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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Coração Vencedor / Nora Roberts
Coração Vencedor / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Coração Vencedor

 

     Lance Matthews era um sonho impossível para Cynthia Fox. Embora ela o amasse com intensidade desde sua adolescência, não fora capaz de conquistá-lo. Anos depois, a menina se tornara mulher, e estava de volta ao mundo do automobilismo... no qual Lance ainda reinava. O piloto imbatível se tornara um poderoso empresário, e as marcas do tempo só o haviam deixado mais atraente. No entanto, Foxy ainda não superara a dor da rejeição, e era difícil se permitir perdoar... mesmo que Lance estivesse finalmente pronto para retribuir seu amor...

    

     Foxy encarou o motor do MG, cercada pelo cheiro de óleo, enquanto apertava os parafusos.

     — Sabe, Kirk, nem sei como expressar o quanto estou grata por ter me emprestado este macacão. — A voz de contralto suave soou permeada de sarcasmo.

     — Para que servem os irmãos?

     Foxy ouviu a nota de diversão no tom de sua voz, embora tudo que podia ver era a bainha da calça jeans desfiada e os tênis encardidos que ele usava.

     — É maravilhoso você ser assim tão liberal. — Friccionou os dentes, enfatizando as palavras, enquanto trabalhava com a catraca. — Outros irmãos insistiriam em reparar a transmissão eles próprios.

     — Não sou nenhum chauvinista — retrucou Kirk. Foxy observou os tênis dele, ao vê-lo caminhar para o outro lado do piso de concreto da garagem. Então ouviu o clique e o ruído de ferramentas sendo substituídas. — Se você não tivesse decidido ser fotógrafa, eu a teria empregado na minha equipe.

     — Sorte a minha, prefiro revelação de filmes a motores à óleo. — Foxy esfregou a face com as costas da mão. — E pensar que se eu não tivesse sido contratada para, fazer as fotos de Pam Anderson, não estaria aqui agora com os cotovelos apoiados em peças de carro.

     Ao ouvir o riso breve e caloroso, percebeu o quanto sentira falta de Kirk. Talvez pelo fato de ele não ter mudado nada nos dois anos em que estiveram separados. Era precisamente o mesmo, como se ela tivesse fechado a porta e voltado a abri-la apenas minutos depois. A face ainda curtida pelo tempo e o sol, com rugas e vincos que prometiam apenas se tornarem mais acentuados e atraentes com a idade. Os cabelos continuavam tão densamente cacheados quanto os dela, embora possuíssem um tom ouro-escuro e os seus um ruivo-vivo. O bigode familiar repuxava sobre a boca, quando ele sorria. Foxy não se lembrava da fisionomia do irmão sem o bigode. Tinha 16 anos quando começara a usá-lo e ela apenas seis. Dezessete anos depois, ainda estava lá como um acessório permanente em sua face. Também reparara que a impetuosidade continuava a mesma. Estava no sorriso, nos olhos, nos movimentos.

     Quando criança, ela o adorava. Era o seu herói. Alto e louro, ele lhe permitia segui-lo e idolatrá-lo.

     Fora Kirk que a apelidara de Foxy. E a Cynthia Fox, de 10 anos de idade, se apegara ao nome como se fosse um presente. Quando o irmão deixara a casa dos pais para seguir carreira no automobilismo, ela passara a viver em função das suas visitas breves e ocasionais e das cartas esporádicas.

     Ausente, seu herói se tornara ainda mais dourado e indestrutível. Aos vinte e três anos, Kirk ganhara a corrida mais importante da sua vida. Naquela ocasião, ela contava apenas treze anos.

     Aquele ano tranquilo, de testes e aprendizado, fora o mais sofrido da sua vida. Era tarde, quando ela e os pais voltavam da cidade para casa. A estrada coberta de neve estava bastante escorregadia. Os flocos brancos batiam de encontro os vidros do carro, enquanto o rádio tocava uma melodia de Gershwin. Era jovem demais para reconhecer ou apreciá-la. Recostan-do-se no banco, fechou os olhos e começou a cantarolar uma melodia popular da sua própria geração. Então, por um breve momento, desejou estar em casa, de modo que pudesse ouvir seus discos e chamar as melhores amigas para conversar sobre coisas que eram importantes... meninos.

     De repente, sem aviso, o carro começou a derrapar. Girou em círculos de modo violento, ganhando velocidade à medida que os pneus perdiam aderência sobre a neve lisa e molhada. Do lado de fora da janela, via-se apenas um borrão branco. Foxy ouviu o pai se queixando e lutando para recuperar o controle do volante, mas seu medo não teve chance de se materializar.

     Primeiro veio o impacto do carro batendo no poste de telefone. Então o puxão e a dor imediata. Sentiu frio ao ser lançada para fora do veículo e em seguida o zunido molhado da neve contra a face. Por fim, não sentiu mais nada.

     Fora o rosto de Kirk que viu ao despertar, após dois dias em coma. A onda inicial de alegria congelou, ao se recordar do acidente. Podia ver tudo nos olhos do irmão. Cansaço, aflição e resignação. Sacudiu a cabeça para negar o que ele ainda não havia lhe dito. Curvando-se suavemente, ele encostou o rosto ao dela.

     — Temos um ao outro agora, Foxy. Vou cuidar de você.

     E assim foi, a seu modo. Durante os quatro anos seguintes, Foxy acompanhou o circuito. Era educada por vários professores com níveis variados de aproveitamento. Mas durante os anos de adolescência, Cynthia Fox aprendera mais do que História Americana ou Álgebra. Aprendera sobre deslocamento de pistões e motores turbo. Como montar e desmontar um motor e as regras das pistas de corrida.

     Cresceu no que era, predominantemente, um universo masculino, em meio ao cheiro de gasolina e o rugido de motores. A supervisão algumas vezes era pouco rigorosa. Em outras, inexistente.

     Kirk Fox era um homem que possuía uma grande paixão: o automobilismo. Sabia que em determinadas ocasiões ele a esquecia por completo. Lidava bem com isso. Perceber defeitos em sua perfeição só a fazia amá-lo ainda mais. Foxy crescera solta, livre e, inconsistentemente, protegida.

     A faculdade fora um choque. Durante aqueles quatro anos, seu mundo se expandiu. Descobrira as excentricidades de viver em um dormitório junto com outras moças. Começou a aprender mais sobre a Cynthia Fox. Tendo um olho clínico com cores, linhas e moda, desenvolvera um gosto característico por roupas. Percebeu que grêmios e repúblicas de mulheres não eram para ela. Sua infância fora livre demais para lhe permitir aceitar regras e organizações. Não fora difícil resistir aos rapazes, porque todos pareciam meninos tolos e imaturos. Entrara na faculdade uma garota magra e desajeitada e saíra uma mulher esbelta, com uma graça natural e uma paixão por fotografia.

     Nos dois anos seguintes, após se formar, dedicou todo o seu talento e esforço para galgar uma carreira. O trabalho em parceria com Pam Anderson fora um presente duplo. Permitiu-lhe passar algum tempo com o irmão e, ao mesmo tempo, aumentar a fenda na porta das oportunidades. Entretanto, sabia que ainda valorizava mais a primeira parte do presente.

     — Acho que ficaria chocado se soubesse que não mexo em um motor de carro há mais de dois anos. — Admitiu, enquanto apertava o último parafuso.

     — O que faz quando sua transmissão precisa de reparo? — inquiriu Kirk, dando uma olhada final sob o capo do MG.

     — Mando para a oficina.

     — Com a sua experiência? — O irmão estava horrorizado o bastante para se curvar e olhar para o topo da cabeça de Cynthia. — Pode pegar 20 anos de cadeia por um crime desses.

     — Não tenho tempo. — Foxy suspirou, então continuou, como se quisesse se redimir. — Mudei os cabos e os pinos mês passado.

     — Este carro é um clássico. — Kirk fechou o capo, então esfregou a superfície suavemente com um pano limpo. — É louca de deixar alguém, além de você, colocar as mãos nele.

     — Bem, não posso enviá-lo a Charlie toda vez que dá problemas e além do mais... — Parou as justificativas ao ouvir o ronco do motor de um carro do lado de fora.

     — Ei, isto aqui não é lugar para um homem de negócios. Foxy ouviu o riso nas palavras do irmão, enquanto se curvava para fixar a catraca.

     — Estou apenas conferindo o meu investimento — veio a resposta.

     Lance Matthews. Ela reconheceu a voz baixa e arrastada. De imediato suas mãos se fecharam em duas bolas. Um calor borbulhou em sua garganta. Lentamente, se forçou a permanecer tranquila. Ridículo, pensou enquanto flexionava os dedos. Ressentimentos não sobrevivem a seis anos de separação.

     Do seu posto privilegiado, viu que Lance também usava calça jeans e tênis. Embora não exibissem sinais de graxa, estavam puídos e gastos. Mas aquilo era apenas uma visita aos pobres, pensou ela, suprimindo o ar, indignada. Seis anos é muito tempo, lembrou-se. Ele podia estar mais tolerável agora. Porém, era difícil de acreditar.

     — Não pude chegar a tempo para o treino desta manhã. Qual foi o tempo dela?

     — 200.558. — Foxy ouviu o estalido e o assobio de uma cerveja sendo aberta. — Charlie quer dar uma última examinada, mas ela está excelente, absolutamente excelente. — Pelo tom de voz do irmão, ele havia esquecido que ela estava lá. Esquecido tudo que não fosse o carro e a corrida.

     — Ele está com a idéia fixa de estabelecer o recorde da pista no domingo. — Um aroma pungente pairou no ar.

     Foxy se aborreceu ao reconhecer o cheiro do charuto fino que Lance costumava fumar. Esfregou o nariz com as costas da mão, como se querendo apagar a fragrância dos sentidos.

     — Brinquedo novo? — perguntou ele, caminhando até o MG. De repente, ela ouviu o ruído do capo sendo erguido.

     — Parece com o carrinho que você comprou para sua irmã quando ela tirou a carteira de motorista. Ela continua brincando com máquinas fotográficas?

     Irada, Foxy deu um impulso no rastejador e rolou para fora do chassi do carro. No instante em que permaneceu deitada, viu um olhar de surpresa atravessar a face de Lance.

     — É o mesmo carrinho — disse num tom frio, enquanto lutava para se erguer. — E não brinco com máquinas fotográficas, trabalho com elas.

     Foxy tinha os cabelos presos em um rabo de cavalo e a face recoberta de graxa. O macacão a deixava sem formas e deselegante. Com uma das mãos suja de óleo, segurava a catraca. Indignada, notou que Lance Matthews aparentava mais atraente que nunca. Seis anos haviam aprofundado as rugas de expressão em sua face delgada que, por algum estranho milagre, escapara de ser bonita.

     "Bonito" era uma palavra demasiado simples para descrever Lance Matthews. Seus cabelos eram ricamente escuros, caindo em cachos sobre o colarinho da camisa e, descuidadamente, ao redor da face. As sobrancelhas um pouco arqueadas emolduravam um par de olhos que podiam ir do cinza-pedra ao cinza-esfumaçado, dependendo do seu humor. As feições clássicas e aristocráticas contrastavam com uma pequena cicatriz branca sobre a sobrancelha esquerda. Lance era mais alto que Kirk, com um físico esguio e possuía uma leveza em suas maneiras que faltava ao irmão dela.

      Foxy sabia que a indolência exterior mascarava uma consciência perspicaz. Na casa dos 20 anos, fora um dos pilotos mais consagrados no mundo do automobilismo. Diziam que Lance Matthews tinha mãos de cirurgião, instinto de lobo e os nervos do diabo. Aos 30 anos, após ganhar o campeonato mundial, se aposentara de repente. Pelas cartas do irmão, Foxy ficara sabendo que nos últimos três anos Lance patrocinara pilotos e carros, com sucesso. Ela observou enquanto os lábios dele formavam o meio sorriso torto que sempre fora sua marca registrada.

     — Ora, ora, se não é a Fox. — Seus olhos deslizaram pelo macacão sujo e fizeram o caminho inverso, voltando a fitá-la na face. — Não mudou nada em seis anos.

     — Nem você — replicou furiosa por estar vestida daquele jeito. Sentia-se uma adolescente tola e magra novamente. — Que pena!

     — A língua afiada como sempre. — O sorriso exibiu uma fileira de dentes brancos e brilhantes. Aparentemente, o fato de ela ainda lembrar um moleque rude e mal-humorado, o atraía. — Sentiu a minha falta?

     — Como se isso pudesse ser possível — respondeu ela, entregando a catraca ao irmão.

     — Continua não tendo respeito pelos mais velhos — disse Lance a Kirk, enquanto seus olhos se demoravam na face amotinada de Foxy. — Eu lhe daria um beijo de olá, mas nunca quis sentir o gosto de óleo de motor.

     Como sempre ele a estava provocando e como sempre o queixo de Foxy se ergueu.

     — Para a sorte de ambos, Kirk dispõe de uma provisão ilimitada.

     — Se continuar por perto o resto da temporada... podia muito bem trabalhar nos boxes — comentou o irmão, substituindo a ferramenta.

     — Temporada? — Um brilho afiado surgiu no olhar de Lance, enquanto tragava o charuto. — Vai ficar por aqui durante a temporada? Está de férias?

     — Não. — Foxy esfregou as palmas das mãos nas pernas do macacão e tentou parecer digna. — Estou aqui como fotógrafa, não como espectadora.

     — Foxy está trabalhando com aquela escritora, Pam Anderson — informou Kirk, pegando a cerveja novamente. — Não lhe contei?

     — Acho que mencionou algo sobre a escritora — murmurou Lance, estudando-a como se quisesse enxergá-la debaixo da sujeira. — Então, vai fazer o circuito novamente?

     Foxy se lembrou da intensidade daquele olhar. Havia horas em que parecia fazê-la parar de respirar. Havia algo de primitivo e profundo naquele homem. Quando adolescente, sentia-se atraída por aquela sensualidade nata. Mais tarde começara a achá-la fascinante e agora conhecia os seus perigos. A força de vontade manteve seus olhos nivelados com os dele.

     — Isso mesmo. É uma pena que você não esteja na disputa.

     — Não é uma pena — retrucou ele.

     A intensidade desapareceu de seus olhos, que voltaram a ficar claros.

     — Kirk vai pilotar o meu carro. Pretendo acompanhá-lo de perto e vê-lo ganhar.

— Lance viu Foxy carranquear, antes do irmão dela se virar. — Acho que vou conhecer Pam Anderson na festa que você dará esta noite. Não lave a graxa do rosto — disse, tocando de leve num ponto limpo do queixo de Cynthia. — Eu poderia não reconhecê-la. Podemos dançar juntos para relembrar os velhos tempos — acrescentou, dirigindo-se à porta.

     — Vá se ferrar — gritou Foxy atrás dele, então, se amaldiçoou por ferir a própria dignidade, trocando insultos tão infantis. Após lançar um olhar a Kirk, retirou o macacão. — Suas preferências com amigos me decepcionam.

     O irmão encolheu os ombros, olhando através da janela, enquanto Lance ligava o carro e partia.

     — É melhor testar o motor, antes de ir para casa. Pode precisar de alguns ajustes.

     Foxy suspirou e sacudiu a cabeça.

     — Claro.

    

     O vestido de noite que Foxy escolhera era de crepe chinês bem fininho. Os tons pastéis suaves de lavanda e verde se aderiam e flutuavam ao redor da sua figura esbelta e curvilínea. A saia drapejada e um corpete tomara-que-caia, sob um casaco curto, compunham um traje romântico. E também bastante sedutor.

     Pensou com imensa satisfação que Lance Matthews teria uma bela surpresa. Cynthia Fox não era mais uma adolescente. Após colocar um par de brincos de ouro nas orelhas, afastou-se um pouco para conferir o resultado.

     Os cabelos soltos caíam-lhe sobre os ombros como uma vasta cascata de cachos ruivos e brilhantes. A face clara, agora estava livre das manchas escuras de graxa. As maçãs do rosto proeminentes acrescentavam um toque de elegância e delicadeza aos traços marcantes do rosto triangular. Os olhos possuíam um formato amendoado, nem muito cinzas, nem muito verdes. O nariz afilado e aristocrático, a boca carnuda e apenas escapara de ser larga demais. Nos olhos uma sugestão da impetuosidade do irmão, mas que fora abafada e queimava sem chama. Havia algo remanescente do seu lado indômito, da sua parte cervo, da sua parte tigresa.

     Muito mais que beleza, possuía uma sensualidade terrena inexplorada. Era feita de contradições. Sua figura esguia e aparência de marfim a faziam parecer frágil, enquanto o fogo em seus cabelos e a coragem nos olhos irradiavam desafio. Foxy sentia que a noite era perfeita para um duelo.

     No instante em que calçava os sapatos, ouviu uma batida à porta.

     — Foxy, posso entrar? — Pam Anderson enfiou a cabeça pela abertura estreita da porta. — Oh, você está maravilhosa — disse ao entrar.

     Foxy se virou com um sorriso.

     — Você também.

    

     O chifon azul-claro combinava perfeitamente com as feições de boneca de porcelana de Pam. Estudando a beleza loira e delicada, Foxy desejou saber, mais uma vez, como a mulher tinha forças para exercer uma carreira exigente como jornalista free-lancer. Como conseguia realizar entrevistas tão detalhadas, quando falava como uma magnólia e aparentava uma orquídea de estufa? As duas se conheciam há seis meses. E, embora, Pam fosse cinco anos mais velha que Foxy, a mais jovem estava desenvolvendo instintos maternais em relação à mais velha.

     — Não é agradável começar um trabalho com uma festa? — Pam caminhou até a cama e se sentou, enquanto Foxy penteava os cabelos. — A casa do seu irmão é adorável. Meu quarto é perfeito.

     — Morávamos aqui quando éramos crianças — contou ela, franzindo o cenho sobre o frasco de perfume. — Kirk a manteve como uma espécie de acampamento básico, já que fica tão perto de Indianápolis. — A carranca se transformou em um sorriso. — Ele sempre gostou de acampar perto de uma pista.

     — Ele é encantador. — Pam correu os dedos pelos cabelos. — Foi muito generoso da parte dele me hospedar, até a temporada começar.

     — Encantador ele é mesmo. — Foxy riu e se aproximou do espelho para acrescentar um pouco de cor aos lábios. — Contanto que não esteja planejando alguma estratégia de pista. Você vai notar, que às vezes, ele esquece o resto do mundo. — Após encarar o tubo de batom, fechou-o cuidadosamente. — Pam... — Inspirando rápido, olhou para cima e fitou a outra mulher através do espelho. — Já que vamos viajar juntas durante a temporada, acho que você deveria entender um pouco o Kirk. Ele é... — Suspirando, encolheu os ombros. — Nem sempre é tão encantador. Às vezes é rude, irascível e indelicado. É muito inquieto, muito competitivo. Correr é a vida dele e às vezes esquece que as pessoas não são tão insensíveis quanto carros.

     — Você o ama muito, não é? —A perspicácia clara e a sugestão de compaixão nos serenos olhos azuis eram uma parte da razão para o sucesso de Pam Anderson em sua área. Não apenas podia ler as pessoas, mas também cuidar delas.

     — Mais do que tudo na vida. — Foxy se virou e observou a face de Pam em vez do seu reflexo no espelho. — E mais ainda depois que cresci e descobri que ele era humano. Kirk não precisava assumir a responsabilidade de me criar. Acho que só quando fui para a faculdade é que parei para pensar que ele tinha uma escolha. Podia ter me colocado em um lar para adoção. Ninguém o teria criticado por isso. Na realidade... — Ela lançou a cabeça para trás num movimento para afastar os cabelos dos ombros, então se apoiou na cômoda. — ... tenho certeza que ele deve ter sido criticado por alguns por não ter tomado essa atitude. Ficou comigo e isso era o que eu precisava. Jamais esquecerei. Um dia talvez possa recompensá-lo. — Sorrindo, Foxy se endireitou. — É melhor descer e me certificar de que o fornecedor do bufê deixou tudo em ordem. Os convidados não tardarão a chegar.

     — Vou com você. — Pam se ergueu e caminhou em direção à porta. — Agora, fale-me sobre o tal Lance Matthews de quem estava praguejando há pouco. Se fiz meu dever de casa direitinho, ele é um ex-piloto bastante próspero, atual presidente da Matthews Corporation, a qual, dentre outras coisas, projeta carros de corrida. Projetou e possui vários carros de Fórmula 1, inclusive o que o seu irmão pilotará nesta temporada. E sim... o de Fórmula Indy, também. Ele não... — Ela emitiu um breve murmúrio de frustração à medida que o seu inventário de fatos se tornava mais delineado. — ... provém de uma família tradicional e muito rica? De Boston ou New Haven... Do ramo de navegação ou importação e exportação... Repulsivamente rico.

     — Boston, ramo de navegação e repulsivo — Foxy afirmou enquanto as duas desciam para o primeiro andar. — Não me faça falar dele hoje à noite ou terá pesadelos.

     — Será que detectei um pouquinho de antipatia?

     — Detectou uma tonelada de antipatia. Eu teria que alugar um quarto para conter minha antipatia extra por Lance Matthews.

     — Humm... E os preços dos aluguéis estão pela hora da morte.

     — O que aumenta minha aversão por ele. — Foxy caminhou diretamente para a sala de jantar e examinou a mesa.

     Pratos de madeira envernizada dispostos sobre uma toalha de mesa azul-escuro. No centro, um jarro de barro repleto de ramos de corniso e narcisos silvestres. Uma olhada ao cenário, aos grossos candelabros de madeira, contendo velas amarelas, assegurou-a de que o fornecedor do bufê entendia do negócio. Informalidade descontraída, o tema era óbvio.

     — Parece agradável. — Foxy resistiu ao desejo de imergir um dedo em uma tigela de caviar gelado, no instante em que o fornecedor do bufê saía da cozinha.

     Era um homem baixo, agitado e quase careca, não fosse por alguns fios ralos, tingidos de preto, ao redor da cabeça. Entrou na sala apressado, arrastando os pés.

     — Você chegou muito cedo — disse, postando-se, protetoramente, entre Foxy e o caviar. — Os convidados só chegarão daqui a uns 15 minutos.

     — Sou Cynthia Fox, a irmã do sr. Fox. — Ofereceu um sorriso como uma bandeira de paz. — Pensei que talvez pudesse ajudar em alguma coisa.

     — Ajuda? Oh, não. — Como se quisesse embasar suas palavras, o homem sacudiu a mão, espantando-a como se ela fosse uma mosca irritante ameaçando o seu patê. — Não deve tocar em nada. Está tudo sob controle.

     — E bonito, também. — Pam acalmou os ânimos, dando um apertão de advertência no braço de Foxy. — Vamos pegar uma bebida e esperar os outros convidados chegarem.

     — Que homem tolo e presunçoso — resmungou Foxy, a caminho da sala de estar.

     — Você permite que alguém estabeleça seus f-stops? — perguntou Pam com uma leve curiosidade, afundando em uma cadeira.

     Foxy riu enquanto inspecionava o bar portátil.

     — Ponto para você.

     — Bem, parece haver bebida aqui para manter um exército bêbado durante um ano. O problema é que não sei preparar algo mais elaborado do que o gim-tônica que o Kirk bebe.

     — Se tiver uma garrafa de xerez seco, coloque um pouco em um copinho. Isso não vai ameaçar sua virtude. Junta-se a mim?

     — Não. — Foxy espiou as garrafas. — O álcool me faz ficar honesta demais. Esqueço as regras básicas de sobrevivência, tato e diplomacia. Conhece a editora-chefe da revista Wedding Day, Joyce Canfield? — Pam fez um gesto afirmativo, enquanto Foxy localizava o xerez. — Encontrei-a em um coquetel alguns meses atrás. Eu havia feito vários trabalhos para a Wedding Day. Bem, ela me perguntou o que eu achava do vestido dela. Olhei por cima da beirada do copo do meu segundo spritzer  e disse que ela devia evitar o amarelo, porque a fazia parecer muito pálida. — Cruzando a sala, ofereceu o copo a Pam. — Honesto, mas tolo. Nunca mais tirei uma foto de um buquê murcho para a Weading Day, desde esse dia.

     Pam deu uma gargalhada leve e flutuante e tomou um gole de xerez.

     — Lembrarei de não lhe fazer nenhuma pergunta perigosa, quando vir um copo em sua mão. É estranho estar em casa novamente? — perguntou ao vê-la. deslizar um dedo sobre uma mesa.

     Os olhos de Foxy estavam escuros, apenas alguns pontinhos verdes salpicavam o cinza.

     — Traz recordações. Estranho, não penso sobre a minha vida aqui há anos. Mas agora... — Caminhando até a janela, afastou completamente a cortina cor de marfim. Lá fora o sol mergulhava no horizonte, lançando pálidos raios vermelhos e dourados no céu. — Sabe, este é realmente o único lugar que poderia definir como casa. Nova York não conta. Desde que meus pais morreram, viajei por tantos lugares, primeiro com Kirk, depois em função da minha carreira. Só agora que estou aqui percebi o quanto a minha vida tem sido errante.

     — Quer criar raízes?

     — Não sei. — Quando Foxy voltou a fitar Pam, uma expressão confusa dominava seus traços. — Não sei — repetiu. — Talvez. Mas quero alguma coisa. E está lá fora. — Estreitando o olhar, fitou algo que ainda não era capaz de ver.

     — O que é?

     Foxy estremeceu quando uma voz interrompeu seus pensamentos. Kirk estava de pé junto à entrada, estudando-a com um sorriso leve nos lábios e as mãos enfiadas nos bolsos da calça comprida marrom. Como sempre, havia uma aura de excitação a seu redor.

     — Bem. — Lançando-lhe um olhar contemplativo, caminhou até ele. — Seda, hein? — Como se fosse uma irmã mais velha, ajeitou o colarinho da camisa dele. — Acho que não troca muitos motores com isto. Kirk puxou os cabelos dela e a beijou ao mesmo tempo.

     De salto alto, era quase tão alta quanto ele e seus olhos ficavam nivelados. Enquanto os observava, Pam notou pouquíssima semelhança entre os dois. Apenas o ondulado dos cabelos era igual. Os olhos de Kirk eram verde-escuros, a face comprida e esguia. Não havia nada da elegância ou da delicadeza da irmã nele. Estudando o seu perfil, Pam sentiu um breve tremor na espinha. Depressa, desviou o olhar para a bebida em suas mãos. Trabalhos longos e tremores na espinha não combinavam.

     — Vou lhe servir uma bebida — ofereceu Foxy, afastando-se do irmão e caminhando até o bar. — Não ousamos ir até a outra sala por outros dois minutos e meio. Oops, não tem gelo. — Fechando a tampa do balde, encolheu os ombros. — Serei corajosa e desafiarei o fornecedor do bufê. Pam está bebendo xerez — disse ela por sobre ombro, enquanto deixava o local.

     — Quer mais uma dose? — perguntou Kirk, voltando sua atenção a Pam, pela primeira vez.

     — Não, obrigada. —Sorrindo, ela levou copo aos lábios. — Não tive oportunidade de lhe agradecer por ter me hospedado. Não tenho palavras para expressar o quanto é agradável não ter que dormir em um quarto de hotel.

     — Sei tudo sobre hotéis. —- Ele sorriu e se sentou em frente a ela. Pela primeira vez, desde que se conheceram no dia anterior, ficavam a sós. Pam voltou a sentir o tremor e o ignorou. Kirk tirou um cigarro do maço e o acendeu. Durante esses breves segundos, ele a estudou.

     Classe, pensou. E inteligência. Não era fã de automobilismo. Seus olhos demoraram um pouco sobre a boca rosa e macia. Parecia algo em uma vitrine. Bonita, desejável, por trás de uma parede de vidro.

     — Foxy fala tão frequentemente de você, que sinto como se o conhecesse há muito tempo. — Pam imediatamente se amaldiçoou pela inanidade e sorveu outro gole de xerez. — Estou ansiosa para as corridas começarem.

     — Eu também — respondeu Kirk, então se reclinou para trás na cadeira e a estudou mais abertamente. — Você não parece o tipo que se interessa por pit-stops e voltas mais rápidas.

     — Não? — perguntou Pam, lutando para ficar firme. — Que tipo pareço?

     Kirk tragou o cigarro longa e profundamente.

     — O tipo que gosta de Chopin e champanhe.

     Pam rodou o restante do xerez no copo e sustentou-lhe o olhar.

     — Eu gosto — respondeu, relaxando contra as almofadas da cadeira. — Mas como jornalista, estou interessada em todos os tipos de coisas. Espero que seja generoso com seus pensamentos, sentimentos e conhecimentos, quando eu o entrevistar.

     Um sorriso ergueu os cantos do velho bigode.

     — Sou conhecido por ser bastante generoso — escarneceu, desejando saber se a textura orvalhosa da pele dela era tão macia quanto aparentava. Nesse instante, a campainha rompeu o silêncio. Kirk se ergueu, pegou o copo da mão de Pam e a puxou. Embora, ela tentasse se convencer que aquilo era uma reação tola, seu coração disparou.

     — Você é casada? — perguntou ele.

     — Bem... não. — Carranqueou, confusa.

     — Ótimo. Nunca gostei de dormir com mulheres casadas.

     As palavras foram ditas de modo tão casual, que foram necessários alguns segundos para Pam reagir. As bochechas de porcelana coraram de raiva.

     — De todos os presunçosos...

     — Ouça — interrompeu Kirk. — Com certeza vamos dormir juntos, antes de a temporada terminar. Não sou muito bom de jogos, então não jogo.

     — E vai chocá-lo profundamente se eu declinar do seu generoso convite? — devolveu ela com a frieza que só a voz de uma sulista podia, alcançar.

     — Acho que será um desperdício — Kirk concluiu, encolhendo os ombros. Quando a campainha soou pela segunda vez, ele segurou a mão dela. — É melhor irmos atender.

    

     Durante a próxima hora, a casa ficou lotada de pessoas e o burburinho de vozes aumentou. As portas do pátio foram abertas, permitindo aos convidados se espalharem do lado de fora. A noite estava morna e calma.

     Para Foxy, havia faces novas e velhos amigos. Ela vagou de grupo em grupo, assumindo o papel de anfitriã não oficial.

     A empáfia e o equilíbrio do dono do bufê desapareceram à medida que bandejas e pratos eram dispostos pela casa. As pessoas se moviam por todos cantos. Embora, o ar informal da festa estivesse ligado a um senso comum. Havia o pessoal do automobilismo, pilotos, esposas ou fãs privilegiados.

     Corada e rindo, atendeu à porta para receber um convidado atrasado. O sorriso de boas-vindas enfraqueceu de imediato. Mas não pôde deixar de sentir uma pontada de satisfação ao perceber a surpresa nos olhos cinza de Lance, que veio e sumiu com o subir e descer das sobrancelhas dele. Percorreu-lhe as curvas de cima a baixo com um olhar de avaliação. Havia um ar de consideração na sua fisionomia que Foxy comparou à de um homem, avaliando uma escultura para comprar para sua casa. Imediatamente, a serenidade escapou da sua postura. Seu queixo ergueu e os ombros se endireitaram. Aborrecida, lhe tornou a mesma avaliação casual.

     Lance usava pulôver e calça comprida pretos. O traje de noite lhe conferia uma aparência de mistério e perigo, acentuada por sua elegância e ar despreocupado. Ao seu redor, a estranha atmosfera de calma que Foxy se lembrava muito bem.

      Uma habilidade de permanecer absolutamente imóvel e absorver tudo. O verdadeiro caçador a possuía. Bem como o toureiro que sobrevivia. Sabendo que ele a estava absorvendo, Foxy o desafiou com o olhar, embora seu coração batesse de modo desenfreado. Raiva, disse a si mesma. Ele sempre a fazia ficar com raiva.

     — Ora, ora, ora — a voz de Lance soou serena e estranhamente íntima, acima do zumbido da festa. Encarando-a por alguns segundos, riu do seu beicinho mal-humorado. — Acho que eu estava errado.

     — Errado? — repetiu ela e relutantemente fechou a porta atrás dele em vez de bater-lhe com ela na cara.

     — Você mudou — disse Lance, segurando-lhe ambas as mãos e ignorando o puxão violento de protesto de Foxy. Afastou-a para longe dele e voltou a examiná-la de cima a baixo. — Ainda está ridiculamente magra, mas conseguiu encher um pouco em alguns lugares interessantes.

     A pele dela arrepiou como se uma brisa fria a tivesse acariciado. Furiosa com a sensação, tentou se desvencilhar e falhou.

     — Se isso for um elogio, pode guardar para você. Quer largar minhas mãos, Lance.

     — Claro, em um minuto. — A raiva e a indignação de Foxy o cercou, enquanto ele continuava a estudá-la.

     — Sabe... — disse ele em tom de conversa. — Sempre tive curiosidade de saber como aquela sua carinha engraçada ficaria. Era estranhamente atraente, mesmo quando estava suja com fluido de transmissão.

     — Estou surpresa por você se lembrar de como eu era. — Resignada pelo fato de ele não a libertar, até que estivesse preparado, Foxy parou de se contorcer. Observou-o por um longo minuto, procurando por qualquer defeito em seu rosto que pudesse ter aparecido naqueles seis anos. Não achou nenhum. — Você não mudou nada.

     — Obrigado. — Com um sorriso, ele transferiu o aperto para a cintura dela, enquanto a conduziu em direção aos sons da festa.

     — Não tive a intenção de elogiá-lo. — Foxy sentiu uma reação inesperada ao sorriso breve de Lance e ao seu toque íntimo.

     A cautela permaneceu com ela, mas temperada com um pouco de diversão. Ao entrarem no salão principal, afastou-se dele com um movimento firme. Era sempre tão simples para ele enfeitiçá-la, lembrou-se. — Suponho que conheça quase todos — disse, apontando para os convidados no salão. — E tenho certeza que consegue achar o caminho até o bar.

     — Quanta gentileza — murmurou ele, voltando a medi-la de cima a baixo. — Se bem me recordo, eu não a repugnava dessa maneira.

     — Eu era uma colegial idiota.

     — Lance, querido! — Honey Blackwell os abordou.

     Os cabelos loiro-prata eram curtos e finos. A face bonita e maquiada. O corpo um festival de curvas e elevações. A mulher tinha dinheiro e uma sede inextinguível de excitação. Era, na opinião de Foxy, a clássica sanguessuga do automobilismo. Quando seus braços circularam o pescoço de Lance, ele pousou as mãos nos quadris generosos da beldade. Ela o beijou com sincero entusiasmo, enquanto ele observava o sorriso afetado e desdenhoso de Foxy sobre o ombro nu de Honey.

     — Pelo visto, vocês dois se conhecem. — Inclinando a cabeça, ela se virou e caminhou para o centro do salão.

     E pelo visto, acrescentou em silêncio, podem se divertir sem mim. Ao sentir alguém tocá-la no braço, ergueu o olhar.

     — Olá. Sabia que você ficaria tempo suficiente para eu poder me apresentar. Sou Scott Newman.

     — Oi. Cynthia Fox. — Sua mão foi sacudida em um aperto de mão.

     — Sim, eu sei. É a irmã de Kirk.

     Foxy sorriu enquanto concluía o estudo das feições do rapaz. Tinha uma face bem feita, sem exageros. Olhos castanho-escuros, nariz reto e a boca longa e curvada. Usava os cabelos num corte conservador, nem compridos, nem curtos. Era pouco mais alto que ela. Bonito, bronzeado e elegante, sem ser magro. O terno de três peças possuía um belo corte, mas o casaco desabotoado lhe conferia um ar casual. O homem era o modelo perfeito para um estudo de executivos jovens e empreendedores, decidiu ela. Pena que

não tivesse vestido um terno bege com uma camisa escura, pensou brevemente.

     — Vamos nos ver com freqüência nos próximos meses — comentou ele, alheio ao rumo dos pensamentos dela.

     — Oh? — Foxy voltou a se concentrar nele completamente, enquanto saía da frente de alguém que sustentava uma bandeja de torradas e queijo gouda.

     — Sou o gerente de turnê de Kirk. Cuido de todos os preparativos de viagem, alojamentos para ele e para a equipe e assim sucessivamente. — Seus olhos pareciam sorrir, quando levou o copo aos lábios.

     — Entendo. — Foxy inclinou a cabeça, então jogou os cabelos para trás. — Faz alguns anos que não acompanho a equipe. — Lançando um olhar de esguelha ao irmão, focalizou-se nele e sorriu. Kirk tinha aparência de um cavaleiro em luta, com uma morena agarrada ao seu braço e um pequeno aglomerado de pessoas ao ser redor, esperando para ouvi-lo. — Não tínhamos um gerente de turnê quando eu fazia parte da equipe — murmurou. Foxy se lembrou de ter dormido mais de uma vez no assento traseiro de um carro, em uma garagem, cheirando a gasolina e a cigarros fumados. Ou acampado na grama, esperando o amanhecer e a corrida.

     Ele é um cometa, pensou, observando o irmão. Um cometa brilhante e flamejante.

     — Houve várias mudanças nos últimos anos — Scott comentou. — Kirk começou a ganhar as corridas mais importantes. E é claro, com o patrocínio de Lance Matthews, sua carreira ganhou notoriedade no cenário mundial.

     — Sim. — Ela deu uma risada breve e sacudiu a cabeça. — O dinheiro fala mais alto, não é?

     — Não está bebendo nada. — Scott notou a falta de copo na mão dela, mas não o sarcasmo na voz. — Vamos dar um jeito nisso.

     — Claro. — Foxy ofereceu o braço e permitiu que ele a conduzisse até o bar.

     O dinheiro de Lance Matthews não me interessa, nem de uma forma, nem de outra, pensou Foxy.

     — O que gostaria de beber? — perguntou Scott.

     Foxy o fitou, então dirigiu o olhar ao baixo e experiente bartender.

     — Um spritzer.

     

     A luz ao luar se infiltrava por entre as folhas tenras. As flores no jardim ainda eram recentes com a chegada da primavera. Suas cores pareciam mais brandas à noite. A fragrância leve e suave era apenas um sussurro da promessa de verão.

     Com um profundo suspiro, Foxy sentou-se em um balanço branco e apoiou os pés em outro. Vagamente, além da extensão do gramado, podia ouvir os sons da festa indo e vindo. Tendo passado despercebida pela cozinha e pela porta dos fundos, escapara para desfrutar alguns momentos de quietude e solidão.

     Lá dentro o ar estava abafado com fumaça e conflito de perfumes. Respirando fundo e ansiosa o ar fresco da primavera, fez pressão com os pés para colocar o balanço em movimento.

     Scott Newman era bonito, educado, inteligente e interessante, decidiu. E comum, admitiu. Revirando os olhos com outro suspiro, contemplou o céu. Fragmentos de nuvens escuras, orlados de cinza, ao passarem preguiçosos na frente da lua, faziam a luz oscilar. Já estou sendo crítica novamente, meditou.

     Um homem precisa se equilibrar em um pé e fazer malabarismos para que eu o considere interessante"? O que estou procurando? Um cavaleiro? Com uma carranca, rejeitou a escolha. Não, os cavaleiros são muito polidos, brilhantes e puros. Acho que prefiro alguém com um pouco de manchas e talvez alguns arranhões. Alguém que me faça rir, gritar, chorar e os meus joelhos tremerem quando me toca. Riu discretamente, desejando saber quantos homens estava procurando. Inclinando a cabeça para trás, cruzou os tornozelos.

     Então, a bainha do vestido se ergueu roçando o seu joelho.

     Lançando os braços para cima, segurou cordas nas laterais do balanço. Quero alguém perigoso. Selvagem. Suave e forte.

     Inteligente e tolo. Rindo mais uma vez das próprias especificações, fitou as estrelas que piscavam e brilhavam através das nuvens inconstantes.

     — A que estrela devo fazer um pedido?

     — A mais luminosa normalmente é a melhor.

     Com um suspiro breve, Foxy deixou os braços caírem e procurou o dono da voz. Viu apenas um vulto, alto e esguio.

     Seus movimentos a fizeram lembrar a graça silenciosa de uma pantera. O traje preto se misturou ao escuro da noite, mas seus olhos captavam a luminescência da lua. Por um momento, ela teve a impressão que o tranquilo jardim de um subúrbio havia se transformado em uma selva primitiva e isolada. Os olhos de Lance, iguais aos de um felino, flamejaram com luz própria e conquistaram a escuridão.

     Seu semblante foi envolto pelas sombras, que aprofundaram os traços cinzelados. Foxy pensou que Lucifer devia aparentar igualmente escuro e atraente ao cair do céu nas chamas.

     — O que está pedindo. — A voz soou tão abafada, que vibrou o ar.

     De repente, Foxy se deu conta de que estava prendendo a respiração. Cuidadosamente, exalou o ar. Fora apenas a surpresa que fizera sua pele tremer, insistiu.

     — Oh, tudo que tenho direito — retrucou de modo impertinente. — O que está fazendo aqui fora? Pensei que estivesse atolado até os joelhos de louras.

     Lance contornou o balanço.

     — Queria respirar um pouco de ar fresco — disse, olhando para ela. — E um pouco de sossego.

     Perturbada pelos motivos dele serem um reflexo dos seus, Foxy encolheu os ombros e fechou os olhos como se quisesse ignorá-lo.

     — Como conseguiu se livrar da senhorita air bag duplo?

     Os sons da festa penetraram na quietude da noite. Ela sentiu os olhos de Lance focados nela, mas obstinadamente manteve os seus fechados.

     — Então, adquiriu garras. Não devia afiá-las nas costas de alguém, Foxy. Cara a cara é mais honesto.

     Ela abriu os olhos e encontrou os dele. Relutante, admitiu que havia sido sórdida desde o momento em que o vira novamente. Sordidez não provocada não fazia parte do seu caráter. Suspirando, encolheu os ombros.

     — Sinto muito. Não costumo tratar as pessoas desse modo. Sente-se, Lance, tentarei me comportar. — Um breve sorriso acompanhou o convite. Mas ele não se sentou no balanço da frente, como ela esperava. Em vez disso, sentou-se a seu lado. Foxy enrijeceu. Sem se dar conta ou aparentando desinteressado pela reação dela, ele apoiou os pés no banco do balanço oposto.

     — Não me importo de brigar, mas um descanso entre os rounds é sempre refrescante. — Tirando o isqueiro do bolso, acendeu a ponta de um charuto longo e fino. A chama subiu e tremeluziu. Estranho como se lembrava tão claramente daquele cheiro, pensou ela enquanto relaxava os músculos.

     — Vejamos se conseguimos ser civilizados por alguns minutos — sugeriu Foxy, virando-se ligeiramente para ficar de frente para ele. Um sorriso pairava em seus lábios. Agora era uma mulher adulta e poderia enfrentá-lo à altura, lembrou-se. — Devemos discutir sobre o tempo... Sobre o mais recente best seller... Ou sobre a estrutura política da Romênia? Já sei... — disse, apoiando a bochecha na palma da mão. — ...Sobre automobilismo. Como é ficar projetando carros em vez de pilotá-los? Está mais esperançoso com o carro de Indy ou com o de Fórmula 1 para o Grande Prêmio? Kirk está tendo um bom desempenho nos circuitos de GP desde a abertura da temporada. Parece que o carro tem que ser muito rápido e bastante seguro.

     Lance percebeu o brilho travesso nos olhos dela e ergueu uma sobrancelha.

     — Ainda lendo revistas sobre automobilismo, Foxy?

     — Kirk jamais me perdoaria se eu não me mantivesse atualizada. — Ela riu, um som baixo e pesado.

     — Vejo que isso não mudou nada — comentou Lance. Foxy o fitou com um sorriso confuso. — Aos 15 anos de idade, você já possuía a risada mais sensual que já ouvi. Como algo se esgueirando através da névoa. — Ele soltou uma baforada de fumaça, quando ela se remexeu no assento.

     O luar incidia nos cabelos ruivos, irradiando centenas de chamas minúsculas e prateadas. Ela sentiu apenas uma pequena amostra do poder daquele homem, tentando-a.

     — A sede principal da sua empresa é em Boston — começou, navegando para. terrenos mais seguros. — Suponho que viva lá agora.

     Lance sorriu diante da manobra e inclinou a ponta do charuto.

     — A maior parte do tempo, já esteve lá? — Ele apoiou o braço sobre a parte de trás do encosto do balanço. O gesto foi tão casual que Foxy quase não percebeu.

     — Não. — O movimento de vai e vem continuou lento e calmo. — Mas gostaria. Sei que há contrastes fabulosos. Arenitos vermelhos, hera, aço e vidro. Vi algumas fotos muito interessantes.

     — Vi uma das suas não faz muito tempo.

     — Oh? — Curiosa, virou a cabeça na direção dele e percebeu que suas faces estavam quase se tocando. O hálito morno de Lance tocou-lhe os lábios. O poder era mais forte dessa vez e ainda mais tentador. Enquanto se afastava devagar, os olhos dele continuaram presos aos seus.

     — Foi tirada no inverno, ainda sem neve, apenas com um pouco de gelo nas árvores nuas. Havia um banco e um homem velho dormia com a cabeça em um travesseiro feito de um sobretudo cinza e preto enrolado. Os raios de sol se infiltravam pelas árvores, incidindo diretamente sobre ele. Achei inacreditavelmente melancólico e muito bonito.

     Por alguns instantes, Foxy sentiu-se completamente perdida. Jamais imaginara que Lance Matthews possuísse tamanha sensibilidade ou apreciasse os aspectos delicados da sua arte. Enquanto continuavam sentados em silêncio, algo acontecia entre os dois, mas ela não sabia como resistir, nem como encorajar aquilo. Era algo tão elementar quanto um homem e uma mulher e tão complexo quanto emoções.

     Os olhos de Lance continuaram sustentando os seus, enquanto ele erguia o braço e brincava com as pontas dos cabelos dela.

     — Fiquei muito impressionado — continuou, enquanto Foxy permanecia calada e perplexa. — Notei seu nome escrito embaixo da foto. Primeiro, achei que não podia ser você. A Cynthia Fox de quem eu me lembrava não teria a habilidade para fazer uma foto com tamanha profundidade e sentimento. Ainda a via como uma adolescente de olhos arregalados e um temperamento vil. — Quando Lance desviou o olhar para sacudir a ponta do charuto, ela liberou o ar que estava retendo.

     Relaxe, ordenou-se. Deixe de ser idiota.

     — Em todo caso, fiquei curioso o bastante para fazer uma pesquisa. Ao descobrir que de fato era você, fiquei duplamente impressionado. — Quando voltou a fitá-la, uma das suas sobrancelhas erguida desapareceu sob o emaranhado de cabelos que lhe caía na testa. — Obviamente você é muito boa no que faz.

     — O quê? Brincar com máquinas fotográficas? — perguntou sorrindo.

     O ar da noite havia suavizado o seu humor. Lance sorriu de volta.

     — Sempre achei que as pessoas deviam gostar do que fazem. Tenho brincado com carros durante anos.

     — Pode se dar a esse luxo — reagiu ela, num tom frio, sem se dar conta.

     — Nunca me perdoou por ser rico, não é?

     Havia uma nota de divertimento explícita na voz dele que a fez se sentir uma tola.

     — Não — respondeu, encolhendo os ombros. — Acho que não. Dez milhões sempre me pareceram muita ostentação.

     Lance riu, então puxou os cabelos dela, antes que Foxy o encarasse novamente.

     — Só dinheiro novo é ostentação em Boston. Dinheiro velho é discreto.

     — O que significa "velho", financeiramente falando? — perguntou, achando que estava gostando do riso dele e daquela mão amigável em seus cabelos.

     — Oh, eu diria que três gerações seriam o mínimo. Qualquer coisa inferior seria suspeito. Sabe de uma coisa, prefiro bem mais lírios do vale do que a gasolina que você usava.

     — Obrigada. Ainda costumo usar de vez em quando, mas só quando estou me sentindo inquieta. — Foxy ergueu-se com um suspiro. Ficou surpresa ao perceber que preferia ficar ali sentada com ele a voltar para a festa. — É melhor eu voltar lá para dentro. Você vem?

     — Não ainda. — Lance segurou-a pela mão e com um puxão ágil, girou-a ao redor, até fazê-la cair sentada em seu colo.

     — Lance! — Com um riso surpreso, Foxy espalmou as mãos em seu tórax e o empurrou. — O que está fazendo? — Seus esforços não eram muito consistentes, embora as mãos dele estivessem firmes em sua cintura. O bom humor ainda não a havia abandonado.

     — Nunca lhe dei um beijo de olá.

     Ao pressentir o perigo, a risada morreu em seus lábios. Empurrou-o depressa, mas ele a envolveu pelo pescoço. Foxy ainda administrou um assustado "não!", antes de os lábios dele se fecharem sobre os seus.

     O beijo começou leve e provocante. Na verdade, podia sentir a curva de um sorriso nos lábios que tocavam os seus. Talvez se tivesse lutado, se o protesto tivesse continuado, aquilo não passasse de um simples roçar de lábios. Mas quando suas bocas se encontraram, ela congelou. Parecia que o coração havia parado de bombear, os pulmões parado de respirar, o pulso deixado de bater e o sangue estacionado nas veias. Então, com uma súbita fúria selvagem, voltara a fluir novamente.

     Quem tomou a iniciativa de aprofundar o beijo, Foxy não sabia dizer. Pareceu que os dois tomaram ao mesmo tempo. Quentes e famintas, suas bocas se apossaram uma da outra, num beijo úmido e envolvente. O gemido de prazer que cortou o ar podia ter vindo de qualquer um dos dois ou de ambos. Seus seios macios pressionavam suavemente o tórax dele, enquanto ela usava a língua, dentes e lábios para que o beijo ganhasse ainda mais intensidade. Lance, por  sua vez, desvendava-lhe todos os pontos íntimos da boca, fazendo-a deliciar-se com o seu sabor, cheiro e o contato da pele masculina tocando a sua. Numa carícia lenta, deslizou a mão pelos contornos das costas dela, até alcançar a cintura e repousar sobre seu quadril e coxa. O tecido fino do vestido era pouco mais que ar entre eles. Estimulada pela carícia, Foxy atraiu-o mais para si, mordiscando-lhe os lábios para provocar mais calor. Lance esmagou-lhe a boca de modo selvagem, desesperado, até fazer seus sentidos se emaranharem numa confusão extática. Com um gemido abafado de prazer, ela quase desfaleceu nos braços que a envolviam. Seus lábios se separaram por um instante ao mesmo tempo em que ele a afastou.

     Quando ambos se fitaram em silêncio, seus olhos pareciam tão cinzas quanto os dele. Foxy ainda tinha os braços fechados ao redor do pescoço de Lance. Já não sentia mais o perfume das flores, apenas o cheiro morno e viril. Não ouvia mais as risadas da festa, apenas o som sereno da respiração dele. Já não podia sentir a brisa, apenas o calor que aquelas mãos fortes irradiavam. Só existia ele. Nesse instante, uma coruja pousou em uma árvore atrás deles e piou três vezes. Imediatamente o feitiço foi quebrado. Ela estremeceu, engoliu em seco e lutou para se erguer.

     — Não deveria ter feito isso.

      Como sua pele continuava a formigar, evitou encará-lo e alisou distraída a saia do vestido.

     — Por que não? — A voz era tão serena quanto um encolher de ombros. — Você é adulta agora. — Ele se ergueu e Foxy foi obrigada a inclinar a cabeça para fitá-lo. — Gostou do beijo tanto quanto eu. Não vai bancar a donzela chocada a essa altura do campeonato.

     — Não estou bancando a donzela chocada — negou ela calorosamente, sem deixar de encará-lo. — Se gostei ou não, não é a questão.

