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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Viver para Contá-la / Gabriel Garcia Marquez
Viver para Contá-la / Gabriel Garcia Marquez

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Viver para Contá-la

 

A vida não é a que cada um viveu,

mas a que recorda e como a recorda para contá‑la

 

A minha mãe pediu‑me que a acompanhasse para vender a casa. Tinha chegado a Barranquilla naquela manhã, vinda da aldeia distante onde vivia a família, e não tinha a menor ideia de como me havia de encontrar. Perguntando por aqui e por ali entre os conhecidos, deram‑lhe a indicação que me procurasse na Librería Mundo ou nos cafés próximos, onde ia duas vezes por dia para conversar com os meus amigos escritores. Quem lho disse, avisou‑a: «Vá com cuidado, porque são loucos varridos.» Chegou ao meio‑dia em ponto. Abriu passagem com o seu andar ligeiro por entre as mesas de livros expostos, colocou‑se à minha frente, olhando‑me nos olhos com o sorriso malicioso dos seus melhores dias e, antes que eu pudesse reagir, disse‑me:

‑ Sou a tua mãe.

Algo mudara nela que me impediu de a reconhecer à primeira vista. Tinha quarenta e cinco anos. Somando os seus onze partos, passara quase dez anos grávida e pelo menos outros tantos amamentando os filhos. Os cabelos tinham ficado brancos por completo antes do tempo, os olhos pareciam maiores e atónitos por trás das suas primeiras lentes bifocais e guardava um luto carregado e sério pela morte da mãe, mas conservava ainda a beleza romana do seu retrato de casamento, agora dignificada por uma aura outonal. Antes de qualquer coisa, mesmo antes de me abraçar, disse‑me com o seu estilo cerimonioso do costume:

‑ Venho pedir‑te o favor de me acompanhares para vender a casa.

Não precisou de me dizer qual, nem onde, porque para nós apenas existia uma no mundo: a velha casa dos avós em Aracataca, onde tive a sorte de nascer e onde não voltei a viver desde os oito anos. Acabava de abandonar a Faculdade de Direito, ao fim de seis semestres dedicados acima de tudo a ler o que me caía nas mãos e a recitar de memória a poesia irrepetível do Século de Ouro espanhol. Lera já, traduzidos e em edições emprestadas, todos os livros que me teriam bastado para aprender a técnica de romancear, e tinha publicado seis contos em suplementos de jornais, que mereceram o entusiasmo dos meus amigos e a atenção de alguns críticos. Ia fazer vinte e três anos no mês seguinte, era já refractário do serviço militar e veterano de duas blenorragias, e fumava todos os dias, sem premonições, sessenta cigarros de tabaco barato. Alternava os meus ócios entre Barranquilla e Cartagena de índias, na costa caribenha da Colômbia, sobrevivendo à larga com o que me pagavam pelas minhas notas diárias em El Heraldo, que era quase menos do que nada, e dormia o mais bem acompanhado possível onde me surpreendesse a noite. Como se não fosse bastante a incerteza sobre as minhas pretensões e o caos da minha vida, eu e um grupo de amigos inseparáveis dispúnhamo‑nos a publicar uma revista temerária e sem recursos que Alfonso Fuenmayor planeava há já três anos. Que mais podia desejar?

Mais por penúria do que por gosto, antecipei‑me à moda em vinte anos: bigode silvestre, cabelos revoltos, calças de ganga, camisas de flores equívocas e sandálias de peregrino.

No escuro de um cinema e sem saber que eu estava perto, uma amiga de então disse a alguém: «O pobre Gabito é um caso perdido.» De modo que quando a minha mãe me pediu que fosse com ela para vender a casa, não tive qualquer dificuldade em dizer‑lhe que sim. Ela informou‑me que não tinha dinheiro que chegasse e, por orgulho, disse‑lhe que pagava as minhas despesas.

No jornal em que trabalhava não era possível resolver o caso. Pagavam‑me três pesos por cada nota diária e quatro por um editorial quando faltava algum dos editorialistas de serviço, mas mal me chegavam. Procurei fazer um empréstimo, mas o gerente recordou‑me que a minha dívida original ascendia a mais de cinquenta pesos. Naquela tarde cometi um abuso do qual nenhum dos meus amigos teria sido capaz. À saída do Café Colômbia, junto da livraria, fui ter com D. Ramón Vinyes, o velho professor e livreiro catalão, e pedi‑lhe emprestados dez pesos. Só tinha seis.

Nem a minha mãe nem eu, como era evidente, teríamos podido imaginar sequer que aquele inocente passeio de apenas dois dias ia ser tão determinante para mim que a mais longa e diligente das vidas não bastaria para o contar. Agora, com mais de setenta e cinco anos bem medidos, sei que foi a decisão mais importante de quantas tive que tomar na minha carreira de escritor. Quer dizer: em toda a minha vida.

Até à adolescência, a memória tem mais interesse no futuro do que no passado, e portanto as minhas recordações da aldeia não estavam ainda idealizadas pela nostalgia. Recordava‑a como era: um lugar bom para viver, onde toda a gente se conhecia, na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré‑históricos. Ao entardecer, sobretudo em Dezembro, quando acabavam as chuvas e o ar se tornava de diamante, a Sierra Nevada de Santa Marta parecia aproximar‑se com os seus píncaros brancos das plantações de bananas da margem oposta. Viam‑se dali os índios arhuacos correndo em carreiros de formiguinhas pelas cornijas da serra, com os seus fardos de gengibre às costas e mastigando bolas de coca para manter a vida. Nós, as crianças, tínhamos então a ilusão de fazer bolas com as neves perpétuas e brincar às guerras nas ruas abrasadoras. Pois o calor era tão inverosímil, sobretudo durante a sesta, que os adultos se queixavam dele como se fosse uma surpresa de cada dia. Desde que nasci, ouvi repetir sem descanso que as linhas do comboio e os acampamentos da United Fruit Company foram construídos de noite, porque de dia era impossível pegar nas ferramentas aquecidas pelo sol.

A única maneira de chegar a Aracataca a partir de Barranquilla era numa desconjuntada lancha a motor por um canal estreito aberto a braços de escravos durante a Colónia e depois através de um amplo pantanal de águas turvas e desoladas, até à misteriosa povoação de Ciénaga (Ciénaga ‑ pantanal, lamaçal. (N.T.). Apanhava‑se ali o comboio vulgar, que tinha sido na sua origem o melhor do país e no qual se fazia o trajecto final pelas imensas plantações de bananas, com muitas paragens ociosas em aldeias poeirentas e ardentes, e estações solitárias. Foi esse o caminho que a minha mãe e eu empreendemos às sete da noite do sábado 18 de Fevereiro de 1950 ‑ vésperas de Carnaval ‑, sob um aguaceiro diluviano fora de tempo e com trinta e dois pesos em dinheiro, que nos chegariam à justa para regressar se a casa não fosse vendida nas condições previstas.

Os ventos alísios estavam tão bravios naquela noite que no porto fluvial tive grande dificuldade em convencer a minha mãe a embarcar. Não lhe faltava razão. As lanchas eram imitações reduzidas dos barcos a vapor de Nova Orleães, mas com motores de gasolina que transmitiam um tremor de febre má a tudo o que estava a bordo. Tinham um salãozinho com ganchos para pendurar redes em diversos níveis e assentos de espaldar em madeira onde as pessoas se acomodavam às cotoveladas como podiam, com as suas bagagens exageradas, embrulhos de mercadorias, grades de galinhas e até porcos vivos. Possuíam alguns camarotes sufocantes com dois beliches de quartel, quase sempre ocupados por putinhas de má morte que prestavam serviços de emergência durante a viagem. Como à última hora não encontrámos nenhum livre, nem levávamos redes, a minha mãe e eu tomámos de assalto duas cadeiras de ferro do corredor central e ali nos dispusemos a passar a noite.

Tal como ela receava, a tempestade açoitou a temerária embarcação enquanto atravessávamos o rio Magdalena, que a tão curta distância do seu estuário tem um temperamento oceânico. Eu tinha comprado no porto uma boa provisão de cigarros dos mais baratos, de tabaco negro e com um papel a que pouco faltava para ser de embrulho, e comecei a fumar à minha maneira de então, acendendo um na beata do outro, enquanto relia Luz em Agosto (As obras editadas entre nós serão referidas pelo seu título em português. (N. T.)), de William Faulkner, que era então o mais fiel dos meus demónios tutelares. A minha mãe agarrou‑se ao seu rosário como a um cabrestante capaz de desencalhar um tractor ou suster um avião no ar e, como era seu hábito, não pediu nada para ela, mas sim prosperidade e longa vida para os seus onze órfãos. A sua prece deve ter chegado onde devia, porque a chuva se tornou mansa quando entrámos no canal e a brisa soprou apenas para espantar os mosquitos.

A minha mãe guardou então o rosário e durante um grande bocado observou em silêncio o fragor da vida que decorria à nossa volta.

Nascera numa casa modesta mas crescera no efémero esplendor da companhia bananeira, do qual lhe ficou pelo menos uma boa educação de menina rica no Colégio de la Presentación de la Santísima Virgen, em Santa Marta. Durante as férias de Natal, bordava em bastidor com as amigas, tocava clavicórdio nos bazares de caridade e frequentava com uma tia «pau‑de‑cabeleira» os bailes mais depurados da tímida aristocracia local, mas ninguém lhe conhecera qualquer namorado quando se casou, contra a vontade dos pais, com o telegrafista da aldeia. As suas virtudes mais notórias desde então eram o sentido de humor e a saúde de ferro, que as insídias da adversidade não conseguiriam derrotar na sua longa vida. Mas a mais surpreendente, e também desde então a menos suspeitada, era o requintado talento com que conseguia dissimular a tremenda força do seu carácter: um Leão perfeito. Isto permitira‑lhe estabelecer um poder matriarcal cujo domínio atingia até os parentes mais remotos nos lugares menos pensados, como um sistema planetário que ela manobrava da cozinha, com a sua voz fraca e quase sem pestanejar, enquanto fervia a marmita dos feijões.

Vendo‑a suportar sem se perturbar aquela viagem brutal, interrogava‑me como teria podido controlar com tal rapidez e com tanto domínio as injustiças da pobreza. Nada como aquela má noite para a pôr à prova. Os mosquitos carniceiros, o calor denso e nauseabundo devido ao lodo dos canais que a lancha ia revolvendo à sua passagem, a barafunda dos passageiros sem sono que não se conseguiam acomodar no exíguo espaço, tudo parecia de propósito para fazer perder a cabeça à índole mais bem temperada. A minha mãe suportava tudo, imóvel na sua cadeira, enquanto as raparigas de aluguer faziam a colheita da noite nos camarotes próximos, disfarçadas de homens ou de manolas (Manola ‑ rapariga da classe baixa de Madrid, que se distinguia pelo traje e desenvoltura. (N. da T.)). Uma delas tinha entrado e saído do seu várias vezes, sempre com um cliente diferente, e mesmo ao lado do assento da minha mãe. Pensei que ela não a tivesse visto. Mas à quarta ou quinta vez que entrou e saiu em menos de uma hora, seguiu‑a com um olhar de pena até ao fundo do corredor.

‑ Pobres raparigas ‑ suspirou. ‑ O que têm de fazer para viver é pior do que trabalhar.

Assim se manteve até à meia‑noite, quando me cansei de ler com a trepidação insuportável e as fracas luzes do corredor e me sentei a fumar a seu lado, tentando sair a flutuar das areias movediças do condado de Yoknapatawpha. Desertara da Universidade no ano anterior, com a temerária ilusão de viver do jornalismo e da literatura sem necessidade de os aprender, animado por uma frase que creio ter lido em Bernard Shaw: «Desde muito pequeno tive de interromper a minha educação para ir à escola.» Não fui capaz de o discutir com ninguém porque sentia, sem poder explicar, que as minhas razões apenas podiam ser válidas para mim mesmo.

Tentar convencer os meus pais de semelhante loucura, quando tinham depositado em mim tantas esperanças e gasto tanto dinheiro que não tinham, era tempo perdido. Sobretudo o meu pai, que me teria perdoado qualquer coisa menos que não pendurasse na parede qualquer diploma académico que ele não pôde ter. A comunicação foi interrompida. Quase um ano depois continuava a pensar em visitá‑lo para lhe apresentar as minhas razões, quando a minha mãe apareceu a pedir‑me que a acompanhasse para vender a casa. No entanto, ela não fez qualquer menção ao assunto até depois da meia‑noite, na lancha, quando sentiu, como uma espécie de revelação sobrenatural, que tinha encontrado por fim a ocasião propícia para me dizer o que sem dúvida era o motivo real da sua viagem, e começou com o modo e o tom e as palavras milimétricas que deve ter amadurecido na solidão das suas insónias muito antes de se decidir.

‑ O teu pai está muito triste ‑ disse.

Ali estava, pois, o tão temido inferno. Começava como sempre, quando menos se esperava, e com uma voz tranquila que não se alteraria diante de nada. Apenas para cumprir o ritual, pois conhecia de sobra a resposta, perguntei:

‑ E porquê?

‑ Porque deixaste os estudos.

‑ Não deixei ‑ disse. ‑ Apenas mudei de carreira.

A ideia de uma discussão a sério levantou‑lhe o ânimo.

‑ O teu pai diz que é a mesma coisa ‑ disse. Sabendo que era falso, disse‑lhe:

‑ Também ele deixou de estudar para tocar violino.

‑ Não foi a mesma coisa ‑ replicou ela com grande vivacidade. ‑ Só tocava violino nas festas e serenatas. Se deixou os estudos foi porque não tinha nem para comer. Mas em menos de um mês aprendeu telegrafia, que nessa altura era uma profissão muito boa, sobretudo em Aracataca.

‑ Eu também vivo de escrever nos jornais ‑ disse‑lhe.

‑ Dizes isso para não me mortificares ‑ disse ela. ‑ Mas nota‑se de longe que estás em má situação. Vê lá que quando te vi na livraria nem te reconheci.

‑ Eu também não a reconheci ‑ disse‑lhe.

‑ Mas não pela mesma razão ‑ disse ela. ‑ Pensei que eras um mendigo. ‑ Observou‑me as sandálias gastas e acrescentou: ‑ E sem meias.

‑ É mais cómodo ‑ disse‑lhe. ‑ Duas camisas e dois calções: uns vestidos, outros a secar. O que mais é preciso?

‑ Um pouco de dignidade ‑ disse ela. Mas a seguir suavizou o tom: ‑ Digo‑te isto pelo muito que gostamos de ti.

‑ Já sei ‑ disse‑lhe. ‑ Mas diga‑me uma coisa: no meu lugar, não faria a mesma coisa?

‑ Não faria ‑ disse ela ‑ se com isso contrariasse os meus pais.

Lembrando‑me da tenacidade com que conseguiu forçar a oposição da sua família para casar, disse‑lhe rindo:

‑ Atreva‑se a olhar para mim.

Mas ela esquivou‑se com seriedade, porque sabia bem de mais o que eu estava a pensar.

‑ Não me casei enquanto não tive a bênção dos meus pais ‑ disse. ‑ À força, de acordo, mas tive‑a.

Interrompeu a discussão, não porque os meus argumentos a tivessem vencido, mas porque queria ir à retrete e desconfiava das suas condições higiénicas. Perguntei ao contramestre se havia um lugar mais saudável, mas explicou‑me que ele próprio usava a retrete comum. E concluiu, como se acabasse de ler Conrad: «No mar somos todos iguais.» Portanto a minha mãe teve de se submeter à lei de todos. Quando saiu, ao contrário do que eu receava, mal conseguia conter o riso.

‑ Imagina ‑ disse‑me ‑ o que vai pensar o teu pai se eu regressar com uma doença da má vida?

Depois da meia‑noite tivemos um atraso de três horas, pois os tampões de anémonas do canal encravaram as hélices, a lancha encalhou num mangal e muitos passageiros tiveram que puxá‑la das margens com as cordas das redes. O calor e os pernilongos tornaram‑se insuportáveis, mas a minha mãe iludiu‑os com umas rajadas de sonos instantâneos e intermitentes, já célebres na família, que lhe permitiam descansar sem perder o fio da conversa.

Quando foi retomada a viagem e entrou a brisa fresca, despertou por completo.

‑ Seja como for ‑ suspirou ‑ tenho que levar uma resposta qualquer ao teu pai.

‑ É melhor não se preocupar ‑ disse‑lhe com a mesma inocência. ‑ Irei em Dezembro e então explicar‑lhe‑ei tudo.

‑ Faltam dez meses ‑ disse ela.

‑ No fim de contas, este ano já não se pode resolver nada; na Universidade ‑ disse‑lhe.

‑ Prometes a sério que irás?

‑ Prometo ‑ disse‑lhe. E pela primeira vez vislumbrei uma certa ansiedade na sua voz:

‑ Posso dizer ao teu pai que lhe vais dizer que sim?

‑ Não ‑ repliquei‑lhe, cortante. ‑ Isso não.

Era evidente que procurava outra saída. Mas não lha dei.

‑ Então mais vale que lhe diga de uma vez toda a verdade ‑ disse ela. ‑ Assim não parecerá que o estou a enganar.

‑ Está bem ‑ respondi, aliviado. ‑ Diga‑lha. Assentámos nisso e alguém que não a conhecesse bem teria pensado que ali terminava tudo, mas eu sabia que era uma trégua para recuperar o fôlego. Pouco depois mergulhou num sono profundo. Uma brisa suave espantou os pernilongos e saturou o ar novo com um aroma de flores. A lancha adquiriu então a elegância de um veleiro.

Estávamos na Ciénaga Grande, outro dos mitos da minha infância. Navegara por ela várias vezes, quando o meu avô, o coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía ‑ a quem nós, os netos, chamávamos Papalelo ‑, me levava de Aracataca a Barranquilla para visitar os meus pais. «Não se deve ter medo do pantanal mas sim respeito», dissera‑me ele, falando dos humores imprevisíveis das suas águas, que tanto se comportavam como um lago como um oceano indómito. Na estação das chuvas, estava à mercê das tempestades da serra. De Dezembro até Abril, quando o tempo devia ser manso, os alísios do norte investiam com tal ímpeto que cada noite era uma aventura. A minha avó materna, Tranquilina Iguarán ‑ Mina ‑, não se arriscava à travessia senão em casos de grande urgência, depois de uma viagem de espantos em que tiveram que procurar refúgio até ao amanhecer na embocadura do Riofrío.

Naquela noite, por sorte, estava sereno. Das janelas da proa, onde fui respirar um pouco antes do amanhecer, as luzes dos botes de pesca flutuavam como estrelas na água. Eram incontáveis e os pescadores invisíveis conversavam como numa visita, pois as vozes tinham uma ressonância espectral no meio do pantanal. Com os cotovelos apoiados na amurada, tentando adivinhar o perfil da serra, surpreendeu‑me de súbito o primeiro aguilhão da nostalgia.

Noutra madrugada como aquela, enquanto atravessávamos a Ciénaga Grande, Papalelo deixou‑me a dormir no camarote e foi para o bar. Não sei que horas seriam quando fui despertado por uma algazarra de muita gente por entre o zumbido da ventoinha enferrujada e o tiquetaquear das latas do camarote. Eu não devia ter mais de cinco anos e senti um grande susto, mas em breve se restabeleceu a calma e pensei que podia ter sido um sonho. De manhã, já no embarcadouro de Ciénaga, o meu avô estava a barbear‑se à navalha com a porta aberta e o espelho pendurado na moldura. A recordação é exacta: ainda não vestira a camisa, mas tinha sobre a camisola interior os seus eternos suspensórios elásticos, largos e com riscas verdes. Enquanto se barbeava, continuava a conversar com um homem que ainda hoje poderia reconhecer à primeira vista. Tinha um perfil de corvo, inconfundível, uma tatuagem de marinheiro na mão direita e usava pendurados ao pescoço vários pesados fios de ouro, e pulseiras e escravas, também de ouro, em ambos os pulsos. Eu acabava de me vestir e estava sentado na cama a calçar as botas quando o homem disse ao meu avô:

‑ Não duvide, coronel. O que queriam era atirá‑lo à água. O meu avô sorriu sem parar de se barbear e, com uma altivez muito sua, replicou:

‑ Mais lhes valeu não se atreverem.

Só então entendi a barulheira da noite anterior e senti‑me muito impressionado com a ideia de que alguém pudesse ter atirado o meu avô para o pantanal.

A recordação deste episódio nunca esclarecido surpreendeu‑me naquela madrugada em que ia com a minha mãe vender a casa, enquanto contemplava as neves da serra que amanheciam azuis com os primeiros sóis. O atraso nos canais permitiu‑nos ver em pleno dia a barra de areias luminosas que separa o mar e o pantanal, onde havia aldeias de pescadores com as redes postas a secar na praia e garotos maltratados e esquálidos a jogarem futebol com bolas de trapos. Era impressionante ver nas ruas o grande número de pescadores com o braço mutilado por não atirarem a tempo as cargas de dinamite. À passagem da lancha, os garotos mergulhavam para apanhar as moedas que os passageiros lhes atiravam.

Eram quase sete quando atracámos num pântano pestilento, a pouca distância da povoação de Ciénaga. Quadrilhas de carregadores com a lama pelos joelhos receberam‑nos nos braços e levaram‑nos a chapinhar até ao embarcadouro, por entre um esvoaçar de auras que disputavam as imundícies do lodaçal. Tomávamos o pequeno‑almoço com lentidão nas mesas do porto, com as saborosas mojarras (Mojarra ‑ peixe marinho acantopterígio. (N. da T.)) do pantanal e rodelas fritas de banana verde, quando a minha mãe retomou a ofensiva da sua guerra pessoal.

‑ Então, diz‑me lá ‑ perguntou sem levantar os olhos ‑, o que vou dizer ao teu pai?

Tentei ganhar tempo para pensar.

‑ Sobre quê?

‑ Sobre a única coisa que lhe interessa ‑ disse ela, um pouco irritada: ‑ Os teus estudos.

Tive a sorte de um comensal impertinente, intrigado com a veemência do diálogo, querer saber as minhas razões. A resposta imediata da minha mãe não só me intimidou um pouco, como me surpreendeu nela, tão ciosa da sua vida privada.

‑ Quer ser escritor ‑ disse.

‑ Um bom escritor pode ganhar bom dinheiro ‑ replicou o homem com seriedade. ‑ Sobretudo se trabalhar com o governo.

Não sei se foi por discrição que a minha mãe afastou o assunto, ou por medo dos argumentos do imprevisto interlocutor, mas ambos acabaram a compadecer‑se das incertezas da minha geração e a partilhar as mágoas. No fim, procurando nomes de conhecidos comuns, acabaram por descobrir que éramos parentes em duplicado pelos Cotes e pelos Iguarán. Isso acontecia‑nos naquela época com duas de cada três pessoas que encontrávamos na costa caribenha e a minha mãe festejava sempre isso como um acontecimento insólito.

Fomos para a estação do caminho‑de‑ferro numa vitória de um só cavalo, talvez o último de uma estirpe lendária já extinta no resto do mundo. A minha mãe ia absorta, olhando a árida planície calcinada pelo salitre que começava no lodaçal do porto e se confundia com o horizonte. Para mim, era um lugar histórico: com três ou quatro anos, no decurso da primeira viagem a Barranquilla, o avô levara‑me pela mão através daquele descampado ardente, andando depressa e sem me dizer para quê e, de repente, encontrámo‑nos em frente de uma vasta extensão de águas verdes com arrotos de espuma, onde flutuava um mundo de galinhas afogadas.

‑ É o mar ‑ disse‑me.

Desiludido, perguntei‑lhe o que havia na outra margem e ele respondeu‑me sem hesitar:

‑ Do outro lado não há margem.

Hoje, depois de tantos mares vistos pelo direito e pelo avesso, continuo a pensar que aquela foi mais uma das suas grandes respostas. Em todo o caso, nenhuma das minhas imagens prévias correspondia àquele pélago sórdido, em cuja praia de caliça era impossível andar por entre ramos de mangais podres e lascas de caracóis. Era horrível.

A minha mãe devia pensar o mesmo do mar de Ciénaga, pois logo que o viu aparecer à esquerda do carro, suspirou:

‑ Não há mar como o de Riohacha!

Nessa ocasião contei‑lhe a minha recordação das galinhas afogadas e, como todos os adultos, achou que se tratava de uma alucinação da infância. Depois, continuou a contemplar cada lugar que encontrávamos pelo caminho e eu sabia o que pensava de cada um pelas alterações do seu silêncio. Passámos em frente do bairro de tolerância do outro lado da linha de comboio, com casinhas de cores com telhados oxidados e os velhos papagaios de Paramaribo que, das argolas penduradas nos beirais, chamavam os clientes em português. Passámos pelos bebedouros das locomotivas, com a imensa abóbada de ferro na qual se refugiavam para dormir as aves migratórias e as gaivotas perdidas. Bordejámos a cidade sem entrar, mas vimos as ruas largas e desoladas e as casas do antigo esplendor, de um só piso, com janelas de corpo inteiro, onde os exercícios de piano se repetiam sem descanso desde o amanhecer. De repente, a minha mãe apontou com o dedo.

‑ Olha ‑ disse‑me. ‑ Foi ali que se acabou o mundo.

Segui a direcção do seu indicador e vi a estação: um edifício de madeiras carcomidas, com telhados de zinco de duas águas e varandas corridas e, em frente, uma praceta árida na qual não podiam caber mais de duzentas pessoas. Fora ali, segundo me precisou a minha mãe naquele dia, que o exército matara em 1928 um número nunca determinado de jornaleiros da banana. Eu conhecia o episódio como se o tivesse vivido, depois de o ter ouvido contado e mil vezes repetido pelo meu avô desde que tive memória: o militar lendo o decreto pelo qual os peões em greve foram declarados um bando de malfeitores; os três mil homens, mulheres e crianças imóveis sob o sol bárbaro depois de o oficial lhes dar um prazo de cinco minutos para evacuarem a praça; a ordem de fogo, o tiquetaquear das rajadas de disparos incandescentes, a multidão encurralada pelo pânico enquanto a iam diminuindo palmo a palmo com as tesouras metódicas e insaciáveis da metralha.

O comboio chegava a Ciénaga às nove da manhã, recolhia os passageiros das lanchas e os que desciam da serra, e continuava para o interior da zona bananeira um quarto de hora depois. A minha mãe e eu chegámos à estação depois das oito, mas o comboio estava demorado. No entanto, fomos os únicos passageiros. Ela notou‑o logo que entrou na carruagem vazia e exclamou com um humor festivo:

‑ Que luxo! O comboio todo só para nós!

Sempre pensei que foi uma alegria fingida para dissimular o seu desencanto, pois os estragos do tempo viam‑se à vista desarmada no estado das carruagens. Eram as antigas de segunda classe, mas sem assentos de vime nem vidros de subir e descer nas janelas, e sim com bancos de madeira curtidos pelos fundilhos lisos e quentes dos pobres. Em comparação com o que foi noutro tempo, não só aquela carruagem, mas todo o comboio era um fantasma de si mesmo. Dantes tinha três classes. A terceira, onde viajavam os mais pobres, eram os mesmos compartimentos de tábuas onde eram transportadas as bananas ou as reses para o sacrifício, adaptados para passageiros com bancos longitudinais de madeira em bruto. A segunda classe, com assentos de vime e molduras de bronze. A primeira classe, onde viajavam as pessoas do governo e importantes empregados da companhia bananeira, com alcatifa no corredor e poltronas forradas de veludo vermelho que podiam mudar de posição. Quando viajava o superintendente da companhia, ou a sua família, ou os seus convidados de importância, engatavam na cauda do comboio uma carruagem de luxo com janelas de vidros solares e enfeites dourados e uma varanda descoberta com mesinhas para viajar tomando o chá. Não conheci nenhum mortal que tivesse visto por dentro essa carruagem de fantasia. O meu avô havia sido alcaide duas vezes e além disso tinha uma noção alegre do dinheiro, mas só viajava em segunda se ia com alguma mulher da família. E quando lhe perguntavam por que viajava em terceira, respondia: «Porque não há quarta.» No entanto, noutros tempos, o mais recordável do comboio tinha sido a pontualidade. Os relógios das aldeias eram acertados na hora exacta pelo seu apito.

Naquele dia, por um motivo ou por outro, partiu com uma hora e meia de atraso. Quando se pôs em marcha, muito devagar e com um chiado lúgubre, a minha mãe persignou‑se, mas a seguir voltou à realidade.

‑ Este comboio tem falta de óleo nas molas ‑ declarou.

Éramos os únicos passageiros, talvez em todo o comboio, e até esse momento não havia nada que me despertasse um verdadeiro interesse. Mergulhei no torpor de Luz em Agosto, fumando sem tréguas, com rápidos olhares ocasionais para reconhecer os lugares que íamos deixando para trás. O comboio atravessou com um longo apito as marismas do pantanal e entrou a toda a velocidade por um trepidante corredor de rochas vermelhas, onde o barulho das carruagens se tornou insuportável. Mas, passados uns quinze minutos, abrandou a marcha, penetrou com um ofegar sigiloso na penumbra fresca das plantações, e o tempo tornou‑se mais denso e não voltou a sentir‑se a brisa do mar. Não tive que interromper a leitura para saber que tínhamos entrado no reino hermético da zona bananeira.

O mundo mudou. De cada lado da via‑férrea estendiam‑se as avenidas simétricas e intermináveis das plantações, por onde passavam as carroças de bois carregadas de cachos verdes. De repente, em intempestivos espaços não semeados, havia acampamentos de tijolos vermelhos, escritórios com rede nas janelas e ventoinhas de pás penduradas no tecto, e um hospital solitário num campo de papoilas. Cada rio tinha a sua aldeia e a sua ponte de ferro por onde o comboio passava aos gritos, e as raparigas que tomavam banho nas águas geladas saltavam como sáveis à sua passagem para perturbar os passageiros com as suas mamas fugazes.

Na povoação de Riofrío entraram várias famílias de arhuacos carregados com mochilas cheias de abacates da serra, os mais apetitosos do país. Percorreram a carruagem aos saltinhos nos dois sentidos, procurando lugar para se sentarem, mas quando o comboio retomou a marcha só restavam duas mulheres brancas com um bebé recém‑nascido e um padre jovem. A criança não parou de chorar o resto da viagem. O padre tinha botas e capacete de explorador, uma sotaina de tecido grosso com remendos quadrados, como uma vela de barco, e ralava ao mesmo tempo que o bebé chorava e sempre como se estivesse no púlpito.

O tema da sua prédica era a possibilidade de a companhia bananeira regressar. Desde que esta se foi não se falava de outra coisa na Zona e as opiniões estavam divididas entre os que queriam e os que não queriam que regressasse, mas todos o davam como certo. O padre estava contra e expressou‑o com uma razão tão pessoal que pareceu disparatada às mulheres:

‑ A companhia espalha a ruína por onde passa.

Foi a única coisa original que disse, mas não a conseguiu explicar e a mulher do bebé acabou de o baralhar com o argumento de que Deus não podia estar de acordo com ele.

A nostalgia, como sempre, apagara as más recordações e magnificara as boas. Ninguém escapava aos seus estragos. Pela janela da carruagem viam‑se os homens sentados nas portas das casas e bastava olhar‑lhes para a cara para saber o que esperavam. As lavadeiras nas praias de caliça viam passar o comboio com a mesma esperança. Cada forasteiro que chegava com uma pasta de negócios parecia‑lhes que era o homem da United Fruit Company que voltava para restabelecer o passado. Em qualquer encontro, em qualquer visita, em qualquer carta, surgia mais tarde ou mais cedo a frase sacramental: «Dizem que a companhia vai voltar.» Ninguém sabia quem o disse, nem quando, nem porquê, mas ninguém o punha em dúvida.

A minha mãe julgava‑se curada de espantos, pois uma vez mortos os pais tinha cortado qualquer vínculo com Aracataca. No entanto, os seus sonhos atraiçoavam‑na. Pelo menos, quando tinha algum que lhe interessava tanto que o contava ao pequeno‑almoço, estava sempre relacionado com as suas saudades da zona bananeira. Sobreviveu às suas épocas mais duras sem vender a casa, com a ilusão de receber por ela quatro vezes mais quando voltasse a companhia. Fora por fim vencida pela pressão insuportável da realidade. Mas quando ouviu o padre dizer no comboio que a companhia estava prestes a regressar, fez um gesto desolado e disse‑me ao ouvido:

‑ Que pena que não possamos esperar mais um tempinho para vender a casa por mais dinheiro.

Enquanto o padre falava, passámos de largo por um lugar onde havia uma multidão na praça e uma banda de música que tocava uma alegre marcha militar sob o sol escaldante. Todas aquelas povoações me pareceram sempre iguais. Quando o Papalelo me levava ao flamante Cine Olympia, de D. António Daconte, eu notava que as estações dos filmes de cowboys eram parecidas com as do nosso comboio. Mais tarde, quando comecei a ler Faulkner, também as povoações dos seus romances me pareciam iguais às nossas. E não era surpreendente, pois estas tinham sido construídas sob a inspiração messiânica da United Fruit Company e com o mesmo estilo provisório de acampamento de passagem. Lembrava‑me de todas elas, com a igreja na praça e as casinhas de conto de fadas pintadas de cores primárias. Lembrava‑me dos grupos de jornaleiros negros cantando ao entardecer, dos telheiros das quintas onde se sentavam os peões a ver passar os comboios de carga, dos limites das herdades onde amanheciam os macheteiros decapitados nas paródias de sábado. Lembrava‑me das cidades privadas dos gringos, em Aracataca e em Sevilla, do outro lado da via‑férrea, cercadas com redes metálicas como enormes galinheiros electrificados que nos dias frescos do Verão amanheciam negras de andorinhas torradas. Lembrava‑me dos seus lentos prados azuis com pavões‑reais e codornizes, das residências de telhados vermelhos e janelas com grades e mesinhas redondas com cadeiras de dobrar para comerem nas varandas, entre palmeiras e roseirais poeirentos. Às vezes, viam‑se através da cerca de arame mulheres belas e lânguidas, com vestidos de musselina e grandes chapéus de gaze, que cortavam as flores dos seus jardins com tesouras de ouro.

Já na minha infância não era fácil distinguir umas povoações das outras. Vinte anos depois ainda era mais difícil, porque dos portais das estações tinham caído as tabuletas com nomes idílicos ‑ Tucurinca, Guamachito, Neerlandia, Guacamayal ‑ e eram todas mais desoladas do que na minha memória. O comboio parou em Sevilla cerca das onze e meia da manhã para mudar de locomotiva e se abastecer de água durante quinze intermináveis minutos. Ali começou o calor. Quando retomou a marcha, a nova locomotiva enviava‑nos em cada curva uma rajada de pó de carvão que entrava pela janela sem vidros e nos deixava cobertos de uma neve negra. O padre e as mulheres tinham desembarcado em qualquer aldeia sem que déssemos conta e isso agravou a minha impressão de que a minha mãe e eu íamos sós num comboio de ninguém. Sentada à minha frente, olhando pela janela, cabeceara dois ou três sonos, mas despertou de imediato e lançou‑me uma vez mais a terrível pergunta:

‑ Então, o que digo ao teu pai?

Eu pensava que ela nunca se iria render, em busca de um flanco por onde pudesse quebrantar a minha decisão. Pouco antes sugerira algumas fórmulas de compromisso que pus de parte sem argumentos, mas sabia que a sua retirada não seria muito longa. Mesmo assim, apanhou‑me de surpresa aquela nova tentativa. Preparado para outra batalha estéril, respondi‑lhe com mais calma do que nas vezes anteriores:

‑ Diga‑lhe que a única coisa que quero na vida é ser escritor e vou sê‑lo.

‑ Ele não se opõe a que sejas o que quiseres ‑ disse ela ‑ desde que te formes em qualquer coisa.

Falava sem olhar para mim, fingindo interessar‑se menos pelo nosso diálogo do que pela vida que passava pela janela.

‑ Não sei por que insiste tanto, se sabe muito bem que não me vou render ‑ disse‑lhe.

Por instantes olhou‑me nos olhos e perguntou‑me, intrigada:

‑ Por que achas que sei?

‑ Porque a senhora e eu somos iguais ‑ disse.

O comboio fez uma paragem numa estação sem povoado e pouco depois passou em frente da única quinta bananeira do caminho que tinha o nome escrito no portal: Macondo. Aquela palavra chamara‑me a atenção desde as primeiras viagens com o meu avô, mas só em adulto descobri que me agradava a sua ressonância poética. Nunca ouvi dizer a ninguém nem me interroguei sequer sobre o que significava. Usara‑a já em três livros como nome de uma povoação imaginária quando fiquei a saber por uma enciclopédia casual que é uma árvore dos trópicos parecida com a ceiba, que não dá flores nem frutos, e cuja madeira esponjosa serve para fazer canoas e esculpir apetrechos de cozinha. Mais tarde descobri na Enciclopédia Britânica que no Tanganhica existe a etnia errante dos makondos e pensei que podia ser aquela a origem da palavra. Mas nunca o averiguei nem conheci a árvore, pois muitas vezes perguntei por ela na zona bananeira e ninguém me soube dizer. Talvez nunca tenha existido.

O comboio passava às onze pela quinta Macondo e dez minutos depois parava em Aracataca. No dia em que ia com a minha mãe para vender a casa, passou com uma hora e meia de atraso. Eu estava na retrete quando começou a acelerar e entrou pela janela partida um vento ardente e seco, envolto com o estrépito das velhas carruagens e o apito espavorido da locomotiva. O coração dava‑me saltos no peito e uma náusea glacial gelou‑me as entranhas. Saí a toda a pressa, empurrado por um pavor semelhante ao que se sente com um tremor de terra, e encontrei a minha mãe imperturbável no seu lugar, enumerando em voz alta os lugares que via passar pela janela como rajadas instantâneas da vida que foi que nunca mais voltaria a ser.

‑ Estes são os terrenos que venderam ao teu pai com a história de que havia ouro ‑ disse.

Passou como uma exalação a casa dos professores adventistas, com o seu jardim florido e um letreiro no portal: The sun shines for all.

‑ Foi a primeira coisa que aprendeste em inglês ‑ disse a minha mãe.

‑ A primeira, não ‑ disse‑lhe: ‑ A única.

Passou a ponte de cimento e a vala com as suas águas turvas, de quando os gringos desviaram o rio a fim de o levarem para as plantações.

‑ O bairro das mulheres da vida, onde os homens amanheciam dançando a cumbiamba (Cumbiamba ou cumbia ‑ dança popular em que uma das figuras se caracteriza pelos dançarinos levarem uma vela acesa na mão. (N. T.)) com maços de notas acesos em vez de velas ‑ disse ela.

Os bancos do passeio central, as amendoeiras oxidadas pelo sol, o parque da escolinha montessoriana onde aprendi a ler. Por um instante, a imagem total da aldeia no luminoso domingo de Fevereiro resplandeceu na janela.

‑ A estação! ‑ exclamou a minha mãe. ‑ Como deve ter mudado o mundo que já ninguém espera o comboio.

Então a locomotiva acabou de apitar, diminuiu a marcha e deteve‑se com um longo lamento. A primeira coisa que me impressionou foi o silêncio. Um silêncio material que teria podido identificar com os olhos vendados entre os outros silêncios do mundo.

A reverberação do calor era tão intensa que se via tudo como através de um vidro ondulante. Não havia qualquer memória de vida humana até onde a vista alcançava, nem nada que não estivesse coberto por um leve orvalho de pó ardente. A minha mãe permaneceu ainda uns minutos no assento, olhando a aldeia morta e estendida nas ruas desertas e por fim exclamou, aterrada:

‑ Deus meu!

Foi a única coisa que disse antes de descer.

Enquanto o comboio permaneceu ali, tive a sensação de que não estávamos sós por completo. Mas quando arrancou, com um apito instantâneo e angustioso, a minha mãe e eu ficámos desamparados sob o sol infernal e toda a tristeza da aldeia nos caiu em cima. Mas não dissemos nada um ao outro. A velha estação de madeira e telhado de zinco com uma varanda corrida era uma espécie de versão tropical das que conhecíamos pelos filmes de cowboys. Atravessámos a estação abandonada, cujos ladrilhos começavam a partir‑se devido à pressão da erva, e mergulhámos no marasmo da sesta, procurando sempre a protecção das amendoeiras.

Desde pequeno que detestava aquelas sestas inertes porque não sabíamos o que fazer. «Calem‑se, que estamos a dormir», sussurravam os adormecidos sem despertar. Os armazéns, as repartições públicas, as escolas, fechavam ao meio‑dia e só voltavam a abrir um pouco depois das três. O interior das casas ficava a flutuar num limbo de torpor. Em algumas, era tão insuportável que penduravam as redes no pátio ou encostavam tamboretes à sombra das amendoeiras e dormiam sentados em plena rua. Só permaneciam abertos o hotel em frente da estação, o respectivo bar e salão de bilhar, e o posto do telégrafo por trás da igreja. Era tudo idêntico às recordações, mas mais reduzido e pobre e arrasado por um vendaval de fatalidade as mesmas casas carcomidas, os telhados de zinco perfurados pelo óxido, o passeio central com os escombros dos bancos de granito e as amendoeiras tristes, e tudo transfigurado por aquele pó invisível e ardente que enganava a vista e calcinava a pele. O paraíso privado da companhia bananeira, do outro lado da via‑férrea, já sem a cerca de arame electrificado, era um vasto matagal sem palmeiras, com as casas destruídas entre as papoilas e as ruínas do hospital incendiado. Não havia uma porta, uma frincha de uma parede, um rasto humano que não tivesse dentro de mim uma ressonância sobrenatural.

A minha mãe avançava muito direita, com o seu passo ligeiro, mal transpirando dentro do fato de luto e num silêncio absoluto, mas a sua palidez mortal e o perfil afilado denunciavam o que se passava dentro dela. No fim do passeio central vimos o primeiro ser humano: uma mulher pequena, de aspecto pobre, que surgiu na esquina de Jacobo Beracaza e passou ao nosso lado com uma panelinha de peltre (Peltre ‑ liga de zinco, chumbo e estanho. (N. T.)) cuja tampa mal colocada marcava o compasso do seu andar. A minha mãe sussurrou‑me sem a olhar:

‑ É a Vita.

Eu tinha‑a reconhecido. Trabalhou desde pequena na cozinha dos meus avós e por muito que tivéssemos mudado ter‑nos‑ia reconhecido se se tivesse dignado olhar para nós. Mas não: passou noutro mundo. Ainda hoje me interrogo se a Vita não teria morrido muito antes daquele dia.

Quando virámos a esquina, o pó ardia‑me nos pés por entre as tiras das sandálias. A sensação de desamparo tornou‑se‑me insuportável. Então vi‑me a mim mesmo e vi a minha mãe, tal como vi em pequeno a mãe e a irmã do ladrão que Maria Consuegra matara com um tiro uma semana antes, quando tentava forçar a porta da sua casa.

Às três da madrugada despertara‑a o ruído de alguém que tentava forçar de fora a porta da rua. Levantou‑se sem acender a luz, procurou às apalpadelas no roupeiro um revólver arcaico que ninguém disparara desde a Guerra dos Mil Dias e localizou no escuro não apenas o lugar onde estava a porta mas também a altura exacta da fechadura. Então agarrou a arma com as duas mãos, fechou os olhos e apertou o gatilho. Nunca antes tinha disparado, mas o tiro acertou no alvo através da porta.

Foi o primeiro morto que vi. Quando passei para a escola, às sete da manhã, ainda estava o corpo estendido no passeio em cima de uma mancha de sangue seco, com o rosto destroçado pelo chumbo que lhe desfez o nariz e lhe saiu por uma orelha. Tinha uma camisa de flanela de marinheiro com riscas de cores, umas calças ordinárias com uma corda em vez de cinto, e estava descalço. A seu lado, no chão, encontraram a gazua artesanal com que tentara forçar a fechadura.

Os notáveis da aldeia vieram a casa de Maria Consuegra para lhe darem os pêsames por ter matado o ladrão. Fui lá nessa noite com o Papalelo e encontrámo‑la sentada numa poltrona de Manila que parecia um enorme pavão‑real de vime, no meio do fervor dos amigos que lhe ouviam a história mil vezes repetida. Todos estavam de acordo com ela em que tinha disparado por puro medo. Foi então que o meu avô lhe perguntou se tinha ouvido alguma coisa depois do disparo e ela respondeu que tinha sentido primeiro um grande silêncio, depois o som metálico da gazua ao cair no cimento do chão e em seguida uma voz mínima e dorida: «Ai, minha mãe!»

Ao que parecia, Maria Consuegra não tomara consciência daquele lamento angustioso até que o meu avô lhe fez a pergunta. Só então desatou a chorar.

Isto aconteceu na segunda‑feira. Na terça da semana seguinte, à hora da sesta, estava a jogar ao pião com Luís Carmelo Corrêa, o meu amigo mais antigo na vida, quando nos surpreendeu que os adormecidos acordassem antes do tempo e assomassem às janelas. Então vimos na rua deserta uma mulher de luto carregado com uma garota de uns doze anos que levava um ramo de flores murchas embrulhado num jornal. Protegiam‑se do sol abrasador com um guarda‑chuva preto, por completo alheias à curiosidade das pessoas que as viam passar. Eram a mãe e a irmã mais nova do ladrão morto, que levavam flores à sua campa.

Aquela visão perseguiu‑me durante muitos anos, como um sonho unânime que toda a aldeia viu da janela passar, até que o consegui exorcizar num conto. Mas a verdade é que não tive consciência do drama da mulher e da pequena, nem da sua dignidade imperturbável, até ao dia em que fui com a minha mãe para vender a casa e me surpreendi a mim mesmo andando pela mesma rua solitária e à mesma hora mortal.

‑ Sinto‑me como se fosse o ladrão ‑ disse.

A minha mãe não me entendeu. Mais ainda: quando passámos em frente da casa de Maria Consuegra, nem sequer olhou para a porta onde ainda se notava o remendo da madeira no buraco da bala. Anos depois, rememorando com ela aquela viagem, verifiquei que se lembrava da tragédia mas teria dado a alma para esquecê‑la. Isso foi ainda mais evidente quando passámos em frente da casa onde viveu D. Emilio, mais conhecido como o Belga, um veterano da Primeira Guerra Mundial que perdera o uso de ambas as pernas num campo minado da Normandia e que num Domingo de Pentecostes se pôs a salvo dos tormentos da memória com uma defumação de cianeto de ouro.

Eu não tinha mais de seis anos, mas lembro‑me como se tivesse sido ontem a barafunda que causou a notícia às sete da manhã. Tão memorável foi que, quando voltávamos à aldeia para vender a casa, a minha mãe quebrou por fim o seu mutismo ao cabo de vinte anos.

‑ O pobre Belga ‑ suspirou. ‑ Como disseste, nunca mais voltou a jogar xadrez.

O nosso propósito era irmos directos à casa. No entanto, quando estávamos apenas a um quarteirão, a minha mãe deteve‑se de chofre e virou na esquina anterior.

‑ Mais vale irmos por aqui ‑ disse‑me. E como quis saber porquê, respondeu: ‑ Porque tenho medo.

Assim soube também a razão da minha náusea: era medo, e não apenas de enfrentar os meus fantasmas, mas medo de tudo. De maneira que seguimos por uma rua paralela para fazer um rodeio cujo único motivo era não passar pela nossa casa. «Não teria tido coragem para a ver sem antes falar com alguém», dir‑me‑ia depois a minha mãe. Assim foi. Levando‑me quase a reboque, entrou sem qualquer aviso na farmácia do doutor Alfredo Barboza, uma casa de esquina a menos de cem passos da nossa.

Adriana Berdugo, a mulher do doutor, estava a coser tão abstraída na sua primitiva Domestic de manivela que não sentiu quando a minha mãe chegou à frente dela e lhe disse quase num sussurro:

‑ Comadre.

Adriana ergueu os olhos alterados pelas grossas lentes de presbita, tirou‑os, vacilou um instante e levantou‑se de um salto com os braços abertos e um gemido:

‑ Ai, comadre!

A minha mãe estava já atrás do balcão e, sem dizerem mais nada, abraçaram‑se a chorar. Fiquei a olhar para elas de fora do balcão, sem saber o que fazer, comovido pela certeza de que aquele longo abraço de lágrimas silenciosas era algo irreparável que estava a acontecer para sempre na minha própria vida.

A farmácia fora a melhor nos tempos da companhia bananeira, mas do antigo fornecimento já não restavam nos armários despidos senão uns quantos boiões de loiça marcados mm letras doiradas. A máquina de coser, o almofariz, o caduceu, o relógio de pêndulo ainda vivo, o linóleo do juramento hipocrático, as varetas de madeira desirmanadas, todas as coisas que vira em pequeno continuavam a ser as mesmas e estavam no mesmo lugar, mas transfiguradas pela ferrugem do tempo.

A própria Adriana era uma vítima. Embora usasse como dantes um vestido de grandes flores tropicais, já mal se lhe notava algo dos ímpetos e da graça que a tornara célebre até uma avançada maturidade. A única coisa intacta em seu redor era o cheiro da valeriana, que enlouquecia os gatos e que continuei a evocar para o resto da minha vida com um sentimento de naufrágio.

Quando Adriana e a minha mãe ficaram sem lágrimas, ouviu‑se uma tosse espessa e breve por trás do tabique de madeira que nos separava das traseiras do estabelecimento. Adriana recuperou algo da sua graça de outra época e falou para ser ouvida através do tabique.

‑ Doutor ‑ disse. ‑ Adivinha quem está aqui.

Uma voz granulosa de homem duro perguntou do outro lado sem interesse:

‑ Quem?

Adriana não respondeu e fez‑nos sinal para passarmos às traseiras. Um terror da infância paralisou‑me de repente e fiquei com a boca cheia de uma saliva lívida, mas entrei com a minha mãe no espaço colorido que antes fora laboratório de farmácia e tinha sido adaptado a quarto de dormir de emergência.

Ali estava o doutor Alfredo Barboza, mais velho do que todos os homens e todos os animais velhos da terra e da água, estendido de barriga para cima na sua eterna rede de bardana, sem sapatos e com o lendário pijama de algodão cru que mais parecia uma túnica de penitente. Tinha o olhar fixo no tecto, mas quando nos sentiu entrar voltou a cabeça e fitou‑nos com os seus diáfanos olhos amarelos, até que acabou por reconhecer a minha mãe.

‑ Luisa Santiaga! ‑ exclamou.

Sentou‑se na rede com um cansaço de móvel antigo, humanizou‑se por completo e cumprimentou‑nos com um rápido aperto da sua mão ardente. Notou a minha impressão e disse‑me: «Há um ano que tenho uma febre essencial.» Então deixou a rede, sentou‑se na cama e disse‑nos de um só fôlego:

‑ Vocês não podem imaginar pelo que passou esta aldeia. Aquela única frase, que resumiu toda uma vida, bastou para que o visse como talvez sempre tenha sido: um homem solitário e triste. Era alto, esquálido, com uma bela cabeleira metálica cortada de qualquer maneira e uns olhos amarelos e intensos que tinham sido o mais temível dos terrores da minha infância. À tarde, quando voltávamos da escola, trepávamos à janela do seu quarto de dormir atraídos pela fascinação do medo. Ali estava, abanando‑se na rede com fortes balanços para aliviar o calor. O jogo consistia em olhá‑lo com fixidez até que ele dava conta e se voltava para nos olhar de imediato com os seus olhos ardentes.

Vira‑o pela primeira vez teria cinco ou seis anos, numa manhã em que me introduzi, furtivo, no quintal das traseiras de sua casa, com outros companheiros de escola, para roubar as mangas enormes das suas árvores. De repente, abriu‑se a porta da latrina de tábuas construída num canto do pátio e saiu ele, amarrando os calções de pano. Vi‑o como uma aparição do outro mundo, com um camisão branco de hospital, pálido e ósseo, e aqueles olhos amarelos como de cão do inferno que me olharam para sempre. Os outros fugiram pelas frinchas, mas eu fiquei petrificado pelo seu olhar imóvel. Olhou para as mangas que eu acabava de arrancar da árvore e estendeu‑me a mão.

‑ Dá‑mas! ‑ ordenou‑me, e acrescentou mirando‑me de cima a baixo com grande desprezo: ‑ Ratoneirito de pátio.

Atirei as mangas a seus pés e fugi espavorido.

Foi o meu fantasma pessoal. Se andava só, fazia um longo rodeio para não passar pela sua casa. Se ia com adultos, atrevia‑me apenas a uma olhadela furtiva para a farmácia. Via Adriana condenada a prisão perpétua na máquina de coser por trás do balcão, e via‑o a ele pela janela do quarto de dormir, abanando‑se com grandes balanços na rede e essa simples visão me arrepiava a pele.

Chegara à aldeia no princípio do século, entre os inúmeros venezuelanos que conseguiam fugir pela fronteira de La Guajira ao despotismo feroz de Juan Vicente Gómez. O doutor fora um dos primeiros arrastados por duas forças contrárias: a ferocidade do déspota do seu país e a ilusão da bonança bananeira no nosso. Desde a sua chegada, marcou posição pelo seu olho clínico ‑ como se dizia nessa época ‑ e pelas boas maneiras da sua alma. Foi um dos amigos mais assíduos da casa dos meus avós, onde a mesa estava sempre posta sem se saber quem chegava no comboio. A minha mãe foi madrinha do seu filho mais velho e o meu avô ensinou‑o a voar com as suas primeiras asas. Cresci entre eles, como continuei a crescer depois entre os exilados da Guerra Civil espanhola.

Os últimos vestígios do medo que me causava em pequeno aquele pária esquecido dissiparam‑se depressa enquanto a minha mãe e eu, sentados junto da sua cama, escutávamos os pormenores da tragédia que se abatera sobre a povoação.

Tinha um poder de evocação tão intenso que cada coisa que contava parecia tornar‑se visível no quarto rarefeito pelo calor. A origem de todas as desgraças, como era evidente, fora a matança dos operários pela força pública, mas ainda persistiam dúvidas sobre a verdade histórica: três mortos ou três mil? Talvez não tivessem sido tantos, disse ele, mas cada um aumentava o número de acordo com a sua própria dor. Agora a companhia tinha‑se ido para todo o sempre.

‑ Os gringos nunca voltam ‑ concluiu.

A única coisa certa era que levaram tudo: o dinheiro, as brisas de Dezembro, a faca do pão, o trovão das três da tarde, o aroma dos jasmins, o amor. Apenas ficaram as amendoeiras poeirentas, as ruas reverberantes, as casas de madeira e telhados de zinco oxidado com as suas gentes taciturnas, devastadas pelas recordações.

A primeira vez que o doutor reparou em mim naquela tarde foi ao ver‑me surpreendido pela crepitação como uma chuva de gotas dispersas no telhado de zinco. «São as auras ‑ disse‑me. ‑ Passam todo o dia a passear pelos telhados.» Depois, apontou com o indicador lânguido para a porta fechada e concluiu:

‑ De noite é pior, porque se sentem os mortos, que andam à solta por essas ruas.

Convidou‑nos a almoçar e não havia inconveniente, pois o negócio da casa só precisava de ser formalizado. Os próprios inquilinos eram os compradores e os pormenores tinham sido acordados por telégrafo. Teríamos tempo?

‑ De sobra ‑ disse Adriana. ‑ Agora nem sequer se sabe quando volta o comboio.

Partilhámos portanto com eles uma refeição crioula, cuja simplicidade não tinha nada que ver com a pobreza, mas sim com uma dieta de sobriedade que ele seguia e aconselhava, não só para a mesa mas para todos os actos da vida. Desde que provei a sopa tive a sensação de que todo o mundo adormecido despertava na minha memória. Sabores que tinham sido meus na infância e que perdera desde que me fui embora da aldeia reapareciam intactos com cada colherada e apertavam‑me o coração.

Desde o princípio da conversa que me senti diante do doutor com a mesma idade que tinha quando lhe fazia partidas pela janela, de modo que me intimidou quando se dirigiu a mim com a seriedade e o afecto com que falava à minha mãe. Quando era pequeno, em situações difíceis, procurava dissimular a minha atrapalhação com um pestanejar rápido e contínuo. Aquele reflexo incontrolável voltou‑me de imediato quando o doutor olhou para mim. O calor tornara‑se insuportável. Permaneci à margem da conversa durante um bocado, perguntando a mim mesmo como era possível que aquele idoso afável e nostálgico tivesse sido o terror da minha infância. De súbito, ao cabo de uma longa pausa e por qualquer referência banal, olhou‑me com um sorriso de avô.

‑ Com que então tu és o grande Gabito ‑ disse‑me. ‑ O que estudas?

Dissimulei a atrapalhação com um relato espectral dos meus estudos: bacharelato (O bacharelato corresponde ao ensino secundário em Portugal. (N. T.) completo e bem classificado num internato oficial, dois anos e uns meses de Direito caótico, jornalismo empírico. A minha mãe ouviu‑me e, em seguida, procurou o apoio do doutor.

‑ Imagine, compadre ‑ disse ‑, quer ser escritor. Os olhos do doutor resplandeceram‑lhe no rosto

‑ Que maravilha, comadre! ‑ exclamou. ‑ É um dom do céu. ‑ E voltou‑se para mim: ‑ Poesia?

‑ Romance e conto ‑ respondi, com a alma por um fio. Ele entusiasmou‑se:

‑ Leste Dona Barbara?

‑ Com certeza ‑ respondi ‑, e quase tudo o restante de Rómulo Gallegos.

Como que ressuscitado por um entusiasmo súbito, contou‑nos que o conhecera numa conferência que fez em Maracaibo e lhe parecera um digno autor dos seus livros. A verdade é que naquele momento, com a minha febre de quarenta graus pelas sagas do Mississipi, começava a estar um pouco farto do romance vernáculo. Mas a comunicação tão fácil e cordial com o homem que fora o pavor da minha infância parecia‑me um milagre e preferi concordar com o seu entusiasmo. Falei‑lhe de «La Jirafa» ‑ a minha nota diária em El Heraldo ‑ e adiantei‑lhe a novidade que muito em breve pensávamos publicar uma revista na qual depositávamos grandes esperanças. Já mais seguro, contei‑lhe o projecto e até lhe antecipei o nome: Crónica.

Ele mirou‑me de cima a baixo.

‑ Não sei como escreves ‑ disse‑me ‑ mas já falas como escritor.

A minha mãe apressou‑se a explicar a verdade: ninguém se opunha a que fosse escritor, desde que fizesse uma carreira académica que me desse uma base firme. O doutor minimizou tudo e falou da carreira de escritor. Também ele teria querido sê‑lo, mas os pais, com os mesmos argumentos dela, obrigaram‑no a estudar Medicina quando não conseguiram que fosse militar.

‑ Pois veja lá, comadre ‑ concluiu. ‑ Médico sou, e aqui me tem, sem saber quantos dos meus doentes morreram pela vontade de Deus e quantos pelos meus remédios.

A minha mãe sentiu‑se perdida.

‑ O pior ‑ disse ‑ é que deixou de estudar Direito. Esqueceu-se de tantos sacrifícios que fizemos para o apoiar.

Ao doutor, pelo contrário, pareceu‑lhe a prova esplêndida de uma vocação arrasadora: a única força capaz de disputar foros ao amor. E em especial a vocação artística, a mais misteriosa de todas, à qual se consagra a vida inteira sem esperar nada dela.

‑ É algo que trazemos dentro desde que nascemos e contrariá‑la é o pior para a saúde ‑ afirmou ele. E rematou, com um encantador sorriso de mação irredutível: ‑ É como a vocação de padre.

Fiquei alucinado pela forma como explicou o que eu nunca tinha conseguido. A minha mãe deve ter sentido o mesmo, porque me contemplou com um silêncio lento e se rendeu à sua sorte.

‑ Qual será a melhor forma de dizer tudo isto ao teu pai?

‑ perguntou‑me.

‑ Tal como acabámos de ouvir ‑ disse‑lhe.

‑ Não, assim não dará resultado ‑ disse ela. E ao fim de alguma reflexão, concluiu: ‑ Mas não te preocupes, hei‑de encontrar uma boa maneira de lho dizer.

Não sei se assim fez, ou de que outro modo, mas ali acabou o debate. O relógio cantou a hora com duas badaladas como duas gotas de vidro. A minha mãe sobressaltou‑se. «Deus meu ‑ disse ‑, tinha‑me esquecido para que viemos.» E pôs‑se em pé:

‑ Temos que ir.

A primeira visão da casa, no passeio em frente, tinha muito pouco que ver com a minha recordação e nada com as minhas nostalgias. Tinham sido cortadas pela raiz as duas amendoeiras tutelares que durante anos foram um sinal de identidade inequívoca e a casa ficou à intempérie.

O que restava sob o Sol de fogo não tinha mais de trinta metros de fachada: metade de material e telhado de telhas que faziam pensar numa casa de bonecas, e a outra metade de tábuas por aparelhar. A minha mãe bateu muito de leve na porta fechada, depois com mais força, e perguntou pela janela:

‑ Não há gente?

A porta entreabriu‑se com muita lentidão e uma mulher perguntou da sua penumbra:

‑ O que quer?

A minha mãe respondeu com uma autoridade talvez inconsciente:

‑ Sou Luisa Márquez.

Então a porta da rua acabou de se abrir e uma mulher vestida de luto, ossuda e pálida, olhou‑nos de outra vida. Ao fundo da sala, um homem idoso balouçava‑se num cadeirão de inválido. Eram os inquilinos, que ao fim de muitos anos, tinham proposto comprar a casa, mas nem eles tinham aspecto de compradores nem a casa estava em estado de interessar a ninguém. De acordo com o telegrama que a minha mãe recebera, os inquilinos aceitavam abonar em dinheiro metade do preço mediante um recibo assinado por ela, e pagariam o resto quando fossem assinadas as escrituras no decurso do ano, mas ninguém se lembrava que houvesse uma visita prevista. Ao fim de uma longa conversa de surdos, a única coisa que ficou clara foi que não havia nenhum acordo. Constrangida pela insensatez e pelo calor infame, banhada em suor, a minha mãe deu uma olhadela em volta e escapou‑lhe com um suspiro:

‑ Esta pobre casa está nas últimas ‑ disse.

‑ Pior ‑ disse o homem. ‑ Se ainda não nos caiu em cima, foi pelo que temos gasto para a manter.

Tinham uma lista de reparações pendentes, além de outras tinham sido deduzidas na renda, a ponto de sermos nós que lhes devíamos dinheiro.

A minha mãe, que sempre foi de lágrima fácil, era também capaz de uma firmeza terrível para enfrentar as armadilhas da vida. Discutiu bem, mas eu não intervim porque desde o primeiro tropeço compreendi que os compradores tinham razão. Não ficava nada claro no telegrama sobre a data e o modo da venda e, pelo contrário, entendia‑se que devia ser combinada. Era uma situação típica da vocação conjectural da família. Podia imaginar como tinha sido a decisão, à mesa do almoço, e no mesmo instante em que chegou o telegrama. Sem contar comigo, eram dez irmãos com os mesmos direitos. No fim, a minha mãe reuniu uns pesos daqui e outros dali, fez a sua mala de estudante e abalou sem outros recursos que a passagem de regresso.

A minha mãe e a inquilina recapitularam tudo desde o início e, em menos de meia hora, tínhamos chegado à conclusão de que não haveria negócio. Entre outras razões inultrapassáveis, porque não nos lembrávamos de uma hipoteca que pesava sobre a casa e que só foi resolvida muitos anos depois, quando por fim se fez a venda a firme. Portanto, quando a inquilina tratou de repetir uma vez mais o mesmo argumento vicioso, a minha mãe cortou cerce com a sua vontade inabalável.

‑ A casa não se vende ‑ disse. ‑ Façamos de conta que aqui nascemos e aqui morremos todos.

Passámos o resto da tarde, enquanto não chegava o comboio de regresso, recolhendo nostalgias na casa fantasmal. Era toda nossa, mas só estava em serviço a parte alugada que dava para a rua, onde tinham estado os escritórios do avô. O resto era um esqueleto de tabiques carcomidos e telhados de zinco oxidado à mercê dos lagartos. A minha mãe, petrificada no umbral, deixou escapar uma exclamação terminante:

‑ Esta não é a casa!

Mas não disse qual, pois durante toda a minha infância descreviam‑na de tantas maneiras que eram pelo menos três casas que mudavam de forma e sentido conforme quem as contasse. A original, segundo ouvi da minha avó com o seu modo depreciativo, era um rancho de índios. A segunda, construída pelos avós, era de bahareque (Bahareque ‑ parede de tabique, entremeado com canas e barro. (N. T.)) e telhados de palma amarga, com uma saleta ampla e bem iluminada, uma sala de jantar em forma de terraço com flores de cores alegres, dois quartos, um pátio com um castanheiro gigantesco, uma horta bem plantada e um curral onde viviam as cabras em comunidade pacífica com os porcos e as galinhas. De acordo com a versão mais frequente, esta foi reduzida a cinzas por um foguete que caiu no telhado de palma durante as celebrações de um 20 de Julho, dia da Independência de sabe‑se lá que ano de tantas guerras. A única coisa que dela restou foram os solos de cimento e o bloco de dois compartimentos com uma porta para a rua, onde estiveram os escritórios nas diversas vezes em que o Papalelo foi funcionário público.

Sobre os escombros ainda quentes construiu a família o seu refúgio definitivo. Uma casa linear de oito compartimentos sucessivos, ao longo de um corredor exterior com um rebordo de begónias onde se sentavam as mulheres da família a bordar em bastidor e a conversar ao fresco da tarde. Os quartos eram simples e não se distinguiam entre si, mas bastou‑me um olhar para compreender que em cada um dos inumeráveis pormenores havia um instante crucial da minha vida.

O primeiro compartimento servia como sala de visitas e escritório pessoal do avô. Tinha uma secretária de cortina, uma poltrona giratória de molas, uma ventoinha eléctrica e uma estante vazia com um único livro enorme e descosido:

 

O dicionário da língua. A seguir ficava a oficina de ourivesaria, o avô passava as suas melhores horas fabricando os peixinhos de ouro, de corpo articulado e minúsculos olhos de esmeralda, que mais lhe davam de gozar do que de comer. Ali foram recebidas algumas personagens importantes, sobretudo políticos, desempregados públicos, veteranos de guerra. Entre eles, em diferentes ocasiões, dois visitantes históricos: os generais Rafael Uribe Uribe e Benjamín Herrera, que almoçaram em família. No entanto, o que a minha avó recordou de Uribe Uribe para o resto da sua vida foi a sua sobriedade à mesa: «Comia como um passarinho.»

O espaço comum do escritório e da oficina de ourivesaria estava vedado às mulheres por obra da nossa cultura caribenha, tal como o estavam as tascas da aldeia por ordem da lei. No entanto, com o tempo acabou por ser um quarto de hospital, onde morreu a tia Petra, e Wenefrida Márquez, irmã de Papalelo, passou os últimos meses de uma longa doença. Dali em diante começava o paraíso hermético das muitas mulheres residentes e ocasionais que passaram pela casa durante a minha infância. Eu fui o único varão que desfrutou dos privilégios dos dois mundos.

A sala de jantar era apenas uma zona alargada do corredor, com a varanda onde as mulheres da casa se sentavam a coser, e uma mesa para dezasseis comensais previstos ou inesperados que chegavam todos os dias no comboio do meio‑dia. A minha mãe contemplou dali os vasos quebrados das begónias, os restolhos podres e o tronco do jasmineiro carcomido pelas formigas e respirou fundo.

‑ Às vezes não podíamos respirar por causa do cheiro quente dos jasmins ‑ disse, olhando para o céu deslumbrante, e suspirou com toda a alma. ‑ No entanto, o que mais falta me fez desde então foi o trovão das três da tarde.

Impressionou‑me, porque também me lembrava do estampido único que nos despertava da sesta como um desabar de pedras, mas nunca tinha tido consciência de que fosse só às três.

Depois do corredor havia uma sala de receber reservada para ocasiões especiais, pois as visitas quotidianas eram recebidas com cerveja gelada no escritório, se eram homens, ou no corredor das begónias, se eram mulheres. Ali começava o mundo mítico dos quartos de dormir. Primeiro o dos avós, com uma porta grande para o jardim e uma gravura de flores de madeira com a data da construção: 1925. Ali, sem qualquer aviso, a minha mãe deu‑me a surpresa menos esperada com uma ênfase triunfal:

‑ E aqui nasceste tu!

Não o sabia até então, ou tinha esquecido, mas no quarto seguinte encontrámos o berço onde dormi até aos quatro anos e que a minha avó conservou para sempre. Tinha‑me esquecido dele, mas logo que o vi lembrei‑me de mim mesmo chorando aos gritos com o macaco de florzinhas azuis que acabava de estrear, para que alguém me viesse tirar a fralda cheia de cocó. Mal me conseguia manter em pé agarrado aos varões do berço, tão pequeno e frágil como a canastrinha de Moisés. Isto foi motivo frequente de discussão e troça de parentes e amigos, a quem a minha angústia daquele dia parece demasiado racional para uma idade tão precoce. E mais ainda quando insisti em que o motivo da minha ansiedade não era o asco das minhas próprias misérias, mas o receio de que se sujasse o macaco novo. Quer dizer que não se tratava de um preconceito de higiene mas de uma contrariedade estética e, pela forma como perdura na minha memória, creio que foi a minha primeira vivência de escritor.

Naquele quarto havia também um altar com santos de tamanho natural, mais realistas e tenebrosos do que os da igreja.

Ali dormiu sempre a tia Francisca Simodosea Mejía, uma prima‑irmã do meu avô, a quem chamávamos a tia Mamã, que vivia na casa como dona e senhora desde que lhe morreram os pais. Eu dormi na rede do lado, aterrado com o pestanejar dos santos por causa da lâmpada do Santíssimo que não foi apagada até à morte de todos, e também ali dormiu a minha mãe em solteira, atormentada pelo pavor dos santos.

Ao fundo do corredor havia dois quartos que me estavam proibidos. No primeiro, vivia a minha prima Sara Emilia Márquez, uma filha do meu tio Juan de Dios antes do seu casamento, que foi criada pelos avós. Além de uma distinção natural desde muito pequena, tinha uma personalidade forte que me abriu os primeiros apetites literários com uma maravilhosa colecção de contos de Calleja, ilustrados a cores, a que nunca me deu acesso por receio que lha pusesse fora de ordem. Foi a minha primeira e amarga frustração de escritor.

O último quarto era um depósito de trastes e baús reformados, que mantiveram desperta a minha curiosidade durante anos, mas que nunca me deixaram explorar. Soube mais tarde que ali estavam também os setenta baciozinhos que os meus avós compraram quando a minha mãe convidou as companheiras de curso a virem passar férias cá a casa.

Em frente desses dois aposentos, no mesmo corredor, ficava a cozinha grande, com fogareiros primitivos de pedras calcinadas e o grande forno de cozer da avó, padeira e doceira de profissão, cujos animaizinhos de caramelo saturavam o amanhecer com o seu aroma suculento. Era o reino das mulheres que viviam ou serviam na casa e cantavam em coro com a avó enquanto a ajudavam nos seus múltiplos trabalhos. Outra voz era a de Lorenzo, o Magnífico, o papagaio de cem anos herdado dos bisavós, que gritava palavras de ordem contra Espanha e cantava canções da Guerra da Independência.

Tão míope estava que tinha caído dentro da panela do sancocho (Sancocho ‑ espécie de cozido feito com carne, mandioca, banana e outros ingredientes. (N. T.)) e se salvara por milagre porque a água mal tinha começado a aquecer. Num 20 de Julho, às três da tarde, alvoroçou a casa com guinchos de pânico:

‑ O touro, o touro! Já lá vem o touro!

Na casa estavam apenas as mulheres, pois os homens tinham ido para as barreiras da festa nacional e pensaram que os gritos do papagaio não eram mais do que um delírio da sua demência senil. As mulheres da casa, que sabiam falar com ele, apenas entenderam o que estava a gritar quando um touro chimarrão fugido dos curros da praça irrompeu na cozinha com bramidos de navio e investindo às cegas contra os móveis da padaria e as panelas dos fogões. Eu ia em sentido contrário do furacão de mulheres espavoridas que me levantaram pelo ar e me fecharam com elas no quarto da despensa. Os bramidos do touro perdido na cozinha e o bater dos seus cascos no cimento do corredor faziam estremecer a casa. De repente, assomou por uma clarabóia de ventilação e o resfolegar de fogo do seu bafo e os grandes olhos injectados gelaram‑me o sangue. Quando os picadores o conseguiram levar para o curro, já começara na casa a paródia do drama, que se prolongou por mais de uma semana, com panelas intermináveis de café e pudins de casamento para acompanhar o relato mil vezes repetido e cada vez mais heróico das alvoraçadas sobreviventes.

O pátio não parecia muito amplo, mas tinha uma grande variedade de árvores, uma casa de banho geral sem telhado, com um reservatório de cimento para a água da chuva e uma plataforma elevada à qual se subia por uma frágil escada de cerca de três metros de altura. Ali estavam os dois grandes tonéis que o avô enchia ao amanhecer com uma bomba manual.

Mais adiante ficava a cavalariça de tábuas por aparelhar e os quartos do pessoal e, por último, o quintal das traseiras enorme, com árvores de fruta e a latrina única onde as índias do serviço despejavam de dia e de noite os baciozinhos da casa. A árvore mais frondosa e hospitaleira era um castanheiro à margem do mundo e do tempo, sob cujos ramos arcaicos deviam ter morrido a urinar mais de dois coronéis reformados das tantas guerras civis do século anterior.

A família chegara a Aracataca dezassete anos antes do meu nascimento, quando começavam as trapalhadas da United Fruit Company para ficar com o monopólio da banana. Traziam o filho Juan de Dios, de vinte e um anos, e as duas filhas, Margarita Maria Miniata de Alacoque, de dezanove, e Luisa Santiaga, a minha mãe, de cinco. Antes dela tinham perdido duas gémeas num aborto espontâneo aos quatro meses de gestação. Quando teve a minha mãe, a avó anunciou que seria o seu último parto, pois completara quarenta e dois anos. Quase meio século depois, com a mesma idade e em circunstâncias idênticas, a minha mãe disse o mesmo quando nasceu Eligio Gabriel, o seu filho número onze.

A mudança para Aracataca estava prevista pelos avós como uma viagem ao esquecimento. Levavam ao seu serviço dois índios guajiros (Guajiro/a ‑ natural de La Guajira, usado muitas vezes, por extensão, como camponês. (N. T.)) ‑ Alirio e Apolinar ‑ e uma índia ‑ Meme ‑ comprados na sua terra por cem pesos cada um quando a escravidão já tinha sido abolida. O coronel levava tudo o que era necessário para refazer o passado o mais longe possível das suas más recordações, perseguido pelo remorso sinistro de ter matado um homem num duelo de honra. Conhecia a região desde muito antes, quando passou rumo a Ciénaga em campanha de guerra e assistiu, na sua condição de intendente‑geral, à assinatura do tratado de Neerlandia.

A nova casa não lhes devolveu o sossego, porque o remorso era tão pernicioso que ainda havia de contaminar algum tataraneto extraviado. As evocações mais frequentes e intensas, com as quais tínhamos organizado uma versão ordenada, eram feitas pela avó Mina, já cega e meio louca. No entanto, no meio do rumor implacável da tragédia iminente, ela foi a única que não soube do duelo senão depois de consumado.

O drama foi em Barrancas, uma aldeia pacífica e próspera no sopé da Sierra Nevada, onde o coronel aprendeu com o pai e o avô o ofício do ouro e onde regressara para ficar quando foram assinados os tratados de paz. O adversário era um gigante dezasseis anos mais novo do que ele, liberal dos quatro costados, como ele, católico militante, agricultor pobre, casado há pouco, com dois filhos e um nome de homem bom: Medardo Pacheco. O mais triste para o coronel deve ter sido não se tratar de nenhum dos numerosos inimigos sem rosto que se lhe atravessaram à frente nos campos de batalha, mas um antigo amigo, co‑partidário e soldado seu na Guerra dos Mil Dias, que teve de enfrentar até à morte quando já ambos julgavam conquistada a paz.

Foi o primeiro caso da vida real que me revolveu os instintos de escritor e ainda não o pude esconjurar. Desde que tive uso da razão, apercebi‑me da magnitude e do peso que aquele drama tinha na nossa casa, mas os seus pormenores mantinham‑se entre brumas. A minha mãe, apenas com três anos, recordou‑o sempre como um sonho improvável. Os adultos embrulhavam‑no diante de mim para me confundirem e nunca consegui armar o enigma completo porque cada um, de ambos os lados, colocava as peças a seu modo. A versão mais fiável era que a mãe de Medardo Pacheco o instigara a vingar a sua honra, ofendida por um comentário infame que atribuíam ao meu avô. Este desmentiu‑o como uma invenção e deu satisfações públicas aos ofendidos, mas Medardo Pacheco persistiu no rancor e acabou por passar de ofendido a ofensor com um grave insulto ao avô sobre a sua conduta de liberal. Nunca soube ao certo qual foi. Ferido na sua honra, o avô desafiou‑o para um duelo até à morte sem data fixada.

Um testemunho exemplar da índole do coronel foi o tempo que deixou passar entre o desafio e o duelo. Resolveu os seus assuntos com um sigilo absoluto para garantir a segurança da sua família na única alternativa que lhe apresentava o destino: a morte ou a prisão. Começou por vender sem a menor pressa o pouco que lhe restou para subsistir depois da última guerra: a oficina de ourivesaria e uma pequena quinta que herdou do pai, na qual criava cabritos de sacrifício e cultivava uma parcela de cana‑de‑açúcar. Ao fim de seis meses, guardou no fundo de um armário o dinheiro que reunira e esperou em silêncio o dia que ele próprio havia determinado: 12 de Outubro de 1908, aniversário da descoberta da América.

Medardo Pacheco vivia nos arredores da aldeia, mas o avô sabia que não podia faltar naquela tarde à procissão da Virgen del Pilar. Antes de sair em busca dele, escreveu à mulher uma carta breve e terna na qual lhe dizia onde tinha escondido o dinheiro e lhe dava algumas instruções finais sobre o futuro dos filhos. Deixou‑a debaixo da almofada comum, onde sem dúvida a encontraria a mulher quando se deitasse para dormir e, sem qualquer tipo de adeuses, saiu ao encontro da sua hora má.

Mesmo as versões menos válidas coincidem em que era uma segunda‑feira típica do Outubro caribenho, com uma chuva triste de nuvens baixas e um vento funerário. Medardo Pacheco, vestido de domingo, acabava de entrar num beco sem saída quando o coronel Márquez lhe saiu ao caminho. Ambos estavam armados. Anos depois, nas suas divagações lunáticas, a minha avó costumava dizer: «Deus deu a Nicolasito a ocasião para perdoar a vida a esse pobre homem, mas não a soube aproveitar.» Talvez pensasse assim porque o coronel lhe disse que tinha visto um relâmpago de pesar nos olhos do adversário apanhado de surpresa. Também lhe disse que quando o enorme corpo de ceiba (Ceiva ‑ árvore americana de cerca de 50 metros de altura, folhas palmeadas e frutos cónicos cujos pêlos que acompanham as sementes dão uma sumaúma ordinária usada para encher almofadas. (N. T.)) caiu sobre os matos, emitiu um gemido sem palavras, «como o de um gatinho molhado». A tradição oral atribuiu ao Papalelo uma frase retórica no momento de se entregar ao alcaide: «A bala da honra venceu a bala do poder.» É uma sentença fiel ao estilo liberal da época, mas não a consegui conciliar com a maneira de ser do avô. A verdade é que não houve testemunhas. Uma versão autorizada teriam sido os depoimentos judiciais do avô e dos seus contemporâneos de ambos os lados, mas do expediente, se o houve, não restaram nem as luzes. Das numerosas versões que ouvi até hoje, não encontrei duas que coincidissem.

O facto dividiu as famílias da aldeia, inclusive a do morto. Uma parte desta propôs‑se vingá‑lo, enquanto outros receberam em suas casas Tranquilina Iguarán com os filhos, até que amainaram os riscos de uma vingança. Estes pormenores impressionavam‑me tanto na infância que não só assumi o peso da culpa ancestral como se fosse minha, como ainda agora, enquanto escrevo, sinto mais compaixão pela família do morto do que pela minha.

Transferiram o Papalelo para Riohacha para maior segurança e, mais tarde, para Santa Marta, onde o condenaram a um ano: metade em reclusão e a outra em regime aberto. Logo que ficou livre, deslocou‑se com a família durante pouco tempo para a povoação de Ciénaga, depois para Panamá, onde teve outra filha com um amor ocasional e, por fim, para a insalubre e arisca corregedoria de Aracataca, com o emprego de colector de impostos departamental. Nunca mais andou armado na rua, nem mesmo nos piores tempos da violência bananeira, e só teve o revólver debaixo da almofada para defender a casa.

Aracataca estava muito longe de ser o remanso com que sonhavam depois do pesadelo de Medardo Pacheco. Nascera como um amontoado de casas chimila (Chimila ‑ índios indígenas da Colômbia. (N. T.)) e entrou na história com o pé esquerdo como uma remota corregedoria sem Deus nem lei do município de Ciénaga, mais degradado do que enriquecido pela febre da banana. O seu nome não é de aldeia mas de rio, que se diz ara em língua chimila, e Cataca, que é a palavra com que a comunidade conhecia o que mandava. Por isso entre os nativos não a chamamos Aracataca mas como deve ser: Cataca.

Quando o avô procurou entusiasmar a família com a fantasia de que ali o dinheiro corria pelas ruas, Mina dissera: «O dinheiro é o cagalhão do diabo.» Para a minha mãe, foi o reino de todos os terrores. O mais antigo que recordava era a praga de gafanhotos que devastou todas as culturas quando ainda era muito pequena. «Ouviam‑se passar como um vento de pedras», disse‑me quando fomos vender a casa. A população aterrorizada teve de entrincheirar‑se nos seus quartos e o flagelo só pôde ser derrotado por artes de feitiçaria.

Em qualquer altura éramos surpreendidos por uns furacões secos que destelhavam cabanas e arremetiam contra as bananeiras novas e deixavam a aldeia coberta de um pó astral. No Verão, abatiam‑se sobre o gado umas secas terríveis, ou caíam no Inverno uns aguaceiros universais que deixavam as ruas transformadas em rios revoltos. Os engenheiros gringos navegavam em botes de borracha, por entre colchões afogados e vacas mortas. A United Fruit Company, cujos sistemas artificiais de rega eram responsáveis pelo desvario das águas, desviou o leito do rio quando o mais grave daqueles dilúvios desenterrou os corpos do cemitério.

A mais sinistra das pragas, no entanto, era a humana. Um comboio que parecia de brincar lançou nas suas areias abrasadoras uma revoada de aventureiros de todo o mundo que tomaram à mão armada o poder da rua. A sua estouvada prosperidade arrastava consigo um crescimento demográfico e uma desordem social descontrolados. Estava apenas a cinco léguas da colónia penal de Buenos Aires, sobre o rio Fundación, cujos reclusos costumavam fugir aos fins‑de‑semana para espalhar o terror em Aracataca. Com nada nos parecíamos tanto como com as povoações emergentes dos filmes do Oeste, desde que as cabanas de palma e canabrava (Canabrava ‑ gramínea silvestre muito dura, semelhante à cana, com cujos talos se fazem tabiques e que são utilizadas nos telhados para segurar as telhas. (N. T.)) dos Chimilas começaram a ser substituídas pelas casas de madeira da United Fruit Company, com telhados de zinco de duas águas, janelas de rede e alpendres enfeitados com trepadeiras de flores poeirentas. No meio daquela avalanche de caras desconhecidas, de toldos na via pública, de homens a mudar de roupa na rua, de mulheres sentadas nos baús com os guarda‑chuvas abertos e de mulas e mulas e mulas a morrer de fome nas cavalariças do hotel, os que tinham chegado primeiro eram os últimos. Éramos os forasteiros de sempre, os adventícios.

As matanças não eram apenas devidas às brigas dos sábados, uma tarde qualquer, ouvimos gritos na rua e vimos passar um homem sem cabeça montado num burro. Tinha sido decapitado a macheie nos ajustes de contas das quintas bananeiras e a cabeça fora arrastada pelas correntes geladas do canal rega. Nessa noite, ouvi da minha avó a explicação de sempre: «Uma coisa tão horrível só pode ser feita por um cachaço.»

Os Cachaços eram os nativos do planalto e não só os distinguíamos do resto da humanidade pelas maneiras lânguidas e dicção afectada, como pelas suas manias de emissários da Divina Providência. Essa imagem chegou a ser tão detestável que, depois das repressões ferozes das greves bananeiras por militares do interior, não chamávamos aos homens da tropa soldados mas sim cachaços. Víamo‑los como os únicos usufrutuários do poder político e muitos deles comportavam‑se como se o fossem. Só assim se explica o horror de «A noite negra de Aracataca», uma matança lendária com um rasto tão incerto na memória popular que não há evidência certa de se na realidade aconteceu.

Começou num sábado pior do que os outros, quando um nativo de bem cuja identidade não passou à história entrou numa tasca e pediu um copo de água para um garoto que levava pela mão. Um forasteiro, que bebia sozinho ao balcão, quis obrigar o pequeno a beber um copo de rum em vez da água. O pai impediu‑o, mas o forasteiro insistiu na sua, até que o garoto, assustado e sem querer, lhe derramou o copo com a mão. O forasteiro, sem hesitar, matou‑o com um tiro.

Foi outro dos fantasmas da minha infância. Papalelo recordava‑mo a miúdo, quando entrávamos juntos nas tascas para tomar um refresco, mas de um modo tão irreal que nem ele próprio parecia acreditar. Deve ter ocorrido pouco depois de chegar a Aracataca, pois a minha mãe só se lembrava do caso pelo espanto que suscitava nos mais velhos. Do agressor apenas se soube que falava com o sotaque arrebicado dos Andinos, de modo que as represálias da aldeia não foram apenas contra ele mas contra qualquer dos numerosos e aborrecidos forasteiros que falavam com o mesmo sotaque. Quadrilhas de nativos armados com machetes de safra saíram às ruas envoltas nas trevas, agarravam o vulto invisível que surpreendiam no escuro e ordenavam‑lhe:

‑ Fale!

Apenas pela dicção, esquartejavam‑no com os machetes, sem ter em conta a impossibilidade de serem justos entre maneiras de falar tão diversas. D. Rafael Quintero Ortega, marido da minha tia Wenefrida Márquez, o mais cru e querido dos cachaços, esteve quase a celebrar os cem anos de vida porque o meu avô o fechou numa despensa até que os ânimos se acalmaram.

A desdita familiar culminou, ao fim de vivermos em Aracataca há dois anos, com a morte de Margarita Maria Miniata, que era a luz da casa. O seu daguerreótipo esteve exposto na sala durante anos e o seu nome foi‑se repetindo de geração em geração como mais um dos muitos sinais de identidade familiar. As gerações recentes não parecem comovidas por aquela infanta de saias franzidas, botinas brancas e uma longa trança até à cintura, que nunca farão coincidir com a imagem retórica de uma bisavó, mas tenho a impressão de que, sob o peso dos remorsos e das ilusões frustradas de um mundo melhor, aquele estado de alarme perpétuo era para os meus avós o mais parecido com a paz. Até à morte continuaram a sentir‑se forasteiros em qualquer parte.

Eram‑no, de facto, mas nas multidões do comboio que nos chegaram do mundo era difícil fazer distinções imediatas. Com o mesmo impulso dos meus avós e da sua prole tinham chegado os Fergusson, os Durán, os Beracaza, os Daconte, os Corrêa, em busca de uma vida melhor. Com as revoltas e avalanches continuaram a chegar os italianos, os canários, os sírios ‑ a quem chamávamos turcos ‑ infiltrados pelas fronteiras da Província em busca da liberdade e de outros modos de viver, perdidos nas suas terras. Havia de todos os aspectos e condições. Alguns eram fugitivos da Ilha do Diabo ‑ a colónia penal de França nas Guianas ‑, mais perseguidos pelas suas ideias do que por crimes comuns. Um deles, René Belvenoit, foi um jornalista francês condenado por motivos políticos, que passou como fugitivo pela zona bananeira e revelou num livro magistral os horrores do seu cativeiro. Graças a todos ‑ bons e maus ‑ Aracataca foi desde as suas origens um país sem fronteiras.

Mas a colónia inolvidável para nós foi a venezuelana, numa de cujas casas tomavam banho, atirando baldes de água um ao outro nos glaciais reservatórios de rega do amanhecer, dois estudantes adolescentes em férias: Rómulo Betancourt e Raul Leoni, que meio século depois seriam presidentes sucessivos do seu país. Entre os venezuelanos, a mais próxima de nós foi misia (Misia ‑ tratamento de cortesia equivalente a «senhora». (N. T.)) Juana de Freytes, uma matrona vistosa que possuía o dom bíblico da narração. O primeiro conto formal que conheci foi «Genoveva de Brabante» e ouvi‑o a ela em conjunto com as obras‑primas da literatura universal, por si reduzidas a contos infantis: a Odisseia, Orlando Furioso, D. Quixote, o Conde de Monte Cristo e muitos episódios da Bíblia.

A casta do avô era uma das mais respeitáveis mas também a menos poderosa. No entanto, distinguia‑se por uma respeitabilidade reconhecida mesmo pelas herarquias nativas da companhia bananeira. Era a dos veteranos liberais das guerras civis, que ali ficaram depois dos dois últimos tratados, com o bom exemplo do general Benjamín Herrera, em cuja quinta da Neerlândia se ouviam pelas tardes as valsas melancólicas do seu clarinete de paz.

A minha mãe tornou‑se mulher naquele lugar de morte e ocupou o espaço de todos os amores depois que o tifo levou Margarita Maria Miniata.

Também ela era enfermiça. Crescera numa infância incerta de febres terçãs, mas quando se curou Já última foi de todo e para sempre, com uma saúde que lhe permitiu celebrar os noventa e sete anos com onze filhos seus e mais quatro do marido, e com sessenta e cinco netos, oitenta e oito bisnetos e catorze tetranetos. Sem contar os que nunca se souberam. Morreu de morte natural, a 9 de Junho de 2002, às oito e meia da noite, quando já nos estávamos a preparar para celebrar o seu primeiro século de vida e no mesmo dia e quase à mesma hora em que pus o ponto final destas memórias.

Nascera em Barrancas, a 25 de Julho de 1905, quando a família mal começava a recompor‑se do desastre das guerras. Puseram‑lhe o primeiro nome em memória de Luisa Mejía Vidal, a mãe do coronel, que fazia naquele dia um mês que morrera. O segundo calhou‑lhe em sorte por ser o dia do apóstolo Santiago, o Maior, decapitado em Jerusalém. Ocultou esse nome durante metade da vida, porque lhe parecia masculino e aparatoso, até que um filho infiel a denunciou num romance.

Foi uma aluna aplicada salvo na aula de piano, que a mãe lhe impôs porque não podia conceber uma menina decente que não fosse uma pianista virtuosa. Luisa Santiaga estudou‑o por obediência durante três anos e abandonou‑o num dia pelo tédio dos exercícios diários no bochorno da sesta. No entanto, a única virtude que lhe serviu na flor dos seus vinte anos foi a sua força de carácter, quando a família descobriu que estava arrebatada de amor pelo jovem e altivo telegrafista de Aracataca.

A história desses amores contrariados foi outro dos assombros da minha juventude. De tanto a ouvir contada pelos meus pais, juntos e separados, tinha‑a quase completa quando escrevi A Revoada (A primeira tradução em Portugal deste romance teve o título O Enterro do Diabo e a segunda A Revoada. (N. T.)), o meu primeiro romance, aos vinte e sete anos mas também estava consciente de que ainda tinha muito que aprender sobre a arte de romancear. Eram ambos excelentes narradores, com a memória feliz do amor, mas conseguiram apaixonar‑me tanto com os seus relatos que quando por fim me decidi a usá‑la em O Amor nos Tempos de Cólera, com mais de cinquenta anos, não pude distinguir os limites entre a vida e a poesia.

De acordo com a versão da minha mãe, tinham‑se encontrado pela primeira vez no velório de um menino que nem ele nem ela conseguiram precisar‑me quem era. Ela estava a cantar no pátio com as amigas, de acordo com o costume popular de celebrar com canções de amor as nove noites dos inocentes. De repente, uma voz de homem juntou‑se ao coro. Todas se voltaram para o olhar e ficaram perplexas perante o seu bom ar. «Vamos casar com ele», cantaram como estribilho, ao compasso das palmas. Não impressionou a minha mãe, e assim o disse: «Pareceu‑me um forasteiro mais.» E era. Acabava de chegar de Cartagena de índias depois de interromper os estudos de Medicina e Farmácia por falta de recursos e empreendera uma vida um tanto trivial por várias povoações da região, com o recente ofício de telegrafista. Uma fotografia desses dias mostra‑o com um ar equívoco de fidalgote pobre. Tinha um fato de tafetá escuro, com um casaco de quatro botões, muito justo como era moda então, colarinho duro, gravata larga e um chapéu de palha achatado. Tinha, além disso, uns óculos à moda, redondos, com aros finos e lentes naturais. Os que o conheceram nessa época viam‑no como um boémio tresnoitado e mulherengo, que no entanto não bebeu um gole de álcool nem fumou um cigarro em toda a sua longa vida.

Foi a primeira vez que a minha mãe o viu. Pelo contrário, ele tinha‑a visto na missa das oito do domingo anterior, custodiada pela tia Francisca Simodosea, que foi a sua dama de companhia desde que regressou do colégio. Voltara a vê‑las terça‑feira seguinte, cosendo por baixo das amendoeiras na porta da casa, de modo que na noite do velório já sabia que era filha do coronel Nicolás Márquez, para quem levava diversas cartas de apresentação. Também ela soube desde então que era solteiro e apaixonadiço e tinha um êxito imediato por causa da sua lábia inesgotável, a sua versificação fácil, a graça com que dançava a música da moda e o sentimentalismo premeditado com que tocava violino. A minha mãe contava‑me que quando alguém o ouvia de madrugada não podia resistir à vontade de chorar. O seu cartão de apresentação em sociedade fora «Quando acabou o baile», uma valsa de um romantismo sufocante que levou no seu repertório e se tornou indispensável nas serenatas. Estes salvo‑condutos cordiais e a sua simpatia pessoal abriram‑lhe as portas da casa e um lugar frequente nos almoços familiares. A tia Francisca, oriunda do Carmen de Bolívar, adoptou‑o sem reservas quando soube que tinha nascido em Sincé, uma aldeia próxima da sua. Luisa Santiaga divertia‑se nas festas sociais com as suas artimanhas de sedutor, mas nunca lhe passou pela cabeça que ele pretendesse algo mais. Pelo contrário: as suas boas relações basearam‑se sobretudo no facto de ela lhe servir de capa nos seus amores ocultos com uma companheira do colégio, e aceitara ser sua madrinha de casamento. Desde então, ele chamava‑lhe madrinha e ela chamava‑o afilhado. Dessa forma, é fácil imaginar qual seria a surpresa de Luisa Santiaga numa noite de baile em que o telegrafista atrevido tirou a flor que tinha na lapela e lhe disse:

‑ Entrego‑lhe a minha vida nesta rosa.

Não foi uma improvisação, disse‑me ele inúmeras vezes, mas depois de conhecer todas chegara à conclusão que Santiaga fora feita para ele. Ela entendeu a rosa como mais uma das brincadeiras galantes que ele costumava fazer às suas amigas. Tanto que, ao sair, a deixou esquecida em qualquer lugar e ele percebeu isso. Ela tivera um único pretendente secreto, poeta sem sorte e bom amigo, que nunca conseguiu atingir‑lhe o coração com os seus versos ardentes. No entanto, a rosa de Gabriel Eligio perturbou‑lhe o sono com uma fúria inexplicável. Na nossa primeira conversa formal sobre os seus amores, já carregada de filhos, confessou‑me: «Não podia dormir de raiva por estar a pensar nele, mas o que mais raiva me dava era que quanto mais raiva sentia, mais pensava.» No resto da semana, resistiu com dificuldade ao terror de o ver e ao tormento de não o poder ver. De madrinha e afilhado que tinham sido, passaram a tratar‑se como desconhecidos. Numa dessas tardes, enquanto cosiam debaixo das amendoeiras, a tia Francisca espicaçou a sobrinha com a sua malícia índia:

‑ Disseram‑me que te deram uma rosa.

Pois, como costuma acontecer, Luisa Santiaga seria a última a perceber que os tormentos do seu coração eram já do domínio público. Nas inúmeras conversas que mantive com ela e com o meu pai, estiveram de acordo em que o amor fulminante teve três ocasiões decisivas. A primeira, foi um Domingo de Ramos na missa principal. Ela estava sentada com a tia Francisca num banco do lado da Epístola, quando reconheceu os passos dos seus tacões flamengos nos ladrilhos do chão e o viu parar tão perto que sentiu a aragem tépida da sua loção de noivo. A tia Francisca não parecia tê‑lo visto e ele também não pareceu tê‑las visto a elas. Mas a verdade é que foi tudo premeditado por ele, que as seguira quando passaram pelo telégrafo. Permaneceu de pé junto da coluna mais próxima da porta, de modo que ele a via de costas mas ela não o podia ver. Passados alguns minutos intensos, Luisa Santiaga não resistiu à ansiedade e olhou para a porta por cima do ombro. Então julgou morrer de raiva, pois ele estava a olhar para ela e os seus olhares encontraram‑se. «Era mesmo o que eu tinha planeado», dizia o meu pai, feliz, quando, na velhice, me repetia a história. A minha mãe, pelo contrário, nunca se cansou de repetir que durante três dias não conseguira dominar a fúria por ter caído na armadilha.

A segunda ocasião, foi uma carta que ele lhe escreveu. Não a que ela teria esperado de um poeta e violinista de madrugadas furtivas, mas um bilhete imperioso, que exigia uma resposta antes dele viajar para Santa Marta na semana seguinte. Ela não lhe respondeu. Fechou‑se no seu quarto, decidida a matar o verme que não lhe dava alento para viver, até que a tia Francisca tratou de a convencer a que capitulasse de uma vez por todas antes que fosse demasiado tarde. Tentando vencer a sua resistência, contou‑lhe a história exemplar de Juventino Trillo, o pretendente que montava guarda por baixo da varanda da sua amada impossível, todas as noites, desde as sete até às dez. Ela agrediu‑o com quantas desconsiderações lhe vieram à cabeça e acabou por despejar‑lhe em cima, da varanda, noite após noite, um bacio de urina. Mas não o conseguiu afugentar. Ao cabo de todo o género de agressões baptismais ‑ comovida com a abnegação daquele amor invencível ‑ casou com ele. A história dos meus pais não chegou a esses extremos.

A terceira ocasião do assédio foi um casamento de grande estadão para o qual ambos foram convidados como padrinhos de honra. Luisa Santiaga não arranjou pretexto para faltar a um compromisso tão próximo da família. Mas Gabriel Eligio pensara o mesmo e foi à festa disposto a tudo. Ela não conseguiu dominar o seu coração quando o viu atravessar a sala com uma determinação demasiado ostensiva e a convidou para dançar a primeira música. «O sangue batia‑me com tanta força dentro do corpo que já não soube se era de raiva ou de susto» disse‑me ela. Ele percebeu e desferiu‑lhe um golpe brutal: «Já não precisa de me dizer que sim, porque o seu coração mo está a dizer.»

Ela, sem mais nem menos, deixou‑o plantado na sala a meio da música. Mas o meu pai entendeu isso à sua maneira.

‑ Fiquei feliz ‑ disse‑me.

Luisa Santiaga não conseguiu resistir ao rancor que sentia por si mesma quando foi despertada de madrugada pelos requebros da valsa envenenada: «Quando acabou o baile.» No dia seguinte, às primeiras horas, devolveu a Gabriel Eligio todos os seus presentes. Esse desaire imerecido e os mexericos por causa de o ter deixado plantado no casamento, tal como as penas lançadas ao ar, já não tinha ventos de regresso. Toda a gente deu como certo que era o final sem glória de uma tempestade de Verão. A impressão fortaleceu‑se porque Luisa Santiaga teve uma recaída das febres terçãs da sua infância e a mãe a levou a mudar de ares na povoação de Manaure, um recanto paradisíaco no sopé da Sierra Nevada. Ambos negaram sempre ter mantido qualquer comunicação durante aqueles meses, mas não é muito credível, pois quando ela regressou, curada dos seus males, ambos pareciam também curados dos seus receios. O meu pai dizia que a foi esperar à estação porque lera o telegrama com que Mina anunciou o regresso a casa e, na forma como Luisa Santiaga lhe apertou a mão ao cumprimentá‑lo, sentiu uma espécie de senha maçónica que interpretou como uma mensagem de amor. Ela negou‑o sempre com o pudor e o rubor com que evocava aqueles anos. Mas a verdade é que desde então foram vistos juntos com menos reticências. Só lhe faltava o final, que lhe deu a tia Francisca na semana seguinte, enquanto cosiam no corredor das begónias:

‑ Mina já sabe.

Luisa Santiaga disse sempre que foi a oposição da família que fez saltar os diques da torrente que estava reprimida no coração desde a noite em que deixou o pretendente plantado no meio da dança. Foi uma guerra encarniçada. O coronel tentou manter‑se à margem, mas não pôde eludir a culpa que Mina lhe lançou à cara quando se apercebeu de que ele também não era tão inocente como aparentava. Para todos parecia claro que a intolerância não era dele mas dela, quando na realidade estava inscrita no código da tribo, para quem todo o namorado era um intruso. Este preconceito atávico, cujos resquícios ainda perduram, fez de nós uma vasta irmandade de mulheres solteiras e homens de braguilha aberta, com numerosos filhos pelas ruas.

Os amigos dividiram‑se, de acordo com a idade, a favor ou contra os apaixonados, e aos que não tinham uma posição radical esta foi‑lhes imposta pelos factos. Os jovens tornaram‑se cúmplices divertidos. Sobretudo dele, que desfrutou à vontade da sua condição de vítima propiciatória dos preconceitos sociais. Pelo contrário, a maioria dos adultos viam Luisa Santiaga como a jóia mais preciosa de uma família rica e poderosa, que um telegrafista adventício não pretendia por amor mas por interesse. Ela própria, de obediente e submissa que fora, enfrentou os opositores com uma ferocidade de leoa parida. Na mais ácida das suas muitas discussões domésticas, Mina perdeu as estribeiras e levantou contra a filha a faca da padaria. Luisa Santiaga enfrentou‑a, impávida. De imediato consciente do ímpeto criminoso da sua cólera, Mina largou a faca e gritou, espantada: «Deus meu!» E pôs a mão nas brasas do fogão como uma brutal penitência.

Entre os argumentos fortes contra Gabriel Eligio estava a sua condição de filho natural de uma solteira que o tivera na módica idade de catorze anos por um tropeção casual com um professor da escola. Chamava‑se Argemira Garcia Paternina, uma branca esbelta de espírito livre, que teve mais cinco filhos e duas filhas de três pais diferentes, com os quais nunca casou nem conviveu sob o mesmo tecto. Vivia na povoação de Sincé onde nascera, e estava a criar a sua prole com as unhas e com um espírito independente e alegre que nós, os seus netos, bem teríamos querido para um Domingo de Ramos. Gabriel Eligio era um exemplar distinto daquela estirpe descamisada. Desde os dezassete anos tivera cinco amantes virgens, segundo revelou à minha mãe como um acto de penitência na sua noite de núpcias a bordo da conturbada escuna de Riohacha baloiçada pela borrasca. Confessou‑lhe que com uma delas, sendo telegrafista no lugar de Achí aos dezoito anos, tivera um filho, Abelardo, que ia fazer três. Com outra, sendo telegrafista de Ayapel, aos vinte anos, tinha uma filha de meses que não conhecia e se chamava Carmen Rosa. Á mãe desta prometera voltar para casar e mantinha vivo o compromisso quando o rumo da sua vida se desviou por amor a Luisa Santiaga. Tinha reconhecido o mais velho diante do notário e mais tarde faria o mesmo com a filha, mas não passavam de formalidades bizantinas sem qualquer consequência perante a lei. É surpreendente que aquela conduta irregular pudesse causar inquietações morais ao coronel Márquez, que além dos seus três filhos oficiais tivera outros nove de diferentes mães, antes e depois do casamento, e todos eram recebidos pela esposa como se fossem seus.

Não me é possível determinar quando tive as primeiras notícias destes factos, mas em todo o caso as transgressões dos antepassados não me interessavam para nada. Em contrapartida, os nomes da família chamavam‑me a atenção porque me pareciam únicos. Primeiro, os da linha materna: Tranquilina Wenefrida, Francisca Simodosea. Mais tarde, o da minha avó paterna: Argemira, e os dos seus pais: Lozana e Aminadab. Talvez me venha daí a firme crença de que os personagens dos meus romances não andam pelos seus próprios pés enquanto não têm um nome que se identifique com o seu modo de ser.

As razões contra Gabriel Eligio agravavam‑se por ser membro activo do Partido Conservador, contra o qual travara as suas guerras o coronel Nicolás Márquez. A paz estava apenas meia feita desde a assinatura dos acordos de Neerlândia e Wisconsin, pois o centralismo primíparo continuava no poder e havia de passar ainda muito tempo antes que godos (Godo ‑ nome com que na América eram designados os espanhóis e seus descendentes e usado, por extensão, para os conservadores. (N. T.)) e liberais deixassem de mostrar os dentes uns aos outros. Talvez o conservadorismo do pretendente fosse mais por contágio familiar do que por convicção doutrinária, mas levavam‑no mais em conta do que outros sinais da sua boa índole, como a inteligência sempre alerta e a provada honradez.

O meu pai era um homem difícil de adivinhar e satisfazer. Sempre foi muito mais pobre do que parecia e considerou a pobreza como um inimigo abominável a que nunca se resignou nem conseguiu derrotar. Com a mesma coragem e a mesma dignidade, suportou a contrariedade dos seus amores com Luisa Santiaga na parte de trás do posto do telégrafo de Aracataca, onde sempre teve pendurada uma rede para dormir só. No entanto, também tinha a seu lado uma cama de solteiro com as molas bem oleadas para o que a noite lhe proporcionasse. Em determinada época tive uma certa tentação pelos seus costumes de caçador furtivo, mas a vida ensinou‑me que é a norma mais árida da solidão e senti uma grande compaixão por ele.

Até muito pouco tempo antes da sua morte, ouvi‑o contar que num daqueles dias difíceis teve que ir com vários amigos a casa do coronel e convidaram todos a sentar‑se menos ele. A família dela negou sempre isso e atribuiu‑o a um rescaldo do ressentimento do meu pai ou, pelo menos, a uma falsa recordação, mas a minha avó deixou uma vez escapar nos desvarios cantados dos seus quase cem anos, que não pareciam evocados mas revividos.

‑ Aí está esse pobre homem especado na porta da sala e o Nicolasito não o convidou a sentar‑se ‑ disse, condoída de verdade.

Sempre pendente das suas alucinantes revelações, perguntei‑lhe quem era o homem e ela respondeu‑me com secura: ‑ Garcia, o do violino.

No meio de tantos despropósitos, o menos parecido com a maneira de ser do meu pai foi ter comprado um revólver por causa do que pudesse ocorrer com um guerreiro em repouso como o coronel Márquez. Era um venerável Smith & Wesson 38 comprido, com sabe‑se lá quantos donos anteriores e quantos mortos às costas. A única coisa certa é que nunca o disparou, nem sequer por precaução ou curiosidade. Encontrámo‑lo, os filhos mais velhos, anos depois, com as suas cinco balas originais, num armário de trastes inúteis, acompanhado pelo violino das serenatas.

Nem Gabriel Eligio nem Luisa Santiaga se amedrontaram com o rigor da família. A princípio, podiam encontrar‑se às escondidas em casas de amigos, mas quando o cerco se apertou em torno dela, o único contacto foram as cartas recebidas e enviadas por canais engenhosos. Viam‑se de longe, quando não lhe permitiam a ela assistir a festas para que ele fosse convidado. Mas a repressão chegou a ser tão severa que ninguém se atreveu a desafiar as iras de Tranquilina Iguarán e os apaixonados desapareceram da vista pública, quando não restou nem um resquício para as cartas furtivas, os namorados inventaram recursos de náufragos. Ela conseguiu esconder um cartão de felicitações num pudim que alguém encomendara para o aniversário de Gabriel Eligio e este não desperdiçou ocasião de lhe mandar telegramas falsos e inócuos com a verdadeira mensagem cifrada ou escrita com tinta simpática. A cumplicidade da tia Francisca tornou‑se a certa altura tão evidente, apesar das suas terminantes negativas, que afectou pela primeira vez a sua autoridade na casa e apenas lhe permitiram acompanhar a sobrinha enquanto cosia à sombra das amendoeiras. Então Gabriel Eligio mandava mensagens de amor da janela do doutor Alfredo Barboza, no passeio da frente, com a telegrafia manual dos surdos‑mudos. Ela aprendeu‑a tão bem que nos descuidos da tia conseguia manter conversas íntimas com o namorado. Era apenas um dos numerosos truques inventados por Adriana Berdugo, comadre de sacramento de Luisa Santiaga e a sua cúmplice mais engenhosa e audaz.

Aquelas manobras de consolação ter‑lhes‑iam bastado para sobreviver em fogo lento, até que Gabriel Eligio recebeu uma carta alarmante de Luisa Santiaga, que o obrigou a uma reflexão definitiva. Escrevera‑a a correr no papel da retrete, com a má notícia de que os pais tinham decidido levá‑la para Barrancas, de aldeia em aldeia, como um remédio brutal para o seu mal de amores. Não seria a viagem habitual de uma noite mal passada na escuna de Riohacha, mas pela rota bárbara das faldas da Sierra Nevada, em mulas e carroças, através da vasta província de Padilla.

"Teria preferido morrer", disse‑me a minha mãe no dia em que fomos vender a casa. E tê‑lo‑ia tentado de verdade, encerrada com tranca no seu quarto, a pão e água durante três dias, até que se lhe impôs o terror reverencial que sentia pelo pai.

Gabriel Eligio apercebeu‑se de que a tensão chegara ao limite e tomou uma decisão também extrema mas manejável. Atravessou a rua em grandes passadas desde a casa do doutor Barboza até à sombra das amendoeiras e plantou‑se em frente das duas mulheres que o esperaram aterradas, com o trabalho no colo.

‑ Faça o favor de me deixar só um momento com a menina ‑ disse à tia Francisca. ‑ Tenho uma coisa importante para lhe dizer só a ela.

‑ Atrevido! ‑ replicou a tia. ‑ Não há nada dela que eu não possa ouvir.

‑ Então não lho digo ‑ disse ele ‑, mas aviso‑a que será responsável pelo que acontecer.

Luisa Santiaga suplicou à tia que os deixasse sós e assumiu o risco. Então Gabriel Eligio expressou‑lhe o seu acordo de que fizesse a viagem com os pais, na forma e durante o tempo que fosse, mas com a condição de que lhe prometesse sob a gravidade do juramento que casaria com ele. Ela fê‑lo de bom grado e acrescentou por sua conta e risco que só a morte a poderia impedir de o fazer.

Ambos tiveram quase um ano para demonstrar a seriedade das suas promessas, mas nem um nem outra imaginavam quanto lhes ia custar. A primeira parte da viagem, numa caravana de arrieiros, durou duas semanas no lombo de uma mula pelas cornijas da Sierra Nevada. Acompanhava‑os Chon ‑ diminutivo afectuoso de Encarnación ‑ a criada de Wenefrida, que se juntou à família desde que saíram de Barrancas. O coronel conhecia de sobra aquela rota escarpada, onde deixara um rasto de filhos nas noites desordenadas das suas guerras, mas a esposa preferira‑a sem a conhecer por causa das más recordações da escuna. Para a minha mãe, que além do mais montava uma mula pela primeira vez, foi um pesadelo de sóis nus e aguaceiros ferozes, com a alma por um fio devido à exalação adormecedora dos precipícios.

Pensar num namorado incerto, com os seus fatos de meia‑noite e o violino de madrugada, parecia uma partida da imaginação. Ao quarto dia, incapaz de sobreviver, ameaçou a mãe de se atirar ao precipício se não voltassem para casa. Mina, mais assustada do que ela, decidiu fazê‑lo. Mas o patrão da cordada demonstrou‑lhe no mapa que tanto dava regressar ou prosseguir. O alívio chegou‑lhes onze dias depois, quando divisaram da última cornija a planície radiante de Valledupar.

Antes de terminar a primeira etapa, Gabriel Eligio garantira uma comunicação permanente com a namorada errante, graças à cumplicidade dos telegrafistas das sete aldeias onde ela e a mãe iam demorar‑se antes de chegarem a Barrancas. Também Luisa Santiaga fez a sua parte. Toda a Província estava saturada de Iguaranes e Cotes, cuja consciência de casta tinha o poder de um tojal impenetrável, e ela conseguiu pô‑los do seu lado. Isto permitiu‑lhe manter uma correspondência febril com Gabriel Eligio a partir de Valledupar, onde permaneceu três meses, até ao término da viagem, quase um ano depois. Bastava‑lhe passar pelo telégrafo de cada aldeia, com a cumplicidade de uma parentela jovem e entusiasta, para receber e responder às suas mensagens. Chon, a sigilosa, desempenhou um papel incalculável, porque levava mensagens escondidas entre os seus trapos sem inquietar Luisa Santiaga nem ferir o seu pudor, porque não sabia ler nem escrever e era capaz de se deixar matar por um segredo.

Quase sessenta anos depois, quando procurava saquear estas recordações para O Amor nos Tempos de Cólera, o meu quinto romance, perguntei ao meu pai se na linguagem dos telegrafistas existia uma palavra específica para o acto de ligar um posto com outro. Ele não teve que pensar: encavilhar. A palavra está nos dicionários, não para o uso específico de que eu precisava mas pareceu‑me perfeita para as minhas dúvidas, pois a comunicação com os diversos postos era estabelecida por meio da conexão de uma cavilha num tabuleiro de terminais telegráficos. Nunca comentei isso com o meu pai. No entanto pouco antes da sua morte, perguntaram‑lhe numa entrevista de imprensa se gostaria de ter escrito um romance e respondeu que sim, mas que desistira quando o consultei sobre o verbo encavilhar, porque descobriu nessa altura que o livro que eu estava a escrever era o mesmo que ele pensava escrever.

Nessa ocasião, recordou além disso um dado oculto que teria podido mudar o rumo das nossas vidas. E foi que depois de seis meses de viagem, quando a minha mãe estava em San Juan del César, chegou a Gabriel Eligio o sopro confidencial de que Mina levava o encargo de preparar o regresso definitivo da família a Barrancas, uma vez cicatrizados os rancores pela morte de Medardo Pacheco. Pareceu‑lhe absurdo, quando os tempos maus tinham ficado para trás e o império absoluto da companhia bananeira começava a parecer o sonho da terra prometida. Mas também era razoável que a teimosia dos Márquez Iguarán os levasse a sacrificar a própria felicidade desde que livrassem a filha das garras do gavião. A decisão imediata de Gabriel Eligio foi tratar da sua transferência para o telégrafo de Riohacha, a umas vinte léguas de Barrancas. Não estava disponível, mas prometeram‑lhe ter em consideração o pedido.

Luisa Santiaga não pôde averiguar as intenções secretas da mãe, mas também não se atreveu a negá‑las, porque lhe chamara a atenção que quanto mais se aproximavam de Barrancas, mais suspirosa e tranquila parecia. Chon, confidente de todos, também não lhe deu nenhuma pista. Para arrancar verdades, Luisa Santiaga disse à mãe que gostaria muito de ficar a viver em Barrancas. A mãe teve um instante de hesitação mas não se decidiu a dizer nada e a filha ficou com a impressão de ter passado muito perto do segredo. Inquieta, entregou‑se à sorte das cartas com uma cigana de rua que não lhe deu qualquer pista sobre o seu futuro em Barrancas. Mas, em contrapartida, anunciou‑lhe que não haveria nenhum obstáculo para uma vida longa e feliz com um homem distante que mal conhecia mas ia amá‑la até à morte. A descrição que fez dele devolveu‑lhe a alma ao corpo, porque lhe descobriu traços comuns com o seu prometido, sobretudo na maneira de ser. Por último, predisse‑lhe sem qualquer dúvida que teria seis filhos com ele. "Morri de susto", disse‑me a minha mãe a primeira vez que mo contou, sem sequer imaginar que os filhos seriam mais cinco. Ambos consideraram a predição com tanto entusiasmo que a correspondência telegráfica deixou de ser então um concerto de intenções ilusórias e se tornou metódica e prática e mais intensa do que nunca. Fixaram datas, estabeleceram processos e empenharam as suas vidas na determinação comum de casarem sem dizer a ninguém, onde fosse e como fosse, quando voltassem a encontrar‑se.

Luisa Santiaga foi tão fiel ao compromisso que na povoação de Fonseca não lhe pareceu correcto assistir a um baile de gala sem o consentimento do namorado. Gabriel Eligio estava na rede, suando uma febre de quarenta graus, quando soou o sinal de uma comunicação telegráfica urgente. Era o colega de Fonseca. Para segurança completa, ela perguntou quem estava a funcionar com o manípulo no fim da cadeia. Mais atónito do que lisonjeado, o namorado transmitiu uma frase de identificação: "Diga‑lhe que sou o seu afilhado." A minha mãe reconheceu o santo e a senha e esteve no baile até às sete da manhã, quando teve que mudar de roupa a correr para não chegar tarde à missa.

Em Barrancas não encontraram o mínimo rasto de má vontade contra a família. Pelo contrário, entre os próximos de Medardo Pacheco prevalecia uma disposição cristã de perdão e esquecimento dezassete anos depois da desgraça. A recepção dos parentes foi tão calorosa que nessa altura foi Luisa Santiaga que pensou na possibilidade de a família regressar àquele remanso da serra, tão diferente do calor e do pó, dos sábados sangrentos e dos fantasmas decapitados de Aracataca. Conseguiu insinuá‑lo a Gabriel Eligio, desde que ele conseguisse a sua transferência para Riohacha, e ele concordou. No entanto, por aqueles dias, acabou por saber‑se que a versão da mudança não só carecia de fundamento como que ninguém a desejava menos do que Mina. Ficou assim determinado numa carta de resposta que ela mandou ao filho Juan de Dios, quando este lhe escreveu atemorizado com a hipótese de voltarem para Barrancas quando ainda não tinham passado vinte anos sobre a morte de Medardo Pacheco. Sempre esteve tão convencido do fatalismo da lei guajira que se opôs a que o seu filho Eduardo fizesse serviço de medicina social em Barrancas meio século depois.

Contra todos os receios, foi ali que se desataram em três dias todos os nós da situação. Na mesma terça‑feira em que Luisa Santiaga confirmou a Gabriel Eligio que Mina não pensava mudar para Barrancas, anunciaram‑lhe a ele que estava à sua disposição o telégrafo de Riohacha, por morte repentina do titular. No dia seguinte, Mina esvaziou as gavetas da despensa em busca de umas tesouras de desmanchar carne e destapou sem necessidade a caixa de biscoitos ingleses onde a filha escondia os seus telegramas de amor. Foi tanta a sua raiva que só lhe conseguiu dizer um dos impropérios célebres que costumava improvisar nos seus maus momentos: "Deus perdoa tudo menos a desobediência." Nesse fim‑de‑semana viajaram para Riohacha a fim de apanharem no domingo a escuna de Santa Marta. Nenhuma das duas teve consciência da noite terrível balançada pela ventania de Fevereiro: a mãe aniquilada pela derrota e a filha assustada mas feliz.

A terra firme devolveu a Mina o aprumo perdido pela descoberta das cartas. Continuou só para Aracataca no dia seguinte e deixou Luisa Santiaga em Santa Marta, sob a protecção do seu filho Juan de Dios, certa de a pôr a salvo dos diabos do amor. Foi o contrário: Gabriel Eligio viajava então de Aracataca para Santa Marta para a ver todas as vezes que podia. O tio Juanito, que sofrera a mesma intransigência dos pais nos seus amores com Dilia Caballero, resolvera não tomar partido nos amores da irmã, mas na hora da verdade viu‑se entalado entre a adoração por Luisa Santiaga e a veneração pelos pais, e refugiou‑se numa fórmula própria da sua proverbial bondade: admitiu que os namorados se vissem fora de sua casa, mas nunca a sós e sem que ele soubesse. Dilia Caballero, a esposa, que perdoava mas não esquecia, urdiu para a cunhada os mesmos acasos infalíveis e as manigâncias mestras com que iludia a vigilância dos sogros. Gabriel e Luisa começaram por ver‑se em casas de amigos, mas pouco a pouco foram‑se arriscando a lugares públicos pouco concorridos. No fim, atreveram‑se a conversar pela janela quando o tio Juanito não estava, a namorada na sala e o namorado na rua, fiéis ao compromisso de não se verem dentro de casa. A janela parecia feita de propósito para amores contrariados, através de uma fresta andaluza de corpo inteiro e com uma moldura de trepadeiras, nas quais não faltou por vezes o aroma de jasmins no calor da noite. Dilia previra tudo, inclusive a cumplicidade de alguns vizinhos, com assobios cifrados para alertar os namorados de um perigo iminente. No entanto, uma noite falharam todos os seguros e Juan de Dios rendeu‑se perante a verdade. Dilia aproveitou a ocasião para convidar os namorados a sentarem‑se na sala com as janelas abertas para partilharem o seu amor com o mundo.

 

A minha mãe não esqueceu nunca o suspiro do irmão: "Que alívio!"

Por esses dias, recebeu Gabriel Eligio a nomeação formal para o telégrafo de Riohacha. Inquieta por uma nova separação, a minha mãe apelou então a monsenhor Pedro Espejo actual vigário da diocese, com a esperança de que a casasse sem a autorização dos pais. A respeitabilidade de monsenhor adquirira tanta força que muitos fiéis a confundiam com santidade e alguns iam à missa apenas para verificar se era verdade que se erguia vários centímetros acima do nível do chão no momento da Elevação. Quando Luisa Santiaga solicitou a sua ajuda, ele demonstrou uma vez mais que a inteligência é um dos privilégios da santidade. Negou‑se a intervir no foro interno de uma família tão ciosa da sua intimidade, mas optou pela alternativa secreta de se informar sobre a do meu pai por intermédio da cúria. O pároco de Sincé passou por alto as liberalidades de Argemira Garcia e respondeu com uma fórmula benévola: "Trata‑se de uma família respeitável, embora pouco devota." Monsenhor conversou então com os namorados, juntos e em separado, e escreveu uma carta a Nicolás e Tranquilina, na qual lhes expressou a sua certeza emocionada de que não havia poder humano capaz de derrotar aquele amor empedernido. Os meus avós, vencidos pelo poder de Deus, concordaram em virar a dolorosa página e concederam a Juan de Dios plenos poderes para organizar a boda em Santa Marta. Não assistiram, mas mandaram Francisca Simodosea como madrinha.

Casaram a 11 de Junho de 1926, na catedral de Santa Marta, com quarenta minutos de atraso porque a noiva se esqueceu da data e tiveram que acordá‑la já passava das oito da manhã. Nessa mesma noite, subiram uma vez mais a bordo da pavorosa escuna para que Gabriel Eligio tomasse posse do telégrafo de Riohacha, e passaram a primeira noite em castidade, derrotados pelo enjoo.

A minha mãe sentia tantas saudades da casa onde passou a lua‑de‑mel que nós, os seus filhos mais velhos, teríamos podido descrevê‑la quarto por quarto como se lá tivéssemos vívido e ainda hoje continua a ser uma das minhas falsas recordações. No entanto, a primeira vez que fui na realidade à península de La Guajira, pouco antes dos meus sessenta anos, surpreendeu‑me que o posto do telégrafo não tivesse nada a ver com o da minha memória. E a Riohacha idílica que tinha desde criança no coração, com as suas ruas de salitre que desciam até um mar de lodo, não eram mais do que ilusões emprestadas pelos meus avós. Mais ainda: agora que conheço Riohacha, não consigo visualizá‑la como é, mas como a construíra pedra por pedra na minha imaginação.

Dois meses depois do casamento, Juan de Dios recebeu um telegrama do meu pai com o anúncio de que Luisa Santiaga estava grávida. A notícia abalou até os alicerces da casa de Aracataca, onde Mina ainda não recuperara da sua amargura, e tanto ela como o coronel depuseram as armas a fim de que os recém‑casados voltassem para junto deles. Não foi fácil. Ao cabo de uma resistência digna e razoável de vários meses, Gabriel Eligio aceitou que a mulher desse à luz em casa dos pais.

Pouco depois, recebeu‑o o meu avô na estação do comboio com uma frase que ficou como um marco de ouro no prontuário histórico da família: "Estou disposto a dar‑lhe todas as satisfações que forem necessárias." A avó renovou o quarto que até então tinha sido seu e ali instalou os meus pais. No decurso do ano, Gabriel Eligio renunciou ao seu bom ofício de telegrafista e consagrou o seu talento de autodidacta a uma ciência pouco conhecida: a homeopatia. O avô, por gratidão ou por remorso, actuou junto das autoridades para que a rua onde vivíamos em Aracataca tivesse o nome que ainda tem: Avenida Monsenhor Espejo.

Foi assim e ali que nasceu o primeiro de sete varões e quatro mulheres, no domingo, 6 de Março de 1927, às nove da manha e com um aguaceiro torrencial fora de estação, enquanto o céu de Touro se erguia no horizonte. Estava quase a ser estrangulado pelo cordão umbilical, pois a parteira da família, Santos Villero, perdeu o controlo da sua arte no pior momento. Mas mais ainda o perdeu a tia Francisca, que correu para a porta da rua dando berros de incêndio:

‑ Varão! Varão! ‑ E a seguir, como se tocasse a rebate: ‑ Rum, que sufoca!

A família supôs que o rum não era para celebrar mas para reanimar com fricções o recém‑nascido. Misia Juana de Freytes, que fez a sua entrada providencial no quarto, contou‑me muitas vezes que o risco mais grave não era o cordão umbilical, mas uma má posição da minha mãe na cama. Corrigiu‑lha a tempo, mas não foi fácil reanimar‑me, de modo que a tia Francisca me deitou a água baptismal de emergência. Devia chamar‑me Olegario, que era o santo do dia, mas ninguém teve à mão o santoral e portanto puseram‑me de urgência o primeiro nome do meu pai seguido pelo de José, o carpinteiro, por ser o patrono de Aracataca e por estarmos no seu mês de Março. Misia Juana de Freytes propôs um terceiro nome em memória da reconciliação geral conseguida entre famílias e amigos com a minha vinda ao mundo, mas na acta do baptismo formal que me fizeram três anos depois esqueceram‑se de o pôr: Gabriel José de La Concórdia.

 

No dia em que fui com a minha mãe para vender a casa, recordava tudo o que tinha impressionado a minha infância, mas não estava seguro do que era antes e do que era depois, nem o que significava nada disso na minha vida. Apenas estava consciente de que, no meio do falso esplendor da companhia bananeira, o casamento dos meus pais estava já inscrito dentro do processo que havia de rematar a decadência de Aracataca. Desde que comecei a recordar, ouvi repetir‑se ‑ primeiro com muito sigilo e depois em voz alta e com alarme ‑ a frase fatídica: "Dizem que a companhia se vai embora." No entanto, ou ninguém acreditava ou ninguém se atreveu a pensar nos seus estragos.

A versão da minha mãe tinha valores tão exíguos e o cenário era tão pobre para um drama tão grandioso como o que eu tinha imaginado que me causou um sentimento de frustração. Mais tarde, falei com sobreviventes e testemunhas e esgaravatei em colecções de jornais e documentos oficiais e apercebi‑me de que a verdade não estava de nenhum dos lados. Os conformistas diziam, com efeito, que não houve mortos. Os do extremo contrário afirmavam sem um tremor na voz que foram mais de cem, que os tinham visto a esvair‑se em sangue na praça, que os levaram num comboio de carga para os lançarem ao mar como a banana estragada. Assim, a minha verdade ficou para sempre extraviada em qualquer ponto improvável dos dois extremos. No entanto, foi tão persistente que num dos meus romances referi a matança com a precisão e o horror com que a incubara durante anos na minha imaginação. Foi assim que mantive o número de mortos em três mil, para conservar as proporções épicas do drama, e a vida real acabou por fazer‑me justiça: há pouco, num dos aniversários da tragédia, o orador de turno no Senado pediu um minuto de silêncio em memória dos três mil mártires anónimos sacrificados pela força pública.

