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Os Funerais da Mamãe Grande / G. G. Marquez
Os Funerais da Mamãe Grande / G. G. Marquez

 

 

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Os Funerais da Mamãe Grande

 

Esta é, incrédulos do mundo inteiro, a verdadeira história da Mamãe Grande, soberana absoluta do reino de Macondo, que viveu em função de domínio durante 92 anos e morreu com cheiro de santidade numa terça-feira de setembro passado e a cujos funerais veio o Sumo Pontífice.

Agora que a nação sacudida em suas entranhas recobrou o equilíbrio; agora que os gaiteiros de San Jacinto, os contrabandistas da ‑ Guajira, os arrozeiros do Sinu, as prostitutas de Guacamayal, os feiticeiros da Sierpe e os bananeiros de Aracataca penduraram suas redes para restabelecer‑se da extenuante vigília e que recuperaram a serenidade e voltaram a tomar posse de seus cargos o presidente da República e seus ministros e todos aqueles que representaram o poder público e as potências sobrenaturais na mais esplêndida ocasião funerária que registram os anais históricos; agora que o Sumo. Pontífice subiu aos Céus em corpo e alma e que é impossível transitar em Macondo por causa das garrafas vazias, das pontas de cigarro, dos ossos roídos, das latas e trapos e excrementos deixados pela multidão que veio ao enterro, agora é a hora de encostar um tamborete à porta da rua e começar a contar desde o princípio os pormenores desta comoção nacional, antes que os historiadores tenham tempo de chegar.

Há quatorze semanas, depois de intermináveís noites de cataplasmas, sinapismo e ventosas, demolida pela delirante agonia, a Mamãe Grande ordenou que a sentassem em sua velha cadeira de balanço de cipó para expressar sua última vontade. Era o único requisito que lhe faltava para morrer. Aquela manhã, por intermédio do padre Antonio Isabel, tinha arrumado os negócios de sua alma e só lhe faltava arrumar os de suas arcas com, os nove sobrinhos, seus herdeiros universais, que velavam em torno do leito. O pároco, falando sozinho, e prestes a completar cem anos, permanecia no quarto. Foram precisos dez homens para subi-lo até o quarto da Mamãe Grande, e decidira-se, que ele ficaria ali, para não se ter de descê-lo e tornar a subi-lo no minuto final.

Nicanor, o sobrinho mais velho, hercúleo e montanhês, vestido de cáqui, botas com esporas e um revólver calibre 38, cano longo, ajustado sob a camisa, foi em busca do notário. A enorme mansão de dois andares, cheirando a melaço e a orégão, com seus escuros aposentos abarrotados de grandes arcas e quinquilharias de quatro gerações convertidas em pó, paralisara-se desde a semana anterior na expectativa daquele momento. No profundo corredor central, cheio de ganchos nas paredes, onde em outro tempo se penduravam porcos esfolados e se sangravam veados nos sonolentos domingos de agosto, os peões dormiam amontoados sobre sacos de sal e instrumentos agrícolas, esperando a ordem de selar os cavalos para divulgar a má notícia no âmbito da fazenda imensurável. O resto da família estava na sala. As mulheres lívidas, esgotadas pela herança e pela vigília, guardavam, um luto fechado que era uma soma de incontáveis lutos superpostos. A rigidez matriarcal da Mamãe Grande tinha cercado sua fortuna e seu nome com uma auréola sacramental, dentro da qual os tios casavam com ‑as filhas das sobrinhas, e os primos com as tias, e os irmãos com as cunhadas, até formar um intrincado. emaranhado de consangüinidade que converteu a procriação em um círculo vicioso. Só Magdalena, a menor das sobrinhas, logrou escapar ao cerco; aterrorizadapelas alucinações, fez‑se exorcizar pelo padre Antonio Isabel, raspou a cabeça e renunciou às glórias e vaidades do mundo no noviciado da Prefeitura Apostólica. A margem da família oficial, e em exercício do direito de pernada, os varões tinham fecundado fazendas, lugarejos e casarios com toda uma descendência bastarda, que circulava entre a criadagem sem nome a título de afilhados, dependentes favoritos e protegidos da Mamãe Grande.

