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O DIA DO CHACAL / Frederick Forsyth
O DIA DO CHACAL / Frederick Forsyth

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O DIA DO CHACAL

 

      Paris, 25 de Agosto de 1963. Ao romper da aurora, o melhor assassino profissional do Mundo faz os preparativos finais para matar Charles de Gaulle presidente da França. O assassino é um homem encantador e implacável, o seu nome de código é Chacal. O seu preço é meio milhão de dólares, o principal obstáculo aos intentos de o Chacal é um policial baixo, modesto e pouco cuidado, o comissário Claude Lebel. Não obstante o seu chefe o considerar o melhor detetive da França, o próprio Lebel não se sente muito confiante quando começa a procurar a pista de um assassino cujos planos e identidade são uma total incógnita. Sistematicamente, com a colaboração constante das polícias de muitos países, reúne as peças do quebra cabeça que lhe permitem construir uma imagem do Chacal. A medida que os disfarces e os movimentos do assassino são desvendados, preparam-se armadilhas sucessivas, mas a presa escapa-se repetidamente.

      Quando o último segundo se aproxima e os fios cruzados da mira da espingarda do o Chacal se fixam no perfil inconfundível do alvo, o leitor tem de fazer um esforço para não gritar um aviso.

 

Anatomia de Uma Conspiração

      Está frio às 6.40 de uma manhã de Março, em Paris, e o homem prestes a ser executado por um pelotão de fuzilamento sentia ainda mais frio. Aquela hora do dia 11 de Março de 1963, no pátio do Forte d'lvry, Jean-Marie Bastien-Thiry, ex-coronel da Força Aérea Francesa, encontrava-se diante de uma estaca cravada no saibro gelado, enquanto lhe amarravam as mãos atrás do poste, e fitava, com uma incredulidade que diminuía lentamente, o pelotão de soldados voltados para ele, a vinte metros de distância. Vendaram-lhe os olhos e ouviu-se o estalido de vinte percussores de espingarda, quando os soldados armaram as carabinas. O estampido dos tiros que se seguiram não provocou qualquer onda na superfície da cidade que despertava, e o uac isolado do coup de grace, segundos depois, perdeu-se no crescente ruído do trânsito, do lado de fora das muralhas. A morte do oficial, chefe de um bando de assassinos da organização do Exército Secreto (OAS) que pretendera abater a tiro o presidente da França, deveria pôr fim a novos atentados contra a vida de De Gaulle. Porém, por um capricho do destino, em vez de um fim assinalou um princípio, cuja explicação exige que se esclareça primeiro por que razão um corpo crivado de balas pendeu das cordas que o seguravam na prisão militar, na referida manhã de Março.

      O Sol desaparecera finalmente por trás dos muros do palácio, e sombras compridas ondulavam através do pátio, levando à cidade sufocada de calor um alívio desejado. Estava-se a 22 de Agosto de 1962, dia em que alguns homens tinham decidido que o presidente, general Charles de Gaulle, deveria morrer. Enquanto a população da cidade se preparava para um fim-de-semana junto de rios e praias, o Gabinete estava reunido por trás da fachada ornamentada do Palácio do Eliseu. No pátio encontravam-se estacionados, uns atrás dos outros, dezesseis Citroens DS pretos. Um momento antes das 19:30, um funcionário apareceu atrás das portas de chapa de vidro do palácio. Os homens da segurança e os guardas postaram-se em sentido nas suas guaritas e os maciços portões de ferro abriram-se. os motoristas conduziram as limusines para a entrada e os membros do Gabinete entraram nos respectivos automóveis e partiram. Por fim, os dois carros que restavam dirigiram-se lentamente para o fundo da escada. As 19.45, outro grupo transpôs as portas de vidro.

      Com o habitual terno cinzento-antracite e gravata escura, Charles de Gaulle, conduzindo deferentemente Madame Yvonne de Gaulle pelo braço, desceu os degraus até ao primeiro Citroen. O carro, ostentando a flâmula do presidente da República da França, era conduzido por François Marroux, motorista da Polícia dotado de nervos de aço e capaz de conduzir com velocidade e segurança.

      A mulher do presidente sentou-se do lado esquerdo do banco da retaguarda e Charles de Gaulle entrou pela direita e sentou-se a seu lado. O genro de ambos, coronel Alain de Boissieu, sentou-se à frente, com Marroux. Henri Djouder, o corpulento guarda-costas naquele dia de serviço, instalou-se no segundo automóvel, ao lado do motorista. A partir desse momento, os seus olhos percorreriam incessantemente os passeios e as esquinas das ruas, à medida que seguissem velozmente.

      Um segundo homem, o comissário Jean Ducret, chefe do corpo de segurança do presidente, ocupou o banco da retaguarda. Dois motociclistas de capacete branco, que se encontravam junto do muro ocidental, avançaram em direção ao portão. Os dois automóveis seguiram-nos e o pequeno cortejo desembocou, célere, no Faubourg Saint-Honoré, seguindo para a Avenue de Marigny.

      Sob os castanheiros, um jovem de scooter, postado de vigia, arrancou de junto do passeio e seguiu-os. Quando chegaram aos Inválidos, o jovem da moto sabia o que desejava. Parou, pôs a máquina no descanso e virou na direção de um café, junto de uma esquina. Entrou e dirigiu-se para o telefone.

      O tenente-coronel Jean-Marie Bastien-Thiry, que aguardava o telefonema num bar nos subúrbios de Meudon, escutou durante alguns segundos, após o que murmurou para o bocal:

      - Muito bem, obrigado - e desligou. Saiu para o passeio, retirou um jornal dobrado de baixo do braço e abriu-o duas vezes, cuidadosamente. Do lado oposto da rua, uma mulher jovem deixou cair a cortina da janela e voltou-se para os doze homens que se encontravam na sala.

      - É o trajeto número dois - informou.

      Os homens desceram por uma escada nos fundos para a rua transversal, onde os seus carros estavam estacionados. Eram 19:25.

      Bastien-Thiry, que nutria um profundo ressentimento contra Charles de Gaulle pelo fato de este ter entregado a Argélia aos nacionalistas argelinos, levara dias preparando pessoalmente o assassinato. O local que escolhera era a Avenue de la Libération, próximo do Petit-Clamart. Segundo o plano, um grupo oculto atrás de uma furgoneta estacionada abriria fogo contra o carro do presidente uns duzentos metros antes do cruzamento principal. Pelos cálculos de Bastien-Thiry, cento e cinqüenta balas deveriam ter trespassado o carro da frente quando este chegasse junto da furgoneta. Com o veículo presidencial imobilizado, um segundo grupo, do qual fazia parte Georges Watin, um dos mais temíveis atiradores da OAS, irromperia da estrada transversal para disparar de perto contra o carro da polícia de segurança.

      Ambos os grupos liquidariam o grupo presidencial, após o que correriam para os veículos de fuga, que os aguardavam numa rua transversal. O próprio Bastien-Thiry ficaria de vigia.

      Cerca das 20:00 os grupos ocupavam as suas posições.

      A cem metros, do lado de Paris do ponto da emboscada, Bastien-Thiry esperava num ponto de ônibus o momento de fazer sinal a Serge Bernier, comandante do primeiro grupo. Quando o cortejo do general De Gaulle se libertou do trânsito citadino, a sua velocidade aumentou para 95 km/hora.

      Os dois motociclistas passaram para a retaguarda, pois a De Gaulle nunca agradara a ostentação de os levar à frente. O cortejo aproximava-se da Avenue de la Libération. Eram 20:17. Pouco mais de quilômetro e meio adiante, Bastien-Thiry sofria as conseqüências do seu grande erro Ao planejar o horário do atentado, consultara um calendário de 1961 e verificara que, a 22 de Agosto, o crepúsculo caíra às 20:35. Mas em 22 de Agosto de 1962 era noite às 20:10.

      Esses vinte e cinco minutos modificariam a história da França. As 20:18, Bastien-Thiry viu o cortejo descer velozmente a Avenue de la Libération e agitou, frenético, o jornal. Do outro lado da estrada, e cem metros mais abaixo, Bernier olhava, através da obscuridade, para a figura que se encontrava no ponto de ônibus.

      - O coronel já agitou o jornal? - perguntou. Acabara de formular a pergunta quando o automóvel presidencial surgiu à vista. - Fogo! - gritou Bernier aos seus homens, que dispararam quando o cortejo chegou junto deles. O fato do automóvel, naquele momento a uma velocidade superior a 110 km/hora, ter sido atingido por doze balas constituiu um tributo à pontaria dos assassinos. A maioria dessas balas atingiu o Citroen pela traseira. Rebentaram dois pneus, em conseqüência dos tiros, e o veículo guinou e derrapou. Uma bala estilhaçou o vidro da retaguarda e passou a centímetros do nariz do presidente. O coronel Boissieu gritou:

      - Abaixem-se! - Mme De Gaulle baixou a cabeça, mas o general soltou um gelado:

      - O quê, outra vez? - e virou-se para olhar pela janela. Marroux segurava o volante, que estremecia, e lentamente controlou a derrapagem e aliviou a pressão no acelerador.

      Em seguida, o Citroen avançou em direção ao carro com o segundo grupo de homens da OAS. Atrás de Marroux, o automóvel da segurança estava ileso. A velocidade a que o cortejo se aproximava pôs o motorista do veículo da OAS que esperava perante duas possibilidades claras: interceptá-lo ou arrancar com meio segundo de atraso.

      O homem optou pela segunda. Quando lançou o veículo para a auto-estrada, surgiu o segundo automóvel. Watin despejou a sua pistola-metralhadora contra a traseira do carro à sua frente, no qual distinguia o perfil arrogante de De Gaulle por trás do vidro estilhaçado. Djouder, no segundo automóvel, tentava disparar contra os assassinos, mas o seu próprio motorista bloqueava-lhe a visão. Os dois motociclistas, que o segundo carro da OAS quase derrubara, recuperaram o equilíbrio e aproximaram-se. Um segundo depois, os homens da OAS ficavam para trás, enquanto o cortejo desaparecia no cruzamento. Quando chegaram a Villacoublay, o general De Gaulle desceu. sacudiu estilhaços de vidro da lapela e contornou o carro, para dar o braço à mulher.

      - Ande, minha querida, vamos para casa - disse-lhe, e por fim proferiu o seu veredicto contra a OAS: - Não sabem disparar como deve ser. - E conduziu a mulher para o helicóptero que os esperava. Na pista, François Marroux permanecia sentado ao volante, o rosto cor de cinza. Enquanto a imprensa mundial especulava sobre a tentativa de assassinato, a Polícia Francesa, apoiada pelo Serviço Secreto e pela Gendarmaria, desencadeava a maior caça ao homem da história francesa. Conseguiram a primeira pista em 3 de Setembro.

      A saída da cidade de Valence, uma operação da Polícia deteve um automóvel no qual viajavam quatro homens. Um deles não tinha documentos de identificação. Levaram-no para Valence, a fim de o interrogarem, e apuraram que se tratava de um desertor da Legião Estrangeira, Pierre-Denis Magade, de vinte e dois anos.

      - É a respeito de  Petit-Clamart? - perguntou-lhe um dos polícias. Magade encolheu os ombros, desamparado, e perguntou:

      - Que querem  saber?

      E falou durante oito horas, enquanto os polícias o escutavam, estupefatos. Quando acabou o seu relatório, revelou os nomes de todos os participantes no atentado de Petit-Clamart, e desencadeou-se a caça. Só escapou um: Georges Watin. Bastien-Thiry e os outros cúmplices foram julgados em Janeiro de 1963.

      Enquanto decorria o julgamento, a OAS reuniu as suas forças para outro ataque de grande envergadura ao governo gaullista, a que o Serviço Secreto Francês respondeu ferozmente. O Serviço Secreto Francês, Service de Documentation Extérieure et de Contre-Espionage (SDECE), divide-se em sete grupos encarregados da espionagem fora da França e da contra-espionagem no interior. O Serviço Cinco, ou Serviço de Ação, era o núcleo da atividade anti-OAS. Da sua sede, perto da Porta dos Lilases, um subúrbio pobre do Nordeste de Paris, partiram cem homens duros para a guerra contra a OAS. Na sua maioria corsos.

      Eram Peritos na luta com armas ligeiras e no combate sem armas, karatê e judo. Haviam freqüentado cursos de rapto, interrogatório e assassinato. Autorizados a matar no desempenho das suas missões, utilizavam frequentemente essa autorização. Alguns deles alistaram-se na OAS e infiltraram-se nas suas cúpulas. Conhecidos por Barbouzes, ou Barbudos, devido às suas funções clandestinas, eram odiados mais do que qualquer polícia pela OAS.

      Nos últimos dias de luta pelo poder entre a OAS e as autoridades gaulistas em território argelino, a OAS capturou sete barbouzes vivos. Os seus corpos foram posteriormente encontrados, suspensos de varandas e candeeiros de iluminação pública, sem orelhas nem nariz.

      A 14 de Fevereiro de 1963 foi descoberta outra conspiração para assassinar o general De Gaulle, que no dia seguinte discursaria na École Militaire, no Champ de Mars. Ao entrar no edifício, o presidente deveria ser alvejado pelas costas por um assassino empoleirado no beiral do telhado do prédio adjacente. Não obstante o inacreditável caráter de amadorismo de que se revestia, a conjura irritou De Gaulle. No dia seguinte, o presidente convocou o ministro do Interior, Frey, que tinha a seu cargo a segurança nacional, desferiu um murro na mesa e disse-lhe:

      - Esta história dos atentados já foi longe demais. Ficou decidido dar um exemplo nas pessoas de alguns dos líderes conspiradores da OAS.

      Em 25 de Fevereiro, o ex-coronel Antoine Argoud, chefe operacional da OAS no exílio, foi apanhado no seu hotel de Munique por dois homens do Serviço de Ação e levado através da fronteira francesa oculto em furgão de lavanderia. Os homens do Serviço de Ação não tinham, porém, contado com uma circunstância: ao capturarem e encarcerarem Argoud haviam preparado o caminho para que o seu obscuro assistente, o pouco conhecido mas igualmente astuto tenente-coronel Marc Rodin, assumisse o comando das operações que tinham por objetivo o assassinato de De Gaulle. Foi um mau negócio, sob muitos aspectos.

      No dia 4 de Março, o Tribunal de Justiça Militar condenou Bastien-Thiry à morte. Quando lhe comunicaram a sentença, Bastien-Thiry sorriu e afirmou:

      - Nenhum pelotão de franceses erguerá as espingardas contra mim. -Enganava-se. A execução foi anunciada no noticiário das oito horas da Rádio Europa.

      Em um pequeno quarto de hotel da Áustria, Marc Rodin desligou o transistor, levantou-se da mesa quase sem ter tocado no café da manhã e contemplou, através da janela, a paisagem coberta de neve.

      - Pulhas! - murmurou, em tom ácido.

      Alto e magro, de rosto  cadavérico encovado pelo ódio, geralmente disfarçava as suas emoções. Filho de um sapateiro, fugira para a Inglaterra quando os Alemães ocuparam a França e alistara-se como soldado sob a bandeira da Cruz de Lorena. Após sangrentas batalhas no Norte de África e na Normandia, conquistara finalmente os galões de oficial que um homem da sua educação e ascendência nunca teria conseguido obter de outro modo.

      Na França do pós-guerra tivera possibilidade de escolher entre regressar à vida civil, como sapateiro, ou permanecer no Exército. Continuara no Exército, onde viria a experimentar a amargura de ver uma jovem geração de rapazes conquistar nas aulas as insígnias pelas quais ele tivera de suar sangue. Restava-lhe apenas uma solução: alistou-se nos pára-quedistas coloniais, um dos duros regimentos de choque que lutavam contra os comunistas na Indochina Francesa. No final da campanha da Indochina era major, e após um ano de frustração passado na França foi enviado para a Argélia.

      Em sua opinião a retirada da Indochina constituía uma enorme traição aos milhares que lá tinham morrido. Para ele não podia haver mais traições. A Argélia o provaria. A Argélia era uma parte da França, habitada por três milhões de franceses. No entanto, os rebeldes não eram tão fáceis de vencer quanto Rodin inicialmente pensara. Era necessária uma maior ajuda por parte de Paris.

      Em Junho de 1958, o general De Gaulle retomou o poder como primeiro-ministro da França. De Gaulle pôs termo à corrupta IV República e fundou a V. Depois, em Janeiro de 1959, quando proferiu as palavras "Algérie Française", no Eliseu, Rodin retirou-se para o seu quarto e chorou. Tinha certeza de que a França ia enfim apoiar sinceramente os seus filhos da Argélia. Quando De Gaulle começou a restaurar a França à sua maneira, Rodin supôs que existia um erro qualquer. Não podia acreditar no boato segundo o qual se haviam verificado conversações preliminares com o inimigo. Até que surgiram provas inequívocas de que o conceito de Charles de Gaulle de uma França ressuscitada não incluía, afinal, uma Argélia Francesa. O mundo de Rodin desintegrou-se; restou-lhe apenas o ódio. Ódio ao sistema, aos políticos, aos intelectuais e aos Argelinos - mas, sobretudo, ódio àquele homem.

      Rodin arrastou todo o seu batalhão para o putsch militar de Abril de 1961. Falhou. Quando a lealdade do Exército foi  finalmente posta à prova, dezenas de milhares de soldados de serviço na Argélia ligaram os seus rádios e ouviram a voz de De Gaulle dizer: "Encontram-se perante uma opção de lealdades. Eu sou a França, o instrumento do seu destino. Sigam-me. Obedeçam-me."

      Quando  acordaram, alguns comandantes de batalhão encontraram-se apenas com um punhado de oficiais e sem a maioria dos seus sargentos. Com Rodin ficaram cento e vinte dos seus oficiais, sargentos e soldados. Juntamente com os outros putschistas, formaram a OAS, que se comprometeu a derrubar o Judas do Palácio do Eliseu.

      Quando os colonos franceses fugiram da Argélia devastada pela guerra, a OAS exerceu uma última vingança por aquilo que eram obrigados a abandonar. Quando a orgia de destruição terminou, aos líderes cujos nomes eram conhecidos das autoridades gaullistas restava apenas o exílio.

      No Inverno de 1961, Rodin tornou-se assistente de Argoud como chefe operacional da OAS no exílio.

      Argoud era o instinto, a inspiração que apoiava a ofensiva desencadeada na França metropolitana; Rodin era a organização, o bom senso astucioso. Naquela manhã de 11 de Março de 1963, fumando cigarro após cigarro diante da janela do seu quarto de hotel numa obscura aldeia austríaca, Rodin concentrava toda a sua atenção no problema de matar De Gaulle. Com o rapto recente do seu próprio superior, Argoud, e agora com a execução de Bastien-Thiry, o moral da OAS sofrera um rude golpe. Não era difícil arranjar assassinos; o problema era encontrar um homem ou um plano tão invulgares que conseguissem trespassar a muralha de segurança que entretanto se erguera em torno do presidente.

      A infiltração do Serviço de Ação na OAS aumentara de uma maneira alarmante. Na situação vigente qualquer novo plano que implicasse a coordenação de muitos grupos seria descoberto antes do assassino conseguir chegar a cem quilômetros de distância de De Gaulle. Quando se esgotaram os argumentos, Rodin murmurou: "Um homem que não seja conhecido..." Lentamente, laboriosamente, criou um plano à volta de um homem nessas circunstâncias e depois submeteu-o a todos os obstáculos que conseguiu imaginar. O plano resistiu.

      Pouco antes da hora do almoço, Marc Rodin percorreu a rua gelada até aos Correios e expediu uma série de telegramas informando os seus colegas, espalhados pelo Sul da Europa a coberto de nomes falsos, de que estaria ausente durante algumas semanas. No meio da tarde partira já numa missão solitária, a fim de encontrar um homem que não tinha certeza de existir. A busca de Rodin só terminou decorridos noventa dias.

      Em meados de Junho, Rodin regressou à Áustria e instalou-se na Pensão Kleist, na Brucknerallee, em Viena. Da estação principal dos Correios enviou telegramas convocando os seus dois assessores para uma reunião urgente.

            Assinou os telegramas com o seu nome de código para aqueles vinte dias: Schulz. As onze horas da manhã seguinte os homens já haviam chegado: René Montclair, de Bolzano, e André Casson, de Roma. Rodin os fez sentar nas duas poltronas do quarto, retirou de um armário uma garrafa de brandy francês e ergueu-a num gesto interrogador. Ambos os seus convidados acenaram afirmativamente. Enquanto bebiam, Rodin observava-os de uma cadeira de costas retas colocada atrás de uma mesa.

      René Montclair, baixo e entroncado, era um oficial de carreira que nos dez anos anteriores trabalhara na seção de pagamentos da Legião Estrangeira. Agora era tesoureiro da OAS. André Casson era civil. Baixo e meticuloso, vestia-se ainda como o gerente bancário que fora na Argélia. Era coordenador da OAS clandestina na França metropolitana. Ambos os homens fitavam curiosamente Rodin, mas sem formularem perguntas.

      Cuidadosa e meticulosamente, Rodin começou a expor-lhes o plano:

      - A polícia secreta infiltrou-se tão completamente no movimento que até as deliberações dos nossos órgãos mais elevados chegam ao seu conhecimento. Na minha opinião existe apenas um método para realizarmos o nosso principal objetivo, o assassinato de De Gaulle, de maneira a iludir a rede de espiões e a deixar a polícia secreta numa situação em que dificilmente poderá frustrar as nossas intenções, mesmo que delas tenha conhecimento.

      Fez-se um  silencio profundo no quarto. Depois Rodin declarou:

      - Acho que temos de contratar um estranho.

      Montclair e Casson fitaram-no, estupefatos.

      - Esse homem teria de ser estrangeiro - continuou Rodin. - Não seria conhecido da Polícia Francesa nem existiria em nenhum arquivo. Faria o trabalho e regressaria ao seu país. De qualquer modo, a fuga não se revestiria de extrema importância para o indivíduo em causa, uma vez que nós o libertaríamos depois de assumirmos o poder. O importante será que ele consiga entrar sem ser detectado e sem levantar suspeitas.

      Montclair soltou um assobio baixo e exclamou:

      - Um assassino profissional!

      - O que quero saber é se concordam, em princípio, com a idéia - disse Rodin. Montclair e Casson entreolharam-se e depois acenaram lentamente com a cabeça. - Bien. Chamei-os aqui porque estou absolutamente seguro da sua lealdade à causa e da sua capacidade de guardar um segredo. Além disso, René, a sua cooperação como tesoureiro é necessária, para se proceder ao pagamento da quantia que qualquer assassino profissional sem dúvida exigirá. Quanto a você, André, a sua cooperação será necessária para garantir a esse indivíduo a assistência, na França, de um punhado de homens leais, no caso de ele precisar recorrer a eles. Não vejo, porém, necessidade de mais alguém, além de nós, tomar conhecimento dos detalhes do plano.

      Novo silêncio. Depois Montclair perguntou:

      - Quer dizer que não vai revelar seu projeto a todo o conselho da OAS? Eles não vão gostar disso.

      - Eles não saberão de nada - respondeu Rodin calmamente. - Mesmo que conseguíssemos obter o seu  consentimento, não adiantaríamos nada com isso e quase trinta pessoas ficariam de posse do segredo. Se, por outro lado, assumirmos a responsabilidade e o plano for bem sucedido, nos encontraremos no poder e os meios exatos que terão levado à destruição do ditador se tornarão um ponto acadêmico. Em resumo, concordam os dois em juntar-se a mim como únicos autores do plano?

      Decorrido um longo momento, Montclair e Casson acenaram afirmativamente. Rodin respirou fundo lentamente e sorriu.

      - Ótimo! Passemos agora aos detalhes. Desde o dia em que o pobre Bastien-Thiry foi assassinado tenho procurado o homem de que precisamos. O resultado da busca está aqui resumido. Estendeu a cada um deles um dos dossiês de capa de tela colocados sobre a mesa. Depois de os lerem, Montclair e Casson devolveram-nos.

      - O mercado é restrito - disse Rodin. - Talvez haja mais homens que façam este gênero de trabalho, mas é muito difícil encontrá-los. Por enquanto nos deteremos nesses três como o Alemão, o Sul-Africano e o Inglês. Qual é a sua opinião, André?

      Casson encolheu os ombros.

      - O Inglês vai à frente com quase um quilômetro de vantagem.

      - E você que é que acha, René?

      - Concordo. O alemão é um pouco velho para  este tipo de trabalho e o Sul-Africano pode ser muito bom para liquidar políticos locais, mas daí a meter uma bala no corpo do presidente da França vai uma grande distância. Além disso, o Inglês fala bem francês.

      Rodin acenou afirmativamente.

      - Já calculava que não haveria muitas dúvidas.

      - Tem certeza de que ele fez, realmente, trabalhos desse tipo? - perguntou Casson.

      - Eu próprio fiquei surpreso – declarou Rodin. - Por isso dediquei-lhe mais tempo do que aos outros. Se houvesse provas absolutas, isso significaria que ele estaria registrado em toda a parte como imigrante indesejável. Mas contra ele só há boatos. Tem, para este trabalho, todas as vantagens menos uma: não será barato. Como estão as finanças, René?

      Montclair encolheu os ombros.

      - Teríamos de arranjar dinheiro, claro. Mas será inútil fazê-lo enquanto não soubermos de quanto vamos precisar ...

      - O que significa – interrompeu-o Casson - que o passo seguinte é perguntar ao Inglês se está disposto a fazer o trabalho e por quanto.

      - Estamos então todos de acordo? - perguntou Rodin, e consultou o relógio. - Pouco passa da uma. Tenho um agente em Londres que pode contatar esse homem. Se ele estiver disposto a meter-se, esta noite, num avião para Viena, podemos encontrar-nos aqui com ele depois do jantar. Reservei quartos contíguos para vocês.

      Rodin chamou o seu guarda-costas, um polaco gigantesco de nome Viktor Kowalski, que fora cabo na Legião Estrangeira. Depois voltou-se de novo para Montclair e Casson e disse-lhes:

      -Tenho de telefonar da estação principal dos Correios e levo o Viktor comigo. Enquanto eu estiver ausente importam-se de ficar aqui os dois, com a porta fechada à chave? O meu sinal são três pancadas, uma pausa e depois mais duas. - O sinal era o conhecido três-mais-dois, o ritmo das palavras Algérie Française que os motoristas de Paris tinham tocado com as buzinas para exprimir a sua desaprovação pela política gaulisía.

      O Vanguard da BEA de Londres chegou ao escurecer ao Aeroporto de Schwechat. Perto da cauda do aparelho um inglês alto e louro, recostado no lugar, via desfilar, rápidas, as luzes da pista. Por fim as luzes desapareceram e as rodas tocaram o chão. Agradava-lhe a precisão das manobras de aterragem. Depois do almoço, fora contatado no seu apartamento, em Mayfair, por um jovem francês que lhe pedira que seguisse de avião para Viena dentro de três horas. Preparara uma maleta e seguira de táxi para o Aeroporto de Heathrow. Recebera instruções para comparecer no balcão das informações em Schwechat. No referido balcão, situado na entrada principal, declinou o nome de código previamente combinado a uma atraente austríaca, que procurou numa série de papéis e depois lhe entregou um bilhete que dizia apenas: "Telefone 61 44 03, pergunte por Schulz."

      Dirigiu-se a uma cabina telefônica pública e ligou para Herr Schulz, que lhe transmitiu instruções breves e precisas. Quando saiu da cabina, acendeu um cigarro de filtro inglês king-size e aproximou o bilhete da chama do isqueiro. O papel ardeu por um instante e desapareceu em fragmentos negros sob a elegante bota de camurça.

      O homem saiu do edifício e mandou parar um táxi. Quarenta minutos depois o recepcionista de serviço na Pensão Kleist ouviu a porta ranger e ergueu a cabeça no momento em que o Inglês se dirigia para a escada. O visitante dirigiu-lhe um aceno com a cabeça em tom natural e saudou-o:

      - Guten Abend.

       - Guten Abend, mein Herr - redarguiu automaticamente o recepcionista. E no momento em que terminou a frase já o homem louro desaparecera. Ao cimo da escada, deteve-se e observou o corredor.

      Entre ele e a porta do 64 estendiam-se seis metros de corredor, com duas portas do lado direito e uma cama com um armário do lado esquerdo. Examinou cuidadosamente a cama. Sob o armário despontava a biqueira de um sapato preto. O homem voltou-se, desceu a escada e regressou ao átrio.

      - Ligue-me para o 64, por favor - pediu.

      Segundos depois o recepcionista levantava o auscultador do telefone da

recepção e estendia-o.

      - Se esse gorila não sair da cama em quinze segundos, volto para casa -disse o Inglês, e desligou. Em seguida subiu de novo as escadas.

      Chegado ao alto, viu abrir-se a porta do 64. O coronel Rodin fitou-o, do fundo do corredor, e depois disse em voz baixa:

      - Não há problema, Viktor. Nós o esperávamos.

      O corpulento polaco saiu da alcova e o seu olhar faiscante passou de um para o outro. Rodin introduziu o Inglês no quarto, arrumado de maneira que parecia um posto de recrutamento. A cadeira de costas retas por trás da mesa estava vaga, flanqueada por duas outras ocupadas por Montclair e Casson.

      O inglês escolheu uma poltrona e virou-a de frente para a mesa. Rodin deu instruções a Viktor, fechou a porta e ocupou o seu lugar à mesa.

      Durante alguns segundos fitou o homem vindo de Londres. O visitante, que aparentava trinta e poucos anos, tinha cerca de um metro e oitenta de altura e boa constituição atlética. De rosto bronzeado e feições regulares, mas não invulgares, parecia um homem dotado de autodomínio. Os seus olhos, porém, preocuparam Rodin. As íris cinzentas mosqueadas pareciam esfumadas, e só decorridos alguns segundos o francês percebeu que não tinham expressão. Quaisquer que fossem os pensamentos que existiam por trás daquela nuvem de fumaça, não transparecia nada que os denunciasse, e Rodin sentiu uma ligeira inquietação.

      - Sabemos quem você é - começou bruscamente. - Acho melhor apresentar-me: coronel Marc Rodin...

      - Eu sei - interrompeu-o o Inglês.- O senhor é chefe operacional da OAS. E o senhor é o major René Montclair, tesoureiro, e o senhor, André Casson, dirigente na clandestinidade. - olhou-os sucessivamente enquanto falava, e em seguida tirou um cigarro, acendeu-o. recostou-se na poltrona e expeliu a primeira fumaça. - Meus senhores, vamos ser francos. Sei o que são e os senhores sabem o que eu sou. Temos todos ocupações incomuns. Eu atuo por dinheiro, os senhores, por idealismo. Mas somos todos profissionais. Portanto, não precisamos de subterfúgios. Os senhores fizeram umas investigações e eu considerei importante saber quem estava tão interessado em mim. Assim que descobri a identidade da organização, dois dias passados nos arquivos dos jornais franceses no Museu Britânico bastaram para descobrir a seu respeito. Por isso a visita do seu mensageiro quase me não surpreendeu. Bom, o que gostaria de saber é o que pretendem.

      Seguiram-se  alguns momentos de silêncio, que finalmente Rodin quebrou:

      - Não vou aborrecê-lo com a enumeração das motivações da nossa organização. Estamos convencidos de que, presentemente, a França é governada por um ditador, e que só poderá ser restituída aos Franceses se ele morrer. Até agora, as nossas tentativas para o eliminar têm malogrado. Neste momento estamos considerando a hipótese de contratar os serviços de um profissional. No entanto, não desejamos desperdiçar o nosso dinheiro. A primeira coisa que gostaríamos de saber era se é possível.

      A última frase acendeu um lampejo de expressão nos olhos cinzentos .

      - Não há nenhum homem no mundo à prova da bala de um assassino - declarou o Inglês.- A questão é que as probabilidades de escapar não seriam muito grandes. Um fanático disposto a morrer na tentativa é sempre o método mais certo. E verifico – acrescentou - que, não obstante o seu idealismo, ainda não conseguiram arranjar um homem desses.

      - Há patriotas franceses dispostos a ... – começou Casson apaixonadamente mas Rodin mandou-o calar com um gesto.

      - E com um profissional? - indagou.

      - Um profissional não atua inspirado pelo fervor e, consequentemente, tem mais calma. Não sendo idealista, não é provável que, no último momento, pense na possibilidade de ferir outras pessoas, e sendo profissional, calculou os riscos sem esquecer a mínima contingência. Por isso as suas probabilidades de êxito à partida são maiores do que as de qualquer outro; mas nem sequer atuará enquanto não elaborar um plano que lhe permita não só cumprir a missão, mas também escapar ileso.

      -Acha possível elaborar um plano que  permitisse a um profissional matar De Gaulle e escapar?

      - Em princípio, acho - respondeu o Inglês. - Mas seria um dos trabalhos mais difíceis do Mundo. Embora todos os homens importantes tenham guarda-costas, se no decorrer de alguns anos não se verificar nenhum atentado sério contra a sua vida, o grau de vigilância diminui. No caso de De Gaulle a vigilância não afrouxará. Como compreenderão, os seus próprios esforços dificultaram a tarefa de qualquer outro. Mas não me chamaram aqui para conversarmos a respeito de um assassinato político. Chamaram-me porque chegaram à conclusão de que, em virtude da sua organização estar infiltrada pelo Serviço Secreto, precisam de um estranho. E têm razão. Só resta saber quem e por quanto. Penso, meus senhores, que já dispusemos de tempo suficiente para examinarem a mercadoria.

      Rodin olhou de soslaio para Montclair e arqueou uma sobrancelha. Montclair acenou afirmativamente. Casson imitou-o. O Inglês olhava para o exterior, através da janela, sem demonstrar o mínimo interesse.

      - Encarrega-se de assassinar De Gaulle? - perguntou-lhe por fim Rodin. Não obstante ser formulada em voz baixa, a pergunta pareceu encher o quarto. O olhar do Inglês voltou a fixar-se nele, de novo inexpressivo.

      - Me encarrego, mas vai custar muito dinheiro. Devem compreender que se trata de um trabalho que aparece uma vez numa vida inteira. São muito escassas as probabilidades de não se ser nem apanhado nem descoberto. Por isso é necessário ganhar o suficiente para poder viver bem o resto da vida e arranjar proteção contra a vingança dos gaullistas.

      - Quando tivermos a França - disse Casson -, haverá muito...

      - Pagamento em dinheiro - interrompeu-o o Inglês. - Metade antecipadamente e a outra metade quando a missão for cumprida.

      - Quanto? - perguntou Rodin.

      - Meio milhão de dólares.

      - Meio milhão de  dólares?! - gritou Montclair, erguendo-se da cadeira. -Está doido!

      - Não estou - respondeu o Inglês calmamente.- Mas sou o melhor e portanto o mais caro. Tendo em consideração que esperam ficar com a própria França, parece que atribuem ao SEU país um preço muito baixo.

      - Touché - disse Rodin. - o problema, monsieur, é que não temos meio milhão de dólares em dinheiro.

      - Estou ciente disso - declarou o Inglês. - Se querem o trabalho Feito, têm de arranjá-lo. Eu não preciso do trabalho. No entanto, como a idéia de ganhar o suficiente para me aposentar me agrada, estou disposto a correr alguns riscos excepcionalmente grandes. Porém, se não conseguem reunir a importância, têm de voltar a planejar as suas próprias ações - declarou e começou a levantar-se.

      Rodin ergueu-se também.

      - Não se  levante, monsieur. Nós arranjaremos o dinheiro.

      Sentaram-se ambos.

      - Muito bem - declarou o Inglês. - Mas ponho condições. Para começar, quantas pessoas sabem desta idéia?

      - Só nós três.

      - Então deve continuar assim. Todos os apontamentos devem ser destruídos. Deve ficar tudo apenas nas suas cabeças, e os senhores devem permanecer todos em lugar seguro até o trabalho ser feito. De acordo?

      - De acordo. Que mais?

      - Não divulgarei o plano a ninguém, nem mesmo aos senhores. Não voltarão a ter notícias minhas. Vou deixar-lhes o nome do meu banco na Suíça. Quando de lá me informarem que os primeiros duzentos e cinqüenta mil dólares foram depositados, e quando eu estiver completamente preparado, atuarei. Não permitirei que me apressem. De acordo?

      - De acordo. Mas os nossos homens na clandestinidade na França têm possibilidades de lhe dar grande assistência a nível de informações.

      O Inglês refletiu um momento.

      - Está bem. Quando estiverem preparados, mandem-me um número de telefone. Depois disso não revelarei o meu paradeiro, me limitarei a ligar para esse número, a fim de obter as informações mais recentes sobre as medidas de segurança em torno do presidente. O homem que receber as chamadas só deverá saber que me encontro na França numa missão de que os senhores me encarregaram e que preciso da sua ajuda.

      - O que gostaria de saber - murmurou Montclair - é como vamos arranjar tanto dinheiro em tão pouco tempo.

      - Assaltem alguns bancos - sugeriu o Inglês despreocupadamente.

      - De qualquer maneira, esse problema é nosso - declarou Rodin.

      - Há alguma coisa mais que queiram esclarecer antes do nosso visitante regressar a Londres?

      - Que o impedirá de receber o primeiro quarto de milhão e desaparecer? -perguntou Casson.

      - Já lhes disse, meus senhores, que quero me aposentar. Não desejo ter meio exército de ex-páraquedistas me procurando.

      - E que nos impedirá - insistiu Casson - de nos recusarmos à pagar-lhe o restante, uma vez o trabalho realizado?

      - Numa tal eventualidade, eu trabalharia por minha própria conta -respondeu calmamente o Inglês.- E o alvo seriam os três senhores. No entanto, não creio que isso aconteça, não é verdade?

      Rodin interrompeu a conversa:

      - Não há necessidade de retermos mais tempo o nosso convidado. Espere ... um último pormenor: se deseja permanecer anônimo, precisa de um nome de código. Tem alguma idéia a esse respeito?

      O Inglês pensou por um momento.

      - Como estivemos falando de caça, que me diz de Chacal?

      Rodin acenou afirmativamente.

      - Acho ótimo. - Acompanhou-o à porta e abriu-a. Viktor saiu do esconderijo e Rodin estendeu a mão ao assassino. - Contatamos consigo conforme o combinado. Entretanto, não poderá começar a elaborar o plano em termos gerais? ... Muito bem. Então bonsoir, Monsieur Chacal.

      O polaco viu o visitante partir tão calmamente como chegara enquanto, no quarto, Rodin era alvo de uma série de perguntas por parte de Casson e Montclair:

      - Como diabo vamos arranjar meio milhão de dólares? - repetia Montclair.

      Rodin acabou por encerrar.

      - Talvez tenhamos de  aproveitar a sugestão de o Chacal e assaltar alguns bancos.

     

      Nos meses de Junho e Julho de 1963 a França foi abalada por uma erupção de crimes violentos. De um extremo ao outro do país, bancos e joalharias eram assaltados. Dois funcionários bancários foram mortos a tiros em cidades diferentes e a crise tornou-se tão grave que os agentes da Compagnie Républicaine de Sécurité (CRS) foram chamados e armados de pistolas-metralhadoras para guardarem as entradas dos bancos. Nem mesmo depois de três assaltantes terem confessado que pertenciam à OAS, a Polícia conseguiu descobrir por que motivo precisava aquela organização tão urgentemente de dinheiro.

      Nos finais de Julho a Polícia calculou que o montante dos roubos ascendia a mais de dois milhões de francos franceses, ou seja quatrocentos mil dólares. Entretanto chegou à secretária do general Guibaud chefe do SDECE, um relatório em que o seu agente em Roma o informava de que Marc Rodin, René Montclair e André Casson se haviam instalado no último andar de um hotel à saída da Via Condotti, guardados noite e dia por oito robustos e duros ex-membros da Legião Estrangeira. O general Guibaud deduziu que pretendiam apenas assegurar-se de que não seriam raptados. Só muito mais tarde compreendeu o verdadeiro significado de tais precauções.