A matança das bananeiras foi o culminar de outras anteriores, mas com o argumento adicional de os líderes terem sido assinalados como comunistas, e talvez fossem. Conheci por acaso o mais destacado e perseguido, Eduardo Mahecha, na prisão Modelo de Barranquilla, nos dias em que fui com a minha mãe para vender a casa, e fiz com ele uma boa amizade desde que me apresentei como o neto de Nicolás Márquez. Foi ele que me revelou que o avô não tinha sido neutral mas sim mediador na greve de 1928, e que o considerava um homem justo. De modo que me completou a ideia que sempre tive do massacre e formei uma concepção mais objectiva do conflito social. A única discrepância entre as recordações de todos foi sobre o número de mortos, que de qualquer forma não será a única incógnita da nossa história.

Tantas versões encontradas foram a causa das minhas falsas recordações. Entre elas, a mais persistente é a de mim mesmo na porta da casa, com um capacete prussiano e uma escopetinha de brincar, vendo desfilar por baixo das amendoeiras o batalhão de cachaços suados. Um dos oficiais que os comandava, em uniforme de cerimónia, saudou‑me ao passar:

‑ Adeus, capitão Gabi.

A recordação é nítida, mas não há nenhuma possibilidade de que seja verdade. O uniforme, o capacete e a escopeta coexistiram, mas uns anos depois da greve e quando já não havia tropas de guerra em Cataca. Múltiplos casos como este criaram‑me em casa a má reputação de ter recordações intra‑uterinas e sonhos premonitórios.

Era esse o estado do mundo quando comecei a tomar consciência do meu âmbito familiar e não o consigo evocar de outro modo: mágoas, saudades, incertezas, na solidão de uma casa imensa. Durante anos pareceu‑me que aquela época se transformara para mim num pesadelo recorrente de quase todas as noites, porque amanhecia com o mesmo terror que no quarto dos santos. Durante a adolescência, interno num colégio gelado dos Andes, acordava a chorar a meio da noite. Precisei desta velhice sem remorsos para entender que a desgraça dos avós na casa de Cataca foi que estiveram sempre encalhados nas suas nostalgias e tanto mais quanto mais se empenhavam em esconjurá‑las.

Mais simples ainda: estavam em Cataca, mas continuavam a viver na província de Padilla, que ainda chamamos a Província, sem mais dados, como se não houvesse outra no mundo. Talvez sem pensar sequer, tinham construído a casa de Cataca como uma réplica cerimonial da casa de Barrancas, de cujas janelas se via, do outro lado da rua, o cemitério triste onde jazia Medardo Pacheco. Em Cataca eram amados e acarinhados, mas as suas vidas estavam submetidas ao jugo da terra em que nasceram. Entrincheiraram‑se nos seus gostos, nas suas crenças, nos seus preconceitos, e cerraram fileiras contra tudo o que fosse diferente.

As suas amizades mais próximas eram acima de todas as que chegavam da Província. A língua doméstica era a que os seus avós tinham trazido de Espanha através da Venezuela, no século anterior, revitalizada com localismos caribenhos, africanismos de escravos e retalhos da língua guajira, que se iam infiltrando gota a gota na nossa. A avó servia‑se dela para me despistar, sem saber que eu a entendia melhor devido às minhas ligações directas com a criadagem. Ainda me lembro de muitos: atunkeshi, tenho sono; jamusaitshi taya, tenho fome; ipuwots, a mulher grávida; aríjuna, o forasteiro, que a minha avó usava de certo modo para se referir ao espanhol, ao homem branco e, afinal, ao inimigo. Os Guajiros, por seu lado, sempre falaram uma espécie de castelhano sem ossos com reflexos cintilantes, como o dialecto próprio de Chon, com uma precisão viciosa que a minha avó lhe proibiu porque remetia sem alternativa para um equívoco: "Os lábios da boca."

O dia estava incompleto enquanto não chegavam as notícias de quem nasceu em Barrancas, quantos matou o touro no curral de Fonseca, quem se casou em Manaure ou morreu em Riohacha, como amanheceu o general Socarrás, que estava mal em San Juan de César. No comissariado da companhia bananeira vendiam‑se, a preços de ocasião, as maçãs da Califórnia envoltas em papel de seda, os pargos petrificados em gelo, os presuntos da Galiza e as azeitonas gregas. No entanto, nada se comia em casa que não estivesse temperado no caldo das saudades: a malanga (Malanga ‑ tubérculo comestível de uma planta hortícola de que existem diversas espécies. (N. T.)) para a sopa tinha que ser de Riohacha, o milho para as arepas (Arepa ‑ pão especial, baixo e de forma circular, feito com farinha de milho, ovos e manteiga cozido no forno ou sobre uma placa. (N. T.)) do pequeno‑almoço devia ser de Fonseca, os cabritos eram criados com o sal de La Guajira e levavam as tartarugas e as lagostas vivas de Dibuya.

De modo que a maioria dos visitantes que chegavam todos os dias no comboio iam da Província ou mandados por alguém de lá. Sempre os mesmos apelidos: os Riasco, os Noguera, os Ovalle, cruzados com frequência com as tribos sacramentais dos Cotes e dos Iguarán. Iam de passagem, sem nada mais além da mochila aos ombros e, embora não anunciassem a visita, estava previsto que ficassem para almoçar. Nunca esqueci a frase quase ritual da avó ao entrar na cozinha: "É preciso fazer de tudo, porque não se sabe do que gostarão os que vierem."

Aquele espírito de evasão perpétua baseava‑se numa realidade geográfica. A Província tinha a autonomia de um mundo próprio e uma unidade cultural compacta e antiga, num apertado e fundo vale fértil entre a Sierra Nevada de Santa Marta e a Sierra del Perijá, no Caribe colombiano. A sua comunicação era mais fácil com o mundo do que com o resto do país, pois a sua vida quotidiana identificava‑se melhor com as Antilhas pelo tráfico fácil com a Jamaica ou o Curaçau, e quase se confundia com a da Venezuela por uma fronteira de portas abertas que não fazia distinções de categorias e cores. Do interior do país, que se cozinhava a fogo brando na sua própria sopa, chegava apenas o óxido do poder: as leis, os impostos, os soldados, as más notícias incubadas a dois mil e quinhentos metros de altitude e a oito dias de navegação pelo rio Magdalena, num barco a vapor alimentado a lenha.

Aquela natureza insular tinha gerado uma cultura estanque, com carácter próprio, que os avós implantaram em Cataca. Mais do que um lar, a casa era uma aldeia. Havia sempre vários turnos na mesa, mas os dois primeiros eram sagrados desde que completei três anos: o coronel na cabeceira e eu no canto à sua direita. Os restantes lugares eram ocupados primeiro com os homens e depois com as mulheres, mas sempre separados. Estas regras eram quebradas durante as festas nacionais do 20 de Julho e o almoço por turnos prolongava‑se até todos comerem. À noite, não se usava a mesa; distribuíam‑se taças de café com leite na cozinha, com a requintada pastelaria da avó.

Quando se fechavam as portas, cada um pendurava a sua rede onde podia, a diversos níveis, até nas árvores do pátio. Uma das grandes fantasias daqueles anos vivi‑a um dia em que chegou a casa um grupo de homens iguais, com roupas, polainas e esporas de ginete e todos com uma cruz de cinza pintada na testa. Eram os filhos espalhados pelo coronel ao longo da Província durante a Guerra dos Mil Dias, que vinham das suas aldeias para felicitá‑lo pelo seu aniversário com mais de um mês de atraso. Antes de irem lá a casa tinham ouvido a missa da Quarta‑Feira de Cinzas, e a cruz que o padre Angarita lhes desenhou na testa pareceu‑me um emblema sobrenatural cujo mistério haveria de me perseguir durante anos, mesmo depois de me ter familiarizado com a liturgia da Semana Santa.

A maioria deles tinha nascido depois do casamento dos meus avós. Mina registava‑os com os nomes e apelidos numa caderneta de apontamentos logo que tinha notícia dos seus nascimentos e, com uma indulgência difícil, acabava por incorporá‑los de todo o coração na contabilidade da família. Mas nem a ela nem a ninguém foi fácil distingui‑los antes daquela visita ruidosa em que cada um revelou o seu modo de ser peculiar. Eram sérios e laboriosos, homens da sua casa, gente de paz, que no entanto não receavam perder a cabeça na vertigem da paródia. Quebraram a loiça, esguedelharam os roseirais perseguindo um novilho para o tourearem, mataram a tiro as galinhas para o sancocho e soltaram um porco ensebado que atropelou as bordadoras do corredor, mas ninguém lamentou esses percalços pelo vendaval de felicidade que arrastavam consigo.

Continuei a ver com frequência Esteban Carrillo, gémeo da tia Elvira e perito nas artes manuais, que viajava com uma caixa de ferramentas para reparar por favor qualquer avaria nas casas que visitava. Com o seu sentido de humor e a sua boa memória, preencheu‑me numerosos vazios que pareciam inultrapassáveis na história da família. Também convivi na adolescência com o meu tio Nicolás Gómez, um louro muito vivo de sardas coloridas, que manteve sempre bem alto o seu bom ofício de tendeiro na antiga colónia penal de Fundación. Impressionado pela minha boa reputação de caso perdido, despedia‑me com um saco de mercado bem fornecido para prosseguir viagem. Rafael Árias chegava sempre de passagem e à pressa, numa mula e com roupa de montar, apenas com tempo para um café de pé na cozinha. Encontrei os outros dispersos nas viagens nostálgicas que fiz mais tarde pelas aldeias da Província para escrever os meus primeiros romances e senti sempre a falta da cruz de cinza na testa como um sinal inconfundível da identidade familiar.

Anos depois de mortos os avós e abandonada à sua sorte a casa senhorial, cheguei a Fundación no comboio da noite e sentei‑me no único lugar de venda de comida aberto àquelas horas na estação. Restava pouco para servir, mas a dona improvisou um bom prato em minha honra. Era brincalhona e serviçal e, no fundo dessas virtudes mansas, pareceu‑me detectar o carácter forte das mulheres da tribo. Confirmei‑o anos depois: a bonita empregada de mesa era Sara Noriega, outra das minhas tias desconhecidas.

Apolinar, o antigo escravo, pequeno e maciço, que sempre recordei como um tio, desapareceu da casa durante anos e uma tarde reapareceu sem motivo, vestido de luto com um fato de pano preto e um chapéu enorme, também preto, enfiado até aos olhos taciturnos. Ao passar pela cozinha disse que vinha para o enterro, mas ninguém o entendeu até ao dia seguinte, quando chegou a notícia de que o avô acabara de morrer em Santa Marta, para onde o tinham levado de urgência e em segredo.

O único dos tios que teve uma ressonância pública foi o mais velho de todos e o único conservador, José Maria Valdeblánquez, que tinha sido senador da República durante a Guerra dos Mil Dias e nessa condição assistiu à assinatura da rendição liberal na quinta próxima de Neerlandia. Em frente dele, no lado dos vencidos, estava o seu pai.

Creio que devo na realidade a essência da minha maneira de ser e de pensar às mulheres da família e às muitas da criadagem que pastorearam a minha infância. Eram de carácter forte e coração terno e tratavam‑me com a naturalidade do paraíso terrestre. Entre as muitas que recordo, Lúcia foi a única que me surpreendeu com a sua malícia pueril, quando me levou ao beco dos sapos e levantou a bata até à cintura para me mostrar a sua pelagem acobreada e desgrenhada. No entanto, o que na realidade me chamou a atenção foi a mancha de carate (Carate ‑ doença de pele, espécie de sarna, vulgar nalgumas zonas da América Central e do Sul. (N. T.)) que se estendia pelo seu ventre como um mapa‑múndi de dunas arroxeadas e oceanos amarelos. As outras pareciam arcanjos da pureza: mudavam de roupa diante de mim, davam‑me banho enquanto elas próprias tomavam banho, sentavam‑me no meu bacio e sentavam‑se nos seus à minha frente para se aliviarem dos seus segredos, das suas mágoas, dos seus rancores, como se eu não entendesse, sem se darem conta que eu sabia tudo porque ligava os fios que elas próprias deixavam soltos.

Chon era da criadagem e da rua. Tinha chegado de Barrancas com os avós quando ainda era criança, acabara de se criar na cozinha mas assimilada à família, e o tratamento que lhe davam era o de uma tia acompanhante desde que fez a peregrinação à Província com a minha mãe apaixonada. Nos seus últimos anos mudou‑se para um quarto próprio na parte mais pobre da aldeia, por graça da sua real gana, e vivia de vender na rua desde o amanhecer as bolas de milho moído para as arepas, com o seu pregão que se tornou familiar no silêncio da madrugada: "As massinhas geladas da velha Chon..."

Tinha uma bela cor de índia, desde sempre pareceu ser só ossos e andava de pé descalço, com um turbante branco e envolta em engomados lençóis. Caminhava com muita lentidão pelo meio da rua, com uma escolta de cães mansos e calados que avançavam dando voltas em seu redor. Acabou incorporada no folclore da aldeia. Nuns carnavais apareceu um disfarce idêntico a ela, com os seus lençóis e o seu pregão, embora não tivessem conseguido amestrar uma escolta de cães como a sua. O seu grito das massinhas geladas tornou‑se tão popular que foi tema de uma canção de acordeonistas. Numa má manhã, dois cães bravos atacaram os seus e estes defenderam‑se com tal ferocidade que Chon caiu no chão com a espinha dorsal partida. Não sobreviveu, apesar dos muitos recursos médicos que lhe arranjou o meu avô.

Outra recordação reveladora naquele tempo foi o parto de Matilde Armenta, uma lavadeira que trabalhou na casa quando eu tinha uns seis anos. Entrei no seu quarto por engano e encontrei‑a nua e de pernas abertas numa cama de tela e uivando de dor no meio de uma pandilha de comadres sem ordem nem razão, que tinham repartido o seu corpo para a ajudarem a parir aos gritos. Uma enxugava‑lhe o suor da cara com uma toalha molhada, outras seguravam‑lhe à força os braços e as pernas e davam‑lhe massagens no ventre para apressar o parto. Santos Villero, impassível no meio da desordem, murmurava orações de encomendação com os olhos fechados, enquanto parecia escavar entre as coxas da parturiente. O calor era insuportável no quarto cheio de fumo devido às panelas de água a ferver que traziam da cozinha. Permaneci num canto, dividido entre o susto e a curiosidade, até que a parteira tirou pelos tornozelos uma coisa em carne viva como um vitelo recém‑nascido, com uma tripa sanguinolenta pendurada do umbigo. Uma das mulheres descobriu‑me então no canto e tirou‑me de rastos do quarto.

‑ Estás em pecado mortal ‑ disse‑me. E ordenou‑me com um dedo ameaçador: ‑ Não tornes a lembrar‑te do que viste. Em contrapartida, a mulher que de verdade me tirou a inocência, não tencionava fazê‑lo nem o soube nunca. Chamava‑se Trinidad, era filha de alguém que trabalhava na casa e mal começava a florescer numa Primavera mortal. Tinha uns treze anos mas ainda usava os fatos de quando tinha nove e ficavam‑lhe tão cingidos ao corpo que parecia mais nua do que se estivesse sem roupa. Uma noite em que estávamos sós no pátio, irrompeu de repente uma música de banda na casa vizinha e Trinidad puxou‑me para dançar com um abraço tão apertado que me deixou sem ar. Não sei o que foi feito dela, mas ainda hoje acordo a meio da noite perturbado pela comoção, e sei que a poderia reconhecer no escuro pelo tacto de cada polegada da sua pele e pelo seu cheiro de animal. Num instante tomei consciência do meu corpo, com uma clarividência dos instintos que nunca mais voltei a sentir e que me atrevo a recordar como uma morte deliciosa. Desde então, soube de uma maneira confusa e irreal que havia um mistério insondável, que eu não conhecia mas me perturbava como se o soubesse. Pelo contrário, as mulheres da família conduziram‑me sempre pelo rumo árido da castidade.

A perda da inocência ensinou‑me ao mesmo tempo que não era o Menino Jesus que nos trazia os brinquedos no Natal, mas tive o cuidado de não o dizer. Aos dez anos, o meu pai revelou‑mo como um segredo de adultos, porque dava como certo que eu sabia, e levou‑me às lojas do Natal para escolher os brinquedos dos meus irmãos. O mesmo me acontecera com o mistério do parto antes de assistir ao de Matilde Armenta: sufocava de riso quando diziam que os meninos eram trazidos de Paris por uma cegonha. Mas devo confessar que nem então nem agora consegui relacionar o parto com o sexo. Em todo o caso, penso que a minha intimidade com a criadagem deve ser a origem de um fio de comunicação secreta que creio ter com as mulheres e que, ao longo da vida, me permitiu sentir‑me mais à vontade e seguro entre elas do que entre homens. Também daí pode vir a minha convicção de que são elas que sustêm o mundo, enquanto nós, homens, o desordenamos com a nossa histórica brutalidade.

Sara Emilia Márquez, sem o saber, teve algo que ver com o meu destino. Perseguida desde muito jovem por pretendentes que nem sequer se dignava olhar, decidiu‑se pelo primeiro que lhe pareceu bem, e para sempre. O eleito tinha algo em comum com o meu pai, pois era um forasteiro que chegou não se sabia de onde nem como, com uma boa folha de vida mas sem recursos conhecidos. Chamava‑se José del Carmen Uribe Vergel, mas às vezes apenas assinava J. de C. Passou algum tempo antes de se saber quem era na realidade e de onde vinha, até que se soube pelos discursos encomendados que escrevia para funcionários públicos e pelos versos de amor que publicava na sua própria revista cultural, cuja frequência dependia da vontade de Deus. Desde que apareceu na casa, senti uma grande admiração pela sua fama de escritor, o primeiro que conheci na minha vida. De imediato quis ser igual a ele e não fiquei satisfeito enquanto a tia Mamã não aprendeu a pentear‑me como ele.

Fui o primeiro da família que soube dos seus amores secretos, uma noite em que entrou na casa da frente onde eu brincava com amigos. Chamou‑me à parte, num estado de tensão evidente, e deu‑me uma carta para Sara Emilia. Eu sabia que ela estava sentada na porta da nossa casa recebendo a visita de uma amiga. Atravessei a rua, escondi‑me atrás de uma das amendoeiras e atirei a carta com tal precisão que lhe caiu no regaço. Assustada, levantou as mãos, mas o grito ficou‑lhe na garganta quando reconheceu a letra do sobrescrito. Sara Emilia e J. del C. ficaram meus amigos desde então.

Elvira Carrillo, irmã gémea do tio Esteban, torcia e espremia uma cana‑de‑açúcar com as duas mãos e tirava‑lhe o suco com a força de um engenho. Tinha mais fama pela sua franqueza brutal do que pela ternura com que sabia entreter as crianças, sobretudo o meu irmão Luis Enrique, um ano mais novo do que eu, de quem foi ao mesmo tempo soberana e cúmplice, e que a baptizou com o nome indecifrável de tia Pa. A sua especialidade foram sempre os problemas impossíveis. Ela e Esteban foram os primeiros a chegar à casa de Cataca, mas enquanto ele encontrou o seu rumo em todo o tipo de ofícios e negócios frutíferos, ela ficou como tia indispensável na família, sem nunca se dar conta que o foi. Desaparecia quando não era necessária, mas quando o era não se soube nunca como nem de onde saía. Nos seus maus momentos, falava sozinha enquanto mexia a panela e revelava em voz alta onde estavam as coisas que se davam por perdidas. Ficou na casa quando acabou de enterrar os mais velhos, enquanto as ervas bravas devoravam o espaço palmo a palmo e os animais vagueavam pelos quartos de dormir, perturbada desde a meia‑noite por uma tosse de além‑túmulo no quarto vizinho.

Francisca Simodosea ‑ a tia Mamã ‑ a generala da tribo, que morreu virgem aos setenta e nove anos, era diferente de todos nos seus hábitos e na sua linguagem, pois a sua cultura não era da Província, mas do paraíso feudal das savanas de Bolívar, para onde seu pai, José Maria Mejía Vidal, emigrara muito jovem de Riohacha, com as suas artes de joalharia. Deixara crescer até à curva da perna a cabeleira de cerdas retintas que resistiram às cãs até uma velhice muito avançada. Lavava‑a com águas de essências uma vez por semana e sentava‑se a pentear‑se à porta do seu quarto num cerimonial sagrado de várias horas, consumindo sem descanso umas beatas de tabaco grosseiro que fumava ao contrário, com o fogo dentro da boca, como faziam as tropas liberais para não serem descobertas pelo inimigo no escuro da noite. Também o seu modo de vestir era diferente, com saias de amazona e corpinhos de linho imaculado e babuchas de bombazina.

Ao contrário do purismo castiço da avó, a língua da Mamã era a mais solta do calão popular. Não o dissimulava diante de ninguém nem em circunstância nenhuma e cantava as verdades na cara de cada um. Incluindo uma freira, professora da minha mãe no internato de Santa Marta, que fez estacar em seco com uma impertinência frívola: "A senhora é das que confundem o eu com as têmporas." No entanto, sempre arranjou as coisas de tal forma que nunca pareceu grosseira nem insultuosa.

Durante meia vida foi a depositária das chaves do cemitério, assentava e expedia as certidões de óbito e fazia em casa as hóstias para a missa. Foi a única pessoa da família, de qualquer sexo, que não parecia ter atravessada no coração uma pena de amor contrariado. Tomámos consciência disso uma noite em que o médico se preparava para lhe colocar uma sonda e ela o impediu de o fazer por uma razão que nessa altura não entendi: "Quero avisá‑lo, doutor, que nunca conheci homem."

Desde então, continuei a ouvir‑lha com frequência, mas nunca me pareceu gloriosa nem arrependida, mas como se fosse um facto consumado que não deixou qualquer rasto na sua vida. Em contrapartida, era uma casamenteira refinada, que deve ter sofrido com o seu jogo duplo de fazer o quarto aos meus pais sem ser desleal a Mina.

Tenho a impressão de que se entendia melhor com as crianças do que com os adultos. Foi ela que se ocupou de Sara Emilia até que esta se mudou sozinha para o quarto dos cadernos de Calleja. Então, acolheu‑nos a Margot e a mim em seu lugar, embora a avó tenha continuado encarregada da minha higiene pessoal e o avô se ocupasse da minha formação de homem.

A minha mais inquietante recordação daqueles tempos é a da tia Petra, irmã mais velha do avô, que quando ficou cega veio de Riohacha para viver com eles. Vivia no quarto contíguo ao escritório, onde mais tarde esteve a joalharia, e desenvolveu uma habilidade mágica para se movimentar nas suas trevas sem bengala nem ajuda de ninguém. Ainda me lembro dela como se tivesse sido ontem, andando sem bengala como com os dois olhos, lenta mas sem hesitações e guiando‑se apenas pelos diversos odores. Reconhecia o seu quarto pelo vapor do ácido muriático na joalharia contígua, o corredor pelo perfume dos jasmins do jardim, o quarto dos avós pelo cheiro a álcool de madeira que ambos usavam para esfregar o corpo antes de adormecer, o quarto da tia Mamã pelo cheiro do óleo das lamparinas do altar e, no fim do corredor, o cheiro suculento da cozinha. Era esbelta e silenciosa, com uma pele de açucenas murchas, uma cabeleira radiante cor de nácar que usava solta até à cintura e da qual ela própria se encarregava. As pupilas verdes e diáfanas de adolescente mudavam de luz com os seus estados de espírito. De qualquer forma, eram passeios casuais, pois estava todo o dia no quarto com a porta encostada e quase sempre só. Às vezes cantava em sussurros para si mesma e a sua voz podia confundir‑se com a de Mina, mas as canções eram diferentes e mais tristes. Ouvi dizer a alguém que eram romanzas de Riohacha, mas só em adulto soube que na realidade ela própria as ia inventando à medida que cantava. Duas ou três vezes não pude resistir à tentação de entrar no seu quarto sem que ninguém desse conta, mas não a encontrei. Anos depois, durante umas das minhas férias de bacharel, contei aquelas recordações à minha mãe e ela apressou‑se a persuadir‑me do meu erro. A sua razão era absoluta e pude comprová‑la sem sombra de dúvida: a tia Petra morrera quando eu ainda não tinha dois anos.

Chamávamos Nana à tia Wenefrida e era a mais alegre e simpática da tribo, mas apenas consigo evocá‑la no seu leito de doente. Era casada com Rafael Quintero Ortega ‑ o tio Quinte ‑ um advogado de pobres nascido em Chia, a umas quinze léguas de Bogotá e à mesma altitude acima do nível do mar. Mas adaptou‑se tão bem ao Caribe que no inferno de Cataca precisava de botijas de água quente nos pés para adormecer no fresco de Dezembro. A família recompusera‑se já da desgraça de Medardo Pacheco quando tocou ao tio Quinte sofrer a sua, por matar o advogado da parte contrária num litígio judicial. Tinha uma imagem de homem bom e pacífico, mas o adversário fustigou‑o sem tréguas e não teve outro recurso do que armar‑se. Era tão pequeno e ossudo que calçava sapatos de criança, e os amigos troçavam dele com cordialidade porque o revólver se evidenciava como um canhão por baixo da camisa. O avô preveniu‑o com seriedade com a sua frase célebre: "Não sabe quanto pesa um morto." Mas o tio Quinte não teve tempo para pensar nisso quando o inimigo o interceptou na antecâmara do tribunal com gritos de energúmeno e se atirou para cima dele com o seu corpo descomunal. "Nem sequer percebi como saquei do revólver e disparei para o ar com as duas mãos e os olhos fechados", disse‑me o tio Quinte pouco antes da sua morte centenária. "Quando abri os olhos ‑ contou‑me ‑ ainda o vi de pé, grande e pálido, e foi‑se desmoronando muito devagar até que ficou sentado no chão." Só então o tio Quinte deu conta de que lhe acertara no centro da testa. Perguntei‑lhe o que tinha sentido quando o viu cair e surpreendeu‑me a sua franqueza:

‑ Um imenso alívio!

A minha última recordação da sua mulher Wenefrida foi a de uma noite de grandes chuvas em que foi exorcizada por uma feiticeira. Não era uma bruxa convencional mas sim uma mulher simpática, bem vestida à moda, que espantava com um ramo de urtigas os maus humores do corpo enquanto cantava um esconjuro como uma canção de embalar. De repente, Nana retorceu‑se com uma convulsão profunda e um pássaro do tamanho de um frango e de plumas furta‑cores escapou de entre os lençóis. A mulher apanhou‑o pelo ar com uma pancada certeira e envolveu‑o num pano negro que levava preparado. Ordenou que se acendesse uma fogueira no pátio traseiro e, sem qualquer cerimónia, atirou o pássaro às chamas. Mas Nana não se recompôs dos seus males.

Pouco depois, a fogueira do pátio tornou a ser acesa quando uma galinha pôs um ovo fantástico que parecia uma bola de pingue‑pongue com um apêndice como o de um gorro frígio. A minha avó identificou‑o de imediato: "É um ovo de basilisco." Ela própria o atirou para o fogo, murmurando orações de esconjuro.

Nunca pude conceber os avós numa idade diferente da que tinham nas minhas recordações dessa época. A mesma dos retratos que lhes tiraram nos alvores da velhice e cujas cópias, cada vez mais desmaiadas, foram transmitidas como um rito tribal através de quatro gerações prolíficas. Sobretudo os da avó Tranquilina, a mulher mais crédula e impressionável que alguma vez conheci, pelo espanto que lhe causavam os mistérios da vida diária. Procurava amenizar as suas ocupações habituais cantando em altas vozes velhas canções de apaixonados, mas interrompia‑as de súbito com o seu grito de guerra contra a fatalidade:

‑ Ave Maria Puríssima!

É que via que os baloiços baloiçavam sozinhos, que o fantasma da febre puerperal se metera nas alcovas das parturientes, que o aroma dos jasmins do jardim era como um fantasma invisível, que um cordão deixado cair no chão ao acaso tinha a forma dos números que podiam ser o primeiro prémio da lotaria, que um pássaro sem olhos se desnorteara dentro da sala de jantar e só o puderam espantar com o Magnificat cantado. Julgava decifrar com chaves secretas a identidade dos protagonistas e os lugares das canções que lhe chegavam da Província. Imaginava desgraças que mais tarde ou mais cedo sucediam, pressentia quem ia chegar de Riohacha com um chapéu branco, ou de Manaure com uma cólica que só se podia curar com fel de aura, pois além de profeta de ofício era curandeira furtiva.

Tinha um sistema muito pessoal para interpretar os sonhos próprios e alheios que regiam a conduta diária de cada um de nós e determinavam a vida da casa. No entanto, esteve quase a morrer sem presságios quando tirou com um puxão os lençóis da sua cama e se disparou o revólver que o coronel escondia debaixo da almofada para o ter à mão enquanto dormia. Pela trajectória do projéctil, que se incrustou no tecto, determinou‑se que tinha passado muito perto da cara da avó.

Desde que tive memória, sofri a tortura matinal de Mina me escovar os dentes, enquanto ela gozava do privilégio mágico de tirar os seus para os lavar e deixar num copo de água enquanto dormia. Convencido de que era a sua dentadura natural que tirava e punha por artes guajiras, fiz com que me mostrasse o interior da boca para ver como era por dentro o reverso dos olhos, do cérebro, do nariz, dos ouvidos, e sofri a desilusão de não ver senão o céu da boca. Mas ninguém me decifrou o prodígio e durante bastante tempo insisti para que o dentista me fizesse o mesmo que fizera à avó, para que ela me escovasse os dentes enquanto eu brincava na rua.

Tínhamos uma espécie de código secreto por intermédio do qual comunicávamos ambos com um universo invisível De dia, o seu mundo mágico era fascinante para mim, mas à noite causava‑me um terror puro e simples: o medo da escuridão, anterior ao nosso ser, que me perseguiu durante toda a vida em caminhos solitários e mesmo em antros de baile do mundo inteiro. Na casa dos avós, cada santo tinha o seu quarto e cada quarto tinha o seu morto. Mas a única casa conhecida de modo oficial como "A casa do morto" era a vizinha da nossa, e o seu morto era o único que numa sessão de espiritismo se identificara com o seu nome humano: Alfonso Mora. Alguém próximo dele deu‑se ao trabalho de o procurar nos registos de baptismos e óbitos e encontrou numerosos homónimos, mas nenhum deu sinais de ser o nosso. Aquela foi durante anos a casa paroquial e espalhou‑se a mentira de que o fantasma era o próprio padre Angarita, para espantar os curiosos que o espiavam nas suas andanças nocturnas.

Não cheguei a conhecer Meme, a escrava guajira que a família levou de Barrancas e que, numa noite de tempestade, fugiu com Alirio, o seu irmão adolescente, mas sempre ouvi dizer que foram eles que mais salpicaram a linguagem da casa com a sua língua nativa. O seu castelhano arrevesado foi assombro de poetas desde o dia memorável em que encontrou os fósforos que o tio Juan de Dios tinha perdido e lhos devolveu com a sua gíria triunfal:

‑ Aqui estou, fósforo teu.

Era difícil acreditar que a avó Mina, com as suas mulheres despistadas, fosse o suporte económico da casa quando começaram a faltar os recursos. O coronel tinha algumas terras dispersas que foram ocupadas por colonos cachaços e ele negou‑se a expulsá‑los. Num aperto, para salvar a honra de um dos seus filhos, teve que hipotecar a casa de Cataca e custou‑lhe uma fortuna não a perder. Quando já não chegou para mais, Mina continuou a sustentar a família a pulso com a padaria, os animaizinhos de caramelo que se vendiam em toda a aldeia, as galinhas pedreses, os ovos de pato e as hortaliças do quintal das traseiras. Fez um corte radical da criadagem e ficou com as mais úteis. O dinheiro real acabou por não ter sentido na tradição oral da casa, de modo que quando tiveram que comprar um piano para a minha mãe, no seu regresso da escola, a tia Pa fez a conta exacta em moeda doméstica: "Um piano custa quinhentos ovos."

No meio daquela tropa de mulheres evangélicas, o avô era para mim a segurança completa. Só com ele desaparecia a angústia e me sentia com os pés na terra e bem instalado na vida real. O estranho, pensando agora nisso, é que eu queria ser como ele, realista, valente, seguro, mas nunca consegui resistir à tentação constante de espreitar o mundo da avó. Lembro‑me dele gordo e sanguíneo, com algumas cãs no crânio reluzente, bigode de escova, bem tratado, e uns óculos redondos com armação de ouro. Era de fala pausada, compreensivo e conciliador em tempos de paz, mas os amigos conservadores recordavam‑no como um inimigo temível nas contrariedades da guerra.

Nunca usou uniforme militar, pois o seu posto era revolucionário e não académico, mas até muito depois das guerras usava o liquilique (Liquilique ‑ blusa de algodão grosso abotoada desde o pescoço. (N. T.)), que era de uso habitual entre os veteranos do Caribe. Logo que foi promulgada a lei das pensões de guerra, preencheu os impressos para obter a sua e tanto ele como a mulher e os herdeiros mais próximos continuaram à espera até à morte. A minha avó Tranquilina, que morreu longe daquela casa, cega, decrépita e meio louca, disse‑me nos seus últimos momentos de lucidez: "Morro tranquila porque sei que vocês vão receber a pensão do Nicolasito."

Foi a primeira vez que ouvi aquela palavra mítica que semeou na família o germe das ilusões eternas: a reforma Entrara na casa antes do meu nascimento, quando o governo estabeleceu as pensões para os veteranos da Guerra dos Mil Dias. O próprio avô preparou a papelada, até com excesso de testemunhos jurados e documentos comprovatórios, e levou tudo em pessoa a Santa Marta para assinar o protocolo da entrega. De acordo com os cálculos menos alegres, era uma quantidade bastante para ele e os seus descendentes até à segunda geração. "Não se preocupem ‑ dizia‑nos a avó ‑ o dinheiro da reforma há‑de chegar para tudo." O correio, que nunca foi uma coisa urgente na família, transformou‑se então num enviado da Divina Providência.

Eu próprio não consegui escapar‑lhe, com a carga de incerteza que tinha dentro. No entanto, em certas ocasiões, Tranquilina era de uma têmpera que em nada correspondia ao seu nome. Na Guerra dos Mil Dias, o meu avô foi preso em Riohacha por um primo‑irmão dela que era oficial do exército conservador. A parentela liberal, e ela própria, entenderam isso como um acto de guerra perante o qual o poder familiar não valia nada. Mas quando a avó ficou a saber que tinham o marido no cepo como um criminoso de delito comum, enfrentou o primo com um chicote e obrigou‑o a entregar‑lho são e salvo.

O mundo do avô era outro, bem diferente. Mesmo nos seus últimos anos, parecia muito ágil quando andava por todos os lados com a sua caixa de ferramentas para reparar os males da casa, ou quando fazia subir a água para a casa de banho durante horas com a bomba manual do quintal das traseiras, ou quando trepava as escadas íngremes para verificar a quantidade de água nos tonéis, mas, em contrapartida, pedia‑me que lhe atasse os cordões das botas porque ficava sem fôlego quando ele próprio o fazia. Não morreu por milagre uma manhã em que tentou apanhar o papagaio cego que trepara até aos tonéis. Conseguira agarrá‑lo pelo pescoço quando escorregou na passarela e caiu ao chão, de uma altura de quatro metros. Ninguém entendeu nunca como pôde sobreviver com os seus noventa quilos e os seus cinquenta e tantos anos. Esse foi para mim o dia memorável em que o médico o examinou nu, na cama, palmo a palmo, e lhe perguntou o que era uma velha cicatriz de meia polegada que lhe descobriu na virilha. ‑ Foi uma bala na guerra ‑ disse o avô. Ainda não recuperei da emoção. Como não recuperei do dia em que assomou a cabeça à rua pela janela do seu escritório para conhecer um famoso cavalo de raça que lhe queriam vender e de repente sentiu que o olho se lhe enchia de água. Procurou proteger‑se com a mão e ficaram‑lhe na palma umas gotas de um líquido diáfano. Não só perdeu o olho direito, como a minha avó não permitiu que comprasse o cavalo habitado pelo diabo. Usou por pouco tempo uma pala de pirata sobre a órbita nublada, até que o oculista a substituiu por uns óculos bem graduados e lhe receitou uma bengala de carreto (Carreto ou cenízaro ‑ árvore de copa larga, que se cobre de flores rosadas ou vermelhas, conforme a variedade, cuja fruta serve de alimento ao gado e que tem uma madeira dura e fina. (N. T.)), que acabou por ser um sinal de identidade, como o reloginho de bolso com corrente de ouro, cuja tampa se abria com um sobressalto musical. Sempre foi do domínio público que as perfídias dos anos que começavam a inquietá‑lo não afectaram em nada as suas manhas de sedutor secreto e bom amante.

No banho ritual das seis da manhã, que nos seus últimos anos tomou sempre comigo, deitávamos sobre nós água do reservatório com uma cabaça e acabávamos encharcados em Agua Florida de Lanman y Kemps, que os contrabandistas do Curaçau vendiam às caixas ao domicílio, como o brandy e as camisas de seda chinesa. Algumas vezes ouviram‑no dizer que era o único perfume que usava porque só o cheirava quem o punha, mas não voltou a acreditar nisso quando alguém o reconheceu numa almofada alheia. Outra história que ouvi repetir durante anos foi a de uma noite em que faltou a luz e o avô despejou um frasco de tinta na cabeça julgando que era a sua Agua Florida.

Para os trabalhos diários dentro de casa, usava calças de cotim com os suspensórios elásticos de sempre, sapatos macios e um boné de pano com pala. Para a missa do domingo, a que faltou muito poucas vezes e só por razões de força maior, ou para quaisquer efemérides ou memoriais de um determinado dia, envergava um fato completo de linho branco, com colarinho de celulóide e gravata preta. Estas raras ocasiões valeram‑lhe sem dúvida a sua fama de excêntrico e petulante. A impressão que tenho hoje é de que a casa com tudo o que tinha dentro só existia para ele, pois era um casamento exemplar do machismo numa sociedade matriarcal, em que o homem é rei absoluto de sua casa, mas quem governa é a mulher. Dito sem mais histórias, ele era o macho. Quer dizer: um homem de uma ternura extrema em privado, da qual se envergonhava em público, enquanto a mulher se incinerava para o fazer feliz.

Os avós fizeram outra viagem a Barranquilla nos dias em que se celebrou o primeiro centenário da morte de Simón Bolívar, em Dezembro de 1930, para assistirem ao nascimento da minha irmã Aida Rosa, a quarta da família. De regresso a Cataca, trouxeram consigo Margot, com pouco mais de um ano, e os meus Pais ficaram com Luis Enrique e a recém‑nascida. Tive dificuldade em habituar‑me à mudança, porque Margot chegou à casa como um ser de outra vida, raquítica e rústica, e com um mundo interior impenetrável. Quando Abigail ‑ a mãe de Luis Carmelo Corrêa ‑ a viu, não entendeu que os meus avós se tivessem encarregado de semelhante compromisso. "Esta menina é uma moribunda", disse. De qualquer maneira, diziam o mesmo de mim, porque comia pouco, porque pestanejava, porque as coisas que contava lhes pareciam tão extraordinárias que as julgavam mentiras, sem pensar que a maioria eram certas de outra forma. Só anos depois fiquei a saber que o doutor Barboza fora o único a defender‑me com um argumento sábio: "As mentiras das crianças são sinais de um grande talento."

Passou muito tempo antes que Margot se rendesse à vida familiar. Sentava‑se na cadeirinha de baloiço a chupar o dedo no canto menos imaginado. Nada lhe chamava a atenção, salvo o sino do relógio, que de hora a hora procurava com os grandes olhos de alucinada. Não conseguiram que comesse durante vários dias. Recusava a comida sem dramatismo e às vezes deitava‑a nos cantos. Ninguém entendia como estava viva sem comer, até que deram conta que só gostava da terra húmida do jardim e dos pedaços de cal que arrancava das paredes com as unhas. Quando a avó descobriu, pôs fel de vaca nos recantos mais apetitosos do jardim e escondeu pimentos picantes nos vasos. O padre Angarita baptizou‑a na mesma cerimónia com que ratificou o baptismo de emergência que me tinham feito ao nascer. Recebi‑o de pé, em cima de uma cadeira, e suportei com delicada coragem o sal de cozinha que o padre me pôs na língua e o jarro de água que me derramou na cabeça. Margot, pelo contrário, exasperou‑se com as duas coisas com um guincho de fera ferida e uma rebelião de corpo inteiro que padrinhos e madrinhas conseguiram controlar com dificuldade sobre a pia baptismal.

Hoje penso que ela, na sua relação comigo, fazia mais uso da razão do que os adultos entre eles. A nossa cumplicidade era tão estranha que em mais do que uma ocasião adivinhámos o pensamento um do outro. Numa manhã, estávamos os dois a brincar no jardim quando soou o apito do comboio como todos os dias às onze. Mas dessa vez senti ao ouvi‑lo a revelação inexplicável de que nesse comboio vinha o médico da companhia bananeira que meses antes me dera uma beberagem de ruibarbo que me causou uma crise de vómitos. Corri por toda a casa com gritos de alarme, mas ninguém acreditou em mim. Salvo a minha irmã Margot, que permaneceu escondida comigo até que o médico acabou de almoçar e se foi embora no comboio de regresso. "Ave Maria Puríssima! ‑ exclamou a minha avó, quando nos encontraram escondidos debaixo da sua cama ‑ com estes pequenos não são necessários telegramas."

Nunca consegui superar o medo de estar só e muito menos no escuro, mas parece‑me que isso tinha uma origem concreta: na noite materializavam‑se as fantasias e os presságios da avó. Ainda aos setenta anos vislumbrei em sonhos o ardor dos jasmins no corredor e o fantasma dos quartos de dormir sombrios e sempre com o sentimento que me consumiu a infância: o pavor da noite. Muitas vezes pressenti, nas minhas insónias pelo mundo inteiro, que também arrasto a condenação daquela casa mítica num mundo feliz onde morríamos todas as noites.

O mais estranho é que a avó mantinha a casa com o seu sentido da irrealidade. Como era possível manter aquele trem de vida com tão escassos recursos? As contas não dão. O coronel aprendera o ofício com o pai, que por sua vez o aprendera com o seu e, apesar da celebridade dos seus peixinhos de ouro, que se viam por todo o lado, não eram um bom negócio. Mais ainda: quando eu era pequeno, dava‑me a impressão de que ' os fazia de vez em quando ou se preparava uma prenda de casamento. A avó dizia que ele só trabalhava para oferecer. No entanto, a sua fama de bom funcionário ficou bem assente quando o Partido Liberal conquistou o poder e foi tesoureiro durante anos e chefe de finanças várias vezes.

Não posso imaginar um meio familiar mais propício para a minha vocação do que aquela casa louca, em especial devido ao carácter das numerosas mulheres que me criaram. Os únicos homens eram o meu avô e eu, e ele iniciou‑me na triste realidade dos adultos com relatos de batalhas sangrentas e explicações escolares do voo dos pássaros e dos trovões do entardecer e encorajou o meu entusiasmo pelo desenho. A princípio desenhava nas paredes, até que as mulheres da casa protestaram com indignação: a parede e a muralha são o papel da canalha. O meu avô enfureceu‑se e mandou pintar de branco uma parede da sua joalharia e comprou‑me lápis de cores e mais tarde um estojo de aguarelas para pintar à vontade, enquanto ele fabricava os seus célebres peixinhos de ouro. Houve vezes em que o ouvi dizer que o neto ia ser pintor, e não me chamou a atenção porque eu acreditava que os pintores eram apenas os que pintavam portas.

Os que me conheceram aos quatro anos dizem que era pálido e ensimesmado e que só falava para contar disparates, mas os meus relatos eram em grande parte episódios simples da vida diária, que eu tornava mais atraentes com pormenores fantásticos para que os adultos me prestassem atenção. A minha melhor fonte de inspiração eram as conversas que os mais velhos mantinham diante de mim, porque pensavam que não as entendia, ou as que cifravam de propósito para que não as entendesse. E, de facto, acontecia o contrário: absorvia‑as como uma esponja, desmontava‑as em peças, alterava‑as sem escamotear a origem, e quando as contava aos mesmos que as tinham contado ficavam perplexos pelas coincidências entre o que eu dizia e o que eles pensavam.

Às vezes não sabia o que fazer com a minha consciência e procurava dissimular com um rápido pestanejar. Tanto era assim que algum racionalista da família decidiu que eu fosse observado por um médico da vista, que atribuiu o meu pestanejar a uma infecção das amígdalas e me receitou um xarope de rábano iodado que me fez muito bem para aliviar os adultos. A avó, por seu lado, chegou à conclusão providencial de que o neto era adivinho. Isso transformou‑a na minha vítima favorita, até ao dia em que sofreu uma vertigem porque sonhei na verdade que tinha saído um pássaro vivo da boca do avô. O susto de que morresse por minha culpa foi o primeiro elemento moderador do meu precoce desvario. Agora penso que não eram infâmias de criança, como se podia pensar, mas técnicas rudimentares de narrador em embrião para tornar a realidade mais divertida e compreensível.

O meu primeiro passo na vida real foi a descoberta do futebol no meio da rua ou nalgumas hortas vizinhas. O meu professor era Luis Carmelo Corrêa, que nasceu com um instinto próprio para os desportos e um talento congénito para as matemáticas. Eu era cinco meses mais velho, mas ele fazia troça de mim porque crescia mais e mais depressa do que eu. Começámos a jogar com bolas de trapo e consegui ser um bom guarda‑redes, mas quando passámos à bola regulamentar levei uma pancada no estômago com um pontapé tão potente dele que por ali se ficaram as minhas veleidades. As vezes em que nos encontrámos depois de adultos, comprovei com grande alegria que nos continuámos a tratar como quando éramos pequenos. No entanto, a minha recordação mais impressionante dessa época foi a passagem fugaz do superintendente da companhia bananeira num sumptuoso automóvel descoberto, junto de uma mulher de longos cabelos dourados, soltos ao vento, e com um pastor‑alemão sentado como um rei no lugar de

honra. Eram aparições instantâneas de um mundo remoto e inverosímil que estava vedado aos mortais.

Comecei a ajudar à missa sem demasiada credulidade mas com um rigor que talvez funcione como um ingrediente essencial da fé. Deve ter sido por essas boas virtudes que me levaram aos seis anos ao padre Angarita a fim de que me iniciasse nos mistérios da primeira comunhão. Mudou‑me a vida. Começaram a tratar‑me como a um adulto e o sacristão mais velho ensinou‑me a ajudar à missa. O meu único problema foi que não consegui entender em que momento devia tocar a campainha e tocava‑a quando me lembrava, por pura e simples inspiração. À terceira vez, o padre voltou‑se para mim e ordenou‑me em tom áspero que não a tocasse mais. A parte boa do ofício era quando o outro menino do coro, o sacristão e eu ficávamos sós para pôr a sacristia em ordem e comíamos as hóstias que sobravam com um copo de vinho.

Na véspera da primeira comunhão, o padre confessou‑me sem preâmbulos, sentado como um Papa de verdade na poltrona tronal e eu ajoelhado em frente dele numa almofada de peluche. A minha consciência do bem e do mal era bastante simples, mas o padre assistiu‑me com um dicionário de pecados para que eu respondesse quais os que tinha cometido e quais os que não. Creio que respondi bem até que me perguntou se não tinha feito coisas imundas com animais. Tinha a noção confusa de que alguns dos mais velhos cometiam com as burras pecados que nunca tinha entendido, mas só naquela noite aprendi que também era possível com as galinhas. Deste modo, o meu primeiro passo para a primeira comunhão foi outro salto grande na perda da inocência e não senti nenhum estímulo para continuar como menino de coro.

A minha prova de fogo foi quando os meus pais se mudaram para Cataca com Luis Enrique e Aida, os meus outros dois irmãos. Margot, que mal se lembrava do pai, tinha terror dele. Eu também, mas comigo foi sempre mais cauteloso. Só uma vez tirou o cinto para me açoitar e eu estaquei em posição de sentido, mordi os lábios e olhei‑o nos olhos, disposto a suportar fosse o que fosse para não chorar. Ele baixou o braço e começou a pôr o cinto, enquanto me recriminava entre dentes pelo que tinha feito. Nas nossas longas conversas de adultos, confessou‑me que lhe doía muito açoitar‑nos, mas que talvez o fizesse pelo terror de sairmos malformados. Nos seus bons momentos era divertido. Adorava contar piadas à mesa, e algumas muito boas, mas repetia‑as tanto que um dia o Luis Enrique se levantou e disse:

‑ Avisem‑me quando acabarem de rir.

No entanto, a açoitadela histórica foi na noite em que não apareceu em casa dos pais nem na dos avós e o procuraram em meia aldeia até que o encontraram no cinema. Celso Daza, o vendedor de refrescos, servira‑lhe um de sapota (Sapota ‑ fruto de uma árvore sapotácea às vezes espinhosa da América. (N. T.)) às oito da noite e ele desaparecera sem pagar e com o copo. A vendedora de fritadas vendeu‑lhe uma empada e viu‑o pouco depois conversando com o porteiro do cinema, que o deixou entrar de graça porque lhe disse que o pai o esperava lá dentro. O filme era Drácula, com Carlos Villarías e Lupita Tovar, realizado por George Melford. Luis Enrique contou‑me durante anos o seu terror no instante em que se acenderam as luzes do cinema quando o conde Drácula ia cravar os dentes no pescoço da bela. Estava no lugar mais escondido que encontrou livre na galeria e dali viu o pai e o avô procurando fila por fila na plateia, com o dono do cinema e dois agentes da polícia. Estavam quase a desistir quando Papalelo o descobriu na última fila do galinheiro e o apontou com a bengala:

‑ Está ali!

O meu pai tirou‑o de lá agarrado pelo cabelo e a coça que lhe deu em casa ficou como um escarmento lendário na história da família. O meu terror e admiração por aquele acto de independência do meu irmão ficaram vivos para sempre na minha memória. Mas ele parecia sobreviver a tudo cada vez mais heróico. No entanto, hoje intriga‑me que a sua rebeldia não se manifestasse nas raras épocas em que o meu pai não esteve em casa.

Refugiei‑me mais do que nunca na sombra do avô. Estávamos sempre juntos, durante as manhãs na joalharia ou no seu escritório de administrador de finanças, onde me deu uma incumbência feliz: desenhar os ferros das vacas que iam ser sacrificadas, e levava isso tão a sério que me cedia o lugar na secretária. À hora do almoço, com todos os convidados, sentávamo‑nos sempre na cabeceira, ele com o seu jarro grande de alumínio para a água gelada e eu com uma colher de prata que me servia para tudo. Chamava a atenção que, quando eu queria um pedaço de gelo, metia a mão no jarro para o ir buscar e ficava na água uma nata de gordura. O meu avô defendia‑me: "Ele tem todos os direitos."

Às onze íamos à chegada do comboio, pois o seu filho Juan de Dios, que continuava a viver em Santa Marta, mandava‑lhe uma carta todos os dias pelo maquinista de turno, que cobrava cinco centavos. O avô respondia‑lhe, por outros cinco centavos, no comboio de regresso. À tarde, quando o Sol baixava, levava‑me pela mão para fazer as suas diligências pessoais, íamos à barbearia ‑ que era o quarto de hora mais comprido da minha infância, ‑ ver os foguetes das festas nacionais ‑ que me aterrorizavam, ‑ às procissões da Semana Santa ‑ com o Cristo morto que desde sempre julguei de carne e osso. ‑ Eu usava nessa altura um boné de quadrados escoceses, igual a um do avô, que Mina me comprara para que me parecesse mais com ele. Tão bem o conseguiu que o tio Quinte nos via como uma só pessoa com duas idades diferentes.

A qualquer hora do dia o avô levava‑me às compras, ao entreposto suculento da companhia bananeira. Ali conheci os pargos e pela primeira vez pus a mão sobre o gelo e perturbou‑me descobrir que era frio. Era feliz comendo o que me apetecia, mas aborreciam‑me os jogos de xadrez com o Belga e as conversas políticas. Apercebo‑me agora, no entanto, de que naqueles longos passeios víamos dois mundos diferentes. O meu avô via o dele, no seu horizonte, e eu via o meu, à altura dos meus olhos. Ele cumprimentava os amigos nas varandas e eu cobiçava os brinquedos dos tabuleiros expostos nos passeios.

Ao cair da noite, demorávamo‑nos no barulho universal de Las Cuatro Esquinas, ele conversando com D. António Daconte, que o recebia de pé na porta do seu colorido estabelecimento, e eu assombrado com as novidades do mundo inteiro. Enlouqueciam‑me os mágicos de feira que tiravam coelhos dos chapéus, os engolidores de velas, os ventríloquos que faziam falar os animais, os acordeonistas que cantavam aos gritos as coisas que aconteciam na Província. Apercebo‑me hoje de que um deles, muito velho e com uma barba branca, podia ser o lendário Francisco el Hombre.

Cada vez que o filme lhe parecia apropriado, D. António Daconte convidava‑nos para a primeira sessão do seu salão Olympia, para alarme da avó, que considerava isso como uma libertinagem imprópria para um neto inocente. Mas o Papalelo persistiu, e no dia seguinte fazia‑me contar o filme à mesa, corrigia‑me os esquecimentos e erros e ajudava‑me a reconstruir os episódios difíceis. Eram vislumbres de arte dramática que sem dúvida de algo me serviram, sobretudo quando comecei a desenhar tiras cómicas ainda antes de aprender a escrever. A princípio elogiavam‑mo como graças pueris, mas agradavam‑me tanto os aplausos fáceis dos adultos que estes acabaram por fugir quando me sentiam aproximar. Mais tarde, sucedeu‑me o mesmo com as canções que me obrigavam a cantar em casamentos e aniversários.

Antes de ir dormir, passávamos um bom bocado pela oficina do Belga, um velho pavoroso que apareceu em Aracataca depois da Primeira Guerra Mundial e não duvido que fosse belga devido à recordação que tenho do seu sotaque confuso e das suas nostalgias de navegante. O outro ser vivo em sua casa era um grande danois, surdo e pederasta, que se chamava como o presidente dos Estados Unidos: Woodrow Wilson. Conheci o Belga por volta dos meus quatro anos, quando o meu avô ia jogar com ele umas partidas de xadrez mudas e intermináveis. Espantou‑me desde a primeira noite por não haver na sua casa nada que eu soubesse para que servia. Era um artista de tudo, que sobrevivia no meio da desordem das suas próprias obras: paisagens marinhas a pastel, fotografias de crianças em aniversários e primeiras comunhões, cópias de jóias asiáticas, figuras feitas com chifres de vaca, móveis de época e estilos dispersos, empoleirados uns em cima dos outros. Chamou‑me a atenção a sua pele colada aos ossos, da mesma cor amarela solar do cabelo e com uma madeixa que lhe caía para a cara e o incomodava ao falar. Fumava um cachimbo de lobo do mar que só acendia para o xadrez, e o meu avô dizia que era um ardil para aturdir o adversário. Tinha um olho de vidro desorbitado que parecia mais pendente do interlocutor do que o olho são. Estava inválido da cintura para baixo, curvado para diante e torcido para a esquerda, mas navegava como um peixe por entre os escolhos das suas oficinas, mais pendurado do que apoiado nas muletas de madeira. Nunca o ouvi falar das suas navegações, que ao que parece eram muitas e intrépidas. A única paixão que se lhe conhecia além da casa era a do cinema e aos fins‑de‑semana não faltava a nenhum filme, fosse de que género fosse.

Nunca gostei dele e menos ainda durante as partidas de xadrez em que demorava horas para mover uma peça enquanto eu caía de sono. Uma noite vi‑o tão desamparado que me assaltou o presságio de que ia morrer muito em breve e senti pena dele. Mas com o tempo chegou a pensar tanto as jogadas que acabei por desejar de todo o coração que morresse.

Por essa época, o meu avô pendurou na sala de jantar o quadro do Libertador Simón Bolívar em câmara ardente. Tive dificuldade em entender que não tivesse o sudário dos mortos que eu tinha visto nos velórios, mas que estivesse estendido numa secretária de escritório com o uniforme dos seus dias de glória. O meu avô tirou‑me de dúvidas com uma frase terminal:

‑ Ele era diferente.

Depois, com uma voz trémula que não parecia a sua, leu‑me um longo poema pendurado junto do quadro, do qual apenas recordei para sempre os versos finais: "Tu, Santa Marta, foste hospitaleira e deste‑lhe no teu regaço pelo menos esse pedaço das praias do mar para morrer.» Desde então, e durante muitos anos, ficou‑me a ideia de que tinham encontrado Bolívar morto na praia. Foi o meu avô que mo mostrou e me pediu que não esquecesse nunca que aquele foi o homem maior que nasceu na história do mundo. Confundido pela discrepância entre a sua frase e outra que a avó me dissera com igual ênfase, perguntei ao avô se Bolívar era maior do que Jesus Cristo.

Ele respondeu‑me, abanando a cabeça sem a convicção anterior:

‑ Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Agora sei que tinha sido a minha avó que impusera ao marido que me levasse com ele nos seus passeios vespertinos, pois tinha a certeza de que eram pretextos para visitar as suas amantes reais ou supostas. É provável que algumas vezes lhe tivesse servido de álibi, mas a verdade é que nunca foi comigo a nenhum lugar que não estivesse no itinerário previsto. No entanto, tenho a imagem nítida de uma noite em que passei por acaso pela mão de alguém em frente de uma casa desconhecida e vi o avô sentado na sala como dono e senhor. Nunca pude entender por que me abalou a clarividência de que não devia contar aquilo a ninguém. Até ao sol de hoje.

Foi também o meu avô que estabeleceu o meu primeiro contacto com a letra escrita aos cinco anos, numa tarde em que me levou a conhecer os animais de um circo que estava de passagem em Cataca, debaixo de uma tenda grande como uma igreja. O que mais me chamou a atenção foi um ruminante maltratado e triste com uma expressão de mãe assombrosa.

‑ É um camelo ‑ disse‑me o avô. Alguém que estava perto interveio:

‑ Perdão, coronel, é um dromedário.

Posso imaginar agora como se deve ter sentido o avô por alguém o ter corrigido na presença do neto. Sem sequer pensar, ultrapassou o caso com uma pergunta digna:

‑ Qual é a diferença?

Não sei ‑ disse o outro ‑, mas este é um dromedário.

O avô não era um homem culto, nem pretendia sê‑lo, pois fugira da escola pública de Riohacha para ir dar tiros numa das incontáveis guerras civis do Caribe. Nunca mais voltou a estudar, mas toda a vida esteve consciente das suas deficiências e tinha uma avidez de conhecimentos imediatos que compensava de sobra as suas lacunas. Naquela tarde do circo voltou abatido para o escritório e consultou o dicionário com uma atenção infantil. Então, soube ele e soube eu para sempre a diferença entre um dromedário e um camelo. No final pôs‑me o glorioso calhamaço no colo e disse‑me:

‑ Este livro não só sabe tudo como é o único que nunca se engana.

Era um alfarrábio ilustrado, com um atlante colossal na capa, em cujos ombros poisava a abóbada do universo. Eu não sabia ler nem escrever, mas podia imaginar como o coronel tinha razão se eram quase duas mil páginas grandes, coloridas e com desenhos encantadores. Na igreja assombrara‑me o tamanho do missal, mas o dicionário era mais grosso. Foi como debruçar‑me sobre o mundo inteiro pela primeira vez.

‑ Quantas palavras terá? ‑ perguntei.

‑ Todas ‑ disse o avô.

A verdade é que eu não precisava nessa altura da palavra escrita porque conseguia expressar com desenhos tudo o que me impressionava. Aos quatro anos desenhara um mágico que cortava a cabeça à mulher e lha voltava a colocar, como fizera Richardine na sua passagem pelo salão Olympia. A sequência gráfica começava com a decapitação a serrote, continuava com a exibição triunfal da cabeça sangrante, e acabava com a mulher que agradecia os aplausos com a cabeça posta. As historietas gráficas já tinham sido inventadas, mas só vim a conhecê‑las mais tarde, no suplemento a cores dos jornais dominicais. Comecei então a inventar histórias desenhadas e sem diálogos. No entanto, quando o avô me ofereceu o dicionário, despertou em mim tal curiosidade pelas palavras que o lia como um romance, por ordem alfabética e sem entender nada. Foi assim o meu primeiro contacto com o que haveria de ser o livro fundamental no meu destino de escritor.

Conta‑se às crianças um primeiro conto que na realidade lhes chama a atenção e dá muito trabalho fazer com que queiram ouvir outro. Creio que não é este o caso das crianças narradoras, e não foi o meu. Eu queria mais. A voracidade com que ouvia os contos deixava‑me sempre à espera de um melhor no dia seguinte, sobretudo os que tinham que ver com os mistérios da história sagrada.

Tudo o que me acontecia na rua tinha uma ressonância enorme em casa. As mulheres da cozinha contavam‑no aos forasteiros que chegavam no comboio ‑ que, por sua vez, traziam outras coisas para contar ‑ e, tudo junto, incorporava‑se na torrente da tradição oral. Alguns factos eram primeiro conhecidos pelos acordeonistas, que os cantavam nas feiras e que os viajantes recontavam e enriqueciam. No entanto, o mais impressionante da minha infância saiu‑me ao caminho num domingo, muito cedo, quando íamos para a missa, numa frase desencaminhada da minha avó:

‑ O pobre Nicolasito vai perder a missa de Pentecostes. Alegrei‑me, porque a missa dos domingos era demasiado

comprida para a minha idade e os sermões do padre Angarita, de quem tanto gostei quando era pequeno, pareciam‑me soporíferos. Mas foi uma ilusão vã, pois o avô levou‑me quase de rastos até à oficina do Belga, com o fato de bombazina verde que me tinham vestido para a missa e me apertava entre pernas. Os agentes da guarda reconheceram o avô de longe e abriram‑lhe a porta com a fórmula ritual:

‑ Entre, coronel.

Só então fiquei a saber que o Belga tinha aspirado uma poção de cianeto de ouro ‑ que partilhou com o cão ‑ depois de ver A Oeste Nada de Novo, o filme de Lewis Milestone sobre o romance de Erich Maria Remarque. A intuição popular, que encontra sempre a verdade até onde não é possível, entendeu e proclamou que o Belga não tinha resistido à comoção de se ver a si mesmo rastejando com a sua patrulha destroçada num pântano da Normandia.

A pequena sala de visitas estava na penumbra devido às janelas fechadas, mas a luz matinal do pátio iluminava o quarto de dormir, onde o alcaide com outros dois agentes esperavam pelo avô. Ali estava o cadáver, coberto com uma manta num catre de campanha, e as muletas ao alcance da mão, onde o dono as deixou antes de se deitar para morrer. A seu lado, sobre um banquinho de madeira, estava o pequeno recipiente onde vaporizara o cianeto e um papel com letras grandes desenhadas a pincel: "Não culpem ninguém, mato‑me por ser tolo." Os trâmites legais e os pormenores do enterro, resolvidos com rapidez pelo avô, não demoraram mais de dez minutos. Para mim, no entanto, foram os dez minutos mais impressionantes que haveria de recordar na minha vida.

A primeira coisa que me impressionou desde a entrada foi o cheiro do quarto. Só muito depois vim a saber que era o cheiro a amêndoas amargas do cianeto que o Belga inalara para morrer. Mas nem essa nem nenhuma outra impressão haveria de ser mais intensa e duradoira do que a visão do cadáver, quando o alcaide afastou a manta para mostrá‑lo ao avô. Estava nu, teso e retorcido, com a pele áspera coberta de pêlos amarelos e os olhos de águas mansas que nos olhavam como se estivessem vivos. Esse pavor de ser visto a partir da morte perturbou‑me durante anos, de cada vez que passava junto dos túmulos sem cruzes dos suicidas enterrados fora do cemitério por determinação da Igreja. No entanto, o que mais voltou à minha memória, com a sua carga de horror à vista do cadáver, foi o tédio das noites em sua casa. Talvez por isso disse ao meu avô quando abandonámos a casa: ‑ O Belga nunca mais jogará xadrez.

Foi uma ideia fácil, mas o meu avô contou‑a em família como uma ocorrência genial. As mulheres divulgavam‑na com tanto entusiasmo que durante algum tempo fugia das visitas com receio que o contassem à minha frente e me obrigassem a repeti‑lo. Isto revelou‑me, aliás, uma condição dos adultos que me havia de ser muito útil como escritor: cada um o contava com pormenores novos, acrescentados por sua conta, a ponto de as diversas versões acabarem por ser diferentes da original. Ninguém imagina a compaixão que sinto desde então pelas pobres crianças declaradas génios pelos pais, que os fazem cantar nas visitas, imitar vozes de pássaros e, inclusive, mentir para divertir. Apercebo‑me hoje, no entanto, de que aquela frase tão simples foi o meu primeiro êxito literário.

Era essa a minha vida em 1932, quando anunciaram que as tropas do Peru, sob o regime militar do general Luis Miguel Sánchez Cerro, tinham tomado a desguarnecida povoação de Letícia, nas margens do rio Amazonas, no extremo sul da Colômbia. A notícia ecoou por todo o país. O governo decretou a mobilização nacional e uma colecta pública para recolher de casa em casa as jóias familiares de mais valor. O patriotismo exacerbado pelo ataque traiçoeiro das tropas peruanas provocou uma resposta popular sem precedentes. Os funcionários encarregados da colecta não tinham mãos a medir para receber os tributos voluntários casa por casa, sobretudo as alianças, tão apreciadas tanto pelo seu preço real como pelo seu valor simbólico.

Para mim, pelo contrário, foi uma das épocas mais felizes pelo que teve de desordem. Quebrou‑se o rigor estéril das escolas e foi substituído nas ruas e nas casas pela criatividade popular. Formou‑se um batalhão cívico com a parte mais notável da juventude, sem distinções de classes nem de cores, criaram‑se as brigadas femininas da Cruz Vermelha, improvisaram‑se hinos de guerra de morte contra o malvado agressor, e um grito unânime ressoou no âmbito da pátria: "Viva a Colômbia, abaixo o Peru!"

Nunca soube em que terminou aquela gesta, porque ao fim de um certo tempo acalmaram‑se os ânimos sem suficientes explicações. A paz consolidou‑se com o assassinato do general Sánchez Cerro pela mão de algum opositor do seu reinado sangrento, e o grito de guerra tornou‑se rotina para celebrar as vitórias do futebol escolar. Mas os meus pais, que tinham contribuído para a guerra com as alianças, nunca se restabeleceram da sua ingenuidade.

Até onde me lembro, a minha vocação para a música revelou‑se nesses anos pelo fascínio que me provocavam os acordeonistas com as suas canções de caminhantes. Sabia algumas de cor, como as que cantavam às escondidas as mulheres da cozinha, porque a minha avó as considerava canções de guacherna (Guacherna ‑ desfile nocturno, acompanhado de lanternas, cumbiambas e tambores, das candidatas dos bairros e do povo em geral, que se realiza na sexta‑feira da semana anterior ao Carnaval. (N. T.)). No entanto, a minha urgência de cantar para me sentir vivo foi‑me infundida pelos tangos de Carlos Gardel, que contagiaram meio mundo. Vestia‑me como ele, com chapéu de feltro e cachecol de seda, e não eram necessárias demasiadas súplicas para que cantasse um tango a plenos pulmões. Até à terrível manhã em que a tia Mamã me acordou com a notícia de que Gardel morrera no choque de dois aviões em Medellín. Meses antes, eu cantara Costa Abaixo num sarau de beneficência, acompanhado pelas irmãs Echeverri, bogotanas (Bogotana ‑ natural de Bogotá. (N. T.)) puras, que eram professoras de professores e alma de quanto sarau de beneficência e comemoração patriótica se celebrava em Cataca. E cantei com tanta emoção que a minha mãe não se atreveu a contrariar‑me quando lhe disse que queria aprender piano em vez do acordeão repudiado pela avó.

Naquela mesma noite levou‑me às meninas Echeverri para que me ensinassem. Enquanto elas conversavam, eu mirava o piano do outro extremo da sala, com uma devoção de cão sem dono, calculava se as minhas pernas chegariam aos pedais e duvidava de que o meu polegar e meu dedo mindinho chegassem para os intervalos desorbitados ou se seria capaz de decifrar os hieróglifos do pentagrama. Foi uma visita de belas esperanças durante duas horas. Mas inútil, porque as professoras no final disseram‑nos que o piano estava fora de serviço e não sabiam até quando. A ideia ficou adiada até que regressasse o afinador do piano, mas não se voltou a falar dela até meia vida depois, quando recordei à minha mãe, numa conversa casual, a mágoa que senti por não aprender piano. Ela suspirou:

‑ E o pior ‑ disse ‑ é que não estava estragado.

Soube então que se tinha posto de acordo com as professoras sobre o pretexto do piano estragado para me evitar a tortura que ela sofrera durante cinco anos de exercícios estúpidos no Colégio de La Presentación. O consolo foi que em Cataca tinham aberto por aqueles anos a escola montessoriana, cujas professoras estimulavam os cinco sentidos por meio de exercícios práticos e ensinavam a cantar. Com o talento e a beleza da directora, Rosa Elena Fergusson, estudar era algo tão maravilhoso como brincar a estar vivo. Aprendi a apreciar o olfacto, cujo poder de evocações nostálgicas é arrasador. O paladar, que afinei até ao ponto de ter provado bebidas que sabem a janela, pães velhos que sabem a baú e infusões que sabem a missa. Em teoria, é difícil entender estes prazeres subjectivos, mas os que os tiverem vivido compreendê‑los‑ão de imediato.

Não creio que haja método melhor do que o montessoriano para sensibilizar as crianças às belezas do mundo e para lhes despertar a curiosidade pelos segredos da vida. Censuraram‑lhe que fomentava o sentido de independência e o individualismo ‑ e talvez no meu caso fosse certo. Pelo contrário, nunca aprendi a dividir ou a extrair a raiz quadrada, nem a manejar ideias abstractas. Éramos tão novos que apenas me lembro de dois condiscípulos. Uma era Juanita Mendoza, que morreu de tifo aos sete anos, pouco depois de inaugurada a escola, e me impressionou tanto que nunca a consegui esquecer com coroa e véu de noiva no caixão. O outro é Guillermo Valência Abdala, meu amigo desde o primeiro recreio e meu médico infalível para as ressacas das segundas‑feiras.

A minha irmã Margot deve ter sido muito infeliz naquela escola, embora não me recorde que alguma vez o tenha dito. Sentava‑se na sua cadeira da classe elementar (Corresponde à pré‑primária. (N. T.)) e ali permanecia calada ‑ mesmo durante as horas de recreio ‑ sem desviar a vista de um ponto indefinido até que soava a campainha do final. Nunca soube nessa altura que quando ficava só na sala vazia mastigava a terra do jardim da casa que levava escondida no bolso do avental.

Tive muita dificuldade em aprender a ler. Não me parecia lógico que a letra m se chamasse éme e, no entanto, com a vogal seguinte não se dissesse émea e sim ma. Era‑me impossível ler assim. Por fim, quando cheguei ao Montessori, a professora não me ensinou os nomes mas sim os sons das consoantes. Assim pude ler o primeiro livro que encontrei numa arca poeirenta da arrecadação da casa. Estava descosido e incompleto, mas absorveu‑me de uma forma tão intensa que o namorado da Sara, ao passar, deixou cair uma premonição aterradora: "Caramba!, este menino vai ser escritor."

Dito por ele, que vivia de escrever, causou‑me uma grande impressão. Passaram vários anos antes de saber que o livro era As Mil e Uma Noites. O conto de que mais gostei ‑ um dos mais curtos e o mais simples que li ‑ continuou a parecer‑me o melhor para o resto da minha vida, embora agora não esteja seguro de que fosse lá que o li nem ninguém me tenha podido esclarecer. O conto é este: um pescador prometeu a uma vizinha oferecer‑lhe o primeiro peixe que pescasse se ela lhe emprestasse um chumbo para a sua rede e, quando a mulher abriu o peixe para o frigir, tinha dentro um diamante do tamanho de uma amêndoa.

Sempre relacionei a Guerra do Peru com a decadência de Cataca pois, uma vez proclamada a paz, o meu pai perdeu‑se num labirinto de incertezas que acabou por fim com a mudança da família para a sua aldeia natal de Sincé. Para Luis Enrique e eu, que o acompanhámos na sua viagem de exploração, foi na realidade uma nova escola de vida, com uma cultura tão diferente da nossa que pareciam ser de dois planetas diferentes. Desde o dia a seguir à chegada, levaram‑nos para as terras vizinhas e ali aprendemos a montar burros, ordenhar vacas, capar bezerros, armar armadilhas para codornizes, pescar com anzol e entender por que razão os cães ficavam engatados com as suas fêmeas. Luis Enrique ia sempre muito à frente de mim na descoberta do mundo que Mina mantivera vedado para nós e do qual a avó Argemira nos falava em Sincé sem a menor malícia. Tantos tios e tias, tantos primos de cores diferentes, tantos parentes de apelidos estranhos falando calões tão diferentes transmitiam‑nos a princípio mais confusão do que novidade, até que o entendemos como outra maneira de gostar. O pai do meu pai, D. Gabriel Martínez, que era um professor de escola lendário, recebeu‑nos, a Luis Enrique e a mim, no seu quintal de árvores imensas com as mangas mais famosas da povoação pelo seu sabor e tamanho. Contava‑as uma a uma todos os dias desde o primeiro da colheita anual e apanhava‑as uma a uma com a sua própria mão no momento de as vender ao preço fabuloso de um centavo cada.

Quando nos despedimos, depois de uma conversa amistosa sobre a sua memória de bom professor, arrancou uma manga da árvore mais frondosa e deu‑nos para os dois.

O meu pai vendera‑nos aquela viagem como um passo importante na integração familiar, mas desde a nossa chegada apercebemo‑nos de que o seu propósito secreto era montar uma farmácia na grande praça principal. O meu irmão e eu fomos matriculados na escola do professor Luis Gabriel Mesa onde nos sentimos mais livres e melhor integrados numa nova comunidade. Alugámos uma casa enorme, na melhor esquina da povoação, com dois andares e uma varanda corrida sobre a praça, por cujos quartos de dormir desolados cantava toda a noite o fantasma invisível de um alcaravão (Alcaravão ‑ ave pernalta de arribação, de pescoço comprido, cauda pequena, ventre branco e asas brancas e pretas. (N. T.)).

Estava tudo pronto para o desembarque feliz da mãe e das irmãs, quando chegou o telegrama com a notícia de que o avô Nicolás Márquez tinha morrido. Surpreendera‑o uma afecção na garganta que foi diagnosticada como um cancro terminal e só tiveram tempo de o levar para Santa Marta para morrer.

O único de nós que o viu na sua agonia foi o meu irmão Gustavo, com seis meses de nascido, que alguém pôs na cama do avô para que se despedisse dele. O avô agonizante fez‑lhe uma carícia de adeus. Precisei de muitos anos para tomar consciência do que significava para mim aquela morte inconcebível.

A mudança para Sincé fez‑se na mesma, não apenas com os filhos, mas também com a avó Mina, a tia Mamã, já doente, e ambas a cargo da tia Pa. Mas a alegria da novidade e o fracasso do projecto ocorreram quase ao mesmo tempo e em menos de um ano regressámos todos à velha casa de Cataca "abanando o chapéu", como dizia a minha mãe nas situações sem remédio. O meu pai ficou em Barranquilla a estudar o modo de instalar a sua quarta farmácia.

A minha última recordação da casa de Cataca naqueles dias atrozes foi a da grande fogueira do pátio onde queimaram as roupas do meu avô. Os seus liquiliques de guerra e os seus linhos brancos de coronel civil pareciam‑se com ele como se continuasse vivo dentro deles enquanto ardiam. Sobretudo os muitos bonés de bombazina, de diversas cores, que tinham sido o sinal de identidade que melhor o distinguia à distância. Entre eles reconheci o meu de quadrados escoceses, incinerado por descuido, e comoveu‑me a revelação de que aquela cerimónia de extermínio me conferia um protagonismo certo na morte do avô. Hoje vejo‑o com clareza: algo meu morrera com ele. Mas também creio, sem dúvida nenhuma, que nesse momento era já um escritor de escola primária a quem apenas faltava aprender a escrever.

Foi esse mesmo estado de espírito que me encorajou a continuar vivo quando saí com a minha mãe da casa que não pudemos vender. Como o comboio de regresso podia chegar a qualquer hora, fomos para a estação sem pensar sequer em cumprimentar mais ninguém. "Outro dia voltamos com mais tempo", disse ela, com o único eufemismo que lhe ocorreu para dizer que não voltaria nunca. Pela minha parte, eu sabia então que nunca mais no resto da minha vida deixaria de sentir a falta do trovão das três da tarde.

Fomos os únicos fantasmas na estação, à excepção do empregado de fato‑macaco que vendia os bilhetes e fazia além disso o que no nosso tempo requeria vinte ou trinta homens atarefados. O calor era de ferro. Do outro lado das linhas do comboio apenas havia os restos da cidade proibida da companhia bananeira, as antigas mansões sem os telhados vermelhos, as palmeiras murchas no meio do matagal e os escombros do hospital e, no extremo do passeio central, a casa do Montessori abandonada entre amendoeiras decrépitas e a pracinha de caliça em frente da estação sem o mínimo vestígio de grandeza histórica.

Cada coisa, pelo simples facto de a olhar, me suscitava uma ansiedade irresistível de escrever para não morrer. Sofrera‑a outras vezes, mas só naquela manhã a reconheci como um transe de inspiração, essa palavra abominável mas tão real que arrasa tudo o que encontra na sua passagem para chegar a tempo às suas cinzas.

Não me lembro que tenhamos dito mais alguma coisa, nem sequer no comboio de regresso. Já na lancha, na madrugada de segunda‑feira, com a brisa fresca do pantanal adormecido, a minha mãe deu conta que eu também não dormia e perguntou‑me:

‑ Em que pensas?

‑ Estou a escrever ‑ respondi. E apressei‑me a ser mais amável: ‑ Melhor dizendo, estou a pensar o que vou escrever quando chegar ao escritório.

‑ Não tens medo que o teu pai morra de pena? Escapei‑me com uma longa verónica.

‑ Teve tantos motivos para morrer que este há‑de ser o menos mortal.

Não era a época mais propícia para me aventurar num segundo romance, depois de estar estagnado no primeiro e de ter tentado, com sorte ou sem ela, outras formas de ficção, mas eu próprio o impus a mim mesmo naquela noite, como um compromisso de guerra: escrever ou morrer. Ou, como Rilke dissera: "Se crê que é capaz de viver sem escrever, não escreva."

Do táxi que nos levou até ao cais das lanchas, a minha velha cidade de Barranquilla pareceu‑me estranha e triste nos primeiros alvores daquele Fevereiro providencial. O capitão da Eline Mercedes convidou‑me a que acompanhasse a minha mãe até à povoação de Sucre, onde vivia a família há dez anos.

Nem quis pensar nisso. Despedi‑me dela com um beijo e ela olhou‑me nos olhos, sorriu‑me pela primeira vez desde a tarde anterior e perguntou‑me com a sua ironia de sempre:

- Então, o que digo ao teu pai?

Respondi‑lhe, com o coração nas mãos:

‑ Diga‑lhe que gosto muito dele e que graças a ele vou ser escritor. ‑ E antecipei‑me sem compaixão a qualquer alternativa: - Apenas escritor.

Gostava de o dizer, umas vezes de brincadeira e outras a sério, mas nunca com tanta convicção como naquele dia. Fiquei no cais, correspondendo aos adeuses lentos que me fazia a minha mãe da amurada, até que a lancha desapareceu entre despojos de barcos. Precipitei‑me então para as instalações de El Heraldo, excitado pela ansiedade que me carcomia as entranhas, e quase sem respirar comecei o novo romance com a frase da minha mãe: "Venho pedir‑te o favor de me acompanhares para vender a casa."

O meu método de então era diferente do que adoptei depois como escritor profissional. Escrevia só com os dedos indicadores ‑ como continuo a fazer ‑ mas em vez de não abandonar cada parágrafo até estar a meu gosto ‑ como agora ‑ soltava tudo o que tinha em bruto dentro de mim. Penso que o sistema era imposto pelas medidas do papel, que eram tiras verticais cortadas das bobinas para impressão e que podiam ter até cinco metros. O resultado eram uns originais compridos e estreitos como papiros, que saíam em cascata da máquina de escrever e se estendiam pelo chão à medida que se escrevia, O chefe de redacção não encomendava os artigos por páginas, nem por palavras ou letras, mas por centímetros de papel. "Uma reportagem de metro e meio", dizia‑se. Voltei a sentir saudades deste formato em plena maturidade, quando me apercebi de que, na prática, era igual ao ecrã do computador.

O ímpeto com que comecei o romance era tão irresistível que perdi a noção do tempo. Às dez da manhã teria escrito mais de um metro quando Alfonso Fuenmayor abriu de rompante a porta principal e ficou de pedra com a chave na fechadura como se a tivesse confundido com a da casa de banho. Até que me reconheceu.

‑ É você, que raio está aqui a fazer a esta hora? ‑ perguntou‑me, surpreendido.

‑ Estou a escrever o romance da minha vida ‑ respondi.

‑ Outro? ‑ disse Alfonso, com um humor ímpio. ‑ Então tem mais vidas do que um gato.

‑ É o mesmo, mas de outra forma ‑ disse, para não lhe dar explicações inúteis.

Não nos tratávamos por tu, pelo estranho costume colombiano de tutear‑se desde o primeiro cumprimento e passar ao você só quando se adquire maior confiança ‑ como entre esposos.

Tirou livros e papéis da pasta maltratada e colocou‑os na secretária. Entretanto, ouviu com a sua insaciável curiosidade a perturbação emocional que procurei transmitir‑lhe com o relato frenético da minha viagem. No fim, como síntese, não pude evitar a minha desgraça de reduzir a uma frase irreversível o que não sou capaz de explicar.

‑ Foi a maior coisa que me aconteceu na vida ‑ afirmei.

‑ Ainda bem que não há‑de ser a última ‑ disse Alfonso.

Nem sequer pensou no que disse, pois também ele não era capaz de aceitar uma ideia sem a ter reduzido ao seu justo tamanho. No entanto, conhecia‑o o bastante para perceber que talvez a minha emoção da viagem não o tivesse enternecido tanto como eu esperava, mas sem dúvida que o intrigara. Assim foi: a partir do dia seguinte, começou a fazer‑me toda a espécie de perguntas casuais mas muito lúcidas sobre o curso da escrita e uma simples expressão sua era suficiente para me pôr a pensar que algo devia ser corrigido.

Enquanto falávamos, tinha recolhido os meus papéis para deixar livre a secretária, pois Alfonso devia escrever nessa manhã a nota editorial da Crónica. Mas a notícia que trazia alegrou‑me o dia: o primeiro número, previsto para a semana seguinte, era adiado uma quinta vez por incumprimento dos fornecimentos de papel. Com sorte, disse Alfonso, sairíamos dentro de três semanas.

Pensei que aquele adiamento providencial me bastaria para definir o princípio do livro, pois eu ainda estava demasiado verde para me aperceber de que os romances não começam como queremos mas como eles querem. Tanto que, seis meses depois, quando me julgava na recta final, tive que refazer a fundo as dez páginas do princípio para que o leitor acreditasse nelas, e ainda hoje não me parecem válidas. O adiamento deve ter sido também um alívio para Alfonso, porque em vez de o lamentar, tirou o casaco e sentou‑se à secretária para continuar a corrigir a edição recente do Dicionário da Real Academia, que nos chegara por esses dias. Era o seu ócio favorito, desde que encontrou um erro casual num dicionário inglês e mandou a correcção documentada aos seus editores de Londres, talvez sem outro propósito a não ser dizer uma piada das nossas na carta remetida: "Por fim a Inglaterra deve um favor aos Colombianos." Os editores responderam‑lhe com uma carta muito amável, em que reconheciam a sua falta e lhe pediam que continuasse a colaborar com eles. Assim foi, durante vários anos, e não só deu com outros erros no mesmo dicionário, como noutros de diferentes idiomas. Quando a relação envelheceu, contraíra já o vício solitário de corrigir dicionários em espanhol, inglês ou francês, e se tinha que ficar em antecâmaras ou esperar nos autocarros ou em qualquer das tantas filas da vida, entretinha‑se na tarefa milimétrica de caçar láparos entre os matagais das línguas.

O calor era insuportável ao meio‑dia. O fumo dos cigarros de ambos nublara a pouca luz das duas únicas janelas, mas nenhum se deu ao trabalho de ventilar o escritório, talvez pelo vício secundário de continuarem a fumar o mesmo fumo até morrerem. Com o calor era diferente. Tenho a sorte congénita de o poder ignorar até aos trinta graus à sombra. Alfonso em contrapartida, ia tirando a roupa peça por peça à medida que o calor apertava, sem interromper o trabalho: a gravata, a camisa, a camisola interior. Com a outra vantagem de que a roupa permanecia seca enquanto ele se consumia no suor e podia vesti‑la outra vez quando o Sol baixava, tão passada e fresca como ao pequeno‑almoço. Devia ser esse o segredo que lhe permitiu aparecer sempre em qualquer parte com os seus fatos de linho branco, as gravatas de nó torcido e o seu duro cabelo de índio dividido a meio do crânio por uma linha matemática. Assim estava outra vez à uma da tarde, quando saiu da casa de banho como se acabasse de se levantar de um sono reparador. Ao passar junto de mim, perguntou:

‑ Almoçamos?

‑ Não há fome, mestre ‑ respondi.

A réplica era directa no código da tribo: se dizia que sim era porque estava num aperto urgente, talvez dois dias de pão e água, e nesse caso ia com ele sem mais comentários e ficava claro que ele arranjava maneira de me convidar. A resposta ‑ não há fome ‑ podia significar qualquer coisa, mas era a minha maneira de lhe dizer que não tinha problema com o almoço. Combinámos ver‑nos à tarde, como sempre, na Libreria Mundo.

Pouco depois do meio‑dia chegou um homem jovem que parecia um artista de cinema. Muito louro, de pele curtida pela intempérie, os olhos de um azul misterioso e uma cálida voz harmoniosa. Enquanto falávamos sobre a revista de aparecimento iminente, desenhou na tampa da secretária o perfil de um touro bravo com seis traços magistrais e assinou com uma mensagem para Fuenmayor. Depois atirou o lápis para cima da mesa e despediu‑se batendo a porta. Eu estava tão embebido na escrita que nem sequer olhei para o nome no desenho. Escrevi portanto o resto do dia, sem comer nem beber, e quando acabou a luz da tarde tive que sair às apalpadelas, com os primeiros esboços do novo romance, feliz com a certeza de ter encontrado por fim um caminho diferente de algo que escrevia sem esperança desde há mais de um ano.

Só nessa noite soube que o visitante da tarde era o pintor Alejandro Obregón, recém‑chegado de outra das suas muitas viagens à Europa. Não só era já um dos grandes pintores da Colômbia, como um dos homens mais queridos pelos seus amigos e antecipara o seu regresso para participar no lançamento da Crónica. Encontrei‑o com os amigos íntimos numa tasca sem nome no Callejón de la Luz, em pleno Barrio Abajo, que Alfonso Fuenmayor baptizara com o título de um recente livro de Graham Greene: O Terceiro Homem. Os seus regressos eram sempre históricos e o daquela noite culminou com o espectáculo de um grilo amestrado que obedecia como um ser humano às ordens do dono. Punha‑se em pé em duas patas, estendia as asas, cantava com silvos rítmicos e agradecia os aplausos com reverências teatrais. No fim, diante do domador embriagado com a salva de aplausos, Obregón agarrou no grilo pelas asas, com a ponta dos dedos e, ante o assombro de todos, meteu‑o na boca e mastigou‑o vivo com um deleite sensual. Não foi fácil compensar o domador inconsolável com todo o género de mimos e dádivas. Fiquei mais tarde a saber que não era o primeiro grilo vivo, nem seria o último, que comia em espectáculos públicos.

Nunca como naqueles dias me senti tão integrado naquela cidade e na meia dúzia de amigos que começavam a ser conhecidos nos meios jornalísticos e intelectuais do país como o Grupo de Barranquilla. Eram escritores e artistas jovens que exerciam uma certa liderança na vida cultural da cidade, pela mão do mestre catalão D. Ramón Vinyes, dramaturgo e livreiro lendário, consagrado na Enciclopédia Espasa desde 1924. Conhecera‑os em Setembro do ano anterior, quando vim de Cartagena ‑ onde vivia nessa altura ‑ por recomendação urgente de Clemente Manuel Zabala, chefe de redacção do jornal El Universal, onde escrevia as minhas primeiras notas editoriais. Passámos uma noite falando de tudo e estabelecemos uma comunicação tão entusiasta e constante de intercâmbio de livros e piscadelas de olho literárias, que acabei por trabalhar com eles. Três do grupo original distinguiam‑se pela sua independência e pela força das suas vocações: Germán Vargas, Alfonso Fuenmayor e Álvaro Cepeda Samudio. Tínhamos tantas coisas em comum que se dizia por ironia que éramos filhos do mesmo pai, mas estávamos marcados e gostavam pouco de nós em certos meios devido à nossa independência, vocações irresistíveis, uma determinação criativa que abria passagem à cotovelada e uma timidez que cada um resolvia à sua maneira e nem sempre muito bem.

Alfonso Fuenmayor era um excelente escritor e jornalista de vinte e oito anos que manteve por longo tempo em El Heraldo uma coluna de actualidade ‑ "Aire del dia" ‑ com o pseudónimo shakespeariano de Puck. Quanto mais conhecíamos a sua informalidade e o seu sentido de humor, menos entendíamos que tivesse lido tantos livros em quatro idiomas de quantos temas era possível imaginar. A sua última experiência vital, quase aos cinquenta anos, foi a de um automóvel enorme e desconjuntado que conduzia com todo o perigo a vinte quilómetros por hora. Os taxistas, seus grandes amigos leitores mais sábios, reconheciam‑no à distância e afastavam‑se para lhe deixar a rua livre.

Germán Vargas Cantillo era articulista do vespertino El Nacional, crítico literário certeiro e mordaz, com uma prosa tão diligente que podia convencer o leitor de que as coisas sucediam apenas porque ele as contava. Foi um dos melhores locutores da rádio e, sem dúvida, o mais culto naqueles bons tempos de ofícios novos, e um exemplo difícil do repórter natural que eu teria gostado de ser. Louro e de ossos fortes e olhos de um azul perigoso, nunca foi possível entender com que tempo estava a par de tudo o que era digno de ser lido. Não vacilou um instante na sua prematura obsessão de descobrir valores literários ocultos em lugares remotos da Província esquecida para os expor à luz pública. Foi uma sorte nunca ter aprendido a conduzir naquela confraria de distraídos, pois tínhamos receio que não resistisse à tentação de ler enquanto guiava.

Álvaro Cepeda Samudio, pelo contrário, era acima de tudo um motorista alucinado ‑ tanto de automóveis como das letras; ‑ contista dos bons, quando tinha disposição para se sentar a escrevê‑los; crítico magistral de cinema, e sem dúvida o mais culto, e promotor de polémicas atrevidas. Parecia um cigano da Ciénaga Grande, de pele curtida e com uma belíssima cabeça de caracóis negros e revoltos e uns olhos de louco que não ocultavam o coração fácil. O seu calçado favorito eram umas sandálias de pano das mais baratas e usava apertado entre os dentes um charuto enorme e quase sempre apagado. Tinha escrito no El Nacional as suas primeiras letras de jornalista e publicado os primeiros contos. Naquele ano, estava em Nova Iorque a acabar um curso superior de jornalismo na Universidade de Colúmbia.

Um membro itinerante do grupo e o mais distinto, em conjunto com D. Ramón, era José Félix Fuenmayor, o pai de Alfonso. Jornalista histórico e narrador dos maiores, publicara um livro de versos, Musas del trópico, em 1910, e dois romances: Cosme, em 1927, e Una triste aventura de catorce sábios, em 1928. Nenhum foi êxito de livraria, mas a crítica especializada sempre considerou José Félix como um dos melhores contistas, sufocado pelas profundezas da Província

Nunca tinha ouvido falar dele quando o conheci, num princípio de tarde em que nos encontrámos sós no Japy, e deslumbrou‑me de imediato pela sua sabedoria e pela simplicidade da sua conversação. Era veterano e sobrevivente de uma difícil prisão na Guerra dos Mil Dias. Não tinha a formação de Vinyes, mas era mais próximo de mim pelo seu modo de ser e pela sua cultura caribenha. No entanto, aquilo de que mais gostava nele era a estranha virtude de transmitir a sua sabedoria como se fossem assuntos sem importância. Era um conversador invencível e um mestre da vida e o seu modo de pensar era diferente de tudo o que conhecera até então. Álvaro Cepeda e eu passávamos horas a ouvi‑lo, sobretudo sobre o seu princípio básico de que as diferenças de fundo entre a vida e a literatura eram simples erros de forma. Mais tarde, não me lembro onde, Álvaro escreveu uma rajada certeira: "Vimos todos de José Félix."

O grupo formara‑se de um modo espontâneo, quase pela força da gravidade, em virtude de uma afinidade indestrutível mas difícil de entender à primeira vista. Muitas vezes nos perguntaram como, sendo tão diferentes, estávamos sempre de acordo, e tínhamos que improvisar qualquer resposta para não contar a verdade: nem sempre estávamos, mas entendíamos as razões. Tínhamos consciência de que fora do nosso âmbito possuíamos uma imagem de prepotentes, narcisistas e anárquicos.

Sobretudo pelas nossas definições políticas. Alfonso era visto como um liberal ortodoxo, Germán como um livre‑pensador contrafeito, Álvaro como um anarquista arbitrário e eu como um comunista incrédulo e um suicida em potência. No entanto, creio sem a mínima dúvida que a nossa maior sorte foi que, mesmo nas dificuldades mais extremas, podíamos perder paciência mas nunca o sentido de humor.

Discutíamos as nossas poucas discrepâncias sérias apenas entre nós e às vezes atingiam temperaturas perigosas que, apesar de tudo, eram esquecidas logo que nos levantávamos da mesa, ou se chegava algum amigo estranho. Aprendi para sempre a lição mais inesquecível no bar Los Almendros, numa noite de recém‑chegado em que Álvaro e eu nos envolvemos numa discussão sobre Faulkner. As únicas testemunhas na mesa eram Germán e Alfonso, e mantiveram‑se à margem, num silêncio de mármore que atingiu extremos insuportáveis. Não me lembro em que momento, passado de raiva e aguardente em bruto, desafiei Álvaro para resolvermos a discussão à pancada. Iniciámos ambos o impulso para nos levantarmos da mesa e sairmos para o meio da rua, quando a voz impassível de Germán Vargas nos travou de chofre com uma lição para sempre:

‑ O que se levantar primeiro já perdeu.

Nenhum atingia então os trinta anos. Eu, com vinte e três anos feitos, era o mais novo do grupo e fora adoptado por eles desde que chegara para ficar, no Dezembro anterior. Mas na mesa de D. Ramón Vinyes comportávamo‑nos os quatro como os promotores e postulantes da fé, sempre juntos, falando das mesmas coisas e troçando de tudo, e tão de acordo em contradizer que tínhamos acabado por ser vistos como se fôssemos um só.

A única mulher que considerávamos como fazendo parte do grupo era Meira Delmar, que se iniciava no ímpeto da poesia, mas só confraternizávamos com ela nas raras ocasiões em que saíamos da nossa órbita de maus costumes. Eram memoráveis as noitadas em sua casa, com os escritores e artistas famosos que passavam pela cidade. Outra amiga com menos tempo e frequência era a pintora Cecília Forras, que vinha de Cartagena de vez em quando e nos acompanhava nos nossos périplos nocturnos, pois estava‑se marimbando para o facto de as mulheres serem mal vistas em cafés de bêbados e casas de perdição.

Nós, os do grupo, encontrávamo‑nos duas vezes por dia na Librería Mundo, que acabou transformada num centro de reunião literária. Era um refúgio de paz no meio do tumulto da Calle San Blas, a artéria comercial buliçosa e ardente por onde se esvaziava o centro da cidade às seis da tarde. Alfonso e eu escrevíamos até ao início da noite no nosso escritório contíguo à sala da redacção de El Heraldo, como alunos aplicados, ele os seus editoriais judiciosos e eu as minhas notas desgrenhadas. Trocávamos com frequência ideias de uma máquina para outra, emprestávamos adjectivos um ao outro, consultávamos dados entre nós a ponto de, nalguns casos, ser difícil saber que parágrafo era de quem.

A nossa vida diária foi quase sempre previsível, salvo nas noites de sexta‑feira, em que estávamos à mercê da inspiração e às vezes ligávamos com o pequeno‑almoço da segunda‑feira. Se éramos apanhados pelo interesse, empreendíamos os quatro uma peregrinação literária sem freio nem medida. Começava no El Tercer Hombre, com os artesãos do bairro e os mecânicos de uma oficina de automóveis, além de funcionários públicos desencaminhados e outros que o eram menos. O mais estranho de todos era um ladrão de domicílios que chegava pouco antes da meia‑noite com o uniforme do ofício: calças de ballet, sapatos de ténis, gorro de futebolista e uma maleta de ferramentas ligeiras. Alguém que o surpreendeu roubando em sua casa conseguiu retratá‑lo e publicou a fotografia na imprensa para ver se havia quem o identificasse. A única coisa que obteve foram várias cartas de leitores indignados por ser jogo sujo contra os pobres ratoneiros.

O ladrão tinha uma vocação literária bem assumida, não perdia palavra nas conversas sobre artes e livros, e sabíamos que era autor envergonhado de poemas de amor que declamava para a clientela quando nós não estávamos. Depois da meia‑noite, ia roubar nos bairros altos, como se fosse um emprego, e três ou quatro horas depois trazia‑nos como presente algumas bugigangas separadas do bolo maior. "Para as meninas", dizia‑nos, sem perguntar sequer se as tínhamos. Quando um livro lhe chamava a atenção, levava‑no‑lo como presente e, se valia a pena, doávamo‑lo à biblioteca departamental, dirigida por Meira Delmar.

Aquelas cátedras itinerantes tinham‑nos conquistado uma reputação sinistra entre as boas comadres, que encontrávamos ao sair da missa das cinco e mudavam de passeio para não se cruzarem com bêbados amanhecidos. Mas a verdade é que não havia pândegas mais honradas e frutíferas. Se alguém o soube de imediato fui eu, que os acompanhava nos seus gritos dos bordéis sobre a obra de John dos Passos ou nos golos desperdiçados pelo Deportivo Júnior. Tanto que uma das graciosas cortesãs de El Gato Negro, farta de uma noite inteira de discussões gratuitas, nos gritara ao passar:

‑ Se vocês fodessem tanto como gritam, nós estávamos cobertas de ouro!

Muitas vezes íamos ver o novo sol num bordel sem nome do bairro chinês, onde viveu durante anos Orlando Rivera, Figurita, enquanto pintava um mural que fez época. Não recordo alguém mais disparatado, com o seu olhar lunático, a barba de chibo e a bondade de órfão. Desde a escola primária fora picado pela mania de ser cubano e acabou por sê‑lo mais e melhor do que se o tivesse sido. Falava, comia, pintava, vestia‑se, apaixonava‑se, dançava e vivia a sua vida como um cubano, e cubano morreu sem conhecer Cuba.

Não dormia. Quando o visitávamos de madrugada, descia aos saltos dos andaimes, mais pintado ele próprio do que o mural, e blasfemando em língua de mambisses (Mambí ‑ insurrecto contra Espanha nas guerras da Independência no séc. XIX. (N. T.)) na ressaca da marijuana. Alfonso e eu levávamos‑lhe artigos e contos para ilustrar e tínhamos que contar‑lhos de viva voz porque não tinha paciência para os entender lidos. Fazia os desenhos num instante, com técnicas de caricatura, que eram as únicas em que acreditava. Quase sempre lhe saíam bem, embora Germán Vargas afirmasse sem má intenção que eram muito melhores quando lhe saíam mal.

Assim era Barranquilla, uma cidade que não se parecia com nenhuma outra, sobretudo de Dezembro a Março, quando os alísios do Norte compensavam os dias infernais com ventanias nocturnas que turbilhonavam nos pátios das casas e levavam as galinhas pelos ares. Só permaneciam vivos os hotéis de curta frequência e as tascas de marinheiros em redor do porto. Algumas avezinhas nocturnas esperavam noites inteiras a clientela sempre incerta dos navios fluviais. Uma banda de metais tocava uma valsa lânguida na alameda, mas ninguém a ouvia, devido aos gritos dos motoristas que discutiam futebol entre os táxis parados em bloco na calçada do Paseo Bolívar. O único local possível era o Café Roma, uma tasca de refugiados espanhóis que nunca fechava pela simples razão de que não tinha portas. Também não tinha telhado, numa cidade de aguaceiros sacramentais, mas nunca se ouviu dizer que alguém deixasse de comer uma tortilha de batata ou combinar um negócio por causa da chuva. Era um poiso exposto à intempérie, com mesitas redondas pintadas de branco e cadeirinhas de ferro sob ramos de acácias floridas. Às onze, quando fechavam os jornais da manhã ‑ El Heraldo e La Prensa ‑ os redactores nocturnos reuniam‑se para comer. Os refugiados espanhóis estavam desde as sete, depois de ouvirem em casa o diário falado do professor Juan José Pérez Domenech, que continuava a dar notícias da Guerra Civil espanhola doze anos depois de a ter perdido. Numa noite de sorte, o escritor Eduardo Zalarnea ancorara ali de regresso de La Guajira e disparara um tiro de revólver no peito sem consequências graves. A mesa ficou como uma relíquia histórica, que os empregados mostravam aos turistas sem autorização para a ocuparem. Anos mais tarde, Zalamea publicou o testemunho da sua aventura em Cuatro anos a bordo de mi mismo, um romance que abriu horizontes insuspeitáveis na nossa geração.

Eu era o menos abonado da confraria e muitas vezes me refugiei no Café Roma para escrever até ao amanhecer num canto afastado, pois os dois empregos juntos tinham a paradoxal virtude de serem importantes e mal pagos. Ali me surpreendia o amanhecer, lendo sem piedade, e quando a fome me acossava, tomava um chocolate espesso com uma sanduíche de bom presunto espanhol e passeava com os primeiros alvores da madrugada sob os matarratones (Matarratón ou deu ‑ arbusto de frutos muito tóxicos que se encontram agrupados em rácimos de cor violeta escuro e que são utilizados nas zonas rurais para combater os roedores. (N. T.)) floridos do Paseo Bolívar. Nas primeiras semanas escrevera até muito tarde na redacção do jornal, e dormira umas horas na sala deserta da redacção ou sobre os rolos de papel de impressão, mas com o tempo vi‑me forçado a procurar um lugar menos original.

A solução, como tantas outras do futuro, foi‑me dada pelos alegres taxistas do Paseo Bolívar, num hotel de passe a um quarteirão da catedral, onde se dormia só ou acompanhado por um peso e meio. O edifício era muito antigo mas bem conservado à custa das putinhas de circunstância que deambulavam pelo Paseo Bolívar desde as seis da tarde à espreita de amores extraviados. O porteiro chamava‑se Lácides. Tinha um olho de vidro com o eixo torcido e gaguejava por timidez e ainda o recordo com uma imensa gratidão desde a primeira noite em que cheguei. Deitou o peso e cinquenta centavos na gaveta do balcão, já cheia com as notas soltas e amachucadas do princípio da noite, e deu‑me a chave do quarto número seis. Nunca tinha estado num lugar tão sossegado. O mais que se ouvia eram os passos apagados, um murmúrio incompreensível e, muito de vez em quando, o ranger angustioso de molas enferrujadas. Mas nem um sussurro, nem um suspiro: nada. A única coisa difícil era o calor de forno, por causa da janela fechada com grades de madeira. No entanto, desde a primeira noite, li muito bem William Irish quase até ao amanhecer. Tinha sido uma mansão de antigos armadores, com colunas forradas de alabastro e frisos de ouropéis, em redor de um pátio interior coberto por um vitral pagão que irradiava um resplendor de jardim de Inverno. No andar de baixo ficavam os cartórios de notários da cidade. Em cada um dos três andares da casa original havia seis grandes aposentos de mármore, divididos em cubículos de cartão ‑ iguais ao meu ‑ onde faziam a sua colheita as noctívagas do sector. Aquele quebra‑nucas feliz tivera outrora o nome de Hotel Nueva York e Alfonso Fuenmayor chamou‑lhe mais tarde o Rascacielos (Rascacielos ‑ Arranha‑céus. (N. T.)), em memória dos suicidas que naqueles anos se atiravam das açoteias do Empire State.

Em todo o caso, o eixo das nossas vidas era a Librería Mundo, ao meio‑dia e às seis da tarde, no quarteirão mais concorrido da Calle San Blas.

Foi Germán Vargas, amigo íntimo do proprietário, D. Jorge Rondón, que o convenceu a instalar aquele estabelecimento que dentro de pouco tempo se transformou no centro de reunião de jornalistas, escritores e jovens políticos. Rondón não tinha experiência no negócio, mas aprendeu depressa e com um entusiasmo e uma generosidade que o transformaram num mecenas inesquecível. Germán, Álvaro e Alfonso foram seus assessores nos pedidos de livros, sobretudo nas novidades de Buenos Aires, cujos editores tinham começado a traduzir, imprimir e distribuir em massa as novidades literárias de todo o mundo depois da guerra mundial. Graças a eles, podíamos ler a tempo os livros que de outro modo não teriam chegado à cidade. Eles próprios entusiasmavam a clientela e conseguiram que Barranquilla voltasse a ser o centro de leitura que decaíra anos antes, quando deixou de existir a livraria histórica de D. Ramón.

Não foi muito tempo depois da minha chegada que ingressei naquela confraria que esperava como enviados do céu os caixeiros‑viajantes das editoras argentinas. Graças a eles, fomos admiradores precoces de Jorge Luis Borges, de Júlio Cortázar, de Felisberto Hernández e dos romancistas ingleses e norte‑americanos bem traduzidos pela quadrilha de Victoria Ocampo. La forja de um rebelde, de Arturo Barea, foi a primeira mensagem esperançosa de uma Espanha remota silenciada por duas guerras. Um daqueles caixeiros‑viajantes, o pontual Guillermo Dávalos, tinha o bom costume de partilhar as nossas paródias nocturnas e de nos oferecer os mostruários das novidades depois de terminar os negócios na cidade.

O grupo, que vivia longe do centro, não ia de noite ao Café Roma a não ser por motivos concretos. Para mim, pelo contrário, era a casa que não tinha. Trabalhava de manhã na tranquila redacção de El Heraldo, almoçava como podia, quando podia e onde podia, mas era quase sempre convidado dentro do grupo por bons amigos e políticos interessados. À tarde escrevia "La Jirafa", a minha nota diária, e qualquer outro texto de ocasião. Ao meio‑dia e às seis da tarde era o mais pontual na Librería Mundo. O aperitivo do almoço, que o grupo tomou durante anos no Café Colômbia, transferiu‑se mais tarde para o Café Japy, no passeio da frente, por ser o mais ventilado e alegre sobre a Calle San Blas. Usávamo‑lo para visitas, escritório, negócios, entrevistas e como um lugar fácil para nos encontrarmos.

A mesa de D. Ramón no Japy tinha umas leis invioláveis impostas pelo hábito. Era o primeiro que chegava, pelo seu horário de professor até às quatro da tarde. Não cabíamos mais de seis na mesa. Tínhamos escolhido os nossos lugares em relação com o dele e era considerado de mau gosto juntar outras cadeiras onde não cabiam. Pela antiguidade e o grau da sua amizade, Germán sentou‑se à sua direita desde o primeiro dia. Era o encarregado dos seus assuntos materiais. Resolvia‑lhos mesmo que não lho pedisse, porque o sábio tinha a vocação congénita de não se entender com a vida prática. Por aqueles dias, o assunto principal era a venda dos seus livros à biblioteca departamental e a conclusão de outras coisas antes de partir para Barcelona. Mais do que um secretário, Germán parecia um bom filho.

As relações de D. Ramón com Alfonso, pelo contrário, baseavam‑se em problemas literários e políticos mais difíceis. Quanto a Álvaro, sempre me pareceu que se inibia quando o encontrava só na mesa e precisava da presença de outros para começar a navegar. O único ser humano que tinha direito livre de lugar na mesa era José Félix. À noite, D. Ramón não ia ao Japy mas ao vizinho Café Roma, com os seus amigos do exílio espanhol.

O último que chegou à mesa fui eu e desde o primeiro dia me sentei sem direito próprio na cadeira de Álvaro Cepeda, enquanto esteve em Nova Iorque. D. Ramón recebeu‑me como mais um discípulo, porque lera os meus contos em El Espectador. No entanto, nunca podia imaginar que chegaria a ter com ele a confiança de lhe pedir emprestado o dinheiro para a minha viagem a Aracataca com a minha mãe. Pouco depois, por uma casualidade inconcebível, tivemos a primeira e única conversa a sós quando fui ao Japy mais cedo do que os outros para lhe pagar sem testemunhas os seis pesos que me tinha emprestado.

‑ Olá, génio ‑ saudou‑me como sempre. Mas algo na minha cara o alarmou. ‑ Está doente?

‑ Creio que não, senhor ‑ disse‑lhe, inquieto. ‑ Porquê?

‑ Parece‑me transtornado ‑ disse ele ‑ mas não faça caso, nestes dias andamos todos fotuts del cul.

Guardou os seis pesos na carteira com um gesto reticente, como se fosse dinheiro mal ganho por ele.

‑ Recebo‑o ‑ explicou‑me, ruborizado ‑ como recordação de um jovem muito pobre que foi capaz de pagar uma dívida sem que lha cobrassem.

Não soube o que dizer, mergulhado num silêncio que suportei como um poço de chumbo na algazarra do salão. Nunca sonhei com a sorte daquele encontro. Tinha a impressão de que nas conversas do grupo cada um punha o seu grãozinho de areia na desordem e as graças e carências de cada um confundiam‑se com as dos outros, mas nunca me ocorreu que pudesse falar a sós das artes e da glória com um homem que vivia há anos numa enciclopédia. Muitas madrugadas, enquanto lia na solidão do meu quarto, imaginava diálogos excitantes que gostaria de manter com ele sobre as minhas dúvidas literárias, mas derretiam‑se sem deixar rasto à luz do Sol. A minha timidez agravava‑se quando Alfonso irrompia com uma das suas ideias descomunais, ou Germán desaprovava uma apressada do professor, ou Álvaro se esganiçava com um projecto que nos dava a volta à cabeça.

Por sorte, naquele dia no Japy foi D. Ramón que tomou a iniciativa de me perguntar como iam as minhas leituras. Nessa altura eu tinha lido tudo o que pudera encontrar da Geração Perdida, em espanhol, com um cuidado especial para Faulkner cujo rasto seguia com um sigilo sangrento de navalha de barbear devido ao meu estranho receio de que afinal não fosse mais do que um retórico astuto. Depois de o dizer, fiquei transido pelo pudor de que parecesse uma provocação e tentei matizar as coisas, mas D. Ramón não me deu tempo.

‑ Não se preocupe, Gabito ‑ respondeu‑me, impassível. ‑ Se Faulkner estivesse em Barranquilla, estaria nesta mesa. Por outro lado, chamava‑lhe a atenção que Ramón Gómez de la Serna me interessasse tanto que o citava em "La Jirafa" a par de outros romancistas incontestáveis. Esclareci que não o fazia por causa dos seus romances, pois além de El chalet de Las rosas, de que gostara muito, o que dele me interessava era a audácia do seu engenho e o seu talento verbal, mas apenas como ginástica rítmica para aprender a escrever. Nesse sentido, não recordo um género mais inteligente do que as suas famosas "greguerías" (Greguería ‑ texto em prosa que apresenta uma visão pessoal, surpreendente e às vezes humorística da realidade, lançado e assim baptizado em 1912 por Ramón Gómez de La Serna. (N. T.)). D. Ramón interrompeu‑me com o seu sorriso mordaz:

‑ O perigo para si é que, sem dar conta, aprenda também a escrever mal.

No entanto, antes de encerrar o assunto, reconheceu que no meio da sua desordem fosforescente, Gómez de La Serna era um bom poeta. Eram assim as suas réplicas, imediatas e sábias, e o nervoso mal me deixava assimilá‑las, ofuscado pelo receio de que alguém interrompesse aquela ocasião única. Mas ele sabia como manobrar as coisas. O seu criado de mesa habitual levou‑lhe a Coca‑Cola das onze e meia e ele pareceu nem notar, mas bebeu‑a em pequenos sorvos com o canudinho de papel, sem interromper as suas explicações. A maioria dos clientes cumprimentavam‑no em voz alta da porta: "Como está, D. Ramón." E ele respondia‑lhes sem olhar, com um adejar da sua mão de artista.

Enquanto falava, D. Ramón dirigia olhares furtivos à pasta de cabedal que mantive apertada com as duas mãos enquanto o ouvia. Quando acabou de beber a primeira Coca‑Cola, torceu o canudinho como um atarraxador e mandou vir a segunda. Pedi a minha, sabendo muito bem que naquela mesa cada um pagava o seu. Perguntou‑me por fim o que era a pasta misteriosa à qual me agarrava como a uma tábua de náufrago.

Contei‑lhe a verdade: era o primeiro capítulo, ainda em rascunho, do romance que tinha começado no regresso da ida a Cataca com a minha mãe. Com um atrevimento de que nunca mais voltaria a ser capaz numa encruzilhada de vida ou morte, coloquei na mesa a pasta aberta à frente dele, como uma provocação inocente. Fixou em mim os seus olhos diáfanos, de um azul perigoso, e perguntou‑me, um pouco assombrado: ‑ Permite?

Estava escrito à máquina com inumeráveis correcções, em tiras de papel de impressão dobradas como um fole de acordeão. Ele pôs sem pressa os óculos de ler, desdobrou as tiras de papel com uma mestria profissional e arrumou‑as na mesa. Leu sem um gesto, sem uma alteração da pele, sem uma mudança de respiração, com uma madeixa de cacatua movida apenas pelo ritmo dos seus pensamentos.

Quando acabou duas tiras completas, tornou a dobrá‑las em silêncio, com uma arte medieval, e fechou a pasta. Então guardou os óculos no estojo e meteu‑os no bolsinho do peito.

‑ Vê‑se que é um material ainda em cru, como é lógico ‑ disse‑me com grande simplicidade. ‑ Mas vai bem.

Fez alguns comentários marginais sobre o manejo do tempo que era o meu problema de vida ou morte e sem dúvida o mais difícil, e acrescentou:

‑ Você deve estar consciente de que o drama já ocorreu e que os personagens só estão ali para o evocar, de modo que tem que lidar com dois tempos.

Depois de uma série de precisões técnicas a que não consegui dar valor devido à minha inexperiência, aconselhou‑me a que a cidade do romance não se chamasse Barranquilla, como eu tinha decidido no rascunho, porque era um nome tão condicionado pela realidade que deixaria ao leitor muito pouco espaço para sonhar. E terminou com o seu tom trocista:

‑ Ou faça‑se parvo e espere que lhe caia do céu. Ao fim e ao cabo, a Atenas de Sófocles nunca foi a mesma de Antígona.

Mas o que segui para sempre à letra foi a frase com que se despediu de mim naquela tarde:

‑ Agradeço‑lhe a sua deferência e vou corresponder com um conselho: nunca mostre a ninguém o rascunho de algo que esteja a escrever.

Foi a minha única conversa a sós com ele, mas valeu por todas, porque partiu para Barcelona a 15 de Abril de 1950, como estava previsto há mais de um ano, tornado estranho pelo fato de tecido preto e o chapéu de magistrado. Foi como embarcar um menino de escola. Estava bem de saúde e com a lucidez intacta aos sessenta e oito anos, mas nós, que o acompanhámos ao aeroporto, despedimo‑nos dele como de alguém que regressava à sua terra natal para assistir ao seu próprio enterro.

Só no dia seguinte, quando chegámos à nossa mesa do Japy, demos conta do vazio que ficou na sua cadeira, que ninguém se decidiu a ocupar enquanto não chegámos a acordo de que fosse Germán. Precisámos de alguns dias para nos habituarmos ao novo ritmo da conversa diária, até que chegou a primeira carta de D. Ramón, que parecia escrita de viva voz, com a sua caligrafia minuciosa em tinta roxa. Assim se iniciou uma correspondência com todos através de Germán, frequente e intensa, na qual contava muito pouco da sua vida e muito de uma Espanha que continuaria a considerar como terra inimiga enquanto Franco vivesse e mantivesse o domínio espanhol sobre a Catalunha.

A ideia do semanário era de Alfonso Fuenmayor e muito anterior àqueles dias, mas tenho a impressão de que a viagem do sábio catalão a precipitou. Reunidos com esse propósito no Café Roma, três noites depois, Alfonso informou‑nos que tinha tudo pronto para o arranque. Seria um semanário tablóide de vinte páginas, jornalístico e literário, cujo nome ‑ Crónica ‑ não diria muito a ninguém. A nós próprios parecia um delírio que depois de quatro anos de não conseguirmos recursos onde os havia de sobra, Alfonso Fuenmayor os tivesse conseguido entre artesãos, mecânicos de automóveis, magistrados na reforma e até donos de tasca cúmplices, que aceitaram pagar anúncios com rum de cana. Mas havia razões para pensar que seria bem recebido numa cidade que, no meio dos seus tumultos industriais e vaidades cívicas, mantinha viva a devoção pelos seus poetas.

Além de nós, seriam poucos os colaboradores regulares. O único profissional com uma boa experiência era Carlos Osío Noguera ‑ o Vate Osío ‑ um poeta e jornalista de uma simpatia muito própria e um corpo descomunal, funcionário do governo e censor em El Nacional, onde trabalhara com Álvaro Cepeda e Germán Vargas. Outro seria Roberto (Bob) Prieto, um raro erudito de elevada classe social, que podia pensar em inglês ou francês tão bem como em espanhol e tocar ao piano, de memória, diversas obras de grandes mestres. O menos compreensível da lista que ocorreu a Alfonso Fuenmayor foi Júlio Mário Santodomingo. Impô‑lo sem reservas pelos seus propósitos de ser um homem diferente, mas o que poucos entendíamos era que figurasse na lista do conselho editorial, quando parecia destinado a ser um Rockefeller latino, inteligente, culto e cordial, mas condenado sem remédio às brumas do poder. Muito poucos sabiam, como o sabíamos os quatro promotores da revista, que o sonho secreto dos seus vinte e cinco anos era ser escritor.

O director, por direito próprio, seria Alfonso. Germán Vargas seria acima de tudo o grande repórter com quem eu esperava partilhar o trabalho, não quando tivesse tempo ‑ que nunca tivemos ‑ mas quando eu cumprisse o sonho de aprender. Álvaro Cepeda mandaria colaborações nas suas horas livres da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. No fim da fila, ninguém estava mais livre e ansioso do que eu para ser nomeado chefe de redacção de um semanário independente e incerto, e assim se fez.

Alfonso tinha reservas de arquivo desde há vários anos e muito trabalho adiantado nos últimos seis meses, com notas editoriais, materiais literários, reportagens de fundo e promessas de anúncios comerciais dos seus amigos ricos. O chefe de redacção, sem horário definido e com um ordenado melhor do que o de qualquer jornalista da minha categoria, mas condicionado aos lucros do futuro, estava também preparado para ter a revista pronta e a tempo. Por fim, no sábado da semana seguinte, quando entrei no nosso cubículo de El Heraldo, às cinco da tarde, Alfonso Fuenmayor nem sequer levantou os olhos para acabar o seu editorial.

‑ Despache‑se com as suas trapalhadas, mestre, que na próxima semana sai a Crónica.

Não me assustei, porque já tinha ouvido a frase duas vezes antes. No entanto, à terceira foi de vez. O maior acontecimento jornalístico da semana ‑ com vantagem absoluta ‑ tinha sido a chegada do futebolista brasileiro Heleno de Freitas para o Deportivo Júnior, mas não o trataríamos em competição com a imprensa especializada e sim como uma grande notícia de interesse cultural e social. A Crónica não se deixaria espartilhar com esse tipo de distinções e menos ainda tratando‑se de algo tão popular como o futebol. A decisão foi unânime e o trabalho eficaz.

Tínhamos preparado tanto material enquanto esperávamos, que a única coisa de última hora foi a reportagem de Heleno, escrita por Germán Vargas, mestre do género e fanático do futebol. O primeiro número amanheceu pontual nos postos de venda no sábado, 29 de Abril de 1950, dia de Santa Catarina de Siena, escritora de cartas azuis na mais bela praça do mundo. A Crónica foi impressa com uma divisa minha de última hora por baixo do nome: "Su mejor weekend." Sabíamos que estávamos a desafiar o purismo indigesto que prevalecia na imprensa colombiana daqueles anos, mas o que queríamos dizer com a divisa não tinha um equivalente com os mesmos matizes em língua espanhola. A capa era um desenho a tinta de Heleno de Freitas feito por Alfonso Melo, o único retratista dos nossos três desenhadores.

A edição, apesar das pressas de última hora e da falta de promoção, esgotou‑se muito antes da redacção em pleno chegar ao Estádio Municipal no dia seguinte ‑ domingo, 30 de Abril ‑ onde se jogava o sideral desafio entre o Deportivo Júnior e o Sporting, ambos de Barranquilla. A própria revista estava dividida, porque Germán e Álvaro eram partidários do Sporting, e Alfonso e eu do Junior. No entanto o simples nome de Heleno e a excelente reportagem de Germán Vargas sustentaram o equívoco de que a Crónica era por fim a grande revista desportiva que a Colômbia esperava.

Rebentava pelas costuras. Aos seis minutos do primeiro tempo, Heleno de Freitas marcou o seu primeiro golo na Colômbia com um remate de esquerda do centro do campo Embora no final tenha ganho o Sporting por 3 a 2, a tarde foi de Heleno e, depois, nossa, pela boa escolha da capa premonitória. No entanto, não houve poder humano nem divino capaz de fazer entender ao público que a Crónica não era uma revista desportiva mas sim um semanário cultural que homenageava Heleno de Freitas como uma das grandes notícias do ano.

Não era um bambúrrio de novatos. Três dos nossos costumavam tratar de temas de futebol nas suas colunas de interesse geral, incluindo Germán Vargas, como é evidente. Alfonso Fuenmayor era um adepto pontual do futebol e Álvaro Cepeda foi durante anos correspondente na Colômbia do Sporting News de Saint Louis, Missuri. No entanto, os leitores que desejávamos não acolheram de braços abertos os números seguintes e os fanáticos dos estádios abandonaram‑nos sem dor. Tentando remendar o roto, decidimos em conselho editorial que eu escrevesse a reportagem central com Sebastián Berascochea, outra das estrelas uruguaias do Deportivo Júnior, com a esperança de que conciliasse futebol e literatura, como tantas vezes tentara fazer com outras ciências ocultas na minha coluna diária. A febre da bola com que Luis Carmelo Corrêa me contagiara nos campos de Cataca baixara quase a zero. Além disso, eu era dos fanáticos precoces do basebol caribenho ‑ ou o jogo da pelota, como dizíamos em língua vernácula. Apesar disso, assumi o desafio.

O meu modelo, é evidente, foi a reportagem de Germán Vargas. Reforcei‑me com outras e senti‑me aliviado por uma longa conversa com Berascochea, um homem inteligente e amável e com muito bom sentido da imagem que desejava dar ao seu público. O mau foi que o identifiquei e descrevi como um vasco exemplar apenas pelo seu apelido, sem reparar sequer no pormenor de que era um negro retinto da melhor estirpe africana. Foi a grande fífia da minha vida e no pior momento para a revista. Tanto que me identifiquei até à alma com a carta de um leitor, que me definiu como um jornalista desportivo incapaz de distinguir a diferença entre uma bola e um eléctrico. O próprio Germán Vargas, tão meticuloso nos seus juízos, afirmou anos depois num livro de comemorações que a reportagem de Berascochea era o pior de tudo o que eu escrevi. Creio que exagerava, mas não demasiado, porque ninguém conhecia o ofício como ele, com crónicas e reportagens escritas num tom tão fluido que pareciam ditadas de viva voz ao linotipista.

Não renunciámos ao futebol nem ao basebol porque ambos eram populares na costa do Caribe, mas aumentámos os temas de actualidade e as novidades literárias. Foi tudo inútil: nunca conseguimos superar o equívoco de que a Crónica fosse uma revista desportiva mas, em contrapartida, os fanáticos do estádio passaram à frente e abandonaram‑nos à nossa sorte. Continuámos portanto a fazê‑la como nos tínhamos proposto, embora desde a terceira semana tenha ficado a flutuar no limbo da sua ambiguidade.

Não me acobardei. A viagem a Cataca com a minha mãe, a histórica conversa com D. Ramón Vinyes e o meu intenso vínculo com o grupo de Barranquilla tinham‑me infundido um novo alento que me durou para sempre. Desde então, não ganhei um centavo que não fosse com a máquina de escrever, e isto pareceu‑me mais meritório do que se poderia pensar, pois pagaram‑me os primeiros direitos de autor que me permitiram viver dos meus contos e romances aos quarenta e tantos anos, depois de ter publicado quatro livros com ganhos ínfimos. Antes disso, a minha vida esteve sempre perturbada por um emaranhado de rasteiras, fintas e ilusões para ludibriar os incontáveis engodos que tentavam transformar‑me em qualquer coisa que não fosse escritor.

 

Consumado o desastre de Aracataca, morto o avô e extinto o que podia ter restado dos seus incertos poderes, os que vivíamos deles estávamos à mercê das saudades. A casa ficou sem alma desde que ninguém mais voltou no comboio. Mina e Francisca Simodosea permaneceram sob o amparo de Elvira Carrillo, que se encarregou delas com uma devoção de serva. Quando a avó perdeu por completo a vista e a razão, os meus pais levaram‑na com eles para que pelo menos tivesse melhor vida para morrer. A tia Francisca, virgem e mártir, continuou a ser a mesma das tiradas insólitas e dos refrães ríspidos, que se negou a entregar as chaves do cemitério e a fábrica de hóstias para consagrar, com a razão de que Deus a teria chamado se fosse essa a sua vontade. Num dia qualquer, sentou‑se à porta do quarto com vários dos seus lençóis imaculados e coseu a própria mortalha cortada à sua medida, e com tanto primor que a morte esperou mais de duas semanas até que ficou pronta. Nessa noite, deitou‑se sem se despedir de ninguém, sem qualquer doença ou dor, e deixou‑se morrer no seu melhor estado de saúde. Só depois se aperceberam de que na noite anterior tinha preenchido os formulários de óbito e tratado dos trâmites do seu próprio enterro. Elvira Carrillo, que também não conheceu varão por vontade própria, ficou só na solidão imensa da casa. À meia‑noite era despertada pelo espanto da tosse eterna nos quartos vizinhos, mas nunca se importou, porque estava habituada a partilhar também as angústias da vida sobrenatural.

