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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Sem Armas Para o Amor / Corin Tellado
Sem Armas Para o Amor / Corin Tellado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Sem Armas Para o Amor

 

Bryan separou-se de Mauri por não suportar mais as intermináveis brigas que tinham a respeito da forma de conduzir os negócios da família dela. Mas são obrigados a encontrarem-se alguns anos depois. A filha deles está muito doente e precisa dos pais juntos, e mesmo com tanta mágoa tentam fazer o melhor por aquela criança. 

       

Roy Ewart (com seus cinqüenta anos, alto, magro, porte de grande senhor, olhar vivo, cabelos quase bancos) ficou olhan­do sua sobrinha com expressão entre in­quieta e vivaz.

— Mauri! — murmurou pela centési­ma vez — acha direito se manter em si­lêncio?

Mauri fumava.

Recostada no divã, pernas cruzadas, ci­garro entre os dedos, olhar fixo, obstina­do na fumaça do cigarro que se perdia pe­la janela aberta.

Era uma jovem de vinte e três anos, quase vinte e quatro, embora não os aparentasse. Cabelos castanhos, olhos cor de mel, esbelta, com traços delicados e uma doçura emanando de seu olhar.

— Está me ouvindo, não é, Mauri?

A jovem assentiu com um leve movi­mento de cabeça.

— E não diz nada? Olhe, se me ouve, se está de acordo com o que eu digo...

— Não disse que estava de acordo com o que diz, tio Roy.

O cavalheiro se pôs de pé. Era altíssimo. Ao atravessar o salão, sua figura parecia mais arrogante.

— Não está de acordo, não está de acordo — repetiu com voz cortante. — E por que não? Disse a Claudia o que ocorre com sua filhinha?

Os olhos de Mauri faiscaram.

— E por que tenho que dizer a minha cunhada?

Roy deteve sua caminhada agitada.

— Por quê? É óbvio, não? É irmã de seu marido.

Mauri descruzou as pernas.

Vestia calça verde e colete do mesmo tom com um camisão por baixo, de cor bege.

Cabelo solto, comprido, caindo pelos ombros.

— Esqueçamos isso — disse.

E sua voz tinha um quê de altivez. O tom daquela voz apaziguou Roy. Como se a raiva, o gênio da sobrinha anulassem totalmente a irritação do cavalheiro.

Sentou-se de novo e olhou para a figu­rinha graciosa, que agora não mais pare­cia altiva e majestosa. Algo nela vibrava intensamente. Como se o passado voltasse e a ferisse vivamente.

— Não se pode esquecer — disse Roy Ewart, secamente — o que ainda atinge sua vida atual. Nunca entendi muito bem os motivos que levaram Bryan a deixar você, sua filha, a casa de ambos... Também, você sempre se trancou em si mesma. Desde pequena foi assim, reserva­da. Quando seu pai morreu e me deixou sua tutela, fiz tudo para compreendê-la, para vir a ser seu melhor amigo. Nada. E, embora me tenha chamado para padrinho de seu casamento, quando se separou não me explicou nada.

Mauri ficou um tanto tensa. Bruscamente, apanhou outro cigarro. O tio, educadamente, veio acendê-lo.

— De qualquer jeito — comentou Mau­ri, como se não tivesse ouvido o comentário do tio — o fato de Cris estar doente não me obriga a chamar Bryan...

— É filha de ambos não? E depois não é uma doença passageira. Não se sabe ainda o que é mas Cris está há um mês de cama... Que direito tem você de desfru­tar sua ternura, negando-a a seu marido?

— Negando-a? E ele perguntou pela fi­lha, alguma vez?

— Não seja tola — impacientou-se o cavalheiro. — Claudia Smith vive a dois passos. Sabe de tudo que ocorre nesta casa. Pensa que Bryan precisa recorrer a você, para saber da filha?

— Há dois anos nos separamos...

— Eu sei — impacientou-se de novo. — Casou-se aos dezoito. Aos dezenove já era mãe, e aos vinte e um, estava separa­da de seu marido.

Mauri esmagou o cigarro no cinzeiro de bronze.

— De qualquer jeito, nada tenho a di­zer a Bryan. Não posso perder tempo chamando-o, quando estou tão preocupada com Cris.

— O que disse o médico?

— Nada ainda. Talvez, depois dessa úl­tima análise, diga algo. Quando eu souber, talvez comunique a ele, ou não.

— Faz mal, muito mal...

E depois, sem que Mauri fizesse obje­ção alguma, o cavalheiro comentou:

— Fico pensando se seu marido, de Quebec, onde trabalha, lhe pedisse o di­vórcio. Não entendo porque não o fez ain­da.

— De que serviria? — cortou ela, algo agressiva. — Ambos somos católicos, o divórcio não resolveria nosso caso. Nenhum dos dois poderá casar de novo. Entende agora, porque Bryan não pede o divórcio?

— E você aí, bem calma e tranqüila.

Quanto se enganava seu tio...!

— Não avisarei Bryan — decidiu ela — enquanto não souber algo mais concre­to sobre a menina.

 

Roy Ewart tinha sua própria fortuna, e não precisava trabalhar nas minas de hulha de sua sobrinha; mas, todos os dias ia verificar tais minas, supervisionar os li­vros, entrevistar-se com os altos funcioná­rios.

Quando Mauri se casou com Bryan, Roy pensou que tinha se livrado de umacarga pesada, difícil, e que poderia aproveitar mais a vida.

Mas, foi tudo passageiro.

Três anos depois, quando pensava estar livre daquela canseira toda, eis que chega em alto-mar um cabograma, avisando-o da separação de sua sobrinha e do marido.

E lá teve ele que voltar ao trabalho.

Enquanto entrava em seu Jaguar, ia pensando nisso.

Ele não era um ocioso, mas gostava de viajar, de ter sua vida sem maiores problemas. Dedicara-se àquelas minas de seu irmão desde adolescente, e nem tivera tem­po sequer de formar uma família: uma vez Mauri casada, por que tinha ele que continuar com aquela preocupação?

Mas Mauri era assim. Assim como?

Atravessou a pequena cidade em seu carro, pensando no que ia fazer. Claro, não chamaria Bryan, para não contrariar sua sobrinha.

Por que teriam mesmo se separado?

Sempre teve vontade de visitar Claudia Smith e perguntar-lhe o que sabia a respeito, mas temia a reação de Mauri.

Chegou, diante de loja de Alex Shiller. Quando Bryan conheceu Mauri, era o gerente da loja. Os dois haviam se amado intensamente, disso não havia dúvida.

Quantas vezes passara por ali, louco para fazer perguntas a Claudia, e não fi­zera. Agora, era diferente. Agora, Cris Smith Ewart estava doente. Era filha de Bryan, e este tinha o direito de saber no­tícias dele.

Desceu do carro, olhou para o letreiro da loja: "Alexandra Shiller. Industrial. Décimo quinto andar".

Fora o primeiro trabalho de Bryan, A princípio, julgara-o arquiteto, mas depois ficou sabendo que não tinha título ne­nhum. Mas, dirigindo, mais tarde, as minas de hulha, dera-se muito bem. Por que teria largado tudo, inclusive seu lar?

Dirigiu-se ao décimo-quinto andar, deci­dido. Desde que o casal havia se separa­do, ele pensara em tomar aquela atitude. Agora, era chegada a hora.

Naquela ocasião, havia regressado em seu iate, pronto a fazer qualquer coisa pe­lo casal. Mas, era tarde.

Bryan havia partido para Quebec e Mauri vivia na grande mansão dos Ewart, impassível, inabordável a tudo que se re­ferisse ao seu problema com o marido. Não dera sequer uma pista do motivo que os levara a uma separação tão drástica.

 

Uma criada de avental e touca branca abriu-lhe a porta.

Numa cidade pequena como Medicine Hat todo mundo se conhecia. O Sr. Roy Ewart, solteirão rico e bem relacionado, era naquela cidade quase como um personagem antológico.

Por isso, a criada ao vê-lo, exclamou rapidamente:

— Sr. Ewart...

— A senhora..., poderei vê-la?

— Oh, sim, entre, entre. Vou anunciá-lo imediatamente. O senhor ainda não su­biu.

Não lhe interessava o senhor. Ele queria ver a irmã de Bryan.

— Por aqui — dizia a criada. — Avisarei agora mesmo.

Levou-o a uma saleta onde predomina­va o azul e com um sorriso pediu-lhe que tivesse a bondade de esperar...

— A senhora já irá atendê-lo.

— Estarei... atrapalhando-a? — per­guntou cortesmente.

— Oh, não, não. Os senhores jamais saem a esta hora. O patrão vem da loja e descansa um pouco. O senhor entende, ele trabalha muito.

— Sei.

— Em seguida avisarei a patroa, Sr. Ewart.

Roy ficou sozinho e passou a filosofar um pouco.

A casa, além de bonita, era muito bem decorada. Tirando de cada detalhe o maior partido possível.

Ele não conhecia bem os Smith. Re­cordava, isso sim, que Claudia era telefo­nista e com seu trabalho, paga os estudos do irmão. Moravam em outro bairro mais humilde. Claudia veio a se casar com um próspero comerciante; Bryan deixara os es­tudos e foi trabalhar com o arquiteto Patrick Fenech. Mauri o conheceu então.

— Sr. Ewart — exclamou uma voz agradável, interrompendo seus pensamen­tos.

Roy virou-se para a recém-chegada.

— Claudia — exclamou — que prazer em vê-la.

Aquela mulher sempre o tocou profun­damente. Tinha trinta e cinco anos, mas não os aparentava. Loura, olhos azuis, esbelta, delicada, bem vestida e feminina...

Apertou a mão que ela lhe estendia.

— Desculpe se venho visitá-la sem tê-la advertido previamente. Lamento muito.

— Oh, não tem importância — disse ela. — Fez muito bem em ter vindo. Quan­do vier, não é preciso fazer-se anunciar, Sr. Ewart.

— Creio que com nosso quase paren­tesco, não precisamos de tratamento cerimonioso. Podia me chamar de Roy, ape­nas.

— Certo, Roy — disse ela, sorrindo. — Quer tomar algo?

— Não, obrigado.

— Sente-se, por favor.

Ele assim o fez. Claudia sentou-se fren­te a ele e ofereceu-lhe cigarros. Roy tirou um.

— Obrigado.

— Meu marido não tardará a subir.

— Era com você mesma que queria fa­lar. Sobre Bryan.

— Aconteceu-lhe algo? — a voz dela vibrou imediatamente.

— Não, não. Que eu saiba, não — e sem transição: — Ainda vive em Quebec?

— Sim, ele tem seu trabalho ali, co­mo sabe.

— Há quanto tempo não tem notícia dele?

— Está me assustando, Roy. Terá sabi­do alguma coisa sobre ele? A última carta que recebi, foi há quinze dias. Semana pas­sada, ele me ligou. Sempre nos falamos.

— Vocês se gostam muito...

Claudia fez que sim. Mas, ainda acres­centou:

— Ficamos órfãos muito cedo. Creio que Bryan tinha quatorze anos e eu de­zesseis ou dezessete. Bryan era muito es­tudioso, mas seu sonho em ser arquite­to deu em nada — sacudiu a cabeça com pesar. — Eu fiz tudo para que ele conti­nuasse, mas Bryan quis começar logo a trabalhar... Felizmente, deu tudo certo!

— Quando- se trabalha com vontade e naquilo que se quer, sempre se vai em frente.

— É o que diz Alex — sorriu encanta­doramente. — Mas, você ia me falar de Bryan.

Roy foi direto ao que queria.

— Sabe as causas da separação de Bryan e Mauri?

Notou o sobressalto feminino. Sua in­quietude.

— Por que me pergunta isso... após tanto tempo?

Roy deu uma tragada no cigarro, an­tes de dizer:

— Há dois anos que quero lhe fazer essa pergunta, mas não via um pretexto plausível para uma visita. Afinal, só nos conhecemos no dia do casamento de Bryan com Mauri.

Claudia suspirou.

— Mesmo assim — começou Claudia, cautelosa — podia ter vindo antes. Em todo caso — acrescentou depressa — não sei as causas que fizeram Bryan e Mau­ri se separar.

— Foi... de mútuo acordo?

Ela fez um gesto vago.

— Na verdade, não sei ao certo. Creio que sim. Foi só o que Bryan me disse, quando chegou com suas coisas.

— Que... que lhe disse?

— Que ele e Mauri se haviam separa­do. Que ele ia de novo para Quebec, com Patrick. Este, sempre apreciou muito o trabalho de meu irmão na empresa.

— Compreendo — e sem transição: — Não sabe mais nada?

Claudia se pôs de pé.

— Vou servir-lhe um uísque — disse algo precipitadamente. — Com soda? Pu­ro?

Ray se viu dizendo:

— Puro.

— Num instante.

Ray tomou o primeiro gole da bebida.

— Escocês legítimo — comentou, amável

— Alex diz que se bebe algo, deve ser coisa boa.

— Há quanto tempo não vê Bryan?

— Seis meses.

— Ah... Esteve aqui? Ou você foi a Quebec?

— Esteve aqui.

— Mauri... soube?

Claudia negou com a cabeça.

— Na verdade — disse, pensativa — não sei. Você está mais próximo a ela. Eu me limito a visitá-la uma ou duas ve­zes por mês. Jamais falamos em Bryan. Mauri é introvertida, e o engraçado é que Bryan, também. Mas você, vivendo per­to dela...

— Realmente, moramos perto. Mas, isso não basta, em se tratando de Mauri. Já lhe perguntei várias vezes, e ela me res­ponde com o silêncio, ou mudando de as­sunto. Eu tive esperança que você com seu irmão, tivessem mais intimidade.

Claudia meditou um pouco antes de di­zer:

— Na, verdade, sempre confiamos mui­to um no outro. Era quase como se Bryan fosse um filho para mim. Mas, quanto ao seu casamento e depois a separação de Mauri, ele nunca foi expansivo.

— Eles se amavam? — e sem esperar resposta: — Muito, eu sei. Era um amor que me emocionava, até.

— Não se aborreceu que sua rica so­brinha casasse com um capataz de obras?