A iminência da morte removeu a extenuante expectativa. A voz da, moribunda, acostumada à homenagem e à obediência, não foi mais sonora que um baixo de órgão no quarto fechado, mas, ressoou nos mais afastados rincões da fazenda. Ninguém era indiferente a essa morte. Durante o presente século, a Mamãe Grande fora o centro de gravidade de Macondo, como seus irmãos, seus pais e os pais de seus pais o foram no passado, em uma hegemonia que preenchia dois séculos. A aldeia foi fundada em torno de seu nome. Ninguém conhecia a origem, nem o limite nem o valor real do patrimônio, mas todo mundo acostumara-se a acreditar que a Mamãe Grande era dona das águas correntes e paradas, chovidas e por chover, e dos caminhos vicinais, dos postes do telégrafo, dos anos bissextos e do calor e que tinha além disso um direito herdado sobre vida e fazendas. Quando se sentava para gozar a fresca da tarde na varanda de sua casa, com todo o peso de suas vísceras e de sua autoridade aplastado em sua velha cadeira de balanço de cipó, parecia de fato infinitamente rica e poderosa, a matrona mais rica e poderosa do mundo.

A ninguém teria ocorrido pensar que a Mamãe Grande fosse mortal, salvo aos membros de sua tribo, e a ela mesma, aguilhoada pelas premonições senis do padre Antonio Isabel. Ela acreditava, porém, que viveria mais de 100 anos, como sua avó materna, que na guerra de 1875 enfrentou uma patrulha do coronel Aureliano Buendía, entrincheirada na cozinha da fazenda. Só em abril deste ano a Mamãe Grande compreendeu que Deus não lhe concederia o privilégio de liquidar pessoalmente, em franca refrega, uma horda de maçons federalistas.

Na primeira semana de dores o médico da família entreteve-a com cataplasmas de mostarda e meias de lã. Era um médico hereditário, laureado em Montpellier, contrário por convicção filosófica aos progressos de sua ciência, a quem a Mamãe Grande havia concedido a prebenda de que se proibisse o. estabelecimento de outros médicos em Macondo. Houve uma época em que ele percorria o povoado a cavalo, visitando os lúgubres enfermos do entardecer e a natureza concedeu-lhe o privilégio de ser pai de numerosos filhos alheios. O artritismo, porém, ancilosou-o numa rede e acabou por atender os seus pacientes sem visitá-los, por meio de suposições, mexericos e recados. Solicitado pela Mamãe Grande, atravessou. a praça de pijama, apoiado em duas bengalas, e se instalou no quarto da doente. Só quando compreendeu que a Mamãe Grande agonizava, mandou trazer uma arca com frascos de porcelana com inscrições em latim e durante três: semanas besuntou a moribunda por dentro e por fora com todo tipo de emplastros acadêmicos, julepes magníficos e supositórios magistrais. Depois aplicou-lhe sapos defumados no lugar da dor e sanguessugas nos rins, até a madrugada daquele dia em que teve que enfrentar a alternativa de fazê-la sangrar pelo barbeiro ou exorcizar pelo padre Antonio Isabel.

Nicanor mandou buscar o pároco. Seus dez melhores homens o levaram da casa paroquial até o dormitório da Mamãe Grande, sentado na sua crepitante cadeira de balanço de vime sob o bolorento pálio das grandes ocasiões. A campainha do Viático no morno amanhecer de setembro foi o primeiro aviso aos habitantes de Macondo. Quando o sol apareceu, a pracinha em frente à casa de Mamãe Grande parecia uma feira rural.

Era como uma lembrança de outra época. Até completar 70 anos, a Mamãe Grande comemorou seu aniversário com as feiras mais prolongadas e tumultuosas de que selem memória. Punham-se garrafões de aguardente à disposição do povo, sacrificavam-se reses na praça pública e uma banda de música instalada em um palanque tocava sem parar durante três dias. Debaixo das amendoeiras empoeiradas onde na primeira semana do século acamparam as legiões do coronel Aureliano Buendía, vendiam-se aguardente de arroz, pamonhas, chouriços, torresmos, pastéis, salsichas, bolinhos de aipim, pãezinhos de queijo, bolinhos de milho, empadas, lingüiças, dobradinhas, cocadas, garapas, entre todos os tipos de miudezas, bagatelas, cacarecos e trambolhos, e ingressos de rinhas de galo e bilhetes de loteria. Em meio à confusão da multidão alvoroçada, vendiam-se quadros e escapulários com. a imagem da Mamãe Grande.