     Percebendo que estava se ajustando à descrição que ele fizera, lançou os cabelos para trás, aborrecida. Planejava fazer uma saída digna ao sair do balanço, mas Lance a impediu, segurando-a pelo braço, antes que ela tivesse dado dois passos sobre a grama.

     — Então qual é a questão? — Já não soava divertido ou calmo, mas sim irritado.

     — A questão é... — disse ela entre dentes. — Não faça isso outra vez.

     — É uma ordem? — murmurou num tom suave. — Não acato ordens de ninguém.

     — Não estou pedindo um pão com presunto — retrucou ela. — Fui pega desprevenida. — Foxy tentou justificar sua reação a ele. — E... cansada. Talvez um pouco curiosa... Reagi sem pensar.

     — Curiosa? — O riso era másculo e novamente divertido. — Satisfiz sua curiosidade? Talvez como Alice, você talvez ache isso "cada vez mais curioso". — Ele deslizou a ponta dos dedos ao longo do braço de Cynthia.

     Foxy se afastou sentindo um arrepio na pele.

     — Você é impossível! — Com um gesto impaciente, jogou os cabelos para trás. — Sempre foi impossível. Com essas palavras, girou nos calcanhares, e correu para a segurança da festa. Lance ficou parado, assistindo o vestido flutuar e ondular ao redor dela.

    

     As 500 milhas de Indianápolis são um evento que transforma Indianápolis de uma simples cidade do Meio Oeste americano no foco do mundo do automobilismo. Mais pessoas assistem aquela única corrida do que qualquer outro evento esportivo no restante do país. É para o automobilismo internacional o que Wimbledon é para o tênis. O que a Corrida de Kentucky é para o hipismo. O que as Séries Mundiais são para o beisebol. Prestígio, honra e excitação.

     Foxy sentia-se aliviada pelo céu estar livre de nuvens. Não havia sequer a menor indicação de que pudesse chover. A combinação de pista molhada e velocidade sempre a deixava apreensiva. Uma brisa revolveu a fita que prendia seus cabelos em um rabo de cavalo. A calça jeans era uma velha amiga, desbotada nos joelhos e justa nos quadris. Uma camiseta estilo beisebol, com listras vermelhas e brancas sob o cós da calça completava o traje despojado. Ao redor do pescoço, a Nikon que ela comprara em segunda mão, quando ainda estava na faculdade. Não a venderia nem por uma arca de ouro.

     Do seu posto privilegiado nos boxes, podia ver que as arquibancadas ainda se encontravam vazias. Repórteres, equipes de televisão, pilotos, mecânicos todos envolvidos em suas respectivas atividades ou bebendo xícaras de café espumante. O ar estava silencioso o bastante para permitir ouvir o canto ocasional de um pássaro, mas não era tranquilo. Uma corrente o traspassava, incitando ondas de tensão e excitação.

     Em menos de duas horas, as arquibancadas e o autódromo estariam repletos. Quando a bandeira verde fosse agitada, o circuito Indianápolis Motor Speedway atrairia um público de mais de quatrocentas mil pessoas. Um número que se igualava à população de algumas cidades americanas. O barulho explodiria como o rugido longo de um trovão.

     Durante as horas seguintes, haveria um contínuo roncar de motores. Os boxes fervilhariam com calor e o denso cheiro de combustível e suor. Olhos ficariam grudados nos carros pequenos e rebaixados, enquanto corriam ao redor dos 4km do circuito oval. Alguns pensariam apenas na emoção da corrida.

     Os sentimentos de Foxy eram mais complexos. Haviam se passado dois anos desde que estivera perto de uma pista de corrida pela última vez e seis desde que fizera parte do mundo do automobilismo. Mas parecia que fora ontem, descobriu, enquanto olhava ao redor. Os sentimentos e emoções não haviam se alterado por essa ausência. Havia antecipação, excitação. Estava quase tonta e sabia que tudo se tornaria mais intenso após a corrida começar. Sentia-se feliz e orgulhosa, conhecendo a habilidade do irmão, um talento que parecia mais nato, que conquistado. Mas no fundo, embaixo de tudo, havia um medo enraizado, um terror tão vivo e aflitivo, que não diminuíra com o passar dos anos. Todas as sensações se agitavam em seu íntimo e sabia que quando a bandeira verde tremulasse, elas se fundiriam em uma emoção inebriante e indescritível. Nada mudara.

     Foxy conhecia a sequência de eventos. Havia alguns pilotos que concederiam entrevistas e falariam animados, casualmente, sobre a corrida. Outros seriam técnicos ou resumidos, alguns agressivos. Kirk daria entrevistas breves, respondendo perguntas com sua arrogância atraente, sua marca registrada. Para ele cada corrida era a mesma e cada corrida era única. A mesma porque ele dirigia cada uma para ganhar. E única porque cada corrida apresentava problemas diferentes. Foxy também sabia que após as entrevistas ele desapareceria e permaneceria sozinho até o momento em que os pilotos podiam entrar no cockpit. Pelos longos anos de experiência, sabia como não ser inoportuna. Movia-se entre os pilotos, cronômetros, mecânicos e dúzias de outros fotógrafos, deixando sua máquina fotográfica registrar a rotina pré-corrida.

     — O que está fazendo por aqui com essa coisa?

     Foxy reconheceu a voz, mas terminou de bater a foto antes de se virar.

     — Olá, Charlie. — Com um sorriso, envolveu-o pelo pescoço e aninhou a bochecha grisalha no seu ombro. Sabia que ele ia protestar e reclamar, mas que também ficaria feliz com o abraço.

     — Mulheres!,— murmurou ele, mas Foxy sentiu o aperto leve das mãos dele em suas costas, antes de os dois se afastarem.

     Durante os minutos que se seguiram, ambos se fitaram num estudo aberto. Ela viu pequenas mudanças. A barba estava um pouco mais grisalha, os cabelos mais ralos, mas os olhos ainda possuíam o mesmo tom azul-claro de dez anos atrás. A época ele tinha cinquenta anos e ela o considerava um velho. Como mecânico-chefe de Lance Matthews, Charlie Dunning, regia os boxes como um déspota. E continuava a fazer isso, agora como a chefe da equipe de Kirk.

     — Ainda magrela — disse ele num tom de desgosto. — Eu devia saber que alguns anos não a fariam ganhar peso. Não ganha dinheiro suficiente para comer, tirando fotos?

     — Ninguém mais deixa barras de chocolate perto de mim, ultimamente. — Ela o beliscou na bochecha enquanto falava, sabendo que Charlie seria torturado até a morte, antes de admitir que deixava barras de chocolate  para uma criança magrela encontrar. — Senti sua falta na festa de Kirk — acrescentou enquanto ele se esquivava e resmungava.

     — Não vou a festas de crianças. Então, você e a senhora fantasia estarão presentes em Indianápolis e no restante das corridas desta temporada. — Ele fungou e os lábios se apertaram em uma linha rígida de desaprovação.

     — Se está se referindo a Pam, sim, estaremos. — Foxy decidiu que Charlie havia aperfeiçoado sua ranhetice. — E ela é uma jornalista.

     — Só se certifique de que nenhuma das duas fique no meio do caminho atrapalhando os pilotos.

     — Sim, Charlie — disse Foxy séria, mas os olhos dele se estreitaram ao fitá-la.

     — Continua insolente. Se não fosse tão fraquinha, eu teria lhe dado uma surra, anos atrás.

     Sorrindo, Foxy ergueu a máquina fotográfica e tirou uma foto do rosto dele. — Sorria — sugeriu.

     — Insolente — repetiu Charlie. Quando seus lábios começaram a se curvar num sorriso, ele se virou e saiu.

     Foxy o observou, até vê-lo desaparecer na multidão. Exalando um breve suspiro, se virou e colidiu com o peito de Lance. Ele pousou-lhe as mãos sobre os ombros e a fitou nos olhos. Ela havia conseguido bloquear completamente o interlúdio no balanço, mas agora tudo viera à tona com força total. A boca, que beijara a sua com sofreguidão, se curvou em um meio sorriso.

     — Ele sempre nutriu um carinho muito grande por você.

     Foxy esquecera tudo a sua volta, além dos olhos cinza-escuros que a observavam. Quando o sorriso dele se alargou, agora exibindo arrogância, ela se livrou do aperto. Lance usava um traje parecido com o seu, calça jeans e camiseta. Os cabelos caíam-lhe na testa esvoaçando ao sabor da brisa. Amaldiçoou-o em pensamento por ser assim tão pecaminosamente atraente.

     — Oi, Lance. — A voz soou marginalmente amigável com notas de indiferença. Foxy ficou satisfeita com isso. — Nenhum repórter em seu encalço?

     — Oi, Foxy — ele retrucou no mesmo tom. — Tirando alguns instantâneos?

     — Touché. —Virando-se, ergueu a Nikon e se concentrou em regular o diafragma, pensando que talvez tivesse desenvolvido um sentido extra no que se referia a Lance Matthews. Sua presença podia ser sentida na superfície da pele. Era incômoda e excitante.

     — Ansiosa pela corrida ou isso perdeu seu charme? — Enquanto falava ele enroscou os dedos na suavidade do rabo de cavalo dela. Foxy desperdiçou quatro fotos.

     — Ouvi dizer que o Kirk conseguiu a pole position nos treinos. Ele sabe como tirar proveito desse tipo de vantagem. — Quando se virou, Foxy tinha a fisionomia tranquila e os olhos frios. Um beijo, não era motivo para preocupação. Ainda eram as mesmas pessoas. — Imagino que como dono da escuderia, você deve estar satisfeito. — O sorriso de Lance não era a resposta que ela estava procurando. — Eu vi o carro. É impressionante! — Quando ele ainda não respondeu, ela exalou um suspiro frustrado e o fitou de soslaio. — Esta conversa está fascinante, mas eu preciso voltar a trabalhar.

     Quando tentou se afastar, ele a impediu, segurando-a pelo antebraço. Observou-a em silêncio, o que a obrigou a erguer uma mão para proteger os olhos do sol.

     — Vou dar uma reuniãozinha hoje à noite na minha suíte de hotel. — A voz soou suave.

     — Oh? — Foxy lançou mão do olhar com as sobrancelhas arqueadas, que aperfeiçoara na faculdade.

     —Às sete horas. Teremos um jantar.

     — O que quer dizer com uma reuniãozinha? — Foxy percebeu que ele a encarava, embora seus olhos estivessem sombreados pela mão.

     — Uma reunião bem pequena, só você e eu.

     — Creio que será menor ainda — corrigiu ela num tom sóbrio — Já que contará apenas com a sua presença. — Dois mecânicos, usando as vividas camisas vermelhas da equipe de Kirk, passaram por eles. Lance continuou a fitá-la. — Tenho um encontro com Scott Newman.

     — Cancele.

     — Não.

     — Está com medo? — escarneceu ele, puxando-a mais para si com um movimento leve de mão.

     — Não, não estou com medo — replicou Foxy. O verde dos seus olhos tremeluzindo contra o cinza dos dele. — Mas não sou estúpida. Talvez tenha esquecido que não sou uma novata no que diz respeito a você. Já conheço a sua fama com...  as mulheres — disse com uma nota de desprezo na voz. — Foi uma verdadeira contribuição à minha educação vê-lo escolher, usar e se descartar delas. Faço minhas próprias escolhas — acrescentou, ficando ainda mais brava ao percebê-lo calado. — E as descarto quando quero. Vá procurar outra pessoa para alimentar seu ego voraz.

     Lance sorriu. O som soou claro e divertido.

     — Você ainda tem um temperamento vil, Foxy. Mas também ainda possui uma mente brilhante e inquiridora e energia em todas as células. Vai querer se livrar de Newman em uma hora. Além do mais ele vai entediá-la até a medula.

     — Isso é problema meu — replicou ela, então se lembrou de livrar o braço.

     — Claro que é — concordou ele num tom jovial e a privou de ter a última palavra, virando as costas e se afastando.

     Enfurecida, Foxy girou ao redor e se preparou para seguir na direção oposta. Com um pequeno choque, viu que as arquibancadas estavam lotadas de gente. O tempo estava passando depressa. Aborrecida, entrou apressada na área dos boxes.

     Enquanto entrevistava um piloto estreante, Pam assistiu a cena inteira entre os dois. Não fora possível ouvir o que diziam, mas percebera claramente a variedade de emoções que se apossara da face de Foxy. Observou-os com a objetividade e a curiosidade peculiar da sua profissão. Havia algo físico entre eles, bastou vê-los juntos para se certificar. Também tinha, certeza que Foxy estava lutando contra aquilo como uma mula teimosa e que não saíra vencedora na batalha que se travara instantes antes.

     Simpatizara de imediato com Lance Matthews. Era propensa a julgar as pessoas depressa, então calculava a abordagem mais direta e produtiva para se aproximar delas. Sua precisão consistente de julgamento a ajudara a ser bem-sucedida na profissão. Julgara Lance Matthews como um homem que não se curvava às convenções e que fazia suas próprias regras. Atraía homens e mulheres simplesmente porque tinha muito a oferecer. Força e arrogância e uma grande sensualidade. Pam imaginou que ele seria indispensável como amigo e terrível como amante.

     O piloto estreante, felizmente alheio a sua preocupação, continuou a responder as perguntas, enquanto ela encerrava a entrevista. Com um olho em Lance, ela agradeceu ao piloto, lhe desejou sorte e se afastou apressada.

     — Sr. Matthews!

     Lance se virou. Observou a face delicada e pequena da loira impecavelmente vestida, com calça comprida cinza e uma jaqueta esporte, correndo em sua direção. Um gravador pendia do seu ombro, uma bolsa sobre o outro. Curioso, esperou até ela alcançá-lo.

     Pam pausou e sorriu ofegante.

     — Sr. Matthews, sou Pam Anderson — apresentou-se, estendendo a mão com unhas pintadas com esmalte rosa-bebê. — Estou fazendo uma série de artigos sobre automobilismo. Talvez Foxy tenha mencionado algo sobre mim.

     — Olá. — Lance segurou a mão dela por um momento, enquanto a estudava. Esperava alguém mais robusto. — Acho que nos desencontramos na festa de Kirk naquela noite.

     — Você chamou minha atenção — disse Pam, decidindo usar de honestidade em sua aproximação. — Mas desapareceu, antes que eu pudesse alcançá-lo. Foxy desapareceu, também.

     — Você é bastante observadora.

     Embora percebesse uma leve nota de aborrecimento na voz dele, Pam ficou satisfeita. Sabia que detinha toda a sua atenção.

     — Nossa amizade ainda está na fase inicial, mas gosto muito de Foxy. Também sei que não devo me intrometer na vida alheia. — Ela afastou os cabelos distraída, quando o vento os jogou sobre seus olhos. — Profissionalmente, só estou interessada na corrida, em todos os seus aspectos. Espero que me ajude nesse sentido. Você não apenas sabe o que é projetar e possuir um Fórmula 1, como também como é competir em um. Também conhece esta pista e as particularidades de um carro de Indy. O fato de ser uma figura famosa não apenas no mundo do automobilismo, mas também na sociedade vai conferir uma tremenda legitimidade à reportagem.

     Algumas vezes, enquanto Pam falava, Lance enfiara as mãos nos bolsos. Esperou uns dez segundos para ver se ela havia terminado, antes de começar a rir.

     — Alguns minutos atrás, estava tentando entender como você podia ser a mesma Pam Anderson que escreveu aquelas reportagens devastadoras sobre a ineficiência do sistema penal. — Ele inclinou a cabeça num gesto que ela interpretou como um selo de aprovação. — Agora sei. Teremos bastante tempo para conversar nos próximos meses. — Pam o observou desviar o olhar e focalizar-se em Foxy que se encontrava encostada em uma cerca, mexendo nas lentes da máquina. Viu o surgimento do seu sorriso patenteado. — Bastante tempo. — Quando voltou a fitá-la, o sorriso se ampliou. — O que sabe sobre as 500?

     — A primeira edição das 500 milhas de Indianápolis foi disputada em 1911 e o carro vencedor atingiu uma velocidade média de 120km/h. A pista era originalmente pavimentada com tijolos e, em consequência disso, recebeu o apelido de Velho Brickyard. E uma corrida cheia de tensão, onde um piloto atinge altíssima velocidade e tenta mantê-la até o fim da prova. Não é um Grand Prix, porque não há sistema de pontuação, mas há muitas semelhanças entre o carro de Fórmula 1 e o carro de indy. Também há vários pilotos que competem nas 500 e nos Grand Prix, como Kirk Fox. Os carros aqui são movidos a metanol. Um incêndio provocado por um acidente é particularmente perigoso porque a chama é invisível.

     — Você fez sua lição de casa direitinho. — Lance sorriu ante o fluxo de informações que mais pareciam computadorizadas.

     — Oh, tenho os fatos — concordou ela, encarando-o diretamente nos olhos. — Mas eles não contam a história inteira. Quarenta e seis pessoas perderam a vida nessa pista,

mas apenas três nos últimos dez anos. Por quê?

     — Os carros estão mais seguro. Eram construídos como couraçados de guerra e, em um acidente, ficavam intactos e o piloto absorvia todo o impacto. Agora é a fragilidade dos carros que economiza vidas. Carros autodestrutíveís ao redor de um piloto, difundindo o impacto para longe dele. Os sistemas de frenagem foram melhorados e os pilotos usam roupas resistentes a fogo da cabeça aos pés. — Sentindo que a hora da corrida se aproximava, Lance a conduziu para trás da linha de largada.

     — Então correr se tornou bastante seguro? — perguntou ela. Seu olhar tão sincero quanto a voz macia.

     Mais uma vez, Lance lhe dedicou total atenção. Pam Anderson era uma mulher bastante perspicaz.

     — Eu não disse isso. Está mais seguro agora, mas sempre haverá o elemento risco. Sem isso, uma corrida como a Indy seria apenas alguns carros se movimentando em um círculo.

     — Mas um acidente não dá medo quando acontece? Ele sorriu mais uma vez e sacudiu a cabeça.

     — Duvido que a maioria dos meus pilotos pense em acidentes. Se isso acontecesse, não entrariam no cockpit. O lema é: as coisas nunca acontecem com você, sempre com os outros. Quando pensa no risco, aceita-o como parte das regras. Em todo caso, o acidente em si não é o pior medo. O problema maior é o fogo. Não há um piloto que não tema um incêndio.

     — E quando está pilotando e outro piloto bate no seu carro? O que você sente?

     — Nada. Você não pode sentir. Não há espaço para emoções no cockpit.

     — Não. — Pam assentiu com a cabeça. — Entendo... Mas há uma coisa que não entendo. Não entendo por quê.

     — Por quê?

     — Por que as pessoas se prendem em um carro e giram ao redor de um circuito a velocidades extremas. Por que se arriscam a sofrer um acidente sério ou morrer? Qual é a motivação?

     Lance se virou para a pista e carranqueou.

     — Depende. Imagino que cada piloto tenha uma motivação diferente. A emoção, a competitividade, o desafio, o dinheiro, o prestígio e a velocidade. Velocidade pode viciar. Há também a necessidade de provar a si mesmo do que é capaz, testar sua própria resistência. E, é claro, há o ego que existe em qualquer esporte. — Ao voltar a olhar para Pam, viu Kirk caminhando sob a luz do sol. — Todos os pilotos possuem graus diferentes de necessidade, mas todos precisam ganhar.

    

     Foxy se moveu ao redor do carro, abaixando e tirando fotos, enquanto Kirk atava os cintos no cockpit. Antes de colocar o capacete, ele vestiu o gorro de malha. Parecia um cavaleiro Arturiano se preparando para competir. Respondia as perguntas de Charlie com palavras breves ou movimentos de cabeça. Sua concentração já estava sendo consumida pela corrida. Em baixo da viseira do capacete, os olhos eram insondáveis. A expressão nem relaxada, nem tensa. Havia um ar em sua fisionomia que dava a impressão de estar separado, não apenas das pessoas aglomeradas ao redor do carro, mas de si mesmo. Foxy podia sentir essa separação e sua máquina fotográfica a registrou. Ao se endireitar, viu Lance se aproximar e se curvar perto da cabeça do irmão.

     — Aposto uma caixa de uísque que você não consegue bater o recorde da pista.

     Foxy viu o aceno imperceptível de Kirk e soube que ele aceitara o desafio. E seria bem-sucedido. Do lado oposto do carro, ela estudou Lance, percebendo que ele conhecia Kirk melhor do que ela imaginara. Os olhos cinza se ergueram e encontraram os seus, quando o motor do carro rugiu entre os dois. Ao ver Kirk cruzar a pista para assumir a pole position, ela se virou e desapareceu na área dos boxes.

     Quando as últimas notas de "Back Home Again in Indiana" entoaram no ar, a multidão bradou, aprovando a libertação dos milhares de balões coloridos. Por milhas e milhas, aqueles que não se encontravam no circuito Motor Speedway veriam os balões e saberiam que a, corrida estava prestes a começar. A ordem agora era oficial, ecoando além do barulho da multidão. "Cavalheiros, acelerem seus motores."  No grid de largada, a tensão acelerava tão alto quanto os motores.

      As arquibancadas eram uma onda de cor e som, quando os carros começaram a fazer a volta de apresentação. A velocidade parecia mínima. Os próprios carros, manchas de cor e letras, mantinham a formação e rodavam bem comportados. Brilhavam e reluziam sob a luz do sol. Já não se podia mais ouvir o canto dos pássaros. De repente o pace car virou e se retirou da pista.

     — É isso aí — murmurou Foxy.

     — Pensei que a tivesse perdido — disse Pam, ajustando os óculos de sol mais firmemente sobre o nariz.

     — Não acha que eu perderia a largada, acha? — Agora havia uma longa lente de esporte em sua máquina fotográfica e estava direcionada para a pista. — Vão agitar a bandeira verde a qualquer segundo. — Pam notou que ela parecia um pouco pálida, mas quando abriu a boca para comentar, o ronco dos motores explodiu no ar. Com uma calma profissional, Foxy mirou o carro de Kirk.

     — Como podem fazer isso? — disse Pam a si mesma, mas Foxy baixou a câmera e se virou para ela. — Como podem manter esse ritmo durante quinhentas milhas?

     — Para ganhar — respondeu ela simplesmente.

     A tarde seguiu seu curso. O barulho jamais enfraquecia. O calor nos boxes misturava-se ao cheiro de combustível, óleo e suor. De 30 carros que haviam largado, dez já estavam fora da corrida devido ao fracasso dos mecânicos ou avarias secundárias. Uma quebra da caixa de câmbio, uma falha de embreagem, um erro de julgamento cerravam as cortinas e punham fim às esperanças. Pam havia retirado o casaco esportivo, arregaçado as mangas da camiseta e agora andava pela área dos boxes com o gravador nas mãos. Gotas de suor escorriam pelas costas de Foxy. O tecido da camiseta se colava à pele e os cabelos caíam-lhe úmidos ao redor da face. Mas havia outra sensação. Um roçar entre as omoplatas que a fez enrijecer e desviar o olhar da pista. Lance se encontrava exatamente atrás dela. Ele falou primeiro, mas olhou além dela. A pista era um vale entre montanhas de arquibancadas.

     — Kirk está entrando na volta 85. — Sem deixar de fitá-la, ofereceu-lhe a bebida gelada que segurava nas mãos. Foxy aceitou e bebeu. Entretanto, aquela consideração a confundiu.

     — Sim, eu sei. Está prestes a colocar uma volta de vantagem sobre Johnston. Cronometrou a velocidade média dele?

     — Está na marca de 190.

     Foxy observou a manobra de Kirk ao passar por um grupo pequeno de carros. Prendeu o fôlego ao vê-lo ultrapassar um corredor na rampa curta entre a curva três e quatro. Então, olhou para os pedaços de gelo flutuando no copo e bebeu novamente.

     — Você montou uma tremenda equipe nos boxes. Cronometrei o último pitstop e ficou abaixo de 12 segundos. Deram um apoio e tanto a Kirk. E é óbvio que o carro é super-veloz e roda magnificamente.

     Num gesto lento, Lance baixou os olhos e a fitou. — Ambos sabemos que automobilismo é uma questão de trabalho em equipe.

     — Tudo menos aquela parte — retrucou Foxy, — Lá na pista depende apenas de Kirk, não é?

     — Está de pé há muito tempo. — A suavidade na voz de Lance a surpreendeu. — Por que não se senta um pouco.

     — Ele quase podia ver a dor de cabeça que martelava como um tambor no crânio dela. Para a surpresa de ambos, ele ergueu a mão e afagou-a no rosto, num gesto raro de ternura.

     — Você parece cansada. — Dizendo isso, baixou a mão e a enfiou no bolso.

     —-Não. Não posso. — Foxy se virou, estranhamente movida pelo calor prolongado em sua face. — Não até terminar. Vai perder aquele uísque, você sabe.

     — Estou contando com isso. — Lance blasfemou de repente, fazendo-a olhar para ele. — Não gosto como o número 15 contorna a curva "um". Toda vez chega muito próximo à parede.

     — Quinze? — Foxy estreitou o olhar, como se procurando entre o fluxo de carros. — É um dos estreantes, não é? O garoto de Long Beach.

     — O garoto é um ano mais velho que você — murmurou Lance. — Mas não tem a experiência para correr a essa velocidade.

     Segundos depois, o número 15 aproximou-se da curva "um" novamente, próximo demais da implacável parede. Faíscas voaram quando as rodas traseiras bateram na força sólida e o carro começou a girar, perdendo o controle. Pedaços de fibra de vidro começaram a voar pelo ar ao mesmo tempo em que três carros desviaram, manobrando como cobras ao redor do corredor ferido. Um quase perdeu o controle, suas rodas deslizaram de modo selvagem, antes de aderir outra vez ao asfalto. A bandeira amarela foi sinalizada, enquanto o número 15 ainda rodopiava na pista, parando logo em seguida. Imediatamente, foi rodeado por equipes de emergência e  extintores de incêndio.

     Como sempre quando testemunhava um acidente, uma palma gelada se abatia sobre Foxy. Não pensava ou sentia.

     Desde o momento que o carro atingira a parede, havia erguido a máquina fotográfica e registrado cada passo do acidente tranquila, focalizou e registrou a velocidade e a profundidade da pista. Uma das fotos seria um estudo clássico de um carro em angústia. Sentiu apenas um tremor ao ver o piloto rastejar entre os destroços e depois acenar para assegurar a multidão de que estava incólume.

     — Meu Deus! Como alguém pode sair ileso de uma batida como essa? — Foxy ouviu a voz de Pam atrás dela, mas continuou a fotografar a rotina da equipe de emergência na pista.

     — Como eu lhe disse antes, a própria fragilidade do piloto a melhora das condições dos carros já salvaram mais de uma vida no grid. — Lance respondeu a Pam, mas sem desviar a atenção de Foxy, que estava pálida, quando baixou a máquina fotográfica.

     — Mas nem todos — declarou ela enquanto via o borrão do carro de Kirk zunindo pela pista. — E nem toda vez. — Foxy sentiu o calor voltar sob a sua pele. — É melhor você ir entrevistar o piloto que bateu. Ele poderá lhe explicar, em primeira mão, como é ver a vida por um fio a mais de 300km/h.

     — Sim, eu vou. — Pam lhe tornou um olhar minucioso, mas não disse mais nada, antes de se afastar.

     Foxy jogou os cabelos para trás, o que fez a máquina fotográfica balançar pendurada em sua correia.

     — Creio que o número 15 terá mais respeito pela curva "um" da próxima vez.

     — É bastante calma e profissional atualmente, não é?

     Os olhos de Lance estavam frios como aço sob as sobrancelhas franzidas. Foxy se lembrou daquele olhar e estremeceu.

     — Os fotógrafos têm que ter coragem — rebateu, encarando o olhar de aborrecimento dele, sem vacilar. Sabia que se o aborrecimento se transformasse em raiva, ele podia ser brutal.

     — Mas sentimentos não são necessários. — Segurando a correia da máquina fotográfica com uma das mãos, ele a puxou para si. — Havia um homem no número 15. Você não perdeu um lance.

     — O que esperava que eu fizesse? Ficasse histérica? Cobrisse meus olhos com as mãos? Já vi acidentes antes. Eu os vi quando o piloto não sobrevivia, quando nada restava, além de uma carcaça em chamas. Vi você e Kirk serem arrastados pelos epaulettes. Quer emoção? — A voz se ergueu em uma torrente súbita de fúria. — Vá procurar alguém que não tenha crescido em meio ao cheiro de morte e gasolina!

     Lance a fitou em silêncio. A cor voltara à sua face. Os olhos aparentavam um mar revolto sob uma neblina de nuvens.

     — A senhora durona, estou certo? — O tom era um misto de divertimento e desprezo. Uma combinação que Foxy achou intolerável.

     — Está certíssimo — concordou ela, erguendo o queixo ainda mais. — Agora, tire as mãos da minha câmera.

     A princípio, a única coisa que se moveu foi a sobrancelha esquerda de Lance, formando um arco que poderia tanto indicar raiva quanto resignação. Em um gesto exagerado, ele ergueu ambas as mãos. Porém não se afastou. Continuaram frente a frente.

     — Sinto muito, Fox.

     Ela o conhecia bem o bastante para perceber indícios de irritação em sua voz. Sua própria raiva a forçou a ignorar aquilo.

     — Apenas deixe-me em paz — ordenou e começou a se afastar. Deixando-a ainda mais irritada, Lance se postou no caminho, bloqueando a passagem.

     — Espere só um minuto — disse ele. Antes que ela tivesse acatado o pedido e se virado, ele puxou a câmera fotográfica e tomou-a nos braços.

     Quando Foxy abriu a boca para protestar, os lábios dele se fecharam sobre os seus, num beijo ardente e avassalador.

     Em vez de afastá-lo, suas mãos se agarraram, desesperadamente, aos braços dele. Não obedeciam ao comando do cérebro. A boca respondia à dele mesmo ela ordenando que ficasse fria.

     A chama tremeluziu e queimou tão depressa e tão intensa, quanto naquela noite, no balanço. Não podia negar que mesmo que a mente e o coração fossem seus, o corpo pertencia a Lance. Jamais sentira tal perfeição em um toque, tal intimidade, tal desejo. Erguendo os braços, rodeou-lhe o pescoço, enquanto seu corpo se derretia de encontro ao dele. O rugido dos motores finamente afinados girou em seu cérebro, então se perdeu em um mar de necessidade e desejo. As pessoas que circulavam ao redor enfraqueceram, então desapareceram do seu mundo, enquanto ela o puxava mais para si. Exigiu mais dele ao mesmo tempo em que se entregava por inteiro. Por fim, foi Lance quem se afastou, mas continuaram nos braços um do outro, as faces próximas, corpos colados. Com sua intensidade serena e profunda, ele a fitou.

     — Acho que você me disse para não fazer isso.

     — Faria alguma diferença se não tivesse dito? — Seus joelhos queriam tremer, mas Foxy os forçou a ficarem imóveis.

     — Não. Não faria.

     — Vai me deixar ir agora? — Foxy ficou satisfeita cora o timbre impessoal em sua voz. No interior do estômago dúzias de morcegos pareciam travar uma guerra.

     — Por ora — concordou ele. Embora tivesse afrouxado o aperto, manteve as mãos nos quadris dela. — Sempre posso recomeçar de onde parei.

     — Sua vaidade está ameaçando exceder a sua arrogância, atualmente. — Com um gesto firme, Foxy afastou as mãos dele dos seus quadris. — Não sei o que é mais repugnante.

     Lance sorriu ao ouvir o insulto e beliscou o nariz dela de um modo fraterno.

     — Você é uma gracinha quando fica brava. — O olhar dele vagou por sobre a cabeça de Foxy, ao ver Kirk mudar de direção e entrar na área dos boxes. — Kirk está vindo. Com um pouco de sorte, a segunda metade da corrida transcorrerá tão suave quanto a primeira.

     Recusando-se a dignificar quaisquer dos comentários dele com uma resposta, Foxy ajeitou a máquina fotográfica sobre o peito e se afastou.

     Enfiando as mãos nos bolsos, Lance girou nos calcanhares e a observou.

     Apenas metade dos pilotos que largaram terminariam a corrida. Foxy sabia que Kirk ganharia. Estudara a face do irmão durante seu último pitstop e vira um misto de confiança, concentração e tensão. Os carros já não pareciam tão brilhantes ao sol. Estavam repletos de sujeira. Após a bandeira quadriculada descer, ela assistiu Kirk iniciar a volta da vitória, enquanto os gritos da multidão e da equipe ecoavam a sua volta. Sabia que ele viria para os boxes, preparado para as adulações. Seus olhos não estariam mais opacos. A boca erguida naquele sorriso juvenil leve e, como num passe de mágica, todas as linhas de tensão teriam desaparecido. Daria entrevistas, incansavelmente, autógrafos e receberia parabéns.

     As camadas de suor e fuligem que o recobririam eram o distintivo do seu sucesso. Absorveria tudo, recarregando o seu sistema. Então tudo estaria terminado, seria uma coisa do passado. Em dois dias, estariam a caminho de Mônaco para as provas de classificação. As 500 milhas de Indianápolis não passariam de um recorte de jornal. Para Kirk, o importante era sempre a próxima corrida.

   

     Monte Carlo situa-se entre os cumes altos e arborizados dos Alpes Marítimos e as águas azuis e brilhantes do Mar Mediterrâneo. Construções diferentes convivem lado a lado, um denso padrão de arranha-céus e casas antigas e elegantes. Tem aparência, se não fosse o tamanho, de uma grande cidade, porém conserva uma aura de conto de fadas.

     Eram as cores que mais atraíam Foxy. Os tons brancos e pastéis que dominavam as construções, o verde e o marrom das montanhas e o azul perfeito do mar.

     Flores luxuriantes e palmeiras acrescentavam um toque de exotismo. Era o país da cultura, castelos, brisas marinhas mornas e cumes estéreis. Seu lado romântico se apaixonara imediatamente por aquele lugar.

     Com Kirk envolvido nas provas de classificação e sessões de treinos e Pam ocupada com entrevistas e com as cores locais, seu par mais constante se tornou Scott Newman. Era um cara amável, atencioso e inteligente. Porém, embora detestasse admitir que Lance tinha razão, também era enfadonho.

     Planejava tudo, era cauteloso em demasia e categórico demais para o gosto de Foxy. A cada encontro, por mais casual que fosse, ele determinava um itinerário. Vestia-se com perfeição e elegância e seus modos eram idênticos. Com ele, não haveria nenhum desastre, nenhum perigo, nenhuma surpresa. Mais de uma vez sentira uma pontada de culpa, sabendo que seu caráter jamais seria tão imaculado quanto o dele. Scott era um cavaleiro em um corcel branco que salvava sua cota de donzelas em perigo a cada dia e depois polia sua armadura.

     Impaciente, vagou de janela em janela, ponderando sobre sua análise. Ao fundo, ouvia-se o leve ruído da máquina de escrever de Pam. Na Baia de Mônaco havia barcos de todos os tamanhos e descrições ancorados ou flutuando nas águas do oceano.

     Foxy recordou que durante uma das provas de classificação, um carro fez uma volta ruim e se uniu aos barcos na água virando-se, viu os dedos de Pam voando sobre as teclas. A mesa de trabalho estava repleta com notas, papéis e fitas cassete. Devia haver uma organização para tudo aquilo, mas só Pam tinha a solução.

     — Vai ao cassino hoje à noite? — perguntou, sentindo-se inquieta e insatisfeita.

     — Humm, não... Quero terminar este segmento. — O ritmo de Pam jamais se alterava. —Você vai com Scott?

     Foxy sentou-se com uma carranca e colocou os pés sobre o braço da cadeira.

     — Acho que sim.

     Ao ouvir o tom aborrecido, Pam soltou um suspiro e parou de digitar. Foxy tinha a boca enrugada em um beicinho e as sobrancelhas unidas sobre um par de olhos mal-humorados. Os cachos ruívos caíam livres sobre os ombros. De repente, Pam sentiu-se velha demais.

     — Muito bem. — Ela apoiou os cotovelos sobre a mesa e o queixo sobre as mãos entrelaçadas. — Conte para a mamãe. — O tom soou propositalmente moderado e protetor. Foxy ergueu o queixo. Ao se deparar com o sorriso divertido e afetuoso de Pam, o desafio enfraqueceu.

     — Estou sendo uma idiota — confessou com um riso de autodepreciação. — E não sei por quê. Sou louca por Monte Carlo. Era para ser um dos lugares mais românticos, exóticos e perfeitos no universo. E mais, estou pagando para estar aqui. Tenho um homem maravilhoso, aos meus pés e estou, — Respirando fundo, curvou os braços num círculo enorme.

     — De saco cheio — concluiu Pam. Erguendo a xícara, bebericou um pouco do café frio e fez uma careta. — Você foi praticamente largada na companhia de Scott. Embora ele seja agradável, não é o companheiro mais excitante. Kirk não está disponível, eu ocupada, Lance está...

     — Não preciso da companhia de Lance — cortou Foxy depressa. A carranca se tornou mais acentuada. Não ter Lance Matthews por perto era uma bênção, não um problema.

     Pam não disse nada por um instante, recordando o beijo tempestuoso que os vira trocar em Indianápolis.

     — Em todo caso — disse cautelosa. — Você ficou sozinha.

     — O Scott é realmente muito agradável. — De alguma maneira, Foxy sentiu que a declaração defendia a ambos, ela e Scott. — E não é um cara insistente. Deixei claro desde o início que não estava interessada em uma relação séria e ele aceitou. E não discutiu. — Erguendo-se da cadeira, começou a caminhar. — Não tentou me atrair para a cama, não perde o controle, não esquece a hora, não faz nada ultrajante. — Lembrou-se que as duas vezes em que Lance a beijara, fora sob seus protestos. — E um homem que me faz sentir confortável — acrescentou concisa. Então fitou Pam, desafiando-a a comentar:

     — Meus chinelos azuis de pelúcia fazem o mesmo por mim.

     Foxy queria bancar a durona, mas não conseguiu conter o riso.

     — isso é terrível.

     — Você não nasceu para se satisfazer com relações confortáveis. — Pam girou um lápis entre os dedos e carranqueou, fitando a borracha. — É igual ao seu irmão. Gosta de desafios. Qualquer tipo de desafio. — Descartando um mau humor rápido, ela ergueu os olhos e sorriu. — Agora, Lance Matthews...

     — Oh não — interrompeu Foxy, erguendo mão para cima como um policial de trânsito. — Pare agora mesmo. Posso não estar atrás de conforto, mas também não estou procurando uma cama de gato.

     — Tudo bem. Foi apenas uma suposição — disse Pam num tom suave. Duvido seriamente que ele a fizesse se sentir entediada ou confortável.

     —Tédio confortável começa a soar mais atraente — comentou Foxy. — Na realidade — acrescentou enquanto se dirigia à porta — vou desfrutar de mim mesma hoje à noite. Quem sabe ganharei uma fortuna na roleta. Se eu ganhar, vou lhe comprar um cachorro-quente com meus ganhos na corrida de amanhã. — Com uma piscadela, saiu e fechou a porta atrás dela.

     Sozinha, Pam permitiu o sorriso em seus lábios se dissolver. Nos minutos seguintes, encarou a página datilografada na máquina. Kirk Fox está se tornando um problema, decidiu. Não que ele tivesse feito o mais leve avanço, desde aquela declaração arrogante na noite da festa, meditou. Está envolvido demais com as corridas para fazer algo além de notar vagamente a minha presença. Ignorou o aborrecimento que o fato lhe suscitou e endireitou uma pilha de papéis de datilografia em branco. E é claro que ele tinha centenas de mulheres a seus pés. Pam fungou, encolheu os ombros e continuou a datilografar. Com um pouco de sorte, pensou enquanto batia com afinco nas teclas, ele ficará ocupado durante toda a temporada.

    

     Sentindo-se culpada pela conversa que tivera sobre Scott, Foxy se vestiu com um esmero especial naquela noite. O vestido stretch de jérsei preto aderia-se às suas curvas, deixando-lhe os ombros nus. O decote era de corte reto, fixo apenas pelo elástico sobre a elevação sutil dos seios. Os cabelos haviam sido presos em um coque, com alguns cachos caindo sobre as sobrancelhas e bochechas. Com a adição de uma corrente de prata fininha ao redor do pescoço e um spray rápido de água-de-colônia, sentiu-se à altura da elegância do cassino de Monte Carlo.

     No instante em que transferia alguns objetos necessários para uma pequena bolsa de noite prateada, ouviu uma batida à porta. Com um relance rápido ao redor do quarto de hotel, preparou-se para ir receber Scott. Ao abrir a porta se deparou com Lance Matthews.

     — Oh! — exclamou perplexa ao se recordar do êxito que tivera, evitando-o desde Indiana. De repente lhe ocorreu que nunca o vira em trajes de noite. O terno possuía um corte impecável, ajustando-se com perfeição, aos seus ombros largos. Aparentava diferente, mas não menos perigoso. Por um momento, pareceu um estranho: o graduado de Harvard, o antigo residente de Beacon Hill, o herdeiro da fortuna dos Matthews.

     — Oi, Fox. Vai me deixar entrar ou terei de ficar plantado aqui no corredor? — O tom e o repuxar irônico da boca o fez voltar a ser Lance.

     Foxy endireitou os ombros.

     — Desculpe, estava praticamente de saída.

     — Tão pontual quanto bela? — Seus olhos brilharam divertidos. — Os dois adjetivos raramente caminham juntos. — Dando um passo à frente, segurou-lhe o queixo, não lhe dando chance de se afastar. Teremos um coquetel antes do jantar. A reserva só começa a partir das oito.

     Foxy recuou, então notou com desgosto que a ação só atraiu Lance mais para dentro do quarto.

     — Não conte com minha companhia. — Ergueu a mão para afastar a que segurava o seu queixo, mas percebeu que não conseguiria.

     — Ainda temos quase uma hora antes do jantar — declarou ele simplesmente. Os olhos vagando pela face dela com a sugestão de um sorriso. — Talvez tenha alguma ideia de como podemos passar o tempo.

     — Você pode jogar algumas partidas de solitário — sugeriu Foxy num tom uniforme. — Em seu próprio quarto. Agora, gostaria que largasse o meu rosto.

     — E mesmo? — A voz suave e máscula soou divertida. — Que pena. Eu estava quase indo embora com ele. — Com um pouco mais de pressão, ele a trouxe mais para si, com o olhar fixo nos lábios dela. — Newman mandou lhe pedir desculpas — disse, voltando a fitá-la nos olhos. — Algo... ha... surgiu. Você tem um casaco?

     — Algo surgiu? — repetiu Foxy, sem sentir nenhum alívio quando seu queixo foi libertado e as mãos dele pousaram em seus ombros nus. A temperatura do quarto pareceu subir uns dez graus. — Sobre o que está falando?

     — Newman descobriu que não tinha a noite livre no final das contas. E uma pena cobrir esses ombros elegantes, mas as noites aqui podem ser frias em junho. — Estavam mais próximos agora do que minutos atrás, mas Foxy não saiba como ele conseguira aquilo. As mãos dele ainda estavam pousadas de leve em seus ombros.

     — O que quer dizer com não ter a noite livre? — exigiu ela, tentando se afastar para trás, mas as mãos de Lance a imobilizaram, não com força, mas de um modo significativo. O escárnio em seu sorriso fez a irritação de Foxy aumentar, bem como o ritmo do seu coração. — O que você fez? O que disse a ele? Ele é muito educado para romper um compromisso sem me avisar. Você o intimidou — concluiu calorosamente, fitando o sorriso de Lance.

     — Espero que sim. Essa era a intenção — O crime foi confessado com tanta sinceridade que Foxy conseguiu apenas gaguejar. — Vá buscar seu casaco.

     — Meu... meu... Não vou buscar nada! — administrou com a voz sufocada.

     — Faça como quiser. — Lance encolheu os ombros e segurou-lhe a mão.

     — Se pensa que vou sair com você — Furiosa, tentou livrar a mão. — Não está batendo bem do juízo. Não vou a lugar nenhum.

     — Bom — concordou Lance, rodeando-lhe a cintura com as mãos. — Acho a ideia de ficar aqui muito atraente.

     — Antes que Foxy pudesse se mover, ele se curvou e roçou os lábios na inclinação suave entre o pescoço e ombro dela. O hálito quente a fez estremecer.

     — Não... — Ouvindo a voz hesitar, ela lutou para firmá-la. O quarto já estava girando. —Você não pode ficar.

     — O serviço de quarto aqui é excelente — disse Lance baixinho, prendendo o lóbulo da orelha dela entre os dentes.

     — Você cheira aos bosques na primavera, fresco e cheio de segredos.

     — Lance, por favor... — Estava se tornando difícil pensar como aquela boca sobre a sua pele, deixando um rastro macio de beijos breves.

     — Por favor, o quê? — murmurou ele, roçando os lábios de leve sobre os dela. Com a ponta da língua incitou-a, antes que ela pudesse responder. Foxy podia sentir a areia movediça absorvendo e puxando suas pernas. Desesperada, o afastou e encheu os pulmões de ar.

     — Estou faminta — disse de repente, considerando a declaração uma retirada tática. Esperando esconder sua vulnerabilidade, escovou casualmente aos cachos que caíam sobre suas bochechas coradas. — Já que amedrontou a minha companhia, acho que devo fazê-lo pagar o meu jantar. Em um restaurante — acrescentou apressada quando ele ergueu uma sobrancelha. — Depois terá que me levar ao cassino como o Scott ia fazer.

     — Com todo prazer — respondeu Lance com uma mesura lânguida.

     — E vou me esforçar o máximo que puder para perder o seu dinheiro — disse Foxy, sentindo-se mais forte com a distância entre eles. Erguendo um manto de seda fino da cama, colocou-o sobre os ombros e deixou o quarto. Precisou de quase uma hora para voltar a ficar fria e indiferente.

    

     A luz do luar se derramava sobre a baía de Mônaco. A brisa suave vinda do mar atingia a costa, trazendo seu próprio perfume. Estrelas e folhas de palmeiras recobriam o terraço do restaurante. A música flutuava sobre a mesa afastada, mas era muito suave para Foxy distinguir as palavras. Apenas a melodia tremeluzia como as luzes das velas brancas idênticas sobre a toalha de mesa. Entre elas havia uma rosa vermelha em um vaso comprido. O murmúrio de outros clientes parecia mais um fundo que uma realidade. Era difícil se manter indiferente em um ambiente com um apelo tão forte a sua alma romântica. Acima de tudo, desejava que Lance a visse como uma mulher madura e sofisticada e não uma criança tola que se derretia ao som de uma música suave e à luz das estrelas. Entretanto, seguia cautelosa com o champanhe gelado. Àquela altura, conseguira manter a conversa entre os dois impessoal e segura.

     — Notei que o carro de Kirk apresentou alguns problemas ontem. — Foxy espetou o garfo no camarão cozido no vapor e o imergiu, distraída, no pote de molho. — Espero que tenham sido sanados.

     — Uma arruela no motor. Está sendo substituída. — Enquanto falava, Lance a fitava por cima da beirada do copo. Havia uma luz em seus olhos que a surpreendeu.

     — Incrível, não é? Como uma coisa tão minúscula ou um parafuso negligenciado podem decidir uma corrida, onde centenas de milhares de dólares são investidos.

     — Incrível — Lance concordou num tom sombrio, desvirtuado pelo seu meio sorriso.

     — Se vai rir de mim — disse Foxy inclinado o queixo — Eu simplesmente vou me levantar e sair.

     — E eu vou buscá-la de volta. — Estreitando o olhar, ela o estudou durante um longo minuto. O exame prolongado não pareceu perturbá-lo já que continuou a encará-la. A boca ainda estava curvada com aquele meio sorriso irritante.

     — Você iria e também... — admitiu Foxy com uma relutante admiração. Cavalheirismo simplesmente não era uma das virtudes de Lance e ela sabia que já tivera uma boa dose de cavalheirismo nos últimos tempos. — ... não ficaria nem um pouco aborrecido se eu provocasse uma cena que nos colocasse na cadeia. Contanto que tivesse conseguido o que queria.

     — Suspirando, meneou a cabeça. Então tomou um gole de vinho. — É difícil irritar um homem controlado ao extremo. Você pilotava desse jeito. Eu me lembro. — Enrugando a boca num beicinho, relembrou o passado. — Pilotava com a mesma determinação e intensidade de Kirk, mas possuía uma leveza que ainda falta a ele. Você espreitava. Ele ataca. Ele é todo fogo e ímpeto, você era preciso e implacavelmente firme. Havia uma facilidade incrível na sua condução. Você a fazia parecer simples, tão sem esforço! Mas corria porque sentia prazer em correr. Foxy girou a haste do copo entre os dedos e observou o reflexo da luz das estrelas girando na bebida.

     Intrigado, Lance a estudou mais atentamente.

     — E Kirk não?

     — Sentir prazer em correr? — A surpresa era evidente em seus olhos e voz. — Ele vive para isso, mas é completamente diferente. O prazer ocupa o último lugar da lista.

     — Ao inclinar a cabeça, seus olhos refletiram a luz bruxuleante das velas. — Você não vivia em função das corridas ou não teria parado de correr aos 30 anos. Se Kirk vivesse até cem anos, iam ter que colocá-lo no cockpit e, ainda assim, ele não desistiria de correr.

     — Parece que você tinha mais percepção quando adolescente do que eu lhe creditava. — Lance esperou até o bife Diane ser servido, então pensativo partiu um pãozinho pela metade. —Você sempre odiou isto, não é?

     Foxy o fitou nos olhos.

     — Sim — concordou e aceitou a metade oferecida. — Sempre. — O silêncio aumentou, enquanto ela passava manteiga no pão, pensativa. — Lance, como sua família se sentia sobre as corridas?

     — Envergonhada — A resposta foi imediata. — Foxy foi forçada a rir quando o fitou novamente.

     —E você gostava do embaraço deles tanto quanto gostava de correr.

     — Como eu disse há pouco... — Ele ergueu o copo num brinde. — Você é bastante perceptiva.

     — As famílias dos pilotos parecem ter modos diferentes de lidar com isso. E mais difícil ficar nos boxes do que pilotar no grid, você sabe — disse ela num tom suave, então suspirou e deliberadamente espantou o baixo astral. — Suponho que agora, sendo empresário, sua família já não se envergonhe mais do que faz. Foxy deu uma mordida no pão. — E mais aceitável, embora você não precise de dinheiro.

     — Você jurou que me faria precisar após esta noite — lembrou ele. — E melhor comer todo o seu bife. Perder dinheiro demanda mais energia do que ganhá-lo.

     Com um sorriso desdenhoso, Foxy pegou a faca e o garfo.

         

     A noite ainda era criança quando eles entraram no cassino. Foxy viu sua aparência indiferente se dissolver. A combinação de elegância e excitação era muito poderosa.

     — Oh! — Entrou no salão com um longo e extenso relance e apertou o braço de Lance. — É fabuloso!

     Os trajes eram um caleidoscópio de cores e o resplendor e brilho das joias atraíram seu olhar. Havia um burburinho de vozes em uma mixórdia de sotaques, acentuado pelo rápido e preciso francês dos crupiês. Havia também uma mistura de vários outros sons: o clique e o ruído das bolas da roleta girando, o roçar macio de madeira no feltro verde, a agitação e o ruído das cartas sendo embaralhadas, o estalido de dinheiro novo e o chiar de moedas.

     Rindo, Lance passou um braço ao redor os ombros dela.

     — Foxy, meu amor, seus olhos são enormes e escandalosamente ingênuos. Nunca esteve em um antro de depravação antes?

