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Os Irmãos Karamazov / Dostoiévski
Os Irmãos Karamazov / Dostoiévski

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os Irmãos Karamazov

 

Ao começar a biografia de meu herói, Alieksiéi Fiódorovitch, sinto-me um tanto perplexo. Com efeito, se bem que o chame meu herói, sei que ele não é um grande homem; prevejo também perguntas deste gênero: "Em que é notável Alieksiéi Fiódorovitch, para que tenha sido escolhido como seu herói? Que fez ele? Quem o conhece e por quê? Tenho eu, leitor, alguma razão para consagrar meu tempo a estudar-lhe a vida?"

A derradeira pergunta é a mais embaraçosa, porque só lhe posso responder dizendo: "Talvez o senhor mesmo descubra isso no ro­mance". Mas se o lerem, sem achar que meu herói é notável? Digo isto porque prevejo, infelizmente, a coisa. A meus olhos, é ele notá­vel, mas duvido bastante de que consiga convencer o leitor. O fato é que ele age seguramente, mas de uma maneira vaga e obscura. Aliás, seria estranho, em nossa época, exigir clareza das pessoas! Uma coisa, no entanto, está fora de dúvida: é um homem estranho, até mesmo um original. Mas a estranheza e a originalidade prejudicam, em lugar de conferir um direito à atenção, sobretudo quando todo mundo se esforça por coordenar as individualidades e destacar um sentido geral do absurdo coletivo. O original, na maior parte dos casos, é o indivíduo que se põe de parte. Não é verdade?

No caso de me contradizerem, a propósito deste último ponto, di­zendo: "Não é verdade", ou "não é sempre verdade", retomo cora­gem a respeito do valor de meu herói. Porque não somente o origi­nal não é "sempre" o indivíduo que se põe de parte, mas acontece-lhe deter a quinta-essência do patrimônio comum, enquanto seus contem­porâneos o repudiaram por algum tempo.

Aliás, em vez de engajar-me nessas explicações destituídas de inte­resse e confusas, teria começado bem simplesmente, sem prefácio — se minha obra agradar, hão de lê-la —, mas a desgraça está em que, além de uma biografia, tenho dois romances. O principal é o segun­do, é a atividade de meu herói em nossa época, no momento presente. O primeiro desenrola-se há treze anos, e, para dizer a verdade, é apenas um momento da primeira juventude do herói. Ê indispen­sável, porque, sem ele, muitas coisas ficariam incompreensíveis no segundo. Mas isso só faz aumentar o meu embaraço: se eu, biógrafo, acho que um romance teria bastado para um herói tão modesto e vago, como apresentar-me com dois e justificar tal pretensão?

Desesperando de resolver essas questões, deixo-as em suspenso. Naturalmente, o leitor perspicaz já adivinhou que tal era meu fim desde o começo e leva-me a mal que perca um tempo precioso em palavras inúteis. Ao que responderei que o fiz por polidez, e em se­guida por astúcia, a fim de que se fique prevenido de antemão. Além do mais, folgo que meu romance se divida por si mesmo em duas narrativas, "contudo conservando sua unidade integral"; depois de ter tomado conhecimento do primeiro, o leitor verá por si mesmo se vale a pena abordar o segundo. Sem dúvida, cada qual é livre; pode-se fechar o livro desde as primeiras páginas da primeira narrativa para não mais abri-lo. Mas há leitores delicados que querem ir até o fim, para não deixar de ser imparciais; tais são, por exemplo, todos os críticos russos. Sente-se a gente de coração mais leve para com eles. Malgrado sua consciência metódica, forneço-lhes um argumento dos mais fundamentados para abandonar a narrativa no primeiro episódio do romance. Eis terminado o meu prefácio. Convenho que é supér­fluo, mas, já que está escrito, deixemo-lo.

E agora, comecemos.

 

FIÓDOR PÁVLOVITCH KARAMÁZOV

Alieksiéi Fiódorovitch Karamázov era o terceiro filho de um pro­prietário de terras de nosso distrito, Fiódor Pávlovitch, tão conhecido em seu tempo (dele se lembram, aliás, ainda) pelo seu fim trágico, ocorrido há treze anos e de que falarei mais adiante. No momento, limitar-me-ei a dizer desse "proprietário" (chamavam-no assim, se bem que jamais tivesse morado em sua "propriedade") que era o tipo estranho, embora bastante freqüente, da criatura vil e corrom­pida, ao mesmo tempo que absurda. Sabia arranjar perfeitamente seus negócios proveitosos, mas nada mais. Fiódor Pávlovitch, por exem­plo, começou quase do nada: era um modesto proprietário, gostando muito de jantar em casa dos outros, com fama de parasita. E no entanto, ao morrer, possuía mais de 100 000 rublos em metal sonante. Isso não o impediu de ser, durante sua vida, um dos piores malucos de nosso distrito. Repito-o, não se trata de estupidez — a maior parte desses malucos é bastante inteligente e astuta —, mas de extravagância específica e nacional.

Foi casado duas vezes e teve três filhos; o mais velho, Dimítri, da primeira mulher, e os dois outros, Ivã e Alieksiéi, da segunda. Sua primeira mulher pertencia a uma família nobre, os Miúsovi, proprie­tários bastante ricos do mesmo distrito. Como pôde uma moça, tendo um dote, bonita e, além do mais, viva e espirituosa, tal como se encon­tram muitas entre nossas contemporâneas, casar-se com tão nulo "doidelo" (era assim que o chamavam)? Creio inútil explicá-lo demasiado longamente. Conheci uma jovem, da penúltima geração "romântica", que, após vários anos de amor misterioso por um senhor, com o qual poderia casar-se bem tranqüilamente, acabou imaginando obstá­culos intransponíveis a esse casamento. Numa noite de tempestade pre­cipitou-se, do alto de um penhasco, num rio impetuoso e profundo, e pereceu vítima de sua imaginação, unicamente para parecer-se com a Ofélia de Shakespeare. Se aquele penhasco, de que ela gostava par­ticularmente, tivesse sido menos pitoresco ou substituído por uma mar­gem chata e prosaica, não se teria ela, sem dúvida, suicidado. O fato é autêntico e creio que entre as duas ou três últimas gerações russas houve numerosos casos análogos. Semelhantemente, a decisão que Ade­laide Miúsova tomou foi sem dúvida o eco de influências estrangeiras, a exasperação de uma alma cativa. Queria talvez afirmar sua independência de mulher, protestar contra as convenções sociais, contra o despotismo de sua família. Sua imaginação complacente pintou-lhe — por um curto momento — Fiódor Pávlovitch, malgrado sua reputação de papa-jantares, como uma das personagens mais ousadas e mais mali­ciosas daquela época em via de melhoramento, quando era ele muito simplesmente, um pregador de más peças. O picante da aventura foi um rapto que encantou Adelaide Ivânovna. A situação de Fiódor Pávlo­vitch dispunha-o então a semelhantes proezas; estava louco por abrir caminho a qualquer preço: introduzir-se em uma boa família e rece­ber um dote era bastante atraente. Quanto ao amor, não se cuidava disso nem de um lado nem de outro, malgrado a beleza da moça. Esse episódio foi provavelmente único na vida de Fiódor Pávlovitch, grande amador do belo sexo, a vida inteira, sempre pronto a agarrar-se a qualquer saia, contanto que ela lhe agradasse. Ora, aquela mulher foi a única que não exerceu sobre ele atração nenhuma do ponto de vista sensual.

Adelaide Ivânovna não tardou a verificar que só sentia desprezo pelo seu marido. Nessas condições, as conseqüências do matrimônio não se fizeram esperar. Se bem que a família se tivesse resignado bem depressa ao acontecido e remetido seu dote à fugitiva, uma exis­tência desordenada e cenas contínuas começaram. Conta-se que a jovem senhora mostrou-se muito mais nobre e mais digna do que Fiódor Pávlovitch, que lhe escamoteou desde o começo, como se soube mais tarde, todo o seu capital, 25 000 rublos, de que ela não mais ouviu falar. Durante algum tempo fez ele tudo para que sua mulher lhe transmitisse, por um documento em boa e devida forma, uma pequena aldeia e uma casa de cidade bastante bonita, que faziam parte de seu dote. Teria certamente logrado isso, tanto era o desprezo e desgosto que lhe causava com suas extorsões e exigências descaradas, levan­do-a por lassidão a dizer "sim". Por felicidade, a família dela interveio e refreou a rapacidade de seu marido. É notório que os esposos che­gavam freqüentemente à troca de pancadas e pretende-se que não era Fiódor Pávlovitch quem as dava, mas Adelaide Ivânovna, mulher arre­batada, atrevida, morena irascível, dotada de estupendo vigor. Por fim abandonou a casa e fugiu com um seminarista que não tinha onde cair morto, deixando a cargo do marido um menino de três anos, Mítia. Fiódor Pávlovitch não tardou em transformar sua casa num harém e em organizar pândegas e bebedeiras. Entrementes, percorria toda a província, lamentando-se com todos da deserção de Adelaide Ivânovna, com pormenores chocantes sobre sua vida conjugai. Dir-se-ia que achava prazer em representar diante de todo mundo o papel ridículo de marido enganado, em pintar seu infortúnio, carregando as cores. "Acreditar-se-ia que você subiu de grau, Fiódor Pávlovitch, tão contente você se mostra, apesar de sua aflição", diziam-lhe os trocistas. Muitos ajuntavam que ele se sentia feliz em mostrar-se na sua nova atitude de bufão e que, de propósito, para fazer rir mais, fingia não notar sua situação cômica. Quem sabe, aliás, fosse ingenuidade de sua parte? Por fim, conseguiu descobrir a pista da fugitiva. A des­graçada achava-se em Petersburgo, para onde fora com seu seminarista e onde começara a agir publicamente com a maior liberdade. Fiódor Pávlovitch começou a agitar-se e preparou-se para partir — com que fim? ele mesmo não sabia ainda. Talvez tivesse verdadeiramente feito a viagem a Petersburgo, mas, tomada essa decisão, achou que tinha o direito, para se dar coragem, de embriagar-se desenfreadamente. Enquanto isso, soube a família de sua mulher da morte desta, em Petersburgo. Morrera de repente, num pardieiro, de febre tifóide, di­zem uns, de fome, segundo outros. Fiódor Pávlovitch estava bêbedo, quando lhe anunciaram a morte de sua mulher; conta-se que correu para a rua e se pôs a gritar, na sua alegria, de braços levantados para o céu: "Agora, deixa morrer o teu servo". Outros pretendem que soluçava como uma criança, a ponto de causar pena vê-lo, malgrado a aversão que inspirava. Pode dar-se que ambas as versões sejam verdadeiras, isto é, que se regozijou com sua libertação, chorando a sua libertadora. Muitas vezes, as pessoas, mesmo más, são mais in­gênuas, mais simples do que o pensamos. Nós também, aliás.

 

KARAMÁZOV LIVRA-SE DE SEU PRIMEIRO FILHO

Pode-se bem imaginar que pai e que educador seria tal homem. Como era de prever, desinteressou-se totalmente do filho que tivera de Adelaide Ivânovna, não por animosidade ou rancor conjugal, mas simplesmente porque se esquecera dele por completo. Enquanto im­portunava todos com suas lágrimas e suas queixas e fazia de sua casa um antro de corrupção, foi o pequeno Mítia recolhido por Gregório, um servidor fiel; se não tivesse este tomado conta dele, o menino não teria tido talvez nem mesmo quem lhe trocasse as fraldas. Além disso, sua família por parte de mãe pareceu esquecê-lo. Seu avô morrera, sua avó, estabelecida em Moscou, era muito doente e suas tias ha­viam-se casado, de modo que Mítia teve de passar quase um ano em casa de Gregório e morar em sua isbá. Aliás, se seu pai se tivesse lembrado dele (de fato, não podia ignorar sua existência), teria man­dado o menino de volta para a isbá, para não ser incomodado nas suas orgias. Mas, entrementes, chegou de Paris o primo da falecida Adelaide Ivânovna, Piotr Alieksándrovitch Miúsov, que devia, mais tarde, passar muitos anos no estrangeiro. Naquela época, era ainda bastante moço e se distinguia de sua família pela sua cultura, sua estada na capital e no estrangeiro. Tendo sempre tido a mentalidade ocidental, tornou-se, para o fim de sua vida, um liberal à moda dos anos 40 e 50. No curso de sua carreira, esteve em relações com numerosos ultraliberais, na Rússia e no estrangeiro, conheceu pessoalmente Proudhon e Bakunin. Gostava de evocar os três dias da Revolução de Fevereiro de 1848, em Paris, dando a entender que chegara mesmo a tomar parte nas barricadas. Era uma das melhores recordações de sua juventude. Possuía uma fortuna independente, cerca de 1000 al­mas,[1] para contar à moda antiga. Sua soberba propriedade encon­trava-se nas proximidades de nossa cidadezinha e se limitava com as terras de nosso famoso mosteiro. Logo de posse de sua herança, Piotr Alieksándrovitch iniciou contra os monges um processo inter­minável, por causa de certos direitos de pesca ou de corte de madeira, não sei mais ao certo, mas achou de seu dever, na qualidade de cidadão esclarecido, processar os "clericais". Tendo sabido das des­graças de Adelaide Ivânovna, de quem se lembrava, e posto ao corrente da existência de Mítia, meteu-se no caso, malgrado sua indignação juvenil e seu desprezo por Fiódor Pávlovitch. Foi então que o viu pela primeira vez. Declarou-lhe abertamente sua intenção de encarregar-se da educação do menino. Muito tempo depois, contava, como traço característico, que Fiódor Pávlovitch, quando se tratou de Mítia, pare­ceu um momento não compreender absolutamente de qual filho se tratava e até mesmo admirar-se de ter um menino em alguma parte, em sua casa. Mesmo exagerado, o relato de Piotr Alieksándrovitch estava próximo da verdade. Efetivamente, Fiódor Pávlovitch gostou toda a sua vida de tomar atitudes, de representar um papel, por vezes sem necessidade nenhuma, e mesmo em detrimento seu, como naquele caso particular. Ê, aliás, um traço especial de muitas pessoas, mesmo inteligentes. Piotr Alieksándrovitch levou a coisa a sério e foi até nomeado tutor do menino (juntamente com Fiódor Pávlovitch), uma vez que a mãe dele deixara uma casa e terras. Mítia foi morar em casa daquele primo que não tinha família. Com pressa de regressar a Paris, depois de haver regularizado seus negócios e assegurado o paga­mento de suas rendas, confiou o menino a uma de suas tias que morava em Moscou. Mais tarde, tendo-se aclimatado na França, es­queceu-se do menino, sobretudo quando estourou a Revolução de Feve­reiro, que lhe impressionou a imaginação para o resto de seus dias. Tendo morrido a tia que morava em Moscou, Mítia foi recolhido por uma de suas filhas casadas. Mudou, ao que parece, pela quarta vez, de lar. Não me alongo a este respeito no momento, tanto mais quanto ainda muito se falará desse primeiro rebento de Fiódor Pávlovitch, e limito-me aos detalhes indispensáveis, sem os quais é impossível começar o romance.

Em primeiro lugar, esse Dimítri foi o único dos três filhos de Fiódor Pávlovitch que cresceu com a idéia de que tinha alguma fortuna e seria independente ao atingir a maioridade. Sua infância e sua juventude foram agitadas: deixou o ginásio antes do termo, entrou em seguida para uma escola militar, partiu para o Cáucaso, serviu no Exército, foi degradado por haver-se batido em duelo, voltou ao ser­viço, entregou-se à orgia, gastou dinheiro em quantidade. Recebeu di­nheiro de seu pai somente quando atingiu a maioridade, mas fizera dívidas enquanto esperava. Só veio a ver pela primeira vez Fiódor Pávlovitch, depois de sua maioridade, quando chegou à nossa provín­cia especialmente para informar-se a respeito de sua fortuna. Seu pai, ao que parece, não lhe agradou desde o começo; ficou pouco tempo, em casa dele e apressou-se em partir, levando certa soma, depois de haver concluído um acordo a respeito das rendas de sua propriedade. Coisa curiosa: nada pôde arrancar de seu pai a respeito de seu rendimento e do valor do domínio. Fiódor Pávlovitch notou então — e importa notá-lo — que Mítia fazia de sua fortuna uma idéia falsa e exasperada. Ficou com isto muito contente, tendo em vista seus interesses particulares. Concluiu de tudo que o rapaz era estouvado, arrebatado, de paixões vivas, um boêmio ao qual bastava dar um osso a roer para acalmá-lo até nova ordem. Fiódor Pávlovitch explorou a situação, limitando-se a largar de tempos em tempos pequenas somas, até que um belo dia, quatro anos depois, Mítia, perdida a paciência, reapareceu na localidade para exigir uma regularização de contas definitiva. Para estupefação sua, aconteceu que não possuía mais nada; era mesmo difícil verificar as contas: já havia recebido em espécie, de Fiódor Pávlovitch, o valor total de seus bens; talvez mesmo viesse a ser seu devedor; de acordo com tal e tal arranjo, concluído em tal e tal data, não tinha o direito de reclamar mais, etc. O rapaz ficou consternado; suspeitou da falsidade, da fraude, ficou fora de si, quase perdeu a razão. Esta circunstância provocou a catástrofe cuja narra­tiva forma o assunto de meu primeiro romance, ou antes seu quadro exterior. Mas, antes de iniciar o dito romance, é preciso falar ainda dos dois outros filhos de Fiódor Pávlovitch e explicar-lhes a proveniência.

 

NOVO CASAMENTO E NOVOS FILHOS

Fiódor Pávlovitch, depois de livrar-se do pequeno Mítia, contratou em breve um segundo casamento, que durou oito anos. Escolheu por esposa desta segunda vez também uma mulher bastante jovem, de uma outra província, aonde tinha ido, em companhia de um judeu, para tratar de um pequeno negócio. Embora boêmio, bêbedo e debochado, nunca deixava de ocupar-se com a boa colocação de seu capital e arran­java quase sempre bem os seus negócios, mas quase sempre desones­tamente. Sofia Ivânovna, órfã desde a infância, filha de um obscuro diácono, vivera na opulenta casa de sua benfeitora, a viúva, altamente colocada, do General Vórokhov, que a educava e a maltratava. Ignoro os detalhes, ouvi simplesmente dizer que a moça, doce, paciente e cândida, tentara enforcar-se, pendurando-se dum prego, na despensa, tão farta estava dos caprichos e das eternas censuras daquela velha, não má no íntimo, mas a quem sua ociosidade tornava insuportável. Fiódor Pávlovitch pediu sua mão; tomaram informações a seu res­peito e despacharam-no. Como por ocasião de seu primeiro casamento, propôs então à órfã raptá-la. Muito provavelmente, teria ela recusado tornar-se sua esposa, se tivesse tido melhores informações a seu res­peito. Mas isto se passava em outra província; que podia, aliás, com­preender uma moça de dezesseis anos, senão que valia mais lançar-se à água do que ficar em casa de sua benfeitora? Foi assim que a infeliz substituiu sua benfeitora por benfeitor. Desta vez, Fiódor Pávlovitch não recebeu um vintém, porque a generala, furiosa, nada dera, a não ser sua maldição. De resto, não contava ele com o dinheiro. A beleza notável da moça e sobretudo sua candura tinham-no encantado. Estava maravilhado, ele, o voluptuoso, até então apaixonado apenas pelos en­cantos grosseiros. "Aqueles olhos inocentes traspassavam-me a alma", dizia mais tarde com um riso canalha. Aliás, aquela criatura corrupta não podia experimentar senão atração sensual. Fiódor Pávlovitch não se incomodou com sua mulher. Como era ela por assim dizer "cul­pada" para com ele, que a havia quase "salvado da corda", aprovei­tando, além disso, de sua doçura e de sua resignação espantosas, pisou aos pés a decência conjugai mais elementar. Sua casa tornou-se teatro de orgias nas quais tomavam parte mulheres de má vida. Um traço a notar é que o criado Gregório, criatura taciturna, discutidor estúpido e teimoso, que detestava sua primeira patroa, tomou o partido da segunda, discutindo por causa dela com seu amo duma maneira quase intolerável da parte dum criado. Um dia, chegou a ponto de expulsar as mulheres que se entregavam a orgias em casa de Fiódor Pávlovitch. Mais tarde, a infeliz jovem senhora, aterrorizada desde a infância, foi presa duma doença nervosa, freqüente entre as aldeãs, e que lhes vale o nome de "possessas". Por vezes, a doente, vítima de terríveis crises de histeria, perdia a razão. Deu, no entanto, a seu marido, dois filhos: o primeiro, Ivã, após um ano de casamento; o segundo, Alieksiéi, três anos mais tarde. Quando ela morreu, estava o jovem Alieksiéi com quatro anos de idade e, por mais estranho que isto pareça, nunca se esqueceu de sua mãe durante toda a sua vida, mas como através de um sonho. Morta sua mãe, tiveram os dois meninos a mesma sorte que o primeiro: seu pai esqueceu-se deles, abandonou-os total­mente, tendo sido eles recolhidos pelo mesmo Gregório na sua isbá. Foi lá que os encontrou a velha generala, a benfeitora que havia educado a mãe deles. Vivia ainda e, durante aqueles oito anos, seu rancor não se desarmara. Perfeitamente ao corrente da existência que levava sua Sofia, ao saber de sua doença e dos escândalos que ela suportava, declarou duas ou três vezes aos parasitas que a cercavam: "Bem feito; Deus a castiga por causa de sua ingratidão". Três meses, exatamente, após a morte de Sofia Ivânovna, apareceu a generala em nossa cidade e apresentou-se em casa de Fiódor Pávlovitch. Sua visita não durou senão uma meia hora, mas aproveitou seu tempo. Era de noite. Fiódor Pávlovitch, a quem não via desde oito anos, apresentou-se em estado de embriaguez. Conta-se que, desde que ela o viu, e sem explicações, lhe deu duas bofetadas ressoantes, e puxou-lhe de alto a baixo o topete umas três vezes. Sem acrescentar uma palavra, foi dire­tamente à isbá, onde se encontravam os meninos. Não estavam lava­dos, nem vestidos com roupas limpas; vendo isto, a irascível velha assestou também uma bofetada na cara de Gregório e declarou-lhe que levava os meninos. Tais como estavam, enrolou-os numa manta de viagem, pô-los na carruagem e tornou a partir. Gregório guardou a bofetada como bom servidor e absteve-se de qualquer insolência; ao reconduzir a velha senhora à carruagem, disse, num tom grave, depois de ter-se inclinado profundamente, que "Deus a recompensaria pela sua boa ação". "Não passas de um bobalhão", gritou-lhe ela à guisa de adeus. Tendo examinado o caso, Fiódor Pávlovitch declarou-se sa­tisfeito, e concedeu mais tarde seu consentimento formal à educação dos meninos em casa da generala. Foi à cidade vangloriar-se das bofe­tadas recebidas.

Pouco tempo depois, a generala morreu; deixava, por testamento, 1000 rublos a cada um dos dois petizes "para sua instrução"; esse dinheiro devia ser despendido integralmente em proveito deles, mas bastar até sua maioridade, sendo já tal soma muito para semelhantes crianças. Se outros quisessem dar mais, que dessem de seu bolso, etc.

Não li o testamento, mas trazia ele um trecho estranho, naquele gosto por demais original. O principal herdeiro da velha senhora era, por felicidade, um homem honesto, marechal da nobreza da província, Iefim Pietróvitch Poliénov. Tendo compreendido, pelas cartas de Fiódor Pávlovitch, que dele nada retiraria para a educação de seus filhos (contudo este último nunca recusava categoricamente, mas arrastava as coisas indefinidamente, fazendo por vezes sentimentalismo), interessou-se pelos órfãos e concebeu afeição especial pelo caçula, que ficou muito tempo na sua família. Chamo a atenção do leitor para isso. Se os jovens deviam a alguém sua educação e sua instrução, era justamente a Iefim Pietróvitch, caráter nobre raramente encontrado. Conservou intato para as crianças seu pequeno capital, que, na ocasião de sua maioridade, atingia 2 000 rublos com os juros, educou-os às suas custas, gastando nisso, para cada um, bem mais de 1 000 rublos. Não farei agora um relato detalhado da infância e da juventude deles, limitando-o às principais circunstâncias. O mais velho, Ivã, tornou-se um adolescente sombrio e fechado, nada tímido, mas compreendera bem cedo que seu irmão e ele cresciam em casa de estranhos, de graça, que tinham como pai um indivíduo que lhes causava vergonha, etc. Esse rapaz mostrou, desde sua mais tenra idade (pelo que se conta, pelo menos), brilhantes capacidades para o estudo. Com a idade de cerca de treze anos, deixou a família de Iefim Pietróvitch para seguir os cursos de um ginásio de Moscou, e tomar pensão em casa de um famoso pedagogo, amigo de infância de seu benfeitor. Mais tarde, Ivã contava que Iefim Pietróvitch fora inspirado por seu "ardor pelo bem" e pela idéia de que um adolescente genialmente dotado devia ser educado por um educador genial. De resto, nem seu protetor, nem o educador de gênio existiam mais, quando o rapaz entrou para a universidade. Não tendo Iefim Pietróvitch tomado bem suas disposi­ções e como o pagamento do legado da generala ia-se arrastando, em conseqüência de diversas formalidades e retardamentos inevitáveis entre nós, o rapaz viu-se em apertos nos seus dois primeiros anos de universidade, obrigado a ganhar sua vida enquanto fazia seus estudos. É preciso notar que então não tentou de modo algum corresponder-se com seu pai — talvez por altivez, por desdém para com ele, talvez também o frio cálculo de sua razão lhe demonstrasse que nada tinha a esperar dele. Seja como for, o rapaz não se perturbou, encontrou trabalho, a princípio deu lições a 20 copeques, em seguida redigiu artigos de dez linhas a respeito de cenas da rua, assinados "Uma Testemunha Ocular", que levava a diversos jornais. Esses artigos, dizem, eram sempre curiosos e espirituosos, o que lhes assegurou bom êxito. Dessa maneira o jovem repórter mostrou sua superioridade prática e intelectual sobre os numerosos estudantes dos dois sexos, sempre necessitados, que, em Petersburgo e em. Moscou, assaltam ordinariamente, da manhã à noite, as redações dos jornais e revistas, não imaginando nada de melhor senão reiterar seu eterno pedido de traduções do francês e cópias. Uma vez conhecido nas redações, Ivã Fiódorovitch não perdeu o contato; nos seus derradeiros anos de universidade, pôs-se com muito talento a escrever resenhas de obras especiais, fazendo-se assim conhecido nos círculos literários. Mas somente para o fim é que conseguiu, por acaso, despertar uma atenção particular num círculo de leitores muito mais extenso. O caso era bastante curioso. À sua saída da universi­dade e quando se preparava para partir para o estrangeiro com seus 2000 rublos, publicou Ivã Fiódorovitch, num grande jornal, um artigo estranho, que atraiu a atenção até mesmo dos profanos. O assunto era-lhe aparentemente desconhecido, uma vez que seguira os cursos de Ciências Naturais e o artigo tratava a questão dos tribunais ecle­siásticos, suscitada, então, por toda parte. Examinando algumas opi­niões emitidas a respeito dessa matéria, expunha igualmente suas opiniões pessoais. O que impressionava era o tom e o inesperado da conclusão. Ora, muitos eclesiásticos tinham o autor como seu partidário. Por outra parte, os leigos, bem como os ateus, aplaudiam suas idéias. Afinal de contas, algumas pessoas decidiram que o artigo inteiro não passava de uma desavergonhada mistificação. Se menciono esse episódio é sobretudo porque o artigo em questão chegou até o nosso famoso mosteiro — onde havia interesse pela questão dos tribunais eclesiásticos — e ali provocou grande perplexidade. Uma vez conhe­cido o nome do autor, o fato de ser originário de nossa cidade e filho daquele mesmo Fiódor Pávlovitch aumentou o interesse. Pela mesma época, apareceu o autor em pessoa.

Por que Ivã Fiódorovitch viera à casa de seu pai, já o perguntava eu então a mim mesmo, lembro-me, com certa inquietude. Aquela chegada tão fatal, que engendrou tantas conseqüências, permaneceu por muito tempo inexplicada para mim. Na verdade, era estranho que um jovem tão sábio, de aparência tão altiva e tão reservada, apare­cesse numa casa tão escandalosa, em casa de tal pai. Este ignorara-o toda a sua vida, não se lembrava dele e, se bem que não tivesse dado, por coisa alguma do mundo, dinheiro, se lho houvessem pedido, temia sempre que seus filhos aparecessem para lho reclamar. E eis que o rapaz se instala na casa de tal pai, passa junto com ele um mês, depois dois, e se entendem maravilhosamente. Não fui eu o único a espan­tar-me com tal acordo. Piotr Alieksándrovitch Miúsov, de quem já se falou, passava uma temporada então entre nós, na sua propriedade suburbana, vindo de Paris, onde fixara residência. Estava surpreendido mais que todos, tendo travado conhecimento com o rapaz que o inte­ressava bastante e com o qual rivalizava em erudição. "Ele é altivo", dizia-nos. "Saberá sempre arranjar-se; desde agora, tem com que partir para o estrangeiro. Que faz ele aqui? Todos sabem que não veio cá procurar seu pai para pedir dinheiro, que aquele lho recusaria, aliás. Não gosta de beber, nem de requestar mulheres; no entanto, o velho não pode passar sem ele, de tal modo estão de acordo. " Era verdade; o jovem exercia visível influência sobre o velho, que por vezes o aten­dia, se bem que muito teimoso e caprichoso; começou mesmo a com­portar-se mais decentemente...

Soube-se mais tarde que Ivã chegara igualmente por causa da demanda e dos interesses de seu irmão mais velho, Dimítri, que ele viu pela primeira vez nessa ocasião, mas com o qual já se corres­pondia, a respeito de um negócio importante. Falar-se-á disso pormeno­rizadamente a seu tempo. Mesmo quando fiquei ao corrente, pareceu-me Ivã Fiódorovitch enigmático e sua chegada à nossa cidade difícil de explicar.

Acrescentarei que ele mantinha papel de árbitro e de reconciliador entre seu pai e seu irmão mais velho, então totalmente desavindos, tendo este último intentado mesmo uma ação na justiça.

Pela primeira vez, repito-o, essa família, da qual certos membros nunca se tinham visto, achou-se reunida. Somente o caçula, Alieksíéi, morava entre nós havia já um ano. É difícil falar dele neste preâm­bulo, antes de pô-lo em cena no romance. Devo, no entanto, estender-me a seu respeito para elucidar um ponto estranho, isto é, que meu herói aparece, desde a primeira cena, sob o hábito de um noviço. Havia um ano, com efeito, que morava em nosso mosteiro e se preparava para ali passar o resto de seus dias.

 

O TERCEIRO FILHO: ALIÓCHA

Tinha vinte anos (seus irmãos, Ivã e Dimítri, estavam então, res­pectivamente, com 24 e 28 anos). Devo prevenir que esse jovem Aliócha não era absolutamente um fanático, nem mesmo, pelo que creio, um místico. Na minha opinião, era simplesmente um filantropo na dianteira do seu tempo, e, se escolhera a vida monástica, era porque então somente ela o atraía e representava para ele a ascensão ideal para o amor radioso de sua alma liberta das trevas e do ódio daqui embaixo. Atraía-o essa via unicamente por­que havia nela encontrado um ser excepcional a seus olhos, o nosso famoso stáriets[2] Zósima, ao qual se ligara com todo o fervor noviço de seu coração sedento. Convenho que era ele já bastante estranho, tendo isso começado desde o berço. Já contei que, tendo perdido sua mãe aos quatro anos, dela se lembrou toda a sua vida, de seu rosto, de suas carícias, "como se eu a visse viva". Semelhantes recordações podem persistir (cada qual o sabe), mesmo numa idade mais tenra, mas não permanecem como pontos luminosos nas trevas, como o fragmento de um imenso quadro que tivesse desaparecido. Era o caso para ele: lembrava-se duma suave noite de verão, da janela aberta aos raios oblíquos do sol poente; a um canto do quarto, uma ima­gem santa com a lâmpada acesa e, diante da imagem, sua mãe ajoelhada, soluçando como numa crise de nervos, lançando gemidos e exclamações. Ela o tomara em seus braços, apertando-o a ponto de sufocá-lo, e implorava por ele à Santa Virgem, afrouxando seu amplexo para empurrá-lo para a imagem como a pô-lo sob sua proteção... mas a ama acorre e arranca-o, apavorada, dos braços de sua mãe. Tal era a cena! Aliócha lembrava-se do rosto de sua mãe, exaltado, mas sublime, segundo suas recordações. Mas não gostava de falar disso. Na sua infância e na sua mocidade, era antes concentrado e até mes­mo taciturno, não por timidez ou selvageria, pelo contrário, mas por uma espécie de preocupação interior tão profunda que o fazia esque­cer-se dos que o cercavam. Mas gostava de seus semelhantes, toda a sua vida teve fé neles, sem passar jamais por simplório ou ingênuo. Algo nele revelava que não queria ser o juiz alheio, nem censurar as pessoas ou condená-las por preço algum. Parecia mesmo tudo ad­mitir, sem reprovação, embora muitas vezes com profunda melanco­lia. Bem mais ainda, conseguira neste sentido ficar inacessível ao es­panto e ao medo, desde sua primeira mocidade. Chegado aos vinte anos à casa de seu pai, num foco de baixo deboche, ele, casto e puro, retirava-se em silêncio, quando a vida se lhe tornava intolerável, mas sem testemunhar a ninguém reprovação alguma nem desprezo. Tendo seu pai sido outrora parasita e, por conseqüência, sutil e sensível às ofensas, acolheu-o a princípio de má-vontade. "Ele se cala", dizia ele, "mas nem por isso deixa de pensar. " Entretanto, não tardou em bei­já-lo, em acariciá-lo; eram, na verdade, lágrimas e um enternecimento de bêbedo, mas via-se que o amava com um amor sincero, profun­do, que até então fora incapaz de sentir por quem quer que fosse... Sim, aquele adolescente era amado por todos, em toda parte aonde fosse, e isto desde sua infância. Na família de seu benfeitor, Iefim Pietróvitch Poliénov, tinham-se de tal modo ligado a ele que todos o consideravam como filho da casa. Ora, entrara em casa deles numa idade em que a criança é ainda incapaz de cálculo e de astúcia, em que ignora as intrigas que atraem o favor e a arte de se fazer amar. Esse dom de despertar a simpatia era por conseqüência nele natural, espontâneo, sem artifício. O mesmo ocorria na escola e, no entanto, as crianças como Aliócha atraem a desconfiança de seus camaradas, suas zombarias e, por vezes, o ódio. Desde a infância, gostava ele, por exemplo, de isolar-se para sonhar, para ler num canto; contudo, foi objeto de afeição geral durante sua permanência na escola. Não era brincalhão, nem mesmo alegre; observando-se, via-se depressa que não era melancolia, mas, pelo contrário, uma disposição igual e serena. Entre seus condiscípulos, jamais queria pôr-se à frente. Por esta razão, talvez, jamais temia alguém e os rapazes notavam que, longe de orgulhar-se disso, parecia ignorar sua ousadia, sua intrepidez. Não era rancoroso. Uma hora após ter sido ofendido, respondia ao ofensor ou dirigia-lhe ele próprio a palavra, com um ar confiante, tranqüilo, como se nada se tivesse passado entre eles. Não parecia então ter es­quecido a ofensa, ou decidido perdoá-la, mas não se considerava ofen­dido e isto fazia com que conquistasse o coração dos meninos. Um só traço de seu caráter incitava freqüentemente todos os seus camaradas a zombarem dele, não por maldade, mas por divertimento. Era dum pudor, duma castidade exaltada, feroz. Não podia suportar certas pala­vras e certas conversas a respeito de mulheres. Essas "certas" palavras e conversas são infelizmente tradicionais nas escolas. Jovens de alma e coração puros, quase crianças ainda, gostam muitas vezes de entre­ter-se com cenas e imagens, a respeito das quais os próprios soldados nem sempre falam; aliás, estes últimos sabem menos a este respeito que os rapazes de nossa sociedade culta. Não há ainda aí, admito-o, cor­rupção moral, nem verdadeiro cinismo, mas a aparência disso; e isso passa freqüentemente aos olhos deles como algo de delicado, de fino, digno de ser imitado. Vendo Aliócha Karamázov tapar rapidamente os ouvidos, quando se falava "daquilo", formavam por vezes círculos em redor dele, afastavam suas mãos à força e gritavam-lhe obscenidades. Alieksiéi debatia-se, deitava-se no chão, ocultando o rosto; suportava a ofensa em silêncio e sem se zangar. Por fim deixavam-no em re­pouso, cessavam de chamá-lo de "mocinha", sentiam mesmo compaixão por ele. Na classe, era um dos melhores alunos, mas nunca obteve o primeiro lugar.

Após a morte de Iefim Pietróvitch, Aliócha passou ainda dois anos no ginásio. A viúva partiu em breve para uma longa viagem à Itália, com toda a sua família, que se compunha de mulheres. O rapaz foi morar em casa de parentes afastados do defunto, duas senhoras que ele jamais vira. Ignorava as condições; era aliás nele um traço bastante característico o jamais inquietar-se à custa de quem vivia. A este res­peito, era totalmente o contrário de seu irmão mais velho, Ivã, que conhecera a pobreza nos seus dois primeiros anos de universidade, vi­vendo de seu trabalho, e que havia sofrido, desde sua infância, por ter de comer o pão de um benfeitor. Mas não se podia julgar severamen­te essa particularidade do caráter de Alieksiéi, porque bastava conhe­cê-lo um pouco para que se ficasse convencido de que era um desses inocentes capazes de dar todo o seu capital a uma boa obra, ou mesmo a um cavalheiro de indústria, se lho pedisse. Em geral ignorava o valor do dinheiro, em sentido figurado, entenda-se. Quando lhe davam dinheiro não sabia o que fazer dele durante semanas ou gastava-o num piscar de olhos. Piotr Alieksándrovitch Miúsov, bastante meticuloso no que se refere a dinheiro e honestidade burguesa, tendo tido mais tarde ocasião de observar Alieksiéi, caracterizou-o desta maneira: "Eis talvez o único homem no mundo que, se ficasse sem recursos numa grande cidade desconhecida, não morreria de fome, nem de frio, porque imediatamente o nutririam, viriam em seu auxílio, senão ele mesmo se livraria logo de apertos, sem trabalho, nem humilhação, e seria um prazer para os outros prestar-lhe serviços".

No ginásio, não terminou seus estudos: restava-lhe ainda um ano, quando declarou de repente àquelas senhoras que partia para a casa de seu pai por causa de um negócio que lhe viera à cabeça. As senhoras lamentaram-no muito; não queriam deixá-lo partir. A viagem custava muito pouco, e não deixaram elas que ele empenhasse o relógio que lhe tinha dado a família de seu benfeitor, antes de partir para o estrangeiro; foi abundantemente provido de dinheiro, bem como de roupa branca e vestes, mas ele devolveu-lhes a metade da soma declarando que fazia questão de viajar em terceira classe. Como seu pai lhe perguntasse por que viera antes de ter acabado seus estudos, não respondeu nada, mas mostrou-se mais pensativo que de costume. Em breve verificou-se que ele procurava o tumulo de sua mãe. Confessou mesmo não ter vindo senão para isso. Mas não era provavelmente a única causa de sua chegada. Sem dúvida, ignorava então que não teria podido explicar ele mesmo com certeza o que havia de súbito surgido em seu íntimo para arrastá-lo irresistivelmente a uma via nova, desconhecida. Fiódor Pávlovitch não pôde indicar-lhe o tumulo de sua mãe, porque ali jamais voltara e esquecera o lugar após tantos anos...

Falemos de Fiódor Pávlovitch. Ficara muito tempo ausente de nossa cidade. Três ou quatro anos após a morte de sua segunda mu­lher, partiu para o sul da Rússia e chegou por fim a Odessa, onde pas­sou vários anos. Travou conhecimento, segundo suas próprias palavras, com "muitos judeus, judias e judotes de toda laia", e acabou por ser recebido "não só em casa dos judeus, mas também em casa dos israelitas". É preciso crer que, durante esse período, aperfeiçoara a arte de juntar e de subtrair dinheiro. Reapareceu em nossa cidade três anos somente antes da chegada de Aliócha. Seus antigos conhecidos acharam-no bastante envelhecido, se bem que não fosse muito idoso. Mostrou-se mais descarado do que nunca: o antigo bufão experimen­tava agora a necessidade de rir à custa dos outros. Gostava de fre­qüentar os bordéis duma maneira mais repugnante do que outrora e, graças a ele, novos cabarés abriram-se em nosso distrito. Atribuíam-lhe um capital de 100 000 rublos ou quase, e dentro em breve muitas pessoas tornaram-se seus devedores, em troca de sólidas garantias. Nos últimos tempos, ficara enrugado, começava a perder o equilíbrio temperamental e o controle de si mesmo; caiu numa espécie de idiotismo, começando por uma coisa e acabando por outra, incapaz de concentrar-se e embriagando-se cada vez mais. Sem aquele mesmo criado, Gregório, que havia também envelhecido muito e o vigiava por vezes como um guia. a existência de Fiódor Pávlovitch teria sido eriçada de dificuldades. A chegada de Aliócha influiu sobre ele do ponto de vista moral, e recordações, que dormiam desde muito tempo, desper­taram-se na alma daquele velho prematuro. "Sabes", repetia ele a seu filho, observando-o, "que te pareces com a endemoniada?" Era assim que chamava sua segunda mulher. Foi o criado Gregório quem indicou a Aliócha o tumulo da "endemoniada". Conduziu-o ao cemitério, mos­trou-lhe num canto afastado uma placa de ferro fundido, modesta mas decente, em que estavam gravados o nome, a condição, a idade da de­funta, com a data de sua morte: embaixo figurava uma quadra, como se lê freqüentemente sobre o tumulo das pessoas da classe média. Coisa de espantar: aquela laje era obra de Gregório. Fora ele que a coloca­ra, às suas custas, sobre o tumulo da pobre - "endemoniada", depois de ter muitas vezes importunado seu patrão com suas alusões; este partira afinal para Odessa, dando de ombros a respeito de túmulos e de todas as suas recordações. Aliócha não mostrou nenhuma emoção especial diante do tumulo de sua mãe; prestou atenção ao relato grave que lhe fez Gregório a respeito da colocação da laje, permaneceu curvado e retirou-se sem ter pronunciado uma palavra. Depois, não voltou mais ao cemitério, talvez por um ano inteiro. Mas esse episódio produziu em Fiódor Pávlovitch um efeito bastante original. Pegou 1000 rublos e levou-os ao nosso mosteiro para o repouso da alma de sua mulher, não a segunda, a "endemoniada", mas a primeira, aquela que lhe batia. Na mesma noite, embriagou-se e falou mal dos monges na presença de Aliócha. Ele próprio estava longe de ter sentimentos religiosos; talvez jamais tivesse posto uma vela de 5 copeques diante de uma imagem. Os sentimentos e o pensamento de semelhantes indivíduos têm por vezes impulsos tão bruscos quanto estranhos.

Já disse que ele havia ficado bastante enrugado. Sua fisionomia trazia então os traços reveladores da existência que levara. Às peque­nas bolsas que pendiam sob seus olhinhos sempre descarados, descon­fiados, maliciosos, às rugas profundas que sulcavam sua cara gorda vinha juntar-se, sob seu queixo pontudo, um gordo pomo-de-adão, carnudo, que lhe dava o ar de um luxurioso repelente. Juntai a isto uma larga boca de carniceiro, de lábios intumescidos, em que apareciam os cacos enegrecidos de seus dentes apodrecidos. Espalhava saliva toda vez que falava. De resto, gostava de zombar de sua figura, se bem que ela lhe agradasse, sobretudo seu nariz, não muito grande, mas bastante reduzido e curvo. "Um verdadeiro nariz romano'*, dizia ele. "Com meu pomo-de-adão, dir-se-ia um perfeito patrício da decadência. '* Orgulhava-se disso.

Algum tempo depois da descoberta do tumulo de sua mãe, decla­rou-lhe Aliócha, inesperadamente, que queria entrar para o convento onde os monges estavam dispostos a admiti-lo como noviço. Acrescen­tou que era seu mais caro desejo e que lhe implorava o consentimento paterno. O velho já sabia que o stáríets Zósima produzira sobre seu "manso rapaz" uma impressão particular.

— Esse stáríets é seguramente entre eles o monge mais honesto — declarou, depois de ter ouvido Aliócha, num silêncio pensativo, mas sem se espantar com o pedido dele. — Hum! Eis aonde queres ir, meu manso rapaz! — Estava meio bêbedo. Abria-se no seu rosto um sorriso de ébrio, marcado de astúcia e finura. — Hum! Previa que irias chegar a isso, imagina tu! Era bem isto que tinhas em visita. Pois bem, seja! Tens 2 000 rublos, será teu dote; quanto a mim, meu anjo, não te abandonarei nunca e pagarei por ti o que for preciso, se o pedirem. Senão, de que serve tomarmos compromisso, não é ver­dade? Precisas de tanto dinheiro quanto de alpiste um canário... Hum! Sabes? Há um convento, com um lugarejo, nos arredores da cidade, habitado, como ninguém o ignora, pelas "esposas dos monges", é assim que as chamam. São umas trinta, creio... Visitei-o. Ê interessante, no seu gênero. Interrompe a monotonia. Por desgraça, só se encon­tram ali russas, nem uma francesa. Poder-se-ia tê-las, não faltam fun­dos para isso. Quando o souberem, virão. Aqui, não há mulheres, mas duzentos monges. Jejuam conscientemente. Convenho... Hum! Com que então, queres fazer-te monge? Causas-me dó> Aliócha; na verdade, tinha-te criado afeição... Aliás, eis uma boa ocasião: reza por nós, pecadores de consciência sobrecarregada. Tenho muitas vezes perguntado a mim mesmo: quem rezará um dia por mim? Meu querido rapaz, sou totalmente ignorante a este respeito, talvez o saibas, não? Totalmente. Mas vês, malgrado minha estupidez, reflito por vezes; penso que os diabos me arrastarão com toda a certeza com seus gan­chos, após a minha morte. E digo a mim mesmo: donde vêm esses ganchos? De que são? De ferro? Onde os forjam? Será que eles possuem uma fábrica?  Os religiosos, por exemplo, estão convencidos de que o inferno tem teto. Ora, tenho muita vontade de acreditar no inferno, mas sem teto, é mais delicado, mais iluminado, como entre os luteranos. No fundo, não será a mesma coisa, com ou sem teto? Eis a dificuldade! Ora, se não há teto, então não há ganchos. Mas seria incrível: quem me arrastaria então, com ganchos? Porque, se não me arrastarem, onde estaria a justiça neste mundo? Seria preciso inventar esses ganchos, especialmente para mim, para mim só. Se soubesses, Aliócha, que descarado sou eu!...

— Não há ganchos lá — declarou Aliócha, em voz baixa, olhando seriamente para seu pai.

— Ah! só há sombras de ganchos. Sei, sei. Era assim que um francês descrevia o inferno. Vai vu Vombre d'un cocher qui, avec Vombre d*une brosse, frottait Vombre d'un carrosse[3]. Donde sabes tu, meu caro, que não há ganchos? Uma vez entre os monges, mudaras de tom. Mas, afinal, parte, vai destrinçar a verdade e vem informar-me. Será mais fácil ir para o outro mundo sabendo o que lá se passa. Será mais conveniente para ti estar entre os monges do que em minha casa, velho bêbedo, com mulheres... se bem que estejas, como um anjo, acima de tudo isso. Talvez o mesmo aconteça lá e, se te deixo ir, é que conto com isso. Não és tolo. Teu ardor se extinguira e voltarás curado. Quanto a mim, esperar-te-ei, porque sinto que és o único neste mundo que não me censurou, meu querido rapaz, não posso deixar de senti-lo!...

E pôs-se a choramingar. Estava sentimental. Sim, era mau e sen­timental.

 

OS "STÁRTSI"

O leitor imaginará talvez que o meu herói fosse um indivíduo doentio e extático, um pálido sonhador, macilento, atacado de tuberculose. Pelo contrário, Aliócha, que tinha então dezenove anos, era um jovem bem feito, de faces vermelhas, de olhar límpido, transbordante de saúde. Era mesmo bastante belo, de talhe esbelto, cabelos castanhos, rosto regular, embora um pouco alongado, olhos dum cinzento-escuro, brilhantes, ras­gados, pensativo e parecendo bastante calmo. Dir-se-á talvez que faces vermelhas não impedem de ser fanático ou místico; ora, parece-me que Aliócha era, mais que qualquer outra pessoa, realista. Oh! bem de­certo, no convento cria perfeitamente nos milagres, mas, na minha opi­nião, os milagres jamais perturbarão o realista. Não são eles que o levam a crer. Um verdadeiro realista, se é incrédulo, encontra sempre em si a força e faculdade de não crer mesmo no milagre e, se este último se apresenta como um fato incontestável, duvidará de seus sen­tidos em vez mesmo de admitir o fato. Se o admitir, será como um fato natural, mas desconhecido dele até então. No realista, a fé não nasce do milagre, mas o milagre da fé. Se o realista adquire a fé, deve necessariamente, em virtude de seu realismo, admitir também o milagre. O apóstolo Tome declarou que não acreditaria enquanto não visse; em seguida, diz: "Meu Senhor e meu Deus!" Fora o milagre que o obrigara a crer? Muito provavelmente não, mas ele acreditava unicamente por­que desejava crer; talvez tivesse já a fé inteira nas dobras ocultas de seu coração, mesmo quando declarava: "Só acreditarei depois que tiver visto.

Dir-se-á talvez que Áliócha era obtuso, pouco desenvolvido, que não terminara seus estudos. Este último fato é exato, mas seria bastante injusto dizer que fosse ele obtuso ou estúpido. Repito o que já disse: escolhera aquela via unicamente porque somente ela o atraia então e representava a ascensão ideal para a luz de sua alma desprendida das trevas. Além disso, era aquele rapaz da época mais recente, isto é, leal, ávido de verdade, procurando-a cora fé, e, uma vez encontrada, querendo dela participar com toda a força de sua alma, querendo rea­lizações imediatas e pronto a tudo sacrificar com este fim, até mesmo sua vida. Entretanto, esses rapazes não compreendem, desgraçadamente, que sacrificar sua vida é a coisa mais fácil em muitos casos, ao passo que consagrar, por exemplo, cinco ou seis anos de sua bela mocidade ao estudo e à ciência — não fosse senão para decuplicar suas forças, a fim de servir à verdade e atingir o fim proposto — é um sacrifício que os ultrapassa. Aliócha só fizera escolher a via oposta a todas as outras, mas com a mesma sede de realização imediata. Logo que se convenceu, após sérias reflexões, de que Deus e a imortalidade exis­tem, disse a si mesmo, naturalmente: "Quero viver para a imortalidade, não admito compromissos'*. Igualmente, se tivesse concluído que não há nem Deus nem imortalidade, ter-se-ia tornado imediatamente ateu e socialista (porque o socialismo não é apenas a questão operária ou do quarto Estado, mas é sobretudo a questão do ateísmo, de sua encarnação contemporânea, a questão da torre de Babel, que se construiu sem Deus, não para atingir os céus da terra, mas para abaixar os céus até a terra). Parecia estranho e impossível a Aliócha viver como antes. Está dito: "Abandona tudo quanto tens e segue-me, se queres ser per­feito". Aliócha dizia a si mesmo: "Não posso dar um lugar de "tudo' 2 rublos e em lugar de 'segue-me' ir somente à missa". Entre as re­cordações de sua tenra infância, lembrava-se talvez de nosso mosteiro, aonde sua mãe talvez o levara para assistir aos ofícios. Talvez tivesse ali sofrido a influência dos raios oblíquos do sol poente diante da ima­gem para a qual o voltava sua mãe, a endemoniada. Chegou entre nós pensativo, unicamente para ver se se tratava aqui de tudo ou somente de 2 rublos, e encontrou no convento aquele stáriets.

Era o stáriets Zósima, como já o expliquei acima; seria preciso dizer algumas palavras a propósito dos stártsi nos nossos mosteiros e la­mento não ter, neste domínio, toda a competência necessária. Tentarei, no entanto, fazê-lo a grandes traços. Os especialistas competentes asse­guram que a instituição dos stártsi apareceu nos mosteiros russos em época recente, há menos de um século, quando, em todo o Oriente ortodoxo, sobretudo no Sinai e no Monte Atos, existe ela desde bem mais de mil anos. Pretende-se que os stártsi existiam na Rússia em tempos bastante antigos, ou que deveriam ter existido, mas que, em conseqüência das calamidades que sobrevieram, o jugo tártaro, as per­turbações, a interrupção das antigas relações com o Oriente, após a queda de Constantinopla, essa instituição se perdeu entre nós e os stártsi desapareceram. Foi ressuscitada por um dos maiores ascetas, Paísi Vielitchkóvski, e por seus discípulos, mas até o presente, após um século, existe ela em muito poucos conventos e foi mesmo, ou pouco faltou, alvo de perseguições, como uma inovação desconhecida na Rússia. Florescia sobretudo no famoso Eremitério de Kózilhskaia Optínaia, Ignoro quando e por quem foi ela implantada em nosso mosteiro, mas já se haviam sucedido ali três stártsi, dos quais Zósima era o último. Estava quase a sucumbir à fraqueza e às doenças e não se sabia por quem substituí-lo. Para nosso mosteiro, era essa uma séria questão, porque, até o presente, nada o havia distinguido; não possuía nem re­líquias santas nem ícones miraculosos, ligando-se as tradições gloriosas à nossa história. Faltavam-lhe igualmente os altos fatos históricos e os serviços prestados à pátria. Tornara-se florescente e famoso em toda a Rússia, graças a seus stártsi, que os peregrinos vinham em multidão ver e ouvir de todos os pontos da Rússia, a milhares de verstas. Que é um stáriets? O stáriets é aquele que absorve vossa alma e vossa von­tade nas suas. Tendo escolhido um stáriets, vós abdicais de vossa von­tade e lha entregais com toda a obediência, com inteira resignação. O penitente submete-se voluntariamente a essa prova, a essa dura apren­dizagem, na esperança de, após um longo estágio, vencer-se a si mes­mo, dominar-se a ponto de atingir, afinal, depois de ter obedecido toda a sua vida, a liberdade perfeita, isto é, a liberdade para consigo mes­mo, e evitar a sorte daqueles que viveram sem se encontrar a si mes­mos. Esta invenção, isto é, a instituição dos stártsi, não é teórica, mas tirada, no Oriente, de uma prática milenar. As obrigações para com o stáriets são bem diversas da "obediência** habitual que sempre existiu igualmente nos mosteiros russos. Lá, a confissão de todos os militantes ao stáriets é perpétua, e o elo que liga o confessor ao confessado, indis­solúvel. Conta-se que, nos tempos antigos do cristianismo, um noviço, depois de haver deixado de cumprir um dever prescrito pelo seu stáriets, abandonou o mosteiro para dirigir-se a outro país, da Síria ao Egito. Ali, praticou atos sublimes e foi por fim julgado digno de sofrer o martírio pela fé. Já a Igreja ia enterrá-lo, reverenciando-o como um santo, quando o diácono proferiu: "Que os catecúmenos saiam!*', o caixão que continha o corpo do mártir foi arrancado de seu lugar e projetado fora do templo três vezes em seguida. Soube-se por fim que aquele santo mártir havia infringido a obediência e abandonado o seu stáriets e que, por conseqüência, não podia ser perdoado sem o consen­timento deste último, malgrado sua vida sublime. Mas quando o stáriets, chamado, o desligou da obediência, pôde-se enterrá-lo sem dificuldade. Sem dúvida, não passa isso de uma antiga lenda, mas eis um fato recente. Um religioso cuidava de sua salvação no Monte Atos, ao qual queria de toda a sua alma, como um santuário e um retiro tranqüilo, quando seu stáriets lhe ordenou,, de repente, que partisse para ir primeiro a Jerusalém, visitar os Lugares Santos,, depois voltar ao norte, na Sibéria. "Lá é que é teu lugar e não aqui.'* Consternado e desolado, o monge foi procurar o patriarca em Constantinopla e suplicou-lhe que o libertasse da obediência, mas o chefe da Igreja res­pondeu-lhe que não somente ele, patriarca, não podia desligá-lo, mas não havia nenhum poder no mundo capaz de fazê-lo, exceto o stáriets do qual ele dependia. Vê-se dessa forma que, em certos casos, os stártsi estão investidos duma autoridade sem limites e incompreensível. Eis por que, em muitos de nossos mosteiros, essa instituição foi a princípio quase perseguida. No entanto o povo testemunhou imediatamente grande veneração pelos stártsi. Por isso o povinho e as pessoas mais distintas vinham em multidão prosternar-se diante dos stártsi de nosso mosteiro e lhes confessavam suas dúvidas, seus pecados, seus sofrimentos, im­plorando conselhos e direções. Vendo o que, os adversários dos stártsi lhes censuravam, entre outras acusações, envilecerem arbitrariamente o sacramento da confissão, se bem que as confidencias ininterruptas do noviço ou dum leigo ao stáriets não tivessem de modo algum o caráter dum sacramento. Seja como for, a instituição dos stártsi manteve-se e implanta-se pouco a pouco nos mosteiros russos. É verdade que esse meio experimentado e já milenar de regeneração moral, que faz o homem passar da escravidão à liberdade, aperfeiçoando-o, pode também tornar-se uma arma de dois gumes: em lugar da humildade e do domínio de si mesmo, pode desenvolver um orgulho satânico e fazer um escravo em lugar de um homem livre.

O stáriets Zósima tinha 65 anos; descendia duma família de proprie­tários; na sua mocidade servira no Exército como oficial, no Cáucaso. Sem dúvida, Aliócha ficou impressionado por certa qualidade especial da alma dele. Vivia na mesma cela do stáriets, que muito o amava e o mantinha a seu lado. Ê preciso notar que, vivendo no mosteiro, não estava Aliócha preso por nenhum laço; podia ir aonde bem quisesse, dias inteiros, e, se usava batina, era voluntariamente, para não se dis­tinguir de ninguém no mosteiro. Talvez a imaginação juvenil de Aliócha tivesse sido muito impressionada pela força e pela glória que cercavam seu stáriets como uma auréola. A propósito do stáriets Zósima, muitos contavam que, à força de acolher, desde numerosos anos, todos aqueles que vinham expandir seu coração, ávidos de seus conselhos* e de suas consolações, havia, para o fim, adquirido grande perspicácia. Ao primeiro olhar lançado sobre um desconhecido, adivinhava o motivo de sua vinda, o que lhe era preciso e até mesmo o que lhe atormentava a consciência. O- penitente ficava espantado, confuso e por vezes mesmo apavorado por sentir-se penetrado, antes de ter proferido uma palavra. Aliócha notara que muitos daqueles que vinham pela primeira vez entreter-se em particular com o stáriets entravam em seu aposento com temor e inquietação; quase todos saíam radiantes e o rosto mais sombrio ilu­minava-se de satisfação. O que o surpreendia também é que o stáriets, longe de ser severo, parecia mesmo satisfeito. Os monges diziam dele que se ligava aos mais pecadores e os estimava na proporção de seus pecados. Mesmo para o fim de sua vida, contava o stáriets, entre os monges, inimigos e invejosos, mas seu numero diminuía, se bem que figurassem nele personalidades importantes do convento. Tal era um dos mais antigos religiosos, por demais taciturno e jejuador extraordiná­rio. No entanto, a grande maioria era partidária do stáriets Zósima e muitos o amavam sinceramente, de todo o seu coração; alguns lhe eram mesmo ligados quase fanàticamente. Estes diziam, mas em voz baixa, que era um santo, decerto, e, prevendo seu fim próximo, aguar­davam imediatos milagres que espalhariam grande glória sobre o mosteiro. Alieksiéi cria cegamente na força miraculosa do stáriets, da mesma maneira que acreditava no relato do caixão projetado fora da igreja. Entre as pessoas que levavam ao stáriets crianças ou parentes doentes, para que ele lhes impusesse as mãos ou rezasse uma oração em sua intenção, via Aliócha muitos voltarem em breve, por vezes no dia se­guinte, para agradecer-lhe de joelhos o ter-lhes curado seus doentes. Havia cura ou somente melhoria natural do estado deles? Aliócha nem sequer fazia a si mesmo a pergunta, porque acreditava absolutamente na força espiritual de seu mestre e a glória dele era como o seu próprio triunfo. Batia-lhe o coração e ficava radiante, sobretudo quando o stáriets saía a ter com a multidão dos peregrinos que o esperavam nas portas do eremitério, pessoas do povo vindas de todos os pontos da Rússia pura vê-lo e receber sua bênção. Prosternavam-se diante dele, choravam, beijavam seus pés e o lugar onde ele se achava, lançando gritos; as mulheres estendiam para ele seus filhos; traziam possessos. O stáriets falava-lhes, fazia uma curta oração, dava-lhes sua bênção, depois man­dava-os embora. Nos derradeiros tempos, a doença havia-o de tal modo enfraquecido que mal podia ele deixar sua cela e os peregrinos aguar-» davam sua saída para o mosteiro, por vezes dias inteiros. Aliócha não perguntava a si mesmo absolutamente por que eles o amavam tanto, por que se prosternavam diante dele com lágrimas de enternecimento, vendo seu rosto. Oh! Compreendia perfeitamente que para a alma resig­nada do simples povo russo, vergado sob o trabalho e o pesar, mas sobretudo sob a injustiça e o pecado contínuos — o seu e o do mundo — não há maior necessidade e consolo do que encontrar um santuário ou um santo, cair de joelhos, adorá-lo: "Se o pecado, a mentira, a tentação são nossa partilha, há no entanto em alguma parte do mundo um ser santo e sublime; possui a verdade, conhece-a; portanto, ela descerá um dia até nós e reinará sobre a terra inteira, como foi pro* metido". Aliócha sabia que é assim que o povo sente e até mesmo raciocina; compreendia isto, mas que o stáriets fosse precisamente esse santo, esse depositário da verdade divina aos olhos do povo, estava disso persuadido tanto quanto aqueles mujiques e aquelas mulheres doentes que lhe estendiam seus filhos. A convicção de que o stáriets, após sua morte, atrairia uma glória extraordinária para o mosteiro reinava na sua alma mais forte talvez do que entre os monges. Desde algum tem­po, seu coração aquecia-se sempre mais à labareda dum profundo en­tusiasmo interior. Não o perturbava absolutamente nada ver no stáriets um indivíduo isolado: "Dá no mesmo, há no seu coração o mistério da renovação para todos, esse poder que instaurará por fim a verdade na terra e todos serão santos, amar-se-ao uns aos outros; não haverá mais nem ricos nem pobres, nem elevados nem humilhados; todos serão como os filhos de Deus e será isto o advento do reino do Cristo". Eis com que sonhava o coração de Aliócha.

Parece que impressionou fortemente a Aliócha a chegada de seus dois irmãos, que ele não conhecia absolutamente até então. Ligara-se mais a Dimítri, se bem que este tivesse chegado mais tarde. Quanto a Ivã, interessava-se muito por ele, mas os dois jovens permaneciam es­tranhos um ao outro e, no entanto, dois meses se haviam passado durante os quais viam-se bastante freqüentemente. Aliócha era taciturno; além disso, parecia esperar não se sabia o que, ter vergonha de alguma coisa; muito embora tivesse notado no começo os olhares curiosos que lhe lançava seu irmão, cessou Ivã em breve de prestar-lhe atenção. Aliócha sentiu por isso alguma confusão. Atribuiu a indiferença de seu irmão à desigualdade de sua idade e de sua instrução. Mas tinha uma grande idéia. O pouco interesse que lhe testemunhava Ivã podia provir de uma causa que ele ignorava. Parecia este absorvido por algo de importante, como se visasse um alvo muito difícil, o que teria explicado sua distração a respeito dele. Alieksiéi perguntou igualmente a si mesmo senão havia naquilo o desprezo de um ateu sábio por um pobre noviço. Não podia sentir-se ofendido com tal desprezo, se é que ele existia, mas aguardava com um vago alarma, que ele próprio não explicava a si mesmo, no momento em que seu irmão queria aproximar-se dele. Seu irmão Dimítri falava de Ivã com o mais profundo respeito, num tom circunspecto. Contou a Aliócha os detalhes do importante negócio que havia aproximado estreitamente os dois mais velhos. O entusiasmo com que Dimítri falava de Ivã impressionava tanto mais Aliócha quanto, comparado a seu irmão, Dimítri era quase um ignorante; o contraste da personalidade deles e de seus caracteres era tão vivo que se teria dificilmente imaginado dois seres tão diferentes.

