidos pelos anfitriões. Ruth foi logo rodeada pelos numerosos convidados, que a cumprimentavam com admiração. Pensou que não tornaria a ver Orson, mas à hora do jantar encontrou-o sentado a seu lado.

— Tem uma expressão entediada, Ruth — sussurrou, ele. — Parece estar com o pensamento muito longe daqui. Algum amor?

— Quem sabe?

— Ficou muito lacônica desde a última vez que nos vimos. Casou-se?

— Não me casei e nem estou pensando nisso.

Falou com indiferença. Orson encarou-a:

— Não me pergunta se estou casado?

— Não me interessa.

— Entendo. Muito tempo passou sobre o nosso amor...

— Nosso amor? Nunca nos amamos...

Dançaram e não voltaram mais ao assunto. Mas Orson não se conteve e disse com veemência:

— Nenhum homem fará você feliz como eu!

— Todos os homens dizem o mesmo.

Furioso, levantou-se de um salto, gritando:

— Será que passaremos a vida assim? Ouça. Ruth, se nos separarmos hoje, será definitivo. Procurarei outra mulher, mas você talvez não se case, porque só a mim pode amar...

— Foi sempre um vaidoso!

— Estamos perdendo um tempo precioso, querida... Tudo por causa do maldito orgulho. Seja sincera de uma vez!

Ela se enfureceu e disse uma série de palavras ásperas. Ele ignorou o insulto.

— O que se passou não vem ao caso. Agora não vim falar do passado, mas de um presente que podemos tornar delicioso. Quer ou não, Ruth, casar-se comigo? Se me deixar partir, nunca mais voltarei. Você ficará velha, perderá a mocidade, chorará a felicidade que deixou escapar. E depois?

— Cale-se!

— Calarei para sempre, tão logo saia daqui!

— Pois pode ir, porque não o acompanharei.

— Pensou bem no que está dizendo?

Ruth estava confusa com a segurança de Orson. Nunca seria feliz com outro homem, mas não queria ser convencida. Pisoteou o chão e avançou para ele:

— Pode ir!

Houve um segundo encontro. Orson foi visitá-la e tocou novamente no assunto do casamento. Ela resistiu, mas ele puxou-a para si, beijou-a com loucura.

— Ainda há tempo, Ruth, responda! Quer se casar comigo?

— Não!

Ele caminhou para a porta. De repente, parou e voltou-se:

— Fico, Ruth?

Ela virou-se e desapareceu por uma porta ao lado. Orson mordeu os lábios e saiu, pisando com força.

Sozinha, Ruth chorava. Subitamente, levantou-se do sofá onde se deitara desesperada e telefonou para Jack, anunciando que ia se casar.

Desligou e correu para o seu quarto. Minutos depois, um esbelto chofer, vestido de azul e vermelho, saía à rua, com o quepe sobre os olhos e uma valise na mão.

Orson já tinha os olhos doloridos de tanto olhar. Decepcionado, baixou a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos. Faltavam três minutos para o avião decolar, minutos que eram como horas angustiosas para o homem que passeava agitadamente de um lado para outro.

De repente alguém tocou em seu braço. Olhou:

— Que deseja?

— Olá, senhor. Vim acompanhá-lo.

— Key!

As pessoas mais próximas espantaram-se ao ver um homem beijando outro em plena boca. Para cúmulo, o mais baixo passara os braços pelo pescoço do mais alto.

— Escute aqui, cavalheiro...

Orson olhou. Era um guarda.

— Que deseja?

— Isto aqui é um...

Orson puxou o quepe de Key, fazendo com que uma basta cabeleira caísse sobre seus ombros.

— Não é ele, amigo. É ela, entende?

Tomou-a pela mão e a arrastou para o táxi. O carro disparou pela esplanada.

O guarda ficou estático, balançando a cabeça sem entender.

Enquanto isso, dois vultos muito juntinhos se abraçavam no interior do táxi, contemplando-se amorosamente.

— Convenceu-se?

— Ainda duvida?

 — Foi para sempre?

— Para toda a vida.

— Vamos casar agora?

— Imediatamente.

— Não se arrependerá?

— Nunca!

— E onde quer morar?

— Onde você quiser.

— Deixará de escrever?

— Deixarei.

— Jura?

— Tolinho. Será preciso?

— Não, não.

Beijou-a. Ruth apertou-se contra ele e passou os braços em torno de seu pescoço.

— Eu o amo, Orson. Acho que desde quando nasci — disse com paixão. — Nunca pensei que algum dia pudesse amar assim.

— E por que me fez sofrer tanto?

— Porque você me magoou. Quando fui à sua casa vestida como estou agora, ia entregar-lhe o meu amor, mas você me repeliu...

— Pensei que você queria zombar de mim.

Como resposta ela colou a boca à de Orson, brincou com seus lábios, beijou-os com ardor. O táxi parou.

 

O carro parou diante da casinha escondida entre os arbustos. Orson desceu para abrir o pequeno portão.

— Chegamos, Ruth.

— Tudo igual como naquela noite em que você me raptou — comentou, saindo do carro. — Só que hoje é diferente, não é, querido?

O homem tomou-a nos braços e cruzaram a porta.

Antes de largá-la, sentiu os braços de Ruth em seu pescoço. Mesmo sem acender a luz, procurou avidamente os lábios da esposa.

— Ruth — disse baixinho. — Está é a nossa noite de núpcias. Ignoro se as de seus romances foram tão interessantes, mas agora vou ensinar-lhe a viver uma realidade, para que jamais torne a imaginar cenas que nunca existiram de verdade para você.

Depositou-a no chão e beijou-a novamente.

— Tome, Orson — sussurrou ela, um tanto sufocada. — Aqui está o manuscrito que escrevi quando estive em sua casa no papel de Key. Quero que você nunca o esqueça. Foi graças a Key que a escritora começou a amá-lo apaixonadamente.

— E que devo fazer com o manuscrito, Ruth?

— Guarde-o como recordação. Lera tudo para nossos filhos, quando os tivermos.

Orson apertou o interruptor, iluminando o aposento.

Ruth vestia um modelo escuro de inverno, sob um abrigo de peles. Estava sem chapéu e seus olhos brilharam intensamente. Orson aproximou-se novamente e beijou as mãos pequeninas:

— Tudo isto me parece um sonho, Ruth. Hoje somos marido e mulher, para sempre, para toda a vida...

Orson riu, riu como um doido, até sufocar o riso nos lábios tentadores que se ofereciam diante dele.

— Tolinha! Só tenho um amor e uma única mulher, entende? Uma única mulher e seu nome é Ruth.

— Largue-me, por favor.

— Machuquei-a?

— Quase me asfixia.

— E você não gosta?

 — Acabará por enlouquecer-me, Orson. Por que não jantamos?

— Nem pense nisso, Ruth. Vamos nos amar, só amar... comeremos amanhã...

E os dias transcorreram felizes, cheios de paixão, enquanto durou a lua-de-mel naquela casinha acolhedora.

 

 

                                                                                            CorinTellado

 

 

                      

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