— Gostei muito de Bryan. E depois, as minas de hulha precisavam de uma mão forte para conduzi-las — deu de om­bros. — Na verdade, já estou cansado de trabalhar.

— Compreendo.

— Bem, mas não me respondeu ainda.

— A quê?

— Sobre se se amavam realmente.

— Oh, muito — categórico. — Muito mesmo!

— E... no entanto...

— E no entanto, se separaram. E de mútuo acordo. Isso é o estranho. Ou dei­xaram de se amar, ou preferiram viver ca­da qual a sua vida, coisa que, dado o ca­ráter de Bryan, muito me admira.

— E não se admira quanto a Mauri?

Claudia refletiu um segundo.

— Bem, sim — terminou dizendo. — Pensei que ao separar-se, Mauri iniciaria sua vida social... Afinal, tem um círculo de amizades muito grande. Aliás, Bryan a conheceu justamente numa reunião social, levado por Patrick...

Como não parecia terminar, Roy o fez por ela:

— Mas Mauri não recomeçou sua vida social de solteira.

— É verdade, não. Vive só para Cris.

— Era sobre Cris que eu vinha falar-lhe.

— A última vez que estive em casa de Mauri, há uns vinte dias, Cris não estava bem. Mauri estava preocupada.

— Contou a seu irmão?

— Bem, não, não contei. Levando-se em conta que Cris passará este Natal com o pai... não me atrevi a mencionar sua doença. Aliás, pensei que seria passagei­ra.

— Pois não é — murmurou Roy, inquieto. — Cris continua de cama. Perden­do cor e peso.

Claudia ficou de pé.

— Oh! — exclamou. — Isso eu não sabia. Mauri devia ter me dito.

— Mauri é assim mesmo. Enfrenta tu­do sozinha. É um modo estranho de ser, mas tem sido assim até hoje... não creio que vá mudar.

— Certo. Mas, devia levar em conta que sou a única família de Bryan...

— Eu lhe aconselhei que o chamasse. Estive esta manhã com o médico. É possível que a doença seja mais perigosa do que parece. Mauri está arrasada, embora não o confesse.

— E o que posso fazer? Cris passou seis meses com a mãe, outros tantos com o pai, acompanhada da babá. Posso assegu­rar-lhe que quando a menina está com o pai, este só vive para ela. Bryan adora sua filha.

— Por isso vim vê-la. Diga a Bryan que Cris está mal.

Claudia se sentou de novo.

— E Mauri? Por que não lhe conta ela? Ou você mesmo?

— Se eu o fizesse, talvez Mauri se aborrecesse, achando que era intromissão. Mas, você é diferente. É irmã do pai da criança, é mulher, é mais humana, com­preende?

— Sendo assim... escreverei hoje mes­mo.

— Fale pelo telefone.

— Tão grave é?

— Não sei. Talvez não o seja, mas se­ja prolongada. E me parece que a menina deseja ver o pai.

— Mas Mauri... Afinal, há dois anos que não se vêem...

— É preciso se expor, Claudia.

— Sim, sim. Compreendo. Mas talvez Mauri não esteja de acordo. Amanhã mesmo irei ver Cris. Devo dizer a Mauri que você veio aqui?

— A ela, não diga nada. Mas, pode di­zer e Bryan.

— Gosta muito de Bryan, não?

Roy ficou de pé, consultou o relógio.

Ainda tinha que passar nas minas, para falar com o diretor.

— Gosto muito, sim — disse. — Co­mo se fosse meu filho. Sempre achei que Bryan era um homem de caráter, capaz de fazer minha sobrinha feliz. Bem, e agora, se me der licença, tenho que ir. Muito obrigado por ter me ouvido.

Roy já estava quase na porta de saí­da, quando voltou-se mais uma vez para Claudia, e indagou:

— De quem seria a culpa dessa sepa­ração...?

— Sinceramente, não faço a mínima idéia.

— Não há aqui em Medicine nenhuma obra da imobiliária de Patrick?

— Duas.

— Então será fácil para Bryan trans­ferir-se.

— Tratando-se da saúde de sua filha, Bryan não precisa pretexto para vir.

— Bem, Claudia, mais uma vez, obri­gado. E desculpe se vim dividir minha preocupação com você.

— Fez muito bem em vir. Eu é que lhe agradeço.

 

Patrick, nervosamente, dobrou a car­ta. Imediatamente, acionou o ditafone.

— Sim — respondeu uma voz do ou­tro lado.

— Diga ao Sr. Smith que venha logo.

— Sim, senhor.

Ouviu-se um clique. A secretária levan­tou os olhos, como que perguntando a cau­sa daquela precipitação.

— Pode ir — disse Patrick. — Chama­rei, se precisar.

Mal a secretária, saiu, Bryan entrou.

Vestia calça cinza, camisa branca de gola rolê e um blaiser de um tom mais es­curo que a calça.

Era de altura mediana. Moreno, olhos negros, barba cerrada, embora bem feita. De tipo comum, embora sua virilidade es­tivesse à flor da pele. Em seu olhar, na curva da boca, no movimento nervoso de sua cabeça.

— O que há, Patrick?

— Aproxime-se e sente-se. É algo... grave.

Bryan se sentou na borda da mesa atrás da qual estava seu amigo. Tirou um cigarro do maço e acendeu-o, fumando-o lenta­mente.

— Você sabe como sou distraído, e com isso nem reparo quando a correspondência é minha ou sua. Pois bem, hoje abri uma carta para você, sem querer.

Bryan riu, mostrando uns dentes bran­cos e fortes.

— Não faço também o mesmo, de vez em quando? O que tem isso? Diga-me — acrescentou, divertido — é algum segre­do?

— Carta de sua irmã.

— Bah — murmurou, dando de om­bros. — Deve vir contando coisas de seus dois filhinhos. De seu marido. Do quanto Alex trabalha... Coisas da família, sem maior transcendência.

— Desta vez... não — cortou Patrick. — Leia.

Bryan pegou a carta e leu-a.

— Partirei logo — disse em seguida.

Assim. Ele era assim. Enérgico, decidi­do.

— Mauri devia ter-lhe dito, não?

— Não — disse Bryan. — Não podia esperar isso dela. Mauri não quer que ou me intrometa na vida de sua filha.

— Da filha de vocês.

Bryan deu de novo de ombros.

— Aproximam-se as festas — ponde­rou. — É bem possível que esteja prepa­rando o caminho para que Cris não possa vir para o meu lado.

— Não é possível que Mauri seja tão desumana.

Bryan ainda tinha a carta na mão. Ti­rou os óculos e guardou-os no bolso. Olha­va em frente, como se não visse nada.

— Não o é — disse reflexivo. — Não a conheço sob este aspecto, mas quando uma mulher como Mauri é mãe e se acre­dita superior às demais mulheres... é bem possível que procure astúcias desse tipo.

— Há o médico. E Claudia diz que foi ver a menina. Parece que a doença da menina é uma incógnita ainda.

— Irei a Medicine Hat.

— É bom que tome essa decisão. Es­tamos mesmo precisando de você por lá, para, dar uma examinada naquelas obras.

— Farei isso, enquanto visito minha filha.

— Irá a casa de Mauri?

— Claro.

— Bryan, imagino o quanto será duro para você.

O rosto de Bryan não denotou qualquer emoção. Era tão hermético quanto Mauri, diante das pessoas.

— Engana-se — disse categórico, com certa precipitação. — Seria duro se fosse para visitar Mauri. Há dois anos não a ve­jo — e cortante: — Mas aqui se trata de minha filha. E você sabe o que significa Cris para mim.

Patrick fez a pergunta à queima-rou­pa:

— E Mauri?

Nem um músculo do rosto de Bryan se alterou. Esteve acostumado com as perguntas indiscretas de Patrick.

— Tomarei o primeiro avião. Você tem carro disponível em Medicine?

— Claro. Mas Bryan... você não me respondeu.

Bryan guardou a carta no bolso e, agi­tando a mão, exclamou apenas:

— Logo terá notícias minhas.

 

Seu apartamento era pequeno, mas suficiente para ele e para Cris, quando esta vinha passar os seis meses com ele. Nor­malmente, não fazia as refeições em casa. preferia sair para comer. Quando a menina e a babá estavam, ele mandava vir as refeições da lanchonete próxima.

Neste momento, Bryan tirava roupas do armário.

"Não preciso de muita — pensava. — Não deve ser nada".

Hum. Claudia não era uma pessoa pes­simista. E tinha ido a casa de Mauri, comprovar o que Roy Ewart dissera...

Portanto, algo sério estava acontecen­do.

— Vejamos, quantas meias levo? — di­zia para si mesmo, enquanto arrumava a mala.

E ia metendo roupa na mala. Por fim, fechou-a. Olhou em torno. Não faltava nada.

Consultou o relógio. Ainda faltavam duas horas para tomar o avião para Medi­cine.

Fazia frio. Isto o fez lembrar-se de le­var um abrigo pesado. Mas quando o teve nas mãos, pendurou-o de novo no armário e procurou um casaco de couro, mais le­ve, mais jeitoso.

Sorriu, recordando coisas. Um sorriso frio e odioso.

Na verdade, ele nunca dava gargalha­das.

Antes, sim. Quando era jovem, ou pelo menos se sentia jovem. Atualmente, parecia-lhe ter transcorrido um século. Dois anos, já.

O que aconteceria quando ele e Mauri se vissem?

Lembrou-se de quando a conheceu. Seu sorriso tornou-se amargo demais. Procurou não pensar, examinando as gavetas de rou­pa.

Mas, mesmo ocupando as mãos, seu cé­rebro teimava em voltar ao passado.

— Não será roupa demais?

Encolheu os ombros. Se teria que ficar algum tempo em Medicine Hat, era pre­ciso prevenir-se. Não sabia que doença era aquela de sua filha; por outro lado, tinha as obras para vigiar.

Acendeu um cigarro. Não seria exagero de Claudia? Não devia ser Mauri a avisá-lo?

Bem, Mauri jamais o faria. Era fechada demais.

Desde quando o era? Quando a conhe­ceu não, é claro. Depois. Inclusive depois da viagem de núpcias. Durante aquela via­gem foi encantadora.

Apaixonadamente encantadora.

Passou a mão pela testa. Não queria re­cordar.

Talvez fosse melhor ir logo para o aero­porto. Ficaria no bar do mesmo, fazendo hora.

Podia também esperar nos escritórios da companhia.

Mas, não.

Os nervos não o deixavam viver tran­qüilo, apesar de bem dominados. Ninguém, ao vê-lo, podia imaginar a luta que tra­vava consigo mesmo.

Não poderia fugir naquele instante tal­vez crucial em sua existência.

Ele sempre conseguia afastar os pensa­mentos incômodos.

Aturdia-se.

Enchia a mente de coisas. De outras coi­sas. Tinha força de vontade para isso. Mas naquele instante... não. Talvez a culpa fosse da doença de Cris. Sua ida a Medi­cine... Seu... encontro com ela. Dois anos... Não eram uma eternidade? Dois anos!

Em algum momento, deixou-se cair pa­ra trás, recostou-se na cama e fechou os olhos. Mas sua mente continuava ativa.

Foi delicioso.

Ele nunca pensou que aquela garota da alta sociedade pudesse ser tão impor­tante para ele.

Foi logo quando a conheceu. Pergunta­ra a Patrick:

"Quem é aquela garota de vestido decotado, de cabelos castanhos e olhos cor de mel?"

Patrick a conhecia, pois conhecia todo mundo na cidade. Ele, não. Ele vinha do norte dos Estados Unidos. Estava ali, no Canadá há poucos anos e não freqüentava a sociedade. Aquela noite, Patrick o arras­tara para aquela festa.

"É Mauri Ewart, a mais rica herdeira do país. Seu pai, falecido há bastante tem­po, deixou-a sob a tutela de seu tio Roy. Um tipo bonachão, simples, que nunca se casou. Essa jovem aí possui as minas de hulha mais importantes do país".

Isso pouco ou nada interessava a ele. Apenas, Mauri. "Apresente-me".

"Espere um segundo — disse Patrick. — Ela vive cercada de caça-dotes".

"Tem namorado?"

"Sei lá. Não faz um ano que deixou o internato. Deve ter dezessete".

Em breve, Patrick os apresentava. Fora mútua a atração. Dançaram jun­tos o resto da noite. Viram-se no dia se­guinte. Na semana seguinte e assim por diante, passaram a sair juntos.

Certa noite, beijou-a nos lábios. Era o primeiro beijo de Mauri, Bryan estava cer­to. Mas fora um beijo perturbador.

Ainda podia ouvir a voz dela, trêmula, emocionada:

"Não, não, Bryan... Não fica bem". Ele a manteve apertada contra seu pei­to musculoso.

"Por que não? Escute, quer ser minha mulher?".

"Sim, Bryan. Quero".

Seguiram-se muitos beijos. Uma infini­dade deles.

Aprendeu a beijar e correspondia a ca­da beijo. Corava ante uma carícia mais audaciosa. Foram dias maravilhosos.

Contava tudo a Claudia. E também a Alex. Seu cunhado ria.

"Você tem sorte — dizia Alex. — Uma garota bonita, jovem e ainda por cima, rica. Acima de tudo, rica".

Ele ficara furioso com Alex. A riqueza de Mauri jamais o interessou. Ele vivia bem, embora não fosse rico. Tinha um óti­mo emprego, ganhava bem e sabia que Patrick não o dispensaria jamais.

Ele se conhecia. Sabia o que sentia por Mauri. Uma loucura, uma ansiedade que raiava o inconcebível. Se Mauri não tives­se um centavo, ainda assim a amaria.

Mauri o sabia. Ele dizia a ela. E Mauri ria, alegremente. Que riso, ode Mauri! Que olhar, o de Mauri!

Súbito, lembrou-se da hora.

— Oh! — exclamou.

Pulou da cama e apanhou as malas. Não podia pensar naquilo que pertencia ao passado, Tinha que se concentrar ape­nas em Cris. Esquecer seus erros, suas an­gústias, suas mágoas.

O porteiro do prédio, ao vê-lo sair, per­guntou:

— Vai partir por muitos dias, senhor?

Bryan sacudiu a cabeça.

