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Missão Stardust / K. H. Scheer
Missão Stardust / K. H. Scheer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Missão Stardust

 

O major Perry Rhodan, comandante da espaçonave Stardust, descobriu muito mais do que se supunha pudesse existir na Lua — ele veio a ser o primeiro homem a entrar em contato com outra raça.

Os arcônidas, provenientes de uma estrela distante e possuidores de um nível tão elevado de conhecimentos científicos e filosóficos que, perto deles, a Humanidade ainda estava centenas de milhares de anos atrasada.

Mas estes alienígenas, enormemente poderosos, recusavam-se a cooperar com os terrestres a menos que Perry Rhodan saísse vencedor do teste mais difícil a que um ser humano jamais se submetera... 

 

                  

 

No prédio principal da Central de Nevada Fields, que abrigava o centro nervoso eletrônico da base espacial, reinava a atividade febril e aparentemente inútil que caracteriza os preparativos finais da partida de uma espaçonave. A única finalidade de todas as operações, dos avisos transmitidos pelos alto-falantes e dos cálculos detalhados era controlar mais uma vez os resultados que de há muito tinham sido apurados.

Os engenheiros que formavam a equipe responsável pela parte eletrônica da nave verificaram os inúmeros circuitos do computador astro-eletrônico, cuja finalidade consistia em proceder a eventuais correções de curso.

Realizaram, também, uma revisão no dispositivo automático B, um robô especial incumbido do controle da decolagem e da separação dos estágios e, ainda, do comando remoto.

O computador eletrônico C, que era o robô coordenador dos ecos de radar recebidos, e ainda a estação de comando das câmaras especiais teleguiadas do dispositivo de infralocalização, apresentava, como já se esperava, funcionamento perfeito. Os últimos cálculos de verificação, realizados através de computadores eletrônicos, estavam exatos até a décima casa decimal.

O engenheiro-chefe, responsável pela manutenção, comunicou que os dois dispositivos automáticos principais — dispositivos eletrônicos da decolagem e do controle remoto — estavam em perfeitas condições de funcionamento.

Fez-se tudo aquilo que já tinha sido feito em várias decolagens anteriores, numa rotina altamente especializada. Só uma pequena nuança de nervosismo poderia ter revelado a um observador experimentado que desta vez não se tratava do lançamento de uma espaçonave qualquer.

Os soldados, fortemente armados, que se encontravam na entrada norte do prédio principal, prestaram continência com um gesto displicente. O general Lesley Pounder, comandante da Base Aérea de Nevada Fields e chefe do Departamento de Pesquisas Espaciais, não fazia muita questão de que em oportunidades como esta a etiqueta militar fosse estritamente observada. Ficava satisfeito em saber que os homens estavam bem atentos nos seus postos.

Como havia sido planejado, o general Pounder entrou na sala principal do comando à meia-noite e quinze em ponto. Estava acompanhado do chefe do Estado Maior, o coronel Maurice e do diretor científico do projeto, o professor F. Lehmann, que se tornara famoso principalmente como diretor da Academia de Tecnologia Espacial da Califórnia.

A chegada dos personagens principais não causou a menor interrupção nas atividades que se desenvolviam no interior da sala. O general tinha chegado; era só isso.

Lesley Pounder, um homem quadrado no aspecto e no caráter, famoso entre os co­laboradores, e difamado em Washington pela intransigência com que insistia no cumprimento das suas exigências, aproximou-se da enorme tela de controle.

As imagens, que na sala de imprensa apareciam pouco nítidas, deslizavam, aqui, em tamanho natural na tela ligeiramente abaulada.

Pounder apoiou as mãos no encosto da poltrona giratória e permaneceu imóvel por alguns instantes. O professor Lehmann segurou os óculos sem aro com um gesto nervoso. Alguma coisa parecia arder dentro dele. Na sua opinião, havia coisas muito mais importantes para fazer do que voltar a inspecionar, em companhia do comandante das operações, coisas de importância secundária que já tinham sido controladas. Lançou um olhar de súplica ao chefe do Estado-Maior. O coronel Maurice ergueu os ombros de modo quase imperceptível. Tinham que aguardar. Ao que parecia, Pounder ainda tinha algumas perguntas a fazer, embora estivesse mais bem informado que muitos dos membros da sua equipe de cientistas.

— Isto é belo! De uma beleza empolgante! — disse Pounder em voz baixa, enquanto olhava para a tela. — Alguma coisa dentro de mim vive perguntando se não estamos indo longe demais. Os peritos do Departamento de Navegação Espacial continuam a achar que é rematada loucura arriscar o lançamento da Terra. Não é apenas a resistência do ar que temos de vencer. Além disso, devemos atingir a velocidade que resultaria, automaticamente, de um lançamento a partir da plataforma espacial. São exatamente 7,08 quilômetros por segundo, ou seja, 25.400 quilômetros por hora.

— É a velocidade em que a estação espacial tripulada percorre sua órbita, general — apressou-se o professor Lehmann a murmurar. — No nosso caso, essa velocidade não representa um fator decisivo. Peço licença para voltar a insistir nas enormes dificuldades que surgiriam na montagem da nave, com peças pré-fabricadas, realizada no espaço, fora da ação da gravidade. Já tivemos experiências bem amargas nesse setor. É bem mais fácil construir a nave na Terra do que a 1.730 quilômetros de altitude. E, em termos econômicos, isto representa uma diferença, a menos, de trezentos e cinqüenta milhões de dólares por unidade.

— Esse argumento causou uma impressão formidável em Washington — ironizou o general. — Bem, a esta altura, não se pode alterar mais nada. Façamos votos para que os resultados brilhantes dos vôos experimentais justifiquem o risco que, hoje, estamos assumindo. A bordo desta nave estarão quatro dos meus melhores homens, professor. Se alguma coisa não der certo, o senhor terá que se explicar comigo.

Lehmann empalideceu sob o olhar gélido do general. Mas o coronel Maurice, um estrategista hábil em manter perfeito o equilíbrio entre os interesses conflitantes da pesquisa científica e os do poderio militar, interveio com o tato que lhe era peculiar, levando a conversa para outro campo.

— General, peço licença para lembrar-lhe o pessoal da imprensa. Os repórteres já devem estar ardendo de curiosidade. Ainda não liberei informações mais detalhadas.

— Não poderíamos evitar isso, coronel? — resmungou Pounder. — No momento tenho coisas mais importantes para fazer.

— Acho conveniente atendê-los — respondeu o coronel de forma bem sugestiva.

O Dr. Fleet, perito em astrofísica, pigarreou. Era também o responsável pelas questões de medicina espacial, cabendo-lhe, ainda, cuidar da boa saúde dos cosmonautas.

De repente, Pounder sorriu.

— Muito bem. Falarei com eles. Mas só pelo circuito fechado de televisão.

Maurice sobressaltou-se. Os técnicos que os rodeavam riram disfarçadamente. Era outra das atitudes típicas do velho.

— Pelo amor de Deus, general. Essa gente conta com a sua presença pessoal. Foi o que eu lhes prometi.

— Pois, então, retire a promessa — sugeriu Pounder sem se mostrar impressionado.

— Mas vão dizer o diabo de nós nos editoriais — disse o chefe do Estado-Maior em tom suplicante.

— Neste caso, mandarei prender estes rapazes até que se tenham acalmado. Veremos. Ligue-me com eles.

Nas paredes nuas do abrigo de observação, os alto-falantes pareciam retornar à vida. A cabeça de Pounder apareceu numa tela. Com o seu mais cativante sorriso, desejou a todos uma manhã bem agradável. Logo após, o rosto do general tornou-se sério, não fazendo caso das feições contrariadas dos repórteres.

De forma lacônica e em tom indiferente, como se estivesse explicando algo bem irrelevante, anunciou:

— Cavalheiros, a imagem que apareceu há alguns minutos nas telas existentes no interior do abrigo em que se encontram corresponde a um foguete de três estágios. Nos elementos que compõem o mesmo, foram introduzidas modificações importantes. A decolagem terá lugar dentro de três horas aproximadamente. Estão sendo realizados os preparativos finais. No momento, os quatro tripulantes ainda dormem um sono profundo que lhes descansará os nervos. Só serão despertados duas horas antes da decolagem.

Os repórteres ainda se mostravam indiferentes. Já havia tempo que as viagens espaciais tripuladas tinham deixado de ser novidade. Os olhos de Pounder estreitaram-se ligeiramente. Estava antegozando os trunfos que surpreenderiam os homens da imprensa.

— Em virtude de experiências passadas, o Comando de Exploração do Espaço decidiu não montar a nave espacial na estação orbital. Ninguém ignora as dificuldades e os fracassos das tentativas anteriores. Por isso, a primeira espaçonave que deverá pousar na Lua, partirá diretamente da Terra. A nave foi batizada com o nome de Stardust. O comandante da primeira missão lunar é o major Perry Rhodan, com trinta e cinco anos de idade, piloto de provas da Força Espacial, cosmonauta e físico nuclear, especializado em motores de radiação atômica. Acho que Rhodan é uma pessoa bastante conhecida, como sabem, foi o primeiro homem da Força Espacial que contornou a Lua.

Pounder fez outra pausa. Com grande satisfação registrou o barulhento e exaltado vozerio que seguiu suas palavras. Alguém, aos berros, pediu silêncio. A calma voltou a reinar no recinto.

— Muito obrigado — disse o general. — Os senhores estavam um pouco agitados. Peço-lhes que não formulem perguntas. O oficial encarregado das informações tratará disso logo após o lançamento. Meu tempo é muito curto de modo que devemos aproveitá-lo o máximo possível. A Stardust será tripulada por uma equipe de quatro homens rigorosamente selecionados. Além do major Rhodan, participam da expedição o capitão Reginald Bell, o capitão Clark G. Fletcher e o tenente-médico Eric Manoli. Um grupo de pessoas altamente especializadas tanto no terreno militar quanto no científico. Cada um deles é possuidor de pelo menos duas especializações distintas. Uma tripulação cujos membros se completam com uma perfeição que poucas vezes é alcançada. Os senhores receberão, depois, fotografias e dados adicionais sobre eles.

Ao que parecia, o general Pounder não estava disposto a brindar o auditório, que se mantinha cativo às suas palavras, com um discurso mais prolongado. Então, silenciando as vozes que começavam a se levantar, ao mesmo tempo em que olhava para o relógio, exclamou:

— Por obséquio, cavalheiros, as perguntas que estão formulando são em vão. Tudo o que lhes posso fornecer são dados genéricos. A Stardust está preparada para uma permanência de quatro semanas na Lua. O programa de exploração a ser cumprido pelos tripulantes está perfeitamente determinado. Depois da alunissagem bem sucedida de naves não tripuladas, resolvemos assumir o risco de enviar uma expedição de quatro homens à Lua e, queira Deus, não cometeremos qualquer equívoco. Como os senhores sabem, a partida da Terra consome uma quantidade enorme de energia, ainda mais que o último estágio da nave terá que descer na Lua e voltar com os seus próprios recursos, o que não seria possível com os engenhos convencionais de propulsão, ainda mais numa nave de apenas três estágios de dimensões relativamente reduzidas.

— Queremos dados técnicos! — gritou alguém, exaltado.

— Serão fornecidos — resmungou o general em resposta. — O comprimento total da nave é de 91,6 metros. O primeiro estágio tem 36,5 metros; o segundo, 24,7 e o terceiro, que constitui o módulo que descerá na Lua, 30,4. O peso máximo de decolagem, com os tanques de combustível completos e a carga útil, é de 6.850 toneladas, sendo a carga útil de 64,2 toneladas. Assim mesmo, o módulo lunar não parece muito maior que a maioria das naves de transporte. Isto acontece porque só o primeiro estágio é dotado de propelentes químicos. O segundo e o terceiro estágios conterão os primeiros mecanismos de propulsão nuclear.

Esta declaração foi a segunda bomba de Pounder. Ele a soltara de surpresa. Impassível, prosseguiu:

— O primeiro estágio usará, como combustível, a melhor composição química de que dispomos para esse fim: o N-trietil-borazan, cujo elemento combustível é o hidrogênio-boro. O oxigênio é fornecido pelo tradicional ácido nítrico, que desencadeia a reação de auto-ignição quando misturado na proporção de 1 para 4,9. A potência de empuxo é superior em 180% à da velha hidrazina, em idênticas condições estequiométricas. Os reatores do primeiro estágio são desligados a uma velocidade final de 10.115 quilômetros por hora e a uma altitude de 88 quilômetros. Nesse ponto, esse estágio se desprende. O segundo estágio já está equipado com os novos propulsores nucleares, cujo reator funciona a uma temperatura de 3.920 graus centígrados utilizando ligas especiais obtidas por condensação molecular. Os novos micro-reatores foram instalados em condições bastante favoráveis. Funcionam à base de plutônio. A energia puramente térmica por eles gerada é transmitida para as câmaras de compensação térmica ou de expansão, através de um elemento ativo intermediário. Como elemento de transmissão das radiações, utilizamos o para-hidrogênio líquido em estado de pureza quase absoluta, que é aquecido e eliminado pelos propulsores. Depois que conseguimos eliminar as perdas através da evaporação, o hidrogênio líquido passou a ser excelente elemento transmissor de radiação. Tivemos que solucionar problemas bastante difíceis, especialmente aqueles ligados ao ponto de ebulição extremamente baixo do hidrogênio líquido, que começa a ferver a uma temperatura de 252,78 graus centígrados abaixo de zero. O mecanismo de propulsão nuclear funciona a uma velocidade de escapamento de 10.102 metros por segundo, velocidade que, em hipótese alguma, poderia ser atingida através de uma reação química. Posteriormente, lhes serão fornecidos outros dados a respeito.

“A Stardust será lançada às três horas e dois minutos. Vai descer junto à cratera Newcomb, perto do pólo sul lunar. Estamos interessados em descobertas relativas à face oculta da Lua mas, devido às limitações da comunicação pelo rádio, deveremos manter um homem na face visível. Como é do conhecimento de todos, as ondas de rádio se propagam em linha reta. Os tripulantes farão, também, extensos passeios no solo lunar com um novo tipo de veículo exploratório. Por ora, isso é tudo, senhores. Transmiti-lhes todas as informações essenciais. Outros pormenores detalhados, inclusive técnicos lhes serão fornecidos pelo oficial encarregado pelo setor.”

 

À uma hora em ponto, o Dr. Fleet encontrava-se diante dos quatro homens adormecidos. Estavam descansando, havia quatorze horas, sob o efeito da psiconarcotina.

O Dr. Fleet hesitou por alguns segundos antes da aplicação do elemento neutralizador dos efeitos narcóticos do soporífero. Teve um indefinível sentimento de compaixão. Com o despertar, retornariam os pensamentos, o espírito voltaria à lucidez e tudo aquilo, que com tanto esforço se procurou afastar dos quatro homens, voltaria a assaltá-los.

Um tripulante nervoso, sonolento, física e psiquicamente esgotado era um parceiro pouco adequado às máquinas de calcular insensíveis e aos mecanismos solicitados até o limite extremo da sua capacidade. Era indispensável que o espírito humano se mantivesse lúcido, pois só a ele caberia, em última instância, a decisão.

Evidentemente, ainda seriam realizados outros exames médicos de rotina, que demandariam cerca de uma hora. Outra hora seria dispendida pelos engenheiros encarregados do equipamento. Os homens subiriam a bordo da nave dez minutos antes da partida. E ficariam deitados em suas macias camas metálicas abstendo-se de qualquer esforço mental.

Com a partida da espaçonave, o período de repouso chegaria ao fim. Dali em diante, teria início uma luta encarniçada que forçaria o corpo e a mente até o extremo da resistência. Os homens enfrentariam um verdadeiro martírio no ventre de um monstro furioso feito de aço-molibdênio e fibras sintéticas.

As quatro camas baixas, com seus colchões de espuma que respiravam ativamente através de poros, estavam cercadas de uma luminosidade suave e acariciante. Parecia ser o máximo de conforto dispensado a homens que dali a pouco teriam que suportar tremendas provações.

O major Perry Rhodan, ás da Força Espacial, abriu os olhos. Praticamente sem a menor transição, passou do sono para um estado de perfeita lucidez.

— Cuidou de mim em primeiro lugar? — perguntou. Parecia antes uma constatação que uma indagação. Com grande satisfação o Dr. Fleet registrou a reação lúcida do comandante. Não havia dúvida, Rhodan estava de volta.

— Exatamente como tínhamos planejado — confirmou com voz abafada.

Rhodan ergueu-se num gesto comedido, respirando profundamente. Alguém afastou a coberta fina dotada de ventilação ativa. Ele trajava uma vestimenta ampla, cujo formato lembrava uma camisa que não exercia qualquer pressão sobre o corpo. Enquanto levantava, proferiu, em voz baixa, uma maldição que fez aflorar um sorriso aos lábios dos homens que o rodeavam. O gesto parecia provocar uma sensação de alívio nessa situação um tanto irreal.

— Doutor, se eu tivesse pernas tão lindas como as suas teria, pelo menos, um motivo para me conformar — observou Rhodan com um humor seco. Nos seus olhos havia uma luminosidade faiscante. Em compensação, o rosto estreito e magro permaneceu impassível.

Um ronco cavernoso fê-lo voltar a cabeça. Bastante interessado, observou o procedimento que faria despertar seu companheiro dileto, o capitão Clark G. Fletcher que, como ele, já tinha contornado a Lua. Rhodan ainda não sabia como aquele gigante bochechudo de pele delicada como um bebê e mãos maltratadas como uma faxineira poderia ser acomodado no espaço exíguo de uma nave espacial. Com o ronco que faria um mamute ao se levantar, Fletcher, especialista em astronomia e matemática e futuro doutor em física, levantou-se.

— Meu filho já chegou? — ressoou sua voz.

Ao que parecia, a partida iminente só lhe despertava um interesse secundário.

— Então, doutor, cuidou bem de minha esposa?

O Dr. Fleet soltou um suspiro abafado.

— Escute aqui, meu jovem, se o amigo acha que sua esposa é um milagre anatômico, suponho que está um pouco enganado. Ainda faltam três meses. Acalme-se, a natureza não tem pressa.

— Muito bem! — disse o gigante. — Vou sentar e esperar.

O terceiro membro da tripulação deu mostras do despertar por meio de um riso baixo e agradável. O tenente-médico Eric Manoli, também geólogo, era o homem mais calmo e retraído da tripulação. E, provavelmente, o dotado de melhor autodomínio. Cumprimentou os presentes com um gesto e lançou um rápido olhar ao relógio. Evidentemente, o Doutor Manoli observava estritamente a lei não escrita dos cosmonautas que, em termos claros e objetivos, dizia: “Nunca fale na partida da nave, a não ser que seja absolutamente necessário; você dormiu para revigorar o corpo e o espírito; não reduza os efeitos favoráveis do sono com a idéia de que é necessário encarar imediatamente toda a seriedade da situação.” Era uma fórmula simples, consagrada pela experiência.

— Tudo bem, Eric? — indagou Rhodan.

— Tudo bem — confirmou. E, voltando-se para Fletcher, continuou: — O que há com Bell? Parece que ele dorme o sono das montanhas?

O capitão Fletcher virou-se na cama. Sua mão direita deu um estalo no ombro rechonchudo daquele baixote que revelava uma tendência evidente para a obesidade.

Quem conhecesse bem o capitão Reginald Bell iria compará-lo a uma elástica bola de borracha. A gordura que apresentava era um meio excelente para iludir os incautos. A verdade é que, na centrífuga gigante, ele suportou melhor a força exigida de 18 G — ou seja dezoito vezes a aceleração da gravidade — que o Dr. Manoli, pequeno e ossudo.

— Não amole! — veio o resmungo que parecia sair de dentro do travesseiro de espuma. Um rosto largo, todo coberto de sardas saiu de dentro da massa de lençóis. Os olhos azuis, que pareciam descorados piscaram para Fletcher: — Estou acordado há uma hora — afirmou Bell, com a voz indolente. — A dose de soporífero foi muito fraca para um homem do meu tamanho.

— É claro que foi — concordou Rhodan com toda seriedade. — Admiro a sua paciência. Você deve ter respirado bem baixinho para não incomodar os outros.

— Por isso, você vai ser condecorado — disse Fletcher descendo de sua cama. — Mas, primeiro, são os pais em perspectiva e os sofredores. Aliás, gostaria de saber o que ainda falta examinar no nosso organismo.

Subitamente, Fletcher ficou em silêncio, olhando, embaraçado, para o comandante. Por pouco, ele teria violado a lei. Rhodan fez que não ouviu. E, bocejando, disse com estudada indiferença:

— Comecemos por ele, doutor, já que ele vai ser pai logo. É de se supor que nossa circulação esteja em ordem. Ainda assim, convém deixar as injeções neutralizadoras à mão.

Perry Rhodan começou a analisar suas próprias reações. Sentiu uma angústia martirizante no canto mais recôndito do subconsciente. A tagarelice dos homens nada mais era senão um ardil psicológico através do qual pretendiam se acalmar.

Eles sabiam que não deviam falar na partida iminente. Faziam de conta que aquilo era perfeitamente normal, uma viagem como todas as anteriores. Mas Rhodan sabia, e eles também, que cedo as coisas seriam bem mais sérias do que eles pensavam.

No que dizia respeito à força da inércia, a situação do homem que era impulsionado por um foguete de propulsão nuclear era muito diferente daquela que se experimentava quando do lançamento de uma nave comum. As pressões eram muito maiores e, maiores ainda, as que nasciam nas incontroláveis profundezas do espírito humano. Sentia-se medo. Era natural e ninguém jamais negou isso. Apenas, esses homens foram treinados, também, para controlar o medo e não se deixar dominar por ele, acontecesse o que acontecesse.

Rhodan observou, disfarçadamente, os homens de sua tripulação. Todos pareciam estar bem. Talvez Fletcher estivesse um pouco inquieto. Pensava demais no filho que estava por nascer. Se fosse por ele, desta vez Fletcher teria ficado em casa. Todavia, não era aconselhável desfalcar um grupo, cujos membros já se haviam adaptado tão perfeitamente uns aos outros. Um novo elemento admitido em cima da hora não se ajustaria bem ao conjunto. Por isso, Rhodan conformou-se com o fato consumado. De resto, não encontrou qualquer outro fator negativo.

 

Os assentos-leitos eram obras-primas de engenharia. Dotados de controle hidropneumáticos e controladores de nível que adaptavam o equilíbrio à mais leve mudança de peso, eram o máximo que se podia conceber em termos de conforto.

Desde as primeiras naves espaciais que se fazia questão, absoluta, de que os tripulantes se acomodassem sobre leitos especiais, enquanto estivessem usando os pesados trajes espaciais. As normas de segurança obrigavam os tripulantes a usar, inclusive, os capacetes pressurizados durante o lançamento.

É evidente que pequenas lesões ocorriam por vezes, como resultado das tremendas pressões causadas pela aceleração. O caso mais trágico e lamentável ocorreu quando da construção da primeira estação espacial. Um capacete mal ajustado provocou fratura da base do crânio de um dos tripulantes quando a aceleração chegou a

Perry Rhodan nunca usara o traje espacial durante a partida e este privilégio especial ele estendera aos demais membros de sua tripulação. Os técnicos, porém, achavam que isso era um risco desnecessário. A mais leve ruptura da parede externa da nave provocaria uma descompressão explosiva, isto é, uma violenta perda de pressão. E todos sabiam com que facilidade o sangue humano tendia, numa situação dessas, a entrar em ebulição.

Acontece que Rhodan sempre tivera uma boa estrela. As naves que ele tripulara nunca haviam sido atingidas por meteoros e nem sofreram qualquer dano em virtude das tremendas forças desencadeadas por ocasião da decolagem.

Os quatro homens estavam estendidos nos leitos, trajando seus uniformes azuis. Os pesados e desconfortáveis trajes espaciais estavam pendurados em suportes, colocados ao alcance da mão. Com isso, Rhodan livraria seus companheiros de uma provocação martirizante, evitando, também, pequenas contusões e escoriações que poderiam vir a ser dolorosas e, o que é pior, um problema a mais.

A última verificação geral havia sido concluída. Bem abaixo deles, a mais de oitenta metros, os técnicos iam se afastando. Acabavam de verificar a regulagem dos estabilizadores do primeiro estágio.

O capitão Bell, especialista em eletrônica e em motores de propulsão nuclear, precisara de mais algum tempo para a verificação dos instrumentos que lhe estavam afetos, enquanto que Rhodan já terminara de checar o mecanismo de auto-ignição e o sistema de direção por controle remoto.