Foi então que teve lugar a entrevista, ou antes, a reunião, na cela do stariets, de todos os membros daquela família mal harmonizada, reunião que exerceu influência extraordinária sobre Aliócha. O pretexto que a motivou era na realidade mentiroso. O desacordo entre Dimítri e seu pai, a respeito da herança de sua mãe e das contas da propriedade, atingia então seu auge. As relações tinham-se envenenado a ponto de tornar-se insuportáveis. Foi Fiódor Pávlovitch quem sugeriu, por brin­cadeira, que se reunissem todos na cela do stariets Zósima; sem recorrer à sua intervenção, poderiam eles entender-se mais decentemente, sendo capazes a dignidade e a pessoa do stariets de impor a reconciliação. Dimítri, que jamais estivera em casa dele e jamais o vira, pensou que quisessem amedrontá-lo daquela maneira; mas, como ele próprio se censurava secretamente de muitas explosões bastante bruscas em sua querela com seu pai, aceitou o desafio. É preciso notar que não residia, como Ivã, em casa de seu pai, mas na outra extremidade da cidade. Piotr Alieksándrovitch Miúsov, que morava então em nossa cidade, agarrou-se a essa idéia. Liberal dos anos 40 e 50, livre-pensador e ateu, tomou neste caso uma parte extraordinária, por tédio, talvez, ou para se divertir. Tomou-o subitamente a fantasia de ver o mosteiro e o "santo". Como seu antigo processo contra o mosteiro durasse ainda — o litígio tinha por objeto a delimitação de suas terras e certos direitos de pesca e de corte —, apressou-se em aproveitar essa ocasião, sob o pretexto de entender-se com o padre abade, a fim de dar por terminado aquele negócio amigavelmente. Um visitante animado de tão boas intenções podia ser recebido no mosteiro com mais atenções que um simples curioso. Estas considerações fizeram com que se insistisse junto ao stariets, o qual, desde algum tempo, não deixava mais sua cela e recusava mesmo, por causa de sua doença, receber os simples visitantes. Deu seu consentimento e foi marcado o dia. "Quem me encarregou de decidir entre eles?*', declarou ele somente a Aliócha, com um sorriso.

Ao saber dessa reunião, ficou Aliócha muito perturbado. Se algum dos adversários em luta podia tomar aquela entrevista a sério, era seguramente seu irmão Dimítri, e somente ele; os outros iriam com intenções frívolas e talvez ofensivas para o stariets. Aliócha o compreendia bem. Seu irmão Ivã e Miúsov para ali se dirigiam levados pela curiosi­dade e seu pai para fazer o papel de palhaço, se bem que guardando silêncio. Conhecia-o a fundo. Repito-o, aquele rapaz não era tão ingênuo como todos o acreditavam. Aguardava com ansiedade o dia marcado. Sem dúvida levava muito em questão ver cessar por fim o desacordo na sua família. Mas preocupava-se sobretudo com o stariets; tremia por ele, pela sua glória, temendo as ofensas, particularmente as finas zombarias de Miúsov e as reticências do erudito Ivã. Queria mesmo tentar prevenir o stariets, falar-lhe a respeito daqueles visitantes eventuais, mas refletiu e calou-se. Na véspera do dia marcado, mandou dizer a Dimítri que o amava muito e esperava dele o cumprimento de sua promessa. Dimítri, que procurou em vão lembrar-se de ter prometido alguma coisa, respondeu-lhe por carta que faria tudo para evitar uma baixeza. Embora cheio de respeito pelo stariets e por Ivã, via naquilo uma armadilha ou uma comédia indigna. "Entretanto, preferirei engolir minha língua a faltar ao respeito ao santo homem que veneras", dizia Dimítri, ter­minando sua carta. Aliócha nem por isso ficou reconfortado.

 

A CHEGADA AO MOSTEIRO

Estava um dia magnífico, quente e claro. Era no fim de agosto. A entrevista com o stáriets fora marcada para imediatamente depois da última missa, às 11h30. Os nossos visitantes chegaram quase no fim da cerimônia, em duas carruagens. A primeira, uma elegante caleça puxada por dois cavalos de preço, estava ocupada por Piotr Alieksán-drovitch Miúsov e um parente afastado, Piotr Fomitch Kolgánov, de vinte anos de idade. Este rapaz preparava-se para entrar na universidade. Miúsov, de quem era ele hóspede, propunha-lhe levá-lo ao estrangeiro, a Zurique ou a Iena, para ali acabar seus estudos, mas ele não havia ainda tomado decisão. Pensativo e distraído, tinha um aspecto agradável, uma constituição robusta, a estatura bastante elevada. De olhar estra­nhamente fixo, o que é próprio das pessoas distraídas, olhava-nos por vezes muito tempo sem ver-nos; taciturno e algo embaraçado, acontecia-lhe — somente na intimidade — mostrar-se de repente bastante loquaz, veemente, jovial, rindo só Deus sabe de quê. Mas sua imaginação não passava de um fogo de palha, assim que se acendia logo se apagava. Andava sempre bem vestido e até mesmo com apuro. Possuidor de certa fortuna, tinha ainda mais em perspectiva. Entretinha com Aliócha relações amigáveis.

Fiódor Pávlovitch e seu filho tinham tomado lugar em uma caleça de aluguel bastante estragada, mas espaçosa, atrelada a dois velhos cavalos malhados de preto e branco, que seguiam a uma distância respeitável. Dimítri tinha sido prevenido na véspera da hora da entre­vista, mas estava atrasado. Os visitantes deixaram suas carruagens perto da cerca, na hospedaria, e transpuseram a pé as portas do mosteiro. Exceto Fiódor Pávlovitch, os três outros jamais tinham visto o mosteiro e Miúsov havia trinta anos que não entrava numa igreja. Olhava com certa curiosidade, assumindo um ar desenvolto. Mas o interior do mos­teiro, de parte a igreja e as dependências, aliás bastante banais, nada oferecia a seu espírito observador. Os derradeiros fiéis que saíam da igreja benziam-se de gorros nas mãos. Entre o povinho viam-se também pessoas de uma posição mais elevada: duas ou três damas, um velho general, todos hospedados na pousada. Mendigos cercaram nossos visi­tantes, mas ninguém lhes deu esmola. Somente Pietrucha Kolgánov tirou JO copeques de seu porta-moedas e, acanhado Deus sabe por que, introduziu-os rapidamente na mão de uma mulher* murmurando: "Reparta-os". Nenhum de seus companheiros lhe fez qualquer observação, o que teve como resultado aumentar-lhe a confusão.

Coisa estranha: deveriam deveras esperá-los e até mesmo testemu­nhar-lhes algumas atenções; um deles acabava de fazer um donativo de 1000 rublos, o outro era um proprietário bastante rico, que mantinha os monges mais ou menos sob sua dependência, no que dizia respeito à pesca, de acordo com o rumo que tomasse o processo. No entanto, nenhuma personalidade oficial se encontrava lá para recebê-los. Miúsov contemplava com ar distraído as lápides tumulares em redor da igreja e quis fazer a observação de que os ocupantes daqueles túmulos deviam ter pago bastante caro o direito de ser enterrados em um lugar tão "santo**, mas manteve-se em silêncio: sua ironia de liberal dava lugar à irritação.

— A quem, diabo, devemos dirigir-nos nesta casa onde todos man­dam?... Seria preciso sabê-lo, porque o tempo passa — murmurou ele, como consigo mesmo.

De repente, aproximou-se deles uma personagem calva, de idade ma­dura, numa ampla veste de verão e de olhos ternos. De chapéu na mão, apresentou-se, ceceando, como o proprietário de terras Maksímov, do governo de Tula. Deu-se conta imediatamente do embaraço daqueles senhores.

— O stáriets Zósima mora no eremitério, à parte, a quatrocentos passos do mosteiro; é preciso atravessar o bosquezinho...

— Sei bem — respondeu Fiódor Pávlovitch. — Não nos lembramos bem da estrada, pois faz muito tempo que não venho por aqui.

— Passem por aquela porta, depois sigam diretamente pelo bosque­zinho. Permitam-me que os acompanhe... eu mesmo... por aqui. por aqui...

Saíram da cerca e meteram-se no bosque. O proprietário Maksí­mov, de uns sessenta anos de idade, caminhava, ou antes, corria ao lado deles, examinando-os a todos com uma curiosidade incômoda. Esbugalhava os olhos.

— Fique o senhor sabendo que nós vamos à casa desse stáriets para tratar de um negócio pessoal — observou friamente Miúsov. — Obtivemos, por assim dizer, "uma audiência" dessa personagem; de modo que, malgrado nossa gratidão, não lhe propomos que entre conosco.

— Já estive ali... Un chevalier parfait — declarou, dando um piparote no ar, o proprietário.

— Quem é ce chevalier? — perguntou Miúsov.

— O stáriets, o famoso stáriets... a glória e a honra do mos­teiro, Zósima. Aquele stáriets, vejam...

Sua tagarelice foi interrompida por um monge, com capuz, de pe­quena estatura, pálido e desfeito, que alcançou o grupo. Fiódor Pávlo­vitch e Miúsov pararam. O monge saudou-os com grande polidez e lhes disse:

— Senhores, o padre abade convida-os a todos a jantar, depois da visita ao eremitério. É à 1 hora em ponto. O senhor também — disse ele a Maksímov.

— Não haverei de faltar — exclamou Fiódor Pávlovitch, encan­tado pelo convite. — O senhor sabe que todos prometemos portar-nos decentemente... E o senhor virá, Piotr Alieksándrovitch?

— Como não? Por que estou aqui, senão para observar os costumes deles? Uma só coisa me embaraça, Fiódor Pávlovitch, é encontrar-me agora com o senhor.

— Sim, Dimítri Fiódorovitch ainda não chegou.

— Seria perfeito se ele faltasse; acredita o senhor que seja isso uni prazer para mim, essa estória dos senhores e o senhor ainda de quebra? Estaremos lá para o almoço; agradeça ao padre abade — disse ele ao monge.

— Perdão, tenho de conduzi-los à casa do stáriets — respondeu este.

— Neste caso vou diretamente à casa do padre abade, sim, vou durante este tempo à casa do padre abade — gorjeou Maksímov.

— O padre abade está muito ocupado neste momento, mas será como o senhor quiser... — disse o monge, perplexo.

— Que sujeito cacete esse velho! — observou Miúsov, quando Maksímov voltou ao mosteiro.

— Parece-se com Von Sohn — declarou, de repente, Fiódor Pávlovitch.

— É tudo quanto o senhor sabe... Em que se parece ele com Von Sohn? O senhor mesmo já o viu?

— Vi-lhe a fotografia. Se bem que as feições não sejam idên­ticas, há qualquer coisa de indefinível. É totalmente o sósia de Von Sohn. Reconheço-o apenas pela fisionomia.

— Ah! Talvez seja o senhor entendido nisso. Todavia, Fiódor Pávlovitch, o senhor acaba de lembrar que prometemos portar-nos decentemente; não se esqueça disto. Digo-lhe que se contenha. Se o senhor começa a fazer-se de palhaço, não tenho eu a intenção de ser metido no mesmo cesto que o senhor. Veja esse homem — disse ele dirigindo-se ao monge —, tenho medo de ir com ele à casa de pessoas distintas.

Um pálido sorriso, não desprovido de astúcia, apareceu nos lábios exangues do monge, que, no entanto, nada respondeu, deixando ver claramente que se calava pela consciência de sua própria dignidade. Miúsov franziu ainda mais o cenho.

"Oh! Que o diabo leve a todas essas criaturas de exterior plas­mado pelos séculos, mas cujo íntimo não é senão charlatanismo e absurdo!", dizia ele entre si.

— Eis o eremitério, chegamos — gritou Fiódor Pávlovitch, que se pôs a fazer grandes sinais-da-cruz diante dos santos pintados por cima e de lado do portal.

— Cada qual vive como lhe agrada — declarou ele. — E o pro­vérbio russo diz com razão: "A monge duma outra ordem não imponhas tua regra". Há aqui 25 bons padres que tratam de sua salvação, contemplam-se uns aos outros e comem couves. E nem uma mulher transpôs esse portal, eis o que é espantoso. No entanto, ouvi dizer que o stáriets recebia senhoras — disse ele ao monge.

— As mulheres do povo esperam-no lá embaixo, perto da galeria, veja, estão sentadas no chão. Para as senhoras da sociedade prepara­ram dois quartos na própria galeria, mas fora da cerca, veja aquelas janelas; o stáriets ali chega por um corredor interno, quando sua saúde lho permite. Há uma Senhora Khokhlakova, proprietária em Khárkov, que quer consultá-lo a respeito de sua filha, atacada de fraqueza. Teve de prometer vir vê-las, se bem que nestes últimos tempos esteja muito fraco e não se mostre em público.

— Há, pois, no eremitério uma porta entreaberta do lado das senhoras. Não estou fazendo mau juízo, meu padre! No Monte Atos, o senhor deve saber, não somente são proibidas as visitas femininas, mas não se tolera nenhuma mulher, nem fêmea, galinhas, peruas, bezerras...

— Fiódor Pávlovitch, vou-me embora e deixo-o sozinho. Vão man­dá-lo embora a braços, sou eu que lho predigo.

— Em que é que eu o incomodo, Piotr Alieksándrovitch? Olhe! — exclamou ele, de repente, uma vez transposta a cerca. — Veja em que vale de rosas eles moram!

Efetivamente, se bem que não houvesse então rosas, via-se uma profusão de flores outonais, magníficas e raras. Mãos experimentadas deviam cuidar delas. Havia canteiros em redor das igrejas e entre os túmulos. Flores cercavam ainda a casinha de madeira, um rés-do-chão, precedido duma galeria, onde se encontrava a cela do stáriets.

— Era assim também no tempo do stáriets precedente, Varsonófi? Dizem que ele não gostava da elegância, arrebatáva-se e recebia mesmo as senhoras às bengaladas — observou Fiódor Pávlovitch, su­bindo o patamar.

— O stáriets Varsonófi parecia por vezes, com efeito, um pobre de espírito, mas exagera-se muito a este respeito. Nunca bateu em ninguém com o báculo — respondeu o monge. Agora, senhores, um minuto, vou anunciá-los.

— Fiódor Pávlovitch, pela derradeira vez lho digo, comporte-se bem, do contrário, ai do senhor! — murmurou ainda uma vez Miúsov.

— Gostaria bem de saber o que o comove dessa maneira — obser­vou Fiódor Pávlovitch, zombeteiro. — São seus pecados que o ame­drontam? Porque dizem que, com um simples olhar, adivinha ele com quem está tratando. Mas como pode fazer tal caso da opinião deles o senhor, um parisiense, um progressista? Palavra, o senhor me espanta!

Miúsov não teve oportunidade de responder a este sarcasmo: convi­davam-nos a entrar. Sentiu ligeira irritação. "Pois bem! Sei de antemão que, nervoso como estou, irei discutir, acalorar-me... rebaixar-me, a mim e a minhas idéias", disse a si mesmo.

 

UM VELHO PALHAÇO

Entraram quase ao mesmo tempo que o stáriets, que, desde a che­gada deles, havia saído de seu quarto de dormir. Na cela, tinham sido precedidos por dois religiosos do eremitério: um era o padre biblio­tecário, o outro o Padre Paísi, doente, malgrado sua idade pouco avançada, mas erudito, segundo se dizia. Achava-se ainda ali um rapaz (ficou de pé todo o tempo), parecendo ter 22 anos de idade, de sobrecasaca, seminarista e futuro teólogo, protegido pelo mosteiro e pela confraria. Era de estatura bastante elevada, tinha o rosto fresco, os pômulos salientes, com olhinhos castanhos de olhar inteligente. Seu rosto exprimia deferência, mas sem obsequiosidade. Não cumpri­mentou os visitantes, considerando-se não como igual deles, mas como um subalterno.

O stáriets Zósima apareceu, em companhia de um noviço e de Aliócha. Os religiosos levantaram-se, fizeram-lhe profunda reverência, com os dedos tocando a terra, receberam sua bênção, beijaram-lhe a mão. A cada um deles, o stáriets respondeu com uma reverência seme­lhante, com os dedos tocando a terra, pedindo-lhes por sua vez sua bênção. Aquela cerimônia, marcada de grande seriedade, nada tendo da etiqueta vulgar, exalava uma espécie de emoção. No entanto, pare­ceu a Miúsov que aquilo se fazia com uma finalidade de sugestão premeditada. Conservava-se à frente de seus companheiros. Teria sido conveniente, quaisquer que fossem suas idéias — e por simples polidez, para se conformar com os usos —, que se aproximassem do stáriets para receber sua bênção, se não para beijar-lhe a mão. Foi no que pensara na véspera, mas as reverências e os beijos dos monges fize­ram-no mudar de resolução. Fez uma reverência grave e digna, de homem da sociedade, e foi sentar-se. Fiódor Pávlovitch fez a mesma coisa, macaqueando dessa vez Miúsov. A saudação de Ivã Fiódorovitch foi das mais corteses, mas também ele conservou seus braços ao longo dos quadas. Quanto a Kolgánov, tal era sua confusão que não fez saudação nenhuma. O stáriets deixou recair sua mão prestes a abençoá-los e convidou todos a sentarem-se. O sangue subiu às faces de Aliócha, estava envergonhado. Seus maus pressentimentos realizavam-se.

O stáriets tomou lugar num pequeno diva de couro — móvel bastante antigo — e fez seus visitantes sentarem-se perto da parede em frente, em quatro cadeiras de acaju, recobertas de couro bastante sur­rado. Os religiosos instalaram-se de lado, um na porta, outro na janela. O seminarista, Aliócha e o noviço ficaram de pé. A cela não era vasta e mostrava certo ar de coisa velha. Continha somente alguns móveis e objetos grosseiros, pobres, o estritamente necessário. Dois jar­ros de flores na janela; a um canto, numerosos ícones; um deles repre­sentava uma Virgem de grandes dimensões, pintada provavelmente muito tempo antes do Raskol.[4] Uma lâmpada ardia diante dela. Não longe, dois outros ícones de revestimentos cintilantes, depois dois querubins esculpidos, pequenos ovos de porcelana, um crucifixo de marfim, com uma Mater Dolorosa que o abraçava, e algumas gravuras estrangeiras, reproduções de grandes pintores italianos dos séculos passados. Ao lado dessas obras de valor, exibiam-se litografias russas para uso do povo, representando santos, mártires, prelados, as quais se vendiam por alguns copeques em todas as feiras. Miúsov lançou uma olhadela rápida sobre aquelas imagens, depois fixou seu olhar no stáriets. Respeitava sua maneira de ver, fraqueza desculpável, seguramente, se se considerar que já tinha cinqüenta anos, idade em que um homem do mundo, inteligente e opulento, leva-se sempre mais a sério, por vezes mesmo contra a sua vontade.

Desde o começo, o stáriets causara-lhe desagrado. Havia efetivamente em sua figura algo que teria desagradado a muitos outros que não apenas a Miúsov. Era um homenzinho curvado, de pernas muito fracas, de sessenta anos somente, mas que parecia ter dez anos mais, por causa de sua doença. Todo o seu rosto, aliás bastante seco, estava sulcado de pequenas rugas, sobretudo em redor dos olhos. Tinha os olhos claros, não muito grandes, vivos e brilhantes como dois pontos lumi­nosos. Seus cabelos grisalhos chegavam-lhe apenas às têmporas; sua barba, pequena e rala, acabava em ponta; os lábios, delgados como duas correias, sorriam freqüentemente; o nariz agudo lembrava um pássaro.

"Segundo toda a aparência, uma alma malévola e arrogante", pen­sou. Em geral, estava muito descontente consigo mesmo.

O soar da hora ajudou o início do diálogo. Um pequeno relógio de pesos bateu doze pancadas.

— A hora exata — exclamou Fiódor Pávlovitch — e meu filho Dimítri Fiódorovitch que não chega! Peço-lhe desculpas por ele, santo stáriets! (Aliócha estremeceu ao ouvir aquelas palavras de "santo stá-riets".) Sou sempre pontual, dentro do minuto, lembrando-me de que a pontualidade é a polidez dos reis.

— No entanto, o senhor não é nenhum rei — resmungou Miúsov, incapaz de conter-se.

— Ê verdade, não o sou. E imagine, Piotr Alieksándrovitch, que eu mesmo o sabia, palavra! E falo sempre assim, fora de propósito! Vossa Reverência — exclamou ele, de súbito, num tom patético — tem diante de si um verdadeiro palhaço. É minha maneira de apresen­tar-me. Um velho hábito, ai de mim! Ora, se falo por vezes fora de propósito, é intencionalmente, com o fim de fazer rir e ser agradável. É preciso ser agradável, não é verdade? Há sete anos, cheguei a uma cidadezinha para tratar duns negocinhos, umas contas a meias com uns negociantezinhos. Fomos à casa do isprávnik, uma vez que tínhamos algo a pedir-lhe e para convidá-lo a comer conosco. Aparece o ispráv­nik: era um homem de alta estatura, gordo, louro e carrancudo — os indivíduos mais perigosos em semelhante caso, pois a bílis os ator­menta. Abordo-o com a desenvoltura de um homem do mundo: "Se­nhor Isprávnik", disse eu, "o senhor será talvez, por assim dizer, o nosso Naprávnik?"[5] "Que Naprávnik?", perguntou ele. Vi imediata­mente que aquilo não pegava, que ele continuava todo grave; obsti­nei-me: "É uma brincadeira, quis tornar todos alegres, porque o Se­nhor Naprávnik é um chefe de orquestra conhecido; ora, para a harmonia de nosso empreendimento, precisamos justamente duma espé­cie de chefe de orquestra". A explicação e a comparação eram razoáveis, não? "Perdão", disse ele, "sou isprávnik e não permito que se façam trocadilhos a respeito de minha profissão." Volta as costas e retira-se. Corro atrás dele, gritando: "Sim, sim, o senhor é isprávnik e não Na­právnik". "Não", replicou ele, "o senhor disse, sou Naprávnik." Imagi­nem que isso fez fracassar nosso negócio! Nem por isso me emendei. Prejudico-me por causa de minha amabilidade! Certa vez, há muitos anos, dizia eu a uma personagem importante: "Sua esposa é uma mulher coceguenta", no sentido de ser muito sensível em questões de honra, de qualidades morais, por assim dizer, ao que ele me replica: "O senhor lhe fez cócegas?" Não pude conter-me, banquemos o amável, pensei: "Sim, fiz-lhe cócegas"; mas então quem me fez cócegas foi ele... Aconteceu há muito tempo, por isso não tenho vergonha de contá-lo; é sempre assim que causo prejuízo a mim mesmo.

— È está causando agora — murmurou Miúsov, com desagrado. O stáriets examinava um a um, em silêncio.

— Deveras? Imagine que já o sabia, Piotr Alieksándrovitch, e, até mesmo, saiba que pressentia o que faço, desde que comecei a falar, e até mesmo, saiba-o, pressentia que seria o senhor o primeiro a obser­var-me isso. Nesses momentos, quando vejo que minhas pilhérias não dão resultado, reverendíssimo senhor, minhas bochechas começam a dessecar-se na direção das gengivas, tenho quase como uma convulsão; isto remonta à minha mocidade, quando era parasita em casa dos nobres e ganhava meu pão por meio dessa habilidade. Sou um palhaço autêntico, inato, reverendíssimo senhor, a mesma coisa que um idiota; não nego que um espírito mau more talvez em mim, bem modesto, cm todo caso; se fosse mais importante, ter-se-ia alojado em outra parte, somente não no senhor, Piotr Alieksándrovitch, porque o senhor não é importante. Em compensação, creio, creio em Deus. Nestes últi­mos tempos, tinha dúvidas; mas agora espero sublimes palavras. Pa­reço-me com o filósofo Diderot, reverendíssimo senhor. Sabe o senhor, santíssimo padre, como se apresentou ele diante do metropolita Platon, no reinado da Imperatriz Catarina? Entrou e largou sem mais: "Não há Deus**. Ao que o grande prelado respondeu, de dedo erguido: "O insensato disse em seu coração: 'não há Deus!*** Imediatamente Di­derot lançou-se a seus pés: "Creio", exclamou ele, "e quero ser bati­zado”. Batizaram-no ali mesmo. A Princesa Dachkova foi a madrinha, e Potiomkin o padrinho...

— Fiódor Pávlovitch, é intolerável! Porque o senhor mesmo sabe que está mentindo e que essa estúpida anedota é falsa; por que fazer-se malicioso? — proferiu com voz trêmula Miúsov, que já não se podia conter.

— Toda a minha vida pressenti que era isso uma mentira! — excla­mou Fiódor Pávlovitch, entusiasmando-se. — Em compensação, senho­res, dir-lhes-ei toda a verdade. Eminente stáriets, perdoe-me, eu mesmo Inventei esse fim, ainda há pouco, com o batismo de Diderot; isto jamais me ocorrera antes. Inventei-o para dar certo ar picante ao caso. Se me faço de malicioso, Piotr Alieksándrovitch, é para ser mais gentil. De resto, por vezes, não sei eu mesmo por quê. Quanto a Dide­rot, ouvi contar isto: "O insensato disse..." umas vinte vezes na minha juventude, pelos proprietários de terras do país, quando morava entre eles; ouvi-o dizer, Piotr Alieksándrovitch, de sua própria tia, Mavra Fomínichna. Até agora, estão todos persuadidos de que o ímpio Diderot fora à casa do metropolita Platon para discutir a existência de Deus...

Uy Miúsov levantara-se, não somente porque perdera a paciência, mas achava-se fora de si. Estava furioso e compreendia que isso o tornava ridículo. Com efeito, passava-se na cela algo de intolerável. Havia quarenta ou cinqüenta anos, ainda no tempo dos precedentes stártsi, os visitantes reuniam-se naquela cela, mas sempre com a mais profunda veneração. Quase todos quantos eram admitidos compreendiam que lhes era concedido um insigne favor. Muitos, dentre eles, punham-se de joelhos e assim ficavam durante toda a visita. Pessoas de posição elevada, eruditos e até mesmo livres-pensadores, vindos, quer por curio­sidade, quer por qualquer outro motivo, achavam um dever o testemu­nhar ao stáriets profunda deferência e grandes atenções, durante toda a entrevista — quer fosse pública ou privada —, tanto mais quanto não havia questão de dinheiro. Só havia o amor e a bondade, em pre­sença do arrependimento e da sede de resolver algum difícil problema moral ou uma crise da vida do coração. Assim, as piadas a que se entregara Fiódor Pávlovitch, chocantes em tal lugar, haviam provocado o embaraço e o espanto das testemunhas, em todo caso, de várias dentre elas. Os religiosos, que permaneciam impassíveis, fixavam sua atenção no que iria dizer o stáriets, mas pareciam já prestes a levan­tar-se como Miúsov. Aliócha tinha vontade de chorar e curvava a cabeça. Toda a sua esperança repousava em seu irmão Ivã, o único cuja influência seria capaz de deter seu pai, e estava estupefato por vê-lo sentado, imóvel, de olhos baixos, aguardando com curiosidade o desenlace daquela cena, como se fosse completamente estranho a ela. Era impossível a Aliócha olhar para Rakítin (o seminarista), com o qual vivia quase em intimidade: conhecia seus pensamentos (era, aliás, o único a conhecê-los em todo o mosteiro).

— Desculpe-me... — começou Miúsov, dirigindo-se ao stáriets — se pareço tomar parte nessa indigna pilhéria. Errei ao acreditar que, até mesmo um indivíduo da qualidade de Fiódor Pávlovitch, visitando uma personalidade tão respeitável, saberia compreender suas obriga­ções ... Não pensava que seria preciso desculpar-me por ter vindo com ele...

Piotr Alieksándrovitch não acabou e, todo confuso, queria sair já do quarto.

— Não se inquiete, rogo-lhe — disse o stáriets, que, erguendo-se sobre seus pés débeis, pegou Piotr Alieksándrovitch pelas duas mãos e obrigou-o a tornar a sentar-se. — Acalme-se, rogo-lhe. O senhor é meu hóspede.

Dito isto, e após uma reverência, voltou a sentar-se no diva.

— Eminente stáriets, diga-me, será que minha vivacidade o ofende? — exclamou, de repente, Fiódor Pávlovitch, agarrando-se nos dois braços da poltrona, como prestes a saltar, de acordo com a resposta que recebesse.

— Rogo-lhe igualmente que não se inquiete e não se constranja — declarou o stáriets com majestade. — Não se constranja, esteja como que em sua casa. Sobretudo não tenha tanta vergonha de si mes­ mo, porque todo o mal vem daí.

— Completamente como em minha casa? Isto é, ao natural? Oh! é demais, é muito demais. Aceito, porém, com enternecimento! Sabe, meu venerando padre? Não me leve a mal mostrar-me ao natural, é por demais arriscado... eu mesmo não chego a esse ponto. Digo isto para que o senhor se previna. Pois bem! o resto está ainda enterrado nas trevas do desconhecido, se bem que alguns quisessem enforcar-me. Isto dirige-se ao senhor, Piotr Alieksándrovitch; quanto ao senhor, santa criatura, eis o que declaro: "Estou transbordante de entusiasmo!" — Levantou-se e, de braços para o ar, proferiu:

— "Bendito o ventre que te concebeu e benditos os peitos que te amamentaram, os peitos sobretudo!" Com aquela sua observação de há pouco: "Não tenha tanta vergonha de si mesmo, porque todo o mal vem daí", o senhor como que me transpassou e leu em mim. Justamente, quando me dirijo às pessoas, parece-me que sou a mais vil de todas e que todo mundo me toma por um palhaço; então digo a mim mesmo: "Sejamos palhaço, não temo vossa opinião, porque vós sois todos, até o derradeiro, mais vis do que eu!" Eis por que sou palhaço, por vergonha, eminente padre, por vergonha. Somente por timidez é que me faço de valentão. Porque se estivesse certo, ao entrar, de que todos me acolheriam como um ser simpático e ajui­zado, meu Deus!, como eu seria bom! Mestre*— pôs-se de repente de joelhos —, que é preciso fazer para ganhar a vida eterna?

Mesmo então, era difícil saber se brincava ou cedia ao enterneci­mento. O stáriets ergueu os olhos para ele e declarou, sorrindo:

Há muito tempo que o senhor mesmo sabe o que é preciso fazer; não lhe falta senso: não se entregue à embriaguez e à intemperança de linguagem; não se entregue à sensualidade, sobretudo ao amor ao dinheiro; e feche seus botequins de bebida, pelo menos dois ou três, se não pode fechá-los todos. * Mas sobretudo, antes de tudo, não minta.

— É a propósito de Diderot que o senhor diz isso?

— Não, não é a propósito de Diderot. Sobretudo não minta ao senhor mesmo. Aquele que mente a si mesmo e escuta sua própria mentira vai ao ponto de não mais distinguir a verdade, nem em si, nem em torno de si; perde pois o respeito de si e dos outros. Não respeitando ninguém, deixa de amar; e para se ocupar, e para se distrair, na ausência de amor, entrega-se às paixões e aos gozos gros­seiros; chega até a bestialidade em seus vícios, e tudo isso provém da mentira contínua a si mesmo e aos outros. Aquele que mente a si mesmo pode ser o primeiro a ofender-se. É por vezes bastante agra­dável ofender a si mesmo, não é verdade? Um indivíduo sabe que ninguém o ofendeu, mas que ele mesmo forjou uma ofensa e mente para embelezar, enegrecendo de propósito o quadro, que se ligou a uma palavra e fez dum montículo uma montanha — ele próprio o sabe, portanto é o primeiro a ofender-se, até o prazer, até experimen­tar uma grande satisfação, e por isso mesmo chega ao verdadeiro ódio... Mas levante-se, sente-se, rogo-lhe; isto também é um gesto falso...

— Bem-aventurado! Deixai-me beijar-vos a mão. — Fiódor Pávlovitch levantou-se e pousou os lábios sobre a mão descarnada do stáriets. — Justamente, justamente, ofender-se a si mesmo causa prazer. O senhor disse-o tão bem, como jamais o ouvi dizer. Justamente, justa­mente, senti prazer em toda a minha vida com as ofensas, por um sentimento de estética, porque ser ofendido não somente causa prazer, mas por vezes é belo. Eis o que o senhor esqueceu, eminente stáriets: a beleza! Notá-lo-ei no meu caderninho! Quanto a mentir, não faço senão isso em toda a minha vida, a cada dia e a cada hora. Na verdade, sou mentira e o pai da mentira! Aliás, creio que não é o pai da mentira, embaraço-me nos textos, pois bem, o filho da mentira, e isto basta. Somente... meu anjo... pode-se por vezes florear a respeito de Diderot! Isto não faz mal, ao passo que certas palavras podem fazer mal. Eminente stáriets, a propósito, recordo-me de que, há três anos, tinha prometido a mim mesmo vir aqui informar-me e descobrir com insistência a verdade; peça somente a Piotr Alieksán-drovitch que não me interrompa. Eis de que se trata. É verdade, reve­rendo padre, o que se conta em alguma parte das Vidas dos Santos, a respeito dum santo taumaturgo, que sofreu o martírio pela fé e, depois de ter sido decapitado, ergueu do chão sua cabeça e, "beijando-a delica­damente", a carregou muito tempo em seus braços? É verdade ou não, meus padres?

— Não, não é verdade — disse o stáriets.

— Não há nada de semelhante em nenhuma Vidas dos Santos. A propósito de que santo diz o senhor que se relata esse fato? — per­guntou um religioso, o padre bibliotecário.

— Ignoro qual. Não tenho conhecimento disso. Induziram-me em erro. Ouvi-o dizer e sabe por quem? Por esse mesmo Piotr Alieksán-drovitch Miúsov, que ainda há pouco se zangava a respeito de Diderot; era ele quem contava isso.

— Jamais lhe contei isso, pela razão muito justa de que não converso nunca com o senhor.

— É verdade que não contou isso a mim, mas numa reunião social em que me encontrava há quatro anos. Se lembrei o fato, é que o senhor abalou minha fé com essa narrativa cômica. Piotr Alieksán-drovitch. O senhor de nada sabia, mas voltei para minha casa com a fé abalada e desde então vacilo cada vez mais. Sim, Piotr Alieksándrovitch, foi o senhor causa duma grande queda. Ê coisa bem diversa de Diderot!

Fiódor Pávlovitch acalorava-se duma maneira patética, se bem que fosse evidente para todos que ele de novo não fazia senão exibir-se. Mas Miúsov estava exacerbado.

— Que absurdo, como tudo isso, aliás! — murmurou ele. — Talvez tenha-o dito uma vez, na verdade... mas não ao senhor. Falaram-me disso. Ouvi em Paris um francês contar que se lê entre nós este epi­sódio na missa, nas Vidas dos Santos, Foi um erudito que tem espe­cialmente estudado a estatística da Rússia... há muito tempo. Quanto a mim, não lia as Vidas dos Santos e não as lerei... Pode-se bem dizer coisas durante o jantar... Nós estávamos jantando, então...

— Sim, os senhores estavam jantando então e eu perdi a fé! — disse para aborrecê-lo Fiódor Pávlovitch.

— Que me importa sua fé! — ia gritar Miúsov, mas conteve-se e proferiu com desprezo: — O senhor emporcalha literalmente tudo quanto toca.

O stáriets levantou-se de repente.

— Desculpem-me, senhores, deixá-los a sós por alguns minutos — disse ele, dirigindo-se a todos os visitantes —, mas já me esperavam antes da chegada dos senhores. Quanto ao senhor, abstenha-se de mentir — acrescentou, voltando-se para Fiódor Pávlovitch, com o rosto alegre.

Saiu da cela. Aliócha e o noviço lançaram-se a ajudá-lo a descer a escada. Aliócha sufocava; sentia-se feliz por sair, feliz igualmente por ver o stáriets alegre e não ofendido. O stáriets dirigia-se para a galeria, a fim de abençoar aquelas que o esperavam, mas Fiódor Páv­lovitch deteve-o às portas da cela.

— Bem-aventurado! — exclamou ele, sentimentalmente. — Permi­ta-me que lhe beije ainda uma vez a mão! Com o senhor, pode-se conversar, pode-se viver. O senhor pensa que minto sempre assim e que banco de palhaço? Era para verificar se se pode viver com o senhor, se há lugar para minha humildade ao lado de sua altivez. Passo-lhe um certificado de sociabilidade! Agora, nem mais uma palavra. Vou sentar-me e ficar em silêncio. Cabe ao senhor falar, Piotr Alieksándrovitch, o senhor passa a ser a personagem principal... por dez minutos.

 

AS MULHERES CRENTES

Embaixo da galeria de madeira que dava para o muro exterior do recinto apertavam-se umas vinte mulheres do povo. Tinham-nas pre­venido de que o stáriets sairia afinal e haviam-se agrupado à espera. As proprietárias Khokhlakovi esperavam-no igualmente, mas num quarto da galeria, reservado às visitantes de qualidade. Eram duas: a mãe e a filha. A primeira, senhora rica e sempre trajada com gosto, era ainda bastante jovem e de exterior bastante agradável, de olhos vivos e quase negros. Tinha apenas 33 anos e estava viúva havia cinco. Sua filha, de catorze anos, tinha as pernas paralíticas. A pobre me­nina não andava mais havia seis meses; carregavam-na numa cadeira de rodas. Tinha um rosto delicioso, um pouco emagrecido pela doença, mas alegre. Algo de folgazão brilhava nos seus grandes olhos som­brios, de longas pestanas. Desde a primavera estava a mãe disposta a levá-la ao estrangeiro, mas trabalhos efetuados em suas terras ha­viam-nas retardado. Desde uma semana, viviam em nossa cidade, mais por negócios que por devoção, mas já haviam visitado o stáriets três dias antes. Agora voltavam e, embora sabendo que o stáriets não podia quase receber mais ninguém, suplicavam que lhes concedesse "a felicidade de ver o grande curador". Aguardando a vinda dele, a mãe estava sentada ao lado da poltrona de sua filha; a dois passos mantinha-se de pé um velho monge, vindo dum longínquo convento do norte e que desejava receber a bênção do stáriets. Mas este, quando apareceu na galeria, dirigiu-se diretamente ao povo. A multidão comprimia-se em torno do patamar de três degraus que reunia a galeria baixa ao solo. O stáriets manteve-se no degrau superior, revestiu-se da estola e pôs-se a abençoar as mulheres que o cercavam. Trouxeram-lhe uma possessa que seguravam pelas duas mãos. Assim que ela avistou o stáriets, foi tomada dum soluço, lançando gemidos e sacudida por es­pasmos, como numa crise de eclampsia. Tendo-lhe coberto a cabeça com a estola, pronunciou o stáriets sobre ela uma curta prece e ela acalmou-se imediatamente. Ignoro o que se passa agora, mas na minha infância tive muitas vezes ocasião de ver e de ouvir essas possessas, nas aldeias e nos conventos. Levadas à missa, ganiam e ladravam na igreja, mas quando traziam o santo sacramento e elas dele se apro­ximavam, a "crise demoníaca" cessava imediatamente e as doentes se acalmavam sempre por certo tempo. Ainda menino, isso me espantava e me surpreendia bastante. Ouvia então certos proprietários rurais e sobretudo professores da cidade responderem às minhas perguntas que era aquilo uma simulação para não trabalhar e que se podia sempre reprimi-la, mostrando severidade. Citavam-se em apoio disto diversas anedotas. Mais tarde, soube com espanto, de médicos especia­listas, que não havia ali nenhuma simulação, que era uma terrível doença das mulheres, atestando, mais particularmente na Rússia, a dura condição de nossa camponesa. Provinha de trabalhos estafantes, executados muito cedo, após laboriosos partos mal efetuados, sem ne­nhuma ajuda médica; além disso, desespero, maus tratos, etc., etc., o que certas naturezas femininas não podem suportar, malgrado o exem­plo geral. A cura estranha e súbita de uma possessa presa de convul­sões, desde que a aproximavam das sagradas espécies, cura atribuída então à simulação e, além do mais, a um ardil empregado, por assim dizer, pelos próprios "clérigos", efetuava-se provavelmente também da maneira mais natural. As mulheres que conduziam a doente, e sobre­tudo ela própria, estavam persuadidas, como duma verdade evidente, de que o espírito impuro que a possuía não poderia jamais resistir na presença do santo sacramento, diante do qual inclinavam a infeliz. De modo que, numa mulher nervosa e psiquicamente doente, produ­zia-se sempre (e isto devia ser) como que um abalo nervoso de todo o organismo, abalo causado pela expectativa do milagre da cura e pela fé absoluta na sua realização. E ele se realizava, nem que fosse por um minuto. Foi o que ocorreu, assim que o stáriets cobriu a doente com a estola.

Muitas das mulheres que se comprimiam em redor dele vertiam lágrimas de enternecimento e de entusiasmo, sob a impressão daquele minuto; outras avançavam para beijar nem que fosse a orla do hábito dele; algumas lamentavam-se. Ele as abençoava a todas e conversava com elas. Conhecia já a possessa, que morava numa aldeia a 6 verstas do mosteiro; não era a primeira vez que lha traziam.

— Eis uma que vem de longe! — disse ele, apontando uma mulher ainda jovem, mas muito magra e desfeita, o rosto mais enegrecido que queimado. Estava de joelhos e fitava o stáriets com um olhar imóvel. Seu olhar tinha qualquer coisa de desvairado.

— Venho de longe, bátiuchka, de longe, a 300 verstas daqui. De longe, meu pai, de longe — repetiu a mulher como um estribilho, balançando a cabeça da direita para a esquerda, com a face apoiada na palma de sua mão. Falava como que se lamentando. Há no povo uma dor silenciosa e paciente; entra em si mesma e se cala. Mas há uma outra que explode: manifesta-se por lágrimas e se expande em lamentações, sobretudo entre as mulheres. Não é mais ligeira que a dor silenciosa. As lamentações só se acalmam roendo e dilacerando o coração. Semelhante dor não quer consolações, repasta-se com a idéia de ser inextinguível. As lamentações são apenas a necessidade de irritar cada vez mais a ferida.

— A senhora é da cidade, sem dúvida? — continuou o stáriets, olhando-a com curiosidade.

— Moramos na cidade, bátiuchka; somos do campo, mas moramos na cidade. Vim para ver-te. Ouvimos falai de ti, bátiuchka. Enterrei meu filhinho bem novo, fui rogar a Deus, estive em três conventos e disseram-me: "Vai lá embaixo também, Nastássiuchka", isto é, vir ter com o senhor, bátiuchka, com o senhor. Vim, estava ontem de noite na igreja e eis-me aqui.

— Por que choras?

— Choro pelo meu filho, bátiuchka; ele estava com três anos, ia fazê-los dentro de três meses. Ê por causa dele que me atormento. Era o último; Nikítuchka e eu tivemos quatro, mas os meninos não ficam em nossa casa, bem-amado, não ficam. Enterrei os três pri­meiros, não tinha tanto pesar, mas este último, não posso esquecê-lo. É como se tivesse ficado diante de mim, não se vai embora. Estou de alma ressequida. Contemplo sua roupinha, sua camisinha, suas bo­tinas, e soluço. Exponho tudo quanto restou depois dele, cada coisa, contemplo-as e choro. Digo a Nikítuchka, meu marido: "Ah, meu senhor, deixa-me ir em peregrinação". Ele é cocheiro, temos de tudo, meu pai, temos de tudo, vivemos por nossa conta, tudo nos pertence, os cavalos e os carros. Mas de que servem agora todos esses bens? Sem mim, meu Nikítuchka deve ter-se posto a beber, decerto, e, já antes, assim que eu me afastava fraquejava ele. Mas agora não penso mais nele, há três meses que abandonei a casa. Esqueci tudo e não quero mais lembrar-me de nada; que farei dele agora? Rompi com ele e com todos. E agora não desejaria ver minha casa e meus bens e preferiria mesmo ter perdido a vista.

— Escuta, mãe — proferiu o stáriets. — Outrora um grande santo avistou no templo uma mãe que chorava como tu, também por causa de seu filho único que o Senhor havia igualmente chamado a si. "Não sabes", disse-lhe o santo, "como são atrevidas essas crianci­nhas diante do trono de Deus? Não há mesmo ninguém mais atrevido, no reino dos céus. 'Senhor. Tu nos deste a vida', dizem eles a Deus, 'mas apenas vimos o dia. Tu no-la tomaste.' Pedem e reclamam tão atrevidamente que o Senhor faz deles logo anjos. Por isso", disse o santo, "rejubila-te e não chores, teu filho acha-se agora na casa do Senhor, no coro dos anjos." Eis o que disse, nos tempos antigos, o santo à mulher que chorava. Era um grande santo e nada podia dizer-lhe que não 'fosse verdade. Sabe pois, mãe, que teu filho também se acha decerto diante do trono do Senhor, regozija-se, diverte-se e roga a Deus por ti. Podes chorar, mas rejubila-te.

A mulher escutava-o, com a face na mão, inclinada. Suspirou pro­fundamente.

— Era da mesma maneira que Nikítuchka me consolava: "Não és razoável", dizia ele, "por que chorar? Nosso filho, decerto, canta agora com os anjos junto do Senhor". Diz-me isto e ele mesmo chora, vejo suas lágrimas. "Eu sei", digo eu, "Nikítuchka. Onde estaria ele senão na casa do Senhor? Somente não está mais aqui conosco, neste momento, bem perto, como ficava outrora." Oh! se eu pudesse revê-lo uma vez, uma vez apenas, sem me aproximar dele, sem falar, ocultando-me em um canto. Vê-lo somente um minuto, ouvi-lo brincar lá fora, vir, como vinha por vezes, gritar com sua vozinha: "Mamãe, onde estás?" Se eu pudesse ouvir seus pezinhos trotarem pelo quarto; bem muitas vezes, lembro-me, corria para mim com gritos e risadas. Se pudesse ao menos ouvi-lo! Mas ele não está mais lá, bátiuchka, e não o ouvirei nunca mais! Eis o seu cinto, mas ele não está mais lá e tudo acabou para sempre!...

Tirou do seu seio o cinturãozinho de passamanaria de seu filho; assim que o olhou, foi abalada por soluços, ocultando os olhos com seus dedos através dos quais corriam torrentes de lágrimas.

— Ah! — exclamou o stáriets —, isto é o antigo "Raquel cho­rando seus filhos sem poder ser consolada, porque eles não mais existem". Tal é a sorte que vos está destinada neste mundo, ó mães! Não te consoles, não é preciso que te consoles, chora, mas cada vez que chorares, lembra-te de que teu filho é um dos anjos de Deus, que, lá do alto, te olha e te vê, que se rejubila com tuas lágrimas e mos­tra-as ao Senhor; por muito tempo ainda tuas lágrimas maternais cor­rerão, mas afinal tornar-se-ão uma alegria tranqüila, tuas lágrimas amargas serão lágrimas de enternecimento e de purificação, que sal­vam do pecado. Rogarei pelo repouso da alma de teu filho. Como se chamava ele?

— Alieksiéi, bátiuchka,

— Um belo nome. Tinha por santo padroeiro Alieksiéi, "homem de Deus"?

— Sim, bátiuchka, Alieksiéi, "homem de Deus".

— Que grande santo! Rogarei por ele, mãe, não esquecerei tua aflição em minhas preces; rogarei também pela saúde de teu marido, mas é um pecado abandoná-lo, volta para ele, toma bastante cuidado com ele. Lá do alto, teu filho vê que abandonaste seu pai e chora por vós. Por que perturbar a sua beatitude? Ele vive, porque a alma vive eternamente; não está em casa, mas encontra-se bem perto de vós, invisível. Como virá ele à tua casa, se dizes que a detestas? Para quem virá ele, se não vos encontra em casa, se não vos encontra juntos, o pai e a mãe? Ele te aparece agora e ficas atormentada; então enviar-te-á doces sonhos. Volta para teu marido, mãe, hoje mesmo.

— Irei, bem-amado, segundo a tua palavra; leste em meu coração. Nikítuchka, tu me esperas, meu querido, tu me esperas — começava a mulher a lamentar-se, mas já o stáriets se voltava para uma velhi­nha, vestida não de peregrina, mas de citadina. Pelos seus olhos, via-se que tinha um caso, que viera para comunicar alguma coisa. Era a viúva dum suboficial, morador de nossa cidade. Seu filho, Vássienhka, em­pregado num comissariado, partira para Irkutsk, na Sibéria. Escrevera duas vezes, mas havia um ano que estava ela sem notícias; ha­via-se informado, mas na verdade não sabia mesmo onde informar-se.

— Um dia destes, Stiepanida Ilínichna Biedriáguina, uma rica co­merciante, me dizia: "Escreve o nome de teu filho num papel, Prókhorovna, vai à igreja e encomenda preces pelo repouso de sua alma. Sua alma ficará angustiada e ele te escreverá. É este", afirmou Stiepanida Ilínichna, "um meio seguro e freqüentemente posto em prática". Tenho somente dúvidas... Tu, que és nossa luz, dize-me se isso é verdade ou mentira, bem ou mal?

— Guarda-te bem disso. É até vergonhoso pedi-lo. Como se pode rezar pelo repouso de uma alma viva, e ainda por cima sua própria mãe? É um grande pecado, como a feitiçaria; somente tua ignorância vale-te o perdão. Reza, antes, pela saúde dele à Rainha dos Céus, a Pronta Medianeira, Auxiliadora dos Pecadores, a fim de que ela te perdoe o teu erro. Escuta, Prókhorovna: ou teu filho voltará em breve para ti, ou enviará decerto uma carta. Fica sabendo. Vai em paz, teu filho está vivo, digo-te.

— Bem-amado, que Deus te recompense, a ti, nosso benfeitor, que reza por nós todos e pelos nossos pecados...

Mas o stáriets já havia notado na multidão o olhar ardente, diri­gido para ele, duma camponesa de aspecto de tuberculosa, acabada, se bem que ainda jovem. Ela olhava em silêncio, seus olhos imploravam alguma coisa, mas parecia temer aproximar-se.

— Que queres, minha cara?

— Alivia minha alma, bem-amado * — murmurou ela, docemente. Sem pressa, pôs-se de joelhos, prosternou-se a seus pés. — Pequei, meu bom pai, e tenho medo do meu pecado.

O stáriets sentou-se sobre o derradeiro degrau. A mulher aproximou-se dele, sempre de joelhos.

— Sou viúva há três anos — começou ela à meia voz. — Era penoso viver com meu marido, era velho e batia-me duramente. Es­tava deitado, doente, e, pensava eu, olhando-o: "Mas se ele se restabe­lecer e se levantar de novo, que acontecerá então?" E esta idéia não me deixou mais...

— Espera — disse o stáriets, e aproximou seu ouvido dos lábios dela. A mulher continuou com uma voz que mal se ouvia. Logo terminou.

— Há três anos? — perguntou o stáriets.

— Três anos. A princípio, não pensava nisso, mas a doença chegou e estou cheia de angústia.

— Vens de longe?

— Caminhei 500 verstas.

— Confessaste-te?

— Confessei-me duas vezes.

— Foste admitida à comunhão?

— Admitiram-me. Tenho medo; tenho medo de morrer.

— Não temas nada e nunca tenhas medo, não te apoquentes. Con­tanto que o arrependimento perdure, Deus perdoa tudo. Não há pecado sobre a terra que Deus não perdoe àquele que se arrepende sincera­mente. O homem não pode cometer pecado tão grande que esgote o amor infinito de Deus. Porque, poderá haver pecado que ultrapasse o amor de Deus? Sem cessar, não sonhes senão com o arrependimento e bane todo temor. Crê que Deus te ama como não podes imaginá-lo, se bem que te ame em teu pecado e com teu pecado. Haverá mais alegria nos céus por um pecador que se arrepende do que por dez justos. Não te aflijas a respeito dos outros e não te irrites com as injúrias. Perdoa em teu coração ao defunto todas as suas ofensas contra ti, reconcilia-te com ele em verdade. Se te arrependes, é que o amas. Ora, se amas, serás já de Deus... O amor tudo redime e tudo salva. Se eu, um pecador como tu, me enterneci, se tive piedade de ti, com mais forte razão o Senhor. O amor é um tesouro tão ines­timável que em troca podes adquirir o mundo inteiro e redimir não só teus pecados, mas os dos outros. Vai e não temas nada.

Fez três vezes sobre ela o sinal-da-cruz, tirou de seu pescoço uma pe­quena, imagem, passou-a no pescoço da pecadora, que se prosternou em silêncio até o chão. Ele se levantou e olhou alegremente uma mulher robusta que trazia nos braços um bebê.

— Venho de Vichegórie, bem-amado.

— Tu te cansaste andando 6 verstas com esse menino. Que queres?

— Vim ver-te. Não é a primeira vez, já te esqueceste? Tens memó­ria fraca, se não te lembras de mim. Dizia-se lá em nossa aldeia que estavas doente. "Pois bem", pensei, "eu mesma irei vê-lo!" Vejo que não tens nada. Viverás ainda vinte anos, palavra! Não rezam bastante por ti? Como haverias de cair doente?

— Obrigado por tudo, minha cara.

— A propósito, tenho um pequeno pedido a fazer-te. Aqui estão 60 copeques. Dá-os a uma outra mais pobre do que eu. Ao vir para cá, pensava: "Valerá melhor entregá-los a ele, que saberá a quem dá-los".

— Obrigado, minha cara, obrigado, minha boa mulher, eu te amo. Não deixarei de fazer o que pedes. É uma menina que tens nos braços?

— Uma menina, bem-amado, Lisavieta.

— Que o senhor vos abençoe a todas duas, a ti e à pequena Lisavieta, Tu alegraste meu coração, mãe. Adeus, minhas queridas filhas.

Abençoou a todas e fez-lhes uma profunda reverência.

 

UMA DAMA SEM MUITA FÉ

A dama proprietária, recentemente chegada, testemunha dessa con­versação com as mulheres do povo e da bênção, vertia suaves lágrimas que enxugava com seu lenço. Era uma mulher da sociedade, sensível, de tendências virtuosas. Quando o stáriets a abordou, por fim, acolheu-o com entusiasmo.

— Experimentei uma tal impressão, contemplando essa cena enternecedora... — a emoção cortou-lhe a palavra. — Oh! Compreendo que o povo vos ame, eu mesma amo o povo. Como não se haveria de amar nosso excelente povo russo, tão ingênuo na sua grandeza?

— Como vai sua filha? Quis de novo entreter-se comigo?

— Oh! Pedi instantemente, tenho suplicado, estava pronta a me pôr de joelhos e a ficar três dias diante de vossas janelas, até que me deixásseis entrar. Vimos, grande curador, exprimir-vos todo o nosso reconhecimento entusiasta. Porque fostes vós que curastes Lisa, com­pletamente, quinta-feira, rezando diante dela e impondo-lhe as mãos. Tínhamos pressa em beijar essas mãos, em testemunhar nossos senti­mentos e nossa veneração.

— Eu a curei, diz a senhora? Ela, porém, está ainda deitada em sua poltrona.

— Mas as febres noturnas desapareceram completamente há dois dias, a partir de quinta-feira — disse a dama com uma solicitude ner­vosa. — Não é tudo: suas pernas fortificaram-se. Esta manha, levan­tou-se de boa saúde. Olhai suas cores e seus olhos que brilham. Cho­rava constantemente, agora já, está alegre, jovial. Hoje, exigiu que a pusessem de pé e manteve-se um minuto sozinha, sem nenhum apoio. Quer apostar comigo que dentro de quinze dias dançará uma quadrilha? Mandei chamar o Doutor Herzenstube; ele levanta os olhos e diz: "Estou admirado, não compreendo nada disso". E queríeis vós que não vos incomodássemos, que não acorrêssemos aqui, para agradecer-vos? Lisa, vamos, agradece!

O rostinho de Lisa tornou-se subitamente sério. Ergueu-se de sua poltrona tanto quanto pôde e, fitando o stáriets, juntou as mãos, mas não pôde conter-se e pôs-se a rir.

— É dele que rio, dele — disse ela, mostrando Aliócha, contra­riada por não poder impedir-se de rir. Observando-se o rapaz, que se mantinha por trás do stáriets, ter-se-ia visto que suas faces se cobriam dum rápido rubor. Seus olhos brilharam e ele os baixou.

— Ela tem um recado para você, Alieksiéi Fiódorovitch... Como vai você? — continuou ela dirigindo-se a Aliócha e estendendo-lhe a mão deliciosamente enluvada. O stáriets voltou-se e examinou Aliócha. Este aproximou-se de Lisa e estendeu-lhe a mão, sorrindo acanhada­mente. Lisa assumiu um ar grave.

— Catarina Ivânovna pediu-me que lhe remetesse isto — e entre­gou-lhe uma pequena carta. — Ela lhe pede que vá vê-la o mais cedo possível e sem falta.

— Ela me pede que eu vá à casa dela? Por quê?... — murmurou Aliócha com profundo espanto. Seu rosto tornou-se preo­cupado.

— Oh! Ê a propósito de Dimítri Fiódorovitch e... de todos esses últimos acontecimentos — explicou rapidamente a mãe. — Catarina Ivânovna firmou-se agora numa decisão... mas para isso deseja vê-lo ... Por quê? Ignoro-o, decerto, mas pediu ela que fosse o mais cedo possível e você não deixará de ir lá, os sentimentos cristãos o obrigam a isto.

— Vi-a uma vez ao todo — continuou Aliócha, sempre perplexo.

— Oh! É uma criatura tão nobre, tão inacessível!... Quando me­nos pelos seus sofrimentos... Considere o que tem ela suportado, o que ela suporta agora e o que a espera... Tudo isto é horrível, hor­rível!

— Está bem, irei — decidiu Alieksiéi, depois de ter lido o bilhete, curto e enigmático, que não continha nenhuma explicação, a não ser a súplica instante para que ele fosse.

— Ah! Como é gentil de sua parte — exclamou Lisa, animadamente. — Dizia eu a mamãe: "Ele jamais irá, está tratando de sua salvação". Como você é bom! Sempre pensei que você era bom. É um prazer dizer-lho agora!

— Lisa! — disse gravemente a mãe, que, aliás, sorriu.

— Você nos esqueceu, Alieksiéi Fiódorovitch, não quer absolutamen­te visitar-nos. Entretanto, Lisa me disse duas vezes que só se encontrava bem em sua companhia. — Aliócha ergueu seus olhos baixos, corou de novo e sorriu sem saber por quê. Aliás o stáriets não o observava mais. Entrara em conversa com o monge que aguardava sua vinda, como o dissemos, ao lado da cadeira de Lisa. Era, pelo que se via, um monge duma condição das mais modestas, de idéias estreitas e paradas, mas crente e obstinado a seu modo. Contou que vivia longe, no norte, em Obdorsk, no Convento de São Silvestre, pobre mosteiro, que só contava nove monges. O stáriets - abençoou-o, convidou-o a vir à sua cela, quando bem lhe parecesse.

— Como tentais semelhantes coisas? — perguntou o monge, mos­trando gravemente Lisa. Fazia alusão à sua "cura".

— É ainda demasiado cedo para falar disso. Um alívio não é a cura completa e pode ter outras causas. Mas o que pôde passar-se é unicamente devido à vontade de Deus. Tudo vem dele. Venha ver-me, padre — acrescentou ele —, eu não poderei vir sempre; estou doente e sei que meus dias estão contados.

— Oh! não, não, Deus não vos arrebatará de nós, vivereis ainda muito tempo, muito tempo — exclamou a mãe. — Além disso, qual a vossa doença? Pareceis de tão bom aspecto, alegre e feliz.

— Sinto-me muito melhor hoje, mas sei que não é por muito tempo. Conheço agora a fundo minha doença. Se lhe pareço tão alegre, nada me pode causar mais prazer que ouvi-la dizer isso. Porque a felicidade é o fim do homem, e aquele que tem sido completamente feliz tem o direito de dizer a si mesmo: "Cumpri a lei divina nesta terra". Os justos, os santos, os mártires todos foram felizes.

— Oh! As ousadas, as sublimes palavras! — exclamou a mãe. — Elas nos traspassam! Entretanto, onde está a felicidade? Quem pode dizer-se feliz? Oh! já que tivestes a bondade de permitir que vos viés­semos ser ainda hoje, escutai tudo quanto não vos disse na derradeira vez, tudo quanto não ousava dizer-vos, aquilo de que sofro desde tanto tempo! Porque eu sofro, desculpai-me, eu sofro... —' e, num ímpeto de fervor, juntou as mãos diante dele.

— De que, particularmente?

— Sofro... porque não creio...

— Não crê em Deus?

— Oh! Não, não, não ouso pensar nisso, mas a vida futura, que enigma! E ninguém pode responder a isto! Escutai-me, vós que conheceis a alma humana e a curais; sem dúvida, não ouso pedir-vos que me acrediteis absolutamente, mas asseguro-vos, da maneira mais solene, que não é por leviandade que falo agora, essa idéia da vida de além-túmulo me emociona até o sofrimento, até o espanto e o pavor... E não sei a quem dirigir-me, não ousei toda a minha vida... Agora me permito dirigir-me a vós... Oh! Deus! Por quem me tomais?

Bateu as mãos uma contra a outra.

— Não se inquiete com a minha opinião — respondeu o stáriets. — Creio perfeitamente na sinceridade de sua angústia.

— Oh! Como vos sou grata! Vede: fecho os olhos e sonho. Se todos acreditam, donde vem isto? Assegura-se que tudo isto provém a princípio do medo, inspirado pelos fenômenos grandiosos da natureza, mas que nada existe. Pois bem! penso eu, acreditei toda a minha vida; morrerei e não haverá nada e somente "a relva brotará sobre o tumulo", como se exprime um escritor. É horrível! Como recuperar a fé? Aliás, cri somente na minha infância, mecanicamente, sem pen­sar em nada... Como me convencer? Vim inclinar-me diante de vós e rogar-vos que me esclareçais. Porque se deixo passar a ocasião pre­sente nunca mais me responderão. Como persuadir-me? De acordo com que provas? Quanto sou infeliz! Em redor de mim, ninguém se preocupa com isto, quase ninguém; ora, não posso suportar isto sozinha. É esmagador!

— Decerto, é esmagador. Mas onde nada se pode provar, pode a gente persuadir-se.

— Como? De que maneira?

— Pela experiência do amor que age. Esforce-se por amar seu pró­ximo com ardor e sem cessar. À medida que progredir no amor, convencer-se-á a senhora da existência de Deus e da imortalidade de sua alma. Se for até a abnegação total no seu amor ao próximo, então acreditará indubitavelmente e nenhuma dúvida mesmo poderá aflorar sua alma. Está isto demonstrado pela experiência.

— O amor que age! Eis ainda uma questão, e que questão! Vede: amo tanto a humanidade que, acreditaríeis vós?, sonho por vezes abandonar tudo quanto tenho, deixar Lisa e fazer-me irmã de caridade. Fecho os olhos, sonho e devaneio; nesses momentos, sinto em mim uma força invisível. Nenhum ferimento, nenhuma chaga purulenta poderia horrorizar-me. Eu as pensarei, as lavarei com minhas pró­prias mãos, serei a enfermeira desses pacientes, prestes a beijar suas úlceras...

 

— Já é muito que a senhora tenha tais pensamentos. Por acaso acontecer-lhe-á praticar verdadeiramente uma boa ação.

— Sim, mas poderia eu suportar muito tempo tal existência? — continuou a dama, apaixonadamente, com um ar quase desvairado. — Eis a questão capital, a que mais me atormenta. Fecho os olhos e pergunto a mim mesma: "Persistidas muito tempo nessa via? Mas se o doente, cujas úlceras tu lavas, te pagar com ingratidão, se puser a atormentar-te com seus caprichos, sem apreciar nem notar teu devotamento, se gritar contra ti, se se mostrar exigente e queixar-se mesmo à diretoria (como acontece muitas vezes quando se sofre muito), farás então o quê? Continuará o teu amor?" Imaginai que já decidi, com um arrepio: "Se há alguma coisa que possa esfriar imediatamente meu amor *que age* em favor da humanidade, é unicamente a ingratidão". Numa palavra: trabalho por um salário, exijo-o imediatamente, sob forma de elogios e de amor em troca do meu. De outro modo, não posso amar ninguém.

Depois de haver-se assim fustigado, num acesso de sinceridade, ela fitou o stáriets com um atrevimento provocante.

— É exatamente o que me contava, há muito tempo, aliás, um médico — observou o stáriets.-—- Era um homem de idade madura e verdadeiramente inteligente, exprimia-se tão francamente quanto a senhora, se bem que brincando, mas com tristeza. "Eu amo", dizia ele, "a humanidade, mas admiro-me de mim mesmo. Tanto mais amo a humanidade em geral, quanto menos amo as pessoas em particular, como indivíduos. Muitas vezes tenho sonhado apaixonadamente em servir à humanidade, e talvez tivesse verdadeiramente subido ao calvá­rio por meus semelhantes, se tivesse sido preciso, muito embora não possa viver com ninguém dois dias no mesmo quarto. Sei-o por expe­riência. Desde que alguém está junto de mim, sua personalidade oprime meu amor-próprio e constrange minha liberdade. Em 24 horas, posso mesmo antipatizar com. as melhores pessoas uma, porque fica muito tempo na mesa, outra, porque está resfriada e só faz espirrar. Torno-me o inimigo, dos homens, apenas se acham eles em contato comigo. Em compensação, invariavelmente, quanto mais detesto as pessoas em particular, tanto mais ardo de amor pela humanidade em geral."