     — Pare de caçoar — exigiu ela, impressionada demais para se sentir insultada. — E tão bonito!

     — Ah, mas jogo é jogo, Fox, mesmo que seja jogado em uma cadeira de pelúcia com um copo de champanhe ou em uma garagem com uma garrafa de cerveja.

     — Você deve saber o que está falando. — Inclinando a cabeça, ela o encarou e sorriu. — Lembro daqueles jogos de pôquer. Você nunca me deixava jogar.

     — Você era um pirralha muito precoce. — Ele correu os dedos devagar pelo pescoço dela e a apertou.

     — Na verdade, tinha medo que eu o vencesse.

     O sorriso de Lance foi breve e poderoso. Com uma pontada de culpa, Foxy admitiu que estava feliz por estar lá com ele em vez de Scott. Lance Matthews exalava uma excitação que Scott Newman jamais sequer entenderia.

     — Que olhos grandes você tem — murmurou ele, enquanto seus dedos demoravam na pele dela. — O que há por trás deles, Foxy?

     — Estava pensando que eu devia estar furiosa com você por ter manipulado o Scott. E que deveria sentir culpa por não estar me sentindo culpada.

     Ele riu, então lhe deu um beijo firme e breve.

     — Culpada demais para se divertir?

     — Não — disse ela depressa, então encolheu os ombros. — Acho que sou basicamente egoísta e não muito boa.

     A boca de Lance se curvou num sorriso.

     — Então, deveríamos nos dar muito bem. — Entrelaçando os dedos nos dela, conduziu-a a uma mesa de roleta.

     Após se sentar, Foxy concentrou sua atenção imediatamente à roda quando a bola prateada minúscula saltou e rodou. Quando por fim assentou, ela observou o crupiê recolher as apostas vencidas, para pagar as vencedoras. Foxy comparou a mesa a uma Torre de Babel. Olhando de rosto em rosto, ouvia idiomas como italiano agitado, inglês preciso, alemão baixo e gutural e outros que ela não sabia distinguir. As fisionomias também variavam. Alguns velhos, alguns jovens, alguns entediados, alguns animados, muitos exibindo o brilho inconfundível da riqueza. Mas foi a face da mulher sentada diretamente a sua frente que a fascinou.

     Uma senhora muito bonita. Os cabelos eram como seda branca, emoldurando um rosto oval e bem constituído. As rugas na pele estavam longe de diminuir a sua beleza. Pelo contrário, amadureciam e imprimiam caráter ao que um dia fora uma elegância delicada. Os olhos eram verdes como duas esmeraldas, mas eram diamantes que ela ostentava no pescoço e nas orelhas. Pareciam mais fogo que gelo. Usava um vestido de seda vermelha com absoluta segurança. Foxy observou fascinada quando a mulher ergueu um cigarro preto, longo e fino e o tragou suavemente.

     — Essa é a condessa Francesca Avalon de Veneza — sussurrou Lance ao ouvido dela ao seguir o seu olhar. — Extraordinária, não é?

     — Fabulosa! — Virando-se para ele, Foxy ficou vagamente surpresa ao vê-lo, oferecendo-lhe um copo de champanhe. Quando a taça passou dos dedos dele aos seus, notou a pilha de fichas a sua frente. — Oh, estas são as fichas? — Correndo a ponta de um dedo sobre as extremidades, olhou novamente para Lance. — Quanto você aposta de cada vez?

     Encolhendo os ombros, ele fechou a mão ao redor da ponta do charuto, enquanto o acendia.

     — Estou apenas me divertindo. Rindo, Foxy sacudiu a cabeça.

     — Já tive problemas suficientes com francos, Lance. Nem mesmo sei quanto valem estas coisinhas.

     — O entretenimento de uma noite — disse ele, erguendo o copo.

     Exalando um suspiro, ela escolheu cinco fichas e, inadvertidamente, apostou cinco mil francos no preto.

     —Acho que não devo perder todo o seu dinheiro de uma só vez — disse num tom confidencial.

     — Muito generoso da sua parte. — Reprimindo um sorriso, Lance se recostou no assento e assistiu a roleta girar.

     — Vingt-sept, noir.

     — Oh! — exclamou Foxy, primeiro surpresa, depois satisfeita. — Ganhamos. — Ao fitá-lo, percebeu a diversão descarada na face de Lance. Os olhos dele estavam mais prateados que cinza, notou. — Não precisa aparentar tão satisfeito. — Tentando afastar a preocupação, ela tomou um gole do champanhe borbulhante. — Isso foi apenas sorte de novato. Além do mais... — Um sorriso perverso surgiu em seus lábios. — Vai machucá-lo muito mais se eu ganhar um pouco no início. — Nesse instante, seu olhar se focalizou nas duas pilhas de cinco fichas no preto, mas quando tentou alcançá-las, Lance segurou-a pelo braço.

     — Ele já girou a roleta, Fox. Terá que deixar correr. — A fisionomia dela estava completamente horrorizada, o que o fez dar uma risada.

     — Oh, mas eu... Isso deve valer mais de cem dólares. Um relance à roleta a fez sentir uma vertigem. Ela sorveu mais um gole da bebida.

     — Deve valer — concordou ele com uma voz grave. Foxy assistiu a bola girar e sentiu um misto de medo, culpa e excitação quando a roleta começou a reduzir a velocidade.

     — Ctnq, noir.

     Fechou os olhos com um tremor de alívio. Lembrando-se, puxou as quatro pilhas de cinco fichas depressa para sua frente. Quando Lance riu, ela se virou e lhe tornou um olhar altivo.

     — Seria bem feito para você se eu tivesse perdido.

     — Certo. — Lance sinalizou, pedindo mais champanhe. — Por que não aposta em uma das colunas — sugeriu ele, sacudindo a ponta do charuto em um cinzeiro. — Você precisa apostar mais de cinquenta por cento na vida.

     Foxy sorriu e sacudiu a cabeça.

     — Será você a perder — anunciou ela, empurrando cinco fichas impulsivamente para o topo da coluna um.

     Na verdade, foi uma vitória. Com uma consistência fantástica, a pilha de fichas em frente a Foxy aumentou. Em uma rodada, perdeu vinte mil francos, na seguinte os recuperou. Talvez fosse sua completa ignorância sobre as quantias que apostava ou por apostar ao acaso ou simplesmente a generosidade da Dama da Sorte, mas ganhou, rodada após rodada. E ela descobriu que ganhar era uma sensação muito boa. Era uma experiência inebriante que a deixou quase tão tonta quanto o copo, aparentemente, sem fundo de champanhe a seu lado. Lance continuou reclinado no assento, calmamente assistindo-a apostar e ganhar. Gostava do modo como ela o fitava ao falar com ele. O jeito como seus olhos se alargavam e brilhavam, quando ganhava ou perdia. Seu riso lembrava as névoas mornas em Boston Back Bay. Seu prazer em ganhar era simplesmente sedutor. A indiferença ao perder, charmosamente inocente. Era uma criança e uma mulher em perfeito equilíbrio.

     — Tem certeza que não quer apostar algumas? — perguntou Foxy, indicando as pilhas de fichas.

     — Você está indo muito bem. — Lance girou um cacho dos cabelos dela ao redor do dedo.

     — Isto, meu jovem, é uma declaração grosseira.

     Foxy virou a cabeça depressa e se deparou com um olhar verde-esmeralda afiado. A condessa de Avalon estava atrás dela, apoiando-se em uma bengala lisa de marfim. Foxy ficou chocada momentaneamente ao perceber o quanto ela era pequena. Com um gesto imperioso, a mulher impediu Lance de se levantar. Seu inglês era rápido e preciso, com apenas um leve sotaque. — Você ganhou ressonante e habilmente, signorina.

     — Ressonantemente, condessa — retrucou Foxy com um sorriso largo — Mas acidentalmente em vez de habilmente. Vim determinada a perder.

     — Talvez eu deva mudar a minha estratégia e vir determinada a perder — comentou a condessa. — Quem sabe eu sofra o mesmo acidente. — A mulher fitou Lance com um olhar minucioso e avaliativo. Foxy sentiu uma pontada de ciúme, o que a pegou de surpresa. — Você parece me conhecer. Eu poderia retribuir o prazer?

     — Condessa de Avalon. — Lance inclinou a cabeça suavemente. Esta é Cynthia Fox. — Foxy apertou a mão estendida em sua direção e a achou pequena e frágil. Mas um estudo rápido aos olhos verdes-esmeralda revelou que estavam repletos de poder.

     — Você é adorável — disse a condessa. — E muito forte. — Ao sorrir, exibiu uma fileira de dentes brancos e perfeitos.

     — Mas uns dez anos atrás, eu o teria roubado de você. Nunca confie em uma mulher experiente. — Dispensando Foxy com um mero desvio de olhar, a senhora concentrou toda a sua atenção em Lance.

     — E quem é você?

     — Matthews Lance, condessa. — Ele levou a mão que lhe foi oferecida aos lábios com seu charme impecável. — É uma honra conhecê-la.

     — Matthews — murmurou ela, estreitando o olhar. — Claro, eu devia ter percebido pelo olhar, esse olhar diabólico. Conhecei o seu avô muito bem. — Ela riu. O som era jovial e provocante. — Muito bem. Você tem o olhar dele, Lancelot Matthews... Tem esse nome por causa dele. Muito apropriado.

     — Obrigado, condessa. — O sorriso de Lance aqueceu.

     — Ele era uma das minhas pessoas prediletas.

     — E minha também. Encontrei sua Tia Phoebe na Martinica dois anos atrás. Uma mulher singularmente enfadonha.

     — E verdade. — O sorriso ficou severo. — Temo que sim.

     Torcendo o nariz, a condessa se virou para uma fascinada Foxy.

     — Nunca abaixe a guarda nem por um momento com este aqui — aconselhou. — Ele é igualzinho ao avô. — Ela pousou a mão sobre a de Foxy e a apertou. — Como eu a invejo. — Com essas palavras, se virou e se afastou num lampejar de seda vermelha.                                      

     — Isso é que uma mulher magnífica! — murmurou Foxy. Virando-se para Lance, curvou os lábios num sorriso saudoso. — Acha que seu avô foi apaixonado por ela?

     — Sim. — Com um gesto de dedo, Lance sinalizou para o crupiê trocar suas fichas. — Tiveram um romance devastador, o qual a família continua fingindo nunca ter acontecido. Também era complicado porque ambos eram casados. Ele queria que ela deixasse o marido e fosse viver com ele no Sul da França.

     — Como sabe tanta coisa a esse respeito? — Intrigada, Foxy não fez nenhuma objeção quando ele a ergueu da cadeira.

     — Ele me contou. — Lance colocou o manto ao redor dos ombros dela. — Contou-me que nunca mais amou ninguém. Tinha mais de 70 anos quando morreu e ainda teria deixado tudo para viver com ela, se a condessa tivesse permitido.

     Foxy caminhou lentamente pelo cassino ao lado dele alheia a quantos pares de olhos os observavam. Uma ruiva bonita e o homem implacavelmente atraente.

     — Isso soa tão maravilhosamente triste — disse ela após alguns instantes. — Mas suponho que deva ter sido terrível para sua avó, saber que ele amava outra pessoa durante todos aqueles anos.

     — Minha querida e inocente Fox — O tom de voz era seco. — Minha avó é uma Winslow de Boston. Estava bastante satisfeita com a união com os Matthews, com os dois rebentos e suas partidas de bridge no clube. Amor era coisa para os plebeus.

     — Você está inventando tudo isso.

     — Como quiser — disse ele facilmente.

     — Não chame um táxi — pediu Foxy ao alcançarem à calçada. Lançando a cabeça para trás, admirou as estrelas.

     — A noite está tão bonita. — Sorrindo ao fitá-lo, passou o braço ao redor do cotovelo dele. —Vamos caminhar. Não é tão distante.

     Ignorando o fluxo de carros, os dois caminharam sob o brilho morno dos lampiões de rua. O champanhe girava agradavelmente na cabeça de Foxy e erguia seus pés apenas uma polegada da calçada. A advertência da condessa fora esquecida. Estava completamente relaxada. O passeio sob a luz do luar e das estrelas parecia acontecer era um reino infinito, cheio de aromas e mistérios da noite.

     — Sabe... — Foxy começou e girar, afastando-se dele

     — Adoro palmeiras. — Dando uma risada, recostou-se em uma e sorriu. — Sempre quis ter uma quando era criança, mas não prosperavam na Indiana. Tive que me satisfazer com um pinheiro.

     Aproximando-se, ele afastou os cachos das faces coradas pela bebida e a excitação.

     — Não fazia a mínima ideia que você se interessava por horticultura.

     — Tenho os meus segredos. — Colocando-se fora de alcance, ela se inclinou sobre um ancoradouro.

     — Queria ser uma mergulhadora quando tinha oito anos — disse, enquanto contemplava o mar escuro. — Ou cardio-cirurgiã, nunca conseguia me decidir. O que você queria ser, Lance? — Ela se virou, os cachos ruivos se rebelando ao vento. Seu olhar exibia um brilho divertido.

     — Para começar, queria ser lançador do Red Sox. — Seus olhos pousaram na curva elegante do pescoço dela, quando Foxy lançou a cabeça para trás, rindo.

     — Aposto que tinha uma sacola cheia de lanças. — Ela suspirou com o prazer da risada. — Não me disse quanto ganhei lá no cassino.

     — Humm? — Perdido na luz bruxuleante do luar que iluminava os cabelos dela, Lance ouviu apenas metade do que ela disse.

     — Quanto ganhei no cassino? — repetiu Foxy, afastando os cachos da face.

     — Oh. — Ele encolheu os ombros. — Cinquenta e cinco mil francos.

     — O quê? — A única sílaba soou meio riso, meio choque. — Cinquenta e cinco mil? Isso é... é mais que dez mil dólares!

     — Ao câmbio atual, sim — concordou Lance num tom negligente.

     — Oh, Santo Deus! — Foxy cobriu a boca com a mão, os olhos arregalados. — Lance, eu podia ter perdido!

     — Você jogou muito bem. — A diversão estava de volta nos olhos e na voz dele. — Ou muito mal, considerando o seu desejo de perder.

     — Não fazia a mínima ideia que estava jogando com esse dinheiro todo. Se não, não teria arriscado dessa maneira. Por que... Você é louco! — Sem conseguir se conter, ela começou a rir. — É um lunático. Com atestado e tudo. — Foxy encostou a cabeça no ombro dele, enquanto sua risada flutuava calorosamente na noite tranquila. Quando Lance a envolveu nos braços, ela não fez nenhum protesto. — Eu podia ter perdido, você sabia — administrou entre risadinhas. — E podia facilmente ter caído dura no chão se tivesse descoberto quanto aquelas fichas valiam, quando a roleta ainda estava girando. — Respirando fundo, ergueu os olhos brilhantes e o fitou. — Agora, parece que ajudei a aumentar sua asquerosa fortuna.

     — Os ganhos legalmente são seus — corrigiu ele, mas Foxy se afastou horrorizada.

     — Oh não, o dinheiro era seu. Em todo caso... — Fez uma pausa, distraída e arrancou uma margarida de um arbusto na grama que crescia em torno do ancoradouro. O champanhe ainda fluía em sua cabeça. — Em todo caso... — repetiu ao mesmo tempo em que prendia a flor nos cabelos. — Você não esperava que eu compensasse suas perdas. — Com essa lógica, começou a caminhar novamente. — E claro — começou com um novo pensamento, enquanto se afastava, antes que Lance pudesse segurá-la pela mão. — Você poderia comprar algo extravagante para mim. — Girando o corpo novamente, fitou-o com um sorriso. — Acho que isso seria perfeitamente correto.

     — Tem algo especial em mente?

     Os saltos dos sapatos faziam barulho nas pedras da calçada, enquanto ela continuava girando e se afastando.

     — Oh, talvez uma matilha de cães de caça russos. — Sua risada reverberou no ar. — Ou uma parelha daqueles maravilhosos cavalos com as pernas robustas... Clydesdales. Ou um rebanho de cabras albanesas. Tenho quase certeza que existem cabras na Albânia.

     — Você não prefere uma zibelina?

     — Oh, não — respondeu.

     Enrugando o nariz, sem querer ou de propósito, afastou-se mais ainda.

     — Não ligo muito para animais mortos. Já sei! Um par de búfalos negros. Assim posso começar meu próprio rebanho. — Decisão tomada, ela parou.

      Lance a alcançou e deslizou os braços ao seu redor.

     — Terá que se certificar de adquirir um macho e uma fêmea, não é? É muito importante para as coisas darem certo.

     — Claro — concordou ele, roçando os lábios na curva do maxilar dela.

     — Não devia lhe dizer isso. — Foxy suspirou, enlaçando-o pelo pescoço. — Mas estou superfeliz por você ter assustado o Scott.

     — Está? — murmurou ele, mordiscando suavemente a pulsação na base do pescoço dela.

     — Oh, sim — Foxy disse baixinho, puxando-o mais para si. — E gostaria muito que você me beijasse agora. Agora mesmo. — A última palavra soou abafada, quando seus lábios se uniram.

     Os dois pareciam ter se fundido num instante de tórrida ofuscação. Um instante que pareceu uma eternidade. Enroscando os dedos nos cabelos dele, ela o puxou, como se pudesse trazê-lo mais para si, quando nem mesmo a brisa do mar passava entre os dois. Seus corpos se moldaram como se não tivessem nenhum outro propósito. Podia sentir o coração dele batendo no mesmo ritmo e velocidade do seu. O manto deslizou dos seus ombros e caiu no chão, permitindo que ele explorasse a pele macia das suas costas. Juntos, começaram a provar mais um do outro. Os lábios, de Lance permaneceram em sua garganta, saboreando a doçura, antes de se moverem para a maçã do rosto e beijar-lhe as pálpebras fechadas.

     Foxy sentiu um sabor másculo e potente ao longo do pescoço largo. Queria prová-lo, descobri-lo, mas sua boca exigia voltar para a dele. O poder do novo beijo a atingiu como um raio, fazendo todas as células do seu corpo vibrar. Com um gemido, roçou o corpo de encontro ao dele. Lance saqueou-lhe a boca, sorvendo tudo dela, até senti-la flácida em seus braços. Quando afastou os lábios, ela murmurou o nome dele e descansou a cabeça em seu ombro.

     — Não sei se é por sua causa ou pelo champanhe, mas minha cabeça está rodando. — Estremecendo, aconchegou-se mais a ele. Segurando-a pela nuca, Lance inclinou-lhe a face para trás. Seus olhos estavam escuros e pesados, as bochechas coradas, a boca macia e intumescida pelos beijos que trocaram.

     — Isso importa? — A voz soou rouca, enquanto ele a apertava contra o peito. Foxy não resistiu e voltou a mergulhar no fogo. — Não é o bastante saber que a quero esta noite? — murmurou junto ao ouvido dela, antes de sua língua começar a atiçá-la novamente.

     — Não sei. Não consigo raciocinar direito. — Foxy deu dois passos para trás e sacudiu a cabeça. — Algo acontece comigo quando você me beija. Perco o controle.

     — Já que está me contando isso, jogarei limpo. Você calculou mal. — Com um movimento ágil, ele venceu a distância entre eles. — Jogo para ganhar.

     — Eu sei — respondeu ela, erguendo a mão e tocando-o no rosto. — Eu sabia disso muito bem. — Virando-se, caminhou de volta ao ancoradouro e respirou fundo para clarear a mente. Jogando a cabeça para trás, contemplou a lua.

     — Sempre admirei sua firme determinação de chegar onde quer. — Abaixou a cabeça para fitá-lo, mas o rosto dele ainda estava envolto pelas sombras da palmeira.

     — Eu o amava desesperadamente quando tinha 14 anos.

     Lance permaneceu calado por um instante, mas se curvou e pegou o manto dela no chão.

     — É mesmo? — murmurou, saindo das sombras.

     A luz do luar a iluminava, enquanto Foxy afastava os cachos esvoaçantes dos olhos.

     — Oh sim. — Relaxada, continuou com a honestidade induzida pelo champanhe.

     — Era uma paixão esmagadora e dolorida. Minha primeira paixão. Você era impressionante e eu totalmente romântica. — Lance agora estava a seu lado. Foxy se virou para ele, sorrindo. — Você sempre pareceu tão indestrutível e muito frequentemente esnobe.

     — Eu? — Ele retribuiu o sorriso e colocou o manto sobre os ombros dela.

     — Oh, sim. Era autoconfiante. Ainda é. Isso é terrivelmente atraente. Mas era mais pronunciado quando estava correndo. E havia as suas mãos...

     — As minhas mãos? — repetiu ele e pausou o ato de alcançar o bolso para pegar o isqueiro.

     — Sim. — Foxy o surpreendeu ao lhe segurar ambas as mãos e estudá-las. — São as mãos mais bonitas que já vi. Esguias, fortes e muito elegantes. Sempre achei que você devia ter sido artista ou músico. Às vezes, fingia que isso era verdade e o imaginava em um velho sótão, onde eu podia cuidar de você. — Libertando-lhe as mãos, ela aconchegou mais o manto sobre os ombros. — Queria muito tomar conta de alguém. Acho que eu devia ter tido um cachorro. — Ela riu, mas estava envolvida demais com as recordações para perceber que Lance não riu junto com ela. — Eu sentia ciúmes de todas as suas mulheres. Eram sempre tão bonitas. Lembro-me especialmente de Tracy McNeil. Você provavelmente não lembra mais dela.

     — Não. — Lance ascendeu o isqueiro. — Não lembro mais.

     — Os cabelos dela eram louros e bonitos. Cortados em fio reto, chegavam quase na cintura. Odiava o meu cabelo quando era criança. Era ondulado e rebelde e com uma cor sem graça. Eu tinha certeza que você só estava com Tracy McNeil por causa dos cabelos dela. — O ar impregnou-se com o cheiro do charuto e Foxy o inspirou. — Incrível como eu era ingênua para alguém criado em um universo masculino. Imagino como devia aborrecê-lo e você era bastante tolerante a maior parte do tempo. — Um bocejo escapou de sua boca sonolenta, misturando-se ao ar da brisa marinha. — Quando fiz 16 anos, sentia-me bastante crescida e pronta para ser tratada como uma mulher. A paixão que sentia por você se tornou ainda mais intensa. Aproveitava todas as oportunidades para ficar perto de você. Não percebia?

      — Sim. — Lance soltou uma baforada fina de fumaça que desapareceu imediatamente na brisa. — Percebia.

     Foxy deu uma risada sentida.

     — Achava que estava sendo tão inteligente na minha perseguição. Você sempre foi tão amável comigo. Acho que foi por isso que quando deixou de ser, sofri tanto. Lembra daquela noite? Em Le Mans, a corrida de 24 horas — ela continuou antes que ele pudesse responder. — A noite anterior à corrida, não consegui dormir e fui caminhar na pista. Quando o vi entrando na área dos boxes, imaginei que tivesse sido obra do destino. — Com um suspiro, Foxy ajeitou a flor nos cabelos. — Eu o segui. As palmas das minhas mãos estavam suando. Queria que você me notasse. —Virando a cabeça, fitou-o com um leve sorriso nos lábios. — Como mulher. Um direito de uma menina prestes a completar dezesseis anos e eu desejava tão desesperadamente passar para o outro lado.

     Meus sentimentos em relação a você eram adultos e verdadeiros, embora não tivesse nenhuma ideia de como controlá-los. Banquei a desinteressada quando entrei, lembra? Oi, como vai, não está conseguindo dormir? Você estava usando um suéter preto. Preto sempre lhe ficou muito bem. Você parecia tão distante. Estava assim há semanas. O que o tornava ainda mais romântico. — Com um riso baixo e suave, ela ergueu a mão e o tocou no rosto. — Pobre Lance. Como a minha adulação devia incomodá-lo.

     — Incômodo é uma palavra leve demais para o que você fazia comigo — murmurou ele. Virando-se, lançou o que restara do charuto no mar.

     — Eu queria ser sofisticada — continuou Foxy, não ouvindo o aborrecimento no tom dele. — Não tinha ideia de como fazê-lo querer me beijar. Tentei me lembrar de todos os estratagemas que vira nos filmes; Estava escuro, estávamos sozinhos... A única coisa que podia fazer era me manter o mais próximo possível. Você estava mexendo no motor do carro, fazendo tudo, tenho certeza, para me ignorar, de modo que eu fosse embora e o deixasse em paz. Havia apenas uma luz acesa e a garagem cheirava a óleo e gasolina. Eu achava isso tão romântico quanto Manderley. — Virando-se, sorriu alegre, enquanto o champanhe lhe suscitava mais e mais recordações.

      — Romance sempre foi a minha grande fraqueza. De qualquer maneira, eu estava parada atrás de você, tentando pensar no meu próximo passo. Comecei a desejar saber o que você estava fazendo no carro. Espiei sobre o seu ombro ao mesmo tempo em que você se virou e colidimos. Lembro que agarrou meus braços para me firmar e meus joelhos viraram uma geleia.

     A parte física disso era incrível, provavelmente porque eu nunca tinha experimentado antes. Meu coração disparou e minha pele ficou quente e depois fria. Parecia que eu havia sido tragada pelos seus olhos, que aparentavam tão escuros e intensos. Pensei: É agora. Estava certa que você ia me tomar em seus braços e me beijar. Eu sabia que isso ia acontecer. Éramos Clark Gable e Vivien Leigh e a garagem era Tara. Então, no instante seguinte, você estava gritando comigo, totalmente lívido por eu continuar parada no seu caminho.

      Blasfemou e me sacudiu, antes de me repelir. Disse coisas realmente terríveis. O pior foi ter me chamado de criança chata. Qualquer outra coisa eu poderia ter suportado, mas isso esmagou meu orgulho, meu ego e minhas fantasias num piscar de olhos. Não pensei nem por um segundo na tensão que você sentia no dia que antecipava a corrida ou sobre o simples fato de estar parada a sua frente. Só pensei no que você disse e como doeu. Mas sempre fui uma sobrevivente. Assim que começou a doer muito, minhas defesas surgiram. Quando virei e saí daquela garagem, não o amava mais, mas passei a odiá-lo obsessivamente.

     — Era mais prudente ficar longe de mim — murmurou Lance. Depois de um momento, inclinou a cabeça e deslizou a ponta de um dedo ao longo da face dela.

— Você me perdoou?

     Foxy curvou os lábios num breve sorriso.

     — Acho que sim. Isso foi há muitos anos. E já que ajudou a me curar da paixão que sentia por você, eu devia lhe ser grata. — Com outro bocejo, descansou a cabeça no ombro dele.

     — Sim, acho que deve — concordou Lance num tom suave. — Venha vamos voltar, antes que adormeça na calçada.

     Sonolenta mas disposta, Foxy permitiu que ele a enlaçasse pela cintura e a conduzisse de volta ao hotel.

   

     O Grande Prêmio de Mônaco é um exemplo clássico de um circuito de rua. O percurso é curto, mais ou menos 3.340m de extensão e no coração de um complexo urbano lotado. Nenhuma parte do circuito é reta por mais de alguns quilômetros e entre suas 11 curvas, duas são hairpins. Uma volta inclui 17 curvas. O percurso é tudo menos estável. Suas descidas e subidas estão a sessenta metros acima do nível do mar. Os perigos incluem meio-fios, quebra-mares, um túnel com 110m de comprimento, postes e, é claro, o brilho do Mediterrâneo. Para o piloto, não há um segundo de descanso nas cem voltas. É curto, lento e diferente de qualquer outro circuito de Fórmula 1 no mundo. É considerado como um grande teste homem versus máquina, já que as suas constantes demandas o tornam um circuito mais cansativo do que longo e veloz. Testa a confiabilidade de um carro e a resistência de um homem. Mesmo assim mantém uma aura romântica e de, alguma maneira, um ar místico. Uma competição sob os olhares de um príncipe e uma princesa.

     Através de uma manobra rápida, Pam conseguira encurralar Kirk para uma entrevista. Só faltavam duas horas para o início da corrida e os boxes estavam abarrotados e ruidosos. Os boxes de Mônaco ficam expostos ao percurso, no topo do pequeno e pitoresco porto. Atrás deles, as águas estavam repletas de iates e veleiros. Pam se viu olhando ao redor à procura de Fox. Embora a aborrecesse, sabia que se sentiria mais confortável se não entrevistasse Kirk sozinha. Colocando o pensamento de lado, olhou diretamente nos olhos dele. Aquele tipo de contato era essencial ao seu estilo, bem como suas roupas elegantes e seu modo de ser sereno e tranquilo. A mente astuta e tenaz era camuflada pela fragilidade da sua aparência.

     — Ouvi muitas opiniões discrepantes sobre este circuito — começou, com seu sorriso profissional. — Alguns, especialmente os fabricantes de carros com quem conversei, consideram Mônaco um circuito "sala de visitas". O que pensa sobre isso?

     Kirk estava recostado em uma parede, tomando um gole de café. Finos espirais de fumaça se erguiam da xícara se dissolvendo no ar. Seus olhos piscaram contra a luz do sol. Parecia completamente à vontade. Pam sentia-se tensa e formal. O fato de Kirk Fox sempre fazê-la se sentir tensa e formal a aborrecia.

     — E uma corrida — ele respondeu simplesmente, observando-a por sobre a borda da xícara. — Não é veloz. É raro um piloto passar dos 250km/h e comum rodar a menos de lOOkm/h nas curvas fechadas. É mais um teste de força e habilidade do que velocidade.

     — Para o piloto ou o carro?

     Rugas de expressão surgiram nos cantos dos olhos de Kirk, quando ele sorriu. Para o fascínio de Pam, pareciam ainda mais verdes.

     — Ambos. Duas mil ou mais mudanças de marcha em duas horas e meia é muita tensão, tanto para o piloto quanto para a máquina. E há o túnel. Você entra com luz, lá dentro é completamente escuro e sai para a luz outra vez. Suas baterias nunca enfraquecem? — perguntou ele, tocando no gravador pendurado no ombro dela.

     — Não — devolveu fria. Se ele ia rir dela, não ia lhe dar a satisfação de vê-la reagir. Clareou a garganta e endireitou os ombros.

     — Você sofreu um acidente aqui dois anos atrás que destruiu seu carro e feriu seu ombro esquerdo. Essa experiência vai afetar sua direção hoje?

     — Por que afetaria? — perguntou Kirk, sorvendo o restante do café. Fitava-a com total concentração, alheio à multidão na área dos boxes.

     — Não tem medo de bater novamente? — insistiu Pam. Quando a brisa travessa agitou seus cabelos, ela o comprimiu atrás da orelha com um gesto rápido e impaciente. Na orelha usava um brinco de pedra turquesa. — Isso nunca lhe ocorre, particularmente ao passar pelo trecho onde se acidentou?

     — Não. — Kirk esmagou a xícara descartável entre os dedos e a jogou no lixo.

— Nunca penso no próximo acidente, apenas na próxima corrida.

     — Isso não é imprudência? — Perceber que seu tom se tornara argumentativo, não a impediu de continuar. Estava irritada sem ter uma razão clara para tal. Sempre conduzia suas entrevistas de um modo charmoso e astuto. Agora sabia que havia perdido as rédeas, mas não tomou nenhum impulso para alcançá-las novamente.

     — Ou você é apenas presunçoso? Um erro de cálculo, uma falha mecânica por mais insignificante que seja, podem resultar em um desastre. Não pensa nisso? Já teve sua cota de acidentes, foi retirado das ferragens, teve ossos quebrados e ficou internado em hospitais. Diga-me — exigiu ela — O que se passa em sua cabeça, quando está assando no cockpit, rodando a mais de trezentos quilômetros por hora? O que pensa quando eles o estão prendendo naquela máquina?

     — Na vitória — respondeu Kirk sem hesitar.

     A agudez do tom de Pam contrastava com a indiferença suave da voz dele. Seus olhos vagaram calmamente até o rosto dela. O lânguido matiz rosa que a irritação conferiu à pele macia acentuava ainda mais a sua perfeição. Ele desejou senti-la com a ponta dos dedos. O ouro daqueles cabelos parecia ainda mais vibrante banhado pela luz do sol. Pam percebeu a viagem dos olhos dele e carranqueou.

     Kirk se focalizou nos lábios dela.

     — Tudo que importa não é a vitória? — Erguendo o olhar, fitou-a nos olhos.

     — Certo. É verdade.

     Estava claro pelo tom de voz que ele estava sendo completamente sincero. Sem se conter, Pam sacudiu a cabeça.

     — Jamais conheci alguém como você. — Não era do seu feitio, perder a paciência no exercício da profissão e precisou respirar fundo para se controlar. — Mesmo aqui entre outros pilotos, não conheci ninguém que pense com a mesma determinação. Acho que se tivesse escolha, você gostaria de morrer em busca da glória.

     O sorriso de Kirk foi breve.

     — Isso me agradaria, mas gostaria que fosse daqui a uns cinquenta anos e de preferência que acontecesse após eu cruzar a linha de chegada.

     Os lábios de Pam se curvaram. Ele era ultrajante, pensou, mas honesto.

     —- E todos os pilotos no automobilismo são tão loucos quanto você?

     — Com certeza. — Antes que Pam percebesse, os dedos dele se enroscaram ao redor dos seus cabelos. — Queria saber se eram tão macios quanto aparentam. — São iguais...

     — Com a parte de trás da mão, ele afagou o rosto dela. — ...a sua pele. — A calma habitual de Pam a abandonou, deixando-a silenciosa e abismada. — Sua voz também é macia e muito atraente. Gosto do modo como aparenta estar sempre bem-arrumada. Sinto vontade de desarrumá-la um pouco. — A voz soou tão insolente e divertida quanto o sorriso que surgiu em seus lábios.

     Pam sentiu as faces arderem. Pensava que havia deixado de se ruborizar há anos. — Isso é uma cantada? — perguntou num tom severo.

     Kirk riu e ela percebeu algo de Foxy no som da risada dele.

     — Não, é apenas uma observação. Quando eu lhe der uma cantada, não vai ter chance de perguntar. — Ainda sorrindo, puxou-a para si e a beijou demoradamente na boca.

     Pam tinha o gosto de uma sobremesa saborosa e perigosa. Ele prolongou o beijo mais do que pretendia. Quando a libertou, sentiu um pequeno sussurro de ar escapar dos lábios dela, como se estivesse sendo retido. — Isto é uma cantada.

     Quando Kirk se virou e se afastou, Pam ergueu um dedo e tocou o local, onde o bigode dele roçara a sua pele.

     Esse homem é louco, decidiu, pouco disposta a admitir o quanto estava trêmula. Sem dúvida, é um homem muito louco.

    

     Quase duas horas depois, Foxy se encontrava quase no mesmo lugar onde o irmão estivera. Seu humor não era dos melhores. Lembrava-se de todos os detalhes da noite anterior com bastante clareza. O champanhe não fora amável o suficiente para entorpecer sua memória.

     Pedi a ele para me beijar, pensou desgostosa. Praticamente o obriguei. Como se já não bastasse ter aceitado sair com ele, quando sabia que não devia, ainda fiz questão de deixar claro que estava desfrutando cada minuto. Maldito champanhe! Exalando o ar com raiva, afundou o chapéu de palha que estava usando, com mais força na cabeça. Depois ainda falei sobre a paixão tola que sentia por ele quando era adolescente. Caramba, quando resolvo me humilhar, não faço por menos. Fechando os olhos, emitiu um som estrangulado pela garganta. A brisa que vinha do porto esfriou sua pele sob a blusa de algodão branca. Contraindo os dentes, ergueu a máquina fotográfica no início da volta de apresentação. Gostaria de saber se conseguirei evitá-lo o restante da temporada? Ou melhor, pelo resto da vida, acrescentou enquanto trabalhava sistematicamente.

     Quando os pilotos se alinharam para esperar a luz verde, Foxy correu para focar um novo ângulo. Durante alguns segundos, o ar trovejou com o ruído dos motores. Fotografou cada fileira de carros, enquanto a bandeira era agitada. Curvando-se sobre um joelho, captou a suavidade profunda e frágil exclusiva das corridas de Fórmula 1. Seus movimentos eram calmos e profissionais, absorvendo toda a sua concentração. O que lhe conferia um ar de eficiência que contrastava com o chapéu de palha e a calça jeans desbotada. O primeiro carro já havia contornado a primeira curva, quando ela se ergueu. Ao se virar, colidiu com o peito de Lance. As mãos dele a seguraram, lhe trazendo uma incômoda sensação de déjà vu.

      Depressa, Foxy se libertou e se ocupou com o ajuste das lentes da câmera.

     — Desculpe, não sabia que estava atrás de mim. — Percebendo que teria que encará-lo mais cedo ou mais tarde, jogou os cabelos para trás dos ombros e ergueu o queixo. A diversão que esperava ver na face de Lance estava ausente. Não havia nenhum tipo de escárnio nas profundidades daqueles olhos cinzentos.

     Ao perceber o estudo longo e minucioso que ele estava fazendo, afastou-se.

      — Você está me olhando como se eu fosse uma máquina que não respondeu corretamente. — Com uma carranca, ela retirou os óculos de sol do estojo da câmera. Sentia-se mais à vontade quando eles estavam no lugar. Uma proteção era uma proteção, por mais frágil que fosse.

     — Poderíamos dizer que encontrei algumas surpresas quando abri a capota.

     Foxy não tinha certeza de como readquirir a qualidade serena em sua voz. Aquele escrutínio prolongado era enervante. Sabia que ele era capaz de encará-la eternamente sem dizer uma palavra. Podia ser inacreditável, quase extraordinariamente paciente quando queria. Sabendo que seria derrotada naquele tipo de competição, tomou a iniciativa.

     — Gostaria de falar com você sobre ontem à noite. — O comportamento sofisticado era dificultado pelo rubor. Nesse instante, o rugido dos motores a interrompeu. Virou-se para ver os carros passarem. O pelotão ainda estava compacto após o término da primeira volta. Com as bochechas frias, Foxy respirou fundo e voltou a fitá-lo. Os olhos dele deixaram a pista para encontrar os dela, mas ele continuou calado. Estava esperando, composto e contido. Ficaria feliz se pudesse estrangulá-lo.

     — Eu estava fora de mim ontem à noite, sabe como é... — recomeçou.

— Champanhe... O álcool tem uma tendência a subir diretamente para minha cabeça. E por isso que procuro evitá-lo. Não quero que pense, quero dizer, não quero que sinta... Eu não pretendia agir assim... — Frustrada, enfiou as mãos nos bolsos e fechou os olhos. — Oh, ajude-me — murmurou, voltando a se virar. Lance permaneceu em silêncio, enquanto ela se debatia e lutava. Foxy desejou saber como era possível lançar a linha e ser o peixe ao mesmo tempo.

     Que brilhante, repreendeu-se. Por que não tenta novamente, talvez possa bater o próprio recorde de incoerência. Fale logo e pare de gaguejar como uma idiota.

     Erguendo o queixo, virou-se de frente para ele novamente e o encarou.

     — Não queria lhe passar a impressão que dormiria com você. — Ao dizer isso, exalou o ar e continuou. — Acho que fiz isso ontem à noite e não quero que me entenda mal.

     Lance esperou quase um minuto, antes de falar. Durante todo esse tempo continuou a encará-la.

     — Não acredito que eu tenha entendido mal coisa alguma. — O comentário foi ambíguo e a deixou confusa.

     — Sim, bem... Sei que quando me levou de volta para o meu quarto você não... Bem, você não...

     — Não fiz amor com você? — Com um movimento ágil, ele retirou os óculos de sol dela, deixando seus olhos vulneráveis. Enquanto Foxy piscava devido ao choque de luz, ele venceu a distância entre os dois. Segurou-a pelo braço, advertindo-a para não se afastar. — Não, não fiz, embora nós dois saibamos, perfeitamente, que eu poderia ter feito. Digamos que resolvi jogar segundo as regras ontem à noite. — O sorriso se alargou lentamente, repleto de autoconfiança, enquanto sua voz se tornava mais baixa e mais íntima.

     — Não preciso de champanhe para seduzi-la, Foxy. — Seus lábios desceram de leve sobre os dela, antes que ela pudesse se mover.

     Foi um beijo que prometia mais.

     Enfurecida pela arrogância serena de Lance e por sua pulsação ter respondido imediatamente, Foxy arrancou os óculos da mão dele e se afastou.

     — Pare com a sua sedução. — A ordem foi abafada pelo ruído da segunda volta.

     Ela lançou um olhar aborrecido por sobre o ombro à fileira de carros. Havia um brilho de raiva em seus olhos, quando voltou a fitá-lo.

     — Apenas lembre-se que ontem à noite foi um lapso de inteligência da minha parte, é tudo. E todas... aquelas bobagem que falei sobre... — Para aumentar sua raiva, sentiu as bochechas arderem mais ainda. Que diabos a teria possuído para fazê-la confessar aquela paixão tola? — Todas as besteiras que falei sobre aquela noite na garagem são tão ridículas quanto soaram.

     — Ridículas? — perguntou Lance com uma facilidade que contrastava com a agitação de Foxy. Ela não resistiu a bater o pé.

     — Eu tinha 16 anos e era muito ingênua. Acho que não é necessário dizer mais nada.

     — Você não tem mais 16 anos — comentou ele, inclinando a cabeça de leve, o que a fez lembrar o homem elegante da noite anterior. — Mas continua muito ingênua.

     — Não sou ingênua — disse ela indignada e viu as sobrancelhas dele se erguerem e desaparecerem sob os cabelos que lhe caíam na testa. Sabendo que sua dignidade estava por um fio, endireitou-se. — Isso não é pertinente e é apenas uma questão de opinião. — Ele sorriu e ela continuou. — Tenho trabalho a fazer e imagino que você consiga encontrar algo para mantê-lo ocupado durante as próximas noventa e oito voltas.

     — Noventa e sete — corrigiu Lance enquanto os líderes aceleravam. — Kirk está na terceira posição — notou distraído, antes de voltar a fitá-la. — A minha opinião podia ser a sua vantagem já que poderia me induzir a continuar jogando conforme as regras durante um longo tempo. Isso provoca uma mudança interessante. — Um sorriso desafiador curvou seus lábios, deixando-a imediatamente cautelosa. — Ninguém sabe quando deixarei de agir como um bom rapaz.

     — Um bom rapaz! — repetiu ela, revirando os olhos.

     Ainda sorrindo, Lance pegou os óculos de sol das mãos dela e o colocou sobre o nariz de Foxy, antes de se afastar.

    

     Durante os próximos três meses, Foxy usou de toda a sua habilidade para evitar Lance Matthews. De Mônaco à Holanda, depois França, Inglaterra e Alemanha, fez tudo para ficar longe dele.

     Sempre que possível, procurava estar com Pam. Achava que se não estivesse sozinha, Lance não encontraria oportunidade para uma conversa pessoal. O prazer pelo seu sucesso fora um pouco arruinado pelo fato de ele não parecer irritado com a falta de conversas pessoais. Suas agendas desde Mônaco estavam apertadas. Para a equipe das corridas sobrava pouco tempo para qualquer coisa, além de trabalho, viagens, refeições e sono. Era uma temporada dura, exigente, apinhado de voltas de classificação, treinos e corridas. Longe das pistas, os hotéis começavam a parecer todos iguais. Mas cada largada possuía uma identidade própria. Cada uma era diferente, com seus problemas específicos e seus próprios perigos.

     Com o fim do verão, veio o GP de Monza, na Itália. Os meses exaustivos na Europa haviam lhe ensinado uma importante lição. Quando a estação terminasse, jamais acompanharia outra temporada. Seus dias de viajar de uma cidade para outra, de área de boxes para área de boxes, terminara.

     A cada corrida seus nervos aumentavam e se tornava mais difícil manter-se controlada. Ficara claro para ela que os dois anos que estivera afastada das corridas haviam deixado suas marcas. Jamais poderia fazer parte daquele mundo novamente. Sabia que se um dia voltasse à Itália, seria para visitar Roma, Veneza e não Monza.

     Com a noite veio o silêncio absoluto. Durante o dia, o circuito vibrara com os treinos. Ao se sentar sozinha nas arquibancadas desertas, imaginou ouvir carros fantasmas zunindo pela pista e quase podia sentir a brisa que eles deslocavam. Sessenta anos de velocidade. O céu estava perfeitamente claro com uma enorme lua branca e salpicado de estrelas brilhantes. Da floresta, vinha um perfume almiscarado, que impregnava o ar. Ao fundo, o ruído tranquilo de grilos e pequenos insetos.

     A temperatura era morna, sem o calor do sol escaldante que fizera durante o dia. Não havia fumaça, nem pneus cantando, nem o rugido dos motores. Era uma noite para promessas e segredos, uma noite para romance e palavras suaves.

     Com um suspiro, fechou os olhos e pensou em Lance.

     Mas que qualquer outra coisa, percebeu exausta, preciso de um pouco de paz.

     Uma mão em seu ombro a trouxe de volta à realidade.

     — Oh, Kirk! — Levou a mão ao coração disparado e sorriu — Não o ouvi chegar.

     — O que está fazendo aqui fora sozinha?

     — Queria um pouco de sossego — disse, enquanto o irmão se sentava a seu lado. — Está muito tumulto no hotel. O que está fazendo aqui?

     Kirk encolheu os ombros.

     — Gosto de olhar a pista na noite que antecede a corrida. — Negligentemente, se recostou e colocou os pés no assento à sua frente.

     Foxy percebeu que ele estava usando os velhos e confiáveis tênis.

     — Esta é um pista rápida. Vamos estabelecer um recorde amanhã — disse com a absoluta confiança do fato.

     — O Charlie corrigiu o problema do escapamento? — Ela estudou o perfil do irmão. Sua mente não estava no carro, nem na corrida, mas em Kirk. Como acontecia no passado, tentou absorver um pouco da autoconfiança dele para acalmar os próprios nervos.

     — Sim. Lance a está aborrecendo?

     A pergunta foi tão abrupta e inesperada, que Foxy precisou de alguns instantes para reagir.

     — O quê? — A única sílaba foi pronunciada com total incredulidade.

     — Você me ouviu. — Ela percebeu o aborrecimento no tom de voz Kirk ao mesmo tempo em que ele se moveu no assento para fitá-la de frente. Suas feições estavam sérias.

     — Ele a está aborrecendo?

     — Aborrecendo? — Foxy repetiu cuidadosamente. Deslizando a ponta da língua entre os dentes, ergueu as sobrancelhas. — Talvez você devesse ser mais específico.

     — Maldição, sabe o que quero dizer. — Exasperado, Kirk se ergueu e encarou a pista. As mãos se retiraram dos bolsos.

     Foxy podia sentir o desconforto dele, o que a deixou admirada. Conhecia o irmão muito bem para saber que raramente ele se colocava em uma posição incômoda.

     — Eu vi o modo como ele olhava para você — murmurou e ela ouviu a irritação na voz dele. — Se ele está fazendo mais do que simplesmente olhar, eu quero saber.

     Embora Foxy tampasse a boca com ambas as mãos, a risadinha escapou.

     Quando Kirk se virou, fitou-a furioso. Até mesmo na escuridão, ela podia ver o brilho irritado nos olhos do irmão. Apertou os lábios com força, mas a risada saiu precipitadamente. A única coisa que pôde fazer foi sacudir a cabeça e lutar para se recompor, enquanto ele a fitava.

     — Que diabos é tão engraçado? — exigiu ele.

     — Kirk, eu... — Foi forçada a parar e tossir, então respirou fundo várias vezes, antes de sentir firmeza para voltar a falar. — Sinto muito, é que eu não esperava que você me perguntasse algo assim. Ela engoliu em seco quando outra risadinha ameaçava escapar. Tenho 23 anos.

     — O que tem isso a ver? — perguntou ele, observando os olhos dela brilharem com um afeto bem humorado. Sentia-se um tolo completo e sua carranca se aprofundou.

     — Kirk, quando eu tinha 16 anos, você nunca se preocupou com nenhum dos garotos que me rodeavam e agora...

     — Lance não é um garoto — ele a interrompeu furioso, então deslizou a mão pelos cabelos. Os cachos grossos se afastaram precisamente da mesma maneira que os de Foxy. — E você não tem mais 16 anos.

     —Já me disseram — murmurou ela.

     Exalando um suspiro frustrado, Kirk enfiou as mãos nos bolsos outra vez.

     — Eu devia ter prestado mais atenção em você quando ainda era uma adolescente.

     — Kirk. — O humor abandonou sua voz, enquanto Foxy se erguia para ficar ao lado dele. — E bom saber que se preocupa comigo, mas não é necessário. — Tocada pela preocupação e descompostura do irmão, encostou a cabeça no ombro dele.

     Que homem estranho ele é, dando demonstrações inesperadas de doçura, pensou ela.

     — E necessário — murmurou ele desejando não ser obrigado a insistir naquele assunto. Lance era a pessoa com quem ele tinha mais intimidade, depois da irmã. Entre os dois havia o laço da masculinidade e das aventuras que compartilhavam. Eram algumas dessas aventuras que o incitavam a "persistir, quando desejava encerrar de vez aquela conversa.

     — Você ainda é minha irmã — acrescentou, mais para si.

     — Mesmo tendo crescido um pouco.

     — Um pouco? — Foxy sorriu novamente. Um brilho travesso e despreocupado iluminou seus olhos, fazendo-o lembrar incomodamente de si mesmo. — Já passei "um pouco" dos vinte.

     — Ouça, Foxy — ele a interrompeu impaciente. — Conheço Lance. Sei como ele... — Kirk hesitou e blasfemou.

     — Age? — concluiu ela com um olhar afiado. A risada foi inevitável, mas ela a temperou, beijando-o na bochecha.

     — Pare de se preocupar comigo. Aprendi mais do que apenas mexer com fotografia na faculdade. — Quando a expressão de Kirk não se alterou, ela o beijou na outra bochecha e continuou. — Se isso o faz se sentir melhor, Lance não está me aborrecendo. E se estivesse, eu saberia como lidar com isso muito bem, juro, mas ele não está. Mal nos falamos. — Tentou se sentir feliz com a declaração, mas na verdade estava chateada.

     — Ele a olha — resmungou Kirk.

     O perfume da irmã flutuou na brisa suave. Os cabelos roçavam macios e fragrantes contra a face dele. A carranca que fechava sua fisionomia se aprofundou.

     — Ele a olha e muito.

     — Está imaginando coisas — disse Foxy num tom firme, então tentou mudar de assunto. Falar sobre Lance Matthews lhe suscitava recordações perturbadoras.

     — Diga-me, sr. Fox — começou, imitando o tom de um repórter esportivo — É sempre tão introspectivo na noite que antecede uma corrida?

     Ele não respondeu de imediato, simplesmente desviou o olhar para a pista. Foxy desejou saber o que ele via lá que ela não via.

     — Ocorreu-me recentemente que é melhor para uma mulher não se envolver com um homem como eu. Só sairia machucada. — Impaciente, virou-se de frente para irmã. Foxy o estudou, curiosa. Havia algo em seus olhos que ela não conseguia entender e o fato de parecer tenso a confundia. Percebeu que não era apenas a corrida que mexia com os nervos dele. — Lance é muito parecido comigo — continuou.

     — Não quero que você sofra. Ele pode fazê-la sofrer, não intencionalmente talvez, mas pode.

     — Kirk, eu...

     — Eu o conheço, Foxy. — Ele a impediu de objetar e segurou-a pelos ombros.

— Nenhuma mulher é mais importante para Lance do que os carros. Não acho que seja inteligente se envolver com homens como nós. Sempre haverá outra corrida, outro carro, outra pista. Isso deixa tudo e todos em segundo plano. Não quero isso para você. Sei que já viveu durante muito tempo dessa maneira. Nunca fiz as coisas que deveria ter feito por você e eu...