— Não sei. Depois avisarei ao escritó­rio, e de lá eles participam a vocês.

— Sua filha não vem este ano, senhor?

— É possível, James. É possível.

— Bem, espero que o senhor faça boa viagem — e rapidamente: — é preciso apanhar o carro em algum lugar?

— Vou deixá-lo no aeroporto até a mi­nha volta.

Seu carro era esporte, moderno, super-potente. Antes, era um carrinho econômi­co e prático. Nos bons tempos... Ele foi muito feliz. Ele e Mauri...

E no entanto, Mauri tinha vários car­ros na garagem de casa. Mas ela preferia sair no carrinho dele.

Sacudiu a cabeça, afastando as lem­branças, e agitou a mão, despedindo-se do porteiro.

Em breve, estava no aeroporto. Subiu no avião como se os pés lhe pesassem. Estava agitadíssimo. Preocupado, acima de tudo.

— Apertem os cintos. Vamos decolar...

Fez os movimentos automaticamente.

O fato é que estava ansioso para chegar em Medicine.

Recostou a cabeça e deixou seu pensa­mento vagar.

Tantos meses, tanto tempo sem recor­dar, de repente, ao saber de sua filha, tudo se precipitava em seu cérebro.

Foi um noivado de quase um ano. Ja­mais esqueceria aqueles dias! Patrick che­gava a lhe dizer, brincando: "Está esque­cendo seus deveres profissionais".

Como não esquecê-los?

Mauri, seu amor, sua paixão, sua ternura, monopolizava-o completamente.

Foi um ano inesquecível, maravilhoso. Dias cheios de aventuras, de surpresas, de emoções. Depois, o casamento. Simples, sem muita gente. Roy Ewart como padri­nho e Claudia como madrinha.

— Senhor.

Moveu-se inquieto. Abriu os olhos e viu a aeromoça.

— O que foi?

— Pensei que estivesse se sentindo mal. Está pálido.

— Oh! — passou os dedos pela fronte. — Não há nada.

— Está enjoado?

Enjoar ele, que quase vivia num avião? Sorriu. Aquele seu riso sem alegria.

— Não, não, obrigado. Estou bem.

A aeromoça se afastou.

— Não quero mais pensar — disse, bai­xo. — Não quero.

Mas continuou pensando. Não podia evitá-lo.

Sua felicidade junto a Mauri. Quanto havia conhecido sua mulher, aquela mu­lher que se dava inteiramente, sem reser­vas.

Os dias naquela cabana, deitados na relva, tomando banho de sol, ou aprecian­do o luar. O riso de ambos. O que aconteceu depois? A chegada de Cris foi como uma benção... A coroação de seu amor tão bo­nito.

Precisava deixar de pensar. Colocar sua máscara de homem duro, insensível.

Não soube como chegou e se viu ante sua irmã.

— Bryan, Bryan querido — beijava-o e depois se separava dele para fitá-lo. — Está mais magro. Fez boa viagem?

— Como está Cris?

— Fui vê-la ainda hoje. Noto Mauri muito inquieta.

— Não lhe disse... que me chamasse.

— Não — com pesar: — Oh, entre! Fica aí fora como um estranho — e ansio­sa: — Não trouxe bagagem?

— Está no carro da firma. Não sei ain­da o que farei. Terei que falar com o mé­dico, antes de ir a casa de... Mauri.

— Não a avisei que você vinha.

— Está bem.

— Toma alguma coisa?

— Um café, apenas.

Entraram juntos.

— Bryan — ia dizendo Claudia — será melhor você ficar aqui, por enquanto, não acha?

— Obrigado, Claudia, mas prefiro ficar em hotel.

— Sabe o que eu acho? Antes de falar com o médico, você devia ir ver sua filha.

— Mas...

— Creio que fica mais delicado, em re­lação a... Mauri.

Ficou pensativo. Claudia foi à cozinha, voltando logo.

— Seu café, Bryan — e sentando-se frente a ele. — Como vai sua vida em Quebec?

— A mesma de sempre. Trabalho e mais trabalho

— Desperdiçando o que seria uma vida feliz.

— Esqueça isso!

Seu tom de voz era quase autoritário.

Mas Claudia, inclinando-se para ele, murmurou:

— Por que, Bryan, vocês se separaram?

Ele tomou o café com calma. Depois acendeu um cigarro.

— Depois de um café — disse — apenas o cigarro tem um sabor melhor. — E sem transição: — Irei a casa de Mauri, sim. Depois visitarei o doutor, suponho que deve ser o mesmo.

— É Thomas, sim. Thomas Bley.

— Irei depois.

Levantou-se. Alisou maquinalmente o cabelo.

— Quer... que eu vá com você?

— Não — categórico. — Não. Até logo.

— Virá comer?

— Não sei.

 

Viu-se ante a criada. EraAlice, que tal­vez soubesse mais deles, do que qualquer pessoa.

Quando ele se casou com Mauri, Alice já era criada de Mauri. Ouviu-os discutir tantas vezes. Ele tinha certeza de que Ali­ce sabia de muitas coisas...

— Senhor...

Havia emoção nos olhos da velha Ali­ce.

— Olá, Alice — disse amável, cortês.

— Queria...

Fez uma pausa. Como se lhe custasse dizer que queria ver Mauri.

— Entre, senhor — disse a criada.

— Como está a menina?

— Entre, senhor — e logo, emocionada, com voz trêmula: — Tanto tempo sem vê-lo...

Ele também, no fundo, estava muito emocionado. Mas, ninguém o teria notado. Estava acostumado a esconder seus sen­timentos.

— Como está Cris?

— Na mesma, senhor... Na mesma...

E, apressadamente, como se temesse mais perguntas:

— Avisarei a senhora.

O momento crucial.

Dois anos! Dois terríveis anos...

— Espero que a menina esteja me­lhor...

Dizia coisas a esmo, pois a mulher já lhe dissera que o estado de Cris continua­va o mesmo.

— Não.

— Não... está?

Alice o fitou como se não o reconhe­cesse.

Na realidade, era o mesmo, mas... não estava diferente? Antes, sorria à toa. Era um homem otimista, carinhoso, atento. Amável com todo mundo.

Todos os criados o estimavam, e achavam que Mauri era seca demais, quando enfrentava o marido.

Ela mesma, Alice, quantas vezes co­mentara com Jim, seu marido, o jardineiro, sobre aquelas discussões.

— Avisarei a senhora — tornou a di­sser.

Mas não se moveu dali. Olhou para Bryan com expressão sofrida.

— Não... não...

Bryan respirou fundo.

— Fale, Alice.

Custava. Mas a confiança que sempre depositaram os dois nela... empurrou-a a sussurrar, reprovadora:

— Nunca devia ter ido embora.

Ficar? Acaso Alice ignorava o suplício que era viver ali?

— Será melhor que avise a senhora.

— Sim, sim.

Mas continuava sem se mover.

— Quantas vezes eu comentei com Jim.

Bryan respirou fundo.

— É verdade. Não vi Jim no jardim.

— Morreu no ano passado.

— Oh... Lamento muito.

E deu-lhe uma palmadinha no ombro. Inesperadamente, Alice segurou-lhe a mão.

— Senhor... ela sofre. Ouviu? Sofre.

A quem ela se referia?

Ele sabia. Mas não queria saber de con­fidencias.

— Por favor, Alice, avise que estou aqui.

— Claro, senhor. Um momento.

A mulher desapareceu, andando len­tamente, como se tivesse muito ainda que dizer.

Mas aquele, não era o mesmo homem de antes. Parecia duro, frio... Sério de­mais.

Era difícil entrar e dizer-lhe. Afinal, era mais que uma criada. Foi sua babá, em pri­meiro lugar. Depois, foi tomando conta dos assuntos da casa e era uma amiga fiel e dedicada. Por isso era-lhe penoso comunicar a presença do marido de Mauri.

Entrou no quarto de Cris, onde ultima­mente Mauri vivia metida, quase sem co­mer.

— O que foi, Ali?

Mauri vestia calça parda, uma blusa tipo camisão, de xadrezinho. Simples, co­mo sempre. Sempre fora uma mulher simples, e no entanto... tê-lo-ia sido tam­bém para o marido?

Os primeiros meses, sim. Quase um ano. Ou mais.

Depois...

— Ali — sobressaltou-se Mauri: — não entendo. Está me olhando de uma for­ma...  O que houve?

— Está aqui — disse Ali, respirando.

Mauri não entendeu. Não pensava no marido, naquele instante.

— Quem, está aqui? O médico? Não o esperava. Disse que viria à tarde, com os exames...

— Não é o doutor.

— Não?

O silêncio de Ali a sobressaltou. Agi­tou-se.

— Quem?

E na pergunta se adivinhava que... sa­bia quem a esperava.

— Ali — sua voz tremeu visivelmente.

— Sim — disse Ali com a cabeça e com a boca: — Sim, é...

Viu-a girar.

— Quem? Quem lhe disse...?

— Talvez e Sra. Shiller.

— É... é... possível.

— Você precisa descer.

Era suave o tom de voz de Ali. Naquele momento, ela via em Ali a mãe que não conheceu. E que talvez tivesse evitado to­da aquela terrível tragédia.

— Ali...

— Precisa — cortou aquela. — Ouviu? Tem que... descer. Ele está esperando.

— Por quê?

Ali viu naqueles olhos o temor, a an­siedade, a agitação. Quantos pensamentos passavam pela mente de Mauri? Quantas renúncias?

— Mauri...

— Diga-lhe...

— Não — cortou. — Você é quem tem que dizer-lhe.

— Por que ele veio? Diga-lhe... diga-lhe...

— Não posso dizer-lhe nada. Ele quer vê-la. Sabe sobre Cris.

— Cris ficará boa — defendeu-se com energia. — Não o necessita. No Natal a terá.

Ali fitou-a diretamente nos olhos.

— Tão covarde é que não pode enfren­tar-se com o passado?

Sim, era covarde. Mas já sabia que teria de enfrentá-lo. Levantou o busto. Parecia arrogante naquele instante.

— irei — disse.

E começou a andar para a porta.

— Não saia daqui. Diana saiu. Enquan­to ela não voltar, não se afaste daí.

— Vá, Mauri. Se ela despertar, eu a distrairei.

Saiu.

Pisava forte. Olhava com firmeza. À medida que descia para o vestíbulo inferior, seus olhos iam adquirindo serenidade. Respirava melhor.

Tudo era familiar.

Os quadros, os tapetes, os móveis. O ta­pete principal, especialmente, lhe era conhecido. Sempre tivera a impressão de es­tar pisando num pedaço do próprio jar­dim, ao pisá-lo. Com flores e folhas, atraía-lhe o olhar.

Tolice... Ficar pensando no jardim, ao ver o tapete.

— Bom dia.

Demorou um pouco a levantar a vista. Depois de dois anos... Vê-la e pensar que já nada tinha em comum com ele. Na­da íntimo. Nada!

— Bom dia, Bryan — tornou Mauri a saudar.

Finalmente, levantou os olhos.

Que restava em Mauri de tudo aquilo?

Mil recordações acudiam à sua mente. Mil entregas. Mil beijos e carícias.

Mas Mauri estava serena. Firme, afável, o que era pior.

Ele não a conhecia sob aquele aspecto. Conhecia-a sob outro. Carinhosa, amável, apaixonada, veemente, gulosa de seu cari­nho. Quase voluptuosa.

E no entanto... naquele momento pa­recia dirigir-se a um dos funcionários das minas de hulha.

— Olá, Mauri.

Conseguiu que sua voz soasse normal, quase afável.

— Suponho que soube notícia de Cris.

Continuava na porta. Firme, bonita, com aquela sua simplicidade comovente.

— Não é nada, sabe? — como se os dois tivessem se visto no dia anterior e ja­mais nada tivesse existido entre ambos. — Nem deviam tê-lo incomodado.

— Foi Claudia quem me avisou.

— Eu não lhe pedi que o fizesse.

— Mas se trata de minha filha.

— Eu sei disso, Bryan — adiantou-se e fechou a porta. — Não se senta? Podemos falar de Cris.

— O que tem ela?

— Nada, já disse. Uma apatia absoluta. Falta de apetite... Não quer nada. Mas é coisa que passa logo.

— E se morrer... fico sabendo depois.

Ela sorriu. Não era o sorriso de antes. Era um esgar.

— Não — disse. — Se eu achasse que era tão grave..., o avisaria. Vocês se adiantaram.

Irritou-se. Levantou até a voz.

— Esquece-se que adoro minha filha? Que é a única coisa que tenho? E tenho direito de saber tudo sobre ela?

Pensou que ia se exaltar, mas ela con­tinuou serena.

— De modo algum, Bryan. O médico não deu ainda um diagnóstico. Não quis inquietá-lo antes de saber o que era. Hoje, ele virá aqui e talvez nos diga algo mais concreto.

— Quero ver Cris e depois o médico.

— Cris está dormindo.

Voltou a erguer-se.

Como era possível que tivesse esquecido aqueles momentos de louca paixão entre os dois? Ou será que os recordava, mas se dominava, como ele?

— Mesmo assim, quero vê-la.

— Oh, claro. Pode subir.

Mostrava-lhe o caminho.

Não queria vê-la adiante. Não queria!

A mesma fragilidade de sempre. A mesma esbeltez. Mais bonita, porque pa­recia mais madura.

Por isso, quase incorreto, pôs-se adiante.

Começou a subir as escadas.

— Devia ter-me avisado — dizia. — Devia...

— Não gosto de inquietar os outras.

— Não sou os outros. Sou o pai de Cris. Creio que sou.

Mauri mordeu os lábios. Não disse nada.

Causava-lhe umaternura indescritível aquela filha. Como lhe causava Mauri.

Mesmo com sua frieza... causava-lhe. Era inevitável. Sentia-a em si, como um fogo.

Como uma ansiedade incontida. Como se Mauri jamais tivesse sido sua. Como se nunca a possuísse.

Tinha uma mão de Cris entre as suas.

Ali havia se retirado em silêncio.

— Quando o doutor chegar, mande-o subir, Ali — dissera-lhe Mauri. — Diga-lhe que o pai de Cris veio vê-la.

— Só virá à tarde.

— Chame-o — ordenou. — Chame-o agora.

