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O Crepúsculo dos Deuses / Clark Darlton
O Crepúsculo dos Deuses / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Crepúsculo dos Deuses

 

Perry Rhodan, comandante da nave Stardust, descobriu, na Lua, a nave gigantesca dos arcônidas que realizou um pouso forçado. Foi um acontecimento feliz para a humanidade.

Rhodan prestou auxílio aos arcônidas, uma raça em decadência que dominava um império galático que entrara em declínio. Na verdade, prestou auxílio aos homens, ao empregar o enorme poderio de Árcon para impedir a eclosão da terceira guerra mundial. Já existem muitos homens que compreendem os esforços de Rhodan em prol da união do mundo. Mas falta percorrer um caminho longo até o Crepúsculo dos Deuses, representado pelo abandono do pensamento mesquinho que até então prevalecia...

 

                  

 

Pelo meio-dia, o ribombar do canhoneio ininterrupto diminuiu um pouco. Só vez por outra uma granada detonava sobre a cúpula energética, liberava suas forças sob a forma de um relâmpago refulgente e não produzia qualquer outro efeito.

Depois de algum tempo, o silêncio começou a reinar.

Os quatro homens que se encontravam na sala de comando da nave terrena olharam-se. Com um movimento indolente, o capitão Reginald Bell, co-piloto da Stardust e perito em mecanismos de propulsão nuclear, afastou o tabuleiro de xadrez. Seus olhos cor de gelo refletiam a pergunta que acabou por formular:

— O que significa isso?

Seu parceiro lançou um olhar triste sobre as peças derrubadas e deu de ombros.

— Sei lá! Resolveram fazer uma pausa.

— Depois de nos terem bombardeado dias a fio? Aposto que têm um bom motivo para isso.

— Tenho certeza de que você ganharia a aposta — confirmou o homem que se encontrava diante dele. — Tudo tem seu motivo — disse, apontando para as peças do tabuleiro. — Aliás, isso foi um truque infame, pois você teria perdido o jogo.

— Caro Dr. Manoli — disse Bell em tom professoral — o que teria acontecido é exatamente o contrário. A partida estava praticamente ganha.

— Estava... para mim — respondeu o médico em tom tranqüilo.

— Talvez seja melhor deixarmos a solução do problema do xadrez para depois — interveio o homem alto e magro de olhos cinzentos, que se levantara e chegara perto da vigia redonda, para examinar o quadro que se oferecia no exterior. — Pelo que vejo, os asiáticos se retiraram.

Perry Rhodan, que já fora símbolo de um mundo entusiasmado pelas viagens cósmicas, passara a ser o inimigo público número um. Reforçou suas palavras com um lento aceno de cabeça. Passou uma das mãos pelos cabelos, enquanto mantinha a outra no bolso da calça. Depois de algum tempo, dirigiu-se ao outro homem que ali se encontrava e que, até então, estivera em silêncio:

— Doutor, como está Crest?

O Dr. Frank Haggard esboçou um sorriso bastante expressivo. Há algumas semanas, Bell trouxera-o da Austrália numa missão arriscada, a fim de curar Crest, que sofria de leucemia.

— Sob o ponto de vista médico, poderíamos afirmar que Crest está curado. Pelo menos a fase aguda da leucemia foi vencida.

— Quer dizer que continuará vivo?

— É claro que sim. É bem verdade que não sei quanto tempo costumam viver os arcônidas mas, como estão à procura do planeta da imortalidade, é de supor que sua vida tenha um limite. De qualquer maneira, seus órgãos demonstram — como direi? — demonstram um extraordinário vigor juvenil. Pelo aspecto exterior dir-se-ia que Crest tem cinqüenta anos.

— É mais velho, muito mais velho, tal qual Thora — disse Perry.

Thora, a comandante da nave exploradora dos arcônidas, era uma fonte perene de mistérios para os homens. Sua aparência fascinaria qualquer observador. O cabelo claro, quase branco, os olhos grandes que reluziam numa estranha tonalidade vermelho-dourada em nada serviam para diminuir o fascínio que ela exercia. E, além do mais, era muito bonita. No entanto, Rhodan estava convencido de que era formada apenas de uma inteligência cristalina e de um perfeito raciocínio lógico, não possuindo quaisquer outros sentimentos. Jamais concordaria em ajudar os homens, quanto mais considerá-los em pé de igualdade com sua raça, se a isso não tivesse sido forçada pelas circunstâncias. A nave pousada na Lua, que representava a única possibilidade de retornar à pátria, fora destruída. É verdade que a nave auxiliar — um gigantesco veículo espacial esférico de sessenta metros de diâmetro — era dotada de um mecanismo propulsor de velocidade superior à da luz, mas seu raio de ação não ultrapassava quinhentos anos-luz, o que não seria suficiente para estabelecer contato com a base arcônida mais próxima.

— Thora irrita meus nervos — constatou Bell e levantou-se. — É duro saber que, no íntimo, sente um desprezo profundo por nós, e apenas nos ajuda porque quer ajudar a si mesma. Não sei, não...

— É verdade que os arcônidas precisam de nós — confirmou Rhodan. Levantando a voz, acrescentou:

— Mas não devemos esquecer que também precisamos do auxílio deles. Trata-se de uma espécie de intercâmbio, sem o qual jamais alcançaríamos nossos objetivos. E um desses objetivos é a união da humanidade. O perigo aparente fez com que, pela primeira vez na história, todas as nações do mundo se unissem — mesmo que essa união só tivesse por fim destruir-nos.

Haggard foi para. junto de Rhodan e olhou pela vigia. A nave esférica dos arcônidas estava pousada bem perto da Stardust. No seu interior ficava o gerador que produzia o enorme campo energético que envolvia a base com uma cúpula protetora cujas bordas só tocavam o solo a uma distância de cinco quilômetros. Era uma fortaleza inexpugnável. Até mesmo o impacto produzido por uma bomba atômica seria inútil face a essa muralha invisível.

Os robôs, que emitiam um brilho metálico, andavam apressadamente de um lado para outro. Ancoraram a nave esférica ao solo e realizaram outros trabalhos. Fora Crest e Thora, eram os únicos sobreviventes da gigantesca nave destruída na Lua, marcando o final de uma expedição espacial que partira de um império estelar cujos domínios dificilmente poderiam ser imaginados pela mente humana.

Nave auxiliar: era assim que Crest e Thora designavam aquele veículo espacial, capaz de percorrer em poucos dias uma distância de quinhentos anos-luz; um percurso inconcebível para a mente humana; porém, para os arcônidas, uma distância quase insignificante, embora inatingível.

Eles estavam na mesma situação de um náufrago preso numa ilha do Pacífico que escava um tronco para fabricar uma canoa.

Todavia, nos porões da nave auxiliar haviam pilhas de máquinas e peças sobressalentes que possibilitariam a construção de naves maiores, desde que pudessem recorrer ao potencial das indústrias da Terra.

Foi esse fato que levou Crest e Thora a se aliarem a Perry Rhodan. Seria possível construir uma nave capaz de atingir o planeta que girava em torno de um sol quente e azulado, situado no grupo estelar M-13, que ficava a uma distância de mais de trinta e quatro mil anos-luz. Árcon — era esse o nome do planeta — era o centro de um império de dimensões incalculáveis.

Haggard apontou em direção à nave esférica.

— Estão se instalando na Terra, Perry. Como é que vão construir uma nave aqui no deserto, longe de tudo e de todos?

— Ainda não sei, mas começo a ter uma idéia — disse o comandante. — Não se esqueça de que nos encontramos numa cúpula energética de dez quilômetros de diâmetro. É uma área bastante ampla. Não acredita que seja suficiente para a montagem de uma usina?

— Uma usina? — Haggard arregalou os olhos. — Quer dizer...

— Apenas estou insinuando uma possibilidade — disse Rhodan com a voz suave. — Não conheço todos os detalhes do plano de Crest, mas tenho certeza de que precisará de nossa assistência técnica. Veremos.

Bell também se levantara. Estava bocejando.

— Para ser franco, este silêncio me deixa preocupado. Enquanto os chineses estavam atirando, não poderiam fazer outra coisa.

De repente, Rhodan franziu a testa.

— Fazer outra coisa? Rapaz, você fez surgir uma idéia desagradável em minha cabeça. Que tal se fizerem alguma coisa de que nem desconfiamos?

Bell empalideceu.

— Não foi o que eu quis dizer.

— Mas é bem possível que lancem mão de outros meios para extirpar este tumor maligno; pois é exatamente isso o que somos aos seus olhos. Infelizmente, daqui de dentro, não podemos saber o que se passa lá fora. Não temos amigos.

Bell interrompeu-o.

— Você se esquece do capitão Klein, do Conselho Internacional de Defesa. Não se lembra de que se colocou inequivocamente ao nosso lado, juntamente com o tenente Kosnov e o tenente Li, quando haviam recebido ordem para dar cabo de nós com aqueles microorganismos? Tenho certeza de que não deixariam de nos prevenir, se soubessem que estamos correndo algum risco.

— É verdade, temos o capitão Klein. Quase me esqueço dele. Mantém boas relações com o Comando Supremo na Groenlândia e está diretamente subordinado a Mercant. Se soubesse de alguma ameaça séria contra nós, não deixaria de nos comunicar.

Voltou a olhar pela vigia e estremeceu. Uma sombra passou pelo seu rosto; mas não era de contrariedade. Por um instante pareceu embaraçado, mas logo se controlou. Dirigiu-se aos companheiros:

— Thora quer falar comigo — disse, dirigindo-se à porta da sala de comando.

Bell olhou para a vigia. Lá fora, perto da esfera gigantesca, via-se uma figura delicada, alta e esbelta. Os cabelos claros mal se destacavam do fundo metálico da nave. A orgulhosa comandante da expedição cósmica frustrada mantinha-se numa atitude de tranqüila expectativa. Sua presunção não lhe permitia ir ao encontro dos homens.

Rhodan não saberia dizer o que o atraía naquela mulher. Nunca se encontrara com uma criatura mais inteligente, orgulhosa e inacessível. Nunca percebera tamanho desprezo e repugnância, tamanha antipatia e desconfiança. Esse ser, vindo de um mundo estranho e que tinha a forma de uma bela mulher, não possuía alma; talvez não tivesse nem idéia do que isso significasse.

Mas não era a beleza que atraía Perry Rhodan; era a altivez. No início, achou que devia convencê-la de que os homens também são seres dotados de inteligência e que, por isso mesmo, tinham o direito de viver. Mas acabou percebendo que, uma mulher como Thora, só poderia ser convencida por uma lógica fria. Logo, teria de provar-lhe que os homens não eram apenas inteligentes, mas também indispensáveis à execução dos seus planos.

Ela não avançou um milímetro ao seu encontro. Permaneceu imóvel até que o visse diante de si.

— Suspenderam o fogo — disse em tom indiferente. Rhodan percebeu que evitava as palavras homem ou terreno. Em sua voz. sentia-se o desprezo. Acrescentou: — Por que será?

— Talvez a ampliação da cúpula energética os levasse a modificar seus planos — respondeu Rhodan, tranqüilamente. — Afinal, quintuplicamos o nosso território. Depois da advertência que receberam, viram-se obrigados a uma retirada precipitada. E bem verdade que prosseguiram o bombardeio. Provavelmente, nesse meio tempo, terão elaborado novos planos.

— Não conseguirão nada com eles.

— Você ainda subestima os homens? — disse Perry Rhodan lentamente. — Já incidiu nesse erro e perdeu a nave estacionada na Lua. Por que insistir nele?

— Nunca cometo erros, não se esqueça. A responsabilidade da catástrofe na Lua cabe aos robôs.

— Que apenas seguiram suas instruções — retrucou Rhodan, sem alterar o tom de voz. Sentia prazer em humilhá-la. — Será que a cúpula não é muito grande? Receio que a extensão possa reduzir a estabilidade.

— Deixe isso por minha conta. Acho que a maior bomba dos terráqueos não produzirá o menor efeito ao explodir sobre ela. Você subestima a capacidade do reator dos arcônidas. Ele é capaz de gerar energia suficiente para arrancar o planeta Terra da sua órbita.

Perry sabia que ela não estava exagerando.

— De qualquer maneira, fico-lhe grato por limitar-se às medidas defensivas — reconheceu. — Se quisesse poderia reduzir a pó os exércitos que nos cercam. Por que não o faz?

Um ar de contrariedade se fez notar na beleza fria daquele rosto.

— Crest não quer. Acha que lhes deve uma certa gratidão pela sua cura.

— E não deve?

— A pergunta está mal formulada. Ao ajudá-los, apenas estamos pagando uma dívida. É verdade que, na medicina, estão à nossa frente em alguns pontos, mas na técnica...

Deixou a frase em meio e Rhodan continuou:

— Sei perfeitamente que, sob o ponto de vista de tecnologia, estão muito mais avançados do que podemos imaginar. Mas, apesar de todo esse adiantamento técnico e científico, estarão perdidos se não puderem contar com o nosso auxílio. Embora, para nós, uma distância de quinhentos anos-luz só possa ser concebida em sonho, ela nada representa para você. Mas, mesmo assim, é muito pouca para que possa alcançar seu planeta natal. Você sabe muito bem que só a cooperação com os terrenos tornará possível a viagem de volta. E é por isso, só por isso, que concorda com a aliança. Não é por gratidão. Por que fingir?

Thora nem chegou a sorrir.

— Aos poucos está aprendendo a raciocinar logicamente, Rhodan. Formamos uma comunhão de interesses; nada mais. Assim que você tiver atingido o seu objetivo e nós, o nosso, separamo-nos. Não haverá motivos para agradecimento, pois ambos teremos lucrado com a aliança. É assim que eu vejo as coisas.

— Crest pensa em termos muito mais humanos, se é que se pode usar esta expressão. Tem alma.

— Alma? O que é isso?

Perry fez um gesto de desprezo.

— É possível que, em outra oportunidade, eu tente lhe explicar. No momento, seria pura perda de tempo. Por que deseja falar comigo.

Thora sentiu-se decepcionada com a frieza com que ele proferiu estas palavras. Nem desconfiava do esforço que Rhodan fazia para manter esta atitude. Um brilho ameaçador surgiu nos olhos da mulher.

— O comando automático estabilizou a cúpula. Podemos aguardar tranqüilamente novos ataques. Quando é que providenciará a mão-de-obra prometida para que possamos iniciar a construção da nossa nave?

— Assim que a humanidade tiver desistido de lutar contra mim. Só então poderemos começar a trabalhar. Infelizmente seu auxílio constitui uma condição necessária para o nosso; não posso modificar isso.

— E quanto tempo levará a humanidade para compreender a inutilidade da luta que está travando contra nós?

— Pelo que conheço a respeito do espírito humano, isso não acontecerá nunca, a não ser que sejam convencidos por meios radicais. Somos uma raça guerreira — acrescentou com um sorriso frio.

Thora olhou-o. Por um segundo, Rhodan acreditou ler uma certa simpatia nos seus olhos. Mas talvez fosse um engano.

— Também já fomos guerreiros — disse. — Quando éramos jovens e imaturos. Isso só passa quando a raça alcança a sabedoria e a maturidade.

— E a velhice — observou Rhodan.

Para sua surpresa, Thora concordou sem que se mostrasse zangada.

— Tem razão. Infelizmente.

Deu-lhe as costas e dirigiu-se à nave esférica.

 

Atrás da escrivaninha, via-se um homem de aspecto despretensioso. Era baixo, parecia jovem e dava a impressão de uma profunda ingenuidade. Uma coroa rala de cabelos castanho-dourados cercava a cabeça calva. Só nas têmporas notavam-se algumas manchas grisalhas. Os olhos contemplavam o mundo com uma expressão pacata.

No momento, esse mundo consistia apenas de um escritório, dotado de todos os requisitos exigidos pelo conforto e pela segurança, montado três mil metros abaixo do nível do solo, sob a calota de gelo que cobre as terras da Groenlândia. Era o local onde estava estabelecida a sede do Conselho Internacional de Defesa, o mais bem organizado serviço secreto do mundo.

Tratava-se de uma equipe especializada, surgida no tempo da guerra fria. Estava subordinada à OTAN e o homem de aparência inofensiva que se encontrava atrás da escrivaninha era o chefe da organização, Allan D. Mercant, uma das pessoas mais temidas do século XX.

Uma tela iluminou-se.

— Os chefes dos serviços secretos acabam de chegar, senhor.

— Do Bloco Oriental e da Federação Asiática?

— Ivan Kosselov, do Bloco Oriental, e Mao Tsen, da Federação Asiática — confirmou a voz no intercomunicador. — O general Tai-tiang acaba de aterrisar na pista Davis. Já foi conduzido ao elevador eletrônico.