     — Não, Kirk. — Ela o impediu de continuar, enlaçando-o pelo pescoço. — Pare com isso. — Foxy enterrou o rosto no ombro do irmão, do mesmo modo que fizera anos antes na cama do hospital, após o acidente que vitimou seus pais. Ele fora a tábua de salvação, quando seu mundo havia desmoronado. — Você fez tudo que pôde.

     — Fiz? — Kirk suspirou e a abraçou mais apertado.

     — Se tivesse que fazer tudo outra vez, sei que faria exatamente a mesma coisa. Mas isso não significa que agi de modo correto.

     — Foi correto para nós. — Ela ergueu a face e o fitou com os olhos brilhando. — Foi correto para mim.

     Deixando escapar um longo suspiro, ele embaralhou os cabelos dela.

     — Talvez. — Após envolver-lhe a face com as mãos, Kirk beijou-a em ambas as faces. O bigode roçou ao longo da pele dela, fazendo-a sorrir ao sentir a velha familiaridade.

     — Nunca esperei que você crescesse, eu acho. E nunca pensei que se tornasse uma mulher tão linda e que eu tivesse que me preocupar com o assédio dos homens. Devia ter prestado mais atenção quando isso estava acontecendo. Você nunca reclamou.

     — Sobre o quê? Eu era feliz. — Quando ele a libertou, ela segurou-lhe ambas as mãos. As palmas eram duras e dava para sentir a linha fina de uma cicatriz ao longo da parte de trás. Foxy se recordou que ele a havia adquirido na Bélgica, oito anos antes, em um acidente sem graves consequências.

     — Kirk — disse depressa, querendo tranquilizá-lo — Ambos estávamos onde precisávamos estar. Não me arrependo de nada. E não quero que você se arrependa. Certo?

     Foxy ficou parada, enquanto ele a estudava. Seus olhos verdes haviam se ajustado à escuridão da noite, permitindo-lhe ver as feições da irmã claramente. Percebeu que ela havia crescido bem embaixo do seu nariz. De alguma maneira, a mulher que o fitava, despertava seus instintos mais protetores, enquanto a menina sempre lhe parecera indestrutível. Talvez, entendesse mais sobre as armadilhas da feminilidade do que as da infância, que continuavam a ser um mistério para ele. Num gesto incomum, ergueu os dedos dela e os levou aos lábios, o que inundou olhos de Foxy de lágrimas.

     — Eu a amo — disse simplesmente. — Não faça isso — advertiu, enxugando os olhos dela com as costas da mão. — Não tenho nada para limpá-las. Venha. — Abraçando-a, conduziu-a pelas arquibancadas vazias.

     — Vou lhe comprar uma xícara de café e um hambúrguer. Estou faminto.

     — Pizza — retrucou ela. — Estamos na Itália.

     — E daí? — disse num tom agradável, enquanto caminhavam sem pressa sob a luz do luar.

     — Kirk — Foxy inclinou a face e agora seus olhos brilhavam travessos. — Se Lance me aborrecer, você vai bater nele?

     — Com certeza — sorrindo, ele puxou-lhe os cabelos. — Assim que a temporada terminar.

     Foxy riu.

     — Foi o que imaginei.

     Passava um pouco das 11h da noite, quando ambos caminhavam ao longo do corredor do hotel de volta aos seus quartos. Pam ouviu o riso de Foxy e o som abafado da risada de Kirk. Umedecendo os lábios, esperou ouvir as portas dos respectivos quartos se fecharem. Precisava falar com Foxy urgentemente. Precisava de alguém que a fizesse rir e afastasse seus pensamentos de Kirk Fox.

     Há semanas não conseguia pensar em outra coisa, além dele. De um país a outro, de corrida em corrida, ele se tornara mais reservado. Raramente falava com ela e quando isso acontecia, parecia distante. Era evidente que havia perdido o interesse no flerte que iniciara. Essa frieza lhe causaria um aborrecimento sem importância ou até mesmo alguma diversão sob circunstâncias normais. Mas Pam havia descoberto que as circunstâncias ali estavam longe de ser normais.

     À medida que Kirk se tornava mais taciturno, ela ficava gradualmente mais tensa. Dormir passara a ser uma proeza e comer uma tarefa monumental. Sua tensão atingira um clímax inesperado quando Kirk deixara o carro durante as voltas finais do GP da França. Seus olhares se encontraram apenas por um breve momento, mas foi o suficiente para ela perceber que estava apaixonada por ele. O simples pensamento a aterrorizou. Ele era completamente diferente dos homens que haviam passado por sua vida. Mas aquilo não era uma mera atração e as velhas regras pareciam insignificantes. Por um instante, Pam considerou a possibilidade de abandonar aquela tarefa e voltar aos Estados Unidos. Mas o orgulho a impediu de empreender essa escapada conveniente. Não queria ser outro troféu, outra vitória para Kirk Fox.

     Não ouvindo mais nenhum som no corredor, vestiu um roupão fino sobre a camisola e decidiu ir até o quarto de Foxy. No momento em que abriu a porta, congelou. Kirk caminhava em silêncio pelo corredor. Tinha a cabeça curvada, mas a ergueu de imediato quando a ouvir emitir um pequeno som de surpresa. Parando, estudou-a, cuidadosamente, com um par de olhos inexpressivos. Parada junto à entrada, Pam sentiu a respiração ficar presa nos pulmões. Parecia ter perdido o poder de expelir o ar, bem como o poder de mover os pés de volta para dentro do quarto. Os olhos dele se fixaram nos seus, quando ele começou a caminhar novamente e, embora, seus dedos se apertassem na maçaneta, não conseguia se mexer. De repente, sentiu uma onda de calma. Aquilo era o que ela desejava, era o que ela precisava. Quando ele parou na sua frente, ficaram sérios, estudando um ao outro. A luz do quarto o envolveu com seu brilho amarelo pálido.

     — Caminhei até a sua porta uma centena de vezes nos últimos meses.

     — Eu sei.

     — Está noite não ficarei do lado de fora. — Havia um desafio em sua expressão, uma sugestão de raiva ao redor da boca. — Vou entrar.

     — Eu sei — repetiu Pam, então se afastou para permitir que ele passasse. A aceitação tranquila o fez hesitar. O brilho de dúvida era visível nos olhos dele.

     — Vou fazer amor com você — A declaração refletia uma irritação crescente.

     — Sim — concordou ela com um aceno de cabeça. Ao perceber um certo nervosismo no tom de Kirk ela sorriu.

     Está tão apavorado quanto eu, percebeu, quando após uma breve hesitação, ele espiou ao redor do quarto. Tranquila, Pam fechou a porta atrás deles. Os dois ficaram de frente um para o outro.

     — Não faço promessas. — A voz soou áspera enquanto a estudava. Kirk tinha as mãos enfiadas firmemente nos bolsos.

     — Não. — O roupão farfalhou suavemente, quando Pam se moveu para apagar a luz. A luz suave das estrelas e do luar iluminou o quarto. No pátio, embaixo da janela, alguém falou em italiano e então riu cordial.

     — Provavelmente vou magoá-la — advertiu ele num tom baixo.

     — Provavelmente — concordou Pam, caminhando em sua direção, até suas silhuetas ficarem iluminadas pela luz da lua.

     Kirk inspirou o perfume dela, suave e inesquecível.

     — Mas sou mais forte do que pareço.

     Incapaz de resistir, ele ergueu a mão e afagou-lhe os cabelos. Eram tão macios quanto uma nuvem sob sua palma.

     — Está cometendo um erro. — A luz tênue, ele contemplou o brilho no olhar dela.

     — Não. — Pam ergueu os braços e o envolveu pelo pescoço. — Não estou.

     Com um gemido abafado, Kirk a puxou para si e se apossou da boca que lhe era oferecida. Quando a ergueu nos braços, Pam se derreteu de encontro ao seu corpo viril.

   

     Havia o tumulto habitual de pessoas e o barulho aumentava à medida que a hora se aproximava. O chuvisco fino e insistente não impediu a frequência dos espectadores. O céu estava cinza-chumbo e inflexível. Os pneus lisos haviam sido trocados pelos de chuva.

     Foxy parou em frente à pia do banheiro feminino vazio e enxaguou o gosto de náusea da boca. Com gestos automáticos, esfregou a face e retocou a maquiagem para disfarçar a palidez. As palmas das mãos ainda estavam quentes e úmidas e ela as molhou com água fresca. O som grave do alto-falante penetrava pelas paredes. Sabendo que só dispunha de mais alguns minutos até a largada, pegou o estojo da câmera e se apressou. A multidão pareceu engolfá-la de imediato. Por estar preocupada não notou a presença de Lance até ficar quase em cima dele.

     — Encurtando a distância entre nós, Foxy? — Ela olhou para cima ao mesmo tempo em que a multidão a empurrou contra ele. O sorriso de Lance enfraqueceu quando ele pôs a mão na pele fria e úmida dos braços dela.

     — Você está gelada — murmurou, então a puxou para longe da multidão, conduzindo-a a um corredor estreito.

     — Por Deus, me solte! — protestou ela. As pernas ainda um pouco moles, quase dobraram com o súbito movimento. — A corrida vai começar dento de um minuto.

     Ignorando-a, Lance segurou-a pelo queixo, forçando-a a fitá-lo. Seus olhos se estreitaram, sondando.

     A cor ainda não voltara à face de Foxy e a camuflagem da maquilagem não o enganou.

     — Você está doente. — A declaração soou em parte como uma acusação, quando a encostou contra a parede. — Não pode ir para lá se estiver doente. — Lance envolveu-a pela cintura para conduzi-la, o que fez com que ela se debatesse irritada. Nesse instante, o som dos motores acelerando impregnou o ar.

     — Pelo amor de Deus! — reclamou frustrada pela interferência dele. — Fico assim antes de todas as corridas, mas não abro mão de assistir a largada. Solte-me!

     A mudança de expressão no rosto de Lance foi rápida. Mudou de surpresa para descrente e em seguida furiosa. Encurralada entre ele e a parede, Foxy percebeu que havia cometido um erro.

     — Mas vai perder esta — disse ele, rangendo os dentes. Então meio que a arrastou, meio que a conduziu para fora da área dos boxes. Sentindo a pressão do aperto férreo, ela cedeu e caminhou pacificamente. Em silêncio, ele a levou para um restaurante sob as arquibancadas. — Café — gritou ao garçom, enquanto a empurrava para uma mesa em um canto.

     — Lance, escute — começou, recuperada o bastante para ficar indignada.

     — Cale-se — a voz soou comedida, mas tão repleta de fúria que ela obedeceu de imediato.

     Já o vira bravo antes, mas decidiu que teria que voltar alguns anos atrás para se recordar de algo daquele tipo. A boca de Lance estava fechada em uma linha inflexível, a voz vibrava com uma irritação controlada. Mas eram os olhos de um cinza-esfumaçado exaltado que a fizeram ficar em silêncio. Prudência às vezes era a melhor parte da bravura, refletiu.

     O restaurante estava vazio e silencioso, exceto pela vibração dos carros no grid de largada. Além da janela, uma parede cinza, quebrada apenas pelos fluxos finos da chuva escorrendo no vidro. Foxy observou o caminho lento e irregular de um deles na vidraça. Aproximando-se, o garçom colocou um bule de café e duas xícaras sobre a mesa entre eles, então desapareceu. A expressão no olhar de Lance deixava claro que ele queria privacidade, não serviço de mesa. Captando as vibrações transmitidas pela irritação dele, Foxy o observou verter o café em cada xícara. A curiosidade começou a temperar seu aborrecimento. O que ele estará pretendendo?, desejou saber.

     — Beba seu café — ordenou Lance num tom contido. As sobrancelhas dela arquearam ao ouvir o comando.

     — Sim, senhor — retrucou, erguendo a xícara. Um flash de fúria flamejou nos olhos dele.

     — Não deboche, Foxy.

     — Lance — Pousando o café intacto, ela se curvou em sua direção. — O que há com você?

     Ele estudou a perplexidade na face feminina, antes de beber metade do café quente e escuro. A palidez se aderia obstinadamente ao rosto dela, conferindo-lhe um ar de vulnerabilidade. Os olhos eram jovens e enérgicos como o próprio café esfriando na xícara à sua frente.

     — Como se sente? — perguntou ele, retirando um charuto e o isqueiro do bolso.

     — Estou bem — respondeu cautelosa. Foxy notou que ele não acendeu o charuto, mas apenas o girou entre os dedos. Um silêncio pesado se instalou novamente.

     Isso é ridículo, decidiu ela, abrindo a boca para exigir uma explicação.

     — Você fica assim antes de todas as corridas? — perguntou ele de repente.

     Foxy hesitou ante a pergunta e começou a mexer na xícara de café.

     — Ouça, Lance...

     — Não comece com isso. — O tom severo da voz a assustou. Ao erguer os olhos para fitá-lo, deparou-se com a fúria escura em olhar. — Eu lhe fiz uma pergunta. — A voz se mantinha controlada. Embora sem se intimidar, Foxy respeitou um temperamento mais volátil que o seu. — Fica fisicamente doente antes de todas as corridas? — repetiu ele num tom lento e preciso.

     — Sim.

     Embora suave, a blasfêmia foi tão violenta que a fez estremecer. Com um olhar cauteloso, ela o encarou.

     —Já contou isso ao Kirk? — exigiu ele.

     — Não, claro que não. Por que deveria? — A irritação na voz de Lance chamejou mais uma vez diante daquele tom incrédulo. Pressentindo o perigo, Foxy, depressa colocou a mão sobre a dele.

     — Lance, espere um minuto. Em primeiro lugar, a esta altura da minha vida, isso é certamente um problema meu. Quando era criança, se tivesse contado ao Kirk como reagia a cada começo de corrida, ele teria ficado tão preocupado que me proibiria até mesmo de me aproximar da pista. Isso me faria sentir culpada e infeliz. — Ela fez uma pausa e sacudiu a cabeça. — Mas sei que não teria parado de correr. Não podia parar.

     — Você o conhece bem. — Lance sorveu o último gole de café, então verteu um pouco mais na xícara. Seus movimentos eram contidos, mas Foxy sabia que a irritação estava sob a superfície.

     — Sim, conheço. — Seus olhares se encontraram novamente, o dele exaltado, o dela calmo. — O automobilismo é a coisa mais importante na vida de Kirk. Sempre foi. Eu venho em segundo lugar. — Foxy fez um gesto de súplica, querendo que ele a entendesse do mesmo modo que desejara que Kirk a tivesse entendido na noite anterior. — Isso era o bastante. Se ele tivesse me colocado em primeiro, teria sido uma pessoa completamente diferente. Eu o amo do jeito que ele é... Devo tudo a ele. — Quando Lance abriu a boca para falar, ela continuou. — Não, por favor, escute. Você não entende. Ele me deu uma casa, uma vida. Não sei o que teria acontecido comigo depois do acidente se eu não tivesse o Kirk. Quantos homens de 23 anos de idade optariam por criar uma menina de 13 anos. Ele foi bom para mim. Deu-me tudo que pôde. Sei que não é perfeito. É mal-humorado, introspectivo. Mas durante todos esses anos nunca pediu nada, além da minha presença. — Foxy exalou um longo suspiro e bebeu um gole de café. — Isso não é pedir muito.

     — Depende — disse ele num tom calmo. — Mas em todo caso, ele não poderá contar com a sua presença para sempre.

     — Não, eu sei. — Ela remexeu os ombros. Voltando a olhar pela janela, observou um pingo de chuva escorrer pelo vidro, sem notar o reflexo fantasmagórico da própria imagem. — Percebi durante esta temporada que não consigo mais lidar com isso. Não posso mais vê-lo entrar em um carro e esperar que ele bata, sabendo que um dia ele pode não escapar. — Ela o fitou por um momento, os olhos repletos de desespero.

— Não vou assisti-lo morrer.

     — Foxy. — Lance se inclinou e segurou a mão dela. A voz agora era suave, sem qualquer sinal de irritação. — Você sabe melhor que a maioria das pessoas que nem todos os pilotos morrem na pista.

     — Não amo todos os pilotos — retrucou ela simplesmente. — Já perdi duas pessoas que amava em um acidente de carro. Não, não — cortou depressa, quando ele fez menção de falar. Pressionando os olhos com os dedos, sacudiu a cabeça ao mesmo tempo, tentando repelir as palavras. — Não quero falar sobre isso. Não penso frequentemente sobre isso. Se não acabo louca. — Após respirar fundo, se sentiu mais composta e o encarou.

     — Não sou paranóica, Lance. Apenas não lido muito bem com essas coisas. E piora com o passar do tempo

     — Sei que o perigo não deve ser minimizado, Foxy — começou Lance, carranqueando ao perceber o cansaço nos olhos dela. — Mas você está ciente de como a segurança dos pilotos evoluiu. Hoje em dia estão muito mais protegidos. Fatalidades são exceções, não regras.

     — Estatísticas são apenas números em papéis. Não significam nada para mim. — Ela sorriu com as sobrancelhas unidas, então sacudiu a cabeça. — Não pode entender porque é um deles. Você é um espécime único. Todos vocês dizem que correm por diferentes razoes, mas na verdade só há uma. Correm porque amam correr. A corrida é a mãe, a amante e a melhor amiga. Pilotos flertam com a morte, quebram seus ossos, chamuscam suas peles e voltam ao griá, antes que a fumaça se extinga. Um dia no hospital, outro no cockpit. Eu o vi fazer isso. E como uma religião e não o condeno. Compreendo. Algumas pessoas chamam isso de ciência, mas é uma mentira. Convivi com isso durante boa parte da minha vida e nunca fez sentido algum. Porque é emocional e emoções raramente fazem sentido.

     Apoiando a cabeça contra o vidro frio da janela, contemplou a chuva fina. Continuo esperando que um dia ele se canse dessa vida. Que encontre algo que a substitua. — Quando voltou a olhar para Lance, ele a estudava fixamente.

      — Sempre desejei saber... por que você abandonou as pistas.

     — A paixão acabou — Com um meio-sorriso, ele prendeu os cachos ruivos atrás da orelha dela.

     — Estou feliz — disse ela simplesmente, retribuindo o sorrindo. Remexeu o café em silêncio por alguns instantes.

     — Lance, não vai contar nada ao Kirk sobre a nossa conversa, não é?

     — Não, não contarei nada — respondeu ele, percebendo o alívio que ela sentiu, antes de erguer a xícara. — Mas, Fox... — A xícara pausou nos lábios dela. — Gostaria que você não assistisse as últimas corridas da temporada.

     — Não posso fazer isso. — Ela sacudiu a cabeça enquanto sorvia um gole de café. Estava forte e frio, o que a fez enrugar o nariz e colocá-lo de lado. — Não apenas por causa de Kirk, mas porque tenho um compromisso com a Pam. — Recostando-se no assento, observou-o carranquear através de uma neblina de fumaça de charuto. — O meu trabalho é fotografar as corridas e dou muita importância a minha profissão.

     — E quando a temporada terminar?

     Foi a vez de Foxy carranquear. Seus olhos refletiram a luz cinza que se infiltrava pela janela. — Tenho minha vida, meu trabalho. Preciso me convencer que não posso fazer parte da vida de Kirk para sempre. Não tenho nervos para isso. Tenho as emoções à flor da pele. E sou uma covarde — acrescentou, então começou a se erguer. — Preciso voltar.

     Lance se ergueu, bloqueando-lhe a passagem. No instante em que ela o fitou com um olhar interrogativo, ele a puxou para si, pressionando-a de encontro ao tórax.

     — Oh, não faça isso... — murmurou Foxy, fechando os olhos. Uma traiçoeira onda de calor percorreu seu corpo. — Não consigo me controlar quando você é amável. — Podia sentir os lábios dele roçando-lhe os cabelos, enquanto a mão esguia afagava-lhe as costas para cima e para baixo. — Lance, por favor, se não tomar cuidado inundarei este lugar com lágrimas e você já assustou o garçom.

     — Lágrimas? — repetiu ele, como se considerando. — Sabe, Foxy, acho que nunca a vi chorar, não durante todos esses anos em que a conheço.

     — Tenho aversão de chorar em público. — Sentia-se confortável, mimada e muito bem nos braços dele. — Lance, por favor, não seja agradável comigo. Posso acabar me acostumando com isso. — Foxy ergueu a face, mas o sorriso jamais se materializou. Podia ler a intenção naqueles olhos cinzentos. — Oh, me ajude — murmurou quando os lábios dele roçaram os seus.

     Não havia necessidade de se preparar para a explosão, porque o contato foi suave. Não havia exigência, nem fogo, apenas uma ternura prolongada. Ao mesmo tempo em que tinha a impressão que seus ossos estavam derretendo, sentia-se estranhamente protegida. O abraço lento e confortável a confundia, a desarmava, a seduzia mais do que um beijo exigente. Os lábios dele eram mornos, saboreando os seus sem pressão, proporcionando apenas conforto e prazer. Foxy não sabia que Lance era capaz de demonstrar tamanha ternura. Porque ele não exigia, ela lhe deu mais liberdade. O beijo se prolongou, mas não perdeu a suavidade. A realidade desapareceu devagar, como se só os dois existissem no mundo.

     Quando ele a libertou, ela não conseguia falar. Seus olhos o fitavam interrogativos.

     — Não sei o que fazer com você — murmurou ele. Segurando um punhado dos cabelos dela, Lance os deixou deslizar por entre os dedos. — Era mais simples antes de eu descobrir que você possuía um lado frágil. Não estou certo se sei lidar muito bem com fragilidade.

     Embaraçada, Foxy se curvou para erguer a máquina fotográfica. Nunca se sentira frágil até ele a tocar com tanta suavidade. Sabendo que não havia segurança naquele sentimento, tentou descartá-lo.

     — Não sou tão delicada — negou, encarando-o.

     Um sorriso surgiu na face dele, curvando-lhe os lábios e iluminando-lhe os olhos.

     — Você não gosta de ser.

     — Não sou — reafirmou ela, com um meneio breve de cabeça.

     Ninguém a fizera se sentir daquele modo antes. Foxy teve medo que ele voltasse a tocá-la, fazendo-a experimentar a mesma sensação novamente. Sabia por experiência própria que somente os fortes sobreviviam.

     Lance a estudou, antes de erguer o estojo da câmera dela.

     — Prove que não é, então — sugeriu ele, então segurou-a pela mão e a conduziu para fora.

    

     Quando a equipe retornou aos Estados Unidos, Kirk liderava a competição por cinco pontos de vantagem. Uma vitória em Watkins Glenlhe daria o título mundial. No entanto, em meio à exaltação de ânimos e confusão crescentes, Foxy percebeu mudanças sutis nas pessoas mais chegadas a ela. Estava preocupada desde a corrida da Itália. Algo parecia importuná-la do lado de fora da mente. A sensação a deixava intranquila e curiosa. Estava acostumada a ter controle total sobre os seus pensamentos e sentimentos, mas agora parecia que parte da sua mente pertencia a outra pessoa. Passava cada vez mais tempo pensando em Lance.

     Desde a conversa que tiveram no café, ele a tratava com uma estranha bondade. Aliada à bondade havia uma indiferença que só a deixava mais confusa. Depois do beijo que trocaram no restaurante, Lance nem sequer tentara tocá-la outra vez. Como nunca o vira tão amável ou reservado antes, começou a imaginar se realmente o conhecia tão bem quanto julgava conhecer. Contra a vontade sentia-se atraída por ele.

     Notara uma mudança no irmão. Kirk parecia mais tranquilo e mais distante. Como já conhecia sua introspecção, Foxy aceitava esse fato. Atribuía aquele humor à pressão com o campeonato. Em Pam, ela percebera um aumento da serenidade. Com frequência, durante os longos treinos e provas de classificação, desejava ter um pouco da calma absoluta da jornalista.

     O autódromo de 5,4km sobe e serpenteia um terreno, alternadamente, arborizado e aberto. As árvores estavam inflamadas com as cores alaranjadas do outono, que se tornavam mais vibrantes a cada dia. Foxy esquecera que Nova York possuía esse charme rústico. As folhas no mês de outubro subiam em direção a um céu azul sólido, rodopiavam e despencavam no chão. Havia uma combinação de ar frio e calor do sol tão peculiar no outono. Dentre todas as pistas que conhecera durante uma década da sua vida, Watkins Glen era a sua favorita. Havia algo simples e basicamente americano nela.

     Assistiu a corrida começar através da lente da sua câmera.

      A última, pensou, e deixou escapar um longo suspiro, enquanto se endireitava. A seu lado, Charlie Dunning observava os carros, rodando um toco de um robusto charuto entre os lábios.

     — Isto será suficiente, Charlie. — Foxy sorriu quando ele se virou para ela, piscando contra o sol.

     — Não se cansa de tirar fotos? — perguntou o homem com uma carranca para a máquina fotográfica.

     — Não se cansa de mexer em carros e perseguir mulheres?

     — Ambas são ocupações que valem a pena. — Ele beliscou a cintura dela e bufou. — Você está ficando mais magra.

     — Você está ficando mais atraente. — Foxy esfregou a barba grisalha de Charlie com a palma da mão e piscou.

     — Quer casar comigo?

     — Você ainda é uma pirralha sem graça — murmurou ele, virando-se com um leve rubor sob os bigodes.

     Sorrindo, Foxy enfiou a mão no bolso da camisa dele e arrancou uma barra de chocolate.

     — Vamos ver se você muda de ideia — disse enquanto desembrulhava o chocolate e dava uma mordida. Não sou mais tão novinha, você sabe.

     Resmungando, Charlie se afastou para orientar os mecânicos.

     — É a primeira vez que Charlie se ruboriza na vida — comentou Lance.

     Foxy virou a cabeça e o viu se aproximar. Uma estranha emoção percorreu sua espinha e se espalhou pela nuca. O pulôver cinza-escuro que ele usava ajustava-se aos contornos do seu torso esguio. A boca tinha, os cantos curvados em um meio sorriso.

     De repente, ela se lembrou da pressão daqueles lábios sobre os seus. A sensação foi tão real, tão vital, que tinha certeza que ele também a sentiu. Quando o fitou, foi como se um véu fino se erguesse dos seus olhos, permitindo que ela o visse claramente pela primeira vez.

     Os olhos cinza-escuros que viam tanto  e revelavam tão pouco. A boca bem feita que podia proporcionar tanto prazer. O queixo firme e as feições finas que eram bem mais interessantes do que belas. Era por isso que Scott Newman parecia tão sem graça, por que nenhum rapaz ou homem que ela conhecia chegava aos pés de Lance Matthews. Só havia um e único homem em seu coração.

     Nunca deixei de amá-lo, percebeu com uma onda de alarme. E nunca deixarei.

     — Você está bem? — Ele a alcançou quando a cor começava a desaparecer do rosto dela. O gesto, aliado à preocupação em sua voz, a trouxe de volta à realidade.

     — Não... Sim, sim, estou bem. — Foxy esfregou os olhos como se quisesse clarear as névoas. — Eu... eu estava sonhando, suponho.

     — Sobre o seu casamento com Charlie? — O roçar casual da sua mão nos cabelos dela a fez sentir uma série de arrepios.

     — Charlie? — Inexpressivamente ela olhou para a barra que segurava nas mãos. O chocolate estava amolecendo com o calor do sol. — Oh, sim, Charlie. Eu estava caçoando dele. — Desejou desesperadamente ficar sozinha por um minuto para se recompor. Sua mente girava com o novo conhecimento. Todos os sentidos pareciam estar competindo entre si para ver quem saía vencedor.

     Lance a estudou com um interesse crescente.

     — Tem certeza que está bem? — A sobrancelha escura se ergueu naquele gesto habitual, desaparecendo embaixo dos cabelos. — Você parece atordoada.

     Atordoada, pensou ela, quase dando uma risada.

     — Estou bem — mentiu, forçando um sorriso. — E você como está? — Os carros zuniram pelas curvas em "S". Distraída, Foxy desejou saber quantas voltas havia perdido, enquanto permanecera em transe.

     — Estou bem — imitou Lance. Um lânguido sorriso lhe curvava os lábios enquanto a fitava. — Seu chocolate está derretendo.

     Obediente, Foxy deu uma mordida na barra.

     — O que fará após a temporada terminar? — perguntou ela, esperando soar só um pouco interessada.

     — Relaxar.

     — Sim. — Quando Foxy olhou ao redor, uma parte da tensão deslizou dos seus ombros. A temporada acabaria dentro de poucas horas. — Acho que todos nós vamos relaxar. Foi um longo verão.

     — Foi? — Lance replicou.

     Ela estava usando uma camisa de Oxford branca sob um suéter azul-marinho. Negligentemente, Lance esfregou o colarinho entre o dedo polegar e o indicador, enquanto a fitava. Havia algo de posse naquele gesto casual.

     — Não parece que faz muito tempo que a vi sair debaixo do MG na garagem de Kirk.

     — Para mim, parece que passaram anos — murmurou Foxy, virando-se para a pista. Os carros passavam ruidosos. No ar o cheiro de óleo, gasolina e borracha queimada.

 — Pam não parece nem um pouco preocupada — comentou, estudando a pequena figura loira próxima a área dos boxes. — Suponho que seja mais fácil quando não se está envolvida pessoalmente com um dos pilotos.

     Com um riso rápido, Lance ergueu o queixo dela e a contemplou.

     — Está precisando de óculos ou ficou vagando no espaço durante às últimas semanas?

     — Do que está falando? — Não estava preparada para ser tocada por ele e cautelosamente retrocedeu.

     — Meu amor, Pam está pessoalmente bastante envolvida com um dos pilotos. Tire a venda dos olhos.

     Foxy se virou para estudar o perfil de Pam, que assistia à corrida, com as mãos delicadas enfiadas nos bolsos de uma jaqueta esporte cor marfim. Em seguida, voltou a fitar a face divertida de Lance com um relance afiado.

     — Não está insinuando que é o Kirk, está? — Claro que estava, percebeu antes mesmo de acabar de falar.

     Eu teria percebido se parasse de pensar nele.

     — Oh meu Deus — murmurou com um suspiro.

     — Você não aprova, maninha? — disse Lance num tom seco, virando-se para encará-la. Suas mãos permaneceram leves nos braços dela. — Kirk já está crescidinho.

     — Oh, não seja ridículo. — Foxy afastou os cabelos do rosto, num gesto de aborrecimento. — Não é uma questão de aprovar ou desaprovar. E Pam é maravilhosa.

     — Então qual é o problema?

     Virando-se, ela gesticulou para onde Pam estava. Os cabelos loiros presos na altura da nuca, com apenas algumas mechas dançando ao redor da face suavemente composta.

     — Olhe só para ela — ordenou impaciente. — É como Melanie Wilkes aparentaria hoje. Deus, até a voz é igual, serena e refinada. Pam é minúscula e frágil e deveria estar recebendo as amigas para um chá em uma sala de visitas. Kirk vai engolfá-la.

     — Esqueceu que Melanie Wilkes era uma mulher forte, Foxy. — Com a ponta dos dedos acariciou-lhe a face. — Pense sobre isso — aconselhou antes de se virar e se afastar.

     Por alguns momentos, ela permaneceu imóvel. Estar apaixonada por Lance não era uma sensação nova. Mas agora o amava como uma mulher e não como uma menina. Não era uma paixão de conto de fadas, mas um desejo real. Agora conhecia as agonias e alegrias de estar nos braços dele e o calor e a pressão da sua boca. Jamais poderia, como acontecera aos 16 anos, se satisfazer era considerá-lo o herói dos seus sonhos.

     E depois de amanhã, lembrou-se, fechando os olhos contra a realidade dolorosa, talvez nunca mais volte a vê-lo. Incapaz de lidar com a situação, afastou o pensamento da mente.

     E agora, há Pam e Kirk, lembrou-se. Seus melhores amigos, caminhou até a mulher loira, postando-se ao seu lado, enquanto o público vibrava com as ultrapassagens dos carros.

     — Ele assumiu a ponta um pouco mais cedo que o habitual — comentou Pam, acompanhando a passagem relâmpago do carro de Kirk, — Ele quer muito ganhar esta corrida.

     — Com um riso leve, se virou para Foxy. — Aliás, quer ganhar todas.

     — Eu sei... Sempre foi assim. — Os olhos azuis tranquilos fizeram Foxy respirar fundo. — Pam, sei que não é da minha conta, mas eu... — Com um murmúrio frustrado, voltou a fitar a pista e enfiou as mãos nos bolsos. — Oh, vou fazer um terrível papel de boba.

     — Acha que não sirvo para o Kirk — disse Pam com voz suave.

     — Não! — Os olhos de Foxy se alargaram angustiados.

     — Acho que Kirk não serve para você.

     — Que estranha a semelhança entre vocês dois — murmurou Pam, estudando a face séria de Foxy. — Ele também pensa assim. Mas não tem importância, sei que ele é o homem certo para mim.

     — Pam... — Foxy sacudiu a cabeça, procurando as palavras certas. — O automobilismo...

     — Sempre virá em primeiro lugar — concluiu Pam, encolhendo os ombros esbeltos. — Claro que sei. E aceito isso. Por mais que me surpreenda é uma das coisas que me atrai em Kirk. O automobilismo, a determinação absoluta de ganhar, a atitude quase negligente em relação ao perigo. É tão excitante, quanto frustrante e estou completamente apaixonada. Acho que vou ficar aterrorizada, porém, quando é dada a largada, o terror desaparece. Fico torcendo para ele ganhar.

     — Ela se virou para Foxy com um sorriso brilhante. — Acho que somos parecidos. Eu o amo, amo o que ele é. Vir em segundo lugar na vida dele é o suficiente para mim. — Ouvindo uma repetição das próprias palavras ecoando em seus ouvidos, Foxy não conseguiu fazer mais nada, além de olhar fixamente para a pista. — Não estou tentando roubar o seu lugar na vida dele — concluiu Pam.

     Foxy retrocedeu o olhar depressa.

     — Oh, não... Não, não é isso... Não é nada disso. Estou feliz pelo Kirk. Ele precisa de alguém... alguém que o entenda como você. — Num gesto casual, correu os dedos pelos vastos cachos de cabelos. Os fios ruivos brilhavam como as folhas alaranjadas das árvores ao redor. — Mas também me preocupo com você — disse, gesticulando como se isso a ajudasse a se expressar. — Ele chega a ser cruel quando se esquece de tudo a sua volta.

     — Não me magoo facilmente. — Pam pôs uma mão no ombro dela. — Não tão facilmente quanto você, suponho.

     — Diante da expressão confusa de Foxy, ela sorriu. — E fácil para uma mulher apaixonada reconhecer outra. Não, não comece a balbuciar uma negação. — Ela riu quando a boca de Foxy se abriu e fechou. — Se precisar conversar, me procure. Estou me sentindo quase uma expert no assunto.

     —E irrelevante — Foxy falou com um movimento inquieto de ombros. — Amanhã cada um seguirá o seu caminho.

     — Você ainda tem hoje. — Pam apertou-a de leve no ombro. — Não é o que realmente importa?

     Foi tudo muito repentino. No início, o cérebro de Foxy se reusou a assimilar o que estava acontecendo. Enquanto as duas conversavam, Kirk contornara a curva em frente aos boxes. Ela o viu dar uma guinada para evitar chocar-se com a traseira do carro a sua direita. Esperou que ele recuperasse o controle. Então, veio a derrapagem. Ouviu o ruído ecoando era sua cabeça, à medida que se tornava mais forte e mais violento. Parte do seu cérebro gritou em pânico, enquanto a outra ainda continuava insistindo que o irmão se sairia bem daquela situação. Tinha que sair. O som do estouro foi tão letal quanto um tiro. Em seguida, vieram as colunas de fumaça e o chiado do metal, quando o carro bateu na mureta e imbicou. Pneus e pedaços de fibra de vidro voaram por todos os lados, enquanto o piloto continuava girando de modo selvagem.

     — Não! — gritou Foxy, correndo em direção à pista. Com um puxão rápido, livrou-se da mão de Pam e correu.

     Pedaços de fibra de vidro voaram com um abandono mortal. Uma onda de medo maior do qualquer outra que sentira na vida a atingiu, escurecendo todos os seus pensamentos, todos os seus sentimentos. A única realidade era a carcaça despedaçada da máquina que continha o irmão dela em seu interior.

     A centímetros da grade de proteção, sua respiração ficou presa, quando algo contornou sua cintura com força e a ergueu do chão. Foxy chutou inutilmente no ar, tentando se livrar. Então, afastou os cabelos dos olhos a tempo de ver o carro de Kirk tombar na pista.

     — Pelo amor de Deus, você quer morrer? — A voz de Lance soou severa em seus ouvidos, enquanto ela se contorcia para se livrar. Em pânico, esperou a fumaça se transformar em labaredas.

     — Deixe-me! — gritou ao perceber que o que estava em torno da sua cintura era o braço de Lance. — É o Kirk, não está vendo? Tenho que ir até lá. — Foxy respirava ofegante, arranhando o braço que a prendia desesperadamente.

     — Não há nada que você possa fazer. — Lance a apertou de encontro ao corpo, impedindo-a de respirar por um momento. Sobre a cabeça dela, ele viu os membros da equipe de emergência, borrifando os destroços do carro com extintores, enquanto outros trabalhavam para retirar Kirk do cockpit. — Não há nada que você possa fazer — repetiu. A luta de Foxy cessou de repente. Ficou tão imóvel que Lance pensou que ela tivesse desfalecido, até ouvi-la falar.

     — Deixe-me. — A voz soou calma, de forma que ele mal conseguiu ouvi-la. — Não farei nada estúpido — acrescentou, quando ele não afrouxou o aperto. — Estou bem, Lance, solte-me.

     Devagar, ele a colocou de volta no chão e a libertou.

     Foxy não se virou e nem falou. Assistiu em silêncio, enquanto resgatavam Kirk dos destroços. Não deu nenhum sinal de que sabia que Pam estava a seu lado. Atrás delas, os boxes pareciam uma tumba. A bandeira branca tremulou ao sabor da brisa de outono.

    

     As paredes da sala de espera do hospital eram de um tom verde claro. No chão não havia carpetes. Lajotas bege com minúsculos nuances marrons disfarçavam o acúmulo do pó e da sujeira diária. Na parede oposta a Foxy havia uma gravura do pintor holandês Van Gogh. Era o único ponto de cor na pequena e monótona sala. Ela sabia que jamais olharia para aquela gravura novamente, sem se lembrar das horas de tormento e apreensão.

     Pam estava sentada junto à janela ornada com cortinas mais escuras que as paredes. Ocasionalmente, tomava alguns goles de café frio. Charlie se encontrava em um sofá de vinil, roendo o toco de um charuto apagado. Lance caminhava. Circulava incessantemente pela pequena sala. Às vezes com as mãos enfiada nos bolsos, às vezes fumando. Algumas vezes, Foxy percebia Pam murmurar algo a ele e em seguida ouvia o som baixo da resposta dele. Não distinguia as palavras e nem tentava. Não tinha interesse em saber. Sentia o mesmo vazio que experienciara nos primeiros momentos de consciência logo após o seu acidente. Naquela ocasião, como agora, sentia-se desamparada.

     Lance estava certo quando lhe dissera que ela nada podia fazer. Agora aceitava o argumento. A raiva e o pânico estavam enterrados sob o terror paralisante do inconcebível, sua mente vagava e esvaziava enquanto ela encarava a gravura de Van Gogh. O acidente de Kirk acontecera há mais de três horas.

     — Senhorita Fox?

     Com um estremeção, Foxy foi trazida de volta ao presente. Por um momento, apenas fitou a figura com um jaleco verde junto à entrada.

     — Sim? — administrou com uma voz surpreendentemente forte, erguendo-se para ir ao encontro dele. De repente, passou pela sua mente que o médico aparentava ser muito jovem. Tinha um bigode escuro que a fez lembrar de Kirk. A máscara cirúrgica pendia do seu pescoço.

     — A cirurgia do seu irmão terminou. — Havia uma tranquilidade no tom de voz que, assim como as mãos, ele usava para curar. — Agora ficará sob observação.

     Cautelosa, Foxy conteve a onda de alívio e manteve o olhar focado no rosto dele.

     — Qual a gravidade das lesões, doutor?

     O médico ouviu e respeitou o controle no tom de voz dela, mas percebeu que seus olhos estavam aflitos e amedrontados.

     — Ele teve cinco costelas quebradas. Os pulmões entraram em colapso, mas foram reinflados e a concussão é moderada. A fratura das costelas causará um pouco de dor, mas desde que não haja nenhuma perfuração, o perigo é mínimo. A perna... — Ele hesitou por um momento, e Foxy sentiu uma pontada de medo.

     — Ele não... — Engoliu em seco e se forçou a perguntar. — Não a perdeu?

     — Não. — O médico segurou-lhe a mão para lhe transmitir segurança e a achou fria, mas não trêmula. — Mas a lesão é complicada, tivemos que fazer uma reconstrução. Ele sofreu uma fratura exposta fragmentada e algumas artérias fora danificadas. Tivemos que realinhar os ossos e a perspectiva é boa. Acho que estará fazendo uso integral da perna dentro de alguns meses. Mas o risco de uma infecção ainda não está descartado. — Depois de soltar-lhe a mão, o médico se permitiu olhar para o restante das pessoas na sala e então voltou a fitá-la. — Ele terá que permanecer aqui por mais algum tempo.

     — Entendo... — Foxy deixou escapar um suspiro trêmulo.

     — Ele sofreu outros ferimentos?

     — Queimaduras secundárias e escoriações. Kirk é um homem de sorte.

     — Sim — A voz soou solene enquanto ela olhava para as mãos. Uniu-as sem saber o que fazer com elas. — Ele está consciente?

     — Sim. — O médico sorriu e parecia ainda mais jovem. — Queria saber quem ganhou a corrida. — Foxy mordeu os lábios inferior com força e continuou olhando para a frente, enquanto o doutor continuava. — Ele estará no quarto dentro de uma hora. Só então poderá vê-lo. Só será permitida uma visita hoje à noite — acrescentou num tom firme, novamente vagando o olhar pelas pessoas atrás dela. — Os outros poderão vê-lo amanhã. E nada de telefonemas por 24 horas.

     Foxy assentiu com a cabeça e falou depressa.

     — A srta. Anderson ficará para vê-lo hoje à noite, então.

     — Foxy — começou Pam, sacudindo a cabeça enquanto dava um passo à frente.

     — Ele vai querer vê-la — argumentou Foxy, quando seus olhares se encontraram. —  Ficará satisfeito em saber que eu estive aqui. Você vai ficar, não vai?

     Percebendo que seus olhos estavam marejados de lágrimas, Pam concordou depressa e então se virou. Forçara-se a permanecer firme durante a espera. Mas a generosidade de Foxy fizera o que as horas de tortura não conseguiram. Caminhando até a janela, olhou para fora e deixou as lágrimas fluírem.

     — A recepcionista têm o número do meu telefone — disse Foxy ao médico. — Se acontecer alguma coisa durante a noite, pode pedir para me ligarem?

     — E claro. Senhorita Fox — acrescentou, reconhecendo os sinais de choque e cansaço nos olhos dela. — Ele vai ficar bem.

     — Obrigada.

     — Charlie, fique aqui e leve Pam para o hotel, depois que ela vir o Kirk — ordenou Lance, segurando Foxy pelo braço. — Vou levá-la de volta ao hotel agora. — Virando-se para o médico, falou num tom enfático. — Há repórteres lá embaixo no saguão de entrada. Não quero que ela tenha que lidar com isso esta noite.

     — Leve-a pelo elevador de serviço até o nível da garagem. Há um ponto de táxi perto da entrada.

     — Obrigado. — Sem esperar por consentimento, Lance começou conduzi-la pelo corredor.

     — Você não precisa fazer isso — disse Foxy. A voz soou sem entonação, enquanto permitia ser conduzida.

     — Eu sei o que tenho que fazer — retrucou ele, apertando o botão do elevador de serviço. Atrás deles, o ruído das solas dos sapatos das enfermeiras produzia sons suaves contra as lajotas.

     — Não lhe agradeci antes por ter me impedido de correr para a pista. — O som breve de uma campainha entoou no ar, antes das portas se abrirem. Foxy não fez nenhum protesto, quando ele a enfiou na cabine vazia. — O que eu ia fazer era uma verdadeira estupidez.

     — Pare com isso, droga! Pare! — Ele a girou e a segurou pelos ombros. Os dedos se apertaram firmemente na carne dela. — Grite, chore, me dê um soco, mas pare de agir dessa maneira.

     Foxy o fitou, deparando-se com o calor furioso dos olhos cinzentos. Suas emoções se recusavam a emergir. As defesas permaneciam lacradas, como se soubessem que ainda era muito cedo para deixar algo escapar. O tom da sua voz era tranquilo e os olhos estavam secos.

     — Já gritei tudo que devia. E ainda não posso chorar porque continuo entorpecida. E não tenho nenhum motivo para lhe dar um soco.

     — Fui eu quem projetou o carro, não é o bastante? — exigiu ele. As portas se abriram. Ele a segurou pela mão, antes de colocar o pé para fora.

     Seus passos ecoavam sem muito ruído na garagem enquanto ele a puxava para a entrada.

     — Ninguém forçou o Kirk a entrar no carro. Não o estou culpando Lance. Não estou culpando ninguém.

     — Eu vi o modo como você me olhou, quando eles o retiraram das ferragens

     Foxy estava beirando a exaustão, quando Lance a colocou num táxi. Virando a cabeça para encará-lo, disse num tom claro:

     — Sinto muito. Talvez eu o tenha culpado por um minuto. Talvez eu quisesse culpá-lo ou qualquer um que estivesse por perto. Pensei que ele estivesse morto. — Sentindo a voz tremer ligeiramente, pausou até ter certeza de que podia continuar:

     — Tentei me preparar para algo assim todos os dias da minha vida. Mas não estava preparada. Parece não fazer qualquer diferença o fato de tê-lo visto bater antes. — Foxy. suspirou e se recostou no assento. As luzes da rua infiltravam-se pela janela do táxi, dançando sobre suas pálpebras fechadas. — Não o culpo pelo que aconteceu, Lance. Do mesmo modo que não culpo o Kirk por ser o que é. Talvez desta vez ele se canse dessa vida.

     Lance não respondeu, o único som audível foi o clique do seu isqueiro. Não tendo mais energia para abrir os olhos, ela os manteve fechados e permaneceu o restante do breve trajeto em silêncio.

     Quando chegaram ao hotel, encontraram Scott Newman andando de um lado para o outro no corredor em frente ao quarto de Foxy. Exibia a aparência desgrenhada de um executivo que acabara de participar de uma aborrecida reunião de diretoria.

     — Cynthia. — Com um aceno rápido a Lance, ele ofereceu ambas as mãos a ela. — No hospital me disseram que você já havia saído. Como está o Kirk? Não informaram quase nada pelo telefone.

     — Ele vai ficar bem — disse Foxy, deixando-o apertar as mãos dela. Então fez um resumo rápido do relatório médico.

     — Estão todos preocupados. Vão ficar felizes em saber que ele está bem. E você? — Ele a fitou com um sorriso de encorajamento. — Achei que podia estar precisando de mim.

     — O que ela precisa é de um pouco de descanso — afirmou Lance conciso.

     — Foi muita consideração da sua parte me esperar. — Foxy tentou atenuar a rudeza de Lance e acrescentou um sorriso que lhe custou um pouco de esforço. — Estou bem, de verdade. Só um pouco cansada. Pam ficou lá para ver o Kirk.

     — A imprensa está louca para ouvir a história completa — comentou Scott, enquanto a libertava e endireitava o nó da gravata. — Demos uma olhada no replay. Não há dúvida que o Kirk tentou desviar para evitar bater no carro de Martell, foi aí que ele perdeu o controle. A pilotagem errada do piloto Martell é o veredito. Talvez você queira dar alguma declaração ou queira que eu faça isso.

     — Não — intrometeu-se Lance. — Esqueça essa história. Se quiser ser útil, diga a recepção para não deixar passar nenhuma chamada para este quarto a menos que seja do hospital. — À voz soou breve e aborrecida. — Passe-me as chaves, Foxy — ordenou.

     — Claro — Scott assentiu com a cabeça enquanto ela procurava as chaves na bolsa. — Tenho certeza que consigo evitar, pelo menos até amanhã, mas...

     — Vá até o meu quarto daqui a algumas horas — cortou Lance outra vez, arrancando as chaves da mão de Foxy. — Eu lhe passarei informações suficientes para satisfazer a imprensa. Apenas mantenha Foxy fora disso. Entendeu? — acrescentou, escancarando a porta.

     Fúria registrada. Scott concordou com outro aceno de cabeça, antes de se virar para Foxy.

     — Se precisar de algo me chame, Cynthia.

     — Obrigada, Scott. Boa noite — murmurou ela, antes de Lance fechar a porta na cara do outro homem. Cansada, caminhou até uma cadeira e se acomodou.

     — Você foi muito rude — comentou distraída, esfregando um ponto nas têmporas onde começava a latejar. — Não me lembro de vê-lo agir dessa maneira antes.

     — Talvez se desse uma olhada no espelho, entendesse por quê. — A fúria ainda estava na voz dele. Foxy o fitou calmamente por trás da proteção do torpor de choque e fadiga. — Está mais pálida do que alguns minutos atrás. Posso jurar que a única cor visível em sua face são os olhos. E aquele idiota falando sobre boletins para a imprensa. — Lance fez um gesto de repugno com a mão. — Ele tem o cérebro de uma ameba.

     — Scott é um bom gerente — murmurou ela, lutando contra a dor de cabeça que se instalava.

     — É um grande ser humano — acrescentou ele num tom sarcástico.

     — Lance — começou Foxy curiosa. — Você estava me protegendo?                                            

     Quando ele se virou de frente, ela percebeu a irritação nos seus olhos. A curiosidade aumentou ao vê-lo tentar se controlar.

     — Talvez — murmurou ele, pegando o telefone. Foxy o ouviu murmurar uma série de instruções, mas não prestou atenção às palavras.

     Estranho, pensou ela. Lance parece estar ganhando o hábito de me proteger. Primeiro na Itália e agora aqui. No entanto, não parece se sentir muito confortável com isso. Continuou estudando-o após ele desligar o telefone.

     Imediatamente, ele começou a andar de um lado para outro, da mesma maneira que fizera na sala de espera do hospital.

     — Lance. — Ele parou no instante em que ela proferiu seu nome. Foxy ofereceu a mão, percebendo de repente o quanto estava grata por ele estar lá. Não se sentia preparada para ficar sozinha. Não se sentia forte, capaz e indestrutível e sim cansada, vulnerável e assustada. Ele a encarou por um momento, sem se mover, então caminhou até ela e segurou a mão oferecida. — Obrigada. — Seus olhos estavam escuros e sombrios ao fitar os dele. — É que me ocorreu que eu não teria conseguido passar por tudo isso se você não estivesse por perto. Sequer havia percebido que precisava de você, mas você percebeu. Quero que saiba o quanto isso significa para mim.

     Algo chamejou no rosto de Lance, antes de ele deslizar a mão livre pelos cabelos. Era um gesto atípico de frustração que a fez lembrar que estava tão cansado quanto ela.

     — Fox — começou ele, mas ela o interrompeu depressa.