Pelo contrário, o seu irmão gémeo, Esteban Carrillo, manteve‑se lúcido e dinâmico até muito velho. Em certa ocasião em que tomava o pequeno‑almoço com ele, lembrei‑me com todos os pormenores visuais que tinham tentado deitar o seu pai pela borda fora na lancha de Ciénaga, levantado em ombros pela multidão e atirado ao ar numa manta pelos arrieiros como Sancho Pança. Nessa altura Papalelo já tinha morrido e contei a recordação ao tio Esteban porque me pareceu divertida. Mas ele levantou‑se de um salto, furioso por não ter contado o caso a ninguém logo que aconteceu e ansioso para que conseguisse identificar na memória o homem que conversava com o avô naquela ocasião, para que lhe dissesse quem eram os que tinham tentado afogá‑lo. Também não entendia que Papalelo não se tivesse defendido, se era um bom atirador que em duas guerras civis tinha estado muitas vezes na linha de fogo, que dormia com o revólver debaixo da almofada e que já em tempo de paz matara um inimigo em duelo. Em todo o caso, disse‑me Esteban, nunca seria tarde para que ele e os irmãos castigassem a afronta. Era a lei guajira: o agravo a um membro da família tinha que ser pago por todos os varões da família do agressor. Tão decidido estava o meu tio Esteban, que tirou o revólver do cinto e o colocou em cima da mesa para não perder tempo enquanto acabava de me interrogar. Desde então, cada vez que nos encontrávamos nas nossas errâncias, voltava‑lhe a esperança de que eu me tivesse lembrado. Uma noite, apresentou‑se no meu cubículo do jornal, na época em que eu andava a esquadrinhar o passado da família para o primeiro romance que não acabei, e propôs‑me que fizéssemos juntos uma investigação do atentado. Nunca se rendeu. A última vez que o vi em Cartagena de índias, já velho e com o coração fendido, despediu‑se de mim com um sorriso triste:

‑ Não sei como pudeste ser escritor com tão má memória.

Quando não houve nada mais que fazer em Aracataca, o meu pai levou‑nos a viver em Barranquilla uma vez mais, para instalar uma farmácia sem um centavo de capital mas com bom crédito dos grossistas, que tinham sido seus sócios em negócios anteriores. Não era a quinta botica, como dizíamos em família, mas a única de sempre que levávamos de uma cidade para outra segundo os palpites comerciais do meu pai: duas vezes em Barranquilla, duas em Aracataca e uma em Sincé. Em todas tivera precários lucros e dívidas solúveis. A família, sem avós nem tios nem criados, reduziu‑se então aos pais e aos filhos, que já éramos seis ‑ três varões e três mulheres ‑ em nove anos de casamento.

Senti‑me muito inquieto por essa novidade na minha vida. Tinha estado em Barranquilla várias vezes para visitar os meus pais, em pequeno e sempre de passagem, e as minhas recordações de então são muito fragmentárias. A primeira visita foi aos três anos, quando me levaram para o nascimento da minha irmã Margot. Lembro‑me do cheiro do lodo do porto ao amanhecer, do carro de um cavalo cujo cocheiro espantava com o seu chicote os ladrões de malas que tentavam subir para o degrau nas ruas desoladas e poeirentas. Lembro‑me das paredes ocres e das madeiras verdes de portas e janelas do edifício da maternidade onde nasceu a menina e do forte cheiro a remédios que se respirava no quarto. A recém‑nascida estava numa cama de ferro muito simples, ao fundo de um compartimento triste, com uma mulher que sem dúvida era a minha mãe e da qual apenas consigo recordar uma presença sem rosto que me estendeu uma mão lânguida e suspirou:

‑ Já não te lembras de mim.

Nada mais. A primeira imagem concreta que tenho dela é de vários anos depois, nítida e indubitável, mas não consegui situá‑la no tempo. Deve ter sido nalguma visita que fez a Aracataca depois do nascimento de Aida Rosa, a minha segunda irmã. Eu estava no pátio, a brincar com um borrego recém‑nascido que Santos Villero me trouxera nos braços desde Fonseca, quando chegou a correr a tia Mamã e me avisou com um grito que me pareceu de espanto: ‑ Chegou a tua mãe!

Levou‑me quase de rastos para a sala, onde todas as mulheres da casa e algumas vizinhas estavam sentadas como num velório em cadeiras alinhadas contra as paredes. A conversa interrompeu‑se devido à minha entrada repentina. Permaneci na porta, petrificado, sem saber qual delas era a minha mãe, até que ela me abriu os braços com a voz mais carinhosa de que tenho memória: ‑ Mas já és um homem!

Tinha um belo nariz romano e era digna e pálida e mais distinta do que nunca devido à moda daquele ano: vestido de seda cor de marfim cortado nas ancas, colar de pérolas de várias voltas, sapatos prateados de presilha e salto alto, e um chapéu de palha fina com forma de sino, como os do cinema mudo. O seu abraço envolveu‑me com o aroma próprio que sempre lhe senti e uma lufada de culpa fez‑me estremecer o corpo e a alma, porque sabia que o meu dever era gostar dela mas senti que não era verdade.

Em contrapartida, a recordação mais antiga que conservo do meu pai é, comprovada e nítida, de 1 de Dezembro de 1934, dia em que completou trinta e três anos.

Vi‑o entrar avançando em passadas rápidas e alegres na casa dos avós em Cataca, com um fato completo de linho branco e o chapéu de palha de copa achatada. Alguém que o felicitou com um abraço perguntou‑lhe quantos anos fazia. Nunca esqueci a sua resposta, porque no momento não a entendi:

‑ A idade de Cristo.

Sempre me interroguei por que razão aquela recordação me parece tão antiga, se é indubitável que nessa altura devia ter estado com o meu pai muitas vezes.

Nunca tínhamos vivido na mesma casa mas, depois do nascimento de Margot, os meus avós adoptaram o costume de me levar a Barranquilla, de modo que quando nasceu Aida Rosa já era menos estranho. Creio que foi uma casa feliz. Tiveram ali uma farmácia e, mais tarde, abriram outra no centro comercial. Voltámos a ver a avó Argemira ‑ a mamã Gime ‑ e dois dos seus filhos, Júlio e Ena, que era muito bonita mas famosa na família pela sua má sorte. Morreu aos vinte e cinco anos, não se sabe de quê, e ainda hoje se diz que foi por causa do feitiço feito por um namorado contrariado. À medida que crescíamos, a mamã Gime continuava a parecer‑me cada vez mais simpática e desbocada.

Nessa mesma época, os meus pais causaram‑me um sobressalto emocional que me deixou uma cicatriz difícil de apagar. Foi um dia em que a minha mãe sofreu um ataque de nostalgia e se sentou a dedilhar ao piano "Quando acabou o baile", a valsa histórica dos seus amores secretos e o meu pai se lembrou da travessura romântica de tirar o pó ao violino para a acompanhar, embora lhe faltasse uma corda. Ela adaptou‑se com facilidade ao seu estilo de madrugada romântica e tocou melhor do que nunca, até que, satisfeita, olhou para ele por cima do ombro e notou que tinha os olhos húmidos de lágrimas.

"De quem te estás a lembrar?", perguntou‑lhe a minha mãe com uma inocência feroz. "Da primeira vez que a tocámos juntos", respondeu ele, inspirado pela valsa. Então a minha mãe deu no teclado uma pancada raivosa com os dois punhos.

‑ Não foi comigo, jesuíta! ‑ gritou em voz muito alta

‑ Sabes muito bem com quem a tocaste e estás a chorar por ela.

Não disse o nome, nem então, nem nunca mais, mas o grito petrificou‑nos de pânico a todos, em diferentes lugares da casa Luis Enrique e eu, que sempre tivemos razões ocultas para ter medo, escondemo‑nos debaixo das camas. Aida fugiu para a casa vizinha e Margot ficou com uma febre súbita que a manteve em delírio três dias. Mesmo os irmãos mais novos estavam habituados àquelas explosões de ciúmes da minha mãe, com os olhos em chamas e o nariz romano afiado como uma faca. Tínhamo‑la visto tirar das paredes com estranha serenidade os quadros da sala e espatifá‑los no chão um a seguir ao outro, numa estrepitosa granizada de vidro. Tínhamo‑la surpreendido a cheirar as roupas do meu pai, peça por peça, antes de as deitar no cesto da roupa suja. Não aconteceu mais nada depois da noite do dueto trágico, mas o afinador florentino levou o piano para vender e o violino ‑ com o revólver ‑ acabou por apodrecer no roupeiro.

Barranquilla era nessa época pioneira do progresso civil, do liberalismo suave e da convivência política. Foram factores decisivos do seu crescimento e prosperidade o fim de mais de um século de guerras civis que assolaram o país desde a independência de Espanha e, mais tarde, o aniquilamento da zona bananeira, afectada pela repressão feroz que se encarniçou contra ela depois da grande greve.

No entanto, até então nada podia contra o espírito empreendedor das suas gentes. Em 1919, o jovem industrial Mario Santodomingo ‑ o pai de Júlio Mário ‑, conquistara a glória cívica de inaugurar o correio aéreo nacional com cinquenta e sete cartas num saco de lona que atirou para a praia de Puerto Colômbia, a cinco léguas de Barranquilla, de um avião elementar pilotado pelo norte‑americano William Knox Martin. No fim da Primeira Guerra Mundial, chegou um grupo de aviadores alemães ‑ entre eles Helmuth von Krohn ‑ que estabeleceram as rotas aéreas com Junkers F‑13, os primeiros anfíbios que percorriam o rio Magdalena como gafanhotos providenciais, com seis passageiros intrépidos e as sacas do correio. Foi esse o embrião da Sociedad Colombo‑Alemana de Transportes Aéreos ‑ SCADTA ‑ uma das mais antigas do mundo.

A nossa última mudança para Barranquilla não foi para mim uma simples mudança de cidade e de casa, mas uma mudança de pai aos onze anos. O novo era um grande homem, mas com um sentido da autoridade paterna muito diferente daquele que nos tinha feito felizes, a Margarita e a mim, em casa dos avós. Habituados a ser donos e senhores de nós mesmos, foi‑nos muito difícil adaptarmo‑nos a um regime estranho. Pelo seu lado mais admirável e comovedor, o meu pai foi um autodidacta absoluto e o leitor mais voraz que conheci, embora também o menos sistemático. Desde que renunciou à escola de Medicina, dedicou‑se a estudar sozinho a homeopatia, que naquele tempo não requeria formação académica, e obteve o seu diploma com honra. Mas, por outro lado, não tinha a força da minha mãe para ultrapassar as crises. Passou as piores na rede do seu quarto, lendo quanto papel impresso lhe caísse nas mãos e resolvendo palavras cruzadas. Mas o seu problema com a realidade era insolúvel. Tinha uma devoção quase mítica pelos ricos, mas não pelos inexplicáveis e sim por aqueles que tinham feito o seu dinheiro à força de talento e honradez. Acordado na sua rede mesmo em pleno dia, acumulava fortunas colossais em imaginação, com empresas tão fáceis que não entendia como não lhe tinham ocorrido antes. Gostava de citar como exemplo a fortuna mais estranha de que teve conhecimento em Darién: duzentas léguas de porcas paridas. No entanto, esses empórios insólitos não se encontravam nos lugares onde vivíamos mas em paraísos perdidos dos quais tinha ouvido falar nas suas errâncias de telegrafista. O seu irrealismo fatal manteve‑nos suspensos entre descalabros e reincidências, mas também com longas épocas em que não nos caíram do céu nem as migalhas do pão de cada dia. Em todo o caso, tanto nos bons como nos maus momentos, os nossos pais ensinaram‑nos a celebrar uns e suportar os outros com uma submissão e uma dignidade de católicos à antiga.

A única prova que me faltava era viajar só com o meu pai e tive‑a completa quando me levou a Barranquilla para que o ajudasse a instalar a farmácia e a preparar o desembarque da família. Surpreendeu‑me que, quando sós, me tratasse como a uma pessoa adulta, com carinho e respeito, a ponto de me encarregar de tarefas que não pareciam fáceis para os meus anos, mas fi‑las bem e encantado, embora ele nem sempre tivesse estado de acordo. Tinha o costume de nos contar histórias da infância na aldeia natal, mas repetia‑as ano após ano para os nascidos de novo, de maneira que iam perdendo graça para nós, que já as conhecíamos. A ponto de que os mais velhos se levantavam quando começava a contá‑las à sobremesa. Luis Enrique, em mais um dos seus ataques de franqueza, ofendeu‑o quando disse ao retirar‑se:

‑ Avisem‑me quando o avô tornar a morrer.

Aqueles arranques tão espontâneos exasperavam o meu pai e somavam‑se aos motivos que já estava a acumular para mandar Luis Enrique para o reformatório de Medellín.

Mas comigo em Barranquilla tornou‑se outro. Arquivou o repertório de anedotas populares e contava‑me episódios interessantes da sua vida difícil com a mãe, da tacanhez lendária do pai e das suas dificuldades para estudar. Aquelas recordações permitiram‑me suportar melhor alguns dos seus caprichos e entender algumas das suas incompreensões.

Nessa época falámos de livros lidos e por ler e fizemos nos quiosques leprosos do mercado público uma boa colheita de histórias de Tarzan e de detectives e guerras do espaço. Mas também estive quase a ser vítima do seu sentido prático, sobretudo quando decidiu que fizéssemos apenas uma refeição por dia. Sofremos o nosso primeiro confronto quando me surpreendeu a encher com gasosas e pães doces os buracos do entardecer, sete horas depois do almoço, e não lhe soube dizer de onde tinha tirado o dinheiro para os comprar. Não me atrevi a confessar‑lhe que a minha mãe me dera alguns pesos às escondidas, prevendo o regime trapista que ele impunha nas suas viagens. Aquela cumplicidade com a minha mãe prolongou‑se enquanto ela dispôs de meios. Quando fui interno para a escola secundária, punha‑me na mala coisas diversas de banho e toucador e uma fortuna de dez pesos dentro de uma caixa de sabão de Reuter, com a ilusão de que a abrisse num momento de necessidade. Assim foi, pois enquanto estudamos fora de casa, qualquer momento é ideal para encontrar dez pesos.

O meu pai arranjava forma de não me deixar só de noite na farmácia de Barranquilla, mas as suas soluções nem sempre eram as mais divertidas para os meus doze anos. As visitas nocturnas a famílias amigas tornavam‑se esgotantes para mim, porque as que tinham filhos da minha idade obrigavam‑nos a deitar‑se às oito e deixavam‑me atormentado pelo aborrecimento e o sono no ermo das tagarelices sociais.

Uma noite devo ter adormecido na visita à família de um medir amigo e não soube como nem a que horas acordei a andar por uma rua desconhecida. Não tinha a mínima ideia de onde estava nem como tinha chegado até ali e só pôde entender‑se como um acto de sonambulismo. Não havia nenhum precedente familiar nem se repetiu até hoje, mas continua a ser a única explicação possível. A primeira coisa que me surpreendeu ao despertar foi a montra de um cabeleireiro com espelhos brilhantes, onde atendiam três ou quatro clientes por baixo de um relógio que marcava oito e dez, que era uma hora impensável para um garoto da minha idade estar só na rua. Aturdido pelo susto, confundi os nomes da família onde estávamos de visita e lembrava‑me mal da direcção da casa, mas alguns transeuntes conseguiram ligar as pontas para me levarem à direcção correcta. Encontrei a vizinhança em estado de pânico, a fazer todo o género de conjecturas sobre o meu desaparecimento. A única coisa que sabiam de mim era que me tinha levantado da cadeira no meio da conversa e pensaram que tinha ido à casa de banho. A explicação do sonambulismo não convenceu ninguém, e muito menos o meu pai, que entendeu aquilo apenas como uma travessura que me correu mal.

Por sorte, consegui reabilitar‑me dias depois noutra casa, onde me deixou uma noite inteira enquanto assistia a um jantar de negócios. A família estava toda reunida, pendente de um concurso popular de adivinhas da emissora Atlântico, que daquela vez parecia insolúvel: "Qual é o animal que ao voltar‑se muda de nome?" Por um raro milagre, eu tinha lido a resposta naquela mesma tarde na última edição do Almanaque Bristol e parecera‑me uma má piada: o único animal que muda de nome é o escaravelho, porque quando se volta se transforma em escararriba (Trocadilho intraduzível com escaravelho ‑ "escarabajo" ‑ escarabaixo e "escararriba" ‑ escaracima. (N. T.)). Disse‑o em segredo a uma das pequenas da casa e a mais velha precipitou‑se para o telefone e deu a resposta à emissora Atlântico. Ganhou o primeiro prémio, que teria chegado para pagar três meses do aluguer da casa: cem pesos. A sala encheu‑se de vizinhos barulhentos que tinham ouvido o programa e se precipitaram para felicitar as vencedoras, mas o que interessava à família, mais do que o dinheiro, era a vitória em si mesma num concurso que fez época na rádio da costa caribenha. Ninguém se lembrou que eu estava ali. Quando o meu pai voltou para me vir buscar, juntou‑se ao júbilo familiar e brindou pela vitória, mas ninguém lhe contou quem tinha sido o verdadeiro vencedor.

Outra conquista daquela época foi a autorização do meu pai para ir sozinho à matiné dos domingos no Teatro Colômbia. Passavam pela primeira vez séries com um episódio em cada domingo e criava‑se uma tensão que não permitia que tivéssemos um instante de sossego durante a semana. A Invasão de Mongo foi a primeira epopeia interplanetária que só pude substituir no meu coração muitos anos depois com 2001 ‑ Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrik. No entanto, o cinema argentino, com os filmes de Carlos Gardel e Libertad Lamarque, acabou por derrotar todos.

Em menos de dois meses, acabámos de montar a farmácia e conseguimos e mobilámos a residência da família. A primeira era numa esquina muito concorrida, em pleno centro comercial e apenas a quatro quarteirões do Paseo Bolívar. A residência, pelo contrário, ficava numa rua marginal do degradado e alegre Barrio Abajo, mas o preço do aluguer não correspondia ao que era mas ao que pretendia ser: uma quinta gótica pintada com amarelos e vermelhos de rebuçado e com dois minaretes de guerra.

No mesmo dia em que nos entregaram o local da farmácia, pendurámos as redes nos suportes das traseiras da loja e ali dormíamos em fogo lento numa sopa de suor. Quando ocupámos a residência, descobrimos que não havia argolas para redes, mas estendemos os colchões no chão e dormimos o melhor possível, desde que conseguimos um gato emprestado para afugentar os ratos. Quando a minha mãe chegou com o resto da tropa, o mobiliário estava ainda incompleto e não havia utensílios na cozinha nem muitas outras coisas para viver.

Apesar das suas pretensões artísticas, a casa era vulgar e apenas suficiente para nós, com sala de visitas, sala de jantar, dois quartos e um patiozinho empedrado. Na verdade, não devia valer um terço do aluguer que pagávamos por ela. A minha mãe espantou‑se ao vê‑la, mas o marido tranquilizou‑a com o engodo de um futuro dourado. Foram sempre assim. Era impossível conceber dois seres tão diferentes que se entendessem tão bem e se amassem tanto.

O aspecto da minha mãe impressionou‑me. Estava grávida pela sétima vez e pareceu‑me que as suas pálpebras e tornozelos estavam tão inchados como a cintura. Tinha nessa altura trinta e três anos e era a quinta casa que mobilava. Impressionou‑me o seu mau estado de espírito, que se agravou desde a primeira noite, aterrada pela ideia, que ela própria inventou sem qualquer fundamento, de que ali tinha vivido a Mulher X antes de ser esfaqueada. O crime fora cometido há sete anos, na anterior estada dos meus pais, e foi tão aterrador que a minha mãe tinha decidido nunca mais viver em Barranquilla. Talvez se tivesse esquecido disso quando regressou daquela vez, mas voltou‑lhe de repente à memória desde a primeira noite numa casa sombria na qual detectara de imediato um certo ar do castelo de Drácula.

A primeira notícia da Mulher X tinha sido a descoberta do seu corpo nu e irreconhecível devido ao estado de decomposição. Apenas foi possível determinar que era uma mulher com menos de trinta anos, de cabelo preto e feições atraentes. Julgou‑se que a tinham enterrado viva, porque tinha a mão esquerda sobre os olhos com um gesto de terror e o braço direito levantado sobre a cabeça. A única pista possível da sua identidade eram duas fitas azuis e uma peineta (Peineta ‑ pente convexo que as mulheres usam como adorno ou como travessão para segurar o penteado. (N. T.)) no que podia ter sido um penteado de tranças. Entre as muitas hipóteses, a que pareceu mais provável foi a de uma bailarina francesa de vida fácil que desaparecera desde a possível data do crime.

Barranquilla tinha a fama justa de ser a cidade mais hospitaleira e pacífica do país, mas com a desgraça de um crime atroz todos os anos. No entanto, não havia precedentes de um que tivesse abalado tanto e durante tanto tempo a opinião pública como o da esfaqueada sem nome. O jornal La Prensa, um dos mais importantes do país naquele tempo, considerava‑se o pioneiro das bandas desenhadas dominicais ‑ Buck Rogers, Tarzan, o Homem Macaco ‑ mas desde os primeiros anos impôs‑se como um dos grandes percursores da crónica vermelha. Durante vários meses, manteve a cidade suspensa com grandes títulos e revelações surpreendentes que tornaram famoso no país, com ou sem razão, o cronista esquecido.

As autoridades procuravam reprimir as suas informações com o argumento de que dificultavam a investigação, mas os leitores acabaram por acreditar menos nelas do que nas revelações de La Prensa. O confronto manteve‑os com a alma por um fio durante vários dias e, pelo menos uma vez, obrigou os investigadores a mudar de rumo.

A imagem da Mulher X estava nessa altura implantada com tanta força na imaginação popular que em muitas casas se reforçavam as portas com correntes e se mantinham vigilâncias nocturnas especiais, prevendo que o assassino à solta tentasse continuar o seu programa de crimes atrozes, e foi decidido que as adolescentes não saíssem sós de casa depois das seis da tarde.

A verdade, no entanto, ninguém a descobriu mas foi revelada ao fim de algum tempo pelo próprio autor do crime Efraín Duncan, que confessou ter matado a mulher, Angela Hoyos, na data calculada pela Medicina Legal, e tê‑la enterrado no lugar onde encontraram o cadáver esfaqueado. Os familiares reconheceram as fitas azuis e a peineta que Angela usava quando saiu de casa com o marido, a 5 de Abril, para uma suposta viagem a Calamar. O caso foi encerrado sem mais dúvidas por um acaso final e inconcebível que parecia tirado da manga por um autor de romances fantásticos: Angela Hoyos tinha uma irmã gémea, mesmo igual a ela, que permitiu identificá‑la sem qualquer dúvida.

O mito da Mulher X desabou, transformado num crime passional vulgar, mas o mistério da irmã idêntica ficou a flutuar nas casas, porque chegou a pensar‑se que fosse a própria Mulher X devolvida à vida por artes de bruxaria. As portas eram fechadas com trancas e móveis encostados para impedir que entrasse de noite o assassino fugido da prisão com recursos de magia. Nos bairros de ricos tornaram‑se moda os cães de caça treinados contra assassinos capazes de atravessar paredes. Na realidade, a minha mãe não conseguiu ultrapassar o medo até que os vizinhos a convenceram de que a casa do Barrio Abajo não fora construída no tempo da Mulher X.

A 10 de Julho de 1939, a minha mãe deu à luz uma menina com um lindo perfil de índia, que baptizaram com o nome de Rita devido à devoção inesgotável que tinham lá em casa a Santa Rita de Cássia, baseada, entre outras muitas graças, na paciência com que suportara o mau feitio do marido destrambelhado. A minha mãe contava‑nos que ele chegara uma noite a casa, enlouquecido pelo álcool, um minuto depois de uma galinha ter plantado a sua caganita em cima da mesa da sala de jantar. Sem tempo de limpar a toalha imaculada, a esposa conseguiu tapá‑la com um prato para evitar que o marido a visse e apressou‑se a distraí‑lo com a pergunta da praxe:

‑ O que queres comer?

O homem deu um grunhido:

‑ Merda. A mulher levantou então o prato e disse‑lhe com a sua santa doçura:

‑ Aí a tens.

Diz a história que o próprio marido se convenceu então da santidade da esposa e se converteu à fé de Cristo.

A nova botica de Barranquilla foi um fracasso espectacular, atenuado apenas pela rapidez com que o meu pai o pressentiu. Depois de vários meses a defender‑se em pormenores, abrindo dois buracos para tapar um, revelou‑se mais errático do que parecia até então. Um dia, fez os alforges e partiu em busca das fortunas adjacentes nas povoações mais impensáveis do rio Magdalena. Antes de partir, levou‑me aos seus sócios e amigos e fê‑los saber com certa solenidade que, na falta dele, estaria eu. Nunca soube se o fez por piada, como gostava de dizer mesmo em ocasiões graves, ou se o disse a sério, como o divertia dizer em ocasiões banais. Suponho que cada um o entendeu como quis, pois aos doze anos eu era raquítico e pálido e só servia para desenhar e cantar. A mulher que nos fiava o leite disse à minha mãe diante de todos, e de mim, sem ponta de maldade:

‑ Desculpe que lhe diga, senhora, mas creio que este menino não se vai criar.

O susto deixou‑me durante muito tempo à espera de uma morte repentina e sonhava com frequência que ao olhar‑me ao espelho não me via a mim mesmo mas sim a um vitelo recém‑nascido. O médico da escola diagnosticou‑me paludismo, amigdalite e bílis negra devido ao abuso de leituras mal digeridas. Não procurei aliviar o alarme de ninguém. Pelo contrário, exagerava a minha condição de inválido para escapar a deveres. No entanto, o meu pai saltou por cima de tudo isso e, antes de abalar, proclamou‑me responsável pela casa e pela família durante a sua ausência:

‑ Como se fosse eu próprio.

No dia da viagem, reuniu‑nos na sala, deu‑nos instruções e repreensões preventivas pelo que pudéssemos fazer de mal na sua ausência, mas apercebemo‑nos de que eram artimanhas para não chorar. Deu‑nos uma moeda de cinco centavos a cada um, que era uma pequena fortuna para qualquer miúdo de então, e prometeu‑nos trocá‑la por duas iguais se as tivéssemos intactas no seu regresso. Por último, dirigiu‑se a mim com um tom evangélico:

‑ Nas tuas mãos os deixo, nas tuas mãos os encontre.

Partiu‑se‑me a alma vê‑lo sair de casa com as polainas de montar e os alforges ao ombro, e fui o primeiro a render‑me às lágrimas quando nos olhou pela última vez antes de virar a esquina e se despedir com a mão. Só então, e para sempre, me dei conta de quanto o amava.

Não foi difícil executar o seu encargo. A minha mãe começava a habituar‑se àquelas solidões intempestivas e incertas e movia‑se nelas a contragosto mas com grande facilidade. A cozinha e a arrumação da casa tornaram necessário que até os mais pequenos ajudassem nas tarefas domésticas, e fizeram‑no bem. Por essa época, tive a minha primeira sensação de adulto, quando me apercebi de que os meus irmãos começaram a tratar‑me como a um tio.

Nunca consegui controlar a timidez. Quando tive que enfrentar em carne viva a incumbência que nos deixou o pai errante, aprendi que a timidez é um fantasma invencível. De cada vez que tinha que solicitar um crédito, mesmo dos combinados de antemão em lojas de amigos, demorava horas em redor da casa, reprimindo a vontade de chorar e as contracções da barriga, até que me atrevia por fim, com as mandíbulas tão apertadas que não me saía a voz. Havia sempre algum comerciante sem coração para me atrapalhar ainda mais: «Miúdo parvo, não se pode falar com a boca fechada.» Mais de uma vez regressei a casa com as mãos vazias e uma desculpa inventada por mim. Mas nunca mais tornei a ser tão desgraçado como da primeira vez que quis falar pelo telefone na loja da esquina. O dono ajudou‑me com a operadora, pois ainda não existia o serviço automático. Senti o sopro da morte quando me deu o auscultador. Esperava uma voz serviçal e o que ouvi foi o latido de alguém que falava no escuro ao mesmo tempo que eu. Pensei que o meu interlocutor também não me ouvia e levantei a voz tanto quanto pude. O outro, enfurecido, também elevou a sua voz:

‑ E tu, porque carago me gritas!

Desliguei, aterrado. Devo admitir que, apesar da minha febre de comunicação, tenho ainda que reprimir o pavor do telefone e do avião e não sei se me vem desses dias. Como podia conseguir fazer qualquer coisa? Por sorte, a minha mãe repetia com frequência a resposta: «É preciso sofrer para servir.»

A primeira notícia do pai chegou‑nos duas semanas depois, numa carta mais destinada a distrair‑nos do que a informar‑nos de qualquer coisa. A minha mãe assim o entendeu e naquele dia lavou os pratos a cantar para nos levantar a moral. Sem o meu pai era diferente: identificava‑se com as filhas como se fosse uma irmã mais velha. Adaptava‑se tão bem a elas que era a melhor nas brincadeiras infantis, mesmo com as bonecas, e chegava a perder as estribeiras e a brigar com elas de igual para igual. No mesmo sentido da primeira chegaram outras duas cartas do meu pai, com projectos tão promissores que nos ajudaram a dormir melhor.

Um problema grave era a rapidez com que a roupa nos ficava pequena. Ninguém herdava de Luis Enrique, nem teria sido possível, porque chegava da rua todo sujo e com o fato em farrapos e nunca entendemos porquê. A minha mãe dizia que era como se andasse por entre redes de arame farpado. As irmãs ‑ entre os sete e os nove anos ‑ arranjavam‑se umas com as outras como podiam, com prodígios de habilidade, e sempre acreditei que as necessidades daqueles dias as tornaram adultas precoces. Aida era engenhosa e Margot superara em grande parte a sua timidez e mostrou‑se carinhosa e prestável com a recém‑nascida. O mais difícil fui eu, não só porque tinha que fazer diferentes diligências, mas porque a minha mãe, protegida pelo entusiasmo de todos, assumiu o risco de reduzir os fundos domésticos para me matricular na escola Cartagena de índias, a uns dez quarteirões de casa, a pé.

De acordo com a convocatória, comparecemos uns vinte candidatos às oito da manhã para a prova de ingresso. Por sorte não era um exame escrito; havia três professores que nos chamavam pela ordem em que nos tínhamos inscrito na semana anterior e faziam um exame sumário de acordo com os nossos certificados de estudos anteriores. Eu era o único que não tinha certificados por falta de tempo para os pedir ao Montessori e à escola primária de Aracataca e a minha mãe pensava que não seria admitido sem papéis. Mas decidi fazer‑me de parvo. Um dos professores tirou‑me da fila quando lhe confessei que os não tinha, mas outro encarregou‑se da minha sorte e levou‑me para o seu gabinete a fim de me examinar sem requisitos prévios. Perguntou‑me que quantidade era uma grosa, quantos anos eram um lustro e um milénio, fez‑me repetir as capitais dos departamentos, os principais rios nacionais e os países limítrofes. Tudo me pareceu rotineiro até que me perguntou que livros tinha lido. Chamou‑lhe a atenção o facto de citar tantos e tão variados para a minha idade e que tivesse lido As Mil e Uma Noites numa edição para adultos, na qual não tinham sido suprimidos alguns dos episódios escabrosos que escandalizavam o padre Angarita. Surpreendeu‑me saber que era um livro importante, pois sempre tinha pensado que os adultos sérios não podiam acreditar que saíssem génios das garrafas ou que as portas se abrissem ao esconjuro das palavras. Os candidatos que tinham passado antes de mim não tinham demorado mais de um quarto de hora cada um, admitidos ou recusados, e eu estive mais de meia hora à conversa com o professor sobre todo o género de temas. Revimos juntos uma estante de livros apertados por trás da sua secretária, na qual se distinguia pelo seu número e esplendor O Tesouro da Juventude, do qual tinha ouvido falar, mas o professor convenceu‑me de que na minha idade era mais útil o D. Quixote. Não o encontrou na biblioteca, mas prometeu emprestar‑mo mais tarde. Ao fim de meia hora de comentários rápidos sobre Simbad o Marinheiro ou Robinson Crusoe, acompanhou‑me até à saída sem me dizer se estava admitido. Pensei que não, como é evidente, mas na varanda despediu‑se de mim com um aperto de mão até segunda‑feira, às oito da manhã, para me matricular na fase superior da escola primária: o quarto ano. Era o director‑geral. Chamava‑se Juan Ventura Casalins e lembro‑me dele como de um amigo de infância, sem nada da imagem aterradora que tínhamos dos professores da época. A sua virtude inolvidável era tratar‑nos a todos como adultos iguais, embora ainda hoje me pareça que se ocupava de mim com uma atenção especial. Nas aulas costumava fazer‑me mais perguntas do que aos outros e ajudava‑me para que as minhas respostas fossem certeiras e fáceis. Permitia‑me que levasse os livros da biblioteca escolar para ler em casa. Dois deles, A Ilha do Tesouro e O Conde de Monte Cristo, foram a minha droga feliz naqueles anos pedregosos. Devorava‑os letra por letra, com a ansiedade de saber o que acontecia na linha seguinte e, ao mesmo tempo, com a ansiedade de não saber para não quebrar o encanto. Com eles, como com As Mil e Uma Noites, aprendi para não mais esquecer que só se deveriam ler os livros que nos forçam a relê‑los.

Em contrapartida, a minha leitura do D. Quixote mereceu‑me sempre um capítulo à parte, porque não me causou a comoção prevista pelo professor Casalins. Aborreciam‑me as tiradas sábias do cavaleiro andante e não achava a menor graça às burradas do escudeiro, a ponto de pensar que não era o mesmo livro de que tanto se falava. No entanto, disse para mim mesmo que um professor tão sábio como o nosso não se podia enganar, e esforcei‑me por engoli‑lo às colheradas, como um purgante. Fiz outras tentativas no bacharelato, onde tive que o estudar como tarefa obrigatória, e fiquei a detestá‑lo sem remédio até que um amigo me aconselhou que o pusesse na prateleira da retrete e tratasse de lê‑lo enquanto cumpria os meus deveres quotidianos. Só assim o descobri, como uma deflagração, e o saboreei da frente para trás e de trás para a frente até recitar de cor episódios inteiros.

Aquela escola providencial deixou‑me além disso recordações históricas de uma cidade e de uma época irrecuperáveis. Era a única casa no cume de uma colina verde, de cuja varanda se divisavam os dois extremos do mundo. À esquerda, o Barrio del Prado, o mais distinto e caro, que desde a primeira visão me pareceu uma cópia fiel do galinheiro electrificado da United Fruit Company. Não era por acaso: estava a ser construído por uma empresa de urbanistas norte‑americanos, Com os seus gostos e normas e preços importados, e era uma atracção turística infalível para o resto do país. À direita, pelo contrário, o arrabalde do nosso Barrio Abajo, com as ruas de pó ardente e as casas de bahareque com telhados de folhas de palmeira que nos faziam lembrar a toda a hora que não éramos mais do que mortais de carne e osso. Por sorte, da varanda da escola tínhamos uma visão panorâmica do futuro: o delta histórico do rio Magdalena, que é um dos grandes do mundo, e o mar cinzento das Bocas de Ceniza (Bocas de Ceniza é a zona onde o rio Magdalena desagua com violência no mar, controlada hoje por quebra‑mares que a tornaram navegável e que são a única obra de engenharia colombiana que se pode ver da Lua a olho nu. (N. T.)).

A 28 de Maio de 1935 vimos o petroleiro Taralite, de bandeira canadiana, que entrou com bramidos de alegria pelos quebra‑mares de rocha viva e atracou no porto da cidade entre estrondos de música e foguetes por ordem do capitão D. F. McDonald. Culminou assim uma proeza cívica de muitos anos e muitos pesos para transformar Barranquilla no único porto marítimo e fluvial do país.

Pouco depois, um avião pilotado pelo capitão Nicolás Reyes Manotas passou a roçar as açoteias em busca de uma clareira para aterrar de emergência, não só para salvar a própria pele como a dos cristãos que apanhasse na sua queda. Era um dos pioneiros da aviação colombiana. Tinham‑lhe oferecido no México o avião primitivo e levou‑o, solitário, de uma ponta a outra da América Central. Uma multidão concentrada no aeroporto de Barranquilla preparara‑lhe umas boas‑vindas triunfais, com lenços e bandeiras e a banda de música, mas Reyes Manotas quis dar mais duas voltas de saudação sobre a cidade e sofreu uma falha de motor.

Conseguiu recuperar com uma perícia milagrosa para aterrar na açoteia de um edifício do centro comercial, mas ficou preso nos fios da electricidade e pendurado de um poste. O meu irmão Luis Enrique e eu perseguimo‑lo entre a multidão alvoroçada até onde nos chegaram as forças, mas só conseguimos ver o piloto quando já o tinham tirado do avião com grande dificuldade mas são e salvo e com uma ovação de herói.

A cidade teve também a primeira emissora de rádio, um aqueduto moderno que se transformou numa atracção turística e pedagógica para mostrar o inovador processo de purificação das águas, e um corpo de bombeiros cujas sirenes e campainhas eram uma festa para miúdos e graúdos logo que se começavam a ouvir. Também entraram por ali os primeiros automóveis descapotáveis, que se lançavam pelas ruas a velocidades de loucos e se espatifavam nas novas estradas pavimentadas. A agência funerária La Equitativa, inspirada pelo humor da morte, colocou um anúncio enorme à saída da cidade: «Não corra, nós esperamos por si.»

À noite, quando o único refúgio era a casa, a minha mãe reunia‑nos para nos ler as cartas do pai. A maioria eram obras‑primas de distracção, mas houve uma muito explícita sobre o entusiasmo que despertava a homeopatia entre as pessoas mais velhas do Baixo Magdalena. «Há casos aqui que pareceriam milagres», dizia o meu pai. Às vezes, deixava‑nos a impressão de que muito em breve nos ia revelar algo grandioso, mas o que se seguia era outro mês de silêncio. Na Semana Santa, quando dois dos irmãos mais novos contraíram uma varicela perniciosa, não tivemos forma de comunicar com ele porque nem os guias mais hábeis descobriam o seu rasto.

Foi naqueles meses que entendi na vida real uma das palavras mais usadas pelos meus avós: a pobreza. Interpretava‑a como a situação que vivíamos em sua casa desde que se começou a desmantelar a companhia bananeira. Queixavam‑se dela a todas as horas. Já não eram dois e até três turnos à mesa, como dantes, mas um turno único. Para não renunciar ao ritual sagrado dos almoços, mesmo quando já não tinham recursos para os manter, acabaram por comprar a comida nas barracas do mercado, que era boa e muito mais barata e com a surpresa de que nós, as crianças, gostávamos mais. Mas acabaram para sempre quando Mina soube que alguns comensais assíduos tinham resolvido não voltar lá a casa porque já não se comia tão bem como dantes.

A pobreza dos meus pais em Barranquilla, pelo contrário, era esgotante mas permitiu‑me a sorte de estabelecer uma relação excepcional com a minha mãe. Mais do que amor filial compreensível, sentia por ela uma admiração pasmosa pelo seu carácter de leoa, calada mas feroz face à adversidade, e pela sua relação com Deus, que não parecia de submissão mas de combate. Duas virtudes exemplares que lhe infundiram uma confiança na vida que nunca lhe faltou. Nos piores momentos, ria‑se dos seus próprios expedientes providenciais. Como da vez em que comprou um joelho de boi e o ferveu dia após dia para o caldo quotidiano, cada vez mais aguado, até que já não deu para mais. Numa noite de pavorosa tempestade, gastou a banha do mês inteiro para fazer mechas de trapo, pois faltou a luz até ao amanhecer e ela própria inculcara aos filhos mais novos o medo do escuro para que não saíssem da cama.

A princípio, os meus pais visitavam as famílias amigas emigradas de Aracataca devido à crise da banana e à deterioração da ordem pública. Eram visitas circulares, as quais giravam sempre em torno dos temas da desgraça que se abatera sobre a aldeia. Mas quando a pobreza nos apertou a nós em Barranquilla, não voltámos a queixar‑nos em casa alheia.

A minha mãe reduziu a sua reticência a uma única frase: «A pobreza nota‑se nos olhos.»

Até aos cinco anos, a morte tinha sido para mim um fim natural que acontecia aos outros. As delícias do céu e os tormentos do inferno pareciam‑me apenas lições para decorar na catequese do padre Astete. Não tinham nada a ver comigo até que detectei de soslaio, num velório, que os piolhos estavam a fugir do cabelo do morto e vagueavam sem rumo pelas almofadas. O que me inquietou desde então, não foi o medo da morte mas a vergonha de que também a mim fugissem os piolhos à vista dos parentes no meu velório. No entanto, na escola primária de Barranquilla, não me apercebi que estava cheio de piolhos senão quando já tinha contagiado toda a família. A minha mãe deu então mais uma prova do seu carácter. Desinfectou os filhos um por um com insecticida de baratas, em limpezas a fundo que baptizou com um nome de grande estirpe: a polícia. O mau foi que, mal estávamos limpos, começávamos logo a ficar infestados de novo, porque eu voltava a ser contagiado na escola. Então a minha mãe decidiu cortar a direito e obrigou‑me a rapar a cabeça. Foi um acto heróico aparecer na segunda‑feira na escola com um barrete de pano, mas sobrevivi com honra às troças dos companheiros e coroei o ano final com as classificações mais altas. Nunca mais voltei a ver o professor Casalins, mas ficou‑me uma gratidão eterna.

Um amigo do meu pai, que nunca conhecemos, conseguiu‑me um emprego de férias numa tipografia próxima de casa. O ordenado era pouco mais de nada e o meu único estímulo foi a ideia de aprender o ofício. No entanto, não me sobrava um minuto para ver imprimir, porque o trabalho consistia em ordenar folhas litografadas para serem encadernadas noutra secção.

Um consolo foi que a minha mãe me autorizou a comprar com o meu ordenado o suplemento dominical de La Prensa que tinha as tiras cómicas de Tarzan, Buck Rogers ‑ que se chamava Rogelio el Conquistador ‑ e Mutt e Jeff‑ que se chamavam Benitín e Eneas. No ócio dos domingos aprendi a desenhá‑los de cor e continuava por minha conta os episódios da semana. Consegui entusiasmar com eles alguns adultos do quarteirão e cheguei a vendê‑los até por dois centavos.

O emprego era fatigante e estéril e, por muito que me esmerasse, os relatórios dos meus superiores acusavam‑me de falta de entusiasmo no trabalho. Deve ter sido por consideração à minha família que me libertaram da rotina da oficina e me nomearam distribuidor de rua de folhas de propaganda de um xarope para a tosse recomendado pelos mais famosos artistas de cinema. Pareceu‑me bem, porque os folhetos eram muito bonitos, com fotografias coloridas dos actores e em papel acetinado. No entanto, compreendi desde o princípio que distribuí‑los não era tão fácil como eu pensava, porque as pessoas os olhavam com desconfiança por serem oferecidos e a maioria se crispava para não os receber, como se estivessem electrificados. Nos primeiros dias, voltei à oficina com os que sobravam para que mos completassem. Até que encontrei uns condiscípulos de Aracataca, cuja mãe se escandalizou por me ver naquele ofício que lhe pareceu de mendigos. Ralhou‑me quase aos gritos por andar na rua com umas sandálias de pano que a minha mãe tinha comprado para eu não gastar os botins de domingo.

‑ Diz à Luisa Márquez ‑ disse‑me ‑ que pense no que diriam os seus pais se vissem o neto preferido distribuindo no mercado propaganda para tísicos.

Não transmiti a mensagem para poupar desgostos à minha mãe, mas chorei de raiva e vergonha na minha almofada durante várias noites. O fim do drama foi que não voltei a distribuir os folhetos e deitava‑os nos canais do mercado sem prever que eram de águas mansas e o papel acetinado ficava a boiar até formar à superfície uma colcha de lindas cores que se transformou num espectáculo insólito visto da ponte.

A minha mãe deve ter recebido alguma mensagem dos seus mortos num sonho revelador, porque antes de completar dois meses tirou‑me da tipografia sem explicações. Eu opunha‑me para não perder a edição dominical de La Prensa, que recebíamos em família como uma bênção do céu, mas a minha mãe continuou a comprá‑la, embora tivesse que deitar uma batata a menos na sopa. Outro recurso salvador foi a quota de consolo que o tio Juanito nos mandou durante os meses mais duros. Continuava a viver em Santa Marta com os seus escassos rendimentos de contador juramentado e impôs a si mesmo o dever de nos mandar uma carta todas as semanas com duas notas de peso. O capitão da lancha Aurora, velho amigo da família, entregava‑ma às sete da manhã e eu regressava a casa com compras básicas de mercado para vários dias. Uma quarta‑feira não pude fazer o recado e a minha mãe encomendou‑o a Luis Enrique, que não resistiu à tentação de multiplicar os dois pesos na máquina de moedas de uma tasca de chineses. Não teve a determinação de parar quando perdeu as duas primeiras fichas e continuou a tentar recuperá‑las até que perdeu a penúltima moeda. «Foi tal o pânico ‑ contou‑me, já depois de adulto ‑ que tomei a decisão de nunca mais voltar para casa.» Sabia bem que os dois pesos chegavam para as compras básicas de uma semana. Por sorte, com a última ficha, sucedeu qualquer coisa na máquina, que estremeceu com um tremor de ferros nas entranhas e vomitou num jorro imparável as fichas completas dos dois pesos perdidos. «Então fui iluminado pelo diabo ‑ contou‑me Luis Enrique ‑ e atrevi‑me a arriscar mais uma ficha.» Ganhou.

Arriscou outra e ganhou, e outra, e outra e ganhou. «O susto nessa altura era maior do que o de ter perdido e as tripas deram‑me uma volta ‑ revelou‑me ‑ mas continuei a jogar.» No fim tinha ganho duas vezes os dois pesos originais em moedas de cinco e não se atreveu a trocá‑las por notas na caixa com medo que o chinês o embrulhasse com alguma história chinesa. Faziam‑lhe tanto volume nos bolsos que, antes de dar à mãe os dois pesos do tio Juanito em moedas de cinco, enterrou os quatro ganhos por ele no fundo do pátio, onde costumava esconder todos os centavos que encontrava fora de lugar. Gastou‑os pouco a pouco, sem confessar a ninguém o segredo até muitos anos mais tarde e atormentado por ter caído na tentação de arriscar os últimos cinco centavos na loja do chino.

A sua relação com o dinheiro era muito pessoal. Numa ocasião em que a minha mãe o surpreendeu remexendo na sua carteira das moedas do mercado, a sua defesa foi um tanto bárbara mas lúcida: as moedas que se tiram sem autorização das carteiras dos pais não podem ser um roubo porque é o dinheiro de todos, que nos negam por terem inveja de não poderem fazer com elas o que fazem os filhos. Cheguei a defender o seu argumento até ao extremo de confessar que eu próprio tinha saqueado os esconderijos domésticos por necessidades urgentes. A minha mãe perdeu as estribeiras. «Não sejam tão insensatos ‑ quase me gritou: ‑ nem tu nem o teu irmão me roubam nada, porque eu própria deixo o dinheiro onde sei que hão‑de ir buscá‑lo quando estiverem em apuros.» Num ataque de raiva, ouvi‑a murmurar desesperada que Deus deveria permitir o roubo de certas coisas para alimentar os filhos.

A propensão pessoal de Luis Enrique para as travessuras era muito útil para resolver problemas comuns, mas não chegou para me tornar cúmplice das suas tropelias. Em vez disso, arranjou sempre maneira de que não recaísse sobre mim a mínima suspeita e isso consolidou um afecto verdadeiro que durou para sempre. Nunca o deixei saber, em contrapartida quanto invejava a sua audácia e quanto sofria com as sovas que o pai lhe dava. O meu comportamento era muito diferente do seu, mas às vezes tinha dificuldade em disfarçar a inveja. Pelo contrário, inquietava‑me a casa dos pais em Cataca, onde só me levavam para dormir quando me iam dar purgantes vermífugos ou óleo de rícino. Tanto que passei a detestar as moedas de vinte centavos que me pagavam pela dignidade com que os tomava.

Creio que o cúmulo do desespero da minha mãe foi mandar‑me com uma carta para um homem que tinha fama de ser o mais rico e, ao mesmo tempo, o filantropo mais generoso da cidade. As notícias do seu bom coração eram apregoadas com tanto alarde como os seus êxitos financeiros. A minha mãe escreveu‑lhe uma carta de angústia sem disfarces para solicitar uma ajuda económica urgente, não em seu nome, pois era capaz de suportar qualquer coisa, mas por amor dos filhos. É preciso tê‑la conhecido para compreender o que aquela humilhação significava na sua vida, mas a ocasião exigia‑o. Avisou‑me que o segredo devia ficar entre nós dois, e assim foi, até este momento em que o escrevo.

Bati no portão da casa, que tinha algo de igreja, e quase de imediato se abriu uma janelinha por onde assomou uma mulher da qual apenas recordo o gelo dos seus olhos. Recebeu a carta sem dizer uma palavra e tornou a fechar. Deviam ser onze da manhã e esperei sentado no degrau da porta até às três da tarde, quando decidi bater outra vez em busca de uma resposta. A mesma mulher voltou a abrir, reconheceu‑me, surpreendida, e pediu‑me que esperasse um momento. A resposta foi que voltasse na terça‑feira da semana seguinte, à mesma hora.

Assim fiz, mas a única resposta foi que não haveria nenhuma antes de uma semana. Tive de voltar mais três vezes, sempre para a mesma resposta, até um mês e meio depois, quando uma mulher mais áspera do que a anterior me respondeu, da parte do senhor, que aquela não era uma casa de caridade.

Dei voltas pelas ruas ardentes, procurando arranjar coragem para levar à minha mãe uma resposta que pusesse a salvo as suas ilusões. Já em plena noite, com o coração dorido, enfrentei‑a com a notícia seca de que o bom filantropo tinha morrido há vários meses. O que mais me doeu foi o rosário que a minha mãe rezou pelo eterno descanso da sua alma.

Quatro ou cinco anos depois, quando ouvimos pelo rádio a notícia verdadeira de que aquele filantropo tinha morrido no dia anterior, fiquei petrificado à espera da reacção da minha mãe. No entanto, nunca poderei entender como foi que a ouviu com uma atenção comovida, e suspirou com a alma: ‑ Deus o guarde no seu Santo Reino! A um quarteirão da casa, tornámo‑nos amigos dos Mosquera, uma família que gastava fortunas em revistas de banda desenhada e as empilhava até ao tecto num alpendre do pátio. Nós fomos os únicos privilegiados que pudemos passar ali dias inteiros lendo Dick Tracy e Buck Rogers. Outro feliz achado foi um aprendiz que pintava anúncios de filmes para o vizinho cinema de Las Quintas. Eu ajudava‑o pelo simples prazer de pintar letras e ele metia‑nos de graça duas ou três vezes por semana nos bons filmes de tiros e pancadaria. O único luxo que nos fazia falta era um aparelho de rádio para ouvir música a qualquer hora com o simples toque num botão. Hoje é difícil imaginar como eram raros nas casas dos pobres. Luis Enrique e eu sentávamo‑nos num banco que havia na loja da esquina para a tertúlia da clientela ociosa, e passávamos tardes inteiras ouvindo os programas de música popular, que eram quase todos. Chegámos a ter de memória um repertório completo de Miguelito Valdés, com a orquestra Casino de La Playa, Daniel Santos com a Sonora Matancera e os boleros de Agustín Lara na voz de Tona Ia Negra. A distracção das noites sobretudo nas duas ocasiões em que nos cortaram a luz por falta de pagamento, era ensinar as canções à minha mãe e aos meus irmãos. Sobretudo a Ligia e Gustavo, que as aprendiam como papagaios sem as entenderem e nos divertiam até mais não com os seus disparates líricos. Não havia excepções. Todos herdámos do pai e da mãe uma memória especial para a música e um bom ouvido para aprender uma canção à segunda vez. Sobretudo Luis Enrique, que nasceu músico e se especializou por sua conta em solos de guitarra para serenatas de amores contrariados. Não tardámos a descobrir que todos os garotos sem rádio das casas vizinhas também as aprendiam com os meus irmãos e, sobretudo, com a minha mãe, que acabou por ser mais uma irmã naquela casa de crianças.

O meu programa favorito era La hora de todo un poco, do compositor, cantor e maestro Angel Maria Camacho y Cano, que açambarcava a audiência a partir da uma da tarde com todo o género de variedades engenhosas e, em especial, com a sua hora de amadores para menores de quinze anos. Bastava inscrever‑se nos escritórios de La Voz de La Pátria e chegar ao programa com meia hora de antecedência. O maestro Camacho y Cano em pessoa acompanhava ao piano e um assistente seu cumpria a sentença inapelável de interromper a canção com uma campainha de igreja quando o amador cometia um erro ínfimo. O prémio para a canção mais bem cantada era mais do que podíamos sonhar ‑ cinco pesos ‑ mas a minha mãe foi explícita em que o mais importante era a glória de a cantar bem num programa de tanto prestígio.

Até então identificara‑me com o único apelido do meu pai ‑ Garcia ‑ e os meus dois nomes próprios ‑ Gabriel José ‑ mas naquela ocasião histórica a minha mãe pediu‑me que me inscrevesse também com o seu apelido ‑ Márquez ‑ para que ninguém duvidasse da minha identidade. Foi um acontecimento em casa. Fizeram‑me vestir de branco como na primeira comunhão e antes de sair deram‑me uma poção de brometo de potássio. Cheguei a La Voz de La Pátria com duas horas de antecedência e o efeito do calmante passou‑me de largo enquanto esperava num parque próximo porque não deixavam entrar nos estúdios até um quarto de hora antes do programa. A cada minuto sentia crescer dentro de mim as aranhas do terror, e por fim entrei com o coração a saltar pela boca. Tive que fazer um esforço supremo para não regressar a casa com a história de que não me tinham deixado entrar no concurso por qualquer pretexto. O maestro fez‑me uma prova rápida com o piano para estabelecer o meu tom de voz. Antes, chamaram sete pela ordem de inscrição, tocaram a campainha a três por diferentes desacertos e a mim anunciaram‑me com o nome simples de Gabriel Márquez. Cantei «O cisne», uma canção sentimental sobre um cisne mais branco do que um floco de neve, assassinado junto com o seu amante por um caçador sem coração. Apercebi‑me desde os primeiros compassos de que o tom era muito alto para mim nalgumas notas que não passaram pelo ensaio e tive um momento de pânico quando o ajudante fez uma expressão de dúvida e se pôs em guarda para agarrar a campainha. Não sei onde fui buscar coragem para fazer‑lhe um sinal enérgico de que não a tocasse, mas foi tarde: a campainha soou sem coração. Os cinco pesos do prémio, além de várias ofertas promocionais, foram para uma loura muito bonita que massacrara um trecho de Madame Butterfly. Voltei para casa acabrunhado com a derrota e nunca consegui consolar a minha mãe da sua desilusão.

Passaram muitos anos antes que ela me confessasse que a causa da sua vergonha era que tinha avisado os parentes e amigos para me ouvirem cantar e não sabia como evitá‑los.

No meio daquele regime de risos e lágrimas, nunca faltei à escola. Mesmo em jejum. Mas o tempo das minhas leituras em casa esgotava‑se em afazeres domésticos e não tínhamos orçamento de luz para ler até à meia‑noite. Fosse como fosse, cá me arranjava. No caminho para a escola havia várias garagens de autocarros de passageiros e numa delas demorava‑me horas vendo como pintavam nos lados os letreiros das rotas e dos destinos. Um dia, pedi ao pintor que me deixasse pintar umas letras para ver se era capaz. Surpreendido pela minha aptidão natural, permitiu que o ajudasse às vezes por uns pesos soltos que auxiliavam um pouco o orçamento familiar. Outra ilusão foi a minha amizade casual com três irmãos Garcia, filhos de um barqueiro do rio Magdalena, que tinham organizado um trio de música popular para animar, por puro amor à arte, as festas dos amigos. Completei com eles o Cuarteto Garcia para concorrermos na hora dos amadores da emissora Atlântico. Ganhámos desde o primeiro dia com uma explosão de aplausos, mas não nos pagaram os cinco pesos do prémio por uma falta inultrapassável na inscrição. Continuámos a ensaiar juntos durante o resto do ano e cantando de graça em festas familiares, até que a vida acabou por nos dispersar.

Nunca partilhei a versão maldosa de que a paciência com que o meu pai manobrava a pobreza tinha muito de irresponsável. Pelo contrário: creio que eram provas homéricas de uma cumplicidade que nunca falhou entre ele e a mulher, e que lhes permitia manter o fôlego até na beira do precipício. Ele sabia que ela controlava o pânico ainda melhor do que o desespero e que esse foi o segredo da nossa sobrevivência.

O que talvez não tenha pensado é que lhe aliviava as penas a ele, enquanto ela ia deixando pelo caminho o melhor da sua vida. Nunca conseguimos entender a razão das suas viagens. De repente, como costumava acontecer, acordaram‑nos um sábado à meia‑noite para nos levarem à agência local de um acampamento petrolífero do Catatumbo, onde nos esperava um telefonema do meu pai por rádio‑telefone. Nunca esquecerei a minha mãe banhada em lágrimas, numa conversa embrulhada pela técnica.

‑ Ai, Gabriel ‑ disse a minha mãe ‑, olha como me deixaste com este montão de filhos, que várias vezes chegámos a não comer.

Ele respondeu‑lhe com a má notícia de que tinha o fígado inchado. Sucedia‑lhe com frequência, mas a minha mãe não o levava muito a sério porque houve vezes em que usou isso para ocultar as suas canalhices.

‑ Acontece‑te sempre isso quando te portas mal ‑ disse‑lhe, de brincadeira.

Falava a olhar para o microfone, como se o meu pai estivesse ali, e no fim atrapalhou‑se ao tentar mandar‑lhe um beijo e beijou o microfone. Ela própria não conseguiu conter as gargalhadas e nunca foi capaz de contar a história completa, porque acabava banhada em lágrimas de riso. No entanto, naquele dia permaneceu absorta e por fim disse à mesa, como se não falasse para ninguém:

‑ Achei o Gabriel com uma voz um bocado estranha. Explicámos‑lhe que o sistema de rádio não só distorce as vozes como mascara a personalidade. Na noite seguinte, disse a dormir: «De qualquer maneira, ouvia‑se a voz como se estivesse muito mais magro.» Tinha o nariz afilado dos maus dias e interrogava‑se entre suspiros como seriam esses povoados sem Deus nem lei por onde andava o seu homem à rédea solta.

Os seus motivos ocultos tornaram‑se mais evidentes numa segunda conversa por rádio, quando fez o meu pai prometer que voltaria para casa de imediato se não resolvesse nada dentro de duas semanas. No entanto, antes do prazo recebemos dos Altos do Rosário um telegrama dramático com uma única palavra: «Indeciso.» A minha mãe viu na mensagem a confirmação dos seus mais lúcidos presságios e ditou o seu veredicto inapelável:

‑ Ou vens antes de segunda‑feira, ou agora mesmo vou para aí com toda a prole.

Remédio santo. O meu pai conhecia o poder das suas ameaças e antes de uma semana estava de regresso a Barranquilla. Impressionou‑nos a sua entrada, vestido de qualquer modo, com a pele esverdeada e por barbear, a ponto de a minha mãe acreditar que estava doente. Mas foi uma impressão momentânea, porque em dois dias recuperou o projecto juvenil de instalar uma farmácia múltipla na povoação de Sucre, um recanto idílico e próspero a uma noite e um dia de navegação de Barranquilla. Tinha lá estado na sua mocidade de telegrafista e o coração contraía‑se‑lhe ao recordar a viagem por canais crepusculares e pântanos dourados, e os bailes eternos. Em determinada época, obstinara‑se em conseguir aquele lugar, mas sem a sorte que teve com outros, como Aracataca, ainda mais apetecidos. Tornou a pensar nele uns cinco anos depois, aquando da terceira crise da banana, mas encontrou‑o ocupado pelos grossistas de Magangué. No entanto, um mês antes de regressar a Barranquilla encontrara por acaso um deles, que não só lhe pintou uma realidade contrária, como lhe ofereceu um bom crédito para Sucre. Não aceitou porque estava quase a conseguir o sonho dourado dos Altos dell Rosário, mas quando foi surpreendido pela sentença da esposa, localizou o grossista de Magangué, que ainda andava perdido pelos povoados do rio, e fecharam contrato.

Ao cabo de umas duas semanas de estudos e acordos com os grossistas amigos, partiu com o aspecto e o entusiasmo restabelecidos e a sua impressão de Sucre foi tão intensa que a deixou escrita na primeira carta: «A realidade foi melhor do que a nostalgia.» Alugou uma casa de varanda na praça principal e dali recuperou as amizades de outrora, que o receberam de portas abertas. A família devia vender o que pudesse, empacotar o resto, que não era muito, e levá‑lo consigo num dos vapores que faziam a viagem regular do rio Magdalena. No mesmo correio mandou um cheque bem calculado para os gastos imediatos e anunciou outro para os gastos da viagem. Não posso imaginar notícias mais apetitosas para o carácter ilusório da minha mãe, e portanto a sua resposta não só foi bem pensada para apoiar o ânimo do marido, como para lhe açucarar a notícia de que estava grávida pela oitava vez.

Fiz as diligências e reservas no Capitam de Caro, um barco lendário que fazia numa noite e meio dia o trajecto de Barranquilla a Magangué. Depois, prosseguiríamos de lancha a motor pelo rio San Jorge e o apertado e idílico vale da Mojana até ao nosso destino.

‑ Desde que nos vamos daqui, mesmo que seja para o inferno ‑ exclamou a minha mãe, que sempre desconfiou do prestígio babilónico de Sucre. ‑ Não se deve deixar um marido só numa terra como aquela.

Tanta pressa nos impôs que três dias antes da viagem dormíamos no chão, pois já tínhamos leiloado as camas e todos os móveis que pudemos vender. Tudo o resto estava dentro das caixas e o dinheiro das passagens seguro nalgum esconderijo da minha mãe, bem contado e mil vezes tornado a contar. O empregado que me atendeu nos escritórios do barco era tão sedutor que não tive que apertar os queixos para me entender com ele.

Tenho a certeza absoluta que anotei com exactidão as tarifas que me ditou com a dicção clara e relambida dos caribenhos serviçais. O que mais me alegrou e menos esqueci foi que até aos doze anos se pagava apenas metade da tarifa habitual. Quer dizer, todos os filhos menos eu. Sobre essa base, a minha mãe pôs de parte o dinheiro da viagem e gastou até ao último cêntimo a desmontar a casa.

Na sexta‑feira fui comprar as passagens e o empregado recebeu‑me com a surpresa de que os menores de doze anos não tinham um desconto de metade mas apenas de trinta por cento, o que fazia uma diferença inultrapassável para nós. Alegava que eu tinha anotado mal, pois os dados estavam impressos num folheto oficial que pôs diante dos meus olhos. Voltei para casa atribulado e a minha mãe não fez qualquer comentário mas envergou o vestido com que guardara luto pelo pai e fomos à agência fluvial. Quis ser justa: alguém se tinha enganado e bem podia ser o filho, mas isso não interessava. O facto é que não tínhamos mais dinheiro. O agente explicou‑lhe que não havia nada a fazer.

«Compreenda, minha senhora», disse‑lhe. «Não é que queiramos ou não atendê‑la, é o regulamento de uma empresa séria que não se pode manobrar como um cata‑vento.»

«Mas são umas crianças», disse a minha mãe, e apontou para mim como exemplo. «Imagine, o mais velho é este e só tem doze anos.» E indicou com a mão:

‑ São deste tamanho.

Não era uma questão de estatura, alegou o agente, mas de idade. Ninguém pagava menos, salvo os recém‑nascidos, que viajavam de graça. A minha mãe procurou mais altos céus:

‑ Com quem é preciso falar para que isto se resolva?

O empregado não conseguiu responder. O gerente, um homem mais velho e com um ventre maternal, assomou à porta do gabinete a meio da exposição e o empregado pôs‑se em pé quando o viu.

Era imenso, de aspecto respeitável, e a sua autoridade, mesmo em mangas de camisa e ensopado em suor, era mais do que evidente. Ouviu a minha mãe com atenção e respondeu‑lhe com uma voz serena que uma decisão como aquela só era possível com uma alteração dos regulamentos em assembleia de sócios.

‑ Creia que lamento muito ‑ concluiu.

A minha mãe sentiu o sopro do poder e refinou a sua argumentação.

«O senhor tem razão», disse, «mas o problema é que o seu empregado não explicou bem ao meu filho, ou o meu filho entendeu mal, e eu agi com base nesse erro. Agora tenho tudo empacotado e pronto para embarcar, estamos a dormir no santo chão, o dinheiro para as compras do mercado chega‑nos até hoje e na segunda‑feira entrego a casa aos novos inquilinos.» Apercebeu‑se que os empregados do salão a estavam a ouvir com grande interesse e então dirigiu‑se a eles: «O que pode significar isso para uma empresa tão importante?» E, sem esperar resposta, perguntou ao gerente, olhando‑o a direito nos olhos:

‑ O senhor acredita em Deus?

O gerente atrapalhou‑se. O escritório inteiro estava atento a um silêncio demasiado prolongado. Então a minha mãe endireitou‑se no assento, juntou os joelhos que começavam a tremer‑lhe, apertou a carteira no regaço com as duas mãos e disse com uma determinação própria das suas grandes causas:

‑ Pois daqui não saio enquanto não me resolverem o caso.

O gerente ficou pasmado e todo o pessoal suspendeu o trabalho para olhar para a minha mãe. Estava impassível, com o nariz afilado, pálido e perlado de suor. Já tinha tirado o luto do pai, mas assumira‑o naquele momento porque lhe parecera a indumentária mais adequada para aquela diligência.

O gerente não voltou a olhar para ela, mas olhou para os empregados sem saber o que fazer, e por fim exclamou por todos:

‑ Isto não tem precedentes!

A minha mãe nem pestanejou. «Tinha as lágrimas presas na garganta mas tive que resistir porque ficaria muito mal» contou‑me. Então o gerente pediu ao empregado que lhe levasse os documentos ao seu gabinete. Este assim fez e, passados cinco minutos, voltou a sair, rosnante e furioso mas com todos os bilhetes em regra para viajar.

Na semana seguinte desembarcámos na povoação de Sucre como se tivéssemos nascido nela. Devia ter uns dezasseis mil habitantes, como a maioria dos municípios do país naqueles tempos, e todos se conheciam, não tanto pelos seus nomes como pelas suas vidas secretas. Não só a aldeia como toda a região era um mar de águas mansas que mudavam de cor devido aos mantos de flores que as cobriam conforme a época, conforme o lugar e conforme o nosso próprio estado de espírito. O seu esplendor recordava o dos remansos de sonho do Sudeste asiático. Durante os muitos anos em que a família ali viveu não houve um único automóvel. Teria sido inútil, pois as ruas direitas de terra batida pareciam marcadas a cordel para os pés descalços e muitas casas tinham nas cozinhas o cais privativo com as canoas domésticas para o transporte local. A minha primeira emoção foi a de uma liberdade inconcebível. Tudo o que a nós, crianças, tinha faltado, ou o que tínhamos desejado, foi‑nos posto de repente ao alcance da mão. Cada um comia quando tinha fome ou dormia a qualquer hora e não era fácil tomar conta de ninguém, pois apesar do rigor das suas leis, os adultos andavam tão embrulhados com o seu tempo pessoal que este não lhes chegava nem para se ocuparem de si próprios. A única condição de segurança para as crianças foi aprenderem a nadar antes de andar, pois a aldeia estava dividida em duas por um canal de águas escuras que servia ao mesmo tempo de aqueduto e esgoto. A partir do primeiro ano, atiravam‑nos pelas varandas das cozinhas, primeiro com salva‑vidas para perderem o medo à água e depois sem salva‑vidas para perderem o respeito à morte. Anos mais tarde, o meu irmão Jaime e a minha irmã Ligia, que sobreviveram aos perigos iniciáticos, exibiram‑se em campeonatos infantis de natação.

O que transformou Sucre para mim num lugar inesquecível foi o sentimento de liberdade com que nós, as crianças, nos movíamos na rua. Dentro de duas ou três semanas sabíamos quem vivia em cada casa e comportávamo‑nos nelas como conhecidos de sempre. Os hábitos sociais ‑ simplificados pelo uso ‑ eram os de uma vida moderna dentro de uma cultura feudal: os ricos ‑ criadores de gado e industriais do açúcar ‑ na praça principal, e os pobres onde pudessem. Para a administração eclesiástica, era um território de missões com jurisdição e domínio sobre um vasto império lacustre. No centro daquele mundo, a igreja paroquial, na praça principal de Sucre, era uma versão de bolso da catedral de Colónia, copiada de memória por um pároco espanhol armado em arquitecto. O controlo do poder era imediato e absoluto. Todas as noites, depois do rosário, batiam na torre da igreja as badaladas correspondentes à classificação moral do filme anunciado no cinema contíguo, de acordo com o catálogo da Oficina Católica para el Cine. Um missionário de serviço, sentado na porta do seu gabinete, vigiava do passeio em frente a entrada para o cinema a fim de sancionar os infractores.

A minha grande frustração foi devida à idade com que cheguei a Sucre. Faltavam‑me ainda três meses para atravessar a linha fatídica dos treze anos e em casa já não me suportavam como criança mas também não me reconheciam como adulto e naquele limbo da idade acabei por ser o único dos irmãos que não aprendeu a nadar. Não sabiam se haviam de me sentar à mesa dos pequenos ou à dos grandes. As empregadas domésticas já não mudavam de roupa à minha frente nem com as luzes apagadas, mas uma delas dormiu nua várias vezes na minha cama sem me perturbar o sono. Não tinha tido tempo de me saciar com aquela insolência do livre arbítrio quando tive de voltar para Barranquilla em Janeiro do ano seguinte a fim de começar o bacharelato, porque em Sucre não havia um colégio que chegasse às qualificações excelentes do professor Casalins.

Ao cabo de longas discussões e consultas, com muito escassa participação minha, os meus pais decidiram‑se pelo Colégio San José, da Companhia de Jesus, em Barranquilla. Não consigo entender onde foram arranjar tantos recursos em tão poucos meses, se a farmácia e o consultório homeopático estavam ainda por aparecer. A minha mãe deu sempre uma razão que não precisava de provas: «Deus é muito grande.» Nos gastos da mudança devia estar prevista a instalação e o sustento da família, mas não as minhas despesas do colégio. Não tendo senão um par de sapatos rotos e uma muda de roupa que usava enquanto me lavavam a outra, a minha mãe equipou‑me de roupa nova com um baú do tamanho de um caixão, sem prever que em seis meses já teria crescido um palmo. Foi também ela que decidiu por sua conta que começasse a usar calças compridas, contra a disposição social acatada pelo meu pai de que não podiam ser usadas enquanto não se começasse a mudar de voz.

A verdade é que nas discussões sobre a educação de cada filho tive sempre a ilusão de que o meu pai, numa das suas homéricas fúrias, decretasse que nenhum de nós voltaria ao colégio. Não era impossível. Ele próprio foi um autodidacta pela força maior da sua pobreza e o pai era inspirado pela moral de aço de D. Fernando VII, que defendia o ensino individual em casa para preservar a integridade da família. Eu temia o colégio como um calaboiço, assustava‑me a simples ideia de viver submetido ao regime de uma campainha, mas também era a única possibilidade de gozar a minha vida livre desde os treze anos, em boas relações com a família mas longe da sua ordem, do seu entusiasmo demográfico, dos seus dias incertos e lendo sem tomar fôlego até onde me chegasse a luz. O meu único argumento contra o Colégio San José, um dos mais exigentes e caros do Caribe, era a sua disciplina marcial, mas a minha mãe silenciou‑me com uma alfinetada: «Lá se fazem os governadores.» Quando já não havia retrocesso possível, o meu pai lavou daí as mãos:

‑ Para que conste, eu não disse nem que sim nem que não. Ele teria preferido o Colégio Americano para que eu aprendesse inglês, mas a minha mãe pô‑lo de parte com a razão viciada de que era um covil de luteranos. Hoje tenho que admitir, em honra do meu pai, que uma das grandes falhas da minha vida de escritor foi não falar inglês.

Voltar a ver Barranquilla da ponte do mesmo Capitán de Caro em que tínhamos viajado três meses antes perturbou‑me o coração como se tivesse pressentido que regressava sozinho à vida real. Por sorte, os meus pais tinham‑me tratado de alojamento e comida com o meu primo José Maria Valdeblánquez e a mulher Hortênsia, jovens e simpáticos, que partilharam comigo a sua vida serena numa sala simples, um quarto de dormir e um patiozinho empedrado que estava sempre ensombrado pela roupa posta a secar em arames. Dormiam no quarto com a filhita de seis meses. Eu dormia no sofá da sala, que de noite se transformava em cama.

O Colégio San José ficava a uns seis quarteirões, num parque de amendoeiras onde estivera o cemitério mais antigo da cidade e ainda se encontravam ossitos soltos e farrapos de roupa morta entre o empedrado. No dia em que entrei havia no pátio principal uma cerimónia do primeiro ano, com o uniforme dominical de calças brancas e casaco de tecido azul, e não consegui reprimir o terror de que eles soubessem tudo o que eu ignorava. Mas em breve me apercebi que estavam tão crus e assustados como eu perante as incertezas do futuro.

Um fantasma pessoal foi o irmão Pedro Reyes, prefeito da secção elementar, que se empenhou em convencer os superiores do colégio que eu não estava preparado para o bacharelato. Transformou‑se numa assombração que me saía ao caminho nos lugares mais impensáveis e me fazia exames instantâneos com emboscadas diabólicas: «Acreditas que Deus pode fazer uma pedra tão pesada que não a possa carregar?», perguntava, sem me dar tempo para pensar. Ou esta outra cilada maldita: «Se puséssemos ao Equador um cinto de ouro de cinquenta centímetros de grossura, quanto aumentaria o peso da Terra?» Não acertava nem uma, embora soubesse as respostas, porque a língua se me embrulhava de pavor como no meu primeiro dia ao telefone. Era um terror fundado, porque o irmão Reyes tinha razão. Eu não estava preparado para o bacharelato, mas não podia renunciar à sorte de me terem recebido sem exame. Tremia só de o ver. Alguns companheiros davam interpretações maliciosas ao assédio, mas não tive motivos para pensar isso. Além do mais, ajudava‑me a consciência, porque passei no meu primeiro exame oral sem interrogatório quando recitei como água corrente frei Luis de León e desenhei no quadro com giz de cores um Cristo que parecia em carne viva. O júri ficou tão encantado que se esqueceu também da aritmética e da história pátria.

O problema com o irmão Reyes resolveu-se porque na Semana Santa precisou de uns desenhos para a sua aula de botânica e fiz‑lhos sem pestanejar. Não só desistiu do seu assédio, como às vezes se entretinha nos recreios a ensinar‑me as respostas bem fundamentadas às perguntas que não lhe tinha sabido responder, ou a algumas mais estranhas que depois apareciam como por acaso nos exames seguintes do meu primeiro ano. No entanto, de cada vez que me encontrava em grupo, troçava morto de riso que eu era o único do terceiro ano elementar a quem corria bem o bacharelato. Apercebo‑me hoje que tinha razão. Sobretudo pela ortografia, que foi o meu calvário ao longo de todos os meus estudos e continua a assustar os revisores dos meus originais. Os mais benévolos consolam‑se a acreditar que são erros de dactilógrafo.

Um alívio nos meus sobressaltos foi a nomeação do pintor e escritor Héctor Rojas Herazo para a cadeira de desenho. Devia ter uns vinte anos. Entrou na aula acompanhado pelo padre prefeito e o seu cumprimento ressoou como um bater de porta no sufoco das três da tarde. Tinha a beleza e a elegância fácil de um artista de cinema, com um blusão de pêlo de camelo muito justo e com botões dourados, colete de fantasia e uma gravata de seda estampada. Mas o mais insólito era o chapéu de coco, com trinta graus à sombra. Era tão alto como o umbral da porta, de modo que tinha que se curvar para desenhar no quadro. A seu lado, o padre prefeito parecia abandonado pela mão de Deus.

Viu‑se logo de entrada que não tinha método nem paciência para o ensino, mas o seu humor malicioso mantinha‑nos atentos, assim como nos assombravam os desenhos magistrais que pintava no quadro com giz de cores. Não durou mais de três meses na cadeira, nunca soubemos porquê, mas era presumível que a sua pedagogia mundana não se compadecesse com a ordem mental da Companhia de Jesus.

Desde os meus começos no colégio ganhei fama de poeta, primeiro pela facilidade com que aprendia de cor e recitava com voz esganiçada os poemas de clássicos e românticos espanhóis dos livros de texto, e depois pelas sátiras em verso rimados que dedicava aos meus companheiros de classe na revista do colégio. Não os teria escrito ou ter‑lhes‑ia prestado um pouco mais de atenção se tivesse imaginado que iam merecer a glória da letra impressa. Pois na realidade eram sátiras amáveis que circulavam em papelitos furtivos nas aulas soporíferas das duas da tarde. O padre Luis Posada ‑ prefeito da segunda secção ‑ capturou um, leu‑o com cenho carregado e deu‑me a reprimenda da praxe, mas guardou‑o no bolso. O padre Arturo Mejía chamou‑me então ao seu gabinete para me propor que as sátiras confiscadas fossem publicadas na revista Juventude, órgão oficial dos alunos do colégio. A minha reacção imediata foi um sobressalto de surpresa, vergonha e felicidade, que resolvi com uma recusa nada convincente: ‑ São tolices minhas.

O padre Mejía tomou nota da resposta e publicou os versos com esse título ‑ «Tolices minhas» ‑ e com a assinatura Gabito, no número seguinte da revista e com a autorização das vítimas. Em dois números sucessivos tive que publicar outra série a pedido dos meus companheiros de classe. De forma que esses versos infantis ‑ queira eu ou não ‑ são, em rigor, a minha opera prima.

O vício de ler tudo o que me caísse nas mãos ocupava o meu tempo livre e quase todo o das aulas. Podia recitar poemas completos do repertório popular que nessa altura eram de uso corrente na Colômbia, e os mais belos do Século de Ouro e do romantismo espanhóis, muitos deles aprendidos nos próprios textos do colégio. Estes conhecimentos extemporâneos na minha idade exasperavam os professores, pois cada vez que me faziam na aula qualquer pergunta difícil, respondia‑lhes com uma citação literária ou com alguma ideia livresca que eles não estavam em condições de avaliar. O padre Mejía disse: «É um garoto afectado», para não dizer insuportável. Nunca tive que forçar a memória, pois os poemas e alguns trechos de boa prosa clássica ficavam‑me gravados em três ou quatro releituras. Ganhei do padre prefeito a primeira caneta de tinta permanente que tive porque lhe recitei sem erros as cinquenta e sete décimas de «A vertigem», de Gaspar Núnez de Arce.

Lia nas aulas, com o livro aberto em cima dos joelhos e com tal descaramento que a minha impunidade só parecia possível devido à cumplicidade dos professores. A única coisa que não consegui com as minhas astúcias bem rimadas foi que me perdoassem a missa diária às sete da manhã. Além de escrever as minhas tolices, era solista no coro, desenhava caricaturas cómicas, recitava poemas nas sessões solenes e tantas coisas mais fora de horas e de lugar que ninguém entendia a que horas estudava. A razão era a mais simples: não estudava.

No meio de tanto dinamismo supérfluo, ainda não entendo por que razão os professores se interessavam tanto por mim sem barafustar com a minha má ortografia. Ao contrário da minha mãe, que escondia do meu pai algumas das minhas cartas para o manter vivo e outras mas devolvia corrigidas e às vezes com os parabéns por certos progressos gramaticais e o bom uso das palavras. Mas ao fim de dois anos não houve melhorias à vista. Hoje o meu problema continua a ser o mesmo: nunca consegui entender por que se admitem letras mudas ou duas letras diferentes com o mesmo som e tantas outras normas sem razão.

Foi assim que descobri em mim uma vocação que me havia de acompanhar toda a vida: o prazer de conversar com alunos mais velhos do que eu. Ainda hoje, em reuniões de jovens que poderiam ser meus netos, tenho que fazer um esforço para não me sentir mais novo do que eles. Tornei‑me assim amigo de dois condiscípulos mais velhos que vieram a ser meus companheiros em fases históricas da minha vida. Um deles era Juan B. Fernández, filho de um dos três fundadores e proprietários do jornal El Heraldo, em Barranquilla, onde fiz os meus primeiros mergulhos na imprensa e onde ele se formou desde as primeiras letras até à direcção‑geral. O outro era Enrique Scopell, filho de um fotógrafo cubano lendário na cidade e ele próprio repórter gráfico. No entanto, a minha gratidão para com ele não foi tanto pelos nossos trabalhos comuns na imprensa, como pelo seu ofício de curtidor de peles selvagens que exportava para meio mundo. Numa das minhas primeiras viagens ao estrangeiro ofereceu‑me a de um caimão de três metros de comprimento.

‑ Esta pele custa um dinheirão ‑ disse‑me sem dramatismo ‑ mas aconselho‑te que não a vendas enquanto não sentires que vais morrer de fome.

Ainda hoje pergunto a mim mesmo até que ponto o sábio Quique Scopell sabia que me estava a dar um amuleto eterno, pois na realidade deveria tê‑la vendido muitas vezes nos meus anos de fomes recorrentes. No entanto, ainda a conservo, poeirenta e quase petrificada, porque desde que ando com ela na mala pelo mundo inteiro não voltou a faltar‑me um centavo para comer.

Os professores jesuítas, tão severos nas aulas, eram diferentes nos recreios, onde nos ensinavam o que não diziam lá dentro e onde davam livre curso ao que na realidade teriam querido ensinar. Até onde era possível na minha idade, creio recordar que essa diferença se notava muito e nos ajudava mais. O padre Luis Posada, um cachaço muito jovem de mentalidade progressista, que trabalhou muitos anos em sectores sindicais, tinha um arquivo de fichas com todo o género de pistas enciclopédicas resumidas, em especial sobre livros e autores. O padre Ignacio Zaldívar era um basco montanhês com quem continuei a conviver em Cartagena até à sua boa velhice no convento de San Pedro Claver. O padre Eduardo Núnez tinha já muito adiantada uma história monumental da literatura colombiana, de cuja sorte nunca tive notícias. O velho padre Manuel Hidalgo, professor de canto, já muito idoso, detectava as vocações por sua conta e permitia‑se incursões em músicas pagãs que não estavam previstas.

Com o padre Pieschacón, o reitor, tive algumas conversas casuais e delas me ficou a certeza de que me via como a um adulto, não só pelos temas que se debatiam como pelas suas atrevidas explicações. Foi decisivo na minha vida para clarificar a concepção sobre o céu e o inferno, que não conseguia conciliar com os dados do catecismo por simples obstáculos geográficos. Contra esses dogmas, o reitor aliviou‑me com as suas ideias audazes. O céu era, sem mais complicações teológicas, a presença de Deus. O inferno, como é evidente, era o contrário. Mas em duas ocasiões confessou‑me o seu problema de que «de todos os modos no inferno havia fogo», mas não o conseguia explicar. Mais por essas lições nos recreios do que pelas aulas formais, acabei o ano com o peito recoberto de medalhas.

As minhas primeiras férias em Sucre começaram num domingo às quatro da tarde, num cais adornado com grinaldas e balões de cores e numa praça transformada num bazar de Natal. Mal pisei terra firme, uma rapariga muito bonita, loura e de uma espontaneidade perturbadora, pendurou‑se‑me ao pescoço e sufocou‑me com beijos. Era a minha irmã Carmen Rosa, a filha do meu pai antes do seu casamento, que tinha ido passar uma temporada com a sua família desconhecida. Também chegou nessa ocasião outro filho do meu pai, Abelardo, um bom alfaiate de profissão que instalou a sua oficina num dos lados da praça principal e foi meu mestre de vida na puberdade.

A casa nova e recém‑mobilada tinha um ar de festa e um novo irmão: Jaime, nascido em Maio no bom signo de Gémeos e, além disso, de seis meses. Só soube quando cheguei, pois os meus pais pareciam decididos a moderar os nascimentos anuais, mas a minha mãe apressou‑se a explicar‑me que aquele era um tributo a Santa Rita pela prosperidade que entrara naquela casa. Estava rejuvenescida e alegre, mais cantora do que nunca, e o meu pai flutuava num ar de bom humor, com o consultório cheio e a farmácia bem fornecida, sobretudo aos domingos, em que chegavam os pacientes dos montes vizinhos. Não sei se alguma vez soube que aquela afluência obedecia com efeito à sua fama de bom curador, embora a gente do campo não a atribuísse às virtudes homeopáticas das suas bolinhas de açúcar e das suas águas prodigiosas, mas sim às suas boas artes de bruxo.

Sucre estava melhor do que na minha recordação, devido à tradição de que nas festividades de Natal a povoação se dividia nos seus dois grandes bairros: Zulia, a sul, e Congoveo, a norte. Além de outros desafios secundários, havia um concurso de carros alegóricos que representavam em torneios artísticos a rivalidade histórica entre os bairros. Na noite de Natal, por fim, concentravam‑se na praça principal, no meio de grandes controvérsias, e o público decidia qual dos dois bairros era o vencedor do ano.

Carmen Rosa contribuiu desde a sua chegada para um novo esplendor do Natal. Era moderna e provocante e tornou‑se a dona dos bailes com uma cauda de pretendentes alvoroçados.

A minha mãe, tão zelosa com as filhas, não o era com ela e, pelo contrário, facilitava‑lhe os namoros, que introduziram uma nota insólita na casa. Foi uma relação de cúmplices, como a minha mãe nunca teve com as suas próprias filhas. Abelardo, pelo seu lado, resolveu a vida de outro modo, numa oficina de um só espaço dividido por um biombo. As coisas correram‑lhe bem como alfaiate, mas não tão bem como com a sua parcimónia de garanhão, pois mais era o tempo que passava bem acompanhado na cama por trás do biombo, do que só e aborrecido na máquina de coser.

O meu pai teve naquelas férias a estranha ideia de me preparar para os negócios. «Pode dar‑se o caso», avisou‑me. A primeira coisa foi ensinar‑me a receber a domicílio as dívidas da farmácia. Num desses dias mandou‑me cobrar várias em La Hora, um bordel sem preconceitos nos arredores da aldeia.

Assomei à porta entreaberta de um quarto que dava para a rua e vi uma das mulheres da casa dormindo a sesta num catre, descalça e com uma combinação que não chegava a tapar‑lhe as coxas. Antes que eu falasse, sentou‑se na cama, olhou‑me semiadormecida e perguntou‑me o que queria. Disse‑lhe que levava um recado do meu pai para D. Eligio Molina, o proprietário. Mas em vez de me orientar, ordenou‑me que entrasse e pusesse a tranca na porta e fez‑me com o indicador um sinal que me disse tudo:

‑ Vem cá.

Lá fui, e à medida que me aproximava, a sua respiração acelerada ia ocupando o quarto como uma cheia de rio, até que me conseguiu agarrar no braço com a mão direita e fez deslizar a esquerda para dentro da minha braguilha. Senti um terror delicioso.

‑ Então tu és filho do doutor das bolinhas ‑ disse‑me, enquanto me apalpava por dentro das calças, com cinco dedos ágeis que se sentiam como se fossem dez. Tirou‑me as calças sem deixar de me sussurrar palavras ternas ao ouvido, despiu a combinação pela cabeça e estendeu‑se de barriga para cima na cama, apenas com as cuecas de flores coloridas. ‑ Estas tiras‑mas tu ‑ disse‑me. ‑ É o teu dever de homem.

Desapertei o cordão, mas com a pressa não lhas consegui tirar e teve que me ajudar com as pernas bem esticadas e um movimento rápido de nadadora. Depois, levantou‑me no ar pelos sovacos e pôs‑me em cima dela na posição académica do missionário. O resto ficou por sua conta, até que morri sozinho em cima dela, a chapinhar na sopa de cebola das suas coxas de potranca.

Repousou em silêncio, meio de lado, olhando‑me com fixidez nos olhos e eu sustentava‑lhe o olhar com a esperança de recomeçar, agora sem medo e com mais tempo. De repente, disse‑me que não me cobrava os dois pesos do seu serviço porque eu não ia preparado. Depois, estendeu‑se de barriga para o ar e perscrutou‑me a cara.

‑ Além disso ‑ disse ‑ és o irmão ajuizado do Luis Enrique, não é verdade? Têm a mesma voz.

Tive a inocência de lhe perguntar como o conhecia.

‑ Não sejas tonto ‑ riu ela. ‑ Se até tenho aqui umas cuecas dele que lhe tive de lavar da última vez.

Pareceu‑me um exagero devido à idade do meu irmão, mas quando mas mostrou percebi que era verdade. Depois, saltou da cama nua com uma graça de ballet e, enquanto se vestia, explicou‑me que na porta seguinte da casa, à esquerda, estava D. Eligio Molina. Por fim, perguntou‑me:

‑ É a tua primeira vez, não é verdade?

O coração deu‑me um salto.

- Ora ‑ menti. ‑ Já são sete.

‑ De qualquer maneira ‑ disse ela, com uma expressão de ironia ‑ devias dizer ao teu irmão que te ensinasse um bocadinho.

A estreia deu‑me um impulso vital. As férias eram de Dezembro a Fevereiro e interroguei‑me quantas vezes dois pesos deveria conseguir para voltar a estar com ela. O meu irmão Luis Enrique, que já era um veterano do corpo, rebentava de riso por alguém da nossa idade ter que pagar por algo que faziam dois ao mesmo tempo e os tornava felizes a ambos.

Dentro do espírito feudal de La Mojana, os senhores da terra compraziam‑se em estrear as virgens dos seus feudos e, depois de umas quantas noites de mau uso, deixavam‑nas à mercê da sua sorte. Havia por onde escolher entre as que nos vinham caçar na praça depois dos bailes. No entanto, naquelas férias ainda me causavam o mesmo medo que o telefone e via‑as passar como nuvens na água. Não tinha um instante de sossego devido à desolação que me deixou no corpo a minha primeira aventura casual. Ainda hoje não acredito que seja exagerado pensar que essa fosse a causa do confuso estado de espírito com que regressei ao colégio e, obnubilado por completo por um disparate genial do poeta bogotano D. José Manuel Marroquín, que enlouquecia o auditório desde a primeira estrofe:

 

Agora que os ladros canzoam, agora que os cantos galam,

agora que albando a toca os altos ressoos sinam;

e que os zurros burram e que os gorjeios passaram,

e que os assobios serenam e que os grunhos marranam,

e que a aurorada rosa os extensos douros campa,

perlando líquidas vertas qual eu lagrimo derramas

e friando de tirito se bem tenha a abrasa almada,

venho a suspirar meus lanços janelo de tuas debaixas.

 

Não só introduzia a desordem por onde passava recitando as réstias intermináveis do poema, como aprendi a falar com a fluidez de um nativo sabe‑se lá de onde. Sucedeu‑me com frequência: respondia qualquer coisa, mas quase sempre era tão estranha ou divertida que os professores se escapuliam. Alguém se deve ter inquietado pela minha saúde mental quando dei num exame uma resposta acertada, mas indecifrável à primeira abordagem. Não me lembro que houvesse algo de má‑fé nesses trocadilhos fáceis que a todos divertiam. Chamou‑me a atenção que os padres me falassem como se tivessem perdido a razão e eu seguia‑lhes a corrente. Outro motivo de alarme foi que inventei paródias dos corais sacros com letras pagãs que por sorte ninguém entendeu. O meu tutor de estudos, de acordo com os meus pais, levou‑me a um especialista que me fez um exame esgotante mas muito divertido, porque além da sua rapidez mental tinha uma simpatia pessoal e um método irresistíveis. Fez‑me ler uma folha com frases baralhadas que eu devia endireitar. Fi‑lo com tanto entusiasmo que o médico não resistiu à tentação de se imiscuir no meu jogo e lembrámo‑nos de provas tão engenhosas que tomou notas para as incorporar nos seus futuros exames. No fim de um interrogatório minucioso dos meus costumes, perguntou‑me quantas vezes me masturbava. Respondi‑lhe a primeira coisa que me ocorreu: nunca me tinha atrevido. Não me acreditou, mas comentou como por acaso que o medo é um factor negativo para a saúde sexual e a sua própria incredulidade pareceu‑me mais um incitamento. Achei‑o um homem estupendo, a quem quis encontrar depois de adulto, quando já era jornalista no El Heraldo, para que me contasse as conclusões privadas que tirara do meu exame e a única coisa que soube foi que se tinha mudado para os Estados Unidos há vários anos. Um dos seus antigos companheiros foi mais explícito e disse‑me com grande afecto que não era nada estranho que estivesse num manicómio de Chicago, porque sempre lhe parecera pior do que os seus pacientes.

O diagnóstico foi uma fadiga nervosa agravada por ler depois das refeições. Recomendou‑me um repouso absoluto de duas horas durante a digestão e uma actividade física mais intensa do que os desportos habituais. Ainda hoje me surpreende a seriedade com que os meus pais e os meus professores seguiram as suas ordens. Regulamentaram‑me as leituras e mais do que uma vez me tiraram o livro quando me encontraram a ler na aula por baixo da carteira. Dispensaram‑me das cadeiras difíceis e obrigaram‑me a ter mais actividade física de várias horas diárias. Assim, enquanto os outros estavam na aula, eu jogava sozinho no campo de basquetebol, fazendo cestos estúpidos e recitando de cor. Os meus companheiros de classe dividiram‑se desde o primeiro momento: os que na realidade pensavam que eu desde sempre tinha sido louco, os que acreditavam que me fazia de louco para gozar a vida e os que continuaram a lidar comigo na base de que os loucos eram os professores. Vem dessa época a versão de que fui expulso do colégio por ter atirado um tinteiro ao professor de aritmética enquanto escrevia exercícios de regra de três no quadro. Por sorte, o meu pai entendeu as coisas de forma simples e decidiu que eu voltasse para casa sem acabar o ano e não gastasse mais tempo e dinheiro com uma moléstia que só podia ser uma enfermidade hepática.

Para o meu irmão Abelardo, pelo contrário, não havia problemas da vida que não se resolvessem na cama. Enquanto as minhas irmãs me tratavam com compaixão, ele ensinou‑me a receita mágica desde que me viu entrar na sua oficina:

‑ A ti, o que te faz falta é uma boa queca.

Levou o caso tão a sério que quase todos os dias ia meia hora ao bilhar da esquina e me deixava atrás do biombo da alfaiataria com amigas suas de todas as cores e nunca com a mesma. Foi uma temporada de excessos criativos que pareceram confirmar o diagnóstico clínico de Abelardo, pois no ano seguinte voltei para o colégio no meu perfeito juízo.

Nunca esqueci a alegria com que me receberam de regresso no Colégio San José e a admiração com que enalteceram as bolinhas do meu pai. Desta vez não fui viver com os Valdeblánquez, que já não cabiam na casa com o nascimento do seu segundo filho, mas para a casa de D. Eliécer Garcia, um irmão da minha avó paterna, famoso pela sua bondade e honradez. Trabalhou num banco até à idade de se reformar e o que mais me comoveu foi a sua paixão eterna pela língua inglesa. Estudou‑a ao longo de toda a sua vida, desde o amanhecer, e à noite até muito tarde, com exercícios cantados com muito boa voz e boa pronúncia, enquanto a idade lho permitiu. Nos dias de festa, ia ao porto caçar turistas para falar com eles, e chegou a ter tanto domínio do inglês como o que teve sempre do castelhano, mas a sua timidez impediu‑o de falá‑lo com alguém conhecido. Os três filhos varões, todos mais velhos do que eu, e a sua filha Valentina, nunca o puderam ouvir.

Descobri por Valentina ‑ que foi minha grande amiga e uma leitora inspirada ‑ a existência do movimento «Arena y Cielo», formado por um grupo de poetas jovens que se tinham proposto renovar a poesia da costa do Caribe com o bom exemplo de Pablo Neruda. Na realidade, eram uma réplica local do grupo «Piedra y Cielo», que reinava por aqueles anos nos cafés de poetas de Bogotá e nos suplementos literários dirigidos por Eduardo Carranza, à sombra do espanhol Juan Ramón Jiménez, com a determinação saudável de limpar as folhas mortas do século XIX. Não eram mais de meia dúzia, acabados de sair da adolescência, mas tinham irrompido com tanta força nos suplementos literários da costa que começavam a ser vistos como uma grande promessa artística.

O capitão do «Arena y Cielo» chamava‑se César Augusto del Valle, de cerca de vinte e dois anos, que tinha levado o seu ímpeto renovador não apenas aos temas e aos sentimentos mas também à ortografia e às leis gramaticais dos seus poemas. Parecia um herege aos puristas, um imbecil aos académicos e um energúmeno aos clássicos. A verdade, no entanto, era que para além da sua militância contagiosa ‑ como Neruda ‑ era um romântico incorrigível.

A minha prima Valentina levou‑me um domingo à casa onde César vivia com os pais, no bairro de San Roque, o mais folião da cidade. Era de ossos firmes, escuro e magro, com grandes dentes de coelho e o cabelo revolto dos poetas do seu tempo. E, sobretudo, folião e desbraguilhado. A sua casa, da classe média pobre, estava forrada de livros sem espaço para mais um. O pai era um homem sério e bastante triste, com ar de funcionário reformado, e parecia atribulado pela vocação estéril do filho. A mãe acolheu‑me com uma certa pena, como a outro filho afectado pelo mesmo mal que tanto a fizera chorar pelo seu.

Aquela casa foi para mim a revelação de um mundo que talvez intuísse nos meus catorze anos, mas nunca imaginara até que ponto. Desde aquele primeiro dia tornei‑me o seu visitante mais assíduo e roubava tanto tempo ao poeta que ainda hoje não entendo como podia suportar‑me. Cheguei a pensar que me usava para praticar as suas teorias ‑ literárias, talvez arbitrárias mas deslumbrantes, com um interlocutor assombrado mas inofensivo.

Emprestava‑me livros de poetas que nunca ouvira referir e eu comentava‑os com ele sem ter a mínima consciência da minha audácia. Sobretudo com Neruda, cujo «Poema Vinte» aprendi de cor para fazer perder as estribeiras a algum dos jesuítas, que não transitavam por esses ermos da poesia. Por aqueles dias, alvoroçou‑se o ambiente cultural da cidade com um poema de Meira Delmar a Cartagena de índias que saturou todos os meios da costa. Foi tal a mestria da dicção e a voz com que mo leu César del Valle, que o aprendi de cor à segunda leitura.

Muitas outras vezes não podíamos falar porque César estava a escrever à sua maneira. Andava por quartos e corredores como noutro mundo e, de dois em dois ou de três em três minutos, passava à minha frente como um sonâmbulo e de repente sentava‑se à máquina, escrevia um verso, uma palavra, um ponto e vírgula, talvez, e voltava a andar. Eu observava‑o, transtornado pela emoção celestial de estar a descobrir o único e secreto modo de escrever poesia. Assim foi sempre nos meus anos do Colégio San José, que me deram a base retórica para soltar os meus duendes. A última notícia que tive daquele poeta inesquecível, dois anos depois, em Bogotá, foi um telegrama de Valentina com as únicas duas palavras que não teve coragem de assinar: «Morreu César.»

O meu primeiro sentimento numa Barranquilla sem os meus pais foi a consciência do livre arbítrio. Tinha amizades que mantinha para além do colégio. Entre elas, Álvaro del Toro ‑ que me fazia a segunda voz nas declamações do recreio ‑ e a tribo dos Arteta, com quem costumava escapar para as livrarias e o cinema. O único limite que me impuseram em casa do tio Eliécer, para proteger a sua responsabilidade, foi que não chegasse depois das oito da noite.

Um dia em que esperava César del Valle lendo na sala de sua casa, chegara à procura dele uma mulher surpreendente.

Chamava‑se Martina Fonseca e era uma branca vazada num molde de mulata, inteligente e autónoma, que bem podia ser a amante do poeta. Durante duas ou três horas vivi em plenitude o prazer de conversar com ela, até que César voltou a casa e saíram juntos sem dizer para onde. Não voltei a saber dela até Quarta‑Feira de Cinzas daquele ano, quando saí da missa principal e a encontrei à minha espera num recanto do parque. Julguei que era uma aparição. Envergava um vestido de linho bordado que purificava a sua beleza, um colar de fantasia e uma flor de fogo vivo no decote. No entanto, o que mais aprecio agora na recordação é o modo como me convidou para ir a sua casa sem o mínimo indício de premeditação, sem que tomássemos em consideração o sinal sagrado da cruz de cinzas que ambos tínhamos na testa. O marido, que era tripulante de um barco no rio Magdalena, andava na sua viagem oficial de doze dias. O que tinha de estranho que a esposa me convidasse num sábado casual para um chocolate com almojábanas (Almojábana ‑ espécie de bolo feito com farinha, manteiga, ovos e açúcar. (N. T.))? Só que o ritual se repetiu todo o resto do ano enquanto o marido andava no barco, e sempre das quatro às sete, que eram as horas do programa juvenil do Cine Rex que me servia de pretexto em casa do meu tio Eliécer para estar com ela.

A sua especialidade profissional era preparar para a admissão a professores primários. Recebia os mais bem classificados nas suas horas livres com chocolate e almojábanas, de modo que não chamou a atenção da buliçosa vizinhança o novo aluno dos sábados. Foi surpreendente a fluidez daquele amor secreto que ardeu em fogo louco de Março a Novembro. Depois dos dois primeiros sábados, julguei que não podia suportar mais os desejos desenfreados de estar com ela a toda a hora.

Estávamos a salvo de qualquer risco porque o marido anunciava a sua chegada à cidade com um sinal combinado para que ela soubesse que estava a entrar no porto. Assim foi no terceiro sábado dos nossos amores, quando estávamos na cama e se ouviu o bramido distante. Ela ficou tensa.

‑ Tá quieto ‑ disse‑me, e esperou mais dois bramidos. Não saltou da cama, como eu esperava pelo meu próprio medo, e continuou, impávida: ‑ Ainda nos restam mais de três horas de vida.

Ela tinha‑mo descrito como «um negrão de dois metros e um palmo, com uma tranca de artilheiro». Estive quase a quebrar as regras do jogo por causa do aguilhão dos ciúmes e não de um modo qualquer: queria matá‑lo. Resolveu o caso a maturidade dela, que desde então me levou pelo cabresto através dos escolhos da vida real como a um lobito com pele de cordeiro.

Ia muito mal no colégio e não queria saber de nada disso, mas Martina encarregou‑se do meu calvário escolar. Ficou surpreendida pela infantilidade de descuidar as aulas para satisfazer o demónio de uma irresistível vocação de vida. «É lógico ‑ disse‑lhe. ‑ Se esta cama fosse o colégio e tu fosses a professora, eu seria o número um não só da aula mas de toda a escola.» Ela tomou aquilo como um exemplo certeiro.

‑ É mesmo isso que vamos fazer ‑ disse.

Sem demasiados sacrifícios, empreendeu a tarefa da minha reabilitação com um horário fixo. Resolvia‑me os trabalhos de casa e preparava‑me para a semana seguinte entre retoiços de cama e ralhos de mãe. Se os trabalhos não estavam bem e a tempo, castigava‑me com a suspensão de um sábado por cada três faltas. Nunca passei de duas. As minhas mudanças começaram a notar‑se no colégio.

No entanto, o que me ensinou na prática foi uma fórmula infalível, que por desgraça só me serviu no último grau do bacharelato: se prestasse atenção às aulas e fizesse eu próprio os trabalhos de casa em vez de os copiar pelos meus companheiros, podia ser bem classificado, ler à minha vontade nas horas livres e continuar a minha vida própria sem noitadas esgotantes nem sustos inúteis. Graças a essa receita mágica, fui o primeiro da classe naquele ano de 1942, com medalha de excelência e menções honrosas de toda a índole. Mas as gratidões confidenciais receberam‑nas os médicos pelo bem que me tinham curado da loucura. Na festa apercebi‑me que havia uma certa dose de cinismo na emoção com que eu agradecia nos anos anteriores os elogios por méritos que não eram meus. No último ano, quando foram merecidos, pareceu‑me decente não os agradecer. Mas correspondi de todo o coração com o poema «O circo», de Guillermo Valência, que recitei completo, sem ponto auxiliar, na cerimónia final, e mais assustado do que um cristão em frente dos leões.

Nas férias daquele bom ano tinha previsto visitar a avó Tranquilina em Aracataca, mas ela teve que ir de urgência a Barranquilla para ser operada às cataratas. A alegria de vê‑la de novo foi completada com a do dicionário do avô que me levou de presente. Nunca tinha tido consciência que estava a perder a vista, ou não o quis confessar, até que deixou de poder sair do seu quarto. A operação no Hospital de Caridad foi rápida e com bom prognóstico. Quando lhe tiraram a venda, sentada na cama, abriu os olhos radiantes da sua nova juventude, iluminou‑se‑lhe o rosto e resumiu a sua alegria com uma única palavra:

‑ Vejo.

O cirurgião quis precisar quanto via e ela varreu o quarto com o seu olhar novo e enumerou cada coisa com uma precisão admirável. O médico ficou sem ar, porque só eu sabia que as coisas que enumerou a avó não eram as que tinha à sua frente no quarto do hospital, mas as do seu quarto de Arataca, que recordava de memória e na devida ordem. Nunca mais recuperou a vista.

Os meus pais insistiram para que passasse as férias com eles em Sucre e que levasse comigo a avó. Muito mais envelhecida do que mandava a idade, e com a mente à deriva, afinara‑se‑lhe a beleza da voz e cantava mais e com mais inspiração do que nunca. A minha mãe cuidou para que a mantivessem limpa e arranjada, como uma boneca enorme. Era evidente que se dava conta do mundo, mas referia‑o ao passado. Sobretudo os programas de rádio, que despertavam nela um interesse infantil. Reconhecia as vozes dos diferentes locutores, que identificava como amigos da sua juventude em Riohacha, porque nunca entrou um rádio na sua casa de Aracataca. Contradizia ou criticava alguns comentários dos locutores, discutia com eles os temas mais variados ou censurava‑lhes qualquer erro gramatical como se estivessem em carne e osso junto da sua cama, e negava‑se a que lhe mudassem de roupa enquanto não se despedissem. Então correspondia com a sua boa educação intacta:

‑ Tenha muito boas noites, senhor.

Muitos mistérios de coisas perdidas, de segredos guardados ou de assuntos proibidos esclareceram‑se nos seus monólogos: quem levou escondida num baú a bomba da água que desapareceu da casa de Aracataca, quem tinha sido na realidade o pai de Matilde Salmona, cujos irmãos o confundiram com outro e lho cobraram à bala.

Também não foram fáceis as minhas primeiras férias em Sucre sem Martina Fonseca, mas não houve a mínima possibilidade de que fosse comigo. A simples ideia de não a ver durante dois meses parecera‑me irreal. Mas a ela não. Pelo contrário, quando toquei no assunto, apercebi‑me que já estava, como sempre, três passos à minha frente.

‑ Queria falar‑te disso ‑ disse‑me sem mistérios. O melhor para ambos seria que fosses estudar para outro lado agora que estamos loucos de todo. Assim, dar‑te‑ás conta de que o nosso caso não será nunca mais do que o que já foi. Pensei que brincava.

‑ Vou‑me embora amanhã mesmo e regresso daqui a três

meses para ficar contigo.

Ela replicou com música de tango:

‑ lá, la, la, la!

Só então percebi que Martina era fácil de convencer quando dizia que sim, mas nunca quando dizia que não. Agarrei portanto na luva, banhado em lágrimas, e propus‑me ser outro na vida que ela pensou para mim: outra cidade, outro colégio, outros amigos e até outro modo de ser. Só pensei. Com a autoridade das minhas muitas medalhas, a primeira coisa que disse ao meu pai com uma certa solenidade foi que não voltaria ao Colégio San José nem a Barranquilla.

‑ Bendito seja Deus! ‑ disse ele. ‑ Sempre perguntara a mim mesmo onde foste buscar o romantismo de estudar com os Jesuítas.

A minha mãe passou por alto o comentário.

‑ Se não é lá tem que ser em Bogotá ‑ disse.

‑ Então não será em parte nenhuma ‑ replicou o meu pai de imediato ‑ porque não há dinheiro que chegue para os

Cachaços.

É estranho, mas a simples ideia de não continuar a estudar, que tinha sido o sonho da minha vida, pareceu‑me então inverosímil. Até ao extremo de apelar para um sonho que nunca me pareceu alcançável.

‑ Há bolsas ‑ disse.

‑ Muitíssimas ‑ disse o meu pai ‑ mas para os ricos.

Em parte era verdade, mas não por favoritismo e sim porque os trâmites eram difíceis e as condições mal divulgadas. Por obra do centralismo, todo aquele que aspirasse a uma bolsa tinha que ir a Bogotá, mil quilómetros em oito dias de viagem que custavam quase tanto como três meses no internato de um bom colégio. Mas mesmo assim podia ser inútil. A minha mãe exasperou‑se:

‑ Quando se destapa a máquina do dinheiro, sabe‑se onde se começa mas não onde se termina.

Além disso, já havia outras obrigações atrasadas. Luis Enrique, que tinha menos um ano do que eu, estivera matriculado em duas escolas locais e de ambas desertara poucos meses depois. Margarita e Aida estudavam bem na escola primária das freiras, mas já começavam a pensar numa cidade próxima e menos dispendiosa para o bacharelato. Gustavo, Ligia, Rita e Jaime ainda não eram urgentes, mas cresciam a um ritmo ameaçador. Tanto eles como os três que nasceram depois trataram‑me como alguém que chegava sempre para tornar a partir. Foi o meu ano decisivo. A atracção principal de cada carro eram as raparigas escolhidas pela sua graça e beleza e vestidas como rainhas, que recitavam versos alusivos à guerra simbólica entre as duas metades da aldeia. Eu, ainda meio forasteiro, desfrutava do privilégio de ser neutral e assim me comportava. Naquele ano, no entanto, cedi aos rogos dos capitães de Congoveo a fim de que lhes escrevesse os versos para a minha irmã Carmen Rosa, que seria a rainha de um carro monumental. Fiz‑lhes a vontade, encantado, mas excedi‑me nos ataques ao adversário pela minha ignorância das regras do jogo. Não tive outro remédio senão emendar o escândalo com dois poemas de paz: um de desculpas para a bela de Congoveo e outro de reconciliação para a bela de Zulia. O incidente tornou‑se público. O poeta anónimo, só conhecido na povoação, foi o herói do dia. O episódio apresentou‑me em sociedade e conquistou‑me a amizade dos dois lados. Desde então, não me chegou o tempo para ajudar em comédias infantis, bazares de caridade, tômbolas de beneficência e até no discurso de um candidato ao Conselho Municipal.

Luis Enrique, que já se anunciava como o guitarrista inspirado que chegou a ser, ensinou‑me a tocar o tiple (Tiple ‑ guitarra de sons muito agudos, com doze sequências em 4 grupos de 3. (N. T.)). Com ele e com Filadelfo Velilla, tornámo‑nos os reis das serenatas, com o prémio máximo de que algumas homenageadas se vestiam a correr, abriam a casa, despertavam as vizinhas e continuávamos a festa até ao pequeno‑almoço. Naquele ano, o grupo foi enriquecido pela entrada de José Palencia, neto de um terratenente endinheirado e pródigo. José era um músico inato, capaz de tocar qualquer instrumento que lhe caísse nas mãos. Tinha um ar de artista de cinema e era um bailarino emérito, de uma inteligência deslumbrante e uma sorte mais invejada do que invejável nos amores de passagem.

Eu, pelo contrário, não sabia dançar e nem sequer consegui aprender em casa das meninas Loiseau, seis irmãs inválidas de nascimento, que no entanto davam aulas de boa dança sem se levantarem das suas cadeiras de baloiço. O meu pai, que nunca foi insensível à fama, aproximou‑se de mim com uma nova visão. Dedicámos pela primeira vez longas horas a conversar. Mal nos conhecíamos. Na realidade, visto de hoje, não vivi com os meus pais mais do que três anos no total, somados os de Aracataca, Barranquilla, Cartagena, Sincé e Sucre. Foi uma experiência muito grata, que me permitiu conhecê‑los melhor. A minha mãe disse‑me: «Que bom que te tenhas tornado amigo do teu pai.» Dias depois, enquanto preparava o café na cozinha, disse‑me mais:

‑ O teu pai está muito orgulhoso de ti.

No dia seguinte, despertou‑me nas pontas dos pés e soprou‑me ao ouvido: «O teu pai tem uma surpresa para ti.» Com efeito, quando desceu para o pequeno‑almoço, ele próprio me deu a notícia na presença de todos, com uma ênfase solene: ‑ Arranja as tuas coisas, que vais para Bogotá. O primeiro impacto foi uma grande frustração, pois o que teria querido naquela altura era ficar mergulhado na paródia perpétua. Mas prevaleceu a inocência. Quanto à roupa de terra fria, não houve problema. O meu pai tinha um fato preto de cheviote e outro de bombazina e nenhum conseguia apertar na cintura. Fomos então ter com Pedro León Rosales, o chamado alfaiate dos milagres, e arranjou‑os para o meu tamanho. A minha mãe, além disso, comprou‑me o sobretudo de pêlo de camelo de um senador morto. Quando o estava a provar em casa, a minha irmã Ligia ‑ que é vidente por natureza ‑ preveniu‑me em segredo que o fantasma do senador passeava de noite pela sua casa com o sobretudo vestido. Não fiz caso, mas mais me teria valido, porque quando o vesti em Bogotá, vi‑me ao espelho com a cara do senador morto. Empenhei‑o por dez pesos no Montepio e deixei‑o perder.

O ambiente doméstico tinha melhorado tanto que estive quase a chorar na despedida, mas o programa foi cumprido à letra, sem sentimentalismos. Na segunda semana de Janeiro, embarquei em Magangué no David Arango, o barco insígnia da Naviera Colombiana, depois de viver uma noite de homem livre. O meu companheiro de camarote foi um anjo de duzentas e vinte libras e imberbe de corpo inteiro. Tinha o nome usurpado de Jack o Estripador e era o último sobrevivente de uma estirpe de atiradores de facas de circo da Ásia Menor. À primeira vista, pareceu‑me capaz de me estrangular enquanto dormia, mas nos dias seguintes apercebi‑me de que era apenas o que parecia: um bebé gigante com um coração que não lhe cabia no corpo.

Houve festa oficial na primeira noite, com orquestra e ceia de gala, mas escapei para a coberta, contemplei pela última vez as luzes do mundo que me dispunha a esquecer sem dor e chorei à vontade até ao amanhecer. Atrevo‑me hoje a dizer que a única coisa pela qual quereria voltar a ser criança era para gozar outra vez aquela viagem. Tive que fazê‑la de ida e volta várias vezes durante os quatro anos que me faltavam do bacharelato e outros dois da Universidade e de cada vez aprendi mais da vida do que na escola, e melhor do que na escola. Na época em que as águas tinham caudal suficiente, a viagem de subida demorava cinco dias de Barranquilla a Puerto Salgar, de onde se fazia um dia de comboio até Bogotá. Em tempos de seca, que eram os mais divertidos para navegar se não se tinha pressa, podia demorar até três semanas.

Os barcos tinham nomes fáceis e imediatos: Atlântico, Medellín, Capitán de Caro, David Arango. Os seus capitães, como os de Conrad, eram autoritários e de boa índole, comiam como bárbaros e não sabiam dormir sós nos seus camarotes de reis. As viagens eram lentas e surpreendentes. Nós, os passageiros, sentávamo‑nos nos terraços todo o dia para ver os povoados esquecidos, os caimões estendidos com as fauces abertas à espera das mariposas incautas, os bandos de garças que levantavam voo, assustadas pelo rasto do barco, a imensidade de patos nos pântanos interiores, os manatins que cantavam nas grandes praias enquanto amamentavam as crias. Durante toda a viagem, despertávamos ao amanhecer aturdidos com a algazarra dos macacos e dos papagaios. Com frequência, a carcaça nauseabunda de uma vaca afogada interrompia a sesta, imóvel no fio da água com um abutre solitário empoleirado no ventre.

Agora é raro conhecer‑se alguém nos aviões. Nos barcos fluviais, os estudantes acabavam por parecer uma única família, pois púnhamo‑nos de acordo todos os anos para nos encontrarmos na viagem. Às vezes o barco encalhava até quinze dias num banco de areia. Ninguém se preocupava, pois a festa continuava e uma carta do capitão, selada com o brasão do seu anel, servia de desculpa para chegar tarde ao colégio.

Desde o primeiro dia, chamou‑me a atenção o mais jovem de um grupo familiar, que tocava o bandoneon como em sonhos, passeando durante dias inteiros pela coberta da primeira classe. Não consegui suportar a inveja, pois desde que ouvi os primeiros acordeonistas de Francisco el Hombre, nas festas do 20 de Julho, em Aracataca, empenhei‑me em que o meu avô me comprasse um acordeão, mas a minha avó atravessou‑se à frente com a história de sempre, que o acordeão era um instrumento de rústicos. Cerca de trinta anos depois, julguei reconhecer em Paris o elegante acordeonista do barco num congresso mundial de neurologistas. O tempo tinha feito a sua obra: deixara crescer uma barba boémia e a roupa aumentara uns dois números, mas a recordação da sua mestria era tão vívida que não me podia equivocar. No entanto, a sua reacção não pôde ser mais ríspida quando lhe perguntei, sem me apresentar:

‑ Como vai o bandoneon? Replicou‑me, surpreendido:

‑ Não sei de que me está a falar.

Senti que a terra me engolia e apresentei‑lhe as minhas humildes desculpas por tê‑lo confundido com um estudante que tocava bandoneon no David Arango, nos princípios de Janeiro de 44. Então resplandeceu com a recordação. Era o colombiano, Salomón Hakim, um dos grandes neurologistas deste mundo. A desilusão foi que tinha trocado o bandoneon pela engenharia médica.

Outro passageiro chamou‑me a atenção pelo seu distanciamento. Era jovem, robusto, de pele avermelhada e óculos de míope e uma calvície prematura muito bem disfarçada. Pareceu‑me a imagem perfeita do turista cachaço. Desde o primeiro dia açambarcou a poltrona mais cómoda, colocou várias torres de livros novos sobre uma mesita e leu sem parar desde manhã até que o distraíam as paródias da noite. Todos os dias apareceu na sala de jantar com uma camisa de praia diferente e florida e tomou o pequeno‑almoço, almoçou, jantou e continuou a ler sozinho na mesa mais do canto. Não creio que tivesse trocado um cumprimento com ninguém. Baptizei‑o para mim como «o leitor insaciável».

Não resisti à tentação de meter o nariz nos seus livros. A maioria eram tratados indigestos de Direito Público, que lia de manhã, sublinhando e tomando notas à margem. Pelo fresco da tarde lia romances. Entre eles, um que me deixou atónito: O sósia, de Dostoievski, que tentara roubar, e não conseguira, numa livraria de Barranquilla. Estava louco para o ler. Tanto, que teria querido pedir‑lho emprestado, mas não tive coragem. Um daqueles dias apareceu com O Grande Meaulnes, do qual não ouvira falar mas que muito em breve passou a ser uma das obras‑primas preferidas por mim. Em contrapartida, eu só levava livros já lidos e irrepetíveis: Jeromín do Padre Coloma, que nunca acabei de ler; La vorágine, de José Eustasio Rivera; Dos Apeninos aos Andes, de Edmundo de Amicis, e o dicionário do avô que lia aos bocados durante horas. Ao leitor implacável, pelo contrário, não lhe chegava o tempo para tantos. O que quero dizer e não disse é que teria dado qualquer coisa para ser ele.

O terceiro viajante, como é evidente, era Jack o Estripador, o meu companheiro de quarto, que falava a dormir em língua bárbara durante horas inteiras.

As suas palrações tinham uma condição melódica que dava um fundo novo às minhas leituras da madrugada. Disse‑me que não tinha consciência disso nem sabia que idioma podia ser aquele em que sonhava, porque em criança entendeu‑se com os acrobatas do seu circo em seis dialectos asiáticos, mas perdera‑os todos quando morreu a mãe. Só lhe restou o polaco, que era a sua língua original, mas conseguimos determinar que também não era essa que falava a dormir. Não recordo pessoa mais adorável enquanto oleava e experimentava o fio das suas sinistras facas na língua rosada.

O seu único problema tinha sido o primeiro dia na sala de jantar, quando reclamou aos criados de mesa que não conseguiria sobreviver à viagem se não lhe servissem quatro rações. O contramestre explicou‑lhe que assim seria se as pagasse como um suplemento com um desconto especial. Ele alegou que tinha viajado pelos mares do mundo e em todos lhe reconheceram o direito humano de o não deixar morrer de fome. O caso subiu até ao capitão, que decidiu muito à colombiana que lhe servissem duas rações e que os criados de mesa deixassem escapar a mão até mais duas, por distracção. Ele ajudou‑se, além disso, picando com o garfo nos pratos dos companheiros de mesa e de alguns vizinhos sem apetite, que se divertiam com as suas manobras. Havia que estar lá para acreditar.

Eu não sabia o que fazer de mim, até que em La Gloria embarcou um grupo de estudantes que formavam trios e quartetos à noite e cantavam belas serenatas com boleros de amor. Quando descobri que tinham um tiple de sobra, encarreguei‑me dele, ensaiava com ele à tarde e cantávamos até ao amanhecer. O tédio das minhas horas livres encontrou remédio por uma razão do coração: quem não canta não pode imaginar o que é o prazer de cantar.

Numa noite de lua cheia, despertou‑nos um lamento angustioso que chegava da ribeira. O capitão Clímaco Conde Abello, um dos maiores, deu ordem para procurarem com projectores a origem daquele pranto e era uma fêmea de manatim que se enredara nos ramos de uma árvore caída. Os tripulantes lançaram‑se à água, amarraram‑na a um cabrestante e conseguiram desencalhá‑la. Era um ser fantástico e enternecedor, entre mulher e vaca, de quase quatro metros de comprimento. Tinha a pele lívida e suave e o torso, de grandes tetas, era de mãe bíblica. Foi ao próprio capitão Conde Abello que ouvi dizer pela primeira vez que o mundo ia acabar se continuassem a matar os animais do rio e proibiu que disparassem do seu barco.

‑ Quem quiser matar alguém, vá matá‑lo para sua casa! ‑ gritou. ‑ Não no meu barco.

Recordo o 19 de Janeiro de 1961, dezassete anos depois, como um dia ingrato porque um amigo me telefonou para o México para me contar que o vapor David Arango se tinha incendiado e transformado em cinzas no porto de Magangué. Desliguei com a consciência horrível de que naquele dia acabava a minha juventude e que o pouco que já nos restava do nosso rio de nostalgias tinha ido para o caralho. Hoje o rio Magdalena está morto, com as águas podres e os animais extintos. Os trabalhos de recuperação, de que tanto falaram os sucessivos governos que nada fizeram, exigiriam a semeadura técnica de uns sessenta milhões de árvores, em noventa por cento das terras de propriedade privada, cujos donos teriam que renunciar, pelo simples amor à pátria, a noventa por cento dos seus rendimentos actuais.

Cada viagem deixava grandes ensinamentos de vida que nos vinculavam de um modo efémero mas inesquecível à dos povoados de passagem, onde muitos de nós se enredaram para sempre com o seu destino. Um afamado estudante de Medicina meteu‑se sem ser convidado num baile de casamento, dançou sem autorização com a mulher mais bonita da festa e o marido matou‑o com um tiro. Outro casou numa bebedeira épica com a primeira rapariga que lhe agradou em Puerto Berrío e continua feliz com ela e com os seus nove filhos. José Palencia, nosso amigo de Sucre, ganhara uma vaca num concurso de tocadores de tambor em Tenerife e ali mesmo a vendeu por cinquenta pesos: uma fortuna para a época. No imenso bairro de tolerância de Barrancabermeja, a capital do petróleo, tivemos a surpresa de encontrar a cantar com a orquestra de um bordel Angel Casij Palencia, primo‑irmão de José, que desaparecera de Sucre sem deixar rasto desde o ano anterior. A conta da paródia foi assumida pela orquestra até ao amanhecer.

A minha mais ingrata recordação é a de uma tasca sombria de Puerto Berrío de onde a polícia nos arrancou a golpes de garrote, a mim e a mais três passageiros, sem dar nem ouvir explicações, e prenderam‑nos sob a acusação de termos violado uma estudante. Quando chegámos ao comissariado da polícia, já tinham entre grades e sem um único arranhão os verdadeiros culpados, uns vadios locais que não tinham nada a ver com o nosso barco.

Na escala final, Puerto Salgar, era preciso desembarcar às cinco da manhã, vestidos para as terras altas. Os homens de tecido de lã preta, com coletes e chapéus de feltro e os casacos pendurados no braço, tinham mudado de identidade entre o saltar dos sapos e a pestilência do rio saturado de animais mortos. À hora do desembarque tive uma surpresa insólita. Uma amiga de última hora convencera a minha mãe a fazer‑me uma trouxa de marinheiro com uma pequena rede de piteira, uma manta de lã e um baciozinho de emergência, tudo envolto numa esteira de esparto e amarrado em cruz com as pontas da rede.

Os meus companheiros músicos não conseguiram suster o riso ao verem‑me com semelhante bagagem no berço da civilização e o mais decidido fez o que eu não me tinha atrevido a fazer: atirou‑a à água. A minha última visão daquela viagem inolvidável foi a da bagagem que regressava às suas origens ondulando na corrente.

O comboio de Puerto Salgar subia como se gatinhasse pelas cornijas das rochas nas primeiras quatro horas. Nos troços mais íngremes, descaía para tomar impulso e voltava a tentar a subida com um resfolegar de dragão. Às vezes era necessário os passageiros descerem para o aligeirarem do peso e subirem a pé até à cornija seguinte. As povoações do caminho eram tristes e geladas e nas estações desertas apenas nos esperavam as vendedoras de toda a vida que ofereciam pela janela da carruagem umas galinhas gordas e amarelas, cozinhadas inteiras, e umas batatas nevadas (As batatas nevadas são batatas cozinhadas com casca e envoltas em sal. (N. T.)) que nos deliciavam. Ali senti pela primeira vez um estado do corpo desconhecido e invisível: o frio. Ao entardecer, por sorte, abriam‑se de repente até ao horizonte as imensas savanas, verdes e belas como um mar do céu. O mundo tornava‑se tranquilo e breve. O ambiente do comboio tornava‑se outro.

Esquecera‑me por completo do leitor insaciável quando apareceu de súbito e se sentou à minha frente com um ar de urgência. Foi incrível. Impressionara‑o um bolero que cantávamos nas noites do barco e pediu‑me que lho copiasse. Não só o fiz, como o ensinei a cantá‑lo. Surpreendeu‑me o seu bom ouvido e o fogo da sua voz quando cantou só, afinado e bem desde a primeira vez.

‑ Aquela mulher vai morrer quando o ouvir! ‑ exclamou, radiante.

Compreendi assim a sua ansiedade. Desde que ouviu o bolero cantado por nós no barco sentiu que seria uma revelação para a namorada que se despedira dele três meses antes em Bogotá e naquela tarde o esperava na estação. Voltara a ouvi‑lo duas ou três vezes e era capaz de o reconstituir aos pedaços, mas ao ver‑me só na poltrona do comboio decidira pedir‑me o favor. Também eu tive então a audácia de lhe dizer com toda a intenção, e sem que viesse ao caso, como me tinha surpreendido na sua mesa um livro tão difícil de encontrar. A sua surpresa foi autêntica.

‑ Qual?

‑ O sósia. Riu, satisfeito.

‑ Ainda não o acabei ‑ disse. ‑ Mas é uma das coisas mais estranhas que me caiu nas mãos.

Não passou dali. Agradeceu‑me em todos os tons pelo bolero e despediu‑se com um forte aperto de mão.

Começava a escurecer quando o comboio reduziu a marcha, passou por um armazém atulhado de sucata enferrujada e parou num cais sombrio. Agarrei no baú pela lingueta e arrastei‑o até à rua antes que as pessoas me atropelassem. Estava quase a chegar quando alguém gritou:

‑ Jovem, jovem!

Voltei‑me para olhar, como vários jovens e outros menos jovens que corriam comigo, quando o leitor insaciável passou a meu lado e me deu um livro sem se deter.

‑ Que lhe faça bom proveito! ‑ gritou‑me, e perdeu‑se no tropel.

O livro era O sósia. Estava tão aturdido que não consegui perceber o que acabava de me acontecer. Guardei o livro no bolso do sobretudo e o vento gelado do crepúsculo bateu‑me quando saí da estação. Quase a sucumbir, poisei o baú no passeio e sentei‑me em cima dele para tomar o ar que me faltava. Não havia vivalma nas ruas. O pouco que conseguia ver era a esquina de uma avenida sinistra e glacial sob uma chuvinha ténue misturada com fuligem, a dois mil e quatrocentos metros de altitude e com um ar polar que tornava difícil respirar.