— Mas que fazer? Que fazer em semelhante caso? É de desesperar.

— Não, porque basta que a senhora fique desolada. Faça o que puder e ser-lhe-á levado isso em conta. A senhora já fez muito para ser capaz de conhecer-se a si mesma, de maneira tão profunda, tão sincera. Se me falou agora com tal franqueza, unicamente para receber meus elogios pela sua veracidade, não atingirá nada, seguramente, no domínio do amor que age. Tudo se limitará a sonhos e sua vida escoar-se-á como um sonho. Então, naturalmente, esquecerá a vida futura e para o fim tranqüilizar-se-á duma maneira ou de outra.

— Vós me acabrunhais! Compreendo somente agora, como acabais de dizer-me, que, ao contar-vos o horror que sinto pela ingratidão, esperava vossos elogios à minha sinceridade, e nada mais. Sugerisies, captastes meus pensamentos para mos revelardes.

— Fala sério? Pois bem! depois de tal confissão, creio que a senho­ra é boa e sincera. Se não atingir a felicidade, lembre-se sempre de que está no bom caminho e trate de não sair dele. Sobretudo, evite toda mentira, particularmente a mentira para consigo mesma. Observe sua mentira, examine-a a cada instante. Evite também a repugnância para com os outros e para consigo mesma: o que lhe parece mau na senhora mesma está purificado, pelo simples fato de que o notou na senhora. Evite também o temor, se bem que seja ele somente a conse­qüência de toda mentira. Não tema jamais sua própria covardia na procura do amor, não se deixe mesmo atemorizar demais pelas suas más .ações a esse propósito. Lamento nada poder dizer-lhe de mais rejubilante, porque o amor que age, comparado com o amor contem­plativo, é algo de cruel e de atemorizante. O amor contemplativo tem sede de realização imediata e de atenção geral. Chega-se ao ponto de dar sua vida, com a condição de que isso não dure muito tempo, e que tudo se acabe rapidamente, como no palco, sob os olhares e os elogios. O amor atuante é o trabalho e o domínio de si, e para alguns toda uma ciência. Ora, predigo-lhe que no momento mesmo em que a senhora verificar com terror que, malgrado todos os seus esforços, não somente não se aproximou a senhora do alvo, mas até mesmo dele se afastou — nesse momento, predigo-lhe —, a senhora atingirá o alvo e verá acima da senhora a força misteriosa do Senhor, que a terá guiado com amor, sem que a senhora soubesse. Desculpe-me não poder demorar mais tempo com a senhora. Esperam-me. Adeus.

A dama chorava.

— Lisa, Lisa, abençoai-a — disse ela com ímpeto.

— Ela não merece ser amada. Vi-a divertir-se todo o tempo — brincou o stáriets. — Por que zombou de Alieksiéi?

Lisa, com efeito, dedicara-se todo o tempo a isso. Desde muito tempo, desde o ano anterior, notara que Aliócha se perturbava na sua presença, evitava olhá-la, e isto tornou-se muito divertido para ela. Fitava-o, buscava seu olhar. Não resistindo àquele olhar fixo obstina­damente sobre ele, Aliócha, impelido por uma força invisível, olhava-a por sua vez; imediatamente ela se abria num sorriso triunfante. Isto aumentava a confusão e o despeito de Aliócha. Afinal, afastou-se completamente dela, ocultando-se por trás do stáriets. Ao fim de alguns minutos, como que hipnotizado, voltou-se para ver se o olhavam. Lisa, quase fora de sua cadeira, observava-o de viés e esperava impaciente-mente que ele a olhasse; tendo assim captado o olhar dele, explodiu em tal gargalhada que o stáriets não pôde conter-se.

— Por que, sua brejeira, faz você que ele core dessa maneira?

Lisa ficou toda vermelha, seus olhos brilharam, seu rosto ficou sério e com voz lamentosa, indignada, disse nervosamente:

— Por que esqueceu ele tudo? Quando eu era bem pequenina, car­regava-me em seus braços, brincávamos juntos. Foi ele quem me ensinou a ler, sabíeis? Há dois anos, ao partir, disse que não o esqueceria jamais, que éramos amigos para sempre, para sempre! E ei-lo agora que tem medo de mim, como se eu fosse comê-lo. Por que não se apro­xima e não quer falar? Por qual razão não nos vem ver? Não é porque vós o retenhais, pois sabemos que ele vai a toda parte. Não é conveniente para mim convidá-lo. Deveria ele lembrar-se por primeiro, se não esqueceu. Não, agora trata de sua salvação! Por que o revestistes desse hábito de longas abas?... Se correr, cairá...

De súbito, não suportando mais, ocultou o rosto nas mãos e reben­tou numa gargalhada nervosa, prolongada, silenciosa, que a sacudia toda. O stáriets, que a havia escutado sorrindo, abençoou-a com ter­nura; ao beijar-lhe a mão, ela a apertou contra seus olhos e se pôs a chorar.

— Não vos zangueis comigo, sou uma bobinha, não valho coisa alguma... Aliócha tem talvez razão em não querer ir à casa duma moça tão ridícula.

— Eu lho mandarei lá, sem falta — cortou o stáriets.

 

ASSIM SEJA!

A ausência do stáriets durara cerca de 25 minutos. Era mais de meio-dia e meia e Dimítri Fiódorovitch, por causa de quem se havia con­vocado a reunião, ainda não tinha chegado. Mas tinham-no quase esquecido e quando o stáriets reapareceu na cela encontrou seus visi­tantes ocupados numa conversação bastante animada. Travava-se, so­bretudo, entre Ivã Fiódorovitch e os dois religiosos. Miúsov a ela se misturava com ardor, mas sem grande êxito. Ficava em segundo plano e não lhe respondiam, o que só fazia aumentar sua irritabilidade. Anteriormente, já havia feito duelo de erudição com Ivã Fiódorovitch e não podia suportar de sangue-frio certa falta de atenções da parte deste último. "Até agora, pelo menos, estava eu ao nível de tudo quanto há de progressista na Europa, mas essa nova geração nos ignora totalmente'', pensava consigo mesmo. Fiódor Pávlovitch, que havia jurado ficar sentado sem dizer palavra, guardou silêncio por algum tempo, mas observava, com um sorriso zombeteiro, seu vizinho Piotr Alieksándrovitch, cuja irritação o alegrava visivelmente. Desde muito tempo se dispunha a pagar-lhe na mesma moeda e não queria deixar passar a ocasião. Por fim, não se conteve mais, inclinou-se para o ombro de seu vizinho e mexeu com ele à meia voz.

— Por que não partiu ainda há pouco, depois da anedota do santo, e consentiu em ficar em companhia tão inconveniente? Ê que, sentin­do-se humilhado e ofendido, ficou o senhor para mostrar seu espírito e tirar sua vingança. Agora o senhor não se irá embora, sem tê-lo mostrado.

— O senhor recomeça? Vou-me embora agora mesmo, pelo con­trário.

— Será o último a sair — lançou-lhe Fiódor Pávlovitch.

O stáriets voltou quase imediatamente.

A discussão parou por um minuto, mas, tendo o stáriets retomado seu lugar, passou seu olhar sobre os assistentes como para convidá-los a continuar. Aliócha, que conhecia cada expressão de seu rosto, viu que ele estava extenuado e exigia demais de suas forças. Nos últimos tempos de sua doença, desmaiava de fraqueza. A palidez que era o sintoma disto espalhava-se agora pelo seu rosto; tinha os lábios exangues, mas não queria evidentemente despedir a assembléia, tendo para isto suas razões. Quais? Aliócha observava-o com atenção.

— Comentamos um artigo bastante curioso do senhor — explicou o Padre Iósif, o bibliotecário, designando Ivã Fiódorovitch. — Há mui­tas apreciações novas, mas a tese parece de dois gumes. É um artigo em resposta a um padre, autor de uma obra a respeito dos tribunais eclesiásticos e da extensão de seus direitos.

— Infelizmente, não li seu artigo, mas ouvi falar dele — respondeu o stáriets, olhando atentamente para Ivã Fiódorovitch.

— O senhor coloca-se dum ponto de vista bastante curioso — continuou o padre bibliotecário. — Parece rejeitar absolutamente a separação da Igreja e do Estado na questão dos tribunais eclesiásticos.

— É curioso, mas em qual sentido? — perguntou o stáriets a Ivã Fiódorovitch.

Este respondeu-lhe afinal, não com um ar altivo, pedante, como Aliócha receava ainda na véspera, mas num tom modesto, discreto, excluindo qualquer segunda intenção.

— Parto do princípio de que esta confusão dos elementos essen­ciais da Igreja e do Estado, tomados separadamente, durará sem dú­vida sempre, se bem que seja impossível e jamais se possa levá-la a um estado não somente normal mas um pouco conciliável, porque re­pousa sobre uma mentira. Um compromisso entre a Igreja e o Estado, em questões tais como a da justiça, por exemplo, é, na minha opinião, essencialmente impossível. O eclesiástico a quem replico sustenta que a Igreja ocupa no Estado um lugar preciso e definido. Objetar-lhe que a Igreja, pelo contrário, longe de ocupar apenas um canto no Estado, devia absorver o Estado inteiro, e que se isto é atualmente impossível, deveria ser, por definição, o alvo direto e principal de todo o desenvolvimento ulterior da sociedade cristã...

— Perfeitamente justo — declarou com voz firme e nervosa o Padre Paísi, religioso taciturno e erudito.

— É ultramontanismo puro! — exclamou Miúsov, cruzando as per­nas em sua impaciência.

— Pois se nem sequer temos montes em nosso país! — exclamou o Padre Iósif, que continuou, dirigindo-se ao stáriets. — O senhor refuta os princípios "fundamentais e essenciais" de seu adversário, um eclesiástico, notai-o. Ei-los: em primeiro lugar: "Nenhuma associação pública pode nem deve atribuir-se o poder, dispor dos direitos políticos e civis de seus membros"; em segundo lugar: "O poder, em matéria civil e criminal, não deve pertencer à Igreja, porque é incompatível com sua natureza, como instituição divina e como associação que se propõe fins religiosos". Afinal, em terceiro lugar: "A Igreja é um reino que não é deste mundo".

— É este um jogo de palavras totalmente indigno de um eclesiás­tico! — interrompeu, de novo, o Padre Paísi, com impaciência. — Li a obra que o senhor refuta — disse ele, dirigindo-se a Ivã Fiódo­rovitch —, e fiquei surpreso diante das palavras daquele padre: "A Igreja é um reino que não é deste mundo". Se ela não é deste mundo, não poderia existir sobre a terra. No Santo Evangelho, as palavras "não és deste mundo" são empregadas num outro sentido. É impossível brincar com semelhantes palavras. Nosso Senhor Jesus Cristo veio precisamente estabelecer a Igreja sobre a terra. O reino dos céus, bem entendido, não é deste mundo, mas do céu, e nele só se entra pela Igreja, a qual foi fundada e estabelecida sobre a terra. Também os trocadilhos mundanos a este respeito são impossíveis e indignos. A Igreja é verdadeiramente um reino, está destinada a reinar, e final­mente seu reino se estenderá sobre o universo inteiro, temos disso a promessa...

Calou-se de repente, como que se contendo. Ivã Fiódorovitch, depois de havê-lo escutado com deferência e atenção, com a maior calma, continuou com a mesma simplicidade, dirigindo-se ao stáriets.

— A idéia mestra de meu artigo é que o cristianismo, nos três pri­meiros séculos de sua existência, aparece sobre a terra como uma Igreja e não era outra coisa. Quando o Estado romano pagão adotou o cristianismo, aconteceu que, tornado cristão, incorporou a si a Igreja, mas continuou a ser um Estado pagão numa multidão de atri­buições. No fundo, era isso inevitável. Roma, como Estado, herdara por demais da civilização e da sabedoria pagas, como, por exemplo, os fins e as próprias bases do Estado. A Igreja do Cristo, entrada no Estado, não podia evidentemente nada cortar de suas bases, da pedra sobre a qual repousava; só podia prosseguir os seus fins, firmemente estabelecidos e indicados pelo próprio Senhor, entre outros: converter em Igreja o mundo inteiro e, por conseqüência, o Estado pagão antigo. Dessa maneira (isto é, em vista do futuro), não era a Igreja que devia procurar para si um lugar definido no Estado, como "toda associação pública", ou como "uma associação que se propunha fins religiosos" (para empregar os termos do autor que refuto), mas, pelo contrário, todo Estado terrestre devia posteriormente converter-se em Igreja, não ser senão isso, renunciar a seus outros fins incompatíveis com os da Igreja. Isto não o humilha absolutamente, não diminui nem sua honra, nem sua glória, como grande Estado, nem a glória de seus chefes, mas isto a faz deixar a falsa via, ainda paga e errada, pela via justa, a única que leva aos fins eternos. Eis por que o autor do livro sobre as Bases da Justiça Eclesiástica teria pensado com justeza se, procurando e propondo essas bases, as tivesse considerado como um compromisso provisório, necessário ainda à nossa época pecadora e imperfeita, mas nada mais. Desde, porém, que o autor ousa declarar que as bases que propõe agora, e das quais o Padre lósif acaba de enumerar uma parte, são inabaláveis, primordiais, eternas, está ele em oposição direta à Igreja e sua predestinação santa imutável. Eis a exposição completa de meu artigo.

— Isto é, em duas palavras — disse o Padre lósif, fazendo força sobre cada palavra —, segundo certas teorias, que não fizeram senão revelar-se por demais no nosso século XIX, a Igreja deve converter-se em Estado, passar como que dum tipo inferior a um superior, a fim de absorver-se em seguida nele, depois de ter cedido à ciência, ao espírito do tempo, à civilização. Se ela se recusa a isso e resiste, não lhe reservam no Estado senão um pequeno lugar, vigiando-a, e por toda parte é esse o caso na Europa de nossos dias. Pelo contrário, segundo a concepção e a esperança russas, não é a Igreja que deve converter-se em Estado como que dum tipo inferior em um superior, é, pelo contrário, o Estado que deve finalmente mostrar-se digno de ser unicamente uma Igreja e nada mais. Assim seja! Assim seja!

— Pois bem, confesso-o, o senhor me reconfortou um pouco — disse Miúsov, sorrindo e cruzando de  novo as pernas. — Tanto quanto o compreendo, é a realização dum ideal infinitamente longín­quo, por ocasião do regresso do Cristo. É tudo quanto se quer. O sonho utópico do desaparecimento das guerras, dos diplomatas, dos bancos, etc .. Alguma coisa que se assemelhe mesmo ao socialismo. Ora, pensava eu que tudo isso era sério, que a Igreja ia "agora", por exemplo, julgar os criminosos, condenar ao chicote, à galé e até mesmo à pena de morte.

— Se houvesse atualmente um só tribunal eclesiástico, a Igreja não enviaria agora às galés ou ao suplício. O crime e a maneira de enca­rá-lo deveriam então seguramente modificar-se pouco a pouco, não duma só vez, mas, no entanto, bastante depressa... — declarou num tom tranqüilo Ivã Fiódorovitch.

— Fala seriamente? — interrogou Miúsov, fitando-o.

— Se a Igreja absorvesse tudo, excomungaria o criminoso e o refratário, mas não cortaria as cabeças — continuou Ivã Fiódorovitch. — Pergunto-vos: aonde iria o excomungado? Porque deveria, então, não somente separar-se das pessoas, mas do Cristo. Pelo seu crime, insurgir-se-ia não só contra as pessoas, mas contra a Igreja do Cristo. É o caso, atualmente, sem dúvida, no sentido estrito, no entanto não é proclamado, e a consciência do criminoso de hoje transige muitas vezes: "Roubei", diz ela, "mas não vou contra a Igreja, não sou o Inimigo do Cristo". Eis o que diz freqüentemente o criminoso de hoje. Pois bem, quando a Igreja tiver substituído o Estado, ser-lhe-á difícil falar assim, a menos que negue a Igreja na terra inteira: 'To­dos", diria ele, "estão no erro, todos se desviaram, a Igreja deles é falsa, somente eu, assassino e ladrão, sou a verdadeira Igreja cristã". É dificílimo manter esta linguagem, supõe isto condições extraor­dinárias, circunstâncias que raramente existem. Atualmente, considerai de outra parte o ponto de vista da própria Igreja para com o crime: será que não deveria modificar-se em oposição ao de hoje, que é quase pagão, e, de meio mecânico de cortar um membro gangrenado, como se pratica atualmente para preservar a sociedade, transformar-se total­mente na idéia da regeneração do homem, de sua ressurreição e de sua salvação?...

— Que quer dizer isso? Deixo de novo de compreender — interrom­peu Miúsov. — Ainda um sonho. Algo de informe, de incompreen­sível. Que excomunhão é essa? Creio que o senhor se diverte simples­mente, Ivã Fiódorovitch.

— Na realidade, é assim mesmo atualmente — começou o stáriets è todos se voltaram para ele. —r- Se não houvesse agora a Igreja do Cristo, não haveria para o criminoso nem freio a seus crimes, nem castigo, uma vez cometidos, isto é, um castigo real, não mecânico, como o senhor acaba de dizer, e que não faz senão irritar na maior parte dos casos, mas o único eficaz, o único que amedronta e acalma e que consiste na confissão de sua própria consciência...

— Como se pode dar isso, permita-me que lho pergunte? — disse Miúsov com viva curiosidade.

— Pois vou dizer-lhe — prosseguiu o stáriets. — Todas essas depor­tações a trabalhos forçados, agravadas outrora por punições corporais, não emendam ninguém e sobretudo não atemorizam quase nenhum cri­minoso; o numero dos crimes não somente não diminui, mas só faz aumentar, à medida que se avança. Estarão nisto de acordo comigo. Resulta que dessa maneira não fica a sociedade de modo algum preser­vada, porque, muito embora o membro nocivo seja mecanicamente cor­tado e mandado para longe, oculto à vista, outro criminoso surgiu em seu lugar, talvez mesmo dois. Se alguma coisa protege ainda a socie­dade, mesmo em nossos dias, emenda o próprio criminoso e faz dele outro homem, é ainda unicamente a lei do Cristo que se mani­festa pela voz de sua própria consciência. Somente depois de ter reco­nhecido sua falta como filho da sociedade do Cristo, isto é, da Igreja, é que a reconhecerá diante da própria sociedade, isto é, diante da Igreja. Dessa maneira, é somente diante da Igreja que o criminoso con­temporâneo é capaz de reconhecer sua falta e não diante do Estado. Se a justiça pertencesse à sociedade na qualidade de Igreja, saberia então a quem revogar da excomunhão, a quem admitir em seu seio. Agora, a Igreja, não tendo nenhuma justiça efetiva, mas somente a possibilidade de uma condenação moral, renuncia ela própria a castigar efetivamente o criminoso. Não o excomunga, cerca-o de sua edificação paternal. Mais ainda, esforça-se mesmo por conservar com o criminoso todas as relações entre a Igreja e o cristão; admite-o aos ofícios, à comunhão, faz-lhe caridade e trata-o mais como transviado do que co­mo criminoso. E que seria do criminoso, Senhor, se a sociedade crista, isto é, a Igreja, o rejeitasse como o rejeita e o exclui a lei civil? Que aconteceria, se a Igreja o excomungasse cada vez que o castiga a lei do Estado? Não poderia haver maior desespero, pelo menos para os cri­minosos russos, porque estes ainda têm fé. Ora, aliás, quem sabe, acon­teceria talvez uma coisa terrível — a perda da fé no coração ulcerado do criminoso, e, então, que haveria? Mas a Igreja, como uma mãe terna, renuncia ela mesma ao castigo efetivo, visto que sem isto o culpado já é demasiado duramente punido pelo tribunal secular e é preciso haver alguém que tenha compaixão dele. Renuncia a isso so­bretudo porque a justiça da Igreja encerra em si unicamente a ver­dade e não pode juntar-se, por conseqüência, essencial e moralmente, a nenhuma outra, mesmo sob a forma de compromisso provisório. Aqui, é impossível transigir. O criminoso estrangeiro, dizem, arrepende-se raramente, porque as doutrinas contemporâneas o confirmam na idéia de que seu crime não é um crime, mas somente uma revolta contra a força que o oprime injustamente. A sociedade o afasta de si mesma por meio de uma força que triunfa dele totalmente de maneira mecânica e acompanha essa exclusão de ódio (é assim, pelo menos, que se conta na Europa) — de ódio, de uma indiferença e dum esque­cimento completos a respeito do destino ulterior desse homem, do ponto de vista fraternal. Dessa maneira, tudo se passa sem que a Igreja testemunhe a menor compaixão, porque em numerosos casos não há mais Igreja lá, não subsistem senão eclesiásticos e edifícios magníficos, esforçando-se as próprias Igrejas desde muito tempo por passar do tipo inferior, como Igreja, ao tipo superior, como Estado. É assim pelo menos, parece, nos países luteranos. Em Roma, há já mil anos que em lugar da Igreja proclamou-se o Estado. Assim o próprio criminoso não se reconhece membro da Igreja e, excomungado, cai no desespero. Se volta para a sociedade, é freqüentemente com tal ódio que a própria sociedade o exclui espontaneamente de seu seio. Podeis julgar como isso acaba. Em numerosos casos, parece que o mesmo ocorre entre nós; mas o fato é que, de parte os tribunais esta­belecidos, temos além disso a Igreja, que não perde jamais o contato com o criminoso, que é para ela um filho sempre caro; além do mais, existe e subsiste, ainda que apenas em idéia, a justiça da Igreja, se bem que não efetiva agora, mas viva para o futuro, mesmo em sonho, e reconhecida certamente pelo próprio criminoso, pelo instinto de sua alma. O que se acaba de dizer aqui é justo, a saber, que se a justiça da Igreja entrasse em vigor, isto é, que se a sociedade inteira se con­vertesse em Igreja, então não somente a justiça da Igreja influiria sobre a emenda do criminoso como não o faz nunca atualmente, mas os próprios crimes diminuiriam em proporção inverossímil. E a Igreja, sem dúvida alguma, compreenderia no futuro, em numerosos casos, o crime e os criminosos duma maneira toda diferente da atual; saberia converter o excomungado, prevenir as intenções criminosas, regenerar o decaído. É verdade — e o stáriets sorriu — que a sociedade cristã não está ainda preparada para isso e só repousa sobre sete justos; mas como eles não se enfraquecem, permanece ela na expectativa de sua transformação completa de associação quase paga em Igreja única, universal e reinante. Assim será, nem que seja no fim dos séculos, porque só isto está predestinado a cumprir-se! E não há por que preo­cupar-se a propósito dos tempos e dos prazos, porque o mistério deles depende da sabedoria de Deus, de sua presciência, de seu amor. E o que, a vistas humanas, parece bastante afastado está talvez, pela pre­destinação divina, em vésperas de cumprir-se. Assim seja!

— Assim seja! — confirmou respeitosamente o Padre Paísi.

— Estranho, estranho no mais alto grau! — proferiu Miúsov, num tom de indignação contida.

— Que encontra nisso de estranho? — informou-se com precaução o Padre Iósif.

— Francamente, que é que isso significa? — exclamou Miúsov, de súbito agressivo. — O Estado é eliminado e instaura-se a Igreja em seu lugar! É ultramontanismo na segunda potência. O próprio Gregório VII não o tinha sonhado!

— Sua interpretação é o contrário da verdade! — disse severamen­te o Padre Paísi. — Não é a Igreja que se converte em Estado, notai-o bem, isto é Roma e seu sonho, é a terceira tentação diabólica. Pelo contrário, é o Estado que se converte em Igreja, que se eleva até ela e torna-se uma Igreja sobre a terra inteira, o que é diametralmente oposto a Roma, ao ultramontanismo, à vossa interpretação, e não é senão a missão sublime reservada à ortodoxia no mundo. É no Oriente que essa estrela começará a resplender.

Miúsov manteve um silêncio significativo. Toda a sua pessoa refle­tia uma dignidade extraordinária. Um sorriso de condescendência apa­receu em seus lábios. Aliócha observava-o, com o coração palpitante. Toda aquela conversação havia-o emocionado extremamente. Olhou por acaso para Rakítin, imóvel no mesmo lugar, o qual escutava atento, de olhos baixos. Pelo seu rubor, adivinhou Aliócha que estava tão comovido quanto ele próprio; sabia por quê.

— Permiti-me, senhores, que vos conte uma anedota — começou Miúsov, com ar digno e imponente. — Tive ocasião, em Paris, após o golpe de Estado de dezembro, de visitar um de meus conhecidos, personagem importante, então no poder. Encontrei em casa dele um indivíduo bastante curioso que, sem ser de todo um policial, dirigia uma brigada da polícia política, posto bastante influente. Aproveitando da ocasião, conversei com ele por curiosidade; recebido na qualidade de subalterno que apresenta um relatório, ao ver-me em bons termos com seu chefe, testemunhou-me relativa franqueza, isto é, mais polidez que franqueza, à maneira dos franceses, tanto mais quanto sabia que eu era estrangeiro. Mas compreendi-o perfeitamente. Tratava-se dos so­cialistas revolucionários que estavam então sendo perseguidos. Negli­genciando o resto de sua conversa, contentar-me-ei em relatar uma observação muito curiosa que escapou àquela personagem: "Não tememos demais*', declarou ele, "todos esses socialistas, anarquistas, ateus e revolucionários, nós os vigiamos e estamos ao corrente de seus atos e gestos. Mas entre eles existe uma categoria particular, na verdade pouco numerosa: são os que crêem em Deus, embora sendo socialistas. Eis os que tememos mais que todos, é uma corja temível! O socialista cristão é mais perigoso que o socialista ateu". Estas palavras tinham-me abalado então, e agora, senhores, junto de vós, elas me voltam à me­mória...

— Quer dizer que o senhor as aplica a nós e vê em nós socialistas? — perguntou sem rebuços o Padre Paísi. Mas antes que Piotr Alieksán-drovitch tivesse encontrado uma resposta, a porta se abriu e Dimítri Fiódorovitch entrou, consideravelmente atrasado. Na verdade, não o esperavam mais e sua aparição súbita causou a princípio certa, surpresa.

 

POR QUE TAL HOMEM EXISTE?

Dimítri Fiódorovitch, jovem homem de 28 anos, de estatura média e de presença agradável, parecia, no entanto, notavelmente mais velho. Era musculoso e adivinhava-se nele uma força física considerável; no entanto, seu rosto magro, de faces chupadas, a tez dum amarelo doen­tio, tinha uma expressão enfermiça. Seus olhos negros, à flor da testa, mostravam um olhar vago, se bem que parecesse obstinado. Mesmo quando estava agitado e falava com irritação, seu olhar não correspon­dia a seu estado de alma e exprimia algo de diferente, por vezes nada em harmonia com o minuto presente. "É difícil saber em que ele pensa", costumavam dizer os que falavam com ele. Em certos dias, seu riso súbito, atestando idéias alegres e travessas, surpreendia aqueles que o acreditavam, no mesmo momento, pelos seus olhos, pensativo e tristonho. Aliás, sua expressão um pouco sofredora naquele momento nada tinha de espantoso; todo mundo estava a par de sua vida agitada e dos excessos a que se entregava naqueles últimos tempos, da mesma maneira que se conhecia a exasperação que dele se apoderava em suas discussões com seu pai, por questões de dinheiro. Circulavam na cidade anedotas a este respeito. Na verdade, era irascível por natureza, "de um espírito impetuoso e irregular", como o caracterizou numa reunião nosso juiz de paz Siemion Ivânovitch Katchálhnikov. Entrou vestido de modo elegante e irreprochável, com a sobrecasaca abotoada, de luvas pretas, a cartola na mão. Como oficial desde pouco tempo reformado, só trazia no momento os bigodes. Seus cabelos castanhos estavam cortados curtos e penteados para a frente. Caminhava a gran­des passadas, com ar decidido. Tendo parado um instante na soleira da porta, passeou o olhar pela assistência e dirigiu-se diretamente ao stáriets, adivinhando nele o dono da casa. Fez-lhe uma profunda vênia e pediu-lhe a bênção. Tendo-se levantado o stáriets para dar-lha, Dimí­tri Fiódorovitch beijou-lhe a mão com respeito e declarou com agita­ção e com um ar quase irritado:

— Queira desculpar-me por me ter feito esperar tanto. Mas como insistisse em conhecer a hora da entrevista, o criado Smierdiákov, enviado por meu pai, respondeu-me duas vezes, categoricamente, que estava marcada para 1 hora. E, agora, venho a saber...

— Não se atormente — disse o stáriets —, não é nada, o senhor está um pouco atrasado, não há mal nisso.

— Sou-lhe muito grato e não esperava menos de sua bondade. Depois destas palavras lacônicas, Dimítri Fiódorovitch inclinou-se de

novo, depois, voltando-se para o lado de seu pai, fez-lhe a mesma sau­dação profunda e respeitosa. Via-se que havia ele premeditado aquela saudação, com sinceridade, considerando como uma obrigação exprimir assim sua deferência e suas boas intenções. Fiódor Pávlovitch, se bem que apanhado de improviso, saiu-se à sua maneira: em resposta à sau­dação do filho, levantou-se de sua cadeira e retribuiu-lhe igualmente. Seu rosto se tornou grave e imponente, o que não deixava de dar-lhe um aspecto mau. Depois de ter respondido em silêncio às saudações dos presentes, Dimítri Fiódorovitch dirigiu-se com seu passo decidido para a janela e ocupou o único assento livre, não longe do Padre Paísi; inclinado sobre sua cadeira, preparou-se para escutar a continuação da conversa interrompida.

A chegada de Dimítri Fiódorovitch passara-se em dois ou três mi­nutos e a conversação prosseguiu. Mas desta vez Piotr Alieksándrovitch não creu necessário responder à pergunta premente e quase irritada do Padre Paísi.

— Permitam-me que abandone esse assunto — declarou ele, com certa, desenvoltura mundana. — É aliás um assunto delicado. Vejam lva Fiódorovitch sorrindo para meu lado; tem provavelmente algo de curioso a dizer a esse propósito. Perguntem-lhe.

— Não de particular — respondeu logo Ivã Fiódorovitch. — Farei somente observar que, desde muito tempo já, o liberalismo europeu em geral e mesmo nosso diletantismo liberal russo confundem freqüen­temente os resultados finais do socialismo com os do cristianismo. Essa conclusão extravagante é aliás um traço característico. Por outro lado, como se vê, não somente os liberais e os diletantes confundem em muitos casos o socialismo e o cristianismo, há também os gendarmes, no estrangeiro, bem entendido. A anedota parisiense do senhor é bas­tante característica a esse respeito, Piotr Alieksándrovitch.

— Em geral, peço de novo permissão para abandonar o assunto — repetiu Piotr Alieksándrovitch. — Contar-lhes-ei antes outra ane­dota bastante interessante e bastante característica, a propósito de Ivã Fiódorovitch. Há cinco dias, numa reunião em que se achavam sobre­tudo senhoras, declarou ele solenemente, no curso duma discussão, que nada no mundo obrigava as pessoas a amar seus semelhantes, que não existia nenhuma lei natural ordenando ao homem que amasse a humanidade; que se o amor havia reinado até o presente sobre a terra, era isto devido não à lei natural, mas unicamente à crença das pessoas em sua imortalidade. Ivã Fiódorovitch acrescentou entre parênteses que nisso está toda a lei natural, de sorte que se destruís no homem a fé em sua imortalidade, não somente o amor secará nele, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não haverá então nada de imoral, tudo será autorizado, até mesmo a antropofagia. Não é tudo: terminou afirmando que para cada indivíduo — nós agora, por exemplo — que não acredita nem em Deus, nem em sua imortalidade, a lei moral da natureza devia imediatamente tornar-se o inverso abso­luto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado até a perversidade, devia não somente ser autorizado, mas reconhecido como a saída necessária, a mais razoável e quase a mais nobre. De acordo com tal paradoxo, julguem o resto, senhores, julguem o que o nosso querido e excêntrico Ivã Fiódorovitch acha bom proclamar e suas in­tenções eventuais...

— Com licença — exclamou de súbito Dimítri Fiódorovitch. — Se bem entendi, "a perversidade deve não somente ser autorizada, mas reconhecida como a saída mais necessária e a mais razoável de cada ateu"! É bem isto?

— É exatamente isso — disse o Padre Paísi.

— Haverei de lembrar-me!

Dito isto, Dimítri Fiódorovitch calou-se tão subitamente quanto tinha tomado parte na conversa. Todos o olharam com curiosidade.

— Será possível que o senhor encare dessa forma as conseqüências do desaparecimento nas pessoas da crença na imortalidade da alma? — perguntou de súbito o stáriets a Ivã Fiódorovitch.

— Sim, afirmei-lo Não há virtude sem imortalidade.

— Ê feliz se assim acredita; pode-se ser muito infeliz!

— Por que infeliz? — objetou Ivã Fiódorovitch, sorrindo.

— Porque, segundo toda aparência, não crê o senhor nem na imor­talidade da alma, nem mesmo no que escreveu a respeito da questão da Igreja.

— Talvez tenha o senhor razão!... No entanto, não brinquei abso­lutamente — confessou de modo estranho Ivã Fiódorovitch, corando imediatamente.

— O senhor não brincou absolutamente, é verdade. Essa idéia não está ainda resolvida no seu coração e tortura-o. Mas o mártir também gosta por vezes de divertir-se com seu desespero, igualmente como para esquecê-lo. No momento, é por desespero que o senhor se diverte com artigos de revistas e com discussões mundanas, sem acreditar na sua dialética e zombando dela dolorosamente a sós consigo. Esta questão não está ainda resolvida no senhor, e é isso que causa seu tormento, porque reclama ela imperiosamente uma solução.

— Mas pode ela ser resolvida em mim, resolvida no sentido posi­tivo? — perguntou ainda de modo estranho Ivã Fiódorovitch, olhando o stáriets com um sorriso inexplicável.

— Se não puder ser resolvida no sentido positivo, não o será nunca no sentido negativo; o senhor mesmo conhece essa propriedade de seu coração; é isso que o tortura. Mas agradeça ao Criador o ter-lhe dado um coração sublime, capaz de assim atormentar-se, "de meditar nas coisas celestes e procurá-las, porque nossa morada está nos céus". Que Deus lhe conceda encontrar a solução ainda aqui embaixo e abençoe os seus caminhos!

O stáriets ergueu a mão e quis, de seu lugar, fazer o sinal-da-cruz sobre Ivã Fiódorovitch. Mas este se levantou, foi até ele, recebeu sua bênção e, tendo-lhe beijado a mão, voltou a seu lugar sem dizer uma palavra. Tinha o ar firme e sério. Essa atitude e toda a sua conversa precedente com o stáriets, que não era esperada de sua parte, impres­sionaram a todos por não sei que de enigmático e solene; de sorte que um silêncio geral reinou por um instante e o rosto de Aliócha exprimia quase terror. Mas Miúsov ergueu os ombros ao mesmo tempo que Fiódor Pávlovitch se levantava.

— Divino e santo stáriets — exclamou ele, designando Ivã Fiódo­rovitch —, eis meu filho bem amado, a carne de .minha carne! É por assim dizer o meu muito reverencioso Karl Moor, mas eis meu outro filho que acaba de chegar, Dimítri Fiódorovitch, contra o qual exijo satisfação perante o senhor — é o irreverentíssimo Frantz Moor —, ambos tirados de Os Bandidos, de Schiller; e eu, nesta circunstância, sou o Regierender Graf von Moor! Julgue-nos e salve-nos! Temos neces­sidade não somente de suas preces, mas de seus vaticínios!

— Fale duma maneira ajuizada e não comece por ofender seus pró­ximos — respondeu o stáriets com voz extenuada. Sua fadiga aumen­tava e suas forças decresciam visivelmente.

— É uma comédia indigna que eu previa, ao vir aqui! — excla­mou com indignação Dimítri Fiódorovitch, que também se havia ergui­do. — Desculpe-me, reverendo padre, sou pouco instruído e ignoro mesmo como o chamam, mas enganaram-no, e foi o senhor demasiado bom para nos conceder esta entrevista em sua casa. Meu pai tinha necessidade absoluta de escândalo. Com que fim? É negócio dele. Só age calculadamente. Mas agora creio saber por quê...

— Todo mundo me acusa! — gritou por sua vez Fiódor Pávlovitch — inclusive Piotr Alieksándrovitch. Sim, o senhor me acusou, Piotr Alieksándrovitch! — prosseguiu, voltando-se para Miúsov, se bem que este não pensasse absolutamente em interrompe-lo. — Acusam-me de ter ocultado o dinheiro de meu filho e de não lhe ter dado um vintém sequer! Mas, pergunto-lhes, não há tribunais? Ali, Dimítri Fiódorovitch, de acordo com seus recibos, de acordo com as cartas e convênios, far-se-á a conta do que você tinha, de suas despesas e do que lhe resta! Por que evita Piotr Alieksándrovitch pronunciar-se? Dimítri Fiódo­rovitch não lhe é estranho. É porque estão todos contra mim; ora, Dimítri Fiódorovitch continua a dever-me, não uma pequena soma, mas vários milhares de rublos, do que posso dar as provas. Seus excessos provocam conversinhas da cidade inteira. Nas suas antigas guarnições gastou mais de 1 milhar de rublos para seduzir moças honestas; nós o sabemos, Dimítri Fiódorovitch, da maneira mais circunstanciada, e demonstrá-lo-ei... Reverendo padre, acreditaria o senhor que fez com que se apaixonasse por ele uma moça das mais distintas, de excelente família com fortuna, filha de seu antigo chefe, um bravo coronel que serviu meritòriamente à pátria, condecorado com o colar de Santa Ana com gládios? Essa moça, que ele comprometeu, oferecendo-se para casar com ela, mora agora aqui, órfã, é sua noiva, e aos olhos dela freqüenta ele uma sereia. Se bem que esta última tenha vivido em união livre com um homem respeitável, mas de caráter independente, é uma fortaleza inexpugnável para todos, tal como uma mulher legí­tima, porque ela é virtuosa, sim, meus reverendos padres, ela é vir­tuosa! Ora, Dimítri Fiódorovitch quer abrir aquela fortaleza com uma chave de ouro, eis por que faz-se de bravo agora comigo, quer subtrair-me dinheiro, já gastou milhares de rublos por causa dessa sereia; além disso anda pedindo dinheiro emprestado sem cessar, e a quem, sabem os senhores? Devo dizê-lo ou não, Mítia?

— Cale-se! — exclamou Dimítri Fiódorovitch. — Espere que eu me retire, evite enodoar na minha presença a mais nobre das moças... ê já uma vergonha para ela que tenha ousado fazer alusão a isso... Não o tolerarei!

Estava sufocado.

— Mítia, Mítia! — gritou Fiódor Pávlovitch, nervoso e fazendo força para chorar. — E a bênção paterna, que fazes dela? Se eu te amaldiçoar, que acontecerá?

— Tartufo sem-vergonha! — rugiu Dimítri Fiódorovitch.

— É assim que trata a seu pai, a seu pai! Como o fará aos outros? Escutem, senhores, há aqui um homem pobre, mas honrado; capitão reformado, que foi dispensado em conseqüência de uma desgraça, mas não em virtude de um julgamento, de reputação intata, sobrecarregado de numerosa família. Há três semanas, o nosso Dimítri Fiódorovitch agarrou-o pela barba num botequim, arrastou-o pela rua e sur­rou-o em público, pela mera razão de estar esse homem secretamente encarregado de meus interesses em determinado negócio.

— Mentira tudo isso! Aparentemente é verdade, no fundo, pura mentira! — disse Dimítri Fiódorovitch, tremendo de cólera. — Meu pai, não justifico minha conduta; sim, convenho publicamente que fui brutal para com esse capitão. Agora lamento isso e minha brutalidade me causa horror, mas esse capitão, encarregado de seus negócios, foi procurar aquela pessoa que o senhor chama de sereia e lhe propôs de parte do senhor avalizar minhas promissórias, que estão em seu poder, a fim de perseguir-me e mandar-me prender, no caso de apertá-lo eu demais a propósito de nosso ajuste de contas. Se o senhor quer atirar-me na prisão é unicamente por ciúme dela, porque o senhor mesmo começou a andar em roda dessa mulher — estou ao corrente de tudo. Ela só fez rir, está ouvindo? E foi zombando do senhor que o repeliu. Tal é, meus reverendos padres, esse homem, esse pai que censura a má conduta de seu filho. Os senhores, que são testemunhas, perdoem minha cólera, mas pressentia eu que esse pérfido velho os convocara a todos aqui para provocar um escândalo. Vim na intenção de perdoar, se ele me estendesse a mão, de perdoar-lhe e de pedir-lhe perdão! Mas como acaba ele de insultar não somente a mim, mas à moça mais nobre, cujo nome não ouso pronunciar em vão, porque a respeito, de­cidi desmascará-lo publicamente, se bem que seja meu pai.

Não pôde continuar. Seus olhos faiscavam, respirava com dificuldade. Todos os presentes estavam emocionados, exceto o stáriets, todos se haviam levantado, agitados. Os religiosos olhavam com olhar severo, mas aguardavam a vontade do stáriets. Este último estava pálido, não de emoção, mas de fraqueza doentia. Um sorriso suplicante desenha­va-se em seus lábios; erguia por vezes a mão como para conter aqueles furiosos. Teria podido, com um só gesto, pôr fim à cena; mas parecia esperar qualquer coisa e olhava fixamente, como se quisesse ainda com­preender um ponto que lhe teria escapado. Por fim, Piotr Alieksán-drovitch sentiu-se definitivamente humilhado, atingido na sua dignidade.

— No escândalo que acaba de desenrolar-se, somos todos culpados! — declarou ele, apaixonadamente. — Mas não previa tudo isso vindo aqui, se bem que soubesse com quem tratava... É preciso acabar com isso sem tardar. Meu reverendo padre, fique certo de que não conhecia eu exatamente todos os detalhes revelados aqui, não queria acreditar neles e fico conhecendo-os pela primeira vez. O pai está com ciúmes de seu filho por causa de uma mulher de má vida e entende-se com essa criatura para lançá-lo na prisão... E é em semelhante compa­nhia que me fizeram vir aqui... Enganaram-me, declaro ter sido enga­nado tanto quanto os outros...

— Dimítri Fiódorovitch! — gritou de súbito Fiódor Pávlovitch, com uma voz que não era a sua. — Se não fosse você meu filho, eu o desafiaria agora mesmo a um duelo... a pistola, a três passos... através de um lenço, através de um lenço — terminou ele, sapateando.

Há nos velhos mentirosos que representaram comédia a vida inteira momentos em que entram de tal maneira em seu papel que tremem e choram com verdadeira emoção, se bem que no mesmo instante pos­sam dizer a si mesmos (ou logo depois): 'Tu mentes, velho descarado, és um ator -mesmo agora, malgrado tua santa cólera".

Dimítri Fiódorovitch ficou sombrio, mirando seu pai com um des­prezo indizível. Eu pensava... — disse ele em voz baixa — eu pensava voltar ao país natal com aquele anjo, minha noiva, para cuidar da velhice dele, e que vejo? Um debochado luxurioso e um vil comediante!

— A um duelo! — gritou de novo o velho, ofegante e babando a cada palavra. — Quanto ao senhor, Piotr Alieksándrovitch Miúsov, fique sabendo que em toda a sua linhagem não há talvez mulher mais nobre e mais honesta — está entendendo? —, mais honesta do que essa criatura, como se permitiu o senhor chamá-la ainda há pouco! Quanto a você, Dimítri Fiódorovitch, que substituiu sua noiva por essa "criatura*', você mesmo julgou que sua noiva não valia a sola dos sapatos dela!

— É vergonhoso! — deixou escapar o Padre Iósif.

— É vergonhoso e infame! — gritou com uma voz juvenil, trêmula de emoção, o rosto rubro, Kolgánov, que havia até então guardado silêncio.

— Por que tal homem existe? — rugiu surdamente Dimítri Fiódo­rovitch, a quem a cólera quase enlouquecia. Ergueu os ombros a ponto de parecer corcunda. — Não, dizei-me, pode-se permitir ainda que ele desonre a terra? — Lançou um olhar circundante e apontou para o velho com a mão. Falava num tom lento, medido.

— Estais ouvindo, monges, estais ouvindo o parricida?! — excla­mou Fiódor Pávlovitch, dirigindo-se ao Padre Iósif. — Eis a resposta ao vosso "Ê vergonhoso!" Que é que é vergonhoso? Essa "criatura", essa "mulher de má vida" é talvez mais santa que vós todos, senho­res religiosos, que tratais de vossa salvação! Ela caiu talvez na sua juventude, vítima do meio, mas "muito amou". Ora, o Cristo também perdoou aquela que muito amou...

— O Cristo não perdoou tal amor... — deixou escapar em sua impaciência o manso Padre Iósif.

— Não, foi esse amor mesmo, monges, esse mesmo. Cuidais de vossa salvação comendo couves e vos acreditais sábios. Corneis cadozes, um por dia, e pensais poder comprar Deus com cadozes.

— É intolerável, intolerável! — ouviu-se de todos os lados.

Mas essa cena escandalosa cessou da maneira mais inesperada. De súbito, o stáriets se levantou. Alieksiéi, que quase enlouquecera de medo por ele e por todos, pôde, no entanto, segurá-lo pelo braço. O stáriets dirigiu-se para o lado de Dimítri Fiódorovitch e, ao chegar bem perto, ajoelhou-se diante dele. Aliócha pensou que ele tivesse caído de fraqueza, mas não era nada disso. Uma vez de joelhos, o stáriets prosternou-se aos pés de Dimítri Fiódorovitch numa profunda saudação, precisa e consciente; sua testa aflorou mesmo a terra. Aliócha ficou de tal maneira estupefato que nem mesmo o ajudou a levantar-se. Um leve sorriso pairava-lhe nos lábios.

— Perdoem, perdoem todos! — disse ele, saudando seus hóspedes para todos os lados.

Dimítri Fiódorovitch ficou alguns instantes como que petrificado: prosternar-se diante dele! Que significava aquilo? Por fim exclamou: "Ô Deus!", cobriu o rosto com as mãos e lançou-se para fora do quarto. Todos os hóspedes seguiram-no em fila, tão perturbados que se esqueceram de despedir-se do dono da casa e de cumprimentá-lo. Somente os religiosos se aproximaram para receber-lhe a bênção.

— Por que se prosternou ele? Será algum símbolo? — Fiódor Pávlovitch, de súbito acalmado, procurava assim travar uma conversa, não ousando, aliás, dirigir-se a alguém em particular. Transpunham naquele momento a cerca do eremitério.

— Não respondo por alienados — respondeu logo Piotr Alieksándrovitch, com aspereza. — Mas, em compensação, desembaraço-me de sua companhia, Fiódor Pávlovitch, e acredite que é para sempre. Onde está aquele monge de há pouco?...

"Aquele monge", isto é, o que os havia convidado a jantar com o padre abade, não se fizera esperar. Encontrara os hóspedes a tempo, no momento em que estes desciam o patamar, como se tivesse estado todo o tempo à espera deles.

— Tenha a bondade, reverendo padre, de assegurar ao padre abade o meu profundo respeito e apresentar-lhe minhas desculpas; em con­seqüência de circunstâncias imprevistas, é-me impossível, malgrado todo o meu desejo, aceitar o convite — declarou Piotr Alieksándrovitch ao monge, com irritação. —

— A circunstância imprevista sou eu! — interveio logo Fiódor Pávlo­vitch. — Escute, meu padre, é que Piotr Alieksándrovitch não quer ficar a meu lado, senão iria agora mesmo. Vá, Piotr Alieksándrovitch, não deixe de ir à casa do padre abade, e bom apetite! Fique sabendo que sou eu que me escapulo e não o senhor. Volto para casa, lá poderei comer, aqui, sinto-me incapaz, meu bem-amado parente.

— Não sou seu parente, jamais o fui, vil indivíduo.

— Disse isto de propósito para fazer-lhe raiva, porque o senhor repudia este parentesco embora seja meu parente, malgrado seus ares de importância, provar-lhe-ei pelo almanaque eclesiástico; enviar-te-ei o carro, Ivã, fica também, se quiseres. Piotr Alieksándrovitch, as con­veniências lhe ordenam que se apresente em casa do padre abade; é preciso pedir desculpas das tolices que cometemos lá.

— É verdade que se vai embora? Não está mentindo?

— Piotr Alieksándrovitch, como o ousaria eu depois do que se pas­sou? Deixei-me arrebatar, senhores, perdoem-me. Além disso, estou transtornado! E tenho vergonha. Senhores, pode-se ter o coração de Alexandre da Macedônia ou o de um cãozinho. Eu me assemelho ao cãozinho Fidelhka. Tornei-me tímido. Pois bem! Como ir ainda jantar depois de tal leviandade, encher-me dos assados do- mosteiro? Tenho vergonha, não posso, desculpem-me!

"O diabo sabe de que é ele capaz! Não terá ele a intenção de nos enganar?" Miúsov parou, irresoluto, seguindo com um olhar perplexo o palhaço que se afastava. Este voltou-se e, vendo que Piotr Alieksán­drovitch o observava, enviou-lhe com a mão um beijo.

— Vai à casa do padre abade? — perguntou Miúsov a Ivã Fiódorovitch, num tom brusco.

— Por que não? Ele mandou convidar-me especialmente desde ontem.

— Por desgraça, sinto-me verdadeiramente quase obrigado a com­parecer a esse maldito jantar — continuou Miúsov no mesmo tom de irritação amarga, sem mesmo tomar cuidado com o mongezinho que o ouvia. — Ê preciso pelo menos desculpar-nos do que se passou e explicar que não fomos nós... Que pensa disto?

— Sim, é preciso explicar que não fomos nós. Além disso, meu pai não estará lá — observou Ivã Fiódorovitch.

— Era só o que faltava que seu pai estivesse lá! Maldito jantar.

No entanto todos para ele se dirigiam. O mongezinho escutava em silêncio. Ao atravessar o bosque, fez notar que o padre abade esperava desde muito tempo e estava atrasado mais de meia hora. Não lhe responderam. Miúsov mirava Ivã Fiódorovitch com um ar cheio de ódio.

"Ele vai ao jantar como se nada se tivesse passado", pensava ele. "Uma testa de bronze e uma consciência de Karamázov!"

 

UM SEMINARISTA AMBICIOSO

Aliócha conduziu o stáríets ao seu quarto de dormir e fê-lo sentar no leito. Era uma peça muito pequena, com o mobiliário indispen­sável; a cama de ferro estreita tinha apenas uma almofada de feltro à guisa de colchão. A um canto, sobre uma estante, perto dos íco­nes, repousavam a cruz e o Evangelho. O stáriets deixou-se cair, extenuado. Seus olhos brilhavam, resfolegava. Uma vez sentado olhou fixamente Aliócha, como se meditasse em alguma coisa.

— Vai, meu caro, vai, Porfíri me basta, apressa-te. Têm necessidade de ti em casa do padre abade, servirás à mesa.

— Permita-me ficar aqui — disse Aliócha, com voz suplicante.

— És mais necessário lá. A paz não reina ali. Servirás e tornar-te-ás útil. Vêm os maus espíritos, recita uma oração. Fica sabendo, meu filho (o stáriets gostava de chamá-lo assim), que no futuro teu lugar não será aqui. Lembra-te disto, rapaz. Assim que Deus me tiver julgado digno de comparecer perante ele, deixa o mosteiro. Parte imediatamente.

Aliócha estremeceu.

— Que tens? Teu lugar não é aqui no momento. Abençôo-te tendo em vista uma grande tarefa a cumprir no mundo. Peregrinarás muito tempo. Deveras casar-te, é preciso. Deveras suportar tudo até voltares. Haverá muito que fazer. Mas não duvido de ti. Eis por que te envio. Que o Cristo seja contigo! Guarda-o e ele te guardará. Experimentarás uma grande dor e ao mesmo tempo serás feliz. Tal é tua vocação: procurar a felicidade na dor. Trabalha, trabalha sem cessar. Lembra-te de minhas palavras, doravante, porque entreter-me-ei ainda contigo, mas meus dias e mesmo minhas horas estão contados.

Viva agitação pintou-se no rosto de Aliócha. Seus lábios tremiam.

— Que tens de novo? — sorriu docemente o stáriets. — Que os mundanos chorem seus mortos; aqui nos regozijamos quando um padre agoniza. Nós nos rejubilamos e rezamos por ele. Deixa-me. Tenho de rezar. Vai, despacha-te. Fica junto de teus irmãos, e não somente junto de um, mas de ambos.

O stáriets ergueu a mão para abençoá-lo. Era impossível fazer objeções, muito embora Aliócha tivesse grande vontade de ficar. Queria também perguntar-lhe, estava mesmo com a pergunta nos lábios, o que significava aquela prosternação diante de seu irmão Dimítri, mas não ousou. Sabia que o stáriets lho teria ele próprio explicado, se tivesse podido. Portanto, não o queria. Ora, aquela saudação até o chão havia enchido Aliócha de estupefação; havia naquilo um sentido misterioso. Misterioso e talvez terrível. Uma vez fora da cerca do eremitério, para chegar ao mosteiro no começo da refeição em casa do padre abade (devia servir à mesa), seu coração se fechou e teve de deter-se: parecia-lhe ouvir de novo as palavras do stáriets predizendo seu fim próximo. O que tinha predito o stáriets com tal exatidão devia cumprir-se sem nenhuma dúvida. Aliócha acreditava naquilo cegamente. Mas como ficaria sem ele, sem vê-lo, nem ouvi-lo? E aonde iria? Ordenavam-lhe que não chorasse e que deixasse o mosteiro. Senhor! Desde muito tempo não sentia Aliócha semelhante angústia. Atravessou rapidamente o bosque que separava o eremitério do mos­teiro e, incapaz de suportar os pensamentos que o acabrunhavam, pôs-se a contemplar os pinheiros seculares que orlavam o caminho. O trajeto não era longo, quinhentos passos no máximo; não se podia encontrar ninguém àquela hora, mas à primeira volta avistou Rakítin. Este espe­rava alguém.

— Seria a mim que esperavas? — perguntou Aliócha, quando o alcançou.

— Justamente — respondeu Rakítin, sorrindo. — Apressas-te em ir à casa do padre abade. Sei; oferece um jantar. Desde o dia em que recebeu o bispo e o General Parkhátov — lembras-te? — não houve jantar igual. Lá não estarei, mas tu vais para lá, servirás os pratos. Dize-me, Aliócha, que significa esse sonho? Queria perguntar-te.

— Que sonho?

— Mas aquela prosternação diante de teu irmão Dimítri Fiódorovitch. Bateu até com a cabeça no chão!

— Falas do Padre Zósima?

— Sim, dele.

— A testa?

— Ah! exprimi-me irreverentemente! Não tem importância. Pois bem, que significa aquele sonho?

— Ignoro, Micha, o que ele significa!

— Estava certo de que ele não to explicaria. Isto nada tem de espantoso, são sempre as mesmas santas frioleiras. Mas o truque foi jogado de propósito. Agora vão os beatos falar na cidade e espalhar na província: "Que significa esse sonho?" Na minha opinião, o velho é perspicaz; farejou um crime. Isso lá na tua casa está de feder.

Que crime?

Rakítin queria evidentemente dizer alguma coisa.

— Será na tua família que ele ocorrerá, esse crime. Entre teus irmãos e teu rico papai. Eis por que o Padre Zósima bateu com a testa para qualquer eventualidade. Depois, que acontecerá? "Ah! Isto fora predito pelo santo eremita, ele profetizou." No entanto, que profecia há nisso de bater com a cabeça? Não, dirão, é um símbolo, uma alegoria, e Deus sabe o quê! Será divulgado e lembrado: ele adivinhou o crime, designou o criminoso. Os "inocentes" agem sempre assim; fazem sobre o botequim o sinal-da-cruz e atiram pedras no templo. Da mesma maneira o teu stáriets: para um sábio, pauladas, mas diante de una assassino curva a cabeça.

— Que crime? Diante de qual assassino? Que é que estás contando? Aliócha ficou como que pregado no lugar. Rakítin também parou.

— Que crime? Como se não o soubesses! Aposto que já pensaste nisso. A propósito, é curioso; escuta, Aliócha, tu dizes sempre a ver­dade, se bem que te assentes sempre entre duas cadeiras; pensaste nisso ou não? Responde.

— Pensei nisso — respondeu Aliócha em voz baixa. Rakítin per­turbou-se.

— Como, também tu já pensaste nisso? — exclamou ele.

— Eu... não é que tenha pensado precisamente nisso — mur­murou Aliócha —, mas acabas de falar tão' estranhamente a esse respeito que me pareceu tê-lo pensado eu mesmo.

— Estás vendo? (E como o exprimiste claramente!) Estás vendo? Hoje, ao veres teu pai e teu irmão Mítia, pensaste em um crime. Portanto, não me engano.

— Espera, espera um pouco — interrompeu-o Aliócha, perturbado. — Donde tiras tudo isso? E, em primeiro lugar, por que isso tanto te interessa?

— Duas perguntas diferentes, mas naturais. Responderei a cada uma separadamente. Donde tiro tudo isso? De nenhuma parte o teria tirado, se não tivesse compreendido hoje Dimítri Fiódorovitch, teu irmão, dum relance e totalmente, tal como ele é, segundo certa linha. Entre essas pessoas muito honestas, mas sensuais, há uma linha que não se deve transpor. De outro modo, golpeará seu pai até mesmo com uma faca. Ora, seu pai é um bêbedo e um debochado desenfreado, que jamais conheceu a medida em coisa alguma; nenhum dos dois se conterá, e pronto, eis todos dois no fosso.

— Não, Micha, se é só isso, reconfortas-me. Isso não chegará a esse ponto.

— Mas por que tremes tanto? Sabes por quê? Pode ele ser um homem honesto, Mítia (é estúpido, mas honesto), apenas é um sen­sual. Eis sua definição e o fundo de sua natureza. Foi seu pai quem lhe transmitiu sua abjeta sensualidade. A respeito de ti, somente, Aliócha, é que me espanto; como se dá que sejas virgem? És, no entanto, um Karamázov! Na família de vocês, a sensualidade chega até o frenesi. Ora, esses três seres sensuais espiam-se agora... de faca no bolso. Três deram cabeçadas, podes ser o quarto.

— Enganas-te certamente a respeito daquela mulher. Dimítri a... despreza — disse Aliócha, fremente.

— Grúchenhka? Não, irmão, ele não a despreza. Já que aban­donou publicamente sua noiva por causa dela, não a despreza. Aqui, irmão, aqui há qualquer coisa que não compreendes agora. Que um homem se apaixone por uma beldade qualquer, por um corpo de mulher, até mesmo somente por uma parte desse corpo (um volup­tuoso me compreenderia imediatamente), entregará por causa dela seus próprios filhos, venderá pai e mãe, a Rússia e a pátria; honesto, irá roubar; manso, assassinará; fiel, trairá. O cantor dos pés femi­ninos, Púchkin, celebrou-os em versos; outros não os cantam, mas não podem olhá-los a sangue frio. Mas não há somente os pés... Aqui, irmão, o desprezo é impotente. Ele despreza Grúchenhka, mas não pode destacar-se dela.

— Compreendo isso — disse, de repente, Aliócha.

— Deveras? E tu o compreendes, na verdade, para que o con­fesses desde a primeira palavra — declarou Rakítin com uma ale­gria maldosa. — Isso escapou-te por acaso. Nem por isso deixa a confissão de ser mais preciosa; por conseqüência, a sensualidade é para ti um assunto conhecido, já pensaste nela! Ah! o santinho! Tu és santo, Aliócha, convenho, mas és um santinho, e o diabo sabe em que é que já não pensaste, o diabo sabe o que já conheces! És virgem, mas já penetraste bastantes coisas, observo-te desde muito tempo. És tu mesmo um Karamázov, és um completo; portanto, a raça e a seleção significam alguma coisa. És sensual por teu pai e "inocente" por tua mãe. Por que tremes? Será verdade o que digo? Sabes? Grúchenhka me pediu: "Trá-lo aqui (isto é, tu) e eu lhe arrancarei a batina". E como tivesse insistido: "Trá-lo, trá-lo!", disse a mim mesmo: por que está ela tão curiosa dele? Sabes, ela também é uma mulher extraordinária!

— Dir-lhe-ás que não irei, jura-mo — disse Aliócha, com um sorriso constrangido. — Acaba, Mikhail, o que começaste, dir-te-ei em seguida o que penso. Para que acabar? Tudo é claro. Tudo isso, irmão, é uma velha canção. Se tu mesmo tens um temperamento sensual, que será de teu irmão Ivã, filho da mesma mãe? Porque também ele é um Karamázov. Ora, a natureza dos Karamázovi se resume assim: sensuais, ávidos no ganho e malucos! Teu irmão Ivã distrai-se agora escre­vendo artigos de teologia por um cálculo estúpido que se ignora, sendo ele próprio ateu, e confessa essa baixeza. Além disso, está a ponto de conquistar a noiva de seu irmão Mítia e parece perto de seu fim. De que maneira? Com o consentimento do próprio Mítia, porque este lhe cede a noiva com o único fim de se desembaraçar dela e ir juntar-se a Grúchenhka. £ tudo isso não obstante sua nobreza e seu desinteresse, nota-o. Tais indivíduos são os mais fatais. Como entendê-los, afinal? Tendo plena consciência de sua baixeza, comportam-se baixamente. Escuta agora: um velho barra o caminho a Mítia, seu próprio pai. Porque este está loucamente apaixonado por Grúchenhka, fica com a boca cheia de água somente ao vê-la. Foi unicamente por causa dela que provocou tal escândalo, somente porque Miusov tinha ousado chamá-la de criatura depravada. Está mais amoroso do que um gato. Antes, estava ela somente a seu serviço para certos negócios equívocos e nas suas tavernas; agora, depois de tê-la bem examinado, percebeu ele que ela lhe agradava, encarniça-se após ela e faz-lhe propostas desonestas naturalmente; pois bem, o pai e o filho encontram-se nesta estrada. Mas Grúchenhka reserva-se, hesita ainda e mexe com os dois, examina qual é o mais vantajoso, porque se se pode arrancar muito dinheiro do pai, em compensação ele não se casará, tornar-se-á talvez avarento para o fim e fechará sua bolsa. Em semelhante caso, Mítia também tem seu valor; não tem dinheiro mas pode casar-se. Sim, é capaz disso! Abandonará sua noiva, uma beldade incomparável, Catarina Ivânovna, rica, nobre e filha de coronel, para se casar com Grúchenhka, outrora mantida por Samsonov, um velho comerciante, mujique de­pravado e prefeito da cidade. De tudo isso, podem verdadeiramente resultar um conflito e um crime. Ora, é o que espera teu irmão Ivã. Dá ele assim um golpe duplo: toma posse de Catarina Ivânovna, pela qual morre de amores, e se apropria de seu dote de 60 000 rublos. Para um pobre-diabo como ele, um pobretão, não é coisa de desdenhar, no começo. E nota bem! Não somente não ofenderá Mítia, mas este lhe será grato até a morte. Porque sei de boa fonte que, na última semana, achando-se Mítia embriagado num restaurante com ciganos, exclamou que era indigno de Catarina, sua noiva, mas que seu irmão Ivã era digno dela. A própria Catarina Ivânovna acabará não repelindo um homem encantador como Ivã Fiódorovitch; já hesita entre eles. Mas como pode esse Ivã seduzir-vos para que estejais todos em êxtase diante dele? Ri-se de vós. Estou extasiado, diz ele, e festejo às vossas custas.

— Donde sabes tudo isso? Por que falas com tal segurança? — perguntou bruscamente Aliócha, franzindo o cenho.

— Mas por que me interrogas, temendo de antemão a resposta? Isto significa que reconheces que disse a verdade.

— Não gostas de Ivã. Ivã não se deixa seduzir pelo dinheiro.

— Deveras? E a beleza de Catarina Ivânovna? Não se trata somente de dinheiro, muito embora 60 000 rublos sejam bastante atraentes.

— Ivã olha mais alto. Milhares de rublos não o deslumbrariam. Não é nem o dinheiro nem a tranqüilidade que ele procura. Ivã procura talvez o sofrimento.

— Que sonho é esse ainda? Ah! vós outros... os nobres!