As festividades começavam na antevéspera. e terminavam no dia do aniversário, com um estrondo de fogos de artifício e um baile familiar na casa da Mamãe Grande. Os seletos convidados e os membros legítimos da família, generosamente servidos pelos bastardos, dançavam ao compasso da velha pianola equipada com rolos da moda. Mamãe Grande presidia a festa do fundo do salão, em uma poltrona com almofadas de linho, distribuindo discretas instruções com sua mão direita adornada de anéis em todos. os dedos. Às vezes de cumplicidade com os namorados, mas quase sempre aconselhada por sua própria inspiração, naquela noite engrenava os casamentos do ano entrante. Para coroar a festa, a Mamãe Grande saía ao balcão enfeitado com diademas e lanternas de papel, e jogava moedas para a multidão.

Aquela tradição fora interrompida, em parte pelas sucessivas divergências da família, em parte pela incerteza política dos últimos tempos. As novas gerações conheceram apenas de ouvido aquelas manifestações de esplendor. Não chegaram a ver a Mamãe Grande na missa principal, abanada por algum membro do poder civil, desfrutando o privilégio de não se ajoelhar nem mesmo na hora da elevação para não estragar sua saía de volantes holandeses e suas anáguas engomadas de cambraia. Os velhos recordavam como uma alucinação da juventude os duzentos metros de tapete que se estenderam da casa-grande até o altar-mor, na tarde em que Maria del Rosario Castaneda y Montero assistiu aos funerais de seu pai, e voltou pela rua atapetada investida de sua nova e irradiante dignidade, transformada aos 22 anos de idade na Mamãe Grande. Aquela visão medieval pertencia então não só ao passado da família, como ao passado da nação. Cada vez mais imprecisa e distante, visível somente em seu balcão sufocado então pelos gerânios nas tardes de calor, Mamãe Grande esfumava-se em sua própria lenda. Sua autoridade exercia-se através de Nicanor. Existia a promessa tácita, formulada pela tradição, de que no dia em que a Mamãe Grande lacrasse seu testamento, os herdeiros decretariam três noites de festejos públicos. Sabia-se também, todavia, que ela decidira não expressar a sua última vontade até poucas horas antes de morrer e ninguém pensava seriamente na possibilidade de que a Mamãe Grande fosse mortal. Somente naquela madrugada, acordados pelos chocalhos do Viático, os habitantes de Macondo se. convenceram de que a Mamãe Grande não só era mortal, como também estava morrendo.

Sua hora tinha chegado. Na cama acortinada, lambuzada de aloés até as. orelhas, sob o toldo de escumilha empoeirada, apenas se adivinhava a vida na tênue respiração de suas tetas matriarcais. Mamãe Grande, que até os cinqüenta anos recusara os mais apaixonados pretendentes, e que fora dotada pela natureza para amamentar sozinha toda a sua espécie, agonizava virgem e sem filhos. No momento da extrema-unção, o padre Antonio Isabel teve que pedir ajuda para lhe aplicar os óleos na palma das mãos, pois desde o início de sua agonia a Mamãe Grande tinha os punhos cerrados. De nada adiantou a ajuda das sobrinhas. Em sua. resistência, pela primeira vez em uma semana, a moribunda apertou contra o peito a mão constelada de pedras preciosas e fixou nas sobrinhas um olhar sem cor, dizendo: "Assaltantes." Depois viu o padre Antonio Isabel em indumentária litúrgica e o sacristão com os instrumentos sacramentais e murmurou com uma convicção tranqüila: "Estou morrendo. ‑ Tirou então o anel com o Diamante Maior e deu-o a Magdalena, a noviça, a quem tocava, por ser a herdeira caçula. Aquele era o final de uma tradição: Magdalena tinha renunciado à herança em favor da Igreja.

Ao amanhecer, a Mamãe Grande pedia que a deixassem. a sós com Nicanor para transmitir suas últimas instruções. Durante meia hora, com perfeito domínio de suas faculdades, informou-se sobre o andamento dos negócios. Deu instruções especiais sobre o destino de seu cadáver e por último ocupou-se do velório. "Você precisa ficar com os olhos abertos", disse. ‑Guarde sob chave todas as coisas de valor, pois muita gente só vai aos velórios para roubar." Pouco depois, a sós com o pároco, fez uma confissão dispendiosa, sincera e detalhada, e comungou mais tarde na presença dos sobrinhos. Foi então que pediu que a sentassem na cadeira de balanço de cipó para expressar sua última vontade.