Fletcher e o Dr. Manoli, que no momento nada tinham a fazer, estavam deitados atrás dos dois assentos principais. A cabine era muito apertada. Estava rodeada de inúmeros feixes de cabos, tubulações plásticas e painéis de instrumentos. Logo abaixo da sala de comando. Havia uma minúscula sala para repouso com uma mini-cozinha e instalação sanitária. Não era possível mais espaço do que o que haviam conseguido. Estes dois compartimentos ficavam logo abaixo do nariz do foguete.

Abaixo da cabine de comando e da de repouso, vinha o depósito de carga útil, no qual guardavam-se as provisões. O espaço abaixo do piso do depósito era região proibida para os tripulantes. Lá, ficavam os tanques isolados que continham hidrogênio líquido. Logo abaixo, estavam as instalações de bombeamento e os geradores de força. A espessa parede construída com uma liga especial indicava o fim da zona de segurança. Atrás dela abrigava-se o reator de plutônio, trabalhando num ritmo vertiginoso, e as monstruosas câmaras de combustão com seus condutos térmicos e válvulas de pressão.

A Stardust possuía um único reator principal e quatro reatores menores que pertenciam ao mecanismo de direção. A capacidade de empuxo do mecanismo de propulsão chegava a 1.120 toneladas a uma velocidade de radiação de 10.102 metros por segundo.

O ponteiro de minutos do relógio saltou para o mecanismo seguinte. Eram três ho­ras e um minuto. Faltavam, pois, sessenta segundos para o lançamento.

Rhodan voltou a cabeça. O movimento tornou-se um pouco difícil uma vez que ele estava literalmente afundado na camada de espuma de borracha que revestia os assentos-leitos.

— Tudo bem com vocês? — perguntou.

A resposta resumiu-se a um sorriso. Todos ouviam a voz monótona do encarregado pela contagem regressiva. O último minuto havia chegado. E, embora todos eles já tivessem inúmeras vezes ironizado aquele paulificante desfilar de números, desta vez até isso tinha mudado. A lembrança do reator atômico logo abaixo deles era como um pesadelo.

— ...dezoito, dezessete, dezesseis, quinze...

Rhodan aproximou o microfone dos lábios.

— Mensagem final da Stardust à Central — irrompeu sua voz pelos alto-falantes. Era ouvida em toda parte, inclusive no abrigo isolado para a imprensa. — Tudo bem a bordo. Voltaremos a chamar após a ejeção do primeiro estágio. Câmbio final.

— ...três, dois, um, zero, seqüência de ignição iniciada.

Era a mesma coisa de sempre. Eles sabiam que, apesar de todo o cuidado concernente ao isolamento acústico, o corpo do foguete constituía-se em um excelente corpo de ressonância. E nem mesmo a divisão por estágios podia alterar isso.

Ouviram o borbulhar e o chiado das turbobombas instaladas embaixo, no interior do primeiro estágio. Depois, teve início o ribombar, ainda hesitante, da pré-ignição, seguido imediatamente pelo barulho infernal das substâncias químicas que reagiam entre si. O N-trietil-borazan, que servia de combustível, misturou-se com o ácido nítrico que desprendia o oxigênio. O processo químico teve início, com monstruosa potência nas 42 câmaras de combustão do primeiro estágio.

As línguas de fogo que reluziam numa incandescência branca, romperam a escuridão da noite. O uivo da onda de compressão desencadeado pelo processo de ignição tomou conta do espaço até se perder no trovejar ensurdecedor do gigantesco mecanismo de propulsão.

A Stardust ergueu-se lentamente. À ascensão tranqüila, seguiu-se uma série de movimentos laterais inquietantes no terço superior da nave. Era o instante mais crítico do lançamento. Travava-se, naquele segundo, a luta entre os dispositivos de estabilização e o mecanismo de propulsão que parecia querer desequilibrar o gigantesco foguete que mal iniciara sua arrancada rumo ao espaço. Mas os dados fornecidos pelo computador de bordo indicavam que a perigosa inclinação já havia sido corrigida.

As exclamações de entusiasmo dos repórteres submergiram no barulho ensurdecedor. Parecia o fim do mundo. Era um barulho enorme e indescritível que só poderia ser superado pelo produzido pela explosão de um artefato nuclear. Nem mesmo no interior dos abrigos era possível compreender as palavras proferidas. Quem não usasse isoladores no ouvido, via-se condenado temporariamente a uma surdez absoluta. Os lábios se moviam e as mãos transmitiam sinais breves mas não se ouvia uma única palavra. E os gestos pareciam revelar um esforço intenso e uma grande tensão nervosa.

Afinal, a nave começou a ganhar velocidade e iniciou sua trajetória, como se estivesse ávida para entrar no seu elemento. O ruído parecia aumentar aos poucos. A torrente ígnea que escapava das câmaras de combustão chicoteava a plataforma com tremenda fúria que o céu tornou-se de um rubro sangüíneo. Instantes depois, em perfeito equilíbrio, o gigante subia verticalmente até que a esteira luminosa que o seguia fosse vista como um débil ponto de luz que aos poucos desaparecia no céu estrelado.

Ouviu-se um estalo vindo dos alto-falantes e o rosto do general Pounder surgiu na tela.

— A nave espacial Stardust foi lançada exatamente às três horas e dois minutos, conforme as previsões — comunicou com voz calma. — Não houve qualquer ocorrência extraordinária, tudo correu bem. Os senhores poderão ouvir os comunicados radiofônicos dos pilotos. Falta pouco para a separação do primeiro estágio. A aceleração máxima final é de 9,3G. Dentro de três minutos aproximadamente a nave Stardust deverá penetrar no campo alcançado pela estação orbital. Dali em diante os senhores voltarão a vê-la nitidamente, podendo acompanhar a separação do segundo estágio. Quero salientar mais uma vez que só deverão deixar o campo de Nevada Fields depois que a Stardust tiver pousado na Lua. Estamos guardando uma surpresa. É só.

O general Pounder concluiu com um sorriso.

Vinda do sistema de alto-falantes, ressoou outra voz, esta, de um dos técnicos.

— Cinco segundos para a separação do número um. Funcionamento perfeito, nenhum desvio de rumo... dois... um... contato!

O dispositivo eletrônico realizou a operação com incrível precisão. Não houve movimento de mãos ou de um dedo sequer. Apenas olhos febris que espreitavam, nervosos na sala de comando e, contrastando com esta ansiedade, a estóica paciência dos repórteres.

Nos alto-falantes, soou o sinal acústico que indicava o final da operação. E, de repente, surgiram dois corpos distintos na tela do radar. Neste instante, o sistema de aterrissagem por controle remoto assumiu o comando do primeiro estágio, trazendo-o de volta ao chão.

A tripulação dispunha de um intervalo de oito segundos. O computador de bordo já preparava a ignição do segundo estágio.

A voz de Rhodan soou, tranqüila.

— Rhodan falando. Nenhum desvio de curso. Indicações normais, vibrações dentro dos limites normais. Tripulação pronta para ignição do segundo estágio. Câmbio final.

Era tudo o que tinha a dizer e o bastante para os cientistas e supervisores da estação situada na Terra. Prosseguindo sem qualquer força propulsora, a Stardust precipitava-se em direção ao vazio do espaço. Rhodan lançou um rápido olhar ao redor de si. Tudo parecia em ordem para o capitão Bell; Fletcher e Manoli também tinham suportado muito bem a força de 9,3G.

Agora era a vez do mecanismo de propulsão atômica do segundo estágio. Rhodan sentiu a palma das mãos úmidas, mas seus sentidos experimentados não registraram qualquer ruído anormal. Reinava o mais absoluto silêncio.

Subitamente veio um arranque violento acompanhado de um uivo estridente que parecia invadir todas as moléculas do material de que era feito a nave. Mais uma vez, o corpo do foguete funcionou como câmara de ressonância.

Depois de alguns instantes, a aceleração subiu para 8 G. Com isso, teve início a tremenda sobrecarga imposta ao organismo dos tripulantes mal refeitos do primeiro esforço.

Rhodan sentiu o efeito do poderoso medicamento destinado a regular a circulação. Por enquanto o organismo estava suportando a provação, apenas a respiração transformara-se em verdadeiro martírio. Incapaz de mover um dedo, fitou, com os olhos embaçados, os painéis de controle situados em sua frente. Os sete segundos decorridos até o momento em que a tremenda pressão fosse reduzida ao valor normal de 1 G pareceram uma eternidade. Tratava-se de uma pausa para recuperação, fixada com base em cálculos exatos, nos quais se considerava a enorme potência do sistema de propulsão.

Com a voz rouca, Rhodan gritou um tudo bem! e a resposta que se seguiu foi, para ele, ininteligível. Após isso, veio o segundo intervalo de aceleração do estágio número dois. Ainda não estava esgotada a reserva de combustível.

Três segundos depois da segunda ignição foi ultrapassada a velocidade de deslocamento da Terra. Os indicadores dos velocímetros indicavam 11,5 quilômetros por segundo.

Os reatores do segundo estágio se extinguiram a uma velocidade de 20 quilômetros por segundo. Novamente a separação se realizou de modo súbito, sem a menor transição de tal modo que a ausência de gravidade que se seguiu produziu o efeito de uma tremenda martelada. Os tripulantes sentiram-se impelidos para cima. Uma força selvagem parecia comprimir seus corpos contra os cintos que os prendiam nos leitos.

Por alguns instantes, Rhodan perdeu a consciência. Quando voltou a abrir os olhos, viu, através da vermelhidão que parecia envolvê-lo, que já se encontravam no espaço exterior.

A correção de rumo já tinha sido levada a efeito. Bem atrás deles, o segundo estágio, que já podia ser visto nas telas, estava sendo conduzido para o curso de retorno pelo controle de Terra. A essa altura, a Stardust já ultrapassara a órbita da estação espacial. Prosseguindo em velocidade constante, encontrava-se a 3.250 quilômetros acima da superfície da Terra.

Agora dispunham de alguns minutos de descanso. Teoricamente a velocidade da nave, no momento, devia ser suficiente para liberá-la em definitivo da ação da gravidade terrestre. Ainda segundo a teoria, estaria em condição de atingir qualquer ponto do universo independentemente de qualquer propulsão.

Todavia, um enorme abismo separa a teoria da prática. A gravidade da Terra tinha sido superada, mas a Terra ainda se fazia sentir, influenciando o vôo da espaçonave. Além disso, o simples prosseguimento da viagem não bastava. Ainda tinham que ser realizadas inúmeras manobras, para as quais a essa altura não se dispunha de dados precisos. Os desvios de rota, por ínfimos que fossem, tinham sido calculados e corrigidos. E também era necessário corrigir diferenças ainda menores nos valores-limites teóricos da velocidade, que, ultimamente, tinham causado dificuldades por ocasião das manobras de aproximação.

O leito de Rhodan dobrou-se, formando uma macia poltrona. O painel de instrumentos acompanhou o movimento, ficando, agora, em frente a ele, e não acima. Foi uma sensação de alívio.

Reginald Bell recuperou-se com expressões menos sociáveis. O capitão Fletcher fez ouvir uma tosse áspera e seca. Nos cantos da sua boca havia sangue coagulado.

— Foi duro, muito mais duro que das outras vezes — disse Rhodan com voz grave. — Nos últimos segundos, levaram-nos a 15,4 G. Com isso, atravessamos o perigoso cinturão de radiação. O que houve com você, Fletcher?

Fletcher estava pálido. Seu rosto bochechudo perdera as cores sadias. Apenas o brilho do seu cabelo continuava inalterado. E, torcendo os lábios num gesto triste, gemeu:

— É o diabo. Seria bom que eu descesse antes de fazer mais tolices. Com 7 G ainda estava com a ponta da língua entre os dentes. Foi uma estupidez. A primeira coisa que se ensina a qualquer aluno da academia é que deve abster-se de gestos dessa espécie. Logo eu...

Ao concluir, encolheu os ombros. Seu rosto contorcia-se de dor. Rhodan lançou-lhe um olhar perscrutador. E disfarçou a expressão indagadora com um sorriso frio.

As solas magnéticas das botas de Bell estavam na chapa metálica do piso. Cambaleando, lutava para equilibrar-se. Enquanto o sistema de propulsão da Stardust estivesse parado, não tinham peso. Sem dizer uma palavra, venceu os poucos passos que o separavam de Manoli, erguendo e voltando a colocar no piso as solas magnéticas com movimentos pesados. Depois de segurar ligeiramente o pulso de Manoli, fez um sinal de alívio.

— Está bem — disse laconicamente. — Logo estará de volta. O pulso trabalha que nem um mecanismo de relógio. Mostre a língua, Fletcher. Vamos logo! Abra a boca!

Um filete de sangue escorreu-lhe por entre os lábios. Era problema para o Dr. Manoli.

O comandante girou para a direita o regulador de volume e os sons confusos do rádio tornaram-se audíveis. Enquanto isso, o Dr. Manoli se recuperava. Rhodan ouviu o leve chiado do mecanismo hidropneumático. O leito de Manoli transformou-se em poltrona e alguns instantes depois, ele estava de pé ao lado de Fletcher.

— Que sorte! — disse o médico. — Não chegou a cortar a língua, foi apenas um ferimento quase superficial. Preciso de uns dez minutos. É possível?

— É. Pode começar, doutor. Bell, registre na fita magnética os últimos valores do computador central. Quero um cálculo de controle. Vamos adiar as etapas seguintes por doze minutos. Avise-me logo que terminar. Poderemos compensar a perda de tempo com quatro segundos de potência total.

Alguns instantes depois, o rosto de Rhodan apareceu na tela da estação da Terra. Pounder, que estava de pé diante do microfone, nervoso e inquieto, respirou aliviado.

— Stardust para Nevada Fields — soou a voz forte e clara na sala da Central de Comando. — O capitão Fletcher sofreu um ferimento leve. Mordeu a língua. Manoli está estancando o sangue. O ferimento poderá ser tratado com extrato de plasma. Preciso de um adiamento de doze minutos. Câmbio.

Pounder ergueu-se. Seu olhar lançado em direção ao professor Lehmann disse tudo. O cientista confirmou com ligeiro aceno de cabeça. Era perfeitamente possível. Havia uma margem de segurança prevenindo contra incidentes inesperados como esse.

O computador começou a trabalhar. Alguns segundos depois, os valores corrigidos estavam disponíveis. Foram transmitidos automaticamente para a Stardust por meio de uma antena direcional especial. O painel iluminou-se diante do capitão Bell. As calculadoras automáticas da nave, pequenas mas eficientes, acusaram o recebimento. Para todos os efeitos, num instante foram inutilizados os resultados de uma série enorme de cálculos. Novas cifras cruzaram o espaço e, em poucos segundos, um plano de vôo foi inutilizado e convertido em valores inteiramente novos.

Os dedos de Bell martelaram o teclado para registrar os dados recebidos. Rhodan transmitiu as informações de rotina relativas a radiações, resultados das mediações, temperatura, pressão da cabine e estado de saúde dos tripulantes.

Manoli não gastou mais que onze minutos para colocar Fletcher em condições. Os pequenos pontos estavam praticamente invisíveis.

Fletcher olhou, encabulado, para os companheiros.

— Da próxima vez, use o dedo, neném — disse Rhodan. — Ele agüenta mais que a língua.

Os encostos das poltronas voltaram a inclinar-se para trás. Logo após teve início a música assombrosa daquele mecanismo, cujo funcionamento ainda encaravam com receio e expectativa.

Era o mecanismo de propulsão nuclear que, no segundo estágio, revelara um funcionamento excelente em idênticas condições.

Voltou-se a ouvir o ronco selvagem e sentiu-se o solavanco pesado. A aceleração, porém, só subiu para 2,1G. Isso não causou qualquer dificuldade para Rhodan e sua tripulação.

Seguida por um raio chamejante de hidrogênio aquecido a uma temperatura elevadíssima, a nave foi impulsionada numa velocidade vertiginosa para as profundezas do espaço.

Uma vez superados totalmente os problemas da decolagem, surgiram as dificuldades mais sérias de uma viagem espacial.

Rhodan ouviu o barulho retumbante, agora uniforme, emitido pelo mecanismo de propulsão atômica. A chama branco-azulada, suspensa no espaço vazio, seguia de perto a nave. Resultava da combustão do hidrogênio líquido, submetido a um processo de expansão forçada na câmara aquecida pela energia atômica.

O abastecimento do reator seria suficiente para mais de um ano. Todavia, era necessário ter cautela com o elemento irradiante. A reserva dele era limitada. Uma vez esgotados os tanques, não havia mais nenhum elemento que pudesse ser expelido da câmara de combustão. Dessa forma, até mesmo o mais eficiente dos reatores se tornaria inútil.

Respirando pesadamente no seu leito, enquanto transmitia a intervalos regulares seus breves comunicados para os receptores da estação espacial, Rhodan pensava nesse mecanismo propulsor, maravilhoso mas ainda primitivo.

Por enquanto, o empuxo só podia ser obtido indiretamente através do elemento intermediário formador do jato de propulsão. Será que um dia o homem conseguiria construir um mecanismo propulsor atômico puro? Seria um motor superpotente, cujo limite de velocidade ficaria situado perto da velocidade da luz.

Com grande esforço, Rhodan torceu os lábios. Sentia vontade de rir. Ao que parecia, Reginald Bell entretinha pensamentos semelhantes. Subitamente, gemeu:

— Juro que para os heróis de romance tudo é mais simples. Eles não têm o problema da compressão provocada pelo impulso da nave, e nunca mordem a própria língua. Como vai, Fletcher? Será que você agüenta? Vai demorar mais alguns minutos. Daqui a cinco segundos subimos para 8,4G. Tudo bem?

— Tudo bem — fungou o gigante pelo intercomunicador. Nos fones de ouvido percebia-se a sua respiração ruidosa. — Tudo bem. Santo Deus, estamos a caminho. Um dia contarei a meu filho. Seus olhos serão redondos e brilhantes que nem bolinhas de mármore polido.

Fletcher ficou calado. Sentia um cansaço profundo. Só mesmo uma pessoa de organismo resistente, bem treinada, conseguiria falar claramente a um nível de compressão ligeiramente superior a 2 G. E, embora todos os tripulantes fossem capazes disso, o Dr. Manoli abriu mão da oportunidade. Em compensação, deu mostras dos seus sentimentos através da sombra de um sorriso suave.

Estavam a caminho. A decolagem ficara para trás. O que estava por vir dependeria da capacidade de raciocínio e de reações extremamente rápidas. As forças de compressão, horríveis mas inevitáveis, estavam praticamente superadas. Haviam deixado para trás a Terra, aquela gigantesca bola verde-azulada que se afastava lentamente. Podiam sentir-se superiores à vida ligada à Terra; no momento essa sensação ainda os dominava.

Só a mente cristalina de Rhodan não acompanhou esse sentimento. Ninguém percebeu o brilho desconfiado dos seus olhos. Ainda não tinham chegado. Ainda não tinham pousado na Lua. E ainda não estavam preparados para a volta à Terra. Desta vez, o programa não previa apenas um contorno relativamente seguro da Lua, mas um pouso extremamente difícil no satélite da Terra.

 

Até Perry Rhodan mostrou-se cauteloso. Logo após os pesados intervalos de compressão resultante da manobra de desaceleração mandou que os membros da tripulação colocassem os trajes espaciais. A essa altura, a Stardust já entrara em órbita lunar preestabelecida a uma velocidade de cerca de 3,5 quilômetros por segundo, que poderia ser facilmente neutralizada.

Os homens obedeceram em silêncio. Enquanto o controle remoto exercido pelo computador da estação espacial impelia a espaçonave para órbitas cada vez mais reduzidas em torno da Lua, os quatro colocaram a vestimenta que, apesar de leve, apresentava um aspecto monstruoso. Eram trajes de proteção supermodernos. Hermeticamente fechados, resistiam perfeitamente a pressões imensas. Dispunham de suprimento próprio de energia, controle de temperatura, abastecimento de oxigênio e capacetes circulares feitos de plástico transparente, cuja resistência igualava a do aço.

Rhodan chegara a ordenar que os capacetes transparentes fossem fechados. Só as válvulas situadas do lado esquerdo e direito do círculo de engate permaneciam abertas, para que os homens pudessem continuar a respirar o ar da cabine. O dispositivo automático embutido fecharia essas válvulas tão logo a pressão exterior baixasse além do normal. Com isso, Rhodan fizera tudo que estava ao seu alcance para reduzir ao mínimo as possibilidades de um acidente.

A Stardust prosseguia seu caminho com a popa para a frente de modo que os reatores de propulsão pudessem funcionar em sentido contrário ao seu deslocamento. A trajetória estendia-se de um pólo a outro. Dessa forma, a nave ficava fora do alcance do controle remoto toda vez que mergulhava atrás da Lua, penetrando na área inatingível para os sinais de rádio emitidos pela estação espacial. Nessas oportunidades, a direção ficava a cargo do dispositivo automático de bordo. Depois de percorridas cinco órbitas elípticas completas, a desaceleração seria suficiente para permitir o pouso na superfície lunar.

A quinta órbita fora iniciada. O Sol se erguera do lado visível do satélite, dando início a um dos longos dias lunares. Sessenta por cento do hemisfério visível já estavam mergulhados na escuridão.

Somente os aparelhos de radar proporcionavam um quadro nítido da superfície lunar. Esta, pouco se diferençava da superfície visível, fato já perfeitamente conhecido. Nesse ponto, a Lua já não se constituía um mistério.

Depois de algum tempo, voltaram a emergir da sombra lunar. A altitude em que se encontravam não ultrapassava noventa quilômetros e a velocidade fora reduzida para 2,3 quilômetros por segundo.

O piloto automático emitiu um silvo agudo. A nave estava sendo atingida novamente pelos poderosos raios direcionais da estação espacial. O computador central da Stardust recebeu novas instruções e o capitão Bell estabeleceu contato para a interpretação.

Na tela, a nave era representada por um ponto verde. Deslizava exatamente pela linha previamente traçada, que correspondia à trajetória de aproximação. O final da linha situava-se junto ao pólo sul lunar, perto da cratera Newcomb. A área de alunissagem estava representada por um círculo vermelho. Era um terreno relativamente plano, rochoso, que devia proporcionar apoio firme à nave.

Os tripulantes podiam ouvir claramente a voz do chefe do programa com a mesma clareza com que ouviam o piloto automático registrar os impulsos direcionais. Havia pausas de alguns segundos entre um comunicado e outro devido a grande distância que separava a nave da Central de Controle.

A Stardust chegou à margem ocidental do Mare Nubium em velocidade ainda elevada. Imediatamente à frente, estava a cratera Walter. Estavam perto da área de pouso.

— Controle de terra. General Pounder falando — ouviu-se a voz pelo alto-falante em meio a algumas interferências. — A nave atingirá o ponto de inversão do curso dentro de 72 segundos. Na emissão do impulso será considerada a distância a ser vencida pelas ondas de rádio. Por ora desligaremos para evitar perturbações. A imagem da nave na tela de radar está bem nítida. Recepção boa, quase sem interferências. Piloto automático em funcionamento.

Vamos colocá-los no solo lunar sãos e salvos. Comecem a estender os suportes de alunissagem. Peço comunicar a execução desta instrução. Entraremos em contato após o pouso. Boa sorte. Câmbio final.

Rhodan empurrou uma pequena alavanca. Os quatro suportes telescópicos da nave estenderam-se, separando-se do corpo da nave num ângulo de quase quarenta e cinco graus. O mecanismo hidráulico afastava, cada vez mais, as longas pernas e nas extremidades inferiores destas, desdobraram-se placas, cuja superfície de contato era de quatro metros quadrados.

Pouco depois, a Stardust atingiu o ponto de pouso, seguindo, ainda, a linha de deslocamento traçada no mapa. Alguns desvios ligeiros tinham sido prontamente corrigidos.

— Tudo pronto. Aguardamos contato — disse Bell com voz arrastada. Era o momento decisivo, do qual dependia o sucesso do pouso.

Subitamente, sem qualquer outro preparativo, ouviu-se o ruído estridente do piloto automático. O impulso havia chegado com exatidão infinitesimal.

O mecanismo de propulsão do foguete emitiu um ruído ensurdecedor. Era um empuxo de desaceleração breve, mas extremamente violento, que, com seus 12 G, eliminou cerca de cinqüenta por cento da velocidade da nave.

Passado o choque e iniciada a pausa para correção de descida, os homens respiraram fundo, mais refeitos do novo golpe. No próximo empuxo de frenagem teria que ser realizada a correção de curso de sessenta graus e, logo depois, o posicionamento vertical dos reatores de popa em relação à superfície lunar. Nessa oportunidade, a nave teria que se encontrar exatamente acima da área de pouso. Devia descer sobre o jato por ela expelido com valor de empuxo perfeitamente dosado. A velocidade final da queda não poderia ultrapassar quatro metros por segundo.