— Então o clube está quase completo — disse Mercant com um aceno de cabeça e reclinou-se na poltrona. Esperou que a tela se apagasse antes de esboçar um ligeiro sorriso. Há poucas semanas teria sido um absurdo sonhar com aquilo que estava acontecendo. Os homens que se combatiam encarniçadamente, os chefes supremos dos serviços secretos e das organizações de espionagem, encontravam-se no quartel-general do CID do Ocidente. Desta vez, havia um inimigo comum que teria de ser eliminado.

De repente, uma expressão de amargura misturou-se ao sorriso de Mercant.

O que aconteceria se o conseguissem? No mesmo instante, a resposta surgiu em sua mente. Um fogo estranho brilhou em seus olhos quando se inclinou para comprimir um botão. Outra tela iluminou-se. A cabeça de uma moça linda apareceu.

— Senhor Mercant?

— Providencie para que os três homens alojados no hotel dos visitantes sejam convocados à conferência. Trata-se do capitão Albrecht Klein, do tenente Li Shai-tung e do tenente Peter Kosnow. Quero que aguardem numa das ante-salas até que eu os chame. Entendido?

— Certo, senhor — confirmou a moça e desapareceu da tela. Mercant continuou a fitar a tela vazia por um segundo. Depois, levantou-se bastante contrariado.

Desta vez, a sala das sessões não seria a mesma em que se reuniram quando da discussão e planejamento da expedição lunar. Agora, Mercant fazia questão de que fosse mantido sigilo absoluto. Não haveria nenhum microfone oculto, nem qualquer gravador ou filmadora que registrasse a reunião. A sala era pequena, só tinha uma porta e nela não havia aparelhagem de renovação de ar. Um simples aspirador purificaria o ar, que seria substituído progressivamente por meio de garrafas que se encontravam no próprio recinto. Era um ambiente primitivo, ninguém o contestaria; mas oferecia segurança absoluta contra qualquer tipo de escuta.

Mercant sabia perfeitamente por que desta vez não desejava a presença de outros agentes de segurança.

Quando entrou na sala, os três homens já estavam sentados em torno da mesa. Interromperam a palestra conduzida em russo e levantaram-se. Mercant exibiu seu sorriso ingênuo.

— Tenho muito prazer em cumprimentá-los aqui, cavalheiros. Mais uma vez é o inimigo comum que nos une. É uma pena que, um belo dia, tenhamos de liquidar esse inimigo, não acham?

O general Tai-tiang, comandante das tropas que cercavam a cúpula, parecia perplexo. Não sabia como reagir a essa observação.

A reação de Ivan Kosselov, chefe da defesa do Bloco Oriental, foi totalmente diferente. Um sorriso largo surgiu em seu rosto. Bateu com a palma da mão na nuca carnuda e disse com voz retumbante:

— Tenho certeza de que o presidente de seu país não gostaria de ouvir esta observação. Mas isso vai ficar entre nós, não é?

Mao Tsen, da Federação Asiática, esboçou um sorriso significativo, mas não fez qualquer comentário.

Mercant apertou a mão dos três homens e pediu-lhes que sentassem. Subitamente, seu sorriso bonachão apagou-se. Olhou para Kosselov.

— Pode ficar tranqüilo, colega Kosselov. Ninguém, a não ser nós, saberá o que vai ser dito nesta sala. Estamos completamente isolados do mundo. A porta foi lacrada eletronicamente. Estamos sós. Se neste instante um ataque cardíaco me matasse, as organizações dirigidas pelos senhores ficariam acéfalas, pois ninguém os tiraria daqui. Talvez dentro de alguns meses alguém se perguntasse por que nossa conversa estava demorando tanto e, até que se desarmassem os dispositivos de travamento eletrônico da porta, seria tarde demais.

— O senhor tem um estranho senso de humor — observou Mao, sorrindo. — Mas vamos ao que importa. Talvez seja melhor ouvirmos em primeiro lugar o relato de nosso amigo Tai-tiang.

O general estremeceu. Ao que parecia, ainda estava refletindo sobre as palavras de Mercant. Mas logo se controlou. Sua voz, que a princípio parecia insegura, aos poucos adquiriu firmeza.

— Seguimos as recomendações dos peritos. Orientamos o ângulo de tiro de tal maneira que as granadas atingissem a cúpula energética de Rhodan na vertical e sempre no mesmo ponto. Observamos um certo afrouxamento, mas o resultado não durou muito. Há poucos dias, Rhodan ampliou seu domínio. O diâmetro da cúpula, que era de quatro quilômetros, passou a dez. Com isso, Rhodan ocupou uma área de quase oitenta quilômetros quadrados no território da Federação Asiática. É uma situação intolerável.

— Não só para os senhores — confirmou Mercant. — Que providências adotaram?

— Assim que Rhodan nos preveniu, retiramos nossas tropas. Depois, reiniciamos o bombardeio. Mas, embora tivéssemos intensificado o fogo, a cúpula não apresentou mais qualquer ponto fraco. Os geradores da nave esférica dos arcônidas devem produzir quantidades inconcebíveis de energia. Devo reconhecer que estamos reduzidos à impotência. Há alguns dias vimo-nos obrigados a suspender o fogo por falta de munição. Uma atividade bastante intensa começou a se desenvolver no interior da cúpula. Assistimos à construção de casinhas, cuja finalidade desconhecemos. Existem robôs em quantidade, mas só vimos os quatro homens e dois arcônidas. A base está cercada e, ao que sabemos, ninguém entrou nela ou dela saiu.

Mercant, tranqüilo, confirmou com um movimento de cabeça.

— Ninguém a não ser nossos agentes Klein, Li e Kosnow.

— Infelizmente sem o menor êxito — reboou a voz de Kosselov. — Devíamos repetir a experiência.

— Foi por isso que os convidei a vir até aqui — disse Mercant. — Mas, antes de tudo, quero saber a quantas andamos. General Tai, o senhor acha possível vencer a fortaleza por meio de um ataque vindo de fora? Está convencido de que nenhuma das bombas existentes na Terra conseguiria romper a cúpula energética?

Tai-tiang confirmou com um movimento de cabeça. Mercant encarou o chefe da defesa da Federação Asiática.

— Então, Mao, o que acha? Tem alguma idéia?

O chinês sorriu.

— Nossos agentes não conseguiram nada. Ninguém chegou tão perto da base como o tenente Li. E não sabe mais que o senhor ou eu. Sinto muito, mas não sei mais o que fazer.

O olhar de Mercant continuou a vagar. Parou no russo.

— E o senhor, Kosselov?

— Poderia dizer que faço minhas as palavras do senhor Mao Tsen, mas isso seria uma frase muito banal. Para falar com franqueza, nos últimos dias fiquei pensando muito sobre a nossa situação. Procurei descobrir qual é a utilidade que poderíamos extrair desse problema confuso. E, vejam só, cheguei à conclusão de que até mesmo as coisas aparentemente más têm um lado vantajoso. No início da nossa palestra, o senhor fez uma observação no mesmo sentido. Vejam o que Rhodan já conseguiu: aqui estamos nós, reunidos em torno de uma mesa de conferências. A necessidade fez com que nos uníssemos, não é? Antes desses acontecimentos éramos inimigos, hoje somos amigos.

— Ora essa! — exclamou o general Tai-tiang. Sentiu-se, porém, atingido pelo olhar duro de Mao Tsen e, logo, voltou ao silêncio.

— É isso mesmo: somos amigos! — repetiu Kosselov em tom sério. — E por quê? Só porque Rhodan nos mete medo. Porque sabemos que, diante dos recursos tecnológicos de que dispõe somos impotentes. Porque sabemos que pode nos destruir assim que o desejar. Quase chego a sentir-me perturbado porque ainda não o fez.

— É uma constatação macabra — Mercant deu um sorriso suave. — Mas retrata precisamente a nossa situação. Prossiga, Kosselov. Muito me interessam as conclusões que extrai dos fatos que acaba de expor.

— Nem penso em contar-lhe isso. Mas posso pôr as cartas na mesa em relação a outro ponto. O general Tai é de opinião que nunca conseguiremos destruir a base de Rhodan por meio de um ataque desencadeado de fora. Se é assim, por que não atacamos do lado de dentro?

O olhar de Mercant revelou uma sombra de interesse.

— Muito interessante! Como faremos isso?

— Quase sempre, as idéias mais práticas e óbvias surgem por último. Pense na sua situação, Mercant. Onde é que está? Onde é que se sente seguro? Bem embaixo da terra. Se quiséssemos lançar um ataque contra o senhor e seu quartel-general, tal ataque teria de ser subterrâneo. E o que vem a ser a tal cúpula energética de Rhodan senão uma defesa aérea, tal qual uma camada de rocha de mil metros ou mais de espessura? Se quisermos destruir Rhodan, teremos de atacar sua base por baixo.

Por um instante o silêncio reinou na sala. Só se ouvia a respiração dos quatro homens. Kosselov recostara-se, aguardando o efeito de suas palavras.

Mercant falou:

— Kosselov, já chegamos a um acordo em dois pontos. No terreno político chegamos a mesma conclusão, embora não a enunciássemos; e no terreno estratégico também. Até parece que adivinhou meu plano. Permite que chame três homens que conhecem a base de Rhodan melhor do que nós?

Não esperou resposta. Comprimiu o botão da campainha que se encontrava no canto da mesa. Após alguns segundos, a porta se abriu. Alguém enfiou a cabeça pela abertura. Mercant fez um sinal. A cabeça desapareceu.

O capitão Klein, o tenente Kosnow e o tenente Li entraram no recinto. A porta tomou a se fechar.

Mercam, apontou para três cadeiras vazias.

— Não há necessidade de apresentações, pois todos já se conhecem muito bem. Mas, dentro de alguns minutos, verão um homem que não conhecem. Kosselov, o senhor ficara admirado de ver como estamos de acordo em vários pontos. Capitão Klein, o senhor ia explicou o motivo do fracasso de sei; plano de vencer Rhodan por meio de bactérias. A missão não teve o êxito que esperávamos. Acho que não se oporão a nova tentativa no mesmo sentido. Só que, desta vez. não usaremos bactérias.

Klein não respondeu. Como é que Mercant sabia que ele pensara em bactérias. A idéia não era tão evidente assim.

A porta se abriu. Um homem que envergava a farda de coronel entrou, ficou em posição de sentido e fez continência. Depois, ficou imóvel, em atitude de expectativa. Mercant levantou-se.

— Cavalheiros, permitam que lhes apresente o coronel Donald Cretcher, do CID. O coronel Cretcher, perito em trabalhos subterrâneos, teve participação destacada na construção deste quartel-general.

Os presentes apertaram a mão do coronel com certo constrangimento, especialmente o general Tai-tiang, que não se esforçou em ocultar a desconfiança. Só Kosselov ficou atento ao ouvir a especialidade de Cretcher.

Mercant tomou a palavra.

— Conforme Kosselov já sugeriu, devemos atacar Rhodan por baixo da terra. A cúpula energética só funciona na atmosfera; não penetra no solo. É claro que não dispomos de provas de que não tenha certa eficácia embaixo do solo. Mas, para falar com franqueza, não acredito nisso. Se conseguirmos cavar uma galeria bastante profunda e fizermos avançá-la até um ponto situado embaixo da base, uma única explosão atômica deverá bastar para mandar todo esse feitiço para o inferno. Em resumo, este é o meu plano. Eu os convoquei para discutirmos os detalhes da execução, pois sem a cooperação de todas as grandes potências não conseguiremos levar avante o empreendimento. Em primeiro lugar, teremos de contar com a boa vontade da Federação Asiática, em cujo território vamos agir.

O cérebro de Klein trabalhava febrilmente. Também Kosnow e Li refletiam. Os três agentes se haviam encontrado quando seus governos os haviam incumbido de estabelecer o primeiro contato com Rhodan. Como nada conseguissem agindo isoladamente, resolveram unir-se. Klein conseguira penetrar na cúpula energética, mas uma palestra com Perry Rhodan deixara-o convencido de que este só desejava o bem da humanidade. Daí em diante, passara para o campo oposto, juntamente com seus colegas. Não havia ninguém no mundo que suspeitasse desse ato de alta traição.

Ninguém mesmo?

Allan D. Mercant olhou para Klein. Havia um brilho estranho em seus olhos. Mas, logo, os mesmos voltaram a sorrir numa expressão suave e compreensiva. Com um aceno de cabeça, disse:

— Se o plano for coroado de êxito, isso significará o fim de um temor que nos tornou amigos. Sei perfeitamente que existem homens para os quais este temor é uma bênção, pois preferem o medo de Rhodan ao pavor constante de uma guerra nuclear e do fim do mundo que será a conseqüência da mesma. Conheço, pessoalmente, algumas dessas pessoas. Talvez chegue mesmo a partilhar da opinião delas — mas nosso dever é eliminar Rhodan. É que nossa existência se vê ameaçada por um perigo contra o qual não nos podemos defender. Falei claro, capitão Klein?

Sete pares de olhos fitaram o agente do serviço secreto, que sentiu o chão oscilar por baixo dos seus pés. Mercant não poderia saber...

— Não entendo, senhor Mercant.

Um sorriso amável surgiu no rosto de Mercant.

— É claro que entende, Klein. Entende muito bem. E não acredite que os motivos nobres que o animam poderão levar-me a fazer vista grossa aos seus atos criminosos. Confiar-lhe-emos uma missão através da qual poderá provar que considera as ordens recebidas mais importantes que suas opiniões pessoais. E a mesma coisa aplica-se a Li e Kosnow.

Kosselov indignou-se.

— Ponho a mão no fogo pelo meu agente!

— Cuidado para não se queimar — observou Mercant com a voz tranqüila.

— O senhor não tem provas! — insistiu o russo.

— Mas tenho um ótimo faro, e um instinto infalível.

Infelizmente era verdade. Klein sabia que justamente por isso Mercant era temido pelos subordinados. Durante os interrogatórios, nunca precisava recorrer a detetores de mentiras ou outros métodos. Sabia perfeitamente se o interrogado falava a verdade ou não. Havia agentes que afirmavam seriamente que Mercant sabia ler os pensamentos.

Mao Tsen interveio.

— Reunimo-nos para elaborar nossos planos de ataque contra Rhodan e não para lançar acusações mútuas contra nossos melhores agentes. Nem quero saber o que vai fazer com seu subordinado, Mercant. Mas deixe o tenente Li fora disso. Ele goza da minha irrestrita confiança. Sugiro que passemos ao que nos interessa.

— É o que faremos agora mesmo — confirmou Mercant e tirou um mapa do bolso. Estendeu-o sobre a mesa. As cabeças dos outros homens inclinaram-se para a frente. — Neste mapa está assinalado a posição exata da base de Rhodan no deserto de Gobi. O círculo mostra a extensão da cúpula energética. Conforme vêem, ela chega a cobrir parte do lago. Ali haveria possibilidade de se penetrar na cúpula por meio de equipamento de mergulho, passando por baixo de sua borda. Mas de nada nos adiantaria introduzir alguns homens sob a capa protetora; sabemos de que armas Rhodan dispõe. Só poderemos alcançar êxito através de medidas radicais. Discuti todos os detalhes com o coronel Cretcher. Talvez seja preferível que ele mesmo exponha seus pontos de vista.

O coronel confirmou com um ligeiro aceno de cabeça. Aproximou o mapa do lugar em que estava sentado e colocou a mão sobre uma área situada ao norte do círculo.

— Neste ponto, situado a cerca de dois quilômetros da cúpula, existem algumas colinas. São mais íngremes na face norte. É essa encosta que pode servir de ponto de partida da galeria que vamos cavar, pois não pode ser vista das naves espaciais. Teríamos de fazer a galeria avançar sete quilômetros para atingir o ponto central da base. A profundidade terá de ser de quinhentos metros no mínimo, a fim de reduzir ao mínimo a detecção por meio de instrumentos de escuta. Confesso que se trata de um plano audacioso, mas é absolutamente seguro.

Kosselov e Mao Tsen se olharam. A admiração e o reconhecimento brilhavam nos seus olhos. O general Tai-tiang apontou para o mapa.

— Conheço perfeitamente estas colinas; minha posição de combate fica ali. Aliás, coronel Cretcher, como foi que o senhor teve conhecimento da existência delas?

O coronel do CID deu um sorriso misterioso.

— Ora, general! É claro que tenho homens da minha confiança que servem no seu exército. Além disso, há de estar lembrado de que alguns oficiais das forças ocidentais tiveram permissão oficial para examinar o terreno. Como vê, isso tem uma explicação lógica.

— Naturalmente, queira desculpar. Quer dizer que, na sua opinião, essas colinas, situadas ao norte da base constituirão o melhor ponto de partida para um empreendimento como esse?