 

      Em Londres, o Chacal passou a última quinzena de Junho e as primeiras duas semanas de Julho numa atividade cuidadosamente planejada. Entre outras coisas, leu quase tudo escrito por ou sobre Charles de Gaulle. Mas embora a leitura lhe proporcionasse um retrato completo de um orgulhoso e desdenhoso presidente da França, não respondeu às principais interrogações que formulava a si próprio: quando, como e onde deveria efetuar-se o atentado.

      Assinou um pedido de autorização para proceder a um trabalho de investigação no Museu Britânico e começou a ler números atrasados do principal diário francês, Le Figaro. Uma idéia inspirada por um articulista num número de 1962 levou-o a estudar todos os anos da carreira de De Gaulle a partir de 1945. Como resultado desse estudo, ficou sabendo precisamente em que dia e local, independentemente do perigo pessoal que tal pudesse implicar, Charles de Gaulle, a figura mais cuidadosamente guardada do mundo ocidental, apareceria em público e se mostraria. A partir de então, os preparativos de o Chacal passaram da investigação para o planejamento prático. Considerou e rejeitou pelo menos uma dúzia de idéias antes de acertar, finalmente, no plano adequado.

      O aparelho da SAS vindo de Copenhagen parou em frente ao terminal de Londres. No congestionado terraço de observação, o homem louro ergueu os óculos escuros para a testa e ajustou um binóculo. Era o sexto grupo de passageiros a ser submetido, naquela manhã, a tal observação. Quando o oitavo passageiro apareceu, o homem do terraço ficou ligeiramente tenso.

      O passageiro proveniente da Dinamarca era um pastor de terno cinzento e cabeção. O cabelo grisalho penteado para trás dava-lhe o aspecto de um homem que se aproximava da casa dos cinqüenta, embora o rosto fosse mais jovem. Era alto e tinha ombros largos e quase a mesma constituição delgada do indivíduo que o observava. Quinze minutos depois, o pastor saía do posto da alfândega com uma mala de viagem e uma pasta e abandonava o edifício, seguido de perto por Chacal, e tomaram ambos o mesmo ônibus da BEA para Londres. No terminal da Cromwell Road, o dinamarquês abriu caminho até à longa fila de táxis, enquanto o Chacal se dirigia para o seu automóvel esportivo, que se encontrava no estacionamento.

      O dinamarquês entrou no terceiro táxi, que seguiu na direção de Knightsbridge. O carro esportivo seguiu-o. O táxi deixou o sacerdote num pequeno hotel da Half Moon Street. O Chacal estacionou e entrou no hotel cinco minutos depois. Teve de esperar mais de vinte e cinco minutos no átrio até que o dinamarquês descesse e entregasse a chave do quarto à recepcionista. Quando esta a pendurou, o homem sentado na poltrona próxima verificou que o número da chave era o 47.

      Passados minutos, quando a recepcionista se dirigiu ao escritório por trás da recepção, o Chacal subiu silenciosamente as escadas. Uma tira de mica flexível, que uma espátula de pintor tornava rígida, resolveu o problema de abrir a porta do quarto 47. Como descera apenas para almoçar, o pastor deixara o passaporte na mesa-de-cabeceira.

      Decorridos trinta segundos, o Chacal encontrava-se de novo no corredor. Deixara o livro de traveler's checks intacto, na esperança de que as autoridades do hotel persuadissem o dinamarquês de que perdera o passaporte em outro lugar qualquer. E assim aconteceu.

      No dia seguinte, 14 de Julho, o funcionário do Consulado Dinamarquês registrou a perda de um passaporte emitido em nome do pastor Per Jensen e não pensou mais no assunto.

      Dois dias depois, um estudante americano, Marty Schulberg, de Nova Iorque, sofreu o mesmo percalço. Chegara ao Aeroporto de Londres e mostrara o passaporte a fim de receber um traveler's check. Em seguida guardara o dinheiro no bolso interior e o passaporte numa pequena maleta. Enquanto tentava arranjar um carregador, pousara a maleta no chão e três segundos depois ela desaparecera. O roubo foi comunicado à Polícia Metropolitana de Londres, juntamente com a descrição da maleta e do seu conteúdo, mas à medida que as semanas decorriam sem se encontrar qualquer pista, o incidente foi esquecido. Ambos os passageiros que perderam os passaportes mediam cerca de um metro e oitenta de altura, tinham olhos azuis e uma relativa semelhança facial com o discreto inglês que os roubara. A parte isso, o pastor Jensen tinha quarenta e oito anos e cabelo grisalho e usava óculos com aros de ouro apenas para ler, enquanto Marty Schulberg tinha vinte e cinco anos e cabelo castanho-claro e usava sempre óculos de aros grossos.

      Foram os  rostos destes homens que o Chacal estudou demoradamente à mesa do seu apartamento, nas imediações da South Audley Street. Precisou de um dia e de uma série de visitas a guarda-roupas para o teatro, oculistas e a um armazém especializado em vestuário masculino americano para adquirir um jogo de lentes de contato azuis não graduadas, dois pares de óculos, um deles com aros de ouro e outro com grossos aros pretos, ambos com lentes sem grau, um par de mocassins de couro preto, camisetas, calças jeans e blusão de nylon azul-celeste, tudo confeccionado em Nova Iorque.

      Comprou também um cabeção e um peitilho preto A sua última visita do dia foi a um grande armazém de perucas para homem em Chelsea onde comprou um preparado para tingir o cabelo de grisalho e outro para o tingir de castanho.

      No dia seguinte, 18 de Julho, Le Figaro informava, num pequeno parágrafo, que o vice-chefe da Brigada Criminal da Polícia Judiciária, comissário Hyppolite Dupuy, sofrera um ataque grave no seu gabinete, no Quai des Orfèvres, e morrera a caminho do hospital. O comissário Claude Lebel, chefe da Seção de Homicídios, fora nomeado seu sucessor. O Chacal, que lia diariamente todos os jornais franceses à venda em Londres, leu o parágrafo, mas deu-lhe pouca importância.

      Antes de iniciar a sua vigilância no Aeroporto de Londres, decidira agir, enquanto decorressem as operações ligadas com o assassinato, encoberto por uma série de identidades falsas. Para arranjar um passaporte britânico falso, fizera uma viagem de automóvel a pequenos cemitérios de aldeia. Na Igreja de Saint Mark, em Soubourne Fishley, encontrou a pedra tumular de Alexander Duggan, que morrera com dois anos e meio em 1931. Se fosse viva, essa criança seria agora um homem poucos meses mais velho do que o Chacal.

      O idoso vigário mostrou-se cortês e solícito quando o visitante lhe declarou estar encarregado de fazer a árvore genealógica de uma família Duggan que outrora se fixara na aldeia. Perguntou, com certo acanhamento, se os registros paroquiais não poderiam ajudar na sua investigação. Um elogio à beleza do pequeno edifício normando e uma contribuição para os fundos de restauração melhoraram a atmosfera.

      O registro paroquial revelava que ambos os progenitores tinham morrido nos últimos sete anos e que o seu filho único, Alexander James Quentin Duggan, nascera na paróquia a 3 de Abril de 1929 e fora sepultado naquele mesmo cemitério havia mais de trinta anos. O Chacal tomou nota dos detalhes, agradeceu efusivamente ao vigário e partiu.

      De volta a Londres, na Conservatória do Registro Civil, apresentou um cartão que o credenciava como sócio de uma firma de solicitadores e explicava que ele estava tentando localizar os netos de um cliente da firma recentemente falecido.

      Um deles era Alexander James Quentin Duggan. O registro indicava que a criança morrera a 8 de Novembro de 1931, em conseqüência de um desastre de trânsito. A troco de alguns xelins, o Chacal recebeu cópias das certidões de nascimento e óbito. Regressou ao seu apartamento e preencheu um impresso de requisição de passaporte, indicando a data exata do nascimento de Duggan mas com a sua própria descrição pessoal.

      Indicou "homem de negócios" como profissão e copiou os nomes dos pais de Duggan da certidão de nascimento. Indicou como referência o reverendo James Elderly, vigário da Igreja de Saint Mark, Sambourne Fishley. Forjou a assinatura do vigário com uma caligrafia leve, utilizando um aparo fino, e com uma impressora de brincar falsificou um carimbo que dizia: "Igreja da Paróquia de Saint Mark, Sambourne Fishley", que apôs firmemente ao lado do nome do vigário.

      A cópia da certidão de nascimento, o impresso de requisição de passaporte e um vale postal foram enviados para o Serviço de Passaportes de Petty France. Quanto à certidão de óbito, destruiu-a. O passaporte chegou à sua residência pelo correio quatro dias depois. Nessa mesma tarde fechou o apartamento, seguiu de automóvel para o Aeroporto de Londres e embarcou num avião para Copenhagen. No fundo falso da sua mala levava duas mil libras que levantara nesse dia num solicitador de Holborn. A visita a Copenhagen foi breve e prática.

      Antes de sair do Aeroporto de Kastrup, reservou lugar para o vôo da Sabena com destino a Bruxelas da tarde seguinte. Na capital dinamarquesa instalou-se no Hotel d'Angleterre, flertou com pouco entusiasmo duas dinamarquesas louras, enquanto passeava nos Jardins Tivoli, e deitou-se à uma hora da noite.

      No dia seguinte comprou um terno clerical cinzento leve, sapatos, luvas, roupa interior e duas camisas brancas, tudo com etiquetas de fabricantes dinamarqueses. A compra das camisas destinava-se apenas a poder mudar as etiquetas para o cabeção e peitilho de sacerdote que comprara em Londres. A sua última aquisição foi um livro, em dinamarquês, sobre as igrejas e catedrais mais notáveis de França. Almoçou nos Jardins Tivoli e embarcou no avião das 3:10 para Bruxelas.

           

      Os motivos que tinham levado um homem com o talento de Paul Goossens a enveredar pelo mau caminho na meia-idade eram um mistério tanto para os seus poucos amigos como para a Polícia Belga. Ao longo dos seus trinta anos de empregado de confiança da Fabrique Nationale d'Armes, de Liège, granjeara uma reputação de precisão infalível em questões de engenharia. Tornara-se o principal perito da fábrica numa gama muito vasta de armas.

      Também não existiam dúvidas quanto à sua honestidade. O seu cadastro do tempo de  guerra era notável.

      Durante a ocupação alemã continuara a trabalhar na fábrica de armas como chefe de um grupo de sabotadores, graças aos quais uma razoável proporção das armas produzidas em Liège ou não proporcionavam uma pontaria precisa ou explodiam ao quinto projétil, matando os municiadores alemães. Em princípios da década de 1950, quando era chefe de seção, foi acusado de defraudar um cliente estrangeiro numa elevada importância em dinheiro. Embora os seus próprios superiores tivessem sido quem mais veementemente ridicularizaram as suspeitas policiais, Goossens fora considerado culpado e condenado a cinco anos de prisão. Quando, decorridos três anos e meio, foi libertado por bom comportamento, fundou uma firma que veio a florescer graças ao fornecimento ilegal de armas a metade do mundo clandestino da Europa ocidental. Nos primórdios da década de 1960 conquistara a alcunha de l'Armurier (o Armeiro).

      Para comprar uma arma ou munições em qualquer loja de artigos esportivos do país, um cidadão belga tem de apresentar o seu bilhete de identidade, e a venda fica registrada no livro de vendas do fornecedor, juntamente com o nome e o número do bilhete de identidade do comprador. Porém, para conveniência dos seus clientes, Goossens estabelecera laços fortes com um famoso carteirista e um mestre falsário. A Polícia Belga suspeitava das suas atividades, mas as repetidas visitas que fizera à sua pequena oficina não tinham revelado mais do que os instrumentos e ferramentas necessários ao fabrico de souvenirs de ferro forjado.

      O inglês que Goossens conduziu ao seu pequeno gabinete, ao meio-dia de 21 de Julho de 1963, fora-lhe recomendado por um dos seus melhores clientes, um antigo mercenário ao serviço do Katanga.

      - Quer fazer o favor de tirar os óculos? - pediu, depois do visitante se sentar. - Acho que será melhor confiarmos um no outro na medida do possível.

      O inglês tirou os óculos escuros e fitou ironicamente o armeiro. M. Goossens sentou-se à mesa e perguntou calmamente:

      - Em que lhe posso ser útil, monsieur?

      - Suponho que Louis lhe telefonou a respeito da minha visita. Uma vez que eu sei qual é o seu negócio, não vejo nenhuma razão importante para que o senhor não saiba qual é o meu. Sou especialista na remoção de homens que têm inimigos poderosos e ricos. Neste momento tenho um trabalho em mãos para o qual vou precisar de uma espingarda especial, com alguns acessórios pouco comuns. Trata-se de arranjar uma espingarda que se adapte às limitações impostas pelo trabalho.

      Os olhos de M. Goossens brilharam de prazer.

      - Pressinto um desafio. Diga-me, que limitações são essas?

      - A principal é de tamanho. A câmara e a culatra não devem ser mais volumosas do que isto... - Formou, com o dedo médio e o polegar da mão direita, um “o” com menos de seis centímetros de diâmetro. - Não poderá ser uma arma de repetição, porque o mecanismo seria muito grande. Parece-me que terá de ser uma espingarda com ferrolho e ejetor. Como toda a arma, terá de ser metida em compartimentos tubulares, para arrumação e transporte, e como os compartimentos não devem exceder em diâmetro o que lhe disse, o mecanismo de disparo terá de ser destacável. A própria arma terá de ser leve e com cano curto, provavelmente não excedendo os trinta centímetros...

             - De que distância terá de disparar?

      - Provavelmente não superior a cento e trinta metros.

      - Um tiro na cabeça dará mais garantias de matar, se conseguir um bom tiro - observou o belga. - Mas o peito é um alvo mais seguro para se acertar. Terá oportunidade de um segundo disparo?

      - É quase certo que não. Talvez tivesse se utilizasse um silenciador e o primeiro tiro falhasse sem que ninguém próximo do alvo percebesse. De qualquer modo, vou precisar do silenciador para poder escapar. E necessário que decorram alguns minutos antes que alguém nas imediações perceba, ainda que sem qualquer precisão, de onde partiu a bala.

      - Nesse caso será melhor utilizar balas explosivas. Vou arranjar-lhe um punhado delas, juntamente com a arma. Há mais algum detalhe?

      - Para se obter o máximo adelgaçamento, todo o trabalho de madeira do fuste, sob o cano, terá de desaparecer. A arma vai precisar, para disparar, de um apoio articulado como o da Sten, cujas três seções, superior, inferior e apoio do ombro, têm de poder ser desparafusadas em três peças independentes. Por último, vão ser necessários um silenciador absolutamente eficaz e uma mira telescópica removíveis para acondicionamento e transporte.

      O belga  refletiu durante longos momentos. Por fim, o visitante impacientou-se e perguntou:

      - Então, pode fazê-la?

      M. Goossens sorriu, como quem se desculpa.

      - É uma encomenda muito complexa ... Mas posso, posso fazê-la. Na realidade, o que o senhor acaba de descrever é uma expedição de caça em que o equipamento terá de passar por certos postos de verificação sem levantar suspeitas. Uma expedição de caça pressupõe uma espingarda de caça. Tenho em mente uma arma dessas, cara, precisa, bem trabalhada e ao mesmo tempo leve e delgada. Muito utilizada para cabras-montesas e pequenos gamos, mas absolutamente indicada para caça mais grossa desde que se utilizem balas explosivas. O ajuste de um apoio articulado é uma questão meramente mecânica. O afunilamento da extremidade do cano para o silenciador e o encurtamento de vinte centímetros do cano são possíveis. Mas perde-se precisão quando se perdem vinte centímetros de cano. É bom atirador? - O inglês acenou  afirmativamente. - Nesse caso, com uma mira telescópica não haverá problemas com um alvo humano imóvel a cento e trinta metros de distância. O senhor mencionou, há momentos, a necessidade de compartimentos tubulares para transporte da arma. Quer que os faça? Nesse caso, qual é a sua idéia?

      O inglês ergueu-se e aproximou-se da mesa, dominando o armeiro com a sua altura. Levou a mão ao interior do casaco e durante um segundo, o outro experimentou uma sensação de medo. Reparou pela primeira vez que, qualquer que fosse a expressão do rosto do assassino, nunca se revelava nos olhos. Mas o inglês Iimitou-se a retirar do bolso uma lapiseira de prata. Voltou para ele o bloco de apontamentos de M. Goossens e começou a desenhar rapidamente.

      -Reconhece isto? -perguntou, e virou de novo o bloco para o armeiro.

      - Com certeza - respondeu o belga.

      - Muito bem. É isto que quero que faça. O conjunto é composto por uma série de tubos ocos de alumínio, que se parafusam uns aos outros. Esta seção em forma de Y - bateu com a ponta da lapiseira numa parte do diagrama - é constituída pelos dois tubos que conterão os esteios do suporte da espingarda. O apoio do ombro está aqui. Esta é portanto a única parte que não fica oculta e tem um duplo objetivo, sem precisar sofrer qualquer modificação. Este - bateu noutro ponto do diagrama, enquanto os olhos do interlocutor se dilatavam de surpresa - é o tubo de maior diâmetro, que conterá a caixa de mecanismos e o cano da espingarda, com a culatra no interior. As duas últimas seções conterão a mira telescópica e o silenciador. Quanto aos cartuchos, deverão ser inseridos neste pequeno rebordo da base. Quando estiver tudo montado, a arma terá precisamente este aspecto. Entendido?

      O armeiro belga olhou durante mais alguns segundos para o diagrama. Depois ergueu-se e estendeu a mão.

      - Monsieur, é uma concepção genial. Indetectável. E no entanto tão simples.

      O inglês não ficou nem lisonjeado nem descontente.

      - Ótimo - disse. - Preciso da arma dentro de catorze dias. É possível?

      - É. Posso arranjá-la em quatro dias. Os outros dez deverão bastar para fazer as modificações. Mas será conveniente o senhor vir com um ou dois dias de antecedência, na eventualidade de haver alguns ajustes de última hora. Se puder estar aqui, para os acertos finais, no dia 1 de Agosto, terá a arma pronta no dia 4.

      - Estarei aqui no dia 1 de Agosto - afirmou o inglês. – E agora vamos discutir a questão das suas despesas e dos seus honorários.

      O armeiro refletiu alguns momentos.

      - Para este gênero de trabalho tenho de pedir mil libras inglesas. Não se trata de uma simples espingarda. Tem de ser uma obra de arte. Quem quer o melhor paga, monsieur. Haverá também o custo da arma, dos cartuchos, da mira telescópica e das matérias-primas... digamos, o equivalente a mais duzentas libras.

      - Negócio fechado - declarou o inglês, que retirou do bolso do peito um maço de notas de cinco libras e contou cinco maços de vinte notas cada um. -Adianto-lhe quinhentas libras e trago o restante quando voltar.

      - Monsieur - declarou o armeiro enquanto guardava as notas - é um prazer negociar com um profissional e um cavalheiro.

      - Só mais uma coisa - prosseguiu o visitante – o senhor não perguntará a ninguém quem eu sou nem para quem estou trabalhando. Eu não deixaria de ter conhecimento dessa investigação e nessa eventualidade o senhor morre. Compreendeu?

      M. Goossens levantou a cabeça e sentiu os intestinos enovelarem-se de medo. Os homens do submundo com quem lidava eram duros, mas havia um não-sei-quê de implacável naquele visitante que não tencionava matar outro bandido como ele, mas sim um homem importante, talvez um político. Pensou em protestar, mas o bom senso levou a melhor:

      - Não desejo saber nada a seu respeito, monsieur - declarou calmamente. - Receberá a arma sem qualquer número de série. O senhor deve compreender que é mais importante para mim que o que o senhor venha a fazer não seja relacionado comigo do que procurar informar-me a seu respeito. Bonjour, monsieur.

      O Chacal saiu para o dia luminoso e duas ruas adiante tomou um táxi que o levou a um bar das imediações da Rue Neuve, onde o seu contato do Katanga lhe arranjara um encontro com um falsário. Apresentou-se a este segundo belga e retirou-se com ele para um compartimento reservado. Depois mostrou-lhe a sua carta de motorista, emitida há dez anos em seu próprio nome.

      - Isto pertenceu a um homem que morreu - disse ao falsário. - Como estou impedido de dirigir na Grã-Bretanha, preciso de uma primeira página em meu nome - e colocou o passaporte em nome de Duggan em frente ao falsário. Este notou que o passaporte era novo, olhou manhosamente para o inglês e depois folheou a pequena carta de motorista vermelha. Decorridos momentos, levantou a cabeça. - Não é difícil, monsieur. Este papel - destacou a folha colada à primeira página da carta - pode ser impresso com uma impressora de brinquedo. E só isso que deseja?

      - Não. Preciso de outros dois documentos – respondeu o Chacal, e descreveu-os em pormenor. O falsário semicerrou os olhos, pensativo. Retirou do bolso um maço de cigarros e acendeu um.

      - Isso já não é tão fácil - disse por fim. - o bilhete de identidade francês, vamos lá... mas o outro é um pedido muito incomum. - Fez uma pausa. - E a fotografia também não será fácil. O senhor diz que terá de se notar uma diferença de idade, cor e comprimento do cabelo ... Conseguir uma nova fotografia que nem sequer se pareça consigo ... levará tempo. Quanto tempo ficará em Bruxelas?

      - Tenho de partir em breve - respondeu o Chacal -, mas volto a 1º de Agosto.

      O falsário fitou durante alguns momentos a fotografia do passaporte. Em seguida estendeu-o ao inglês, depois de ter copiado o nome de Alexander James Quentin Duggan. Guardou no bolso o papel e a carta de motorista. -Que nome e endereço deseja nos dois documentos franceses?

      - Pode escolher o nome, desde que seja um nome francês comum. Informo-o do endereço antes do dia 1º de Agosto.

      - Muito bem. Pode fazer-se, mas vai custar dinheiro

            - Quanto? - interrompeu o inglês.

      - Vinte mil francos belgas.

      O Chacal refletiu uns momentos.

      - Cerca de cento e cinqüenta libras esterlinas - murmurou. - Está bem. Pago-lhe cem libras adiantadas e o restante na entrega.

      O falsário levantou-se.

      - Então é melhor vermos o que podemos fazer a respeito da fotografia. Tenho estúdio próprio.

      Tomaram um táxi, que os conduziu a um apartamento situado a mais de quilômetro e meio de distância, um estabelecimento decorativo, que um letreiro suspenso no exterior indicava como sendo especializado em fotografias para passaportes. O falsário desceu os degraus, precedendo o Chacal, abriu a porta e convidou este a entrar. A sessão demorou duas horas. O falsário abriu uma grande arca que se encontrava a um canto e que continha material fotográfico dispendioso, perucas e roupas. Depois de maquiar o rosto do Chacal durante trinta minutos, pegou numa peruca de cabelo grisalho cortado en brosse.

      - Acha que o seu próprio cabelo, cortado e pintado desta cor, ficaria com este aspecto? - perguntou.

      O Chacal examinou a peruca.

      - Vamos ver como fica na fotografia. - O falsário saiu da sala de revelação e examinaram juntos uma série de fotografias de um homem de pelo menos cinqüenta e tal anos, de pele terrosa e olheiras fundas. - O problema - observou o Chacal - é que você teve de me aplicar cosméticos durante meia hora para obter esse efeito. E serviu-se também da peruca. Não vou conseguir imitar isso tudo sozinho.

      - Não fiz nada que não possa ser facilmente simulado - afirmou o falsário - o principal, claro, é o cabelo. Tem de ser cortado en brosse e pintado de cinzento. Para aumentar a impressão de decrepitude, deixe a barba crescer dois ou três dias. Depois barbeie-se com uma navalha, mas mal. Os homens idosos têm tendência para se barbearem mal. A pele deve ter um aspecto acinzentado e doentio. Dois ou três pedaços de cordite, mastigados e engolidos, provocam, no espaço de meia hora, uma sensação de náusea desconfortável mas não insuportável. Também acinzentam a pele e causam transpiração facial. Não esqueça que deve ser evitada uma semelhança muito perfeita com a fotografia. Se o documento foi emitido alguns anos antes, é impossível que o seu rosto não tenha mudado. Aqui na fotografia está com uma camisa aberta. Tente mudar. Ponha gravata, um lenço ou uma camiseta de gola alta.

      - Acha que pode arranjar os documentos a tempo?

      -Tecnicamente, não tenho dúvidas a esse respeito. Mas talvez seja necessário ir a França para conseguir um original do segundo documento. O senhor... enfim, mencionou um pagamento adiantado, para cobrir as despesas... - o Chacal retirou do bolso um maço de vinte notas de cinco libras, que entregou ao falsário.

      - Como entro em contato com você? - perguntou.

      - O estúdio tem telefone. Tome este cartão, mas jogue-o fora quando decorar o número. Entre as seis e as sete da noite, nos últimos três dias do mês, espero aqui uma chamada sua. Se não telefonar, é porque desistiu do negócio.

      O inglês retirara a peruca e limpou o rosto com uma toalha embebida em solvente. Pôs a gravata, vestiu o casaco e virou-se para o falsário:

      - Há alguns pontos que quero deixar bem claros - disse calmamente.-Encontramo-nos conforme o combinado, quando você tiver acabado o trabalho. Nessa altura devolve-me a carta com a página nova, assim como a que removeu, os negativos e todas as provas fotográficas que acabamos de fazer. Esquece os nomes e os endereços de todos os documentos, assim como o nome do detentor original dessa carta de motorista. Nunca falará a ninguém deste trabalho. Se infringir qualquer destas condições, morre. Entendido?

      O falsário fitou-o e respondeu:

      - Entendido, monsieur.

      Alguns segundos depois, o inglês desaparecia na noite. Na manhã seguinte pagou a conta do hotel e tomou o Brabant Express para Paris. Corria o dia 22 de Julho.

 

      Sentado à sua mesa, o coronel Rolland, chefe do Serviço de Ação do SDECE, lia dois relatórios de rotina que tinham chegado naquela manhã. Ambos referiam um nome que o intrigou.

      O primeiro relatório era a sinopse de um despacho de Roma comunicando que Rodin, Montclair e Casson continuavam enclausurados na sua suíte do último andar. Mantinha-se o processo que lhes permitia contatarem o mundo exterior ("ver relatório de Roma de 30 de Junho"). O correio continuava a ser Viktor Kowalski. Fim de mensagem.

      O coronel Rolland folheou um dossiê pousado sobre a mesa, ao lado da cápsula de granada serrada de cento e cinco milímetros que lhe servia de cinzeiro, e os seus olhos percorreram o relatório de Roma de 30 de Junho. Todos os dias, leu, um dos guardas saía do hotel e dirigia-se a pé à estação principal dos Correios, onde a OAS tinha um apartamento em nome de Poitiers. O guarda fora identificado como Viktor Kowalski, membro da primitiva companhia de Rodin na Indochina. Qualquer tentativa para interferir na recolha do correio da OAS acarretaria um surto de violência, já rejeitado por Paris. Fim de mensagem.

      O coronel Rolland pegou o segundo relatório. A Polícia Judiciária de Metz informava que fora interrogado um homem identificado como desertor da Legião Estrangeira chamado Sandor Kovacs. Kovacs era procurado devido a uma série de assassinatos terroristas perpetrados pela OAS na Argélia em 1961. Nessa altura atuara em cumplicidade com outro atirador da OAS ainda à solta chamado Viktor Kowalski. Fim de mensagem.

      Rolland apertou uma campainha e pediu o dossiê de Kowalski. Decorridos dez minutos, traziam-lho do arquivo e passou uma hora a lê-lo. Depois chamou o seu secretário pessoal e um especialista caligráfico da Documentação.

      - Meus senhores - disse-lhes -, vamos redigir, escrever e enviar uma carta.

            Pouco antes do almoço, o trem do Chacal chegou à Gare du Nord, onde ele tomou um táxi que o conduziu a um hotel pequeno, mas extremamente confortável, próximo da Place de la Madeleine. Nele se instalou tranquilamente, tomando o café da manhã com croissants e café no quarto. Numa charcutaria das imediações comprou uma geléia de doce de laranja para substituir o doce de groselha preta servido no café da manhã no hotel. Era cortês com o pessoal e falava algum francês, com a habitual pronúncia atroz dos Ingleses.

      - Monsieur Duggan - disse um dia a proprietária ao recepcionista - é extrêmement gentil.

      No primeiro dia comprou um mapa de Paris e assinalou os lugares de interesse que mais desejava ver. Lugares que visitou e estudou com extraordinário empenho. Durante três dias rondou pelas proximidades do Arco do Triunfo. Do Café de l'Élysée observou os telhados dos edifícios que rodeavam a Place de l'Étoile, no centro da qual se ergue o memorial. Depois de visitar o ossário dos mártires da Resistência Francesa, em Mont-Valérien, foi aos Inválidos, onde se encontra o túmulo de Napoleão.

      Interessou-se sobretudo pelo lado ocidental da enorme Place des Invalides, e passou uma manhã sentado num café da esquina. Quem o visse, não adivinharia com certeza que o elegante turista que admirava a arquitetura calculava mentalmente que do sétimo andar do edifício que lhe ficava sobranceiro, o 146 da Rue de Grenelle, um homem armado poderia dominar a maior parte da praça.

      Um bom lugar para uma última resistência, mas não para um assassinato. A distância entre as janelas mais altas e o ponto onde os automóveis parariam, na base dos degraus, era superior a duzentos metros. Passou um dia nas imediações de Notre-Dame. Aí os telhados, ao longo da minúscula Place Charlemagne adjacente, eram muito unidos, e seria fácil às forças de segurança enchê-los de vigias. Por fim visitou o largo em tempos chamado Place de Rennes e a que posteriormente fora atribuído o nome de Place du 18 Juin 1940, em memória do dia em que o altivo exilado em Londres pegara no microfone para dizer aos Franceses que, por terem perdido uma batalha, não haviam perdido a guerra. Aquela praça, limitada a sul pelo volume acachapado da Gare Montparnasse, fez parar o assassino. Depois de observar o trânsito que descia o Boulevard du Montparnasse, que atravessava a praça de leste para oeste, o Chacal olhou para norte, para os edifícios altos e estreitos que se erguiam de ambos os lados da Rue de Rennes, sobranceiros à praça.

      Espreitou, através do gradeamento, para o átrio da grande estação dos caminhos de ferro. Na semana anterior examinara todos os lugares que se esperava fossem visitados pelo presidente da França no dia previsto. Era indubitavelmente aquele o que lhe oferecia a maior garantia de êxito. Com um olhar prático, o Chacal examinou todos os edifícios que dominavam o átrio. A própria estação estaria cheia de homens da segurança. No entanto, as duas primeiras casas de ambos os lados da Rue de Rennes, no ponto em que esta desembocava na praça, eram escolhas óbvias. Para lá delas, o angulo de tiro para o átrio tornava-se excessivamente apertado.

      O Chacal aproximou-se e observou mais de perto os prédios de habitação que escolhera como possibilidades. Acima dos cinco ou seis andares de fachada de pedra havia parapeitos, e a seguir telhados íngremes onde ficavam os sótãos, rasgados por janelas de trapeira - outrora alojamentos da criadagem, atualmente habitações dos pensionnaires mais pobres.

      Os telhados e as janelas seriam certamente vigiados no dia em questão. Mas o último andar abaixo dos sótãos, além de suficientemente alto não seria visível do lado oposto da rua. Como esperava disparar no meio da tarde, aguardou até às quatro horas, momento em que pôde verificar que o Sol, no seu movimento para ocidente, se encontrava ainda bastante alto para brilhar nas janelas dos apartamentos do lado leste da rua.

      Restavam-lhe portanto os dois prédios do lado ocidental, em cujas janelas mais altas incidia apenas um raio oblíquo. No dia seguinte sentou-se num banco da Rue de Rennes, perto das portas dos dois prédios que ainda lhe interessavam.

      Sentada a uma das portas, a porteira tricotava. Pelo modo como dizia um “Bonjour, monsieur” às pessoas que entravam ou saíam do seu prédio, e pelo sorridente "Bonjour, Madame Berthe" que todas as vezes recebia em resposta, o observador sentado no banco a seis metros de distância calculou que ela devia ser uma boa alma, compadecida por todos os infelizes deste mundo. Pouco antes das quatro horas, a mulher meteu o tricô numa ampla sacola e, de chinelos, desceu a rua até à padaria.

      O Chacal levantou-se e entrou no prédio. Precipitou-se silenciosamente pela escada que subia contornando a caixa do elevador. No sexto andar, duas portas davam acesso a apartamentos voltados para a frente do edifício. As placas respectivas indicavam os nomes de "Mlle Béranger" e "M. et Mme Charrier". Escutou, mas não ouviu ruído algum em qualquer dos apartamentos. Examinou as fechaduras, estavam ambas cravadas na madeira maciça e tinham provavelmente como canhão uma grossa barra de aço. Constatou que precisaria de chaves... e Mme Berthe tinha com certeza uma de cada apartamento no seu pequeno cubículo.

      Poucos minutos depois descia rapidamente a escada. Em cada andar havia um patamar de serviço, com uma saída de emergência. No primeiro andar abriu a porta e transpôs com o olhar o pátio interior. O lado oposto do largo formado pelos prédios era atravessado por uma passagem coberta. Quando saiu do edifício, virou à esquerda subindo a Rue de Rennes, passou por uma estação dos Correios, contornou a esquina e encontrou-se numa travessa estreita que dava acesso a um pátio banhado de sol. No lado oposto divisava os últimos degraus da escada de emergência do prédio de onde saíra. Encontrara a sua via de fuga.

      Ao chegar à esquina do Boulevard du Montparnasse, um policial de motocicleta parou no cruzamento, encostou a máquina à beira do passeio e começou a mandar parar o trânsito. Soaram sirenes de carros da Polícia e o Chacal viu um cortejo de veículos vir na sua direção. Precediam-no dois motociclistas de reluzentes capacetes brancos, seguidos pelas bocas-de-sapo de dois Citroens DS.

      Inclinando-se para a direita, os motociclistas entraram velozmente na Avenue du Maine, seguidos pelas limusines. No banco de trás do primeiro automóvel via-se um vulto alto, de terno cinzento-antracite. O Chacal teve um vislumbre da cabeça ereta e do nariz inconfundível, antes do cortejo desaparecer. "Da próxima vez que vir a sua cara", disse silenciosamente à imagem desaparecida, "será através de uma mira telescópica."

      Depois meteu-se num táxi e regressou ao hotel. As seis da tarde dirigiu-se a um pequeno café, de onde fez um telefonema de longa distância para o estúdio de Bruxelas.

      Mais abaixo, perto da saída da estação do metropolitano de Duroc, da qual acabara de emergir, outra pessoa vira o perfil característico no banco da retaguarda do primeiro Citroen, e os seus olhos tinham coruscado com um fervor apaixonado.

      Jacqueline Dumas tinha vinte e seis anos e era extremamente bela. Sabia como realçar ao máximo a sua beleza, pois trabalhava como esthéticienne num luxuoso instituto de beleza nas proximidades dos Campos Elísios. Ao cair da tarde do dia 30 de Julho dirigia-se apressadamente para casa para se arrumar para sair. Decorridas poucas horas, estaria nos braços do amante, que odiava, e queria estar tão atraente quanto possível.

      Alguns anos antes morara com a família no subúrbio de Le Vésinet: o pai trabalhava como empregado bancário e a mãe era uma dona de casa típica da classe média francesa. Jacqueline terminava então o seu curso de esthéticienne e o irmão, Jean-Claude, prestava o serviço militar. O telegrama chegara um dia, nos finais de 1959.

      Lamentava profundamente informar M. e Mme Armand Dumas da morte, na Argélia, do seu filho Jean-Claude, soldado do 1º Regimento Colonial de Pára-Quedistas.

      O mundo pessoal de Jacqueline, um mundo de saídas, admiradores, filmes e amigos, desintegrara-se. O pequeno Jean-Claude, o seu querido irmão mais novo, fora morto a tiro por um bando de guerrilheiros da Front de Libération Nationale (FLN) num remoto uadi argelino.

      Jacqueline começou a odiar. Depois apareceu François.

      Inesperadamente, numa manhã de domingo em que os pais estavam ausentes, surgira em sua casa. Contou-lhe que comandara o pelotão em que Jean-Claude fora morto e trazia uma carta. Ela convidou-o a entrar. A carta fora escrita algumas semanas antes de Jean-Claude morrer, e ele guardara-a no bolso interior durante a sua última patrulha. Jacqueline leu-a e verteu algumas lágrimas.

      François contou-lhe que se verificara uma violenta escaramuça e que uma bala trespassara os pulmões de Jean-Claude. François, que era duro como a terra da província colonial onde prestara serviço durante quatro anos de guerra, revelou-se de uma extrema delicadeza.

      Essa delicadeza agradou a Jacqueline, que aceitou o seu convite para jantarem em Paris. Aliás, receava que os pais regressassem e não queria que eles soubessem como Jean-Claude morrera. Durante o jantar, pediu ao tenente que jurasse guardar segredo, ao que ele acedeu. Mas a sua curiosidade sobre a guerra argelina tornou-se insaciável.

      O general De Gaulle ascendera à presidência no mês de Janeiro anterior, colocado no Eliseu como o homem que poria fim à guerra argelina, mantendo ao mesmo tempo a Argélia Francesa. Foi a François que ouviu pela primeira vez apodar de traidor à França o homem que o pai adorava. François falou-lhe da traição ao Exército Francês, das negociações secretas do Governo de Paris com o prisioneiro Ahmed Ben Bella, líder da FLN, e da iminente entrega da Argélia. Passaram juntos a licença de François, com quem ela se encontrava todas as tardes, depois de sair do trabalho.

      Ele regressara à guerra em Janeiro, e em Agosto, quando François obtivera uma semana de licença, ela conseguira passar uns breves dias a sós com ele, em Marselha. Depois ficara à sua espera; transformara-o, nos seus pensamentos íntimos, no símbolo de tudo quanto era bom, puro e viril na juventude masculina francesa.

      Na Primavera de 1961 ele voltara a gozar uma licença em Paris e, enquanto passeavam nos bulevares, ele de uniforme e ela envergando o seu vestido mais elegante, Jacqueline considerava-o o homem mais forte e mais atraente da cidade.

      François estava excitado. As conversações com a FLN eram já do conhecimento público. O Exército não as toleraria durante muito mais tempo, jurou. Que a Argélia permanecesse francesa era, para ambos, um artigo de fé. Ele regressou à Argélia e em 21 de Abril amotinaram-se diversas unidades do Exército Francês, incluindo o 1º Regimento Colonial de Pára-Quedistas, em que ele servia. Eclodiu a luta entre os amotinados e os regimentos leais e, em princípios de Maio, François foi morto numa escaramuça com uma unidade militar lealista. Serenamente, Jacqueline alugou um apartamento num subúrbio pobre de Paris e tentou suicidar-se com gás, mas a tentativa falhou.

      Em Dezembro tornou-se ativista clandestina da OAS. Os seus motivos eram simples: vingar François e Jean-Claude.

      A sua única razão de queixa era não poder fazer mais do que levar recados, entregar mensagens e, ocasionalmente, transportar um pouco de explosivo metido num pão, no saco das compras. E assim continuara até ao princípio daquele mês de Julho, momento em que um homem a procurara e lhe perguntara se poderia encarregar-se de um trabalho especial para a organização. Ante a sua afirmativa incondicional, o homem adiantou que a missão poderia ser perigosa e era com certeza desagradável. A sua decisão manteve-se. Três dias depois, tinham-lhe indicado um homem que saía de um prédio de habitação.

      Informaram-na da sua identidade e instruíram-na sobre o que teria de fazer. Em meados de Julho tinham travado conhecimento, aparentemente por acaso, quando ela se encontrava sentada num restaurante na mesa ao lado da dele e lhe pedira timidamente o sal. A conversa desabrochara, orientada pelo homem e docilmente seguida por ela. Uma quinzena depois mantinham um affaire. Em fins de Julho o chefe da sua célula dissera a Jacqueline que deveriam começar a coabitar. Em 29 de Julho, a mulher e os dois filhos do indivíduo partiram para a casa de campo da família, no vale do Loire. Poucos minutos após a sua partida, o homem telefonava a Jacqueline e insistia com ela para que jantassem a sós no apartamento dele, na noite seguinte. Agora, enquanto se vestia, Jacqueline Dumas pensava com repugnância na noite que se aproximava. Retirou da cômoda a fotografia de François, que a fitava com um leve sorriso irônico. "François", murmurou, "ajude-me, por favor, ajude-me esta noite."