Nicanor tinha preparado, em vinte e quatro folhas escritas com letra bem clara, uma escrupulosa relação de seus bens. Respirando tranqüilamente, com o médico e o padre Antonio Isabel por testemunhas, a Mamãe Grande ditou ao notário a lista de suas propriedades, fonte suprema e única de sua grandeza e autoridade. Reduzido às suas proporções reais, o patrimônio físico se limitava a três sesmarias adjudicadas por Cédula Real durante a Colônia, e que com o transcurso do tempo, em virtude de intrincados casamentos de conveniência, tinham-se acumulado sob o domínio da Mamãe Grande. Nesse território ocioso, sem limites definidos, que abarcava cinco municípios e no qual jamais se semeou um só grão por conta dos proprietários, viviam a título de arrendatárias 352 famílias. Todos os anos, em vésperas de seu aniversário, a Mamãe Grande exercia o único ato de domínio que havia impedido o retorno das terras ao estado: a cobrança dos arrendamentos. Sentada no pátio interior da casa, ela recebia pessoalmente o pagamento pelo direito de habitar em suas terras, como durante mais de um século o receberam seus antepassados dos antepassados dos arrendatários. Passados os três dias da coleta, o pátio estava abarrotado de porcos, perus e galinhas e dos dízimos e primícias sobre os frutos da terra quese depositavam ali como presentes. Na realidade, essa era a única colheita que a família extraía de um território morto desde suas origens, calculado à primeira vista em 100 mil hectares As circunstâncias históricas haviam disposto, porém, que dentro desses limites crescessem e prosperassem os seis povoados do distrito de Macondo, inclusive a cabeça do município, de modo que todos os que habitavam uma casa teriam direito de propriedade apenas sobre o material, pois a terra pertencia à Mamãe Grande e a ela se pagava o aluguel, como o governo tinha que pagá-lo pelo uso que os cidadãos faziam das ruas.

Nos arredores dos povoados vagava um número jamais contado de animais marcados nos quartos traseiros com forma de um cadeado. A marca hereditária, que mais pela desordem que pela quantidade se tinha feito familiar em remotos municípios onde chegavam no verão, mortas de sede, as reses dispersas, era um dos mais sólidos suportes da lenda. Devido a razões que ninguém se detivera a explicar, as extensas cavalariças da casa esvaziaram-se progressivamente desde a última guerra civil, e nos últimos tempos instalaram-se nelas trapiches de cana, currais de ordenha e uma usina de arroz.

Fora o enumerado, constava do testamento a existência de três potes. cheios de moedas de ouro, enterrados em algum lugar da casa durante a. guerra da Independência, que não foram encontrados em periódicas e laboriosas escavações. Com o direito de continuar a exploração da terra arrendada e de receber os dízimos e primícias e todo tipo de dádivas extraordinárias, os herdeiros recebiam também um mapa levantado de geração em geração, e aperfeiçoado por cada geração, que facilitaria o encontro do tesouro enterrado.

Mamãe Grande precisou de três horas para enumerar seus assuntos terrenos. No abafamento do quarto, a voz da moribunda parecia dignificar em seu lugar cada coisa enumerada. Quando estampou sua assinatura trêmula, e sob ela as testemunhas estamparam as suas, um tremor secreto sacudiu o coração da multidão que começava a concentrar-se diante da casa, a sombra das amendoeiras empoeiradas.

Só faltava então o relato minucioso dos bens morais. Fazendo um esforço supremo - o mesmo que fizeram seus antepassados antes de morrer para assegurar o predomínio de sua espécie ‑ Mamãe Grande ergueu-se sobre as nádegas monumentais, e com voz dominante e sincera, abandonada à sua memória, ditou ao notário a lista de seu patrimônio invisível:

A riqueza do subsolo, as águas territoriais, as cores da bandeira, a soberania nacional, os partidos tradicionais, os direitos do homem, as liberdades do cidadão, o primeiro magistrado, a segunda instância, a terceira discussão, as cartas de recomendação, as contingências históricas, as eleições livres, as rainhas de beleza, os discursos transcendentais, as grandiosas manifestações, as distintas senhoritas, os corretos cavalheiros, os pundonorosos militares, sua senhoria ilustríssima, a corte suprema de justiça, os artigos de importação proibida, as damas liberais, o problema da carne, a pureza da linguagem, os exemplos para o mundo, a ordem jurídica, a imprensa livre mas responsável, a Atenas sul-americana, a opinião pública, as lições democráticas, a moral cristã, a escassez de divisas, o direito de asilo, o perigo comunista, a nave do estado, a carestia da vida, as tradições republicanas, as classes desfavorecidas, as mensagens de adesão.