— Sem dúvida! Quando estivermos exatamente abaixo das duas naves, faremos explodir uma bomba de hidrogênio. Acha que, depois disso, sobrará alguma coisa de Rhodan e seus amigos extraterrenos?

— Não sobrará muita coisa — confessou Kosselov, cocando a cabeça. — Só vejo um inconveniente. Não acredito que esses arcônidas sejam tolos a ponto de não lhes ter ocorrido a mesma idéia. Para isso, bastará um pouco de senso lógico. E devem ter adotado providências para se protegerem.

— Já pensamos nisso — asseverou Mercant. — É claro que cometeríamos um erro se, daqui por diante, nos mantivéssemos numa expectativa tranqüila. Muito pelo contrário. Assim que iniciarmos as escavações, o general Tai-tiang deverá reiniciar os bombardeios. Não é necessário que seja tão intenso como da outra vez, mas deverá ser suficiente para manter Rhodan e seus aliados ocupados. Além disso, a detonação das granadas abafará o ruído que for causado pelas cargas de dinamite que tivermos de usar sob o solo. Por outro lado, é impossível que Rhodan seja avisado das nossas intenções. A base foi isolada hermeticamente do mundo exterior. Até mesmo a comunicação pelo rádio tornou-se impossível, pois as potentes emissoras de interferência que instalamos não permitem qualquer forma de recepção no interior da cúpula. Rhodan não poderá ser prevenido por quem quer que seja.

Ao dizer isso, o brilho suave voltou a surgir em seus olhos. Seu olhar dirigiu-se para Klein, em quem demorou-se um pouco, para depois dirigir-se a Li e Kosnow.

O coronel Cretcher apontou para o mapa.

— Formaremos um comando internacional. Todas as nações deverão colocar seus recursos à disposição. Unidos, conseguiremos dar cabo desse inimigo comum.

— De qualquer maneira, Rhodan é americano — disse Mao Tsen, pensativo.

— Foi americano! — disse Mercant em tom penetrante. — Conforme sabe, foi privado dos seus cargos e direitos. Mas isso não importa. Na verdade, deparamo-nos com uma invasão vinda do espaço cósmico, que deverá ser repelida de qualquer maneira. Se não conseguirmos isso, dentro de pouco tempo não seremos mais os donos da Terra.

Houve uma ligeira pausa. O tenente Kosnow rompeu o silêncio:

— Qual será a nossa missão?

Mercant sorriu.

— Já esperava esta pergunta. É claro que Rhodan possui amigos entre os homens; ninguém pode negar isso. Talvez alguns desses homens venham participar dos comandos encarregados das explosões subterrâneas, mesmo que ali não lhe possam prestar muito auxílio. De qualquer maneira, seria conveniente que os homens do comando especial fossem continuamente vigiados. Como não podemos nos encarregar disso sozinhos, gostaria de lançar mão de uma equipe de agentes incumbida exclusivamente da segurança do empreendimento. Acho que todos me entenderam, não?

Klein observou Mercant enquanto este falava. Os olhos não traíam nada do que se passava em seu cérebro. Mesmo assim, Klein pensou que sentia a ironia provocadora que se ocultava nas palavras do chefe do CID.

O general Tai-tiang bateu no mapa.

— Assim que os comboios de abastecimento forem colocados em movimento, poderei reiniciar o bombardeio. Em quanto tempo a galeria ficará pronta?

O coronel Cretcher deu de ombros.

— A organização do comando durará alguns dias. Quanto ao trabalho propriamente dito... bem, meus cálculos vão a quinze dias, se pudermos utilizar os recursos mais avançados. Também depende da constituição do solo. Se encontrarmos muita rocha...

— Nas camadas mais profundas deverão encontrar.

— Bem, digamos, umas três semanas! Mais ou menos daqui a um mês, uma enorme cratera se abrirá no deserto de Gobi e Perry Rhodan com seus arcônidas logo se transformará numa lenda que não demorará a cair no esquecimento...

— E que, de qualquer maneira, nos trouxe um período de paz — concluiu Kosselov em tom seco.

Mais tarde, quando voltou a estar a sós no seu escritório, recapitulando os acontecimentos, Mercant evocou principalmente estas palavras. Sabia perfeitamente que Kosselov não se sentia seguro. Mao Tsen era o único que raciocinava claramente e sem paixões. Para o chinês, Rhodan era o grande inimigo; e teria que ser destruído, custasse o que custasse. Mao não pensava no que viria depois; Kosselov pensava, tal qual ele mesmo.

Também Klein era um homem dotado de enorme capacidade de raciocínio. Talvez fosse por isso mesmo que Mercant conseguira captar algumas das emanações mais poderosas daquele cérebro e interpretá-las vagamente.

Mercant sorriu. Sabia do falatório dos seus subordinados, que diziam que ele era um feiticeiro quando lhes dizia face a face o que estavam pensando. Ele não lia propriamente os pensamentos, mas sabia sentir determinadas emoções dos outros. O cérebro possuía tantas partes ociosas que um pequeno estímulo poderia ser suficiente para pôr em funcionamento uma delas. Era o que devia ter acontecido com ele. Se realizasse um esforço dirigido a si mesmo, sem dúvida seria capaz de desenvolver mais intensamente a capacidade, ainda limitada, de adivinhar os pensamentos alheios.

Mercant contemplou seus dedos esguios. Depois, sacudiu a cabeça. Não, não era mais que um homem igual aos outros. Mas era dotado de poderes extraordinários, que lhe permitiam distinguir entre a mentira e a verdade.

Foi por isso que teve segurança absoluta de que, dos oito participantes da reunião, exatamente a metade tinha, ao menos, alguma simpatia pela causa de Perry Rhodan.

Quase teria acontecido o quinto homem, que obedecia incondicionalmente as ordens dos governos a que estava submetido, mas já sentia vacilar o coração e preocupava-se com os verdadeiros objetivos de Rhodan.

Era ele mesmo.

 

Fazia cinco dias que nenhum tiro era disparado.

Rhodan e os outros sentiram que algo de estranho e decisivo estava por vir, mas não tinham a menor idéia do que se tratava. Bell estava irritado. Andava que nem uma fera enjaulada no interior da nave, quando não se dirigia para perto da nave dos arcônidas para assistir ao trabalho incessante dos robôs. Protegido pela cúpula energética onde, aos poucos, o ar foi se tornando quente e abafado, tomava seu banho diário no lago salgado. Muitas vezes, vagava horas a fio pelo deserto e arriscava-se até as proximidades da muralha invisível que os separava do mundo exterior.

Não havia vivalma por perto. De repente, pareciam estar sozinhos no mundo. As tropas que cercavam a base haviam-se retirado para posições mais afastadas. Até mesmo pelo binóculo só eram visíveis sob a forma de pontos que surgiam vez por outra. Não se via o mais leve sinal dos tanques e canhões.

Alguma coisa estava no ar.

Rhodan o sentia e, tomado de certa inquietação, saiu da Stardust no quinto dia e dirigiu-se à nave dos arcônidas. Nos últimos dias tivera pouquíssimos contatos com Crest, pois o cientista seguia à risca as recomendações do Dr. Haggard. Geralmente estava mergulhado num sono artificial, a fim de que seu sangue pudesse regenerar-se.

Um dos robôs bloqueava a escotilha de entrada.

Rhodan aguardou alguns minutos. Quando viu que o vigia metálico não saía do lugar, aproximou-se e tentou empurrá-lo para o lado. É claro que a experiência não foi bem sucedida. Lá de cima soou a voz clara e estridente de Thora:

— É muito imprudente, Rhodan! O que deseja?

— Preciso falar com Crest.

— Por quê?

— Tenho vários motivos. Um deles é que tenho certeza absoluta de que está sendo preparado um ataque contra nós.

— E daí? Acredita que não saberemos nos defender?

— Sabe que precisamos da humanidade para executar nossos planos. Se, por um ato de defesa irrefletido, destruir nossa raça, você nunca mais reverá Árcon.

Com estas palavras, ele tocou no ponto sensível de Thora. No íntimo, ela ardia para dar uma lição nos “selvagens rebeldes”. Mas Rhodan e Crest impediam-na de levar avante os seus intentos. Impediam a ela, comandante da expedição. Reconhecia que os dois homens estavam com razão. Os robôs não seriam capazes de montar um parque industrial que lhes permitisse a construção de uma nave maior e mais potente.

Proferiu uma palavra incompreensível e o robô afastou-se de onde estava, deixando o caminho livre. Rhodan subiu os degraus que conduziam à entrada da nave. Thora olhava-o com uma expressão fria no rosto.

— Crest precisa de descanso.

— Sei disso — confirmou Rhodan, tranqüilo. — Acontece que o Dr. Haggard me deu permissão para falar com ele.

— Ah, é? O Dr. Haggard deu permissão? — disse, esticando as palavras num tom de desprezo. — E acha que não é necessário consultar a mim?

— No presente caso, não é necessário — respondeu Rhodan, empurrando-a suavemente para o lado. Seguiu sem olhar para trás, achou o elevador antigravitacional e foi levado para cima.

Crest estava acordado. Jazia numa cama larga, colocada numa cabina espaçosa. Assistira a um programa de figuras coloridas abstratas que desfilavam sobre a tela. Quando Rhodan entrou, desligou o aparelho e levantou-se.

— Olá, Perry! Fico muito satisfeito em ver que arranjou tempo para fazer-me uma visita.

— A satisfação é minha Crest. Como vai? Pelos relatórios de Haggard está atravessando uma segunda juventude.

— É o que sinto, Perry. O homem é fantástico!

— Ele é um excelente profissional — disse Perry.

Também Crest tinha cabelos claros, quase brancos, e os olhos ligeiramente avermelhados. Sua cabeça, muito comprida, lhe proporcionava uma testa que tomava quase a metade da caixa craniana. De resto, as diferenças que o distinguiam dos homens eram exclusivamente de natureza orgânica. No lugar das costelas, possuía uma blindagem óssea que protegia o coração e os pulmões. Essa circunstância dificultaria eventuais operações, mas oferecia ampla proteção a esses órgãos tão sensíveis. Sob os padrões humanos, seria considerado um verdadeiro gênio. Bastava dizer que sua memória fotográfica lembrava a capacidade dos grandes computadores eletrônicos. Crest era o chefe científico da expedição malograda dos arcônidas e um dos últimos descendentes da dinastia reinante de Árcon.

— Nós não temos nenhum médico igual a Haggard — respondeu Crest. Talvez nossa raça tenha adoecido justamente por isso. Dispomos de recursos para prolongar a vida; e isso nos deixou por demais despreocupados. Degeneramos, pois nossa presunção desmedida não permitiu que nos misturássemos com outras raças. Na verdade, todos os arcônidas são parentes.

— Já lhe falei da necessidade premente de uma renovação do sangue.

— Tem uma idéia de como isso poderia ser feito? — disse Crest, com um sorriso débil. — Confesso que vocês são jovens de corpo e espírito. Se combinássemos isso com o nosso saber, obteríamos uma raça de seres superinteligentes. É claro que isso não passa de uma divagação. Os resultados de uma experiência fantástica como esta só começariam a surgir depois de algumas gerações. Acho que qualquer auxílio aos arcônidas chegaria tarde. E há mais. Acredita que Thora pudesse pensar seriamente em misturar seu sangue com o de um terreno, que a seus olhos não passa de um ser primitivo?

— Não acredito — disse Perry, sacudindo a cabeça.

Crest comprimiu um botão. Junto ao seu leito a parede côncava deslizou para o lado, fazendo surgir uma abertura oval. Estavam a cerca de quarenta metros de altura. Uma vista imponente sobre a imensidão infinita do deserto descortinava-se diante deles. Atrás da nave, o sol ainda se encontrava bem alto no céu. Ao norte, estendia-se uma série de pequenas colinas.

— Muitas vezes, este mundo me faz lembrar minha terra natal, da forma como ela já deve ter sido — disse Crest baixinho. — Depois de algum tempo tornamo-nos o centro de um império galático e já não poderíamos dar-nos ao luxo de ter a natureza ao redor de nós.

— Sabe, eu gostaria de visitar Árcon. Um sorriso condescendente esboçou-se no rosto do cientista.

— É bem possível que se sentisse decepcionado, Perry. Nosso mundo, que é do tamanho da Terra, não passa de uma grande cidade. Mas, seja como for, um dia você vai conhecer Árcon.

Perry inclinou-se para a frente; estava perplexo.

— Eu? Conhecer Árcon? Quando? Como?

Crest voltou a reclinar-se. Contemplou o teto baixo da cabina. Depois, lançou os olhos sobre Perry.

— Sim, Perry Rhodan, você verá Árcon. Talvez não me tenha expressado com clareza quando falei numa renovação do sangue dos arcônidas. Jamais deverá haver uma mistura das duas raças, pois a sua sairia perdendo. Mas é bem possível que os homens, depois de unificados, nunca antes, acabem tornando-se herdeiros do império galático, sob a orientação dos arcônidas. A imagem lhe agrada?

Rhodan respirou profundamente.

— É fantástica demais para ser levada a sério, Crest. Afinal, os arcônidas dominam um império espacial e nunca o entregariam espontaneamente. Por outro lado, os homens não estão maduros nem mesmo para sonhar com um império desses.

— Acho que desta vez é você que está subestimando os homens. Tive oportunidade de manter longas palestras com Haggard. Ele concorda comigo.

— Mesmo que acreditasse na capacidade dos homens, nunca poderia acreditar no altruísmo dos arcônidas.

— Não nos julgue por Thora — recomendou Crest com a voz suave. — Ela comanda uma expedição e foi treinada especialmente para esse tipo de missão. Sua inteligência lógica e fria é o resultado de uma doutrinação intensa.

— O que vem a ser isso?

— A doutrinação é um processo de aprendizagem hipnótica, através da qual se ativam determinados setores ociosos do cérebro e se intensificam as funções de outros.

— Trata-se de aulas hipnóticas?

— É, também poderíamos usar este nome. O método permite transformar uma criatura primitiva em um ser inteligente, desde que possua um cérebro. Pretendo usar este método para transmitir-lhe parte do saber dos arcônidas.

Rhodan recuou instintivamente.

— O quê? Pretende...? — Olhava surpreso para Crest, que continuava a sorrir. — Por quê?

— Meu amigo, você é todo desconfiança. Acha que sou incapaz de qualquer ação altruística; e está com razão. Mas meu pensamento vai mais longe. Vejo o futuro desenhado diante de mim, mas não é o futuro só dos arcônidas. Duas raças aparentadas dominarão a Via Láctea: os arcônidas e os terranos. Ouça bem, Rhodan: os terranos! Acho que sabe qual é a diferença entre um homem e um terrano. Você já viu o espaço cósmico e, com isso, transformou-se num terrano. Qualquer um passará por essa transformação, desde que sinta que pode envolver o mundo em que nasceu com as mãos. Mas os outros, principalmente os que nos atacam, são homens que ainda estão longe de saber que o planeta em que vivem nada é senão uma base para o futuro. Todos os seres inteligentes descendem do mar, pois lá foram geradas as células primitivas. E o mar assemelha-se ao espaço cósmico. Dessa forma, o homem, ao penetrar no espaço, retorna ao elemento que lhe deu origem. Um belo dia, quando os terranos e os arcônidas tiverem consolidado o império cósmico, a Terra não passará de uma lenda perdida em meio a milhões de pontinhos luminosos que reluzem no infinito de um mar que não conhece fronteiras.

Crest deixou passar alguns segundos, a fim de que Perry Rhodan tivesse tempo para absorver a grandiosa visão do futuro. Depois, prosseguiu:

— Dentro de poucos séculos, os arcônidas não mais estarão em condições de impedir a desagregação do império. Um e outro planeta já tentam reconquistar sua independência — uma independência que não lhes servirá para nada, pois logo se lançarão uns contra os outros. Se quisermos manter a paz dentro da galáxia, uma mão forte deve segurar as rédeas. Dentro de pouco tempo, os arcônidas não mais serão capazes disso. Antes de assistirmos à desagregação do império cósmico, ou de deixar que caia em mãos incapazes ou nas de alguém que seja mais forte e talvez mais cruel que nós, preferimos partilhá-lo com um aliado que só através de nós chegou ao que é. Preferimos partilhá-lo com um amigo que nos seja grato. Nunca encontramos alguém que esteja em melhores condições de desempenhar esse papel que os habitantes do planeta Terra, situado na extremidade da Via Láctea. Já compreende que até chego a ser egoísta quando quero fortalecê-los?

Rhodan respondeu com um ligeiro aceno de cabeça. Estava compreendendo.

— Foi por isso que decidi, contra a vontade de Thora, confiá-lo ao nosso doutrinador. Como desejo ter dois homens ao meu lado, peço-lhe que me indique o nome de seu melhor amigo. Este receberá o mesmo treinamento hipnótico. Suponho que proporá Reginald Bell, não é?