     — Você não vai embora amanhã, vai? — Sabia que o fato de estar fraca não a impediria de perguntar. Precisava dele, pensou apertando-lhe a mão. — Se você pudesse ficar apenas mais alguns dias, só até as coisas se resolverem. Eu posso mentir. — A nota de desespero crescendo na voz. — Posso entrar naquele quarto de hospital amanhã e olhar para Kirk, encará-lo direto nos olhos e mentir. É um truque que aprendi ao longo dos anos. E sou boa nisso. Ele jamais saberá o quanto odeio estar lá. Mas se você pudesse ficar, se eu pudesse pelo menos saber que você estaria lá. Sei que é pedir demais, mas eu. — Foxy fez uma pausa, pressionando os dedos sobre os olhos. — Oh, Deus, acho que o entorpecimento está passando. — Ao ouvir o som de uma batida à porta, firmou a respiração, mas deixou que Lance fosse atender. No momento seguinte, ela o ouviu retornar.

     — Foxy — chamou ele suavemente e a segurou pelo pulso. Os olhos dela eram jovens, mas estavam devastados. — Beba isto. — Ofereceu um copo cheio de conhaque que o serviço de quarto havia entregado. Embora ela aceitasse a bebida obediente, apenas fitou o líquido ambarino.

     Lance a observou por um momento, então se agachou até que os seus olhos ficassem nivelados. — Fox. — Ele esperou até ela desviar o olhar do copo de conhaque para ele. — Case-se comigo.

     — O quê? — Ela o encarou, viu a familiar profundidade nos olhos dele, então fechou os seus bem apertados. — O quê? — repetiu, abrindo-os.

     Lance levou o conhaque aos lábios dela.

     — Eu disse, case-se comigo.

     Foxy bebeu o conteúdo inteiro do copo de uma só vez.

     A respiração ficou presa no fogo do conhaque e o pequeno som trovejou no silêncio absoluto do quarto. Por vários e longos segundos, ela o fitou nos olhos, tentando penetrar o impenetrável. Sentia que por baixo daquela camada de tranquilidade havia um remoinho de energia, uma força que se libertaria a qualquer instante. Ele tentava controlar algo, que ela não sabia o que era. A tensão fez sua garganta apertar. Tentou engolir, mas falhou. Não conseguia deixar de encará-lo, mas quando falou sua voz era apenas um sussurro. Estava com medo.

     — Por quê?

     — Por que não? — retrucou ele, retirando o copo vazio dos seus dedos sem força.

     — Por que não? — repetiu Foxy. Ergueu a mão para fazer algum gesto desamparado, mas Lance a segurou entre as dele. Os dedos dela tremiam quando ele os levou aos lábios.

     — Sim, por que não? — perguntou, olhando-a fixamente.

     — Não sei, eu... — Ele obtivera sucesso em distraí-la com uma proposta nada convencional. Deslizando a mão livre pelos cabelos, tentou raciocinar com clareza. — Deve haver uma razão, eu só não consigo pensar.

     — Bem, se não consegue pensar em alguma razão significativa contra isso, case-se comigo e venha para Boston.

     — Boston? — Foxy repetiu inexpressivamente.

     — Boston — Lance concordou e, pela primeira vez, um sorriso lânguido tocou seus lábios. — Eu vivo lá, lembra?

     — Sim, claro. — Ela esfregou uma linha entre as sobrancelhas e tentou se concentrar. — Claro que me lembro.

     — Poderíamos partir quando você tivesse certeza que o Kirk estava curado. É bem provável que ele tenha que permanecer aqui pelos próximos dois meses, mas não há nenhuma necessidade de você ficar também. — A voz soou prática, a face absolutamente calma. Frustrada e insegura, Foxy sacudiu a cabeça.

     Estou sofrendo de alucinações. Alucinações não doem, lembrou-se. Então depressa descartou o argumento. Era mais fácil acreditar que aquilo era uma ilusão do que acreditar que Lance a estava pedindo em casamento no mesmo tom que lhe pediria para buscar uma xícara de café.

     — Ouça, eu... — Hesitou, então decidiu evitar o assunto em vez de enfrentá-lo. — Acho que não estou assimilando as coisas direito. Ainda estou um pouco tonta. — Engoliu e tentou imitar o tom casual dele. — Preciso de um tempo para pensar. Me dê um ou dois dias.

     Lance inclinou a cabeça.

     — Soa razoável — concordou, enquanto Foxy se erguia para se afastar dele.

     — Não. — acrescentou enfático, fazendo-a se virar e fitá-lo boquiaberta.

     — O que disse?

     — Eu disse não. Não lhe dou um ou dois dias para pensar, — Num gesto rápido, venceu a distância entre eles e a segurou pelos ombros.

     Foxy percebeu que os olhos dele não estavam mais calmos e sim turbulentos. Não era a primeira vez que a segurava daquela maneira e a olhava precisamente do mesmo modo, lembrou-se. Isso acontecera anos atrás, na garagem vazia em Le Mans, refletiu confusa e tolamente desorientada. Será que gritaria com ela novamente?, desejou saber. Com uma carranca, tentou manter o passado e o presente separados.

     — O que você quer? — perguntou, lutando contra os seus sentimentos por ele.

     — Você. — Ele a puxou para si, fitando-a com um olhar ardente. — Não estou disposto a deixá-la sair da minha vida, Fox. E já esperei por você tempo suficiente.

— Nesse instante, seus lábios tomaram os dela gentilmente. Mesmo assim, Foxy podia sentir a paixão refreada no aperto das mãos dele. O beijo foi profundo, possessivo.

— Acha de fato que eu sairia por aquela porta, calmamente, lhe dando dois dias para refletir sobre isto? — A boca ávida se fechou mais uma vez sobre a dela, impedindo qualquer resposta que ela pudesse querer proferir. Então se afastou novamente, dessa vez para fitar os olhos confusos de Foxy. — Acha mesmo que eu poderia sair daqui, desejando-a do modo como a desejo, depois de ouvi-la dizer que precisa de mim?

     — Lance, eu não quis dizer... — Ela sacudiu a cabeça como se procurando alguns resquícios de bom-senso. — Você não deveria se sentir obrigado, sou grata...

     — Para o inferno com a gratidão — declarou, segurando-Ihe os cabelos com ambas as mãos. — Não estou interessado em uma emoção agradável e paciente como gratidão. Não é o que eu quero de você. — Foxy notou a determinação na face de Lance e ouviu o fogo em sua voz. Sentiu o próprio sangue começar a aquecer em resposta. — Não estou ligando a mínima se a hora é errada ou se estou forçando a barra, quando suas defesas estão enfraquecidas. Sou um homem egoísta e a desejo por mais tempo do que posso imaginar. E vou possuí-la.

     O pulso de Foxy estava batendo tão depressa, que a deixou tonta. Tentou-se firmar, colocando as mãos sobre os braços dele.

     — Lance... — A voz era um mero sussurro ofegante. — Sobre o que está falando... Não é necessário nos casarmos. Casamento é um passo muito importante. É um compromisso para a vida toda. Não sei...

     — Eu a amo — disse ele impedindo o discurso frio. Os lábios de Foxy se abriram trêmulos para proferir as palavras que não se formaram. — Quero passar o resto da minha vida a seu lado e não vou voltar para Boston sem você. Não posso lhe dizer palavras românticas à luz de velas para persuadi-la, porque não estou com tempo ou paciência para essas coisas agora. Terei que fazer isso mais tarde. — As mãos dele deslizaram até os ombros dela, então desceram para a cintura, mas ele não a puxou para si. — Foxy, você me deixa louco. — Enquanto ela o fitava, percebeu ambos, desejo e dúvida, nos olhos cinzentos. — Você também me ama, eu sei que ama.

     — Sim. — Descansando a face contra o tórax dele, ela suspirou. — Sim, eu o amo. — Abrace-me — murmurou, voltando a achar que se ajustava com perfeição àqueles braços. — Preciso que me abrace. — Durante os próximos minutos, Foxy se permitiu o incrível esplendor de ser abraçada pelo homem que amava.

     Tudo estava acontecendo tão rápido, pensou. Então repeliu os medos e ouviu o ritmo forte do coração de Lance. Ele me ama.

     — Lance... — Inclinando a cabeça, Foxy ofereceu-lhe os lábios.

     A resposta foi imediata. Paixão contra paixão, fascínio contra fascínio, até não haver mais distância entre seus corpos aquecidos e entrelaçados.

     Então, quando se contorcia num espiral de emoções, ele afrouxou o aperto.

     — Podemos nos casar dentro de dois dias. — Falou num tom calmo novamente, mas as mãos dele continuavam a afagá-la nas costas para cima e para baixo. — É o tempo necessário para conseguirmos a papelada. Em seguida, iremos para Boston. — O olhar dele ficou sério. — Pam ficará aqui com Kirk, você entende isso, não é?

     — Sim. — Foxy fechou os olhos por um momento e tentou bloquear a imagem do acidente do irmão. — Sim, é o melhor a fazer. Eu quero ir — disse abrindo os olhos.

 — Quero estar com você. — Seus nervos saltavam dentro do estômago, recusando-se a se acalmar. Num gesto desesperado, ela procurou os lábios dele. Percebeu que a intensidade do desejo de Lance se igualava a sua. — Fique comigo esta noite — sussurrou, enterrando o rosto no pescoço dele. — Não quero que vá embora.

     Lentamente, Lance a afastou e esquadrinhou a sua face. As faces ainda estavam pálidas, os olhos enevoados. Já havia círculos escuros ao redor deles.

     — Não. — Sacudindo a cabeça, agarrou-lhe o rosto com as costas da mão. — Você está muito vulnerável esta noite, já tirei muita vantagem disso. Precisa dormir. — Com essas palavras, ele a ergueu nos braços e a levou para a cama. O corpo de Foxy reagiu à gravidade, flutuando com a fadiga. Depois de deitá-la no colchão, Lance sentou-se ao lado dela. — Precisa de alguma coisa?

     — Diga novamente.

     Lance ergueu a mão dela e levou a palma aos lábios.

     — Eu a amo. Vai conseguir dormir?

     — Sim, sim, eu dormirei. — Foxy podia sentir o cansaço dominando-a. Fechou os olhos e imediatamente começou a sonhar. Os lábios de Lance eram uma promessa suave sobre os seus.

     — Virei vê-la amanhã de manhã — murmurou ele. Vagamente, ela percebeu a cama se mexer, quando ele se ergueu. Adormeceu profundamente, antes mesmo de a porta se fechar.

    

     Os raios de sol incidiam, brilhantes e vigorosos, sobre a face de Foxy, fazendo-a gemer, quando começaram a penetrar em seu sono. A mente flutuou suavemente para a superfície, tornando-a ciente dos pequenos e inconsequentes detalhes: o tique-taque do despertador de viagem sobre o criado-mudo ao lado da cama, a leve coceira entre suas omoplatas e o incômodo calor produzido pela colcha que a cobria. Enroscara-se sob a coberta, quando acordara, com frio e assustada, no escuro.

      Ainda não se recordava do pesadelo, da vivida clareza com a qual revivera o acidente de Kirk. Acordara, lutando por ar, fria como o gelo. O terror aniquilando qualquer possibilidade de adormecer. Ainda não havia se lembrando que, por fim, as lágrimas brotaram em torrentes, até que seus olhos se tornassem congestionados e as costelas doessem pelo esforço. Soluçara até o pranto secar e, em seguida, imergira em um sono agitado, assolado por dúvidas sobre seu noivado informal com Lance. Talvez ele tivesse lhe proposto casamento por puro senso de obrigação.

     Tentou recapitular os sentimentos que experimentara, quando ele lhe declarara seu amor, mas sentia-se fria e infeliz. Enroscara-se sob o lençol e desejara que a manhã raiasse.

     Agora que um novo dia havia nascido, achava a luz incômoda e a coberta sufocante. Mexeu-se sob a colcha, ainda meio adormecida, desejando que a coberta desaparecesse sem que tivesse de se esforçar para afastá-la. À medida que a consciência de Foxy emergia à superfície, trazia consigo a lembrança. A mente clareou. Ela se sentou com um movimento abrupto e descansou a face nos joelhos.

     Controle-se, Foxy; ordenou a si mesma, expelindo lentamente o ar para fora dos pulmões. Teve uma noite ruim, agora a esqueça e vá direto aos negócios. Em breve, Lance estará aqui. Erguendo a cabeça, estreitou o olhar e fitou a mão esquerda, tentando imaginar uma aliança no dedo anular.

     — Vou me casar com ele — afirmou em voz alta, apenas para ouvir o som das palavras. No mesmo instante, sentiu um frio no estômago, anunciando seu estado de nervos. De repente, se deu conta de que não sabia nada sobre o homem que vivia em Boston e geria um negócio multimilionário. O Lance Matthews que conhecera era um ex-piloto arrogante, exímio jogador de pôquer e perito em desmontar um motor. O único vislumbre que tivera da outra faceta de Lance, fora durante o encontro que tiveram em Monte Carlo. E não fora, refletiu, suficiente. Iria se casar com ele sem conhecê-lo de verdade. Pertenceria ele ao country club? Jogaria golfe aos sábados? Tentou imaginá-lo balançando um taco de golfe, mas não conseguiu. Cerrando as pálpebras, permitiu que seu lado despreocupado afastasse as dúvidas.

      Não é hora ficar sentada pensando, disse a si mesma. O que importa se ele joga golfe, gamão ou pratica ioga? Que importância tem se Lance veste terno e gravata e carrega uma pasta ou se usa jeans e tênis? Mordendo o lábio inferior, imaginou de onde tirara aqueles pensamentos. Tem de levantar e se recompor, para que não esteja parecendo um zumbi quando ele chegar.

     Jogando a coberta para o lado, Foxy se ergueu da cama e descobriu que cada músculo de seu corpo se vingava pela noite agitada que tivera. Um banho quente, refletiu, antes de começar a se livrar das roupas com que dormira. Não estou nervosa, apenas sonolenta.

     Trinta minutos depois, quando Lance bateu à porta, Foxy dava os últimos retoques em sua tentativa de disfarçar os resultados da noite insone. Usava um traje amarelo e os cabelos impecavelmente atados à altura do pescoço. Lance a estudou cuidadosamente antes de falar. Os olhos verde-acinzentados não refletiam mais o choque, mas se apresentavam ensombreados.

     Ele lhe segurou o queixo e franziu o cenho. O semblante frágil se encontrava intensificado pelas manchas violeta em torno dos olhos. O pranto os havia deixado levemente inchados e com aparência fatigada.

     — Esteve chorando — comentou ele, fazendo-a concluir que todos os artifícios como o blush e a máscara facial, não lhe valeram de nada.

      A voz de Lance estava tensa assim como os dedos que lhe seguravam o queixo. Aquilo serviu para aumentar a agitação de Foxy.

     — Não dormiu? — perguntou ele.

     — Não muito — admitiu ela, imaginando por que Lance parecia tão aborrecido.

— Acordei durante a noite. Foi como se tudo estivesse acontecendo outra vez.

     Os vincos na fronte de Lance se aprofundaram.

     — Eu deveria ter ficado.

     — Não —- redarguiu Foxy, meneando a cabeça e procurando nos olhos cinzentos razões que justificassem a aspereza na voz de Lance. — Precisava ficar sozinha para tirar aquilo tudo do meu sistema. Estou melhor agora.

     Algo faiscou nos olhos de Lance, antes de eles se tornarem insondáveis.

     — Mudou de ideia?

     Foxy sabia que ele estava se referindo ao casamento e sentiu uma rápida palpitação. Ainda assim, forçou-se a manter o tom de voz calmo.

     — Não.

     Lance assentiu com um gesto de cabeça e lhe soltou o queixo.

     — Ótimo. Trataremos da papelada antes de passar pelo hospital. Está pronta?

     Foxy franziu o cenho, mas saiu para o corredor, fechando a porta atrás de si.

     — Quando estivermos com Kirk — começou ela, enquanto se encaminhava à escada. — Deixe que eu lhe conte nossos planos... no momento certo.

     As sobrancelhas de Lance se ergueram.

     — Está bem.

     Ofendida pelo tom e pela fria presença de espírito de Lance, ela inclinou a cabeça para o lado, encarando-o.

     — Talvez eu devesse perguntar se mudou de ideia.

     — Eu lhe comunicaria se tivesse mudado — retrucou ele, quando saíram para a luz do sol.

     — Sem dúvida — concordou Foxy.

     Sem dizer mais nada, ele a guiou ao Porsche azul lustroso que alugara aquela manhã. Pela primeira vez desde o medo desesperador na tarde do dia anterior, começou a experimentar um verdadeiro sentimento de raiva.

     — Pedirá a seus advogados para redigirem um contrato? Gostaria de ler a minuta antes.

     — Pare com isso, Foxy — preveniu Lance, abrindo a porta do passageiro.

     — Não. — Ela deu um passo atrás e o fitou com olhar severo. —- Não sei por que está agindo dessa forma. Talvez seja apenas um homem mal-humorado pela manhã. Terei de me acostumar com isso, suponho. Mas é melhor se acostumar com o fato de que digo o que quero e quando quero. Se isso não lhe agrada, pode...

     O discurso de Foxy foi interrompido, quando ele bateu a porta do carro com força e a tomou nos braços com impetuosidade.

     Os lábios de Lance comprimiram os dela. Enraivecidos e dominantes, a machucavam, mas ela se encontrava demasiado surpresa para protestar ou corresponder. Lance a segurou firme, violando-Ihe a boca até quase sufocá-la em seguida, com uma subtaneidade que a deixou ofegante, ele a afastou.

     — Sei como calá-la quando não quero ouvi-la.

     Foxy bufou, indignada.

     — Você é um louco — protestou, enquanto ele abria a porta do passageiro mais uma vez.

     — Está bem — concordou Lance.

     Em seguida, sem lhe dar chance para fazer qualquer outro comentário, forçou-a a entrar no carro.

     Só então, Foxy percebeu duas jovens paradas na calçada, dando risadinhas. Furiosa e envergonhada, cruzou os braços e comprimiu os lábios. Não lhe daria a satisfação de discutir ou se submeter à conversa fiada de Lance. Em silêncio absoluto, se dirigiram ao cartório para obter a licença de casamento.

    

     Duas horas depois, falando apenas quando o inevitável, ambos adentraram o quarto de hospital de Kirk. Foxy se esforçou para não transparecer o choque que sentiu ante à visão das bandagens e do gesso. A perna dele estava envolta por uma fixação externa em vez de uma atadura rígida.

     Aos olhos de Foxy, parecia um eretor, construído por um daqueles adolescentes inteligentes. Rodeado de lençóis brancos, bandagens, tubos e metais, Kirk se encontrava escorado na cama. Encarava Pam com uma carranca, como se tivesse acabado de fazer um discurso acalorado. Foxy percebeu a tensão que pairava no ar e alternou o olhar entre os dois. Optou por não fazer nenhum comentário. Não havia trazido flores, por saber que Kirk as odiaria. De mãos vazias, cruzou o aposento até a cama e o estudou com olhar sério.

     — Você está um caos — concluiu ela, forçando um leve tom de escárnio, embora sentisse o estômago revirar diante da montanha de bandagens e do aparato aterrorizante ao redor da perna de Kirk.

     Como havia esperado a carranca deu lugar a um sorriso.

     — Você também está uma gracinha. Olá, Lance. Acho que eu devo ter amassado o para-lama do seu carro.

     — Arranhou a pintura também — retrucou ele em tom leve, enfiando as mãos nos bolsos.

     Observando-o, Pam concluiu que Lance se sentia desconfortável em quartos de

 hospital. Foxy, refletiu ela, adotara uma expressão despreocupada que Kirk poderia facilmente perceber que era falsa, se lhe ocorresse observar. Mas claro que não o faria.

— Eu me manteria afastado de Charlie por um tempo — aconselhou Lance, desviando o olhar para encontrar Pam o fitando. A expressão dela era calma, mas ele reconheceu os sinais de uma noite mal dormida. Vira aquele mesmo semblante antes, nas esposas, pais e amantes de incontáveis pilotos. Uma rápida e silenciosa empatia se estabeleceu entre ambos, antes de ele voltar o olhar a Kirk mais uma vez.

— Ouvi dizer que Betinni chegou em primeiro lugar e fisgou o campeonato.

     Obstruído pelo aparato a seu redor, Kirk mal conseguiu dar de ombros.

     — É um bom piloto. Estivemos competindo durante toda a temporada. — Kirk se mexeu e Foxy percebeu a rápida careta de dor. Sabendo que demonstrar compaixão lhe renderia um rosnado, voltou a atenção a Pam.

     — Então — começou, com um sorriso demasiado radiante. — Acho que ele não está lhe causando nenhum problema.

     — Ao contrário — retrucou Pam, relanceando o olhar a Kirk e de volta à irmã dele. — Está me causando muitos problemas.

     — Pam! — O tom irritado de Kirk a prevenia para não continuar, mas ela o ignorou.

     — Mandou que eu voltasse para Manhattan e está aborrecido porque não concordei em ir.

     Sem saber o que dizer, Foxy alternou o olhar entre ambos e em seguida, fitou Lance.

     — Entendo — disse, clareando a garganta.

     — Ele acha que estou sendo irascível — acrescentou Pam no mesmo tom suave.

     — E estúpida — completou Kirk. A carranca estava de volta, ainda mais carregada do que antes.

     — Oh, sim. — Pam exibiu um sorriso suave. — E estúpida. Havia esquecido esse detalhe.

     — Ouça — começou Kirk e Foxy reconheceu o tom ameaçador na voz do irmão.

— Não tem por que ficar grudada aqui.

     — Tenho fetiche por hospitais — retrucou Pam.

     — Droga, não a quero aqui! — gritou Kirk, praguejando, em seguida, contra a pontada aguda de dor que sentiu,

     — Sinto muito — respondeu Pam. A voz continuava suave, mas ela se encontrava empertigada como um general encarando o inimigo. Os raios de sol se refletiam através da janela atrás dela, formando um halo sobre seus cabelos. — Não se livrará de mim. Eu o amo.

     — Você é louca — rebateu Kirk, se remexendo na cama.

     — Pode ser.

     Kirk estreitou o olhar diante da resposta indiferente. Irradiada pela brilhante luz solar, a pele de Pam era como alabastro.  Sentiu o desejo crescer surpreendentemente rápido.

     — Não permitirei que fique — disparou na defensiva.

     — E o que fará? — questionou Pam, dando de ombros. — Utilizará sua perna sã para me chutar de volta a Manhattan?

     — Sim, tão logo posso me levantar — resmungou ele, furioso por ter de permanecer deitado, enquanto discutia com uma mulher que possuía metade de sua estatura.

     — É mesmo? — O desafio pareceu fluir com elegância dos lábios delicados de Pam. Ela caminhou até a cama e lhe puxou o bigode com força, arrancando-lhe um som de surpresa e protesto. — Lembre-me para sentir medo mais tarde. Agora pareço ter três opções. Posso matá-lo, pular de uma ponte ou enfrentar. Sou descendente de uma longa linhagem de guerreiros. Por outro lado, você — acrescentou, batendo de leve na face de Kirk. — Não tem outra escolha. Terá de me aguentar.

     — Acha que sim? — Os lábios de Kirk se retorceram em um sorriso relutante.

 — Você é osso duro de roer.

     — Tem razão — concordou Pam, inclinando-se, em seguida, para lhe depositar um beijo suave nos lábios.

     Kirk lhe segurou um punhado de cabelos e aprofundou o beijo.

     — Discutiremos isso quando eu puder me levantar — resmungou, mas a puxou para perto, tomando-lhe os lábios outra vez;

     — Estou certa que sim — redarguiu Pam com um sorriso, enquanto se sentava na beirada da cama. Foxy percebeu que a mão de Kirk procurava a dela.

     Ele a ama, percebeu, de repente. De fato a ama. Voltou o olhar a Pam com respeito e esperança. Talvez, pensou de imediato. Ela seja a resposta. Talvez Kirk finalmente encontre uma alternativa.

     — E então? — indagou Pam ante a perplexidade de Foxy. — Alguma notícia do mundo lá fora?

     — Notícia? — repetiu Foxy, tentando reorganizar os pensamentos.

     — Terremotos, enchentes, guerras, penúria — descreveu Pam com uma risada. — Sinto-me como se estivesse desconectada do mundo nas últimas vinte e quatro horas.

     — Que eu saiba, não aconteceu nenhuma catástrofe — respondeu Foxy, com um rápido olhar a Kirk.

     Este é o momento, disse a si mesma. A hora de dizer a ele.

     De repente, sentiu-se ridiculamente nervosa e embaraçada.

     — Lance e eu — começou, procurando os olhos dele para tomar coragem. Em seguida, inspirou fundo e voltou a encarar o irmão. — Lance e eu vamos nos casar.

— Instantaneamente reconheceu a surpresa e a perplexidade estampadas no rosto de Kirk, antes de ele franzir o cenho.

     — Muito bem! — exclamou Pam se erguendo rapidamente e abraçando Fox. — Isso é que é novidade. E da melhor espécie. — Relanceando o olhar por sobre a cabeça de Foxy encontrou os olhos de Lance. — E um homem de muita sorte.

     — Sim — retrucou ele, sem sorrir. — Eu sei.

     — Casar? — interveio Kirk. — O que quer dizer com casar?

     — No sentido usual da palavra — respondeu Foxy, movendo-se para se postar ao lado da cama. — Estou certa de que ouviu falar disso antes. Ainda está em prática.

     — Quando? — indagou Kirk, sucinto.

     — Tão logo os exames de sangue e a papelada fiquem prontos — explicou Lance em tom casual. Caminhou até a cama e deslizou um braço pelos ombros de Foxy. Kirk observou o gesto e, em seguida, ergueu o olhar para fitá-lo. — Qual o problema?

— questionou Lance com um sorriso. — Queria que pedíssemos sua permissão?

     — Não — redarguiu Kirk, pouco à vontade. Voltando o olhar à face de Foxy, recordou da pequena menina. — Sim — admitiu com um suspiro. — Talvez. Acho que eu merecia ter sido avisado da intenção de vocês.

     — Não está era condições de surrar Lance no momento. — lembrou Foxy. O braço forte em torno de seus ombros lhe atenuava a tensão e os olhos verde-acinzentados sorriam quando encarou o irmão.

     Kirk observou o melhor amigo e Foxy por algum tempo. Quando estendeu a mão, ela a tomou de pronto.

     — Está certa disso?

     Foxy girou a cabeça até encarar Lance.

     Aquele era o único homem que amara, refletiu. Não mais uma fantasia, mas real. Estou certa?, indagou a si mesma, mantendo a mente e o coração abertos.

     Deteve-se observando o rosto familiar e, em seguida, respondeu à pergunta que julgou ver refletida nos olhos cinzentos.

     — Sim — afirmou, sorrindo. — Estou certa. — Esticando-se na ponta dos pés, encontrou os lábios de Lance e toda a tensão daquela manhã se esvaiu. — Totalmente certa. — A mão ainda se encontrava unida com a do irmão. — Não se preocupe comigo — garantiu, ao se voltar outra vez a Kirk.

     — Foi um hábito novo que adquiri, mas seja feliz e não me preocuparei — retrucou, julgando-se tolo por sentir como se algo precioso lhe estivesse sendo roubado. — Acho que são adultos o suficiente para saberem o que estão fazendo.

     — Acho que sim — concordou Foxy em tom suave, aumentando a pressão com que lhe segurava a mão.

     — Dê-me um beijo — ordenou Kirk.

     Quando Foxy se inclinou para obedecer, ele procurou os olhos de Lance. Um entendimento puramente masculino se passou entre ambos. Conheciam-se tão bem quanto irmãos, porém agora a mulher entre eles estreitara ainda mais aquele laço. Talvez, se não fossem tão próximos e não conhecessem tão bem os pensamentos um do outro, fosse mais simples. O caráter da amizade que os unia, tornava tudo mais complexo.

     — Não a magoe — avisou Kirk, mantendo a mão de Foxy firme na dele. — Vão morar naquela casa em Boston?

     — Isso mesmo — confirmou Lance. Foxy os observou, sabendo que diziam mais um para o outro do que poderia traduzir.

     De repente, a expressão de Kirk suavizou e um sorriso lhe curvou os lábios.

     — Não estarei era forma para cruzar a nave da igreja e lhe dar a mão de Foxy.

— Deteve-se apertando a mão da irmã por um tempo, antes de oferecê-la a Lance.

— Faça-a feliz — ordenou, enquanto executava o gesto simbólico.

    

     Três dias depois, Foxy se encontrava sentada no Porsche alugado de Lance, enquanto o veículo perfazia as milhas entre Nova York e Massachusetts. Mantinha a mão sobre o colo, mas raramente a deixava imóvel. Girava continuamente a aliança de ouro no dedo anular da mão esquerda.

     Casados, pensou outra vez. Estamos de fato casados. Fora tudo tão rápido e destituído de emoção. Alguns momentos diante  de um juiz de expressão impassível. Um pequeno discurso. Apenas 15 minutos e a aliança lhe fora colocada no dedo. E aquilo tornara tudo real. Transformara-a na sra. Lancelot Matthews.

     Cynthia Matthews, refletiu, experimentando o som em sua mente. Ou talvez, matutou, deveria optar pelo mais elegante Cynthia Fox-Matthews. Quase deixou escapar uma risada. Elegância exigia mais do que um hífen. Foxy Matthews, decidiu. Aquilo seria suficiente.

     — Fará um buraco no dedo, antes de chegarmos a Rhode Island — observou Lance em tom calmo, porém Foxy se sobressaltou como se ele tivesse gritado. — Nervosa? — indagou, com um sorriso refletido na voz.

     — Não. — Não querendo revelar as bobagens que lhe passavam na mente, tentou inventar algo. — Estava pensando... Kirk parecia bem melhor, não acha?

     — Humm — concordou Lance acionando o limpador de para-brisa quando uma chuva fraca começou a cair. — Pam é o melhor remédio que ele pode ter.

     — Sim, concordo. — Foxy mudou de posição no banco, para ter uma clara visão do perfil dele.

     Meu marido, pensou e quase perdeu o fio da conversa.

Nunca conheci ninguém que soubesse lidar com Kirk tão bem quanto ela. Com exceção de você.

     — Kirk precisa de um copiloto que não se intimide com ele — justificou Lance, relanceando um olhar a ela. — Você também sempre soube como lidar com ele a seu modo. Até mesmo quando tinha treze anos, manipulava-o sem que ele percebesse.

     Uma leve ruga se formou entre as sobrancelhas de Foxy.

     — Nunca considerei que o estava manipulando... e nunca percebi que alguém notava.

     — Nunca houve nada em você que eu não notasse durante todos esses anos — retrucou ele, lançando-lhe um olhar profundo e calmo.

     O bastante para fazer a pulsação de Foxy disparar.

     Será Lance capaz de fazer isso comigo até a eternidade?, imaginou Foxy. Mesmo após a novidade do casamento se desgastar, será ele capaz de com apenas um olhar me transformar em geleia? Isso não mudou em dez anos. Terá mudado daqui há mais dez?

     A voz de Lance a arrancou dos devaneios e ela girou a cabeça para encará-lo mais uma vez.

     — Desculpe, o que disse?

     — Disse que foi um belo gesto ter dado seu buquê para... Apesar de ser uma pena não ter podido ficar com aquela pequena lembrança.

     Foxy fez menção de falar, mas corou e vasculhou a bolsa à procura de sua escova. No fundo dela, encontrava-se a fita de veludo branca que removera do buquê de orquídeas que, Lance havia lhe dado para que usasse no dia do casamento. O fato de achar que ele a julgaria uma tola sentimental por ter guardado a fita, fez com que segurasse a língua.

      Pegou a escova, quando se lembrou que usava os cabelos atados em um coque. Apressadamente, enfiou a escova na bolsa mais uma vez. A chuva fustigava de leve os vidros do carro e embaraçava a paisagem do outono.

     — Acho que foi um tanto rápido e seco, concorda? — comentou Lance. — Dez minutos em frente a um juiz, sem amigos ou a decoração tradicional, nem mesmo lágrimas ou arroz. — Relanceou o olhar a ela mais uma vez, com as sobrancelhas erguidas. — Acho que está se sentindo um tanto frustrada.

     — Não, claro que não. — Embora a mente se encarregasse de fantasiar por uma ou duas vezes a intrincada beleza de um casamento tradicional, não se sentia tão frustrada quanto se encontrava curiosa. Estaria se sentindo casada, se a cerimônia tivesse incluído véus e órgãos? Estaria experimentando aquele sentimento de irrealidade se tivesse existido uma cerimônia com direito à chuva de arroz? — Além disso — acrescentou, meneando a cabeça. — Não possuo nenhuma tia-avó Sarah para chorar baixinho no banco da igreja.

     — Pensar na família a fez se preocupar com a aliança de casamento outra vez.

     — Fez questão de uma aliança simples de ouro, sem pedras ou gravações — comentou Lance.

     — O quê? — Foxy seguiu o breve olhar que ele lançou a sua mão. — Oh, sim.

— Sentindo-se culpada, deixou pender a mão direita ao lado do corpo. — Sim, era exatamente o que eu queria.

     — A aliança serviu?

     — Serviu? Claro que serviu.

     — Então por que diabos a fica girando em torno do dedo? — O aborrecimento no tom de voz de Lance era evidente. Ciente de que o tom era justificado, Foxy suspirou, resignada.

     — Desculpe-me. Tudo está acontecendo tão rápido e ir para Boston... — Foxy mordeu o lábio inferior, antes de confessar. — Estou nervosa em conhecer sua família. Não tenho muita experiência nessa área.

     Lance pousou a mão sobre a dela por um breve instante.

     — Não julgue as famílias pela minha — advertiu ele em tom seco. — Ela não é do tipo que se costuma ver nos cartões de Natal.

     — Claro — concordou Foxy com um sorriso oblíquo. — Isso deveria me confortar.

     — Apenas não deixe que a aborreçam — aconselhou Lance, dando de ombros em um gesto displicente. — Eu não deixo.

     — É fácil para você falar — retrucou Foxy, torcendo o nariz para ele. — É um deles.

     — Assim como você. — Erguendo-lhe a mão, Lance deslizou o polegar sobre a aliança de casamento. — Lembre-se disso.

     — Fale-me sobre eles.

     — Suponho que terei de fazê-lo mais cedo ou mais tarde. — Dizendo isso, ele acendeu um cigarro. — Minha mãe é uma Bardett — uma família tradicional de Boston. Acredito que seus antepassados deram as coordenadas para Paul Revere.

     — Patriótico!

     — Os Bardett são notoriamente patriotas — respondeu, encostando o isqueiro do carro na ponta do cigarro. — De qualquer modo, minha mãe se orgulha de ser uma Bardett e uma Matthews, mas acima de tudo gosta de comitês.

     — Comitês? — repetiu Foxy. — Que tipo de comitês?

     — Todos os tipos, desde que sejam adequados a uma Bardett-Matthews. Adora organizá-los, responsabilizar-se por eles e se queixar deles. É uma esnobe desde as pontas dos cabelos brancos bem penteados até a extremidade dos sapatos italianos.

     — Que coisa horrível de se dizer!

     — Pediu-me para que eu falasse sobre eles — justificou Lance, com naturalidade.

— Minha mãe adora fazer trabalhos de caridade, que aparecem impressos nas páginas das revistas. Também acha que os pobres que pedem ajuda, deveriam ter o bom senso de não pedir até que ela tenha tempo de organizar um comitê. Porém, esnobe ou não, faz o bem a despeito de suas razões. Portanto, o que a motiva pouco importa.

     — Está sendo muito duro com sua mãe — comentou Foxy, franzindo o cenho ante o tom de voz do marido, enquanto recordava a própria mãe: uma mulher feliz, desorganizada e adorável que possuía o mesmo gosto de Kirk por tênis esfarrapados.

     Lance lhe dirigiu um olhar curioso de soslaio.

     — Talvez. Nós nunca pensamos do mesmo modo. Meu pai costumava achar os comitês que ela organizava divertidos e inofensivos. Não sou tão tolerante quanto ele.

— As rugas que vincavam a testa de Foxy se aprofundaram e ele lhe voltou seu sorriso torto. — Não se preocupe, não verá nenhum derramamento de sangue. Não nos entendemos, mas somos bastante civilizados.

     — E quanto aos Matthews? — indagou Foxy, intrigada.

     — Os Matthews têm à tendência de produzir uma ovelha negra a cada geração. Duzentos anos atrás, um Matthews fugiu e se casou com a servente de uma taverna local, maculando a linhagem sanguínea. — Lance sorriu como se satisfeito com aquela nódoa do passado e tragou o cigarro. — Mas na maioria, os Matthews são tão... tradicionais quanto os Bardett. Minha avó é toda dignidade.

     De acordo com as histórias que passam de tempos em tempos, sequer piscou, durante o tempo em que meu avô teve um caso com a condessa. No que lhe diz respeito, tal affair nunca existiu. A filha dela, minha tia Phoebe, é exatamente o que disse a condessa: enfadonha. Não foi capaz de ter um pensamento original em 15 anos. Há uma quantidade alarmante de tias, tios, primos e parentes por afinidade.

     — Eles moram todos em Boston, certo?

     — Não, graças a Deus. Encontram-se espalhados pelos Estados Unidos e Europa, mas uma grande parte deles se entrincheirou em Boston, Martha's Vineyard e cercanias.

     — Suponho que sua mãe ficou surpresa quando lhe contou sobre nosso casamento — comentou Foxy, detendo-se para não girar o anel no dedo outra vez.

     — Não contei a ela.

     — O quê? — Incrédula, ela girou para encará-lo. — Não lhe contou?

     — Não.

     Foxy entreabriu os lábios para perguntar o motivo, mas a razão lhe veio à mente. Lance está com vergonha de mim. Engolindo em seco, girou outra vez, observando a chuva do outono cinza. Cynthia Fox de Indiana não estava à altura dos Berdett e dos Matthews de Boston.

     — Suponho — começou com voz tensa. — Que deveria me manter escondida no sótão. Ou poderíamos forjar um pedigree.

     — Humm? — Preocupado, Lance relanceou o olhar à cabeça que ela mantinha voltada para a janela do carro, e tornou a fixá-lo na estrada. Após ultrapassar um caminhão que trafegava lentamente, jogou o toco do cigarro pela janela.

     Por alguns instantes, Foxy tentou segurar a língua e a raiva. Porém, não conseguiu.

     — Pode dizer a eles que sou uma princesa destituída de um país de Terceiro Mundo. Não falarei inglês nos primeiros seis meses — prosseguiu, furiosa e magoada,

— Ou eu poderia ser a filha de algum barão inglês que morreu e me deixou sem recursos. Afinal, é a linhagem que importa, não o dinheiro.

     O tom de voz com que ela proferia as palavras, captou a atenção de Lance. Fitando-a de soslaio, percebeu as lágrimas de raiva que lhe banhavam os olhos. No mesmo instante, franziu o cenho.

     — Que conversa é essa?

     — Se acha que não estou à altura de desempenhar o papel de sra. Lancelot Matthews, então pode simplesmente... — a frase morreu, quando ele girou o carro com uma guinada, parando no acostamento. Antes que Foxy pudesse recuperar o fôlego, ele a mantinha cativa em seus braços com força punitiva.

     — Não me faça escutar isso outra vez, entendeu? — A expressão de Lance era furiosa, mas ainda assim, ela ergueu o queixo, desafiadora, e o encarou.

     — Não, não entendi nada. — Para sua humilhação, lágrimas começaram a lhe brotar dos olhos e rolar pela face. O pranto surpreendeu a ambos. A ela, por ter começado tão repentinamente, sem lhe dar a oportunidade de controlá-lo. A ele, por nunca tê-la visto chorar antes.

     — Não — ordenou ele em tom áspero, sacudindo-a em seguida. — Não faça isso.

     — Farei se quiser. — Foxy engoliu em seco e deu vazão às lágrimas.

     Lance xingou antes de soltá-la.

     — Está bem. Vá em frente. Nadaremos de volta a Boston, mas quero saber o que causou todo esse pranto.

     Foxy vasculhou a bolsa à procura de um lenço de papel e não encontrou nenhum.

     — Não tenho um lenço de papel — disse, melancólica, secando as lagrimas com o dorso das mãos.

     Com outro xingamento, Lance retirou o lenço do bolso da jaqueta e o forçou sobre a mão de Foxy.

     — É de seda — comentou, antes de fazer menção de devolvê-lo.

     — Eu a estrangularei com ele em um minuto. — Como a se impedir de cumprir com a ameaça, Lance apertou o volante com ambas as mãos. — Não sairemos daqui — afirmou ele. — Até que me conte o que deu em você.

     — Nada. Não foi nada — insistiu ela, enquanto assoava o nariz na seda branca. Sentia-se totalmente insatisfeita consigo mesma, mas a raiva a forçou a continuar. — Por que deveria me importar com o fato de você não ter contado a seus familiares que nos casamos?

     Por um instante, o único som que se ouviu foi o fustigar leve da chuva contra o vidro e as fungadas de Foxy. O carro permanecia imóvel, com exceção do vaivém dos limpadores de para-brisa.

     — Acha — começou Lance em tom de voz inalterado. — Que não contei a minha família sobre o nosso casamento porque tenho vergonha de você?

     — O que mais poderia pensar? — rebateu Foxy. — Acho que um Fox de Indiana não é muito impressivo.

     — Idiota! — A palavra reverberou pelo exíguo interior do carro.

     O soluço de Foxy se transformou em um ofego. Fascinada, ela o observou lutar para dominar o que parecia ser uma violenta explosão de têmpera.

     Quando ele falou, a voz soou suave e controlada.

     — Não contei a minha família porque queria alguns dias de paz, antes de eles desabarem sobre nós. Tão logo saibam que estamos casados, terá início o carrossel social. Uma lua de mel seria o ideal, mas lhe expliquei que será impossível até que eu resolva algumas coisas. Estive afastado dos negócios por meses. Pensei que após o circuito e o acidente de Kirk, pudéssemos aproveitar uns dias de paz. Nunca me ocorreu que interpretaria de outra forma.

     Com um movimento rápido, Lance passou a primeira marcha e imergiu de volta no tráfego. O silêncio era completo e insuportável. Foxy enrolou o lenço de seda, formando uma bola, desejando encontrar uma forma de retomar a conversa.

     Os dias desde o acidente de Kirk haviam passado como um furacão na vida de Foxy. Lembrava-se de ter dormido e comido, mas não saberia precisar quantas horas seus olhos estiveram fechados ou o que ingerira. Seu casamento parecia envolto em uma aura de irrealidade.

     Mas é real, lembrou a si mesma. E Lance está certo. Sou uma idiota.

     — Desculpe-me — murmurou ela, erguendo o olhar para fitar o perfil do marido.

     — Esqueça. — A resposta foi concisa e rancorosa.

     Reconhecendo a dispensa no tom de voz de Lance, ela voltou a concentrar a atenção na paisagem embaçada pela chuva.

     Seriam todas as noivas inseguras?, imaginou, fechando os olhos. Não sou assim. Estou agindo e pensando como outra pessoa.

     A fadiga começou a se abater sobre ela, enquanto deixava a mente vagar. Irei me sentir melhor quando estivermos acomodados. Alguns dias de paz são exatamente do que necessito. Pensando assim, deixou que o som da chuva a persuadisse a dormir.

     Foxy gemeu e se espreguiçou. Não escutava mais o ruído cadenciado do Porsche sob seu traseiro, mas sim um balanço. Sentiu um borrifado frio em sua face e a girou para evitá-lo. Esbarrou em algo quente e macio. Reconheceu de imediato a fragrância que lhe provocava as narinas. Descerrou as pálpebras e deparou com a linha do maxilar de Lance. Aos poucos, percebeu que estava sendo carregada. Roçou a face no ombro do marido, enquanto a chuva continuava a cair insensivelmente. Um sombrio crepúsculo descia, trazendo consigo uma neblina fina.

     Além da fragrância de Lance, podia sentir o aroma da grama e das folhas úmidas. Um odor de outono, que em breve começaria a associar à Nova Inglaterra. Os passos de Lance eram quase imperceptíveis, abafados pelo nevoeiro que espiralava e cobria o solo. Havia algo estranho e surreal na luz turva e no silêncio.

     Desorientada, Foxy se moveu nos braços fortes.

     — Decidiu se juntar aos vivos outra vez? — indagou ele, estacando, e a fitando, sem se importar com a chuva.

     — Onde estamos? — Totalmente confusa, Foxy girou a cabeça para olhar ao redor. No mesmo instante, avistou a casa. Uma construção de três andares erguida em arenito castanho-avermelhado assomou a sua frente dela. As paredes se encontravam cobertas de hera verde-escura e brilhante pelo efeito da água da chuva. Varandas guarnecidas de peitoris em ferro forjado, circundavam o segundo e o terceiro andares e também estavam parcialmente ocultas por hera. As janelas eram altas e estreitas. Até mesmo sob a luz frouxa do crepúsculo, a casa possuía uma elegância e estilo perenes.

     — Esta é a sua casa? — questionou ela, deixando a cabeça pender para trás para obter melhor visão do telhado e da chaminé.

     — Pertenceu a meu avô — respondeu Lance, estudando a reação dela. — Ele a deixou para mim. Minha avó sempre preferiu a casa que possuíam em Martha's Vineyard.

     — É linda — murmurou Foxy. A chuva que lhe fustigava e molhava a face foi completamente esquecida. Sentiu um afeto imediato pela hera e pelo arenito castanho-avermelhado envelhecido.

     Ele tinha raízes naquela casa, pensou e se apaixonou.

     — É realmente bela.

     — Sim, é — concordou Lance, escrutinando a face da mulher.

     Foxy ergueu o olhar e encontrou o dele. Sorriu, piscando para dispersar os pingos de chuva dos cílios.

     — Está chovendo — lembrou ela.

     — Sim, está. — Lance a beijou, detendo-se por um longo instante. — Seus lábios estão úmidos. Gosto do modo como a chuva gruda em seus cabelos. Sob esta luz, parece pálida e etérea. — Os olhos que a fitavam tinham a cor da névoa que se tornava mais espessa e parecia se retorcer em uma teia gigante em torno deles. — Se eu soltá-la, desaparecerá?

     — Não — murmurou ela, deslizando os dedos pelos cabelos úmidos que caíam sobre a fronte de Lance. — Não desaparecerei. — Uma repentina onda de desejo pelo marido a assolou, fazendo-a estremecer.

     — Acho que é real o suficiente para pegar um resfriado se continuar parada debaixo da chuva. — Lance aumentou a pressão dos braços em torno dela e começou a caminhar.

     — Não precisa me carregar. Lance subiu com agilidade os degraus da frente.

     — Não acha que devemos fazer pelo menos alguma concessão ao tradicional?

— indagou, enquanto fazia uma manobra para enfiar a chave na fechadura. Empurrando a porta com o ombro, carregou Foxy pela soleira, imergindo na escuridão do interior da casa. — Bem-vinda ao lar — murmurou ele, capturando-lhe os lábios em um beijo longo e suave.

     — Lance — sussurrou Foxy, profundamente comovida. — Eu o amo.

      Com um movimento lento, ele a pousou no chão. Por um instante, permaneceram próximos um do outro. As faces delineadas contra céu escuro. Antes de fecharem a porta, decidiu Foxy, não poderia haver nada pendente entre eles.

     — Desculpe-me pela cena que fiz no carro.

     — Já se desculpou.

     — Mas você estava demasiado enraivecido para suportar dois pedidos de desculpas.

     Lance riu e lhe depositou um beijo no nariz. Porém, mudando de ideia, decidiu-se por lhe tomar os lábios outra vez. Ao que parecia, o homem com quem se casara era capaz de obter mais de um beijo do que ela pensava ter a oferecer.

     — A raiva é a melhor arma contra as lágrimas — retrucou ele, deslizando as mãos pelos braços de Foxy. — Você me desconcertou. Sempre o faz quando se esquece de ser invencível. — Ergueu a mão para traçar o contorno do queixo delicado com um dedo. Os olhos cinza, escurecidos, acompanhavam o movimento. — Talvez devesse ter explicado melhor as coisas para você, mas não estou acostumado a dar satisfações. Ambos teremos que fazer alguns ajustes. — Tomou-lhe as mãos e as levou aos lábios. — Confie em mim, por enquanto, está bem?

     — Sim — concordou ela. — Tentarei. — Após lhe soltar as mãos, Lance fechou a porta encerrando a umidade fria do lado de fora.

     Por um instante, a casa imergiu em total escuridão. E então, abruptamente o hall de entrada se iluminou. Foxy se encontrava parada no centro dele e girou em um círculo lento. A sua esquerda, encontrava-se a escada, lustrosa e sem tapete. O corrimão de carvalho tinha uma aparência macia e sedosa. À direita, um cabideiro espelhado, que um dia refletira a face da tataravó de Lance. Ele observou, enquanto Foxy estudava os castiçais Revere e um Gainsborough com moldura dourada. A luz do candelabro a banhou, refletindo o brilho dos pingos da chuva nos cabelos ruivos. Tinha uma aparência etérea no vestido verde simples que escolhera como traje de noiva. As mangas eram longas e estreitas, com gola chinesa alta e uma saia caía reta e sem adornos de uma cintura justa. A única joia que usava era a aliança simples de ouro, que ele lhe colocara no dedo. Parecia intocada como a primavera, mas a sensualidade do outono se refletia em seus movimentos.

     — Não conseguiria imaginá-lo em um lugar como este — disse, após girar em círculo.

     — Oh? — Lance se recostou à parede e esperou que ela prosseguisse.

     — É linda — continuou Foxy com a voz repleta de admiração. — Realmente bela, mas é tão... tradicional — decidiu, voltando-se para encará-lo. — Acho que é isso. Nunca o imaginei tradicional.

     — Gosto de ser tradicional de vez em quando — respondeu, indiferente.

     Foxy concluiu que, trajado com o terno cinza, ele parecia à vontade em meio à hera e ao arenito castanho-avermelhado. Porém, havia algo nos olhos cinza, percebeu, que nunca seria domado. Trajes caros e antiguidades de valor inestimável nunca alterariam o homem que era. Ciente de ser louca a ponto de preferir o pecador ao santo, Foxy sentia-se satisfeita com aquilo.

     — Mas devo estar preparada para fazer as malas de um momento para o outro?

— perguntou ela, com um sorriso que lembrava muito o do irmão.

     — Que sorte a minha ter casado com uma mulher que me entende. — O sorriso enviesado e familiar ainda conseguia fazer disparar a pulsação de Foxy. Ele se aproximou e enrolou no dedo um dos cachos ruivos que lhe emolduravam a face. — E que tem uma aparência excepcionalmente bela também. É brilhante, tem a língua afiada, impulsiva o suficiente para ser fascinante e possuiu uma voz que soa como se estivesse constantemente excitada.

     Foxy corou com uma mistura de deleite e vergonha.

     — Parece que fez um bom negócio.

     — Oh, eu fiz — concordou Lance, porém, o sorriso feneceu, enquanto a fitava com olhar sério. — Um homem de negócios esperto, sabe quando fazer seu lance — Tão rápido quanto havia se tornado grave, a expressão solene em seu rosto se suavizou. Surpresa, Foxy observava as mudanças. — Está com fome? — indagou ele, de repente.

     Intrigada, ela meneou a cabeça.

     — Não muito. — Recordou as longas horas que ele dirigira. — Suponho que haja um alimento enlatado que eu possa abrir.

     — Podemos fazer melhor. — Tomando-lhe a mão, Lance a guiou através do corredor. Os aposentos à esquerda e à direita se encontravam escuros e misteriosos.

— Telefonei para a sra. Trilby ontem. Ela faz os serviços da casa para mim. Disse-lhe que eu estava chegando e que ela preparasse tudo. Não sou afeito a camadas de pó nos móveis e a dispensas vazias. — Passou por uma porta no fim do corredor. Quando ele girou o interruptor, a luz banhou a cozinha.

     — Oh, isso é maravilhoso! — exclamou Foxy, enquanto entrava na cozinha.