     

      No último dia do mês o Chacal foi à Feira da Ladra, onde comprou um sujo barrete preto, um par de sapatos usados, umas calças pouco limpas e um capote militar que lhe descia muito abaixo dos joelhos. De caminho, o seu olhar foi atraído por um expositor que exibia numerosas medalhas que já haviam perdido o brilho. Comprou uma coleção, juntamente com um pequeno livro que descrevia as condecorações militares francesas. Após um almoço leve, pagou a conta do hotel e fez as malas. Com a ajuda do livro fez uma barrete de condecorações, começando pela Médaille Militaire por coragem perante o inimigo e incluindo a Médaille de la Résistance e cinco medalhas de campanha concedidas aos que tinham lutado nas Forças Francesas Livres durante a II Guerra Mundial. Jogou o resto das medalhas e o livro em dois recipientes de lixo públicos.

      As 17:15 embarcou no excelente Étoile du Nord Express para Bruxelas, onde chegou nas últimas horas do mês de Julho. A carta para Viktor Kowalski chegou a Roma na manhã seguinte.

     

      O corpulento cabo atravessava o átrio do hotel, depois de ter ido buscar a correspondência diária aos Correios, quando um dos mandaretes o chamou:

      - Signore, per favore... Virou-se, carrancudo como sempre. O jovem de olhos escuros segurava uma carta: - E una lèttera. Per un Signore Kowalski.

      Kowalski arrancou-lhe a carta da mão e olhou para o endereço rabiscado no envelope. Inscrevera-se no hotel sob um nome falso, mas não recebia frequentemente correspondência, e a chegada de uma carta era um acontecimento importante. Deduziu, pelo que o italiano lhe disse, que nenhum dos funcionários da recepção conhecia algum hóspede com aquele nome, e que haviam decidido abordá-lo por saberem que também ele era polaco.

      - Bon. Je vais de nander - respondeu Kowalski com arrogância.

      Tomou o elevador até ao oitavo andar, onde se encontrava o homem de serviço no corredor, de automática em punho. O outro meteu a arma no bolso e desligou o interruptor que tinha sob a mesa, tornando assim inoperantes as armadilhas da escada que conduzia ao andar de cima, onde viviam os chefes.

      Depois de telefonar para cima, o vigilante fez sinal a Kowalski para subir. O cabo metera a carta no bolso interior do casaco; levava a correspondência para os seus chefes num étui de aço preso por uma corrente ao seu pulso esquerdo. Tanto a fechadura da corrente como a da caixa eram de mola, e só Rodin tinha as chaves.

      Passados alguns minutos, o coronel da OAS abria ambas e Kowalski regressava ao seu quarto, situado no oitavo andar, onde leu finalmente a carta. Constatou, surpreendido, que esta provinha de Kovacs, ao qual não via há um ano. Kovacs começava por dizer que lera num jornal que Rodin, Montclair e Casson estavam alojados naquele hotel de Roma e supusera que o seu amigo Kowalski estaria com eles. Informava que as coisas estavam tornando-se difíceis na França, com policiais a pedir os documentos em toda a parte. Continuava comunicando que falara com Jo-Jo, um velho amigo de Kowalski, o qual lhe dissera que Sylvie, a filha de Kowalski, estava doente com uma leuce... qualquer coisa. Era uma doença que lhe afetava o sangue. Kovacs esperava que ela se curaria rapidamente, pelo que Viktor não deveria preocupar-se. Mas Viktor preocupou-se. Ao longo de trinta e seis anos de violência, poucas coisas lhe haviam tocado o coração.

      Aos treze anos os Alemães tinham-lhe levado os pais. Suficientemente crescido para se juntar aos guerrilheiros, matara o seu primeiro alemão aos quinze. Tinha dezessete quando os Russos chegaram; fugira então para sul, como um animal perseguido, na direção da Tchecoslováquia. Seguira-se a Áustria e um campo de desalojados. Em 1946 fugira e viajara de carona até à Itália, de onde prosseguira para a França. Uma noite, em Marselha, arrombara uma loja, matara o proprietário, que o surpreendera, e tivera de fugir de novo. Um companheiro informara-o de que só podia ir para um lugar: a Legião Estrangeira.

      Seis anos na Indochina destruíram o que porventura ainda restava nele de indivíduo normalmente adaptado. Em seguida, o corpulento cabo fora enviado para a Argélia. Porém, no intervalo entre as duas missões, fora mandado freqüentar um curso de treino de armas com a duração de seis meses nos arredores de Marselha. Aí conhecera Julie, uma empregada franzina, mas depravada, de uma taberna das docas, que estava tendo problemas com o seu cafetão. Com um soco Kowalski lançara o outro a seis metros de distância e deixara-o inanimado durante dez horas. Julie gostava do enorme legionário, que se tornou o seu "protetor".

      A união entre ambos baseava-se sobretudo em luxúria, que principalmente ela alimentava, mas da qual o amor era excluído. E essa situação agravou-se quando ela descobriu que estava grávida. A criança era dele, disse-lhe Julie, e Viktor talvez tenha acreditado porque desejava acreditar. Ela disse-lhe também que não queria o bebê. Kowalski bateu-lhe e avisou-a de que a mataria se ela se desfizesse da criança.

      Entretanto travara amizade com outro legionário polaco, Josef Grzybowski, conhecido por Jo-Jo, o Polaco, que viera inválido da Indochina e se juntara com uma viúva simpática, que tinha um carro de venda de sanduíches na estação principal de trens. Fora a Jo-Jo que Kowalski recorrera, pedindo-lhe que o aconselhasse a respeito do bebê.

      - Ela quer livrar-se da criança - dissera Viktor, enquanto bebiam num bar.-Nunca tive nenhum filho...

      - Nem eu, apesar de ser casado e tudo - respondera-lhe Jo-Jo. As primeiras horas da manhã, muito bêbados, acordaram no plano.

      Jo-Jo precisou de três dias para se abalançar a dar a notícia à mulher. Para seu espanto, ela ficou encantada. E assim se resolveu o assunto. A seu tempo, Viktor voltou para a Argélia, enquanto em Marselha, recorrendo a uma mistura de ameaças e adulações, Jo-Jo e a mulher vigiavam a grávida Julie. Em fins de 1955 a garota deu à luz uma criança do sexo feminino de olhos azuis e cabelos dourados. os Jo-Jos adotaram-na e Julie regressou à sua vida anterior. Informaram Viktor por carta, e ele ficou singularmente satisfeito. Mas não disse nada a ninguém. Que se lembrasse, nunca possuíra efetivamente nada que lhe não tivesse sido tirado quando divulgado. Três anos depois, antes de uma prolongada missão de combate nos montes argelinos, o capelão instigou-o a fazer testamento. Ele deixou todos os seus bens terrenos à filha de um tal Josef Gybowski. Eventualmente, uma cópia desse documento foi parar nos arquivos do Ministério das Forças Armadas, em Paris, e quando Kowalski se tornou conhecido das forças de segurança francesas como terrorista, o assunto foi levado ao conhecimento do Serviço de Ação do coronel Rolland. Uma visita aos Grybowskis, e a história tornou-se conhecida. Mas Kowalski nunca o soube. Viu a filha duas vezes, quando ela tinha respectivamente dois anos e quatro anos e meio. A criança e o seu tio Viktor, que tinha o aspecto de um urso, entendiam-se muito bem. E agora ela adoecera com a tal leuce... qualquer coisa e ele estava preocupado.

      Depois do almoço subiu ao andar de cima para lhe prenderem de novo o étl i ao pulso, a fim de ir buscar o correio da tarde. De súbito, perguntou:

      - Que é leuce... qualquer coisa?

      Rodin ergueu a cabeça, surpreendido.

      - Nunca ouvi falar dele.

      - É uma doença do sangue - explicou o cabo.

      Do lado oposto da sala, onde lia uma revista, Casson riu.

      - Leucemia, quer dizer. É um câncer do sangue.

      Kowalski olhou para Rodin, pois não confiava em civis, e perguntou:

      -Cura-se, mon colonel?

      - Não, Kowalski, é uma doença fatal. Não tem cura. Porquê?

      - Por nada - murmurou o polaco. - Foi uma coisa que li.

      Depois saiu. Se ficou surpreendido com o fato do seu guarda-costas, que, tanto quanto sabia, nunca lia nada além das ordens do dia, ter encontrado aquela palavra num livro, Rodin não o demonstrou.

      O assunto apagou-se do pensamento quando recebeu, no correio da tarde, uma carta informando que as contas bancárias da OAS na Suíça ascendiam agora a mais de duzentos e cinqüenta mil dólares. Rodin sentou-se e escreveu aos banqueiros, dando-lhes instruções para a transferência dessa importância para a conta do seu assassino contratado. Não tinha quaisquer dúvidas de que, com o presidente De Gaulle morto, os industriais e banqueiros de extrema direita forneceriam o restante quarto de milhão.

      Casson, no entanto,  persuadiu-o a não se precipitar. Salientou que tinham prometido ao inglês um contato que lhe forneceria as mais recentes informações a respeito da segurança que rodeava o presidente. Embora tivessem colocado um agente muito perto de um dos homens do circulo imediato de De Gaulle, seriam necessários mais alguns dias para aquele obter informações verdadeiramente dignas de crédito. Informar o Chacal da transferência do dinheiro naquela fase seria encorajá-lo a atuar prematuramente. Rodin concordou em esperar.

      Entretanto, sentado no telhado do hotel na quente noite romana, com um Colt 45 abandonado na mão experiente, Kowalski preocupava-se com uma pequenina que estava doente em Marselha. Pouco antes de alvorecer teve uma idéia: lembrou-se de que, a última vez que vira Jo-Jo, em 1960, o ex-legionário falara em instalar um telefone em casa.

     

      Na manhã em que Kowalski recebeu a carta, Chacal saiu do seu hotel em Bruxelas e seguiu de táxi até à rua onde vivia M. Goossens. Depois de fechar a porta à chave, o armeiro belga disse:

      - A arma está pronta, e, francamente, considero-a uma das minhas obras-primas. Mas houve problemas com o resto.

      O assassino observou-o friamente. Sobre a mesa via-se uma maleta com cerca de sessenta centímetros de comprimento por quarenta e cinco de largura e dez de fundo. M. Goossens abriu-a. Parecia um tabuleiro dividido em compartimentos, cada um com o formato exato do elemento da espingarda que continha. O Chacal retirou os diversos componentes e, com a ajuda do armeiro, montou a arma. Depois levou ao ombro o coice da coronha, com cerca de catorze ou quinze centímetros de comprimento, bem almofadado de couro preto. Com a mão esquerda segurando a parte inferior do cano, o indicador direito enfiado no gatilho, o olho esquerdo fechado e o direito fixo na mira telescópica, apontou à parede do fundo e apertou o gatilho. Ouviu-se um estalido baixo no interior da culatra. O que, dez minutos antes, fora um punhado de elementos de aspecto estranho transformara-se numa espingarda de projétil de alta velocidade, longo alcance e silenciosa, própria de um assassino.

      O Chacal pousou-a na mesa.

      - Muito bem - declarou. - Um belo trabalho.

      M. Goossens exibiu um sorriso radiante.

      - Ainda falta ajustar a mira e fazer alguns tiros de ensaio. - Introduziu a mão na gaveta da mesa e retirou uma caixa. Os selos haviam sido rasgados e faltavam seis cartuchos. - Estas são para praticar - explicou. -Tirei seis e transformei-as em balas de ponta explosiva.

            O Chacal despejou um punhado de cartuchos e observou-os. Eram estreitos e mais longos do que o habitual, para conterem as cargas explosivas adicionais necessárias para o aumento da velocidade e da precisão.

      - Onde estão os cartuchos reais? - perguntou, enquanto os punha na caixa. M. Goossens retirou da mesa um rolo de papel de seda, desembrulhou-o e despejou o conteúdo no mata-borrão branco. A primeira vista, os cartuchos pareciam iguais aos outros, mas o inglês, que os examinou, compreendeu que efetivamente não o eram. O cupro-níquel de uma pequena área em torno da extremidade de cada cartucho fora lixado até expor o chumbo do interior. A ponta aguçada da bala fora ligeiramente abaulada, e na extremidade da camisa fora aberto um diminuto orifício longitudinal, com pouco mais de meio centímetro de comprimento, no qual fora introduzida uma gota de mercúrio, após o que a reduzida abertura fora tapada com uma gota de chumbo líquido. Uma vez endurecido, o chumbo fora também lixado, até se recriar exatamente a forma aguçada original da extremidade da bala. No ato de disparar, a gota de mercúrio seria impelida para trás, na sua cavidade, pela força que empurrava a bala para a frente, do mesmo modo que o passageiro de um automóvel é comprimido contra o banco em conseqüência de uma aceleração violenta. Quando a bala batesse, a desaceleração súbita impeliria a gota de mercúrio para a frente com tal força que destruiria a ponta da bala e espalharia o chumbo no exterior, como as pétalas de uma flor. Uma bala dessas que atingisse a cabeça não sairia, mas despedaçaria totalmente o crânio. O assassino repôs cuidadosamente os cartuchos no papel de seda.

      - Parecem-me perfeitos - declarou. - Qual é o problema Monsieur Goossens?

      - Os tubos foram mais difíceis de fabricar do que eu imaginava monsieur. Comecei por utilizar alumínio muito fino, mas dobrava-se à mais leve pressão. Consequentemente, optei por aço inoxidável, que é mais resistente. Mas é também um metal mais duro de trabalhar e leva tempo. O essencial é que preciso de perfeição.

      - Quando?

      - É difícil dizer. Cinco, seis dias, talvez uma semana...

      O rosto do inglês não revelou qualquer indício da sua contrariedade.

      - Está bem - disse, por fim. - Vou ter de alterar os meus planos de viagem. Mas também preciso me habituar à arma e isso tanto pode ser feito aqui como em qualquer outro lugar. Há algum lugar na Bélgica onde se possa experimentar secretamente uma espingarda?

      M. Goossens pensou um momento antes de responder:

      - A floresta das Ardenas. Pode ir e voltar no mesmo dia. Nos finais-de-semana é possível que haja por lá muita gente, fazendo piqueniques. Penso que o ideal seria segunda-feira. Terça ou quarta-feira espero ter o trabalho acabado.

      O inglês acenou com a cabeça, satisfeito.

      - Muito bem, levo agora a arma e as munições intactas, além de uma das balas explosivas. Entro em contato outra vez na terça-feira. Deixo-lhe mais quinhentas libras. Recebe as restantes duzentas quando me entregar o resto do equipamento.

      O Chacal chegou ao hotel a tempo de almoçar, embora tarde. Mas primeiro guardou as munições e a maleta com a arma no fundo do guarda-roupas, fechou-o à chave e guardou esta no bolso. Pouco depois das seis da tarde, encontrou-se com o falsário no bar das proximidades da Rue Neuve.

      - Acabou? - perguntou. - Acabei e o trabalho está ótimo, embora seja eu a dizê-lo.

      O inglês estendeu a mão e ordenou:

      - Mostre-me.

      O falsário acendeu um cigarro e abanou a cabeça.

      - Por favor. compreenda, monsieur, que este lugar é demasiado público. Além disso, é preciso uma boa luz para examinar os documentos. Pode vê-los no estúdio.

      O Chacal observou-o friamente por um momento e depois acenou com a cabeça.

      - Está bem. Vamos dar-lhes uma vista de olhos em particular.

      Quando chegaram ao estúdio, o falsário acendeu a luz do teto. Retirou um envelope castanho do bolso e espalhou o conteúdo sobre uma pequena mesa redonda, que colocou debaixo da luz.

      - Faça o favor, monsieur. - ostentando um sorriso aberto, apontou para os três documentos pousados sobre a mesa.

      O inglês pegou a sua carta de motorista, em nome de Alexander James Quentin Duggan. Tanto quanto lhe parecia, era uma falsificação perfeita. O segundo documento era uma carte d'identité francesa em nome de André Martin, cinqüenta e três anos, residente em Paris. Num canto do cartão via-se a sua própria fotografia, envelhecida vinte anos, com cabelo grisalho cortado en brosse. O bilhete propriamente dito estava manchado e revirado nos cantos, como o de um trabalhador. O terceiro espécime foi o que mais o interessou. Tinha um retrato seu, ligeiramente diferente do bilhete de identidade. Graças a hábeis retoques, a camisa fora escurecida e em torno do queixo a barba parecia despontar, criando a impressão de se tratar de uma fotografia do mesmo homem, mas tirada numa ocasião diferente. Em ambos os casos o trabalho era excelente. O Chacal guardou os documentos no bolso.

      - Muito bom - declarou. - Felicito-o. Tem cinqüenta libras a haver, não tem?

      - É verdade, monsieur, Merci.- o falsário ficou à espera, com certa ansiedade. O inglês retirou do bolso um maço de dez notas de cinco libras segurou-as entre o indicador e o polegar e estendeu-as ao outro.

      - Creio que falta qualquer coisa, não falta? - perguntou.

      O falsário olhou-o, como se não compreendesse.

      - Monsieur?

      - A primeira página autêntica da carta de motorista.

      O homem arqueou as sobrancelhas, num extravagante gesto de surpresa, e depois baixou a cabeça, como que absorto em profunda meditação.

      - Pensei que devíamos ter uma pequena conversa acerca desse papel, monsieur.

      - Sim? - perguntou o Chacal em tom inexpressivo.

      - A verdade, monsieur, é que a primeira página original da carta de motorista não está aqui. oh, por favor, por favor!... - Fez um gesto exagerado, como para tranqüilizar um interlocutor dominado pela ansiedade, sentimento que o inglês não revelava o mínimo indício de experimentar. - Está num lugar muito seguro, juntamente com todos os negativos das fotografias e ainda, lamento dizer-lhe, uma outra fotografia tirada muito depressa, enquanto o senhor se encontrava debaixo das luzes sem maquiagem. Está tudo num cofre particular, num banco, cofre que só poderá ser aberto por mim. Compreende, monsieur, um homem que se dedica a um negócio tão delicado como o meu tem de tomar precauções.

      - Que é que quer?

      - Bem, meu caro senhor, tenho esperança em que esteja disposto a negociar numa base um tanto ou quanto superior à última soma de cento e cinqüenta libras que mencionamos.

      - Não é a primeira vez que encontro chantagistas - declarou o inglês sem rodeios.

      - Ah, monsieur, por favor! Não é chantagem que lhe proponho. Trata-se simplesmente de uma troca: todo o conjunto por mil libras.

      O inglês refletiu na proposta e admitiu:

      - Para mim a recuperação desse material vale essa soma.

      O falsário sorriu.

      - Agrada-me muito ouvi-lo dizer isso, monsieur.

      - Mas a resposta é "não".

      Os olhos do falsário semicerraram-se.

      - Não compreendo.

      - São duas as razões da minha decisão - esclareceu o outro calmamente. - Primeiro, não tenho qualquer prova de que os negativos não tenham sido copiados, e de que à primeira exigência não se sucedam outras. Depois, também nada me prova que você não tenha entregado os documentos a um amigo, o qual, quando solicitado a entregá-los, decida subitamente dizer que já não os tem, a não ser que se lhe untem igualmente as mãos com outras mil libras.

      O falsário pareceu aliviado e redarguiu:

      - Se é só isso que o preocupa, os seus receios são infundados. Não era do meu interesse confiar os documentos a um sócio. E se começasse a fazer-lhe repetidas exigências de dinheiro, era mais vantajoso para si deitar fora os documentos e arranjar outro falsário que lhe fizesse outros.

      - Sendo assim, porque não posso fazer isso agora? - perguntou o inglês.

      O falsário abriu os braços, com as palmas das mãos viradas para cima, e respondeu:

      - Aproveito-me do fato da conveniência e o tempo valerem dinheiro para si. Outros documentos não ficariam tão bons e levariam tempo para serem feitos.

      O inglês acenou diversas vezes com a cabeça, como numa anuência, contrafeito. De súbito, endireitou-se e sorriu de modo insinuante.

      - Muito bem, ganhou. Posso trazer-lhe aqui as mil libras amanhã.

      O falsário sorriu também, e continuava a sorrir quando experimentou a sensação de que as suas partes íntimas haviam sido atingidas por um comboio expresso. Semi-inconsciente e aos vômitos, caiu de joelhos e tentou rolar sobre si, para se proteger. O Chacal passou uma perna sobre o corpo caído de costas, passou a mão direita em torno do pescoço do falsário e agarrou com ela o seu próprio bicípite esquerdo. A mão esquerda estava colocada contra a nuca da vítima. Torceu-lhe rápida e violentamente o pescoço para trás, para cima e lateralmente. O estalido da coluna cervical, ao partir-se, soou como um tiro de pistola. O corpo do falsário caiu, flácido como um boneco de trapos. O inglês virou o corpo e encontrou as chaves no bolso esquerdo das calças. A quarta chave que experimentou abriu a grande arca de adereços, que durante dez minutos ele revolveu e empilhou no chão. Puxou o corpo para dentro da arca e começou a repor os objetos que retirara. Introduziu as perucas e todos os acessórios de consistência mole nos espaços entre os membros, e por fim cobriu o corpo com todo o material de maquiagem. Precisou exercer uma certa pressão para fechar a arca, mas a lingüeta acabou por entrar na ranhura e o cadeado fechou-se. O inglês realizara toda a operação com as mãos enroladas em peças de roupa da arca. Depois, limpou com o lençol a fechadura e as superfícies exteriores da arca. Por fim apagou a luz e saiu calmamente do estúdio, cuja porta fechou à chave.

      Não encontrou ninguém na rua e lançou as chaves para uma sarjeta. Alimentava poucas ilusões quanto à possibilidade do desaparecimento do falsário não ser notado. No entanto, segundo todas as probabilidades, a Polícia só examinaria a arca de adereços do morto decorridos meses, e mesmo então teria de percorrer um longo caminho para encontrar o Chacal.

      No dia seguinte, num bairro operário de Bruxelas, comprou um saco de compras de fechar com um cordão, uma faca de caça, dois pincéis, uma lata de tinta cor-de-rosa e outra castanha. De novo no hotel, serviu-se da nova carta de motorista para alugar um automóvel para a manhã seguinte e pediu ao recepcionista que lhe reservasse um quarto para o fim-de-semana numa das estâncias de férias ao longo da costa marítima.

 

      Enquanto o Chacal fazia as suas compras em Bruxelas, Viktor Kowalski telefonava de uma estação dos Correios de Roma. Após algumas dificuldades, conseguiu obter o número do telefone de Jo-Jo e decorrida meia hora a ligação estava feita. Sim, infelizmente era verdade, a pequena Sylvie encontrava-se gravemente doente. Estava no quarto contíguo à sala do apartamento de onde Jo-Jo falava. Não, não era o mesmo apartamento, tinham alugado um mais moderno e maior. E Kowalski anotou a direção que Jo-Jo lentamente lhe ditou.

      - Quanto tempo lhe dão os médicos? - gritou pelo telefone.

      - Uma semana, talvez duas ou três . respondeu Jo-Jo.

      Com uma sensação de incredulidade, Kowalski fitou o telefone. Repôs o auscultador no descanso e saiu da cabina. Recolheu o correio, fechou a caixa de aço e regressou a pé ao hotel.

      No seu apartamento de Marselha, Jo-Jo virou-se para os dois homens do Serviço de Ação, que permaneciam no mesmo local, cada um empunhando o seu Colt 45: um apontado a Jo-Jo e o outro à sua mulher, sentada no sofá, de rosto lívido.

      - Pulhas! - rosnou Jo-Jo numa voz em que transparecia ódio.

      - Ele vem? - perguntou um dos homens.

      - Há de vir - respondeu Jo-Jo, resignado.- Pela menina.

      - Ótimo. Nesse caso, o seu papel terminou.

- Agora sumam daqui para fora! – gritou Jo-Jo. - Deixem-nos em paz.

O corso levantou-se, ainda com a arma na mão, e redarguiu-lhe:

      - Vocês dois vêm conosco. Não podemos nos arriscar que telefone para Roma, não é, Jo-Jo?

      - Para onde vão nos levar?

      - Para umas pequenas férias, num agradável hotel nas montanhas.

      Jo-Jo olhou através da janela e murmurou:

      - A época turística atingiu o auge. Nesta altura os trens andam cheios. Em Agosto ganhamos mais do que em todo o Inverno. Vamos ficar arruinados por vários anos.

      O corso riu, como se a idéia o divertisse.

      - Façam as malas - ordenou.

      - E Sylvie? Está lá fora brincando com as outras crianças.

      - Nós a recolhemos quando sairmos. Agora andem rápido.

      Decorrida uma hora, a família encontrava-se num grande Citroen que seguia velozmente para um hotel muito isolado no Vercors.

     

      Na segunda-feira de manhã, de novo em Bruxelas depois de passar o fim-de-semana à beira-mar, o Chacal levantou-se e saboreou um excelente café da manhã no quarto. Depois pegou a maleta que continha a espingarda, assim como o saco com as latas de tinta, os pincéis e a faca de caça, levou todo o material para o automóvel e fechou-o no porta-bagagem. Cerca das nove horas seguia velozmente pela região plana a caminho de Namur. Consultando o seu mapa de estradas, constatou que Bastogne ficava a cento e cinqüenta quilômetros, distância que, segundo calculou, teria percorrido por volta do meio-dia. Oito quilômetros depois de Bastogne, o Chacal fez o Simca descer um estreito caminho; percorrido cerca de quilômetro e meio, encontrou outro caminho que conduzia à floresta. Poucos metros adiante, ocultou o carro atrás de uma moita. Lentamente, desceu, abriu o porta-bagagem e colocou sobre o tejadilho a maleta que continha a espingarda. Depois abriu-a e começou a montar a arma. Montada a espingarda, retirou do automóvel o saco e uma melancia que comprara. Fechou o carro e embrenhou-se na floresta. Passados dez minutos, encontrou uma clareira longa e estreita.

            Encostou a arma a uma árvore, despejou o conteúdo do saco no chão, abriu as duas latas de tinta e começou a pintar a melancia. Pintou a parte superior e a inferior de castanho e a parte central de cor-de-rosa. Depois, com o indicador, desenhou toscamente os olhos, o nariz, o bigode e a boca. Cravou a faca no alto do fruto, para evitar borrar a pintura, e, cuidadosamente, introduziu de novo a melancia no saco. Por fim, retirou a faca, cravou-a com força no tronco da árvore, a cerca de dois metros do solo, e suspendeu nela o saco, pelas asas. Atirou as latas de tinta para longe e  enterrou os pincéis no solo. Depois pegou a espingarda e mediu, a passo, cento e trinta metros. Destravou a arma, retirou um cartucho de uma dos bolsos do peito e introduziu-o na câmara. Espreitou pela mira e conseguiu distinguir os fios do cordão que fechava o saco que continha a melancia; depois ajustou os parafusos até as duas linhas cruzadas da mira telescópica ficarem perfeitamente centradas.

      Satisfeito, visou o meio do fruto e disparou. O coice era menor do que esperara, e a detonação abafada pelo silenciador mal se ouviria do outro lado de uma rua sossegada. Atravessou a clareira e examinou a melancia. A bala abrira caminho através da casca do fruto, na parte superior direita.

      Retrocedeu e disparou segunda vez, sem alterar a posição da mira telescópica. O resultado foi o mesmo. Tentou mais duas vezes, até se convencer de que a sua pontaria estava correta, mas que a mira visava alto e ligeiramente para a direita. Ajustou então de novo os parafusos. O tiro seguinte foi baixo e para a esquerda. Tentou mais três vezes, com a mira ajustada na nova posição. Por fim, recuou ligeiramente a mira. O nono tiro atravessou certeiramente a testa. A partir desse momento, acertou sucessivamente nos olhos, na cana do nariz, no lábio superior e no queixo. Satisfeito com a arma, retirou do bolso um tubo de cola de madeira de balsa e untou com ela a cabeça dos dois parafusos de ajustamento e a superfície de baquelite adjacente.

      Depois de meia hora, a cola secara e a mira estava regulada para a sua vista, com aquela arma e para uma distância de cento e trinta metros. Retirou do outro bolso a bala explosiva embrulhada em papel de seda, desembrulhou-a e introduziu-a na culatra da espingarda. Apontou com extremo cuidado e disparou. Quando a última pluma de fumaça azulada que se evolava da extremidade do silenciador se dissipou, o Chacal encostou a espingarda em uma árvore e atravessou a clareira até ao saco suspenso da faca. O saco pendia, mole e quase vazio. A melancia, que fora atingida por catorze balas de chumbo sem se desfazer, desintegrara-se. Alguns fragmentos haviam sido expelidos através do saco e estavam espalhados na erva.

      O Chacal atirou o saco para o meio de uns arbustos próximos. Arrancou a faca da árvore e meteu-a na bainha, depois foi buscar a espingarda e regressou ao automóvel.

     

      Na mesma  segunda-feira, 5 de Agosto, Viktor Kowalski telefonava para a Alitalia de uma estação dos Correios de Roma. Durante o fim-de-semana dormira pouco nos seus períodos de folga. Geralmente necessitava de muito tempo para tomar uma decisão, mas agora decidira-se. Não demoraria muito e depois explicaria ao patron o que se passara. Ainda pensara em pedir ao coronel uma licença de quarenta e oito horas, mas tinha certeza de que ele lhe proibiria que se ausentasse. Não compreenderia o caso de Sylvie, e Kowalski sabia que não conseguiria explicar. Informaram-no pelo telefone de que perdera o avião de segunda-feira e de que o próximo vôo direto era às 11:15 de quarta-feira. Reservou lugar, bem como para o regresso na quinta-feira, e indicou o nome que constava dos documentos que tinha no bolso. Suspirou profundamente ao desligar. Pela primeira vez na sua vida ia ausentar-se sem licença.

     

      Na manhã seguinte o Chacal teve o seu último encontro com M. Goossens. Chegou com a maleta metida numa mala vazia, que comprara numa loja de artigos em segunda mão.

      - Houve mais problemas? - perguntou.

      - Não. Desta vez creio que conseguimos.

      O armeiro colocou sobre a  mesa diversos rolos de serapilheira. A medida que os desenrolava, colocava lado a lado uma série de delgados tubos de aço polido. Quando desenrolou o último, estendeu a mão para a maleta que continha a espingarda: uma a uma, introduziu os componentes da arma nos tubos. Ajustavam-se perfeitamente.

      -Como foi o treino de tiro ao alvo?- perguntou, enquanto trabalhava.

      -Muito satisfatoriamente.

      Quando a última das cinco peças componentes da espingarda desapareceu no tubo respectivo, Goossens pegou a pequena agulha de aço que constituía o gatilho e as outras cinco balas explosivas.

      - Como vê, tive de arranjar acomodação diferente para estes objetos -explicou. Pegou na extremidade almofadada de couro preto da espingarda e mostrou ao cliente como o couro fora cortado com uma lamina. Enfiou o gatilho pela abertura e fechou o corte com uma tira de fita isoladora preta. Não se notava. Retirou da gaveta da mesa um fragmento de borracha preta com quase quatro centímetros de diâmetro e cinco de comprimento. Do centro de uma face circular emergia um prego de aço, ajustado com um parafuso. - Isto adapta-se à extremidade do último tubo - explicou. Em torno do prego de aço cinco orifícios perfuravam a borracha. Cuidadosamente, ele introduziu em cada um deles uma bala, até apenas as escorvas ficarem visíveis. - Uma vez a borracha colocada, as balas ficam invisíveis, além da borracha dar um ar de verossimilhança. Que lhe parece? - perguntou, numa voz que refletia um leve tom de ansiedade.

      Sem uma palavra, o inglês examinou os tubos um a um. Sacudiu-os, mas não ouviu qualquer som, pois eram forrados com flanela.

      - Exatamente o que eu queria. Um a um, embrulhou cuidadosamente os tubos de aço na serapilheira e guardou-os na mala. Estendeu a maleta ao armeiro e disse-lhe: - Já não preciso dela. - Retirou duzentas libras do bolso interior do casaco e colocou-as sobre a mesa.-Creio que os nossos negócios estão concluídos, Monsieur Goossens.

      O belga guardou o dinheiro e respondeu:

      - Sim, monsieur, a não ser que lhe possa ser útil em qualquer outro aspecto.

      - Só em um - retrucou o inglês. -Tenha a bondade de se lembrar da minha pequena homilia a respeito da sensatez do silêncio.

      - Não a esqueci. Trabalho nestas condições com todos os meus clientes e espero deles a mesma discrição.

      - Nesse caso, compreendemo-nos bem - disse o inglês sorrindo. - Bom dia, Monsieur Goossens.

      O Chacal tomou um táxi para a estação de trem e depositou a mala no depósito das bagagens. Depois saboreou um almoço requintado e caro, para celebrar o fim do estádio preparatório, e regressou ao hotel a pé, a fim de fazer as malas. Partiu para o aeroporto exatamente como chegara: de terno príncipe-de-gales de excelente corte, óculos escuros bem ajustados ao rosto e duas malas Vuitton, que um carregador transportou para o táxi que o esperava. Ia mil e seiscentas libras mais pobre do que quando chegara vindo de Londres.

     

      Na quarta-feira de manhã, Kowalski foi buscar o correio, como de costume, e regressou apressadamente ao hotel. As 9.30 estava no seu quarto, onde foi buscar o seu Colt 45 (Rodin não o autorizava a trazê-lo na rua), que meteu no coldre axilar. Depois guardou as economias dos últimos seis meses, saiu e fechou a porta. O vigilante de serviço no patamar ergueu a cabeça ao senti-lo.

      - Agora querem que faça um telefonema - disse-lhe Kowalski e esticou o polegar na direção do andar de cima. Decorridos segundos, estava na rua. Num café do lado oposto da rua, um homem do SDECE baixou a revista que estava lendo quando o polaco se meteu num táxi. Depois entrou num pequeno Fiat estacionado junto ao passeio. No aeroporto, o homem seguiu Kowalski até ao balcão da Alitalia, onde ele pagou o bilhete.

      Quando o vôo para Marselha foi anunciado e o polaco se incorporou na fila respectiva e seguiu para o avião, o homem dirigiu-se a um quiosque público e discou um número telefônico de Roma. Identificou-se e em seguida informou lentamente:

      - Ele partiu. Alitalia quatro-cinco-um. Aterra em Marignane ao meio-dia e dez.

      Passados dez minutos, a mensagem chegava a Paris e outros dez minutos depois estava sendo ouvida em Marselha. O Viscount da Alitalia aterrou precisamente à tabela no Aeroporto de Marignane e Kowalski chegou ao centro da cidade à hora do almoço. O calor pairava sobre as ruas como uma doença, minando as forças. O polaco precisou de meia hora para arranjar um táxi, pois a maioria dos motoristas arranjara uma sombra no parque para dormir a sesta.

      O endereço que Jo-Jo dera a Kowalski ficava na estrada principal à saída da cidade, na direção de Cassis, num quarteirão de prédios relativamente novos. Kowalski concluiu que o carro de venda de sanduíches devia estar rendendo consideravelmente.

      Seria mais agradável para Sylvie crescer naquele bairro do que nas proximidades das docas. A recordação da filha o fez subir os degraus correndo. Deteve-se no átrio, defronte da série dupla de caixas do correio. Numa delas lia-se: "Grzybowski, apartamento 23."

      O apartamento 23 ficava no segundo andar, ao fundo de um corredor. Kowalski tocou à campainha. A porta abriu-se e o cabo de uma picareta abateu-se sobre a sua testa. A pancada ecoou com um baque surdo. As portas dos dois apartamentos contíguos abriram-se e destes saíram vários homens.

      Kowalski ficou fora de si. Conhecia perfeitamente uma técnica- a da luta -, mas no corredor estreito a sua corpulência e força eram inúteis. Através do sangue que lhe escorria para os olhos distinguiu dois homens na soleira da porta e outros dois de ambos os lados. Como necessitava de espaço para se movimentar, lançou-se num ímpeto para dentro do apartamento 23. Os homens que se encontravam à sua frente cambalearam para trás, desequilibrados pelo impacto, e os que estavam na retaguarda aproximaram-se. No interior do aposento, Kowalski retirou o Colt de debaixo do braço, virou-se e disparou para trás, na direção da porta. No mesmo instante, outro cacete atingiu-o no pulso e desviou-lhe a pontaria para baixo. A bala acertou na rótula de um dos atacantes, que caiu soltando gritos lancinantes.

      A seguir, outra pancada no pulso do polaco tornou-lhe os dedos inertes e fez-lhe cair a arma da mão. A luta demorou três minutos. Mais tarde, um médico calculou que ele devia ter recebido vinte pancadas na cabeça antes de, finalmente, perder os sentidos. Tinha parte de uma orelha rasgada, o nariz partido e o rosto transformado numa máscara vermelho-escura. Quando desmaiou restavam apenas três atacantes de pé. Passadas doze horas, após uma viagem veloz de ambulância Kowalski, ainda inconsciente, jazia numa cama numa cela situada sob uma prisão-fortaleza nos arredores de Paris.

      Tinham-lhe lavado o sangue do rosto e suturado a orelha e os golpes da cabeça. Uma placa de gesso cobria-lhe o nariz fraturado e o pulso direito apresentava ligaduras e adesivos. Quando terminou o exame, o médico da prisão saiu da cela com o coronel Rolland.

      - Com que é que o agrediram? Com um trem expresso? - perguntou enquanto seguiam pelo corredor.

      - Foram precisos seis homens para lhe fazerem aquilo - respondeu Rolland.

      - Bem, por pouco não o mataram. O que me preocupa é a cabeça dele. O traumatismo pode agravar-se se não o deixarem em paz.

      - Tenho de lhe fazer umas perguntas - declarou o coronel, fitando a brasa do cigarro.

      O médico relanceou-o com desagrado.

      - Foi-me explicado muito claramente que não tenho nada a ver com o que se passa naquele corredor - disse com uma inclinação de cabeça na direção de onde tinham vindo. - Quero no entanto dizer o seguinte: se começam a interrogá-lo com os seus métodos antes de ele se recuperar, o homem morre ou endoidece.

      O coronel Rolland escutou a sinistra previsão do médico sem mover um músculo.

      - Quanto tempo? - perguntou.

      O médico encolheu os ombros.

      - É impossível calcular. Pode recuperar a consciência amanhã ou permanecer inconsciente alguns dias. Mas não será clinicamente indicado interrogá-lo enquanto não passarem pelo menos quinze dias.

      - Há certas drogas... - murmurou o coronel.

      - Eu sei. E eu não tenho qualquer intenção de as receitar. De qualquer modo, nada do que ele lhes pudesse dizer agora faria o mínimo sentido. Se querem que a sua mente se torne clara, terão de esperar que passe o tempo necessário.

      E, sem mais palavras, girou nos calcanhares e regressou ao seu consultório.

      Kowalski abriu os olhos três dias depois, a 10 de Agosto, e nesse mesmo dia teve a sua primeira e única sessão com os interrogadores.

     

      Depois de regressar de Bruxelas, o Chacal passou três dias tratando dos preparativos finais para a sua missão na França. Foi à sede da Associação Automobilística, onde adquiriu uma carta de motorista internacional em nome de Alexander James Quentin Duggan.

      Comprou, numa loja de artigos em segunda mão, um jogo de malas iguais. Numa delas arrumou a roupa do pastor Per Jensen, de Copenhagen, e do estudante americano Marty Schulberg. Cortou o forro da mala e introduziu os passaportes dos dois estrangeiros entre as camadas de couro.

      Na segunda mala meteu o vestuário que comprara na Feira da Ladra de Paris e os documentos falsos do francês de meia-idade André Martin. Esta mala ficou parcialmente vazia, pois em breve teria de acomodar também uma série de delgados tubos de aço contendo uma espingarda completa de atirador de precisão e as respectivas munições.

      A terceira mala, de dimensões ligeiramente menores, serviu para guardar os objetos pessoais e vestuário de Alexander Duggan, incluindo três ternos elegantes. No seu forro foram introduzidos diversos maços delgados de notas de dez libras, totalizando mil libras.

