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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Punição Para a Inocência / Agatha Christie
Punição Para a Inocência / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Punição Para a Inocência

 

Calgary é um homem de amplos co­nhecimentos, e uma companhia agradá­vel. Um dia está diante do rio e precisa atravessá-lo. Dá com o barco, e com seu barqueiro. Não chegaria, de outra maneira, até o Recanto do Sol. Tudo parece muito mitológico, mas a vida está ali mesmo, repleta de sua realidade, e de sua violência. Uma casa com aquele nome: o leitor pensa logo em praia, prazer, descompromisso. E en­contra as sombras. As sombras irresistivelmente reunidas em torno da lareira, onde as crianças se aqueciam, e o amor, a proteção da Sra. Argyle era a chama de maior constância. Que fim levou o menino Jacko? Ele vingou, cresceu, traiu, negociou. E foi visto, depois, na mesma noite em que sua mãe adotiva se cobriu de mistério e escuridão. Qual a culpa de Jacko, desajustado, tratante, criminoso — entretanto, quem sabe, destruído por uma só inocência? Ante o escuro, de novo, da prisão.

Mas não foi só no Recanto do Sol que o Sr. Calgary se viu cercado de som­bras. Houve, antes, o dia do estrondo, choque, impacto que lhe apagou todas as luzes da memória, atropelo, trapo de Calgary atropelado. Sol ou víbora, bom ou ruim se lembrar mais tarde, rever a cena, a seqüência inteira, o álibi confir­mado? Uma luz incômoda, agora, este cidadão. Gostariam de apagá-lo/a: os outros, todos — como aceitar aquele que não esquece? O leitor acabará des­cobrindo um assassino. Não o de Jacko, porém. Pois este crime, nem ele próprio — o leitor — pode estar certo de não ter cometido. Caso se sinta culpado, o me­lhor é ficar bem quieto no seu canto, procurando entender por que lhe acon­tece isso. Terá mesmo que se dar por muito feliz se tiver sido vítima, tão-so­mente, de sua consciência, não da ví­bora que se enrosca pelos cômodos da casa e desde o início o olha no fundo dos olhos, sem a menor hesitação.

 

                       

 

Já era crepúsculo quando ele chegou ao cais. Poderia ter chegado muito antes, mas a verdade é que havia protela­do aquilo o quanto lhe fora possível.

Primeiro almoçara com amigos em Redquay; a conver­sa leve e inconseqüente, a troca de mexericos a respeito de amigos comuns, tudo aquilo não significara mais do que um pretexto para justificar o fato de estar interiormente re­cuando ante o que tinha de fazer. Seus amigos o haviam convidado a ficar para o chá e ele prontamente aceitara. Porém, por fim, havia chegado o momento em que sabia não poder continuar a adiar as coisas.

O carro que alugara estava esperando. Despediu-se e par­tiu para cobrir as sete milhas de tráfego pesado da estrada da costa e, depois, seguir para o interior ao longo da estradinha sombreada de árvores que conduzia ao pequeno cais de pedra no rio.

Havia um enorme sino que seu motorista fez soar vigorosamente para chamar o barco que estava na outra margem.

— Não vai querer que o espere, senhor?

— Não — disse Arthur Calgary. — Já pedi um carro que me virá buscar daqui a uma hora para levar-me até Drymouth.

O homem recebeu a corrida e a gorjeta. E acrescentou, espiando para o outro lado do rio através das sombras:

— O barco já está vindo, senhor.

Com um suave boa-noite ele manobrou o carro e afas­tou-se morro acima. Arthur Calgary ficou só, esperando no cais. Só com seus pensamentos e apreensões a respeito do que estava para enfrentar. Como era rude a natureza por ali, pensou. Dava para se pensar nas bordas de algum lago escocês, longe de tudo e de todos. No entanto, a poucas milhas de distância estavam os hotéis, as butiques, os bares e as multidões de Redquay. Refletiu, não pela primeira vez, sobre os extraordinários contrastes da paisagem inglesa.

Ouviu o suave chapinhar dos remos do barco que se aproximava do pequeno cais. Arthur Calgary desceu a rampa íngreme e entrou no barco que o barqueiro firmava com um gancho. Era velho e deu a Calgary a estranha impressão de que ele e seu barco se pertenciam mutuamente, eram um só, indivisíveis.

Uma brisa fresca chegou do lado do mar quando come­çavam a se afastar.

— A noite está fria — disse o barqueiro.

Calgary deu a resposta adequada. Chegou mesmo a concordar que fazia mais frio do que no dia anterior.

Estava consciente, ou pelo menos julgava estar, de uma velada curiosidade nos olhos do barqueiro. Era de fora. Era forasteiro que aparecia depois da temporada propriamente dita. Além do mais, o forasteiro estava fazendo a travessia numa hora meio estranha, pois já era tarde demais para tomar chá no bar junto ao cais. Não levava bagagem, logo não po­dia estar chegando para demorar. (Por que, ficou imaginando Calgary, teria vindo tão tarde? Seria realmente porque, no subconsciente, estava tentando protelar aquele momento? Deixar para o mais tarde possível o que tinha de ser feito?) Cruzando o Rubicão, o rio... o rio... sua mente voltou-se para um outro rio, o Tâmisa.

Ele olhara para o rio sem vê-lo (teria sido mesmo ape­nas ontem?); depois se voltara para tornar a olhar para o homem que se sentava à sua frente à mesa. Aqueles olhos pensativos traziam em si alguma coisa que ele não havia chegado a ser capaz de compreender. Algo mantido em reserva, algo pensado porém não expressado...

“Suponho”, pensou ele, “que aprendem a jamais revelar o que estão pensando.”

A coisa toda era realmente assustadora quando se pen­sava bem. Ele tinha de fazer o que devia ser feito, e de­pois... esquecer!

Franziu a testa ao relembrar a conversa da véspera. Aque­la voz agradável, tranqüila, neutra, dizendo:

— O senhor está inteiramente decidido a respeito do ca­minho que vai tomar, Dr. Calgary?

Ele respondera, acalorado:

— Que mais posso fazer? Por certo há de compreender isso? Deve concordar! É uma coisa que não posso recusar-me a fazer.

Mas não conseguira compreender aquele olhar cinzento e reservado e ficara um tanto perplexo com a resposta:

— Todo assunto tem de ser encarado sob todos os pon­tos de vista, considerado sob todos os aspectos.

— Mas sem dúvida sob o prisma da justiça só pode haver um ponto de vista!

Havia falado acaloradamente, pensando por um momen­to que estava sendo feita alguma sugestão ignóbil de se “aba­far” o assunto.

— De certo modo, sim. Porém há mais do que isso a considerar. Mais do que, digamos, justiça?

— Não concordo. Há a família a considerar.

E o outro disse, rapidamente: —— Claro. Ah, sim, claro. Era neles que eu estava pensando.

O que parecera a Calgary a maior tolice! Porque se al­guém estivesse pensando neles...

Porém imediatamente o outro continuara, com sua voz agradável e inalterada:

— Isso é inteiramente com o senhor, Dr. Calgary. O se­nhor deve, naturalmente, fazer exatamente aquilo que sentir que deve fazer.

O barco chegou ao outro lado. Ele havia atravessado o Rubicão.

A voz do barqueiro, com seu suave sotaque do oeste da Inglaterra, disse:

São quatro pence, senhor; ou deseja ida e volta?

Não — disse Calgary. — Não vou voltar. (Como a frase parecia fatídica!)

Pagou, depois perguntou:

Conhece uma casa chamada Recanto do Sol?

Imediatamente a curiosidade deixou de ser velada. O interesse nos olhos do velho saltava de avidez.

Mas é claro. É ali, para a direita, dá para ver no meio das árvores. O senhor sobe a colina pela estrada, sempre à direita, depois pega o caminho do novo conjunto residencial. É a última casa, bem no fim.

Obrigado.

O senhor disse Recanto do Sol, não disse? Onde a Srª Argyle...

Isso mesmo — cortou Calgary. Não queria discutir o assunto. — O Recanto do Sol.

Um sorriso lento e um tanto peculiar contorceu os lábios do barqueiro. Repentinamente ficou parecido com um fauno velho e safado.

Foi ela quem deu esse nome à casa, durante a guer­ra. Era casa nova, é claro, tinham acabado de construir, não tinha nome. Mas o terreno onde ela fica, aquele bosquezinho, chama-se mesmo é Recanto da Víbora! Mas Recanto da Ví­bora não ia servir para ela, não para ser nome da casa dela. E então chamou de Recanto do Sol. Mas nós sempre cha­mamos de Recanto da Víbora.

Calgary agradeceu bruscamente, disse boa-noite e come­çou a subir a colina. Todos pareciam estar recolhidos às suas casas, porém teve a impressão de que olhos ocultos espia­vam pelas janelas de todas as casas; todos olhando e sa­bendo para onde ele ia. Dizendo, uns para os outros: “Ele vai para a Recanto da Víbora...”

Recanto da Víbora. Como o nome devia ter parecido horrivelmente apropriado...

Pois mais aguda que o dente da serpente...

Ele cortou bruscamente seus pensamentos. Precisava con­trolar-se e decidir exatamente o que iria dizer...

 

Calgary chegou ao fim da encantadora estrada recente­mente construída, com suas encantadoras casas novas de cada lado, cada uma cercada por terreninhos precisamente iguais; cáctus, crisântemos, rosas, palmas, gerânios revelavam o gos­to individual do dono de cada jardim.

No final da estrada havia um portão no qual se podia ler RECANTO DO SOL em letras góticas. Ele abriu o por­tão, entrou e subiu por um pequeno caminho. Lá estava a casa bem na frente dele, uma casa moderna, bem construída e sem personalidade, com mansardas e varanda. Poderia per­tencer a qualquer subúrbio residencial de boa categoria, ou a qualquer novo bairro residencial. Não ficava à altura, na opinião de Calgary, da vista que descortinava. Pois a vista era magnífica. O rio, naquele ponto, descrevia uma curva de quase 360° em torno de uma ponta. Do outro lado, des­cortinava-se colinas cobertas de árvores; um pouco mais abai­xo o rio tornava a dar uma curva e penetrava num vale de prados e hortas.

Por um momento Calgary olhou o rio, para cima e para baixo. Aqui deveria ter sido construído um castelo, pensou ele, um castelo ridículo, impossível, saído de um conto de fadas! Castelo de bolo de aniversário de criança. Ao invés, ali estavam bom gosto, controle, moderação, muito dinheiro e nenhuma imaginação.

Por isso, naturalmente, não se poderia culpar os Argyles, já que eles haviam apenas comprado a casa, não a ha­viam construído. Mesmo assim, eles ou um deles (a Srª Argyle?) a haviam escolhido...

Ele disse de si para si: — Você não pode adiar mais nem um momento... e apertou a campainha ao lado da porta,

E ali ficou ele, esperando. Após um intervalo razoável, tornou a tocar. Não ouviu qualquer ruído de passos no interior, porém, sem qualquer aviso, repentinamente a porta se abriu.

Ele recuou um passo, assustado. Para a sua imaginação já superestimulada, parecia que a própria Tragédia estava ali parada, cortando-lhe o caminho. Era um rosto jovem; na verdade era na pungência de sua juventude que residia a pró­pria essência de sua tragédia. A Máscara Trágica, pensou ele, deveria sempre ser uma máscara jovem... desamparada, pre­destinada, com a desgraça se aproximando inexoravelmente... com o futuro...

Controlando-se, ele raciocinou: “Tipo irlandês.” O azul profundo dos olhos, a profunda sombra em torno dos mes­mos, o farto cabelo negro, a melancólica beleza dos ossos do crânio e da face.

A moça permaneceu ali, parada, alerta e hostil.

Disse, por fim:

— Pois não. O que deseja?

Ele respondeu convencionalmente.

— O Sr. Argyle está?

— Está. Mas não recebe ninguém. Quero dizer, ninguém que não conheça. E. ele não o conhece, conhece?

— Não. Ele não me conhece, porém...

— Então é melhor o senhor escrever...

— Desculpe, mas eu precisava realmente vê-lo. Estou falando com a... Sr.tª Argyle?

Ela confessou com relutância.

— Sim, sou Hester Argyle. Mas meu pai não vê nin­guém sem hora marcada. É melhor o senhor escrever.

— Vim de muito longe. — Ela não se deixou co­mover

— É o que todos dizem. Mas eu pensei que finalmente esse tipo de coisa tivesse acabado. — E continuou, acusadora.

— Suponho que seja jornalista?

— Não, nada disso.

Ela o olhou desconfiada, como se não acreditasse.

— Então o que deseja?

Por trás dela, para o fundo do hall de entrada, viu um outro rosto. Um rosto feio e inexpressivo. Para descrevê-lo teria dito um rosto igual a uma panqueca, um rosto de mulher de meia idade, com o cabelo encaracolado de um amarelo acinzentado emplastrado no alto da cabeça. Parecia sobrevoar, à espreita, como um dragão protetor.

— Trata-se de seu irmão, Sr.ta Argyle.

Hester Argyle inspirou violentamente. Disse, sem acreditar. — Michael?

— Não; seu irmão Jack.

Ela explodiu: — Eu sabia! Sabia que era a respeito de Jacko! Por que não nos deixam em paz? Está tudo acabado, liquidado. Por que continuar com tudo isso?

— Nunca se pode dizer que uma coisa esteja realmente acabada.

— Mas isso está acabado! Jacko está morto. Por que não o deixam em paz? Tudo isso acabou. Se o senhor não é jornalista, suponho que seja médico, ou psicólogo, ou coisa no gênero. Por favor, vá embora. Meu pai não pode ser per­turbado. Está ocupado.

Ela começou a fechar a porta. Rapidamente Calgary fez o que devia ter feito de saída, tirou a carta do bolso e ofe­receu-a a ela.

— Tenho aqui uma carta... do Sr. Marshall.

Ela hesitou. Seus dedos pegaram com relutância na en­velope. Disse, com incerteza:

— Do Sr. Marshall, de Londres?

Repentinamente a mulher de meia idade que estivera espreitando no fundo do hall juntou-se a ela. Espiou na dire­ção de Calgary com desconfiança e a imagem de conventos distantes veio à sua lembrança. Claro que aquele deve­ria ser o rosto de uma freira! Exigia o branco engomado da touca, chapéu ou lá o que o chamassem, para emoldurar se­veramente a face, bem como o hábito negro e o véu. Não era o rosto de uma contemplativa, mas da irmã leiga que espia com suspeita pela pequena abertura da porta pesada, antes de permitir, de má vontade, a entrada e conduzir o visitante ao parlatório ou à Reverenda Madre.

O senhor vem da parte do Sr. Marshall? — inqui­riu ela.

Parecia mais uma acusação.

Hester olhava fixamente o envelope em sua mão. Repentinamente, sem uma só palavra, deu meia volta e correu pela escada acima.

Calgary ficou parado na porta, enfrentando o olhar acusador e desconfiado do dragão misto de irmã-leiga.

Ele procurou um pouco por alguma coisa a dizer, mas não conseguiu lembrar-se de nada. Assim sendo, manteve-se prudentemente calado.

Dentro em breve a voz de Hester, fria e distante, desceu até eles.

Papai disse que é para ele subir.

Um tanto a contragosto seu cão de guarda afastou-se. Sua expressão de suspeita não se alterou. Ele passou por ela, pousou o chapéu numa cadeira e subiu as escadas até onde Hester o aguardava.

O interior da casa deu-lhe impressão vagamente anti-séptica. Poderia quase, pensou ele, tratar-se de uma casa de repouso dispendiosa.

Hester guiou-o por um corredor, depois desceu três degraus. Finalmente abriu uma porta e fez-lhe um gesto para que entrasse. Ela entrou logo após, e fechou a porta atrás de si.

Estavam numa biblioteca e Calgary levantou a cabeça com sensação de prazer. A atmosfera ali era completamente diferente da do resto da casa. Tratava-se de um cômodo no qual um homem vivia e no qual ele tanto trabalhava quanto passava seu lazer. As paredes eram forradas de livros, as cadeiras amplas, um tanto surradas porém acolhedoras. Havia uma agradável desordem de papéis sobre a escrivaninha, de livros sobre várias mesas. Vislumbrou uma moça deixando a sala por uma porta na outra extremidade, uma moça bastante atraente. Depois sua atenção foi tomada pelo homem que se levantou e veio saudá-lo, com a carta aberta em suas mãos.

A primeira impressão que Calgary teve de Leo Argyle foi a de que estava tão desgastado, tão transparente, que pra­ticamente não tinha presença material. O espírito de um ho­mem! Quando falou, sua voz era agradável, porém destituí­da de ressonância.

— Dr. Calgary? — disse. — Sente-se, por favor.

Calgary sentou-se e aceitou um cigarro. Seu anfitrião sen­tou-se em frente a ele. Tudo era feito sem pressa, como se em um mundo no qual o tempo tivesse muito pouca impor­tância. Havia o leve traço de um sorriso no rosto de Leo Argyle quando falou, batendo delicadamente na carta com um dedo exangüe ao fazê-lo.

— O Sr. Marshall escreve que o senhor tem uma comu­nicação importante a nos fazer, muito embora não especifi­que sua natureza. O sorriso ficou um pouco mais marcado quando acrescentou: — Todo advogado evita sempre se com­prometer, não é?

Ocorreu a Calgary, com um ligeiro choque de surpresa, que o homem que o confrontava era um homem feliz. Não de uma felicidade alegre ou expansiva, como costuma ser normalmente a felicidade, mas feliz dentro de algum refú­gio sombrio porém satisfatório e todo seu. Ali estava um homem ao qual o mundo exterior não conseguia impingir-se e que estava contente que assim fosse. Não sabia por que havia de ficar surpreso com isso, mas ficou.

Calgary disse:

— É muita bondade sua receber-me. As palavras não passavam de uma introdução mecânica. — Julguei que seria melhor vir em pessoa do que escrever. Fez uma pausa, depois disse, em repentino e excitado estouro de agitação. É difícil, muito difícil...

— Não há pressa.

Leo Argyle continuava polido e distante.

Inclinou-se para a frente; à sua tímida maneira, estava obviamente tentando ajudar.

— Já que traz esta carta de Marshall, suponho que sua visita tem alguma ligação como meu infeliz filho Jacko, quero dizer, Jack. Jacko era como nós o chamávamos.

Todas as palavras e frases que Calgary preparara com tanto cuidado o haviam abandonado. Ficou ali, sentado, en­frentando a aterrorizante realidade do que tinha a dizer. No­vamente gaguejou.

— É tão difícil...

Houve um momento de silêncio, depois Leo disse cautelosamente:

— Se é que isso pode ajudá-lo, nós temos plena cons­ciência de que Jacko... dificilmente poderia ser conside­rado como uma personalidade normal. Nada de que nos poderá contar será recebido com muita surpresa. Por mais terrível que tenha sido a tragédia, sempre fiquei convenci­do de que Jack não era realmente responsável por seus atos.

— Claro que não era. — Era Hester; e Calgary teve um sobressalto ao som de sua voz. Por um instante ele a ha­via esquecido. Ela se havia sentado no braço de uma ca­deira que ficava um pouco para trás de seu ombro. Quando ele voltou a cabeça, ela se inclinou ansiosa para ele.

— Jacko sempre foi uma coisa horrível — disse ela em tom confidencial. — Era a mesma coisa quando ele era pequeno, quero dizer, quando perdia a cabeça. Passava a mão na primeira coisa que encontrava e... e partia para cima...

— Hester, Hester, minha querida. — A voz de Argy­le estava muito perturbada.

Assustada, as mãos da moça voaram para seus lábios. Enrubesceu e depois falou com a repentina falta de jeito dos muito jovens:

— Desculpe — disse. — Eu não queria, eu esqueci, eu, eu não devia ter dito uma coisa dessas, não agora que ele já, isto é, agora que está tudo acabado e...

— Completamente acabado — disse Argyle. — Tudo isso é coisa do passado. Eu tento... todos nós tentamos... pensar que é preciso considerar o rapaz como um inválido. Um dos desacertos da natureza. Creio que essa é a melhor maneira de expressá-lo. Olhou para Calgary. — Não con­corda?

— Não — disse Calgary.

Houve um instante de silêncio. A negativa incisiva dei­xou atônitos os dois ouvintes. Ela saíra com força quase que explosiva. Tentando mitigar seu efeito, ele acrescentou, canhestramente:

— Eu, eu, desculpem. Mas acontece que ainda não compreenderam.

— Oh! disse Argyle, parecendo avaliar a situação. Depois virou-se para a filha:

— Hester, penso que talvez seja melhor, você nos dei­xar.

— Eu não vou sair! Tenho de ouvir, tenho de saber do que se trata.

— Pode ser desagradável.

Hester exclamou, impaciente:

— E o que importa que outra coisa horrível Jacko pos­sa ter feito? Acabou.

Calgary falou rapidamente.

— Por favor, acredite-me, não se trata de qualquer coisa que o seu irmão tenha feito, muito pelo contrário.

— Não vejo...

A porta no fundo da sala se abriu e a moça que Cal­gary apenas vislumbrara antes entrou na biblioteca. Usava agora um mantô e portava uma pasta.

Dirigiu-se a Argyle.

— Já vou indo. Há mais alguma coisa?

Houve uma ligeira hesitação por parte de Argyle (sem­pre hesitaria, pensou Calgary), depois ele pousou a mão no braço da moça e trouxe-a para a frente.

— Sente-se Gwenda — disse ele. — Este é, hum, o Dr. Calgary. Esta é a Sr.ta Vaughan, que é, que é... que já é minha secretária há alguns anos. A explicação saiu após uma pausa e nova hesitação. Acrescentou: — O Dr. Calgary veio para nos dizer alguma coisa, ou para nos perguntar alguma coisa, a respeito de Jacko.

— Para dizer-lhes alguma coisa. — interrompeu Cal­gary. — E muito embora não o percebam, a cada momen­to estão tornando mais difícil para mim dizê-lo.

Todos olharam para ele um tanto surpresos, mas nos olhos de Gwenda Vaughan pôde ver a chispa de algo que parecia compreensão. Era como se eles fossem, momen­taneamente, aliados, e ela estivesse dizendo: “É, eu sei o quanto os Argyles podem ser difíceis.”

Era uma jovem atraente, pensou ele, embora não assim tão jovem, talvez uns trinta e sete ou trinta e oito anos. Corpo cheio, cabelos e olhos escuros, todo um ar de saúde e vitalidade. Dava a impressão de ser ao mesmo tempo competente e inteligente.

Argyle disse, com alguma coisa gelada em seus mo­dos: — Não tenho a menor consciência de estar tornando as coisas mais difíceis para o senhor, Dr. Calgary. Por cer­to não foi essa a minha intenção. Se quiser dizer do que se trata...

— Sim, eu sei. Desculpem-me pelo que disse, porém é a persistência com a qual o senhor e sua filha estão con­tinuamente salientando que as coisas estão acabadas, liqui­dadas. Elas não estão terminadas. Quem foi que disse Nada fica bem terminado...

— Enquanto não termina certo — concluiu para ele a Sr.ta Vaughan. — Foi Kipling. — Ela sacudiu a cabeça para encorajá-lo e ele sentiu-se agradecido.

— Mas irei logo ao assunto — continuou Calgary. — Quando tiverem ouvido o que tenho a dizer, compreende­rão minha... relutância. Mais ainda, minha angústia. De início devo dizer algumas coisas a meu próprio respeito. Sou geo-físico e acabo de tomar parte numa expedição à Antártida. Só voltei à Inglaterra faz poucas semanas.

— A expedição Hayes Bentley? — perguntou Gwenda.

Ele se voltou para ela agradecido.

— Exato. A expedição Hayes Bentley. Estou dizendo tudo isso para explicar quem sou e também por que perdi contato durante aproximadamente dois anos com... os acon­tecimentos contemporâneos.

Ela continuou a ajudá-lo.

— Está querendo falar de coisas assim como jul­gamentos e assassinatos?

— Sim, Sr.ta Vaughan, era exatamente a isso que me referia.

Ele se voltou para Argyle.

— Por favor, desculpe-me se isto é doloroso, porém preciso verificar com o senhor certas horas e datas. No dia 9 de novembro do ano atrasado, cerca das seis horas da tarde, seu filho Jack Argyle (a quem chamam Jacko), veio aqui e teve uma entrevista com sua mãe, a Sra Argyle.

— Com minha mulher, sim.

— Disse-lhe que estava em apuros e pediu dinheiro. Isso já acontecera anteriormente.

— Muitas vezes — disse Leo Argyle, com um suspiro.

— A Sr.a Argyle recusou. Ele se tornou ofensivo e ameaçador. Finalmente saiu, muito irritado e gritando, do lado de fora, que voltaria e que ela “ia ver se tinha ou não tinha de entregar a gaita”. Disse “Não vai querer que eu vá para a prisão, vai?”, tendo ela respondido “Estou começando a crer que isso seria a melhor coisa que poderia acontecer a você”.

Leo Argyle remexeu-se inconfortável.

— Minha mulher e eu havíamos conversado a respei­to. Nós estávamos... estávamos profundamente insatisfeitos com o rapaz. Já o salváramos não sei quantas vezes, ten­tando dar-lhe uma nova oportunidade. Havia-nos parecido que o choque de uma condenação à prisão... a discipli­na... Sua voz apagou-se. — Mas, faça o favor de con­tinuar.

Calgary continuou:

— Mais tarde, nessa mesma noite, sua mulher foi mor­ta. Atacada com um atiçador de lareira e abatida. As im­pressões digitais de seu filho estavam no atiçador e uma considerável soma em dinheiro havia desaparecido da gaveta na qual sua mulher o havia colocado mais cedo naquele mesmo dia. A polícia capturou seu filho em Drymouth. O dinheiro foi encontrado com ele, a maior parte em notas de cinco libras, sendo que em uma delas havia um endereço escrito que permitiu sua identificação, pelo Banco, como sendo uma das que haviam sido entregues à Sra Argyle na­quela manhã. Ele foi acusado e julgado. “O veredicto foi de assassinato premeditado.”

Pronto. A palavra fatal havia sido dita. Assassinato... Não é uma palavra que ressoe; é uma palavra sufocada, uma palavra que é absorvida pelas cortinas, os livros, os gros­sos tapetes... A palavra podia ser sufocada, mas não o ato...

— Fui informado pelo Sr. Marshall, o advogado de defesa, que seu filho proclamou sua inocência, ao ser pre­so, de modo alegre, para não dizer desrespeitoso. Insistia que tinha um álibi perfeito para a hora do crime, que havia sido previsto pela polícia entre as sete e as sete e meia. Naquele momento, disse Jack Argyle, ele estava indo de carona para Drymouth, tendo sido apanhado por um carro na estrada principal entre Redyn e Drymouth a cerca de uma milha daqui, um pouco antes das sete horas. Ele não sabia qual era a marca do carro (estava já bastante escuro naquele momento), mas se tratava de um sedã de quatro portas preto ou azul marinho, guiado por um homem de meia idade. Todos os esforços foram feitos para encontrar o carro e o homem que o guiava, porém não foi possível obter-se qualquer confirmação daquela afirmativa, sendo que os próprios advogados ficaram convencidos de que se tra­tava de uma história fabricada às pressas pelo rapaz... e nem sequer particularmente bem fabricada.

— No julgamento a linha principal de defesa foi o depoimento de psicólogos que tentaram provar que Jack Argyle sempre havia sido mentalmente instável. O juiz teceu comentários arrasadores sobre tais depoimentos e seu su­mário era radicalmente contra o prisioneiro. Jack Argyle foi condenado à prisão perpétua. Ele morreu de pneumonia seis meses após ter começado a cumprir sua pena.

Calgary parou. Três pares de olhos estavam agarrados a ele. Havia interesse e atenção nos de Gwenda Vaughan, mas ainda havia suspeita nos de Hester. Os de Leo Argyle pareciam totalmente privados de expressão.

Calgary disse: — Podem confirmar se eu descrevi os fatos corretamente?

— Está perfeitamente correto — disse Leo, — embora eu ainda não perceba por que terá sido necessário rememo­rar todos esses fatos dolorosos que vimos todos tentando esquecer.

— Desculpem-me, Mas era necessário. Os senhores, pe­lo que sei, não discordam do veredicto?

— Admito que os fatos foram os que apresentaram, ou seja, que se não se olhar para nada além dos fatos, o que houve, em termos rudes, foi assassinato. Porém se se olha para algo mais do que os fatos, há muitos atenuantes a serem considerados. O rapaz era mentalmente instável, mui­to embora, infelizmente, não no sentido legal da palavra. A jurisprudência McNaughten é estreita e insatisfatória. Eu lhe garanto, Dr. Calgary, que a própria Rachel, minha finada mulher, seria a primeira a perdoar e justificar o infeliz ra­paz por seu ato impensado. Ela era uma pensadora avan­çada e profundamente humana, tendo grande conhecimento de fatores psicológicos. Ela jamais o teria condenado.

— Ela sabia como Jacko podia ser terrível — disse Hester. — Era assim sempre... ele simplesmente não con­seguia fazer nada para alterar esse fato.

— Quer dizer que ninguém aqui — disse Calgary lenta­mente — tinha qualquer dúvida? Dúvida, digo, a respeito de sua culpabilidade?

Hester fixou os olhos nele.

— E como poderíamos ter? É claro que ele era cul­pado.

— Não realmente culpado — discordou Leo. — Não gosto dessa palavra.

— E a palavra não é realmente verdadeira. — Calgary respirou profundamente. — Jack Argyle era inocente!

Deveria ter sido uma proclamação sensacional. Ao in­vés, foi um fracasso. Calgary havia esperado perplexidade, alegria incrédula em luta com incompreensão, perguntas apaixonadas... Não houve nada disso. Parecia existir ape­nas desconfiança e suspeita. Gwenda Vaughan franzia a tes­ta. Hester o encarava com olhos esbugalhados. Bom, talvez fosse natural. Afinal de contas, uma afirmativa como aquela não poderia ser assimilada toda de uma só vez.

Leo Argyle disse, hesitante:

— Quer dizer que o senhor concorda com a minha atitude, Dr. Calgary? Não crê que ele tenha sido responsá­vel por seus atos?

— Quero dizer que não foi ele! Não compreende, ho­mem? Não foi ele. Não podia ter sido ele. A não ser por uma série extraordinária e muito infeliz de circunstâncias, ele poderia ter provado que era inocente. Eu poderia ter provado que ele era inocente.

— O senhor?

— Eu era o homem do carro.

Ele o disse com tal simplicidade que por um instante eles não compreenderam. E, antes que se pudessem recupe­rar, houve uma interrupção. A porta se abriu e a mulher com o rosto feio entrou. Ela falou com objetividade e pre­cisão.

— Enquanto passava, ouvi suas palavras. Ele diz que Jacko não matou a Sra Argyle. Por que diz? Como está sabendo?

Seu rosto, que antes fora militante e feroz, repentina­mente enrugou-se e caiu.

— Vou ficar também — disse implorando. — Não posso estar fora sem saber.

— Claro que não, Kirsty. Você é da família. Leo Ar­gyle apresentou-a. — Miss Lindstrom, Dr. Calgary. O Dr. Calgary está dizendo uma coisa incrível.

Calgary ficou atônito com o nome escocês de Kirsty. O seu inglês era fluente mas havia nele algo de estrangeiro. Ela dirigiu-se a ele acusadora.

— O senhor não devia vir aqui dizer coisas assim pa­ra amolar a gente. Já tiveram seus problemas. Agora só per­turba dizendo isso. O que aconteceu foi vontade de Deus.

Ele se sentiu repugnado pela fácil complacência da atitude dela. Era possível, pensou ele, que ela fosse do tipo mórbido que floresce com catástrofes. Bem, teria de ser pri­vada de tal prazer.

Ele falou em tom rápido e seco.

— Às cinco para as sete naquela noite, na estrada principal de Redmyn para Drymouth, eu apanhei um rapaz que estava pedindo carona. Levei-o até Drymouth. Conver­samos. Ele me pareceu então um rapaz simpático e interes­sante.

— Jacko possuía muito charme — disse Gwenda. — Todo mundo o achava encantador. Era a violência de seu temperamento que o prejudicava. E era desonesto, natural­mente — acrescentou pensativa. — Mas as pessoas sempre custavam a descobrir esse aspecto.

A Sr.tª Lindstrom virou-se contra ela.

— Não deve falar assim de quem está morto.

Leo Argyle disse com certa aspereza:

— Faça o favor de continuar, Dr. Calgary. Por que não se apresentou, na época?

— Isso mesmo — disse Hester, que parecia não ter fôlego para falar. — Por que preferiu ficar de fora?

Houve apelos nos jornais, anúncios. Como pôde ter sido tão egoísta, tão malvado.

— Hester, Hester — disse o pai, controlando-a. O Dr. Calgary ainda está contando sua história.

Calgary dirigiu-se diretamente à moça.

— Sei muito bem como se sente. Sei o que eu mesmo sinto, o que sempre sentirei... Controlou-se e continuou.

— Permita-me continuar minha história. Havia muito tráfego nas estradas naquela noite. Já passava bastante das sete e meia quando deixei o rapaz, cujo nome eu não sa­bia, no centro de Drymouth. Isso, pelo que compreendo, o inocenta completamente, já que a polícia afirmou definitiva­mente que o crime foi cometido entre as sete e as sete e meia.

— Sei — disse Hester. — Mas o senhor...

— Por favor tenha paciência. Para poder fazê-la com­preender, devo voltar atrás um pouco. Eu estava passando dois ou três dias no apartamento de um amigo em Drymouth. Esse amigo, que é da Marinha, estava no mar. Havia-me emprestado também seu carro, que guardava num estaciona­mento particular. Naquele dia específico, 9 de novembro, eu devia voltar a Londres. Tinha resolvido ir pelo trem no­turno e passar a tarde visitando uma velha ama de quem toda a minha família gostava muito e que vivia numa ca­sinha em Polgarth, cerca de quarenta milhas a oeste de Drymouth. Cumpri meu programa. Embora muito idosa e com tendência para lapsos de memória, ela me reconheceu e ficou muito contente de me ver, muito excitada porque havia lido nos jornais a respeito da minha “ida ao Pólo”, como dizia. Fiquei pouco tempo, para não cansá-la e, ao sair, resolvi não voltar diretamente para Drymouth pela es­trada da costa, como fizera na ida, mas, ao invés, seguir em direção ao norte até Redmyn para ver o velho Cônego Peasmarsh, que tem alguns livros raríssimos em sua biblio­teca, inclusive um tratado antiqüíssimo de navegação do qual eu desejava copiar um trecho. O velho recusa-se a ter telefone, que ele encara como obra do diabo, junto com o rádio, a televisão, os órgãos elétricos e aviões a jato, de modo que tive de arriscar-me a encontrá-lo em casa. Não tive sorte. A casa estava toda trancada e era evidente que ele estava fora. Passei uns momentos na catedral, depois parti de volta para Drymouth pela estrada principal, co­brindo assim o terceiro lado do triângulo. Eu havia plane­jado tudo com suficiente margem de tempo a fim de voltar ao apartamento para apanhar a mala, deixar o carro no estacionamento e pegar o trem. No caminho, como já lhes disse, peguei um, carona desconhecido e, depois de deixá-lo na cidade, continuei com meus planos normais. Quando che­guei na estação ainda tinha um pouco de tempo sobrando e resolvi atravessar a rua para comprar cigarros. Ao atraves­sar fui apanhado por um caminhão que virou uma esquina a alta velocidade e me derrubou.

— Segundo o que disseram alguns transeuntes, eu me levantei, aparentemente sem ter sofrido nada e me compor­tando de forma perfeitamente normal. Disse que estava bem e, tendo de pegar meu trem, corri de volta à estação. Quan­do o trem chegou a Paddington eu estava inconsciente e fui levado de ambulância para um hospital, onde foi cons­tatado que sofria de uma séria concussão, com efeito retar­dado, o que não é absolutamente raro.

— Ao recobrar os sentidos, alguns dias mais tarde, não me lembrava nada a respeito do acidente ou da minha vin­da para Londres. A última coisa de que conseguia lembrar-me era o fato de ter saído para visitar minha velha ama em Polgarth. Depois disso, branco total. Senti-me melhor ao garantirem-me que isso acontece com bastante freqüên­cia. Nem eu mesmo e nem mais ninguém tinha a menor idéia de que eu havia passado de carro pela estrada de Redmyn a Drymouth naquela noite.

— Havia muito pouco tempo até que eu tivesse de deixar a Inglaterra. Fui mantido no hospital em repouso ab­soluto, sem acesso a jornais. Saí do hospital direto para o aeroporto, de onde voei para a Austrália, e lá me reuni aos outros membros da expedição. Houve algumas dúvidas a respeito de eu estar ou não em condições de ir, mas re­solvi ignorá-las.

Estava por demais envolvido por meus preparativos e preocupações para me interessar com reportagens sobre assassinatos e, de qualquer forma, o interesse havia diminuído muito depois de efetuada a prisão. Quando o caso chegou aos tribunais e tudo foi publicado em detalhe, eu estava em alto mar, a caminho da Antártida.

Fez uma pausa. Os outros escutavam-no com a maior atenção.

— Foi há cerca de um mês, logo depois de minha volta à Inglaterra, que descobri tudo. Estava precisando de papéis velhos para embrulhar umas amostras. Minha senhoria me trouxe uma pilha de jornais que tinha guardado. Abrindo um deles sobre a mesa vi nele a fotografia de um jovem cujo rosto me pareceu familiar. Tentei lembrar-me onde o havia encontrado e quem seria. Não conseguia e, no entanto, tinha a lembrança de ter conversado com ele, conversado a respeito de enguias. Ele havia ficado interessado, fasci­nado mesmo, com a epopéia da vida da enguia. Mas quan­do? Onde? Li um parágrafo no jornal que dizia que o rapaz era Jack Argyle, acusado de assassinato, e li também que ele havia dito à polícia que tinha ganho uma carona de um homem num carro de quatro portas preto.

— E nesse momento, repentinamente, aquele pedacinho perdido da minha vida reapareceu. Eu tinha apanhado aque­le rapaz e o levado até Drymouth, onde me separara dele, para voltar ao apartamento, e logo depois lembrei-me de atravessar a rua para comprar cigarros. Tive uma rápida visão do caminhão antes de ser atropelado e depois... na­da, a não ser quando acordei no hospital. Continuava a não me lembrar de ter ido até à estação e tomado o trem para Londres. Li e reli o parágrafo. O julgamento havia terminado havia mais de um ano, o caso estava quase esque­cido. “Foi um rapazola que liquidou a mãe”, foi como minha senhoria descreveu o caso, vagamente. “Não sei o que aconteceu. Acho que foi enforcado.” Fui procurar os arquivos das datas indicadas, depois procurei a firma Marshall & Marshall, que havia feito a defesa. Descobri que era tarde demais para meu depoimento poder livrar o rapaz, que ha­via morrido de pneumonia na prisão. Muito embora não fosse mais possível fazer-lhe justiça, poderíamos fazer jus­tiça à sua memória. Fui com o Sr. Marshall à polícia. O caso vai ser apresentado à Promotoria. Marshall tem muito poucas dúvidas de que de lá o levarão ao Secretário do Interior.

— O senhor, naturalmente, receberá dele um relatório completo, que só ainda não foi remetido porque eu estava ansioso por ser o primeiro a comunicar-lhe a verdade dos fatos. Senti que era uma situação difícil que me cabia en­frentar pessoalmente. O senhor há de compreender, e disso eu tenho a certeza, que sempre continuarei a sentir uma imensa carga de culpa. Se tivesse sido um pouco mais cui­dadoso ao atravessar a rua... Ele se interrompeu. — Com­preendo que seus sentimentos a meu respeito jamais pode­rão ser amistosos. Muito embora moralmente eu não seja culpado, todos aqui, inevitavelmente, terão de me culpar.

Gwenda Vaughan disse rapidamente, com a voz quen­te e bondosa:

— É claro que não o culpamos. Foi só... uma dessas coisas trágicas, incríveis, mas que acontecem.

— Eles acreditaram no senhor? — inquiriu Hester.

Ele olhou para ela surpreendido.

— A polícia... acreditou no senhor? Por que razão o senhor não poderia estar inventando tudo isso?

Ele sorriu um pouco, inconscientemente.

— Eu sou uma testemunha de boa reputação e me­recedora de confiança — respondeu delicadamente. — Não tenho qualquer interesse no caso e minha história foi exa­minada em todos os seus detalhes; há os testemunhos mé­dicos e inúmeros detalhes foram confirmados por investi­gações em Drymouth. Não tenha dúvida de que o Sr. Marshall foi muito cuidadoso, como costumam ser todos os ad­vogados. Não quis trazer-lhes esta esperança enquanto não tive bastante certeza de obter sucesso.

Leo Argyle remexeu-se na cadeira e falou pela primei­ra vez.

— E o que quer dizer exatamente com sucesso?

— Peço desculpas — disse rapidamente Calgary. — Não é a palavra adequada. Seu filho foi acusado de um crime que não cometeu, foi julgado e condenado, morrendo na prisão. A justiça, para ele, chegou tarde demais. Porém a justiça que ainda poderá ser feita... quase que certamente o será e providências serão tomadas para que seja feita. O Secretário do Interior provavelmente aconselhará a Rai­nha a conceder um perdão integral.

Hester riu.

— Um perdão integral por alguma coisa que ele não fez?

— Eu sei. A terminologia sempre parece absurda. Po­rém me foi dado a entender que o hábito manda que uma indagação a respeito seja feita nos Comuns e que a resposta deixe perfeitamente claro que Jack Argyle não cometeu o crime pelo qual foi condenado, sendo tudo amplamente di­vulgado pela imprensa.

Ele parou. Ninguém falou. Supôs que o choque hou­vesse sido grande demais para eles. Mas, ao menos, fora um choque alegre.

Levantou-se.

— Receio — disse ele hesitante, — que não haja mais nada que eu possa dizer... Repetir o quanto o sinto, como me sinto infeliz com tudo isso, implorar seu perdão, tudo isso todos já devem saber mais que bem. A tragédia que acabou com a vida dele sombreou a minha. Mas ao menos — falou quase que implorando — por certo há de signifi­car alguma coisa saber que ele não cometeu aquela ação terrível, que o nome dele, o seu nome, ficará imaculado aos olhos do mundo...?

Se esperava alguma resposta, não a recebeu.

Leo Argyle estava mais desarmado que sentado em sua cadeira. Os olhos de Gwenda estavam no rosto de Leo. Hester olhava fixamente para a frente, com seus imensos olhos trágicos. A Sr.tª Lindstrom resmungou algo inaudível e sacudiu a cabeça.

Calgary ficou sem saber o que fazer, junto à porta, olhando para os outros.

Foi Gwenda Vaughan quem assumiu o controle da si­tuação. Foi até ele, colocou a mão sobre seu braço e disse em voz baixa:

— É melhor o senhor ir agora, Dr. Calgary. O choque foi muito grande. Precisam de tempo para assimilá-lo.

Ele concordou com um aceno de cabeça e saiu. No patamar a Sr.ta Lindstrom reuniu-se a eles.

— Eu o acompanharei — disse ela.

Ele ainda percebeu, ao voltar-se para trás antes que a porta se fechasse, que Gwenda Vaughan havia caído de joe­lhos junto à cadeira de Argyle. Ficou um pouco surpreen­dido.

Virada para ele, no patamar, a Sr.ta Lindstrom parecia um soldado dos Regimentos de Guarda em posição de sen­tido e falou com amargura.

— Não pode ele voltar à vida. Por que trazer tudo de volta ao pensamento dos outros? Até então, todos estavam resignados. Agora vão sofrer. É sempre melhor deixar as coi­sas quietas.

Ele revelava seu total desprazer.

— Sua memória precisa ser limpa — disse Arthur Calgary.

— Bons sentimentos! Tudo muito bem. Mas o senhor não pensa realmente no que isso significa. Os homens, eles nunca pensam. Bateu irritada com o pé no chão. — Eu os amo a todos. Vim para aqui, ajudar a Sra Argyle, em 1940, quando ela abriu uma creche de guerra para crianças de casas bombardeadas. Quase dezoito anos. E agora, mes­mo ela morta, continuo aqui, para tomar conta deles, para manter a casa limpa e confortável, ter certeza que a comida deles é boa. Amo a todos eles, sim, amo, sim... e quanto a Jacko... ele não prestava! Ah, sim, amava ele também. Mas nunca prestou!

Afastou-se repentinamente. Parecia ter esquecido que deveria acompanhá-lo. Calgary desceu lentamente a escada. Enquanto se via atrapalhado com a porta da frente, que tinha uma fechadura que não conseguia compreender, ouviu passos leves na escada. Hester voava por ela abaixo.

Ela destrancou a fechadura e abriu a porta. Ficaram-se olhando os dois. Ele compreendia cada vez menos por que ela o encarava com aquele olhar trágico e condenatório. Então ela disse, mal sussurrando as palavras:

— Por que você veio? Mas por que você haveria de vir?

Ele a olhou, desamparado.

— Não compreendo. Não deseja que limpem o nome do seu irmão? Não quer que lhe seja feita justiça?

— Ora, a justiça! — Parecia estar atirando as palavras nele.

— Eu não compreendo... — repetiu ele.

— Tanta preocupação com a tal da justiça! Que di­ferença faz isso para Jacko agora? Ele está morto. Não é Jacko que importa. Somos nós!

— Do que é que está falando?

— Não é o culpado que importa. São os inocentes.

Ela agarrou o braço dele, fincando os dedos.

— Somos nós que importamos. Será que ainda não percebeu o que fez com todos nós?

Ele ficou olhando para ela.

Da escuridão da noite apareceu a figura de um homem.

— Dr. Calgary? — disse ele. — Seu táxi está aqui, senhor. Para levá-lo a Drymouth.

— O quê? Ah! Obrigado.

Calgary tornou a voltar-se para Hester, porém ela ha­via entrado.

A porta da frente bateu.

Hester subiu vagarosamente a escada, empurrando para trás o cabelo escuro que lhe caía na testa. Kirsten Lindstrom esperava-a no alto.

— Ele já foi?

— Já; já foi.

— Você recebeu um choque, Hester. Kirsten Lindstrom pousou uma mão delicada no ombro da moça. — Ve­nha comigo. Tome um pouco de brandy. Tudo isso foi de­mais.

— Não creio que queira brandy, Kirsty.

— Talvez não queira, mas faz bem.

Sem resistir, a moça deixou-se ser guiada pelo corredor até à pequenina sala de estar da própria Kirsty. Pegou o cálice que lhe era oferecido e bebeu aos poucos. Kirsten Lindstrom disse, exasperada:

— Tudo muito rápido. Devia ter prevenido. Por que o Sr. Marshall não escreveu primeiro?

— Suponho que o Dr. Calgary não deixou. Ele queria vir aqui e nos comunicar pessoalmente.

— Comunicar o quê, pessoalmente? O que é que ele acha que as novidades vão-nos fazer?

— Suponho — disse Hester, numa voz estranha, sem timbre — que pensou que ficaríamos satisfeitos.

— Satisfeitos ou não, tinha de haver choque. Não de­via ter feito assim.

— Mas de certo modo ele foi corajoso — disse Hester. A cor subiu-lhe às faces. — Quero dizer, não pode ter sido uma coisa fácil de fazer. Vir e dizer a uma família que um membro dela foi condenado por assassinato e morreu na pri­são sendo na verdade inocente. É sim, acho que ele teve muita coragem, mas mesmo assim preferia que não tivesse vindo — acrescentou.

— Isso é o que todos nós preferimos — disse a Sr.tª Lindstrom rispidamente.

Hester olhou para ela, seu interesse fazendo-a repen­tinamente sair um pouco de suas preocupações.

— Quer dizer que você também sente isso, Kirsty? Eu pensei que talvez fosse só eu...

— Não sou nenhuma tonta — disse cortantemente a Sr.ta Lindstrom. — Sou capaz de pensar em algumas possi­bilidades que parece que não ocorreram a esse seu Dr. Calgary.

— Preciso ir ver papai — disse Hester, levantando-se.

Kirsten Lindstrom concordou.

— Vai. Agora ele já teve tempo de pensar no que é melhor fazer.

 

Quando Hester entrou na biblioteca Gwenda Vaughan estava ocupada ao telefone. Seu pai chamou-a e Hester foi sentar-se no braço da cadeira dele.

— Estamos tentando falar com Mary e com Micky — disse ele. — Eles precisam ser informados disto imediata­mente.

— Alô — disse Gwenda Vaughan. — É a Srª Durrant? Mary? Aqui é Gwenda Vaughan. Seu pai quer falar com você.

Leo foi até o telefone e tomou-o.

— Mary? Como vai? E Philip?... Ótimo. Aconteceu uma coisa realmente extraordinária... Achei que vocês precisavam ser informados imediatamente. Um certo Dr. Calgary veio ver-nos. Trazia uma carta de Andrew Marshall. É sobre Jacko. Parece, é realmente extraordinário, parece que a história que Jacko contou no julgamento de ter apa­nhado uma carona até Drymouth é perfeitamente verdadei­ra. Esse tal Dr. Calgary é o homem que deu a carona... Ele parou, para ouvir o que a filha tinha a dizer na outra extremidade do fio. — Eu sei, Mary; não vou dar todos os detalhes a respeito das razões pelas quais ele não se apre­sentou na época. Foi acidentado, teve concussão. Parece que está tudo perfeitamente bem comprovado. Telefonei para di­zer que acho que deveríamos todos ter uma reunião aqui o mais breve possível. Talvez nós conseguíssemos que o Marshall também viesse para discutir o assunto conosco. Creio que devemos procurar a melhor orientação legal. Será que você e Philip?... Eu sei, eu sei... Mas eu realmente creio, minha querida, que isto é muito importante... Está bem... Telefone mais tarde, se preferir. Vou tentar falar com Micky. Desligou.

Gwenda Vaughan foi para o telefone.

— Devo tentar a ligação para Micky agora?

— Se for demorar, será que eu poderia telefonar antes, Gwenda? Quero falar com Donald — disse Hester.

— É claro — disse Leo. — Você vai sair com ele hoje à noite, não vai?

— Ia — disse Hester.

O pai dirigiu-lhe um olhar incisivo.

— Você ficou muito perturbada com tudo isso, que­rida?

— Não sei — disse Hester. — Eu não sei exatamente o que é que estou sentindo.

Gwenda cedeu seu lugar junto ao telefone e ela discou um número.

— Será que eu poderia falar com o Dr. Craig, por fa­vor? É. Quem fala é Hester Argyle.

Após alguns instantes de espera ela disse:

— É você, Donald?... Estou telefonando para dizer que não vou poder ir à conferência com você hoje à noite... Não, não estou doente, não, é que, é só que, bem, é que nós... nós recebemos umas notícias muito estranhas.

Novamente o Dr. Craig falou.

Hester voltou a cabeça na direção do pai. Cobriu o bocal com a mão e perguntou:

— Não é segredo, é?

— Não — disse Leo lentamente. — Não, não é exa­tamente um segredo, mas... bem, é melhor pedir a Donald para não comentar, por enquanto. Você sabe que toda no­vidade piora quando é contada.

— É, eu sei. Novamente falou no telefone. — De cer­to modo, pode-se dizer que são notícias boas, Donald, mas... um pouco perturbadoras. Eu prefiro não falar nada pelo telefone... Não, não venha aqui... Por favor, não venha. Hoje, não. Amanhã, a qualquer hora. É sobre Jacko. É, é meu irmão. É só que nós acabamos de descobrir que afinal não foi ele quem matou mamãe... Mas, por favor, não diga nada, Donald; não comente com ninguém. Amanhã eu conto tudo... Não, Donald, não... Hoje eu não posso ver ninguém, nem você. Por favor. E não diga nada. — Ela desli­gou o telefone e fez um gesto mostrando que Gwenda po­dia falar agora.

Gwenda pediu um número em Drymouth. Leo disse com delicadeza:

— Por que você não vai à conferência com Donald, Hester? Ia ajudar você a não ficar remoendo tudo isso.

— Não quero, papai. Não posso.

Leo disse:

— Você falou, você deu a ele a impressão de que não eram boas notícias. Mas você sabe que isso não é verdade, Hester. Nós ficamos surpreendidos. Mas ficamos todos con­tentes com o fato, muito contentes... O que mais podería­mos estar?

— É isso que vamos dizer a todos, não é? — disse Hester.

Leo advertiu-a:

— Minha filha, minha querida...

— Mas não é verdade, é? — perguntou Hester. — Não são boas notícias. É apenas uma coisa tremendamente per­turbadora.

— Mick está ao telefone — disse Gwenda.

Novamente Leo tomou-lhe o telefone da mão. Falou ao filho de modo muito semelhante ao que falara à filha. Porém a notícia foi recebida de modo diverso do que o havia sido por Mary Durrant. Não houve protesto, surpresa ou descrença. Ao invés, apenas uma pronta aceitação.

— Que diabo! — disse a voz de Mick. — Depois des­se tempo todo? A testemunha desaparecida! Puxa, o Jacko estava mesmo de azar naquela noite, hem?

Leo tornou a falar e Mick escutou.

— Sim — disse ele, — concordo plenamente. É me­lhor nós nos reunirmos o mais depressa possível e pegar o velho Marshall para nos aconselhar também. Repentina­mente ele deu um riso rápido, o riso que Leo lembrava tão bem no menininho que brincava no jardim, debaixo da ja­nela. — Como estão as apostas? — perguntou — Qual foi de nós que matou?

Leo deixou cair o fone e se afastou abruptamente do aparelho.

— O que foi que ele disse? — perguntou Gwenda.

Leo disse-lhe.

— Parece-me um tipo tolo de brincadeira para se fa­zer numa hora dessas — comentou Gwenda.

Leo lançou-lhe um olhar rápido. — É possível — dis­se ele, com suavidade, — que não fosse bem uma piada.

 

Mary Durrant atravessou a sala e apanhou algumas pé­talas que haviam caído de um vaso de crisântemos. Dei­xou-as cair cuidadosamente na cesta de papéis. Era uma jovem de vinte e sete anos, alta e de aparência serena, cujo rosto sem sombra de marcas ou rugas sugeria mais idade do que ela realmente tinha, possivelmente em função de uma harmoniosa maturidade que parecia fazer parte de sua personalidade. Era bonita, mas totalmente destituída de en­canto. Feições perfeitamente regulares, boa pele, olhos de um azul vivo e cabelos claros penteados para trás, arrumados num grande coque na nuca. Esse penteado estava muito em moda, mas essa não era a razão pela qual ela o usava. Era uma mulher que sempre mantinha seu próprio estilo. Sua aparência era como a de sua casa, arrumada e bem cui­dada. Qualquer tipo de poeira ou desarrumação a pertur­bava.