Os dados passavam como relâmpagos pelo cérebro de Rhodan. Tudo parecera extremamente simples e fácil. Agora, deitado no interior daquele mecanismo sensível e frágil, pôde visualizar as imensas dificuldades que ainda estavam por vir.

A Stardust começou a cair numa trajetória parabólica que formava um ângulo bem aberto com a superfície lunar. A gravidade da Lua fazia-se sentir mais intensamente. Estava na hora de modificar o curso. Os reatores da câmara de combustão não podiam permanecer em posição horizontal; tinham que ser dirigidos para baixo. A nave caía de lado, como uma tábua, e por si só não poderia efetuar a correção necessária, colocando o mecanismo de propulsão na posição exata.

— Menos três segundos... dois... um... contato — exclamou a voz cansada de Bell.

 

O contato veio. Os ruídos que o seguiram irromperam pelos amplificadores como uma torrente de água. Os silvos extremamente agudos pareciam arrebentar os ouvidos dos tripulantes sobressaltados. Por uma fração de segundo, Bell olhou para frente sem nada compreender. Depois, seu rosto largo contorceu-se numa careta de pânico.

Rhodan enrijeceu os músculos e permaneceu absolutamente imóvel. Uma vez superado o tremendo golpe, ele reagiu com a rapidez do raio. Com um estalo, sua mão direita ligou a chave reservada para situações de acidente. As fitas magnetizadas prenderam os homens aos assentos que se dobraram para trás.

Todos os membros da tripulação ouviram o estridente sinal de alarme emitido pelo dispositivo automático. O computador da nave informava de forte interferência. As lâmpadas que se acendiam demonstravam que o impulso de inversão de curso, emitido pela estação de controle da Terra, não havia chegado à nave. E o computador acusara, de imediato, os graves riscos que a missão corria.

As luzes dos diagramas se acenderam automaticamente e sem a menor incorreção.

— Desvio — gritou Bell fora de si. — Não chegou nenhum impulso de ignição. Estamos caindo para além do ponto de alunissagem. As interferências estão impedindo a recepção dos impulsos de controle central. São transmitidos exatamente na nossa freqüência! De onde virão?

Rhodan não perdeu tempo para pensar. A superfície lunar, iluminada pelo sol nascente, aproximava-se em velocidade vertiginosa. Rapidamente, ele desligou a chave geral, interrompendo todos os contatos com a Terra. O uivo demoníaco dos instrumentos terminou. Cessou repentinamente, como se nunca tivesse existido. Uma campainha começou a emitir um som estridente. Uma voz gravada em fita do dispositivo central de direção faz-se ouvir:

— Computador eletrônico central assume procedimentos automáticos para pouso. Cálculos sendo executados. Completos. Iniciaremos a alunissagem. Impulso de emergência QQRXQ sendo conduzidos com intensidade máxima para canal 16. Iniciando alunissagem.

Era o que algum técnico tinha gravado na fita antes do lançamento. Contudo, a intenção que todos tinham de pousar, diferia completamente da situação que estava ocorrendo.

Em um gesto desesperado, tratavam de fazer a nave descer de qualquer maneira. Naquela altura, já não era mais possível arremeter e iniciar o caminho de retorno. A superfície lunar estava muito próxima e a velocidade da queda voltaria a subir para mais dois quilômetros por segundo. Nessas condições, a indispensável mudança de direção teria consumido tempo demais. Tratava-se de um pouso de emergência que teria que ser realizado fossem quais fossem as circunstâncias. Pouco importava que abaixo da popa flamejante se estendesse uma planície ou se erguesse a encosta de uma cratera de rochas agudas e paredões íngremes.

O mecanismo de propulsão entrou em funcionamento. Os dispositivos fizeram a nave girar com tamanha rapidez que ela assumiu imediatamente a posição vertical. A proa pontuda apontava para o céu absolutamente escuro que na Lua, desprovido de atmosfera, se identificava com o espaço sideral. Alguém gritou alguma coisa. Ninguém sabia quem.

Rhodan não deu ordens à tripulação. Não faria nenhum sentido. Numa situação como aquela, nenhum homem poderia fazer qualquer coisa, nem mesmo ele, que reagira imediatamente. Os cálculos e as manobras necessárias só podiam ser feitos pelos computadores. O cérebro humano não funcionaria com tamanha velocidade, mais ainda numa situação angustiante como aquela.

A encosta recortada de uma cratera surgiu na tela que estava acoplada ao dispositivo que captava as imagens do exterior da nave. As paredes da cratera estavam iluminadas pelo jato incandescente expelido pela câmara de combustão.

Bell gritou alguma coisa. E era de admirar que com 16 G de pressão ainda conseguisse emitir algum som.

Ouviram-se, então, fortes ruídos abafados. Um novo solavanco afundou-os nas camas pneumáticas. A estrutura da nave rangeu como se fosse partir ao meio e algumas conexões e instrumentos se quebraram. Logo, seguiram-se vibrações e sacudidelas intensas. Mas, antes que as oscilações da nave cessassem, fez-se um silêncio tão profundo e repentino que os sentidos puseram-se em alerta. O barulho feito pelos suportes de alunissagem também havia cessado e o indicador pendular indicava que a nave estava em posição vertical. Uma lâmpada verde, acima de Rhodan, brilhava sem cintilações, emitindo uma luz tranqüila e constante. Em meio ao silêncio, ouviu-se uma estridente e histérica gargalhada.

— Capitão Fletcher!

Rhodan não falou alto, mas sua voz tinha algo de cortante. Os sons agudos cessaram. Quando Fletcher se calou, as linhas duras do rosto de Rhodan se descontraíram. Nos olhos do comandante surgiu uma expressão calma.

— Está bem, Fletcher, esqueça!

A lâmpada verde brilhava e por meio dela o computador central transmitia um sinal silencioso. A nave estava de pé e, aparentemente, sem maiores avarias.

Bell exibia um sorriso de espanto. Parecia recusar-se a crer no que acontecia. O Dr. Manoli ficou, como sempre, calado. Os olhos negros davam vida ao rosto pálido. Pareciam indagar.

Rhodan causaria, ainda, um choque aos tripulantes. Naturalmente, eles esperavam alguma observação sobre o pouso de emergência bem sucedido. Seria um procedimento óbvio. Qualquer homem normal teria reagido dessa forma, nem que fosse apenas por meio de um breve suspiro de alívio. Era de se esperar que surgisse alguma atitude relacionada com a angústia terrível dos últimos instantes. Mas Rhodan reagiu de outra forma:

— Fletcher, você vai fazer o favor de verificar imediatamente a localização da emissora desconhecida que provocou a interferência. Os dados estão gravados nas fitas magnéticas do computador central. Quero ver se você é bom mesmo em matemática!

E nada mais disse.

 

O nome do homenzinho vivaz que exibia um rosto jovial sob a calva enorme era Allan D. Mercant. Era sempre fácil reconhecê-lo graças à faixa de cabelos que lhe circundava a cabeça e cujo tom castanho-dourado era interrompido por algumas mechas grisalhas nas têmporas.

Allan D. Mercant era uma criatura pacata; uma dessas almas piedosas que retiram minhocas e insetos das alamedas de um jardim para evitar que sejam pisados. Mas essa fragilidade aparente era apenas no que dizia respeito à sua vida íntima. No que concernia ao aspecto funcional, ele era o homem-forte, a eminência parda do Conselho Internacional de Defesa, que trabalhava em estreita colaboração com os organismos de defesa e serviços secretos do Ocidente. A OTAN supervisionara a criação do Conselho Internacional de Defesa dando-lhe a denominação oficial de Agência de Informação e Segurança. Assim, Mercant estava subordinado diretamente ao alto-comando da OTAN.

Quando ele entrou no salão de conferências em companhia de um homem de meia-idade, o ruído abafado das conversas parou.

O general Pounder, chefe da Força Espacial, fez as apresentações. Tratava-se de uma reunião secreta que estava sendo realizada no prédio da Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço — NASA — em Washington.

Allan D. Mercant não tomou o tempo dos presentes com rodeios. O rosto juvenil e moreno, encimado pela testa larga, era amável e muito simpático. Apontou para uma pilha de jornais que se via numa das extremidades da mesa.

— Cavalheiros, acho que não há mais necessidade de conversarmos a respeito da causa destas notícias. Compreendo, general, que lhe tenha sido impossível manter os repórteres indefinidamente em Nevada Fields. De qualquer maneira, recebemos um número considerável de críticas, algumas em termos bastante enérgicos, mas creio que o coronel Kaats tenha conseguido contornar as mesmas, solucionando-as a contento.

O homem de meia-idade que estava a seu lado confirmou com um aceno de cabeça. O coronel Kaats era da Polícia Federal e exercia as funções de chefe da Divisão Especial de Defesa Interna.

— Algumas notícias veiculadas pelos jornais e pela televisão são bastante inquietantes. Segundo estas fontes, a Stardust não desapareceu, apenas, mas caiu sobre a superfície da Lua. Às vezes, as notícias são tão ricas em pormenores que não podemos deixar de nos perguntar até onde elas são verdadeiras. As fontes destas informações nos parecem o ponto de maior importância. Faço estas considerações apenas para situá-los com maior perfeição dentro de todo o problema. E posso adiantar que já começamos a investigar com o maior cuidado.

Mercant olhou pensativo seu relógio, antes de prosseguir.

— O fato é que a nave Stardust está desaparecida há mais de vinte e quatro horas. Por enquanto, preferimos considerar a idéia de simples desaparecimento, o que nos deixa, ainda, com uma pontinha de esperanças. O ponto que me interessa é a opinião dos senhores sobre os editoriais de alguns dos jornais de maior circulação, nos quais se afirma, clara e expressamente, que teria sido recebida uma mensagem de socorro procedente da nave espacial. Teria sido o sinal QQRXQ que, no código da Força Espacial, designa um ataque, uma perturbação proposital do controle remoto e a iminência de uma queda. Caso isto tenha ocorrido, peço que me sejam fornecidos dados completos.

Allan D. Mercant cumprimentou os presentes com um gesto amável e sentou-se.

Com um movimento cansado, o rosto marcado por rugas de preocupação, o general Pounder levantou-se. Sua voz parecia fraca e era indisfarçável um tom de desapontamento.

— O senhor tem razão. O sinal QQRXQ designa esses conceitos. Não sabemos, ainda, como certos repórteres conseguiram o código. Pedi providências ao nosso setor de segurança mas, até agora, não tivemos qualquer resposta. A recepção do sinal, porém, não tem nada de misterioso. Algumas das maiores estações de rastreamento estavam com suas antenas apontadas para o pólo sul lunar e tínhamos pedido, também, o auxílio dos maiores observatórios do mundo. É bastante viável que algo tenha transpirado, o que, evidentemente, não explica o conhecimento do código por parte de alguns dos jornalistas presentes à base. É tudo o que tenho para informar.

— Esqueçamos, por enquanto, estes fatos. Gostaríamos de saber o que aconteceu, realmente, com a nave. Admite a possibilidade de uma interferência consciente e proposital nas mensagens do controle central? Pelo que eu soube, por intermédio de peritos no assunto, isso só seria possível por meio de um emissor colocado na Lua.

Pounder inclinou a cabeça. Nos seus olhos cintilou um reflexo de raiva impotente.

— Por mais absurdo que possa parecer, é isso mesmo. Não há qualquer outra possibilidade. Fizemos, nas últimas vinte e quatro horas, uma verificação detalhada e completa de toda a nossa aparelhagem. E excluímos completamente a eventualidade de uma falha em nossos equipamentos. Segundo, também, uma análise acurada dos fatos, chegamos a duas conclusões.

Pounder tirou um lenço e enxugou o suor da testa. Respirando pesadamente, prosseguiu:

— O major Rhodan pode ter dado um sinal codificado errôneo, ou então os receptores da nave foram danificados com a forte interferência. No que diz respeito ao major Rhodan, achamos impossível que um homem com as qualificações do major possa ter cometido um erro tão absurdo. O senhor sabe que ele é considerado o mais experimentado piloto de provas e cosmonauta de nosso país. Além disso, os cálculos efetuados provam que no momento decisivo, o foguete escapou ao controle de terra. Considerando o ângulo da queda, a gravidade lunar e o peso da nave, esta deve ter tocado o solo a cerca de sessenta ou setenta quilômetros da região polar. É bastante provável que tenha realizado um pouso de emergência sem maiores danos. Embora não possamos deixar de admitir a possibilidade de ter havido perda total. Quem sabe?

Os olhos de Mercant, antes límpidos, tornaram-se sombrios. O coronel Kaats pigarreou discretamente. Os dados conferiam com aqueles coletados pelo serviço de defesa.

— Admitamos, general apenas admitamos que o equipamento de bordo tenha sido avariado por força de uma interferência muito forte. Qual a conclusão que devemos tirar disso? — disse Mercant, falando devagar.

Pounder pareceu perturbar-se com a pergunta. Seu rosto pálido tornou-se quase rubro.

— Pelas informações recebidas, senhor, um foguete da Federação Asiática teria subido ao espaço juntamente com a Stardust.

Se esta nave atingiu a Lua antes da nossa, e se pousou no mesmo local previsto para a alunissagem desta última, pode ter realizado uma interferência bem sucedida na mesma freqüência por nós utilizada.

— O senhor acha que uma operação como esta pressupõe conhecimentos muito detalhados por parte dessa gente? — perguntou Kaats incrédulo.

— É claro que sim! — exclamou Pounder irritado. — Acho que cabe ao serviço secreto esclarecer este ponto. Sou especialista em naves espaciais, coronel, todavia quero ressaltar que uma interferência como a que foi feita nas nossas emissões só pode ter sido realizada por um transmissor colocado na Lua, se é que a nave recebeu um ataque deste tipo. E há bastante razão para se crer nesta possibilidade. Nós operamos o transmissor mais potente do mundo. Se alguém tentasse uma interferência partindo da Terra, ainda assim nossos sinais teriam chegado à Stardust. Só mesmo um transmissor colocado na superfície lunar poderia conseguir interferir com sucesso nas nossas transmissões.

Pounder sentou-se com um movimento brusco. Parecia esgotado.

Mercant fitou-o sem proferir uma palavra. Estava com a testa franzida.

— A Defesa Internacional cuidará do caso — decidiu. — Não demoraremos a saber se o comandante da Stardust cometeu algum engano lamentável ou se houve interferência de interesses estranhos. Não seria viável admitir a idéia de, por exemplo, uma falha no equipamento de bordo da nave?

O professor Lehmann ergueu a cabeça estreita. Parecia procurar as palavras mais adequadas. Depois, disse, indignado:

— A Stardust não apresentou qualquer defeito. Seu mecanismo funcionou perfeitamente. No momento não posso apresentar os dados que disponho para comprovar o que digo. Só esperamos que a tripulação entre em contato conosco. Se os homens chegaram ao solo lunar sãos e salvos, Rhodan encontrará um meio. Os receptores da nossa estação espacial estão ligados. Caso Rhodan consiga chegar à face visível, poderá transmitir sinais de rádio. Até então, só nos resta esperar. Não há outra alternativa.

— Dentro de quanto tempo estará pronta para lançamento a nave gêmea da Stardust? — perguntou o chefe do serviço secreto.

— A demora será de cerca de dois meses, no mínimo — respondeu Pounder. — Até lá, meus homens morrerão asfixiados, se é que ainda estão vivos. Seu suprimento de oxigênio é suficiente para cinco semanas no máximo e, se economizarem de modo extremo, seis semanas. Mais do que isso é impossível. Se for necessário, podemos fazer pousar uma sonda não tripulada perto do pólo sul lunar. Mas é muito duvidoso que esta operação de abastecimento seja bem sucedida. Afinal, nossos homens teriam que encontrar a sonda. Estamos numa situação desesperadora.

Allan D. Mercant deu a sessão por encerrada com uma rapidez extraordinária. No momento, nada mais havia para dizer. A nave Stardust continuava desaparecida. Uma série enorme de problemas amontoava-se diante dos presentes.

Antes de sair da sala, o chefe do serviço secreto disse, com um sorriso misterioso:

— Lamento informar-lhes, cavalheiros, mas a nave asiática a que se referiram, explodiu no ar após o lançamento.

Pounder ergueu-se de um salto. Incapaz de abrir a boca, fitou Mercant.

O homenzinho passou a mão pelos olhos.

— Sinto muito, mas os senhores terão que procurar outra causa. Não houve qualquer outra nave que subisse ao espaço ao mesmo tempo que a Stardust. De onde teria vindo, então, o transmissor colocado na Lua? Há coisas que não me parecem bem claras. Apesar de tudo, os senhores receberão, logo, notícias minhas.

E, em voz baixa, acrescentou:

— O fato é que nós também acreditamos que não houve falha por parte do comandante da nave. Caso lhes seja possível provar que todo o equipamento de bordo funcionou com perfeição, estaremos então às voltas com um problema que se me afigura extremamente difícil. Peço que todos os dados disponíveis sejam fornecidos o quanto antes à equipe de cientistas da Defesa Internacional. O senhor há de compreender que teremos que chegar a um resultado convincente.

— Rhodan não falhou — afirmou Pounder. — E poderemos provar que todo o mecanismo de controle da nave funcionou com perfeição. A mudança repentina do ângulo de queda é uma prova. Ela foi constatada no último instante. Poderemos apresentar-lhes todas as provas possíveis...

Allan D. Mercant cumprimentou-os com um gesto e saiu. Subiu ao terraço do prédio e entrou, pensativo, no seu helicóptero. Um céu límpido cobria a cidade naquele dia ameno de junho.

— Vamos enfrentar tempos difíceis, Kaats — murmurou. — Tenho fama de possuir um sexto sentido e ele já se manifestou há alguns minutos.

Kaats estreitou os olhos. Era verdade, Mercant possuía uma estranha intuição. Farejava o perigo e as dificuldades com a mesma eficácia de um cão de caça. Segundo os boatos, ele era dotado de um cérebro superdotado, além de todos os limites da capacidade mental conhecida. Esta e outras qualidades levaram-no, em pouco tempo, à chefia da Defesa Internacional.

 

Os membros da tripulação tiveram que esperar vinte e quatro horas até que a radioatividade do solo lunar se reduzisse por ação das substâncias pulverizadas no local.

Perry Rhodan saiu da nave em primeiro lugar, quando o contador só registrava poucas incidências com um valor ligeiramente inferior a 35 miliroentgens. Todos permaneceram em silêncio. Não houve qualquer manifestação de júbilo.

Apertaram-se as mãos e fitaram-se nos olhos sem dizer uma palavra. Tinham certeza de serem os primeiros homens a pisarem no solo lunar.

Um dos suportes de pouso fora danificado no choque violento contra o chão. De resto, a Stardust não sofrerá qualquer avaria séria. Em virtude da radiação, que ainda era intensa, não era possível verificar o mecanismo propulsor. Todavia, um teste rápido mostrara que ele estava em perfeitas condições.

O grande gerador de força também funcionava com perfeição absoluta e, o estado dos dispositivos de renovação do ar e controle da temperatura, não podia ser melhor.

Havia pequenas avarias que poderiam ser reparadas, mas o que inspirava maior preocupação era a deformação do suporte de pouso. Segundo as estimativas do capitão Bell, seriam necessários pelo menos seis dias para pô-lo em ordem. O aço-molibdênio era um material difícil de ser trabalhado.

Cerca de trinta e seis horas após o pouso forçado, retiraram do compartimento de carga a tenda pneumática — uma enorme esfera de fibra sintética.

O conteúdo de um pequeno tubo de ar comprimido foi suficiente para inflar a tenda dando ao material a consistência do aço. A ausência de pressão externa tinha, também, as suas vantagens.

O longo recinto estava firmemente ancorado no solo rochoso. A face externa bem polida refletia a luz do Sol num brilho intenso. Os membros da tripulação estavam instalando o mecanismo regulador da temperatura e o conduto do ar. Por enquanto, só havia ar no espaço entre as duas paredes da tenda. A construção tinha sido testada na Terra sob condições que simulavam as existentes na Lua. Só mesmo um meteoro poderia representar perigo.

A determinação exata da sua posição revelara-se bem simples. As numerosas viagens ao redor da Lua haviam permitido a confecção de mapas excelentes, de modo que puderam determinar sem a menor sombra de dúvida o local em que se encontravam.

A Stardust havia pousado a cerca de 82 quilômetros além do pólo sul lunar, já na face oculta do satélite. O Sol aparecia com o formato de uma foice. Mal e mal surgia acima do horizonte lunar que se encontrava bem próximo.

As crateras que rodeavam o local de pouso eram conhecidas e estavam registradas no mapa. O mesmo acontecia com o pequeno planalto que se erguia entre duas encostas. Só mesmo por um acaso a nave tocara o solo justamente neste ponto. Caso tivesse descido entre as rochas pontiagudas da cadeia circular de montanhas, teria sido, quase que infalivelmente, o fim.

A Terra não era visível. Ficava muito além do horizonte visual. Isso impossibilitava o envio de mensagens de rádio. A única manifestação de Rhodan face às dificuldades com que se defrontavam foi uma contorção juvenil nos lábios. Nenhum dos tripulantes da nave revelava sinais de desespero ou desânimo. Apenas Fletcher estava mais quieto do que o costume.

Rhodan observou este fato sem fazer comentários. Fletcher pensava com demasiada freqüência no lar, na esposa e no filho que estava para nascer. Mesmo que isso não constituísse motivo de uma preocupação maior, justificava um certo grau de inquietação. Rhodan decidiu dedicar atenção especial ao gigante.

Com um lento movimento de cabeça, o major olhou em redor. O gesto foi lento e cuidadoso. Ele estava de pé sobre um dos numerosos cumes da cadeia de montanhas. Do lado interno, a encosta descaía, abruptamente, para o fundo da cratera. Algumas crateras menores eram testemunhas da queda de meteoros, contra os quais o satélite, desprovido de atmosfera, estava exposto sem a menor proteção.

Cerca de 400 metros abaixo, o nariz pontudo da Stardust apontava para o espaço. No horizonte, o Sol emitia uma luz ofuscante e implacável. As rochas da encosta exposta aos raios diretos já começavam a absorver calor. Porém, perto da zona de penumbra, a temperatura ainda era suportável.

Rhodan não estava preocupado com estas coisas. Ele estava bem consciente dos problemas e perigos e tinha um excelente preparo psicológico para enfrentá-los. Além do mais, ele sabia que o avanço da tecnologia capacitava-os a realizar tarefas que, há vinte ou trinta anos, seriam consideradas impossíveis.

Seu traje espacial, por exemplo, era uma verdadeira maravilha em termos de mecânica de precisão. Sua construção ocupara centenas de homens. Cada peça tinha que se ajustar às outras com perfeição milimétrica. O traje, por si só, já era uma demonstração da elevada capacidade técnica desenvolvida pela espécie humana.

Rhodan contemplou a paisagem imensa e desoladora. A região era menos montanhosa e acidentada que outras áreas da Lua. Assim mesmo, também aqui não havia o menor vestígio de vida. O contraste tremendo entre a luz violentamente ofuscante do Sol e a escuridão mais profunda dava um aspecto de pesadelo aos traços da paisagem. Não havia sombra, no verdadeiro sentido da palavra; não existia nenhuma transição confortável entre a luz do Sol e um suave crepúsculo.

As regiões não atingidas pelos raios solares mergulhavam na escuridão absoluta. Também nesse ponto se fazia sentir o envoltório absorvedor da atmosfera. As temperaturas chegavam a extremos bastante acentuados. Tudo isso produzia, no espírito humano, um efeito estranho.

Longe, ficavam os contornos bem conhecidos da região polar, tornados invisíveis pela proximidade do horizonte. Perry Rhodan tivera motivos de sobra para escalar a cadeia de montanhas. Não se percebia qualquer objeto que destoasse da paisagem. Era verdade que a Stardust e a tenda reluzente formavam corpos estranhos. Mas eram seus velhos conhecidos. A essa altura, inclusive, já faziam parte da paisagem.

Um sorriso quase imperceptível aflorou-lhe aos lábios. Num ceticismo que condizia bem com o autodomínio que o caracterizava, perguntou-se com que direito fazia essa constatação. Chegou à conclusão de que a mesma devia resultar de uma certa arrogância resultante de sua concepção humana. O homem costumava conservar e considerar como objeto de sua propriedade tudo aquilo que havia conquistado com trabalho e sacrifício. Por isso, a nave Stardust fazia parte da paisagem.