Esperei, morto de frio, não menos de meia hora. Alguém deveria chegar, pois o meu pai tinha avisado com um telegrama urgente D. Eliécer Torres Arango, um parente seu que seria o meu tutor. Mas o que me preocupava naquele momento não era que alguém viesse ou não viesse, mas sim o medo de estar sentado num baú sepulcral sem conhecer ninguém no outro lado do mundo. De repente, saiu de um táxi um homem distinto, com um guarda‑chuva de seda e um sobretudo de pêlo de camelo que lhe dava pelos tornozelos. Compreendi que era o meu tutor, embora mal tenha olhado para mim e passado de largo, e não tive a audácia de lhe fazer um sinal. Entrou a correr na estação e tornou a sair minutos depois sem qualquer expressão de esperança. Por fim, descobriu‑me e apontou‑me com o indicador:

‑ És o Gabito, não é verdade? Respondi‑lhe com a alma:

‑ Mais ou menos.

 

Bogotá era então uma cidade remota e lúgubre onde caía uma chuvinha insone desde o princípio do século XVI. Chamou‑me a atenção haver na rua demasiados homens com pressa, vestidos como eu desde a minha chegada, de preto e com chapéus duros. Em contrapartida, não se via nem uma mulher de prazer, cuja entrada era proibida nos cafés sombrios do centro comercial, tal como a de sacerdotes com sotaina e militares uniformizados. Nos eléctricos e urinóis públicos havia um letreiro triste: «Se não temes Deus, teme a sífilis.»

Impressionaram‑me os gigantescos percherões que puxavam os carros de cerveja, as chispas de pirotecnia dos eléctricos ao dobrar as esquinas e as dificuldades do trânsito para dar passagem aos enterros a pé debaixo de chuva. Eram os mais lúgubres, com carruagens de luxo e cavalos ataviados de veludo e penachos de plumas pretas, com cadáveres de boas famílias que se comportavam como as inventoras da morte. No átrio da igreja de Las Nieves vi do táxi a primeira mulher na rua, esbelta e misteriosa, e com tanta altivez como uma rainha de luto, mas fiquei para sempre com metade da ilusão, porque levava a cara tapada com um véu infranqueável.

Foi uma derrocada moral. A casa onde passei a noite era grande e confortável mas pareceu‑me fantasmagórica devido ao seu jardim sombrio, de rochas escuras, e a um frio que triturava os ossos. Era da família Torres Gamboa, parentes do meu pai e conhecidos meus, mas via‑os como estranhos ao jantar, embrulhados em mantas de dormir. A minha maior impressão foi quando deslizei para dentro dos lençóis e lancei um grito de horror porque os senti ensopados num líquido gelado. Explicaram‑me que era assim da primeira vez e que pouco a pouco me iria habituando às estranhezas do clima. Chorei longas horas em silêncio antes de conseguir um sono infeliz.

Era esse o estado de espírito em que me sentia quatro dias depois de ter chegado, enquanto avançava a toda a pressa, contra o frio e o chuvisco, para o Ministério da Educação, onde iam abrir as inscrições para o concurso nacional de bolsas. A fila começava no terceiro andar do ministério, mesmo em frente da porta dos gabinetes de inscrição, e descia serpenteando pelas escadas até à entrada principal. O espectáculo era desencorajador. Quando parou de chover, pelas dez da manhã, a fila prolongava‑se por mais dois quarteirões da Avenida Jiménez de Quesada, e ainda faltavam candidatos que se tinham refugiado nos portais. Pareceu‑me impossível conseguir qualquer coisa com semelhante multidão.

Pouco depois do meio‑dia senti dois toquezinhos no ombro. Era o insaciável leitor do barco, que me reconhecera entre os últimos da fila, mas tive dificuldade em identificá‑lo com o chapéu de feltro e a indumentária fúnebre dos cachaços. Também ele, perplexo, me perguntou:

‑ Mas que raio fazes aqui? Disse‑lhe.

‑ Que coisa mais divertida! ‑ disse ele, morto de riso. ‑ Vem comigo ‑ e levou‑me de braço dado até ao ministério.

Só então soube que era o doutor Adolfo Gómez Tâmara, director nacional de bolsas do Ministério da Educação.

Foi o acaso menos provável e um dos mais felizes da minha vida. Com uma piada de pura cepa estudantil, Gómez Tâmara apresentou‑me aos seus assistentes como o cantor mais inspirado de boleros românticos. Serviram‑me café e inscreveram‑me sem mais trâmites, não sem antes me avisarem que não estavam a ludibriar instâncias mas sim a render tributo aos deuses insondáveis do acaso. Informaram‑me que o exame geral seria na segunda‑feira seguinte, no Colégio de San Bartolomé. Calculavam uns mil candidatos de todo o país para umas trezentas e cinquenta bolsas, de modo que a batalha ia ser longa e difícil e talvez um golpe mortal para as minhas ilusões. Os favorecidos conheceriam os resultados uma semana depois, em conjunto com os dados do colégio que lhes fora designado. Isto foi novo e grave para mim, pois tanto me podiam despachar para Medellín como para Vichada. Explicaram‑me que essa lotaria geográfica fora decidida para estimular a mobilidade cultural entre as diversas regiões. Quando acabaram os trâmites, Gómez Tâmara apertou‑me a mão com a mesma energia entusiasta com que me agradeceu o bolero.

‑ Esperta‑te ‑ disse‑me. ‑ Agora a tua vida está nas tuas mãos.

À saída do ministério, um homenzinho de aspecto clerical ofereceu‑se para me conseguir uma bolsa segura e sem exames no colégio que eu quisesse mediante o pagamento de cinquenta pesos. Era uma fortuna para mim, mas creio que se a tivesse a teria pago para evitar o terror do exame. Dias depois, reconheci o impostor na fotografia dos jornais como o cabecilha de um bando de burlões que se disfarçavam de padres para tratar de negócios ilícitos em organismos oficiais.

Não desfiz o baú ante a certeza de que me mandariam para qualquer lugar. O meu pessimismo estava tão bem servido que na véspera do exame fui com os músicos do barco para uma tasca de má morte no escabroso bairro de Las Cruces. Cantávamos pela bebida, ao preço de uma canção por um copo de chicha, a bebida bárbara de milho fermentado que os bêbados requintados refinavam com pólvora. Cheguei portanto tarde ao exame, com a cabeça a latejar e sem me lembrar sequer onde estivera nem quem me tinha levado a casa na noite anterior, mas receberam‑me por caridade num salão imenso e atulhado de candidatos. Um olhar de pássaro sobre o questionário bastou para me aperceber que estava derrotado de antemão. Só para distrair os vigilantes, entretive‑me nas ciências sociais, cujas perguntas me pareceram as menos cruéis. De repente, senti‑me possuído por uma aura de inspiração que me permitiu improvisar respostas credíveis e soluções milagrosas. Salvo nas matemáticas, que não se me renderam nem com a graça de Deus. O exame de desenho, que fiz depressa mas bem, serviu‑me de alívio. «Deve ter sido um milagre da chicha», disseram‑me os meus músicos. De qualquer forma, acabei num estado de rendição final, com a decisão de escrever uma carta aos meus pais sobre direitos e razões para não voltar a casa.

Cumpri o dever de solicitar as classificações uma semana depois. A empregada da recepção deve ter reconhecido algum sinal no meu processo porque me levou sem perguntas ao director. Encontrei‑o de muito boa disposição, em mangas de camisa e com suspensórios vermelhos de fantasia. Reviu as notas do meu exame com uma atenção profissional, hesitou uma ou duas vezes e por fim respirou.

‑ Não está mal ‑ disse para si mesmo. ‑ Salvo em matemáticas, mas escapaste por um cabelo graças ao cinco em desenho.

Recostou‑se para trás na cadeira de molas e perguntou‑me em que colégio tinha pensado.

Foi um dos meus sustos históricos, mas não vacilei:

‑ San Bartolomé, aqui em Bogotá.

Ele pôs a palma da mão sobre uma pilha de papéis que tinha na secretária.

‑ Tudo isto são cartas de pesos pesados que recomendam filhos, parentes e amigos para colégios daqui ‑ disse. Apercebeu‑se de que não o devia ter dito e prosseguiu: ‑ Se me permites que te ajude, o que mais te convém é o Liceo Nacional de Zipaquirá, a uma hora de comboio.

A única coisa que sabia dessa cidade histórica era que tinha minas de sal. Gómez Tâmara explicou‑me que era um colégio colonial expropriado a uma comunidade religiosa por uma reforma liberal recente, e agora tinha um corpo docente esplêndido de professores jovens com uma mentalidade moderna. Pensei que o meu dever era tirá‑lo de dúvidas.

‑ O meu pai é godo ‑ informei. Deu uma gargalhada.

‑ Não sejas tão sério ‑ disse. ‑ Digo liberal no sentido de pensamento aberto.

Recuperou em seguida o seu estilo próprio e decidiu que a minha sorte estava naquele antigo convento do século XVII, transformado em colégio de incrédulos numa vila sonolenta onde não havia outras distracções senão estudar. O velho claustro, com efeito, mantinha‑se impassível ante a eternidade. Na sua primeira época tinha um letreiro talhado no pórtico de pedra: O princípio da sabedoria é o temor a Deus. Mas a divisa foi trocada pelo escudo da Colômbia quando o governo liberal do presidente Alfonso López Pumarejo nacionalizou a educação em 1936. Visto do saguão, enquanto me recompunha da asfixia por causa do peso do baú, deprimiu‑me o patiozinho de arcos coloniais talhados em pedra viva, com varandas de madeira pintadas de verde e canteiros de flores melancólicas nos parapeitos. Tudo parecia submetido a uma ordem confessional e em todas as coisas se notava demasiado que em mais de trezentos anos não tinham conhecido a indulgência de umas mãos de mulher. Mal educado nos espaços sem lei do Caribe, assaltou‑me o terror de viver os quatro anos decisivos da minha adolescência naquele tempo encalhado.

Ainda hoje me parece impossível que dois andares em torno de um pátio taciturno e outro edifício de alvenaria improvisado no terreno do fundo pudessem bastar para a residência e o gabinete do reitor, a secretaria administrativa, a cozinha, o refeitório, a biblioteca, as seis salas de aula, o laboratório de física e química, a arrecadação, as instalações sanitárias e o dormitório comum com camas de ferro dispostas em bateria para meia centena de alunos trazidos de rastos dos subúrbios mais deprimidos da nação e muito poucos da capital. Por sorte, aquela condição de desterro foi mais uma graça da minha boa estrela. Por causa dela, aprendi depressa e bem como é o país que me calhou na rifa do mundo. A dúzia de conterrâneos caribenhos que me assumiram como seu desde a chegada, e também eu, como é óbvio, fazíamos distinções inultrapassáveis entre nós e os outros: os nativos e os forasteiros.

Os diferentes grupos distribuídos pelos cantos do pátio desde o recreio da primeira noite eram um rico mostruário da nação. Não havia rivalidades enquanto cada um se mantivesse no seu terreno. As minhas relações imediatas foram com os costenhos (Costenho ‑ natural da costa. (N. T.)) do Caribe, pois tínhamos a fama bem merecida de sermos ruidosos, fanáticos da solidariedade de grupo e amantes de paródia e bailes. Eu era uma excepção, mas António Martínez Sierra, rumbeiro de Cartagena, ensinou‑me a dançar as músicas da moda nos recreios da noite.

Ricardo González Ripoll, o meu grande cúmplice de namoros furtivos, foi um arquitecto de fama que no entanto nunca interrompeu a mesma canção, apenas perceptível, que murmurava entre dentes e dançava só até ao fim dos seus dias.

Mincho Anaya, um pianista congénito que chegou a ser maestro de uma orquestra nacional de dança, fundou o conjunto do colégio com os que quiseram aprender algum instrumento e ensinou‑me o segredo da segunda voz para os boleros e os cantos vallenatos (Vallenato ‑ canção típica colombiana, em geral acompanhada a acordeão, cujo nome se deve ao facto de ser originária inicialmente de Valledupar. (N. T.)). No entanto, a sua proeza maior foi ter formado Guillermo López Guerra, um bogotano puro, na arte caribenha de tocar as claves, que é questão de três dois, três dois.

Humberto Jaimes, de El Banco, era um estudioso encarniçado a quem nunca interessou dançar e sacrificava os seus fins‑de‑semana para ficar a estudar no colégio. Creio que nunca tinha visto uma bola de futebol nem lido o relato de um desafio de qualquer coisa. Até que se formou como engenheiro em Bogotá e ingressou em El Tiempo como aprendiz de redactor desportivo, onde chegou a ser director da sua secção e um dos bons cronistas de futebol do país. De qualquer forma, o caso mais estranho de que me recordo foi sem dúvida o de Silvio Luna, um moreno retinto do Choco, que se formou como advogado e depois como médico e parecia disposto a iniciar a sua terceira carreira quando o perdi de vista.

Daniel Rozo ‑ Pagocio ‑ comportou‑se sempre como um sábio em todas as ciências humanas e divinas e prodigalizava‑se com elas em aulas e recreios, íamos sempre ter com ele para nos informar sobre o estado do mundo durante a guerra mundial, que seguíamos apenas pelos boatos, pois não era autorizada no colégio a entrada regular de jornais ou revistas e só usávamos o rádio para dançar uns com os outros. Nunca tivemos ocasião de averiguar onde ia Pagocio buscar as suas batalhas históricas nas quais ganhavam sempre os Aliados.

Sérgio Castro ‑ de Quetame ‑ foi talvez o melhor estudante de todos os anos do liceu e obteve sempre as classificações mais altas desde a sua entrada. Parece‑me que o seu segredo era o mesmo que me aconselhara Martina Fonseca no Colégio San José: não perdia uma palavra do professor ou das intervenções dos seus condiscípulos nas aulas, tomava notas até da respiração dos professores e ordenava‑as num caderno perfeito. Talvez por isso não precisava de gastar tempo a preparar os exames e lia livros de aventuras nos fins‑de‑semana enquanto nós nos incinerávamos nos estudos.

O meu companheiro mais assíduo nos recreios foi o bogotano puro Álvaro Ruiz Torres, que trocava comigo as histórias diárias das namoradas no recreio da noite, enquanto marchávamos com passo militar em redor do pátio. Outros eram Jaime Bravo, Humberto Guillén e Álvaro Vidales Barón, de quem fui muito próximo no colégio e continuámos a encontrar‑nos durante anos na vida real. Álvaro Ruiz ia a Bogotá todos os fins‑de‑semana com a família e regressava bem fornecido de cigarros e histórias de namoradas. Foi ele que me alimentou ambos os vícios durante o tempo que estudámos juntos e quem nestes dois anos recentes me tem emprestado as suas melhores recordações para reverdecer estas memórias.

Não sei o que aprendi na realidade durante o cativeiro do Liceo Nacional, mas os quatro anos de convivência bem sucedida com todos infundiram‑me uma visão unitária da nação, descobri como éramos diferentes e para que servíamos, e aprendi para nunca mais o esquecer que na soma de cada um de nós estava todo o país. Talvez fosse isso o que quiseram dizer no ministério sobre a mobilidade regional que o governo patrocinava.

Já na idade madura, convidado para a cabina de comando de um avião transatlântico, as primeiras palavras que o comandante me disse foi para me perguntar de onde era. Bastou‑me ouvi‑lo para responder:

‑ Sou tão costenho como o senhor é de Sogamoso.

Tinha o mesmo modo de ser, a mesma expressão, o mesmo tom de voz que Marco Fidel Bulia, meu vizinho de carteira no quarto ano do liceu. Este golpe de intuição ensinou‑me a navegar nos pântanos daquela comunidade imprevisível, mesmo sem bússola e contra a corrente, e talvez tenha sido uma chave‑mestra no meu ofício de escritor.

Sentia‑me a viver num sonho, pois não tinha aspirado à bolsa por querer estudar mas para manter a minha independência de qualquer outro compromisso em bons termos com a família. A segurança de três refeições por dia bastava para supor que naquele refúgio de pobres vivíamos melhor do que em nossas casas, sob um regime de autonomia vigiada menos evidente do que o poder doméstico. No refeitório funcionava um sistema de mercado que permitia a cada um arranjar a ração a seu gosto. O dinheiro não tinha valor. Os dois ovos do pequeno‑almoço eram a moeda mais cotada, pois com eles podia‑se comprar com vantagem qualquer outro prato das três refeições. Cada coisa tinha o seu equivalente justo e nada perturbou aquele comércio legítimo. Mais ainda: não recordo nem uma única contenda ao murro por qualquer motivo em quatro anos de internato.

Os professores, que comiam noutra mesa da mesma sala, não eram alheios às trocas pessoais entre eles, pois ainda arrastavam hábitos dos seus recentes colégios. A maioria deles eram solteiros ou viviam ali sem as esposas, e os seus ordenados eram quase tão reduzidos como as nossas mesadas familiares. Queixavam‑se da comida com tantas razões como nós, e numa crise perigosa foi aventada a possibilidade de nos aliarmos a alguns deles para uma greve de fome. Só quando recebiam presentes ou tinham convidados de fora se permitiam pratos inspirados que por uma vez desfaziam as igualdades. Foi esse o caso, no quarto ano, quando o médico do liceu nos prometeu um coração de boi para estudarmos na sua aula de anatomia. No dia seguinte mandou‑o para os frigoríficos da cozinha, ainda fresco e sangrento, mas não estava lá quando fomos buscá‑lo para a aula. Só então se esclareceu que à última hora, à falta de um coração de boi, o médico tinha mandado o de um pedreiro sem família que se estoirara ao escorregar de um quarto andar. Vendo que não chegava para todos, os cozinheiros prepararam‑no com molhos requintados, julgando que era o coração de boi que lhes tinham anunciado para a mesa dos professores. Creio que essas relações fluidas entre professores e alunos tinham algo que ver com a recente reforma da educação, da qual pouco restou na história, mas serviu‑nos ao menos para simplificar os protocolos. Reduziram‑se as diferenças de idades, relaxou‑se o uso da gravata e ninguém se voltou a alarmar por professores e alunos beberem uns copos juntos e assistirem aos sábados aos mesmos bailes de namoradas.

Este ambiente só era possível pelo tipo de professores, que em geral permitiam uma fácil relação pessoal. O nosso professor de matemática, com a sua sabedoria e áspero sentido de humor, transformava as aulas numa festa temível. Chamava‑se Joaquín Giraldo Santa e foi o primeiro colombiano a obter o título de doutor em matemática. Por infelicidade minha, e apesar dos meus grandes esforços e dos seus, nunca me consegui integrar na sua aula. Costumava dizer‑se então que as vocações poéticas interferiam com as matemáticas e acabávamos não só por acreditar nisso como por naufragar nelas. A geometria foi mais compassiva, talvez por obra e graça do seu prestígio literário. A aritmética, pelo contrário comportava‑se com uma simplicidade hostil. Ainda hoje, para fazer uma soma mental, tenho que desmembrar os números nos seus componentes mais fáceis, em especial o sete e o nove, cujas tabuadas nunca consegui decorar. De modo que para somar sete e quatro, tiro dois ao sete, somo o quatro com o cinco que me resta e no fim volto a somar o dois: onze! A multiplicação falhou‑me sempre porque nunca consegui recordar os números que tinha na memória. Dediquei à álgebra os meus melhores esforços, não só por respeito à sua estirpe clássica como pelo meu carinho e o meu terror pelo professor. Foi inútil. Reprovaram‑me em todos os trimestres, repeti‑a duas vezes e perdi‑a noutra tentativa ilícita que me concederam por caridade.

Três professores mais abnegados foram os de línguas. O primeiro ‑ de inglês ‑ foi mister Abella, um caribenho puro com uma dicção oxoniana perfeita e um fervor um tanto eclesiástico pelo dicionário Webster's, que recitava com os olhos fechados. O seu sucessor foi Héctor Figueroa, um bom professor jovem com uma paixão febril pelos boleros que cantávamos a várias vozes nos recreios. Fiz o melhor que pude no torpor das aulas e no exame final, mas creio que a minha boa classificação não foi tanto por Shakespeare como por Leo Marini e Hugo Romani, responsáveis por tantos paraísos e tantos suicídios de amor. O professor de francês no quarto ano, monsieur António Yelá Alban, encontrou‑me intoxicado pelos romances policiais. As suas aulas aborreciam‑me tanto como as de todos, mas as suas oportunas citações do francês de rua foram uma boa ajuda para não morrer de fome em Paris dez anos depois.

A maioria dos professores tinham sido formados na Normal Superior sob a direcção do doutor José Francisco Socarrás, um psiquiatra de San Juan del César que se empenhou em mudar a pedagogia clerical de um século de governo conservador por um racionalismo humanista. Manuel Cuello del Rio era um marxista radical, que talvez por isso admirava Lin Yutang e acreditava nas aparições dos mortos. A biblioteca de Carlos Júlio Calderón, presidida pelo seu conterrâneo José Eustasio Rivera, autor de La vorágine, distribuía por igual os clássicos gregos, os piedracielistas crioulos e os românticos de todos os lados. Graças a uns e a outros, nós, os poucos leitores assíduos, líamos San Juan de La Cruz ou José Maria Vargas Vila, mas também os apóstolos da revolução proletária. Gonzalo Ocampo, o professor de ciências sociais, tinha no seu quarto uma boa biblioteca política que circulava sem malícia nas aulas dos mais velhos, mas nunca entendi por que razão A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels, era estudada nas tardes áridas de economia política e não nas aulas de literatura, como a epopeia de um bela aventura humana. Guillermo López Guerra leu nos recreios o Anti‑Dúhring, também de Engels, emprestado pelo professor Gonzalo Ocampo. No entanto, quando lho pedi para o discutir com López Guerra, Ocampo disse‑me que não me faria esse mau favor com um calhamaço fundamental para o progresso da humanidade, mas tão longo e aborrecido que era provável que não passasse à história. Talvez estes cambalachos ideológicos tenham contribuído para a má fama do liceu como um laboratório de perversão política. No entanto, precisei de meia vida para me aperceber de que talvez fosse antes uma experiência espontânea para espantar os fracos e vacinar os fortes contra todo o género de dogmatismos.

A minha relação mais directa foi sempre com o professor Carlos Júlio Calderón, professor de castelhano nos primeiros anos, de literatura universal no quarto, espanhola no quinto e colombiana no sexto. E de algo estranho na sua formação e nos seus gostos: a contabilidade. Tinha nascido em Neiva, capital do departamento de Huila, e não se cansava de proclamar a sua admiração patriótica por José Eustasio Rivera. Teve que interromper os estudos de medicina e cirurgia e recordava isso como a frustração da sua vida, mas a sua paixão pelas artes e as letras era irresistível. Foi o primeiro professor a pulverizar os meus rascunhos com indicações pertinentes.

Em todo o caso, as relações de alunos e professores eram de uma naturalidade excepcional, não só nas aulas como, de um modo especial, no pátio de recreio depois do jantar. Isso permitia uma maneira de tratar diferente daquela a que estávamos habituados e que sem dúvida foi feliz para o clima de respeito e camaradagem em que vivíamos.

Devo uma aventura pavorosa às obras completas de Freud que tinham chegado à biblioteca. Não entendia nada das suas análises escabrosas, como é evidente, mas os seus casos clínicos mantinham‑me em suspenso até ao final, como as fantasias de Júlio Verne. O professor Calderón pediu‑nos que lhe escrevêssemos um conto com tema livre na aula de castelhano. Lembrei‑me do de uma doente mental de cerca de sete anos e com um título pedante que ia em sentido contrário ao da poesia: «Um caso de psicose obsessiva.» O professor fez‑mo ler na aula. O meu vizinho de carteira, Aurélio Prieto, repudiou sem reservas a petulância de escrever sem a mínima formação científica nem literária sobre um tema tão complicado. Expliquei‑lhe, com mais rancor do que humildade, que o tirara de um caso clínico descrito por Freud nas suas memórias e a minha única pretensão era usá‑lo para o trabalho. O professor Calderón, talvez julgando‑me ressentido pelas críticas ácidas de vários companheiros de aula, chamou‑me à parte no recreio para me animar a seguir em frente pelo mesmo caminho. Referiu‑me que no meu conto era evidente que ignorava as técnicas da ficção moderna, mas tinha o instinto e a vontade. Pareceu‑lhe bem escrito e, pelo menos, com intenção de ser original. Falou‑me pela primeira vez na retórica. Deu‑me alguns truques práticos de temática e métrica para versificar sem pretensões e concluiu que, de qualquer forma, devia persistir na escrita mesmo que fosse apenas por saúde mental. Aquela foi a primeira das longas conversas que mantivemos durante os meus anos de liceu, nos recreios e noutras horas livres, e às quais devo muito na minha vida de escritor.

Era o meu clima ideal. Desde o Colégio San José, tinha tão arreigado o vício de ler tudo o que me caía nas mãos que ocupava nisso o tempo livre e quase todo o das aulas. Nos meus dezasseis anos, e com boa ortografia ou sem ela, podia recitar sem tomar fôlego os poemas que aprendera no Colégio San José. Lia‑os e relia‑os, sem ajuda nem ordem, e quase sempre às escondidas durante as aulas. Creio ter lido completa a indescritível biblioteca do liceu, feita com os desperdícios de outras menos úteis: colecções oficiais, heranças de professores desiludidos, livros insuspeitados que confluíam ali vindos quem sabe de que saldos de naufrágios. Não posso esquecer a Biblioteca Aldeana da editora Minerva, patrocinada por D. Daniel Samper Ortega e distribuída a escolas e colégios pelo Ministério da Educação. Eram cem volumes, com tudo o que de melhor e de pior até então se escrevera na Colômbia, e propus‑me lê‑los por ordem numérica até onde me chegasse a alma. O que ainda hoje me aterra é que estive quase a consegui‑lo nos dois anos finais e no resto da minha vida não pude determinar se me serviu de qualquer coisa.

Os amanheceres do dormitório tinham uma suspeita parecença com a felicidade, salvo pela sineta mortífera que tocava a rebate ‑ como costumávamos dizer ‑ às seis da meia‑noite.

Só dois ou três débeis mentais saltavam na cama para apanhar os primeiros turnos em frente dos seis duches de água glacial na casa de banho do dormitório. Os restantes aproveitavam para espremer as últimas gotinhas de sono até que o professor de turno percorria o salão arrancando as mantas dos adormecidos. Era uma hora e meia de intimidade destapada para pôr a roupa em ordem, puxar lustro aos sapatos, tomar um duche com o gelo líquido do tubo sem crivo, enquanto cada um se libertava aos gritos das suas frustrações e troçava das alheias, eram violados segredos de amor, ventilados negócios e pleitos e combinados os cambalachos do refeitório. Tema matinal de discussões constantes era o capítulo lido na noite anterior.

Guillermo Granados dava rédea solta desde o amanhecer às virtudes de tenor com o seu inesgotável repertório de tangos. Eu e Ricardo González Ripoll, meu vizinho no dormitório, cantávamos a duo guarachas caribenhas ao ritmo do pano com que puxávamos lustro aos sapatos na cabeceira da cama, enquanto o meu compadre Sabas Caravallo percorria o dormitório de um extremo a outro como a mãe o pôs no mundo, com a toalha pendurada na sua verga de cimento armado.

Se tivesse sido possível, boa quantidade de internos teriam escapado de madrugada para concretizar encontros combinados nos fins‑de‑semana. Não havia guardas‑nocturnos nem professores de dormitório, salvo o de turno em cada semana. E o eterno porteiro do liceu, Riverita, que na realidade dormia acordado a toda a hora enquanto executava as suas obrigações diárias. Vivia no quarto do saguão e cumpria bem o seu ofício, mas de noite podíamos destrancar os grossos portões de igreja, fazê‑los deslizar sem ruído, gozar a noite em casa alheia e regressar pouco antes do amanhecer pelas ruas glaciais. Nunca se soube se Riveritos dormia na verdade como o morto que parecia ser, ou se era a sua maneira gentil de ser cúmplice dos seus rapazes. Não eram muitos os que tugiam e os seus segredos apodreciam na memória dos cúmplices fiéis. Conheci alguns que o fizeram por rotina, outros que se atreveram uma vez num impulso, com a coragem que infundia a tensão da aventura, e regressaram exaustos pelo terror. Nunca soubemos de algum que fosse descoberto.

O meu único inconveniente social no colégio eram uns pesadelos sinistros herdados da minha mãe, que irrompiam nos sonos alheios como alaridos de além‑túmulo. Os meus vizinhos de cama conheciam‑nos de sobra e só os temiam pelo pavor do primeiro uivo no silêncio da madrugada. O professor de turno, que dormia no camarote de cartão, passeava sonâmbulo de um extremo ao outro do dormitório, até que se restabelecia a calma. Não só eram sonhos incontroláveis, como tinham algo a ver com a má consciência, porque em duas ocasiões me aconteceram em casas extraviadas. Também eram indecifráveis, porque não sucediam em sonhos pavorosos mas, pelo contrário, em episódios felizes com pessoas ou lugares comuns que de repente me revelavam um dado sinistro com um olhar inocente. Um pesadelo apenas comparável a um da minha mãe, que tinha no regaço a sua própria cabeça e a catava das lêndeas e piolhos que não a deixavam dormir. Os meus gritos não eram de pavor mas gritos de socorro para que alguém fizesse a caridade de me acordar. No dormitório do liceu não dava tempo para nada, porque ao primeiro queixume me caíam em cima as almofadas que me atiravam das camas vizinhas. Despertava arquejante, com o coração alvoroçado pela felicidade de estar vivo.

O melhor do liceu eram as leituras em voz alta antes de dormir. Tinham começado por iniciativa do professor Carlos Júlio Calderón com um conto de Mark Twain que os do quinto ano deviam estudar para um exame de emergência àprimeira hora do dia seguinte. Leu as quatro páginas em voz alta no seu cubículo de cartão para que os alunos que não tivessem tido tempo para lê‑lo tomassem notas. Foi tão grande o interesse, que desde então se impôs o costume de ler em voz alta todas as noites antes de dormir. Não foi fácil a princípio, porque um professor beato quis impor o critério de escolher e expurgar os livros que se iam ler, mas o risco de uma rebelião entregou‑os ao critério dos estudantes mais velhos.

Começaram com meia hora. O professor de turno lia no seu camarote bem iluminado à entrada do dormitório geral, e a princípio fazíamo‑lo calar com roncos de troça, reais ou fingidos, mas quase sempre merecidos. Mais tarde prolongaram‑se até uma hora, de acordo com o interesse do relato, e os professores foram substituídos por alunos em turnos semanais. Os bons tempos começaram com Nostradamus e O Homem da Máscara de Ferro, que agradaram a todos. O que ainda hoje não entendo é o interesse estrondoso de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, que exigiu a intervenção do reitor para impedir que passássemos a noite acordados à espera de um beijo de Hans Castorp e Clawdia Chauchat. Ou a tensão insólita de todos sentados nas camas para não perdermos palavra dos confusos duelos filosóficos entre Naptha e o seu amigo Settembrini. A leitura prolongou‑se naquela noite durante mais de uma hora e foi festejada no dormitório com uma salva de palmas.

O único professor que ficou como uma das grandes incógnitas da minha juventude foi o reitor que encontrei à minha chegada. Chamava‑se Alejandro Ramos e era áspero e solitário, com uns óculos de lentes grossas que pareciam de cego e um poder sem alardes que pesava em cada palavra sua como um punho de ferro. Descia do seu refúgio às sete da manhã para passar em revista a nossa higiene pessoal antes de entrarmos no refeitório.

Usava fatos imaculados de cores vivas e colarinho engomado como se fosse de celulóide, com gravatas alegres e sapatos resplandecentes. Qualquer falha na nossa limpeza pessoal era registada com um grunhido que era uma ordem de regressar ao dormitório para a corrigir. Durante o resto do dia fechava‑se no seu gabinete do segundo andar e não o voltávamos a ver até à manhã seguinte, à mesma hora, ou enquanto dava os doze passos entre o seu gabinete e a sala do sexto ano, onde ditava a sua única aula de matemática três vezes por semana. Os seus alunos diziam que era um génio dos números e divertido nas aulas e deixava‑os assombrados com a sua sabedoria e trémulos pelo terror do exame final.

Pouco depois da minha chegada, tive que escrever o discurso inaugural para um acto oficial do liceu. A maioria dos professores aprovaram‑me o tema, mas estiveram de acordo em que a última palavra, em casos como aquele, era do reitor. Vivia no topo da escada, no segundo andar, mas sofri a distância como se fosse uma viagem a pé em redor do mundo. Tinha dormido mal na noite anterior, pus a gravata de domingo e mal consegui saborear o pequeno‑almoço. Bati tão de leve na porta da reitoria que o reitor não me abriu senão à terceira vez e me deu passagem sem cumprimentar. Por sorte, pois não teria tido voz para lhe responder, não só pela sua secura como pela imponência, a ordem e a beleza do escritório com móveis de madeiras nobres e estofos de veludo, e paredes forradas pelas assombrosas estantes de livros encadernados em cabedal. O reitor esperou com uma parcimónia formal que eu recuperasse o fôlego. Depois, indicou‑me a poltrona auxiliar em frente da secretária e sentou‑se na sua.

Tinha preparado a explicação da minha visita quase tanto como o discurso. Ele ouviu‑a em silêncio, aprovou cada frase com a cabeça, mas sempre sem olhar para mim e sim para o papel que me tremia na mão. Em alguns pontos que eu achava divertidos tentei arrancar‑lhe um sorriso, mas foi inútil. Mais ainda: tenho a certeza que já estava ao corrente do objectivo da minha visita, mas fez‑me cumprir o ritual de lho explicar. Quando acabei, estendeu a mão por cima da secretária e recebeu o papel. Tirou os óculos para lê‑lo com profunda atenção e só se deteve para fazer duas correcções com a caneta. Depois pôs os óculos e falou sem me olhar nos olhos, com uma voz áspera que me abalou o coração:

‑ Aqui há dois problemas ‑ disse‑me. ‑ Escreveu: «Em harmonia com a flora exuberante do nosso país, que o sábio espanhol José Celestino Mutis deu a conhecer ao mundo no século XVIII, vivemos neste liceu um ambiente paradisíaco.» Mas o caso é que exuberante se escreve sem agá e paradisíaco tem acento.

Senti‑me humilhado. Não tive resposta para o primeiro caso, mas no segundo não tinha a mínima dúvida e repliquei de imediato com o que me restava de voz:

‑ Perdoe, senhor reitor, mas o dicionário admite paradisíaco com acento ou sem acento (Em espanhol pode, na realidade, escrever‑se «paradisíaco» ou «paradisíaco». (N. T.)), mas o esdrúxulo pareceu‑me mais sonoro.

Deve ter‑se sentido tão agredido como eu, pois mesmo assim não me olhou e agarrou no dicionário da estante sem dizer palavra. Crispou‑se‑me o coração, porque era o mesmo Atlas do meu avô, mas novo e brilhante e quase sem uso. Abriu‑o na página exacta à primeira tentativa, leu e releu o texto e perguntou‑me sem afastar o olhar da página:

‑ Em que ano está?

‑ Terceiro ‑ respondi.

Fechou o dicionário com uma pancada forte e pela primeira vez olhou‑me nos olhos.

‑ Bravo ‑ disse. ‑ Continue assim.

Desde aquele dia, só faltou que os meus companheiros de classe me proclamassem herói e começaram a chamar‑me com toda a malícia possível «o costenho que falou com o reitor». No entanto, o que mais me afectou da entrevista foi ter enfrentado, uma vez mais, o meu drama pessoal com a ortografia. Nunca consegui entender. Um dos meus professores procurou dar‑me o golpe de misericórdia com a notícia de que Simón Bolívar não merecia a sua glória devido à péssima ortografia. Outros consolavam‑me com o pretexto de que é um mal de muitos. Ainda hoje, com dezassete livros publicados, os revisores das minhas provas de imprensa honram‑me com a galantaria de corrigir os meus horrores de ortografia com simples erratas.

As festas sociais em Zipaquirá correspondiam em geral à vocação e ao modo de ser de cada um. As minas de sal, que os espanhóis encontraram vivas, eram uma atracção turística nos fins‑de‑semana, completada com a sobrebarriga (A «sobrebarriga» é semelhante à nossa entremeada. (N. T.)) no forno e as batatas nevadas em grandes caldeiras de cobre com sal. Os internos costenhos, com o nosso merecido prestígio de barulhentos e malcriados, tínhamos a boa educação de dançar como artistas a música da moda e o bom gosto de nos apaixonarmos de morte.

Cheguei a ser tão espontâneo que, no dia em que se soube do fim da guerra mundial, saímos para as ruas em manifestação de júbilo com bandeiras, cartazes e gritos de vitória. Alguém pediu um voluntário para dizer o discurso e avancei sem pensar sequer para a varanda do clube social, em frente da praça principal, e improvisei‑o com gritos altissonantes, que a muitos pareceram aprendidos de cor.

Foi o único discurso que me vi obrigado a improvisar nos meus primeiros setenta anos. Acabei com um reconhecimento lírico a cada um dos Quatro Grandes, mas o que chamou a atenção da praça foi o do presidente dos Estados Unidos, falecido pouco antes. «Franklin Delano Roosevelt, que como Cid o Campeador sabe ganhar batalhas depois de morto.» A frase ficou a flutuar na cidade durante vários dias e foi reproduzida em cartazes de rua e em retratos de Roosevelt nas montras de algumas lojas. De maneira que o meu primeiro êxito público não foi como poeta nem romancista, mas como orador e, pior ainda: como orador político. Desde então, não houve acto público do liceu em que não me empoleirassem numa varanda, mas então eram discursos escritos e corrigidos até ao último suspiro.

Com o tempo, aquela desfaçatez serviu‑me para contrair um terror cénico que me levou ao ponto da mudez absoluta, tanto nos grandes casamentos como nas tascas dos índios de ruana (Ruana ‑ espécie de capote montanhês ou poncho. (N. T.)) e alpergatas, onde acabávamos estendidos no chão: na casa de Berenice, que era bela e sem preconceitos, e teve a boa sorte de não se casar comigo porque estava louca de amor por outro, ou no telégrafo, cuja Sarita inesquecível me transmitia a crédito os telegramas de angústia quando os meus pais se atrasavam nas remessas para os meus gastos pessoais e mais do que uma vez me pagou os vales adiantados para me tirar de apuros, No entanto, a menos olvidável não foi o amor de ninguém mas a fada dos viciados da poesia. Chamava‑se Cecilia González Pizano e tinha uma inteligência veloz, uma simpatia pessoal e um espírito livre numa família de estirpe conservadora, e uma memória sobrenatural para toda a poesia. Vivia em frente do portal do liceu com uma tia aristocrática e solteira, numa mansão colonial em redor de um jardim de heliotrópios.

A princípio foi uma relação reduzida aos torneios poéticos, mas Cecilia acabou por ser uma verdadeira camarada da vida, sempre morta de riso, que por fim se introduziu nas aulas de literatura do professor Calderón, com a cumplicidade de todos.

Nos meus tempos de Aracataca tinha sonhado com a boa vida de ir a cantar de feira em feira, com acordeão e boa voz, que sempre me pareceu a maneira mais antiga e feliz de contar uma história. Se a minha mãe tinha renunciado ao piano para ter filhos, e o meu pai pendurara o violino para nos poder manter, não deixava de ser justo que o mais velho deles criasse o bom precedente de morrer de fome pela música. A minha participação eventual como cantor e tipleiro no grupo do liceu provou que tinha ouvido para aprender um instrumento mais difícil e que podia cantar.

Não havia serão patriótico ou sessão solene do liceu em que não estivesse a minha mão, de uma forma ou de outra, sempre pela graça do mestre Guillermo Quevedo Zornosa, compositor e figura de destaque da cidade, director eterno da banda municipal e autor de «Amapola» ‑ a do caminho, vermelha como o coração ‑, uma canção de juventude que foi no seu tempo a alma de noitadas e serenatas. Aos domingos, depois da missa, eu era dos primeiros a atravessar o parque para assistir à exibição da sua banda no coreto, sempre com A Pega Ladra no princípio e o «Coro dos Martelos» de O Trovador no final. Nunca soube o maestro, nem me atrevi a dizer‑lho, que o sonho da minha vida daqueles anos era ser como ele.

Quando o liceu pediu voluntários para um curso de apreciação da música, os primeiros a levantar o dedo fomos Guillermo López Guerra e eu. O curso seria nas manhãs de sábado, a cargo do professor Andrés Pardo Tovar, director do primeiro programa de música clássica de La Voz de Bogotá.

Não conseguimos ocupar um quarto do refeitório preparado para a aula, mas fomos de imediato seduzidos pela sua lábia de apóstolo. Era o cachaço perfeito, de blazer de meia‑noite, colete de veludo, voz sinuosa e modos pausados. O que hoje seria notável pela sua antiguidade seria o fonógrafo de manivela, que manejava com a mestria e o amor de um domador de focas. Partia do pressuposto ‑ correcto no nosso caso ‑ que éramos uns novatos solenes. De modo que começou com O Carnaval dos Animais, de Saint‑Saéns, referindo com dados eruditos a maneira de ser de cada animal. Depois tocou ‑ claro! ‑ Pedro e o Lobo, de Prokófiev. O mau daquela festa sabatina foi que me inculcou o pudor de que a música dos grandes mestres é um vício quase secreto e precisei de muitos anos para não fazer distinções prepotentes entre música boa e música má.

Não voltei a ter nenhum contacto com o reitor até ao ano seguinte, quando se encarregou da cátedra de geometria no quarto ano. Entrou na aula na primeira terça‑feira às dez da manhã, deu os bons dias com um grunhido, sem olhar para ninguém, e limpou o quadro com o apagador até que não restou nem o mínimo rasto de pó. Então voltou‑se para nós e, ainda sem passar a lista das presenças, perguntou a Álvaro Ruiz Torres:

‑ O que é um ponto?

Não houve tempo para responder, porque o professor de ciências sociais abriu a porta sem bater e disse ao reitor que tinha uma chamada urgente do Ministério da Educação. O reitor saiu à pressa para atender o telefone e não regressou à aula. Nunca mais, pois o telefonema era para lhe comunicar a demissão do seu cargo de reitor, que cumprira com consciência durante cinco anos no liceu, e ao fim de toda uma vida de bons serviços.

O sucessor foi o poeta Carlos Martin, o mais jovem dos bons poetas do grupo «Piedra y Cielo», que César del Valle me ajudara a descobrir em Barranquilla. Tinha trinta anos e três livros publicados. Eu conhecia poemas seus e vira‑o uma vez numa livraria de Bogotá, mas nunca tive nada para lhe dizer nem nenhum dos seus livros para lhe pedir um autógrafo. Uma segunda‑feira, apareceu sem ser anunciado no recreio do almoço. Não o esperávamos tão depressa. Parecia mais um advogado que um poeta, com um fato de riscas inglesas, a testa ampla e um bigode linear com um rigor de forma que se notava também na sua poesia. Avançou com os seus passos bem medidos para os grupos mais próximos, sereno e sempre um pouco distante, e estendeu‑nos a mão:

‑ Olá, sou Carlos Martin.

Nessa época, eu estava fascinado pelas prosas líricas que Eduardo Carranza publicava na secção literária de El Tiempo e na revista Sábado. Parecia‑me que era um género inspirado em Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez, na moda entre os poetas jovens que aspiravam a apagar do mapa o mito de Guillermo Valência. O poeta Jorge Rojas, herdeiro de uma fortuna efémera, patrocinou com o seu nome e o seu saldo a publicação de uns caderninhos originais, que despertaram grande interesse na sua geração, e unificou um grupo de bons poetas conhecidos.

Foi uma alteração profunda das relações domésticas. A imagem espectral do reitor anterior foi substituída por uma presença concreta que mantinha as devidas distâncias mas estava sempre ao alcance da mão. Prescindiu da revista rotineira de apresentação pessoal e outras normas inúteis e às vezes conversava com os alunos no recreio da noite.

O novo estilo colocou‑me no meu rumo. Talvez Calderón tivesse falado de mim ao novo reitor, pois numa das primeiras noites fez‑me uma sondagem disfarçada sobre as minhas relações com a poesia e soltei tudo o que tinha dentro. Ele perguntou‑me se tinha lido La experiência literária, um livro muito comentado de D. Alfonso Reyes. Confessei‑lhe que não e levou‑mo no dia seguinte. Devorei metade por baixo da carteira em três aulas sucessivas e o resto nos recreios do campo de futebol. Alegrou‑me que um ensaísta de tanto prestígio se ocupasse em estudar as canções de Agustín Lara como se fossem poemas de Garcilaso, com o pretexto de uma frase engenhosa: «As populares canções de Agustín Lara não são canções populares.» Para mim, foi como encontrar a poesia dissolvida numa sopa da vida diária.

Martin prescindiu do magnífico apartamento da reitoria. Instalou o seu gabinete de portas abertas no pátio principal e isso aproximou‑o ainda mais das nossas tertúlias depois do jantar. Instalou‑se para longo tempo com a esposa e filhos num casarão colonial bem conservado numa esquina da praça principal, com um estúdio de paredes cobertas com todos os livros com que podia sonhar um leitor atento aos gostos renovadores daqueles anos. Ali o visitavam nos fins‑de‑semana os amigos de Bogotá, em especial os companheiros de «Piedra y Cielo». Um domingo qualquer tive que ir a sua casa com Guillermo López Guerra, por causa de um problema ocasional, e lá estavam Eduardo Carranza e Jorge Rojas, as duas estrelas máximas. O reitor mandou‑nos sentar com um sinal rápido para não interromper a conversa e ali estivemos uma meia hora sem entender uma palavra porque discutiam sobre um livro de Paul Valéry do qual não tínhamos ouvido falar. Vira Carranza mais do que uma vez em livrarias e cafés de Bogotá e seria capaz de o identificar apenas pelo timbre e fluidez da voz, que correspondia à sua roupa descontraída e ao seu modo de ser: um poeta. A Jorge Rojas, pelo contrário, não teria podido identificá‑lo pela indumentária e estilo ministeriais até que Carranza se lhe dirigiu pelo nome. Ansiava ser testemunha de uma discussão sobre poesia entre os três maiores, mas tal não se verificou. No fim do tema, o reitor pôs‑me a mão no ombro e disse aos seus convidados:

‑ Este é um grande poeta.

Disse‑o como uma galantaria, como é evidente, mas eu senti‑me fulminado. Carlos Martin insistiu em tirar‑nos uma fotografia com os dois grandes poetas e tirou‑a, com efeito, mas não tive mais notícias dela até meio século depois, na sua casa da costa catalã, para onde se retirou a gozar a sua boa velhice.

O liceu foi abalado por um vento renovador. O rádio, que apenas usávamos para dançar homem com homem, transformou‑se com Carlos Martin num instrumento de divulgação social e, pela primeira vez, ouviam‑se e discutiam‑se no pátio do recreio os noticiários da noite. A actividade cultural aumentou com a criação de um centro literário e a publicação de um jornal. Quando fizemos a lista dos candidatos possíveis pelas suas tendências literárias bem definidas, o seu número deu‑nos o nome do grupo: centro literário de «Los Trece». Pareceu‑nos um golpe de sorte, além disso, porque era um desafio à superstição. A iniciativa foi dos próprios estudantes e consistia apenas em reunirmo‑nos uma vez por semana para falar de literatura quando na realidade já não fazíamos outra coisa nos tempos livres, dentro e fora do liceu. Cada um levava o seu contributo, lia‑o e submetia‑o à opinião de todos. Assombrado por esse exemplo, contribuía com a leitura de sonetos que assinava com o pseudónimo inexplicável de Javier Garcés, que na realidade não usava para me distinguir mas para me esconder. Eram simples exercícios técnicos, sem inspiração nem aspiração, aos quais não atribuía qualquer valor poético porque não me saíam da alma. Começara com imitações de Quevedo, Lope de Vega e mesmo Garcia Lorca, cujos octossílabos eram tão espontâneos que bastava começar para continuar por inércia. Cheguei tão longe nessa febre de imitação que me propusera a tarefa de parodiar por ordem cada um dos quarenta sonetos de Garcilaso de La Vega. Escrevia, além disso, os que alguns internos me pediam para dá‑los como seus às namoradas dominicais. Uma delas, em absoluto segredo, leu‑me emocionada os versos que o seu pretendente lhe dedicou como escritos por ele.

Carlos Martin concedeu‑nos uma pequena arrecadação no segundo pátio do liceu, com as janelas pregadas por segurança. Éramos uns cinco membros que propúnhamos uns aos outros tarefas para a reunião seguinte. Nenhum deles fez carreira de escritor, mas não se tratava disso mas de provar as possibilidades de cada um. Discutíamos as obras dos outros e chegávamos a irritar‑nos tanto como se fossem desafios de futebol. Um dia, Ricardo González Ripoll teve que sair no meio de um debate e surpreendeu o reitor com a orelha na porta para escutar a discussão. A sua curiosidade era legítima porque não lhe parecia verosímil que dedicássemos as nossas horas livres à literatura.

Nos finais de Março chegou‑nos a notícia de que o antigo reitor, D. Alejandro Ramos, disparara um tiro na cabeça no Parque Nacional de Bogotá. Ninguém se conformou em atribuí‑lo ao seu carácter solitário e talvez depressivo, nem foi compreensível um motivo razoável para se suicidar atrás do monumento do general Rafael Uribe Uribe, um guerreiro de quatro guerras civis e político liberal que foi assassinado com uma machadada por dois fanáticos no átrio do Capitólio. Uma delegação do liceu, encabeçada pelo novo reitor, assistiu ao enterro do professor Alejandro Ramos, que ficou na memória de todos como o adeus a outra época.

O interesse pela política nacional era bastante escasso no internato. Na casa dos meus avós ouvi dizer demasiadas vezes que a única diferença entre os dois partidos depois da Guerra dos Mil Dias era que os liberais iam à missa das cinco para que não os vissem e os conservadores à missa das oito para que os julgassem crentes. No entanto, as diferenças reais começaram a sentir‑se de novo trinta anos depois, quando o Partido Conservador perdeu o poder e os primeiros presidentes liberais procuravam abrir o país aos novos ventos do mundo. O Partido Conservador, vencido pela ferrugem do seu poder absoluto, punha ordem e limpeza na sua própria casa, sob o resplendor distante de Mussolini em Itália e as trevas do general Franco em Espanha, enquanto a primeira administração do presidente Alfonso López Pumarejo, com uma plêiade de jovens cultos, tratara de criar as condições para um liberalismo moderno, talvez sem se aperceber de que estava a cumprir o fatalismo histórico de nos partir nas duas metades em que estava dividido o mundo. Era iniludível. Nalguns dos livros que nos emprestaram os professores aprendi uma citação atribuída a Lenine: «Se não te meteres com a política, a política acabará por meter‑se contigo.»

No entanto, depois de quarenta e seis anos de uma hegemonia cavernária de presidentes conservadores, a paz começava a parecer possível. Três presidentes jovens e com uma mentalidade moderna tinham aberto uma perspectiva liberal que parecia disposta a dissipar as brumas do passado. Alfonso López Pumarejo, o mais notável dos três, que tinha sido um reformador arriscado, foi reeleito em 1942 para um segundo período e nada parecia perturbar o ritmo das rendições. De modo que, no meu primeiro ano do liceu, estávamos embebidos nas notícias da guerra europeia, que nos mantinha interessados como nunca conseguira a política nacional.

A imprensa não entrava no liceu senão em casos muito especiais, porque não tínhamos o hábito de pensar nela. Não existiam rádios portáteis, e o único do liceu era o velho móvel da sala de professores que púnhamos a todo o volume às sete da noite só para dançar. Longe estávamos de pensar que naquele momento se estivesse a incubar a mais sangrenta e irregular de todas as nossas guerras.

A política entrou a partir no liceu. Dividimo‑nos em grupos de liberais e conservadores e soubemos pela primeira vez de que lado estava cada um. Surgiu uma militância interna, cordial e um tanto académica a princípio, que degenerou no mesmo estado de espírito que começava a apodrecer o país. As primeiras tensões do liceu eram apenas perceptíveis, mas ninguém duvidava da boa influência de Carlos Martin à frente de um corpo de professores que nunca tinham ocultado as suas ideologias. Se o novo reitor não era um militante evidente, pelo menos deu a sua autorização para ouvirmos os noticiários da noite na radiola da sala e as notícias políticas prevaleceram desde então sobre a música para dançar. Dizia‑se, sem confirmação, que no seu gabinete tinha um retrato de Lenine ou de Marx.

A única ameaça de motim que ocorreu no liceu deve ter sido fruto daquele ambiente estranho. No dormitório, voaram almofadas e sapatos em detrimento da leitura e do sono. Não consegui determinar qual foi o motivo, mas creio recordar ‑ e vários condiscípulos concordam comigo ‑ que foi por algum episódio do livro que se lia em voz alta naquela noite: Canta‑claro, de Rómulo Gallegos. Um estranho motivo de combate.

Chamado de urgência, Carlos Martin entrou no dormitório e percorreu‑o várias vezes de extremo a extremo no imenso silêncio causado pela sua aparição. Depois, num golpe de autoritarismo, insólito num carácter como o seu, ordenou‑nos que abandonássemos o dormitório em pijama e pantufas e formássemos no pátio gelado. Ali nos impingiu uma arenga no estilo circular de Catilina e regressámos em perfeita ordem para continuar o sono. Foi o único incidente de que tenho memória nos nossos anos do liceu.

Mário Convers, um estudante que chegou nessa altura para o sexto ano, mantinha‑nos então alvoraçados com a ideia de termos um jornal diferente dos convencionais de outros colégios. Um dos seus primeiros contactos foi comigo e pareceu‑me tão convincente que aceitei ser seu chefe de redacção, lisonjeado mas sem ter uma ideia clara das minhas funções. Os preparativos finais do jornal coincidiram com a detenção do presidente López Pumarejo por um grupo de altos oficiais das Forças Armadas, a 8 de Julho de 1944, enquanto estava de visita oficial no Sul do país. A história, contada por ele mesmo, era linear. Talvez sem querer, fizera aos investigadores um relato perfeito, segundo o qual não soubera do caso até ser libertado. E tão cingido às verdades da vida real que o golpe de Pasto ficou como um mais de tantos episódios ridículos da história nacional.

Alberto Lleras Camargo, na sua condição de vice‑presidente, manteve o país adormecido com a sua voz e a sua dicção perfeitas, durante várias horas, através da Radio Nacional, até que o presidente López foi libertado e a ordem restabelecida. Mas foi imposto o estado de sítio rigoroso, com censura da imprensa. Os prognósticos eram incertos. Os conservadores, que tinham governado o país durante longos anos desde a independência de Espanha, em 1819, até à eleição de Olaya Herrera, um século depois, não davam mostras de liberalização. Os liberais, pelo contrário, tinham uma elite de intelectuais jovens fascinados pelos engodos do poder, cujo exemplar mais radical e viável era Jorge Eliécer Gaitán.

Este tinha sido um dos heróis da minha infância pelas suas acções contra a repressão da zona bananeira, da qual ouvi falar sem entender desde que tive o uso da razão. A minha avó admirava‑o, mas creio que a preocupavam as suas afinidades de então com os comunistas. Eu tinha estado atrás dele enquanto pronunciava um discurso trovejante de uma varanda da praça em Zipaquirá, e chamou‑me a atenção o seu crânio em forma de melão, o cabelo liso e duro, a pele de índio puro e a voz de trovão com o sotaque dos garotos de rua de Bogotá, talvez exagerado por cálculo político. No seu discurso não falou de liberais e conservadores, ou de exploradores e explorados, como toda a gente, mas de pobres e oligarcas, uma palavra que ouvi então pela primeira vez martelada em cada frase e que me apressei a procurar no dicionário.

Era um eminente advogado, aluno distinto em Roma do grande jurista italiano Enrico Ferri. Estudara lá mesmo as artes oratórias de Mussolini e tinha algo do seu estilo teatral na tribuna. Gabriel Turbay, seu co‑partidário rival, era um médico culto e elegante, de finos óculos de ouro que lhe davam um certo ar de artista de cinema. Num recente congresso do Partido Comunista, pronunciara um discurso imprevisto que surpreendeu muitos e inquietou alguns dos seus co‑partidários burgueses, mas não julgava contrariar com palavras nem com obras a sua formação liberal nem a sua vocação de aristocrata. A sua familiaridade com a diplomacia russa vinha‑lhe desde 1936, quando estabeleceu em Roma as relações com a União Soviética, na sua condição de embaixador da Colômbia. Sete anos depois, formalizou‑as em Washington na sua condição de representante da Colômbia nos Estados Unidos.

As suas boas relações com a embaixada soviética em Bogotá eram muito cordiais e tinha no Partido Comunista colombiano alguns dirigentes amigos que teriam podido estabelecer uma aliança eleitoral com os liberais, da qual se falou com frequência naqueles dias, mas nunca se concretizou. Também por essa época, sendo embaixador em Washington, correu na Colômbia o rumor insistente de que era o namorado secreto de uma grande estrela de Hollywood ‑ talvez Joan Crawford ou Paulette Goddard ‑ mas também nunca renunciou à sua carreira de solteiro insubornável.

Entre os eleitores de Gaitán e os de Turbay podiam formar uma maioria liberal e abrir caminhos novos dentro do próprio partido, mas nenhuma das duas metades separadas ganharia ao conservadorismo unido e armado.

A nossa Gaceta Literária apareceu nesses maus dias. Mesmo a nós, que já tínhamos impresso o primeiro número, surpreendeu a sua apresentação profissional de oito páginas em tamanho tablóide, bem paginado e bem impresso. Carlos Martin e Carlos Júlio Calderón foram os mais entusiastas e ambos comentaram nos recreios alguns dos artigos. Entre eles, o mais importante foi um escrito por Carlos Martin a nosso pedido, no qual defendia a necessidade de uma corajosa tomada de consciência em luta contra os traficantes dos interesses do Estado, os políticos arrivistas e os agiotas que dificultavam o livre avanço do país. Foi publicado com um grande retrato seu na primeira página. Havia um artigo de Convers sobre a hispanidade e uma prosa lírica minha assinada por Javier Garcés. Convers anunciou‑nos que entre os seus amigos de Bogotá havia um grande entusiasmo e possibilidades de subsídios para ser lançada em grande, como um jornal inter‑colegial.

O primeiro número ainda não tinha sido distribuído quando se deu o golpe de Pasto. No mesmo dia em que foi declarada alteração da ordem pública, o alcaide de Zipaquirá irrompeu no liceu à frente de um pelotão armado e confiscou os exemplares que tínhamos prontos para circulação. Foi um assalto de cinema, apenas explicável por alguma denúncia maldosa de que o jornal continha material subversivo. No mesmo dia chegou uma notificação do gabinete de imprensa da presidência da República de que o jornal fora impresso sem passar pela censura do estado de sítio e Carlos Martin foi demitido da reitoria sem aviso prévio.

Para nós foi uma decisão disparatada, que nos fez sentir ao mesmo tempo humilhados e importantes. A tiragem do jornal não ultrapassava os duzentos exemplares para uma distribuição entre amigos, mas explicaram‑nos que o requisito da censura era incontornável durante o estado de sítio. A licença foi cancelada até uma nova ordem que nunca chegou.

Passaram mais de cinquenta anos até que Carlos Martin me revelasse para estas memórias os mistérios daquele absurdo episódio. No dia em que a Gaceta foi confiscada, chamou‑o ao seu gabinete de Bogotá o próprio ministro da Educação que o nomeara ‑ António Rocha ‑ e pediu‑lhe a renúncia ao cargo. Carlos Martin encontrou‑o com um exemplar da Gaceta Literária em que sublinhara com lápis vermelho numerosas frases que consideravam subversivas. Tinham feito o mesmo com o seu artigo editorial e com o de Mário Convers e até com um poema de autor conhecido que foi considerado suspeito de estar escrito em código cifrado. «Até a Bíblia sublinhada daquela forma maliciosa poderia expressar o contrário do seu autêntico sentido», disse‑lhes Carlos Martin, numa reacção de fúria tão evidente que o ministro o ameaçou de chamar a polícia. Foi nomeado director da revista Sábado, o que para um intelectual como ele devia ser considerado uma promoção estelar. No entanto, ficou‑lhe para sempre a impressão de ser vítima de uma conspiração de direita. Foi alvo de uma agressão num café de Bogotá, que quase repeliu à bala.

Um novo ministro nomeou‑o mais tarde advogado‑chefe da secção jurídica e fez uma carreira brilhante, que culminou com uma reforma rodeado de livros e saudades no seu remanso de Tarragona.

Ao mesmo tempo que a saída de Carlos Martin ‑ e sem qualquer ligação com ela, como é evidente ‑, circulou no liceu e em casas e tascas da cidade uma versão sem dono segundo a qual a guerra com o Peru, em 1932, foi uma patranha do governo liberal para se manter à força contra a oposição libertina do conservadorismo. A versão, divulgada inclusive em folhas mimeografadas, afirmava que o drama tinha começado sem a mínima intenção política quando um alferes peruano atravessou o rio Amazonas com uma patrulha militar e sequestrou na margem colombiana a namorada secreta do intendente de Leticia, uma mulata perturbadora a quem chamavam La Pila, como diminutivo de Pilar. Quando o intendente colombiano descobriu o sequestro, atravessou a fronteira arcifínia (Fronteira arcifínia ‑ fronteira com limites naturais. (N. T.)) com um grupo de peões armados e resgatou La Pila em território peruano. Mas o general Luis Sánchez Cerro, ditador absoluto do Peru, soube aproveitar a escaramuça para invadir a Colômbia e tratar de mudar os limites amazónicos a favor do seu país.

Olaya Herrera ‑ acossado com ferocidade pelo Partido Conservador derrotado ao fim de meio século de reinado absoluto ‑ declarou o estado de guerra, ordenou a mobilização nacional, depurou o seu exército com homens de confiança e mandou tropas para libertarem os territórios violados pelos peruanos. Um grito de combate fez estremecer o país e inflamou a nossa infância: «Viva a Colômbia, abaixo o Peru.» No paroxismo da guerra, circulou inclusive a versão de que os aviões civis da SCADTA tinham sido militarizados e armados como esquadrilhas de guerra, e que um deles, à falta de bombas, dispersou uma procissão da Semana Santa na povoação peruana de Guepi com um bombardeamento de cocos. O grande escritor Juan Lozano y Lozano, mobilizado pelo presidente Olaya para que o mantivesse ao corrente da verdade numa guerra de mentiras recíprocas, escreveu com a sua prosa mestra a verdade do incidente, mas a falsa versão foi tida como válida durante muito tempo.

O general Luis Miguel Sánchez Cerro, como é evidente, encontrou na guerra uma oportunidade celestial para endurecer o seu regime de ferro. Olaya Herrera, por sua vez, nomeou comandante das forças colombianas o general conservador Alfredo Vásquez Cobo, que se encontrava em Paris. O general atravessou o Atlântico num navio artilhado e penetrou pelas bocas do rio Amazonas até Leticia, quando já os diplomatas dos dois lados começavam a apagar a guerra.

Sem qualquer relação com o golpe de Pasto nem com o incidente do jornal, Carlos Martin foi substituído na reitoria por Oscar Espitia Brand, um educador de carreira e físico de prestígio. A substituição despertou no internato todo o género de suspeitas. As minhas reservas contra ele abalaram‑me desde o primeiro cumprimento, pelo estupor com que fixou a minha cabeleira de poeta e os meus bigodes bravios. Tinha um aspecto duro e olhava a direito nos olhos com uma expressão severa. A notícia de que seria o nosso professor de química orgânica acabou de assustar‑me.

Num sábado daquele ano, estávamos no cinema a meio do programa vespertino quando uma voz perturbada anunciou pelos alto‑falantes que havia um estudante morto no liceu. Foi tão impressionante que não consegui recordar que filme estávamos a ver, mas nunca esqueci a intensidade de Claudette Colbert prestes a atirar‑se a um rio torrencial do parapeito de uma ponte.

O morto era um estudante do segundo ano, de dezassete anos, recém‑chegado da sua remota cidade de Pasto, perto da fronteira com o Equador. Sofrera uma paragem respiratória no decurso de uma marcha organizada pelo professor de ginástica como penitência de fim‑de‑semana para os seus alunos preguiçosos. Foi o único caso de um estudante morto por qualquer causa durante a minha estada e causou uma grande comoção, não só no liceu como na cidade. Os meus companheiros escolheram‑me para dizer no enterro umas palavras de despedida. Nessa mesma noite pedi audiência ao novo reitor para lhe mostrar a minha oração fúnebre e a entrada no seu gabinete fez‑me estremecer como uma repetição sobrenatural da única que tive com o reitor morto. O professor Espitia leu o meu manuscrito com uma expressão trágica e aprovou‑o sem comentários, mas quando me levantei para sair disse que voltasse a sentar‑me. Tinha lido notas e versos meus, dos muitos que circulavam de mão em mão nos recreios, e alguns tinham‑lhe parecido dignos de ser publicados num suplemento literário. Mal tentei vencer a minha impiedosa timidez, já ele tinha expressado o que sem dúvida era o seu propósito. Aconselhou‑me a que cortasse os caracóis de poeta, impróprios num homem sério, que desse forma ao bigode de vassoura e deixasse de usar as camisas de pássaros e flores que pareciam de carnaval. Nunca esperei nada semelhante e, por sorte, tive nervos para não responder uma impertinência. Ele percebeu e adoptou um tom sacramental para me explicar o seu receio de que a minha moda se impusesse entre os condiscípulos mais novos devido à minha reputação de poeta. Saí do gabinete impressionado pelo reconhecimento dos meus costumes e do meu talento poético numa tão alta instância e disposto a fazer a vontade ao reitor com a minha mudança de aspecto para um acto tão solene. A ponto de interpretar como um fracasso pessoal terem cancelado as homenagens póstumas a pedido da família.

O final foi tenebroso. Alguém descobrira que o vidro do caixão parecia embaciado quando estava exposto na biblioteca do liceu. Álvaro Ruiz Torres abriu‑o, a pedido da família, e verificou que com efeito estava húmido por dentro. Procurando às apalpadelas a causa do vapor num caixão hermético, fez uma ligeira pressão com a ponta dos dedos no peito e o cadáver emitiu um lamento lancinante. A família ficou transtornada com a ideia de que estivesse vivo, até que o médico explicou que os pulmões tinham retido ar devido à falha respiratória e o tinham expelido com a pressão no peito. Apesar da simplicidade do diagnóstico, ou talvez por isso mesmo, permaneceu em alguns o receio de que o tivessem enterrado vivo. Com esse espírito fui para as férias do quarto ano, ansioso por convencer os meus pais a não continuar a estudar.

Desembarquei em Sucre debaixo de uma chuvinha invisível. A albarrada do porto pareceu‑me diferente do das minhas recordações. A praça era mais pequena e despida do que na minha recordação e a igreja e o passeio central tinham um aspecto de abandono sob as amendoeiras podadas. As grinaldas de cores das ruas anunciavam o Natal, mas este não me suscitou a emoção de outras vezes, e não reconheci nenhum dos poucos homens com guarda‑chuvas que esperavam no cais, até que um deles me disse ao passar, com o seu sotaque e o seu tom inconfundível:

‑ Como é a coisa!

Era o meu pai, um tanto marcado pela perda de peso. Não tinha o fato de cotim branco que o identificava à distância desde os seus jovens anos, mas sim umas calças caseiras, uma camisa tropical de manga curta e um estranho chapéu de capataz. Acompanhava‑o o meu irmão Gustavo, que não reconheci devido ao esticão dos nove anos.

Por sorte, a família conservava as suas manias de pobre e o jantar prematuro parecia feito de propósito para me notificar de que aquela era a minha casa e que não havia outra. A boa notícia à mesa foi que a minha irmã Ligia tinha ganho a lotaria. A história ‑ contada por ela própria ‑ começou quando a nossa mãe sonhou que o seu pai tinha disparado para o ar para espantar um ladrão que surpreendeu a roubar na velha casa de Aracataca. A minha mãe contou o sonho ao pequeno‑almoço, de acordo com um hábito familiar, e sugeriu que comprassem um bilhete de lotaria terminado em sete, porque este número tinha a mesma forma do revólver do avô. Falhou‑lhes a sorte com um bilhete que a minha mãe comprou a crédito para o pagar com o próprio dinheiro do prémio. Mas Ligia, que tinha nessa altura onze anos, pediu ao pai trinta centavos para pagar o bilhete que não ganhou e outros trinta para insistir na semana seguinte com o mesmo número estranho: 0207.

O nosso irmão Luis Enrique escondeu o bilhete para assustar Ligia, mas o seu susto foi maior na segunda‑feira seguinte, quando a ouviu entrar em casa a gritar como uma louca que tinha ganho a lotaria. É que, nas pressas da travessura, o irmão esqueceu onde estava o bilhete e na atrapalhação da busca tiveram que esvaziar roupeiros e baús e voltar a casa de pernas para o ar desde a sala até às retretes. No entanto, mais inquietante do que tudo foi o valor cabalístico do prémio: 770 pesos.

A má notícia foi que os meus pais tinham realizado por fim o sonho de mandar Luis Enrique para o reformatório de Fontidueno ‑ em Medellín ‑ convencidos de que era uma escola para filhos desobedientes e não o que era na realidade: uma prisão para a reabilitação de delinquentes juvenis de elevada perigosidade.

A decisão final foi tomada pelo meu pai num dia em que mandou o filho irrequieto cobrar uma dívida da farmácia e em vez de entregar os oito pesos que lhe pagaram comprou um tiple de boa qualidade que aprendeu a tocar como um mestre. O meu pai não fez nenhum comentário quando descobriu o instrumento em casa e continuou a pedir ao filho que fosse cobrar a dívida, mas este respondia‑lhe sempre que a tendeira não tinha o dinheiro para pagar. Tinham passado uns dois meses quando Luis Enrique encontrou o pai acompanhando‑se com o tiple numa canção improvisada: «Olha eu aqui a tocar este tiple que me custou oito pesos.»

Nunca soubemos como ficou a saber a origem, nem por que se fizera desentendido com a travessura do filho, mas este desapareceu de casa até que a minha mãe acalmou o marido. Então ouvimos ao meu pai as primeiras ameaças de mandar Luis Enrique para o reformatório de Medellín, mas ninguém lhe prestou atenção, pois também tinha anunciado o propósito de me mandar para o seminário de Ocana, não para me castigar por nada mas pela honra de ter um padre em casa, e demorou mais a pensá‑lo do que a esquecê‑lo. O tiple, no entanto, foi a gota que fez transbordar o copo.

O ingresso na casa de correcção só era possível por decisão de um juiz de menores, mas o meu pai superou a falta de requisitos por intermédio de amigos comuns, com uma carta de recomendação do arcebispo de Medellín, monsenhor Garcia Benítez. Luis Enrique, por seu lado, deu mais uma demonstração da sua boa índole pelo júbilo com que se deixou levar como para uma festa.

As férias sem ele não eram iguais. Sabia tocar como um profissional com Filadelfo Velilla, o alfaiate mágico e magistral tocador de tiple e, era evidente, com o maestro Valdés. Ao sair daqueles bailes conturbados dos ricos, assaltavam‑nos nas sombras do parque umas revoadas de aprendizas furtivas com todo o género de tentações. A uma, que passava perto mas que não era das mesmas, propus‑lhe por engano que viesse comigo e respondeu‑me com uma lógica  exemplar que não podia porque o marido dormia em casa. No entanto, duas noites depois, avisou‑me que deixaria a porta da rua sem tranca três vezes por semana para que eu pudesse entrar sem bater quando o marido não estivesse.

Lembro‑me do seu nome e apelidos, mas prefiro chamar‑lhe como então: Nigromanta. Ia fazer vinte anos pelo Natal e tinha um perfil abissínio e uma pele de cacau. Era de cama alegre e orgasmos pedregosos e atribulados, e um instinto para o amor que não parecia de ser humano mas de rio revolto. Desde o primeiro assalto, tornámo‑nos loucos na cama. O marido ‑ como Juan Breva ‑ tinha corpo de gigante e voz de menina. Tinha sido oficial da ordem pública no Sul do país e arrastava a má fama de matar liberais só para não perder a pontaria. Viviam num quarto dividido por um biombo de cartão, com uma porta para a rua e outra para o cemitério. Os vizinhos queixavam‑se de que ela perturbava a paz dos mortos com os seus uivos de cadela feliz, mas quanto mais forte uivava mais felizes deviam estar os mortos por serem perturbados por ela.

Na primeira semana, tive que fugir do quarto às quatro da madrugada porque nos enganámos na data e o oficial podia chegar a qualquer momento. Saí pelo portão do cemitério através dos fogos‑fátuos e dos latidos dos cães necrófilos. Na segunda ponte do canal, vi vir um vulto descomunal que só reconheci quando nos cruzámos. Era o sargento em pessoa, que me teria encontrado em sua casa se me tivesse demorado mais cinco minutos.

‑ Bons dias, branco ‑ disse‑me em tom cordial. Respondi‑lhe sem convicção.

‑ Deus o guarde, sargento.

Parou então para me pedir lume. Dei‑lho, muito perto dele, para proteger o fósforo do vento do amanhecer. Quando se afastou com o cigarro aceso, disse‑me bem‑disposto:

‑ Estás com um cheiro a puta que não se pode.

O susto durou‑me menos do que eu esperava, pois na quarta‑feira seguinte tornei a adormecer e quando abri os olhos deparei com o rival ofendido que me contemplava em silêncio dos pés da cama. O meu terror foi tão intenso que tive dificuldade em continuar a respirar. Ela, também nua, tratou de se interpor, mas o marido afastou‑a com o cano do revólver. Tu não te metas ‑ disse‑lhe. ‑ Os assuntos de cama resolvem‑se com chumbo.

Colocou o revólver em cima da mesa, destapou uma garrafa de rum de cana, colocou‑a junto do revólver e sentámo‑nos frente a frente a beber sem falar. Não podia imaginar o que ia fazer, mas pensei que se me quisesse matar já o teria feito sem tantos rodeios. Pouco depois, apareceu Nigromanta embrulhada num lençol e com ares de festa, mas ele apontou‑lhe o revólver.

‑ Isto é um assunto de homens ‑ disse.

Ela deu um salto e escondeu‑se por trás do biombo.

Tínhamos acabado a primeira garrafa quando desabou o dilúvio. Ele destapou então a segunda, apoiou o cano na têmpora e olhou‑me muito fixo com uns olhos gelados. Apertou o gatilho a fundo, mas bateu em seco. Mal podia controlar o tremor da mão quando me deu o revólver.

‑ É a tua vez ‑ disse‑me.

Era a primeira vez que tinha um revólver na mão e surpreendeu‑me que fosse tão pesado e quente. Não soube o que fazer. Estava alagado num suor glacial e com o ventre cheio de uma espuma ardente. Quis dizer qualquer coisa mas não me saiu a voz. Não me lembrei de disparar contra ele e devolvi‑lhe o revólver, sem dar conta que era a minha única oportunidade.

‑ O quê, cagaste‑te? ‑ perguntou ele com um desprezo feliz. ‑ Podias ter pensado nisso antes de vires.

Podia dizer‑lhe que os machos também se cagam, mas percebi que me faltavam tomates para brincadeiras mortais. Então abriu o tambor do revólver, tirou a única cápsula e atirou‑a para cima da mesa: estava vazia. O meu sentimento não foi de alívio mas de uma terrível humilhação.

O aguaceiro perdeu força antes das quatro. Estávamos ambos tão esgotados pela tensão que não me lembro em que momento deu ordem para que me vestisse, e obedeci com uma certa solenidade de luto. Só quando voltou a sentar‑se me apercebi que era ele que estava a chorar. Em catadupas e sem pudor, e quase como se alardeasse as suas lágrimas. No fim limpou‑as com as costas da mão, assoou o nariz com os dedos e levantou‑se.

‑ Sabes por que sais daqui vivo? ‑ perguntou‑me. E respondeu a si mesmo: ‑ Porque o teu pai foi o único que me conseguiu curar uma gonorreia de cão velho com a qual ninguém tinha podido em três anos.

Deu‑me uma palmada de homem nas costas e empurrou‑me para a rua. A chuva continuava e a aldeia estava alagada, de maneira que segui pelo riacho com água pelos joelhos e com o estupor de estar vivo.

Não sei como soube a minha mãe da contenda, mas nos dias seguintes empreendeu uma campanha obstinada para que não saísse de casa à noite. Entretanto, tratava‑me como tinha tratado o meu pai, com recursos de distracção que não serviam de muito. Procurava sinais de que eu tivesse tirado a roupa fora de casa, descobria rastos de perfume onde não os havia, preparava‑me pratos complicados antes de sair para a rua devido à superstição popular de que nem o marido nem os filhos nos atreveríamos a fazer amor no auge da digestão. Por fim, uma noite em que não teve mais pretextos para me reter, sentou‑se à minha frente e disse:

‑ Andam a dizer que estás embrulhado com a mulher de um polícia e ele jurou que te dava um tiro.

Consegui convencê‑la de que não era verdade, mas o rumor persistiu. Nigromanta mandava‑me recados a dizer que estava só, que o seu homem andava em comissão, que há muito tempo o perdera de vista. Sempre fiz o possível para não me encontrar com ele, mas apressava‑se a cumprimentar‑me à distância com um sinal que tanto podia ser de reconciliação como de ameaça. Nas férias do ano seguinte vi‑o pela última vez, numa noite de farra em que me ofereceu um gole de rum bruto que não me atrevi a recusar.

Não sei por que artes de ilusionismo, os professores e condiscípulos que sempre me tinham olhado como um estudante retraído começaram a ver‑me no quinto ano como um poeta maldito herdeiro do ambiente informal que prosperou na época de Carlos Martin. Não seria para me parecer mais com essa imagem que comecei a fumar no liceu aos quinze anos? A primeira vez foi terrível. Passei metade da noite a agonizar sobre os meus vómitos no chão da casa de banho. Amanheci exausto, mas a ressaca do tabaco, em vez de me repugnar, provocou‑me uns desejos irresistíveis de continuar a fumar. Comecei assim a minha vida de tabaquista empedernido, até ao extremo de não poder pensar uma frase se não fosse com a boca cheia de fumo. Uma vez declarei numa entrevista que preferia morrer a deixar de fumar e saiu‑me da alma. No liceu só era permitido fumar nos recreios, mas eu pedia autorização para ir aos urinóis duas e três vezes em cada aula, só para matar as ânsias de fumar. Assim cheguei a três maços de vinte cigarros por dia, e passava de quatro de acordo com a agitação da noite. Numa época, já fora do colégio, julguei enlouquecer devido à secura da garganta e às dores nos ossos. Decidi deixar, mas não resisti mais de dois dias de ansiedade.

Não sei se foi isso mesmo que me soltou a mão na prosa com as tarefas cada vez mais atrevidas do professor Calderón e com os livros de teoria literária que quase me obrigava a ler. Hoje, ao recapitular a minha vida, recordo que a concepção que tinha de conto era primária apesar dos muitos que tinha lido desde o meu primeiro assombro com As Mil e Uma Noites. Atrevi‑me a pensar que os prodígios que Xerazade contava aconteciam de verdade na vida quotidiana do seu tempo e deixaram de acontecer devido à incredulidade e à cobardia realista das gerações seguintes. Pela mesma razão, parecia‑me impossível que alguém dos nossos tempos voltasse a acreditar que se podia voar sobre cidades e montanhas a bordo de uma esteira, ou que um escravo de Cartagena de índias vivesse castigado duzentos anos dentro de uma garrafa, a menos que o autor do conto fosse capaz de fazer com que os seus leitores acreditassem nisso.

Enfastiavam‑me as aulas, salvo as de literatura ‑ que aprendia de cor ‑ e tinha nelas um protagonismo único. Aborrecido de estudar, deixava tudo à mercê da boa sorte. Tinha um instinto próprio para pressentir os pontos álgidos de cada matéria e quase adivinhar os que mais interessavam aos professores para não estudar o resto. A realidade é que não entendia por que devia sacrificar engenho e tempo em matérias que não me interessavam e, pela mesma razão, não me iam servir para nada numa vida que não era minha.

Atrevi‑me a pensar que a maioria dos meus professores me classificava mais pela minha maneira de ser do que pelos meus exames. Salvavam‑me as minhas respostas imprevistas, as minhas ideias dementes, as minhas invenções irracionais. No entanto, quando acabei o quinto ano, com sobressaltos académicos que não me sentia capaz de superar, tomei consciência dos meus limites. O bacharelato tinha sido até então um caminho empedrado de milagres, mas avisava‑me o coração que no final do quinto me esperava uma muralha intransponível. A verdade sem adornos era que me faltava já a vontade, a vocação, a ordem, o dinheiro e a ortografia para embarcar numa carreira académica. Melhor dizendo: os anos voavam e não fazia a mínima ideia do que ia fazer da minha vida, pois havia de passar ainda muito tempo antes de me aperceber de que mesmo esse estado de derrota era propício, porque não há nada deste mundo nem do outro que não seja útil para um escritor.

O país também não ia melhor. Acossado pela oposição feroz da reacção conservadora, Alfonso López Pumarejo renunciou à presidência da República a 31 de Julho de 1945. Sucedeu‑lhe Alberto Lleras Camargo, designado pelo Congresso para completar o último ano do período presidencial. Desde o discurso de posse, com a sua voz serena e a sua prosa de grande estilo, Lleras iniciou a tarefa ilusória de acalmar os ânimos do país para a eleição de um novo titular.

Por intermédio de monsenhor López Lleras, primo do novo presidente, o reitor do liceu conseguiu uma audiência especial para solicitar uma ajuda do governo a uma visita de estudo à costa atlântica. Também não soube por que razão o reitor me escolheu para o acompanhar à audiência, com a condição de que arranjasse um pouco a cabeleira desgrenhada e o bigode agreste. Os outros convidados foram Guillermo López Guerra, conhecido do presidente, e Álvaro Ruiz Torres, sobrinho de Laura Victoria, uma poetisa famosa de temas atrevidos na geração de «Los Nuevos», à qual pertencia também Lleras Camargo.

Não tive alternativa: na noite de sábado, enquanto Guillermo Granados lia no dormitório um romance que nada tinha a ver com o meu caso, um aprendiz de cabeleireiro do terceiro ano fez‑me o corte de recruta e aparou‑me um bigode de tango. Suportei durante o resto da semana as troças de internos e externos devido ao meu novo estilo. A simples ideia de entrar no palácio presidencial gelava‑me o sangue, mas foi um erro do coração, porque o único sinal dos mistérios do poder que ali encontrámos foi um silêncio celestial. Ao cabo de uma espera curta na ante‑sala com tapeçarias e cortinas de veludo, um militar de uniforme conduziu‑nos ao gabinete do presidente.

Lleras Camargo tinha uma semelhança pouco comum com os seus retratos. Impressionaram‑me os ombros triangulares num fato impecável de gabardina inglesa, os pómulos pronunciados, a palidez de pergaminho, os dentes de menino travesso que faziam as delícias dos caricaturistas, a lentidão dos gestos e a sua maneira de dar a mão olhando a direito nos olhos. Não me lembro qual a ideia que tinha de como eram os presidentes, mas não me pareceu que fossem todos como ele. Com o tempo, quando o conheci melhor, apercebi‑me de que talvez ele próprio não viesse nunca a saber que era mais do que tudo um escritor desgarrado.

Depois de ouvir as palavras do reitor com uma atenção demasiado evidente, fez alguns comentários oportunos, mas não decidiu enquanto não ouviu também os três estudantes. Fê‑lo com igual atenção e lisonjeou‑nos sermos tratados com o mesmo respeito e a mesma simpatia com que tratava o reitor. Bastaram‑lhe os dois últimos minutos para levarmos a certeza de que sabia mais de poesia do que de navegação fluvial, e que sem dúvida lhe interessava mais.

Concedeu‑nos tudo o que solicitámos e, além disso, prometeu assistir à sessão de encerramento do ano no liceu, quatro meses mais tarde. Assim fez, como ao mais sério dos actos de governo, e riu como ninguém com a disparatada farsa teatral que representámos em sua honra. Na recepção final, divertiu‑se tanto como mais um estudante, com uma imagem diferente da sua, e não resistiu à tentação estudantil de estender uma perna no caminho do que distribuía as taças, que mal teve tempo de se desviar.

Com o entusiasmo da festa de fim de curso fui passar em família as férias do quinto ano e a primeira notícia que me deram foi a muito feliz de que o meu irmão Luis Enrique estava de regresso ao fim de um ano e seis meses na casa de correcção. Surpreendeu‑me uma vez mais a sua boa índole. Não sentia o mínimo rancor contra ninguém pela sua condenação e contava as desgraças com um humor irresistível. Nas suas meditações de recluso chegou à conclusão de que os nossos pais o tinham internado de boa‑fé. No entanto, a protecção episcopal não o pôs a salvo da dura provação da vida quotidiana na prisão que, em vez de o perverter, enriqueceu o seu carácter e bom sentido de humor.

O seu primeiro emprego quando regressou foi o de secretário do alcaide de Sucre. Tempos depois, o titular sofreu um súbito problema gástrico e alguém lhe receitou um remédio mágico que acabava de aparecer no mercado: Alkaseltzer. O alcaide não o dissolveu em água, engolindo‑o como uma pastilha convencional, e não sufocou por milagre com a efervescência impossível de conter no estômago. Ainda sem se recompor do susto, receitou a si próprio uns dias de descanso, mas teve razões políticas para não ser substituído por nenhum dos seus legítimos suplentes, tendo dado posse interina ao meu irmão. Por essa estranha carambola ‑ sem a idade regulamentar ‑ Luis Enrique ficou na história do município como o alcaide mais jovem.

A única coisa que me perturbava de verdade naquelas férias era a certeza de que, no fundo dos seus corações, a minha família baseava o seu futuro no que esperavam de mim e só eu sabia de certeza que eram ilusões vãs. Duas ou três frases casuais do meu pai a meio da refeição mostraram‑me que havia muito que falar da nossa sorte comum, e a minha mãe apressou‑se a confirmar. «Se isto continuar assim ‑ disse ‑ mais tarde ou mais cedo teremos que voltar a Cataca.» Mas um rápido olhar do meu pai levou‑a a corrigir:

‑ Ou seja lá para onde for.

Então estava claro: a possibilidade de uma nova mudança para qualquer parte era já um tema discutido em família, e não por causa do ambiente moral mas por um futuro mais vasto para os filhos. Até esse momento, consolava‑me com a ideia de atribuir à aldeia e à sua gente, e inclusive à minha família, o espírito de derrota de que eu mesmo sofria. Mas o dramatismo do meu pai revelou uma vez mais que é sempre possível encontrar um culpado para não o sermos nós próprios.

O que eu pressentia no ar era algo muito mais denso. A minha mãe parecia apenas pendente da saúde de Jaime, o filho mais novo, que não conseguira superar a sua condição de nascido de seis meses. Passava a maior parte do dia deitada com ele na sua rede do quarto de dormir, angustiada pela tristeza e os calores humilhantes, e a casa começava a ressentir‑se da sua negligência. Os meus irmãos pareciam abandonados a si próprios. A ordem das refeições relaxara‑se tanto que comíamos sem horários, quando tínhamos fome. O meu pai, o mais caseiro dos homens, passava o dia a contemplar a praça da porta da farmácia e as tardes a jogar partidas viciosas no clube de bilhar. Um dia não consegui suportar mais a tensão. Estendi‑me junto de minha mãe na rede, como não pude fazer em pequeno, e perguntei‑lhe qual era o mistério que se respirava no ar da casa. Ela engoliu um suspiro inteiro para que não lhe tremesse a voz e abriu‑me a alma:

‑ O teu pai tem um filho na rua.

Pelo alívio que detectei na sua voz compreendi a ansiedade com que esperava a minha pergunta. Descobrira a verdade pela clarividência dos ciúmes, quando uma criada voltou para casa com a emoção de ter visto o meu pai a falar pelo telefone no posto do telégrafo. Uma mulher ciumenta não precisava de saber mais. Era o único telefone na povoação e só para chamadas de longa distância com marcação prévia, com esperas incertas e minutos tão caros que só se utilizava para casos de gravidade extrema. Cada chamada, por mais simples que fosse, despertava um alarme malicioso na comunidade da praça. Assim, quando o meu pai voltou para casa, a minha mãe vigiou‑o sem dizer nada, até que ele rasgou um papelito que tinha no bolso com a notificação de uma queixa judicial por abuso na profissão. A minha mãe esperou a ocasião para lhe perguntar à queima‑roupa com quem falava pelo telefone. A pergunta foi tão reveladora que o meu pai não encontrou de imediato uma resposta mais credível do que a verdade:

‑ Falava com um advogado.

‑ Isso já sei ‑ disse a minha mãe. ‑ O que preciso é que me contes tu próprio com a franqueza que mereço.

A minha mãe admitiu depois para mim que foi ela que se aterrou com o ninho de víboras que podia ter destapado sem dar conta, pois se ele se atrevera a dizer‑lhe a verdade era porque pensava que ela sabia tudo. Ou que teria que lho contar.

Assim foi. O meu pai confessou que recebera a notificação de uma queixa judicial contra ele por abusar no seu consultório de uma doente narcotizada com uma injecção de morfina. O facto teria ocorrido num lugarejo esquecido onde passara curtas temporadas para atender doentes sem recursos.

E de imediato deu uma prova da sua honradez: o melodrama da anestesia e da violação era uma patranha criminosa dos seus inimigos, mas o filho era seu e concebido em circunstâncias normais.

Não foi fácil à minha mãe evitar o escândalo, porque alguém de muito peso manobrava na sombra os fios da conspiração. Existia o precedente de Abelardo e Carmen Rosa, que tinham vivido connosco em diferentes ocasiões e com o carinho de todos, mas ambos tinham nascido antes do casamento. No entanto, também a minha mãe superou o rancor pelo gole amargo do novo filho e da infidelidade do marido e lutou ao lado dele, de cara descoberta, até desfazer a patranha da violação.

A paz regressou à família. Apesar disso, pouco depois chegaram notícias confidenciais da mesma região sobre uma filha de outra mãe que o meu pai tinha reconhecido como sua e que vivia em condições deploráveis. A minha mãe não perdeu tempo em pleitos e suposições e encetou a batalha para levá‑la para casa. «Mina fez o mesmo com tantos filhos espalhados do meu pai ‑ disse nessa ocasião ‑ e nunca teve de que se arrepender.» Conseguiu assim por sua conta que lhe mandassem a menina sem alaridos públicos e encaixou‑a dentro da família já numerosa.

Tudo aquilo eram coisas do passado quando o meu irmão Jaime encontrou numa festa de outra povoação um rapaz idêntico ao nosso irmão Gustavo. Era o filho que provocara o pleito judicial, já bem criado e amimado pela mãe. Mas a nossa fez todo o tipo de diligências e levou‑o para viver lá em casa ‑ quando já éramos onze ‑ e ajudou‑o a aprender um ofício e a encarrilhar na vida. Não consegui então dissimular o assombro que uma mulher de ciúmes alucinogénios tivesse sido capaz de semelhantes actos e ela própria me respondeu com uma frase que conservo desde então como um diamante:

‑ É que o mesmo sangue dos meus filhos não pode andar a vaguear por aí.

Só via os meus irmãos nas férias anuais. Depois de cada viagem, era‑me mais difícil reconhecê‑los e levar um novo na memória. Além do nome de baptismo, todos nós tínhamos outro que a família nos punha depois por facilidade quotidiana, e não era um diminutivo mas um apelido casual. A mim, desde o próprio instante em que nasci, chamaram‑me Gabito ‑ diminutivo irregular de Gabriel na costa guajira ‑ e sempre senti que esse é o meu nome de baptismo e que o diminutivo é Gabriel. Alguém, surpreendido por este santoral caprichoso, perguntava‑nos por que razão os nossos pais não tinham preferido de uma vez baptizar todos os filhos com o apelido.

No entanto, essa liberalidade da minha mãe parecia ir no sentido contrário da sua atitude com as duas filhas mais velhas, Margot e Aida, a quem tratava de impor o mesmo rigor que a mãe lhe impusera a ela devido aos seus amores empedernidos com o meu pai. Queria mudar de terra. O meu pai, pelo contrário, que não precisava de ouvir dizer aquilo duas vezes para fazer a mala e se pôr a girar pelo mundo, estava renitente desta vez. Passaram vários dias antes de ficar a saber que o problema eram os amores das duas filhas mais velhas com dois homens diferentes, como é óbvio, mas com o mesmo nome: Rafael. Quando me contaram não consegui disfarçar o riso pela recordação do romance de horror que o pai e a mãe tinham sofrido, e disse‑lho a ela:

‑ Não é a mesma coisa ‑ disse‑me.

‑ É o mesmo ‑ insisti.

‑ Está bem ‑ admitiu ela ‑, é o mesmo, mas duas vezes ao mesmo tempo.

Como acontecera com ela na sua altura, não adiantavam razões nem ralhos. Nunca se soube como sabiam os pais, porque cada uma delas e em separado tinha tomado precauções para não ser descoberta. Mas as testemunhas eram as mais impensáveis, porque as próprias irmãs se tinham feito acompanhar algumas vezes por irmãos mais novos que confirmassem a sua inocência. O mais surpreendente foi que o pai participou na atalaia, não com actos directos mas com a mesma resistência passiva do meu avô Nicolás contra a filha.

«Íamos a um baile e o meu pai entrava na festa e levava‑nos para casa se descobrisse que os Rafaeis lá estavam», contou Aida Rosa numa entrevista de imprensa. Não lhes davam autorização para um passeio ao campo ou ao cinema, ou mandavam‑nas com alguém que não as perdia de vista. Ambas inventavam em separado pretextos inúteis para terem os seus encontros de amor, e ali aparecia um fantasma invisível que as denunciava. Lígia, mais nova do que elas, ganhou a má fama de espia e delatora, mas ela própria se desculpava com o argumento de que os ciúmes entre irmãos eram outra forma de amor.

Naquelas férias tratei de interceder junto dos meus pais para não repetirem os erros que os pais da minha mãe tinham cometido com ela, e arranjaram sempre razões difíceis para não os entenderem. O mais terrível foi o dos pasquins (Pasquim ‑ Escrito anónimo fixado num local público com expressões satíricas contra o governo ou contra qualquer pessoa ou agremiação. (N. T.)), que tinham revelado segredos atrozes ‑ reais ou inventados ‑ mesmo nas famílias mais insuspeitas. Foram denunciadas paternidades ocultas, adultérios vergonhosos, perversidades de cama que de certa forma eram do domínio público por caminhos menos fáceis do que os pasquins. Mas nunca tinha havido um que denunciasse qualquer coisa que de algum modo não se soubesse, por muito oculto que tivesse sido mantido, ou que não fosse acontecer mais tarde ou mais cedo. «Os pasquins fazemo‑los nós», dizia uma das suas vítimas.

O que os meus pais não previram foi que as filhas se iam defender com os mesmos recursos que eles. Mandaram Margot estudar para Montería e Aida foi para Santa Marta por decisão própria. Estavam internas e nos dias livres havia alguém avisado para as acompanhar, mas arranjaram sempre maneira de comunicar com os remotos Rafaeis. No entanto, a minha mãe conseguiu o que os pais dela não conseguiram dela. Aida passou metade da sua vida no convento e ali viveu sem mágoas nem glórias até que se sentiu a salvo dos homens. Margot e eu continuámos sempre unidos pelas recordações da nossa infância comum, quando eu próprio vigiava os adultos para que não a surpreendessem a comer terra. No fim, ficou como uma segunda mãe de todos, em especial de Cuqui, que era o que mais precisava dela, e teve‑o consigo até ao seu último suspiro.

Só hoje me apercebo até que ponto aquele estado de espírito da minha mãe e as tensões internas da casa estavam de acordo com as contradições mortais do país, que não chegavam a revelar‑se mas que existiam. O presidente Lleras deveria convocar eleições no ano seguinte e o futuro parecia turvo. Os conservadores, que tinham conseguido derrubar López, faziam com o seu sucessor um jogo duplo: adulavam‑no pela sua imparcialidade matemática mas fomentavam a discórdia na Província com a esperança de reconquistar o poder pela razão ou pela força.

Sucre mantivera‑se imune à violência e os poucos casos que se recordavam não tinham nada que ver com a política. Um tinha sido o assassinato de Joaquín Vega, um músico muito requestado que tocava bombardino na banda local. Estavam a tocar às sete da tarde na entrada do cinema, quando um parente inimigo lhe deu um corte único no pescoço inflado pela pressão da música e esvaiu‑se em sangue no chão. Eram ambos muito queridos na terra e a única explicação conhecida e sem confirmação foi uma questão de honra. Á mesma hora exacta, estavam a celebrar o aniversário da minha irmã Rita, e a comoção da má notícia desfez a festa programada para muitas horas.

O outro luto, muito anterior mas inesquecível na memória da aldeia, foi o de Plínio Balmaceda e Dionisiano Barrios. O primeiro era membro de uma família antiga e respeitável e ele próprio era um homem enorme e encantador, mas também um provocador de génio complicado quando este se atravessava com o álcool. No seu são juízo tinha ares e graças de cavalheiro, mas quando bebia de mais transformava‑se num provocador de revólver fácil e com um chicote de ginete no cinto para chicotear os que lhe caíssem mal. A própria polícia tentava mantê‑lo afastado. Os membros da sua boa família, cansados de arrastá‑lo para casa de cada vez que se passava com os copos, acabaram por abandoná‑lo à sua sorte.

Dionisiano Barrios era o contrário: um homem tímido e deformado, inimigo de conflitos e abstémio de nascimento. Nunca tivera problemas com ninguém, até que Plinio Balmaceda começou a provocá‑lo com troças infames pela sua deformação. Esquivou‑se como pôde até ao dia em que Balmaceda o encontrou no seu caminho e lhe chicoteou a cara porque lhe deu na gana. Então Dionisiano venceu a sua timidez, a sua corcunda e a sua má sorte, e enfrentou o agressor a tiro. Foi um duelo instantâneo, em que ambos ficaram feridos com gravidade, mas só Dionisiano morreu.

No entanto, o duelo histórico da povoação foram as mortes gémeas do mesmo Plinio Balmaceda e Tasio Ananías, um sargento da polícia famoso pela sua delicadeza, filho exemplar de Maurício Ananías, que tocava tambor na mesma banda em que Joaquín Vega tocava bombardino. Foi um duelo formal em plena rua, em que ambos ficaram muito feridos e sofreram uma longa agonia, cada um em sua casa. Plinio recuperou a lucidez quase no mesmo instante e a sua preocupação imediata foi a sorte de Ananías. Este, por sua vez, impressionou‑se com a preocupação com que Plinio rogava pela sua vida. Cada um começou a suplicar a Deus que o outro não morresse e as famílias mantiveram‑nos informados enquanto tiveram alma. A povoação inteira viveu em suspenso, com todo o tipo de esforços para prolongar as duas vidas.

Depois de quarenta e oito horas de agonia, os sinos da igreja dobraram a finados por uma mulher que acabava de morrer. Os dois moribundos ouviram‑nos e, cada um na sua cama, julgou que dobravam pela morte do outro. Ananías morreu de pesar quase no mesmo instante, chorando pela morte de Plinio. Este soube e morreu dois dias depois, chorando sem consolo pelo sargento Ananías.

Numa terra de amigos pacíficos como aquela, a violência teve nesses anos uma manifestação menos mortal mas não menos daninha: os pasquins. O terror estava vivo nas casas das grandes famílias, que esperavam a manhã seguinte como uma lotaria da fatalidade. Onde menos se esperava aparecia um papel punitivo, que era um alívio pelo que não dissesse de um, e às vezes uma festa secreta pelo que dizia de outros. O meu pai, talvez o homem mais pacífico que conheci, oleou o venerável revólver que nunca disparou e soltou a língua no salão de bilhar.

‑ O que se atrever a tocar em qualquer das minhas filhas ‑ gritou ‑ vai levar chumbo do bravo.

Várias famílias iniciaram o êxodo com receio de que os pasquins fossem um prelúdio da violência policial que arrasava aldeias inteiras no interior do país para intimidar a oposição.

A tensão transformou‑se noutro pão nosso de cada dia. A princípio organizaram‑se rondas furtivas, não tanto para descobrir os autores dos pasquins como para saber o que diziam antes que os destruíssem ao amanhecer. Eu e um grupo de noctívagos encontrámos um funcionário municipal às três da madrugada a apanhar fresco na porta de sua casa, mas na realidade à espreita dos que colocavam os pasquins. O meu irmão disse‑lhe, meio a brincar meio a sério, que alguns diziam a verdade. Ele sacou do revólver e apontou‑lho engatilhado:

‑ Repete!

Soubemos então que na noite anterior tinham colocado um pasquim verídico contra a sua filha solteira. Mas os dados eram do domínio público, mesmo dentro da sua própria casa, e o único que não os conhecia era o pai.

A princípio foi evidente que os pasquins tinham sido escritos pela mesma pessoa, com o mesmo pincel e no mesmo papel, mas num comércio tão reduzido como o da praça apenas uma loja os podia vender e o próprio dono apressou‑se a demonstrar a sua inocência. Desde então, tive a certeza de que um dia ia escrever um romance sobre eles, mas não pelo que diziam, que quase sempre foram fantasias do domínio público e sem muita graça, e sim pela tensão insuportável que conseguiam criar dentro das casas.

Em Horas Más, o meu terceiro romance escrito vinte anos depois, pareceu‑me um acto de simples decência não usar casos concretos nem identificáveis, embora alguns reais fossem melhores do que os inventados por mim. Não era necessário, além disso, porque sempre me interessou mais o fenómeno social do que a vida privada das vítimas. Só depois de publicado soube que nos arrabaldes, onde os habitantes da praça principal eram pouco apreciados, muitos pasquins foram motivo de festa.

A verdade é que os pasquins apenas me serviram como ponto de partida de um argumento que em momento algum consegui concretizar, porque à medida que escrevia demonstrava que o problema de fundo era político e não moral, como se julgava. Sempre pensei que o marido de Nigromanta era um bom modelo para o alcaide militar de Horas Más, mas à medida que o desenvolvia como personagem foi‑me seduzindo como ser humano e não tive motivos para o matar, pois descobri que um escritor sério não pode matar um personagem se não tem uma razão convincente, e não era esse o caso.

Hoje apercebo‑me de que o próprio romance poderia ser outro romance. Escrevi‑o numa residência de estudantes da Rue Cujas, no Quartier Latin de Paris, a cem metros do Boulevard Saint‑Michel, enquanto os dias passavam sem misericórdia à espera de um cheque que nunca chegou. Quando o dei por terminado, fiz um rolo com as folhas, amarrei‑as com uma das três gravatas que usara em tempos melhores e sepultei‑o no fundo do roupeiro.

Dois anos depois, na Ciudad de México, nem sequer sabia onde estava quando mo pediram para um concurso de romance da Esso Colombiana, com um prémio de três mil dólares daqueles tempos de fome. O emissário era o fotógrafo Guillermo Angulo, meu velho amigo colombiano, que conhecia a existência dos originais do romance em questão desde que o estava a escrever em Paris e que o levou no ponto em que estava, ainda amarrado com a gravata e sem tempo sequer para passá‑lo a ferro a vapor devido às imposições do prazo. Assim o mandei para o concurso sem qualquer esperança num prémio que até chegava para comprar uma casa. Mas tal como o mandei foi declarado vencedor por um júri ilustre, a 16 de Abril de 1962, e quase à mesma hora em que nasceu o nosso segundo filho, Gonzalo, com o seu pão debaixo do braço.

Nem sequer tínhamos tido tempo para pensar nisso, quando recebi uma carta do padre Félix Restrepo, presidente daAcademia Colombiana de la Lengua, e um homem de bem, que tinha presidido ao júri do prémio mas ignorava o título do romance. Só então compreendi que nas pressas da última hora me tinha esquecido de o escrever na página inicial: Este pueblo de mierda.

O padre Restrepo escandalizou‑se quando tomou conhecimento dele e por intermédio de Germán Vargas pediu‑me do modo mais amável que o trocasse por outro menos brutal e mais de acordo com o clima do livro. Ao cabo de muitos intercâmbios com ele, decidi‑me por um título que talvez não dissesse muito do drama, mas que lhe serviria de bandeira para navegar pelos mares da hipocrisia: Horas Más.

Uma semana depois, o doutor Carlos Arango Vélez, embaixador de Colômbia no México e candidato recente à presidência da República, convocou‑me ao seu gabinete para me informar que o padre Restrepo me suplicava que mudasse duas palavras que lhe pareciam inadmissíveis no texto premiado: preservativo e masturbação. Nem o embaixador nem eu conseguíamos dissimular o assombro, mas estivemos de acordo em que devíamos fazer a vontade ao padre Restrepo para dar um fim feliz ao concurso interminável com uma solução equânime.

‑ Muito bem, senhor embaixador ‑ disse‑lhe. ‑ Elimino uma das duas palavras, mas o senhor far‑me‑á o favor de escolher qual.

O embaixador eliminou com um suspiro de alívio a palavra masturbação. Ficou assim saldado o conflito e o livro foi impresso pela editora Iberoamericana de Madrid, com uma grande tiragem e um lançamento estrondoso. Era encadernado em cabedal, com um papel excelente e uma impressão impecável. No entanto, foi uma lua‑de‑mel efémera, porque não consegui resistir à tentação de fazer uma leitura exploratória e descobri que o livro escrito na minha língua de índio tinha sido dobrado ‑ como os filmes dessa época ‑ no mais puro dialecto de Madrid.

Eu tinha escrito: «Assim como vocês vivem agora, não só estão numa situação insegura como constituem um mau exemplo para a aldeia.» A transcrição do editor espanhol arrepiou‑me a pele: «Assim como viveis agora, não só estais numa situação insegura, como constituís um mau exemplo para a aldeia.» Mais grave ainda: como esta frase era dita por um sacerdote, o leitor colombiano podia pensar que era uma piscadela de olho do autor para indicar que o padre era espanhol, o que complicava o seu comportamento e desnaturalizava por completo um aspecto essencial do drama. Não contente com pentear a gramática dos diálogos, o revisor permitiu‑se entrar à mão armada no estilo e o livro ficou cheio de remendos madrilenos que não tinham nada a ver com o meu romance. Em consequência disso, não me restou outro recurso senão proibir a edição por considerá‑la adulterada e recolher e incinerar os exemplares que ainda não tivessem sido vendidos. A resposta dos responsáveis foi o silêncio absoluto.

Desde esse instante, dei o romance como não publicado e entreguei‑me à dura tarefa de retraduzi‑lo para o meu dialecto caribenho, porque a única versão original era a que eu tinha mandado para o concurso e a mesma que seguira para Espanha para a edição. Depois de restabelecido o texto original e, de passagem, corrigido uma vez mais por minha conta, foi publicado pela editora Era, do México, com a advertência impressa e expressa de que era a primeira edição.

Nunca soube por que razão Horas Más é o único dos meus livros que me transporta ao seu tempo e ao seu lugar numa noite de lua cheia e brisas primaveris. Era sábado, tinha parado de chover e as estrelas não cabiam no céu. Acabavam de bater as onze quando ouvi a minha mãe na sala de jantar sussurrando um fado de amor para adormecer a criança que embalava nos braços. Perguntei‑lhe de onde vinha a música e respondeu‑me muito à sua maneira:

‑ Das casas das bandidas.

Deu‑me cinco pesos sem que lhos pedisse, porque me viu a vestir para ir à festa. Antes de sair, advertiu‑me com a sua previsão infalível que deixaria sem tranca a porta do pátio para que pudesse voltar a qualquer hora sem acordar o meu pai. Não consegui chegar até à casa das bandidas porque havia ensaio de músicos na carpintaria do maestro Valdés, em cujo grupo se inscrevera Luis Enrique logo que chegara a casa.

Naquele ano juntei‑me a eles para tocar o tiple e cantar com os seus seis mestres anónimos até ao amanhecer. Sempre considerei o meu irmão um bom guitarrista, mas na minha primeira noite soube que até os seus mais acérrimos rivais o consideravam um virtuoso. Não havia melhor conjunto e estavam tão seguros de si mesmos que quando alguém os contratava para uma serenata de reconciliação ou desagravo, o maestro Valdés tranquilizava‑o de antemão:

‑ Não te preocupes, que vamos deixá‑la a morder a almofada.

As férias sem ele não eram iguais. Incendiava a festa onde chegava, e Luis Enrique e ele, com Filadelfo Velilla, ligavam‑se como profissionais. Foi então que descobri a lealdade do álcool e aprendi a viver a direito, dormindo de dia e cantando de noite. Como dizia a minha mãe: larguei a cadela.

Sobre mim tudo foi dito e correu a voz de que a minha correspondência não me era enviada para a direcção dos meus pais e sim para a casa das bandidas. Transformei‑me no cliente mais pontual dos seus épicos sancochos de fel de tigre e dos seus guisados de iguana, que davam ímpeto para três noites completas. Não voltei a ler nem a juntar‑me à rotina da mesa familiar. Isso correspondia à ideia tantas vezes expressa por minha mãe de que eu fazia à minha maneira o que muito bem me apetecia e, pelo contrário, quem arrastava a má fama era o pobre Luis Enrique. Este, sem conhecer a frase da minha mãe, disse‑me por esses dias: «A única coisa que falta dizerem agora é que te estou a corromper e mandarem‑me outra vez para a casa de correcção.»

Pelo Natal, decidi fugir da competição anual dos carros alegóricos e escapei com dois amigos cúmplices para a povoação vizinha de Majagual. Anunciei em casa que me ia por três dias, mas fiquei dez. A culpa foi de Maria Alejandrina Cervantes, uma mulher inverosímil que conheci na primeira noite e com quem perdi a cabeça na pândega mais exuberante da minha vida. Até ao domingo em que não amanheceu na minha cama e desapareceu para sempre. Anos mais tarde, resgatei‑a das minhas nostalgias, não tanto pelas suas graças como pela ressonância do seu nome, e revivi‑a para proteger outra nalguns dos meus romances, como dona e senhora de uma casa de prazer que nunca existiu.

De regresso a casa, encontrei a minha mãe a fazer o café na cozinha às cinco da madrugada. Disse‑me com um sussurro cúmplice que ficasse com ela porque o meu pai acabava de despertar e estava disposto a demonstrar‑me que nem nas férias eu era tão livre como julgava. Serviu‑me uma grande chávena de café amargo, embora soubesse que eu não gostava, e fez‑me sentar junto do fogão. O meu pai entrou em pijama, ainda com o humor do sono, e surpreendeu‑se ao ver‑me com a chávena fumegante, mas fez‑me uma pergunta enviesada: ‑ Não dizias que não bebias café?

Sem saber o que responder, inventei a primeira coisa que me passou pela cabeça:

‑ Tenho sempre sede a esta hora.

‑ Como todos os bêbados ‑ replicou ele.

Não olhou mais para mim nem se tornou a falar do assunto. Mas a minha mãe informou‑me que o meu pai, deprimido desde aquele dia, começara a considerar‑me como um caso perdido, embora nunca mo tenha deixado saber.

Os meus gastos aumentavam tanto que resolvi saquear o mealheiro da minha mãe. Luis Enrique absolveu‑me com a sua lógica de que o dinheiro roubado aos pais, se for usado para o cinema e não para putear, é dinheiro legítimo. Sofri com as angústias de cumplicidade da minha mãe para que o meu pai não desse conta que eu andava por maus caminhos. Tinha razão de sobra, pois em casa notava‑se demasiado que às vezes continuava a dormir sem motivo à hora do almoço e tinha uma voz de galo rouco e andava tão distraído que um dia não ouvi as perguntas do meu pai e ele dirigiu‑me o mais duro dos seus diagnósticos:

‑ Estás mal do fígado.

Apesar de tudo, consegui conservar as aparências sociais. Apresentava‑me bem vestido e melhor educado nos bailes de gala e nos almoços ocasionais organizados pelas famílias da praça principal, cujas casas permaneciam fechadas durante todo o ano e se abriam para as festas de Natal quando regressavam os estudantes.

Aquele foi o ano de Caetano Gentil, que celebrou as férias com três bailes esplêndidos. Para mim foram datas de sorte, porque nos três dancei sempre com o mesmo par. Tirai‑a para dançar na primeira noite sem me dar ao trabalho de perguntar quem era, nem filha de quem, nem com quem. Pareceu‑me tão enigmática que na segunda música lhe propus a sério que casasse comigo e a sua resposta foi ainda mais misteriosa:

‑ O meu pai diz que ainda não nasceu o príncipe que há‑de casar comigo.

Dias depois, vi‑a atravessar junto do passeio central da praça, sob o sol bravo do meio‑dia, com um radioso vestido de organza e levando pela mão um menino e uma menina de seis ou sete anos. «São meus», disse‑me, morta de riso, sem que eu lhe perguntasse nada. E com tanta malícia que comecei a suspeitar que a minha proposta de casamento não tinha sido levada pelo vento.

Desde recém‑nascido na casa de Aracataca aprendera a dormir na rede, mas só em Sucre a assumi como parte da minha natureza. Não há nada melhor para a sesta, para viver a hora das estrelas, para pensar devagar, para fazer amor sem preconceitos. No dia em que regressei da minha semana dissipada, pendurei‑a entre duas árvores do pátio, como o meu pai fazia noutros tempos, e dormi com a consciência tranquila. Mas a minha mãe, sempre atormentada pela angústia de que nós, os filhos, morrêssemos a dormir, despertou‑me ao fim da tarde para saber se estava vivo. Deitou‑se então a meu lado e abordou sem preâmbulos o assunto que a estorvava para viver.

‑ O teu pai e eu queríamos saber o que se passa contigo.

A frase não podia ser mais certeira. Sabia há já algum tempo que os meus pais partilhavam as inquietações provocadas pelas minhas mudanças de maneira de ser, e ela improvisava explicações banais para o tranquilizar. Não acontecia nada na casa que a minha mãe não soubesse e as suas cólera já eram lendárias. Mas a taça transbordou com a minha chegada a casa em pleno dia durante uma semana. A minha posição justa teria sido eludir as perguntas ou deixá‑las pendentes para uma ocasião mais propícia, mas ela sabia que um assunto tão sério só admitia respostas imediatas.

Todos os seus argumentos eram legítimos: desaparecia ao anoitecer, vestido como para um casamento, e não vinha dormir em casa, mas no dia seguinte dormitava na rede até depois do almoço. Não voltei a ler e, pela primeira vez desde o meu nascimento, atrevi‑me a chegar a casa sem saber bem onde estava. «Nem sequer olhas para os teus irmãos, confundes‑lhes os nomes e as idades, e no outro dia beijaste um neto de Clemência Mo rales a julgar que era um deles», disse a minha mãe. Mas de imediato tomou consciência dos seus exageros e compensou‑os com a simples verdade.

‑ Afinal, transformaste‑te num estranho nesta casa.

‑ Tudo isso é verdade ‑ disse‑lhe ‑ mas a razão é muito fácil: estou até à ponta dos cabelos de tudo isto.

‑ De nós?

A minha resposta podia ser afirmativa, mas não teria sido justa:

‑ De tudo ‑ disse‑lhe.

E então contei‑lhe a minha situação no liceu. Avaliavam‑me pelas minhas classificações, os meus pais vangloriavam‑se ano após ano dos resultados, julgavam‑me não só o aluno perfeito como além disso o amigo exemplar, o mais inteligente e rápido e o mais famoso pela sua simpatia. Ou, como dizia a minha avó: «O nené perfeito.»

No entanto, para acabar depressa, a verdade era o contrário. Parecia assim porque não tinha a coragem e o sentido de independência do meu irmão Luis Enrique, que só fazia o que lhe dava na gana. E que sem dúvida ia conseguir uma felicidade que não é a que se deseja para os filhos, mas sim a que lhes permite sobreviver aos carinhos desmedidos, aos medos irracionais e às alegres esperanças dos pais.

A minha mãe ficou aniquilada com o retrato antagónico do que eles tinham forjado nos seus sonhos solitários.

‑ Pois não sei o que vamos fazer ‑ disse, ao fim de um silêncio mortal ‑ porque se contamos tudo isto ao teu pai, morre‑nos de repente. Não dás conta que és o orgulho da família?

Para eles era simples: já que não havia qualquer possibilidade de eu ser o médico eminente que o meu pai não pôde ser por falta de recursos, sonhavam pelo menos que fosse um profissional de qualquer coisa.

‑ Pois não serei nada de nada ‑ concluí. ‑ Nego‑me a que me façam pela força como eu não quero ou como vocês quereriam que fosse, e muito menos como quer o governo.

A disputa, um pouco leviana, prolongou‑se pelo resto da semana. Creio que a minha mãe queria arranjar tempo para conversar com o meu pai e essa ideia infundiu‑me um novo alento. Um dia, deixou cair como por acaso uma proposta surpreendente:

‑ Dizem que se quisesses poderias ser um bom escritor. Nunca tinha ouvido nada semelhante na família. As minhas

inclinações tinham permitido supor desde criança que fosse desenhador, músico, cantor de igreja e inclusive poeta dominical. Tinha descoberto em mim uma tendência conhecida de todos para uma escrita bastante retorcida e etérea, mas a minha reacção dessa vez foi mais de surpresa.

‑ Se fosse para ser escritor, teria que ser dos grandes, e esses já não se fazem ‑ respondi à minha mãe. ‑ Ao fim e ao cabo, para morrer de fome há outros ofícios melhores.

Numa daquelas tardes, em vez de conversar comigo, chorou sem lágrimas. Hoje ter‑me‑ia alarmado, porque considero o choro reprimido como um recurso infalível das grandes mulheres para forçar os seus propósitos. Mas nos meus dezoito anos não soube o que dizer à minha mãe e o meu silêncio frustrou‑lhe as lágrimas.

‑ Muito bem ‑ disse então ‑ promete‑me pelo menos que acabarás o bacharelato o melhor que puderes e eu encarrego‑me de resolver o resto com o teu pai.

Tivemos ambos ao mesmo tempo o alívio de ter ganho. Aceitei, tanto por ela como pelo meu pai, porque receei que morressem se não chegássemos com rapidez a um acordo, assim que encontrámos a solução fácil de estudar Direito e Ciências Políticas, que não só era uma boa base cultural para qualquer ofício, como também uma carreira humanizada, com aulas de manhã e tempo livre para trabalhar à tarde. Preocupado também com a carga emocional que tinha oprimido a minha mãe durante aqueles dias, pedi‑lhe que me preparasse o ambiente para falar cara a cara com o meu pai. Opôs‑se, certa de que acabaríamos numa discussão.

‑ Não há neste mundo dois homens mais parecidos do que ele e tu ‑ disse‑me. ‑ E isso é o pior para conversar.

Sempre acreditei o contrário. Só agora, quando já passei por todas as idades que o meu pai teve na sua longa vida, comecei a ver‑me ao espelho muito mais parecido com ele do que comigo mesmo.

A minha mãe deve ter coroado naquela noite o seu preciosismo de ourives, porque o meu pai reuniu à mesa toda a família e anunciou com ar casual: «Teremos advogado e casa.» Receosa talvez de que o meu pai tentasse reabrir debate para a família em pleno, a minha mãe interveio com a sua melhor inocência:

‑ Na nossa situação, e com este quadro de filhos ‑ explicou‑me ‑ pensámos que a melhor solução é a única carreira que tu próprio podes custear.

Também não era tão simples como ela dizia, nem pouco mais ou menos, mas para nós podia ser o menor dos males e os seus estragos podiam ser os menos sangrentos. De maneira que pedi a opinião ao meu pai, para continuar o jogo, e a sua resposta foi imediata e de uma sinceridade dilacerante:

‑ O que queres que te diga? Deixas‑me o coração partido a meio, mas resta‑me pelo menos o orgulho de te ajudar a ser o que te apetecer.

O cúmulo dos luxos daquele Janeiro de 1946 foi a minha primeira viagem de avião, graças a José Palencia, que reapareceu com um problema grande. Fizera sem dificuldade cinco anos de bacharelato em Cartagena, mas acabava de fracassar no sexto. Comprometi‑me a conseguir‑lhe um lugar no liceu para que tivesse por fim o seu diploma e ele convidou‑me a irmos de avião.

O voo para Bogotá realizava‑se duas vezes por semana num DC‑3 da empresa LANSA, cujo principal risco não era o próprio avião mas as vacas soltas na pista de argila improvisada num campo aberto. Às vezes tinha que dar várias voltas até acabarem por espantá‑las. Foi a experiência inaugural do meu lendário medo do avião, numa época em que a Igreja proibia que se levassem hóstias consagradas para mantê‑las a salvo das catástrofes. O voo durava quase quatro horas, sem escala, a trezentos e vinte quilómetros por hora. Nós, que já tínhamos feito a prodigiosa travessia fluvial, guiávamo‑nos do céu pelo mapa vivo do Rio Grande de La Magdalena. Reconhecíamos os povoados em miniatura, os barquinhos de corda, as bonequinhas felizes que nos diziam adeus dos pátios das escolas. As hospedeiras de carne e osso passavam o tempo a tranquilizar os passageiros que viajavam a rezar, a socorrer os enjoados e a convencer muitos de que não havia perigo de esbarrar nos bandos de abutres que observavam os animais mortos do rio. Os viajantes batidos, por seu lado, contavam uma e outra vez os voos históricos como proezas de coragem. A subida ao planalto de Bogotá, sem pressurização nem máscaras de oxigénio, sentia‑se como um bombo no coração, e as sacudidelas e o bater de asas aumentavam a felicidade da aterragem. Mas a maior surpresa foi termos chegado primeiro que os nossos telegramas da véspera.

De passagem por Bogotá, José Palencia comprou instrumentos para uma orquestra completa, e não sei se o fez com premeditação ou por premonição, mas desde que o reitor Espitia o viu entrar pisando firme com guitarras, tambores, maracas e harmónicas, percebi que estava admitido. Eu também, pelo meu lado, senti o peso da minha nova condição desde que atravessei o saguão: era um aluno do sexto ano. Até então não tinha consciência de ter na testa uma estrela com que todos sonhavam e que se notava de forma irremediável na maneira de se aproximarem de nós, no tom em que nos falavam e inclusive num certo temor reverencial. Foi, além disso, um ano inteiro de festa. Como o dormitório era só para bolseiros, José Palencia instalou‑se no melhor hotel da zona da praça, de que uma das donas tocava piano, e a vida transformou‑se para nós num domingo o ano inteiro.

Foi outro dos saltos da minha vida. A minha mãe comprava‑me roupa em segunda mão enquanto fui adolescente e quando já não me servia adaptava‑a para os meus irmãos mais novos. Os anos mais problemáticos foram os dois primeiros, porque a roupa de tecido para o clima frio era cara e difícil. Apesar do meu corpo não crescer com demasiado entusiasmo, não dava tempo para adaptar um fato a duas estaturas sucessivas num mesmo ano. Para cúmulo, o costume original de trocas de roupa entre os internos não conseguiu impor‑se, porque os enxovais estavam tão vistos que as troças aos novos donos eram insuportáveis. Isto resolveu‑se em parte quando Espitia impôs um uniforme de casaco azul e calças cinzentas, que unificou a aparência e dissimulou as trocas.

No terceiro e quarto anos, servia‑me o único fato arranjado pelo alfaiate de Sucre, mas tive de comprar para o quinto outro, muito bem conservado, que não me serviu até ao sexto. No entanto, o meu pai entusiasmou‑se tanto com os meus propósitos de emenda que me deu dinheiro para comprar um fato novo por medida e José Palencia ofereceu‑me outro seu do ano anterior que era um fato completo de pelo de camelo, muito pouco usado. Em breve me apercebi até que ponto o hábito não faz o monge. Com o fato novo, intercambiável com o novo uniforme, assisti aos bailes onde reinavam os costenhos e só consegui uma namorada que me durou menos do que uma flor.

Espitia recebeu‑me com um entusiasmo estranho. Parecia ditar só para mim as duas aulas de química da semana, com tiroteios rápidos de perguntas e respostas. Essa atenção forçada revelou‑se‑me como um bom ponto de partida para cumprir perante os meus pais a promessa de um final digno. O resto foi feito pelo método único e simples de Martina Fonseca: estar com atenção nas aulas para evitar noitadas e sustos no pavoroso final. Foi um sábio ensinamento. Desde que decidi aplicá‑lo, no último ano do liceu, acalmou‑se a minha angústia. Respondia com facilidade às perguntas dos professores, que começaram a ser mais familiares, e percebi como era fácil cumprir a promessa que fizera aos meus pais.

O meu único problema inquietante continuou a ser o dos escarcéus dos pesadelos. O prefeito de disciplina, que tinha muito boas relações com os alunos, era nessa altura o professor Gonzalo Ocampo, e uma noite do segundo semestre, entrou nas pontas dos pés no dormitório às escuras para me pedir umas chaves suas que eu me esquecera de lhe devolver. Mal tinha conseguido pôr‑me a mão no ombro quando lancei um uivo selvagem que acordou todos. No dia seguinte, transferiram‑me para um dormitório para seis improvisado no segundo andar.

Foi uma solução para os meus medos nocturnos, mas demasiado tentadora, porque ficava sobre a despensa e quatro alunos do dormitório improvisado deslizaram até às cozinhas e saquearam‑nas à vontade para uma ceia da meia‑noite.

O insuspeitável Sérgio Castro e eu, o menos audaz, ficámos nas nossas camas para servirmos de negociadores em caso de emergência. Ao cabo de uma hora, regressaram com meia despensa pronta para servir. Foi a grande comezaina dos nossos longos anos de internato, mas com a má digestão de sermos descobertos em vinte e quatro horas. Pensei que acabava tudo ali e só o talento negociador de Espitia nos pôs a salvo da expulsão.

Foi uma boa época do liceu e a menos prometedora do país. A imparcialidade de Lleras, sem o pretender, aumentou a tensão que começava a sentir‑se pela primeira vez no colégio. No entanto, hoje apercebo‑me de que estava já antes dentro de mim, mas que só então comecei a tomar consciência do país em que vivia. Alguns professores, que tentavam manter‑se imparciais desde o ano anterior, não conseguiram continuar a sê‑lo nas aulas e disparavam rajadas indigestas sobre as suas preferências políticas. Em especial desde que começou a campanha dura para a sucessão presidencial.

Era cada dia mais evidente que com Gaitán e Turbay ao mesmo tempo, o Partido Liberal perderia a presidência da República depois de dezasseis anos de governos absolutos. Eram dois candidatos tão antagónicos como se fossem de dois partidos diferentes, não só pelos seus pecados próprios, como pela determinação sangrenta do conservadorismo, que vira claro desde o primeiro dia: em vez de Laureano Gómez, impôs a candidatura de Ospina Pérez, que era um engenheiro milionário com uma fama bem conquistada de patriarca. Com o liberalismo dividido e o conservadorismo unido e armado, não havia alternativa: Ospina Pérez foi eleito.

Laureano Gómez preparou‑se desde então para lhe suceder com o recurso de utilizar as forças oficiais com uma violência em toda a linha. Era outra vez a realidade histórica do século XIX, em que não tivemos paz mas apenas tréguas efémeras entre oito guerras civis gerais e catorze locais, três golpes de quartel e por último a Guerra dos Mil Dias, que deixou uns oitenta mil mortos de ambos os bandos numa população de escassos quatro milhões. Tão simples como isso: era um perfeito programa comum para retroceder cem anos.

O professor Giraldo, já no fim do curso, abriu comigo uma excepção flagrante da qual não consigo deixar de me envergonhar. Preparou‑me um questionário simples para reabilitar a álgebra perdida desde o quarto ano e deixou‑me só no gabinete dos professores com todas as cábulas ao meu alcance. Voltou cheio de ilusões uma hora mais tarde, viu o resultado catastrófico e anulou todas as páginas com uma cruz de cima a baixo e um grunhido feroz: «Esse crânio está podre.» No entanto, nas classificações finais, apareci aprovado em álgebra, mas tive a decência de não agradecer ao professor por ter contrariado os seus princípios e obrigações em meu favor.