O homem na cadeira de rodas que a observava enquan­to apanhava as pétalas e as colocava na cesta sorriu um sorriso ligeiramente tortuoso.

— Sempre a mesma criatura arrumada — disse ele. — Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. Ele sorriu com uma conotação ligeiramente maliciosa, porém Mary Durrant permaneceu imperturbável.

— Gosto das coisas arrumadas — concordou. — Sabe, Phil, você mesmo não iria gostar se a casa fosse uma ba­gunça.

Seu marido retrucou com ligeira sugestão de amargura:

— Bom, pelo menos eu não tenho qualquer oportuni­dade de bagunçar nada.

Pouco tempo depois de seu casamento Philip Durrant havia sido vitimado por uma poliomielite paralisante. Para Mary, que o adorava, ele se havia transformado em filho, além de marido. Ele por vezes sentia-se ligeiramente cons­trangido pela possessividade do amor da mulher. Ela, no entanto, não tinha suficiente imaginação para perceber que o prazer que sentia na dependência dele por vezes o irritava.

Ele continuou, rapidamente, como se temesse qualquer palavra de comiseração ou piedade por parte dela.

— Devo dizer que as notícias que seu pai deu são indescritíveis! Depois de todo esse tempo! Como é que você consegue ficar calma assim?

— Suponho que ainda nem compreendi bem... É tão fantástico. A princípio eu não conseguia acreditar no que papai estava dizendo. Se fosse a Hester no telefone eu apos­tava que tinha sido tudo invenção dela. Você sabe como ela é.

O rosto de Philip Durrant perdeu um pouco de sua amargura quando disse:

— É uma criatura assustadoramente passional, que par­te para a vida em busca de problemas e sem dúvida os encontrará.

Mary ficou indiferente à análise. O caráter de outras pessoas não a interessava. Ela disse, meio desconfiada: — Acho que é verdade, não é? Não acha que esse tal homem ia simplesmente imaginar tudo isso?

— O cientista distraído? Seria agradável pensar que sim — disse Philip, — porém parece que Andrew Marshall levou o assunto a sério. Garanto-lhe que Marshall, Marshall & Marshall têm suas cabeças legais muito no lugar.

— O que será que isso vai realmente significar, Phil? — perguntou Mary Durrant, franzindo a testa.,

Philip respondeu: — Vai significar que Jacko será completamente excluído de qualquer culpa, isto é, desde que as autoridades se dêem por satisfeitas. E pelo que compreendi, não há qualquer impedimento ou outra coisa no gênero.

— Ai, ai — disse Mary com um ligeiro suspiro — su­ponho que tudo seja muito bom.

Philip riu novamente, com o mesmo riso contorcido e amargo.

— Polly! — disse ele, — você ainda acaba me ma­tando.

Só seu marido jamais chamava Mary Durrant de Polly. O nome era completamente inadequado à sua aparência im­ponente. Ela olhou para Philip ligeiramente surpreendida.

— Não sei por que o que eu disse haveria de lhe pa­recer tão divertido.

— Porque você falou com tanta magnanimidade! — respondeu Philip. — Parecia a Lady Fulana de Tal elogian­do os trabalhos do Bazar do Orfanato da Aldeia.

Mary retrucou, perplexa: — Mas é muito bom! Você não vai querer dizer-me que achava ótimo ter um assassino na família.

— Não se pode dizer realmente na família.

— Bem, é praticamente a mesma coisa. Quero dizer, foi muito desagradável, deixava todos nós embaraçados. E todo o mundo sempre olhando e querendo saber mais. Co­mo eu odiei tudo aquilo.

— Mas se saía muito bem — disse Philip. — Conge­lava todo o mundo com o gelo azul dos seus olhos. Era o bastante para todos se calarem e se sentirem envergonhados. É maravilhoso esse seu jeito de jamais mostrar qualquer emoção.

— Eu realmente detestava aquilo tudo. Era muito de­sagradável — respondeu Mary Durrant, — mas pelo menos estava tudo aquietado, acabado. E agora... agora vai ver que vão remexer tudo de novo. Que coisa cansativa.

— É — disse Philip Durrant, pensativo. Ele mexeu um pouco os ombros, com uma ligeira expressão de dor no rosto. Sua mulher aproximou-se rapidamente.

— Está com cãibras? Espere um instante. Deixe eu mudar o travesseiro um pouco. Pronto. Está melhor?

— Você devia ter sido enfermeira — disse Philip.

— Não tenho a menor vontade de cuidar de uma porção de gente. Só de você.

Tudo foi dito com grande simplicidade, porém por trás daquelas palavras havia uma real profundidade de sen­timentos.

O telefone tocou e Mary foi atendê-lo.

— Alô... é... é ela... Ah, é você?...

Disse, à parte, para Philip: — É Micky.

— Já... já soubemos. Papai telefonou... Bem, é claro... É... Sei... Philip diz que se os advogados acei­taram é porque deve estar tudo certo... Ora, Micky, não sei por que você haveria de ficar tão aflito... Não acho que eu seja assim tão tapada... Ora, Micky, eu acho que você... — Franziu a testa, irritada. — Desligou. — Ela recolocou o fone no lugar. — Sabe, Philip, eu realmente não compreendo o Micky.

— O que foi que ele disse, exatamente?

— Bem, ele parecia fora de si. Disse que eu era ta­pada, que não estava compreendendo as... repercussões. Vai ser o diabo! Foi isso que ele disse. Mas por quê? Eu não compreendo.

— Quer dizer que ele está com a corda toda, não é?

— Mas por quê?

— Bem, ele tem razão. Haverá repercussões.

Mary encarou-o um tanto perplexa.

— Você quer dizer que vai haver uma nova onda de interesse no caso? É claro que eu fico muito contente que Jacko seja inocente, mas vai ser bastante desagradável se uma porção de gente começar a falar sobre o assunto de novo.

— Mas não se trata do que os vizinhos possam dizer. É muito mais do que isso.

Ela olhou para ele de forma inquisidora.

— A polícia também vai interessar-se.

— A polícia? — Mary falou com voz ríspida. — O que é que eles têm com isso?

— Minha querida — disse Philip. — Pense.

Mary caminhou lentamente para ir sentar-se ao lado dele.

— Não percebeu que estão novamente com um crime por resolver nas mãos? — disse Philip.

— Mas seria incrível que eles fossem incomodar-se com isso, depois de tanto tempo.

— Isso é só o que você quer que eles achem — co­mentou Philip, — mas como raciocínio, está muito mal fundamentado.

— Mas com certeza — disse Mary, — depois de serem tão estúpidos, depois de cometerem um erro assim tão clamoroso com Jacko, eles não vão querer ficar falando nisso?

— É possível que não queiram, mas é provável que tenham de fazê-lo! Dever é dever.

— Ora, Philip, tenho certeza de que você está enga­nado. Vai haver um pouco de falatório, mas daqui a pouco acaba.

— Depois do que nossas vidas continuarão a ser feli­zes para todo o sempre — disse Philip com sua voz mordaz.

— E por que não?

Ela sacudiu a cabeça. — Não é assim tão simples... Seu pai tem razão. Temos todos de nos reunir e conversar. E conseguir Marshall, como ele sugeriu.

— Você quer dizer... Ir ao Recanto do Sol?

É.

— Mas nós não podemos.

— Por quê?

— Não é possível. Você é um inválido e...

— Eu não sou inválido — disse Philip irritado. — Estou forte e bem de saúde. Acontece apenas que perdi o uso das pernas. Poderia ir a Timbuctu desde que tivesse o transporte adequado.

— Mas eu estou certa de que ir ao Recanto do Sol faria mal a você. Ver toda essa coisa sendo remexida de novo...

— Não é minha mente que está incapacitada.

— Não vejo como é que poderíamos deixar a casa. Tem havido tanto roubo por aí ultimamente.

— Arranje alguém para vir dormir aqui.

— Isso é fácil de dizer, como se fosse a coisa mais simples do mundo.

— Aquela velha, como é o nome dela, pode vir aqui todos os dias. Pare de apresentar empecilhos domésticos, Polly. Na verdade é você quem não quer ir.

— E não quero, mesmo.

— Não vamos demorar muito lá — disse Philip, para reconfortá-la. — Porém creio que temos de ir. Este é um momento no qual a família tem de apresentar ao mundo uma fachada de unidade. E temos de descobrir exatamente qual é nossa situação.

 

No hotel em Drymouth, Calgary jantou cedo e foi para seu quarto. Estava profundamente abalado pelo que se pas­sara no Recanto do Sol. Tinha esperado que sua missão fos­se dolorosa e tinha usado toda a sua força de vontade para levá-la avante. Porém tudo havia sido doloroso e pertur­bador de forma totalmente diversa da que havia esperado. Atirou-se na cama e ficou remoendo tudo o que aconte­cera.

A imagem que lhe ficara mais claramente fora a do rosto de Hester no momento em que a deixou. Com que desprezo rejeitara seu grito em defesa da justiça! O que dissera ela? “O que importa não é o culpado, são os ino­centes.” — E depois: “Será que ainda não percebeu o que fez com. todos nós?” Mas o que havia feito ele? Não con­seguia compreender.

E os outros. A mulher a quem chamavam Kirsty. (Por que Kirsty? Esse é um nome escocês. Ela não era escocesa, devia ser dinamarquesa ou norueguesa.) Ela havia falado com tal severidade, como se o acusasse!

Houvera qualquer coisa de estranho, igualmente, em Leo Argyle. Ficara retraído, alerta. Nem sequer a mínima sugestão de um “Graças a Deus meu filho era inocente!”, que obviamente seria a reação natural.

E aquela moça, a que era a secretária de Leo. Havia ajudado, sido bondosa. Porém também ela havia reagido de modo estranho. Lembrou-se do modo pelo qual ela se ajoe­lhara junto à cadeira de Argyle. Como estivesse confortando-o, consolando-o. Mas consolando-o de quê? Do fato de seu filho não ser um assassino? E sem dú­vida, mas sem dúvida alguma, havia ali sentimentos mais fortes do que os de uma secretária; mesmo uma secretária de há muitos anos... Que história era aquela? O que será que eles...

O telefone da mesa de cabeceira tocou. Ele atendeu.

— Alô?

— Dr. Calgary? Há alguém aqui procurando pelo se­nhor.

— Por mim?

Ficou surpreendido. Na medida em que lhe era dado saber, ninguém estava informado de que pretendia passar a noite em Drymouth.

— Quem é?

Houve uma pausa. Depois o porteiro disse:

— É o Sr. Argyle.

— Diga-lhe... — Arthur Calgary interrompeu-se nes­sa altura, quando estava a ponto de dizer que iria descer. Se, por alguma razão, Leo Argyle o havia seguido até Dry­mouth e conseguido descobrir onde ele estava hospedado, era de supor que o assunto poderia ser constrangedor se discutido diante de toda a gente que ocupava a sala do hotel. Ao invés, disse:

— Quer fazer o favor de pedir a ele que suba?

Ele se levantou e ficou andando de um lado para outro até ouvir baterem à porta.

Atravessou o quarto e abriu-a:

— Faça o favor de entrar, Sr. Argyle; eu...

Parou, atônito. Não era Leo Argyle. Era um rapaz de vinte e poucos anos, cujo rosto belo e moreno era marcado pela amargura de sua expressão. Era um rosto sofrido, re­voltado, infeliz.

— Não estava esperando por mim — disse o rapaz. — Estava esperando meu pai. Eu sou Michael Argyle.

— Entre. — Calgary fechou a porta. — Como descobriu que eu estava aqui? — perguntou, ao oferecer um cigarro ao rapaz.

Michael Argyle aceitou e depois deu um risinho breve e desagradável.

— Essa foi fácil! Resolvi telefonar a todos os hotéis principais, contando com a possibilidade de você ter resol­vido passar a noite por aqui. Acertei no segundo.

— E por que desejava me ver?

Michael Argyle disse lentamente:

— Queria ver que tipo de sujeito você era... — Cor­reu os olhos, como que querendo avaliá-lo, dos pés à ca­beça de Calgary, notando os ombros um tanto curvados, o cabelo começando a ficar grisalho, o rosto fino e sensível. — Quer dizer que você foi um dos tipos que foram ao Pólo na Hayes Bentley. Pois não parece ser muito rijo.

Arthur Calgary deu um ligeiro sorriso.

— As aparências às vezes enganam — respondeu. — Agüentei tudo muito bem. Não é necessariamente força muscular que se precisa. Há outras qualificações importantes: resistência, paciência, conhecimento técnico.

— Que idade você tem? Quarenta e cinco?

— Trinta e oito.

— Parece mais.

— É, acho que pareço. — Por um instante uma sensação de tristeza aguda o dominou, ao observar aquele rapaz viril que estava à sua frente.

Perguntou, abruptamente:

— Por que você queria me ver?

O outro franziu a testa.

— É normal, não é? Depois de ouvir as novidades que você nos trouxe. As novidades a respeito do meu querido irmão.

Calgary não respondeu.

Michael Argyle continuou:

— Você veio um pouco tarde para ele, não veio?

— Vim — disse Calgary em voz baixa. — Para ele já é um pouco tarde.

— Por que foi que você ficou na moita? Que história de concussão é essa?

Com toda a paciência Calgary narrou-lhe tudo. Por estranho que pareça, sentiu-se reconfortado com o tom rude e agressivo do rapaz. Até que afinal aparecia alguém que reagia violentamente por causa do irmão.

— Quer dizer que a questão toda é dar um álibi ao Jacko, não é? E como é que você sabe que as horas são as que você diz que eram?

— Tenho certeza absoluta a respeito dos horários — disse Calgary com firmeza.

— Mas pode ter-se enganado. Cientista às vezes dá para ser distraído a respeito de coisinhas como tempo e lugar.

Calgary pareceu divertir-se.

— Você está pensando na imagem do professor dis­traído de ficção, com as meias desparelhadas, sem noção muito clara do dia ou do lugar, não é? Pois, meu rapaz, acontece que o trabalho técnico exige a maior precisão; quantidades, tempo e cálculos da maior exatidão. Garanto-lhe que não há qualquer possibilidade de eu me ter enga­nado. Peguei seu irmão logo antes das sete e deixei-o em Drymouth às sete e trinta e cinco.

— Seu relógio poderia estar errado. Ou você poderia estar se guiando pelo relógio do carro.

— Meu relógio e o do carro estavam exatamente sin­cronizados.

— Jacko podia ter dado um jeito de fazer você se atra­palhar. Ele inventava as coisas mais incríveis.

— Não houve truques. Por que é que você haveria de estar tão ansioso para provar que eu estou enganado? — Um tanto acalorado, Calgary continuou: — Eu esperava ter di­ficuldade em convencer as autoridades de que haviam con­denado um homem injustamente. Não esperava que fosse tão difícil convencer sua própria família!

— Quer dizer que nos achou todos difíceis de con­vencer?

— A reação pareceu-me um pouco... digamos, ines­perada.

Micky olhou-o atentamente.

— Não queriam acreditar em você?

— Bem... Parecia quase isso.

— Não parecia. Era. O que é muito natural, se se pensar bem.

— Mas como? Natural por quê? Sua mãe foi assassi­nada. Seu irmão foi acusado e condenado pelo crime. Ago­ra fica esclarecido que era inocente. Devia estar contente, grato. Seu próprio irmão.

— Ele não era meu irmão. Nem ela era minha mãe — disse Micky.

— O quê?

— Ninguém lhe contou? Somos todos adotados. Todos nós. Mary, minha “irmã” mais velha, em Nova York. Todo o resto, durante a guerra. Minha “mãe”, como você diz, não podia ter filhos. Então arranjou toda uma família por adoção. Mary, eu, Tina, Hester, Jacko. Com todas as van­tagens de casa luxuosa, passadio do melhor e grandes quan­tidades de amor materno! Meu palpite é que, no fim, ela já tinha esquecido que nós não éramos realmente seus filhos. Mas ela estava de azar no dia em que escolheu Jacko para ser um de seus filhinhos queridos.

— Eu não tinha a menor idéia.

— De modo que não adianta ficar falando de “minha própria mãe” ou “meu próprio irmão” comigo! Jacko não prestava para nada!

— Mas não era um assassino — disse Calgary.

Ele falou de modo enfático e Micky, olhando para ele, acenou com a cabeça.

— Muito bem. É o que você diz, o que insiste em dizer. Jacko não a matou. Pois muito bem, então quem a matou? Nessa você não pensou, não é? Pois trate de pensar agora. Pense um pouco... e veja o que está fazendo a todos nós...!

— É muita bondade sua receber-me novamente, Sr. Marshall — disse Calgary, em tom de desculpa.

— Nem por isso — respondeu o advogado.

— Como o senhor sabe, estive no Recanto do Sol e visitei a família de Jack Argyle.

— Exato.

— Creio que a esta altura já está informado a respeito da visita?

— Sim senhor, Dr. Calgary. Estou informado.

— O que o senhor pode considerar difícil de compre­ender é a razão pela qual eu haveria de tornar a procurá-lo... É preciso que compreenda que as coisas não corre­ram exatamente como eu julgava que correriam.

— Não — retrucou o advogado, — é possível que não. Sua voz, como sempre, era seca e destituída de emoção; po­rém alguma coisa nela encorajou Arthur Calgary a con­tinuar.

— Quero que compreenda que eu pensava — conti­nuou Calgary — que com isso tudo ficasse terminado. Es­tava preparado para uma certa quota de... como direi... ressentimento natural por parte deles. Muito embora uma concussão possa ser classificada, suponho, como um Ato de Deus, mesmo do ponto de vista deles, tal sentimento seria perfeitamente justificado. Porém, ao mesmo tempo, eu es­perava que esse sentimento fosse contrabalançado pelo rego­zijo que teriam pelo fato de o nome de Jack Argyle ser redimido. Porém as coisas não se deram como eu havia espe­rado. Longe disso.

— Compreendo.

— Será possível, Sr. Marshall, que o senhor tivesse antevisto algo do que realmente ocorreu? Seu comportamento, lembro-me bem, deixou-me um tanto perplexo quando es­tive aqui da outra vez. O senhor estava realmente prevendo o tipo de reação que eu iria provocar?

— O senhor ainda não me disse, Dr. Calgary, qual a reação que encontrou. — Arthur Calgary puxou sua cadeira para a frente. — Eu pensei que estaria concluído alguma coisa, dando, poderíamos dizer, um final diferente a um capítulo já escrito. Porém fui levado a sentir, fui levado a ver, que ao invés de concluir alguma coisa, eu estava iniciando algo mais. Algo completamente novo. O senhor considera que essa é uma descrição válida da atual situação?

O Sr. Marshall anuiu lentamente com a cabeça. — Sim — disse ele, — podemos apresentar o caso nesses ter­mos. Realmente pensei, confesso, que o senhor não tinha compreendido inteiramente as implicações do seu gesto. E nem poderia tê-lo feito, já que não conhecia nada dos fatos ou das circunstâncias, tendo lido apenas os autos do pro­cesso.

— Claro que não. É o que percebo agora. E como o percebo! Sua voz elevou-se quando continuou, excitado: — Não foi alívio que sentiram, não foi gratidão. Foi apreen­são. Terror do que poderia vir a acontecer agora. Não é isso?

Marshall respondeu, com cuidado: — Eu me sinto le­vado a crer que provavelmente o senhor está absolutamente certo. Lembre-se de que não falo com conhecimento de causa.

— E, nesse caso — continuou Calgary, — não posso mais sentir que possa voltar ao meu trabalho tendo feito a única reparação que estava em mim fazer. Continuo envol­vido no assunto. Sou responsável por ter trazido um fator novo para a vida de várias pessoas. Não posso apenas la­var as mãos da coisa toda.

O advogado limpou a garganta. — Esse, possivelmen­te, será um ponto de vista um tanto imaginoso, Dr. Calgary.

— Não creio que seja, não na verdade. Cada um de nós tem de assumir a responsabilidade por seus atos, e não só por seus atos como também pela conseqüência de seus atos.

— Há cerca de dois anos eu dei uma carona, na estrada, a um rapaz. Ao fazê-lo eu desencadeei uma série de acon­tecimentos. Não creio que possa dissociar-me deles.

O advogado continuou a sacudir a cabeça.

— Muito bem, então — disse Arthur Calgary, com im­paciência. — Diga que é imaginação minha, se quiser. Po­rém meus sentimentos, minha consciência, continuam envol­vidos. Meu único desejo era o de reparar alguma coisa que não esteve em minhas mãos evitar. Porém ainda não conse­gui fazer essa reparação. De algum modo estranho eu conse­gui agravar a situação de pessoas que já haviam sofrido. Porém ainda não consegui compreender exatamente por quê.

— Não — disse Marshall lentamente, não, o senhor não perceberia por quê. Nos últimos dezoito meses o senhor es­teve afastado da civilização. Não lia os jornais, os relatos nele publicados a respeito dessa família. É possível que mes­mo que estivesse aqui não os lesse, porém teria sido impos­sível não ouvir falar neles. Os fatos são muito simples, Dr. Cal­gary. E não são confidenciais. Foram tornados públicos na época. Podem ser resumidos da seguinte forma: Se Jack não cometeu (como, segundo o seu depoimento, não poderia ter cometido) o crime, então quem o cometeu? Isto nos leva de volta às circunstâncias em que estávamos quando o crime foi cometido. O que se deu entre sete e sete e meia da noite de um dia de novembro em uma casa na qual a falecida estava cercada por membros de sua família e seus empregados do­mésticos. A casa estava toda fechada e trancada, e se alguém de fora entrasse, teria de ter sido necessariamente admitido pela própria Srª Argyle ou então teria de estar de posse de uma chave. A situação assemelha-se, sob alguns aspectos, com o caso Borden, na América, no qual o Sr. Borden e sua es­posa foram abatidos a golpes de machado numa manhã de domingo. Ninguém na casa ouviu coisa alguma, ninguém foi visto se aproximando da casa. O senhor pode então perceber, Dr. Calgary, por que razão os membros da família ficaram, como o senhor diz, mais perturbados do que aliviados com as novidades que o senhor tinha a contar, não pode?

Calgary respondeu, pesadamente: — Quer dizer que eles prefeririam que Jack Argyle fosse o culpado?

— Sem dúvida — disse Marshall. — Mas sem a menor sombra de dúvida. Se me permite apresentar a questão de modo um pouco cínico, Jack Argyle era a solução ideal para o desagradável fato de acontecer um assassinato na família. Ele havia sido uma criança problema, foi um adolescente de­linqüente e um homem de temperamento violento. Dentro do círculo familiar era possível encontrar-se atenuantes para ele, como de fato eles foram encontrados. Era-lhes possível cho­rá-lo, sentir por ele, dizer a si mesmos, uns aos outros e ao mundo em geral que não havia realmente sido culpa sua, que os psicólogos explicavam toda a situação muito bem! Sim, era realmente muito conveniente.

— E agora... — Calgary parou, de repente.

— E agora — disse o Sr. Marshall, — tudo é diferente, naturalmente. Muito diferente. Uma diferença quase que alar­mante, poderíamos dizer.

Calgary disse, com grande percepção: — As minhas no­vidades também não foram bem-vindas para o senhor, foram?

— Devo admitir que é verdade. Sim. Devo admitir que fiquei perturbado. Um caso que havia sido encerrado satisfa­toriamente... sim, continuarei a usar a palavra satisfatoria­mente, e está reaberto.

— Isso é a atitude oficial? — perguntou Calgary. — Quero dizer, do ponto de vista policial, o caso será reaberto?

— Mas sem dúvida — respondeu Marshall. — Quando Jack Argyle foi considerado culpado com base em evidências concludentes (o júri só deliberou por quinze minutos), o assunto estava encerrado aos olhos da polícia. Porém, agora, com a concessão de um perdão integral póstumo, o caso está naturalmente reaberto.

— E a polícia fará novas investigações?

— Diria eu que inevitavelmente. É claro — acrescentou Marshall, esfregando pensativamente o queixo, — que é du­vidoso que, depois de tanto tempo e dadas as características peculiares do caso, cheguem a alcançar qualquer novo resul­tado... Quanto a mim, tenho, sérias dúvidas que o consigam. Poderão ficar certos de que alguém na casa é culpado. Poderão mesmo chegar a ter uma idéia bastante precisa de quem seja esse alguém. Porém obter provas concretas será extremamen­te difícil.

— Compreendo — disse Calgary. — Compreendo, sim, era disso que ela estava falando.

O advogado disse, ríspido: — De quem o senhor está falando?

— Da moça — respondeu Calgary. — Hester Argyle.

— Ah, sim. A jovem Hester. — O que lhe disse ela? — perguntou, com curiosidade.

— Falou dos inocentes — respondeu Calgary. — Disse que não era o culpado que importava e sim os inocentes. Ago­ra compreendo o que estava querendo dizer.

O advogado lançou-lhe um olhar penetrante. — Creio que possivelmente o compreenda.

— Queria dizer exatamente o que o senhor está dizendo — disse Arthur Calgary. — Queria dizer que novamente a família está toda sob suspeita.

— Eu não diria novamente — interrompeu Marshall.  — Nunca houve tempo para se suspeitar da família. Jack Argyle foi cogitado desde o início.

Calgary ignorou a interrupção.

— A família irá ficar sob suspeita — disse ele, — e poderá ficar sob suspeita por muito tempo, possivelmente para sempre. Se um dos membros da família for o culpado, eles mesmos possivelmente nunca saberão qual deles. Podemos fi­car olhando um para o outro, imaginando... Sim, isso é que será o pior. Que eles mesmos possam ficar sem saber quem foi...

Houve um silêncio. Marshall ficou observando Calgary com um olhar parado, avaliador, mas não disse nada.

— É uma coisa horrível, sabe. — disse Calgary.

Seu rosto magro e sensível revelava as emoções que o perturbavam.

— É realmente horrível... Ficar ano após ano sem sa­ber, cada um espreitando o outro, possivelmente com a sus­peita a afetar os relacionamentos entre eles. Destruindo o amor, destruindo a confiança...

Marshall limpou a garganta.

— Será que o senhor não está pintando tudo com... cores muito vivas?

— Não — disse Calgary, — não creio que esteja. Creio, talvez, se me permite, Sr. Marshall, que estou vendo tudo um pouco mais claro que o senhor. Por favor compreenda que eu sou capaz de imaginar o que tudo isso pode vir a sig­nificar.

Novo silêncio.

— Significar — continuou Calgary, — que serão os ino­centes que virão a sofrer... E os inocentes não devem so­frer. Só os culpados. É por isso... por isso que eu não pos­so lavar as mãos nessa questão. Não posso ir embora e dizer “Fiz o que era certo, o reparo que estava em mim fazer, ser­vi à causa da justiça”, porque o senhor compreende que o que eu fiz não serviu à causa da justiça. Não trouxe condenação ao culpado, não livrou os inocentes da sombra da culpa.

— Parece-me que o senhor está-se torturando um pouco demais, Dr. Calgary. O que o senhor diz tem alguma base de verdade, sem dúvida, porém não consigo ver exatamente o que... bem, o que o senhor possa fazer.

— Nem eu. Nem eu — disse Calgary com franqueza. — Porém mesmo assim tudo me diz que terei de tentar. E na realidade é por isso que eu vim procurá-lo, Sr. Marshall. Eu quero, eu creio que tenho o direito de conhecer... as cir­cunstâncias gerais.

— Ora — disse o Sr. Marshall em tom um pouco mais animado, não há segredos a respeito disso. Posso dar-lhe to­dos os jatos que quiser. Mais do que fatos não estou em po­sição de lhe dar. Nunca conheci ninguém naquela casa mui­to intimamente. Nossa firma representou a Srª Argyle durante vários anos. Colaboramos com ela no estabelecimento de uma série de fundos e tratamos de alguns assuntos legais. Co­nhecia a própria Srª Argyle razoavelmente bem e conhecia também seu marido. Quanto à atmosfera do Recanto do Sol, ao temperamento e caráter das várias pessoas que lá moravam, minhas informações são todas, como diria, de segunda mão, por intermédio da própria Srª Argyle.

— Compreendo tudo isso — respondeu Calgary, — po­rém tenho de começar em algum ponto. Pelo que soube, os filhos não eram dela. Foram todos adotados?

— Exato. A Srª Argyle foi, em solteira, Rachel Konstan, filha única de Rudolph Konstan, homem muito rico. Sua mãe era americana e pessoalmente dona de grande for­tuna. Rudolph Konstan exercia muitas atividades filan­trópicas e educou a filha no interesse permanente desses projetos caritativos. Ele e a mulher morreram num de­sastre de avião e Rachel passou a dedicar a imensa fortuna que herdou dos pais ao que poderemos chamar, a grosso mo­do, projetos filantrópicos. Sempre teve grande interesse pes­soal nessas beneficências e chegou mesmo a realizar algum trabalho na área dos serviços sociais. Foi justamente quando trabalhava num desses projetos que conheceu Leo Argyle, que era professor em Oxford e tinha enorme interesse por pro­blemas econômicos e reformas sociais. Para compreender a Srª Argyle é preciso ter em mente que a grande tragédia de sua vida foi o fato de não poder ter filhos. Como no caso de muitas mulheres, tal incapacidade gradativamente veio a dominar toda a sua vida. Quando, depois de visitar um sem-número de especialistas, ficou claro que não podia ter a menor esperança de se tornar mãe, partiu em busca da compensação que lhe fosse possível. Primeiro adotou uma menina de uma área de favelas em Nova York, que é a atual Srª Durrant. A Srª Argyle dedicava-se quase que exclusivamente a atividades de caridade relacionadas a crianças. Quando eclo­diu a guerra em 1939, ela fundou, sob os auspícios do Mi­nistério da Saúde, uma espécie de creche de guerra para crian­ças, comprando para isso a casa que o senhor visitou, ou seja, o Recanto do Sol.

— Então conhecida como o Recanto da Víbora — dis­se Calgary.

— Exato. Era esse, eu creio, o nome original. E, pos­sivelmente, fosse em última análise um nome mais adequado do que aquele que ela escolheu, o Recanto do Sol. Em 1940 ela tinha lá cerca de doze ou dezesseis crianças, a maioria por ter anteriormente guardiãos insatisfatórios, as outras por não poderem ser evacuadas com suas famílias. Lá faziam tudo por essas crianças. Foi-lhes dada uma casa luxuosa. Re­preendi-a por isso, salientando como seria difícil para as crian­ças, depois de vários anos de guerra, deixar aquele ambiente de luxo para voltar a seus próprios lares. Não me prestou a menor atenção. Estava muito envolvida com as crianças e acabou por resolver acrescentar algumas delas, particularmen­te as de ambientes insatisfatórios ou as órfãs. O resul­tado foi uma família de cinco membros adotados. Mary, hoje casada com Philip Durrant, Michael, que trabalha em Drymouth, Tina, uma menina mestiça, Hester e, naturalmente, Jacko. Todos cresceram considerando os Argyles como seus pais. E receberam o que há de melhor em matéria de educação. Se o ambiente representasse alguma coisa, todos de­veriam ter ido longe. Não há dúvida de que gozaram de todas as vantagens possíveis. Jack, ou Jacko, como o cha­mavam, foi sempre um insatisfeito. Roubou dinheiro no colé­gio e teve de ser removido. Meteu-se em encrencas em seu primeiro ano na Universidade. Duas vezes escapou por pou­co da prisão. Sempre teve temperamento incontrolável. Mas tudo isso, eu creio, o senhor já sabia. Por duas vezes os Ar­gyles cobriram desfalques que ele cometeu. Duas vezes eles entraram com o dinheiro para ele começar um negócio e duas vezes esses negócios não deram em nada. Depois de sua morte uma pensão sempre foi paga, e ainda continua sendo paga, à sua viúva.

Calgary debruçou-se para a frente, atônito.

— Viúva? Ninguém jamais me disse que ele foi casado.

— Ora, ora. O advogado estalou os dedos, irritado. — Pequei por omissão. Havia-me esquecido, naturalmente, que o senhor não tinha lido a cobertura jornalística do caso. Devo acrescentar que ninguém na família Argyle tinha a menor idéia de que ele estivesse casado. Logo após sua prisão a mulher apareceu no Recanto do Sol com mostras de grande perturbação. O Sr. Argyle foi muito bondoso para com ela. Era uma jovem que havia trabalhado como dançarina profis­sional no Palaias de Danse em Drymouth. É provável que eu tenha esquecido de mencioná-la porque ela se casou de novo poucas semanas depois da morte de Jack. Seu atual marido, eu creio, é eletricista em Drymouth.

— Tenho de ir vê-la — disse Calgary. Acrescentou, em tom de autocondenação. — Ela é a primeira pessoa que eu deveria ter ido ver.

— Sem dúvida, sem dúvida. Dar-lhe-ei seu endereço. Realmente não consigo descobrir por que não a mencionei em sua primeira visita.

Calgary ficou em silêncio.

— Ela era um fator tão negligível... — disse o advo­gado, em tom de desculpa. — Nem sequer os jornais conse­guiram dar-lhe maior importância. Ela jamais o visitou na prisão, nem tampouco demonstrou qualquer interesse por ele.

Calgary estivera perdido em pensamentos. Agora co­mentou:

— Leo Argyle, naturalmente, e a filha mais moça, Hester, Mary Durrant e seu marido inválido estavam lá, de vi­sita. Ele acabara de sair do hospital. Depois, havia Kirsten Lindstrom, a quem provavelmente já conheceu. Ela é en­fermeira e massagista diplomada, sueca, que inicialmente au­xiliava a Srª Argyle com a creche de guerra e depois ficou na casa permanentemente. Michael e Tina não estavam lá. Michael é vendedor de automóveis em Drymouth e Tina tra­balha na Biblioteca do Condado em Redmyn e mora num apartamento lá mesmo.

Fez uma pausa antes de continuar.

— Há também a Sr.tª Vaughan, a secretária do Sr. Argyle. Ela deixou a casa pouco antes de o corpo ser encon­trado.

— Também já a conheci — retrucou Calgary. — Pa­receu-me extremamente dedicada ao Sr. Argyle.

— Naturalmente. Creio que dentro em breve poderemos ter a participação de um noivado.

— Ah!

— Ele tem-se sentido muito só desde que a mulher mor­reu — disse o advogado, com um vaguíssimo toque de re­provação em sua voz.

— Pois não — disse Calgary. Quanto a isso não estou realmente em condições de especular!

— Creio que está. Como o senhor próprio declarou, fa­tos podem ser verificados.

— Não houve benefício monetário direto para ninguém. A Srª Argyle havia estabelecido uma série de fundos, bas­tante flexíveis, como é comum fazer-se hoje em dia. Tais fundos beneficiam todos os seus filhos. São administrados por três administradores, dos quais eu sou um, Leo Argyle é ou­tro, o terceiro sendo um advogado americano, parente lon­gínquo da Srª Argyle. A imensa soma em dinheiro em ques­tão é administrada por esses três indivíduos e pode ser mani­pulada a fim de, a este ou aquele momento, beneficiar mais o herdeiro que estiver com maiores necessidades.

— E quanto ao Sr. Argyle? Não lucrou nada com a morte da esposa?

— Não muito. A maior parte da fortuna dela, como já disse, está aplicada nesses fundos. Ficou para ele o que não estava assim comprometido, o que não é grande coisa.

— E a Sr.tª Lindstrom?

— Alguns anos antes a Srª Argyle já havia garantido para ela uma excelente aposentadoria. — Marshall acrescen­tou, irritado: — Motivo? Não parece haver nem sinal de mo­tivo em lugar nenhum. Pelo menos motivos financeiros não há.

— E no campo emocional? Havia algum... atrito es­pecial?

Marshall pensou por alguns momentos. Depois disse, quase com relutância:

— Talvez fosse bom que procurasse o médico do lugar. Dr.... hum... MacMaster, acho que é esse o seu nome. Já está aposentado, porém continua a morar nas vizinhanças. Era o médico da creche no tempo da guerra. Deve ter visto mui­to da vida do Recanto do Sol. Persuadi-lo a contar-lhe o que possa ter visto é tarefa sua. Porém creio que, se assim o de­sejar, poderá ajudá-lo bastante. Desculpe-me por dizê-lo, mas o senhor acredita que possa fazer alguma coisa que a polí­cia não possa fazer com muito mais facilidade?

— Não sei — respondeu Calgary. — É possível que não. Porém estou certo de uma coisa: Tenho de tentar. É isso mesmo, eu tenho de tentar.

As sobrancelhas do inspetor-chefe foram subindo vagarosamente por sua testa numa espécie de esperança vã de alcançar os cabelos grisalhos, que cada vez nasciam mais para o alto. Levantou os olhos para o teto e depois baixou-os novamente para os papéis em sua escrivaninha.

— É inacreditável! — afirmou.

O rapaz cuja obrigação era dar as respostas corretas ao inspetor-chefe respondeu:

— É mesmo, senhor.

— Mas que saco de gatos! — resmungou o Major Finney. Tamborilou na mesa com os dedos. — Huish está aí?

— Está sim, senhor. O Inspetor Huish chegou há uns cinco minutos.

O Inspetor Huish era um homem alto e de semblante triste. Seu ar melancólico era de tal modo marcante que ninguém acreditaria que fizesse sempre o maior sucesso em festas infantis, contando piadas e fazendo moedas aparecerem das orelhas de meninozinhos incautos, deixando-os encanta­dos. O inspetor-chefe disse:

— Bom-dia, Huish; que bom saco de gatos arranjamos, não é? O que é que você acha de tudo isso?

O inspetor respirou fundo, sentando-se na cadeira que lhe era indicada.

— Parece que cometemos um erro, há dois anos — res­pondeu. — Esse rapaz... como é mesmo o nome dele?

O Chefe remexeu nos papéis. — Calory, não, Calgary. É uma espécie de professor. Será que não é daqueles tipos distraídos? Gente assim às vezes é extremamente vaga a res­peito de hora, local e coisas desse gênero, não é? Havia algo de um apelo em seu tom, porém Huish não se deixou im­pressionar e respondeu:

— Pelo que soube ele é mais do tipo científico.

— De modo que temos de acreditar no que ele diz, não é?

— Bem — retrucou Huish. — Sir Reginald parece ter acreditado e não sei de muita coisa capaz de enganar a ele. Isso era um grande elogio ao chefe da Promotoria-Geral.

— Não — disse o major, relutante. — Se a Promotoria está convencida, não podemos fazer nada senão enfrentar a situação. O que significa reabrir o caso. Trouxe os documen­tos importantes, como lhe pedi?

— Sim, senhor. Está tudo aqui.

O inspetor espalhou vários documentos sobre a mesa.

— Deu uma lida? — perguntou o inspetor-chefe.

— Sim, senhor. Estudei tudo ontem à noite. Minha me­mória ainda estava com tudo bastante fresco. Afinal, não faz tanto tempo assim.

— Muito bem, Huish. Onde é que nós estamos?

— Na estaca zero, senhor. É preciso que compreenda que o maior problema é não ter havido nenhuma dúvida na época do crime.

— É. Parecia um caso de clareza cristalina. Não pense que o estou condenando, Huish; você tem o meu apoio in­tegral.

— Ninguém poderia ter pensado em outra coisa — de­clarou Huish, remoendo o caso. — Fomos avisados por tele­fone que ela havia sido morta. Fomos informados de que o ra­paz estivera lá e a ameaçara, encontramos suas impressões digitais no atiçador e encontramos o dinheiro com ele. Nós o pegamos quase que imediatamente e estava com o dinheiro roubado.

— Que impressão lhe causou, na época?

Huish ponderou. — Má — respondeu. — Muito presunçoso e objetivo. Tinha horários e álibis na ponta da língua. Atrevido. O senhor sabe como é. Os assassinos são atrevidos, de modo geral. Acham que são espertos. Que o que eles fa­zem está sempre certo, pouco importa o que aconteça aos outros. Aquele não prestava, mesmo.

— Eu sei — disse Finney, — nunca prestou. Basta a fé de ofício dele para ter certeza. Porém você ficou conven­cido desde o início que ele era um assassino?

O inspetor considerou a questão. — Não é coisa da qual se possa ter certeza. Tenho a impressão que ele era do tipo que acaba sendo assassino. Como Harmon em 1938. Uma ficha que não tinha mais tamanho de bicicletas roubadas, dinheiro desviado, golpes em velhas. Até que um dia ele mata uma, destrói o corpo com ácido, fica contente com sua própria esperteza e transforma a coisa em hábito. Jacko Argyle era desse tipo.

— Mas, aparentemente — comentou o inspetor-chefe lentamente — estávamos enganados.

— É — concordou Huish, — nós nos enganamos. E o rapaz está morto. É um caso muito desagradável. Mas não se esqueça — acrescentou, com repentina animação, — que ele não prestava, mesmo. Pode ser que não fosse assassino, na verdade não era assassino, segundo nos informa agora, mas mesmo assim não prestava para nada.

— Está bem, está bem — disse Finney, impaciente-mente, — mas quem a matou? Você diz que examinou o caso ontem à noite. Alguém a matou. A mulher não podia ba­ter na própria cabeça, pelas costas, com um atiçador. Alguém a matou. Quem?

O Inspetor Huish suspirou e recostou-se na cadeira.

— O que me pergunto é se algum dia chegaremos a sa­ber.

— Será tão difícil assim?

— Sim, porque as pistas estão frias e porque haverá mui­to pouca evidência a ser encontrada agora, além de eu acre­ditar que ela jamais existiu em grandes quantidades.

— Sendo a questão principal o fato de ter de ser al­guém na própria casa, alguém muito próximo a ela?

— Não vejo nenhuma outra solução — afirmou o ins­petor. — Ou foi alguém que estava na casa ou alguém que ela pessoalmente deixou entrar. Os Argyles eram do tipo que trancam tudo. Trancas especiais nas janelas, correntes, fecha­duras extras na porta principal. Foram roubados uns dois anos antes do crime e ficaram com mania de ladrão. — Fez uma pausa, depois continuou. — O maior problema, senhor, é não termos buscado outras soluções na época. O caso con­tra Jack Argyle era perfeito. É claro que, agora, podemos ver que o assassino se aproveitou disso.

— Aproveitou-se do fato de o rapaz ter estado lá, bri­gado com a mãe e até a ameaçado?

— Isso mesmo. Só o que o criminoso tinha a fazer era entrar na sala, pegar o atiçador de onde Jacko o havia deixado cair, usando luvas, chegar até onde a Srª Argyle estava sentada, escrevendo, e dar-lhe uma boa pancada na cabeça.

O Major Finney só disse duas palavras: — Por quê?

O inspetor sacudiu lentamente a cabeça.

— Sim, senhor; é isso que precisamos descobrir. E vai ser um dos maiores tropeços para nós: ausência de motivo.

— Na época do crime — lembrou o inspetor-chefe, — não parecia haver nenhum motivo assim à vista. Como a maioria das outras mulheres que tem propriedade e uma grande fortuna, ela tomara uma série de providências para evitar os impostos de transmissão. Uma série de fundos já havia sido estabelecida, com os filhos todos devidamente ga­rantidos antes de sua morte. Não receberiam, como de fato não receberam, nem mais um tostão. E não se tratava de uma mulher desagradável, implicante, mandona ou mesquinha. Ela os cobrira de dinheiro a vida inteira. Boa educação, dinheiro para começar a vida. Ótimas mesadas para todos. Afeição, bondade, benevolência.

— É isso mesmo, senhor — concordou o Inspetor Huish. — Aparentemente não havia ninguém querendo livrar-se de­la. É claro... Ele parou.

— O que é, Huish?

— Fui informado de que o Sr. Argyle está pensando em casar-se de novo. Vai casar-se com a Sr.ta Gwenda Vaughan, que é secretária dele há vários anos.

— Eu sei — disse o Major Finney, reflexivo. — Supo­nho que esse seria um motivo. Que ignorávamos naquele tempo. Você diz que já há alguns anos que ela trabalha para ele. Acredita que houvesse qualquer coisa entre eles ao tempo do crime?

— Duvido muito, senhor — respondeu o inspetor. — Esse tipo de coisa é logo comentado numa aldeia como esta. Quero dizer, não creio que houvesse nada que se pudesse comentar, por assim dizer. Nada que a Srª Argyle pudesse ficar sabendo e viesse a reclamar.

— Não — retrucou o inspetor-chefe, — porém ele po­deria mesmo assim ter muita vontade de se casar com Gwenda Vaughan.

— Ela é uma jovem atraente — disse o inspetor. — Nada de glamourosa, não diria isso, mas bonitona e atraente de modo muito simpático.

— Provavelmente devotada a ele há anos — comen­tou o major. — Essas secretárias parecem estar sempre apaixo­nadas pelos respectivos patrões.

— Bem, já encontramos uma espécie de motivo para esses dois — ponderou Huish. — Depois há aquela empre­gada sueca. Podia perfeitamente não gostar tanto da Srª Ar­gyle quanto fazia crer. Poderia haver motivos de ressenti­mento, verdadeiros ou imaginários. Claro que não teve ne­nhuma vantagem financeira com a morte da Srª Argyle, por­que esta já havia providenciado uma excelente aposentadoria para ela anteriormente. Ela parece ser uma mulher boa e sensata, longe do tipo que gosta de rachar a cabeça dos outros com atiçadores! Mas nunca se sabe, não é? Basta pensar no caso de Lizzie Borden.

— É — retrucou o inspetor-chefe — nunca se sabe. Não há qualquer possibilidade de ter sido alguém de fora?

— Não há nenhuma indicação que haja — disse o ins­petor. — A gaveta de onde foi tirado o dinheiro estava aberta. Foi feita uma pequena tentativa de fazer parecer que um ladrão estivera na sala, mas foi coisa de amador. O tipo de coisa que se casava perfeitamente com a idéia de Jacko querendo dar esse tipo de impressão.

— O que mais me incomoda — afirmou o inspetor chefe — é o dinheiro.

— Eu sei — respondeu Huish. — É muito difícil de se compreender. Uma das notas de cinco libras encontradas com Jacko era, definitivamente, uma das que a Srª Argyle havia tirado do banco naquela manhã. Srª Bottleberry era o no­me que estava escrito no verso. Ele disse que a mãe lhe havia dado o dinheiro, porém tanto o Sr. Argyle quanto Gwenda Vaughan foram incisivos em afirmar que quando faltava um quarto para as sete a Srª Argyle entrou na biblioteca e lhes contou que Jacko tinha pedido dinheiro, decla­rando categoricamente que se recusava a dar-lhe qualquer quantia.

— Claro que é possível — ressaltou o inspetor-chefe — segundo o que sabemos agora, ou seja, que Argyle e a secre­tária pudessem estar mentindo.

— Sim, é uma possibilidade, ou talvez... — o ins­petor interrompeu-se.

— O que foi, Huish? — instigou Finney.

— Digamos que alguém, que ele ou ela, que chamare­mos de X por enquanto, ouvisse a briga e as ameaças que Jacko estava fazendo. Suponhamos que esse alguém visse nisso sua oportunidade. Era só pegar o dinheiro, correr atrás do rapaz, dizer que a mãe, afinal das contas, resolvera que queria que ele o levasse, preparando, com isso, um dos casos mais perfeitos de provas circunstanciais falsas que já encontrei. Era só ter cuidado e usar o atiçador que havia sido usado para a ameaça sem estragar as impressões digitais.

— Raios — disse o inspetor-chefe, irritado. — Nada disso parece casar com nada do que sei a respeito da família. Quem mais estava na casa naquele dia além de Argyle, Gwenda Vaughan, Hester Argyle e a sueca?

— A filha mais velha, casada, Mary Durrant, estava hospedada lá, com o marido.

— Ele é aleijado, não é? Acho que ele fica fora. Que tal Mary Durrant?

— Uma das coisas mais frias que já vi, senhor. Não consigo nem imaginar aquela moça ficando excitada ou ma­tando quem quer que seja.

— Não há criados?

— Todos diaristas; às seis já tinham ido embora.

— Deixe-me dar uma olhada nos horários.

O inspetor passou-lhe uma folha de papel.

— Quando faltava um quarto para as sete a Srª Argyle estava na biblioteca falando com o marido a respeito das ameaças de Jacko. Gwenda Vaughan esteve presente duran­te parte da conversa, e foi para casa logo depois das sete. Hester Argyle viu a mãe, viva, dois ou três minutos antes das sete horas. Depois disso a Srª Argyle não foi mais vista até às sete e meia, quando seu corpo foi encontrado pela Sr.ta Lindstrom. Entre as sete e as sete e meia houve toda espécie de oportunidade. Hester poderia tê-la matado, Gwenda Vaughan poderia tê-la matado depois de sair da biblioteca e antes de deixar a casa. A Sr.ta Linds­trom poderia tê-la matado antes de “encontrar o corpo”. Leo Argyle ficou sozinho na biblioteca desde as sete e dez até a Sr.ta Lindstrom dar o alarma. Poderia ter ido até à sala-de-estar da mulher para matá-la a qualquer momento, duran­te esses vinte minutos. Mary Durrant, que estava no andar de cima, poderia ter descido também durante aquela meia-hora e matado a mãe. E... — acrescentou Finney pensativo — a própria Srª Argyle poderia ter deixado entrar qualquer pessoa pela porta da frente, exatamente como julgávamos que houvesse deixado Jacko Argyle entrar. Leo Argyle disse, como há de se lembrar, que achava que tinha ouvido a campainha tocar e a porta da frente abrir e fechar, porém sem qualquer noção precisa da hora. Nós supusemos que esse teria sido o momento no qual Jacko teria voltado para matá-la.

— Ele não teria tido qualquer necessidade de tocar a campainha — disse Huish. — Ele tinha sua própria chave. Todos eles tinham chaves.

— Ainda havia outro irmão, não havia?

— Claro; Michael. É vendedor de automóveis em Drymouth.

— Creio que é melhor descobrir o que ele estava fa­zendo naquela noite — disse o inspetor-chefe.

— Depois de dois anos? — perguntou o inspetor. — Não há muita possibilidade de alguém ainda se lembrar, há?

— Não foi indagado na época?

— Parece que tinha saído para testar o carro de um cliente. Não havia nenhuma razão para suspeitar dele então; porém ele tinha uma chave e poderia ter ido até a casa e matado a mãe.

O inspetor-chefe suspirou.

— Não sei como é que você vai enfrentar essa situa­ção, Huish. Não tenho nenhuma certeza de que jamais che­guemos a alguma conclusão.

— Eu gostaria, pessoalmente, de saber quem a matou — respondeu Huish. — Pelo que sempre soube era uma boa mulher. Fez muito pelos outros. Por crianças desampa­radas e toda espécie de obras de caridade. É um tipo de pessoa que não deveria ser assassinada. É. Bem que eu gos­taria de saber. Mesmo que não fosse possível juntar provas suficientes para a Promotoria, eu gostaria de saber.

— Pois desejo-lhe sucesso — concluiu o inspetor-chefe. — Por sorte não estamos muito ocupados neste mo­mento, mas não fique desapontado se não conseguirmos nada. As pistas estão mais que frias. Mais que geladas.

As luzes acenderam-se no cinema. Uma série de anún­cios começou a aparecer na tela. As vendedoras começaram a circular, com suas limonadas e sorvetes. Arthur Calgary examinou-as. Uma gorducha de cabelos castanhos, uma alta e morena e uma pequena e loura. Era esta última que ele viera inspecionar. A viúva de Jacko, hoje em dia casada com um homem chamado Joe Clegg. Era uma carinha bonitinha e fútil, emplastrada de maquilagem, sobrancelhas finíssimas, cabelos horrendos, enrijecidos de permanentes baratas. Ar­thur Calgary comprou-lhe um sorvete. Tinha seu endereço e planejava ir vê-la, porém preferiu primeiro observá-la quan­do não tivesse consciência da presença dele. Pois lá estava ela. Não era o tipo de nora que a Sra Argyle, por tudo o que ouvira a seu respeito, teria gostado de ter. Seria por isso, provavelmente, que Jacko a mantivera escondida.

Ele suspirou, escondeu a caixinha do sorvete debaixo da cadeira e encostou-se quando novamente começaram a projetar o filme na tela. Depois de algum tempo levantou-se e saiu do cinema.

Na manhã seguinte, às onze horas, ele dirigiu-se ao en­dereço que lhe haviam dado. Um rapazote abriu a porta e, ante a indagação de Calgary, disse:

— Os Cleggs? No último andar.

Calgary subiu as escadas. Bateu na porta e Maureen Clegg abriu-a. Sem o uniforme e a maquilagem parecia muito diferente. Era um rostinho tolo, alegre e sem qualquer interesse. Ela o olhou com desconfiança.

— Meu nome é Calgary. Creio que o Sr. Marshall lhe escreveu a meu respeito.

O rosto dela desanuviou-se.

— Ah, quer dizer que é o senhor? Entre, por favor. — Ela se afastou para lhe dar passagem. — Desculpe a bagun­ça. Ainda não tive tempo de arrumar nada hoje. Afastou umas roupas espalhadas numa cadeira e os restos de um desjejum sorvido havia já algum tempo. — Sente-se. Foi muita bondade sua vir até aqui.

— Achei que era o mínimo que podia fazer — disse Calgary.

Ela deu um risinho meio encabulado, como se realmen­te não tivesse compreendido o que ele havia dito.

— O Sr. Marshall me contou — respondeu ela. — A respeito daquela história que o Jackie inventou... e que afi­nal era verdade mesmo. Que alguém realmente deu uma ca­rona para ele naquela noite. Então foi o senhor, não é?

— Sim, fui eu.

— Sabe que eu não conseguia acreditar — respondeu Maureen. — Joe e eu ficamos falando nisso metade da noite. Parece até coisa que acontece no cinema. Já está fazendo uns dois anos, não é?

— Mais ou menos.

— É direitinho o tipo de coisa que a gente vê no cinema e que, quando vê, fica dizendo que é bobagem, que essas coisas não acontecem de verdade. E vai ver, acontece! Acontece mesmo! É sensacional, não é?

— Eu creio — retrucou Calgary, — que se pode en­carar o assunto sob esse aspecto. — Ele a observava de forma um tanto dolorosa.

Ela continuou a matraquear alegremente.

— E o coitado do Jackie morto sem poder saber de nada. O senhor sabe, ele pegou pneumonia na prisão. Acho que foi a umidade, coisas assim, não acha?

Sua visão da prisão, pensou Calgary, era nitidamente romântica: celas subterrâneas minando água e ratos roendo os pés dos presos.

— Naquele tempo, para falar a verdade — continuou ela, — eu achei que ele morrer era o melhor que podia acontecer.

— É, creio que sim... É, acredito que deva ter achado.

— Bom, quero dizer, imagine só ele lá, trancado, anos a fio. O Joe disse que o melhor era eu pedir divórcio, e eu já ia pedir mesmo.

— A senhora queria se divorciar dele?

— Bom, não adianta nada a gente ficar amarrada a um homem que vai ficar anos e anos na prisão, adianta? Além disso, muito embora eu gostasse bastante do Jackie e tudo isso, ele não era exatamente o que se pudesse chamar de um tipo equilibrado. Eu nunca pensei realmente que nos­so casamento fosse durar muito.