Ao surpreender-se com essas reflexões, Rhodan deu uma risada. Imediatamente, o pequeno amplificador embutido no seu capacete começou a estalar. Ouviu-se uma voz ligeiramente preocupada.

— O que houve, Perry? — disse a voz. — Alguma dificuldade? Aconteceu alguma coisa?

Rhodan sorriu para si mesmo. Seus olhos se estreitaram como se estivesse absorto com algum pensamento.

— Perry! Responda! O que houve? — gritou Bell com mais força. Ele tinha certeza que ouvira a risada de Rhodan pelo seu amplificador.

— Tomei a liberdade de rir — disse Rhodan. — O amigo se opõe?

Ouviu-se uma praga.

— Este sujeito está em cima de uma cratera lunar, só e abandonado e acha motivos para ficar rindo — disse Bell indignado. — Você ouviu Fletcher? O sujeito está lá em cima e ainda ri!

— Já é alguma coisa — disse a voz mal-humorada no alto-falante. — Estou me esforçando há meia hora para cocar as costas e não consigo. É bem onde estão os tubos de oxigênio.

Bell tornou a chamar Rhodan. A voz daquele parecia uma explosão. O major teve que reduzir o volume.

— Perry, como está o ar aí em cima? — soou sua voz.

— Teremos trovoada — respondeu Rhodan em tom seco.

Bell ficou calado. O humor de Rhodan era invencível.

— Digo isso, porque na Lua o ar é muito carregado — acrescentou com voz suave.

— Compreendi, comandante. Mas qual a vantagem em saber disso?

— É exatamente o que penso! Mas eu estava me esforçando para tornar a informação o mais exata possível. De agora em diante, não dependeremos mais do som, mas da visão. Certo? Então, meu caro, a que distância eu estou daí?

— Cerca de 850 metros — soou a voz divertida do Dr. Manoli. — Para ser mais preciso, 852 metros. Estou junto ao radar e ele me deu sua posição exata. Eficiente, não é?

— Muito mais que isso! — disse Rhodan, rindo. — Bell, tenho uma tarefa para você. Pegue a pistola automática, regule a luneta para um aumento de dez vezes e a alça de mira para 850 metros. Depois, descarregue metade de um pente de balas naquele bloco de pedra que se parece com a cabeça de um gigante. Fica cerca de 50 metros a minha esquerda. Está vendo?

— Estou — confirmou Bell. — Posso saber apenas para que é a brincadeira.

— Não estou brincando. Quero saber os efeitos de um projétil-foguete em miniatura. Estou interessado, principalmente, na força de impacto e na energia da explosão. Comece. Preste atenção para sentir a natureza do recuo sob as condições de gravidade daqui.

— Não vai haver recuo — disse Bell. — Cada projétil tem sua própria carga propulsora e funciona nos moldes de um foguete. Não há cápsulas. O projétil e a espoleta saem ao mesmo tempo. A velocidade de saída é de 2.480 quilômetros por segundo. A pontaria é exata e segura e, positivamente, não há força de recuo. Caso o senhor não saiba, colhi informações bem detalhadas a esse respeito.

— Bom menino! — disse Rhodan com ironia. — Agora, atire, mas por favor, não me confunda com as rochas.

Bell soltou uma risada trovejante. Fletcher observou-o em silêncio, enquanto ele levantava a arma pesada e enorme, com a coronha muito curta e o cano de grande diâmetro. Segundo determinações de segurança, os tripulantes só deviam sair da nave com a arma na mão.

O capitão Bell estava parado diante da tenda pressurizada, cuja montagem ainda não havia sido concluída. Mais adiante, a menos de trinta metros, o foguete erguia-se no céu lunar.

Bell ajustou a luneta do visor para um aumento de dez vezes, e a distância para 850 metros.

A luz vermelha da ignição elétrica começou a brilhar e o primeiro projétil deslizou para dentro da câmara de ignição. O calibre dos projéteis era reduzido. Não passava de seis milímetros e tinham o comprimento de um dedo. Sua potência explosiva, no entanto, era enorme.

Bell hesitou por uns momentos. O alvo ficava muito longe, embora o visor o trouxesse para muito perto.

— Vamos — soou uma voz enérgica. — O que está esperando? Faça de contas que foi esse bloco de pedra que perturbou o nosso sistema de controle remoto. Então?

Bell soltou uma praga. Finalmente compreendia aonde Rhodan pretendia chegar. A experiência adquiriu um novo sentido. A idéia de uma brincadeira inútil desvaneceu-se.

— Se você concordar, ajustarei a arma para dez tiros, fogo espaçado — disse com um tom seco na voz. — Preciso ver até onde consigo chegar com esta arma.

— Certo! Pode começar.

Bell encostou a coronha da arma no ombro.

O bloco de pedra surgiu no visor bastante aumentado. Ele lembrou-se que a distância a ser vencida não representava nada para esses projéteis, cuja velocidade era tremenda. Não havia necessidade de levantar o cano da arma acima do alvo. Com a reduzida força de gravidade do satélite da Terra e a ausência de atrito do ar, o projétil descreveria uma trajetória quase retilínea. O visor tinha sido ajustado para tais condições, de maneiras que o atirador pudesse visar alvos colocados a quilômetros de distância. E as probabilidades de acertar o alvo eram muito grandes.

Quando Bell acionou o contato de ignição, Fletcher conteve a respiração. Mas não houve o mais leve ruído. Na terra, ouvir-se-ia o assobio estridente e a chicotada produzida pela saída do projétil. Aqui, o disparo foi cercado de um silêncio fantasmagórico.

O único sinal visível foi a saída de chamas luminosas pela abertura para escapamento de gases, existente no cano da arma.

Bell estava estupefato.

— Percebeu alguma coisa? — perguntou. — Que diabo! Terei que me acostumar a esta maneira de disparar uma arma. Não senti o mais leve recuo.

— É, mas as lascas de pedra foram atiradas até o lugar onde me encontro — ouviu-se uma voz rápida. — Acho que antes de você diminuir a pressão no gatilho o projétil já tinha atingido o alvo. A rapidez é incrível. O bloco de pedra apresenta um furo de uns 30 centímetros de diâmetro e mais ou menos o mesmo de profundidade. E olhe que é granito. Tente uma rajada mais longa. A arma é de uma precisão fantástica.

Bell puxou o gatilho. As chamas luminosas dos projéteis lhe fustigavam os olhos. Do ponto onde estava, Rhodan viu a trajetória luminosa dos projéteis, representada pela queima do combustível sólido que os impelia. Quando penetraram na escuridão que se formara na encosta, surgiu um traço incandescente e antes que Bell compreendesse o que se passava, o carregador da arma estava vazio.

Do bloco de granito restavam apenas lascas que, atiradas para o ar, voltavam ao solo com enervante lentidão.

Rhodan acompanhara atentamente a série numerosa de explosões. Realizaram-se em silêncio e sem a menor vibração. Revelavam-se, apenas, através da chuva de pedras e dos relâmpagos chamejantes.

— Pode parar, Bell — disse com voz abafada. — Temos que reconhecer que a seção de armamento nos deu um brinquedo mais que eficiente. Por quanto tempo você apertou o gatilho?

— Uns dois minutos — respondeu Bell. E o carregador está vazio! Disparei noventa tiros em um instante!

— Está certo. A cadência de tiros é de cerca de cinqüenta por minuto. Muito bem! A experiência terminou. Vou descer. Eric, a comida está pronta?

— Está. Pelo menos, fiz o que pude. Rhodan começou a descer. Era fácil vencer as fendas e outros obstáculos do solo. A leveza proporcionada pela ausência de gravidade facilitava muitas coisas.

Após alguns minutos, estava diante da tenda pressurizada. A montagem da conexão de ar estava concluída e a aparelhagem reguladora da temperatura tinha sido ligada às instalações da nave.

— O enchimento consumiu alguns litros de oxigênio líquido — explicou Fletcher. — Será que vale a pena desperdiçar um gás tão precioso? Quem sabe se não precisaremos dele, um dia, para abastecer o interior da Stardust? Nossa reserva é limitada.

Rhodan postou-se diante dele, ereto. Ainda assim, Fletcher o ultrapassava em altura por alguns centímetros.

— Ora, Fletcher, você está se preocupando por nada. O reparo de suporte de pouso exige habilidade e liberdade de movimentos. Não quero ter os movimentos embaraçados por um traje espacial quando tivermos que trabalhar com o aço-molibdênio. E também não quero ficar parado neste vazio

Fletcher piscou os olhos em direção ao céu estrelado que se apresentava de uma limpidez incrível.

— Foi só uma idéia — murmurou. Nos seus lábios surgiu, por instantes, um sorriso de desânimo.

— Você estava pensando em sua volta à Terra, não é? Quem sabe, no bebê? — perguntou Rhodan, calmamente.

Fletcher ficou calado. Seu rosto transformou-se.

— Não há problema. Compreendemos perfeitamente. Mas convém que você não pense demais nisso. Nosso plano foi estabelecido e nós tivemos bastante tempo para discuti-lo em detalhes. Só partiremos para uma viagem de exploração quando a Stardust estiver completamente reparada. Não podemos arriscar uma partida imediata seguida de uma alunissagem além do pólo, pois o suporte danificado não agüentaria o choque. É lógico que poderemos subir alguns quilômetros e entrar em contato visual direto com a Terra através de uma manobra adequada. Mas, como já disse, teríamos que pousar novamente. Com isso, a nave seria danificada de tal maneira que não conseguiríamos repará-la com os recursos de que dispomos. Se chegássemos a uma situação dessas, eu também duvidaria da conveniência de desperdiçar oxigênio com a tenda pressurizada. Mas, agora, estamos em condições de fazê-lo, não é?

Um sorriso indiferente surgiu no rosto de Rhodan. Enquanto que Fletcher continuava a olhar para o espaço.

— É claro que sim — respondeu. — Acontece que ocorreu-me mais uma pergunta. Não seria conveniente iniciar imediatamente a viagem de retorno? Conseguimos realizar um pouso de emergência, certo? Então, por que devemos nos preocupar com o conserto do suporte? O pouso na Terra é realizado por meio de asas de sustentação e tocaremos o solo com os trens de pouso. Não importa que o suporte esteja danificado, ainda assim, desceríamos normalmente.

Baixou a cabeça e seus olhos cintilaram.

Rhodan não perdeu a paciência nem a capacidade de raciocinar. Apenas o tom de sua voz tornou-se mais enérgico.

— Fletcher, é óbvio que o que você propõe é viável. Acontece que isso seria uma falta total de iniciativa e responsabilidade de nossa parte. Temos uma missão a cumprir e não será um suporte de alunissagem com defeito que nos fará sair daqui antes da hora. E, além do mais, tenho a vaga impressão que não conseguiremos alcançar o espaço sem problemas. Há algo para ser esclarecido aqui antes de partirmos.

Fletcher dominou-se imediatamente. Num gesto silencioso, seus olhos azuis pediam perdão. Bell começou a rir. O incidente estava encerrado.

— Está bem! Esqueça minhas palavras — disse Fletcher, pigarreando. — Foi um ligeiro instante de fragilidade humana. Vamos comer e depois saberemos onde procurar o transmissor de onde partiu a interferência. Já apurei os dados fundamentais, depois vou pedir ajuda ao computador.

— Estou bastante curioso — disse Rhodan. — Bem! Veremos o que o nosso médico conseguiu fazer.

Pelos amplificadores dos capacetes, ouviram um suspiro de indignação. O Dr. Manoli explicou, então, longamente, como e por que a arte de cozinhar, tão enaltecida, se resumia a uma simples identidade com os processos químicos mais conhecidos. O discurso soou bem, mas havia, nele, algo que não estava muito certo.

Rhodan parou junto à área de pouso situada logo abaixo do mecanismo propulsor da nave, onde o solo ainda desprendia um pouco de radioatividade. Diante dele estava a cesta transportadora pendurada no braço do guindaste que saía da comporta principal do compartimento de carga. Este ficava logo abaixo da cabine dos tripulantes. Rhodan preferira não utilizar os degraus dobráveis presos à parte externa da nave. Passando por baixo dos suportes de alunissagem, chegavam perto demais do mecanismo propulsor que ainda emitia radioatividade em excesso.

— Um de nós terá que desistir, por hora, das delícias que tão avidamente esperamos — anunciou Rhodan com um sorriso. Seus olhos voltaram-se para os companheiros.

— Bell, quer fazer o favor de ficar de guarda aqui fora? Dentro de meia hora eu o substituirei. Há um ótimo lugar ali em cima do morro. Fique de olhos bem abertos. Manteremos contato pelo rádio.

Reginald Bell não disse uma só palavra. A voz profunda de Rhodan bastou-lhe para fazê-lo compreender. Por mais calma que fosse a aparência do comandante, a inquietação o consumia por dentro. Antes de se afastar, com a arma carregada, voltou-se para Rhodan.

— Perry, só uma pergunta. Você está lembrado da informação segundo a qual uma nave tripulada da Federação Asiática teria sido lançada antes de nós?

— Vejo que você compreendeu meu temor, Bell — confirmou Rhodan. Seu rosto tornou-se sério e sombrio. — Pode ser que haja alguém interessado em certificar-se pessoalmente da nossa queda. Na minha opinião, o transmissor deve estar localizado perto da região polar. Portanto, preste bastante atenção! Nosso radiogoniômetro está testando todas as freqüências possíveis. Logo que ouçamos algum ruído estranho, teremos modificações por aqui.

No interior da cabine, o Dr. Manoli começou a ter calafrios e em poucos instantes estava indisposto. Ele era um homem que estava sempre pronto a enfrentar qualquer perigo ou qualquer sofrimento desde que fosse por amor à ciência e à pesquisa. No entanto, quando surgiam complicações inesperadas e que cheiravam a violência, as coisas mudavam de figura. Manoli não era homem de enfrentá-las com calma. Martirizado por pensamentos sombrios, ouviu o ruído do motor do guindaste. Rhodan e Fletcher subiram no cesto, enquanto que, na tela, a figura de Bell tornava-se cada vez menor até desaparecer na região escura de uma sombra projetada por uma saliência do solo.

Alguns instantes após, ouviu-se o assobio da comporta de despressurização e, quando eles entraram, Manoli exibiu um sorriso forçado.

— Alô! — disse com voz débil. — Não ouvi nada no radiogoniômetro. Só a conversa de vocês.

Rhodan saiu do traje espacial. O rosto de Fletcher estava banhado de suor.

— Puxa — disse este, suspirando. — Até parece que estou chegando no paraíso.

— Acho que, na Terra, já nos consideram desaparecidos — observou Manoli em voz baixa.

O sorriso de Fletcher desvaneceu-se.

— É. Deve ser — confirmou Rhodan em tom indiferente, olhando-os com firmeza.

— Mas não será por muito tempo, dou-lhes minha palavra. Assim que terminarmos de comer iniciaremos os reparos no suporte de alunissagem.

Manoli estava pensando na esposa. Fletcher, no bebê. Nenhuma palavra foi trocada, mas todos sabiam. Só mesmo mãos fortes e vontade férrea poderiam dominar esse tipo de situação. E Rhodan as tinha de sobra.

 

Estavam sós em um mundo estranho e cheio de mistérios; sem ar, sem água, sem vida...

A fina liga especial que revestia o veículo blindado, de forma achatada, podia resistir a tiros de um canhão de calibre médio; assim mesmo, não conferia aos seus ocupantes total sensação de segurança, pois além das chapas de aço começava o vazio — o Vácuo absoluto com seus perigos conhecidos e desconhecidos. Não era tanto o risco de vida que martirizava estes homens. Era o ambiente desolador, tão estranho; era o semicírculo incandescente do Sol que emitia um brilho ofuscante; as crateras que surgiam em meio a planícies vastas, rasgadas, por fendas no solo; eram as cordilheiras recortadas de forma bizarra, que nunca foram corroídas pelas intempéries.

Diante de todo aquele panorama, o mais árido dos desertos da Terra transmitia uma mensagem de vida e felicidade.

Estes fatos constituíam uma carga psicológica de primeira grandeza. Eram os riscos para a mente que tinham que ser combatidos em primeiro lugar. E vencidos de qualquer maneira. Quem não aceitasse e superasse estes fatos com uma impassibilidade total, sucumbiria sob o peso dos mesmos. Não havia qualquer medicamento contra as influências corrosivas que o ambiente cósmico exerce sobre o espírito dos homens.

Rhodan levou tudo isso em consideração quando resolveu partir no veículo lunar e deixar Fletcher e o Dr. Manoli a bordo da nave. Não só porque dois tripulantes deviam ficar a bordo da Stardust como também, porque os nervos de ambos não suportariam aos efeitos da expedição.

Fletcher recebeu ordens terminantes, por escrito, para decolar de volta para a Terra assim que julgasse conveniente, colocando-se sob a ação do controle da estação orbital caso ele — Rhodan — não voltasse dentro de dezoito dias do calendário da Terra.

Fletcher confirmou com um movimento de cabeça. Ele estava perfeitamente habilitado para conduzir a nave ao espaço levando-a aonde fosse necessário.

Apenas cinco dias foram gastos para o reparo do suporte de alunissagem e um dia para a montagem e o preparo do veículo lunar.

Depois de terem dormido por um período prolongado, sob os efeitos da psiconarcotina, Rhodan e Bell partiram no veículo lunar. Ele fora testado sob as condições mais adversas e não poderia falhar.

Era um meio de transporte apto a enfrentar qualquer terreno. Não levava armamento e dispunha de uma cabine ampla para quatro pessoas. Sua cúpula, de uma liga transparente, podia ser escurecida à vontade. No pequeno espaço de carga situado atrás da cabine pressurizada só havia equipamentos e peças sobressalentes. Rhodan não estava disposto a executar qualquer uma das numerosas missões de pesquisa constantes do programa.

O que importava era salvar a vida. Antes de mais nada, era necessário notificar a estação orbital. E o transmissor do veículo era bastante forte para emitir sinais que chegariam à estação.

Havia vinte e quatro horas que estavam a caminho. Tinham dormido por cinco horas e, no momento, Rhodan fazia com que os motores elétricos arrastassem o veículo por cima de uma elevação.

O semicírculo solar começava a aumentar. Dentro em pouco atingiriam o pólo sul lunar e estariam, então, em linha direta com a Terra.

Ainda estavam usando os trajes espaciais, mas sem os capacetes. A cúpula pressurizada do veículo oferecia a mesma segurança da cabine principal da Stardust. Seria necessária uma força descomunal para destruir o material sintético.

Bell estava olhando para a frente. Os cumes elevados que se descortinavam diante dele não o agradavam. Voltou a estudar o mapa.

— Não há dúvida, é a cordilheira de Leibnitz — disse com voz abafada. — Quer dar uma paradinha?

Rhodan desligou o comando elétrico. O zumbido dos motores cessou.

Rhodan enxugou o suor da testa. Sem dizer uma palavra, começou a limpar o vidro dos óculos escuros. A radiação ultravioleta o estava incomodando. Também lançou um olhar em direção às montanhas.

— Só faltam uns oito quilômetros. Aqui a gente se engana tremendamente com as distâncias. Temos diante de nós a cratera Husemann, que não pode ser vista da Terra. Se seguirmos mais uns quinze quilômetros chegaremos do outro lado do pólo. Mas não podemos manter o rumo atual. Temos de nos desviar para o leste, senão passaremos pelas ramificações da cordilheira de Leibnitz. E isso não seria nenhum prazer.

O indicador de Bell tocou o mapa. Seu rosto parecia cansado e inchado sob a barba que já tinha vários dias. A viagem estava se transformando num martírio. Rhodan correra que nem um louco. Se fosse possível seguir em linha reta já teriam atingido a região polar há muito tempo. Acontece que tinham que contornar os inúmeros obstáculos. A linha traçada no mapa, que registrava o deslocamento do veículo, se apresentava bastante sinuosa.

Rhodan tossiu. Sem dizer uma palavra estendeu a garrafa de água em direção a Bell.

— Vamos dobrar para leste. Leibnitz não é brincadeira. Não tenho vontade de cair naqueles precipícios. Aquilo ali é uma das ramificações orientais da cordilheira. O maciço principal fica mais ao oeste. Passaremos sem maiores dificuldades.

Bell sorveu o líquido em goles compridos. Na cabine fez-se um silêncio profundo.

Rhodan protegeu o teto com outra série de folhas de plástico polido. O sol era por demais forte. Não podiam absorver muito calor. Seria um problema livrar-se do mesmo. Finalmente Bell disse em tom sombrio:

— Vai acontecer alguma coisa. Estou sentindo cócegas na nuca. Não pode deixar de acontecer alguma coisa. Olhe isto aqui!

Seu dedo voltou a tocar o mapa. O rumo que estavam tomando conduzia diretamente para um círculo que Fletcher, o matemático, havia traçado no mapa.

— Já sei — disse Rhodan, esticando as palavras. Um sorriso que parecia uma máscara passou-lhe pelos lábios.

Bell fitou-o. Tinha os lábios secos e rachados.

— Devíamos contornar esta área bem de longe, procurando em primeiro lugar estabelecer comunicação radiofônica com a Terra. Depois poderemos ver o resto. O que acha?

Por um instante, Rhodan olhou fixamente para a frente. Depois disso Reginald Bell viu um rosto de linhas bem marcadas. Os olhos de Rhodan cintilavam.

— Os problemas existem para serem resolvidos. Não adianta adiar a decisão com desculpas esfarrapadas. Quer queiramos, quer não, teremos de enfrentar aquilo. Prefiro uma ação rápida. Portanto, seguiremos pelo caminho mais curto. A parte que agir com maior rapidez levará uma vantagem considerável. Os outros também estão sofrendo os efeitos negativos do ambiente, provavelmente mais que nós.

— Sim, somos heróis — resmungou Bell. — Está certo, daqui por diante cuidarei da sonda infravermelha. Se surgir qualquer sinal você terá de correr que nem o diabo.

Sua mão pousou automaticamente na arma. Traziam na nave as armas automáticas de grande calibre, que funcionavam como metralhadoras.

Rhodan moveu a chave. O veículo blindado arrancou sob o uivo dos motores elétricos. Depois de terem contornado o morro em que ficava a cratera, chegaram a uma grande planície pedregosa. A poeira levantou-se atrás das esteiras velozes. As partículas ficavam suspensas numa estranha imobilidade, até que descessem com uma lentidão fantástica. Não podia haver nada que revelasse melhor a ausência do vento.

Após outras seis horas de viagem viram todo o Sol. A progressão foi rápida por causa da curvatura reduzida da Lua. Depois de terem passado pela área crítica sem maiores incidentes, atingiram o limite do campo de visão direta. Logo acima, a Terra surgiu em forma de semicírculo. Era perfeitamente visível e, embora estivesse bem baixa, acima do horizonte setentrional, devia haver possibilidade de estabelecer contato pelo rádio.

Rhodan lançou um olhar rápido para os lados. Nas últimas horas tinham-se mantido bastante calados.

Bell sorriu, depois assobiou em tom agudo uma melodia desafinada. Rhodan fez com que o veículo subisse uma encosta íngreme. As esteiras revolviam o solo e o ruído dos motores tornou-se mais intenso. Chegados à parte de cima, pararam num pequeno platô de rocha. À sua direita um paredão sombrio erguia-se em direção ao espaço.

Bem diante deles, porém, estava suspensa no espaço a esfera brilhante que era a Terra. Conseguiram. Quase não falaram. O esgotamento extremo estava gravado nos seus rostos. Executaram as operações necessárias depressa, talvez mesmo precipitadamente. Ambos tinham a sensação de que não havia tempo a perder: estava na hora de agir.

Rhodan fez sair a antena direcional parabólica, e Bell fez funcionar o reator, ligando-o ao transmissor. As válvulas foram se aquecendo, enquanto Rhodan ajustava a antena com a maior exatidão. A Terra estava ao alcance do equipamento automático de radiofonia.

Com um gesto lento e hesitante Rhodan girou a poltrona. Diante dele dançavam os ponteiros dos instrumentos de controle. O aparelho estava em perfeita ordem. Colocou o microfone mais perto da boca. Com um movimento um tanto complicado controlou a sintonização automática.

— Está pronto? — perguntou Bell com a voz áspera. Estava de pé na cabine, meio abaixado. Segurava na mão o pesado dispositivo automático de controle.

Rhodan confirmou com um movimento de cabeça e ligou o aparelho. Nos alto-falantes do receptor ouviram-se os ruídos normais. Não se identificavam com os estouros e os guinchos infernais resultantes de uma interferência deliberada.

Um sorriso suave aflorou aos lábios de Rhodan. Depois ligou o transmissor. Em tom circunspecto falou:

— Major Perry Rhodan, comandante da Expedição Stardust chamando controle de terra de Nevada Fields. Favor acusar recebimento. Major Perry Rhodan, comandante da Expe...