      O terno cinzento limpo e passado a ferro, estava pendurado no guarda-roupas. No bolso do peito estavam o passaporte, as cartas de condução e uma carteira com cem libras. Uma pequena e elegante maleta continha o estojo de barbear, o pijama, o estojo de toilette, uma toalha e as suas últimas aquisições: uma espécie de arnês leve, de lona fina, um cartucho de gesso, rolos de ligaduras de malha larga, adesivo, algodão em rama e uma tesoura forte, de bicos redondos. A maleta viajaria como bagagem de mão, pois a experiência ensinara-lhe que, ao passar pela alfândega, a bagagem de mão não costumava ser escolhida para uma inspeção arbitrária. E ficou à espera das duas cartas que o fariam pôr-se a caminho.

      A primeira chegou a 9 de Agosto e dizia o seguinte: "o seu amigo pode ser contatado através de Inválidos 5901. Apresente-se com as palavras Ici Chacal. A resposta será Ici Valmy. Felicidades."

      A carta de Zurique só chegou na manhã de 11 de Agosto. Sorriu ao ler a confirmação de que, se permanecesse vivo, seria um homem rico durante o resto da sua vida. Passou o que lhe restava dessa manhã reservando passagens aéreas pelo telefone e decidiu partir na manhã seguinte.

     

      O silêncio da sala era apenas quebrado pela respiração pesada mas controlada, dos cinco homens sentados à mesa e por uma espécie de estertor rouco que saía da garganta do homem preso à pesada cadeira de carvalho, defronte deles. O calor era sufocante. A única luz provinha de um candeeiro colocado quase no centro da mesa, com uma lâmpada muito forte que incidia diretamente na cadeira e no preso. A luz era tão intensa que ele só conseguia  ver, dos seus interrogadores, aqui e ali, uma ou outra mão, um pulso e uma ponta de cigarro da qual se evolava uma débil nuvem de fumaça azul.

      Correias almofadadas prendiam-lhe firmemente os tornozelos às pernas da cadeira, que estavam aparafusadas ao chão. Os pulsos do prisioneiro estavam presos do mesmo modo aos braços da cadeira, e outras correias almofadadas rodeavam-lhe a cintura e o peito maciço e hirsuto. O almofadado das correias estava ensopado em suor.

      O tampo da mesa estava quase vazio. No entanto, a mão direita do homem mais afastado do candeeiro repousava perto de umas alavancas e de um interruptor.

      A um canto da sala, voltado para a parede, encontrava-se um homem sentado a outra mesa, sobre a qual se via um gravador ligado. De súbito, o homem do meio da mesa quebrou o silêncio e falou em voz civilizada e aliciadora:

      - Écoute, mon petit Viktor. Você é um homem corajoso, mas você próprio sabe que, no fim, eles acabam sempre por falar. Você os viu falar, n'est-ce pas? Sendo assim, porque não fala logo? Depois volta para a cama e dorme, dorme, dorme...

      O homem preso à cadeira ergueu o rosto equimosado e reluzente de suor. Abriu a boca e tentou falar. Depois a cabeça caiu-lhe de novo e ele sacudiu-a numa resposta negativa. A voz vinda da mesa voltou a ouvir-se:

      - Ouça, Viktor. Você é um homem duro, mas nem mesmo você pode continuar a agüentar. Nós podemos, Viktor. Os pequenos "caranguejos , terão apenas de insistir... Quer nos contar, Viktor? Que eles estão fazendo no hotel de Roma? Que esperam?

      A enorme cabeça pendente sobre o peito continuou a abanar lentamente, numa recusa. Era como se os olhos fechados estivessem examinando primeiro um e depois outro dos três "caranguejos" de cobre cujos dentes estavam fincados nos seus mamilos e no seu sexo. As mãos do homem que falara estavam à sua frente, banhadas de luz esguias, brancas, cheias de paz.

      O homem aguardou alguns momentos. Depois uma das mãos brancas separou-se da outra, o polegar sob a palma e os quatro dedos bem abertos, e pousou de novo na mesa. No extremo da mesa, o homem sentado junto das alavancas deslocou uma das manetes do algarismo 2 para o algarismo 4, depois apertou o interruptor. Os "caranguejos" de metal emitiram um leve zumbido e pareceram ganhar vida. Silencioso, o corpanzil preso à cadeira ergueu-se, como se levitasse. As pernas e os pulsos exerceram pressão contra as correias até parecer que, não obstante o almofadado, o couro ia perfurar a carne e o osso. Decorreu meio segundo antes de soar o grito demoníaco.

      Viktor Kowalski cedeu às 16:10.

      Quando começou a falar incoerentemente a voz calma do homem sentado no centro da mesa intrometeu-se nas suas divagações:

            - Porque eles estão no hotel, Viktor? ...Rodin, Montclair e Casson... de que têm eles medo... quem viram... diga-nos, Viktor... porquê Roma?...

      Kowalski calou-se ao fim de cinqüenta minutos, durante os quais as suas divagações foram registradas no gravador, até se tornar evidente que não diria mais nada. As gravações foram então levadas, num carro veloz, à sede do Serviço de Ação, próximo da Porta dos Lilases. Três homens passaram o serão sentados à volta de um gravador, tentando decifrar algum significado nas declarações incoerentes de Kowalski.

      Era quase meia-noite quando um deles telefonou ao coronel Rolland, que se encontrava num jantar, e lhe comunicou que a transcrição estava terminada. Dez minutos depois, o coronel Rolland seguia a toda a velocidade para a Porta dos Lilases. Chegou ao gabinete pouco depois da uma da manhã, despiu o imaculado casaco escuro e pediu café. A primeira cópia da confissão de Kowalski foi-lhe entregue com o café.

      Começou por ler rapidamente as vinte e seis páginas do dossiê, para tentar apreender a essência do que o dementado legionário dissera. Na segunda leitura, pegou uma caneta de ponta de feltro e passou um traço preto, grosso, sobre as passagens relacionadas com Sylvie, a Argélia, leuce..., Jo-Jo, Kovacs, pulhas corsos e a Legião. Compreendia todas essas menções e não lhe interessavam. Tentou encontrar algum sentido no restante.

      Os três líderes estavam em Roma. Bem, isso já ele sabia. Mas porquê? Essa pergunta fora feita oito vezes. E, de uma maneira geral, a resposta fora sempre a mesma: não queriam ser raptados como Argoud fora em Fevereiro. Era natural, embora Rodin não fosse homem para se ocultar por estar assustado. Havia uma palavra que o legionário tartamudeara duas vezes ao responder a essas oito perguntas idênticas. A palavra era "segredo". Não queriam ser raptados porque possuíam um segredo? Rolland leu toda a transcrição pela décima vez. A palavra "Viena" aparecia três vezes. Após um encontro tido em Viena, os três homens da OAS haviam-se refugiado e ocultado em Roma para não serem raptados e interrogados sobre um segredo que não queriam revelar.

      As horas foram passando, e com elas inúmeras xícaras de café. Antes da estreita linha de luz cinzento-clara começar a recortar as formas dos sombrios subúrbios industriais, o coronel Rolland sabia que estava na pista de qualquer coisa. Faltavam peças do puzzle. Estariam perdidas para sempre, uma vez que, às três da manhã, o tinham informado telefonicamente de que Kowalski morrera, ou estariam ocultas em algum lugar, no texto confuso?

      Rolland começou a tomar nota de fragmentos do puzzle. Um homem chamado Kleist, ou seria um lugar?

      Ligou para os Telefones e pediu que passassem em revista a lista telefônica de Viena. Havia duas colunas de Kleist, todos indivíduos particulares, à exceção da Escola Primária Masculina Ewald Kleist e da Pensão Kleist. Continuou a ler.

      Havia várias referências a um estrangeiro. Por vezes, Kowalski empregava a palavra "bon" ao referir-se ao indivíduo; outras, chamava-lhe “facheur", um tipo irritante. Pouco depois das cinco da manhã, o coronel Rolland mandou pedir o gravador e a gravação e passou a hora seguinte a ouvi-la.

      Quando, por fim, desligou o aparelho, efetuou várias alterações no texto. Kowalski não se referira ao estrangeiro como bon, mas sim como blond, (louro). E a palavra que saíra dos seus lábios exangues e que fora transcrita como facheur havia sido, na realidade, faucheur: assassino. A partir de então, a tarefa de Rolland foi fácil. A palavra "chacal", que Rolland pensara ser um insulto dirigido por Kowalski aos homens que o torturavam, adquiriu novo significado: passou a ser o nome de código do assassino louro que era estrangeiro e com quem os três homens da OAS se tinham encontrado na Pensão Kleist, em Viena, antes de se ocultarem em Roma. Rolland pôde deduzir, então, o que ocasionara a vaga de assaltos a bancos e joalharias que abalara a França.

      O louro exigia dinheiro para realizar um trabalho para a OAS. Só havia um "trabalho" no mundo que exigisse uma quantia tão avultada. As sete da manhã, Rolland pediu à telefonista que transmitisse uma mensagem com a máxima prioridade para a agência do SDECE em Viena. Depois ordenou que lhe entregassem todas as cópias da confissão de Kowalski e fechou-as no cofre. Por fim sentou-se para escrever um relatório destinado exclusivamente a um homem e encimado pela advertência: "Para ser lido exclusivamente por si.” Escreveu-o à mão, descrevendo a operação que montara pessoalmente para atrair Kowalski a Marselha e informando que, ao resistir à prisão, o ex-legionário deixara dois agentes mutilados e tentara suicidar-se. Fora então internado no hospital, onde fora interrogado e fizera uma confissão confusa. O resto do relatório referia-se ao modo como ele interpretava essa confissão. Redigiu cuidadosamente o último parágrafo: Ainda estão em curso investigações para encontrar provas corroborativas da conjura em causa. No entanto, se o acima citado é verdadeiro, a conjura constitui, na minha opinião, a conspiração isolada mais perigosa que os terroristas poderiam ter atentado contra a vida do presidente. Se um assassino estrangeiro, conhecido apenas pelo nome de código de Chacal, está neste preciso momento preparando-se para executar o ato, é meu dever informá-lo de que, a meu ver, estamos perante uma emergência nacional.

      Foi o próprio coronel Rolland quem datilografou a cópia final do relatório, meteu num envelope, que lacrou com o seu sinete pessoal, e endereçou, ápodo o carimbo destinado às mensagens que exigiam a máxima segurança. Chamou ao seu gabinete um mensageiro-motociclista. Como já passava bastante das nove horas, pediu também que lhe levassem o café da manhã e duas aspirinas para a dor de cabeça.

     

      Mais tarde, nessa mesma manhã, sentado à sua mesa, Roger Frey, o ministro do Interior, contemplava, fixa e sombriamente através da janela, os belos portões de ferro forjado, decorados com as armas da República Francesa, no extremo oposto do pátio. Ao ouvir atrás de si o ruído de uma página a ser virada, o ministro rodou novamente a cadeira giratória, colocando-a de frente para a mesa. O homem sentado do lado oposto desta fechou o dossiê e colocou-o reverentemente sobre a mesa.

      Ambos se entreolharam, num silêncio interrompido apenas pelo tique-taque do relógio dourado colocado sobre a prateleira do fogão de sala.

      - Então, que é que acha? - o comissário Jean Ducret, chefe do corpo de segurança pessoal do presidente De Gaulle, devia o seu cargo ao fato de ser um dos maiores especialistas franceses de todas as fases da segurança.

      - Rolland tem razão - disse por fim. - Se o que ele diz é verdade, a conspiração reveste-se, realmente, de um perigo excepcional. Todas as agências de segurança da França, bem como toda a rede de agentes que operam no interior da OAS, estão reduzidas à impotência.

      Roger Frey passou os dedos pelo cabelo grisalho e curto e virou-se de novo para a janela. Por trás da sua aparência de homem inteligente e cortês, gozava da fama de ser duro e obstinado. Os seus cintilantes olhos azuis podiam ser calorosamente cativantes ou de uma frieza gélida. Não se irritava facilmente, mas naquela manhã estava irritado. os gaullistas tinham sido obrigados a lutar pela sobrevivência, e ele e outros devotados partidários da causa tinham conseguido vencer. Duas vezes em dezoito anos Charles de Gaulle reassumira o poder supremo. Até alguns minutos antes, o ministro pensara que a derradeira luta, a que travavam contra a OAS, estava esmorecendo, mas agora sabia que não era verdade. Alguns governos possuem estabilidade bastante para sobreviverem à morte de um presidente ou à abdicação de um rei, mas Roger Frey estava suficientemente consciente do estado das instituições na França em 1963 para não alimentar ilusões: a morte do presidente só poderia ser o prólogo de uma guerra civil.

      - Bem, temos de lhe dizer - decidiu finalmente. – Vou pedir uma audiência, esta tarde, e informar o presidente. Não preciso lhe pedir que guarde absoluto segredo deste caso até ele resolver como deseja que procedamos.

      No Palácio do Eliseu, o ajudante-de-campo do presidente naquele dia era o coronel Tesseire. O coronel levantou-se da cadeira quando o ministro foi introduzido no Salon des ordonnances.

      - É esperado, Monsieur le Ministre - disse Tesseire, enquanto atravessava a sala, batia levemente às portas duplas fechadas, de maçanetas douradas, abria uma e se detinha no limiar. - o ministro do Interior, Monsieur le Président.

      Ouviu-se uma anuência abafada do interior, e Roger Frey entrou no gabinete particular de Charles de Gaulle.

      Tudo naquela sala fornecia pistas sobre o homem que escolhera a decoração e o mobiliário. A direita, três elegantes janelas davam para os jardins do palácio, onde, sob as tílias e as faias, vigiavam homens silenciosos, munidos de automáticas. Mas ai daquele que se deixasse ver das janelas! Para o presidente, todas as formas de proteção pessoal eram uma indignidade, e receava-se a sua fúria lendária caso ele viesse a saber que tinham sido tomadas tais medidas para sua proteção.

      A esquerda ficavam estantes de portas envidraçadas e uma mesa Luís XV, sobre a qual se via um relógio Luís XIV. Cobria o chão uma tapeçaria Savonnerie, feita em 1630, em Charllot, na fábrica real de tapeçarias. Não havia nada que não exemplificasse a grandeza da França, incluindo o homem que se levantou da secretária para cumprimentar o visitante com a sua habitual e primorosa cortesia.

            - Mon cher Frey. - o indivíduo alto, de terno cinzento-antracite, contornou a grande mesa, de mão estendida.

      - Monsieur le Président, mes respects. - Frey apertou a mão estendida. Pelo menos o Velho parecia estar bem disposto. O presidente indicou-lhe uma das duas cadeiras de costas direitas, forradas de tapeçaria Beauvais, Império, que se encontravam em frente da mesa. Charles voltou para a sua cadeira e recostou-se.

      - Disseram-me, meu caro Frey, que desejava falar-me sobre um assunto urgente. Que tem a dizer-me?

      Por um momento, Roger Frey hesitou. A sua opinião e a de 7; Charles de Gaulle, no referente às medidas de segurança necessárias para proteger o presidente, sempre haviam divergido; quando pensava no pedido que se via obrigado a fazer, o ministro quase tremia. No entanto, respirou fundo e começou. Explicou breve e sucintamente o assunto que ali o levava.

      Enquanto ele falava, o homem sentado à mesa tornou-se perceptivelmente tenso. Recostando-se mais profundamente na cadeira fitava, do cimo do imponente promontório do nariz, o ministro como se lhe tivessem levado para o gabinete uma substância desagradável.

      Ao concluir o seu monólogo, que mal durara um minuto, o ministro do Interior retirou o relatório de Rolland da pasta e passou-o por sobre a mesa. Charles de Gaulle retirou os óculos do bolso do peito do casaco, colocou-os, abriu o relatório e começou a ler. Concluiu a leitura em três minutos, cruzou as mãos sobre as folhas e perguntou:

      - Bem, meu caro Frey, que deseja de mim?

      Pela segunda vez Roger Frey respirou fundo e começou a enumerar as providências que desejava tomar. Por duas vezes empregou a frase: "Em meu entender, Monsieur le Président, se queremos evitar esta ameaça, será necessário ..." Ao trigésimo terceiro segundo do seu discurso mencionou "o interesse da França". Não foi mais longe. O presidente interrompeu-o e a sua voz sonora pronunciou a palavra "França" como se fosse o nome de uma divindade, de um modo que nenhuma outra voz francesa soubera nunca igualar.

      - O interesse da França, meu caro Frey, é que o seu presidente não seja visto acovardando-se perante a ameaça de um miserável mercenário e... - fez uma pausa, enquanto o desdém pelo seu atacante desconhecido pairava, pesado, no aposento - ... de um estrangeiro.

      Roger Frey compreendeu que perdera. O general começou a falar com clareza e precisão, não deixando ao seu interlocutor margem de dúvidas sobre os seus desejos. Dois minutos depois, o ministro do Interior deixava o gabinete do presidente.

     

      DUAS horas após o seu regresso do Eliseu, Roger Frey convocara todos os chefes da Polícia e das forças de segurança francesas para uma reunião no seu ministério.

      - A identidade do assassino tem de ser revelada através de uma investigação secreta, precisamos localizá-lo, onde quer que se encontre, e destruí-lo sem hesitar. Esta, meus senhores, é a única solução que nos resta.

      O ministro olhou em redor da mesa, para que o impacto das suas palavras produzisse todo o efeito desejado.

      Encontravam-se catorze homens na sala, incluindo o general Guibaud, chefe do SDECE; o coronel Rolland; o comissário Ducret, do Corpo de Segurança Presidencial, e Raoul Saint-Clair de Villauban, um coronel da Força Aérea que fazia parte do estado-maior do Eliseu, gaullista fanático, mas com fama de ser igualmente fanático no tocante à sua própria ambição.

      - É este, portanto, o ponto da situação, meus senhores - resumiu o ministro. - Já leram as cópias do relatório e ouviram, da minha boca, as limitações que o presidente impôs aos nossos esforços para anular esta ameaça. Repito as suas ordens absolutamente formais: não haverá nenhuma publicidade, nenhuma busca à escala nacional, nenhuma indicação a alguém fora deste pequeno círculo de que se passa alguma coisa. O presidente não modificará numa hora, nem num minuto que seja, o seu programa público. Em sua opinião, se o segredo fosse divulgado, a imprensa nunca mais se calaria e quaisquer precauções extra de segurança por nós tomadas seriam interpretadas como o espetáculo do presidente da França escondendo-se de um único homem, e de mais a mais de um estrangeiro. Foi perfeitamente claro ao dizer que rolariam cabeças se tratássemos do assunto de modo que este se tornasse do conhecimento público. Quero pois salientar mais uma vez que todos os presentes ficam comprometidos a guardar um silêncio total e não discutirão o caso com ninguém que não se encontre nesta sala. Agora gostaria de conhecer as suas idéias a respeito do assunto. Coronel Rolland, as suas investigações em Viena tiveram algum êxito?

      - Tiveram - respondeu o coronel. - Foram realizadas investigações na Pensão Kleist por alguns agentes de Viena que levaram fotografias de Marc Rodin, René Montclair e André Casson. O recepcionista identificou Rodin como um homem que alugara um quarto em nome de Schulz. Recordou-se também de que o tal Schulz tinha um companheiro, um indivíduo corpulento e de modos rudes. Tratava se, provavelmente, de Kowalski. Segundo o livro de registros. Schulz passou na Pensão Kleist as noites de 15 e 16 de Junho. O recepcionista informou que dois homens, porventura Casson e Montclair, se reuniram a ele e ao companheiro no segundo dia. Nessa mesma noite visitou-os outro homem. O recepcionista declarou que se lembrava desse pormenor porque o visitante se dirigira diretamente para a escada e a subira, o que o levara a supor tratar-se de um hóspede. Segundos depois, o homem voltou junto dele e pediu-lhe que ligasse para o quarto de Schulz. Disse algumas palavras em francês ao telefone e voltou a subir a escada. Demorou-se meia hora e depois partiu. O recepcionista só consegue descrevê-lo como um homem alto, de idade incerta e feições aparentemente regulares, mas parcialmente ocultas por óculos escuros bem ajustados ao rosto. Tinha cabelo louro comprido penteado para trás.

      - Por conseguinte - observou o comissário Ducret -, à parte Kowalski, que morreu, só quatro homens conhecem a identidade do tal Chacal. Um é o próprio indivíduo e os outros três estão num hotel de Roma. E se tentássemos trazer um deles para cá?

      O ministro abanou a cabeça.

      - As instruções que recebi a esse respeito foram formais: os raptos estão fora de questão. Não queremos que o Governo Italiano comece a protestar. De resto, existem algumas dúvidas quanto à exeqüibilidade do rapto. General?

      O general Guibaud ergueu os olhos para os presentes.

      - Segundo os meus agentes que os vigiavam, estão protegidos por oito atiradores de primeira, ex-legionários. Todos os elevadores todas as escadas, saídas de emergência e telhados estão guardados. Seria praticamente impossível tirar de lá um deles vivo e passá-lo para fora do país.

      - Bem, meus senhores, mais algumas sugestões? - perguntou o ministro.

      - Esse Chacal tem de ser encontrado. Pelo menos, isso é evidente -declarou o coronel Saint-Clair, o que levou alguns dos presentes em torno da mesa a entreolharem-se e fez arquear uma ou duas sobrancelhas.

      - Isso é, com certeza, evidente - murmurou o ministro.- o que pretendemos é descobrir uma maneira de o fazer, e, nessa base, talvez possamos decidir qual dos departamentos aqui representados será o mais indicado para o empreendimento.

      - A proteção do  presidente da República - declarou o coronel Saint-Clair em tom grandíloquo - deve estar a cargo do Corpo de Segurança Presidencial e do estado-maior pessoal do presidente. Nós, posso garantir-lhe, Monsieur le Ministre, cumpriremos o nosso dever!

      Alguns dos experientes profissionais presentes à reunião fecharam os olhos, num claro gesto de enfado. O comissário Ducret lançou ao coronel um olhar que, se os olhares matassem, o teria vitimado. Roger Frey olhou em redor da mesa e os seus olhos detiveram-se num homem corpulento, de expressão impassível, cujo fumo do cachimbo incomodava visivelmente o melindroso coronel Saint-Clair. Tratava-se do comissário Maurice Bouvier, chefe da Brigada Criminal da Polícia Judiciária.

      - Que é que você acha, Bouvier? Ainda não falou.

      O detetive tirou o cachimbo da boca e respondeu calmamente:

      - Parece-me, Monsieur le Ministre, que o SDECE não pode descobrir esse homem através dos seus agentes infiltrados na OAS, uma vez que nem a OAS sabe quem ele é; que o Serviço de Ação não pode destruí-lo, uma vez que não sabe a quem destruir, e que a Polícia não pode prendê-lo, porque também não sabe a quem prender. Parece-me, portanto, que a primeira coisa a fazer é dar um nome a esse homem. Mas descobrir esse nome, e descobri-lo em segredo, exige puro trabalho de detetive. - E enfiou de novo o pipo do cachimbo entre os dentes.

            - E quem é o melhor detetive de França? - indagou o ministro.

      Bouvier retirou de novo o cachimbo da boca.

      - O melhor detetive de França, messieurs, é o meu próprio adjunto, o comissário Claude Lebel.

      - Chame-o - ordenou o ministro do Interior.

 

Anatomia de Uma Caça ao Homem

      UMA hora depois, Claude Lebel saía, estupefato e confuso, da sala de conferências do ministério. Haviam-lhe sido transmitidas pormenorizadas e abundantes instruções. Organizaria o seu próprio gabinete; teria acesso ilimitado a todas as informações necessárias, todos os recursos das organizações chefiadas pelos homens presentes estariam ao seu dispor. Haviam-lhe sublinhado a necessidade de atuar no mais absoluto segredo. Sentia-se desanimar. Ainda não havia nenhum crime, nenhuma pista, nenhuma testemunha - exceto três homens com os quais não poderia falar. Dispunha apenas de um nome de código e tinha o mundo inteiro para procurar.

      Claude Lebel era, e sabia-o, um bom policial. Lento, preciso, metódico e diligente. Já algumas vezes revelara o fulgor de inspiração que é necessário para transformar um bom policial num detetive extraordinário. Mas nunca perdera de vista o fato de que, no trabalho policial, noventa e nove por cento do esforço consiste na construção laboriosa de uma teia de fragmentos, até os fragmentos se transformarem num todo, o todo se transformar numa rede e finalmente a rede apanhar o criminoso e constituir um caso capaz não só de fornecer manchetes aos jornais, mas também de se agüentar em tribunal.

      Era conhecido na PJ como um tipo trabalhador, um homem que detestava a publicidade e nunca concedera o gênero de entrevistas de imprensa em que alguns dos seus colegas tinham alicerçado as respectivas reputações. E, não obstante, fora subindo firmemente os degraus da escada, solucionando os seus casos e vendo os seus criminosos condenados.

      Quando surgira uma vaga de chefe na Divisão de Homicídios da Brigada Criminal, três anos antes, até os outros candidatos ao cargo tinham reconhecido a justiça de ser ele a assumir essas funções. Conseguira uma boa folha de serviços na Divisão de Homicídios e em três anos nunca deixara de efetuar uma prisão, embora uma vez o acusado tivesse sido absolvido com base num pormenor técnico.

      Como chefe da Divisão de Homicídios, tornara-se mais facilmente notado por Maurice Bouvier, que comandava toda a brigada e era também, como ele, um policial do estilo antigo. Havia na PJ quem desconfiasse de que Bouvier apreciava um subordinado tímido, que sabia resolver discretamente os grandes casos merecedores de manchetes nos jornais sem roubar os aplausos do seu superior. Mas talvez estivessem apenas a ser pouco caridosos.

      Após a reunião, as cópias do relatório de Rolland foram reunidas, para serem guardadas no cofre do ministro. Lebel, porém, foi autorizado a ficar com a cópia de Bouvier. O seu único pedido fora que lhe permitissem solicitar a cooperação dos chefes das forças de investigação criminal dos países susceptíveis de terem registrada a identidade de um assassino profissional como Chacal.

      Sem essa cooperação não seria possível iniciar sequer a busca. Garantira aos presentes que conhecia pessoalmente os homens com os quais precisaria contatar e que as suas investigações não seriam oficiais. Após uns momentos de reflexão, o ministro acedera. E agora Lebel encontrava-se no átrio à espera de Bouvier e via desfilar perante si os chefes dos diversos departamentos, que saíam. Alguns dirigiram-lhe um breve aceno de cabeça; outros arriscaram um sorriso compreensivo. O aristocrático coronel do estado-maior do Eliseu, Saint-Clair de Villauban, deteve-se a examinar, com mal disfarçado desagrado, o pequeno e modesto comissário.

      - Espero, comissário, que seja bem sucedido nas suas investigações e que consiga resultados rápidos - declarou. – Se falhar, posso garantir-lhe que haverá... repercussões. – E desceu a escada, empertigado, deixando Lebel mudo, mas pestanejando rapidamente.

            Um dos fatores do caráter de Claude Lebel que facilitara os seus êxitos na investigação criminal, ao longo dos últimos vinte anos, fora a sua faculdade de inspirar às pessoas a confiança necessária para falarem com ele. Tinha o dom de levar as pessoas simples a confiarem-lhe os seus pensamentos e as suas suspeitas, devido talvez ao seu aparente ar de desamparo, que a seus olhos o tornava, como elas, um dos espezinhados e oprimidos deste mundo. Nunca andava armado e não correspondia à imagem tradicional da autoridade da lei. Tão-pouco era tão hábil com as palavras como muitos dos jovens detetives que começavam a aparecer na corporação e sabiam intimidar e amedrontar as testemunhas, fazendo-as romper em lágrimas. Mas não sentia a falta dessas características. Tinha a percepção de que, na sua maioria, os crimes de qualquer sociedade eram cometidos contra gente humilde ou por ela testemunhados: o lojista, o carteiro ou o escriturário. E essas pessoas sabia ele induzir a falar. Tal devia-se, em parte, à sua estatura: era baixo e assemelhava-se a imagem que os caricaturistas costumavam atribuir ao marido dominado pela mulher - o que, embora ninguém do departamento o soubesse, era de fato o que se passava.

      Os seus modos eram brandos, quase apologéticos. Mas por trás da simplicidade ocultava-se um misto de argúcia mental e de recusa obstinada de deixar-se intimidar por quem quer que fosse quando efetuava uma investigação. Fora ameaçado por alguns dos mais violentos chefes de quadrilha franceses, os quais, ao verem-no piscar rapidamente os olhos perante as suas ameaças, julgavam que as suas advertências haviam sido devidamente tomadas em consideração. Só mais tarde, numa cela prisional, tinham tido tempo de compreender que haviam subestimado os seus suaves olhos castanhos e o seu ridículo bigode.

      A reação de Claude Lebel às observações do coronel Saint-Clair foi também, pestanejar como um colegial repreendido e permanecer em silêncio. Bouvier reuniu-se a ele, do lado de fora da sala de conferências e pousou-lhe pesadamente a grande manápula no ombro.

      - Eh bíen, mon petit Claude, fui eu que sugeri que fosse a PJ a tratar deste caso. - No automóvel, Bouvier prosseguiu: - Você vai ter de largar tudo o que estiver fazendo. Quer um gabinete novo para este trabalho?

      - Não, prefiro ficar onde estou.

      - A partir de agora o seu gabinete passa a ser a sede da operação Caça ao Chacal. Nada mais. Quer alguém para ajuda-lo?

      - Quero: Lucien Caron - respondeu Lebel, referindo-se a um jovem inspetor da Divisão de Homicídios que levara consigo quando se tornara chefe-adjunto da Brigada Criminal.

      - Está bem. Mais alguém?

      - Não, obrigado. Mas Caron terá de saber os detalhes.

      Bouvier refletiu durante alguns momentos.

      - Acho que não haverá novidade. Telefono ao Frey, quando chegar, e peço-lhe uma autorização formal. Há ainda uma coisa: antes de eu sair da reunião, Frey concordou que todo o grupo deveria ser posto a par da evolução dos acontecimentos, todas as noites às dez em ponto, no ministério.

      - Valha-me Deus! - exclamou Lebel.

      - Não se preocupe, Claude. Eu também estou presente a essas reuniões.

      Dez minutos depois, Claude Lebel encontrava-se de novo no seu gabinete. Se tivesse uma maneira de ser diferente, talvez lhe ocorresse que, se tivesse êxito naquela missão poderia coroar a sua carreira com honrarias. Mas tal pensamento não lhe ocorreu. O que o preocupava era como explicar a Amélie, telefonicamente que não iria a casa até nova ordem.

      Decorridos alguns minutos Lucien Caron apareceu.

      - O comissário Bouvier disse-me que me apresentasse ao senhor...

      - Sim - interrompeu-o Lebel. - Fui escolhido para um trabalho especial e você vai ser meu assistente - o telefone tocou, ele atendeu e escutou durante alguns momentos. – Muito bem - disse, por fim, e desligou. - Era Bouvier dizendo que a segurança aceitou a sua escolha para este trabalho. Para começar, é melhor ler isto.

      Enquanto Caron lia o relatório de Rolland. Lebel empilhava os outros dossiês da sua mesa nas prateleiras desarrumadas que tinha atrás de si. Nada no gabinete revelava que este se tornara o centro nevrálgico da maior caça ao homem empreendida na França.

            Media, se tanto, 3, 0 m x 4,20 m e tinha duas janelas voltadas para sul. sobranceiras ao rio, na direção da fervilhante colméia que era o Quartier Latin os sons noturnos e o ar quente do Verão entravam por uma das janelas. O gabinete continha duas mesas com as respectivas cadeiras, uma poltrona e seis grandes arquivos. O único detalhe pessoal era a fotografia emoldurada, sobre a mesa de Lebel, de uma senhora forte e de ar determinado e duas crianças, uma garota de óculos de aros de aço e tranças e um rapaz de expressão tão branda e resignada como a do pai. Caron acabou de ler o relatório e ergueu os olhos.

      Durante trinta minutos, Lebel pô-lo ao corrente dos acontecimentos da tarde e Caron escutou-o em silêncio.

      - Mas que diabo podemos fazer a partir daqui? - perguntou, quando Lebel terminou. Fitando o seu superior com uma expressão preocupada. - Mon commissaire sabe que lhe deram isto porque mais ninguém o queria, não sabe? Sabe o que lhe farão se não conseguir apanhar este homem a tempo?

      - Comecemos por reconhecer que desfrutamos dos mais amplos poderes jamais concedidos a dois polícias na França - replicou Lebel, risonho. - Por isso, vamos usá-los. Para começar, pegue num bloco de notas e anote o seguinte: transfira a minha mesa. Mais ninguém pode ser informado do segredo. Traga para cá uma cama de campanha e o necessário para me lavar e barbear. Dê instruções para manterem permanentemente ao dispor deste gabinete dez linhas de rede e um telefonista. Quanto às outras coisas que forem necessárias, contate diretamente com o chefe do departamento e mencione o meu nome. Escreva, para eu assinar, um memorando com cópia para quantos assistiram à reunião desta noite, comunicando que é o meu único assistente e está autorizado a requisitar-lhes tudo quanto eu possa necessitar.

      Caron acabou de escrever e perguntou:

      - Mais alguma coisa, chefe?

      - Sim. Quero uma linha direta para contatar pessoalmente os chefes das divisões de homicídio da polícia criminal de sete países: Estados Unidos, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Itália, Alemanha Ocidental e África do Sul. Conheço a maior parte deles, de reuniões anteriores da Interpol. Entre as sete e as dez da manhã ligue-me para eles da sala de comunicações da Interpol e faça as chamadas com intervalos de vinte minutos. Os telefonemas deverão ser feitos por transmissão UHF e não pode haver escutas. Entretanto, vou à Divisão de Homicídios averiguar se haverá alguma possibilidade de algum assassino estrangeiro ter operado na França sem ter sido apanhado. Sabe o que tem de fazer?

      - Sei sim, chefe - respondeu Caron, que parecia ligeiramente atordoado.-Vou já começar a trabalhar.

      Quando Claude Lebel saiu do gabinete, o relógio da Notre-Dame bateu as doze badaladas da meia-noite e a França iniciou a manhã do dia 12 de Agosto.

     

      O coronel Raoul Saint-Clair de Villauban chegou em casa pouco antes da meia-noite, depois de ter passado três horas datilografando meticulosamente o relatório da reunião daquela noite. Era irritante ter de perder tempo com uma tarefa tão modesta, mas isso lhe permitiria ter o documento pronto logo de manhã.

      Escolhera cuidadosamente a fraseologia adequada para insinuar a desaprovação do signatário relativamente ao fato da segurança do chefe do Estado ter sido colocada exclusivamente nas mãos de um comissário da Polícia, um homem mais acostumado a descobrir pequenos criminosos do que a realizar uma tarefa de tal envergadura. Pessoalmente, considerara Lebel um homem vulgar e insignificante.

      No relatório referira-se de outro modo: "Possuidor, sem dúvida, de uma folha de serviços competente." Decidira não se opor declaradamente à nomeação daquele policial promovido, pois Lebel poderia eventualmente encontrar o seu homem, mas ele não deixaria de vigiar de perto toda a operação e de ser o primeiro a apontar as ineficiências da sua condução, se e quando ocorressem.

      De fato, em sua opinião, o assassino não podia usufruir de grandes chances. O escudo de segurança presidencial era o mais eficiente do Mundo. Duvidava de que um atirador estrangeiro qualquer pudesse trespassá-lo. Entrou pela porta principal da sua casa e ouviu a amante recém-instalada perguntar:

      - É você amor?

      - Sou, chérie. Claro que sou eu. Sentiu minha falta?

            Ela saiu a correr do quarto, vestindo um finíssimo baby-doll preto. A luz indireta do candeeiro da mesa-de-cabeceira coava-se através da porta aberta e delineava-lhe as curvas do corpo jovem. Como habitualmente lhe acontecia quando via a amante, Saint-Clair sentiu o desejo de se felicitar por ela estar tão profundamente apaixonada por ele. A jovem rodeou-lhe o pescoço com os braços e beijou-o longamente.

      - Ande - disse ele. - Vá para a cama que eu já vou. - Deu-lhe uma palmada no traseiro, para a apressar. Ela voltou para o quarto e atirou-se para cima da cama.

     

      Durante a quinzena que tinham passado juntos, Jacqueline aprendera que só as provocações mais grosseiras conseguiam despertar alguma concupiscência no bajulador de carreira. Intimamente, odiava-o tanto como no dia em que se tinham conhecido, mas descobrira que lhe sobrava em loquacidade - sobretudo no que se referia à importância da sua pessoa no esquema da divisão de poderes no Palácio do Eliseu - o que lhe faltava em virilidade. Saint-Clair entrou no quarto, descalçou os sapatos e arrumou-os ao lado um do outro. Depois despiu o casaco, cujos bolsos despejou cuidadosamente sobre a cômoda. Seguiram-se as calças que foram meticulosamente dobradas e colocadas no braço de uma cadeira. As pernas compridas e magras do coronel emergiam da fralda da camisa como penugentas agulhas brancas de tricotar.

      - Porque é que demorou tanto? – perguntou Jacqueline.

      Raoul Saint-Clair abanou sombriamente a cabeça ao responder:

      - Nada que valha a pena se preocupar, minha querida.

      - Oh, você é muito mau - exclamou a garota, e virou-lhe bruscamente as costas, simulando um amuo. Saint-Clair enfiou os dedos no nó da gravata, enquanto olhava para a massa de cabelo castanho que caía sobre os ombros da amante e para as suas ancas roliças, semidescobertas pela curta camisa de dormir. Mais cinco minutos e estava abotoando o pijama de seda com monograma. Estendeu-se na cama ao lado dela e passou-lhe a mão pelo corpo, acariciando-lhe a cintura e a anca.

      - Que aconteceu?

      - Não me dá nenhuma explicação. Não posso telefonar para o escritório. Há horas que estou para aqui deitada, preocupada por sua causa. - Deitou-se de costas e olhou para ele. Apoiado num cotovelo, Saint-Clair enfiou a mão livre por baixo da camisa de dormir.

      - Escute, amor, estive muito ocupado. Houve uma crise. Teria telefonado, se pudesse, mas foi uma agitação de gente entrando e saindo do gabinete.

      - Não deve ter acontecido nada tão importante a ponto de não poder me avisar que se atrasaria, querido. - Jacqueline estendeu a mão e puxou-lhe a cabeça para os seus lábios.

      - Parece que a OAS continua interessada no presidente - explicou o coronel. - A conspiração foi descoberta esta tarde. Foi isso que me atrasou.

      Ela riu e mordeu-lhe a ponta da orelha.

      - Não seja bobo, amor, eles foram liquidados há muito tempo.

      - Não foram. Agora contrataram um assassino estrangeiro para matá-lo.

      Meia hora depois, o coronel Raoul Saint-Clair de Villauban dormia, ressonando suavemente, fatigado dos esforços feitos. A seu lado, a amante fitava o teto, através da escuridão. O que soubera a deixara estupefata. Aguardou que o relógio da mesa-de-cabeceira marcasse as duas horas da manhã para se levantar silenciosamente e retirar da tomada a extensão do telefone do quarto.

      Saiu, fechou cuidadosamente a porta do quarto, atravessou a sala até o vestíbulo e fechou a porta atrás de si. Do telefone colocado sobre a mesa do vestíbulo discou um número dos Inválidos. Atendeu-a uma voz ensonada. Jacqueline falou rapidamente durante dois minutos e desligou. Um minuto depois encontrava-se de novo na cama, tentando adormecer.

      Num pequeno e sufocante apartamento de uma divisão, em algum lugar em Paris, um ex-professor primário de meia-idade percorria de um extremo ao outro o reduzido e atravancado aposento. O seu problema era decidir que medidas tomar em virtude do telefonema que acabara de receber. Quando a alvorada começou a romper nos subúrbios do lado oriental da cidade, saiu de casa e tomou um táxi que o conduziu a uma estação dos Correios aberta toda a noite, perto da Gare du Nord, de onde telefonou para Roma, utilizando um número que lhe fora dado para qualquer emergência.