— A senhora havia realmente iniciado um processo de divórcio quando ele morreu?

— Bem, de certo modo. Quero dizer, já tinha ido falar com um advogado. Foi Joe quem me fez ir. É claro que o Joe nunca suportou o Jackie.

— Joe é o seu marido?

— É. Trabalha com eletricidade. Tem um ótimo em­prego e é muito considerado. Ele sempre me disse que o Jackie não prestava, mas a verdade é que naquele tempo eu não passava de uma menina boba. O Jackie tinha um jeitinho todo especial, sabe?

— É o que todos me têm dito.

— Com mulher, então, nem se fala, e eu não sei nem por quê. Não era bonito nem nada. Eu costumava chamá-lo de cara de macaco. Mas mesmo assim tinha muito charme. E olhe que bem que ajudou, de vez em quando. Logo de­pois que nós nos casamos ele se meteu numa encrenca lá na garagem por causa do serviço feito no carro de um freguês. Eu nunca entendi direito o que foi. Só sei que o patrão ficou fulo de raiva. Mas Jackie trabalhou a mulher do patrão. Era velha, velha. Devia ter quase cinqüenta anos, mas o Jackie tanto enfeitou e falou e inventou que no fim ela estava com a cabeça completamente virada. Conseguiu convencer o marido de não processar o Jackie desde que ele devolvesse o dinheiro. Só que tem que ele nunca soube de onde é que estava vindo o dinheiro para pagar! Era a mulher que estava dando! Puxa, o que o Jackie e eu ríamos com a história!

Calgary olhou-a com certa repugnância. — Será que era assim tão... divertido?

— Ah, eu acho que sim; o senhor não? Era de morrer de rir. Uma velha daquelas, louca pelo Jackie e entregando todas as economias para ele!

Calgary suspirou. As coisas, pensou ele, nunca eram co­mo se imaginava. Cada dia se sentia menos atraído pelo homem cujo nome fizera tanta força para limpar. Já estava quase chegando a compreender o ponto de vista que o dei­xara tão atônito no Recanto do Sol e, até mesmo, a compar­tilhar dele.

— Só vim aqui, Srª Clegg, para ver se havia alguma coisa que eu pudesse... bem, fazer para compensá-la pelo que aconteceu.

Maureen Clegg pareceu ligeiramente espantada.

— Muita bondade sua — retrucou ela. — Mas por que haveria de fazer o que quer que seja? Nós estamos indo mui­to bem. Joe está ganhando bem e eu também tenho emprego. Sou vendedora num cinema, sabe?

— Sim, eu sei.

— No mês que vem vamos comprar um televisor — acrescentou com muito orgulho.

— Fico contente em saber — disse Calgary, — muito contente, mesmo, que todos esses acontecimentos tão infe­lizes não tenham deixado... bem, nenhuma sombra per­manente.

Cada vez tinha mais dificuldade em encontrar as pala­vras certas para falar com essa moça que havia sido casada com Jacko. Tudo o que dizia lhe parecia soar pomposo e artificial. Por que não conseguia conversar naturalmente com ela?

— Temia que tudo lhe tivesse trazido uma imensa tris­teza.

Ela olhou para ele com os olhos muito abertos, sem compreender o que ele estava tentando dizer.

— Bem, na época foi horrível, com todos os vizinhos falando e toda aquela encrenca, muito embora eu tenha de dizer que a polícia foi muito boazinha, nas circunstâncias. Falaram comigo com bons modos e sem dizer nenhum pa­lavrão.

Ele se perguntou se ela jamais sentira qualquer coisa em relação ao morto. Perguntou repentinamente:

— A senhora pensou que fosse ele?

— Quer dizer, que ele tivesse liquidado a mãe?

— É. Isso mesmo.

— Bem, quero dizer... bem... sabe... é, acho que de certo modo pensei. Claro que ele dizia que não tinha sido ele; mas nunca se podia acreditar no que Jackie dizia, e parecia que tinha sido ele. Sabe, o Jackie sabia ficar furioso, mas furioso mesmo, quando alguém o contrariava em alguma coisa. Eu sabia que ele estava em alguma encrenca. Não me dizia nada, só me xingava quando eu perguntava. Mas na­quele dia saiu dizendo que tudo ia dar certo. Disse que a mãe ia soltar a grana. Que ia ter de soltar. E eu acre­ditei nele.

— Pelo que soube ele nunca havia informado a famí­lia a respeito de seu casamento. A senhora não conhecia ne­nhum dos parentes?

— Não. Sabe, eles eram meio metidos a grã-finos, vi­viam numa casa enorme. Não iam engolir-me com muita fa­cilidade. Jackie achou melhor me manter no escuro. Além do mais, ele disse que se me levasse lá a mãe dele ia querer mandar na minha vida também. Disse que ela sempre mandava em todo o mundo e que ele não agüentava mais, e como estávamos ia tudo muito bem.

Não parecia nutrir qualquer ressentimento; antes pare­cia aceitar o comportamento do marido como muito natural.

— Suponho que tenha sido um susto muito grande para a senhora quando ele foi preso?

— Naturalmente. Como é que ele podia ter feito uma coisa assim? Foi o que eu fiquei dizendo para mim mesma. Mas o que tem de ser, tem de ser. Ele sempre ficava furioso, descontrolado, quando qualquer coisa o perturbava.

Calgary inclinou-se para a frente.

— Coloquemos o assunto assim: realmente a senhora não ficou muito surpreendida de saber que seu marido tinha acertado a cabeça da mãe com um atiçador e roubado uma grande quantidade de dinheiro?

— Bem, Sr. Calgary... assim, também, o senhor está colocando as coisas de modo muito antipático. Eu não acho que ele quisesse bater com tanta força. Acho que não queria matar a mãe. Foi só que ela se recusou a dar o dinheiro, ele pegou o atiçador para ameaçá-la, e depois, vendo que ela não mudava de idéia, deve ter perdido o controle e batido nela. Mas não foi com vontade de matar. Isso foi só azar. É preciso que o senhor compreenda que ele estava precisando muito de dinheiro. Se não arranjasse ia para a cadeia.

— De modo que... a senhora não o culpa?

— Claro que eu o culpei... Eu não gosto nada dessas coisas de violência. Além do mais com a própria mãe! Não, eu não achei que fosse uma coisa bonita para se fazer. Co­mecei a achar que Joe estava com a razão quando dizia que eu não devia me envolver com o Jackie. Mas o senhor sabe como é, é tão difícil para uma moça escolher. O Joe, sabe, sempre foi assim quieto, tranqüilo. Eu já o conhecia fazia muito tempo. Jackie era diferente. Tinha tido boa educação e tudo. Parecia estar muito bem na vida, estava sempre atirando dinheiro para todo lado. E tinha todo aquele charme. Eu caí feito um patinho. O Joe ficava dizendo “Você vai se arrepender, mocinha”. Mas eu achava que era por­que ele estava com ciúmes, sabe como é. No fim quem tinha razão era o Joe, mesmo.

Calgary ficou olhando para ela. Perguntava-se se ela continuava realmente a não compreender as implicações do testemunho dele.

— Razão em que sentido? — perguntou.

— Bom, porque ele acabou me metendo em toda essa confusão. Quero dizer, nós sempre fomos muito respeitá­veis. Mamãe nos criou muito bem criadas. Sempre tivemos tudo do bom e do melhor, mas andando muito na linha. E, de repente, lá estava a polícia prendendo o meu marido! E os vizinhos todos sabendo de tudo. E tudinho nos jornais. Os mais escandalosos! E uma pilha de jornalistas a fazer toda espécie de perguntas. Eu fiquei numa posição muito comprometedora.

— Mas, minha filha, será que você não compreende que não foi ele quem matou?

Por alguns momentos a carinha tola e bonitinha pare­ceu estonteada.

— É me mesmo! Eu já ia esquecendo. Mas mesmo assim... bem, quero dizer, se ele não tivesse ido lá e armado toda aquela briga, ameaçando a mãe e tudo, ninguém ia-se lem­brar de prendê-lo, não é?

— Não — disse Calgary. — Lá isso é verdade.

Era possível que aquela menina bonitinha e tola fosse mais realista do que ele.

— Ai, foi uma coisa horrível — continuou Maureen. — Eu não sabia o que fazer. Depois mamãe disse que era melhor eu ir logo falar com a família dele. Ela disse que eles iam ter de fazer alguma coisa por mim. Afinal, disse ela, você tem seus direitos e é melhor mostrar que vai lutar por eles. Foi aquela estrangeira que abriu a porta e, a princípio, não havia jeito de eu conseguir fazer com que compreendesse. “É impossível. É impossível que Jacko esteja casado com você.” Era só isso que ela ficava dizendo. Eu fiquei meio magoada. “Pois fique sabendo que estamos casados e muito bem casados. E não foi na pretoria, não, foi na igreja”. Foi o que respondi. Foi mamãe que insistiu na igreja, sabe? Mas ela disse: “Não é verdade. Eu não acre­dito!” Mas depois o Sr. Argyle apareceu e ele foi muito gentil. Disse para eu não me preocupar demais e que eles iam fazer todo o possível para defender o Jackie. Perguntou como é que eu estava de dinheiro e passou a me mandar uma quan­tia toda semana. E continua mandando. Joe não gosta que eu aceite, mas eu digo “Que bobagem. Não faz falta para eles, faz?” E ainda me mandou um cheque muito bom quando eu casei com o Joe, de presente. Disse que estava muito con­tente e que esperava que este casamento fosse mais feliz. É, o Sr. Argyle é muito bonzinho.

Virou a cabeça quando a porta abriu.

— É o Joe que está chegando.

Joe era um rapaz claro, de lábios finos. Recebeu as ex­plicações de Maureen com a testa um tanto franzida.

— Eu esperava que aquilo tudo estivesse acabado — disse com ar de reprovação. — Desculpe-me por falar as­sim, meu senhor, mas para mim não há nenhuma vantagem em se ficar remoendo o passado. Isso é o que eu acho. Mau­reen teve azar, é só o que tenho a dizer...

— Sim — disse Calgary. — Compreendo muito bem seu ponto de vista.

— É claro — acrescentou Joe Clegg, — que ela nun­ca devia ter-se metido com um sujeito como aquele. Eu sem­pre soube que ele não prestava. Já havia muito falatório a respeito dele. Tinha tido duas condicionais. Quem come­ça assim não pára mais. Primeiro é desfalque, depois são os golpes em velhas, no fim é assassinato.

— Mas não houve assassinato por parte dele.

— Isso é o que o senhor diz — respondeu Clegg, ob­viamente nada convencido.

Jack Argyle tem um álibi perfeito para a hora em que o crime foi cometido. Ele estava no meu carro, de ca­rona, indo para Drymouth. De maneira, Sr. Clegg, que não teve oportunidade para cometer o crime.

— É possível que não — afirmou Clegg. — Mas mes­mo assim é uma pena ficar remexendo o passado, se me permite dizê-lo. Afinal das contas, ele está morto; para ele não faz diferença. E os vizinhos vão novamente começar a falar e a imaginar coisas.

Calgary levantou-se. — Bem, é possível que do seu ponto de vista o caso possa ser encarado assim. Mas o se­nhor sabe que existe uma coisa chamada justiça, Sr. Clegg.

— Eu sempre fui levado a crer — retrucou Clegg, — que um julgamento inglês é a coisa mais justa que existe.

— O melhor dos sistemas do mundo pode cometer um erro — disse Calgary.

— A justiça, afinal das contas, está em mãos de ho­mens e os homens são falíveis.

Andando pela rua, depois de deixar o casal, ele sentiu sua mente mais perturbada do que julgaria possível. Teria sido realmente melhor, perguntava-se a si mesmo, se minha memória nunca tivesse lembrado nada a respeito daquele dia? Afinal, como esse rapaz antipático e convencido acaba de dizer, o outro está morto. Já foi levado para um juiz que jamais comete erros. Ser lembrado como assassino ou apenas como um ladrãozinho de terceira classe não vai fazer dife­rença para ele agora.

Repentinamente uma onda de indignação sufocou-o. — Mas deveria fazer diferença para alguém! — pensou. — Al­guém deveria ficar contente. Por que ninguém fica? Essa moça, aí, eu compreendo. Encantou-se com Jacko, mas ja­mais o amou. Provavelmente não é capaz de amar de todo. Mas os outros. Seu pai. Sua irmã, sua ama... Esses de­viam ficar contentes. Deviam pensar um pouco nele antes de começar a temer por si mesmos... É isso... alguém devia ter-se importado.

 

— Sr.ta Argyle? Ali na segunda escrivaninha.

Calgary ficou um momento olhando para ela.

Bem arrumada, pequena, muito quieta e eficiente, es­tava usando um vestido azul marinho com gola e punhos brancos. O cabelo preto azulado estava cuidadosamente en­rolado na nuca. A pele era escura, mais escura do que qualquer pele inglesa conseguiria ser. E os ossos, também, eram menores. Essa era a mestiça que a Srª Argyle adotara como filha.

Os olhos que se ergueram para ele eram escuros e opa­cos. Eram olhos que não diziam nada.

— Em que posso ajudá-lo?

— É a Srta Argyle? Sr.ta Christina Argyle?

— Sou.

— Meu nome é Calgary. Artur Calgary. É possível que saiba...

— Sim; eu sei quem é. Meu pai me escreveu.

— Eu gostaria muito de lhe falar.

Ela olhou para o relógio.

— A biblioteca fecha dentro de meia hora. Se pudes­se esperar...

— Sem dúvida. Talvez pudesse tomar uma xícara de chá comigo em algum lugar?

— Muito obrigada. Ela se voltou para o homem que estava atrás dele.

— Em que posso ajudá-lo?

Arthur Calgary afastou-se. Ficou andando por ali, exa­minando os livros das estantes, porém sempre com a aten­ção voltada para Tina Argyle. Ela permaneceu a mesma, calma, competente, imperturbável. A meia hora custou a passar mas, finalmente, uma campainha soou e ela acenou para ele.

— Encontro-o lá fora daqui a alguns minutos.

Não se fez esperar. Não usava chapéu, mas trazia ago­ra um mantô pesado e escuro. Ele perguntou aonde deve­riam ir.

— Não conheço Redmyn muito bem — explicou.

— Há um lugar perto da catedral. Não é bom, mas por isso mesmo fica menos cheio do que os outros.

Em pouco tempo estavam sendo atendidos, em sua pe­quena mesa, por uma garçonete amuada que ouviu seus pe­didos com total ausência de entusiasmo.

— O chá não vai ser bom — disse Tina pedindo des­culpas, — porém julguei que talvez o senhor quisesse con­versar com relativa tranqüilidade.

— E queria mesmo. Devo explicar minhas razões para vir procurá-la. Já conheci todos os outros membros da sua família, inclusive, devo dizer, a mulher, ou melhor a viúva de seu irmão Jacko. A senhorita era a única que eu ainda não havia conhecido. Ah, sim, ainda há sua irmã casada.

— E o senhor acha necessário conhecer a todos nós?

Foi dito tudo com muita cortesia, porém havia alguma coisa de distanciamento em sua voz que deixou Calgary um tanto inconfortável.

— Não falo de uma necessidade social — admitiu ele secamente. — Nem se trata de mera curiosidade. (Será que não?) — Trata-se apenas do fato de eu querer expressar pessoalmente, a cada um, quão profundamente lamento não ter podido deixar estabelecida a inocência de seu irmão na época do julgamento.

— Compreendo...

— Se a senhorita gostava dele... não gostava dele?

Ela pensou por um momento, depois disse:

— Não. Eu não gostava de Jacko.

— No entanto, todos me dizem que ele era encanta­dor.

Ela disse, muito claramente, porém sem paixão:

— Não tinha confiança nele e não gostava dele.

— Não teve jamais, desculpe-me, qualquer dúvida de que ele houvesse matado sua mãe?

— Nunca me ocorreu que pudesse haver outra solução para o caso.

A garçonete trouxe-lhes o chá. O pão e a manteiga es­tavam velhos, a geléia era uma estranha substância sugerin­do algas, o bolo tão feio quanto ruim. O chá era fraquíssimo.

Ele tomou uns goles depois disse:

— Parece, pelo que compreendi, que esta informação, que só agora me foi possível dar e que inocenta seu irmão do assassinato, pode ter repercussões um tanto desagradáveis. Ela poderá produzir novas ansiedades para toda a sua família.

— Por que o caso terá de ser reaberto?

— Exatamente. Já pensou nisso?

— Meu pai parece pensar que seja inevitável.

— Eu sinto muito. Sinto muito, mesmo.

— Sente por quê, Dr. Calgary?

— Porque detesto ser o motivo de novos sofrimentos para todos vocês.

— Mas não poderia sentir-se satisfeito em permanecer calado?

— Está pensando em termos de justiça?

— Estou. O senhor não estava?

— Estava. A justiça me parecia muito importante. Ago­ra... já estou começando a me perguntar se não haverá outras coisas muito mais importantes do que ela.

— Tais como... ?

Os pensamentos dele voaram para Hester.

— Tais como... os inocentes, talvez.

Os olhos dela tornaram-se ainda mais opacos.

— O que pensa de tudo isso, Sr.ta Argyle?

Ela permaneceu em silêncio por alguns instantes, de­pois disse:

— Estou pensando no que é dito na Carta Magna. “A homem algum recusaremos justiça”.

— Compreendo — retrucou ela. — Essa é a sua res­posta.

O Dr. MacMaster era um velho de sobrancelhas arre­piadas, penetrantes, olhos cinzentos e um queixo de boxador. Ele se recostou em sua surradíssima cadeira de braços e estudou cuidadosamente seu visitante. E chegou à conclu­são de que gostava do que via.

Pelo lado de Calgary também houve uma sensação de simpatia. Quase que pela primeira vez, desde sua volta à Inglaterra, sentia que estava falando com alguém que se solidarizava com seus sentimentos e pontos de vista.

— Foi muita bondade sua receber-me, Dr. MacMaster — disse ele.

— Coisa nenhuma — respondeu o doutor. — Quase morro de tédio desde que me aposentei. Os jovens da mi­nha profissão me garantem que tenho de ficar aqui plantado feito um boneco cuidando do meu coração arrebentado, mas para mim não é muito fácil. Não é nada fácil. Eu escuto rádio, que é um blá, blá, blá que não acaba, e às vezes minha governanta me obriga a ver televisão, uma porção de coisas piscando na minha frente. Sempre fui um homem ocu­pado, passei a vida correndo de cá para lá. Ficar sentado o dia inteiro não me atrai. Ler cansa meus olhos. De modo que não precisa desculpar-se por tomar meu tempo.

— A primeira coisa que gostaria que compreendesse — começou Calgary, — é a razão pela qual continuo a me ocupar de tudo isto. Em termos puramente lógicos, natu­ralmente, já fiz aquilo a que me propus, ou seja, relatei os, desagradáveis fatos da minha concussão e perda de memó­ria, limpando com isso o nome do rapaz. Depois de feito isso, a única coisa racional e lógica a fazer seria ir embora e tentar esquecer tudo. Não concorda?

— Isso depende — respondeu o Dr. MacMaster. — Há alguma coisa que o preocupa? — A pergunta veio preen­cher uma pausa que se alongava.

— Sim — disse Calgary. — Tudo me preocupa. O que acontece é que a notícia que eu trouxe não foi rece­bida como eu esperava que fosse.

— Já sei — respondeu MacMaster, — mas não há nada de estranho nisso. Acontece todo dia. Ensaiamos certa coisa em nossa imaginação, qualquer coisa, conferência com um colega de profissão, pedido de casamento a uma moça, conversa com o filho antes de ele entrar num colégio novo, e quando chega a hora de acontecer mesmo, nunca é como se planejou. Nós preparamos tudo, sabe... tudo o que nós vamos dizer, já predeterminando quais vão ser as respostas. E é claro que é aí que nos enganamos todas as vezes. As respostas nunca são as que imaginamos que seriam. Foi isso que o preocupou, suponho.

— Foi.

— E o que é que esperava? Que o recebessem de bra­ços abertos?

— Eu esperava... — ele pensou um momento — Condenação? É possível. Ressentimento? Provavelmente. Mas também alguma gratidão.

— Mas não houve gratidão e muito menos ressentimen­to do que julga que devesse haver? — retrucou MacMaster.

— Mais ou menos isso — confessou Calgary.

— É porque ignorava as circunstâncias até chegar aqui. Por que veio procurar-me, exatamente?

Calgary disse, lentamente:

— Porque quero compreender melhor a família. Só sei os fatos oficiais. Uma mulher de mérito e altruísmo que fez tudo por seus filhos adotivos, uma mulher de espírito cívico elevado, de caráter excepcional. Em contraposição a ela, o que se costuma chamar, creio eu, uma criança-problema, um filho que tomou o mau caminho. Um jovem delinqüente. E é só isso que sei. Não sei mais nada. Não sei nada a respeito da própria Srª Argyle.

— Tem toda a razão — disse MacMaster. — Agora botou o dedo no ponto essencial. Pensando bem, sabe, essa é sempre a parte interessante de qualquer assassinato: a personalidade do assassinado. Todo o mundo fica sempre investigando a mente do assassino. E o senhor vem pensan­do, provavelmente, que a Srª Argyle era o tipo de mulher que não deveria ser assassinada.

— Imagino que essa seja a opinião geral.

— Eticamente — observou MacMaster, — tem toda a razão. Mas, sabe — ele esfregou o nariz, — não foram os chineses que disseram que a filantropia deve ser classificada como crime e não como virtude? Pois fique sabendo que eles têm uma certa razão. A filantropia e a caridade afetam as pessoas de um modo estranho. Ficam todas com nós pelas costas. Conhecemos a natureza humana. Você faz alguma coisa por um sujeito e se sente bem em relação a ele. Gosta dele. Mas será que o sujeito por quem você fez a tal coisa também se sente bem em relação a você? Será que ele real­mente vai gostar de você? É claro que devia gostar; mas quero saber é se gosta.

— Muito bem — continuou o doutor, após uma pausa, — aí se concentra o caso. A Srª Argyle era o que se pode dizer uma mãe maravilhosa. Mas sempre exagerou um pou­co nos métodos filantrópicos e caritativos. Sem dúvida. E porque queria. E porque insistia em fazê-lo.

— Eles não eram filhos dela — salientou Calgary.

— Não — respondeu MacMaster. — Tenho a impres­são de que é exatamente aí que começa tudo. Basta obser­var uma gata que tem cria. Quando tem os gatinhos é desatinadamente protetora, arranha qualquer pessoa que queira chegar perto deles. Mas ao fim de uma semana, mais ou menos, ela começa a retomar sua própria vida. Sai, caça um pouco, descansa da ninhada. Ainda continua a protegê-los se alguém os ataca, porém já não está obcecada por eles o tempo todo. Brinca, mas quando eles ficam mais agressivos do que ela gosta, dá-lhes uma boa patada que os informa de que quer ficar sozinha um momento. O que acontece é que ela está revertendo à sua própria na­tureza. À medida que os filhotes crescem, ela se importa menos com eles, seus pensamentos voltam-se cada vez mais para os gatos mais atraentes das redondezas. Isso é o que podemos chamar o esquema normal da vida da fêmea. Eu já vi muita moça, muita mulher de instinto maternal forte, louca para se casar principalmente, muito em­bora elas mesmas não o saibam, por exigência da materni­dade. E os filhos vêm; ficam alegres e satisfeitas. A vida readquire suas perspectivas normais para elas, e podem interessar-se por seus maridos, pelas atividades sociais, pelos mexericos e, muito naturalmente, por seus filhos. O instinto maternal, de forma puramente física, ficou satisfeito.

— Pois muito bem, na Srª Argyle o instinto maternal era muito forte, porém a satisfação física de conceber e dar à luz um filho, ou, vários filhos, nunca chegou. E por isso sua obsessão pela maternidade nunca se atenuou. Ela queria filhos, muitos filhos. Nunca eles seriam o bastante. Toda a sua mente, dia e noite, ficava voltada para aqueles filhos. O marido já não importava mais. Ele se transformou numa abstração agradável que servia de pano de fundo. Não; só os filhos importavam. Suas roupas, sua alimentação, suas brincadeiras, tudo o que se referia a eles. Fazia demais por eles. A única coisa que ela não lhes dava, e da qual realmente precisavam, era um pouco de desatenção, tran­qüila e saudável. Nunca ninguém deixou que eles simples­mente fossem para o quintal brincar, como qualquer criança que mora no campo. Não; não havia aparelho que eles não tivessem, coisas artificiais para se subir e pular, uma cabana construída numa árvore, areia importada para fazer uma pequena praia na beira do rio. A comida deles não era comi­da como a de todo o mundo. Sabe que quase até os cinco anos as verduras daquelas crianças eram passadas na penei­ra, o leite esterilizado, a água filtrada e fervida, as calorias calculadas e as vitaminas computadas? Por favor, lembre-se que não estou infringindo a ética profissional. A Srª Argyle jamais foi minha cliente. Se precisava de médico, ia a espe­cialistas em Londres. Não que fosse muitas vezes. Era uma mulher robusta e saudável. Eu era o médico local que ela chamava para o controle rotineiro das crianças, embora achasse sempre que eu era um pouco casual demais. Eu disse que devia deixar que eles comessem frutas silvestres aí pelo campo. E que não faria mal se de vez em quando molhassem os pés e ficassem resfriados e que febre de 38° em criança não assusta ninguém; só acima de 39° é que co­meça a ser sério. Aquelas crianças foram paparicadas, mi­madas, protegidas e amadas de tal modo que até faz mal a elas.

— Quer dizer que fez mal a Jacko? — perguntou Calgary.

— Bem, não estava pensando só em Jacko. Para mim Jacko já começou errado. O rótulo moderno para ele seria “um guri desajustado”. Serve tão bem quanto qualquer ou­tro. Os Argyles fizeram o melhor que puderam por ele. Já vi muitos Jackos em minha vida. Mais tarde, depois que o rapaz desandou de vez, os pais dizem “Se ao menos eu ti­vesse sido um pouco mais severo com ele em pequeno”, ou então “Eu fui severo demais, devia ter sido um pouco mais brando”. Eu pessoalmente acho que não faria a menor diferença. Alguns se perdem porque tiveram lares infelizes e essencialmente não se sentem amados. Mas há outros que se perdem porque na primeira dificuldade vão-se perder de qualquer maneira. Jacko era da última categoria.

— Quer dizer, então — perguntou Calgary, — que não ficou surpreendido quando o prenderam por assassinato?

— Para ser franco, fiquei. Não que a idéia de assassi­nato parecesse particularmente repugnante a Jacko. Ele é do tipo de jovem destituído de consciência. Porém o tipo de assassinato me surpreendeu. Claro que eu sei que ele era violento, etc. Em pequeno ele muitas vezes se atirava em cima de outra criança, ou batia nela com um brinquedo pe­sado ou um pedaço de pau. Porém geralmente era uma criança menor do que ele e, nas mais das vezes, não era fúria cega, era vontade de ferir ou de agarrar alguma coisa que queria. O tipo de assassinato que eu esperaria de Jacko, se chegasse a isso, era daqueles em que dois rapazolas vão roubar alguma coisa; depois, quando a polícia aparece, os Jackos ficam dizendo “Bate na cabeça, cara! Bate para va­ler! Atira!”. Eles gostam de assassinatos, incitam os assas­sinos, porém não têm coragem de matar pessoalmente, com suas próprias mãos. E afinal — acrescentou o doutor, — parece que eu tinha razão.

Calgary ficou olhando para o tapete, um tapete usado no qual quase que não se podia mais ver o desenho.

— Eu não sabia — disse ele, — o que teria de en­frentar. Não compreendia o que isso significaria para os outros. Não sabia que poderia... que era provável...

O médico acenou delicadamente com a cabeça.

— É — disse ele. — Está parecendo mesmo, não é? Parecendo que vai ser obrigado a endireitar a situação entre eles.

— Tenho a impressão — respondeu Calgary, — que é por isso que vim conversar com o senhor. Não parece existir, à primeira vista, razão pela qual algum deles haveria de querer matá-la.

— Não à primeira vista — concordou o doutor. — Porém quando se olha um pouquinho mais fundo... ah, sem dúvida que então aparecem muitas razões pelas quais alguém poderia ter querido matá-la.

— E quais seriam?

— Sente realmente que seja assunto seu, não sente?

— Creio que sim. Não consigo pensar de outro modo.

— É possível que eu sentisse o mesmo, em seu lu­gar... Não sei. Bem, o que eu diria é que nenhum deles realmente pertencia a si mesmo. Não enquanto sua mãe, bem, usaremos o termo mãe por conveniência, estivesse viva. Não sei se sabe que ela continuava a controlar todos eles.

— De que modo?

— Financeiramente ela já garantira a todos. Dotou-os generosamente. Havia uma renda enorme. Dividida entre eles nas proporções que os administradores julgassem melhor. Porém, muito embora a Srª Argyle não fosse um dos ad­ministradores, seus desejos, enquanto vivesse, tinham muito peso. Ele fez uma pausa antes de continuar.

— É interessante, de certo modo, ver como todos ten­taram escapar, como todos tentaram fugir ao esquema que ela havia planejado para eles. Pois ela havia planejado um esquema, um ótimo esquema. Queria que eles tivessem um lar, boa educação, boa mesada e o suficiente para um bom começo nas profissões que escolhessem. Queria tratá-los exatamente como se tivessem sido filhos dela e de Leo Argyle. Acontece, é claro, que eles não eram filhos dela e de Leo Argyle. Seus instintos, sentimentos, aptidões e exigências eram de outra natureza. O jovem Micky, hoje em dia, vende automóveis. Hester mais ou menos fugiu de casa para entrar para o teatro; apaixonou-se por um péssimo ca­ráter e, como atriz, era o pior possível. Teve de voltar para casa e confessar, contra a vontade, naturalmente, que a mãe tinha razão. Mary Durrant insistiu em se casar, durante a guerra, com um homem com o qual a mãe avisou que ela não deveria casar-se. Era um rapaz corajoso e inteligente, mas um perfeito idiota quando se trata de assuntos comer­ciais. Depois ele pegou poliomielite. Para convalescer, foi trazido para o Recanto do Sol. A Srª Argyle estava pressionando para que eles passassem a morar lá permanente­mente. O marido não fazia qualquer objeção, mas Mary Durrant estava resistindo desesperadamente. Queria ter sua casa e seu marido para si. Porém se a mãe não tivesse mor­rido ela ia acabar tendo de ceder. Micky, o outro rapaz, sempre foi complexado, porque nunca perdoou a mãe ver­dadeira por tê-lo abandonado. Já possuía esse ressentimen­to em pequeno e nunca se livrou dele. Creio que, no fundo, sempre odiou a mãe adotiva. E ainda temos a tal massagista sueca. Não gostava da Srª Argyle. Gostava das crianças e de Leo. Aceitou toda espécie de benefícios feitos pela Sra Argyle e provavelmente tentou sentir-se grata. Mas não con­seguiu. Porém creio que dificilmente sua aversão poderia le­vá-la a atingir a cabeça de sua benfeitora com um atiçador. Afinal, ela poderia ir embora quando quisesse. E quanto a Leo Argyle...

— Exatamente; e quanto a ele?

— Vai casar-se de novo — disse o Dr. MacMaster, — e desejo que seja muito feliz. É uma moça excelente. Coração quente, bondosa, boa companhia e apaixonada por ele há muito tempo. O que sentiria ela pela Srª Argyle? Seu palpite ou o meu valem a mesma coisa. É claro que a morte da Srª Argyle simplificou tudo. Leo Argyle não é o tipo de homem que possa ter um caso com a secretária tendo a mu­lher sob o mesmo teto. E tampouco creio que ele jamais dei­xasse a mulher.

Calgary disse, vagarosamente:

— Já vi os dois; já falei com eles. Não consigo acre­ditar que nenhum dos dois...

— Eu sei — disse MacMaster. — Não se acredita, não é? No entanto... foi alguém naquela casa, sabe?

— Está mesmo convencido?

— Não vejo como se possa pensar qualquer outra coi­sa. A polícia está razoavelmente convencida de que não foi trabalho de fora, e a polícia, de modo geral, está certa.

— Mas qual deles? — indagou Calgary.

MacMaster deu de ombros. — Ninguém sabe.

— Não faz nenhuma idéia, segundo tudo o que sabe a respeito deles?

— Se fizesse não dizia — respondeu MacMaster. — Afinal, que base tenho eu? A não ser que haja algum fa­tor que me tenha escapado, nenhum deles me parece um assassino. No entanto, não tenho o direito de eliminar ne­nhum deles como possibilidade. Não — acrescentou lentamen­te. — Meu palpite é que nunca vamos saber de nada. A polícia vai investigar tudo isso. Vão fazer o que podem, porém conseguir provas depois desse tempo todo e com tão pouco para começar... — Sacudiu a cabeça. — Não, não creio que jamais se venha a saber da verdade. Há muitos casos assim, sabe. Lê-se a respeito deles. Casos acontecidos há cinqüenta ou cem anos, nos quais três ou quatro pessoas podem ter cometido um crime, porém nunca apareceram provas suficientes para que se soubesse qual delas.

— Acredita que neste caso isso aconteça?

— Bem... — respondeu MacMaster, — creio que sim... Novamente lançou um olhar penetrante para Calgary. — Isso é que é terrível, não é?

— É terrível — repetiu Calgary, — por causa dos ino­centes. Foi isso que ela me disse.

— Quem? Quem lhe disse o quê?

— A moça... Hester. Ela disse que eu não compre­endia que o que importava eram os inocentes. É o que o senhor acaba de me dizer, que nunca saberemos...

— Quais são os inocentes? — concluiu o médico para ele. — É. Se ao menos pudéssemos saber a verdade. Mes­mo que não houvesse julgamento ou condenação. Apenas para saber. Porque de outro modo... — interrompeu-se.

— Sim? — perguntou Calgary.

— Responda por si mesmo — disse o Dr. MacMaster. — Não, não precisava ter dito isso; o senhor já encontrou a resposta.

E continuou:

— Lembra-se, sabe, o caso Bravo, que aconteceu há quase cem anos, porém a respeito do qual ainda se escreve. Há quem demonstre de forma muito convincente que foi a mulher quem matou, ou que foi a Srª Cox, ou o Dr. Gully, ou até mesmo que Charles Bravo tomou sozinho o veneno, apesar do que foi declarado no julgamento. São todas teo­rias plausíveis, mas nunca ninguém vai saber da verdade. E por isso Florence Bravo, abandonada por sua família, mor­reu sozinha, de tanto beber, enquanto que a Srª Cox, banida pela sociedade, com seus três filhos, viveu até a velhice com a maior parte das pessoas julgando que era uma as­sassina e o Dr. Gully ficou profissional e socialmente arrui­nado...

— Alguém era culpado e escapou. Porém os outros eram inocentes e não conseguiram escapar.

— Isso não pode acontecer aqui — disse Calgary. — Não pode!

Hester Argyle estava se olhando num espelho. Não havia nada de vaidade em seu olhar. Havia mais uma an­siosa indagação e, por trás dela, a humildade de quem nun­ca fora segura de si. Afastou o cabelo da testa, empurrando-o para um lado, e torceu o nariz para o resultado. Depois, um rosto apareceu por trás do dela no espelho, ela levou um susto, encolheu-se e depois girou o corpo, apre­ensiva.

— Ah — disse Kirsten Lindstrom, — está com medo!

— Medo de quê, Kirsty?

— Está com medo de mim. Acha que venho quieta por trás e talvez bata em sua cabeça para derrubá-la.

— Ora, Kirsty, deixe de ser boba. Claro que eu não ia pensar nada disso.

— Mas pensou — disse a outra. — E com toda a razão pensa assim. Espiar para os cantos escuros, ter susto quando vê coisa que não entende muito bem. Porque existe alguma coisa nesta casa para se ter medo. Todos nós sabe­mos disso.

— Mas pelo menos, Kirsty querida — respondeu Hes­ter, — não preciso ter medo de você.

— Como é que sabe? — perguntou Kirsten Linds­trom. — Eu não li uma vez no jornal que uma mulher, que tinha morado junto com outra durante uma porção de anos, um dia simplesmente matou essa outra. Sufocou-a. E ainda tentou arrancar os olhos da morta. Por quê? Porque, como disse muito tranqüilamente à polícia, já fazia algum tempo que tinha percebido que o diabo estava vivendo dentro da mulher. Ela tinha visto o diabo olhando-a pelos olhos da outra e desde então soube que precisava ser forte e ma­tar o diabo!

— Ora, eu me lembro dessa história! — disse Hester. — Mas aquela mulher estava louca.

— Ah — retrucou Kirsten. — Mas ela não sabia que estava louca. Nem parecia que estava louca, porque ninguém sabia o que se passava em sua pobre mente perturbada. Por isso estou dizendo que você não sabe o que se passa na minha mente. É possível que eu esteja louca. É possível que um dia eu tenha olhado para sua mãe e pensado que ela era o Anticristo e resolvi matá-la.

— Mas, Kirsty, isso tudo é bobagem! Pura bobagem!

Kirsten Lindstrom suspirou e sentou-se.

— Eu sei — confessou ela, — que é bobagem. Eu gostava muito de sua mãe. Ela sempre foi muito boa para mim. Porém o que eu estou tentando dizer a você, Hester, e o que você tem de compreender e acreditar, é que você não pode dizer que nada a respeito de ninguém ou de qual­quer coisa seja “bobagem”. Você não pode confiar em mim nem em mais ninguém.

Hester voltou-se e encarou a sueca.

— Eu acho que você está falando sério — disse ela.

— Muito sério — retrucou Kirsten. — Temos todos de falar muito sério e temos de enfrentar claramente as coisas. Não adianta fingir que não aconteceu nada. O ho­mem que veio aqui... eu queria que não tivesse vindo, mas veio e deixou, pelo que me parece, muito claro que Jacko não foi o assassino. Muito bem; nesse caso, alguma outra pessoa foi o assassino e essa outra pessoa tem de ser um de nós.

— Não, Kirsty, não. Podia ser alguém que...

— Que o quê?

— Bem, que quisesse roubar alguma coisa ou que não gostasse de mamãe por algo que aconteceu no passado.

— E você acha que sua mãe deixaria uma pessoa as­sim entrar?

— É possível — insistiu Hester. — Você sabe como ela era. Qualquer um que contasse uma história com bastante desgraças, que falasse de uma criança faminta ou maltratada, ela ouvia. Você não acha que mamãe deixaria uma pessoa assim entrar na sala dela, para escutar toda a histó­ria?

— A mim não parece muito provável — disse Kirsten. — Pelo menos que sua mãe se sentasse à mesa e deixasse a pessoa agarrar o atiçador para atacá-la pelas costas. Não, ela estava muito à vontade, muito confiante, com quem quer que seja que estivesse lá.

— Não fale assim, Kirsty — gritou Hester. — Por fa­vor, não fale assim. Você está fazendo tudo ficar tão perto da gente!

— Só porque está perto, muito perto. Não vou falar mais nisso agora, mas já a avisei que embora você pense que conhece alguém muito bem, pense que pode confiar em al­guém, não pode ter certeza. Desconfie sempre. Desconfie de mim e de Mary e de seu pai e de Gwenda Vaughan.

— Como é que eu posso continuar a viver aqui se desconfiar de todo o mundo?

— Se quer um conselho meu, é melhor que você deixe esta casa.

— Mas agora eu não posso.

— Por que não? Por causa do jovem doutor?

— Não sei do que é que está falando, Kirsty. — A cor subiu violentamente pelas faces de Hester.

— Estou falando do Dr. Craig. É um bom rapaz. Um médico razoavelmente bom, amável e consciencioso. Podia arranjar outro pior. Mas mesmo assim seria melhor se fosse embora daqui agora.

— Mas tudo isso é ridículo — explodiu Hester, — total e absolutamente ridículo. Como eu desejaria que o Dr. Calgary nunca tivesse aparecido aqui.

— Eu também — disse Kirsten, — de todo o cora­ção.

 

Leo Argyle assinou a última das cartas que Gwenda Vaughan colocou na frente dele.

— Agora acabou? — perguntou ele.

— Acabou.

— Até que o dia rendeu bem.

Após um ou dois minutos, quando Gwenda já tinha acabado de fechar e selar todas as cartas, ela perguntou:

— Não está na hora de você... ir viajar?

— Viajar para onde?

Leo Argyle parecia muito vago. Ela disse:

— Não se lembra que estava para ir a Roma e Siena?

— Ah, é mesmo.

— Ia examinar aqueles documentos do arquivo a res­peito dos quais o Cardeal Massilini lhe escreveu.

— Já me lembrei.

— Você quer que eu faça as reservas de avião ou pre­fere ir de trem? Como se voltasse de algum ponto muito distante, Leo olhou para ela e deu um ligeiro sorriso.

— Está parecendo muito ansiosa por se ver livre de mim, Gwenda.

— Ah, meu querido, não é nada disso.

Ela cruzou até ele e ajoelhou-se junto à sua cadeira.

— Nunca quero que você se afaste de mim nem por um instante. Mas... eu acho... Ora, eu acho que seria melhor que você se afastasse daqui depois... depois...

— Depois da semana passada? Depois do Dr. Calgary?

— Eu queria que ele não tivesse vindo — disse Gwen­da. — Queria que as coisas tivessem ficado como estavam.

— Com Jacko injustamente condenado por alguma coi­sa que não fez?

— Mas que poderia ter feito — disse Gwenda. — Po­deria tê-lo feito a qualquer momento e é puro acidente, es­tou convencida, não ter sido ele.

— É estranho — disse Leo, pensativo. — Eu nunca acreditei realmente que ele o tivesse feito. Quero dizer, na­turalmente que tive de ceder ante as provas, mas sempre me pareceu tão improvável.

— Por quê? Ele não teve sempre um temperamento de fúria?

— Sem dúvida. Batia nas outras crianças. E de pre­ferência menores do que ele. Nunca me pude convencer de que ele seria capaz de atacar Rachel.

— Por que não?

— Porque ele tinha medo dela — respondeu Leo. — Você sabe que ela tinha grande autoridade. E Jacko era sensível a isso, como todo o mundo mais.

— E você não acha — retrucou Gwenda, — que jus­tamente por isso... quero dizer... — Ela parou.

Leo olhou-a, indagador. Alguma coisa no seu olhar fê-la enrubescer violentamente. Ela se virou para longe dele, foi até à lareira e ajoelhou-se com as mãos para as chamas. — É — disse ela, para si mesma, — Rachel tinha enorme autoridade. Tão contente consigo mesma, tão segura de si, era a rainha que mandava em todos nós. Será que isso não dá para alguém ter vontade de agarrar um atiçador e bater nela, para fazer com que se calasse de uma vez por todas? Rachel sempre tinha razão, Rachel sempre sabia o que de­via ser feito, todos sempre acabavam fazendo o que Rachel queria.

Ela se levantou abruptamente.

— Leo — disse ela. — Será que... será que nós não podíamos casar-nos agora, ao invés de esperar até março?

Leo olhou-a em silêncio por um instante, depois res­pondeu:

— Não, Gwenda, não podemos. Não creio que fosse boa idéia.

— Por que não?

— Eu acho que seria uma pena... precipitar as coisas.

— O que é que você quer dizer com isso?

Ela foi até ele. Novamente ajoelhou-se ao seu lado.

— O que é que você está querendo dizer, Leo? É preciso que me diga.

— Minha querida, eu só acho que nós não devemos, como eu disse, precipitar as coisas.

— Mas nós vamo-nos casar em março, como planeja­mos?

— Eu espero que sim... espero que sim.

— Mas não fala como se tivesse certeza... Leo, você não gosta mais de mim?

— Ora, minha querida — as mãos dele pousaram nos ombros dela, — é claro que gosto. Você é tudo para mim.

— Pois então... — disse Gwenda, impaciente.

— Não. — Ele se levantou. — Não, ainda não. Temos de esperar. Temos de ter certeza.

— Certeza de quê?

Ele não respondeu e ela disse:

— Você não pensa... não pode pensar...

Leo cortou: — Eu não penso nada.

A porta abriu-se e Kirsten Lindstrom entrou com uma bandeja que colocou em cima da escrivaninha.

— Aí está seu chá, Sr. Argyle. Quer que eu traga ou­tra xícara para você, Gwenda, ou vai tomar com os outros, lá embaixo?

— Eu vou descer. Vou levar estas cartas, que eu pre­ciso postar.

Com mãos ligeiramente trêmulas Gwenda apanhou as cartas que Leo Argyle acabara de assinar e saiu da biblio­teca levando-as. Kirsten Lindstrom acompanhou-a com o olhar, depois voltou os olhos para Leo.

— O que foi que o senhor disse a ela? O que foi que fez para ela ficar assim aflita?

— Nada — respondeu Leo. Sua voz estava cansada. — Não disse nada.

Kirsten Lindstrom deu de ombros. Depois, sem dizer mais nada, saiu da sala. Mas sua crítica, ausente e silen­ciosa, continuava a ser sentida. Leo suspirou, recostando-se em sua cadeira. Sentia-se muito cansado. Serviu-se de chá, porém não o bebeu. Ao invés, ficou sentado quieto, com os olhos perdidos e a mente ocupada com o passado.

 

O clube de recuperação social naquele subúrbio pobre de Londres, onde costumava ir... Tinha sido lá que co­nhecera Rachel Konstan. Via-a claramente em sua imagi­nação, uma moça de estatura média, usando sem qualquer elegância roupas que, naquele tempo, ela não compreendera serem caríssimas. Uma moça de rosto redondo, séria, cheia de calor humano, cujo empenho e ingenuidade o haviam atraído. Havia tanta coisa por fazer, tanta coisa que valia a pena fazer! Ela falava com ardor e com os pensamentos meio caóticos e, em seu coração, ele se sentira tocado por ela. Pois ele, também, achava que havia muito por fazer, muito que valia a pena fazer, apesar de existir nele uma dose inata de ironia que o fazia duvidar que esse trabalho que precisava ser feito alcançasse sempre o sucesso desejá­vel. Mas Rachel não tinha dúvidas. Se se fizesse isto ou aquilo, e tal instituição recebesse fundos adequados, os resultados positivos seriam automáticos.

Ele compreendia agora que ela nunca deixara qualquer margem para a natureza humana. Sempre encarou as pes­soas como casos, como problemas a serem solucionados. Nunca havia percebido que cada ser humano era diferente do outro, possuía suas idiossincrasias. Ele havia dito a ela então, lembrava-se bem, que não esperasse muito. Porém ela sempre esperara demais e, por isso mesmo, sempre ficara desapontada. Ele se havia apaixonado por ela muito rapida­mente e ficara agradavelmente surpreendido ao descobrir que ela era filha de pais ricos.

Haviam planejado sua vida em comum na base dos mais altos princípios morais e sem qualquer preocupação de economia. Porém ele ainda via agora, com clareza, o que o havia atraído para ela desde o início: o calor de seu co­ração. Entretanto — e nisso residia toda a sua tragédia, — esse calor não se havia concentrado nele. Claro que ela o amara. Porém o que ela realmente havia querido dele e da vida eram filhos. E os filhos não vieram.

Começaram a ir a médicos, dos famosos aos infames e aos charlatões, porém por fim ela havia sido forçada a aceitar o veredicto. Jamais teria um filho. Ele sentira muita pena dela, muita pena mesmo, e concordara com a melhor boa vontade com a sugestão de que deveriam adotar uma criança. Já estavam em contato com várias organizações de adoção quando certo dia, em Nova York, seu carro atro­pelou uma criança que corria para o meio da rua num dos bairros mais pobres da cidade.

Rachel saltara feito louca do carro, logo verificando que a criança estava só arranhada, não estava machucada. Era uma menina bonita, de cabelos louros e olhos azuis. Ra­chel insistiu em levá-la a um hospital para certificar-se de que estava tudo bem e entrevistou a família da menina, cons­tituída por uma tia desleixada e um tio obviamente bêbado. Estava claro que pouco se importavam com a sobrinha que viera morar com ele depois da morte dos pais. Rachel su­geriu que a menina passasse uns dias com eles e a tia ficou contentíssima.

— Aqui não se pode tomar conta dela direito — ex­plicou.

E assim Mary tinha sido levada para o hotel onde es­tavam. A criança adorou a cama macia e o banheiro de luxo. Rachel comprou roupas novas para ela. Até que che­gou o momento em que a menina disse:

— Eu não quero voltar para casa. Quero ficar com vocês.

Rachel havia olhado para ele, um olhar de repentina paixão, compaixão e prazer. Assim que ficaram a sós ela disse:

— Vamos ficar com ela. É fácil de resolver. Podemos adotá-la. Vai ser nossa filha. Aquela mulher vai ficar contentíssima de se livrar dela.

Ele concordou com facilidade. A criança parecia quieta, bem educada, dócil. Era óbvio que não sentia nada pelos tios com quem vivia. Se Rachel ficava feliz com isso, en­tão era o melhor. Advogados foram consultados, papéis fo­ram assinados e daí em diante Mary O’Shaughnessy passou a ser conhecida como Mary Argyle, partindo em seguida para a Europa com eles. Ele pensou que finalmente a pobre Rachel ficaria feliz. E ela ficou realmente feliz, com uma felicidade excitada e febril, deslumbrada com Mary, dando-lhe todos os presentes mais caros que podia haver. E Mary aceitando, plácida e docemente. No entanto, pensava Leo, sempre houvera alguma coisa que o perturbava. A perfeita aquiescência da menina. Sua total falta de lembrança ou saudade em relação à sua casa e sua gente. Era possível que uma verdadeira afeição aparecesse mais tarde. No momento não via qualquer sinal dela. Aceitação de benefícios, complacência, gozo do que lhe era dado, tudo isto podia notar. E amor por sua nova mãe adotiva? Isso ele jamais conseguiu ver.

Foi a partir daquele momento, pensou Leo, que ele discretamente passou apenas a fazer parte do pano de fun­do da vida de Rachel Argyle. Ela era essencialmente do tipo de mulher que nasceu mãe e não esposa. Com a aqui­sição de Mary parecia que seus instintos maternos não ti­nham sido atendidos e sim, apenas, estimulados. Uma cri­ança não bastava.

Todas as suas atividades passaram, a partir de então, a serem ligadas a crianças. Interessava-se por orfanatos, por fundos para crianças aleijadas, casos de crianças retardadas, espáticas, estropiadas, sempre crianças. Era admirável! Ele nunca deixou de sentir por ela a maior admiração, mas re­conhecia que aquilo, agora, é que era o centro de sua vida. Aos poucos, ele começou a retomar suas próprias atividades. Começou a aprofundar-se cada vez mais no estudo históri­co da economia, que sempre o interessara. Fechou-se cada vez mais em sua biblioteca. Dedicou-se à pesquisa, à composição de pequenos ensaios de fraseado impecável. A mu­lher, ocupada, envolvida, feliz, dirigia a casa e ampliava suas atividades. Ele era cortês e cordato. Ele a encorajava. “Que projeto interessante, querida.” “Sim, sim, creio que vale a pena fazer isso.” Ocasionalmente, permitia-se uma cuidadosa advertência: “Creio que deveria examinar a situa­ção com muito cuidado antes de se comprometer. Não se deixe levar por entusiasmos.”

Ela continuava a consultá-lo, porém cada vez mais por um mero formalismo. À medida que o tempo ia passando ela ia-se tornando mais e mais autoritária. Sabia que estava certa, sabia o que era melhor fazer. Com perfeita cortesia ele passou a omitir suas críticas ou ocasionais ad­moestações. Parecia-lhe que Rachel não precisava da ajuda dele, nem de seu amor. Ela estava ocupada, feliz, cada vez mais cheia de energia.

Porém, além da mágoa que lhe foi possível deixar de sentir, apareceu também, estranhamente, um sentimento de piedade por ela. Era como se ele soubesse que o caminho que ela havia escolhido podia ser perigoso.

Com o início da guerra em 1939 as atividades da Srª Argyle redobraram. Assim que teve a idéia de abrir uma creche de guerra para crianças das favelas londrinas, come­çou a entrar em contato com pessoas importantes no gover­no. O Ministério da Saúde estava pronto a cooperar e ela começou a procurar — e encontrou — uma casa adequada aos seus objetivos. Era uma casa nova e moderna num can­to remoto da Inglaterra que dificilmente seria bombardeado. Poderia tomar até um máximo de dezoito crianças, entre dois e sete anos. As crianças vinham de lares não só pobres mas, também, problemáticos. Eram órfãos, ou filhos ilegí­timos de mães que não tinham nenhuma intenção de serem evacuadas e estavam cansadas de ter de tomar conta deles. Crianças de lares onde haviam sido maltratadas ou negligenciadas. Três ou quatro eram aleijadas. Para o tratamento ortopédico havia contratado uma equipe de empregados do­mésticos, uma massagista sueca e duas enfermeiras diploma­das. Todo o projeto foi realizado em base não só confor­tável mas, efetivamente, luxuosa. Em certa ocasião ele a ha­via advertido!

— É preciso que não se esqueça, Rachel, que essas crianças terão de voltar para o mundo do qual vieram. É preciso que você não torne essa volta excessivamente difícil.

Ela respondeu com calor:

— Nada é bom demais para essas pobres coisinhas! Nada!

Ele insistiu: — Eu sei, porém eles terão de voltar; não se esqueça. Ela se recusara a aceitar a idéia. — Pode ser que não tenham. Pode ser que... ora, depois nós vemos isso.

As exigências da guerra em pouco trouxeram algumas mudanças. As enfermeiras diplomadas, inquietas de ficarem a tomar conta de crianças perfeitamente saudáveis, quando havia tanta gente precisando realmente delas, tinham de ser substituídas com freqüência. No fim, só restaram uma en­fermeira idosa e Kirsten Lindstrom. A equipe doméstica tam­bém desapareceu e então a solução fora Kirsten Lindstrom, que trabalhava com afinco e desprendimento.

E Rachel Argyle estava ocupada e feliz. Tinha havido, Leo lembrava-se, alguns momentos de perplexidade, como no dia em que Rachel, sem compreender por que um menininho, Micky, estava sempre emagrecendo, resolveu chamar o médico. Este não constatara qualquer doença, porém su­gerira à Srª Argyle que a criança podia estar sentindo sau­dades de casa. Ela recusou imediatamente a sugestão.

— É impossível! O senhor não imagina o que era a casa dele. Ele era maltratado, sacrificado. Deve ter sido horrível para ele.

— Mesmo assim — respondera o Dr. MacMaster, — mesmo assim, eu não ficaria surpreendido. O importante se­ria fazê-lo falar.

E, um dia, Micky havia falado. Soluçando na cama ele gritava, empurrando Rachel com as duas mãos:

— Eu quero ir para casa. Quero ir ver mamãe e Ernie.