— Funciona? — perguntou, dirigindo-se imediatamente à pequena lareira arqueada, construída em uma das paredes.

     — Sim, funciona. — Lance sorriu, quando ela se inclinou para escrutinar o interior.

     — Adoro lareiras — comentou Foxy, rindo, quando se ergueu. — Provavelmente vou querer que fique acesa em agosto. — Deslizou o dedo sobre a superfície da mesa de pinho montada sobre cavaletes, que se encontrava postada sob a curvatura de uma sacada. — O único fogo de que disponho em minha cozinha é aquele com que costumo queimar o bacon.

     — Esta é a sua cozinha — lembrou Lance, observando-a, enquanto afrouxava o nó da gravata e a retirava. Havia algo intensamente íntimo no gesto. Foxy sentiu uma rápida palpitação e girou para caminhar pela cozinha.

     — Não sou muito doméstica — confessou ela. — Não sei sequer onde guardo o café.

     — Tente o balcão atrás de você — sugeriu Lance, quando girou para encontrar o que a sra. Trilby havia deixado no refrigerador.

     — Sabe cozinhar?

     — Diga o nome de qualquer preparação — desafiou Foxy, localizando o pó de café. — E saberei cozinhar.

     — Abrirei mão do filé Wellington devido à falta de tempo e à fome. Que tal dois omeletes?

     — Comida de criança — opinou Foxy, relanceando o olhar sobre o ombro. — Sabe cozinhar?

     — Apenas se adormecer na praia.

     — Dê-me uma caçarola — ordenou ela, tentando parecer desgostosa.

    

     Os Lancelot Matthews se deleitaram com o jantar de núpcias composto de omelete e café à mesa da cozinha. Do lado de fora, a escuridão era plena, com a chuva ainda caindo é a lua, uma prisioneira das nuvens. Foxy perdeu a noção do tempo. Podia ser sete horas da noite ou três horas da manhã.

     Aquela sensação era suavizante. Desejando prolongá-la, Foxy ignorou o relógio de pulso. Disfarçados pela conversação trivial, os nervos lutavam para vir à tona. Repreendeu a si mesma por possuí-los. Tentou esquecê-los, mas eles persistiam, latentes sob o verniz da confiança. Brincou com o resto de seus ovos, enquanto Lance dividia, entre ambos, o que sobrara do café.

     — Por isso é tão magra — comentou ele. Quando Fox o fitou com olhar vazio, Lance continuou. — Não se interessa por comida. Perdeu peso durante a temporada. Percebi a rapidez com que emagreceu.

     Foxy deu de ombros, mas em um gesto disciplinado, ingeriu o que restava de seus ovos.

     — Não gosto muito de comer em restaurantes. Recuperarei o peso em algumas semanas. — Foxy lhe voltou um sorriso. — Posso não estar muito interessada em comida, mas estou bastante interessada em um banho quente.

     — Vou acompanhá-la ao andar de cima — anunciou Lance, enquanto se erguia.

 — Depois, vou retirar as malas do carro. O resto da bagagem deverá chegar amanhã.

     Foxy se levantou e começou a recolher os pratos. Embora soubesse que estava sendo tola, sentiu os nervos tensionarem outra vez.

     — Não precisa me acompanhar, diga-me apenas que toalete devo usar. Eu o encontrarei.

     Lance lhe fitou as costas, enquanto ela colocava os pratos na pia.

     — O toalete é a segunda porta à direita do quarto. Deixe os pratos aí — ordenou ele.

     Foxy fez menção de recusar, mas a mão firme em seu ombro a fez esquecer as inquietações. Precisava de alguns momentos, sozinha, para recobrar se recompor.

     — Está bem — concordou ela, girando e anuindo com um gesto de cabeça. — Serei breve. Imagino que esteja ansioso por um banho após dirigir o dia todo.

     — Não se apresse. — Deixaram a cozinha juntos e rumaram pelo corredor principal. — Usarei outro toalete.

     — Está bem — disse Foxy, quando se separaram ao final do corredor.

     Como estamos sendo formais!, pensou ela, enquanto subia apressada os degraus. E assustadoramente casados.

     No quarto, um par de portas francesas se abriu para a varanda. As paredes eram cobertas por um suntuoso papel de parede na cor creme com acabamento mais escuro no teto e no chão. A mobília era uma mistura de períodos e estilos: Hepplewhite, Chippendale e Queen Arme. O resultado era tanto requintado quanto simples. Postada na parede dos fundos se encontrava uma lareira construída em tijolos brancos, com cornija de mármore. Dentro, pedaços de toros de madeira aguardavam para serem queimados. Foxy concluiu que a sra. Trilby devia ser mesmo eficiente. A cama era alta, e composta de quatro colunas e estava coberta por uma colcha azul-escuro. Uma herança, percebeu de imediato, provavelmente de valor inestimável.

     Prendeu o lábio inferior entre os dentes. Aquele era o tipo de coisa com que teria de lidar. Pior, com que teria de viver.

     Estou sendo idiota. Casei-me com Lance, não com o dinheiro dele, nem com a família. Nervosismo de recém-casada. Não me sentiria tão deslocada e tensa se fosse mais experiente.

     O olhar de Foxy se deteve na cama outra vez, enquanto exalava um profundo suspiro. Em seguida, fitou as mãos. A aliança de casamento faiscava no dedo anular esquerdo. Ignorando o formigamento no estômago, começou a se despir.

     No banheiro, descobriu mais provas da eficiência da sra. Trilby. Toalhas limpas se encontravam sobre a bancada, juntamente com uma coleção de sabonetes, óleos e sais de banho. A banheira era embutida no chão e larga o suficiente para duas pessoas. Foxy sentiu um arrepio na pele ante ao pensamento de relaxar nela.

     Quando a água quente começou a escorrer, adicionou o óleo e os sais. Uma nuvem de vapor fragrante encheu o toalete e Foxy se deleitou com o banho revigorante. Meia hora depois, saiu da banheira. Os músculos se encontravam relaxados e a pele rosada e perfumada. Escolhendo uma toalha verde, enrolou-a em torno do corpo. Estimulada pelo banho, soltou um gemido suave, enquanto soltava os grampos e os cabelos lhe caíam em uma cascata ruiva e desordenada sobre os ombros. Deslizou os dedos pelos fios sedosos em uma tentativa de domá-los.

     Encontrarei uma escova e um robe em uma das malas de viagem, disse para seu reflexo no espelho. Certamente Lance as trouxe para cá. Deixando os cabelos revoltos, Foxy abriu a porta que conectava ao quarto e penetrou no aposento iluminado pela luz aconchegante dos abajures de porcelana e do fogo que queimava na lareira. O cheiro e o som da madeira queimada fizeram a atenção de Foxy se voltar à lareira. Encontrava-se no centro do quarto quando o avistou.

     Com um discreto ofegar, segurou a toalha que se encontrava frouxamente enrolada na altura dos seios. Trajando um robe no estilo quimono preto, Lance se encontrava parado ao lado de uma mesa redonda com tampo de vidro. Estacou no meio do ato de abrir um champanhe e estudou cada centímetro da esposa. Com a mão livre, afastou os cabelos úmidos da face.

     — Gostou do banho? — indagou ele, abrindo o champanhe, sem desviar os olhos dela.

     — Sim. — Relanceando o olhar ao redor, Foxy avistou suas malas. — Não o escutei entrar — disse ela, sabendo que a voz não soava normal. — Pretendia pegar minha escova e um robe.

     — Por quê? — Com movimentos hábeis, ele serviu duas taças do líquido borbulhante. — O verde lhe cai bem. — Os dedos de Foxy se fecharam em torno da toalha, fazendo-o sorrir. Um sorriso pecaminoso e devasso que sempre a deixava nervosa. — E gosto de seus cabelos soltos. Venha — convidou ele, lhe estendendo uma taça. — Tome um pouco de champanhe.

     Não fora como Foxy planejara. Sabia que deveria estar vestida com o penhoar que Pam lhe dera. Deveria estar atraente e confiante, pronta para ele. Não estava em seus planos receber o marido na noite de núpcias enrolada em uma toalha de banho com os cabelos amarfanhados e com expressão perplexa estampada no rosto. No entanto, obedeceu ao comando, aceitando a taça na esperança de que o champanhe diminuísse a secura que sentia na garganta. Quando levava a taça aos lábios, Lance lhe segurou o punho. A pulsação disparou sob os dedos longos.

     — Não vamos brindar, Foxy? — indagou ele em tom suave, com o sorriso pecaminoso ainda lhe curvando os lábios. Os olhos cinza se encontravam fixos nos dela, enquanto Lance deu um passo à frente e tocou a taça à dela em um brinde. — A uma corrida bem-sucedida.

     Foxy ergueu a taça, cautelosa, observando-o, enquanto ele sorvia o líquido espumante. O champanhe tinha um efeito eletrizante sobre sua língua.

     — Apenas uma taça esta noite — murmurou ele. — Não quero sua mente embotada.

     — Ela clareou a garganta e umedeceu os lábios.

     — Nunca vi tantas antiguidades em um só lugar.

     — Gosta de antiguidades?

     — Não sei — respondeu Foxy, enquanto caminhava pelo quarto. — Nunca tive nenhuma. Devo gostar. — As últimas palavras soaram como um sussurro, quando ela girou e o encontrou logo atrás dela.

     Havia algo estranho no modo como Lance se movia silenciosamente. Foxy recuaria um passo se a mão longa não deslizasse em torno de seu pescoço.

     — Acho que só há um jeito de mantê-la parada. — Com apenas uma pequena pressão dos dedos na nuca de Foxy, ele a puxou para perto e lhe tomou posse dos lábios. Ela sentiu o quarto oscilar. A ponta da língua macia provocava a dela, antes de lhe traçar o contorno dos lábios.

     — Gostaria de discutir minha coleção Hepplewhite? — questionou ele, tomando a taça dos dedos flácidos de Foxy.

     — Não — retrucou ela, descerrando as pálpebras.

     Até mesmo o monossílabo lhe custava um esforço enorme, enquanto deslizava o olhar pela boca sensual do marido. Segundos depois, ele a beijava outra vez e a paixão espiralou em seu interior. Encontrava-se grudada a ele, sem se dar conta de se mover. A toalha escorregou, despercebida, em direção ao chão.

     Com um som abafado de prazer, Lance enterrou os lábios na curva do pescoço delicado, enquanto as mãos escorregavam sobre a pele quente. Foxy viu-se assolada de desejo e pressionou o corpo ao dele.

     — Lance — murmurou, sentindo o sangue latejar em suas orelhas. — Eu o quero. Faça amor comigo. Agora. — As palavras se perderam nos lábios ávidos que se apossaram dos dela. — A luz — ofegou Foxy, enquanto ele a deitava na cama.

     Os olhos cinza se encontravam escurecidos e instigantes.

     — Quero vê-la.

     O corpo másculo se moldava ao dela. Não a amou com suavidade. Foxy não esperara gentileza ou paciência. Imaginara calor, urgência e paixão e não se desapontou. As mãos longas moviam-se firmes sobre seu corpo, explorando-o antes de se apossarem do que queriam. Abandonando os lábios intumescidos de Foxy, deslizou a língua pelo pescoço delicado, sempre faminto, em uma jornada extasiante em direção aos seios firmes. Ela gemeu, experimentando espasmos de prazer, quando ele deslizou a língua pelo mamilo rígido. O desejo se espalhava por seu abdome e ventre, enquanto as mãos experientes a apertavam e deslizavam por suas costelas, antes de se deterem na cintura e quadris, ao mesmo tempo em que os lábios quentes e tentadores lhe sugavam os seios.

     Foxy começou a se contorcer sob ele. O instinto feminino, tornando seus movimentos sensuais e convidativos. As mãos longas massageavam a pele sensível do interior de suas coxas, fazendo com que os músculos relaxassem. Aprendeu que ele fazia amor como um dia correra, com intensidade e dedicação. Havia nele uma rudeza, um domínio latente, um poder que exigia mais do que submissão. O abandono seria uma resposta muito suave. Foxy descobriu seu próprio poder. Ele necessitava dela. Podia sentir na urgência das mãos que a exploravam e na fome dos lábios que a assaltavam. Encontravam-se entrelaçados um no outro. Carne contra carne, lábios contra lábios, como se a única realidade fosse a umidade dos beijos que trocavam e o calor da pele de ambos. O aroma suave da madeira queimada acrescentava algo eterno e primitivo ao ato.

     Enquanto sentia o corpo formigar sob as mãos hábeis, Foxy começou a imprimir sua própria exploração. Descobriu os músculos rígidos e definidos que a magreza de Lance disfarçava. Enquanto movia os dedos pelos quadris retos, ele gemeu contra seus lábios e aprofundou o beijo. As mãos antes urgentes se tornaram selvagens, desesperadas e Foxy despencou com ele em um mundo regido apenas pelas sensações. O prazer era acurado, aguçado e lhe trazia uma pontada de dor. Parecia não haver uma parte dela que Lance não quisesse conhecer, saborear e conquistar.

     Foxy fechou os braços em torno do pescoço forte, enterrando os lábios na pele quente é úmida. O sabor dele a preencheu de imediato. Ali havia algo obscuro e masculino que ansiava por conhecer. Sendo assim, traçou com a ponta da língua uma trilha quente e úmida sobre a pele em chamas, explorando-o, descobrindo-o. A paixão cresceu a um ponto que ela imaginou impossível. Tanto emocional quanto fisicamente a resposta de Foxy era absoluta. Pertencia àquele homem. O ar saía com dificuldade dos pulmões, transpondo os lábios em forma de gemidos e suspiros. O desejo chegou ao auge, quando Foxy sussurrou o nome dele.

     — Lance. — De imediato a boca ávida se apossou de seus lábios com desespero renovado, impedindo-a de falar, antes de se mover sobre ela, apartando-Ihe as pernas.

     O prazer que Foxy julgara ser insuperável, cresceu. A paixão a invadia em ondas quentes e irresistíveis, subjugando-a em uma jornada tumultuada até que todos os seus sentidos se fundissem em um só.

     A madrugada se aproximou lentamente. Ainda se encontrava aninhada nos braços fortes, quando o ruído contínuo da chuva a seduziu a dormir.

    

     Foxy se sentia alegre. A bruma vermelha além de suas pálpebras lhe dizia que o sol se refletia em sua face. Com um breve suspiro, permitiu que o sono se esvaísse lentamente. Recordou-se das calmas manhãs de sábado, quando era criança. Naquele tempo, costumava ficar deitada na cama, prazerosamente sonolenta, sabendo que não haveria nada além de coisas boas durante o dia. Não haveria preocupações, compromissos ou responsabilidades. A escola e a manha de segunda-feira se encontravam a séculos de distância.

     Flutuou sobre a linha tênue da inconsciência, sentindo-se protegida e livre; uma combinação de sensações que não experimentava há uma década.

     Um peso sobre sua cintura contribuía para aquela sensação de segurança. Ao lado dela havia calor. Aninhou-se a ele. Preguiçosamente, deixou que as pálpebras se erguessem para deparar com os olhos de Lance. O passado foi substituído pelo presente, mas a sensação com a qual acordara permaneceu. Nenhum dos dois disse nada. Percebeu na clareza do olhar do marido, que ele estava acordado há algum tempo. Não traía nenhum sinal de sonolência. Os olhos cinza estavam tão aguçados e focados quanto os dela se encontravam nebulosos e pesados. Os cabelos negros se encontravam revoltos, lembrando-a de que foram seus dedos que os despentearam horas antes.

     Continuaram a se encarar, enquanto os lábios se aproximaram para se roçarem de leve. O pensamento de estarem despidos e entrelaçados penetrou no contentamento sonolento de Foxy. O braço em torno de sua cintura era firme e possessivo.

     — Parece uma criança enquanto dorme — murmurou ele, enquanto os lábios lhe exploravam a face. — Muito nova e intocada.

     Foxy não queria revelar que estivera pensando em sua infância. Enquanto os dedos longos lhe traçavam o contorno da coluna, sentiu-se cada vez mais como uma mulher.

     — Há quanto tempo está acordado?

     A mão de Lance vagava por seu corpo com uma intimidade distraída. Recordando que na noite anterior aquele toque não fora distraído, Foxy sentiu a sonolência a desertar.

     — Há algum tempo — retrucou ele, enquanto a puxava mais para perto. — Pensei em acordá-la. Os olhos cinza perscrutaram a face corada e sonolenta de Foxy, os cabelos revoltos espalhados no travesseiro e a maciez dos lábios sem pintura. — Mas preferi observá-la enquanto dormia. Não são muitas as mulheres que conseguem ser suaves e excitantes pela manhã.

     Foxy ergueu as sobrancelhas em um gesto deliberado.

     — É grande conhecedor da aparência das mulheres nas primeiras horas da manhã?

     Lance sorriu e, em seguida, roçou a face na curva do pescoço delicado.

     — Costumo acordar cedo.

     — Pretensioso — murmurou Foxy, sentindo a alegria matinal se misturar a uma sensação mais exigente. — Suponho que esteja com fome. — Sentiu a ponta da língua de Lance escorregar por sua pele.

     — Oh, sim. Estou com muito apetite esta manhã — respondeu ele, prendendo-lhe o lábio inferior entre os dentes. Uma onda de desejo a invadiu de imediato. — Tem um sabor muito atraente — elogiou Lance, ao mesmo tempo em que lhe invadia a boca.

— Estou descobrindo esse hábito se formar. Sua pele é incrivelmente macia — continuou, enquanto espalmava uma das mãos no seio firme. — Ainda mais para alguém que parece ser feita apenas de ossos e nervos. — Deslizou a ponta do polegar pelo mamilo e observou os olhos de Foxy se enevoarem. — Acho que não me saciarei de você tão cedo.

     Lance a excitava rapidamente com palavras doces e mãos experientes. O toque não lhe era mais estranho e se tornava ainda mais instigante por sua familiaridade. Sabia o que a esperaria quando todas as portas estivessem abertas. Ela aprendia, deleitava-se e compartilhava. A manhã aos poucos se esvaía.

    

     Passava do meio-dia, quando Foxy desceu a escada em direção ao primeiro andar. Movia-se lentamente, dizendo a si mesma que aquele dia se arrastaria para sempre se não o apressasse. Queria explorar a casa, mas girou, decidida, em direção à cozinha. Os demais aposentos esperariam até que Lance se juntasse a ela. Caminhara apenas dois passos no corredor, quando a campainha soou. Erguendo o olhar ao topo da escada, Foxy concluiu que o marido não teria terminado o banho e decidiu atender à porta.

     Duas mulheres se encontravam paradas no pórtico branco coberto. Um olhar revelou a Foxy que não se tratava de vendedoras batendo à porta. A primeira era jovem, por volta da mesma faixa etária de Foxy, com cabelos negros e compleição rosada. Possuía olhos castanhos e curiosos de uma jovialidade bela e franca. Os trajes eram casuais, porém, dispendiosos: um conjunto de lã composto de jaqueta bem cortada, saia godê e blusa de seda. Exalava autoconfiança por todos os poros.

     A segunda mulher era mais madura, mas não menos estonteante. Os cabelos eram curtos e brancos, afastados em um coque da face delicada e pálida. Possuía algumas rugas e linhas de expressão. A perceptível beleza se evidenciava mais graças à soberba estrutura óssea e coloração de camafeu, do que à aplicação generosa de pintura. O traje azul-claro combinava com a cor dos olhos, cuja simplicidade não conseguia disfarçar o preço. No instante em que se observavam mutuamente, ocorreu a Foxy que a expressão da mulher, apesar de graciosa, era inexpressiva. Como a pintura de uma paisagem agradável, retratada sem imaginação.

     — Olá — cumprimentou Foxy, alternando um sorriso entre as duas. — Em que posso ajudá-las?

     — Talvez fosse o suficiente deixar-nos entrar. — Foxy reconheceu a cadência do sotaque de Boston na voz da mulher mais velha antes que ela adentrasse, desenvolta, o corredor. Mais curiosa do que aborrecida, Foxy se afastou para o lado para permitir que a mulher mais jovem cruzasse a soleira da porta.

     Parada no meio do corredor, a mais velha, retirou as luvas brancas de pelica e observou a calça jeans justa e o suéter largo de chenile que Foxy usava. De repente, o ar se impregnou do perfume francês.

     — E onde está... — indagou ela, imperiosa. — meu filho?

     Deveria ter imaginado, pensou Foxy, enquanto os frios olhos azuis a escrutinavam. Mas como Lance é diferente dela! Não há sequer um sinal de semelhança.

     — Lance está lá em cima, sra. Matthews — informou Foxy, forçando um sorriso.

 — Eu sou...

     — Pois então vá chamá-lo — interrompeu a senhora com um gesto autoritário. — E diga-lhe que estou aqui.

     A rudeza e o tom de desdém, suscitaram a raiva de Foxy. Tentando controlar a língua, forçou-se a falar com calma.

     — Temo que ele esteja tomando banho no momento. Gostaria de esperar?

— indagou, empregando o tom de uma recepcionista de consultório de dentista. Pelo canto da vista, percebeu o olhar divertido da mulher mais jovem.

     — Venha, Melissa — chamou a sra. Matthews, batendo com a luva contra a palma da mão, claramente aborrecido. — Aguardaremos na sala de estar.

     — Sim, tia Catherine. — O tom da jovem era de concordância, mas o olhar que lançou a Fox por sobre o ombro, enquanto seguia a mulher, era de enfado.

     Inspirando profundamente, Foxy as seguiu. Controlou-se para não observar a sala como uma recém-chegada, decidindo que Catherine Matthews não precisava saber que ela não conhecia mais do que o quarto de Lance naquela casa. Ainda assim, seus olhos flutuaram para um piano de meia cauda, passando pelo tapete persa e um abajur Tiffany, para voltar à figura majestosa acomodada na cadeira de couro de espaldar alto.

     — Talvez desejem tomar algo enquanto esperam — ofereceu Foxy. Na esperança de que seu tom fosse mais polido do que seus pensamentos, forçou outro sorriso. Sabia que era necessário apresentar-se, mas o ar de desprezo de Catherine a persuadiu a esconder sua identidade. — Talvez um chá — sugeriu. — Ou café.

     — Não — recusou Catherine, pousando a carteira de couro tipo envelope sobre a mesa. — Lancelot criou o hábito de contratar jovens desconhecidas para entreter seus convidados.

     — Não saberia lhe responder — retrucou Foxy, no mesmo tom, sentindo a espinha dorsal se empertigar em um gesto de defesa. — Não passamos muito tempo discutindo sobre jovens desconhecidas para entreter convidados?

     — Estou certa de que conversar não é o objetivo de meu filho com a senhorita. — Pousando ambas as mãos nos braços da cadeira, tamborilou as unhas pintadas sobre a madeira polida. — Lancelot raramente opta por flertar com mulheres jovens devido à prodigalidade do vocabulário delas. Os gostos do meu filho geralmente me desconcertam, mas desta vez estou perplexa. — Arqueando as sobrancelhas, lançou-Ihe um olhar avaliador. — Onde ele a encontrou?

     — Vendendo caixas de fósforos em Indianápolis — disparou Foxy, antes que pudesse se conter. — Ele pretende me reabilitar.

     — Não sonharia em fazer isso — afirmou Lance, adentrando a sala de visitas. No mesmo instante, Foxy agradeceu o fato de ele estar vestido exatamente como ela: calça jeans, camiseta e pés descalços. Beijou-a de leve, enquanto se encaminhava para cumprimentar a mãe. Inclinando-se, roçou com os lábios a face que Catherine lhe ofereceu. — Olá, mamãe, está com ótima aparência. Prima Melissa. — Lance sorriu ao girar para beijar a prima. — Vejo que está cada vez mais graciosa.

     — É bom vê-lo — retrucou Melissa, batendo os cílios de maneira coquete. — Não há monotonia quando você está por perto.

     — Esse é o maior elogio que poderia me fazer — replicou ele, voltando a atenção mais uma vez à mãe. — Imagino que a sra. Trilby lhe contou sobre minha chegada.

     —: Sim — retrucou Catherine, cruzando as pernas surpreendentemente belas e jovens. —Acho um tanto desagradável ouvir notícias de meu filho através de criados.

     — Não fique aborrecida com a sra. Trilby — disse Lance em tom displicente.

— Provavelmente pensou que já sabia. Pretendia lhe telefonar no fim da semana.

Catherine ficou indignada com o fato de o filho fingir não ter entendido o que quisera dizer, mas quando falou, a voz suou fria e inexpressiva. Observando-a, Foxy lembrou o comentário de Lance sobre os Bardett serem sempre civilizados. Ao modo deles, pensou ela, recordando o conflito inicial.

     — Suponho que devo ficar agradecida pelo fato de pretender me telefonar, já que parecia estar envolvido com sua... — relanceou um olhar a Foxy. — convidada. — Ergueu uma das sobrancelhas. — Talvez devesse dispensá-la para que pudéssemos ter uma conversa particular. Como Trilby não está aqui, talvez ela possa nos servir chá.

     Sabendo que explodiria se ficasse ali mais um minuto, Foxy girou, fazendo menção de se trancar no quarto até que pudesse ser digna de confiança outra vez.

     — Foxy. — Lance a chamou com voz suave, porém ela reconheceu o disfarçado tom de comando. Com o olhar faiscando, Foxy girou outra vez. Ele cruzou o aposento de maneira casual e deslizou o braço em torno dos ombros da esposa. — Acho que não foram apresentadas.

     — Apresentações — interrompeu a mãe. — Não são necessárias ou apropriadas.

     Lance inclinou a cabeça para o lado.

     — Se já acabou de insultá-la, mamãe, gostaria de lhe apresentar minha esposa.

     Um silêncio profundo se abateu no ambiente. Catherine Matthews não ofegou de surpresa. Apenas fitou Foxy como se estivesse avaliando uma estranha peça de arte em uma galeria.

     — Sua esposa? — repetiu ela, em tom de voz calmo e com expressão destituída de emoção. Cruzando as mãos sobre o colo, voltou o olhar ao filho. — Quando isso aconteceu?

     — Ontem. Foxy e eu nos casamos pela manhã em Nova York. Depois viajamos de carro direto para cá para... — Um sorriso sardônico se estampava nos olhos cinza, enquanto fitava a mãe. — Uma lua de mel informal.

     Lance está se divertindo, percebeu Foxy, ouvindo o tom sarcástico na voz do marido. Notou, também, pela frieza na entonação de Catherine, que ela não estava achando nada divertido.

     — Espero que Foxy não seja seu nome de batismo.

     — Cynthia — informou categórica, cansada de se referirem a ela como alguém que não estivesse presente.

     — Cynthia — murmurou Catherine, pensativa. Não lhe ofereceu a mão ou a face para um cumprimentou ou um beijo; Em vez disso, escrutinou-lhe a face cuidadosamente pela primeira vez, obviamente considerando o que poderia ser feito para salvar a situação. Eu sou a situação, percebeu Foxy, com um lampejo de humor. — E seu nome de solteira? — perguntou Catherine, inclinando a cabeça com expressão questionadora.

     — Fox — retrucou ela.

     — Fox— repetiu Catherine, tamborilando os dedos sobre o braço da cadeira. — Fox. O nome me é vagamente familiar.

     — O piloto patrocinado por Lance — lembrou Melissa, solícita. Fitava Foxy com indisfarçada fascinação. — Suponho que seja irmã dele ou algo parecido, certo?

     — Sou irmã dele. — A curiosidade explícita da jovem fez Foxy sorrir. — Olá.

     Mellissa mantinha uma expressão travessa. Como Lance, notou Foxy, a menina estava gostando do confronto.

     — Olá.

     — Você a conheceu em uma... uma... — Os dedos de Catherine ondulavam, enquanto procurava por um termo apropriado. — Corrida automobilística? — Os primeiros sinais de fúria permearam as palavras. Foxy se empertigou mais uma vez ante a expressão de desdém que a mulher lhe lançava.

     — Eu gostaria de tomar um café, Fox, se importa em prepará-lo? — Empertigando-se outra vez, ela lhe lançou um olhar inflamado. — Melissa poderia ajudá-la — continuou, cortando a iminente explosão de Foxy. — Importa-se, Melissa? — questionou Lance, sem desviar os olhos da esposa.

     — Claro que a ajudo. — Melissa se ergueu, obediente e cruzou o aposento.

     Sem saída, Foxy lutou contra a onda de raiva e girou, deixando Lance e a mãe em silêncio.

     — É verdade que conheceu Lance em uma corrida automobilística? — indagou Melissa, enquanto adentravam a cozinha. Não havia nenhuma intenção escusa na pergunta, apenas curiosidade.

     — Sim. — Ainda lutando contra a fúria, Foxy conseguiu manter o tom de voz controlado. — Há dez anos.

     — Dez anos? Devia ser uma criança! — Melissa pôs a mesa, enquanto Foxy preparava o café. A luz do sol incidia pela janela, tornando a garoa do dia anterior apenas uma lembrança — E dez anos depois, ele se casou com você. — Com os cotovelos sobre a mesa, Melissa apoiou o queixo nas mãos cruzadas. —É extremamente romântico.

     Sentindo a raiva se afilar, Foxy deixou escapar um suspiro.

     — Suponho que sim.

     — Não me importaria muito com tia Catherine — aconselhou Melissa, estudando o perfil de Foxy. — Ela não aprovaria ninguém que não tivesse escolhido a dedo.

     — Isso é confortador — replicou Foxy. Querendo se manter ocupada, começou a ferver um bule de chá também.

     — Haverá também um grande contingente de mulheres entre vinte e quarenta anos que desejará matá-la — acrescentou Melissa, enquanto cruzava as pernas. — Nunca faltaram pretendentes ao título de sra. Lancelot Matthews.

     — Que ótimo. — Foxy se voltou para encarar Melissa, debruçando-se sobre o balcão. — Simplesmente ótimo.

     — Conhecerá muitas delas socialmente nas primeiras semanas — disse Melissa, animada. Foxy percebeu que, como Catherine, as unhas da jovem estavam impecavelmente cuidadas. — Claro que Lance estará lá para protegê-la das garras afiadas durante as festas e danças, mas terá de ficar alerta nos eventos de caridade e nos adoráveis almoços beneficentes.

     — Não terei muito tempo para esse tipo de evento — informou Foxy, com indisfarçável alívio. Girando, conseguiu encontrar uma porta creme e açúcar apropriado. — Tenho meu trabalho.

     — Trabalho? Que tipo de trabalho? — O evidente ceticismo na voz de Melissa a fez girar outra vez e soltar uma risada.

     — Sim, eu trabalho. Isso não é permitido?

     — Claro que sim, dependendo... — A ponta da língua de Melissa escorregou vagarosamente pelos dentes, enquanto ela considerava o que dizer. — O que faz?

     — Sou fotógrafa free-lancer. — Deixando a chaleira no fogo, Foxy sentou-se à mesa ao lado de Melissa.

     — Isso deverá servir — disse a jovem, pensativa.

     — E o que você faz? — indagou Foxy, intrigada.

     — Faço? Eu... — Melissa procurou por um termo, e, em seguida, sorriu, gesticulando com a mão. — Circulo. — Os olhos faiscavam com evidente senso de humor, forçando Foxy a rir outra vez. — Formei-me em Radcliffe há três anos. Em seguida, fiz o obrigatório giro pela Europa. Meu francês é pobre. Sei que é tolerável e o que não é na sociedade de Boston, como conseguir a melhor mesa no Charles, onde e com quem ser vista, onde se compram sapatos e lingerie da melhor qualidade, como pedir frango cremoso para cinquenta socialites e onde estão enterrados os esqueletos na maioria dos armários. Porém, não poderia ter me casado com Lance de qualquer forma, portanto vou gostar muito de você e a observarei torcer alguns narizes empinados.

— Estacou para tomar fôlego sem, no entanto, deixar que Foxy se manifestasse. — É incrivelmente atraente, especialmente seus cabelos. Imagino que quando se arruma deva ser devastadora. Lance jamais escolheria alguém de aparência comum. Sem contar, claro, com sua língua. Certamente, baixou a crista de tia Catherine. Terá de manter essa capacidade afiada para passar ilesa pelas próximas semanas, mas eu a ajudarei. Gosto de ver as pessoas fazerem coisas que não tenho coragem de fazer. Veja, a chaleira está apitando.

     Um pouco zonza, Foxy se ergueu e retirou a chaleira do fogo.

     — Todos os parentes de Lance são como você?

     — Céus, não! Sou ímpar. — Melissa sorriu, esbanjando charme. — Sei quê muitas pessoas do meu círculo social são enfadonhas e esnobes, e não crio ilusões quanto a mim. — Deu de ombros, enquanto Foxy colocava o chá em um bule de porcelana. — Vivo muito confortável com meu estilo de vida, para desafiá-los como Lance faz. Admiro-o muito, mas não sou inclinada a competir com ele. — Jogou os cabelos para trás dos ombros e Foxy captou um reflexo esmeralda no dedo da jovem. — Às vezes, Lance tomava atitudes para ferir as suscetibilidades dos familiares propositalmente. Acho que optou pela carreira de piloto com essa intenção. Claro que ficou um pouco obcecado com o esporte durante um tempo. Ainda assim, está mais envolvido com o projeto e construção de carros do que em dirigi-los... — Deixou a frase morrer, estudando Foxy, com os olhos castanhos pensativos.

     Percebendo a especulação na voz da jovem, Foxy a encarou e falou em tom calmo.

     — Está pensando que ele talvez tenha se casado comigo para ferir a suscetibilidade da família?

     Melissa sorriu e movimentou os ombros — O que importa? Ganhou o prêmio máximo. Aproveite. 

     Ambas dirigiram o olhar à porta quando o prêmio máximo adentrou a cozinha.

     — Mamãe está ansiosa por partir, Melissa.

     — Oh. — A jovem torceu o nariz, enquanto se erguia.

     — Gostaria que isso tudo a fizesse esquecer do encontro para o qual está me arrastando. Suponho que ela tenha lhe contado que haverá uma festa na casa de tio Paul amanhã à noite. Eles o estão esperando.

     — Sim, ela me disse. — Não havia entusiasmo na voz de Lance e Melissa sorriu.

     — De repente, fiquei ansiosa por essa festa. Espero que vovó apareça... sob as atuais circunstâncias. Sabe mesmo como tirá-los do prumo, certo? — Melissa piscou para Foxy, antes de se dirigir ao primo. — Nem ao menos o parabenizei.

     — Não — concordou ele, erguendo uma sobrancelha.

     — Não me parabenizou.

     — Pois então, faço-o agora. Parabéns — disse Melissa em tom formal, antes de se erguer na ponta dos pés e depositar dos beijos ligeiros na face de Lance. — Ela precisará de uma amiga. Afinal, todos precisamos, certo? — indagou Melissa em tom seco. — Faremos compras em breve — decidiu, enquanto girava para encarar Foxy. — É uma maneira rápida de nos conhecermos melhor. Eu a verei amanhã à noite — continuou ao se encaminhar para a porta. — Em sua prova de fogo.

     Foxy obserrou a porta oscilar para a frente e para trás após a passagem de Melissa.

     — Já estou me sentindo um tanto chamuscada — resmungou.

     Lance cruzou a cozinha e colocou a mão em concha sob seu queixo.

     — Pareceu saber se controlar muito bem. — Os olhos cinza se tornaram sérios, enquanto lhe estudaram a expressão. — Devo me desculpar por minha mãe?

     — Não. — Foxy fechou os olhos por instantes e, em seguida, meneou a cabeça.

— Não é necessário. Se bem me recordo tentou me avisar. — Abriu os olhos e deu de ombros.

     — Suponho que soubesse que ela não iria me aprovar.

     — Minha mãe quase nunca aprova o que faço — retrucou ele, traçando com o polegar o contorno do queixo delicado, enquanto seus olhos permaneciam fixados nos dela. — Não fundamento o que faço na aprovação dela, muito menos nosso casamento. Nossas vidas pertencem a nós. — Franziu o cenho e a beijou, intensa e rapidamente.

— Pedi a você — lembrou ele. — Que confiasse em mim.

     Com um suspiro, Foxy virou de costas. De repente, o ar pareceu denso com os aromas do café e do chá.

     — Ao que parece não conseguimos ter nossos poucos dias de paz. — Pegou o bule de chá e entornou o conteúdo na pia. Sentiu as mãos do marido nos ombros e, em um gesto automático, se empertigou. Nada iria arruinar seu primeiro dia como esposa de Lance. Girando, Foxy deslizou os braços em torno do pescoço forte. — Ainda temos o dia de hoje.

     — Toda a raiva se derreteu assim como seus ossos, quando os lábios sensuais tomaram os dela. — Acho que não quero mais café — sussurrou ela, quando interromperam o beijo para retomá-lo em seguida. — E você? Em resposta, ele sorriu e se afastou. Antes que Foxy percebesse seu intento, foi erguida nos ombros do marido. Rindo, afastou os cabelos que lhe caíam nos olhos. — Lance — disse, sentindo um leve tremor, quando ele transpôs a porta da cozinha. — Você é tão romântico!

    

     Foxy pensou em se vestir para seu primeiro evento social como sra. Lancelot Matthews, como se aparamentaria para uma batalha. Sua armadura consistia em uma blusa justa tomara-que-caia e pantalona plisse verde-claro. Parada em frente ao amplo espelho, ajustou a jaqueta cor de esmeralda que lhe chegava à altura dos quadris e a fixou com um cinto dourado. Deliberadamente, despendeu um bom tempo escolhendo um estilo mais chamativo para seus cabelos.

     — Se irão reparar e cochichar — resmungou, enquanto os prendia para trás. — Eu lhes darei algo para reparar e cochichar. — Usando a escova, persuadiu os cachos a cascatearem suavemente em torno da face. — Gostaria de ser robusta — reclamou Foxy, observando o reflexo esbelto no espelho.

     — Prefiro sua compleição — opinou Lance, parado à soleira da porta. Sobressaltada, Foxy girou e deixou cair a escova. Refletindo uma elegância casual com o terno preto, da mais fina lã, ele se inclinou contra o batente. Os olhos-cinza a trilharam de cima a baixo antes de se fixaram em seu  rosto. — Pretende lhes fazer valer cada tostão que pagaram? — Foxy deu de ombros em um gesto negligente e, em seguida, inclinou-se para pegar a escova. Quando se ergueu para colocá-la sobre a penteadeira, sentiu as mãos longas deslizarem por seus ombros.

     — Minha mãe de fato a incomodou, não foi?

     Foxy mexeu distraidamente na coleção de potes e frascos sobre a penteadeira.

     — Acho que é justo — replicou ela. — Eu também a incomodei. — Ouviu-o suspirar e, em seguida, o queixo de Lance pousou no topo de sua cabeça. Manteve o olhar baixo, fixado em seus dedos agitados.

     — Acho que deveria ter me desculpado pelo que ela fez, afinal.

     Foxy girou, meneando a cabeça.

     — Não. — Suspirando, ela lhe ofereceu um sorriso apologético. — Estou fazendo birra, não estou? Desculpe-me.

     — Determinada a mudar de humor, recuou alguns centímetros e ergueu as mãos com as palmas para cima. — Como estou?

     Sob a cascata de cachos, os olhos se encontravam atrevidos e provocantes. Segurando-lhe o punho, Lance a girou, envolvendo-a nos braços.

     — Fantástica. Estou tentado a desistir da festa de tio Paul. Sou muito possessivo com o que me pertence. — Os lábios de Lance tomaram os dela com impetuosidade.

— Podemos bancar os relaxados e trancar a porta?

     Tudo que ela desejava era concordar. Os lábios tentadores lhe prometiam maravilhas. Com a intenção de manter a racionalidade, desviou a face da boca macia.

     — Acho que quero enfrentar logo isso. Prefiro conhecê-los todos de uma só vez do que em doses homeopáticas.

     Lance escorregou os dedos pelos cachos ruivos.

     — É uma pena — murmurou. — Mas sempre foi corajosa. Porém antes, acho que merece um prêmio pela bravura. — Dizendo isso, enfiou a mão em um dos bolsos e de lá retirou uma pequena caixa preta.

     — O que é isso? — questionou Foxy, fitando-o, curiosa, enquanto aceitava o presente.

     — Uma caixa.

     — Esperto! — resmungou ela. Erguendo a tampa, Foxy se deparou com dois cintilantes diamantes em forma de delicadas lágrimas de gelo. — São diamantes! — conseguiu dizer, dirigindo-lhe um olhar atônito.

     — Foi o que me disseram — concordou Lance. O sorriso oblíquo familiar lhe curvou os lábios. — Uma vez sugeriu que lhe comprasse algo extravagante. Achei isso mais apropriado do que wolfhounds russos.

     — Oh, mas não quis dizer que deveria...

     — Nem todas as mulheres podem usar diamantes — disse ele, interrompendo-lhe o protesto. — E necessária certa elegância ou parecerão exageradas e espalhafatosas.

— Enquanto falava, tomou-lhe as pedras preciosas da mão e as prendeu em cada uma das orelhas de Foxy. O toque era suave e experiente. Em seguida, ergueu-lhe o queixo, e observou o resultado com olhar crítico. — Exatamente como imaginei. É talhada para usá-los. Diamantes requerem um bocado de ternura. Girou-a para que ela visse o reflexo no espelho. — Uma adorável mulher, sra. Matthews. E toda minha. — Deteve-se atrás dela com as mãos nos ombros delgados.

     O reflexo do espelho mostrava uma imagem de afeição natural entre marido e mulher. A emoção a fez sentir um aperto na garganta. Trocaria uma dúzia de diamantes, pensou ela, por um momento como aquele. Seus olhos refletiam o coração e a alma, quando encontravam os dele no espelho.

     — Eu o amo — declarou Foxy com a voz embargada. — Tanto que às vezes me assusta. — Ergueu as mãos para tocar as do marido com um repentino desespero, que não entendia nem esperava. — Nunca imaginei que o amor pudesse nos assustar, e ao mesmo tempo nos fazer refletir sobre todos os senões que existem na vida. Tudo aconteceu tão rápido que, às manhãs, quando acordo, ainda espero estar sozinha. Oh, Lance. — Os olhos verde-acinzentados procuraram os dele. — Gostaria que ficássemos ilhados por mais algum tempo. O que eles farão conosco? Todas aquelas pessoas que não são como eu e você?

     Lance a girou até que ela o encarasse e não o seu reflexo.

     — Podem fazer qualquer coisa se permitirmos. — Os lábios de Lance roçaram os dela de modo suave, mas Foxy inclinou a cabeça para trás em um claro convite para aprofundá-lo. Os braços fortes se apertaram em torno dela, enquanto o beijo se prolongava e se tornava mais íntimo. — Acho que nos atrasaremos para a festa do tio Paul — murmurou, enquanto mudava o angulo do beijo e lhe provocava a ponta da língua com a dele.

     Foxy deslizou o blazer de Lance pelos ombros, e ao longo dos braços até que a peça caísse ao chão. Vagarosamente, escorregou as mãos pela seda da camisa, enquanto correspondia com igual intensidade ao beijo. Sentiu a resposta de Lance na forma como os músculos do peito tensionavam e na força que empregava nas mãos que deslizavam por seus quadris. Fechando os braços em torno do pescoço forte, se colou ao corpo do marido. Os lábios experientes se moviam por seus cabelos e têmporas até se enterrarem no pescoço exposto. A fragrância quente e almiscarada se fundiu com a dela, embotando os sentidos de Foxy ao criar uma nova fragrância característica de ambos. Descalçou os sapatos.

     — Vamos chegar muito atrasados na festa do tio Paul — murmurou ela, procurando os lábios de Lance com avidez.

    

     Foxy descobriu que sua imaginação não fora suficientemente extravagante ao antecipar como seria a festa de Paul Bardett. Seu primeiro engano se refletiu no número de pessoas. Havia o dobro de convidados do que supusera sua mais generosa estimativa. A elegante construção em arenito castanho-avermelhado envelhecido de Beacon Hill encontrava-se apinhada. Pessoas lotavam a sofisticada sala de visitas, mobiliada no estilo Luiz XVI, caminhavam pelo terraço sob as lanternas chinesas e subiam e desciam a escadaria acarpetada. Foxy estava certa de que cada designer exclusivo dos dois lados do Atlântico estava ali representado, desde a mais conservadora poltrona ao mais ostentoso traje de festa.

     Durante as intermináveis apresentações ao numeroso clã Matthews-Bardett, foi submetida a sorrisos, apertos de mão, beliscões nas faces e à curiosidade. A especulação, assim como os sorrisos e os beijos, eram-lhe dirigidos nos mais variados graus. Algumas vezes, vaga, quase informal e outras, franca, direta e impiedosa. Como o caso da mais idosa sra. Matthews, a avó de Lance. Quando o marido as apresentou, Foxy percebeu os olhos azuis se estreitarem, avaliadores.

     Edith Matthews não era uma condessa extravagante de Veneza. A figura robusta e matronal estava trajada formalmente com um costume de brocado preto, quebrado apenas por um pequeno rufo de fita branca na altura do pescoço. Os cabelos eram mais prateados do que brancos, afastados em um elegante penteado da uma face de estrutura óssea bem marcada. Foxy também a estudou, imaginando se algum dia houvera beleza naquele rosto, mascarada agora pelo peso dos anos. Sim, a beleza ainda se encontrava vivida nos brilhantes olhos verdes. O aperto de mão da sra. Matthews foi rápido e firme, embora a pele fosse fina. Os olhos revelavam a Fox que estava sendo julgada. A aceitação ainda negada.

     — Ao que parece, nos excluiu de seu casamento, Lancelot — disse ela com a voz áspera pela idade.

     — Há tantos casamentos durante o ano — retrucou ele. — Julguei que um a mais não faria falta.

     A avó lhe lançou um olhar severo sob as sobrancelhas que Foxy percebeu serem finas e bem tratadas.

     — Há pessoas, que estavam ansiosas por comparecerem ao seu. Mas esqueça — continuou ela, com um gesto imperioso dos dedos. — Fará as coisas a seu modo. Viverão na casa que seu avô lhe deixou?

     Lance sorriu com o gesto que a avó fizera. Era uma característica dela desde que era pequeno.

     — Sim, vovó.

     Se percebia o tom provocador na voz do neto, fingiu ignorá-lo.

     — Ele ficaria feliz, — Desviou o olhar a Foxy. — Não tenho dúvidas de que teria gostado de você também.

     Aceitando o comentário como a maior forma de aprovação que poderia receber, Foxy agradeceu.

     — Obrigada, sra. Matthews. — Em um gesto instintivo, inclinou-se e depositou um beijo na face pregueada de rugas. No mesmo instante, inspirou as fragrâncias de lavanda e talco.

     As belas sobrancelhas se arquearam e, em seguida, relaxaram.  

     — Sou velha — comentou a senhora idosa com um suspiro, como se a constatação não fosse mais desagradável do que inesperada. — Pode me chamar de avó.

     — Obrigada, vovó — replicou Foxy obediente e sorriu.

     — Boa noite, Lancelot. — O divertimento de Foxy se esvaiu quando ouviu o cumprimento de Catherine Matthews. — Boa noite, Cynthia. Está com ótima aparência.

     Foxy girou para encará-la e viu estampado no rosto da mãe de Lance um treinado sorriso polido.

     — Obrigada, sra. Matthews. — Boas maneiras em dez passos, pensou Foxy, modificando a célebre frase dos duelos. Porém, naquele caso, armas seriam mais apropriadas. Observou o faiscar dos olhos de Catherine, como dezenas de outros naquela noite, ao olhar os diamantes em suas orelhas.

     — Acredito que não foi apresentada a minha cunhada Phoebe — disse em tom suave. — Phoebe Matthews-White, a esposa de Lancelot, Cynthia.

     Uma mulher pequena e pálida, com aparência comum e cabelos cor de grafite lhe estendeu a mão.

     — Como vai? — indagou a mulher, ajustando os óculos de armação cinza no nariz e piscando com seus olhos de ave. — Acho que nunca nos vimos antes.

     — Não, sra. Matthews-White. Não nos conhecemos antes.

     — Que estranho — disse Phoebe com um leve tom de curiosidade.

     — Lancelot e Cynthia passaram o verão na Europa — interveio Catherine, fitando Lance com as sobrancelhas arqueadas.

     — Henry e eu ficamos em Cape este ano — informou Phoebe, esquecendo facilmente a curiosidade. — Não tive energia para viajar à Europa este verão. Talvez passemos os feriados em St. Croix.

     — Olá, Lance! — Foxy girou para deparar com uma mulher trajada em rosa claro, abraçando seu marido. Os olhos de fotógrafa reconheceram prontamente uma perfeita modelo. Possuía o que Foxy chamava de aparência de Helena de Tróia, delicadeza clássica com uma face oval de traços esculpidos. Os olhos eram azul-escuros, ovais e estonteantes. O nariz, pequeno e reto sobre lábios em forma de arco de cupido. Tinha certeza que aquela mulher seria extremamente fotogênica. — Acabei de saber que estava de volta à cidade. — O arco de cupido roçou a face de Lance. — Que grosseiro de sua parte não ter me telefonado.

     — Olá, Gwen. Está mais bonita do que nunca. Olá, Jonathan. — Lance relanceou o olhar por sobre o ombro da mulher, fitando a versão masculina da beleza clássica de Gwen. Porém os olhos do homem não estavam fixos em Lance, mas sim em Foxy. Seu perfil era magnificente e ela sentiu os dedos coçarem para pegar uma câmera e fotografá-lo.

     — Catherine — cumprimentou Gwen, enquanto dava o braço a Lance. — Dessa vez, deve persuadi-lo a ficar aqui.

     — Sinto dizer, mas nunca consegui persuadir Lancelot a fazer nada — retrucou Catherine em tom seco.

     — Foxy. — Em um gesto preguiçoso, Lance fechou os dedos em torno do punho da esposa. — Gostaria que conhecesse Gwen Fitzpatrick e seu irmão Jonathan, velhos amigos da família.

     — Que apresentação horrorosa — protestou Gwen, enquanto os olhos de safira percorriam a face de Foxy. — Você deve ser a surpresa de Lance.

     Reconhecendo a fria especulação, Foxy respondeu a ela.

     — Devo? — Sorveu um gole do champanhe. A Face é bela, apesar da mulher que existe por trás dela. Suscitava muitas possibilidades. — Já trabalhou como modelo? — indagou, formulando ângulos e iluminações em sua mente.

     As sobrancelhas de Gwen arquearam.

     — Certamente não.

     — Não? — Foxy sorriu, achando graça no tom indignado na voz de Gwen. — Que pena!

     — Foxy é fotógrafa — explicou Lance, lançando-lhe um olhar significativo.

     — Oh, que interessante. — Hábil, deixou que as palavras adotassem um tom de enfado, antes de voltar a atenção outra vez a Lance. — Ficamos perplexos com a notícia de que havia se casado tão de repente. Mas enfim, sempre foi impulsivo.

     — Foxy lutou para não perder a expressão de divertimento. Mais uma vez os amendoados olhos azuis a fitaram. — Deve contar qual seu segredo para aquelas que tentaram e não conseguiram.

     — Tem apenas de olhar para ela para descobrir seu segredo — opinou Jonathan Fitzpatrick, tomando os dedos de Foxy e os erguendo até os lábios com o olhar fixo no dela.

     — É um prazer, sra. Matthews. — Os olhos daquele homem leram atraentes e insolentes. Foxy sorriu, simpatizando com ele de imediato.

     — Que charmoso! — murmurou Gwen, enquanto o congelava com o olhar.