Depois, quando a porta se fechou total­mente atrás de Ali, ficou muda, contemplando o olhar de Bryan, fixo na menina.

— Está... abatida. Não sabem de que padece?

— Não. Não sabem — foi a breve res­posta.

Ia investir contra ela. Perguntar se es­taria sendo cuidadosa com a filha.

Mas se conteve. Claro que Mauri o era.

— Devia advertir-me — disse, apenas.

A menina abriu os olhos. Primeiro ficou como inconsciente, como se não reconhecesse o pai. Depois...

— Papai...

Bryan inclinou-se para ela.

— Filhinha... Cris, querida.

A menina falava com dificuldade, mas seus dedos apertaram os do pai, enquanto sussurrava:

— Não se irá, verdade?

— Ir-me?

— Quero... quero vê-lo aqui, aqui...

E apertava a mão masculina com ansie­dade.

Em seguida ouviram passos.

— É o médico — disse Mauri.

— Ah.

Mas não soltou a mão de Cris. A me­nina parecia já ter esquecido que o pai es­tava ali, mas continuava segurando sua mão.

— Irei receber Thomas — disse Mauri.

— Deixe, irei eu.

Mas os dedos infantis não soltavam os seus.

Mauri se dirigiu à porta.

— Papai — dizia Cris — papai, não se vá. Promete?

— O doutor está aí — disse Bryan, sem querer mentir-lhe.

— Você irá, não é?

— Quieta, querida.

Thomas Bley entrou naquele instante. Bryan se levantou e foi ao seu encontro.

— Bryan — exclamou Thomas. — Que bom, vê-lo. Ia mesmo pedir a Mauri para chamá-lo.

— Chame Alice — disse logo o doutor. — Diana, não está por aí?

— Diana saiu.

— Então chame Ali, Mauri. Preciso fa­lar com os dois.

Mudamente Mauri saiu e regressou quase em seguida, precedida de Ali.

— Fique aqui, Ali — ordenou à gover­nanta. — Nós iremos para o salão. Se Cris precisar de mim, chame-me.

— Sim, senhora.

O médico de um lado e Bryan do outro esperaram ambos que ela passasse pelo umbral. Depois, os três, silenciosos, se dirigiram ao vestíbulo inferior, passando ao salão.

Thomas Bley era um homem ainda no­vo. Não mais que quarenta e cinco anos, cabelos com fios de prata, sorriso afável, cortês, afetuoso, alto e magro.

Naquele momento, com sua pasta de­baixo do braço, olhava para Bryan com satisfação, como quem está feliz de ver o marido de Mauri de volta a casa.

— Será melhor nos sentarmos — disse. — Vinha para cá disposto a pedir a Mau­ri que o chamasse, Bryan. Prefiro falar com os dois: sei o que Cris significa para ambos, independente de suas... digamos, desavenças.

Mauri cresceu. Sua voz se alterou.

— É preciso falar... de nós, Thomas?

Thomas a fitou serenamente.

— Não, exatamente. Mas temo que uma coisa esteja relacionada com outra. Bem, mas não vou me meter em seus assuntos, é claro. Sou o médico da menina e me li­mito a expor o que creio mais oportuno. Desculpem-me, pois, se em minha lingua­gem uso frases que lhes pareçam indiscretas.

— Trata-se de Cris — disse Bryan, semse alterar. — Gostaria que fosse claro, Thomas.

— E o serei — abriu a pasta e tirou um papel de lá. — Aqui tenho o resulta­do dos exames. Veja, Bryan, se entende al­guma coisa do que está escrito.

— Não entendo nada.

— Bem, o resultado é preciso e claro. Cris, de momento, só padece de uma debilidade indescritível. Muito forte. Claro que, indo neste passo, poderá acabar nu­ma leucemia.

Os dois ficaram tensos. Crisparam-se.

Bryan se inclinou e apanhou o papel. Mas, seus dedos tremiam muito, e seus olhos estavam febris.

— Não vai entendê-lo — murmurou Thomas, acabrunhado — mas é o que lhe digo. Acompanhei esses exames todos, pes­soalmente. Não há esperança de um engano.

— Leucemia — e a voz de Mauri pare­cia vir do outro mundo.

— Não é que esteja declarada — repli­cou Thomas, energicamente: — Ainda não. Mas essas debilidades digamos, perniciosas, conduzem sempre a um desenlace fatal. Já notei também que Cris não tem vonta­de de viver, sua apatia é intensa, ela so­fre, como direi? De uma depressão moral. Como um trauma psicológico. Seu mal é mais psíquico do que físico. Entendem isso?

— Não — saltou Mauri, com desusada violência. — Não concebo que uma menina de quatro anos tenha depressões mo­rais e traumas psicológicos. Não lhe falta nada. Tem meu carinho, minhas atenções, meus mimos.

Bryan mordeu os lábios. Era o bastan­te educado para não retrucar ante as ter­ríveis injustiças de sua mulher.

Mas Thomas as rebateu.

Como médico e como homem, sabia que Mauri estava errada.

— Se você pudesse ver por um instan­te o que uma mente infantil pensa aos quatro anos, se assustaria, Mauri.

— Isso é bobagem.

— Seu parecer categórico sobre o par­ticular é temerário, Mauri. Mas não vamos discuti-lo agora. Diga o que disser, o fa­to é que Cris sofre tanto quanto um adulto sofreria. Apesar de seus quatro anos, ela se dá conta, inconscientemente, de mui­tas coisas. Por exemplo — e apontou para ambos o dedo em riste — não é agradá­vel para Cris ver-se metida num trem ou avião, de seis em seis meses, a caminho não se sabe de onde. Adora o pai e a mãe, sem distinção. Ela preferia sentir o cari­nho de ambos no mesmo ambiente. Quero dizer, ela gostaria de vê-los juntos. Não precisar separar-se de um para amar o outro. Estão compreendendo?

Mauri se levantou.

Bryan começava a compreender Thomas, e lhe dava medo o resultado do que estava dizendo seu amigo. Ficou sentado e, automaticamente, meteu a mão no bol­so, tirou um cigarro e fumou-o às pres­sas.

— Mauri — disse Thomas, sereno — pode sentar-se?

Como um autômato, Mauri obedeceu.

Por sua vez, sem olhar para ninguém, acendeu também um cigarro para si, com gestos nervosos.

— Não creio que isso tenha algo que ver com Cris — disse e sua voz soou rou­ca e afogada.

— É natural que pense assim — cortou Thomas. — Se quiser, recorra a um psicólogo infantil. Eu sempre fui sincero, e com vocês faço a maior questão, porque os co­nheço há muitos anos. Estou expondo meu parecer profissional. Neste andamento, dentro de um mês ou dois, teremos Cris condenada a morte. Não se descobriu ain­da nada que cure a leucemia. Muito se fala sobre isso, mas nada que console dois pais amantes — levantou-se e ficou olhan­do rígido para ambos. — Mauri, não é pos­sível que esperasse de mim uma falsida­de.

— Não — cortou Mauri. — Mas tam­pouco...

— Diga-o.

— Que diferença faz?

— Exponha o que seja, Thomas — ata­lhou Bryan. — Fale. Diga o que faria se Cris fosse sua filha.

— Assim que eu gosto, Bryan. Pareça-lhes bem ou mal, era o que eu pensava fazer. Fica a seu cargo agir como mande a consciência de cada um. É preciso evi­tar que Cris continue nessa prostração. A menina pensava ir para Quebec na ocasião do Natal, não é isso?

— Sim, é isso — cortou Mauri.

— A menina o deseja ardentemente. Adora seu pai, isso é óbvio. E adora você, Mauri. E entre a ansiedade de ver seu pai e estar ao seu lado, fica a angústia de dei­xá-la. Por que os filhos devem pagar pelos problemas dos pais? Não nos damos conta nunca. Amamos nossos filhos, mas os co­locamos à margem, como se nos entendessem, como se não tivessem direito a exigir maior consideração, quando se trata de elucidar um assunto do casal.

— Aonde vai parar?

A voz de Mauri tinha uma vibração qua­se irritada.

Mas Thomas, que tinha vontade de fa­lar naquilo, decidiu fazê-lo, mesmo irritan­do Mauri.

— Os bons pais — acrescentou tran­qüilamente — estudam primeiro o pro­blema de seu filho antes de decidir o seu próprio problema. Costumam sacrificar tudo pela tranqüilidade infantil.

— Quer deixar de rodeios, Thomas?

— Claro — Thomas já estava também irritado. — A coisa é bem clara. Cris precisa vê-los juntos.

Mauri foi se levantando pouco a pou­co, até ficar erguida com uma mão crispada nas costas da cadeira.

Bryan, por sua vez, não se mexeu.

— Você sabe que não é possível — vi­brou Mauri.

— Impossível? O que é que os pais não fazem peles filhos? Nesse passo, dentro de um mês, a menina poderá estar morta. Pergunto, como médico e como homem, se existe uma impossível, se com esse impos­sível, uma vez superado, sua filha se cura.

Mauri tornou a se sentar. Esmagou o cigarro no cinzeiro. Acendeu outro, nervosamente.

Nem uma vez seus olhos se dirigiram para a figura do marido.

Ouviram-se passos no vestíbulo e a voz de uma criada.

Mas Thomas, alheio a quem chegava, continuou, implacável:

— Nenhum sacrifício que se faça pe­los filhos, é demais. Independente de seus problemas conjugais, está a menina. Um mês, dois... bastariam para Cris. Vê-los juntos em casa... será suficiente para dis­sipar ou vencer sua apatia moral. Está cla­ro? Eu disse o que devia dizer. O que sei que seria o melhor remédio para Cris. Não pensem, entretanto, que o restabelecimen­to da menina será rápido. Precisará de tempo. Paciência, ternura, compreensão, para tirá-la da cama. É tanta sua fraque­za, que uma simples brisa da rua, cruza­da em seu quarto com o ar que entrar pe­la porta, pode miná-la — apertou a pas­ta sob o braço. — Agora, não está em mi­nhas mãos a solução, e sim, na de vocês. E, repito, à margem de seus próprios pro­blemas.

Ouviu-se uma voz. Mauri ficou tensa.

— É tio Roy.

De fato, o cavalheiro entrou e ficou um tanto surpreso ao ver a reunião.

— Oh — exclamou. — Creio que estou sendo inoportuno.

Mas, imediatamente viu Bryan, que se levantava como impedido por uma mola.

— Bryan — gritou, — Meu rapaz...

E atravessou o aposento, indo abraçar Bryan.

— Que bom, vê-lo aqui, Bryan. Estou muito contente, acredite.

Bryan só soube dizer à meia voz:

— Como vai, Roy?

— Bem — riu este. — Apenas um tan­to preocupado com a saúde de Cris.

— O remédio — cortou Thomas, indo para a porta — está na mão de ambos — e indicou os dois. — Tenho outros doentes, e estou em cima da hora. Que eles lhe digam, meu caro Roy, o que eu opino sobre a doença de Cris. Depois me dirão o que decidiram.

E saiu sem esperar resposta.

 

Bryan e Roy não esperavam que Mauri saísse atrás de Thomas. Pensaram que ia despedi-lo. Mas, as janelas do salão esta­vam abertas e puderam ouvir o ruído do motor do carro de Thomas, e Mauri não regressou.

— O que houve, Bryan?

O rapaz não se fez de rogado, contou tudo o que o médico expusera.

Seguiu-se um silêncio. Roy mordiscou o charuto que fumava.

— Você... não está disposto — disse sem perguntar.

Bryan fumou mais depressa.

— Disposto... a quê?

— A ficar nesta casa, para o bem de Cris. Ficar um mês ou dois.

Bryan faria qualquer coisa pela filha. Nem precisava meditar muito. Daria a vi­da por ela.

— Sim.

Roy tossiu. Seus olhinhos faiscaram.

— Sim?

— Claro. Tenho umas obras aqui na ci­dade, que precisam de minha presença. Não há inconveniente algum em que eu fi­que em Medicine Hat.

Roy respirou melhor.

— Mauri — disse sem perguntar — não... Não quer.

— Não.

— Terão que conversar. Analisá-lo bem.

— Analisar o quê?

— O que convém a sua filha. Está aci­ma de todos seus problemas pessoais — e, inclinando-se mais para a frente, acres­centou: — Foram muito... árduos esses problemas pessoais, Bryan?

— Mauri não lhe falou deles?

— Nunca,

— De certo modo, foram. Cadaum me­de as coisas à sua maneira. Eu as faço ou as deixo de fazer. Profissionalmente, cos­tumo jogar numa cartada uma fortuna. Posso perdê-la, mas também posso ganhá-la. Se perco, começo do zero; se ganho... melhor para mim!

— Não lhe entendo.

— Você é mais tradicionalista, não?

Roy hesitou um pouco.

— Você é, Roy?

— Bem... de certo modo o sou. É al­go de que nunca pude me afastar.

— Como se a herança desse tradicionalismo vivesse em seu sangue?

— Aonde quer parar?

— Você é ou não é?

Roy se remexeu, inquieto. Chegou a se erguer um pouco.

— Não sei se o sou. Estou farto de di­rigir as minas de hulha. Ainda bem que dão uma percentagem fabulosa.

— A custa de quê?

— Como de quê?

— Da ruína dos empregados.

— Bryan!

Pôs-se de pé. Roy o fitou. Não era altonem baixo. Comum. Mas... tinha uma personalidade aguda, firme.

— Deixemos isso — cortou, apaziguando-se. — Não se trata aqui de seu tradicionalismo. Nem da má condição em que trabalham mais de uma centena de seres humanos. Os lucros são fabulosos — seu tom era sarcástico e ferino. — Isso deve custar, não? Isso é só o que importa.

— Não entendo, Bryan. Desde que meu avô comprou essa mina, cresceu tanto que se converteu numa das melhores empresas do Canadá. Não sei porque você mencio­nou isso, quando estamos tratando de ou­tro assunto, o seu problema familiar amo­roso.

— Não pode haver amor onde falta a compreensão.

— De sua parte ou de Mauri?

— Dela, claro.

Ouviram-se passos.

Quase em seguida surgiu no umbral a figura feminina.