Não chegou a terminar. A trabalhosa enumeração abreviou seu último suspiro. Afogando-se no mare magnum de fórmulas abstratas, que durante dois séculos constituíram a justificação moral do poderio da família, Mamãe Grande emitiu um sonoro arroto e expirou.

Os habitantes da capital distante e sombria viram nessa tarde o retrato de uma mulher de vinte anos na primeira página das edições extraordinárias e pensaram que era uma nova rainha de beleza. Mamãe Grande vivia outra vez a momentânea juventude de sua fotografia,ampliada em quatro colunas e com retoques urgentes, a abundante cabeleira presa no alto do crânio com um pente de marfim e um diadema sobre a gola de rendas. Aquela imagem, captada por um fotógrafo ambulante que passou por Macondo no começo do século e arquivada pelos jornais durante, muitos anos na divisão de personagens desconhecidos, estava destinada a perdurar na memória das gerações futuras. Nos ônibus decrépitos, nos elevadores dos ministérios, nos lúgubres salões de chá forrados de pálidos cartazes, sussurrou-se com veneração e respeito sobre a autoridade morta em seu distrito de calor e malária, cujo nome se ignorava no resto do país até há poucas horas, antes de ser consagrado pela palavra impressa. Uma chuvinha miúda cobria os transeuntes de receio e de limo. Os sinos de todas as igrejas dobravam a finados. O presidente da República, surpreendido pela notícia quando se dirigia para o ato de graduação dos novos cadetes, sugeriu ao ministro da Guerra, em um bilhete escrito de seu próprio punho e letra no avesso do telegrama, que concluísse seu discurso com um minuto de silêncio em homenagem à Mamãe Grande.

A ordem social fora arranhada pela morte. O próprio presidente da República, a quem, os sentimentos urbanos chegavam como que através de um filtro de purificação, pode perceber de seu automóvel, em uma visão instantânea mas até, certo ponto brutal, a silenciosa consternação da cidade. Só permaneciam abertos alguns botequins vagabundos, e a Catedral, Metropolitana, preparada para nove dias de honras fúnebres. No Capitólio Nacional, onde os mendigos envoltos em papéis dormiam ao amparo de colunas dóricas e taciturnas estátuas de presidentes mortos, as luzes do Congresso estavam acesas. Quando o primeiro mandatário entrou em seu gabinete, comovido pela visão da capital enlutada, seus ministros o esperavam vestidos de tafetás funerários, de pé, mais solenes e pálidos do que de costume.

Os acontecimentos daquela noite e das seguintes seriam mais tarde definidos como uma lição histórica. Não só pelo espírito cristão que inspirou os mais elevados personagens do poder público, como pela abnegação com que se conciliaram interesses díspares e critérios contrapostos, no propósito comum de enterrar um cadáver ilustre. Durante muitos anos Mamãe Grande garantira a paz social e a concórdia política de seu império, em virtude dos três baús de cédulas eleitorais falsas que formavam parte de seu patrimônio secreto. Os varões da criadagem, seus protegidos e arrendatários, maiores , e menores de idade, exerciam não só seu próprio direito de sufrágio, como também o dos eleitores mortos em um século. Ela era a prioridade do poder tradicional sobre a autoridade transitória, o predomínio da classe sobre a plebe, a transcendência da sabedoria divina sobre a improvisação mortal. Em tempos pacíficos, sua vontade hegemônica concedia e retirava prelazias, prebendas e sinecuras, e velava pelo bem estar dos associados mesmo que para conseguí‑lo tivesse que recorrer à trapaça ou à fraude eleitoral. Em tempos tormentosos, Mamãe Grande contribuiu em segredo para armar seus partidários e prestou de público socorro às vítimas. Esse zelo patriótico a credenciava às mais altas honras.