Perry confirmou.

— Em que consiste este treinamento?

— Não receie, não haverá a menor perda de tempo — disse o cientista com um sorriso. — Se começarmos hoje, amanhã, você e Bell disporão de um saber muito maior que toda a humanidade. Além disso, determinados setores do cérebro serão ativados. Se deixássemos que este desenvolvimento seguisse o curso normal, ele levaria milênios. Já lhe falei isso. Não há dúvidas de que será dotado de capacidade telepáticas, ainda restritas. Infelizmente não posso prever quais serão as outras faculdades que se desenvolverão. Talvez sejam ativadas, mas não plenamente desenvolvidas.

— É inacreditável.

— Quando dispuser do nosso saber, você compreenderá. Trazemos o doutrinador a bordo a fim de treinar raças menos inteligentes. Os indivíduos tratados por ele estarão em condições de desempenhar o papel de gênios de sua raça, transmitindo-lhe idéias progressistas. Trata-se da aceleração artificial de um processo que, em condições normais, seria muito lento. No seu caso, adotaremos um processo mais radical. Eliminaremos os estágios. Saltaremos por cima dos milênios. Você se transformará em um homem que corresponderá ao tipo normal que surgirá daqui a dez mil anos, quando tiver sido consolidado o império galático, cuja pedra fundamental foi lançada pelos arcônidas.

Crest calou-se, dando tempo para que Rhodan ordenasse seus pensamentos.

A atuação aparentemente generosa do cientista extraterreno tornou-se compreensível aos seus olhos. Ao ajudar os homens, servia em primeira linha a si mesmo e a sua raça. Descobrira o verdadeiro motivo dos seus atos. Os homens deveriam colocar-se ao lado dos arcônidas debilitados, a fim de que estes não perdessem o império.

Rhodan abanou lentamente a cabeça. Era uma conclusão lógica, resultante das circunstâncias.

— Estou de acordo — disse, tranqüilo, embora mal conseguisse dominar a emoção. — E Thora, o que dirá?

Crest deu de ombros.

— Terá de conformar-se. O cientista da expedição sou eu; é a mim que cabe decidir.

— Mas ela é a comandante — objetou Rhodan.

— É verdade. É responsável pela nave e pela viagem, mas não pelas providências de caráter científico. Sobre estas só eu decido. E também assumo a responsabilidade pelas decisões nesse campo. E, acredite, sei perfeitamente o que estou fazendo.

Rhodan estava convencido disso.

Duas horas depois, ele e Bell eram conduzidos por Crest para uma parte da nave que, até então, permanecera fechada. Em meio a um complexo de máquinas interligadas por uma enorme quantidade de cabos, havia duas poltronas isoladas, dotadas de capacetes. Os grampos metálicos presos aos mesmos iam diretamente às máquinas. Um zumbido ameaçador fez-se ouvir. Luzes acendiam-se e voltavam a se apagar.

— É o doutrinador. Queiram sentar-se nas poltronas. Perderão a consciência e não perceberão nada do que se passa ao seu redor. O funcionamento dessa instalação é totalmente automático. Nesta escala, marco o grau de transmissão de saber. Como vêem, estou escolhendo o grau mais elevado para ambos. Com isso, transfomar-se-ão espiritualmente em arcônidas. Mas os traços natos do seu caráter permanecerão inalterados.

Bell lançou um olhar desconfiado para os capacetes.

— Isso até parece uma cadeira elétrica. Tenho a impressão de estar em Sing-Sing.

— O que vem a ser isso? — perguntou Crest.

— Trata-se de uma instituição onde são presos os criminosos — esclareceu Rhodan, sarcástico. — Bell tem medo de levar um choque ao sentar nessa cadeira.

— Não sentirá nada — asseverou Crest em tom tranqüilizador.

Quando Crest apertou os grampos, Rhodan sentiu um formigamento na pele. O zumbido tornou-se mais forte. Crest pôs a mão numa chave amarela e olhou para ele.

— Daqui a alguns segundos, você adormecerá, e despertará em seguida. Ao menos, terá esta impressão. Na verdade, dormirá por vinte e quatro horas. Só faço votos para que nada aconteça durante esse tempo, pois qualquer interrupção representará um grave risco para o êxito do treinamento-relâmpago. Se surgir alguma emergência, Haggard e Manoli terão de decidir sobre as medidas a serem adotadas. E agora...

— Pare!

A voz zangada soou da porta, em cujo limiar se via Thora. A raiva e o ódio chispavam de seus olhos vermelho-dourados.

Suas mãos estavam crispadas.

— Proíbo a doutrinação, Crest. Nesta nave não se faz nada contra minha vontade. Os homens são uma raça guerreira. Se forem dotados de uma inteligência excessiva, representarão uma ameaça para a nossa existência.

Crest deixou a mão pousada na chave.

— Você está enganada, Thora. Eles nos ajudarão a salvar nosso império. Procurei explicar-lhe as minhas razões; lamento muito que não as tenha compreendido. Se não quisermos submergir, precisaremos de Perry Rhodan e de sua raça. Nossa elite está desaparecendo...

— Se encontrarmos o planeta da vida eterna, não desapareceremos.

Crest sorriu.

— Thora, nunca lhe ocorreu que o relato sobre o planeta da vida eterna talvez não passe de um símbolo? Talvez a Terra seja o planeta que procuramos, é lógico que em sentido figurado. Não me atrapalhe! Tenho muito o que fazer. Daqui a pouco conversaremos.

A voz de Thora assumiu um tom ameaçador.

— Se fizer isso, usarei o gravitador para arremessar este planeta contra o Sol.

O rosto de Crest tornou-se sério.

— Você não se atreverá a isso, Thora. Assim, estaria violando nossas leis fundamentais. Aguarde no meu camarote. Ainda conversaremos sobre isso, enquanto o doutrinador estiver trabalhando.

Antes que a comandante pudesse responder, Crest empurrou a chave. O zumbido tornou-se insuportável. O sangue martelava as têmporas de Rhodan. Ele ouviu, ainda, Bell gemer. Depois a escuridão espalhou-se por toda parte. Parecia mergulhar num abismo sem fim.

Dali a alguns segundos não tinha mais consciência do que se passava em redor.

 

Nestas semanas de calma enganadora, muita coisa estranha aconteceu no mundo.

Nas colinas situadas ao norte da base, desenvolvia-se uma atividade febril. Contingentes de tropas foram retirados, outros foram trazidos. Máquinas e tratores vindos do norte estacionaram nas depressões dos terrenos especialmente preparados. Redes de camuflagem foram estendidas sobre os mesmos. Um exército de especialistas pôs-se a trabalhar. Realizaram-se medições para localizar a entrada da galeria. O general Tai-tiang providenciou o abastecimento de munições para suas peças de artilharia. Aguardava o sinal convencionado.

Enquanto isso, na nave esférica dos arcônidas, o tempo corria em disparada por cima de Perry Rhodan e Reginald Bell, deixando sua marca sob a forma de um saber concentrado no cérebro de ambos. Subitamente, células adormecidas despertaram para a vida.

Com muito esforço, Crest impediu que Thora cumprisse sua ameaça de destruir a humanidade. Ela concordou em aguardar o resultado da experiência. Crest teve a impressão de que Thora não estava falando sério quando ameaçou precipitar a Terra contra o Sol.

Houve mais quatro acontecimentos no mundo, que apressaram a evolução que se vinha processando e lhe conferiram um fundamento lógico. Embora independentes uns dos outros, esses acontecimentos guardavam uma relação estreita entre si. Suas causas situavam-se muito longe.

Naquela época, um cogumelo mortífero erguia-se sobre uma pequena cidade, um cogumelo que se transformaria no símbolo de uma nova era.

 

Era uma idéia maluca. Fred Hangler sabia desde o primeiro instante, mas quem mandava não era ele, e, sim, o patrão. Um assalto ao Banco Central de Brisbane em plena luz do dia! Isso não poderia acabar bem.

Tudo fora planejado nos menores detalhes. Lá fora, o carro estava esperando. O patrão estava recostado no assento de trás, com a pistola sobre os joelhos. A porta estava apenas encostada. Junto ao motorista, Jules Arnold estava à espreita, com a mão no bolso. Mantinha uma vigilância ininterrupta sobre a rua principal, especialmente sobre o guarda de trânsito postado na esquina. Este não desconfiava de nada. Parado sob o guarda-sol, sacudia os braços, como se dirigisse uma orquestra, não o trânsito de Brisbane, uma cidade situada na costa leste da Austrália.

Fred Hangler recebera o trabalho mais difícil. Teria de entrar no banco e obrigar o caixa a entregar-lhe todo o dinheiro que se encontrava no cofre. Ninguém contaria com um acontecimento desses poucos minutos antes do meio-dia. A surpresa seria completa. Além disso, todo mundo sabia que a uma hora dessas, até os policiais ansiavam pela merecida sesta e relaxavam a vigilância. Tudo seria muito rápido, pois não seria possível evitar o alarma. Hangler não tinha a menor intenção de matar um funcionário do banco. Eventualmente, estaria disposto a enfrentar alguns anos de penitenciária, mas não a forca.

Assim que estivesse de posse do dinheiro, correria para o carro que estava à espera. Uma viagem curta e vertiginosa, e logo desapareceriam na garagem de Jeremias. Depois de dois minutos, mais ou menos, o carro teria mudado de cor e de placa. O guarda da esquina juraria em vão sobre suas declarações. O veículo que vira teria desaparecido sem deixar o menor vestígio.

O patrão pensara em tudo. Sempre pensava em tudo. Apenas não se lembrava que de que muitos anos antes, a primeira bomba atômica explodira em Hiroxima. Mas não devemos ser injustos. Ninguém se lembraria de um detalhe desses quando estivesse planejando um assalto a banco. Acontece, porém, que foi justamente esse detalhe que se constituiu no fator decisivo para o fracasso do empreendimento.

Ao entrar no saguão, com a pasta numa das mãos e a pistola na outra, metida no bolso do paletó — Fred Hangler ficou contrariado ao perceber que ainda havia alguns clientes. O patrão esperava que a essa hora ninguém mais faria depósitos ou — o que é mais lamentável — retirasse dinheiro. Paciência. Não se podia fazer nada.

Colocou-se atrás dos três clientes e ficou aguardando. O outro guichê já estava fechado. O funcionário que ali se encontrava bocejou, lançou um olhar de reprovação sobre o novo cliente e desembrulhou seus sanduíches. Uma garrafa de leite formava o complemento de sua frugal refeição.

Seu colega estava empenhado no trabalho. Pagou uma quantia pequena, deu uma informação ao segundo cliente e dirigiu-se ao terceiro. Fred Hangler ficou satisfeito ao perceber que sua fortuna crescia em algumas centenas de libras. A mão que cingia a coronha da pistola começou a transpirar. O homem que se encontrava diante dele contou cerimoniosamente as notas em cima do guichê. O funcionário conferiu o dinheiro com a mesma atitude.

Subitamente, o caixa que fazia o lanche parou de comer. Estava bem quieto como se perscrutasse seu interior. Um brilho estranho surgiu em seus olhos. Como se fosse por acaso, seus olhos vagaram pelo recinto, parando em Fred Hangler. Uma ruga surgiu em sua testa e, então, pisou no botão do dispositivo de alarma.

No saguão, nada de estranho aconteceu. Apenas na delegacia mais próxima, a um quilômetro dali, uma sereia começou a uivar. O inspetor de plantão foi arrancado abruptamente da sesta a que nem devia estar entregue, pois o relógio ainda marcava alguns minutos para o meio-dia. Levantou-se perturbado e fitou a sereia. Um número surgiu em um painel luminoso. Quatro. Era o Banco Central. Um assalto!

Um assalto? Isso mesmo. Que diabo! Logo agora...

O policial ficou furioso. Tirou o fone do gancho e berrou algumas ordens. Apertou o cinto e verificou se a arma se encontrava no coldre. Depois, correu para fora da sala. No corredor, esbarrou nos homens que acudiam ao alarma.

— É um assalto no Banco Central! Depressa!

Não se percebia mais nada do descanso do meio-dia. Poucos segundos depois, o carro com cinco policiais armados saía do pátio da delegacia e disparava para o local do crime.

John Marshall já retirara o pé do botão que se tornaria funesto ao assaltante. Sabia que a polícia só demoraria alguns minutos, desde que não estivessem todos dormindo, o que era possível devido ao calor e ao ambiente pacato da cidade. E não tirava os olhos do cliente, que esperava pacientemente que o homem que havia depositado todo aquele dinheiro saísse do saguão. Depois disso, dirigiu-se ao guichê.

O inspetor fora bastante inteligente ao desligar a sirena. Assim, conseguiu chegar perto do banco sem despertar a atenção dos assaltantes e estacionar do outro lado da rua. Quando os policiais desceram da viatura, o carro preto estacionado diante do banco pôs-se em movimento. Um fato que não despertou a atenção de ninguém. O inspetor admitiu que, se aquele carro fosse de participantes do assalto, eles não teriam esperado a chegada da polícia.

Fred Hangler colocou a pasta sobre o guichê e disse com a voz tranqüila:

— Preste atenção, jovem. Quero retirar todo o dinheiro que se encontra no cofre. Aqui estão minhas credenciais. — E retirou a pistola do bolso, apontando-a para o caixa. Pelo canto do olho, fitava John Marshall. Este voltara a mastigar seu sanduíche e aguardava as coisas que estavam para acontecer. — Não toque nas instalações de alarma — preveniu o bandido. — Antes que a polícia chegue, o senhor estará morto.

— Eu não diria uma coisa destas — disse Marshall enquanto mastigava. — Se o amigo virar o rosto, verá que a polícia já chegou.

Hangler fitou-o. Estava perplexo. O caixa que fora ameaçado tomou-lhe a pistola com um movimento rápido. Sem oferecer resistência, Hangler virou-se. Viu os cinco policiais que atravessavam a rua a passos largos e entravam no banco. As amplas janelas permitiam a observação da cena.

O inspetor correu na frente dos outros.

— O que houve? — perguntou espantado.

O quadro que se oferecia aos seus olhos era estranho. Atrás de um dos guichês, um homem comia tranqüilamente um sanduíche e tomava leite, bebida que o inspetor detestava. No outro guichê, um homem de aspecto inofensivo era ameaçado pelo outro caixa, que tinha uma arma na mão. Nos fundos do saguão, um outro homem, vestido com apuro, entrava por uma porta. Ele também parou, perplexo.

— O que está havendo aqui, Myers? — indagou este último.

O funcionário que segurava a pistola não tirava os olhos de Hangler.

— Que coincidência! — suspirou. — Santo Deus, que coincidência!

— Coincidência, por quê? — perguntou o inspetor.

O cavalheiro que entrara pela porta do fundo do saguão aproximou-se.

— Este homem pretendia assaltar-nos — explicou Myers. — Marshall tentou um blefe, dizendo que a polícia estava chegando. O rapaz ficou nervoso e consegui tirar-lhe a arma. E não é que a polícia chegou mesmo? Não entendo mais nada.

— Viemos porque o alarma soou na delegacia — disse o inspetor. — Até parece que o senhor não sabe mais para que serve o botão que se encontra junto aos seus pés.

— Não acionei o alarma — asseverou Myers. — Se o tivesse feito, não teria dado tempo. Este sujeito mal tinha manifestado suas intenções quando os senhores apareceram.

— O caso é que a polícia age com muita rapidez — disse o gerente, radiante.

Pensava que adivinhara o que tinha acontecido.

Hangler, que recobrara o ânimo, disse, com arrogância:

— Ninguém pode provar que tentei cometer um assalto. Sempre ando armado. Só ia sacar algum dinheiro.

— Isso mesmo — confirmou Myers. — Só que com a pistola.

— Tudo isso será esclarecido no devido tempo — interveio o inspetor e fez um sinal a um dos outros policiais. Um par de algemas fechou-se em torno dos pulsos do bandido. — O que sei é que há exatamente três minutos o alarma soou na delegacia. — Olhou o relógio. — Ou melhor, há quatro minutos.

— Há quatro minutos, eu ainda estava atendendo outro cliente e nem desconfiava de assalto. Marshall já iniciara o seu descanso.

— Ah, é? — disse o gerente, lançando um olhar de censura ao outro caixa, — De manhã, o senhor chega atrasado e, em compensação, inicia o horário de almoço antes do tempo. Estou gostando!

— Eu também — disse Marshall, calmo.

— Foi por isso que aceitei o emprego neste banco.

O gerente franziu a testa. Myers sorria. O inspetor empurrou o preso em direção à porta.