— Cris o chama — disse com voz opa­ca. — Quer vê-lo.

Bryan se afastou. Não olhou para Roy nem para Mauri.

Ouviram seus passos distanciando-se. Roy olhou ansioso para Mauri.

— Bryan me contou — murmurou, aproximando-se da sobrinha. — O que decidiu?

— Ele deve ficar.

— Ah.

— Até que Cris se recupere.

— Mauri... isso é uma oportunidade providencial para que vocês consertem seus... desacertos.

Mauri o fitou entre altiva e penaliza­da.

Quase sarcástica.

— Acha isso mesmo?

— Escute, Mauri, não me venha com esse tom irônico. Quer me dizer por que Bryan me fala de tradições?

— Detesta-as.

Roy tossiu forte, embora não tivesse gripe.

— Quer dizer... que é esse o motivo de suas... desavenças?

— Quero dizer que foi isso o que em­purrou Bryan a deixar esta casa. Eu não lhe pedi que a deixasse. Foi ele quem se foi.

— Ah... foi ele. Mas um cara tão cem por cento como Bryan, teria um motivo. Não deixaria seu lar sem uma justificati­va honesta.

— Sua... humanidade, tio Roy — mur­murou, ferina — e meu... digamos, tradicionalismo.

— Não lhe entendo.

— Que importa? — e saiu do salão às pressas.

Esperou-o na ante-sala.

Ouvia sua voz terna dirigindo-se a sua filha, e a de Cris, ansiosa, perguntando se ficaria.

Tinha razão Thomas?

Seria o mal de Cris, nos seus quatro anos, um trauma moral, mais do que fí­sico?

Por sua filha, ela faria qualquer sacri­fício. Não. Não era sacrifício ver Bryan naquela casa. Mas mil detalhes, mil lem­branças passavam por sua mente. Nin­guém, nem mesmo Bryan, poderia saber o que ela sentia.

Mas ela era forte. Sabia encarar a rea­lidade. Por isso estava disposta a que Bryan ficasse naquela casa, enquanto Cris não corresse por ela, como antes.

Por isso estava ali. Precisava esclarecer a questão com Bryan. Como dois adultos conscientes, que têm um dever moral a cumprir acima de tudo.

Deixou de ouvir o murmúrio da voz de Bryan e quase em seguida o viu na porta do quarto de Cris.

— Diana não veio? — perguntou, olhan­do para sua mulher. — Cris dorme, mas é preciso que Diana se sente ao seu lado.

— Diana acaba de chegar — disse Mau­ri, brevemente, tocando uma sinetinha. Em seguida, Diana se apresentou.

Ao ver Bryan, estendeu-lhe a mão cor­dialmente.

— Senhor... que bom vê-lo.

— O mesmo digo eu, Diana. Fique no quarto com Cris, até que eu ou Mauri apareçamos por lá.

— Sim, senhor.

Diana desapareceu.

Mauri apressou-se a indicar a saleta contígua.

— Precisamos falar — disse. E passou ante ele.

Quando Bryan entrou na saleta, que tantas lembranças tinha para ambos, fe­chou os olhos um segundo, como se temes­se que ela visse em seus olhos o reflexo de tantas e tão íntimas evocações.

— Diga, Mauri — falou em voz quase normal.

— Você ouviu o que disse o doutor.

— Sim.

— Portanto, deve ficar.

— Um pedido?

— Não — cortante, firme, personalís­sima, mesmo dentro de sua injustiça. — Um dever dos dois, ainda que nos doa.

— A mim... não me dói.

— Não perguntei seu parecer a respei­to. Só me interessa saber o que decidiu.

— Ficar, é claro.

— Certo.

Girou. Mas Bryan se lhe pôs adiante.

— Não podemos falar?

Mauri estremeceu, mas ninguém o di­ria ao ver seu semblante impassível. Só os olhos cor de canela piscaram nervosa­mente.

— Já sabe...

— Saber?

— Por que parti.

Mauri cortou. Sua voz vibrava.

— Tudo continua igual — disse. — Ainda penso do mesmo modo. Não é suficiente?

Bryan mordeu os lábios.

É.

E, quase incorreto, ele, que era a cor­reção em pessoa, saiu antes dela.

Mauri mordeu os lábios.

Não era melhor assim?

Olhou em torno. Cada cadeira, cada so­fá, cada objeto lhe lembrava sua intimi­dade com Bryan, que fora seu único amor...

Quando ia sair da saleta, deparou com Roy.

— Ainda está aqui?

— Quero falar com você.

— Agora? — e sem esperar resposta, indicou-lhe o salãozinho de tantas recordações, como se ao profaná-lo com a pre­sença do tio, sentisse um prazer quase mór­bido.

 

Roy ficou imóvel.

Era como seu pai. Graças a ele, o ne­gócio das minas seguia adiante. Quando Bryan o abandonou, não duvidou em re­correr a Roy. Verdade que naquela época não era possível destapar a ferida, desa­fogar a dor mencionando as causas pelas quais Bryan a abandonava. Mas naquele instante necessitava-o tanto como o ar pa­ra respirar. Era... um desabafo que só podia ter com seu tio Roy.

Por isso Roy, pressentindo o momento preciso, apropriado ao estado de ânimo alterado de Mauri, decidiu saber o que sempre lhe intrigou tanto.

Aproximou-se de sua sobrinha e segu­rou-lhe a mão.

— Está... gelada — disse.

Mauri desviou seu olhar.

Desejava falar "daquilo", mas... sere­namente. Sem um vestígio de amargura interior, que pudesse ser notado pelo tio.

— Sempre tive as mãos assim, tio — retrucou.

E retirou os dedos, procurando em al­gum lugar cigarros.

Roy adivinhou sua intenção e estendeu-lhe o maço.

— Tire dos meus — disse.

— Ah... Obrigada.

Acendeu-o. Fumou muito depressa.

— Mauri, por quê?

— Por que... o quê?

— Bryan se foi. Se era louco por você. Dirigia as minas de hulha com a maior humanidade. Todos os empregados o esti­mavam. Todos sentiram muito a sua par­tida.

— Tinham que estimá-lo. É um revolucionário. Não entende de patrões e empregados. Não entende chefes e peões.

— Não estou entendendo.

— Não mencionou seu tradicionalismo e o meu? Não o disse o senhor mesmo?

Exaltava-se.

Roy decidiu acatar com calma.

— Que tem uma coisa a ver com outra? Que tem a ver o tradicionalismo de uma família com o desbaratamento total de um lar e o amor do mesmo?

— Tudo está ligado.

— Continuo sem entender.

— É bem fácil. Bryan jamais esteve de acordo com a forma com que o senhor, ou meu pai, ou meu avô, conduziram essa empresa. Diz que os filhos dos empregados são analfabetos. Que sua condição de vida é inumana.

— Ah.

— Pretende, em princípio, levantar uma escola.

— Ah.

— Depois, um hospital.

— Ah.

— E em seguida, casas. Espécie de chalezinhos para os empregados de mais gabarito e grupos de casas para os operários,

— Ah... ah..., ah...

— Ficou bobo de repente?

— Não, escuto-a. E você, o que disse?

— Que diria o senhor?

Roy molhou os lábios com a língua.

— O balanço do ano passado — comen­tou — foi estremecedor. As percentagens de lucros... surpreendentes. Acumulado o capital privado, torna-se uma das empre­sas mais poderosas do país. Um gasto as­sim, refiro-me a casas, ao hospital, às es­colas... mal teria abalado nossas bem nutridas contas correntes.

Mauri se eriçou.

— O senhor nunca mencionou o assun­to.

Roy não estava totalmente de acordo com Bryan, mas inconscientemente sem­pre achou que... poderia melhorar-se a situação precária dos empregados.

Por isso, comentou com certo pesar:

— Quando uma empresa sobe à custa do trabalho de seus operários, quando se sabe que todos cumprem devidamente seus deveres, deve-se oferecer-lhes uma compensação. A maioria vive como seres inuma­nos. Metidos em barracos por onde entra o frio e às vezes a chuva.

— Tio Roy...

— Bem, Mauri, desculpe. Nunca falei disto. Limitei-me a administrar um negó­cio que não me pertence, mas estimando-se os lucros que produz... bem se poderia empregar parte dos mesmos em melhorar a situação das pessoas que ajudam a pro­duzir esses lucros.

— O que quer dizer que a tradição pa­ta o senhor...

— Antes se vivia de tradições — cor­tou, um tanto exasperado. — A vida atual, nos obriga a muitas coisas que antes nos pareciam inconcebíveis. O que considero inconcebível mesmo, deixando a um lado o assunto trabalho, é que você tenha destruído o melhor de sua vida por algo que não faz sentido. Nem você devia se meter nas coisas de seu marido, quanto à adminis­tração de seu capital, nem ele devia ante­por essa questão acima de sua felicidade conjugal.

— É que uma coisa se liga à outra. Co­meçamos a discutir. Nos distanciamos, esfriamos. Durante seis meses, a vida em casa foi como um túmulo silencioso. Nem Bryan falava, nem eu dizia nada. E quan­do mencionava o assunto trabalho, irritado quanto ao que ele dizia injusto a respeito dos operários, a discussão se reacendia.

— E um dia...

Mauri deu-lhe as costas.

Seus ombros se moviam convulsos.

— Partiu. Sem dizer nada. Nada! Nem uma explicação. Partiu... numa noite co­mo esta, fria, triste. Vi-o sair com a maleta. Só levava nela aquilo que trouxe. Tu­do que comprou depois de casado comigo, continua... fechado no armário do quar­to. Tudo.

— E você não o reteve.

Voltou-se como se mil demônios a es­petassem.

— Devia? Devia?

E sem esperar resposta, saiu do salãozinho. Roy, inquieto, ouviu seus passos perdendo-se escada abaixo.

 

— Ficará em sua casa — sussurrou Claudia, como se não o entendesse. — É isso o que quer dizer?

Bryan fumava. Jamais seu rosto foi tão impenetrável.

— Ficarei. Só isso.

Claudia olhou para Alex.

— Alex... ouviu isso?

— Ouvi.

Mas continuou lendo o seu jornal, na coluna esportiva.

Claudia viu que não teria ajuda do ma­rido. Voltou-se de novo para a figura imó­vel de seu irmão.

— Já está decidido?

— Sim, o médico o decidiu — respon­deu Bryan. — Cris precisa de nós. Juntos. Você é mãe. Sabe o que significa para um pai ou uma mãe a vida de um filho.

— Sim.

— Por isso, porque Cris nos necessita juntos, fico a seu lado.

E se levantou devagar. Alisou maquinalmente o cabelo.

— Bryan... ainda a ama?

Não era propriamente uma pergunta.

Alex levantou os olhos do jornal e tirou o cachimbo da boca.

Olhou para Bryan. Viu-o firme, olhan­do fixo para a porta.

— Terei que trabalhar firme. Falei hoje com Patrick — disse, sem responder ao que a irmã dissera. — Patrick acha que devemos montar aqui outro escritório. Acha que aqui, em Medicine Hat, o cam­po para construção é vasto.

— Seu melhor contrato — opinou Alex, inesperadamente — seria levantar um gru­po de casas nos terrenos que rodeiam as minas de hulha, dos Ewart.

Bryan, que ia sair, girou sobre si e olhou para o cunhado. Alex deu de ombros.

— Sou comerciante — disse, tranqüi­lamente. — Ouvem-se coisas... Os minei­ros não estão contentes. Vivem em situa­ção precária. Hoje em dia é absurdo que um patrão não ofereça melhores condições para seus empregados. É possível, até, que os Ewart percam dinheiro no ano que vem. Os homens estão descontentes. Irão para outros lugares, onde vivam melhor. Meu modo de ver é que, ganhando menos, mais tarde se lucra mais. Não se pode ser tão ambicioso, Bryan. Eu sempre achei que você é ideal para dirigir aquela empresa, para favorecer também os operários. Mas... — deu de ombros, sem saber que a dissolução do casamento de Bryan e Mauri fora justamente por isso — os Ewart não entendem disso. Julgam que estamos na época em que, para apressar um operário, se usava um chicote. Apesar de Roy ser muito humano, não aceita faltas alheias. Sabe o que eu digo, Bryan? Com o tem­po, essas minas fecharão por falta de mão-de-obra. Nem mesmo a lembrança do ve­lho Ewart para os mais velhos será sufi­ciente para suportar as más condições em que vivem.

Bryan tocou no trinco da porta.

Podia dizer muitas coisas. Mas, não va­lia a pena.

— Se você vai ficar — disse ainda Alex, sensatamente, — será melhor que trate de impor sua influência junto a Mauri. Vai-se perder tudo. Não se pode ambicionar tanto. Mais vale ganhar menos, e mais tarde, além de se desfrutar melhor, com­pensa-se o trabalho que bem se merece. E se calam rebeldias. E se consegue uma paz que não se pode ter, sacrificando as­sim o ser humano.

Assim pensava ele. Assim pensaria sem­pre.

Patrick e ele ganhavam muito, mas se sacrificassem os operários, os lucros te­riam ido contra eles mesmos.

— Boa noite.

Claudia foi atrás dele.

— Escute, Bryan... Vai morar ali...na casa de Mauri?

— Sim.

E, dando-lhe um tapinha no ombro, saiu.

Esperava que se retirasse ao seu quarto sem descer ao salão. Eram as doze horas.

Bryan, com um pretexto, comera fora. Chegou tarde e foi diretamente ao quarto da filha. Depois, desceu.

Vestia calça cinza. Camisa branca arregaçada até o cotovelo. Parecia um tipo bem comum. Quase vulgar.

Mas não para ela. Mesmo em mangas de camisa, não o era.

— Ah — disse ao chegar ao salão. — Pensei que... já se havia retirado.

Mauri nem pestanejou.

Seria bom fechar os olhos e pensar que nada havia passado entre ambos. Que tudo continuava igual a quando se casaram. Que Bryan iria para seu lado e a tomaria nos braços, e os dois viveriam momentos loucos e maravilhosos de amor.

Mas não.

O rosto de Bryan era impenetrável. A expressão dela, ausente. Distante.

Mas nem ele era impenetrável, nem ela ausente, mas nenhum dos dois o sabia. Ou se soubessem, de nada adiantaria, por causa da barreira da incompreensão.