O presidente da República não precisara recorrer aos seus conselheiros para medir o peso de sua responsabilidade. Entre a sala de audiências do Palácio e o pequeno pátio lajeado que serviu de cocheira aos vice-reis, havia um jardim interior de ciprestes sombrios onde um frade português se enforcou por amor nos últimos tempos da colônia. Apesar de sua ruidosa guarda de oficiais condecorados, o presidente não podia reprimir um ligeiro tremor de inquietação quando passava por esse, lugar depois do crepúsculo. Aquela noite, porém, o tremor teve a força de uma premonição. Adquiriu então plena consciência de seu destino histórico, e decretou nove dias de luto nacional, e homenagens póstumas à Mamãe Grande na categoria de heroína morta pela pátria no campo de batalha. Como o expressou no dramático discurso que dirigiu àquela madrugada aos seus compatríotas através da cadeia nacional de rádio e televisão, o primeiro mandatário da nação confiava em que os funerais da Mamãe Grande se constituíssem num novo exemplo para o mundo.

Tão altos propósitos deviam tropeçar sem dúvida em graves inconvenientes. A estrutura jurídica do país, construída por remotos ascendentes da Mamãe Grande, não estava preparada para acontecimentos como os que começavam a se produzir. Sábios doutores da lei, comprovados alquimistas do direito mergulharam em hermenêuticas e silogismos, em busca da forma que permitisse ao presidente da República assistir aos funerais. Viveram-se dias de sobressalto nas altas esferas da política, do clero e das finanças. No vasto hemiciclo do Congresso, rarefeito por um século de legislação abstrata, entre retratos a óleo de próceres nacionais e bustos de pensadores gregos, a evocação da Mamãe Grande alcançou proporções insuspeitáveis, enquanto seu cadáver se enchia de borbulhas no duro setembro de Macondo. Pela primeira vez falou-se dela e pensou-se nela sem sua cadeira de balanço de cipó, seus cochilos às duas da tarde e suas cataplasmas de mostarda, e ela foi vista pura e sem idade, destilada pela lenda.

Horas intermináveis encheram-se de palavras, palavras, palavras que repercutiam o âmbito da República, prestigiadas pelas sumidades, da palavra impressa. Até que alguém dotado de sentido da realidade naquela assembléia de jurisconsultos ascéticos interrompeu o blablablá, histórico para lembrar que o cadáver da Mamãe Grande esperava a decisão a 40 graus à sombra. Ninguém se perturbou diante, daquela irrupção do senso comum na atmosfera pura da lei escrita. Distribuíram-se ordens para que o cadáver fosse embalsamado, enquanto se encontravam fórmulas, se conciliavam pareceres ou se faziam emendas constitucionais que permitissem ao presidente da República assistir ao enterro.

Tanto se falara, que o palavrório transpôs as fronteiras, ultrapassou o oceano e atravessou como um pressentimento os aposentos pontificais de Castel Gandolfo. Refeito da modorra do ferragosto recente, o Sumo Pontífice estava em sua janela, vendo submergirem no lago os mergulhadores que procuravam a cabeça da donzela decapitada. Nas últimas semanas os jornais da tarde não se tinham ocupado de outra coisa e o Sumo Pontífice não podia ser indiferente a um enigma proposto a tão curta distância de sua residência de verão. Mas naquela tarde, em uma troca imprevista, os jornais substituíram as fotografias das possíveis vítimas pela de uma só mulher de vinte anos de idade, recoberta com uma faixa de luto. "A Mamãe Grande", exclamou o Sumo Pontífice, reconhecendo na hora o manchado daguerreótipo que muitos anos antes lhe tinha sido ofertado por ocasião de sua ascensão ao Trono de São Pedro. "Mamãe Grande", exclamaram em coro em seus aposentos privados os membros do Colégio Cardinalício e pela terceira vez em vinte séculos houve uma hora de confusões, afobações e correrias no império sem limites da cristandade, até que o Sumo Pontífice se achou instalado em sua longa gôndola negra, rumo aos fantásticos e remotos funerais da Mamãe Grande.