     — Olá para todos. — Estonteante em um vestido de seda, Melissa assomou ao lado de Foxy. — Lance, alugarei sua esposa por um instante. Jonathan, não flertou comigo uma só vez esta noite. Estou muito chateada. Terá de tentar devolver meu bom humor com seu charme tão logo eu retorne. Dê-nos, licença, sim? —Atirando sorrisos em todas as direções, Melissa conseguiu guiar Foxy através da multidão até uma parte escura do terraço. — Achei que devia estar querendo respirar ar fresco — disse, enquanto ajustava os punhos da blusa.

     —Você é mesmo ímpar — elogiou Foxy, quando recuperou o fôlego. — E também tem razão. — Enquanto pousava a taça de champanhe em uma mesa de ferro branca, ouviu o vento sussurrar através das folhas secas. A aproximação do inverno estava no ar. Ainda assim, preferia o frio suave ao crescente abafamento do interior da casa.

     — Pensei também que necessitava de um mapa da mina. — Melissa experimentou a almofada de uma cadeira para se certificar de que não estava molhada, antes de se sentar.

     — Mapa da mina?

     — Quem é quem no círculo dos Matthews-Bardett — explicou Melissa, acendendo um cigarro. — Muito bem — começou e, em seguida, fez uma pausa para soltar uma baforada de fumaça, enquanto cruzava as pernas. — Phoebe, tia de Lance por parte de pai. Relativamente perigosa. Seu marido é um banqueiro. O principal interesse dele é a Sinfonia de Boston, o dela é "fazer o que é apropriado". Paul Bardett, tio de Lance por parte de mãe. Muito astuto, às vezes mordaz, mas sua vida gira em torno da prática do direito. Negócios corporativos. Muito seco e enfadonho se resolver prender sua atenção. Conheceu meus pais, os primos de Lance por casamento por parte de pai. — Melissa deixou escapar um suspiro e desprezou as cinzas do cigarro no chão do terraço. — São muito doces. Papai coleciona selos raros e mamãe cria Yorkshires Terries. Ambos são obsessivos com seus passatempos. Quanto aos Fitzpatrick. — Fez uma pausa, deslizando a ponta da língua pelo lábio inferior. — E melhor que saiba que Gwen é a primeira colocada no "Quem irá finalmente vencer a disputa por Lance Matthews".

     — Ela sabe ser desagradável — murmurou Foxy. Caminhou para a beirada do terraço, onde a escuridão se intensificava. Com repentina clareza, recordou a noite da festa de Kirk, quando procurara o aroma da primavera. A primeira vez que Lance a beijara sob a luz cintilante da lua. — Eles foram... — fechou os olhos e mordeu o lábio inferior. — amantes?

     — Amantes? — Melissa sorveu um gole do champanhe de Foxy. — Imagino que sim. Lance sempre me pareceu o tipo de homem afeito a relacionamentos puramente físicos. — Desviando o olhar, Melissa fitou as costas de Foxy. — Não é do tipo ciumenta, certo?

     — Sim — murmurou ela, sem se virar. — Acho que sou.

     — Oh, querida — disse Melissa com os lábios contra a borda da taça. — Isso não é nada bom. De qualquer forma, este foi o capítulo um. Aqui vai o capítulo dois. Oh, e quanto a Jonathan. — Terminou de beber o champanhe e esmagou o cigarro sob o pé. — É um sedutor perigoso e incorrigivelmente charmoso e mentiroso. Decidi me casar com ele.

     — Oh! — Foxy girou de imediato e fitou sua estranha fonte de informações. — Parabéns!

     — Oh, ainda não, querida. — Após se erguer, Melissa alisou cuidadosamente a saia. O brilho leitoso das pérolas em seu pescoço intensificado pela luz da lua. — Ele ainda não sabe que me pedirá em casamento. Acho que essa ideia não lhe ocorrerá até a época de Natal.

     — Oh. — Foi tudo que Foxy conseguiu dizer, antes de franzir o cenho para o copo vazio que Melissa lhe entregou.

     — Está livre para flertar com ele — acrescentou, generosa. — Não sou do tipo ciumenta. Acho que prefiro me casar na primavera, talvez em maio. Um noivado de quatro meses é perfeito, não acha? Acho melhor voltarmos — sugeriu Melissa, dando o braço a Foxy, antes que ela pudesse responder. — Já comecei a encantá-lo.

    

     Durante a semana que se seguiu, Foxy estabeleceu uma rotina. Explorando a casa, encontrou o local perfeito para montar seu quarto escuro. Passava o tempo limpando a despensa no porão, tomando as providências para que seu equipamento fotográfico fosse trazido de Nova York e fazendo modificações no quarto para que se adaptasse a sua nova função. Lance passava os dias no escritório de Boston, enquanto ela se dedicava a transferir sua base de trabalho. Antes de dar continuidade aos aspectos criativos de sua profissão, tinha de resolver as praticidades. Havia limpeza, instalação de encanamentos e montagem de equipamento a serem feitas. Durante a transição, agradeceu o fato de a sra. Trilby se provar de fato eficiente e até mesmo possessiva com os três andares da casa. Deixara o porão para Foxy sem protestar, mas não tinha dúvidas de que a mulher franzina e empertigada, que usava sapatilhas de pano, teria rosnado como um tigre furioso se desejasse alterar sua rotina de tralho nos demais cômodos. Foxy deixou o polimento da prataria georgiana para a sra. Trilby, enquanto montava seu amplificador e tanques. O acordo pareceu agradar a ambas.

     Foxy alternava seu trabalho na câmara escura com solitárias incursões pela cidade. Surpreendia-a o fato de sentir tanto a falta de outra pessoa, após anos de irrefletida independência. Sabendo que os negócios de Lance lhe exigiam total atenção, após os meses que passara nas pistas, não se atrevia a reclamar. Aliás, Foxy não era afeita a reclamações. Os problemas existiam para serem sanados e costumava fazer aquilo sozinha. A solidão em si, era fugaz. Completamente esquecida quando ela e Lance estavam juntos e pela fascinação que a cidade que agora era seu lar, exercia sobre ela. Quando a solidão ameaçava atingi-la, lutava contra aquele sentimento. O trabalho era seu grande aliado. Dentro de uma semana, o quarto escuro estava concluído e a revelação das fotos da temporada de corridas quase concluída.

     Enquanto observava um conjunto de fotos que haviam secado, a imagem de Kirk lhe assaltou a mente. Haviam se passado apenas três semanas do acidente?, perguntou-se, enquanto afastava uma mecha de cabelos dos olhos. Parecia que havia se passado uma eternidade. E na essência, não seria exatamente isso? De alguma estranha forma, o acidente de Kirk fora o catalisador que alterara sua vida. O mundo em que vivia agora era completamente diferente daquele em que vivia como Cynthia Fox. Em um gesto inconsciente, segurou a aliança.

     Uma foto da White Racer pendurada, úmida e brilhante, chamou a atenção de Foxy. Ela a havia destacado, atenuando o fundo em uma mancha de cores sem formato. Um tributo inconsciente ao irmão como uma vez o imaginara — indestrutível. De repente, uma torrente de saudade a oprimiu. Era uma sensação estranha e nova. Há dez anos que não existia um lar consistente em sua vida. Mas sempre houvera Kirk. Em um impulso, Foxy deixou o trabalho que executava no quarto escuro e subiu, apressada, a escada que levava ao primeiro andar. Ouvindo o ruído do aspirador de pó no corredor acima, correu para o escritório de Lance, fechando-se lá. Deixou-se afundar na cadeira atrás da mesa de nogueira e ergueu o fone. Dentro de instantes, a linha entre Massachusetts e Nova York se completou.

     — Pam! — Foxy sentiu uma rápida descarga de prazer, quando ouviu o sotaque sulista suave. — É Foxy.

     — Oh, é a sra. Matthews. Como vão as coisas em Boston?

     — Bem — replicou Foxy, automaticamente. — Sim, estão bem — repetiu para enfatizar. — Suspirando, recostou-se ao espaldar da cadeira com uma risada. — Muito diferentes. Como vai Kirk?

     — Está ótimo — replicou Pam em tom leve. — Impaciente, claro, para ter alta do hospital. E uma pena que neste momento ele não esteja no quarto. Desceu para tirar uma radiografia.

     — Oh. — Foxy não pôde evitar o desapontamento, mas resolveu afastá-lo. — E você? Como vai? Está conseguindo lidar com Kirk sem perder a sanidade?

     — Mais ou menos — retrucou Pam, deixando escapar a risada fácil e familiar.

     — De repente, senti saudades de meu irmão — confessou Foxy com um rápido meneio de cabeça. — Tudo está acontecendo tão rápido nas últimas semanas. Às vezes, sinto-me como se fosse outra pessoa. Acho que necessitava ouvir a voz dele para lembrar que ainda sou eu mesma. — Fez uma pausa, rindo outra vez. — Estou parecendo confusa?

     — Só um pouco. Kirk ainda não se acostumou com seu casamento, mas ficou feliz com ele. Acho que está tentando se convencer que planejou tudo durante as corridas. — Pam esperou alguns instantes e continuou no mesmo tom. — Está feliz?

     Reconhecendo o tom sério de Pam, Foxy não respondeu de imediato. Pensou em Lance e um sorriso lhe curvou os lábios.

     — Sim, estou feliz. Amo Lance e, além disso, tive sorte de me apaixonar pela casa e por Boston. Acho que me senti um tanto perdida, especialmente desde que Lance teve de voltar ao escritório. Tudo aqui é muito diferente. Às vezes, sinto como se eu tivesse passado para o outro lado do espelho.

     — A sociedade de Boston pode ser quase um país das maravilhas, imagino — comentou Pam. — Tem passado tempo à caça de coelhos brancos?

     — Tenho trabalhado muito, minha amiga — respondeu Foxy em um tom compatível com as sobrancelhas arqueadas. — Meu quarto escuro está em pleno funcionamento. Eu enviarei as fotos enumeradas para você dentro de mais ou menos uma semana. Caso necessite de mais cópias ou deseje alguma ampliada ou reduzida é só pedir.

     — Parece ótimo. Quantas fotos tem até agora?

     — Concluídas? — Foxy franziu o cenho, enquanto calculava. — Umas duzentas se contar com as que já sequei.

     — Meu Deus! — exclamou Pam. — Esteve mesmo ocupada.

     — A fotografia tem sido não só minha carreira como minha salvação. Faz-me esquecer os almoços beneficentes. — O tom era brincalhão ao se recostar ao estofado macio da cadeira. — Compareci ao meu primeiro e último, no início desta semana. Nada nem ninguém irá me convencer a passar por aquilo outra vez. Não sou talhada para eventos sociais.

     — Ora! — Pam a confortou com um estalar de língua. — Eles se arranjarão sem você. Presumo que tenha conhecido a família de Lance?

     — Sim. Ele tem uma prima, Melissa, que é uma peça. Gosto dela. A avó foi bastante doce comigo. Quanto ao resto... — Foxy fez uma pausa e torceu o nariz. — Fui recebida tanto com cordialidade causal quanto com evidente desaprovação. — Pam conseguiu captar o tremor na voz da amiga.

     — Estou encarando essa primeira rodada de obrigações sociais e apresentações como uma espécie de mal necessário. Depois que acabar, eu os conhecerei e eles a mim. E isso será tudo. — Sorriu. — Espero.

     — A mãe de lance é uma... perfeita dama — comentou Pam.

     — Sim — concordou Foxy, surpresa. — Como sabe?

     — Minha mãe e ela se conheciam — respondeu Pam.  Foxy sabia que a namorada do irmão havia nascido e sido criada no mundo para no qual foi empurrada pelo casamento. — Encontrei-a uma vez, quando estava fazendo uma matéria sobre patrocinadores de artes. — Pam lembrou a mulher elegante e aristocrática de olhar frio e pele de pêssego. Não havia calor nela. — Mantenha os pés no chão, Foxy. Tudo se normalizará em alguns meses.

     Brincando com um modelo de bronze de um carro de Fórmula 1 que servia como peso de papel, Foxy suspirou.

     — Estou tentando, mas confesso que desejava que Lance pudesse trancar as portas por um tempo. Nossa lua de mel foi interrompida antes mesmo de começar. Sou egoísta o suficiente para desejar uma ou duas semanas a sós com meu marido, enquanto me acostumo a ser uma esposa.

     — Parece-me mais sensato do que egoísta — corrigiu Pam. — Talvez consigam viajar quando ele concluir o desenho do novo carro de Kirk. Pelo que entendi, está um pouco atrasado, devido aos novos padrões de segurança nos quais Lance está trabalhando.    

     — Que carro? — questionou Foxy, sentindo o sangue congelar nas veias.

     — O novo modelo da Fórmula 1 que Lance está desenhando para Kirk. Ele não comentou com você sobre isso?

     — Não. — O tom de voz de Foxy era normal, mas os olhos se encontravam entorpecidos e sem vida, enquanto fitava a superfície polida do tampo da mesa. — Deve ser para a próxima temporada.

     — Por isso estão se apressando em terminar — concordou Pam. — Kirk não tem outro assunto. Espera voar para Boston tão logo tenha alta do hospital para que possa participar do projeto antes que esteja concluído — continuou ela, enquanto Foxy mantinha o olhar perdido. — Não há dúvidas de que está se empenhando na fisioterapia para poder sair daqui nos primeiros dias do ano.

     — Se ele não puder caminhar — disse Foxy em tom lento. — Eles poderão erguê-lo da cadeira de rodas e o colocar no cockpit. — Embora lhe custasse algum esforço, tentou manter a voz controlada. — Estou certa de que Lance não objetará.

     — Não ficaria surpresa se Kirk tentasse isso. — Pam fez um som que era metade uma risada, metade um suspiro. — Muito bem. Se puder, gostaria que me mandasse algumas fotos do novo carro. Como tem acesso direto ao chefe, podia se aproximar o suficiente para tirar uma ou duas fotos. Quero também algumas do teste de pista quando chegar a esse ponto.

     Foxy fechou os olhos devido à dor de cabeça que começava a latejar.

     — Farei o que for possível. Será que nunca conseguirei me livrar disso?, imaginou enquanto pressionava o dedos contra os olhos. Nunca? — Tenho de voltar ao trabalho. Dê um beijo em Kirk por mim, está bem? E cuide-se.

     — Seja feliz, Foxy e dê lembranças minhas a Lance.

     — Sim, eu darei. Até logo. — Com estudado cuidado, Foxy recolocou o fone no gancho. A camada de gelo sobre sua pele permaneceu, estendendo-se para o cérebro. Um vazio ocupava o lugar, onde antes havia suas emoções. A raiva planava no limite de sua consciência, mas não conseguia penetrar. O acidente de Kirk passou como em slides em sua mente. Cada dia positivo, claro e tenebroso.

     Havia incontáveis grids em sua lembrança? inumeráveis acidentes. Todos lhe voltaram à mente em uma montagem de carro, pilotos e equipes misturados em uma massa pulsante e veloz. Permaneceu sentada, engolfada pela largura da cadeira de Lance e recordou os últimos dez anos, enquanto a luz do dia fenecia. Lá fora, a temperatura começou a descer, juntamente com o sol. Quando a porta do escritório se abriu, Foxy voltou o olhar a ela com pouco interesse.

     — Como está? — indagou Lance, adentrando o aposento e deixando a porta aberta. — Por que está sentada no escuro? Não tem escuridão suficiente naquela sua fortaleza localizada no porão? — Aproximando-se, ele lhe segurou o queixo e a beijou. O gesto era natural, mas de alguma forma possessivo. Quando não foi correspondido, estreitou o olhar e lhe estudou a face. — O que foi?

     Foxy ergueu a cabeça para fitá-lo, mas seus olhos se encontravam sombreados à luz parca.

     — Acabei de falar com Pam.

     — Aconteceu algo a Kirk? — A preocupação explícita na voz de Lance derreteu parte da camada de gelo que a cobria. Sob aquela superfície, fervilhava a fúria da traição. Lutou para manter a objetividade até que entendesse o que estava acontecendo.

     — Está preocupado com a saúde dele? — questionou ela. Fagulhas de raiva chamuscavam as palavras.

     Franzindo o cenho ante ao tom irado, Lance traçou o contorno do queixo da esposa com a ponta do dedo, percebendo a tensão.

     — Claro que estou. Houve alguma complicação?

     — Complicação — repetiu Foxy sem entonação na voz, enquanto cravava as unhas na palma da mão. — Depende de seu ponto de vista. Pam me contou sobre o carro.

     — Que carro?

     A ostensiva curiosidade e a perplexidade no tom de voz de Lance a fez perder o controle. Afastando de modo abrupto a mão que lhe segurava o queixo, Foxy se ergueu, colocando a cadeira e a própria raiva entre ambos.

     — Como pôde começar a fazer projetos para um carro, enquanto ele ainda está em um hospital? Não podia ao menos esperar até que Kirk voltasse a andar?

     A compreensão substituiu a surpresa na expressão de Lance. Não fez nenhuma tentativa de diminuir a distância entre eles, mas quando falou o tom de voz era paciente.

     — Leva algum tempo para se desenhar e construir um carro. O trabalho começou no mês passado.

     — Por que não me contou? — quis saber Foxy, mais chateada do que confortada com o tom paciente do marido. — Por que me escondeu?

     — Em primeiro lugar — começou ele, franzindo o cenho enquanto a encarava. — Desenhar carros é o meu negócio e você sabe disso. Desenhei carros para Kirk antes e também sabe disso. Qual a diferença?

     — Ele quase morreu há menos de um mês —- retrucou ela, apertando o espaldar de couro da cadeira.

     — Ele bateu — disse Lance em tom calmo. — E não foi a primeira vez. Ambos sabemos que correrá este risco outra vez. São ossos do ofício.

     — Ossos do ofício — repetiu Foxy, enquanto uma nova onda de fúria se erguia em seus olhos. — Oh, isso é típico de você! Isso torna tudo claro e justificado. Como deve ser maravilhoso ser tão lógico e impessoal!

     — Tome cuidado com as palavras — aconselhou Lance no mesmo tom.

     — Por que o está encorajando a voltar a correr? — questionou ela, ignorando o conselho. — Talvez tenha sido o suficiente desta vez. Agora ele tem Pam. Kirk deveria...

     — Espere um minuto. — Apesar de o escritório estar imerso em sombras, Foxy podia divisar a raiva na face do marido. — Kirk não necessita de nenhum encorajamento. Com ou sem acidente, ele retornará ao grid na próxima temporada. Não adianta tentar se iludir. Não será uma batida ou uma mulher que o deixará fora do cockpit.

     — Nunca saberemos ao certo agora, não acha? — rebateu Foxy, furiosa. — Você preparará um carro novinho em folha para ele. Sob medida. Como Kirk poderá resistir?

     — Se eu não o fizesse, outro o faria. — As mãos de Lance deslizaram para dentro dos bolsos, enquanto seu tom de voz se tornava perigosamente calmo. — Pensei que o entendesse... e a mim.

     — Tudo que entendo é que está planejando colocá-lo em outro carro, quando ele não é capaz sequer de se pôr em pé. — O tom de Foxy se tornou desesperado, enquanto fazia um gesto impaciente com a mão. — Esperava que usasse sua influência para persuadi-lo a desistir das corridas. Em vez disso...

     — Não! — interrompeu Lance. — Não aceitarei a culpa pelas escolhas de seu irmão.

     Foxy engoliu em seco, lutando contra o pranto.

     — Não quer se responsabilizar, entendo isso também.  — A amargura permeava as palavras de Foxy. A luz frouxa, os olhos verde-acinzentados cintilavam de raiva e desespero.

     — Tudo que tem a fazer é traçar algumas linhas no papel, calcular algumas equações e encomendar alguns componentes. Não tem de arriscar a vida, apenas seu dinheiro. E tem muito para gastar. — A mente começou a rodar em um torvelinho de pensamentos e acusações. — Mal comparando, é mais ou menos como o cassino em Monte Carlo. — Deslizou as mãos pelos cabelos e depois as juntou, furiosa, por estarem tremendo. — Poderia simplesmente se sentar e assistir à ação, como um... um regente. O dinheiro não significa muito para alguém que sempre o teve. E dessa forma que se satisfaz? — questionou, demasiado inflamada para perceber que o silêncio de Lance era nefasto. — Pagando a alguém para que corra os riscos, enquanto permanecesse sentado, assistindo?

     — Chega! — Lance se moveu como um raio, não lhe dando chance de escapar. Em um instante, puxou-a detrás da cadeira até que ficassem frente a frente. — Não tenho de escutar isso de você. Cumpri meu tempo no grid porque era o que queria fazer. — A raiva lhe afiava o tom de voz e aumentava a pressão com que ele lhe segurava os braços.

— Saí porque escolhi assim. Correrei de novo se assim escolher. Não costumo justificar meus atos para ninguém. Não pago a ninguém para correr riscos por mim.

     O medo ante ao pensamento de Lance voltar a correr se sobrepôs à raiva. A voz de Foxy tremeu, enquanto lutava para suprimir até mesmo aquela possibilidade em sua mente.

     — Mas não correrá de novo. Não...

     — Não me diga o que fazer! — As palavras eram decisivas.

     Foxy engoliu em seco o terror e falou com calma desolada. Mais uma vez, sentiu-se empurrada para o banco de trás. Com Kirk, aceitara aquela posição sem reclamar, mas naquele momento, ondas de raiva, frustração e dor a assolavam.

     — Que tola fui em pensar que se importaria com meus sentimentos. — Fez menção de caminhar, mas ele a impediu, colocando as mãos em seus ombros. O gesto era familiar o suficiente para fazê-la experimentar uma pontada de dor no estômago.

     — Escute-me. — Havia traços de paciência na voz de Lance, mas o olhar se encontrava estreitado. — Kirk é adulto e toma suas próprias decisões. A profissão de seu irmão não é mais de sua conta. Minha profissão não tem nada a ver conosco.

     — Não. — Calmamente, Foxy lhe dirigiu o olhar. — Isso não é verdade. Mas independente disso, Kirk irá correr com seu carro na próxima temporada e fará exatamente o que quer. Não poderei fazer nada para mudar isso. Nunca pude com Kirk e agora deixou minha posição clara em relação a você. Vou subir — anunciou ela em tom calmo. — Estou cansada.

     A sala se encontrava totalmente escura. Por alguns instantes, Lance a observou em total silêncio, antes de soltá-la. Sem dizer mais nada, Foxy deu um passo atrás e, em seguida, o contornou, dirigindo-se à porta. Seus passos eram silenciosos, enquanto subia os degraus da escada.

    

     A manhã chegou como uma surpresa para Foxy. Ficara acordada durante horas, sozinha e infeliz. A conversa que tivera com Pam não lhe saía da mente e a discussão com Lance a assombrava. Acordou com a sensação de que não havia dormido e a luz do sol se refletia na cama. O lado da cama ocupado pelo marido se encontrava vazio. Em um gesto automático, tateou os lençóis, onde ele dormira. Ainda podia sentir um certo calor, mas aquilo não a consolou. Pela primeira vez, desde a noite de núpcias, talvez tivessem dormido em camas separadas. Não haviam acordado entrelaçados um no outro, nem despertado tão lentamente quanto haviam flutuado para o sono durante a noite.

     O peso que a oprimia não se originara do sono, mas da tristeza. Discutir com Lance certamente não era algo novo para ela, mas daquela vez sentia os efeitos mais intensamente.

      Talvez, pensou enquanto fitava o teto, seja porque agora que tenho mais, também tenho mais a perder. Provavelmente ele ainda esteja lá embaixo. Poderia descer e... não, Foxy interrompeu alinha de seu pensamento com um meneio de cabeça. Havia muito que resolver após o café da manhã, com a sra. Trilby em sua cola. Em todo caso, eu poderia aproveitar o dia para pôr algumas coisas em ordem. Com gestos mecânicos, Foxy se ergueu e tomou uma ducha. Vestiu-se sem pressa, embora escolhesse uma calça de brim e um suéter simples. Enquanto se arrumava, traçou mentalmente sua agenda. Trabalharia nas fotos de corrida até as 11h, depois iria caminhar aos jardins públicos e dar continuidade a seu novo projeto. Satisfeita com seus compromissos, desceu a escada que levava ao térreo. Não havia sinal de Lance e, embora, tentasse se convencer de que era melhor assim, deteve-se alguns instantes próximo ao telefone do hall, indecisa.

     Não, disse a si mesma com firmeza. Não telefonarei para ele. Não podemos ter uma conversa racional pelo telefone. Há algo para ser discutido?, indagou-se e franziu o cenho fitando o telefone, como se o aparelho a irritasse.

     Na noite anterior, Lance parecia certo de sua opinião sobre a posição de ambos. Não aceitarei isso, assegurou em seu intimo, ainda fitando o telefone. Não aceitarei isso. Ele não pode voltar a correr. Engoliu o sabor metálico do medo que cresceu em sua garganta. Lance não poderia ter falado sério. Comprimindo os olhos, Foxy meneou a cabeça. Não pense nisso agora. Vá trabalhar e não pense nisso. Inspirou profundamente e deu as costas para o aparelho.

     Após confiscar uma xícara de café na cozinha, Foxy se fechou no quarto escuro. As fotos ainda se encontravam penduradas como as deixara. Sem planejar conscientemente fazê-lo, retirou a foto da corrida de Kirk e a estudou.

     Um cometa, lembrou. Sim, ele é um cometa, mas até mesmo os cometas não entravam em combustão de vez em quando? Haverá outras fotos dele na próxima temporada, mas outro alguém as tirará. Talvez Lance providenciasse isso também: Um som agudo e frustrado lhe escapou dos lábios. Não posso pensar mais nisso. Recolheu as fotos secas e começou a trabalhar em um novo rolo de fime. O tempo passou rapidamente e em um silêncio tão absoluto, que Foxy se sobressaltou quando ouviu uma batida à porta. Franziu a testa, enquanto caminhava para abri-la. A sra. Trilby nunca se aventurava naquele território.

     — Melissa! — exclamou, enquanto a testa franzida se transformava em um sorriso. — Que surpresa boa!

     — Não sou afeita ao escuro — afirmou a prima de Lance, fazendo beicinho, enquanto transpunha a soleira da porta. — Por que chamam isso de quarto escuro se não é escuro?

     Estou desiludida.

     — Chegou na hora errada — explicou Foxy. — Juro-lhe que estava um breu aqui durante horas atrás.

     —Acho que terei de aceitar sua palavra. — Melissa caminhou vagarosamente ao longo da fileira de novas fotos que Foxy pendurara. — Meu Deus! É mesmo uma profissional, certo?

     — Gosto de pensar que sim — respondeu Foxy, cautelosa.

     — Tudo tão técnico — disse Melissa, enquanto vagava pela sala, explorando os potes e cronômetros. — Suponho que foi isso que estudou na faculdade.

     — Graduei-me em fotografia na USC. Não em Smith — acrescentou, erguendo uma das sobrancelhas. — Nem Radcliffe ou Vassar, mas naquela pouco conhecida instituição. Uma faculdade pública.

     — Oh, querida! — Melissa mordiscou os lábios exibindo um meio-sorriso. — Suponho que algumas damas a aborreceram.

     — Supôs certo — concordou Foxy, torcendo o nariz. — Acho que há nove dias sou uma novidade. Em breve, irão se esquecer de mim.

     — Que doce inocência! — murmurou Melissa, dando palmadas leves no rosto de Foxy. — Deixarei que acredite nesse pequeno sonho por enquanto. Em todo caso — continuou, esfregando uma pequena mancha de sujeira do suéter. — Haverá um baile no country club no sábado. Você e Lance irão, certo?

     — Sim. — Foxy não se incomodou em suprimir um suspiro. — Estaremos lá.

     — Resista, querida. As obrigações irão rarear em alguns meses. Lance nunca frequenta a sociedade mais do que o absolutamente necessário. E... — Exibiu seu singular sorriso charmoso. — essa é uma ótima desculpa para fazermos compras. — Melissa relanceou outra vez o olhar à sala. — Acabou seu trabalho?

     — Sim, há pouco. — Foxy consultou o relógio de pulso e anuiu, satisfeita. — É exatamente no horário planejado.

     — Então, vamos comprar algo fabuloso para usar sábado à noite. — Deu o braço a Foxy e a guiou em direção à porta.

     — Oh, não. — Foxy estacou tempo suficiente para fechar a porta atrás delas. — Embarquei em uma de suas pequenas maratonas de compras. Entrou em cada loja da Newbury Street. Não tomei minhas vitaminas hoje e, de qualquer forma, tenho um vestido para sábado. Não preciso de nada.

     — Deus do céu! Precisa necessitar de algo para comprá-lo? — questionou Melissa, interrompendo sua jornada em direção à escada, boquiaberta. — Comprou apenas uma blusa, quando fomos às compras. Para que acha que Lance tem todo aquele adorável dinheiro?

     — Para muitas coisas, tenho certeza — replicou Foxy em tom solene, porém com um discreto sorriso lhe curvando os cantos dos lábios. — Mas dificilmente para que o gaste em roupas as quais não preciso. Em todo caso, costumo usar o dinheiro que ganho para comprar itens pessoais.

     Melissa cruzou os braços sobre o peito e estudou Foxy com cuidado.

     — Está falando sério, não está, amiga? — Parecia perplexa, enquanto dava de ombros. — Mas Lance tem muito dinheiro.

     — Sei disso. E, muitas vezes, desejo que não tivesse. — Quando começava a subir os degraus que levavam ao primeiro andar, Melissa lhe segurou o braço.

     — Espere um minuto. — A voz de Melissa não soava bem-humorada como sempre. Era calma, quase séria. — Elas estão, de fato, a aborrecendo muito, não estão?

     — Isso não vem ao caso — respondeu Foxy, dando de ombros.

     — Oh, mas acho que vem. — A mão de Melissa se encontrava surpreendentemente firme no braço de Foxy, forçando-a a encará-la. — Escute-me. Falarei bem sério para variar. Esse negócio de dizer que se casou com Lance por dinheiro é uma típica idiotice. Não significa nada. E nem todos estão dizendo ou pensando isso. Há alguns tolos que só pensam em status e descendência, claro, mas nunca lhes dei crédito. — Sorriu, fazendo uma pausa para respirar, porém seus olhos permaneceram sérios. — Já conquistou muitas pessoas. Tais como vovó, que não é fácil. Fez isso simplesmente sendo você mesma. Certamente Lance lhe contou quantas pessoas o parabenizaram por seu bom gosto com esposas.

     — Não tocamos nesse assunto. — Foxy deslizou as mãos pelos cabelos, deixando escapar um som de frustração. — Isto é, para ser mais exata, não comentei nada sobre seus parentes menos amigáveis. Não acho justo atormentá-lo com reclamações.

     — E é justo ficar calada enquanto uns poucos idiotas lhe atiram pedras?

— contrapôs Melissa, erguendo uma das sobrancelhas, do mesmo modo sinistro que fazia Lance. — O martírio é deprimente.

     Foxy fez uma careta.

     — Acho que não ligo muito para isso. — Meneando a cabeça, dirigiu um sorriso melancólico a Melissa. — Acho que estou sensível demais. Está acontecendo tudo ao mesmo tempo e estou fazendo um malabarismo para lidar com isso.

     Melissa deu o braço a Foxy e as duas continuaram a subir a escada.

     — Sim e o que mais?

     — Está tão transparente assim?

     — Sou perceptiva — afirmou Melissa em tom casual. — Sabe de uma coisa? Meu palpite é que você e Lance tiveram um desentendimento.

     — O termo que usou é eufêmico — murmurou Foxy, enquanto abria a porta para o primeiro andar. — Mas iremos superar isso.

     — De quem foi a culpa?

     Foxy entreabriu os lábios para acusar Lance, porém tornou a fechá-los, ante a possibilidade de culpar a si mesma. Por fim, desistiu com um suspiro.

     — De ninguém, suponho.

     — E sempre assim que acontece — disse Melissa. — A cura para isso é sair e comprar algo fabuloso para levantar o astral. Depois, se desejar fazê-lo sofrer, pode se mostrar friamente educada quando ele voltar para casa. Ou... — Executou um gesto espontâneo com a mão. — Se quiser fazer as pazes, dispense a sra. Trilby mais cedo e vista o mínimo possível de roupas para esperá-lo.

     — Melissa! — Foxy riu, enquanto a observava pegar sua capa e bolsa do cabideiro do corredor. -— Que maneira adorável que possui de simplificar as coisas.

     — É um dom — afirmou Melissa, modesta, estudando seu reflexo no espelho antigo. — Então, quer se divertir e fazer compras comigo ou continuará imersa no vício do trabalho?

     — Acho — começou Foxy, pensativa — que acabei de ser insultada. — Em um impulso, inclinou-se e beijou a face de Melissa. — O convite é tentador, mas vou resistir.

     — Vai mesmo continuar trabalhando à tarde? — O olhar que a jovem dirigiu a Foxy era uma mistura de admiração e perplexidade. — Trabalhou a manhã inteira!

     — As pessoas costumam trabalhar o dia inteiro — argumentou Foxy, sorrindo. — Pode virar um hábito... como batatas chips. Estou começando uma série de fotografias de crianças, portanto, vou até o parque.

     Melissa franziu o cenho, enquanto vestia a jaqueta curta de pele.

     — Está fazendo com que me sinta quase uma abandonada.

     — Superará isso. — Confortou-a Fox, deslizando, curiosa, um dedo ao logo da macia peliça.

     — Claro. — Melissa girou e beijou as faces de Foxy. — Porém, por ora me sinto culpada. Divirta-se — disse, enquanto transpunha a porta de saída.

     — Você também — retrucou Foxy depois que a porta se bateu. Com uma risada, retirou a jaqueta de camurça do armário. Com a mente mais leve, atirou a bolsa sobre o ombro e o estojo da câmera sobre o outro. Quando girou, quase colidiu com a sra. Trilby.

     — Oh, desculpe-me. — Sapatilhas de pano!, pensou Foxy com um suspiro. Deveriam ser proibidas por lei.

     — Vai sair, sra. Matthews? — indagou a pequena senhora que se encontrava, como sempre, empertigada em seu uniforme cinza e avental branco.

     — Sim, tenho um trabalho para esta tarde. Devo retornar por volta de 15h.

     — Ótimo, senhora. -— A sra. Trilby permaneceu parada, próximo à arcada, com a expressão inalterada, enquanto Foxy se encaminhava à porta.

     — Sra. Trilby, se Lance... se o sr. Matthews telefonar, diga-lhe que... — Foxy hesitou e, por um momento a infelicidade e a indecisão se refletiram em sua face.

     — Sim, senhora? — indagou a sra. Trilby, com discreta suavidade na voz.

     — Não. — Foxy meneou a cabeça em negativa, aborrecida consigo mesma.

— Nada. Esqueça. — Empertigou os ombros e dirigiu um sorriso a criada. — Até logo, sra. Trilby.

     — Tenha um bom dia, sra. Matthews.

     Foxy saiu e respirou o encrespado ar do outono. Embora seu MG tivesse sido transportado de Indiana e estivesse à disposição na garagem, Foxy optou por caminhar. O céu estava radiantemente azul e sem nuvens. Contra a cor intensa, as árvores se erguiam, imponentes. Folhas secas rodopiavam na rua se colando ao meio-fio. De vez em quando, o vento as erguia contra os tornozelos de Foxy até que caíssem de novo para serem esmagadas sob os pés. O dia perfeito a animou, fazendo-a formular um esboço para o projeto que tinha em mente.

     Belas e orgulhosas, mães se encontravam espalhadas por todos os cantos dos jardins públicos. As cores vibrantes se encontravam explícitas nos caminhos, onde crianças de bochechas rosadas pulavam e brincavam. A tarde estava fresca e os bebês eram transportados em seus carrinhos pelas mães ou babás uniformizadas. As que andavam, praticavam a arte da caminhada no gramado coberto de folhas.

     Foxy se movia entre elas, algumas vezes tirando fotos, outras conversando com as mães e as persuadindo a posarem para as fotos que planejara. Aprendera com a experiência, que fotografar era mais que conhecer os mecanismos da câmera ou a velocidade do filme. Era também habilidade de ler e retratar uma imagem. Requeria paciência, tenacidade e sorte.

     Deitou de barriga para baixo na grama fria, girando sua Nikon em direção de uma menina de dois anos de idade que brincava com um filhote de Bull Terrier. A beleza loira e rosada da criança era o disfarce perfeito para a total deselegância do cão. Um feixe de luz solar os circundava, enquanto se engalfinhavam, muito mais interessados um no outro do que na mulher que se movia ao redor deles, tirando fotos. O cachorro latia e corria em círculos, a criança dava risadinhas e o capturava. O animal escapava apenas para ser graciosamente capturado de novo. Por fim, Foxy se sentou sobre os calcanhares e sorriu para os modelos. Após uma rápida conversa com a mãe da menina, ergueu-se, preparada para abastecer a máquina com um novo rolo de filme.

     — Uma performance fascinante.

     Erguendo o olhar, Foxy ficou cara a cara com Jonathan Fitzpatrick.

     — Oh, olá — cumprimentou ela, jogando uma mecha de cabelos para trás e removendo uma folha seca de sua jaqueta.

     — Olá, sra. Matthews. Está um belo dia para rolar na grama.

     O sorriso era tão charmoso que a fez rir.

     — Sim, está. Que bom revê-lo, sr. Fitzpatrick.

     — Jonathan — corrigiu ele, antes de retirar outra folha dos cabelos de Foxy. — E a chamarei de Foxy, assim como Melissa. Combina com você. Posso perguntar o que está fazendo ou se trata de algum segredo de estado?

     — Tirando fotos, claro, — Com um sorriso, Foxy continuou a abastecer a máquina. — Tenho esse hábito, por isso sou fotógrafa.

     — Ah, sim, ouvi dizer. — Quando ela inclinou a cabeça em direção à câmera, a luz do sol parecia refletir labaredas em seus cabelos. Admirado, Jonathan os observou brilhar. — É uma profissional?

     — Foi isso que disse aos editores. — Terminando, Foxy fechou a câmera e voltou a atenção a Jonathan outra vez. A semelhança com a irmã era incrível, mas não se sentia desconfortável na presença dele como se sentia com Gwen. Ele era, pensou estudando-o rapidamente, o extremo oposto de Lance: legível, suave e inofensivo. Sentindo se aborrecida com sua mania de fazer comparações, voltou-lhe seu melhor sorriso. — Estou trabalhando em um projeto com crianças no momento.

     Jonathan a observou, admirando o sorriso fácil, os amendoados olhos verde-acinzentados e a face que se tornava mais intrigante cada vez que a fitava. Completou seu exame em questão de segundos e concluiu que Lance havia ganhado outra vez. Aquela não era uma mulher comum.

     — Posso assistir um pouco? — questionou, surpreendendo a ambos. — Tenho a tarde livre. Estava a caminho do meu carro quando a avistei.

     — Claro. — Foxy se inclinou para pegar o estojo da câmera. — Mas creio que achará entediante. — Girando, começou a caminhar na direção do Mill Pond.

     — Duvido. Não costumo achar mulheres bonitas entediantes sob nenhuma circunstância. — Dizendo isso, Jonathan a seguiu. Foxy o fitou de soslaio. Tinha o sorriso de um menino travesso e o perfil de um Adônis. Melissa, pensou ela, terá um belo marido.

     — O que faz, Jonathan?

     — O que quero — retrucou ele, enquanto enfiava as mãos nos bolsos da jaqueta de couro. — Teoricamente, sou um executivo dos negócios da família. Importação e exportação. Na realidade, sou um playboy que joga charme para viúvas quando necessário e sai com as filhas.

     Um sorriso se estampou nos olhos de Foxy.

     — Gosta do que faz?

     — Imensamente. — Quando ele baixou o olhar para fitá-la, Foxy decidiu que ele e Melissa eram feitos um para o outro.

     — Também gosto do meu trabalho — comentou ela. — Agora fique fora do caminho enquanto o executo.

     Havia um banco, próximo ao lago, onde um salgueiro beijava as águas espelhantes. Uma mulher se sentou, lendo, enquanto uma criança gorducha de aproximadamente três anos, trajando uma jaqueta vermelha atirava migalhas de biscoitos para os patos que deslizavam nas águas. Próximo dali, um bebê tirava uma soneca no carrinho banhado pela luz do sol. Um chocalho, esquecido, pendia entre os dedos.

     Após conversar por instantes com a mulher sentada no banco. Foxy começou a trabalhar. Sempre cuidadosa para não atrapalhá-lo, captou o divertimento da criança de três anos que atirava migalhas para o ar. Os patos lutavam pelos pedaços que caíam na superfície da água. O menino guinchava de prazer e atirava mais migalhas, às vezes mordicando o biscoito, enquanto as aves se agitavam em torno da comida. Foxy traduziu o som daquela risada em fotos.

     Utilizando a luz solar e as sombras, expressou a paz e a inocência da criança bochechuda. Modificando os ângulos, a velocidade e os filtros, alterava ânimos e acentuava emoções até que, satisfeita, parou e deixou a câmera pender em seu pescoço.

     — É muito intensa enquanto trabalha — comentou Jonathan, aproximando-se.

 — Parece muito competente.

     — É um elogio ou apenas uma observação? — perguntou Foxy, fechando o protetor das lentes.

     — Ambos — retrucou Jonathan, estudando o perfil de Foxy, enquanto ela guardava-o equipamento. — Você me fascina, Foxy Matthews. Acho-a mais uma razão para invejar Lance.

     — É mesmo? — Ela ergueu o olhar, revelando um franco interesse que o surpreendeu. — E há outros motivos?

     — Muitos — disparou Jonathan, segurando-lhe, em seguida, a mão. — Mas você encabeça a lista. É verdade que é irmã de Kirk Fox e que Lance a fisgou do mundo das corridas?

     — Sim. — Foxy se pôs imediatamente na defensiva e seu tom de voz se tornou frio. — Cresci entre as pistas de corrida.

     Jonathan ergueu uma sobrancelha.

     —Acho que toquei em um ponto nevrálgico. Desculpe-me. — Ele deslizou o polegar, distraidamente sobre as juntas dos dedos de Foxy. — Ajudaria se dissesse que estou apenas curioso e não sendo crítico? A carreira de piloto de Lance sempre me fascinou. Acompanhei a de seu irmão, também. Acho que deve ter histórias interessantes para contar. — O tom de Jonathan, percebeu ela, não era como o de Gwen. Soava muito mais honesto.

     — Desculpe. — Foxy suspirou e deu de ombros. — É a segunda vez hoje que me sinto excessivamente sensível. É um pouco difícil ser a novidade do momento.

     — Você foi uma surpresa e tanto. — O toque era tão leve que a fez esquecer que ele ainda lhe segurava a mão. — Há aqueles que preferem o previsível e planejado. Lance parece ter um gosto pelo ímpar.

     — Ímpar — murmurou Foxy, antes de dirigir um olhar direto e firme a Jonathan. — Não tenho dinheiro. Tampouco estirpe. Passei minha adolescência entre oficinas e mecânicos. Não frequentei um colégio elitista e tudo que conheço da Europa foi o que pude observar entre um circuito de corrida e outro.

     Fitando-a, Jonathan observou diminutos traços de melancolia nos olhos verde-acinzentados. A luz do sol incidia entre as folhas de um salgueiro e fazia brilhar os fios loiros.

     — Gostaria de ter um caso? — indagou Jonathan de modo casual.

     Perplexa, Foxy deu um passo atrás, arregalando os olhos.

     — Não!

     — Nunca andou de pedalinho? — questionou ele, com naturalidade.

     Por duas vezes, Foxy entreabriu os lábios para falar, tamanho era seu atordoamento.

     — Não.

     — Ótimo. — Jonathan lhe tomou a mão de novo. — Pois então será a única coisa que faremos. — Sorriu, mantendo os dedos de Foxy seguros nos dele. — Está bem?

     Cautelosa, Foxy estudou-lhe a face. Antes que pudesse se dar conta, um sorriso começou a lhe curvar os cantos dos lábios.

     — Está bem — concordou. Melissa não ficará entediada, decidiu enquanto deixava Jonathan guiá-la.

     — Gostaria de um balão? — A voz de Jonathan adotou um tom formal.

     — Sim, obrigada — respondeu ela no mesmo tom. — Azul.

     As duas horas que se seguiram foram as mais descontraídas que Foxy passara desde que haviam começado suas obrigações sociais como sra. Lance Matthews. Com Jonathan, deslizou pelo Mill Pond, dentro de um pedalinho em forma de Cisne, em meio aos turistas e agitados pré-escolares. Caminharam pelos jardins, tomando sorvete. O balão de Foxy flutuando às costas de ambos, seguro pela corda. Jonathan era complacente e ótimo para conversar. Um antídoto contra a depressão.

     Quando ele estacionou em frente à construção de arenito castanho-avermelhado, o humor de Foxy ainda estava leve.

     — Gostaria de entrar? — perguntou, jogando a alça da bolsa sobre o ombro.

— Talvez pudesse ficar para jantar.

     — Outro dia. Tenho um jantar marcado com Melissa.

     — Mande-lhe lembranças — recomendou Foxy, sorrindo, enquanto abria a porta.

 — Obrigada, Jonathan. — Em um impulso, inclinou-se sobre o banco e lhe beijou a face. — Tenho certeza que foi mais divertido do que ter um caso. E muito mais simples.

     — Concordo — disse ele, deslizando o dedo ao longo do nariz de Foxy. Vejo você e Lance no sábado.

     — Oh, sim. — Foxy fez uma careta, antes de sair do veículo. — Oh, diga a Melissa que aprovo totalmente os planos dela para maio. — Riu diante da expressão confusa de Jonathan. — Ela saberá do que se trata. — Batendo a porta, experimentou um leve tremor causado pelo ar frio, antes de percorrer o caminho que levava à casa. A porta da frente se abriu no mesmo instante em que esticou a mão para tocar a maçaneta.

     — Olá, Foxy. — Lance se encontrava parado à soleira da porta. No mesmo instante, observou o sorriso estampado no rosto da esposa, os olhos brilhantes e o balão azul.

— Ao que parece teve uma tarde bastante divertida.

     O humor leve de Foxy não deixava espaço para mágoas provocadas pela discussão do dia anterior. Poderiam conversar seriamente mais tarde. Agora tudo que queria era dividir a leveza e bom humor que sentia.

     — Chegou cedo. — Estava feliz por encontrá-lo a esperando e sorriu.

     — Na verdade, acho que foi você quem chegou tarde — rebateu ele, enquanto fechava a porta atrás dela.

     — Oh? — Uma consulta ao relógio de punho revelou que eram quase 17h. Segurando o balão pela corda, pousou o estojo da câmera. — Chegou há muito tempo?

     — Tempo suficiente. — Lance observou as faces beijadas pela brisa fria do outono. — Quer um drinque? — ofereceu ele, enquanto tomava a direção da sala de estar.

     — Não, obrigada. — A frieza do marido havia penetrado no espírito enlevado de Foxy. Seguiu-o, calculando a melhor forma de tampar aquela lacuna antes que ela se alargasse. — Não tínhamos planejado nada para esta tarde, certo?

     — Não. — Lance se serviu de uma generosa dose de uísque, antes de se voltar para ela. — Pretende sair de novo?

     — Não, eu... — Foxy estacou, paralisada pela glacialidade daquele olhar. — Não.

     Lance sorveu um gole da bebida, observando-a por sobre a borda do copo. Toda a tensão que a havia abandonado durante a tarde retornou. Ainda assim, não se sentia preparada para conversar sobre Kirk ou corridas. — Encontrei Jonathan Fitzpatrick por acaso no parque — começou, desabotoando a jaqueta para manter as mãos ocupadas. — Ele me trouxe até aqui.

     — Percebi. — Lance se encontrava de costas para a ampla lareira de pedra. A face, fria e impassível.

     — O dia estava lindo hoje — continuou ela, ansiosa por algo que não fosse a conversa polida e insignificante. Cautelosa, observou Lance se servir de outra dose de uísque.

     — Havia muitos turistas, mas Jonathan me disse que eles somem durante o inverno.

     — Não tenho ideia do motivo do interesse de Jonathan em relação aos turistas.

     — Eu estava interessada — corrigiu Foxy, retirando a jaqueta com o cenho franzido. — Os pedalinhos estavam lotados.

     — Jonathan a levou para um passeio de pedalinho? — questionou em tom suave, antes de sorver de um só gole o líquido âmbar. — Que encantador!

     — Eu nunca tinha passeado de pedalinho antes, então...

     — Acho que a estive negligenciando — interrompeu ele. Os vincos na testa de Foxy se aprofundaram, quando o marido ergueu a garrafa de uísque mais uma vez.

     — Está sendo ridículo — disparou ela, sem conseguir conter a raiva. E está bebendo muito.

     — Minha querida criança, ainda nem comecei a beber — retrucou, enchendo mais uma vez o copo. — E quanto a ser ridículo, devo lembrá-la de que há homens que espancam as esposas se elas passam a tarde com outro.

     — Isso é uma atitude típica de homens de Neandertal — rebateu Foxy, atirando a jaqueta sobre uma cadeira e o fitando com olhar severo. — Foi totalmente inocente. Estávamos em local público.

     — Sim, comprando balões e passeando de pedalinho.

     — Também tomamos sorvete — acrescentou ela, enfiando as mãos nos bolsos.

     — Seus gostos são surpreendentemente simples. — Lance relanceou o olhar ao copo, antes de sorver o conteúdo. — Para alguém em sua atual posição.

     O ofego de Foxy ficou entalado na garganta. Deteve-se, imóvel, enquanto a cor lhe fugia da face. Os olhos se encontravam escuros e magoados contra a palidez.

     Xingando, Lance pousou o copo.

     — Esqueça o que disse, Foxy. Desculpe-me. — Lance fez menção de se aproximar, mas ela deu um passo atrás, esticando as mãos para impedi-lo.

     — Não me toque. — A respiração alterada de Foxy, não conseguia controlar o tremor no tom de voz. — Tive de escutar as indiretas, suportar os sorrisos maliciosos, tolerar os palpites, mas nunca esperava isso de você. Preferia que tivesse me batido a ouvir isso. — Girando rapidamente, voou pelos degraus. Porém, antes que pudesse bater a porta do quarto, Lance a segurou pelo punho.

     — Não fuja de mim — preveniu ele em tom de voz baixo e controlado. — Nunca fuja de mim.

     — Solte-me! — gritou Foxy, tentando se desvencilhar. Antes de atinar no que estava fazendo, ergueu a mão livre e o esbofeteou.

     — Tudo bem — disse Lance entredentes, enquanto lhe prendia os braços atrás dás costas. — Mereci isso, agora, acalme-se.

     — Tire as mãos de mim e me deixe em paz. — Foxy lutava para se libertar, mas tudo que conseguia era que ele a segurasse com mais força.

     — Não até que resolvamos isto. Há coisas que precisam ser explicadas.

     — Não tenho de lhe explicar nada — disparou ela, jogando a cabeça para trás para afastar uma mecha de cabelos que lhe caía nos olhos. — Agora tire as mãos de mim. Não posso suportar isso.

     — Não me provoque, Foxy. — A voz de Lance tinha um tom tão obscuro e perigoso quanto o brilho de seus olhos.

     — Estou quase perdendo o controle, principalmente após a noite passada. Agora, acalme-se e conversaremos.

     — Não tenho nada a lhe dizer. — Congelada pela fúria, Foxy parou de se debater e o encarou. — Conversei com você ontem e você já disse tudo esta noite. Ao que parece conhecemos muito bem um ao outro.

     — Então não conversaremos — disse Lance, antes de lhe tomar os lábios.