— Cris está dormindo serenamente — comentou Bryan, com a maior naturalida­de. — Parece-me que está algo melhor.

— É possível.

— Sei o quanto a incomoda que... eu more aqui. Também a mim. Mas... é necessário. Não queria que Cris nos chamasse de um momento para o outro, inesperada­mente, e eu estivesse ausente.

— Compreendo.

Bryan se dirigiu ao barzinho.

— Quer beber algo?

Mauri fechou os olhos.

Vestia uma saia simples, embora em seu corpo nada parecesse simples. Uma blusa simples, de xadrez, mas moderna. Sapatos altos, esporte. Estava sentada frente à lareira.

— Não, obrigada.

— Tomarei um uísque.

Mauri tornou a fechar os olhos.

Também ela, antes, tomava uísque. Ria-se, enquanto Bryan preparava as bebidas. Era como se iniciassem uma doce bebe­deira quase sexual. Bryan era... o melhor amante. O melhor marido. O homem das surpresas, que sempre a maravilhava.

— É quase certo que em um mês, Cris corra pelo jardim.

— É possível.

Voltou-se para ela com um copo de uís­que na mão.

— É pena que não possamos nos divor­ciar, Mauri.

— Podemos.

— Serviria de algo? — e tomou um gole.

— Ao menos, nos sentiríamos mais li­vres — disse ela.

— Não poderia me casar de novo, sou católico.

— Eu também.

Inesperadamente, ele disse:

— Não a abandonei. As circunstâncias me obrigaram.

Mauri ficou tensa. Inclinou-se mais pa­ra a lareira e revolveu a lenha com o atiçador.

— É preciso falar disso? — era como um desafio. Um desafio falso, pois nada na vida desejava tanto como revolver as cinzas do passado. — Não estamos aqui unidos... por nossa causa, e sim por um dever de pais. Não é isso?

— Claro.

Depositou o copo vazio sobre uma me­sa e consultou o relógio.

— Se a menina precisar de mim, esta­rei no meu quarto.

Uma porta em meio. Só uma porta, que nunca se fechou. Uma saleta... no meio dos dois quartos.

Era suficiente?

Era-o quando todo o corpo, todo o cora­ção, toda a alma, toda a ansiedade, po­diam atravessar aquela saleta e aquelas duas portas?

— Imagino que poderei ocupar meu quarto de sempre.

— Pode.

Seca e breve.

— Obrigado — e depois, de modo es­tranho, como se tentasse conter aquela vibração: — Boa noite.

Nem respondeu. Revolveu de novo as achas de lenha. Ouviu os passos. Ouviu a porta lá em cima. Fechou os olhos.

Não pode evitar um gesto de rebeldia. Apertou a cabeça entre as mãos.

Longe Bryan... podia agüentar muito mal. Muito mesmo. Perto Bryan, era um verdadeiro suplício, que não desejaria ao seu maior inimigo.

Não esperava que Bryan abordasse a questão daquele modo.

Devia, porém, ter suposto, dado a clas­se de homem que era. Dentro de sua integridade moral, tinha como um dom espe­cial para pôr de manifesto sua sinceridade.

Ficou meio encolhida aquela manhã, quando ele apareceu na sala.

Havia ido ver sua filha. Passara horas a seu lado, segurando sua mão, prometendo-lhe diversas vezes que ficaria em casa, e que ela não precisaria ir com Diana para Quebec, para vê-lo.

Quando às nove horas Bryan entrou e beijou a menina, de novo adormecida, ela, Mauri, não pensou que ele fosse tomar o desjejum em casa. Por isso, quando en­trou na sala e o viu sentado na poltrona, lendo o jornal, e se pôs corretamente de pé ao vê-la entrar, ela ficou algo inibida.

E quando Bryan, de novo sentado, dis­se aquilo, não soube onde enfiar as mãos.

— Nunca deixei de amá-la.

Assim. Com simplicidade.

Mauri sentou-se e se serviu de café. Agitadamente.

— Acaso eu lhe perguntei? — foi só o que soube dizer.

— É que eu quero que o saiba.

— Importa agora?

— Quero também que saiba que par­ti... para evitar males maiores. Não sou homem que suporte brigas. Temos pontos de vista diferentes não é assim? Pois, para se respeitar cada um o do outro, é preciso que haja distância.

Foi audaz. Parecia uma mulher valen­te, quando no fundo, não passava de uma frágil mulher.

— Pontos de vista diferentes? Em quê?

Era uma alusão a sua vida íntima. Bryan ficou tenso, com as feições crispadas.

— Não basta a felicidade íntima de um casal. Há mil complementos necessários para se basear essa felicidade.

— Se pretende reatar a vida conju­gal... não.

— Não o pretendo. Domino-me... É meu forte. Mas não penso enganá-la, nem enganar-me. Também devo dizer-lhe que... gostaria de reatá-la. Não quero lhe mentir, repito.

— Mas não o tentará, verdade? Neces­sita de casas para os operários das minas. Escolas, hospitais...

— Isso é... o decepcionante.

Desafiou-o. Com os olhos e com a voz.

— E com essa decepção... o amor se converte numa absoluta necessidade física.

— Não queria dizê-lo.

— Você é...

— Não me julgue. Jamais, repito, enga­nei a mim mesmo. Seria absurdo que o fizesse nesta ocasião. Você me decepcionou. Sabe por quê? Se tão humana era para amar, como podia se esquecer dos outros?

— Tenho que partilhar minha vida ín­tima com os outros?

— Em retribuição à felicidade que Deus lhe deu, podia, ao menos, ser piedosa para com os outros.

Pôs-se em pé. Ia dizer algo, mas tornou a fechar a boca. Teria ele razão?

Não, não tinha. E se os outros pesavam mais na balança, do que ele e seu amor, então Bryan não merecia nem sua consi­deração afetiva.

— Não toma café? — perguntou Alice.

Voltou-se bruscamente.

— Estava... aí?

— Entrei agora — e saiu de novo, sem esperar resposta.

 

— Sr. Ewart está aqui e deseja vê-lo — disse a secretária.

Roy? Será que ia advogar por sua so­brinha?

Era tarde. Não sabia Roy Ewart com quem se enfrentava.

Ele podia ser um milionário e o admi­nistrador das minas de hulha, o que sacrificava os demais; mas ele não deixaria ja­mais de ser Bryan Smith, um homem comum, o tipo que nem sequer possuía um título para pendurar na parede de seu escritório, mas estava cheio de humanidade e generosidade para com os outros.

— Mando-o entrar, Sr. Smith?

— Sim — deteve sua íntima rebeldia. — Mande-o entrar.

Quase em seguida apareceu Roy. Ele­gante, distinto, com seu aspecto imponen­te. Bem vestido, bem penteado, chique.

— Boa tarde, Bryan.

— Passe, Roy. Boa tarde.

Roy olhou em torno.

— Um escritório cômodo e simpático — e rindo um tanto desconcertado. — Para dizer a verdade, é igual ao de sua secre­tária.

Bryan se acomodou melhor na cadeira giratória.

— Realmente. Sabe por quê? É curioso, tudo de melhor para os que trabalham menos. Comodidade, conforto... Enquanto os subalternos têm que se movimentar num espaço apertado. Em nossa imobiliá­ria, tal não acontece. Quer ver os livros de contabilidade? Os lucros são considerá­veis, acredite. E fizemos tudo para os outros.Talvez... não possa entender isso.

— É ferino e mordaz, quando quer.

— Quase nunca quero — e, estendendo-lhe uma caixa de charutos finos. — Se quiser voltar a fumar,...

Roy fez um gesto negativo.

— Obrigado — e sem transição: — Quando você foi as quatro horas da tarde em casa, eu estava ali.

— Ah... sim? Não tive tempo de pa­rar. Fui direto ao quarto de minha filha. Diana estava com ela.

— Mauri acabava de sair.

— Roy, o que há? Não duvido do amor maternal de Mauri.

— Bryan — sufocou-se Roy. — Que significa para você viver de novo na casa de sua... mulher?

— Veio para isso?

— É uma pergunta de homem para ho­mem, Bryan, inclusive sem ter em conta o parentesco que me une a sua mulher.

Bryan fumou. Como sempre, ele seria sincero o categórico.

— Sua pergunta é direta demais, e da mesma forma a responderei. É um suplício que não desejo ao meu pior inimigo.

— Bryan, não está sendo cruel consigo mesmo e com Mauri?

— Por quê?

— Porque, se para você é um suplício, seja ao menos galante e discreto para ca­lá-lo.

Bryan teve que rir.

Aquele riso que parecia uma chicotada.

Olhou fixamente para Roy.

— Ambos estamos nos equivocando, Roy. Para mim é um suplício viver junto a uma mulher que amo e desejo, tendo que encará-la como uma estranha. Não é su­plício viver a seu lado por considerá-la uma companhia desagradável. Quer... maior sinceridade?

Roy não entendia de amor. Para ele, amor era uma mulher. Ou melhor ainda, mulheres. Um momento de prazer. Um fim de semana. Um cruzeiro em seu iate e depois... nada.

Olhou para Bryan como se este fosse um animal raro.

— Quer dizer que ama Mauri...

— Alguma vez duvidou disso?

— E foi capaz de deixá-la por um pu­nhado de casas, um hospital e uma esco­la?

— Vamos por partes, Roy. Não esta­mos nos entendendo bem. Quando uma pessoa ama outra, ama-a com todos os seus defeitos e todas as suas virtudes. Es­perando sempre que as decepções não cheguem muito fundo na alma. Mas eu tive uma tremenda decepção. Nunca pude ima­ginar que Mauri pusesse na balança de nosso amor a sujeira de uma tradição incompreensível. Aposto como, há muitos anos, o avô de Mauri castigava os empre­gados com o chicote. Não se pode tratar mal a um ser humano, igual a nós. Eu passei por muitas dificuldades na vida, até melhorar um pouco de condição, e compre­endo os que estão por baixo. É preciso dar oportunidade a todos, para que tenham uma vida normal. Não me basta que Mauri tenha coração apenas para me amar. Com a decepção, esfriou o meu amor, e minha, veneração. Restou apenas o desejo físico. Nada mais.

— Bryan!

— Quer que eu seja mais explícito? Quer que não sofra a seu lado, vendo-a mover-se naquela casa que foi minha?

Roy respirou fundo. Começava a com­preender Bryan.

Doía-lhe que as coisas fossem assim, mas o entendia.

— E se Mauri... permitisse que fizesse essas casas, esses hospitais, essas escolas?

— Serviria de algo? Se fosse apenas pa­ra alcançar a felicidade física junto a seu marido... seria, quem sabe, mais decep­cionante. Não acha?

— Você é duro.

— Custou-me deixar aquela casa — cortou — Custou muito. Deixava ali toda a minha vida. Começava do zero. Mas isso me custava Roy. Estava acostumado com as dificuldades da vida. O que doía era o outro. A decepção, tanto quanto a perda de um amor que considerei meu para o resto da minha vida.

Roy ficou de pé. Apesar de ser tão al­to, pareceu a Bryan pequeníssimo.

— Então, despreza nossas tradições.

— Nem são tradições, Roy. Não enten­de? As tradições são sempre, ou quase sempre, razoáveis. Humanas. Isso é que dói mais. Que por cima das tradições esteja a ambição do ser humano e se compraz em disfarçá-la de alguma maneira. Que impor­ta, o nome que se lhes dê?

— Não está disposto a acreditar no amor de Mauri por você.

Bryan se manteve impassível.

— Ela o mandou a mim?

— Não. Mas eu vejo, observo, calculo. Conheço Mauri. Não se esqueça que eu a criei.

— Esqueceu-se de inculcar em seu cére­bro coisas boas, Roy. Desculpe se lhe pareço cruel, mas tenho que ser sincero.

— Enfim, acredita ou não no amor de Mauri por você?

— Acredito — disse sem jactância — Não concebo que uma mulher tenha pas­sado por minha vida íntima sem recordar-me sempre. Não pense, Roy, que isso seja presunção de minha parte. Nem alarde de absurda virilidade. Não dei só isso. Dei-lhe toda minha ternura e todo meu ser, e jamais mulher algumas foi mais e melhor tratada do que ela.

— Até que o decepcionou.

— Ela, a mim pessoalmente, não — categórico. — É a mulher que sempre so­nhei possuir. A mulher que preenche to­das as necessidades, todos os sonhos de um homem. Mas eu não me sinto com for­ças para continuar entregando todo o meu ser a uma pessoa que só vive para sua sa­tisfação pessoal, esquecendo-se dos que so­frem pelo egoísmo dos demais.

— Você é comunista, Bryan?

— Se isso é comunismo, então Cristo o era também. Eu diria que tenho amor ao próximo, embora sem fanatismo. Que to­dos tenham uma vida normal, com o mí­nimo de conforto. É o que tento fazer em minha firma, e os resultados são satisfató­rios. Gosto de ver meus empregados trabalhando com alegria, e saber que sua fa­mília não passam necessidades. Seus mi­neiros passam horrores em seus barracos. Seus filhos morrem de frio e de doenças, suas mulheres envelhecem por causa dos sofrimentos... Enquanto isso, vocês dor­mem tranqüilos. Isso é que não tolero.

— É esse seu modo de pensar.

— Você nunca viu os planos que mos­trei a Mauri, feitos por Patrick? Verdadei­ras maravilhas. Casas decentes, simples, mas habitáveis. Hospitais onde seus em­pregados, que fazem a sua fortuna, pos­sam se curar. Escolas onde as crianças te­nham chance de ser gente, um dia. Hoje em dia, a maioria das empresas de grande porte faz isso por seus operários. Só as minas Ewart ignoram o sofrimento de seu pessoal, ativo.

— Confesso que nunca parei para pen­sar em tudo isso. E creio que tenho mui­to que conversar com Mauri.

— Não vai adiantar. Mais do que eu falei com ela, e com todo o nosso amor no meio, foi em vão.

— Bem, boa tarde, Bryan.

— Boa tarde, Roy.

 

Chegou tarde. Já havia jantado.