             Ora! Micha, sua alma é impetuosa. Seu espírito é cativo. Tem ele um grande pensamento ainda não resolvido. É daqueles que não têm necessidade de milhões, mas de resolver seu pensamento,

— Ê um plágio. Alióeha, parafraseias o teu stárieis. Ora! Ivã pro­pôs-vos um enigma! — gritou com visível animosidade Rakítin, cujo rosto se alterou e cujos lábios se contraíram. — E um enigma estúpido, não há nele nada a adivinhar. Faze um pequeno esforço e compreenderás. Seu artigo é ridículo e inepto. Ouvi ainda há pouco sua absurda teoria: "Se não há imortalidade da alma, então não há virtude, o que quer dizer que tudo é permitido". Lembras-te de como teu irmão Mítia gritou: "Lembrar-me-ei disso!" É uma teoria sedutora para os tratantes... Mas estou insultando, é uma estupidez... não os tratantes, mas os fanfarrões da escola com "uma profundeza de pensa­mento insolúvel". É um falastraz e isto quer dizer simplesmente no fundo: "Boné branco e branco boné". Toda a sua teoria não passa duma infâmia! A humanidade encontra em si mesma a força de viver para a virtude, mesmo sem crer na imortalidade da alma! Tira-a do amor à liberdade, à igualdade e à fraternidade...

Rakítin acalorara-se, tinha dificuldade em conter-se. Mas de repente parou, como se se lembrasse de alguma coisa.

— Pois bem, basta! — disse ele, com um sorriso ainda mais for­çado. — Por que ris? Pensas que sou um casca-grossa?

— Não, nem mesmo tinha idéia de pensá-lo. És inteligente, mas... deixemos isso. Sorri por estupidez. Compreendo que possas acalorar-te, Micha. Adivinhei pelo teu arrebatamento que tu mesmo não ^s indiferente para com Catarina Ivânovna. Há muito tempo que duvidava disso, irmão. Eis por que não gostas de Ivã. Tens ciúmes dele.

— E também do dinheiro dela? Vai até o fim.

— Não, não falarei do dinheiro, não quero ofender-te.

— Creio-o, porque o disseste, mas que o diabo vos leve, a ti e a teu irmão Ivã! Nenhum de vós compreende que, mesmo posta de parte Catarina Ivânovna, ele é muito pouco simpático. Que razão terei para gostar dele, com a breca! Ele me faz a honra de injuriar-me, Não terei o direito de retribuir-lhe?

— Jamais o ouvi dizer bem ou mal de ti. Não fala absolutamente de ti.

— Pois bem, contaram-me que anteontem, em casa de Catarina Ivânovna, disse boas de mim, tanto se interessava por este teu criado. Depois disso, ignoro qual irmão tem ciúme do outro. Houve ele por bem insinuar que, se eu não resignar à carreira de arkhimandrit e não largar a batina num futuro bem próximo, partirei para Petersburgo, entrarei para uma grande revista na qualidade de crítico, escreverei por uma dezena de anos e acabarei por tornar-me proprietário da revista. Publicá-la-ei então com orientação liberal e ateia, com uma tintura socialista, certo verniz mesmo de socialismo, mas tomando minhas precauções, isto é, nadando entre duas águas e ludibriando os imbecis. Sempre segundo o teu irmão, malgrado essa tintura de socia­lismo, colocarei minhas rendas em conta-corrente, pondo-as no momento em circulação, sob a direção dum judeuzinho qualquer, até que eu consiga construir um grande imóvel em Petersburgo; meus escritórios ocuparão um andar e alugarei os outros. Designou mesmo o local da casa, perto da nova ponte de pedra que se projeta, parece, entre a Rua Litiéinaia e Travessa Vibórskaia...

— Ah! Micha, isto se realizará talvez de ponta a ponta! — excla­mou Alióeha, que não pôde conter um riso jovial.

— E você também zomba, Alieksiéi Fiódorovitch?

— Não, não, estou brincando, desculpa-me. Pensava em outra coisa bem diversa. Mas, dize-me, quem pôde comunicar-te tais detalhes, de quem os terias sabido? Porque não estavas em casa de Catarina Ivânovna, quando ele falava de ti.

— É verdade, mas Dimítri Fiódorovitch ali se achava e ouvi-o repetir isso, isto é, escutei contra a minha vontade, oculto no quarto de dormir de Grúchenhka, donde não podia sair em sua presença.

— Ah! sim, esquecia-me de que é tua parenta.

— Minha parenta? Essa Gruchka seria minha parenta? — exclamou Rakítin, todo vermelho. — Perdeste a razão? Tens o cérebro desarranjado.

— Como? Não é tua parenta? Ouvi dizer isto.

— Onde pudeste ouvi-lo? Ah! Senhores Karamazovi, tomais ares de alta e velha nobreza, quando teu pai bancava o palhaço na mesa alheia e figurava por favor na cozinha. Admitamos, não passo de filho de pope, um vil plebeu, ao lado de vós, nobres, mas não me insulteis com tão alegre sem-cerimônia. Tenho também minha honra, Alieksiéi Fiódorovitch. Não posso ser parente de Gruchka, uma mulher pública, compreende pois!

Rakítin estava violentamente superexcitado.

— Desculpa-me, pelo amor de Deus, não o teria nunca acreditado, aliás. É ela verdadeiramente... uma mulher pública? — Aliócha ficou completamente rubro. —Repito-te, disseram-me mesmo que era tua parenta. Vais muitas vezes à casa dela e tu mesmo me disseste que não tinhas ligação com ela... Jamais teria crido que a desprezasses tanto! Merece-o ela verdadeiramente?

— Se a freqüento, tenho talvez minhas razões para isso, mas basta. Quanto ao parentesco, será antes teu irmão ou mesmo teu pai que a fará entrar na tua família e não na minha. Mas eis-nos chegados. Vai antes à cozinha... Ora! Que é que há? Que está acontecendo? Estaríamos atrasados? Mas não é possível que já tenham acabado de jantar! A menos que os Karamazovi não tenham feito das suas. Deve ser isto. Eis teu pai e Ivã Fiódorovitch que o segue. Fugiram da casa do padre abade. Eis o Padre Isidoro no patamar a gritar alguma coisa na direção deles. E teu pai, que grita, agitando os braços. Decerto está descompondo. Eis Miúsov que parte de caleça, não o vês correr? O proprietário Maksímov corre; é um verdadeiro escândalo,' o jantar não se realizou! Teriam eles batido no padre abade? Ou então foram surrados! Teriam bem merecido uma surra!...

Rakítin tinha razão de fazer essas exclamações. Ocorrera de fato um escândalo inaudito e inesperado. Tudo se passara "por inspiração do momento".

 

UM ESCÂNDALO

Quando Miúsov e Ivã Fiódorovitch iam entrar em casa do padre abade, produziu-se em Piotr Alieksándrovitch — que era um homem educado — uma reviravolta delicada. Teve vergonha de sua cólera. Sentia em seu íntimo que deveria estimar pelo seu justo valor o la­mentável Fiódor Pávlovitch, conservar seu sangue-frio na cela do stáriets, e não perder a cabeça, como fora o caso. "Os monges não têm culpa nenhuma", decidiu ele de repente no patamar do abade. Ora, se há aqui pessoas decentes (o Padre Nikolai, o abade, é, parece, da nobreza), por que não me mostrar para com eles delicado, amável f| polido? Não discutirei, farei mesmo coro, conquistarei a simpatia deles pela minha amabilidade e... por fim, provar-lhes-ei que não jogou o companheiro daquele Esopo[6], daquele palhaço, daquele saltimbanco, e que fui metido nisso com eles todos..." I Resolveu ceder-lhes definitivamente os direitos de corte e pesca, de uma vez por todas, naquele dia mesmo — tanto mais que aquilo não tinha valor —, e de cessar os processos contra o mosteiro.

Todas essas boas intenções afirmaram-se ainda, quando entraram na sala de jantar do padre abade. Não era na verdade uma, porque não havia senão duas peças, aliás muito mas espaçosas e mais cômodas que as do stáriets. Mas o mobiliário não brilhava pelo conforto: os móveis eram de acaju, recobertos de couro à antiga moda de 1820, e até mesmo os soalhos não eram pintados. Em compensação, tudo rebrilhava de limpeza, havendo nas janelas muitas flores caras; mas uma elegância principal residia naquele momento na mesa suntuosamente servida — relativamente, como era natural; a toalha era imaculada, a prataria cintilava; sobre a mesa três espécies de pão muito bem cozidos, duas garrafas de vinho, dois jarros de excelente hidromel do mosteiro e um garrafão cheio de kvas reputado das redondezas. Não havia vodca. Rakftin contou mais tarde que o jantar compreendia daquela vez cinco |pratos: uma sopa de esturjão com bocados de peixe; depois um peixe cozido, preparado segundo uma receita especial e deliciosa; bolinhos de esturjão, gelados e compota, e por fim um prato de doce de batata fim estilo de manjar branco.

Rakítin havia farejado tudo isto, e, incapaz de conter-se, lançou uma olhadela à cozinha do padre abade, onde tinha conhecidos. Tinha (...) por toda parte e ficava sabendo o que queria saber. Era um coração atormentado e invejoso. Tinha plena consciência de seus dons Indiscutíveis.; fazia mesmo deles, na sua presunção, uma idéia exagerada. Sabia-se destinado a desempenhar um papel, mas Aliócha, que lhe fira muito ligado, afligia-se por ver seu amigo desprovido de consciência e não se aperceber disso. Rakítin, pelo contrário, sabendo que jamais roubaria dinheiro a seu alcance, estimava-se por isto como homem de perfeita honorabilidade. A este respeito nem Aliócha nem ninguém podia influir sobre ele.

Rakítin era uma personagem por demais mesquinha para figurar na refeição; em compensação o Padre Iósif e o Padre Paísi tinham sido envidados, bem como um outro religioso. Aguardavam eles já na ala de jantar, quando entraram Piotr Alieksándrovitch, Kolgánov e Ivã Fiódorovitch. O proprietário de terras Maksímov mantinha-se à parte. O padre abade avançou para o meio da sala para acolher seus Convidados. Era um velho grande e magro, mas ainda vigoroso, de cabelos negros já grisalhos, de rosto comprido, emaciado e grave. Cumprimentou seus hóspedes em silêncio e estes vieram por sua vez receber sua bênção. Miúsov tentou mesmo beijar-lhe a mão, mas o abade preveniu seu gesto, retirando-a. Ivã Fiódorovitch e Kolgánov foram até ao extremo, fazendo estalar os lábios à maneira da gente do povo.

— Devemos apresentar-vos todas as nossas desculpas, meu reverendo padre — começou Piotr Alieksándrovitch, com um gracioso sorriso, mas num tom grave e respeitoso —, porque chegamos sozinhos, sem nosso companheiro Fiódor Pávlovitch, que convidastes; teve de renun­ciar a acompanhar-nos e não sem motivo. Na cela do reverendo Padre Zósima, arrebatado por sua infeliz querela com seu filho, pro­nunciou algumas palavras bastante fora de propósito... em suma, bastante inconvenientes... do que vossa reverendíssima deve ter tido já conhecimento (olhou para os religiosos). Assim, cônscio de sua falta e deplorando-a sinceramente, experimentou ele uma vergonha invencível e nos rogou, a seu filho Ivã e a mim, que vos exprimíssemos seu sincero pesar, sua contrição e seu arrependimento... Em suma, espera e quer tudo reparar mais tarde, e agora, pedindo vossa bênção, roga-vos que esqueçais o que se passou..

Miúsov calou-se. Tendo chegado ao fim de sua tirada, ficou per­feitamente satisfeito consigo mesmo, a ponto de esquecer completa­mente sua recente irritação. Experimentava de novo sincero e vivo amor pela humanidade. O padre abade, que o tinha escutado grave­mente, inclinou a cabeça e respondeu:

— Lamento vivamente sua ausência. Participando desta refeição, talvez tivesse tomado afeição por nós, o mesmo acontecendo de nossa parte. Senhores, queiram tomar lugares.

Colocou-se diante da imagem e começou uma oração. Todos incli­naram-se respeitosamente e o proprietário Maksímov colocou-se mesmo na frente de mãos juntas, em sinal de particular veneração.

E foi então que Fiódor Pávlovitch fez mais uma das suas. Deve-se notar que tivera ele verdadeiramente a intenção de partir e com­preendera a impossibilidade, depois de seu vergonhoso procedimento em casa do stáriets, de ir jantar em casa do padre abade, como se nada tivesse acontecido. Não que se sentisse tão envergonhado assim e fizesse censuras a si mesmo; talvez mesmo muito pelo contrário; no entanto, sentia a inconveniência de ir jantar. Mas assim que a caleça de molas gementes chegou ao patamar da hospedaria, parou ele antes de nela subir. Lembrou-se de suas próprias palavras em casa do stáriets. "Parece-me sempre, ao entrar em alguma parte, que sou mais vil que todos e que todos me tomam por um palhaço. Então digo a mim mesmo: sejamos verdadeiramente o palhaço, porque todos, até o derradeiro de vós, sois mais estúpidos e mais vis do que eu." Queria vingar-se em todo mundo de suas próprias vilanias. Lembrou-se, de repente, a esse propósito, de como outrora lhe haviam perguntado uma vez: "Por que detesta tanto tal pessoa?" E respondera então, num acesso de bufonesco descaramento: "Ela não me fez nada, e verdade, mas eu lhe preguei uma má peça e logo depois comecei a detestá-la". A esta lembrança, sorriu maldosa e silenciosamente numa hesitação de um minuto. Seus olhos cintilaram e seus lábios tremeram. "Já que comecei, é preciso ir até o fim", decidiu ele, bruscamente. Naquele instante, ter-se-ia podido exprimir assim seu sentimento mais íntimo: "É agora impossível reabilitar-me, então zombemos deles até a impudência: não tenho vergonha diante de vós, e eis tudo!" Ordenou ao cocheiro que esperasse e voltou a grandes passadas para o mosteiro, diretamente para a casa do padre abade. Não sabia ainda o que faria, mas sabia que não mais se dominava, que o menor impulso o impeliria aos derradeiros limites de alguma indignidade, mas somente unia indignidade, e não algum delito ou algum ataque tal que o levasse perante a justiça. Neste último caso, sabia sempre conter-se e se admirava mesmo disso por vezes. Apareceu na sala de jantar do abade, quando todos iam sentar-se à mesa depois da oração. Parou na soleira, exa­minou as pessoas presentes, fitando-as diretamente no rosto, e explodiu numa risada prolongada e impudente.

— Pensavam que eu tinha partido e eis-me aqui! — gritou ele com voz retumbante.

Os presentes olharam-no um instante em silêncio e de súbito todos sentiram que iria passar-se uma cena repugnante e que um escândalo era inevitável. Piotr Alieksándrovitch passou bruscamente da quietude ao pior mau humor. Sua cólera extinta reacendeu-se, sua indignação acalmada trovejou de repente.

— Não! Não posso suportar isso! — berrou. — Não sou capaz, não sou absolutamente capaz!

O sangue subia-lhe à cabeça. Atrapalhava-se, mas não se tratava de fazer estilo e pegou seu chapéu.

— De que não é ele capaz? — exclamou Fiódor Pávlovitch. — Devo entrar ou não, pergunto a vossa reverendíssima? Aceita-me como convidado?

— Rogamos-lhe de todo o coração — respondeu o padre abade. — Senhores! Permito-me — acrescentou ele — rogar-vos instantemente que deixeis em repouso vossas querelas fortuitas, que vos reunais no amor e na união fraternal, implorando ao Senhor, no nosso pacífico jantar...

— Não, não, é impossível — gritou Piotr Alieksándrovitch, fora de si.

— Ora, se é impossível a Piotr Alieksándrovitch, também o é a mim, e não ficarei. Por isso é que vim. Estarei agora em toda parte com o senhor, Piotr Alieksándrovitch: o senhor ir-se-á embora e eu também; o senhor ficará e eu também ficarei. O senhor feriu-o aci­ma de tudo ao falar em união fraternal, padre abade; ele não quer confessar-se meu parente. Não é, Von Sohn? Ei-lo aqui, Von Sohn. Bom dia, Von Sohn.

— Ê a mim que... ? — murmurou estupefato o proprietário Maksímov.

— Naturalmente, a ti. Sabe vossa reverendíssima quem é Von Sohn? Foi caso num processo criminal: mataram-no num lupanar — é assim que chamais, creio, esses lugares —, mataram-no e despojaram-no e, malgrado sua idade respeitável, meteram-no num caixote e expediram-no ^e Petersburgo para Moscou, no furgão das bagagens, com uma etiqueta. E durante a operação, as mulheres do bordel cantavam canções e tocavam harpa, isto é, piano. Pois aí têm os senhores, essa personagem é Von Sohn. Ressuscitou dentre os mortos, não é, Von Sohn?

— Que é isso? Como? — ressoaram vozes no grupo dos religiosos.

— Partamos! — gritou Piotr Alieksándrovitch, dirigindo-se a Kolgánov.

— Não, com licença! — atalhou Fiódor Pávlovitch, dando mais um passo para dentro da sala. — Deixem-me acabar. Lá, na cela do stariets, os senhores me censuraram por haver, supostamente faltado ao respeito falando dos cadozes. Piotr Alieksándrovitch Miúsov, meu parente, gosta de que haja no discurso plus de noblesse que de sin-cérité;[7] eu, pelo contrário, gosto de que meu discurso tenha plus de sincérité que de noblesse e tanto pior para a nobtesse. Não é, Von Sohn? Permita-me, padre abade, se bem que seja eu um palhaço e mantenha esse papel, sou um cavalheiro de honra e quero demonstrá-lo. Sim, sou um cavalheiro de honra, ao passo que Piotr Alieksándrovitch só tem... um arraigado amor-próprio e nada mais. Vim aqui talvez, ainda há pouco, para ver e explicar-me. Meu filho Alieksiéi procura aqui sua salvação; sou pai, preocupo-me com sua sorte e é isto o meu dever. Enquanto me oferecia em espetáculo, escutava tudo, olhava tudo sem ter ar de o fazer, e agora quero oferecer-lhes o derradeiro ato da representação. Que se passa entre nós? Entre nós, o que cai fica estendido. Uma vez caído, caído fica por todos os séculos. É verdade! Mas não, eu quero reerguer-me. Santos padres, estou indignado pela vossa maneira de agir. A confissão é um grande sacramento que eu venero e diante do qual estou pronto a prosternar-me; ora, lá, na cela, todos se ajoelham e se confessam em voz alta. Ê permitido con­fessar-se em voz alta? Os santos padres instituíram a confissão auricular; neste caso, somente, é a confissão um sacramento e isto desde toda a antigüidade. Ora, como explicaria eu, diante de toda gente, que eu, por exemplo, eu... isto e aquilo, enfim, os senhores compreendem, não é? Por vezes é indecente falar. Não é um escândalo? Não, meus padres, convosco pode-se ser arrastado para a seita dos khristi... [8] Na primeira ocasião, escreverei ao Sínodo e retirarei meu filho de vossa casa.

Uma explicação se faz precisa. Fiódor Pávlovitch ouvira cantar o galo, mas não sabia onde. Haviam corrido outrora boatos malévolos que chegaram aos ouvidos do bispo (não somente a propósito de nosso mosteiro, mas de outros), segundo os quais prestava-se aos stártsi um respeito exagerado, em prejuízo da dignidade do abade, abusando-se, entre outras coisas, do sacramento da confissão, etc. Acusações ineptas, que caíram por si mesmas, a seu tempo, entre nós e por toda parte. Mas o demônio, que se havia apoderado de Fiódor Pávlovitch e o arrebatava mais longe a um abismo de vergonha, soprara-lhe essa acusa­ção, da qual ele próprio não compreendia a primeira palavra. Aliás, não soubera formulá-la convenientemente, tanto mais que desta vez, na cela do stáriets, ninguém se havia ajoelhado nem se confessado em voz alta. Fiódor Pávlovitch não pudera pois ver nada de semelhante e baseava-se unicamente nos antigos boatos e comadrices de que se lem­brava mais ou menos. Mas, tendo lançado essa tolice, sentiu-lhe o absurdo e quis logo provar a seus auditores, e sobretudo a si mesmo, que nada havia dito de absurdo. E, muito embora soubesse perfeitamente que tudo quanto diria não faria senão agravar aquele absurdo, não pôde conter-se e escorregou como sobre uma ladeira.

— Que baixeza! — gritou Piotr Alieksándrovitch.

— Desculpe — disse de repente o padre abade. — Foi dito outrora: "Começaram a falar muito de mim e mesmo a falar mal. Depois de ter escutado tudo, digo a mim mesmo: é um remédio enviado por Jesus para curar minha alma vaidosa". Deste modo nós lhe agradecemos humildemente, caríssimo hóspede.

E fez uma profunda saudação a Fiódor Pávlovitch.

Ora, ora, ora. Beatice tudo isso. Velhas frases e velhos gestos.

Velhas mentiras e formalismo das saudações até o chão! Nós conhe­cemos essas saudações! "Um beijo nos lábios e um punhal no co­ração", como em Os Bandidos, de Schiller. Não gosto da falsidade, meus padres, quero a verdade. Mas a verdade não está nos cadozes e eu a proclamei! Monges, por que jejuais? Porque esperais uma recompensa nos céus! Então, para tal recompensa, também eu irei jejuar! Não, santo monge, sê virtuoso na vida, serve a sociedade sem encerrar-te num mosteiro, onde és custeado de tudo e sem esperar recompensa lá em cima. Eis o que será mais difícil. Sei também fazer frases, padre abade. Que prepararam eles? — continuou ele aproxi­mando-se da mesa. — Vinho velho do Porto, Médoc, da casa dos irmãos Elissiéievi. Ah! Meus padres, isto já não se parece com os cadozes. Vejam-se essas garrafas, ah! ah! Mas quem vos arranjou tudo isto? É o mujique russo, o trabalhador que vos traz sua oferta ganha com suas mãos calosas, arrebatada à sua família e às necessidades do Estado! Reverendos padres, vós explorais o povo!

— É na verdade indigno de sua parte — proferiu o Padre Iósif. O Padre Paísi mantinha um silêncio obstinado. Miúsov lançou-se para fora da sala acompanhado por Kolgánov.

— Pois bem, meus padres, eu sigo Piotr Alieksándrovitch! Não voltarei mais, ainda que me pedísseis de joelhos, nunca mais. En­viei-vos 1000 rublos e vós arregalastes os olhos, ah! ah! Mas não acrescentarei nada. Vingo minha juventude passada e as humilhações sofridas. — Deu um murro sobre a mesa, num acesso de indignação fingida. — Este mosteiro desempenhou um grande papel na minha vida! Quantas lágrimas amargas verti por causa dele! Vós virastes contra mim minha mulher, a endemoniada. Cumulastes-me de mal­dições, desacreditastes-me na vizinhança! É demais, meus padres, nós vivemos numa época liberal, no século dos barcos a vapor e dos ca­minhos de ferro. Vós não tereis nada de mim, nem 1000 rublos, nem 100, nem 1.

Explico de novo. Jamais o nosso mosteiro tivera tal lugar na vida dele e não o fizera verter lágrimas amargas, mas ele se havia de tal modo deixado levar por essas lágrimas imaginárias que esteve um momento quase a ponto de acreditar nelas; teria chorado de enternecimento, mas sentiu logo que era tempo de dar marcha à ré. Diante de sua odiosa mentira, o padre abade inclinou a cabeça e declarou de novo num tom grave:

— Está de novo escrito: "Suporta pacientemente a calúnia de que és vítima e não te perturbes, nem aborreças aquele que é o autor dela". Agiremos de conformidade com isto.

— Ora, ora, ora, o belo palavreado! Continuai, meus padres, eu vou-me embora. Retomarei definitivamente meu filho Alieksiéi, em virtude de minha autoridade paterna; Ivã Fiódorovitch, meu respeitosíssimo filho, permita-me que lhe ordene que me siga! Von Sohn, de que serve ficar aqui! Vem à minha casa, na cidade. Ninguém se aborrece em minha casa. Fica a 1 versta daqui, quando muito; em lugar de óleo de linhaça, darei um leitão recheado de trigo mourisco; jantaremos, oferecerei conhaque, depois licores, há uma bonita mu­lher... Ah! Von Sohn, não deixes passar tua felicidade!

Saiu gritando e gesticulando. Foi nesse momento que Rakítin o avistou e apontou-o a Aliócha.

— Alieksiéi — gritou-lhe seu pai, de longe —, vem hoje instalar-te em minha casa definitivamente, pega teu travesseiro, teu colchão e que nada teu fique aqui.

Aliócha parou como que petrificado, observando atentamente aquela cena, sem dizer uma palavra. Fiodor Pávlovitch subiu à caleça, seguido de Ivã Fiódorovitch, silencioso e sombrio, que nem mesmo se voltou para cumprimentar Aliócha. Mas passou-se então uma cena de sal­timbanco, quase inverossímil, para coroamento de tudo. De repente, apareceu perto do estribo o proprietário rural Maksímov. Corria sem fôlego, para chegar a tempo. Tal era sua pressa que, na sua impa­ciência, colocou uma perna no estribo onde se encontrava ainda a de Ivã Fiódorovitch e, agarrando-se ao assento, tentou subir.

— Eu também o sigo! — gritou ele, saltitando, com um riso ale­gre, um ar de beatitude e pronto a tudo. — Leve-me com o senhor!

— Pois é, não dizia eu que era Von Sohn? — exclamou Fiódor Pávlovitch, encantado. — O verdadeiro Von Sohn ressuscitado den­tre os mortos! Como saíste de lá? Que é que fabricavas lá e como pudeste renunciar ao jantar? Porque é preciso ter testa de bronze! Eu tenho uma testa assim, mas a tua me causa admiração, camarada. Salta, salta mais depressa. Deixa-o subir, Vânia, a gente se divertirá. Que se estenda aí, a nossos pés, ouviu, Von Sohn? Ou então vamos instalá-lo na boléia com o cocheiro! Salta na boléia, Von Sohn.

Mas Ivã Fiódorovitch, que já tomara lugar, sem dizer palavra, repeliu, com um forte empurrão no peito, Maksímov, que recuou uns 2 metros. Se não caiu, foi mero acaso.

— A caminho! — gritou, com raiva, ao cocheiro, Ivã Fiódorovitch.

— Como! Que fazes, que fazes? Por que tratá-lo assim? — objetou Fiódor Pávlovitch, mas a caleça já havia partido. Ivã Fiódorovitch não respondeu nada.

— Só se vendo como és! — continuou Fiódor Pávlovitch, após um silêncio de dois minutos, olhando seu filho de través. — Porque foste tu que imaginaste essa visita ao mosteiro, que a provocaste e aprovaste. Por que te zangas agora?

— Basta de dizer estupidezas! Repouse um pouco pelo menos, agora — replicou num tom rude Ivã Fiódorovitch. Fiódor Pávlovitch calou-se ainda dois minutos.

— Seria bom agora beber conhaque — observou ele, sentenciosa-mente. Mas Ivã Fiódorovitch nada respondeu.

— Quando chegarmos, beberás também?

Ivã Fiódorovitch não pronunciava uma palavra sequer. Fiódor Pávlovitch esperou ainda dois minutos.

— No entanto, retirarei Aliócha do mosteiro, se bem que isto lhe seja bastante desagradável, respeitoso "Karl von Moor".

Ivã Fiódorovitch ergueu desdenhosamente os ombros, voltou-se e pôs-se a olhar a estrada. Não trocaram mais uma palavra até a casa.

 

NA ANTECÂMARA

A casa de Fiódor Pávlovitch Karamázov estava situada bastante longe do centro da cidade, mas não totalmente na periferia. Achava-se bastante deteriorada, mas tinha um exterior agradável; de um só andar, com um sótão, pintada de cinzento e de telhado vermelho de ferro. Aliás, podia durar ainda muito tempo, era espaçosa e confortável. Havia nela muitos corredores, recantos e escadas ocultas. Os ratos pululavam, mas Fiódor Pávlovitch não se inquietava muito com isto: "Com eles as noites não são tão enfadonhas, quando se fica só!" Tinha, com efeito, o hábito de mandar os criados passarem a noite no pavilhão e fechava-se ele mesmo na casa. Esse pavilhão, situado no pátio, era vasto e sólido. Fiódor Pávlovitch instalara ali a cozinha, embora houvesse uma na casa; não gostava dos odores de cozinha e traziam os pratos através do pátio, tanto no inverno quanto no verão. Essa casa fora construída para uma grande família e ter-se-ia podido nela alojar cinco vezes mais senhores e criados. Mas, por ocasião de nossa narrativa, o corpo principal só era habitado por Fiódor Pávlovitch e seu filho Ivã, e o pavilhão da criadagem, somente por três criados: o velho Gregório, sua mulher Marfa e o jovem criado Smierdiákov. Teremos de falar mais detalhadamente desses três personagens. Já se tratou do velho Gregório Vassílievitch Kutúzov. Era um homem firme e inflexível, indo a seu alvo com uma retitude obstinada, contanto que esse alvo se lhe oferecesse, em virtude de quaisquer razões (muitas vezes espantosamente ilógicas), como uma verdade infalível. Numa palavra, era honesto e incorruptível. Sua mulher, Marfa Tgnátievna, se bem que cegamente submetida toda a sua vida à vontade de seu marido, havia-o atormentado, logo depois da libertação dos servos, para deixar Fiódor Pávlovitch e ir estabelecer uma casinha de comércio em Moscou (tinham economias); mas então Gregório decidiu, duma vez por todas, que sua, mulher não tinha razão, todas as mulheres são sem­pre desleais. Não deviam deixar seu antigo senhor, qualquer que ele fosse, "porque era o dever deles agora".

— Compreendes tu o que é o dever? — perguntou a Marfa Tgná­tievna.

— Compreendo-o, Gregório Vassílievitch, mas em que é dever nosso ficar aqui? Eis o que não compreendo absolutamente — respondeu com firmeza Marfa Ignátievna.

— Que o compreendas ou não, será assim! Doravante, cala-te.

Foi o que aconteceu; ficaram, e Fiódor Pávlovitch lhes marcou modestos ordenados pagos regularmente. Mais ainda, sabia Gregório que exercia sobre seu patrão uma influência incontestável. Ele o sentia e era justo; palhaço astucioso e obstinado, Fiódor Pávlovitch, de caráter muito firme "em certas coisas da vida", segundo sua expressão, era, para seu próprio espanto, pusilânime em algumas outras "coisas da vida". Ele próprio sabia quais e experimentava bastantes temores. Em certos casos era preciso manter-se de sobreaviso, não se podia passar sem um homem seguro; ora, Gregório era de uma fidelidade a toda prova. Por várias vezes, no curso de sua carreira, Fiódor Pávlo­vitch correu o risco de ser batido, e até mesmo cruelmente, mas foi sempre Gregório que o tirou de apuros, sem deixar de repreendê-lo todas as vezes. Mas os golpes somente não teriam amedrontado Fiódor Pávlovitch; havia casos mais salientes, por vezes mesmo bastante deli­cados e complicados, em que ele próprio teria sido incapaz de definir a necessidade extraordinária de alguém seguro e íntimo que se apo­derava bruscamente dele, sem que soubesse por quê. Eram quase casos patológicos: visceralmente corrompido e muitas vezes luxurioso até a crueldade, tal como um inseto malfazejo, Fiódor Pávlovitch, em minutos de embriaguez, sentia de súbito uma apreensão, uma co­moção moral, que tinham um contragolpe quase físico sobre sua alma. "Parece então que minha alma palpita na minha garganta", dizia ele por vezes. Era naqueles momentos que gostava de ter a seu lado, no seu círculo imediato, um homem devotado, firme, não corrompido como ele e que, muito embora testemunha de seu mau procedimento e ao corrente de seus segredos, tolerasse tudo isso por devotamento, não se lhe opusesse e, sobretudo, não lhe fizesse censuras, não o amea­çasse com nenhum castigo, quer neste mundo, quer no outro, mas que o defendesse em caso de necessidade — contra quem? Contra algo desconhecido, mas temível e perigoso. Tratava-se de ter perto de si um outro homem, devotado de longa data, para chamá-lo, num mi­nuto de angústia, somente a fim de contemplar seu rosto, trocar talvez algumas palavras, mesmo completamente estranhas: se o via de bom humor, sentia-se aliviado, ao passo que a tristeza aumenta­va, se estava ele irritado. Acontecia (bastante raramente, aliás) a Fiódor Pávlovitch ir de noite ao pavilhão acordar Gregório, para que esse fosse ficar um momento junto dele. Gregório chegava, seu patrão falava a respeito de insignificantes bagatelas e o despedia em breve, por vezes mesmo com pilhérias e brincadeiras, depois metia-se na cama e dormia então o sono de um justo. Algo de análogo se passara por oca­sião da chegada de Aliócha. Aliócha "traspassava o coração" de Fiódor Pávlovitch, porque "ouvia, via tudo e não censurava nada". Mais ainda, trazia consigo algo de inaudito: a ausência completa de desprezo para com ele, velho; pelo contrário, uma afabilidade constante e um apego totalmente natural e sincero, quando ele o merecia tão pouco. Tudo isto tinha sido, para o velho debochado sem família, uma surpresa completa, totalmente inesperada para ele, que, até então, não havia amado senão a "sujeira". Com a partida de Aliócha, teve de confessar a si mesmo que compreendera alguma coisa que não quisera compreen­der até então.

Já mencionei, no começo de minha narrativa, que Gregório detes­tava _ Adelaide Ivânovna, a primeira mulher de Fiódor Pávlovitch e a mãe de seu primeiro filho, Dimítri, e que, ao contrário, defendera a segunda esposa dele, a possessa Sofia Ivânovna, contra seu próprio patrão e contra aqueles que tivessem tido a idéia de pronunciar a seu respeito uma palavra malévola ou sem consideração. Sua simpatia por aquela infeliz tornara-se alguma coisa de sagrado, a ponto de, vinte anos- depois, não suportar que ninguém fizesse uma alusão malévola a seu respeito sem imediatamente replicar ao ofensor. No seu aspecto exterior, era Gregório um homem frio e grave, pouco falador, profe­rindo palavras ponderadas, isentas de frivolidades, À primeira vista, não se podia adivinhar se amava ou não sua mulher, doce e sub­missa, não obstante a amasse verdadeiramente e ela o compreendesse sem dúvida. Essa Marfa Ignátievna, longe de ser estúpida, era talvez mais inteligente que seu. marido, em todo caso mais judiciosa nos negócios da vida; entretanto, era-lhe cegamente submissa, desde o co­meço de seu casamento, e respeitava-o sem contradição pela sua alti­tude moral. É preciso notar que trocavam muito poucas palavras, somente a propósito das coisas indispensáveis da vida corrente. O grave e majestoso Gregório meditava sempre sozinho seus negócios e suas preocupações, de sorte que Marfa Ignátievna compreendera desde muito tempo que não tinha ele de modo algum necessidade de seus conse­lhos. Sentia que seu marido apreciava seu silêncio e via nisso uma prova de espírito. Ele nunca lhe batera, salvo uma vez, e não seria­mente. No primeiro ano do casamento de Adelaide Ivânovna e de Fiódor Pávlovitch, no campo, as moças e as mulheres da aldeia, então ainda servas, tinham-se reunido no pátio dos patrões para dançar e can­tar. Entoou-se a canção "Sobre o prado, sobre o prado", e de súbito Marfa Ignátievna, que, então, era jovem, veio colocar-se diante do coro e executou a dança russa, não como as outras, à moda rústica, mas como a executava, quando era arrumadeira em casa dos ricos Miúsovi, no teatro da propriedade deles, onde um mestre de dança vindo de Moscou ensinava sua arte aos atores. Gregório vira os passos de sua mulher e, uma hora depois, de volta à isbá, deu-lhe uma lição, puxando-lhe um pouco os cabelos. Mas os golpes se limitaram a isto e não se renovaram uma vez sequer em toda a vida deles; de resto, Marfa Ignátievna prometeu a si mesma não mais dançar dali por diante.

Deus não lhes havia dado filhos, exceto um que morreu. Via-se que Gregório gostava de crianças, não o ocultava, aliás, isto é, não se envergonhava de mostrá-lo. Quando Adelaide Ivânovna fugiu, recolheu Dimítri Fiódorovitch, de três anos de idade, e tomou cuidado dele quase um ano inteiro, penteando-o e dando-lhe banho na gamela. Mais tarde, ocupou-se também com Ivã Fiódorovitch e Alieksiéi, o que lhe valeu uma bofetada, mas já narrei tudo isto; seu próprio4 filho só o alegrou pela esperança da expectativa, quando Marfa Ignátievna estava grávida. Quando ele nasceu, foi tomado de pesar e de horror, porque aquele menino tinha seis dedos, vendo o que ficou Gregório tão acabrunhado que não somente guardou silêncio até o dia do batizado, mas foi expressamente calar-se no jardim. Estava-se na primavera; durante três dias, ficou cavando na horta. Tendo chegado a hora do batizado, já havia Gregório imaginado alguma coisa. Entrando na isbá, onde se haviam reunido o clero, os convidados e por fim Fiódor Pávlovitch, vindo na qualidade de padrinho, anunciou que "não se deveria de modo algum batizar o menino", isto em voz baixa, lacônica-mente, mal articulando uma palavra após a outra, fixando o padre com um ar idiota.

— Por que isto? — informou-se o padre com uma surpresa di­vertida.

— Porque é... um dragão... — murmurou Gregório.

— Como um dragão, que dragão? Gregório calou-se algum tempo.

— Produziu-se uma confusão da natureza... — murmurou ele duma maneira bastante confusa, mas muito firme, e via-se que não desejava estender-se em palavras.

Houve risos e, bem entendido, o pobre menino foi batizado. Gre­gório rezou com fervor perto das fontes batismais, mas persistiu na sua opinião a respeito do recém-nascido. De resto, não se opôs a nada; somente, durante as duas semanas em que viveu esse menino doentio quase não olhou para ele; não queria mesmo vê-lo e ausen­tava-se freqüentemente da isbá. Mas, quando o bebê morreu de aftas ao fim de duas semanas, ele mesmo o pôs no caixão, contemplou-o com profunda angústia e, uma vez enchida de terra a pequena cova, pôs-se de joelhos e prosternou-se até o chão. Posteriormente, durante muitos anos, não falou jamais de seu filho; por seu lado Marfa Ignátievna jamais fazia alusão a ele em sua presença e, se lhe acontecia conversar com alguém a respeito de seu "filhinho", falava em voz baixa, muito embora Gregório Vassílievitch não estivesse presente. De acordo com a observação de Marfa lgnátievna, depois daquela morte interessou-se ele de preferência pelo "divino", leu as Vidas dos Santos, a maior parte das vezes sozinho e em silêncio, pondo de cada vez seus grandes óculos redondos de prata. Lia raramente em voz alta, quando muito durante a Quaresma. Gostava extremamente do Livro de Jó, ar­ranjara uma coletânea das palavras e sermões de "nosso Santo Padre Isaac, o Sírio", que se obstinou em ler durante anos, quase sem nada compreender daquilo, mas por esta razão talvez apreciasse e amasse aquele livro acima de tudo. Nos últimos tempos, prestou ouvidos à doutrina dos khlisti, tendo tido a ocasião de aprofundá-la na vizinhança; ficou visivelmente abalado, mas não se decidiu a adotar a fé nova. Essas piedosas leituras tornavam naturalmente sua fisionomia ainda mais grave.

Talvez fosse ele inclinado ao misticismo. Ora, como fato expresso, a vinda ao mundo e a morte de seu filho de seis dedos coincidiram com outro caso bastante estranho, inesperado e original, que deixou em sua alma, como o disse ele uma vez mais tarde, "uma marca". Na noite que se seguiu ao enterro do bebê, tendo Marfa lgnátievna despertado, creu ouvir o choro de um recém-nascido. Ficou amedron­tada e acordou seu marido. Este, prestando ouvido, notou que eram antes gemidos, * "dir-se-iam de uma mulher". Levantou-se, vestiu-se; era uma noite de maio bastante quente. Saiu para o patamar e veri­ficou que os gemidos vinham do jardim. Mas, de noite, o jardim era fechado a chave do lado do pátio, e não se podia nele entrar senão por ali, dando-lhe volta uma alta e sólida paliçada. Voltando para casa, Gregório acendeu a lanterna, pegou a chave e, sem prestar atenção ao pavor histérico de sua mulher, persuadida de que era o choro de seu filho que a chamava, entrou em silêncio no jardim; ali, deu-se con­ta de que os gemidos partiam de sua sala de banhos, situada não longe da entrada, e que era, com efeito, uma mulher que gemia. Tendo aberto o banheiro, viu um espetáculo diante do qual permaneceu estupefato; uma idiota da cidade, que vagava pelas ruas, conhecida de toda a gente pelo nome de Lisavieta Smierdiáchtchaia, tendo penetrado no banheiro deles, acabava de ali dar à luz. O menino jazia ao lado dela, que estava moribunda. Não dizia nada, pela simples razão de que não sabia falar. Mas tudo isto exige explicações.

 

LISAVIETA SMIERDIÁCHTCHAIA[9]

Havia ali uma circunstância particular que impressionou profunda­mente Gregório e acabou de fortificar nele uma suspeita desagradável e repugnante. Aquela Lisavieta Smierdiáchtchaia era uma moça de es­tatura muito pequena, "um pouco mais de 2 archini"; assim se lem­bravam dela com enternecimento, após sua morte, bondosas velhas de nossa cidade. Seu rosto de vinte anos, sadio, largo, vermelho, era completamente idiota, o olhar fixo e desagradável, se bem que plácido. Tanto no inverno quanto no verão andava sempre de pés descalços, vestida apenas de uma camisa de cânhamo. Seus cabelos quase negros, extraordinariamente espessos, frisados como uma lã amontoavam-se em sua cabeça à maneira de um enorme boné. Além disso estavam muitas vezes sujos de terra, de lama, entremeados de folhas, de raminhos, de cavacos, porque ela dormia sempre no chão e na lama. Seu pai, Iliá, pequeno burguês sem domicílio, arruinado e valetudinário, fortemente dado à bebida, permanecia desde muitos anos, na qualidade de operário, em casa dos mesmos senhores opulentos, igualmente burgueses de nossa cidade. A mãe de Lisavieta morrera desde muito tempo. Sempre doentio e mal-humorado, Iliá batia sem piedade em sua filha quando chegava ela em casa. Mas ali ia raramente, sendo acolhida por toda parte na cidade como uma débil mental sob a proteção de Deus. Os patrões de Iliá, o próprio Iliá e muitas pessoas caridosas, sobretudo entre os negociantes e as negociantes, tinham ten­tado por várias vezes vestir Lisavieta de uma maneira mais decente, fazendo-a usar no inverno uma peliça de carneiro e calçar botas; habi­tualmente sujeitava-se ela dòcilmente a isso, depois ia-se embora e, em alguma parte, de preferência sob o pórtico da igreja, despojava-se de tudo quanto lhe haviam dado — quer fosse um lenço, uma saia, uma peliça, botas —, abandonava tudo no lugar e lá se ia de pés descalços, vestida com sua camisa como antes. Aconteceu que um novo gover­nador, inspecionando nossa cidade, sentiu-se ferido nos seus melhores sentimentos à vista de Lisavieta e, muito embora tivesse percebido que se tratava de uma inocente, como aliás o informaram, fez no entanto observar "que uma moça vagando em camisa infringia a decência e que aquilo devia cessar no futuro". Mas, depois que o governador par­tiu, deixaram Lisavieta como era. Por fim, seu pai morreu, tornando-se ela mais querida a todas as pessoas piedosas da cidade como órfã. Com efeito, todos pareciam amá-la; os próprios garotos não mexiam com ela nem a maltratavam; ora, entre nós, os garotos, sobretudo os colegiais, são uma raça agressiva. Entrava ela em casas desconhe­cidas e ninguém a expulsava; pelo contrário, todos a tratavam bem e lhe davam um meio copeque. As moedinhas que lhe davam, levava-as ela logo para metê-las em um tronco qualquer, na igreja ou na prisão. Se recebia, no mercado, um sequilho ou um pãozinho, não deixava de fazer presente dele ao primeiro menino que encontrasse, ou então detinha uma de nossas damas mais ricas para lho oferecer; e esta o aceitava até mesmo com alegria. Ela própria não se nutria senão de pão preto e água. Entrava por vezes numa rica loja, sentava-se, tendo junto de si mercadorias de valor: dinheiro; jamais os proprietários desconfiavam dela, sabendo que não tomaria um copeque, mes­mo se pusessem milhares de rublos a seu alcance e fossem esquecidos. Ia raramente à igreja, dormia sob os pórticos, ou num pomar qualquer, depois de ter pulado a cerca (ainda agora há entre nós muitas cercas em lugar de paiiçadas). Ia geralmente uma vez por semana à casa dos patrões de seu defunto pai, no inverno todos os dias, mas somente à noite, que ela passava no vestíbulo ou no estábulo. Causava espanto que pudesse ela suportar tal existência, mas estava a ela acostumada; se bem que de pequena estatura, tinha uma constituição excepcional­mente robusta. Certas pessoas da sociedade achavam que ela fazia tudo isso unicamente por orgulho, mas não havia motivo para tal; não sabia ela dizer uma palavra, por vezes somente mexia a língua e resmungava; que tinha de ver com isso o orgulho? Ora, numa noite de setembro, clara e quente, em que a lua era cheia, a uma hora já bastante tardia para nossos hábitos, um bando de cinco ou seis farristas, embriagados, voltava do clube para suas casas pelo caminho mais curto. Dos dois lados, a ruela que eles seguiam era bordada por uma cerca por trás da qual se estendiam os pomares das casas ribei­rinhas; terminava num passadiço lançado sobre o longo pântano infecto que se batiza por vezes entre nós com o nome de rio. Perto da cerca, entre as urtigas e as barbanas, o nosso grupo percebeu Lisavieta adormecida. Aqueles cavalheiros embriagados pararam perto dela, ex­plodiram em risadas e puseram-se a pilheriar da maneira mais cínica. Um filho de família imaginou de repente uma questão totalmente ex­cêntrica, a respeito de um assunto impossível. "Pode-se", disse ele, "não importa quem, aceitar um tal monstro como uma mulher, etc." Todos decidiram, com nobre aversão, que não se podia. 4Mas Fiódor Pávlo­vitch, que fazia parte do bando, adiantou-se logo, declarou que se podia perfeitamente aceitá-la como mulher e que havia mesmo ali alguma coisa de picante no seu gênero, etc. Naquela época, comprazia-se ele com afetação no seu papel de palhaço, gostava de dar-se em espetáculo e divertir os ricos, como um verdadeiro farsante, malgrado a igualdade aparente. Com um crepe no chapéu, porque acabava de saber da morte de sua primeira mulher, levava então uma vida tão crapulosa que alguns, mesmo libertinos endurecidos, se sentiam constrangidos à sua vista. Aquela opinião paradoxal de Fiódor Pávlovitch provocou a hilaridade do bando; um deles começou mesmo a provocá-lo, os outros mostraram ainda mais aversão, mas sempre com uma viva ale­gria; por fim todos seguiram seu caminho. Posteriormente, jurou ele que se afastara com os outros; talvez dissesse a verdade, ninguém nunca soube de nada ao certo. Mas cinco ou seis meses mais tar­de, a gravidez de Lisavieta excitava a indignação de toda a cidade e procurou-se descobrir quem pudera ultrajar a pobre criatura. Um boato terrível circulou em breve, acusando Fiódor Pávlovitch. Donde vinha ele? Do bando farrista não restava então na cidade senão um homem de idade madura, conselheiro de Estado, pai de filhas adultas, o qual nada teria contado, mesmo se se tivesse passado qualquer coisa; os outros tinham-se dispersado. Mas o boato persis­tente continuava a apontar Fiódor Pávlovitch. Ele não se deu por achado e desdenhou responder a lojistas e pequenos burgueses. Era orgulhoso então e não dirigia a palavra senão à sua sociedade de funcionários e de nobres, a quem tanto divertia. Foi então que Gregório tomou energicamente o partido de seu amo; não somente defen­deu-o contra qualquer insinuação, mas discutiu bastante calorosamente a esse respeito e conseguiu mudar a opinião de muitos. "A culpa é dela mesma, daquela criatura", afirmava ele, e seu sedutor não era outro senão Karp, o Parafuso (assim se chamava um detento bastante pe­rigoso, que se havia evadido da prisão da capital e se ocultara em nossa cidade). Esta conjetura pareceu plausível; foi lembrado que Karp vagueara por aquelas mesmas noites de outono e saqueara três pessoas. Mas essa aventura e esses rumores, longe de desviar as sim­patias pela pobre idiota, valeram-lhe um redobramento de solicitude. Uma viúva bastante rica, a negociante Kondrátievna, decidiu recolhê-la em sua casa, no fim de abril, para que ela ali desse à luz. Vigiavam-na severamente. Apesar de tudo, uma noite, no dia mesmo de seu parto, Lisavieta fugiu da casa de sua protetora e foi cair no jardim de Fiódor Pávlovitch. Como pudera ela, no seu estado, transpor uma paliçada tão alta? Isso permaneceu um enigma. Uns asseguravam que a haviam carregado, outros viam naquilo uma intervenção sobrenatural. Tudo leva a crer que, aquilo se realizou de uma maneira engenhosa, mas natu­ral, e que Lisavieta, habituada a penetrar através das sebes nos pomares, para neles passar a noite, trepou, apesar de seu estado, sobre a paliçada de Fiódor Pávlovitch, donde saltou, ferindo-se no jardim. Gregório correu a buscar sua mulher para os primeiros cuidados; ele mesmo foi à procura de uma velha parteira que morava bem perto. Salvou-se o menino, mas Lisavieta morreu ao romper do dia. Gregório pegou o recém-nascido, levou-o para o pavilhão e depositou-o sobre os joelhos de sua mulher: "Eis um filho de Deus, um órfão de que seremos os pais. É o pequeno morto que no-lo envia. Nasceu de um filho de Satanás e duma justa. Cria-o e não chores mais doravante". Foi assim que Marfa ígnátievna criou o menino. Foi batizado pelo nome de Páviel, ao qual toda a gente ajuntou, e eles também, Fiódorovitch como nome patronímico. Fiódor Pávlovitch não fez objeção e achou mesmo a coisa divertida, negando porém energicamente aquela pater­nidade. Aprovaram-no por ter recolhido o órfão. Mais tarde, deu-lhe como nome de família Smierdiákov, de acordo com o sobrenome da mãe dele, Smierdiáchtchaia. Servia ele a Fiódor Pávlovitch como se­gundo criado e vivia, no começo de nossa narrativa, no pavilhão, ao lado do velho Gregório e da velha Marfa. Tinha o emprego de cozi­nheiro. Seria preciso consagrar-lhe um capítulo especial, mas tenho escrúpulo de reter por tanto tempo a atenção do leitor para simples criados e continuo esperando que se tratará muito naturalmente de Smierdiákov no curso da narrativa.

 

CONFISSÃO DE UM CORAÇÃO ARDENTE, EM VERSOS

Ouvindo a ordem que lhe gritava seu pai, da caleça, ao partir do mosteiro, ficou Aliócha algum tempo imóvel e bastante perplexo. Mas, dominando sua perturbação, dirigiu-se logo à cozinha do padre abade, para procurar saber o que tinha feito Fiódor Pávlovitch. Depois pôs-se a caminho, esperando resolver, enquanto andava, um problema que o atormentava. Digamo-lo imediatamente: os gritos de seu pai e a ordem de mudar-se com travesseiros e colchão, não lhe inspiravam nenhum temor. Compreendia perfeitamente que aquela ordem, gritada entre gestos, fora dada "por pura excitação", por assim dizer, e até mesmo para a galeria, à maneira daquele pequeno burguês que recentemente na sua cidade, tendo festejado demasiado seu aniversário e furioso porque não lhe davam mais vodca, pôs-se, diante de seus convidados, a quebrar sua própria louça, a rasgar suas roupas e as de sua mulher, a partir os móveis e as vidraças, tudo isso por pura exibição. No dia seguinte, naturalmente, o burguês desembriagado lamentava as xícaras e os pires quebrados. Aliócha sabia que o velho o deixaria segura­mente voltar ao mosteiro no dia seguinte, talvez naquele mesmo dia. E mais, estava persuadido de que seu pai não quereria jamais ofendê-lo, e que jamais ninguém no mundo, não somente não o quereria, mas não o poderia. Era para ele um axioma, admitido de uma vez por todas, e a este respeito caminhava tranqüilo, sem a menor excitação.

Mas naquele momento, outro temor o agitava, duma espécie bem diversa, e tanto mais penoso quanto ele mesmo não o teria podido definir, o temor de uma mulher, daquela Catarina Ivânovna, que insistia tanto, na sua carta entregue de manhã pela Senhora Khokhla-kova, para que fosse vê-la. Esse pedido e a necessidade de a ele obe­decer causavam-lhe uma impressão dolorosa, que, durante toda a tarde, não fez senão agravar-se, malgrado as cenas e as aventuras que se haviam desenrolado no mosteiro, etc. Seu temor não provinha de ignorar ele o que ela lhe diria e o que ele lhe responderia. Não era tampouco a mulher que ele temia nela; decerto, conhecia pouco as mulheres, mas não tinha, no entanto, vivido senão com elas, desde sua tenra infância até sua chegada ao mosteiro. Temia aquela mulher, pre­cisamente Catarina Ivânovna, e isto desde sua primeira entrevista. Ora, ele a havia encontrado duas ou três vezes no máximo, e trocado por acaso algumas palavras com ela. Lembrava-se dela como de uma bela moça, altiva e imperiosa. Não era sua beleza que o atormentava, mas algo.de diferente, e sua impotência em explicar o medo que ela lhe ins­pirava aumentava esse medo. O fim que a jovem tinha em vista era dos mais nobres, ele o sabia: esforçava-se por salvar Dimítri, culpado para com ela, e só agia por generosidade. Pois bem, malgrado sua admiração por esses nobres sentimentos, percorria-lhe o corpo um arre­pio, à medida que se aproximava da casa dela.

Deu-se conta de que não encontraria em sua companhia Iva, seu íntimo, retido então certamente por seu pai. Quanto a Dimítri, não podia tampouco estar em casa de Catarina Ivânovna, pressentindo ele a razão disso. A conversa entre ambos ocorreria, pois, a sós, mas antes desejava Aliócha ver Dimítri e, sem mostrar-lhe a carta, trocar com ele algumas palavras. Ora, Dimítri morava longe e não estaria sem dúvida em sua casa naquele momento. Tendo parado um minuto, decidiu-se por fim. Depois de um sinal-da-cruz apressado, sorriu mis­teriosamente e dirigiu-se, resoluto, para a terrível pessoa.

Conhecia-lhe a casa. Mas se tivesse de passar pela Rua Grande, depois atravessando a praça, etc, seria bastante* distante. Sem ser grande, nossa cidade é muito dispersa e as distâncias consideráveis. Além do mais seu pai o esperava; lembrava-se talvez da ordem que lhe dera e era capaz de fazer das suas. Era preciso pois apressar-se para chegar a tempo. Em virtude dessas considerações, resolveu Alió­cha abreviar o caminho tomando por atalhos; conhecia todos aqueles becos como seu bolso. Por atalhos significava quase com caminhos traçados costear tapumes desertos, transpor por vezes cercas particula­res, atravessar pátios onde aliás todos o conheciam e o cumprimen­tavam. Podia assim alcançar a Rua Grande em duas vezes menos tempo. Em certo lugar, teve de passar bem perto da casa paterna, precisamente ao lado do jardim contíguo ao deles, que dependia de uma casinha de quatro janelas arruinada e inclinada para o lado. A proprietária dessa casinha era, como Aliócha o sabia, uma pequena burguesa da cidade, velha inválida, que vivia com sua filha, antiga arrumadeira na capital, recentemente ainda a serviço em casa de gene­rais, tendo voltado para casa, havia um ano, por causa da doença de sua mãe e exibindo-se com vestidos elegantes. Essas duas mulheres tinham no entanto caído em profunda miséria e iam mesmo todos os dias, como vizinhas, procurar pão e sopa na cozinha de Fiódor Pávlovitch. Marfa Ignátievna fazia-lhes boa acolhida. Mas a filha, embora indo procurar sopa, não vendera nenhum de seus vestidos; um deles tinha mesmo uma cauda bastante comprida. Aliócha soubera desse detalhe, completamente por acaso, da boca de seu amigo Rakítin, ao qual nada escapava do que se passava na cidadezinha; é certo, porém, que o esquecera logo. Ao chegar diante do jardim da vizinha, lembrou-se daquela cauda, ergueu rapidamente sua cabeça curvada, pensativa, e... teve de súbito o encontro mais inesperado.

Por trás da cerca, de pé sobre um montículo e visível até o peito, seu irmão Dimítri fazia-lhe sinais, chamava-o com grandes gestos, evitando não somente gritar, mas até mesmo dizer uma palavra, com medo de ser ouvido. Aliócha correu para a cerca.

— Por felicidade levantaste os olhos, senão teria sido obrigado a gritar — cochichou jovialmente Dimítri Fiódorovitch. — Salta-me esta cerca, depressa! Como chegas a propósito! Pensava em ti     

Aliócha não estava menos contente, embaraçado apenas por ter de pular a cerca. Mas Mítia, com sua mão de atleta, ergueu-o pelo cotovelo e ajudou-o a saltar, o que ele fez, de batina arrepanhada, com a agilidade de um garoto.

— E agora, em frente, marcha! — murmurou Mítia, num transporte de alegria.

— Mas para onde? — perguntou do mesmo modo Aliócha, olhando por todos os lados e vendo-se num jardim deserto, onde não havia ninguém senão eles. O jardim era pequeno, mas a casa encontrava-se a cinqüenta passos pelo menos. — Não há ninguém aqui. Por que falamos em voz baixa?

— Por quê? Que o diabo me carregue! — exclamou de súbito Dimítri Fiódorovitch a plena voz. — Que adianta falar em voz baixa? Vês tu mesmo como se pode ser absurdo. Estou aqui para espio­nar um segredo. As explicações virão depois, mas, sob a impressão do mistério, pus-me a falar misteriosamente, a cochichar como um tolo, sem razão. Vamos! Vem e cala-te. Mas quero beijar-te.

Glória ao Eterno sobre a terra.

Glória ao Eterno em mim...

Eis o que eu repetia ainda há pouco, sentado no jardim, naquele lugar...

O jardim de cerca de 1 diesiatina estava todo cercado de árvores ao longo de seu recinto: pereiras, bordos, tílias, bétulas. O centro formava uma espécie de pequeno prado onde se recolhia feno, no verão. A proprietária alugava aquele jardim desde a primavera por alguns rublos. Havia pés de framboesas, groselhas de várias espécies, igualmente perto das cercas; a horta, cultivada desde pouco tempo, achava-se perto da casa. Dimítri conduziu seu irmão para o canto mais afastado do jardim. Ali, entre as tílias muito próximas e velhas moitas de groselheiras e de sabugueiros, de bolas-de-neve e de lilás, avistavam-se as ruínas de um antigo pavilhão verde, enegrecido e empenado, de paredes com clarabóia, mas ainda coberto e onde a gente podia abrigar-se da chuva. Segundo a tradição, fora esse pavilhão construído, havia cinqüenta anos, por um antigo proprietário, Alieksandr Kárlovitch von Schmidt, tenente-coronel reformado. Tudo caía em poeira, o soalho estava podre, as tábuas balançavam, a madeira tresandava umidade. Havia uma mesa de madeira pintada de verde, enterrada no chão, cercada de bancos que ainda podiam servir. Aliócha notara o entusias­mo de seu irmão; ao entrar no pavilhão, viu sobre a mesa uma meia gar­rafa de conhaque e um copinho.

— É conhaque! — disse Mi tia, com uma explosão de riso. — Vais pensar: "Ele continua bebendo". Não te fies nas aparências.

Às tuas suspeitas renuncia...

Às tuas suspeitas renuncia...

Eu não me embriago, "beberico", como diz aquele porco do Rakítin, teu amigo, e o dirá ainda, mesmo quando se tornar conselheiro de Estado. Senta-te, Aliócha; gostaria de apertar-te em meus braços, de esmagar-te, porque, no mundo inteiro, crê-me, na verdade, na verdade, não amo senão a ti! Pronunciou as derradeiras palavras numa espécie de frenesi.

— A ti e também a uma debochada pela qual me embeicei, para desgraça minha. Mas embeiçar-me não é amar. A gente pode emberçar-se e odiar. Lembra-te disto. Até aqui, falo alegremente. Senta-te à mesa, perto de mim, para que te veja. Tu me escutarás em silêncio e direi tudo, porque o momento de falar chegou. Mas fica sabendo, refleti, é preciso falar verdadeiramente baixo porque aqui há talvez orelhas às escutas. Saberás tudo, disse: a continuação virá. Por que tinha eu tamanha vontade de ver-te, desde cinco dias que aqui estou e ainda há pouco? É que tu me és necessário... é que a ti somente direi tudo... é que amanhã uma vida acaba e outra começa para mim. Já experimentaste alguma vez em sonho a sensação de rolar num precipício? Pois bem, agora caio realmente. Oh! não tenho medo e tu também não. Isto é, sim, tenho medo, mas é um medo suave, ou antes, embriaguez... E depois, para o diabo! Que importa! Espírito forte, espírito fraco, espírito de mulher, que importa? Louvemos a natureza! Vê que belo sol, que céu puro, por toda parte folhagens verdes; é na verdade ainda o verão. Estamos às 4 horas da tarde, está tudo calmo!. . Aonde ias?

— Ia à casa de meu pai e queria ver, de passagem, Catarina.

— À casa dela e à casa de papai? Que coincidência! Pois, por que te chamei, por que te desejava do fundo do coração, com todas as fibras de meu ser? Precisamente para mandar-te à casa de papai, depois à casa dela, a fim de acabar isso de uma vez com um e com outra. Enviar um anjo! Teria podido enviar não importa quem, mas era-me preciso um anjo. E eis que ias tu mesmo para lá!

— Deveras? Querias mandar-me lá? — perguntou Aliócha, com uma expressão dolorosa.

— Espera, tu o sabias. Vejo que compreendeste tudo; mas cala-te. Não me lamentes, não chores!

Dimítri levantou-se, com ar meditativo:

— Foi ela quem te chamou; deve ter-te escrito, senão não irias...

— Aqui está seu bilhete... — Aliócha tirou-o de seu bolso. Mítia leu-o rapidamente.

Versos de um poema de Niekrássov.

— E tomavas o caminho mais curto! Ó deuses! Agradeço-vos o tê-lo dirigido para este lado e trazido para mim, tal como o peixinho de ouro que foi cair nas mãos do velho pescador, segundo o conto popular. Escuta, Aliócha, escuta meu irmão, Agora, resolvi dizer tudo. É preciso que me expanda, afinal! Depois de ter-me confessado a um anjo do céu, vou confessar-me a um anjo da terra. Porque és um anjo. Tu me escutarás e me perdoarás... Tenho necessidade de ser absolvido por um ser mais nobre do que eu. Escuta, pois. Suponhamos que duas criaturas se libertem das servidões terrestres e planem numa região superior, uma delas, pelo menos. Que esta, antes de voar ou desaparecer, se aproxima da outra e lhe diga: "Faze por mim isto ou aquilo", coisas que jamais se costumam exigir, que só se pedem no leito de morte. Será que o que fica se recusará, se é um amigo, um irmão?

— Eu o farei, mas dize-me de que se trata, e dize-me quanto antes — falou Aliócha.

— Depressa... Hum! Não te apresses, Aliócha. Apressando-te, atormentas-te. É inútil apressar-se agora. O mundo entra agora numa era nova. Que pena, Aliócha, que nunca te entusiasmes. Mas que digo eu? Sou eu que careço de entusiasmo! Que digo eu, tolo que sou?

Homem, sê nobre!

De quem é este verso?

Aliócha resolveu esperar. Compreendera que toda a sua atividade, com efeito, estava talvez concentrada agora naquele lugar. Mítia ficou um momento pensativo, de cotovelos sobre a mesa, a fronte na mão. Ambos mantinham-se calados.

— Aliócha, somente tu me escutarás sem rir. Gostaria de come­çar... minha confissão... por um hino à alegria, como Schiller, An die Freude! Mas não sei alemão, sei somente que é An die Freude. Não vás imaginar que tagarelo sob o domínio da embriaguez. Para em­briagar-me são precisas duas garrafas de conhaque.

Como Sileno vermelho

No seu asno vacilante.

Ora, não bebi um quarto de garrafa e não sou Sileno. Não Sileno, mas Hércules, porque tomei uma resolução heróica. Perdoa-me essa aproximação de mau-gôsto, terás bem mais outras coisas a perdoar-me hoje. Não te inquietes, não invento, falo seriamente e vou direto ao fato. Não serei duro ao»disparo como um judeu. Espera, como é que é mesmo?

Ergueu a cabeça, refletiu, depois começou a recitar com entusiasmo:

 

Nu, tímido, selvagem, se ocultava

O troglodita nas cavernas;

O nômade nos campos pervagava

A devastá-los sem cessar;

O caçador com sua lança e flechas,

Terrível, as florestas percorria;    

Desgraça para os náufragos lançados

Pelas ondas naquela praia inóspita.

 

Das alturas do Olimpo, Ceres

Desce, à procura de Prosérpina,

Ao seu amor arrebatada;

A seus olhos o mundo é todo horror.

Nenhum asilo, nem mesmo oferendas

À deusa são apresentadas.