Aconteceu subitamente, como um raio que caísse de um céu azul. Um brilho esverdeado surgiu e foi-se tornando cada vez mais forte, transformando-se numa luminosidade intensa, que envolveu os rostos dos dois homens em uma luz fantasmagórica.

A poucos metros acima deles, a antena ardeu em chamas verdes e fosforescentes, cuja luminosidade era tamanha que fez Rhodan soltar um gemido, cobrindo os olhos torturados com as mãos.

Tudo foi muito rápido e silencioso. Uma abóbada de chamas saltitantes ergueu-se acima do veículo lunar. A luminosidade do Sol tornou-se turva e os contornos da paisagem lunar se desfizeram.

Antes que Bell tivesse tempo de soltar um grito apavorado de advertência, o equipamento de rádio começou a estourar. Um raio saltou do envoltório de plástico. Vapores corrosivos desprenderam-se do aparelho. Os isoladores fundidos ficaram envoltos em pequenas chamas.

O pontapé de Rhodan foi desferido no último instante, rompendo a ligação com o gerador nuclear. Bell mal percebeu que a mão de Rhodan bateu com um estalo no seu capacete. Quando o oxigênio fresco penetrou nos seus pulmões, voltou a raciocinar com clareza. Seus gritos cessaram.

Perry Rhodan, imóvel, estava encolhido na sua poltrona. Parecia nem ter notado os últimos acontecimentos. A luminosidade misteriosa desaparecera com a mesma rapidez com que havia surgido. Não se via mais nada, nem mesmo o brilho mais débil.

Só mesmo a antena totalmente fundida e o aparelho de rádio consumido pelas chamas davam mostras de um acontecimento que ficava além do seu entendimento. Bell moveu-se pela cabine rapidamente. Com os olhos selvagens procurava um inimigo. Segurava a arma em atitude ameaçadora, mas não via qualquer figura humana.

O chiado agudo do extintor de espuma seca fez com que se sobressaltasse de novo. Rhodan dirigiu o jato sobre o aparelho de rádio destruído. Sua atitude era tão indiferente que Bell começou a praguejar. Ele o fez de forma intensa, com bastante barulho. Todavia, os lábios mal se moviam no rosto inchado, tomado de uma palidez cadavérica.

O fogo foi extinto. O equipamento de condicionamento de ar sugou os vapores. O oxigênio fluiu para o interior da cabine. O incidente consumira vários litros do ar respirável.

Rhodan abriu o capacete. Com o rosto indiferente, olhou cuidadosamente para cima. Depois falou:

— Pronto. Está tudo terminado. Só esperavam por isto.

— Santo Deus, o que foi isso? — cochichou Bell. Exausto, deixou-se cair na sua poltrona. — O que foi isso?

— Foi uma maneira muito engraçada de interferir numa transmissão de rádio. Pelo amor de Deus, não me pergunte como fizeram! Neste ponto sou tão ignorante como um recém-nascido. Não tenho a menor idéia. O que posso dizer é que essa luminosidade apareceu como um raio com a primeira frase que soltei para o microfone. Daí se conclui que estavam à espreita com um radiogoniômetro inteiramente automático. O aparelho funcionou imediatamente. É só o que posso dizer.

Bell levou à boca seu comprimido de concentrado. Seus olhos estreitaram-se. O engenheiro competente despertou dentro dele. Entrou em funcionamento a parte do seu cérebro no qual estava armazenada a massa enorme de conhecimentos relativos à eletrônica moderna.

— Será que você está passando bem? — indagou. — Sempre o considerei um aluno exemplar da Academia Espacial e pensei que tivesse capacidade de raciocinar.

— E agora já não pensa assim? — perguntou Rhodan, com um traço de amargura no rosto.

— No momento não. Você acaba de falar como o célebre Super-Homem daqueles fascículos de cinqüenta centavos. O que quer dizer com a expressão radiogoniômetro automático? Será que você sabe o que acaba de dizer? Trabalhamos com um raio direcional bem ajustado. Como é que uma emissão destas poderia ter sido localizada com tamanha rapidez? A antena apontava para o espaço vazio. Mas não é só isso. Será que você também tem uma explicação para a luminosidade verde? Pode imaginar que tipo de energia essa gente utilizou?

— Convém não perguntar, pois a resposta teria de soar como a fala de um louco.

— Fomos cobertos por um anteparo abobadado — prosseguiu Bell obstinadamente. — Vi perfeitamente. Dali desceu um raio de luz verde, e nossa antena já era. Perry, asseguro-lhe que uma coisa dessas não existe. Poderia compreender tudo, mas tudo mesmo. Até admitiria uma descarga dirigida de relâmpagos. Mas neste ponto minha inteligência deixa de funcionar.

Rhodan continuou na sua posição rígida. Seus olhos ardiam.

— Quer dizer que tudo não passou de um sonho, não é? Se eu fosse você teria dito que minha inteligência chegou ao limite extremo da compreensão. Alguém ouviu minha mensagem no mesmo instante em que ela foi iniciada, e agiu imediatamente. Não estou muito interessado em saber como fez isso, já que com os conhecimentos científicos de que disponho não tenho capacidade de interpretar o acontecimento. O que me interessa mais é o fato de que esse alguém quer nos reduzir à condição de prisioneiros da Lua. Darei minha cabeça à forca se conseguirmos subir um quilômetro com a Stardust. Não pergunte por que, mas sinto que é assim. Não, não sinto: sei! Sendo assim, que nos resta fazer?

Reginald Bell empalideceu ainda mais. Todo lívido, fitou o comandante, cujos olhos claros se tinham tornado sombrios.

— Você é a pessoa mais insensível que já vi! — gaguejou. — Será que não tem mais nada a dizer?

— Não. Acontece que meu espírito só toma conhecimento das situações em que podemos fazer alguma coisa. Os problemas insolúveis são imediatamente postos de lado. Não devíamos falar a respeito deles.

Bell pigarreou. A cor retornou à sua face.

— OK. Vamos esconder a cabeça na areia, que nem um avestruz. — Deu um sorriso triste. Seus olhos percorreram a paisagem. Estava desolada e vazia como antes.

— O fato é que já não compreendo mais nada. Se não parecesse coisa de louco, falaria num campo energético. Mas como poderia o mesmo ser montado no espaço praticamente vazio? Não vejo nenhum pólo energético, absolutamente nada. Quem está tentando nos eliminar? E como está fazendo tudo isso?

— Quem sabe se o foguete da Federação Asiática não pousou algumas horas antes de nós? Terão a bordo algum equipamento completamente novo. Basta que se veja a luminosidade verde.

Rhodan olhou atentamente para seu amigo.

Bell sorriu. Suas mãos pesadas balançavam entre as pernas como se fossem enfeites incômodos.

— Deixemos de falar bobagens, meu velho. Não me diga que você acredita no que está dizendo. No ponto em que estamos nada mais importa para mim. Estou disposto a engolir um prego enferrujado caso os chineses tenham inventado isso. Foi uma coisa assombrosa. Está bem, está bem, estou perfeitamente calmo. Então, o que vamos fazer?

Rhodan deu um sorriso muito cordial. Bell já sabia que aquela contorção dos lábios do companheiro representava um sinal de alarme de primeiro grau. Conhecia muito bem esse homem alto de rosto magro,

— Vamos até lá ver o que há e, se possível, encostaremos o dedo no gatilho um décimo de segundo antes do inimigo. Não vejo outra possibilidade. Se ficarmos parados, morreremos asfixiados dentro de algumas semanas. Se decolarmos, a nave será abatida com toda certeza.

— Vamos negociar? — perguntou Bell num tom de insegurança.

— Bem que gostaria disso. A questão é se poderemos negociar com essa gente. Os fatos indicam o contrário. Por que será que não nos deixaram expedir a mensagem? Isso não poderia fazer mal a ninguém. A esta altura toda a Humanidade já deve saber que a Stardust pousou na Lua. Portanto, não faz nenhum sentido interromper as nossas comunicações de forma tão drástica. Isso até parece obra de algum maluco. Não há nenhuma lógica, nenhum motivo. Se tentassem nos matar ainda haveria uma certa lógica nesse procedimento. Mas parece que não estão pensando nisso. Por que será?

Bell voltou a soltar seus assobios estridentes.

— Em última análise é precisamente isso que fazem: estão nos matando — disse. — É verdade que o. estão fazendo aos poucos. Quando as nossas reservas de oxigênio estiverem esgotadas...

Bell ficou calado. Sua testa enrugou-se. Depois, disse laconicamente:

— Está certo, comandante. Vou registrar o novo curso no mapa. Vamos à boca do mistério. Dentro de oito horas estaremos lá.

Virou-se na sua poltrona. Depois veio a observação de Rhodan.

— Antes de mais nada vamos dormir exatamente oito horas. Depois vamos fazer a barba. Não quero dar a impressão de um selvagem.

Bell ficou perplexo. Olhou pelo material da cúpula blindada.

— Fazer a barba? — gemeu. — Será que ouvi bem?

— Os asiáticos não têm tanta barba como nós. Por isso nosso aspecto poderia ser chocante para eles — explicou Rhodan com um sorriso estranho.

Reginald Bell sentiu um calafrio. Quais seriam as idéias do comandante?

 

A uns 30 quilômetros do pólo o aparelho de busca infravermelho reagiu. Devia haver um corpo que irradiasse bastante calor nas proximidades. O ponto assinalado ficava exatamente na área que o capitão Fletcher indicara como sendo a localização provável do emissor que havia provocado a interferência quando desciam na Lua.

Saíram do veículo blindado e foram seguindo a pé junto às rochas escarpadas. A montanha erguia-se a uma altura de cerca de 500 metros. Abrigava uma cratera que não era visível da Terra.

Depois de mais meia hora de escalada tinham vencido o último obstáculo que impedia sua visão. Ainda estavam ao pé da montanha, mais ao norte.

Os sinais do aparelho portátil de localização tornaram-se cada vez mais nítidos. Deviam encontrar-se nas proximidades do outro foguete. Subitamente Reginald Bell teve um colapso.

Caiu de joelhos, com as mãos apoiadas no chão. Seu riso louco era captado pelo microfone e transmitido pelo emissor embutido no capacete.

Perry Rhodan não disse uma palavra. Num gesto instintivo procurou cobertura. Agora estava empenhando toda sua energia para dominar-se. Era o golpe de misericórdia nos nervos desgastados dos dois homens.

— Não, não; isso não, isso não! — ouviu-se Bell gemer no aparelho de radiofonia. Repetia constantemente as mesmas palavras.

Rhodan recompôs-se de um golpe. Suas mãos descontraíram-se. Com uma brutalidade desnecessária arrastou o amigo para trás de uma rocha. Bell despertou do aturdimento que lhe perturbara os sentidos. Estava todo trêmulo, olhando para Rhodan. O suor que lhe cobria o rosto embaçou a lâmina transparente do capacete. Rhodan ligou o pequeno ventilador. Bem que Bell estava precisando.

— Calma! Controle-se! Pelo amor de Deus, acalme-se! Não fale! Se fizerem surgir a luz verde nas nossas antenas estaremos liquidados. Fique calmo.

Mesmo Rhodan recorreu às palavras estereotipadas. Repetidas muitas vezes, tornar-se-iam monótonas, mas produziam efeito até mesmo pelo tom em que eram proferidas. Estava preparado para aquilo. Assim mesmo, o súbito conhecimento da situação o fez desmoronar. Não estava mais a sós. Nunca tinham estado...

A compreensão desse fato revolveu seu interior e fez com que perdesse a serenidade habitual. Tinha a sensação de estar postado diante de uma muralha de altura infinita.

Perry Rhodan precisou apenas de um instante para que as feições do seu rosto se recompusessem. As batidas furiosas do seu coração foram diminuindo. Mas não diminuiu a pressão com que segurava o braço de Bell. Imaginava que o amigo precisaria de mais tempo que ele. Tinha sido o choque mais violento que o capitão Reginald Bell já experimentara.

Cautelosamente Rhodan levantou o capacete circular por cima da rocha. Seus olhos fixaram-se avidamente no quadro titânico. Todas as dúvidas se desvaneceram.

Não, não era nenhum sonho. Tinha diante de si um fato positivamente verdadeiro.

Ficou calado, até que Bell se manifestasse espontaneamente. Não pensava mais em proibir a utilização do transmissor portátil. Sabia que seria inútil.

— Você sabia, não é? Já sabia há algumas horas — cochichou Bell. — Foi por isso que tive que fazer a barba. Como foi que você soube, Perry?

— Não se exalte, rapaz, não adianta — disse Rhodan. — Aquela nave espacial que você está vendo ali não foi construída na Ásia. O fato é que não veio da Terra. Desconfiei disso quando surgiu a luz verde. Nenhum homem seria capaz de criar um campo energético desses, nem conseguiria interromper nossa transmissão dessa forma. Procure dominar-se. Temos que enfrentar isso. Não temos alternativa.

Bell ergueu-se. Seus olhos adquiriram vida. Depois, olhou para frente.

— Fizeram um pouso forçado — disse após algum tempo. — Rasparam a parede da cratera com uma força tão grande que nem é bom pensar. Quem são eles? Como serão? De onde vêem? E o que será que querem aqui? — concluiu Bell com um sorriso sombrio.

A pergunta fez com que Rhodan despertasse de vez. Recuperou a capacidade de refletir e seus lábios contorceram-se.

— Vamos descobrir — disse, com ênfase. — Agora começa a surgir a lógica de um ato que parecia irracional. É claro que tinham que interromper a nossa transmissão. Ao que parece, não fazem questão de que, na Terra, saibam da presença deles. Talvez pensem que, antes de pousarmos, vimos essa nave gigantesca. Desta forma, tudo se torna compreensível.

E, realmente, tudo era bem compreensível. Subitamente, Rhodan viu aquele objeto com outros olhos. Seu cérebro emitiu sinais de perigo, fruto de muito tempo de convivência com situações que demandavam uma avaliação rápida do momento.

Passou a olhar a nave com o senso objetivo de um cientista. Não se via nenhuma reentrância, nenhuma abertura visível. Apenas uma linha circular e abaulada desenhava-se na linha equatorial.

A nave estava imóvel diante da parede rompida da cratera. E, embora não apresentasse o menor arranhão, era evidente que tinha havido um choque.

O veículo descansava sobre pés curtos que pareciam colunas. Estavam dispostos em círculo e, aparentemente, tinham sido estendidos ou desdobrados da parte inferior da esfera. Era só o que se oferecia à visão.

O sol batia em cheio na espaçonave estranha, fazendo-a brilhar com uma luminosidade vermelho pálida. Para ver a parte superior, tinham que inclinar a cabeça bem para trás. Mas, ao saírem de trás da rocha que lhes impedia a visão, encontraram-se bem perto da nave.

Bell também recuperara o autocontrole. A prova era sua voz áspera e calma.

— É a forma esférica pura, a concepção ideal de uma nave espacial de grandes proporções, desde que se disponha de um mecanismo propulsor adequado. O diâmetro é de cerca de quinhentos metros! Ou melhor, pelo menos quinhentos metros. É mais alta que a cordilheira. Como se consegue fazer com que uma massa como essa suba para o espaço? Aos poucos fico tendo uma idéia bastante vaga das máquinas que devem ter sido montadas no interior dessa nave.

Falando mais baixo, acrescentou.

— E nós que nos orgulhamos tanto de nosso êxito! Atingimos a Lua com uma coisinha de nada. Um Pequeno Polegar que mal e mal conseguiu completar o salto. O que temos diante de nós deve estar além do nosso sistema solar. Será que você faz idéia do que nós, seres humanos, umas criaturazinhas tão presunçosas, representamos diante daqueles seres ali?

— Se você disser macacos, vou explodir! — disse Rhodan.

— Era a expressão que eu tinha na ponta da língua — respondeu Bell com um sorriso. — Você é um homem muito orgulhoso, não é?

— Orgulho-me de ser homem. Sinto orgulho pela espécie humana, por suas qualidades, sua rápida evolução, seu futuro brilhante. Já conquistamos a Lua e, um dia, conquistaremos as estrelas.

Depois, olhando a gigantesca nave alienígena, continuou:

— Essa nave espacial tão estranha, não prova que seus ocupantes sejam mais inteligentes que nós. Talvez estejam, até, usufruindo a herança deixada por dezenas de milhares de gerações laboriosas, isto é, alguma coisa que, simplesmente, caiu-lhes nas mãos. A ignorância não deve ser confundida com a estupidez. Deve-se levar em consideração o fato de o ignorante ter tido ou não oportunidade para aprender e, se teve, ainda assim, tudo depende do saber daqueles que se encarregaram de o ensinar. Ninguém pode assimilar mais do que aquilo que lhe foi transmitido por alguém. A espécie humana é uma raça ainda jovem. Nossos cérebros parecem esponjas. Tenho certeza absoluta de que ainda podem absorver muita coisa. Portanto, não vá me dizer que, a essa altura, você está se sentindo quase um macaco.

Rhodan zangara-se de verdade. Parecia até ter esquecido o objeto que se erguia diante de seus olhos.

Bell riu, depois segurou cuidadosamente a arma automática.

— Deixe isso — preveniu Rhodan. — Não poderemos resolver os nossos problemas dessa forma. Temos de admitir, de qualquer maneira, que não somos os únicos seres inteligentes no Universo. O que não chega a se constituir uma surpresa. Não toque na arma; a situação é diferente da que prevíamos.

— Eu me sentiria melhor se aquilo fosse apenas uma nave da Federação Asiática — cochichou Bell e, em tom provocador, acrescentou: — O que é que vamos fazer agora? Ainda bem que é você quem está no comando. Estou ardente de curiosidade!

— E eu estou curioso há muito tempo — observou Rhodan. — Parece impossível! Pelo menos tudo indica que esses camaradas não têm intenção de nos matar. E há outra coisa...

Voltou a olhar para o paredão de rochas esfaceladas.

— Um comandante sensato não faria um pouso desses, não é? Eu, pelo menos, não faria. É de se supor que alguém que arrasa metade de uma montanha de pedra ao pousar, não o tenha feito de propósito. Ao que parece estes desconhecidos sofreram alguma pane. Você não acha que isso os torna mais humanos?

Rhodan sorriu com suas próprias palavras.

— Alguma coisa não deve estar em ordem naquela nave. E já que tenho fama de saber perder, vamos olhar mais de perto.

Rhodan pôs-se de pé. Um sorriso irônico aflorou aos seus lábios.

— Você está doido?! Abaixe-se! — gritou Bell — Isso é uma loucura.

— Loucura? Veja a nossa situação! De qualquer maneira, não conseguiremos sair daqui. Quando o general Pounder enviar outra nave já estaremos mortos. Além disso, a nova tripulação terá a mesma sorte que nós. A esta altura já não adianta refletir. Será que uma cabeça dura como a sua consegue assimilar esta verdade?

Como se este ponto de vista não bastasse, Rhodan estava sendo devorado pela curiosidade: um instinto primitivo e irreprimível do homem. O desassossego constante provocado pelo que se escondia atrás de tudo aquilo.

Subitamente, os olhos de Rhodan se estreitaram. Alguém soltara uma risada. Fora apenas um ruído breve, quase imperceptível. Mas não havia dúvidas de que alguém rira.

Bell ergueu-se de um salto, com o dedo no gatilho. Seu rosto estava pálido.

— Você ouviu — disse. — Alguém está sintonizado na nossa freqüência. Que diabo?

— O que você estava pensando? — soou a voz indiferente de Rhodan. — Por que você acha que encenei um pequeno drama com diálogos tão longos? É claro que alguém está nos escutando. O fato de não terem destruído os transmissores dos nossos capacetes constitui prova da sua inteligência. Sabem perfeitamente que, com eles, não emitiremos nada para a Terra. É uma lógica simples e contundente. Vamos.

Bell permaneceu imóvel, com a arma na mão. Parecia que sua curiosidade havia desaparecido completamente. Com a voz arrastada e num tom frio, disse:

— Se você quiser ir, vá. Quanto a mim, não sinto a menor vontade de me lançar nos tentáculos de polvos inteligentes ou outros tipos de monstros com um sorriso cordato nos lábios. Prefiro ficar aqui.

O rosto de Rhodan tornou-se sério.

— Você anda lendo muitos romances de ficção científica, meu caro. Um ser como o polvo jamais conseguirá construir uma nave espacial, ainda que, contra toda a expectativa, adquira inteligência. Não confunda a fantasia com o saber estabelecido.

Encontramo-nos diante de um fato real. Lá, na Terra, cientistas de renome que não escondem a certeza da existência de vida inteligente no Universo, mas não pintam quadros de horror. Portanto, não diga bobagens e venha! Será que tenho que voltar insistir em que não temos outra alternativa?

— Talvez tenhamos — murmurou Bell perturbado. — A idéia de entrar nessa nave como carneiro indefeso não me agrada nem um pouco. É uma violência contra o meu instinto de conservação. Entende?

— Claro! Nunca deixo de compreender um argumento razoável. É o instinto que faz o homem temer o desconhecido, talvez seja esta a coisa mais razoável que o Criador deu aos homens. É bom que seja assim. Acontece que certas horas temos que dominar o furacão dos sentimentos. Você virá comigo se quiser. Não darei ordem nesse sentido.

Rhodan voltou-se. Andando rapidamente, saiu do refúgio proporcionado pela rocha. Seu pensamento e seus sentimentos passaram a ser dominados pela lógica pura. Sabia que não havia outro remédio.

Sua arma automática balançava-lhe ao ombro. Os braços pendiam ao longo do corpo. Rhodan não estava disposto a transformar o primeiro encontro entre um homem e uma forma estranha de inteligência em um combate armado. Teria sido uma péssima saudação. Indigna de um homem como ele.

Sentiu um certo vazio dentro de si. A medida que se aproximava do gigantesco objeto, crescia nele o sentimento aflitivo provocado pela antevisão do encontro. Os desconhecidos tinham tomado a iniciativa.

Não havia dúvidas. Agiram, porém, por via indireta. Rhodan concluiu que a interferência nas transmissões de rádio representara antes uma medida de precaução, não o desejo deliberado de destruir. A idéia tranqüilizou-o. Passou a confiar no espírito que havia de reinar ali, ao qual faria algumas concessões.

Enganara-se bastante na distância em que se encontrava da nave. Esta era muito maior do que supunha. As paredes da mesma erguiam-se cada vez mais imponentes. Pareciam ameaçadoras e enganadoras. Depois de ter percorrido algumas centenas de metros sob a luz ofuscante do Sol, já não podia abranger toda a nave com o olhar. Seu diâmetro devia ser superior a quinhentos metros.

Os pés de pouso eram colunas enormes com grossas placas de apoio nas extremidades. Quando percebeu a semelhança com a concepção da Stardust sorriu ligeiramente. O pensamento daqueles seres devia funcionar de forma análoga a dos homens, pelo menos sob o aspecto técnico-científico.

Ouviu, então, a respiração acelerada de Bell no amplificador. Logo após viu aparecer a sombra do companheiro.

Bell acompanhou-o em silêncio. Não disse uma só palavra. Rhodan cumprimentou-o com a cabeça. O gesto parecia bizarro por causa do capacete pressurizado.

Bell retribuiu com um sorriso. Embora conseguisse dominar-se, não apagara dos olhos um brilho estranho.

Seus passos tornaram-se cada vez mais lentos. Por cima deles, erguia-se a imensa forma abaulada. O sol só cobria parte do solo que ficava por baixo da enorme esfera. Rhodan parou no ponto onde começava a escuridão total. Olhou para cima.

Viu as aberturas largas da parte inferior da saliência que já observara na linha equatorial. Esta havia se transformado em um anel gigantesco com mais de setenta metros de largura.

— Se resolvessem decolar agora seríamos reduzidos a átomos — disse calmamente. Depois, apontou para cima.

— Aquilo ali deve ser as aberturas dos reatores, se é que a nave é impulsionada por esses engenhos. É provável que o solo, que se apresenta vitrificado em torno da nave, tenha sido levado à incandescência. Calculo que nas condições da Terra, o peso de decolagem de uma nave como essa seria de dois milhões de toneladas. Como será que isso se desloca?

— Sugiro um foguete de São João — disse Bell em tom sarcástico. Uma raiva surda apoderou-se dele. Ao que parecia, ninguém lhes dava atenção. Dentro dele, começou a se fazer ouvir uma voz que o chamava de macaco. Bell não conseguia evitar. Não possuía a enorme dose de autoconfiança do companheiro. Refugiava-se num humor um tanto sem graça. Recorria, invariavelmente, a esse subterfúgio quando o pensamento lógico não mais bastava.