Na véspera do último exame final daquele ano, Guillermo López Guerra e eu tivemos um infeliz incidente com o professor Gonzalo Ocampo por causa de uma altercação de bêbados. José Palencia tinha‑nos convidado para estudar no seu quarto de hotel, que era uma jóia colonial com uma vista idílica sobre o parque florido e a catedral ao fundo. Como só nos faltava o último exame, ficámos até à noite e voltámos para a escola passando pelas nossas tascas de pobres. O professor Ocampo, no seu turno como prefeito de disciplina, repreendeu‑nos pela hora e pelo nosso mau estado, e ambos em coro o cobrimos de impropérios. A sua reacção enfurecida e os nossos gritos alvoroçaram o dormitório.

A decisão do corpo de professores foi que López Guerra e eu não podíamos apresentar‑nos ao único exame final que faltava. Quer dizer: pelo menos naquele ano não seríamos bacharéis. Nunca conseguimos averiguar como foram as negociações secretas entre os professores, porque cerraram fileiras com uma solidariedade inquebrantável. O reitor Espitia deve ter‑se encarregado do problema por sua conta e risco e conseguiu que nos apresentássemos a exame no Ministério da Educação, em Bogotá. Assim se fez. O próprio Espitia nos acompanhou e esteve connosco enquanto respondíamos ao exame escrito, que foi ali mesmo classificado. E muito bem. Deve ter sido uma situação interna muito complexa, porque Ocampo não assistiu à sessão solene, talvez pela fácil solução de Espitia e pelas nossas excelentes classificações. E afinal pelos meus resultados pessoais, que me mereceram como prémio especial um livro inesquecível: Vidas dos Filósofos Ilustres, de Diógenes Laércio. Não só era mais do que os meus pais esperavam, como além disso fui o primeiro do grupo daquele ano, embora os meus companheiros de classe ‑ e eu mais do que ninguém ‑ soubéssemos que não era o melhor.

 

Nunca imaginei que nove meses depois do grau de bacharel seria publicado o meu primeiro conto no suplemento literário «Fin de Semana» de El Espectador de Bogotá, o mais interessante e severo da época. Quarenta e dois dias mais tarde foi publicado o segundo. No entanto, o mais surpreendente para mim foi uma nota de consagração do subdirector do jornal e director do suplemento literário, Eduardo Zalamea Borda, Ulises, que era o crítico colombiano mais lúcido da época e o mais atento ao aparecimento de novos valores.

Foi um processo tão inesperado que não é fácil contar. Tinha‑me matriculado no princípio daquele ano na Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Bogotá, como estava combinado com os meus pais. Vivia mesmo no centro da cidade, numa pensão da Calle Florián, ocupada na sua maioria por estudantes da costa atlântica. Nas tardes livres, em vez de trabalhar para viver, ficava a ler no meu quarto ou nos cafés que o permitiam. Eram livros de sorte e azar, e dependiam mais da minha sorte do que dos meus azares, pois os amigos que podiam comprá‑los emprestavam‑mos com prazos tão apertados que passava noites em claro para os devolver a tempo. Mas, ao contrário dos que li no liceu de Zipaquirá, que já mereciam estar num mausoléu de autores consagrados, estes líamo‑los como pão quente, recém traduzidos e impressos em Buenos Aires depois da longa interrupção editorial da Segunda Guerra Mundial. Assim descobri para sorte minha os já muito descobertos Jorge Luis Borges, D. H. Lawrence e Aldous Huxley, Graham Greene e Chesterton, William Irish e Katherine Mansfield e muitos mais.

Víamos estas novidades nas montras inatingíveis das livrarias, mas alguns exemplares circulavam pelos cafés de estudantes, que eram centros activos de divulgação cultural entre universitários da província. Muitos tinham os seus lugares reservados ano após ano, e ali recebiam o correio e até os vales postais. Alguns favores dos donos, ou dos seus empregados de confiança, foram decisivos para salvar muitas carreiras universitárias. Numerosos profissionais do país podiam dever‑lhes mais a eles do que aos seus tutores invisíveis.

Eu preferia El Molino, o café dos poetas mais velhos, apenas a uns duzentos metros da minha pensão e na esquina crucial da Avenida Jiménez de Quesada com a Carrera Séptima. Não permitiam estudantes de mesa fixa, mas tínhamos a certeza de aprender mais e melhor do que nos livros de texto com as conversas literárias que ouvíamos acaçapados nas mesas próximas. Era um espaço enorme e bem arranjado ao estilo espanhol e cujas paredes tinham sido decoradas pelo pintor Santiago Martínez Delgado com episódios da batalha de D. Quixote contra os moinhos de vento. Embora não tivesse lugar reservado, arranjei sempre maneira de que os criados me colocassem o mais perto possível do grande mestre León de Greiff ‑ barbudo, resmungão, encantador ‑ que começava a sua tertúlia ao entardecer com alguns dos escritores mais famosos do momento e acabava à meia‑noite afogado em álcoois de má morte com os seus alunos de xadrez. Foram muito poucos os nomes grandes das artes e das letras do país que não passaram por aquelas mesas e nós fazíamo‑nos de mortos na nossa para não perdermos nem uma das suas palavras. Embora costumassem falar mais de mulheres e de intrigas políticas do que das suas artes e ofícios, diziam sempre qualquer coisa de novo para aprender. Os mais assíduos éramos os da costa atlântica, não tão unidos pelas conspirações caribenhas contra os Cachaços como pelo vício dos livros. Jorge Álvaro Espinosa, um estudante de Direito que me ensinara a navegar na Bíblia e me fez aprender de cor os nomes completos dos companheiros de Job, colocou‑me um dia em cima da mesa um calhamaço intimidante e sentenciou com a sua autoridade de bispo:

‑ Esta é a outra Bíblia.

Era, claro, o Ulisses de James Joyce, que li aos bocados e aos tropeções até que a paciência não me chegou para mais. Foi uma temeridade prematura. Anos mais tarde, já adulto domesticado, entreguei‑me à tarefa de relê‑lo a sério e não só foi a descoberta de um mundo próprio de que nunca suspeitei dentro de mim, como também uma ajuda técnica inapreciável para a liberdade da linguagem, o manejo do tempo e as estruturas dos meus livros.

Um dos meus companheiros de quarto era Domingo Manuel Vega, um estudante de Medicina que já era meu amigo desde Sucre e partilhava comigo a voracidade da leitura. O outro era o meu primo Nicolás Ricardo, o filho mais velho do meu tio Juan de Dios, que mantinha em mim vivas as virtudes da família. Vega chegou uma noite com três livros que acabara de comprar e emprestou‑me um ao acaso, como fazia com frequência para me ajudar a dormir. Mas dessa vez conseguiu de facto o contrário: nunca mais tornei a dormir com a serenidade de antes. O livro era A Metamorfose, de Franz Kafka, na falsa tradução de Borges publicada pela editora Losada, de Buenos Aires, que definiu um novo caminho para a minha vida desde a primeira linha e que hoje é um dos grandes monumentos da literatura universal: «Ao despertar Gregorio Samsa uma manhã, depois de um sonho intranquilo, encontrou‑se na sua cama transformado num monstruoso insecto.» Eram livros misteriosos, cujos desfiladeiros não eram apenas diferentes como muitas vezes contrários a tudo o que conhecia até então. Não era necessário demonstrar os factos: bastava que o autor o tivesse escrito para que fosse verdade, sem mais provas do que o poder do seu talento e a autoridade da sua voz. Era de novo Xerazade, mas não no seu mundo milenar em que tudo era possível, mas noutro mundo irremediável em que já tudo se tinha perdido.

Ao terminar a leitura de A Metamorfose ficaram‑me as ânsias irresistíveis de viver naquele paraíso alheio. O novo dia surpreendeu‑me na máquina portátil que o próprio Domingo Manuel Vega me emprestava, para tentar algo que se parecesse com o pobre burocrata de Kafka transformado num escaravelho enorme. Nos dias seguintes não fui à Universidade com receio que se quebrasse o feitiço e continuei a suar gotas de inveja até que Eduardo Zalamea Borda publicou nas suas páginas uma nota desconsolada, na qual lamentava que a nova geração de escritores colombianos carecesse de nomes para recordar e que nada se vislumbrasse no futuro que pudesse remediar isso. Não sei com que direito me senti aludido em nome da minha geração pelo desafio daquela nota e retomei o conto abandonado para tentar um desagravo. Elaborei a ideia do argumento do cadáver consciente de A Metamorfose mas aliviado dos seus falsos mistérios e preconceitos oncológicos.

De qualquer forma, sentia‑me tão inseguro que não me atrevi a falar dele com nenhum dos meus companheiros de mesa. Nem sequer com Gonzalo Mallarino, meu condiscípulo da Faculdade de Direito, que era o leitor único das prosas líricas que eu escrevia para ultrapassar o tédio das aulas. Reli e corrigi o meu conto até ao cansaço e, por último, escrevi uma nota pessoal para Eduardo Zalamea ‑ que nunca tinha visto ‑ e da qual não recordo nem uma letra. Pus tudo dentro de um sobrescrito e levei‑o em pessoa à recepção de El Espectador. O porteiro autorizou‑me a subir ao segundo andar para entregar a carta ao próprio Zalamea em corpo e alma, mas a simples ideia me paralisou. Deixei o sobrescrito na mesa do porteiro e fugi.

Isto tinha sido numa terça‑feira e não me inquietava nenhum palpite sobre a sorte do meu conto, mas estava certo de que em caso de ser publicado não seria muito depressa. Entretanto, vagueei e divaguei de café em café durante duas semanas para disfarçar a ansiedade dos sábados à tarde, até 13 de Setembro, quando entrei em El Molino e dei de caras com o título do meu conto a toda a largura de El Espectador acabado de sair: «A terceira resignação.» (O conto «A terceira resignação» foi publicado em tradução portuguesa na colectânea Olhos de Cão Azul. (N. T.))

A minha primeira reacção foi a certeza arrasadora de que não tinha os cinco centavos para comprar o jornal. Este era o símbolo mais explícito da pobreza, porque muitas coisas básicas da vida quotidiana, além do jornal, custavam cinco centavos: o eléctrico, o telefone público, a chávena de café, o engraxar os sapatos. Lancei‑me à rua sem protecção contra a chuvinha imperturbável, mas não encontrei nos cafés próximos nenhum conhecido que me desse uma moeda por caridade. Também não encontrei ninguém na pensão à hora morta do sábado, salvo a dona, que era o mesmo que ninguém, porque lhe estava a dever setecentas e vinte vezes cinco centavos por dois meses de cama e estada. Quando regressei à rua, disposto a qualquer coisa, encontrei um homem da Divina Providência que saiu de um táxi com El Espectador na mão e pedi‑lhe com frontalidade que mo desse.

Assim pude ler o meu primeiro conto em letra de forma, com uma ilustração de Hernán Merino, o desenhador oficial do jornal. Li‑o escondido no meu quarto, com o coração desembestado e de um só fôlego. Em cada linha ia descobrindo o poder demolidor da letra impressa, pois o que tinha construído com tanto amor e dor como uma paródia domesticada de um génio universal, revelou‑se‑me então como um monólogo arrevesado e inconsistente, mantido com dificuldade por três ou quatro frases consoladoras. Tiveram que passar quase vinte anos até que me atrevesse a lê‑lo pela segunda vez e o meu juízo de então ‑ apenas moderado pela compaixão ‑ foi muito menos complacente.

O mais difícil foi a avalanche de amigos radiantes que me invadiram o quarto com exemplares do jornal e elogios desmesurados sobre um conto que de certeza não tinham entendido. Entre os meus companheiros de Universidade, uns apreciaram‑no, outros compreenderam‑no menos, outros com mais razões não passaram da quarta linha, mas Gonzalo Mallarino, cuja avaliação literária não me era fácil pôr em dúvida, aprovou‑o sem reservas.

A minha maior ansiedade era pelo veredicto de Jorge Álvaro Espinosa, cuja navalha crítica era a mais temível, mesmo para além do nosso círculo. Sentia‑me num estado de espírito contraditório: queria vê‑lo de imediato para resolver de uma vez a incerteza, mas ao mesmo tempo aterrava‑me a ideia de o enfrentar. Desapareceu até terça‑feira, o que não era raro num leitor insaciável, e quando reapareceu no El Molino não começou por me falar do conto mas da minha audácia.

‑ Suponho que te dás conta da encrenca em que te meteste ‑ disse, fixando nos meus olhos os seus verdes olhos de cobra-real.

‑ Agora estás na montra dos escritores reconhecidos e tens muito que fazer para o mereceres.

Fiquei petrificado pela única opinião que podia impressionar‑me tanto como a de Ulises. Mas antes dele acabar já eu decidira avançar com a que considerava e continuei a considerar como a verdade:

‑ Esse conto é uma merda.

Ele replicou‑me com um domínio inalterável que ainda não podia dizer nada porque mal tinha tido tempo para uma leitura em diagonal. Mas explicou‑me que, mesmo que fosse mau como eu dizia, não seria tanto que valesse a pena sacrificar a oportunidade de ouro que a vida me estava a oferecer.

‑ Em todo o caso, esse conto já pertence ao passado ‑ concluiu. ‑ O importante agora é o próximo.

Deixou‑me esmagado. Cometi o desatino de tentar arranjar argumentos contra, até me convencer de que não ia ouvir um conselho mais inteligente do que o seu. Alargou‑se na sua ideia fixa de que primeiro era preciso conceber o conto e depois o estilo, mas que um dependia do outro numa servidão recíproca que era a varinha mágica dos clássicos. Entreteve‑me um pouco com a sua opinião tantas vezes repetida de que me fazia falta uma leitura a fundo e despreocupada dos gregos, e não apenas de Homero, o único que eu lera por obrigação no bacharelato. Prometi‑lho e quis ouvir outros nomes, mas ele mudou de assunto para o de Os Moedeiros Falsos, de André Gide, que lera naquele fim‑de‑semana. Nunca tive coragem de lhe dizer que talvez a nossa conversa me tivesse resolvido a vida. Passei a noite em claro a tomar notas para um próximo conto sem os meandros do primeiro.

Suspeitava de que os que me falavam dele não estavam tão impressionados pelo conto ‑ que talvez não tivessem lido e, com certeza, não tinham entendido ‑ como por ter sido publicado com um destaque inusitado numa página tão importante. Para começar, dei conta de que os meus dois grandes defeitos eram os dois maiores: a desonestidade da escrita e o desconhecimento do coração humano. E isso era mais do que evidente no meu primeiro conto, que foi uma confusa meditação abstracta, agravada pelo abuso de sentimentos inventados.

Procurando na minha memória situações da vida real para o segundo, recordei que uma das mulheres mais belas que conheci em pequeno me disse que queria estar dentro do gato de uma rara formosura que acariciava no seu regaço. Perguntei‑lhe porquê e respondeu‑me: «Porque é mais belo do que eu.» Então tive um ponto de apoio para o segundo conto e um título atraente: «Eva está dentro do seu gato.» (O conto «Eva está dentro do seu gato» foi publicado em tradução portuguesa na colectânea Olhos de Cão Azul. (N. T.) O resto, como no conto anterior, foi inventado do nada e por isso ‑ como gostávamos de dizer então ‑ ambos tinham dentro o germe da sua própria destruição.

Este conto foi publicado com o mesmo destaque do primeiro no sábado, 25 de Outubro de 1947, ilustrado por uma estrela ascendente no céu do Caribe: o pintor Enrique Grau. Chamou‑me a atenção que os meus amigos o recebessem como algo de rotina num escritor consagrado. Eu, pelo contrário, sofri com os erros e duvidei dos acertos, mas consegui manter a alma desperta. O choque grande veio uns dias mais tarde, com uma nota publicada por Eduardo Zalamea, com o pseudónimo habitual de Ulises, na sua coluna diária de El Espectador. Foi direito ao assunto: «Os leitores do "Fin de Semana", suplemento literário deste jornal, terão notado o aparecimento de um talento novo, original, de vigorosa personalidade.» E, mais adiante: «Dentro da imaginação pode acontecer tudo, mas saber mostrar com naturalidade, com simplicidade e sem espaventos a pérola que se lhe consegue arrancar não é coisa que possam fazer todos os rapazes de vinte anos que iniciam as suas relações com as letras.» E terminava sem reticências: «Com Garcia Márquez nasce um novo e notável escritor.»

A nota ‑ claro! ‑ foi um impacto de felicidade, mas ao mesmo tempo consternou‑me que Zalamea não tivesse deixado a si próprio qualquer caminho de regresso. Já tudo estava consumado e eu devia interpretar a sua generosidade como um apelo à minha consciência, e para o resto da minha vida. A nota revelou também que Ulises tinha descoberto a minha identidade por um dos seus companheiros de redacção. Nessa noite, soube que tinha sido por Gonzalo González, um primo próximo dos meus primos mais próximos, que escreveu durante quinze anos no mesmo diário, com o pseudónimo Gog e uma paixão inalterável, uma coluna para responder a perguntas dos leitores, a cinco metros da secretária de Eduardo Zalamea. Por sorte, este não me procurou, nem eu o procurei a ele. Vi‑o uma vez na mesa do poeta De Greiff e conheci a sua voz e a sua tosse áspera de fumador impenitente, e vi‑o de perto em vários actos culturais, mas ninguém nos apresentou. Uns porque não nos conheciam e outros porque não lhes parecia possível que não nos conhecêssemos.

É difícil imaginar até que ponto se vivia então à sombra da poesia. Era uma paixão frenética, outra maneira de ser, uma bola de fogo que andava a seu bel‑prazer por todos os lados. Abríamos o jornal, mesmo na secção económica ou na página judicial, ou líamos as borras do café no fundo da chávena, e ali nos esperava a poesia para tomar conta dos nossos sonhos. De modo que para nós, os aborígenes de todas as províncias, Bogotá era a capital do país e a sede do governo, mas sobretudo era a cidade onde viviam os poetas. Não só acreditávamos na poesia, e morríamos por ela, como sabíamos com certeza ‑ como escreveu Luis Cardoza y Aragón ‑ que «a poesia é a única prova concreta da existência do homem».

O mundo era dos poetas. As suas novidades eram mais importantes para a minha geração do que as notícias políticas cada vez mais deprimentes. A poesia colombiana tinha saído do século XIX iluminada pela estrela solitária de José Asunción Silva, o romântico sublime que aos trinta e um anos disparou um tiro de pistola no círculo que o seu médico lhe pintara com um hissope de iodo no sítio do coração. Não nasci a tempo para conhecer Rafael Pombo ou Eduardo Castillo ‑ o grande lírico ‑ que os amigos descreviam como um fantasma fugido do túmulo ao entardecer, com uma capa de duas voltas, uma pele esverdeada pela morfina e um perfil de abutre: a representação física dos poetas malditos. Uma tarde, passei de eléctrico em frente de uma grande mansão da Carrera Séptima e vi no portão o homem mais impressionante que tinha visto em toda a minha vida, com um fato impecável, um chapéu inglês, uns óculos negros para os seus olhos sem luz e um capote da savana. Era o poeta Alberto Angel Montoya, um romântico um pouco aparatoso que publicou alguns dos bons poemas do seu tempo. Para a minha geração eram já fantasmas do passado, salvo o mestre León de Greiff, que espiei durante anos no café El Molino.

Nenhum deles conseguiu roçar sequer a glória de Guillermo Valência, um aristocrata de Popayán que antes dos trinta anos se impusera como o sumo pontífice da geração do Centenário, assim chamada por ter coincidido em 1910 com o primeiro século da independência nacional. Os seus contemporâneos Eduardo Castillo e Porfirio Barba Jacob, dois grandes poetas de estirpe romântica, não obtiveram a justiça crítica que mereciam de sobra num país encandeado pela retórica de mármore de Valência, cuja sombra mítica fechou o caminho a três gerações. A imediata, surgida em 1925 com o nome e os ímpetos de «Los Nuevos», contava com exemplares magníficos como Rafael Maya e outra vez León de Greiff, que não foram reconhecidos em toda a sua magnitude enquanto Valência esteve no seu trono. Este desfrutara até então de uma glória peculiar que o levou pelo ar até mesmo às portas da presidência da República.

Os únicos que se atreveram a sair‑lhe ao caminho a meio do século foram os do grupo «Piedra y Cielo» com os seus cadernos juvenis, que em última instância apenas tinham em comum a virtude de não serem valencistas: Eduardo Carranza, Arturo Camacho Ramírez, Aurélio Arturo e o próprio Jorge Rojas, que financiara a publicação dos seus poemas. Nem todos eram iguais em forma nem em inspiração, mas em conjunto fizeram estremecer as ruínas arqueológicas dos parnasianos e despertaram para a vida uma nova poesia do coração, com ressonâncias múltiplas de Juan Ramón Jiménez, Rubén Darío, Garcia Lorca, Pablo Neruda ou Vicente Huidobro. A aceitação pública não foi imediata, nem eles próprios pareceram ter consciência de serem vistos como enviados da Divina Providência para varrer a casa da poesia. No entanto, D. Baldomero Sanín Cano, o ensaísta e crítico mais respeitável daqueles anos, apressou‑se a escrever um ensaio categórico para interceptar qualquer tentativa contra Valência. A sua proverbial contenção explodiu. Entre muitas afirmações definitivas, escreveu que Valência se tinha «apoderado da ciência antiga para conhecer a alma dos tempos remotos no passado e congeminava sobre os textos contemporâneos para surpreender, por analogia, toda a alma do homem». Consagrou‑o uma vez mais como um poeta sem tempo nem fronteiras e colocou‑o entre aqueles que «como Lucrécio, Dante, Goethe, conservaram o corpo para salvar a alma». Mais do que um deve ter pensado então que, com amigos como este, Valência não precisava de inimigos.

Eduardo Carranza respondeu a Sanín Cano com um artigo em que o título dizia tudo: «Un caso de bardolatría.» Foi a primeira e certeira investida para situar Valência nos seus limites próprios e reduzir‑lhe o pedestal ao seu lugar e ao seu tamanho. Acusou‑o de não ter acendido na Colômbia uma chama do espírito mas uma ortopedia de palavras e definiu os seus versos como os de um artista gongórico, frígido e habilidoso, e um cinzelador consciencioso. A sua conclusão foi uma pergunta a si próprio que na essência ficou como um dos seus bons poemas: «Se a poesia não serve para acelerar‑me o sangue, para abrir‑me de repente janelas sobre o misterioso, para ajudar‑me a descobrir o mundo, para acompanhar este desolado coração na solidão e no amor, na festa e no desamor, para que me serve a poesia?» E terminava: «Para mim ‑ blasfemo que sou! ‑ Valência é apenas um bom poeta.»

A publicação de «Un caso de bardolatría» em «Lecturas Dominicales» de El Tiempo, que nessa época tinha uma grande circulação, causou uma perturbação social. Teve além disso o resultado prodigioso de um exame a fundo da poesia na Colômbia desde as suas origens, que talvez não tivesse sido feito com seriedade desde que D. Juan de Castelhanos escreveu os cento e cinquenta mil hendecassílabos da sua Elegias de varones ilustres de índias.

A poesia foi desde então a céu aberto. Não só para «Los Nuevos», que ficaram na moda, mas para outros que surgiram depois e disputavam o seu lugar à cotovelada. A poesia chegou a ser tão popular que hoje não é possível entender até que ponto se vivia cada número de «Lecturas Dominicales», dirigido por Carranza, ou de Sábado, nessa altura dirigida por Carlos Martin, nosso antigo reitor do liceu. Além da sua poesia, Carranza impôs com a sua glória um poeta às seis da tarde na Carrera Séptima de Bogotá, que era como passear numa montra de dez quarteirões com um livro na mão apoiada sobre o coração. Foi um modelo da sua geração, que fez escola na seguinte, cada uma à sua maneira.

A meados do ano chegou a Bogotá o poeta Pablo Neruda, convencido de que a poesia tinha que ser uma arma política. Nas suas tertúlias bogotanas tomou conhecimento do tipo de reaccionário que era Laureano Gómez e, à laia de despedida, quase ao correr da pena, escreveu em sua honra três sonetos punitivos, cuja primeira quadra dava o tom de todos:

 

Adeus, Laureano nunca laureado,

sátrapa triste e rei adventício.

Adeus, imperador de quarto andar,

antes de tempo e pago sem cessar.

 

Apesar das suas simpatias de direita e da sua amizade pessoal com o próprio Laureano Gómez, Carranza deu destaque aos sonetos nas suas páginas literárias, mais como uma primícia jornalística do que como uma proclamação política. Mas o repúdio foi quase unânime. Sobretudo pelo contra‑senso de os publicar no jornal de um liberal dos quatro costados, como o ex‑presidente Eduardo Santos, tão contrário ao pensamento retrógrado de Laureano Gómez como ao revolucionário de Pablo Neruda. A reacção mais ruidosa foi a dos que não toleravam que um estrangeiro se permitisse semelhante abuso. O simples facto de que três sonetos casuísticos e mais engenhosos do que poéticos pudessem provocar tal efervescência foi um sintoma revelador do poder da poesia naqueles anos. De qualquer forma, o próprio Laureano Gómez, já como Presidente da República, e o general Gustavo Rojas Pinilla na sua altura, impediram depois a entrada de Neruda na Colômbia, mas esteve em Cartagena e Buenaventura várias vezes, em escalas marítimas entre o Chile e a Europa. Para os amigos colombianos a quem anunciava a sua passagem, cada escala de ida e de volta era uma festa das grandes.

Quando entrei na Faculdade de Direito, em Fevereiro de 1947, a minha identificação com o grupo «Piedra y Cielo» permanecia incólume. Embora tivesse conhecido os mais notáveis na casa de Carlos Martin, em Zipaquirá, não tive a audácia de o recordar nem sequer a Carranza, que era o mais abordável. Em certa ocasião, encontrei‑o tão perto e a descoberto na Librería Grancolombia que lhe fiz um cumprimento de admirador. Correspondeu‑me com amabilidade mas não me reconheceu. Pelo contrário, noutra ocasião, o mestre León de Greiff levantou‑se da sua mesa em El Molino para me cumprimentar na minha, quando alguém lhe contou que tinha publicado contos em El Espectador, e prometeu lê‑los. Por infelicidade, poucas semanas depois ocorreu a revolta popular de 9 de Abril e tive que abandonar a cidade ainda fumegante. Quando voltei, passados quatro anos, El Molino tinha desaparecido sob as cinzas e o mestre mudara‑se com armas e bagagens e a sua corte de amigos para o Café El Automático, onde nos tornámos amigos de livros e aguardente e me ensinou a mover sem arte nem sorte as peças do xadrez.

Parecia incompreensível aos meus amigos da primeira fase que me empenhasse em escrever contos, e eu próprio não o entendia num país onde a arte maior era a poesia. Soube‑o desde muito pequeno, pelo êxito de Miséria Humana, um poema popular que se vendia em folhetos de papel de embrulho ou recitado por dois centavos nos mercados e cemitérios das aldeias do Caribe. O romance, pelo contrário, era raro. Desde Maria, de Jorge Isaacs, tinham sido escritos muitos sem grande ressonância. José Maria Vargas Vila tinha sido um fenómeno insólito, com cinquenta e dois romances directos ao coração dos pobres. Viajante incansável, o seu excesso de bagagem eram os seus próprios livros, que eram exibidos e se esgotavam como pão na portaria dos hotéis da América Latina e de Espanha. Aura e Las violetas, o seu romance estelar, quebrou mais corações do que muitos outros melhores de contemporâneos seus.

Os únicos que tinham sobrevivido ao seu tempo tinham sido El carnero, escrito entre 1600 e 1638 em plena Colónia pelo espanhol Juan Rodríguez Freyle, um relato tão exagerado e livre da história de Nueva Granada, que acabou por ser uma obra‑prima da ficção; Maria, de Jorge Isaacs, em 1867; La vorágine, de José Eustasio Rivera, em 1924; La marquesa de Yolombó, de Tomás Carrasquilla, em 1926, e Cuatro anos a bordo de mi mismo, de Eduardo Zalamea, em 1934. Nenhum deles tinha conseguido vislumbrar a glória que tantos poetas tinham com justiça ou sem ela. Pelo contrário, o conto ‑ com um antecedente tão insigne como o próprio Carrasquilla, o grande escritor de Antioquia ‑ naufragara numa retórica escarpada e sem alma.

A prova de que a minha vocação era apenas de narrador foi o caudal de versos que deixei no liceu, sem assinatura ou com pseudónimos, porque nunca tive intenção de morrer por eles. Mais ainda: quando publiquei os primeiros contos em El Espectador, muitos disputavam o género, mas sem direitos suficientes. Hoje penso que isto se podia entender porque a vida na Colômbia, sob muitos pontos de vista, continuava no século XIX. Sobretudo na Bogotá lúgubre dos anos 40, ainda nostálgica da Colónia, quando me matriculei sem vocação nem vontade na Faculdade de Direito da Universidade Nacional.

Para comprová‑lo, bastava mergulhar no centro nevrálgico da Carrera Séptima com a Avenida Jiménez de Quesada, baptizado pelo exagero bogotano como a melhor esquina do mundo. Quando o relógio público da torre de San Francisco dava o meio‑dia, os homens paravam na rua ou interrompiam a conversa no café para acertar os relógios com a hora oficial da igreja. Em redor desse cruzamento, e nos quarteirões adjacentes, ficavam os lugares mais concorridos onde marcavam encontro duas vezes por dia os comerciantes, os políticos, os jornalistas ‑ e os poetas, como é evidente ‑, todos vestidos de preto da cabeça aos pés, como o Rei Nosso Senhor D. Felipe IV.

Nos meus tempos de estudante, ainda se lia naquele lugar um jornal que talvez tivesse poucos antecedentes no mundo. Era um quadro negro como o das escolas, exibido na varanda de El Espectador ao meio‑dia e às cinco da tarde, com as últimas notícias escritas com giz. Nesses momentos, a passagem dos eléctricos tornava‑se difícil, se não impossível, pelo obstáculo das multidões que esperavam impacientes. Aqueles leitores de rua tinham além disso a possibilidade de aplaudir com uma ovação cerrada as notícias que lhes pareciam boas e assobiar ou atirar pedras ao quadro quando não lhes agradavam. Era uma forma de participação democrática instantânea na qual El Espectador tinha um termómetro mais eficaz do que qualquer outro para medir a febre à opinião pública.

Ainda não existia a televisão e havia noticiários de rádio muito completos mas a horas fixas, de maneira que antes de irem almoçar ou jantar, as pessoas ficavam à espera do aparecimento do quadro para chegarem a casa com uma versão mais completa do mundo. Ali se soube e se seguiu com um rigor exemplar e inesquecível o voo solitário do capitão Concha Venegas entre Lima e Bogotá. Quando eram notícias como essas, o quadro era mudado várias vezes para além das horas previstas a fim de alimentar a voracidade do público com boletins extraordinários. Nenhum dos leitores de rua daquele jornal único sabia que o inventor e escravo da ideia se chamava José Salgar, um redactor primíparo de El Espectador aos vinte anos, que chegou a ser um jornalista dos grandes sem ter passado além da escola primária.

A instituição característica de Bogotá eram os cafés do centro, nos quais mais tarde ou mais cedo confluía a vida de todo o país. Cada um desfrutou no seu momento de uma especialidade ‑ política, literária, financeira ‑ de modo que grande parte da história da Colômbia naqueles anos teve alguma relação com eles. Cada pessoa tinha o seu favorito, como um sinal infalível de identidade.

Escritores e políticos da primeira metade do século ‑ incluindo algum presidente da República ‑ tinham estudado nos cafés da Calle Catorce, em frente do Colégio del Rosário. O Windsor, que fez a sua época de políticos famosos, era um dos mais duradoiros e foi refúgio do grande caricaturista Ricardo Rendón, que fez ali a sua grande obra e anos depois perfurou o crânio genial com chumbo de revólver nas traseiras da Gran Via.

O reverso de tantas das minhas tardes de tédio foi a descoberta casual de uma sala de música aberta ao público na Biblioteca Nacional. Transformei‑a no meu refúgio preferido para ler amparado pelos grandes compositores, cujas obras solicitávamos por escrito a uma empregada encantadora. Entre os visitantes habituais descobríamos afinidades de toda a índole devido ao tipo de música que preferíamos. Assim, conheci a maioria dos meus autores preferidos através dos gostos alheios, abundantes e variados, e detestei Chopin durante muitos anos por culpa de um melómano implacável que o solicitava quase todos os dias e sem misericórdia.

Uma tarde encontrei a sala deserta porque o sistema se avariara, mas a directora permitiu que me sentasse a ler em silêncio. A princípio senti‑me num remanso de paz, mas ao fim de duas horas não tinha conseguido concentrar‑me por causa de umas ondas de ansiedade que me perturbavam a leitura e me faziam sentir alheado de mim mesmo. Demorei vários dias a perceber que o remédio para a minha ansiedade não era o silêncio da sala mas o ambiente da música, que desde então se transformou para mim numa paixão quase secreta e para sempre.

Nas tardes dos domingos, quando fechavam a sala de música, a minha diversão mais frutífera era viajar nos eléctricos de vidros azuis, que por cinco centavos giravam sem cessar desde a Plaza de Bolívar até à Avenida Chile, e passar neles aquelas tardes de adolescência que pareciam arrastar uma cauda interminável de outros muitos domingos perdidos. A única coisa que fazia durante aquela viagem de círculos viciosos era ler livros de versos, talvez um quarteirão da cidade por cada quadra (Em espanhol, é possível o jogo feito entre «cuadra» (quarteirão) da cidade e «cuadra» (quadra) de versos, que em português perde o sentido. (N. T.)), até que se acendiam as primeiras luzes na chuvinha perpétua. Percorria então os cafés taciturnos dos bairros velhos em busca de alguém que me fizesse a caridade de conversar comigo sobre os poemas que acabava de ler. Às vezes encontrava ‑ sempre um homem ‑ e ficávamos até depois da meia‑noite nalguma pocilga de má morte, a acabar as beatas dos cigarros que nós próprios tínhamos fumado e a falar de poesia enquanto no resto do mundo a humanidade inteira fazia amor.

Naquele tempo toda a gente era jovem, mas encontrávamos sempre outros que eram mais jovens do que nós. As gerações empurravam‑se umas às outras, sobretudo entre os poetas e os criminosos, e mal um tinha acabado de fazer qualquer coisa, logo outro se perfilava ameaçando fazê‑la melhor.

Às vezes encontro entre papéis velhos algumas das fotografias que nos tiravam os fotógrafos de rua no átrio da igreja de San Francisco, e não posso reprimir um frémito de compaixão, porque não parecem fotografias nossas mas dos filhos de nós mesmos, numa cidade de portas fechadas onde nada era fácil e muito menos sobreviver sem amor nas tardes de domingo. Ali conheci por acaso o meu tio José Maria Valdeblánquez, quando julguei ver o meu avô abrindo passagem com o guarda‑chuva entre a multidão dominical que saía da missa. A sua indumentária não mascarava um ápice da sua identidade: fato completo de tecido preto, camisa branca com colarinho de celulóide e gravata de riscas diagonais, colete com corrente de relógio, chapéu duro e óculos dourados. Foi tal a minha impressão que lhe cortei a passagem sem dar conta. Ele levantou o guarda‑chuva, ameaçador, e enfrentou‑me a um palmo dos olhos:

‑ Posso passar?

‑ Desculpe ‑ disse, envergonhado. ‑ É que o confundi com o meu avô.

Ele continuou a observar‑me com o seu olhar de astrónomo e perguntou‑me com maldosa ironia:

‑ E pode‑se saber quem é esse avô tão famoso? Atrapalhado com a minha própria impertinência, disse‑lhe o nome completo. Ele baixou então o guarda‑chuva e sorriu, bem disposto.

‑ Pois com razão somos parecidos ‑ disse. ‑ Sou o seu primogénito.

A vida quotidiana era mais suportável na Universidade Nacional. No entanto, não consigo encontrar na memória a realidade daquele tempo porque não creio ter sido estudante de Direito nem um único dia, apesar de as minhas classificações do primeiro ano ‑ o único que terminei em Bogotá ‑ permitirem acreditar o contrário. Ali não havia tempo nem ocasião para estabelecer as relações pessoais que se conseguiam no liceu, e os companheiros de curso dispersavam‑se na cidade quando acabavam as aulas. A minha mais grata surpresa foi encontrar como secretário geral da Faculdade de Direito o escritor Pedro Gómez Valderrama, do qual tinha notícia pelas suas colaborações precoces nas páginas literárias, e que foi um dos meus grandes amigos até à sua morte prematura.

O meu condiscípulo mais assíduo desde o primeiro ano foi Gonzalo Mallarino Botero, o único habituado a acreditar em alguns prodígios da vida que eram verdade embora não fossem certos. Foi ele que me mostrou que a Faculdade de Direito não era tão estéril como eu pensava, pois desde o primeiro dia me tirou da aula de Estatística e Demografia, às sete da manhã, e me desafiou para um duelo pessoal de poesia no café da cidade universitária. Nas horas mortas da manhã, recitava de cor os poemas dos clássicos espanhóis e eu correspondia‑lhe com poemas dos jovens colombianos que tinham aberto fogo contra as rajadas retóricas do século anterior.

Um domingo, convidou‑me para sua casa, onde vivia com a mãe e as irmãs e irmãos, num ambiente de tensões fraternais como as da minha casa paterna. Víctor, o mais velho, era já um homem de teatro a tempo inteiro e um declamador reconhecido no âmbito da língua espanhola. Desde que escapei à tutela dos meus pais, nunca mais voltei a sentir‑me como em minha casa até que conheci Pepa Botero, a mãe dos Mallarino, uma antioquense por desbravar na medula hermética da aristocracia bogotana. Com a sua inteligência natural e fala prodigiosa, tinha a inigualável faculdade de conhecer o lugar exacto em que os palavrões recuperavam a sua estirpe cervantina. Eram tardes inesquecíveis, vendo entardecer sobre a esmeralda sem limites da savana, ao calor do chocolate perfumado e das almojábanas quentes. O que aprendi com Pepa Botero, com o seu linguajar desbragado, com o seu modo de dizer as coisas da vida comum, foi‑me inestimável para uma nova retórica da vida real.

Outros condiscípulos próximos eram Guillermo López Guerra e Álvaro Vidal Varón, que já tinham sido meus cúmplices no liceu de Zipaquirá. No entanto, na Universidade estive mais próximo de Luis Villar Borda e Camilo Torres Restrepo, que faziam com as unhas e por amor à arte o suplemento literário de La Razón, um jornal quase secreto dirigido pelo poeta e jornalista Juan Lozano y Lozano. Nos dias de fecho, ia com eles para a redacção e dava‑lhes uma mão nas emergências de última hora. Algumas vezes me encontrei com o director, cujos sonetos admirava e mais ainda os esboços biográficos de personagens nacionais que publicava na revista Sábado. Ele lembrava‑se por alto da nota de Ulises a meu respeito, mas não lera nenhum conto e escapei‑me do tema porque tinha a certeza de que não lhe agradariam. Desde o primeiro dia me disse ao despedir‑se que as páginas do seu jornal estavam abertas para mim, mas tomei aquilo apenas como uma gentileza bogotana.

No Café Astúrias, Camilo Torres Restrepo e Luis Villar Borda, meus condiscípulos na Faculdade de Direito, apresentaram‑me a Plinio Apuleyo Mendoza, que aos dezasseis anos publicara uma série de prosas líricas, o género que estava na moda imposto no país por Eduardo Carranza a partir das páginas literárias de El Tiempo. Era de pele curtida, com um cabelo retinto e liso que acentuava a sua boa aparência de índio. Apesar da idade, conseguira impor as suas notas no semanário Sábado, fundado pelo seu pai, Plinio Mendoza Neira, antigo ministro da Guerra e um grande jornalista nato que talvez não tenha escrito uma linha completa em toda a sua vida. No entanto, ensinou muitos a escreverem as suas em jornais que fundava com grande aparato e abandonava por altos cargos políticos ou para fundar outras empresas enormes e catastróficas. Não vi o filho mais de duas ou três vezes naquela época, sempre com condiscípulos meus. Impressionou‑me pelo facto de, na sua idade, raciocinar como um velho, mas nunca me teria ocorrido pensar que anos depois íamos partilhar tantas jornadas de jornalismo temerário, pois ainda não me tinha surgido a ideia do jornalismo como ofício e, como ciência, interessava‑me menos do que a do direito.

Na realidade nunca tinha pensado que viesse a interessar‑me, até um daqueles dias, quando Elvira Mendoza, irmã de Plínio, fez à declamadora argentina Berta Singerman uma entrevista de emergência que alterou por completo os meus preconceitos contra o ofício e me revelou uma vocação ignorada. Mais do que uma entrevista clássica de perguntas e respostas ‑ que tantas dúvidas me provocavam e continuam a provocar‑me ‑ foi uma das mais originais publicadas na Colômbia. Anos depois, quando Elvira Mendoza era já uma jornalista internacional consagrada e uma das minhas boas amigas, contou‑me que tinha sido um recurso desesperado para salvar um fracasso.

A chegada de Berta Singerman tinha sido o acontecimento do dia. Elvira ‑ que dirigia a secção feminina da revista Sábado ‑ pediu autorização para lhe fazer uma entrevista e conseguiu‑a com algumas reticências do pai pela sua falta de prática no género. A redacção da Sábado era um local de reunião dos intelectuais mais conhecidos naqueles anos e Elvira pediu‑lhes umas perguntas para o seu questionário, mas ficou à beira do pânico quando teve de enfrentar o desprezo com que Berta Singerman a recebeu na suite presidencial do Hotel Granada.

Desde a primeira pergunta, entreteve‑se a refutá‑las como tontas ou imbecis, sem suspeitar de que por trás de cada uma havia um bom escritor dos tantos que ela conhecia e admirava devido às suas diversas visitas à Colômbia. Elvira, que foi sempre de génio vivo, teve que engolir as lágrimas e suportar aquele desaire sem se ir abaixo. A entrada imprevista do marido de Berta Singerman salvou‑lhe a reportagem, pois foi ele que manobrou a situação com um tacto requintado e bom sentido de humor quando estava prestes a transformar‑se num incidente grave.

Elvira não escreveu o diálogo que tinha previsto com as respostas da diva, fazendo antes a reportagem das suas dificuldades com ela. Aproveitou a intervenção providencial do marido e transformou‑o no verdadeiro protagonista do encontro. Berta Singerman teve uma das suas históricas fúrias quando leu a entrevista. Mas a Sábado era já o semanário mais lido e a sua circulação semanal acelerou a subida até aos cem mil exemplares numa cidade de seiscentos mil habitantes.

O sangue‑frio e o talento com que Elvira Mendoza aproveitou a estupidez de Berta Singerman para revelar a sua verdadeira personalidade pôs‑me a pensar pela primeira vez nas possibilidades da reportagem, não como meio fundamental de informação mas muito mais: como género literário. Não haviam de passar muitos anos sem que o comprovasse na própria carne, até chegar a acreditar, como acredito hoje, mais do que nunca, que romance e reportagem são filhos de uma mesma mãe.

Até então apenas me arriscara com a poesia: versos satíricos na revista do Colégio San José e prosas líricas ou sonetos de amores imaginários, à maneira de «Piedra y Cielo», no único número do jornal do Liceo Nacional. Pouco antes, Cecilia González, minha cúmplice de Zipaquirá, convencera o poeta e ensaísta Daniel Arango a publicar uma cançãozinha escrita por mim, com pseudónimo e em corpo sete, no canto mais escondido do suplemento dominical de El Tiempo. A publicação não me impressionou nem me fez sentir mais poeta do que era. Pelo contrário, com a reportagem de Elvira tomei consciência do jornalista que tinha adormecido no coração e decidi despertá‑lo. Comecei a ler os jornais de outra forma. Camilo Torres e Luis Villar Borda, que concordaram comigo, reiteraram‑me o oferecimento de D. Juan Lozano nas suas páginas de La Razón, mas só me atrevi com uns poemas técnicos que nunca considerei como meus. Propuseram‑me que falasse com Plinio Apuleyo Mendoza para a revista Sábado, mas a minha timidez tutelar avisou‑me que me faltava muito para me arriscar às escuras num ofício novo. No entanto, a minha descoberta teve uma utilidade imediata, pois por esses dias andava perturbado com a má consciência de que tudo o que escrevia, em prosa ou em verso, e inclusive os trabalhos do liceu, eram imitações descaradas de «Piedra y Cielo» e decidi‑me a uma mudança de fundo a partir do meu conto seguinte. A prática acabou por me convencer de que os advérbios de modo terminados em mente são um vício empobrecedor. Comecei assim a castigá‑los onde me saíam ao caminho e cada vez me convencia mais de que aquela obsessão me obrigava a encontrar formas mais ricas e expressivas. Há muito tempo que nos meus livros não há nenhum, salvo nalguma citação textual. Não sei, como é evidente, se os meus tradutores detectaram e contraíram também, por razões do seu ofício, essa paranóia de estilo (Creio que não me escapou nenhum... (N. T.)).

A amizade com Camilo Torres e Villar Borda ultrapassou com rapidez os limites das aulas e da sala de redacção e andávamos mais tempo juntos na rua do que na Universidade.

Ambos ferviam em fogo lento num inconformismo duro devido à situação política e social do país. Embebido nos mistérios da literatura, não tentava sequer compreender as suas análises circulares e as suas premonições sombrias, mas as marcas da sua amizade prevaleceram entre as mais gratas e úteis daqueles anos.

Nas aulas da Universidade, pelo contrário, estava encalhado. Sempre lamentei a minha falta de devoção pelos méritos dos mestres de grandes nomes que preenchiam os nossos tédios. Entre eles, Alfonso López Michelsen, filho do único presidente colombiano reeleito no século XX, e creio que daí vinha a impressão generalizada de que também ele estava predestinado a ser presidente por nascimento, como com efeito foi. Chegava à sua aula de Introdução ao Direito com uma pontualidade irritante e uns esplêndidos casacos de casimira feitos em Londres. Ditava a lição sem olhar para ninguém, com o ar celestial dos míopes inteligentes que parecem andar sempre através dos sonhos alheios. As suas aulas pareciam‑me monólogos de uma só corda, como era para mim qualquer lição que não fosse de poesia, mas o tédio da sua voz tinha a virtude hipnótica de um encantador de serpentes. A sua vasta cultura literária possuía já nessa altura uma base segura e sabia usá‑la por escrito e de viva voz, mas só comecei a apreciá‑la quando voltámos a conhecer‑nos anos depois e a tornarmo‑nos amigos já longe do torpor da cátedra. O seu prestígio de político empedernido nutria‑se do seu encanto pessoal quase mágico e de uma lucidez perigosa para descobrir as segundas intenções das pessoas. Sobretudo daquelas de quem menos gostava. No entanto, a sua virtude mais destacada de homem público foi o seu assombroso poder para criar situações históricas com uma única frase.

Com o tempo, conseguimos uma boa amizade, mas na Universidade não fui o mais assíduo e aplicado e a minha irremediável timidez mantinha uma distância inultrapassável, em especial com aqueles que admirava. Por tudo isto me surpreendeu tanto que me chamasse ao exame final do primeiro ano, apesar das minhas faltas de assistência que me tinham conquistado uma reputação de aluno invisível. Apelei ao meu velho truque de fugir ao tema com recursos retóricos. Apercebi‑me de que o professor tinha consciência da minha astúcia, mas talvez a apreciasse como uma diversão literária. O único tropeção foi que na agonia do exame usei a palavra prescrição e ele apressou‑se a pedir‑me que a definisse para ter a certeza de que eu sabia do que estava a falar.

‑ Prescrever é adquirir uma propriedade pelo decurso do tempo ‑ disse eu.

Perguntou‑me de imediato:

‑ Adquiri‑la ou perdê‑la?

Era o mesmo, mas não lhe respondi por causa da minha insegurança congénita e creio que foi uma das suas célebres piadas de sobremesa, porque na classificação não me cobrou a dívida. Anos depois, comentei com ele o incidente e não se lembrava, como é óbvio, mas nessa altura nem ele nem eu estávamos certos sequer de que o episódio fosse exacto.

Ambos encontrávamos na literatura um bom remanso para esquecermos a política e os mistérios da prescrição e, em troca, descobríamos livros surpreendentes e escritores esquecidos em conversas infinitas que às vezes acabaram por arruinar visitas e exasperar as nossas esposas. A minha mãe tinha‑me convencido de que éramos parentes, e assim era. No entanto, melhor do que qualquer vínculo extraviado, identificava‑nos a nossa paixão comum pelos cantos vallenatos.

Outro parente casual, por parte do pai, era Carlos H. Pareja, professor de Economia Política e dono da Librería Grancolombia, favorita dos estudantes pelo bom hábito de exibir as novidades de grandes autores em mesas descobertas e sem vigilância. Até nós, seus próprios alunos, invadíamos o local nos descuidos do entardecer e escamoteávamos os livros por artes digitais, de acordo com o código escolar de que roubar livros é delito mas não pecado. Não por virtude mas por medo físico, o meu papel nos assaltos limitava‑se a proteger a retaguarda dos mais hábeis, com a condição de que, além dos livros para eles, levassem alguns indicados por mim. Uma tarde, um dos meus cúmplices acabava de roubar La ciudad sin Laura, de Francisco Luis Bernárdez, quando senti uma garra feroz no meu ombro e uma voz de sargento:

‑ Até que enfim, carago!

Voltei‑me aterrado e enfrentei o professor Carlos H. Pareja, enquanto três dos meus cúmplices se escapavam a correr. Por sorte, antes de conseguir pedir desculpa, apercebi‑me de que o professor não me tinha surpreendido como ladrão, mas por não me ter visto na sua aula há mais de um mês. Depois de um raspanete bastante convencional, perguntou‑me:

‑ É verdade que és filho do Gabriel Eligio?

Era verdade, mas respondi‑lhe que não, porque sabia que o pai dele e o meu eram na realidade parentes afastados por um incidente pessoal que nunca entendi. Mas mais tarde ficou a saber a verdade e desde aquele dia distinguiu‑me na livraria e nas aulas como seu sobrinho e mantivemos uma relação mais política do que literária, apesar dele ter escrito e publicado vários livros de versos desiguais com o pseudónimo de Simón Latino. A consciência do parentesco, no entanto, só lhe serviu a ele para que não me prestasse mais a servir de cobertura para o roubo de livros.

Outro professor excelente, Diego Montaria Cuéllar, era o contrário de López Michelsen, com quem parecia manter uma secreta rivalidade. López como um liberal irrequieto e Montaria Cuellar como um radical de esquerda. Mantive com este uma boa relação fora da cátedra e sempre me pareceu que López Michelsen me via como um embrião de poeta e, pelo contrário, Montaria Cuéllar me via como um bom cartaz para o seu proselitismo revolucionário.

A minha simpatia por Montaria Cuéllar começou por um atrito que teve com três jovens oficiais da Escola Militar que assistiam às suas aulas em uniforme de parada. Eram de uma pontualidade militar, sentavam‑se juntos nas mesmas cadeiras afastadas, tomavam notas implacáveis e obtinham classificações merecidas em rígidos exames. Diego Montaria Cuéllar aconselhou‑os em privado, desde os primeiros dias, a não irem às aulas em uniforme de guerra. Eles responderam com os seus melhores modos que cumpriam ordens superiores e não passaram por alto nenhuma oportunidade de lho fazerem sentir. Em todo o caso, à margem das suas estranhezas, foi sempre claro para alunos e professores que os três oficiais eram estudantes notáveis.

Chegavam com os seus uniformes idênticos, impecáveis, sempre juntos e pontuais. Sentavam‑se à parte e eram os alunos mais sérios e metódicos, mas sempre me pareceu que estavam num mundo diferente do nosso. Se alguém lhes dirigia a palavra, eram atenciosos e amáveis, mas de um formalismo invencível: não diziam mais do que aquilo que se lhes perguntava. Em época de exames, nós, os civis, dividíamo‑nos em grupos de quatro para estudar nos cafés, encontrávamo‑nos nos bailes de sábado, nas rixas estudantis, nas tascas mansas e nos bordéis lúgubres da época, mas nunca nos encontrámos, nem por acaso, com os nossos condiscípulos militares.

Mal troquei com eles um ou outro cumprimento durante o longo ano em que estivemos juntos na Universidade. Não havia tempo, além disso, porque chegavam à hora certa às aulas e partiam com a última palavra do professor, sem conviverem com ninguém, salvo com outros militares jovens do segundo ano, com os quais se juntavam nos intervalos. Nunca soube os seus nomes nem voltei a ter notícias deles. Hoje apercebo‑me de que as maiores reticências não eram tanto deles como minhas, que nunca fui capaz de ultrapassar a amargura com que os meus avós evocavam as suas guerras frustradas e as atrozes matanças das bananeiras.

Jorge Soto del Corral, o professor de Direito Constitucional, tinha fama de saber de cor todas as constituições do mundo e nas aulas mantinha‑nos deslumbrados com o esplendor da sua inteligência e erudição jurídica, apenas empanada pelo escasso sentido de humor. Creio que era um dos professores que faziam o possível para que não aflorassem na cátedra as suas diferenças políticas, mas notavam‑se mais do que eles próprios julgavam. Até pelos gestos das mãos e a ênfase das ideias, pois era na Universidade que mais se sentia o pulso profundo de um país que estava à beira de uma nova guerra civil ao fim de quarenta e tantos anos de paz armada.

Apesar do meu absentismo crónico e da minha negligência jurídica, passei nas cadeiras fáceis do primeiro ano de Direito com reaquecimentos de última hora, e nas mais difíceis com o meu velho truque de escapar ao tema com recursos de habilidade. A verdade é que não me sentia bem na minha pele e não sabia como continuar a andar às apalpadelas por aquele beco sem saída. Entendia pouco o Direito e interessava‑me muito menos do que qualquer das cadeiras do liceu, e já me sentia adulto o suficiente para tomar as minhas próprias decisões. No final, depois de dezasseis meses de sobrevivência milagrosa, apenas me restou um bom grupo de amigos para o resto da vida.

O meu reduzido interesse pelos estudos foi mais reduzido ainda depois da nota de Ulises, sobretudo na Universidade, onde alguns dos meus condiscípulos começaram a dar‑me o título de mestre e apresentavam‑me como escritor. Isto coincidia com a minha determinação de aprender a construir uma estrutura ao mesmo tempo verosímil e fantástica, mas sem brechas. Com modelos perfeitos e esquivos, como Édipo Rei, de Sófocles, cujo protagonista investiga o assassinato do pai e acaba por descobrir que é ele próprio o assassino; como «A pata de macaco», de W. W. Jacob, que é o conto perfeito, onde tudo o que acontece é casual; como Bola de Sebo, de Maupassant, e tantos outros grandes pecadores que Deus tenha no seu santo reino. Andava nisso uma noite de domingo em que por fim me aconteceu algo que merecia ser contado. Tinha passado quase todo o dia a ventilar as minhas frustrações de escritor com Gonzalo Mallarino na sua casa da Avenida Chile e quando regressava à pensão no último eléctrico entrou um fauno de carne e osso na estação de Chapinero. Disse bem: um fauno. Notei que nenhum dos poucos passageiros da meia‑noite se surpreendeu ao vê‑lo e isso fez‑me pensar que era mais um dos mascarados que aos domingos vendiam de tudo nos parques infantis. Mas a realidade convenceu‑me de que não podia duvidar, porque a cornadura e barbas eram tão bravias como as de um chibo, a ponto de ter notado ao passar o fedor do seu pelame. Antes da Calle 26, que era a do cemitério, desceu com modos de bom pai de família e desapareceu entre o arvoredo do parque.

Depois da meia‑noite, acordado pelas minhas voltas na cama, Domingo Manuel Vega perguntou‑me o que tinha. «É que entrou um fauno no eléctrico», disse‑lhe meio a dormir. Ele replicou‑me, bem desperto que, se era um pesadelo, devia ser por causa da minha má digestão do domingo, mas se era tema para o meu próximo conto, lhe parecia fantástico. Na manhã seguinte já não soube se na realidade tinha visto um fauno no eléctrico ou se tinha sido uma alucinação dominical. Comecei por admitir que adormecera devido ao cansaço do dia e tivera um sonho tão nítido que o não conseguia separar da realidade. Mas o essencial para mim não acabou por ser se o fauno era real, mas o facto de eu o ter vivido como se o fosse. E pela mesma razão ‑ real ou sonhado ‑ não era legítimo considerá‑lo como um sortilégio da imaginação mas como uma experiência maravilhosa da minha vida.

Escrevi‑o portanto no dia seguinte de um fôlego, coloquei‑o debaixo da almofada e li‑o e reli‑o várias noites antes de adormecer e pela manhã ao acordar. Era uma transcrição descarnada e literal do episódio do eléctrico, tal como ocorreu, e num estilo tão inocente como a notícia de um baptizado numa página social. Por fim, abalado por novas dúvidas, decidi submetê‑lo à prova infalível da letra impressa, mas não em El Espectador e sim no suplemento literário de El Tiempo. Talvez fosse a forma de conhecer um critério diferente do de Eduardo Zalamea, sem o comprometer a ele numa aventura que não tinha razão para partilhar. Mandei‑o por um companheiro de pensão, junto com uma carta para D. Jaime Posada, o novo e muito jovem director do «Suplemento Literário» de El Tiempo. No entanto, o conto não foi publicado nem a carta respondida.

Os contos dessa época, na ordem pela qual foram escritos e publicados no «Fin de Semana», desapareceram dos arquivos de El Espectador no assalto e incêndio desse jornal pelas turbas oficiais, a 6 de Setembro de 1952. Eu próprio não tinha cópia, nem as tinham os meus amigos mais solícitos, de modo que pensei com um certo alívio que tinham sido incinerados pelo esquecimento. No entanto, alguns suplementos literários da província tinham‑nos reproduzido na altura sem autorização, e outros haviam sido publicados em revistas diferentes, até que foram reunidos num volume pelas edições Alfil, de Montevideu, em 1972, com o título de um deles: Nabo, el negro que hizo esperar a los ángeles (O conto «Nabo, o negro que fez esperar os anjos» foi publicado em tradução portuguesa na colectânea Olhos de Cão Azul. (N. T.)).

Faltava um que nunca foi incluído no livro, talvez por falta de uma versão de confiança: «Tubal Caín forja uma estrela», publicado por El Espectador a. 17 de Janeiro de 1948. O nome do protagonista, como nem todos sabem, é o de um ferreiro bíblico que inventou a música. Foram três contos. Lidos pela ordem em que foram escritos e publicados pareceram‑me inconsequentes e abstractos, e alguns disparatados, e nenhum se apoiava em sentimentos reais. Nunca consegui determinar o critério com que os leu um crítico tão severo como Eduardo Zalamea. No entanto, para mim têm uma importância que não têm para mais ninguém, e é que em cada um deles há algo que corresponde à rápida evolução da minha vida naquela época.

Muitos dos romances que nessa altura lia e admirava só me interessavam pelos seus ensinamentos técnicos. Quer dizer: pela sua carpintaria secreta. Desde as abstracções metafísicas dos três primeiros contos até aos três últimos de então, encontrei pistas exactas e muito úteis da formação primária de um escritor. Não me passara pela cabeça a ideia de explorar outras formas. Pensava que conto e romance não só eram dois géneros literários diferentes como dois organismos de natureza diversa que seria funesto confundir. Hoje continuo a pensar como então e estou mais do que nunca convencido da supremacia do conto sobre o romance.

As publicações de El Espectador, à margem do êxito literário, criaram‑me outros problemas mais terrenos e divertidos. Amigos despistados faziam‑me parar na rua para me pedirem empréstimos de emergência, pois não podiam acreditar que um escritor tão em evidência não recebesse somas enormes pelos seus contos. Muito poucos acreditaram na verdade de que nunca me pagaram um centavo pela sua publicação, nem eu o esperava, porque não era habitual na imprensa do país. Mais grave ainda foi a desilusão do meu pai quando se convenceu de que eu não poderia assumir as minhas próprias despesas quando estavam a estudar três dos onze irmãos que já tinham nascido. A família mandava‑me trinta pesos por mês. Só a pensão custava‑me dezoito, sem direito a ovos ao pequeno‑almoço, e via‑me sempre obrigado a dilapidá‑los para gastos imprevistos. Por sorte, não sei de onde tinha contraído o hábito de fazer desenhos inconscientes nas margens dos jornais, nos guardanapos dos restaurantes, nas mesas de mármore dos cafés. Atrevo‑me a acreditar que aqueles desenhos eram descendentes directos dos que pintava quando era pequeno nas paredes da oficina de ourivesaria do meu avô e que talvez fossem válvulas fáceis de descompressão. Um companheiro de tertúlia ocasional de El Molino, que tinha influências num ministério para arranjar uma colocação como desenhador sem ter a menor noção de desenho, propôs‑me que lhe fizesse o trabalho e dividíssemos o ordenado. No resto da minha vida nunca estive tão perto da corrupção, mas não tão perto que me arrependesse.

O meu interesse pela música também se incrementou nessa época em que os cantos populares do Caribe ‑ com os quais tinha sido amamentado ‑ abriam caminho em Bogotá. O programa de maior audiência era La hora costenha, animado por D. Pascual Delvecchio, uma espécie de cônsul musical da costa atlântica para a capital. Tornara‑se tão popular nos domingos de manhã que nós, os estudantes caribenhos, íamos dançar nas instalações da emissora até pela tarde dentro. Foi aquela a origem da imensa popularidade das nossas músicas no interior do país e, mais tarde, até nos seus pontos mais recônditos, e uma promoção social dos estudantes costenhos em Bogotá.

O único inconveniente era o fantasma do casamento à força. Pois não sei que maus precedentes tinham feito prosperar na costa a crença de que as namoradas de Bogotá se mostravam fáceis com os costenhos e nos preparavam armadilhas de cama para nos fazerem casar à força. E não por amor, mas pela ilusão de viver com uma janela em frente ao mar. Nunca tive essa ideia. Pelo contrário, as recordações mais ingratas da minha vida são dos sinistros bordéis dos extramuros de Bogotá, onde íamos desaguar as nossas bebedeiras sombrias. No mais sórdido de todos eles estive quase a deixar a pouca vida que tinha dentro quando uma mulher com quem acabara de estar apareceu nua no corredor a gritar que lhe tinha roubado doze pesos de uma gaveta do toucador. Dois seguranças da casa atiraram‑me ao chão à pancada e não lhes bastou tirarem‑me dos bolsos os últimos dois pesos que me restavam depois de um amor de má morte, como me despiram até os sapatos e me exploraram a dedo em busca do dinheiro roubado. De qualquer forma, tinham resolvido não me matar mas sim entregar‑me à polícia, quando a mulher se lembrou de que no dia anterior tinha mudado o esconderijo do dinheiro e o encontrou intacto.

Entre as amizades que me ficaram da Universidade, a de Camilo Torres não só foi das mais inesquecíveis como a mais dramática da nossa juventude. Um dia não veio às aulas pela primeira vez. A razão espalhou‑se como pólvora. Arranjou as suas coisas e decidiu fugir de casa para o seminário de Chiquinquirá, a cento e tal quilómetros de Bogotá. A mãe apanhou‑o na estação de caminho‑de‑ferro e fechou‑o na sua biblioteca. Ali o visitei, mais pálido do que de costume, com uma ruana branca e uma serenidade que pela primeira vez me fez pensar num estado de graça. Tinha resolvido entrar para o seminário por uma vocação que dissimulava muito bem mas à qual estava decidido a obedecer até ao fim.

‑ O mais difícil já passou ‑ disse‑me.

Foi a sua maneira de me dizer que se despedira da namorada e que ela aprovava a sua decisão. Depois de uma tarde enriquecedora, deu‑me um presente indecifrável: A Origem das Espécies, de Darwin. Despedi‑me dele com a estranha certeza de que era para sempre.

Perdi‑o de vista enquanto esteve no seminário. Tive notícias vagas de que tinha ido para Lovaina a fim de fazer três anos de formação teológica, de que a sua entrega não lhe mudara o espírito estudantil nem as maneiras laicas e de que as raparigas que suspiravam por ele o tratavam como a um actor de cinema desarmado pela sotaina.

Dez anos depois, quando regressou a Bogotá, tinha assumido de corpo e alma o carácter da sua investidura, mas conservava as melhores virtudes de adolescente. Eu era então escritor e jornalista sem título, casado e com um filho, Rodrigo, que nascera a 24 de Agosto de 1959, na Clínica Palermo, de Bogotá. Em família decidimos que fosse Camilo a baptizá‑lo. O padrinho seria Plínio Apuleyo Mendoza, com quem a minha mulher e eu tínhamos estabelecido já antes uma amizade de compadres. A madrinha foi Susana Linares, a mulher de Germán Vargas, que me transmitira as suas artes de bom jornalista e melhor amigo. Camilo era mais próximo de Plinio do que de nós, e desde muito antes, mas não queria aceitá‑lo como padrinho pelas suas afinidades de então com os comunistas e talvez também pelo seu espírito brincalhão, que bem podia estragar a solenidade do sacramento. Susana comprometeu‑se a encarregar‑se da formação espiritual da criança e Camilo não encontrou ou não quis encontrar outros argumentos para vedar a passagem ao padrinho.

O baptizado realizou‑se na capela da Clínica Palermo, na penumbra gelada das seis da tarde, sem mais ninguém além dos padrinhos e de mim, e de um camponês de ruana e alpergatas, que se aproximou como se levitasse para assistir à cerimónia sem se fazer notar. Quando Susana chegou com o recém‑nascido, o padrinho incorrigível atirou de brincadeira a primeira provocação:

‑ Vamos fazer deste menino um grande guerrilheiro.

Camilo, a preparar os apetrechos para o sacramento, contra‑atacou no mesmo tom: «Sim, mas um guerrilheiro de Deus.» E iniciou a cerimónia com uma decisão do maior calibre, de todo inusual naqueles anos:

‑ Vou baptizá‑lo em espanhol para que os incrédulos entendam o que significa este sacramento.

A sua voz ressoava num castelhano altissonante que eu seguia através do latim dos meus tenros anos de menino de coro em Aracataca. No momento da ablução, sem olhar para ninguém, Camilo inventou outra fórmula provocadora:

‑ Os que crêem que neste momento desce o Espírito Santo sobre esta criança, que se ajoelhem.

Os padrinhos e eu permanecemos de pé e talvez um pouco incomodados pela astúcia do padre amigo, enquanto o bebé berrava sob o duche de água benta. O único que se ajoelhou foi o camponês de alpergatas. O impacto deste episódio ficou‑me gravado como um dos ensinamentos severos da minha vida, pois sempre acreditei que foi Camilo quem levou o camponês com toda a premeditação para nos castigar com uma lição de humildade. Ou, pelo menos, de boa educação.

Tornei a vê‑lo poucas vezes e sempre por alguma razão válida e premente, quase sempre em relação com as suas obras de caridade em favor dos perseguidos políticos. Uma manhã, apareceu na minha casa de recém‑casado com um ladrão de domicílios que cumprira a sua pena, mas a polícia não lhe dava tréguas: roubavam‑lhe tudo o que trazia consigo. Em certa ocasião, ofereci‑lhe uns sapatos de explorador com um desenho especial na sola para maior segurança. Poucos dias depois, a criada da casa reconheceu as solas na fotografia de um delinquente de rua que foi encontrado morto numa valeta. Era o ladrão nosso amigo.

Não pretendo que este episódio tivesse algo a ver com o destino final de Camilo, mas meses depois entrou no hospital militar para visitar um amigo doente e não voltou a saber‑se nada dele até que o governo anunciou que tinha reaparecido como guerrilheiro raso no Ejército de Liberación Nacional. Morreu a 5 de Fevereiro de 1966, aos trinta e sete anos, num combate aberto com uma patrulha militar.

A entrada de Camilo no seminário tinha coincidido com a minha íntima decisão de não continuar a perder tempo com a Faculdade de Direito, mas também não tive coragem para enfrentar de uma vez por todas os meus pais. Pelo meu irmão Luis Enrique ‑ que tinha chegado a Bogotá com um bom emprego em Fevereiro de 1948 ‑ soube que eles estavam tão satisfeitos com os resultados do meu bacharelato e do meu primeiro ano de Direito, que me mandaram de surpresa a máquina de escrever mais leve e moderna que existia no mercado. A primeira que tive nesta vida e também a mais infeliz, porque no mesmo dia a empenhámos por doze pesos para continuar a festa de boas‑vindas com o meu irmão e os companheiros de pensão. No dia seguinte, loucos de dor de cabeça, fomos à casa de penhores para verificarmos que a máquina ainda ali estava com os seus selos intactos e nos assegurarmos de que continuava em boas condições até que nos caísse do céu o dinheiro para a resgatar. Tivemos uma boa oportunidade com o que me pagou o meu sócio, o falso desenhador, mas à última hora decidimos deixar o resgate para depois. De cada vez que passávamos pela casa de penhores, o meu irmão e eu, juntos ou separados, verificávamos da rua que a máquina continuava no seu lugar, embrulhada como uma jóia em papel celofane e com um laço de organdi, entre filas de aparelhos domésticos bem protegidos. Ao fim de um mês, os alegres cálculos que tínhamos feito na euforia da bebedeira continuavam sem se concretizar, mas a máquina estava intacta no seu lugar e ali podia continuar enquanto pagássemos a tempo os juros trimestrais.

Creio que nessa altura ainda não tínhamos consciência das terríveis tensões políticas que começavam a perturbar o país. Apesar da fama de conservador moderado com que Ospina Pérez chegou ao poder, a maioria do seu partido sabia que a vitória só fora possível devido à divisão dos liberais. Estes, aturdidos pelo choque, reprovavam a Alberto Lleras a imparcialidade suicida que tornou possível a derrota. O doutor Gabriel Turbay, mais acabrunhado pelo seu génio depressivo do que pelos votos adversos, foi para a Europa sem rumo nem sentido, com o pretexto de uma alta especialização em cardiologia, e morreu só e vencido pela asma da derrota ao fim de ano e meio entre as flores de papel e as tapeçarias fanadas do Hotel Place Athénée de Paris. Jorge Eliécer Gaitán, pelo contrário, não interrompeu um único dia a sua campanha eleitoral para o período seguinte, tendo‑a antes radicalizado fundo com um programa de restauração moral da República que ultrapassou a divisão histórica do país entre liberais conservadores, e aprofundando‑a com um corte horizontal e mais realista entre exploradores e explorados: o país político e o país nacional. Com o seu grito histórico ‑ «À carga!» ‑ e a sua energia sobrenatural, espalhou a semente da resistência até aos últimos recantos com uma gigantesca campanha de agitação que foi ganhando terreno em menos de um ano, até chegar à beira de uma autêntica revolução social.

Só assim tomámos consciência de que o país começava a desmoronar‑se no precipício da mesma guerra civil que nos ficou desde a independência de Espanha, e que chegava já aos bisnetos dos protagonistas originais. O Partido Conservador, que tinha recuperado a presidência devido à divisão liberal depois de quatro períodos consecutivos, estava decidido por qualquer meio a não a perder de novo. Para o conseguir, o governo de Ospina Pérez avançava com uma política de terra queimada que ensanguentou o país até à vida quotidiana dentro dos lares.

Com a minha inconsciência política e do meio das minhas nuvens literárias, não tinha sequer vislumbrado aquela realidade evidente, até uma noite em que regressava à pensão e deparei com o fantasma da minha consciência. A cidade deserta, açoitada pelo vento glacial que soprava pelos intervalos dos montes, estava dominada pela voz metálica e a deliberada ênfase populista de Jorge Eliécer Gaitán no seu discurso habitual de todas as sextas‑feiras, no Teatro Municipal. A capacidade do recinto não ultrapassava as mil pessoas enlatadas, mas o discurso propagava‑se em ondas concêntricas, primeiro pelos alto‑falantes nas ruas adjacentes e depois pelos rádios a todo o volume que ressoavam como chicotadas no espaço da cidade atónita, e dominavam durante três ou mesmo quatro horas a audiência nacional.

Naquela noite tive a impressão de ser o único na rua, salvo na esquina crucial do jornal El Tiempo, protegida como todas as sextas‑feiras por um pelotão de polícias armados como para a guerra. Foi uma revelação para mim, que me permitira a arrogância de não acreditar em Gaitán, e naquela noite compreendi de repente que tinha ultrapassado o país espanhol e estava a inventar uma língua franca para todos, não tanto pelo que diziam as palavras, como pela comoção e as astúcias da voz. Ele próprio, nos seus discursos épicos, aconselhava os seus ouvintes, num malicioso tom paternal, a regressarem às suas casas em paz, e eles traduziam aquilo à letra como a ordem cifrada para expressarem o seu repúdio contra tudo o que representavam as desigualdades sociais e o poder de um governo brutal. Até os próprios polícias que deviam manter a ordem ficavam motivados por uma advertência que interpretavam ao contrário.

O tema do discurso daquela noite era um relato descarnado dos estragos feitos pela violência oficial na sua política de terra queimada para destruir a oposição liberal, com um número ainda incalculável de mortos pela força pública nas áreas rurais, e populações inteiras de refugiados sem tecto nem pão nas cidades. No fim de uma enumeração pavorosa de assassinatos e atropelos, Gaitán começou a elevar a voz, a saborear palavra por palavra, frase por frase, num prodígio de retórica efectiva e certeira. A tensão do público aumentava ao compasso da sua voz, até uma explosão final que estoirou no âmbito da cidade e retumbou pela rádio nos recantos mais remotos do país.

A multidão exaltada lançou‑se à rua numa incruenta batalha campal, ante a secreta tolerância da polícia. Creio que foi naquela noite que entendi por fim as frustrações do avô e as lúcidas análises de Camilo Torres Restrepo. Surpreendia‑me que na Universidade Nacional os estudantes continuassem a ser liberais e godos, com núcleos comunistas, mas a brecha que Gaitán estava a abrir no país não se sentia passar por ali. Cheguei à pensão aturdido pela comoção da noite e encontrei o meu companheiro de quarto a ler Ortega y Gasset na paz da sua cama.

‑ Venho novo, doutor Vega ‑ disse‑lhe. ‑ Agora sei como e porquê começavam as guerras do coronel Nicolás Márquez.

Poucos dias depois ‑ a 7 de Fevereiro de 1948 ‑ fez Gaitán o primeiro acto político a que assisti na minha vida: um desfile de luto pelas incontáveis vítimas da violência oficial no país, com mais de sessenta mil mulheres e homens de luto carregado com as bandeiras vermelhas do partido e as bandeiras negras do luto liberal. A palavra de ordem era uma só: o silêncio absoluto. E realizou‑se com um dramatismo inconcebível, até nas varandas de residências e escritórios que nos tinham visto passar nos onze quarteirões atulhados de gente da avenida principal. Uma senhora murmurava ao meu lado uma oração entre dentes. Um homem junto dela olhou‑a surpreendido:

‑ Minha senhora, por favor!

Ela emitiu um gemido de desculpa e mergulhou no pântano de fantasmas. No entanto, o que me deixou à beira das lágrimas foi a cautela dos passos e a respiração da multidão no silêncio sobrenatural. Eu comparecera sem qualquer convicção política, atraído pela curiosidade do silêncio, e de repente surpreendeu‑me o nó de pranto na garganta. O discurso de Gaitán na Plaza de Bolívar, da varanda das finanças municipais, foi uma oração fúnebre de uma carga emocional esmagadora. Contra os prognósticos sinistros do seu próprio partido, culminou com a condição mais arriscada da palavra de ordem: não houve um único aplauso.

Foi assim «a marcha do silêncio», a mais emocionante de quantas se fizeram na Colômbia. A impressão que ficou daquela tarde histórica, entre partidários e inimigos, foi que a eleição de Gaitán era imparável. Os conservadores também sabiam isso pelo grau de contaminação atingido pela violência em todo o país, pela ferocidade da polícia do regime contra o liberalismo desarmado e pela política de terra queimada. A expressão mais tenebrosa do estado de espírito do país foi vivida naquele fim‑de‑semana pelos que assistiram à corrida de touros na praça de Bogotá, onde os aficionados das bancadas saltaram para a arena, indignados com a mansidão do touro e a impotência do toureiro para o conseguir matar. A multidão enlouquecida esquartejou o touro vivo. Numerosos jornalistas e escritores que viveram aquele horror ou souberam dele por terem ouvido contar, interpretaram‑no como o sintoma mais aterrador da raiva brutal de que sofria o país.

Naquele clima de alta tensão foi inaugurada em Bogotá a Nona Conferencia Panamericana, a 30 de Março, às quatro e meia da tarde. A cidade tinha sido remoçada por um custo descomunal, com a estética pomposa do chanceler Laureano Gómez, que devido ao seu cargo era o presidente da Conferencia. Estavam presentes os representantes de todos os países da América Latina e personalidades do momento. Os políticos colombianos mais eminentes foram convidados de honra, com a única e significativa excepção de Jorge Eliécer Gaitán, eliminado sem dúvida pelo veto muito significativo de Laureano Gómez e talvez pelo de alguns dirigentes liberais que o detestavam pelos seus ataques à oligarquia comum aos dois partidos. A estrela polar da Conferencia era o general George Marshall, delegado dos Estados Unidos e grande herói da recente guerra mundial e com o esplendor deslumbrante de um artista de cinema por dirigir a reconstrução de uma Europa aniquilada pela contenda.

No entanto, na sexta‑feira, 9 de Abril, Jorge Eliécer Gaitán era o homem do dia nas notícias por ter conseguido a absolvição do tenente Jesus Maria Cortês Poveda, acusado de matar o jornalista Eudoro Galarza Ossa. Chegara muito eufórico ao seu escritório de advogado, no concorrido cruzamento da Carrera Séptima com a Avenida Jimenez de Quesada, pouco antes das oito da manhã, apesar de ter estado no julgamento até de madrugada. Tinha vários encontros marcados para as horas seguintes, mas aceitou de imediato quando Plinio Mendoza Neira o convidou para almoçar, pouco antes da uma, com seis amigos pessoais e políticos que tinham ido ao seu escritório para o felicitarem pela vitória judicial que os jornais não tinham conseguido publicar. Entre eles, o seu médico pessoal, Pedro Eliseo Cruz, que além disso era membro da sua corte política.

Naquele ambiente intenso, sentei‑me a almoçar na sala de jantar da pensão onde vivia, a menos de três quarteirões. Ainda não me tinham servido a sopa quando Wilfrido Mathieu se plantou espantado em frente da minha mesa.

‑ Este país está lixado ‑ disse. ‑ Acabam de matar Gaitán em frente de El Gato Negro.

Mathieu era um estudante exemplar de Medicina e Cirurgia, natural de Sucre, como outros inquilinos da pensão, que sofria de presságios sinistros. Apenas uma semana antes tinha‑nos anunciado que o mais iminente e temível, pelas arrasadoras consequências, poderia ser o assassinato de Jorge Eliécer Gaitán. No entanto, isso já não impressionava ninguém, porque não eram necessários presságios para o admitir.

Mal tive fôlego para atravessar em voo a Avenida Jiménez de Quesada e chegar sem ar em frente ao café El Gato Negro, quase na esquina com a Carrera Séptima. Acabavam de levar o ferido para a Clínica Central, a uns quatro quarteirões dali, ainda com vida mas sem esperanças. Um grupo de homens molhava os lenços no charco de sangue quente para os guardarem como relíquias históricas. Uma mulher de xaile negro e alpergatas, das muitas que vendiam bugigangas naquele lugar, rugiu com o lenço ensanguentado:

‑ Filhos da puta, mataram‑mo.

Os grupos de engraxadores, armados com as caixas de madeira, tentavam derrubar com pancadas as cortinas metálicas da Farmácia Nueva Granada, onde os poucos polícias de guarda tinham metido o agressor para o protegerem da turba enlouquecida. Um homem alto e muito senhor de si, com um fato cinzento impecável como se fosse para um casamento, incitava‑os com gritos bem calculados. E tão eficazes, além disso, que o proprietário da farmácia subiu as cortinas de aço com medo que a incendiassem. O agressor, agarrado a um agente da polícia, sucumbiu ao pânico diante dos grupos enraivecidos que se precipitaram sobre ele.

‑ Agente ‑ suplicou, quase sem voz ‑, não deixe que me matem.

Nunca o poderei esquecer. Tinha o cabelo despenteado, uma barba de dois dias e uma lividez de morto com os olhos salientes de terror. Vestia um fato de tecido castanho muito coçado com riscas verticais e as lapelas rotas pelos primeiros puxões da turba. Foi uma aparição instantânea e eterna, porque os engraxadores arrebataram‑no aos guardas com pancadas das caixas e acabaram com ele a pontapé. No primeiro tombo perdera um sapato.

‑ Para o palácio! ‑ ordenou aos gritos o homem de cinzento que nunca foi identificado. ‑ Para o palácio!

Os mais exaltados obedeceram. Agarraram pelos tornozelos o corpo ensanguentado e arrastaram‑no pela Carrera Séptima até à Plaza de Bolívar, entre os últimos eléctricos imobilizados pela notícia, a vociferar insultos de guerra contra o governo. Dos passeios e varandas açulavam‑nos com gritos e aplausos e o cadáver desfigurado à pancada ia deixando farrapos de roupa e de corpo no empedrado da rua. Muitos juntavam‑se à marcha, que em menos de seis quarteirões atingira o tamanho e a força expansiva de um estoiro de guerra. Ao corpo macerado só restavam as cuecas e um sapato.

 

A Plaza de Bolívar, acabada de remodelar, não tinha a majestade de outras sextas‑feiras históricas, com as árvores tristes e as estátuas rudimentares da nova estética oficial. No Capitólio Nacional, onde se instalara dez dias antes a Conferencia Panamericana, os delegados tinham ido almoçar. A turba seguiu então de largo até ao Palácio Presidencial, também desguarnecido. Ali deixaram o que restava do cadáver, sem outra roupa além dos farrapos das cuecas, o sapato esquerdo e duas gravatas inexplicáveis atadas ao pescoço. Minutos mais tarde, chegaram para almoçar o presidente da República Mariano Ospina Pérez e a esposa, depois de terem inaugurado uma exposição pecuária na povoação de Engativá. Até àquele momento ignoravam a notícia do assassinato, porque o rádio do automóvel presidencial vinha apagado.

Permaneci no lugar do crime mais uns dez minutos, surpreendido pela rapidez com que as versões das testemunhas iam mudando de forma e de fundo até perderem qualquer semelhança com a realidade. Estávamos no cruzamento da Avenida Jiménez com a Carrera Séptima, à hora de mais afluência e a cinquenta passos de El Tiempo. Sabíamos então que os que acompanhavam Gaitán quando saiu do seu escritório eram Pedro Eliseo Cruz, Alejandro Vallejo, Jorge Padilla e Plinio Mendoza Neira, ministro da Guerra no recente governo de Alfonso López Pumarejo. Este convidara‑os para almoçar. Gaitán saíra do edifício onde tinha o seu escritório sem escoltas de qualquer espécie e no meio de um grupo compacto de amigos. Logo que chegaram ao passeio, Mendoza agarrou‑o pelo braço, puxou‑o um passo à frente dos outros, e disse‑lhe:

‑ O que te queria dizer era uma coisa sem importância.

Não pôde dizer mais nada. Gaitán cobriu a cara com o braço e Mendoza ouviu o primeiro disparo antes de ver à frente deles o homem que apontou o revólver e disparou três vezes à cabeça do líder com a frieza de um profissional. Um instante depois, falava‑se já de um quarto disparo sem direcção, e talvez de um quinto.

Plinio Apuleyo Mendoza, que chegara com o pai e as irmãs, Elvira e Rosa Inés, conseguiu ver Gaitán estendido de barriga para cima no passeio um minuto antes de o levarem para a clínica. «Não parecia morto ‑ contou‑me anos depois. ‑ Era como uma estátua imponente estendida de costas no passeio, junto de uma mancha pequena de sangue e com uma grande tristeza nos olhos abertos e fixos.» Na confusão do instante, as irmãs chegaram a pensar que o pai também tinha morrido e estavam tão aturdidas que Plinio Apuleyo as meteu no primeiro eléctrico que passou para as afastar do local. Mas o condutor apercebeu‑se do que tinha acontecido, atirou o boné para o chão e abandonou o eléctrico em plena rua para se juntar aos primeiros gritos da rebelião. Minutos depois, foi o primeiro eléctrico voltado pela turba enlouquecida.

As discrepâncias eram insolúveis sobre o número e papel dos protagonistas, pois havia uma testemunha que garantia que tinham sido três que se revezaram para disparar, e outra dizia que o verdadeiro escapara no meio da multidão revoltada e apanhara sem pressa um eléctrico em andamento. Também o que Mendoza Neira queria pedir a Gaitán quando o agarrou pelo braço não era nada do muito que se especulou desde então, mas apenas que autorizasse a criação de um instituto para formação de dirigentes sindicais. Ou, como troçara o sogro uns dias antes: «Uma escola para ensinar filosofia ao motorista.» Não conseguiu dizer‑lho quando estalou à frente deles a primeira bala.

Cinquenta anos depois, a minha memória continua fixa na imagem do homem que parecia instigar as gentes em frente da farmácia e não o encontrei em nenhum dos incontáveis testemunhos que li sobre aquele dia. vira‑o muito de perto, com um fato de grande classe, uma pele de alabastro e um controlo milimétrico dos seus actos. Tanto me chamou a atenção que continuei pendente dele até que o recolheram num automóvel demasiado novo logo que o cadáver do assassino foi levado e, desde então, pareceu apagado da memória histórica. Inclusive da minha, até muitos anos depois, nos meus tempos de jornalista, quando me assaltou a ideia de que aquele homem tinha conseguido que matassem um falso assassino para proteger a identidade do verdadeiro.

Naquele tumulto incontrolável estava o dirigente estudantil cubano Fidel Castro, de vinte anos, delegado da Universidade de La Habana a um congresso de estudantes convocado como uma réplica democrática à Conferencia Panamericana. Tinha chegado uns seis dias antes, na companhia de Alfredo Guevara, Enrique Ovares e Rafael del Pino ‑ universitários cubanos como ele ‑ e uma das suas primeiras diligências foi solicitar uma entrevista com Jorge Eliécer Gaitán, que admirava. Dois dias antes, Castro estivera com Gaitán e este marcara‑lhe encontro para a sexta‑feira seguinte. Gaitán em pessoa anotou a entrevista na agenda da sua secretária, na folha correspondente a 9 de Abril: «Fidel Castro, 2 pm.»

Segundo ele próprio contou em diversos meios e ocasiões, e nas intermináveis conversas que temos tido juntos ao longo de uma velha amizade, Fidel tivera a primeira notícia do crime quando rondava pelas proximidades para estar a tempo na entrevista das duas. Foi de repente surpreendido pelas primeiras hordas que corriam esbaforidas e pelo grito geral:

‑ Mataram Gaitán!

Fidel Castro só mais tarde se apercebeu de que a entrevista não poderia ter tido lugar de forma nenhuma antes das quatro ou cinco, devido ao imprevisto convite para almoçar que Mendoza Neira fez a Gaitán.

Não cabia mais ninguém no lugar do crime. O tráfego estava interrompido e os eléctricos voltados, de modo que me dirigi à pensão para acabar o almoço, quando o meu professor Carlos H. Pareja me cortou o passo na porta do seu escritório e me perguntou para onde ia.

‑ Vou almoçar ‑ respondi.

‑ Não me lixes ‑ disse ele, com a sua impenitente lábia caribenha. ‑ Como te lembras de almoçar quando acabam de matar Gaitán?

Sem me dar tempo para mais nada, ordenou‑me que fosse para a Universidade e me colocasse à frente da manifestação estudantil. O estranho é que lhe dei ouvidos, contra a minha maneira de ser. Segui pela Carrera Séptima para norte, em sentido contrário ao da turbamulta que se precipitava para a esquina do crime entre curiosa, magoada e colérica. Os autocarros da Universidade Nacional, guiados por estudantes inflamados, encabeçavam a marcha. No Parque Santander, a cem metros da esquina do crime, os empregados fechavam a toda a pressa os portões do Hotel Granada ‑ o mais luxuoso da cidade ‑ onde se alojavam por aqueles dias alguns representantes e convidados importantes à Conferencia Panamericana.

Um novo tropel de pobres em franca atitude de combate surgia de todas as esquinas. Muitos estavam armados com machetes acabados de roubar nos primeiros assaltos às lojas e pareciam ansiosos por usá‑los. Eu não tinha uma perspectiva clara das possíveis consequências do atentado e continuava mais pendente do almoço do que da manifestação, e portanto voltei para a pensão. Subi a quatro e quatro as escadas, convencido de que os meus amigos politizados estavam em pé de guerra. Mas não: a sala de jantar continuava deserta e o meu irmão e José Palencia ‑ que viviam no compartimento do lado ‑ cantavam com outros amigos no quarto de dormir.

‑ Mataram Gaitán! ‑ gritei.

Fizeram‑me sinal que já sabiam, mas a disposição de todos era mais folgazã do que funerária e não interromperam a canção. Depois sentámo‑nos a almoçar na sala deserta, convencidos de que aquilo não passaria dali, até que alguém aumentou o volume do rádio para que nós, os indiferentes, ouvíssemos. Carlos H. Pareja, fazendo honra ao incitamento que me fizera uma hora antes, anunciou a constituição da Junta Revolucionaria de Gobierno, formada pelos mais notáveis liberais de esquerda, entre eles o mais conhecido escritor e político, Jorge Zalamea. A sua primeira decisão foi a constituição do comité executivo, o comando da Polícia Nacional e todos os órgãos para um Estado revolucionário. Depois falaram os outros membros da Junta, com palavras de ordem cada vez mais exaltadas.

Na solenidade do acto, a primeira coisa que me ocorreu foi o que ia pensar o meu pai quando soubesse que o primo, o godo duro, era o líder principal de uma revolução de extrema‑esquerda. A dona da pensão, ante a dimensão dos nomes vinculados às universidades, surpreendeu‑se por não se comportarem como professores mas como estudantes malcriados. Bastava passar dois números do quadrante para encontrar um país diferente. Na Rádio Nacional, os liberais oficialistas apelavam à calma, noutras clamavam contra os comunistas fiéis a Moscovo, enquanto os mais altos dirigentes do liberalismo oficial desafiavam os perigos das ruas em guerra, tentando chegar ao Palácio Presidencial para negociar um compromisso de unidade com o governo conservador.

Continuámos aturdidos por aquela confusão demente até que um filho da dona gritou de repente que a casa estava a arder. Com efeito, abrira‑se uma fenda no muro de alvenaria do fundo e um fumo negro e espesso começava a alterar o ar dos quartos de dormir. Provinha sem dúvida da Gobernacion Departamental, contígua à pensão, que tinha sido incendiada pelos manifestantes, mas a parede parecia bastante forte para resistir. Descemos portanto a escada a correr e encontrámo‑nos numa cidade em guerra. Os assaltantes enfurecidos atiravam pelas janelas da Gobernación tudo o que encontravam nos escritórios. O fumo dos incêndios tinha nublado o ar e o céu encoberto era um manto sinistro. Hordas enlouquecidas, armadas com machetes e todo o género de ferramentas roubadas nas lojas de ferragens, assaltavam e pegavam fogo aos estabelecimentos comerciais da Carrera Séptima e das ruas adjacentes com a ajuda de polícias amotinados. Bastou‑nos uma visão instantânea para percebermos que a situação era incontrolável. O meu irmão antecipou‑se ao meu pensamento com um grito:

‑ Merda, a máquina de escrever!

Corremos para a casa de penhores que ainda estava intacta, com as grades de ferro bem fechadas, mas a máquina não estava onde sempre tinha estado. Não nos preocupámos, pensando que nos dias seguintes a poderíamos recuperar, sem nos termos ainda apercebido de que aquele desastre colossal não teria dias seguintes.

A guarnição militar de Bogotá limitou‑se a proteger os centros oficiais e os bancos, e a ordem pública ficou a cargo de ninguém. Muitos altos comandos da polícia entrincheiraram‑se na Quinta División desde as primeiras horas e numerosos agentes de rua seguiram‑nos com carregamentos de armas recolhidas nas ruas. Vários deles, com a braçadeira vermelha dos sublevados, fizeram uma descarga de fuzil tão perto de nós que me retumbou dentro do peito. Desde essa altura, tenho a convicção de que um fuzil pode matar apenas com o estampido.

No regresso da casa de penhores, vimos devastar em minutos o comércio da Carrera Octava, que era o mais rico da cidade.

As jóias requintadas, os tecidos ingleses e os chapéus de Bond Street que nós, os estudantes costenhos, admirávamos nas montras inacessíveis, estavam agora à mão de todos, diante dos soldados impassíveis que guardavam os bancos estrangeiros. O requintado Café San Marino, onde nunca pudemos entrar, estava aberto e desmantelado, por uma vez sem os criados de mesa de smoking que se antecipavam a impedir a entrada de estudantes caribenhos.

Alguns dos que saíam carregados de roupa fina e grandes rolos de tecido ao ombro deixavam‑nos caídos no meio da rua. Apanhei um, sem pensar que pesasse tanto, e tive que abandoná‑lo com a dor da minha alma. Por todos os lados tropeçávamos em electrodomésticos atirados pelas ruas e não era fácil caminhar por entre as garrafas de uísque de grandes marcas e todo o género de bebidas exóticas que as turbas degolavam à machetada. O meu irmão Luis Enrique e José Palencia encontraram saldos do saque num armazém de roupa em segunda mão, entre eles um fato azul‑celeste de muito bom tecido e com o tamanho exacto do meu pai, que o usou durante anos em ocasiões solenes. O meu único troféu providencial foi a pasta de pele de carneira do salão de chá mais caro da cidade, que me serviu para transportar os meus originais debaixo do braço nas muitas noites dos anos seguintes em que não tive onde dormir.

Ia com um grupo que abria caminho pela Carrera Octava, em direcção ao Capitólio, quando uma descarga de metralha varreu os primeiros que assomaram à Plaza de Bolívar. Os mortos e feridos instantâneos amontoados a meio da rua fizeram‑nos estacar em seco. Um moribundo banhado em sangue, que saiu a rastejar do montão, agarrou‑me pela bainha das calças e gritou‑me uma súplica aflitiva:

‑ Jovem, pelo amor de Deus, não me deixe morrer!

Fugi, espavorido. Desde então aprendi a esquecer outros horrores, meus e alheios, mas nunca esqueci o desamparo daqueles olhos no fulgor dos incêndios. No entanto, ainda hoje me surpreende não ter pensado nem por um instante que o meu irmão e eu fôssemos morrer naquele inferno sem quartel.

Começara a chover em bátegas desde as três da tarde, mas depois das cinco desabou um dilúvio bíblico que apagou muitos incêndios menores e diminuiu o ímpeto da rebelião. A escassa guarnição de Bogotá, incapaz de a enfrentar, desarticulou a fúria das ruas. Só foi reforçada depois da meia‑noite pelas tropas de urgência dos departamentos vizinhos, sobretudo de Boyacá, que tinha a má fama de ser a escola da violência oficial. Até então, a rádio incitava mas não informava, de modo que nenhuma notícia tinha origem e a verdade era impossível. As tropas de reforço recuperaram de madrugada o centro comercial devastado pelas hordas e apenas com a luz dos incêndios, mas a resistência politizada continuou ainda durante vários dias, com franco‑atiradores colocados nas torres e açoteias. A essa hora, os mortos nas ruas eram já inumeráveis.

Quando regressámos à pensão, a maior parte do centro estava em chamas, com eléctricos voltados e carcaças de automóveis que serviam de barricadas ocasionais. Metemos numa mala as poucas coisas que valiam a pena e só depois me apercebi de que deixara rascunhos de dois ou três contos impublicáveis, o dicionário do avô, que nunca recuperei, e o livro de Diógenes Laércio que recebi como prémio de primeiro classificado no bacharelato.

A única coisa que nos ocorreu foi pedirmos asilo, eu e o meu irmão, em casa do tio Juanito, apenas a quatro quarteirões da pensão. Era um apartamento de segundo andar, com uma sala, sala de jantar e dois quartos, onde o tio vivia com a mulher e os filhos Eduardo, Margarita e Nicolás, o mais velho, que estivera um tempo comigo na pensão. Mal cabíamos, mas os Márquez Caballero tiveram o bom coração de improvisar espaços onde não os havia, inclusive na sala de jantar, e não só para nós como para outros amigos nossos e companheiros de pensão: José Palencia, Domingo Manuel Vega, Carmelo Martínez ‑ todos de Sucre ‑ e outros que mal conhecíamos.

Pouco antes da meia‑noite, quando parou de chover, subimos à açoteia para ver a paisagem infernal da cidade iluminada pelos rescaldos dos incêndios. Ao fundo, os cerros de Monserrate e La Guadalupe eram dois imensos volumes sombrios de encontro ao céu nublado pelo fumo, mas a única coisa que eu continuava a ver na bruma desolada era a cara enorme do moribundo que se arrastou para mim suplicando uma ajuda impossível. A caçada de rua abrandara e no silêncio tremendo apenas se ouviam os tiros dispersos de incontáveis franco‑atiradores emboscados por todo o centro e o estrondo das tropas que pouco a pouco iam exterminando qualquer rasto de resistência armada ou desarmada para dominar a cidade. Impressionado pela paisagem da morte, o tio Juanito expressou num único suspiro o sentimento de todos:

‑ Deus meu, isto parece um sonho!

De regresso à sala, na penumbra, deixei‑me cair no sofá. Os boletins oficiais das emissoras ocupadas pelo governo pintavam um panorama de paulatina tranquilidade. Já não havia discursos, mas não se conseguia distinguir com precisão entre as emissoras oficiais e as que continuavam em poder da rebelião e, mesmo estas, era impossível distingui‑las da avalanche incontrolável dos boatos. Foi dito que todas as embaixadas estavam a transbordar de refugiados e que o general Marshall permanecia na dos Estados Unidos protegido por uma guarda de honra da escola militar. Também Laureano Gómez ali se refugiara desde as primeiras horas e mantivera conversações telefónicas com o seu presidente, procurando impedir que este negociasse com os liberais numa situação que ele considerava manipulada pelos comunistas. O ex‑presidente Alberto Lleras, então secretário‑geral da Union Panamericana, salvara a vida por milagre ao ser reconhecido no seu automóvel sem blindagem quando abandonava o Capitólio e tentaram forçá‑lo à entrega legal do poder aos conservadores. A maioria dos delegados da Conferencia Panamericana estava a salvo à meia‑noite.

Entre tantas notícias desencontradas, foi anunciado que Guillermo León Valência, o filho do poeta homónimo, fora lapidado e o cadáver pendurado na Plaza de Bolívar. Mas a ideia de que o governo controlava a situação começara a perfilar‑se logo que o exército recuperou as emissoras de rádio que estavam em poder dos rebeldes. Em vez das declarações de guerra, as notícias pretendiam então tranquilizar o país com o consolo de que o governo era senhor da situação, enquanto a alta hierarquia liberal negociava com o Presidente da República metade do poder.

Na realidade, os únicos que pareciam actuar com sentido político eram os comunistas, minoritários e exaltados, que no meio da desordem das ruas eram vistos a dirigir a multidão ‑ como agentes de trânsito ‑ para os centros de poder. O liberalismo, pelo contrário, demonstrou estar dividido nas duas metades denunciadas por Gaitán na sua campanha: os dirigentes que procuravam negociar uma quota de poder no Palácio Presidencial, e os seus eleitores que resistiram como puderam e até onde puderam em torres e açoteias.

A primeira dúvida que surgiu em relação à morte de Gaitán foi sobre a identidade do seu assassino. Ainda hoje não existe uma convicção unânime de que fosse Juan Roa Sierra, o pistoleiro solitário que disparou contra ele no meio da multidão da Carrera Séptima. O que não é fácil de entender é que tivesse actuado por si só, pois não parecia ter uma cultura autónoma para decidir por sua conta aquela morte devastadora, naquele dia, naquela hora, naquele lugar e daquela maneira. Encarnación Sierra, viúva de Roa, sua mãe, de cinquenta e dois anos, soubera pela rádio do assassinato de Gaitán, o seu herói político, e estava a tingir de preto o seu melhor fato para pôr luto por ele. Ainda não tinha terminado quando ouviu que o assassino era Juan Roa Sierra, o número treze dos seus catorze filhos. Nenhum passara da escola primária e quatro deles ‑ dois meninos e duas meninas ‑ tinham morrido.

Declarou que nos últimos oito meses notara estranhas mudanças no comportamento de Juan. Falava só e ria sem motivo, e em certos momentos confessou à família que acreditava ser a incarnação do general Francisco de Paula Santander, herói da nossa independência, mas pensaram que seria uma má piada de bêbado. Nunca se soube que o seu filho fizesse mal a ninguém e tinha conseguido que gente de certo peso lhe desse cartas de recomendação para conseguir empregos. Levava uma delas na carteira quando matou Gaitán. Seis meses antes, escrevera uma pelo seu próprio punho e letra ao presidente Ospina Pérez, na qual solicitava uma entrevista para lhe pedir um emprego.

A mãe declarou aos investigadores que o filho colocara o seu problema também a Gaitán em pessoa, mas que este não lhe dera nenhuma esperança. Não se sabia que tivesse disparado uma arma em toda a sua vida, mas a maneira como manejou a do crime estava muito longe de ser a de um novato. O revólver era um 38 comprido, tão maltratado que foi admirável não falhar nem um tiro.

Alguns empregados do edifício julgavam tê‑lo visto no andar dos escritórios de Gaitán na véspera do assassinato.

O porteiro afirmou sem sombra de dúvida que na manhã do dia 9 de Abril o vira subir pelas escadas e descer depois pelo elevador com um desconhecido. Pareceu‑lhe que ambos tinham esperado várias horas perto da entrada do edifício, mas Roa estava só junto da porta quando Gaitán subiu para o seu escritório.

Gabriel Restrepo, um jornalista de La Jornada ‑ o jornal da campanha gaitanista ‑ fez o inventário dos documentos de identidade que Roa Sierra tinha consigo quando cometeu o crime. Não deixavam dúvidas sobre a sua identidade e condição social, mas não davam qualquer pista sobre os seus propósitos. Tinha num dos bolsos das calças oitenta e dois centavos em moedas misturadas, quando diversas coisas importantes da vida diária apenas custavam cinco. Num bolso interior do casaco levava uma carteira de cabedal preto com uma nota de um peso. Tinha também um certificado que garantia a sua honestidade, outro da polícia segundo o qual não tinha antecedentes penais, e um terceiro com a sua direcção num bairro de pobres: Calle Octava, número 30‑73. De acordo com a caderneta militar que levava no mesmo bolso, era filho de Rafael Roa e Encarnación Sierra e nascera vinte e um anos antes: a 4 de Novembro de 1927.

Tudo parecia em ordem, excepto que um homem de condição tão humilde e sem antecedentes penais levasse consigo tantas provas de bom comportamento. No entanto, a única coisa que me deixou um rasto de dúvidas que nunca consegui superar foi o homem elegante e bem vestido que o lançara às hordas enfurecidas e desaparecera para sempre num automóvel de luxo.

No meio do fragor da tragédia, enquanto embalsamavam o cadáver do apóstolo assassinado, os membros da direcção liberal tinham‑se reunido na sala de refeições da Clínica Central para chegarem a acordo sobre fórmulas de emergência. A mais urgente foi irem ao Palácio Presidencial sem audiência prévia para discutirem com o chefe de Estado uma fórmula de emergência capaz de conjurar o cataclismo que ameaçava o país. Pouco antes das nove da noite tinha amainado a chuva e os primeiros delegados abriram passagem como puderam através das ruas em escombros devido à revolta popular e com cadáveres crivados a partir de varandas e açoteias pelas balas cegas dos franco‑atiradores.

Na ante‑sala do gabinete presidencial encontraram alguns funcionários e políticos conservadores e a mulher do presidente, dona Bertha Hernández de Ospina, muito senhora de si. Ainda estava com o fato com que acompanhara o marido à exposição de Engativá e tinha no cinto um revólver oficial. No fim da tarde, o presidente perdera o contacto com os lugares mais críticos e tentava avaliar à porta fechada, com militares e ministros, o estado da nação. A visita dos dirigentes liberais apanhou‑o de surpresa pouco antes das dez da noite, e não os queria receber ao mesmo tempo e sim dois a dois, mas eles decidiram que nesse caso não entraria nenhum. O presidente cedeu, mas os liberais consideraram isso, apesar de tudo, como um motivo de desalento.

Encontraram‑no sentado à cabeceira de uma longa mesa de reuniões, com um fato impecável e sem o menor sinal de ansiedade. A única coisa que revelava uma certa tensão era o modo de fumar, contínuo e ávido, e às vezes apagando um cigarro a meio para acender outro. Um dos visitantes contou‑me anos mais tarde como o impressionara o reflexo dos incêndios na cabeça platinada do presidente impassível. O rescaldo dos incêndios sob o céu ardente divisava‑se pelos grandes vitrais do gabinete presidencial até aos confins do mundo.

Devemos o que se sabe daquela audiência ao pouco que contaram os próprios protagonistas, às raras confidências de alguns e às muitas fantasias de outros, e à reconstrução daqueles dias aziagos montados aos pedaços pelo poeta e historiador Arturo Alape, que tornou em boa parte possível o apoio destas memórias.

Os visitantes eram D. Luis Cano, director do vespertino liberal El Espectador, Plinio Mendoza Neira, que promovera a reunião, e outros três dos mais activos e jovens dirigentes liberais: Carlos Lleras Restrepo, Darío Echandía e Alfonso Araújo. No decurso da discussão, entraram ou saíram outros liberais proeminentes.

De acordo com as evocações lúcidas que ouvi anos depois a Plinio Mendoza Neira no seu impaciente exílio de Caracas, nenhum deles levava um plano preparado de antemão. Ele era a única testemunha do assassinato de Gaitán e contou‑o passo por passo, com as suas artes de narrador congénito e jornalista crónico. O presidente ouviu com uma atenção solene e no final pediu que os visitantes expressassem as suas ideias para uma solução justa e patriótica daquela colossal emergência.

Mendoza, famoso entre amigos e inimigos pela sua franqueza sem rodeios, respondeu que o mais indicado seria que o governo delegasse o poder nas Forças Armadas, devido à confiança que naquele momento o povo tinha nelas. Fora ministro da Guerra no governo liberal de Alfonso López Pumarejo, conhecia bem os militares por dentro, e pensava que só eles poderiam retomar as linhas da normalidade. Mas o presidente não esteve de acordo com o realismo da fórmula, nem os próprios liberais a apoiaram.

A intervenção seguinte foi a de D. Luis Cano, bem conhecido pelo brilho da sua prudência. Nutria sentimentos quase paternais pelo presidente e limitou‑se a oferecer‑se para qualquer decisão rápida e justa que Ospina tomasse com o apoio da maioria. Este deu‑lhe a certeza de encontrar as medidas indispensáveis para o regresso à normalidade, mas sempre respeitando a Constituição. E apontando pelas janelas o inferno que devorava a cidade, recordou‑lhes com uma ironia mal reprimida que não fora o governo a causá‑lo.

Tinha fama pela sua parcimónia e boa educação, em contraste com os excessos de Laureano Gómez e a altanaria de outros copartidários seus, peritos em eleições manipuladas, mas naquela noite histórica demonstrou que não estava disposto a ser menos recalcitrante do que eles. A discussão prolongou‑se assim até à meia‑noite, sem nenhum acordo e com interrupções de dona Bertha de Ospina trazendo notícias cada vez mais pavorosas.

Era já incalculável o número de mortos nas ruas, e de franco‑atiradores em posições inatingíveis, e de multidões enlouquecidas pela dor, a raiva e os álcoois de grandes marcas saqueados nas lojas de luxo. O centro da cidade estava devastado e ainda em chamas e destruídas ou incendiadas as lojas de luxo, o Palácio da Justiça, a sede do governo e muitos outros edifícios históricos. Era a realidade que ia estreitando sem piedade os caminhos de um acordo sereno de vários homens contra um, na ilha deserta do gabinete presidencial. Darío Echandía, talvez o de maior autoridade, foi o menos expressivo. Fez dois ou três comentários irónicos sobre o presidente e voltou a refugiar‑se nas suas brumas. Parecia ser o candidato inevitável para substituir Ospina Pérez na presidência, mas naquela noite não fez nada para o merecer ou evitar. O presidente, que era tido como um conservador moderado, parecia‑o cada vez menos. Era neto e sobrinho de dois presidentes num século, pai de família, engenheiro retirado e milionário desde sempre, e várias coisas mais que exercia sem o mínimo ruído, a ponto de se afirmar sem fundamento que quem mandava na realidade, tanto em casa como no palácio, era a esposa, uma mulher de armas. E mesmo assim ‑ rematou com um sarcasmo ácido ‑ não teria nenhum inconveniente em aceitar a proposta, mas sentia‑se muito à vontade dirigindo o governo do seu cadeirão, onde estava sentado pela vontade do povo.

Falava fortalecido sem dúvida por uma informação que faltava aos liberais: o conhecimento pontual e completo da ordem pública no país. Tivera‑o a todo o momento, das várias vezes que saíra do gabinete para se informar a fundo. A guarnição de Bogotá não chegava a mil homens e em todos os departamentos havia notícias mais ou menos graves, mas todas sob o controlo e com a lealdade das Forças Armadas. No departamento vizinho de Boyacá, famoso pelo seu liberalismo histórico e conservadorismo ríspido, o governador José Maria Villareal ‑ godo dos quatro costados ‑ não só reprimira com grande rapidez os distúrbios locais, como estava a despachar tropas mais bem armadas para controlar a capital. De modo que a única coisa de que o presidente necessitava era de entreter os liberais com a sua parcimónia bem medida de pouco falar e fumar com lentidão. Em nenhum momento olhou para o relógio, mas deve ter calculado muito bem a hora em que a cidade estivesse já guarnecida com tropas frescas e experimentadas de sobejo na repressão oficial.

No fim de um longo intercâmbio de tentativas de fórmulas, Carlos Lleras Restrepo propôs o que a direcção liberal acordara na Clínica Central e que tinham reservado como recurso extremo: sugerir ao presidente que delegasse o poder em Darío Echandía, tendo em vista a concórdia política e a paz social. Estava fora de dúvida que a fórmula seria acolhida sem reservas por Eduardo Santos e Alfonso López Pumarejo, ex‑presidentes e homens de muito crédito político, mas que não estavam naquele dia no país.

No entanto, a resposta do presidente, dita com a mesma parcimónia com que fumava, não era a que se podia esperar.

Não desperdiçou a oportunidade para demonstrar a sua verdadeira forma de pensar, que poucos conheciam até então. Disse que para ele e para a sua família o mais cómodo seria retirar‑se do poder e viver no exterior com a sua fortuna pessoal e sem preocupações políticas, mas inquietava‑o o que poderia significar para o país que um presidente eleito saísse a fugir da sua investidura. A guerra civil seria inevitável. E ante uma nova insistência de Lleras Restrepo sobre a sua retirada, permitiu‑se recordar a sua obrigação de defender a Constituição e as leis, que não só tinha contraído com a sua pátria mas também com a sua consciência e com Deus. Foi então que afirmam ter dito a frase histórica que, ao que parece, nunca disse, mas ficou como sua para todo o sempre: "Para a democracia colombiana, vale mais um presidente morto do que um presidente fugitivo."

Nenhuma das testemunhas se recordou de a ter ouvido dos seus lábios, nem dos de ninguém. Com o tempo, foi atribuída a diversos talentos e inclusive discutidos os seus méritos políticos e validez histórica, mas nunca o seu esplendor literário. Foi desde então a divisa do governo de Ospina Pérez e um dos pilares da sua glória. Chegou‑se a dizer que foi inventada por diversos jornalistas conservadores e, com maiores razões, pelo muito conhecido escritor, político e actual Ministro de Minas e Petróleos, Joaquín Estrada Monsalve, que com efeito esteve no palácio presidencial mas não dentro da sala de reuniões. De modo que ficou na história como dita por quem devia tê‑la dito, numa cidade arrasada onde começavam a gelar as cinzas e num país que nunca mais tornaria a ser o mesmo.

Ao fim e ao cabo, o mérito real do presidente não era inventar frases históricas mas sim entreter os liberais com rebuçados anestesiadores até depois da meia‑noite, quando chegaram as tropas de reforço para reprimir a rebelião da plebe e impor a paz conservadora. Só então, às oito da manhã de 10 de Abril, acordou Darío Echandía com um pesadelo de onze campainhadas de telefone e o nomeou ministro de Governo para um regime de consolação bipartidário. Laureano Gómez, insatisfeito com a solução e inquieto pela sua segurança pessoal, viajou para Nova Iorque com a família, enquanto eram criadas as condições para o seu anseio eterno de ser presidente.

Todo o sonho de mudança social de fundo pelo qual morrera Gaitán se esfumou entre os escombros fumegantes da cidade. Os mortos nas ruas de Bogotá, e pela repressão oficial nos anos seguintes, devem ter sido mais de um milhão, além da miséria e do exílio de tantos. Muito antes de que os dirigentes liberais no alto governo começassem a dar conta que tinham assumido o risco de passar à história na situação de cúmplices.

Entre as muitas testemunhas históricas daquele dia em Bogotá, havia duas que não se conheciam entre si e que, anos depois, seriam dois dos meus grandes amigos. Um era Luis Cardoza y Aragón, um poeta e ensaísta político e literário da Guatemala, que assistia à Conferencia Panamericana como representante do seu país e chefe da sua delegação. O outro era Fidel Castro. Ambos, além disso, foram acusados em dado momento de estarem implicados nos distúrbios.

De Cardoza y Aragón foi dito em concreto que tinha sido um dos promotores, protegido pela sua credencial de delegado especial do governo progressista de Jacobo Arbenz na Guatemala. É preciso compreender que Cardoza y Aragón era delegado de um governo histórico e um grande poeta da língua, que não se teria prestado nunca a uma aventura demente. A evocação mais dolorida no seu belo livro de memórias foi a acusação de Enrique Santos Montejo, Calibán, que na sua popular coluna em El Tiempo, "La Danza de las Horas", lhe atribuiu a missão oficial de assassinar o general George Marshall. Numerosos delegados da conferência manobraram para que o jornal rectificasse aquela afirmação delirante, mas não foi possível. El Siglo, órgão oficial do conservadorismo no poder, proclamou aos quatro ventos que Cardoza y Aragón tinha sido o promotor do motim.

Conheci‑o muitos anos depois na Ciudad de México, com a esposa Lya Kostakowsky, na sua casa de Coyoacán, sacralizada pelas suas recordações e embelezada ainda mais pelas obras originais de grandes pintores do seu tempo. Nós, os seus amigos, reuníamo‑nos ali nas noites de domingo, em serões íntimos de uma importância sem pretensões. Considerava‑se um sobrevivente, primeiro quando o seu automóvel foi metralhado pelos franco‑atiradores apenas umas horas depois do crime. E, dias depois, já com a rebelião vencida, quando um bêbado que se atravessou na rua lhe fez pontaria à cara com um revólver que se encravou duas vezes. O 9 de Abril era um tema recorrente das nossas conversas, nas quais se confundia a raiva com a nostalgia dos anos perdidos.

Fidel Castro, por sua vez, foi vítima de todo o tipo de acusações absurdas, devido a alguns actos ligados à sua condição de activista estudantil. A noite negra, depois de um dia tremendo entre as turbas descontroladas, acabou na Quinta Divisão da Polícia Nacional, em busca de um modo de ser útil para pôr termo à matança de rua. É preciso conhecê‑lo para imaginar o que foi o seu desespero na fortaleza sublevada onde parecia impossível impor um critério comum.

Falou com os chefes da guarnição e outros oficiais sublevados e tentou convencê‑los, sem o conseguir, de que toda a força que se aquartela está perdida. Propôs‑lhes que levassem os seus homens para lutarem nas ruas pela manutenção da ordem e um sistema mais justo. Motivou‑os com todo o género de precedentes históricos, mas não foi ouvido, enquanto tropas e tanques oficiais disparavam contra a fortaleza. Por fim, decidiu correr a mesma sorte dos outros.

De madrugada, chegou à Quinta Divisão Plinio Mendoza Neira com instruções da Direcção Liberal para conseguir a rendição pacífica não só de oficiais e agentes revoltados, como também de numerosos liberais à deriva que esperavam ordens para actuar. Nas muitas horas que durou a negociação de um acordo, ficou fixa na memória de Mendoza Neira a imagem daquele estudante cubano, corpulento e zaragateiro, que várias vezes mediou as controvérsias entre os dirigentes liberais e os oficiais rebeldes com uma lucidez que os ultrapassou a todos. Só anos depois soube quem era porque o viu por acaso em Caracas numa fotografia da noite terrível, quando Fidel Castro estava já na Sierra Maestra.

Conheci‑o onze anos depois, quando compareci como repórter à sua entrada triunfal em La Habana e, com o tempo, conseguimos uma amizade pessoal que resistiu através dos anos a incontáveis tropeções. Nas minhas longas conversas com ele sobre tudo o que é divino e humano, o 9 de Abril foi um tema recorrente que Fidel Castro nunca deixaria de evocar como um dos dramas decisivos da sua formação. Sobretudo a noite na Quinta Divisão, onde se apercebeu de que a maioria dos sublevados que entravam e saíam se dispersavam no saque em vez de persistirem com os seus actos na urgência de uma solução política.

Enquanto aqueles dois amigos eram testemunhas dos factos que dividiram em duas a história da Colômbia, o meu irmão e eu sobrevivíamos nas trevas, com os refugiados, em casa do tio Juanito. Em nenhum momento tive consciência de que já era um aprendiz de escritor que algum dia ia tentar reconstruir de memória o testemunho dos dias atrozes que estávamos a viver.

A minha única preocupação nessa altura era a mais terrena: informar a nossa família de que estávamos vivos ‑ pelo menos até então ‑ e saber ao mesmo tempo dos nossos pais e irmãos, e sobretudo de Margot e Aida, as duas mais velhas, internas em colégios de cidades distantes.

O refúgio do tio Juanito tinha sido um milagre. Os primeiros dias foram difíceis devido aos constantes tiroteios e sem qualquer notícia de confiança. Mas pouco a pouco fomos explorando as lojas vizinhas e conseguíamos comprar coisas para comer. As ruas estavam ocupadas por tropas de assalto e com ordens terminantes para disparar. O incorrigível José Palencia disfarçou‑se de militar, para circular sem restrições, com um chapéu de explorador e umas polainas que encontrou num caixote do lixo, e escapou por milagre à primeira patrulha que o descobriu.

As emissoras comerciais, silenciadas antes da meia‑noite, ficaram sob o controlo do exército. Os telégrafos e telefones, primitivos e escassos, estavam reservados para a ordem pública e não existiam outros recursos de comunicação. As filas para os telegramas eram eternas em frente das instalações a transbordar, mas as estações de rádio instauraram um serviço de mensagens pelo ar para aqueles que tivessem a sorte de as apanhar. Esta via pareceu‑nos a mais fácil e de confiança e a ela nos encomendámos sem demasiadas esperanças.

O meu irmão e eu saímos à rua depois de três dias de reclusão. Foi uma visão aterradora. A cidade estava em escombros, nublada e turva devido à chuva constante, que moderara os incêndios mas atrasara a recuperação. Muitas ruas estavam fechadas devido aos ninhos de franco‑atiradores nas açoteias do centro e era preciso fazer rodeios sem sentido por ordem de patrulhas armadas como para uma guerra mundial. O fedor de morte na rua era insuportável. Os camiões do exército não tinham conseguido recolher os montões de corpos nos passeios e os soldados tinham que enfrentar grupos desesperados por identificar os seus.

Nas ruínas do que fora o centro comercial, a pestilência era irrespirável, a ponto de muitas famílias terem que renunciar à busca. Numa das grandes pirâmides de cadáveres destacava‑se um, descalço e sem calças mas com um fraque irrepreensível. Três dias depois, ainda as cinzas exalavam a pestilência dos corpos sem dono, apodrecidos nos escombros ou empilhados nos passeios.

Quando menos esperávamos, o meu irmão e eu fomos detidos de repente pelo estalido inconfundível do engatilhar de um fuzil nas nossas costas e uma ordem terminante:

‑ Mãos no ar!

Levantei‑as sem pensar sequer, petrificado de terror, até que me ressuscitou a gargalhada do nosso amigo Ángel Casij, que respondera ao apelo das Forças Armadas como reservista de primeira classe. Graças a ele, nós, os refugiados em casa do tio Juanito, conseguimos mandar uma mensagem para o ar depois de um dia de espera em frente da Rádio Nacional. O meu pai ouviu‑a em Sucre, entre as inúmeras que foram lidas de dia e de noite durante duas semanas. O meu irmão e eu, vítimas irremediáveis da mania conjectural da família, ficámos com o receio de que a nossa mãe pudesse interpretar a notícia como uma caridade dos amigos enquanto a preparavam para o pior. Enganámo‑nos por pouco: a mãe tinha sonhado desde a primeira noite que os dois filhos mais velhos se tinham afogado num mar de sangue durante os distúrbios. Deve ter sido um pesadelo tão convincente que quando chegou a verdade por outras vias decidiu que nenhum de nós voltaria nunca mais a Bogotá, mesmo que tivéssemos de ficar em casa a morrer de fome. A decisão deve ter sido terminante, porque a única ordem que nos deram os pais no seu primeiro telegrama foi que viajássemos para Sucre o mais depressa possível para definir o futuro.

Na tensa espera, vários condiscípulos me tinham pintado de ouro a possibilidade de continuar os estudos em Cartagena de índias, pensando que Bogotá recuperaria dos escombros mas que os Bogotanos não iam recuperar nunca do terror e do horror da matança. Cartagena tinha uma Universidade centenária, com tanto prestígio como as suas relíquias históricas, e uma Faculdade de Direito de tamanho humano, onde aceitariam como boas as minhas más classificações da Universidade Nacional.

Não quis descartar a ideia sem antes a ferver a fogo vivo, nem mencioná‑la aos meus pais enquanto não a experimentasse na própria carne. Apenas lhes anunciei que viajaria para Sucre de avião pela via de Cartagena, pois o rio Magdalena, com aquela guerra quente, podia ser um rumo suicida. Luis Enrique, por seu lado, anunciou‑lhes que viajaria para ir procurar trabalho em Barranquilla logo que fizesse as contas com os seus patrões de Bogotá.

De todas as maneiras, eu sabia que não ia ser advogado em parte nenhuma. Só queria ganhar um pouco mais de tempo para distrair os meus pais e Cartagena podia ser uma boa escala técnica para pensar. O que nunca me ocorrera é que aquele cálculo razoável me ia levar a resolver com o coração nas mãos que era ali que queria continuar a minha vida.

Conseguir naqueles dias cinco lugares num mesmo avião para qualquer lugar da costa foi uma proeza do meu irmão. Depois de fazer filas intermináveis e perigosas e de correr de um lado para outro um dia inteiro num aeroporto de emergência, arranjou os cinco lugares em três aviões separados, a horas improváveis e no meio de tiroteios e explosões invisíveis.

Confirmaram por Hm os lugares, ao meu irmão e a mim, no mesmo avião para Barranquilla, mas à última hora fomos em voos diferentes. O chuvisco e o nevoeiro que persistiam em Bogotá desde a sexta‑feira anterior tinham um cheiro de pólvora e corpos em putrefacção. Da casa ao aeroporto fomos interrogados por dois piquetes policiais sucessivos, cujos soldados estavam pasmados de terror. No segundo piquete, atiraram‑se ao chão e obrigaram‑nos a atirar a nós por causa de uma explosão seguida de um tiroteio de armas pesadas que afinal foi devida a uma fuga de gás industrial. Nós e outros passageiros entendemos tudo quando um soldado nos disse que o seu drama era estar ali há três dias de serviço, sem ser rendido mas também sem munições, porque se tinham esgotado na cidade. Mal nos atrevemos a falar desde que nos detiveram, e o terror dos soldados acabou de arrumar connosco. No entanto, depois dos trâmites formais de identificação e motivos, consolou‑nos saber que devíamos permanecer ali sem mais burocracias até que nos levassem para bordo. A única coisa que fumei enquanto esperava foram dois cigarros de três que alguém me dera por caridade, e reservei um para o terror da viagem.

Como não havia telefones, os anúncios de voos e outras mudanças eram conhecidos nos diversos piquetes por meio de ordenanças militares em motocicletas. Às oito da manhã chamaram um grupo de passageiros para entrarem de imediato a bordo para Barranquilla num avião diferente do meu. Soube depois que os outros três do nosso grupo embarcaram com o meu irmão noutro piquete. A espera solitária foi um tratamento radical para o meu medo congénito de voar, porque à hora de subir para o avião o céu estava encoberto e com pedregosos trovões. Além disso, a escada do nosso avião tinha sido levada para outro e dois soldados tiveram que me ajudar a entrar para bordo com uma escada de pedreiro. Era no mesmo aeroporto e à mesma hora em que Fidel Castro entrara para outro avião que partiu para La Habana carregado de touros de lide ‑ como ele mesmo me contou anos depois.

Por boa ou má sorte, o meu era um DC‑3 a tresandar a tinta fresca e a óleos recentes, sem luzes individuais nem ventilação regulada na cabina de passageiros. Estava preparado para transporte de tropas e em vez de assentos separados em filas de três, como nos voos turísticos, tinha dois bancos longitudinais de tábuas vulgares, bem presos ao pavimento. Toda a minha bagagem era uma mala de tela com duas ou três mudas de roupa suja, livros de poesia e recortes de suplementos literários que o meu irmão Luis Enrique conseguiu salvar. Os passageiros ficaram sentados uns em frente dos outros, da cabina de comando até à cauda. Em vez de cintos de segurança, havia dois cabos de pita para amarrar barcos, que eram uma espécie de dois longos cintos de segurança colectivos para cada lado. O mais duro para mim foi que logo que acendi o único cigarro reservado para sobreviver ao voo, o piloto de macacão nos informou da cabina que era proibido fumar porque os tanques de gasolina do avião estavam a nossos pés, por baixo do chão de tábuas. Foram três horas de voo intermináveis.

Quando chegámos a Barranquilla, acabava de chover como só chove em Abril, com casas desenterradas de raiz e arrastadas pela corrente das ruas e doentes solitários que se afogavam nas suas camas. Tive que esperar que estiasse de vez no aeroporto tornado caótico pelo dilúvio e consegui averiguar com dificuldade que o avião do meu irmão e dos seus dois acompanhantes tinha chegado a horas, mas os três apressaram‑se a abandonar o terminal antes dos primeiros trovões de um primeiro aguaceiro.

Precisei de mais três horas para chegar à agência de viagens e perdi o último autocarro que saiu para Cartagena com o horário antecipado prevendo a tempestade. Não me preocupei, porque acreditei que o meu irmão tivesse seguido nele, mas assustei‑me por mim ante a ideia de dormir uma noite sem dinheiro em Barranquilla. Por fim, graças a José Palencia, consegui um asilo de emergência na casa das belas irmãs Use e Lila Albarracín, e três dias depois viajei para Cartagena no autocarro coxo da Agência Postal. O meu irmão Luis Enrique permaneceria à espera de um emprego em Barranquilla. Não me restavam mais de oito pesos, mas José Palencia prometeu levar‑me mais algum no autocarro da noite. Não havia um espaço livre, nem mesmo de pé, mas o condutor aceitou levar no tejadilho três passageiros, sentados nas suas cargas e bagagens e por um quarto do preço regulamentar. Em tão estranha situação, e em pleno sol, creio que tomei consciência de que naquele 9 de Abril de 1948 começara na Colômbia o século XX.

 

No fim de um dia de trambolhões mortais por um caminho de carroças, a camioneta da Agência Postal exalou o seu último suspiro onde não merecia: atolada num mangal pestilento de peixes podres, a meia légua de Cartagena de índias. "Quem viaja de camioneta, não sabe onde morre", recordei com a memória do meu avô. Os passageiros, embrutecidos por seis horas de sol a pino e pela pestilência do pântano, não esperaram que pusessem a escada para descerem, apressando‑se a atirar pela borda fora os huacales (Huacal ou guacal ‑ cesto rectangular para transportar frutas, animais, loiças, etc. (N. T.)) de galinhas, os volumes de bananas e todo o género de coisas de vender ou morrer que lhes tinham servido para se sentarem no tejadilho da camioneta. O condutor saltou do seu assento e anunciou com um grito mordaz:

‑ La Heróica!