Aqui não se conhece culto aos deuses,

Nem templos há para adorá-los.

 

Os frutos do pomar, as uvas doces

Não alegram nenhum festim;

Só os restos das vítimas fumegam

Sobre as aras ensangüentadas.

E em vão de Ceres vaga o triste olhar;

Por toda parte avista o homem

Numa profunda humilhação.

Soluços escaparam-se do peito de Mítia; agarrou Aliócha pela mão.

— Amigo, amigo, sim, na humilhação, na humilhação ainda agora! O homem sofre na terra males sem conta. Não penses que seja eu apenas um boneco vestido de oficial, bom para beber e para fazer farras. A humilhação, que é a partilha do homem, eis, irmão, quase o único objeto de meu pensamento. Deus me guarde de mentir e de gabar-me. Penso nesse homem humilhado, porque sou ele eu mesmo.

Para que possa sair da abjeção

O homem, por força de sua alma,

Deve aliança eterna concluir

Com sua velha mãe, a Terra.

Somente, porém, como concluir essa aliança eterna? Não fecundo a terra, abrindo-lhe o seio; far-me-ei mujique ou pastor? Ando sem saber para onde vou, para a luz radiosa ou para a vergonha infecta. Está nisso a desgraça, porque tudo é enigma neste mundo. Quando me achava mergulhado na mais abjeta degradação (era todo o tempo), sempre reli esses versos a respeito de Ceres e da miséria do homem. Corrigiram-me? Não! Porque sou um Karamázov! Porque, quando rolo no abismo, é diretamente, de cabeça à frente; agrada-me mesmo cair assim, vejo beleza nessa queda. E do seio da vergonha entôo um hino. Sou maldito, vil e degradado, mas beijo a fímbria da veste em que se envolve o meu Deus; sou a estrada diabólica, mas sou, no en­tanto, teu filho, Senhor, e te amo, sinto a alegria sem a qual o mundo não poderia subsistir.

A alegria eterna anima

Toda a alma da criação,

Transmite a chama da vida

Na força oculta dos germes;

Foi quem fez surgir a relva,

Transformou o caos em sóis,

Espalhados nos espaços

Longe da vista dos homens.

 

Tudo quanto na boa Natureza

Respira, dela extrai sua alegria,

Arrasta atrás de si seres e povos;

Foi ela quem nos deu

Amigos na desgraça,

Dos cachos d'uva o suco,

Das Graças a grinalda,

Ao inseto, a luxúria...

           

E o Anjo, para levar-nos

À presença de Deus.

 

Mas basta de versos. Deixa-me chorar. Que seja um absurdo de que o mundo inteiro zombe, exceto tu. Eis teus olhos brilhando. Basta de versos. Quero agora falar-te dos "insetos", daqueles a quem Deus gratificou com a luxúria. Eu mesmo sou um deles e isso se aplica a mim. Nós, Karamázovi, somos todos assim; esse inseto vive em ti, que és um anjo, e aí suscita tempestades. Porque a sensualidade é uma tempestade e até mesmo algo mais. A beleza é uma coisa terrível e espantosa. Terrível, porque indefinível, e não se pode defini-la porque Deus só criou enigmas. Os extremos se tocam, as contradições vivem juntas. Sou pouco instruído, irmão, mas tenho pensado muito nessas coisas. Quantos mistérios acabrunham o homem! Penetra-os e volta intacto. Assim a beleza. Não posso tolerar que um homem de grande coração e de alta inteligência comece pelo ideal da Madona e venha a acabar no de Sodoma. Mas o mais horrível é, trazendo no seu coração o ideal de Sodoma, não repudiar o da Madona, arder por ele como nos seus jovens dias de inocência. Não, o espírito humano é demasiado vasto, gostaria dê restringi-lo. O diabo é quem sabe de tudo. O coração acha beleza até na vergonha, no ideal de Sodoma, que é o da imensa maioria. Conheces esse mistério? É o duelo do diabo e de Deus, sendo o coração humano o campo de batalha. Ora, fala-se daquilo que faz a gente sofrer. Vamos, pois, ao fato.

 

CONFISSÃO DE UM CORAÇÃO ARDENTE. — ANEDOTAS

— Entregara-me à devassidão. Meu pai dizia ainda há pouco que gastei milhares de rublos para seduzir donzelas. Imaginação de porco! É uma mentira, porque minhas conquistas não me custavam nada, a bem dizer. Para mim o dinheiro não passa do acessório, a ence­nação. Hoje, sou o amante de uma dama, amanhã de uma mulher das ruas. Divirto as duas, prodigando dinheiro aos punhados, com música e ciganos. Se for possível, dou dinheiro a elas, porque de qualquer forma o dinheiro não lhes desagrada; elas nos agradecem. Amaram-me senhoritas, não todas, mas as houve e muitas. Gostava dos becos, das vielas sombrias e desertas, teatro de aventuras, de sur­presas, por vezes de pérolas na lama. Exprimo-me alegòricamente, ir­mão, esses becos só existiam figuradamente. Se fosses semelhante a mim, compreenderias. Gostava da devassidão pela sua abjeção mesma. Gostava da crueldade; não sou um percevejo, um inseto malfazejo? Um Karamázov, e está tudo dito! Uma vez, houve um grande piquenique, para onde fomos em sete tróicas, no inverno, num tempo sombrio; no trenó cobri de beijos minha vizinha, filha de um funcionário, sem fortuna, encantadora e tímida; no escuro, permitiu-me ela carícias de­masiado livres. A pobrezinha imaginava que no dia seguinte iria eu pedi-la em casamento (porque era eu apreciado como possível noivo); mas fiquei cinco meses sem dizer-lhe uma palavra. Muitas vezes, quan­do se dançava, via-a seguir-me com o olhar num canto do salão, com os olhos a arderem duma terna indignação. Esse jogo só fazia deitar minha sensualidade perversa. Cinco meses depois, casou-se ela com um funcionário e partiu... furiosa e talvez amando-me ainda. Vivem felizes, agora. Nota que ninguém sabe de nada, sua reputação está - intacta; malgrado meus vis instintos e meu amor à baixeza, não sou desonesto. Tu coras. Teus olhos cintilam. Estás farto dessa lama. No entanto, não passam de grinaldas à Paulo de Kock. Tenho, irmão, um álbum inteiro de recordações. Que Deus as guarde a essas queri­das criaturas. No momento de romper, evitava as querelas. Jamais vendi nem comprometi nenhuma. Mas isto basta. Crês que te chamei so­mente por causa dessas sujeiras? Não, foi a fim de contar-te algo de mais curioso; mas não fiques surpreendido pelo fato de não ter eu vergonha diante de ti, sinto-me mesmo à vontade.

— Fazes alusão ao meu rubor — observou, de súbito, Aliócha. — Não são tuas palavras, nem mesmo tuas ações que me fazem corar. Coro porque sou igual a ti.

— Tu? Estás indo um pouco longe.

— Não, não exagero — declarou Aliócha, com calor. (Via-se que estava presa dessa idéia desde muito tempo.) — A escada do vício é a mesma para todos. Acho-me no primeiro degrau; estás mais alto, no décimo terceiro, admitamos. Acho que é absolutamente a mesma coisa: uma vez posto o pé no primeiro degrau, é preciso galgar todos.

— O melhor, então, é não começar?

— Evidentemente, se é possível.

— Pois bem, és capaz?

— Creio que não.

— Cala-te, Aliócha, cala-te, meu querido, tenho vontade de bei­jar-te a mão cheio de enternecimento. Ah! essa marota da Gruchenhka conhece os homens; dizia-me, uma vez, que um dia ou outro te devo­raria. Está bem, calo-me! Mas deixemos esse terreno emporcalhado pelas moscas para chegar à minha tragédia, emporcalhada, também ela, pelas moscas, isto é, por todas as espécies de baixezas possíveis. Se bem que o velho tenha mentido a respeito de minhas pretensas sedu­ções, isto aconteceu-me, no entanto, uma vez somente; e ainda assim não chegou a executar-se. Ele, que me censurava coisas imaginárias, nada sabe disso; não o contei a ninguém, és o primeiro a quem falo, exceto Ivã, bem entendido. Ele sabe de tudo desde muito tempo. Mas Ivã é mudo como o tumulo.

— Como o tumulo?

— Sim.

Aliócha redobrou de atenção.

— Embora alferes num batalhão de linha, era objeto de certa vigilância, a modo dum deportado. Mas acolhiam-me bastante bem na cidadezinha. Prodigalizava dinheiro, acreditavam-me rico e eu acre­ ditava que o era. Devia agradar também por outras razões. Embora abanando a cabeça por causa de minhas estroinices, tinham afeição por mim. Meu tenente-coronel, um velho, antipatizou comigo de re­pente. Pôs-se a amofinar-me, mas eu tinha costas largas; toda a cidade ficou a meu lado, não podia ele fazer grande coisa. A culpa era minha; por tola altivez, não lhe prestava eu as homenagens a que tinha ele direito. Aquele velho teimoso, bom homem no íntimo e muito hospita­leiro, fora casado duas vezes. Era viúvo. Sua primeira mulher, de baixa condição, deixara-lhe uma filha tão simples quanto ela mesma. Tinha a moça então 24 anos e vivia com seu pai e sua tia materna. Longe de ter a ingenuidade silenciosa de sua tia, a isso juntava muita vivacidade. Jamais encontrei caráter feminino mais encantador. Cha­mava-se Agáfia, imagina, Agáfia Ivânovna. Bastante bonita, ao gosto russo, grande, de boas carnes, de belos olhos, mas de expressão um pouco vulgar. Ficara solteira, malgrado dois pedidos de casamento, e conservava sua jovialidade. Travei amizade com ela, tudo muito direito, com muita honestidade. Porque travei mais de uma amizade feminina, perfeitamente pura. Falava com ela em termos bastante livres e ela só fazia rir. Muitas mulheres gostam dessa liberdade de expressão, nota-o bem; além do mais, era muito divertido com uma moça igual a ela. Um traço ainda: não se podia qualificá-la de senhorita. Sua tia e ela viviam em casa de seu pai, numa espécie de rebaixa­ mento voluntário, sem se igualarem ao resto da sociedade. Estimavam-na, apreciavam seus talentos de costureira, porque não cobrava ela nada, trabalhando por gentileza para suas amigas, sem todavia recusar o dinheiro, quando lhe era oferecido. Quanto ao coronel, era um dos homens notáveis do lugar. Vivia à larga. Toda a cidade era recebida em sua casa; ceava-se, dançava-se. Por ocasião de minha entrada para o batalhão, só se falava, na cidade, da próxima chegada da segunda filha do coronel. Famosa pela sua beleza, acabava de sair de um internato aristocrático da capital. É Catarina Ivânovna, a filha da segunda mulher do coronel. Esta última era nobre, de grande casa, mas não trouxera dote algum ao marido; sei-o de boa fonte. Era de boa família, com algumas esperanças, mas nada de efetivo. No entanto, quando a jovem chegou para uma temporada, a cidadezinha ficou como que galvanizada; nossas damas mais distintas, duas excelências, uma coronela, e todas as outras, em seguimento, disputavam-na; festejavam-na, era a rainha dos bailes, dos piqueniques; organizaram-se quadros vivos em benefício de não sei quais professoras. Quanto a mim, caio-me, farreio; imaginei então uma pilhéria à minha moda, que deu que falar à cidade inteira. Uma noite, em casa do comandante da bateria, Catarina Ivânovna lançou-me um olhar de alto a baixo; não me aproximei dela, desdenhando travarmos conhecimento. Abordei-a al­gum tempo depois, igualmente num sarau. Falei-lhe. Olhou-me apenas, com os lábios desdenhosos. "Espera um pouco, pensei, vingar-me-ei!" Era eu então um sujeito verdadeiramente estourado na maior parte dos casos e sentia isso. Sentia sobretudo que Catarina, longe de ser uma pensionista ingênua, tinha caráter, altivez e verdadeira virtude, sobretudo muita inteligência e instrução, o que me faltava totalmente. Pensas que eu queria pedir-lhe a mão? Absolutamente. Queria so­mente me vingar de sua indiferença a meu respeito. Foi então uma farra de arrebentar. Por fim; o tenente-coronel infligiu-me três dias de detenção. Naquela ocasião, nosso pai enviou-me 6 000 rublos em troca de uma renúncia formal a todos os meus direitos e pretensões à fortuna de minha mãe. Nada entendia disso então; até minha che­gada aqui, irmão, até estes últimos dias e talvez mesmo agora, nada compreendi dessas disputas de dinheiro entre mim e meu pai. Mas, para o diabo tudo isso, tornaremos a falar. Já de posse desses 6 000 rublos* a carta de um amigo me fez ciente de uma coisa bastante interessante, a saber, que estavam descontentes com o nosso tenente-coronel, suspeito de malversações, e que seus inimigos lhe preparavam uma surpresa. Com efeito, o chefe da divisão apareceu para dirigir-lhe vigorosa reprimenda. Pouco depois foi obrigado a demitir-se. Não te contarei todos os detalhes desse negócio; tinha ele, com efeito, inimi­gos; ocorreu na cidade brusco resfriamento de relações com ele e toda a sua família; todo mundo os abandonava. Foi então que pus em prática minha primeira treta: encontro Agáfia Ivânovna, de quem me mantinha sempre amigo, e digo-lhe: "Faltam 4 500 rublos na caixa de seu pai..." "Como? Quando o general veio, recentemente, a soma estava completa. ." "Estava então, mas não mais agora." Ela ficou apavo­rada. "Não me apavore, rogo-lhe, donde soube isso?" "Tranquilize-se", digo-lhe "não falarei a ninguém, sabe você que a esse respeito sou um tumulo. Queria somente dizer-lhe isto, de qualquer modo: quando reclamarem de seu pai esses 4 500 rublos que lhe faltam, em vez de passar em julgamento na sua idade e ser degradado, man­de-me sua irmã secretamente; acabo de receber dinheiro, remeter-lhe-ei a soma e ninguém ficará sabendo de nada." "Ah! que patife é você!", disse ela. "Que canalha! Como ousa?" Ela foi-se embora, sufocada de indignação, e gritei-lhe às costas que o segredo seria inviolàvelmente guardado. Aquelas duas mulheres, Agáfía e sua tia, eram verdadeiros anjos; adoravam a altiva Cátia*, serviam-na humildemente. Agáfia deu parte de nossa conversa à sua irmã, como vim a saber mais tarde. Era justamente o que me era preciso.

"Entrementes, chega novo major para tomar o comando do batalhão. O velho coronel cai doente; fica no quarto dois dias inteiros e não presta suas contas. O Doutor Krávtchenko assegura que a doença não é simulada. Mas eis o que eu sabia com certeza, e desde muito tempo: após cada revisão de seus chefes, o coronel fazia desaparecer certa soma por algum tempo; isto remontava a quatro anos. Emprestava-a a um homem de toda confiança, um negociante, viúvo barbudo, de óculos de ouro, Trífonov. Este ia à feira, servia-se do dinheiro para seus negócios e restituía-o logo ao coronel, com um presente e uma boa comissão. Mas desta vez, Trífonov, à sua volta da feira, nada entregara (soube-o, por acaso, de seu filho, um fedeiho, garoto perver­tido dos que mais o sejam). O coronel acorreu: 'Jamais recebi nada do senhor[10], respondeu o velhaco. O infeliz não põe mais pé fora de casa, com a cabeça enrolada num penso, as três mulheres aplicando-lhe gelo sobre o crânio. Chega um ordenança com a ordem de entrega da caixa imediatamente, dentro de duas horas. Ele assinou, vi mais tarde sua assinatura no registro, levantou-se, dizendo que ia vestir seu uniforme, e passou para seu quarto de dormir. Ali pegou seu fuzil de caça, carregou-o com baia, descalçou seu pé direito, apoiou a arma contra o peito, tateando com o pé para premir o gatilho. Mas Agáfia, que não esquecera minhas palavras, suspeitava de alguma coisa; ten­do-se aproximado furtivamente, vigiava-o. Precipitou-se, cercou-o com seus braços pelas costas; o tiro partiu para o ar, sem ferir ninguém. Os outros acorreram, arrancaram-lhe a arma, segurando-o pelas mãos... Encontrava-me então em casa, ao crepúsculo, a ponto de sair, vestido, penteado, o lenço perfumado; pegara meu casquete; de repente, a porta se abre e vejo entrar Catarina lvânovna.

"Há coisas estranhas: ninguém a notara na rua, quando vinha ela para minha casa, nem visto, nem conhecido. Eu morava em casa de duas mulheres de funcionários, pessoas idosas; faziam elas o serviço, para tudo me escutavam com deferência e guardaram por ordem minha segredo absoluto. Compreendi no mesmo instante do que se tratava. Ela entrou, de olhar fito em mim; seus olhos sombrios expri­miam a decisão, a audácia mesmo, mas o jeito de seus lábios revelava a perplexidade.

"— Minha irmã me disse que o senhor daria 4 500 rublos, se eu viesse buscá-los... em pessoa. Eis-me aqui... dê-me o dinheiro!... — Sufocava, tomada de terror; sua voz extinguiu-se, seus lábios tremiam... Aliócha, tu me escutas ou dormes?"

— Mítia, sei que me dirás toda a verdade — replicou Aliócha, comovido.

— Podes contar com isso, não me pouparei. Meu primeiro pensa­ mento foi o de um Karamázov. Um dia, irmão, fui picado por uma centopeia e tive de ficar quinze dias de cama, com febre; pois bem, senti então no coração a picada da centopeia, um animal venenoso, bem sabes. Eu a examinava de alto a baixo. Viste-a? É uma beleza.

Mas era bela então pela sua nobreza moral, pela sua grandeza de alma e pelo seu devotamento filial, a meu lado, vil e repugnante personagem. Era, no entanto, de mim que "toda" ela dependia, corpo e alma, como que prisioneira. Confessar-to-ei: aquele pensamento, o pensamento da centopéia, dominou-me o coração com tal intensidade que acreditei morrer de angústia. Parecia que nenhuma luta era pos­sível: conduzir-me baixamente, como uma tarântula venenosa, sem sombra de compaixão... Isso atravessou-me mesmo o espírito. No dia seguinte, bem entendido, iria eu pedir-lhe a mão, para terminar tudo da maneira mais nobre e ninguém teria sabido nada do caso. Porque, se tenho instintos baixos, sou contudo leal. E, de súbito, ouço que me murmuram ao ouvido: "Amanhã, quando fores oferecer-lhe tua mão, ela não se mostrará e mandará expulsar-te pelo cocheiro. 'Podes difamar-me pela cidade', dirá ela, 'não tenho medo de ti!'" Olhei para a jovem a fim de ver se aquela voz não mentia. A ex­pressão de seu rosto não deixava nenhuma dúvida, por-me-iam pela porta afora. A cólera dominou-me, tive vontade de pregar-lhe a peça mais vil, uma sujeira de bodegueiro: olhá-la ironicamente e, enquanto ela se conservasse diante de mim, consterná-la, tomando a inflexão de que só são capazes os bodegueiros:

"— Quatro mil rublos! Mas eu estava brincando! A senhorita contou muito facilmente com isso! Duzentos rublos, com prazer e de boa von­tade; mas 4 000 é dinheiro, isso não se pode dá-lo assim leviana­mente. A senhorita incomodou-se por coisa alguma.

"Vês tu, teria eu tudo perdido, ela teria fugido, mas aquela vin­gança infernal teria compensado o resto. Eu lhe teria pregado essa peça, pronto a lamentá-la em seguida a vida inteira! Acreditarás que, em semelhantes minutos, jamais olhei uma mulher, quem quer que ela fosse, com um ar de ódio — mas, juro-o sobre a cruz, durante alguns segundos contemplei-a com um ódio intenso, o ódio que só está separado do amor mais ardente por um cabelo. Aproximei-me da janela, apoiei a fronte na vidraça gelada, lembro-me de que o frio fazia-me o efeito de uma queimadura. Não a retive muito tempo, fica tranqüilo; fui à minha mesa, abri uma gaveta, dela retirei um cheque de 5 000 rublos ao portador, que se encontrava no meu dicionário francês. Sem dizer uma palavra, mostrei-lho, dobrei-o, entreguei-lho, depois eu mesmo abri a porta da antecâmara e fiz uma profunda saudação. Ela estremeceu toda, olhou-me fixamente um segundo, ficou branca como um linho e, sem proferir uma palavra, sem brusquidão, mas ternamente, docemente, prosternou-se a meus pés, com a fronte no chão, não como uma pensionista, mas à russa! Levantou-se e fugiu. Após sua partida, tirei minha espada e quis matar-me, por que, não sei dizê-lo; teria sido absurdo, evidentemente; sem dúvida, por entu­siasmo. Compreendes que possa a gente matar-se de alegria? Mas limitei-me a beijar a lâmina e repu-la na bainha... Poderia muito bem não ter-te falado disso. Parece-me, aliás, que floreei um tanto, para me gabar, contando-te as lutas de minha consciência. Mas que importa! Ao diabo todos os espiões do coração humano! Eis toda a minha aventura com Catarina Ivânovna. És o único, com Ivã, a co­nhecê-la."

Dimítri Fiódorovitch levantou-se, dando alguns passos com hesita­ção, tirou seu lenço, enxugou a testa, depois tornou a sentar-se, mas num outro lugar, sobre o banco em frente, contra a outra parede, de modo que Aliócha teve de voltar-se totalmente para seu lado.

 

CONFISSÃO DE UM CORAÇÃO ARDENTE E DESBOCADO

— Pois bem! — disse Aliócha. — Conheço agora a primeira parte do caso.

— Isto é, um drama, que se passou lá. A segunda parte será uma tragédia e se desenrolará aqui.

— Não compreendo nada dessa segunda parte.

— E eu, será que eu compreendo alguma coisa?

— Escuta, Dimítri, há um ponto importante. Dize-me, ainda és noivo?

— Não fiquei noivo imediatamente, mas só três meses depois da­quele acontecimento. No dia seguinte, disse a mim mesmo que estava tudo liquidado, terminado, que não haveria conseqüências. Ir pedi-la em casamento pareceu-me uma baixeza. De seu lado, não me deu ela sinal de vida durante as seis semanas que passou ainda na cidade. De parte uma exceção, entretanto: no dia seguinte à sua visita, a arrumadeira delas introduziu-se em minha casa e, sem dizer uma palavra, entregou-me um envelope a mim endereçado. Abro-o: continha o restante dos 5 000 rublos. Fora preciso restituir 4 500, a perda de venda da obrigação ultrapassava 200 rublos. Ela me restituía 260, creio — não me lembro exatamente —, e sem uma palavra de explicação. Procurei no pacote um sinal qualquer a lápis, nada! Fiz farra com o que me restava de meu dinheiro, a tal ponto que o novo major se viu forçado a fazer-me censuras. O tenente-coronel entregara sua caixa intacta, para espanto geral, porque acreditava-se a coisa impossível. Depois do que, caiu doente, ficou três semanas de cama e sucumbiu em cinco dias a um amolecimento cerebral. Enterraram-no com hon­ras militares, porque não tivera ele tempo de ser reformado. Catarina Ivânovna, sua irmã e sua tia, dez dias após o enterro, partiram para Moscou. No dia de sua partida somente (não as havia revisto), recebi um bilhete azul, com esta única linha escrita a lápis: "Escrever-lhe-ei. Espere. C."

"Em Moscou, os negócios delas arranjaram-se duma maneira tão rápida quão extraordinária, tal como um conto das Mil e Uma Noites. A principal parenta de Catarina Ivânovna, uma generala, perdeu brus­camente suas duas sobrinhas, suas herdeiras mais próximas, mortas, na mesma semana, de varíola. Transtornada, ligou-se a Cátia como à sua própria filha, vendo nela sua derradeira esperança, refez seu testamento em seu favor e deu-lhe — de mão para mão — 80 000 rublos de dote, para dispor deles à sua vontade. É histérica; tive ocasião de observá-la mais tarde em Moscou. Uma bela manhã, recebo pelo cor­reio 4 500 rublos, com extrema surpresa minha, bem entendido. Três dias depois chega a carta prometida. Tenho-a ainda, conservá-la-ei até minha morte; queres que ta mostre? Não deixes de lê-la: oferece-se ela mesma a partilhar minha vida. 'Amo-o loucamente; que não me ame, não me importa, contente-se em ser meu marido. Não se espante, não o incomodarei em nada; serei um de seus móveis, o tapete sobre o qual você anda... Quero amá-lo eternamente, salvá-lo-ei de você mesmo...' Aliócha, sou mesmo indigno de repetir estas linhas em minha vil linguagem, com o tom de que jamais pude corrigir-me! Até agora, essa carta traspassou-me o coração e acreditas que me sinto à vontade hoje? Respondi-lhe imediatamente (era-me impossível ir a Moscou). Escrevi com minhas lágrimas. Envergonhar-me-ei eterna­mente de lhe ter lembrado que era ela agora rica e dotada — e eu sem recursos. Falei de dinheiro. Deveria ter-me contido, mas minha pena traiu-me. Escrevi também a Ivã, então em Moscou, e expliquei-lhe tudo quanto era possível, uma carta de seis páginas; mandei Ivã à casa dela. Que tens que te faz olhar-me? Sim, Ivã apaixonou-se por ela; ainda o está agora, sei disso. Cometi uma tolice, do ponto de vista mundano, mas talvez seja essa tolice que nos salvará a todos. Não vês que ela o honra, que o estima? Pode ela, depois de ter-nos comparado um com o outro, amar um homem tal como eu, sobretudo depois do que se passou aqui?"

— Estou persuadido de que é um homem como tu que ela devo amar, e não um homem como ele.

— É sua própria virtude que ela ama e não a mim — deixou Dimítri escapar, malgrado seu, com irritação. Pôs-se a rir, mas de sú­bito seus olhos cintilaram; tornou-se totalmente vermelho e deu um violento murro sobre a mesa.

— Juro-o, Aliócha — exclamou ele, num acesso de furor não fingido contra si mesmo —, podes crê-lo ou não, mas, tão verdade como Deus é santo e que o Cristo é Deus, e, se bem que haja eu zombado de seus nobres sentimentos, não duvido da angélica sin­ceridade deles; sei que minha alma é um milhão de vezes mais vil que a dela. É nesta certeza que consiste a tragédia. A bela des­graça! Declame-se um pouco! Eu também declamo e, no entanto, sou perfeitamente sincero. Quanto a Ivã, imagino que deve ele maldizer a natureza, ele que é tão inteligente! Quem teve a preferência? Um monstro tal como eu, que não pude arrancar-me da devassidão, quando todos me observavam e isto sob os olhos de minha noiva! E sou eu preferido? Mas por quê? Porque aquela moça quer, como prova de reconhecimento, constranger-se a uma existência desgraçada! É absur­do! Jamais falei a Ivã neste sentido, e ele, bem entendido, jamais fez a menor alusão a isso; mas o destino se cumprirá, cada qual segundo seus méritos; o réprobo afundar-se-á definitivamente no lamaçal de que gosta. Estou dizendo incoerências, as palavras não exprimem meu pensamento, como se as empregasse ao acaso, mas o que fixei realizar-se-á. Afogar-me-ei na lama e ela casará com Ivã.

— Irmão, espera — interrompeu Aliócha, numa agitação extraor­dinária. — Há um ponto que ainda não me explicaste; continuas seu noivo. Como queres romper, se ela a isso se opõe?

— Sou noivo, recebemos a bênção oficial. Ocorreu em .Moscou, quando cheguei em grande cerimônia, com os ícones. A generala nos abençoou; imagina que chegou mesmo a felicitar Cátia: "Escolheste bem", disse ela. "Leio em seu coração." Quanto a Ivã, não lhe agra­dou; ela não lhe dirigiu nenhum cumprimento. Em Moscou tive longas conversas com Cátia; pintei-me nobremente, tal como era, com toda a sinceridade. Ela tudo escutou:

Houve um enleio encantador

E ternas palavras ouviram-se...

Houve também palavras altivas. Arrancou-me a promessa de corrigir-me. Prometi. E eis em que ponto estou.

— E então, o quê?

— Chamei-te, trouxe-te aqui hoje, lembra-te, para enviar-te hoje mesmo à casa de Catarina Ivânovna, e...

— Que mais?

— Dize-lhe que não irei mais à casa dela, cumprimentando-a de minha parte.

— Será possível?

— Não, é impossível; assim, peço-te que vás lá em meu lugar, não poderia dizer-lhe isto eu mesmo.

— E tu, aonde irás?

— Voltarei ao meu lodaçal.

— Isto é, à casa de Gruchka! — exclamou tristemente Aliócha, juntando as mãos. — Rakítin tinha, pois, razão. E eu que acreditava que era apenas uma ligação passageira!

— Um noivo com uma amante!. Seria possível, com tal noiva e aos olhos de todos? Não perdi de todo a honra. Desde o momento em que passei a freqüentar Grúchenhka, deixei de ser noivo e homem honesto, dou-me conta disso. Que tens para me olhar assim? Fui à casa dela a primeira vez na intenção de bater-lhe. Soubera, e sei agora de fonte limpa, que aquele capitão, delegado por meu pai, entre­gara a Grúchenhka uma ordem de pagamento assinada por mim; tra­tava-se de processar-me na justiça, na esperança de abater-me e de obter minha desistência. Queriam amedrontar-me. Ia eu pois surrá-la. Já tivera ocasião de vê-la ligeiramente. Uma mulher muito ordinária. Sabia da estória daquele velho comerciante seu amante, que não durará muito mais tempo, mas lhe deixará uma bela soma. Sabia que ela era também gananciosa, emprestando com usura, velhaca e debo­chada, sem compaixão! Fui para dar-lhe uma correção e fiquei em casa dela. Aquela mulher é a peste. Contaminei-me, tenho-a na pele. Tudo está acabado doravante, não há mais outra perspectiva. O ciclo dos tempos passou. Eis onde me encontro. Como que de propósito tinha eu então 3 000 rublos no bolso. Fomos a Mókroie, a 25 verstas daqui, mandei buscar ciganos, ofereci champanha a todos os mujiques, às mulheres e às moças do local. Três dias depois, estava sem nada. E pensas que obtive o mínimo favor? Nada ela me mostrou. Asseguro-te, é toda sinuosa. A intrujona, seu corpo lembra uma cobra, vê-se isso em suas pernas, até o dedo mindinho de seu pé esquerdo que tem essa sinuosidade. Vi-o e beijei-o, mas foi tudo, juro^te. Ela me disse: "Queres, casarei contigo, embora pobre. Se me prometes não me bater e deixar-me fazer tudo quanto quiser, talvez me case", e riu, e ri também agora!

Dimítri Fiódorovitch ergueu-se presa duma espécie de furor. Tinha ar de ébrio. Seus olhos estavam injetados de sangue.

— Pretendes seriamente casar com ela?

— Se ela consentir, será imediatamente; se recusar, ficarei ainda assim com ela, serei seu criado. Tu, tu... Aliócha... — Parou diante dele e se pôs a sacudi-lo violentamente pelos ombros. — Sabes tu, inocente, que tudo isso é delírio, um delírio inconcebível, porque há nisso uma tragédia? Fica sabendo, Aliócha, que posso ser um homem perdido, de paixões vis, mas que Dimítri Karamázov jamais será um ladrão, um vulgar ratoneiro. Pois bem, fica sabendo agora que sou esse ladrão, esse ratoneiro! Quando ia eu à casa de Grúchenhka para castigá-la, naquela manhã mesma Catarina Ivânovna mandoú-me cha­mar e pediu-me com grande segredo (ignoro por qual motivo) que eu fosse à sede da província enviar 3 000 rublos a Agáfia Ivânovna, em Moscou. Ninguém devia saber disso na cidade. Fui à casa de Grú­chenhka com aqueles 3 000 rublos no bolso e serviram eles para pagar nossa excursão a Mókroie. Em seguida, fiz que ia à sede da província, que tinha enviado o dinheiro; quanto ao recibo, "esqueci-me" de lho levar, malgrado minha promessa. Agora, que pensas? Irás dizer-lhe: "Ele manda cumprimentá-la". Ela te perguntará: "E o dinheiro?" E tu lhe responderás: "Ele é uma criatura de uma sensualidade animal, uma criatura vil, incapaz de conter-se. Em lugar de enviar seu dinheiro, gastou-o, não podendo resistir à tentação". Mas podes também acres­centar: "Dimítri Fiódorovitch não é um ladrão; aqui estão os seus 3 000 rublos que ele restitui, envie-os a senhorita mesma a Agáfia Ivânovna e receba as homenagens dele". Seria apenas meio mal, não, porém, se ela te perguntar: "Onde está o dinheiro?"

— Mítia, és desgraçado, mas não tanto quanto pensas. Não te mates de desespero!

— Pensas que vou estourar os miolos, se não conseguir reembolsar esses 3 000 rublos? Absolutamente. Não tenho a mínima coragem ago­ra; mais tarde, talvez... agora vou à casa de Gruchenhka... Lá deixarei a pele.

— Então?

— Casarei com ela, se ela me quiser; quando seus amantes che­garem, passarei para o quarto vizinho. Estarei lá para engraxar os sapatos deles, aquecer o samovar, levar recados...

— Catarina Ivânovna compreenderá tudo — declarou solenemente Aliócha. — Compreenderá teu profundo pesar e te perdoará. Tem espírito elevado, verá que não se pode ser mais desgraçado do que tu.

— Ela não perdoará tudo — sorriu Mítia. — Há nisso uma coisa imperdoável aos olhos de toda mulher. Sabes o que vale mais a pena fazer?

— Que é?

— Entregar-lhe os 3 000 rublos.

— Onde arranjá-los? Escuta, tenho 2 000, Ivã dar-te-á 1000, e estará completa a conta.

— Quando receberei os teus 3 000 rublos? És ainda menor, quanto ao mais é preciso absolutamente que rompas com ela por mim, hoje mesmo, entregando o dinheiro ou não, porque não posso demorar mais tempo, no ponto em que estão as coisas. Amanhã, já seria demasiado tarde. Vai à casa de papai.

— À casa de nosso pai?

— Sim, primeiro à casa dele. Pede-lhe o dinheiro.

— Mítia, ele jamais o dará.

— Ora essa, sei bem disso! Alieksiéi, sabes o que seja o deses­pero?

— Sim.

— Escuta, juridicamente, ele não me deve nada. Recebi minha parte, sei disso. Mas, moralmente, deve-me ele alguma coisa, sim ou não? Foi com os 28 000 rublos de minha mãe que ele ganhou 100 000. Que me dê apenas 3 000 rublos, não mais, e terá salvo minha alma do inferno e muitos pecados lhe serão perdoados. Contentar-me-ei com essa soma, juro-te, ele não ouvirá mais falar de mim. Forneço-lhe uma derradeira ocasião de ser um pai. Dize-lhe que é Deus que lha oferece.

— Mítia, ele não os dará a preço algum.

Sei bem disso, tenho a certeza. Agora sobretudo! Mas há melhor. Nestes últimos dias, soube ele pela primeira vez seriamente (note este advérbio) que Gruchenhka não estava brincando e se decidiria talvez a dar o salto, a casar-se comigo. Conhece o caráter daquela gata. Pois bem, dar-me-ia ele dinheiro ainda por cima, para favorecer a coisa, quando está louco por ela? Não é tudo, escuta isto. Há já cinco dias, pôs ele de parte 3 000 rublos em notas de 100, num grande envelope com cinco sinêtes, amarrado por uma fita côr-de-rosa. Vês como estou a par? O envelope traz escrito: "Para meu anjo, Grúchenhka, se consentir em vir à minha casa". Ele mesmo rabiscou isso, às ocultas, e todo mundo ignora que tem ele esse dinheiro, exceto o criado Smierdiákov, em quem confia ele tanto quanto em si mesmo. Há três ou quatro dias que aguarda Grúchenhka, na esperança de que ela irá buscar o envelope; ela fê-lo saber "que talvez fosse". Se ela for à casa do velho, poderei eu esposá-la? Compreendes tu agora por que me escondo aqui e tocaio?

— Ela?

— Sim. As proprietárias cederam um quartinho a Fomá, antigo soldado de nossa guarnição. Está a serviço delas, monta guarda de noite e caça tetrazes durante o dia. Instalei-me em casa dele; essas mulheres e ele ignoram meu segredo, isto é, que estou aqui de tocaia.

— Somente Smierdiákov o sabe?

— Sim. Será ele quem me advertirá, se Grúchenhka for à casa do velho.

— Foi ele quem te falou do pacote?

— Com efeito. É um grande segredo. O próprio Ivã ignora. O velho mandou-o dar um passeio a Tchermachniá por dois ou três dias; apareceu um comprador para a madeira, oferecendo 8 000 rublos; o velho pediu a Ivã que o ajudasse, que fosse em lugar dele. Quer afas­tá-lo para receber Grúchenhka.

— Ele a espera, por conseguinte, hoje?

— Não, ela não irá hoje, de acordo com certos indícios. Decerto que não! — exclamou Mítia. — É também a opinião de Smierdiákov. Papai está agora à mesa com Iva, a beber. Vai, pois, Alieksiéi, e pe­de-lhe esses 3.000 rublos.

— Mítia, meu caro, que tens pois? — exclamou Aliócha, saltando de seu lugar para examinar o rosto desvairado de Dimítri. Acreditou por um instante que ele estivesse louco.

— Pois bem! O quê? Não perdi a razão — declarou ele, de olhar fixo e quase solene. — Não temas. Sei o que digo, creio nos milagres.

— Nos milagres?

— Nos milagres da Providência. Deus conhece meu coração.' Vê meu desespero. Permitiria ele que se realizasse tal horror? Aliócha, creio nos milagres, vai!

— Irei. Dize-me, esperar-me-ás aqui?

— Decerto. Compreendo que será demorado, não se pode abordá-lo diretamente. Está bêbedo agora. Esperarei aqui, três, quatro, cinco horas, mas fica sabendo que hoje, até mesmo à meia-noite, deves ir à casa de Catarina, com ou sem dinheiro. Dirás: "Dimítri Fiódorovitch pediu-me que lhe apresentasse seus cumprimentos". Quero que lhe re­pitas esta frase exatamente.

— Mítia! E se Grúchenhka for hoje... ou amanhã, ou depois de amanhã?

— Grúchenhka? Vigiarei, forçarei a porta, impedirei.

— Mas se...

— Então, matarei. Não suportarei isso.

— A quem matarás?

— O velho. Nela não tocarei.

— Irmão, que dizes?

— Não sei, não sei... Talvez mate, talvez não mate. Receio que sua cara se me torne odiosa, naquele momento. Odeio sua papada, seu nariz, seus olhos, seu sorriso impudente. Dão-me náuseas. Esse ódio é que me causa medo. Não poderia resistir a ele.

— Irei, Mítia. Creio que Deus arranjará tudo da melhor forma possível e nos poupará essas coisas horríveis.

— E eu aguardarei o milagre. Mas se ele não se realizar, então...

Aliócha, pensativo, dirigiu-se para a casa de seu pai.

 

SMIERDIÁKOV

Encontrou Fiódor Pávlovitch ainda à mesa. Como de hábito, a mesa fora posta no salão e não na sala de jantar. Era a peça maior da casa, mobiliada com certa pretensão antiquada. Os móveis, bastante antigos, eram brancos, cobertos por um estofo vermelho, meio seda, meio algodão. Havia tremós de molduras pretensiosas, esculpidas à velha moda, igualmente brancas e douradas. Nas paredes, cuja tapeçaria branca estava rasgada em muitos lugares, figuravam dois grandes retratos, o de um antigo governador-geral da província, e o de um prelado, também morto desde muito tempo. No ângulo que fazia face à porta de entrada encontravam-se vários ícones, diante dos quais ardia uma lâmpada durante a noite, menos por devoção do que para iluminar a sala. Fiódor Pávlovitch deitava-se muito tarde, às 3 ou 4 horas da madrugada, e até então passeava de lá para cá ou meditava em sua poltrona. Tornara-se isso um hábito. Passava muitas vezes a noite sozinho, depois de ter despedido os criados, mas a maior parte do tempo o criado Smierdiákov dormia na antecâmara, deitado em cima de uma comprida arca. À chegada de Aliócha, o jantar estava no fim, haviam-se servido a sobremesa e o café. Fiódor Pávlovitch gostava de doces, após o jantar, com conhaque. Ivã estava tomando café com seu pai. Os criados, Gregório e Smierdiákov, conservavam-se perto da mesa. Amos e servidores achavam-se visivelmente de bom humor. Fiódor Pávlovitch ria às gargalhadas; desde o vestíbulo, reco­nheceu Aliócha sua risada semelhante a latidos, que lhe era tão familiar. Concluiu dali que seu pai, ainda longe da embriaguez, encon­trava-se em felizes disposições.

— Ei-lo afinal! — exclamou Fiódor Pávlovitch, encantado com a chegada de Aliócha. — Vem sentar-te conosco. Queres café forte? É famoso e está fervendo. Não te ofereço conhaque porque estás jejuando. Mas se quiseres... Não, dar-te-ei antes licores de boa qua­lidade. Smierdiákov, abre o armário, eles se acham na segunda prateleira, à direita, aqui estão as chaves. Ufa!

Aliócha fez gesto de que recusava os licores.

— Servi-los-ão mesmo assim para nós, já que não queres. Dize-me, já jantaste?

Aliócha respondeu que sim; na realidade, comera um pedaço de pão e beber a um copo de kvas na cozinha do padre abade.

— Tomarei de bom grado uma xícara de café quente.

— Ah! o espertalhão! Não recusa o café! Será preciso esquentá-lo? Mas não, está ainda fervendo. É café famoso, preparado por Smierdiákov. É mestre em fazer café, tortas e sopas de peixe. Virás um dia tomar a sopa de peixe aqui. Avisa-me com antecedência. A propósito, não te disse que transportasses teu colchão e teus travesseiros hoje mesmo? Já o fizeste? Ah! ah! ah!

— Não, não os trouxe — respondeu Aliócha, também rindo.

— Ah! tiveste medo, no entanto, tiveste medo! Serei capaz de fazer-te sofrer, meu querido? Escuta, Ivã, não posso resistir, quando ele me fita nos olhos, rindo. A alegria dilata-me as entranhas, somente ao vê-lo. Gosto dele! Aliócha, vem receber minha bênção.

Aliócha levantou-se, mas Fiódor Pávlovitch reconsiderara.

— Não, farei somente um sinal-da-cruz, assim, vai-te sentar. Pois bem, ficarás contente, a propósito de teu assunto favorito, vais rir. A burra de Balaão falou, e que linguagem a dela!

A burra de Balaão não era outro senão o criado Smierdiákov, rapaz de 24 anos, insociável e taciturno, embora não fosse selvagem ou acanhado; pelo contrário, era arrogante e parecia desprezar todo mundo. Chegou o momento de falar a seu respeito, ainda que pouco. Educado por Marfa Ignátievna e Gregório Vassílievitch, o garoto, "natureza ingrata", segundo a expressão de Gregório, crescera selvagem no seu canto. Na sua infância, tinha prazer em enforcar os gatos, enterrando-os depois com grande cerimonial. Para fazer isto, cobria-se com uma colcha de cama, à guisa de casula, e cantava, agitando um simulacro de turíbulo por cima do cadáver. Tudo isso no maior mistério. Gregório surpreendeu-o um dia e chicoteou-o rudemente. Durante uma semana, o garoto enfurnou-se num canto, olhando de través. "Ele não gosta de nós, o monstro", dizia Gregório a Marfa. "Aliás, não gosta de ninguém. És verdadeiramente um ser humano?", perguntou ele uma vez a Smierdiákov. "Mas não, nasceste da umidade do banheiro..." Smierdiákov, como se viu posteriormente, jamais lhe perdoara essas palavras. Gregório ensinou-o a ler e a história sagrada desde que completou doze anos. Mas esta tentativa foi infeliz. Um dia, numa das primeiras lições, o menino pôs-se a rir.

— Que tens? — perguntou Gregório, olhando-o severamente por cima de seus óculos.

— Nada. Deus criou o mundo no primeiro dia; o sol, a lua e as estrelas no quarto dia. Donde vinha, pois, a luz do primeiro dia?

Gregório ficou estupefato. O menino olhava seu amo com ar irô­nico, seu olhar parecia mesmo provocá-lo. Gregório não pôde conter-se: "Eis donde ela veio!", exclamou, esbofeteando-o violentamente. O menino não se moveu, mas meteu-se de novo no seu canto por vários dias. Uma semana depois, teve ele uma primeira crise de epilepsia, doença que não o deixou mais dali por diante. Tendo co­nhecimento disso, Fiódor Pávlovitch mudou logo sua maneira de tratar o garoto. Até então olhava-o com indiferença, se bem que não o repreendesse nunca e lhe desse 1 copeque todas as vezes em que o encontrava. Quando estava de bom humor, mandava-lhe sobremesa de sua mesa. A doença do menino provocou sua solicitude; mandou buscar um médico; ensaiou-se um tratamento, mas Smierdiákov era incurável. Em média, tinha uma crise uma vez por mês, a intervalos irregulares. Os ataques variavam de intensidade, ora fracos, ora violentos. Fiódor Pávlovitch proibiu terminantemente que Gregório batesse no menino e deu-lhe acesso à sua casa. Proibiu igualmente qualquer estudo até nova ordem. Um dia — tinha Smierdiákov então quinze anos — Fiódor Pávlovitch viu-o lendo os títulos das obras através dos vidros da biblioteca. Fiódor Pávlovitch possuía uma centena de volumes, mas nunca fora visto a folheá-los. Deu logo as chaves a Smierdiákov. "Toma, serás meu bibliotecário; senta-te e lê, será melhor do que andares à toa pelo pátio. Toma isto", e Fiódor Pávlovitch deu-lhe Serões na Quinta de Dikanhka[11]

Esse livro não agradou ao rapaz, que o acabou de ler com ar sombrio, sem ter rido uma vez sequer.

— Pois bem! Não é divertido? — perguntou Fiódor Pávlovitch. Smierdiákov permaneceu calado.

— Responde, pois, imbecil.

— Só há mentiras, aqui dentro — resmungou Smierdiákov, sor­rindo.

— Vai-te para o diabo, alma de lacaio! Espera, eis aqui a História Universal, de Smarágdov. Aqui tudo é verdadeiro. Lê.

Mas Smierdiákov não chegou a ler dez páginas. Achava aquilo enfadonho. Não se falou mais em biblioteca. Em breve Marfa e Gregório levaram ao conhecimento de Fiódor Pávlovitch que Smierdiákov, pouco a pouco se tornara de trato muito difícil, fazendo-se requintado; contemplando seu prato de sopa, examinava-o curvado, enchia uma colherada, que olhava à luz.

— Uma barata, talvez? — perguntava por vezes Gregório.

— Ou então uma mosca? — insinuava Marfa.

O meticuloso rapaz não respondia nunca, mas procedia da mes­ma maneira com o pão, a carne, todas as comidas; pegando um pedaço com seu garfo, estudava-o à luz, como num microscópio, e, após reflexão, decidia-se a levá-lo à boca. "Dir-se-ia que é o filho de um senhor", murmurava Gregório, olhando-o. Posto ao corrente dessa mania de Smierdiákov, decretou Fiódor Pávlovitch logo que tinha ele vocação para cozinheiro e mandou-o a aprender sua arte em Moscou. Passou ali vários anos e voltou bastante mudado de aspecto; envelhecido demasiadamente para sua idade, enrugado, amarelecido, assemelhava-se a um skópiets. Moralmente, era quase o mesmo de antes da partida; sempre um verdadeiro selvagem que não procurava absolutamente a sociedade. Não dizia palavra em Moscou, como se soube mais tarde. A própria cidade muito pouco o interessara. Tendo ido uma vez ao teatro, voltou descontente. Usava roupas de linho convenientes, escovava cuidadosamente seus ternos duas vezes por dia; gostava muito de engraxar suas botas elegantes, de bezerra, com uma graxa inglesa especial, que as fazia reluzir como um espelho. Reve­lou-se excelente cozinheiro. Fiódor Pávlovitch decidiu pagar-lhe ordenado, que era quase todo gasto em roupas, pomadas, perfumes, etc. Parecia fazer tão pouco caso das mulheres quanto dos homens, mostrando-se para com elas empertigado e quase inabordável. Fiódor Pávlovitch pôs-se a considerá-lo de um ponto de vista um pouco diferente. Suas crises tornavam-se mais freqüentes. Marfa substituía-o naqueles dias na cozinha, o que não convinha absolutamente a seu amo.

— Por que tens crises mais freqüentemente? — E olhava carrancudo para o novo cozinheiro. — Deverias arranjar mulher, queres que te case?

Mas Smierdiákov não respondia nada àquelas palavras, que o tor­navam lívido de despeito. Fiódor Pávlovitch ia-se embora, dando de ombros. Sabia-o visceralmente honesto, incapaz de tomar ou roubar o que quer que fosse, e era o essencial. Estando bêbado, perdeu Fiódor Pávlovitch em seu pátio três cédulas de 100 rublos que aca­bara de receber e só se deu conta disso no dia seguinte. Ao cascavilhar em seus bolsos, viu-os em cima da mesa. Smierdiákov tinha-os achado e trazido na véspera. "Nunca encontrei outro igual a ti, meu bravo", disse lacônicamente Fiódor Pávlovitch, e presenteou-o com 10 rublos. É preciso acrescentar que não somente estava certo de sua honestidade, mas tinha afeição por ele, muito embora o rapaz lhe fizesse má cara, como aos outros. Se alguém que o visse per­guntasse: "Por que se interessa esse rapaz, que é que o preocupa so­bretudo?" não se teria podido responder, olhando-o. Entretanto, em casa, no pátio ou na rua, parava por vezes, pensativo, e ficava assim uma dezena de minutos. O rosto de Smierdiákov nada teria revelado a um fisionomista; nenhum pensamento, pelo menos, mas somente uma espécie de contemplação. Há um notável quadro do pintor Kramskói, intitulado O Contemplativo. Uma floresta no inverno; sobre a estrada vê-se um mujique, vestido com um cafetã rasgado e com sapatos de tília. Ali está numa solidão profunda e parece refletir, mas não pensa, contempla alguma coisa. Se se desse nele um encontrão, estremeceria e olharia como quem desperta, mas sem compreender. Na verdade, voltaria logo a si, mas se lhe perguntassem em que pensava, certamente não se lembraria de nada, mas, em compensação, decerto guardaria para si a impressão sob cujo império se achava durante, sua contemplação. Essas impressões são-lhe caras e se acumulam nele, imperceptivelmente, sem que o perceba; com que fim, ele o ignora. Um dia, talvez, depois de havê-las armazenado durante anos, deixará tudo e partirá para Jerusalém, a fim de tratar de sua salvação. Ou então deitará fogo à sua aldeia natal, talvez faça mesmo as duas coisas sucessiva­mente. Há muitos contemplativos em nosso povo. Smierdiákov era certamente um tipo desse gênero e armazenava avidamente suas im­pressões, quase sem conhecer a razão disso.

 

UMA CONTROVÉRSIA

Ora, a burra de Balaão pôs-se a falar de repente e a respeito de um tema estranho. De manhã, achando-se Gregório na venda do co­merciante Lukiánov, ouviu-o contar o seguinte: um soldado russo foi feito prisioneiro, numa região afastada, por asiáticos que o intimaram, sob ameaça de tortura e morte, a abjurar o cristianismo e a converter-se ao Islão. Tendo recusado trair sua fé, sofreu o martírio*, deixou-se esfolar, morreu glorificando o Cristo. Esse fim heróico era relatado no jornal recebido naquela mesma manhã. Gregório falou disso à mesa. Fiódor Pávlovitch sempre gostara, à sobremesa, de brincar e tagarelar, mesmo com Gregório. 'Estava desta vez de humor jovial, sentindo um relaxamento agradável. Depois de ter escutado a notícia, bebericando seu conhaque, insinuou que deveriam ter canonizado aquele soldado e transferido sua pele para um mosteiro. "O povo cobri-la-ia de dinheiro. " Gregório fechou a cara, vendo que Fiódor Pávlovitch, longe de se emendar, continuava a zombar das coisas santas. Naquele momento, Smierdiákov, que se mantinha perto da porta, sorriu. Já antes era muitas vezes admitido na sala de jantar, ao fim da refeição. Desde a chegada de Ivã Fiódorovitch, ali comparecia quase diariamente.

— Pois bem? O quê? — perguntou Fiódor Pávlovitch, compreen­dendo que aquele sorriso visava a Gregório.

— Penso naquele bravo soldado — disse, de repente, Smierdiákov, em voz alta. — Seu heroísmo é sublime, mas na minha opinião não teria havido, em semelhante caso, nenhum pecado em renegar o nome do Cristo e o batismo, para assim salvar sua vida e consagrá-la às boas obras, que resgatariam um momento de fraqueza.

— Como, nenhum pecado? Mentes; isto te valerá ir para o inferno, onde te assarão como a um carneiro — replicou Fiódor Pavlovitch.

Foi então que chegou Aliócha, para grande satisfação de Fiódor Pavlovitch, como se viu.

— Trata-se de teu tema favorito — continuou ele, com um riso de escárnio, fazendo Aliócha sentar-se.

— Tolices tudo isso, não haverá nenhuma punição, não deve haver, em toda justiça — afirmou Smierdiákov.

— Como em toda justiça? — exclamou Fiódor Pavlovitch, redo­brando de alegria e empurrando Aliócha com os joelhos.

— Um desavergonhado, eis o que ele é! — deixou escapar Gregório, fitando Smierdiákov com cólera.

— Quanto a isso de desavergonhado, refreie-se, Gregório Vassílie-vitch! — replicou Smierdiákov, conservando seu sangue-frio. — Pense antes que, caído em poder dos que torturam os cristãos, e intimado por eles a maldizer o nome de Deus e renegar meu batismo, minha própria razão me autoriza a isso plenamente, porque não pode haver aí nenhum pecado.

— Já o disseste, não divagues, mas prova-o! — gritou Fiódor Pavlo­vitch.

— Queima-panelas! — murmurou Gregório com desprezo.

— Queima-panelas, espere um pouco, e sem palavrões, julgue você mesmo, Gregório Vassílievitch. Porque, logo que dissesse a meus car­rascos: "Não, não sou cristão e maldigo o verdadeiro Deus", tornar-me-ia anátema aos olhos da justiça divina, seria separado da santa Igreja, como um pagão, de sorte que, no instante mesmo, não de pro­ferir essas palavras, mas de pensar em proferi-las, estou excomungado, não é verdade, sim ou não, Gregório Vassílievitch? — Smierdiákov dirigia-se com satisfação visível a Gregório, embora respondendo so­mente às perguntas de Fiódor Pavlovitch; dava-se perfeitamente conta disso, mas fingia crer que era Gregório quem lhe fazia tais perguntas.

— Ivã! — exclamou Fiódor Pavlovitch. — Chega perto de meu ouvido. Toda essa peroração dele é para ti, quer receber teus elogios. Dá-lhe esse prazer.

Ivã ouviu com grande seriedade a observação de seu pai.

— Espera um minuto, Smierdiákov — continuou Fiódor Pavlovitch. — Ivã, aproxima-te de novo.

Ivã inclinou-se, sempre com o mesmo ar sério.

— Amo-te tanto quanto a Aliócha. Não vás crer que não te amo. Um pouco de conhaque?

— De boa vontade. "Tu pareces já ter passado da conta", disse Ivã a si mesmo, fitando o pai. Observava Smierdiákov com extrema curiosidade.

— Já és agora maldito e anátema — explodiu Gregório — e como ousas, depois disso, desavergonhado, discutir se...

— Nada de injúrias, Gregório, acalma-te! — interrompeu-o Fiódor Pavlovitch.

— Tenha paciência, Gregório Vassílievitch, ainda que seja um momentinho, e continue a escutar, porque ainda não acabei. No momen­to em que renego a Deus, nesse instante mesmo, tornei-me uma espécie de pagão, meu batismo apagou-se e não conta para nada, não é bem isto?

— Apressa-te em concluir, meu caro — estimulou-o Fiódor Pávlovitch, bebericando, deleitado.

— Ora, se não sou mais cristão, não menti então aos meus carras­cos, quando perguntaram: "És cristão ou não?", porque já estava "descristianizado" pelo próprio Deus, em conseqüência apenas de minha intenção e antes de ter aberto a boca. Ora, se estou decaído, como e com que direito me pedirão contas no outro mundo, na qualidade de cristão, por ter abjurado o Cristo, quando, pela simples premeditação, já teria sido desbatizado? Se não sou mais cristão, não posso mais abjurar o Cristo, porque isto já estaria feito. Quem pois, mesmo no céu, pedirá contas a um tártaro pagão por não ter nascido cristão e quem quererá puni-lo? Não diz o provérbio que não se deverá esfolar duas vezes o mesmo touro? Se o Todo-Poderoso exige contas a um tártaro, por ocasião de sua morte, suponho que o punirá levemente (não podendo absolvê-lo totalmente), estimando não ser culpa dele o ter nascido pagão, de pais que o eram. Será que o Senhor pode pegar à força um tártaro e dizer dele que era cristão? Seria o mesmo que dizer então que o Todo-Poderoso profere uma verdadeira mentira. Ora, pode ele mentir, ele que reina sobre a terra e nos céus, ainda mesmo por uma só de suas palavras?

Gregório ficou estupefato e examinou o orador, de olhos escanca­rados. Embora não compreendendo bem do que se tratava, apanhara uma parte daquele galimatias e assemelhava-se a um homem que dera com a cabeça de encontro a um muro. Fiódor Pávlovitch acabou de beber seu copinho e explodiu numa risada aguda.

— Aliócha, Aliócha, que homem! Ah! o casuísta! Deve ter fre­qüentado os jesuítas, em algum lugar, Ivã, Tresandas a jesuíta, quem pois te instruiu? Mas tu mentes desavergonhadamente, casuísta, tu di­vagas. Não te desoles, Gregório, vamos reduzi-lo a pó. Responde a isto, burra: tens razão perante teus carrascos, seja, mas abjuraste a fé em teu coração e dizes tu mesmo que foste logo atingido de anátema. Ora, como tal, não te passarão a mão pelos cabelos no inferno. Que pensas disso, meu bom padre jesuíta?

— É fora de dúvida que abjurei em meu coração, no entanto não há nisso nenhum pecado especialmente, quando muito um pecado dos mais veniais.

— Como? Dos mais veniais?

— Mentes, maldito! — murmurou Gregório.

— Julgue você mesmo, Gregório Vassílievíich — continuou comedidamente Smierdiákov, consciente de sua vitória, mas fazendo-se de generoso para com um adversário abatido —, julgue você mesmo; está dito na Escritura que se tiverdes fé, ainda que seja do tamanho de um grão de mostarda, disserdes a uma montanha que se preci­pite no mar, ela irá, sem nenhuma demora, assim que derdes a pri­meira ordem. Pois bem, Gregório Vassilievitch, se não sou crente e se você o é, a ponto de me invectivar sem cessar, tente você mesmo dizer a essa montanha que vá, não para o mar (porque está ele muito longe daqui), mas mesmo para aquele riacho infecto que corre por trás de nosso jardim, e verá logo que ela não se moverá e que não haverá mudança alguma, por mais que você grite. Ora, isto significa que você não crê da maneira que convém, Gregório Vassílievitch, e que, em compensação, você invectiva os outros. Suponhamos ainda que ninguém, em nossa época, não somente você, mas ninguém decididamente, desde as pessoas mais altamente colocadas até o derradeiro mujique, possa empurrar as montanhas para o mar, a não ser um homem no mundo inteiro, dois quando muito, ainda assim talvez aqueles que tratam de sua salvação, ocultamente, no deserto do Egito e que não podem ser encontrados. Se assim é, se todos os outros são incréus, será possível que estes, isto é, a população do mundo inteiro, com exceção dos dois anacoretas, sejam amaldiçoados pelo Senhor, e que não perdoe ele a nenhum, dada a sua misericórdia bem conhecida? De modo que espero que minhas dúvidas me serão perdoadas, quando derramar lágrimas de arrependimento.

— Espera! — guinchou Fiódor Pávlovitch, no cumulo do entusiasmo. — De modo que supões que há dois homens capazes de mover mon­tanhas? Ivã, nota esse detalhe, nota bem. O homem russo inteiro está aí!

— O senhor notou com bastante justeza que é esse um sinal da fé popular — disse Ivã Fiódorovitch, com um sorriso de aprovação.

— Estás de acordo? É então verdade, já que estás de acordo. É exato, Aliócha? Assemelha-se isso perfeitamente à fé russa?

— Não, Smierdiákov não tem de todo a fé russa — declarou Aliócha, num tom sério e firme.

— Não falo de sua fé, mas desse detalhe, desses dois anacoretas, nada mais do que esse detalhe: não é bem russo?

— Sim, esse detalhe é perfeitamente russo — aprovou Aliócha, sorrindo.

— Essa frase merece 1 ducado, burra, e eu to enviarei hoje mesmo, mas quanto ao resto tu mentes, tu divagas; fica sabendo, imbecil, que neste mundo todos nós não cremos somente por frivolidade, mas porque falta tempo; os negócios nos absorvem, os dias só têm 24 horas, não temos tempo não só de nos arrependermos, mas de dormir à vontade. Mas tu, tu abjuraste diante dos carrascos, quando não tinhas de pensar senão em tua fé e que era preciso justamente testemunhá-la! Isto constitui um pecado, meu caro, penso eu!

— Decerto, constitui um, mas um pecado venial, julgue você mesmo, Gregório Vassílievitch. Porque se tivesse eu então crido na verdade, como importa crer nela, teria sido verdadeiramente um pecado não sofrer o martírio e converter-me à maldita religião de Maomé. Mas não teria sofrido o martírio, porque me bastaria dizer àquela montanha: marcha e esmaga o carrasco, para que ela se pusesse logo em movimento e o esmagasse como a uma barata, e ter-me-ia retirado como se de nada se tratasse, glorificando e louvando a Deus. Mas, se naquele momento já o tivesse tentado e gritado à montanha: esmaga os carrascos, sem que ela me obedecesse, como então, diga-me, não teria eu duvidado naquela hora terrível de pavor mortal? Fora isto, já sei que não obterei inteiramente o reino dos céus (porque se a montanha não se moveu à minha voz é que minha fé não goza de muito crédito lá em cima e que a recompensa que me espera no outro mundo não é bastante elevada); por que, pois, ainda por cima, deixar-me-ia esfolar sem nenhum proveito? Porque, mesmo esfolado até a metade das costas, minhas palavras ou meus gritos não deslocariam aquela montanha. Num tal minuto, não somente a dúvida pode invadir-nos, mas o medo pode tirar-nos a razão e impedir-nos de decidir. Por conseqüência, sou tão culpado assim, se salvo pelo menos a pele, não vendo em parte alguma um proveito ou uma recompensa? Assim, confiante na miseri­córdia divina, espero ser inteiramente perdoado...

 

SABOREANDO O CONHAQUE

A discussão chegara ao fim, mas, coisa estranha, Fiódor Pávlovitch, tão alegre até então, ensombreceu-se. Serviu-se de mais um copo de conhaque, o que já era demais.

— Vão-se embora, jesuítas, fora daqui! — gritou ele para os cria­dos. — Vai-te, Smierdiákov, receberás hoje o ducado prometido. Não te desoles, Gregório, vai procurar Marfa, ela te consolará, cuidará de ti. Esses canalhas não nos deixam descansar — disse ele, de mau humor, quando os criados saíram, obedecendo-lhe às ordens. — Smier­diákov vem agora aqui todos os dias depois do jantar. És tu que o atrais, que o tratas com mimos? — perguntou ele a Ivã Fiódorovitch.

— Absolutamente — respondeu este. — Deu-lhe na veneta mos­trar respeito por mim, é um lacaio, um pulha. Fará parte da vanguarda, quando o momento chegar.

— Da vanguarda?

— Haverá outros e melhores, mas haverá muitos como ele.

— E quando chegará o momento?

— O foguete arderá, mas talvez não até o fim. No momento, não gosta o povo de ouvir esses queima-panelas.

— Com efeito, aquela burra de Balaão pensa que não acaba mais, e Deus sabe até onde isso pode ir.

— Ele armazena idéias — observou Ivã, sorrindo.

— Vês tu? Sei que ele não me pode tolerar, nem a mim nem aos outros, e a ti em primeiro lugar, se bem que creias que "lhe deu na veneta mostrar respeito por ti". E quanto a Aliócha, ele despreza Aliócha. Mas não é ladrão, nem falador; não sai espalhando coisas; faz excelentes pastéis de peixe... Ah! Afinal, que o diabo o leve! Vale a pena falar dele?

— Decerto que não.