— Vá andando. Temos muito o que conversar. — E, voltando-se para o gerente:

— Dê-se por feliz por dispor de gente tão decidida. Por pouco não perde uma boa nota. Assim que tiver terminado o interrogatório desse sujeito, precisarei do seu testemunho, senhor Myers.

Saiu do banco à frente dos outros policiais. Pouco depois, o carro arrancava em alta velocidade.

Marshall acabou de tomar seu leite.

— O que foi que o senhor disse? — perguntou o gerente, olhando a garrafa de leite com uma expressão de repugnância. Ao que parecia, também não gostava muito daquela bebida.

— Afirmei que gosto de trabalhar com o senhor.

— Prefiro isso! Myers, meu caro, quero agradecer-lhe por sua pronta atuação. Se não tivesse acionado o alarma e desarmado aquele sujeito...

— Não acionei o alarma — disse Myers.

— Só vi o carro da polícia parar na rua e eles entrarem correndo. Só então pude agir. Se alguém deu o alarma, só pode ter sido Marshall. Mas não creio que seja possível; a polícia não poderia ter chegado com tamanha rapidez. Entre o momento em que ele sacou a arma e a chegada dos policiais não se passaram cinco segundos. Para mim, isto tudo está muito misterioso.

O diretor voltou-se para Marshall.

— O senhor acionou o alarma? — perguntou asperamente.

— Acionei, senhor.

— No momento em que o bandido apontou a arma para Myers?

— Não, senhor. Antes disso.

— Antes? — O rosto do gerente parecia transformado num ponto de interrogação. — Antes disso o senhor não poderia saber o que o sujeito pretendia fazer. Ou será que o senhor adivinha pensamentos?

Marshall confirmou com um aceno tranqüilo da cabeça.

— Deve ser isso. O fato é que eu sabia quais eram as suas intenções. Estava parado junto ao guichê, esperando a vez de ser atendido. Subitamente, fiquei sabendo que sua mão direita segurava uma pistola, com a qual pretendia ameaçar Myers. A única coisa que me cabia fazer era acionar o botão do alarma. Afinal, é para isso que ele está aqui.

— Isso é estranho, muito estranho. — O gerente cocou um ponto da cabeça onde sabia existirem alguns fios de cabelo. — O senhor deve ter captado as radiações do cérebro daquele homem. É inacreditável! Se a diferença de tempo não estivesse aí para confirmar tudo, eu não acreditaria em uma só palavra do que está dizendo. Isso já lhe aconteceu antes?

— O quê?

— Essa captação de pensamentos alheios. Acho que isso não pode surgir de uma hora para outra. Será que você é capaz de adivinhar o que estou pensando?

John enrugou a testa. Parecia refletir profundamente. De súbito, seu rosto iluminou-se.

— Ora, senhor, isso seria ótimo!

— Hein? — fez o outro. — O que seria ótimo?

— A recompensa para Myers e para mim. O senhor estava pensando em dar-nos um prêmio de cem libras, não é?

O diretor encarou-o com a expressão de quem perdeu a razão. Depois, um ar de medo começou a cintilar nos seus olhos. Num gesto defensivo, estendeu as palmas das mãos em direção a Marshall.

— Que coisa horrível! Um telepata! Senhor Marshall, o senhor é um telepata. Realmente pensei em dar-lhes esta recompensa. É incrível! Quando isso começou? Lembra-se?

Marshall sorriu e colocou a garrafa de leite debaixo do balcão. Parecia ter muito menos que os vinte e seis anos que trazia na certidão de nascimento, em especial, quando sorria.

— Não sei. Na escola eu sabia muito mais que os colegas e sempre tirava notas muito altas, porque conhecia a resposta dos problemas ou do que quer que fosse. Na certa, eu lia, sem saber, o pensamento dos professores. Engraçado! Agora percebo que se trata de muito mais que um simples pressentimento como eu julgava na época.

— É isso mesmo! — murmurou o gerente. Depois, dirigiu-se a Myers e tirou-lhe a pistola. — O senhor ainda vai arranjar uma desgraça. Já pensou no que pode acontecer se isso disparar? — enfiou a arma no bolso e voltou-se para Marshall. — O senhor tem que se submeter a um exame. O senhor é um fenômeno! É fantástico! Se não tivesse assistido pessoalmente, não acreditaria.

É claro que os outros não acreditaram. Especialmente os jornais. Publicaram artigos enormes sobre o assalto malogrado. Usaram títulos como Telepata Desmascara Assaltante. Mas ninguém acreditou na história. Jules Arnold e o patrão foram os únicos que refletiram a respeito. Mas isso não lhes adiantou nada.

Naquela noite, John Marshall não foi para a cama tão cedo como de costume. Trancou a porta de seu pequeno apartamento de solteiro, foi à minúscula cozinha, preparou um lanche e sentou-se na sala. Os acontecimentos do dia voltaram a desfilar em sua mente.

Fred Hangler era um bandido perigoso; ele o soubera pelo noticiário dos vespertinos. Mas não notara nada de extraordinário nele quando o mesmo entrou no prédio. Estava ocupado com seus sanduíches. Subitamente, algo se insinuou em sua mente.

...tenho de esperar até que esses sujeitos que se encontram à minha frente tenham sido atendidos... quem sabe se não vão fazer um depósito... saberei lidar com o caixa... colocarei a pistola no seu rosto... o patrão está esperando lá fora... um assalto tão...

Embora não entendesse nada, John reagiu com extrema rapidez. Havia quatro clientes. Era evidente que só podia ser o que tinha chegado por último.

...que diabo! este sujeito ainda está sacando dinheiro...

Ao sentir, com tamanha nitidez, o pensamento raivoso do quarto homem, John teve um calafrio. Observou com cuidado. A mão direita estava enfiada no bolso do paletó. A pistola! Era verdade. Não havia a menor dúvida.

John acionou o alarma.

...em compensação este sujeito está fazendo um bom depósito. Só faltam alguns segundos. Calma...

Certa vez John conhecera e amara uma jovem. Muitas vezes dizia coisas que ela estava a ponto de lhe comunicar. Achavam que era o exemplo perfeito da afinidade espiritual.

...tomara que não apareça mais ninguém... engatilhar... agora...

Talvez fosse mesmo transmissão de pensamento, refletiu John. Se o pensamento de alguém fosse muito intenso, as tênues radiações do seu cérebro poderiam tornar-se mais fortes, de tal forma que pudessem ser captadas por outrem. Ele, John, devia possuir um dom especial para isso, mas nunca o percebera com tamanha nitidez como naquele dia. Estava convencido de que teria sido capaz de captar todos os pensamentos do bandido, se ele mesmo não estivesse tão nervoso. Havia o exemplo do gerente. Quando este lhe pediu que desse uma mostra da sua capacidade, ele conseguiu fazê-lo.

...e agora... a arma... sim... agora...

John suspirou. O interrogatório realizado na parte da tarde fora breve. Reduziram suas declarações a termo, ele as assinou e tudo estava liquidado. Transmissão de pensamento — bolas! O inspetor soltara um palavrão. Depois, gracejando, disse-lhe que talvez fosse por causa do leite. Mas acabou agradecendo, aludindo a uma extraordinária rapidez de reflexos. De qualquer maneira, Fred Hangler estava trancado na cela.

— Quem sabe se não se trata de uma capacidade que pode ser desenvolvida? — refletiu Marshall em voz alta. — Todo e qualquer tipo de saber pode ser melhorado, desde que nos esforcemos. Até agora não prestei atenção a isso; pensei que fosse simples coincidência. Pode ser que outras pessoas que possuam este dom incidam no mesmo erro. Ouve-se falar em telepatia nos romances e nos relatos de experiências realizadas por certos cientistas, mas ninguém acredita que ela exista. Bem, acabo de perceber que ela existe. Podia tentar outras provas. Se fosse verdade...

Um quadro que parecia utópico desenhou-se diante de seus olhos. Via-se como a oitava maravilha do mundo. Políticos e magnatas disputariam suas boas graças. Qualquer um gostaria de contar com o assessoramento de um telepata, pois, assim, ficaria sabendo de antemão as intenções dos concorrentes. E, é óbvio, um homem desses seria muito bem pago.

“No apartamento ao lado, reside a senhorita Julie”, disse John de si para si. “Pelo que sei, ela está em casa, e a única coisa que nos separa é esta parede. Uma parede não pode deter pensamentos. Talvez valesse a pena tentar...”

De súbito, sentiu-se tomado por uma excitação febril. Os acontecimentos daquele dia não deixavam margem para dúvidas. Se quisesse, poderia ler pensamentos. Santo Deus, por que não havia percebido isso antes? Agora poderia provar a si mesmo que não era sonho nem coincidência.

Levantou-se e foi até a parede.

Ao encostar o ouvido na mesma, sentiu a respiração de uma pessoa. Concluiu que a senhorita Julie já estava na cama. Por certo, ainda estaria lendo um pouco. Talvez fosse o jornal que trazia a notícia do assalto frustrado. Se assim fosse, a esta hora já saberia que perto dela morava um herói.

De resto, tudo estava em silêncio. John procurou concentrar-se. Evocou a imagem da moça, viu-a deitada na cama, reconheceu o rosto que o fitava, um tanto admirada. E depois...

Um choque elétrico pareceu atravessar o corpo de John.

No início, pensou que estivesse imaginando coisas, mas as dúvidas se desvaneceram. Mais uma vez, os pensamentos alheios pareciam introduzir-se no seu cérebro, expulsando os seus. Depois de algum tempo, não só compreendeu esses pensamentos, mas chegou a ver com os olhos da moça. Viu o livro que ela lia, o quebra-luz sobre a mesinha-de-cabeceira, viu as linhas impressas — e conseguiu lê-las.

Apavorado, fechou os olhos, mas os pensamentos continuaram. A moça guardou o livro, mas continuou a pensar. E — que coisa estranha! — pensava nele, em John.

Céus! O que pensava!...

John enrubesceu como um adolescente, recuou da parede e arregalou os olhos. Caiu sentado na poltrona, estarrecido. De repente, irrompeu numa gargalhada.

Era verdade! Não era fantasia e nem coincidência! Podia captar os pensamentos dos outros, desde que se concentrasse sobre a pessoa. Não havia mais dúvida.

Mas seria preferível que ninguém soubesse disso. Ao menos, por enquanto. Teria de alcançar certo grau de perfeição antes de utilizar sua capacidade num fim lucrativo.

Esqueceu o noticiário dos jornais, que a maioria dos leitores não levava a sério. Mas não esqueceria de uma coisa: visitar a senhorita Julie no dia seguinte.

 

Com Anne Sloane as coisas eram totalmente diferentes.

Desde os dezoito anos, sabia que não era uma criatura igual às que geralmente são designadas como normais. Seu pai, um célebre físico nuclear e que colaborara na produção das primeiras armas atômicas, nunca a deixara na incerteza. A mãe ficara exposta a um forte feixe de radiação três meses antes do parto. De início, não se percebeu nenhuma conseqüência mas, depois que Anne nasceu, a atenção do professor Sloane concentrou-se sobre a filha. Quando ela completou nove anos, surgiu o primeiro desvio. O forte desejo de Anne movimentara um trem de brinquedo, embora o mesmo não estivesse ligado à corrente. Sua vontade mostrou-se suficiente para pôr o trem em movimento. De início, o professor Sloane ficou assustado, mas acabou compreendendo que a estrutura de seu cérebro devia ter sofrido alterações em conseqüência da radiação. Certas capacidades ociosas do espírito foram despertadas e desenvolvidas.

Anne Sloane possuía o dom da telecinese.

No curso dos anos, aquilo que fora um simples pressentimento acabou por transformar-se em certeza. Mas só quando Anne completou dezoito anos, seu pai esclareceu-lhe sobre tudo. Anne começou a observar-se sistematicamente. E sempre descobria variantes novas da telecinésia. Acabou fugindo para a Europa sob um nome fictício, a fim de escapar às investigações dos cientistas. Foi-se aperfeiçoando em silêncio, até que conseguiu dominar a matéria com a força de sua vontade.

Estava com vinte e seis anos. Voltara a residir com os pais, em Richmond, na Virgínia. Era respeitada e temida, mas o Departamento de Estado garantiu sua segurança. E tinha muitos e bons motivos para isso.

Anne estava deitada na varanda, tomando um banho de sol, quando os dois cavalheiros de terno cinza tocaram a campainha e pediram à senhora Sloane que lhes permitisse falar com sua filha. Não era a primeira vez que recebiam visitantes desse tipo. Percebia-se que eles eram do serviço secreto.

Mas, desta vez, havia alguma coisa diferente.

O carro no qual haviam chegado estava estacionado na ruazinha tranqüila, bem diante da casa. Outro carro, com quatro homens, parou logo atrás. Os rostos eram inexpressivos, mas os olhos comprimidos e vigilantes despertariam a atenção de qualquer um. Mantiveram-se atentos e não desviaram os olhos da casa em que os dois cavalheiros haviam entrado.

A senhora Sloane notou logo que não se tratava dos agentes que costumavam aparecer por ali. A segurança que irradiavam revelava grande dose de poder e autoridade. Deviam exercer cargos elevados dentro dos setores de segurança.

— Desejamos falar com a senhorita Sloane — disse um deles. Um homem de aparência jovem, cujo cabelo ralo formava uma coroa dourada em torno da calva. As têmporas embranquecidas reforçavam a impressão de que se tratava de um homem pacato. — O assunto é muito importante.

— Posso imaginar — respondeu a senhora Sloane, que já estava habituada a visitas desse gênero. — Mas uma missão do governo. Fizemos tudo para escapar a isso, mas, infelizmente...

— A liberdade do mundo ocidental é mais importante que a comodidade de um indivíduo — disse o homem em tom solene. — O assunto é, realmente, de suma importância.

— Minha filha está na varanda. Venham comigo; eu os levarei até lá.

O outro visitante parecia mais velho. Mas também irradiava tamanha benevolência e jovialidade que qualquer um se sentiria tentado a chamá-lo de tio. Cumprimentou a senhora Sloane com um amável aceno de cabeça e seguiu o colega.

Anne levantou os olhos, contrariada, quando a mãe anunciou os dois cavalheiros. Mas, quando fitou os olhos amáveis, mas decididos, dos seus visitantes, sua resistência desvaneceu-se. Seu instinto disse-lhe que não se tratava de simples agentes.

— Os senhores me deixaram em paz por algum tempo — disse, apontando para duas cadeiras que se encontravam junto a uma mesa. — Sentem-se e digam o que os traz aqui. Mãe, será que a senhora pode arranjar um refresco para os cavalheiros?

Não aguardou nenhuma apresentação, pois seus visitantes misteriosos sempre se chamavam Smith, Miller ou Johnson. Muitas vezes, suas faculdades lhe haviam permitido prestar bons serviços ao FBI ou à organização de defesa, por isso, gozava da proteção do governo.

O mais jovem dos dois, que ostentava a coroa de cabelos dourados, puxou a cadeira e estendeu a mão a Anne.

— Sou Allan D. Mercant. Não sei se este nome significa alguma coisa para a senhorita. Sou o chefe do Conselho Internacional de Defesa. Permita-me que lhe apresente o coronel Kaats, chefe da Segurança Interna, um departamento da Polícia Federal.

Anne estreitou os olhos, dando ao rosto uma expressão de desconfiança.

— É um prazer conhecê-los. Mas acho estranho que logo os senhores se dêem ao incômodo....

— Pelo contrário. Temos um prazer imenso em conhecer pessoalmente nossa eficiente colaboradora. Já ouvimos muito a seu respeito. — Mercant sentou de tal maneira que podia fitar os olhos de Anne. Kaats tomou lugar bem perto dele. Contemplou a moça com uma expressão de benevolência. — Provavelmente há de imaginar que não viemos exclusivamente para conhecê-la.

— É óbvio — confirmou Anne.

— Um grave dever nos obrigou a vir até aqui — disse Kaats com um sorriso triste. — Precisamos de seu auxílio.

— Era o que eu imaginava — Anne levantou os olhos para o céu azul. Indagou de si para si se alguma vez voltaria a ter a vida pacata e despreocupada que tivera na juventude. — Sou toda ouvidos.

Mercant pigarreou.

— Prefiro começar do início. Só assim poderá saber o que aconteceu e compreenderá por que precisamos do seu auxílio. Não se trata de um caso corriqueiro. Não estamos atrás de um espião ou de um agente que desejamos reduzir à inatividade. Estamos em busca da paz para nosso planeta.

— Como sabem, já fiz uma tentativa...

— Sabemos disso. Procurou obrigar as grandes potências a destruir seus arsenais nucleares. A tentativa estava fadada ao fracasso, pois a violência só pode ser vencida pela violência. Ao menos, há muita gente que pensa assim. Não conseguiram impedir a guerra, mas houve quem conseguisse. Sabe a quem me refiro. A Perry Rhodan.