Rachel ficou muito preocupada, porém quase incrédula.

— Ele não pode querer a mãe. Ela nem se importava com ele. Espancava o coitado cada vez que se embriagava.

E Leo explicou, com suavidade:

— Mas você está lutando com a natureza, Rachel. Ela é mãe dele e ele a ama.

— Ela não é mãe que preste!

— Ele é carne da carne dela. É isso que ele sente. Nada substitui esse tipo de emoção.

Ao que Rachel respondeu: — Mas a esta altura ele já devia pensar em mim como sendo a mãe dele.

Pobre Rachel, pensou Leo. Pobre Rachel, que podia comprar tanta coisa... não por egoísmo, não coisas para ela. Ela deu àquelas crianças amor, dedicação, um lar. Tudo o que podia comprar para elas, comprava; mas não podia, com isso, comprar o seu amor.

E então a guerra acabou. As crianças começaram a vol­tar para Londres, a pedido de suas famílias. Mas nem to­das. Algumas não tinham ninguém que as quisesse e foi então que Rachel disse:

— Sabe, Leo, agora é como se fossem nossos filhos. Chegou o momento de termos uma verdadeira família. Qua­tro, cinco dessas crianças podiam ficar conosco. Nós as adotamos, cuidamos delas e elas realmente serão nossas.

Ele sentira uma vaga inquietação, não sabia bem por quê. Não era que fizesse qualquer objeção às crianças; an­tes sentia a falsidade da situação. Era falso achar que se torna uma família realmente nossa por meios artificiais.

— Não crê — perguntou ele, — que seria um tanto arriscado?

Ela retrucou: — Arriscado? Que tem isso? Vale a pena arriscar.

Ele também achava que valia a pena; apenas, tinha me­nos certeza do que a mulher. A essa altura ele tinha-se afas­tado tanto, se fechado de tal modo em seu nebuloso mundo particular, que não tinha mais condições para objetar. Dis­se, como dizia tantas e tantas vezes: — Como você prefe­rir, Rachel.

Ela ficara triunfante, transbordante de felicidade, fazen­do planos, consultando advogados, atendendo a tudo com sua habitual eficiência. E fora assim que ela havia adquirido sua família: Mary, a mais velha, trazida de Nova York; Micky, o menino que chorava à noite de saudades de casa, sentindo falta de sua favela e de sua mãe desleixada e mal-humorada; Tina, a graciosa mestiça cuja mãe era prostituta e o pai um embarcadiço hindu; Hester, nascida de uma jovem irlandesa que tivera essa filha ilegítima e queria reco­meçar a vida; e, finalmente, Jacko, o encantador menino com carinha de macaco que fazia todo mundo rir com suas travessuras, que sempre dava um jeitinho para escapar de castigos merecidos ou para conseguir que a duríssima Sr.ta Lindstrom lhe desse os doces escondidos. O pai de Jacko estava cumprindo pena na prisão e a mãe havia fugido com outro homem.

Sim, pensava Leo, valia a pena pegar essas crianças e dar-lhes as vantagens de um lar e do amor de um pai e uma mãe. Sim, Rachel tinha razão de se sentir triunfante. Só que as coisas não haviam funcionado como era de se es­perar... Porque as crianças não eram realmente os filhos que ele e Rachel teriam. Em nenhuma delas corria o sangue dos laboriosos e econômicos antepassados de Rachel, nem a energia e a ambição que fizera os membros menos respei­táveis de sua família conquistar um lugar seguro na socie­dade. Não havia nelas a vaga bondade ou a integridade que ele lembrava em seu pai e seus avós, nem o brilho in­telectual de seus avós maternos.

Tudo que o meio-ambiente poderia fazer foi feito por elas. E se ele podia fazer muito, não podia fazer tudo. Exis­tiam naqueles meninos as sementes de fraqueza que haviam sido responsáveis por sua presença na própria creche e, sob tensão, tais sementes podiam florescer. O perigo ficava par­ticularmente bem exemplificado em Jacko, o menino ágil e encantador, com seus ditos alegres, seu jeitinho especial, seu permanente hábito de conquistar a todos, que era es­sencialmente um tipo delinqüente. Ele se revelou desde cedo em pequenos roubos, em mentiras, para os quais sem­pre foram encontradas desculpas em sua vida anterior. Eram coisas que o tempo consertaria, julgava Rachel. Mas o tem­po nunca as consertou.

Sua ficha escolar fora péssima. Foi eliminado da uni­versidade e, a partir de então, houve uma série de penosos incidentes nos quais ele e Rachel, fazendo do seu melhor, tentavam dar ao menino a garantia de seu amor e confiança, tentavam encontrar para ele um trabalho no qual se iden­tificasse e no qual pudesse ser bem sucedido, caso se em­penhasse. Era possível, pensava Leo, que tivessem sido muito lenientes para com ele. Mas não adiantava. Estava conven­cido de que, fossem eles lenientes ou severos, no caso de Jacko os resultados teriam sido sempre os mesmos. Tinha de conseguir tudo o que queria. O que não podia obter por meios legítimos, estava perfeitamente pronto a obter por quaisquer outros. Não era suficientemente esperto para ser bem sucedido no crime, nem ao menos em crimes menores. E assim fora até chegar aquele dia em que havia aparecido, sem um tostão, com medo de ir preso, exigindo furiosa­mente dinheiro, como se ele fosse seu, fazendo ameaças. Tinha ido embora gritando que voltaria e que era bom ela estar com o dinheiro pronto para ele... senão!...

E assim Rachel morrera. Como todo o passado lhe pa­recia remoto. Todos aqueles anos, com os meninos e as meninas crescendo. E quanto a ele mesmo? Também pare­cia esmaecido, incolor. Era como se toda a energia e ale­gria de Rachel o tivessem corroído, deixando-o inerte e exausto, profundamente necessitado de calor humano e amor.

Mesmo agora era com muita dificuldade que conseguia lembrar-se de quando tomara consciência de que ambas as coisas estavam muito perto dele. Muito perto... Jamais sendo oferecidas, porém presentes.

Gwenda... A secretária perfeita e solícita, sempre tra­balhando para ele, sempre à sua disposição, sempre bondo­sa, sempre ajudando. Havia qualquer coisa nela que lhe lembrava Rachel tal como ela fora quando ele a conheceu. O mesmo calor, o mesmo entusiasmo, a mesma riqueza emo­cional. Só que no caso de Gwenda todo o calor, todo o entusiasmo, toda a emoção eram para ele. Não para filhos hipotéticos que um dia lhe pudesse dar, mas para ele, só para ele. Foi como esquentar as mãos junto ao fo­go... Mãos geladas e enrijecidas pela falta de uso. Quando teria compreendido pela primeira vez o que ela sentia por ele? Era difícil de dizer. Não tinha sido uma revelação re­pentina.

Porém subitamente, certo dia, ele havia tomado cons­ciência de que a amava.

E entendeu, igualmente, que, enquanto Rachel vivesse, eles jamais se poderiam casar.

Leo suspirou, sentou-se mais erecto na cadeira e sorveu seu chá completamente gelado.

Só fazia alguns minutos que Calgary saíra quando o Dr. MacMaster recebeu uma outra visita. Esta, no entanto, ele conhecia muito bem e recebeu com grande afeição.

— Ora, Don, mas que prazer. Entre e conte-me qual é o problema. Já vi que alguma coisa o preocupa. Sempre sei que há problemas quando vejo sua testa assim franzida.

O Dr. Donald Craig deu-lhe um sorriso tristonho. Era um rapaz sério e de boa aparência que levava a sério tanto a si mesmo quanto ao seu trabalho. O velho médico aposen­tado gostava muito de seu jovem sucessor, muito embora houvesse ocasiões em que desejasse que o Dr. Craig tivesse um pouco mais de facilidade em perceber uma piada.

Craig recusou a sugestão de uma bebida e entrou direto no assunto.

— Estou muito preocupado, Mac.

— Espero que não seja uma nova deficiência de vita­minas — respondeu o Dr. MacMaster, para quem a defi­ciência de vitaminas sempre fora uma boa piada. Certa vez fora necessário que aparecesse um veterinário para que o jovem Craig percebesse que o gato de uma criança estava com vermes.

— Não é nada relacionado à clínica — respondeu Craig. — Trata-se de assunto particular.

O rosto de MacMaster alterou-se imediatamente.

— Sinto muito, meu rapaz. Muito, mesmo. Teve más notícias?

O rapaz sacudiu a cabeça.

— Não é isso. É... escute aqui, Mac, eu tenho de conversar com alguém sobre isso e você conhece todos eles, você vive aqui há anos, sabe tudo a respeito deles. E eu também tenho de saber. Tenho de saber qual é a minha situação e o que vou ter de enfrentar.

As fartas sobrancelhas de MacMaster subiram-lhe vagarosamente pela testa.

— Qual é o problema? — perguntou ele.

— São os Argyles. Você sabe, acho que todo o mun­do sabe, que Hester Argyle e eu...

O velho médico acenou com a cabeça.

— Namoro firme — disse ele em tom de aprovação. -— Eu sei que a expressão está fora de moda, mas eu acho ótima.

— Eu estou tremendamente apaixonado por ela — continuou Donald com simplicidade, e eu acho... não, te­nho a certeza que ela também me ama. E agora acontece tudo isso!

— Ah, sei! O perdão integral de Jacko Argyle. Um perdão integral que, para ele, não adianta mais nada.

— Isso mesmo. E é exatamente isso que me faz pen­sar, e eu sei que é completamente errado pensá-lo, mas sinto do mesmo modo, que teria sido melhor se... se essas no­vas provas não tivessem aparecido.

— Ora, você não é o único a pensar assim! — disse MacMaster. — Pelo que sei, todos sentem a mesma coisa, desde o Inspetor-chefe, passando pela família Argyle e aca­bando com o pobre coitado que chegou da Antártida e trou­xe as novidades. E acrescentou:

— Ele esteve aqui ainda hoje à tarde.

Donald Craig pareceu espantado.

— Esteve? E disse alguma coisa?

— O que é que você esperava que ele dissesse?

— Ele tem alguma idéia de quem...

Lentamente o Dr. MacMaster sacudiu a cabeça.

— Não — retrucou. — Não tem idéia. Como poderia ter, aparecendo assim, quase por milagre e jamais tendo visto nenhum deles anteriormente? O que parece — conti­nuou, — é que ninguém tem a menor idéia.

— Não. Acho que não, mesmo.

— O que é que o está preocupando tanto, Don?

Donald Craig respirou fundo.

— Hester me telefonou na noite em que esse tal Calgary foi lá. Nós íamos a Drymouth, depois que eu saísse do hospital, para ouvir uma conferência a respeito de per­sonagens de tipo delinqüente em Shakespeare.

— Parece-me uma coincidência muito feliz — disse MacMaster.

— E aí ela me telefonou. Disse que não podia ir. Disse que tinham recebido notícias de natureza particular­mente perturbadora.

— Ah; as do Dr. Calgary.

— Isso. Muito embora ela não o mencionasse, no mo­mento. Porém estava muito perturbada.

Parecia... não sei nem explicar o que parecia.

— É o sangue irlandês — disse MacMaster.

— Parecia totalmente arrasada, apavorada. Nem sei como explicar.

— Bom, e o que é que você esperava? — perguntou o médico. — Ela ainda não tem vinte anos, tem?

— Mas por que é que ela está assim tão aflita? Estou-lhe dizendo, Mac, aquela menina está apavorada com algu­ma coisa.

— Hum, sim; é possível. Acho que é possível — disse MacMaster.

— Você acha... o que é que você acha?

— É mais importante — salientou MacMaster — saber o que você acha.

O rapaz respondeu com amargura.

— Eu suponho que, se não fosse médico, jamais me lembraria de pensar nesse tipo de coisa. Ela sendo minha namorada não poderia jamais fazer nada errado. Porém, sendo as coisas como são...

— Vamos, continue; é melhor botar logo para fora.

— Quero que compreenda que eu tenho um bom sen­tido do que se passa na mente de Hester. Ela sofre de in­segurança desde a infância.

— Eu sei — disse MacMaster. — Esse é o rótulo, hoje em dia.

— Nunca teve a oportunidade de se tornar uma pessoa perfeitamente integrada. Estava sofrendo, na época do cri­me, de um tipo de emoção perfeitamente normal nas ado­lescentes, o da contestação de autoridade, que era a ma­nifestação de seu desejo de se livrar da sufocação materna que é responsável por tantos danos emocionais. Queria re­belar-se, ir embora daqui. Tudo isso ela me contou. Então fugiu e se juntou a uma companhia teatral de quarta classe. Nas circunstâncias, tenho a impressão de que a mãe teve um comportamento bastante razoável. Sugeriu que Hes­ter fosse para Londres e estudasse para ser atriz numa boa escola, se era isso que ela queria fazer na vida. Mas não era o que Hester queria fazer. A fuga fora apenas um gesto. Não queria realmente se preparar para uma carreira no pal­co, não queria levar a profissão a sério. Só queria mostrar que podia viver sozinha. Seja como for, os Argyles não interferiram. Passaram a dar-lhe uma excelente mesada.

— Muito inteligente da parte dela — comentou Mac­Master.

— E então ela se afundou num caso muito ridículo com um ator de meia idade que trabalhava na mesma com­panhia. No fim, descobriu sozinha que ele não prestava. A Srª Argyle apareceu e liquidou com ele, voltando Hester para casa.

— Tendo aprendido sua lição, como costumavam dizer quando eu era jovem — disse MacMaster. — Mas só que ninguém gosta de aprender suas lições assim. Hes­ter por certo que não gostou.

Donald Craig continuou, perturbado:

— Continuava saturada de ressentimento reprimido; agravado pelo fato de ter de admitir secreta ou aber­tamente, que a mãe tinha tido toda a razão, que ela era péssima atriz e tinha desperdiçado seus sentimentos com um homem que não a merecia. E de quem, além do mais, ela não gostava, realmente. Dizer “mamãe tinha razão” é sem­pre irritante para os jovens.

— Eu sei — disse MacMaster. — Esse era um dos problemas da pobre Srª Argyle, muito embora ela jamais tenha tido a idéia de encará-lo nesses termos. O fato é que quase sempre ela tinha razão e estava certa. Se tivesse sido uma dessas mulheres que se endividam, perdem as cha­ves, perdem trens e fazem coisas idiotas que os outros têm de ajudar a consertar, toda a família teria gostado muito dela. Eu sei que é triste e cruel, mas a vida é assim. E ela não era suficientemente inteligente para conseguir o que queria por artimanhas. Era complacente, sabe, segura de si. Satisfeita com o poder que tinha, com seu critério em usá-lo e muito segura de si. É uma coisa muito difícil de enfren­tar quando se é jovem.

— Ah, eu sei — afirmou Donald Craig. — Compre­endo tudo isso, e é porque compreendo tão bem que sin­to... que me pergunto... Ele parou.

MacMaster disse, com muita delicadeza:

— É melhor que eu diga por você, não é? Você está com medo que tenha sido Hester quem ouviu a briga entre a mãe e Jacko, que ela tenha ficado excitada com o que ouviu e, num acesso de rebelião contra a autoridade, contra a superioridade e onisciência da mãe, tenha entrado lá, pe­gado o atiçador e matado a Srª Argyle. É disso que você está com medo, não é?

O rapaz concordou com a cabeça, arrasado.

— Não é bem assim. Não creio realmente nisso, mas sinto que é uma coisa que poderia ter acontecido. Não acho que Hester tenha o equilíbrio, a maturidade para... acho que ela é imatura para a idade, insegura e dada a rompantes. Eu examino toda a família e não consigo achar que nenhum deles tenha possibilidade de fazer uma coisa daquelas até pensar em Hester. E aí... aí não tenho mais certeza de nada.

— Percebo, disse o Dr. MacMaster. — Agora eu per­cebo.

— Não que eu a culpe, realmente — continuou rapi­damente o Dr. Craig. — Não creio que a pobre menina sou­besse realmente o que estava fazendo. Não consigo dizer que é assassinato. Não passou de um ato de desafio emo­cional, de rebelião, de sede de liberdade, nascido da con­vicção de que ela jamais seria livre... enquanto a mãe não desaparecesse.

— O que sem dúvida era verdade — rebateu MacMas­ter. — É o único motivo que poderemos encontrar e é um motivo muito esquisito. Não é o tipo de coisa que tenha muito peso aos olhos da lei. Querer ser livre. Livre do im­pacto de uma personalidade mais forte. Só porque nenhum deles herda muito dinheiro com a morte da Srª Argyle a lei nem admite que eles pudessem ter motivos. Mas até mes­mo o controle financeiro, tenho a impressão, estava em boa parte nas mãos da Srª Argyle, dada a sua ascendência so­bre os administradores. Não tenho dúvida de que sua mor­te os libertou. E não só a Hester, meu rapaz: deixou Leo livre para casar com outra mulher; deixou Mary livre para cuidar do marido como gosta; deixou Micky livre para vi­ver sua vida do jeito que escolheu. Até a discretíssima Tina, em sua biblioteca, pode ter encontrado a liberdade.

— Eu tinha de vir conversar com você — disse Donald. — Tinha de saber o que você achava, se pensava que... podia ser verdade.

— Quanto a Hester?

— É.

— Eu acho que podia ser verdade — disse MacMaster lentamente. — Não tenho qualquer convicção de que seja verdade.

— Acredita que pudesse ter acontecido assim como eu disse?

— Sim. Creio que o que imaginou não é fantasiado e que inclui alguns elementos de probabilidade. Mas não há a menor certeza no que diz, Donald.

O rapaz estremeceu com um suspiro.

— Mas eu preciso ter certeza, Mac. É a única coisa que eu acho necessário. Eu tenho de saber. Se a Hester me disser, se ela me disser pessoalmente... então está tudo bem. Nós nos casaremos assim que for possível. Eu tomarei conta dela.

— Ainda bem que o Inspetor Huish não está aqui para ouvi-lo — disse MacMaster secamente.

— De modo geral eu respeito a lei — afirmou Donald, — mas você sabe muito bem, Mac, como as provas psico­lógicas são tratadas nos tribunais. Do meu ponto de vista trata-se de um terrível acidente, não de assassinato preme­ditado, ou nem sequer de assassinato por privação dos sen­tidos.

— Você está apaixonado pela moça — respondeu Mac­Master.

— Lembre-se que estou dizendo tudo isso na mais es­trita confiança.

— Foi o que pensei — respondeu MacMaster.

— Eu só estou dizendo que, se Hester me contar e eu souber, nós dois vamos superar a coisa juntos. Mas é preciso que ela me diga. Não posso passar a vida sem sa­ber.

— Quer dizer que não está disposto a casar com ela à sombra dessa possibilidade?

— Você estaria, se estivesse em meu lugar?

— Não sei. No meu tempo, se acontecesse comigo e eu estivesse apaixonado pela moça, provavelmente ficaria convencido de que ela era inocente.

— O que importa não é tanto a inocência ou a cul­pabilidade, mas sim o fato de eu precisar saber.

— E se ela de fato matou a mãe, você está perfeita­mente pronto a casar-se com ela e viver feliz para todo o sempre, como dizem por aí?

— Estou.

— Nem pense nisso! — exclamou MacMaster. — Vai passar a vida pensando se o gosto amargo que sentiu no café é do café mesmo, ou verificando se o atiçador da sua lareira é suficientemente pesado. E ela vai perceber o que você está pensando. Não dá...

— Estou certo, Marshall, que compreende muito bem minhas razões para pedir-lhe que viesse até aqui para ter­mos este encontro.

— Sem dúvida — respondeu Marshall. — O fato é, Sr. Argyle, que se o senhor não o tivesse sugerido eu mes­mo teria pedido para vir. A notícia está em todos os jornais da manhã de hoje e sem dúvida isso conduzirá a um recrudescimento do interesse da imprensa pelo crime.

— Já recebemos vários telefonemas de pedidos de en­trevistas — disse Mary Durrant.

— Sem dúvida e, devo dizer, já era de se esperar. Su­giro que todos tomem a posição de afirmar que não têm nada a declarar. Naturalmente e6tão encantados e gratos, porém preferem não discutir o caso.

— O Inspetor Huish, que esteve encarregado do caso na época, pediu para vir entrevistar-nos amanhã de manhã — disse Leo.

— Sei. Sim, temo que terá de ocorrer a reabertura do caso, muito embora não pense que a polícia possa ter mui­tas esperanças de chegar a quaisquer resultados concretos. Afinal, já se passaram dois anos e qualquer coisa que al­guém pudesse lembrar-se naquele tempo, quero dizer, al­guém na aldeia, já terá sido esquecida. Claro que sob al­guns aspectos é lamentável; mas não vejo nenhuma saída.

— A coisa toda me parece muito clara — disse Mary Durrant. — A casa estava toda trancada por medida de precaução contra ladrões; porém se alguém tivesse aparecido para pedir alguma coisa a mamãe para algum caso triste, ou fingindo ser amigo seu, não tenho a menor dúvida de que ela o teria deixado entrar. É isso que deve ter aconte­cido. Papai sempre imaginou ter ouvido a campainha tocar um pouco depois das sete horas.

Marshall volveu um olhar indagador para Leo.

— Claro que eu disse isso — falou Leo. — Claro que não me lembro muito bem, agora, porém, na época, eu ti­nha a impressão de que tinha ouvido a campainha. Quando me preparava para descer, julguei ouvir a porta abrir e fe­char. Não houve qualquer ruído de vozes que pudesse su­gerir que alguém estivesse forçando a entrada ou se com­portando de forma inconveniente. Esse tipo de coisa eu teria ouvido, creio.

— Pois não, pois não — anuiu o Sr. Marshall. — Sim, creio que não há dúvida de que isso é o que deve ter acon­tecido. Infelizmente sabemos... e como! o quanto é grande o número de pessoas destituídas de princípios que conse­guem introduzir-se numa casa com a desculpa de alguma trágica história de sofrimentos e que, uma vez do lado de dentro, agridem quem os admitiu para roubar o dinheiro que encontrarem. Sim, creio que agora teremos de pressupor que foi isso que aconteceu.

Seu tom de voz era um pouco excessivamente persuasivo. Ele passou os olhos pelo pequeno grupo enquanto fa­lava, reparando detalhadamente em cada um e rotulando-os cuidadosamente em seu meticuloso cérebro. Mary Durrant, bonitona, sem imaginação, imperturbável, até um pouco dis­tante, aparentemente muito segura de si. Atrás dela, em sua cadeira de rodas, seu marido. Philip Durrant é um rapaz in­teligente, pensou Marshall. Um homem que poderia ter feito muita coisa e ido longe, se não fosse por seu péssimo julga­mento em questões de negócios. Não parecia, pensou, ver as coisas com a mesma serenidade que a mulher. Seus olhos estavam alertas e pensativos. Parecia compreender melhor do que ninguém as implicações da situação. É claro, no entanto, que Mary Durrant podia não estar tão calma quanto parecia. Tanto em criança quanto depois de grande sempre soubera ocultar perfeitamente bem seus sentimentos.

Quando Philip Durrant se mexeu ligeiramente em sua cadeira, com os olhos brilhantes e inteligentes a observar o advogado com um toque de ironia, Mary virou a cabeça ra­pidamente. O olhar de total adoração que lançou ao marido quase que assustou o advogado. Já sabia, naturalmente, que Mary Durrant era uma esposa devotada, porém fazia tanto tempo que a considerava uma pessoa calma, desapaixonada, sem afeições ou aversões fortes, que se sentiu surpreendido com a repentina revelação. Quer dizer que era assim que ela se sentia a respeito dele, então? Enquanto que Philip Durrant parecia um tanto constrangido. Apreensivo, quanto ao futuro. E com muita razão!

Em frente ao advogado estava Micky. Jovem, bonito, amargo. Por que haveria ele de ser tão amargo, pergunta­va-se Marshall. Não tinham sempre feito tudo por ele? Por que haveria ele de possuir esse ar de estar sempre contra o mundo inteiro? A seu lado estava sentada Tina, que pa­recia um gatinho preto elegante. Muito escura, de voz sua­ve, imensos olhos escuros e movimentos de graça sinuosa. Muito quieta, mas talvez emotiva por trás de toda aquela quietude? Marshall na realidade sabia muito pouco a res­peito de Tina. Ela tinha seguido a carreira sugerida pela Srª Argyle, a de bibliotecária do Condado. Tinha um apar­tamento em Redmyn e vinha para casa nos fins de semana. Aparentemente era um membro satisfeito e tranqüilo da fa­mília. Mas quem poderia ter certeza? De qualquer modo, parecia estar fora de cogitações. Não estivera presente na famosa noite. Muito embora, pensando bem, Redmyn ficasse apenas a uma distância de vinte e cinco milhas. Mas, mes­mo assim, pensava-se que Micky e Tina estavam fora de questão.

Marshall lançou um rápido olhar a Kirsten Lindstrom, que o observava com um toque de beligerância em sua atitude. E se tivesse sido ela, pensou, quem houvera perdido as estribeiras e atacado a patroa? Não ficaria surpreendido. Na verdade, nada surpreende mais depois de alguns anos passados na advocacia. Na nomenclatura contemporânea exis­tia o termo adequado para ela. Solteirona reprimida. Inve­josa, ciumenta, alimentando ressentimentos motivados ou não. O rótulo existia, sem dúvida. E como seria conveniente, pensou Marshall, um tanto condenavelmente. Sim, muito conveniente. Estrangeira. Não era parente. Mas será que Kirsten Lindstrom seria capaz de planejar para que a culpa recaísse sobre Jacko? Ouvir a briga e aproveitar as circuns­tâncias? Era muito difícil de se acreditar. Porque Kirsten Lindstrom adorava Jacko. Sempre fora devotadíssima a to­das as crianças. Não, não seria possível acreditar. Era uma pena porque... não, ele positivamente não podia permitir que seu raciocínio tomasse esse tipo de rumo.

Seu olhar foi até Leo Argyle e Gwenda Vaughan. Seu noivado não havia sido anunciado, o que era uma vanta­gem. Uma decisão sábia. Na verdade ele havia escrito e su­gerido que agissem assim. Claro que provavelmente, na lo­calidade, todos já deviam saber e a polícia já estaria a par da situação. Do ponto de vista policial era um tipo de so­lução lógica. Inúmeros precedentes existiam. Marido, mulher e a outra. Só que, de algum modo, Marshall achava impossível acreditar que Leo atacasse a esposa. Afinal, fazia anos que conhecia Leo Argyle e tinha dele a melhor das opiniões. Não, não podia acreditar. Era um intelectual. Um homem de grande solidariedade humana, muita leitura e atitude um tanto distante e filosófica em relação à vida. Não era do tipo que mata a mulher com um atiçador. É claro que quando, a uma certa idade, um homem se apai­xona... mas, não! Isso era coisa de pasquim de escândalo. Coisa que, ao que tudo indica, é considerada leitura agra­dável em todo o território das ilhas britânicas, particular­mente nas manhãs de domingo. Mas ninguém podia real­mente achar que Leo.

E quanto à moça? Não sabia tanto assim a respeito de Gwenda Vaughan. Observou a boca carnuda e o corpo ma­duro. Não havia dúvida de que estivesse apaixonada por Leo Argyle. E, muito provavelmente, já estaria apaixonada por ele há muito tempo. Ocorreu-lhe a possibilidade de um divórcio. Como teria a Srª Argyle encarado a idéia de di­vórcio? Não fazia a menor idéia, porém julgava que a idéia não atrairia Leo Argyle, que era bastante tradicional. Não acreditava que Gwenda Vaughan fosse amante de Leo, o que tornaria mais provável que se Gwenda tivesse encon­trado a oportunidade de eliminar a Srª Argyle, se tivesse a certeza de que dela não suspeitariam... ele parou, antes de permitir que o raciocínio se completasse. Seria ela capaz de sacrificar Jacko sem qualquer remorso? Não lhe pare­cia que ela jamais tivesse gostado realmente de Jacko. O encanto de Jacko não fazia o gênero dela. E as mulheres — Marshall o sabia excepcionalmente bem — eram impie­dosas. De modo que Gwenda Vaughan não podia ser eli­minada. Era muito difícil que depois desse tempo toda a polícia conseguisse qualquer tipo de prova. Ele não conse­guia sequer imaginar que tipo de prova pudesse ser encon­trado contra ela. Estivera na casa naquele dia, estivera com Leo na biblioteca, dissera boa-noite a ele e descera as escadas. Não havia ninguém que pudesse dizer se ela havia ou não entrado na salinha da Srª Argyle, apanhado o atiçador e ido até à mulher que, sem desconfiar de nada, continuava a trabalhar em sua escrivaninha. Depois, quan­do a Srª Argyle caísse abatida sem um gemido, tudo o que Gwenda Vaughan teria a fazer era deixar cair o atiçador, sair pela porta da frente e ir para casa, como sempre fazia. Não via qualquer possibilidade de a polícia ou qualquer ou­tra pessoa verificar se era isso que o ela havia feito.

Seus olhos passaram para Hester. Uma menina bonita. Não, não era bonita; era realmente bela. Bela de modo es­tranho e pouco usual. Gostaria de saber quem tinham sido seus pais. Havia qualquer coisa de selvagem e incontrolável nela. Sim, a respeito dela quase que se podia usar a palavra desesperada. Por que haveria de ser desesperada? Fugira de modo tolo para ir para o teatro e tivera um caso com um homem pouco desejável; depois, com­preendera a situação e viera para casa com a mãe, readaptando-se ao ambiente. Mesmo assim, não podia eliminar Hester, porque não sabia como funcionava aquele cérebro. Não era possível prever o que um momento de inesperado deses­pero poderia levá-la a fazer. E a polícia tampouco saberia.

De fato, pensou Marshall, parecia muito pouco pro­vável que a polícia, mesmo que intelectualmente concluíssem quem havia sido o criminoso, pudesse vir a fazer qualquer coisa de concreto. De modo que a situação, de uma maneira geral, era satisfatória. Satisfatória? Teve um susto quando pensou no termo. Seria mesmo? Seria uma situação sem saída, uma solução satisfatória para toda aquela questão? Será que os Argyles sabiam qual era a verdadeira respos­ta? Concluiu que não. Que eles não sabiam. A não ser, é claro, pela única pessoa dentre eles que conhecia perfeita­mente a resposta verdadeira... Não, eles não sabiam; po­rém será que suspeitavam? Bem, se não suspeitavam por agora, em breve suspeitariam, porque quando não se sabe é inevitável ficar imaginando, tentando lembrar pequenas coisas... Muito incômodo. Sim, tratava-se de uma posição extremamente incômoda.

Todos esses pensamentos não haviam tomado muito tem­po. Marshall saiu de seu pequeno mundo de sonho e de­parou com os olhos de Micky fixos nele, com expressão de ironia.

— Então, qual é o seu veredicto, Sr. Marshall? — perguntou Micky. — É pelo elemento de fora, pelo intruso desconhecido, o mau-caráter que assassina, rouba e conse­gue escapar sem ser identificado?

— Parece-me — respondeu Marshall, — que essa será a teoria que teremos de aceitar.

Micky atirou-se para trás na cadeira e riu.

— Então essa é a história que vamos adotar e contar a todos?

— Exatamente, Michael; meu conselho seria esse. — Na voz de Marshall podia-se notar, distintamente, um tom de advertência.

Micky acenou com a cabeça.

— Já percebi — disse ele. — Esse é o seu conselho. Isso mesmo, isso mesmo. Acho que tem toda a razão. Mas não acredita nisso, acredita?

Marshall lançou-lhe um olhar gélido. Esse é o tipo de problema que se tem quando se lida com pessoas sem no­ção do senso de discrição da profissão legal. Insistem sem­pre em dizer coisas que melhor seria nunca fossem ditas.

— Não sei se vale alguma coisa — declarou ele, — porém é a minha opinião.

Seu tom era não só conclusivo como também continha todo um mundo de reprovação. Micky deu uma olhada em torno da mesa.

— E o que é que todos nós pensamos? — perguntou ele a todos, em geral. — Como é, Tina, meu amor, sem­pre de nariz grudado no chão e quietinha; você não acha nada? Não tem nenhuma versão oficiosa, por assim dizer? E você, Mary? Até agora não disse muita coisa.

— É claro que concordo com o Sr. Marshall — re­plicou Mary, cortante. — Que outra solução pode existir para o caso?

— Philip não concorda com você — disse Micky.

Mary virou a cabeça rapidamente para olhar o ma­rido. Philip Durrant disse, em tom baixo:

— É melhor ficar calado, Micky. Ninguém jamais lu­crou em falar demais quando se encontra num aperto. E nós todos estamos nesse aperto.

— Quer dizer que ninguém vai ter nenhuma opinião, não é? — perguntou Micky. — Muito bem, assim seja. Porém sugiro que todos pensemos um pouco quando subir­mos para ir dormir, hoje. Talvez fosse aconselhável, sa­bem. Afinal, todo o mundo quer saber como andam as coisas, por assim dizer. Você não sabe de umas coisinhas, Kirsty? Geralmente você sabe. Pelo que me lembro você sempre soube de tudo o que acontecia, muito embora deva admitir que jamais abriu a boca para contar nada.

Kirsten Lindstrom disse, não sem um toque de dig­nidade:

— Eu acho, Micky, que era bom você calar a boca. O Sr. Marshall tem razão. E falar demais não é bom.

— Podíamos fazer uma votação — disse Micky. — Ou escrever um nome num pedaço de papel e atirar num chapéu. Ia ser muito interessante, não ia, ver quem tinha mais votos?

Agora a voz de Kirsten Lindstrom fez-se ouvir mais alto.

— Fique quieto. Não adianta se fazer do menininho metido e provocador que sempre foi. Você já está crescido.

— Eu só disse que nós devíamos pensar no assunto — respondeu Micky um tanto desconcertado.

— Todos nós vamos pensar no assunto — disse Kirs­ten Lindstrom.

E sua voz era muito amarga.

A noite caiu no Recanto do Sol.

Protegidas por suas paredes, sete pessoas tentavam des­cansar, porém nenhuma conseguiu dormir bem...

 

Philip Durrant, desde que ficara doente e perdera a capacidade para atividades físicas, buscava consolo cada vez maior nas atividades intelectuais. Sempre inteligente, ele agora havia tomado consciência dos recursos que lhe eram oferecidos por meio da inteligência. Por vezes divertia-se em predizer as reações dos que o cercavam ante determi­nados estímulos. O que fazia ou dizia não era, muitas vezes, um extravasamento natural, mas sim algo calculado, moti­vado exclusivamente pelo desejo de observar as reações que provocaria. Era uma espécie de jogo; quando a reação cor­respondia ao que previra, marcava intimamente um ponto para si.

Como resultado desse passatempo ele se viu, talvez pe­la primeira vez na vida, observando agudamente as diferen­ças e realidades da personalidade humana.

As personalidades humanas, como tais, não o haviam interessado muito, anteriormente. Ele gostava ou não gos­tava das pessoas que o cercavam, divertia-se ou chateava-se com quem encontrava. Sempre fora um homem de ação, não de pensamento. Sua considerável imaginação tinha sempre sido posta a serviço de uma série de esquemas para ganhar dinheiro. Todos esses esquemas tinham base sólida, porém uma total ausência de tino para o inundo dos negócios havia feito com que nenhum deles desse em nada. As pessoas, até então, jamais o haviam interessado, a não ser como peões do jogo. Porém depois da doença, do desaparecimen­to das atividades físicas, foi forçado a levar em conta a verdadeira natureza dos indivíduos.

Tudo começara no hospital, onde a vida amorosa das enfermeiras, as guerras secretas e as queixas mesquinhas da vida hospitalar haviam conseguido penetrar no campo de sua atenção, já que não havia mais nada para ocupá-la. E agora cada vez mais essa atitude se tornava um hábito. Gente — isso era tudo o que a vida lhe havia deixado. Só gente. Para estudar, descobrir, avaliar. Para ele concluir como um indivíduo funcionava e depois fazer o teste para ver se tinha razão. Era impressionante como era interes­sante...

Ainda naquela noite, na biblioteca, ele repentinamente percebeu como sabia pouco a respeito da família da mulher. Como eram eles, na verdade? Como seriam eles por den­tro, não na aparência, já que esta ele conhecia bastante bem.

Era estranho, como se sabia pouco a respeito das pes­soas. Até mesmo da própria mulher.

Ele olhou pensativamente para Mary. Será que a co­nhecia realmente bem?

Ele se apaixonara por ela por sua beleza e por seus modos calmos e sérios. Por outro lado, o fato de ela ter dinheiro também fora importante. Ele pensaria duas vezes antes de se casar com uma moça sem um níquel. Mas tudo foi muito conveniente e ele se casou. Brincava muito com ela, chamava-a de Polly e divertia-se com o perplexo olhar que ela lhe lançava cada vez que não compreendia uma de suas piadas. Porém, na verdade, será que a conhecia bem? Sabia o que ela pensava ou sentia? Sabia, com grande certeza, que ela o amava com profunda e apaixonada devo­ção. E, ao pensar naquela devoção, ele se remexeu, pouco à vontade, movendo os ombros como se para aliviá-los de uma carga. Devoção era uma coisa ótima se se podia ficar longe dela nove ou dez horas por dia. Ótima para se en­contrar ao voltar para a casa. Porém agora ele estava afundado nela, cercado por todos os lados, velado, cuidado, ado­rado. E sentia falta de um pouco de um descaso saudá­vel... Tornava-se necessário, na verdade, encontrar alguns caminhos de fuga. Caminhos mentais, já que os outros eram impossíveis. Era necessário fugir para os domínios da fan­tasia e da especulação.

Especulação. Quanto ao possível responsável pela mor­te de sua sogra, por exemplo. Ele não gostava da sogra e a sogra não gostava dele. Ela não tinha querido que Mary se casasse com ele (será que gostaria que Mary se casasse com quem quer que seja?), porém não havia conseguido impedi-la. Mary e ele haviam iniciado sua vida de casados felizes e independentes, e depois tudo havia começado a dar errado. Primeiro aquela companhia sul-americana, depois a firma de acessórios de bicicletas, ambas ótimas idéias porém com o financiamento mal calculado; no fim, aquela greve ferroviária na Argentina que havia completado o desastre. Tudo pura má sorte, porém ao mesmo tempo ele havia sempre sentido que a Srª Argyle havia sido res­ponsável. Ela não queria que ele fosse bem sucedido. E então ele havia ficado doente. Parecia que a única solução para eles seria a de vir morar no Recanto do Sol, onde seriam sempre bem-vindos. Ele não se teria importado muito. Para um homem inválido, que não passava de meio homem, o que poderia fazer muita diferença? Porém Mary se importa­ria, e muito.

Pois muito bem, não havia sido necessário ficar mo­rando no Recanto do Sol permanentemente. A Srª Argyle ti­nha sido assassinada. Os administradores haviam aumenta­do a mesada de Mary nos termos do Fundo e os dois esta­vam de novo morando sozinhos.

Ele sentiu a mais remota tristeza pela morte da Srª Argyle. Teria sido melhor, é claro, se ela tivesse morrido na cama, de pneumonia ou coisa parecida. Assassinato é coisa muito desagradável, vira logo escândalo de primeira página de jornal. Mesmo assim, os termos do as­sassinato tinham sido bastante satisfatórios — com o res­ponsável tendo obviamente um parafuso de menos, o que se prestava a toda espécie de elucubração nos mais com­plicados termos do jargão psicológico. E não era realmente irmão de Mary. Apenas uma dessas “crianças adotadas”, de hereditariedade duvidosa, que tantas vezes dão mau re­sultado. Porém agora as coisas não estavam assim tão bem. Amanhã o Inspetor Huish ia aparecer para fazer perguntas com seu suave sotaque do oeste inglês. Seria bom, talvez, pensar um pouco nas respostas...

Mary estava escovando seu cabelo longo e louro em frente do espelho. Alguma coisa em sua atitude calma e distante o irritava.

— Já está com sua história para amanhã bem deco­rada, Polly?

Ela o olhou com olhos atônitos.

— O Inspetor Huish vem aí. Vai perguntar de novo exatamente quais foram todos os seus movimentos na noite de 9 de novembro.

— Ah, sei. Mas já faz tanto tempo. Ninguém pode lembrar-se direito.

— Ele pode, Polly. Esse é que é o problema. Ele pode. Está tudo cuidadosamente anotado em algum canto num daqueles livrinhos bonitinhos da polícia.

— Está mesmo? Mas eles guardam esse tipo de coisa?

— O provável — respondeu o marido, — é que guar­dem tudo em triplicata durante ao menos dez anos! Bem, mas seus movimentos foram muito simples, Polly. São pou­cos, na verdade. Você estava comigo aqui. E eu, se fosse você, não mencionava a ninguém que esteve fora daqui en­tre sete e sete e meia.

— Mas foi só para ir ao banheiro. Afinal — ponde­rou Mary, cheia de bom-senso, — todo o mundo tem de ir ao banheiro.

— Porém você não mencionou o fato na época. Disso eu me lembro bem.

— Vai ver que esqueci.

— E eu pensei que tinha sido instinto de autopreservação... Seja como for, lembro-me muito bem de ter con­cordado com você. Estivemos juntos aqui, jogando cartas, desde seis e meia até Kirsty dar o alarma. Essa é nossa his­tória e é melhor ficarmos com ela.

— Muito bem, querido. Sua anuência foi plácida, desinteressada.

“Será que ela não tem imaginação? Não vê que estamos metidos num processo que vai ser terrível?”, pensou ele.

Inclinou-se para a frente.

— É interessante, sabe... Você não se interessa por saber quem a matou? Todos nós sabemos... e Micky, nes­se caso, tinha toda a razão... que foi um de nós. Você não se interessa em saber qual?

— Não fui eu nem você — disse Mary.

— E é só isso que interessa, não é? Polly, você é maravilhosa!

Ela corou ligeiramente.

— Não vejo o que há de estranho nisso.

— Não, eu sei que não vê, mesmo... Mas eu sou diferente. Sou curioso.

— Acho que não vamos saber nunca. Não acho que a polícia possa descobrir quem foi.

— É possível que não. Não há dúvida de que têm muito pouco para iniciar a investigação. Porém nossa po­sição é um tanto diferente da polícia.

— O que é que você está querendo dizer, Philip?

— Bem; nós estamos mais bem informados a respeito de certas coisinhas. Conhecemos o nosso bandinho na inti­midade, temos uma noção razoável de como eles funcio­nam. Pelo menos você deveria ter, já que cresceu com eles. Gostaria de ouvir suas idéias. Quem é que você acha que foi?

— Não tenho a menor idéia, Philip.

— Então dê um palpite.

— Eu prefiro não saber quem foi. Prefiro nem sequer pensar no assunto — disse Mary secamente.

— Avestruz — cortou o marido.

— Honestamente, não vejo nenhuma vantagem em... adivinhar. É muito melhor não saber. Sem saber podemos continuar como sempre.

— Não podemos, não — disse Philip. — Aí é que você se engana, menina. A desagregação já começou.

— O quê?

— Bem, basta pensar em Hester e no namorado dela, o seriíssimo Doutor Donald. Bom rapaz, sério, preocupado. Ele não acha realmente que tenha sido ela quem matou, porém não tem certeza de que não tenha sido ela! E por isso ele a olha com ansiedade, quando acha que ela não vai notar. Porém ela sempre nota. Viu? É possível que tenha sido ela, você há de saber melhor do que eu, mas se não foi, que diabo poderá ela fazer a respeito do rapaz? Ficar dizendo “Por favor, não fui eu”? De qualquer modo ela teria de dizer isso, não teria?

— Ora, Philip, você também já está imaginando coi­sas.

— Mas você não imagina coisa alguma, Polly. Pense no velho Leo. Os planos de casamento com Gwenda estão sumindo a cada momento. A pobre da moça está arrasada. Ou será que você ainda não percebeu?

— Aliás eu não vejo por que razão papai haveria de querer casar-se de novo, na idade dele.

— Mas ele vê! Porém vê também que qualquer indí­cio de um caso de amor entre ele e Gwenda dá a ambos um motivo de primeira água para assassinato. Muito cons­trangedor!

— É absolutamente ridículo pensar, por um momento que seja, que papai possa ter assassinado mamãe! — disse Mary. — Esse tipo de coisa não acontece!

— Acontece, sim. É só ler os jornais.

— Mas não com o nosso tipo de gente.

— O assassinato não tem preconceitos de classe. E ainda temos o Micky. Alguma coisa está comendo aquele por dentro. Ele é um rapaz esquisito e amargo. Tina pare­ce estar livre, sem preocupações ou sustos. Porém ela é especialista em parecer tranqüila. E ainda há a pobre da velha Kirsty...

O rosto de Mary mostrou ligeira animação.

— Está aí! Essa poderia ser uma solução!

— Kirsty?

— É. Afinal, é estrangeira. E eu acho que faz uns dois anos que ela vem sofrendo de umas dores de cabeça terríveis... Parece muito mais provável que tenha sido ela do que qualquer um de nós.

— A pobre coitada! — disse Philip. — E você vê que é exatamente isso que ela está dizendo a si mesma? Que todos nós haveríamos de concordar que fosse ela? Por conveniência, porque ela não é da família. Você não viu hoje o quanto ela estava preocupada? Ela está numa po­sição igual à de Hester. O que é que ela poderá fazer ou dizer? Ficar repetindo para todos nós: “Eu não matei minha amiga e patroa?” Que peso teria tal declaração? Acho que a situação é pior para ela do que para qualquer um dos outros... Porque ela está sozinha. Ela vai ficar remoendo tudo o que jamais disse, todo olhar raivoso que possa ter lançado a sua mãe, e pensando que será lembrado contra ela. E sem condições para provar sua inocência.

— Por que você não se acalma, Philip? Afinal, o que é que nós podemos fazer?

— Apenas tentar descobrir a verdade.

— Mas como seria possível?

— Talvez haja meios. Eu gostaria de tentar.

Mary parecia inconfortável.

— Que espécie de meios?

— Ora, dizendo coisas, e observando como cada um reage, pode-se pensar em certas coisas — ele fez uma pau­sa, enquanto sua mente trabalhava. — Coisas que poderiam significar algo para uma pessoa culpada, porém não para quem fosse inocente... — Novamente ele ficou em silêncio, examinando várias possibilidades em seu raciocínio. Levan­tando os olhos, disse: — Você não gostaria de ajudar os inocentes, Mary?

— Não. — A palavra explodiu de dentro dela. Ela foi até ele e ajoelhou-se junto à sua cadeira. — Eu não quero que você se envolva nisso, Phil. Não comece a dizer coisas e armar armadilhas. Deixe isso em paz. Pelo amor de Deus, deixe isso em paz!

As sobrancelhas de Philip levantaram-se.

— Ora, ora — disse ele. E pousou a mão nos suaves cabelos louros.

 

Michael Argyle não conseguia dormir, olhando para o quarto escuro.

Sua mente rodava sem parar, como um esquilo numa gaiola, remoendo o passado. Por que não conseguia esque­cer tudo? Por que razão haveria ele de arrastar o passado consigo ao longo da vida? O que importava tudo aquilo? Por que haveria de se lembrar com tanta clareza o alegre mau gosto daquele quarto numa favela londrina, em que ele era “o nosso Micky”. Havia sempre um clima de excitante descaso! As ruas eram divertidas! As farras que fazia com os outros meninos! Sua mãe com seus cachinhos dourados (fabricados com tinta barata, dizia-lhe agora sua sabedoria de adulto), com seus repentinos acessos de fúria quando batia nele (gim, é claro!) e a delirante alegria dos momentos em que ela estava de bom humor! Jantares ma­ravilhosos de peixe com batata frita, enquanto ela cantava as mais sentimentalóides músicas do momento! À vezes iam ao cinema. E sempre, naturalmente, tinha havido uma sé­rie de “tios”, pois era assim que ele sempre tinha de cha­má-los. Seu pai verdadeiro havia desaparecido muito antes de que ele pudesse se lembrar... Porém a mãe jamais admitira que qualquer dos tios do momento pusesse a mão nele: — Deixe o Micky em paz — gritava.

Depois tinha começado a excitação da guerra. A es­pera dos bombardeiros de Hitler, os alarmas falsos. As si­renas guinchando. A descida para o túnel do metrô para passar a noite. Como era divertido! A rua inteira ia para lá, com sanduíches e refrigerantes. E os trens passando praticamente a noite inteira. Aquilo, sim, é que era vida! A gente sentia que estava no meio das coisas!

Mas depois ele tinha vindo para cá, para o campo. Um lugar de morto-vivo onde não acontecia nada nunca!

“Você vai voltar, querido, quando a guerra acabar”, sua mãe havia dito; porém em tom superficial, como se não fosse verdade. Não parecia importar-se de ele ir em­bora. Por que ela não tinha vindo também? Muito dos guris da rua tinham sido evacuados junto com as mães. Mas sua mãe não tinha querido ir. Ela ia para o norte (com o “tio” do dia, o tio Harry!) para trabalhar numa fábrica de munições.

Ele deveria ter sabido então, apesar da despedida afe­tuosa dela. Ela não se importava... Só se importava, pensou ele, com gim e com os tios...

E ele tinha ficado ali, capturado, aprisionado, comendo uma comida estranha e sem gosto; tendo de ir para a cama, por incrível que pareça, às seis horas, depois de um ridículo jantar de leite e biscoitos (leite e biscoitos!), para ficar acordado, chorando, com a cabeça escondida debaixo dos cobertores para chorar pela mãe e a casa em Londres.

Tinha sido aquela mulher! Ela o agarrou e não lar­gou mais. Sempre dizendo uma porção de bobagens. Sem­pre adotando umas brincadeiras idiotas. Sempre queren­do alguma coisa dele. Alguma coisa que ele tinha resolvido não dar. Não fazia mal. Ia ter paciência, esperar! E um dia... um dia absolutamente maravilhoso, ele iria para casa! Para a casa nas ruas, com os outros me­ninos, comendo peixe e batata frita, tomando os maravilhosos ônibus vermelhos, viajando no metrô, andando no trá­fego e encontrando gatos perdidos. Sua mente passeava co­movida ao longo de todo esse catálogo de sonhos. Era pre­ciso esperar. A guerra não ia durar sempre. Lá estava ele amarrado naquela porcaria daquele lugar enquanto as bom­bas caíam sobre Londres e queimavam metade da cidade. Ôba!! Devia ser um incêndio sensacional, com uma porção de gente morrendo e as casas desmoronando.

Em sua imaginação ele via tudo aquilo como se fosse em tecnicolor.

Não importava. Quando a guerra acabasse voltava para a mãe. Ela ia até levar um susto de ver como ele tinha crescido.

No escuro, Michael Argyle soltou a respiração aos pou­cos, com um chiado.

A guerra tinha acabado. Tinham liquidado Hitler e Musso... Algumas das crianças já estavam voltando. Falta­va pouco... E, de repente, ela tinha voltado de Londres dizendo que ele ia ficar no Recanto do Sol e ser filhinho dela...

— Onde está minha mãe? Foi alguma bomba? — per­guntou.

Se ela tivesse sido morta por uma bomba... bem, isso não teria sido assim tão ruim. Aconteceu com a mãe de uma porção de meninos.

Porém a Srª Argyle havia dito “não”. Ela não estava morta. Mas tinha um trabalho muito importante para fa­zer e não podia ficar tomando conta de criança, enfim, uma coisa mais ou menos assim. Mentiras, que não queriam dizer nada... A sua mãe não o amava, não o queria de volta e ele ia ter de ficar aqui para sempre...

Depois disso andou se escondendo pelos cantos, tentando ouvir as conversas, até que finalmente um dia conseguiu ouvir alguma coisa, só um fragmento do que diziam a Srª Argyle e seu marido: “Ficou contentíssima de se ver livre dele, totalmente indiferente”, e alguma coisa a respeito de cem libras. E então ele ficou sabendo — ele tinha sido vendido por sua mãe por cem libras...

A humilhação, a mágoa, nunca conseguiria superá-las. E ela o havia comprado! Ele a via, vagamente, como a corporificação do Poder, alguém contra quem, com sua forcinha mínima, não podia fazer nada. Porém haveria de cres­cer um dia, forte, seria um homem. E então a mataria...

Assim que tomou sua resolução, ele se sentiu melhor.

Mais tarde, quando foi para o colégio interno, as coisas não tinham sido tão ruins. Mas odiava as férias por causa d’ela. Organizava tudo, planejava, dava toda espécie de pre­sentes. E sempre parecendo confusa porque ele não era ex­pansivo. Ele odiava ser beijado por ela... E mais tarde passara a ter um enorme prazer em atrapalhar todos os pla­nos que ela fazia para ele. Trabalhar num banco! Numa com­panhia de petróleo! Ele, não. Ia sair e procurar um em­prego sozinho.

Foi quando estava na universidade que tentou encontrar a mãe. E descobriu que havia já alguns anos que estava morta, vítima de um desastre de automóvel com um homem que estava guiando completamente embriagado...

Por que não esquecer de tudo? Por que não resolver aproveitar um pouco a vida? Ele não conseguia descobrir por quê.

E agora, o que iria acontecer agora? Ela estava morta, não estava? Pensar que ela o havia comprado por umas mí­seras cem libras. Pensar que ela podia comprar tudo, casas e automóveis, e filhos, já que não podia tê-los por si mesma. Sempre pensando que era Deus Todo Poderoso!

Pois não era. Bastou um golpe na cabeça com um ati­çador para ela virar um cadáver exatamente igual a qual­quer outro cadáver! (Igual ao cadáver de cachinhos louros que tinha ficado na estrada...)

Ela estava morta, não estava? Por que ficar pensando nisso?

O que é que havia com ele? Será que ele não conseguia mais odiá-la porque estava morta?

Então a morte era isso...

Ele se sentiu perdido sem seu ódio... perdido e com medo.

Em seu quarto imaculadamente limpo, Kirsten Lindstrom trançou o cabelo grisalho em duas tranças que lhe iam muito mal e se preparou para ir para a cama.

Estava preocupada e com medo.

A polícia não gostava de estrangeiros. Já fazia tanto tempo que estava na Inglaterra que ela mesma não se sentia estrangeira. Mas a polícia não podia saber que era assim.

Aquele Dr. Calgary, por que havia de aparecer ali e fazer aquilo com ela?

A justiça tinha sido feita. Pensou em Jacko, e repetiu para si mesma que a justiça tinha sido feita.

Pensou nele e em tudo o que conhecera dele desde que era um menino pequeno.

Sempre, sempre mentindo e enganando! Mas tão engra­çadinho, tão encantador. Sempre se acabava tentando pro­tegê-lo do castigo devido.

Ele mentia tão bem. Essa é que era a terrível verdade. Mentia tão bem que todos acreditavam. Ninguém con­seguia deixar de acreditar nele. Jacko, tão mau, tão cruel!