Ficaram para trás as luminosas plantaçõesde pêssegos, a Via Ápia Antiga com amenas atrizes de cinema dourando-se nos terraços sem ter ainda noticia da comoção, e depois o sombrio promontório de Castelo de Santo Angelo no horizonte do Tibre. Ao crepúsculo, a profundo dobrar dos sinos da Basílica de São Pedro entremeava-se com o repicar rachado dos bronzes de Macondo. Sob seu toldo sufocante, através dos canais intrincados e dos lamaçais misteriosos que delimitavam o Império Roma no e as fazendas da Mamãe Grande, o Sumo Pontífice ouviu a noite inteira a algazarra dos macacos alvoroçados pela passagem das multidões. Em seu itinerário noturno a canoa pontifícia fora se enchendo de sacos de aipim, cachos de banana verde e jacás de galinha e de homens e mulheres que abandonavam suas ocupações habituais para tentar a fortuna vendendo coisas nos funerais da Mamãe Grande. Sua Santidade padeceu essa noite, pela primeira, vez na história da Igreja, a febre da vigília e o tormento dos pernilongos. Mas o prodigioso amanhecer sobre os domínios da Grande Velha, a visão primitiva do reino da balsâmica e da iguana, apagaram de sua memória os padecimentos da viagem e o compensaram do sacrifício.

Nicanor fora despertado por três pancadas na porta que anunciavam a chegada iminente de Sua Santidade. A morte tomara posse da casa. Inspirados por sucessivas e opressivas locuções presidenciais, pelas febris controvérsias dos parlamentares que tinham perdido a voz e continuavam entendendo-se por meio de sinais convencionais, homens e congregações de todo o mundo desinteressaram-se de seus assuntos e encheram com suapresença os escuros corredores, os abarrotados passadiços, os asfixiantes balcões, e os que chegaram atrasados tiveram que subir e acomodar-se da melhor maneira possível em barbacãs, paliçadas, atalaias, madeiramentos e vigias. No salão central, mumificando-se à espera das grandes decisões, jazia o cadáver da Mamãe Grande, sob um tremulante promontório de telegramas. Extenuados pelas lágrimas, os nove sobrinhos velavam o corpo em um, êxtase de vigilância recíproca.

O universo teve ainda que prolongar a vigília por muitos dias. No salão do conselho municipal, acondicionado com quatro tamboretes de couro, uma talha de água filtrada e uma rede de fibra, o Sumo Pontífice sofreu uma insônia sudorífera, entretendo-se com a leitura de memoriais e disposições administrativas nas dilatadas noites sufocantes. Durante o dia, distribuía caramelos italianos às crianças que vinham vê-lo pela janela, e almoçava sob a pérgula de flores com o padre Antonio Isabel e ocasionalmente com Nicanor. Assim viveu semanas intermináveis e meses alongados pela expectativa e pelo calor, até que Pastor Pastrana se plantou no meio. da praça com seu tarol e leu o comunicado com a decisão. Declarava-se conturbada a ordem pública, rataplã, e o presidente da República, rataplã, lançava mão das faculdades extraordinárias, rataplã, que lhe permitiam assistir aos funerais da Mamãe Grande, rataplã, rataplã, rataplã, plã, plã.

Era chegado o grande dia. Nas ruas congestionadas de roletas, fogareiros de frituras mesas de jogos, e de homens com cobras enroladas no pescoço que apregoavam o bálsamo definitivo para curar a erisipela e assegurar a vida eterna; na pracinha colorida onde a multidão tinha pendurado seus toldos e desenrolado suas esteiras, galhardos arcabuzeiros abriam caminho para a autoridade. Lá estavam, à espera do momento supremo, as lavadeiras de São Jorge, os pescadores de pérolas do Cabo de Vela, os tarrafeiros de Ciénega, os camaroneiros de Tasajera, os feiticeiros de Monjana, os salineiros de Manaure, os acordeonístas de Valledupar, os camelôs de Ayapel, os plantadores de mamão de San Pelayo, os galistas de La Cueva, os repentistas das Sabanas de Bolivar, os aldrabões de Rebolo, os canoeiros do Magdalena, os rábulas de Mompox, além dos que foram enumerados no começo desta crônica, e muitos outros. Até os veteranos do coronel Aureliano Buendía - o duque de Marlborough a frente, em seu casaco de peles e unhas e dentes de tigre – sobrepuseram-se ao seu rancor centenário pela Mamãe Grande e os de sua casta, e vieram aos funerais, para solicitar ao presidente da República o pagamento das pensões de guerra que esperavam há sessenta anos.