Ela confirmou com um aceno de cabeça.

— Esta visita tem alguma relação com o mesmo?

— Tem. Já conhece a história do ex-major Perry Rhodan. Ele comandou a primeira viagem tripulada à Lua. Foi acompanhado pelos capitães Reginald Bell e Clark Fletcher e pelo tenente-médico Eric Manoli. Ao retornar à Terra, a Stardust não pousou em Nevada, conforme estava previsto, mas no deserto de Gobi. Por ocasião do pouso na Lua, Rhodan encontrou alguma coisa que lhe conferiu um poder extraordinário. Nesse meio tempo, soubemos que se tratava de uma nave espacial extraterrena, que estava pousada em nosso satélite natural e dispunha de recursos técnicos inconcebíveis. Quando a guerra entre o Ocidente e o Oriente estava prestes a irromper, Rhodan intrometeu-se em nome de uma terceira potência e impediu que as duas partes se exterminassem mutuamente. É um ato louvável, não há como negar isso. Por outro lado, porém, essa demonstração de força representa uma terrível ameaça. Imagine só, senhorita Sloane: em alguma parte do mundo existe um centro de poder que a qualquer momento pode destruir todas as nações da Terra. Hoje, Perry Rhodan está em condições de impor sua vontade a todos os homens. Com o auxílio dos seres extraterrenos, quase conseguiu frustrar as expedições lunares que após isso foram lançadas por nós e pela Federação Asiática. Isso quer dizer que o seu poder já se estende pelo espaço cósmico. No deserto de Gobi formou-se uma área de poderio tão forte que não pode ser concebido nem por nossa imaginação. Armas e naves espaciais são produzidas sem que ninguém o possa impedir. As instalações são cobertas por uma cúpula energética invisível que resiste até a um ataque atômico. Sabem manipular a força da gravidade e, a pequena distância, chegam a dominar a vontade humana.

Calou-se, encarando Anne numa atitude de expectativa.

— Concordo em que é uma situação extraordinária — respondeu a moça — talvez penosa, mas não chega a ser ameaçadora. Por que Perry Rhodan representaria um perigo para nosso mundo? Sua intervenção não prova que ele deseja evitar a guerra?

— A senhorita conhece os seus motivos? — respondeu Mercant. — Ninguém sabe o que se passa no Gobi. Até hoje, nenhum agente conseguiu penetrar na base. Rhodan recusa qualquer esclarecimento.

Sua atuação traz, ao menos, uma vantagem: a guerra entre o Ocidente e o Oriente foi transformada em fantasia. Até mesmo os inimigos mais encarniçados costumam unir-se quando surge um adversário mais poderoso. Estamos colaborando com os serviços secretos da Federação Asiática e do Bloco Oriental, infelizmente sem o menor êxito. Por isso, pensamos em recorrer à senhorita.

— O que querem que eu faça? — perguntou Anne. — Como sabem, minhas faculdades são limitadas. Além disso, não tenho a menor idéia do comportamento de uma muralha energética; não sei se a mesma deixará passar radiações cerebrais. E isso seria necessário para realizar qualquer ato telecinético. Além disso, não sei como poderia agir.

— E claro que lhe forneceremos instruções completas — apressou-se Mercant a declarar, pois via nas palavras da moça um princípio de consentimento. — Já elaboramos um plano detalhado para sua atuação. O objetivo final consiste em reduzir Rhodan à inatividade e pôr as mãos nos instrumentos do seu poder.

— Por quê? Ele não lhes fez nada! Afinal, Rhodan é americano, não é?

— Foi americano — interveio Kaats. — Foi privado de todos os seus direitos. Perry Rhodan é agora, um inimigo da humanidade.

Anne voltou a contemplar o céu. O sol andara mais um pedaço, aproximando-se da copa de uma árvore. Logo, a sombra seria projetada sobre a varanda.

— Um inimigo da humanidade? — disse. — Sempre imaginei que isso fosse outro tipo de pessoa, não alguém que impediu uma guerra nuclear.

Mercant ficou nervoso.

— Ouça, senhorita Sloane, a decisão a este respeito deve ficar por nossa conta. Sabemos mais que a senhorita. Rhodan pretende lançar mão não apenas do poderio militar, mas também de todo o potencial das indústrias da Terra. Seus recursos já ultrapassam tudo que conseguimos imaginar. Eles seriam suficientes para abalar os fundamentos econômicos de nossa existência.

— Isso é formidável — ironizou a moça. — Gostaria tanto de travar conhecimento com esse Rhodan. Por isso estou interessada em ouvir o que os senhores têm a me dizer.

— Terá oportunidade de conhecê-lo, se estiver disposta a ajudar-nos — prometeu Mercant. — Rhodan e seus aliados estão à procura de amigos e colaboradores. A senhorita se oferecerá.

Anne ficou perplexa.

— Ah, é? Será possível que o inimigo mundial número um esteja à procura de amigos? Como poderá fazer uma coisa dessas?

— Às claras! Quem o impediria? Ninguém sabe para onde viaja o vizinho que arruma as malas. O Dr. Haggard foi seqüestrado na Austrália. Está trabalhando para Rhodan. Tentamos introduzir agentes nossos na base, mas foram descobertos. Talvez a senhorita tenha mais sorte.

— Tenho minhas dúvidas. — Anne sacudiu a cabeça. — Dificilmente serei mais bem sucedida que seus agentes que, afinal, dispõem de mais experiência que eu.

— É justamente porque dispõe de menos experiência que terá êxito. Nossos agentes são muito desconfiados e reagem de acordo com esse estado de espírito. Além disso, a senhorita é uma mulher.

— Sem dúvida — confirmou rindo. — O que é que uma coisa tem que ver com a outra?

— Tem muita coisa. Um dos membros da tripulação da Stardust, o capitão Fletcher, quis voltar para os Estados Unidos. Rhodan aplicou-lhe um bloqueio hipnótico que provocou uma amnésia artificial. Infelizmente Fletcher sofreu um derrame cerebral ao ser interrogado pelas autoridades australianas. A viúva faleceu algumas semanas depois, ao dar à luz o primeiro filho. Sua morte vem sendo mantida em segredo. Mas temos seus documentos e uma fotografia. Olhe, senhorita Sloane.

Mercant tirou a carteira e pegou uma fotografia do tamanho de um cartão postal. Anne segurou-a, hesitante, e examinou-a. Viu uma mulher esbelta, morena, que não teria mais de vinte e cinco anos. Não notou nada de especial, a não ser uma certa semelhança com alguém que conhecia muito bem.

— Parece com a senhorita, não é?

Kaats proferiu a pergunta em tom de expectativa.

Agora, Anne também estava percebendo. Havia uma semelhança remota, nada mais.

— Ninguém pensaria em confundir-me com ela, se é isso que quer dizer. Não acredito que possa desempenhar o papel dessa mulher.

— Isso não é tão importante — disse Mercant. — Nem Rhodan, nem Bell e nem Manoli conheciam a senhora Fletcher, mas pode ser que já tenham visto uma fotografia dela. Por isso, a pequena semelhança é tão importante. A senhorita tentará penetrar na base, fazendo-se passar pela senhora Fletcher.

— Não creio que dê certo. Acho que Rhodan não cairá num truque desses — disse Anne.

— Ele cairá. Vai compreender que a viúva de Fletcher tem interesse em entrar em contato com ele para saber os motivos de sua morte. Uma vez no interior da cúpula, poderá valer-se de suas faculdades. Acredito que nem mesmo os arcônidas conhecerão qualquer recurso contra isso. Pelo menos, esperamos que não conheçam.

— Os arcônidas?

— Isso mesmo. São os seres estranhos que realizaram um pouso forçado na Lua. Vêm de um sistema solar que dista trinta e quatro mil anos-luz do nosso. Parece inacreditável, não é? Mais exatamente, eles vêm do grupo estelar M-13-NGC-6205.

— Nesse caso, se eles vêm mesmo de uma estrela distante, os recursos inconcebíveis de que dispõem se tornariam compreensíveis. Receio que minhas faculdades limitadas não os impressionarão.

— Esperemos. De qualquer maneira, noto que está demonstrando certo interesse pela tarefa. Portanto, tenho motivo para supor que aceita.

— Não me resta outra alternativa. Além disso, para ser franca, o assunto realmente me interessa.

Mercant remexeu o bolso.

— Aqui estão suas instruções. Estão acompanhadas de um mapa aerofotogramétrico da área. Antes de partir, fará um curso intensivo de psicologia.

Subitamente, Anne sentiu frio. Olhou para o alto e viu que o sol estava encoberto pelos galhos da árvore. Levantou-se.

— Vamos entrar. Estou com frio. Os senhores podem explicar todos os detalhes com um copo de uísque.

Enquanto caminhava à frente dos dois homens, teve, de repente, a impressão de que iria lançar-se a uma tarefa que ultrapassava suas forças. Perry Rhodan, o astronauta festejado, merecera sua admiração irrestrita quando se lançou à aventura no cosmos. Não compreendera muito do que ocorreu depois; só sabia que ele não era nenhum traidor, muito menos um criminoso, embora tivesse o mundo contra si. E agora, ela também o combateria.

De repente, não se sentiu mais tão segura de que o faria.

 

Ao contrário de Anne Sloane, Ras Tchubai não suspeitava de nada. Nascera em El Obeid, um lugarejo do Sudão, estudou na índia e vivia há dois anos em Moscou, a metrópole do Bloco Oriental. Trabalhava num laboratório de pesquisa científica que se dedicava à produção de um soro destinado a prolongar a vida.

Na qualidade de químico, participou de uma expedição pelo interior da África, onde existia certa qualidade de abelhas selvagens, cuja geléia real, rica em hormônios, era imprescindível à produção do soro.

Há várias semanas, a expedição vagava pelas florestas que cercam as nascentes do Congo, longe da civilização e sem possibilidades de reaprovisionamento. O contato pelo rádio fora interrompido em virtude de uma pane no transmissor-receptor. Os carregadores nativos haviam-se demitido um por um, à sua maneira, mergulhando na escuridão da floresta.

A situação era desesperadora. Justamente na época da tecnologia avançada, qualquer retorno às condições primitivas de existência significava a morte certa. Os dois russos, o alemão e o africano Ras Tchubai estavam presos em meio à imensidão da mata virgem, cercados por um ambiente selvagem e hostil e longe de qualquer auxílio. Até parecia ironia quando o ruído dos jatos soava por cima das copas das árvores; encontravam-se a poucos quilômetros de distância mas, assim mesmo, estavam fora do seu alcance.

Os mantimentos escassearam. E os remédios também.

O chefe da expedição suspirou.

— O diabo que carregue essas abelhas milagrosas! Dizem que prolongam a vida. Para isso, não precisamos de abelhas, mas de algumas latas de conservas e muita sorte. Ras, você é o único que tem algum conhecimento desta terra. Se existe alguém que possa nos ajudar, este alguém é você.

Estavam sentados diante da barraca, junto à fogueira que soltava uma fumaça insuportável. Só havia lenha úmida, pois o sol nunca penetrava até ali.

— Só nasci na África, mas vivi na índia e em Moscou.

— Seus pais viveram aqui e seus avós também. Transmitiram-lhe seu saber e seus instintos. Só você está em condições de achar um caminho em meio a este labirinto. Há dias tentamos em vão encontrar ao menos uma aldeia. Já não temos força para prosseguir na luta. Um de nós tem de seguir sozinho... e é você, Ras.

Ras assustou-se. Era verdade que seus avós haviam lutado por sua independência enfrentando os brancos; até seus pais o fizeram. Viveram nas estepes infinitas e nas matas impenetráveis, alimentando-se de caça. Mas uma geração os separava. Qual era o conhecimento que tinha dos perigos da selva? Nenhum; ao menos, praticamente nenhum. Sacudiu a cabeça.

— É inútil, tenho certeza. Nunca encontrarei o caminho sozinho. Nem sabemos se nesta selva ainda vive alguém, alguma tribo. Os nativos costumavam habitar as estepes e as zonas costeiras. Mesmo as tribos mais primitivas sentiram-se atraídas pela civilização. A mata virgem foi abandonada. Os animais tomaram posse da área. Como é que eu, sozinho, poderei encontrar o caminho que nos levará de volta à civilização?

Enquanto falava, um quadro do passado distante surgiu em sua mente. Nas grandes estepes do Sudão havia um oásis no qual se formou uma aldeia que se transformou numa verdadeira cidade: El Obeid. Era o lugar em que seus pais viveram e onde ele tinha nascido. Ali passara os dias despreocupados da infância e a juventude. A escola e seus velhos professores, que evocavam travessuras quando se pensava neles. O velho chefe que costumava sentar-se sob o pé de fruta-pão junto ao lago para contar histórias às crianças. Como Ras se lembrava. Até parecia que tinha sido no dia anterior. E seus pais...

— O instinto, Ras! — disse o chefe da expedição, arrancando-o dos seus sonhos. — Não é só a bússola que resolve mas, também, o instinto. Não se esqueça de que seus pais ainda eram selvagens na infância. A civilização que você ostenta, não passa de uma fina camada que pode ser removida a qualquer momento. Desculpe se essas palavras parecem duras ou grosseiras, mas elas exprimem a pura verdade. Só algumas gerações fazem com que essa camada se torne mais espessa e resistente. Você pertence à primeira geração. Se um de nós tem chance de sobreviver, é você. Logo, é você que tem maiores possibilidades de conseguir auxílio.

Os olhos de Ras vagaram de um companheiro para outro. O alemão estava agachado junto ao fogo; parecia sentir frio, embora o tempo fosse quente e abafado. Enxugava as botas e os pés, atingidos pela umidade do pântano. Um dos russos estava sentado num tronco podre, olhando para o chão com expressão sombria. Tinha a espingarda ao seu lado, mas só lhe restavam dois cartuchos. O chefe da expedição encarou Ras numa atitude de expectativa. O estudante de química suspirou.

— O chefe é o senhor. Se quiser, tentarei, mas não sei...

— Você conseguirá. Tome, uma espingarda e cinco balas. Ficaremos com dez para caçar. Além disso, levará sua cota de medicamentos. Não é muita coisa, mas servirá para o caso de um ataque. Há água em abundância, mas você terá de caçar.

— Quer dizer que não receberei mantimentos?

— Não. Os mantimentos estão muito escassos. Sinto muito, mas não vejo outra alternativa. Você partirá hoje.

Ras sabia que não adiantaria argumentar. Submeteu-se à ordem e despediu-se dos companheiros. Afastou-se a passos firmes e penetrou na mata. Os galhos fecharam-se atrás dele, separando-o dos amigos que permaneciam imóveis na pequena clareira, seguindo-o com os olhos.

No início, as coisas não foram tão ruins como ele esperava. Encontrou uma trilha formada pelas pisadas dos animais e seguiu por ela em direção a oeste. Se continuasse a andar uns mil quilômetros nessa direção chegaria à costa, pensou amargamente. Acontece que na velocidade que ele andava, isso levaria semanas ou meses. Era inútil. Mas o que podia fazer? Talvez o acaso viesse em seu auxílio, fazendo-o encontrar uma tribo de nômades ou pigmeus. Ou então...

El Obeid!

Se tivesse ficado lá, sem dúvida estaria vivendo bem. É verdade que não teria estudado no exterior, mas contaria com os recursos do local e talvez chegasse a ser professor. O certo é que teria a chance de uma vida longa. Talvez seus pais ainda estivessem vivos. E sua irmã, por certo, ainda estaria residindo, só, na velha casa que lhes pertencia. Fazia muito tempo que não a via.

Cuidado!

Foi apenas um macaco que, em meio a folhagem, havia descoberto o andarilho solitário e exprimia sua admiração. Sua tagarelice provocou um eco bastante animado. Ras pensou em abatê-lo com um tiro, mas ainda não estava com fome, embora naquele dia não tivesse comido quase nada. Prosseguiu a passos largos.

A escuridão veio depressa. Decidiu que, em hipótese alguma, pernoitaria no solo. Teria de encontrar uma árvore cujo primeiro galho pudesse atingir com a mão. Não era fácil. Quando a escuridão estava quase completa, descobriu um gigante tombado, que abrira uma brecha na vegetação. Correu pelo tronco e atingiu um galho bifurcado, por onde atingiu os numerosos caminhos que conduziam a um novo reino, ainda desconhecido. Um emaranhado de galhos formava uma cobertura situada a mais de vinte metros do solo.

Não foi difícil encontrar um lugar para repousar. Um tipo de caverna dava proteção contra o vento e fornecia uma cobertura nas costas. Desenrolou a coberta que trazia no ombro e estendeu-a. Encostou a espingarda num canto. Continuava sem fome, mas, em compensação, sentia-se muito cansado. Deitou na depressão formada pelos galhos, prestou atenção, por um instante, aos ruídos da selva e adormeceu.