Preferia fazê-lo longe de casa, embora pisasse lá umas três vezes por dia, para ver sua filha. Era um suplício vê-la ali e senti-la tão fria, tão distante.

Foi ver a filha. Diana estava ali. E ela. Segurando a mão da menina; inclinava-se para a mesma, com olhos cheios de ter­nura.

— Como está? — entrou, perguntando à meia voz.

Diana levantou a cabeça. Ela, não.

— Bem — disse, no entanto. — Melhor. Thomas esteve aqui esta tarde. Achou-a mais animada.

— Agora dorme?

— Veja você mesmo.

Serena, com um sorriso nos lábios.

Inclinou-se para ela. Ao fazê-lo, tocou em Mauri. Teve a impressão de que nada havia ocorrido, de que Mauri ia apertar-se contra ele, ia beijá-lo na boca daquela maneira absoluta, total...

Separou-se rápido.

— Já é tarde. Vou descansar um pouco.

— Hoje eu fico para velá-la...

Disse-o sem levantar a vista. Diana, dis­creta, se retirara, fechando a porta.

— Diana deve ficar.

Mauri soltou a mão da filha e se er­gueu. Fitou-o.

Viu-a então como a vira mil vezes. De camisola, ou pijama, com um robe curto e transparente. Aquele seu jeito feminino e tentador. Os cabelos soltos, os pés no chão, pequenos e delicados.

Desviou o olhar, com medo de revelar seus sentimentos.

Ele não queria sentir tanto desejo. Que­ria sentir o de antes. Amor, ternura, pai­xão, sim, mas dosada por aquela conside­ração que os unia. Apenas físico... não.

— Roy não devia ter ido vê-lo.

Bryan virou a cabeça. Conhecia-se, sa­bia que não ia poder escapar daquela atração, como sabia também que ela não teria forças para recusá-lo.

Por isso, para fugir aquela sensação im­periosa, aferrou-se em Roy.

— Devia.

— A menina... pode despertar. Quer passar ao salão contíguo? Não pretendo discutir ao assunto — não o fitava. Dir-se-ia que tinha medo de fazê-lo. — Quero deixar esclarecido... que nem Roy nem você me farão mudar de pensar.

Aquilo deveria ser um jarro de água fria em suas ansiedades. Mas, não. Podia ela, com seu olhar, com seu corpo, mais do que dizia sua boca.

— Passemos — disse, insistindo. — Cris está dormindo.

Passou atrás dela. Viu-a fechar a porta.

E ir atrás do interruptor. Mas Bryan ergueu a mão. Não soube em que instante tocou naqueles dedos.

Não soube quando a puxou. Nem o fá­cil que foi apertá-la contra o corpo.

Não era sua mulher? Não a desejava com loucura?

Ao atraí-la, notou que ela... se aper­tava contra ele.

Os lábios se encontraram. Sem uma fra­se. Como se tudo voltasse ao passado. Com sua loucura, com sua paixão e sua ter­nura.

Horas? Minutos?

Não soube quando escapou. Nem quan­do sua boca a procurou sem encontrá-la, nem quando suas mãos encontraram o va­zio.

Mas ficava algo.

Um hálito morno e terno. Uma entrega que doía e causava uma comoção quase espiritual.

Mas a realidade estava ali. O divã so­zinho, a lareira apagada... o robe no chão...

Podia pedir-lhe desculpas. Mas... de que quê? Não foi algo dos dois? Algo necessário, íntimo, irremediável?

 

Não quis vê-la isso sim. Passou pelo quarto de sua filha, de manhã, como um ladrão.

Diana cochilava junto a cabeceira de Cris.

— Senhor — disse, baixo. — Cris não acordou de noite. Há um mês queisso não ocorria...

Olhou em torno. Seus olhos a procuravam.

— A senhora... não dormiu aqui? — perguntou.

— Acaba de ir descansar.

Como podia? Que força moral tinha aquela mulher deliciosa? Como pôde estar junto a sua filha? Imaginava-a dizendo a Cris: "Cris. Não podia, não podia. Mas eu o amo, sabe? Nunca, jamais... deixei de amá-lo com toda minha alma".

Não podia culpá-lo de nada. Era, en­tão, culpa dos dois. Uma evocação que se necessitava viver. Como se a existência de­pendesse daquilo.

Tudo físico?

Pensou que era assim.

Mas Mauri não era só físico. Mauri ti­nha uma aura de pureza que embelezava tudo. Ao lado de Mauri, não podia ser apenas matéria. Como era possível que aquela mulher tão doce se esquecesse dos outros seres humanos que viviam sob sua responsabilidade, nas piores condições físicas?

Saiu daquela casa como se temesse vê-la de repente. Talvez também para Mau­ri fosse difícil encará-lo de novo.

Respirou melhor, quando se viu em seu carro, na rua.

Precisava espairecer, falar com alguém, menos de Mauri, é claro. Falar de qualquer coisa, para desanuviar a mente.

Dirigiu-se a casa, de sua irmã, mas deparou com Alex, que abria a loja na­quele momento.

— Acordo cedo — comentou seu cunha­do. — Vou deixar a loja aberta com meu empregado e subo com você para um café. Ou melhor, iremos até a lanchonete mais próxima.

Lembrou-se de que ainda não havia to­mado seu desjejum.

— Está bem, Alex. Vamos.

Atravessaram juntos a rua.

— Ontem à noite estive com Roy no clube.

— Ah.

— Contou-me...

— Sim?

— Que se passa?

Podia gritar-lhe que mil coisas. Que es­tava louco por ela, e temia voltar em casa. Que era um covarde.

— Nada. Devia passar algo?

— Você convenceu Roy. Ele está... amolado. Deseja a felicidade da sobrinha e está certo de que vocês se amam.

— Ah.

— Não sabe dizer outra coisa?

Recostaram-se no balcão.

— Dois cafés, Curd — pediu Alex, e depois olhou para o cunhado. — Roy aca­ba de chamar-me.

Isso não esperava.

— Chamá-lo? Para quê?

— Não pôde se levantar. Ataque de gota... Está na cama, atendido por seus criados.

— Puxa vida.

— E isso não é o pior. Hoje vai haver um conselho de administração e Roy não pede assistir. Pediu-me que suplicasse a você... para ir.

— Não! — taxativo. — Eu sou cons­trutor. Nada tenho que ver com mina de hulha.

— Seria uma obra de caridade. Não há quem represente Mauri, estando Roy doente.

— Ele que se levante.

E saiu sem tomar o café.

 

Recebeu o recado pela sua secretária.

 — Chamaram-no, senhor. De sua casa.

— Quem...?

— Sua esposa. Disse que era urgente.

Claro o de Roy.

Era capaz Mauri de pedir-lhe que fosse ao conselho de administração em lugar de seu tio Roy?

Ou era para dizer-lhe que fora fraca, que o odiava que... se fosse de sua casa porque Cris já estava bem melhor?

“Não se acovarde, Bryan— disse a si mesmo, sem abrir os lábios. — Vai jogar tudo numa cartada. Tudo! Vá e enfrente a realidade”

— Não poderei ir agora — viu-se dizen­do, porém. — Tenho muito que fazer aqui.

— Recebi dois avisos, senhor.

Não iria.

Covardia? Ou necessidade intensa de­la?

Temor a suas censuras?

Sentado, automaticamente passou a assinar as cartas que estavam sobre a me­sa. Então, o telefone tocou.

— É a Sra. Smith — disse a secretária.

"Sra. Smith". Sua mulher... Sim, por muito que ele se empenhasse no contrá­rio, Mauri ainda era sua esposa, sua mu­lher... sua amante?

— Deseja falar com o senhor, se for possível.

Não queria. Tinha medo. Mas, não po­dia agir feito criança, ou feito um covar­de.

— Passe-me a ligação.

Atendeu.

— Pronto.

Sua voz soou estranha. Como se den­tro dela se agitassem mil recordações, ca­da detalhe, cada beijo, cada carícia.

Demorou a ouvir a voz de Mauri.

Acontecia-lhe o mesmo que a ele?

— Bryan...

Não vibrava a voz de Mauri. Não havia ira nela. Nem censura. Era uma voz impessoal. Como a sua?

— Diga, Mauri.

— Roy está doente. Pode vir até em casa?

Como se nada tivesse acontecido aque­la noite...

— Bem...

— Pode vir? Conversaremos.

— É que...

— Por favor.

Quantos anos sem que Mauri lhe pedis­se nada?

Entrecerrou os olhos. Empenhou-se em vê-la soberba e altiva, quando ele come­çou a dizer que os empregados das minas viviam em péssimas condições. Uma vez e outra discutindo. Primeiro, com suavidade. Mais tarde... violentamente. Não poderia esquecer aquele último dia, há dois anos. Ele pegara suas coisas e se fora, sem uma explicação.

Ainda lhe parecia ouvir a voz de Mau­ri. Uma voz em que não havia ternura. Era como se todo o passado pertencesse a seres diferentes. Seres alheios a eles mes­mos.

"Tudo isso ocorre porque você não en­tende a vida tal como é. De onde você saiu? Como viveu? Será que não tem idéia do que é ser um forte empresário ante mil seres que trabalham para você? Nota-se que não tem estudos superiores, Bryan".

Não pôde resistir. Sua dignidade não o permitia.

Foi aquilo que mais lhe doeu.

— Bryan... — a voz de Mauri, breve e humana, humana, sim, acrescentou pelo telefone: — Eu lhe suplico, venha.

Não soube porque razão disse aquilo:

— Irei... agora mesmo.

Como obedecendo a um impulso, levan­tou-se.

— Voltarei logo, Srta. Rose.

— Não se preocupe, senhor. Já está tudo assinado. Não precisa vir o resto do dia — e amável: — Como está sua filha?

Sua filha?

Nem se lembrava da menina, naquele instante. Ele a adorava, sim. Mas... não estava o cérebro, a alma, o corpo, cheios de sua mulher? Como se só ela existisse.

— Melhor — viu-se dizendo. — Me­lhor. ...

E saiu como um autômato.

Ninguém lhe entregou a chave da porta.

Tampouco a pediu. Por isso, teve que tocar a campainha. Alice o recebeu.

— Sem chave, senhor? — e procurando nos bolsos, tirou uma de um chaveiro. — Não é melhor que tenha uma? Aqui está.

— Não é preciso, Alice — disse, sem recusá-la. — Ficarei muito pouco em Medicine Hat. Cris logo estará boa.

Ali o fitou longamente.

— Senhor... devia ficar.

Que dizia?

— Ficar?

— Não acha?

— Não... bem... não.

— Ela sofre, senhor. Como quando o senhor se foi daquela vez. Não recorda? Abri-lhe a porta e corri... a contar a ela.

Bryan apertou os lábios.

Nunca soube a reação de Mauri. Fizera tudo para ignorá-la para que ela não passasse de um fantasma imaginário.

— Nunca vi Mauri chorar tanto como naquele dia, senhor.

O que dizia Alice? E por que o dizia?

Ele não queria saber o que Mauri fize­ra aquele dia. Os fatos é que contavam. E Mauri jamais o chamou. Se o tivesse procurado, as coisas teriam sido diferen­tes.

Mas Mauri era orgulhosa, altiva. Não iria fazer isso.

No entanto... a noite passada... foi débil. Suave, a mesma de antes. A mesma, que se dava toda, sem reservas.

— Todos precisam do senhor nesta ca­sa.

Fitou-a. Estava Alice ali, a sua frente, ou era um sonho?

— Senhor — continuava dizendo Ali­ce, enquanto fechava a porta. — Poucos dias depois, uma comissão de trabalhado­res das minas se apresentou aqui. Queriam vê-lo. Foi horrível. Mauri lutando consigo mesma. Creio que naquele momento, mes­mo contra seu desejo, preferia perder as minas do que perdê-lo. Esteve não sei quanto tempo trancada em seu quarto. E a pobre Cris, vendo tudo isso, só podia fi­car doente. Ela adivinhava a dor materna e sofria também.

Bryan andou mais depressa, querendo fugir aqueles comentários que o atingiam em cheio. Alice o reteve pelo braço.

— Senhor, não vai ficar? Não sabe per­doar? Não a ama ainda? Os dois se ama­vam tanto...

Desprendeu-se dela. Mas a fitou com suavidade. Como se Ali fosse sua mãe. A mãe que ele mal conheceu.

— Obrigado, Ali — murmurou. — Obri­gado.

E atravessou o vestíbulo, batendo com os dedos na porta.

 

Quase em seguida ouviu sua voz.

Vibrante? Não. Apagada. Uma voz que ocultava... o quê? Sua debilidade da noi­te anterior? Temor?

— Entre.

Empurrou a porta. O que ia dizer-lhe?

Desculpar-se?

Mas... não foi como uma debilidade dos dois em lançar-se na mesma ansiedade irreprimível?

Mauri vestia um modelo matinal de fi­na lã. Corte simples, fazendo-a ainda mais pessoal, atraindo o olhar mais para si, do que propriamente para o traje que vestia.

— Sente-se, por favor.

Era possível, que ela não lembrasse mais do que acontecera na noite anterior? Se ele estava ainda como que impregna­do dela. Como se ardesse uma chama em seu ser, como se...

E Mauri, em troca...

— Quanto Roy é atacado pela gota — dizia ela, aparentemente impassível — nunca se sabe quando pode se levantar. É por isso que eu achei que você podia ocupar seu lugar.

Rebelou-se.

— Como se arranjou você de outras ve­zes?

— Indo eu.

Bryan foi se servir de uma bebida.

— E quem lhe impede de ir hoje tam­bém?

— É diferente.

— Diferente?

Voltou-se. Com o copo na mão, olhou para ela. Se fosse mais observador, teria notado o intenso rubor, a agitação conti­da daquela jovem mulher.

Mas Bryan estava meio cego aquela manhã, ou dominado por idéias diferentes, ou perturbado ainda pela noite que viveu a seu lado.

— Diferente, sim. Você está morando nesta casa... Ninguém sabe do drama interior. Não queria pôr você ou eu mesma em evidência. O mais natural é que seja você a ocupar o lugar de tio

Roy. Bryan riu, um tanto alto.

— Cale-se! — pediu Mauri, com voz sufocada.

Não era mais a mulher apaixonada, dó­cil, da noite passada.