      - Quero falar com o Signore Poitiers - disse à voz italiana que atendeu. Após uma série de estalidos, ouviu-se outra voz, que parecia destante, responder em francês: - ouais...

      - Escute, não tenho muito tempo - disse o homem de Paris, numa voz que denotava urgência. - Pegue um lápis e tome nota do seguinte: "Início de mensagem. Valmy a Poitiers. Chacal foi desmascarado. Repito. Chacal foi desmascarado. Kowalski foi apanhado Cantou antes de morrer. Fim de mensagem. Entendeu?

      - Claro -respondeu a voz. - Eu transmito.

      Valmy desligou, pagou o telefonema e saiu apressado da estação. Dois minutos depois parou um carro, do qual saíram dois polícias à paisana que se precipitaram para a estação dos Correios. O telefonista forneceu-lhes uma descrição que poderia aplicar-se a qualquer pessoa.

     

      EM Roma, Marc Rodin foi acordado às 7.55 pelo homem de serviço noturno que o sacudiu pelo ombro. Imediatamente desperto introduziu a mão debaixo da almofada, à procura da pistola, mas descontraiu-se e resmungou ao ver o rosto do ex-legionário inclinado sobre ele.

      - Um recado, mon colonel. Acabam de telefonar. - Estendeu a folha de papel onde rabiscara as frases curtas de Valmy. Rodin leu a mensagem e saltou da cama.

      - Está bem, pode ir.

      O ex-legionário saiu e Rodin praguejou silenciosa e furiosamente. Nos primeiros dois dias após o desaparecimento de Kowalski pensara que o homem desertara, pura e simplesmente. Mas agora poucas ilusões lhe restavam sobre o modo como Kowalski morrera, e lamentava-o sinceramente. No entanto, o importante era tentar lembrar-se do que o polaco sabia e, consequentemente, contara. O encontro em Viena e o nome do hotel. Os três homens presentes na reunião. Essas informações não teriam constituído novidade para o SDECE. E acerca de Chacal? Kowalski podia ter-lhes dito que um estrangeiro alto e louro visitara os três. Não haviam sido mencionados nomes. Mas a mensagem de Valmy mencionava Chacal pelo seu nome de código. Como pudera Kowalski ter-lhes transmitido essa informação? Com um sobressalto de horror, Rodin reviu o momento em que se despedira do visitante. Parara à porta, com o mercenário; Viktor encontrava-se a pouca distância, no corredor, irritado pelo modo como o inglês o detectara na alcova. Que dissera ele, Rodin? Bonsoir, Monsieur Chacal. Claro, diabos o levassem!

      Rodin compreendeu que Kowalski devia ter deduzido que o louro era um assassino, e não lhe restavam dúvidas de que os homens do SDECE deviam ter calculado que a dedução do polaco estava correta. A rede em torno de De Gaulle se apertaria. O presidente desistiria de todos os compromissos públicos, evitaria qualquer situação que facilitasse o seu assassinato. Acabara-se, a  operação fora anulada.

      Rodin teria de prescindir dos serviços de o Chacal e de insistir na devolução do dinheiro, à exceção de uma quantia que o compensasse do tempo que perdera e do trabalho que tivera. E tinha de agir depressa, antes que o Chacal partisse de Londres. Uma vez o mercenário a caminho, poderia telefonar a Valmy e este o avisaria. Mas Valmy não tinha autoridade para o deter e Rodin não a podia dar. Se o fizesse, arriscaria a vida de Valmy.

      Rodin chamou um guarda-costas e deu-lhe instruções. Cerca das nove horas, o guarda-costas encontrava-se nos Correios, telefonando para Londres. Foram precisos vinte minutos para o telefone no extremo da linha começar a tocar.

     

      NESSA manhã, após tomar um café da manhã rápido, o Chacal despejou o resto do leite na pia e, partindo os dois ovos que lhe restavam, deu-lhes o mesmo destino do leite. Não ficava nada no apartamento que se pudesse estragar durante a sua ausência. Em seguida vestiu-se: escolheu uma fina camiseta de seda, de gola alta, e o terno cinzento onde guardara os documentos de Duggan e as cem libras em dinheiro. Os inevitáveis óculos escuros completavam o conjunto.

      As 9.15 levou as três malas de viagem e a maleta de mão para baixo. Percorreu a pé a curta distância entre Adam Mews e South Audley Street, em cuja esquina tomou um táxi.

      - Aeroporto de Londres, edifício nº 2 - disse ao motorista.

      Quando o táxi arrancou, o telefone do seu apartamento começou tocar.

 

      Ao regressar ao seu gabinete, pouco antes das seis da manhã, o comissário Claude Lebel verificou que fora armada uma cama articulada a um canto. O inspetor Caron estava sentado à secretária com ar fatigado e tenso. Lebel dirigiu-se para a sua própria mesa e deixou-se cair na cadeira. Há vinte e quatro horas que não dormia.

      - Nada - anunciou. - Passei os últimos dez anos a pente fino. O único assassino político estrangeiro que tentou operar aqui já morreu. E esses telefonemas?

      Caron pegou uma folha de papel com uma lista e respondeu:

      - As sete chamadas estão todas marcadas. Começa pelo FBI, de Washington, às sete e dez, e termina com Roma, às nove e trinta.

      - Com os chefes das divisões de homicídio, em todos os casos? - indagou Lebel.

      - Ou com o seu equivalente. No caso da Scotland Yard vai falar com Mr. Anthony Mallinson. comissário-adjunto. Parece que não  têm divisão de homicídios na Polícia Metropolitana.

      Lebel refletiu durante um momento.

      - Creio que só o belga fala francês. Três deles falam inglês e os outros quase com certeza falam inglês, se for preciso...

      - O alemão, Dietrich, fala francês - informou Caron.

      - Nesse caso falo pessoalmente com esses dois em francês. Para os outros vou precisar de você como intérprete. Venha.

      Eram 6.50 quando o carro da Polícia que transportava os dois detetives parou em fronte do prédio de aspecto inofensivo situado na exígua Rue Paul Valéry, onde estava instalada a sede da Interpol. Durante as três horas que se seguiram, Lebel e Caron permaneceram ao telefone, na sala de comunicações da cave. Os sinais de UHF eram emitidos para milhares de quilômetros de distância através da floresta de antenas do telhado do edifício. Em cada um dos telefonemas que fez, com dispositivo de segredo, o apelo de Lebel foi semelhante: "Lamento não poder fazer este pedido de assistência a nível oficial. No momento, trata-se apenas de uma questão de aviso de rotina. Procuramos um homem acerca do qual sabemos muitíssimo pouco."

      Cada um dos seus colegas estrangeiros perguntou por que motivo lhe era pedido auxílio e que pistas poderiam eventualmente seguir.

      - Só sabemos o seguinte: este homem terá de ser um dos principais assassinos políticos por contrato do Mundo. Estamos interessados em saber se têm nos seus arquivos alguém que possa realizar trabalhos destes, mesmo que nunca tenha atuado no nosso país.

      A resposta foi, sem exceção, praticamente a mesma:

      - Com certeza. Vamos proceder a uma verificação completa. Tento telefonar-lhe ainda hoje. Boa sorte, Claude. Lebel não  alimentava ilusões: sabia que os chefes dos departamentos de homicídio das principais forças policiais do mundo ocidental não deixariam de compreender ao que ele se referia. Na França só havia um alvo capaz de interessar um assassino político de primeira categoria. Quando repôs o auscultador no descanso pela última vez, Lebel fitou um momento o painel transmissor, agora silencioso. Caron observou-o em silêncio.

      - Venha - convidou o comissário -, vamos tomar o café da manhã. Agora pouco mais podemos fazer.

      Em Londres, o comissário-adjunto Anthony Mallinson desligou o telefone com ar pensativo e regressou ao andar de cima, ao seu espaçoso gabinete sobranceiro ao Tamisa. Não alimentava quaisquer dúvidas quanto ao tipo de investigações que Lebel estava realizando. Sentou-se à mesa e apertou um botão do intercomunicador.

      - Sir? - respondeu o seu ajudante de um gabinete contíguo.

      - John, quero que peça aos Arquivos Centrais que verifiquem todos os registros existentes de assassinos conhecidos neste país...

      - Assassinos, sir? - perguntou o outro, como se o comissário-adjunto lhe tivesse pedido uma investigação de rotina sobre todos os marcianos conhecidos.

      - Sim, assassinos. Assassinos políticos, John, capazes de matarem por dinheiro um político ou um estadista bem guardados.

      - Isso parece ser mais do âmbito do Special Branch, sir.

      - Bem sei. Tenciono passar o caso para o Special Branch, mas acho melhor efetuarmos primeiro uma verificação de rotina.

      Pouco antes do meio-dia, o ajudante de Mallinson bateu-lhe a porta do gabinete e entrou.

      - Aparentemente, não consta dos arquivos ninguém que se adapte a essa descrição. Há dezessete assassinos por contrato conhecidos do submundo, sir: dez estão na cadeia e sete andam à solta Mas trabalham todos para as grandes quadrilhas. Nenhum seria indicado para um trabalho contra um político de visita ao país.

      - Esta bem, John, obrigado. Só queria saber isso.

      Em seguida, Mallinson passou vinte minutos no gabinete do comissário-adjunto Dixon, chefe do Special Branch, e arruinou eficazmente, o almoço no clube para o qual o outro se preparava. Quando ia a sair, deteve-se à porta, virou-se e acrescentou.

      - Desculpe, Alec, mas de fato isto é mais da sua laçada do que da minha. Se quer que lhe diga, o mais provável é não haver ninguém desse calibre neste país, e por isso uma boa verificação dos arquivos vai permitir-lhe enviar um telegrama ao Lebel a dizer que não podemos ajudá-lo. Depois de Mallinson sair, Dixon chamou o seu próprio ajudante.

      - Faça o favor de dizer ao superintendente detetive Thomas que quero falar com ele aqui às... - consultou o relógio -... duas em ponto.

     

      O Chacal aterrou no Aeroporto Nacional de Bruxelas pouco depois do meio-dia. Depositou as três malas num armário do terminal e levou apenas a maleta de mão para a cidade. Na estação de trens principal desceu do táxi e dirigiu-se ao depósito de bagagem, onde apresentou o talão, em troca do qual recebeu a mala que continha a arma. Escolheu um hotel ordinário perto da estação para passar a noite, pagou antecipadamente e levou ele próprio a mala e a maleta para o quarto. Depois de fechar a porta à chave encheu o lavatório de água fria e começou a trabalhar com o gesso, o algodão e as ligaduras. Terminada a obra, sentou-se com a perna  pesada descansando num banco enquanto fumava um cigarro.

      De vez em quando experimentava a consistência do gesso com o polegar. Levou mais de duas horas para secar. A mala que contivera a arma estava vazia. Guardou o resto das ligaduras e do gesso na maleta, prevendo a eventualidade de precisar realizar alguns reparos.

      Quando ficou pronto, ocultou a mala sob a cama, passou revista ao quarto para se certificar de que não deixava quaisquer sinais denunciadores e preparou-se para sair. Ao fundo da escada, verificou, aliviado, que o empregado da portaria se encontrava na sala do fundo. Lançou um olhar rápido à entrada, apertou a maleta contra o peito, inclinou-se e atravessou rapidamente o átrio de mosaicos. Depois desceu penosamente os degraus até à rua.

      Decorrido meio minuto, estava num táxi de volta ao aeroporto. No balcão da Alitalia levantou um bilhete para Milão, que reservara dois dias antes, em Londres, em nome de Duggan.

      A empregada sorridente consultou a lista de reservas e informou-o de que a chamada para o vôo seria feita dentro de uma hora. O Chacal pagou o bilhete, mais uma vez em dinheiro. Com a ajuda de um carregador solícito, retirou as malas do local onde as deixara e consignou-as à Alitalia. Depois passou pela barreira da alfândega e entreteve-se o resto do tempo saboreando um almoço agradável no restaurante reservado aos passageiros de partida.

            O seu avião descolou às 4.15, e decorridas menos de duas horas aterrava no Aeroporto de Linate, em Milão. Foi aí, na alfândega, que a complicada operação de transferir da mala as peças componentes da arma para um meio de transporte menos susceptível de levantar suspeitas pagou dividendos. O Chacal arranjou um carregador que lhe reuniu as três malas principais, lado a lado, na bancada da alfândega. Ao ver o Chacal coxear para lhes juntar a maleta de mão, um funcionário aproximou-se e interrogou-o:

      - É esta toda a sua bagagem, signore?

      - Sim, estas três malas e esta maleta.

      - Vem tratar de negócios, signore?

      - Não. Venho de férias, mas parece que, afinal, sou obrigado a ter também um período de convalescença.

      O funcionário não se deixou impressionar e pediu:

      - Abra esta, por favor - e apontou para uma das malas maiores. O Chacal retirou do bolso o porta-chaves e abriu a mala. Felizmente era a que continha a roupa do pastor dinamarquês e do estudante americano. O funcionário remexeu na roupa, mas não prestou atenção ao corte cuidadosamente cosido do forro lateral, no interior do qual se encontravam os falsos documentos de identidade. As peças componentes de uma espingarda completa de atirador de precisão encontravam-se apenas a noventa centímetros de distância, mas o funcionário não desconfiou de nada. Baixou a tampa da mala e fez sinal ao Chacal para a fechar à chave. Terminado o trabalho, o rosto do italiano abriu-se num sorriso:

      - Grazie, signore. Boas férias.

      O carregador arranjou um táxi e foi bem gratificado, e em breve o Chacal seguia velozmente para a Estação Central de Milão. No táxi retirou a tesoura de aço da maleta e meteu-a no bolso das calças. Chegado à estação, chamou outro carregador e manquejou atrás dele para o deposito de bagagem, onde depositou a maleta de mão e duas malas; ficou apenas com a que continha o comprido capote militar e estava pouco cheia. Despediu o carregador, dirigiu-se coxeando para o lavabo dos homens e fechou-se num dos cubículos.

      Com o pé apoiado na tábua da sanita, começou a cortar o gesso com a tesoura, até ele começar a cair. Liberto o pé, calçou a meia de seda e o mocassim de couro fino que colara com fita adesiva ao lado interior da canela, enquanto tivera a perna engessada. Depois jogou o gesso e o algodão na sanita e puxou o autoclismo. Colocou a mala sobre a sanita, abriu-a e ocultou os tubos de aço circulares com as peças da espingarda por entre as dobras do capote. Fechou a mala e saiu. Como não podia regressar são ao depósito de bagagem, depois de lá ter estado coxo há tão pouco tempo, confiou o talão das malas a um carregador, juntamente com uma nota de mil liras, enquanto lhe explicava que tinha de ir trocar as suas libras inglesas por liras.

      Satisfeito, o italiano acenou com a cabeça e afastou-se. O Chacal acabara de cambiar as últimas vinte libras que lhe restavam quando o carregador regressou com a bagagem.

      Passados dois minutos, seguia num táxi em direção do Hotel Continentale. No dia seguinte, 13 de Agosto, estaria muito ocupado.

     

      O segundo dos dois inspetores detetives que se encontravam no gabinete do superintendente Thomas fechou o último dossiê cuja leitura lhe coubera e olhou para o seu superior. O colega também já acabara de ler os dossiês que fora encarregado com igual resultado. O próprio Thomas terminara igualmente a leitura cinco minutos antes e aproximara-se da janela, junto da qual se detivera, de costas para a sala. Saíra há três horas do gabinete do comissário-adjunto Dixon e convocara imediatamente os dois inspetores, para o ajudarem a passar em revista os arquivos do Special Branch. As instruções que lhes transmitira haviam sido consideravelmente mais breves do que as recebidas de Dixon. Dissera-lhes o que deveriam procurar, mas não por que razão.

      - Pronto, então acabou-se - respondeu, virando-se. -Arrumem os dossiês. Vou comunicar que procedemos a uma verificação completa, mas não encontramos indícios de que semelhante indivíduo fosse do nosso conhecimento. Não podemos fazer mais nada. Quando os dois detetives iam a sair, um deles deteve-se à porta e virou-se, de testa franzida.

      - Superintendente, lembrei-me de uma coisa enquanto estava procurando. Se tal homem existe e tem nacionalidade britânica, não me parece provável que fosse operar aqui. Quero dizer, mesmo um homem desses precisa ter um lugar seguro onde regressar. Um indivíduo assim é muito capaz de ser um cidadão respeitável no seu próprio país.

      Thomas considerou a sugestão.

      - Onde quer chegar? Uma espécie de médico e monstro, não? - Abanou a cabeça lentamente.

      - Não pense mais no assunto e vá para casa, meu rapaz. Eu trato do relatório. Porém, depois do inspetor sair, a idéia por ele semeada permaneceu na mente de Thomas. Agora podia sentar-se à mesa e redigir o relatório. Completamente negativo. Mas supondo que vinha a descobrir-se que o homem era inglês? Thomas orgulhava-se da folha de serviços da Scotland Yard e em particular do Special Branch. Nunca tinham tido problemas, nunca tinham perdido um dignitário estrangeiro.

      Faltavam-lhe dois anos para se aposentar e ir viver na casinha que ele e Meg tinham comprado, sobranceira ao canal de Bristol. Era melhor jogar pelo seguro, verificar tudo. Thomas, que na. sua juventude fora um excelente jogador de rugbi, ainda se interessava vivamente pelos Galeses de Londres. Conhecia bem todos os jogadores e passava algum tempo no clube em Richmond, conversando com eles depois de um jogo.

      Um dos jogadores era conhecido pelos outros membros como sendo funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Thomas, porém, sabia que ele era mais do que isso: o departamento para o qual Barrie Lloyd trabalhava era o Serviço Secreto. Os dois homens  encontraram-se num bar sossegado, junto do rio.

      - Tenho um pequeno problema, rapaz - começou Thomas. - Talvez possa me ajudar.

      - Se puder... -respondeu Lloyd.

      Thomas explicou-lhe o pedido de Paris e os resultados negativos obtidos pelo Special Branch.

      - Lembrei-me de que, a existir tal indivíduo, e além do mais inglês, poderia não querer sujar as mãos neste país. Se alguma vez deixou rastro, talvez tenha despertado a atenção do Serviço, hem?

      - Do Serviço? - perguntou Lloyd tranquilamente.

      - Deixe disso, Barrie - redarguiu Thomas quase sem erguer a voz acima de um murmúrio. Vistos pelas costas, os dois indivíduos de terno escuro que contemplavam, sobre as águas escuras do rio, as luzes da margem sul pareciam homens de negócios conversando sobre as transações daquele dia na City. -Tivemos de consultar uma quantidade de dossiês durante as investigações do caso. Blake, e nessa altura ficamos sabendo o que certas pessoas do Ministério dos Negócios Estrangeiros faziam realmente. O seu dossiê foi um deles. Portanto, sei em que departamento trabalha.

      - Compreendo - murmurou Lloyd, os olhos fixos no rio. - Em que é que está pensando? - perguntou-lhe Thomas, decorridos alguns momentos.

      - Lembra-se de que, fez dois anos em Maio passado, o ditador da República Dominicana, Trujillo, foi assassinado numa estrada isolada, nos arredores de Ciudad Trujillo, não lembra? - perguntou Lloyd.

      - Claro que me lembro.

      - De acordo com as notícias, foi morto por guerrilheiros. Mas eu conhecia o homem que lá tínhamos nessa altura, e quando regressou a Londres ele mencionou um boato segundo o qual o carro de Trujillo foi imobilizado por um único tiro de espingarda disparado por um atirador de precisão inglês. Deve ter sido um raio de um tiro, a uma distância de cento e trinta metros e contra um carro andando velozmente. - Seguiu-se uma longa pausa.

      - Esse... atirador de precisão... tinha nome? - perguntou Thomas. - o nosso colega fez algum relatório?

      - Não me lembro de nenhum nome, mas deve ter havido um relatório. Nota que se tratou apenas de boato naquela área.

      - Mas podia dar uma olhada, não podia! Ver apenas se homem tinha nome. Deve estar arquivado em qualquer lugar.

      - Suponho que sim - admitiu Lloyd.- Se houver alguma coisa, telefono.

      - Ficaria muito grato - disse o superintendente, enquanto se despediam com um aperto de mão. - Provavelmente não há nada que interesse, mas, pelo sim, pelo não!

     

      ENQUANTO Thomas e Lloyd conversavam e Chacal raspava do copo os últimos vestígios da sua zabaglione, num restaurante panorâmico de Milão, Claude Lebel assistia à primeira reunião efetuada no Ministério do Interior, em Paris, para comunicar os progressos feitos. A assistência era a mesma de vinte e quatro horas antes.

      O primeiro a falar foi o chefe de gabinete. Comunicou que todos os funcionários alfandegários de todos os postos fronteiriços franceses tinham recebido instruções para revistarem a bagagem de estrangeiros altos e louros, do sexo masculino, que entrassem na França e a lhes examinarem os passaportes, a fim de se certificarem de que não eram falsos.

      O general Guibaud informou que uma verificação efetuada nos arquivos do SDECE não revelara nenhum assassino político profissional fora das fileiras da OAS ou dos seus simpatizantes que não pudesse ser completamente localizado.

      O chefe dos Renseignements Généraux, Arquivos Centrais, informou que uma verificação dos arquivos criminais da França conduziram ao mesmo resultado, tanto no que se referia a franceses como a estrangeiros que alguma vez tivessem tentado operar no interior do país. Seguiu-se o relatório do chefe da Direction de la Surveillance du Territoire (DST), a força de contra-espionagem da França. No principio daquela manhã fora interceptado um telefonema feito de um posto dos Correios das proximidades da Gare du Nord para o numero do hotel de Roma onde se encontravam os três chefes da OAS. Desde que eles haviam sido localizados em Roma oito semanas atrás, os operadores dos telefones internacionais tinham recebido instruções para comunicar todos os telefonemas feitos para o referido número. A mensagem fora a seguinte: "Início de mensagem. Valmy a Poitiers. O Chacal foi desmascarado. Repito. Chacal foi desmascarado. Kowalski foi apanhado. Cantou antes de morrer."

      - Como descobriram? - perguntou Lebel, e todos os olhos se fixaram nele.

      - Com mil raios! - praguejou o coronel Rolland claramente.- Marselha! Para conseguir que Kowalski viesse de Roma utilizamos um engodo. Um velho amigo chamado Jo-Jo Grzybowski. O homem tem mulher e uma filha. Nós os mantivemos sob custódia preventiva até termos Kowalski nas mãos. A única coisa que posso supor é que um dos meus rapazes tenha dado com a língua e lhes tenha dito que Kowalski tinha morrido subsequentemente a uma sessão de interrogatório. Claro que nem o meu rapaz nem o Jo-Jo podiam saber o que Kowalski confessou de fato, mas isso não impediria Jo-Jo de avisar Valmy da sorte do amigo.

      - A DST apanhou Valmy no posto dos Correios? - indagou Lebel.

      -Não. Ele escapou por dois minutos, graças à estupidez do telefonista -respondeu o dirigente da DST.

      - Uma obra-prima de ineficiência - rosnou o coronel Saint-Clair, que foi alvo de diversos olhares pouco amigáveis.

      -Talvez. não seja desvantajoso eles saberem que o seu assassino foi desmascarado - murmurou o ministro. – Agora cancelam com certeza a operação.

      - Precisamente - concordou Saint-Clair. - o Sr. Ministro tem razão. Seriam loucos se prosseguissem o seu intento.

      - Ele não foi exatamente desmascarado - lembrou Lebel calmamente. -Ainda ignoramos o seu nome. A advertência poderá apenas levá-lo a tomar ainda mais precauções.

      Roger Frey dirigiu ao comissário de aspecto insignificante um olhar respeitoso.

      - Acho melhor ouvirmos o relatório do comissário Lebel.

      Assim encorajado a falar, Lebel indicou as providências que tomara desde a noite anterior e exprimiu a sua crescente convicção de que, a constar de algum arquivo policial, Chacal só poderia sê-lo do de alguma polícia estrangeira.

      - As respostas ao nosso inquérito chegaram hoje. Holanda, nada. Itália, diversos assassinos por contrato conhecidos, mas todos a soldo da Máfia, que não apoiaria o assassinato de um estadista estrangeiro. Grã-Bretanha, nada, embora outro departamento, o Special Branch, tenha sido encarregado de efetuar uma verificação de rotina, para confirmação mais segura. "América: duas possibilidades. Uma é Charlie 'Chuck' Arnold, braço direito de um grande negociante de armas internacional com base em Miami, Flórida. A segunda é Marco Vitellino, ex-guarda-costas pessoal de um chefe de quadrilha de Nova Iorque, mas agora desempregado. Bélgica: uma possibilidade: um homicida psicopata, que pertenceu ao pessoal de Tchombé, no Katanga. Chama-se Jules Berenger e supõe-se que emigrou para a América Central, mas a Polícia Belga está investigando. Alemanha: uma sugestão: Hans-Dieter Kassel, ex-major das SS, procurado por dois países por crimes de guerra. Após a guerra foi assassino contratado ao serviço da ODESSA, organização clandestina de ex-membros das SS. Supõe-se que atualmente vive em Madrid - Lebel ergueu os olhos e acrescentou: - Diga-se de passagem que a idade deste homem parece ser um pouco avançada para este gênero de trabalho: tem cinqüenta e sete anos. Por último, África do Sul: uma hipótese. Mercenário profissional e grande atirador. Nome: Piet Schuyper, oficialmente, não há nada contra ele, mas o Special Branch sul-africano está investigando. - Ergueu de novo os olhos e disse, reticente: - Tudo muito vago, claro. O Chacal pode ser suíço, ou austríaco, ou ter outra nacionalidade qualquer. Tateamos no escuro, com esperanças de encontrar uma luz.

      - A simples esperança não nos levará longe. Por mim, sinto que o homem foi aconselhado a desistir – declarou friamente Saint-Clair. - Agora que o seu plano foi desvendado, nunca conseguiria aproximar-se do presidente.

      - O senhor coronel sente que o homem foi aconselhado a desistir, mas sentir não é muito diferente de esperar. Gostaria de continuar as investigações.

      - Em que pé se encontram atualmente essas investigações comissário? -perguntou o ministro. - As polícias estrangeiras começaram a enviar dossiês completos por telex. Chegarão também fotografias telegraficamente.

      - E, entretanto, essas polícias podem presumir que um assassino pretende matar o presidente da França – declarou secamente Saint-Clair. - ora o presidente mostrou-se empenhado em evitar precisamente esse conhecimento público.

      - Não é público - corrigiu Lebel. - Trata-se, pelo contrário de um conhecimento extremamente reservado, confinado a um punhado de homens discretos.

      - Meus senhores - interveio o ministro -, fui eu que autorizei o comissário Lebel a proceder a esse inquérito - olhou para Saint-Clair - depois de consultar o presidente. - Foi geral, e mal disfarçada, a satisfação causada pelo revés do coronel. - Se não há mais nada, voltamos a reunir-nos amanhã, meus senhores -concluiu o ministro.

      Nos degraus exteriores, Lebel aspirou gratamente um grande hausto do ar noturno de Paris. Os relógios apresentavam o novo dia terça-feira 13 de Agosto.

     

      PASSAVA pouco da meia-noite quando Barrie Lloyd telefonou para casa do superintendente Thomas, em Chiswick:

      - Encontrei a cópia do relatório de que falamos - informou Lloyd. - Como eu pensava, levou a chancela de "Não atuar" praticamente assim que foi arquivado.

      - Menciona algum nome? - perguntou Thomas.

      - Menciona: um homem de negócios inglês que atuava na Grã-Bretanha e que desapareceu por essa época. Charles Calthrop.

      - Obrigado, Barrie. De manhã estudo o assunto.

     

      O Chacal levantou-se às 7.30. Depois de vestido, retirou as mil libras do forro da mala e meteu-as no bolso do peito. As nove horas estava na rua, à procura de bancos para trocar as libras inglesas por liras e francos franceses. A meio da manhã, resolvido esse problema, tomou um expresso na esplanada de um café. Depois iniciou a segunda busca. Ao fim de numerosas perguntas, descobriu uma garagem para alugar situada numa das rua secundárias das imediações da Porta Garibaldi, uma zona operária.

      Numa loja de ferragens local comprou um macacão, um alicate, vários metros de fio de aço fino, um ferro de soldar e trinta centímetros de solda. Depositou tudo na garagem, guardou a chave e foi almoçar. Ao princípio da tarde alugou um Alfa Romeo branco de dois lugares, de 1962. Explicou à firma que o alugara que pretendia viajar pela Itália na quinzena seguinte. Regressou no automóvel ao seu hotel e subiu ao quarto, de onde retirou a mala que continha as peças da espingarda. Pouco depois das cinco encontrava-se de novo na garagem alugada, com o carro. Fechou a porta à chave e vestiu o macacão.

      Em seguida, com o ferro de soldar ligado a uma tomada colocada no teto e uma luz forte a seu lado, no chão, para iluminar a parte inferior do automóvel, começou a trabalhar. Depois de envolver cuidadosamente em serapilheira cada um dos tubos de aço que continham as diversas seções da espingarda, prendeu-os firmemente com o fio de aço no chassis do Alfa e soldou-os ao metal. Uma das razões que o levara a escolher o Alfa fora precisamente o fato de possuir uma longarina alta. Quando acabou, doíam-lhe as mãos.

      Os tubos, que estavam praticamente indetectáveis, só seriam notados por

alguém que se metesse debaixo do carro e os procurasse, e em breve estariam cobertos de poeira e lama. Arrumou o macacão, o ferro de soldar e o resto do fio num canto da garagem. Guardou o alicate no porta luvas e a mala no porta-bagagem do automóvel. Fechou a porta à chave e regressou ao hotel, para se vestir para o jantar.

 

      THOMAS passara a manhã e a maior parte da tarde tentando encontrar o rastro de um homem acerca do qual sabia apenas o nome. Uma visita pessoal ao Departamento de Passaportes facultara-lhe cópias de requerimentos de passaportes e fotografias apresentados por seis Charles Calthrops diferentes. Um dos requerimentos fora apresentado depois de Calthrop ter estado na República Dominicana e não existia nenhum registro de qualquer requerimento anterior por esse Charles Calthrop. Outro dos requerentes parecia muito velho: sessenta e cinco anos. Restavam quatro hipóteses possíveis. Duas indicavam endereços em Londres e outras duas na província. Durante a manhã, a Polícia Municipal localizara os dois Calthrops da província e ficara sabendo que um deles trabalhara na contabilidade de uma fábrica de sopas, em 1961, e que o outro Charles Chalthrop, que era mecânico de máquinas de escrever, só abandonara o local de trabalho em 1961 para gozar as suas férias de Verão.

      Dos dois Charles Calthrops de Londres, um era merceeiro em Catford, e o seu passaporte - como os dos outros - não continha qualquer indicação de que alguma vez estivera na República Dominicana. O quarto e último Calthrop revelou-se mais difícil. Verificou-se que o endereço indicado no requerimento, quatro anos antes, era o de um prédio de habitação de Highgate, que ele deixara em Dezembro de 1960. Ignorava-se a sua nova direção.

      Mas Thomas sabia, pelo menos, o seu segundo nome. A lista telefônica não revelou nada, mas, servindo-se da autoridade do Special Branch, o superintendente foi informado pela Estação Central dos Correios de que um tal Charles Harold Calthrop tinha um número telefônico não registrado na lista e uma morada na zona ocidental de Londres obtidos tais dados, fez se uma visita ao apartamento.

      A porta estava fechada à chave e ninguém respondeu aos repetidos toques de campainha. Quando o carro da Polícia regressou à Scotland Yard, o superintendente Thomas experimentou uma nova tática.

      A Repartição de Impostos foi solicitado que procurasse nos seus registros os impostos pagos por um tal Charles Harold Calthrop, cuja morada particular se indicou. Pontos que se revestiam de interesse particular: para quem trabalhava e, sobretudo, para quem trabalhara nos últimos três anos. Pouco depois das seis da tarde, a Repartição de Impostos encontrou os registros dos impostos de Charles Harold Calthrop e verificou que este estivera desempregado no último ano e anteriormente passara um ano no estrangeiro. Porém, durante quase todo o ano fiscal de 1960 e 61 estivera ao serviço de uma firma inglesa que Thomas sabia ser uma das principais fabricantes e exportadoras de armas ligeiras.

      Passada uma hora, Thomas tinha um encontro marcado com o diretor comercial da empresa. Enquanto o crepúsculo descia sobre o Tamisa, o Jaguar de serviço do superintendente atravessava velozmente o rio, a caminho da aldeia de Virginia Water.

      Patrick Monson não tinha o aspecto de um negociante de armas letais - mas a verdade, pensou Thomas, é que nunca o tinham.

      Através de Monson, Thomas foi informado de que a firma fabricante de armas empregara Calthrop durante pouco menos de um ano e - mais importante ainda - que entre Dezembro de 1960 e Junho de 1961 ele estivera em Ciudad Trujillo tentando vender ao chefe da Polícia de Trujillo um carregamento de pistolas-metralhadoras excedentes do Exército Britânico e tivera de regressar apressadamente. Thomas fitou cuidadosamente Monson.

      - Qual a razão dessa pressa?

      O negociante pareceu surpreso com a pergunta.

      - Obviamente, porque Trujillo fora morto! Que poderia esperar do novo regime um homem que fora tentar vender ao antigo um carregamento de armas e munições? Em poucas horas tinham-se formado multidões que percorriam as ruas à procura de partidários do antigo regime, e Calthrop tivera de subornar um pescador para o transportar para fora da ilha.

      Thomas refletiu por uns momentos. Por que motivo, acabou por perguntar, deixara Calthrop a firma? Fora despedido.

      Porquê? Monson ponderou cautelosamente a resposta antes de responder.

      - Sr. Superintendente, o negócio de armas em segunda mão é altamente competitivo. Digamos que não estávamos inteiramente satisfeitos com a lealdade de Calthrop para com a nossa empresa.

      Ao regressar à cidade, Thomas meditou na explicação de Monson quanto às razões que tinham levado Calthrop a abandonar com tanta pressa a República Dominicana. Se Calthrop era capaz de trair a firma onde trabalhava, não seria possível que tivesse chegado à República Dominicana como representante acreditado de uma empresa de armas ligeiras, para efetuar uma venda, e simultaneamente se encontrasse a soldo dos revolucionários? Monson fizera uma afirmação que preocupava Thomas: aludira ao fato de Calthrop não possuir conhecimentos profundos de espingardas quando entrara para a companhia. Se era inexperiente no uso de espingardas, porque o contratariam os guerrilheiros anti-Trujillo para que detivesse o carro do general, numa via rápida, com um único tiro? Mas o teriam realmente contratado? Thomas encolheu  os ombros.

      O pormenor não confirmava nem deixava de confirmar nada. Porém, quando regressou ao seu gabinete, encontrou novidades que o fizeram mudar de idéia. O inspetor que fora enviado a casa de Calthrop regressara. Encontrara uma vizinha do lado que lhe dissera ter Mr. Calthrop partido alguns dias antes e mencionado que ia viajar pela Escócia. A mulher acrescentara ter visto na parte de trás do carro, estacionado à porta, o que lhe parecera um conjunto de varas de pesca. Varas de pesca? Subitamente, o superintendente sentiu-se gelar.

      Quando o detetive terminou a sua exposição, entrou um dos outros:

      -Superintendente, acabo de ter uma idéia. Esse assassino tem o nome de código de Chacal, não tem?

      - Tem, e depois?

      - Bem, pode tratar-se apenas de uma coincidência, mas esse nome de código é formado pelas primeiras três letras do seu nome próprio mais as primeiras três letras do seu...

      - Com todos os raios! - praguejou o superintendente, e estendeu a mão para o telefone.

 

      A terceira reunião no Ministério do Interior em Paris teve início pouco depois das dez da noite, com o relatório do comissário Lebel. Da América chegara a informação de que Chuck Arnold se encontrava na Colômbia, tentando fechar um negócio de armas. Vitellino, o ex pistoleiro de Nova Iorque, não fora ainda localizado, mas o seu aspecto era tão radicalmente diferente do Chacal que podia também ser posto de lado. Os sul africanos tinham sabido que Piet Schuyper comandava atualmente o exército particular de uma companhia de diamantes da África ocidental. O ex-mercenário belga fora morto numa briga de bar, na Guatemala, três meses antes... os alemães tinham confirmado que o ex-assassino nazi Kassel vivia tranquilamente, aposentado, numa mansarda de Madrid. Lebel ergueu a cabeça depois de ler a última informação e encontrou catorze pares de olhos postos nele, na sua maioria frios e desafiadores.

      - Alors, rien?- A pergunta formulada pelo coronel Rolland expressava a que todos os presentes tinham em mente.

      - Não, nada, infelizmente - admitiu Lebel.

      - Parece, meus senhores - observou o ministro serenamente -, que voltamos ao ponto de partida.

      Bouvier ergueu-se em defesa de Lebel:

      - O meu colega está procurando, virtualmente sem pistas, um dos tipos de homens mais esquivos do Mundo.

      - Estamos conscientes disso, meu caro comissário - redarguiu o ministro friamente. - o problema é... - Bateram à porta. O ministro franziu a testa, pois dera instruções para que não fossem incomodados senão por um caso urgente. - Entre.

      Um dos porteiros do ministério apareceu no limiar, constrangido e envergonhado.

      - Mes excuses, Monsieur le Ministre. Uma chamada telefônica para o comissário Lebel. É de Londres e dizem que é urgente.

      Lebel levantou-se.

      - Com licença, meus senhores. - Regressou decorridos cinco minutos e anunciou: - Creio, meus senhores, que sabemos o nome do homem que procuramos.

      A reunião terminou meia hora depois, numa atmosfera de quase euforia. Todos os assistentes tinham concordado em que, sem uma palavra de publicidade, seria possível esquadrinhar a França em busca de um homem chamado Charles Calthrop, encontrá-lo e, se necessário desfazerem-se dele. Os detalhes conhecidos a  respeito de Calthrop só seriam recebidos de manhã, mas, entretanto, os Renseignements Généraux podiam procurar nos seus quilômetros de prateleiras o cartão de desembarque do indivíduo e a sua ficha de registro num hotel, em algum lugar na França. O seu nome e a sua descrição podiam ser comunicados a todos os postos fronteiriços, portos e aeroportos, com instruções para ser detido apenas pusesse os pés em território francês.

      - Esse homem a quem chamam Calthrop já está no papo - disse o coronel Saint Clair à amante, nessa noite. Quando o coronel adormeceu, o relógio colocado sobre a prateleira do fogão de sala indicava a meia noite e dava início ao dia 14 de Agosto.

     

      O superintendente Thomas recostou se na cadeira, no seu gabinete, e observou os seis inspetores que convocara depois de telefonar para Paris. Lá fora, na calma noite de Verão, o Big Ben bateu meia noite. Durante uma hora o superintendente transmitiu as suas instruções. Quatro dos inspetores foram então encarregados de examinar o passado de Calthrop, principalmente no tocante às suas atividades desde que deixara o seu último emprego conhecido, em outubro.

      Thomas queria todas as fotografias que encontrassem do indivíduo. Aos outros dois inspetores competia tentar descobrir o paradeiro de Calthrop naquele momento. Passar o apartamento a pente fino, procurar nos arquivos a concessão de uma carta de motorista, identificar o automóvel, idade, cor e matrícula. Deviam também verificar as reservas de passagens em todas as companhias de aviação e navegação. No corredor, os dois últimos inspetores a saírem do gabinete entreolharam-se, desconfiados.

      - A pente fino! Reconstituição pormenorizada! O maldito trabalho completo! - comentou um.

      - O estranho - observou o outro - é que o velho não nos disse o que este cara deve estar fazendo. Parece que planeja abater a tiro o rei do Sião!

            Não foi necessário muito tempo para acordar um magistrado e fazê-lo assinar um mandado de busca. As primeiras horas da manhã enquanto um exausto Thomas passava pelo sono no seu gabinete e um Claude Lebel ainda mais estafado sorvia pequenos goles de café forte no dele, dois homens do Special Branch passavam o apartamento de Calthrop a pente fino. Quando saíram para a rua, um deles levava consigo uma pasta cheia de documentos pessoais e outros pertences de Calthrop. Pouco depois, Thomas examinava a coleção espalhada no chão do seu gabinete.