É o nome emblemático pelo qual é conhecida Cartagena de índias pelas suas glórias do passado, e ali devia estar. Mas não a via porque mal podia respirar dentro do fato de tecido preto que usava desde o dia 9 de Abril. Os outros dois do meu roupeiro tinham tido a mesma sorte que a máquina de escrever na casa de penhores, mas a versão honrosa para os meus pais foi que a máquina e outras coisas de inutilidade pessoal tinham desaparecido, tal como a roupa, na barafunda do incêndio. O condutor insolente, que durante a viagem troçara do meu ar de bandoleiro, estava a rebentar de gozo quando continuei às voltas em torno de mim mesmo sem encontrar a cidade.

‑ Está no teu eu! ‑ gritou‑me para todos. ‑ E tem cuidado, porque ali condecoram os palermas.

Cartagena de índias, com efeito, estava nas minhas costas há quatrocentos anos, mas não me foi fácil imaginá‑la a meia légua dos mangais, escondida pela muralha lendária que a manteve a salvo de gentios e piratas nos seus anos grandes, e acabara por desaparecer sob um emaranhado de ramagens e longas lianas de campânulas amarelas. De modo que me juntei ao tumulto dos passageiros e arrastei a mala pelo matagal atapetado de caranguejos vivos cujas cascas estralejavam como petardos sob as solas dos sapatos. Foi impossível não me lembrar então do embrulho feito com uma esteira de esparto que os meus companheiros atiraram ao rio Magdalena na minha primeira viagem, ou do baú funerário que arrastei por meio país, a chorar de raiva, nos meus primeiros anos do liceu e que atirei depois de um precipício dos Andes em honra do meu grau de bacharel. Sempre me pareceu que havia algo de um destino estranho naquelas sobrecargas imerecidas e não bastaram os meus já longos anos para o desmentir.

Mal começávamos a vislumbrar o perfil de algumas cúpulas de igrejas e conventos na bruma do entardecer quando nos saiu ao caminho uma revoada de morcegos que voavam rente às nossas cabeças e só pela sua sabedoria não nos atiravam ao chão. As asas zumbiam como um tropel de trovões e deixavam ao passar uma peste de morte. Surpreendido pelo pânico, larguei a mala e encolhi‑me no chão com os braços na cabeça, até que uma mulher mais velha, que caminhava ao meu lado, me gritou:

‑ Reza La Magnifica!

Isto é, a oração secreta para conjurar assaltos do demónio, repudiada pela Igreja mas consagrada pelos grandes ateus quando já não lhes chegavam as blasfémias. A mulher apercebeu‑se de que eu não sabia rezar e agarrou na minha mala pela outra pega para me ajudar a levá‑la.

‑ Reza comigo ‑ disse. ‑ Mas tem de ser com muita fé.

Ditou‑me portanto La Magnífica verso por verso e repeti‑os em voz alta com uma devoção que nunca mais voltei a sentir. A revoada de morcegos, embora hoje tenha dificuldade em acreditar no facto, desapareceu do céu antes de acabarmos de rezar. Apenas ficou então o imenso fragor do mar nas escarpas.

Tínhamos chegado à grande Puerta del Reloj. Durante cem anos houve ali uma ponte levadiça que estabelecia a comunicação entre a cidade antiga e o arrabalde de Getsemani e os populosos bairros de pobres dos mangais, mas levantavam‑na das nove da noite até ao amanhecer. A população ficava isolada não só do resto do mundo mas também da história. Dizia‑se que os colonos espanhóis tinham construído aquela ponte com medo que os miseráveis dos subúrbios se introduzissem na cidade à meia‑noite para os degolarem enquanto dormiam. No entanto, algo da sua graça divina devia restar à cidade, porque me bastou dar um passo dentro da muralha para vê‑la em toda a sua grandeza à luz malva das seis da tarde e não pude reprimir o sentimento de ter voltado a nascer.

Não era para menos. No princípio da semana tinha deixado Bogotá a chapinhar num pântano de sangue e lodo, ainda com montões de cadáveres sem dono abandonados entre escombros fumegantes. De repente, o mundo tornara‑se outro em Cartagena.

Não havia rastos da guerra que assolava o país, e tinha dificuldade em acreditar que aquela solidão sem dor, aquele mar incessante, aquela imensa sensação de ter chegado estava a suceder‑me apenas uma semana depois numa mesma vida.

De tanto ouvir falar dela desde que nasci, identifiquei de imediato a praceta onde estacionavam os carros de cavalos e as carroças de carga puxadas por burros e, ao fundo, a galeria de arcadas onde o comércio popular se tornava mais denso e buliçoso. Embora não estivesse assim reconhecido na consciência oficial, aquele era o último coração activo da cidade desde as suas origens. Durante a Colónia, chamou‑se o Portal de los Mercaderes. Dali se manobravam os fios invisíveis do comércio de escravos e se cozinhavam os ânimos contra o domínio espanhol. Mais tarde, foi chamado Portal de los Escribanos, por causa dos calígrafos taciturnos, com casacos de lã e mangas‑de‑alpaca, que escreviam cartas de amor e todo o género de documentos para os iletrados pobres. Muitos foram livreiros de lances por baixo da mesa, em especial de obras condenadas pelo Santo Ofício, e julga‑se que eram oráculos da conspiração crioula contra os espanhóis. Nos princípios do século XX, o meu pai costumava aliviar os seus ímpetos de poeta com a arte de escrever cartas de amor no portal. É evidente que não prosperou como um nem como outro, porque alguns clientes espertalhões ‑ ou de facto desfavorecidos ‑ não só lhe pediam por caridade que lhes escrevesse a carta, como além disso os cinco reais para o correio.

Há vários anos que se chamava Portal de los Dulces, com os toldos de lona apodrecidos e os mendigos que vinham comer as sobras do mercado, e os gritos agoirentos dos índios que cobravam caro para não cantar ao cliente o dia e a hora em que ia morrer.

As escunas do Caribe demoravam‑se no porto para comprar os doces de nomes inventados pelas próprias comadres que os faziam e versificados pelos pregões: "Os piononos para os monos, os diabolines para os meninos, as de coco para os loucos, as de panela para a Manuela". Pois para o bem e para o mal, o portal continuava a ser um centro vital da cidade, onde eram ventilados assuntos de Estado nas costas do governo e o único lugar do mundo onde as vendedeiras de frituras sabiam quem seria o próximo governador antes que isso ocorresse em Bogotá ao Presidente da República.

Fascinado de imediato com a algaraviada, abri passagem aos tropeções, com a minha mala a arrastar, por entre a multidão das seis da tarde. Um velho andrajoso e só ossos olhava‑me sem pestanejar da plataforma dos engraxadores com uns olhos gelados de gavião. Estaquei. Logo que viu que o tinha visto, ofereceu‑se para me levar a mala. Agradeci‑lhe, até que precisou na sua língua materna:

‑ São trinta chibos.

Impossível. Trinta centavos para levar uma mala era uma dentada para os únicos quatro pesos que me restavam até receber os reforços dos meus pais na semana seguinte.

‑ Isso vale a mala com tudo o que tem dentro ‑ disse‑lhe.

Além disso, a pensão onde já devia estar a pandilha de Bogotá não ficava muito longe. O velho resignou‑se com três chibos, pendurou ao pescoço as abarcas (Abarcas ‑ calçado rústico com tiras de couro não curtido. (N. T.)) que tinha calçadas, carregou a mala ao ombro com uma força inverosímil para os seus ossos e correu como um atleta de pé descalço por um caminho de casas coloniais descascadas por séculos de abandono. O coração saía‑me pela boca, com os meus vinte e um anos, tentando não perder de vista o velhote olímpico a quem não podiam restar muitas horas de vida. Ao fim de cinco quarteirões, entrou pelo portão grande do hotel e subiu dois a dois os degraus das escadas. Com o fôlego intacto, poisou a mala no chão e estendeu‑me a palma da mão:

‑ Trinta chibos.

Recordei‑lhe que já lhe tinha pago, mas ele teimou que os três centavos do portal não incluíam a escada. A dona do hotel que nos veio receber deu‑lhe razão: a escada era paga à parte. E fez‑me um prognóstico válido para toda a minha vida: ‑ Logo verás que em Cartagena tudo é diferente.

Tive de enfrentar além disso a má notícia de que ainda não tinha chegado nenhum dos meus companheiros da pensão de Bogotá, embora tivessem reservas confirmadas para quatro, eu incluído. O programa combinado com eles era encontrarmo‑nos no hotel antes das seis da tarde daquele dia. A troca do autocarro regular pelo desconjuntado da Agência Postal atrasou‑me três horas, mas ali estava, mais pontual do que todos, sem poder fazer nada com quatro pesos menos trinta e três centavos. Pois a dona do hotel era uma mãe encantadora mas escrava das suas próprias normas, como havia de confirmar nos dois longos meses que vivi no seu hotel. Portanto, não aceitou registar‑me se não pagasse o primeiro mês adiantado: dezoito pesos pelas três refeições num quarto para seis.

Não esperava o auxílio dos meus pais antes de uma semana, de modo que a minha mala não passaria do patamar enquanto não chegassem os amigos que me podiam ajudar. Sentei‑me à espera numa poltrona de arcebispo com grandes flores pintadas que me caiu do céu depois do dia inteiro a sol aberto na camioneta da minha desgraça. A verdade era que ninguém tinha a certeza de nada naqueles dias. Termo‑nos posto de acordo para nos encontrarmos ali numa data e a uma hora exactas era falta de sentido da realidade, porque não nos atrevíamos a dizer nem para nós mesmo que meio país estava numa guerra sangrenta, dissimulada nas províncias há vários anos e aberta e mortal nas cidades há uma semana.

Oito horas depois, encalhado no hotel de Cartagena, não entendia o que poderia ter sucedido com José Palencia e os seus amigos. Ao fim de mais outra hora de espera sem notícias, pus‑me a vaguear pelas ruas desertas. Em Abril escurece cedo. As luzes públicas estavam já acesas e eram tão pobres que se podiam confundir com estrelas entre as árvores. Bastou‑me uma primeira volta de quinze minutos ao acaso pelas curvas das ruelas empedradas do sector colonial para descobrir com grande alívio do peito que aquela estranha cidade não tinha nada que ver com o fóssil enlatado que nos descreviam na escola.

Não havia vivalma nas ruas. As multidões que chegavam dos subúrbios ao amanhecer para trabalhar ou vender, regressavam em tropel aos seus bairros às cinco da tarde, e os habitantes do recinto murado encerravam‑se nas suas casas para jantar e jogar dominó até à meia‑noite. O hábito dos automóveis pessoais ainda não estava estabelecido e os poucos em serviço ficavam fora da muralha. Mesmo os funcionários mais presunçosos continuavam a chegar à Plaza de los Coches nos autocarros do artesanato local, e dali abriam caminho para os seus escritórios, saltando por cima das bancas de bugigangas expostas nos passeios públicos. Um governador dos mais afectados daqueles anos trágicos gabava‑se de continuar a vir do seu bairro de eleitos até à Plaza de los Coches nos mesmos autocarros em que fora para a escola.

O alívio dos automóveis tinha sido forçoso porque iam em sentido contrário da realidade histórica: não cabiam nas ruas estreitas e retorcidas da cidade onde ressoavam na noite os cascos por ferrar dos cavalos raquíticos. Em tempos de grandes calores, quando se abriam as varandas para entrar o fresco dos parques, ouviam‑se as lufadas das mais íntimas conversas com uma ressonância fantasmagórica. Os avós que dormitavam ouviam passos furtivos nas ruas de pedra, prestavam‑lhes atenção sem abrirem os olhos até os reconhecerem, e diziam desencantados: "Ali vai o José António ter co'a Chabela." A única coisa que na realidade perturbava os que perdiam o sono eram as pancadas secas das fichas nas mesas de dominó, que ressoavam em todo o recinto muralhado.

Foi uma noite histórica para mim. Mal conseguia reconhecer na realidade as ficções escolásticas dos livros, já derrotadas pela vida. Emocionou‑me até às lágrimas que os velhos palácios dos marqueses fossem os mesmos que tinha diante dos olhos, sem portas, com os mendigos a dormir nos saguões. Vi a catedral sem os sinos, levados pelo pirata Francis Drake para fabricar canhões. Os poucos que se salvaram do assalto foram exorcizados depois de os bruxos do bispo os sentenciarem à fogueira pelas suas ressonâncias malignas para convocar o diabo. Vi as árvores murchas e as estátuas de próceres que não pareciam esculpidas em mármores perecíveis mas mortos em carne viva. E que em Cartagena não estavam preservadas contra o óxido do tempo, mas de facto o contrário: era preservado o tempo para as coisas que continuavam a ter a idade original, enquanto os séculos envelheciam. Foi assim que mesmo na noite da minha chegada a cidade se me revelou a cada passo com a sua vida própria, não como o fóssil de cartão‑pedra dos historiadores, mas como uma cidade de carne e osso que já não era sustentada pelas suas glórias marciais mas pela dignidade dos seus escombros.

Com esse novo alento regressei à pensão quando deram as dez na Torre del Reloj. O guarda meio adormecido informou‑me de que nenhum dos meus amigos tinha chegado, mas que a minha mala estava a bom recato no depósito do hotel. Só então tomei consciência de não ter comido nem bebido desde o mau pequeno‑almoço de Barranquilla. As pernas falhavam‑me por causa da fome, mas ter‑me‑ia conformado se a dona me aceitasse a mala e me deixasse dormir no hotel naquela única noite, mesmo que fosse na poltrona da sala. O guarda riu‑se da minha inocência.

‑ Não sejas maricas! ‑ disse‑me em caribenho cru. ‑ Com os montões de massa que tem essa madama, adormece às sete e levanta‑se no dia seguinte às onze.

Pareceu‑me um argumento tão legítimo que me sentei num banco do Parque de Bolívar, do outro lado da rua, à espera que chegassem os meus amigos, sem incomodar ninguém. As árvores murchas mal se viam com a luz da rua, pois os candeeiros do parque só eram acesos aos domingos e dias de festa. Os bancos de mármore tinham marcas de escritos muitas vezes apagados e voltados a escrever por poetas insolentes. No Palácio de La Inquisición, por trás da sua fachada da época dos vice‑reis esculpida em pedra virgem e do seu portão de basílica principal, ouvia‑se o lamento inconsolável de um pássaro doente que não podia ser deste mundo. A ansiedade de fumar assaltou‑me ao mesmo tempo que a de ler, dois vícios que se confundiram na minha juventude pela sua impertinência e tenacidade. Contraponto, o romance de Aldous Huxley, que o medo físico não me permitira continuar a ler no avião, dormia fechado à chave na minha mala. De modo que acendi o último cigarro com uma estranha sensação de alívio e terror, e apaguei‑o a meio como reserva para uma noite sem manhã.

E com o espírito disposto para dormir no banco onde estava sentado, pareceu‑me de repente que havia qualquer coisa oculta entre as sombras mais espessas das árvores.

Era a estátua equestre de Simón Bolívar. Ninguém menos: o general Simón José António de La Santísima Trinidad Bolívar y Palácios, o meu herói desde que mo ordenou o meu avô, com o seu radiante uniforme de gala e a sua cabeça de imperador romano, cagado pelas andorinhas.

Continuava a ser o meu personagem inesquecível, apesar das suas inconsequências imperdoáveis ou talvez por elas mesmas. No fim de contas, eram só comparáveis àquelas com que o meu avô conquistou o seu posto de coronel e arriscou a vida tantas vezes na guerra que os liberais travaram contra o próprio Partido Conservador fundado e sustentado por Bolívar. Andava por essas nebulosas quando me pôs em terra firme uma voz peremptória nas minhas costas:

‑ Mãos ao ar!

Levantei‑as, aliviado, certo de que eram por fim os meus amigos e deparei com dois agentes da polícia, rústicos e quase andrajosos, que me apontavam as espingardas novas. Queriam saber por que tinha violado o recolher obrigatório que estava em vigor desde duas horas antes. Nem sequer sabia que o tivessem imposto no domingo anterior, como eles me informaram, nem ouvira toques de cornetas ou sinos, nem nenhum outro indício que me tivesse permitido entender por que não havia ninguém nas ruas. Os agentes foram mais preguiçosos do que compreensivos quando viram os meus papéis de identidade, enquanto lhes explicava por que estava ali. Devolveram‑mos sem os olharem. Perguntaram‑me que dinheiro tinha e disse‑lhes que não chegava a quatro pesos. Então o mais decidido dos dois pediu‑me um cigarro e mostrei‑lhes a beata apagada que pensava fumar antes de adormecer. Tirou‑ma e fumou‑a até às unhas. Passado um bocado, levaram‑me pelo braço ao longo da rua, mais pelas ânsias de fumar do que por disposição da lei, em busca de um lugar aberto para comprar cigarros avulso de um centavo.

A noite tornara‑se diáfana e fresca sob a lua cheia e o silêncio parecia uma substância invisível que se podia respirar como o ar. Compreendi então o que tanto nos contava o meu pai sem que o acreditássemos, que ensaiava o violino de madrugada no silêncio do cemitério para sentir que as suas valsas de amor podiam ser ouvidas em todo o espaço do Caribe.

Cansados da procura inútil de cigarros avulso, saímos da muralha em direcção a um molhe de cabotagem com vida própria por trás do mercado público, onde atracavam as escunas do Curaçau e de Aruba e outras Antilhas menores. Era a zona nocturna da gente mais divertida e útil da cidade, que tinha direito a salvo‑condutos para o recolher obrigatório devido à índole dos seus ofícios. Comiam até de madrugada numa tasca a céu aberto, com bom preço e melhor companhia, pois ali iam parar não só os empregados nocturnos, mas também todo aquele que quisesse comer quando já não havia onde. O lugar não tinha nome oficial e era conhecido com o que menos lhe assentava: La Cueva.

Os agentes chegaram como se estivessem em casa. Era evidente que os clientes já sentados à mesa se conheciam desde sempre e se sentiam contentes por estar juntos. Era impossível detectar apelidos porque todos se tratavam pelas alcunhas da escola e falavam aos gritos e ao mesmo tempo, sem se ouvirem uns aos outros nem olharem para ninguém. Estavam em roupa de trabalho, salvo um sessentão adónico, de cabeça nevada, com smoking de outros tempos, junto de uma mulher madura mas ainda muito bela, com um fato de lantejoulas gasto pelo uso e demasiadas jóias legítimas. A sua presença podia ser um dado vivo da sua condição, porque eram muito raras as mulheres cujos maridos lhes permitissem aparecer naqueles lugares de má fama. Teria pensado que eram turistas se não fosse pela descontracção e sotaque crioulo e a sua familiaridade com todos. Soube mais tarde que não eram nada do que pareciam, mas sim um velho casal de cartageneiros excêntricos que se vestiam de gala com qualquer pretexto para jantar fora de casa e naquela noite encontraram os anfitriões a dormir e os restaurantes fechados por causa do recolher obrigatório.

Foram eles que nos convidaram a cear. Os outros abriram espaço na mesa corrida e sentámo‑nos os três um pouco apertados e intimidados. Também tratavam os agentes com familiaridade de criados. Um era sério e à‑vontade e tinha reflexos de menino bem à mesa. O outro parecia despassarado, excepto no comer e no fumar. Eu, mais por timidez do que por comedimento, pedi menos pratos do que eles e quando me apercebi que ia ficar com mais de metade da minha fome já os outros tinham acabado.

O proprietário e servidor único de La Cueva chamava‑se Juan de Las Nieves, um negro quase adolescente, de uma beleza incómoda, envolto em imaculadas roupagens de muçulmano e sempre com um cravo vivo na orelha. Mas o que mais se notava nele era a inteligência excessiva, que sabia usar sem reservas para ser feliz e fazer felizes os outros. Era evidente que lhe faltava muito pouco para ser mulher e tinha uma fama bem fundada de que só ia para a cama com o marido. Ninguém lhe disse nunca uma piada pela sua condição, porque tinha uma graça e uma rapidez de réplica que não deixava favor por agradecer nem agravo por cobrar. Ele sozinho fazia tudo, desde cozinhar com certeza o que sabia que cada cliente gostava, até fritar as fatias de banana verde com uma mão e fazer as contas com a outra, sem outra ajuda do que a bem escassa de um garoto de uns seis anos que lhe chamava mãe. Quando nos despedimos, sentia‑me comovido pelo achado mas não poderia ter imaginado que aquele lugar de malandros tresnoitados ia ser um dos inesquecíveis da minha vida.

Depois de comer acompanhei os agentes para as suas rondas atrasadas. A Lua era um prato de ouro no céu. A brisa começava a levantar‑se e arrastava de muito longe retalhos de música e gritos remotos de grande paródia. Mas os agentes sabiam que nos bairros de pobres ninguém ia para a cama por causa do recolher obrigatório e, em vez disso, faziam bailes por quotas em casas diferentes cada dia, sem saírem para a rua até ao amanhecer.

Quando bateram as duas, tocámos no meu hotel certos de que os amigos tinham chegado, mas desta vez o guarda mandou‑nos para o caralho sem complacências por o termos acordado para nada. Os agentes perceberam então que eu não tinha onde dormir e resolveram levar‑me para o quartel. Pareceu‑me uma brincadeira tão atrevida que perdi o bom humor e lhes atirei uma impertinência. Um deles, surpreendido pela minha reacção pueril, meteu‑me na ordem com o cano do fuzil no estômago.

‑ Deixa de ser parvo ‑ disse‑me, morto de riso. ‑ Lembra‑te que ainda estás preso por violar o recolher obrigatório.

Assim dormi ‑ num calaboiço para seis e sobre uma esteira fermentada de suor alheio ‑ a minha primeira noite feliz de Cartagena.

Chegar à alma da cidade foi muito mais fácil do que sobreviver ao primeiro dia. Passadas duas semanas, tinha resolvido as relações com os meus pais, que aprovaram sem reservas a minha decisão de viver numa cidade sem guerra. A dona do hotel, arrependida por me ter condenado a uma noite na prisão, arrumou‑me com mais vinte estudantes num barracão recém‑construído na açoteia da sua linda casa colonial. Não tive razões de queixa, pois era uma cópia caribenha do dormitório do Liceo Nacional e custava menos do que a pensão de Bogotá com tudo incluído.

O ingresso na Faculdade de Direito foi resolvido numa hora com o exame de admissão diante do secretário, Ignacio Vélez Martínez, e de um professor de Economia Política cujo nome não consegui encontrar nas minhas recordações. Como era habitual, o acto foi na presença do segundo ano em peso. Desde o preâmbulo, chamou‑me a atenção a clareza de raciocínio e a precisão da linguagem dos dois professores, numa região famosa no interior do país pela sua trapalhice verbal. O primeiro tema, por sorteio, foi a Guerra da Secessão dos Estados Unidos, da qual eu sabia um pouco menos do que nada. Foi uma pena não ter ainda lido os novos romancistas norte‑americanos, que mal começavam a chegar até nós, mas tive a sorte de o doutor Vélez Martínez começar com uma referência casual a A Cabana do Pai Tomás, que eu conhecia bem desde o bacharelato. Apanhei‑a pelo ar. Os dois professores devem ter sofrido um ataque de nostalgia, pois os sessenta minutos que estavam reservados para o exame foram passados na íntegra numa análise emocional sobre a ignomínia do regime esclavagista no Sul dos Estados Unidos. E por ali nos ficámos. De modo que o previsto por mim como uma roleta russa foi uma conversa animada que mereceu uma boa classificação e alguns aplausos cordiais.

Assim ingressei na Universidade para terminar o segundo ano de Direito, com a condição nunca cumprida de me apresentar a exames de recuperação numa ou duas disciplinas que ainda me faltavam do primeiro ano em Bogotá. Alguns condiscípulos entusiasmaram‑se com a minha maneira de domesticar os temas, porque havia entre eles uma certa militância em favor da liberdade criativa numa universidade encalhada no rigor académico. Era o meu sonho solitário desde o liceu, não por um inconformismo gratuito mas como a minha única esperança de passar nos exames sem estudar. No entanto, os mesmos que proclamavam a independência de critério nas aulas, não podiam deixar de render‑se à fatalidade e subiam ao patíbulo dos exames com os calhamaços atávicos dos textos coloniais aprendidos de cor. Por sorte, na vida real eram mestres curtidos na arte de manter vivos os bailes por quotas das sextas‑feiras, apesar dos riscos da repressão, cada dia mais descarada à sombra do estado de sítio. Os bailes continuaram a ser feitos por acordos de mão esquerda com as autoridades de ordem pública enquanto se manteve o recolher obrigatório e, quando foi eliminado, renasceram da sua agonia com mais ânimo do que antes. Sobretudo em Torices, Getsemaní ou ao pé de La Popa, os bairros mais foliões daqueles anos sombrios. Bastava assomar às janelas para escolhermos a festa que nos agradasse mais e por cinquenta centavos dançava‑se até ao amanhecer com a música mais quente do Caribe, aumentada pelo som dos alto‑falantes. Os pares convidados por cortesia eram as mesmas estudantes que víamos durante a semana à saída das escolas, só que usavam os uniformes da missa dominical e dançavam como cândidas mulheres da vida sob o olhar atento de tias vigilantes ou mães liberais. Numa dessas noites de caça maior, andava por Getsemaní, que foi durante a Colónia o arrabalde dos escravos, quando reconheci como um santo‑e‑senha uma forte palmada nas costas e o estoiro de uma voz:

‑ Bandido!

Era Manuel Zapata Olivella, habitante empedernido da Calle de La Mala Crianza, onde vivera a família dos avós dos seus tataravós africanos. Tínhamo‑nos visto em Bogotá, no meio do fragor do 9 de Abril, e o nosso primeiro assombro em Cartagena foi reencontrarmo‑nos vivos. Manuel, além de médico de caridade, era romancista, activista político e promotor da música caribenha, mas a sua vocação mais dominante era tentar resolver os problemas de todo o mundo.

Ainda mal tínhamos trocado as nossas experiências da sexta‑feira aziaga e os nossos planos para o futuro, quando me propôs que tentasse a sorte no jornalismo. Um mês antes, o dirigente liberal Domingo López Escauriaza fundara o diário El Universal, cujo chefe de redacção era Clemente Manuel Zabala. Tinha ouvido falar dele não como jornalista mas como erudito de todas as músicas e comunista em repouso. Zapata Olivella insistiu que o fôssemos ver, pois sabia que procurava gente nova para provocar com o exemplo um jornalismo criador contra o rotineiro e submisso que reinava no país, sobretudo em Cartagena, que era nessa altura uma das cidades mais retardatárias. Tornara‑se para mim muito claro que o jornalismo não era a minha profissão. Queria ser um escritor diferente, mas procurava sê‑lo por imitação de outros autores que não tinham nada que ver comigo. De modo que naqueles dias estava numa pausa de reflexão, porque depois dos meus primeiros três contos publicados em Bogotá, e tão elogiados por Eduardo Zalamea e outros críticos e bons e maus amigos, sentia‑me num beco sem saída. Zapata Olivella insistiu contra as minhas razões em que jornalismo e literatura acabavam no fundo por ser a mesma coisa e um vínculo com El Universal poderia garantir‑me três destinos ao mesmo tempo: resolver‑me a vida de uma maneira digna e útil, colocar‑me num meio profissional que era por si só um ofício importante e trabalhar com Clemente Manuel Zabala, o melhor mestre de jornalismo que se poderia imaginar. O travão de timidez que me provocou aquele raciocínio tão simples conseguiu pôr‑me a salvo de uma desgraça. Mas Zapata Olivella não sabia sobreviver aos seus fracassos e marcou‑me encontro para o dia seguinte, às cinco da tarde, no número 381 da Calle de San Juan de Dios, onde ficava o jornal.

Dormi em sobressalto essa noite. No dia seguinte, ao pequeno‑almoço, perguntei à dona do hotel onde ficava a Calle de San Juan de Dios e ela apontou‑ma com o dedo da janela.

‑ É ali mesmo ‑ disse ‑, dois quarteirões adiante.

Ali ficavam as instalações de El Universal, em frente da imensa parede de pedra dourada da igreja de San Pedro Claver, o primeiro santo das Américas, cujo corpo incorrupto está exposto há mais de cem anos por baixo do altar‑mor. É um velho edifício colonial bordado de remendos republicanos e duas portas grandes e umas janelas pelas quais se via tudo o que era o jornal. Mas o meu verdadeiro terror estava por trás de uma balaustrada de madeira por afagar a uns três metros da janela: um homem maduro e solitário, vestido de cotim branco, com casaco e gravata, de pele escura e cabelos duros e negros de índio, que escrevia a lápis numa velha secretária com rimas de papéis atrasados. Tornei a passar em sentido contrário com uma fascinação premente, e mais duas vezes, e à quarta vez, tal como na primeira, não tive a mínima dúvida de que aquele homem era Clemente Manuel Zabala, idêntico a como o imaginara, mas mais temível. Aterrado, tomei a decisão simples de não comparecer ao encontro daquela tarde com um homem a quem bastava ver por uma janela para descobrir que sabia demasiado sobre a vida e os seus ofícios. Regressei ao hotel e regalei‑me com outro dos meus dias típicos sem remorsos, estendido de barriga para o ar na cama com Os Moedeiros Falsos de André Gide e fumando sem parar. Às cinco da tarde, a porta do quarto estremeceu com uma palmada seca como um tiro de espingarda.

‑ Vamos, caralho! ‑ gritou‑me da entrada Zapata Olivella. ‑ Zabala está à tua espera e ninguém neste país pode dar‑se ao luxo de o deixar pendurado.

A princípio foi mais difícil do que teria imaginado num pesadelo. Zabala recebeu‑me sem saber o que fazer, a fumar sem pausa, com um desassossego agravado pelo calor. Mostrou‑nos tudo. De um lado, a direcção e a gerência. Do outro, a sala de redacção e a oficina, com três secretárias desocupadas àquelas horas prematuras e, ao fundo, uma rotativa sobrevivente de um motim e os dois únicos linótipos.

A minha grande surpresa foi que Zabala tinha lido os meus três contos e a nota de Zalamea parecera‑lhe justa.

‑ A mim, não ‑ disse eu. ‑ Não gosto dos contos. Escrevi‑os por impulsos um pouco inconscientes e depois de os ler impressos não soube como continuar.

Zabala aspirou a fundo o fumo e disse a Zapata Olivella:

‑ É um bom sintoma.

Manuel agarrou a ocasião pelo ar e disse‑lhe que eu poderia ser‑lhe útil no jornal no tempo livre da Universidade. Zabala disse que pensara o mesmo quando Manuel lhe pediu a entrevista para mim. Apresentou‑me ao doutor López Escauriaza, o director, como o possível colaborador de que lhe tinha falado na noite anterior.

‑ Seria estupendo ‑ disse o director, com o seu eterno sorriso de cavalheiro à antiga.

Não assentámos nada, mas o mestre Zabala pediu‑me que voltasse no dia seguinte para me apresentar a Héctor Rojas Herazo, poeta e pintor dos bons e o seu colunista‑vedeta. Não lhe disse que tinha sido meu professor de desenho no Colégio San José por uma timidez que hoje me parece inexplicável. Ao sair dali, Manuel deu um salto na Plaza de La Aduana, em frente da fachada imponente de San Pedro Claver, e exclamou com um júbilo prematuro:

‑ Já viste, tigre, a coisa está feita!

Correspondi‑lhe com um abraço cordial para não o desiludir, mas ficava com sérias dúvidas sobre o meu futuro. Manuel perguntou‑me então como me parecera Zabala e respondi‑lhe a verdade. Pareceu‑me um pescador de almas. Era esse talvez um motivo determinante dos grupos juvenis que se alimentavam da sua razão e da sua cautela. Concluí, sem dúvida com uma falsa apreciação de velho prematuro, que talvez fosse esse modo de ser que o impedira de ter um papel decisivo na vida pública do país.

Manuel telefonou‑me à noite, morto de riso devido a uma conversa que tivera com Zabala. Este falara‑lhe de mim com grande entusiasmo, reiterara a sua certeza de que seria uma aquisição importante para a primeira página e o director pensava da mesma maneira. Mas a verdadeira razão do seu telefonema era contar‑me que a única coisa que inquietava o mestre Zabala era que a minha timidez doentia podia ser um obstáculo grande na minha vida.

Se à última hora decidi voltar ao jornal foi porque na manhã seguinte me abriu a porta do duche um companheiro de quarto e me pôs diante dos olhos a primeira página de El Universal. Havia uma nota terrificante sobre a minha chegada à cidade, que me comprometia como escritor antes de o ser e como jornalista iminente a menos de vinte e quatro horas de ter visto por dentro um jornal pela primeira vez. Sem disfarçar a raiva, censurei Manuel, que me telefonou nesse momento para me felicitar, o facto de ter escrito algo tão irresponsável sem antes ter falado comigo. No entanto, algo mudou em mim, e talvez para sempre, quando soube que a nota a escrevera o mestre Zabala pelo seu punho e letra. Amarrei portanto as calças e voltei à redacção para lhe agradecer. Mal fez caso de mim. Apresentou‑me a Héctor Rojas Herazo, com calças de caqui e camisa de flores amazónicas e palavras enormes disparadas com voz de trovão, que não se rendia na conversa até agarrar a sua presa. Ele, como é evidente, não me reconheceu como mais um dos seus alunos do Colégio San José de Barranquilla.

O mestre Zabala ‑ como todos o chamavam ‑ colocou‑nos na sua órbita com recordações de dois ou três amigos comuns e de outros que eu devia conhecer. Depois deixou‑nos sós e regressou à guerra encarniçada do seu lápis vermelho‑vivo contra os papéis urgentes, como se nunca tivesse tido nada que ver connosco. Héctor continuou a falar‑me no rumor de chuvinha miúda dos linótipos, como se também ele não tivesse tido nada que ver com Zabala. Era um conversador infinito, de uma inteligência verbal deslumbrante, um aventureiro da imaginação que inventava realidades inverosímeis em que ele próprio acabava por acreditar. Conversámos durante horas de outros amigos vivos e mortos, de livros que nunca deveriam ser escritos, de mulheres que nos esqueceram e não podíamos esquecer, das praias idílicas do paraíso caribenho de Tolú ‑ onde ele nasceu ‑ e dos bruxos infalíveis e das desgraças bíblicas de Aracataca. De todo o havido e o devido, sem beber nada, sem respirar quase e a fumar até pelos cotovelos com medo que a vida não nos chegasse para tudo o que ainda nos faltava por conversar.

Às dez da noite, quando fechou o jornal, o mestre Zabala vestiu o casaco, apertou a gravata e, com um passo de ballet a que já restava pouco de juvenil, convidou‑nos para jantar. Em La Cueva, como era previsível, onde os esperava a surpresa de Juan de Las Nieves e vários dos seus comensais tardios me reconhecerem como velho cliente. A surpresa aumentou quando passou um dos agentes da minha primeira visita, que me atirou uma piada equívoca sobre a minha má noite no quartel e me confiscou um maço de cigarros recém‑encetado.

Héctor, por sua vez, promoveu com Juan de Las Nieves um torneio de duplo sentido que fez rebentar de riso os comensais, ante o silêncio satisfeito do mestre Zabala. Atrevi‑me a introduzir algumas réplicas sem graça, o que me serviu pelo menos para ser reconhecido como um dos poucos clientes que Juan de Las Nieves distinguia para lhes servir fiado até quatro vezes num mês.

Depois do jantar, Héctor e eu continuámos a conversa da tarde no Paseo de los Mártires, em frente da baía empestada pelos desperdícios republicanos do mercado público. Era uma noite esplêndida no centro do mundo e as primeiras escunas do Curaçau zarpavam em silêncio. Héctor deu‑me nessa madrugada as primeiras luzes sobre a história subterrânea de Cartagena, tapada com panos de lágrimas, que talvez se parecesse mais com a verdade do que a ficção complacente dos académicos. Informou‑me sobre a vida dos dez mártires cujos bustos de mármore estavam dos dois lados do passeio central em memória do seu heroísmo. A versão popular ‑ que parecia sua ‑ era que quando os colocaram nos seus sítios originais, os escultores não tinham talhado os nomes e as datas nos bustos mas sim nos pedestais. De modo que quando os desmontaram para os limpar devido ao centenário, não souberam a quais correspondiam os nomes nem as datas e tiveram que voltar a colocá‑los de qualquer maneira nos pedestais, porque ninguém sabia quem era quem. A história circulava como uma anedota há já muitos anos, mas pensei, pelo contrário, que tinha sido um acto de justiça histórica ter consagrado os altos dignitários sem nome, não tanto pelas suas vidas vividas como pelo seu destino comum.

Aquelas noites sem dormir tiveram repetição quase diária nos meus anos de Cartagena, mas a partir das duas ou três primeiras apercebi‑me de que Héctor tinha o poder da sedução imediata, com um sentido tão complexo da amizade que apenas os que gostássemos muito dele podíamos entender sem reservas. Pois era um terno com solenidade, capaz ao mesmo tempo de cóleras estrepitosas, e por vezes catastróficas, que depois se enaltecia a si mesmo como uma graça do Menino Jesus. Entendíamos então como era, e por que razão o mestre Zabala fazia todo o possível para que gostássemos tanto de Héctor como ele. Na primeira noite, como em tantas outras, ficámos até ao amanhecer no Paseo de los Mártires, protegidos do recolher obrigatório pela nossa condição de jornalistas. Héctor tinha a voz e a memória intactas quando viu o resplendor do novo dia no horizonte do mar e disse:

‑ Oxalá que esta noite termine como Casablanca.

Não disse mais nada, mas a sua voz devolveu‑me em todo o seu esplendor a imagem de Humphrey Bogart e Claude Rains a avançar ombro a ombro entre as brumas do amanhecer em direcção ao fulgor radiante no horizonte, e a frase já lendária do trágico final feliz: "Este é o princípio de uma grande amizade."

Três horas depois, acordou‑me pelo telefone o mestre Zabala com uma frase menos feliz:

‑ Como vai essa obra‑prima?

Necessitei de uns minutos para entender que se referia à minha colaboração para o jornal do dia seguinte. Não me lembro que tivéssemos feito qualquer acordo, nem de ter dito que não nem que sim quando me pediu para escrever a minha primeira colaboração, mas naquela manhã sentia‑me capaz de qualquer coisa depois da olimpíada verbal da noite anterior. Zabala deve tê‑lo entendido assim, pois já tinha assinalados alguns temas do dia e eu propus‑lhe outro que me pareceu mais actual: o recolher obrigatório.

Não me deu nenhuma orientação. O meu propósito era contar a minha aventura da primeira noite em Cartagena e assim fiz, pelo meu punho e letra, porque não soube entender‑me com as máquinas pré‑históricas da redacção. Foi um parto de quase quatro horas, que o mestre reviu diante de mim sem uma expressão que permitisse descobrir o seu pensamento, até que encontrou a forma menos amarga de mo dizer:

‑ Não está mal, mas é impossível publicá‑lo.

Não me surpreendeu. Pelo contrário, tinha‑o previsto e por uns minutos aliviou‑me da carga ingrata de ser jornalista. Mas as suas razões reais, que eu ignorava, eram terminantes: desde o 9 de Abril, havia em cada diário do país um censor do governo que se instalava numa secretária da redacção como em casa própria desde as seis da tarde, com vontade e poder para não autorizar nem uma letra que pudesse roçar a ordem pública.

Os motivos de Zabala pesavam sobre mim muito mais do que os do governo, porque eu não tinha escrito um comentário de imprensa mas sim o relato subjectivo de um episódio privado, sem qualquer pretensão de jornalismo editorial. Além disso, não tratara o recolher obrigatório como um instrumento legítimo do Estado mas como a argúcia de uns polícias brutos para conseguirem cigarros de um centavo. Por sorte, antes de me condenar à morte, o mestre Zabala devolveu‑me a nota que devia refazer de fio a pavio, não para ele mas para o censor, e fez‑me a caridade de uma sentença de dois gumes.

‑ Mérito literário tem, não há dúvida ‑ disse‑me. ‑ Mas disso falamos depois.

Ele era assim. Desde o meu primeiro dia no jornal, quando Zabala conversou comigo e com Zapata Olivella, chamou‑me a atenção o seu costume insólito de falar com um olhando para a cara do outro, enquanto as unhas se lhe queimavam com a própria brasa do cigarro. Isto causou‑me a princípio uma insegurança incómoda. O menos parvo que me ocorreu, por pura timidez, foi ouvi‑lo com uma atenção real e um interesse enorme, mas sem o olhar a ele e sim a Manuel, para tirar dos dois as minhas próprias conclusões. Depois, quando falávamos com Rojas Herazo e depois com o director, López Escauriaza, e com tantos outros, apercebi‑me de que era uma maneira própria de Zabala quando conversava em grupo. Assim o entendi e assim pudemos ele e eu trocar ideias e sentimentos através de cúmplices incautos e intermediários inocentes. Com a confiança dos anos, atrevi‑me a comentar com ele aquela impressão minha e ele explicou‑me sem espanto que olhava o outro quase de perfil para não lhe atirar o fumo do cigarro para a cara. Assim era: nunca conheci alguém com uma maneira de ser tão serena e silenciosa, com um temperamento sociável como o seu, porque sempre soube ser o que quis: um sábio na penumbra.

Na realidade, eu tinha escrito discursos, versos prematuros no liceu de Zipaquirá, folhetos patrióticos e manifestos de protesto pela má comida, e muito pouco mais, sem contar as cartas da família que a minha mãe me devolvia com a ortografia corrigida, inclusive quando já era reconhecido como escritor. A nota que foi publicada por fim na primeira página não tinha nada a ver com o que eu tinha escrito. Entre os remendos do mestre Zabala e os do censor, o que sobrou de mim foram uns farrapos de prosa lírica sem critério nem estilo e rematados pelo sectarismo gramático do revisor de provas. À última hora, combinámos uma coluna diária, talvez para delimitar responsabilidades, com o meu nome completo e um título permanente: "Punto y aparte."

Zabala e Rojas Herazo, já bem curtidos pelo desgaste diário, conseguiram consolar‑me da angústia da minha primeira nota, e atrevi‑me assim a continuar com a segunda e a terceira, que não foram melhores. Fiquei na redacção quase dois anos, chegando a publicar duas notas diárias que conseguia ganhar à censura, com assinatura e sem assinatura, e quase a casar‑me com a sobrinha do censor.

Ainda hoje me interrogo como teria sido a minha vida sem o lápis do mestre Zabala e o torniquete da censura, cuja simples existência era um desafio criador. Mas o censor vivia mais em guarda do que nós pelos seus delírios de perseguição. As citações de grandes autores pareciam‑lhe emboscadas suspeitas, como com efeito foram muitas vezes. Via fantasmas. Era um cervantino de pacotilha que conjecturava significados imaginários. Uma noite da sua má estrela teve que ir à retrete de quarto em quarto de hora, até que se atreveu a dizer‑nos que estava quase a ficar louco por causa dos sustos que nós lhe causávamos.

‑ Porra! ‑ gritou. ‑ Com estas andanças já não tenho eu!

A polícia tinha sido militarizada como uma demonstração mais do rigor do governo na violência política que estava a sangrar o país, com uma certa moderação na costa atlântica. No entanto, no princípio de Maio, a polícia, sem boas nem más razões, disparou sobre uma procissão da Semana Santa nas ruas de Carmen de Bolívar, a umas vinte léguas de Cartagena. Eu tinha uma fraqueza sentimental por aquela terra, onde se criara a tia Mamã e onde o avô Nicolás tinha inventado os seus célebres peixinhos de ouro. O mestre Zabala, nascido na povoação vizinha de San Jacinto, encomendou‑me com uma estranha determinação a organização editorial da notícia sem fazer caso da censura e com todas as suas consequências. A minha primeira nota sem assinatura, na primeira página, exigia ao governo uma investigação a fundo da agressão e o castigo dos autores. E terminava com uma pergunta: "O que se passou em Carmen de Bolívar?" Ante o desdém oficial, e já em guerra aberta com a censura, continuámos a repetir a pergunta com uma nota diária na mesma página e com uma energia crescente, dispostos a exasperar o governo muito mais do que já estava. Ao fim de três dias, o director do diário confirmou com Zabala se consultara a redacção em plenário, e ele próprio estava de acordo que devíamos continuar com o assunto. De maneira que continuámos a fazer a pergunta. Entretanto, a única coisa que soubemos do governo chegou‑nos por uma inconfidência: tinham dado ordem para nos deixarem sós com o nosso tema de maluquinhos, até que se nos acabasse a corda. Não foi fácil, pois a nossa pergunta de todos os dias andava já pelas ruas como uma saudação popular: "Olá, irmão: o que se passou em Carmen de Bolívar?"

Na noite em que menos se pensava, sem qualquer aviso, uma patrulha do exército fechou a Calle de San Juan de Dios com um grande barulho de vozes e armas, e o coronel Jaime Polanía Puyo, comandante da polícia militarizada, entrou a pisar firme no edifício de El Universal. Envergava o uniforme de merengue branco das datas importantes, com as polainas de verniz e o sabre preso com um cordão de seda, e os botões e insígnias tão brilhantes que pareciam de ouro. Não desmerecia nem um ápice da sua fama de elegante e encantador, embora soubéssemos que era um duro de paz e de guerra, como demonstrou anos mais tarde no comando do Batalhão Colômbia na Guerra da Coreia. Ninguém se mexeu nas duas horas intensas que conversou à porta fechada com o director. Beberam vinte e duas chávenas de café, sem cigarros nem álcool porque ambos eram livres de vícios. À saída, o general mostrou‑se ainda mais descontraído quando se despediu de nós, um por um. Comigo demorou‑se um pouco mais, olhou‑me a direito nos olhos com os seus olhos de lince e disse‑me:

‑ Há‑de chegar longe.

O coração deu‑me um salto, pensando que talvez já soubesse tudo de mim e o mais longe para ele podia ser a morte.

No relato confidencial que o director fez a Zabala da sua conversa com o general, revelou‑lhe que este sabia, com nomes e apelidos, quem escrevia cada nota diária. O director, num gesto muito próprio da sua maneira de ser, disse‑lhe que eu o fazia por ordens suas e que nos jornais, como nos quartéis, as ordens se cumpriam. De qualquer forma, o general aconselhou ao director que moderássemos a campanha, não fosse algum bárbaro das cavernas querer fazer justiça em nome do seu governo. O director entendeu, e todos entendemos até o que não disse. O que mais surpreendeu o director foram os seus alardes de conhecer a vida interna do jornal como se vivesse lá dentro. Ninguém duvidou de que o seu agente secreto fosse o censor, embora este tenha jurado pelos restos da sua mãe que não era ele. A única coisa que o general não tratou de responder na sua visita foi à nossa pergunta diária. O director, que tinha fama de sábio, aconselhou‑nos que acreditássemos no que nos tinham dito, porque a verdade podia ser pior.

Desde que me comprometi na guerra contra a censura, desinteressei‑me da Universidade e dos contos. Ainda bem que a maioria dos professores não passava a lista de presenças e isso favorecia as faltas de assistência. Além disso, os professores liberais, que conheciam as minhas pegas com a censura, sofriam mais do que eu procurando a forma de me ajudar nos exames. Hoje, ao querer contá‑los, não encontro aqueles dias nas minhas recordações e acabei por acreditar mais no esquecimento do que na memória.

Os meus pais dormiram tranquilos desde que lhes fiz saber que no jornal ganhava o suficiente para sobreviver. Não era verdade. O salário mensal de um aprendiz não me chegava para uma semana. Antes de completar três meses, deixei o hotel com uma dívida impagável, que a dona me trocou mais tarde por uma nota na página social sobre os quinze anos da sua neta. Mas só aceitou o negócio por uma vez.

O dormitório mais concorrido e fresco da cidade continuava a ser o Paseo de los Mártires, mesmo com o recolher obrigatório. Ali ficava a dormitar sentado, quando acabavam as tertúlias da madrugada. Outras vezes dormia no armazém do jornal, em cima das bobinas de papel, ou aparecia com a minha rede de circo debaixo do braço nos quartos de outros estudantes ajuizados, enquanto conseguiam suportar os meus pesadelos e o meu mau hábito de falar a dormir. Assim sobrevivi à sorte, comendo do que houvesse e dormindo onde Deus queria, até que a tribo humanitária dos Franco Múnera me propôs as duas refeições diárias por um preço de compaixão. O pai da tribo ‑ Bolívar Franco Fareja ‑ era um histórico professor de escola primária, com uma família alegre, fanática de artistas e escritores, que me obrigavam a comer mais do que lhes pagava para que não se me secasse o miolo. Muitas vezes não tive com quê, mas eles contentavam‑se com recitais à sobremesa. Quotas frequentes daquele negócio encorajador foram as cantigas de pé‑quebrado de D. Jorge Manrique por morte de seu pai e o Romanceiro Cigano, de Garcia Lorca.

Os bordéis a céu aberto nas grandes praias de Tesca, longe do silêncio perturbador da muralha, eram mais hospitaleiros do que os hotéis dos turistas nas praias. Instalávamo‑nos meia dúzia de universitários em El Cisne desde o início da noite, a preparar exames finais sob as luzes ofuscantes da pista de dança. A brisa do mar e o bramido dos barcos ao amanhecer consolavam‑nos do barulho dos cobres caribenhos e da provocação das raparigas que dançavam sem cuecas e com saias muito largas para que a brisa do mar lhas levantasse até à cintura. De vez em quando, alguma passarinha nostálgica do pai convidava‑nos a dormir com o pouco de amor que lhe sobrava ao amanhecer. Uma delas, cujo nome e tamanhos recordo muito bem, deixou‑se seduzir pelas fantasias que lhe contava a dormir.

Graças a ela, passei Direito Romano sem sofismas e escapei a várias redadas quando a polícia proibiu que se dormisse nos parques. Entendíamo‑nos como um casal útil, não só na cama como também nos trabalhos domésticos, que eu lhe fazia ao amanhecer para que dormisse mais umas horas.

Nessa altura começava a acomodar‑me bem no trabalho editorial, que considerava sempre mais como uma forma de literatura do que de jornalismo. Bogotá era um pesadelo do passado, a duzentas léguas de distância e a mais de dois mil metros acima do nível do mar, de que apenas recordava a pestilência das cinzas do 9 de Abril. Continuava com a febre das artes e das letras, sobretudo nas tertúlias da meia‑noite, mas começava a perder o entusiasmo de ser escritor. Tão certo era, que não voltei a escrever um conto depois dos três publicados em El Espectador, até que Eduardo Zalamea me localizou no princípio de Julho e me pediu, com a mediação do mestre Zabala, que lhe mandasse outro para o seu jornal depois de seis meses de silêncio. Por vir o pedido de quem vinha, retomei de qualquer modo ideias perdidas nos meus rascunhos e escrevi "A outra costela da morte" (O conto "A outra costela da morte" foi publicado em tradução portuguesa na colectânea Olhos de Cão Azul, (N. T.)), que foi muito pouco mais do mesmo. Recordo bem que não tinha nenhum argumento prévio e ia inventando à medida que o escrevia. Foi publicado a 25 de Julho de 1948, no suplemento "Fin de Semana", tal como os anteriores, e não tornei a escrever mais contos até ao ano seguinte, quando a minha vida já era outra. Só me faltava renunciar às poucas aulas de Direito a que ia muito de vez em quando, mas eram o meu último álibi para alimentar o sonho dos meus pais.

Eu próprio não suspeitava então de que muito em breve seria melhor estudante do que nunca na biblioteca de Gustavo Ibarra Merlano, um amigo novo que Zabala e Rojas Herazo me apresentaram com grande entusiasmo. Acabava de regressar de Bogotá com um curso da Normal Superior e incorporou‑se de imediato nas tertúlias de El Universal e nas discussões do amanhecer no Paseo de los Mártires. Entre a lábia vulcânica de Héctor e o cepticismo criador de Zabala, Gustavo trouxe‑me o rigor sistemático que boa falta fazia às minhas ideias improvisadas e dispersas e à ligeireza do meu coração. E tudo isso no meio de uma grande ternura e de um carácter de ferro.

Logo no dia seguinte, convidou‑me para casa dos pais na praia de Marbella, com o mar imenso como pano de fundo e uma estante numa parede de doze metros, nova e organizada, onde apenas conservava os livros que se deviam ler para vivermos sem remorsos. Tinha edições dos clássicos gregos, latinos e espanhóis tão bem tratadas que não pareciam lidas, mas as margens das páginas estavam rabiscadas de notas sábias, algumas em latim. Gustavo dizia‑as também de viva voz, e ao dizê‑las ruborizava‑se até à raiz dos cabelos e ele próprio tratava de as afastar com um humor corrosivo. Um amigo dissera‑me dele antes de o conhecer: "Esse fulano é um padre." Em breve entendi por que era fácil acreditar nisso, e porque, depois de o conhecer bem, era quase impossível acreditar que não o fosse.

Naquela primeira vez, falámos sem parar até de madrugada e aprendi que as suas leituras eram longas e variadas, mas apoiadas num conhecimento profundo dos intelectuais católicos do momento, de quem eu nunca ouvira falar. Sabia tudo o que se devia saber da poesia, mas em especial dos clássicos gregos e latinos que lia nas versões originais. Tinha opiniões bem informadas dos amigos comuns e forneceu‑me dados valiosos para os apreciar mais. Confirmou‑me também a importância de conhecer os três jornalistas de Barranquilla ‑ Cepeda, Vargas e Fuenmayor ‑ de quem tanto me tinham falado Rojas Herazo e o mestre Zabala. Chamou‑me a atenção o facto de, além de tantas virtudes intelectuais e cívicas, nadar como um campeão olímpico, com um corpo feito e treinado para tal. O que mais o preocupou a meu respeito foi o meu perigoso desdém pelos clássicos gregos e latinos, que me pareciam aborrecidos e inúteis, à excepção da Odisseia, que lera e relera aos bocados várias vezes no liceu. De maneira que, antes de nos despedirmos, escolheu na estante um livro encadernado em cabedal e deu‑mo com uma certa solenidade. "Poderás chegar a ser um bom escritor ‑ disse‑me ‑ mas nunca serás muito bom se não conheceres bem os clássicos gregos." O livro eram as obras completas de Sófocles. Gustavo foi a partir desse instante um dos seres decisivos na minha vida, porque Édipo Rei se me revelou na primeira leitura como a obra perfeita.

Foi uma noite histórica para mim, por ter descoberto Gustavo Ibarra e Sófocles ao mesmo tempo, e porque horas depois podia ter morrido de má morte no quarto da minha namorada secreta em El Cisne. Recordo como se tivesse sido ontem quando um antigo garanhão dela, que julgava morto há mais de um ano, forçou a porta do quarto a pontapé, gritando impropérios de energúmeno. Reconheci‑o de imediato como um bom condiscípulo na escola primária de Aracataca, que regressava enraivecido para tomar posse da sua cama. Não nos víamos desde então e teve o bom gosto de se fazer desentendido quando me reconheceu em pelota e pregado de terror à cama.

Naquele ano conheci também Ramiro e Oscar de La Espriella, conversadores intermináveis, sobretudo em casas proibidas pela moral cristã. Viviam ambos com os pais em Turbaco, a uma hora de Cartagena, e apareciam quase todos os dias nas tertúlias de escritores e artistas da Heladería Americana.

Ramiro, acabado de formar pela Faculdade de Direito de Bogotá, era muito próximo do grupo de El Universal, onde publicava uma coluna espontânea. O pai era um advogado duro e um liberal de roda livre, e a mulher era encantadora e sem papas na língua. Tinham ambos o bom costume de conversar com os jovens. Nas nossas longas conversas sob os frondosos freixos de Turbaco, forneceram‑me dados preciosos da Guerra dos Mil Dias, o manancial literário que se extinguira para mim com a morte do avô. Dela tenho ainda a visão que me parece mais fidedigna do general Rafael Uribe Uribe, com a sua distinção respeitável e o calibre dos seus pulsos.

 

O melhor testemunho de como Ramiro e eu éramos por esses dias ficou imortalizado em óleo sobre tela pela pintora Cecilia Forras, que se sentia como em casa nas paródias de homens, contra as censuras do seu meio social. Era um retrato dos dois sentados na mesa do café onde nos encontrávamos com ela e com outros amigos duas vezes por dia. Quando Ramiro e eu íamos empreender caminhos diferentes, tivemos a discussão inconciliável de quem era o dono do quadro. Cecilia resolveu o caso com a fórmula salomónica de cortar a tela a meio com a tesoura de podar e deu a cada um a sua parte. A minha ficou anos depois enrolada no armário de um apartamento de Caracas e nunca a consegui recuperar.

Ao contrário do resto do país, a violência oficial não fizera estragos em Cartagena até ao princípio daquele ano, quando o nosso amigo Carlos Alemán foi eleito deputado à Asamblea Departamental pela mui distinta circunscrição de Mompox. Era um advogado recém‑saído do forno e de génio alegre, mas o diabo pregou‑lhe a má partida de na sessão inaugural se terem envolvido aos tiros os dois partidos opostos e uma bala perdida lhe chamuscar o ombro. Alemán deve ter pensado, com boas razões, que um poder legislativo tão inútil como o nosso não merecia o sacrifício de uma vida e preferiu gastar os honorários com antecipação, na boa companhia dos amigos.

Oscar de La Espriella, que era um estróina de boa cepa, estava de acordo com William Faulkner em que um bordel é o melhor domicílio para um escritor, porque as manhãs são tranquilas, há festa todas as noites e se está em boas relações com a polícia. O deputado Alemán assumiu a ideia à letra e constituiu‑se nosso anfitrião a tempo inteiro. Numa dessas noites, no entanto, arrependi‑me de ter acreditado nas ilusões de Faulkner quando um antigo companheiro de Mary Reyes, a dona da casa, deitou abaixo a porta a pontapé para levar o filho de ambos, de cerca de cinco anos, que vivia com ela. O seu actual companheiro, que tinha sido oficial da polícia, saiu do quarto em cuecas para defender a honra e os bens da casa com o revólver do regulamento e o outro recebeu‑o com uma rajada de balas que ressoou como um tiro de canhão na sala de dança. O sargento, assustado, escondeu‑se no quarto. Quando saí do meu, meio vestido, os inquilinos de passagem contemplavam dos seus quartos o garoto que urinava no fundo do corredor, enquanto o pai o penteava com a mão esquerda e com o revólver ainda fumegante na direita. Só se ouviam no interior da casa os impropérios de Mary, que censurava ao sargento a sua falta de tomates.

Por esses mesmos dias, entrou sem se fazer anunciar nas instalações de El Universal um homem gigantesco que tirou a camisa com um grande sentido teatral e passeou pela sala de redacção para nos surpreender com as suas costas e braços cobertos de cicatrizes que pareciam de cimento. Emocionado pelo assombro que conseguiu provocar, explicou‑nos os estragos do seu corpo com uma voz de trovão:

‑ Arranhadelas de leões!

Era Emilio Razzore, acabado de chegar de Cartagena para preparar a temporada do seu famoso circo familiar, um dos grandes do mundo. Este saíra de La Habana na semana anterior, no transatlântico Euskera, de bandeira espanhola, e era esperado no sábado seguinte. Razzore gabava‑se de estar no circo desde antes de nascer e não era preciso vê‑lo actuar para descobrir que era domador de feras grandes. Chamava‑as pelos nomes próprios como aos membros da família e elas correspondiam‑lhe com uma relação ao mesmo tempo afectuosa e brutal. Metia‑se desarmado na jaula dos tigres e dos leões para lhes dar de comer pela sua mão. O seu urso dilecto dera‑lhe um abraço de amor que o mantivera uma Primavera no hospital. No entanto, a atracção principal não era ele nem o engolidor de fogo, mas o homem que desenroscava a cabeça e passeava com ela debaixo do braço à volta da pista. O menos olvidável de Emílio Razzore era a sua maneira de ser inquebrantável. Depois de muito o ouvir, fascinado, durante longas horas, publiquei em El Universal uma nota editorial na qual me atrevi a escrever que era "o homem mais tremendamente (É mesmo "tremendamente" que está no original. (N. T.)) humano que conheci". Não tinham sido muitos, nos meus vinte e um anos, mas creio que a frase continua a ser válida. Jantávamos em La Cueva com o pessoal do jornal, e também ali se tornou querido com as suas histórias de feras humanizadas pelo amor. Numa daquelas noites, depois de muito pensar, atrevi‑me a pedir‑lhe que me levasse com o seu circo, nem que fosse para lavar as jaulas quando não estivessem lá os tigres. Não me disse nada, mas apertou‑me a mão em silêncio. Entendi isso como um santo‑e‑senha de circo e dei‑o por decidido. O único a quem o confessei foi a Salvador Mesa Nicholls, um poeta de Antioquia que tinha um amor louco pela grande tenda e acabava de chegar a Cartagena como sócio local dos Razzore.

Também ele abalara com um circo quando tinha a minha idade e avisou‑me de que os que vêem chorar os palhaços pela primeira vez querem ir com eles, mas no dia seguinte arrependem‑se. No entanto, não só aprovou a minha decisão como convenceu o domador, com a condição de que guardássemos segredo total para que não se transformasse em notícia antes do tempo. A espera do circo, que até então fora emocionante, tornou‑se irresistível.

O Euskera não chegou na data prevista e tinha sido impossível comunicar com ele. Ao cabo de outra semana, estabelecemos a partir do jornal um serviço de radioamadores para verificar as condições do tempo no Caribe, mas não pudemos impedir que começassem a especular na imprensa e na rádio sobre a possibilidade da terrível notícia. Mesa Nicholls e eu permanecemos durante aqueles dias intensos com Emilio Razzore, sem comer nem dormir no seu quarto do hotel. Vimo‑lo afundar‑se, diminuir de volume e tamanho na interminável espera, até que o coração nos confirmou a todos que o Euskera nunca chegaria a parte nenhuma nem se teria qualquer notícia do seu destino. O domador permaneceu ainda um dia fechado sozinho no seu quarto e no seguinte visitou‑me no jornal para me dizer que cem anos de batalhas diárias não podiam desaparecer num dia. De modo que ia para Miami sem um chavo e sem família, para reconstruir peça por peça, e a partir do nada, o circo submerso. Impressionou‑me tanto a sua determinação, ultrapassando a tragédia, que o acompanhei a Barranquilla para me despedir dele no avião de La Florida. Antes de entrar a bordo, agradeceu‑me a decisão de me juntar ao seu circo e prometeu que me mandaria buscar logo que tivesse algo concreto. Despediu‑se com um abraço tão emocionado que entendi com a alma o amor dos seus leões. Nunca mais se soube dele.

O avião de Miami saiu às dez da manhã do mesmo dia em que apareceu a minha nota sobre Razzore: 16 de Setembro de 1948. Dispunha‑me a regressar a Cartagena naquela mesma tarde, quando me lembrei de passar por El Nacional, um diário vespertino onde escreviam Germán Vargas e Álvaro Cepeda, os amigos dos meus amigos de Cartagena. A redacção ficava num edifício carcomido da cidade velha, com um longo salão vazio dividido por uma balaustrada de madeira. Ao fundo do salão, um homem jovem e louro, em mangas de camisa, escrevia numa máquina cujas teclas estalavam como petardos no salão deserto. Aproximei‑me quase em bicos de pés, intimidado pelos rangidos lúgubres do soalho, e esperei na balaustrada até que se voltou para olhar para mim e me disse, seco, com uma voz harmoniosa de locutor profissional:

‑ O que é?

Tinha o cabelo curto, os pómulos marcados e uns olhos diáfanos e intensos que me pareceram contrariados pela interrupção. Respondi‑lhe como pude, letra por letra:

‑ Sou Garcia Márquez.

Só ao ouvir o meu próprio nome dito com tamanha convicção me dei conta que Germán Vargas podia muito bem não saber quem era, embora em Cartagena me tivessem dito que falavam muito de mim com os amigos de Barranquilla desde que leram o meu primeiro conto. El Nacional publicara uma nota entusiasta de Germán Vargas, que não engolia qualquer coisa em matéria de novidades literárias. Mas o entusiasmo com que me recebeu confirmou‑me que sabia muito bem quem era quem e que o seu afecto era mais real do que me tinham dito. Umas horas depois, conheci Alfonso Fuenmayor e Álvaro Cepeda na Librería Mundo, e tomámos os aperitivos no Café Colômbia. D. Ramón Vinyes, o sábio catalão que tanto ansiava e tanto me aterrava conhecer, não fora naquela tarde à tertúlia das seis. Quando saímos do Café Colômbia, com cinco copos às costas, já éramos amigos há anos.

Foi uma longa noite de inocência. Álvaro, motorista genial e mais seguro e mais prudente quanto mais bebia, seguiu o itinerário das ocasiões memoráveis. Em Los Almendros, uma tasca ao ar livre por baixo das árvores floridas onde só aceitavam os fanáticos do Deportivo Júnior, vários clientes armaram uma zaragata que esteve quase a terminar em pancadaria. Procurei acalmá‑los, até que Alfonso me aconselhou a que não interviesse, porque naquele lugar de doutores do futebol gostavam muito pouco dos pacifistas. De modo que passei a noite numa cidade que para mim não foi a mesma de nunca, nem a dos meus pais nos seus primeiros anos, nem a das pobrezas com a minha mãe, nem a do Colégio San José, mas a minha primeira Barranquilla de adulto no paraíso dos seus bordéis.

O bairro chinês era quatro quarteirões de músicas metálicas que faziam tremer a terra, mas também tinha recantos domésticos que passavam muito perto da caridade. Havia bordéis familiares cujos patrões, com esposa e filhos, atendiam os clientes veteranos de acordo com as normas da moral cristã e da urbanidade de D. Manuel António Carreno. Alguns serviam de fiadores para que as aprendizas fossem para a cama a crédito com clientes conhecidos. Martina Alvarado, a mais antiga, tinha uma porta furtiva e tarifas humanitárias para padres arrependidos. Não havia consumo falsificado, nem contas alegres, nem surpresas venéreas. As últimas madamas francesas da Primeira Guerra Mundial, envelhecidas e tristes, sentavam‑se desde o entardecer na porta de suas casas, sob o estigma das luzes vermelhas, esperando uma terceira geração que ainda acreditasse nos seus condões afrodisíacos. Havia casas com salões refrigerados para conciliábulos de conspiradores e refúgios para alcaides fugitivos das esposas.

El Gato Negro, com um pátio de dança por baixo de uma pérgola de astromélias (Arbusto ornamental de flores roxas ou rosa, em forma de ramalhete, muito usado nos jardins. (N.T.)), tornou‑se o paraíso da marinha mercante desde que foi comprado por uma guajira oxigenada que cantava em inglês e vendia por baixo da mesa pomadas alucinógenas para senhoras e senhores. Numa noite histórica nos seus anais, Álvaro Cepeda e Quique Scopell não suportaram o racismo de uma dúzia de marinheiros noruegueses que faziam fila em frente do quarto da única negra, enquanto dezasseis brancas roncavam sentadas no pátio, e desafiaram‑nos à pancada. Os dois contra doze, de mãos limpas, puseram‑nos em fuga, com a ajuda das brancas que acordaram felizes e os arrumaram à cadeirada. No fim, num desagravo disparatado, coroaram a negra em pêlo como rainha da Noruega.

Fora do bairro chinês havia outras casas, legais ou clandestinas, e todas em boas relações com a polícia. Uma delas era um pátio de grandes amendoeiras floridas num bairro de pobres, com uma tasca de má morte e um quarto com dois catres de aluguer. A sua mercadoria eram as meninas anémicas da vizinhança, que ganhavam um peso por golpe com os bêbados perdidos. Álvaro Cepeda descobriu o lugar por acaso, numa tarde em que se perdeu no aguaceiro de Outubro e teve que se refugiar na tasca. A dona convidou‑o para uma cerveja e ofereceu‑lhe duas meninas em vez de uma com direito a repetir enquanto não estiasse. Álvaro continuou a convidar amigos a beberem cerveja gelada sob as amendoeiras, não para folgarem com as meninas mas para as ensinarem a ler. Conseguiu bolsas para as mais aplicadas a fim de estudarem em escolas oficiais. Uma delas foi enfermeira do Hospital de Caridad durante anos. À dona ofereceu a casa, e o infantário de má morte teve até à sua extinção natural um nome tentador: "A casa das meninas que vão para a cama por fome."

Para a minha primeira noite histórica em Barranquilla só escolheram a casa da Negra Eufemia, com um enorme pátio de cimento para dançar, entre tamarindos frondosos, com cabanas de cinco pesos à hora e mesinhas e cadeiras pintadas de cores vivas, por onde passeavam à vontade os alcaravões. Eufemia em pessoa, monumental e quase centenária, recebia e seleccionava os clientes à entrada, por trás de uma secretária de escritório cujo único utensílio ‑ inexplicável ‑ era um enorme cravo de igreja. Ela própria escolhia as raparigas pela sua boa educação e graças naturais. Cada uma inventava o nome que lhe agradava e algumas preferiam os que lhes pôs Álvaro Cepeda, com a sua paixão pelo cinema do México: Irma a Má, Susana a Perversa, Virgem da Meia‑noite.

Parecia impossível conversar com uma orquestra caribenha extasiada a plenos pulmões com os novos mambos de Pérez Prado e um conjunto de boleros para esquecer más recordações, mas éramos todos peritos em conversar aos gritos. O tema da noite fora levantado por Germán e Álvaro, sobre os ingredientes comuns do romance e da reportagem. Estavam entusiasmados com o que John Hersey acabava de publicar sobre a bomba atómica de Hiroshima, mas eu preferia como testemunho jornalístico directo o Diário do Ano da Peste, até que os outros me esclareceram que Daniel Defoe não tinha mais de cinco ou seis anos quando houve a peste de Londres, que lhe serviu de modelo.

Por esse caminho chegámos ao enigma de O Conde de Monte Cristo, que os outros vinham a arrastar de discussões anteriores como uma adivinha para romancistas: como conseguiu Alexandre Dumas que um marinheiro inocente, ignorante, pobre e encarcerado sem julgamento, pudesse fugir de uma fortaleza inexpugnável transformado no homem mais rico e culto do seu tempo? A resposta foi que quando Edmundo Dantés entrou no Castelo de If já tinha construído dentro dele o abade Faria, que lhe transmitiu na prisão a essência da sua sabedoria e lhe revelou o que lhe faltava saber para a sua nova vida: o lugar onde estava oculto um tesouro fantástico e o modo de fugir. Quer dizer: Dumas construiu dois personagens diversos e depois trocou‑lhes os destinos. De maneira que quando Dantés fugiu era já um personagem dentro de outro e a única coisa que lhe restava dele mesmo era o seu corpo de bom nadador.

Germán considerava evidente que Dumas fizera o seu personagem marinheiro para poder escapar da mortalha de tela e nadar até à costa quando o atiraram ao mar. Alfonso, o erudito e sem dúvida o mais mordaz, replicou que isso não era garantia de nada porque sessenta por cento das tripulações de Cristóvão Colombo não sabiam nadar. Nada lhe agradava tanto como lançar esses grãozinhos de pimenta para tirar ao cozinhado quaisquer laivos de pedantaria. Entusiasmado com o jogo dos enigmas literários, comecei a beber sem medida o rum de cana com limão que os outros bebiam em sorvos saboreados. A conclusão dos três foi que o talento e a forma de manobrar os dados de Dumas naquele romance, e talvez em toda a sua obra, eram mais de repórter do que de romancista.

No fim, ficou claro para mim que os meus novos amigos liam com tanto proveito Quevedo e James Joyce como Conan Doyle. Tinham um sentido do humor inesgotável e eram capazes de passar horas inteiras a cantar boleros e vallenatos ou a recitar sem titubear a melhor poesia do Século de Ouro. Por diferentes atalhos chegámos a acordo sobre que o apogeu da poesia universal são os versos de D. Jorge Manrique à morte de seu pai. A noite transformou‑se num folguedo delicioso, que acabou com os últimos preconceitos que poderiam perturbar a minha amizade com aquela pandilha de doentes letrados.

Sentia‑me tão bem com eles e com o rum maravilhoso, que tirei a camisa de forças da minha timidez. Susana a Perversa, que em Março daquele ano ganhara o concurso de dança no Carnaval, tirou‑me para dançar. Espantaram galinhas e alcaravões da pista e rodearam‑nos para nos incitarem.

Dançámos a série do Mambo Número 5, de Dámaso Pérez Prado. Com o fôlego que me sobrou, apoderei‑me das maracas no estrado do conjunto tropical e cantei de seguida mais de uma hora de boleros de Daniel Santos, Agustín Lara e Bien‑venido Granda. À medida que cantava, sentia‑me redimido por uma brisa de libertação. Nunca soube se os três estavam orgulhosos ou envergonhados de mim, mas quando regressei à mesa receberam‑me como a um dos seus.

Álvaro tinha iniciado nessa altura um tema que os outros nunca discutiam com ele: o cinema. Para mim foi uma descoberta providencial, porque sempre considerara o cinema como uma arte subsidiária, que se alimentava mais do teatro do que do romance. Álvaro, pelo contrário, via‑o de certo modo como eu via a música: uma arte útil para todas as outras.

Já de madrugada, entre adormecido e bêbado, Álvaro guiava como um taxista mestre o automóvel a abarrotar de livros recentes e suplementos literários do New York Times. Deixámos Germán e Alfonso em suas casas e Álvaro insistiu em levar‑me à dele para conhecer a sua biblioteca, que cobria três lados do quarto de dormir até ao tecto. Apontou com o indicador numa volta completa e disse:

‑ Estes são os únicos escritores do mundo que sabem escrever.

Eu estava num estado de excitação que me fez esquecer o que tinham sido ontem a fome e o sono. O álcool continuava vivo dentro de mim como um estado de graça. Álvaro mostrou‑me os seus livros favoritos, em espanhol e inglês, e falava de cada um com a voz oxidada, os cabelos despenteados e os olhos mais dementes do que nunca. Falou de Azorín e Saroyan ‑ duas fraquezas suas ‑ e de outros cujas vidas públicas e privadas conhecia até em cuecas. Foi a primeira vez que ouvi o nome de Virgínia Woolf, que ele chamava a velha Woolf, como o velho Faulkner. O meu espanto exaltou‑o até ao delírio. Agarrou na pilha dos livros que me mostrara como seus preferidos e pôs‑mos nas mãos.

‑ Não seja parvo ‑ disse‑me ‑, leve‑os todos e quando acabar de os ler vamos buscá‑los seja onde for.

Para mim eram uma fortuna inconcebível que não me atrevi a arriscar sem ter sequer um tugúrio miserável onde os guardar. Por fim, conformou‑se em oferecer‑me a versão espanhola de Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, com o prognóstico inapelável de que ficaria a sabê‑lo de cor.

Estava a amanhecer. Queria regressar a Cartagena no primeiro autocarro, mas Álvaro insistiu que dormisse na cama gémea da sua.

‑ Que porra! ‑ disse com o último alento. ‑ Fique aqui a viver e amanhã arranjamos‑lhe um emprego em condições.

Estendi‑me vestido na cama e só então senti no corpo o imenso peso de estar vivo. Ele fez o mesmo e dormimos até às onze da manhã, quando a mãe, a adorada e temida Sara Samudio, bateu à porta com o punho fechado, a julgar que o único filho da sua vida estava morto.

‑ Não faça caso, mestre ‑ disse‑me Álvaro do fundo do seu sono. ‑ Todas as manhãs diz o mesmo e o grave é que um dia vai ser verdade.

Regressei a Cartagena com o ar de alguém que tivesse descoberto o mundo. As sobremesas em casa dos Franco Múnera não foram então com poemas do Século de Ouro e dos Vinte Poemas de Amor de Neruda, mas com parágrafos de Mrs. Dalloway e os delírios do seu caprichoso personagem, Septimus Warren Smith. Tornei‑me outro, ansioso e difícil, a ponto de parecer a Héctor e ao mestre Zabala um imitador consciente de Álvaro Cepeda. Gustavo Ibarra, com a sua visão compassiva do coração caribenho, divertiu‑se com o meu relato da noite em Barranquilla, enquanto me dava colheradas cada vez mais cordatas de poetas gregos, com a expressa e nunca explicada excepção de Eurípides. Fez‑me descobrir Melville: a proeza literária de Moby Dick, o grandioso sermão sobre Jonas para os baleeiros curtidos em todos os mares do mundo sob a imensa abóbada construída com costelas de baleias. Emprestou‑me A Casa das Sete Empenas, de Nathaniel Hawthorne, que me marcou para toda a vida. Tentámos juntos uma teoria sobre a fatalidade da nostalgia no vaguear de Ulisses Odisseu, na qual nos perdemos sem saída. Meio século depois, encontrei‑a resolvida num texto magistral de Milan Kundera.

Daquela mesma época foi o meu único encontro com o grande poeta Luis Carlos López, mais conhecido como o Vesgo, que inventara uma maneira cómoda de estar morto sem morrer, e enterrado sem enterro, e sobretudo sem discursos. Vivia no centro histórico, numa casa histórica da histórica Calle del Tablón, onde nasceu e viveu sem perturbar ninguém. Encontrava‑se com muito poucos amigos de sempre, enquanto a sua fama de ser um grande poeta continuava a crescer em vida como apenas crescem as glórias póstumas.

Chamavam‑lhe vesgo sem o ser, porque na realidade apenas era estrábico, mas também de uma forma diferente e muito difícil de distinguir. O irmão, Domingo López Escauriaza, o director de El Universal, tinha sempre a mesma resposta para os que lhe perguntavam por ele: ‑ Aí está.

Parecia uma evasiva, mas era a única verdade: aí estava. Mais vivo do que qualquer outro, mas também com a vantagem de o estar sem que se soubesse demasiado, dando conta de tudo e decidido a enterrar‑se pelos seus próprios pés. Falava‑se dele ! como de uma relíquia histórica, e mais ainda aqueles que não o tinham lido. Tanto que, desde que cheguei a Cartagena, não procurei vê‑lo por respeito aos seus privilégios de homem invisível. Tinha então sessenta e oito anos e ninguém pusera em dúvida que era um poeta grande da língua em todos os tempos, embora não fôssemos muitos os que sabíamos quem era nem porquê, nem era fácil acreditar pela rara qualidade da sua obra.

Zabala, Rojas Herazo, Gustavo Ibarra, todos sabíamos poemas seus de cor e recitávamo‑los sempre sem pensar, de forma espontânea e certeira, para iluminar as nossas conversas. Não era insociável mas tímido. Ainda hoje não me lembro de ter visto um retrato seu, se o houve, mas apenas algumas caricaturas fáceis que eram publicadas em lugar deles. Creio que à força de não o ver tínhamos esquecido que continuava vivo, uma noite em que eu estava a terminar a minha nota do dia ouvi a exclamação sufocada de Zabala:

‑ Porra, o Vesgo!

Levantei os olhos da máquina e vi o homem mais estranho que alguma vez havia de ver. Muito mais baixo do que imaginávamos, com o cabelo tão branco que parecia azul e tão rebelde que parecia postiço. Não era vesgo do olho esquerdo mas, como o apelido indicava melhor, torcido (Em espanhol, «tuerto» tanto pode ser vesgo como zarolho ou torto e daí a referência a torcido. (N. T.)). Vestia como em casa, com calças de pano escuro e uma camisa de riscas, a mão direita à altura do ombro e uma boquilha de prata com um cigarro aceso que não fumava e cuja cinza caía sem que a sacudisse quando já não se conseguia aguentar só.

Passou de largo até ao gabinete do irmão e saiu duas horas depois, quando já só estávamos Zabala e eu na redacção, à espera para o cumprimentar. Morreu uns dois anos mais tarde e a comoção que causou entre os seus fiéis não foi como se tivesse morrido mas sim ressuscitado. Exposto no caixão, não parecia tão morto como quando estava vivo.

Na mesma época, o escritor espanhol Dámaso Alonso e a mulher, a romancista Eulalia Galvarriato, fizeram duas conferências no salão nobre da universidade. O mestre Zabala, que não gostava de perturbar a vida alheia, venceu por uma vez a sua discrição e solicitou‑lhes uma audiência. Acompanhámo‑lo Gustavo Ibarra, Héctor Rojas Herazo e eu, e houve uma química imediata com eles. Permanecemos umas quatro horas num salão privado do Hotel del Caribe, a trocar impressões sobre a sua primeira viagem à América Latina e os nossos sonhos de jovens escritores. Héctor levou‑lhes um livro de poemas e eu uma fotocópia de um conto publicado em El Espectador. Interessou‑nos acima de tudo a ambos a franqueza das suas reservas, porque as usavam como confirmações enviesadas dos seus elogios.

Em Outubro encontrei em El Universal um recado de Gonzalo Mallarino, dizendo que me esperava com o poeta Álvaro Mutis na Villa Tulipán, uma pensão inesquecível no balneário de Bocagrande, a poucos metros do lugar onde aterrara Charles Lindberg uns vinte anos antes. Gonzalo, meu cúmplice de recitais privados na universidade, era já um advogado em actividade e Mutis convidara‑o para que conhecesse o mar, na sua condição de chefe de relações públicas da LAN SÁ, uma empresa aérea crioula fundada pelos seus próprios pilotos.

Poemas de Mutis e contos meus tinham coincidido pelo menos uma vez no suplemento «Fin de Semana» e bastou vermo‑nos para iniciarmos uma conversa que ainda não terminou, em inumeráveis lugares do mundo, durante mais de meio século.

Primeiro os nossos filhos e depois os nossos netos perguntaram‑nos com frequência sobre que falamos com uma paixão tão encarniçada, e respondemo‑lhes a verdade: falamos sempre do mesmo.

As minhas amizades milagrosas com adultos das artes e das letras deram‑me coragem para sobreviver naqueles anos que ainda recordo como os mais incertos da minha vida. A 10 de Julho publicara o último «Punto y aparte» em El Universal, ao fim de três árduos meses em que não consegui superar as minhas barreiras de principiante e preferi interrompê‑lo com o único mérito de parar a tempo. Refugiei‑me na impunidade dos comentários da primeira página, sem assinatura, salvo quando deviam ter um toque pessoal. Mantive‑a por simples rotina até Setembro de 1950, com uma nota pretensiosa sobre Edgar Allan Poe, cujo único mérito foi o de ser a pior.

Durante todo aquele ano insistira para que o mestre Zabala me ensinasse os segredos de escrever reportagens. Nunca se decidiu, com a sua índole misteriosa, mas deixou‑me alvoroçado com o enigma de uma menina de doze anos sepultada no convento de Santa Clara a quem cresceu o cabelo depois de morta mais de vinte e dois metros em dois séculos. Nunca imaginei que ia voltar ao tema quarenta anos depois para o contar numa novela romântica com implicações sinistras (Do Amor e Outros Demónios, na tradução portuguesa. (N. T.)). Mas não foram os meus melhores tempos para pensar. Tinha violentas cóleras por qualquer motivo, desaparecia do emprego sem explicações até que o mestre Zabala mandava alguém para me amansar. Nos exames finais, passei o segundo ano de Direito por um golpe de sorte, apenas com duas cadeiras para repetir, e pude matricular‑me no terceiro, mas correu o boato de que o tinha conseguido por pressões políticas do jornal. O director teve que intervir quando me detiveram à saída do cinema com uma caderneta militar falsa e me puseram na lista para ser enviado em missões punitivas de ordem pública.

Na minha ofuscação política desses dias nem sequer me apercebi de que o estado de sítio tinha sido de novo implantado no país por causa da deterioração da ordem pública. A censura de imprensa apertou várias voltas ao torno. O ambiente tornou‑se estranho como nos piores tempos e uma polícia política reforçada com delinquentes comuns espalhava o pânico nos campos. A violência obrigou os liberais a abandonarem terras e lares. O seu possível candidato, Darío Echandía, professor de professores em Direito Civil, céptico de nascimento e leitor viciado de gregos e latinos, pronunciou‑se em favor da abstenção liberal. O caminho ficou aberto para a eleição de Laureano Gómez que, de Nova Iorque, parecia dirigir o governo com fios invisíveis.

Não tinha nessa altura uma consciência clara de que aqueles percalços não eram apenas infâmias de godos mas também sintomas de más mudanças nas nossas vidas, até uma noite de tantas em La Cueva, quando me lembrei de fazer alarde da minha liberdade para fazer o que me desse na gana. O mestre Zabala susteve no ar a colher da sopa que estava prestes a engolir, olhando‑me por cima do aro dos óculos, e fez‑me parar de imediato:

‑ Diz‑me uma coisa, Gabriel: no meio de tantas asneiradas que fazes conseguiste dar‑te conta que este país está a acabar?

A pergunta acertou no alvo. Bêbado até ao tutano, deitei‑me a dormir de madrugada num banco do Paseo de los Mártires e um aguaceiro bíblico deixou‑me transformado numa sopa de ossos. Estive duas semanas no hospital com uma pneumonia refractária aos primeiros antibióticos conhecidos, que tinham a má fama de causar sequelas tão temíveis como a impotência precoce. Mais esquelético e pálido do que era por natureza, os meus pais chamaram‑me para Sucre a fim de descansar do excesso de trabalho ‑ segundo diziam na sua carta. Mais longe chegou El Universal, com um editorial de despedida que me consagrou como jornalista e escritor de grandes recursos, e noutro como autor de um romance que nunca existiu e com um título que não era meu: Ya cortamos el heno. Mais estranho ainda num momento em que não tinha nenhum propósito de reincidir na ficção. A verdade é que aquele título, tão alheio a mim, foi inventado por Héctor Rojas Herazo ao correr da máquina, como mais um dos contributos de César Guerra Valdés, um escritor imaginário da mais pura cepa latino‑americana criado por ele para enriquecer as nossas polémicas. Héctor publicara em El Universal a notícia da sua chegada a Cartagena e eu escrevera‑lhe uma saudação na minha secção «Punto y aparte», com a esperança de sacudir o pó das consciências adormecidas de uma autêntica narrativa continental. De qualquer forma, o romance imaginário, com o belo título inventado por Héctor, foi recenseado anos mais tarde, não sei onde nem porquê, num ensaio sobre os meus livros, como uma obra capital da nova literatura.

O ambiente que encontrei em Sucre foi muito propício às minhas ideias daqueles dias. Escrevi a Germán Vargas para lhe pedir que me mandasse livros, muitos livros, tantos quantos fosse possível para afogar em obras‑primas uma convalescença prevista para seis meses. A aldeia estava em dilúvio. O meu pai renunciara à escravatura da farmácia e construíra à entrada da povoação uma casa capaz para os filhos, que éramos onze desde que nascera Eligio, dezasseis meses antes. Uma casa grande e cheia de luz, com uma varanda de visitas em frente ao rio de águas escuras e janelas abertas para as brisas de Janeiro. Tinha seis quartos de dormir bem ventilados, com uma cama para cada um e não de dois a dois, como dantes, e argolas para pendurar redes a diferentes níveis até nos corredores, um pano vedado prolongava‑se até ao monte em bruto, com árvores de fruta do domínio público e animais próprios e alheios que passeavam pelos quartos. Pois a minha mãe, que sentia saudades dos pátios da sua infância em Barrancas e Aracataca, tratou a casa nova como uma granja, com galinhas e patos sem galinheiro e porcos libertinos que se metiam na cozinha para comer as vitualhas do almoço. Ainda era possível aproveitar os verões para dormir de janelas abertas, com o rumor da asma das galinhas nos poleiros e o cheiro das guanábanas (Guanábanas ‑ fruto do guanabano, muito agradável, refrescante e doce. (N. T.)) maduras, que caíam das árvores de madrugada com uma pancada instantânea e densa. «Soam como se fossem crianças», dizia a minha mãe. O meu pai reduziu as consultas à manhã para uns poucos fiéis da homeopatia, continuava a ler todo o papel impresso que lhe passava por perto, estendido numa rede que pendurava entre duas árvores, e contraiu a febre ociosa do bilhar contra as tristezas do entardecer. Abandonara também os seus fatos de cotim branco com gravata e andava pela rua como nunca o tinham visto, com camisas juvenis de manga curta. A avó Tranquilina Iguarán morrera dois meses antes, cega e demente, e na lucidez da agonia continuou a apregoar, com a sua voz radiante e a sua dicção perfeita, os segredos da família. O seu tema eterno até ao último suspiro foi a reforma do avô. O meu pai preparou o cadáver com aloés conservador e cobriu‑o com cal dentro do caixão para um apodrecimento sereno. Luisa Santiaga sempre admirou a paixão da mãe pelas rosas vermelhas e fez‑lhe um jardim no fundo do pátio para que nunca faltassem no seu túmulo. Chegaram a florescer com tanto esplendor que nem havia tempo para atender os forasteiros que vinham de longe ansiosos por saber se tantas e tão magníficas rosas eram coisa de Deus ou do diabo.

Aquelas alterações na minha vida e no meu modo de ser correspondiam às alterações da minha casa. Em cada visita me parecia diferente devido às reformas e mudanças dos meus pais, aos irmãos que nasciam e cresciam tão parecidos que era mais fácil confundi‑los do que reconhecê‑los. Jaime, que já tinha dez anos, fora o que mais tardara em afastar‑se do regaço materno devido à sua condição de ter nascido de seis meses e a minha mãe não deixara ainda de o amamentar quando já tinha nascido Hernando (Nanchi). Três anos depois nasceu Alfredo Ricardo (Cuqui) e ano e meio depois Eligio (Yiyo), o último, que naquelas férias começava a descobrir o milagre de gatinhar.

Contávamos além disso com os filhos do meu pai de antes e depois do casamento: Carmen Rosa, em San Marcos, e Abelardo, que passavam temporadas em Sucre; Germaine Hanai (Emi), que a minha mãe assimilara como sua com o beneplácito dos irmãos e, por último, António Maria Claret (Tono), criado pela mãe em Sincé e que nos visitava com frequência. Quinze no total, que comíamos como trinta quando havia com quê e sentados onde se podia.

Os relatos que as minhas irmãs mais velhas fizeram daqueles anos dão uma ideia cabal de como era a casa em que ainda não se acabara de criar um filho e já nascia outro. Mesmo a minha mãe tinha consciência da sua culpa, e pedia às filhas que se encarregassem dos mais novos. Margot morria de susto quando descobria que ela estava outra vez grávida, porque sabia que sozinha não teria tempo para os criar a todos. De maneira que, antes de ir para o internato de Montería, suplicou à mãe com absoluta seriedade que o irmão seguinte fosse o último. A minha mãe prometeu, como sempre, embora fosse apenas para lhe agradar, porque tinha a certeza que Deus, com a sua sabedoria infinita, resolveria o problema da melhor forma possível.

As refeições à mesa eram desastrosas, porque não havia forma de os reunir todos. A minha mãe e as minhas irmãs mais velhas iam servindo à medida que os outros chegavam, mas não era raro que à sobremesa aparecesse um fio solto a reclamar a sua ração. No decurso da noite, iam passando para a cama dos meus pais os mais novos, que não conseguiam dormir por causa do frio ou do calor, da dor de dentes ou do medo dos mortos, por amor aos pais ou por ciúme dos outros, e todos amanheciam amontoados na cama matrimonial. Se depois de Eligio não nasceram outros foi graças a Margot, que impôs a sua autoridade quando regressou do internato e a minha mãe cumpriu a promessa de não ter nem mais um filho.

Por desgraça, a realidade tivera tempo de interpor outros planos para as duas irmãs mais velhas, que ficaram solteiras para toda a vida. Aida, como nos romances cor‑de‑rosa, entrou para um convento de clausura perpétua, ao qual renunciou vinte e dois anos depois, cumprindo todos os requisitos, não tendo já reencontrado o mesmo Rafael nem nenhum outro ao seu alcance. Margot, com o seu carácter rígido, perdeu o seu por um erro de ambos. Ante precedentes tão tristes, Rita casou com o primeiro homem que lhe agradou, e foi feliz com cinco filhos e nove netos. As outras duas ‑ Ligia e Emi ‑ casaram com quem quiseram, quando os pais já se tinham cansado de batalhar contra a vida real.

As angústias da família pareciam fazer parte da crise que vivia o país devido à incerteza económica e à sangria causada pela violência política, que chegara a Sucre como uma estação sinistra e entrou na casa em bicos dos pés mas com passo firme. Nessa altura já tínhamos comido as escassas reservas e éramos tão pobres como tínhamos sido em Barranquilla, antes da viagem para Sucre. Mas a minha mãe não se perturbava devido à sua certeza já comprovada de que toda a criança traz o seu pão debaixo do braço.

Era esse o estado da casa quando cheguei de Cartagena, convalescente da pneumonia, mas a família confabulara a tempo para que eu não o notasse.

A bisbilhotice do domínio público na terra era uma suposta relação do nosso amigo Cayetano Gentile com a professora da escola da aldeola próxima de Chaparral, uma bela rapariga de condição social diferente da sua mas muito séria e de uma família respeitável. Não era estranho: Cayetano sempre foi um beija‑flor, não apenas em Sucre mas também em Cartagena, onde fizera o bacharelato e iniciara o curso de Medicina. Mas nunca se lhe conheceu namorada certa em Sucre, nem pares preferidos nos bailes.

Uma noite, vimo‑lo chegar da sua quinta no melhor cavalo, trazendo a professora na sela com as rédeas no punho e ele na garupa, abraçado à cintura dela. Não só nos surpreendeu o grau de confiança que tinham atingido, como o atrevimento de ambos de entrarem pelo passeio do centro da praça principal à hora de maior movimento e numa terra tão maldizente. Cayetano explicou a quem quis ouvi‑lo que a tinha encontrado na porta da escola à espera de alguém que lhe fizesse a caridade de a levar para a povoação àquelas horas da noite. Preveni‑o a brincar que ia amanhecer qualquer dia com um pasquim na porta, e ele encolheu os ombros com um gesto muito seu e atirou‑me a sua piada favorita:

‑ Com os ricos não se atrevem.

Com efeito, os pasquins tinham passado de moda tão depressa como chegaram e pensou‑se que talvez fossem um sintoma mais do mau humor político que assolava o país. A tranquilidade voltou ao sono dos que os temiam. Em contrapartida, poucos dias depois da minha chegada senti que algo mudara em relação a mim na atitude de alguns correligionários do meu pai, que me apontaram como o autor de artigos contra o governo conservador publicados em EL Universal. Não era verdade. Se tive que escrever algumas vezes notas políticas, foram sempre sem assinatura e sob a responsabilidade da direcção, desde que esta decidiu suspender a pergunta sobre o que se tinha passado em Carmen de Bolívar. As da minha coluna assinada revelavam sem dúvida uma posição clara sobre o mau estado do país e a ignomínia da violência e da injustiça, mas sem referências de partido. De facto, nem nessa altura nem nunca fui militante de nenhum. A acusação alarmou os meus pais, e a minha mãe começou a acender velas aos santos, sobretudo quando eu ficava até muito tarde na rua. Senti pela primeira vez em meu redor um ambiente tão opressivo que decidi sair de casa o menos possível.

Foi por esses maus tempos que apareceu no consultório do meu pai um homem impressionante que já parecia ser o fantasma de si mesmo, com uma pele que permitia transluzir a cor dos ossos e o ventre volumoso e tenso como um tambor. Apenas necessitou de uma frase para se tornar inesquecível para sempre:

‑ Doutor, venho para que me tire o mico que me fizeram crescer dentro da barriga.

Depois de o examinar, o meu pai percebeu que o caso não estava ao alcance da sua ciência e mandou‑o a um colega cirurgião, que não encontrou o mico que o paciente julgava mas um monstro sem forma mas com vida própria. O que a mim me interessou, no entanto, não foi a besta do ventre mas o relato do doente sobre o mundo mágico de La Sierpe, uma região lendária dentro dos limites de Sucre a que só se podia chegar por pântanos fumegantes, onde um dos episódios mais vulgares era vingar uma ofensa com um malefício como aquele de uma criatura do demónio dentro do ventre.

Os habitantes de La Sierpe eram católicos convictos, mas viviam a religião à sua maneira, com orações mágicas para cada ocasião.

Acreditavam em Deus, na Virgem e na Santíssima Trindade, mas adoravam‑nos em qualquer objecto em que lhes parecesse descobrir faculdades divinas. O que podia ser inverosímil para eles era que alguém a quem crescesse uma besta satânica dentro do ventre fosse tão racional que apelasse à heresia de um cirurgião.

Tive de repente a surpresa de saber que toda a gente em Sucre conhecia a existência de La Sierpe como um facto real, cujo único problema era chegar até lá através de todo o tipo de obstáculos geográficos e mentais. À última hora, descobri por acaso que o mestre no tema de La Sierpe era o meu amigo Angel Casij, que vira pela última vez quando nos escoltou por entre os escombros pestilentos do 9 de Abril para que pudéssemos comunicar com as nossas famílias. Encontrei‑o com mais uso da razão do que daquela vez e com um relato alucinante das suas diversas viagens a La Sierpe. Soube então tudo o que se podia saber da Marquesita, dona e senhora daquele vasto reino onde se conheciam orações secretas para fazer o bem ou o mal, para levantar do leito um moribundo não sabendo dele nada mais do que a descrição do seu físico e o lugar exacto onde estava, ou para mandar através dos pântanos uma serpente que, ao fim de seis dias, provocasse a morte de um inimigo.

A única coisa que lhe estava vedada era a ressurreição dos mortos, por ser um poder reservado a Deus. Viveu todos os anos que quis e supõe‑se que foram duzentos e trinta e três, mas sem ter envelhecido nem mais um dia depois dos sessenta e seis. Antes de morrer, concentrou os seus fabulosos rebanhos e fê‑los girar durante dois dias e duas noites em redor da casa, até que se formou o pântano de La Sierpe, uma imensidão de água sem limites, atapetada de anémonas fosforescentes. Diz‑se que no seu centro há uma árvore com cabaças de ouro, a cujo tronco está amarrada uma canoa que todos os dias 2 de Novembro, dia dos Mortos, vai a navegar sem patrão até à outra margem, custodiada por crocodilos brancos e cobras com cascavéis de ouro, onde a Marquesita sepultou a sua fortuna sem limites.

Desde que Ángel Casij me contou esta história fantástica, começaram a sufocar‑me as ânsias de visitar o paraíso de La Sierpe encalhado na realidade. Preparámos tudo, cavalos imunizados com orações contrárias, canoas invisíveis e guias mágicos e tudo o que fosse necessário para escrever a crónica de um realismo sobrenatural.

No entanto, as mulas ficaram seladas. A minha lenta convalescença da pneumonia, as troças dos amigos nos bailes da praça, os avisos pavorosos de amigos mais velhos, obrigaram‑me a adiar a viagem para um depois que nunca foi. Evoco‑o hoje, no entanto, como um percalço de boa sorte, porque à falta da Marquesita fantástica mergulhei a fundo e a partir do dia seguinte na escrita de um primeiro romance, do qual apenas me resta o título: La casa.

Pretendia ser um drama da Guerra dos Mil Dias no Caribe colombiano, sobre o qual tinha conversado com Manuel Zapata Olivella numa visita anterior a Cartagena. Nessa ocasião, e sem qualquer relação com o meu projecto, ofereceu‑me um folheto escrito pelo seu pai sobre um veterano daquela guerra, cujo retrato impresso na capa, com o liquilique e os bigodes chamuscados de pólvora, me fez recordar de certo modo o meu avô. Esqueci o nome dele, mas o seu apelido havia de continuar comigo para todo o sempre: Buendía. Por isso pensei em escrever um romance com o título La casa, sobre a epopeia de uma família que podia ter muito da nossa durante as guerras estéreis do coronel Nicolás Márquez.

O título tinha fundamento no propósito de que a acção nunca saísse da casa. Fiz vários princípios e esquemas de personagens parciais aos quais punha nomes de família que mais tarde me serviram para outros livros. Sou muito sensível à fraqueza de uma frase em que duas palavras próximas rimem entre si, mesmo que seja em rima vocal, e prefiro não a publicar enquanto não a tiver resolvida. Por isso estive quase a prescindir muitas vezes do apelido Buendía pela sua rima inevitável com os pretéritos imperfeitos. No entanto, o apelido acabou por impor‑se porque conseguira para ele uma identidade convincente.

Andava nisso quando apareceu uma manhã na casa de Sucre uma caixa de madeira sem letreiros pintados nem qualquer referência. A minha irmã Margot recebera‑a sem saber de quem, convencida de que era algum resto da farmácia vendida. Pensei o mesmo e tomei o pequeno‑almoço em família com o coração no seu lugar. O meu pai esclareceu que não abrira a caixa porque pensou que era o resto da minha bagagem, sem se lembrar que já não tinha sequer os restos de nada neste mundo. O meu irmão Gustavo, que aos treze anos já tinha prática suficiente para pregar ou despregar qualquer coisa, decidiu abri‑la sem autorização. Minutos depois ouvimos o seu grito:

‑ São livros.

O meu coração saltou antes de mim. Com efeito, eram livros sem qualquer pista do remetente, empacotados com mão de mestre até ao topo da caixa e com uma carta difícil de decifrar pela caligrafia hieroglífica e a lírica hermética de Germán Vargas:

 

 «Aí lhe vai esta encomenda, mestre, para ver se por fim aprende.» Assinavam também Alfonso Fuenmayor e uma garatuja que identifiquei como de D. Ramón Vinyes, que ainda não conhecia. A única coisa que me recomendavam era que não cometesse nenhum plágio que se notasse demasiado. Dentro de um dos livros de Faulkner vinha uma nota de Álvaro Cepeda, com a sua letra arrevesada, e escrita além disso a toda a pressa, na qual me avisava que na semana seguinte ia por um ano para um curso especial na escola de jornalismo da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque.

A primeira coisa que fiz foi exibir os livros na mesa da sala de jantar, enquanto a minha mãe acabava de levantar a loiça do pequeno‑almoço. Teve que agarrar numa vassoura para espantar os filhos mais novos, que queriam cortar as ilustrações com as tesouras de podar, e os cães vadios, que farejavam Os livros como se fossem de comer. Também eu os cheirava, como faço sempre com qualquer livro novo, e folheei‑os todos ao acaso, lendo parágrafos salteados. Mudei três ou quatro vezes de lugar durante a noite porque não tinha sossego ou me esgotava a luz morta do corredor do pátio, e amanheci com as costas torcidas e ainda sem uma remota ideia do proveito que podia tirar daquele milagre.

Eram vinte e três obras distintas de autores contemporâneos, todas em espanhol e escolhidas com a intenção evidente de serem lidas com o propósito único de aprender a escrever. E em traduções tão recentes como O Som e a Fúria, de William Faulkner. Cinquenta anos depois, é‑me impossível recordar a lista completa e os três amigos eternos que a sabiam já aqui não estão para se lembrarem. Apenas tinha lido dois: Mrs. Dalloway, da senhora Woolf, e Contraponto, de Aldous Huxley. Os que melhor recordo eram os de William Faulkner: A Aldeia, O Som e a Fúria, Na Minha Morte e As Palmeiras Bravas. Também Manhattan Transfer e talvez outro, de John Dos Passos; Orlando, de Virginia Woolf; Ratos e Homens e As Vinhas da Ira, de John Steinbeck; O Retrato de Jenny, de Robert Nathan, e A Estrada do Tabaco, de Erskine Caldwell. Entre os títulos que não recordo à distância de meio século, havia pelo menos um de Hemingway, talvez de contos, que era o que os três de Barranquilla mais gostavam dele; outro de Jorge Luis Borges, sem dúvida também de contos, e talvez outro de Felisberto Hernández, o insólito contista uruguaio que os meus amigos acabavam de descobrir, exaltados. Li‑os todos nos meses seguintes, uns bem e outros menos, e graças a eles consegui sair do limbo criativo em que estava encalhado.

Devido à pneumonia tinham‑me proibido de fumar, mas fumava na casa de banho como que escondido de mim mesmo. O médico deu conta disso e falou‑me muito a sério, mas não consegui obedecer‑lhe. Já em Sucre, enquanto procurava ler sem pausas os livros recebidos, acendia um cigarro com a brasa do outro até que já não podia mais e quanto mais tentava deixar mais fumava. Cheguei a quatro maços diários, interrompia as refeições para fumar e queimava os lençóis por adormecer com o cigarro aceso. O medo da morte acordava‑me a qualquer hora da noite e só fumando mais conseguia ultrapassá‑lo, até que resolvi que preferia morrer a deixar de fumar.

Mais de vinte anos depois, já casado e com filhos, continuava a fumar. Um médico que me viu os pulmões no ecrã disse‑me espantado que daí a dois ou três anos não poderia respirar. Aterrado, cheguei ao extremo de permanecer sentado horas e horas sem fazer mais nada, porque não conseguia ler, ou escutar música, ou conversar com amigos ou inimigos sem fumar. Uma noite qualquer, durante um jantar banal em Barcelona, um amigo psiquiatra explicava a outros que o tabaco era talvez o vício mais difícil de erradicar. Atrevi‑me a perguntar qual era a razão de fundo e a sua resposta foi de uma simplicidade que causava calafrios:

‑ Porque deixar de fumar seria para ti como matar um ente querido.

Foi uma explosão de clarividência. Nunca soube porquê, nem quis saber, mas esmaguei no cinzeiro o cigarro que acabava de acender e não voltei a fumar mais nenhum, sem ansiedade nem remorsos, para o resto da minha vida.

O outro vício não era menos persistente. Uma tarde, entrou uma das criadas da casa vizinha e, depois de falar com todos, foi até à varanda e com grande respeito pediu‑me licença para falar comigo. Não interrompi a leitura até que ela perguntou:

- Lembra‑se da Matilde?

Não recordava quem era, mas não me acreditou.

‑ Não se faça de parvo, senhor Gabito ‑ disse‑me com um ênfase soletrado: ‑ Ni‑gro‑man‑ta.

E com razão. Nigromanta era então uma mulher livre, com um filho do polícia morto, e vivia só com a mãe e outros da família, na mesma casa mas num quarto separado, com uma saída própria para o beco do cemitério. Fui vê‑la e o reencontro prolongou‑se por mais de um mês. De cada vez adiava o regresso a Cartagena e queria ficar em Sucre para sempre. Até uma madrugada em que fui surpreendido em sua casa por uma tempestade de trovões e raios como a noite da roleta russa. Tentei escapar‑lhe por baixo dos beirais, mas quando não pude mais lancei‑me pela rua adiante com água pelos joelhos. Tive a sorte de a minha mãe estar só na cozinha e levou‑me até ao quarto pelos carreiros do jardim para que o meu pai não soubesse. Logo que me ajudou a tirar a camisa encharcada, afastou‑a à distância do braço com as pontas do polegar e do indicador e atirou‑a para um canto com uma careta de asco.

‑ Estavas com a fulana ‑ disse. Fiquei de pedra.

‑ Como sabe?

‑ Porque é o mesmo cheiro da outra vez ‑ disse, impassível. ‑ Ainda bem que o homem está morto.

Surpreendeu‑me semelhante falta de compaixão pela primeira vez na sua vida. Ela deve ter notado, porque rematou sem pensar:

‑ Foi a única morte que me alegrou quando soube.

Perguntei‑lhe perplexo:

‑ Como soube quem é ela?

‑ Ai, filho ‑ suspirou. ‑ Deus diz‑me tudo o que tem que ver com vocês.

Por último, ajudou‑me a tirar as calças ensopadas e atirou‑as para o canto com o resto da roupa. «Todos vocês vão ser iguais ao vosso pai», disse‑me de imediato, com um suspiro fundo, enquanto me enxugava as costas com uma toalha de estopa. E acabou com a alma:

‑ Queira Deus que também sejam tão bons maridos como ele.

Os cuidados dramáticos a que me submeteu a minha mãe devem ter surtido efeito para prevenir uma recaída da pneumonia. Até que dei conta que ela própria os enredava sem motivo para impedir‑me de voltar à cama de trovões e relâmpagos de Nigromanta. Nunca mais a vi.

Regressei a Cartagena restaurado e alegre, com a notícia de que estava a escrever La casa e falava disso como se fosse um facto consumado desde que estava apenas no capítulo inicial. Zabala e Héctor receberam‑me como ao filho pródigo. Na universidade, os meus bons professores pareciam resignados a aceitar‑me como era. Ao mesmo tempo, continuei a escrever notas muito ocasionais que me pagavam à peça em El Universal. A minha carreira de contista continuou com o pouco que pude escrever quase para fazer a vontade ao mestre Zabala: «Diálogo do espelho» e «Amargura para três sonâmbulos» (Os contos «Diálogo do espelho» e «Amargura para três sonâmbulos» foram publicados em tradução portuguesa na colectânea Olhos de Cão Azul. (N. T.)), publicados por El Espectador. Embora nos dois se notasse um aligeiramento da retórica primária dos quatro anteriores, não conseguira sair do pântano.

Cartagena estava nessa altura contaminada pela tensão política do resto do país e isso devia ser considerado como um presságio de que algo grave ia acontecer. No fim do ano, os liberais declararam a abstenção em toda a linha devido à selvajaria da perseguição política, mas não renunciaram aos seus planos subterrâneos para derrubar o governo. A violência aumentou nos campos e as pessoas fugiram para as cidades, mas a censura obrigava a imprensa a escrever de través. No entanto, era do domínio público que os liberais acossados tinham armado guerrilhas em diversos pontos do país. Nos Llanos orientais ‑ um oceano imenso de pastos verdes que ocupa mais da quarta parte do território nacional ‑ haviam‑se tornado lendárias. O seu comandante‑geral, Guadalupe Salcedo, era já visto como uma figura mítica, mesmo pelo exército, e as suas fotografias, distribuídas em segredo, eram copiadas às centenas e acendiam‑lhes velas nos altares.

Os De La Espriella, ao que parece, sabiam mais do que diziam e dentro do recinto muralhado falava‑se com toda a naturalidade de um golpe de Estado iminente contra o regime conservador. Não conhecia pormenores, mas o mestre Zabala avisara‑me que no momento em que notasse qualquer agitação na rua fosse de imediato para o jornal. A tensão podia tocar‑se com as mãos quando entrei para comparecer a um encontro na Heladería Americana às três da tarde. Sentei‑me a ler numa mesa afastada enquanto chegava alguém, e um dos meus antigos condiscípulos, com quem nunca falara de política, disse‑me ao passar sem olhar para mim:

‑ Vai para o jornal que já vai começar a bronca.

Fiz o contrário: queria saber como ia ser aquilo no puro centro da cidade em vez de me fechar na redacção. Minutos depois, sentou‑se à minha mesa um adido de imprensa do governo, que conhecia bem, e não pensei que o tivessem designado para me neutralizar.

Conversei com ele uma meia hora na mais completa inocência e quando se levantou para ir embora descobri que o enorme salão da geladaria se tinha esvaziado sem que eu desse conta. Ele seguiu o meu olhar e verificou a hora: uma e dez.

‑ Não te preocupes ‑ disse‑me com um alívio reprimido. ‑ Já não aconteceu nada.

Com efeito, o grupo mais importante de dirigentes liberais, Já desesperados pela violência oficial, estabelecera acordo com os militares democratas da mais elevada patente para pôr termo à matança desencadeada em todo o país pelo regime conservador, disposto a manter‑se no poder a qualquer preço. A maioria deles tinha participado nas acções do 9 de Abril para conseguir a paz mediante o acordo que fizeram com o presidente Ospina Pérez, e apenas vinte meses depois apercebiam‑se demasiado tarde de que tinham sido vítimas de um logro colossal. A frustrada acção daquele dia fora autorizada pelo presidente da Direcção Liberal em pessoa, Carlos Lleras Restrepo, por intermédio de Plinio Mendoza Neira, que tinha excelentes relações dentro das Forças Armadas desde que foi ministro da Guerra durante o governo liberal. A acção, coordenada por Mendoza Neira com a colaboração secreta de proeminentes correligionários de todo o país, devia começar ao amanhecer daquele dia com o bombardeamento do Palácio Presidencial por aviões da Força Aérea. O movimento era apoiado pelas bases navais de Cartagena e Apiay, pela maioria das guarnições militares do país e por organizações gremiais decididas a tomar o poder para um governo civil de reconciliação nacional.

Só depois do fracasso se soube que dois dias antes da data prevista para a acção, o ex‑presidente Eduardo Santos reunira na sua casa de Bogotá os liberais mais velhos e os dirigentes do golpe Para um exame final do projecto. No meio do debate, alguém fez a pergunta ritual:

‑ Haverá derramamento de sangue?

Ninguém foi tão ingénuo ou tão cínico que dissesse que não. Outros dirigentes explicaram que estavam tomadas as medidas máximas para que não houvesse, mas que não existiam receitas mágicas para impedir o imprevisível. Assustada com a dimensão da sua própria conjura, a Direcção Liberal distribuiu sem discussão a contra‑ordem. Muitos implicados que não a receberam a tempo foram presos ou mortos na tentativa. Outros, aconselharam a Mendoza que continuasse só até à tomada do poder e ele não o fez por razões mais éticas do que políticas, mas nem o tempo nem os meios lhe bastaram para prevenir todos os implicados. Conseguiu pedir asilo na Embaixada da Venezuela e viver quatro anos de exílio em Caracas, a salvo de um conselho de guerra que o condenou à revelia a vinte e cinco anos de cadeia por insurreição. Cinquenta e dois anos depois, não me treme o pulso para escrever ‑ sem a sua autorização ‑ que se arrependeu para o resto da vida no seu exílio de Caracas pelo saldo desolador do conservadorismo no poder: não menos de trezentos mil mortos.

Para mim também, de certa forma, foi um momento crucial. Dois meses depois tinha reprovado no terceiro ano de Direito e pus termo ao meu compromisso com El Universal, pois não via futuro nem num nem noutro. O pretexto foi a libertação do meu tempo para o romance que apenas começava, embora no fundo da minha alma soubesse que não era nem verdade nem mentira, já que o projecto se me revelou de repente como uma fórmula retórica, com muito pouco do bom que tinha sabido utilizar de Faulkner e todo o mau da minha inexperiência.

Depressa aprendi que contar contos paralelos aos que se está a escrever ‑ sem revelar a sua essência ‑ é uma parte valiosa da concepção e da escrita. Mas não era esse o caso então, e sim que à falta de algo que mostrar tinha inventado um romance falado para entreter o auditório e enganar‑me a mim mesmo.

Essa tomada de consciência obrigou‑me a repensar de ponta a ponta o projecto que nunca teve mais de quarenta folhas salteadas e, no entanto, foi citado em revistas e jornais ‑ também por mim ‑ e inclusive foram publicadas algumas antecipações críticas muito sisudas de leitores imaginativos. No fundo, a razão deste costume de contar projectos paralelos não deveria merecer censuras mas compaixão: o terror de escrever pode ser tão insuportável como o de não escrever. No meu caso, além disso, estou convencido de que contar a história verdadeira dá má sorte. Consola‑me, no entanto, que às vezes a história oral possa ser melhor do que a escrita e sem saber estejamos a inventar um novo género que já faz falta à literatura: a ficção da ficção.

A verdade de verdade é que não sabia como continuar a viver. A minha convalescença em Sucre serviu para me aperceber de que não sabia por onde ia na vida, mas não me deu pistas do rumo certo nem nenhum argumento novo para convencer os meus pais a não morrerem se eu tomasse a liberdade de decidir por minha conta. De modo que fui para Barranquilla com duzentos pesos que me tinha dado a minha mãe antes de regressar a Cartagena, escamoteados aos fundos domésticos.

A 15 de Dezembro de 1949, entrei na Librería Mundo às cinco da tarde para esperar os amigos que não voltara a ver depois da nossa noite de Maio em que fui com o inolvidável senhor Razzore. Não levava mais do que uma maleta de praia com outra muda de roupa e alguns livros e a pasta de cabedal com os meus rascunhos. Minutos depois de mim chegaram todos à livraria, um atrás do outro. Foram umas boas‑vindas ruidosas sem Álvaro Cepeda, que continuava em Nova Iorque. Quando o grupo ficou completo, passámos aos aperitivos, que já não eram no Café Colômbia, ao lado da livraria, mas num novo, de amigos mais próximos, no passeio em frente: o Café Japy.

Não tinha nenhum rumo, nem nessa noite nem no resto da minha vida. O estranho é que nunca pensei que esse rumo podia estar em Barranquilla e se ali ia era apenas para falar de literatura e para agradecer de corpo presente a remessa de livros que me tinham mandado para Sucre. Do primeiro sobrou‑nos, mas nada do segundo, apesar de o ter tentado muitas vezes, porque o grupo tinha um terror sacramental do costume de dar ou receber os agradecimentos entre nós.

Germán Vargas improvisou naquela noite uma refeição para doze pessoas, entre as quais havia de tudo, desde jornalistas, pintores e notários, até ao governador do departamento, um típico conservador barranquillero (Barranquillero ‑ natural de Barranquilla. (N. T.)), com a sua maneira própria de discernir e governar. A maioria retirou‑se a seguir à meia‑noite e o resto espalhou‑se em migalhas até que apenas restámos Alfonso, Germán e eu, com o governador, mais ou menos no são juízo em que costumávamos estar nas madrugadas da adolescência.

Nas longas conversas daquela noite recebera dele uma lição surpreendente sobre o modo de ser dos governantes da cidade nos anos sangrentos. Calculava que entre os estragos dessa política bárbara, os menos encorajadores eram um número impressionante de refugiados sem tecto nem pão nas cidades.

‑ Tendo isso em conta ‑ concluiu ‑, o meu partido, com o apoio das armas, ficará sem adversário nas próximas eleições e senhor absoluto do poder.

A única excepção era Barranquilla, de acordo com uma cultura de convivência política que os próprios conservadores locais partilhavam e que fizera dela um refúgio de paz no olho do furacão. Quis fazer‑lhe um reparo ético, mas ele travou‑me em seco com um gesto da mão.

‑ Perdão ‑ disse ‑, isto não quer dizer que estejamos à margem da vida nacional. Pelo contrário: mesmo pelo nosso pacifismo, o drama social do país foi‑nos entrando nas pontas dos pés pela porta de trás e já o temos aqui dentro.

Soube então que havia uns cinco mil refugiados vindos do interior na pior miséria e não sabiam como reabilitá‑los nem onde escondê‑los para que o problema não se tornasse público. Pela primeira vez na história da cidade, havia patrulhas militares que montavam guarda em lugares críticos, e todos as viam, mas o governo negava‑o e a censura impedia que fossem denunciadas na imprensa.

Ao amanhecer, depois de embarcar quase de rastos o senhor governador, fomos ao Chop Suey, o lugar de pequeno‑almoço dos grandes amanhecidos. Alfonso comprou no quiosque da esquina três exemplares de El Heraldo, em cuja primeira página havia uma nota assinada por Puck, o seu pseudónimo na coluna que publicava dia sim dia não. Era apenas uma saudação para mim, mas Germán troçou dele porque a nota dizia que eu estava ali de férias informais.

‑ O melhor teria sido dizer que fica a viver aqui, para não escrever uma nota de saudação e depois outra de despedida ‑ brincou Germán. ‑ Menos despesa para um jornal tão tacanho como El Heraldo.

Já a sério, Alfonso pensava que não calharia mal na sua secção editorial mais um colunista. Mas Germán estava indomável à luz do amanhecer.

‑ Será um quinta‑colunista porque já têm quatro.

Nenhum deles consultou a minha opinião, como eu desejava, para lhes dizer que sim. Não se falou mais do assunto. Nem foi necessário, porque Alfonso me disse nessa noite que tinha falado com a direcção do jornal e achavam bem a ideia de um novo colunista, desde que fosse bom mas sem muitas pretensões. Em todo o caso, não podiam resolver nada até depois das festas do Ano Novo. De modo que fiquei com o pretexto do emprego, embora em Fevereiro me dissessem que não.

 

Foi assim que foi publicada a minha primeira nota na primeira página de El Heraldo de Barranquilla, a 5 de Janeiro de 1950. Não a quis assinar com o meu nome a fim de me precaver para o caso de não conseguir acertar o passo, como acontecera em El Universal. Não pensei duas vezes o pseudónimo: Septimus, tirado de Septimus Warren Smith, o personagem alucinado de Virginia Woolf em Mrs. Dalloway. O título da coluna ‑ «La Jirafa» ‑ era o sobrenome confidencial com que apenas eu conhecia o meu par único nos bailes de Sucre.

Pareceu‑me que as brisas de Janeiro sopravam mais do que nunca naquele ano e mal se conseguia andar contra elas nas ruas fustigadas até ao amanhecer. Os temas de conversa ao levantar eram os estragos dos ventos loucos durante a noite, que arrastavam consigo sonhos e galinheiros e transformavam em guilhotinas voadoras as lâminas de zinco dos telhados.

Hoje penso que aquelas brisas loucas varreram os restolhos de um passado estéril e me abriram as portas de uma nova Vida. A minha relação com o grupo deixou de ser de complacências e transformou‑se numa cumplicidade profissional.  Ao princípio, comentávamos os temas em projecto ou trocávamos entre nós observações nada doutorais mas a não esquecer.

A definitiva para mim foi a de uma manhã em que entrei no Café Japy quando Germán Vargas estava a acabar de ler em silêncio «La Jirafa», recortada do jornal do dia. Os outros do grupo esperavam o seu veredicto em redor da mesa com uma espécie de terror reverencial que tornava mais denso o fumo da sala. Ao terminar, sem olhar sequer para mim, Germán rasgou‑a em bocadinhos sem dizer uma única palavra e misturou‑os no lixo de beatas e fósforos queimados do cinzeiro. Ninguém disse nada, nem o humor da mesa mudou, nem se comentou o episódio em qualquer momento. Mas a lição ainda me serve quando me assalta por preguiça ou pressa a tentação de escrever um parágrafo para despachar.

No hotel de passe onde vivi quase um ano, os proprietários acabaram por tratar‑me como a um membro da família. O meu único património de então eram as históricas sandálias e duas mudas de roupa que lavava no duche, e a pasta de cabedal que roubei no salão de chá mais requintado de Bogotá nos tumultos de 9 de Abril. Levava‑a comigo para todo o lado, corri os originais do que estivesse a escrever, que era a única coisa que tinha para perder. Não me teria arriscado a deixá‑la nem fechada a sete chaves na caixa blindada de um banco. A única pessoa a quem a confiara nas minhas primeiras noites fora ao discreto Lácides, o porteiro do hotel, que ma aceitou como garantia pelo preço do quarto. Deu uma vista de olhos intensa às tiras de papel escritas à máquina e sobrecarregadas de emendas e guardou‑a na gaveta do balcão. Recuperei‑a no dia seguinte, à hora prometida, e continuei a cumprir os meus pagamentos com tanto rigor que ma recebia como penhor até por três noites. Chegou a ser um acordo tão sério que algumas vezes lha deixava no balcão sem dizer nada mais do que as boas‑noites e eu próprio tirava a chave do tabuleiro e subia para o meu quarto.

Germán vivia pendente a toda a hora das minhas carências, a ponto de saber se não tinha onde dormir, e dava‑me sem ninguém ver o peso e meio para a cama. Nunca soube como sabia. Graças à minha boa conduta, ganhei a confiança do pessoal do hotel, a ponto das putinhas me emprestarem o seu sabão pessoal para o duche. No posto de comando, com as suas mamas siderais e o crânio de abóbora, presidia à vida a sua dona e senhora, Catalina la Grande. O seu chulo de turno, o mulato Jonás San Vicente, tinha sido um trompetista de luxo até que lhe destruíram a dentadura oirificada num assalto para lhe roubarem os dentes. Maltratado e sem fôlego para soprar, teve que mudar de ofício e não podia conseguir outro melhor para a sua tranca de seis polegadas do que a cama de ouro de Catalina La Grande. Também ela tinha o seu tesouro íntimo, que lhe serviu para trepar em dois anos das madrugadas miseráveis do cais fluvial até ao trono de grande patroa. Tive a sorte de conhecer o engenho e a habilidade de ambos para tornar felizes os seus amigos. Mas nunca entenderam por que razão tantas vezes não tinha o peso e meio para dormir e, no entanto, passavam para me vir buscar pessoas muito importantes em limusinas oficiais.

Outra ocorrência feliz daqueles dias foi que acabei como copiloto único do Mono Guerra, um taxista tão louro que parecia albino e tão inteligente e simpático que o tinham eleito como vereador honorário sem fazer campanha. As suas madrugadas no bairro chinês pareciam de cinema, porque ele próprio se encarregava de as enriquecer ‑ e às vezes enlouquecer ‑ com ousadias inspiradas. Avisava‑me quando tinha alguma noite mais livre e passávamo‑la juntos no escalavrado bairro chinês, onde os nossos pais e os pais dos seus pais aprenderam a fazer‑nos.

Nunca consegui descobrir, no meio de uma vida tão simples, por que me afundei de repente num tédio imprevisto.

O meu romance em curso ‑ La casa ‑, uns seis meses depois de começado, pareceu‑me uma insípida farsa. Era mais o que falava dele do que o que escrevia e, na realidade, a pouca coisa coerente que teve foram os fragmentos que antes e depois publiquei em «La Jirafa» e na Crónica, quando ficava sem assunto. Na solidão dos fins‑de‑semana, quando os outros se refugiavam em suas casas, ficava mais só do que a mão esquerda na cidade desocupada. Era de uma pobreza absoluta e de uma timidez de codorniz, que procurava disfarçar com uma sobranceria insuportável e uma franqueza brutal. Sentia que estava a mais em todo o lado e até alguns conhecidos mo faziam notar. Isto era mais crítico na sala de redacção de El Heraldo, onde escrevia até dez horas seguidas num canto isolado sem conviver com ninguém, envolto na fumarada dos cigarros baratos que fumava sem pausa, numa solidão sem alívio. Fazia‑o a toda a pressa, muitas vezes até ao amanhecer, e em tiras de papel de impressão que levava para todo o lado na pasta de cabedal.

Num dos tantos descuidos daqueles dias, esqueci‑a num táxi e entendi isso sem amargura como uma partida mais da minha má sorte. Não fiz qualquer esforço para a recuperar,' mas Alfonso Fuenmayor, alarmado com a minha negligência, redigiu e publicou uma nota no fim da minha secção: «No último sábado ficou esquecida uma pasta num automóvel de serviço público. Tendo em vista que o dono dessa pasta e autor desta secção são, por coincidência, uma e a mesma pessoa, agradeceríamos ambos a quem a tenha que tivesse a amabilidade de comunicar com qualquer dos dois. A pasta não contém nenhuns objectos de valor: apenas "jirafas" inéditas". Dois dias depois, alguém deixou os meus rascunhos na portaria de El Heraldo, mas sem a pasta e com três erros de ortografia corrigidos com muito boa letra, a tinta verde.

O soldo diário chegava‑me à justa para pagar o quarto, mas o que menos me importava naqueles dias era o abismo da nobreza. Nas muitas vezes em que não o pude pagar, ia ler no Café Roma como o que era na realidade: um solitário desgarrado na noite do Paseo Bolívar. A qualquer conhecido fazia um cumprimento de longe, se me dignasse sequer olhar para ele, e seguia de largo até ao meu reservado habitual, onde muitas vezes li até que o sol me espantava. Pois mesmo nessa altura continuava a ser um leitor insaciável sem nenhuma formação sistemática. Sobretudo de poesia, mesmo da má, pois até nos piores momentos estive convencido de que a má poesia conduz mais tarde ou mais cedo à boa.

Nas minhas notas de «La Jirafa» mostrava‑me muito sensível à cultura popular, ao contrário dos meus contos, que mais pareciam enigmas kafkianos escritos por alguém que não sabia em que país vivia. No entanto, a verdade da minha alma era que o drama da Colômbia me chegava como um eco remoto e só me comovia quando transbordava em rios de sangue. Acendia um cigarro sem acabar o anterior, aspirava o fumo com as ânsias de vida com que os asmáticos bebem o ar, e os três maços que consumia num dia notavam‑se‑me nas unhas e numa tosse de cão velho que perturbou a minha juventude. No fundo, era tímido e triste, como bom caribenho, e tão cioso da minha intimidade que respondia a qualquer pergunta sobre ela com uma tirada retórica. Estava convencido de que a minha má sorte era congénita e sem remédio, sobretudo com as mulheres e o dinheiro, mas não me importava, pois tinha a convicção de que a boa sorte não me fazia falta para escrever bem. Não me interessavam a glória, nem o dinheiro, nem a velhice, porque estava certo de que ia morrer muito novo e na rua. A viagem com a minha mãe para vender a casa de Aracataca resgatou‑me desse abismo, e a certeza do novo romance indicou‑me o horizonte de um futuro diferente. Foi uma viagem decisiva entre as numerosas da minha vida, porque me demonstrou na própria carne que o livro que tentara escrever era uma pura invenção retórica sem qualquer apoio numa verdade poética. O projecto, como é evidente, desfez ‑se em fanicos quando o confrontei com a realidade naquela viagem reveladora.