— E, quanto ao que ele pensa lá consigo, é preciso em geral chicotear o mujique russo. Sempre foi minha opinião. Nosso mujique é um velhaco, indigno de compaixão, e fazem bem em bater-lhe por vezes ainda agora. É a bétula que faz a força da terra russa, e ela perecerá com as florestas. Sou a favor das pessoas de espírito. Deixa­mos de bater nos mujiques, por liberalismo, mas eles continuam a chicotear a si mesmos. E fazem bem. "Com a medida com que me dirdes, vos medirão a vós. " É bem isto, não é?... Meu caro, se soubesses como odeio a Rússia... isto é, não a Rússia, mas todos os seus vícios... e talvez a Rússia. Tout cela, c'est de Ia cochonnerie. Sabes o que amo? Amo o espírito.

— O senhor serviu-se outro copo. Já bebeu bastante.

— Espera, tomarei ainda dois e acabou-se. Mas interrompeste-me. De passagem por Mókroie, conversei um dia com um velho, que me disse: "Gostamos, mais do que tudo, de condenar as moças a açoites, e encarregamos os rapazes de executar a sentença. Em seguida, o rapaz toma como noiva aquela a quem chicoteou, de modo que se tornou isso um costume entre nós para as moças". Que sadistas, hein? Digam o que disserem, é engraçado. Se fôssemos ver isso, hein? Aliócha, ficas corado? Não te envergonhes, meu filho. É pena que não tenhas ficado hoje para jantar com o padre abade. Teria falado aos monges a respeito das moças de Mókroie. Aliócha, não me queiras mal por ter ofendido o padre abade. A cólera arrebata-me. Porque, se há um Deus, se ele existe, evidentemente sou culpado então, e responderei por isso, mas, se ele não existe, há necessidade ainda desses teus padres? Não seria demais se lhes cortassem a cabeça, porque eles impedem o progresso. Crês tu, Ivã, que isso me atormenta? Não, tu não o crês, vejo-o nos teus olhos. Crês que não sou senão um palhaço, como se pretende. Aliócha, crês tu nisso, crês tu?

— Não, não o creio.

— E eu estou persuadido de que falas sinceramente e que vês com justeza. Não és como Ivã. Ivã é presunçoso... No entanto, gostaria de acabar com o teu mosteiro. Seria preciso suprimir duma vez essa engenhoca mística em toda a terra russa, para converter todos os imbecis à razão. Quanto dinheiro e quanto ouro afluiriam para o Tesouro!

— Mas por que suprimir os mosteiros? — perguntou Ivã.

— A fim de que a verdade resplandeça mais depressa.

— Quando essa verdade resplandecer, primeiramente despojá-los-ão, depois... suprimi-los-ão.

— Ora! Mas talvez tenhas razão. Que asno sou! — exclamou Fiódor Pávlovitch, coçando a testa. — Paz ao teu mosteiro, Aliócha, se é assim. Nós, pessoas de espírito, ficamos no quente e bebemos conhaque. É sem dúvida a vontade expressa de Deus. Ivã, dize-me, há um Deus, sim ou não? Espera, responda-me seriamente! Por que ris ainda?

— Rio de sua observação espirituosa a respeito da fé que revelou Smierdiákov a respeito dos dois eremitas capazes de mover montanhas.

— É a mesma coisa?

— Totalmente.

— Pois bem, por conseqüência, sou também um homem russo, com a mesma característica russa, e tu, filósofo, podes ser apanhado com uma característica do mesmo gênero. Queres que te apanhe? Apostemos que será amanhã. Mas dize-me, no entanto, há um Deus ou não? Somente é preciso que me fales seriamente.

— Não, não há Deus.

— Aliócha, Deus existe?

— Sim, existe.

— Ivã, há imortalidade? Por pequena que seja, por mais modesta?

— Não, não há.

— Nenhuma?

— Nenhuma.

— Quer dizer, um zero absoluto, ou uma parcela? Não haveria uma parcela?

— Um zero absoluto.

— Aliócha, há imortalidade?

— Sim.

— Deus e a imortalidade juntos?

— Sim. É em Deus que repousa a imortalidade.

— Hum! Deve ser Ivã quem tem razão. Senhor, quando se pensa quanto de fé e de energia essa quimera tem custado ao homem, em pura perda, desde milhares de anos! Quem, pois, zomba assim da humanidade? Ivã, pela derradeira vez e categoricamente: há um Deus, sim ou não?

— Não, pela derradeira vez.

— Quem, pois, zomba do mundo, Ivã?

— O diabo, provavelmente — escarneceu Ivã.

— O diabo existe?

— Não, não existe.

— Tanto pior. Não sei o que teria eu feito ao primeiro fanático que inventou Deus. Enforcá-lo seria insuficiente!

— Sem essa invenção, não haveria civilização.

— Deveras? Sem Deus?

— Sim. E não haveria conhaque tampouco. Vai ser preciso reti­rá-lo.

— Espera, espera! Ainda um copito! Ofendi Aliócha. Não me queres mal, não é, meu queridinho Alieksiéitchik?

— Não, não lhe quero mal. Conheço seus pensamentos. Seu coração vale mais que sua cabeça.

— Meu coração vale mais que minha cabeça? De quem são essas palavras? Ivã, gostas de Aliócha?

— Sim, amo-o.

— Ama-o (Fiódor Pávlovitch estava meio embriagado). Escuta, Alió­cha, fui grosseiro há pouco com teu stáriets, mas estava superexcitado. É um homem inteligente, que achas, Ivã?

— Poderia ser.

— Decerto, il y a du Piron là-dedans[12] É um jesuíta russo. A neces­sidade de representar a comédia, de usar uma máscara de santidade, indigna-o interiormente, porque é um caráter nobre.

— Mas ele crê em Deus.

— Nem 1 copeque. Não o sabias? Ele mesmo fala disso a todo mundo, ou antes, a todas as pessoas inteligentes que vão vê-lo. Decla­rou sem rebuços ao Governador Schultz: "Creio, mas ignoro em quê".

— Deveras?

— É textual. Mas estimo-o. Há nele alguma coisa de Mefistófeles, ou melhor do Um Herói de Nosso Tempo... Arbiénin, é este mesmo seu nome?.., Vês tu? É um sensual, e a tal ponto que não estaria tranqüilo, mesmo agora, se minha mulher ou minha filha fossem con­fessar-se com ele. Quando começa ele a contar, se tu soubesses... Há três anos, convidou-nos a tomar chá, com licores (porque as damas enviam-lhe licores); pôs-se a descrever sua vida de outrora, de modo que a gente só faltava morrer de rir... e como teve de avir-se para curar uma senhora... "Se não tivesse dor nas pernas", disse ele, "dançaria para vocês certa dança. " Hein? Que sujeito! "Eu também levei vida alegre", acrescentou ele. Extorquiu 60 000 rublos ao negociante Diemídov.

— Como? Roubando-o?

— O outro havia-se confiado a ele, acreditando-o um homem de honra. "Guarde-os para mim, amanha vão passar minha casa em revista. " O santo homem guardou tudo. "Tu os deste para a igreja", disse ele. Disse-lhe que era ele um tratante. "Não", replicou ele, "mas tenho idéias largas... " De resto, é de um outro que se trata. Con­fundi... sem dar por isso. Ainda um copinho e pronto. Leva a gar­rafa, Ivã. Por que não me detiveste nas minhas mentiras?

— Sabia que o senhor mesmo se deteria.

— É falso, somente por maldade não disseste nada. No fundo, tu me desprezas. Vieste à minha casa para mostrar teu desprezo.

— Vou-me embora; o conhaque começa a subir-lhe à cabeça.

— Pedi-te insistentemente que fosses passar um ou dois dias em Tchermachniá, mas não fizeste caso.

— Partirei amanhã, já que faz tanta questão.

— Não há perigo. Queres espionar-me; tal é teu fito, maldito, e o que te retém aqui.

O velho não se acalmava. Estava naquele ponto em que certos bebedos, até então pacíficos, fazem de repente questão de se mostrarem malvados.

— Que tens para me olhares assim? Teus olhos me dizem: "Vil beberrão". Revelam desconfiança e desprezo. És um velhaco astuto. O olhar de Aliócha resplandece. Ele não me despreza. Alieksiéi, cuida de não amar Ivã.

— Não se zangue contra meu irmão! Basta de ofendê-lo — proferiu Aliócha, num tom firme.

— Pois bem, seja! Ah! que dor de cabeça! Ivã, leva o conhaque, pela terceira vez to digo. — Pôs-se a pensar e mostrou de súbito um sorriso astuto. — Não te zangues, Ivã, contra um pobre velho. Não gostas de mim, eu o sei, mas não te zangues. Não há razão para amar-me. Partirás para Tchermachniá, irei encontrar-te lá e te levarei um presente. Mostrar-te-ei lá uma mocinha, atrás de quem ando há muito tempo. Anda ainda descalça, mas não tenhas medo das moças descalças, não se deve desprezá-las, elas são umas pérolas!...

E estalou um beijo na mão.

— Para mim — animou-se subitamente, como que desembriagado por um instante, abordando seu tema favorito —, para mim... Ah! meus filhos, meus leitõezinhos... para mim... jamais encontrei uma mulher feia, eis minha máxima! Compreendem? Não, não podem. Não é sangue, é leite que corre nas veias de vocês, ainda não quebraram a casca completamente! Na minha opinião, pode-se encontrar em toda mulher algo de muito interessante, que lhe é particular, somente é preciso saber descobri-lo, eis o quid! É um talento! Para mim nunca houve feionas. Basta o sexo e é já muito... Mas isto está fora do alcance de vocês! Até mesmo entre as solteironas velhas, encontram-se por vezes encantos tais, que a gente pergunta a si mesmo como é que imbecis puderam deixá-las envelhecer sem as notar! É preciso em primeiro lugar surpreender uma dessas que andam descalças, é assim que se deve fazer. Não o sabias? É preciso que ela fique maravilhada e confusa por ver um bárin[13] amoroso do focinhozinho dela. Por sorte, há e sempre haverá senhores para tudo ousar e criadas para obede­cer-lhes. Basta isto para felicidade da existência! A propósito, Aliócha, sempre causei espanto à tua defunta mãe, mas duma outra maneira. Por vezes, depois de havê-la privado de carícias, expandia-me diante dela num momento dado, caía a seus joelhos, beijando-lhe os pés, e sempre lhe provocava uma risadinha convulsiva, aguda mas sem estrépito. Ela não ria de outra forma. Sabia que sua crise começava sempre assim, que no dia seguinte ela gritaria como uma possessa, e que aquela risadinha só exprimia a aparência de um entusiasmo; mas era sempre isto! A gente sempre encontra, quando sabe procurar. Um dia um tal Bieliávski, um rico bonitão, que lhe fazia a corte e freqüentava nossa casa, esbofeteou-me na presença dela. Mansa como um carneiro, pensei que ela ia bater-me: "Tu foste batido, ele te esbofeteou!", dizia ela. 'Tu me vendias a ele... Como ousou ele, na minha presença? Trata de não me aparecer, corre a desafiá-lo a um duelo!... " Conduzi-a então ao mosteiro, onde rezaram sobre ela para acalmá-la, mas, juro-te perante Deus, Aliócha, jamais ofendi a minha pequena endemoniada. Uma vez somente, foi no primeiro ano de nosso casamento, rezava ela demais, observava estritamente as festas da Virgem, e recusava-me a entrada de seu quarto. "Vou curá-la de seu misticismo!", pensava eu. "Vês", disse, "este ícone que tens como milagroso? Tiro-o, vou cuspir em cima dele na tua presença e nenhum castigo sofrerei!" "Meu Deus, ela vai Tratar-me", digo a mim mesmo. Ela, porém, teve apenas um sobressalto, juntou as mãos, ocultou seu rosto, foi tomada dum tremor e caiu sobre o soalho... Aliócha! Aliócha! Que tens? Que tens?

O velho levantou-se, aterrorizado. Desde que se começou a falar de sua mãe, o rosto de Aliócha alterava-se pouco a pouco; corou, seus olhos cintilaram, seu lábios tremeram... O velho bêbedo nada nota­ra, até o momento em que Aliócha teve uma crise estranha, reprodu­zindo, traço por traço, o que acabava ele de contar a respeito da "endemoniada". De- súbito, levantou-se da mesa, exatamente como sua mãe, de acordo com a narrativa, juntou as mãos, ocultou o rosto, deixou-se cair sobre sua cadeira, todo sacudido por uma crise de his­teria, acompanhada de lágrimas silenciosas.

— Ivã! Ivã! Água, depressa! Completamente como a mãe dele. Tira água com a colher grande e asperge-o, como eu fazia com ela. É por causa de sua mãe, por causa de sua mãe... — murmurou ele a Ivã.

— Sua mãe era também a minha, suponho, que pensa o senhor? — não pôde Ivã impedir-se de dizer, com um desprezo cheio de cólera. Seu olhar faiscante fez o velho estremecer. Coisa estranha, por um instante, o velho pareceu perder de vista que a mãe de Aliócha era também a de Ivã...

— Como, tua mãe? — murmurou, sem compreender. — Por que dizes isto? A propósito de que mãe? Será que ela... Ah! diabo! é também a tua! Pois bem, onde tinha eu a cabeça? Desculpa-me, mas eu acreditava, Ivã... Eh! eh! eh! — Parou, com um sorriso idiota de bêbedo. No mesmo instante, um barulho reboou no vestíbulo, gritos furiosos se elevaram, a porta abriu-se e Dimítri Fiódorovitch irrompeu na sala. O velho apavorado precipitou-se para Ivã.

— Ele vem matar-me! Não me entregues! — exclamou ele, agarrado às abas do paletó de Ivã.

 

OS SENSUAIS

Gregório e Smierdiákov acorriam atrás de Dimítri. No vestíbulo, ti­nham lutado com ele, para impedi-lo de entrar (de conformidade com as instruções dadas por Fiódor Pávlovitch alguns dias antes). Aprovei­tando-se do fato de ter Dimítri Fiódorovitch, ao penetrar na sala, parado um minuto para orientar-se, deu Gregório volta à mesa, fechou os dois batentes da porta do fundo, que dava para os aposentos inte­riores, e conservou-se diante dessa porta, de braços estendidos em cruz, pronto a defender-lhe a entrada até o derradeiro suspiro. Vendo isso, Dimítri rugiu mais do que gritou e precipitou-se contra Gre­gório.

— Então ela está aí! Foi lá que a esconderam! Para trás, patife!

Quis afastar Gregório, mas este o repeliu. Louco de raiva, Dimítri er­gueu a mão e golpeou Gregório com toda a sua força. O velho caiu como que ceifado e Dimítri, pulando por cima de seu corpo, forçou a porta. Smierdiákov, pálido e tremendo, ficara na outra extremidade da mesa, apertado contra Fiódor Pávlovitch.

— Ela está aqui — gritou Dimítri Fiódorovitch. — Acabo de vê-la dirigir-se para esta casa, mas não pude alcançá-la. Onde está ela? Onde está ela?

Aquele grito de "ela está aqui" causou uma impressão inexplicável em Fiódor Pávlovitch; todo o seu pavor desapareceu.

— Detenham-no, de tenham-no! — guinchou ele, precipitando-se no encalço de Dimítrí. Enquanto isso, Gregório havia-se levantado, mas ainda estava zonzo. Ivã Fiódorovitch e Aliócha correram para deter seu pai. No quarto vizinho, ouviu-se o barulho de um objeto que caía e se quebrava. Era um grande vaso de vidro (de pouco valor), sobre um pedestal de mármore em que Dimítri tropeçara ao passar.

— Socorro! — urrou o velho.

Ivã e Aliócha alcançaram-no e arrastaram-no à força para a sala de jantar.

— Por que o persegue? Ele seria capaz de matá-lo! — exclamou com cólera Ivã Fiódorovitch.

— Vânia, Aliócha! Ela está aqui, Grúchenhka; ele mesmo disse que a viu entrar.

Fiódor Pávlovitch perdia o fôlego. Não esperava Grúchenhka na­quela ocasião e a notícia imprevista de sua presença perturbava sua razão. Estava todo tremente, como que perdera o espírito.

— O senhor mesmo viu que ela não veio — gritou Ivã.

— Mas talvez pela outra entrada?

— Está fechada essa entrada, e o senhor tem a chave... Dimítri tornou a aparecer na sala de jantar. Naturalmente, havia encontrado aquela entrada fechada e era mesmo Fiódor Pávlovitch que tinha a chave dela em seu bolso. Todas as janelas estavam igualmente fechadas; Grúchenhka não pudera, pois, entrar nem sair por nenhuma via de acesso.

— Detenham-no! — vociferou Fiódor Pávlovitch, assim que avistou Dimítri. — Roubou dinheiro no meu quarto de dormir! — Arrancando-se dos braços de Ivã, lançou-se de novo contra Dimítri. Este ergueu as mãos e, agarrando o velho pelos dois únicos tufos de cabelo que lhe restavam nas têmporas, fê-lo dar uma piruêta e atirou-o violentamente no soalho. Deu-lhe ainda dois ou três golpes com o tacão no rosto, quando ele estava caído. O velho lançou um gemido agudo. Ivã, embora mais fraco que Dimítri, agarrou-o pelo braço e afastou-o do velho. Aliócha, ajudando-o com todas as suas forças, agarrara seu irmão pela frente.

— Louco, tu o mataste! — gritou Ivã.

— Tem o que merece! — exclamou Dimítri, ofegante. — Se não o matei; voltarei. Vocês não o resguardarão.

— Dimítri, fora daqui agora mesmo! — gritou imperiosamente Aliócha.

— Alieksiéi! Só tenho confiança em ti; dize-me se Grúchenhka estava aqui há pouco ou não. Eu mesmo a vi costear a sebe e desa­parecer nesta direção. Chamei-a, ela fugiu...

— Juro-te que ela não estava aqui e que ninguém a esperava!

— Mas eu a vi... portanto ela... Saberei agora mesmo onde ela está... Adeus, Alieksiéi! Nem uma palavra a Esopo a respeito do dinheiro, mas vai imediatamente à casa de Catarina Ivânovna e dize-lhe: "Ele me ordenou que a saudasse, precisamente que a saudasse e tornasse a saudar!" Descreve-lhe a cena.

Enquanto isso, Ivã e Gregório tinham levantado e instalado o velho numa poltrona. Seu rosto estava ensangüentado, mas não perdera os sentidos. Parecia-lhe sempre que Grúchenhka se encontrava em alguma parte da casa. Dimítri lançou-lhe um olhar de ódio ao retirar-se.

— Não me arrependo de ter derramado teu sangue! — exclamou ele. — Toma cuidado, velho, vigia teu sonho, porque eu também tenho um. Eu mesmo te maldigo e te renego para sempre...

Lançou-se para fora da sala.

— Ela está aqui, ela está certamente aqui — estertorou o velho com uma voz mal perceptível, fazendo sinal a Smierdiátov.

— Não, ela não está aqui, velho insensato — gritou com raiva Ivã. — Bem! ei-lo que desmaia! Água, um guardanapo! Apressa-te, Smierdiákov!

Smierdiákov correu a buscar água. Depois que lhe tiraram a roupa, levaram o velho para o quarto de dormir e deitaram-no na cama. Cercaram-lhe a cabeça com um guardanapo molhado. Enfraquecido pelo conhaque, pelas emoções violentas e pelos golpes, fechou ele os olhos e adormeceu assim que pousou a cabeça no travesseiro. Ivã Fiódorovitch e Aliócha voltaram ao salão. Smierdiákov retirou os cacos do vaso partido. Gregório mantinha-se perto da mesa, sombrio, de cabeça baixa.

— Devias também molhar tua cabeça e deitar-te — disse-lhe Alió­cha. — Nós cuidaremos dele; meu irmão golpeou-te violentamente a cabeça.

— Ele o ousou! — proferiu Gregório, com ar sombrio.

— Ousou também contra seu pai, não somente contra ti! — obser­vou Ivã, com os lábios contraídos.

— Lavei-o pequenino na gamela e ele ousou! — repetiu Gregório.

— Com os diabos! Se eu não o tivesse retido, tê-lo-ia matado. Pouco faltou a Esopo para morrer — murmurou Ivã a Aliócha.

— Que Deus o preserve! — exclamou Aliócha.

— Por quê? — continuou Ivã, no mesmo tom, com o rosto numa contração de ódio. — Que os répteis se devorem entre si, tal é seu destino!

Aliócha estremeceu.

— Bem entendido, não deixarei que se dê um assassinato, como fiz agora. Fica aqui, Aliócha, vou andar no pátio, começo a ter dor de cabeça.

Aliócha foi para o quarto de dormir e ficou uma hora à cabeceira de seu pai, por trás do biombo. De súbito, o velho abriu os olhos e olhou-o muito tempo em silêncio, esforçando-se visivelmente por coordenar suas lembranças. Uma agitação extraordinária pintou-se em seu rosto.

— Aliócha — cochichou ele, apreensivo —, onde está Ivã?

— No pátio; está com dor de cabeça. De guarda a nós.

— Dá-me o espelhinho que está ali.

Aliócha entregou-lhe um espelhinho oval, que se achava sobre a cômoda. O velho mirou-se nele. O nariz estava bastante inchado e, na testa, acima da sobrancelha esquerda, via-se uma equimose roxa.

— Que diz Ivã? Aliócha, meu querido, meu único filho, tenho medo de Ivã; tenho mais medo dele do que do outro. Só de ti ê que não tenho medo.

— Não tenha medo tampouco de Ivã; ele se zanga, mas o defen­derá.

— Aliócha, e o outro? Correu para a casa de Grúchenhka? Meu anjo, dize-me a verdade: estava Grúchenhka ainda há pouco aqui ou não?

— Ninguém a viu! É uma ilusão, ela não estava ali!

— Mítia quer casar com ela, sabes?

— Ela não quererá. -

— Ela não quererá, ela não quererá a preço nenhum — exclamou o velho, fremente de alegria, como se nada lhe pudessem dizer de mais agradável no momento. No seu entusiasmo, agarrou a mão de Aliócha e a apertou contra seu coração. Lágrimas mesmo brilharam em seus olhos. — Toma essa imagem da Virgem de que falei ainda há pouco, leva-a contigo. E permito que voltes ao mosteiro... Estava brincando, não te zangues. A cabeça me dói, Aliócha... tranqüiliza-me, sê meu bom anjo, dize a verdade!

— Sempre a mesma idéia, se ela veio ou não — disse tristemente Aliócha.

— Não, não, acredito em ti. Mas vai à casa de Grúchenhka ou procura vê-la; pergunta-lhe o mais breve possível — penetra seu se­gredo — quem ela prefere, ele ou eu? Podes ou não?

— Se a encontrar, perguntar-lhe-ei — murmurou Aliócha, confuso.

— Não, ela não to dirá — interrompeu o velho —, é uma criança terrível. Começará por beijar-te, dizendo que é a ti que ela quer. É astuta e descarada, não, não podes ir à casa dela.

— Com efeito, meu pai, não estaria absolutamente bem.

— Aonde te enviava ele, ainda há pouco, quando gritou: "Vai", ao retirar-se?

— À casa de Catarina Ivânovna.

— Para lhe pedir dinheiro?

— Não, para isso não.

— Ele não tem dinheiro, nem 1 copeque. Escuta, Aliócha, refletirei durante a noite. Vai-te... talvez a encontres. Vem ver-me amanhã de manhã sem falta. Tenho alguma coisa para dizer-te. Virás?

— Virei.

— Terás o ar de vir saber notícias de mim. Não digas a ninguém que te chamei. Nem uma palavra a Ivã.

— Está entendido.

— Adeus, meu anjo. Tomaste minha defesa, ainda há pouco, não o esquecerei nunca. Dir-te-ei uma palavra amanhã... mas isto exige reflexão.

— Como se sente agora?

— Amanhã estarei de pé, completamente restabelecido, de perfeita saúde!...

No pátio, Aliócha encontrou Ivã sentado em um banco, perto do portão; anotava qualquer coisa a lápis no seu caderno. Aliócha infor­mou-o de que o velho recuperara os sentidos e deixava que ele passasse a noite no mosteiro.

— Aliócha, sentiria grande prazer em ver-te amanhã de manhã — disse Ivã, num tom amável, de todo inesperado para Aliócha.

— Estarei amanhã em casa das senhoras Khokhlakovi, talvez tam­bém em casa de Catarina Ivânovna, se não a encontrar em casa agora.

— Vais lá mesmo? É para "saudá-la, saudá-la" — pilheriou Ivã. Aliócha perturbou-se.

— Penso ter compreendido as exclamações de Dimítri e um pouco o que se passou. Ele pediu que fosse vê-la para dizer-lhe que ele... pois bem... numa palavra, para despedir-se.

— Meu irmão, como terminará esse pesadelo para Dimítri e para nosso pai? — exclamou Aliócha.

— É difícil adivinhá-lo. Talvez dê tudo em nada. Aquela mulher é um monstro. Em todo caso, é preciso que o velho fique em casa e que Dimítri aqui não entre.

— Meu irmão, permite-me ainda uma pergunta. Pode dar-se que cada qual tenha o direito de julgar seus semelhantes e de decidir quem é digno de viver e quem não o é?

— Que vem fazer aqui a apreciação dos méritos? O coração hu­mano não se baseia sobre os méritos para resolver essa questão, mas sobre outros motivos bem mais naturais. Quanto ao direito, quem, pois, não tem o direito de desejar?

— Não a morte de outrem.

— E por que não a morte? De que serve mentir a si mesmo, quando todos vivem assim e sem dúvida não podem viver de outro modo? Pensas no que disse ainda há pouco, que "os dois répteis se devoram um ao outro"? Crês-me capaz, como Dimítri, de derramar o sangue de Esopo, de matá-lo, enfim?

— Que dizes, Ivã? Jamais me veio tal idéia! E não creio que Dimítri...

— Obrigado — disse Ivã, sorrindo. — Fica sabendo que o defenderei sempre. Mas, no caso particular, deixo o campo livre a meus desejos. Até amanhã. Não me julgues, não me olhes como a um celerado — acrescentou.

Apertaram-se as mãos mais cordialmente do que jamais o fizeram. Aliócha compreendeu que seu irmão se aproximava dele com um certo fim, intencionalmente.

 

OS DOIS JUNTOS

Aliócha saiu da casa de seu pai mais abatido e mais acabrunhado do que à sua chegada. Suas idéias eram fragmentárias, confusas; ele próprio se dava conta de que temia reuni-las, tirar uma conclusão geral das contradições dolorosas de que se compusera aquele dia. Experi­mentava um sentimento vizinho do desespero, o que jamais lhe aconte­cera. Uma questão dominava as outras, fatal e insolúvel: que aconteceria a seu pai e Dimítri em presença daquela mulher terrível? Vira-os engalfinhados. O único verdadeiramente infeliz era seu irmão Dimítri; a fatalidade o tocaiava. Outros encontravam-se misturados a tudo isso e talvez mais do que parecia antes a Aliócha. Era enig­mático. Ivã dera os primeiros passos para ele, esperados desde muito tempo, e agora sentia ele certa apreensão. Outra coisa estranha: en­quanto antes ia à casa de Catarina Ivânovna numa extraordinária perturbação, nenhuma sentia agora; apressava-se mesmo, como se es­perasse dela uma indicação. No entanto, o recado era ainda mais penoso de dar: a questão dos 3 000 rublos estava liquidada e Dimítri, sentindo-se definitivamente desonrado, cairia cada vez mais baixo. Além disso, devia Aliócha narrar a Catarina Ivânovna a cena que acabava de desenrolar-se em casa de seu pai.

Eram 7 horas e a noite estava a cair, quando Aliócha chegou à casa de Catarina Ivânovna, que morava num prédio vasto e confortável da Rua Grande. Sabia que ela vivia com duas tias. Uma, a tia de sua irmã Agáfia Ivânovna, era aquela pessoa silenciosa que tomara conta dela depois que saíra do internato. A outra era uma senhora de Moscou, bastante digna, mas sem fortuna. Sabia-se que as duas senhoras se submetiam em tudo a Catarina Ivânovna e só permaneciam em sua companhia para manter o decoro. Catarina Ivânovna só dependia de sua benfeitora, a generala, cuja saúde a retinha em Moscou e a quem estava ela obrigada a dar, duas vezes por semana, notícias suas por­menorizadas.

Quando Aliócha, no vestíbulo, fez-se anunciar pela arrumadeira que lhe abrira a porta, sabia-se já no salão de sua chegada, evidente­mente (talvez o tivessem visto pela janela); o fato é que ele ouviu rumor, passos precipitados ressoaram com um frufru de vestidos, duas ou três mulheres teriam saído correndo. Aliócha achou estranho que sua chegada produzisse tal agitação. Fizeram-no entrar logo para o saião, uma grande peça mobiliada com elegância, que nada tinha de provinciana, Muitos canapés, divas, poltronas, mesas e centros; quadros nas paredes, vasos e lâminas, um molho de flores, havendo mesmo um aquário, perto da janela. O crepúsculo ensombrecia a sala. Aliócha avistou em cima dum canapé uma mantilha de seda abando­nada, e sobre a mesa, em frente, duas xícaras onde restava chocolate, biscoitos, uma taça de cristal com passas de uvas, outra com bombons. Vendo aquela refeição, adivinhou Aliócha que havia convidados e fran­ziu o cenho. Mas logo o reposteiro se ergueu e Catarina Ivânovna entrou a passos rápidos, estendendo-lhe as duas mãos com alegre sorriso. Ao mesmo tempo, uma criada trouxe e colocou em cima da mesa duas velas acesas.

— Louvado seja Deus, ei-lo afinal! Rezei a Deus o dia inteiro para que você viesse! Sente-se.

A beleza de Catarina Ivânovna já havia impressionado Aliócha três semanas antes, quando Dimítri o levara à casa dela para apresentá-lo, porque ela desejava muito conhecê-lo. Não haviam conversado por ocasião daquela entrevista. Pensando que Aliócha estava muito aca­nhado, Catarina Ivânovna quis pô-lo à vontade e conversou todo o tempo com Dimítri. Aliócha mantivera-se em silêncio, mas observara muitas coisas. Impressionaram-no o porte nobre, a desenvoltura altiva, a segurança da orgulhosa moça. Seus grandes olhos negros e brilhantes pareceram-lhe em perfeita harmonia com a palidez mate de seu rosto oval. Mas seus olhos, seus lábios encantadores, por mais capazes que fossem de excitar o amor de seu irmão, não poderiam talvez retê-lo por muito tempo. Foi quase franco com Dimítri, quando este, após a visita, insistiu, rogando-lhe que não ocultasse a impressão que lhe causara sua noiva.

— Serás feliz com ela, mas talvez não uma felicidade calma.

— Meu irmão, mulheres como essa permanecem iguais a si mesmas, não se resignam diante do destino. De modo que pensas que não a amarei sempre?

— Não, tu a amarás sempre, é possível, mas não serás talvez sempre feliz com ela...

Aliócha exprimira sua opinião corando aborrecido por ter, para ceder aos rogos de seu irmão, formulado idéias tão "tolas", porque sua opinião lhe parecera a ele próprio bastante tola, logo que fora emitida. Tivera vergonha de haver-se exprimido tão categoricamente a respeito de uma mulher. Sua surpresa foi tanto maior sentindo, ao primeiro olhar lançado agora sobre Catarina Ivânovna, que se tinha talvez enganado então no seu julgamento. Desta vez o rosto da moça irradiava uma bondade ingênua e uma sinceridade ardente. Da "altivez e orgulho" de então, que haviam impressionado tanto Aliócha, não restava senão uma nobre energia, uma confiança serena e forte em si mesma. Ao primeiro olhar, às primeiras palavras, compreendeu Aliócha que o trágico de sua situação a respeito do homem a quem ela tanto amava não lhe escapava e que, talvez, já soubesse de tudo. E no entanto, malgrado isso, seu rosto radiante exprimia a fé no futuro. Aliócha sentiu-se culpado perante ela, vencido e cativo ao mes­mo tempo. Além disso, observou, às suas primeiras palavras, que se encontrava ela numa violenta agitação, talvez insólita nela, e que con­finava mesmo com a exaltação.

— Eu o esperava, porque é só de você, agora, que posso saber toda a verdade.

— Vim... — gaguejou Aliócha — eu... ele me enviou.

— Ah! ele o enviou? Está bem. Pressentia isso. Agora, sei tudo, tudo — disse Catarina Ivânovna, com os olhos cintilantes. — Espere, Alieksiéi Fiódorovitch, vou dizer-lhe por que desejava tanto vê-lo. Sei muito mais do que você mesmo; não são notícias que reclamo de você. Quero saber de sua derradeira impressão sobre Dimítri, quero que você me conte o mais francamente, o mais grosseiramente que puder (oh! não se acanhe!), o que pensa dele agora e de sua situação depois da entrevista de vocês, hoje. Valerá isto talvez melhor que uma expli­cação entre nós dois, uma vez que não quer ele mais vir ver-me. Compreendeu o que espero de você? Agora, por qual motivo o enviou? Fale francamente, não mastigue as palavras...

— Encarregou-me de... saudá-la, de dizer-lhe que não viria mais e de saudá-la...

— Saudar? Disse assim, foi assim que se exprimiu?

— Sim.

— Talvez se haja enganado, por acaso, e não empregou a palavra devida.

— Não, insistiu precisamente para que eu lhe repetisse essa palavra "saudar". Recomendou-ma três vezes.

O sangue subiu ao rosto de Catarina Ivânovna.

— Ajude-me, Alieksiéi Fiódorovitch, tenho agora necessidade de você. Eis o que penso, diga-me se tenho ou não razão: se ele o tivesse encarregado de saudar-me, ligeiramente, sem insistir na transmissão da palavra, sem sublinhá-la, tudo estaria acabado. Mas se se apoiou parti­cularmente neste termo, se lhe ordenou expressamente que me trans­mitisse essa "saudação", é que estava superexcitado, fora de si talvez. A decisão que tomou terá espantado a ele próprio! Não me deixou com segurança, precipitou-se ladeira abaixo. O sublinhamento dessa palavra tem o sentido de uma bravata...

— É isto, é isto — afirmou Aliócha. — Tenho a mesma impressão.

— Neste caso, nem tudo está perdido! Está ele apenas desesperado, posso ainda salvá-lo. Não lhe falou ele de dinheiro, de 3 000 rublos?

— Não somente me falou deles, mas é talvez isso que mais o acabrunha. Disse que nada mais lhe importa agora, agora que perdeu sua honra — respondeu Aliócha, que se sentia renascer para a espe­rança e entrevia a possibilidade de salvar seu irmão. — Mas sabe... de que dinheiro se trata? — acrescentou ele, e de repente calou-se.

— Desde muito tempo que o sei e com certeza. Telegrafei para Moscou, onde nada tinham recebido. Ele não remeteu o dinheiro, mas eu me calei. Soube na última semana como estava ele necessitado... Só tenho um fito em tudo isto: é que ele saiba a quem se dirigir e onde encontrar a amizade mais fiel. Mas não quer ele crer que seu mais fiel amigo sou eu; só considera a mulher, em mim. Atormentei-me a semana inteira: como fazer para que ele não core diante de mim por ter gasto esses 3 000 rublos? Que se envergonhe ele diante de todos e se envergonhe de si mesmo, mas não diante de mim! Como ignora ele até agora tudo quanto posso suportar por ele? Como pode ele me desconhecer, depois de tudo quanto se passou? Quero salvá-lo para sempre. Que deixe de ver em mim sua noiva! E teme pela sua honra para comigo? Mas não receia abrir-se a você, Alieksiéi Fió-dorovitch. Por que não mereci ainda sua confiança?

Pronunciou estas derradeiras palavras com os olhos cheios de lá­grimas.

— Devo relatar-lhe — disse Aliócha, com voz trêmula — a cena que acaba de ter ele com seu pai. — E contou tudo: como Dimítri o havia mandado pedir dinheiro, depois irrompera na casa, batera em Fiódor Pávlovitch e, na ocasião, recomendara com insistência a Aliócha que viesse "saudá-la". — Ele foi à casa daquela mulher... — acres­centou Aliócha, em voz baixa.

— Pensa que não suportarei sua ligação com aquela mulher? Ele também o pensa, mas não casará com ela. — Soltou uma risadinha nervosa. — Será que um Karamázov pode queimar-se com um ardor eterno? É um entusiasmo passageiro, não é amor. Ele não casará com ela, porque ela não o quererá — disse, com o mesmo riso estranho.

— Ele se casará talvez com ela — disse tristemente Aliócha, de olhos baixos.

— Ele não se casará com ela, afirmo-lhe! Aquela moça é um anjo! Sabia-o? Sabia-o? — exclamou Catarina Ivânovna, com um calor extraordinário. — Ê a mais fantástica das criaturas. É sedutora, decerto mas tem um caráter nobre e bom. Por que me olha desse jeito, Aliek­siéi Fiódorovitch? Talvez minhas palavras lhe causem espanto, talvez não me acredite. Agrafiena Alieksándrovna, meu anjo — exclamou ela, de súbito, com os olhos voltados para a peça vizinha —, venha cá, este gentil rapaz está ao corrente de todos os nossos negócios, apareça, pois!

— Só esperava seu chamado — disse uma voz doce e até mesmo melíflua.

O resposteiro ergueu-se e... Grúchenhka em pessoa, risonha, alegre, caminhou para a mesa. Aliócha sentiu uma comoção. Os olhos fixos nela, não podia desviá-los de seu rosto. Ei-la, aquela mulher temível, "aquele monstro", como a chamara seu irmão Ivã meia hora antes. No entanto, tinha ele diante de si a criatura mais vulgar, mais sim­ples à primeira vista, uma mulher encantadora e boa, bonita, decerto, mas parecendo-se com todas as mulheres bonitas "comuns". Na ver­dade, era até mesmo bela, bastante bela, uma beleza russa, a que suscita tantas paixões. De estatura bastante elevada, sem igualar, no entanto, a de Catarina Ivânovna (que era muito alta), forte, com movimentos mansos e silenciosos, como que enlanguecidos numa doçura de acordo com sua voz. Adiantou-se, não como Catarina Ivânovna, mas com um passo firme e seguro, embora silencioso. Não fazia quase, ruído ao andar. Deixou-se cair numa poltrona, com um rumor leve de seu ele­gante vestido de seda preta, cobriu friorentamente com um xale de lã seu pescoço branco como neve e seus largos ombros. Tinha 22 anos e seu rosto indicava essa idade. Sua pela era muito branca, com um matiz de reflexos rosa-pálido, o oval do rosto um tanto largo, o ma­xilar inferior um pouco saliente. O lábio superior era delgado, o infe­rior, que avançava, duas vezes mais forte e tumido. Uma manífica cabeleira castanha muito abundante, supercílios escuros, admiráveis olhos dum cinzento azulado de longos cílios: o mais indiferente, o mais distraído dos homens, perdido na multidão, passeando, não teria deixado de parar diante daquele rosto e de recordá-lo por muito tempo. O que mais impressionava Aliócha era sua expressão infantil e ingênua. Tinha ela um olhar e alegria de criança, aproximara-se da mesa ver­dadeiramente alvoroçada, como se esperasse alguma coisa, curiosa e impaciente. Seu olhar alegrava a alma, sentia-o Aliócha. Havia ainda nela algo de que não teria ele podido ou sabido dar conta, mas que sentia talvez inconscientemente, aquela languidez de movimentos, aquela ligeireza felina de seu corpo, no entanto, vigoroso e gordo. Seu xale desenhava espáduas cheias, um firme busto de mulher jovem. Aquele corpo prometia talvez as formas da Vênus de Milo, mas já em pro­porções um tanto exageradas, adivinhava-se. Conhecedores da beleza russa, ao examinar Grúchenhka, teriam predito com certeza que, ao aproximar-se dos trinta anos, aquela beleza tão fresca ainda perderia sua harmonia, alterar-se-ia, o rosto se empastaria; rugas se formariam rapidamente na testa e em redor dos olhos; a tez murcharia, avermehar-se-ia talvez; numa palavra, era a beleza do diabo, beleza efêmera, tão freqüente na mulher russa. Aliócha, bem entendido, não pensava nisso, mas, embora sob o encanto, perguntava a si mesmo com mal-estar e como a contragosto: por que arrasta ela assim as palavras e não pode falar naturalmente? Grúchenhka achava decerto bonito aquele rotacismo e aquelas entonações cantantes. Não era senão um hábito de mau gosto, índice de uma educação inferior, duma falsa noção das conveniências. No entanto, aquela fala afetada parecia a Aliócha quase incompatível com aquela expressão ingênua e radiosa, aquele brilho dos olhos ridentes duma alegria de bebê. Catarina Ivânovna fizera-a sentar-se em frente de Aliócha e beijara várias vezes com entusiasmo seus lábios sorridentes. Parecia apaixonada por ela.

— Vemo-nos pela primeira vez, Alieksiéi Fiódorovitch — disse ela, encantada. — Queria conhecê-la, vê-la, ir à casa dela; ela mesma, porém, veio ao meu primeiro chamado. Estava certa de que arranja­ríamos tudo! Meu coração pressentia-o... Tinham-me rogado que de­sistisse desse passo, mas previa-lhe o resultado e não me enganei. Grúchenhka explicou-me todas as suas intenções; veio como um anjo bom trazer-me a paz e a alegria...

— Você não me desdenhou, cara senhorita — disse Grúchenhka, com uma voz arrastada e seu doce sorriso.

— Evite dizer-me tais palavras, encantadora mágica! Desdenhá-la? Vou beijar mais uma vez seu lindo lábio. Tem o ar de estar intumescido, pois vou torná-lo mais intumescido ainda... Veja como ri. Alieksiéi Fiódorovitch, é uma alegria para o coração olhar esse anjo...

Aliócha corava e estremecia ligeiramente.

— Você está-me mimando, cara senhorita, mas não mereço talvez suas carícias.

— Não as merece! — exclamou com o mesmo calor Catarina Ivânovna. — Saiba, Alieksiéi Fiódorovitch, que temos aí uma cabeça fantasista, independente, mas um coração altivo, oh! muito altivo! É nobre e generosa, Alieksiéi Fiódorovitch, sabia-o? Era apenas infeliz, pronta inteiramente a sacrificar-se a um homem talvez indigno ou le­viano. Havia um oficial a quem amava, deu-lhe tudo, há muito tempo isso, cinco anos, e ele a esqueceu, casou-se. Tendo ficado viúvo, escre­veu, está a caminho, é a ele somente, fique sabendo, que ama e sempre amou! Ele chega, e Grúchenhka será de novo feliz, depois de ter sofrido durante cinco anos. Que se lhe pode censurar? Quem pode gabar-se de ter-lhe conquistado as belas graças? Aquele velho negociante impo­tente, mas era antes um pai, um amigo, um protetor; encontrou-a desesperada, atormentada, abandonada... Porque queria ela afogar-se, aquele velho a salvou, salvou-a!

— Você me defende demais, cara senhorita, vai um pouco longe demais — disse de novo, arrastadamente, Grúchenhka.

— Eu a defendo? Cabe a mim defendê-la, ousaríamos nós defendê-la? Grúchenhka, meu anjo, dê-me sua mão. Olhe essa mãozinha rechonchuda, essa deliciosa mãozinha. Alieksiéi Fiódorovitch: está. vendo-a? Foi ela que me trouxe a felicidade, que me ressuscitou, vou beijá-la dos dois lados... assim, assim!

Beijou três vezes, como que arrebatada, a mão verdadeiramente en­cantadora, talvez demasiado rechonchuda, de Grúchenhka. Esta, com um riso nervoso e sonoro, consentia na carícia; mirava a "cara senhorita" e tinha prazer com aquilo... "Ela talvez se exalte demasiado", pensou Aliócha. Corou, seu coração não estava tranqüilo.

— Quer fazer-me corar, cara senhorita, beijando assim minha mão diante de Alieksiéi Fiódorovitch.

— Mas foi minha intenção fazê-la corar? — proferiu Catarina Ivânovna um pouco admirada. — Ah! minha cara, como me compreende mal!

— Mas talvez não me compreenda tampouco, cara senhorita. Sou talvez pior do que pareço. Tenho coração mau, sou caprichosa. Foi somente para zombar do pobre Dimítri Fiódorovitch que o conquistei.

— Mas agora você o salvará, prometeu-o. Far-lhe-á compreender, revelar-lhe-á que desde muito tempo ama outro pronto a desposá-la...

— Mas não, não lhe prometi nada de semelhante. Foi você quem disse tudo isso e não eu.

— Compreendi-a mal então — declarou Catarina Ivânovna, que baixou a voz e empalideceu ligeiramente. — Você prometeu...

— Ah! não, angélica senhorita, não lhe prometi nada — interrom­peu-a Grúchenhka, com a mesma expressão alegre, tranqüila, inocente. — Veja, digna senhorita, como sou má e voluntariosa. O que me agrada, faço-o; ainda há pouco talvez lhe haja feito uma promessa, e agora digo a mim mesma: se Mítia viesse a agradar-me de novo, porque já um vez me agradou quase uma hora, talvez vá dizer-lhe que fique morando comigo a partir de hoje... Veja como sou inconstante...

— Ainda há pouco falava você de maneira totalmente diversa... — murmurou Catarina Ivânovna.

— Sim, ainda há pouco! Mas tenho o coração terno, sou tola! Basta pensar em tudo quanto ele sofreu por mim; se, de volta para minha casa, tiver piedade dele, que acontecerá?

— Eu não esperava...

— Oh! senhorita, quanto é boa e nobre comparada comigo! E talvez, agora, vai deixar de amar-me vendo meu caráter. Dê-me sua bonita mão, angélica senhorita — pediu ela, tomando com respeito a mão de Catarina Ivânovna. — Vou beijar sua mão, cara senho­rita, como fez você à minha. Deu-me três beijos, deveria dar-lhe bem uns trezentos para ficar quite. Assim será, e depois, seja o que Deus quiser: talvez seja sua escrava e haverei de querer comprazê-la em tudo quanto Deus queira, sem convenção alguma nem promessas. Dê-me sua mão, sua linda mão, cara senhorita, bela entre todas!

Levou docemente aquela mão a seus lábios, com o fito estranho de "saldar a conta" dos beijos recebidos. Catarina Ivânovna não retirou sua mão. Havia escutado com tímida esperança a derradeira promessa de Gruchenhka, por mais estranhamente expressa que tivesse sido, de "comprazê-la em tudo"; olhava-a com ansiedade bem dentro dos olhos; via ali a mesma expressão ingênua e confiante, a mesma jovialidade serena... "Ela é talvez demasiado ingênua!", disse a si mesma Catarina Ivânovna, num clarão de esperança. Entretanto Gruchenhka, encan­tada com aquela "linda mãozinha", levava-a lentamente aos lábios. Ia quase tocar-lhe quando a reteve para refletir.

— Sabe, meu anjo — disse ela, arrastadamente, com sua voz mais melíflua —, feitas as contas, não lhe beijarei a mão. — E soltou uma risadinha alegre.

— Como queira... Que tem? — estremeceu Catarina Ivânovna.

— Lembre-se disso: você beijou minha mão, mas eu não beijei a sua. Um clarão brilhou nos seus olhos. Fitava com obstinação Catarina

Ivânovna.

— Insolente! — exclamou esta, que começava a compreender. Le­vantou-se vivamente, tomada de cólera. Sem se apressar, Gruchenhka fez o mesmo.

— Vou contar a Mítia que você beijou minha mão, mas que eu não quis beijar a sua. Isto vai fazê-lo rir.

— Fora daqui, canalha!

— Ah! que vergonha! É indecente de sua parte empregar tais pala­vras, cara senhorita.

— Fora daqui, fêmea vendida! — vociferou Catarina Ivânovna. Todo o seu rosto convulsionado tremia.

— Vendida, seja. Você mesma, mocinha, saía à noite à busca de dinheiro entre rapazes, traficando seus encantos; sei de tudo.

Catarina Ivânovna lançou um grito, quis atirar-se contra ela, mas Aliócha reteve-a com todas as suas forças.

— Não se mova, nem uma palavra! Não lhe responda, ela partirá agora mesmo!

As duas parentas de Catarina Ivânovna e a arrumadeira acorreram ao seu grito. Precipitaram-se para ela.

— Está bem! Vou-me embora — declarou Gruchenhka, tomando sua mantilha de cima do diva. — Aliócha, meu bem, acompanha-me!

— Vá-se o mais depressa possível — implorou Aliócha, de mãos juntas.

— Aliócha querido, acompanha-me. De caminho, dir-te-ei uma pala­vra, algo de muito gentil! Foi por ti, Aliócha, que representei essa cena. Vem, meu caro, não lamentarás ter vindo.

Aliócha voltou-se, torcendo as mãos. Gruchenhka saiu rindo, sono­ramente.

Catarina Ivânovna teve um ataque de nervos; soluçava, espasmos sufocavam-na. Todos se mostravam solícitos em torno dela.

— Eu a havia prevenido — disse-lhe a mais velha das tias — e desaconselhado tal passo... você é demasiado viva... pode-se arriscar tal coisa? Você não conhece essas criaturas e dizem dessa que é a pior de todas... Você só faz o que lhe dá na cabeça!

— É uma teoriza! — vociferou Catarina Ivânovna. — Por que me reteve, Alieksiéi Fiódorovitch? Ter-lhe-ia batido, batido...

Estava incapaz de conter-me diante de Alieksiéi, talvez mesmo não o quisesse.

— Merecia ser chicoteada em público, pela mão do carrasco. Alieksiéi aproximou-se da porta.

— Oh! meu Deus! — exclamou Catarina Ivânovna, juntando as mãos. — Mas ele! Pôde ser tão desleal, tão inumano?! Por que foi ele que contou àquela criatura o que se passou naquele dia fatal e para sempre maldito! "Você ia traficar seus encantos, cara senhorita!" Ela sabe! Seu irmão é um canalha, Alieksiéi Fiódorovitch!

Aliócha quis dizer alguma coisa, mas não encontrou uma palavra sequer; seu coração cerrava-se a ponto de doer-lhe.

— Vá-se embora, Alieksiéi Fiódorovitch! Tenho vergonha, é horrí­vel! Amanhã... Rogo-lhe, de joelhos, venha amanhã. Não me julgue, perdoe-me, não sei de que sou capaz!

Aliócha saiu cambaleante. Teria querido também chorar; de re­pente a criada alcançou-o.

— A senhorita esqueceu-se de entregar-lhe esta carta da Senhora Khokhlakova; estava com ela desde o jantar.

Aliócha pegou o pequeno envelope côr-de-rosa e meteu-o quase inconscientemente no bolso.

 

OUTRA REPUTAÇÃO PERDIDA

Da cidade ao mosteiro era apenas 1 versta. Aliócha caminhava rapidamente pela estrada, deserta àquela hora. Era quase noite e difícil, a trinta passos, distinguir os objetos. Em meio do caminho, no centro duma encruzilhada, elevava-se um salgueiro isolado, sob o qual per­cebia-se um vulto. Mal Aliócha chegara àquele local, o vulto desta­cou-se da árvore e lançou-se a ele gritando:

— A bolsa ou a vida!

— Como, és tu, Mítia! — exclamou, espantado, Aliócha, bastante comovido.

— Ah! ah! não esperavas por isto, hein? Perguntava a mim mesmo onde esperar-te. Perto da casa dela? Há três caminhos que partem dali e eu podia não te encontrar. Tive a idéia afinal de esperar-te aqui, porque devias necessariamente passar por esta estrada, uma vez que não há outra para ir ao mosteiro. Pois bem, dize-me a verdade, es­maga-me como a uma barata... Que tens, então?

— Não é nada, irmão... É o medo! Ah! Dimítri! Ainda há pouco, esse sangue de nosso pai (Aliócha pôs-se a chorar, desde muito tinha vontade disso, parecia-lhe que alguma coisa se dilacerava dentro dele). Tu quase o mataste... tu o amaldiçoaste... e eis que agora... aqui... fazes brincadeira... a bolsa ou a vida!

— Ah! sim. Pois bem! É indecente? Não convém isto à situação?

— Mas não, dizia isto...

— Espera, olha essa noite; vê como está sombria, aquelas nuvens, esse vento que se levantou. Oculto sob o salgueiro, esperava-te e, de repente, disse a mim mesmo (Deus me seja testemunha!): "Que adianta sofrer ainda, por que esperar? Eis um salgueiro, tenho meu lenço e minha camisa, a corda ficaria trançada em breve, com meus suspensórios ainda por cima... A terra ficaria livre de mim, não mais a desonraria com a minha presença!" E eis que ouço os teus passos. Senhor, foi como se um raio descesse sobre mim! "Há pois um homem a quem amo, ei-lo, esse homenzinho, o meu querido irmãozinho, a quem amo mais que tudo no mundo e é o único a quem amo!" Tão vivo era meu afeto naquele minuto que pensei: "Vou atirar-me ao seu pescoço!" Mas veio-me uma idéia estúpida: "Para diverti-lo, vou fazer-lhe medo". E gritei como um imbecil: "A bolsa!" Perdoa minha tolice; é absurdo, mas no fundo da alma... sou bom... Pois bem! com o diabo! Fala pois, que houve lá? Que foi que ela disse? Esma­ga-me, bate-me, não me poupes! Ela está exasperada?

— Não... não é totalmente isto, Mítia. Encontrei as duas.

— Quais duas?

— Grúchenhka em casa de Catarina Ivânovna. Dimítri ficou estupefato.

— É impossível! — exclamou. — Deliras! Grúchenhka em casa dela?

Numa narrativa despida de artifício, mas não de clareza, expôs Aliócha o essencial do que se passara, acrescentando-lhe suas próprias impressões. Seu irmão escutava-o em silêncio, fixando-o com um ar impassível, mas Aliócha via claramente que ele já havia compreendido tudo, elucidado todo o caso. À medida que a narrativa avançava, seu rosto tornava-se não sombrio, mas ameaçador. Franzia o cenho, de dentes cerrados, o olhar ainda mais fixo, mais terrível na sua obstina­ção... A mudança súbita que ocorreu em seu rosto encolerizado foi por isso mesmo totalmente inesperada; seus lábios crispados distenderam-se, e Dimítri Fiódorovitch explodiu na gargalhada mais irresis­tível e mais franca. Ficou um bom momento sem poder falar, à força de rir.

— De modo que ela não lhe beijou a mão! Fugiu sem beijar-lhe a mão! — exclamou ele num arrebatamento mórbido, que se teria podido qualificar de impudente, se não fosse tão ingênuo. — E a outra cha­mou-a de teoriza? É uma mesmo! Devia subir ao cadafalso! Cer­tamente, estou de acordo; deveriam tê-lo feito desde muito. Mas não é tudo, irmão, é preciso em primeiro lugar recuperar a saúde. Ela está toda inteira nesse beijo de mão, aquela rainha da impudência, aquela criatura infernal! É a rainha de todas as fúrias que se possam imaginar! De encher de entusiasmo, de certa maneira! Partiu para sua casa? Agora mesmo... corro até lá. Aliócha, não me acuses, convenho que seria pouco o estrangulá-la...

— E Catarina Ivânovna? — perguntou tristemente Aliócha.

— Também a compreendo, como até agora tenho compreendido! Ê a descoberta das quatro partes do mundo, das cinco, quero dizer! Tal passo que deu! Ê bem a mesma Catarina, a pensionista que não receia ir ter com um oficial grosseiro, com o nobre desígnio de salvar seu pai, arriscando-se a ser insultada! Mas essa altivez, essa sede do perigo, esse desafio ao destino, até os derradeiros limites!... Sua tia, dizes, queria impedi-la? É uma mulher despótica, irmã daquela generala de Moscou; fazia muito embaraço, mas seu marido foi acusado de mal­versações, perdeu tudo, seus bens e o resto, sua orgulhosa esposa teve de baixar o tom. De modo que retinha ela Cátia, mas esta não a escutou. "Posso tudo vencer, tudo me é submetido, enfeitiçarei Grú­chenhka, se quiser. " Acreditava bem nisso decerto, e forçou seu talento. De quem a culpa? Pensas que tenha sido intencionalmente que beijou por primeira a mão de Grúchenhka, por cálculo e por astúcia? Não, deixou-se enfeitiçar nada mais nada menos por Grúchenhka, isto é, não por ela, mas pelo seu sonho, pelo seu desejo, muito simplesmente, porque esse sonho, esse desejo eram os seus! Aliócha, como pudeste escapar a semelhantes mulheres? Fugiste, arrepanhando a batina, hein? Ah! ah! ah!

— Irmão, não pensaste, creio, na ofensa que fizeste a Catarina Ivânovna contando a Grúchenhka sua visita à tua casa; Grúchenhka lan­çou-lhe em rosto que "ela ia furtivamente traficar seus encantos". Há pior injúria, meu irmão?

A idéia de que seu irmão se rejubilava com a humilhação de Cata­rina Ivânovna atormentava Aliócha, embora sem razão, evidentemente.

— Ah! sim! — disse Dimítri, franzindo as sobrancelhas e batendo na testa. Somente agora se dava conta, se bem que Aliócha tivesse tudo contado ao mesmo tempo, a injúria e o grito de Catarina Ivâ­novna: "Seu irmão é um canalha!" — Sim, com efeito, devo ter falado a Grúchenhka daquele "dia fatal", como diz Cátia. Deveras, contei-lhe, lembro-me! Foi em Mókroie, enquanto os ciganos cantavam; estava embriagado... Mas então eu soluçava, rezava de joelhos diante da imagem de Cátia. Grúchenhka compreendia-o, ela mesma chorava... Ah! diabos! poderia ser de outro modo agora? Ela chorava então, agora crava um punhal no coração. Eis as mulheres!

Pôs-se a refletir, de cabeça baixa.

— Sim, sou um verdadeiro canalha — proferiu ele, de súbito, com voz sombria. — Que tenha chorado ou não, tanto faz. Conta-lhe que aceito o qualificativo, se isto pode consolá-la. Pois bem! chega, de que serve tagarelar? Não é divertido. Sigamos cada qual nossa estrada. Não quero mais rever-te antes do derradeiro momento. Adeus, Alieksiéi!

Apertou fortemente a mão de Aliócha e, sem erguer a cabeça, como um evadido, caminhou a grandes passadas para a cidade. Aliócha acom­panhou-o com o olhar, não podendo crer que tivesse ele partido deveras.

— Espera, Alieksiéi, ainda uma confissão, para ti somente! (Di­mítri retrocedera. ) — Olha-me bem no rosto: aqui, vês tu, aqui, uma infâmia execrável se prepara. (Ao dizer isto, Dimítri batia no peito com um ar estranho, como se a infâmia estivesse depositada em seu peito ou suspensa ao seu pescoço. ) Já me conheces como um canalha chapado. Mas, fica sabendo, o que quer que eu tenha feito, o que quer que possa fazer no futuro, nada se compara em baixeza com a infâmia que trago no meu peito e que poderia reprimir, mas não o farei, fica sabendo. Prefiro cometê-la. Tudo te contei há pouco, exceto isto, não tinha coragem! Posso ainda deter-me e, dessa maneira, re­cuperar amanhã a metade de minha honra, mas não renunciarei a isto, cumprirei meu negro desígnio, poderás ser testemunha de que falo disso antecipadamente e cientemente. Perdição e trevas! Inútil ex­plicar-te, sabê-lo-ás a seu tempo. A lama é uma verdadeira fúria! Adeus. Não rezes por mim, não sou digno e não tenho necessidade de oração nenhuma... Sai de meu caminho!...

Afastou-se desta vez, definitivamente. Aliócha seguiu para o mos­teiro. "Como! Não o verei mais? Que é que ele diz?" Isto pareceu-lhe esquisito. "Amanhã, sem falta, pôr-me-ei à sua procura. Que quis ele dizer?"

Contornou o mosteiro e seguiu diretamente para o eremitério atra­vés do bosque de pinheiros. Abriram-lhe, se bem que não deixassem entrar ninguém àquela hora. Entrou na cela do stáriets, com o coração palpitante. "Por que partira ele? Por que o haviam enviado ao mundo?

Aqui, a paz, a santidade; lá, a perturbação, as trevas nas quais a gente se perde... "

Na cela encontravam-se o noviço Porfírio e um religioso, o Padre Paísi, que o dia inteiro viera a cada hora saber notícias do Padre Zósima. Seu estado piorava, como veio a saber Aliócha, com espanto. A conversa habitual da noite com a comunidade não pudera realizar-se daquela vez. Comumente, à noite, após o ofício, a comunidade, antes de ir repousar, reunia-se na cela do stáriets; cada qual lhe confessava bem alto suas faltas do dia, os sonhos culpados, as idéias, as tentações, até as rusgas entre monges, se alguma ocorrera. Outros se confessavam, de joelhos. O stáriets absolvia, acalmava, ensinava, impunha penitências, abençoava e despedia. Era contra essas "confissões" fraternais que se levantavam os adversários do stáriets, dizendo que era aquilo uma pro­fanação da confissão, como sacramento, quase um sacrilégio, se bem que fosse coisa bem diversa. Haviam mesmo feito denúncia à autori­dade diocesana de que não somente aquelas confissões não atingiam o seu fim, mas eram na realidade uma fonte de pecados e de tentações. A muitos, na comunidade, repugnava ir à casa do stáriets e ali apa­reciam de má-vontade, a fim de não passarem por orgulhosos e revol­tados de espírito. Contava-se que certos monges, ao irem à confissão da noite, entendiam-se entre si de antemão: "Direi que me zanguei contra ti esta manhã, tu o confirmarás", isto a fim de ter alguma coisa que dizer e ver-se livre daquilo. Aliócha sabia que as coisas se passavam por vezes assim. Sabia também que alguns se indignavam bastante con­tra o costume segundo o qual as cartas, mesmo dos pais, recebidas pelos solitários, eram levadas em primeiro lugar ao stáriets, para que ele as abrisse e lesse antes de seus destinatários. Supunha-se, bem entendido, que essas práticas deviam realizar-se livremente e sincera­mente, de todo o coração, com um fim de edificação salutar e de submissão voluntária; de fato, acontecia que, longe de serem sinceras, não eram senão fingidas. Mas os mais idosos e os mais experimentados da comunidade persistiam em sua idéia, estimando que "os que tinham transposto o recinto para cuidar sinceramente de sua salvação encon­travam naquela obediência e naquela abdicação de si mesmos um pro­veito dos mais salutares; mas que os que murmuravam com repugnância não tinham a vocação e melhor teriam feito se tivessem ficado no mundo. O pecado e a tentação vos tocaiam não somente no mundo, mas no santuário, melhor valia não se prestar a isso".

— Está enfraquecendo, sonolento — murmurou o Padre Paísi a Aliócha. — É difícil despertá-lo. E para quê? Acordou por uns cinco minutos e pediu que se transmitisse sua bênção à comunidade, cujas pre­ces solicita. Amanhã de manhã, tem intenção de comungar de novo. Lem­brou-se de ti, Aliócha, informou-se de onde estavas, disseram-lhe que havias partido para a cidade. "Minha bênção o acompanhe ali; seu lugar é lá e não aqui. " És o objeto de seu amor e de sua solicitude, com­preendes essa honra? Mas por que te marca ele um estágio no mundo? Será que pressente alguma coisa no teu destino? Se voltares ao mundo, é para cumprir uma tarefa imposta pelo teu stáriets, compreende-o, Alieksiéi, e não para te entregares à agitação vã e às obras do sé­culo...

O Padre Paísi saiu. Alieksiéi não duvidava de que o fim do stáriets estivesse próximo, muito embora pudesse viver ainda um dia ou dois. Jurou a si mesmo, malgrado os compromissos tomados para com seu pai, as senhoras Khokhlakovi, seu irmão, Catarina Ivânovna, não deixar o mosteiro no dia seguinte e ficar junto do stáriets até seu derradeiro momento. Seu coração abrasava-se de amor e censurava-se amargamente ter podido esquecer um instante, lá embaixo, aquele que deixara em seu leito de morte e a quem venerava acima de tudo. Passou para o quarto de dormir, ajoelhou-se, prosternou-se diante da cama dele. O stáriets repousava tranqüilamente, mal se ouvia sua respira­ção. Seu rosto estava calmo.

Voltando ao quarto vizinho, onde tivera lugar a recepção da manhã, contentou-se Aliócha com tirar suas botas e estendeu-se sobre o es­treito e duro diva de couro onde se acostumara a dormir, valendo-se apenas de um travesseiro. Desde muito tempo renunciara ao colchão de que falava seu pai. Só fazia tirar sua batina, que lhe servia de coberta. Antes de adormecer, ajoelhou-se e pediu a Deus numa prece fervorosa que o esclarecesse, ansioso por tornar a encontrar o apa­ziguamento que experimentava sempre outrora, depois de ter louvado e glorificado a Deus, como o fazia comumente na sua prece da noite. A alegria que o invadia proporcionava-lhe um sono leve e tranqüilo. Enquanto rezava, sentiu em seu bolso o envelopinho côr-de-rosa, entre­gue pela criada de Catarina Ivânovna, que o alcançara na rua. Ficou perturbado, mas acabou sua prece. Depois abriu o envelope, com al­guma hesitação. Continha um bilhete a ele dirigido, assinado por Lisa, a filha da Senhora Khokhlakova, que zombara dele pela manhã, na presença do stáriets.