      Um dos inspetores apanhou, do meio da confusão de objetos e papéis, um pequeno livro de capa azul que começou a folhear.

      - Super, olhe para isto. - Espetou o dedo numa das páginas do passaporte que segurava. - Veja:.. República Dominicana, Aeroporto Ciudad Trujillo, Dezembro 1960, Entrada. Esteve realmente lá. É o nosso homem.

      Thomas pegou o passaporte e deu-lhe uma olhada.

      - Sim, é o nosso homem, rapaz. Mas já te passou pela cabeça que temos nas mãos o seu passaporte? Se não está viajando com este passaporte, com qual viaja então? Ligue para Paris.

     

      NESSA altura o Chacal já se encontrava na estrada havia cinqüenta minutos e deixara a cidade de Milão muito para trás. A capota do Alfa estava fechada, o sol matinal banhava a auto estrada e ele conduzia a uma velocidade superior a 130 km/h. O trânsito já era  denso quando, às 7:50, chegou a Ventimiglia, o mais sonolento dos postos fronteiriços de entrada na França. O policial que recebeu o seu passaporte murmurou: "Un moment, monsieur... e desapareceu no barracão da alfândega. Saiu acompanhado de um funcionário à paisana que trazia o passaporte.

            - Bonjour, monsieur. Qual o fim da sua visita a França?

      - Turismo. Nunca vi a Côte d'Azur.

      - Compreendo. O carro é seu?

      - Não. É alugado. – o Chacal estendeu-lhe a carta de condução internacional o contrato de aluguel e a apólice do seguro. O funcionário examinou todos os documentos e perguntou:

      - Tem bagagem?

      - Tenho, três malas e uma maleta de mão, no porta-bagagem.

      O policial ajudou o Chacal a descarregar as três malas e a maleta, que levaram para a alfândega. Antes de deixar Milão, o Chacal enrolara o velho capote, as calças puídas e os sapatos de André Martin e formara com tudo isto uma bola que colocara no fundo do porta bagagem. A roupa das outras duas malas fora repartida pelas três. Quanto às medalhas, levava-as no bolso. Enquanto dois funcionários da alfândega lhe revistavam as malas o Chacal preencheu o impresso padrão dos turistas que entravam na França.

      Experimentou um breve momento de ansiedade quando os funcionários pegaram os frascos de loção de barbear que ele enchera de tintas capilares. Nesse tempo a loção de barbear, produto que só muito recentemente entrara no mercado, não estava em voga na França.

      O Chacal viu os dois homens entreolharem-se, mas depois reporem os frascos na maleta de mão. Através da janela viu outro homem examinando o Alfa. Não espreitou debaixo do automóvel. Desenrolou a bola de roupa que se encontrava no porta-bagagem, mas presumiu que o capote se destinava a cobrir o carro nas noites de Inverno, e o vestuário velho era útil quando se tornava necessário fazer reparos no carro. Colocou tudo no seu lugar e fechou o porta-bagagem.

      Enquanto o Chacal acabava de preencher o impresso, os dois agentes fecharam as malas e dirigiram um aceno de cabeça ao funcionário vestido à paisana. Este, por sua vez, aceitou o cartão de entrada, examinou-o e conferiu-o com o passaporte, que devolveu

      - Merci, monsieur. Bon voyage.

      Dez minutos depois, o Chacal seguia ao longo da Grande Corniche, na direção de Mônaco, Nice e Cannes.

     

      O superintendente Thomas mexia uma xícara de café forte e fitava, por sobre a mesa, os dois inspetores encarregados de descobrir o paradeiro de Calthrop. Haviam sido cedidos seis homens suplementares à força de Thomas, a quem o superintendente transmitiu as suas instruções.

      - Ora bem, procuramos um homem. Julgamos saber que neste momento se encontra no estrangeiro. O seu trabalho consistirá em obter uma lista completa das requisições de passaportes feitas recentemente. Comecem pelos últimos cem dias. Vai ser um trabalho duro. - Descreveu a maneira mais comum de obter um passaporte falso que se tratava efetivamente do método a que recorrera Chacal. – O importante – concluiu - é não se contentarem com certidões de nascimento. Depois de obterem a lista do Serviço de Passaportes, transfiram toda a operação para Somerset House e trabalhem nas certidões de óbito. Se encontrarem um pedido de passaporte feito por um homem que já não está vivo, é provável que o impostor seja o nosso homem. E pronto, podem começar.

      Duas horas mais tarde, o inspetor mais antigo telefonava-lhe comunicando que recentemente haviam sido pedidos 841 novos passaportes. Era Verão, explicou. Havia sempre mais requisições de passaportes no tempo de férias.

      - Raios partam as férias! - praguejou Bryn Thomas depois de desligar.

     

      Pouco depois das onze horas daquela manhã, o Chacal chegou ao terraço do Majestic, um dos melhores hotéis de Cannes. Entrou e a empregada da portaria ergueu os olhos para o inglês de terno elegante e modos confiantes que se aproximava.

      - Ligue, por favor, para Paris, Inválidos cinco-nove-zero-um - pediu o estrangeiro. Decorridos poucos minutos, ela fez-lhe sinal para entrar numa cabina ao lado do quadro telefônico e viu-o fechar a porta à prova de som.

      - Allo, ici Chacal.

      - Allo, ici Valmy. Graças a Deus que telefonou...

      Quem olhasse pelo painel de vidro da porta da cabina teria visto o inglês tornar-se tenso e franzir a testa. Permaneceu silencioso durante a maior parte dos dez minutos que durou a conversa, ouvindo o seu interlocutor. Movia ocasionalmente os lábios, formulando uma pergunta breve e seca. Depois de pagar o telefonema, levou uma cafeteira de café para o terraço, que bebeu enquanto fumava, imerso numa profunda reflexão.

      O que se passara com Kowalski ainda compreendia: lembrava-se do corpulento polaco. O que não compreendia era como o guarda-costas soubera qual a missão para que fora contratado. Talvez Kowalski tivesse intuído o que ele era, visto ter sido também um assassino.

      Valmy aconselhara-o a desistir, mas admitira que não tinha nenhuma autoridade direta para cancelar a operação. O Chacal examinou a situação. Retroceder representaria entrar em querela com Rodin quanto à posse do quarto de milhão de dólares depositado na sua conta em Zurique. Se ele se recusasse a devolver o grosso da importância, eles não hesitariam em procurá-lo. Prosseguir no seu intento, por outro lado, significaria um aumento de perigos. Não obstante, ele sabia algo que nem a OAS nem a Polícia Francesa sabiam: que viajava com um nome falso e um passaporte autêntico emitido nesse nome, além de três conjuntos diferentes de documentos falsos, incluindo dois passaportes estrangeiros e disfarces. Quando lhe apresentaram a conta, arrepiou-se. Para aquele tipo de vida eram necessários dólares e mais dólares.

      Nos últimos três anos habituara-se a vestir-se bem, a ter um bom apartamento e mulheres elegantes. Voltar para trás significava desistir de tudo isso. O Chacal pagou a conta e deixou uma gorjeta generosa. Meteu-se no Alfa e partiu para o coração da França.

     

      SENTADO à mesa, o comissário Lebel experimentava a sensação de nunca ter dormido na sua vida. Ao alvorecer rendera Lucien Caron, que ressonava agora, ruidosamente, na cama de campanha, ao canto do gabinete. Defronte de Lebel uma pilha de relatórios de varias agências encarregadas de verificar a entrada de estrangeiros na França.

      E todos os relatórios forneciam a mesma informação. Desde o princípio do ano nenhum Charles Calthrop atravessara legalmente qualquer posto fronteiriço. O telefonema do superintendente Thomas, no início da manhã, comunicando que Calthrop talvez viajasse com um passaporte falso constituíra um rude golpe. Mas pelo menos agora dispunham de uma descrição mais completa do homem e de uma fotografia. Sempre era melhor do que nada, embora provavelmente ele tivesse alterado consideravelmente o seu aspecto.

      A chegada de cada relatório, Lebel pedia ao informador que procedesse a uma verificação mais retrospectiva que permitisse saber se Calthrop já alguma vez visitara a França. Em caso afirmativo se poderia talvez averiguar se ele tinha alguma residência habitual, a casa de um amigo, um hotel preferido, onde poderia encontrar-se naquele momento sob um nome falso.

     

      Para evitar o irritante congestionamento estival das principais estradas que seguiam em direção a norte, para Paris. O Chacal resolveu viajar paulatinamente a partir da costa e através dos Alpes Marítimos, onde o ar era mais fresco, prosseguindo depois pelas colinas ondulantes da Borgonha.

      Não estava especialmente apressado, pois o dia que escolhera para o assassinato ainda vinha longe. Em Cannes tomou a EN 85, através de Grasse, a pitoresca e perfumada vila, e seguiu na direção de Castellané, onde o rio Verdon corre, vindo de Sabóia. Caía o crepúsculo quando entrou na cidade de Gap, à saída da qual encontrou o Hôtel du Cerf, de belo coruchéu, que em tempos fora o pavilhão de caça de um dos duques de Sabóia.

      Havia diversos quartos vagos. Tomou um banho demorado, vestiu o terno cinzento com uma camisa de seda e pôs uma gravata tricotada, depois da criada, vencida por diversos sorrisos cativantes, ter acedido, enrubescida, a escovar e passar a ferro o terno que ele usara durante todo o dia, para que pudesse voltar a vesti-lo de manhã.

      O jantar foi servido numa sala apainelada, próxima a uma encosta arborizada. Quando uma das comensais, que usava um vestido generosamente decotado, observou ao maitre do hôtel que sentia frio, este perguntou ao Chacal se permitia que fechasse a janela.

      O Chacal olhou em redor. A mulher que fizera o pedido jantava sozinha. Era atraente, devia andar no fim da casa dos trinta, tinha braços brancos e lânguidos e seios voluptuosos. O Chacal fez sinal ao maitre para fechar a janela e dirigiu um leve aceno de cabeça à mulher, que lhe correspondeu com um sorriso frio.

      A refeição foi magnífica. O Chacal escolheu truta do rio grelhada em lume de lenha e tornedós grelhados em carvão com funcho e timo. O vinho era um Côtes du Rhône local, encorpado, rico e numa garrafa sem rótulo. Era evidente que viera do barril da adega e se tratava de uma escolha pessoal do proprietário. Estava terminando o sorvete quando ouviu a voz autoritária da mulher sentada atrás de si dizer ao maitre que tomaria o café na sala.

      O homem inclinou-se e tratou-a por Mme La Baronne. Alguns minutos depois, o Chacal pediu também o café na sala, para onde se dirigiu.

     

      As 10:15, o inspetor mais antigo telefonou ao superintendente Thomas, de Somerset House. A sua voz, embora cansada, exprimia uma nota de otimismo.

      - Alexander James Quentin Duggan – anunciou concisamente quando Thomas atendeu.

      - Que há com ele? - perguntou Thomas.

      - Nasceu em 3 de Abril de 1929 em Sambourne Fishley, na paróquia de Saint Mark. Requereu um passaporte pelas vias normais a 14 de Julho deste ano. O passaporte foi emitido no dia seguinte e remetido em 17 de Julho para o endereço mencionado no impresso do requerimento. Trata-se provavelmente de um endereço transitório.

      - Porquê? - perguntou Thomas.

      - Porque Duggan morreu num acidente de trânsito, na sua aldeia natal, a 8 de Novembro de 1931, com dois anos e meio de idade.

      - Quantos passaportes falta verificar?

      - Uns trezentos - respondeu o inspetor. - Torne a falar-me quando descobrir o endereço para a qual o passaporte foi enviado. Traga-me todas as informações possíveis a respeito do falso Duggan e a cópia de arquivo da fotografia que ele entregou com o requerimento - ordenou Thomas.

      O inspetor telefonou de novo pouco antes das onze horas. O endereço em questão era de uma pequena loja de venda de jornais em Paddington, cujo proprietário admitira que recebia com freqüência correio para clientes. O inspetor mostrara-lhe a fotografia de Duggan apensa ao pedido de passaporte e o homem declarara ter a impressão de se lembrar do indivíduo, mas parecer-lhe que o mesmo usava óculos escuros.

      - Venha já para cá - ordenou Thomas. Depois desligou para imediatamente a seguir levantar de novo o auscultador e pedir que ligassem para Paris.

      A chamada chegou, pela segunda vez, no meio da reunião da noite. Quando regressou à sala, Lebel falou durante dez minutos a uma assistência absolutamente silenciosa.

      - E pronto - concluiu.- Vamos organizar uma busca ao Chacal, silenciosa e discreta, a nível nacional, enquanto os ingleses passam em revista os arquivos das agências de venda de passagens aéreas, balsas de travessia do canal, etc. Se eles o localizarem primeiro, apanham-no; se o localizarmos nós na França, o prendemos. Se ele for localizado num terceiro país, podemos agir de outro modo. No entanto, até esse momento, meus senhores, ficaria grato se concordassem em fazer as coisas à minha maneira.

      Sem parecer apressar-se, transmitiu as suas ordens como um general mandando desfilar as suas tropas. A audácia era tão corajosa, a segurança tão completa, que até Saint-Clair de Villauban permaneceu silencioso. Só quando chegou a casa, pouco depois da meia-noite, o coronel encontrou audiência para escutar a torrente de palavras indignadas que lhe inspirava a simples idéia de aquele ridículo e insignificante policial ter tido razão. A amante escutou-o com simpatia, massageando-lhe o pescoço enquanto jazia deitado de bruços na cama. Só pouco antes do alvorecer, quando ele dormia profundamente, conseguiu esgueirar-se do quarto e fazer um telefonema.

     

      O superintendente Thomas olhou para os dois requerimentos de passaporte e para as duas fotografias pousadas sobre o mata-borrão e iluminadas pela luz do candeeiro da mesa.

      - Recapitulemos  mais uma vez - disse ao inspetor. - Calthrop: altura, um metro e setenta e sete. Duggan: um metro e oitenta.

      - Saltos mais altos, sir. Pode-se aumentar a altura até seis centímetros com sapatos especiais.

      - Muito bem - concordou Thomas. - Sapatos de saltos altos. Calthrop: cor de cabelo, louro. Duggan, igualmente louro. Calthrop: cor dos olhos, castanhos. Duggan: cor dos olhos, cinzentos.

      - Lentes de contacto, sir. É simples.

      - Muito bem. A idade de Calthrop é trinta e sete anos; a de Duggan, trinta e quatro.

      - Teve de aparentar trinta e quatro, porque o verdadeiro Duggan nasceu em Abril de 1929 - explicou o inspetor. – Mas ninguém poria o pormenor da idade em questão. Todos acreditariam no passaporte.

      Thomas olhou para as duas fotografias. Calthrop parecia ter uma constituição mais robusta. Provavelmente modificara a sua aparência mesmo quando do seu primeiro encontro com os chefes da OAS. Homens como ele tinham de ser capazes de viver com uma segunda identidade meses a fio, se queriam evitar ser identificados. Devia-se talvez à sua astúcia o fato de Calthrop ter conseguido manter-se fora dos arquivos de todas as polícias do Mundo. Mas agora tornara-se Duggan: cabelo pintado, lentes de contato, figura adelgaçada, saltos altos. Foi a descrição de Duggan, com o numero do passaporte e a respectiva fotografia, que Thomas enviou para a sala de telex, que transmitiria esses dados para Paris. Pelos seus cálculos, Lebel os receberia pelas duas da manhã.

      - E agora é com eles - insinuou o inspetor.

      - Oh, não, meu rapaz? Ainda há muito que fazer - afirmou Thomas maliciosamente. - Logo de manhã vamos começar a investigar nas agências de vendas de bilhetes das companhias de aviação, das balsas de travessia do canal e do trem continental. Temos de descobrir onde ele se encontra agora.

     

      MME La Baronne de la Chalonnière virou-se para o jovem inglês que a acompanhara à porta. Fora uma noite agradável e ela permanecia indecisa, sem saber se deveria insistir em que terminasse ali. Por um lado, embora já tivesse tido amantes, nunca se permitira deixar-se seduzir por um completo desconhecido. Por outro, encontrava-se num estado de espírito muito vulnerável. Passara o dia numa academia militar, assistindo à cerimônia da outorga da patente de segundo-tenente ao filho, no antigo regimento do pai.

      O fato dera-lhe plena consciência, com um profundo abalo, de que estava a poucos meses dos quarenta anos. A galanteria estudada do idoso coronel que comandava a academia e os olhares de admiração dos colegas de faces rosadas do filho tinham-na feito sentir-se, de súbito, muito só.

      O seu casamento estava terminado, em tudo menos no nome, pois o barão andava tão afadigado perseguindo as adolescentes de Paris que nem tinha tempo para passar as férias de Verão no castelo ou, sequer, para ver o filho receber os galões de oficial. Ao regressar dos Altos Alpes no automóvel da família, resolvera passar a noite à saída de Gap.

      Durante o café, que tomara na sala do hotel, pensou que era uma mulher atraente e só. Quando o inglês lhe perguntara se podia tomar o café na sua companhia, ficara tão surpreendida que não fora capaz de recusar. Ele devia ter entre trinta e três e trinta e cinco anos - a melhor idade para um homem -, era razoavelmente atraente e divertido. Falava bem francês.

      A baronesa gostara do ardente Calvados que ele pedira com o café e dos hábeis cumprimentos que lhe dirigira, de tal maneira que era quase meia-noite quando se levantara e explicara que tinha de partir cedo na manhã seguinte. Ele acompanhara-a, subira com ela as escadas e junto da janela do patamar apontara a região adormecida, banhada de luar. Ela olhara-o e vira os seus olhos fixos no sulco profundo que lhe dividia os seios. Ele sorrira e murmurara:

      - O luar transforma até o homem mais civilizado num primitivo.

      Ela continuara a subir a escada, simulando aborrecimento mas sentindo um frêmito de prazer.

      - Foi uma noite muito agradável, monsieur. - Estendeu a mão para a maçaneta da porta, perguntando vagamente a si mesma se o indivíduo tentaria beijá-la. Inesperadamente os braços do desconhecido envolveram-na e os seus lábios pousaram-se nos dela, quentes e firmes. "Isto tem de acabar, dizia uma voz dentro dela, mas a baronesa correspondeu ao beijo e os braços que a envolviam estreitaram-na mais. Girou a maçaneta da porta atrás dela, libertou-se do amplexo recuou para dentro do quarto. -Venez.

      Ele entrou e fechou a porta.

 

      DURANTE a noite, os arquivos dos Renseignements Généraux foram de novo examinados, desta vez à procura do nome de Duggan e com êxito. Encontraram um cartão segundo o qual Alexander James Quentin Duggan entrara na França no Brabant Express, vindo de Bruxelas, em 22 de Julho. Uma hora depois encontraram outro cartão com o nome de Duggan entre os passageiros do Étoile du Nord Express, de Paris para Bruxelas, em 31 de Julho. Seguiu-se outro cartão revelador de que Duggan se instalara num pequeno hotel perto da Place de la Madeleine entre 22 e 30 de Julho

      De  madrugada, Lebel visitou discretamente o hotel, onde conversou com a proprietária. Depois encarregou um detetive à paisana de ali permanecer, para o caso de Duggan reaparecer. De novo no seu gabinete, o comissário disse a Caron:

      - Esta visita de Julho foi uma viagem de reconhecimento. O que quer que seja que o homem tenha planejado, está tudo preparado.

      Em seguida recostou-se na cadeira, fitando o teto. A proprietária do hotel descrevera Duggan como um autêntico cavalheiro. Os autênticos cavalheiros, pensou o comissário, representavam sempre as maiores dificuldades para os policiais. Nunca ninguém suspeitava deles.

      Olhou para a fotografia que chegara de Londres e tentou construir uma imagem mental do indivíduo. Devia ser arrogantemente seguro da sua imunidade. E andava armado, claro...

      Mas com quê? Uma automática num coldre axilar? Uma espingarda? E como conseguiria passar uma espingarda pela alfândega e levá-la próximo do general De Gaulle? Até as malas de mão das mulheres eram suspeitas a vinte metros do presidente e os homens com embrulhos compridos eram afastados sem cerimônias.

      Lebel estava consciente de que possuía uma vantagem: sabia o novo nome do assassino, e este ignorava que ele o sabia.

     

      O dedo de luz da Lua moribunda recuou lentamente, através da colcha amarrotada, na direção da janela. As duas figuras deitadas na cama estavam envoltas em sombra. Deitada de costas, Colette passava distraidamente os dedos de uma das mãos pelos cabelos louros da cabeça que descansava na almofada a seu lado. Recordava a noite, de lábios entreabertos num meio sorriso. Depois consultou o pequeno relógio de viagem colocado sobre a mesa-de-cabeceira: Agarrou com mais força o cabelo louro e chamou:

      - Ei! - o inglês emitiu um murmúrio ensonado e depois começou beijá-la. -Não, já chega, querido. Tenho de me levantar daqui a duas horas e você tem de voltar para o seu quarto.

      Ele acenou com a cabeça e ergueu-se. Depois de vestido, sentou-se na beira da cama e envolveu-lhe a nuca com a mão direita. O seu rosto estava a poucos centímetros do dela.

      - Como se chamas? - perguntou a mulher.

      - Alex - respondeu, depois de pensar um momento. - Bem, Alex, é hora de você ir embora.

            Ele beijou-a nos lábios.

      - Nesse caso, boa noite, Colette.

      Passado um segundo, desaparecera.

      As sete horas, um gendarme local entrou no átrio do Hôtel du Cerf. O proprietário cumprimentou-o:

      - Alors, alegre e madrugador?

      - Como sempre - respondeu o gendarme. - É um grande estirão até aqui, de bicicleta, e deixo sempre este hotel para o fim.

      - Não me diga! - respondeu o proprietário, sorrindo. - Nós fazemos o melhor café matinal das redondezas. Marie-Louise, traga uma xícara de café a este senhor. E com Calvados, claro. - O gendarme sorriu, satisfeito. - Aqui estão os cartões - disse o proprietário, estendendo-lhe os pequenos cartões brancos preenchidos pelos hóspedes. - A noite passada só chegaram três novos.

      O gendarme aceitou-os e meteu-os na bolsa de couro que trazia presa no cinto.

      - Quase não valia a pena ter vindo por tão pouco. - Sorriu e sentou-se no banco do átrio, à espera do seu café com Calvados.

      Eram oito horas quando chegou à gendarmaria de Gap, com a bolsa cheia de fichas de registro em hotéis. O inspetor do posto deu-lhes uma vista de olhos distraída e colocou-as na prateleira, para serem levadas, mais tarde, para os Arquivos Centrais.

      No momento em que o inspetor colocava as fichas na prateleira do comissariado, Mme Colette de la Chalonnière pagava a conta após o que se sentou ao volante do seu automóvel e partiu em direção a oeste.

      No andar de cima, o Chacal dormiu até às nove horas da manhã.

     

      O intercomunicador ao lado do superintendente Thomas soou ruidosamente.

      - O amigo Duggan - anunciou o seu inspetor mais antigo sem preliminares - partiu de Londres num vôo da BEA, na segunda-feira de manhã.

      - Para onde? Paris?

      - Não, super. Bruxelas.

      Thomas raciocinou rapidamente.

      - Está bem. Creio que o perdemos, mas como ele deixou Londres várias horas antes das investigações começarem, a culpa não e nossa.

      Em seguida levantou o auscultador do telefone externo e pediu uma ligação para o comissário Lebel.

     

      O Chacal levantou-se quando o Sol já estava alto, sobre as colinas. Tomou banho e vestiu-se, depois de receber o terno, bem passado a ferro, das mãos da ruborizada criada. Pouco depois das 10.30 seguiu no Alfa para a cidade, onde se dirigiu aos Correios, para telefonar para Paris.

      Quando, vinte minutos mais tarde, saiu, apressado, da estação, vinha de lábios cerrados. Numa loja de ferragens comprou um litro de verniz azul-escuro e meio litro de branco, dois pincéis parafusos.

      Depois regressou ao hotel. Enquanto lhe tiravam a conta, foi ao quarto buscar as malas e levou-as pessoalmente para o carro. Colocadas as três malas no porta-bagagem e a maleta de mão no banco ao lado do condutor, entrou de novo no hotel e liquidou a conta.

      O recepcionista diria, mais tarde, que ele parecera apressado e nervoso e

pagara a conta com uma nota de cem francos nova. O que o recepcionista não sabia era que, enquanto se dirigira à sala do fundo para buscar troco para a nota, o inglês louro dera uma vista de olhos ao livro de registro do hotel. Vira os registros do dia anterior, incluindo o de Mme La Baronne de la Chalonnière, La Haute Chalonnière,Corrèze.

      Momentos depois, o Alfa arrancava e o inglês desaparecia. Pouco antes do meio-dia, a Sureté de Bruxelas telefonou a Claude Lebel para o informar que, na segunda-feira, Duggan permanecera apenas cinco horas na cidade. Partira para Milão no vôo dessa tarde da Alitalia.

      Apenas Lebel desligou, o telefone tocou de novo, e um funcionário da DST informou-o que, entre outros turistas que haviam entrado na França vindos de Itália na manhã anterior, em Ventimiglia, se contava Alexander James Quentin Duggan. Lebel explodiu.

      - Quase trinta horas! - berrou. - Mais de um dia! - Desligou violentamente o telefone e Caron arqueou uma sobrancelha. - Acho que não devia ter gritado -disse Lebel numa voz fatigada. - Estão agora verificando os cartões de entrada de ontem. Pelo menos sabemos uma coisa: ele está aqui. A propósito, telefone ao superintendente Thomas e diga-lhe que o Chacal se encontra na França e que a partir de agora tratamos nós do assunto.

      Quando Caron desligou, depois de falar com Londres, telefonaram da sede da polícia regional de Lion. Depois de ouvir a comunicação, Lebel olhou, triunfante, para Caron:

      - Nós o apanhamos! Registrou se no Hôtel du Cerf, em Gap, por dois dias, a partir da noite passada. - Falou de novo, através do telefone, com o seu interlocutor de Lion: - Escute, comissário, não me é possível explicar-lhe por que motivo queremos esse tal Duggan. Mas vou-lhe dizer o que quero que faça...

      Falou durante dez minutos, e quando terminou o homem da DST telefonou de novo a informar que Duggan entrara na França num Alfa Romeo branco de dois lugares, alugado, com a matrícula

      - Transmito um alerta a todas as esquadras para o procurarem? -perguntou Caron.

      - Ainda não. É capaz de ser apanhado por algum policial de província que julgasse estar apenas procurando um carro roubado. Ele mata quem quer que tente interceptá-lo. O importante é o fato de se ter registrado no hotel por duas noites. Quero esse hotel cercado por um exército, e nós dois vamos estar presentes quando ele for pego.

      Só mais tarde Lebel teve consciência do erro que cometera.

      Enquanto ele requisitava um helicóptero ao Campo Satory, nos arredores de Paris, a força policial de Gap montava barreiras na estrada, em todas as saídas da cidade, e em Grenoble e Lion homens armados de pistolas-metralhadoras e espingardas subiam para as "ramona ".

     

      ATÉ mesmo à sombra das árvores o calor do princípio da tarde era abrasador. Nu da cintura para cima, para evitar sujar a roupa, o Chacal trabalhou durante duas horas no automóvel.

      Depois de sair de Gap viajara para oeste, através das montanhas. Lançara-se nas curvas apertadas com os pneus protestando e por duas vezes quase lançara outros motoristas para o abismo. Alguns quilômetros depois de Luc en Diois metera-se por uma estrada secundária e encontrara um caminho que conduzia à floresta. A meio da tarde terminara a pintura e recuou, a fim de observar o efeito. O carro estava de um azul-carregado e brilhante e já quase seco. Embora não se tratasse, de modo nenhum, de um trabalho de profissional, passaria despercebido a uma inspeção casual.

      As chapas de matrícula haviam sido retiradas e encontravam-se viradas para baixo, sobre a erva. Na parte de trás de ambas fora pintado um imaginário número de matrícula francesa terminando em 75, o código de registro de Paris e o mais corrente nas estradas da França. Obviamente os documentos do Alfa italiano branco não condiziam com o automóvel francês azul.

      Enquanto mergulhava um trapo no deposito da gasolina para remover a tinta das mãos calculou que, com a sua falsa identidade descoberta, o ponto por onde entrara na França não tardaria também a descoberto, ao que se seguiria uma busca para encontrar o carro. Como ainda faltavam alguns dias para executar o assassinato, necessitava de um lugar para se ocultar até estar preparado. Isso obrigava-o a dirigir-se para o departamento de Corrèze, situado mais no interior, a quatrocentos quilômetros de distância, e a maneira mais rápida de chegar era utilizando o automóvel.

      Constituía um risco, sem dúvida, mas decidiu que tinha de corrê-lo. Tirou as chapas de matricula, jogou fora as tintas e os pincéis, vestiu a camisa e o casaco, entrou no carro e ligou o motor. Ao regressar à estrada, consultou o relógio: 15:41.

      Sobre ele, um helicóptero seguia para leste. Poucos minutos depois, na EN93, aproximava-se da Vila de Die. Quando chegou ao centro da localidade, perto do monumento às vítimas da guerra, um policial de motocicleta e casaco de couro fez-lhe sinal para parar e encostar à direita.

      Hesitou um segundo, sem saber se deveria parar ou dar um toque de raspão no polícia e avançar, para abandonar o carro uns vinte quilômetros adiante e tentar, sem espelho nem lavatório, transformar-se no pastor Jensen. O policial decidiu por ele, ao ignorá-lo por completo quando o Alfa afrouxou.

      O Chacal encostou à direita e esperou. Ouviu o silvo de sereias e viu entrar na vila um comboio de quatro Citroens da Polícia e seis “ramonas". Enquanto o policial de trânsito erguia o braço, numa continência, o cortejo motorizado passava velozmente pelo Alfa e seguia pela estrada abaixo, na direção de onde ele viera.

            Através dos vidros reforçados de arame dos carros, viu polícias de capacete, com pistolas-metralhadoras atravessadas sobre os joelhos. O policial de trânsito baixou o braço, desfazendo a continência, e mandou o Chacal prosseguir com um gesto indolente.

 

      ERAM 16:50 quando chegaram ao Hôtel du Cerf.

      Lebel, que aterrara a quilômetro e meio de distância, foi conduzido ao hotel num carro da Polícia e dirigiu-se a pé para a entrada principal, acompanhado por Caron, que levava oculta sob a gabardina dobrada no braço uma espingarda automática MAT 49, carregada e armada.

      O hotel estava isolado havia mais de quatro horas. A medida que o proprietário respondia às perguntas de Caron, sem deixar de observar nervosamente o estranho volume que o detetive segurava, Lebel escutava e os ombros descaíam-lhe. Cinco minutos depois, o hotel estava inundado de policiais que interrogavam o pessoal, passavam revista no quarto e batiam os terrenos circundantes.

      Lebel saiu do hotel sozinho e contemplou as colinas. Caron reuniu-se a ele e perguntou:

      - Acha que ele foi realmente embora, chefe? Ou estará o proprietário feito com ele?

      - Penso que partiu esta manhã. A questão é: para onde foi e se suspeita que sabemos quem ele é.

      - Mas como poderia suspeitar? Deve ser uma coincidência.

      - Esperemos que sim, meu caro Lucien.

      - Portanto, a única pista que temos agora, para podermos continuar, é a matrícula do carro.

      - Exatamente. Vá a um dos carros-patrulhas e use o rádio para um alerta a todas as esquadras. "Alfa Romeo branco, italiano matrícula MI seis-um-sete-quatro-um. Abordar com cautela, supõe-se que ocupante esteja armado. Mais uma coisa: ninguém deve mencionar o assunto à imprensa. É provável que o suspeito não saiba que o é. Depois de tratar disso, regressamos a Paris.

     

      A  medida que a noite caía, o pequeno carro esportivo do Chacal subia as montanhas do Maciço Central e da província do Auvergne Le Puy, o caminho tornava-se mais íngreme e as vilas pareciam estâncias termais, onde os camponeses do Auvergne ganhavam fortunas a custa dos que padeciam de dores e doenças contraídas nas cidades. A medida que o vale do rio Allier ficava para trás e se aproximavam as pastagens altas, o cheiro dominante era o da urze e do feno a secar. O Chacal encheu o tanque em Issoire e depois prosseguiu velozmente. Era quase meia-noite quando contornou as nascentes do Dordonha e tomou a estrada que conduzia a Ussel.

     

      - O senhor é um idiota, Monsieur le Commissaire. Teve-o na mão e o deixou fugir. - Saint-Clair erguera-se na cadeira e encarava furiosamente Lebel, que examinava uns papéis ao fundo da mesa. Quando Saint-Clair acabou, Claude Lebel ergueu os olhos.

      - Se consultar o relatório que tem à sua frente, meu caro coronel, verificará que não o tivemos na mão - observou calmamente. - o comunicado de Lion informando que, na noite passada, se registrara um homem com o apelido de Duggan no hotel de Gap só chegou ao nosso conhecimento às doze e quinze de hoje. Sabemos agora que o Chacal saiu do hotel pouco depois das onze, portanto com uma hora de vantagem sobre nós. Além disso, o presidente ordenou que este assunto fosse tratado em segredo, o que não permitiu que se transmitisse um alerta a todas as gendarmarias rurais, no sentido de procurarem um homem de apelido Duggan. A ficha de registro de Duggan no Hôtel du Cerf foi recolhida do modo normal e enviada para a sede regional. Só ali se verificou que Duggan era um homem procurado. A demora foi inevitável. Finalmente, Duggan tinha-se registrado no hotel por dois dias. Não sabemos o que o levou a mudar de idéia às onze horas desta manhã.

      - Tivemos azar, muito azar - comentou o ministro. - Resta no entanto esclarecer por que motivo não foi imediatamente ordenado que se procurasse o carro. Comissário?

      - Concordo que foi um erro, Monsieur le Ministre. Tinha razões para crer que ele tencionava passar a noite no hotel. Se tivesse sido interceptado por um agente motorizado, teria com certeza abatido o policial e, assim advertido de que era procurado, fugido...

      - Foi precisamente o que ele fez – interrompeu Saint-Clair.

      - Sem dúvida, mas nada nos indica que foi prevenido, como não deixaria de acontecer se o seu carro tivesse sido detido por um só agente. Assim que o carro for visto, seremos avisados. Dado o perigo que o indivíduo representa, mencionei o carro como roubado, com instruções para que a sua presença seja imediatamente comunicada à sede regional, mas ordenei que nenhum policial sozinho aborde o ocupante. Se esta assembléia decidir modificar essas ordens, terei de lhe pedir que assuma a responsabilidade pelas possíveis conseqüências. Seguiu-se um longo silêncio.

      - Lamentavelmente, não se pode permitir que a vida de um agente da Polícia coloque em risco as medidas para proteger o presidente da França -murmurou Saint-Clair, e verificaram-se sinais de concordância à roda da mesa.

      - Perfeitamente de acordo - redarguiu Lebel. - Mas, na sua maioria, os policiais das províncias não são pistoleiros profissionais e o Chacal é. Se for interceptado, abaterá um ou dois policiais e desaparecera e nos teremos de nos ver com duas coisas: a primeira será um assassino perfeitamente advertido e talvez capaz de assumir outra nova identidade acerca da qual nada sabemos, a segunda será uma lista com grandes manchetes em todos os jornais do país Em poucos dias, a imprensa ficará sabendo que o indivíduo pretende assassinar o presidente. Se algum dos presentes desejar explicar isto ao general. de boa vontade abandonarei esta investigação.

      Ninguém se ofereceu. A reunião terminou, como habitualmente cerca da meia-noite. Decorridos trinta minutos, era sexta-feira dia 16 de Agosto.

     

      CONSULTANDO o seu mapa rodoviário, o Chacal constatara que a aldeia de La Haute Chalonnière ficava imediatamente depois de Égletons. As três da manhã, quando passou por um marco de pedra onde leu "Égletons, 6 km", resolveu abandonar o automóvel. As densas matas que ladeavam a estrada eram provavelmente uma propriedade nobre, onde outrora se tinham caçado javalis.

      Poucas centenas de metros adiante encontrou um caminho que conduzia à floresta. Embrenhou-se quase um quilômetro e depois parou, desligou as luzes e pegou o alicate e uma lanterna. Passou uma hora debaixo do carro, até todos os tubos de aço que continham a espingarda de atirador especial serem retirados do seu esconderijo. Guardou-os de novo na mala, com a roupa velha e o capote militar.

      Depois de retirar os documentos do automóvel e de dar uma última vista de olhos ao veículo, para se certificar de que não deixava lá nada susceptível de denunciar quem fora o condutor, conduziu-o bem para o centro de um maciço de rododendros. Em seguida cortou ramos de arbustos próximos e enterrou-os no chão até o Alfa ficar completamente oculto.

      Servindo-se da gravata como se fosse uma correia, suspendeu-lhe uma mala em cada extremidade, ficando com uma à frente e outra às costas, e pegou as duas restantes. O avanço era lento. De cem em cem metros detinha-se, pousava as malas e, com um ramo de árvore, apagava os rastos deixados pelo Alfa. Precisou de uma hora para chegar à estrada e distanciar-se cerca de oitocentos metros da entrada da floresta.

      Quando o céu clareou a oriente, sentou-se à espera de um ônibus Teve sorte. As 6:30 passou uma caminhonete que rebocava um carro de feno.

      - O carro quebrou? - perguntou o motorista, afrouxando.

      - Não. No acampamento deram-me uma licença de fim-de-semana e resolvi ir de carona até em casa, em Bordéus. A noite passada cheguei a Ussel e resolvi continuar para Tulle. Só consegui chegar até aqui. - Sorriu ao motorista. - Ninguém passa por estes lados depois de escurecer.

      - Eu o levo a Egletons.

      Entraram na pequena vila às 6:45. O Chacal agradeceu ao camponês, desapareceu por trás do veículo e dirigiu-se a um café. Pediu duas grandes fatias de pão com manteiga e quatro ovos cozidos. O empregado indicou-lhe o número de uma empresa de táxis para a qual ele telefonou. Teriam um carro disponível dentro de meia hora.

      Quando o velho Renault chegou, às 7:30, o Chacal disse ao motorista:

      - Leve-me à aldeia de La Haute Chalonnière.

      Pediu que o deixasse em frente ao café, no largo da aldeia. Quando o táxi partiu, passou com a bagagem por dois bois presos a um carro de feno. No largo já se fazia sentir um calor sufocante.

      O interior do café era escuro e fresco. Ouviu, mais do que viu, os clientes virarem-se nas mesas para o observarem. Uma camponesa de preto aproximou-se e perguntou-lhe:

      - Monsieur?

      O Chacal encostou-se ao balcão. Notando que os presentes bebiam vinho tinto, pediu:

      - Du vin rouge, s'il vous plait, madame.- Enquanto lhe serviam o vinho, perguntou: - A que distância fica o castelo?

      A mulher olhou-o inquisitorialmente.

      -A dois quilômetros, monsieur.

      Chacal suspirou, fatigado, e queixou-se:

      - O idiota daquele motorista quis convencer-me de que não havia aqui nenhum castelo. Por isso deixou-me no largo.

      Os camponeses que o observavam das mesas não reagiram. Ele sacou de uma nota nova de cem francos e perguntou:

      - Quanto é o vinho?

      A mulher olhou intensamente para a nota e respondeu:

      - Não tenho troco.

      - Se houvesse alguém com uma furgoneta, talvez tivesse troco.

      - Há uma furgoneta na aldeia, monsieur - resmungou uma voz. - Conheço o dono. Talvez ele o levasse lá em cima.

      O Chacal virou-se e acenou com a cabeça, como se considerasse os méritos da idéia.

      - Entretanto, que toma você?

      O camponês dirigiu um aceno de cabeça à mulher, que encheu generosamente outro copo de vinho tinto.

      - E os seus amigos? Está um dia de fazer sede.

      O camponês dirigiu novo aceno à mulher, que levou duas garrafas cheias ao grupo sentado em torno da grande mesa.

      - Benoit, vá buscar o furgão - ordenou o camponês, e um dos homens saiu.