     Com força metálica, prendeu-lhe os punhos, de modo que os movimentos frenéticos fossem inúteis. Havia algo tão calculado quanto brutal no beijo. Foxy reconheceu a mesma rudeza de que ele lançava mão quando corria. Sabendo que seus esforços eram infrutíferos, deixou o corpo flácido e os lábios passivos. — Não adiantará se mostrar fria

— resmungou ele, erguendo-a do chão. — Sei como derreter esse gelo.

     Quando ele a carregou em direção ao quarto, a passividade de Foxy despareceu.

     — Não  — Desesperada, tentou se desvencilhar dos braços que a seguravam com força. — Lance, não! Não desse jeito. — Empurrou-lhe com força o peito e se sentiu despencar. O pequeno grito ofegante que emitiu foi interrompido quando colidiu com o colchão. Antes que pudesse rolar para o lado, Lance estava sobre ela.

     O corpo de músculos definidos se moldou ao dela. Quando Foxy fez menção de virar o rosto para o lado, as mãos firmes se cravaram em seu queixo, mantendo-a paralisada, enquanto os lábios impetuosos assaltavam os dela. Com movimentos rápidos, como se os esforços de Foxy não existissem, ele começou a despi-la. Havia uma determinação sem paixão nos movimentos de Lance. Não procurava participação naquele momento, mas sim submissão. Ela sentiu o corpo queimar de desejo ante o toque impetuoso, apesar de lutar para se libertar.

     O suéter e o jeans foram atirados negligentemente ao chão e a fina chemise, não oferecia barreira às mãos exigentes. Os mamilos se enrijeceram de pronto, quando ele lhe procurou a curva sensível do pescoço com os lábios e língua. Foxy continuou a lutar, mesmo quando as mãos inclementes escorregaram ao longo de seu abdome. Os dedos longos moviam-se, rudes, sobre suas pernas, onde a chemise terminava.

     Uma onda avassaladora de desejo a atingiu, tornando-lhe os membros pesados, enquanto se contorcia e o empurrava. Foxy sabia que tinha de escapar, não apenas dele, mas de si mesma. Os movimentos bruscos que fazia apenas a excitavam cada vez mais. Com a língua, Lance traçou o contorno do mamilo através da chemise, prendendo-o entre os dentes, enquanto Foxy lhe cravava as unhas nos ombros. Aproveitava-se de sua fraqueza, explorava-lhe os segredos como só ele sabia fazer até que as labaredas do desejo se acentuassem. E então ela respondeu, arqueando o corpo contra o dele, não mais em protesto, mas em um convite. Ávidos, os lábios de Foxy procuravam os dele, enquanto lutava para lhe desabotoar a camisa. A pele de Lance queimava sob as palmas de sua mão e os músculos tensionavam.

     De modo abrupto, o comportamento de Lance se alterou. O frio controle evaporou, sendo substituído por uma urgência intempestiva. Rasgando-lhe a chemise com um único e preciso movimento, ele praguejou contra Foxy, enquanto a respiração se tornava tão irregular quanto a dela. As mãos longas deslizavam, ásperas, sobre a pele sedosa, enquanto os lábios tomavam os dela em um beijo exigente e invasor. Ambos haviam perdido o controle. Restaram apenas as sensações, o desejo, o prazer obscuro dos corpos úmidos e dos beijos profundos.

     Porém, mesmo enquanto a possuía e ela se entregava sem reservas, Foxy sabia que nenhum dos dois havia vencido.

    

     Começou a chover cedo na manhã de sábado, seguido de frio que transformou a chuva em neve antes de a tarde chegar. Sozinha, com a casa tagarelando ao redor dela, Foxy observou os flocos brancos caírem em um fino lençol. O solo ainda estava quente e a neve se derretia quando o tocava. Intensificou-se em pouco tempo, mas não deixou rastros. Não haverá bonecos de neve hoje, refletiu ela. Imagino onde ele estará. Lance havia partido quando ela acordou e a casa se encontrava vazia. Sabia que o que havia acontecido na noite anterior tivera um preço para ambos.

     No final, Lance não a possuíra com raiva e ela se entregara por vontade própria. O desejo os havia vencido, mas o desentendimento permaneceu. Descobrir-se só em uma cama fria lançara um manto de melancolia sobre ela, que se acentuava à medida que as horas escoavam. O tempo que passara em seu quarto escuro havia sido produtivo, mas de não fora suficiente para solucionar seu dilema.

     O que está acontecendo com meu casamento?, indagou a si mesma, enquanto observava o inflexível cair da neve. Mal começou e parece não estar indo a lugar nenhum. Como a neve lá fora, refletiu, pousando os dedos na vidraça. Continua desaparecendo. Poderia sua união com Lance ser tão frágil e fugaz quanto a neve prematura? Foxy meneou a cabeça e se apoiou nos cotovelos. Não deixarei que seja. O som do telefone a fez girar. Lance, pensou no mesmo instante e correu para atendê-lo.

     —Alô — disse sem conseguir controlar a ansiedade na voz.

     — Olá, Foxy. Como estão as coisas no mundo real?

     — Kirk — O desapontamento foi superado pelo prazer de ouvir a voz do irmão. Deixou-se afundar em um sofá e tentou esquecer a decepção. — E bom ouvi-lo.

— Mesmo enquanto proferia as palavras, percebeu o quanto eram sinceras. — Como está? — perguntou. — Conseguiu convencê-los a lhe dar alta? Onde está Pam?

     — Pensei que o casamento a havia acalmado — comentou Kirk em tom grave. — Tem mais alguma pergunta para fazer?

     Rindo, Foxy sentou sobre os pés.

     — Apenas responda qualquer uma dessas perguntas, mas comece com a primeira. Como está?

     — Muito bem. Melhorando. Devo persuadi-los a me dar alta em algumas semanas se Pam estiver disposta a me transportar para cima e para baixo durante a fisioterapia. — Foxy percebeu pelo tom de voz do irmão que seus ferimentos não eram o assunto mais importante em sua mente. Ossos do ofício, lembrou das palavras de Lance e mordeu com força o lábio inferior.

     — Acho que Pam pode ser persuadida — retrucou em tom casual. — Fico feliz que esteja se sentindo melhor. — Preocupo-me com você, acrescentou em silêncio e sorriu, meneando a cabeça. Ele não gostaria de ouvir aquilo. — Suponho que esteja entediado.

     — Passei por essa fase semana passada — retrucou Kirk em tom seco. — Estou ficando tão craque nas palavras cruzadas do Tintes que comecei a fazê-las com caneta para me exibir.

     — Sempre foi presunçoso. Devo lhe enviar cola, papel e lápis de cor para mantê-lo ocupado? — Foxy aguardou com expressão irônica, enquanto o ouvia rosnar.

     — Vou perdoá-la por que tenho bom coração. — Kirk ignorou a risada da irmã e continuou. — Mas conte-me sobre Boston. Está gostando daí?

     — E uma linda cidade. — Enquanto respondia, Foxy olhou além da janela. Flocos caiam, formando uma cortina branca e despareciam. — Está nevando no momento e acho que vai esfriar, mas tenho explorado bem o local. Estou ansiosa por ver como a cidade ficará no inverno.

     — E quanto à família de Lance? — questionou Kirk. — Posso me informar sobre as condições do tempo no jornal.

     — São... — Foxy refletiu sobre as palavras, hesitou e, por fim, riu. — Diferentes. Sinto-me um pouco como Gulliver, descobrindo-me em um mundo estranho, onde as regras são todas diferentes. Estamos nos acostumando uns aos outros. Fiz algumas amizades. — Sorriu pensando em Melissa e Jonathan. Quando Catherine lhe veio à mente, o sorriso evaporou e, dando de ombros, começou a traçar uma linha com o dedo na superfície do sofá. — Acho que a mãe dele não simpatizou comigo.

     — Não se casou com a mãe dele — argumentou Kirk com lógica. — Não consigo imaginar minha irmã humilhada por um bando de sangue azul de Boston. — Kirk falava com tamanha confiança, que Foxy não pôde deixar de sorrir outra vez.

     — Quem? Eu? — retrucou ela, aceitando o estranho elogio. — Os nativos do Meio Oeste são fortes, sabia?

     — Sim, é uma verdadeira guerreira. — A afeição rude no tom do irmão, fez com que o sorriso de Foxy se tornasse doce. — Como está Lance?

     — Está bem — respondeu automaticamente, mordendo os lábios em seguida. — Tem estado muito ocupado.

     — Acho que os planos para o novo carro o têm assoberbado de trabalho. — Foxy percebeu a excitação crescer na voz de Kirk e se doutrinou para aceitá-la. — Parece que está uma beleza. Estou ansioso para ir até lá e ver como está indo. Lance é um gênio na prancheta de desenho.

     — E mesmo? — indagou ela, franzindo o cenho, curiosa.

     — Uma coisa é ter algumas ideias. Eu mesmo tenho algumas. Outra, é ser capaz de colocá-las em uso prático — Kirk falava com um traço de inveja saudável, o que fez Foxy pensar sobre outro aspecto do marido.

     — Estranho, ele não parece o tipo afeito a pranchetas de desenho e calculadoras, não acha?

     — Lance não faz tipo algum — corrigiu Kirk. — Deveria saber disso melhor do que ninguém.

     Foxy deteve-se, pensativa, por um instante.

     — Sim, claro, tem razão. Sei disso, mas precisei de alguém para me lembrar. É bom ouvir meu irmão dizer que meu marido é um gênio.

     — Ele sempre se interessou mais pela mecânica do que pelas corridas — acrescentou Kirk, distraído. — E então, como você está?

     — Eu? — Foxy meneou a cabeça, dirigindo a atenção outra vez a Kirk. — Oh, bem. Pode dizer a Pam que terminei as fotos e as enviarei para ela.

     — Está feliz?

     Percebeu a mesma seriedade no tom do irmão que ouviu na voz de Pam quando ela lhe fez a mesma pergunta.

     — Isso é pergunta que se faça a uma mulher que se casou há apenas algumas semanas? — indagou em tom leve. — Os recém-casados são sempre felizes no primeiro mês.

     — Foxy... — começou Kirk.

     — Eu o amo — interrompeu ela, dando voz a alguns de seus pensamentos pela primeira vez. — Nem sempre é fácil e perfeito, mas é o único lugar para mim. Estou feliz e triste e centenas de outras coisas que não estaria sentindo se não tivesse Lance.

     — Está bem. — Podia quase ver o irmão anuindo em concordância. — Contanto que tenha o que quer. Escute, liguei para lhe dar uma notícia. Pensei em lhe contar primeiro...

     Foxy esperou dez segundo.

     — O quê? — indagou com uma risada exasperada.

     — Pedi Pam em casamento.

     — Graças a Deus!

     — Não parece surpresa — reclamou ele.

     Um sorriso de puro prazer se estampou no rosto de Foxy.

     — Só mesmo esse piloto bonitão poderia ser tão lento. Quando irão se casar?

     — Uma hora atrás.

     — O quê?

     — Agora pareceu surpresa — observou Kirk, satisfeito. — Pam não esperaria até que eu pudesse ficar de pé, portanto nos casamos aqui mesmo no hospital. Tentei lhe telefonar antes, mas ninguém atendeu.

     — Estava em meu quarto escuro. — Deixando escapar um suspiro, Foxy encostou os joelhos no peito. — Oh, Kirk, estou tão feliz por você. Não consigo acreditar!

     — Eu também não. Não há ninguém como ela no mundo. — Foxy entendia bem o que o irmão queria dizer.

     — Sim, eu sei. Posso falar com ela? — indagou, piscando para dispersar as lágrimas.

     — Pam não está aqui. Está tomando providências em relação ao apartamento que vamos alugar, enquanto faço fisioterapia. Esperamos estar em Boston nos primeiros dias do ano para que eu possa ficar de olho em Lance e no meu carro, mas ficaremos próximos do hospital até lá.

     — Entendo. — Ele nunca vai mudar, disse a si mesma, fechando os olhos por um instante. Fui uma tola em pensar o contrário. Tudo que Lance dissera na outra noite era verdade. Kirk iria correr até onde fosse capaz. Nada e ninguém iria impedi-lo. Recordou claramente tudo que dissera a Lance sob a luz frouxa do escritório. Um sentimento de culpa a inquietou. Trocou o fone para a outra orelha. — Ficarei feliz em tê-los aqui, mesmo que seja só até a temporada começar. A compreensão fazia a aceitação mais fácil.

     — Você irá para a Europa?

     — Não. — Foxy meneou a cabeça. — Não irei.

     — Pam disse-me que achava que não. Diga a Lance que Pam e eu o esperamos que ele abra um champanhe quando chegarmos à cidade. Francês.

     — Eu direi — prometeu ela, aliviada por o irmão aceitar sua decisão sem questionar.. — Cuide-se.

     — Claro. Eu a amo, Foxy.

     — Eu também o amo. — Após recolocar o fone no gancho, Foxy abraçou os joelhos. Enquanto observava, a neve rareou até que não passasse de uma bruma fina.

     Kirk não precisa mais de mim, refletiu ela, sem se dar conta de que aquele pensamento estivera em sua mente. A necessidade que sentiam um do outro fora mútua, mesmo quando ela era criança. O laço que os unia era forte, talvez por causa da tragédia que os deixara sós no mundo.

     Sempre haverá algo especial entre nós, pensou Foxy. Mas agora ele tem Pam, e eu, Lance. Descansando o queixo nos joelhos, imaginou se Lance precisava dela. Amá-la, sim. Desejá-la, também, mas Lance Matthews com sua autossuficiência, riqueza abundante e suprema confiança precisaria dela?

     Havia algo especial sobre ela que completava a vida de Lance ou estaria sendo excessivamente romântica e tola para pensar que aquilo era verdade? Descobriu, para sua surpresa, que a resposta a interessava muito.

     De repente, seus sentidos se aguçaram. Erguendo a cabeça, deparou com Lance parado à soleira da porta. Com um movimento rápido, se ergueu do sofá e se pôs de pé. Quando encontrou os olhos cinza todas as palavras evaporaram de sua mente. Em um gesto tolo, puxou o suéter sobre o jeans até a altura dos quadris e desejou estar usando algo mais digno.

     — Não o ouvi entrar — disse ela, amaldiçoando-se, em seguida, pela frase banal.

     — Estava falando ao telefone. — Ele a media com um olhar calmo e avaliador. Os olhos não traíam qualquer tipo de pensamento. Os nervos começaram a agitar o estômago de Foxy.

     — Sim, eu... era Kirk. — Deslizou os dedos pelos cabelos, incapaz de mantê-los parados e, inadvertidamente, revelou a tensão que sentia.

     Em silêncio, Lance continuava a lhe escrutinar a face. Permaneceu parado onde estava quando voltou a falar.

     — Como ele está?

     — Bem. Na verdade, muito bem. Ele e Pam se casaram esta manhã. — Enquanto lhe dava a notícia, Foxy começou a caminhar pela sala. Tocou nas antiguidades de valor inestimável e brincou com o arranjo de flores do outono que a sra. Trilby colocará lá.

     — Isso a agrada? — indagou ele, observando a inquietação de Foxy, antes de se encaminhar ao bar. Ergueu uma garrafa de uísque, pousando-a, em seguida, sem se servir.

     — Sim, muito. — Inspirando profundamente, preparou--se para lhe pedir desculpas por culpá-lo da decisão de Kirk de continuar a correr. — Lance, eu...oh! — Quando girou, deparou com o marido diretamente atrás dela. Surpresa, recuou um passo e a sobrancelha de Lance se ergueu. Enquanto Foxy tentava lidar com a agitação e o embaraço, ele enfiou as mãos nos bolsos.

     — Pedir desculpas não é meu forte — começou ele, enquanto Foxy tentava encontrar palavras para fazer o mesmo. — Mas nesse caso, acho que não posso evitar fazê-lo. — A face de Lance estava próxima. Os olhos fixos nos dela, mas sem expressão. — Peço-lhe desculpas tanto pelas coisas que lhe disse quanto pelo que aconteceu. Sei que não é suficiente, mas tem a minha palavra que algo assim nunca mais se repetirá. — A formalidade afetada serviu apenas para aumentar a aumentar a tensão de Foxy. Sabia que nada do que planejara dizer poderia ser expressado ao estranho que se encontrava parado a sua frente. Baixando o olhar, estudou os desenhos do tapete Aubusson. — Sem perdão, Foxy?

     Percebendo a suavidade na voz do marido, ergueu o olhar outra vez. A tensão, notou, não existia apenas de sua parte. Viu os sinais da noite insone estampados na face de Lance e se sentiu tentada a confortá-lo. Ergueu a mão e lhe tocou o rosto.

     — Por favor, Lance, vamos esquecer o que aconteceu. Nos últimos dois dias, ambos dissemos coisas que não deveriam ter sido ditas. — Os olhos de Foxy se encontravam sérios, enquanto lhe acariciava a face. —Também não gosto de pedir desculpas.

     Lance ergueu a mão e enrolou um cacho dos cabelos macios em torno do dedo..

     — Sempre foi uma estranha mistura de tigresa com gata manhosa. Acho que havia esquecido o quanto pode ser irresistivelmente doce. — Os olhos cinza não estavam mais destituídos de emoção quando voltaram a fitá-la. — Eu a amo.

     — Lance. — Foxy envolveu o pescoço do marido com as mãos e enterrou a face no pescoço forte. Finalmente, a tensão dentro dela começou a se dissipar. — Senti saudades de você — murmurou contra a pele quente. — Não sabia para onde tinha ido e a casa parecia tão vazia.

     — Fui até o escritório — informou ele, enquanto deslizava a mão sob a blusa de Foxy, para lhe acariciar a nuca.

     — Deveria ter me ligado se estava se sentindo sozinha.

     —- Quase telefonei, mas pensei... — Ela deixou escapar um suspiro e fechou os olhos, deleitada. — Não queria que pensasse que o estava controlando.

     — Idiota — resmungou ele, erguendo a face, em seguida, e lhe tomando os lábios em um beijo breve. — É minha esposa, lembra-se?

     — Terá que continuar me lembrando — sugeriu Foxy, sorrindo. — Ainda não me sinto como uma esposa e não conheço as regras.

     — Faça as suas. — Dessa vez, quando a beijou, o contato se prolongou. De imediato, Foxy sentiu os ossos se liquefazerem. Os lábios se colaram aos dele, ávidos e doces, enquanto o suave gemido de prazer do marido a aquecia por dentro.

     — Quero champanhe esta noite — murmurou ela, contra a orelha de Lance.

-— Sinto-me com vontade de comemorar.

     — Por Pam e Kirk? — questionou ele antes de lhe cobrir a boca com a dele.

     — Primeiro, por nós — retrucou Foxy, recuando a face o suficiente para lhe dirigir um sorriso malicioso. — Depois por Pam e Kirk.

     — Está bem, mas amanhã quero ir ao cinema e comer pipoca.

     — Oh, claro! — A face de Foxy se iluminou. Os olhos cintilavam. — Um filme terrivelmente triste ou terrivelmente engraçado. E depois quero uma pizza de peperoni.

     — Que mulher exigente! — Lance riu, enquanto lhe erguia a mão e a levava aos lábios. De repente, os dedos dele se apertaram nos de Foxy. Sentindo a mudança repentina, ela fitou às mãos unidas. Em um gesto lento, ele girou o braço delicado, examinando o suave hematoma no pulso. — Acho que lhe devo mais um pedido de desculpas.

     Preocupada com o fato de a tensão voltar a ditar as ações de Lance, deu um passo à frente.

     — Esqueça. Não é nada.

     — Ao contrário. — A frieza na voz do marido a colocou em alerta. — É muito.

     — Não! Não consigo vê-lo assim. — Frustrada, Foxy caminhou pela sala. — Não posso lidar com você, quando se mostra formal e polido. — Girou para encará-lo e voltou a vaguear pelo aposento. — Se pretende se mostrar zangado, ao menos o faça de uma maneira que eu possa entender. Grite, xingue, quebre alguma coisa — sugeriu ela, gesticulando com a mão. — Mas não fique aí parado como se fosse o pilar de uma sociedade. Não compreendo bem pilares.

     — Foxy. — Um sorriso relutante curvou os lábios de Lance, enquanto a observava caminhar pela sala. — Se soubesse o quanto dificulta as coisas.

     — Não estou tentando dificultar nada. — Ergueu uma almofada do sofá e a atirou pela sala. — E sim simplificar. Sou simples, não entende?

     — Você é... — corrigiu ele. — Infinitamente complexa.

     — Não, não, não! — Foxy bateu com o pé no chão, furiosa pelo fato de ambos estarem discutindo outra vez. — Não endente nada! — Furiosa, jogou os cabelos para trás. —Vou subir — anunciou e se encaminhou à porta.

     Dirigindo-se diretamente ao toalete, abriu a torneira. Com gestos displicentes, jogou uma mistura de sais e essências na banheira e se despiu.

     Ele é um idiota, decidiu, enquanto imergia na água quente e aromática. Bolhas se erguiam e espumavam em torno dela. E eu também. Fervilhando por dentro diante da própria impotência, Foxy pegou uma esponja e começou a esfregá-la no corpo. Poderia deixar de amá-lo se decidisse. Fez uma careta para a esponja e, em seguida, a apertou, impiedosa. Vou deixar de amá-lo e começar a odiá-lo. E quando isso acontecer, concluiu, não serei mais uma idiota.

     Quando a porta se abriu, Foxy lançou um olhar indignado a ela.

     — Se importa se me barbear? — perguntou Lance em tom casual, enquanto adentrava o toalete. Havia retirado o blazer, trajando apenas a camisa e a calça. Ignorando o olhar furioso de Foxy e sem esperar seu consentimento, abriu o armário.

     — Decidi que o odeio — informou Foxy, após ele ter retirado a espuma de barbear e começado a espalhá-lo no rosto.

     — Oh? — Os olhos cinza se moveram no espelho até encontrar os dela. Foxy se sentiu furiosa quando percebeu que tinham um brilho divertido. — Outra vez?

     — Fui boa nisso um dia — lembrou ela. — Agora serei ainda melhor.

     — Não tenho dúvidas. — A lâmina escorregava suave pelo rosto de Lance. — Algumas coisas melhoram com a idade.

     — Vou odiá-lo completamente.

     — Que bom para você — retrucou ele, continuando a se barbear. — As pessoas devem sempre pensar alto.

     Perdendo o controle, Foxy atirou a esponja molhada, atingindo-o entre as omoplatas. Sentiu uma corrente de prazer a atingir e, ao mesmo tempo, outra de alarme. Ele não permitirá, decidiu, que eu escape ilesa. Ainda assim, os olhos o desafiavam. Vagarosamente, Lance pousou a lâmina e se inclinou para pegar a esponja. A tensão dentro de Foxy aumentou, quando ele começou a se aproximar da banheira. Ele não me afogaria, pensou, experimentando algumas aferroadas de dúvida. Enquanto ela debatia a questão, Lance se sentou na beirada da banheira. Foxy percebeu, um tanto desgostosa, que havia se encolhido em um canto. Sem fazer nenhum comentário, ele deixou a esponja cair na água.

      Desviando a atenção, Foxy baixou o olhar. Antes que conseguisse perceber o intento de Lance, a mão firme segurava sua cabeça e a imergia sob a água quente e perfumada. Debatendo-se, ela conseguiu voltar à tona. Os cabelos molhados se colavam a sua face e ombros, enquanto removia as bolhas de sabão dos olhos.

     — Eu realmente o odeio!— exclamou ela, afastando os cabelos ensopados do rosto. — Vou me dedicar a odiá-lo! Inventarei novas formas de odiá-lo!

     Lance anuiu calmamente.

     — Todos devem ter um hobby.

     — Oh! — Agindo dominada pela fúria, Foxy atirou quanta água podia no rosto do marido e se preparou para ser afundada outra vez. Porém, para sua surpresa, Lance rolou para dentro da banheira com um movimento suave e inesperado. A espuma transbordou para os lados. O choque de Foxy se transformou em risadas histéricas.

 — Você é louco! — concluiu, enquanto tentava se manter à tona da água agitada.

— Como posso odiá-lo de verdade quando é maluco? — Os corpos de ambos se entrelaçaram sem nenhum esforço. A pele de Foxy se encontrava perfumada pelo óleo e as mãos fortes deslizaram sobre a superfície escorregadia, para trazê-la mais para perto. As roupas molhada não ofereciam barreiras entre eles. — Está me afogando! — protestou Foxy, quando ele a mudou de posição. Engoliu algumas bolhas de sabão e soltou outra risada. — Sabia que iria me afogar.

     — Não vou afogá-la — corrigiu Lance. — Farei amor com você. — Segurando-lhe a cintura ergueu-a até que o queixo de Foxy estivesse fora da água. Em seguida, deixou os dedos vagarem, pelo abdome macio, enquanto deslizava a outra mão sobre o seio firme. Havia uma suavidade naquele toque que Lance raramente usava.

     — Já que se mostrou disposta a dividir sua esponja e água, imaginei que desejasse que eu me juntasse a você. — Sorriu, enquanto ela afastava os cabelos molhados de seus olhos. — Não queria ser acusado de ser mal humorado.

     — Não é mal-humorado, — afirmou Foxy em tom suave. Os olhos verde-acinzentados refletiam arrependimento quando encontraram os dele. — Lance...

     — Basta de desculpas por esta noite. — Os lábios tentadores cobriram os dela, antes que pudesse protestar. Lance deixou as mãos deslizaram em uma jornada, lenta e sedutora, pelo corpo oleoso.

     — Devíamos conversar — murmurou Foxy, mas as palavras não soaram convictas. O suspiro que deixava escapar era mais eloquente.

     — Amanhã. Amanhã seremos sensatos e conversaremos até solucionarmos os problemas. — Enquanto falava, os lábios quentes escorregavam pela face de Foxy. As mãos longas, exploravam, tocavam e excitavam. — Quero-a esta noite. Desejo fazer amor com minha esposa. — Os lábios agora deslizavam pelo pescoço delicado, antes de ele lhe prender o lóbulo da orelha entre os dentes. Foxy estremeceu e se colou ao corpo másculo. — Depois, pretendo sair com ela e a embebedar levemente antes de trazê-la de volta para casa e fazer amor com ela outra vez.

     Os lábios sensuais tomaram os dela, exigentes e possessivos, até que todos os pensamentos sensatos evaporassem da mente de Foxy.

    

     Naquela manhã, Foxy começou a trabalhar bem mais tarde do que de costume. Eram quase 11h quando terminou de escolher e catalogar as fotos. Quando as colocou dentro de um envelope para enviar por correio, refletiu sobre os últimos meses. Por um instante, enquanto os repassava na mente, podia quase sentir o aroma quente do combustível, ouvir o rangido estridente dos pneus e o roncar dos motores. Meneando a cabeça, começou a lacrar o envelope.

     Estou terminando tudo isso agora. Ficou para trás. De repente, começou a desenrolar o filme que fizera com as crianças nos parques de Boston. No fundo de sua mente, germinava a ideia de fazer um livro. Uma coletânea de fotos de crianças. O instinto lhe dizia que algumas fotos eram sensacionais. Preciso de mais tempo, refletiu, e mais variedade. Terei de frequentar mais parques de diversão, pensou. Pacientemente, trabalhou durante o resto da manhã e início da tarde, deixando que os dedos fizessem o papel dos olhos, quando o quarto estava escuro. Ainda assim, a mente continuava a voltar, inexorável, a Lance.

     Sabia que a noite de amor que tiveram não solucionaria nenhum de seus problemas. Repetidas vezes, os pensamentos se voltavam para a possibilidade de Lance voltar às corridas, mas afastava aquela ideia. Covarde, acusou a si mesma enquanto permanecia envolta na escuridão. Tem de pensar sobre isso, lidar com a essa possibilidade. Não sei se conseguirei. Pressionou os dedos contra os olhos e suspirou profundamente. Tem de conversar com ele sobre isso. Com sensatez. Não foi isso que ele disse? Esta noite teremos uma conversa sensata. Concluiu que não haviam tido muitas conversas sensatas desde que ele a pedira em casamento no quarto do motel próximo a Watkins Glen. Já estava em tempo, decidiu, de descobrir o que esperavam um do outro e o quanto cada um estava disposto a ceder.

     Trancada no quarto escuro, com apenas uma lâmpada vermelha irradiando um reflexo frouxo, descobriu uma das respostas. Enquanto movia as fotos de uma bandeja para outra e as imagens começavam a se formar no papel, começou a entender o que estivera procurando. Os rostos das crianças a encaravam. Alguns sorridentes, outros clicados no furor dos acessos de choro. Havia algumas adormecidas, outras bochechudas e pré-escolares de olhos aguçados.

     Pendurou as fotos com crescente sensação de serenidade. Queria um filho. Desejava ter uma família e tudo que vinha com ela. Uma casa, a rotina. O compromisso de formar uma família estruturada era algo que desejava e que talvez estivesse se sentido temerosa em pedir. Um lar permanente com o homem que amava... filhos de Lance... tradições familiares. Suas tradições familiares. Estaria Lance pensando da mesma forma? Foxy afastou uma mecha de cabelos da face e matutou sobre a resposta. Descobriu que, até onde o conhecia, embora fossem íntimos, não sabia aquela resposta. Teremos de conversar sobre esse assunto, disse a si mesma, enquanto observava as fotos. E sobre muitas outras coisas.

     Uma consulta rápida ao relógio, revelou que ainda lhe sobravam algumas horas daquela tarde. Era o momento de concluir o compromisso com Pam e com as fotos de corrida de carros. Após recolher seu equipamento, subiu a escada para fazer uma ligação para o escritório de Lance. A voz eficiente da secretária atendeu.

     — Olá, Linda. É a sra. Matthews. Lance está ocupado?

     — Sinto muito, sra. Matthews, mas ele não está. Gostaria de deixar um recado ou há algo que pessoa fazer pela senhora?

     — Não, eu... na verdade, sim — decidiu Foxy, consultando mais uma vez o relógio de pulso. Queria cumprir com aquele compromisso o quanto antes. — Ele está trabalhando em um novo carro de Fórmula 1 para a próxima temporada.

     — Sim, o que o seu irmão dirigirá.

     — Isso mesmo. Gostaria de tirar algumas fotos dele, se possível.

     — Isso não será problema, sra. Matthews, se não se importar de dirigir um pouco. O sr. Matthews e a equipe levaram o carro para ser testado na pista hoje.

     — Perfeito. — Foxy pegou o bloco de anotações e a caneta, próximo ao telefone. — Dê-me as coordenadas. Não estive lá ainda.

     

     Dez minutos depois, estacionou, próximo a visão familiar da pista oval. Quando saiu do carro, a brisa fria lhe fustigou os cabelos e lhe abriu a jaqueta desabotoada. O ruído forte do motor lhe chegou aos ouvidos. Protegendo os olhos do sol com a mão em concha, observou a névoa avermelhada que envolvia o circuito. O odor de borracha queimada e combustível contaminava o ar. Isso nunca muda, pensou, antes de deslizar o cordão da máquina fotográfica pelo pescoço.

     De imediato, reconheceu Charlie em meio a um grupo de homens, andando, ligeiro, pelo local onde Lance deveria estar, antes de começar a trabalhar. Movendo-se com desenvoltura, Foxy escolheu o melhor ângulo, selecionou as lentes e posicionou a câmera. Com rápidas rotações dos controles e mudanças de posição do próprio corpo, tirou farias fotos. Aquele, observou, era um carro veloz. Parecia uma bola de fogo, quando fez a curva e voou pela reta. Será perfeito para Kirk, refletiu, imaginando-o com facilidade no cockpit. E Kirk será perfeito para ele. Empertigou-se, afastando algumas mechas de cabelos para trás da orelha e se ergueu.

     — Não consegue se manter longe das pistas, não é, criança? Girando, Foxy sorriu para a carranca que Charlie lhe dirigia.

     — Não consigo ficar longe de você — corrigiu ela, antes de retirar o cigarro aceso dos lábios do amigo e lhe depositar um beijo estalado na face.

     Charlie arrastou os pés, dando um passo atrás, quando ela lhe devolveu o cigarro.

     — Que falta de respeito — resmungou, antes de clarear a garganta e piscar o olho para Foxy. — Está se adaptando bem?

     — Sim, muito bem — garantiu ela. Movida por um velho hábito, esfregou a palma da mão sobre a barba grisalha de Charlie. — E como vai você?

     — Ocupado — rosnou ele, corando sob a carranca. — Entre seu irmão e seu marido, não me resta tempo algum.

     — É o preço que paga por ser o melhor. Charlie fungou, aceitando a verdade.

     — Kirk estará pronto para o carro, quando o carro estiver pronto para ele — profetizou. — É uma pena que não tenhamos os dois — disse, dirigindo o olhar estreitado à pista. — Lance sabe como lidar com uma máquina.

     Foxy entreabriu os lábios para fazer um comentário, quando o significado da afirmação de Charlie a atingiu em cheio. Lance. O sabor metálico do medo lhe apertou a garganta. Meneou a cabeça, tentando negar o que sua mente gritava ser verdade.

     — Lance está dirigindo? — ouviu a própria voz perguntar. O tom era quase um murmúrio aos seus ouvidos, como que ecoado de um longo túnel.

     — Sim. O piloto de testes está doente — explicou Charlie em tom casual, antes de se afastar. Foxy foi deixada sozinha, enquanto o ruído ensurdecedor do motor ecoava na pista.

     Enquanto observava, o carro rabeou na curva e, em seguida, se endireitou sem sequer diminuir a velocidade. Foxy ergueu a sobrancelha. A náusea lhe embrulhou o estômago e, por um momento, a luz do sol o pacificou. Mordeu os lábios inferior e deixou que a dor sobrepujasse a fraqueza. Deteve-se, impotente, enquanto dúzias de acidentes automobilísticos que presenciara passavam como um filme diante de seus olhos. Não outra vez, pensou, desesperada. Oh, Deus, não outra vez!

     Ele dirigia como sempre, com completo controle e determinação. Não como um cometa, mas com a rudeza e astúcia de um déspota. Foxy começou a tremer desconsoladamente à brisa fria do outono. Deve estar mais quente no "cockpit", refletiu, enquanto os dedos se tornavam entorpecidos no cordão da câmera.

     Desesperadamente quente e tudo que ele vê é a pista. O único som que ouve é o do motor. A velocidade é como uma droga que o faz recair. O medo a paralisava, mesmo depois de identificar o som da redução de velocidade do motor. Permaneceu, paralisada, enquanto Lance estacionava, próximo a um grupo de homens. Retirando o cinto de segurança, ele se ergueu do cockpit, retirando o capacete. Em seguida, deslizou as mãos pelos cabelos. Foxy o vira executar os mesmos gestos em incontáveis corridas de incontáveis grids. A dor começou a abrir caminho em meio ao medo gélido. A respiração se tornou irregular. Lance sorria para Charlie e sua risada chegou aos ouvidos de Foxy. Ele ergueu uma sobrancelha, diante de algo que Charlie disse e os olhos cinza seguiram o gesto descontraído do homem mais velho até encontrá-la.

     Por um instante, apenas se fitaram. Marido e esposa. Homem e mulher. Duas pessoas que se conheciam por mais de uma década. Foxy notou a expressão do rosto familiar se modificar, mas não teve tempo de decifrá-la. Lágrimas lhe inundavam os olhos rápido demais para suprimi-las. Eu perdi, pensou, pressionando as mãos contra as laterais da face. Enquanto Lance abria caminho pelo grupo de homens, ela girou e começou a correr em direção ao carro. Ouviu-o chamar seu nome, mas escancarou a porta do carro e deslizou para trás do volante. O único pensamento coerente que tinha em mente era girar a chave na ignição e sair dali. Segundos depois, estava dirigindo em disparada, afastando-se da pista.

     Era quase noite quando Foxy entrou na rua a caminho da casa de arenito castanho-avermelhado. As luzes dos postes se acendiam. O carro de Lance se encontrava estacionado no meio-fio e não na garagem. Foxy estacionou seu MG atrás dele. Desligou o motor e, por instantes, descansou a testa contra o volante. As duas horas que passara dirigindo a acalmaram, mas a haviam deixado enfraquecida. Aproveitou aqueles momentos para recuperar um pouco das forças. Com movimentos lentos e cautelosos, saiu do carro e transpôs o caminho que levava à porta da frente. Quando esticou a mão para girar a maçaneta a porta se abriu. De lados opostos da soleira, ambos se fitaram.

     Lance a encarava como se a estivesse vendo pela primeira vez. Atento e intenso, sem nenhum sorriso interferindo em sua concentração. Os olhos refletiam cautela, mas procuravam os dela. A tranquilidade usual estava presente. Foxy lembrou-se da primeira noite, na festa de Kirk, quando abrira a porta e o encontrara parado do lado de fora. Naquela ocasião, Lance a fitara do mesmo modo.

     Poderei algum dia esquecê-lo?, questionou a si mesma, enquanto lhe sustentava o olhar. Não, respondeu à própria pergunta. Nunca.

     — Fox. — Lance estendeu a mão para guiá-la para dentro, mas ela a ignorou, contornando-o. Pousou o estojo da câmera com cuidado, mas não retirou a jaqueta, antes de se encaminhar à sala de visitas. Sem nada dizer, dirigiu-se ao bar e se serviu de uma pequena dose de conhaque. Tomara aquela decisão durante as duas horas em que dirigiu, mas levá-la adiante no momento não seria fácil. Sorveu um gole da bebida alcoólica e fechou os olhos enquanto o líquido lhe queimava a garganta. Em seguida, tomou outro gole. Lance permanecia parado à soleira da porta, observando-a.

     — Procurei por você em seu quarto escuro. — Franziu o cenho, percebendo a palidez na face da esposa e enfiou as mãos nos bolsos. — Vi as fotos que esteve secando. São extraordinárias. Você é extraordinária. Cada vez que penso que a conheço, descubro outra faceta sua. — Quando ela girou para encará-lo, Lance adentrou a sala. — Devo-lhe uma explicação por esta tarde.

     — Não. — Foxy meneou a cabeça em negativa, enquanto pousava o copo na mesa. — Uma vez me disse que sua profissão não tinha nada a ver comigo. — Os olhos verde-acinzentados se ergueram para se fixar nos dele. — Não quero explicações.

     Lance deu um passo à frente. As sombras na sala se moveram com a mudança de posição.

     — Muito bem, o que quer Foxy?

     — O divórcio — disse ela de forma direta. Sentindo a tensão causada pelas emoções que se avolumavam e lhe apertavam a garganta, apressou-se em continuar. —, Cometemos um erro. Quanto mais rápido o corrigirmos, mais fácil será para ambos.

     — Acha mesmo? — indagou ele. Os olhos de Lance estavam nivelados com os dela.

     — Será fácil conseguir — retrucou Foxy, não respondendo à pergunta. — Gostaria que você providenciasse tudo, já que tem advogados e eu não. Não há necessidade de nenhum acordo.

     — Quer outro drinque? — perguntou Lance, dirigindo-se ao bar. O tom casual a fez fitá-lo, cautelosa.

     — Sim — respondeu ela, desejando aparentar tão controlada quanto o marido. O silêncio no aposento era perturbado apenas pelo tilintar de vidro contra vidro.

     Com a garrafa na mão, Lance se aproximou dela e encheu o copo pousado sobre a mesa. A luz do sol incidia pela janela e se refletia sobre os pés de ambos. Foxy sorveu um gole, imaginando com um lampejo de leviandade se não deveriam brindar aos planos de divórcio.

     — Não — disse Lance, ingerindo o gole de sua bebida.

     — Não? — repetiu Foxy, imaginando se ele teria lido sua mente.

     — Não. Não posso lhe dar o divórcio. Tem outra proposta a fazer?

     Os olhos de Foxy se arregalaram e, em seguida, estreitaram ante ao tom arrogante.

     — Eu conseguirei o divórcio. Contratarei um advogado e moverei uma ação judicial para conseguir um. — Pousou o copo com um baque seco. — Não pode me impedir.

     — Vou me opor a você — afirmou ele com firmeza, enquanto pousava o copo ao lado do dela. — E vencerei. — Esticando a mão, pegou uma mecha de cabelos de Foxy. — Não permitirei que me deixe. Nem agora, nem nuca. Disse-lhe antes, sou um homem egoísta. — Puxando-a pelos cabelos, tomou-a nos braços.— Eu a amo e não pretendo viver sem você.

     — Como se atreve? — Furiosa, Foxy tentou se soltar — Como pode pensar tanto em si mesmo a ponto de não dar nenhuma importância ao que penso? Não sabe o que é o amor. — Debateu-se em frustração, quando seus esforços não a levaram a lugar nenhum.

     — Vai se machucar — avisou ele, apertando os braços em torno dela e a erguendo do chão. Por um instante, Foxy lutou, mas em seguida, desistiu. Fechou os olhos, furiosa por ter de capitular.

     — Solte-me! — ordenou ela entredentes, porém em tom calmo e controlado.

     — Pode me escutar agora?

     Foxy jogou a cabeça para trás, querendo se recusar a fazê-lo. Os olhos cintilavam de raiva e dor.

     — Não tenho muita escolha, certo?

     — Por favor. — A simples palavra a tirou do prumo. O pedido se refletia nos olhos de Lance também. Derrotada, ela anuiu. Quando a soltou, Foxy se afastou era direção à janela.

     A lua, que se insinuava, encontrava-se cheia, alva e promissora. Os reflexos prateados se derramavam sobre as árvores nuas e cintilavam sobre as folhas dispersas. Foxy pensou que nada poderia parecer mais solitário.

     — Não tinha ideia de que viria até a pista hoje.

     Foxy deixou escapar uma breve risada. Em seguida, recostou a testa contra o vidro.

     — Achou que o que eu não soubesse não iria me ferir?

     — Fox. — O tom de voz de Lance a persuadiu a girar para encará-lo. — Ele fez um gesto imperceptível e incomum de frustração. — Costumo testar os carros às vezes. É um hábito meu. Não havia me ocorrido, até vê-la parada lá, o quanto isso a afetaria.

     — Teria feito alguma diferença?

     — Droga, Foxy! — O tom de Lance era áspero e impaciente.

     — Fiz alguma pergunta sem cabimento? — questionou ela, caminhando mais uma vez pela sala, incapaz de ficar parada. — Parece-me que não. Ao contrário, é perfeitamente justificável. Descobri algo sobre mim mesma no último mês. Não posso ficar em segundo plano em sua vida. — Fez uma pausa, inspirando profundamente.

— Quero ficar em primeiro. Não vou me esconder no banco traseiro como sempre fiz com Kirk. Não é a mesma coisa. Quero... algo sólido e permanente. Esperei por isso a vida toda. Esta casa... — Fez um gesto impotente com as mãos, já que as palavras não conseguiam alcançar a velocidade dos pensamentos. — Quero que ela tenha a serventia para qual se destina. Não me importa se a deixarmos uma dúzia de vezes para viajarmos para uma dúzia de lugares diferentes, desde que voltemos para ela. Quero estabilidade, compromisso, uma casa e filhos. Nossos filhos. — A voz de Foxy falseou, embargada pela emoção, mas ela girou com os olhos secos para fitá-lo. — Quero tudo.

     — Virou de costas outra vez e engoliu em seco. Inspirou profundamente, esperando que aquilo a acalmasse. — Quando o vi dentro daquele carro, esta tarde... — As emoções a engolfaram, fazendo-a sacudir a cabeça antes de continuar.

     — Não consigo explicar o efeito que teve em mim. Talvez seja irracional, mas não posso controlar. — Pressionando um ponto entre os olhos, Foxy tentou manter o tom de voz calmo. — Não posso viver aquilo tudo outra vez. Eu o amo e às vezes não consigo acreditar que estamos juntos. Quero que seja você mesmo e sei que o que desejo pode não ser o mais importante para você, mas quando penso que voltará a correr, eu...

     — Por que eu deveria voltar a correr? — indagou Lance era tom calmo e curioso.

     Foxy deu de ombros, impotente.

     — Disse que talvez voltasse, no dia em que descobri sobre o novo carro de Kirk. Sei que é importante para você.

     — Acha que eu faria isso com você? — Dessa vez o tom de voz de Lance a fez girar para encará-lo. — Tem pensado nisso, esse tempo todo? — Ele se aproximou, pousando ambas as mãos nos ombros de Foxy. — Não estou interessado em voltar a correr. Mas se estivesse, daria um jeito de fazê-lo sem você. Estou mais interessado em minha esposa. — Sacudiu-a, mas o gesto demonstrava mais carinho do que punição. — Como poderia considerar voltar a correr, sabendo como isso a afetaria? Não consegue enxergar que está em primeiro plano em minha vida? — Foxy entreabriu os lábios para falar, mas tudo que conseguiu foi menear a cabeça, antes que ele prosseguisse. — Não, provavelmente não. — Lance lhe esfregou os ombros suavemente e, em seguida, deixou cair as mãos nas laterais do corpo. — Em primeiro lugar, pressionei-a para que se casasse comigo, tomando vantagem do acidente de Kirk. Não me senti bem com isso. Deixe-me terminar — disse, quando ela ameaçou protestar. — Eu a desejava e, naquela noite, parecia tão perdida. Arrastei-a para um casamento e a trouxe imediatamente para Boston, sem lhe proporcionar nenhuma das pompas as quais toda noiva tem direito. A verdade é que temia que talvez desistisse e prometi a mim mesmo que a recompensaria quando estivéssemos casados.

     — Lance — interrompeu Fox, pousando a mão na face do marido. — Não preciso de pompa.

     — Essa é a mulher que um dia comparou uma garagem com Manderley? — indagou Lance, levando os dedos delicados aos lábios e, em seguida, os soltando. — Talvez precise lhe proporcionar alguma pompa. Talvez fosse esse o motivo pelo qual fui devorado pelo ciúme, ao simples pensamento de você ter passado uma tarde com Jonathan. Deveria estar com você. Apressei-a a ser minha esposa e nunca me importei em discutir os pontos nevrálgicos — Com as mãos enfiadas nos bolsos, Lance girou e vagueou pela sala. — É difícil ser paciente quando se esteve apaixonado por quase dez anos.

     — O quê? — Foxy o fitou e, em seguida, sentou-se no braço do sofá. — O que disse sobre quase dez anos?

     Lance se voltou para encará-la com seu sorriso enviesado.

     — Talvez se eu tivesse me explicado desde o início, poderíamos ter evitado alguns desses problemas. Não sei quando me apaixonei por você. E difícil me lembrar de um tempo em que não a amava. Era uma adolescente com olhos fabulosos e um sorriso de mulher. Quase me enlouqueceu.

     — Por que... não me disse?

     — Fox, era pouco mais que uma criança e eu, um homem adulto. — Com uma risada, Lance deslizou as mãos pelos cabelos. — Kirk era meu melhor amigo. Se a tivesse tocado, seu irmão teria me matado e com razão. Não conseguia dormir naquela noite em Le Mans, porque uma menina de 16 anos estava me deixando louco. Na garagem, quando girei e você simplesmente caiu em meus braços, desejava-a tanto que doía. O suficiente para me defender com crueldade. Afastá-la de mim era a única coisa decente a fazer. Deus, você me assustava! — Meneando a cabeça, ergueu o drinque esquecido de Foxy. — Sabia que tinha de lhe dar tempo para crescer e construir sua própria vida. Os seis anos que fiquei longe de você foram exasperadamente longos. Foi durante esse tempo que comecei a construir carros e me mudei pára esta casa. — Girou e voltou a encará-la. — Sempre a imaginei aqui. De alguma forma, parecia ser o certo. Sinto que pertence a este lugar, a meu lado. — Pousou o copo e os olhos cinza se tornaram escuros e intensos. — Nunca houve ninguém além de você. Apenas sombras, na melhor das hipóteses. Desejei outras mulheres, mas nunca amei outro alguém. Nunca precisei de outro alguém. Foxy engoliu em seco.

     — Precisa de mim?

     — Para uma vida cotidiana. — Traçou com o dedo a lateral do pescoço de Foxy e a fitou nos olhos. — Nunca havia considerado essa possibilidade. Importo-me com o que pensa de mim. Nunca dei a mínima importância para a opinião alheia a meu respeito. Torna-se mais importante para mim a cada dia e meu desejo por você não diminui. — Um sorriso lento curvou os lábios de Lance. — Você ainda me assusta.

     Foxy retribuiu o sorriso, sentindo o calor aconchegante da felicidade.

     — Acho que esse tipo de casamento nunca será totalmente calmo e estável.

     — Concordo.

     — Suponho que sempre será de alguma forma tempestuoso e exigente.

     — E interessante — completou Lance.

     — Acho que quando duas pessoas estiveram apaixonadas por tanto tempo como nós, podem se dar ao luxo de ser obstinadas quanto ao relacionamento. — Ergueu os braços e lhe envolveu o pescoço. — Sempre o amei, sabia? Mesmo durante os anos que tentava esquecê-lo. Voltar para você foi como voltar para casa. Quero que me beije até me tirar o ar.

     Foxy ainda não havia terminado a frase, quando os lábios ávidos cobriram os dela.

     — Foxy — murmurou ele, recostando a face à dela.

     — Não. Ainda não perdi o ar. — Sedenta, a boca de Foxy procurou a dele até que Lance se esquecesse da gentileza. Selvagens, turbulentos e elétricos, os lábios de ambos se uniram repetidas vezes até que a sala se tornasse sombria cora o crepúsculo.

     — Oh, Lance. — Foxy o abraçou com força por um instante e, em seguida, lhe ergueu a face e escorreu os dedos pelos cabelos negros. — Como pudemos ser tão idiotas e não confessarmos nossos sentimentos um ao outro?

     — Somos novos no que se refere ao casamento. — Roçou o nariz ao dela. — Teremos de adquirir um pouco mais de prática.

     — Sinto-me como uma esposa — afirmou Foxy, envolvendo-lhe o pescoço com os braços e o puxando contra ela. — Sim. Sinto-me exatamente como uma esposa. E gosto disso.

     —Acho que uma esposa merece uma lua de mel — murmurou ele, enquanto começava a se deleitar com os privilégios de um marido. — Deveria ter lhe dito que estive passando muito tempo no escritório e por isso tenho direito a algumas semanas de folga. Começando por agora. Para onde gostaria de ir?

     — Qualquer lugar? — indagou ela, flutuando diante do entorpecente poder das mãos de Lance.

     — Qualquer lugar.

     — Nenhum lugar — decidiu Foxy, enquanto deslizava as mãos por baixo do suéter do marido. As costas eram firmes e quentes sobre as palmas de suas mãos. — Ouvi dizer que o serviço de quarto é ótimo aqui. — Sorriu, quando ele ergueu a face. — E adoro a vista. — Esticando a mão para trás e para cima, Foxy encontrou o telefone e o ergueu. — Tome. Ligue para a sra. Trilby e diga-lhe que fomos para... Fiji por duas semanas. Dê-lhe férias. Trancaremos a porta, colocaremos o fone fora do gancho e desapareceremos.

     — Casei-me com uma mulher muito esperta — concluiu Lance. Pegou o fone o largou, deixando-o pender fora do gancho. — Telefonarei para ela mais tarde... bem mais tarde. — Inclinando a cabeça, roçou os lábios suavemente nos de Foxy. — Disse algo sobre filhos, não foi?

     As pálpebras que estavam começando a se fechar, descerraram outra vez.

     — Sim, disse.

     — Quantos tem em mente? — perguntou ele, enquanto lhe beijava as pálpebras, fazendo-as se fecharem outra vez.

     — Não pensei em um número — murmurou Foxy.

     — Por que não começamos com um e seguimos a partir daí? — sugeriu Lance.

— Um projeto importante como esse deveria ter início imediato, não acha?

     — Claro que sim — concordou ela.

     O crepúsculo deu lugar à noite, enquanto, apaixonados, os lábios se uniam outra vez.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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