O Dr. Calgary podia pensar que sabia do que estava falando! Porém o Dr. Calgary estava enganado. Lugares e horas e álibis, pois sim! Jacko sabia dar um jeito nesse tipo de coisa melhor do que ninguém. Ninguém realmente conhe­cia Jacko tão bem quanto ela.

Será que alguém acreditaria se contasse exatamente como fora Jacko? E agora, amanhã, o que iria acontecer? A polícia viria. E todos tão tristes, tão cheios de suspeitas. Olhando um para o outro... Sem saber em que acreditar.

E ela os amava tanto, a todos... tanto. Sabia mais a respeito deles do que qualquer outra pessoa poderia saber. Muito mais do que a Srª Argyle jamais soubera. Pois a Srª Argyle ficara sempre cega por sua intensa possessividade materna. Eram seus filhos, e ela os via como sendo propriedade sua. Porém Kirsten os via como indivíduos, como eles mesmos, com todos os seus defeitos e virtude. Se tivesse tido filhos, supunha que pudesse ter sentido aquele tipo de possessividade a respeito deles. Porém ela não era primordialmente uma mulher tipo ma­terno. Seu maior amor fora sempre dedicado ao marido que jamais tivera.

Era difícil compreender mulheres do tipo da Srª Argyle. Louca por um bando de craques que não eram filhos dela e tratando o marido como se ele nem sequer existisse! E um bom homem, um homem dos melhores! Es­quecido, alijado. E a Srª Argyle por demais envolvida con­sigo mesma para perceber o que estava acontecendo debaixo de seu nariz. Aquela secretária, uma moça bonita e femi­nina até a raiz dos cabelos! Pois bem, não era tarde de­mais para Leo... ou será que agora era? Agora, com o assassinato a levantar a cabeça do túmulo no qual havia sido enterrado, será que aqueles dois jamais se ousariam unir?

Kirsten suspirou, infeliz. O que será que ia acontecer com todos eles? A Micky, que carregava consigo aquele res­sentimento profundo, quase patológico, contra a mãe adoti­va. A Hester, tão insegura, tão selvagem. Hester, que tinha estado a ponto de encontrar paz e tranqüilidade com aque­le médico tão respeitador. A Leo e Gwenda, que tinham mo­tivo e — sim, era preciso enfrentar a verdade — haviam tido a oportunidade, como ambos deviam ter consciência. A Tina, aquela criaturinha sinuosa e felina. A fria e egoís­ta Mary, que até se casar jamais revelara afeição por quem quer que fosse.

Houve tempo, lembrou Kirsten, que ela tinha sentido grande afeição e admiração por sua patroa. Não conseguia lembrar-se exatamente quando tinha começado a não gos­tar dela, quando começara a julgá-la e a constatar suas deficiências. Tão segura de si, tão benevolente, tão tirânica! Uma espécie de corporificação ambulante da frase mamãe é quem sabe. E, na verdade, nem sequer era mãe! Se ela algum dia tivesse tido um filho, é possível que possuísse um pouco mais de humildade.

Mas por que ficar pensando em Rachel Argyle, se es­tava morta.

Era preciso pensar nela mesma... e nos outros.

E no que poderia acontecer no dia seguinte.

 

Mary Durrant acordou com um sobressalto.

Tinha sonhado que era criança de novo, em Nova York.

Que coisa estranha. Fazia anos que ela não se lem­brava daquela época.

Era de surpreender que ela ainda conseguisse lembrar-se. Que idade teria ela então? Cinco anos? Seis?

Ela sonhara que estava sendo levada de volta do hotel para a favela em que morava. Os Argyles iam embarcar para a Inglaterra e, afinal, não iam levá-la. Raiva, fúria, encheram seu coração por um momento, até compreender que havia sido apenas um sonho.

Como tinha sido maravilhoso! Levada no carro, tinha subido pelo elevador do hotel para o décimo oitavo andar. O apartamento era imenso, o banheiro maravilhoso; era a revelação de tudo o que podia existir neste mundo... quan­do se era rico! Se pudesse ficar ali, se pudesse ter aquilo tudo para sempre...

E, afinal, não houvera a mínima dificuldade. A única coisa que precisara fora demonstrar um mínimo de afeição. Claro que não tinha sido fácil para ela, que nunca fora de temperamento afetuoso, mas tinha conseguido. E, pronto! Lá estava ela com a vida toda arrumada! Pai e mãe ricos, roupas, carros, navios, aviões, empregados, bo­necas e brinquedos dos mais caros. O conto de fadas tor­nou-se realidade...

Pena que todas aquelas outras crianças tivessem de aparecer também. Claro que tinha sido a guerra. Ou será que teria acontecido de qualquer maneira? Aquele insaciá­vel amor materno! Aquilo, na verdade, não parecia nem se­quer natural. Era tão animalesco.

Sempre sentira um certo desprezo por sua mãe adoti­va. Pelo menos tinha sido muito estúpida na escolha as crianças que resolveu tomar para si. Os desprovidos da vida! Com tendências criminosas, como Jacko. Desequili­brados como Hester. Selvagens como Micky. E Tina, uma mestiça! Não era de espantar que todos tivessem acabado mal. Muito embora não pudesse realmente condená-los por se rebelarem. Até ela própria se havia rebelado. Lembrou-se de quando conheceu Philip, um herói da Força Aérea. Lembrou-se da desaprovação da mãe. “Esses casamentos apressados. Espere até a guerra acabar.” Porém ela não tinha querido esperar. Tinha vontade tão forte quanto a da mãe, e o pai a havia apoiado. Eles tinham-se casado e logo de­pois a guerra acabou.

Ela tinha querido ficar com Philip só para ela, sair da sombra da mãe. E tinha sido derrotada pelo destino, não pela mãe. Primeiro, o fracasso financeiro das atividades de Philip; depois o mais terrível dos golpes, a poliomielite paralisante. Assim que Philip pôde deixar o hospital, vieram para o Recanto do Sol. Tinha parecido inevitável ficarem morando lá. O próprio Philip parecia julgar que seria inevitável Já tinha gasto todo o dinheiro dele e a mesada que ela recebia do Fundo não era tão grande assim. Ela havia pedido um aumento, porém a resposta havia sido que, ao menos por algum tempo, seria mais sensato que ficassem no Recanto do Sol. Todavia ela queria Philip para ela, só para ela, não queria que ele se transformasse em mais um “filho” dos Argyles. Ela nem sequer tinha vontade de ter filhos, só queria Philip.

Porém o próprio Philip parecia concordar de boa von­tade com a idéia de ficar morando com a família.

— Fica mais fácil para você — dizia ele. — E todo o pessoal sempre entrando e saindo serve de distração. Além disso, sempre gostei muito da companhia de seu pai.

Por que seria que ele queria ficar na companhia de seu pai.

Por que seria que ele não queria ficar apenas na com­panhia dela, do mesmo modo que ela só queria a companhia dele? Por que razão haveria ele de querer a companhia de outras pessoas, de seu pai, de Hester?

E Mary havia sentido uma onda de fúria impotente do­miná-la. Sua mãe, como sempre, ia conseguir o que queria.

Mas, afinal, ela não tinha conseguido o que queria. Ti­nha morrido.

E agora iam querer remexer toda a questão novamente. Por quê? Por quê?

E por que haveria o Philip de ficar imaginando tanta coisa irritante? A fazer perguntas, tentando descobrir, imiscuindo-se no que não era da sua conta?

A planejar armadilhas...

Que tipo de armadilhas?

 

Leo Argyle estava olhando a luz da manhã inundar len­tamente seu quarto de um cinza opaco.

Tinha examinado tudo cuidadosamente.

Ficara muito claro para ele exatamente o que teriam de enfrentar, ele e Gwenda.

Ficou ali deitado, encarando a situação do modo pelo qual o Inspetor Huish a encararia. Rachel entrando e contando a eles a respeito de Jacko, de seu descontrole e de suas ameaças. Gwenda tinha ido discretamente para a sa­la ao lado enquanto ele havia tentado consolar Rachel, di­zendo-lhe que tivera toda a razão em ter sido firme, que aju­dar Jacko em outras ocasiões não havia sido bom, que, fosse como fosse, ele devia enfrentar o que merecia. E ela tinha ido embora mais tranqüila.

E então Gwenda entrara na biblioteca e pegado a correspondência que deveria ser mandada, perguntando se ha­veria alguma coisa que pudesse fazer, a voz dizendo mais do que as palavras. E ele havia agradecido e dito não, ela disse boa noite e deixou a biblioteca. E pelo corredor, de­pois pelas escadas, passando pela porta da sala onde Rachel estava escrevendo e, assim, até sair da casa, sem que nin­guém a tivesse visto...

Ele, por seu lado, tinha ficado sozinho na biblioteca, sem que houvesse alguém para verificar que não saíra de lá para ir até à sala de Rachel.

Isso é que era a verdade, ambos haviam tido oportuni­dade.

E motivo, já que naquela altura já amava Gwenda e ela a ele.

E não havia absolutamente ninguém neste mundo que fosse capaz de provar que eles fossem culpados ou inocentes.

 

A um quarto de milha de distância Gwenda estava dei­tada, de olhos secos e sem dormir.

Com as mãos entrelaçadas com violência, pensava no quanto havia odiado Rachel Argyle.

E agora, no escuro, Rachel Argyle lhe dizia: “Você pen­sava que podia ficar com meu marido depois que eu morresse. Mas não pode, não pode. Você nunca há de ficar com o meu marido.”

 

Hester estava sonhando. Sonhou que estava com Donald Craig e que ele, de repente, a deixara sozinha, à beira de um abismo. Ela gritava de medo quando, de repente, do outro lado, viu Arthur Calgary de pé, estendendo ambas as mãos para ela.

Ela havia gritado para ele, recriminando-o:

“Por que fez isto comigo?” e ele havia respondido:

“Mas eu vim para ajudá-la...”

Então ela acordou.

 

Deitada muito quieta na pequena cama do quarto de hóspedes, Tina respirava suave e regularmente, porém o sono não vinha.

Pensava na Srª Argyle sem gratidão e sem ressentimen­to, apenas com amor. Por causa da Srª Argyle ela pudera ter comida e bebida e calor e brinquedos e conforto. Ela tinha amado a Srª Argyle e sentia que estivesse morta...

Mas as coisas não eram assim tão simples.

Não tinha importado quando era Jacko...

Mas agora?

O Inspetor Huish olhou em tomo, para todos eles, com delicadeza e polidez. Quando falou, seu tom saiu persuasivo e quase que pedindo desculpas.

— Sei que deve ser extremamente doloroso para todos — disse ele, — ter de rememorar todos os acontecimentos. Porém realmente não nos resta qualquer alternativa. Já le­ram a notícia, não leram? Está em todos os jornais da ma­nhã.

— Um perdão integral — disse Leo.

— A frase sempre irrita todo o mundo — comentou Huish. — Como tanta outra coisa da terminologia legal, é um anacronismo. Porém seu sentido é perfeitamente claro.

— Significa que os senhores cometeram um erro — concluiu Leo.

— Exatamente — reconheceu Huish com simplicida­de. — Cometemos um erro. Após um instante, acrescen­tou: — É claro que com o depoimento do Dr. Calgary tudo se tornou inevitável.

— Meu filho lhes disse, quando o prenderam naquela noite, que havia apanhado uma carona na hora do crime — disse Leo com frieza.

— Eu sei que disse. E nós fizemos todo o possível para verificar, porém não conseguimos encontrar qualquer confirmação para o que ele dizia. Eu compreendo perfeita­mente, Sr. Argyle, que o senhor deve ter sentimentos extremamente amargos com relação a tudo isso. Não pretendo apresentar escusas nem explicações. A única coisa que com­pete a nós, da polícia, é coletar provas. As provas são en­caminhadas à Promotoria, onde se resolve se elas são ou não suficientes para configurar uma acusação. No caso, foi considerado que sim. Se puder, eu lhe pediria para despo­jar sua mente, na medida do possível, de toda amargura e ressentimento e apenas relembrar ainda uma vez os fatos e horários.

— E o que é que adianta, agora? Hester falou com paixão. — Seja quem for o culpado, já está muito longe e jamais o encontraremos.

O Inspetor Huish voltou-se para ela.

— Pode ser que sim, pode ser que não — disse ele suavemente. — Ficaria surpresa de ver quantas vezes pe­gamos o indivíduo certo, muitas vezes depois de vários anos. É uma questão de paciência. Paciência e perseverança.

Hester virou para o outro lado e Gwenda teve um arre­pio, como se um vento gelado tivesse passado por ela. Sua imaginação fértil captara a ameaça que aparecia por trás daquelas palavras.

— E agora, por favor — disse Huish. Encarou Leo com certa expectativa. — Começaremos pelo senhor, Sr. Argyle.

— Exatamente o que deseja saber? O senhor ainda de­ve ter as minhas declarações originais. É possível que eu seja um pouco menos preciso agora. Horários muito exa­tos têm uma certa tendência para escapar de nós com o tempo.

— Ora, é claro que sabemos disso. Porém há sem­pre a possibilidade de que algum pequeno detalhe venha à luz, alguma coisa que foi esquecida na época.

— Não será até possível — perguntou Philip, — que se veja as coisas com melhor perspectiva ao relembrá-las após a passagem de alguns anos?

— É uma possibilidade, sem dúvida — retrucou Huish, girando a cabeça para olhar para Philip com certo inte­resse.

“Sujeito inteligente” pensou ele. “Eu me pergunto se ele não terá algumas teorias próprias a respeito do caso todo...”

— Então, Sr. Argyle; vamos ver apenas se o senhor poderia passar em revista a seqüência dos acontecimentos. Já tinha tomado seu chá?

— Já. Tínhamos tomado o chá na sala de jantar às cinco horas, como de costume. Estivemos todos presentes com a exceção dos Sr. e Srª Durrant. A Srª Durrant havia levado o seu chá e o do marido para a sua sala-de-estar particular.

— Eu ainda estava mais inválido naquela época do que estou agora — disse Philip. — Acabara de sair do hospital.

— Exatamente. — Huish tornou a voltar-se para Leo. — E todos, no caso, quer dizer...

— Minha mulher e eu, minha filha Hester, a Sr.ta Vaughan e a Sr.tª Lindstrom.

— E depois? Diga-me com suas próprias palavras.

— Depois do chá eu voltei para aqui com a Sr.te Vaughan. Estávamos trabalhando com um capítulo de um livro sobre “A Economia Medieval” que eu estava revendo. Mi­nha mulher foi para sua sala-de-estar, que lhe servia de escritório, no andar térreo. Como sabe, ela era uma mulher extremamente ocupada. Estava examinando as plantas de um novo play-ground que pretendia doar à municipalidade.

— O senhor pressentiu a chegada de seu filho Jacko?

— Não. Isto é, eu não sabia que era ele. Eu ouvi, nós dois ouvimos, a campainha da porta da frente. Não sabía­mos de quem se tratava.

— E quem o senhor pensou que fosse, Sr. Argyle?

Leo pareceu ligeiramente divertido.

— Naquele momento eu estava no século XV, não no XX. Não pensei nada. Poderia ser qualquer coisa ou qualquer pessoa. Minha mulher, a Sr.ta Lindstrom, Hester e, possivelmente, algum dos empregados domésticos estariam no andar de baixo. Ninguém — disse Leo com simplicidade, — jamais esperou que eu atendesse a campainha.

— E depois?

— Nada. Até minha mulher entrar, algum tempo mais tarde.

Leo franziu a testa.

— Hoje em dia eu realmente não seria mais capaz de dizer-lhe. Creio que, na época, devo ter dado algum tipo de cálculo. Meia hora... não, mais... possivelmente qua­renta e cinco minutos.

— Nós terminamos o chá logo depois das cinco e meia — disse Gwenda. — Eu creio que deveriam ser mais ou menos vinte para as sete quando a Srª Argyle entrou na biblioteca.

— E o que foi que ela disse?

Leo suspirou. Falou a contragosto.

— Já discutimos tudo isso tantas vezes. Ela disse que Jacko tinha estado com ela, que ele estava metido em al­guma encrenca, que se havia mostrado violento e agressivo, exigindo dinheiro e dizendo que, a não ser que o arran­jasse imediatamente, a questão ia dar cadeia. Disse tam­bém que ela havia se recusado a dar a ele um níquel se­quer e que estava preocupada, sem saber se agira certo ou não.

— Sr. Argyle, deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Por que razão só foi informado posteriormente? Isto não lhe pareceu estranho?

— Não; não pareceu.

— Parece-me que isso teria sido o natural. Os senho­res não... não estavam se dando bem?

— Nada disso. Acontece apenas que minha mulher es­tava acostumada a enfrentar toda decisão prática de forma individual. Muitas vezes ela me consultava antes para sa­ber o que eu pensava, e muito freqüentemente discutia co­migo posteriormente decisões que já havia tomado. A respeito dessa questão em particular, ela e eu já havíamos tido uma conversa muito séria sobre o problema de Jacko e sobre o que seria melhor fazer. Até então nós tínhamos sido singularmente infelizes em nossa maneira de tratar o rapaz. Em várias ocasiões ela já havia pago somas consideráveis para impedir que ele tivesse de assumir as conseqüências de seus atos. Tínhamos decidido, por isso mesmo, que da pró­xima vez seria melhor que Jacko aprendesse pelo cami­nho mais árduo.

— Mas, mesmo assim, ela estava perturbada?

— Estava. Se ele tivesse sido menos violento e amea­çador, creio que ela teria cedido e resolvido ajudá-lo ainda uma vez, porém a atitude dele acabou por solidificar a re­solução dela.

— A essa altura Jacko já havia deixado a casa?

— Ah, já.

— O senhor sabe disso pessoalmente, ou foi informa­do pela Srª Argyle?

— Foi ela quem me disse. Disse que ele havia saído esbravejando e ameaçando voltar, dizendo que seria melhor que ela tivesse o dinheiro pronto.

— O senhor ficou — isto é muito importante — o senhor ficou alarmado com a possibilidade de o rapaz voltar?

— Claro que não. Estávamos todos muito acostumados com o que só posso chamar de exibicionismos de Jacko.,

— Nunca lhe ocorreu que ele voltasse e atacasse a Srª Argyle?

— Não. Eu lhe disse isso na época. Fiquei estarrecido.

— E aparentemente o senhor tinha razão — disse Huish suavemente. — Não foi ele quem a atacou. A que horas, exatamente, a Srª Argyle o deixou?

— Isso eu me lembro. Porque foi discutido tantas ve­zes. Logo antes das sete, creio que uns sete minutos, mais ou menos.

Huish voltou-se para Gwenda Vaughan.

— A senhorita confirma isso?

— Confirmo.

— E a conversa com a Srª Argyle se passou exata­mente como foi relatado? Não pode acrescentar nada? Não há nada que tenha sido esquecido?

— Eu não ouvi tudo. Depois que a Srª Argyle já nos tinha falado a respeito das exigências de Jacko, julguei que seria melhor que me retirasse, para o caso de eles se sen­tirem constrangidos de falar livremente na minha frente. Eu fui para lá — apontou para a porta nos fundos da biblio­teca — para a salinha onde eu escrevo a máquina. Quando ouvi a Srª Argyle sair eu voltei.

— E isso se passou aos sete minutos para as sete?

— Foi logo antes de cinco para as sete.

— E depois disso, Sr.ta Vaughan?

— Perguntei ao Sr. Argyle se ele queria continuar a trabalhar, porém ele disse que o fio de seu pensamento ha­via sido interrompido. Perguntei se havia alguma outra coi­sa para eu fazer, porém ele disse que não. De modo que , arrumei minhas coisas e fui embora.

— A que horas?

— Às sete e cinco.

— Desceu as escadas e saiu pela porta da frente?

— Foi.

— A sala-de-estar da Srª Argyle ficava logo à esquer­da da porta da frente?

— Certo.

— A porta estava aberta?

— Não estava fechada, estava entreaberta, uns trinta centímetros.

— A senhorita não entrou para dizer-lhe boa-noite?

— Não.

— Não o fazia, habitualmente?

— Não. Seria tolo interrompê-la no que estava fazen­do, apenas para dizer boa-noite.

— Se a senhorita tivesse entrado, poderia ter desco­berto o corpo dela, já morta.

Gwenda teve uma espécie de calafrio.

— Acho que sim... Mas pensava, quero dizer, que todos nós pensamos, naquele tempo, que ela tinha sido mor­ta mais tarde. Jacko dificilmente poderia ter...

Parou.

— A senhorita ainda está raciocinando como se Jacko a tivesse matado. Porém agora a questão é diferente, de modo que ela poderia estar lá, morta?

— Suponho que sim.

— Quando a senhorita saiu, foi direto para casa?

— Fui. Minha senhoria falou comigo quando cheguei.

— Correto. Mas não encontrou ninguém no caminho, perto de casa?

— Acho que não... não. — Gwenda franziu a testa. — Eu realmente não consigo lembrar-me agora... Estava frio e escuro e isto aqui é uma espécie de beco sem saída. Não creio que tenha passado por ninguém até chegar ao Leão Vermelho. Havia várias pessoas por lá.

— Algum carro passou pela senhorita?

Gwenda levou um susto.

— Passou, sim; eu me lembro de um carro. Espirrou água na minha saia. Tive de lavar para tirar a lama quando cheguei em casa.

— Que tipo de carro?

— Não me lembro. Não reparei. Passou por mim logo na entrada aqui da rua. Poderia estar indo para qualquer uma das casas.

Huish tornou a voltar-se para Leo.

— O senhor disse que ouviu a campainha algum tempo depois de sua mulher sair da biblioteca?

— Bem, eu acho que ouvi. Nunca cheguei a ter real­mente certeza.

— E a que horas foi isso?

— Não tenho a menor idéia. Não olhei.

— O senhor pensou que poderia ser seu filho Jacko, de volta?

— Eu não pensei. Eu estava trabalhando de novo.

— Apenas mais um ponto, Sr. Argyle. O senhor tinha alguma idéia de que seu filho estivesse casado?

— Não tinha a mínima idéia.

— E sua mulher também não sabia? Não acredita que ela soubesse mas não dissesse nada ao senhor?

— Tenho absoluta certeza de que não fazia a menor idéia a respeito. Ela me teria comunicado imediatamente. Para mim foi um tremendo choque o aparecimento da es­posa no dia seguinte. Eu mal podia acreditar quando a Sr.tª Lindstrom entrou aqui e disse “Há uma moça lá embaixo, uma moça que diz que é mulher de Jacko. Não pode ser verdade.” Ela ficou muito perturbada, não ficou, Kirsty?

— Eu não podia acreditar — disse Kirsten. — Fiz com que ela repetisse duas vezes, depois subi para falar com o Sr. Argyle. Parecia incrível.

— Pelo que soube, o senhor foi muito bondoso para com ela — disse Huish a Leo.

— Fiz o que me foi possível. Ela está casada de novo. Fico muito contente. Seu marido parece um rapaz com a cabeça no lugar. — Huish anuiu com a cabeça, depois vol­tou-se para Hester.

— E agora, Sr.ta Argyle, quer fazer o favor de me contar de novo o que fez depois do chá naquele dia.

— Agora eu não me lembro mais — respondeu Hester, emburrada. — Como poderia lembrar? Já faz dois anos. Posso ter feito qualquer coisa.

— Na verdade eu creio que fui ajudar a Sr.ta Linds­trom a lavar as coisas do chá.

— Isso mesmo — disse Kirsten. — E depois — con­tinuou, — você subiu para o seu quarto. Você ia sair mais tarde, não lembra? Ia ver um grupo amador que estava levando Esperando Godot no teatro em Drymouth.

Hester continuava emburrada e sem vontade de coope­rar.

— Vocês já têm tudo escrito — disse ela a Huish, — por que ficar perguntando tudo de novo?

— Porque nunca se sabe o que poderá ajudar. Então, Sr.tª Argyle, a que horas a senhorita deixou a casa?

— Às sete horas, mais ou menos.

— A senhorita tinha ouvido a discussão entre sua mãe e seu irmão Jacko?

— Não, não ouvi nada. Eu estava no andar de cima.

— Porém viu a Srª Argyle antes de sair de casa?

— Vi. Eu precisava de dinheiro. Estava sem um tos­tão. E me lembrei que o meu carro estava praticamente sem gasolina. Teria de botar um pouco a caminho de Drymouth. De modo que, na hora de sair, fui procurar mamãe para pedir dinheiro, só umas duas libras, que era o que eu pre­cisava.

— E ela as deu à senhorita?

— Quem deu foi Kirsty.

Huish pareceu ficar ligeiramente surpreendido.

— Não me lembro que isso apareça em seu depoimen­to original.

— Bem, pois foi o que aconteceu — disse Hester, em tom de desafio. — Eu entrei e perguntei se ela podia dar-me algum dinheiro e Kirsten me ouviu do hall e disse que ela tinha e que me daria. Ela também ia sair. Então mamãe disse: “Isso mesmo, pegue com Kirsty”.

— Eu só ia até o Instituto Feminino levar uns livros sobre Arranjos de Flores — disse Kirsten. — Sabia que a Srª Argyle estava ocupada e achei que era melhor que não fosse perturbada.

Hester disse, com voz irritada:

— Que diferença faz quem me deu o dinheiro? O que o senhor queria saber era quando foi a última vez que vi mamãe viva. Foi nessa hora. Ela estava sentada junto à mesa, examinando uma porção de plantas. E eu disse que precisava de dinheiro e aí a Kirsten gritou que ela tinha e que podia dar-me. Eu peguei o dinheiro com ela e de­pois tornei a entrar na sala para dizer boa-noite a mamãe. Ela me disse que esperava que eu gostasse da peça e que devia guiar com cuidado. Ela sempre dizia isso. E então fui até à garagem e peguei o carro.

— E a Srta Lindstrom?

— Ora, ela saiu assim que me deu o dinheiro.

Kirsten Lindstrom disse, rapidamente: — Hester pas­sou por mim de carro bem quando eu estava chegando no fim da nossa rua. Ela subiu a colina para pegar a estrada principal e eu virei à esquerda, para a aldeia.

Hester abriu a boca, como se fosse falar, depois fe­chou-a novamente.

Huish ficou pensando. Será que Kirsten Lindstrom es­tava querendo comprovar que Hester não teria tido tempo para cometer o crime? Não seria possível que, ao invés de Hester ter dito um tranqüilo boa-noite à Srª Argyle, uma discussão tivesse tido lugar, uma briga, durante a qual Hes­ter a tivesse golpeado?

Suavemente ele se voltou para Kirsten e disse:

— E agora, Sr.ta Lindstrom, vamos ver do que é que a senhorita consegue se lembrar.

Ela estava nervosa. Suas mãos se torciam, torturadas.

— Nós tomamos chá. Depois o chá foi tirado da mesa. Hester me ajudou. Depois Jacko chegou.

— A senhorita o ouviu?

— Sim. Eu é que o fiz entrar. Ele disse que tinha perdido a chave. Entrou direto para onde estava sua mãe. Disse logo, “Estou num aperto. Você vai ter de me ajudar”. Não ouvi mais nada. Voltei para a cozinha. Havia muita coisa para ser preparada para o jantar.

— A senhorita ouviu quando ele saiu?

— Se ouvi! Estava gritando. Eu vim da cozinha. Ele estava no hall da entrada, muito zangado, gritando que ia voltar, que era melhor a mãe ter o dinheiro pronto para ele, senão! Foi isso que ele disse: “Senão!” Era uma amea­ça.

— E aí?

— Ele saiu, batendo a porta. A Srª Argyle saiu para o hall. Estava muito pálida e perturbada. Disse-me: “Você ouviu?” e eu perguntei: “Ele está em alguma encrenca?”

— Ela concordou com a cabeça. Depois ela subiu para a biblioteca, onde estava o Sr. Argyle. Eu botei a mesa para o jantar, depois subi para enfiar minhas coisas para sair. O Instituto Feminino ia ter um concurso de Arranjos de Flores no dia seguinte. E nós tínhamos prometido emprestar uns livros sobre o assunto para eles.

— A senhorita levou então os livros até o Instituto. A que horas voltou?

— Deve ter sido por volta de sete e meia. Entrei com minha própria chave. Fui diretamente à sala da Srª Argyle para dizer-lhe que mandavam agradecer e entregar uma no­ta. Ela estava na escrivaninha, com a cabeça para a frente, entre as mãos. E lá estava o atiçador, atirado, e as gavetas abertas. Pensei logo em ladrão. Ela tinha sido atacada. E eu estava certa. Agora o senhor já sabe que eu estava certa. Foi um ladrão, alguém de fora!

— Alguém que a própria Srª Argyle teria deixado en­trar?

— E por que não? — perguntou Kirsten, desafiadora. — Ela era boa, sempre foi muito boa. E não tinha medo, nem de gente nem de coisas. Além do mais, não era como se estivesse sozinha em casa. Havia outros, seu marido, Gwenda, Mary. Bastava chamar.

— Porém ela não chamou ninguém — lembrou ele.

— Não. Porque, seja quem for, deve ter inventado uma história muito boa. E ela sempre escutava. De modo que ela tornou a se sentar na escrivaninha, talvez para pegar o talão de cheques, visto que não sentira qualquer desconfian­ça, e aí ele teve a oportunidade de pegar o atiçador e bater nela. É possível até que não tenha tido a intenção de ma­tar. Queria só deixar que ela ficasse tonta para ele poder procurar o dinheiro e as jóias, depois ir embora.

— Mas não procurou muito, só mexeu em umas poucas gavetas.

— É possível que tenha ouvido algum barulho vindo da casa e tenha perdido a coragem. Ou talvez tenha des­coberto que a tinha matado. Entrou em pânico e foi em­bora.

Ela se inclinou para a frente.

Seus olhos estavam a um tempo assustados e implorantes.

— Tem de ter sido assim, tem!

Huish ficou interessado na insistência dela. Seria temor por si mesma? Era possível que, naquele momento, tivesse matado a patroa, depois aberto algumas gavetas para dar um mínimo de verossimilhança à idéia de um ladrão. O tes­temunho do médico não conseguira precisar a hora da mor­te mais especificamente do que entre sete e sete e meia.

— Parece que deve ter sido uma coisa assim — con­cordou ele agradavelmente. Um vago suspiro de alívio esca­pou dos lábios dela, e tornou a sentar-se corretamente. Huish voltou-se para os Durrants.

— Algum dos dois ouviu alguma coisa?

— Nada.

— Eu levei uma bandeja com o chá para o nosso quarto — disse Mary. — Ele fica um pouco isolado do resto da casa. Ficamos lá até ouvir que alguém estava gri­tando. Era Kirsten. Ela tinha acabado de achar mamãe morta.

— E não deixaram o quarto nem uma só vez durante todo esse tempo?

— Não. — Seu olhar límpido enfrentava o dele. — Es­távamos jogando cartas.

Philip se perguntou por que estava se sentindo um tan­to desconcertado. Polly estava fazendo exatamente tudo o que ele lhe dissera que fizesse. Talvez fosse a perfeição do modo de fazê-lo, calma, tranqüila, absolutamente convincente.

“Polly, minha querida, que mentirosa perfeita você é!” pensou ele.

— E eu, inspetor — disse ele, — era então como sou agora, totalmente incapaz de ir e vir aonde quer que seja.

— Porém o senhor está bem melhor, não é, Sr. Durrant? — perguntou o inspetor em tom alegre. — Qualquer dia desses vamos vê-lo andando de novo por aí.

— Ainda falta muito tempo.

Huish voltou-se para os outros dois membros da famí­lia, que até então haviam ficado em suas cadeiras sem emi­tir um único som. Micky estava sentado com os braços cru­zados e uma expressão de ligeiro deboche no rosto. Tina, pequena e graciosa, recostada em sua cadeira, seus olhos movendo-se ocasionalmente de um rosto para o outro.

— Eu sei que nenhum dos dois estava em casa — disse Huish. — Seria possível no entanto, que refrescassem minha memória e me dissessem o que estavam fazendo na­quela noite?

— Será que sua memória realmente precisa que al­guém a refresque? — perguntou Micky com o ar de debo­che se tornando ainda mais marcante. — Ainda sei recitar meu papel. Eu tinha saído para testar um carro que estava com problemas de embreagem. Foi um teste prolongado. De Drymouth eu subi a colina Minchin, segui pela estrada da charneca e depois voltei por Ipsley. Infelizmente os carros são mudos e, portanto, não podem testemunhar.

Tina finalmente girou a cabeça. Encarava Micky dire­tamente. Seu rosto não tinha qualquer espécie de expres­são.

— E quanto à senhorita, Sr.ta Argyle? Trabalha na Bi­blioteca Pública de Redmyn?

— Trabalho. Ela fecha às cinco e meia. Eu fiz umas compras na rua principal. Depois fui para casa. Tenho um apartamento, muito pequeno, nas Mansões Morecombe. Pre­parei meu jantar e depois passei a noite tranqüilamente em casa, ouvindo discos.

— Não saiu de todo?

Houve uma ligeira pausa antes que ela dissesse:

— Não, não saí.

— Tem absoluta certeza, Sr.tª Argyle?

— Certeza absoluta.

— A senhorita tem um carro, não tem?

— Tenho.

— Tem uma coisinha ridícula, que só dá trabalho — comentou Micky.

— É verdade que tenho um carrinho mínimo — disse Tina, com perfeita calma e compostura.

— Onde fica guardado?

— Na rua. Não tenho garagem. Há uma pequena rua lateral junto ao edifício. Todo o mundo a usa para esta­cionamento.

— E não tem mais nada a dizer que nos pudesse aju­dar?

Nem mesmo Huish sabia por que razão estava sendo tão insistente.

— Não creio que haja qualquer coisa que eu pudesse lhes dizer.

Micky lançou-lhe um olhar rápido.

Huish suspirou.

— Temo que nada disso o tenha ajudado muito, ins­petor — disse Leo.

— Nunca se sabe, Sr. Argyle. Suponho que o senhor saiba qual é o aspecto mais estranho deste caso todo?

— Eu? Não sei exatamente do que é que está falando.

— Do dinheiro — respondeu Huish. — O dinheiro que a Srª Argyle tirou do banco, inclusive a nota de cinco li­bras na qual estava escrito “Srª Bottleberry, 17 Rua Bangor”. Um dos pontos mais fortes da acusação residia no fato de essa nota e várias outras terem sido encontradas com Jacko quando ele foi preso. Ele jurou que havia recebido o dinheiro da Srª Argyle, porém a Srª Argyle disse muito decididamente ao senhor e à Srta Vaughan que não havia dado dinheiro a Jacko. Assim sendo, onde teria ele arran­jado cinqüenta libras? Não haveria possibilidade de ele ter voltado aqui, pois o testemunho do Dr. Calgary deixa isso bem claro. De modo que ele devia estar levando o dinhei­ro com ele quando saiu daqui. Quem lhe deu o dinheiro? Foi a senhora?

Ele se havia voltado frontalmente para Kirsten Lindstrom, que enrubesceu de indignação.

— Eu? Claro que não. Como poderia ter dado?

— Onde ficava guardado normalmente o dinheiro que a Srª Argyle tirava do banco?

— Normalmente ela o guarda numa gaveta de sua es­crivaninha — disse Kirsten.

— Trancada?

Kirsten pensou um pouco.

— Era provável que a trancasse quando subia para se deitar.

Huish olhou para Hester.

— A senhorita tirou o dinheiro da gaveta para dar a seu irmão?

— Eu nem sabia que ele tinha estado lá. E como é que eu poderia ter tirado sem mamãe perceber?

— Poderia tê-lo tirado muito facilmente quando sua mãe subiu para a biblioteca para conversar com seu pai — sugeriu Huish.

Ele se perguntou se ela perceberia a armadilha e ten­taria evitá-la, mas ela caiu inteira na que ele armara.

— Porém a essa altura Jacko já tinha ido embora. Eu... — Ela estancou, apavorada.

— Então vejo que sabe quando seu irmão saiu — dis­se Huish.

— Eu... eu sei agora..., mas na hora não sabia. Eu já lhe disse que estava no meu quarto. Não ouvi abso­lutamente nada. E, seja como for, eu não teria querido dar o dinheiro ao Jacko.

— E eu lhe digo uma outra coisa — disse Kirsten. Seu rosto estava rubro de indignação.

— Se eu tivesse dado dinheiro a Jacko, teria sido di­nheiro do meu! Não teria roubado!

— Estou certo que não — retrucou Huish. — Porém agora percebem aonde isso nos leva. A Srª Argyle, apesar do que lhes disse — agora olhava para Leo, — deve ter dado ela mesma o dinheiro a Jacko.

— Não posso acreditar. Por que não me dizer, se tivesse dado?

— Não estaria sendo a primeira mãe do mundo a ser menos rígida com um filho do que gostaria que os outros pensassem.

— Está enganado. Huish. Minha mulher jamais usou de evasivas.

— Pois creio que deve ter usado nessa ocasião — dis­se Gwenda Vaughan. — Para falar a verdade, tem de ter usado... já que, como diz o inspetor, é a única solução.

— Afinal — recomeçou Huish, em tom suave, — nós temos de encarar toda a questão, agora, sob um prisma no­vo. Na época em que foi efetuada a prisão, pensávamos que Jacko Argyle estava mentindo. Porém agora que sabemos que estava dizendo a verdade a respeito da carona que foi dada por Calgary, temos de pressupor que a respeito do dinheiro ele também estava dizendo a verdade. Ele disse que a mãe o havia dado a ele. Portanto, temos de acredi­tar que deu.

Seguiu-se um silêncio. Um inconfortável silêncio.

Huish levantou-se. — Bem, eu agradeço muito a todos. Temo que as pistas a esta altura já estejam todas mais do que frias, mas nunca se sabe.

Leo acompanhou-o até à porta. Quando voltou, disse com um suspiro: — Bem, acabou. Por enquanto.

— Para sempre — disse Kirsten. — Eles nunca vão descobrir.

— E o que é que isso adianta para nós? — gritou Hester.

— Minha querida. — O pai foi até ela. — Acalme-se, minha filha. Não fique tão tensa. O tempo acaba por curar tudo.

— Nem tudo. O que é que vamos fazer? Ai, meu Deus, o que é que nós podemos jazer?

— Hester, venha comigo. — Kirsten pousou a mão no ombro da moça.

— Eu não quero ninguém. — Hester saiu correndo da sala. Um momento mais tarde ouviram a porta da frente bater.

— Toda essa encrenca! Não é bom para ela — disse Kirsten.

— E eu não creio realmente que isso seja verdade — declarou Philip Durrant, pensativo.

— Que é que não seja verdade? — perguntou Gwenda.

— Que nós nunca haveremos de saber a verdade... Sinto uma espécie de comichão nas mãos.

Seu rosto, que lembrava o de um fauno, com sua ex­pressão de malícia, iluminou-se com um estranho sorriso.

— Por favor, Philip, tenha cuidado — disse Tina.

Ele levantou os olhos para ela, surpreendido.

— A pequena Tina. E o que é que você sabe a res­peito de tudo isso?

— Eu espero — disse Tina, muito clara e distinta­mente, — que não saiba absolutamente nada.

— Na certa não conseguiu nada — disse o inspetor-chefe.

— Nada de muito positivo, senhor — disse Huish. — No entanto, não foi tempo completamente desperdiçado.

— Conte tudo.

— Bom, os horários e as premissas básicas continuam os mesmos. A Srª Argyle estava viva pouco antes das sete, conversou com o marido e Gwenda Vaughan, depois foi vista no andar térreo por Hester Argyle. Três pessoas em conluio seria demais. Como já temos contas do que fez Jacko Argyle, isso quer dizer que ela poderia ter sido mor­ta pelo marido a qualquer momento entre sete e cinco e sete e trinta, por Gwenda Vaughan às sete e cinco, quando estava deixando a casa, por Hester logo antes disso, por Kirsten Lindstrom quando voltou um pouco mais tarde, di­gamos, logo antes das sete e meia. A paralisia de Durrant lhe fornece um álibi perfeito, porém o da mulher depende da palavra dele. Se quisesse, ela poderia ter descido e ma­tado a mãe entre sete e sete e meia, desde que o marido estivesse disposto a apoiá-la. Não vejo por que ela havia de matá-la, no entanto. Na verdade, na medida em que con­sigo perceber as coisas, só duas pessoas teriam motivo real para o crime: Leo Argyle e Gwenda Vaughan.

— Acha que foi um deles ou que foram os dois jun­tos?

— Não creio que estejam juntos nisso. Parece-me um crime de momento, não premeditado. A Srª Argyle entra na biblioteca e conta a ambos a história das ameaças e exi­gências de dinheiro feitas por Jacko. Basta supor que um pouco depois Leo Argyle desça para falar com ela sobre Jacko ou sobre qualquer outra coisa. A casa está quieta, não há ninguém por perto. Ele entra na sala-de-estar dela. E lá está ela, sentada à escrivaninha, de costas para ele. E o atiçador, jogado onde o deixou Jacko, depois de ameaçá-la. Esse tipo de homem quieto, reprimido, às ve­zes estoura. Ele protege a mão com um lenço, pega o ati­çador, golpeia-a na cabeça e está tudo acabado. Abre uma ou duas gavetas para sugerir roubo, depois sobe e espera que alguém encontre o corpo. Ou pode ser também que, ao sair, Gwenda tenha entrado na sala e, de repente, tenha sido tomada pela mesma idéia. Tendo Jacko como o bode expiatório perfeito, o caminho para o casamento com Leo Argyle estaria finalmente aberto.

O Major Finney acenou pensativamente com a cabeça.

— É. Pode ser. E é claro que tomaram todo o cuida­do para não anunciar logo seu noivado. Não antes de o pobre coitado do Jacko estar devidamente condenado por assassinato. É, parece ser isso. Como os crimes são monó­tonos! Marido e a outra, ou mulher e o outro. É sempre o mesmo esquema. Porém o que é que nós podemos fazer, Huish? Que providências podemos tomar a respeito?

— Não consigo ver — respondeu Huish lentamente, — o que nós possamos fazer. Nós podemos até ter certeza, po­rém onde estão as provas? Não temos absolutamente nada que possa ser apresentado em um tribunal.

— Não, eu sei. Mas tem certeza, Huish? Dentro de você, lá no fundo, tem certeza?

— Não tanta quanto eu gostaria de ter — respondeu tristemente o Inspetor Huish.

— Ah! Por quê?

— Por causa do tipo de homem que ele é, isto é, o Sr. Argyle.

— Não é do tipo que mata?

— Não tanto assim. Não é tanto o aspecto do assas­sinato que me preocupa. É o rapaz. Não consigo vê-lo deliberadamente tentando fazer o outro responder pelo crime.

— Lembre-se que não se trata realmente de um filho dele. Pode ser que não se importasse muito com Jacko, pode ser até que tivesse algum ressentimento contra ele por causa da afeição que a mulher prodigalizava às crianças.

— É possível. No entanto, ele parece realmente gostar de todos os filhos. Parece gostar deles.

— É claro — disse Finney, pensativo, — que ele sa­bia que o rapaz não seria enforcado...

Isso talvez fizesse alguma diferença.

— Bem, isso é uma possibilidade, senhor. Talvez jul­gasse que dez anos de cadeia — o que, afinal, é o que com uma sentença de prisão perpétua realmente significa, não seriam prejudiciais para o rapaz.

— E quanto à moça, Gwenda Vaughan?

— Se fosse ela — disse Huish, — não creio que sen­tisse qualquer remorso por causa de Jacko. As mulheres são impiedosas.

— De qualquer modo, você está razoavelmente con­vencido de que a coisa está entre esses dois.

— Razoavelmente, sim.

— Porém não mais do que isso? — insistiu o inspe­tor-chefe.

— Não. Há alguma coisa no ar. Uma espécie de mo­vimento subterrâneo.

— Explique-se melhor, Huish.

— O que eu realmente gostaria de saber, é o que eles mesmos pensam. Uns dos outros.

— Agora percebi. Pergunta-se se, lá entre eles, não sabem quem foi?

— É. E não consigo me decidir. Será que todos sa­bem? Será que concordaram em manter a coisa em segredo? Não creio. Acho até possível que cada um tenha uma idéia diferente. Pense só naquela sueca, é uma pilha de nervos. Tensa como uma corda de violino. É possível que seja por­que é culpada. Está naquela idade na qual as mulheres fi­cam com a cabeça meio perturbada, de um modo ou de ou­tro. Pode estar apavorada por si mesma ou por outra pessoa. Tenho a impressão, porém admito que posso estar enganado, que é por outra pessoa.

— Leo?

— Não, não creio que esteja preocupada por Leo. Acho que é por causa da moça, Hester.

— Não há motivo ostensivo, porém é uma passional, talvez até um pouco desequilibrada.

— E Lindstrom provavelmente sabe muito mais a res­peito dela do que nós.

— É. Depois ainda temos a escurinha que trabalha na biblioteca do condado.

— Ela não estava na casa naquela noite, estava?

— Não. Mas sabe de alguma coisa. Talvez saiba até quem foi que matou.

— Sabe? Ou tem um palpite?

— Ela está preocupada. Acho que não é só palpite. Huish continuou:

— E ainda há o outro rapaz, Micky. Também não es­tava lá, porém estava de carro e sem ninguém com ele. Diz ele que estava testando um carro lá para o lado das charnecas. Mas temos de aceitar sua palavra. Podia ter guiado até lá, entrado na casa, matado a mãe e ido embora novamente. Gwenda Vaughan disse uma coisa que não está em seu depoimento original. Disse que um carro passou por ela, na entrada da rua que dá na casa. Há quatorze casas naquela rua, de modo que o carro poderia estar indo pra qualquer uma delas e ninguém se vai lembrar, depois de dois anos, porém isso quer dizer que existe ao menos a possibilidade de o carro ser de Micky.

— E por que razão haveria ele de querer matar a mãe adotiva?

— Não há razão aparente que saibamos; mas pode ser que ela exista.

— Quem poderia saber?

— Todos eles poderiam saber — respondeu Huish. — Mas não haveriam de nos contar. Não se soubessem que nos estavam contando, quero dizer.

— Já estou percebendo suas intenções diabólicas — disse o Major Finney. — Em quem é que você está fazen­do planos de trabalhar?

— Creio que em Lindstrom. Se conseguir penetrar em suas defesas. Espero também descobrir se ela, pessoalmente, tinha algum ressentimento contra a Srª Argyle.

— Além do que ainda há aquele rapaz paralítico — acrescentou. — Philip Durrant.

— O que é que há com ele?

— Bem, eu tenho a impressão de que ele está come­çando a ter umas idéias sobre o caso. Não creio que queira compartilhá-las comigo, porém talvez consiga ter algum vis­lumbre do modo pelo qual sua cabeça está funcionando. Ele é um sujeito inteligente e aposto que é observador. É possível que tenha notado uma ou duas coisas interessantes.

 

— Vamos, Tina; vamos tomar um pouco de ar.

— Ar? — Tina olhou para Micky meio confusa. — Mas está tão frio, Micky. — Ela teve um pequeno arrepio.

— Acho que você detesta o ar fresco, Tina. É por isso que agüenta ficar trancada naquela biblioteca o dia inteiro.

Tina sorriu.

— Eu nunca me importo de ficar trancada no inverno. Na biblioteca está muito agradável e quentinho.

Micky olhou para ela.

— E aí fica, sentada, como um gatinho enrolado em frente à lareira. Mas mesmo assim vai fazer bem a você sair um pouco. Vamos, Tina. Eu quero falar com você. Eu quero, sei lá, apanhar um pouco de ar nos pulmões e es­quecer toda porcaria dessa história de polícia.

Tina levantou-se de sua cadeira com um movimento gracioso e preguiçoso que não deixava de sugerir o gato ao qual Micky acabara de compará-la.

No hall ela se embrulhou num casaco pesado de tweed com gola de pele e os dois saíram juntos.

— Você não vai vestir um casaco, Micky?

— Não. Eu nunca sinto frio.

— Brrr — fez Tina, delicadamente. — Como eu odeio este país no inverno. Eu gostaria de viajar, ir para um lugar onde o sol sempre brilhasse e o ar fosse úmido, suave e quente.

— Acabaram de me oferecer um emprego no Golfo Pérsico — disse Micky, — numa companhia de petróleo. Para ficar encarregado de todo o transporte rodoviário.

— E você vai?

— Acho que não... O que é que adianta?

Caminharam até os fundos da casa e depois começaram a descer em ziguezague pelo caminho através das árvores que acabaria por levá-los até à praia junto ao rio. A meio do. caminho, na descida, havia um pequeno pavilhão prote­gido do vento. Não se sentaram imediatamente, mas fica­ram parados em frente a ele, olhando a vista do rio.

— Isso aqui é lindo, não é? — disse Micky.

Tina examinou a vista com olhos sem curiosidade.

— É — respondeu — acho que é.

— Mas não sabe, não é? — disse Micky, olhando para ela com afeição. — Você não compreende a beleza, Tina; nunca compreendeu.

— Eu não me lembro — respondeu ela, — em todos os anos que nós moramos aqui, que você uma só vez apre­ciasse a beleza deste lugar. Estava sempre reclamando, que­rendo voltar para Londres.

— Isso era diferente — disse Micky rapidamente. — Isto aqui não era o meu lugar.

— Esse é o problema, não é? — disse Tina. — Você não pertence a lugar nenhum.

— Não pertenço a lugar nenhum — disse Micky um pouco estonteado. — É possível que seja verdade. Meu Deus, Tina, que pensamento assustador. Lembra daquela velha canção que Kirsten cantava para nós? Era sobre uma pomba. Bela pomba, doce pomba, pombinha do peito bran­co. Não se lembra?

Tina sacudiu a cabeça.

— É possível que ela a cantasse para você, mas, não, não me lembro de todo.

Micky continuou, meio falando, meio cantarolando.

— Minha querida, não tenho vida. Não tenho lar, não tenho chão. Nem na terra nem no mar. Senão em seu co­ração. — Ele olhou para tina. — Suponho que poderia ser verdade.

Tina pousou uma mãozinha pequena no braço dele.

— Venha, Micky; vamos sentar um pouco aqui. Fica protegido do vento, não fica tão frio.

Quando ele a obedeceu ela continuou:

— Será que você precisa ser sempre tão infeliz?

— Ora, criança, você não entende absolutamente nada de nada.

— Eu entendo muita coisa — disse Tina. — Por que você não consegue esquecer-se dela?

— Esquecer dela? Do que é que você está falando?

— Da sua mãe — disse Tina.

— Esquecer dela! — disse Micky amargamente. — E será que há muita chance de alguém se esquecer dela de­pois desta manhã, depois de todas aquelas perguntas? Quan­do uma pessoa é assassinada, nunca ninguém deixa que a gente esqueça dela!

— Não era isso que eu queria dizer — respondeu Tina. — Estava falando de sua mãe de verdade.

— E por que razão eu haveria de pensar nela? A úl­tima vez que eu a vi tinha seis anos!

— Mas você pensava nela, Micky. O tempo todo.

— Eu algum dia disse isso a você?

— Às vezes a gente sabe esse tipo de coisa — res­pondeu Tina.

Micky virou-se e olhou para ela.

— Você é uma criaturinha tão quieta e suave, Tina. Parece um gatinho preto. Fico com vontade de alisar o seu pêlo. Olha a gatinha! Que gatinha bonita!!! — A mão dele. afagou a manga do casaco dela.

Tina, sentada muito quieta, sorriu para ele enquanto ele afagava.

— Você não a odiava, não era, Tina? Todos nós ou­tros, sim — disse Micky.

— Isso era uma coisa muito feia — disse Tina. Sa­cudindo a cabeça como que com severidade, continuou: — Pense no que ela deu a vocês, a todos vocês. Um lar, ca­lor, bondade, boa comida, brinquedos, gente para cuidar de vocês, para protegê-los.

— Eu sei, eu sei — disse Micky, impaciente. — Pires de leite e muito afago no pêlo. Era só isso que você queria, não era, gatinha?

— Eu me sentia grata — disse Tina. — Nenhum de vocês sentiu a mínima gratidão.

— Será que você não compreende, Tina, que ninguém consegue ser grato só porque devia ser? Às vezes fica até pior, quando se sente à obrigação de ser grato. Eu não queria ser trazido para cá. Eu não queria viver em um am­biente de luxo. Eu não queria ser tirado do meu próprio lar, do meu próprio ambiente.

— Mas você poderia ter sido bombardeado — lembrou Tina. — Poderia ter sido morto.

— E que importância teria isso? Eu não me teria im­portado de morrer. Pelo menos teria morrido na minha ca­sa, cercado pela minha gente. Onde era o meu lugar. Pron­to, viu? Voltamos ao princípio da conversa. Não há nada pior do que não se pertencer a lugar nenhum. Mas você, gatinha, só se importa com coisas materiais.

— É possível que, de certo modo, isso seja verdade — disse Tina. — É possível que seja por isso que eu não sou como o resto de vocês. Não sinto esse estranho ressen­timento que vocês todos parecem sentir, principalmente vo­cê, Micky. Para mim foi fácil ser grata porque, é preciso que compreenda, eu não queria ser eu. Eu não queria ficar onde estava. Queria escapar de mim mesma. Queria ser ou­tra pessoa. E ela me transformou em outra pessoa. Ela me transformou em Christina Argyle, que tinha um lar e afei­ção. Fiquei segura. Protegida. Amava mamãe porque ela me deu todas essas coisas.

— E quanto à sua própria mãe? Nunca pensa nela?

— Por que haveria de pensar? Mal me lembro dela. Lembre-se que eu só tinha três anos quando vim para cá. Eu vivia assustada, aterrorizada, com ela. Todas aquelas bri­gas barulhentas com todos aqueles marinheiros. E ela mes­ma, eu creio, agora que já sou suficientemente crescida pa­ra tentar lembrar-me concretamente, devia estar quase sem­pre bêbeda. — Tina falava com uma voz distante, especula­tiva. — Não, eu não penso nela, nem me lembro dela. A Srª Argyle era a minha mãe. Este aqui é o meu lar.

— Para você é tão fácil, Tina.

— E por que é tão difícil para você? Por que você faz ficar difícil? Não era a Srª Argyle a quem você odiava, Micky; era a sua própria mãe. Não, eu sei que o que es­tou dizendo é verdade. E se você matou a Srª Argyle, co­mo é possível que tenha matado, foi à sua própria mãe que você matou.

— Tina! Mas de que raios você está falando?

— E agora — continuou Tina, falando muito calma­mente — você não tem mais a quem odiar. O que deixa você na mais completa solidão, não é? Mas você tem de aprender a viver sem ódio, Micky. Pode ser que seja difícil, mas é possível.

— Eu não sei do que é que você está falando. O que e que você está querendo dizer com essa história de que pode ser que eu a tenha matado? Você sabe perfeitamente que eu não estava nem perto daqui naquele dia. Eu estava testando o carro de um freguês lá para a estrada da charneca.