Bryan fechou os olhos por um se­gundo.

— Não tema — disse. — Sua tradição não sofrerá nada. Ninguém se atreve a di­zer coisas desagradáveis de uma mulher rica como você. Pronunciar o nome de Mauri é um abrir-se todas as portas, des­pertar-se sorrisos gentis... tudo.

— Você não quer ir...

Alterou-se.

— E por que haveria de ir?

— Eu... lhe peço.

Era desarmá-lo. Mas, ainda assim, pro­curou uma saída.

— De qualquer jeito... prefiro que se­ja você a ocupar a cabeceira da mesa. Eu estou desligado. Agitaria o conselho com minhas teorias. Sempre os assustei. Ima­gine hoje, que continuo pensando igual, acrescentando mais coisas que, a seu mo­do de ver, vão contra os interesses da em­presa.

— Você o discutiria... ali.

— E não discuti outras vezes? Diga... não o discuti? Tudo vinha a você, lembra-se? — fazia alusão ao passado, aberta­mente. — E você destruía tudo com uma só palavra.

— Não há necessidade de voltar atrás.

Bryan se inclinou para ela, com fogo no olhar.

— Não está o passado aqui? Diga, não está? — e com ferocidade: — Não o vi­veu ontem à noite?

Foi como se a fulminassem. Levantou-se. Ficou tensa.

Houve um silêncio. Tenso Confuso.

— Desculpe — acabou ele dizendo.

— Humilha-me... demais.

— Viu? Considera humilhação a ver­dade, a única verdade de sua vida.

— Jamais menti. Jamais fugi de res­ponsabilidade. Jamais...

— Lamento, Mauri. Cris já está bem. Cris deve aceitar que seu pai trabalhe lon­ge daqui. Não... incomodarei mais.

— Assim. Como se não deixasse nada atrás.

— E deixo algo? Não estava bem cla­ro tudo entre nós?

— É ofensivo que me diga isso, quan­do sabe... sabe...

— Cale-se, digo-lhe eu agora. Por fa­vor, cale-se. Afinal, sou homem, e...

— Não me ofenda mais, Bryan.

A voz lhe vibrava. Bryan retrocedeu so­bre seus passos.

— Não é possível começar de novo — dizia. — Não é possível. Sobre o quê? Onde está a base? Não foi carcomida?

Ia para a porta. Depressa. Como se ti­vesse medo que ela o retivesse.

— Bryan.

Parou com a mão no trinco da porta.

— Desculpe — disse. — Assim... não suporto isto — voltou-se de repente. Seus olhos negros cintilavam. — Preferia mor­rer antes de... admiti-la assim. Não é mi­nha amante. Não posso considerá-la minha amante, sem sabê-la antes minha esposa. E o é? A mulher de um instante? Adorá­vel este instante, mas...

— Gosta de se humilhar e a mim tam­bém.

— Mauri, entenda isso. Não daria cer­to. Tornaria a ocorrer amanhã, e logo... acabaria nossa paz.

— Não pretendo falar de nós. Nem das renúncias, nem das penas, nem das ansiedades reprimidas — sua voz tinha um tom esquisito. — Falarei da empresa. Eu...

— Venda suas minas e que esse grupo de homens encontrem um patrão que lhes pague melhor e vivam decentemente. As­sim, naqueles pardieiros, não porei nunca os pés lá...

— Eu lhe imploro...

— É inútil. Irei hoje mesmo para Que­bec. Minha filha já não me necessita.

— E se eu... lhe suplicasse.

Encarou-a fixamente.

— Suplicar, o quê?

— Que você fique.

— Não. O que ia me oferecer? O prazer de um instante? Rebelo-me contra isto.

— Bryan.

Não queria ouvi-la. Estava a ponto de fraquejar.

Por isso, abriu a porta e atravessou o aposento. Ainda podia ouvir sua voz.

— Bryan...

Agora, era só um eco aquela voz.

Mauri ouviu ò ruído da porta da rua e, como um autômato, foi para o telefo­ne.

Sua voz soou vazia, quando disse:

— É preciso adiar a reunião do conse­lho. Marcarei uma nova data...

— Sim — respondeu uma voz impes­soal.

— Verei uma nova data...

E desligou.

Ficou parada, olhando em frente.

Anoitecia. Diana a fitava ir de um la­do para o outro.

Cris brincava na cama, com um monte de jogos.

— Diana — disse Mauri, de repente — vou sair.

Era insólito, que Mauri saísse aquela hora. Nunca o fazia. Desde que se separa­ra do marido, fechara-se em casa.

— Vou até a casa de tio Roy.

— Está certo.

— Agora, Cris deve descansar. Já brin­cou bastante, meu amor — olhou amorosamente para a filha. — Agora, deve dormir. Guarde os brinquedos.

— Papai mandou-os esta tarde — disse Cris, excitada. — Por que não veio me ver hoje?

— Esteve aqui de manhã, enquanto vo­cê dormia — sussurrou Mauri. — Depois... teve que viajar. Virá amanhã.

— Quero ver meu paizinho — e com uma ansiedade que comoveu ambas as mulheres. — Não terei que ir a Quebec, ma­mãe? Eu queria passar o Natal aqui. Com papai e mamãe.

Às vezes parecia que Cris sabia de tu­do, compreendia tudo. Mas, não era possível, com seus quatro anos.

— Sim, Cris.

— Promete, mamãe?

— Sim, sim.

Beijou-a repetidas vezes. Parecia-se tan­to com Bryan.

Correu para seu quarto e vestiu um agasalho. Apanhou a bolsa e consultou o relógio.

— Vai sair?

Voltou-se na metade do vestíbulo, qua­se assustada.

— Ali...

A criada sorria.

— Aonde vai?

— Por aí...

Não saia.

— Mas...

Ali tocou-lhe no braço.

— Ele se foi para Quebec esta tarde.

— Oh, não.

Ela ia a seu hotel. Ia dizer-lhe...

— Quem lhe disse?

— Claudia. Agora, você tem que dizer a seu tio Roy que se levante. De nada lhe adianta ficar na cama. Que vá ao conse­lho e...

— Não, não... não. Que sou para ele?

Ali via tudo. Sabia. Como não ia saber?

Lia em seu rosto, em seus olhos, no tremor de sua voz.

— Sente-se, Mauri. Por que não é sin­cera? Por que não lhe diz o que trama Roy e você e todos os demais? Por que não lhe diz que está disposta a tudo só para... viver a seu lado?

Mauri passou os dedos pelo cabelo.

— Só pretendia que ele viesse a mim — sussurrou.

— Mas você ia atrás dele esta noite.

— Com o pretexto do conselho...

— E que necessidade tem de pretextos? Que coisa melhor do que a sinceridade e a naturalidade? Diga que o ama.

— E ele, me ama?

— Duvida?

Tinha que duvidar. Que significava o amor para Bryan? Não era algo tão físico que chegava a doer? Um amor físico. Restava algo de resto? Não o demonstrou com aquilo...? Só para aquilo a queria. E isso era doloroso demais.

Passo a passo, atravessou o vestíbulo até as escadas.

— Mauri... atreva-se, vá buscá-lo em Quebec.

— Não — quase um gemido. — Não, não.

 

Roy lhe participou pelo telefone.

— Mauri, Bryan está aqui. Veio por duas semanas, para tratar de assuntos de empresa. Tenho a gota de novo?

Mauri suspirou.

Três meses, já. Soubera de coisas de si mesma, aquela manhã. Estava para ir a Quebec. Tinha que falar com Bryan.

Este, apenas telefonava de vez em quan­do para falar com a filha. Cris, que já estava quase totalmente recuperada, vivia esperando rever o pai.

— Então, Mauri, sofro outro ataque de gota?

— Sim.

— Desta vez vai fazê-lo?

— Sim.

— Está com uma voz estranha.

— Tudo está estranho comigo, tio. Tu­do... alterado. É preciso aceitá-lo como é. Não se pode dominá-lo.

— E se ele fosse de outro modo, você o teria esquecido.

Tio Roy tinha razão.

— A esta hora, ele estará no hotel? — eram dez horas.

— Claro. Não é homem de hábitos no­turnos.

— O que sabemos sobre ele?

— Eu, sim. Sabe? Estive com Patrick. Agora, mais do que nunca, sei que Bryan continua apaixonado por você.

— Tio... — a voz dela tremeu um pouco — vá para a cama. Finja um ata­que de gota.

— Está bem. Boa sorte, Mauri.

Desligou. Não soube como, se viu tro­cando de roupa, nem quando se viu na rua, em seu carro, só parando diante do hotel.

— Sou a Sra. Smith. Poderia... ver meu marido?

— Oh, acabou de deixar o salão de re­feições. Está no quarto. Quer que o chame?

— Não, não. Será uma surpresa.

— Como queira.

— Seu... quarto?

— Trezentos e dois.

Envergonhada, ela se dirigiu ao ele­vado? Sabia que ali, na cidade em que vi­via ninguém ignorava seu drama conjugal, imaginava o que o recepcionista esta­ria pensando daquela sua visita ao man­do.

 

Saíra do banho há pouco, ainda tinha o cabelo úmido. Vestia um pijama a cal­çava chinelos. Leria um pouco, antes de dormir. De manhã, iria ver sua filha. Patrick tinha cada coisa... Encomendava-lhe cada um assunto...

Um grupo de duzentas casas... Um hospital, uma escola para trezentos alu­nos... Não tinha idéia de onde cavara tudo aquilo. Nem sequer viu os planos.

"As pessoas interessadas neste assun­to irão procurá-lo. Já dei ordens para que se apresentem a você e lhe dêem os pla­nos. Ah, os planos são originais meus".

Uma batida na porta.

Abriu-a.

— Você...

Mauri tinha uma expressão suave. Um meio sorriso nos lábios. Um amadurecimento no olhar.

— Posso... entrar, Bryan?

Ele não sabia o que dizer, nem o que fazer. Era terrível ter pensado nela du­rante dois meses, desejá-la com todas as forças de seu ser, e de repente... tê-la ali.

Ele não era forte. Com ela, não era.

— Entre.

Mauri entrou. Com que naturalidade! Como se fosse a coisa mais normal, ela estar ali no hotel com ele.

— Aqui faz calor — disse, tirando o abrigo. — Lá fora, está muito frio.

Bryan pestanejou. O que pretendia Mau­ri? Por que o fitava assim, com aquele sorriso suave?

— Parece espantado com a minha visi­ta, Bryan.

— Eu... Como está Cris? Pensava ir amanhã a sua casa.

— Disseram-me que você estava aqui. Pensei... Bem — apertava as mãos uma contra a outra, sem deixar de fitá-lo. — Bem... não sei por que vim. Ou sim, sim, sei. Bryan... tenho que dizê-lo?

Bryan respirou fundo. Viu-se apoian­do as mãos nos ombros femininos.

— Mauri...

— Sou tola, não? Venho pedir-lhe um favor. Sabe... eu...

— Eu gosto que me peça, Mauri...

— Gosta?

— Muito.

Atraía-a para si. Ou Mauri se acerca­va? Que diferença fazia Tocavam-se, sen­tiam-se. Tinha os rostos juntos.

— Mauri...

— Eu... vim pedir-lhe para ir amanhã ao conselho. Tio Roy está outra vez de cama. Assim, vim pedir-lhe... Bem...

— Mauri! O que há conosco, diga?

Mauri não sabia. Mas, aconchegava-se mais a ele, rodeando-lhe o pescoço com os braços.

Beijaram-se. Demoradamente.

— Bryan... você precisa tanto de mim, como eu de você, não é? Diga, não é?

Bryan ficou como que embriagado. Le­vantou-a nos braços, levou-a para a cama.

— Sim, meu amor, sim...

Amanhecia. Ainda se beijavam, como se o parar de se tocar, pudesse acabar com um sonho maravilhoso.

— Irá... ao conselho?

— E eu posso me negar?

— O que se passará conosco, Bryan?

— Não sei, não posso raciocinar ago­ra... não posso...

 

Entrou em casa como uma avalancha. Nem sequer viu Alice, nem mesmo pen­sou em sua filha. Precisava ver Mauri. Beijar Mauri, sentir que ela era nova­mente sua.

— Mauri... Mauri — gritou, já na es­cada.

— Entre, louco — disse ela, abrindo a porta. — O que houve?

Bryan apoiou-se no porta.

— Mauri... estes são os planos de Patrick. Eu vinha... com o encargo de pre­parar tudo para a construção, mas não sa­bia... que eram as casas para os empre­gados das minas. E me surpreendi quan­do o conselho me disse... Deram-me car­ta branca... Mauri... por que fez assim?

Mauri o enlaçou. Encostou a cabeça em seu peito.

— Ainda não me beijou, Bryan.

Caíram os doisno divã.

— Mauri...

— Tudo isso — sussurrou ela sobre seus lábios — estava preparado há três meses. O ataque de tio Roy foi fingido... Mas você não foi ao conselho. E eu tive que laçá-lo, quase.

Beijaram-se com loucura. Amaram-se uma vez mais, com paixão e ternura. Depois, mais calmos, conversaram.

— Você é muito teimoso — dizia Mauri, baixinho. — Mas eu compreendi que tinha de aceitá-lo tal como é. Só não po­dia era deixá-lo escapar de novo. Mesmo porquê...

— Mesmo porquê...?

— Vou ter um filho.

— Ehhh?

— Sim, sim — ria em sua boca. — Lembra-se daquela noite?

— Mamãe, papai — gritava Cris do la­do de fora.

— É Cris.

— Deixe-a.

— Bryan...

— Por favor... Iremos depois. Diga-me...

— Dizer-lhe? Ainda não sabe?

— Papai, mamãe. Onde estão?

Papai e mamãe se fitaram. Separaram-se um pouco.

Mamãe dizia:

— Estamos aqui, querida.

E papai sussurrava sem deixar de fitar sua mulher:

— Um filho... Outro filho... Mauri... tem certeza que quer abrir a porta agora?

— Louco... Depois nós estaremos so­zinhos de novo. Depois...

E estiveram.

Mil vezes sozinhos. E viveram intensa­mente aquela solidão a dois.

 

                                                                                            CorinTellado

 

 

                      

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