A lieksiéi Fiódorovitch:

Escrevo-lhe às ocultas de todos e de minha mãe, e sei que isto não está bem. Mas não posso viver mais tempo sem dizer-lhe o que me nasceu no coração e que ninguém, a não ser nós dois, deve saber até nova ordem. Dizem que o papel não cora, que engano! Asseguro-lhe que estamos agora bem corados um e outro. Querido Aliócha, eu o amo, eu o amo desde minha infância, desde Moscou, quando era você bem diferente do que é agora. Elegi-o em meu coração para me unir a você e acabarmos nossos dias juntos. Bem entendido, com a condição de que deixe você o mosteiro. Quanto à nossa idade, espera­remos tanto quanto a lei o exija. Daqui até lá, estarei restabelecida, andarei, dançarei. Isto não tem dúvida nenhuma.

Vê você que calculei tudo, mas há uma coisa que não posso ima­ginar: que pensará você de mim lendo estas linhas? Rio, brinco, fi-lo zangar-se há pouco, mas asseguro-lhe que antes de pegar da pena rezei diante da imagem da Virgem, quase chorando.

Meu segredo está em suas mãos e quando você vier, amanhã, não sei como poderei encará-lo. Alieksiéi Fiódorovitch, que acontecerá, se não puder impedir-me de rir ao vê-lo, como esta manhã? Você me tomará por uma zombadora implacável e duvidará de minha carta. Assim, suplico-lhe, meu querido, que não me olhe demasiado o rosto quando vier, porque pode acontecer que rebente a rir à vista de sua batina comprida... Já agora, meu coração fica gelado só de pensar nisso; para começar, lance seus olhares para mamãe ou para a ja­nela...

Eis que lhe escrevi uma carta de amor. Meu Deus, que fiz eu? Aliócha, não me despreze; se agi mal e o magôo, desculpe-me. Agora, a sorte de minha reputação, talvez perdida, está entre suas mãos.

Haverei de chorar hoje por certo. Adeus, até essa entrevista ter­rível...

PS. — Aliócha, venha sem falta, sem falta. Lisa.

Aliócha leu duas vezes aquela carta com surpresa, ficou pensativo, depois riu docemente de prazer. Estremeceu, aquele riso lhe parecia culpado. Mas, ao fim de um instante, repetiu o mesmo riso feliz. Tornou a pôr a carta no envelope, fez um sinal-da-cruz e deitou-se. Sua alma havia reencontrado a calma. "Senhor, perdoa-lhes a todos, protege esses infelizes e agitados, guia-os, mantém-nos no bom cami­nho. Tu que és o amor, concede a todos a alegria!" E Aliócha ador­meceu num sono tranqüilo.

 

O PADRE FIERAPONT

Aliócha despertou antes do amanhecer. O stáriets já não dormia e se sentia bastante fraco, mas quis levantar-se e sentar-se numa cadeira. Estava em plena consciência. Seu rosto, embora esgotado, refletia uma alegria serena, o olhar alegre, afável, atraía. — Talvez não veja o fim deste dia — disse ele a Aliócha. Quis logo confessar-se e comungar. Seu diretor habitual era o Padre Paísi. Depois administraram-lhe a extrema-unção. Os religiosos reuniram-se; a cela, pouco a pouco, en­cheu-se; o dia amanhecera; vieram também monges do mosteiro. Depois do ofício, o stáriets quis despedir-se de todos e beijou a todos. Tendo em vista a exigüidade da cela, os primeiros chegados cediam lugar aos ou­tros. Aliócha mantinha-se junto do stáriets, de novo sentado em sua cadeira. Falava e ensinava de acordo com suas forças; sua voz, embora fraca, era ainda bastante nítida. "Desde tantos anos vos instruo pela pa­lavra, que se tornou isso para mim um hábito tal que o silêncio me seria quase mais penoso, caros padres e irmãos, mesmo agora, em meu estado de fraqueza", disse ele, brincando, olhando com ar enternecido aqueles que se acotovelavam em redor dele. Aliócha lembrou-se depois de algumas de suas palavras. Mas, muito embora sua voz fosse distinta e suficientemente firme, sua fala era bastante desconexa. Falou muito, como se tivesse querido, naquela hora suprema, exprimir tudo quanto não pudera dizer durante sua vida, não com o único fim de instruir, mas para fazer todos partilharem de sua alegria e de seu êxtase, expan­dir por uma derradeira vez seu coração...

— Amai-vos uns aos outros, meus padres — ensinava o stáriets (se­gundo as recordações de Aliócha). — Amai ò povo cristão. Não somos mais santos do que os leigos, por ter vindo encerrar-nos dentro destas paredes; pelo contrário, todos aqueles que estão aqui têm reconhecido, pelo simples fato de sua presença, ser piores do que os leigos e do que todo mundo... E quanto mais o religioso viver em seu retiro, tanto mais deverá ter consciência disso. De outro modo não valeria a pena vir para cá. Quando compreender que não somente é pior que todos os leigos, mas culpado de tudo para com todos, de todos os pecados cole­tivos e individuais, então somente o fim de nossa união será atingido. Porque, sabei, meus irmãos, que cada um de nós é certamente culpado aqui na terra de tudo para com todos, não somente pela falta coletiva da humanidade, mas de cada um individualmente, por todos os outros na terra inteira. Esta consciência de nossa culpabilidade é o coroamento da carreira religiosa, bem como de cada homem na terra. Porque os religiosos não são homens à parte, mas somente tais como deveriam ser todas as pessoas neste mundo. Então somente vosso coração será pene­trado dum amor infinito, universal, jamais saciado. Então cada um de vós será capaz de ganhar o mundo inteiro pelo amor e de lavar-lhe os pecados com suas lágrimas... Que cada qual entre em si mesmo e se confesse sem cessar. Não temais vosso pecado, mesmo se tiverdes cons­ciência dele, contanto que vos arrependais, mas não imponhais condições a Deus. Eu vo-lo repito, não vos orgulheis, nem diante dos pequenos nem diante dos grandes. Não odieis aqueles que vos repelem, vos deson­ram, aqueles que vos insultam e vos caluniam. Não odieis os ateus, os professores do mal, os materialistas, mesmo os maus dentre eles, por­que muitos são bons, sobretudo em nossa época. Lembrai-vos deles em vossas orações, dizei: "Salvai, Senhor, aqueles por quem ninguém reza, salvai aqueles que não querem rezar a vós". E acrescentai: "Não é por orgulho que vos dirijo esta prece, Senhor, porque sou eu mesmo vil entre todos... " Amai o povo cristão, não abandoneis vosso rebanho aos estrangeiros, porque, se adormecerdes na cupidez, virão de todos os países para arrebatar vosso rebanho. Não vos canseis de explicar o Evangelho ao povo... Não vos entregueis à avareza... Não vos li­gueis ao ouro e à prata... Tende fé, mantende firme e alto o estandarte...

O stâriets exprimia-se, aliás, duma maneira mais desconexa do que foi acima exposta e do que Aliócha a escreveu depois. Por vezes para­va completamente, como para reunir suas forças, ofegava, mas estava co­mo em êxtase. Escutavam-no com enternecimento, muito embora muitos se espantassem com suas palavras e as achassem obscuras... Posterior­mente, todos se recordaram delas. Quando Aliócha deixou a cela por um instante, ficou impressionado com a agitação geral e com a expecta­tiva da comunidade que se comprimia na cela e em redor. Aquela expec­tativa era em alguns quase ansiosa, em outros, solene. Todos aguarda­vam alguma coisa de grande imediatamente após o desenlace do stâriets. Muito embora em certo sentido fosse essa expectativa quase frívola, os monges mais severos estão a ela sujeitos. O rosto mais sério era o do Padre Paísi. Aliócha só se ausentara porque um monge o chamava de parte de Rakítin, que viera da cidade com uma carta da Senhora Khokhlakova para ele. Comunicava curiosa notícia chegada muito a propósito. Na véspera, entre as mulheres do povo, que eram crentes e tinham vindo prestar homenagem ao stáriets e receber sua bênção, encontrava-se uma velha da cidade, Prókhorovna, viúva dum suboficial. Perguntara ao stâriets se se podia mencionar como defunto, na oração pelos mortos, seu filho Vássienhka, que partira para seu serviço militar em Irkutsk, na Sibéria, do qual estava ela sem notícias havia um ano. Ele lho havia severamente proibido, tratando tal prática de análoga à feitiçaria. Mas, indulgente para com a ignorância dela, acrescentara uma consolação, "como se visse no livro do futuro" (segundo a expressão da Senhora Khokhlakova); o filho dela, Vássia, estava certamente vivo, chegaria em breve ou lhe escreveria, tendo ela apenas de ficar esperando em casa. E então, acrescentava a Senhora Khokhlakova, entusiasmada, "a profecia cumprira-se ao pé da letra e mesmo além". Assim que a boa mulher regressara à sua casa, entregaram-lhe uma carta da Sibéria, que a esperava. Mais ainda, nessa carta, escrita de. Ekatierinburg, Vássia informava sua mãe de que voltava para a Rússia em companhia dum funcionário, e que, duas ou três semanas após o recebimento daquela carta, esperava beijar sua mãe. A Senhora Khokhlakova rogava insis­tentemente a Aliócha que comunicasse o novo milagre daquela predição ao padre abade e a toda a comunidade. "É importante que todos o saibam!", exclamava ela ao fim de sua carta, escrita à pressa: a emoção refletia-se nela em cada linha. Mas Aliócha nada tinha de comunicar à comunidade, todos já o sabiam. Ao enviar o monge à sua procura, en­carregara-o Rakítin, além disso, de informar respeitosamente sua reve­rência, o Padre Paísi, de que tinha de comunicar-lhe um caso sem de­mora, visto sua importância, e rogava-lhe humildemente que lhe perdoasse a ousadia. Tendo o monge transmitido em primeiro lugar ao Padre Paísi o pedido de Rakítin, não restava a Aliócha, depois de ter lido a carta, senão comunicá-la ao padre, a título de documentário. E eis que aquele homem rude, desconfiado, lendo, de sobrancelhas contraídas, a notícia do "milagre", não foi inteiramente senhor de seu sentimento íntimo. Seus olhos brilharam, mostrou um sorriso grave, penetrante.

— Veremos bem mais outros — deixou ele escapar.

— Veremos bem mais outros! — repetiram os monges; mas o Padre Paísi, franzindo de novo as sobrancelhas, rogou a todos que não falas­sem a ninguém no momento, "até que isto se confirme, porque há muita frivolidade nas notícias do mundo, e aquele caso podia ter ocor­rido duma maneira natural", concluiu ele, prudentemente, como para desencargo de consciência, mas quase sem acrescentar fé ele próprio à sua reserva, o que observaram muito bem seus ouvintes. Na mesma hora, naturalmente, o "milagre" era conhecido de todo o mosteiro, e até mesmo de muitos leigos, vindos para assistir à missa. O mais impressio­nado parecia ser o monge chegado de véspera de São Silvestre, pequeno mosteiro de Obdorsk, no norte longínquo, o que prestara homenagem ao stáriets ao lado da Senhora Khokhlakova e lhe perguntara com ar penetrante, designando a filha daquela senhora: "Como ousa fazer tais coisas?"

Estava agora presa de certa perplexidade e não sabia quase mais em quem crer. Na véspera, à noite, fizera visita ao Padre Fierapont em sua cela particular, por trás do apiário, e trouxera dessa entrevista um impressão lúgubre. O Padre Fierapont era aquele velho monge, grande jejuador e observador do silêncio, que já citamos como adver­sário do stáriets Zósima e sobretudo do "starietismo", que considerava uma novidade nociva e frívola. Era um adversário bastante temível, se bem que, taciturno, não falasse quase com ninguém. Era sobretudo perigoso por causa da sincera simpatia que lhe testemunhava a maioria da comunidade; muitos leigos o veneravam como um grande justo e um asceta, vendo nele ao mesmo tempo um verdadeiro insensato. Mas sua loucura cativava. O Padre Fierapont não ia nunca à casa do stáriets Zósima. Se bem que vivesse no eremitério, não lhe impunham demasia­do a regra, porque tinha ele um proceder de inocente. Tinha 75 anos, se não mais, e morava por trás do apiário, no ângulo de um muro, numa cela de madeira, caindo quase em ruínas, instalada havia bastante tempo, ainda no último século, por outro grande jejuador e taciturno, o Padre Iona, que vivera até 105 anos e cujas façanhas constituíam ainda o objeto de narrativas bastante curiosas, no mosteiro e nos arredores.

O Padre Fierapont obtivera por fim permissão de instalar-se naquela ceia isolada, uma simples isbá, mas que se assemelhava bastante a uma capela, porque continha grande quantidade de ícones com lâmpadas a ar­derem perpetuamente; provinham de donativos e o Padre Fierapont pa­recia encarregado de guardá-las e acendê-las. Comia, pelo que se con­tava (e era verdade), somente 2 libras de pão em três dias, não mais; era o guarda do apiário, que morava no local, quem lhas trazia, mas trocava raramente uma palavra com aquele homem. Aquelas 4 libras, com o pão bento do domingo, enviado regularmente ao inocente pelo padre abade, constituíam sua alimentação da semana. Renovava-se cada dia a água de seu jarro. Assistia raramente ao ofício. Seus admiradores encontravam-no por vezes dias inteiros em oração, sempre ajoelhado e sem olhar em torno de si. Se entrava em conversa com eles, mostrava-se lacônico, brusco, estranho e quase sempre grosseiro. Havia, no entanto, casos muito raros em que conversava com os visitantes, mas a maior parte das vezes contentava-se com pronunciar uma palavra estranha que intrigava sempre seu interlocutor; em seguida, a despeito de todos os rogos, não dava jamais uma palavra de explicação. Jamais fora ordena­do padre. Circulava um boato estranho, na verdade, entre os mais ignorantes, segundo o qual o Padre Fierapont estava em relação com os espíritos celestes e se entretinha somente com eles,, o que explicava seu silêncio com as pessoas. O monge de Obdorsk, que entrara no apiá­rio depois da indicação do guarda, monge igualmente sombrio e taciturno, dirigiu-se para o ângulo em que se erguia a cela do Padre Fierapont. "Talvez queira ele falar-te pela tua qualidade de estranho, talvez tam­bém nada consigas dele", prevenira-o o guarda. O monge aproximou-se, como o contou mais tarde, com um grande medo. Já se fazia tarde. O Padre Fierapont estava sentado num banquinho, diante de sua cela. Acima de sua cabeça rumorejava levemente um velho olmo gigantesco. Caía o frescor da noite. O monge prosternou-se diante do recluso e pediu-lhe a bênção.

— Queres tu, monge, que também eu me prosterne diante de ti? — proferiu o Padre Fierapont. — Levanta-te.

O monge levantou-se.

— Abençoante e abençoado, senta-te ali. Donde vens?

O que impressionou mais o pobre mongezinho foi que o Padre Fiera­pont, a despeito de seus jejuns prolongados e de sua idade avançada, tinha ainda o ar de ancião vigoroso, de elevada estatura, mantendo-se ereto, o rosto fresco, se bem que magro, mas sadio. Tinha certamente conservado uma força notável e era de constituição atlética. Malgrado sua avançada idade, seus cabelos, outrora negros e espessos, bem como sua barba, não estavam todos grisalhos. Tinha grandes olhos cinzentos, luminosos, mas bastante salientes, o que chamava a atenção. Falava acentuando fortemente a letra "o". Seu hábito consistia num longo gabão avermelhado, de pano grosseiro, como para os prisioneiros, com uma corda à guisa de cinturão. O pescoço e o peito estavam nus. Uma camisa de pano muito grosso, quase enegrecida, que ele usava durante meses, aparecia sob o gabão. Dizia-se que carregava consigo correntes de 35 libras. Estava calçado com velhos sapatos quase desfeitos.

— Acabo de chegar do pequeno mosteiro de Obdorsk, de São Silves­tre — respondeu humildemente o visitante, observando o asceta com seus olhos vivos e curiosos, mas um pouco inquietos.

— Estive no teu São Silvestre. Vivi ali. Passa ele bem? O monge perturbou-se.

— Vós sois gente de poucas luzes! Que jejum observais?

— Nossa mesa é regulada segundo o antigo uso monacal. Durante a Quaresma, nas segundas, quartas e sextas, não se servem alimentos. Nas terças e quintas, dá-se à comunidade pão branco, uma tisana com mel, amoras silvestres ou couves salgadas, e farinha de aveia. No sábado, sopa de couve, aletria com ervilhas, trigo mourisco com azeite de cânhamo. No domingo, acrescentam-se à sopa peixe seco e trigo mourisco.

Na Semana Santa, da segunda ao sábado à noite, pão, água, e somente legumes não cozidos, em quantidade moderada; ainda assim não se deve comer todos os dias, mas conformar-se com as instruções dadas para a primeira semana da Quaresma. Na sexta-feira santa, jejum completo; no sábado, até as 3 horas da tarde, quando se pode tomar um pouco de pão e de água, e beber um copo de vinho. Na quinta-feira santa, comemos alimentos cozidos sem manteiga, bebemos vinho e observa­mos o uso de alimentos secos. Porque já o concilio de Laodicéia se exprime assim a respeito da quinta-feira santa: "Não convém romper o jejum na quinta-feira da última semana e desonrar assim a Quaresma inteira". Eis o que se passa entre nós. Mas que é isto em comparação convosco, eminente padre —- acrescentou o monge, que havia retomado coragem —, que o ano inteiro, mesmo na Páscoa, só vos nutris de pão e água? O pão que consumimos em dois dias basta-vos para a semana inteira. Vossa abstinência é verdadeiramente maravilhosa.

— E os cogumelos? — perguntou de súbito o Padre Fierapont.

— Os cogumelos? — repetiu o monge com espanto.

— Justamente. Passo sem o pão deles, não tenho nenhuma necessidade dele, mesmo na floresta; nutro-me de cogumelos ou de bagas, eles não podem passar sem pão, estão pois ligados ao demônio. Agora, pretendem os pagãos que é inútil jejuar tanto. Tal é o raciocínio deles, arrogante e ímpio.

— Ai, sim! — suspirou o monge.

— Viste os diabos em casa deles? — perguntou o Padre Fierapont.

— Em casa de quem? — informou-se timidamente o monge.

— No ano passado, fui à casa do padre abade, em Pentecostes. Depois não voltei mais lá. Vi um diabo escondido no peito de um monge, sob a batina, aparecendo somente os chifres; um segundo tinha um no seu bolso, espiando, de olhos vivos. Eu lhe fazia medo; um terceiro dava asilo a um diabinho nas suas entranhas impuras, enfim um outro carre­gava um, suspenso a seu pescoço, agarrado, sem o ver.

— Vós... víeis? — perguntou o monge.

— Digo-te que vejo, vejo através. Ao deixar o padre abade, avistei um diabo que se escondia de mim atrás da porta, era de bela estatura, 1 archin e meio ou mais, a cauda espessa, fulva, comprida; a ponta ficou presa na fenda, não hesitei e fechei violentamente a porta, aper­tando o rabo dele. O meu diabo pôs-se a gemer, a debater-se. Fiz sobre ele três vezes o sinal-da-cruz. Rebentou ali mesmo como uma aranha esmagada. Deve ter apodrecido num canto, fede, mas eles não o vêem, nem o sentem. Há um ano que não vou mais lá. A ti somente, como estranho, revelo isto.

— Vossas palavras são terríveis! Dizei-me, eminente e bem-aventu­rado padre, é verdade o que relatam de vós nas terras mais longínquas, que estaríeis em relação permanente com o Espírito Santo?

— Ele desce por vezes sobre mim.

— Sob que forma?

— A forma dum pássaro.

— O Espírito Santo sob a forma de uma pomba?

— Isto é o Espírito Santo, sim, mas falo do Santo Espírito, que é diferente. Pode descer sob a forma dum outro pássaro, uma andorinha ou um pintassilgo, por vezes um melharuco.

— Como podeis reconhecê-lo?

— Ele fala.

— Como fala ele, em que língua?

— Na língua humana.

— E que vos diz?

— Hoje, anunciou-me a visita de um imbecil que me faria perguntas ociosas. Monge, és bem curioso.

— Vossas palavras são temíveis, bem-aventurado e venerando padre. — O monge abanava a cabeça, mas a desconfiança aparecia nos seus olhos medrosos.

— Vês aquela árvore? — perguntou, após uma pausa, o Padre Fierapont.

— Vejo-a, bem-aventurado padre.

— Para ti, é um olmo, mas para mim, outro quadro.

— Qual? — E o monge esperou ansiosamente.

— Vês aqueles dois ramos? De noite, por vezes, são os braços do Cristo que se estendem para mim e me procuram, vejo-o claramente e estremeço. Oh! é terrível!

— Por que terrível, se é o próprio Cristo?

— Ele me agarrará e me levará.

— Vivo?

— Não sabes então nada da glória de Elias? Ele vos agarra e vos leva...

Depois dessa conversa, o monge de Obdorsk regressou à cela que lhe haviam designado; estava bastante perplexo, mas seu coração o inclinava mais para o Padre Fierapont que para o Padre Zósima. Nosso monge estimava mais que tudo o jejum e não lhe causava surpresa que um grande jejuador como o Padre Fierapont visse ma­ravilhas. Suas palavras tinham ar de absurdas, evidentemente, mas Deus sabia o que elas significavam e muitas vezes os inocentes, por amor do Cristo, falam e agem duma maneira ainda mais estranha. Sentia prazer em crer sinceramente no diabo e no seu rabo preso, não somente no sentido alegórico, mas literal. Além do mais, desde antes de sua chegada ao mosteiro, tivera grande prevenção contra o "sta-rietismo", que considerava segundo muitos outros como uma inova­ção nociva. Durante o dia passado no mosteiro, pudera notar o mur­múrio secreto de certos grupos frívolos, opostos àquela instituição. Além disso, era uma natureza insinuante e sutil, testemunhando por tudo grande curiosidade. Assim, a notícia do novo "milagre" realizado pelo stáriets Zósima mergulhou-o numa profunda perplexidade. Mais tarde, Aliócha lembrou-se, entre os religiosos que se comprimiam em torno do stáriets e de sua cela, da freqüente aparição daquele hóspede curioso que se intrometia em toda parte, prestando ouvidos e interro­gando todo mundo. Não lhe deu atenção então... Tinha outra grande coisa na cabeça: o stáriets, que voltara a deitar-se, sentindo lassitude, lembrou-se dele ao despertar e reclamou sua presença. Aliócha acorreu. Em redor do moribundo não havia então senão o Padre Paísi, o Padre Iósif e o noviço Porfírio. O velho, fixando Aliócha com seus olhos fatigados, perguntou-lhe:

— Será que os teus te esperam, meu filho? Aliócha ficou embaraçado.

— Não têm eles necessidade de ti? Prometeste a alguém ir vê-lo hoje?

— Prometi a meu pai... a meus irmãos... a outras pessoas tam­bém...

— Estás vendo? Vai imediatamente e não te aflijas. Fica sabendo, não morrerei sem ter pronunciado diante de ti minhas supremas palavras aqui na terra. É a ti que as legarei, meu caro filho, porque sei que me amas. E agora, vai cumprir tua promessa.

Aliócha submeteu-se logo, se bem que lhe custasse afastar-se. Mas a promessa de ouvir as derradeiras palavras de seu mestre, como um legado pessoal, arrebatava-o de alegria. Apressava-se, a fim de poder voltar mais depressa, depois de ter terminado tudo. Justamente, o Padre Paísi lhe dirigiu, antes de sua partida, palavras que o impressionaram profundamente. Foi depois de haverem deixado a cela.

— Lembra-te sempre, rapaz — começou o padre, sem preâmbu­los —, de que a ciência do mundo, tendo-se desenvolvido neste século sobretudo, dissecou nossos livros santos e, após uma análise impiedosa, nada deixou subsistir. Mas, dissecando as partes, perderam de vista o conjunto, e sua cegueira é de causar espanto. O conjunto se ergue diante dos olhos deles, tão inabalável quanto antes, e o inferno não prevalecerá contra ele. Será que o Evangelho não tem dezenove séculos de existência, não vive ainda agora nas almas dos indivíduos e nos movimentos das massas populares? Subsiste mesmo, sempre inabalá­vel, nas almas dos ateus destruidores de toda crença! Porque os que renegaram o cristianismo e se revoltam contra ele, esses mesmos per­maneceram no íntimo à imagem do Cristo, porque nem sua sabedoria nem sua paixão puderam criar outro modelo para o homem, superior ao indicado outrora pelo Cristo. As tentativas neste sentido não passaram de monstruosidades. Lembra-te disto sobretudo, rapaz, pois teu stariets moribundo te envia para o mundo. Talvez lembrando-te deste grande dia, não esqueças minhas palavras, dirigidas para teu bem, porque és jovem, as tentações do mundo são grandes e não tens força para suportá-las. E agora vai, pobre órfão.

Ao terminar, o Padre Paísi deu-lhe sua benção. Refletindo nessas palavras imprevistas, compreendeu Aliócha que encontrara novo amigo e um guia cheio de amor naquele monge até então rigoroso e rude para com ele, como se o stariets Zósima lho houvesse legado ao mor­rer. "Talvez se hajam entendido entre si", pensou Aliócha. A disserta­ção que acabara de ouvir atestava somente o zelo do Padre Paísi: apressava-se em armar aquele jovem espírito para a luta contra as ten­tações e em preservar aquela jovem alma que lhe legavam, elevando em torno dela o baluarte mais sólido que pôde imaginar.

 

ALIÓCHA EM CASA DE SEU PAI

Aliócha começou por ir em primeiro lugar à casa de seu pai. Ao aproximar-se, lembrou-se da recomendação feita na véspera, de entrar sem que Ivã ficasse sabendo. "Por quê?", perguntou a si mesmo. "Se meu pai quer fazer-me uma confidência, é esta uma razão para entrar furtivamente? Queria, sem dúvida, na sua emoção, dizer-me outra coisa ontem e não pôde", decidiu ele. No entanto, sentiu-se satisfeito ao saber de Marfa Ignátievna, que lhe abriu a porta do jardim (Gregório estava deitado, doente), que Ivã saíra havia duas horas.

— E meu pai?

— Levantou-se, está tomando seu café — respondeu a velha. Aliócha entrou. O velho, sentado à sua mesa, de chinelos e com um casaco bastante surrado, examinava contas para se distrair, sem grande interesse de resto. Encontrava-se sozinho na casa, tendo Smierdiákov saído para comprar provisões. Sua atenção estava alhures.

Se bem que se tivesse levantado bem cedo e bancado o corajoso, parecia fatigado, fraco. Sua testa, onde, durante a noite, se haviam formado equimoses, estava enrolada num lenço de seda vermelha. O nariz, muito inchado, dava a seu rosto uma expressão particularmente má, irritada. O velho dava-se conta disso e acolheu Aliócha com um olhar pouco amigável.

— O café está frio — disse ele num tom seco —, não to ofereço. Hoje, meu caro, tenho apenas uma magra sopa de peixe e não con­vido ninguém. Por que vieste?

— Vim saber notícias suas — declarou Aliócha.

— Sim. Aliás, tinha-te pedido ontem que viesses. Tolices tudo isso. Tu te incomodaste em vão. Sabia bem que haverias de vir...

Suas palavras refletiam o sentimento mais hostil. Entretanto, havia-se levantado e examinava ansiosamente seu nariz no espelho (pela quadragésima vez talvez desde a manhã). Arranjou com extremo cuidado seu lenço Vermelho na testa.

— O vermelho assenta melhor, o branco lembra imediatamente o hospital — observou ele, num tom sentencioso. — Pois bem! Que há de novo? Como vai teu stáriets?

— Está muito mal, morrerá talvez hoje — disse Aliócha; mas seu pai não lhe prestou atenção.

— Ivã saiu — disse ele, de repente. — Esforça-se por furtar a noiva de Mítia. Por isso é que permanece aqui — acrescentou com raiva, a boca contraída, olhando Aliócha.

— Ele mesmo lho disse?

— Desde muito tempo, há já três semanas. Não foi para assas­sinar-me às ocultas que ele veio; tem pois um fito.

— Como! Por que diz isso? — perguntou Aliócha, com angústia.

— Não pede dinheiro, é verdade; aliás, não terá nada. Eu, meu caríssimo Alieksiéi Fiódorovitch, tenho a intenção de viver o mais tempo possível, toma nota disso; assim, tenho necessidade de todo o meu dinheiro, e quanto mais avançar em idade, mais precisarei — continuou Fiódor Pávlovitch, com as mãos nos bolsos de seu casa­co manchado, de durante amarela. '— Agora, aos 55 anos, conservo minha força viril, e conto bem que isso durará ainda vinte anos; ora, envelhecerei, tornar-me-ei repulsivo, as mulheres não virão mais de boa-vontade; então, precisarei de dinheiro. Eis por que, agora, amealho o mais possível, para mim só, meu caro filho Alieksiéi Fiódo­rovitch, fica sabendo bem, porque quero viver até o fim na libertinagem. É a existência mais agradável; todo mundo deblatera contra ela e todo mundo nela vive, mas às ocultas, e eu, em pleno dia. É por causa de minha franqueza que todos os canalhas me caíram em cima. Quanto ao teu paraíso, Alieksiéi Fiódorovitch, fica sabendo que não o quero, é até mesmo inconveniente para um homem às direitas, se é que existe. A gente dorme para não mais despertar, eis minha idéia. Manda dizer uma missa por mim, se quiseres, senão, que o diabo te leve! Eis minha filosofia. Ontem, Ivã falou bem a este respeito, no entanto, estávamos bêbedos. É um falador despro­vido de erudição... não tem instrução, cala-se e ri da gente em silêncio, eis todo o seu talento.

Aliócha escutava sem dizer palavra.

— Por que não me fala ele? E, quando fala, faz-se malicioso; é um miserável o teu Ivã! Casarei imediatamente com Grúchenhka, se quiser. Porque com dinheiro basta querer. Alieksiéi Fiódorovitch, tem-se tudo. É disto que Ivã tem medo, vigia-me para impedir meu casamento, e com este fito impele Mítia a fazer dela sua esposa; dessa maneira, entende preservar-me de Gruchka (na esperança de herdar, se não me casar com ela!); por outra parte, se Mítia se casar com ela, toma-lhe Ivã sua rica noiva, eis seu cálculo! É um miserável o teu Ivã!

— Como está o senhor irascível! É o resultado de ontem; o senhor deveria deitar-se — disse Aliócha.

— Tuas palavras não me irritam — observou o velho —, ao passo que vindas de Ivã me zangariam; somente contigo tenho tido bons momentos, porque sou mau.

— O senhor não é mau, o senhor tem é o espírito corrompido — sorriu Aliócha.

— Pois seja, eu queria mandar prender aquele bandido do Mítia e agora não sei que partido tomar. Sem dúvida, em nosso tempo, passa por preconceito respeitar pai e mãe; entretanto, as leis não per­mitem ainda arrastar um pai pelos cabelos, bater-lhe no rosto com golpes de botas, em sua própria casa, e ameaçá-lo, diante de teste­munhas, de vir liquidá-lo. Se eu quisesse, domá-lo-ia e poderia man­dá-lo prender por causa da cena de ontem.

— Então, não quer dar queixa?

— Ivã dissuadiu-me disso. Zombo de Ivã, mas há uma coisa... Inclinou-se para Aliócha e continuou num tom confidencial:

— Se mandar prender o canalha, ela ficará sabendo e correrá para ele. Mas se souber que ele quase me mata, a mim, débil velho, aban­doná-lo-á talvez e virá ver-me... Tal é seu caráter, só age contraditoriamente. Conheço-a a fundo! Não queres conhaque? Toma café frio, servir-te-ei um quarto de cálice, isto dá bom gosto.

— Não, obrigado. Levarei este pão, se o permitir — disse Alió­cha, pegando um pãozinho francês de 3 copeques, que meteu no bolso de sua batina. — O senhor não deveria beber mais conhaque — aconselhou, timidamente, lançando uma olhadela furtiva para o velho.

— Tens razão, isto irrita. Mas só um copinho...

Abriu o armário, serviu-se um copinho, tornou a fechar o armário e a pôr a chave no bolso.

— Isto basta, não rebentarei por causa dum copinho...

— Ei-lo melhor!

— Hum! Gosto de ti, mesmo sem conhaque, e sou um canalha para os canalhas! Ivã não parte para Tchermachniá porque tem inten­ção de espionar-me. Quer saber quanto darei a Grúchenhka, se ela vier. Todos uns miseráveis! Aliás, renego Ivã, não o compreendo. Donde vem ele? Sua alma não é como a nossa. Conta com minha herança. Mas não deixarei testamento, fica sabendo. Quanto a Mítia, eu o esmagarei como a uma barata; faço-as rebentar à noite sob meu chinelo; teu Mítia rebentará da mesma maneira. Digo "teu" Mítia porque o amas. mas isto não me faz medo. Se fosse Ivã que o amasse, temeria por mim mesmo. Mas Ivã não ama ninguém, não é dos nossos, as pessoas como ele, meu caro, não são semelhantes a nós, são poeira... Se o vento sopra, essa poeira se levanta... Foi uma fan­tasia que se apoderou de mim ontem, quando te disse que viesses hoje; queria informar-me por meio de ti a respeito de Mítia; será que em troca de 1 000 ou 2 000 rublos aquele tratante, aquele ban­dido, consentiria em ir-se daqui por cinco anos, ou melhor, por 35 anos, e em renunciar a Grúchenhka? Hein?

— Eu... eu lhe perguntarei — murmurou Aliócha. — Por 3 000 rublos, talvez ele...

— Não, senhor! Não é preciso perguntar nada agora! Mudei de idéia. Foi um capricho que me deu ontem. Não darei nada. nem 1 níquel, eu mesmo tenho necessidade de meu dinheiro. (O velho teve um gesto expressivo. ) De qualquer maneira, esmagá-lo-ei como a uma barata. Não lhe digas nada, senão vai imaginar coisas. Mas tu mesmo nada tens a fazer em minha casa, vai-te. E sua noiva, Catarina Ivânovna, que sempre ocultou de mim tão cuidadosamente, casar-se-á com ela ou não? Estavas ontem em casa dela, certo?

— Ela não quer abandoná-lo por preço nenhum.

— Eis os indivíduos a quem essas ternas senhoritas amam: farristas, malandros! Não valem nada essas pálidas criaturas. Que idéia! Pois bem, se tivesse a juventude dele e meu corpo de então (porque aos 28 anos era melhor do que ele), lograria o mesmo êxito. Cana­lha, sim!... Mas não terá Grúchenhka, não a terá... Eu o esma­garei...

Tornou-se de novo colérico ao proferir estas últimas palavras.

— Vai-te também, nada tens a fazer em minha casa hoje — disse, secamente.

Aliócha aproximou-se dele para despedir-se e beijou-o no ombro.

— Por quê? — espantou-se o velho. — Nós nos tornaremos a ver, ou pensas que é a derradeira vez?

— Absolutamente, foi por acaso...

— Eu também... digo isto por dizer... — declarou o velho, fitando-o. — Escuta, escuta — gritou ele às costas de Aliócha —, volta em breve, haverá uma sopa de peixe famosa, não como hoje. Vem amanhã, ouviste?

Assim que Aliócha saiu, voltou o velho ao armário e tomou meio copo.

— Basta — murmurou ele, resfolegando. Tornou a fechar o armá­rio, repôs a chave no bolso, depois, já sem forças, foi estender-se sobre seu leito, onde adormeceu imediatamente.

 

O ENCONTRO COM OS COLEGIAIS

"Felizmente meu pai não me fez perguntas a respeito de Grú­chenhka", dizia a si mesmo Aliócha, dirigindo-se para a casa da Se­nhora Khokhlakova. "Teria sido preciso contar-lhe o encontro de ontem com ela. "Pensava com pesar que, durante a noite, os adversários haviam retomado forças, que seus corações estavam de novo endure­cidos. "Meu pai está irritado e cheio de maldade, continua ancorado em sua idéia. Dimítri também se reafirmou e deve ter um plano... É absolutamente preciso que o encontre hoje... "

Mas as reflexões de Aliócha foram interrompidas por um inci­dente que o impressionou, malgrado sua pouca importância. Ao apro­ximar-se da Rua de São Miguel, paralela à Rua Grande, da qual só estava separada por um riacho (nossa cidade é cortada por ele), avistou lá embaixo, diante do passadiço, um pequeno grupo de cole­giais, meninos de nove a doze anos no máximo. Voltavam para suas casas após as aulas, carregando suas sacolas a tiracolo ou amarradas nas costas por meio de correias; uns tinham apenas uma jaque­ta, outros, sobretudos; alguns calçavam botas dessas pregueadas, com as quais gostam de exibir-se os meninos mimados por pais abastados. O grupo discutia com animação, parecia manter conselho. Aliócha interessava-se sempre pelas crianças que encontrava (era o caso em Moscou) e, muito embora preferisse os bebês de três anos, os esco­lares de dez e de onze lhe agradavam muito. Assim, malgrado sua preocupação, quis abordá-los, entrar em conversa com eles. Ao apro­ximar-se, observava-lhes os rostos vermelhos e notou que todos os meninos tinham uma pedra na mão e até mesmo duas. Do outro lado do riacho, a cerca de trinta passos, mantinha-se, encostado a uma paliçada, um escolar, com sua sacola sobre o quadril, parecendo ter no máximo uns dez anos, pálido, de ar doentio, com olhos negros que cintilavam. Esquadrinhava com o olhar os seis colegiais, seus camaradas, com os quais parecia estar brigado. Aliócha avançou e, dirigindo-se a um menino de cabelos cacheados, louro, corado, de jaqueta preta, observou, olhando-o:

— Quando eu tinha tua idade, carregava-se a sacola do lado es­querdo, a fim de alcançá-la com a mão direita; mas a tua está do lado direito, não deve ser cômodo.

Sem nenhuma premeditação, começara Aliócha com essa observa­ção prática; um adulto não pode proceder de outra forma, se quer ganhar a confiança de uma criança e sobretudo dum grupo de crian­ças. Era preciso começar seriamente, praticamente, para ficar em pé de igualdade. Instintivamente, dava-se Aliócha conta disso,

— Ele é canhoto — respondeu logo outro menino de onze anos, de ar resoluto.

Os cinco outros fitavam Aliócha.

— Ele atira pedras com a mão esquerda — notou um terceiro.

No mesmo instante, foi lançada uma pedra contra o grupo, roçan­do pelo canhoto, mas foi perder-se adiante, embora atirada com habi­lidade e vigor. Fora lançada pelo menino colocado do outro lado do riacho.

— Duro com ele, acerta bem, Smúrov! — gritaram todos. O ca­nhoto não se fez de rogado e retribuiu imediatamente; não teve êxito e sua pedra bateu no chão. O adversário ripostou com um seixo que atingiu Aliócha bastante rudemente no ombro. Via-se a trinta passos que aquele garoto tinha os bolsos de seu sobretudo cheios de pedras..

— Foi no senhor, no senhor; fez pontaria de propósito no senhor. Porque o senhor é um Karamázov — exclamaram os meninos, desa­tando a rir. — Vamos, todos ao mesmo tempo contra ele, fogo!

Seis pedras voaram juntas. Atingindo na cabeça, o garoto caiu, mas para se levantar logo e responder com encarniçamento. Dos dois lados houve um bombardeio ininterrupto; muitos", no grupo, tinham tam­bém seus bolsos cheios de projéteis.

— Mas como é isso? Não têm vergonha, meus amigos? Seis con­tra um! Vão matá-lo! — exclamou Aliócha.

Correu para a frente, a fim de se expor aos projéteis, protegendo assim o garoto do outro lado do riacho. Três ou quatro pararam por um minuto.

— Foi ele quem começou! — gritou com voz irritada um meni­no de blusa vermelha; é um bandido; ainda há pouco feriu na aula Krasótkin com seu canivete, correu sangue, Krasótkin não quis fazer queixa; é preciso dar uma surra nele...

— Mas por quê? Precisam mesmo persegui-lo?

— Ele atirou outra pedra nas costas do senhor. Ele o conhece — gritaram os meninos. — É contra o senhor que está fazendo ponta­ria agora. Vamos, todos de novo contra ele, não deixe de acertar, Smúrov!...

O bombardeio recomeçou, desta vez implacável. O garoto, sozi­nho, recebeu uma pedrada no peito; lançou um grito, pôs-se a cho­rar, fugiu pela subida para a Rua de São Miguel. No grupo vocife­rava-se: "Ah! ele teve medo, fugiu, aquele 'esfregão de tília'!"

— O senhor ainda não sabe, Karamázov, como ele é ruim; seria pouco matá-lo — repetiu o menino de jaqueta, de olhos ardentes, e que parecia ser o mais velho.

— É um linguarudo? — perguntou Aliócha.

Os meninos trocaram olhares com ar zombeteiro.

— O senhor vai pela Rua de São Miguel? — continuou o mesmo. — Então, alcance-o... Veja, parou de novo; espera e olha para o senhor.

— Olha para o senhor, olha para o senhor! — repetiram os me­ninos.

— Pergunte-lhe então se ele gosta de um esfregão de tília desman­chado. Entendeu? Pergunte assim.

Houve então uma explosão geral de gargalhadas. Aliócha e os me­ninos cruzavam olhares.

— Não vá lá, ele o ferirá — gritou, solícito, Smúrov.

— Meus amigos, não farei a ele a pergunta a respeito do esfregão de tília, porque é com isso que vocês o maltratam, mas me infor­marei com ele do motivo pelo qual vocês o odeiam tanto...

— Informe-se, informe-se — gritaram os meninos, rindo-se. Aliócha transpôs o passadiço e subiu a ladeira ao longo da paliçada, diretamente para o lado de seu agressor.

— Atenção — gritaram-lhe —, ele não tem medo do senhor e vai atingi-lo à traição, como fez com Krasótkin.

O menino esperava-o imóvel. Chegando bem perto, encontrou-se Aliócha diante de um menino de nove anos, fraco, raquítico, de rosto oval, pálido, magro, com grandes olhos escuros que o olhavam cheios de ódio. Vestia um velho sobretudo bastante gasto e muito curto. Seus braços nus saíam de suas mangas. Havia um grande remendo no joelho direito de sua calça e, dissimulado com tinta, um buraco no seu sapato do pé direito, no lugar do dedo grande. Os bolsos do sobretudo estavam cheios de pedras. Aliócha parou a dois passos, olhando com ar interrogador. O garoto, adivinhando pelos olhos de Aliócha que não tinha este intenção de bater-lhe, retomou coragem e falou em primeiro lugar:

— Eu estava sozinho contra seis... Hei de matá-los todos — disse ele, com olhar faiscante.

— Uma pedrada deve ter-lhe feito bastante mal — observou Aliócha.

— Mas eu acertei bem na cabeça de Smúrov! — replicou ele.

— Disseram-me que você me conhecia e atirou-me a pedra de propósito — disse Aliócha.

O menino olhava-o com um olhar sombrio.

— Não o conheço. Você me conhece? — continuou Aliócha.

— Deixe-me tranqüilo! — gritou, de súbito, o menino com voz irritada, mas sem sair de seu lugar, como na expectativa de alguma coisa, o olhar hostil.

— Está bem, vou-me embora — disse Aliócha —, mas não o conheço e não quero importuná-lo. No entanto, seus colegas me dis­seram como deveria eu fazer. Adeus.

— Seu fradeco! — gritou o garoto, acompanhando Aliocha com o mesmo olhar cheio de ódio e provocante; pôs-se na defensiva, acre­ditando que Aliocha iria lançar-se contra ele, mas aquele voltou-se, olhou-o e seguiu seu caminho. Não havia dado uns três passos quan­do recebeu nas costas o mais grosso dos seixos que enchiam o bolso do sobretudo.

— Como? Por trás? É então verdade o que eles dizem, que você ataca como traidor?

Aliocha voltou-se; visado no rosto, teve tempo de prevenir-se e novo projétil atingiu-o no cotovelo. — Não tem vergonha? Que lhe fiz eu? — exclamou ele.

O garoto esperava, silencioso e agressivo, persuadido de que, da­quela vez, Aliocha lhe cairia em cima; vendo que sua vítima não se movia, ficou furioso como uma pequena fera e avançou. Antes que Aliocha tivesse podido fazer um movimento, o diabrete agarrou-lhe a mão esquerda e mordeu-lhe cruelmente um dedo. Aliocha lançou um grito de dor, esforçando-se por livrar-se. O garoto largou-o por fim, recuando para a distância anterior. A mordidela, perto da unha, era profunda, o sangue corria. Aliocha tirou seu lenço, enro­lando com ele apertadamente sua mão ferida. Isto levou cerca de um minuto. Entretanto o menino esperava. Aliocha baixou sobre ele um olhar calmo.

— Está bem — disse ele —, veja como me mordeu profunda­mente. Isto basta, creio. Agora, diga-me, que lhe fiz eu?

O menino fitou-o, surpreso.

— Não o conheço absolutamente e vejo-o pela primeira vez — prosseguiu Aliocha, com a mesma calma —, mas devo ter-lhe feito alguma coisa, do contrário não me teria você agredido por coisa nenhuma. Vamos, diga-me, que lhe fiz eu e que culpa cometi para com você?

Como resposta, o menino pôs-se a soluçar e fugiu. Aliocha se­guiu-o lentamente pela Rua de São Miguel e avistou-o ainda por muito tempo, correndo e chorando, sem se voltar. Prometeu a si mesmo, desde que tivesse tempo, tornar a encontrá-lo, para escla­recer aquele enigma.

 

EM CASA DAS SENHORAS KHOKHLAKOVI

Não demorou a chegar à residência da Senhora Khokhlakova, cuja casa de pedra, de um andar, era uma das mais belas de nossa cidade. Se bem que vivesse ela a maior parte do tempo numa propriedade situada em outra província, e em sua casa de Moscou, possuía uma em nossa cidade, que lhe vinha de sua família. De resto, a maior de suas três propriedades encontrava-se em nosso distrito, mas só raramente havia ela vindo à nossa província. Acorreu ao encontro de Aliocha no vestíbulo.

— Recebeu minha carta a propósito do novo milagre? — pergun­tou ela, nervosamente.

— Sim, recebi-a.

— Fê-la circular, mostrou-a a todos? Ele restituiu um filho à sua mãe!

— Morrerá hoje — disse Aliócha.

— Sei. Oh! como gostaria de falar de tudo isso, com você ou com um outro! Não, com você, com você! E dizer que não posso vê-lo! É pena. Toda a cidade está emocionada, todos estão na expec­tativa. A propósito... sabe que Catarina Ivânovna acha-se neste momento em nossa casa?

— Ah! que feliz encontro! — exclamou Aliócha. — Ontem reco­mendou-me que viesse vê-la sem falta.

— Sei, sei. Contaram-me pormenorizadamente o que se passou ontem... aquela cena horrível com aquela... criatura. C'est ira-gique! No lugar dela, não sei o que teria feito. E seu irmão, Dimítri Fiodorovitch, que homem, meu Deus! Alieksiei Fiodorovitch, estou-me atrapalhando; imagine que seu irmão está aqui, isto é, não aquela terrível personagem, mas o outro, Ivã Fiodorovitch. Está tendo uma conversa solene com Catarina Ivânovna... Se você soubesse o que se passa entre eles, é terrível, é dilacerante, é um conto inverossímil; atormentam-se com prazer, eles mesmos o sabem e disso extraem um gozo acre. Eu o esperava, tinha sede de você! Sobretudo, não posso suportar isso. Vou contar-lhe tudo, mas há outra coisa, essencial. Ah! tinha esquecido de que era o essencial. Diga-me, por que Lisa está com uma crise nervosa? Ficou assim logo que foi informada de sua chegada.

— Mamãe, é a senhora quem está agora numa crise, e não eu — gorjeou de repente a voz de Lisa, que vinha do quarto vizinho, através da porta entreaberta. A abertura era exígua e a voz aguda, tal como quando se tem uma violenta vontade de rir e se faz esforço para reprimi-la. Aliócha notara aquela fenda, por onde Lisa devia examiná-lo de sua cadeira, sem que ele pudesse dar-se conta disso.

— Pode bem dar-se, Lisa, que esteja eu com uma crise, diante de teus caprichos, e, no entanto, Alieksiei Fiodorovitch, esteve ela bastante doente a noite inteira: febre, gemidos! Com que impaciên­cia esperei o raiar do dia e a chegada do Doutor Herzenstube! Diz ele que não compreende nada, que é preciso esperar. Quando vem, repete sempre a mesma coisa. Assim que o senhor entrou, lançou ela um grito e quis ser transportada para seu antigo quarto...

— Mamãe, eu não sabia absolutamente que ele vinha; não foi para evitá-lo que quis passar para meu quarto.

— Não é verdade, Lisa, Iúlia tocaiava a chegada de Alieksiei Fio­dorovitch e correu a anunciar-te a chegada dele.

— Querida mamãezinha, não está direito isso, de sua parte; se quer dizer algo de mais espirituoso, diga ao nosso caro visitante, Alieksiei Fiodorovitch, que demonstrou ele sua falta de espírito somente com decidir vir à nossa casa, depois do dia de ontem, e apesar de toda gente zombar dele.

— Lisa, vais longe demais, e asseguro-te que recorrerei a medidas rigorosas. Ninguém zomba dele, estou tão contente por ter ele vindo! É-me necessário, indispensável. Oh! Alieksiei Fiodorovitch, quanto sou infeliz!

— Que tem então a senhora, mamãezinha?

— O que me mata, Lisa, são teus caprichos, tua inconstância, rua doença, essa terrível noite de febre, aquele horrendo, aquele eterno Herzenstube, e enfim tudo, tudo... E depois esse milagre! Oh! como ele me impressionou, me transtornou, querido Alieksiei Fiodorovitch!

E aquela tragédia no salão, que não posso suportar, afirmo-lhe, é impossível. Uma comédia, talvez, e não uma tragédia. Diga-me, o stáriets Zósima viverá até amanhã? Oh! meu Deus! Que é que me acontece? Fecho os olhos a cada instante e digo a mim mesma que tudo é absurdo, absurdo.

— Ficar-lhe-ia muito grato — interrompeu-a de repente Aliócha — se me desse um pedacinho de pano para pensar meu dedo; feri-me e está-me doendo muito.

Aliócha descobriu seu dedo mordido, o lenço cheio de sangue. A Senhora Khokhlakova lançou um grito, fechou os olhos.

— Meu Deus! Que ferimento, é horrível!

Assim que Lisa viu o dedo de Aliócha através da fenda, escanca­rou a porta.

— Venha, venha ter comigo — disse ela, com uma voz imperiosa —, agora, chega de tolices! Oh! Deus! Por que ficou tanto tempo sem nada dizer? Teria ele podido perder todo o seu sangue, mamãe! Onde e como lhe aconteceu isso? Antes de tudo água, água! É pre­ciso lavar a ferida, mergulhar o dedo na água fria para fazer cessar a dor e conservá-lo ali muito tempo... Depressa, água, mamãe, numa tigela! Mais depressa, vamos — disse ela, com um movimento nervoso. Estava bastante amedrontada; a ferida de Aliócha conster­nava-a.

— Não será preciso ir chamar Herzenstube? — exclamou a mãe.

— Mamãe, a senhora me mata. Seu doutor virá para dizer que não compreende nada! Água, água, mamãe, pelo amor de Deus! Vá a senhora mesmo estimular Iúlia, que se retardou não sei onde; nunca pode chegar a tempo! Mais depressa, mamãe, ou eu morro... morro...

— Mas é uma coisa de nada! — exclamou Aliócha, espantado com aquele terror.

Iúlia acorreu com a água. Aliócha mergulhou nela o dedo.

— Mamãe, suplico-lhe, traga um pouco de gaze e daquela água turva para cortes, como é que se chama? Temos dela, temos dela... mamãe, a senhora sabe onde está o frasco, no seu quarto de dormir, no armário à direita; há um grande frasco e fios.

— Imediatamente, Lisa, mas não grites, não te enerves. Tu vês com que coragem Alieksiéi Fiódorovitch suporta sua dor. Onde se feriu o senhor assim, Alieksiéi Fiódorovitch?

Ela saiu imediatamente. Lisa só esperava por isso.

— Antes de tudo, responda à minha pergunta — disse ela rapi­damente. — Onde pôde ferir-se assim? Depois falaremos de outra coisa. Vamos!

Adivinhando que o tempo se tornava precioso, Aliócha fez-lhe uma narrativa exata, se bem que resumida, de seu estranho encontro com os colegiais. Depois de havê-lo escutado, Lisa juntou as mãos.

— Como pode você, e ainda mais com esse hábito, andar às voltas com garotos? — exclamou ela, encolerizada, como se tivesse direitos sobre ele. — Mas, afinal, não passa você mesmo de um garoto, o menor dentre eles. No entanto, não deixe de informar-se a respeito desse diabrete e conte-me tudo; deve haver nisso um se­gredo. Outra coisa agora. Poderia você, malgrado sua dor, falar discretamente a respeito de bagatelas, Alieksiéi Fiódorovitch?

— Mas sim, aliás não me está doendo mais tanto.

— É porque seu dedo está dentro da água. É preciso mudá-la ime­diatamente, ela esquentará. Iúlia, vai procurar um pedaço de gelo na adega e nova tigela com água. Já se foi ela, abordo o assunto. Meu querido Alieksiéi Fiódorovitch, queira entregar-me imediatamente minha carta, mamãe pode voltar dum minuto para outro, e eu não quero...

— Não a tenho comigo.

— Não é verdade, tem sim, estava certa de que você me daria essa resposta. Lamentei tanto a noite inteira aquela estúpida pilhéria! Entregue-me minha carta agora mesmo. Entregue-ma!

— Deixei-a em casa!

— Você não pode tomar-me por uma meninota, depois da tola pilhéria de minha carta. Peço-lhe perdão! Mas traga-ma; se verdadei­ramente não está com você, traga-a hoje sem falta.

— Hoje, é impossível, porque volto para o mosteiro e não voltarei a vê-la por dois dias, três ou quatro talvez, porque o stariets Zó-sima...

— Quatro dias, que absurdo! Escute, riu muito de mim?

— Absolutamente.

— Por que então?

— Porque acreditei em você, absolutamente.

— Você me ofende!

— De modo algum. Pensei, imediatamente depois de ter lido, que isto se daria, porque desde que o stariets tiver morrido, terei de deixar o mosteiro. Em seguida acabarei meus estudos, farei meus exames e depois do prazo legal casar-nos-emos. Amá-la-ei bastante. Embora não tenha tido tempo de pensar nisso, refleti que não encon­traria jamais uma mulher melhor que você e o stariets ordena que eu me case..

— Sou um monstro, fazem-me rodar numa cadeira! — objetou, rindo, Lisa, com as faces incendidas.

— Eu mesmo a farei rodar, mas estou certo de que até lá estará você restabelecida.

— Mas você está louco! — proferiu Lisa, nervosamente. — Tirar tal conclusão duma simples brincadeira!... Aí vem mamãe, talvez muito a propósito. Mamãe, como se pode demorar tanto tempo?! E eis Iúlia que traz o gelo.

— Ah! minha Lisa, não grites, não grites principalmente. Tenho a cabeça rebentada... é culpa minha que hajas posto os fios noutro lugar?... Procurei, procurei... Suponho que o fizeste de propósito.

— Eu não podia adivinhar que ele chegaria com um dedo mor­dido, se soubesse tê-lo-ia feito de propósito. Minha querida mamãe, a senhora começa a dizer coisas muito espirituosas.

— Espirituosas? Pois seja. Mas quanta pena do dedo de Alieksiéi Fiódorovitch, Lisa, e de tudo isso! Oh! meu caro Alieksiéi Fiódoro­vitch, não são os detalhes que me matam, nem um Herzenstube qualquer, mas tudo junto, tudo reunido, eis o que não posso suportar.

— Basta de tanto Herzenstube, mamãe — continuou Lisa, com um riso jovial —, dê-me mais depressa a gaze e a água. É muito simples, "água branca", Alieksiéi, o nome me ocorre, um excelente remédio. Mamãe, imagine a senhora que ele brigou com garotos na rua e foi um que lhe deu uma dentada; não é ele mesmo um garotinho e poderá ele casar-se, mamãe, depois dessa aventura? Porque, imagine a senhora, ele quer casar-se! Pode imaginá-lo casado? Não é de morrer de rir?

E Lisa ria, aquela sua risadinha nervosa, olhando maliciosamente para Aliócha.

— Mas como haveria ele de casar-se, Lisa, que coisa sem pé nem cabeça! É muito fora de propósito de tua parte... Aquele garoto poderia estar danado!

— Ah! mamãe, há crianças danadas?

— Por que não, Lisa? Nem que estivesse eu dizendo uma boba­gem! Aquele garoto foi mordido por um cão danado, ele mesmo ficou danado, passa a morder alguém por sua vez. Como o curou bem ela, Alieksiéi Fiódorovitch! Eu nunca teria podido fazê-lo assim. Sente dor?

— Muito pouca.

— Não tem medo da água? — perguntou Lisa.

— Basta, Lisa, falei talvez demasiado apressadamente de raiva, a propósito daquele garoto, e tu concluis Deus sabe o quê. Catarina Ivânovna acaba de saber de sua chegada, Alieksiéi Fiódorovitch. Deseja ardentemente vê-lo.

— Ah! mamãe, vá sozinha; ele não pode ainda, sofre demais.

— Não estou sofrendo absolutamente, posso ir muito bem — pro­testou Aliócha.

— Como? Vai-se embora? Ah! é assim?

— Pois bem, quando terminar, voltarei e poderemos tagarelar tanto quanto você queira. Tenho pressa de ver Catarina Ivânovna, porque desejo voltar o mais cedo possível para o mosteiro.

— Mamãe, leve-o bem depressa. Alieksiéi Fiódorovitch, não se dê ao trabalho de vir ter comigo depois de ter visto Catarina Ivânovna. Volte direto para seu mosteiro, é sua vocação! Eu estou com vontade de dormir, passei a noite em claro.

— Ah! Lisa, estás brincando, decerto, mas se dormisses deveras?

— Ficarei ainda uns três minutos, até mesmo cinco, se você quiser — balbuciou Aliócha.

— Leve-o, pois, depressa, mamãe, é um monstro.

— Lisa, perdeste a cabeça. Vamos, Alieksiéi Fiódorovitch, está ela demasiado caprichosa hoje, tenho medo de enervá-la. Oh! que desgraça uma mulher nervosa, Alieksiéi Fiódorovitch! Mas talvez tenha ela realmente vontade de dormir. Como sua presença a inclinou depressa para o sono! Que coisa boa!

— Mamãe, como fala gentilmente a senhora! Dou-lhe um beijinho por isso.

— Eu também, Lisa. Escute, Alieksiéi Fiódorovitch — cochichou ela com um ar misterioso, importante, afastando-se com o rapaz —, não quero influenciá-lo, nem erguer o véu; vá ver você mesmo o que se passa: é terrível. A comédia mais fantástica; ela ama seu irmão Ivã Fiódorovitch e trata de persuadir-se de que está apaixonada por Dimítri Fiódorovitch. É horrível! Acompanho-o, e, se quiserem, esperarei.

 

O TUMULTO NO SALÃO

A conversa no salão tinha terminado; Catarina Ivânovna, superexcitada, mostrava, no entanto, um ar resoluto. Quando Aliócha e a Senhora Khokhlakova entraram, Ivã Fiódorovitch levantava-se para partir. Estava um pouco pálido e seu irmão examinou-o com inquie­tação. Aliócha encontrava agora a solução para uma dúvida, para um enigma que o atormentava desde algum tempo. Por diversas vezes, desde um mês, tinham-lhe sugerido que seu irmão Ivã amava Catarina Ivânovna, e sobretudo que estava ele a "tomá-la" de Mítia. Até então parecera isto monstruoso a Aliócha, inquietando-o fortemente. Amava seus dois irmãos e aterrorizava-se com a rivalidade deles. Entretanto, Dimítri havia-lhe declarado na véspera que se sentia feliz por ter como rival seu irmão, que isso lhe prestava grande, serviço. Em quê? Para se casar com Grúchenhka? Mas era essa resolução desesperada. Além disso, crera Aliócha firmemente, até a véspera à noite, no amor apai­xonado e obstinado de Catarina Ivânovna por Dimítri, até a véspera à noite somente. Parecia-lhe também que ela não podia amar um homem como Ivã, mas que amava Dimítri tal como ele era, malgrado a estranheza de tal amor. Mas, durante a cena com Grúchenhka, suas impressões tinham mudado. A palavra "dilacerante", empregada havia pouco pela Senhora Khokhlakova, perturbava-o, porque na noite passada, semi-acordado ao raiar do dia, pronunciara-a ele duas vezes, provavel­mente sob a impressão de seu sonho; a noite inteira revira aquela cena. Agora, a afirmação categórica da Senhora Khokhlakova de que a moça amava Ivã, que seu amor por Dimítri não passava de um logro, de um amor de empréstimo que ela se infligia por jogo, por "dilaceramento", sob o império da gratidão, essa afirmação impres­sionava Aliócha: 'Talvez seja verdade!" Mas, então, qual era a situação de Ivã? Aliócha adivinhava que um caráter como o de Catarina Ivâ­novna tinha necessidade de dominar; ora, aquele domínio não podia exercer-se senão sobre Dimítri, e não sobre Ivã. Porque somente Dimítri (suponhamos que só por pouco tempo) poderia enfim sub­meter-se a ela "para sua felicidade" (isso teria desejado também Alió­cha), mas Ivã não o poderia; aliás, essa submissão não o teria tornado feliz. Tal era a idéia que Aliócha fazia involuntariamente de Ivã. Era presa dessas hesitações e dessas reflexões ao entrar no salão. Outra idéia se impôs a ele de repente: "E se ela não amasse nem a um nem a outro?" Notemos que Aliócha tinha vergonha de tais pensamentos e censurava a si próprio, quando por vezes lhe sobrevinham, no derradeiro mês. "Que entendo eu do amor e das mulheres e como posso tirar tais conclusões?", dizia a si mesmo, depois de cada conjectura. Entretanto, a reflexão se impunha. Adivinhava que aquela rivalidade era capital no destino de seus dois irmãos. "Os répteis devorar-se-ão um ao outro", dissera ontem Ivã na sua irritação, a propósito de seu pai e de Dimítri. Assim, era Dimítri um réptil aos olhos dele, desde muito tempo talvez. Não seria depois que ele próprio viera a conhecer Catarina Ivânovna? Aquelas palavras haviam, sem dúvida, escapado a Ivã involuntariamente, mas eram por isso mesmo mais graves. Naquelas condições, que paz, que paz poderia haver? Não eram, pelo contrário, novos motivos de ódio e de inimizade na família deles? Sobretudo, a quem deveria ele, Aliócha, lamentar? E que de­sejar a cada um deles? Amava-os igualmente, mas o que desejar aos dois, entre tão temíveis contradições? Era caso de perder-se naquele labirinto e o coração de Aliócha não podia suportar a incerteza, porque seu amor tinha sempre um caráter ativo. Incapaz de, amar passivamente, sua afeição traduzia-se em uma ajuda. Mas, para isso, era preciso ter um fito, saber claramente o que convinha a cada um e ajudá-los em conseqüência. Em lugar desse fito, só havia confusão e embrulhada. Tinha-se falado em "dilaceramento". Mas que poderia ele compreender, até mesmo desse dilaceramento'' Não compreendia a primeira palavra daquele enigma!

Vendo Aliócha, Catarina Ivânovna disse vivamente a Ivã Fiódorovitch, que se levantara para partir:

— Um instante! Quero ter a opinião de seu irmão, em quem tenho plena confiança. Catarina Óssipovna, fique também — continuou ela, dirigindo-se à Senhora Khokhlakova. Esta se colocou ao lado de Ivã Fiódorovitch, e Aliócha, em frente, perto da moça.

— Eis meus amigos, os únicos que tenho no mundo — começou ela com uma voz ardente em que tremiam lágrimas de sincera dor, e Aliócha sentiu-se de novo atraído para ela. — Você, Alieksiéi Fió­dorovitch, assistiu ontem àquela cena horrível, viu-me. Ignoro o que pensava de mim, mas sei que nas mesmas circunstâncias minhas pa­lavras e meus gestos seriam idênticos. Deve lembrar-se de ter-me con­tido... (Ao dizer isto, corou e seus olhos cintilaram. ) Declaro-lhe, Alieksiéi Fiódorovitch, que não sei que partido tomar. Ignoro se à amo agora, a ele. Causa-me compaixão, o que é uma ruim marca de amor. Se o amasse, se continuasse a amá-lo, não seria compaixão, mas ódio o que sentiria eu agora...

Sua voz tremia, lágrimas brilhavam em seus cílios. Aliócha estava comovido; aquela moça era leal, sincera, pensava ele, e... não ama mais Dimítri.

— É isto! É isto mesmo! — exclamou a Senhora Khokhlakova.