Pouco antes das onze, ‑a multidão delirante que se asfixiava ao sol, contida por uma elite imperturbável de, guerreiros uniformizados de dólmãs guarnecidos e espumosas barretinas, lançou um poderoso rugido de júbilo. Dignos, solenes em seus fraques e cartolas, o presidente da República e os ministros; as comissões do Parlamento, a Corte Suprema de Justiça, o Conselho de Estado, os partidos tradicionais e o clero, e os representantes dos bancos, do comércio e da indústria, fizeram sua aparição na esquina do telégrafo. Calvo e rechonchudo, o velho e enfermo presidente da República desfilou diante dos olhos atônitos das multidões que o haviam eleito sem conhecê-lo e que só agora podiam prestar um testemunho verídico de sua existência. Entre os arcebispos, extenuados pela gravidade de seu ministério e os militares de robusto tórax couraçado de insígnias, o primeiro mandatário da nação transpirava o hálito inconfundível do poder.

Em um segundo grupo, em um sereno perpassar de rendas de luto, desfilavam as rainhas nacionais de todas as coisas existentes e por existir. Desprovidas pela primeira vez do esplendor terreno, ali passaram, precedidas pela rainha universal, a rainha da manga espada, a rainha da abobrinha verde, a rainha da banana-maça, a rainha da mandioca-brava, a rainha da goiaba branca, a rainha do coco verde, a rainha do feijão fradinho, à rainha de 426 quilômetros de fieiras de ovos de iguana, e todas as que omitimos para não tornar esta crônica interminável.

Em seu féretro com panejamentos de púrpura, separada da realidade. por oito torniquetes, de cobre, a Mamãe Grande estava então por demais embebida em sua eternidade, de formol para perceber a magnitude de sua grandeza. Todo o esplendor com que ela havia sonhado no balcão de sua casa durante as vigílias do calor cumpriu-se com aquelas quarenta e oito gloriosas horas em que todos os símbolos da época renderam homenagem à sua memória. O próprio Sumo Pontífice, a quem ela imaginara em seus últimos delírios suspenso em uma carruagem resplandecente sobre os jardins do Vaticano, sobrepôs-se ao calor com um leque de palha trançada e honrou com sua dignidade suprema os maiores funerais do mundo.

Deslumbrado pelo espetáculo do poder, o populacho não percebeu o ávido esvoejar que ocorreu na cumeeira da casa quando se impôs o acordo na disputa dos ilustres, e se retirou e, catafalco para a tua nos ombros dos mais ilustres. Ninguém viu a vigilante sombra de urubus que seguiu o cortejo pelas ardentes ruazinhas de Macondo, nem reparou que ao passar dos ilustres elas se iam cobrindo por um pestilento rastro de excrementos. Ninguém percebeu que os sobrinhos, afilhados, servos e protegidos da Mamãe Grande fecharam as portas tão logo foi retirado o cadáver, e desmontaram as portas, despregaram as tábuas e desenterraram os alicerces para dividir a casa. A única coisa que não passou inadvertida a ninguém no fragor daquele enterro foi o estrondoso suspiro de descanso que exalou a multidão quando se completaram os quatorze dias de preces, exaltações e ditirambos, e a tumba foi selada com uma placa de chumbo. Alguns dos presentes dispuseram de clarividência suficiente para compreender que estavam assistindo ao nascimento de uma nova época. Agora o Sumo Pontífice podia subir ao céu em corpo e alma, cumprida sua missão na terra, e o presidente da República podia sentar-se a governar segundo o bom critério, e as rainhas de tudo o que existe e por existir podiam casar-se e ser, felizes e conceber e parir muitos filhos, e as multidões podiam erguer suas tendas segundo seu leal modo de ver e entender nos desmesurados domínios da Mamãe Grande, porque a única pessoa que poderia opor-se a isso e tinha suficiente poder para fazê-lo começara a apodrecer sob uma plataforma de chumbo. Só faltava então que alguém encostasse um tamborete na porta para contar esta história, lição e escarmento das gerações futuras, e que nenhum dos incrédulos do mundo ficasse sem conhecer a notícia da morte da Mamãe Grande, porque, amanhã, quarta-feira, virão os varredores e varrerão o lixo de seus funerais, por todos os séculos dos séculos.

 

                                                                                            Gabriel Garcia Marquez

 

 

                      

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