— Estava mesmo?

Ele se levantou e avançou até ficar junto ao limite da pequena esplanada que dominava toda a vista do rio, lá embaixo.

— Aonde é que você está querendo chegar, Tina? — Micky avançou por trás dela.

Tina apontou com o dedo, no sentido da praia.

— Quem são aqueles dois ali?

Micky lançou um olhar desinteressado.

— Hester e o amiguinho médico, eu acho — respon­deu ele. — Mas, Tina o que é que você está querendo di­zer? E pelo amor de Deus, não fique aí tão na beirada.

— Por quê? Fica com vontade de me empurrar? Não é difícil. Você sabe que eu sou muito pequena.

Micky disse, roucamente:

— Por que é que você diz que pode ser que eu tenha estado aqui naquela noite?

Tina não respondeu. Deu meia volta e começou a an­dar pelo caminho que levava de volta a casa.

— Tina!

— Eu estou preocupada, Micky. Estou muito preocupa­da com Hester e Don Craig — disse Tina com sua voz sua­ve e tranqüila.

— Deixe para lá Hester e o namorado dela.

— Mas eu me preocupo com eles. Temo que Hester esteja terrivelmente infeliz.

— Nós não estamos falando a respeito deles.

— Eu estou falando a respeito deles. É preciso que compreenda que eles importam.

— Tina, você acreditou esse tempo todo que eu estive aqui na noite em que mamãe foi assassinada?

Tina não respondeu.

— Mas naquela época você não disse nada.

— Por que haveria de dizer? Não era necessário. Que­ro dizer, era tão óbvio que o culpado tinha sido Jacko.

— E agora é igualmente óbvio que não foi Jacko quem a matou.

Tina acenou com a cabeça.

— E então? — perguntou Micky. — E então?

Ela não respondeu e continuou andando na direção da casa.

 

Na pequena praia do rio, Hester remexia a areia com a ponta do sapato.

— Não sei o que há que se possa dizer — falou ela.

— Nós temos de conversar sobre tudo isso — disse Don Craig.

— Não sei por quê... Falar a respeito das coisas nun­ca adianta nada, nunca melhora coisa nenhuma.

— Você podia ao menos me contar o que aconteceu hoje de manhã.

— Nada — respondeu Hester.

— Mas como... nada? A polícia esteve aqui, não es­teve?

— Ah, isso esteve.

— E então? Vocês foram todos interrogados?

— Exatamente — concordou Hester. — Fomos todos interrogados.

— Que tipo de pergunta fizeram?

— As de costume — disse Hester. — Na verdade, as mesmas de antes. Onde é que nós estávamos, o que fazíamos e qual foi a última vez que vimos mamãe viva. Fora de brincadeira, Don, eu não quero ficar mais falando nisso. Agora acabou.

— Mas não acabou, minha querida. Esse é que é o problema.

— Eu não compreendo por que razão você tem de ficar se preocupando. Você não está metido nessa encrenca!

— Mas, meu bem, eu quero ajudá-la. Será que não compreende?

— Muito bem, pois ficar falando nisso só serve para me atrapalhar. Eu só quero esquecer. Se você me ajudasse a esquecer era diferente.

— Hester, minha querida, não adianta ficar fugindo das coisas. Você tem de enfrentar a realidade.

— Desde manhã que eu não faço outra coisa senão enfrentar a realidade, como você diz.

— Hester, eu a amo. Você sabe disso, não sabe?

— Acho que sim — disse Hester.

— O que quer dizer com “acho que sim”?

— É que você fica falando sem parar na mesma coisa.

— Porém eu tenho de fazê-lo.

— Não sei por que. Você não é da polícia.

— Quem foi a última pessoa a ver sua mãe viva?

— Fui eu — respondeu Hester.

— Eu sei. Foi logo antes das sete, não foi, quando você saiu para me encontrar?

— Logo antes de eu sair para ir ao teatro em Drymouth.

— Muito bem, e eu estava no teatro em Drymouth, não estava?

— Claro que estava.

— E naquela época você sabia, não sabia, Hester, que eu a amava?

— Não tinha certeza — disse Hester. — Naquela épo­ca eu nem sequer tinha certeza de que estivesse começando a amá-lo.

— Você não tinha nenhuma razão, nenhuma razão neste mundo, para querer matar sua mãe?

— Razão, mesmo, não.

— O que quer dizer com “razão, mesmo”?

— Eu muitas vezes pensava em matá-la — disse Hes­ter, com voz muito objetiva. — Eu costumava dizer: “Eu queria que ela morresse. Eu queria que ela morresse”. E às vezes — continuou ela, — eu sonhava que a tinha ma­tado.

— E de que forma você a matava em seus sonhos?

Por um instante Don Craig havia deixado de ser o apaixonado para ser o jovem médico interessadíssimo.

— Às vezes dava um tiro nela — respondeu Hester alegremente, — e às vezes batia na cabeça dela.

O Dr. Craig gemeu.

— Mas era só sonho — explicou Hester. — Eu te­nho sonhos violentos com muita freqüência.

— Escute, Hester. O rapaz tomou as mãos dela entre as dele. — Você precisa me contar a verdade. Tem de ter confiança em mim.

— Eu não entendo o que é que você está falando.

— A verdade, Hester. Eu quero a verdade. Eu a amo... e ficarei sempre a seu lado. Se... se foi você quem a ma­tou... eu creio que posso descobrir quais foram as razões. E não creio que tenha sido exatamente culpa sua. Compre­endeu? Certamente eu jamais iria à polícia para contar. Fi­caria uma coisa estritamente entre nós dois. Ninguém mais sofreria. O caso todo vai acabar morrendo por falta de provas. Mas eu tenho de saber. Ele deu grande ênfase às últimas palavras.

Hester estava olhando para ele. Seus olhos estavam arregalados, quase que fora das órbitas.

— O que é que você está querendo que eu lhe diga?

— Eu quero que você me diga a verdade.

— Você acha que já sabe a verdade, não é? Você acha que... que eu a matei.

— Hester, meu amor, não olhe assim para mim. — Ele a tomou pelos ombros e a sacudiu levemente. — Eu sou médico, compreendo as razões por trás de coisas como essa. Eu sei que nem sempre as pessoas podem ser responsabili­zada por seus atos. Eu sei como você realmente é, doce e amorosa e essencialmente correta. Estou pronto a ajudá-la. Nós nos casamos e depois disso seremos felizes. Você nunca mais vai precisar se sentir perdida, rejeitada, reprimida. A coisas que nós fazemos geralmente nascem de razões que a maior parte das pessoas não compreende.

— Isso é exatamente o que nós todos ficamos dizendo a respeito do Jacko, não é? — perguntou Hester.

— Esqueça o Jacko. É em você que eu estou pensan­do. Eu a amo muito, Hester, porém tenho de saber a ver­dade.

Um sorriso muito lento, de pouco caso, curvou aos poucos para cima os cantos da boca de Hester.

— A verdade? — disse ela.

Hester virou a cabeça e olhou para o alto.

— Lá está Gwenda me chamando. Deve ser hora do almoço.

— Hester!

— Será que você me acreditaria se eu dissesse que não a matei?

— Mas é claro que. . . que acreditaria.

— Sabe que eu acho que não?

Ela lhe deu rapidamente as costas e começou a correr na direção da casa. Ele fez um movimento como se a fosse seguir, depois desistiu.

— Que inferno! — disse Donald Craig. — Que infer­no!

— Mas eu ainda não quero ir para casa — disse Phi­lip Durrant. Falava com irritação queixosa.

— Mas Philip, agora não há mais nenhuma razão pa­ra nós ficarmos aqui. Quero dizer, nós tivemos de vir para discutir o assunto com o Sr. Marshall e esperar o interro­gatório policial. Mas, agora, não há nada que nos impeça de ir imediatamente para casa.

— Eu acho que seu pai fica muito contente se nós demorarmos mais um pouco — disse Philip, — porque gosta de ter alguém para jogar xadrez de noite. Ele é sensacional no xadrez. Eu sempre pensei que jogava bem, mas ainda não consegui ganhar dele uma só vez.

— Papai pode encontrar outra pessoa para jogar xa­drez com ele — respondeu Mary secamente.

— Como? Mandando buscar alguém no Instituto Femi­nino?

— Seja como for, está na hora de irmos para casa. Amanhã é dia de a Srª Carden polir os metais.

— Polly, a perfeita dona-de-casa! — disse Philip, rin­do. — Mas será que a tal da dona fulana não é capaz de polir os metais sem a sua presença? Porque, caso contrário, então será melhor passar um telegrama dizendo que ela terá de deixar os metais ficarem sujos mais uma semana.

— Ora, Philip; você não compreende nada a respeito de serviço doméstico, não sabe como tudo é difícil.

— Não creio que seja tão difícil a não ser que se faça uma dificuldade. O fato é que eu quero ficar aqui mais uns dias.

— Ora, Philip — disse Mary exasperada, — eu de­testo tanto isto aqui.

— Por quê?

— É tão triste, tão deprimente... sem contar com tudo o que aconteceu aqui. O assassinato e tudo o mais.

— Ora vamos, Polly, não me diga que você virou uma pilha de nervos por causa desse tipo de coisa. Tenho a certeza de que você enfrenta qualquer assassinato sem dei­xar um fio de cabelo sair do lugar. Não, você quer ir para casa porque quer ver os metais serem bem polidos, para espanar tudo e ter certeza de que as traças não pegaram seu casaco de pele.

— Traça não aparece em casaco de pele no inverno — respondeu Mary.

— Bem, mas você sabe do que eu estou falando, Pol­ly. Falei de um modo geral. Mas quero que compreenda que, para mim, aqui é muito mais interessante.

— Mais interessante do que ficar na nossa própria ca­sa? — Mary parecia chocada e realmente magoada.

Philip lançou-lhe um olhar rápido.

— Desculpe, querida. Escolhi mal as palavras. Nada poderia jamais ser mais agradável que nossa casa, que você fez realmente encantadora. É confortável, arrumada, atraen­te. Sabe, seria tudo muito diferente se eu fosse, bem, se eu fosse como era antigamente. Quero dizer, eu teria mil coi­sas para fazer, o dia inteiro. Ia passar o tempo todo inven­tando toda espécie de coisa. E a casa seria perfeita para eu voltar para ela todos os dias e encontrar você lá, fazendo daquilo nosso lar. E você então me contaria tudo o que havia feito durante o dia. Mas compreenda que agora é di­ferente.

— Ora, eu sei que, sob esse aspecto, é diferente — disse Mary. — Não pense que eu jamais me esqueço disso, Phil. Eu me preocupo. Muito, mesmo.

— Eu sei — disse Philip, falando quase que entre os dentes. — Eu sei, você se preocupa até demais, Mary. Preocupa-se tanto que às vezes faz até com que eu me preocupe ainda mais: Tudo o que eu quero é me distrair e — não! — ele levantou a mão — não me diga que eu posso dis­trair-me com jogos de armar ou todas aquelas geringonças que fazem parte da terapia ocupacional ou com visitas ou leituras infindáveis. Eu tenho uma vontade tão grande de poder enfiar os dentes em alguma coisa! E aqui, nesta casa, há qualquer coisa na qual eu posso fincar os dentes.

— Philip — Mary chegou a prender a respiração, — você não continua a pensar naquilo, naquela idéia que você teve?

— Em brincar de Busca ao Assassino? — perguntou Philip. — Assassinato, assassinato, quem terá assassinado? É verdade, Polly, seu palpite está bastante correto. Quero desesperadamente descobrir quem é o culpado.

— Mas por quê? Como é que você vai poder saber? Se alguém arrombou a porta ou a encontrou aberta...

— Você ainda insiste na teoria do estranho? — per­guntou Philip. — Não funciona, minha querida. O velho Marshall fez o que pôde para inventá-la. Mas na realidade ele só estava tentando nos ajudar a “salvar a pele”. Nin­guém acredita nessa beleza de teoria. Ela simplesmente não é verdadeira.

— Então você tem de compreender que, se não é ver­dade — interrompeu-o Mary, — se a teoria não é verda­deira... se realmente foi, como você diz, um de nós, então eu não quero saber. Saber por quê? Não será... não será mil vezes melhor para nós não saber?

Philip Durrant olhou-a indagador.

— Está escondendo a cabeça na areia, Polly? Será que você não tem um mínimo de curiosidade natural?

— Estou-lhe dizendo que não quero saber! Acho que tudo isso é horrível. Eu quero esquecer de tudo e nunca mais pensar nisso.

— Você não gostava o suficiente de sua mãe para querer saber quem a matou?

— E o que é que ia adiantar saber quem a matou? Durante dois anos nós todos ficamos perfeitamente conven­cidos que tinha sido Jacko.

— É — disse Philip — foi maravilhoso como nós to­dos nos convencemos com tanta facilidade.

Sua mulher olhou-o desconfiada.

— Eu, eu não compreendo o que é que você está querendo dizer, Philip.

— Será que você não compreende, Polly, que de cer­to modo isso é um desafio para mim? Um desafio à minha inteligência? Não estou querendo dizer que eu tenha sentido a morte de sua mãe de modo muito intenso, ou que gos­tasse muito dela. Nem por isso. Ela fez o que pôde para impedir que você casasse comigo. Porém eu não tinha ne­nhum ressentimento contra ela, porque no fim consegui o que queria, não consegui? Não, não é por vingança, não é sequer por alguma paixão pela justiça. Eu acho que é... que é apenas curiosidade, muito embora pode ser que haja algum aspecto um pouco mais nobre no que sinto.

— É o tipo de coisa na qual você não devia introme­ter-se — disse Mary. — Não há nenhuma vantagem em vo­cê querer se meter nisso. Por favor, Philip, não faça isso. Vamos para casa, vamos esquecer de tudo.

— Bem — disse Philip, — você, se quiser, pode ar­rastar-me para onde bem entender, não pode? Porém eu quero ficar aqui. Será que algumas vezes não tem vontade que eu faça o que eu quero fazer?

Mary olhou para ele meio confusa.

— Eu nunca sei quando você está falando sério.

— Deixando de lado a curiosidade — disse Philip Durrant, — alguém devia descobrir o que aconteceu, sabe?

— Por quê? O que é que adianta? Só irão conseguir mandar outra pessoa para a prisão. Acho a idéia horrível.

— Você não compreendeu — retrucou Philip. — Eu não disse que entregaria seja quem for o culpado (se chegasse a descobrir quem foi ele) à polícia. Não creio que o fizesse. É claro que depende das circunstâncias. Certa­mente não adiantaria nada entregá-lo à polícia porque, mui­to provavelmente, jamais encontraria provas suficientes.

— Então, se não vão haver provas suficientes — cor­tou Mary, — como é que você vai poder descobrir o que quer que seja?

— Porque há muitos modos de se descobrir as coisas, de se ter certeza, uma vez por todas. E eu acho, sabe, que se está tornando realmente necessário saber. As coisas não estão indo muito bem nesta casa e daqui a pouco ainda vão ficar muito piores.

— Piores como?

— Você não tem notado nada, Polly? E quanto a seu pai e Gwenda Vaughan?

— O que é que tem eles? Também por que razão meu pai haveria de querer casar-se de novo na idade dele...

— Pois eu compreendo muito bem — respondeu Phi­lip. — Afinal, o casamento dele não foi lá grande coisa. E agora ele tem a chance de ser realmente feliz. Uma feli­cidade outonal, se quiser, mas que existe. Ou que, pelo me­nos, existia. As coisas não estão indo muito bem entre eles agora.

— Bem, eu acho que com tudo isso... — disse Mary, vagamente.

— Exatamente — disse Philip. — Com tudo isso. Eles estão sendo afastados um do outro cada vez mais. E pode­ria haver duas razões para isso. Suspeita ou culpa.

— Suspeita de quem?

— Bem, poderíamos dizer que um do outro. Ou sus­peita por parte de um e consciência de culpa por parte do outro, ou vice-versa, ou qualquer outra fórmula que se qui­ser inventar.

— Pare com isso, Philip. Você está me deixando toda confusa. — Repentinamente um leve tom de animação apareceu no comportamento de Mary. — Quer dizer que você acha que foi Gwenda? — perguntou. — É possível que tenha razão. Que maravilha se fosse Gwenda.

Coitada da Gwenda. Você quer dizer, só porque ela não é da família?

— É — respondeu Mary. — Quero dizer porque, nes­se caso, não seria um de nós.

— É só isso que preocupa você, não é? O efeito que possa ter para nós.

— É claro — disse Mary.

— É claro, é claro — disse Philip, irritado. — O seu problema, Polly, é que você é totalmente destituída de ima­ginação. Não tem a capacidade de se colocar no lugar de qualquer outra pessoa.

— E por que haveria de me colocar?

— É mesmo; por quê? — disse Philip. — Acho que se fosse inteiramente honesto diria que apenas para passar o tempo. Porém eu sou capaz de me colocar no lugar de seu pai, ou no de Gwenda, e perceber que, se eles forem inocentes, devem estar passando o diabo. Que inferno deve ser para Gwenda ser, de repente, mantida a distância. Sa­ber, no fundo do coração, que, afinal, não vai ser possível ela casar com o homem que ama. Depois, ponha-se no lu­gar de seu pai. Ele sabe, e nem poderia deixar de saber, que a mulher a quem ama teve tanta oportunidade quanto motivo para cometer o crime. Ele espera que ela não o tenha cometido, ele acha que ela não o cometeu, mas não tem certeza. Pior ainda, ele jamais terá certeza.

— Na idade dele... — começou Mary.

— Ora, na idade dele, na idade dele — disse Philip, com impaciência. — Será que você não compreende que ainda é pior na idade dele? É o último amor de sua vida. Não é provável que encontre outro. Este é profundo. E, de um outro ponto de vista — continuou ele, — suponha que o Leo tenha, uma vez na vida, saído do mundo nevoento, sombrio e reprimido no qual sempre viveu. Suponha que ele tenha abatido a mulher. Quase que dá para se ter pena do pobre diabo, não dá? Não — acrescentou ele, meditativo — que me ocorra por um instante que ele pos­sa ter feito nada disso. Porém estou convencido de que é possível que a polícia ache que sim. Mas, como é, Polly; o que é que você acha? Quem é que você acha que é culpado?

— Como é que eu posso ter a menor idéia?

— É possível que não possa saber — disse Philip, — porém é possível que, se se desse ao trabalho de pensar, pudesse até chegar a ter uma boa idéia.

— Estou dizendo que me recuso a pensar no caso.

— Mas por quê... Será só por aversão? Ou será por causa de alguma coisa que você sabe? É possível que essa sua mente gélida tenha absoluta certeza... Tanta certeza que você se recuse a pensar no assunto, que não me queira contar. Será que você está pensando em Hester?

— E por que razão haveria Hester de querer matar mamãe?

— Razão, mesmo, não existe, existe? — disse Philip pensativo. — Mas, sabe, a gente lê a respeito de coisas des­se tipo. Um filho ou filha é bem cuidado, até mesmo es­tragado e, de repente, um dia, acontece uma coisinha idio­ta, simples. Pais dedicados que dizem que não vão dar dinheiro para o cinema ou para um par de sapatos novos, ou que dizem que se ela sair com o namorado tem de estar em casa às dez horas. Não precisa ser nada de importante, porém desencadeia um processo que estava dormente e re­pentinamente o adolescente em questão tem algum tipo de descontrole e ataca com um martelo ou um machado, até mesmo com um atiçador, e pronto. É sempre difícil de ex­plicar, porém acontece. É o clímax de um longo processo de rebelião reprimida. Esse é um tipo de comportamento que não seria difícil encontrar em Hester. Você sabe que o problema com Hester é que nunca se sabe o que está acontecendo naquela linda cabeça. É claro que ela é fraca, porém se ressente dessa fraqueza. E sua mãe era do tipo de pessoa que a faria ficar ainda mais cônscia dessa fra­queza. É — disse Philip, debruçando-se para a frente com grande animação, — creio que é possível armar um caso bastante forte contra a nossa Hester.

— Ora, quer fazer o favor de parar de ficar falando nisso! — exclamou Mary.

— Sem dúvida que vou parar de falar — respondeu Philip. — Falar não me leva a parte alguma. Ou será que leva? Afinal, é preciso que resolvamos em nossa própria mente qual poderia ser o desenho geral do assassinato e ten­tar aplicar tal desenho a cada uma das pessoas envolvidas. Depois de resolver exatamente como se devem ter passado as coisas, então pode-se começar a planejar pequenas arma­dilhas, para ver quem cai nelas. — Só havia quatro pessoas na casa — disse Mary. — Você fala como se fosse mais de meia dúzia. Concordo com você em pensar que papai jamais faria uma coisa dessas. E é absurdo pensar que Hes­ter pudesse ter qualquer razão para fazer coisas desse tipo. O que nos deixa Kirsty e Gwenda.

— E qual das duas você prefere? — perguntou Philip, em tom ligeiramente debochado.

— Não consigo realmente conceber Kirsty fazendo uma coisa assim — respondeu Mary. — Sempre foi tão pa­ciente, tão equilibrada. E realmente devotada a mamãe. Claro que podia ficar maluca de repente. Sempre se ouve falar de casos assim, porém ela nunca praticou nada que a fizesse parecer maluca.

— Não — disse Philip pensativo. — Eu diria que Kirsty é uma mulher muito comum, o tipo de mulher que gostaria de ter a vida normal de uma mulher. De certo modo ela é do mesmo tipo que Gwenda, só que Gwenda é bonita e atraente, enquanto que a pobre da Kirsty parece uma empada. Não creio que jamais um homem a tenha olhado duas vezes. Mas bem que ela teria gostado que a olhassem. Ela gostaria de se ter apaixonado e casado. Deve ser um inferno para uma mulher nascer feia e sem graça, principalmente quando não tem talento ou inteligên­cia para compensar. A verdade é que ela está aqui há tem­po demais. Ela devia ter ido embora depois da guerra, para retomar sua profissão de massagista. Quem sabe ela não teria conseguido agarrar algum cliente velhote?

— Você é como todos os homens — disse Mary. — Acha que as mulheres só pensam em se casar.

Philip riu.

— Continuo a pensar que é a primeira escolha de qualquer mulher — disse ele. — Por falar nisso, Tina não tem namorado?

— Não que eu saiba — disse Mary. — Mas ela nun­ca fala a respeito de sua vida.

— Não; ela é um ratinho, não é? Não é exatamente bonita, porém é muito graciosa. Eu me pergunto o que ela saberá a respeito desse problema.

— Não creio que saiba coisa nenhuma.

— Não? — perguntou Philip. — Pois eu acho que sabe.

— Ora, você fica aí imaginando coisas.

— Não estou imaginando coisa nenhuma. Você não ouviu o que ela disse? Que esperava não saber coisa ne­nhuma. É uma maneira muito estranha de colocar o assun­to. Aposto que ela sabe alguma coisa.

— Que tipo de coisa?

— Possivelmente alguma coisa que se enquadra no to­do, mas que ela não sabe exatamente onde. Espero conse­guir arrancar seja o que for dela.

— Philip!

— Não adianta, Polly. Eu tenho uma missão na vida. Convenci-me de que é de interesse público que eu me de­dique a ela. Por onde será que devo começar? Acho que o melhor é pegar a Kirsty primeiro. Sob vários aspectos ela é uma alma simples.

— Eu queria... como queria! — disse Mary, — que você desistisse de toda essa idéia louca e fosse para casa. Nós estávamos tão felizes. Tudo estava indo tão bem... — Sua voz quebrou e ela virou para o outro lado.

— Polly! — Philip estava preocupado. — Você se importa tanto assim? Eu não sabia que você estava tão perturbada.

Mary girou, com esperança no olhar.

— Quer dizer que você vai voltar para casa e esque­cer de tudo?

— Eu não poderia esquecer — disse Philip. — Eu continuaria a me preocupar, a ruminar e a pensar. Vamos ficar aqui pelo menos até o final da semana, Mary; depois disso, veremos.

— Você se importa que eu ainda fique aqui um pou­co, papai? — perguntou Micky.

— Claro que não. Fico muito contente. Não haveria problemas com a sua firma?

— Tudo em ordem — respondeu Micky. — Já tele­fonei e só preciso voltar na semana que vem. Eles têm sido muito decentes nisto tudo. Tina também vai ficar para o fim de semana.

Ele foi até à janela, olhou para fora, depois atraves­sou a sala de mãos nos bolsos, olhando para as estantes. De repente falou, com a voz meio esquisita, encabulada.

— Sabe, papai, eu aprecio realmente tudo o que vocês fizeram por mim. Nestes últimos tempos eu compreendi... bem, compreendi como tinha sempre sido tão ingrato.

— Mas não há por que falar em gratidão — disse Leo Argyle. — Você é meu filho, Micky. Foi assim que eu sem­pre pensei em você.

— Pois é uma maneira muito estranha de tratar um filho — disse Micky. — Não me lembro de você jamais me ter dado ordens.

Leo Argyle sorriu seu sorriso distante e misterioso.

— E você acha mesmo que essa é a única função de um pai? Dar ordens aos filhos?

— Não — respondeu Micky. — Acho que não é. De­pois — continuou precipitadamente, — eu tenho sido um imbecil. De certo modo é engraçado. Sabe o que é que eu estou com vontade de fazer? O que eu acho que vou fazer? Aceitar um emprego com uma companhia de petróleo do Golfo Pérsico. E era isso que mamãe queria que eu tivesse feito, desde o princípio, trabalhar numa companhia de pe­tróleo. Mas naquele tempo eu não queria nem pensar nis­so! Tinha que inventar uma coisa minha.

— Você estava na idade — ponderou Leo, — de que­rer escolher sozinho, de odiar que outra pessoa escolhesse por você. E você sempre foi um pouco assim, Micky. Se nós queríamos comprar um suéter vermelho, você teimava que queria azul, mesmo que no fundo você quisesse mesmo o vermelho.

— Eu sei — disse Micky com um breve sorriso. — Eu sempre fui um tipo meio insatisfeito.

— Só jovem — respondeu Leo. — Ainda querendo empinar. Com medo do freio, da sela, de qualquer tipo de controle. Todos nós nos sentimos assim a algum ponto da vida mas, no fim, todos nós acabamos aceitando.

— É, eu acho que sim — disse Micky.

— Estou muito contente — disse Leo, — que esteja fazendo esses planos para o futuro. Eu realmente nunca pensei que vender carro e guiar daqui para ali fosse sufi­ciente para você. Não é nada de mau, porém não leva a nada.

— Eu gosto de carros — disse Micky. — Gosto de sentir o carro rendendo o máximo. E sei passar a cantada adequada no comprador quando é necessário; mas sei mes­mo. O emprego que eu estou passando é ligado a trans­portes, também. Supervisão e manutenção de carros. É um cargo bastante importante.

— E você sabe — disse Leo, — que a qualquer mo­mento que você quiser investir em alguma coisa, comprar um negócio que ache que valha a pena, sabe que tem di­nheiro para isso. Você sabe da existência do Fundo. E eu estou disposto a— autorizar qualquer soma necessária desde que as condições no negócio sejam boas. É só pedir que uma firma faça a sindicância. Mas o dinheiro está aí, quan­do você achar que precisa.

— Obrigado, papai, mas eu não quero ficar sugando você.

— Não há o que sugar, Micky, o dinheiro é seu. Ele foi definitivamente transferido para você e seus irmãos. A única coisa que eu tenho é a autoridade para dizer que sim, ou que não, na ocasião exata. Porém o dinheiro não é meu e nem eu o estou dando a você. Ele é seu.

— Na realidade, é de mamãe — disse Micky.

— O Fundo foi criado há muitos anos.

— Eu não quero nada dele! — disse Micky. — Re­cuso-me a, tocar nele! Não posso! Do jeito que as coisas es­tão agora, simplesmente não posso! — Ele enrubesceu um pouco quando encarou o pai. E disse, com segurança. — Não era bem isso que eu queria dizer.

— Mas por que não pode tocá-lo? Nós o adotamos. Isto é, assumimos responsabilidade total por você, tanto fi­nanceira quanto qualquer outra. Foi feita uma transação se­gundo a qual nós o criaríamos como nosso próprio filho, providenciando por toda a sua vida.

— Eu quero fazer tudo por mim mesmo — respondeu Micky.

— É. Já percebi... Muito bem, Micky; mas se por acaso algum dia mudar de idéia, lembre-se que ele está à sua espera.

— Obrigado, papai. Ainda bem que me compreende. Ou, pelo menos, se não compreende, me deixa fazer o que eu quero. Eu queria saber explicar melhor. Sabe, eu não quero parecer que estou lucrando, eu não posso lucrar, raios, é tão difícil falar nisso.

Houve uma batida na porta que mais parecia um tran­co.

— Acho que é o Philip — disse Leo. — Quer fazer o favor de abrir a porta para ele, Micky?

Micky foi abrir a porta e Philip, manobrando sua ca­deira de rodas, conseguiu chegar até o meio da sala. Saudou os dois com um sorriso alegre.

— O senhor está muito ocupado? — perguntou ele a Leo. — Se estiver, é só dizer que eu fico quietinho dando uma espiada nas estantes.

— Não — respondeu Leo; — hoje de manhã não estou fazendo nada.

— Gwenda não veio? — perguntou Philip.

— Ela telefonou que estava com muita dor de cabeça e não poderia vir hoje — respondeu Leo. Sua voz não ti­nha qualquer expressão.

— Ah — comentou Philip.

— Bem eu vou ver se desencavo a Tina para obrigá-la a ir dar um passeio. Aquela menina precisa de ar fresco — disse Micky.

Saiu da sala com um andar leve e alegre.

— Estou enganado — perguntou Philip, — ou Micky anda mudado ultimamente? Ele não está mais tão zangado com o mundo quanto costumava estar, não é?

— Está ficando adulto — respondeu Leo. — E levou mais tempo do que deveria ter levado.

— Pois escolheu uma hora estranha para se animar — disse Philip. — A reunião de ontem com a polícia não foi exatamente encorajadora, não acha?

— É claro que é muito doloroso ver o caso ser rea­berto — disse Leo tranqüilamente.

— Um rapaz como Micky, por exemplo — continuou Philip, fazendo a cadeira rodar entre as estantes, puxando, a esmo, um livro aqui outro ali, — o senhor diria que ele é particularmente dotado de consciência?

— Essa pergunta é muito estranha, Philip.

— Nem tanto. Estava apenas pensando a respeito dele. Dá-me a impressão dessas pessoas que não têm ouvido para música. Há um certo tipo de indivíduo que não tem qual­quer capacidade para sentir culpa ou remorso, para sequer lamentar uma ou outra ação. Jacko era desses.

— Realmente — concordou Leo, — Jacko sem dúvida era desses.

— E eu me perguntava a respeito de Micky — acres­centou Philip. Fez uma pausa, depois continuou, em tom neutro. — O senhor se importa que eu lhe faça uma pergun­ta? Quanto o senhor realmente sabe a respeito dos antece­dentes de toda essa sua família adotada?

— E por que razão você está querendo saber, Philip?

— Creio que por pura curiosidade. Sempre se fica ima­ginando, é claro, qual é o peso da hereditariedade.

Leo não respondeu. Philip observava-o com os olhos brilhando de interesse.

— Talvez — disse, finalmente, — eu o esteja impor­tunando com esse tipo de pergunta.

— Ora — respondeu Leo, levantando-se, — e por que não haveria você de perguntar? Você é da família. Neste momento não há como negar que são perguntas altamente pertinentes. Porém a nossa família, como você diz, não foi adotada no sentido usual do termo. Mary, sua mulher, foi adotada legal e formalmente, porém os outros entraram para ela de modo muito menos formal. Jacko era um órfão que nos foi entregue por uma velha avó. Ela morreu nos bombardeios e ele ficou conosco. Só isso. Micky era ilegítimo, O único interesse da mãe eram homens. Pediu cem libras e nós as demos. Nunca soubemos que fim levou a mãe de Tina. Ela jamais escreveu para a filha e nunca a veio bus­car depois da guerra. Não foi possível descobrir seu para­deiro.

— E Hester?

— Hester também era ilegítima. Sua mãe era uma jo­vem enfermeira irlandesa que se casou com um soldado americano pouco depois de Hester vir para nós. Ela nos im­plorou que ficássemos com a criança. Não pretendia dizer nada ao marido a respeito de seu nascimento. Foi com o marido para os Estados Unidos no final da guerra e nunca mais tivemos notícias dela.

— São todas histórias bem trágicas, cada uma a seu modo. Todos eles não passam de pobres diabos que nin­guém queria.

— Isso mesmo — concordou Leo. — E era isso que fazia com que Rachel fosse tão loucamente apaixonada por eles. Tinha uma vontade inabalável de fazer com que se sentissem queridos, de lhes dar um verdadeiro lar, de ser realmente mãe deles.

— Foi um gesto maravilhoso — disse Philip.

— Mas acontece... que nunca as coisas se deram exa­tamente como ela esperava — retrucou Leo. — Para -ela era ponto pacífico que o sangue não contava. Po­rém, como você sabe, o sangue conta. Geralmente há qual­quer coisa em nossos próprios filhos, algum detalhe de tem­peramento, alguma forma de reação ante certas coisas, que reconhecemos e compreendemos mesmo quando não conse­guimos expressá-lo. Todavia não existe esse tipo de ligação com crianças adotadas. Não se tem nenhum conhecimento instintivo do que se passa na cabeça deles. Usamos os mes­mos critérios de julgamento que usamos para nós mesmos, é claro, mas esquecemos que nossos pensamentos, nossas emoções, podem ser radicalmente diferentes dos deles.

— Creio que o senhor sempre teve consciência disso — disse Philip.

— E tentei avisar Rachel — disse Leo, — porém ela não acreditou. Não queria acreditar. Ela sempre quis que eles fossem realmente filhos dela.

— Tina sempre me pareceu um tipo estranho — co­mentou Philip. — Talvez seja a metade dela que não é branca. Alguém sabe quem foi o pai dela?

— Acho que foi um marinheiro. Possivelmente hindu. A mãe — disse ele, secamente, — não sabia exatamente.

— Nunca se sabe como ela reage ante as coisas, ou o que pensa a respeito delas. Fala tão pouco. — Philip fez uma pausa, depois disparou uma pergunta: — O que é que ela sabe a respeito de tudo isto que não quer dizer?

Ele observou a mão de Leo Argyle, que tinha estado mexendo em uns papéis, parar. Houve um momento de pau­sa, depois Leo respondeu:

E por que razão haveria você de achar que ela não está contando tudo o que sabe?

Vamos, vamos; é bastante óbvio.

Para mim não é nada óbvio — disse Leo.

Ela sabe de alguma coisa — insistiu Philip. — Será alguma coisa que poderá prejudicar alguém em parti­cular?

Eu creio, Philip, se me permite dizê-lo, que não é bom especular a respeito dessas coisas. É muito fácil ficar imaginando o que não existe.

O senhor está me aconselhando a me afastar do assunto, Sr. Argyle?

Será que ele é realmente da sua conta, Philip?

Com isso o senhor quer dizer que eu não sou da polícia?

Era exatamente isso o que eu queria dizer. A polícia tem de cumprir o seu dever. É obrigação deles ficar inves­tigando esses problemas.

Enquanto que o senhor não tem vontade de inves­tigá-los?

É possível — respondeu Leo — que eu tenha medo do que possa descobrir.

As mãos de Philip contraíram-se, excitadas, nos braços da cadeira quando ele perguntou suavemente:

Talvez o senhor saiba quem é o culpado. Sabe?

Não.

O vigor e a rapidez da resposta de Leo assustaram Phi­lip.

Não — repetiu Leo, baixando violentamente a mão sobre a mesa. Repentinamente ele não era mais a personalida­de frágil, difusa, reclusa, que Philip conhecia tão bem. — Não sei quem foi! Está escutando? Não sei. Não tenho a menor idéia. E não quero, eu não quero saber.

— E o que é que você está fazendo, Hester querida? — perguntou Philip.

Ele estava empurrando sua cadeira de rodas pelo cor­redor. Hester estava debruçada na janela que existia mais ou menos a meio do caminho. Ela levou um susto e recolheu a cabeça.

— Ah, é você.

— Você estava contemplando o universo ou pensando em suicídio? — perguntou ele.

Ela lhe lançou um olhar desafiador.

— E o que o leva a sugerir coisas assim?

— O fato de obviamente sé tratar de algo no gênero — respondeu Philip. — Porém, para falar a verdade, Hester, se for suicídio, gostaria de dizer que essa janela não serve. A altura não é suficiente. Já pensou como seria horrível aca­bar com um braço ou uma perna quebrados, ao invés de atingir o esquecimento completo com o qual sonha?

— Micky costumava usar esta janela para descer pela magnólia. Era o caminho secreto dele para entrar e sair de casa. Mamãe nunca descobriu.

— Quanta coisa os pais nunca descobrem! Dava para encher um livro! Mas se você está pensando em suicídio, Hes­ter, lá perto do pavilhão há um local muito melhor para se pular.

— De onde se vê o rio? Realmente, aquele dá para arrebentar qualquer um.

— Seu problema. Hester, e ter uma imaginação extre­mamente melodramática. A maior parte das pessoas se con­tenta em se liquidar com muita compostura botando a cabeça no forno ou ingerindo um número surpreendente de pílulas.

— Ainda bem que você está aqui — disse Hester inesperadamente. — Você não se importa de discutir as coisas, não é?

— Bem, para falar a verdade, hoje em dia não me so­bra muito mais o que possa fazer — respondeu Philip. — Vamos para o meu quarto e lá nós podemos conversar um pouco mais.

Ao ver que ela hesitava, disse: — Mary está lá em­baixo; foi preparar alguma maravilhosa goma, que fará bem eu engolir durante a manhã, com suas próprias mãozinhas.

— Mary não compreenderia — disse Hester.

— Não — concordou Philip. — Mary não compreen­deria nem um pouco.

Philip foi rodando a cadeira e Hester caminhava a seu lado. Ela abriu a porta da sala-de-estar do casal e ele en­trou rodando sozinho a cadeira.

— Mas você compreende — concluiu Hester. — Por quê?

— Bem, há certos momentos, sabe, em que se pensa em coisas assim... Logo que isto aconteceu comigo, por exem­plo, e eu soube que ficaria inválido para o resto da vida...

— Eu sei — cortou Hester. — Deve ter sido uma coisa horrível. Horrível. E você era piloto, não era? Você não voava?

— Voava lá no alto, como uma bandeja pendurada no céu — concordou Philip.

— Eu sinto muito — disse Hester. — Muito mesmo. Eu devia ter pensado mais nisso, para ter sido mais compre­ensiva!

— Ainda bem que não foi — respondeu Philip. — Essa fase já passou. A gente se acostuma a qualquer coisa, sabe? Isso, Hester, é uma coisa que, no momento, você não está avaliando corretamente. Mas vai chegar o dia em que vai compreender. A não ser que, antes, faça alguma coisa muito precipitada ou tola. Vamos, conte-me tudo. O que é que houve? Vai ver que você teve uma briga com seu namorado, aquele médico tão solene. Não foi?

— Não foi briga — respondeu Hester. — Foi muito pior do que briga.

— Tudo vai dar certo — disse Philip.

— Não vai, não. Nunca mais.

— Você diz tudo de modo tão exagerado. Para você tudo é branco ou preto, não é? Não existem meios tons.

— Não consigo evitar ser assim — disse a moça. — Eu sempre fui assim. Tudo o que eu pensei que sabia ou queria fazer deu errado. Queria ter uma vida própria, ser alguém, fazer alguma coisa. Não adiantou nada. Nunca fiz nada certo. Eu já pensei muitas vezes em me matar. A pri­meira vez eu tinha quatorze anos.

Philip observou-a interessado. Depois, disse com voz tranqüila e objetiva:

— Mas é muito comum as pessoas se matarem entre os quatorze e os dezenove anos. É uma idade na qual tudo está fora de perspectiva. Meninos de colégio se matam porque não conseguiram passar num exame idiota qualquer e as me­ninas se matam porque as mães não as deixam ir ao cinema com rapazes indesejáveis. É um período durante o qual tudo parece ser visto em tela panorâmica e tecnicolor. Ou tudo é maravilhoso ou é uma desgraça. Ou morreremos de tristeza ou de alegria. Mas depois passa. O seu problema, Hester, é que você está levando um pouco mais de tempo do que é comum para superar o problema.

— Mamãe sempre tinha razão — disse Hester. — So­bretudo o que ela não me deixava fazer e eu queria fazer. Estava sempre certa e eu sempre errada. Eu não agüentava! Eu simplesmente não podia mais agüentar! Então resolvi ser corajosa. Ir embora e fazer minha própria vida. Eu ia ter de me pôr à prova. E deu tudo errado. Eu era péssima atriz.

— Claro que não era — disse Philip. — O que você não tem é disciplina. Você não consegue, como se diz nos meios teatrais, se enquadrar na produção. Você está sem­pre preocupada demais em se autodramatizar, menina. É o que você está fazendo neste momento.

— Depois disso eu resolvi que precisava ter um caso de amor, dos sérios — continuou Hester. — Não dessas coisinhas de menina. Com um homem mais velho. Tinha sido ca­sado e o casamento era muito infeliz.

— Essa história é velha — disse Philip. — E sem dú­vida ele a explorou ao máximo.

— Eu pensei que ia ser... sei lá... uma ‘grande passion’. Está rindo de mim? — perguntou Hester, interrompendo-se e olhando para Philip com desconfiança.

— Não, não estou rindo de você, Hester — disse Phi­lip delicadamente. — É fácil de ver que para você deve ter sido tudo um inferno.

— Não foi paixão coisa nenhuma — continuou Hester, amargamente. — Não passou de um casinho barato. Nada do que ele me disse a respeito da vida dele, da mulher dele, era verdade. Eu... eu acho que tinha me atirado em cima dele feito um louca. Tinha feito um papelão igual à mais cretina das idiotas.

— Às vezes só se aprende as coisas com experiência — ponderou Philip. — Não que nada disso lhe tenha feito qualquer espécie de mal, sabe, Hester. Provavelmente ajudou você a crescer. Ou pelo menos teria ajudado, se você dei­xasse.

— Mamãe foi tão... tão competente para tratar do as­sunto todo — disse Hester com ressentimento. — Ela apa­receu e resolveu tudo e me disse que se eu realmente qui­sesse ir para o teatro seria melhor entrar numa escola dra­mática para poder fazer tudo direito. Mas eu não queria realmente ser de teatro e, naquela altura, já sabia que não podia representar. De modo que voltei para casa. O que mais é que poderia fazer?

— Provavelmente muita coisa — respondeu Philip. — Mas você fez a mais fácil.

— Eu sei — disse Hester com fervor. — Como você compreende bem. Sabe, meu problema é que eu sou muito fraca. Sempre quero a solução mais fácil. E se me revolto contra ela, é sempre de algum modo idiota que não fun­ciona.

— Você é tremendamente insegura, não é? — pergun­tou Philip carinhosamente.

— Talvez seja por ser apenas filha adotiva. Não sei se você sabe que eu não sabia de nada quase até os dezesseis anos. Eu sabia que os outros eram e, um dia, quando fui perguntar... descobri que eu também era adotiva. Experi­mentei a pior sensação do mundo, assim como se eu não per­tencesse a ninguém.

— Mas é impressionante como você imediatamente se autodramatiza — brincou Philip.

— Ela não era minha mãe — disse Hester. — Ela nun­ca, na realidade, compreendeu qualquer coisa que fosse a meu respeito. Só me olhou com indulgência e bondade e fez planos para o meu futuro. Como eu a odiava! Eu sei que é horrível dizer isso, que é horrível eu sentir isso, mas eu a odiava!

— Não sei se você sabe que, na verdade, quase todas as meninas passam por uma fase na qual odeiam as pró­prias mães. Sob esse aspecto pode estar certa de não haver nada de anormal com você.

— Eu a odiava porque ela sempre tinha razão — disse Hester. — Não há nada mais horrível do que uma pessoa que sempre tem razão. Faz a gente se sentir cada vez mais incompetente. Aí, Philip, é tudo tão terrível. O que será que eu vou fazer? O que será que eu posso fazer?

— Casar com aquele seu rapaz — respondeu Philip, — e começar sua vida. Ser a boa esposa de um clínico geral. Ou você não acha que isso seja suficiente para você?

— Ele agora não quer mais se casar comigo — res­pondeu ela com tristeza.

— Tem certeza? Ele disse que não queria? Ou é pura imaginação sua?

— Ele acha que eu matei mamãe.

— Ah — disse Philip, fazendo depois uma pausa. — E matou? — perguntou.

Ela girou violentamente na direção dele.

— Por que você me pergunta isso? Por quê?

Porque pensei que seria interessante saber — res­pondeu Philip. — Só aqui entre nós. Eu jamais pensaria em informar a polícia.

— E se eu a tivesse matado, você acha que iria con­tar a você?

— Claro que seria muito mais prudente não contar — afirmou Philip.

— Ele me disse que sabia que eu tinha matado — fa­lou Hester. — Disse que se eu ao menos o admitisse, se confessasse tudo a ele, que tudo ficaria muito bem, que nós nos casaríamos e ele tomaria conta de mim. Que... que não faria nenhuma diferença entre nós.

Philip soltou um assovio.

— Ora, ora, ora — disse ele.

— O que é que adianta? — perguntou ela. — O que é que adianta dizer a ele que não fui eu quem matou? Ele não me iria acreditar, iria?

— Se você dissesse, ele deveria acreditar — respondeu Philip.

— Eu não a matei — afirmou Hester. — Você com­preende? Eu não a matei! Não a matei! Não a matei! — Parou abruptamente. — Não parece muito convincente, parece?

— Muitas vezes a verdade não parece muito convin­cente — encorajou-a Philip.

— Nós não sabemos. Ninguém sabe. Só ficamos olhan­do uns para os outros. Mary olha para mim. E a Kirsten, que é tão boa, tão protetora. Ela também acha que sou eu. Que chance eu tenho? Não está vendo? Que chance eu tenho? Seria muito melhor ir lá para perto do rio e...

— Pelo amor de Deus, não seja idiota, Hester. Há outras coisas que se pode fazer.

— Que outras coisas? Como é que pode haver? Eu per­di tudo. Como é que vou continuar a poder viver, dia após dia? — Ela olhou para Philip. — Você acha que eu sou desa­tinada, desequilibrada. Nesse caso, pode ser que tenha sido eu. É possível que seja o remorso que me esteja torturando. É possível que não consiga esquecer-me... aqui. — Dramati­camente ela apontou para o próprio coração.

— Não seja boba — disse Philip. Ele esticou um braço e puxou-a para ele.

Hester, perdendo o equilíbrio, caiu sobre a sua cadeira. Ele a beijou.

— O que você está precisando, menina, é de um ma­rido — disse ele. — E não daquele imbecil solene do Donald Craig, com a cabeça entulhada de jargão psicológico. Você, Hester, é muito boba e tonta e... absolutamente ado­rável.

A porta abriu-se. Repentinamente Mary Durrant ficara paralisada na entrada da sala. Hester levantou-se com es­forço e Philip lançou à mulher um sorriso meio sem graça.

— Estou tentando alegrar um pouco a Hester, Polly — disse ele.

— Ah — respondeu Mary.

Ela entrou cuidadosamente e colocou a bandeja sobre uma mesinha. Depois, empurrou a mesa, que tinha rodas, até junto ao marido. Nem olhou para Hester, que ficou um tanto perdida, olhando ora o marido ora a mulher.

— Bem — disse ela, afinal, — talvez seja melhor eu ir... bem, eu ir... — Não concluiu a frase. Foi embora, fe­chando a porta atrás de si.

— A Hester está péssima — disse Philip. — Está fa­lando em se suicidar. Estava tentando dissuadi-la — acres­centou ele.

Mary não respondeu.

Ele estendeu a mão para ela. Ela se afastou dele.

— Polly, será que eu fiz você ficar zangada? Muito zangada?

Ela não respondeu.

— Só porque eu a beijei? Ora, Polly; você não me vai negar a chance de um beijinho bobo. Ela estava tão linda e tão tonta, e de repente eu senti... bem, senti vontade de me divertir e ver se ainda podia flertar um pouco aqui e ali. Ora, Polly, deixe disso. Venha cá. Um beijo para fazermos as pazes.

— Sua sopa vai esfriar se você não a tomar logo — disse Mary Durrant.

Levantou-se, passou pela porta que dava para o banheiro e fechou-a atrás de si.

— Há uma moça aqui embaixo que deseja vê-lo, senhor.

— Uma moça? — Calgary parecia surpreso. Não con­seguia imaginar quem poderia aparecer para visitá-lo. Olhou para o trabalho que estava empilhado em cima de sua mesa e franziu a testa. Novamente ouviu a voz do porteiro, em tom acentuadamente mais baixo.

— Uma moça muito fina, doutor; uma moça extrema­mente distinta.

— Está bem; faça o favor de pedir-lhe que suba.

Calgary não pôde evitar sorrir um pouco. O tom dis­creto do porteiro fazia insinuações que despertavam seu sen­so de humor. Perguntou-se quem poderia querer vê-lo. Quan­do a campainha tocou e ele abriu a porta, ficou absoluta­mente perplexo ao deparar com Hester Argyle.

— Você! — A palavra saiu com todo o impacto da sur­presa que sentia. Só depois é que disse — Entre, entre. — Ele se afastou para ela passar, depois fechou a porta.

Estranhamente, a impressão que lhe causou foi qua­se que exatamente a mesma que sentira na primeira vez que a vira. Suas roupas não levavam absolutamente em conta o que poderia ou não estar na moda em Londres. Não usava chapéu e seus cabelos escuros emolduravam-lhe o rosto num desarranjo que tinha qualquer coisa de fantástico. O casa­cão deixava entrever uma saia de lã verde escura e um suéter. Era como se, um pouco sem fôlego, estivesse voltando de uma caminhada pela charneca.

— Por favor — disse Hester, — por favor, o senhor tem de me ajudar.

— Ajudá-la? — Ele ficou espantado. — De que modo? É claro que farei tudo o que puder para ajudá-la.

— Eu não sabia o que fazer — continuou Hester. — Não sabia a quem procurar. Mas alguém tem de me ajudar. Eu não agüento mais; tem de ser o senhor. Foi o senhor quem começou tudo isso.

— Você está com algum problema? Algum problema grave?

— Todos nós estamos com problemas — respondeu Hes­ter — Mas a gente é tão egoísta, não é? Quero dizer, eu só consigo pensar em mim mesma.

— Sente-se, minha querida — disse ele com muita de­licadeza.

Ele tirou os papéis que estavam em uma cadeira de braços e acomodou-a nela. Depois foi até ao armário e o abriu.

— Está chovendo bastante e fazendo muito frio lá fora. Você precisa de alguma coisa.

— Se o senhor achar melhor. Para mim tanto faz.

Ele se voltou, com a garrafa na mão. Hester estava esparramada na cadeira, numa pose desajeitada e graciosa que o comoveu por sua total despreocupação com as aparên­cias.

— Não se preocupe — disse ele delicadamente, enquan­to pousava o cálice ao lado dela e servia o xerez. — As coisas nunca são tão ruins quanto parecem, sabe?

— Isso é o que todos dizem, mas não é verdade — disse Hester. — Às vezes ainda são piores do que parecem. — Ela tomou um pequeno gole de vinho, depois disse, acusadora: — Nós estávamos muito bem até o senhor aparecer. Estávamos ótimos. Depois... depois recomeçou tudo isso.

— Não vou fingir — retrucou Arthur Calgary, — que não sei do que está falando. Eu fiquei absolutamente estarrecido a primeira vez que você me disse isso, porém agora eu compreendo melhor o que... o que a minha informação deve ter causado a todos vocês.

— Enquanto nós pensávamos que tinha sido Jack... — continuou Hester, mas parou.

— Eu sei, Hester, eu sei. Porém você tem de pensar um pouco além desse nível, sabe. Vocês estavam vivendo em um clima de falsa segurança. Não era real, era só uma coisa fingida, de papelão, uma espécie de cenário fabricado. É claro que às vezes aquilo dava a sensação de segurança; mas não era e nem poderia jamais ser uma segurança real.

— O que o senhor está dizendo — disse Hester — é que é preciso se ter coragem e que não adianta a gente se agarrar a alguma coisa falsa só porque é fácil, não é? — Após uma pequena pausa ela continuou. — O senhor teve coragem! Eu sei disso. A coragem de vir e nos contar pes­soalmente. Acho que eu admiro a sua bravura porque, é preciso que se compreenda, eu não sou nada corajosa.

— Diga-me — perguntou Calgary com delicadeza, — diga-me exatamente o que a está preocupando agora. É al­guma coisa especial, não é?

— Eu tive um sonho — disse Hester. Há alguém, um rapaz, um médico...

— Compreendo — ajudou Calgary. — São amigos, ou, possivelmente, um pouco mais do que amigos.

— Eu pensava que éramos mais do que amigos... E ele também pensava. Mas, sabe, agora que aconteceu tudo isso...

— Sim?

— Ele acha que fui eu — disse Hester. As palavras saí­ram como uma torrente. — Ou talvez não pense que fui eu mas não chega a ter certeza. Não consegue ter certeza. Ele acha, e eu vejo claramente que ele acha, que eu sou a mais provável. É possível que eu seja. É possível que todos nós estejamos pensando a mesma coisa uns dos outros. E aí eu pensei que alguém tinha de me ajudar nessa encrenca hor­rível em que estamos metidos, e eu me lembrei do senhor por causa do sonho. Sabe, eu estava perdida e não conseguia encontrar o Don. Ele me tinha deixado lá e havia uma espécie de vazio enorme, um abismo. É, a palavra é essa. Um abis­mo. Soa tão fundo, não soa? Tão fundo e tão... impossível de ser ultrapassado. E o senhor estava no outro lado e tinha estendido as duas mãos para mim e estava dizendo “Eu que­ro ajudá-la”. — Ela respirou fundo. — E por isso é que eu vim procurá-lo. Fugi e vim para cá porque o senhor tem de nos ajudar. Se o senhor não nos ajudar, eu não sei o que vai acontecer. É preciso que ajude. Foi quem nos trouxe tudo isso. Eu sei que pode dizer que não tem nada com isso. Que, uma vez que nos contou toda a verdade sobre o que aconte­ceu, então o assunto não é mais seu. Pode dizer...

— Não — disse Calgary, interrompendo-a. — Não vou dizer nada disso. Eu sei que o assunto também é meu, Hester. Concordo com você. Quando se começa uma coisa é preciso levá-la até o fim. Eu me sinto exatamente como você.

— Oh! — O rosto de Hester ficou inundado de cor e, como tantas vezes lhe acontecia, repentinamente ela ficou linda. — Quer dizer que eu não estou sozinha! Há alguém para me ajudar!