O modelo de uma epopeia como a que eu sonhava não podia ser outro senão o da minha própria família, que nunca foi protagonista e nem sequer vítima de algo, mas testemunha inútil e vítima de tudo. Comecei a escrevê‑lo na própria hora do regresso, pois já não me servia para nada a elaboração com recursos artificiais, mas sim a carga emocional que arrastava sem saber e me esperara intacta na casa dos avós. Desde o meu primeiro passo nas areias ardentes da aldeia apercebera‑me de que o meu método não era o mais feliz para contar aquele paraíso terreal da desolação e da nostalgia, embora tendo gasto muito tempo e trabalho para encontrar o método correcto. As atribulações da Crónica, prestes a sair, não foram um obstáculo, antes pelo contrário: um travão de disciplina para a ansiedade.

Salvo Alfonso Fuenmayor ‑ que me surpreendeu na febre criativa horas depois de ter começado a escrevê‑lo ‑, o resto dos meus amigos acreditou durante muito tempo que continuava com o velho projecto de La casa. Decidi que assim fosse pelo temor pueril de que se viesse a descobrir o fracasso de uma ideia da qual tinha falado tanto como se fosse uma obra‑prima. Mas também o fiz pela superstição, que ainda cultivo, de contar uma história e escrever outra diferente para que não se saiba qual é qual. Sobretudo nas entrevistas de imprensa, que ao fim e ao cabo são um género de ficção perigosa para escritores tímidos que não querem dizer mais do que devem.

No entanto, Germán Vargas deve tê‑lo descoberto com a sua perspicácia misteriosa, porque meses depois da viagem de D. Ramón para Barcelona lho disse numa carta: «Creio que Gabito abandonou o projecto de La casa e está metido noutro romance.» D. Ramón, como é evidente, sabia‑o desde antes de partir.

Desde a primeira linha tive como certo que o novo livro se deveria sustentar com as recordações de um menino de sete anos, sobrevivente da matança pública de 1928 na zona bananeira. Mas Pu‑lo de parte com grande rapidez porque o relato ficava limitado ao ponto de vista de um personagem sem suficientes recursos poéticos para o contar. Tomei então consciência de que a minha aventura de ler Ulisses aos vinte anos e, mais tarde, O Som e a Fúria, eram duas audácias prematuras sem futuro e decidi relê‑los com uma óptica menos desconfiada. Com efeito, muito do que me parecera pedante ou hermético em Joyce e Faulkner revelou‑se‑me então com uma beleza e uma simplicidade aterradoras. Pensei em diversificar o monólogo com vozes de toda a povoação, como um coro grego narrador, à maneira de Na Minha Morte, que são reflexões de toda uma família interpostas em redor de um moribundo. Não me senti capaz de repetir o seu recurso simples de indicar os nomes dos protagonistas em cada dissertação, como nos textos de teatro, mas deu‑me a ideia de usar apenas as três vozes do avô, da mãe e do menino, cujos tons e destinos tão diferentes poderiam identificar‑se por si sós. O avô do romance não seria zarolho como o meu mas era coxo; a mãe absorta, mas inteligente, como a minha, e o menino imóvel, assustado e pensativo, como sempre fui na sua idade. Não foi achado de criação, nem pouco mais ou menos, mas apenas recurso técnico.

O novo livro não teve nenhuma mudança de fundo durante a escrita, nem nenhuma versão diferente da original, salvo supressões e remendos durante uns dois anos antes da sua primeira edição, quase pelo vício de continuar a corrigir até morrer. Visualizara na realidade a aldeia ‑ muito diferente da que eu tinha no projecto anterior ‑ quando voltei a Aracataca com a minha mãe, mas este nome ‑ como me avisara o mui sábio D. Ramón ‑ pareceu‑me tão pouco convincente como o de Barranquilla, pois também lhe faltava o sopro mítico que buscava para o romance. Decidi portanto chamá‑la com o nome que sem dúvida conhecia desde criança, mas cuja carga mágica não se me revelara até então: Macondo.

Tive que mudar o título de La casa ‑ tão familiar nessa altura entre os meus amigos ‑ porque não tinha nada que ver com o novo projecto, mas cometi o erro de anotar num caderno de escola os títulos que me iam ocorrendo enquanto escrevia e cheguei a ter mais de oitenta. Por fim, encontrei‑o sem o procurar na primeira versão já quase terminada, quando cedi à tentação de lhe escrever um prólogo de autor. O título saltou‑me à cara como o mais desdenhoso e ao mesmo tempo compassivo com que a minha avó, nos seus resíduos de aristocrata, baptizou a marabunta (Marabunta ‑ migrações massivas de formigas legionárias que devoram ao passar tudo o que encontram. Daí a sua comparação com os da United Fruit Company. (N. T.)) da United Fruit Company: A Revoada.

Os autores que mais me estimularam para o escrever foram os romancistas norte‑americanos e, em especial, os que me mandaram para Sucre os meus amigos de Barranquilla. Sobre tudo pelas afinidades de toda a índole que encontrava entre as culturas do sul profundo e a do Caribe, com a qual tenho uma identificação absoluta, essencial e insubstituível na minha formação de ser humano e escritor. Desde estas tomadas de consciência, comecei a ler como um autêntico romancista artesanal, não só por prazer como pela curiosidade insaciável de descobrir como estavam escritos os livros dos sábios. Lia‑os primeiro pelo direito, depois pelo avesso, e submetia‑os a uma espécie de estripamento cirúrgico até desentranhar os mistérios mais recônditos da sua estrutura. Pela mesma razão, a minha biblioteca nunca foi muito mais do que um instrumento de trabalho, onde posso consultar a qualquer momento um capítulo de Dostoievski ou precisar um dado sobre a epilepsia de Júlio César ou sobre o mecanismo de um carburador de automóvel. Tenho, inclusive, um manual para cometer assassinatos perfeitos, para o caso de algum dos meus personagens desvalidos precisar. O resto foi feito pelos amigos, que me orientavam nas minhas leituras e me emprestavam os livros que devia ler no momento certo, e os que fizeram as leituras impiedosas dos meus originais antes de serem publicados.

Exemplos como este deram‑me uma nova consciência de mim mesmo e o projecto da Crónica acabou por dar‑me asas. A nossa moral era tão elevada que, apesar dos obstáculos insuperáveis, conseguimos ter instalações próprias num terceiro andar sem elevador, entre os pregões das vendedeiras e os autocarros sem lei da Calle San Blas, que era uma feira turbulenta desde o amanhecer até às sete da noite. Mal cabíamos. Ainda não tinham instalado o telefone e o ar condicionado era uma fantasia que podia custar‑nos mais que o semanário, mas já Fuenmayor tinha tido tempo para atulhar o gabinete com as suas enciclopédias desmanteladas, os recortes de imprensa em qualquer idioma e os célebres manuais de ofícios raros. Na sua secretária de director estava a histórica Underwood, que resgatara com grave risco de vida no incêndio de uma embaixada e que hoje em dia é uma jóia no Museo Romântico de Barranquilla. Eu ocupava a outra única secretária, com uma máquina emprestada por El Heraldo, na minha flamejante condição de chefe de redacção. Havia uma mesa de desenho para Alejandro Obregón, Orlando Guerra e Alfonso Melo, três pintores famosos que se comprometeram no seu são juízo a ilustrar de graça as colaborações e assim fizeram, primeiro pela generosidade congénita de todos, e no fim porque não tínhamos um cêntimo disponível nem para nós mesmos. O fotógrafo mais constante e sacrificado foi Quique Scopell.

À parte o trabalho de redacção, que era o próprio do meu título, competia‑me também vigiar o processo de montagem e dar assistência ao revisor de provas, apesar da minha ortografia de holandês. Visto que permanecia com El Heraldo o meu compromisso de continuar «La Jirafa», não tinha muito tempo para colaborações regulares na Crónica. Tinha‑o pelo contrário, isso sim, para escrever os meus contos nas horas mortas da madrugada.

Alfonso, especialista em todos os géneros, colocou o peso da sua fé nos contos policiais, pelos quais tinha uma paixão sedenta. Traduzia‑os ou seleccionava‑os e eu submetia‑os a um processo de simplificação formal que haveria de vir a servir‑me para o meu ofício. Consistia em poupar espaço pela eliminação, não apenas das palavras inúteis como também dos factos supérfluos, até os deixar na pura essência sem afectar o seu poder de convicção. Quer dizer, apagar tudo o que pudesse sobrar num género drástico em que cada palavra deveria responder por toda a estrutura. Este foi um exercício dos mais úteis nas minhas investigações enviesadas para aprender a técnica de contar um conto.

Alguns dos melhores de José Félix Fuenmayor salvaram‑nos vários sábados, mas a circulação permanecia impávida.

No entanto, a eterna tábua de salvação foi a têmpera de Alfonso Fuenmayor, a quem nunca foram reconhecidos méritos de homem de empresa e que se empenhou na nossa com uma tenacidade superior às suas forças, que ele mesmo tratava de desmistificar a cada passo com o seu terrível sentido de humor. Fazia tudo, desde escrever os editoriais mais lúcidos até às notas mais inúteis, com o mesmo entusiasmo com que conseguia anúncios, créditos impensáveis e obras exclusivas de colaboradores difíceis. Mas foram milagres estéreis. Quando os ardinas regressavam com a mesma quantidade de exemplares que tinham levado para vender, tentávamos a distribuição pessoal nas tascas favoritas, desde El Tercer Hombre até às mais sombrias do porto fluvial, onde tínhamos que cobrar os escassos lucros em espécies etílicas.

Um dos colaboradores mais pontuais, e sem dúvida o mais lido, veio a ser o Vate Osío. Foi um dos infalíveis desde o primeiro número da Crónica e o seu «Diário de uma dactilógrafa», com o pseudónimo Dolly Melo, acabou por conquistar o coração dos leitores. Ninguém podia acreditar que tantos ofícios dispersos fossem feitos com tanta gentileza pelo mesmo homem.

Bob Prieto podia impedir o naufrágio da Crónica com qualquer achado médico ou artístico da Idade Média. Mas, em matéria de trabalho, tinha uma norma diáfana: se não pagam, não há produto. Muito em breve, como é evidente, e com a dor nas nossas almas, não houve.

De Júlio Mário Santodomingo conseguimos publicar quatro contos enigmáticos, escritos em inglês, que Alfonso traduzia com a ansiedade de um caçador de libélulas nas folhagens dos seus dicionários raros e que Alejandro Obregón ilustrava com um requinte de grande artista. Mas Júlio Mário viajava tanto e com tantos destinos opostos que se tornou um sócio invisível.

Apenas Alfonso Fuenmayor soube onde encontrá‑lo e no‑lo revelou com uma frase inquietante:

‑ Cada vez que vejo passar um avião, penso que ali vai Júlio Mário Santodomingo.

O resto eram colaboradores ocasionais, que nos últimos minutos do fecho ‑ ou do pagamento ‑ nos mantinham com a alma por um fio.

Bogotá aproximou‑se de nós como iguais, mas nenhum dos amigos úteis fez esforços de qualquer espécie para manter a flutuar o semanário. Salvo Jorge Zalamea, que entendeu as afinidades entre a sua revista e a nossa e nos propôs um pacto de intercâmbio de materiais que deu bons resultados. Mas creio que na realidade ninguém apreciou o que a Crónica tinha já de milagre. O conselho editorial eram dezasseis membros, escolhidos por nós de acordo com os méritos reconhecidos de cada um, e todos eram seres de carne e osso, mas tão poderosos e ocupados que bem podia duvidar‑se da sua existência.

A Crónica teve para mim a importância lateral de me obrigar a improvisar contos de emergência para preencher espaços imprevistos na angústia do fecho. Sentava‑me à máquina, enquanto linotipistas e montadores faziam o que lhes competia, e inventava do nada um relato do tamanho do buraco. Assim escrevi «De como Natanael faz uma visita», que me resolveu um problema de urgência ao amanhecer, e «Olhos de cão azul» (O conto «Olhos de cão azul» foi publicado em tradução portuguesa na colectânea com o mesmo nome. (N. T.)), cinco semanas depois.

O primeiro desses dois contos foi a origem de uma série} com um mesmo personagem, de cujo nome me apoderei sem autorização de André Gide. Mais tarde escrevi «O fim de Natanael», para resolver outro drama de última hora. Fizeram os dois parte de uma sequência de seis que arquivei sem dor quando dei conta de que não tinham nada que ver comigo.

Dos que me ficaram a meio, recordo um sem fazer a menor ideia do seu argumento: «De como Natanael se veste de noiva.» O personagem não se me parece hoje com ninguém que tenha conhecido, nem estava baseado em vivências próprias ou alheias, nem posso imaginar sequer como poderia ser um conto meu com um tema tão equívoco. Natanael, em definitivo, era um boneco literário sem qualquer interesse humano. É bom recordar estes desastres para não esquecer que um personagem não se inventa do zero, como quis fazer com Natanael. Por sorte, a imaginação não me bastou para chegar tão longe de mim mesmo e, por desgraça, também estava convencido de que o trabalho literário tinha que ser tão bem pago como colocar ladrilhos, e se pagávamos bem e com pontualidade aos tipógrafos, com mais razão se devia pagar aos escritores. A melhor ressonância que tínhamos do nosso trabalho na Crónica chegava até nós nas cartas de D. Ramón para Germán Vargas. Interessava‑se pelas notícias mais impensáveis e pelos amigos e factos da Colômbia, e Germán mandava‑lhe recortes de imprensa e contava‑lhe em cartas intermináveis as notícias proibidas pela censura. Quer dizer, para ele havia duas Crónicas: a que nós fazíamos e a que Germán lhe resumia nos fins‑de‑semana. Os comentários entusiastas ou severos de D. Ramón sobre os nossos artigos eram a nossa maior avidez. Entre as várias causas com que pretenderam explicar os tropeções da Crónica, e também as incertezas do grupo, soube por acaso que alguns os atribuíam à minha má sorte congénita e contagiosa. Como uma prova mortal, era citada a minha reportagem sobre Berascochea, o futebolista brasileiro, com a qual quisemos conciliar desporto e literatura num género novo e foi o descalabro definitivo. Quando tomei conhecimento da minha fama indigna, esta já estava muito espalhada entre os clientes do Japy.

Desmoralizado até ao tutano, comentei com Germán Vargas, que já a conhecia, como o resto do grupo.

‑ Calma, mestre ‑ disse‑me sem a menor hesitação. ‑ Escrever como escreve só se explica por uma boa sorte que ninguém consegue derrotar.

Nem tudo foram más noites. A de 27 de Julho de 1950, na sala de festas da Negra Eufemia, teve um certo valor histórico na minha vida de escritor. Não sei por que boa causa, a dona tinha mandado fazer um sancocho épico de quatro carnes, e os alcaravões, alvoroçados pelos odores silvestres, aumentaram os chiados em redor do fogão. Um cliente frenético agarrou um alcaravão pelo pescoço e deitou‑o vivo na panela a ferver. O animal conseguiu apenas lançar um uivo de dor, com um adejar final, e afundou‑se nos profundos infernos. O bárbaro assassino tentou agarrar outro, mas a Negra Eufemia estava já levantada do trono com toda a sua imponência.

‑ Quietos, carago ‑ gritou ‑ que os alcaravões vão lhes arrancar os olhos!

Só a mim me importou, porque fui o único que não tive coragem para provar o sancocho sacrílego. Em vez de ir dormir, precipitei‑me para o escritório da Crónica e escrevi de uma tirada só a história de três clientes de um bordel a quem os alcaravões arrancaram os olhos e ninguém acreditou. Tinha apenas quatro páginas de tamanho oficial a dois espaços e estava contado na primeira pessoa do plural por uma voz sem nome. E de um realismo transparente e, no entanto, o mais enigmático dos meus contos, que além disso me fez enfiar por um rumo que estava prestes a abandonar por não ser capaz. Tinha começado a escrever às quatro da madrugada de sexta‑feira e acabei às oito da manhã, atormentado por um deslumbramento de adivinho. Com a cumplicidade infalível de Porfirio Mendoza, o paginador histórico de El Heraldo, reformei o diagrama previsto para a edição da crónica que circulava no dia seguinte. No último minuto, desesperado pela guilhotina do fecho, ditei a Porfirio o título definitivo que acabava por fim de encontrar e ele escreveu‑o em directo no chumbo fundido: «A noite dos alcaravões.» (O conto «A noite dos alcaravões» foi publicado em tradução portuguesa na colectânea Olhos de Cão Azul. (N. T.))

Para mim foi o princípio de uma nova época, depois de nove contos que ainda estavam no limbo metafísico e quando não tinha nenhum projecto para prosseguir com um género que não conseguia agarrar. Jorge Zalamea reproduziu‑o no mês seguinte em Crítica, excelente revista de poesia grande.

Voltei a lê‑lo cinquenta anos depois, antes de escrever este parágrafo, e creio que não lhe mudaria uma vírgula. No meio da desordem sem bússola em que estava a viver, aquele foi o princípio de uma Primavera.

O país, pelo contrário, entrava em queda livre. Laureano Gómez regressara de Nova Iorque para ser proclamado candidato conservador à presidência da República. O liberalismo absteve‑se ante o império da violência e Gómez foi eleito sozinho a 7 de Agosto de 1950. Visto que o Congresso estava encerrado, tomou posse perante a Corte Suprema de Justicia.

Mal conseguiu governar de corpo presente, pois passados quinze meses retirou‑se da presidência por reais motivos de saúde. Substituiu‑o o jurista e parlamentar conservador Roberto Urdaneta Arbeláez, na sua condição de vice‑presidente da República. Os bons entendedores interpretaram isso como uma fórmula muito própria de Laureano Gómez para deixar o poder noutras mãos, mas sem o perder, e continuar a governar de casa por interposta pessoa. E, em casos urgentes, pelo telefone.

Penso que o regresso de Álvaro Cepeda com o seu diploma da Universidade de Colúmbia, um mês antes do sacrifício do alcaravão, foi decisivo para ajudar a ultrapassar os funestos fados daqueles dias. Voltou mais esguedelhado e sem o bigode de vassoura e mais indomável do que quando foi. Germán Vargas e eu, que o esperávamos há vários meses com o receio de que o tivessem amansado em Nova Iorque, morremos de riso quando o vimos sair do avião de casaco e gravata e cumprimentar da escada com a novidade de Hemingway: Na Outra Margem, entre as Árvores. Arranquei‑lho das mãos, acariciei‑o de ambos os lados e quando lhe quis perguntar qualquer coisa, Álvaro adiantou‑se:

‑ É uma merda!

Germán Vargas, sufocado de riso, murmurou‑me ao ouvido: «Voltou igualzinho.» No entanto, Álvaro esclareceu‑nos depois que a sua opinião sobre o livro era uma piada, pois apenas começara a lê‑lo no voo de Miami. Em todo o caso, o que nos levantou os ânimos foi que trouxe mais alvoroçado do que antes o sarampo do jornalismo, do cinema e da literatura. Nos meses seguintes, enquanto voltava a aclimatar‑se, manteve‑nos com a febre a quarenta graus.

Foi um contágio imediato. «La Jirafa», que há meses girava sobre si mesma a tactear com bengala de cego, começou a respirar com dois fragmentos saqueados do rascunho de La casa. Um era «O filho do coronel», nunca nascido, e o outro era «Ny», uma menina fugitiva, a cuja porta bati muitas vezes em busca de caminhos diferentes, e nunca respondeu. Também recuperei o meu interesse de adulto pelas tiras de banda desenhada cómicas, não como passatempo dominical mas como um novo género literário, condenado sem razão ao quarto das crianças. O meu herói, no meio de tantos outros, foi Dick Tracy. E além disso, claro, recuperei o culto do cinema que me inculcou o avô e me alimentou D. António Daconte em Aracataca e que Álvaro Cepeda transformou numa paixão evangélica para um país onde os melhores filmes eram conhecidos por relatos de peregrinos. Foi uma sorte que o seu regresso coincidisse com a estreia de duas obras‑primas: O Mundo Não Perdoa, de Clarence Brown sobre o romance de William Faulkner, e O Retrato de Jenny, realizada por William Dieterle sobre o romance de Robert Nathan. Comentei ambos em «La Jirafa», depois de longas discussões com Álvaro Cepeda. Fiquei tão interessado que comecei a ver cinema com outra óptica. Antes de o conhecer não sabia que o mais importante era o nome do realizador, que é o último que aparece no genérico. Para mim, era uma simples questão de escrever guiões e manobrar actores, pois o resto era feito pelos numerosos membros da equipa. Quando Álvaro regressou, deu‑me um curso completo à base de gritos e rum branco, até ao amanhecer, nas mesas das piores tascas, para me ensinar à força o que lhe tinham ensinado de cinema nos Estados Unidos, e amanhecíamos a sonhar acordados com fazê‑lo na Colômbia.

À parte essas explosões luminosas, a nossa impressão, dos amigos que seguíamos Álvaro na sua velocidade de cruzeiro, era que não tinha serenidade para se sentar a escrever. Os que convivíamos com ele de perto não podíamos imaginá‑lo sentado mais de uma hora a qualquer secretária. No entanto, dois ou três meses depois do seu regresso, Titã Manotas ‑ a sua namorada de muitos anos e sua mulher de toda a vida ‑ telefonou‑nos aterrorizada para nos contar que Álvaro vendera a sua camioneta histórica e esquecera no porta‑luvas os originais sem cópia dos seus contos inéditos. Não fizera nenhum esforço para os encontrar, com o argumento muito seu de que eram «seis ou sete contos de merda». Amigos e correspondentes ajudámos Titã na busca da camioneta várias vezes revendida em todo o litoral caribenho e terra dentro até Medellín. Encontrámo‑la por fim numa oficina de Sincelejo, acerca de duzentos quilómetros de distância. Entregámos a Tita os originais, em tiras de papel de impressão, amarfanhadas e incompletas, por receio que Álvaro tornasse a perdê‑los por descuido ou de propósito.

Dois desses contos foram publicados na Crónica e os outros guardou‑os Germán Vargas durante uns dois anos, enquanto se tentava encontrar uma solução editorial. A pintora Cecilia Forras, sempre fiel ao grupo, ilustrou‑os com uns desenhos inspirados, que eram uma radiografia de Álvaro vestido de tudo o que podia ser ao mesmo tempo: motorista de camião, palhaço de feira, poeta louco, estudante de Colúmbia ou qualquer outro ofício, menos de homem comum e vulgar. O livro foi editado pela Librería Mundo com o título Todos estábamos a la espera, e foi um acontecimento editorial que só passou despercebido à crítica doutoral. Para mim ‑ e assim o escrevi nessa altura ‑ foi o melhor livro de contos que tinha sido publicado na Colômbia.

Alfonso Fuenmayor, por seu lado, escreveu comentários críticos e de mestre de letras em jornais e revistas, mas tinha um grande pudor de reuni‑los em livros. Era um leitor de uma voracidade descomunal, apenas comparável à de Álvaro Mutis ou Eduardo Zalamea. Germán Vargas e ele eram críticos tão drásticos que o foram mais com os seus próprios contos do que com os do próximo, mas a sua mania de encontrar valores jovens não lhes faltou nunca. Foi a Primavera criativa em que correu o rumor insistente de que Germán se tresnoitava escrevendo contos magistrais, mas não se soube nada deles até muitos anos depois, quando se fechou no quarto de dormir da sua casa paterna e os queimou horas antes de casar com a minha comadre Susana Linares, para ter a certeza de que não seriam lidos nem por ela. Supunha‑se que eram contos e ensaios e talvez o rascunho de algum romance, mas Germán não disse uma palavra sobre eles, nem antes nem depois, e só na véspera do seu casamento tomou as precauções drásticas para que nem o soubesse a mulher que seria a sua esposa a partir do dia seguinte. Susana deu conta, mas não entrou no quarto para o impedir, porque a sogra não lho teria permitido. «Naquele tempo ‑ disse‑me Susi anos mais tarde, com o humor confuso ‑ «uma noiva não podia entrar antes de casar no quarto do seu prometido.»

Não tinha passado um ano quando as cartas de D. Ramón começaram a ser menos explícitas e cada vez mais tristes e escassas. Entrei na Librería Mundo a 7 de Maio de 1952, ao meio‑dia, e Germán não precisou de mo dizer para compreender que D. Ramón tinha morrido, dois dias antes, na Barcelona dos seus sonhos. O único comentário, à medida que chegávamos ao café do meio‑dia, foi o mesmo de todos:

‑ Que porra!

Não tive então consciência de que estava a viver um ano diferente da minha vida, e hoje não tenho dúvidas de que foi decisivo. Até então, conformara‑me com o meu ar de perdulário. Era querido e respeitado por muitos e admirado por alguns, numa cidade onde cada um vivia à sua maneira. Fazia uma vida social intensa, participava em certames artísticos e sociais com as minhas sandálias de peregrino, que pareciam compradas para imitar Álvaro Cepeda, com umas únicas calças de tela e duas camisas de sarja que lavava no duche.

De um dia para outro, por razões diversas ‑ e algumas demasiado frívolas ‑ comecei a melhorar a roupa, cortei o cabelo à recruta, afinei o bigode e aprendi a usar uns sapatos de senador que me ofereceu por estrear o doutor Rafael Marriaga, membro itinerante do grupo e historiador da cidade, porque lhe ficavam grandes. Pela dinâmica inconsciente do arrivismo social, comecei a sentir que sufocava de calor no quarto do Rascacielos, como se Aracataca ficasse na Sibéria, e a sofrer por causa dos clientes de passagem, que falavam em voz alta quando se levantavam, e não me cansava de resmungar porque as aves da noite continuavam a trazer para os seus quartos quadrilhas inteiras de marinheiros de água doce.

Hoje dou‑me conta de que a minha disposição de mendigo não era por ser pobre nem por ser poeta, mas porque as minhas energias estavam concentradas a fundo na teimosia de aprender a escrever. Logo que vislumbrei o bom caminho, abandonei o Rascacielos e mudei‑me para o calmo Barrio del Prado, no outro extremo urbano e social, a dois quarteirões da casa de Meira Delmar e a cinco do hotel histórico onde os filhos dos ricos dançavam com as amantes virgens depois da missa de domingo. Ou, como disse Germán, comecei a melhorar para mal.

Vivia na casa das irmãs Ávila ‑ Esther, Mayito e Tona ‑ que conhecera em Sucre e estavam empenhadas desde há algum tempo em redimir‑me da perdição. Em vez do cubículo de cartão onde perdi tantas escamas de neto amimado, tinha nessa altura uma alcova própria, com banho privativo e uma janela sobre o jardim, e as três refeições diárias por muito pouco mais que o meu ordenado de carreiro. Comprei umas calças e meia dúzia de camisas tropicais com flores e pássaros pintados, que por algum tempo me deram uma fama secreta de maricas de navio. Encontrava então por todo o lado amigos antigos que não tinham voltado a cruzar‑se comigo. Descobri com alvoroço que citavam de cor os disparates de «La Jirafa», eram fanáticos da Crónica pelo que chamavam o seu pundonor desportivo, e até liam os meus contos sem os conseguirem entender. Encontrei Ricardo González Ripoll, meu vizinho de dormitório no Liceo Nacional, que se instalara em Barranquilla com o seu diploma de arquitecto e em menos de um ano resolvera a vida com um Chevrolet rabo de pato, de idade incerta, onde chegava a enlatar ao amanhecer até oito passageiros. Apanhava‑me em casa ao princípio da noite, três vezes por semana, para irmos para a paródia com novos amigos obcecados por endireitar o país, uns com fórmulas de magia política e outros aos encontrões com a polícia.

Quando tomou conhecimento destas novidades, a minha mãe mandou‑me um recado muito seu: «O dinheiro chama dinheiro.» Não informei os do grupo da mudança, até uma noite em que os encontrei na mesa do Café Japy e me agarrei à fórmula magistral de Lope de Vega: «E ordenei‑me, pelo que me convinha ordenar na minha desordem.» Não me lembro de uma assobiadela igual nem no estádio de futebol. Germán apostou que não me ocorreria nem uma única ideia concebida fora do Rascacielos. Segundo Álvaro, não ia sobreviver às dores de barriga provocadas pelas três refeições diárias e a horas. Alfonso, contrariando, protestou pelo abuso de intervirem na minha vida privada e deitou areia sobre o assunto com uma discussão sobre a urgência de se tomarem decisões radicais para o destino da Crónica. Penso que, no fundo, se sentiam culpados pela minha desordem, mas eram demasiado decentes para não agradecerem a minha decisão com um suspiro de alívio.

Ao contrário do que seria de esperar, a minha saúde e a minha moral melhoraram. Lia menos devido à escassez do meu tempo, mas subi o tom de «La Jirafa» e forcei‑me a continuar a escrever A Revoada no meu novo quarto, com a máquina rupestre que me emprestou Alfonso Fuenmayor e nas madrugadas que antes desperdiçava com o Mono Guerra. Numa tarde normal na redacção do jornal podia escrever «La Jirafa», um editorial, algumas das minhas muitas informações sem assinatura, condensar um conto policial e escrever as notas de última hora para o fecho da Crónica.

Por sorte, em vez de se ir tornando fácil com os dias, o romance em processo começou a impor‑me os seus critérios próprios contra os meus, e tive a ingenuidade de os entender como um sintoma de ventos propícios.

Tão favorável estava a minha disposição que improvisei de emergência o meu conto número dez ‑ «Alguém desarruma estas rosas» (O conto «Alguém desarruma estas rosas» foi publicado em tradução portuguesa na colectânea Olhos de Cão Azul. (N. T.)) ‑ porque o comentarista político, a quem tínhamos reservado três páginas da Crónica para um artigo de última hora, sofreu um enfarte grave. Só quando corrigi a prova impressa do meu conto descobri que era outro drama estático, daqueles que já escrevia sem dar conta. Esta contrariedade agravou ainda mais o remorso de ter despertado um amigo pouco antes da meia‑noite para que me escrevesse o artigo em menos de três horas. Com esse espírito de penitente, escrevi o conto no mesmo tempo e, na segunda‑feira, tornei a defender no conselho editorial a urgência de irmos para a rua a fim de arrancarmos a revista do seu marasmo com reportagens de choque. No entanto, a ideia ‑ que era de todos ‑ foi recusada uma vez mais com um argumento favorável à minha felicidade: se fôssemos para a rua, com a concepção idílica que tínhamos da reportagem, a revista não voltaria a sair a tempo ‑ se saísse. Tive de entender aquilo como um cumprimento, mas nunca consegui ultrapassar a má ideia de que a verdadeira razão deles era a ingrata recordação da minha reportagem sobre Berascochea.

Um bom consolo daqueles dias foi o telefonema de Rafael Escalona, o autor das canções que se cantavam e continuam a cantar deste lado do mundo. Barranquilla era um centro vital, devido à passagem frequente dos jograis de acordeão que conhecíamos nas festas de Aracataca, e pela sua intensa divulgação nas emissoras da costa caribenha. Um cantor muito conhecido nessa época era Guillermo Buitrago, que se gabava de manter em dia as novidades da Província. Outro muito popular era Crescencio Salcedo, um índio descalço que se colocava na esquina da Luncheria Americana para cantar sem acompanhamento as canções das colheitas próprias e alheias, com uma voz que tinha algo de metálico mas com uma arte muito sua que o impôs entre a multidão diária da Calle San Blas. Passei boa parte da minha primeira juventude plantado perto dele, sem sequer o cumprimentar, sem me mostrar, até aprender de cor o seu vasto repertório de canções de todos.

O culminar dessa paixão atingiu o seu clímax numa tarde de modorra em que o telefone me interrompeu quando escrevia «La Jirafa». Uma voz igual à de tantos conhecidos da minha infância cumprimentou‑me sem fórmulas prévias:

‑ Como estás, irmão. Sou Rafael Escalona. Cinco minutos depois encontrámo‑nos num reservado do Café Roma para iniciar uma amizade de toda a vida. Mal terminámos os cumprimentos, pois comecei a pressionar Escalona para que me cantasse as suas últimas canções. Versos soltos, com uma voz muito baixa e bem controlada, que se acompanhava a tamborilar com os dedos na mesa. A poesia popular das nossas terras passeava com um vestido novo em cada estrofe. «Te voy a dar un ramo de nomeolvides para que hagas lo que dice el significado», cantava. Da minha parte, demonstrei‑lhe que sabia de cor os melhores cantos da sua terra, bebidos desde muito pequeno no rio revolto da tradição oral. Mas o que mais o surpreendeu foi que eu lhe falava da Província como se a conhecesse.

Dias antes, Escalona viajara de autocarro de Villanueva Para Valledupar, enquanto compunha de memória a música e a letra de uma nova canção para os carnavais do domingo seguinte. Era o seu método básico, porque não sabia escrever música nem tocar nenhum instrumento. Numa qualquer das aldeias intermédias, entrou no autocarro um trovador errante de tamancos e acordeão, dos já incontáveis que percorriam a região para cantar de feira em feira. Escalona sentou‑o a seu lado e cantou‑lhe ao ouvido as duas únicas estrofes terminadas da nova canção.

O jogral saiu feliz a meio do caminho, e Escalona seguiu no autocarro até Valledupar, onde teve que deitar‑se a suar a febre de quarenta graus de um resfriado vulgar. Três dias depois foi domingo de Carnaval e a canção inacabada, que Escalona cantara em segredo ao amigo casual, varreu toda a música velha e nova desde Valledupar até ao Cabo de La Vela. Só ele soube quem a divulgou enquanto suava a sua febre de Carnaval e quem lhe pôs o nome: «La vieja Sara.»

A história é verídica, mas não é rara numa região e numa corporação onde o mais natural é o assombroso. O acordeão, que não é um instrumento próprio nem generalizado na Colômbia, é popular na província de Valledupar, talvez importado de Aruba e Curaçau. Durante a Segunda Guerra Mundial foi interrompida a importação da Alemanha, e os que já estavam na Província sobreviveram devido ao cuidado dos seus donos nativos. Um deles foi Leandro Díaz, um carpinteiro que não só era um compositor genial e um mestre do acordeão, como o único que soube repará‑los enquanto durou a guerra, apesar de ser cego de nascença. O modo de vida próprio desses jograis era cantar de terra em terra os factos engraçados e simples da história quotidiana, em festas religiosas ou pagas, e muito sobretudo na loucura dos carnavais. O caso de Rafael Escalona era diferente. Filho do coronel Clemente Escalona, sobrinho do célebre bispo Celedón e bacharel do liceu de Santa Marta que tem o seu nome, começou a compor desde muito novo para escândalo da família, que considerava o cantar com acordeão como um ofício de menestréis. Não só era único jogral com o bacharelato, como um dos poucos que sabia ler e escrever naqueles tempos e o homem mais altivo e apaixonadiço que jamais existiu. Mas não é nem será o último, agora há‑os aos centos e cada vez mais jovens. Bill Clinton assim o compreendeu nos dias finais da sua presidência, quando ouviu um grupo de crianças da escola primária que viajaram desde a Província para cantar para ele na Casa Branca. Por aqueles dias de boa sorte, encontrei‑me por acaso com Mercedes Barcha, a filha do boticário de Sucre a quem propusera casamento desde os seus treze anos. E, ao contrário das outras vezes, aceitou por fim um convite para dançar no domingo seguinte no Hotel del Prado. Só então soube que se mudara para Barranquilla com a família devido à situação política, cada vez mais opressiva. Demetrio, o pai, era um liberal dos quatro costados, que não se amedrontou com as primeiras ameaças que lhe fizeram quando recrudesceu a perseguição e a ignomínia social dos pasquins. No entanto, ante a pressão dos seus, vendeu as poucas coisas que lhe restavam em Sucre e instalou a farmácia em Barranquilla, nas proximidades do Hotel del Prado. Embora tivesse a idade do meu pai, manteve sempre comigo uma amizade juvenil que costumávamos aquecer no barzinho da frente e mais de uma vez acabámos em borracheiras monumentais, com o grupo completo em El Tercer Hombre. Mercedes estudava então em Medellín e só estava com a família nas férias de Natal. Sempre foi divertida e amável comigo, mas tinha um talento de ilusionista para se escapar de perguntas e respostas e não ser concreta sobre nada. Tive que aceitar isso como uma estratégia mais piedosa do que a indiferença ou o afastamento, e conformava‑me com o facto de me ver com o pai e os amigos no barzinho da frente. Se ele não vislumbrou o meu interesse naquelas férias ansiosas foi por ser o segredo mais bem guardado nos primeiros vinte séculos da cristandade. Em várias ocasiões vangloriou‑se em El Tercer Hombre da frase que ela me citara em Sucre, no nosso primeiro baile: «O meu pai diz que ainda não nasceu o príncipe que casará comigo.» Também não sei se ela acreditou nisso, mas comportava‑se como se acreditasse, até às vésperas daquele Natal em que aceitou que nos encontrássemos no domingo seguinte no baile matinal do Hotel del Prado. Sou tão supersticioso que atribuí a sua resolução ao penteado e ao bigode de artista que me fizera o barbeiro e ao fato de linho cru e à gravata de seda comprados para a ocasião num leilão de turcos. Certo de que iria com o pai, como a todos os lados, convidei também a minha irmã Aida Rosa, que passava férias comigo. Mas Mercedes apresentou‑se sozinha e dançou com uma naturalidade e tanta ironia que qualquer proposta séria lhe pareceria ridícula. Naquele dia inaugurou‑se a temporada inesquecível do meu compadre Pacho Galán, criador glorioso do merecumbé (Merecumbé ‑ música de dança latino‑americana muito popular. (N. T.)) que se dançou durante anos e foi a origem de novas árias caribenhas ainda vivas. Ela dançava muito bem a música da moda e aproveitava a sua maestria para contornar com argúcias mágicas as propostas com que a acossava. Parece‑me que a sua táctica era fazer‑me crer que não me levava a sério, mas com tanta habilidade que eu arranjava sempre maneira de seguir em frente.

Ao meio‑dia em ponto assustou‑se com a hora e deixou‑me plantado a meio da sala, mas não quis que a acompanhasse nem sequer até à porta. Aquilo pareceu tão estranho à minha irmã, que de certa forma se sentiu culpada, e ainda hoje me interrogo se aquele mau exemplo não teria algo a ver com a sua repentina determinação de ingressar no convento das salesianas de Medellín. Mercedes e eu, desde aquele dia, acabámos por inventar um código pessoal com o qual nos entendíamos sem dizermos nada e mesmo sem nos vermos.

Voltei a ter notícias dela ao fim de um mês, a 22 de Janeiro do ano seguinte, com uma mensagem seca que me deixou em El Heraldo: «Mataram Cayetano.» Para nós só podia ser um: Cayetano Gentile, nosso amigo de Sucre, médico eminente, animador de bailes e apaixonado de profissão. A versão imediata foi que o tinham matado à facada dois irmãos da professorinha da escola de Chaparral que o vimos levar no seu cavalo. No decurso do dia, de telegrama em telegrama, tive a história completa.

Ainda não eram tempos de telefones fáceis e as chamadas pessoais de longa distância marcavam‑se com telegramas prévios. A minha reacção imediata foi de repórter. Decidi viajar até Sucre para escrever, mas no jornal interpretaram isso como um impulso sentimental. E hoje entendo‑o, porque já desde então nós, os colombianos, nos matávamos uns aos outros por qualquer motivo, e às vezes inventávamo‑los para nos matarmos, mas os crimes passionais estavam reservados para luxos de ricos nas cidades. Pareceu‑me que o tema era eterno e comecei a recolher dados de testemunhas, até que a minha mãe descobriu as minhas intenções ocultas e me rogou que não escrevesse a reportagem. Pelo menos enquanto estivesse viva a mãe de Cayetano, dona Julieta Chimento que, para cúmulo de razões, era sua comadre de sacramento, por ser madrinha de baptismo de Hernando, o meu irmão número oito. A sua razão ‑ imprescindível numa boa reportagem ‑ era de muito peso. Dois irmãos da professora tinham perseguido Cayetano quando procurou refugiar‑se em sua casa, mas dona Julieta precipitara‑se a fechar a porta da rua porque julgou que o filho já estava no quarto. De maneira que quem não entrou foi ele, e assassinaram‑no à facada de encontro à porta fechada.

A minha reacção imediata foi sentar‑me a escrever a reportagem do crime, mas deparei com todo o tipo de entraves. O que me interessava não era o crime em si mas o tema literário da responsabilidade colectiva. Mas nenhum argumento convenceu a minha mãe, e pareceu‑me uma falta de respeito escrever sem a sua autorização. No entanto, desde aquele dia não passou um único em que não me acossassem os desejos de o escrever. Começava a resignar‑me, muitos anos depois enquanto esperava a partida de um avião no aeroporto de Argel. A porta da sala de primeira classe abriu‑se de repente e entrou um príncipe árabe com a túnica imaculada da sua estirpe e no punho uma fêmea esplêndida de falcão‑peregrino, que em vez do capuz de cabedal da falcoaria clássica usava um de ouro com incrustações de diamantes. É evidente que me lembrei de Cayetano Gentile, que aprendera com o pai as belas artes da altanaria, a princípio com gaviões criou los e depois com exemplares magníficos transplantados da Arábia Feliz. No momento da sua morte, tinha na fazenda uma falcoaria profissional, com dois falcões fêmea e um macho amestrados para a caça de perdizes e um nebri (Nebri ‑ variedade de falcão. (N. T.)) escocês adestrado para a defesa pessoal. Conhecia nessa altura a entrevista histórica que George Plimpton fez a Ernest Hemingway The Paris Review sobre o processo de transformar um personagem da vida real num personagem de romance. Hemingway respondeu‑lhe: «Se eu explicasse como se faz isso, algumas vezes seria um manual para os advogados especialistas em casos de difamação». No entanto, desde aquela manhã providencial em Argel, a minha situação era a contrária: não me sentia com coragem para continuar a viver em paz se não escrevesse a história da morte de Cayetano.

A minha mãe permaneceu firme na sua determinação de o impedir contra qualquer argumento, até trinta anos depois do drama, quando ela própria me chamou a Barcelona para me dar a má notícia de que Julieta Chimento, a mãe de Cayetano morrera ainda sem se recompor da falta do filho. Mas dessa vez com a sua moral a toda a prova, a minha mãe não encontrou razões para impedir a reportagem.

Só uma coisa te suplico como mãe ‑ disse‑me. ‑ Trata‑o como se Cayetano fosse filho meu.

O relato, com o título de Crónica de Uma Morte Anunciada, foi publicado dois anos depois. A minha mãe não o leu por um motivo que conservo como outra jóia sua no meu museu pessoal: «Uma coisa que saiu tão mal na vida não pode sair bem num livro.»

O telefone da minha secretária tocara às cinco da tarde, uma semana depois da morte de Cayetano, quando começava a escrever o meu trabalho diário em El Heraldo. Era o meu pai que telefonava, acabado de chegar a Barranquilla sem se anunciar, e que me esperava de urgência no Café Roma. A tensão da sua voz assustou‑me, mas mais me alarmei por vê‑lo como nunca, desarranjado e por barbear, com o fato azul‑celeste do 9 de Abril amarrotado pelo calor da estrada, e sustido apenas pela estranha placidez dos vencidos.

Fiquei tão espantado que não me sinto capaz de transmitir a angústia e a lucidez com que o meu pai me informou do desastre familiar. Sucre, o paraíso da vida fácil e das raparigas bonitas, sucumbira ao embate sísmico da violência política.

A morte de Cayetano não era mais do que um sintoma.

‑ Tu não te dás conta do que é aquele inferno porque neste oásis de paz ‑ disse‑me. ‑ Mas os que ainda estamos vivos por lá é porque Deus nos conhece.

Era um dos poucos membros do Partido Conservador que não tivera que se esconder dos liberais inflamados depois do 9 de Abril, e agora os próprios correligionários que se tinham acolhido à sua sombra o repudiavam pela sua tibieza. Pintou‑me um quadro tão aterrador ‑ e tão real ‑ que justificava de sobra a sua determinação aloucada de abandonar tudo e levar a família para Cartagena. Eu não tinha razão nem coração para lhe opor, mas pensei que podia entretê‑lo com uma solução menos radical do que a mudança imediata.

Era preciso tempo para pensar. Bebemos dois refrescos em silêncio, cada um na sua, e ele recuperou o idealismo febril antes de acabar e deixou‑me sem fala. «A única coisa que me consola de toda esta maçada ‑ disse com um suspiro trémulo ‑ é a felicidade de poderes por fim terminar os teus estudos.» Nunca lhe disse quanto me comoveu aquela frase fantástica por uma causa tão trivial. Senti um sopro gelado no ventre, fulminado pela ideia perversa de que o êxodo da família não era mais do que uma astúcia sua para me obrigar a ser advogado. Olhei‑o a direito nos olhos e eram dois remansos atónitos. Dava‑me conta de que estava tão indefeso e ansioso que não me obrigaria a nada, nem me negaria nada, mas tinha bastante fé na sua Divina Providência para acreditar que podia vencer‑me pelo cansaço. E mais ainda: com a mesma triste disposição, revelou‑me que me conseguira um emprego em Cartagena e tinha tudo pronto para eu tomar posse na segunda‑feira seguinte. Um grande emprego, explicou‑me, a que só tinha que ir de quinze em quinze dias para receber o ordenado.

Era muito mais do que eu podia digerir. Com os dentes apertados, avancei algumas reticências que o prepararam para uma negativa final. Contei‑lhe a longa conversa com a minha mãe na viagem a Aracataca, da qual nunca recebi nenhum comentário seu, mas entendi que a sua indiferença pelo assunto era a melhor resposta. O mais triste era que eu jogava com os dados viciados, porque sabia que não seria aceite na Universidade por ter perdido duas cadeiras do segundo ano, que nunca repeti, e outras três irrecuperáveis no terceiro. Ocultara isso à família para lhe evitar um desgosto inútil e não quis sequer imaginar qual seria a reacção do meu pai se lho contasse naquela tarde. No princípio da conversa tinha decidido não ceder a nenhuma fraqueza do coração, porque me doía que um homem tão bondoso tivesse que se deixar ver pelos seus filhos em semelhante estado de derrota. No entanto, pareceu‑me que era confiar demasiado na vida. No fim, entreguei‑me à fórmula fácil de pedir‑lhe uma noite de prazo para pensar.

‑ De acordo ‑ disse ele ‑, desde que não percas de vista que tens nas tuas mãos a sorte da família.

A condição era escusada. Estava tão consciente da minha fraqueza que, quando me despedi dele no último autocarro, às sete da noite, tive que subornar o coração para não ir no assento a seu lado. Para mim era claro que se fechara o ciclo e que a família voltava a ser tão pobre que só podia sobreviver com a colaboração de todos.

Não era uma boa noite para decidir nada. A polícia desalojara à força várias famílias de refugiados do interior que estavam acampados no parque de San Nicolás, fugindo da violência rural. No entanto, a paz do Café Roma era inexpugnável. Os refugiados espanhóis perguntavam‑me sempre o que sabia de D. Ramón Vinyes e dizia‑lhes sempre de brincadeira que as suas cartas não traziam notícias de Espanha mas perguntas ansiosas pelas de Barranquilla. Desde que morreu, não voltaram a mencioná‑lo, mas mantinham na mesa a sua cadeira vazia.

Um frequentador da tertúlia felicitou‑me por «La Jirafa» do dia anterior, que lhe recordara de algum modo o romantismo exacerbado de Mariano José de Larra e nunca soube porquê. O professor Pérez Domenech tirou‑me do aperto com uma das suas frases oportunas: «Espero que não siga também o mau exemplo de dar um tiro em si mesmo». Creio que não o teria dito se tivesse sabido até que ponto podia ser certo naquela noite.

Meia hora depois, levei pelo braço Germán Vargas até ao fundo do Café Japy. Logo que nos serviram, disse que tinha que lhe fazer uma consulta urgente. Ele ficou a meio caminho com o copo que ia provar ‑ tal como D. Ramón ‑ e perguntou‑me, alarmado:

‑ Para onde vai?

A sua clarividência impressionou‑me.

‑ Como raios sabe? ‑ exclamei.

Não sabia, mas previra‑o e pensava que a minha demissão seria o fim da Crónica, e uma irresponsabilidade grave que pesaria sobre mim para o resto da minha vida. Deu‑me a entender que era pouco menos do que uma traição, e ninguém tinha mais direito do que ele para mo dizer. Ninguém sabia o que fazer com a Crónica, mas estávamos todos conscientes que Alfonso a mantivera num momento crucial dela, inclusive com investimentos superiores às suas possibilidades, de modo que nunca consegui tirar a Germán a ideia errada de que a minha mudança irremediável era uma sentença de morte para a revista. Tenho a certeza de que ele, que entendia tudo, sabia que os meus motivos eram inevitáveis, mas cumpriu com o dever moral de me dizer o que pensava.

No dia seguinte, enquanto me levava ao escritório da Crónica, Álvaro Cepeda deu uma demonstração comovedora da crispação que lhe causavam as tempestades íntimas dos amigos.

Sem dúvida já conhecia por Germán a minha decisão de me ir embora e a sua timidez exemplar salvou‑nos a ambos de qualquer conversa de salão.

Que porra ‑ disse‑me. ‑ Ir para Cartagena não é ir para lugar nenhum. O lixado era se fosse para Nova Iorque, como me calhou a mim, e aqui estou todinho.

Era o tipo de respostas parabólicas que lhe serviam, em casos como o meu, para ultrapassar a vontade de chorar. Pela mesma razão, não me surpreendeu que preferisse falar pela primeira vez do projecto de fazer cinema na Colômbia, que haveríamos de continuar sem resultado para o resto das nossas vidas. Referiu‑se‑lhe como um modo enviesado de me deixar com alguma esperança, e travou em seco entre a multidão amontoada e os quiosques vagabundos da Calle San Blas.

‑ Já disse ao Alfonso ‑ gritou‑me da janela ‑ que mande a revista pró caralho e façamos uma como a Time!

A conversa com Alfonso não foi fácil para mim nem para ele porque tínhamos um esclarecimento atrasado desde há uns seis meses e ambos sofríamos de uma espécie de gaguez mental em ocasiões difíceis. Aconteceu que numa das minhas cóleras pueris na sala de montagem tinha tirado o meu nome e título da ficha da Crónica, como uma metáfora de renúncia formal, e quando a tempestade passou esqueci‑me de voltar a pô‑los. Ninguém reparou antes de Germán Vargas, duas semanas depois, e comentou‑o com Alfonso. Também para ele foi uma surpresa. Porfirio, o chefe de montagem, contou‑lhes como tinha sido a bronca e eles concordaram em deixar as coisas como estavam até que eu lhes apresentasse as minhas razões. Para desgraça minha, esqueci‑o por completo até ao dia em que Alfonso e eu chegámos a acordo para que me fosse embora da Crónica. Quando acabámos, despediu‑se de mim morto de riso com uma das suas piadas típicas, forte mas irresistível.

‑ A sorte ‑ disse ‑ é que nem sequer temos que tirar o seu] nome da ficha.

Só então revivi o incidente como uma facada e senti que a terra se afundava sob os meus pés, não pelo que Alfonso tinha dito de um modo tão oportuno, mas porque me esquecera de esclarecer o caso. Alfonso, como era de esperar, deu‑me uma explicação de adulto. Se era o único desentendimento que não tínhamos ventilado, não era decente deixá‑lo no ar sem explicação. O resto fá‑lo‑ia Alfonso com Álvaro e Germán, e se fosse preciso salvar o barco entre todos eu também poderia voltar em duas horas. Contávamos como reserva extrema com o conselho editorial, uma espécie de Divina Providência que nunca tínhamos conseguido sentar à longa mesa de nogueira das grandes decisões.

Os comentários de Germán e Álvaro infundiram‑me a coragem que faltava para partir. Alfonso compreendeu as minhas razões e recebeu‑as como um alívio, mas não deu de forma nenhuma a entender que a Crónica pudesse acabar com a minha renúncia. Pelo contrário, aconselhou‑me a que encarasse a crise com calma, tranquilizou‑me com a ideia de construir uma base firme com o conselho editorial e logo me avisaria quando se pudesse fazer qualquer coisa que na realidade valesse a pena.

Foi o primeiro indício que tive de que Alfonso concebia a possibilidade inverosímil de que a Crónica acabasse. E assim foi, sem pena nem glória, a 28 de Junho, ao fim de cinquenta e oito números em catorze meses. No entanto, meio século depois, tenho a impressão de que a revista foi um acontecimento importante do jornalismo nacional. Não ficou uma colecção completa, apenas os seis primeiros números e alguns recortes na biblioteca catalã de D. Ramón Vinyes.

Um acaso feliz para mim foi que na casa onde vivia queriam mudar os móveis da sala e ofereceram‑mos a preço de saldo.

Na véspera da viagem, no meu acerto de contas com EL Heraldo, aceitaram adiantar‑me seis meses de «La Jirafa». Com parte desse dinheiro, comprei os móveis de Mayito para a nossa casa de Cartagena, porque sabia que a família não levava os de Sucre nem tinha forma de comprar outros. Não posso omitir que com cinquenta anos mais de uso continuam bem conservados e em serviço, porque a mãe agradecida não permitiu que os vendessem.

Uma semana depois da visita do meu pai, mudei‑me para Cartagena com a única carga dos móveis e pouco mais do que o que tinha vestido. Ao contrário da primeira vez, sabia como fazer quando fosse preciso, conhecia tudo o que precisava em Cartagena e queria de todo o coração que as coisas corressem bem à família, mas que a mim me corressem mal como castigo pela minha falta de carácter.

A casa ficava num bom lugar do Barrio de La Popa, à sombra do convento histórico que sempre pareceu prestes a desmoronar‑se. Os quatro quartos de dormir e as duas casas de banho do andar de baixo estavam reservados para os pais e os onze filhos, dos quais eu era o mais velho, com quase vinte e seis anos, e Eligio o mais novo, com cinco. Todos bem criados na cultura caribenha das redes e das esteiras no chão e camas para quantos tivessem lugar.

No andar de cima vivia o tio Hermógenes Sol, irmão do meu pai, com o filho Carlos Martínez Simahan. A casa toda não era suficiente para tantos, mas o aluguer era moderado por causa dos negócios do tio com a proprietária, de quem só sabíamos que era muito rica e lhe chamavam La Pepa. A família, com o seu implacável dom de piada, não tardou em encontrar a direcção perfeita com ares de cuplé: «A casa de La Pepa ao pé de La Popa.»

A chegada da prole é para mim uma recordação misteriosa.

Fora‑se a luz em meia cidade e tentávamos arrumar a casa às escuras para deitar os miúdos. Eu e os meus irmãos mais velhos reconhecíamo‑nos pelas vozes, mas os mais novos tinham mudado tanto desde a minha última visita que os seus olhos enormes e tristes me espantavam à luz das velas. Sofri a desordem de baús, embrulhos e redes penduradas nas trevas como um 9 de Abril doméstico. No entanto, a impressão maior senti‑a quando tentei deslocar um saco sem forma que me escapava das mãos. Eram os restos da avó Tranquilina, que a minha mãe desenterrara e levava para os depositar no ossário de San Pedro Claver, onde estão os do meu pai e da tia Elvira Carrillo numa mesma cripta.

O meu tio Hermógenes Sol era o homem providencial naquela emergência. Tinham‑no nomeado secretário‑geral da Polícia Departamental em Cartagena e a sua primeira disposição radical foi abrir uma brecha burocrática para salvar a família. Inclusive eu, o descarrilado político com uma reputação de comunista que não conquistara pela minha ideologia mas pelo modo de vestir. Havia empregos para todos. Deram ao meu pai um cargo administrativo sem responsabilidade política. Nomearam o meu irmão Luis Enrique detective e a mim deram‑me uma sinecura nos escritórios do Censo Nacional que o governo conservador se empenhava em fazer, talvez para ter alguma ideia de quantos adversários ainda estavam vivos. O custo moral do emprego era mais perigoso para mim do que o custo político, porque recebia o salário de duas em duas semanas, e não me podia deixar ver no sector durante o resto do mês para evitar perguntas. A justificação oficial, não só para mim como para uns cento e tantos empregados mais, era que estava em comissão fora da cidade.

O Café Moka, em frente dos escritórios do Censo, permanecia atulhado de falsos burocratas das aldeias vizinhas que só ali iam receber. Não houve um cêntimo para meu uso pessoal durante o tempo em que assinei os recibos, porque o meu ordenado era substancial e ia completo para o orçamento doméstico. Entretanto, o meu pai tinha tratado de me matricular na faculdade de Direito e deu de caras com a verdade que eu lhe ocultara. O simples facto dele o saber fez‑me tão feliz como se me tivessem entregado o diploma. A minha felicidade era ainda mais merecida porque, no meio de tantas contrariedades e embrulhadas, arranjara por fim o tempo e o espaço para acabar o romance.

Fizeram‑me sentir a minha entrada em El Universal como um regresso a casa. Eram seis da tarde, a hora mais agitada, e o silêncio abrupto que a minha entrada provocou nos linótipos e nas máquinas de escrever causou‑me um nó na garganta. Não passara um minuto pelas madeixas de índio do mestre Zabala. Como se nunca me tivesse ido embora, pediu‑me o favor de lhe escrever uma nota editorial que tinha atrasada. A minha máquina estava ocupada por um primíparo adolescente que caiu com a pressa atarantada com que me cedeu o lugar. A primeira coisa que me surpreendeu foi a dificuldade de uma nota anónima com a circunspecção editorial, depois de uns dois anos de audácias com «La Jirafa». Tinha uma folha escrita quando se aproximou para me cumprimentar o director López Escauriaza. A sua fleuma britânica era um lugar comum em tertúlias de amigos e caricaturas políticas, e impressionou‑me o rubor de alegria ao cumprimentar‑me com um abraço. Quando acabei a nota, Zabala esperava‑me com um papelinho onde o director fizera contas para me propor um salário de cento e vinte pesos ao mês por notas editoriais. Impressionou‑me tanto o valor, insólito para a data e lugar, que nem sequer respondi nem agradeci, e sentei‑me a escrever mais duas notas, embriagado pela sensação de que a Terra girava na realidade em volta do Sol.

Era como ter regressado às origens. Os mesmos temas corrigidos a vermelho liberal pelo mestre Zabala, sincopados pela mesma censura de um censor já vencido pelas astúcias ímpias da redacção, as mesmas meias‑noites de bife a cavalo com patacones (Patacón ‑ fatia de banana verde cortada a atravessar, esmagada e frita. (N. T.)) em La Cueva e o mesmo tema de consertar o mundo até ao amanhecer no Paseo de los Mártires. Rojas Herazo passara um ano vendendo quadros para se mudar para qualquer lugar, até que casou com Rosa Isabel, a velha, e se mudou para Bogotá. Ao fim da noite, sentava‑me a escrever «La Jirafa», que mandava para El Heraldo pelo único meio moderno de então que era o correio vulgar, e com muito poucas faltas por força maior, até ao pagamento da dívida.

A vida com a família completa, em condições azaradas, não é um domínio da memória mas da imaginação. Os pais dormiam num quarto do andar de baixo com alguns dos mais novos. As quatro irmãs sentiam‑se já com direito a ter um quarto para elas. No terceiro dormiam Hernando e Alfredo Ricardo, ao cuidado de Jaime, que os mantinha em estado de alerta com as suas prédicas filosóficas e matemáticas. Rita, que andava pelos catorze anos, estudava até à meia‑noite na porta da rua com a luz do candeeiro público, para poupar a da casa. Aprendia de cor as lições cantando‑as em voz alta e com a graça e a boa dicção que ainda conserva. Muitas estranhezas dos meus livros vêm dos seus exercícios de leitura, com a mula que vai ao moinho e o chocolate do rapaz do boné pequeno e o adivinho que se dedica à bebida. A casa era mais viva e sobretudo mais humana a partir da meia‑noite, entre ir à cozinha beber água, ou à retrete para urgências líquidas ou sólidas, ou pendurar redes entrecruzadas a diferentes níveis nos corredores. Eu vivia no segundo andar com Gustavo e Luís Henrique ‑ quando o tio e o filho se instalaram na sua casa de família ‑ e mais tarde com Jaime, submetido à penitência de não pontificar sobre nada depois das nove da noite. Uma madrugada manteve‑nos acordados durante várias horas o balido cíclico de um cordeiro órfão. Gustavo disse, exasperado:

- Parece um farol.

Nunca o esqueci, porque era o género de assimilações que naquele tempo apanhava pelo ar na vida real para o romance iminente.

Foi a casa mais viva das várias de Cartagena, que se foram degradando ao mesmo tempo que os recursos da família. À procura de bairros mais baratos, fomos descendo de classe até à casa do Toril, onde aparecia de noite o fantasma de uma mulher. Tive a sorte de não estar lá, mas o simples testemunho de pais e irmãos causavam‑me tanto terror como se tivesse estado. Os meus pais dormitavam na primeira noite no sofá da sala e viram a aparecida, que passou sem olhar para eles de um quarto de dormir para outro, com um vestido de florzinhas vermelhas e o cabelo curto preso atrás das orelhas com laços coloridos. A minha mãe descreveu‑a até aos estampados do vestido e ao modelo dos sapatos. O meu pai negava tê‑la visto para não impressionar mais a mulher nem assustar os filhos, mas a familiaridade com que a aparecida se movia pela casa desde o entardecer não permitia que a ignorassem. A minha irmã Margot acordou uma madrugada e viu‑a aos pés da sua cama, perscrutando‑a com um olhar intenso. Mas o que mais a impressionou foi o pavor de ser vista da outra vida.

No domingo, à saída da missa, uma vizinha confirmou à minha mãe que naquela casa não vivia ninguém há muitos anos devido ao descaramento da mulher fantasma, que uma Vez apareceu na sala de jantar em pleno dia, enquanto a família almoçava.

No dia seguinte, saiu a minha mãe com dois dos mais novos em busca de uma casa para se mudar e encontrou‑a em quatro horas. No entanto, a maioria dos irmãos teve dificuldade em afastar a ideia de que o fantasma da morta se tinha mudado com eles.

Na casa ao pé de La Popa, apesar do muito tempo de que dispunha, era tanto o gosto que me sobrava para escrever que os dias ficavam curtos. Ali reapareceu Ramiro de la Espriella, com o seu diploma de doutor em leis, mais político do que nunca e entusiasmado com as suas leituras de romances recentes. Sobretudo por A Pele, de Cruzio Malaparte, que se transformara naquele ano num livro‑chave da minha geração. A eficácia da prosa, o vigor da inteligência e a concepção truculenta da história contemporânea prendiam‑nos até ao amanhecer. No entanto, o tempo demonstrou‑nos que Malaparte estava destinado a ser um exemplo útil de virtudes diferentes das que eu desejava e que acabaram por derrotar a sua imagem. O contrário absoluto do que nos aconteceu quase ao mesmo tempo com Albert Camus.

Os De La Espriella viviam nessa altura perto de nós e tinham uma adega familiar que saqueavam em garrafas inocentes para as levar para nossa casa. Contra o conselho de D. Ramón Vinyes, lia nessa altura longos trechos dos meus rascunhos a eles e aos meus irmãos, no estado em que se encontravam e ainda por desbastar, e nas mesmas tiras de papel de impressão de tudo o que escrevi nas noites insones de El Universal.

Por esses dias voltaram Álvaro Mutis e Gonzalo Mallarino, mas tive o feliz pudor de não lhes pedir que lessem o rascunho por terminar e ainda sem título. Queria fechar‑me sem pausas para fazer a primeira cópia em folhas oficiais antes da última correcção. Tinha umas quarenta páginas a mais do que a versão prevista, mas ainda ignorava que isso pudesse ser um problema grave. Em breve soube que sim: sou escravo de um rigor perfeccionista que me força a fazer um cálculo prévio do tamanho do livro, com um número exacto de páginas para cada capítulo e para o livro total. Uma única falha assinalável destes cálculos obrigar‑me‑ia a reconsiderar tudo, porque até um erro de dactilografia me perturba como um erro de criação. Pensava que este método absoluto se devia a um critério exacerbado da responsabilidade, mas hoje sei que era um simples terror, puro e físico.

Em contrapartida, sem dar de novo ouvidos a D. Ramón Vinyes, fiz chegar a Gustavo Ibarra o rascunho completo, embora ainda sem título, quando o dei por terminado. Dois dias depois, convidou‑me para sua casa. Encontrei‑o numa cadeira de baloiço de cipó na varanda do mar, bronzeado ao sol e descontraído em roupa de praia e comoveu‑me a ternura com que acariciava as minhas páginas enquanto me falava. Um verdadeiro mestre, que não me falou de cátedra sobre o livro nem me disse se lhe parecia bem ou mal, mas que me fez tomar consciência dos seus valores éticos. Ao terminar, observou‑me satisfeito e concluiu com a sua simplicidade quotidiana:

‑ Isto é o mito de Antígona.

Compreendeu pela minha expressão que tinha ficado às escuras, foi buscar à sua estante o livro de Sófocles e leu‑me o que queria dizer. A situação dramática do meu romance, com efeito, era na essência a mesma de Antígona, condenada a deixar insepulto o cadáver do irmão Polinices por ordem do rei Creonte, tio de ambos. Lera Édipo em Colono no volume que o próprio Gustavo me oferecera nos dias em que nos conhecemos, mas recordava muito mal o mito de Antígona para reconstruí‑lo de memória dentro do drama da zona bananeira, cujas afinidades emocionais não notara até então.

Senti a alma abalada pela felicidade e a desilusão. Naquela noite tornei a ler a obra, com uma estranha mescla de orgulho por ter coincidido de boa‑fé com um escritor tão grande, e de dor pela vergonha pública do plágio. Depois de uma semana de crise conturbada, decidi fazer algumas modificações de fundo que deixaram a salvo a minha boa‑fé, ainda sem me aperceber da vaidade sobre‑humana de modificar um livro meu para que não parecesse de Sófocles. No fim ‑ resignado ‑ senti‑me com o direito moral de usar uma frase sua como epígrafe reverencial, e assim fiz.

A mudança para Cartagena protegeu‑nos a tempo da grave e perigosa deterioração de Sucre, mas a maioria dos cálculos resultaram ilusórios, tanto pela escassez dos rendimentos como pelo tamanho da família. A minha mãe dizia que os filhos dos pobres comem mais e crescem mais depressa do que os dos ricos, e para demonstrar isso bastava o exemplo da sua própria casa. Os ordenados de todos não teriam chegado para viver sem sobressaltos.

O tempo encarregou‑se do resto. Jaime, por outra confabulação familiar, tornou‑se engenheiro civil, o único de uma família que apreciava um diploma como um título nobiliário. Luis Enrique tornou‑se professor de contabilidade e Gustavo formou‑se como topógrafo e ambos continuaram a ser os mesmos guitarristas e cantores de serenatas alheias. Yiyo surpreendeu‑nos desde muito pequeno por uma vocação literária bem definida e pelo seu carácter forte, do qual nos dera uma demonstração precoce aos cinco anos quando o surpreenderam a tentar pegar fogo a um armário de roupa com o desejo de ver os bombeiros a apagar o incêndio dentro de casa. Mais tarde, quando ele e o irmão Cuqui foram convidados por condiscípulos mais velhos a fumar marijuana, Yiyo recusou, assustado. Cuqui, pelo contrário, que sempre foi curioso e temerário, aspirou‑a a fundo. Anos depois, náufrago no pantanal da droga, contou‑me que desde aquela primeira viagem dissera para si mesmo: «Merda! Não quero fazer mais nada senão isto na vida.» Nos quarenta anos seguintes, com uma paixão sem futuro, não fez outra coisa senão cumprir a promessa de morrer na sua lei. Aos cinquenta e dois anos escapou‑lhe a mão no seu paraíso artificial e foi fulminado por um enfarte massivo.

Nanchi ‑ o homem mais pacífico do mundo ‑ continuou no exército depois do serviço militar obrigatório, esmerou‑se em todo o tipo de armas modernas e participou em numerosos simulacros, mas nunca teve ocasião numa das nossas tantas guerras crónicas. Conformou‑se portanto com o ofício de bombeiro quando saiu do exército, mas também ali não teve oportunidade de apagar um único incêndio em mais de cinco anos. No entanto, nunca se sentiu frustrado devido ao sentido de humor que o consagrou na família como um mestre da piada instantânea e lhe permitiu ser feliz pelo simples facto de estar vivo.

Yiyo, nos anos mais difíceis da pobreza, tornou‑se escritor e jornalista a pulso, sem nunca ter fumado nem bebido um copo a mais na vida. A sua vocação literária arrasadora e a sua criatividade misteriosa impuseram‑se contra a adversidade. Morreu aos cinquenta e quatro anos, apenas com tempo para publicar um livro de mais de seiscentas páginas com uma investigação magistral sobre a vida secreta de Cem Anos de Solidão, que trabalhara durante anos sem que eu soubesse e sem nunca me solicitar uma informação directa.

Rita, ainda adolescente, soube aproveitar a lição do exemplo alheio. Quando regressei a casa dos meus pais, ao fim de Uma longa ausência, encontrei‑a sofrendo o mesmo purgatório de todas por causa dos seus amores com um moreno bem parecido, sério e decente, cuja única incompatibilidade com ela eram dois palmos e meio de estatura. Nessa mesma noite encontrei o meu pai a ouvir as notícias na rede do quarto. Baixei o volume do rádio, sentei‑me na cama à sua frente e perguntei‑lhe com o meu direito de primogenitura o que se passava com os amores de Rita. Ele disparou‑me a resposta que sem dúvida tinha prevista desde sempre.

‑ A única coisa que se passa é que o fulano é um ladrão. Mesmo o que eu esperava.

‑ Ladrão de quê?

‑ Ladrão ladrão ‑ disse‑me ele, ainda sem me olhar.

‑ Mas o que roubou? ‑ perguntei, sem compaixão.

Continuou sem olhar para mim.

‑ Pois! ‑ suspirou por fim. ‑ Ele não, mas tem um irmão preso por roubo.

‑ Então não há problema ‑ disse‑lhe com uma imbecilidade fácil ‑ porque a Rita não quer casar com ele mas com o que não está preso.

Não replicou. A sua honradez a toda a prova ultrapassara os seus limites desde a primeira resposta, pois também já sabia que não era verdade o boato do irmão preso. Sem mais argumentos, tratou de se agarrar ao mito da dignidade.

‑ Está bem, mas que se casem de uma vez, porque não quero noivados prolongados nesta casa.

A minha réplica foi imediata e com uma falta de caridade que nunca perdoei a mim mesmo:

‑ Amanhã, às primeiras horas.

‑ Caramba! Também não é preciso exagerar ‑ replicou o meu pai, sobressaltado mas já com o primeiro sorriso. ‑ Essa pequena nem sequer tem o que vestir.

A última vez que vi a tia Pa, com quase noventa anos, foi numa tarde de um calor infame em que chegou a Cartagena sem se fazer anunciar. Vinha de Riohacha num táxi‑expresso, com uma malinha de colegial, de luto carregado e com um turbante de pano preto. Entrou feliz, com os braços abertos, e gritou para todos:

- Venho despedir‑me porque já vou morrer.

Recebemo‑la não só por ser quem era, mas porque sabíamos até que ponto conhecia os seus negócios com a morte. Ficou lá em casa, esperando a sua hora no quartinho de serviço, o único que aceitou para dormir, e ali morreu em odor de castidade numa idade que calculávamos em cento e um anos.

 

Aquela temporada foi a mais intensa em El Universal. Zabala orientava‑me com a sua sabedoria política para que as minhas notas dissessem o que deviam sem tropeçar no lápis da censura, e pela primeira vez interessou‑lhe a minha antiga ideia de escrever reportagens para o jornal. Em breve surgiu o terrível tema dos turistas atacados pelos tubarões nas praias de Marbella. No entanto, o mais original que ocorreu ao município foi oferecer cinquenta pesos por cada tubarão morto, e no dia seguinte não chegavam os ramos das amendoeiras para exibir os capturados durante a noite. Héctor Rojas Herazo, morto de riso, escreveu de Bogotá, na sua nova coluna de El Tiempo, uma nota de troça sobre o disparate de aplicar à caça ao tubarão o método ultrapassado de agarrar o rábano pelas folhas. Isto deu‑me a ideia de escrever a reportagem da caçada nocturna. Zabala apoiou‑me, entusiasmado, mas o meu fracasso começou logo no momento de embarcar, quando me perguntaram se enjoava e respondi que não; se tinha medo do mar, e a verdade era que sim, mas também disse que não, e por fim perguntaram‑me se sabia nadar, que devia ter sido a primeira coisa ‑ e não me atrevi a dizer a mentira que Sabia. De qualquer forma, em terra firme e por uma conversa de marinheiros, fiquei a saber que os caçadores iam até às Bocas de Ceniza, a oitenta e nove milhas náuticas de Cartagena, e regressavam carregados de tubarões inocentes para os venderem como criminosos a cinquenta pesos. A grande notícia acabou no mesmo dia, e a mim acabou‑se‑me a ilusão da reportagem. No seu lugar, publiquei o meu conto número oito: «Nabo, o negro que fez esperar os anjos.» Pelo menos os críticos sérios e os meus amigos severos de Barranquilla consideraram‑no como uma boa mudança de rumo.

Não creio que a minha maturidade política fosse suficiente para me afectar, mas a verdade é que sofri uma recaída semelhante à anterior. Senti‑me tão mergulhado num pântano que a minha única diversão era amanhecer a cantar com os bêbados em Las Bóvedas das muralhas, que tinham sido bordéis de soldados durante a Colónia e mais tarde uma sinistra prisão política. O general Francisco de Paula Santander cumprira ali uma condenação de oito meses, antes de ser desterrado para a Europa pelos seus companheiros de causa e de armas.

O zelador daquelas relíquias históricas era um linotipista reformado, com quem os colegas no activo se reuniam depois do fecho dos jornais para celebrar o novo dia todos os dias com um garrafão de rum branco clandestino, preparado por artes de ladrões de cavalos. Eram tipógrafos cultos por tradição familiar, gramáticos dramáticos e grandes bebedores dos sábados. Juntei‑me ao seu grémio.

O mais jovem deles chamava‑se Guillermo Dávila e tinha conseguido a proeza de trabalhar na costa apesar da intransigência de alguns líderes regionais, que resistiam a admitir cachaços no grémio. Talvez o tenha conseguido por arte da sua arte, pois além do seu bom ofício e simpatia pessoal, era um prestidigitador de maravilhas. Mantinha‑nos deslumbrados com as mágicas travessuras de fazer sair pássaros vivos das gavetas das secretárias ou deixar‑nos em branco o papel em que se encontrava escrito o editorial que acabávamos de entregar quando a edição estava prestes a fechar. O mestre Zabala, severo no dever, esquecia‑se por instantes de Paderewski na revolução proletária e pedia um aplauso para o mago, ‑ em advertência sempre reiterada e desobedecida de que fosse a última vez. Para mim, partilhar com um mago a rotina diária foi como descobrir por fim a realidade.

Num daqueles amanheceres em Las Bóvedas, Dávila conotou‑me a sua ideia de fazer um jornal de vinte e quatro por vinte e quatro ‑ meia página ‑ que circulasse grátis à tarde, à hora confusa do encerramento do comércio. Seria o jornal mais pequeno do mundo, para ler em dez minutos. Assim foi. Chamava‑se Comprimido, escrevia‑o eu numa hora, às onze da manhã, montava‑o e imprimia‑o Dávila em duas horas, e distribuía‑o um ardina temerário que não o conseguia apregoar mais do que uma vez.

Saiu na terça‑feira, 18 de Setembro de 1951, e é impossível conceber um êxito mais arrasador nem mais curto: três números em três dias. Dávila confessou‑me que nem sequer com um acto de magia negra teria podido conceber uma ideia tão grande a tão baixo custo, que coubesse em tão pouco espaço, fosse executada em tão pouco tempo e desaparecesse com tanta rapidez. O mais estranho foi que, por um instante do segundo dia, embriagado pelo entusiasmo da rua e o fervor dos fanáticos, cheguei a pensar que podia ser assim tão simples a solução da minha vida. O sonho durou até quinta‑feira, quando o gerente nos demonstrou que um número mais nos deixaria na falência, mesmo se tivéssemos resolvido publicar anúncios comerciais, pois tinham que ser tão pequenos e tão caros que não havia solução racional. A própria concepção do jornal, que se baseava no seu tamanho, arrastava consigo o germe matemático da própria destruição: era tanto mais impossível de custear quanto mais se vendesse.

Fiquei na corda bamba. A mudança para Cartagena foi oportuna e útil depois da experiência da Crónica e, além disso, deu‑me um ambiente muito propício para continuar a escrever A Revoada, sobretudo devido à febre criativa com que Se vivia em nossa casa, onde o mais insólito parecia sempre possível. Bastar‑me‑ia evocar um almoço em que conversávamos com o meu pai sobre a dificuldade de muitos escritores para escreverem as suas memórias quando já não se lembravam de nada. Cuqui, apenas com seis anos, tirou a conclusão com uma simplicidade magistral:

‑ Então ‑ disse ‑ a primeira coisa que um escritor deve escrever são as suas memórias, quando ainda se lembra de tudo.

Não me atrevi a confessar que com A Revoada me estava a acontecer o mesmo que com La casa: começava a interessar‑me mais a técnica do que o tema. Depois de um ano de ter trabalhado com tanto entusiasmo, revelou‑se‑me como um labirinto circular sem entrada nem saída. Hoje creio saber porquê. O costumbrismo (O costumbrismo é uma corrente literária e pictórica que dedica particular atenção à descrição de costumes típicos de um país ou região e que se pode aproximar do movimento realista português, surgido na sequência da polémica «Bom senso e bom gosto». (N. T.)), que tão bons exemplos de renovação ofereceu nas suas origens, acabara por fossilizar também os grandes temas nacionais que procuravam abrir‑lhe saídas de emergência. O facto é que já não suportava um minuto mais a incerteza. Só me faltavam comprovações de dados e decisões de estilo antes do ponto final e, no entanto, não o sentia respirar. Mas estava tão atolado, depois de tanto tempo de trabalho nas trevas, que via soçobrar o livro sem saber onde estavam as fendas. O pior era que nesse ponto da escrita não me valia a ajuda de ninguém, porque as fissuras não estavam no texto mas dentro de mim, e só eu podia ter olhos para as ver e coração para as sofrer. Talvez por essa mesma razão suspendi «La Jirafa» sem pensar demasiado quando acabei de pagar a El Heraldo o adiantamento com que tinha comprado os móveis.

Por desgraça, nem o engenho, nem a resistência, nem o amor foram suficientes para derrotar a pobreza. Tudo parecia a favor dela. O organismo do Censo terminara ao fim de um ano e o meu ordenado em El Universal não chegava para o compensar. Não voltei à faculdade de Direito, apesar das argúcias de alguns professores para me fazerem avançar contra o meu desinteresse pelo seu interesse e a sua ciência. O dinheiro de todos não chegava em casa, mas o buraco era tão grande que a minha contribuição não foi nunca suficiente e a falta de ilusões afectava‑me mais do que a falta de dinheiro.

‑ Se temos de nos afogar todos ‑ disse ao almoço, num dia decisivo ‑ deixem que me salve eu para tentar mandar‑lhes nem que seja um bote a remos.

Assim, na primeira semana de Dezembro mudei de novo para Barranquilla, com a resignação de todos e a certeza de que o bote chegaria. Alfonso Fuenmayor deve tê‑lo imaginado ao primeiro golpe de vista, quando me viu entrar sem ser anunciado no nosso velho escritório de El Heraldo, pois o da Crónica ficara sem recursos. Olhou‑me da máquina de escrever como quem olha um fantasma e exclamou, alarmado:

‑ Que raios faz aqui sem avisar?

Poucas vezes na minha vida respondi algo tão próximo da verdade:

‑ Estou até aos tomates, mestre.

Alfonso tranquilizou‑se.

‑ Ah, bem! ‑ replicou com o mesmo jeito de sempre e com o verso mais colombiano do hino nacional («A humanidade inteira/que entre cadeias geme» ‑ primeira estrofe do hino colombiano. (N. T.)). ‑ Por sorte, assim está toda a humanidade, que entre cadeias geme.

Não demonstrou a mínima curiosidade pelo motivo da minha viagem. Pareceu‑lhe uma questão de telepatia, porque a todos os que lhe perguntavam por mim nos últimos meses respondia que a qualquer momento ia chegar para ficar. Levantou‑se feliz da secretária, enquanto vestia o casaco, porque eu chegava por acaso como que caído do céu. Tinha meia hora de atraso para um compromisso, não acabara o editorial do dia seguinte e pediu‑me que lho terminasse. Só consegui perguntar‑lhe qual era o tema, e respondeu‑me do corredor, a toda a pressa, com uma ligeireza típica do nosso modo de ser amigos:

‑ Leia‑o e verá.

No dia seguinte, havia outra vez duas máquinas de escrever frente a frente no escritório de El Heraldo, e eu estava outra vez a escrever «La Jirafa» para a mesma página de sempre. E ‑ claro! ‑ ao mesmo preço. E nas mesmas condições privadas entre Alfonso e eu, em que muitos editoriais tinham parágrafos de um ou do outro e era impossível distingui‑los. Alguns estudantes de jornalismo ou literatura quiseram diferenciá‑los nos arquivos e não conseguiram, excepto nos casos de temas específicos, e não pelo estilo mas pela informação cultural.

Em El Tercer Hombre doeu‑me a má notícia de que tinham matado o nosso ladrãozito amigo. Uma noite, como todas, saiu para exercer o seu ofício e a única coisa que voltou a saber‑se dele, sem mais pormenores, foi que lhe tinham dado um tiro no coração dentro da casa onde estava a roubar. O corpo foi reclamado por uma irmã mais velha, único membro da família, e só nós e o dono da tasca assistimos ao seu enterro de indigente.

Voltei para casa das Ávila. Meira Delmar, outra vez vizinha, continuou a purificar com os seus serões calmantes as minhas más noites de El Gato Negro. Ela e a irmã Alicia pareciam gémeas pela maneira de ser e por conseguirem que o tempo se tornasse circular quando estávamos com elas. De uma forma muito especial, continuavam no grupo. Pelo menos uma vez por ano, convidavam‑nos para uma mesa de iguarias árabes que nos alimentavam a alma, e em sua casa havia serões de surpresa com visitantes ilustres, desde grandes artistas de qualquer género até poetas desgarrados. Parece‑me que foram elas com o maestro Pedro Viaba, que puseram ordem na minha melomania transviada e me envolveram na feliz pandilha do centro artístico.

Parece‑me hoje que Barranquilla me dava uma perspectiva melhor sobre A Revoada, pois logo que tive uma secretária com máquina iniciei a correcção com renovados ímpetos. Por aqueles dias, atrevi‑me a mostrar ao grupo a primeira cópia legível, sabendo que não estava terminada. Tínhamos falado tanto do romance que era desnecessária qualquer advertência. Alfonso esteve dois dias a escrever à minha frente sem sequer o mencionar. Ao terceiro dia, quando acabámos os trabalhos ao fim da tarde, colocou sobre a secretária o rascunho aberto e leu as páginas que tinha assinalado com tiras de papel. Mais do que um crítico, parecia detector de incongruências e purificador de estilo. As suas observações foram tão certeiras que as utilizei todas, salvo uma que lhe pareceu forçada, mesmo depois de lhe demonstrar que era um episódio real da minha infância.

‑ Até a realidade se engana quando a literatura é má ‑ disse, morto de riso.

O método de Germán Vargas era que se o texto estava bem não fazia comentários imediatos mas dava um conceito tranquilizador e acabava com um ponto de exclamação:

‑ Colhudo!

Mas nos dias seguintes continuava a lançar farrapos de ideias dispersas sobre o livro, que culminavam qualquer noite de farra numa afirmação certeira.

Se o rascunho não lhe parecia bem, convocava o autor a sós e dizia‑lho com tal franqueza e tanta elegância que não restava ao aprendiz mais do que agradecer de todo o coração, apesar da vontade de chorar. Não foi o meu caso. No dia menos pensado, Germán fez‑me entre a brincar e a sério, um comentário sobre os meus rascunhos que me devolveu a alma ao corpo.

Álvaro tinha desaparecido do Japy sem dar o menor sinal de vida. Quase uma semana depois, quando menos o esperava, cortou‑me o passo com o automóvel no Paseo Bolívar e gritou‑me com o seu melhor desplante:

‑ Suba, mestre, que o vou lixar por ser bruto.

Era a sua frase anestésica. Demos voltas sem rumo fixo pelo centro comercial abrasado pela canícula, enquanto Álvaro fazia, aos gritos, uma análise bastante emocional mas impressionante da sua leitura. Interrompia‑a de cada vez que via um conhecido nos passeios para lhe gritar qualquer despropósito cordial ou trocista, e retomava o raciocínio exaltado, com a voz eriçada pelo esforço, os cabelos revoltos e aqueles olhos desorbitados que pareciam olhar‑me por entre as ripas de um panóptico. Acabámos a beber cerveja gelada na esplanada de Los Almendros, incomodados com os fanáticos do Júnior e do Sporting no passeio da frente, e no fim fomos atropelados pela avalanche de energúmenos que saíam disparados do estádio, esmorecidos por um indigno dois a dois. O único juízo definitivo sobre o rascunho do meu livro gritou‑mo Álvaro à última hora pela janela do carro:

‑ De qualquer forma, mestre, ainda lhe resta muito costumbrismo!

Eu, agradecido, consegui gritar‑lhe:

‑ Mas do bom de Faulkner!

E ele pôs termo a tudo o não dito nem pensado com uma risada fenomenal:

- Não seja filho da puta!

Cinquenta anos depois, cada vez que me lembro daquela tarde, volto a ouvir a gargalhada explosiva que ressoou como um regueiro de pedras na rua em chamas.

Ficou claro para mim que os três tinham gostado do romance, com as suas reservas pessoais e acaso justas, mas não o disseram com todas as letras talvez porque lhes parecia um recurso fácil. Nenhum falou de o publicar, o que era também muito deles, para quem o importante era escrever bem. O resto era assunto dos editores.

Quer dizer: estava outra vez na nossa Barranquilla de sempre, mas a minha desgraça era a consciência de que daquela vez não teria coragem para continuar com «La Jirafa». Na realidade, cumprira a sua missão de impor‑me uma carpintaria diária para aprender a escrever do zero, com a tenacidade e a pretensão implacável de ser um escritor diferente. Em muitas ocasiões não aguentava com o tema e trocava‑o por outro quando me apercebia de que ainda era grande de mais para mim. Em todo o caso, foi uma ginástica essencial para a minha formação de escritor, com a certeza cómoda de que não era mais do que um material alimentício sem qualquer compromisso histórico.

A simples procura do tema diário amargurara‑me os primeiros meses. Não me deixava tempo para mais nada: perdia horas a esquadrinhar os outros jornais, tomava notas de conversas privadas, perdia‑me em fantasias que me perturbavam o sono, até que me saiu ao encontro a vida real. Nesse sentido, a minha experiência mais feliz foi a de uma tarde em que vi do autocarro, ao passar, um letreiro simples na porta de uma casa: «Vendem‑se palmas fúnebres.»

O meu primeiro impulso foi bater para averiguar os dados daquele achado, mas venceu‑me a timidez. De modo que a própria vida me ensinou que um dos segredos mais úteis para escrever é aprender a ler os hieróglifos da realidade sem bater a uma porta para perguntar nada. Isto tornou‑se muito mais claro para mim quando relia em anos recentes as mais de quatrocentas «jirafas» publicadas e as comparava com alguns dos textos literários a que deram origem.

Pelo Natal, chegou de férias o pessoal superior de El Espectador, desde o director‑geral, D. Gabriel Cano, com todos os filhos: Luis Gabriel, o gerente; Guillermo, então subdirector; Alfonso, subgerente, e Fidel, o mais novo, aprendiz de tudo. Chegou com eles Eduardo Zalamea, Ulises, que tinha uma importância especial para mim pela publicação dos meus contos e a sua nota de apresentação. Tinham o costume de gozar juntos a primeira semana do novo ano no balneário de Pradomar, a dez léguas de Barranquilla, onde tomavam o bar de assalto. A única coisa que recordo com certa precisão daquela barafunda é que Ulises em pessoa foi uma das grandes surpresas da minha vida. Via‑o com frequência em Bogotá, ao princípio no El Molino e anos depois em El Automático, e às vezes na tertúlia do mestre De Greiff. Recordava‑me dele pelo seu semblante carrancudo e voz de metal, que me fizeram tirar a conclusão de que era um mal‑humorado, que na verdade era a fama que tinha entre os bons leitores da cidade universitária. Por isso o evitara diversas vezes, para não contaminar a imagem que inventara para meu uso pessoal. Enganei‑me. Era um dos seres mais afectuosos e serviçais que recordo, embora compreenda que precisava de um motivo especial da mente ou do coração. A sua matéria humana não tinha nada da de D. Ramón Vinyes, Álvaro Mutis ou León de Greiff, mas partilhava com eles a capacidade congénita de professor a toda a hora, e a rara sorte de ter lido todos os livros que se deviam ler.

Dos Cano jovens ‑ Luis Gabriel, Guillermo, Alfonso e Fidel ‑ acabaria por ser mais do que um amigo quando trabalhei como redactor de EL Espectador. Seria temerário tentar recordar algum diálogo daquelas conversas de todos contra todos nas noites de Pradomar, mas também seria impossível esquecer a sua persistência insuportável na doença mortal do jornalismo e da literatura. Fizeram‑me outro dos seus, como seu contista pessoal, descoberto e adoptado por eles e para eles. Mas não me lembro ‑ como tanto se disse ‑ que alguém tivesse sugerido sequer que fosse trabalhar com eles. Não o lamentei, porque naquele momento não tinha a mínima ideia de qual seria o meu destino nem que mo dessem a escolher.

Álvaro Mutis, entusiasmado pelo entusiasmo dos Cano, voltou a Barranquilla quando acabava de ser nomeado chefe de relações públicas da Esso Colombiana, e tentou convencer‑me a ir trabalhar com ele em Bogotá. A sua verdadeira missão, no entanto, era muito mais dramática: por uma falha aterradora de algum concessionário local, tinham enchido os depósitos do aeroporto com gasolina de automóvel em vez de gasolina de avião, e era impensável que uma aeronave abastecida com aquele combustível errado pudesse chegar a qualquer lado. A tarefa de Mutis era emendar o erro em absoluto segredo antes do amanhecer, sem que soubessem os funcionários do aeroporto e muito menos a imprensa. Assim se fez. O combustível foi trocado pelo bom em quatro horas de uísques bem conversados nos anexos do aeroporto local. Sobrou‑nos tempo para falar de tudo, mas o tema inimaginável para mim foi que a editora Losada de Buenos Aires podia publicar o romance que eu estava prestes a terminar. Álvaro Mutis sabia‑o pela via directa do novo gerente da editora em Bogotá. Júlio César Villegas, um antigo ministro de governo do Peru desde há pouco asilado na Colômbia.

Não recordo uma emoção mais intensa. A editora Losada era uma das melhores de Buenos Aires, que tinham preenchido o vazio editorial provocado pela Guerra Civil espanhola. Os seus editores alimentavam‑nos todos os dias com novidades tão interessantes e raras que quase nem tínhamos tempo para as ler. Os seus vendedores traziam‑nos com pontualidade os livros que nós encomendávamos e recebíamo‑los como enviados da felicidade. A simples ideia de que uma delas pudesse editar A Revoada quase me transtornou. Mal me despedi de Mutis, que seguia num avião abastecido com o combustível correcto, corri para o jornal a fim de fazer a revisão a fundo dos originais.

Nos dias seguintes dediquei‑me de corpo inteiro ao exame frenético de um texto que quase escapou ao meu controlo. Não eram mais de cento e vinte páginas a dois espaços, mas fiz tantos ajustes, trocas e invenções, que nunca soube se ficou melhor ou pior. Germán e Alfonso releram as partes mais críticas e tiveram o bom coração de não me fazer reparos irredimíveis. Naquele estado de ansiedade, revi a versão final com o coração nas mãos e tomei a decisão serena de não o publicar. No futuro, aquilo seria uma mania. Quando me sentia satisfeito com um livro terminado, ficava‑me a impressão desoladora de que não seria capaz de escrever outro melhor.

Por sorte, Álvaro Mutis suspeitou de qual era a causa da minha demora e voou até Barranquilla para levar e enviar para Buenos Aires o único original corrigido, sem me dar tempo para uma leitura final. Ainda não existiam as fotocópias comerciais, e a única coisa com que fiquei foi o primeiro rascunho corrigido nas margens e entrelinhas com tintas de cores diferentes para evitar confusões. Atirei‑o para o lixo e não recuperei a serenidade durante os dois longos meses que demorou a resposta.

Um dia qualquer entregaram‑me em El Heraldo uma carta que se tinha perdido entre os papéis da secretária do chefe de redacção. O remetente da editora Losada de Buenos Aires gelou‑me o coração, mas tive o pudor de não a abrir ali mesmo mas no meu cubículo privado. Graças a isso, enfrentei sem testemunhas a notícia seca de que A Revoada tinha sido recusado.

Não tive que ler a sentença completa para sentir o impacto brutal de que ia morrer naquele instante.

A carta era o veredicto supremo de D. Guillermo de Torre, presidente do conselho editorial, sustentado por uma série de argumentos simples em que ressoavam a dicção, a ênfase e a suficiência dos brancos de Castela. O único consolo foi a surpreendente concessão final: «Há que reconhecer ao autor os excelentes dotes de observador e de poeta.» No entanto, ainda hoje me surpreende que, para além da minha consternação e vergonha, mesmo as objecções mais ácidas me tenham parecido pertinentes.

Nunca fiz cópia nem soube onde ficou a carta depois de circular vários meses entre os meus amigos de Barranquilla, que apelaram a todo o género de razões balsâmicas para tentar consolar‑me. A verdade é que quando tentei conseguir uma cópia para documentar estas memórias, cinquenta anos depois, não foram encontrados rastos na casa editora de Buenos Aires. Não me lembro se foi publicada como notícia, embora nunca tenha pretendido que o fosse, mas sei que necessitei de um bom tempo para recuperar a coragem, depois de disparatar à vontade e de escrever uma carta de raiva que foi publicada sem a minha autorização. Este abuso de confiança causou‑me uma mágoa profunda, porque a minha reacção final tinha de„a aproveitar o que me fosse útil do veredicto, corrigir tudo o corrigível segundo o meu critério, e seguir em frente.

O melhor alento foi‑me dado pelas opiniões de Germán Vargas, Alfonso Fuenmayor e Álvaro Cepeda. Encontrei Alfonso numa barraquinha de comidas e bebidas do mercado público, onde descobrira um oásis para ler no meio da confusão do comércio. Perguntei‑lhe se deixava o meu romance como estava ou se tentava reescrevê‑lo com outra estrutura pois me parecia que na segunda metade perdia a tensão da primeira. Alfonso ouviu‑me com certa impaciência e deu‑me o seu veredicto:

‑ Olhe, mestre ‑ disse‑me por fim, com ar professoral ‑ Guillermo de Torre é tão respeitável como ele próprio se julga, mas não me parece muito em dia com o romance actual.

Noutras conversas ociosas daqueles dias, consolou‑me com o precedente de que Guillermo de Torre recusara os originais de Residência en la Tierra, de Pablo Neruda, em 1927. Fuenmayor pensava que a sorte do meu romance podia ter sido outra se o leitor tivesse sido Jorge Luis Borges, mas em contrapartida os estragos teriam sido piores se também a tivesse recusado.

‑ Portanto, não me foda mais ‑ concluiu Alfonso. ‑ O seu romance é tão bom como já nos pareceu e a única coisa que tem de fazer para já é continuar a escrever.

Germán ‑ fiel ao seu modo ponderado ‑ fez‑me o favor de não exagerar. Pensava que nem o romance era tão mau para não ser publicado num continente onde o género estava em crise, nem era tão bom para armar um escândalo internacional, cujo único perdedor ia ser um autor estreante e desconhecido. Álvaro Cepeda resumiu a avaliação de Guillermo de Torre com outra das suas lápidas floridas:

‑ É que os espanhóis são muito estúpidos.

Quando me apercebi de que não tinha uma cópia corrigida do meu romance, a editora Losada fez‑me saber, por terceira ou quarta pessoa, que tinham por norma não devolver originais.

Por sorte, Júlio César Villegas fizera uma cópia antes de enviar o meu para Buenos Aires e fez‑ma chegar às mãos. Empreendi então uma nova correcção sobre as conclusões dos meus amigos. Eliminei um longo episódio da protagonista que contemplava do corredor das begónias um aguaceiro de três dias, que mais tarde transformei no «Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo». Eliminei um diálogo supérfluo do avô com o coronel Aureliano Buendía pouco antes da matança das bananeiras, e umas trinta páginas que entorpeciam de forma e de fundo a estrutura unitária do romance. Quase vinte anos depois, quando os julgava esquecidos, partes desses fragmentos ajudaram‑me a sustentar nostalgias ao longo de Cem Anos de Solidão. Estava quase a superar o golpe, quando foi publicada a notícia de que o romance colombiano escolhido para ser publicado em lugar do meu pela editora Losada era El Cristo de espaldas, de Eduardo Caballero Calderón. Foi um erro ou uma verdade apregoada de má‑fé, porque não se tratava de um concurso mas de um programa da editora Losada para entrar no mercado da Colômbia com autores colombianos, e o meu romance não foi recusado em competição com outro mas sim porque D. Guillermo de Torre não o considerou publicável.

A minha consternação foi maior do que eu próprio reconheci nessa altura, e não tive a coragem de a sofrer sem me convencer a mim mesmo. Portanto, caí sem anunciar na quinta bananeira de Sevilla do meu amigo de infância Luis Carmelo Corrêa ‑ a poucas léguas de Cataca ‑ onde trabalhava naqueles anos como controlador de tempo e revisor fiscal. Estivemos dois dias a recapitular uma vez mais, como sempre, a nossa infância comum. A sua memória, a sua intuição e a sua franqueza eram para mim tão reveladoras que me causavam um certo pavor. Enquanto falávamos, ele arranjava com a sua caixa de ferramentas os pequenos defeitos da casa e eu ouvia numa rede abanada pela brisa ténue das plantações. Nena Sánchez, a sua mulher, corrigia‑nos disparates e esquecimentos, morta de riso na cozinha. Por fim, num passeio de reconciliação pelas ruas desertas de Aracataca, compreendi até que nu ponto tinha recuperado a minha saúde de espírito e não me restou a menor dúvida que A Revoada ‑ recusada ou não - era o livro que eu decidira escrever depois da viagem com a minha mãe.

Encorajado por aquela experiência, fui em busca de Rafael Escalona no seu paraíso de Valledupar, procurando escavar o meu mundo até às raízes. Não me surpreendeu, porque tudo o que encontrava, tudo o que acontecia, toda a gente que me apresentavam era como se já o tivesse vivido, e não noutra vida mas naquela que estava a viver. Mais adiante, numa das minhas tantas viagens, conheci o coronel Clemente Escalona, o pai de Rafael, que desde o primeiro dia me impressionou pela sua dignidade e porte de patriarca à antiga. Era magro e direito como um junco, de pele curtida e ossos firmes, e de uma dignidade a toda a prova. Desde muito jovem me perseguira o tema das angústias e do decoro com que os meus avós esperaram até ao fim dos seus longos anos a pensão de veterano. No entanto, quatro anos depois, quando por fim escrevia o livro num velho hotel de Paris, a imagem que sempre tive na memória não era a do meu avô mas a de D. Clemente Escalona, como a repetição física do coronel que não tinha quem lhe escrevesse.

Por Rafael Escalona soube que Manuel Zapata Olivella se instalara como médico de pobres na povoação de La Paz, a poucos quilómetros de Valledupar, e para lá nos dirigimos. Chegámos ao entardecer, e havia algo no ar que nos impedia de respirar. Zapata e Escalona recordaram‑me que apenas vinte dias antes o lugar fora vítima de um assalto da polícia que espalhava o terror na região para impor a vontade oficial. Foi uma noite de horror. Mataram sem discriminação e deitaram fogo a quinze casas.

Devido à censura férrea, não tínhamos conhecido a verdade. No entanto, nem nessa altura tive oportunidade de o imaginar. Juan López, o melhor músico da região, partira para não voltar nessa noite negra. Pedimos em sua casa a Pablo, o seu irmão mais novo, que tocasse para nós, e disse‑nos com uma simplicidade impávida:

‑ Nunca mais na minha vida voltarei a cantar. Soubemos então que não só ele, como todos os músicos da povoação, tinham guardado os seus acordeões, as suas tamboras (Tambora ‑ bombo, tambor grande. (N. T.)), as suas guacharacas (Guacharaca ‑ instrumento rudimentar, idêntico ao nosso reco‑reco, feito com uma cana em que são feitas sucessivas ranhuras que, ao serem raspadas com um objecto de madeira e arame, produzem um som semelhante ao emitido pela ave silvestre do mesmo nome enquanto voa. (N. T.)) e não voltaram a cantar devido à dor dos seus mortos. Era compreensível, e nem o próprio Escalona, que era professor de muitos, nem Zapata Olivella, que começava a ser o médico de todos, conseguiram que alguém cantasse.

Ante a nossa insistência, os vizinhos acudiram a dar as suas razões, mas no fundo das suas almas sentiam que o luto não podia durar mais. «É como ter morrido com os mortos», disse uma mulher que trazia uma rosa vermelha na orelha. As pessoas apoiaram‑na. Então Pablo López deve ter‑se sentido autorizado a torcer o pescoço à sua mágoa, pois sem dizer uma palavra entrou em casa e saiu com o acordeão. Cantou como nunca, e enquanto cantava começaram a chegar outros músicos. Alguém abriu a loja da frente e ofereceu copos por sua conta. As outras abriram‑se de par em par ao fim de um mês de luto, e acenderam‑se as luzes, e todos cantámos. Meia hora depois, toda a povoação cantava. Na praça deserta apareceu o primeiro bêbado num mês e começou a cantar em voz esganiçada uma canção de Escalona, dedicada ao próprio Escalona em homenagem ao seu milagre de ressuscitar a aldeia.

Por sorte, a vida continuava no resto do mundo. Dois meses depois da recusa dos originais, conheci Júlio César Villegas, que rompera com a editora Losada e tinha sido nomeado representante para a Colômbia da editora González Porto vendedores a prestações de enciclopédias e livros científicos e técnicos. Villegas era o homem mais alto e mais forte, e o de maiores recursos ante os escolhos da vida real, consumidor desmedido dos uísques mais caros, conservador inabalável e fabulista de salão. Na noite do nosso primeiro encontro na suíte presidencial do Hotel del Prado, saí aos tropeções com uma pasta de caixeiro‑ viajante atafulhada de folhetos de propaganda e mostruários de enciclopédias ilustradas, livros de medicina, direito e engenharia da editora González Porto. Desde o segundo uísque aceitara transformar‑me em vendedor de livros a prestações na província de Padilla, desde Valledupar até La Guajira. O meu lucro era a comissão efectiva de vinte por cento, que devia chegar‑me para viver sem angústias depois de pagar as minhas despesas, o hotel incluído.

Esta é a viagem que eu próprio tornei lendária pelo defeito incorrigível de não avaliar a tempo os meus adjectivos. A lenda é que foi planeada como uma expedição mítica em busca das minhas raízes na terra dos meus antepassados, com o mesmo itinerário romântico da minha mãe, levada pela sua para pô‑la a salvo do telegrafista de Aracataca. A verdade é que as minhas não foram uma mas duas viagens, muito breves e estouvadas.

Na segunda, só voltei aos lugares em redor de Valledupar Uma vez lá, como é evidente, tinha previsto continuar até a Cabo de La Vela com o mesmo itinerário da minha mãe apaixonada, mas só cheguei a Manaure de la Sierra, a La Paz e a Villanueva, a poucas léguas de Valledupar. Não conheci nessa altura San Juan del César, nem Barrancas, onde casaram os meus avós e nasceu a minha mãe, e onde o coronel Nicolás Marquez matou Medardo Pacheco; nem conheci Riohacha, que é o embrião da minha tribo, até 1984, quando o presidente Belisario Betancur mandou de Bogotá um grupo de amigos convidados para inaugurar as minas de carvão do Cerrejón. Foi a primeira viagem à minha Guajira imaginária, e me pareceu tão mítica como tantas vezes a descrevera sem a conhecer, mas não penso que fosse pelas minhas falsas recordações, mas pela memória dos índios comprados pelo meu avô por cem pesos cada um para a casa de Aracataca. A minha maior surpresa, é evidente, foi a primeira visão de Riohacha, a cidade de areia e sal onde nasceu a minha estirpe desde os tataravôs, onde a minha avó viu a Virgem de los Remédios apagar o forno com um sopro gelado quando o pão estava prestes a queimar‑se, onde o meu avô fez as suas guerras e sofreu prisão por um delito de amor, e onde fui concebido na lua‑de‑mel dos meus pais.

Em Valledupar não dispus de muito tempo para vender livros. Vivia no Hotel Wellcome, uma estupenda casa colonial bem conservada na zona da praça principal, que tinha uma cobertura de ramos de palma no pátio, com rústicas mesas de bar e redes penduradas nos espeques. Víctor Cohen, o proprietário, vigiava como um Cérbero a ordem da casa, tanto como a sua reputação moral ameaçada pelos forasteiros levianos. Era também um purista da língua, que declamava de cor Cervantes com ceceios e cicios castelhanos e punha em dúvida a moral de Garcia Lorca. Entendi‑me bem com ele pelo seu domínio de D. Andrés Bello, pela sua declamação rigorosa dos românticos colombianos e entendi‑me muito mal pela sua obsessão de impedir que fossem contrariados os códigos morais no puro âmbito do seu hotel. Tudo isto começou de forma muito fácil por ele ser um velho amigo do meu ti Juan de Dios e se comprazer em evocar as suas recordações

Para mim, foi uma lotaria aquele alpendre do pátio, porque as muitas horas que me sobravam as passava lendo numa rede ao calor do meio‑dia. Em tempos de míngua, cheguei a ler desde tratados de cirurgia até manuais de contabilidade sem pensar que me haveriam de servir para as minhas aventuras de escritor. O trabalho era quase espontâneo, porque a maioria dos clientes passava de qualquer modo pelo crivo dos Iguarán e dos Cotes e me bastava uma visita que se prolongava até ao almoço, evocando intrigas de família. Alguns assinavam o contrato sem o ler para estar a tempo com o resto da tribo que nos esperava para almoçar à sombra dos acordeões. Entre Valledupar e La Paz fiz a minha colheita grande em menos de uma semana e regressei a Barranquilla com a emoção de ter estado no único lugar do mundo que na verdade entendia.

A 13 de Junho, muito cedo, ia no autocarro para não sei onde quando fiquei a saber que as Forças Armadas tinham tomado o poder ante a desordem que reinava no governo e no país inteiro. A 6 de Setembro do ano anterior, uma turba de pandilheiros conservadores e polícias de uniforme tinham pegado fogo em Bogotá aos edifícios de El Tiempo e El Espectador, os dois diários mais importantes do país, e atacado à bala as residências do ex‑presidente Alfonso López Pumarejo e de Carlos Lleras Restrepo, presidente da Dirección Liberal. Este último, reconhecido como um político de carácter duro conseguiu trocar tiros com os seus agressores, mas no fim viu‑se obrigado a fugir pelos tapumes de uma casa vizinha. A situação de violência oficial de que sofria o país desde o 9 de Abril tornara‑se insustentável.

Até à madrugada daquele 13 de Junho, quando o general de divisão Gustavo Rojas Pinilla arrancou do palácio o presidente substituto, Roberto Urdaneta Arbeláez. Laureano Gómez, o presidente titular, retirado por determinação dos seus médicos reassumiu então o poder em cadeira de rodas e tentou dar um golpe a si mesmo e governar os quinze meses que lhe faltavam para o termo constitucional do seu mandato. Mas Rojas Pinilla e o seu estado‑maior tinham chegado para ficar.

O apoio nacional à decisão da Asamblea Constituyente que legitimou o golpe militar foi imediato e unânime. Rojas Pinilla foi investido de poderes até ao termo do mandato presidencial, em Agosto do ano seguinte, e Laureano Gómez viajou com a família para Benidorm, na costa levantina de Espanha, deixando atrás a impressão ilusória de que os seus tempos de raivas tinham terminado. Os patriarcas liberais proclamaram o seu apoio à reconciliação nacional com um apelo aos seus partidários em armas por todo o país. A fotografia mais significativa publicada pelos jornais nos dias seguintes foi a dos liberais de vanguarda que cantaram uma serenata de namorados por baixo da varanda da alcova presidencial. A homenagem foi encabeçada por D. Roberto Garcia Pena, director de El Tiempo e um dos opositores mais encarniçados do regime deposto.

Em todo o caso, a fotografia mais emocionante daqueles dias foi a fila interminável de guerrilheiros liberais que entregaram as armas nas planícies orientais, comandados por Guadalupe Salcedo, cuja imagem de bandoleiro romântico tocara fundo 0 coração dos colombianos castigados pela violência oficial.

Era uma nova geração de guerreiros contra o regime conservador, identificados de certo modo como um resto da Guerra dos Mil Dias, que mantinham relações nada clandestinas com os dirigentes legais do Partido Liberal.

À frente deles, Guadalupe Salcedo espalhara a todos os níveis do país, a favor ou contra, uma nova imagem mítica. Talvez por isso ‑ quatro anos depois da sua rendição ‑ foi crivado de balas pela polícia num lugar qualquer de Bogotá que nunca foi precisado, nem conhecidas com exactidão as circunstâncias da sua morte.

A data oficial é o 6 de Junho de 1957, e o corpo foi depositado em cerimónia solene numa cripta numerada do cemitério central de Bogotá, com a assistência de políticos conhecidos. Pois Guadalupe Salcedo, dos seus quartéis de guerra, manteve relações não só políticas mas também sociais com os dirigentes do liberalismo em desgraça. No entanto, há pelo menos oito versões diferentes da sua morte, e não faltam incrédulos daquela época e desta que ainda se interrogam se o cadáver era o seu e se, na realidade, está na cripta onde foi sepultado.

Com aquele estado de espírito, empreendi a segunda viagem de negócios à Província, depois de confirmar com Villegas que estava tudo em ordem. Como na vez anterior, fiz as minhas vendas muito rápidas em Valledupar, com uma clientela convencida de antemão. Fui com Rafael Escalona e Poncho Cotes para Villanueva, La Paz, Palitai e Manaure de La Sierra para visitar veterinários e agrónomos. Alguns tinham falado com compradores da minha viagem anterior e esperavam‑me com pedidos especiais. Qualquer hora era boa para armar a festa com os próprios clientes e os seus alegres compadres, e amanhecíamos a cantar com os principais tocadores de acordeão, sem interromper compromissos nem pagar créditos urgentes porque a vida quotidiana seguia o seu ritmo natural no fragor da pândega. Em Villanueva estivemos com um tocador de acordeão e dois tocadores de caixa, que ao que parece eram netos de um que ouvíamos quando éramos pequenos em Aracataca.

Desse modo, o que tinha sido uma paixão infantil revelou‑se‑me naquela viagem como um ofício inspirado que havia de me acompanhar até sempre.

Dessa vez conheci Manaure, no coração da serra, uma povoação linda e tranquila, histórica na família porque para ali levaram a minha mãe a mudar de ares, quando era pequena, por causa de umas febres terçãs que haviam resistido a todo tipo de beberagens. Tanto tinha ouvido falar de Manaure, das suas tardes de Maio e pequenos‑almoços medicinais, que quando ali estive pela primeira vez me apercebi de que a recordava como se a tivesse conhecido numa vida anterior.

Estávamos a beber uma cerveja gelada na única tasca do lugar quando se aproximou da nossa mesa um homem que parecia uma árvore, com polainas de montar e no cinto um revólver de guerra. Rafael Escalona apresentou‑nos e ele ficou a olhar‑me nos olhos, com a minha mão na sua.

‑ Tem alguma coisa a ver com o coronel Nicolás Márquez? ‑ perguntou‑me.

‑ Sou seu neto ‑ disse.

‑ Então ‑ disse ele ‑, o seu avô matou o meu avô.

Quer dizer, era o neto de Medardo Pacheco, o homem que o meu avô matara em lide franca. Não me deu tempo para me assustar, porque o disse de uma forma muito carinhosa, como se também essa fosse uma maneira de sermos parentes. Estivemos na paródia com ele durante três dias e três noites no seu camião de fundo duplo, bebendo brandy quente e comendo sancochos de cabrito em memória dos avós mortos.

Passaram vários dias antes que me confessasse a verdade: combinara com Escalona para me assustar, mas não teve coração para continuar com as brincadeiras dos avós mortos. Na realidade, chamava‑se José Prudencio Aguilar e era um contrabandista de profissão, recto e de bom coração.

Em sua homenagem, para não ser menos, baptizei com o seu nome o rival que José Arcadio Buendía matou com uma lança na galera de Cem Anos de Solidão.

O mau foi que no final daquela viagem de nostalgias ainda não tinham chegado os livros vendidos, sem os quais não podia cobrar as minhas comissões. Fiquei sem um cêntimo e o metrónomo do hotel andava mais depressa do que as minhas noites de festa. Víctor Cohen começou a perder a pouca paciência que lhe restava por causa da desconfiança de que eu espatifava o dinheiro da sua dívida com doidivanas de baixa categoria e fêmeas de má morte. A única coisa que me devolveu o sossego foram os amores contrariados de El derecho de nacer (A versão portuguesa, O Direito de Nascer, foi radiodifundida em Portugal também com grande êxito. (N.T.)), o folhetim radiofónico de D. Félix B. Caignet, cujo impacto popular reviveu as minhas velhas ilusões com a literatura de lágrimas. A leitura inesperada de O Velho e o Mar, de Hemingway, que chegou de surpresa na revista Life en Espanol, acabou de restabelecer‑me dos meus quebrantos.

No mesmo correio chegou o carregamento de livros, que devia entregar aos seus donos para cobrar a minha comissão. Todos pagaram com pontualidade, mas já devia no hotel mais do dobro do que tinha ganho e Villegas avisou‑me de que não teria nem mais um chavo antes de três semanas. Então falei a sério com Víctor Cohen e ele aceitou um vale com um fiador. Como Escalona e a sua pandilha não estavam à mão, um amigo providencial fez‑me o favor sem compromissos, só porque tinha gostado de um conto meu publicado na Crónica. No entanto, na hora da verdade, não pude pagar a ninguém.

O vale tornou‑se histórico anos mais tarde, quando Víctor Cohen o mostrava aos amigos e visitantes, não como um documento acusador mas como um troféu. A última vez que o vi tinha quase cem anos e mantinha‑se teso e lúcido e com o humor intacto. No baptizado de um filho da minha comadre Consuelo Araujonoguera, do qual fui padrinho, tornei a ver o vale não pago quase cinquenta anos depois. Víctor Cohen mostrou‑o a todos os que o quiseram ver, com a graça e a fineza de sempre. Surpreendeu‑me o esmero do documento escrito por ele e a enorme vontade de pagar que se notava no descaramento da minha assinatura. Víctor celebrou‑o naquela noite dançando um paseo Vallenato, com uma elegância colonial como ninguém dançara desde os anos de Francisco el Hombre. No fim, muitos amigos me agradeceram não ter pago a tempo o vale que deu origem àquela noite inesquecível.

A magia sedutora do doutor Villegas daria no entanto para mais, mas não com os livros. Não é possível esquecer a mestria senhorial com que toureava os credores e a felicidade com que eles entendiam as suas razões para não pagar a tempo. O mais tentador dos seus temas de então tinha que ver com o romance Se han cerrado los caminos, da escritora barranquillera Olga Salcedo de Medina, que provocara um alvoroço mais social do que literário mas com escassos precedentes regionais. Inspirado pelo êxito de El derecho de nacer, que segui com crescente atenção durante todo o mês, pensara que estávamos na presença de um fenómeno popular que nós, os escritores, não podíamos ignorar. Sem mencionar sequer a dívida pendente, comentara‑o com Villegas no meu regresso a Valledupar e ele propôs‑me que escrevesse a adaptação com a malícia suficiente para triplicar o vasto auditório já preso pelo drama radiofónico de Félix B. Caignet.

Fiz a adaptação para a transmissão radiofónica numa clausura de duas semanas que me pareceram muito mais reveladoras do que previra, com medidas de diálogos, graus de intensidade e situações e tempos fugazes que não se pareciam em nada com o que escrevera antes. Com a minha inexperiência no diálogo ‑ que continua a não ser o meu forte ‑ a prova foi valiosa e agradeci‑a mais pela aprendizagem do que pelo ganho. No entanto, nisso também não tinha queixas porque Villegas adiantou‑me metade de imediato e comprometeu‑se a cancelar‑me a dívida anterior com os primeiros lucros do folhetim radiofónico.

Foi gravado na emissora Atlântico, com o melhor elenco regional possível, e dirigido sem experiência nem inspiração pelo próprio Villegas. Para narrador tinham‑lhe recomendado Germán Vargas como um locutor diferente pelo contraste da sua sobriedade com a estridência da rádio local. A primeira grande surpresa foi que Germán aceitou, e a segunda foi que desde o primeiro ensaio ele mesmo chegou à conclusão de que não era o indicado. Villegas em pessoa assumiu então a carga da narração, com a sua cadência e os assobios andinos que acabaram por desnaturalizar aquela aventura temerária.

O folhetim radiofónico passou completo, com mais penas do que glórias, e foi uma cátedra magistral para as minhas insaciáveis ambições de narrador em qualquer género. Assisti às gravações, que eram feitas em directo sobre o disco virgem com uma agulha de arado que ia deixando flocos de filamentos negros e luminosos, quase intangíveis, como cabelos de anjo. Todas as noites levava uma mão cheia deles, que distribuía pelos meus amigos como um troféu insólito. Entre tropeções e trapaças sem conta, o folhetim foi para o ar a tempo com uma festa descomunal, muito própria do promotor.

Ninguém conseguiu inventar um argumento de cortesia para me fazer crer que lhe agradava a obra, mas teve uma boa audiência e uma carteira de publicidade suficiente para salvar a face. A mim, por sorte, deu‑me novos brios num género que me parecia projectado para horizontes impensáveis.

A minha admiração e gratidão por D. Félix B. Caignet chegaram ao ponto de lhe pedir uma entrevista privada uns dez anos depois quando vivi uns meses em La Habana como redactor da agência cubana Prensa Latina. Mas apesar de todo o género de razões e pretextos, nunca se deixou ver e apenas me restou dele uma lição magistral que li numa entrevista sua: «As pessoas querem sempre chorar; a única coisa que eu faço é dar‑lhes o pretexto.» As magias de Villegas, por seu lado, não deram para mais. Tudo se lhe complicou também com a editora González Porto ‑ como antes com a Losada ‑ e não houve maneira de regularizar as nossas últimas contas, porque deixou por terra os sonhos de grandeza para voltar ao seu país. Álvaro Cepeda Samudio arrancou‑me do purgatório com a sua velha ideia de transformar El Nacional no jornal moderno que aprendera a fazer nos Estados Unidos. Até então, à parte as suas colaborações ocasionais na Crónica ‑, que sempre foram literárias, apenas tivera ocasião de praticar o seu curso da Universidade de Colúmbia com os compactos exemplares que enviava para o Sporting News, de Saint Louis, Missuri. Por fim, em 1953, o nosso amigo Julián Davis Echandía, que fora o primeiro chefe de Álvaro, chamou‑o para que se encarregasse do controlo integral do seu jornal vespertino, El Nacional. O próprio Álvaro o entusiasmara com o projecto astronómico que lhe apresentou no seu regresso de Nova Iorque mas, uma vez capturado o mastodonte, chamou‑me para que o ajudasse a carregar com ele sem títulos nem deveres definidos, mas com o primeiro ordenado adiantado que me chegou para viver mesmo sem o receber completo.

Foi uma aventura mortal. Álvaro fizera o plano na íntegra com modelos dos Estados Unidos. Como Deus nas alturas ficava Davis Echandía, precursor dos tempos heróicos do jornalismo sensacionalista local e o homem menos decifrável que conheci, bom de nascimento e mais sentimental do que com passivo. O resto da ficha eram grandes jornalistas de choque da colheita brava, todos amigos entre si e colegas de muitos anos. Em teoria, cada um tinha a sua órbita bem definida mas para além dela nunca se soube quem fez o quê para que o enorme mastodonte técnico não conseguisse dar nem o primeiro passo. Os poucos números que conseguimos publicar foram o resultado de um acto heróico, mas nunca se soube de quem. À hora de entrar na máquina, as pranchas estavam empasteladas. Desaparecia o material urgente e os bons enlouquecíamos de raiva. Não me lembro de uma vez em que o diário saísse a tempo e sem remendos devido aos demónios escondidos que tínhamos nas oficinas. Nunca se soube o que se passou. A explicação que prevaleceu foi talvez a menos perversa: alguns veteranos ancilosados não puderam tolerar o estilo renovador e conspiraram com as suas almas gémeas até conseguirem destruir o empreendimento.

Álvaro foi‑se embora, batendo com a porta. Eu tinha um contrato que fora uma garantia em condições normais, mas nas piores era uma camisa‑de‑forças. Ansioso por tirar algum proveito do tempo perdido, tentei montar ao correr da máquina qualquer coisa válida com fios soltos que me tinham ficado de tentativas anteriores. Retalhos de La casa, paródias do Faulkner truculento de Luz em Agosto, das chuvas de pássaros mortos de Nathaniel Hawthorne, dos contos policiais que me tinham fartado por serem repetitivos, e de algumas equimoses que ainda me restavam da viagem a Aracataca com a minha mãe. Fui‑os deixando fluir a seu bel‑prazer no meu gabinete estéril, onde restava apenas a secretária despida e a máquina de escrever com o último alento, até chegar de um só esticão ao título final: «Um dia depois do sábado.» Outro dos poucos contos meus que me deixaram satisfeito desde a primeira versão.

Em El Nacional fui abordado por um vendedor ambulante de relógios de pulso. Nunca tinha tido um, por razões óbvias naqueles anos, e o que ele me oferecia era de um luxo aparatoso e caro. O próprio vendedor me confessou então que era membro do Partido Comunista encarregado de vender relógios como anzóis para pescar contribuintes. - É como comprar a revolução a prestações ‑ disse. Respondi‑lhe, bem‑disposto:

- A diferença é que o relógio mo dão já e a revolução não. O vendedor não recebeu muito bem a má piada e acabei por comprar um relógio mais barato, só para lhe fazer a vontade e com um sistema de quotas que ele próprio viria cobrar todos os meses. Foi o primeiro relógio que tive e tão pontual e duradoiro que ainda o guardo como relíquia daqueles tempos. Álvaro Mutis voltou por esses dias com a notícia de um considerável orçamento da sua empresa para a cultura e o aparecimento eminente da revista Lámpara, o seu órgão literário. Perante o seu convite para colaborar, propus‑lhe um projecto de emergência: a lenda de La Sierpe. Pensei que se algum dia a quisesse contar não devia ser através de nenhum prisma retórico mas resgatada da imaginação colectiva como aquilo que era: uma verdade geográfica e histórica. Quer dizer ‑ por fim ‑, uma grande reportagem.

‑ Faça o que lhe apetecer, por onde quiser ‑ disse‑me Mutis. ‑ Mas faça‑o, porque é o ambiente e o tom que procuramos para a revista.

Prometi‑lha para daí a duas semanas. Antes de ir para o aeroporto telefonara para o seu escritório de Bogotá e ordenara o pagamento adiantado. O cheque que me chegou pelo correio, uma semana depois, deixou‑me sem fôlego. Mais ainda quando o fui levantar e o caixa do banco se inquietou com o meu aspecto. Fizeram‑me entrar para um gabinete superior, onde um gerente demasiado amável me perguntou onde trabalhava. Respondi‑lhe que escrevia em El Heraldo como era meu costume, embora já nessa altura não fosse verdade. Nada mais. O gerente examinou o cheque sobre a secretária, observou‑o com um ar de desconfiança profissional, e por fim sentenciou:

‑ Trata‑se de um documento perfeito.

Nessa mesma tarde, enquanto começava a escrever «La Sierpe», anunciaram‑me uma chamada do banco. Cheguei a pensar que o cheque não era de confiança por quaisquer das inumeráveis razões possíveis na Colômbia. Só consegui engolir o nó da garganta quando o funcionário do banco, com a cadência viciosa dos Andinos, se desculpou por não ter sabido a tempo que o mendigo que cobrou o cheque era o autor de «La Jirafa».

Mutis voltou outra vez no fim do ano. Mal saboreou o almoço para me ajudar a pensar em alguma forma estável e para sempre de ganhar mais sem canseira. O que à sobremesa lhe pareceu melhor foi fazer saber aos Cano que eu estaria disponível para El Espectador, embora continuasse a crispar‑me a simples ideia de regressar a Bogotá. Mas Álvaro não dava tréguas quando se tratava de ajudar um amigo.

‑ Vamos fazer uma coisa ‑ disse‑me. ‑ Vou‑lhe mandar as passagens para ir quando quiser e como quiser para ver o que nos ocorre.

Era demasiado para dizer que não, mas tinha a certeza que o último avião da minha vida tinha sido o que me tirou de Bogotá depois do 9 de Abril. Além disso, os escassos proventos do folhetim radiofónico e a publicação destacada do primeiro capítulo de «La Sierpe» na revista Lámpara tinham‑me valido alguns textos de publicidade que chegaram além disso para mandar um barco de alívio à família de Cartagena. De modo que uma vez mais resisti à tentação de mudar para Bogotá.

Álvaro Cepeda, Germán e Alfonso e a maioria dos tertulianos do Japy e do Café Roma, falaram‑me em bons termos de «La Sierpe» quando foi publicado em Lámpara o primeiro capítulo. Estavam de acordo em que a fórmula directa da reportagem tinha sido a mais adequada para um tema que estava na perigosa fronteira daquilo que não se podia acreditar. Alfonso, com o seu estilo entre trocista e verdadeiro, disse‑me então algo que nunca esqueci: «É que a credibilidade, meu querido mestre, depende muito da cara que fazemos para contar as coisas.» Estive quase a revelar‑lhes as propostas de trabalho de Álvaro Mutis, mas não me atrevi e hoje sei que foi por medo de que as aprovassem. Voltara a insistir várias vezes, inclusive depois de me ter feito uma reserva no avião e eu a ter cancelado à última hora. Deu‑me a sua palavra de que não estava a fazer uma diligência de segunda mão para El Espectador nem para nenhum outro meio escrito ou falado. O seu único propósito ‑ insistiu até ao fim ‑ era o desejo de conversar sobre uma série de colaborações fixas para a revista e examinar alguns pormenores técnicos sobre a série completa de «La Sierpe», cujo segundo capítulo devia sair no número iminente. Álvaro Mutis mostrava‑se seguro de que esse género de reportagens podia ser um pontapé ao costumbrismo chato no seu próprio terreno. De todos os motivos que me apresentara até então, este foi o único que me deixou a pensar.

Numa terça‑feira de chuvinha lúgubre, apercebi‑me de que não poderia ir mesmo que quisesse porque não tinha outra roupa senão as minhas camisas de bailarino. Às seis da tarde não encontrei ninguém na Librería Mundo e fiquei à espera na porta, com uma bola de lágrimas pelo crepúsculo triste que começava a sofrer. No passeio oposto havia uma montra de roupa formal que nunca vira embora ali estivesse desde Sempre e, sem pensar no que fazia, atravessei a Calle San Blas sob as cinzas do chuvisco e entrei com passo firme na loja mais cara da cidade. Comprei um fato clerical de tecido azul meia‑noite, perfeito para o espírito da Bogotá daquela época, duas camisas brancas de colarinho duro, uma gravata de riscas diagonais e um par de sapatos dos que foram postos na moda pelo actor José Mojica antes de se tornar santo. Os únicos a quem contei que me ia embora foram Germán, Álvaro e Alfonso, que aprovaram a minha atitude como uma decisão sensata, com a condição de não regressar cachaço.