Rhodan conservou seu autodomínio. Imaginava que alguma discussão devia estar sendo travada no interior da nave. Provavelmente, também para aqueles desconhecidos, a situação era embaraçadora. Sabiam, é evidente, que poderiam livrar-se dos dois homens com facilidade, provavelmente bastaria apertar um botão.

Rhodan considerou o fato como um ponto positivo. Esses seres não lhes fariam mal, a não ser que fossem guiados por uma ética totalmente inconcebível e não conhecessem qualquer tipo de tolerância. De outra forma, só lhes caberia continuar em silêncio ou transmitir algum sinal de vida. Por isso, o major Rhodan armou-se de paciência.

A reação de Bell foi diferente. Depois de alguns instantes, disse em voz baixa e tom irônico:

— Embaixo da sua nave encontram-se dois monstros horríveis que sentem fome e sede. Bom dia. Meu nome é Reginald Bell. Os senhores tiveram a gentileza de nos obrigar a um pouso de emergência. Estamos aqui para apresentar a conta.

Bell calou-se. Se a situação fosse outra, Rhodan teria caído na gargalhada. A essa altura, porém, tinha a garganta seca. Ao que parecia, as palavras de Bell não eram despropositadas, embora, é lógico, não passassem de brincadeira.

Não disseram mais nada. Rhodan também se sentiu tentado a pegar a arma. Bell já agarrara o fuzil automático. Rhodan estava se controlando. Seu olhar de censura provocou um gesto desdenhoso por parte de Bell.

Uma luz ofuscante surgiu tão inesperadamente como a luminosidade verde de algumas horas atrás. Rhodan encolheu-se. A arma automática desceu até a altura do cotovelo contra sua vontade, como se tivesse sido atraída por alguma força mágica. Praguejou, estremecendo por dentro, e voltou a colocar a arma sobre o ombro.

— Ponha isso de lado — gritou para Bell.

Uma abertura ampla surgira na esfera. Era de lá que vinha a luz. Tudo se passara num silêncio absoluto, como sempre acontece na Lua. Nunca antes Rhodan sentira falta de um condutor de som como o ar.

Alguma coisa foi saindo da abertura. Quando a extremidade tocou o solo, o objeto se abriu numa faixa larga e totalmente lisa. Não aconteceu mais nada.

Rhodan foi andando devagar em direção àquela superfície fracamente iluminada. Parou antes de lá chegar.

— É um convite — disse com voz abafada. — e olhe que não há degraus. A porta fica a pelo menos trinta metros de altura. Bem que poderíamos colocar isso na Stardust.

— Deve ser um teste de inteligência, não é? — disse Bell, nervosamente, olhando para cima.

Rhodan foi até a rampa inclinada, que subia em ângulo de quarenta e cinco graus mínimo. Quando percebeu que estava sendo erguido, estendeu os braços num gesto instintivo. Queria evitar uma queda e acabou percebendo que não poderia cair. Suas botas não tocavam a rampa. Ficavam suspensas alguns centímetros acima do material fluorescente. Deslizou para cima como se estivesse numa escada rolante.

Bell, atrás, soltou uma praga. Não conseguia tirar as mãos de um apoio imaginário. De quatro, foi seguindo Rhodan.

Foram colocados suavemente numa grande sala de onde vinha a luz brilhante. Depois que as portas se fecharam, tudo continuou em silêncio. Estavam a bordo da estranha nave.

— Não haverá quem acredite nisso! — cochichou Bell. — Ninguém! Resta saber se, algum dia, voltaremos a falar com algum ser humano. Que pretende fazer?

— Negociar. Usar a inteligência. Que mais poderíamos fazer? As situações deixam de parecer irreais quando aceitamos as coisas como óbvias. Tudo depende dos instintos. Tente desligá-los.

Ouviram um som agudo provocado pelo ar que penetrava no compartimento. Outros sons também se tornaram perceptíveis. Ainda era duvidoso, porém, se essa mistura de gases seria respirável para um ser humano. Rhodan percebeu que estavam sendo submetidos a um teste. Se abrisse o capacete, arriscando as conseqüências, esse ato irrefletido seria interpretado contra ele. Não sabia que tipo de gás tinha sido introduzido ali, por isso ficou imóvel até que se abrisse a porta interna.

Quando esta se abriu, viram um corredor amplo e abobadado, que terminava em um poço fluorescente.

Prosseguiram. Não havia nada mais a discutir. A nave parecia deserta. A situação fantasticamente estranha. Bell sabia que seus nervos não agüentariam mais que cinco minutos. Depois disso, perderia todo o autodomínio. Tinha vontade de gritar e sair correndo dali.

De repente, ouviram uma voz clara, falando um inglês perfeito.

— Podem abrir os trajes de proteção. O ar é respirável para os senhores.

Rhodan soltou uma exclamação de espanto e surpresa. Depois, abriu o capacete.

 

Seu nome era Crest. Sua raça não fazia distinção de nome e sobrenome. Era muito alto e magro, quase trinta centímetros mais alto que Rhodan. Tinha, também, dois braços e duas pernas, um tronco estreito e o rosto intelectualizado de um homem muito velho, cuja pele tivesse conservado a juventude e um extraordinário vigor. A testa alta encimava dois olhos que revelavam uma expressividade penetrante. Pela cor da pele poderia pertencer a alguma tribo do Pacífico sul que tem tez aveludada. Todavia essa impressão era afastada pela vermelhidão albina dos olhos e pelos cabelos esbranquiçados que cobriam sua cabeça. Alguma coisa estranha e irreal parecia irradiar de sua pessoa, embora no seu aspecto exterior guardasse grande semelhança com os homens. As diferenças reais deviam estar nos aspectos que não se percebiam imediatamente. Rhodan via-se diante de um organismo, cuja construção era completamente diferente da sua, mas que também respirava oxigênio.

Na grande sala reinava um calor abafado. A luz, muito forte, era azulada. Provavelmente, a parte extrema das suas radiações já se situava no campo ultravioleta do espectro. Deviam vir de algum planeta em que brilhava um sol muito luminoso, muito quente e cujos raios seriam, provavelmente, azulados. O tipo de iluminação e o calor reinante na sala pareciam indicar isso. Era tudo o que Rhodan conseguia perceber.

Não. Havia algo mais. Alguma coisa que notara no começo.

Crest parecia fraco e esgotado. Seus movimentos eram um tanto desajeitados. Tinha o aspecto de um homem gravemente enfermo. Rhodan já notara que a montanha tinha sido desbastada na parte interior. Teria este fato alguma relação com a fraqueza daquela inteligência superior?

Havia mais dois seres na sala. Também pertenciam ao sexo masculino. Os olhos de Rhodan estreitaram-se por um instante. Jamais observara tamanha letargia. A falta de interesse e de participação e a sonolência daquelas criaturas eram tamanhas que qualquer pessoa notaria por mais superficial que fosse a observação.

Em comparação com eles, Crest, com toda a sua debilidade, parecia vigoroso e cheio de vida. Os outros dois seres vivos ali presentes não chegaram, sequer, a virar a cabeça quando o visitante, que para eles devia ser bastante estranho, entrou na sala.

Estavam deitados em seus leitos largos e muito baixos, com os olhos fitos na tela oval ligada a certos instrumentos, cuja finalidade Rhodan não compreendia. Sequer percebia o cintilar que crescia e decrescia, passando por todas as cores do arco-íris. Figuras geométricas planas desfilavam numa variedade imensa. Tudo isso era acompanhado de um zumbido agudo e intermitente. Rhodan teve um pressentimento pouco agradável. Alguma coisa não estava em ordem naquela nave que parecia tão perfeita. A sala enorme estava impregnada de um fluido de sonolência bem perceptível. Ninguém tomava conhecimento da presença dos dois homens.

Crest dirigira a palavra a um dos outros seres ali presentes. Este retribuíra com um sorriso amável e cortês. Deu uma resposta e voltou a olhar a tela.

Bell estava com a boca aberta de estupefação. Tudo mudou, abruptamente quando a mulher entrou na sala. Irradiava tamanha frieza e arrogância que Rhodan estremeceu. Ela lançou um olhar insensível aos dois homens e passou a ignorá-los.

Era da altura de Rhodan e tinha os olhos avermelhados característicos de sua raça. Se estivesse na Terra seria considerada uma beleza de primeira linha. Mas Rhodan logo abandonou essa idéia, e preferiu tomar em consideração a advertência que lhe vinha no íntimo. Aquela mulher de rosto estreito e hostil era perigosa, porque não parecia disposta a usar sua inteligência. Para ela, os dois homens não passavam de répteis pré-históricos que tinham os cérebros embotados.

Esta impressão assaltou Rhodan com uma pontada dolorosa. Jamais alguém manifestara por ele tamanho desprezo mesclado com indiferença. Nunca fora deixado de lado com tamanha manifestação de repugnância. Rhodan tornou-se lívido, cerrou os punhos. A mulher usava uma roupa justa, com alguns símbolos que emitiam uma fosforescência vermelha pregados na altura dos seios. Só após algum tempo Rhodan notou que se tratavam de distintivos hierárquicos. Crest, cujos sentimentos pareciam ser bem semelhantes aos dos homens, apresentou-a como Thora, a comandante da nave. O homem débil, cujo rosto parecia exibir uma juventude fascinante, tinha as maneiras refinadas de um aristocrata.

Rhodan penetrara num ambiente em que reinava os contrastes mais estranhos. Via uma apatia invencível ao lado de uma cortesia extrema e, junto a ambas, uma frieza hostil. Nunca passara por momentos tão esquisitos. Bell comparou a situação a uma dança sobre um barril de pólvora. Animou-se com a idéia de que não tinham exigido a entrega das armas. Também isso era muito estranho.

Crest examinou-os e estudou-os longamente. Ele o fez sem disfarces, com uma franqueza tão grande que sua atitude não poderia ofender os dois homens.

Rhodan ainda não proferira uma única palavra. Em posição ereta, ficou parado no centro da sala quase vazia.

Crest voltou a deitar-se com um sorriso embaraçado. Sua respiração era pesada. Rhodan voltou a perceber sinais de preocupação nos olhos da mulher.

Ela dirigiu-se em tom bastante áspero aos dois outros seres que se encontravam na sala. Um deles ergueu-se ligeiramente do seu leito. Depois sorriu e tornou a deitar-se.

Rhodan sabia que estava na hora de fazer alguma coisa. Bell não suportaria a tensão por mais tempo. Seu rosto pálido e os lábios contorcidos num sorriso forçado diziam tudo.

Os olhos sombreados de Crest iluminaram-se. Parecia sentir que o homem já estava saturado daquela situação. Poucas vezes Rhodan chegara a observar uma expressão de tamanha curiosidade nos olhos de qualquer ser. Crest parecia estar ansioso por uma palavra salvadora.

Qual seria a sua posição a bordo da nave? Qual seria o poder exercido pela mulher?

Rhodan avançou mais alguns passos. O capacete balançava, preso às dobradiças. A mulher virou-se bruscamente. O movimento instantâneo com que colocou a mão no cinto parecia uma advertência. Rhodan enfrentou seu olhar. Enquanto os olhos da mulher pareciam irradiar hostilidade, os de Rhodan assumiram subitamente uma expressão de frieza que a deixou mais admirada que contrariada. O sorriso rígido de Bell se descontraiu. Seus olhos se iluminaram. Conhecia Rhodan. Acabara de mudar de atitude, Agora só poderia seguir-se uma luta decisiva ou então a reunião tomaria um caminho razoável.

Rhodan passou pela mulher, que recuou como se tivesse tocado num inseto venenoso.

Crest acompanhou tudo com bastante interesse. Quando Rhodan chegou perto dele, fechou os olhos. Bell nunca ouvira o comandante falar com voz tão suave.

— Sei que o senhor me compreende. No momento não importa como isso é possível. Também nossa situação atual não interessa. Meu nome é Perry Rhodan. Sou major da Força Espacial dos Estados Unidos e comandante da nave espacial Stardust, vinda da Terra. O senhor obrigou-nos a realizar um pouso de emergência, mas prefiro, por ora, não falar a esse respeito.

— Se der mais um passo, o senhor morrerá! — soou uma voz quase sufocada pela raiva contida.

Rhodan virou-se devagar, exibindo seu sorriso característico. Aparentemente, a mulher havia ligado algum aparelho. Estava envolta por uma luminosidade cintilante. Seu olhar revelava um misto de espanto e indignação desmedida. Aos poucos Rhodan compreendia o que se passava. Ela estava de tal forma imbuída de um sentimento de superioridade e presunção que achava que Rhodan estava cometendo um sacrilégio pelo simples fato de aproximar-se do leito de Crest. Rhodan modificou sua opinião sobre o motivo daquele desprezo. Ela se considerava um ser dotado de inteligência superior, ao passo que Rhodan não era mais que um homem da idade da pedra. Era isso. Ele compreendera a situação.

Ao que parecia, Crest tinha percebido o que estava acontecendo com Rhodan.

— Sinto muito — disse com voz débil. — Não estava em condições de evitar as dificuldades. Não esperávamos a sua chegada. Pelas informações que tínhamos recebido, o terceiro planeta deste sistema solar seria um mundo primitivo habitado por criaturas subdesenvolvidas. Tudo indica que depois da nossa última viagem de exploração a situação se modificou. Aconteceu que não viemos para cá na intenção de estabelecer contato com os senhores.

— Vá embora — interveio Thora. Tinha o rosto rubro de raiva. — O seu procedimento é ilegal. A lei me proíbe de manter contato com seres que ainda não tenham chegado ao grau C na escala de desenvolvimento. Vá embora!

Um mundo de esperanças desmoronou na mente de Rhodan. Eram simples criaturas. Uma raiva impotente apoderou-se dele.

— Se é assim, por que permitiu que subíssemos a bordo? — perguntou em tom sombrio.

— É isso mesmo — exclamou Bell. — O que significa tudo isso?

— A entrada dos senhores foi facultada por iniciativa minha — disse Crest. — Não lhes será fácil compreender isso. Os senhores pertencem a uma raça jovem. Minha enfermidade fez com que me fosse possível contornar a lei. Existe um dispositivo especial para esta hipótese. Podemos estabelecer contato com seres subdesenvolvidos logo que nossa existência...

— Compreendo — interrompeu Rhodan. — Compreendo perfeitamente. O senhor está precisando de auxílio?

Thora soltou um grito agudo de desprezo. Apesar disso, parecia preocupada de novo.

— O senhor é muito jovem e ativo — disse Crest em voz baixa. — Todos os seres da sua raça são assim?

Rhodan esboçou um sorriso. Tinha certeza absoluta de que era assim.

— Não há nenhum médico a bordo? Por que ninguém faz nada pelo senhor?

— A doença dele é incurável — disse Thora laconicamente. — E agora vá. O senhor já me humilhou bastante. Crest falou com o senhor. Minha paciência está no fim. Sou eu quem comando esta nave.

Bell estava começando a ficar espantado. Imaginava que o primeiro encontro com seres inteligentes decorresse de forma diferente. Parecia tudo tão irreal e teatral.

À guisa de resposta, Rhodan tirou o capacete. Seus olhos ardiam. Ignorou aquela mulher. Crest mostrou-se ainda mais interessado. Seu olhar tornou-se cortante.

— O senhor se recusa a obedecer? — cochichou fora de si. — Sabe com quem está lidando?

Rhodan falou com uma grosseria flagrante:

— Sim, sei perfeitamente. Acontece que possuo um cérebro que funciona muito bem, embora a comandante dos senhores procure negar este fato. Por isso, também sei que me encontro numa nave espacial ocupada por dorminhocos. Quando me lembro do estágio de desenvolvimento científico alcançado pelos senhores, acho muito estranho que ninguém trate da sua doença. Ao que parece, ninguém se interessa por ela. Tudo indica que o senhor e a comandante são os únicos ocupantes desta nave que ainda sabem raciocinar com clareza. Além disso, tenho a impressão de me encontrar diante dos descendentes irremediavelmente degenerados de uma raça que já foi muito desenvolvida. Lamento ter que dizer uma coisa destas, mas volte a cabeça e examine friamente aqueles dois homens. Se estivessem na Terra, já teriam sido internados num hospício.

Rhodan virou-se. Empunhava ameaçadoramente a arma com a espoleta já em ignição.

Thora empalidecera. Repentinamente, duas figuras metálicas que soltavam um zumbido estranho ergueram-se atrás dela.

Rhodan conhecia apenas os robôs terrestres e os computadores eletrônicos. Mas aquilo eram máquinas de aspecto humano, altamente aperfeiçoadas, que dispunham de braços com armas e ferramentas, concebidos de forma genial. Surgiram de repente. Cabeças redondas sem olhos erguiam-se ameaçadoras. Além disso os canos saídos de vários aparelhos desconhecidos ocupavam suas posições, presos a suportes compostos de várias articulações.

— Pare com isso — soou a voz de Rhodan. — As coisas desagradáveis devem ser ditas vez por outra. A senhora sabe perfeitamente que falei a verdade. Se o fato de ter a mesma sido proferida por um selvagem a incomoda, a senhora não devia ter permitido que entrássemos na nave.

Estava com o dedo no gatilho. Reginald Bell procurava abrigo atrás de um dos leitos.

A mulher parecia fora de si. Com o rosto pálido olhou para o cano da arma de Rhodan.

— O senhor se atreve!... — gemeu. Suas mãos se contorceram. — Atreve-se a proferir palavras dessa espécie na nave exploradora do Grande Império. Se não saírem imediatamente mandarei destruí-los.

— OK. Aceito — disse Rhodan. — Nesse caso há de permitir que decole com a minha nave. Afinal, isto aqui é o satélite da Terra. Não estamos em condições de viver aqui.

— Sinto muito, mas não posso permitir que espalhe a notícia da nossa presença entre os seres que habitam o terceiro planeta.

— Muito bem! Nesse caso quer que morramos asfixiados, não é? Não dispomos dos conhecimentos técnicos acumulados pelos seus antepassados, que os senhores evidentemente adquiriram por herança. Não sabemos extrair oxigênio das pedras ou fabricar alimentos com a poeira. Mal iniciamos a conquista do espaço.

Rhodan nunca teria esperado a reação que se seguiu às suas palavras. Crest, que parecia uma criatura tão calma, levantou-se com um grito agudo. Subitamente parecia ter esquecido sua fraqueza.

— O que está dizendo? Iniciaram o quê?

— Iniciamos a conquista do espaço — repetiu Rhodan em tom indiferente. — Esta expressão choca o senhor? Trilharemos nosso caminho, e um dia também possuiremos naves gigantes como esta. E isso acontecerá muito mais depressa do que o senhor imagina.

— Espere, por favor — gemeu Crest. Rhodan ergueu-se espantado. Abaixou a arma. Entre o enfermo e a comandante Thora travou-se uma discussão tão acalorada que ele julgou sua presença supérflua. Lentamente foi para junto de Bell.

— É a situação mais idiota que já vi — cochichou este apressadamente. — O que está acontecendo agora? Estão se devorando uns aos outros? Seria bom que déssemos o fora enquanto é tempo. Não gosto nem um pouco desses robôs. O que você acha disso tudo?

As perguntas de Bell saíam-lhe da boca precipitadamente. Tivera que manter-se por muito tempo em atitude passiva. Rhodan observou atentamente a cena. Depois disse com a voz sombria:

— Tenho a impressão de que estão discutindo sobre o nosso destino. Não há dúvida de que esse homem tem poder e influência. Se não fosse assim a mulher não se humilharia tanto. É um diabo esta mulher. Ainda não vejo claro. Como é que eles falam perfeitamente a nossa língua? E o que significa a expressão O Grande Império? Até parece que durante milênios a Humanidade foi crescendo à margem de acontecimentos extraordinários sem desconfiar de nada. É uma coisa horrível. Ainda acontece que, provavelmente, esta não é a única raça inteligente que existe no Universo. Vejo possibilidades imensas. Continuaremos aqui. Controle-se, meu velho, pelo amor de Deus! Entramos numa grande jogada, ainda que tudo isto pareça ridículo. Essa gente lida com concepções totalmente diferentes das nossas. Para eles são perfeitamente naturais certas coisas que deixariam os estadistas da Terra doentes se alguém falasse nelas. Temos de tratar com eles de igual para igual. Somos os representantes da Humanidade, e é meu desejo que essa Humanidade se torne grande, forte e unida. Você compreende?

— Compreendo perfeitamente — disse Bell, esticando as palavras. — Mas também sinto o desejo de sobreviver.

— Acho que Crest está tomando uma decisão importante. Veja só! A mulher paece estar encolhendo. Está cada vez mais nervosa. Sinto que alguma coisa está acontecendo. Olhe!

A comandante parecia fora de si. Seus olhos fascinantes adquiriram uma tonalidade vermelho dourada. Crest disse mais alguma coisa. Falou em tom ríspido e decidido. Após isso ela assumiu uma posição tão angular que Rhodan pensou que estivesse prestando alguma homenagem.

Interceptou seu olhar misterioso. Estava muito pálida. Parecia que as palavras de Crest haviam desencadeado nela um sentimento desagradável. Virou-se subitamente e desapareceu em companhia dos dois enormes robôs.

Ficaram sozinhos. As duas criaturas apáticas deitadas nos leitos não contavam; ao menos não contavam para Perry Rhodan.

Crest caíra sobre o leito; estava exausto. Inclinou-se sobre o estranho com um sentimento de real preocupação. Olhando bem de perto; viu que na verdade se encontrava diante de um homem muito idoso. A lisura da pele era enganadora.

— Tenho um médico excelente na minha nave — disse apressadamente. — Temos de examinar o senhor e dispensar-lhe o tratamento adequado. Tenho a impressão de que aqui ninguém lhe pode prestar auxílio. Há quanto tempo já se encontra no satélite da Terra?

Crest recuperou-se um pouco. As feições marcadas pelo cansaço descontraíram-se.

— Estou aqui há um período de tempo que o senhor chamaria de quatro meses — disse baixinho. — Foi um acaso. Tivemos de realizar um pouso de emergência. Aproveitamos a oportunidade para aprender a língua principal do seu planeta. O senhor deve achar isso bastante estranho. Acontece que nossos cérebros são diferentes dos seus. Nossa memória possui um registro gráfico. Naturalmente ficamos ouvindo as emissões radiofônicas dos homens. Ainda bem que não pousamos no terceiro planeta. Os seus habitantes estão na iminência de cometer um crime tremendo contra as leis universais.

— Sim, é a guerra atômica — disse Rhodan com a voz aflita. — A situação é muito tensa. Lamento ter que admitir isso. Garanto-lhe que os homens não desejam a guerra.

— Não a desejam, mas provocam-na. Foi por isso que fomos de opinião que a raça à qual pertencem os senhores ainda leva uma vida primitiva. Acontece que mudei de opinião. Os senhores são jovens, ativos e dotados de uma receptividade extraordinária. Depois de tê-los observado atentamente, decidi enquadrá-los na escala de evolução D. Cabe a mim tomar uma decisão desta espécie. Thora foi instruída para introduzir na memória positrônica a nova classificação da raça dos senhores. Sou o chefe científico desta expedição. Acho que é este o nome que os senhores dariam ao meu cargo. Thora é a encarregada da navegação. Os senhores compreendem? Já conhecem distinções desta espécie no poder de comando?

Rhodan disse que sim. Até que os homens as conheciam muito bem.

— As declarações dos senhores guardam relação direta com a lei da classificação das raças promulgada pelo Grande Império. Os senhores desde que já tenham dado início à conquista do Universo podem ter seu nível de classificação elevado por decisão de um cientista autorizado pelo Império. Foi o que fiz. Com isso os argumentos da Thora acham-se superados. Estamos autorizados a entrar em contato com os senhores.

Sorriu ligeiramente. Nos seus olhos via-se a expressão de um triunfo silencioso. Rhodan compreendera. Reginald Bell soube interpretar corretamente a posição rígida que assumira. Rhodan estava certo de ter dado um passo enorme à frente.

— O senhor está precisando de auxílio — repetiu. — Deixe-me buscar o nosso médico. Temos de fazer alguma coisa.

— Deixemos isso para depois. Escute-me primeiro. Aliás, não acredito que o senhor esteja em condições de ajudar-me. Embora sejamos parecidos no aspecto exterior, é provável que o funcionamento do meu organismo seja completamente diferente do seu. A constituição do nosso organismo também não deve ser a mesma. De qualquer maneira os senhores estão em conformidade com os requisitos da lei fundamental do Império. Têm muita semelhança conosco, possuem espírito e conseguiram dar emprego útil à energia do núcleo atômico, descoberta pelos senhores. Ainda não cometeram o erro de utilizar essa energia fundamental para sua autodestruição. Sou um dos principais cientistas do Grande Império, um dos poucos homens que conservou a força de vontade e a energia vital. A posição de Thora os surpreendeu?