      A vantagem dos camponeses do Auvergne, pensou Chacal, enquanto seguia aos solavancos para o castelo, reside no fato de serem tão reservados que conservam a boca fechada - pelo menos em relação a estranhos.

     

      COLETE de la Chalonnière sentou-se na cama e, enquanto sorvia pequenos goles de café, relia a carta. A cólera que a dominara na primeira leitura fora substituída por um sentimento de cansaço e desilusão.

      Que iria fazer do resto da sua vida? Fora recebida, na tarde anterior, pela velha Ernestine, que servia no castelo desde o tempo do pai do barão, e pelo jardineiro, Louis, um antigo camponês que casara com Ernestine. Eram, virtualmente, os feitores do castelo, que tinha agora fechados dois terços das suas divisões. Colette olhou de novo para o recorte da vistosa revista parisiense que uma sua amiga tão solicitamente lhe enviara, contemplou o rosto de Alfred, seu marido, rasgado por um sorriso imbecil, o olhar repartido entre a lente da câmara e o busto proeminente da estrela que se encontrava a seu lado. A legenda reproduzia uma declaração da moça, que teria dito esperar "um dia" poder casar com o barão, de quem era “amiga íntima".

            Ao olhar para o rosto vincado e para o pescoço esquelético do barão, Colette perguntou vagamente a si mesma que acontecera ao esbelto capitão da Resistência, de olhar arguto, pelo qual se apaixonara em 1942, quando, com menos de vinte anos, servira de mensageira dos resistentes.

      Tinham casado um ano depois, quando aguardava o nascimento do filho. A baronesa atirou ao chão o recorte e a carta que o acompanhava. Saltou da cama, aproximou-se do espelho de corpo inteiro e desatou as fitas do penteador.

      “Bem, Alfred, podemos jogar os dois esse jogo", pensou.

      Sacudiu a cabeça, para soltar o cabelo comprido, uma madeixa do qual lhe caiu sobre o seio. Recordou o homem que estivera com ela na noite anterior e arrependeu-se de não ter ficado em Gap. Podiam ter passado umas férias juntos.

      Ouviu o ruído de um velho furgão entrando no pátio. Distraidamente, atou as fitas do penteador e aproximou-se da janela que dava para a frente da casa. Atrás do veículo, dois homens retiravam qualquer coisa da mala. Um deles entrou de novo no furgão, sentou-se ao volante e embalou com um ruído áspero. O veículo arrancou e Colette teve um sobressalto de surpresa.

      Ao lado das três malas de viagem e da maleta de mão pousadas no saibro do pátio encontrava-se um homem. A baronesa reconheceu o brilho do cabelo louro que cintilava ao sol, e a boca rasgou-se num sorriso aberto de prazer.

      No momento seguinte, Ernestine subia as escadas tão rapidamente quanto as suas velhas pernas lhe permitiam e informava:

      - Está ali um senhor que perguntou pela madame.

     

      NESSA noite, banhado, descontraído e saciado com uma refeição de patê regional e lebre estufada, o Chacal deitou-se em lençóis lavados no castelo. De olhos fitos nos arabescos dourados do teto, planejou os dias que lhe faltavam para cumprir a sua missão em Paris.

      Dentro de uma semana teria de partir, o que poderia revelar-se difícil. Precisaria arranjar uma justificativa. A porta abriu-se e a baronesa entrou. Trazia um penteador apertado ao pescoço por um laço de fita. O Chacal soergueu-se num cotovelo, enquanto ela fechava a porta e se dirigia para a cama. Depois estendeu a mão e desfez o laço de fita.

     

      DURANTE três dias, Lebel não recuperou a pista perdida, e todas as noites, na reunião, ganhava mais apoio a opinião de que o Chacal saíra do país.

      Na reunião do dia 19, o comissário foi o único a Insistir em que o assassino permanecia oculto na França, à espera.

      - A espera de quê? - perguntou Saint-Clair em voz aguda. - A única coisa de que pode estar à espera, se ainda se encontra aqui, é de uma oportunidade de escapar para a fronteira. No momento em que sair do esconderijo está nas nossas mãos.

      Ouviu-se um murmúrio de concordância, mas Lebel abanou obstinadamente a cabeça. Estava exausto por não ter dormido e pela necessidade constante de se defender, e aos seus colaboradores dos ataques daqueles homens. Não tinha qualquer prova. Possuía apenas o estranho pressentimento de que o homem que perseguia era um profissional que desempenharia a sua missão a todo custo.

      Nos oito dias decorridos desde que o caso lhe fora confiado, adquirira uma espécie de respeito renitente pelo silencioso assassino.

      - A espera não sei de quê - respondeu Lebel a Saint-Clair. - Mas está à espera de qualquer coisa, ou de algum dia marcado. Não acredito que não voltemos a ouvir falar de Chacal.

      - De algum dia marcado! - repetiu, sarcástico, Saint-Clair. - Francamente, comissário, o senhor parece que andou lendo muitos livros policiais. O homem foi embora, e acabou-se.

      - Desejo que tenha razão - respondeu Lebel calmamente. - Nesse caso, Monsieur le Ministre, devo retirar-me da investigação.

      O ministro olhou-o, indeciso.

      - Acha que ainda existe um perigo real, comissário?

      - Acho que devíamos continuar procurando até termos certeza.

      - Muito bem. Meus senhores, é desejo meu que o comissário continue as suas investigações.

 

      NA manhã do dia 20 de Agosto, Marc Callet, guarda-caça, perseguia um pombo bravo que ferira e caíra numa moita de rododendros silvestres. No meio da moita encontrou o pombo, que batia loucamente as asas, apresado no banco do motorista de um carro esporte abandonado.

      Inicialmente pensou que o automóvel fora para ali levado por um par de namorados, mas depois reparou que alguns dos ramos que o ocultavam haviam sido enterrados na terra. Os excrementos de aves nos bancos levaram-no a calcular que o veículo já se encontrava no local havia diversos dias.

      Pegou a espingarda e o pombo e regressou de bicicleta ao seu pavilhão, com a intenção de mencionar o achado ao polícia quando fosse à aldeia naquela

manhã. Era quase meio-dia quando o policial da aldeia se serviu do telefone de manivela que tinha em casa e comunicou a descoberta a Ussel.

      Perguntaram-lhe se o automóvel era branco. Respondeu que não, que era azul. Italiano? Não, era francês, de marca desconhecida. De Ussel prometeram enviar um reboque para buscá-lo. Já passava das quatro da tarde quando o pequeno carro foi rebocado para Ussel, e eram quase cinco quando um policial reparou na péssima pintura.

      Raspou o verniz azul com uma chave de parafusos e apareceu uma tira branca. Poucos minutos depois, a chapa de matricula da frente estava caída no pátio, voltada para cima, e revelava a matrícula original: MI-6 1741. O policial precipitou-se para o seu gabinete.

      Claude Lebel soube a notícia pouco antes das seis da tarde comunicada pelo comissário Valentin, da sede regional da Polícia Judiciária de Clermont-Ferrand, capital do Auvergne.

      - Muito bem. ouça, isto é importante – disse Lebel. - Quero que mande Já uma brigada a Ussel perguntar em todas as casas, lojas e cafés se alguém viu um inglês alto e louro, que fala bem francês. Leva três malas e uma maleta de mão, tem muito dinheiro e se veste bem, embora tenha provavelmente o aspecto de ter dormido vestido. Os seus homens devem perguntar onde ele esteve, para onde foi e o que tentou comprar. Se o localizarem, não se aproximem. Limitem-se a cercá-lo. Sigo para aí o mais depressa que puder. Uma última coisa: a imprensa tem de ser mantida na ignorância, custe o que custar.

      Lebel desligou e voltou-se para Caron:

      - Peça ao ministro que antecipe a reunião da noite para as oito horas. Depois comunique com Satory e arranje outra vez o helicóptero.

     

      Ao pôr do Sol, os carros da Polícia de Clermont-Ferrand tomaram posição no pequeno lugarejo que ficava mais próximo do lugar onde o guarda-caça encontrara o carro. Do radiomóvel, Valentin transmitiu instruções aos carros da brigada para iniciarem a busca num raio de oito quilômetros e trabalharem ao longo da noite, pois a essas horas era mais provável encontrar as pessoas em casa.

      Embora a maior parte das pessoas se encontrasse efetivamente em casa, tal fato resolvia apenas metade do problema. Antes da meia-noite, os homens de Valentin enfrentavam nova dificuldade.

      Um grupo de agentes dirigiu-se a casa de um agricultor para o interrogarem. O homem permaneceu à entrada da porta, em camisa de dormir, numa atitude que revelava claramente a sua recusa em convidar os detetives a entrar.

      - Então, Gaston? Você vai muitas vezes ao mercado. Desceu essa estrada, em direção a Égletons, na sexta-feira de manhã? - o agricultor olhou-os, de pálpebras semicerradas, e respondeu:

      -Talvez tenha descido.

      - Viu um homem na estrada?

      - Meto-me na minha vida.

      - Não é isso que estamos perguntando. Viu um homem louro, alto, atlético? Com três malas e uma maleta de mão?

      - Não vi nada. J'ai rien vu, tu comprends.

      E o interrogatório prosseguiu nestes termos durante vinte minutos. Por fim, os detetives foram embora. O homem seguiu-os com o olhar, até o carro da Polícia arrancar. Depois bateu com a porta e voltou para a cama com a mulher.

      - Era o homem a quem deu uma carona, não era? - perguntou ela. - Que querem eles dele?

      - Não sei. Mas nunca ninguém há de dizer que Gaston Grosjean os ajudou a apanhar outra criatura. - Pigarreou e cuspiu para as cinzas do lume.-Sales flics.

     

     

      LEBEL fitou os presentes na reunião e pousou os papéis sobre a mesa.

      - Assim que esta reunião terminar, meus senhores, sigo de helicóptero para Ussel, para dirigir pessoalmente a busca.

      Reinou silêncio durante quase um minuto.

      - Que deduz dos acontecimentos, comissário?

      - Duas coisas, Monsieur le Ministre. Sabemos que ele deve ter comprado tinta para transformar o carro, e desconfio que, se viajou nele durante a noite de quinta-feira, já o tinha transformado... Nesse caso, foi avisado de que o seu pseudônimo de Duggan era conhecido. Esse aviso permitiu-lhe deduzir que estaríamos no encalço dele e do automóvel antes do meio-dia.

      - Está sugerindo seriamente - perguntou alguém – que algum dos presentes nesta sala está vazando informações?

      - Não posso dizer isso, monsieur. Há operadores de telefones e telégrafo e executivos a nível hierárquico inferior aos quais é necessário transmitir ordens. É possível que um deles seja agente da OAS. Mas há uma coisa que me parece clara: ele foi avisado da descoberta do plano global para assassinar o presidente e, não obstante, decidiu prosseguir com eles.

      - E qual é a segunda coisa que podemos deduzir, comissário? - perguntou o ministro.

      - A segunda coisa é que, quando soube que estava desmascarado o Chacal como Duggan, não procurou sair de França. Em outras palavras continua na pista do presidente.

      O ministro levantou-se e reuniu os seus papéis.

      - Não o atrasaremos mais, comissário. Encontre-o. Desfaça-se dele se tiver de ser. São estas as minhas ordens, em nome do presidente.

      E saiu da sala.

      Uma hora depois, o helicóptero de Lebel cruzava o céu negro-púrpura em direção a sul.

     

      -JAVARDO impertinente! Como se atreve? Insinuar que nós, os mais altos funcionários da França, estávamos em falta. Claro que não deixarei de mencionar essa alusão no meu próximo relatório.

      Jacqueline desceu as alças finas da combinação e deixou o tecido transparente escorregar e assentar-lhe em pregas em torno das ancas.

      - Conte-me tudo - pediu, em tom arrulhador.

     

      A manhã de 21 de Agosto estava tão resplendorosa e límpida como as catorze anteriores. Da janela do castelo, a paisagem ondulante de colinas revestidas de urze parecia calma e tranqüila, não revelando o mínimo indício da agitação causada pelas investigações da Polícia que, naquele momento, envolviam a cidade de Égletons, a dezoito quilômetros de distância.

      No gabinete do barão, o Chacal fazia o seu telefonema rotineiro para Paris. Deixara a amante dormindo no andar de cima. Estabelecida a ligação, disse, como habitualmente:

      - Ici Chacal.

      - Ici Valmy - respondeu a voz abafada do outro extremo da linha. - A perseguição recomeçou. Encontraram o carro.

      O Chacal escutou durante mais dois minutos, interrompendo o seu interlocutor apenas uma vez, para formular uma pergunta breve. Com um "merci" final, desligou e apalpou os bolsos, à procura de um cigarro. Tencionara permanecer no castelo mais dois dias, mas agora tinha de partir. Enquanto aspirava o fumo do cigarro, sentiu-se perturbado por um pormenor da chamada que lhe ficara latente no espírito. Ouvira um clic abafado na linha pouco depois de ter levantado o auscultador...

      O telefone tinha uma extensão no quarto, mas Colette dormia profundamente quando a deixara. Virou-se e, descalço, subiu rápida e silenciosamente as escadas, irrompendo no quarto. O auscultador fora reposto no descanso. O guarda-roupas estava aberto e as três malas que lá estavam haviam sido retiradas e encontravam-se abertas no chão. Perto, via-se o seu chaveiro caído.

      A baronesa, de joelhos entre os delgados tubos de aço, olhava horrorizada para o que tinha nas mãos: o cano e a culatra da espingarda. Decorreram alguns segundos sem que nenhum dos dois falasse. O Chacal foi o primeiro a refazer-se.

      - Estiveste escutando. Eu... perguntava a mim mesma a quem telefonaria

todas as manhãs... Esta... coisa... é uma arma, uma espingarda de assassino.

      Era simultaneamente uma pergunta e uma afirmação, mas proferida num tom que revelava a esperança que ele explicasse tratar-se de um objeto absolutamente inofensivo.

      O Chacal baixou os olhos e fitou-a, e ela reparou pela primeira vez que as pupilas cinzentas dos seus olhos tinham alastrado e lhe ensombravam toda a expressão. A baronesa ergueu-se lentamente e deixou cair com um baque o cano da espingarda entre as outras peças.

      - Quer matar De Gaulle - murmurou. - É um deles, da OAS.

      A falta de qualquer argumentação por parte de Chacal constituiu por si mesma a resposta. Colette correu para a porta, mas ele agarrou-a facilmente e atirou-a para cima da cama. Quando ela abriu a boca, a pancada que ele lhe desferiu com as costas da mão no pescoço atingiu-lhe a carótida e emudeceu o grito. Depois ele agarrou-lhe o cabelo com a mão esquerda e arrastou-a, de borco sobre a beira da cama. Teve um último vislumbre do padrão do carpete quando a certeira pancada de cutelo a atingiu na nuca.

      O Chacal aproximou-se da porta e escutou, mas não ouviu qualquer som. Ernestine devia estar na cozinha preparando o café da manhã, e Louis não tardaria a partir para o mercado. Felizmente eram ambos bastante surdos.

      Voltou a arrumar na mala as várias partes da espingarda, juntamente com a roupa de André Martin. Depois de se lavar e barbear. Pegou a tesoura e passou dez minutos penteando cuidadosamente o comprido cabelo louro para cima e aparando-lhe uns cinco centímetros. Depois aplicou-lhe tinta cinzenta suficiente para o tornar grisalho e copiou o penteado que o pastor Jensen apresentava no passaporte. Por fim, colocou nos olhos as lentes de contato azuladas. Limpou do lavatório todos os vestígios de tinta e voltou ao quarto. Vestiu a roupa que comprara em Copenhagen e colocou o peitilho preto e o cabeção. Por fim envergou o casaco clerical cinzento e calçou os sapatos pretos. Meteu os óculos de aros de ouro no bolso do peito, guardou na maleta a escova e pasta de dentes bem como o estojo de barbear, e juntou-lhes o livro dinamarquês sobre catedrais francesas.

      Transferiu para o bolso interior do casaco o passaporte dinamarquês e um maço de notas. Eram quase oito horas quando espiou pela janela e viu Louis partir, de bicicleta, com o cesto das compras amarrado atrás do selim. Um momento depois, ouviu Ernestine bater à porta.

      - Voilá votre café, madame - anunciou com voz esganiçada através da porta fechada.

      O Chacal  respondeu-lhe em francês, em tom ensonado:

      - Deixe-o aí. Nós vamos buscá-lo quando estivermos prontos.

      Do lado de fora, a boca de Ernestine formou um o perfeito. Ao que as coisas tinham chegado! E no quarto do patrão! Desceu apressadamente a escada e não ouviu o ruído abafado das quatro malas caindo num canteiro de flores. Também não ouviu a porta do quarto ser fechada à chave pelo lado de dentro nem o corpo inerte da sua patroa ser arranjado na posição natural de uma pessoa adormecida, com a roupa da cama puxada até ao queixo. Tão-pouco ouviu o ruído da janela do quarto fechando-se atrás do homem grisalho antes dele saltar para o relvado.

      Mas ouviu o Renault da senhora arrancar. Subiu de novo a escada apressadamente. O tabuleiro do café da manhã estava intacto. Depois de bater várias vezes à porta, experimentou-a, mas não conseguiu abri-la. Resolveu contar o que se passava a Louis. Alguém do café local iria com certeza buscá-lo no mercado.

      Não sabia lidar com o telefone, pelo que não a surpreendeu o fato de, depois de o manter encostado ao ouvido vários minutos, não ouvir qualquer som. Não reparou que o fio estava cortado junto ao rodapé do gabinete do barão.

     

      APÓS o café da manhã, Claude Lebel regressou no helicóptero a Paris. Conforme disse mais tarde a Caron, Valentin estava fazendo um excelente trabalho, não obstante aqueles malditos campônios. Já conseguira seguir a pista do Chacal até um café de Egletons, onde ele tomara o café da manhã e chamara um táxi.

      Entretanto, mandara montar barreiras nas estradas. num raio de vinte quilômetros em torno de Egletons.

     

      DE La Haute Chalonnière o Renault seguiu  velozmente para sul, através das montanhas, na direção de Tulle. O Chacal calculava que, se a Polícia iniciara as investigações na noite anterior, em círculos sempre crescentes a partir do ponto onde o Alfa fora encontrado, devia ter chegado a Égletons ao alvorecer. O empregado do café e o motorista do táxi falariam, e à tarde os polícias chegariam ao castelo. Embora procurassem um inglês louro, ia ser difícil escapar-lhes.

      Lançando o pequeno veículo à velocidade máxima, seguiu através dos caminhos das montanhas, acabando por desembocar na EN 89 dezoito quilômetros a sudoeste de Egletons.

     

      Ao mesmo tempo em que ele desaparecia numa curva, descia de Egletons um pequeno cortejo de automóveis. Os veículos pararam e seis policiais começaram a colocar uma barreira de aço para bloquear a estrada.

      - Como é que não está em casa? - gritou Valentin à chorosa mulher de um motorista de táxi de Égletons.

      - Onde ele foi?

      - Não sei, monsieur. Espera todas as manhãs, na praça, que chegue o trem de Ussel. Quando não volta para casa, quer dizer que arranjou um cliente.

      - O seu marido teve algum cliente na sexta-feira de manhã? - perguntou o agente.

      - Teve, sim, monsieur. Chegou da estação e recebeu um telefonema do café dizendo que havia uma pessoa que queria um táxi. Como tinha um dos pneus furado, até ficou preocupado, com medo de que o cliente arranjasse outro táxi. Depois foi, mas nunca disse onde o levou.

      Valentin deu-lhe uma leve palmada no ombro.

      - Está bem, madame, esperamos que ele volte. - Voltou-se para um dos agentes e ordenou-lhe: - Mande um homem para a estação e outro para o café. Assim que o táxi aparecer, quero falar com o motorista... depressa.

     

      QUASE dez quilômetros antes de Tulle, o Chacal lançou a mala contendo o passaporte e as roupas de Alexander Duggan - exceto uma camiseta de lã -sobre o parapeito de uma ponte. A mala desapareceu, com um baque, no denso matagal do fundo de um desfiladeiro. Depois de localizar a estação de Tulle, o Chacal deixou o carro a três ruas de distância e levou as duas malas e a maleta de mão para a bilheteria da estação de trens, onde comprou um bilhete de ida para Paris em segunda classe. Quando se dirigia para o trem depois de lhe terem furado o bilhete, um uniforme azul vedou-lhe a passagem:

      - Vos papiers, s'il vous plait. - O Chacal mostrou o passaporte dinamarquês. O homem da CRS folheou-o sem entender uma palavra e perguntou: -Vous êtes Danois?

      O Chacal sorriu e acenou com a cabeça, encantado.

      - Danske... ja ja. - O homem da CRS devolveu-lhe o passaporte e, com um aceno de cabeça permitiu-lhe seguir na direção da plataforma.

     

      ERA quase uma hora da tarde quando Louis regressou, tendo já ingerido um ou dois copos de vinho. A mulher comunicou-lhe a sua inquietação e Louis assumiu o controle da situação.

      - Vou subir à janela e olhar lá para dentro - declarou. Passados momentos, a escada era encostada à parede, sob a janela do quarto, e Louis subiu em passos pouco firmes. Desceu cinco minutos depois e informou: - Mme la Baronne está deitada.

      - Mas eu ouvi o carro... e ela nunca dorme até tão tarde.

      - Mas hoje dorme. É melhor não incomoda-la.

      Só às quatro da tarde Ernestine conseguiu levar a sua idéia avante:

      -Tem de ir outra vez lá acima e acordar a madame - disse ao marido. - Não é natural dormir o dia inteiro.

      Não obstante pensar que não havia nada de mais natural, sabendo que era inútil discutir, o velho Louis subiu novamente a escada, levantou a janela e entrou no quarto. Passados minutos gritou, em voz rouca, da janela:

            - Ernestine, madame parece estar morta! Preparava-se para regressar por onde subira quando a mulher lhe gritou que abrisse a porta do quarto pelo lado de dentro. Ambos observaram juntos os olhos fixos. Ernestine chamou a si o comando das operações:

      - Louis, vá depressa à aldeia buscar o Dr. Mathieu.

      Poucos minutos depois, Louis pedalava pelo caminho abaixo, com toda a força das suas pernas assustadas. Passava das 4:30 quando o automóvel do Dr. Mathieu entrou, aos solavancos, no pátio do castelo. Quinze minutos depois, o médico endireitava-se, junto da cama.

      - Madame está morta - declarou. - Partiram-lhe o pescoço. Temos de chamar a Polícia.

      O gendarme Caillou era um homem metódico. Lambendo constantemente o bico do lápis, recolheu e registrou as declarações de Ernestine, Louis e do Dr. Mathieu, todos sentados em torno da mesa.

      - Não há dúvida - sentenciou, quando o médico assinou o seu depoimento - de que foi cometido um assassinato. O principal suspeito é evidentemente o inglês louro que esteve aqui e desapareceu no carro de madame. Vou comunicar o caso à sede em Égletons.

      E, de bicicleta, desceu a encosta.

     

      CLAUDE Lebel telefonou de Paris às 6:30 da tarde:

      - Alors, Valentin?

      - Ainda nada - respondeu Valentin. - Aquele estuporado motorista de táxi que o levou de Égletons na sexta-feira de manhã ainda não apareceu... Espere um momento. - Lebel ouviu o seu interlocutor conferenciar com alguém que falava rapidamente. Depois a voz de Valentin fez-se de novo ouvir: - Houve um assassinato com os diabos!

      - Onde? - perguntou Lebel, subitamente interessado. - Num castelo das imediações. Acaba de chegar o relatório do policial da aldeia.

      - Quem é a pessoa assassinada?

      - Um momento... É a baronesa De la Chalonnière - Caron viu Lebel empalidecer.

      - Valentin, preste atenção foi ele. Já partiu do castelo?

      - Já. Partiu esta manhã, no Renaut da baronesa. O jardineiro descobriu o cadáver esta tarde.

      - Ordene um alerta nacional para encontrar o carro - disse Lebel. - Não é necessário guardar segredo. Agora trata-se claramente da caça a um assassino. - Desligou. - Meu Deus, estou perdendo o jeito! A baronesa De la Chalonnière constava da lista dos hospedes do Hôtel du Cerf na noite que o Chacal lá passou.

     

      UM policial de ronda encontrou o carro numa rua transversal de Tulle as 7:30 da tarde. O comissário de Auvergne telefonou a Lebel.

      - A cerca de quinhentos metros da estação de trem - especificou.

      - A que horas partiu de Tulle para Paris o trem da manhã e qual a hora de chegada à Gare d'Austerlitz? Depressa  pelo amor de Deus!

      - Só há dois trens por dia - respondeu Valentin. – o da manhã chega a Paris às... aqui está, às oito e dez desta noite.

      Lebel deixou o telefone suspenso e saiu correndo do gabinete gritando a Caron que o seguisse.

      O trem entrou na Gare d'Austerlitz pontualmente no horário. Um sacerdote alto e grisalho foi um dos primeiros passageiros a chegar à praça de táxis e a meter as suas três malas num Mercedes. O motorista ligou o taxímetro e dirigiu-se para a saída. Quando chegou à rua, transpuseram o portão de entrada três carros-patrulhas e duas “ramonas”, de sereia a tocar, que pararam em frente das arcadas de acesso à estação.

      - Estão atarefados, esta noite - comentou o motorista. - Para onde, Monsieur l'Abbé? O clérigo indicou-lhe o endereço de um pequeno hotel do Quai des Grands-Augústins. .

      As nove da noite, Claude Lebel regressou ao seu gabinete, onde encontrou um bilhete pedindo-lhe que telefonasse ao comissário Valentin. A ligação foi feita em cinco minutos. Enquanto Valentin falava, Lebel tomava notas.

      - Valentin, os seus rapazes podem descansar. Ele está no nosso território.

            -Tem certeza de que é o pastor dinamarquês? - pergunto Valentin.

      - É, sem dúvida - confirmou Lebel. - Desfez-se de uma da malas, mas as outras três condizem perfeitamente.

      Desligou.

      - Desta vez é um sacerdote dinamarquês – disse amargamente a Caron.-Mande-me vir o carro. São horas do aperto da noite.

      Durante quarenta minutos, o grupo reunido no ministério ouviu uma descrição da pista que partia da clareira da floresta.

      - Resumindo - disse friamente Saint-Clair, quando Lebe terminou a sua exposição -, o assassino encontra-se agora em Paris com um novo nome e um novo rosto. Parece ter falhado mais um vez, comissário.

      - Deixemos as recriminações para mais tarde - interveio ministro. -Quantos dinamarqueses estão em Paris esta noite?

      - Provavelmente várias centenas, Monsieur le Ministre.

      - Podemos proceder a uma verificação de todos eles?

      - Só de manhã, quando as fichas de registro nos hotéis chegarem a Prefeitura - respondeu Lebel.

      - Eu mando fazer uma investigação em todos os hotéis à meia-noite, às duas e às quatro da manhã - ofereceu o prefeito da cidade.

      - Nestas circunstâncias, meus senhores, só há uma coisa a fazer -declarou o ministro. - Vou solicitar outra entrevista ao presidente e pedir-lhe que cancele todos as aparições em público até encontrarmos o homem e nos desfazermos dele. Entretanto, todos os dinamarqueses que se tenham registrado esta noite em hotéis de Paris serão investigados pessoalmente logo de manhã.

      - O que não consigo engolir - disse Lebel a Caron, mais tarde - é o fato de eles teimarem em que se trata simplesmente de sorte dele e estupidez nossa. Ele tem, realmente, tido sorte e nós temos tido azar e cometido erros. Escapou-nos duas vezes por uma questão de horas. Uma, safou-se de Gap por uma unha negra, com um carro pintado de outra cor. Agora, parte do castelo e assassina a amante horas depois do Alfa Romeo ter sido encontrado. E acontece sempre na manhã seguinte a eu dizer na reunião que o temos no papo. Lucien, meu amigo, vou servir-me dos meus poderes ilimitados para organizar uma pequena escuta telefônica.

      Encostado ao parapeito da janela, Lebel contemplava o Sena, que corria suavemente na direção do Quartier Latin, onde as luzes cintilavam fulgurantemente e os risos ecoavam sobre o rio banhado de luz. A trezentos metros de distância, outro homem debruçava-se da janela e contemplava a noite estival, o olhar pensativamente fixo nos contornos maciços da sede da Polícia Judiciária, situada à esquerda das torres da Notre-Dame, iluminadas por projetores.

      Fumava um cigarro inglês de filtro king-size e o rosto jovem destoava da cabeleira grisalha que o coroava. Enquanto os dois homens olhavam, sem o saber, na direção um do outro, os carrilhões das igrejas de Paris anunciaram o dia 22 de Agosto.

     

      Anatomia de Um Assassinato

      CLAUDE Lebel acabara de adormecer quando Caton o sacudiu:

      - Chefe, tive uma idéia! O Chacal tem um passaporte dinamarquês, não tem?

      - Continue - pediu Lebel, fazendo um esforço para clarificar a mente obnubilada.

      - Bem, ou o forjou ou o roubou. Mas como mudou a cor do cabelo, o mais provável é tê-lo roubado.

      - Razoável. Prossiga.

      - A parte as suas viagens a Paris e Bruxelas, em Julho, a sua base tem sido Londres. Portanto, as probabilidades parecem indicar que o roubou numa dessas três cidades. Que faria um dinamarquês ao descobrir que perdera ou lhe fora roubado o passaporte? Iria ao seu consulado.

      Lebel levantou-se, a custo, da cama.

      - As vezes, meu caro Lucien, penso que há de ir longe. Ligue-me para a casa do superintendente Thomas e depois para os consulados dinamarqueses em Paris e Bruxelas. Lebel e Caron passaram uma hora ao telefone persuadindo os homens a regressarem aos respectivos gabinetes.

      As quatro da manhã, o chefe da Polícia telefonou informando que haviam sido reunidas quase mil fichas de registro em hotéis preenchidas por dinamarqueses e que a busca começara.

      As seis horas telefonou um técnico da DST a quem Lebel transmitira instruções logo a seguir à meia-noite, informando que fora descoberta uma pista. Lebel e Caron meteram-se no carro, percorreram as ruas matinais a caminho da DST e escutaram uma gravação.

      Começou por um estalido alto, seguido por uma série de crepitações, enquanto alguém discava um número. Depois ouviu-se o retinir de um telefone e outro estalido quando o auscultador foi levantado:

      - Allo?

      - Ici Jacqueline - respondeu uma voz feminina.

            - Ici Valmy - redarguiu a voz de um homem.

      A mulher informou rapidamente:

      - Eles sabem que ele é um pastor dinamarquês. Estão examinando as fichas de registro em hotéis de todos os dinamarqueses que se encontram em Paris.

      - Merci - agradeceu a voz masculina, e ambos desligaram.

      - Sabe o numero para onde ela telefonou? – perguntou Lebel.

      - Sei. Deduzimos pelo tempo levado pelo disco para regressar ao zero. Ligou para Inválidos, cinco-nove-zero-um.

      - Tem o endereço? O homem entregou-lhe uma folha de papel, que Lebel leu - Venha, Lucien. Vamos fazer uma visita a Monsieur Valmy.

      Bateram a porta as sete horas. O professor aposentado, que estava preparando o café da manhã num bico de gás, franziu a testa baixou o fogo e atravessou a sala para abrir a porta.

      Deparou-se com quatro homens. Os dois fardados revelavam ímpetos de violência, mas o indivíduo baixo, de aspecto pacato, ordenou-lhes com um gesto que permanecessem onde estavam.

      - Colocamos o seu telefone sob escuta - disse.

      O professor não deixou transparecer qualquer emoção.

      - Posso vestir-me? - perguntou.

      - Com certeza.

      Demorou-se poucos minutos, vigiado pelos polícias fardados o comissário permaneceu no local, depois dos outros terem partido, examinando os pertences de Valmy. As 7:10 o telefone tocou. Lebel atendeu, hesitante:

      - Allo?

      Respondeu-lhe uma voz inexpressiva:

      -Ici Chacal.

      Lebel pensou desesperadamente.

      - Ici Valmy.- Não soube que mais dizer.

      -  Novidades? - perguntou a voz do outro extremo da linha.

      - Nenhuma. Perderam o rastro.

      A testa do comissário estava molhada de suor. O outro desligou Lebel pousou o auscultador e precipitou-se pela escada abaixo, em direção ao automóvel.

      - Para o comissariado - gritou ao motorista.

      Através das paredes de vidro de uma cabina telefônica do átrio do pequeno hotel junto ao Sena, o Chacal contemplava o exterior de olhos fixos, perplexo. Nenhuma novidade? Deviam ter encontrado o motorista de táxi que o levara a La Haute Chalonnière. Deviam ter encontrado o cadáver no castelo e o Renault desaparecido em Tulle. Deviam ter interrogado o pessoal na estação. Deviam...

      Saiu apressado, da cabina.

      - A minha conta, por favor - pediu ao recepcionista. - Desço daqui a cinco minutos.

      O telefonema do superintendente Thomas chegou quando Lebel e Caron entravam no gabinete às 7:30.

      - Desculpe ter demorado tanto - disse o detetive britânico. - Foi um inferno para acordar o pessoal do Consulado Dinamarquês. Você tinha toda a razão. No dia 14 de Julho o pastor Per Jensen, de Copenhagen, comunicou o desaparecimento do seu passaporte. Descrição: um metro e oitenta de altura, olhos azuis e cabelo grisalho.

      - É esse, obrigado, superintendente.

      Decorridos segundos, Lebel telefonava ao chefe da Polícia. As quatro "ramonas”, chegaram à porta do hotel do Quai des Grands-Augustins às 8:30.

      - Lamento, Monsieur le Commissaire - disse o proprietário ao detetive de casaco amarrotado que dirigia a busca -, o pastor Jensen deixou o hotel há uma hora.

            O Chacal tomara um táxi para a Gare d'Austerlitz, onde chegara ao fim da tarde anterior, partindo do princípio de que naquele momento já não deveriam procurá-lo naquele local.

      Deixou a mala que continha a arma e a roupa de André Martin no depósito de bagagem e ficou apenas com a mala da roupa e dos documentos do estudante americano Marty Schulberg e a maleta com o material de maquiagem. Com essa bagagem e envergando ainda o terno cinzento, mas com uma camisa de gola alta ocultando o colarinho, inscreveu-se num hotel barato, perto da estação.

      O recepcionista deixou-o preencher pessoalmente a ficha, que não conferiu sequer com o passaporte. Consequentemente o registro não foi sequer feito em nome de Per Jensen.

      Uma vez no quarto, o Chacal lançou mãos à obra. Lavou a cabeça para remover o tom grisalho do cabelo, que pintou de castanho como o de Marty Schulberg. Conservou as lentes de contato azuis, mas substituiu os óculos de aros dourados pelos de aros grossos do americano. Enrolou e meteu na mala o vestuário e o passaporte do pastor Jensen. Depois calçou os mocassins e as luvas e vestiu os Jeans, a camiseta e o blusão do universitário americano.

      A meio da manhã, com o passaporte americano num dos bolsos do peito e francos franceses no outro, estava pronto para sair. Fechou a mala contendo o que restava do pastor Jensen no guarda-roupas cuja chave atirou ao lixo. Desceu pela escada de emergência. Poucos minutos depois, deixava a maleta de mão no depósito de bagagem da Gare d'Austerhtz e regressava de táxi ao Quartier Latin.

      Sentado na esplanada de um café, perguntou a si mesmo onde passaria a noite. Lebel não tardaria a desmascarar o pastor Jensen, e ele mesmo não dava a Marty Schulberg mais do que um dia de vida. De súbito, ao ver passar dois homens, teve uma idéia. Saiu do café e fez algumas aquisições numa loja de artigos de beleza.

     

      LEBEL e Caron ligaram de novo para Londres às dez horas, não obstante soltar um gemido ao ouvir o que lhe era pedido, Thomas respondeu cortesmente que faria tudo quanto pudesse. Quando desligou, chamou o seu inspetor principal, que participara na investigação, e começaram a telefonar a todos os consulados de Londres, pedindo listas de nomes de pessoas que, a partir de 16 de Junho, tivessem comunicado que haviam perdido ou lhes fora roubado o passaporte.

     

      A hora da reunião no ministério fora antecipada para as duas da tarde. O relatório de Lebel foi recebido com frieza.

      - Maldito homem! - interrompeu-o o ministro. -Tem a sorte do Diabo.

      - Não, Monsieur le Ministre, não tem sido exclusivamente sorte. Ele tem sido mantido constantemente informado dos nossos progressos. Esta manhã o perdemos por eu ser incapaz de imitar Valmy ao telefone. Nas duas primeiras ocasiões, foi avisado às primeiras horas da manhã, depois de eu ter informado esta assembléia do que se passava.

      - Julgo lembrar-me de que já fez anteriormente essa insinuação - observou o ministro friamente. - Espero que possa fundamentá-la.

      Como resposta, Lebel colocou sobre a mesa um pequeno gravador e apertou o botão que estabelecia a ligação. Quando a conversa gravada terminou, o coronel Saint-Clair estava cor de cinza.

      - De quem era essa voz? - indagou finalmente o ministro.

      Lebel permaneceu em silêncio. Saint-Clair ergueu-se lentamente.

      -.Lamento ter de informa-lo, Monsieur le Ministre, que era a voz de... de uma amiga minha. Reside comigo. Com licença.

      Saiu, a fim de regressar ao Palácio do Eliseu e redigir o seu pedido de demissão.

      - Muito bem, comissário, pode continuar - disse o ministro.

      Lebel reatou a exposição.

      - Espero – concluiu - dispor esta noite de uma lista de outros passaportes desaparecidos que se adaptem à descrição do Chacal. Amanhã devo receber fotografias dos titulares.

      - Pela minha parte - disse o ministro -, posso comunicar o que se passou na minha entrevista com o presidente De Gaulle. Ele recusou-se terminantemente a modificar minimamente sequer o seu programa. No entanto, a proibição de publicidade foi parcialmente retirada. Vamos dar aos jornais da noite a informação de que cremos que o homem que assassinou a baronesa De la Chalonnière está escondido em Paris. Quando o comissário Lebel estiver seguro da nova identidade de Chacal, damos o nome e a fotografia aos jornais,  à rádio e à televisão. Ao mesmo tempo, todos os polícias de Paris e todos os homens da CRS percorrerão as ruas examinando os documentos de todas as pessoas. Quanto ao palácio propriamente dito, preciso de uma lista completa de todos os passos que o presidente tenciona dar a partir de agora. A Brigada Criminal – o ministro fitou o comissário Bouvier - mobilizará todos os contatos do mundo do crime a seu soldo para ver se encontram o nosso homem.

      Maurice Bouvier acenou sombriamente com a cabeça. Já tivera ocasião de assistir a algumas caçadas ao homem, mas aquela ia assumir proporções gigantescas.

      - E é tudo - concluiu o ministro. - Comissário Lebel, tudo quanto queremos do senhor agora é o nome, a descrição e a fotografia que nos prometeu. Depois disso, dou seis horas ao Chacal.

      - Na realidade, dispomos de três dias – declarou Lebel, e os outros fitaram-no, surpresos. - Há uma semana que desconfiava, mas agora tenho certeza. Porque o Chacal não se transformou imediatamente em pastor Jensen quando saiu de Gap? Porque passou uma semana na França matando o tempo?

      - Bem, porquê? - perguntou alguém.

      - Porque escolheu o seu dia – respondeu Lebel. - Comissário Ducret, o presidente tem alguns compromissos fora do palácio hoje, amanha ou sábado? -Ducret abanou a cabeça. - E que dia é domingo 25 de Agosto? - perguntou Lebel.

      Ouviu-se um suspiro à volta da mesa, como vento a soprar através de um trigal.

      - Claro - murmurou o ministro. - o Dia da Libertação.

      - Precisamente - confirmou Lebel.- Ele sabe que há um dia do ano que o general De Gaulle nunca passará fora daqui. É desse dia que o assassino tem estado à espera.

      - Nesse caso, está nas nossas mãos - declarou o ministro convictamente. - Não existe nenhum canto de Paris onde ele possa se esconder. Comissário Lebel, arranje-nos o nome desse homem.