— É claro, minha querida, é claro que há alguém, não sei se alguém que valha muito. Pelo menos até aqui não consegui valer muita coisa, porém eu tenho tentado e até agora nem por um instante parei de tentar ajudar. — Ele sentou-se e aproximou sua cadeira da dela. — Agora con­te-me tudo. Tem sido muito ruim?

— O caso é que foi um de nós — respondeu Hester. — Todos nós sabemos disso. O Sr. Marshall esteve lá e nós fingimos que deve ter sido alguém de fora que entrou, mas nos sabemos que não foi. Foi um de nós.

— E o seu namorado, como é o nome dele mesmo?

— Don. Donald Craig. Ele é médico.

— E o Don acha que foi você?

— Ele tem medo que seja eu — respondeu Hester. Ela torceu as mãos de forma dramática, depois olhou para ele. — Talvez o senhor também pense que fui eu?

— Ah, não — disse Calgary. — Sei muito bem que você é inocente.

— Mas está dizendo isso como se tivesse certeza abso­luta.

— Mas eu tenho certeza absoluta.

— Mas por quê? Como pode ter?

— Por causa do que me disse quando eu saí da sua casa depois de ter ido contar a minha história. Lembra-se? O que me disse a respeito da inocência. Nunca poderia ter dito e sentido aquilo se não fosse inocente.

— Ah — exclamou Hester. — Ah... que alívio! Sa­ber que existe alguém que realmente pensa assim!

— Então agora — disse Calgary, — vamos poder dis­cutir tudo com calma, não vamos?

— Vamos — respondeu Hester. — Estou-me sentindo completamente diferente agora.

— Apenas por uma questão de curiosidade — come­çou Calgary, — e sempre tendo muito claro em mente que você sabe o que eu penso a respeito, gostaria de saber por que razão alguém poderia achar por um só momento que você poderia ter matado sua mãe adotiva?

— E poderia mesmo — disse Hester. — Eu já tive vontade. Às vezes a gente fica simplesmente louca de raiva, e se sente tão fútil, tão inútil. Mamãe era tão calma, tão supe­rior, sempre sabendo de tudo, sempre tendo razão em tudo. E pensava: “Eu queria matá-la!” — Ela olhou para ele. — O senhor compreende? Nunca se sentiu assim quando era moço?

As últimas palavras doeram em Calgary, do mesmo modo que havia doído quando Micky lhe havia dito no hotel em Drymouth, “Você parece mais velho!” “Quando era moço?” Será que para Hester isso parecia ter sido há tanto tempo assim? Pensou no passado. Lembrou-se de si mesmo, aos nove anos, conspirando com um outro menino nos jardins de co­légio interno, a respeito da melhor maneira possível de li­quidar o Sr. Warborough, que era professor de sua turma. Lembrou-se da fúria impotente de que ficava tomado quando o Sr. Warborough se mostrava particularmente sarcástico em seus comentários. Era isso, pensou ele, exatamente o que Hester havia sentido também. Mas fosse o que fosse que ele e o jovem — como era mesmo o nome do menino? — Porch. Sim, era isso. Porch. Fosse o que fosse que ele e Porch ti­vessem planejado para precipitar o falecimento do Sr. Warborough, eles jamais haviam feito nada de prático a respeito.

— Sabe de uma coisa — disse ele a Hester, — você já devia ter superado esse tipo de sentimentos há muito tempo. Mas é claro que eu compreendo.

— Era só que era assim que mamãe me fazia sentir. Agora estou começando a compreender que a culpa era real­mente minha. Tenho a impressão de que se ela tivesse vi­vido apenas mais um pouquinho, só até eu ser um pouquinho mais amadurecida, nós... bem, nós, de algum modo es­tranho, teríamos sido boas amigas. Que eu gostaria de ter a ajuda e os conselhos dela. Mas... mas assim como as coi­sas estavam, eu não suportava. Sabe, é porque tudo me fazia sentir tão ineficiente, tão estúpida. Tudo o que eu fazia dava errado e eu mesma também via que as coisas que eu fazia eram idiotas. Que só fazia aquilo porque me queria rebelar, provar que era eu mesma. E eu não era ninguém. Eu era fluida. Exatamente isso. Essa é a palavra certa. Fluida. Sem nun­ca ficar muito tempo com a mesma forma. Só experimentan­do formas diferentes, formas de outras pessoas que eu ad­mirava. Sabe, eu pensava que se eu fugisse, entrasse para o teatro e tivesse um caso com alguém, que...

— Que você se sentiria você mesma, ou, pelo menos, que você se sentia alguém?

— É — respondeu Hester. — É; foi exatamente isso. E é claro que agora eu vejo perfeitamente bem que me com­portei como uma criança tola. Mas o senhor não pode ima­ginar, Dr. Calgary, como eu gostaria que mamãe estivesse viva agora. Porque é tão injusto, isto é, injusto para com ela. Ela fez tanto por nós; nos deu tanta coisa demais. — não demos nada a ela em troca. E agora é tarde demais. Fez uma pausa. — É por isso — disse ela, com renovado vigor, — que estou resolvida a parar de deixar de ser idiota e infantil. E o senhor vai-me ajudar, não vai?

— Eu já lhe disse que farei qualquer coisa no mundo para ajudá-la.

Ela lhe deu um sorriso breve e encantador.

— E agora — disse ele, — conte-me tudo o que tem acontecido.

— Exatamente o que eu pensei que acontecesse — res­pondeu Hester. — Nós todos temos ficado olhando uns para os outros imaginando coisas e, afinal, ninguém sabe de nada. Papai olha para Gwenda e pensa que talvez tenha sido ela. Ela olha para papai e não tem certeza. Agora eu acho que eles nem vão mais se casar. Desandou tudo. E Tina acha que Micky teve alguma coisa a ver com o caso. Não en­tendo por que Micky não estava lá naquela noite. E Kirsten acha que fui eu e tenta me proteger. E Mary é a minha irmã mais velha, que você não conheceu... Mary acha que foi Kirsten.

— E você acha que foi quem, Hester?

— Eu? — Hester parecia assustada.

— Sim, você — respondeu Calgary. — Eu acho, sabe, que é importante saber isso.

Hester abriu ambas as mãos. — Eu não sei — gemeu ela. — Eu simplesmente não sei. Eu... eu sei que isso é uma coisa horrível para se dizer, mas eu tenho medo de todo o mundo. É como se por trás de cada rosto existisse um outro. Uma espécie de rosto sinistro que eu não co­nheço. Não tenho certeza de que seja papai, e Kirsten fica me dizendo que não devo confiar em ninguém, nem mes­mo nela. E eu olho para Mary e tenho a sensação de que não sei nada a seu respeito. E Gwenda... eu sempre gos­tei de Gwenda. Eu estava muito contente porque papai ia casar com ela. Mas agora não tenho mais certeza a respeito de Gwenda também. Vejo-a como uma outra pessoa, cruel e vingativa. Não sei mais como as pessoas são. Há uma tremenda sensação de infelicidade.

— Eu sei — disse Calgary, — ou pelo menos posso imaginar.

— Há tanta infelicidade — continuou Hester, — que não posso evitar sentir também a infelicidade do assassino. O que poderia ser o pior de tudo... você acha que é pos­sível?

— Creio que seja possível — respondeu Calgary, — mas tenho dúvidas. É claro que não sou especialista no as­sunto, porém tenho dúvidas de que um assassino jamais se sinta realmente infeliz.

— E por que não? Eu acho que deve ser a coisa mais terrível de se ser. Imagine, saber que se matou alguém.

— É. É realmente uma coisa terrível e por isso mesmo tenho a impressão que um assassino tem de ser uma pessoa de um de dois tipos. Ou é uma pessoa para quem matar alguém não é terrível, o tipo de pessoa que diz para si mesma “Bem, é uma pena que eu tenha tido de matá-lo, mas foi necessário para a minha própria segurança. Não foi realmente culpa minha. Foi apenas necessário”. Ou então...

— Então... Qual é o outro tido de assassino? — per­guntou Hester.

— Lembre-se que estou só imaginando, porém creio que quando se é o que estamos chamando de o outro tipo de assassino, não se consegue viver assumindo a infelicidade causada pelo que se fez. Ou o assassino confessa ou então ele inventa para si mesmo uma nova versão dos aconteci­mentos. Joga a culpa para cima de outra pessoa, diz “Eu jamais faria uma coisa daquelas a não ser que... isto ou aquilo tivesse acontecido”. Ou “Eu não sou realmente um assassino porque não tinha intenção de matar. Foi uma coisa que aconteceu. Não fui eu, foi o destino”. Você compre­ende o que estou querendo dizer?

— Compreendo — respondeu Hester, — e acho que é muito interessante. — Ela semicerrou os olhos. Estou ten­tando imaginar...

— Isso mesmo, Hester; pense. Pense o máximo que pu­der, porque se é que eu vou conseguir ajudá-la, vou ter de ver as coisas através do seu pensamento.

— Micky odiava mamãe — disse Hester lentamente. — Sempre odiou... não sei por quê. Tina, eu acho, sempre a amou. Gwenda não gostava dela. Kirsten sempre foi leal a mamãe embora nem sempre achasse que ela estivesse cer­ta no que fazia. Papai... — Ela fez uma longa pausa.

— Sim? — encorajou-a Calgary.

— Papai agora está de novo muito longe — continuou Hester. — Sabe, depois que mamãe morreu tinha ficado muito diferente. Não era mais, como direi... tão distante. Ficou mais humano, mais vivo. Mas agora ele voltou para alguma espécie de lugar sombrio onde ninguém pode alcan­çá-lo. Eu realmente não sei como ele se sentia a respeito de mamãe. Suponho que a amava quando se casaram. Nunca brigavam, porém não consigo saber o que sentia por ela. Ora... — e novamente as mãos se abriram em um gesto forte — a gente não sabe o que ninguém sente, sabe? Que­ro dizer, o que se passa por trás do rosto que mostram, das palavras bem educadas de todos os dias? Podem estar sendo corroídos pelo ódio, ou pelo amor, ou pelo desespero e não se pode saber!

Ele tomou as mãos dela nas dele.

— Você não é mais uma criança — disse ele. — Só as crianças é que ficam assustadas. Você já cresceu, Hester. Você é uma mulher. — Ele largou as mãos dela e disse, agora em tom muito objetivo: — Há algum lugar onde você possa ficar, em Londres?

Hester olhou-o um tanto atônita.

— Acho que sim. Não sei. Mamãe geralmente ficava no Hotel Curtis.

— Ótimo. £ um hotel bom e tranqüilo. Acho melhor você ir tomar um quarto lá.

— Eu faço qualquer coisa que o senhor mandar — respondeu Hester.

— Muito bem — disse Calgary. — Que horas são? — Ele olhou o relógio. — Veja; são quase sete horas, já. Que tal ir arranjar o seu quarto e eu aparecer por volta das oito para levá-la para jantar? Gosta da idéia?

— Gosto muito. Mas você quer, mesmo?

— Quero. Quero mesmo.

— E depois? O que é que vai acontecer depois? Eu não vou poder ficar hospedada no Curtis para sempre, vou?

— Seu horizonte sempre parece estar voltado para o infinito — riu Calgary.

— Está caçoando de mim? — perguntou ela, descon­fiada.

— Só um pouquinho — respondeu ele, sorrindo.

Ela pareceu um pouco incerta por um momento, depois sorriu também.

— Eu acho — disse ela em tom confidencial — que estava de novo me autodramatizando, não estava?

— Eu desconfio que é hábito seu — comentou Cal­gary.

— É por isso que eu achava que ia ser boa no teatro. Mas era péssima. Eu era a pior atriz que se possa ima­ginar.

— Tenho a impressão que você tem todo o drama que precisa na vida real — disse Calgary. — Agora vou pô-la num táxi, minha querida, e você vai para o hotel. Lave o rosto e penteie o cabelo — continuou ele. — Você tem al­guma bagagem?

— Tenho. Tenho uma maleta de mão.

— Ótimo. — Ele sorriu para ela. — Não se preocupe, Hester — repetiu. — Nós vamos encontrar algum jeito.

— Eu quero falar com você, Kirsty -— disse Philip.

— Claro, pois não, Philip.

Kirsten Lindstrom interrompeu sua tarefa. Estava colo­cando em uma cômoda uma pilha de roupa lavada.

— Quero falar com você sobre todo esse problema — disse Philip. — Você não se importa, não é?

— Todo mundo anda falando demais — respondeu ela. — Isso é o que eu acho.

— Porém não concorda que talvez fosse bom — insis­tiu ele — que chegássemos a alguma conclusão ao menos entre nós? Você sabe o que está acontecendo, não sabe?

— As coisas estão dando errado em todo lugar — disse Kirsten.

— Você acha que agora Leo e Gwenda ainda irão ca­sar-se?

— E por que não?

— Por várias razões — respondeu Philip. — Em pri­meiro lugar, porque, sendo um homem inteligente, Leo Argyle sabe que seu casamento com Gwenda, agora, daria à polícia exatamente o que ela quer. Um motivo de primeira ordem para ele matar a mulher. Outra possibilidade é a de Leo suspeitar que Gwenda seja a assassina. E, sendo um homem sensível, não gosta muito da idéia de se casar com a mulher que matou sua primeira esposa. O que é que você diz a isso?

— Nada — disse Kirsten. — Por que haveria de di­zer?

— Você está querendo realmente ficar na moita, não é?

— Não compreendo o que está dizendo.

— Quem é que você está querendo encobrir, Kirsten?

— Não estou encobrindo ninguém, para falar como você — exclamou Kirsten. — Você está tentando descobrir coi­sas. E sua mulher não quer que fique fazendo isso. Ela tem mais juízo do que você. É capaz de descobrir o que não quer, ou o que ela não queira que você descubra. Você devia ir para casa logo.

— Eu não quero ir para casa — disse Philip, falando como se fosse um menininho malcriado.

— Criança é que fala assim — atalhou Kirsten. — Diz que não quer isso e não quer aquilo e os que conhecem melhor a vida e compreendem melhor tudo o que acontece têm de en­gabelá-los para que façam o que não querem fazer.

— E você acha que me vai levar assim? Ou que me vai dar ordens?

— Eu não dou ordens a você. Só dou conselhos. — Ela suspirou. — Daria o mesmo conselho a todos eles. Micky devia voltar para o trabalho do mesmo modo que Tina vol­tou para a Biblioteca. Estou contente de Hester ter ido em­bora. Ela devia ir para algum lugar onde não fique sempre se lembrando do que aconteceu.

— Quanto a Hester, concordo com você. Mas quanto a você mesma, Kirsten? Será que você também não deveria ir embora?

— Sim — disse Kirsten, com um suspiro. — Eu devia ir embora.

— Então por que não vai?

— Você não ia compreender. É tarde demais para eu ir embora.

Philip olhou-a pensativo. Depois disse:

— Há tantas variações, não é? Variações sobre um mes­mo tema. Leo pensa que foi Gwenda, Gwenda pensa que foi Leo. Tina sabe de alguma coisa que faz com que ela ache que sabe quem foi. Micky sabe quem foi mas não se im­porta. Mary acha que foi Hester — Fez uma pausa, depois con­cluiu: — Porém a verdade é, Kirsty, que essas são apenas, como eu disse, variações sobre um mesmo tema. Nós sabe­mos muito bem quem foi, não sabemos, Kirsty? Você e eu?

Ela lhe lançou um olhar rápido e aterrorizado.

— É o que eu pensava — disse Philip exultante.

— O que é que você está dizendo? — perguntou Kirsty. — O que é que você está querendo dizer?

— Eu não sei realmente quem foi — disse Philip. — Mas você sabe. Você não acha que sabe quem foi. Você real­mente sabe. Acertei?

Kirsten se dirigiu para a porta, abriu-a, depois voltou-se para trás e falou.

— Não é coisa delicada para se dizer, mas vou dizer assim mesmo. Você é um tolo, Philip. O que você está fa­zendo é perigoso. Você compreende um tipo de perigo. Você foi piloto. Enfrentou a morte no céu. Será que não vê que se chegar um pouco mais perto da verdade, vai correr um perigo tão grande quanto o que correu na guerra?

— E você, Kirsty? Se sabe a verdade, não está corren­do perigo também?

— Eu sei me cuidar — disse Kirsten, dura. — Sei ficar em guarda. Mas você, Philip, é um homem indefeso numa ca­deira de rodas. Pense nisso! Além do que — acrescentou, — eu não ando por aí dizendo o que penso. Para mim parece melhor deixar as coisas como estão... porque realmente acho que isso é o melhor para todos. Se todos fossem embora e cuidassem de suas vidas, não ia haver mais encrenca. Se al­guém me perguntar, tenho minha posição oficial. Continuo a dizer que foi Jacko.

— Jacko? — Philip ficou boquiaberto.

— E por que não? Jacko era muito esperto. Jacko sa­bia planejar qualquer coisa com a certeza de que ele não enfrentaria as conseqüências. Desde criança que fazia isso. Afinal, não se arranja álibis todos os dias?

— Mas esse não podia ser arranjado. O Dr. Calgary.

— Ora, o Dr. Calgary, o Dr. Calgary! — replicou Kirsten, impaciente. — Só porque ele é conhecido, só porque o nome dele é famoso, vocês ficam dizendo “o Dr. Calgary” como se ele fosse Deus! Pois deixe que lhe diga: Quando alguém tem uma concussão como a dele, as coisas podem ter sido muito diferentes do que ele se lembra. Podem ter ocorrido em um outro dia, em uma outra hora, em um outro lugar!

Philip olhou para ela, inclinando um pouco a cabeça para um lado.

— Quer dizer então que a sua história é essa e é exa­tamente assim que ela vai ficar. Não deixa de ser uma boa tentativa. Mas você, pessoalmente, não acredita nisso, acre­dita, Kirsty?

— Eu já o avisei — disse Kirsten. — Mais que isso não posso fazer.

Ela já tinha saído quando tornou a enfiar a cabeça pe­la porta para dizer, em seu tom habitual de eficiência:

— Diga a Mary que a roupa limpa está na segunda ga­veta.

Philip sorriu um pouco ante esse anticlímax, porém de­pois seu sorriso desapareceu...

Sua excitação interior cresceu. Tinha a impressão de que estava chegando muito perto. Sua experiência com Kirs­ten tinha sido altamente satisfatória, porém duvidava que conseguisse arrancar mais alguma coisa dela. Sua preocupa­ção com ele o irritava. Só porque ele era aleijado, isso não significava que fosse tão desamparado quanto ela havia sugerido. Ele também podia ficar em guarda. E será que ele não era suficientemente supervisionado, noite e dia? Mary rara­mente se afastava dele.

Ele pegou uma folha de papel e começou a escrever. Notas curtas, nomes, interrogações... Pontos vulneráveis a serem explorados...

Repentinamente ele acenou com a cabeça e escreveu: Tina...

Pensou um pouco...

Depois tomou outra folha de papel.

Quando Mary entrou ele mal levantou os olhos.

— O que é que você está fazendo, Philip?

— Escrevendo uma carta.

— Para Hester?

— Hester? Não. Não sei nem onde ela está hospedada. Kirsty recebeu um cartão dela, mas só dizia que estava em Londres.

Ele riu para ela.

— Acho que você está com ciúmes, Polly. Será?

Os olhos dela, azuis e frios, olharam nos dele.

— É possível.

Ele se sentiu um pouco incomodado.

— A quem é que você está escrevendo? — perguntou ela, aproximando-se.

— À Promotoria — disse Philip alegremente, embora por dentro estivesse louco de raiva. Será que não podia se­quer escrever uma carta sem ser submetido a um interroga­tório?

Depois ele viu a expressão no rosto dela e se acalmou.

— Estou brincando, Polly. É para Tina.

— Tina? Por quê?

— Tina é o objeto do meu próximo ataque. Aonde é que você vai, Polly?

— Ao banheiro — respondeu Polly, saindo do quarto.

Philip riu-se. Ao banheiro, como na noite do assassi­nato... Ele tornou a rir quando se lembrou da conversa que haviam tido a respeito.

 

— Vamos, filhinho — disse o Inspetor Huish encorajando o menino. — Conte tudo.

Cyril Green tomou fôlego; mas antes que pudesse falar a mãe se interpôs:

— Sabe como é, Sr. Huish, na hora eu não prestei mui­ta atenção. Sabe como é criança. Sempre pensando e falando em naves espaciais e coisas assim. Pois ele chegou em casa e disse “Mamãe, eu vi um sputnik que desceu aqui perto”. Bem, sabe como é, antes eram discos voadores. É sempre alguma coisa. São esses russos que ficam botando coisas na cabeça deles.

O Inspetor Huish suspirou e pensou como tudo seria mais fácil se as mães não insistissem em acompanhar seus filhinhos e falar por eles.

— Vamos, Cyril — disse ele, — você foi para casa e falou com a mamãe, não é? E disse que tinha visto um sput­nik russo, ou coisa assim.

— Naquele tempo eu não sabia ver que não era — disse Cyril. — Eu era muito pequeno naquele tempo. Já faz dois anos. Agora eu sei das coisas.

— Aqueles carrinhos que parecem um ovo ou uma bo­lha, o senhor sabe, eram novidade naquele tempo — acres­centou a mãe. — Ainda não tinha aparecido nenhum por aqui, de modo que naturalmente quando ele viu, e ainda por cima sendo todo vermelho, nem ocorreu a ele que fosse apenas um carro. E, quando na manhã seguinte nós soube­mos que tinham matado a Srª Argyle, Cyril logo disse “Ma­mãe, foram aqueles russos que vieram naquele sputnik; vai ver que eles entraram lá a mataram aquela senhora”. “Não diga bobagem”, disse eu. E mais tarde, naquele mesmo dia, nós soubemos que o próprio filho dela tinha sido preso pelo crime.

O Inspetor Huish dirigiu-se mais uma vez, pacientemente, a Cyril:

— Você disse que foi à noitinha, não foi? Por acaso você se lembra que horas eram?

— Eu já tinha tomado meu chá — respondeu Cyril, resfolegando com o esforço para se lembrar. — E mamãe tinha ido ao Instituto, de modo que eu saí de novo e brinquei mais um pouco com a turma na rua nova.

— O que eu queria era saber o que você estava fazen­do lá — intrometeu-se a mãe novamente.

O policial Good, que havia aparecido com a preciosa colaboração do menino, achou melhor interferir. Sabia per­feitamente o que Cyril e seus amigos estiveram fazendo na rua. O desaparecimento de vários crisântemos havia sido vociferantemente denunciado por vários moradores e a polícia sabia que alguns marginais da aldeia encorajavam a nova ge­ração a fornecê-los como flores de origem suspeita que en­tão iam vender no mercado. O momento, no entanto, não era adequado à investigação de pequenas infrações do pas­sado, como o policial Good muito bem sabia. Assim sendo, declarou tranqüilamente:

— Todo menino gosta de brincar um pouco na rua, Srª Green.

— É isso mesmo — concordou Cyril. — Estávamos só brincando um pouco. E foi aí que eu vi. “Puxa”, eu falei, “que será aquilo?” E é claro que agora eu sei, porque não sou mais criança pequena. Era um daqueles carrinhos de bo­lha. Todo vermelhinho.

— E a que horas seria isso? — perguntou pacientemen­te o inspetor.

— Bem, como eu já disse, eu já tinha tomado o meu chá e nós estávamos brincando por ali. Deve ter sido por volta das sete horas, porque eu ouvi o relógio bater e pensei “Puxa, daqui a pouco mamãe chega e vai ser fogo se eu não estiver em casa”. Então eu fui para casa. Eu disse a ela que achava que tinha visto um satélite russo pousar. Ma­mãe falou logo que era mentira, mas não era não. Só tem que agora eu sei o que era.

O inspetor afirmou que compreendia bem a situação e após mais algumas perguntas dispensou a Srª Green e seu re­bento. O policial Good, que permaneceu, trazia no rosto a expressão gratificada de todo membro novo da força policial que, depois de revelar presença de espírito em serviço, espera que isso o favoreça em sua carreira.

— Eu só pensei — disse Good, — que toda aquela história de o menino andar dizendo que tinham sido os russos que vieram matar a Srª Argyle podia significar alguma coisa.

— E significa — respondeu o inspetor. — Tina Argyle tem um carrinho de bolha todo vermelho, de modo que pa­rece melhor fazer mais algumas perguntas a ela.

 

— Onde é que a senhorita estava naquela noite, Sr.ta Argyle?

Tina olhou para o inspetor. Suas mãos estavam em per­feito repouso em seu regaço, seus olhos escuros, que não piscavam, não diziam nada.

— Foi há tanto tempo — respondeu ela, — que eu nem me lembro.

— Seu carro foi visto perto da casa.

— Foi?

— Vamos, Sr.ta Argyle. Quando nós lhe pedimos que nos dissesse o que fez naquela noite, declarou que foi para casa e ficou ouvindo música na vitrola. Bem, isso não é ver­dade. Logo antes das sete horas seu carro foi visto na rua que dá acesso ao Recanto do Sol. O que é que a senhorita estava fazendo lá?

Ela não respondeu. Huish esperou alguns momentos, de­pois tornou a se dirigir a ela.

— A senhorita entrou na casa, Sr.ta Argyle?

— Não — respondeu Tina.

— Mas esteve lá?

— O senhor diz que sim.

— Não é uma questão de eu dizer ou não. Nós temos provas de que esteve lá naquela noite.

Tina suspirou.

— É verdade. Fui até lá de carro naquela noite.

— Porém afirma que não entrou na casa?

— Não, eu não entrei na casa.

— Então o que fez?

— Guiei de volta para Redmyn. E aí, como já lhe disse, preparei meu jantar e depois fiquei ouvindo uns dis­cos.

— E por que razão a senhorita foi até lá, se não en­trou na casa?

— Mudei de idéia — disse Tina.

— O que a fez mudar de idéia, Sr.ta Argyle?

— Quando cheguei lá não quis mais entrar.

— Por causa de alguma coisa que viu ou ouviu?

Ela não respondeu.

— Escute, Sr.ta Argyle. Essa foi a noite em que sua mãe foi assassinada. A senhorita esteve lá, seu carro esteve lá, logo antes das sete. Não sabemos quanto tempo ficou. É possível, sabe, que tenha demorado um tempo considerá­vel. Pode ter entrado na casa, creio que tem uma chave...

— Eu tenho chave da casa — disse Tina.

— É possível que a senhorita tenha encontrado. Talvez tenha entrado na sala-de-estar de sua mãe e a tenha encon­trado lá, morta. Ou, possivelmente...

Tina levantou a cabeça.

— Ou possivelmente eu a tenha matado? É isso que está querendo dizer, inspetor?

— É uma possibilidade — disse Huish; — porém eu acho mais provável, Sr.ta Argyle, que outra pessoa a tenha matado. E nesse caso eu creio que a senhorita saiba, ou pelo menos suspeita fortemente, quem foi o assassino.

— Eu não entrei na casa — disse Tina.

— Então viu ou ouviu alguma coisa. Viu alguém en­trando ou saindo da casa. Possivelmente alguém que não se saiba que tenha estado lá. Seria seu irmão Michael, Sr.ta Argyle?

Tina disse:

— Eu não vi ninguém.

 

— Mas ouviu alguma coisa — disse Huish, argutamente. — O que foi que ouviu, Sr.ta Argyle?

— Eu já lhe disse que simplesmente mudei de idéia.

— Desculpe-me, Sr.ta Argyle, porém não acredito nis­so. Por que haveria a senhorita de guiar de Redmyn até aqui para visitar sua família e depois tornar a guiar de volta sem vê-los? Alguma coisa a fez mudar de idéia. Alguma coisa que viu ou ouviu. — Ele se inclinou para a frente. — Eu creio, Sr.ta Argyle, que a senhorita sabe quem matou sua mãe.

Vagarosamente ela sacudiu a cabeça.

— A senhorita sabe alguma coisa — disse Huish. — Alguma coisa que está resolvida a não contar. Mas é pre­ciso pensar, Sr.ta Argyle, e pense cuidadosamente. A senho­rita compreende ao que está condenando toda a sua família? Deseja mesmo que fiquem sempre todos sob suspeita? — Pois é isso que vai acontecer se nós não descobrirmos a verdade. Quem matou sua mãe não merece ser protegido. Pois é isso que a senhorita está fazendo, não é? A senhorita está enco­brindo alguém.

Novamente os olhos escuros e opacos de Tina se fixa­ram nos dele.

— Não sei de nada — disse Tina. — Não vi nem ouvi nada. Eu apenas mudei de idéia.

Calgary e Huish se encararam. Calgary deparou com o que lhe pareceu um dos homens mais deprimidos e tristonhos que jamais havia visto. Parecia tão profundamente desilu­dido que Calgary ficou tentado a supor que a carreira de Huish devia ter sido uma longa sucessão de fracassos. Ficou surpreendido mais tarde ao descobrir que Huish sem­pre tivera o maior sucesso profissional. Huish por seu lado viu um homem magro, prematuramente grisalho, com ombros caídos, um rosto sensível e um sorriso extremamente cati­vante.

— Receio que não saiba quem sou — começou Cal­gary.

— Ora, eu sei tudo a seu respeito, Dr. Calgary. O se­nhor é o sujeito que apareceu para escangalhar com todo o caso Argyle. — Um sorriso inesperado levantou os cantos da boca triste de Huish.

— Quer dizer que dificilmente o senhor há de me con­siderar com qualquer boa vontade — disse Calgary.

— São coisas que acontecem. O caso parecia perfeita­mente esclarecido e ninguém pode ser culpado por ter pen­sado que estivesse mesmo. São coisas que realmente acon­tecem — arrematou. — São provações que o céu nos man­da, como dizia minha mãe. Não tenho nada contra o se­nhor, Dr. Calgary. Afinal, nosso interesse é a justiça, não é?

— Essa sempre foi e sempre será minha crença — afirmou Calgary. — A homem nenhum será negada a justiça — murmurou ele suavemente.

— Carta Magna — disse Huish.

— Exato — respondeu Calgary, — segundo citação da Sr.ta Tina Argyle.

As sobrancelhas do Inspetor Huish elevaram-se.

— Verdade? Pois fico surpreendido. Diria que a moça está, no momento, bem longe de colaborar para que a má­quina da justiça funcione.

— Por que diz isso? — perguntou Calgary.

— Francamente, devo dizer que está recusando infor­mações. Não tenho a menor dúvida a respeito.

— Por quê?

— Bem, é uma questão de família — disse Huish. — As famílias sempre ficam unidas. Mas por que razão o se­nhor estava querendo falar comigo?

— Eu queria informações.

— Sobre o caso Argyle?

— Exato. Compreendo que o senhor possa julgar que me estou metendo no que não me diz respeito, porém...

— Bem, mas o caso realmente lhe diz respeito, não é?

— Ah, reconhece, então. Sim, eu me sinto responsável. Responsável por ter trazido problemas.

— Como dizem os franceses, ninguém faz omelete sem quebrar ovos.

— Há algumas coisas que eu gostaria de saber — con­tinuou Calgary.

— Que coisas?

— Gostaria de ser melhor informado a respeito de Jacko Argyle.

— De Jacko Argyle. Não era isso o que eu esperava.

— Eu sei que a ficha dele não era boa. Porém gosta-ria de saber maiores detalhes do que fez.

— Bem, é muito simples. Teve duas condicionais. Em outra ocasião, em que deu um desfalque, só escapou da cadeia porque repôs o dinheiro no último momento.

Na verdade, então, um jovem criminoso fazendo carreira?

— Exatamente isso — disse Huish. — Não era assas­sino, como o senhor nos demonstrou; porém era várias ou­tras coisas. Nada, há de notar, em grande escala. Não tinha nem a cabeça nem a coragem para os grandes golpes. Um delinqüentezinho de terceira categoria. Desses que tiram di­nheiro da caixinha dos empregados, ou conseguem arrancá-lo de mulheres infelizes.

— E nisso ele era realmente bom — comentou Calgary; — quero dizer, em explorar essas mulheres.

— É um tipo muito tranqüilo de crime — lembrou o inspetor. — As mulheres sempre caíram por ele com grande facilidade. Ele geralmente se concentrava em mulheres de meia idade ou até mesmo já mais entradas. O senhor ficaria espantado de ver como é fácil enganar esse tipo de infeli­zes. Ele tinha uma jogada excelente. Fazia com que acredi­tassem que estava perdidamente apaixonado por elas. Não há nada em que uma mulher não acredite se realmente es­tiver com vontade de acreditar.

— E depois?

— Bom, é claro que mais cedo ou mais tarde elas en­contram seu desapontamento. Mas nunca se queixam. Não querem que todo o mundo saiba que se deixaram enganar. É uma linha de trabalho muito garantida.

— Nunca houve casos de chantagem? — perguntou Calgary.

— Não que eu saiba. Garanto que não me parece im­possível. Eu não diria uma chantagem aberta. Uma ou duas indiretas. Cartas. Cartas tolas. Coisas que seria melhor que o marido não soubesse. Ele seria perfeitamente capaz de garantir o silêncio de uma mulher com tais métodos.

— Percebo — concordou Calgary.

— Era só isso o que queria saber?

— Ainda há um membro da família Argyle que não conheço — disse Calgary. — A filha mais velha.

— Ah, a Srª Durrant.

— Fui à casa dela porém estava tudo fechado. Disse­ram-me que ela e o marido tinham viajado.

— Eles estão no Recanto do Sol.

— Ainda estão lá?

— Ainda. Ele quis ficar. Depois, — Huish acrescentou: — Pelo que eu soube, o Sr. Durrant anda bancando o de­tetive.

— Ele é inválido, não é?

— É; foi poliomielite. Um caso muito triste. O coita­do não tem muito o que fazer. Creio que é por isso que se está interessando tanto por essa questão do assassinato. E parece que ele acha que está progredindo.

— E será que está? — perguntou Calgary.

Huish deu de ombros.

— É bem possível que esteja. Tem melhores chances do que nós, pelo menos. Conhece bem a família e é um homem não só inteligente como também com boa dose de intuição.

— E o senhor acha que ele vai descobrir alguma coi­sa?

— É possível; mas por certo não nos dirá nada se des­cobrir. Ficará tudo dentro do âmbito familiar.

— O senhor, pessoalmente, sabe quem é o culpado, inspetor?

— Não deve perguntar-me coisas assim, Dr. Calgary.

— O que quer dizer que o senhor sabe?

— Pode-se pensar que se sabe uma coisa — respondeu lentamente Huish, — porém quando não se tem provas não há nada que se possa fazer, há?

— E não crê que venha a obter as provas que deseja?

— Ora, somos muito pacientes! Vamos continuar ten­tando.

— E o que acontecerá a todos se o senhor não conse­guir? — perguntou Calgary, inclinando o corpo para mos­trar seu empenho. — Já pensou nisso?

Huish encarou-o.

— Então é isso que o preocupa, doutor?

— Eles precisam saber — respondeu Calgary. — Acon­teça o que acontecer o importante é que eles saibam.

— E o senhor não crê que eles já saibam.

Calgary sacudiu a cabeça.

— Não — disse ele lentamente; — e essa é a tragé­dia.

 

— Ora só! — exclamou Maureen Clegg; — é o se­nhor de novo!

— Sinto muito vir incomodá-la — disse Calgary.

— Não é incômodo nenhum. Entre. Hoje é meu dia de folga.

Desse fato Calgary estava plenamente consciente, já que por isso mesmo tinha vindo naquele dia.

— Estou esperando o Joe a qualquer momento — dis­se Maureen. — Não vi mais nada nos jornais sobre Jacko. Quero dizer, depois que falaram do perdão e explicaram no Parlamento que ficou provado que não foi ele. Não vi nada sobre o que a polícia está fazendo ou sobre quem é o cri­minoso na verdade. Eles não conseguiram descobrir?

— A senhora continua sem ter qualquer idéia a res­peito?

— Ter, não tenho não — respondeu Maureen. — Mas não ficaria nada espantada se tivesse sido o irmão dele. Ele é muito esquisito e anda sempre emburrado. Joe às vezes o vê demonstrando carros a clientes. Ele trabalha para o grupo Benca, sabe? Ele até que é bonitão, mas sempre de mau humor, sempre zangado. Joe ouviu um boato de que ele vai para a Pérsia ou coisa no gênero e isso não me cheira muito bem, não acha?

— Não sei por que isso haveria de lhe causar má im­pressão, Srª Clegg.

— Bem, é um desses lugares do tipo daquele no qual a polícia não consegue mais botar a mão nas pessoas, não é?

— A senhora acha que ele está fugindo?

— Pode ser que ache que é melhor desaparecer.

— Creio que é possível que haja quem pense assim.

— Tem muito boato correndo por aí. Dizem que o marido e a secretária também estavam tendo um caso. Mas se fosse o marido, é mais provável que ela tivesse sido en­venenada. Não é veneno que eles costumam usar?

— Bem, Srª Clegg, eu não sei. A senhora vê mais fil­mes do que eu.

— Mas eu nem olho para a tela — disse Maureen. — Quando a gente trabalha lá, como eu, toma o maior enjôo de filme. Olhe, o Joe chegou.

Joe Clegg pareceu surpreendido de encontrar Calgary ali e, possivelmente, não muito contente com o fato. Conversa­ram um pouco, até que enfim Calgary foi ao objetivo de sua visita.

— Eu gostaria de saber se o senhor se importaria de me dar um nome e endereço de que estou precisando?

Com grande cuidado ele os anotou em sua caderneta.

 

Ele calculou que devia andar pelos cinqüenta anos aquela mulher pesadona e desajeitada que não poderia ja­mais ter sido bonita. Os olhos, no entanto, eram simpáticos, castanhos, bondosos.

— Bem, Dr. Calgary, para falar a verdade... Estava indecisa e perturbada. — Bem, eu não sei se...

Ele inclinou-se para ela, solícito, fazendo grande es­forço para superar aquela relutância transmitindo-lhe toda a força de sua compreensão e solidariedade.

— Já foi há tanto tempo — disse ela. — É só... é só que eu realmente não gosto de me lembrar dessas coi­sas.

— Compreendo muito bem; porém lembro que o caso aqui não é o de qualquer aspecto da questão jamais ser trazido a público. Isso eu posso garantir-lhe.

— Mas o senhor disse que estava querendo escrever um livro a respeito desses casos...

— Um livro cujo único intuito será ilustrar um de­terminado tipo de personalidade — respondeu Calgary. — Tem enorme interesse, como poderá compreender, tanto do ponto de vista médico quanto do psicológico. Nenhum no­me. Só o Sr. A ou a Srª B. A senhora sabe como é.

— O senhor esteve na Antártida, não esteve? — per­guntou ela repentinamente.

Ele ficou surpreendido com a forma inesperada com que ela mudou de assunto.

— É verdade; estive na Expedição Hayes Bentley.

Ela corou e transformou-se em uma pessoa muito mais jovem. Por um momento ele pôde ver a mocinha que ela fora outrora. — Eu li tudo o que publicaram a respeito... Sempre me senti fascinada por tudo o que se relaciona a explorações polares. Não foi aquele norueguês, Amundsen, quem chegou lá primeiro? Para mim os pólos são muito mais interessantes do que subir o Everest ou ir à Lua ou coisas assim.

Ele pegou a deixa no ar e começou a falar a respeito de expedição. Era interessante que ela reservasse para as regiões polares sua capacidade de romantização. E final­mente ela disse, suspirando:

— Que maravilha ouvir tudo isso da boca de alguém que realmente esteve lá. — E continuou: — O senhor queria saber a respeito de Jackie?

— É

— Mas não publicaria o meu nome, não é?

— Claro que não. Já lhe disse. Sabe como são feitas essas coisas. Só a Srª M. ou a Sr.ta Y.

— Eu sei; já li esse tipo de livro. E eu acho realmente que ele era pato... pato...

— Patológico.

— É. Jackie era, sem dúvida, um caso patológico. Sa­bia ser realmente um amor, sabe — disse ela. — Era ma­ravilhoso. Dizia coisas incríveis e todo o mundo acreditava em cada palavra.

— Provavelmente porque ele acreditava no que dizia — sugeriu Calgary.

— Tenho idade para ser sua mãe, dizia eu a ele, mas ele respondia que não gostava de mocinhas. Que as jovens não tinham sensibilidade. Que só as mulheres experientes e maduras é que o atraíam.

— Ele estava muito apaixonado pela senhora?

— Dizia que estava. Parecia estar...— Os lábios dela tremeram. — Mas acho que nunca pensou em nada a não ser no dinheiro.

— Não necessariamente — disse Calgary, tomando o máximo de liberdade que podia com a verdade. — É pos­sível que também se estivesse sentindo realmente atraído pela senhora. Só que... ser desonesto era mais forte do que ele.

O patético rosto envelhecido iluminou-se um pouco.

— Sim — concordou ela, — é bom pensar que pode ter sido assim. Pois vou dizer-lhe como foi. Fazíamos tan­tos planos; íamos fugir juntos para a França, ou para a Itália, se os negócios dele dessem certo. Dizia que só fal­tava um pouquinho de capital.

A cantada normal, pensou Calgary, perguntando-se quantas mulheres igualmente patéticas já haviam caído nela.

— Não sei o que aconteceu comigo — disse ela. — Eu teria feito qualquer coisa por ele, qualquer coisa.

— Estou certo que sim — disse Calgary.

— Mas aposto que não fui a única — concluiu ela com amargura.

Calgary levantou-se.

— Foi muita bondade sua ter-me contado tudo.

— Agora ele está morto... porém nunca hei de me esquecer dele. Com aquela carinha de macaco! Seu jeito de parecer tão triste, ou tão alegre. Ele era mesmo encantador. E não era todo mau; estou certa de que não era todo mau.

Ela o olhou esperando encontrar apoio.

Porém para isso Calgary não podia ter resposta.

Não houvera nada que avisasse Philip Durrant que aquele dia seria diferente de qualquer outro.

Ele não tinha a menor idéia de que aquele dia iria de­cidir de uma vez por todas o seu destino.

Acordou bem disposto e alegre. Um sol de outono bri­lhava em sua janela. Kirsten trouxe-lhe um recado telefôni­co que o deixara ainda mais contente.

— Tina vem para o chá — disse ele a Mary quando ela entrou trazendo-lhe o desjejum.

— Vem? Ah, é mesmo; hoje é a folga dela, não é?

Mary parecia preocupada.

— O que é que houve, Polly?

— Nada.

Ela abriu o ovo quente que trouxera para ele, o que o irritou.

— Ainda sou capaz de usar as mãos, Polly.

— Ora, só queria poupar-lhe trabalho.

— Quantos anos você acha que tenho, seis?

Ela pareceu um tanto surpreendida. Depois disse, abruptamente:

— Hester vai voltar para casa hoje.

— Ah, é? — O tom dele foi um tanto vago, porque sua cabeça estava cheia de planos para enfrentar Tina. Mas de repente percebeu a expressão no rosto da mulher.

Pelo amor de Deus, Polly; será que você ainda pen­sa que eu tenho uma pecaminosa paixão oculta pela ga­rota?

Ela virou a cabeça.

— Você está sempre dizendo que ela é tão bonita.

— E é mesmo. Para quem gosta de uma boa estrutura óssea e um ar um tanto extraterreno. — Depois acrescentou, secamente: — Mas eu dificilmente posso ser indicado para desempenhar o papel de sedutor, não é?

— Mas pode ficar querendo que pudesse.

— Não seja ridícula, Polly. Eu nunca soube que você tivesse essa estranha tendência para o ciúme.

— Você não sabe nada a meu respeito.

Ele ia começar a contradizê-la, mas parou. Ocorreu-lhe, com o impacto de um choque, que possivelmente ele não soubesse muito sobre Mary.

Ela continuou:

— Eu quero você para mim. Quero que não exista ninguém no mundo a não ser você e eu.

— Íamos acabar sem assunto para conversa, Polly.

Ele falou em tom leve, porém sentiu-se incomodada. O brilho da manhã pareceu-lhe repentinamente empanado.

— Vamos para casa, Philip — disse ela; — por favor vamos para casa.

— Iremos muito breve, porém não já. As coisas estão correndo bem. Como eu lhe disse, Tina vem aqui hoje. — E continuou, esperando mudar a linha de pensamento dela: — Estou com grandes esperanças em Tina.

— De que modo?

— Tina sabe de alguma coisa.

— Você quer dizer... a respeito do assassinato?

— É.

— Como pode saber? Ela nem sequer estava aqui na­quele dia.

— Isso é que eu não sei. Sabe, eu tenho a impressão de que estava. É engraçado como aparecem umas coisinhas para ajudar. Aquela empregada que vem sempre, a Srª Narracott, aquela alta, me contou uma coisa.

— Contou o quê?

— Um mexerico a respeito de um menino aí da aldeia. Ernie... não, Cyril. Teve de ir com a mãe prestar depoi­mento na polícia. Sobre alguma coisa que ele viu na noite em que a Srª Argyle foi morta.

— Viu o quê?

— Bem, a Srª Narracott foi um tanto confusa. Ainda não tinha arrancado tudo o que podia da mãe do menino. Porém podemos dar largas à imaginação, não podemos, Pol­ly? Cyril não estava na casa, portanto deve ter visto alguma coisa fora da casa. Das duas uma: ou viu Micky ou viu Tina. E o meu palpite é que Tina veio aqui naquela noite.

— Mas ela teria dito alguma coisa.

— Não necessariamente. É mais que óbvio que Tina sabe de alguma coisa e que não quer contar. Digamos que tenha vindo de carro até aqui. É possível que tenha entrado e encontrado sua mãe morta.

— E ido embora sem dizer nada? Mas que bobagem.

— Talvez tivesse razões para isso... Talvez tenha vis­to ou ouvido alguma coisa que a fizesse pensar que sou­besse quem a tinha matado.

— Ela nunca foi de gostar muito de Jacko. Tenho a certeza de que ela jamais o encobriria assim.

— Então é possível que não fosse de Jacko que sus­peitasse... Porém mais tarde, quando Jacko foi preso, pode ter concluído que suas suspeitas estavam erradas. Tendo dito que nunca esteve aqui, teve de sustentar o que afirmara. Mas agora as coisas são outras.

Mary disse, impaciente:

— Você fica imaginando coisas, Philip. Fica inventan­do coisas que não podem absolutamente ser verdade.

— Podem muito bem ser verdade. Vou tentar fazer com que Tina me diga o que sabe.

— Não creio que ela saiba de nada. Você acha mesmo que ela sabe quem foi?

— Não diria tanto. Acho que ela viu, ou ouviu, algu­ma coisa. Quero descobrir que coisa é essa.

— Tina não vai dizer, se não quiser.

— Isso eu concordo. E ela é ótima em matéria de guardar segredo. Tem uma carinha que não deixa escapar nada. Nunca demonstra nada. Porém não sabe realmente mentir bem... você, por exemplo, mente muito melhor do que ela... Meu método será o da adivinhação. Vou apre­sentar o que me parece que seja a verdade em forma de pergunta. Terá de responder sim ou não. Sabe o que vai acontecer, então? Uma de três coisas. Ou ela diz que sim, e nesse caso está tudo acabado. Ou ela diz que não, e não sabendo mentir bem eu saberei se é não mesmo. Ou se re­cusa a responder e fica com aquela carinha de esfinge, o que, no caso, será tão bom quanto dizer sim, Polly. É impossível que você não concorde que há boas possibilida­des nesse meu método.

— Ora, deixe tudo isso em paz, Phil! Isso acaba mor­rendo, sendo tudo esquecido.

— Não. Isso tem de ser esclarecido. De outro modo vamos acabar com Hester se atirando pela janela e Kirsty tendo um colapso nervoso. Leo já se está congelando, vi­rando estalactite, enquanto que a pobre da Gwenda está a ponto de aceitar um emprego na Rodésia.

— E o que importa o que possa acontecer com ela?

— Ninguém importa, a não ser nós... não é isso que você quer dizer?

O rosto dele estava severo e enraivecido. Mary ficou atônita. Nunca tinha visto seu marido com aquela expres­são.

Ela o encarou desafiadora.

— E por que razão haveria de eu me importar com os outros?

— Você nunca se importou, não é?

— Não entendo o que você está querendo dizer.

Philip soltou um suspiro exasperado. Afastou a ban­deja com o desjejum.

— Tire isto daqui. Não quero mais nada.

— Mas Philip...

Ele fez um gesto de impaciência. Mary pegou a ban­deja e levou-a para fora do quarto. Philip rolou a cadeira até à escrivaninha. Com a caneta na mão, olhou pela janela. Sentia-se curiosamente oprimido. Ele, que ainda havia pouco estivera tão excitado. Agora se sentia sobressaltado e in­quieto.

Mas aos poucos reagiu. Cobriu velozmente duas folhas de papel com suas notas. Depois recostou-se e ficou pensan­do.

Era plausível. Era possível. Mas não era inteiramente satisfatório. Será que estava realmente na pista certa? Não conseguia ter certeza. Motivo. O que faltava miseravelmente era sempre o motivo. Havia algum fator, em algum lugar, que lhe escapara.

Ele suspirou de impaciência. Mal podia esperar a che­gada de Tina. Se ao menos aquilo ficasse esclarecido. Mes­mo que só entre eles. Era só isso que era necessário. Uma vez que soubessem, então estariam todos livres. Livres da­quela sufocante atmosfera de suspeita e desespero. Pode­riam todos, com uma única exceção, continuar a viver suas vidas. Ele e Mary poderiam ir para casa e...

Seu pensamento estancou. O entusiasmo tornou a de­saparecer. Começou a encarar seu próprio problema. Ele não queria ir para casa... Pensou na arrumação perfeita, nos estampados brilhantes, nos metais superpolidos. Uma jaula limpa, clara e bem cuidada! E ele dentro da jaula, amarrado à sua cadeira de rodas, totalmente envolvido pelo apaixonado cuidado de sua mulher.

Sua mulher... Quando pensava nela tinha a impressão de ver duas pessoas. Uma era a moça com quem havia ca­sado, loura, de olhos azuis, suave, tímida. Aquela era a moça que tinha amado, a moça com quem fazia brincadeiras que ela encarava atônita, de testa franzida. Aquela era a sua Polly. Porém havia uma outra Mary, dura como aço, apaixonada, porém incapaz de afeição, para quem ninguém tinha importância a não ser ela mesma. Até ele só importava porque era dela.

Um verso francês atravessou-lhe a mente. Como era mesmo?

C’est Venus toutee entière à sa proie attachée...

E aquela Mary ele não amava. Por trás dos gelados olhos azuis havia uma estranha, uma desconhecida que ele não compreendia...

E repentinamente ele riu de si mesmo. Estava ficando nervoso e impressionado como todo o mundo mais naque­la casa. Lembrou-se da sogra a lhe falar de sua mulher. Da linda menininha loura de Nova York. E do momento em que a menininha lhe atirara os braços em torno do pes­coço e gritara: “Eu quero ficar com vocês. Não quero me separar de vocês nunca!”

Aquilo tinha sido afeição, não tinha? No entanto, como parecia pouco com Mary. Seria possível alguém mudar tanto de menina para mulher? Como era difícil, quase que im­possível, para Mary externar qualquer afeição, demonstrar qualquer emoção!

No entanto, naquela ocasião específica... Seus pensa­mentos estacaram. Não poderia haver uma explicação real­mente simples? Ela não expressara sua afeição, apenas seu calculismo. Meios para um fim. Nessas circunstâncias, uma demonstração de afeição havia sido devidamente apresenta­da. Do que seria Mary exatamente capaz a fim de obter o que realmente chegava a querer?

Praticamente qualquer coisa, pensou ele, sentindo-se de­pois chocado consigo mesmo por o ter pensado.

Irritado, atirou para um lado a caneta e rolou a cadeira da sala de estar para p quarto de dormir que ficava ao lado. Chegou até à penteadeira. Apanhou suas escovas e atirou para trás os cabelos que lhe haviam caído sobre a testa. Seu próprio rosto, no espelho, lhe pareceu estranho.

Quem sou eu, pensou ele, e para onde estou indo? Eram pensamentos que jamais lhe haviam ocorrido anteriormente. Rolou a cadeira até junto da janela e olhou para fora. Lá embaixo uma das empregadas que vinham durante — o dia estava bem em frente à janela da cozinha e conversava com alguém que estava do lado de dentro. Suas vozes, com seu suave sotaque local, flutuavam até ele...

Com os olhos se arregalando aos poucos, ele ficou imó­vel, como que em transe.

Um ruído da sala ao lado despertou-o de seu deva­neio. Rolou a cadeira até à porta de comunicação.

Gwenda Vaughan estava junto à escrivaninha. Quando se voltou para ele, Philip ficou estarrecido ante o abatimen­to que o sol da manhã revelava no seu rosto.

— Olá, Gwenda.

— Olá, Philip. Leo achou que talvez você gostasse de dar uma espiada nestas revistas.

— Ora, muito obrigado.

— Como é simpática esta sala — disse Gwenda olhan­do em torno de si. — Acho que nunca tinha estado aqui antes.

— Não parece a própria Suíte Imperial? — perguntou ele. — Afastada de tudo e de todos. Ideal para inválidos e casais em lua-de-mel.

Um pouco tarde demais ele desejou não ter usado aque­las últimas palavras. O rosto de Gwenda teve uma pequena contração.

— Bem, eu tenho de continuar a trabalhar — disse ela, um tanto vaga.

— A secretária perfeita.

— Nem sequer isso, hoje em dia. Ando cometendo erros.

— E quem não os comete? — Deliberadamente, acres­centou: — Quando é que você e Leo vão-se casar?

— Acho que nunca.

— Isso seria um erro imperdoável — disse Philip.

— Leo acha que poderia provocar comentários desfa­voráveis... por parte da polícia! — A voz dela era realmente amarga.

— Mas que diabo, Gwenda; a gente tem de se arriscar.

— Eu arriscaria qualquer coisa — respondeu ela. — Nunca me importei de me arriscar. Gostaria de tomar o ris­co de ser feliz. Mas Leo...

— Mas Leo...

— Leo — respondeu Gwenda lentamente — prova­velmente vai morrer como viveu, isto é, sendo o marido de Rachel Argyle.

O rancor e a amargura no olhar dela o surpreende­ram.

— Ela podia perfeitamente estar viva — continuou Gwenda. — Está sempre aqui... aqui nesta casa... sem­pre...

Tina estacionou seu carro no gramado junto ao muro do cemitério. Removeu cuidadosamente o papel das flo­res que havia comprado, depois entrou pelo portão de cami­nho pela alameda principal. Não gostava do cemitério novo. Gostaria que tivesse sido possível à Srª Argyle ter sido en­terrada no antigo cemitério junto à velha igreja, que tinha um clima amigável de paz e tranqüilidade. Talvez por causa das árvores e das velhas pedras cobertas de musgo. Mas aqui neste cemitério novo tudo era tão arrumado, com aléias cuidadosamente traçadas e planejadas com eficiência e o cli­ma de produção em massa de um supermercado.