Bell lançou um olhar triste para as criaturas imóveis. Ao que parecia, o programa singular tinha mudado. Subitamente, ouviu-se um furacão de ruídos. As figuras geométricas modificavam-se muito pouco.

— O motivo é esse? — perguntou Rhodan em tom sereno. — A decadência da raça, não é?

— É certo. Pelo calendário dos senhores, minha raça tem alguns milhões de anos de idade. Antigamente, éramos iguais aos senhores: possuímos espírito de conquista, energia e sede de saber. Há vários milhares de anos, começou a decadência. O Grande Império esfacelou-se. Certas inteligências exóticas revoltaram-se contra o nosso domínio e o reino dos astros começou a oscilar. Sempre fomos soberanos bondosos, ao contrário das outras formas de inteligência. Agora, chegamos ao fim. O Império entrou em decadência e a luta pelo poder absoluto está sendo travada. Mais de cinqüenta raças muito evoluídas travam guerras terríveis nas profundezas da Via Láctea. Os senhores nada sabem a esse respeito. O Sol fica muito longe do palco dos acontecimentos, encontra-se num braço secundário da galáxia.

— O que estão fazendo para remediar a situação? — indagou Bell.

— Nada. Já não fazemos mais nada — disse o velho resignadamente. — Tornamo-nos fracos e apáticos. Pertenço à dinastia reinante de Árcon. Thora, também. Árcon é um mundo que fica a mais de trinta e quatro mil anos luz daqui. Os senhores contam a distância em anos-luz, não é?

Rhodan estava espantado. Era uma distância por demais vasta para que a mente humana pudesse avaliar.

— Quer dizer que os senhores conquis­taram o segredo da viagem espacial a velo­cidade superior à da luz?

— Claro que já! Isso aconteceu há algumas dezenas de milhares de anos pelo calendário terrestre. Conhecemos a Terra há cerca de mil anos. Foi naquela época que fizemos nossa última visita à região. Depois disso, teve início a decadência dos arcônidas. As viagens de exploração foram suspensas, as naves espaciais permaneceram nas respectivas bases. Todos são de opinião que não poderemos escapar à ação de uma lei natural. É verdade que ainda pensamos e planejamos. No campo puramente espiritual concebemos planos maravilhosos para a criação de um novo império. Mas não passamos disso. Falta-nos energia e força de vontade para transformar em realidade os nossos pensamentos fugazes. Negligenciamos assuntos da maior importância. A decadência acentua-se cada vez mais; a própria dinastia Reinante foi atingida. Todos procuram a beleza e a tranqüilidade, desistindo de qualquer tipo de realização. Estamos muito velhos. Nossas energias desgastaram-se. E... — os olhos de Crest estreitaram-se — até agora não tínhamos descoberto nenhuma raça que fosse assim como nós já fomos. Provavelmente os senhores constituem a exceção maravilhosa. Foi por isso que os elevei na escala da classificação. É meu direito e meu dever.

Dentro de Rhodan despertou o cientista. Via diante de si inúmeras indagações e mistérios impenetráveis.

— Pelo que acaba de dizer, os senhores estão aqui há quatro meses. Por que ainda não decolaram?

Crest confirmou com um gesto comedido. Seu olhar tornava-se cada vez mais penetrante.

— A pergunta é própria de um ser inteligente, dotado de uma tremenda energia. Por que ainda estamos aqui? O pouso de emergência no satélite da Terra foi motivado por uma falha das máquinas. Ninguém se preocupa mais com a manutenção das nossas naves espaciais. A avaria é pequena, mas não temos peças sobressalentes a bordo. Simplesmente foram esquecidas, da mesma forma que tudo quanto é importante costuma ser esquecido. Ninguém se lembrou. Por isso estamos presos aqui. Ficamos esperando indefinidamente, e não acontece nada. Minha doença me impede de adotar pessoalmente as providências necessárias. Temos necessidade premente de peças sobressalentes. Não acredito que poderíamos obtê-las no mundo a que pertencem os senhores.

— Poderemos confeccioná-las — disse Bell. — Basta mostrar-nos como são feitas, e elas lhes serão entregues dentro de pouco tempo. O senhor não nos deve subestimar. Os maiores cérebros da Terra trabalharão a todo vapor. Arrancaremos as estrelas do céu, desde que o senhor nos diga como fazê-lo. A indústria da Terra é uma organização enorme. Conseguiremos qualquer coisa. Isto mesmo, qualquer coisa.

Estas palavras otimistas reanimaram Crest.

— Acredito no senhor — disse em tom exaltado. — Os senhores têm de conquistar Thora. As mulheres da nossa raça são menos degeneradas que os seres do sexo masculino. É por isso que as mulheres ocupam tantas posições importantes. Essa situação já existe há séculos. Antes disso as mulheres só se ocupavam dos afazeres domésticos. O espírito de Thora ainda é lúcido e penetrante. Major Rhodan, o senhor é o homem indicado para ela. Thora tem medo do senhor. O fato me surpreende.

Rhodan engoliu em seco. Então era isso! Bell sorriu. A situação complicara-se ainda mais.

— Não se admirem se me exprimo em conformidade com as concepções dos senhores — disse Crest. — Há muito tempo está a meu cargo os contatos com inteligências estranhas. Estou acostumado a adaptar-me rapidamente à mentalidade de qualquer raça. Dessa forma a presença dos senhores não foi nenhuma surpresa para mim. É um acontecimento banal. Os senhores estão profundamente impressionados; chegam a estar deprimidos. Até aqui ignoravam que não são os únicos seres inteligentes do Universo. Já tive conhecimento de muitos casos semelhantes. O primeiro contato com um ser superior sempre causa um choque. Mas os senhores já superaram este choque.

— O que está fazendo essa gente? — indagou Rhodan com a voz abafada. A música estranha mudara de novo. Transformara-se num tipo de murmúrio persistente.

Crest virou a cabeça num gesto cansado.

— É o conhecido jogo do simulador, que influiu decisivamente na decadência do espírito e da vontade dos seres da nossa raça. Bilhões de arcônidas passam os dias deitados diante das telas de imagem. Trata-se de jogos fictícios. Cada um deles foi concebido por um profissional diferente. São muito complicados. Representam a ilustração visual e acústica dos pensamentos. Os seres da minha raça não se interessam por mais nada. A coisa está cada vez pior. A bordo desta nave só há cinqüenta pessoas. Raramente chego a vê-las. Quando isso acontece estão deitadas diante das telas de imagens fictícias, perdidas no seu enlevo. Nossa decadência nada tem que ver com relaxamento dos costumes. Decorre da debilitação total da vontade. Tudo nos deixa indiferentes. Nada nos excita, nada nos interessa. A obra de qualquer artista novo sempre tem a precedência. Todo mundo anda tão ocupado que se apressa em gozar com a maior rapidez as delícias da criatividade artística.

— Que dizer que deixaram o senhor jogado aqui por quatro meses? — disse Rhodan, revoltado no seu íntimo. — Não fizeram qualquer tentativa de encontrar algum remédio? Para os seres da sua raça isso devia ser fácil.

— Seria fácil se alguém se animasse a agir. Temos a bordo medicamentos em quantidade suficiente. Acontece que fui acometido de uma enfermidade ainda desconhecida entre nós. Haveria necessidade de exames e pesquisas. Estas, porém, exigiriam tempo, esforço e trabalho intenso. E isso não é possível. Nesta nave encontram-se artistas de renome, que constantemente criam novas obras fictícias. A tripulação de robôs mantém a ordem na nave. O pouso de emergência dos senhores também foi obra desses mecanismos automáticos. Decorreu do funcionamento normal dos dispositivos de segurança. O cérebro positrônico constatou que não devíamos manter contato com os senhores. Por isso ligou as chaves correspondentes. É muito simples.

— Muito simples! — gemeu Rhodan. Sentia-se tomado por uma perturbação terrível. — O senhor considera simples coisas que para nós soam como contos de fadas. A propósito, o que significa a palavra positrônico? Nós dispomos de computadores eletrônicos cuja, capacidade é enorme. Mas um positron é uma coisa muito efêmera.

Crest riu. Nos seus olhos surgiu uma expressão que parecia: ser de piedade paternal. Bell engoliu uma palavra áspera.

— O senhor acabará compreendendo. Não estamos mais em condições de decolar. Será que poderei contar com o seu auxílio?

Subitamente Rhodan voltou a transformar-se no comandante — e também num homem. Os efeitos da surpresa imensa haviam passado. Começou a refletir com a precisão fria de uma máquina.

— Os últimos comunicados dos nossos serviços secretos revelam que só através dos esforços mais intensos poderá ser evitada a irrupção de uma guerra entre o mundo ocidental e as potências da Federação Asiática, cujas conseqüências certamente seriam terríveis. Não posso explicar em pouco tempo o motivo por que será difícil evitar essa guerra. No fundo esse motivo deve ser procurado nas diferenças ideológicas. Provavelmente o senhor não conhece nada disso. Acontece que na Terra prevalecem estas condições. Desejo formular uma pergunta clara.

Crest soltou um suspiro profundo.

— Uma pergunta clara! — repetiu. — Desde a minha juventude não ouço uma formulação dessas. Entre nós ninguém mais faz perguntas claras. Por obséquio, diga o que deseja.

— O senhor dispõe de meios para impedir um conflito arrasador com armas atômicas? Em caso afirmativo, que meios são esses?

— De que tipo seriam as armas atômicas? — perguntou Crest bastante interessado.

— São de duas espécies. Numa espécie é usado o processo de desintegração nuclear, noutra a reação termonuclear.

— O processo de desintegração pode ser impedido por meio da absorção completa dos nêutrons liberados. Conheço o processo primitivo da desintegração nuclear, que é muito antigo. Na ausência das partículas que os senhores chamam de nêutrons o mesmo não é possível.

— Perfeitamente. Sabemos disso, mas não temos meios para conseguir a absorção dos nêutrons. E que tal as termonucleares, como as bombas de hidrogênio?

— Também se trata de um processo antiqüíssimo, que já não é utilizado entre nós. O dispositivo antineutrônico não serve para impedir a fusão nuclear.

— É verdade. Acontece que por enquanto entre nós só se conhece a chamada ignição quente. Todas as potências da Terra dependem de um dispositivo de ignição térmica baseado na desintegração nuclear para desencadear a reação da carga de hidrogênio das grandes bombas. Na falta da carga nuclear que fornece o impulso térmico inicial jamais se conseguirá a fusão dos prótons mais leves.

— Vejo que o senhor é cientista. Muito bem. Garanto que essas armas falharão totalmente, desde que ainda funcionem com o processo de ignição primitivo. Para isso basta um pequeno aparelho.

— Para toda a Terra? — indagou Rhodan surpreso.

— A Terra é um planeta pequeno, e nossa nave representa um poderio tremendo. Conseguiremos.

Rhodan engoliu desesperadamente em seco. Não tinha coragem de fitar os olhos arregalados de Bell. O técnico sentia-se aturdido. Aquele estranho falava de todas essas maravilhas com a mesma desenvoltura que um menino da Terra demonstraria ao conversar com coleguinhas sobre seus brinquedos.

— Nesse caso, valerá a pena levá-lo à Terra para ser tratado. Mas é necessário que o Dr. Manoli o examine imediatamente. Ele descobrirá a natureza do seu mal. Quem sabe se, oferecendo alguns dados sobre a estrutura do seu organismo e sobre o seu metabolismo, o senhor pode facilitar-lhe o diagnóstico. Na minha opinião, seria conveniente que ele estivesse a par de tudo.

— Partiremos com o veículo blindado — disse Bell com a voz inquieta. — Santo Deus! Se não chegarmos a tempo Fletcher apertará o botão de decolagem. Será o diabo!

— Não é necessário que vá até lá — disse Crest em voz baixa. — Fale com Thora. Major Rhodan, o senhor ainda não sabe do que somos capazes.

 

O Capitão Fletcher tremia como vara verde. Apavorado, passou os olhos pela sala circular daquela nave imensa.

Thora observava-o com uma expressão de ironia nos olhos. O Dr. Eric Manoli desaparecera logo. Precipitara-se sobre Crest com o verdadeiro entusiasmo de um pesquisador. Havia mais alguns homens na sala. Ofereciam um aspecto desajeitado que inspirava compaixão, muito embora, segundo as informações de Crest, se contassem entre os indivíduos mais ativos daquela raça.

Rhodan, todavia, teve a impressão de que todas as partículas daqueles seres debilitados ansiavam apenas pelo próximo programa fictício. Embora envergassem o uniforme do Grande Império, pareciam pensar exclusivamente nas telas simuladoras.

Era este o aspecto dos descendentes de uma raça cósmica outrora poderosa. Seria difícil imaginar que os antepassados daqueles seres haviam fundado um império galáctico.

Rhodan não acreditava que uma colonização desse tipo tivesse sido levada a efeito sem sangue e lágrimas. Mas tudo isso pertencia ao passado. Encontravam-se diante dos restos de um grande povo, cujo legado técnico-científico já não poderia ser aproveitado. A lembrança da operação de resgate causava vertigens em Rhodan.

Thora estivera sozinha na sala de comando apinhada de aparelhos, cuja profusão era perturbadora para ele. Rhodan não contava os numerosos robôs, embora afinal eles tivessem realizado todo o trabalho.

Fletcher quase enlouquecera quando a Stardust foi erguida por uma força apavorante. Sentia arrepios ao lembrar-se de tudo aquilo.

— Foi terrível — disse com a voz abafada. — Nossa solidão já se tinha tornado quase insuportável. Eric e eu nos revezávamos no serviço de guarda. Contávamos sempre com o aparecimento repentino de alguma patrulha asiática. E vivíamos pensando em vocês e na mensagem radiofônica que pretendiam enviar. De repente começaram os solavancos. Alguma coisa levantou a nave como se fosse uma pena. Não vimos nem ouvimos nada. Tomado de pânico, liguei a chave de partida. Dei a força de empuxo máxima, sem utilizar o dispositivo automático. Foi em vão. Subitamente o reator deixou de funcionar, e lá se foi todo o empuxo. A Stardust foi arrastada por cima da cratera. Logo depois vimos a nave gigantesca. A essa altura nos pousaram com tamanha delicadeza que mal sentimos um ligeiro solavanco. Fiquei feliz quando vi a cara de Bell. Será que vocês têm mais alguma surpresa para nós?

Sim, havia mais uma surpresa. Em termos lacônicos, Thora deu explicação do fenômeno. Tratava-se simplesmente da criação de um campo energético destinado à movimentação de objetos dotados de estabilidade material. Era um procedimento corriqueiro em Árcon.

Escolhera cautelosamente as palavras, mas não conseguira disfarçar a ironia. Ainda não se esquecera. Provavelmente não conseguiria esquecer tão depressa. Para ela os homens continuavam a ser criaturas subdesenvolvidas. Só mesmo a situação difícil em que se encontravam justificava a cooperação com os mesmos. Era por isso que ela os tinha aceito, mais nada.

Encontravam-se numa pequena ante-sala, à espera do Dr. Manoli. Este conseguira material gráfico suficiente para formar uma idéia sobre a construção do organismo de um arcônida. De qualquer maneira, Rhodan tinha certeza de que Manoli teria de enfrentar um problema médico excepcional. Certamente surgiriam inúmeras dificuldades. Não se poderia esperar que qualquer médico terreno conseguisse familiarizar-se com um organismo totalmente estranho num verdadeiro golpe de prestidigitação. Tratava-se de um objeto de estudo completamente distinto. E ainda havia a considerar os enormes perigos que poderiam resultar de qualquer espécie de tratamento.

A intervenção do médico representaria um jogo arriscado, que envolveria a vida daquele ser. Ninguém poderia prever como o mesmo reagiria aos medicamentos usados na Terra.

De qualquer maneira poderia confiar no discernimento de Manoli. Se não houvesse possibilidade de auxílio imediato teriam de recorrer às maiores inteligências da Terra. Rhodan estava decidido a fazer trabalhar toda a indústria farmacêutica do planeta a pleno vapor, se isso fosse necessário. Essa criatura tinha de ser salva. Pouco importava como.

O Doutor Manoli desaparecera há dez horas. Ninguém poderia prestar-lhe ajuda. Nenhuma das outras pessoas que se encontravam a bordo da nave era médico. Thora parecia cada vez mais inquieta. Percebia que se encontrava numa encruzilhada decisiva da sua existência. Suas idéias sobre as possibilidades de desenvolvimento da raça humana ainda eram muito confusas.

Rhodan observou-a bastante preocupado. Ela se esforçava para ocultar a angústia que a roia atrás de uma ironia causticante e uma generosa condescendência. Sentia, porém, que aquele homem alto, cujos olhos cintilavam numa expressão de ironia, percebia o que se passava no seu interior.

Tudo seria simples para Thora se aquelas inteligências estranhas não tivessem o mesmo aspecto dos indivíduos da sua raça. Assim, porém, a situação a perturbava e deprimia, colocando-a numa posição embaraçosa. Saberia lidar sem quaisquer dificuldades com criaturas que não tivessem a aparência humana. Aqui, porém, o caso mudava de figura. Sentia a vontade firme de Rhodan, que não queria ceder um palmo sequer. Fazia questão de ser aceito, de ver reconhecida sua qualidade de ser inteligente. Arrogava-se o direito de comparar-se a ela, que era uma arcônida. Esse fato quase chegou a desencadear nela uma tormenta interior. Subitamente teve consciência da posição excepcional que a raça humana ocupava no Universo. Antes disso ninguém adotara diante dela uma atitude tão franca e desafiadora. Estava acostumada a ver todo mundo humilhar-se, reconhecendo sem qualquer restrição o seu poder imenso. Tudo isso parecia não atingir aquele homem. Ele a fez ferver de raiva com seu sorriso impertinente. Depois tratou-a como uma criatura tola. Thora estava fora de si.

Ficou rígida quando Rhodan voltou a aproximar-se dela. Seu olhar furioso foi retribuído com um amável aceno de cabeça. Será que ele não percebia nada, ou não queria perceber? Tudo indicava que não queria perceber. Tal atitude a assustou.

— Tenho outra pergunta bem clara — disse Rhodan. — Ou melhor, meu espírito está ocupado com certo problema. Diga-me uma coisa. No seu mundo existe qualquer meio de pagamento, isto é, dinheiro ou qualquer outro instrumento de troca?

— É claro que o intercâmbio comercial entre mais de dez mil planetas habitados não poderia prescindir de meios de pagamento — respondeu Thora em tom irônico.

— Muito bem — disse Rhodan com um sorriso. — Terei de levar Crest para a Terra. A bordo do nosso foguete minúsculo não temos os medicamentos de que precisamos, nem os instrumentos necessários aos exames. Talvez haja necessidade de uma operação. O que pode oferecer em pagamento? Títulos de crédito ou dinheiro dificilmente nos interessariam, pois não saberíamos o que fazer com isso. O que tem para oferecer, portanto? Que tal algum material sintético valioso? Alguma substância artificial ou coisa que o valha?

— Levamos a bordo bens de troca normais para os mundos em desenvolvimento dos níveis C e D. Trata-se de máquinas-ferramentas que dispõem de suprimento de energia próprio, comando integral por robô e garantia de funcionamento de oitenta anos pelo calendário terrestre. Existem máquinas para todos os tipos de atividade econômica. Ainda posso oferecer equipamentos micromecânicos, tais como aparelhos portáteis para a procura de elementos químicos, a reforma do solo, a neutralização da gravidade com vistas ao transporte aéreo individual e...

— Pare, senão acabo endoidecendo — gemeu Fletcher. — Isso é uma loucura. A Terra ficará de pernas para o ar. Os homens se matarão por essas máquinas milagrosas.

— Isso não é comigo. Para as inteligências primitivas só tenho objetos inofensivos.

— E o que tem para oferecer às tais inteligências verdadeiras? — indagou Rhodan. — Está bem! Deixemos disso. Posso imaginar. Faça o favor de providenciar para que a Stardust seja abastecida. Ponha na nave tudo aquilo de que Crest vai precisar. E — interrompeu-se — faça o favor de não esquecer aqueles aparelhos especiais. Acho que a senhora ainda se lembra da nossa palestra.

Thora observou-o atentamente. Um sentimento de respeitosa aceitação começou a surgir no seu íntimo.

— Sabe que está arriscando sua vida? Compreendo os seus motivos. Acho que faz bem. Só penso nas reações bárbaras dos seres sub... isto é...

— Pode pronunciar a palavra sem susto — disse Rhodan com um sorriso. — Isso não me atinge mais. Nesta altura vejo em você alguém indeciso que já não sabe bem o que diz. Esqueçamos isto. Peço-lhe que comece imediatamente com o carregamento. Retire tudo que se encontra no porão de carga da Stardust. Tenha cuidado para que não sejam colocadas mais de sessenta toneladas de carga útil. O pouso será difícil. Aliás pensando melhor, quem sabe se não quer nos ceder uma das suas grandes naves auxiliares? Com ela atingiríamos a Terra dentro de uma hora.

— Dentro de cinco minutos — corrigiu Thora. — Lamento, mas minha boa vontade não chega a esse ponto. Só mesmo Crest e alguns dos aparelhos que se encontram nesta nave poderão tocar o solo da Terra. Não posso proceder de outra forma. Tenho de ater-me às instruções.

— Crest colocou-nos numa classificação mais elevada.

— Foi sorte sua. Se não fosse assim nem poderíamos conferenciar com os senhores. Assim mesmo, não posso enviar qualquer nave auxiliar à atmosfera terrestre. O cérebro positrônico não iria cooperar. E não posso modificar a regulagem do robô gigante. Nossa missão era outra.

— Qual era? — perguntou Rhodan com uma sensação desagradável.

— Lamento mais uma vez. De qualquer maneira não pretendíamos pousar aqui. Nosso destino era outro. Ficava a alguns anos-luz de distância.

O Dr. Manoli apareceu. Estava pálido e esgotado. Sua saudação parecia um gesto de recusa.

— Não façam perguntas. Foi mais que cansativo. Diferem de nós menos do que eu temia. A disposição dos órgãos é bem compreensível se bem que seja diferente da nossa. O esqueleto também não é igual ao nosso. Todavia, possuem sangue idêntico ao humano. Trata-se de um caso de leucemia. O hemograma prova-o com absoluta certeza. Vali-me de todas as possibilidades que nosso laboratório de bordo oferece. Há dois anos conseguimos produzir o soro anti-leucêmico. Até então a doença era incurável. Agora só me resta fazer votos para que Crest reaja ao nosso soro. Talvez o resultado seja catastrófico. Digo talvez; não tenho certeza. Biologicamente, os arcônidas se parecem muito conosco. Tenho plena certeza de que é leucemia...

Rhodan voltou a sobressaltar-se. Thora, toda assustada, perguntou quais eram as causas da moléstia. Subitamente perdera seus ares de superioridade.

— Comece logo! — disse Rhodan em tom áspero. — Não faça perguntas. Comece com o carregamento da nossa nave. Está em cima da hora. O diabo que carregue todos os dorminhocos da sua raça. Pouco me importa que não goste da expressão. É uma vergonha que inteligências superiores se entreguem a um divertimento de loucos. Para um ser humano tal atitude seria inconcebível. Comece logo! Ou será que não se preocupa com a saúde de Crest?

Thora refletiu um pouco. Depois respondeu num tom inexpressivo:

— Há pouco o senhor perguntou o que estávamos procurando nesta região do espaço. Pois eu lhe direi. Estamos empenhados em conservar nossos grandes espíritos. Não conseguimos realizar a manutenção da vida biológica. Apenas alcançamos alguns êxitos parciais. Fui incumbida de ir a um planeta descoberto numa expedição anterior, cujos habitantes conhecem o segredo da conservação biológica das células. Crest é uma das personalidades mais importantes da nossa raça. Além disso, não foi atingido pela decadência geral. Salve-o! Tome qualquer medida que seja concebível. Dar-lhe-ei todo o apoio. Ouça bem, major Rhodan: todo o apoio. Olhe que isso significa alguma coisa! Caso haja qualquer dificuldade, uma chamada pelo transmissor especial basta. Seguirei suas recomendações à risca. É bom que saiba que o poder dos governantes terrenos não passa de um nada ridículo, que posso varrer para todo o sempre, apenas ligando uma chave. Com esta nave poderia destruir todo o sistema solar. Um único dos meus canhões energéticos bastaria para transformar um continente inteiro num oceano incandescente de rochas derretidas. Lembre-se disso e avise-me assim que precisar de qualquer coisa.