— Espere, cara Catarina Óssipovna. Não lhe disse o essencial, a decisão que tomei esta noite. Sinto que minha resolução é talvez terrível, para mim, mas pressinto que não a mudaria por preço ne­nhum. Meu caro conselheiro, bom e generoso, meu confidente, o único amigo que tenho no mundo, Ivã Fiódorovitch, aprova-me inteiramente e louva minha resolução...

— Sim, aprovo-a — disse Ivã, em voz baixa, mas firme.

— Mas desejo que Aliócha — desculpe-me chamá-lo assim —, desejo que Alieksiéi Fiódorovitch me diga agora, diante de meus dois amigos, se tenho razão ou não. Adivinho que você, Aliócha, meu caro irmão (porque o é) — repetia ela com arrebatamento, agarrando-lhe a mão gelada com a sua ardente —, adivinho que sua decisão, sua aprovação me tranqüilizarão, malgrado meus sofrimen­tos, porque após suas palavras acalmar-me-ei e resignar-me-ei, pres­sinto-o!

— Ignoro o que me vai pedir — disse Aliócha, corando. — Sei somente que a amo e que lhe desejo neste momento mais felicidade que a mim mesmo!... Mas nada entendo de tais negócios... — apressou-se ele a acrescentar, sem saber por quê...

— O essencial em tudo isto é a honra e o dever, e algo de mais alto, que ultrapassa talvez o próprio dever. Meu coração me dita esse sentimento irresistível e me arrasta. Em suma, minha decisão está tomada. Mesmo se ele desposar aquela... criatura, a quem não poderei jamais perdoar, não o abandonarei, no entanto! Doravante, não o abandonarei jamais! — disse ela, presa de uma exaltação mórbida. — Bem entendido, não tenho a intenção de correr atrás dele, de impor-lhe minha presença, de importuná-lo, oh! não! Irei para outra cidade, não importa onde, mas não deixarei de interessar-me por ele. Quando se sentir infeliz com a outra — e isto não tardará —, que ele venha a mim, encontrará uma amiga, uma irmã... Uma irmã apenas, decerto, e isto para toda a vida, uma irmã amorosa, que lhe terá sacrificado sua existência. Conseguirei, à força de perseverança, fazer-me afinal apreciar por ele, ser sua confidente, sem que ele venha a corar por isso! — exclamou ela, como que enlouquecida. — Serei seu Deus, a quem dirigirá ele suas preces, é o menos que ele me deve por ter-me traído e por tudo quanto suportei ontem por causa dele. E ele verá que permanecerei eternamente fiel à palavra uma vez dada, mal­grado suas infidelidades e sua traição. Serei apenas o meio, o instru­mento de sua felicidade, por toda a sua vida, por toda a sua vida! Eis minha decisão. Ivã Fiódorovitch aprova-me altamente.

Sufocava. Talvez tivesse querido exprimir seu pensamento com mais dignidade, naturalidade, mas o fez com demasiada precipitação e sem rebuços. Havia em suas palavras muita exuberância juvenil; refletiam elas a irritação da véspera, a necessidade de orgulhar-se; ela mesma dava-se conta disso. De súbito, seu rosto ensombreceu-se, seu olhar tornou-se mau. Aliócha percebeu-o e a compaixão despertou nele. Seu irmão acrescentou algumas palavras.

— É, com efeito, a expressão de meu pensamento. Em qualquer uma outra, isto teria parecido excessivo e atormentado. Outra não teria tido razão, mas você a tem. Não sei como motivar isto, mas vejo que você é completamente sincera e por isso é que tem razão...

— Mas só por um instante... Ora, que é esse instante? É unica­mente o ressentimento de ontem — não pôde impedir-se de dizer com justeza a Senhora Khokhlakova, malgrado seu desejo de não in­tervir.

— Oh! sim! — disse Ivã, com uma espécie de irritação e visivel­mente vexado por ter sido interrompido. — É isto; numa outra, esse instante não seria senão uma impressão passageira, mas com o cará­ter de Catarina Ivânovna durará isto toda a sua vida. O que para outras não seria senão uma promessa no ar, será para ela um dever eterno, penoso, sombrio talvez, mas incessante. E ela se repastará com o sentimento desse dever cumprido! Sua existência, Catarina Ivânovna, consumir-se-á agora numa dolorosa contemplação de seus sen­timentos heróicos e de seu pesar. Mas com o tempo esse sofrimento se acalmará, viverá você na doce contemplação dum desígnio firme e altivo, realizado duma vez por todas, desesperado na verdade, mas que você logrou vencer. Esse estado de espírito lhe proporcionará por fim a satisfação mais completa e a reconciliará com tudo o mais...

Exprimira-se com uma espécie de rancor, visivelmente intencional e sem procurar dissimular sua intenção irônica.

— Oh! Deus, quanto tudo isso é falso! — exclamou de novo a Senhora Khokhlakova.

— Alieksiéi Fiódorovitch, fale! Tarda-me conhecer sua opinião! — disse Catarina Ivânovna, que se pôs a derramar lágrimas. Aliócha levantou-se.

— Não é nada, não é nada! — prosseguiu ela, chorando. — É o nervoso, a insônia, mas, com amigos como seu irmão e você, sinto-me fortificada... porque sei que vocês não me abandonarão nunca...

— Infelizmente, deverei talvez partir amanhã para Moscou, deixá-la por muito tempo... Essa viagem é indispensável — declarou Ivã Fiódorovitch.

— Amanhã, para Moscou? — exclamou Catarina Ivânovna, de rosto crispado. — Meu Deus! que felicidade! — continuou ela, com uma voz de súbito mudada, contendo suas lágrimas, de que não restou mais nenhum traço. Essa mudança súbita, que impressionou fortemente Aliócha, foi de fato repentina; a infeliz moça, ofendida, chorosa, de coração dilacerado, deu lugar de repente a uma mulher perfeitamente senhora de si mesma e além do mais satisfeita como após uma alegria inesperada.

— Não é sua partida que me alegra, decerto — retificou ela, com o encantador sorriso de uma dama da sociedade. — Um amigo como você não pode crer nisso; sinto-me, pelo contrário, muito infeliz com sua partida (avançou para Ivã Fiódorovitch e, agarrando-lhe as mãos, apertou-as com calor); mas o que me rejubila é que possa você agora expor em Moscou à minha tia e a Agáfia minha situação em todo o seu horror, francamente com Agáfia, mas poupando minha tia querida, como é você capaz de fazê-lo. Não pode você imaginar quanto me sentia infeliz ontem e esta manhã, perguntando a mim mesma como escrever a elas essa terrível carta... porque não se pode, exprimir isso por escrito... Agora, ser-me-á fácil escrever-lhes, porque estará você em pessoa em casa delas para explicar tudo. Oh! co­mo sou feliz! Mas por isto somente, repito-lhe. Você me é indis­pensável certamente... Corro a escrever essa carta — concluiu ela, dando um passo para sair do salão.

— E Aliócha? E a opinião de Alieksiéi Fiódorovitch, que você desejava tão vivamente conhecer? — exclamou a Senhora Khokhla-kova, com uma entonação sarcástica e irritada.

— Não o esqueci — disse Catarina Ivânovna, parando. — Mas por que se mostra a senhora de tão má vontade para comigo neste momento, Catarina Óssipovna? — proferiu ela, num tom amargo de censura. — Confirmo o que disse. Tenho necessidade de saber sua opinião e, bem mais ainda, sua decisão! Será uma lei para mim, tanta sede tenho de suas palavras, Alieksiéi Fiódorovitch... Mas que tem?

— Jamais pensei, não posso imaginar isso! — disse Aliócha, com ar aflito.

— O quê?

— Ele parte para Moscou, testemunha-lhe a senhorita sua alegria, fê-lo de propósito! Em seguida, explica que não é sua partida que a rejubila, que a lamenta, pelo contrário, que perde... um amigo. Mas aí também representava de propósito... como no teatro, numa comédia!...

— No teatro? Como?... Que diz você? — exclamou Catarina Ivâ­novna estupefata; corou, franziu o cenho.

— Por mais que afirme lamentar o amigo que parte, declara-lhe redondamente que sua partida é uma felicidade... — proferiu Aliócha ofegante. Mantinha-se de pé, perto da mesa.

— Que quer dizer? Não compreendo...

— Eu mesmo não sei... É como uma iluminação repentina... Sei que faço mal em dizer-lho, mas falarei ainda assim — prosseguiu ele, com uma voz trêmula, entrecortada. — A senhorita talvez nunca tenha amado Dimítri... Ele tampouco, sem dúvida, a ama absoluta­mente... desde o começo... estima-a, eis tudo... Na verdade, não sei como tenho a audácia... mas é bem preciso que alguém diga a verdade, pois que ninguém aqui ousa fazê-lo.

— Que verdade? — perguntou Catarina Ivânovna com exaltação.

— Ei-la — balbuciou Aliócha, tomando sua decisão, como se se precipitasse no vácuo. — Mande chamar Dimítri — eu o encontrarei —, que ele venha aqui pegar sua mão e a de meu irmão Ivã para uni-los. Porque a senhorita faz Ivã sofrer somente porque o ama... e seu amor por Dimítri é uma dolorosa mentira... da qual procura a senhorita persuadir-se...

Aliócha calou-se bruscamente.

— Você... você é um pobre de espírito — replicou Catarina Ivânovna, pálida, de lábios crispados. Ivã Fiódorovitch levantou-se, de chapéu na mão.

— Tu te enganaste, meu bom Aliócha — disse ele, com uma ex­pressão que seu irmão jamais lhe vira, uma expressão de sinceridade juvenil, de irresistível franqueza. — Catarina Ivânovna jamais amou a mim! Conhecia desde muito tempo meu amor por ela, se bem que nunca lho houvesse revelado, mas não correspondia a ele. Não fui tampouco seu amigo, em momento algum; seu orgulho não tinha necessidade de minha amizade. Mantinha-me perto dela para se vingar em mim das ofensas contínuas que lhe infligia Dimítri desde o pri­meiro encontro deles, porque este ficou em seu coração como uma ofensa. Meu papel consistiu em ouvir falar de seu amor por ele. Parto, afinal, mas fique sabendo, Catarina Ivânovna, que você não ama, na realidade, senão a ele. E isto na proporção de suas ofensas. Eis o que a dilacera. Ama-o tal como ele é, com suas faltas para com você. Se ele se emendasse, você o abandonaria logo e deixaria de amá-lo. Mas ele lhe é necessário para você contemplar nele sua fidelidade heróica e censurar-lhe sua traição. Tudo isso por orgulho! Você sente-se humilhada e rebaixada, mas seu orgulho é a causa disso... Sou demasiado jovem, amava-a demais. Sei que não deveria ter-lhe falado assim, que teria sido mais digno de minha parte deixá-la simplesmente; teria sido menos magoante para você. Mas parto para longe e não voltarei mais... É para sempre... Não quero respirar este ar de exaltação... Aliás, não tenho mais nada a dizer, é tudo... Adeus, Catarina Ivânovna, não fique zangada comigo, porque estou sendo cem vezes mais castigado que você, castigado pelo simples fato de que jamais tornarei a vê-la. Adeus. Não quero pegar sua mão. Você me fez sofrer demasiado conscientemente para que eu possa perdoar nesta hora. Mais tarde, talvez, mas agora não quero sua mão.

Den Dank, Dame begehfich hicht... [14]

— acrescentou ele com um sorriso constrangido, provando assim que conhecia Schiller, a ponto de sabê-lo de cor, o que Aliócha ter-se-ia recusado a acreditar antes. Saiu sem mesmo cumprimentar a dona da casa. Aliócha juntou as mãos.

— Ivã! — gritou-lhe, transtornado. — Volta, Ivã! Não, agora não voltará ele por coisa alguma do mundo! — exclamou, com um pressentimento amargo. — Mas a culpa é minha, fui eu que come­cei! Ivã falou com cólera, injustamente. É preciso que ele volte... — exclamava Aliócha, como fora de si. Catarina Ivânovna passou para outra peça.

— Você nada tem a censurar-se, sua conduta é a de um anjo — murmurou para o triste Aliócha a Senhora Khokhlakova, entusiasmada.

— Farei todo o possível para impedir que Ivã Fiódorovitch parta... A alegria iluminava seu rosto, para grande mortificação de Aliócha, mas Catarina Ivânovna reapareceu de súbito. Tinha na mão duas cé­dulas de 100 rublos.

— Tenho um grande obséquio a pedir-lhe, Alieksiéi Fiódorovitch — começou ela com uma voz calma e igual, como se nada se tivesse passado. — Há cerca de uma semana, Dimítri Fiódorovitch deixou-se levar a praticar uma ação injusta e escandalosa. Há aqui um cabaré mal afamado, onde encontrou aquele oficial reformado, aquele capitão que seu pai empregava em certos negócios. Irritado contra aquele capitão por um motivo qualquer, Dimítri Fiódorovitch agarrou-o pela barba e arrastou-o naquela posição humilhante até a rua, onde con­tinuou ele ainda por muito tempo. Dizem que o filho dele, jovem escolar, corria a seu lado, soluçando diante daquele espetáculo, pedia por seu pai e rogava aos passantes que o defendessem, mas todo mundo ria. Desculpe-me, Alieksiéi Fiódorovitch, não posso lembrar-me sem indignação desse ato vergonhoso... de que somente Dimítri Fió­dorovitch é capaz, presa da cólera... e de suas paixões! Não posso contá-lo, isto me faz mal... embaraço-me. Tomei informações a res­peito daquele infeliz e soube que ele é muito pobre, chama-se Snie-guiriov. Tornou-se culpado duma falta em seu serviço, deram-lhe baixa, não posso fornecer detalhes, e agora, com sua desgraçada família, as crianças doentes, a mulher louca, parece, caiu em profunda miséria. Mora na cidade desde muito tempo, era copista em alguma parte, mas neste momento não ganha nada. Lancei os olhos em você... isto é, pensei, ah! confundo-me, queria pedir-lhe, meu caro Alieksiéi Fiódorovitch, que fosse a casa dele, sob um pretexto qualquer, e, delicadamente, prudentemente, como só você é capaz (Aliócha corou), entregar-lhe este socorro, estes 200 rublos... Ele os aceitará decer­to... isto é, persuada-o a aceitá-los... veja você, não é uma indeni­zação, para evitar que ele apresente queixa (porque queria fazê-lo, ao que parece), mas simplesmente uma marca de simpatia, o desejo de ir em seu auxílio, em meu nome, como noiva de Dimítri Fiódorovitch, e não no dele... Eu mesma teria ido, mas você sair-se-á melhor do que eu. Ele mora na Rua do Lago, na casa da Senhora Kalmíkova... Pelo amor de Deus, Alieksiéi Fiódorovitch, faça isto agora... estou um pouco fatigada. Adeus...

Desapareceu tão rapidamente por trás da porta que Aliócha não teve tempo de dizer uma palavra. Teria querido pedir perdão, acusar-se, dizer qualquer coisa, afinal, porque seu coração transbordava e não podia ele decidir-se a afastar-se assim. Mas a Senhora Khokhlakova pegou-o pelo braço e levou-o. No vestíbulo, fê-lo parar como ainda há pouco.

— Ela é orgulhosa, luta consigo mesma, mas é uma natureza boa, encantadora, generosa! — murmurou ela à meia voz. — Oh! como gosto dela, por momentos, e quanto me sinto de novo contente! Meu caro Alieksiéi Fiódorovitch, sabe que nós todas, suas duas tias, eu e até mesmo Lisa, não temos senão um desejo, desde um mês: suplicamo-lhe que abandone o seu favorito Dimítri Fiódorovitch, que não a ama absolutamente, e case com Ivã, esse excelente rapaz, tão ins­truído e de quem ela é o ídolo. Urdimos uma verdadeira conspiração e é esta talvez a única razão que me retém ainda aqui.

— Ela, porém, chorou, sente-se de novo ofendida! — exclamou Aliócha.

— Não creia nas lágrimas de uma mulher, Alieksiéi Fiódorovitch! Sou sempre contra as mulheres neste caso e do lado dos homens.

— Mamãe, a senhora o estraga e o perde — repercutiu a voz agudinha de Lisa, por trás da porta.

— Não, sou eu que sou causa de tudo, sou muito culpado! — repetiu Aliócha, inconsolável, experimentando uma vergonha dolorosa com aquela sua saída, o rosto oculto nas mãos.

— Pelo contrário, você agiu como um anjo, como um anjo, estou pronta a repeti-lo mil vezes.

— Mamãe, em que agiu ele como um anjo? — perguntou de novo Lisa.

— Imaginei, não sei por quê — prosseguiu Aliócha, como se não ouvisse Lisa —, que ela amava Ivã e larguei aquela tolice... Que irá acontecer?

— De que se trata? — indagou Lisa. — Mamãe, quer matar-me? Interrogo-a e a senhora não me responde.

Naquele momento, acorreu a arrumadeira.

— Catarina Ivânovna está passando mal... chora, está com um ataque de nervos.

— Que há? — gritou Lisa, com a voz alarmada. — Mamãe, sou eu que vou ter um ataque!

— Lisa, pelo amor de Deus, não grites, tu me matas! Na tua idade não podes saber de tudo como as pessoas grandes; quando eu voltar, contar-te-ei o que puderes saber. Oh! meu Deus! Corro até lá... um ataque é bom sinal, Alieksiéi Fiódorovitch, é excelente que tenha ela um ataque. Em semelhantes casos, estou sempre contra as mulheres, seus ataques e suas lágrimas. Iúlia, corre a dizer que já vou. Se Ivã Fiódorovitch partiu daquela maneira, a culpa é dela. Mas ele não par­tirá. Lisa, pelo amor de Deus, não grites. Ah! não és tu quem grita, sou eu, perdoa tua mãe. Mas estou entusiasmada, arrebatada! Notou, Alieksiéi Fiódorovitch, como seu irmão partiu com um ar viril, ainda há pouco? Disse-lhe o que tinha de dizer-lhe e partiu! Dizia a mim mesma: ele é tão culto, um universitário, e de repente, tal calor, uma franqueza juvenil, inexperiência, e tudo isso é tão gentil, tão gentil, absolutamente como você... E aquele verso alemão que ele citou, afinal como você, mas vou correndo, Alieksiéi Fiódorovitchr des­pache-se a cumprir a sua missão e volte bem depressa. Lisa, não tens necessidade de nada? Pelo amor de Deus, não retenhas Alieksiéi Fió­dorovitch, ele vai voltar para ti.

A Senhora Khokhlakova foi-se embora, afinal. Aliócha, antes de sair, quis abrir a porta de Lisa.

— Por coisa alguma do mundo! — exclamou Lisa. — Não quero vê-lo, Alieksiéi Fiódorovitch. Fale-me através da porta. Como foi que virou um anjo? É tudo quanto desejo saber.

— Com minha tremenda estupidez, Lisa. Adeus!

— Não parta assim! — exclamou ela.

— Lisa, tenho um pesar muito sério! Volto imediatamente, mas tenho um grande, um enorme pesar.

Saiu correndo.

 

O TUMULTO NA ISBÁ

Tinha Aliócha na verdade um pesar sério, como raramente experi­mentara até então. Interviera e cometera uma rata, e num caso de sentimento, ainda por cima! "Mas que é que compreendo disso, que posso eu conhecer dessas coisas? Oh! a vergonha não é nada, a ver­gonha é um castigo merecido. A desgraça é que serei certamente a causa de novas calamidades... E dizer que o síáriets me enviou para reconciliar e unir! É assim que se une?" Lembrou-se então de como tinha "unido as mãos" e a vergonha reapossou-se dele. "Muito embora tenha agido de boa fé, será preciso ser mais inteligente no futuro", concluiu ele, e nem mesmo sorriu de sua conclusão.

O encargo de Catarina Tvânovna conduzia-o à Rua do Lago e seu irmão morava precisamente daquele lado, numa ruela vizinha. Deci­diu Aliócha passar primeiro em casa dele, de qualquer forma, pressen­tindo que não o encontraria em casa. Suspeitava de que Dimítri qui­sesse talvez esconder-se dele agora, mas era preciso descobri-lo a qualquer preço. O tempo passava; a idéia do stúriets moribundo não o deixava um minuto, desde sua partida do mosteiro.

Na narrativa de Catarina Ivânovna figurava uma circunstância que o interessava bastante, igualmente; quando a moça falara do peque­no escolar, filho do capitão, que corria soluçando ao lado de seu pai, viera subitamente a Aliócha a idéia de que deveria ser ele o mesmo que lhe mordera o dedo, quando lhe perguntou em que o ofendera. Agora estava Aliócha quase certo, sem saber ainda por quê. Essas preocupações secundárias desviaram sua atenção. Resolveu não mais pensar no mal que acabava de fazer, não se atormentar pelo arrepen­dimento, mas agir. Aconteceria lá o que acontecesse. Essa idéia restituiu-lhe toda a coragem. Ao entrar no beco onde morava Dimítri, teve fome e tirou de seu bolso o pãozinho que tomara em casa de seu pai. Comeu-o, enquanto caminhava; isto reconfortou-o.

Dimítri não estava em casa. Os donos da casinha — um velho carpinteiro, sua mulher e seu filho — olharam Aliócha com ar suspeitoso. "Há três dias que ele não passa a noite aqui, partiu talvez para algum lugar", respondeu o velho às suas perguntas. Aliócha compreen­deu que ele se conformava com instruções recebidas. Quando perguntou se Dimítri não estava em casa de Grúchenhka, ou de novo oculto em casa de Fomá (Aliócha falava assim abertamente de propósito), todos o olharam com ar receoso. "Gostam dele pois, estão de seu lado", pensou ele. "Está bem. "

Por fim descobriu na Rua do Lago a casa da mãe Kalmíkova, em mau estado e arriada, com três janelas para a rua, um pátio sujo, no meio do qual se achava uma vaca. Entrava-se pelo pátio para o vestíbulo, à esquerda vivia a velha proprietária com sua filha igualmente idosa, sendo surdas as duas, ao que parece. À pergunta várias vezes repetida para saber onde morava o capitão, uma delas, compreendendo por fim que perguntavam pelos inquilinos, apontou-lhe com o dedo, do outro lado do vestíbulo, a porta que dava para a mais bela peça da isbá. O apartamento do capitão consistia, com efeito, apenas dessa peça. Aliócha pusera a mão na maçaneta para abrir a porta, quando o impressionou o silêncio completo que reinava no interior. Sabia, no entanto, de acordo com a narrativa de Catarina Ivânovna, que o capitão tinha família. "Dormem todos, ou então me ouviram chegar e esperam que eu abra; será melhor bater antes. " Bateu. Ouviu-se uma resposta, mas não imediatamente, talvez ao fim de dez segundos.

— Quem é? — gritou uma voz grossa e irritada.

Aliócha abriu então e transpôs o limiar. Encontrava-se numa sala bastante espaçosa, mas extremamente atravancada de gente e de toda espécie de objetos caseiros. À esquerda, havia uma grande estufa russa. Da estufa à janela da esquerda, uma corda estendida através de todo o quarto suportava diversos trapos. De cada lado se encontrava um leito com cobertas tricotadas. Sobre um deles, o da esquerda, quatro travesseiros empilhados, uns menores que os outros. Sobre o leito da direita, só se via um, muito pequeno. Mais longe, no ângulo da frente, havia um espaço reservado, separado por uma cortina ou um lençol, fixado a uma corda estendida de través no ângulo. Por trás aparecia um leito improvisado sobre um banco e uma cadeira colocada junto.

Uma simples mesa de mujique, quadrada, de madeira, estava instalada perto da janela do meio. As três janelas, de vidraças cobertas de mofo esverdeado que as empanava, estavam hermèticamente fechadas, de modo que se sufocava na peça semi-escura. Em cima da mesa, uma estufa com um resto de ovos sobre o prato, uma fatia de pão já mor­dida, um meio litro de aguardente, quase vazio de seu conteúdo. Perto do leito da esquerda estava sentada numa cadeira uma mulher, tendo um ar senhoril, com um vestido de chita da Índia. Demasiado magra e de rosto amarelo, suas faces cavadas atestavam ao primeiro lance de olhos seu estado doentio. Mas o que impressionou sobretudo Aliócha foi o olhar da pobre senhora, olhar ao mesmo tempo interrogador e arrogante. Enquanto Aliócha se explicava com o dono da casa, seus grandes olhos castanhos iam de um para outro, com tanta curiosidade quanta arrogância. Ao lado dela, perto da janela da esquerda, mantinha-se de pé uma moça de rosto pouco simpático, de cabelos ruivos e ralos, vestida pobremente, embora muito limpa. Olhou desdenhosamente para Aliócha, quando este entrou. À direita, igualmente perto do leito, estava sentada uma pessoa do sexo feminino, uma pobre criatura ainda jovem, duns vinte anos, mas corcunda e aleijada, de pés secos, como explicaram depois a Aliócha. Viam-se suas muletas a um canto, entre o leito e a parede. Os magníficos olhos da pobre moça fitavam Aliócha com doçura. Sentada à mesa e acabando a omelete, via-se uma personagem de 45 anos, de pequena estatura, magra, de constituição débil, cuja barba arruivada e rala assemelhava-se bas­tante a um esfregão de tília desfiado (esta comparação e sobretudo a palavra "esfregão" surgiram ao primeiro lance de vista no espírito de Aliócha, lembrou-se ele mais tarde). Fora ele, evidentemente, quem respondera de dentro, porque não havia outro homem no quarto. Quando Aliócha entrou, levantou-se bruscamente, limpou a boca com um guardanapo esburacado e apressou-se em ir-lhe ao encontro.

— Um monge que pede esmolas para seu mosteiro encontrou a quem se dirigir! — proferiu a moça que se mantinha no ângulo da esquerda. O indivíduo que correra ao encontro de Aliócha girou nos calcanhares e respondeu-lhe num tom entrecortado.

— Não, Varvara Nikoláievna, não é isto, você não adivinhou! Per­mita-me que lhe pergunte — disse, voltando-se para Aliócha, — o que o levou a visitar... este antro?

Aliócha observou-o atentamente. Via aquele homem pela primeira vez. Havia nele algo de áspero, de apressado, de irritado. Tinha certa­mente bebido, mas não estava bêbedo. Seu rosto refletia uma carac­terizada impudência e, ao mesmo tempo — coisa estranha —, uma covardia visível. Assemelhava-se a um homem muito tempo subme­tido e sofredor, mas que de repente sentisse ímpetos de reerguer-se e de manifestar-se. Ou, melhor ainda, um homem que ardia do desejo de bater na gente, mas temendo nossos golpes. Nas suas palavras e na entonação de sua voz, bastante penetrante, distinguia-se uma espécie de humor esquisito, ora mau, ora tímido, intermitente e de tom desigual. Falara do antro, como a tremer, com os olhos arrega­lados e mantendo-se tão perto de Aliócha, que este deu maquinalmente um passo para trás. A personagem trazia um paletó de ganga, escuro, em muito mau estado, remendado, manchado. Suas calças, muito claras, como não se usam mais desde muito tempo, eram de quadrados dum pano muito ralo, esfiapadas embaixo, e subiam-lhe nas pernas a ponto de dar-lhe o ar dum menino que cresceu demais.

— Eu sou... Alieksiéi Karamázov... — respondeu Aliócha.

— Sei bem — replicou o outro, dando a entender que lhe conhecia a identidade. — E eu sou o Capitão Snieguiriov. Mas importa saber o que o traz...

— Vim por vir. De fato, queria dizer-lhe uma palavra, em meu no­me... se o permite...

— Neste caso, eis uma cadeira, queira sentar-se. É nas velhas comé­dias que diziam: "Queira sentar-se... "

Com um gesto pronto, o capitão agarrou uma cadeira livre (uma simples cadeira de mujique, de madeira), que colocou quase no meio do quarto; tomou outra igual para si e sentou-se diante de Aliócha, de novo tão perto que seus joelhos quase se tocavam.

— Nikolai Ilitch Snieguiriov, ex-capitão da infantaria russa, envilecido pelos seus vícios, mas apesar de tudo capitão. Deveria antes dizer: Capitão Slovoiérsov e não Snieguiriov, pois na segunda metade de minha vida comecei a empregar a letra "s". Esta letra "s" apren­de-se na abjeção. [15]

— É assim mesmo — disse Aliócha, sorrindo. — Somente, apren­de-se sem querer ou de propósito?

— Deus o vê, involuntariamente. Nunca a tinha dito, passei toda a minha vida sem dizê-la e, de repente, comecei a empregar o "s". Faz-se assim por força maior. Vejo que o senhor se interessa pelos problemas contemporâneos. Mas que pôde infundir-lhe tanta curiosida­de? pois vivo em um meio impossível para receber-se alguém.

— Vim justamente por causa disso...

— Disso quê? — interrompeu o capitão, impaciente.

— A propósito de seu encontro com meu irmão, Dimítri Fiódorovitch — replicou Aliócha, constrangido.

— Que encontro? Não será o mesmo, isto é, a respeito do "esfregão de tília"?

Avançou de tal maneira desta vez que seus joelhos bateram nos de Aliócha. Seus lábios cerrados formavam uma linha estreita.

— Que "esfregão de tília"? — murmurou Aliócha.

— É para se queixar de mim, papai, que ele veio! — ressoou uma voz por trás da cortina, uma voz já conhecida de Aliócha, a do me­nino de ainda há pouco. — Eu mordi o dedo dele hoje!

A cortina afastou-se e Aliócha avistou seu recente inimigo, no canto sob os ícones, sobre um leito formado por um banco e uma cadeira. O menino estava deitado, coberto por seu pequeno sobretudo e por um velho cobertor acolchoado. Era visível que estava doente e com febre, a julgar por seus olhos ardentes. Intrépido, olhava para Aliócha, com ar de dizer: "Aqui em casa, nada me podes fazer".

— Como? Que dedo mordeu ele? — sobressaltou-se o capitão. — Foi o seu?

— Sim, o meu. Ainda há pouco, batia-se a pedradas na rua com seus camaradas; eram seis contra ele. Aproximei-me, atirou-me ele uma, depois outra à cabeça. Perguntei-lhe o que lhe tinha feito eu. De súbito, avançou e me mordeu cruelmente o dedo. Ignoro-o por quê.

— Vou açoitá-lo! — exclamou o capitão, que saltou da cadeira.

— Mas não me estou queixando, contava somente... Não quero que o açoite! Aliás, creio que está doente...

— E pensava o senhor que eu ia fazer isso? Que eu ia agarrar Iliúchka e açoitá-lo diante do senhor para sua inteira satisfação? Quer isso imediatamente? — proferiu o capitão, voltando-se para Aliócha com um gesto ameaçador, como se quisesse lançar-se sobre ele. — Lamento o seu dedo, senhor, mas não quererá que antes de açoitar Iliúchka corte meus quatro dedos diante do senhor, com esta faca, para sua justa satisfação? Penso que quatro dedos lhe bastarão, o se­nhor não reclamará o quinto, para aplacar sua sede de vingança!... — Parou de súbito, como sufocado. Cada traço de seu rosto se agitava e se contraía, seu olhar era dos mais provocantes. Estava como que enlouquecido.

— Agora, compreendi tudo — disse Aliócha, num tom doce e triste sem se levantar. — De modo que tem o senhor um bom filho, que ama seu pai e lançou-se sobre mim por ser eu o irmão do ofensor do senhor... Compreendo, agora — repetiu, pensativo. — Mas meu ir­mão Dimítri lamenta seu ato, eu o sei, e se puder vir a sua casa, ou, ainda melhor, encontrá-lo no mesmo lugar, pedir-lhe-á perdão diante de todo mundo... se o senhor o desejar.

— Quer dizer que puxou minha barba e pede desculpas... arranjou assim tudo, deu satisfação, não é?

— Oh! não! Pelo contrário, fará tudo quanto lhe agradar e como lhe agradar!

— De modo que se eu rogasse a Sua Alteza Sereníssima que se ajoelhasse diante de mim, naquele mesmo cabaré, o cabaré A Capital, como o chamam, ou na praça, ele o faria?

— Sim, ele se poria de joelhos.

— O senhor transpassou-me, comoveu-me até as lágrimas. Estou demasiado inclinado a sentir a generosidade de seu irmão. Permita-me que lhe apresente minha família, minhas duas filhas e meu filho, mi­nha ninhada. Se eu morrer, quem os amará? E, enquanto eu viver, quem me amará com todos os meus defeitos, senão eles? O Senhor Deus fez bem as coisas para cada homem de minha espécie, porque mesmo um homem de minha qualidade deve ser amado por um ser qualquer...

— Ah! é perfeitamente verdadeiro! — exclamou Aliócha.

— Basta de palhaçadas! O senhor nos mete a ridículo diante do primeiro imbecil que aparece — exclamou de repente a moça que se conservava perto da janela, dirigindo-se a seu pai, com a fisiono­mia cheia de desprezo.

— Espere um pouco, Varvara Nikoláievna, permita-me continue mi­nha idéia — gritou-lhe seu pai num tom imperioso, enquanto a olhava aprovativamente. — É esse o seu caráter — disse ele, voltando-se para Aliócha.

E na natureza inteira Nada queria abençoar.

O sujeito aqui deveria ser feminino: ela nada queria abençoar. E ago­ra, permita-me que lhe apresente minha esposa, Arina Pietrovna, dama imponente de 43 anos; anda, mas muito pouco. É de baixa condição; Arina Pietrovna, componha seu semblante para que eu lhe apresente Alieksiéi Fiódorovitch Karamázov. Levante-se, Alieksiéi Fiódorovitch — pegou-o pelo braço e, com uma força de que não o teriam julgado capaz, ergueu-o. — Apresentam-no a uma dama, é preciso que se levan­te. Não foi este Karamázov, mamienhka, que... num!, etc, mas seu irmão, reluzente de virtudes pacíficas. Permita, Arina Pietrovna, per­mita, mámienhka,. que lhe beije em primeiro lugar a mão.

Beijou a mão de sua mulher com respeito, com ternura mesmo. A moça, perto da janela, voltava as costas àquela cena com indignação; o rosto arrogante e interrogativo da mãe exprimiu, de súbito, grande afabilidade.

— Bom dia, sente-se, Senhor Tchernomázov[16] — proferiu ela.

— Karamázov, mámienhka, Karamázov (somos de baixa condição) — soprou ele de novo.

— Está bem! Karamázov ou como seja, eu digo sempre Tchernomá­zov... Sente-se. Por que ele o levantou? Uma dama sem pés, diz ele, tenho pés, sim, mas estão inchados como cântaros, e eu estou ressequida. Outrora, era eu duma grossura... e agora dir-se-ia que engoli uma agulha...

— Somos de baixa condição, de bem baixa — repetiu o capitão.

— Bátiuchka — ah! bátiuchka — exclamou de repente a corcunda, que ficara até então silenciosa e que cobriu bruscamente os olhos com seu lenço.

— Palhaço! — gritou a moça que estava perto da janela.

— Veja o que se passa em nossa casa — e a mãe estendeu os braços, apontando as filhas. — É como se nuvens passassem, passam e nossa música recomeça. Outrora, quando éramos militares, vinham ver-nos muitos visitantes semelhantes. Não faço comparação, meu se­nhor. É preciso gostar de todos. A mulher do diácono vem por vezes e diz: "Alieksandr Alieksándrovitch é um homem de alma excelente, mas Nastássia Pietrovna é uma endemoniada". "Pois bem", respondo-lhe eu, "isto depende de quem se ama, ao passo que tu não passas de uma trouxinha, mas fedorenta. " "Tu", diz-me ela, "só mereces que te tratem com rigor. " "Ah! negra, a quem vens tu dar lições?" "Eu", diz ela, "deixo entrar o ar puro, e tu, o ar pestilento. " "Pergunta", respondo-lhe eu, "aos senhores oficiais se o ar é pestilento em minha casa. " Assim, isso me aflige tanto que, ainda há pouco, sentada como agora, acreditei ver entrar aquele general que chegou aqui pela Páscoa. "Pois bem", digo-lhe eu, "pode, excelência, uma dama nobre deixar entrar o ar de fora?" "Sim", responde ele, "a senhora deveria abrir a porta ou o postigo, porque o ar não está puro em sua casa. " E todos são iguais! Por que implicam com o ar de minha casa? Os mortos fedem muito mais. Eu não corrompo o ar de sua casa, mandarei fazer sapatos e ir-me-ei embora. Meus filhos, não queiram mal à sua mãe! Nikolai Ilitch, meu bátiuchka, será que deixei de agradar-te? Porque só tenho Iliúchka para me querer bem, quando volta da escola. Ontem, trouxe-me uma maçã. Perdoem à sua mãe, meus bons amigos, perdoem a uma pobre abandonada! Que têm contra o ar de minha casa?

A pobre demente desatou a soluçar, suas lágrimas corriam. O ca­pitão precipitou-se.

— Mámienhka, querida mámienhka, basta! Não estás abandonada, todos te amam e te adoram! — Recomeçou a beijar-lhe as mãos e se pôs a acariciar-lhe o rosto; com um guardanapo enxugou-lhe mesmo as lágrimas. Pareceu a Aliócha que havia até lágrimas nos olhos dele.

— Pois bem! Viu o senhor, entendeu? — Voltou-se, de súbito, para ele, encolerizado, apontando com o dedo a pobre demente.

— Vejo e entendo — murmurou Aliócha.

— Papai, papai! Como podes com ele... deixa-o, papai! — gritou o menino, que se erguera no seu leito, com o olhar ardente.

— Basta de palhaçadas, de recorrer a suas estúpidas manigâncias que nunca levam a nada! — gritou de seu canto Varvara Nikoláievna, exasperada; bateu mesmo com o pé no chão.

— Você tem totalmente razão, desta vez, de ficar encolerizada, Var­vara Nikoláievna, e lhe darei imediatamente satisfação. Cubra-se, Alieksiéi Fiódorovitch, tomo meu boné, e vamos. Tenho de falar-lhe seria­mente, mas não aqui. Aquela jovem sentada é minha filha. Nina Nikoláievna, esqueci-me de apresentar-lha, um anjo encarnado... que desceu entre os mortais... se é que o senhor poderia compreender isso...

— Está ele todo agitado, como se tivesse convulsões — continuou Varvara Nikoláievna, indignada.

— Essa que acaba de bater com o pé e de me chamar de palhaço é também um anjo encarnado, deu-me o nome que me convém. Vamos, Alieksiéi Fiódorovitch, é preciso acabar...

E, pegando Aliócha pelo braço, conduziu-o para fora.

 

E AO AR LIVRE

— O ar é puro, mas em meus aposentos não é verdadeiramente fresco, de modo algum. Caminhemos um pouco, senhor. Gostaria bem que se interessasse por mim.

— Eu mesmo tenho uma importante comunicação a fazer-lhe... — declarou Aliócha. — Somente não sei por onde começar.

— Como não adivinhar que o senhor precisa falar-me? Sem isto, jamais teria tido sua visita. Ou só teria vindo para queixar-se de meu rapaz? Ora, é inverossímil. A propósito de meu filho, não pude con­tar-lhe tudo lá dentro, mas agora descrever-lhe-ei a cena. Veja o senhor, o "esfregão de tília" estava mais espesso há uma semana — é de minha barba que falo; deram-lhe este apelido, sobretudo os escolares. E eis que seu irmão me arrastou pela barba, fez violências por causa de uma bagatela; caí, arrastou-me pela praça, onde no momento os colegiais saíam e entre eles Iliúchka. Assim que ele me viu naquela posição, correu para mim: "Bátiuchka", gritava ele, "bátiuchka!" Agar­ra-se a mim, abraça-me, quer libertar-me, grita para meu agressor: "Largue-o, largue-o, é meu pai, perdoe-lhe!" Com seus bracinhos agar­rou meu agressor e beijou-lhe a mão, aquela mesma mão... Lembro-me de sua carinha naquele momento, não a esquecerei jamais!...

— Juro-lhe — exclamou Aliócha — que meu irmão lhe exprimirá um arrependimento completo, da maneira mais sincera, até mesmo de joelhos naquela mesma praça... Obrigá-lo-ei a isso, senão deixará de ser meu irmão!

— Ah! ah! Acha-se ainda em estado de projeto! Isto vem não dele, mas da nobreza de seu coração generoso. Deveria o senhor tê-lo dito. Não, neste caso, permita-me que me refira ao espírito cavalheiresco e à nobreza de seu irmão, como oficial, porque os revelou então. Parou de puxar-me pela barba e largou-me: "És um oficial", disse ele, "e eu também; se puderes encontrar para testemunha um homem decente, envia-mo, que te darei satisfação, se bem que sejas um tratante!" Tais foram suas palavras. Um espírito verdadeiramente cavalheiresco! Afastamo-nos com Iliúchka, e aquela cena de família ficou gravada na sua memória para sempre. De que nos serve permanecer nobres? Aliás, julgue o senhor mesmo; estava ainda há pouco em meus aposentos e que viu? Três mulheres, das quais uma aleijada, fraca de espírito; a outra, aleijada e corcunda; a terceira, válida mas demasiado inteli­gente; é estudante, arde por voltar a Petersburgo, a fim de descobrir às margens do Nievá os direitos da mulher russa. Não falo de Iliúchka, só tem nove anos, está inteiramente só, porque, se eu morrer, que acontecerá ao meu lar, pergunto-lhe eu? Nestas condições, se eu o pro­vocar a duelo e ele me matar, que acontecerá então? Que se tornarão eles todos? Será ainda pior se ele não me matar, mas me estropiar apenas. Ficarei incapaz de trabalhar, mas será preciso comer. Quem me nutrirá, então, bem como a eles todos? Ou então mandarei Iliúchka todos os dias pedir esmola, em lugar de ir à escola. Eis o que signi­fica para mim uma provocação a duelo; é um absurdo e nada mais.

— Ele lhe pedirá perdão, lançar-se-á a seus pés bem no meio da praça — exclamou de novo Aliócha, de olhar aceso.

— Tinha pensado em citá-lo perante o juiz — continuou o capitão —, mas abra nosso Código. Posso esperar receber uma justa satisfação de meu ofensor? E eis que Agrafiena Alieksándrovna me manda cha­mar e me ameaça: "Nem penses nisso! Se o citares, arranjar-me-ei para fazer constar publicamente que ele te bateu por causa de tua maroteira e então será a ti que processarão". Ora, só Deus sabe quem é o autor dessa maroteira e sob as ordens de quem eu agi como comparsa. Não foi mesmo de acordo com as instruções dela e de Fiódor Pávlovitch? "Além do mais", acrescentou ela, "despedir-te-ei para sempre e não ganharás mais nada a meu serviço. Direi também ao meu comerciante (é assim que ela chama o seu velho), de modo que ele também te despedirá. " Ê digo a mim mesmo: "Se esse comer­ciante me despede também, como poderei ganhar minha vida? Porque não me restam senão esses dois, visto como seu pai, Fiódor Pávlovitch, não só retirou de mim sua confiança, por um outro motivo, mas ele próprio, munido de meus recibos, quer processar-me. Por estas razões, mantive-me quieto e o senhor viu o meu antro. E agora, diga-me, Iliúchka feriu-o muito, mordendo-o? Não podia entrar em detalhes na presença dele.

— Sim, bastante mal, ele estava muito irritado. Vingou em mim a ofensa que fizeram ao senhor, pelo fato de ser eu um Karamázov, compreendo-o agora. Mas se o senhor o tivesse visto bater-se a pedra­das com seus colegas! É muito perigoso, podem matá-lo; os meninos são estúpidos, uma pedra pode facilmente rachar a cabeça.

— Sim, ele recebeu uma, mas não na cabeça, no peito, acima do coração; tem uma equimose, voltou para casa chorando, gemendo e lá está doente.

— E sabe que é ele o primeiro a atacar os outros? Tornou-se mau, por causa do senhor. Seus colegas contam que ele há pouco deu uma canivetada nas costelas do menino Krasótkin.

— Sei também disso, é perigoso. O pai era funcionário aqui e isto pode atrair complicações...

— Eu aconselharia — continuou Aliócha, com calor — que não o enviasse à escola durante algum tempo, até que ele se acalme... e que sua cólera passe...

— A cólera! — concordou o capitão. — É bem isto. Uma grande cólera numa pequena criatura. O senhor não sabe de tudo. Permita-me que lhe explique com detalhes. Depois do acontecido, os colegiais come­çaram a inferná-lo, chamando-o de "esfregão de tília". Essa idade é impiedosa; tomados separadamente são uns anjos, mas todos juntos são implacáveis, sobretudo na escola. Perseguiam-no e um nobre senti­mento despertou-se em Iliuchka. Um menino comum, fraco como ele, ter-se-ia resignado; teria tido vergonha de seu pai; mas ele se ergueu contra todos, em favor de seu pai, da verdade e da justiça. Porque o que ele tem sofrido, desde que beijou a mão de seu irmão, gritando-lhe: "Perdoe a papai, perdoe a papai!", só Deus e eu sabemos. E assim nossos filhos, não os dos senhores, os nossos, os filhos dos men­digos desprezados, mas nobres, aprendem a conhecer a verdade, desde a idade de nove anos. Como os ricos a aprenderiam? Não penetram jamais nessas profundezas, ao passo que Iliuchka percorreu toda a verdade, naquele minuto na praça, beijando aquela mão. Aquela ver­dade penetrou nele; e magoou-o para sempre! — proferiu apaixona­damente o capitão, com o ar desvairado, batendo sua mão esquerda com o punho direito, como se quisesse mostrar materialmente a con­tusão feita em Iliuchka pela "verdade". — Naquele dia teve ele febre, delirou a noite inteira. Durante todo o dia, falou-me pouco, ficou mesmo silencioso; notei que ele me observava de seu canto, fin­gindo aprender suas lições, mas não eram as lições que o preocupavam. No dia seguinte, embriaguei-me de pesar; a gente é fraca e esqueci muitas coisas. A mamãe também se pôs a chorar — amo-a muito — então, de dor. Embriaguei-me com meus últimos níqueis. Não me despreze, senhor. Na Rússia, os piores ébrios são as pessoas melhores e reciprocamente. Estava deitado e não pensava em Iliuchka; mas, na­quele mesmo dia, os garotos divertiram-se à custa dele, desde a manhã: "Psiu! 'esfregão de tília'!", gritavam-lhe. "Arrastaram teu pai pela sua barba em forma de esfregão para fora do cabaré; tu corrias ao lado dele pedindo misericórdia. " Era no dia seguinte; voltou da escola pálido e desfeito. "Que tens?", perguntei-lhe. Calou-se; era impossível conver­sar em casa, sua mãe e suas irmãs ter-se-iam metido imediatamente, as moças tinham ficado cientes do caso desde o primeiro dia. Varvara Nikoláievna já começava a resmungar! "Palhaço, bobo, será possível que nada saiba fazer que seja sensato?" "É verdade", digo eu, "Varvara Ni­koláievna, poderemos fazer algo que seja sensato?" Saí-me assim desta vez. À noite saí a passear com o petiz. É preciso dizer-lhe que todas as noites, já antes, vínhamos passear por este mesmo caminho, até aquela enorme pedra isolada, lá embaixo perto da sebe, onde come­çam os pastos comunais: um lugar deserto e encantador. Caminhávamos de mãos dadas, como de costume; uma mãozinha bem pequena, de dedos delgados, gelados, porque ele sofre do peito. "Pápotchka", diz ele, "pápotchka!" "Que há?", pergunto-lhe (via seus olhos cintilarem). "Como te tratou ele, papai!" "Que fazer, Iliuchka?" "Não faças as pazes com ele, pápotchka, de modo nenhum. Os alunos dizem que ele te deu 10 rublos por isso. " "Não, meu pequeno, por coisa alguma do mundo aceitaria dinheiro dele, agora. " (Ele se pôs a tremer, agarrou minha mão nas suas, beijou-a. ) "Pápotchka, provoca-o a um duelo, na escola eles me infernam dizendo que és um covarde, que não te baterás, mas que aceitarás dele 10 rublos. " "Não posso provocá-lo a duelo, Iliuchka", respondo-lhe, e lhe expus brevemente o que acabo de dizer ao senhor a este respeito. Ele me escutou. "Pápotchka", diz ele, no entanto, "não faças as pazes com aquele homem; quando eu crescer, eu mesmo o provocarei e o matarei!" Seus olhos brilhavam com um clarão intenso. Apesar de tudo, era pai dele e tornava-se necessário dizer-lhe uma palavra de verdade: "É um pecado", expliquei eu, "matar seu próximo, mesmo em duelo. " "Pápotchka, eu o derru­barei, quando for grande, farei saltar seu sabre de suas mãos e me lançarei sobre ele, brandindo o meu, e lhe direi: poderia matar-te, mas perdôo-te!" Está vendo, senhor, está vendo que trabalho se operou na cabecinha dele, durante esses dois dias? Só fazia pensar na vingança com um sabre e deve ter falado disso no seu delírio. Quando voltou da escola, cruelmente batido, soube de tudo e, o senhor tem razão, não voltará mais lá. Fico sabendo que ele se levanta contra a classe inteira, que provoca a todos; está exasperado, seu coração arde de ódio e então tenho medo por ele. Voltamos a passear. "Pápotchka", per­gunta ele, "os ricos são os mais fortes neste mundo?" "Sim, Iliúchka, não há ninguém mais poderoso que o rico. " "Pápotchka", diz ele, "ficarei rico, serei oficial e baterei todos os inimigos, o czar me recompensará, voltarei para junto de ti e então ninguém ousará... " Após um silêncio, continuou, com os lábios trêmulos como antes: "Pápotchka, que cidade de gente ruim essa nossa!" "Sim, Iliúchka, é uma cidade de gente ruim. " "Pápotchka, vamos morar em outra, onde não nos conheçam. " "Gostaria bem, Iliúchka, mudemo-nos; somente é preciso juntar dinhei­ro. " Rejubilo-me por poder assim distraí-lo de seus sombrios pensa­mentos; pusemo-nos a fazer projetos sobre a instalação numa outra cidade, a compra de um cavalo e de uma tieliega. "A mamãe e as manas montariam nela, nós as cobriríamos bem, nós mesmos caminha­ríamos ao lado, tu montarias de vez em quando, enquanto eu iria a pé, porque é preciso poupar o cavalo, todos não poderão ir ao mesmo tempo, seria assim que viajaríamos. " Ficou encantado, sobretudo por ter um cavalo que o conduziria. Sabe-se que um menino russo não vê nada de mais belo que um cavalo. Nós tagarelamos muito tempo. "Deus seja louvado", pensei eu, "distraí-o e consolei-o". Foi anteontem de noite; no dia seguinte, voltou* da escola bastante sombrio. À noite, por ocasião do passeio, permaneceu silencioso. O vento elevou-se, o sol desapareceu, sentia-se o outono e já estava escuro; estávamos tristes. "Pois bem, meu rapaz, como vamos fazer nossos preparativos?" Pen­sava retomar a conversa da véspera. Nem uma palavra. Mas seus dedinhos tremiam na minha mão. "Isto vai mal", disse a mim mesmo, "há novidade. " Chegamos, como agora, até aquela pedra; sentei-me nela, haviam empinado papagaios que estalavam ao vento; havia bem uns trinta. É a estação agora. "Deveríamos nós também, Iliúchka, empinar o papagaio do ano passado. Consertá-lo-ei. Que fizeste dele?" Meu filho cala-se, olha para o lado, desviando a vista. De repente, o vento se põe a assobiar, levantando areia... Lança-se para mim, com seus dois braços enlaça-me o pescoço, abraça-me. Sabe que, quan­do os meninos são taciturnos e altivos, retêm muito tempo suas lágri­mas, mas, quando elas brotam, por motivo dum grande pesar, não correm, mas jorram? Suas lágrimas ardentes inundaram-me o rosto. Ele soluçava, convulsivamente, apertava-me contra ele. "Pápotchka", gri­tou ele, "meu querido pápotchka, como ele te humilhou!" Então os solu­ços dominaram-me e nos abalavam, enlaçados sobre esta pedra. Nin­guém nos via então, exceto Deus. Talvez me leve isso em conta. Agradeça a seu irmão, Alieksiéi Fiódorovitch. Não, não açoitarei meu filho para causar-lhe satisfação!

Terminou da mesma maneira esquisita e complicada de ainda há pouco. No entanto sentia Aliócha que aquele homem tinha confiança nele e não teria "conversado" assim com um outro, nem feito aquela confidencia. Isto encorajou Aliócha, que estava comovido até as lá­grimas.

— Ah! como gostaria de fazer as pazes com seu rapaz! — exclamou ele. — Se o senhor se encarregasse disso...

— Decerto — murmurou o capitão.

— Mas agora não é disto que se trata, escute! — prosseguiu Aliócha. — Tenho uma incumbência para o senhor. Meu irmão Dimítri insultou também sua noiva, uma nobre senhorita da qual o senhor já deve ter ouvido falar. Tenho o direito de revelar-lhe esse insulto, devo mesmo fazê-lo, porque, tendo sabido da ofensa que o senhor sofreu e de sua situação infeliz, ela me encarregou há pouco... de entregar-lhe este auxílio de sua parte... mas somente de sua parte, não em nome de Dimítri, que a abandonou, nem de mim, seu irmão, nem de ninguém, mas unicamente da parte dela! Suplica-lhe que aceite seu auxílio... Foram ambos ofendidos pelo mesmo homem... Ela só se lembrou do senhor quando sofreu de parte de Dimítri a mesma injúria que o senhor (igualmente gravíssima). É pois uma irmã que vem em auxílio de um irmão... Ela me encarregou precisamente de persuadi-lo a aceitar esses 200 rublos de sua parte, como de parte de uma irmã, que conhece as suas dificuldades. Ninguém ficará sa­bendo disto, não haverá a temer nenhuma comadrice malévola... Eis os 200 rublos e, juro-lhe, deve aceitá-los, senão.... senão, só haveria inimigos no mundo! Mas há também irmãos... O senhor tem alma nobre... Deve compreendê-lo!...

E Aliócha estendeu-lhe duas cédulas de 100 rublos novinhas. Am­bos encontravam-se então justamente perto da grande pedra, na dire­ção da paliçada; não havia ninguém nos arredores. Parece que as cédulas causaram profunda impressão no capitão; estremeceu, mas foi a princípio unicamente de surpresa; não pensava em nada de seme­lhante e não esperava absolutamente tal desenlace. Mesmo em sonho, jamais sonhara uma ajuda qualquer, e sobretudo tão importante. Pe­gou as cédulas e, durante quase um minuto, esteve incapaz de respon­der; uma expressão nova apareceu em seu rosto.

— É para mim tanto dinheiro, 200 rublos? Justo céu! Há quatro anos que não via tanto dinheiro, Senhor Deus! E ela diz que é uma irmã... Ê verdade, é verdade mesmo?

— Juro-lhe que tudo quanto disse é verdade! — exclamou Aliócha. O capitão corou.

— Escute, meu caro, escute; se aceitar, não serei um covarde? A seus olhos, Alieksiéi Fiódorovitch, não o serei? Não, Alieksiéi Fiódorovitch, escute, escute — repetia ele a cada instante, tocando em Alió­cha —, o senhor me persuade a aceitar sob o pretexto de que é uma "irmã" que o envia, mas o senhor mesmo, no íntimo, não sentiria desprezo por mim, se eu aceitar, hein?

— Não, mil vezes não! Juro-o pela minha salvação! E ninguém jamais o saberá, exceto nós: o senhor, eu, ela e ainda uma dama, sua grande amiga...

— Que dama? Escute, Alieksiéi Fiódorovitch, escute, é agora indis­pensável porque o senhor não pode mesmo compreender o que repre­sentam para mim estes 200 rublos — prosseguiu o infeliz, dominado pouco a pouco por uma exaltação desordenada, selvagem. Estava deso­rientado, falava com grande pressa, como se receasse que não o deixassem dizer tudo. — Além do fato de provir este dinheiro duma fonte honesta, duma "irmã" tão respeitável, sabe que posso tratar agora da mãe e de Nínotchka, minha filha, minha angélica corcundinha? O Doutor Herzenstube foi à minha casa, por bondade de alma; exami­nou-as uma hora inteira: "Não compreendo nada", disse ele. No en­tanto, a água mineral que lhe prescreveu fez-lhe certamente bem, ordenou também que ela banhasse os pés com remédios. A água mineral custa 30 copeques, talvez seja preciso beber umas quarenta garrafas. Peguei a receita e coloquei-a na prateleira, abaixo dos ícones, e lá está. Para Ninotchka, prescreveu banhos quentes numa solução especial, todos os dias, de manhã e de noite; como poderíamos nós seguir semelhante tratamento, alojados como estamos, sem criada, sem ajuda, nem água, nem utensílios? Ora, Ninotchka está entrevada de reumatismo, esqueci-me de dizer-lhe; de noite, todo o lado lhe dói, sofre um martírio, acreditaria o senhor? Aquele anjo se enrijece para não nos inquietar, contém-se para não gemer, a fim de não nos des­pertar. Comemos o que se apresenta, o que se encontra; ora, ela toma o último bocado, bom para atirar ao cão. "Não mereço esse bocado, privo-os dele, sou uma carga para vocês. " Eis o que quer exprimir seu olhar ce­leste. Nós a servimos e isto lhe pesa. "Não o mereço; sou uma aleijada indigna de cuidados, boa para nada", como se não os merecesse, quando sua doçura angélica é uma bênção para todos. Sem sua palavra mansa, a casa seria um inferno. Ela enterneceu a própria Vária. Não condene tampouco Varvara Nikoláievna; é também um anjo, também ela é infeliz. Chegou a nossa casa de verão, com 16 rublos, ganhos em dar lições e destinados a pagar seu regresso a Petersburgo, no mês de setembro, isto é, agora. Ora, nós comemos seu dinheiro e ela não tem mais nenhum com que possa voltar, eis a verdade. Aliás, não poderia partir, porque trabalha para nós como um galé, fizemos dela uma besta de carga, ocupa-se com tudo; é ela quem remenda, lava, varre, deita a mãe; ora, a mãe é caprichosa, chorona, uma louca!... Agora, com estes 200 rublos, posso alugar uma criada, compreende o senhor, Alieksiéi Fiódorovitch, cuidar daquelas queridas criaturas; enviarei a estu­dante para Petersburgo, comprarei carne, estabelecerei novo regime. Senhor, mas é um sonho!

Aliócha estava encantado por ter trazido tanta felicidade e ver que o pobre-diabo queria mesmo ser feliz.

— Espere, Alieksiéi Fiódorovitch, espere — e o capitão, agarrando-se a um novo sonho que se oferecia, recomeçou a taramelar com a mesma velocidade. — Sabe que com Iliúchka realizaremos, talvez, agora nosso sonho? Compraremos um cavalo e uma carriola, um cavalo preto, ele o pediu expressamente, e partiremos como o marcamos anteontem. Conheço um advogado na província de K***, um amigo de infância. Deu-me a saber, por intermédio de um homem seguro, que se eu aparecesse lá dar-me-ia ele, por exemplo, um lugar de secretário em seu escritório; quem sabe? Talvez dê mesmo... Então, a mãe e Ni­notchka subiriam na carriola, Iliúchka conduziria, eu iria a pé, toda a família seria transportada... Senhor Deus, se pudesse eu somente recuperar uma quantia que me devem, aqui, seria o bastante mesmo para essa viagem!

— Seria o bastante, seria o bastante! — exclamou Aliócha. — Ca­tarina Ivânovna lhe mandará mais, tanto quanto o senhor queira e, sabe?, tenho também dinheiro, aceite o que precisar, como de um irmão, como de um amigo, depois o senhor mo restituirá... (Ó senhor ficará rico!) Saiba que não poderia imaginar nunca nada de melhor do que essa mudança! Seria a salvação, sobretudo para seu rapaz; deveria par­tir mais depressa, antes do inverno, antes dos frios; o senhor nos escre­veria de lá, ficaríamos irmãos... Não, não é um sonho!

Aliócha gostaria de abraçá-lo, tão contente estava. Mas, depois de fitá-lo, parou bruscamente: o capitão, de pescoço e lábios tensos, com um rosto lívido e exaltado, remexia os lábios como se quisesse dizer alguma coisa; nenhum som saía e seus lábios mexiam-se. Era estranho.

— Que tem? — indagou Aliócha, num estremecimento súbito.

— Alieksiéi Fiódorovitch... Eu... lhe... — murmurou o capitão, aos repelões, fixando-o com um ar estranho e selvagem, o ar de um homem que se vai lançar no vácuo, ao mesmo tempo que seus lábios sorriam. — Eu... lhe... Quer que lhe mostre um jogo de mãos? — cochichou ele, de súbito, rapidamente, num tom firme, sem parar.

— Que jogo?

— Um jogo, o senhor vai ver — repetiu o capitão, com a boca crispada; o olho esquerdo piscava, seu olhar não largava Aliócha, como pregado nele.

— Que tem o senhor então? De que jogo fala? — exclamou Aliócha, bastante espantado.

— Ei-lo! Olhe! — vociferou o capitão.

E, mostrando-lhe as duas cédulas que durante a conversa mantinha entre o polegar e o índice, agarrou-as com raiva, e amarrotou-as em seu punho fechado.

— O senhor viu, o senhor viu? — gritou ele, lívido, frenético; ergueu o punho e, com toda a sua força, atirou as duas cédulas amar­rotadas sobre a areia. — Viu? — vociferou de novo, mostrando-as com o dedo. — Pois bem! Veja!

Com um encarniçamento selvagem, pôs-se a pisá-las com o calca­nhar. Ofegava e lançava exclamações a cada golpe.

— Eis o que faço de seu dinheiro, eis o que faço dele!

De súbito, saltou para trás, ergueu-se diante de Aliócha. Toda a sua pessoa transpirava um orgulho indizível.

— Vá dizer aos que o enviaram que o "esfregão de tília" não vende sua honra! — exclamou ele, com o braço estendido. Depois girou rapidamente nos calcanhares e se pôs a correr. Não havia dado cinco passos, quando se voltou para Aliócha, fazendo-lhe com a mão um gesto de adeus. Ao fim de outros cinco passos, voltou-se de novo; desta vez seu rosto não estava mais crispado pelo riso, mas estremecia todo sacudido pelo pranto. Gaguejou num tom lacrimoso, entrecortado:

— Que teria eu dito a meu rapaz, se tivesse aceitado o preço de nossa vergonha?

Depois disso, retomou sua carreira, desta vez sem se voltar. Aliócha acompanhou-o com os olhos, numa indizível tristeza. Compreendia que até o derradeiro momento o desgraçado não sabia que amarrotaria e atiraria fora as cédulas. Não se voltou mais uma vez sequer em sua carreira; Aliócha estava certo disso de antemão. Não quis persegui-lo, e chamá-lo, sabia por quê. Quando o capitão se perdeu de vista, Alió­cha apanhou as duas cédulas. Estavam muito amarrotadas, enrugadas, afundadas na areia, mas intatas, e estalaram mesmo como novas, quan­do Aliócha as desdobrou e desenrugou. Depois de havê-las dobrado, meteu-as no bolso e foi dar conta a Catarina Ivânovna do resultado de sua missão.



 

[1] Servos da gleba. Calculava-se a riqueza dos proprietários rurais pelo número de "almas" que eles possuíam.

[2] Monge idoso e pobre, respeitado pela sua bondade e sabedoria.

[3] "Vi a sombra de um cocheiro que, com a sombra de uma escova, esfregava a sombra de uma carruagem" Versos tirados de uma paró­dia do Livro VI da Eneida pelos irmãos Perrault, em 1646.

[4] Literalmente: cisão. Seita religiosa dos "velhos crentes" que provo­cou o cisma na Igreja russa, em meados do século XVII, contra as re­formas do Patriarca Nikhon.

[5] Nome forjado. Do verbo naprávliat, endireitar, dirigir.

[6] Apelido dado ao velho Fiódor Pávlovitch com a intenção, expressa­mente pejorativa, de emprestar-lhe as qualidades negativas de vagabun­dagem e histrionismo atribuídas à semilendária figura do também velho, feio, gago e corcunda fabulista grego, mas cujo engenho e sutileza são igualmente proverbiais.

[7] Mais nobreza que sinceridade.

[8] Adeptos da seita dos khristi (cristos) ou, por zombaria, dos khlisti ou khlistóvstvo (flagelantes), que apareceu na Rússia no século XVII. Tiveram seus profetas e praticaram exageradamente seus ritos, entre eles o da chicotada, dai o nome pejorativo que lhes deram.

[9] Literalmente: fedorenta

[10] Diminutivo de Catarina.

[11] Primeira coletânea de novelas de Gógol (1831).

[12] Há Piron dentro disso.

[13] Senhor. Tratamento respeitoso dado outrora às pessoas da classe pri­vilegiada. Atualmente, emprega-se no sentido irônico de comodista, pre­guiçoso.

[14] "Pouco me importa, senhora, o vosso agradecimento. " Schiller.

[15] Refere-se ao costume que havia, na época, de a gente pobre acrescen­tar um "s" ao fim das palavras, como deferência às pessoas importantes.

[16] Nome forjado, composto de tcherno, preto, e mázat, pintar, sujar. Literalmente: aquele que pinta, ou suja de preto. Deturpação intencional de Karamázov.

                                                                                      

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