A sepultura da Srª Argyle estava sempre muito bem cuidada. Era um retângulo de mármore emoldurado com granito e encimado por uma cruz igualmente de granito.

Tina, segurando um ramo de cravos, inclinou-se para ler a inscrição. “Em saudosa memória de Rachel Louise Argyle.” Embaixo, uma citação bíblica: “Seus filhos hão de levantar-se para abençoá-la.”

Sentindo passos atrás de si Tina virou a cabeça, as­sustada.

— Micky!

— Vi seu carro e resolvi segui-la. Pelo menos... bem, de qualquer modo eu também vinha aqui.

— Vinha mesmo aqui? Por quê?

— Não sei. Acho que só para me despedir.

— Para se despedir... dela?

Ele acenou com a cabeça.

— É. Resolvi aceitar aquele emprego com a compa­nhia de petróleo. Aquele que eu falei a você. Devo ir em­bora daqui a umas três semanas.

— E quis vir aqui para se despedir de mamãe em pri­meiro lugar?

— É. Ou talvez tenha sido para dizer obrigado a ela, ou para pedir desculpas.

— Pedir desculpas por quê, Micky?

— Positivamente não é por a ter matado, se é isso que você está querendo dizer. Você andou pensando que fui eu quem a matei, Tina?

— Eu não tinha certeza.

— E nem pode ter agora, não é? Isto é, não adianta eu dizer a você que não fui eu.

— Por que é que você está pedindo desculpas?

— Ela fez muita coisa por mim — disse Micky lenta­mente. — E eu nunca consegui ser nem sequer um pouqui­nho grato. Reclamei e me revoltei com tudo, mas tudo mes­mo, que ela fez por mim. Nunca lhe disse uma só palavra gentil, nunca lhe dirigi um olhar que demonstrasse amor. E agora fico querendo que tivesse feito alguma dessas coisas. Só isso.

— Quando foi que você parou de odiá-la? Depois que ela morreu?

— É. Acho que foi.

— Mas não era realmente a ela que você odiava, era?

— Não... não. Você tinha razão. Era à minha mãe de verdade. Porque eu a amava. Porque eu a amava e ela nunca me deu a mínima bola.

— E agora você não está mais revoltado com isso?

— Não. Acho que não foi realmente culpa dela. Cada um nasce como nasce. Ela era uma criatura alegre, cheia de vida. Gostava demais de homem e gostava demais de beber e até, quando estava de veneta, tratava muito bem os filhos. Não permitia que ninguém os maltratasse. Mas aí está, não se importava comigo! Durante anos e anos eu me recusei a assumir isso. Mas agora já consegui aceitá-lo. — Ele estendeu a mão. — Quer dar-me um desses seus cravos, Tina? Ele o tomou e, curvando-se, colocou-o sobre o túmulo, logo abaixo da citação bíblica. — Aí está, mamãe — disse ele. — Eu fui uma porcaria de um filho para você e desconfio que você também não acertou muito em ser minha mãe. Mas eu sei que suas intenções eram boas. — Olhou para Tina. — Acha que serve, como pedido de desculpas?

— Acho que serve — respondeu Tina.

Ela se inclinou e depositou seu ramo de cravos.

— Você costuma trazer flores aqui?

— Venho pelo menos uma vez por ano.

— A pequena Tina — disse Micky.

Os dois deram meia-volta e saíram juntos pelo caminho do cemitério.

— Eu não a matei, Tina — disse Micky. — Eu juro que não fui eu. E eu quero que você acredite em mim.

— Eu estive lá naquele dia — disse Tina.

Ele girou na direção dela.

— Esteve lá? Quer dizer, no Recanto do Sol?

— É. Eu estava pensando em mudar de emprego. E queria consultar papai e mamãe.

— E daí? — perguntou Micky.

Quando ela não respondeu, ele agarrou o braço dela e a sacudiu. — Continue, Tina. Você tem de me contar o que foi que aconteceu.

— Até hoje eu não contei a ninguém.

— Mas agora tem de continuar — insistiu Micky.

— Eu fui de carro. Mas não fui até o portão. Sabe aquele lugar um pouco mais abaixo onde fica mais fácil ma­nobrar?

Micky concordou com a cabeça.

— Saltei do carro e comecei a andar na direção da casa. Não estava muito segura do que queria. E você sabe como era difícil discutir certas coisas com mamãe. Isto é, ela sempre tinha umas convicções muito fortes. Eu queria apresentar meus argumentos da maneira mais clara possível e por isso caminhei até a casa, depois caminhei de novo até o carro e depois novamente em direção a casa. Estava tentando pensar.

— A que horas foi isso? — perguntou Micky.

— Não sei — disse Tina. — Não me lembro mais. Eu, você sabe que o tempo não significa muita coisa para mim.

— Eu sei, minha querida. Você sempre tem um ar de quem vive em estado de permanente lazer.

— Eu estava debaixo das árvores — continuou Tina, — andando sem fazer barulho.

— Bem a gatinha que eu conheço — comentou Micky, carinhosamente.

— Quando de repente eu os ouvi.

— Ouviu o quê?

— Duas pessoas sussurrando.

— O quê? — O corpo de Micky ficou tenso. — O que é que estavam dizendo?

— Estavam dizendo... bem, uma das pessoas estava dizendo: “Entre as sete e as sete e meia. Tem de ser nessa hora. Lembre-se disso e não vá atrapalhar tudo. Entre as sete e as sete e meia.” E aí a outra pessoa sussurrou: “Pode contar comigo.” Depois a primeira voz concluiu: “E depois disso, meu amor, tudo vai ser maravilhoso.”

— Bem e por que você nunca disse nada?

— Porque eu não sabia — disse Tina. — Não sabia quem estava falando.

— Mas não é possível! Era homem ou mulher?

— Eu não sei — respondeu ela. — Não compreende que quando as pessoas sussurram a gente não ouve a voz? É só, sei lá, um sussurro. Bem, é claro que eu acho que era um homem e uma mulher por causa...

— Por causa do que estavam dizendo?

— É. Mas eu não sei quem eram.

— Você pensou — disse Micky, — que poderia ter sido papai e Gwenda?

— Era possível, não era? Podia significar que Gwenda devia sair de casa e depois voltar naquelas horas previstas, ou podia ser que Gwenda quisesse dizer a papai para descer entre as sete e as sete e meia.

— E se fosse papai e Gwenda você não queria denun­ciá-los à polícia, não é?

— Se eu tivesse certeza... — disse Tina. — Mas não tenho. Podiam ser outras pessoas. Poderia ser Hester e al­guém mais, não podia? Poderia ser Mary com mais alguém, mas não poderia ser Philip. Não, é claro que Philip não podia ser.

— Quando você diz Hester e alguém mais, em quem é que você está pensando?

— Não sei.

— E você não o viu... o homem, quero dizer?

— Não — disse Tina. — Eu não o vi.

— Tina, eu acho que você está mentindo. Era um ho­mem, não era?

— Eu me virei para voltar — disse Tina, — na dire­ção do carro, sabe, e nessa hora alguém desceu pelo outro lado da rua andando muito depressa. Era apenas uma som­bra na escuridão. E depois eu achei... achei que ouvi um carro dando partida lá embaixo no início da rua.

— E você pensou que fosse eu... — disse Micky.

— Eu não sabia — disse Tina. — Podia ser você. Era mais ou menos do seu corpo, da sua estatura.

Eles chegaram ao carrinho de Tina.

— Vamos, Tina, entre — disse Micky. — Eu vou com você. Vamos até o Recanto do Sol.

— Mas, Micky...

— Não adianta eu dizer a você que não fui eu, adianta? Eu não haveria de dizer outra coisa, não é? Vamos; vamos lá em casa.

— O que é que você vai fazer, Micky?

— E por que é que você acha que eu tenho de fazer alguma coisa? Você não ia para lá de qualquer maneira?

— Ia — disse Tina. — Ia, sim. Eu recebi uma carta de Philip. — Ela deu a partida do carro. Micky, sentado a seu lado, parecia tenso, rígido.

— Do Philip, é? E o que é que ele queria?

— Pediu que eu fosse até lá. Quer falar comigo. Ele sabe que hoje é meu dia de folga.

— Ah, sei. E ele disse por que razão estava querendo falar com você?

— Disse que queria fazer-me uma pergunta e que esperava que eu lhe desse a resposta que precisava. Disse que não me pediria para dizer nada a ele... que ele me diria alguma coisa. Eu teria apenas de dizer sim ou não. E disse também que qualquer coisa que eu lhe dissesse seria na mais estrita confiança.

— Quer dizer que ele descobriu alguma coisa, então? Muito interessante.

O Recanto do Sol não ficava longe. Quando chegaram lá, Micky disse:

— Vá entrando, Tina. Eu vou andar um pouco aqui no jardim, para pensar em algumas coisas. Pode ir. Você tem de conversar com o Philip.

— Não, não vai... você não seria capaz... — disse Tina.

Micky deu um risinho curto.

— Atirar-me do alto de não sei o quê? Ora vamos, Tina; você me conhece bem demais para pensar isso.

— Às vezes — disse Tina, — eu acho que ninguém conhece ninguém.

Ela deu meia-volta e caminhou vagarosamente em di­reção a casa. Micky ficou olhando para ela, com a cabeça encurvada e as mãos afundadas nos bolsos. Seu semblante estava carregado. Depois caminhou e deu a volta para o lado da casa, observando-a cuidadosamente. Todas as suas lembran­ças da infância voltaram-lhe. Lá estava a velha magnólia. Quantas vezes subira por ela para entrar pela janela do cor­redor. E lá estava o cantinho que ele sempre chamara “o seu jardim”. Não que ele jamais tivesse tido muito interesse em jardinagem. Sempre tinha preferido desmontar todos os brinquedos mecânicos que lhe caíam nas mãos. “Que diabo mais destrutivo!” pensou ele, ligeiramente divertido. Pois é, as pessoas não mudam muito, realmente.

Já dentro de casa Tina encontrou Mary no saguão. Mary pareceu espantada de vê-la.

— Tina! Você veio de Redmyn?

— Vim — respondeu Tina. — Não sabia que eu vinha aqui hoje?

— Tinha esquecido. Mas acho que Philip me disse qual­quer coisa.

Ela se afastou.

— Eu vou até à cozinha — disse, — para ver se já chegou o chocolate em pó. Philip sempre gosta de sorver um pouco antes de dormir. Kirsten acabou de subir para levar um café para ele. Ele gosta mais de café do que de chá. Diz que chá pesa no estômago.

— Por que é que você trata Philip como se ele fosse um inválido, Mary? — perguntou Tina. — Ele não é real­mente inválido.

Um toque de gélida raiva apareceu nos olhos de Mary.

— Quando você tiver seu próprio marido — disse ele, — compreenderá melhor como os maridos gostam de ser tra­tados.

— Desculpe — disse Tina delicadamente.

— Se ao menos nós pudéssemos sair desta casa — disse Mary. — É tão ruim para o Philip ficar aqui. E Hester vai voltar hoje — acrescentou.

— Hester? — Tina pareceu surpresa. — Vai mesmo? Por quê?

— E como é que eu vou saber? Ela telefonou ontem de noite para avisar. Não sei nem qual é o trem que ela vai tomar. Deve ser o expresso, como sempre. Alguém precisa ir a Drymouth para buscá-la.

Mary desapareceu pelo corredor que ia dar na cozinha. Tina hesitou um instante, depois subiu a escada. Quando chegou ao patamar no alto, a primeira porta à sua direita se abriu e Hester apareceu, parecendo surpreendida de ver Tina.

— Hester! Eu tinha ouvido dizer que você vinha hoje, mas não sabia que já tinha chegado.

— O Dr. Calgary me trouxe de carro — disse Hester. — Eu vim direto para o meu quarto. Acho que ninguém sabe ainda da minha chegada.

— O Dr. Calgary está aí?

— Não. Ele só me deixou aqui e foi até Drymouth. Ti­nha de ver não sei quem lá.

— Mary não sabia que você já tinha chegado.

— Mary nunca sabe de nada — disse Hester. — Ela e Philip se isolam de tudo o que acontece. Acha que papai e Gwenda estão na biblioteca. Tudo parece estar correndo como de costume.

— E por que não haveria de correr?

— Eu não sei bem — disse Hester, vagamente. — É só que eu achava que agora tudo devia estar completamente diferente.

Ela passou por Tina e desceu a escada. Tina continuou pelo corredor, passou pela porta da biblioteca e chegou até à pequena passagem no fim da qual ficava o apartamento que os Durrants ocupavam. Kirsten Lindstrom, de pé junto à porta de Philip com uma bandeja na mão, virou violenta­mente a cabeça.

— Ora, Tina, que susto você me deu — disse ela. — Eu só ia levar café e uns biscoitos para o Philip. — Ela levan­tou a mão para bater na porta quando Tina chegou até ela.

Depois de bater Kirsten abriu a porta e entrou. Estava uns poucos passos mais à frente e sua figura grande e angulosa impedia a visão de Tina, porém Tina ouviu-a pren­der repentinamente a respiração. Seus braços fraquejaram e a bandeja caiu no chão com um estrondo, deixando que a xícara e os pratos se espatifassem.

— Não! — gritou Kirsten. — Meu Deus, não!

— É Philip? — perguntou Tina.

Ela passou por Kirsten e foi até onde a cadeira de Philip havia sido colocada junto à escrivaninha. Ela supôs que ele tivesse estado escrevendo. Havia uma caneta esferográfica caída junto à sua mão direita, mas sua cabeça havia pendido para a frente numa posição totalmente anormal. E na base do crânio ela viu alguma coisa que parecia um brilhante losango vermelho manchando o branco do colarinho.

— Foi assassinado — disse Kirsten. — Foi morto, apu­nhalado. Está vendo ali, na base do crânio. É só um ponti­nho, mas é fatal.

Ela acrescentou, falando cada vez mais alto:

— Eu avisei a ele. Fiz tudo o que pude. Mas ele parecia criança, gostava de brincar com coisas perigosas sem perce­ber o que estava fazendo.

Parecia um pesadelo, pensou Tina. Ela ficou ali, parada, junto a Philip, olhando para ele enquanto Kirsten levantava um braço inerte e tentava sentir um pulso que já não batia mais. O que seria que ele estava querendo perguntar a ela? Fosse o que fosse, ela jamais saberia agora. Sem chegar a pensar com qualquer tipo de real objetividade, a mente de Tina estava absorvendo e registrando vários detalhes. Ele ti­nha estado escrevendo, com certeza. Lá estava a caneta, po­rém não havia papel na frente dele. Não havia nada escrito. Quem quer que fosse que o matara, tinha também removido tudo o que ele escrevera.

— Nós temos de avisar os outros — disse ela, tranqüila e mecanicamente.

— É isso mesmo; temos de descer e avisar. É preciso dizer a seu pai.

Lado a lado as duas mulheres foram até à porta. O braço de Kirsten estava em volta de Tina. Os olhos de Tina fixa­ram-se na bandeja e na louça quebrada.

— Não faz mal — disse Kirsten. — Depois se limpa tudo.

Tina tropeçou mas o braço de Kirsten sustentou-a.

— Cuidado, senão você pode cair.

Continuaram pelo corredor. A porta da biblioteca abriu-se. Leo e Gwenda saíram.

Tina disse, com sua voz clara e suave:

— Mataram Philip. Ele foi apunhalado.

Era como um sonho, pensou Tina. As exclamações cho­cadas do pai e de Gwenda, os dois correndo pelo corredor em busca de Philip... De Philip que estava morto. Kirsten deixou-a e correu pela escada abaixo.

— Eu tenho de contar a Mary. É preciso contar a ela com muito cuidado. Pobre Mary. Vai ser um choque ter­rível.

Tina seguiu-a vagarosamente. Cada vez ela se sentia mais entontecida, como se vagasse no meio de um sonho. Uma dor estranha começou a envolver seu coração. Para onde es­tava indo? Não sabia. Nada era real. Chegou até à porta da frente, que estava aberta, e saiu. Foi então que Micky apareceu, vindo na curva do lado da casa. Automaticamente, como se fora para lá que seus passos a estivessem levando o tempo todo, dirigiu-se diretamente para ele.

— Micky! — disse ela. — Oh, Micky!

Os braços dele se abriram e ela neles se atirou.

— Está tudo bem — disse Micky. — Você está comigo.

Tina pareceu encolher-se nos seus braços, mas depois caiu no chão, parecendo um montinho de trapos. Foi nesse momento que Hester saiu correndo da casa.

— Ela desmaiou — disse Micky sem saber o que fazer. — Eu nunca vi Tina desmaiar em toda a minha vida.

— É o choque — disse Hester.

— Mas choque de quê?

— Philip foi assassinado — respondeu Hester. — Você não sabia?

— E como é que eu podia saber? Quando? Como?

— Agora mesmo.

Ficou olhando para ela. Depois levantou Tina do chão e permaneceu com ela em seus braços. Com Hester acompanhando-o de perto, carregou-a para a sala-de-estar da Srª Argyle e deitou-a no sofá.

— Chame o Dr. Craig — disse ele.

— O carro dele já vem chegando — disse Hester, olhan­do pela janela. — Papai telefonou-lhe por causa do Philip. Eu... — ela olhou à sua volta — Eu não quero encontrar-me com ele.

Ela saiu da sala e correu pela escada acima.

Donald Craig saltou do carro e entrou pela porta da frente, que estava aberta, quando Kirsten apareceu da cozinha para recebê-lo.

— Boa-tarde, Sr.ta Lindstrom. Que história é essa? O Sr. Argyle telefonou para me dizer que Philip Durrant foi morto. Morto?

— É verdade — disse Kirsten.

— O Sr. Argyle já chamou a polícia?

— Não sei.

— Há alguma possibilidade de ele estar apenas ferido? — perguntou Don. Ele pegou sua maleta profissional.

— Não — respondeu Kirsten. Sua voz estava inexpres­siva e cansada. — Está morto. Tenho absoluta certeza. Foi apunhalado... aqui.

Ela levou a mão à própria nuca.

Micky apareceu no saguão.

— Olá, Don; é melhor você dar uma espiada em Tina. Ela desmaiou.

— Tina? Ah, já sei, aquela que mora em Redmyn, não é? Onde está ela?

— Aqui na sala.

— É melhor dar uma olhada nela antes de subir. Quan­do entrava na sala, disse por sobre o ombro a Kirsten: — É preciso mantê-la quente. Traga um pouco de chá ou café para ela tomar assim que voltar a si. Sabe qual é a rotina...

Kirsten aquiesceu.

— Kirsty! — Mary Durrant estava vindo vagarosamen­te da cozinha. Kirsten foi até ela e Micky ficou imóvel, sem saber o que fazer.

— Não é verdade. — Mary falou com voz estridente e forte. — Não é verdade! É mentira de vocês. Ele estava óti­mo ainda agora quando eu desci. Estava ótimo. Estava es­crevendo. Eu disse a ele para parar de escrever. Eu disse que não devia. Por que será que ele fez tudo isso? Por que havia de ser tão cabeçudo? Por que não concordou em sair desta casa quando eu falei?

Consolando-a, acariciando-a, Kirsten ia fazendo todo o possível para acalmá-la.

Donald Craig saiu da sala da Srª Argyle.

— Quem foi que disse que essa moça desmaiou? — perguntou ele.

Micky olhou para ele atônito.

— Mas ela desmaiou mesmo — disse ele.

— Onde é que ela estava quando desmaiou?

— Estava comigo... Ela saiu pela porta da casa, an­dou na minha direção e aí... de repente, ela desabou.

— Desabou, não é? Acho que fica muito bem dito as­sim — disse Donald Craig, em tom sombrio. Ele se dirigiu com rapidez para o telefone. — É preciso mandar buscar uma ambulância imediatamente.

— Ambulância? — Micky e Kirsten ficaram olhando para ele espantados. Mary parecia não ter escutado nada da conversa.

— Isso mesmo — disse Donald, enquanto discava o nú­mero do telefone com raiva. — Aquela menina não desmaiou coisa nenhuma — disse ele. — Ela foi apunhalada. Ouviram? Foi apunhalada pelas costas. É preciso mandá-la imediata­mente para o hospital.

Em seu quarto de hotel Arthur Calgary examinou todas as notas que havia feito.

De tempos em tempos sacudia a cabeça.

Sim... agora estava no caminho certo. No início ele ha­via cometido o engano de se concentrar na Srª Argyle. Em nove casos de cada vez sem dúvida esse teria sido. o pro­cedimento correto. Porém aqui estava exatamente o décimo caso.

Todo o tempo ele havia sentido a presença de um fator desconhecido. Se chegasse a conseguir isolar o tal fator, o caso estaria resolvido. E, ao buscá-lo, ele havia ficado ob­cecado com a figura da morta. Porém agora compreendia que a morta não era realmente o que importava. Sob certo aspecto, qualquer vítima teria servido.

E então ele havia mudado o seu enfoque, ele o havia recolocado no momento em que tudo aquilo havia começado. E o enfoque havia voltado para Jacko.

Não apenas para Jacko em sua personalidade essencial. Seria Jacko, em termos da velha doutrina calvinista, um ins­trumento destinado à destruição? Ele tivera toda a espécie de oportunidade na vida, não tivera? Mas pelo menos na opi­nião do Dr. MacMaster ele estava entre aqueles que nasceram para o mal. Não havia meio-ambiente que o pudesse ajudar ou salvar. Será que isso era verdade? Leo Argyle falara dele com indulgência e piedade. Como era mesmo que ele havia dito? “Um dos desajustados da natureza”. Ele havia aceitado a atitude psicológica contemporânea. Um inválido, não um criminoso. O que foi mesmo que Hester tinha dito? Sem papas na língua, que Jacko sempre fora terrível!

Uma declaração infantil e franca. E o que dissera Kirsten Lindstrom? Que Jacko era malvado! Ela o via, na rea­lidade, em termos de pecado, de pecador. Tina havia dito: “Eu jamais gostei dele ou confiei nele.” E foi só no caso da viúva que ele havia passado do comentário geral para o fato particular. Maureen Clegg só pensava em Jacko a partir de sua própria pessoa. Ela se havia desperdiçado com Jacko. Ti­nha sido envolvida por seu charme e ficara ressentida com o fato. Agora que estava casada com um indivíduo sólido e equilibrado, não passava de um eco das opiniões do marido. Fizera um relato bastante objetivo a respeito das dúbias ati­vidades de Jacko, bem como a respeito das formas pelas quais costumava obter dinheiro. Dinheiro...

No cérebro fatigado de Calgary a palavra parecia fazer um estranho balé na parede, como que escrita ali com le­tras imensas. Dinheiro! Dinheiro! Dinheiro! Era como um leitmotiv de uma ópera wagneriana, pensou ele. O dinheiro da Srª Argyle! Dinheiro aplicado em fundos! Dinheiro para uma aposentadoria! Saldo residual deixado em dinheiro para o marido! Dinheiro tirado do banco! Dinheiro na gaveta da escrivaninha! Hester correndo para o carro sem dinheiro na bolsa, conseguindo duas libras com Kirsten Lindstrom. Di­nheiro encontrado com Jacko, dinheiro que ele havia ju­rado que sua mãe lhe dera.

Aquilo tudo tinha de formar um desenho geral, um de­senho geral elaborado a partir de pequenos detalhes irrele­vantes que eram todos ligados a dinheiro.

E, aos poucos, naquele desenho geral, o fator desconhe­cido começou a se tornar identificável.

Ele olhou o relógio. Tinha combinado com Hester te­lefonar-lhe a uma determinada hora. Pegou o telefone e pe­diu o número.

Logo depois a voz dela, clara, um pouco infantil, che­gou até ele.

— Hester! Você está bem?

— Estou. Eu estou bem.

Ele levou alguns instantes até que percebesse a implica­ção daquela estranha acentuação na frase. E então perguntou rispidamente:

— O que foi que aconteceu?

— Mataram Philip.

— Philip? Philip Durrant?

Calgary parecia incrédulo.

— Foi. E Tina também. Só que ela ainda não morreu. Mas está no hospital.

— Conte logo como foi.

Ela narrou tudo o que sabia. Ele a interrogou detalhada­mente até conseguir ligar os fatos.

Só então ele disse, com grande seriedade:

— Espere aí, Hester, que eu já vou para aí. Estarei aí em... — parou um instante para olhar o relógio — uma hora. Primeiro preciso falar com o Inspetor Huish.

 

— Exatamente o que o senhor deseja saber, Dr. Cal­gary? — perguntou o inspetor. Porém, antes que Calgary pu­desse responder, o telefone da mesa de Huish tocou e ele atendeu. — Sim, aqui é o Inspetor Huish. Um momento. Ele pegou uma folha de papel, uma caneta e disse: — Sim. Pode dizer. Sei. — Escreveu. — O quê? Como é a última pa­lavra? Ah, já sei. É, por enquanto não parece fazer muito sentido, não é? Certo. Alguma coisa mais? Não? Certo. Obrigado. — Desligou o aparelho — Era do hospital.

— Tina? — perguntou Calgary.

O inspetor confirmou.

— Recobrou os sentidos por alguns instantes.

— Disse alguma coisa? — perguntou Calgary.

— Não vejo nenhuma razão pela qual eu haveria de contar-lhe, Dr. Calgary.

— Só pedi que me dissesse porque creio que posso aju­dá-lo neste caso.

Huish olhou para ele como se tentasse avaliá-lo.

— O senhor tem levado tudo isto muito a sério, não tem?

— Tenho. É preciso que compreenda que eu me sinto responsável pela reabertura do caso. Sinto-me até responsá­vel por estas duas últimas tragédias. A moça vai viver?

— Parece que sim — disse Huish. — A lâmina não chegou a atingir o coração, porém a situação ainda é muito delicada. — Ele sacudiu a cabeça. — Esse é que é o problema. As pessoas se recusam a acreditar que um assassino é um elemento perigoso. Parece tolice dizer uma coisa dessas, mas é a pura verdade. Todos na casa sabiam que havia um as­sassino entre eles. Deveriam ter contado tudo o que sabiam. A maior garantia que se pode ter quando há um assassino à solta é contar à polícia tudo o que se sabe imediatamente. Mas não contaram. Negaram-me várias informações. Philip Durrant era um bom sujeito, um homem inteligente; porém encarou toda a situação como uma espécie de jogo. Ficou fazendo perguntas e preparando armadilhas. E descobriu al­guma coisa, ou pelo menos achou que tinha descoberto alguma coisa. Resultado: recebo um telefonema para dizer que ele está morto com uma punhalada na nuca. É isso o que se consegue quando se começa a brincar com assassina-tos sem se ter consciência dos perigos que eles acarretam. — Ele parou de falar e limpou a garganta.

— E a moça? — perguntou Calgary.

— Ela sabia de alguma coisa — disse Huish. — Algu­ma coisa que não queria revelar. Na minha opinião, ela está apaixonada pelo rapaz.

— O senhor está falando de Micky?

Huish acenou positivamente. — Isso mesmo. E também tenho a impressão de que Micky gosta dela lá ao jeito dele. Mas gostar de alguém não basta quando se está louco de medo. O fato é que o que ela sabia era mais mortífero do que ela mesmo podia imaginar. É por isso que, depois de achar Durrant morto, quando ela se atirou nos braços dele, ele a apunhalou.

— Porém isso é mera conjectura de sua parte, inspetor, não é?

— Não totalmente conjectura, Dr. Calgary. A arma es­tava no bolso dele.

— A própria arma do crime?

— É. Com traços de sangue. Claro que vamos fazer os testes adequados, porém não há dúvida de que seja o san­gue dela. O dela e o de Philip Durrant.

— Mas não pode ser.

— E quem diz que não?

— Hester. Ela me telefonou e contou tudo o que acon­teceu.

— Ah, contou, é? Pois muito bem, os fatos são sim­ples. Mary Durrant desceu para a cozinha deixando o ma­rido vivo às dez para as quatro. Naquele momento se en­contravam na casa Leo Argyle e Gwenda Vaughan que esta­vam na biblioteca, Hester Argyle em seu quarto no primeiro andar e Kirsten Lindstrom na cozinha. Logo depois das qua­tro Micky e Tina chegaram de carro. Micky ficou no jar­dim e Tina subiu, seguindo de perto os passos de Kirsten, que estava indo levar café e biscoitos para Philip. Tina parou para falar com Hester, depois continuou seu caminho, alcan­çou a Sr.ta Lindstrom e, juntas, encontraram Philip morto.

— E durante esse tempo todo Micky estava no jardim. Não é um álibi perfeito?

— O que o senhor não sabe, Dr. Calgary, é que há uma imensa magnólia ao lado da casa. As crianças sempre subiam por ela. Principalmente Micky. Entrava e saía da casa por ali. Poderia ter subido pela árvore, entrado no quar­to de Durrant, apunhalando-o, e tornado a sair. Eu sei que tudo teria de ser executado em frações de segundos, porém e surpreendente o que a audácia consegue realizar, às vezes. E ele estava desesperado. Era preciso evitar a qualquer preço que Tina e Durrant se encontrassem. Para ficar garanti­do ele teria de matar a ambos.

Calgary ficou pensando alguns momentos.

— O senhor disse há pouco, inspetor, que Tina reco­brou os sentidos por alguns momentos. Ela conseguiu identi­ficar definitivamente quem a apunhalou?

— Não falou com muita coerência — disse Huish len­tamente. — Na realidade duvido que estivesse realmente cons­ciente.

Ele sorriu.

— Está muito bem, Dr. Calgary. Vou-lhe contar exata­mente o que ela disse. Primeiro, disse um nome. Micky...

— Quer dizer que ela o acusou — disse Calgary.

— É o que parece — disse Huish acenando com a ca­beça. — E o resto do que disse não fez sentido. É um tanto fantástico.

— O que foi que ela disse?

— Micky. Depois fez uma pausa. Depois disse A xícara estava vazia, depois do que fez nova pausa. E finalmente A pomba no mastro. — Ele olhou para Calgary. — Consegue en­contrar algum sentido nisso?

— Não — disse Calgary. Sacudiu a cabeça e disse, para si mesmo: — A pomba no mastro... Parece uma coisa muito estranha para se dizer.

— Até aqui não encontramos nem pombas nem mas­tros — disse Huish. — Porém para ela isso significa alguma coisa. Na cabeça dela isso tem sentido. Mas é possível, como há de perceber, que não tenha nenhuma ligação com o assassinato. Deus sabe em que mundos irreais ela está vivendo nestas horas.

Calgary ficou em silêncio algum tempo. Permaneceu sen­tado, pensando, até que finalmente perguntou: — Prende­ram Micky?

— Ele está detido. A acusação será feita nas próximas vinte e quatro horas.

Huish olhou curiosamente para Calgary.

— Tenho a impressão de que esse rapaz, o Micky, não era exatamente a sua solução para o problema, não é?

— Não — respondeu Calgary. — Não; Micky não era a minha solução. E mesmo agora... eu não sei. — Ele se le­vantou. — Continuo a pensar que estou certo — acrescentou, — porém percebo claramente que não tenho o suficiente para convencê-lo. Terei de ir lá, novamente. Terei de falar com todos eles.

— Bem — disse Huish, — tome muito cuidado, Dr. Calgary. — E, por falar nisso, qual é a sua sugestão?

— Significaria alguma coisa para o senhor — disse Cal­gary, — se eu lhe dissesse que estou convencido de que este é um crime passional?

As sobrancelhas de Huish ergueram-se bastante.

— Há muitos tipos de paixão, Dr. Calgary. Ódio, avare­za, medo, tudo isso é paixão.

— Quando eu disse crime passional — respondeu Cal­gary, — minha intenção era usar a frase em sua interpre­tação mais consagrada.

— Quer dizer Leo Argyle e Gwenda Vaughan — disse Huish. — Pensamos nisso durante muito tempo, mas não serve, simplesmente não encaixa.

— Não; estou falando de algo bem mais complicado do que isso — disse Arthur Calgary.

Foi novamente ao crepúsculo que Arthur Calgary chegou ao Recanto do Sol, e o dia era muito semelhante àquele em que ali chegara pela primeira vez. O Recanto da Víbora, pen­sou ele quando tocou a campainha.

Novamente os acontecimentos pareciam estar se repetin­do. Foi Hester quem abriu a porta. Em seu rosto havia o mesmo ar de desafio, o mesmo ar desesperadamente trágico. Por trás dela, no saguão, ele viu, como havia visto na pri­meira visita, a figura de Kirsten Lindstrom. A história se re­petia.

Mas depois o esquema interrompeu-se e começou a mu­dar. A desconfiança e o desespero desapareceram do rosto de Hester. Desfizeram-se em um lindo e acolhedor sorriso.

— Você! — disse ela. — Que bom que você veio!

Ele tomou as mãos dela nas dele.

— Eu quero falar com seu pai, Hester. Ele está lá em cima na biblioteca?

— Está. Está lá com Gwenda.

Kirsten Lindstrom avançou na direção deles.

— Por que é que vem aqui de novo? — perguntou acusadora. — Veja os problemas que causou da outra vez! Veja o que aconteceu com todos nós. A vida de Hester arruinada. A vida do Sr. Argyle arruinada, e duas mortes. Duas! Philip Durrant e a pequena Tina. E a culpa é sua, toda sua!

— Tina ainda não morreu — disse Calgary. — E eu tenho a fazer aqui alguma coisa que não pode deixar de ser feita.

— O que é que o senhor tem de fazer? — Kirsten perma­necia inabalável, bloqueando o caminho da escada.

— Tenho de acabar o que comecei — disse Calgary.

Com a maior delicadeza ele colocou a mão do ombro dela e afastou-a ligeiramente para um lado. Subiu as esca­das e Hester seguiu-o. A certa altura voltou-se e, falando por cima do ombro, disse: — É melhor que venha também, Sr.ta Lindstrom. Eu gostaria que todos estivessem presentes.

Na biblioteca, Leo Argyle estava sentado numa cadeira junto à escrivaninha. Gwenda Vaughan estava ajoelhada jun­to à lareira, olhando o fogo. Ambos levantaram os olhos com surpresa.

— Desculpem minha entrada intempestiva — disse Cal­gary, — porém, como acabo de dizer a estas duas, eu vim para terminar o que comecei. — Ele olhou em volta. — A Srª Durrant ainda está aqui? Eu gostaria que ela também esti­vesse presente.

— Creio que ela está deitada — disse Leo. — Ela... ela levou um choque terrível.

— Mas mesmo assim eu preferiria que ela estivesse pre­sente. — Ele olhou para Kirsten. — Talvez a senhorita pudes­se fazer o favor de ir buscá-la.

— Pode ser que ela não queira vir — disse Kirsten, emburrada.

— Diga a ela — insistiu Calgary — que há algumas coisas que talvez ela se interesse em saber a respeito da morte de seu marido.

— Ora, ande logo, Kirsty — disse Hester. — E não precisa ficar tão desconfiada, nem achando que tem de nos proteger. Eu não sei o que é que o Dr. Calgary vai dizer, mas acho que todos nós devemos estar aqui.

— Como quiserem — disse Kirsten.

— Sente-se — disse Leo, indicando uma cadeira do outro lado da lareira. Calgary sentou-se.

— Eu peço que me desculpe — disse Leo, — se nes­te momento eu lhe disser que desejaria que o senhor jamais tivesse vindo aqui, Dr. Calgary.

— Isso é injusto — disse Hester com paixão. — Isso é uma coisa terrivelmente injusta de se dizer.

— Creio que compreendo como se sente — respondeu Calgary. — E creio que em seu lugar eu sentiria exatamente o mesmo. É possível que durante algum tempo eu tenha até chegado a sentir-me assim também, mas refletindo bem che­guei à conclusão de que não poderia ter agido de outra ma­neira.

Kirsten voltou. — Mary já vem.

Ficaram todos em silêncio esperando e daí a pouco Mary Durrant entrou na biblioteca. Calgary olhou-a com gran­de interesse, já que era a primeira vez que a via. Parecia cal­ma e controlada, sua roupa estava impecável, o cabelo não tinha um fio fora do lugar. Porém seu rosto era uma más­cara destituída de qualquer expressão, parecendo antes uma sonâmbula.

Leo apresentou-o e ela fez um ligeiro cumprimento de cabeça.

— Foi muita bondade sua ter vindo, Srª Durrant — disse Calgary. — Julguei que a senhora precisava ouvir o que eu tenho a dizer.

— Como queira — disse Mary. — Porém nada que o senhor ou qualquer outra pessoa possa dizer jamais poderá trazer Philip de volta.

Ela afastou-se um pouco dos outros e foi sentar-se nu­ma cadeira junto à janela. Calgary olhou à sua volta.

— Em primeiro lugar quero dizer o seguinte: Quando vim aqui pela primeira vez e lhes disse que podia limpar o nome de Jacko, o modo pelo qual receberam a notícia deixou-me absolutamente perplexo. Hoje eu compreendo suas razões. Porém a coisa que mais me impressionou foi o que esta menina aqui — e ele olhou na direção de Hester — me disse quando eu já ia saindo. Ela me disse o que importava não era a justiça e, sim, o que acontecia aos inocen­tes. Há uma frase na mais recente tradução do Livro de Jó que descreve bem a idéia. “A calamidade dos inocentes”. Co­mo resultante da notícia que lhes dei todos aqui têm sofrido. Os inocentes não devem sofrer, não podem sofrer, e é para terminar com o sofrimento dos inocentes que estou aqui agora para dizer algo a todos vocês.

Ele fez uma pausa, porém ninguém falou. Em sua voz modulada e precisa, Arthur Calgary continuou:

— Quando vim aqui pela primeira vez, não foi, como eu esperava, para trazer-lhes boas novas ou motivos de ale­gria. Todos aqui haviam aceitado a culpabilidade de Jacko. Estavam todos, por assim dizer, satisfeitos com essa culpabi­lidade. Era a melhor solução que se poderia ter para o as­sassinato da Srª Argyle.

— O senhor não está colocando as coisas de forma um tanto dura? — perguntou Leo.

— Não — respondeu Calgary. — É a verdade. Jacko era, aos olhos de todos, o protótipo do culpado, já que não poderia haver realmente possibilidade de se culpar um estra­nho, e para Jacko sempre havia a possibilidade de se en­contrar toda sorte de atenuantes ou explicações. Ele era um infeliz, um inválido mental, não era responsável por suas ações, era um rapaz problemático e delinqüente! Aplicavam-se a ele todas as expressões contemporâneas de justificativa de culpa. O senhor mesmo disse, Sr. Argyle, que não o cul­pava. Afirmou que a própria vítima não o culparia. Só uma pessoa realmente o achava culpado. — Ele se voltou para Kirsten Lindstrom. — A senhorita o culpou. Disse em alto e bom som que ele era malvado, um pecador. As suas palavras foram “Ele não prestava!”

— É possível — disse Kirsten Lindstrom. — Talvez... talvez eu tenha dito. É verdade.

— Sim, é verdade. Ele não prestava. Se ele não tivesse sido realmente mau nada disto teria acontecido. E no entan­to — lembrou Calgary, — todos aqui sabem bem que o meu testemunho o inocenta do crime em si.

— Nem sempre se pode acreditar em testemunhos. O senhor teve uma concussão. Eu sei muito bem o que uma con­cussão pode fazer com as pessoas. Elas se lembram das coi­sas mas é tudo confuso, tudo atrapalhado — disse Kirsten.

— Então essa é a sua solução? — perguntou Calgary. — Acredita que Jack efetivamente cometeu o crime e depois conseguiu de algum modo fabricar um álibi? Não é isso?

— Eu não sei dos detalhes. Mas é isso mesmo, uma coisa assim. Continuo a dizer que foi ele. Todo esse sofri­mento que tem havido e as mortes... e essas mortes ter­ríveis... tudo isso é culpa dele. Foi tudo por culpa do Jacko!

Hester exclamou: — Mas Kirsten, você sempre adorou o Jacko!

— É possível. Mas, mesmo assim, eu digo que foi cul­pa dele.

— E a mim parece que na realidade tem razão sob certo aspecto — disse Calgary, — porém sob um outro as­pecto a senhorita está errada. Com ou sem concussão a mi­nha memória está perfeitamente lúcida. Na noite da morte da Srª Argyle eu dei carona a Jacko exatamente na hora por ele mencionada. Não existe nenhuma possibilidade — e re­pito essas palavras com o maior empenho — não existe ne­nhuma possibilidade de Jacko Argyle ter matado sua mãe adotiva naquela noite. O álibi dele é inatacável.

Leo remexeu-se com certa inquietação. Calgary continuou:

— Estão achando que eu estou apenas repetindo sem­pre a mesma coisa? Não é bem assim. Há outros pontos a serem levados em consideração. Um deles é a declaração que ouvi do Inspetor Huish de que Jack fora pretensioso, conven­cido e irreverente ao apresentar o seu álibi. Estava tudo na ponta da língua, seja a hora, seja o lugar, quase como se ele já soubesse que iria precisar dele. Tal atitude se encaixa mui­to bem com uma conversa que tive a respeito dele com o Dr. MacMaster, um homem de larga experiência com casos de limiar de criminalidade. Ele me disse que não ficava surpreendido que existissem sementes de assassinato no coração de Jacko, mas que ficava surpreendido que ele tivesse chegado realmente a perpetrá-lo pessoalmente. Ele afirmou que o tipo de assassinato que poderia esperar seria aquele em que Jacko instigasse outra pessoa a cometer o crime. E então eu cheguei ao ponto em que me perguntei se Jacko não sabe­ria que um crime seria cometido na casa naquela noite. Será que ele sabia que iria precisar de um álibi e por isso pro­curou propositadamente consegui-lo? Nesse caso, outra pes­soa teria matado a Srª Argyle, porém Jacko sabia que ela iria ser morta e podemos afirmar, com bastante certeza, que ele teria sido o instigador do crime.

Ele virou-se para Kirsten Lindstrom:

— A senhorita sente isso, não sente? Ainda sente que foi assim, ou apenas quer sentir? A senhorita sente que foi Jacko quem a matou, e não a senhorita... Sente que foi por ordem dele e sob a influência dele que cometeu o crime. E portanto deseja que toda a culpa recaia sobre ele!

— Eu? — disse Kirsten Lindstrom. — Eu? Do que é que o senhor está falando?

— Eu estou dizendo que só existia nesta casa uma única pessoa que se pudesse enquadrar no papel de cúmplice de Jacko Argyle. Essa pessoa é a senhorita. Jacko tinha uma longa fé de ofício comprovando sua capacidade de inspirar paixão em mulheres de meia idade. Ele usava essa sua capa­cidade deliberadamente. Ele tinha o dom de se fazer acredi­tar. — Calgary inclinou-se para a frente. — Ele a conquistou com declarações de amor, não foi? — perguntou ele com delicadeza. — Ele a fez acreditar que a amava, que queria casar-se com a senhorita, que depois que tudo estivesse re­solvido e ele tivesse mais controle sobre o dinheiro da mãe os dois se casariam e iriam viver em algum outro país. Foi assim, não foi?

Kirsten ficou olhando para ele, sem falar, como se es­tivesse paralisada.

— Foi uma coisa cruel, impiedosa e deliberada, a que ele fez — continuou Calgary. — Ele chegou aqui naquela noite desesperado para arranjar dinheiro, sentindo o peso da ameaça da prisão sobre ele. A Srª Argyle recusou-se a dar-lhe o dinheiro. Quando ela recusou, ele apelou para a senhorita.

— O senhor acha — respondeu Kirsten, — o senhor acha que eu tiraria dinheiro da Srª Argyle para dar ele, em lugar de dar do meu próprio dinheiro?

— Não — retrucou Calgary; — a senhorita lhe teria dado do seu próprio dinheiro se o tivesse. Porém eu creio que não tinha... Sei que tinha uma boa renda do pecúlio que a Srª Argyle lhe havia dado, mas acho que esse ele já lhe havia tirado todo. De modo que naquela noite ele estava mesmo desesperado e quando a Srª Argyle subiu para falar com o marido e a senhorita saiu para ir encontrar-se com ele do lado de fora, ele lhe disse o que teria de fazer. Primeiro a senhorita precisava dar o dinheiro a ele e depois, antes que o roubo fosse descoberto, teria de matar a Srª Ar­gyle. Porque ela não estaria disposta a acobertar o roubo. Ele disse que ia ser fácil, que bastava abrir umas gavetas para fazer parecer que tinha sido um ladrão que tinha en­trado e batido na cabeça dela com atiçador. Ela não ia nem sentir dor, disse ele. Não ia sentir nada. Enquanto isso ele ia estabelecer o seu álibi, de modo que tudo tinha de ser feito muito cuidadosamente entre as sete e as sete e meia.

— Não é verdade — protestou Kirsten. — Ela tinha co­meçado a tremer. — O senhor está louco de dizer coisas assim.

No entanto, não havia indignação em sua voz. Por es­tranho que pudesse parecer, o protesto soava mecânico e cansado.

— E mesmo que o que senhor está dizendo fosse verdade — disse ela, — o senhor acha que eu ia deixar que o acusas­sem de assassinato?

— Mas é claro — respondeu Calgary. — Afinal, ele lhe havia dito que teria um álibi. O que a senhorita esperava era que ele fosse até mesmo preso, mas, depois, provasse sua inocência no tribunal. Tudo isso era parte do plano.

— E quando ele não conseguiu provar que era inocen­te — insistiu Kirsten, — acha que aí eu ia deixar as coisas assim, sem tentar salvá-lo?

— Provavelmente... provavelmente não. A não ser por um detalhe. A não ser pelo fato de na manhã seguinte ao assassinato a mulher de Jacko ter aparecido aqui. A senho­rita não sabia que ele era casado. A moça teve de repetir sua afirmação duas ou três vezes antes que acreditasse nela. E naquele momento o seu mundo desabou ao seu redor. Viu Jacko como ele realmente era... sem coração, calculista, sem qualquer afeição pela senhorita. Só então compreendeu o que ele a havia obrigado a fazer.

De repente, Kirsten Lindstrom começou a falar. As pa­lavras saíam, incoerentes, como uma torrente.

— Eu o amava... Eu o amava com todo o meu cora­ção. Fui uma idiota, uma velhota crédula e idiota. Ele me fez pensar... ele me fez acreditar. Disse que não gostava de mocinhas. Disse... não posso dizer todas as coisas que me disse. Eu o amava. Estou dizendo que eu o amava. E, de repente, aquela sirigaitazinha vulgar, toda se requebrando, apa­receu aqui. E eu vi que tinha sido tudo mentira e maldade, pura maldade... A maldade foi dele, não minha.

— Na noite em que eu estive aqui — disse Calgary, — a senhorita teve medo, não teve? Medo de tudo o que po­deria acontecer. Tinha medo pelos outros. Por Hester, a quem amava, por Leo, de quem gostava. Vislumbrou, ao menos em parte, o que poderia acontecer com eles. Mas acima de tudo sentiu medo por si mesma. E agora já viu onde o medo a levou... Agora, já tem mais duas mortes em suas mãos.

— Está dizendo que eu matei Tina e Philip?

— É claro que os matou — respondeu Calgary. — Tina recobrou os sentidos por alguns momentos.

Os ombros de Kirsten afundaram ao peso do desespero.

— Quer dizer então que ela contou que eu a apunha­lei. Eu pensava que ela nem tinha percebido. Eu sei que foi uma loucura. Mas naquela hora eu estava louca, louca de medo. Estava chegando tão perto, tão perto.

— Quer que eu lhe diga o que foi que Tina disse quan­do recobrou os sentidos? Disse: “A xícara estava vazia”. E eu sabia o que isso queria dizer. A senhorita fingiu que estava levando o café para Philip Durrant, mas na verdade já o havia apunhalado e estava saindo do quarto quando ou­viu os passos de Tina. Então, deu meia-volta e fingiu que estava entrando com a bandeja. Mais tarde, embora estivesse qua­se em estado de choque com a morte dele, ela notou auto­maticamente que a xícara que caíra no chão e se quebrara estava vazia e que não havia manchas de café no chão.

Hester exclamou:

— Mas Kirsten não poderia tê-la apunhalado! Tina des­ceu a escada e andou até onde estava Micky. Ela estava per­feitamente bem.

— Minha filha — disse Calgary, — já houve casos nos quais um indivíduo apunhalado andou uma rua inteira sem sequer saber o que lhe havia acontecido! No estado de cho­que em que se encontrava, Tina não tinha condições de sentir coisa alguma, Talvez tenha experimentado a sensação de uma alfinetada; mas não mais do que isso. Uma dorzinha à-toa. — Novamente ele se voltou para Kirsten. — Mais tar­de, lembrou-se de enfiar a faca no bolso de Micky. E isso foi realmente a pior coisa que fez.

As mãos de Kirsten se agitavam em apelo.

— Eu não pude evitar... Não pude mesmo... Estava chegando tão perto... Estavam todos começando a desco­brir. Philip já estava descobrindo e Tina... Tina deve ter escutado minha conversa com Jacko lá fora, naquela noite. Estavam todos começando a saber... Eu queria estar em segurança, mas ninguém jamais está em segurança! — As mãos dela tombaram. — Eu não queria matar Tina. Quanto ao Philip...

Mary Durrant levantou-se. Ela atravessou a sala deva­gar, porém com atitude cada vez mais resoluta.

— Você matou Philip? — perguntou. — Você matou Philip?

Repentinamente, como um tigre, ela saltou sobre a ou­tra mulher. Foi Gwenda, a de maior presença de espírito, quem investiu para agarrá-la. Calgary foi ajudar e conseguiram contê-la.

— Você... você! — soluçava Mary Durrant.

Kirsten Lindstrom olhou para ela.

— E o que é que ele tinha com a história? Por que ha­veria de ficar metendo o nariz e fazendo perguntas? Ele nun­ca esteve ameaçado. Para ele, nunca foi uma questão de vida ou morte. Era só um divertimento. — Ela deu meia-volta e ca­minhou vagarosamente na direção da porta. Sem olhar para qualquer um deles, foi embora.

— É preciso impedi-la — disse Hester. — Alguém tem de ir buscá-la.

Leo Argyle disse:

— Deixe-a ir, Hester.

— Mas... ela vai-se matar.

— Duvido muito — disse Calgary.

— Ela foi uma amiga dedicada por tanto tempo — disse Leo. — E agora, isso...

— O senhor acha que ela... vai-se entregar? — per­guntou Gwenda.

— É muito mais provável — respondeu Calgary, — que se dirija à estação mais próxima e tome um trem para Londres. Mas é claro que não conseguirá escapar. Será en­contrada fatalmente.

— A nossa querida Kirsten — disse Leo suavemente. Sua voz estava, trêmula. — Tão fiel, tão boa para todos nós.

Gwenda tomou-o pelo braço e sacudiu-o um pouco.

— Como pode dizer isso, Leo? Pense no que fez a nós todos, pense no que ela nos fez sofrer!

— Eu sei — respondeu Leo. — Mas ela também so­freu, sabe. Eu creio que era o sofrimento dela que estávamos sentindo nesta casa.

— E poderíamos ter continuado a sofrer para sempre — disse Gwenda, — no que importasse a ela! Isto é, se não fosse pelo Dr. Calgary. — Ela olhou para ele com um olhar de gratidão.

— Quer dizer, então, que consegui fazer alguma coisa para ajudar, embora com um pouco de atraso.

— Atraso demais — disse Mary com amargura. — De­mais! Ai, mas por que razão nós não soubemos, por que não adivinhamos? — Ela se voltou acusadora para Hester. — Eu pensava que tinha sido você. Eu sempre pensei que fosse você.

— Ele não pensou — disse Hester, — olhando para Calgary.

— Eu queria morrer — disse Mary Durrant, muito quieta.

— Minha filha querida — disse Leo, — você não sa­be como eu gostaria de poder ajudá-la.

— Ninguém me pode ajudar — disse Mary. — E foi culpa do próprio Philip, insistindo em ficar aqui, e querer re­mexer nessa coisa toda. Para conseguir ser morto. — Ela olhou para todos os outros. — Nenhum de vocês compreende. — E saiu da sala.

Calgary e Hester saíram logo depois. Quando atraves­saram a porta, Calgary olhou para trás e viu Leo passar o braço em torno dos ombros de Gwenda.

— Ela me avisou, sabe — disse Hester, com os olhos muito abertos e assustados. — Ela me disse logo no prin­cípio que eu não devia confiar nela, que eu devia ter tanto medo dela quanto de qualquer outra pessoa.

— Esqueça-se disso, minha querida — disse Calgary. — É isso que você tem de fazer agora: Esquecer. Agora vo­cês todos estão livres. Os inocentes não estão mais vivendo à sombra da culpa.

— E Tina? Vai ficar boa? Não vai morrer?

— Não creio que ela vá morrer — respondeu Calgary. — Ela está apaixonada por Micky, não está?

— Acho que é possível — disse Hester com a voz sur­preendida. — Nunca pensei nisso. Claro que sempre pensei neles como irmão e irmã. Mas eles não são realmente irmãos.

— E por falar nisso, Hester, será que você tem alguma idéia do que é que Tina estava querendo dizer quando disse “A pomba no mastro”?

— A pomba no mastro?... — Hester franziu a testa. — Espere aí. Parece-me terrivelmente familiar. A pomba no mastro, deixando o seu rastro, chorava, chorava e chorava. Não é isso?

— Pode ser — disse Calgary.

— É uma canção. Uma espécie de canção de ninar que Kirsten costumava cantar para nós. Eu só me lembro de uns pedacinhos. O meu amor estava ao meu lado, não sei o quê, não sei o quê. Ó meu amor, não tenho lar, não tenho mar, não tenho chão, se eu não conseguir morar bem dentro do seu coração.

— Entendi — disse Calgary. — Agora eu entendi...

— Talvez eles se casem quando Tina ficar boa e aí ela poderá ir para o Kuwait com ele. Tina sempre quis ir morar em um lugar quente. É muito quente no Golfo Pérsico, não é?

— Acho que até demais — respondeu Calgary.

— Nada é quente demais para Tina — Hester garantiu-lhe.

— E agora, minha querida, você vai ser feliz — disse Calgary a Hester, tomando-lhe as mãos nas dele. Ele fez um esforço considerável para sorrir. — Você vai casar com o seu médico e ficar com a vida assentada, sem nunca mais ter seus acessos de loucura, de imaginação ou crises de vio­lento desespero.

— Casar com o Don? — disse Hester surpresa. — Mas é claro que eu não vou casar-me com o Don.

— Mas você o ama.

— Não, acho que não o amo de verdade... só pensava que amava. Mas ele não acreditou em mim. Ele nunca soube que eu era inocente. E devia ter sabido. — Ela olhou para Cal­gary. — Você sempre soube! Eu acho que vou querer casar com você.

— Mas Hester, eu sou anos e anos mais velho que você. Você não pode realmente...

 — Bem... eu quero dizer, se você me quiser — disse Hester, repentinamente duvidosa.

— Ora, querer eu quero!

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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