Sonhou. E, por uma coincidência estranha, seus sonhos fizeram-no tornar mais uma vez ao lugar em que passara a infância. Percebeu tudo com tamanha nitidez que nem parecia sonho, mas realidade. O velho chefe contava as histórias dos dias em que ainda andava pelas estepes de arco e lança, para combater os guerreiros inimigos. A irmã foi ao poço com um jarro. Os pais...

Ras despertou subitamente. Ouvira um ruído que não pertencia ao concerto noturno.

De início, o tronco estremecera ligeiramente, como se alguém tivesse saltado sobre ele, de um ponto situado pouco acima. Seguiu-se um tatear, como se alguém se aproximasse. Alguma coisa se arrastava sobre a madeira.

Ras ergueu-se e procurou a arma. A mão percorreu o espaço; não a encontrou logo. Quando tocou nela, porém, fê-lo do lado errado. O leve contato bastou para derrubá-la. Antes que Ras pudesse segurá-la, caiu sobre a beirada da pequena plataforma e despencou para o solo. Bateu várias vezes nos galhos e folhas até que se ouviu um baque surdo. E foi só.

O silêncio retornou.

Ras tremia de medo. O pavor gerado pela superstição tomou conta dele. Voltou a ouvir o tatear arrastado. Tornara-se mais forte.

E, então, seu coração pareceu parar por um momento: viu duas luzes um pouco à frente, não estavam longe. Devia ser um gato-do-mato que o seguira pelo faro.

Ras sabia que estava perdido. Sua arma estava no solo, lá embaixo. A faca era tão pequena que não serviria para nada. Com ela, jamais conseguiria defender-se de uma fera perigosa. Mesmo assim, retirou-a do cinto.

O par de olhos fitava-o na escuridão, a menos de três metros de distância. Ras chegou a pensar que sentia o cheiro nauseabundo da respiração do animal. Ficou sentado, recostou-se contra o tronco... e esperou.

À esquerda ouviu-se um chiado. O par de olhos sumiu de repente. A fera saltara sobre o rival. Ras não via nada, mas imaginava o desenrolar da luta que se travava na escuridão, a poucos metros de distância. Os animais lutavam pela presa... Por ele.

O vencedor não demoraria a atacá-lo. Mas restavam alguns minutos para se preparar. Embora soubesse perfeitamente que não adiantaria muito. Ainda assim, sua mão apertou a faca.

O barulho da luta afastou-se um pouco, mas tornou-se mais forte e selvagem. As garras, ao penetrarem na madeira, provocavam um ruído martirizante que sacudia Ras até a medula dos ossos. E então, de repente e sem que o esperasse, o silêncio retornou. Mas apenas por uma fração de segundo. Logo, Ras ouviu os galhos que se quebravam e o embate surdo de um corpo. Um dos animais perdera o equilíbrio e caíra. A luta havia chegado ao fim.

A segunda luta logo começaria.

Voltou a enxergar os olhos cintilantes, desta vez a uma distância um pouco maior. Eles se moviam em sua direção.

Que diabo! Por que se metera nessa aventura? Como é que o chefe da expedição podia ordenar-lhe que caminhasse sozinho pela mata virgem? Por que tivera a maldita idéia de emigrar para Moscou? Por que se meteu a estudar? Devia ter ficado em El Obeid, com os pais e a irmã.

Santo Deus, a irmã! Era o único parente que ainda estava vivo. Sempre gostara dela. A casa...

Esqueceu a fera que se aproximava. Se tivesse que morrer, que ao menos o último pensamento fosse para sua terra amada, para a irmã querida.

Viu-a diante de si, na saleta que dava para a rua principal. Estava sentada à mesa e, num pilão, amassava o cereal até transformá-lo em farinha. Ele mesmo estava parado junto à porta, foi pelo menos a posição em que se colocara por ocasião da última visita, dois anos atrás. A irmã não fora avisada de que ele iria e, de início, nem o reconhecera. Mas depois...

Daria tudo para que, nesse instante, pudesse estar junto dela, na velha casa, onde estaria seguro. Todo o seu ser ansiou por isso. Não pôde conceber qualquer outra idéia. Até se esquecera da fera...

A irmã estava sentada à mesa, mas não amassava cereal. Folheava um maço de cartas velhas guardadas numa caixa. Mas o Ras que viu diante de si era uma pessoa estranha, que não conhecia. Era um homem esfarrapado, de faca em punho...

— Ras? O que houve com você? Essa faca...

O estudante estava petrificado. Os olhos arregalados fitavam a irmã. Aos poucos foi baixando a mão com a faca, deixando-a cair ao solo.

— Meu irmão! O que houve com você?

Ras respirava com dificuldade. Olhou em torno, sem compreender como viera parar ali. Há um segundo estava na selva, a mais de dois mil quilômetros dali, sentado numa árvore, com a morte se aproximando.

E agora...

El Obeid. A casa paterna. A irmã.

— Sara! É você? Estou mesmo aqui?

— Claro que você está aqui! Mas como está! Fugiu de alguém? Santo Deus! Até parece que escapou da prisão.

— Quem sabe se não escapei mesmo — murmurou com a voz trêmula. — De uma prisão espiritual. De uma prisão construída por nosso cérebro. Mas não é possível! Por que justamente eu?

— O que está dizendo? Não consigo compreender.

— Sara, eu também não. Mas o fato é que não sei como vim parar aqui. Eu estava participando de uma expedição... A expedição!

De repente, lembrou-se da missão que lhe fora confiada. Ele saíra para procurar auxílio. Mas encontrava-se a dois mil quilômetros de distância. Bem, aquilo não seria problema. Se conhecesse a posição exata em que se encontravam, um avião poderia localizá-los.

— Escute, Sara. Meus amigos estão em perigo. Deixei-os hoje pelo meio-dia, lá no Congo.

A irmã encarou-o com uma expressão de dúvida. Ras estava febril, não havia a menor dúvida. Teria de levá-lo a um médico, e já.

— Há mantimentos nessa casa? — perguntou Ras com voz firme. — Embrulhe tudo, rápido!

Dez minutos depois, segurava o embrulho nas mãos.

— Vire-se Sara. Dentro de uma hora estarei de volta. Você tem de acreditar em mim. Vou...

A irmã correu para junto da porta e trancou-a. Enfiou a chave no bolso do avental.

— Você vai ficar aqui, Ras! Seja o que for que você pretende fazer, antes de tudo você vai esperar pelo Dr. Schwarz. Já mandei chamá-lo. Ele o examinará e...

Calou-se.

Só se virará por um instante para fechar a janela. Quando voltou a olhar para o lugar em que Ras estivera, não havia mais ninguém...

 

Existe um quarto caso que merece ser registrado. Trata-se da ocorrência mais misteriosa e inconcebível, pois diz respeito a uma área da parapsicologia da qual até então ninguém suspeitara. Nenhum homem jamais tinha pensado seriamente nessa possibilidade...

 

Todas as sextas-feiras, alguns artistas jovens do Schwabing, bairro boêmio de Munique, costumavam encontrar-se na residência do escritor Ernst Ellert. Cada um participava da despesa sob a forma de uma garrafa de bebida ou um pacote de lingüiça. Isso lhes dava a sensação tranqüilizadora de que não pesariam em demasia sobre o bolso mirrado do artista.

Naquele dia, mais uma reunião tinha lugar.

Festejavam o aniversário de Johnny, um pintor imbuído de uma criatividade incrível. Mesmo numa oportunidade como aquela, não podia abster-se de lançar, ao menos, alguns esboços sobre o colorido papel de parede. Ellert já desistira de repreendê-lo por isso. Sempre que o fazia, ouvia falar de um “efeito inibidor ignóbil”; uma frase que, aos seus ouvidos, soava como as iras do inferno.

Heinrich Lothar chegou um pouco atrasado, como sempre. Ninguém saberia dizer de que vivia. Dizia-se que fotografava modelos para revistas e, eventualmente, fazia traduções. Isso não o impedia, porém, de toda vez que cumprimentava alguém, cochichar, discretamente ao seu ouvido:

— Escute, será que você pode me emprestar cinco marcos até amanhã?

Para sua infelicidade, esse apelo cordial só fora coroado de êxito uma vez. Ellert se comovera e, é claro, nunca mais viu os cinco marcos.

O quarto elemento veio na pessoa de Aarn Munro, editor de uma revista minúscula que ninguém lia. É claro que seu verdadeiro nome não era Aarn Munro. Mas ele gostava de ser chamado pelo nome de um famoso herói de aventuras de ficção científica que muito lera e admirara em sua juventude. Como não conseguia viver apenas de sua revista, exercia uma profissão burocrática que não gostava de mencionar. Preferia passar por artista e, como soubesse fazer desenhos bem bonitos, todos o reconheciam como tal.

Finalmente, havia Frettel, outro homem bastante inteligente para encarar a arte como ocupação principal. Frettel era cantor, conferencista, empresário, diretor, humorista, mecenas e, como se não bastasse, médico.

— Acho que todos sabem qual é o tema dessa noite — disse o anfitrião, tirando um cigarro do maço de Aarn enquanto este estava distraído. — Na última sexta-feira, Frettel aludiu a certas ocorrências estranhas, que se teriam desenrolado em Londres. Não encontramos qualquer explicação plausível. Lothar acha que se trata de uma das chamadas paraciências das quais, para dizer a verdade, não entendo nada, motivo por que não faço muita fé nelas. Até ontem, esse era o meu ponto de vista.

Lothar pegou as azeitonas que Aarn havia trazido. Num gesto quase automático, derramou o conteúdo de um pequeno cálice em sua boca enorme, mastigando prazerosamente.

— Até ontem? — disse, ainda ocupado com a mastigação. — Por quê?

— Porque mudei de opinião — respondeu Ellert, procurando apoderar-se de uma azeitona, sem consegui-lo. — Afinal, um artista pode mudar de opinião quantas vezes queira.

— Nossa opinião é a única que podemos modificar — disse Frettel em tom filosófico. — A não ser, provavelmente, as cifras das nossas contas de honorários.

— Você é médico — lembrou Ellert. — Com um escritor, as coisas não são tão simples. Nossos editores...

— Nossos editores são as caixas de providência — disse Frettel era tom ambíguo. Acendeu cerimoniosamente seu longo cachimbo, como se receasse ter falado demais. — Elas trabalham com tabelas preestabelecidas.

Aarn não tinha o menor interesse no debate. Não costumava pagar direitos autorais, pois os escritores sentiam-se felizes em ver seus nomes impressos na pequenina revista. Por isso, interrompeu abruptamente a conversa:

— Por que você modificou de ontem para hoje a sua opinião sobre a parapsicologia, Ernst?

Ellert sentiu-se feliz por não mais precisar falar sobre dinheiro, do qual possuía muito pouco.

— Porque ontem me aconteceu uma coisa muito estranha.

— O quê? — perguntou Johnny, enquanto se esforçava para colocar a garrafa de uísque em segurança, antes que ela ficasse totalmente vazia. — Talvez isso me proporcione alguma inspiração.

— Não creio — respondeu Ellert, piscando os olhos. Mas, logo, voltou a assumir um ar sério. — Muito bem! Vou lhes contar uma história muito interessante, mas sei de antemão que ninguém acreditará nela.

Esperou que seus hóspedes tivessem assumido uma posição mais confortável e acendido seus cigarros. Depois, perguntou:

— O que acham de uma viagem no tempo?

A perplexidade foi geral. Depois de alguns segundos, Aarn resmungou:

— É seu hobby, não é? Você já escreveu a respeito e as pessoas sensatas não lhe deram atenção. Se quiser saber a minha opinião, acho que não passa de fantasia.

Os outros concordaram com um movimento de cabeça. Ellert suspirou.

— Não esperava outra coisa. De qualquer maneira, ouçam minha história. Como sabem, tenho-me ocupado desse problema e acho perfeitamente possível que alguém realize uma viagem no tempo, em sentido espiritual. Um sonho pode ser uma viagem desse tipo, desde que nos transporte para o passado ou para o futuro distante. Até mesmo a recordação de fatos passados representa uma viagem dessas, se bem que bastante restrita. Como vêem, a idéia de uma viagem no tempo não é tão absurda assim.

— Um momento! — objetou Frettel. — Isso é uma tolice rematada. O que é que essas atividades mentais têm que ver com uma viagem no tempo? Para mim, esta consiste na trasladação do corpo de um homem para o passado ou para o futuro. Toda minha pessoa deve se encontrar num segmento diferente do tempo. Só assim poderei falar em uma viagem.

— Perfeitamente — confirmou Ellert para surpresa do interlocutor. — Sou da mesma opinião, muito embora tenha registrado a outra possibilidade. É que a mesma constitui um dos pressupostos. Para resumir: às vezes, passo a noite acordado refletindo sobre a possibilidade de lançar um olhar para o futuro. Gostaria de fazê-lo até em espírito, mesmo que não conseguisse situar minha pessoa neste futuro. Vivo quebrando a cabeça sobre as relações existentes entre o sonho, a fantasia e o desejo, sobre as possibilidades hipotéticas da teleportação corporal e da teleportação temporal, se é que podemos usar esta expressão. Se existe a possibilidade de transportar o corpo e o espírito a outro lugar do espaço, também deve ser possível transportá-lo para outro ponto no tempo.

— Espere aí, rapaz — disse Jonny sem tirar a mão da garrafa. — Quem sabe se você tem uma capacidade extraordinária de tornar verossímeis as coisas impossíveis.

— Grande coisa! — resmungou Frettel. — Ele é pago para isso.

Ellert esperou que a excitação amainasse. Parecia muito seguro de si. Quem o conhecesse, sabia que ainda tinha algumas surpresas para oferecer.

— A coisa está começando a ficar interessante — disse Lothar, em tom mordaz.

— Continue! — pediu Aarn. Um brilho curioso surgiu em seus olhos.

Ellert fez que sim.

— Estou interessado no futuro, por isso dedico todos os meus pensamentos a ele. Foi o que aconteceu ontem. Ninguém sabe o que será o amanhã; ninguém sabe se amanhã ainda existiremos. No ano passado, por duas ou três vezes escapamos por pouco do fim do mundo. Uma guerra nuclear e estaremos liquidados. Todo o mundo sabe disso. Se o tal do Rhodan não tivesse interferido, hoje não nos encontraríamos nesta reunião agradável. Apesar disso, consideram-no inimigo. Para mim, não há nenhuma lógica nisso. Pois bem, ontem à noite, concentrei meus pensamentos no futuro, a tal ponto que, de repente, julguei encontrar-me em meio a ele. Queria saber de qualquer maneira o que aconteceria daqui a dois anos. Queria saber e, de repente, soube.

— O quê? — exclamou Jonny.

Com o susto, ele soltou a garrafa, do que se aproveitou Aarn de imediato.

— Você soube? Conte!

— Enquanto meus pensamentos se agarraram ao problema, senti que uma modificação se processava dentro de mim. Não tive tempo de definir o que estava acontecendo; foi muito rápido. Meu quarto ficou escuro. Por alguns segundos — talvez tenha sido uma eternidade — flutuei numa escuridão total. De súbito, a claridade voltou a surgir em torno de mim. O sol iluminava o quarto. Eu estava sentado na cama. O dia chegou num segundo.

— Você devia estar bêbedo — conjeturou Jonny.

Ellert sacudiu a cabeça.

— Espere, meu caro, a história ainda não terminou. Era dia e o sol brilhava. Lenvantei-me e lancei os olhos admirados em torno de mim. No início, pensei que adormecera com minhas reflexões e que já era manhã. Teria de levantar-me. Mas reparei que dois quadros que costumavam ficar pendurados na parede não mais estavam em seus lugares. Eram quadros de sua autoria, Jonny. No lugar deles, havia dois outros que traziam a assinatura de Aarn...

— Nunca pintei quadros desse tamanho — objetou Aarn.

— Pois é isso! — confirmou Ellert. — Isso já é uma prova. Acontece que você vai pintar quadros desse tamanho. Possivelmente para as editoras. E um belo dia, dentro de pouco tempo, você me dará dois deles. Os que vi ontem.

— Ficou louco — cochichou Lothar a Frettel, seu vizinho de mesa. — Você devia examiná-lo.

— Costumo consertar apêndices, mas não um espírito avariado — retrucou o médico.

Ellert não se perturbou com a observação.

— No início, não compreendi. Olhei os quadros, que, aliás, são formidáveis, Aarn, e fui andando. Parei diante da folhinha onde anoto os compromissos de todos os dias. No dia de hoje, por exemplo, consta: Aarn Jonny, Lothar e Frettel. Isso significa que vocês me honrariam com sua visita. Pois bem. Olho para a folhinha. O que acham que vejo?