Saiu sem dizer mais nada. O rosto do capitão Fletcher apresentava uma palidez cadavérica.

— Mesmo que nunca tivesse acreditado em nada, aceitaria isto aqui como verdade pura — disse. — Santo Deus, onde é que fomos parar? E o que vai sair de tudo isto? Washington ficará de pernas para o ar.

— Talvez não! — objetou Bell, esticando as palavras de tal maneira que Fletcher estremeceu.

— Por que diz isso?

— Por nada.

Bell fitou os olhos vidrados no seu comandante. Quando Fletcher se dirigiu ao Dr. Manoli, Reginald Bell indagou, esticando ainda mais as palavras:

— O que há com você, meu velho? Alguma coisa não está em ordem, não é mesmo? Qual foi a conversa secreta que teve com Thora?

— Quem sabe não lhe fiz uma proposta de casamento — respondeu Rhodan ironicamente. Seu olhar era uma advertência. Voltou a ter os olhos de um conquistador implacável. Ao menos foi essa a impressão de Bell.

— Alguma objeção?

Não, o Capitão Reginald Bell não fez mais nenhuma pergunta. Pelo contrário. Ficou muito calado. Os robôs passaram ao seu lado. A Stardust foi carregada com todo cuidado com objetos tirados do gigantesco arsenal da nave esférica. Tratava-se de instrumentos, cujo peso total era de 60,3 toneladas; esse peso foi calculado segundo as condições existentes na Terra.

Rhodan entrou na sala em que se encontrava Crest. Com um sorriso animador disse:

— Estamos de partida. Infelizmente, Thora continua a recusar-se a colocar uma nave auxiliar à nossa disposição. Não se poderia fazer alguma coisa? Na Stardust seu organismo estará sujeito a tensões consideráveis. Ainda não descobrimos nenhum meio para neutralizar a força da inércia. Por isso a energia resultante na aceleração será muito elevada.

— Não tenho nenhum meio de influir nesse tipo de decisões. Todavia, os senhores não sofrerão mais os efeitos da inércia. Teremos um neutralizador a bordo. Não sentirão absolutamente nada.

Rhodan voltou a engolir em seco. Compreendeu que já estava na hora de perder o hábito de ficar admirado. Ao que parecia os arcônidas conseguiram realizar tudo aquilo que para a ciência terrena ainda se situava no terreno longínquo e nebuloso dos problemas insolúveis.

 

— Eles conseguiram, eles conseguiram!

Estas palavras foram repetidas sem cessar. O general Pounder, chefe do Comando de Pesquisa Espacial e Diretor do campo de Nevada Fields parecia não saber outras. Não tirava os olhos da grande tela do radar.

Depois de quatorze horas de viagem, a Stardust mergulhara nas camadas superiores da atmosfera terrestre. Estava iniciando a terceira órbita elíptica de frenagem.

Ainda no espaço vazio conseguira reduzir sua velocidade para cinco quilômetros por segundo. A experiência havia demonstrado que as previsões sobre o desempenha do novo mecanismo propulsor químico nuclear não foram exageradas. O estoque de material irradiante de que ainda dispunha permitiu manobras que teriam sido completamente impossíveis se a nave trabalhasse com algum combustível químico.

Pouco antes de chegar às primeiras moléculas de ar o curso da nave foi alterado Os dispositivos automáticos não apresentavam qualquer defeito; funcionaram com a maior precisão. Ao que tudo indicava, não havia a menor possibilidade da ocorrência de outra pane.

O comunicado em que o major Rhodan explicou as causas do seu longo silêncio parecia um pouco estranho. Segundo declarou através da radiofonia, teriam surgido problemas nos comandos do mecanismo propulsor. Acrescentou que só depois do pouso poderia fornecer dados mais detalhados.

Fazia alguns segundos que a Stardust voltara a penetrar no campo atingido pelos instrumentos de medição das estações do Alasca e da Groenlândia. Encontrava-se a uma altitude de apenas 183 quilômetros, a sua velocidade era pouco superior a 800 quilômetros por hora.

Pounder virou-se contrariado. O homenzinho dera notícia da sua presença através de um pigarro.

O chefe do Serviço Secreto da Otan, Allan D. Mercant, não se deixara convencer a sair da estação central de comando. Sabia que estava incomodando, mas esse fato não incomodava a ele.

Surgira repentinamente há três horas. Seus acompanhantes tinham se retirado em silêncio. Após isso os tanques da 5.a Divisão dos Estados Unidos surgiram inesperadamente. Em nenhuma outra oportunidade a base de Nevada Fields fora bloqueada de forma tão completa.

Além disso, aterrissaram enormes aviões de transporte com tropas de elite. A Divisão de Defesa Interna da Polícia Federal destacara seus melhores elementos para a missão. Um contingente enorme de tropas e de armamento pesado aguardava o pouso da Stardust.

O general Pounder ficara furioso. Allan D. Mercant exibiu o sorriso amável de sempre.

— Sinto muito, general. Foi o senhor mesmo que fez rolar a avalanche. Gostaria de saber o que aconteceu realmente com aquela nave. As informações do comandante parecem um pouco estranhas, não acha?

— Para isso não seria necessário mobilizar uma divisão inteira com dez mil homens — berrou o general Pounder.

O Chefe do Serviço de Defesa só podia lamentar o ocorrido. Na sua opinião era necessário. Por um instante Pounder pensara em avisar os quatro pilotos pela radiofonia. Todavia, isso não foi possível porque, subitamente, alguns homens à paisana surgiram na sala de rádio.

Pounder não sabia o que pensar de tudo isso. Os técnicos e os cientistas estavam nervosos. O chefe militar do serviço de segurança do campo espacial de Nevada tinha sido posto fora de combate por algum tempo.

— O que deseja desta vez? — disse Pounder nervoso. — Não está vendo que a Stardust vai pousar segundo as previsões?

— Acontece que não vai — observou Mercant. Seu sorriso jovial desapareceu. — Está havendo um desvio do curso. Veja. O que significa isso, general?

Pounder virou-se apressadamente. No mesmo instante soou o comunicado inquietador do comando remoto. Lâmpadas acenderam-se, o zumbido cessou.

— Contato interrompido — ouviu-se a voz metálica. — Piloto assume comando manual do foguete.

— Será que Rhodan ficou doido? — berrou Pounder fora de si. Saltou em direção ao microfone. Não se via nada na tela de radar. Até isso Rhodan havia desligado.

— Rhodan, é o general Pounder que está falando. Que é isso? Por que interrompeu o contato com o controle remoto? Responda, Rhodan!

Não houve resposta. O general empalideceu. Sem saber o que fazer, fitou o chefe do serviço secreto que ia se aproximando. Allan D. Mercant perdera todo o senso de humor. Seus olhos azuis faiscavam numa fúria incontida.

— Está vendo? — disse em tom frio. — Bem que eu desconfiava. Alguma coisa não está em ordem. Preveni a Defesa Aeroespacial. Se Rhodan não mudar de rumo imediatamente mandarei abrir fogo. Convém explicar-lhe que na altitude em que se encontra será alvo fácil para nossos artilheiros.

No mesmo instante, o sinal de alarme da Stardust começou a se fazer ouvir nos receptores. Era um SOS comum, que nem sequer estavam sendo transmitidos em código. Os sinais voltaram a se repetir. Os homens olhavam-se atônitos. Por que Rhodan transmitia o sinal internacional de perigo? Havia muitas possibilidades de dar notícia de uma situação real de emergência. Poderia utilizar a radiofonia. Por que transmitia o SOS, e isso na freqüência internacional?

Allan D. Mercant começou a agir. Mandou que fosse dado o sinal de alarme continental.

Os homens da defesa anti-foguete, que há várias semanas se encontravam em alerta de primeiro grau, correram para as posições de combate. Naquele instante, a Stardust estava sobre a península de Tainir, situada no norte da Sibéria. Prosseguia em velocidade inalterada.

Depois, modificou, novamente, seu curso e, irradiando sem cessar o sinal de perigo, Rhodan dirigiu-se para o sul. Sobrevoou a Sibéria.

O quartel-general do comandante supremo do Oriente revogou no último instante a ordem de abrir fogo. Percebera que se tratava da Stardust, uma nave inofensiva. A mão de um operador afastou-se de uma chave vermelha. Por pouco, sete mil foguetes de longo alcance com carga atômica teriam subido ao céu.

Era a situação típica em que a guerra poderia ter sido desencadeada em virtude de um mal-entendido. O marechal Petronsky estava olhando as telas das estações de raios infravermelhos sem dizer uma palavra. Numa viagem louca, a Stardust prosseguia pelo espaço aéreo siberiano em direção ao sul. Estava perdendo altitude. Os computadores calcularam o local provável de pouso. Se a nave americana prosseguisse no mesmo rumo e continuasse a descer com a mesma velocidade, tocaria o solo junto à fronteira entre a Mongólia e a China, no deserto de Gobi. Embora tivesse sido fácil derrubá-la, o marechal Petronsky, calculista frio, preferiu não iniciar nenhum ataque.

As emissoras do quartel-general começaram a funcionar. As ordens eram enviadas pelo próprio marechal.

O comandante do 22o Exército da Sibéria recebeu instruções detalhadas. Alguns minutos depois, os comandantes de divisão recebiam ordens mais específicas. Os contingentes da 86a Divisão Motorizada de Fronteira, sediada na região de Obotuin-Chure e junto ao lago salgado de Goshun, sairiam dos quartéis. A 4a Divisão Aerotransportada da Mongólia, que se encontrava sob o comando do general Chudak, ficou de prontidão.

Em poucos instantes, o marechal Petronsky tomara todas as providências que estavam ao seu alcance para capturar a nave lunar americana, desde que ela tocasse o solo em território mongólico.

Problemas sérios poderiam surgir se a nave pousasse do outro lado da fronteira, em território da Federação Asiática. O marechal pediu, imediatamente, uma ligação com Moscou. E sua exposição foi concluída com estas considerações:

— ...e é de se supor que os dispositivos eletrônicos de bordo tenham sofrido uma falha séria. Não há dúvida de que a Stardust vem sendo dirigida manualmente pelo piloto da Força Espacial. Tal conclusão resulta da interpretação dos dados relativos à localização da nave. Desisti do envio de caças rápidos de longo alcance. Sou de opinião que se aguarde o pouso da nave antes que quaisquer medidas sejam tomadas. Peço que me sejam delegados plenos poderes para agir conforme as circunstâncias exigirem.

Petronsky obteve os plenos poderes por ele solicitados. Mas não contava com a habilidade do major Rhodan.

Logo após ter reingressado na atmosfera terrestre, a nave passou a funcionar como um planador de linhas bastante aerodinâmicas. As enormes asas triangulares sustentavam o seu peso. À medida que o ar se tornava mais denso, os lemes de direção funcionavam cada vez melhor. O atrito do ar foi reduzindo a velocidade ainda bastante elevada. Todavia, esse tipo de operação de pouso exigia a penetração gradual na atmosfera. A temperatura externa nas asas e no nariz da nave estava ao redor de 870 graus centígrados.

O transmissor automático continuava emitindo o sinal SOS na faixa internacional de freqüência reservada para situações de emergência. Rhodan conseguira o seu objetivo com aquele procedimento: os países sobrevoados, não abririam fogo contra a nave. Era claro que todas as potências orientais estavam vivamente interessadas em examinar detalhadamente a Stardust e, para isso, era necessário que a nave fosse capturada intacta. Os destroços calcinados não seriam úteis para ninguém.

Perry Rhodan pousou a nave na área extensa e pedregosa situada junto ao lago de Goshun, no norte da China. O lago era salgado, mas o rio Morin-Gol despejava nele água doce. O local ficava no centro do inóspito deserto de Gobi, um pouco ao sul da fronteira com a Mongólia, exatamente a 102 graus a leste de Greenwich e 38 graus a norte do Equador.

Rhodan fez com que a Stardust aterrissasse como um avião. Os gigantescos pneus especiais garantiram um pouso suave. Depois de alguns instantes, o nariz afilado da nave apontava para o rio Morin-Gol, que se encontrava bem próximo.

O zumbido penetrante dos dispositivos automáticos de aterrissagem cessou. Rhodan tirou as mãos do manete de direção. Uma vez superados os perigos que a manobra de reingresso trazia consigo, o pouso foi fácil.

Com um movimento rápido, Rhodan se libertara do leito dobrado em forma de poltrona e pegou a arma que trazia.

Fletcher, surpreso, fitava o cano da arma automática. Bell ficou imóvel na sua poltrona, assim como o Dr. Manoli. Crest, preso à quinta poltrona pelo cinto de segurança, assistia a tudo com o mais vivo interesse.

Quando a nave começou a mudar de rumo, Fletcher pôs-se a esbravejar numa fúria e num desespero incontidos. No entanto, não conseguira libertar-se da poltrona pois Rhodan ligara o dispositivo da segurança que bloqueava os cintos de segurança. Num esforço desesperado, Fletcher procurou imediatamente alcançar o depósito de armas que se encontrava atrás dele.

— Não faça isso, Fletcher! — advertiu Rhodan. — Estamos em casa. Se eu fosse você não me arriscaria a tanto.

Fletcher fitou-o. Tinha o rosto pálido. Seus lábios tremiam.

— Será que ouvi bem? Você disse que estamos em casa? — disse com um tom irônico na voz.

Depois, com uma gargalhada estridente, completou:

— Seu traidor sujo! Você pousou no centro da Ásia. Certamente planejou isso há muito tempo. Se não fosse assim não teria dirigido a nave para esta região. Foi você que fixou o curso. Então é isso! Quer entregar a nave aos chineses. Há quanto tempo foi concebido esse plano imundo? Quanto o piloto-chefe da Força Espacial dos Estados Unidos vai receber pelo trabalho? Eu...

— Cale a boca, Fletcher, e já! — interrompeu-o Rhodan, que empalidecera. Um brilho ameaçador surgira nos seus olhos.

— Fletcher, você pode ir embora quando quiser; ninguém o impedirá. Poderá ver seu bebê. Eric terá muita coisa a contar aos seus filhos. Mas nunca me apontem como um traidor.

— Por que você aterrissou aqui? — indagou Bell com a voz calma. Exibia um sorriso gélido. Estreitou os olhos. O capitão Bell ainda duvidava. Mas a arma que Rhodan estava segurando representava um fator que não podia ser desprezado.

— Só quero que vocês me ouçam por um instante — disse Rhodan em tom enfático. — Nunca pratiquei qualquer ato sem que tivesse um motivo. Desta vez também tive razões para agir como agi.

— Ah, é? — gemeu Fletcher num tom de desespero. Fez um esforço tremendo para libertar-se dos cintos magnéticos. — Você nos traiu. Obrigou-nos a entrar no jogo.

— É claro que sim — confirmou Rhodan em tom indiferente.

Crest sorria. Conhecia as intenções de Rhodan.

— A esta altura vocês já deviam compreender que a Stardust se transformou num objeto secundário, verdadeiramente insignificante. Mesmo que caísse nas mãos dos chineses, esse fato não passaria de uma piada. Na Lua existe uma nave, cujos ocupantes nesta altura são as únicas pessoas que hoje em dia ainda podem ser consideradas importantes. A Stardust desempenha um papel secundário, embora em Moscou, Pequim e mesmo em Washington ainda se acredite que é a maior maravilha do mundo. Os homens mantêm tal opinião simplesmente porque ignoram a situação real. Se os dirigentes do nosso país tivessem uma idéia do que vimos na Lua, deixariam esta nave de lado como refugo. O que importa é tão-somente o ser inteligente que trouxemos até a Terra. Crest é o único que conta, pois representa uma ciência infinitamente superior à nossa. Trouxe até a Terra o conhecimento dos mistérios mais recônditos da natureza. Os dados armazenados na sua memória fotográfica permitem que do dia para a noite nossa navegação espacial dê um salto de cinco mil anos. Vocês devem reconhecer que já não é a Stardust que importa. O que importa é Crest, são aquelas inteligências estranhas da nossa galáxia, e é finalmente a harmonia da Humanidade a que pertencemos. Para mim todos os habitantes da Terra são homens, seja qual for a cor da sua pele, a fé que professam ou a ideologia que preferem. Aqueles que sempre persistem no erro terão de despertar, os homens de boa vontade respirarão aliviados. Se entregássemos Crest a qualquer nação estaríamos cometendo o maior erro da História.

Fletcher virou a cabeça. Parecia desolado.

— É provável que a esta altura o campo de Nevada Fields esteja bloqueado pelas forças de segurança. Os nossos dirigentes não são tolos. Já devem ter chegado à conclusão de que vimos alguma coisa extraordinária na Lua. Os governantes orientais, porém, ainda são de opinião que ocorreu um simples pouso de emergência. Crest é portador de uma cultura antiqüíssima e conhecedor absoluto de uma ciência altamente evoluída. Nem penso em atirar uma pessoa dessas nos tentáculos de um serviço secreto. Sejamos sinceros! Se tivéssemos aterrissado segundo as previsões, Crest já estaria sendo mantido em regime de incomunicabilidade. Nem poderia deixar de ser assim. Seria tratado com toda cortesia, gentileza e deferência, mas nem por isso deixaria de ser um prisioneiro. O próprio Crest impôs a condição de poder agir com absoluta liberdade. Representa o terceiro poder da Terra. Está doente e precisa de auxílio. Julgo que é meu dever defendê-lo de quaisquer dificuldades desse tipo. Sua própria condição de ser estranho e inteligente confere-lhe direito à liberdade. E é natural que espere um tratamento decente. Pouco importa o lugar em que pousássemos. Qualquer das grandes potências da Terra ficaria ávida para assenhorar-se do seu saber estupendo, procurando utilizá-lo em seu benefício. Estou convencido de que a concentração de todo esse saber nas mãos de um dos blocos de poder não reverteria em benefício para maior parte dos homens. Sua presença em qualquer dos países da Terra forçosamente teria conseqüências catastróficas. A Federação Asiática veria nisso uma ameaça grave. Ameaçariam, exigindo participação no seu saber. Um ultimato se seguiria ao outro. O resultado seria uma série de complicações de âmbito mundial. É o que desejo evitar. Sou um homem, e quero agir de forma humana, isto é, com decência. Ninguém vai espremer Crest como um limão, explicando, com um simples encolher de ombros, que, infelizmente, isso era indispensável por este ou aquele motivo. Se ele quiser presentear a Humanidade com uma parcela do seu saber, que o faça espontaneamente, sem o menor constrangimento. Todos nós tiraremos proveito disso. E o mais importante é que a liberdade de movimento que lhe asseguramos nos confere a garantia de que nunca haverá uma guerra nuclear. Acredito que a esta altura vocês já devem reconhecer que a Stardust perdeu toda importância. Aterrissei nesta região deserta para que Crest tenha tempo de montar seus instrumentos antes que cheguem as tropas que já devem estar a caminho. É só. Não tenho mais nada a dizer sobre o assunto.

— Você bem que poderia soltar os meus cintos — disse Bell calmamente. — Estou disposto a ajudá-lo. Você sabe que dentro de uma hora no máximo haverá barulho por aqui.

— Que haja. Neste local um dia se erguerá uma cidade gigantesca. Aqui serão construídas naves espaciais de velocidade superior à da luz, e é aqui que será lançada a semente de uma Humanidade verdadeiramente unida. Então, o que você decidiu, Bell?

O baixote riu. Foi um riso um pouco forçado, mas provava que aquele homem tinha superado a angústia interior.

— Conheço os homens — disse lentamente. — Geralmente não querem fazer o mal, mas gostam de tirar a sua vantagem. Acho preferível que Crest continue independente. Também não tenho a dizer mais nada.

— E o Dr. Manoli?

O médico ergueu a cabeça. O sangue retornara à sua face.

— Seu procedimento não deixa de ter lógica. Não farei nenhuma objeção, desde que Crest garanta que utilizará seus conhecimentos em benefício de toda a humanidade. Se der preferência a determinada potência estará cometendo um crime.

— Pode ficar tranqüilo — disse o estranho em voz baixa. — Nem penso nisso. Apenas peço que em hipótese alguma me entreguem a qualquer organização estatal. Eu enfrentaria dificuldades terríveis. Fui eu quem pediu ao major Rhodan para que aterrissasse aqui.

— Como é que o senhor vai se defender? — perguntou Fletcher. — Ainda tenho minhas dúvidas a respeito de tudo isso.

— Ora, Fletcher! Se tivéssemos pousado em Nevada Fields, já estaríamos presos. O nosso pessoal não teria outra alternativa. Um de nós poderia revelar por coação ou involuntariamente aquilo que vimos. Estamos agindo por um motivo sério e, segundo penso, decente.

— Acontece que sou oficial da Força Espacial!

— Também já fui. Mas a esta altura sou apenas um homem que quer uma Humanidade grande, vigorosa e unida. Você acha que isso é um crime? As nações isoladas já não têm a menor importância. É só o planeta Terra que importa. Daqui por diante temos que raciocinar em termos cósmicos. Será que você ainda não compreendeu o ridículo imenso que as discórdias terrenas representam no Grande Império? Ainda não compreendeu que temos que nos unir sem a menor demora? Uma inteligência extraterrena só fala no terceiro mundo do sistema solar. Nunca menciona esta ou aquela nação. No contexto cósmico, somos apenas habitantes da Terra, jamais somos considerados americanos, russos, chineses ou alemães. Encontramo-nos no limiar de uma nova era. Temos que agir de acordo com isso. Volto a salientar que em hipótese alguma Crest deve cair nas mãos de determinado grupo de potências. Ficaremos aqui mesmo.

Bell ergueu-se, devagar. Seu olhar denotava um certo ressentimento.

— Você podia ter contado isso na Lua, meu velho. Bem que eu sabia que havia algum segredo. Mas estou de acordo! Podemos começar, Crest. É ao senhor que cabe a iniciativa. Quando surgirem as primeiras tropas só uma defesa eficiente poderá nos proteger. Não conseguiremos deter uma única bala com belas palavras acerca da almejada unidade entre os homens e sobre o papel que o destino nos reserva como membros de uma comunidade intergaláctica. Os governantes da Federação Asiática achariam isso muito engraçado e, assim que acabassem as gargalhadas, o senhor seria submetido a um severo interrogatório. Por isso, é melhor começar logo os preparativos.

— Ficarei a bordo até que cheguem os medicamentos de que tenho necessidade — disse o Dr. Manoli. — Como médico e como homem, é meu dever prestar auxílio a uma criatura enferma, ainda mais em um caso como este. Seria um erro tremendo agir apressadamente e sem o necessário discernimento logo após o nosso encontro com uma inteligência extraterrena. Você tem razão, a esta altura, não devemos nos preocupar mais com a defesa de interesses nacionais.

O capitão Fletcher ficou calado. Parecia petrificado na sua poltrona. Crest levantou-se com tremendo esforço. Rhodan guardou a arma.

— Fletcher, nossas intenções são boas. Só queremos o bem. Meu Deus, não somos criminosos! Será um erro grave arriscar tudo aquilo que nos é mais caro no interesse do gênero humano? No meu entender, não. Tenha em mente o que eu disse: estamos no limiar de uma nova era; o que importa é agir com inteligência e senso de responsabilidade. Ninguém agarrará Crest. Dou-lhe minha palavra!

Rhodan abriu as comportas pesadas da câmara de ar. A cabine encheu-se do ar terreno. Era quente e seco, tal qual os pulmões de Crest precisavam.

Após alguns instantes, Rhodan saiu da lave. Ainda não se viam tropas, mas estas não demorariam a chegar. Ele bem podia imaginar a atividade febril que tomara conta dos diversos postos de comando. Por enquanto, não sabiam por que a Stardust pousara ali. Ninguém tinha idéia do poder que eles tinham adquirido, mas, logo, os governantes da Terra saberiam.

Dificuldades tremendas delinearam-se em sua mente e ele fechou os olhos. Em sua frente, surgiu um quadro nebuloso, mas no qual distinguia naves espaciais gigantescas, construídas pelo homem, que partiam para o espaço e ouvia o ribombar dos seus mecanismos de propulsão, impelindo-as a uma velocidade superior à da luz. Viu um governo central de toda a Terra e também percebia os sinais de paz, de prosperidade e de reconhecimento da espécie humana ao poder galáctico. Era apenas uma visão, mas ele sabia que um dia seria a realidade.

No porão de carga da Stardust, uma máquina misteriosa começou a zumbir. O terceiro poder estava iniciando as suas atividades. Perry Rhodan sorriu para o céu azul. Com movimentos lentos, foi retirando os distintivos e as platinas do seu uniforme.

O major Perry Rhodan acabara de se desligar da Força Espacial dos Estados Unidos.

 

                                                                                            K. H. Scheer

 

                      

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