Festejámos em El Tercer Hombre com o grupo em pleno até ao amanhecer, como a festa antecipada do meu próximo aniversário, pois Germán Vargas, que era o guardião do santoral, informou que no próximo dia 6 de Março eu ia fazer vinte e sete anos. No meio dos bons augúrios dos meus grandes amigos, senti‑me disposto a comer crus os setenta e três que ainda me faltavam para completar os primeiros cem.

 

O director de El Espectador, Guillermo Cano, telefonou‑me quando soube que estava no escritório de Álvaro Mutis, quatro andares acima do seu, num edifício que acabavam de estrear a uns cinco quarteirões da sua antiga sede. Eu tinha chegado na véspera e dispunha‑me a almoçar com um grupo de amigos dele, mas Guillermo insistiu em que antes passasse para o cumprimentar. Assim foi. Depois dos abraços efusivos habituais na capital do bem falar, e de alguns comentários sobre a notícia do dia, agarrou‑me pelo braço e afastou‑me dos seus companheiros de redacção. «Oiça lá, Gabriel ‑ disse‑me com uma inocência insuspeitável ‑, por que não me faz o favorzão de me escrever uma notita editorial que me está a faltar para fechar o jornal?» Indicou‑me com o polegar e o indicador o tamanho de meio copo de água e concluiu:

‑ Deste tamanho.

Mais divertido do que ele, perguntei‑lhe onde me podia sentar e apontou‑me uma secretária vazia com uma máquina de escrever de outros tempos. Instalei‑me sem mais perguntas, a pensar num tema bom para eles, e ali fiquei sentado na cadeira, com a mesma secretária e a mesma máquina, dezoito meses seguintes.

Minutos depois da minha chegada, saiu do escritório contíguo Eduardo Zalamea Borda, o subdirector, absorto num montão de papéis. Espantou‑se ao reconhecer‑me.

‑ Caramba, D. Gabo! ‑ quase gritou, com o nome que tinha inventado para mim em Barranquilla, como apócope de Gabito, e que só ele usava. Mas desta vez generalizou‑se na redacção e continuaram a usá‑lo até em letra de forma: Gabo.

Não me lembro do tema da nota que Guillermo Cano me encomendou, mas conhecia muito bem desde a Universidad Nacional o estilo dinâmico de El Espectador. E, em especial, o da secção «Dia a dia» da primeira página, que gozava de um merecido prestígio, e decidi imitá‑lo com o sangue‑frio com que Luisa Santiaga enfrentava os demónios da adversidade. Terminei‑a em meia hora, fiz algumas correcções à mão e entreguei‑a a Guillermo Cano, que a leu de pé, por cima do arco dos seus óculos de míope. A concentração não parecia apenas sua mas de toda uma dinastia de antepassados de cabelos brancos, iniciada por D. Fidel Cano, o fundador do jornal em 1887, continuada por seu filho, D. Luis, consolidada pelo irmão deste, D. Gabriel, e recebida já madura na corrente sanguínea por seu neto, Guillermo, que acabava de assumir a direcção‑geral aos vinte e três anos. Tal como teriam feito os seus antepassados, fez umas revisões salteadas por várias dúvidas menores e acabou com o primeiro uso prático e simplificado do meu novo nome:

‑ Muito bem, Gabo.

Na noite do regresso apercebera‑me de que Bogotá não voltaria a ser a mesma para mim enquanto sobrevivessem as minhas recordações. Como muitas catástrofes grandes do país, o 9 de Abril trabalhara mais para o esquecimento do que para a história. O Hotel Granada foi arrasado no seu parque centenário e já começava a crescer no seu lugar o edifício demasiado novo do banco de la República.

As antigas ruas dos nossos anos não pareciam de ninguém sem os eléctricos iluminados, e a esquina do crime histórico perdera a sua grandeza nos espaços conquistados pelos incêndios. «Agora, sim, parece uma grande cidade», disse assombrado alguém que nos acompanhava. E acabou de dilacerar‑me com a frase ritual: -‑ Há que agradecer ao nove de Abril. Em contrapartida, nunca tinha estado melhor do que na pensão sem nome onde me instalou Álvaro Mutis. Uma casa embelezada pela desgraça, num dos lados do parque nacional, onde na primeira noite não consegui suportar a inveja pelos meus vizinhos de quarto que faziam amor como se fosse uma guerra feliz. No dia seguinte, quando os vi sair, não podia acreditar que fossem eles: uma garota esquálida com um vestido de orfanato público e um senhor de avançada idade, platinado e com dois metros de estatura, que bem podia ser seu avô. Pensei que me tinha enganado, mas eles próprios se encarregaram de confirmar‑mo todas as noites seguintes com as suas mortes gritadas até ao amanhecer.

El Espectador publicou a minha nota na primeira página e no lugar das principais. Passei a manhã nas grandes lojas a comprar roupa que Mutis me impunha com o ruidoso sotaque inglês que inventava para divertir os vendedores. Almoçámos com Gonzalo Mallarino e com outros escritores jovens convidados para me apresentar na sociedade. Não tornei a saber nada de Guillermo Cano até três dias depois, quando me telefonou para o escritório de Mutis.

‑ Oiça, Gabo, o que lhe aconteceu? ‑ disse‑me com uma severidade mal imitada de director‑chefe. ‑ Ontem fechámos atrasados à espera da sua nota.

Desci à redacção para conversar com ele e ainda não sei como continuei a escrever notas sem assinatura todas as tardes durante mais de uma semana, sem que ninguém me falasse de emprego nem de ordenado. Nas tertúlias de descanso, os redactores tratavam‑me como um dos seus e de facto era‑o sem imaginar até que ponto.

A secção «Dia a dia», nunca assinada, era encabeçada com rotina por D. Guillermo Cano com uma nota política. Numa ordem estabelecida pela direcção, ia depois a nota com tema livre de Gonzalo González, que além disso se encarregava da secção mais inteligente e popular do jornal ‑ «Preguntas y respuestas» ‑ onde resolvia qualquer dúvida dos leitores com o pseudónimo Gog, não por causa de Giovanni Papini mas pelo seu próprio nome. A seguir, publicavam as minhas notas e em muito raras ocasiões alguma nota especial de Eduardo Zalamea, que ocupava todos os dias o melhor espaço da primeira página ‑ «La ciudad y el mundo» ‑ com o pseudónimo Ulises, não por Homero ‑ como costumava frisar ‑ mas por James Joyce.

Álvaro Mutis tinha de fazer uma viagem de trabalho a Port‑au‑Prince nos primeiros dias do novo ano e convidou‑me a acompanhá‑lo. Haiti era nessa época o país dos meus sonhos, depois de ter lido O Reino Deste Mundo, de Alejo Carpentier. Ainda não lhe respondera a 18 de Fevereiro, quando escrevi uma nota sobre a rainha‑mãe de Inglaterra, perdida na solidão do imenso Palácio de Buckingham. Chamou‑me a atenção que a publicassem no primeiro lugar de «Dia a dia» e tivesse sido comentada com agrado nos nossos escritórios. Nessa noite, numa festa de poucos em casa do chefe de redacção, José Salgar, Eduardo Zalamea fez um comentário ainda mais entusiasta. Algum benévolo indiscreto disse‑me mais tarde que essa opinião dissipara as últimas reticências para que a direcção me fizesse a oferta formal de um emprego fixo.

No dia seguinte, muito cedo, telefonou‑me Álvaro Mutis do seu escritório para me dar a triste notícia de que estava cancelada a viagem ao Haiti. O que não me disse foi que decidira isso por uma conversa casual com Guillermo Cano, em que este lhe pediu de todo o coração que não me levasse a Port‑au‑Prince. Álvaro, que também não conhecia o Haiti, quis saber o motivo. «Pois quando o conheceres ‑ disse Guillermo ‑ vais entender que aquele é o lugar que mais pode agradar a Gabo no mundo.» E rematou a tarde com uma verónica magistral:

‑ Se Gabo vai ao Haiti, nunca mais volta.

Álvaro entendeu, cancelou a viagem e deu‑mo a conhecer como uma decisão da sua empresa. Portanto nunca conheci Port‑au‑Prince, mas não soube os motivos reais até há muito poucos anos, quando Álvaro mos contou em mais uma das nossas intermináveis rememorações de avós. Guillermo, por seu lado, uma vez que me teve amarrado com um contrato ao jornal, repetiu‑me durante anos que pensasse na grande reportagem do Haiti, mas nunca pude ir nem lhe disse porquê.

Nunca me passara pela mente a ilusão de ser redactor do quadro de El Espectador. Entendia que publicassem os meus contos devido à escassez e à pobreza do género na Colômbia, mas a redacção diária num vespertino era um desafio bem diferente para alguém pouco batido no jornalismo de choque.

Com meio século de idade, criado numa casa alugada e nas máquinas que sobravam de El Tiempo ‑ um jornal rico, poderoso e prepotente ‑, El Espectador era um modesto vespertino de dezasseis páginas muito densas, mas os seus cinco mil exemplares mal contados eram arrancados aos vendedores quase às portas das oficinas e lidos em meia hora nos cafés taciturnos da cidade velha. Eduardo Zalamea Borda em pessoa declarara através da BBC de Londres que era o melhor jornal do mundo. Mas o mais comprometedor não era a declaração em si, mas o facto de que quase todos os que o faziam e muitos dos que o liam estavam convencidos de que era verdade.

Devo confessar que o coração me deu um salto no dia seguinte ao cancelamento da viagem ao Haiti, quando Luis‑Gabriel Cano, o gerente‑geral, me chamou ao seu gabinete. A entrevista, com todo o seu formalismo, não demorou cinco minutos. Luis Gabriel tinha uma reputação de homem carrancudo, generoso como amigo e tacanho como bom gerente mas pareceu‑me e continuou a parecer‑me sempre muito concreto e cordial. A sua proposta em termos solenes foi que ficasse no jornal como redactor do quadro para escrever sobre informação geral, notas de opinião e o que fosse necessário nos apertos de última hora, com um ordenado mensal de novecentos pesos. Fiquei sem ar. Quando o recuperei, tornei a perguntar‑lhe quanto e repetiu‑mo letra por letra: novecentos. Foi tão grande a minha impressão que uns meses depois, falando disto numa festa, o meu querido Luis Gabriel me revelou que tinha interpretado a minha surpresa como um gesto de recusa. A última dúvida fora expressa por D. Gabriel, devido a um receio bem fundado: «Está tão magrinho e pálido que nos pode morrer no escritório.» Assim ingressei como redactor do quadro em El Espectador, onde consumi a maior quantidade de papel da minha vida em menos de dois anos.

Foi um acaso feliz. A instituição mais temível do jornal era D. Gabriel Cano, o patriarca, que se constituiu por determinação própria o inquisidor implacável da redacção. Lia com a sua lupa milimétrica até a vírgula menos pensada da edição diária, assinalava com tinta vermelha os tropeções de cada artigo e exibia num quadro os recortes castigados com os seus comentários demolidores. O quadro impôs‑se desde o primeiro dia como «O Muro da Infâmia» e não me lembro de um redactor que tivesse escapado à sua pluma sangrenta.

A promoção espectacular de Guillermo Cano como director de El Espectador aos vinte e três anos não parecia ser o fruto prematuro dos seus méritos pessoais mas antes o cumprimento de uma predestinação que estava escrita desde antes do seu nascimento. Por isso a minha primeira surpresa foi verificar que era na verdade o director, quando muitos pensávamos de fora que não era mais do que um filho obediente. O que mais me chamou a atenção foi a rapidez com que reconhecia a notícia.

Às vezes tinha que enfrentar todos, mesmo sem muitos argumentos, até que conseguia convencê‑los da sua verdade. Era uma época em que o ofício não era ensinado nas universidades mas aprendido na tarimba, a respirar tinta de impressão, e El Espectador tinha os melhores mestres, de bom coração mas de mão dura. Guillermo Cano começara ali desde as primeiras letras, com notas taurinas tão severas e eruditas que a sua vocação dominante não parecia ser de jornalista mas de novilheiro. Portanto a experiência mais dura da sua vida deve ter sido ver‑se elevado, da noite para a manhã, sem escalões intermédios, de estudante primíparo a mestre máximo. Ninguém que não o conhecesse de perto poderia vislumbrar, por trás das suas maneiras suaves e um pouco evasivas, a terrível determinação do seu carácter. Com a mesma paixão se empenhou em batalhas amplas e perigosas, sem nunca se deter ante a certeza de que mesmo por trás das causas mais nobres se pode ocultar a morte.

Não voltei a conhecer ninguém mais refractário à vida pública, mais renitente às honras pessoais, mais esquivo às adulações do poder. Era homem de poucos amigos, mas os poucos eram muito bons e senti‑me um deles desde o primeiro dia. Talvez tenha contribuído para isso o facto de ser um dos mais novos numa sala de redacção de veteranos batidos, o que criou entre nós dois um sentido da cumplicidade que não esmoreceu nunca. O que essa amizade teve de exemplar foi a sua capacidade de prevalecer sobre as nossas contradições. Os desacordos políticos eram muito profundos e tornaram‑se cada vez mais à medida que se decompunha o mundo, mas sempre soubemos encontrar um território comum onde pudéssemos continuar a lutar juntos pelas causas que nos pareciam justas.

A sala de redacção era enorme, com secretárias de ambos os lados e um ambiente presidido pelo bom humor e a piada dura. Ali estava Darío Bautista, uma rara espécie de contra‑ministro das Finanças, que desde o primeiro canto dos galos se dedicava a amargurar a aurora dos mais altos funcionários com as cabalas quase sempre certeiras de um futuro sinistro. Ali estava o redactor judicial, Felipe González Toledo, um repórter de nascença que muitas vezes se antecipou à investigação oficial na arte de desfazer um imbróglio e esclarecer um crime. Guillermo Lanao, que controlava vários ministérios, conservou o segredo de ser criança até a mais terna velhice. Rogelio Echavarría, um poeta dos grandes, responsável pela edição matinal, que nunca vimos à luz do dia. O meu primo Gonzalo González, com uma perna engessada devido a um mau jogo de futebol, tinha que estudar para responder a perguntas sobre tudo e acabou por tornar‑se especialista em tudo. Apesar de ter sido na Universidade um futebolista de primeira linha, tinha uma fé inabalável no estudo teórico de qualquer coisa acima da experiência. Deu‑nos a demonstração máxima no campeonato de bowling dos jornalistas, quando se dedicou a estudar num manual as leis físicas do jogo em vez de praticar como nós nas pistas até ao amanhecer, e foi o campeão do ano.

Com semelhante grupo, a sala de redacção era um eterno recreio, sempre sujeito ao lema de Darío Bautista ou Felipe González Toledo: «Quem se prostitui, fode‑se.» Todos conhecíamos os temas uns dos outros e ajudávamo‑nos até onde pedíamos ou se podíamos. Era tal a participação comum que quase se pode dizer que trabalhávamos em voz alta. Mas quando as coisas se tornavam duras, nem se ouvia respirar. Do último gabinete, atravessado no fundo do salão, comandava José Salgar, que costumava percorrer a redacção, informando e informando‑se de tudo, enquanto desoprimia a alma com a sua terapia de malabarista.

Creio que a tarde em que Guillermo Cano me levou de mesa em mesa ao longo do salão para me apresentar em sociedade foi a prova de fogo para a minha invencível timidez. Perdi a fala e desarticularam‑se‑me os joelhos quando Darío Bautista bramou, sem olhar para ninguém, com a sua temível voz de trovão:

‑ Chegou o génio!

Não me ocorreu nada melhor senão dar uma meia volta teatral com o braço estendido para todos e dizer‑lhes a coisa menos engraçada que me saiu da alma:

‑ Para os servir.

Ainda sofro o impacto da assobiadela geral, mas também sinto o alívio dos abraços e das boas palavras com que cada um me deu as boas‑vindas. Desde esse instante, fui mais um daquela comunidade de tigres caritativos, com uma amizade e um espírito de corpo que nunca decaiu. Toda a informação de que precisasse para uma nota, por mínima que fosse, solicitava‑a ao redactor correspondente e nunca me faltou na devida hora.

Recebi de Guillermo Cano a minha primeira grande lição de repórter e viveu‑a a redacção em peso numa tarde em que caiu sobre Bogotá um aguaceiro que a manteve em estado de dilúvio universal durante três horas sem tréguas. A torrente de águas revoltas da Avenida Jiménez de Quesada arrastou tudo o que encontrava à sua passagem no declive dos cerros e deixou nas ruas um rasto de catástrofe. Os automóveis de toda a espécie e os transportes públicos ficaram paralisados onde os surpreendeu a emergência e milhares de transeuntes refugiaram‑se aos tropeções nos edifícios inundados até que não houve lugar para mais. Nós, os redactores do jornal, surpreendidos pelo desastre no momento do fecho, contemplávamos o triste espectáculo das janelas sem sabermos o que fazer como meninos castigados com as mãos nos bolsos. De repente Guillermo Cano pareceu despertar de um sono sem fundo, voltou‑se para a redacção paralisada e gritou:

‑ Este aguaceiro é notícia!

Foi uma ordem não formulada que cumprimos de imediato. Corremos para os nossos postos de combate para conseguirmos pelo telefone os dados atropelados que nos indicava José Salgar a fim de escrevermos aos pedaços, entre todos, a reportagem do aguaceiro do século. As ambulâncias e radiopatrulhas chamadas para casos urgentes ficaram imobilizadas pelos veículos engarrafados no meio das ruas. As canalizações domésticas estavam bloqueadas pelas águas e não bastou a totalidade do corpo de bombeiros para resolver a emergência. Bairros inteiros tiveram que ser evacuados à força devido à ruptura de uma represa urbana. Noutros rebentaram os esgotos. Os passeios estavam ocupados por idosos inválidos, doentes e crianças asfixiadas. No meio do caos, cinco proprietários de botes a motor para pescar aos fins‑de‑semana organizaram um campeonato na Avenida Caracas, a mais estrangulada da cidade. Estes dados, recolhidos no momento, eram distribuídos por José Salgar aos redactores e nós elaborávamo‑los para a edição especial improvisada no momento. Os fotógrafos ensopados, ainda com os impermeáveis, revelavam as fotografias a quente. Pouco antes das cinco, Guillermo Cano escreveu a síntese magistral de um dos aguaceiros mais dramáticos de que houve memória na cidade.

Quando escampou por fim, a edição improvisada de El Espectador circulou como todos os dias, apenas com uma hora de atraso.

A minha relação inicial com José Salgar foi a mais difícil, mas sempre criativa como nenhuma outra. Creio que ele tinha o problema contrário ao meu: estava sempre a tentar que os seus repórteres de serviço dessem o dó de peito, enquanto eu ansiava que me integrasse no todo. Mas os meus outros compromissos com o jornal mantinham‑me preso e já não me restavam senão as horas dos domingos. Parece‑me que Salgar me deitou o olho para repórter, enquanto os outros mo tinham deitado para o cinema, os comentários editoriais e os assuntos culturais, porque sempre fora referido como contista. Mas o meu sonho era ser repórter desde os primeiros passos na costa e sabia que Salgar era o melhor mestre, mas fechava‑me as portas talvez com a esperança de que eu as derrubasse para entrar à força. Trabalhávamos muito bem, cordiais e dinâmicos, e de cada vez que lhe entregava um material, escrito de acordo com Guillermo Cano e mesmo com Eduardo Zalamea, aprovava‑o sem reticências mas não perdoava o ritual. Fazia o gesto árduo de desrolhar uma garrafa à força e dizia‑me mais a sério do que ele próprio parecia crer:

‑ Torça o pescoço ao cisne (Palavra de ordem dos escritores do início do século, que se opunham aos ouropéis modernistas. Sendo o cisne um tema recorrente de uma poesia demasiado idealizada, «torcer‑lhe o pescoço» era ser directo e acabar com essa literatura de cisnes e princesas. (N. T.)).

No entanto, nunca foi agressivo. Antes pelo contrário: um homem cordial, forjado a fogo vivo, que subira pela escada do bom serviço, desde distribuir o café nas oficinas aos catorze anos até se transformar no chefe de redacção com mais autoridade profissional no país. Creio que não me podia perdoar que me desperdiçasse em malabarismos líricos, num país onde faziam falta tantos repórteres de choque. Eu pensava, pelo contrário, que nenhum género de imprensa era mais adequado do que a reportagem para expressar a vida quotidiana. No entanto, hoje sei que a teimosia com que ambos procurávamos fazê‑lo foi o melhor aliciante que tive para realizar o sonho esquivo de ser repórter.

A ocasião saltou‑me ao caminho às onze horas e vinte minutos da manhã de 9 de Junho de 1954, quando vinha de visitar um amigo na prisão Modelo de Bogotá. Tropas do exército, armadas como para uma guerra, mantinham em respeito uma multidão estudantil na Carrera Séptima, a dois quarteirões da mesma esquina em que seis anos antes tinham assassinado Jorge Eliécer Gaitán. Era uma manifestação de protesto pela morte de um estudante no dia anterior, por efectivos do Batalhão Colômbia treinados para a Guerra da Coreia, e o primeiro choque de rua de civis contra o governo das Forças Armadas. De onde eu estava apenas se ouviam os gritos da discussão entre os estudantes que tentavam prosseguir até ao Palácio Presidencial e os militares que os impediam. No meio da multidão, não conseguimos entender o que gritavam, mas a tensão percebia‑se no ar. De repente, sem qualquer aviso, ouviu‑se uma rajada de metralhadora e outras duas a seguir. Vários estudantes e alguns transeuntes foram mortos de imediato. Os sobreviventes que tentaram levar os feridos ao hospital foram impedidos a coronhadas de espingarda. A tropa evacuou a zona e fechou as ruas. Na fuga desordenada, revivi em alguns segundos todo o horror do 9 de Abril, à mesma hora e no mesmo lugar.

Subi quase a correr os três íngremes quarteirões para o edifício de El Espectador e encontrei a redacção em pé de guerra. Contei, sufocado, o que tinha podido ver no local da matança, mas o que menos sabia estava já a escrever pelo ar a primeira crónica sobre a identidade dos nove estudantes mortos e o estado dos feridos nos hospitais. Tinha a certeza que me mandariam contar a confusão, por ter sido o único que a vira, mas Guillermo Cano e José Salgar estavam já de acordo em que devia ser um relatório colectivo, no qual cada um pusesse a sua parte. O redactor responsável, Felipe González Toledo, dar‑lhe‑ia a unidade final.

‑ Tem calma ‑ disse‑me Felipe, preocupado com a minha desilusão. ‑ As pessoas sabem que aqui trabalhamos todos em tudo, mesmo que não seja assinado.

Por seu lado, Ulises consolou‑me com a ideia de que a nota editorial que eu devia escrever podia ser o mais importante por se tratar de um gravíssimo problema de ordem pública. Teve razão, mas foi uma nota tão delicada e tão comprometedora da política do jornal, que foi escrita a várias mãos nos níveis mais altos. Creio que foi uma lição justa para todos, mas a mim pareceu‑me desmoralizadora. Aquele foi o fim da lua‑de‑mel entre o governo das Forças Armadas e a imprensa liberal. Começara oito meses antes, com a tomada do poder pelo general Rojas Pinilla, que permitiu um suspiro de alívio ao país depois do banho de sangue de dois governos conservadores sucessivos, e durou até àquele dia. Para mim, foi também uma prova de fogo nos meus sonhos de repórter raso.

Pouco depois, foi publicada a fotografia do cadáver de um menino sem dono que não tinham podido identificar no anfiteatro de Medicina Legal e me pareceu igual à de outro menino desaparecido que fora publicada dias antes. Mostrei‑as ao chefe da secção judicial, Felipe González Toledo, e ele telefonou à mãe do primeiro menino, que ainda não tinha sido encontrado. Foi uma lição para sempre. A mãe do menino desaparecido esperava‑nos, a Felipe e a mim, no vestíbulo do anfiteatro. Pareceu‑me tão pobre e encolhida que fiz um esforço supremo do coração para que o cadáver não fosse o do seu filho. Na longa cave glacial, sob uma iluminação intensa havia umas vinte mesas dispostas em sequência com cadáveres como túmulos de pedra sob lençóis amarrotados. Seguimos os três o guarda parcimonioso até à penúltima mesa do fundo. Por baixo do extremo do lençol sobressaíam umas botitas tristes, com os protectores dos tacões muito gastos pelo uso. A mulher reconheceu‑as, ficou lívida, mas controlou‑se com um último esforço até que o guarda tirou o lençol com um revolutear de toureiro. O corpo, de uns nove anos, com os olhos abertos e atónitos, tinha a mesma roupa amarfanhada com que o encontraram, morto há vários dias, numa valeta do caminho. A mãe lançou um uivo e caiu no chão, aos gritos. Felipe levantou‑a, ajudou‑a a dominar‑se com murmúrios de consolo, enquanto eu me interrogava se tudo aquilo merecia ser o ofício com que eu sonhava. Eduardo Zalamea confirmou‑me que não. Também ele pensava que a crónica vermelha, tão arraigada nos leitores, era uma especialidade difícil que requeria uma índole própria e um coração a toda a prova. Nunca mais a tentei.

Outra realidade bem diferente forçou‑me a ser crítico de cinema. Nunca me tinha lembrado que o pudesse ser, mas no Teatro Olympia de D. António Daconte, em Aracataca, e depois na escola ambulante de Álvaro Cepeda, vislumbrara os elementos de base para escrever notas de orientação cinematográfica com um critério mais útil do que o habitual até então na Colômbia. Ernesto Volkening, um grande escritor e crítico literário alemão radicado em Bogotá desde a guerra mundial, transmitia pela Rádio Nacional um comentário sobre filmes de estreia, mas estava limitado a um auditório de especialistas. Havia outros comentaristas excelentes mas ocasionais em torno do livreiro catalão Luis Vicens, radicado em Bogotá desde a guerra espanhola. Foi ele que fundou o primeiro cine‑clube, em cumplicidade com o pintor Enrique Grau e o crítico Hernando Salcedo, e com o empenho da jornalista Gloria Valência de Castano Castillo, que teve o cartão número um. Havia no país um público imenso para os grandes filmes de acção e os melodramas, mas o cinema de qualidade estava circunscrito aos apreciadores cultos e os exibidores arriscavam‑se cada vez menos com filmes que duravam três dias em cartaz. Resgatar um público novo dessa multidão sem rosto requeria uma pedagogia difícil mas possível para promover uma clientela com acesso aos filmes de qualidade e ajudar os exibidores que queriam mas não conseguiam financiá‑los. O inconveniente maior é que estes mantinham sobre a imprensa a ameaça de suspender os anúncios de cinema ‑ que eram um rendimento substancial para os jornais ‑ como represália pela crítica adversa. El Espectador foi o primeiro a assumir o risco e encomendou‑me a tarefa de comentar as estreias da semana, mais como uma cartilha elementar para interessados do que como um alarde pontifical. Uma precaução tomada de comum acordo foi que tivesse sempre o meu passe gratuito intacto, como prova de que entrava com bilhete comprado na bilheteira.

As primeiras notas tranquilizaram os exibidores porque comentavam filmes de uma boa mostra de cinema francês. Entre eles, Puccini, uma extensa recapitulação da vida do grande músico; Retrato de Mulher, que era a história bem contada da cantora Grace Moore, e Sobre o Céu de Paris, uma comédia pacífica de Julien Duvivier. Os empresários que encontrávamos à saída do cinema manifestavam‑nos a sua complacência pelas nossas notas críticas. Álvaro Cepeda, pelo contrário, despertou‑me às seis da manhã, de Barranquilla, quando soube da minha audácia.

‑ Como lhe passa pela cabeça criticar filmes sem autorização minha, carago! ‑ gritou‑me, morto de riso, ao telefone.

‑ Bruto como você é para o cinema!

Transformou‑se em meu assistente constante, como é evidente, embora nunca tivesse estado de acordo com a ideia de que não se tratava de fazer escola mas de orientar um público elementar sem formação académica. A lua‑de‑mel com os empresários também não foi tão doce como pensávamos a princípio. Quando enfrentámos o cinema comercial puro e simples, até os mais compreensivos se queixaram da dureza dos nossos comentários. Eduardo Zalamea e Guillermo Cano tiveram a habilidade suficiente para os distrair pelo telefone, até aos finais de Abril, quando um exibidor com manias de líder nos acusou numa carta aberta de estarmos a amedrontar o público para prejudicar os seus interesses. Pareceu‑me que o nó do problema era que o autor da carta não conhecia o significado da palavra amedrontar, mas senti‑me à beira da derrota porque não julguei possível que, na crise de crescimento em que estava o jornal, D. Gabriel Cano renunciasse aos anúncios de cinema pelo puro prazer estético. No mesmo dia em que foi recebida a carta, convocou os filhos e Ulises para uma reunião urgente, e dei como certo que a secção ficaria morta e sepultada. No entanto, ao passar em frente da minha secretária depois da reunião, D. Gabriel disse‑me sem precisar o tema e com uma malícia de avô:

‑ Está descansado, homónimo.

No dia seguinte apareceu em «Dia a dia» a resposta ao produtor, escrita por Guillermo Cano num deliberado estilo doutoral, e cujo final dizia tudo: «Não se amedronta o público e muito menos se prejudicam os interesses de ninguém ao publicar na imprensa uma crítica cinematográfica séria e responsável, que se assemelhe um pouco à de outros países e rompa com as velhas e prejudiciais pautas do elogio desmedido, tanto ao bom como ao mau.» Não foi a única carta nem a nossa única resposta. Funcionários dos cinemas abordavam‑nos com comentários ácidos e recebíamos cartas contraditórias de leitores desnorteados. Mas foi tudo inútil: a coluna sobreviveu até que a crítica de cinema deixou de ser ocasional no país e se transformou numa rotina da imprensa e da rádio.

A partir de então, em pouco menos de dois anos, publiquei setenta e cinco notas críticas, às quais haveria que acrescentar as horas gastas a ver os filmes. Além de umas seiscentas notas editoriais, uma notícia assinada ou por assinar de três em três dias e pelo menos oitenta reportagens, entre assinadas e anónimas. As colaborações literárias foram publicadas desde então no «Magazine Dominical», do mesmo jornal, entre elas vários contos e a série completa de «La Sierpe», que fora interrompida na revista Lámpara. por discrepâncias internas.

Foi a primeira bonança da minha vida, mas sem tempo para a desfrutar. O apartamento que aluguei, mobilado e com serviço de lavandaria, não era mais do que um quarto de dormir com casa de banho, telefone e pequeno‑almoço na cama, e uma janela grande com a eterna chuvinha da cidade mais triste do mundo. Só o usei para dormir desde as três da madrugada, ao fim de uma hora de leitura, até aos noticiários da manhã na rádio para me orientar com a actualidade do novo dia.

Não deixei de pensar com certa inquietação que era a primeira vez que tinha um lugar fixo e próprio para viver, mas sem tempo sequer para me dar conta disso. Estava tão ocupado em orientar a minha nova vida que o meu único gasto notável foi o bote a remos que no fim de cada mês mandei com pontualidade à família. Só hoje me dou conta que mal tive tempo de me ocupar da minha vida privada. Talvez porque sobrevivia dentro de mim a ideia das mães caribenhas de que as bogotanas se entregavam sem amor aos costenhos apenas para cumprirem o sonho de viver junto ao mar. No entanto, no meu primeiro apartamento de solteiro em Bogotá, consegui‑o sem perigo, desde que perguntei ao porteiro se eram permitidas as visitas de amigas da meia‑noite e ele me deu a sua resposta sábia:

‑ É proibido, senhor, mas eu não vejo o que não devo. No fim de Julho, sem aviso prévio, José Salgar estacou em frente da minha mesa enquanto escrevia uma nota editorial e olhou‑me com um longo silêncio. Parei a meio de uma frase e perguntei‑lhe, intrigado: ‑ Qual é o problema?

Ele nem sequer pestanejou, tocando um bolero invisível com o seu lápis de cor, e com um sorriso diabólico cuja intenção se notava demasiado. Explicou‑me sem que lho perguntasse que não me autorizara a reportagem da matança de estudantes na Carrera Séptima porque era uma informação difícil para um principiante. Em contrapartida, ofereceu‑me por sua conta e risco o diploma de repórter, de uma maneira directa mas sem o menor espírito de desafio, se fosse capaz de lhe aceitar uma proposta mortal:

‑ Por que não vai a Medellín e nos conta o que carago se passou lá?

Não foi fácil entendê‑lo, porque me estava a falar de algo que tinha sucedido há mais de duas semanas, o que permitia suspeitar que fosse uma notícia sem oportunidade nem salvação. Sabia‑se que a 12 de Julho, pela manhã, houvera um aluimento de terras em La Media Luna, um lugar abrupto a oriente de Medellín, mas o sensacionalismo da imprensa, a desordem das autoridades e o pânico das vítimas tinham causado umas confusões administrativas e humanitárias que não deixavam ver a realidade. Salgar não me pediu que tentasse descobrir o que se tinha passado até onde fosse possível, ordenando‑me sim que reconstruísse toda a verdade no terreno, e nada mais do que a verdade, no mínimo de tempo. No entanto, algo no seu modo de falar me fez pensar que por fim me dava rédea solta.

Até então, a única coisa que o mundo inteiro sabia de Medellín era que tinha ali morrido Carlos Gardel, carbonizado numa catástrofe aérea. Eu sabia que era uma terra de grandes escritores e poetas e que lá ficava o Colégio de La Presentación onde Mercedes Barcha começara a estudar naquele ano. Ante uma missão tão delirante, já não me parecia nada irreal reconstruir peça por peça a hecatombe de uma montanha. Aterrei portanto em Medellín às onze da manhã, com uma tempestade tão pavorosa que consegui ter a ilusão de ser a última vítima da derrocada.

Deixei a mala no Hotel Nutibara, com roupa para dois dias e uma gravata de emergência, e lancei‑me à rua numa cidade idílica ainda encapotada pelos saldos da borrasca. Álvaro Mutis acompanhou‑me para me ajudar a ultrapassar o medo do avião e deu‑me pistas de gente bem colocada na vida da cidade. Mas a verdade assustadora é que não fazia a mínima ideia por onde começar. Caminhei ao acaso pelas ruas radiantes sob a farinha de ouro de um sol esplêndido depois da tempestade e ao fim de uma hora tive que me refugiar no primeiro armazém porque tornou a chover por cima do sol. Comecei então a sentir dentro do peito o primeiro adejar do pânico. Procurei reprimi‑lo com a fórmula mágica do meu avô no meio do combate, mas o medo do medo acabou por derrubar‑me o moral. Apercebi‑me que nunca seria capaz de fazer o que me tinham encomendado e não tivera a coragem de o dizer. Então compreendi que a única coisa sensata era escrever uma carta de agradecimento a Guillermo Cano e regressar a Barranquilla, ao estado de graça em que me encontrava há seis meses.

Com o imenso alívio de ter saído do inferno, tomei um táxi para regressar ao hotel. O noticiário do meio‑dia fez um longo comentário a duas vozes, como se os aluimentos tivessem sido ontem. O motorista disparatou quase aos gritos contra a negligência do governo e a má utilização dos auxílios às vítimas e de certa forma, senti‑me culpado da sua justa raiva. Mas nessa altura voltara a escampar e o ar tornou‑se diáfano e fragrante devido à explosão de flores no Parque Berrío. De repente, não sei porquê, senti o aguilhão da loucura.

‑ Façamos uma coisa ‑ disse ao motorista: ‑ Antes de passar pelo hotel, leve‑me ao local das derrocadas.

‑ Mas lá não há nada que ver ‑ disse‑me ele. ‑ Só as velas acesas e as cruzinhas para os mortos que não puderam desenterrar.

Dei‑me assim conta de que tanto as vítimas como os sobreviventes eram de diversos pontos da cidade e que a tinham atravessado em massa para resgatar os corpos dos caídos no primeiro aluimento. A tragédia grande foi quando os curiosos se amontoaram no local e outra parte da montanha deslizou numa avalanche arrasadora. De modo que os únicos que puderam contar a história foram os poucos que escaparam das derrocadas sucessivas e estavam vivos no outro extremo da cidade.

‑ Entendo ‑ disse ao motorista, procurando dominar o tremor da voz. ‑ Leve‑me aonde estão os vivos.

Deu meia volta a meio da rua e disparou em sentido oposto. O seu silêncio não só devia ser o resultado da velocidade de agora, mas também a esperança de me convencer das suas razões.

O princípio do fio eram dois miúdos de oito e onze anos que tinham saído de casa para cortar lenha na terça‑feira, 1 de Julho, pelas sete da manhã. Tinham‑se afastado uns cem metros quando sentiram o estrondo da avalanche de terra e rochas que se precipitava sobre eles pelo flanco do morro. Conseguiram escapar à justa. Na casa ficaram presas as três irmãs mais novas com a mãe e um irmãozinho recém‑nascido. Os únicos sobreviventes foram os pequenos que acabavam de sair e o pai de todos, que saíra cedo para o seu trabalho de areeiro, a dez quilómetros de casa.

O lugar era um ermo inóspito sobre a estrada de Medellín para Rionegro, que às oito da manhã não tinha habitantes para haver mais vítimas. As emissoras de rádio difundiram a notícia exagerada com tantos pormenores sangrentos e clamores urgentes que os primeiros voluntários chegaram antes dos bombeiros. Ao meio‑dia houve outras duas derrocadas sem vítimas, que aumentaram o nervosismo geral, e uma emissora local instalou‑se a transmitir em directo do local do desastre. A essa hora estava ali a quase totalidade dos habitantes dos povoados e dos bairros vizinhos, mais os curiosos de toda a cidade, atraídos pelos clamores da rádio, e os passageiros que saíam dos autocarros interurbanos, mais para estorvar do que para ajudar. Além dos poucos corpos que tinham ficado soterrados de manhã, havia nessa altura outros trezentos dos sucessivos aluimentos. No entanto, prestes a anoitecer, mais de dois mil espontâneos continuavam a prestar aturdidos auxílios aos sobreviventes. Ao entardecer não restava espaço fácil nem para respirar. A multidão era densa e caótica às seis, quando se precipitou outra avalanche arrasadora de seiscentos mil metros cúbicos, com um estrondo colossal, que causou tantas vítimas como se tivesse sido no Parque Berrío de Medellín. Uma catástrofe tão rápida que o doutor Javier Mora, secretário das Obras Públicas do município, encontrou entre os escombros o cadáver de um coelho que não teve tempo de fugir. Duas semanas depois, quando cheguei ao local, apenas setenta e quatro cadáveres tinham sido resgatados e numerosos sobreviventes estavam a salvo.

A maioria não fora vítima das derrocadas mas da imprudência e da solidariedade desordenada. Como nos terramotos, também não foi possível calcular o número de pessoas com problemas que aproveitaram a ocasião para desaparecer sem deixar vestígios, para escapar a dívidas ou mudar de mulher. No entanto, também a boa sorte teve a sua parte, pois uma investigação posterior demonstrou que desde o primeiro dia, enquanto se tentavam os resgates esteve prestes a desprender‑se uma massa de rochas capaz de gerar outra avalanche de cinquenta mil metros cúbicos. Mais de quinze dias depois, com a ajuda dos sobreviventes recuperados, pude reconstruir a história que não teria sido possível no momento pelas inconveniências e embustes da realidade.

A minha tarefa reduziu‑se a resgatar a verdade perdida num imbróglio de suposições contrapostas e reconstruir o drama humano na ordem por que tinha ocorrido e à margem de qualquer cálculo político e sentimental. Álvaro Mutis pusera‑me no caminho certo quando me mandou ir ter com a publicista Cecilia Warren, que me ordenou os dados com que regressei do local do desastre. A reportagem foi publicada em três capítulos e teve pelo menos o mérito de despertar o interesse, com duas semanas de atraso, por uma notícia esquecida e pôr ordem no descontrolo da tragédia.

No entanto, a minha melhor recordação daqueles dias não é o que fiz mas o que estive quase a fazer, graças à imaginação delirante do meu velho compincha de Barranquilla, Orlando Rivera, Figurita, com quem me encontrei de repente numa das poucas pausas da investigação. Vivia em Medellín há já alguns meses e era feliz, recém‑casado com Sol Santamaría, uma freira encantadora e de espírito livre que ajudara a sair de um convento de clausura depois de sete anos de pobreza, obediência e castidade. Numa bebedeira das nossas, Figurita revelou‑me que tinha preparado com a mulher, e por sua conta e risco, um plano magistral para tirar Mercedes Barcha do seu internato. Um pároco amigo, famoso pelas suas artes de casamenteiro, estaria pronto para nos casar a qualquer hora. A única condição, como é evidente, era que Mercedes estivesse de acordo, mas não descobrimos maneira de lho perguntar dentro das quatro paredes do seu cativeiro. Hoje, mais do que nunca, me mortifica a fúria de não ter tido coragem para viver aquele drama de folhetim. Mercedes, por seu lado, não ficou a saber do plano senão cinquenta e tantos anos depois, quando o leu nos rascunhos deste livro.

Foi uma das últimas vezes que vi o Figurita. No Carnaval de 1960, disfarçado de tigre cubano, escorregou da carroça que o levava de volta a sua casa de Baranoa depois da batalha de flores e partiu a nuca no pavimento atapetado com os restos e desperdícios do Carnaval.

Na segunda noite do meu trabalho sobre as derrocadas de Medellín, esperavam‑me no hotel dois redactores do diário El Colombiano ‑ tão jovens que o eram mais do que eu ‑ decididos a fazer‑me uma entrevista pelos meus contos publicados até então. Tiveram dificuldade em convencer‑me, porque já nessa altura tinha e continuo a ter um preconceito talvez injusto contra as entrevistas, entendidas como uma sessão de perguntas e respostas onde as duas partes fazem esforços para manter uma conversa reveladora. Sofri esse preconceito nos dois jornais em que trabalhei e sobretudo na Crónica, onde tentei contagiar os colaboradores com as minhas reticências. No entanto, concedi aquela primeira entrevista para El Colombiano e fui de uma sinceridade suicida.

Hoje é incontável o número de entrevistas de que fui vítima ao longo de cinquenta anos e em meio mundo e ainda não consegui de maneira nenhuma convencer‑me da eficácia do género.

A imensa maioria das que não pude evitar sobre qualquer tema devem ser consideradas como parte importante das minhas obras de ficção, porque são apenas isso: fantasias sobre a minha vida. Por outro lado, considero‑as impossíveis de avaliar, impublicáveis a não ser como material de base para a reportagem, que aprecio como o género máximo do melhor ofício do mundo.

De todas as formas, os tempos não eram para brincadeiras. O governo do general Rojas Pinilla, já em conflito aberto com a imprensa e grande parte da opinião pública, coroara o mês de Setembro com a determinação de dividir o remoto e esquecido departamento do Choco entre os seus três prósperos vizinhos: Antioquia, Caldas e Valle. A partir de Medellín, só se podia chegar a Quibdó, a capital, por uma estrada de sentido único e em tão mau estado que eram precisas mais de vinte horas para cento e sessenta quilómetros. As condições de hoje não são melhores.

Na redacção do jornal dávamos como certo que não havia muito que fazer para impedir o esquartejamento decretado por um governo em más relações com a imprensa liberal. Primo Guerrero, o veterano correspondente de El Espectador em Quibdó, informou ao terceiro dia que uma manifestação popular de famílias inteiras, incluindo crianças, ocupara a praça principal com a determinação de permanecer ali ao sol e ao relento até que o governo desistisse do seu propósito. As primeiras fotografias das mães rebeldes com os filhos nos braços foram enfraquecendo com o passar dos dias devido aos estragos da vigília na população exposta à intempérie. Reforçávamos todos os dias na redacção estas notícias com notas editoriais ou declarações de políticos e intelectuais chocoanos (Chocoano ‑ natural de Choco. (N. T.)) residentes em Bogotá, mas o governo parecia decidido a ganhar pela indiferença. Ao fim de vários dias, no entanto, José Salgar aproximou‑se da minha secretária com o seu lápis de titereiro e sugeriu que fosse investigar o que estava a suceder na realidade em Choco. Tentei resistir com a pouca autoridade que ganhara pela reportagem de Medellín, mas não chegou para tanto. Guillermo Cano, que escrevia de costas para nós, gritou sem nos olhar:

‑ Vá, Gabo, que as de Choco são melhores do que as que você queria ver no Haiti!

De modo que fui sem sequer me interrogar como era possível escrever uma reportagem sobre uma manifestação de protesto que se negava à violência. Acompanhou‑me o fotógrafo Guillermo Sánchez, que há meses me atormentava com a cantilena de fazermos juntos reportagens de guerra. Farto de tanto o ouvir, gritara‑lhe:

‑ Qual guerra, caralho!

‑ Não se faça parvo, Gabo ‑ atirou‑me de chofre a verdade ‑, que a si mesmo ouço dizer a cada momento que este país está em guerra desde a Independência.

Na madrugada de terça‑feira, 21 de Setembro, apresentou‑se na redacção vestido mais como um guerreiro do que como um repórter fotográfico, com máquinas e sacos pendurados por todo o corpo, para irmos cobrir uma guerra amordaçada. A primeira surpresa foi que se chegava a Choco, desde antes de sair de Bogotá, por um aeroporto secundário sem apoios de qualquer tipo, entre escombros de camiões mortos e aviões enferrujados. O nosso, ainda vivo por artes de magia, era um dos Catalina lendários da Segunda Guerra Mundial, utilizado para carga por uma empresa civil. Não tinha cadeiras. O interior era despido e sombrio, com pequenas janelas nubladas e carregado de volumes de fibras para fabricar vassouras.

Éramos os únicos passageiros. O copiloto, em mangas de camisa, jovem e bem‑parecido como os aviadores de cinema indicou que nos sentássemos nos embrulhos de carga que lhe pareceram mais confortáveis. Não me reconheceu, mas eu sabia que tinha sido um beisebolista notável das ligas de La Matuna, em Cartagena.

A descolagem foi aterradora, mesmo para um passageiro tão batido como Guillermo Sánchez, pelo bramido atroador dos motores e o estrépito de ferro velho da fuselagem mas, uma vez estabilizado no céu diáfano da savana, deslizou com o brio de um veterano de guerra. No entanto, depois da escala de Medellín, surpreendeu‑nos um aguaceiro diluviano sobre uma selva emaranhada entre duas cordilheiras e tivemos que penetrar nele de frente. Vivemos então o que talvez muito poucos mortais tenham vivido: choveu dentro do avião pelas goteiras da fuselagem. O copiloto amigo, saltando por entre os volumes de vassouras, levou‑nos os jornais do dia para que os usássemos como guarda‑chuvas. Tapei com o meu até a cara, não tanto para me proteger da água como para que não me vissem chorar de terror.

Ao fim de umas duas horas de sorte e azar, o avião inclinou‑se sobre a esquerda, desceu em posição de ataque sobre uma selva maciça e deu duas voltas exploratórias sobre a praça principal de Quibdó. Guillermo Sánchez, preparado para captar do ar a manifestação exausta pelo desgaste das vigílias, apenas encontrou a praça deserta. O anfíbio desconjuntado deu uma última volta para verificar que não havia obstáculos vivos nem mortos no sereno rio Atrato e completou a aquatizagem feliz no calor do meio‑dia.

A igreja remendada com tábuas, os bancos de cimento sujos pelos pássaros e uma mula sem dono que mordiscava os ramos de uma árvore gigantesca eram os únicos sinais da existência humana na praça poeirenta e solitária que com nada se parecia tanto como com uma capital africana. O nosso primeiro propósito era fazer fotografias urgentes da multidão em pé de protesto e enviá‑las para Bogotá no avião de regresso, enquanto recolhíamos informações suficientes em primeira mão que pudéssemos transmitir por telégrafo para a edição do dia seguinte. Nada disso era possível, porque não aconteceu nada. Percorremos sem testemunhas a longa rua paralela ao rio, bordejada por lojas fechadas para o almoço e residências com varandas de madeira e telhados oxidados. Era o cenário perfeito, mas faltava o drama. O nosso bom colega Primo Guerrero, correspondente de El Espectador, fazia descontraído a sesta numa rede primaveril, sob a ramada de sua casa, como se o silêncio que o rodeava fosse a paz dos sepulcros. A franqueza com que nos explicou o seu embuste não podia ser mais objectiva. Depois das manifestações dos primeiros dias, a tensão decaíra por falta de temas. Montou‑se então uma mobilização de toda a povoação com técnicas teatrais, fizeram‑se algumas fotografias que não se publicaram por não serem muito credíveis e pronunciaram‑se os discursos patrióticos que com efeito abalaram o país, mas o governo permaneceu imperturbável. Primo Guerrero, com uma flexibilidade ética que talvez até Deus lhe tenha perdoado, manteve o protesto vivo na imprensa a pulso de telegramas.

O nosso problema profissional era simples: não tínhamos empreendido aquela expedição de Tarzan para informarmos que a notícia não existia. Em troca, tínhamos à mão os meios para que fosse certa e cumprisse o seu propósito. Primo Guerrero propôs então montar uma vez mais a manifestação portátil e a ninguém ocorreu uma ideia melhor. O nosso colaborador mais entusiasta foi o capitão Luis A. Cano, o novo governador nomeado pela renúncia irada do anterior, e teve a integridade de demorar o avião para que o jornal recebesse a tempo as fotografias quentes de Guillermo Sánchez. Foi assim que a notícia inventada por necessidade acabou por ser a única certa ampliada pela imprensa e pela rádio de todo o país e apanhada no ar pelo governo militar para salvar a face. Nessa mesma noite se iniciou uma mobilização geral dos políticos chocoanos ‑ alguns deles muito influentes em certos sectores do país ‑ e dois dias depois o general Rojas Pinilla declarou cancelada a sua própria determinação de dividir Choco em pedaços entre os seus vizinhos.

Guillermo Sánchez e eu não regressámos a Bogotá de imediato porque convencemos o jornal a que nos permitisse percorrer o interior do Choco para conhecermos a fundo a realidade daquele mundo fantástico. Ao cabo de dez dias de silêncio, quando entrámos curtidos pelo sol e caindo de sono na sala de redacção, José Salgar recebeu‑nos feliz mas na sua lei. ‑ Vocês sabem ‑ perguntou‑nos com a sua firmeza inabalável ‑ há quanto tempo acabou a notícia de Choco?

A pergunta fez‑me enfrentar pela primeira vez a condição mortal do jornalismo. Com efeito, ninguém mais voltara a interessar‑se por Choco desde que foi publicada a decisão presidencial de não o esquartejar. No entanto, José Salgar apoiou‑me no risco de cozinhar o que foi possível daquele peixe morto.

O que procurámos transmitir em quatro longos episódios foi a descoberta de outro país inconcebível dentro da Colômbia, do qual não tínhamos consciência. Uma pátria mágica, de selvas floridas e dilúvios eternos, onde tudo parecia uma versão inverosímil da vida quotidiana. A grande dificuldade para a construção de vias terrestres era uma enorme quantidade de rios indómitos, mas também não havia mais de uma ponte em todo o território. Encontrámos uma estrada de setenta e cinco quilómetros através da selva virgem, construída com custos enormes para pôr em comunicação a povoação de Itsmina com a de Yuto, mas que não passava por uma nem pela outra como represália do construtor pelos seus conflitos com os dois alcaides.

Numa das povoações do interior, o agente postal pediu‑nos que levássemos ao seu colega de Itsmina o correio de seis meses. Uma caixinha de cigarros nacionais custava ali trinta centavos, como no resto do país, mas quando se demorava a avioneta semanal de abastecimento, os cigarros aumentavam de preço por cada dia de atraso, até que a povoação se via forçada a fumar cigarros estrangeiros, que acabavam por ser mais baratos do que os nacionais. Um saco de arroz custava quinze pesos mais do que no sítio de cultivo porque era levado através de oitenta quilómetros de selva virgem no lombo de mulas que se agarravam como gatos às faldas da montanha. As mulheres das povoações mais pobres joeiravam ouro e platina nos rios enquanto os homens pescavam, e aos sábados vendiam aos caixeiros‑viajantes uma dúzia de peixes e quatro gramas de platina apenas por três pesos.

Tudo isto acontecia numa sociedade famosa pelas suas ânsias de estudar. Mas as escolas eram poucas e dispersas e os alunos tinham que viajar várias léguas todos os dias a pé e em canoa para ir e voltar. Algumas estavam tão superlotadas que num mesmo lugar eram usadas às segundas, quartas e sextas para os rapazes e às terças, quintas e sábados para as raparigas. Por força dos factos, eram as mais democráticas do país, porque o filho da lavadeira, que mal tinha que comer, ia à mesma escola que o filho do alcaide.

Muito poucos colombianos sabiam então que em pleno coração da selva chocoana se erguia uma das cidades mais modernas do país. Chamava‑se Andagoya, no cruzamento dos rios San Juan e Condoto, e tinha um sistema telefónico perfeito, cais para barcos e lanchas que pertenciam à própria cidade, de belas avenidas arborizadas. As casas, pequenas e limpas, com grandes espaços vedados e pitorescas escadarias de madeira no portal, pareciam semeadas na relva. No centro havia um casino com cabaré‑restaurante e um bar onde eram consumidas bebidas importadas a preço inferior ao do resto do país. Era uma cidade habitada por homens de todo o mundo, que tinham esquecido a nostalgia e viviam ali melhor do que na sua terra, sob a autoridade omnímoda do gerente local da Choco Pacífico. Pois Andagoya, na vida real, era um país estrangeiro de propriedade privada, cujas dragas saqueavam o ouro e a platina dos seus rios pré‑históricos e os levavam num barco próprio que seguia para o mundo inteiro sem controlo de ninguém pelas embocaduras do rio San Juan.

Esse era o Choco que quisemos revelar aos colombianos sem qualquer resultado, pois uma vez passada a notícia tudo voltou ao seu lugar e continuou a ser a região mais esquecida do país. Creio que a razão é evidente: a Colômbia foi desde sempre um país de identidade caribenha, aberto ao mundo pelo cordão umbilical do Panamá. A amputação forçosa condenou‑nos a ser o que hoje somos: um país de mentalidade andina, com as condições propícias para que o canal entre os dois oceanos não fosse nosso mas dos Estados Unidos.

O ritmo semanal da redacção teria sido mortal se não fosse porque às sextas‑feiras à tarde, à medida que nos libertávamos do trabalho, nos íamos concentrando no bar do Hotel Continental, no passeio da frente, para uma descompressão que costumava prolongar‑se até ao amanhecer. Eduardo Zalamea baptizou aquelas noites com um nome próprio: as «sextas‑feiras culturais». Era a minha única oportunidade de conversar com ele para não perder o comboio das novidades literárias do mundo, que mantinha em dia com a sua descomunal capacidade de leitor. Os sobreviventes naquelas tertúlias de álcoóis infinitos e desenlaces imprevisíveis ‑ além de dois ou três amigos eternos de Ulises ‑ éramos os redactores, que não nos assustávamos de destorcer o pescoço ao cisne até ao amanhecer.

Sempre me chamara a atenção que Zalamea não tivesse feito nunca qualquer observação sobre as minhas notas, embora muitas fossem inspiradas nas suas. No entanto, quando se estabeleceram as «sextas‑feiras culturais», deu rédea solta às suas ideias sobre o género. Confessou‑me que estava em desacordo com os critérios de muitas das minhas notas, mas não num tom de chefe ao seu discípulo e sim de escritor para escritor.

Outro refúgio frequente depois das sessões do cine‑clube eram os serões da meia‑noite no apartamento de Luis Vicens e sua mulher Nancy, a poucos quarteirões de El Espectador. Ele, colaborador de Marcel Colin Reval, chefe de redacção da revista Cinématographie française em Paris, trocara os sonhos de cinema pela boa profissão de livreiro na Colômbia por causa das guerras na Europa. Nancy comportava‑se como uma anfitriã mágica, capaz de aumentar para doze uma sala de jantar de quatro. Tinham‑se conhecido pouco depois de ele ter chegado a Bogotá, em 1937, num jantar familiar. Só havia na mesa um lugar ao lado de Nancy, que viu entrar horrorizada o último convidado, com o cabelo branco e uma pele de alpinista curtido pelo sol. «Que pouca sorte! ‑ pensou. ‑ Agora calhou‑me ao lado este polaco que nem espanhol deve saber.» Esteve quase a acertar no idioma, porque o recém‑chegado falava o castelhano num catalão cru cruzado com francês e ela era uma boyacense (Boyacense ‑ natural de Boyacá. (N. T.)) ressabiada e de língua solta.

Mas entenderam‑se tão bem desde o primeiro cumprimento que ficaram a viver juntos para sempre.

Os seus serões eram improvisados depois das grandes estreias de cinema num apartamento a abarrotar com uma mescla de todas as artes, onde não cabia nem um quadro mais dos pintores principiantes da Colômbia, alguns dos quais seriam famosos no mundo. Os seus convidados eram escolhidos entre a nata das artes e das letras e os do grupo de Barranquilla apareciam de vez em quando. Eu entrei como se fosse em casa própria desde o aparecimento da minha primeira crítica de cinema e quando saía do jornal antes da meia‑noite ia a pé os três quarteirões e obrigava‑os a fazerem noitada. A mestra Nancy, que além de cozinheira excelsa era uma casamenteira encarniçada, improvisava jantares inocentes para me ligar com as raparigas mais atraentes e livres do mundo artístico, e nunca me perdoou quando, aos vinte e oito anos, lhe confessei que a minha verdadeira vocação não era de escritor nem de jornalista mas de solteirão impenitente.

Álvaro Mutis, nos intervalos que lhe ficavam das suas viagens mundiais, completou pelo alto a minha entrada na comunidade cultural. Na sua condição de chefe de relações públicas da Esso Colombiana, organizava almoços nos restaurantes mais caros, com quem na realidade valia e pesava nas artes e nas letras, e muitas vezes com convidados de outras cidades do país. O poeta Jorge Gaitán Durán, que andava com a obsessão de fazer uma grande revista literária que custava uma fortuna, resolveu o caso em parte com os fundos de Álvaro Mutis para o fomento da cultura. Álvaro Castano Castillo e a mulher, Gloria Valência, tentavam fundar há anos uma emissora consagrada por completo à boa música e aos programas culturais ao alcance da mão. Todos gozávamos com eles pela irrealidade do seu projecto, menos Álvaro Mutis, que fez tudo o que pôde para os ajudar.

Assim, fundaram a emissora HJCK, « El mundo en Bogotá», com um transmissor de 500 vátios, que era o mínimo naquele tempo. Ainda não existia a televisão na Colômbia, mas Gloria Valência inventou o prodígio metafísico de fazer por rádio um programa de desfiles de modas.

O único repouso que me permitia naqueles tempos de vertigem foram as lentas tardes dos domingos em casa de Álvaro Mutis, que me ensinou a ouvir a música sem preconceitos de classe. Estendíamo‑nos no tapete ouvindo com o coração os grandes mestres sem especulações sábias. Foi a origem de uma paixão que começara na salita escondida da Biblioteca Nacional e que nunca mais esquecemos. Hoje, ouvi tanta música quanta consegui, sobretudo a romântica de câmara, que considero o apogeu das artes. No México, enquanto escrevia Cem Anos de Solidão ‑ entre 1965 e 1966 ‑, só tive dois discos que se gastaram de tanto serem ouvidos: os Prelúdios de Debussy e A hard day's night dos Beatles. Mais tarde, quando por fim tive em Barcelona quase tantos como sempre quis, pareceu‑me demasiado convencional a classificação alfabética e adoptei para minha comodidade privada a ordem por instrumentos: o violoncelo, que é o meu favorito, de Vivaldi a Brahms; o violino, desde Corelli até Schõnberg; o cravo e o piano, de Bach a Bartók. Até descobrir o milagre de que tudo o que soa é música, incluídos os pratos e os talheres no lava‑loiças, sempre que criem a ilusão de nos indicar por onde vai a vida.

A minha limitação era que não podia escrever com música porque prestava mais atenção ao que ouvia do que ao que escrevia, e ainda hoje assisto a muito poucos concertos porque sinto que na cadeira se estabelece uma espécie de intimidade um pouco impudica com vizinhos estranhos. No entanto, com o tempo e as possibilidades de ter boa música em casa, aprendi a escrever com um fundo musical de acordo com o que escrevo. Os nocturnos de Chopin para os episódios calmos ou os sextetos de Brahms para as tardes felizes. Em contrapartida, não tornei a ouvir Mozart durante anos, desde que me assaltou a ideia perversa de que Mozart não existe, porque quando é bom é Beethoven, e quando é mau é Haydn.

Nos anos em que evoco estas memórias, consegui o milagre de que nenhuma espécie de música me incomode para escrever, embora talvez não tenha consciência de outras virtudes, pois a maior surpresa foi‑me dada por dois músicos catalães, muito jovens e atentos, que julgavam ter descoberto afinidades surpreendentes entre O Outono do Patriarca, o meu sexto romance, e o Terceiro Concerto para Piano de Bela Bartók. É verdade que o ouvia sem piedade enquanto escrevia, porque me criava um estado de espírito muito especial e um pouco estranho, mas nunca pensei que me pudesse ter influenciado a ponto de se notar na minha escrita. Não sei como ficaram a saber daquela fraqueza os membros da Academia Sueca, que o colocaram como fundo na entrega do meu prémio. Agradeci‑o do fundo da alma, como é evidente, mas se me tivessem perguntado ‑ com toda a minha gratidão e o meu respeito por eles e por Bela Bartók ‑ teria gostado de alguma das romanzas naturais de Francisco el Hombre das festas da minha infância.

Não houve na Colômbia por aqueles anos um projecto cultural, um livro por escrever ou um quadro por pintar que não passasse antes pelo gabinete de Mutis. Fui testemunha do seu diálogo com um pintor jovem que tinha tudo pronto para fazer o seu périplo de rigor pela Europa, mas a quem faltava o dinheiro para a viagem. Álvaro não chegara sequer a ouvir‑lhe a história completa quando tirou da secretária o envelope mágico.

‑ Aqui está a passagem ‑ disse.

Eu assistia deslumbrado à naturalidade com que fazia estes milagres sem o mínimo alarde de poder. Por isso ainda me interrogo se não teve algo a ver com o pedido que me fez num cocktail o secretário da Asociación Colombiana de Escritores y Artistas, Oscar Delgado, para participar no concurso nacional de conto que estava prestes a ser declarado deserto. Disse‑o tão mal que a proposta me pareceu indecorosa, mas alguém que a ouviu explicou‑me que num país como o nosso não se podia ser escritor sem saber que os concursos literários são simples pantomimas sociais. «Até o Prémio Nobel», concluiu sem a menor malícia e, sem suspeitar, pôs‑me em guarda desde então para outra decisão descomunal que me saltou ao caminho vinte e sete anos depois.

Os jurados do concurso de conto eram Hernando Téllez, Juan Lozano y Lozano, Pedro Gómez Valderrama e outros três escritores e críticos das grandes ligas. Não fiz portanto considerações éticas nem económicas e passei uma noite na correcção final de «Um dia depois do sábado», o conto que escrevera em Barranquilla por um golpe de inspiração nos escritórios de El Nacional. Depois de repousar mais de um ano na gaveta, pareceu‑me capaz de encandear um bom júri. Assim foi, com a gratificação descomunal de três mil pesos.

Nessa mesma altura, e sem nenhuma relação com o concurso, caiu‑me no escritório D. Samuel Lisman Baum, adido cultural da Embaixada de Israel, que acabava de inaugurar uma empresa editorial com um livro de poemas do mestre León de Greiff: Fárrago Quinto Mamotreto. A edição era apresentável e as informações sobre Lisman Baum eram boas. Dei‑lhe portanto uma cópia muito remendada de A Revoada e despachei‑o a grande velocidade com o compromisso de falar depois. Sobretudo de dinheiro, que afinal ‑ na verdade foi a única coisa de que nunca falámos.

Cecilia Porras pintou uma capa moderna ‑ que também não conseguiu receber ‑ com base na minha descrição do personagem do garoto. A oficina gráfica de El Espectador ofereceu a película para a capa a cores.

Não tornei a saber nada até uns cinco meses depois, quando a editora Sipa de Bogotá ‑ de que nunca tinha ouvido falar ‑ me telefonou para o jornal para me dizer que a edição de quatro mil exemplares estava pronta para a distribuição, mas não sabiam o que fazer com ela porque ninguém dava notícias de Lisman Baum. Nem os próprios repórteres do jornal lhe conseguiram descobrir o rasto nem ninguém o encontrou até ao sol de hoje. Ulises propôs à tipografia que vendesse os exemplares às livrarias com base na campanha de imprensa que ele próprio iniciou com uma nota que ainda não sei como agradecer‑lhe. A crítica foi excelente, mas a maior parte da edição ficou no armazém e nunca foi determinado quantos exemplares se venderam, nem recebi de ninguém nem um cêntimo por direitos de autor.

Quatro anos depois, Eduardo Caballero Calderón, que dirigia a Biblioteca Básica de Cultura Colombiana, incluiu uma edição de bolso de A Revoada para uma colecção de obras a serem vendidas em quiosques de rua de Bogotá e outras cidades. Pagou os direitos combinados, escassos mas pontuais, que tiveram para mim o valor sentimental de ser os primeiros que recebi por um livro. A edição tinha então algumas alterações que não identifiquei como minhas nem tive o cuidado de que não fossem incluídas em edições seguintes. Quase treze anos mais tarde, quando passei pela Colômbia depois do lançamento de Cem Anos de Solidão em Buenos Aires, encontrei nos quiosques de rua de Bogotá numerosos exemplares de sobras da primeira edição de A Revoada a um peso cada.

Comprei todos os que pude carregar. Desde então, tenho encontrado em livrarias da América latina outros saldos dispersos que procuravam vender como livros históricos. Há uns dois anos, uma agência inglesa de livros antigos vendeu por três mil dólares um exemplar assinado por mim da primeira edição de Cem Anos de Solidão.

Nenhum desses casos me distraiu nem um instante da minha labuta de jornalista. O êxito inicial das reportagens em série obrigara‑nos a procurar penso para alimentar uma fera insaciável. A tensão diária era insustentável, não apenas na identificação e busca dos temas, mas no decurso da escrita, sempre ameaçada pelos encantos da ficção. Em El Espectador não havia dúvida: a matéria‑prima invariável do ofício era a verdade e nada mais do que a verdade e isso mantinha‑nos numa tensão insuportável. José Salgar e eu acabámos num estado de vício que não nos permitia um instante de paz nem nos descansos de domingo.

Em 1956 soube‑se que o papa Pio XII sofria um ataque de soluços que lhe podia custar a vida. O único antecedente que recordo é o conto magistral «P & O», de Somerset Maugham, cujo protagonista morreu a meio do oceano Índico com um ataque de soluços que o esgotou em cinco dias, enquanto do mundo inteiro lhe chegavam todo o tipo de receitas extravagantes, mas creio que não o conhecia naquela época. Nos fins‑de‑semana, não nos atrevíamos a ir demasiado longe nas nossas excursões pelos povoados da savana porque o jornal estava disposto a lançar uma edição extraordinária no caso da morte do Papa. Eu era partidário de que tivéssemos a edição pronta, apenas com os buracos para encher com os primeiros telegramas da morte. Dois anos depois, sendo correspondente em Roma, ainda se esperava o desenlace do soluço papal.

Outro problema irresistível no jornal era a tendência para só nos ocuparmos de temas espectaculares que pudessem arrastar cada vez mais leitores, e eu tinha a mais modesta de não perder de vista outro público menos servido, que pensava mais com o coração. Entre as poucas que consegui encontrar conservo a recordação da reportagem mais simples que me apanhou pelo ar através da janela de um eléctrico. No portão de uma linda casa colonial, no número 567 da Carrera Octava, em Bogotá, havia um letreiro que se menosprezava a si próprio: «Oficina de Rezagos del Correo Nacional.» («Gabinete de Sobras do Correio Nacional». (N. T.)) Não me lembro nada de ter perdido qualquer coisa por aqueles desvios mas desci do eléctrico e bati à porta. O homem que me abriu era o responsável pelo gabinete, com seis empregados metódicos, cobertos pelo óxido da rotina, cuja missão romântica era encontrar os destinatários de qualquer carta mal endereçada.

Era uma bela casa, enorme e poeirenta, de tectos altos e paredes carcomidas, corredores escuros e galerias a abarrotar de papéis sem dono. Da média de cem cartas devolvidas que entravam todos os dias, pelo menos dez tinham os selos certos mas os envelopes estavam em branco e não tinham sequer o nome do remetente. Os empregados do gabinete conheciam‑nas como as «cartas para o homem invisível» e não poupavam esforços para as entregar ou devolver. Mas o cerimonial para as abrir em busca de pistas era de um rigor burocrático bastante inútil mas meritório.

A reportagem de uma única edição foi publicada com o título «O carteiro toca mil veces», com um subtítulo: «O cemitério das cartas perdidas.» Quando Salgar o leu, disse‑me: «A este cisne não é preciso torcer o pescoço porque já nasceu morto.» Publicou‑o com o destaque exacto, nem muito nem pouco, mas notava‑se na sua expressão que estava tão magoado como eu pela amargura do que podia ter sido. Rogelio Echavarría, talvez por ser poeta, elogiou‑a com boa vontade mas usando uma frase que nunca esqueci: «Gabo agarra‑se até a um prego quente.»

Senti‑me tão desmoralizado que, por minha conta e risco - e sem contar nada a Salgar ‑ decidi encontrar a destinatária de uma carta que me merecera uma atenção especial. Tinha o carimbo da leprosaria de Agua de Dios, e era dirigida «à senhora de luto que vai todos os dias à missa das cinco na igreja de Las Aguas». Depois de fazer todo o tipo de averiguações inúteis com o pároco e os seus ajudantes, continuei a entrevistar os fiéis da missa das cinco durante várias semanas, sem qualquer resultado. Surpreendeu‑me que as mais assíduas fossem três senhoras muito idosas e sempre de luto carregado, mas nenhuma tinha nada a ver com a leprosaria de Agua de Dios. Foi um fracasso do qual demorei a recompor‑me, não só por amor‑próprio nem por fazer uma obra de caridade, mas porque estava convencido de que por trás da própria história daquela mulher de luto havia outra história apaixonante.

À medida que soçobrava nos pântanos da reportagem, a minha relação com o grupo de Barranquilla foi‑se tornando mais intensa. As suas viagens a Bogotá não eram frequentes, mas eu assaltava‑os pelo telefone a qualquer hora em qualquer aperto, sobretudo a Germán Vargas, pela sua concepção pedagógica da reportagem. Consultava‑os em cada aperto, que eram muitos, ou eles telefonavam‑me quando havia motivos para me felicitarem. Considerei sempre Álvaro Cepeda como um condiscípulo da cadeira do lado. Depois da troca de ironias cordiais que foram sempre obrigatórias dentro do grupo, arrancava‑me do pântano com uma simplicidade que nunca deixou de me assombrar. Em contrapartida, as minhas consultas a Alfonso Fuenmayor eram mais literárias. Tinha a magia certeira para me salvar de apuros com exemplos de grandes autores ou para me ditar a citação salvadora repescada do seu arsenal sem fundo. A sua piada mestra foi quando lhe pedi o título para uma nota sobre os vendedores de comida de rua acossados pelas autoridades de Higiene. Alfonso atirou‑me a resposta imediata:

‑ Quem vende comida não morre de fome.

Agradeci‑lha do fundo do coração e pareceu‑me tão oportuna que não pude resistir à tentação de lhe perguntar de quem era. Alfonso fez‑me engolir em seco com a verdade que eu não recordava:

‑ É sua, mestre.

Com efeito, improvisara‑a numa nota sem assinatura, mas esquecera‑a. A história circulou durante anos entre os amigos de Barranquilla, a quem nunca pude convencer de que não tinha sido uma piada.

Uma viagem ocasional de Álvaro Cepeda a Bogotá distraiu‑me por uns dias da condenação das notícias diárias. Chegou com a ideia de fazer um filme do qual apenas tinha o título: La langosta azul. Foi um erro certeiro, porque Luis Vicens, Enrique Grau e o fotógrafo Nereo López o levaram a sério. Não voltei a saber do projecto até que Vicens me mandou um rascunho do guião para que pusesse algo da minha lavra sobre a base original de Álvaro. Pus qualquer coisa de que hoje não me lembro, mas a história pareceu‑me divertida e com a dose suficiente de loucura para que parecesse nossa.

Fizeram todos um pouco de tudo, mas o pai por direito próprio foi Luis Vicens, que impôs muitas das coisas que lhe restavam dos seus primeiros passos de Paris. O meu problema era que me encontrava no meio de uma daquelas reportagens prolixas que não me deixavam tempo para respirar e quando consegui libertar‑me já o filme estava em plena rodagem em Barranquilla.

É uma obra elementar, cujo principal mérito parece ser o domínio da intuição, que era talvez o anjo tutelar de Álvaro Cepeda. Numa das suas numerosas estreias domésticas de Barranquilla esteve o realizador italiano Enrico Fulchignoni, que nos surpreendeu com o alcance da sua compaixão: o filme pareceu‑lhe muito bom. Graças à tenacidade e à boa audácia de Titã Manotas, a esposa de Álvaro, o que ainda resta de La langosta azul deu a volta ao mundo em festivais temerários.

Essas coisas distraíam‑nos de vez em quando da realidade do país, que era terrível. A Colômbia considerava‑se livre de guerrilhas desde que as Forças Armadas tomaram o poder com a bandeira da paz e da concórdia entre os partidos. Ninguém duvidou de que algo tinha mudado, até a matança de estudantes na Carrera Séptima. Os militares, ansiosos por razões, quiseram provar‑nos a nós, jornalistas, que havia uma guerra diferente da eterna entre liberais e conservadores. Andávamos nessas quando José Salgar se aproximou da minha secretária com uma das suas ideias terroristas:

‑ Prepare‑se para conhecer a guerra.

Os que fomos convidados a conhecê‑la, sem mais pormenores, apresentámo‑nos pontuais às cinco da madrugada para irmos à povoação de Villarrica, a cento e oitenta e três quilómetros de Bogotá. O general Rojas Pinilla estava pendente da nossa visita, a meio do caminho, num dos seus repousos frequentes na base militar de Melgar, e prometera uma conferência de imprensa que terminaria antes das cinco da tarde, com tempo de sobra para regressarmos com fotografias e notícias de primeira mão.

Os enviados de El Tiempo eram Ramiro Andrade, com o fotógrafo Germán Caycedo; mais uns quatro que não consegui recordar, e Daniel Rodríguez e eu por El Espectador.

Alguns levavam roupa de campanha, pois fomos avisados de que talvez tivéssemos que dar alguns passos dentro da selva.

Fomos até Melgar de automóvel e ali nos distribuímos por três helicópteros que nos levaram por um vale apertado, estreito e solitário, da cordilheira central, com altos flancos aguçados. O que mais me impressionou, no entanto, foi a tensão dos jovens pilotos, que se desviavam de certas zonas onde a guerrilha tinha derrubado um helicóptero e avariado outro no dia anterior. Ao fim de uns quinze minutos intensos, aterrámos na praça enorme e desolada de Villarrica, cujo tapete de caliça não parecia bastante firme para suportar o peso do helicóptero. Em volta da praça havia casas de madeira com lojas em ruínas e residências de ninguém, salvo uma, recém‑pintada, que tinha sido o hotel da aldeia até se ter implantado o terror.

À frente do helicóptero divisavam‑se as faldas da cordilheira e o telhado de zinco da única casa pouco visível entre as brumas do cume. Segundo o oficial que nos acompanhava, estavam ali os guerrilheiros com armas de suficiente poder para nos derrubarem, de modo que devíamos correr até ao hotel aos ziguezagues e com o torso inclinado, como uma precaução elementar contra possíveis disparos vindos da cordilheira. Só quando lá chegámos nos apercebemos de que o hotel estava transformado em quartel.

Um coronel com farda de guerra, de uma elegância de artista de cinema e uma simpatia inteligente, explicou‑nos sem alarmes que na casa da cordilheira estava há várias semanas a guarda‑avançada da guerrilha e dali tinham tentado várias incursões nocturnas contra o povoado. O exército tinha a certeza de que tentariam algo quando vissem os helicópteros na praça, e as tropas estavam preparadas. No entanto, ao cabo de uma hora de provocações, inclusive desafios com alto‑falantes, os guerrilheiros não deram sinais de vida. O coronel, desanimado, enviou uma patrulha de exploração para se assegurar de que ainda estava alguém na casa.

A tensão diminuiu. Nós, os jornalistas, saímos do hotel e explorámos as ruas vizinhas, inclusive as menos guarnecidas em redor da praça. O fotógrafo e eu, junto com outros, iniciámos a subida à cordilheira por uma tortuosa cornija em ferradura. Na primeira curva, havia soldados estendidos no meio do mato em posição de tiro. Um oficial aconselhou‑nos a que regressássemos à praça, pois podia suceder qualquer coisa, mas não fizemos caso. O nosso propósito era subir até encontrar alguma guarda‑avançada guerrilheira que nos salvasse o dia com uma notícia grande.

Não houve tempo. De repente, ouviram‑se várias ordens simultâneas e, em seguida, uma descarga cerrada dos militares. Deitámo‑nos por terra perto dos soldados e estes abriram fogo contra a casa da cornija. Na confusão instantânea, perdi de vista Rodríguez, que correu em busca de uma posição estratégica para o seu visor. O tiroteio foi breve mas muito intenso e em seu lugar ficou um silêncio letal.

Tínhamos voltado à praça quando conseguimos ver uma patrulha militar que saía da selva trazendo um corpo numa padiola. O chefe da patrulha, muito excitado, não permitiu que se tirassem fotografias. Procurei com a vista Rodríguez e vi‑o aparecer, uns cinco metros à minha direita, com a máquina pronta para disparar. A patrulha não o tinha visto. Então vivi o instante mais intenso, entre a dúvida de lhe gritar que não tirasse a fotografia por temor que disparassem sobre ele por inadvertência, ou o instinto profissional de tirá‑la a qualquer preço. Não tive tempo, pois no mesmo instante ouviu‑se o grito fulminante do chefe da patrulha:

‑ Essa fotografia não se tira!

Rodríguez baixou a máquina sem pressa e veio para o meu lado. O cortejo passou tão perto de nós que sentíamos a lufada ácida dos corpos vivos e o silêncio do morto. Quando acabaram de passar, Rodríguez disse‑me ao ouvido:

‑ Tirei a fotografia.

Assim foi, mas nunca se publicou. O convite tinha terminado em desastre. Houve mais dois feridos da tropa e estavam mortos pelo menos dois guerrilheiros, que já tinham sido arrastados para o refúgio. O coronel trocou a sua boa disposição por uma expressão tétrica. Deu‑nos a informação simples de que a visita estava cancelada, que dispúnhamos de meia hora para almoçar, e que em seguida seguiríamos para Melgar por estrada, pois os helicópteros estavam reservados para os feridos e os cadáveres. As quantidades de uns e de outros não foram nunca reveladas.

Ninguém voltou a mencionar a conferência de imprensa do general Rojas Pinilla. Passámos de largo num jipe para seis em frente da sua casa de Melgar e chegámos a Bogotá depois da meia‑noite. A sala de redacção esperava‑nos em peso, pois da Oficina de Información y Prensa (Gabinete de Informação e Imprensa. (N. T.)) da presidência da República tinham telefonado para informar sem mais pormenores que chegaríamos por terra, mas não precisaram se vivos ou mortos.

Até então, a única intervenção da censura militar tinha sido por causa da morte dos estudantes no centro de Bogotá. Não havia um censor dentro da redacção desde que o último do governo anterior se demitiu quase a chorar quando não conseguiu suportar as primícias falsas e as piruetas de troça dos redactores. Sabíamos que a Oficina de Información y Prensa não nos perdia de vista e com frequência nos mandavam pelo telefone advertências e conselhos paternais.

Os militares, que no princípio do seu governo evidenciavam uma cordialidade académica ante a imprensa, tornaram‑se invisíveis Ou herméticos. No entanto, um fio solto continuou a crescer só e em silêncio e deu‑nos a certeza nunca comprovada nem desmentida de que o chefe daquele embrião guerrilheiro do Tolima era um rapaz de vinte e dois anos que fez carreira na sua lei, cujo nome não foi possível confirmar nem desmentir: Manuel Marulanda Vélez ou Pedro António Marín, Tirofijo. Quarenta e tantos anos depois, Marulanda ‑ interrogado sobre este dado no seu acampamento de guerra ‑ respondeu que não se lembrava se na realidade era ele.

Não foi possível conseguir nem mais uma notícia. Eu andava ansioso por descobri‑la desde que voltei de Villarrica, mas não encontrava uma porta. A Oficina de Información y Prensa da presidência estava‑nos vedada e o ingrato episódio de Villarrica jazia sepultado sob a reserva militar. Atirara a esperança para o cesto do lixo quando José Salgar se plantou em frente da minha secretária, fingindo o sangue‑frio que nunca teve, e me mostrou um telegrama que acabara de receber.

‑ Aqui está o que você não viu em Villarrica ‑ disse‑me.

Era o drama de uma multidão de crianças arrancadas das suas aldeias e veredas pelas Forças Armadas, sem plano preconcebido e sem recursos, para facilitar a guerra de extermínio contra a guerrilha de Tolima. Tinham‑nas separado dos pais sem tempo para estabelecer quem era filho de quem e muitos deles mesmos não o sabiam dizer. O drama tinha começado com uma avalanche de mil e duzentos adultos conduzidos para diferentes povoações do Tolima, depois da nossa visita a Melgar, instalados de qualquer maneira e depois abandonados nas mãos de Deus. As crianças, separadas dos pais por simples considerações logísticas e dispersas por vários asilos do país, eram umas três mil, de diferentes idades e condições. Apenas trinta eram órfãs de pai e mãe e, entre estas um par de gémeos com treze dias de nascidos. A mobilização foi feita em absoluto segredo, ao abrigo da censura de imprensa, até que o correspondente de El Espectador nos telegrafou as primeiras pistas de Ambalema, a duzentos quilómetros de Villarrica.

Em menos de seis horas encontrámos trezentos menores de cinco anos no Amparo de Ninos de Bogotá, muitos deles sem filiação. Helí Rodríguez, de dois anos, mal conseguiu ditar o seu nome. Não sabia nada de nada, nem onde se encontrava, nem porquê, nem sabia os nomes dos pais nem pôde dar nenhuma pista para serem encontrados. O seu único consolo era que tinha direito a permanecer no asilo até aos catorze anos. O orçamento do orfanato era alimentado por oitenta centavos mensais dados por cada criança pelo governo do departamento. Dez fugiram na primeira semana com o propósito de se esconderem como clandestinos nos comboios do Tolima e não conseguimos achar nenhum rasto deles.

Fizeram a muitos um baptismo administrativo no asilo, com apelidos da região para os poderem distinguir, mas eram tantos, tão parecidos e móveis que não se distinguiam no recreio, sobretudo nos meses mais frios, quando tinham que aquecer‑se correndo por corredores e escadas. Foi impossível aquela dolorosa visita não me obrigar a perguntar a mim mesmo se a guerrilha que matara o soldado no combate teria podido fazer tantos estragos entre as crianças de Villarrica.

A história daquele disparate logístico foi publicada em várias crónicas sucessivas sem consultar ninguém. A censura manteve silêncio e os militares replicaram com a explicação da moda: os acontecimentos de Villarrica eram parte de uma ampla mobilização comunista contra o governo das Forças Armadas e estas eram obrigadas a proceder com métodos de guerra. Bastou‑me uma linha dessa comunicação para que se me metesse na cabeça a ideia de conseguir a informação directa de Gilberto Vieira, secretário‑geral do Partido Comunista, que nunca tinha visto.

Não me lembro se dei o passo seguinte autorizado pelo jornal ou se foi por iniciativa própria, mas recordo muito bem que tentei várias diligências inúteis para conseguir um contacto com um dirigente do Partido Comunista clandestino que me pudesse informar sobre a situação de Villarrica. O problema principal era que o cerco do regime militar em torno dos comunistas clandestinos não tinha precedentes. Estabeleci então contacto com um amigo comunista e dois dias depois apareceu em frente da minha secretária outro vendedor de relógios que andava à minha procura para me cobrar as quotas que não consegui pagar em Barranquilla. Paguei‑lhe as que pude e disse‑lhe, como sem querer, que precisava de falar de urgência com algum dos seus dirigentes principais, mas respondeu‑me com a fórmula conhecida de que ele não era o caminho nem saberia dizer‑me quem era. No entanto, nessa mesma tarde, sem anúncio prévio, surpreendeu‑me ao telefone uma voz harmoniosa e despreocupada:

‑ Olá, Gabriel, sou o Gilberto Vieira.

Apesar de ter sido o mais destacado dos fundadores do Partido Comunista, Vieira não tivera até então nem um minuto de exílio nem de prisão. Correndo embora o risco de que os dois telefones estivessem sob escuta, deu‑me a direcção da sua casa secreta para que o visitasse nessa mesma tarde.

Era um apartamento com uma sala pequena, a abarrotar de livros políticos e literários, e dois quartos num sexto andar de escadas íngremes e sombrias onde se chegava sem fôlego, não só pela altura mas também pela consciência de estar a entrar num dos mistérios mais bem guardados do país. Vieira vivia com a mulher, Cecilia, e uma filha recém‑nascida. Como a mulher não estava em casa, ele mantinha ao alcance da mão o berço da bebé e abanava‑a muito devagarinho quando se esganiçava em pranto nas longas pausas da conversa, que tanto era de política como de literatura, embora sem muito sentido de humor. Era impossível conceber que aquele quarentão rosado e calvo, de olhos claros e incisivos e lábia precisa, fosse o homem mais procurado pelos serviços secretos do país.

De entrada, dei conta que estava ao corrente da minha vida desde que comprei o relógio em El Nacional de Barranquilla. Lia as minhas reportagens em El Espectador e identificava as minhas notas anónimas para procurar interpretar as suas segundas intenções. No entanto, concordou em que o melhor serviço que podia prestar ao país era seguir nessa linha sem me deixar comprometer por ninguém em nenhuma espécie de militância política.

Instalou‑se no tema logo que tive ocasião de lhe revelar o motivo da minha visita. Estava ao corrente, como se lá tivesse estado, da situação de Villarrica da qual não pudemos publicar nem uma letra devido à censura oficial. No entanto, deu‑me dados importantes para entender que aquilo era o prelúdio de uma guerra crónica ao fim de meio século de escaramuças casuais. A sua linguagem, naquele dia e naquele lugar, tinha mais ingredientes do próprio Jorge Eliécer Gaitán do que do seu Marx de cabeceira, para uma solução que não parecia ser a do proletariado no poder mas uma espécie de aliança de desamparados contra as classes dominantes. A utilidade daquela visita não foi só a clarificação do que estava a suceder, mas um método para o entender melhor. Assim o expliquei a Guillermo Cano e a Zalamea, e deixei a porta entreaberta, para o caso de alguma vez aparecer a cauda da reportagem por terminar.

Resta dizer que Vieira e eu estabelecemos uma muito boa relação de amigos que nos facilitou os contactos mesmo nos tempos mais duros da sua clandestinidade.

Outro drama de adultos crescia soterrado até que as más notícias romperam o cerco, em Fevereiro de 1954, quando foi publicado na imprensa que um veterano da Coreia empenhara as suas condecorações para comer. Era apenas um dos mais de quatro mil que tinham sido recrutados ao acaso noutro dos momentos inconcebíveis da nossa história, quando qualquer destino era melhor do que nada para os camponeses expulsos à bala das suas terras pela violência oficial. As cidades, superpovoadas pelos deslocados, não ofereciam qualquer esperança. A Colômbia, como foi repetido quase todos os dias em notas editoriais, na rua, nos cafés, nas conversas familiares, era uma república invisível. Para muitos camponeses deslocados e numerosos rapazes sem perspectiva, a Guerra da Coreia era uma solução pessoal. Para lá foi de tudo, misturado, sem discriminações precisas e apenas pelas condições físicas, quase como vieram os Espanhóis descobrir a América. Ao regressar à Colômbia, gota a gota, esse grupo heterogéneo teve por fim um distintivo comum: veteranos. Bastou que alguns protagonizassem uma rixa para que a culpa recaísse sobre todos. Fecharam‑se‑lhes as portas com o argumento fácil de que não tinham direito a emprego porque eram desequilibrados mentais. Por outro lado, não houve lágrimas suficientes para os incontáveis que regressaram transformados em duas mil libras de cinzas.

A notícia do que empenhou as condecorações mostrou um contraste brutal com outra publicada dez meses antes, quando os últimos veteranos regressaram ao país com quase um milhão de dólares em dinheiro, que ao serem cambiados nos bancos fizeram baixar o preço do dólar na Colômbia de três pesos e trinta centavos para dois pesos e noventa.

Mas tanto mais baixava o prestígio dos veteranos quanto mais tinham que enfrentar a realidade do seu país. Antes do regresso tinham sido publicadas versões dispersas de que receberiam bolsas especiais para carreiras produtivas, que teriam pensões vitalícias e facilidades para ficarem a viver nos Estados Unidos. A verdade foi o contrário: pouco depois da chegada foi‑lhes dada baixa no exército, e a única coisa que restou no bolso a muitos deles foram os retratos das namoradas japonesas que ficaram à espera deles em acampamentos do Japão, para onde os levavam a descansar da guerra.

Era impossível que aquele drama nacional não me fizesse recordar o do meu avô, o coronel Márquez, na espera eterna da sua pensão de veterano. Cheguei a pensar que aquela mesquinhez fosse uma represália contra um coronel subversivo em guerra encarniçada contra a hegemonia conservadora. Os sobreviventes da Coreia, pelo contrário, tinham lutado contra a causa do comunismo e a favor das ânsias imperiais dos Estados Unidos. E, no entanto, no seu regresso, não apareciam nas páginas sociais mas na crónica vermelha. Um deles, que matou à bala dois inocentes, perguntou aos seus chefes: «Se na Coreia matei cem, por que não posso matar dez em Bogotá?»

Esse homem, tal como outros delinquentes, chegara à guerra quando já estava assinado o armistício. No entanto, muitos como ele foram também vítimas do machismo colombiano, que se manifestou no troféu de matar um veterano da Coreia. Não tinham passado ainda três anos desde que regressou o primeiro contingente e já os veteranos vítimas de morte violenta passavam de uma dúzia. Por diversas causas, vários tinham morrido em altercações inúteis pouco tempo depois do regresso. Um deles morreu apunhalado numa rixa por repetir uma canção numa máquina de discos de café. O sargento Cantor, que fizera honra ao seu apelido cantando e acompanhando‑se à guitarra nos repousos da guerra, foi morto à bala semanas depois do regresso. Outro veterano foi apunhalado também em Bogotá e para o enterrarem tiveram que organizar uma colecta entre os vizinhos. Ángel Fábio Góes, que perdera na guerra um olho e uma mão, foi morto por três desconhecidos que nunca foram capturados.

Recordo ‑ como se tivesse sido ontem ‑ que estava a escrever o último capítulo da série quando tocou o telefone na minha secretária e reconheci de imediato a voz radiante de Martina Fonseca:

‑ Alô?

Abandonei o artigo a meio da página devido aos saltos do meu coração e atravessei a avenida para me encontrar com ela no Hotel Continental, depois de doze anos sem a ver. Não foi fácil distingui‑la da porta entre as outras mulheres que almoçavam no restaurante repleto, até que me fez um sinal com a luva. Estava vestida com o gosto pessoal de sempre, com um casaco de camurça, uma raposa murcha ao ombro e um chapéu de caçador, e os anos começavam a notar‑se‑lhe demasiado na pele de ameixa maltratada pelo sol e nos olhos apagados, toda ela diminuída pelos primeiros sinais de uma velhice injusta. Ambos devemos ter dado conta de que doze anos eram muitos na sua idade, mas suportámo‑los bem. Tentara encontrá‑la nos meus primeiros anos de Barranquilla, até que soube que vivia no Panamá, onde o seu marinheiro trabalhava no canal, mas não foi por orgulho e sim por timidez que não tratei do assunto.

Creio que acabava de almoçar com alguém que a deixara só para receber a minha visita. Bebemos três chávenas fatais de café e fumámos juntos meio maço de cigarros fortes, procurando às apalpadelas o caminho para conversar sem falar, até que se atreveu a perguntar‑me se alguma vez tinha pensado nela. Só então lhe disse a verdade: nunca a esquecera, mas a sua despedida tinha sido tão brutal que mudou a minha maneira de ser. Ela foi mais compassiva do que eu:

‑ Não esqueço nunca que para mim és como um filho. Lera as minhas notas de imprensa, os meus contos e o meu único romance e falou‑me deles com uma perspicácia lúcida e penetrante que apenas era possível pelo amor ou o despeito. No entanto, não fiz mais do que escapar às armadilhas da nostalgia com a mesquinha cobardia de que só os homens são capazes. Quando consegui por fim aliviar a tensão, atrevi‑me a perguntar‑lhe se tinha tido o filho que queria.

‑ Nasceu ‑ disse ela com alegria ‑ e já está a terminar a primária.

‑ Negro como o pai? ‑ perguntei com a mesquinhez própria dos ciúmes.

Ela apelou ao seu bom feitio de sempre. «Branco como a mãe ‑ disse. ‑ Mas o pai não se foi embora de casa como eu temia; até se aproximou mais de mim.» E ante a minha evidente perturbação, confirmou‑me com um sorriso mortal:

‑ Não te preocupes, é dele. E mais duas filhas igualzinhas como se fossem uma só.

Alegrou‑se por ter vindo, entreteve‑me com algumas recordações que nada tinham que ver comigo e tive a vaidade de pensar que esperava de mim uma resposta mais íntima. Mas também, como todos os homens, me equivoquei de tempo e de lugar. Olhou para o relógio quando pedi o quarto café e outro maço de cigarros e levantou‑se sem preâmbulos.

‑ Bem, menino, estou feliz por te ter visto ‑ disse. E concluiu: ‑ Pois, não aguentava mais ter‑te lido tanto sem saber como és.

‑ E como sou? ‑ atrevi‑me a perguntar.

‑ Ah, não! ‑ riu ela com toda a alma ‑, isso não saberás nunca.

Só quando recuperei o fôlego em frente da máquina de escrever me dei conta das ânsias de vê‑la que sempre tivera e do terror que me impediu de ficar com ela para todo o resto das nossas vidas. O mesmo terror desolado que muitas vezes tornei a sentir desde aquele dia quando tocava o telefone.

O novo ano de 1955 começou para os jornalistas a 28 de Fevereiro com a notícia de que oito marinheiros do destroyer Caldas da Armada Nacional tinham caído ao mar e desaparecido durante uma tempestade quando faltavam apenas duas horas para chegarem a Cartagena. Zarpara quatro dias antes de Mobile, Alabama, depois de permanecer ali vários meses para uma reparação regulamentar.

Enquanto a redacção em pleno ouvia, suspensa, o primeiro boletim radiofónico do desastre, Guillermo Cano voltara‑se para mim na sua cadeira giratória, mantendo‑me na mira com uma ordem pronta na ponta da língua. José Salgar, de passagem para as oficinas, parou também à minha frente com os nervos tensos pela notícia. Eu voltara uma hora antes de Barranquilla, onde preparei uma informação sobre o eterno drama das Bocas de Ceniza, e já começava outra vez a interrogar‑me a que horas sairia o próximo avião da costa para escrever a primeira notícia dos oito náufragos. No entanto, em breve ficou claro no boletim da rádio que o destroyer chegaria a Cartagena às três da tarde sem notícias novas, pois não tinham recuperado os corpos dos oito marinheiros afogados. Guillermo Cano descontraiu‑se.

‑ Que porra, Gabo ‑ disse. ‑ Afogou‑se‑nos a cabra (Ficámos sem notícia! (N. T.)).

O desastre ficou reduzido a uma série de boletins oficiais e a informação foi tratada com as honras da praxe aos caídos em serviço, mas nada mais. No fim da semana, no entanto, a marinha revelou que um deles, Luis Alejandro Velasco, chegara exausto a uma praia de Urabá, com insolação mas recuperável, depois de permanecer dez dias à deriva sem comer nem beber, numa balsa sem remos. Concordámos todos que podia ser a reportagem do ano se conseguíssemos estar com ele a sós, nem que fosse por meia hora.

Não foi possível. A marinha manteve‑o incomunicável enquanto recuperava no hospital naval de Cartagena. Ali esteve com ele durante uns minutos fugazes um astuto redactor de El Tiempo, António Montaria, que se enfiou no hospital disfarçado de médico. A julgar pelos resultados, no entanto, apenas obteve do náufrago uns desenhos a lápis sobre a sua posição no barco quando foi arrastado pela tempestade e umas declarações descosidas com as quais ficou claro que tinha ordens para não contar a história. «Se eu tivesse sabido que era um jornalista, tê‑lo‑ia ajudado», declarou Velasco dias depois. Uma vez recuperado, e sempre apoiado pela marinha, concedeu uma entrevista ao correspondente de El Espectador em Cartagena, Lácides Orozco, que não conseguiu chegar onde queríamos para saber como foi que um golpe de vento pôde causar semelhante desastre com sete mortos.

Luis Alejandro Velasco, com efeito, estava submetido a um compromisso férreo que o impedia de se mover ou expressar com liberdade, mesmo depois de ser transferido para casa dos pais, em Bogotá. Qualquer aspecto técnico ou político era resolvido com uma mestria cordial pelo tenente de fragata Guillermo Fonseca, mas com igual elegância eludia dados essenciais para a única coisa que então nos interessava, que era a verdade da aventura. Só para ganhar tempo, escrevi uma série de notas de ambiente sobre o regresso do náufrago a casa dos pais, quando os seus acompanhantes de uniforme me impediram uma vez mais de falar com ele, enquanto lhe autorizavam uma entrevista insulsa para uma emissora local. Foi então evidente que estávamos nas mãos de mestres na arte oficial de arrefecer a notícia e pela primeira vez me perturbou a ideia de que estavam a ocultar à opinião pública algo mais grave sobre a catástrofe. Mais do que uma suspeita, recordo‑o hoje como um presságio.

Era um Março de ventos glaciais e a chuvinha pulverulenta aumentava a carga das minhas inquietações de consciência. Antes de enfrentar a sala de redacção, oprimido pela derrota, refugiei‑me no vizinho Hotel Continental e mandei vir uma bebida dupla ao balcão do bar solitário. Bebia‑a a lentos goles, sem tirar sequer o grosso sobretudo ministerial, quando senti uma voz muito doce quase no ouvido:

‑ Quem bebe só, morre só.

‑ Deus te oiça, linda ‑ respondi com a alma na boca, convencido de que era Martina Fonseca.

A voz deixou no ar um rasto de tépidas gardénias, mas não era ela. Vi‑a sair pela porta giratória e desaparecer com o seu inolvidável guarda‑chuva amarelo na avenida embaciada pela chuvinha. Depois de uma segunda bebida, atravessei eu também a avenida e cheguei à sala de redacção sustido a pulso pelos dois primeiros copos. Guillermo Cano viu‑me entrar e deu um grito alegre para todos:

‑ A ver que trapaça nos traz o grande Gabo! Respondi‑lhe com a verdade:

‑ Nada mais do que um peixe morto.

Apercebi‑me então de que os brincalhões inclementes da redacção tinham começado a ter pena de mim quando me viram passar em silêncio, a arrastar o sobretudo ensopado, e nenhum teve coragem para começar a troça ritual.

Luis Alejandro Velasco continuou a desfrutar a sua glória reprimida. Os seus mentores, não só lhe permitiam como até lhe patrocinavam todo o tipo de perversões publicitárias. Recebeu quinhentos dólares e um relógio novo para contar pela rádio a verdade de que o seu tinha suportado o rigor da intempérie. A fábrica dos seus sapatos de ténis pagou‑lhe mil dólares para contar que os seus eram tão resistentes que não tinha podido desfazê‑los para ter algo que mastigar. No mesmo dia, pronunciava um discurso patriótico, deixava‑se beijar por uma rainha de beleza e mostrava‑se aos órfãos como exemplo de moral patriótica. Começava a esquecê‑lo no dia memorável em que Guillermo Cano me anunciou que o tinha no seu escritório, disposto a assinar um contrato para contar a sua aventura completa. Senti‑me humilhado.

‑ Já não é um peixe morto mas podre ‑ insisti.

Pela primeira e única vez me neguei a fazer para o jornal algo que era meu dever. Guillermo Cano resignou‑se à realidade e despachou o náufrago sem explicações. Contou‑me mais tarde que depois de o mandar embora do seu escritório começou a reflectir e não conseguiu explicar a si próprio o que acabara de fazer. Ordenou então ao porteiro que mandasse o náufrago de volta e chamou‑me pelo telefone com a informação inapelável de que lhe tinha comprado os direitos exclusivos da história completa.

Não era a primeira vez nem havia de ser a última em que Guillermo se obstinava num caso perdido e acabava coroado de razão. Deprimido, mas no melhor estilo possível, avisei‑o de que apenas faria a reportagem por obediência laboral mas não lhe colocaria o meu nome. Sem ter pensado nisso, aquela foi uma decisão casual mas certeira para a reportagem, pois obrigava‑me a contar as coisas na primeira pessoa do protagonista, com a sua maneira própria e ideias pessoais, e assinada com o seu nome. Assim me preservava de qualquer outro naufrágio em terra firme. Quer dizer, seria o monólogo interior de uma aventura solitária, à letra, como a fizera a vida. A decisão foi milagrosa, porque Velasco revelou‑se um homem inteligente, com uma sensibilidade e uma boa educação inesquecíveis e um sentido de humor a tempo e bem colocado. E tudo isso, por sorte, controlado por um carácter sem falhas.

A entrevista foi longa, minuciosa, em três semanas completas e esgotantes, e fi‑la sabendo que não era para publicar em bruto mas para ser cozinhada noutra onda: uma reportagem. Comecei‑a com uma certa má‑fé, tentando que o náufrago caísse em contradições para lhe descobrir as verdades encobertas, mas em breve tive a certeza de que não as tinha. Nada tive que forçar. Aquilo era como passear por uma pradaria de flores com a liberdade suprema de escolher as preferidas. Velasco chegava com pontualidade às três da tarde à minha secretária da redacção, revíamos as notas precedentes e prosseguíamos numa ordem linear. Eu escrevia à noite cada capítulo que ele me contava e era publicado na tarde do dia seguinte. Teria sido mais fácil e seguro escrever primeiro a aventura completa e publicá‑la já revista e com todos os pormenores comprovados a fundo. Mas não havia tempo. O tema ia perdendo actualidade a cada minuto e qualquer outra notícia ruidosa podia derrotá‑lo.

Não usámos gravador. Tinham sido acabados de inventar e os melhores eram tão grandes e pesados como uma máquina de escrever e o fio magnético embrulhava‑se como fios de ovos. A simples transcrição era uma proeza. Ainda hoje sabemos que os gravadores são muito úteis para recordar, mas não podemos descurar nunca a cara do entrevistado, que pode dizer muito mais do que a sua voz e às vezes mesmo o contrário. Tive que conformar‑me com o método de rotina das notas em cadernos de escola, mas graças a isso creio não ter perdido uma palavra nem um cambiante da conversa, e pude aprofundar melhor a cada passo. Os dois primeiros dias foram difíceis, porque o náufrago queria contar tudo ao mesmo tempo. No entanto, aprendeu muito depressa, pela ordem e o alcance das minhas perguntas e, sobretudo, pelo seu próprio instinto de narrador e a facilidade congénita para entender a carpintaria do ofício.

Para preparar o leitor antes de o lançar à água, decidimos começar o relato pelos últimos dias do marinheiro em Mobile. Também combinámos não o terminar no momento de pisar terra firme mas sim quando chegasse a Cartagena, já aclamado pelas multidões, que era o ponto em que os leitores podiam seguir por sua conta o fio da narrativa com os dados já publicados. Isto dava‑nos catorze capítulos para manter o interesse durante duas semanas.

O primeiro foi publicado a 5 de Abril de 1955. A edição de El Espectador, precedida de anúncios na rádio, esgotou‑se em poucas horas. O nó explosivo surgiu ao terceiro dia, quando decidimos revelar a verdadeira causa do desastre que, segundo a versão oficial, tinha sido uma tempestade. Em busca de uma maior precisão, pedi a Velasco que a contasse com todos os pormenores. Ele estava já tão familiarizado com o nosso método comum que vislumbrei nos seus olhos um fulgor de picardia antes de me responder:

‑ O problema é que não houve tempestade.

O que houve ‑ precisou ‑ foram umas vinte horas de ventos duros, próprios da região naquela época do ano, que não estavam previstos pelos responsáveis da viagem. A tripulação recebera o pagamento de vários ordenados atrasados antes de zarpar e gastara‑o à última hora em todo o género de aparelhos electrodomésticos para levar para casa. Algo tão imprevisto que ninguém se alarmou quando encheram os espaços interiores do barco e amarraram na coberta as caixas maiores: frigoríficos, máquinas de lavar, aquecedores. Uma carga proibida num barco de guerra e numa quantidade que ocupou espaços vitais da coberta. Talvez tivessem pensado que uma viagem sem carácter oficial, de menos de quatro dias e com excelentes prognósticos de tempo, não era para ser tratada com demasiado rigor. Quantas vezes não tinham sido feitas outras e continuariam a fazer‑se sem que nada acontecesse? A pouca sorte para todos foi que uns ventos apenas um pouco mais fortes do que os anunciados convulsionaram o mar sob um sol esplêndido, fizeram inclinar o navio muito mais do que estava previsto e quebraram as amarras da carga mal estivada. Se não tivesse sido um barco tão bom navegador como o Caldas, teria ido a pique sem salvação, mas oito dos marinheiros de guarda na coberta caíram pela borda fora. De modo que a causa principal do acidente não foi uma tempestade, como tinham insistido as fontes oficiais desde o primeiro dia, mas o que Velasco declarou na sua reportagem: a sobrecarga de electrodomésticos mal estivados na coberta de um navio de guerra.

Outro aspecto que se mantivera debaixo da mesa era que tipo de balsas estiveram ao alcance dos que caíram ao mar e dos quais apenas Velasco se salvou. Supõe‑se que devia haver a bordo dois tipos de balsas regulamentares que caíram com eles. Eram de cortiça e lona, de três metros de comprimento por um e meio de largo, com uma plataforma de segurança no centro e dotadas de víveres, água potável, remos, caixa de primeiros socorros, apetrechos de pesca e de navegação e uma Bíblia. Nessas condições, dez pessoas podiam sobreviver a bordo durante oito dias, mesmo sem os apetrechos de pesca. No entanto, no Caldas fora também embarcado um carregamento de balsas menores sem qualquer espécie de instrumentos. Pelos relatos de Velasco, parece que a sua era uma das que não tinham recursos.

A pergunta que ficará a flutuar para sempre é quantos outros náufragos conseguiram abordar outras balsas que não os levaram a parte alguma.

Estas tinham sido, sem dúvida, as razões mais importantes que retardaram as explicações oficiais do naufrágio. Até que se aperceberam de que era uma pretensão insustentável, porque o resto da tripulação estava já a descansar em suas casas e a contar a história completa em todo o país. O governo insistiu até ao fim na sua versão da tempestade e oficializou‑a em declarações terminantes num comunicado formal. A censura não chegou ao extremo de proibir a publicação dos restantes capítulos. Velasco, por seu lado, manteve até onde pôde uma ambiguidade leal e nunca se soube que o tivessem pressionado para que não revelasse verdades, nem nos pediu nem nos impediu que as revelássemos.

Depois do quinto capítulo, tinha‑se pensado fazer uma separata com os quatro primeiros para atender aos pedidos dos leitores que queriam coleccionar o relato completo. D. Gabriel Cano, que não tínhamos visto na redacção durante aqueles dias frenéticos, desceu do seu pombal e foi direito à minha secretária.

‑ Diga‑me uma coisa, homónimo ‑ perguntou‑me ‑, quantos capítulos vai ter o náufrago?

Estávamos na descrição do sétimo dia, quando Velasco comera um cartão‑de‑visita como único manjar ao seu alcance, e não conseguiu desfazer os sapatos à dentada para ter algo que mastigar. De modo que nos faltavam mais sete capítulos. D. Gabriel escandalizou‑se.

‑ Não, homónimo, não ‑ reagiu, crispado. ‑ Têm que ser pelo menos cinquenta capítulos.

Apresentei‑lhe os meus argumentos, mas os seus baseavam‑se em que a circulação do jornal estava quase a duplicar.

Segundo os seus cálculos, podia aumentar até uma cifra sem precedentes na imprensa nacional. Improvisou‑se uma reunião de redacção, estudaram‑se os pormenores económicos, técnicos e jornalísticos, e acordou‑se um limite razoável de vinte capítulos. Ou seja, mais seis do que os previstos.

Embora a minha assinatura não figurasse nos capítulos impressos, o método de trabalho transpirara, e uma noite em que fui cumprir o meu dever de crítico de cinema levantou‑se no vestíbulo do teatro uma animada discussão sobre o relato do náufrago. A maioria eram amigos com quem trocava ideias nos cafés vizinhos depois da sessão. As suas opiniões ajudavam‑me a clarificar as minhas para a nota semanal. Na relação com o náufrago, o desejo geral ‑ com muito raras excepções ‑ era que fosse prolongada o mais possível.

Uma dessas excepções foi um homem maduro e bem‑posto, com um soberbo sobretudo de pêlo de camelo e um chapéu de coco, que me seguiu uns três quarteirões desde o teatro quando eu regressava só para o jornal. Acompanhava‑o uma mulher muito bela, tão bem vestida como ele, e um amigo menos impecável. Tirou o chapéu para me cumprimentar e apresentou‑se com um nome que não fixei. Sem mais delongas, disse que não podia estar de acordo com a reportagem do náufrago porque fazia o jogo directo do comunismo. Expliquei‑lhe, sem exagerar demasiado, que eu não era mais do que o transcritor da história contada pelo próprio protagonista. Mas ele tinha as suas ideias próprias e pensava que Velasco era um infiltrado nas Forças Armadas ao serviço da URSS. Tive então a intuição de que estava a falar com um alto oficial do exército ou da marinha e entusiasmou‑me a ideia de uma clarificação. Mas parecia que apenas me queria dizer aquilo.

‑ Eu não sei se o senhor o faz com consciência ou não ‑ disse‑me ‑ mas, seja como for, está a prestar um mau serviço ao país por conta dos comunistas.

A sua deslumbrante esposa fez uma expressão de alarme e tentou levá‑lo pelo braço com uma súplica em voz muito baixa: «Por favor, Rogelio!» Ele acabou a frase com a mesma compostura com que começara:

‑ Acredite, por favor, que apenas me permito dizer‑lhe isto devido à admiração que sinto pelo que o senhor escreve.

Voltou a estender‑me a mão e deixou‑se levar pela esposa atribulada. O acompanhante, surpreendido, não se conseguiu despedir.

Foi o primeiro de uma série de incidentes que nos puseram a pensar a sério sobre os perigos da rua. Numa tasquinha pobre por trás do jornal, que servia os operários do sector até de madrugada, dois desconhecidos tinham tentado dias antes uma agressão gratuita a Gonzalo González, que tomava ali o último café da noite. Ninguém entendia que motivos podiam ter contra o homem mais pacífico do mundo, excepto que o tivessem confundido comigo pelos nossos modos e modas caribenhas e os dois g do seu pseudónimo: Gog. De qualquer forma, a segurança do jornal avisou‑me que não saísse só à noite numa cidade cada vez mais perigosa. Para mim, pelo contrário, era de tanta confiança que ia a pé até ao meu apartamento quando terminava o turno.

Numa madrugada daqueles dias intensos, senti que tinha chegado a minha hora com a granizada de vidros de um tijolo atirado da rua contra a janela do meu quarto. Era Alejandro Obregón, que perdera as chaves do seu e não encontrou amigos acordados nem lugar em nenhum hotel. Cansado de procurar onde dormir e de tocar a campainha avariada, resolveu a noite com um tijolo da construção vizinha.

Mal me cumprimentou, para não me despertar mais quando lhe abri a porta, e deitou‑se de barriga para o ar a dormir no chão até ao meio‑dia.

O tumulto para comprar o jornal na porta de El Espectador antes de sair para a rua era cada vez maior. Os empregados do centro comercial demoravam‑se para o comprarem e lerem o capítulo no autocarro. Penso que o interesse dos leitores começou por motivos humanitários, continuou por razões literárias e no fim por considerações políticas, mas sempre sustido pela tensão interna do relato. Velasco contou‑me episódios que suspeitei inventados por ele e descobriu significados simbólicos ou sentimentais, como o da primeira gaivota que não se queria ir embora. O dos aviões, contado por ele, era de uma beleza cinematográfica. Um amigo navegante perguntou‑me como conhecia eu tão bem o mar e respondi‑lhe que não fizera mais do que copiar à letra as observações de Velasco. A partir de um certo ponto, já não tive nada a acrescentar.

O comando da marinha não estava com o mesmo humor. Pouco antes do final da série, dirigiu ao jornal uma carta de protesto por ter manobrado com critério mediterrâneo e de forma pouco elegante uma tragédia que podia suceder onde quer que operassem unidades navais. «Apesar do luto e da dor que dominam sete respeitáveis lares colombianos e todos os homens da armada ‑ dizia a carta ‑ não houve da parte de cronistas neófitos na matéria qualquer inconveniente em chegar ao folhetim, cheio de palavras e conceitos antitécnicos e ilógicos colocados na boca de afortunado e meritório marinheiro que com coragem salvou a sua vida.» Por esse motivo, a armada solicitou a intervenção da Oficina de Información y Prensa da presidência da República a fim de que supervisionasse ‑ com a ajuda de um oficial naval ‑ as publicações que fossem feitas sobre o incidente no futuro.

Por sorte, quando chegou a carta estávamos no penúltimo capítulo e pudémos fazer‑nos desentendidos até à semana seguinte.

Prevendo a publicação final do texto completo, tínhamos pedido ao náufrago que nos ajudasse com a lista e as direcções dos seus outros companheiros que tinham máquinas fotográficas e estes mandaram‑nos uma colecção de fotografias tiradas durante a viagem. Havia de tudo, mas a maioria eram de grupos na coberta e ao fundo viam‑se as caixas de electrodomésticos ‑ frigoríficos, aquecedores, máquinas de lavar ‑ com as marcas de fábrica em evidência. Bastou‑nos este golpe de sorte para desmentir os desmentidos oficiais. A reacção do governo foi imediata e terminante, e o suplemento ultrapassou todos os precedentes e os prognósticos de circulação. Mas Guillermo Cano e José Salgar, invencíveis, apenas tinham uma pergunta:

‑ E agora, que carago vamos fazer?

Naquele momento, embriagados pela glória, não tínhamos resposta. Todos os temas nos pareciam banais.

Quinze anos depois de publicado o relato em El Espectador, a editora Tusquets de Barcelona publicou‑o num livro de capas douradas que se vendeu como se fosse de comer (Relato de um Náufrago, na tradução portuguesa. (N. T.)). Inspirado num sentimento de justiça e na minha admiração pelo heróico marinheiro, escrevi no final do prólogo: «Há livros que não são de quem os escreve mas de quem os sofre, e este é um deles. Os direitos de autor, portanto, serão para quem os merece: o compatriota anónimo que teve de padecer dez dias sem comer nem beber numa balsa para que este livro fosse possível.»

Não foi uma frase vã, pois os direitos do livro foram pagos na íntegra a Luis Alejandro Velasco pela editora Tusquets, por instruções minhas, durante catorze anos. Até que o advogado Guillermo Zea Fernández, de Bogotá, o convenceu de que os direitos lhe pertenciam a ele (por lei), sabendo que não eram seus a não ser por uma decisão minha em homenagem ao seu heroísmo, talento de narrador e amizade.

A acção contra mim foi apresentada no Juzgado 22 Civil del Circuito de Bogotá (Tribunal Civil 22 do Círculo de Bogotá. (N. T.)). O meu advogado e amigo Alfonso Gómez Méndez deu então à editora Tusquets ordem para suprimir o parágrafo final do prólogo nas posteriores edições e não pagar a Luis Alejandro Velasco nem mais um cêntimo dos direitos até que a justiça decidisse. Assim foi feito. Ao fim de um longo debate que incluiu provas documentais, testemunhais e técnicas, o tribunal decidiu que o único autor da obra sou eu e não acedeu às petições que o advogado de Velasco apresentara. Por conseguinte, os pagamentos que foram feitos até então por disposição minha não tinham tido como fundamento o reconhecimento do marinheiro como co‑autor, mas a decisão voluntária e livre de quem o escreveu. Os direitos de autor, também por disposição minha, foram doados desde então a uma fundação docente.

Não nos foi possível encontrar outra história como aquela, porque não era das que se inventam no papel. Inventa‑as a vida, e quase sempre à força. Aprendemo‑lo depois, quando tentámos escrever uma biografia do formidável ciclista antioquenho Ramón Hoyos, coroado aquele ano campeão nacional pela terceira vez. Lançámo‑la com o aparato aprendido na reportagem do marinheiro e prolongámo‑la até aos dezanove capítulos, antes de nos apercebermos de que o público preferia Ramón Hoyos a escalar montanhas e a chegar primeiro à meta, mas na vida real.

Vislumbrámos uma esperança mínima de recuperação numa tarde em que Salgar me telefonou para que me reunisse de imediato com ele no bar do Hotel Continental. Estava ali com um velho e sério amigo seu que acabava de lhe apresentar o seu acompanhante, um albino absoluto com roupa de operário e uma cabeleira e umas sobrancelhas tão brancas que parecia deslumbrado mesmo na penumbra do bar. O amigo de Salgar, que era um conhecido empresário, apresentou‑o como um engenheiro de minas que estava a fazer escavações num terreno baldio a duzentos metros de El Espectador, em busca de um tesouro de fábula que tinha pertencido ao general Simon Bolívar. O seu acompanhante ‑ muito amigo de Salgar, como o foi meu desde então ‑ garantiu‑nos a verdade da história. Era suspeita pela sua simplicidade: quando o Libertador se dispunha a continuar a sua última viagem, vindo de Cartagena, derrotado e moribundo, supõe‑se que preferiu não levar um valioso tesouro pessoal que tinha acumulado durante as penúrias das suas guerras como uma merecida reserva para uma boa velhice. Quando se dispunha a continuar a sua amarga viagem ‑ não se sabe se para Caracas ou para a Europa ‑ teve a prudência de o deixar escondido em Bogotá, sob a protecção de um sistema de códigos lacedemónios muito próprio do seu tempo, para o encontrar quando lhe fosse necessário e de qualquer parte do mundo. Recordei estas notícias com uma ansiedade irresistível enquanto escrevia O General no Seu Labirinto, onde a história do tesouro teria sido essencial, mas não consegui dados suficientes para torná‑la credível e, em contrapartida, pareceu‑me frágil como ficção. Essa fortuna de fábula, nunca recuperada pelo seu dono, era o que o pesquisador pesquisava com tanto afinco. Não entendi por que no‑la tinham revelado, até que Salgar me explicou que o seu amigo, impressionado pelo relato do náufrago, quis fornecer‑nos os antecedentes para que a seguíssemos dia a dia até que pudesse ser publicada com igual desenvolvimento.

Fomos ao terreno. Era o único baldio a ocidente do Parque de los Periodistas e muito perto do meu novo apartamento. O amigo explicou‑nos sobre um mapa colonial as coordenadas do tesouro em pormenores reais dos montes de Monserrate e La Guadalupe. A história era fascinante e o prémio seria uma notícia tão explosiva como a do náufrago e com maior alcance mundial.

Continuámos a visitar o lugar com certa frequência, para nos mantermos actualizados, ouvíamos o engenheiro durante horas intermináveis à base de aguardente e limão, e sentíamo‑nos cada vez mais longe do milagre, até que passou tanto tempo que nem sequer nos restou a ilusão. A única coisa de que pudemos suspeitar mais tarde foi de que a história do tesouro não era mais do que um biombo para explorar sem licença uma mina de algo muito valioso em pleno centro da capital. Embora fosse possível que também esse não passasse de outro biombo para manter a salvo o tesouro do Libertador.

Não eram os melhores tempos para sonhar. Desde o relato do náufrago, tinham‑me aconselhado a que permanecesse um tempo fora da Colômbia enquanto se desanuviava a situação, devido a ameaças de morte, reais ou fictícias, que nos chegavam por diversos meios. Foi a primeira coisa em que pensei quando Luis Gabriel Cano me perguntou sem preâmbulos o que ia fazer na quarta‑feira próxima. Como não tinha nenhum plano, disse‑me com a sua fleuma do costume que preparasse os meus papéis para viajar como enviado especial do jornal à Conferência dos Quatro Grandes, que se reunia na semana seguinte em Genebra.

A primeira coisa que fiz foi telefonar à minha mãe. A notícia pareceu‑lhe tão grande que me perguntou se me referia a alguma quinta que se chamasse Genebra. «É uma cidade da Suíça», disse‑lhe. Sem se perturbar, com a sua interminável serenidade para assimilar as tropelias mais impensáveis dos filhos, perguntou‑me até quando lá estaria e respondi‑lhe que voltaria o mais tardar daí a duas semanas. Na realidade, ia apenas pelos quatro dias que durava a reunião. No entanto, por razões que não tiveram nada que ver com a minha vontade, não me demorei duas semanas mas quase três anos. Nessa altura, era eu que precisava do bote de remos mesmo que fosse apenas para comer uma vez por dia, mas tive o cuidado de que a minha família não o soubesse. Alguém pretendeu em dada ocasião perturbar a minha mãe com a aleivosia de que o filho vivia como um príncipe em Paris, depois de a enganar com a história de que apenas lá estaria duas semanas.

‑ Gabito não engana ninguém ‑ disse‑lhe ela com um sorriso inocente ‑, o que se passa é que às vezes até Deus tem que fazer semanas de dois anos.

Nunca me dera conta de que era um indocumentado tão real como os milhões deslocados pela violência. Nunca tinha votado por falta de um bilhete de identidade. Em Barranquilla, identificava‑me com a minha credencial de redactor de El Heraldo, onde tinha uma falsa data de nascimento para escapar ao serviço militar, do qual era refractário desde há dois anos. Em casos de emergência, identificava‑me com um bilhete‑postal que me deu a telegrafista de Zipaquirá. Um amigo providencial pôs‑me em contacto com o gerente de uma agência de viagens, que se comprometeu a embarcar‑me no avião na data indicada mediante o pagamento adiantado de duzentos dólares e a minha assinatura no fundo de dez páginas em branco de papel selado. Assim fiquei a saber, por carambola, que o meu saldo bancário era uma quantidade surpreendente que não tinha tido tempo de gastar devido aos meus afãs de repórter. O único gasto, à parte os meus gastos pessoais que não ultrapassavam os de um estudante pobre, era o envio mensal do bote a remos para a família.

Na véspera do voo, o gerente da agência de viagens cantou à minha frente o nome de cada documento à medida que os colocava sobre a minha secretária para que não os confundisse: bilhete de identidade, caderneta militar, recibos de estar tudo em ordem com a tesouraria de impostos e os certificados de vacina contra a varíola e a febre amarela. No fim, pediu‑me uma gorjeta adicional para o esquálido rapaz que se vacinara as duas vezes em meu nome, como se vacinava todos os dias desde há anos para os clientes apressados.

Viajei para Genebra com o tempo exacto para a conferência inaugural de Eisenhower, Bulganine, Éden e Faure, sem outro idioma além do castelhano e ajudas de custo para um hotel de terceira classe, mas bem apoiado pelas minhas reservas bancárias. O regresso estava previsto para daí a cinco semanas mas, não sei por que rara premonição, distribuí pelos amigos tudo o que era meu no apartamento, inclusive uma estupenda biblioteca de cinema que reunira em dois anos, com a assessoria de Álvaro Cepeda e Luis Vicens.

O poeta Jorge Gaitán Durán chegou para se despedir quando eu estava a rasgar papéis inúteis e teve a curiosidade de revistar o cesto do lixo para ver se encontrava algo que pudesse servir‑lhe para a sua revista. Resgatou três ou quatro folhas rasgadas a meio e leu‑as por alto enquanto as reunia como um quebra‑cabeças sobre a secretária. Perguntou‑me de onde tinham saído e respondi‑lhe que era o «Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo» (O conto «Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo» foi publicado em tradução portuguesa na colectânea Olhos de Cão Azul. (N. T.)), eliminado no primeiro rascunho de A Revoada. Avisei‑o de que não era inédito, porque o tinham publicado na Crónica e no «Magazine Dominical» de El Espectador, com o mesmo título posto por mim e com uma autorização que me lembrava de ter dado à pressa num elevador.

Gaitán Durán não se importou com isso e publicou‑o no número seguinte da revista Mito.

A despedida da véspera em casa de Guillermo Cano foi tão tormentosa que quando cheguei ao aeroporto já tinha partido o avião de Cartagena, onde dormiria nessa noite para me despedir da família. Por sorte, apanhei outro ao meio‑dia. Fiz bem, porque o ambiente doméstico descontraíra‑se desde a última vez e os meus pais e irmãos se sentiam capazes de sobreviver sem o bote a remos de que eu ia necessitar mais do que eles na Europa.

Viajei para Barranquilla por estrada no dia seguinte muito cedo a fim de apanhar o voo de Paris às duas da tarde. No terminal de autocarros de Cartagena, encontrei‑me com Lácides, o porteiro inesquecível do Rascacielos, que não via desde então. Atirou‑se para cima de mim com um abraço de verdade e os olhos cheios de lágrimas, sem saber o que dizer nem como me tratar. Depois de um atropelado intercâmbio, porque o seu autocarro estava a chegar e o meu estava a partir, disse‑me com um fervor que me chegou à alma:

‑ O que não entendo, D. Gabriel, é por que nunca me disse quem era.

‑ Ai, meu querido Lácides ‑ respondi‑lhe, mais magoado do que ele ‑, não lho podia dizer porque ainda hoje nem eu próprio sei quem sou.

Horas depois, no táxi que me levava ao aeroporto de Barranquilla sob o ingrato céu mais transparente que qualquer outro no mundo, notei que estava na avenida Veinte de Júlio. Por um reflexo que já fazia parte da minha vida desde há cinco anos, olhei para a casa de Mercedes Barcha. E ali estava, como uma estátua sentada no portal, esbelta e distante e, de acordo com a moda do ano, com um vestido verde com rendas douradas, o cabelo cortado como asas de andorinha e a serenidade intensa de quem espera alguém que não há‑de chegar.

Não pude ignorar o frémito de que a ia perder para sempre numa quinta‑feira de Julho, a uma hora tão matinal, e por um instante pensei em parar o táxi para me despedir, mas preferi não desafiar uma vez mais um destino tão incerto e persistente como o meu.

No avião em voo continuava castigado pelas dentadas do arrependimento. Existia então o bom hábito de pôr nas costas do assento da frente algo que em bom espanhol ainda se chamava recado de escrever. Uma folha de carta com bordos dourados e o envelope do mesmo papel de linho rosa, creme ou azul e, às vezes, perfumado. Nos meus poucos voos anteriores, usara‑os para escrever poemas de adeuses que transformava em aviõezinhos de papel e deitava a voar quando saía do avião. Escolhi um azul‑celeste e escrevi a minha primeira carta formal a Mercedes sentada no portal de sua casa às sete da manhã, com o vestido verde de noiva sem dono e o cabelo de andorinha incerta, sem suspeitar sequer para quem se vestira ao amanhecer. Escrevera‑lhe outras notas de brincadeira, que improvisava ao acaso, e apenas recebia respostas verbais e sempre elusivas quando nos encontrávamos por acaso. Aquelas não pretendiam ser mais do que cinco linhas para lhe dar a notícia oficial da minha viagem. No entanto, no final, acrescentei um pós‑escrito que me cegou como um relâmpago ao meio‑dia no instante de assinar: «Se não receber resposta a esta carta antes de um mês, ficarei para sempre a viver na Europa.» Permiti‑me apenas o tempo para pensar outra vez antes de deitar a carta, às duas da madrugada, na caixa do correio do desolado aeroporto de Montego Bay. Já era sexta‑feira. Na quinta‑feira da semana seguinte, quando entrei no hotel de Genebra ao fim de uma jornada inútil de desacordos internacionais, encontrei a carta de resposta.

 

                                                                                            Gabriel Garcia Marquez

 

 

                      

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