      Quando se preparavam para sair, o ministro chamou Lebel perguntou-lhe:

      - Como soube que tinha de colocar o telefone do coronel Saint-Clair sob escuta?

      Lebel, que se encontrava à porta, virou-se e encolheu os ombros.

      - Não soube. Por isso, a noite passada, coloquei o telefone de todos sob escuta. Boa tarde, meus senhores.

      

      ERAM oito horas da noite quando o superintendente Thomas telefonou de Londres a Caron. A parte os negros, os asiáticos e os baixos, oito turistas estrangeiros do sexo masculino tinham perdido o passaporte em Londres desde meados de Junho. Enumerou todos cuidadosamente, indicando nomes, números de passaporte e descrições. Lebel e Caron começaram, então, a excluir os improváveis.

      Três tinham perdido o passaporte em períodos durante os quais o Chacal não se encontrava em Londres. Um quarto era muito alto: um metro e noventa e cinco; outro pesava cento e dez quilos, e outro tinha mais de setenta anos.

      - E os dois últimos? - perguntou Lebel.

      - Um é norueguês e o outro americano – respondeu Caron. - Ambos altos, de ombros largos e com idades compreendidas entre os vinte e os cinqüenta anos. Mas o norueguês comunicou que o passaporte lhe escorregou do bolso quando caiu na Serpentine, ao andar de barco. O americano disse que a sua maleta de mão contendo o passaporte tinha sido roubada no Aeroporto de Londres.

      - Thomas que me envie todos os detalhes acerca do americano - ordenou Lebel. - E agradeça-lhe outra vez todos os seus esforços.

      Houve uma segunda reunião no ministério às dez horas dessa noite. Uma hora antes, todos os departamentos relacionados com a segurança do Estado tinham recebido cópias da descrição de Marty Schulberg, atualmente em Londres.

      Procurava-se, por assassinato, um homem que se fazia passar pelo jovem americano. O ministro levantou-se.

      - Meus senhores, apesar das mudanças de identidade do assassino e de uma constante fuga de informações, a partir desta sala, o comissário Lebel conseguiu descobrir a pista do nosso homem. Devemos-lhe os nossos agradecimentos.- Inclinou a cabeça a Lebel que pareceu embaraçado. - No entanto, a partir de agora a tarefa de apanha-lo deve competir a todos nós. Permita que o felicite, comissário. Não precisaremos da sua valiosíssima assistência nas horas que se seguirão. A sua tarefa foi bem cumprida. Obrigado.

            Lebel pestanejou diversas vezes e levantou-se.

      Inclinou a cabeça à assembléia de homens poderosos que lhe sorriam e saiu da sala. Pela primeira vez em dez dias, o comissário Claude Lebel foi a casa. No momento em que rodava a chave na fechadura e ouvia as imprecações estridentes da mulher, o relógio batia a meia-noite: era 23 de Agosto.

           

      O Chacal entrou no café uma hora antes da meia-noite. Estava escuro e teve dificuldade em distinguir a forma da sala. Havia um balcão comprido, ao longo da parede do lado esquerdo atrás do qual se enfileirava uma série de garrafas e espelhos iluminados.

      O barman fitou-o curiosamente quando a porta se fechou atrás dele. As conversas interromperam-se nas mesas mais próximas da porta enquanto os clientes o examinavam, e o silêncio se alastrou pela sala, à medida que outros se voltavam para admirar a figura alta e atlética parada à porta. Trocaram-se alguns murmúrios.

      O Chacal dirigiu-se para um tamborete desocupado que viu ao fundo do balcão, no qual se sentou. Ouviu sussurrar atrás de si:

      - Oh regarde-moi ,ca! Que músculos, querido - o barman aproximou-se lentamente, os lábios carminados abertos num sorriso coquette: - Bonsoir... monsieur.

      - Donnez-moi un Scotch.

      O barman afastou-se, como se valsasse. O cliente ao lado do Chacal tinha cabelo louro metálico, longas pestanas pintadas com rimmel e lábios de um delicado tom de coral.

      - Tu m'mvites? - perguntou numa voz aflautada e feminina. O Chacal abanou a cabeça. Aguardou e pouco depois da meia-noite fez a sua escolha. Estivera sendo observado por dois homens de meia-idade sentados ao fundo da sala. Um tinha olhos pequenos e papadas de gordura que lhe caíam sobre o colarinho; o outro era magro e elegante, com madeixas de cabelo cuidadosamente coladas ao crânio calvo. Usava, atado ao pescoço, um esvoaçante lenço de seda.

      Devia estar relacionado com o mundo das artes, pensou. O gordo chamou o barman com um aceno de cabeça e segredou-lhe algumas palavras ao ouvido. O homem regressou ao balcão e murmurou a Chacal:

      - Monsieur pergunta se o acompanha numa taça de champanhe.

      O Chacal pousou o copo de whiskey e respondeu claramente:

      - Diga a monsieur que ele não me atrai. – Depois escorregou do banco, pegou no copo e dirigiu-se para a mesa do outro homem de meia-idade. -Permite-me que me sente aqui? Ele está embaraçando-me.

      O homem ligado às artes quase desmaiou de prazer. Declarou chamar-se Jules Bernard e perguntou-lhe onde estava instalado. Simulando embaraço, o Chacal confessou que não tinha onde ficar e estava sem dinheiro. Disse chamar-se Martin e informou ao outro que era estudante em maré de azar.

      Bernard quase não acreditava na sorte que o bafejara. Nem de propósito, disse ao seu jovem amigo, tinha um belo apartamento. Vivia sozinho e ficaria encantado se Martin quisesse ficar em sua casa enquanto estivesse em Paris.

      O Chacal aceitou e manifestou efusivamente a sua gratidão.

            Pouco antes de saírem do bar, dirigiu-se ao lavabo, onde aplicou rimmel nas pestanas, empoou as faces e pintou a boca, para não ser reconhecido caso fossem intimados a parar por homens da CRS ou da Polícia.

      No apartamento de Bernard, o Chacal insistiu em passar a noite no sofá da sala e Bernard conteve o seu desejo. Era evidente que ia ser uma corte delicada, mas excitante. Durante a noite, o Chacal passou revista ao frigorifico, na cozinha bem equipada, e verificou que havia alimentos suficientes para uma pessoa durante dois dias, mas não para duas.

      Passaram a manhã em casa conversando. O Chacal insistiu em ver o noticiário do meio-dia na televisão. A primeira notícia relacionava-se com a caça ao assassino de Mme La Baronne de la Chalonnière, morta dois dias antes. No momento seguinte, enchia a tela um rosto atraente, de cabelo castanho e óculos de aros grossos - a fotografia do assassino, segundo informou o locutor. O assassino fazia-se passar por Marty Schulberg, estudante americano. Quem tivesse conhecimento de... Bernard, que estava sentado no sofá, ergueu os olhos.

      O locutor dissera que os olhos de Schulberg eram azuis; mas os olhos que o fitavam, enquanto os dedos de aço lhe apertavam a garganta, eram cinzentos... 

      Poucos minutos depois, a porta do roupeiro fechava-se e ocultava as feições disformes de Jules Bernard. O Chacal pegou uma revista e preparou-se para esperar dois dias.

     

      DURANTE esses dois dias, Paris foi alvo de uma das maiores buscas de todos os tempos. Foram visitados todos os hotéis e conferidas todas as listas de registro de hóspedes. Não escapou à busca nenhuma pension, casa de aluguel de quartos, bordel ou hospedaria.

      As casas de todos os simpatizantes conhecidos da OAS foram invadidas e rebuscadas. Nas ruas, nos táxis e nos ônibus milhares de pessoas foram detidas para mostrar a documentação.

      Levantaram-se barreiras em todos os principais pontos de acesso a Paris. Participavam na operação cem mil homens de várias especialidades e categorias, desde detetives a soldados e gendarmes.

      Na noite de 24 de Agosto, Claude Lebel recebeu por telefone ordem para se apresentar a Roger Frey, o ministro do Interior.

      Com ar fatigado e tenso, Roger Frey indicou uma cadeira ao comissário.

      -Não conseguimos encontrá-lo - confessou. - Desapareceu da face da terra.

      - Mas ele está aqui, em qualquer lugar – afirmou Lebel. - Que providências se tomaram para amanhã?

      - O presidente não permite nenhuma alteração ao itinerário planejado. Por isso, amanha reacenderá a Chama Eterna sob o Arco do Triunfo, às dez da manhã. Missa cantada em Notre-Dame, às onze. Após uns momentos de meditação no memorial aos resistentes martirizados, no Forte de Mont-Valérien, ao meio-dia e meia hora regresso ao palácio para almoço e sesta. As quatro da tarde, em frente da Gare Montparnasse, entrega de medalhas a dez veteranos da Resistência cujos serviços vão ser tardiamente reconhecidos.

      - Que medidas serão tomadas para controlar a multidão? - perguntou Lebel.

      - As multidões serão mantidas mais afastadas do que nunca. Ergueremos barreiras de aço várias horas antes de cada cerimônia; depois, a área no interior da barreira será revistada de alto a baixo incluindo os esgotos. Durante cada cerimônia, haverá vigias armados em todos os telhados. Ninguém transporá as barreiras, a não ser funcionários e os que participarem nas cerimônias. Tomamos mesmo algumas providências extremas. Todos os sacerdotes que participarem na missa em Notre-Dame serão revistados, para nos certificarmos de que não têm armas escondidas. A Policia e a CRS usarão tarjetas especiais para as lapelas, que só serão entregues amanhã de madrugada para evitar que ele tente passar por membro da segurança, e todos os passes da imprensa e diplomáticos vão ser mudados.

      - Passamos as últimas vinte e quatro horas colocando secretamente vidros à prova de bala no Citroen do presidente. Além disso, todos que tiverem de se aproximar a menos de duzentos metros do presidente serão revistados. Sem exceção. Tem alguma idéia?

      Lebel torceu as mãos entre os joelhos, como um colegial tentando explicar-se ao professor.

      - Não creio - disse por fim - que ele se arrisque a ser morto. Se tivesse alguma dúvida quanto ao seu plano, neste momento já teria desistido. Portanto, deve ter qualquer coisa na manga. Levantou-se e começou a percorrer o gabinete de um extremo ao outro. - Deve ter tido uma idéia que ainda não ocorreu a mais ninguém. Uma bomba detonada por controle à distância ou uma arma. Mas uma bomba descobre-se com facilidade, portanto, é uma arma. Foi por isso que entrou na França de automóvel. Provavelmente trouxe a arma soldada ao chassi ou no interior da carroçaria.

      - Conseguirá transpor as barreiras com uma arma? - perguntou o ministro.

      Lebel deteve-se.

      - Não sei. Mas uma coisa é certa: onde quer que se encontre, amanhã terá de sair, e quando sair terá de ser identificado pelo que é. Para isso terá de se aplicar o velho adágio dos detetives: olhos bem abertos. Nada mais posso sugerir relativamente a medidas de segurança, Monsieur le Ministre. Por isso, autorize-me a andar pelas imediações de cada cerimônia e tentar localizá-lo? É a única coisa que resta fazer.

      O ministro sentiu-se decepcionado. Esperara que o detetive tivesse alguma inspiração brilhante, e este limitava-se a recomendar-lhe que mantivesse os olhos bem abertos. Ergueu-se e respondeu friamente:

      - Com certeza. Queira fazer isso mesmo, Monsieur Le Comissário.

     

      MAIS tarde, nessa mesma noite, o Chacal terminou os preparativos no quarto de Jules Bennard. Sobre a cama dispôs o par de sapatos pretos cambados, as luvas de lã cinzenta, as calças, a camisa de colarinho aberto, o comprido capote militar com as fitas de campanha e o barrete preto do veterano de guerra francês Andre Martin.

      Atirou para cima do vestuário os documentos falsos que outorgariam ao portador daquela roupa a sua nova identidade. Ao lado colocou a espécie de arnês de lona que mandara fazer em Londres, os tubos de aço contendo a espingarda e o fragmento de borracha preta onde estavam ocultas as cinco balas explosivas.

      Tirou dois cartuchos e, cuidadosamente, retirou-lhes as balas. Extraiu a cordite do interior de cada cartucho e guardou-a, lançando as balas inutilizadas ao lixo. Ainda lhe restavam três cartuchos. Como não se barbeava havia dois dias, cobria-lhe o queixo uma penugem dourada que raparia imperfeitamente com a navalha que comprara ao chegar a Paris.

      Na prateleira do banheiro encontravam-se também os frascos de loção de barbear que continham tinta para o cabelo e diluente. Já removera o tom castanho do cabelo de Marty Schulberg.

      Sentado diante do espelho da casa de banho, cortou o seu próprio cabelo louro até os tufos ficarem espetados, num irregular corte em escova. Procedeu à última revisão, para se certificar de que todos os preparativos para a manhã seguinte estavam em ordem, após o que fez um omelete e viu um espetáculo de variedades na televisão, até serem horas de se deitar.

     

      No domingo 25 de Agosto de 1963, o calor era sufocante. Paris estava em festa para celebrar a sua libertação dos Alemães, dezenove anos atrás, mas setenta e cinco mil franceses suavam nos seus uniformes de sarja azul para manter os outros em ordem. As cerimônias registravam uma assistência maciça. No entanto muitos dos que tinham acorrido às ruas mal vislumbravam o chefe do Estado quando este passava entre sólidas falanges de policiais.

      Além de rodeado por oficiais e funcionários públicos, os quais na sua satisfação por terem sido convidados para a função, nem reparavam que a sua única característica comum era a altura e que cada um deles servia, à sua maneira, de escudo ao presidente, o general De Gaulle estava também cercado pelos seus quatro guarda-costas. Estes eram peritos em todas as formas de combate. Possuíam peito e ombros largos e musculosos e, quando retesados, os dorsais forçavam-lhes os braços para os lados, de modo que as mãos lhes pendiam bem afastadas do corpo.

      Cada um deles trazia uma automática sob a axila esquerda, o que realçava a sua atitude de gorila, e caminhava com as mãos semiabertas, prontas para sacarem a arma do coldre e começarem a disparar ao mínimo sinal de perigo. Mas não se verificou qualquer indício de alarme.

      A cerimônia no Arco do Triunfo decorreu exatamente como estava planejada, enquanto ao longo da extensão do grande anfiteatro de telhados sobranceiros à Place de l'Étoile centenas de homens com binóculos e espingardas vigiavam, ocultos atrás das chaminés.

      Em Notre-Dame passou-se o mesmo. Enquanto o cardeal-arcebispo de Pans oficiava, dois homens munidos de espingardas vigiavam, empoleirados no recesso do órgão. Entre a multidão de crentes infiltrara-se um grande número de policiais à paisana, que não se ajoelhavam nem fechavam os olhos, embora rezassem tão fervorosamente como os outros.

      As suas palavras, porém, eram as da velha prece dos policiais: "Por favor, meu Deus, enquanto eu estiver de serviço, não."

      A atmosfera em Mont-Valérien parecia saturada de eletricidade, mas o presidente, se o notou, não o demonstrou. Os homens da segurança tinham calculado que o assassino poderia tentar a sua sorte naquele arrabalde operário, enquanto o carro do general abria caminho através das ruas estreitas de acesso ao forte.

      De fato, porém, naquele momento o Chacal encontrava-se em outro lugar.

     

      PIERRE Valrémy estava farto. Tinha calor, a camisa colava-se às costas, a bandoleira da carabina automática esfolava-lhe o ombro e a sede atormentava-o. Começava a arrepender-se de ter ingressado na CRS quando perdera o emprego na fábrica de Rouen.

      Ninguém lhe falara da vida na caserna, nem dos treinos, nem da camisa de sarja grossa, nem das horas passadas à esquina de ruas, sob frio cortante ou calor tórrido, a espera da Grande Prisão que nunca acontecia. E agora Paris, a sua primeira viagem fora de Rouen.

      Esperara poder ver a Cidade das Luzes. Mas não havia chance com o sargento Barbichet a comandar o pelotão. "Vê aquela barreira para conter a multidão, Valrémy? Bem, coloque-se junto dela, vigie-a e não deixe passar ninguém a não ser que esteja autorizado, entendeu? É uma missão de responsabilidade, meu rapaz."

      Valrémy olhou para trás, contemplando a Rue de Rennes. A barreira que estava guardando fazia parte de uma série de barreiras que se estendiam através da rua, de um prédio para outro, a cerca de duzentos e cinqüenta metros da Place du 18 Juin. A fachada da estação de trens ficava outros duzentos metros para lá da praça. Via homens no átrio onde se realizaria a cerimônia, assinalando os lugares onde ficariam os antigos veteranos, os oficiais e a banda da Guarda Republicana.

      Ainda faltavam três horas. Começava a juntar-se público ao longo das barreiras. Como era possível agüentarem aquele calor só para verem uma multidão de cabeças a trezentos metros de distância e saberem que De Gaulle se encontrava no meio delas! Havia umas cem pessoas espalhadas ao longo das barreiras quando viu o velho.

      Manquejava penosamente pela rua abaixo, como se nunca mais conseguisse chegar ao seu destino. Tinha o barrete preto manchado de suor e o capote comprido caía-lhe abaixo do joelho. Pendia-lhe do peito uma fiada de medalhas. Vários dos presentes lançaram-lhe olhares compadecidos.

      Aqueles velhos excêntricos traziam sempre as suas medalhas como se fosse a única coisa que tinham na vida, pensou Valrémy. Bem, e talvez fosse, de fato, a única coisa que restava a alguns eles. Especialmente quando tinham perdido uma perna. Talvez, continuou Valrémy a pensar, enquanto via o velho manquejar pela rua abaixo, tivesse sido um bom corredor quando era novo, quando tinha duas pernas para correr... Agora parecia uma velha gaivota estropiada, como a que vira uma vez, numa visita à beira-mar, imagine, ter de passar o resto dos dias apoiado numa muleta de alumínio!

      O velho aproximou-se dele.

      - Je peux passer? - perguntou timidamente.

      - Mostre-me os seus documentos, vovô.

      O antigo combatente de guerra rebuscou no interior da camisa que estava precisando ser lavada, e retirou dois cartões. Um era o bilhete de identidade de André Martin, cidadão francês de cinqüenta e três anos de idade. O outro cartão pertencia ao mesmo homem e tinha escrita na parte superior, as palavras: Mutilé de Guerre.

      Valremy examinou as fotografias de ambos os cartões e depois ergueu os olhos e pediu:

      - Tire o barrete - e o velho obedeceu. Valrémy comparou o rosto com o das fotografias. Era o mesmo. O homem que tinha à sua frente parecia doente. Cortara-se ao barbear-se, e aplicara pedaços de papel higiênico sobre os cortes. O rosto tinha um tom terroso e estava molhado de suor. Valrémy devolveu-lhe os cartões.

      - Para que quer ir lá para baixo?

      - Moro lá - respondeu o velho. - Tenho um sótão.

      Valrémy pediu-lhe de novo os cartões. O endereço indicado no bilhete de identidade era 154, Rue de Rennes, Paris. O agente da CRS olhou para o prédio que se erguia acima da sua cabeça, a porta era mencionada pelo número 132. O 154 devia realmente ficar mais abaixo.

      - Está bem, passe. Mas não arranje nenhum problema.

      O velho sorriu, guardou os cartões e quase tropeçou. Valrémy estendeu a mão para ampará-lo.

      - O meu velho parceiro vai receber a sua medalha. Eu recebi a minha há dois anos... - Bateu na Médaille de la Résistance, que tinha ao peito.

      Enquanto o velho manquejava pela rua abaixo, Valrémy virou-se para deter outro homem que estava tentando passar.

      -E, acabe com isso. Fique atrás da barreira.

      A última coisa que Valrémy viu do velho soldado foi um fragmento do capote desaparecendo num portal, ao fundo da rua.

      Mme Berthe ergueu os olhos, sobressaltada, quando a sombra se projetou sobre ela. Fora um dia estafante, com policiais revistando todos os quartos. Felizmente todos os inquilinos, à exceção de três, estavam fora, passando férias de Verão. Depois dos policiais partirem, sentara-se à entrada da porta a tricotar calmamente. Não estava de todo interessada na cerimônia que se efetuaria do outro lado da praça, no átrio da estação.

      - Excusez-moi, madame... Importa-se... importa-se de me dar um copo de água? Está um calor terrível e este tempo à espera da cerimônia deu-me sede.

      Ela observou o rosto e a figura de um homem idoso, com um capote como o seu marido há muito falecido usara, com medalhas suspensas sob a lapela esquerda. O homem apoiava-se pesadamente numa muleta e do capote saía-lhe apenas uma perna. Tinha o rosto encovado e coberto de suor.

      - Oh mon pauv' monsieur! Andando por aí assim, com este calor! Ainda faltam duas horas para a cerimônia. Veio cedo. Entre, Dirigiu-se para a porta envidraçada do seu cubículo, que ficava nos fundos, para ir buscar um copo de água.

      O antigo combatente seguiu-a, manquejando. O barulho da água correndo da torneira da cozinha não lhe permitiu ouvir o ruído da porta fechando-se no vestíbulo exterior. Quase nem sentiu os dedos da mão esquerda do homem contornarem-lhe o maxilar por trás. E o estalar dos nós dos dedos sob o mastóide, do lado direito da cabeça, imediatamente atrás da orelha, passou completamente despercebido.

      O seu corpo inerte deslizou silenciosamente para o chão. O Chacal abriu o capote e desabotoou a espécie de arnês que lhe mantivera a perna direita presa sob as nádegas. Quando endireitou a perna, o rosto contorceu-se de dor. Aguardou alguns minutos, à espera que o sangue voltasse a circular na barriga da perna e no tornozelo, antes de se apoiar nela.

      Cinco minutos depois, Mme Berthe estava amarrada de pés e mãos com corda da roupa, encontrada debaixo da pia, e tinha a boca amordaçada com uma larga tira de fita adesiva. O Chacal meteu-a na despensa e fechou a porta. Uma revista à sala permitiu-lhe encontrar as chaves dos andares numa gaveta da mesa. Abotoou o capote, pegou a muleta - a mesma em que se apoiara nos Aeroportos de Bruxelas e Milão, doze dias antes - e espreitou para o exterior.

      O átrio estava deserto. Saiu, fechou a porta à chave atrás de si e galgou a

escada. No sexto andar escolheu a casa de Mlle Béranger e bateu à porta. Não obteve resposta. Aguardou e bateu de novo. Nem desse apartamento nem do contíguo provinha qualquer ruído. O Chacal escolheu a chave, entrou em casa de Mlle Béranger e fechou a porta à chave. Aproximou-se da janela e olhou para o exterior.

      Nos telhados dos prédios opostos homens de uniforme azul estavam tomando posições Chegara mesmo a tempo. De braço estendido, rodou o fecho da janela e, silenciosamente, abriu os dois batentes para dentro. Depois recuou. Uma faixa de luz entrava pela janela e projetava-se no tapete. Se ficasse afastado dessa faixa de luz, os vigilantes do lado oposto não veriam nada. Desviando-se para o lado da janela, podia olhar para baixo e, lateralmente, para o átrio da estação, a cento e trinta metros de distância. Afastado da janela e chegado a um lado, colocou duas almofadas sobre uma mesa. Formariam a sua banqueta para disparar.

      Despiu o capote e arregaçou as mangas. Desmontou a muleta, peça por peça. Desparafusada a virola de borracha da extremidade, ficaram a descoberto as escorvas reluzentes dos três cartuchos que lhe restavam. A náusea e a transpiração causadas pela ingestão da cordite dos outros dois começaram a abandoná-lo. Desparafusou a seção seguinte da muleta, da qual

retirou o silenciador. Da segunda seção emergiu a mira telescópica, e a zona mais grossa, onde os dois suportes superiores se uniam a haste principal, revelou a culatra e o cano da espingarda.

      Da estrutura em Y acima da juntura retirou as duas varas de aço que, ajustadas uma a outra, constituiriam a armação da coronha. Por fim, o apoio axilar almofadado da muleta, no qual se ocultava o gatilho, foi encaixado na coronha, para formar o apoio do ombro. Meticulosamente o Chacal montou a espingarda. Depois sentou-se numa cadeira à mesa, apoiou o cano na almofada de cima e perscrutou o exterior com o telescópio.

      A praça banhada de sol, para lá da janela e quinze metros abaixo, ficou enquadrada. A cabeça de um dos homens que ainda assinalavam as posições para a cerimônia atravessou-se na linha de mira e Chacal seguiu o alvo com a arma. A cabeça apresentava-se grande e nítida, como a melancia na clareira da floresta.

            Satisfeito com o resultado, alinhou os cartuchos na beira da mesa. Com o polegar e o indicador, recuou o ferrolho e introduziu o primeiro cartucho na culatra. Empurrou de novo o ferrolho para a frente, até o encostar à base do cartucho, deu-lhe mela volta e travou-o. Por fim, colocou cuidadosamente a arma sobre as almofadas e procurou cigarros e fósforos. Aspirou profundamente quando acendeu o primeiro cigarro, e recostou-se, preparado para esperar uma hora e três quartos.

 

      O comissário Claude Lebel tinha a boca seca e a língua colava-se ao palato como se lá estivesse soldada. Pela primeira vez em muitos anos sentia-se de fato assustado. Tinha certeza de que naquela tarde aconteceria qualquer coisa, mas ainda não possuía a mínima pista quanto as circunstâncias ou ao momento em que o fato ocorreria.

      Estivera no Arco do Triunfo, em Notre-Dame e no Mont-Valérien. Durante o almoço com alguns dos homens pressentira que o estado de espírito deles passara da tensão e da cólera para um sentimento que raiava a euforia. Só faltava uma cerimônia, e garantiam-lhe que a Place du 18 Juin estava completamente isolada.

      - Fugiu - disse Rolland quando saíam de uma cervejaria próxima do Palácio do Eliseu. - E foi uma decisão muito sensata. Deve reaparecer um dia em qualquer lugar, e então os meus rapazes o pegam.

      Naquele momento, Lebel caminhava desconsoladamente ao longo da faixa de multidão que, contida duzentos metros abaixo do Boulevard du Montparnasse. Se encontrava tão distante do largo que ninguém conseguia ver o que se passava. Todos os polícias e funcionários da CRS com quem falara lhe haviam transmitido a mesma informação: ninguém passara depois do meio-dia, hora a que tinham sido montadas as barreiras. As artérias principais estavam bloqueadas; as transversais estavam bloqueadas; as travessas estavam bloqueadas. Os telhados estavam vigiados e guardados e a própria estação estava repleta de homens da segurança empoleirados nas grandes locomotivas, dominando as plataformas silenciosas de onde haviam sido desviados todos os trens naquela tarde.

      No interior, todos os edifícios tinham sido revistados de alto a baixo. Lebel mostrou o seu passe da Polícia e foi avançando através de ruas transversais até à Rue de Rennes. A mesma história: o acesso estava bloqueado a duzentos metros da praça e a rua encontrava-se deserta, à exceção dos homens da CRS que a patrulhavam.

      Recomeçou a fazer perguntas. Tinham visto alguém? Não, senhor.

      Passara alguém, fosse quem fosse? Não, senhor.

      Ouviu a banda afinando os instrumentos no átrio da estação. Consultou o relógio. O general devia estar chegando de um momento para o outro...

      Viu passar alguém? Não, senhor. Por aqui não passou ninguém.

      Ouviu gritar uma ordem, na praça, e um cortejo de motocicletas irrompeu na Place du 18 Juin, procedente de uma das extremidades do Boulevard du Montparnasse. Viu-o passar em frente dos policiais aprumados, em continência, e transpor os portões do átrio da estação.

      A poucos metros de distância, a multidão comprimia-se contra a barreira. olhou para os telhados com ar aprovador. Os vigilantes que lá se encontravam ignoravam o espetáculo que decorria em baixo e os seus olhos não cessavam de percorrer telhados e janelas.

      Lebel chegara ao lado ocidental da Rue de Rennes.

      Um jovem agente da CRS encontrava-se firmemente postado no ponto em que a última barreira de aço terminava, junto da parede do prédio nº 132. Mostrou o cartão ao homem, que se perfilou.

      - Passou alguém por aqui?

      - Não, senhor.

      - Há quanto tempo está aqui?

      - Desde o meio-dia, que foi quando a rua foi encerrada.

      - E ninguém passou por aqui?

      - Bem... só um velho aleijado. Mora ali embaixo.

      - Que aleijado?

      - Um tipo velhote, que parecia doente como um cão. Tinha o bilhete de identidade e o cartão de mutilado de guerra. Ambos indicavam o endereço: 154, Rue de Rennes. Bem, deixei-o passar. Parecia estourado... O que não admirava, com aquele capote num tempo destes.

      - Capote?

            - Sim, senhor. Um capote comprido, militar, como os antigos soldados usavam. Muito quente para este tempo.

      - Disse que ele era mutilado de guerra. De que mutilação se tratava?

      - Faltava-lhe uma perna.

      Na praça soaram os acordes claros dos clarins.

      Allons enfants de la patrie, le jour de gloire est arrivé...

      A multidão entoou a familiar La Marseillaise.

      - Muleta? - A voz de Lebel soava muito distante aos seus próprios ouvidos.

      - Sim, senhor. Uma muleta de alumínio...

      Lebel precipitou-se pela rua abaixo, gritando ao agente da CRS que o seguisse.

      ESTAVAM parados ao sol. numa praça deserta. Os automóveis encontravam-se estacionados ao longo da fachada da estação. Do lado oposto permaneciam os dez homens que receberiam as medalhas a ser distribuídas pelo chefe do Estado. Do lado oriental do átrio estavam os altos funcionários e o corpo diplomático, uma massa sólida de ternos cor de antracite, animados aqui e ali por uma roseta vermelha da Legião de Honra.

      O lado ocidental estava ocupado pelas plumas vermelhas e pelos capacetes reluzentes da Guarda Republicana, numa formação compacta, com os componentes da banda um pouco desviados, à frente da guarda de honra propriamente dita.

      O Chacal ergueu a arma e visou o átrio da estação.

      Escolheu o veterano de guerra mais próximo, o que seria o primeiro a receber a medalha. Era baixo e atarracado, mas mantinha-se aprumado, a cabeça claramente visível. Dentro de poucos minutos, defronte daquele homem e cerca de trinta centímetros mais acima se encontraria outro rosto, altivo e arrogante, encimado por um quépi de caqui adornado com duas estrelas douradas.

      Marchons! Marchons! Qu'un sang impur...

      As últimas notas do hino nacional extinguiram-se e deram lugar a um silêncio profundo. O grito do comandante da guarda ecoou no átrio da estação: "Apre-s-e-e-en-tar ARMAS!" ouviram-se três pancadas precisas quando as mãos enluvadas de branco bateram em uníssono nos fustes e nas câmaras das espingardas e os calcanhares se uniram simultaneamente.

      A porta do carro do presidente abriu-se. Uma figura alta e isolada saiu do veículo e começou a dirigir-se, em passadas largas, para a fila de veteranos de guerra. Seguiram-no a distância o ministro dos antigos combatentes, que os apresentaria ao presidente, e um oficial com uma almofada de veludo na qual se encontravam alinhadas dez medalhas e dez fitas coloridas. A parte essas duas personalidades, Charles de Gaulle avançava sozinho.

           

      - É esta?

      Lebel parou, ofegante, e apontou para um portal.

      - Penso que sim.

      O detetive dirigiu-se para a entrada seguido por Valrémy, a quem não desagradava encontrar-se fora da rua, onde o estranho comportamento dos dois homens estava provocando expressões de desagrado as altas patentes postadas em sentido junto do gradeamento da estação. Bem, se o chamassem à pedra, poderia dizer que aquele homem de aspecto excêntrico se apresentara como comissário da Policia e ele tentara detê-lo.

      O detetive sacudiu a porta da casa da porteira.

      - Onde esta a porteira? - gritou.

      - Não sei, Sr. Comissário - respondeu Valrémy.

      Lebel partiu o vidro da porta com o cotovelo, enfiou a mão pela abertura e abriu a porta.

      - Siga-me! - ordenou, e precipitou-se para o interior.

      "Pode ter certeza de que sigo mesmo", pensou Valrémy "Não está bom da cabeça."

      A porta da despensa, olhou por sobre o ombro do detetive e viu a porteira amarrada no chão, inconsciente. De súbito, compreendeu que o homem de aspecto insignificante era de fato comissário da Policia e que perseguiam um criminoso. Chegara o grande momento com que sempre sonhara, mas desejou encontrar-se na caserna.

      - Último andar! - gritou o detetive, e precipitou-se pela escadas, Valrémy correu atrás dele, ao mesmo tempo em que empunhava a arma.

     

      O presidente da França deteve-se diante do primeiro antigo combatente da fila e inclinou-se ligeiramente para ouvir o ministro apresentá-lo. Quando o ministro terminou, inclinou a cabeça ao velho soldado, voltou-se para o funcionário que segurava a almofada de veludo e pegou a medalha que ele lhe estendia.

      Enquanto a banda começava a tocar suavemente La Marche Lorraine, o alto general pregou a medalha no peito do velho que se encontrava à sua frente. Depois recuou, fazendo a continência.

      Seis andares acima e a cento e trinta metros de distância, o Chacal segurava firmemente a espingarda e mirava através da mira telescópica. Distinguia perfeitamente as feições: a fronte sombreada pela pala do quépi, os olhos perscrutadores e o nariz adunco. Viu a mão que se elevara até ao quépi para fazer a continência baixar... O retículo da mira estava perfeitamente centrado na têmpora. Suavemente, lentamente, apertou o gatilho... Uma fração de segundo depois, fitava o átrio da estação com uma expressão de incredulidade.

      Antes que a bala saísse do cano, o presidente estendera a cabeça para a frente e para baixo. Perante o olhar do assassino, depositou solenemente o beijo

tradicional de felicitações em cada uma das faces do homem perfilado à sua frente. Mais tarde ficou demonstrado que a bala passara uma fração de milímetro por trás da cabeça em movimento.

      Ignora-se se o presidente ouviu ou não o silvo do projétil. Se ouviu, não o evidenciou. A bala penetrou no asfalto do átrio amolecido pelo sol e desintegrou-se inofensivamente no interior de alguns centímetros de alcatrão.

      La Marche Lorraine continuava a ouvir-se.

      O presidente endireitou-se e avançou tranquilamente para o segundo homem. O Chacal começou a praguejar violentamente em voz baixa. Nunca na sua vida falhara um alvo imóvel a cento e trinta metros! Depois serenou; ainda tinha tempo. Abriu a culatra para ejetar a cápsula da bala disparada, retirou a segunda de cima da mesa, introduziu-a na culatra e fechou o ferrolho.

     

      SEGUNDOS antes, Claude Lebel chegara ofegante ao sexto andar.

            Pensou que o coração ia saltar do peito. Havia duas portas que davam para a frente do prédio. Olhou de uma para a outra, ao mesmo tempo em que o homem da CRS o alcançava, de carabina cruzada no quadril e em riste. Enquanto Lebel hesitava em frente das duas portas, ouviu-se atrás de uma delas uma detonação baixa, mas distinta. Lebel apontou para a fechadura da porta.

      - Dispare - ordenou, e recuou. O homem da CRS disparou. Voaram em todas as direções  fragmentos de madeira e metal e balas achatadas. A porta arqueou e abriu-se, aos sacões, para o interior. Valrémy foi o primeiro a entrar, logo seguido por Lebel. Tudo quanto o jovem reconheceu foram os tufos de cabelo grisalho. O homem tinha duas pernas, o capote desaparecera e os antebraços que empunhavam a espingarda eram de um homem novo e forte.

      O assassino não lhe deu tempo, levantou-se por trás da mesa, rodou, semicurvado, num só movimento, e atirou instintivamente. A única bala não produziu qualquer som por entre os ecos da rajada da automática de Valrémy, o projétil penetrou-lhe no peito e explodiu.

      O rapaz experimentou uma sensação de dilaceramento e intensas punhaladas de dor, que em breve se extinguiram. O tapete subiu ao seu encontro e bateu-lhe na face. A perda de sensibilidade alastrou-lhe pelas pernas e pelo ventre e atingiu-lhe o peito e o pescoço. As últimas coisas de que se lembrou foi de um gosto salgado na boca, como sentira depois de tomar banho no mar em Kermadeç e de uma velha gaivota só com uma perna, empoleirada num poste.

      Depois a escuridão desceu sobre ele. Por cima do seu corpo, Claude Lebel mergulhou os olhos nos do outro homem. O seu coração parecia ter-se imobilizado.

      - Chacal - murmurou.

      O outro respondeu simplesmente:

      - Lebel.

      Mexia na espingarda, tentando abrir violentamente a culatra. O comissário viu o brilho da cápsula da bala quando esta caiu no chão.

      O homem retirou qualquer coisa da mesa e introduziu-a na culatra os seus olhos continuavam a fitar Lebel. "Está tentando imobilizar-me, pôr-me rígido", pensou o comissário. "Vai me matar”.

      Com um esforço, baixou os olhos para o chão. O agente da CRS caíra de lado, a carabina escorregara-lhe dos dedos e encontrava-se aos pés de Lebel Sem pensar conscientemente no que fazia, este deixou-se cair de Joelhos, agarrou a MAT 49 e virou-a para cima com uma das mãos, enquanto com a outra procurava o gatilho.

      Ouviu o Chacal fechar a culatra e, no mesmo instante, encontrou o gatilho da carabina automática. E apertou-o. O estampido da explosão encheu a pequena sala e ouviu-se na praça.

      Mais tarde, em resposta às suas perguntas, a imprensa foi informada que o ruído fora causado por uma motocicleta com um escape defeituoso. Metade do carregador de nove milímetros atingiu o Chacal no peito, ergueu-o, deu-lhe meia volta no ar e atirou-o, transformado numa massa flácida, para o canto próximo do sofá. Embaixo a banda tocava os primeiros acordes de Mon Régiment ma Patrie.

     

      O superintendente Thomas recebeu um telefonema de Paris às seis horas dessa tarde. Depois mandou chamar o seu inspetor principal.

      - Apanharam-no - informou. - Em Paris. Não houve problemas, mas é melhor ir ao apartamento dele e examiná-lo.

      Duas horas depois, quando fazia um último exame aos pertences de Calthrop, o inspetor ouviu alguém entrar. Virou-se e viu um homem de configuração atlética que o fitava com uma expressão pouco amistosa.

      - Que faz aqui? - perguntou o inspetor.

      - Isso lhe pergunto eu. Que raio está fazendo aqui.

      - Muito bem, diga-me o seu nome - redarguiu o inspetor.

      - Calthrop - respondeu o recém-chegado. – Charles Calthrop. E esta casa é minha. Agora vamos lá saber o que está você fazendo aqui.

      - Muito bem - declarou o inspetor em tom fatigado. - Acho melhor acompanhar-me à Yard, para termos uma pequena conversa.

      - Tem razão! - concordou o outro. - Tem muito que explicar.

      Mas na realidade quem deu explicações foi Calthrop. Detiveram-no durante vinte e quatro horas, até receberem de Paris três confirmações independentes de que o Chacal estava morto - e cinco proprietários de estalagens isoladas do extremo norte da Escócia declararem que Charles Calthrop passara efetivamente as três últimas semanas entregue à sua paixão pela pesca.

      - Se Chacal não era Calthrop - perguntou Thomas ao seu inspetor, quando Charles Calthrop transpôs finalmente a porta do seu gabinete em liberdade -, quem diabo era então?

           

      - Claro que estava fora de questão o Governo de Sua Majestade admitir alguma vez que o tal o Chacal era inglês - disse no dia seguinte o comissário da Polícia Metropolitana ao comissário-adjunto Dixon e ao superintendente Thomas. - Tanto quanto se pode depreender, houve um período em que determinado inglês esteve sob suspeita. Agora foi ilibado. Sabemos também que durante uma parte da sua... hum... da sua missão na França, o tal Chacal se fez passar por inglês. Mas também se fez passar por dinamarquês, americano e francês. No que nos diz respeito, as nossas investigações demonstraram que o assassino viajou na França com um passaporte falso em nome de Duggan, e a partir desse nome reconstituímos uma pista que nos levou até... até esse lugar chamado Gap. Mais nada. Meus senhores, o caso está encerrado.

 

                                                                                            Frederick Forsyth

 

 

                      

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