— Não faço a menor idéia — resmungou Lothar. — Fale logo!

— Vejo a data. Eu tinha avançado dois anos no tempo.

Jonny riu. Voltou a segurar a garrafa, sorveu um grande gole e passou-a adiante. Riu até que as lágrimas lhe rolaram face abaixo. Em vão tentou dizer alguma coisa.

Frettel não riu.

— O que você acaba de contar é verdade? — perguntou. — Explique! O que aconteceu?

— É simples: meu desejo muito forte transportou-me para o futuro. Um futuro que fica a mais de dois anos. Mas, e isso é o mais estranho, meu corpo não foi transportado. No início, pensei que tivesse sido, mas percebi, de repente, que uma vontade estranha lutava contra a minha. Essa vontade também era minha, conforme perceberia logo. Só meu espírito havia chegado ao futuro, penetrando no corpo de um Ernst Ellert que já era dois anos mais velho. E, com os olhos dele, vi e vivi o tempo que ainda se encontra diante de mim. Participei de recordações. Mas não consegui impor-lhe minha vontade. De qualquer maneira, sabia que na noite daquele dia teríamos a nossa reunião costumeira. É bem verdade que, segundo as informações da folhinha, tratava-se de uma exceção. A exceção era eu. Estava de férias e, só assim, pudemos realizar a reunião.

— Férias? — espantou-se Jonny, que nunca ouvira essa palavra.

— Isso já é outra história — retrucou Ellert. — De qualquer maneira, posso tranqüilizá-los. Daqui a dois anos ainda estaremos vivos. Não terá havido nenhuma guerra, mas grande mudanças ocorrerão.

— Já sei o que aconteceu com ele — interrompeu Lothar em tom triunfante. — Tornou-se um adivinho.

— Talvez existam relações de que nem suspeitamos — disse Ellert sem se perturbar. — Vejo que não acreditam na minha história...

— É claro que não acreditamos — disse Frettel, sorrindo. — Mas é muito divertida. Estou esperando pelo ponto culminante.

— O ponto culminante?

— É claro! O ponto culminante. O desfecho! Cadê o desfecho?

— Esta história não tem ponto culminante e nem desfecho. Acontece que é verdadeira. Querem uma prova?

— Seria muita gentileza de sua parte — concordou Lothar.

Frettel e os outros confirmaram com um aceno de cabeça. Todos pareciam muito interessados.

— Agora, tentarei visitar nossa próxima reunião. Daqui a pouco lhes direi o que acontecerá de hoje a uma semana, ou melhor, o que terá acontecido no meio tempo. De hoje a uma semana vocês contarão. Ouvirei a palestra sob a forma de um Ellert que tem mais uma semana de idade. Logo voltarei para contar. No correr da próxima semana vocês passarão por aquilo que eu lhes disser. Estão de acordo?

— Naturalmente — Frettel sorria. — Enquanto seu espírito estiver vagando pelo futuro, examinarei seu corpo. Quem sabe se não constato uma diferença, com o que você terá mais uma prova?

— Não acredito que note qualquer diferença — disse Aarn, irônico.

Ellert não se interessou pela discussão que teve início naquele momento. Reclinou-se na poltrona e fechou os olhos. Não se movia. Sua respiração era lenta e regular. Frettel aguardou alguma modificação, mas nada ocorreu. Depois de algum tempo, impacientou-se. Tocou o peito de Ellert.

— Já começou?

Ellert não respondeu. Dormia. E não conseguiram despertá-lo. Todas as tentativas falharam. Frettel examinou o pulso e as outras funções orgânicas. Estas não se distinguiam das de qualquer homem adormecido. Apenas, o sono de Ellert era mais profundo que qualquer outro já presenciado pelo médico.

— Já faz cinco minutos — disse, olhando para o relógio.

Jonny também ficou sério. Olhou para Aarn e Lothar.

— Vocês acham que há algo de verdadeiro no que ele acaba de contar?

Todos deram de ombros.

De repente, Ellert abriu os olhos. Depois de olhar em torno por um segundo, com uma expressão perturbada, pareceu lembrar-se. Um sorriso débil esboçou-se em seu rosto.

— Então? — insistiu Aarn. — O que houve?

— Passei uma semana no futuro — murmurou Ellert com uma expressão resignada. — Exatamente uma semana, a contar de hoje. Foram cinco minutos. Infelizmente não lhes posso dizer o que acontecerá com vocês, pois não os encontrei. Na próxima sexta-feira não nos encontraremos, porque não estarei aqui. Encontrei meu corpo com mais oito dias de idade. Mas não o encontrei em Munique.

— Onde foi?

— Na Ásia. Para falar mais exatamente, no deserto de Gobi. É claro que não sei como irei parar lá. Tive bastante trabalho em arranjar um jornal para poder contar-lhes o que vai acontecer nestes oito dias. Queria dar-lhes a prova que pedem. Infelizmente, não pude trazer o jornal, pois a matéria não pode viajar no tempo. Mas li algumas notícias.

— Ah! As cotações da bolsa vão baixar — resmungou Jonny. Continuava desconfiado. — Gostaria de saber por que justamente você vai parar no deserto de Gobi. Foi lá que pousou a nave espacial dos americanos.

— Exatamente — confirmou Ellert. — Daqui a oito dias estarei falando com Perry Rhodan.

— Que história interessante! — exclamou Lothar, irônico. — Acho que ela se transformará num dos seus contos mais fantásticos.

Todos riram. Ellert foi o único a permanecer sério.

— Dentro de poucos dias, vocês não mais estarão rindo. Depois de amanhã serão realizadas as eleições. Já conheço o resultado. Aceitariam o mesmo como prova?

Frettel estreitou os olhos.

— Sim, desde que não seja mera coincidência.

Ellert sacudiu a cabeça.

— O resultado, em si, poderia ser uma coincidência; mas não o fato de que o vencedor será vitimado por um enfarte na noite do pleito. As eleições serão repetidas dentro de trinta dias.

Aarn falou, pensativo, em meio ao silêncio que se formou:

— Telepatia, teleportação, telecinésia e, por cima de tudo, a teletemporação: a viagem pelo tempo com o auxílio do espírito...

— Teletemporação! — exclamou Frettel entusiasmado. — Aarn, você acaba de definir um conceito. E você, Ellert, inventou mais uma variante das paraciências.

Ellert lançou-lhe um olhar amargo.

— Não inventei, meu caro Frettel, descobri...

 

Perry teve a impressão de só ter fechado os olhos por um segundo. Quando voltou a abri-los, tudo continuava no mesmo. Perto dele, Bell estava reclinado na poltrona do doutrinador. Também se esforçava para abrir os olhos. No seu rosto havia uma expressão de assombro.

O doutrinador! Subitamente, Rhodan sabia como funcionava. As informações armazenadas eram reforçadas pelos dispositivos positrônicos, de onde eram conduzidas aos nervos cranianos, que as absorviam, transmitindo-as ao cérebro, onde eram depositadas no centro de memória. Esse centro, ampliado consideravelmente através de uma série de choques, recebia as informações e armazenava-as. Poderiam ser “retiradas” a qualquer momento.

Crest estava junto ao quadro de chaves.

— Podem levantar — disse, tranqüilo. — O treinamento foi concluído com êxito. Ambos receberam os mesmos ensinamentos; apenas achei recomendável que Perry obtivesse certa superioridade, mesmo em relação a você, Bell. A capacidade de enfrentar qualquer emergência com extrema rapidez foi ampliada-. Além disso, sua consciência sugestiva foi consideravelmente reforçada. Daqui em diante, nenhum homem normal deixará de executar prontamente as suas instruções, que equivalerão a verdadeiras vozes hipnóticas de comando. Sei que nunca abusará desse superpoder. Terá necessidade dele para executar aquilo que planejamos em conjunto. O seu saber... bem, constate por si mesmo.

Rhodan levantou-se.

— Não estou percebendo nada de diferente.

Crest sorriu.

— Então me diga qual é a raiz quadrada de 527.076?

— Setecentos e vinte e seis, por quê?

Rhodan proferiu o número com a calma de quem faz algo corriqueiro e natural. Só empalideceu de ter respondido. Bell segurou-lhe o braço.

— Ei! Também sei o resultado!

— O cérebro de vocês está calculando automaticamente com a velocidade da luz se me permitem esta expressão — explicou Crest. — Os cálculos são realizados no subconsciente. O pensamento consciente fica reservado para tarefas mais importantes Estão convencidos de terem passado por uma modificação?

Bell sacudiu a cabeça.

— E meu professor de matemática, que vivia dizendo que eu era um fracasso em toda a linha. Se visse uma coisa dessas!...

— Nos próximos dias, descobrirão mais coisas em sua mente. Não se assustem. O que vale é que dispõem de uma explicação natural para suas novas faculdades: o doutrinador e o saber formidável de nossa raça, que, agora, também pertence a vocês.

— Faço votos para que saibamos lidar com o mesmo.

— Tenho certeza de que saberão. Agora, acompanhem-me. Preciso falar-lhes. Nossas comunicações com o exterior estão interrompidas. As interferências provocadas por uma emissora impedem todo e qualquer contato. Um de vocês tem de sair da cúpula energética para colher informações. Não conseguiremos nada se ficarmos parados aqui. Os primeiros pavilhões já estão montados. Os robôs não podem continuar. Precisamos de material e mão-de-obra. Neste deserto surgirá um complexo industrial que deixará para trás tudo que já existiu neste mundo. Sem naves espaciais potentes nunca chegaremos a Árcon. E queremos mais que isso.

Rhodan fez que sim. Num espaço de poucos segundos, as visões arrojadas do futuro de que Crest lhe falara desfilaram diante dele. O império cósmico! Uma frota enorme seria necessária para instalá-lo e mantê-lo. Mas uma indagação surgiu em sua mente. Será que a humanidade estava madura para isso?

Ouviu sua própria voz.

— Eu mesmo irei. Só falta saber quanto tempo levarão para me descobrir.

— Ora essa! — disse Crest. A esta altura você já sabe os recursos técnicos de que pode lançar mão.

No mesmo momento, Perry lembrou-se. O centro de memória ampliado de seu cérebro forneceu a informação.

O equipamento dos arcônidas. Um microrreator fornecia a energia. A qualquer hora poderia montar uma minicúpula energética, que o protegeria de qualquer perigo. Os projéteis de pequeno calibre não poderiam atravessá-la. O defletor de ondas luminosas torná-lo-ia invisível aos olhos humanos. Um neutralizador gravitacional embutido conferiria ao portador do equipamento a capacidade de voar, percorrendo distâncias não muito longas, já que a velocidade seria reduzida.

— Como faço para sair da cúpula?

— Esta noite suspenderemos a cúpula por alguns segundos, muito embora você pudesse atravessá-la. Mas, antes disso, vamos combinar os detalhes. Thora está de acordo. Acabou reconhecendo a necessidade da colaboração, mesmo a contragosto.

— Era o que eu imaginava — disse Rhodan laconicamente.

 

Los Angeles, dois dias depois.

Num pequeno restaurante junto à estrada do aeroporto, Perry Rhodan estava sentado diante de um enorme bife, e procurava devorá-lo com toda a calma. Desde o dia anterior mantivera contatos com os diretores de grandes empresas industriais. Graças aos poderes de que era dotado, conseguira obter a promessa de grandes fornecimentos. E dera um endereço suposto, em Hong Kong.

Do lado de fora, um motorista esperava com o táxi.

Lá estava ele, sentado em meio aos homens que o consideravam seu maior inimigo. Não sentia o menor temor e não julgou necessário esconder-se. Seu retrato fora publicado em todos os lugares do mundo, mas até então, ninguém conseguira reconhecê-lo. Mesmo que isso acontecesse... Perry sentia-se absolutamente seguro com o equipamento dos arcônidas que trazia consigo. Sem que ninguém percebesse, usava uma vestimenta especial por baixo do terno comum.

Um homem tomou lugar na mesa ao lado. Os cabelos estavam penteados para trás. Dava a impressão de uma pessoa que cuidava muito bem da sua aparência. Um par de óculos escuros encobria os olhos. Tirou um jornal do bolso e mergulhou no noticiário econômico. Distraído, fez seu pedido ao garção e voltou à leitura.

Perry tornou a dedicar sua atenção ao bife. Teve que lutar contra um nervosismo súbito. Fazia dois dias que se afastara de sua base. A imprensa, de um modo geral, fazia de contas que a ameaça no deserto de Gobi não mais existia. Este silêncio estranho podia ser tudo, menos tranqüilizador.

E se, enquanto ele estava afastado, fosse iniciado o ataque que se esperava?

Saberiam defender-se, por certo, mas ele receava algum ato precipitado de Thora. Se não ficassem de olho nela, poderia empreender ações muito desastrosas, estragando os planos para o futuro. Nas negociações que travara no dia anterior, notara que nem todo mundo estava contra ele. Muito pelo contrário. Os industriais mais sagazes, perceberam as chances que se lhes ofereciam. E todos estavam plenamente cientes de que evitara uma devastadora guerra nuclear.

O que estaria fazendo Bell? Sem dúvida, a doutrinação lhe havia conferido novas faculdades de espírito e capacidades de que nem suspeitava, mas o caráter continuava inalterado. Não que Bell fosse dado aos atos impensados, mas sua impulsividade só teria o necessário freio com a presença de Perry Rhodan.

O cavalheiro da mesa ao lado guardara o jornal. Em sua testa viam-se algumas rugas. Ao que parecia, sua atenção concentrava-se no vizinho que acabara de afastar o prato vazio. Por várias vezes fez menção de levantar-se, mas parecia não ter certeza do que faria. Subitamente, pôs-se de pé e dirigiu-se à mesa vizinha. Parou diante de Perry Rhodan, lançou-lhe um olhar indagador e murmurou:

— Dá licença? Gostaria de fazer-lhe uma pergunta.

Apontou para a cadeira que se encontrava junto a Perry. Este, parecia perplexo. No seu íntimo, preparou-se para um eventual ataque. Um ligeiro aperto no cinto bastaria para cercá-lo de uma cúpula energética.

— Faça o favor.

O desconhecido sentou-se e esboçou um sorriso forçado.

— Talvez eu esteja enganado, cavalheiro, mas existem duas circunstâncias que me levam a crer que não é esse o caso. É verdade que a semelhança é um pouco vaga, mas tenho certeza de já tê-lo visto. Mas não foi apenas este fato que me fez supor que o senhor é Perry Rhodan. Não, não se assuste! Nem penso em traí-lo. O senhor fez muito por nós todos. Mas... não sei como lhe direi, senhor Rhodan. O senhor costuma ler jornais?

Perry sacudiu a cabeça.

— Ultimamente tenho lido muito pouco, quase nada. Mas, nos dois últimos dias...

— Há cerca de uma semana escreveram muito sobre mim, ao menos em Brisbane. Ninguém acreditou, mas é verdade. Sou John Marshall. Não sei se este nome lhe diz alguma coisa.

Perry recordou-se. Havia lido uma notícia breve e já a esquecera. Era algo sensacionalista, nada mais. Mas, de repente, a notícia voltara a ganhar importância. Seu raciocínio lógico entrou em funcionamento e em poucos segundos respondeu à indagação sobre os motivos por que aquele homem o reconhecera. Levantou as sobrancelhas.

— O senhor é a pessoa que tem capacidade para ler pensamentos, não é, senhor Marshall? Estava sentado na mesa ao lado e captou meus pensamentos, que estavam bastante concentrados. Foi assim que descobriu quem sou, não é mesmo?

John fez que sim. Perry sorriu.

— Quer dizer que a esta altura já é um perigo deixarmos nossos pensamentos vagando por aí. Há quanto tempo sabe fazer isso?

— Desde a infância, se bem que não tinha consciência da coisa. Só há uma semana percebi que sou telepata. Não sei por quê.

— Quando nasceu?

— Em fins de 1945.

As possibilidades relampejaram no cérebro de Perry, as combinações cruzavam-se, as conclusões se ofereciam — e a solução surgiu.

— Foi por causa de Hiroxima — disse. — As radiações. Deve haver outros mutantes.

— Mutantes?

— É. Trata-se de uma modificação do lastro hereditário, geralmente transmissível aos descendentes. As radiações influenciaram o seu cérebro em formação, antes de seu nascimento.

Por um instante, outra visão do futuro desvendou-se aos olhos de Rhodan. Os mutantes! Representavam uma perspectiva inteiramente nova. Se conseguisse reunir as maiores capacidades entre os mutantes da Terra e engajá-los na sua luta, formaria um exército invencível. E quem sabe se, mais tarde, não precisaria desse exército... Parou repentinamente, pois sentiu o olhar perplexo de John. Já ia se esquecendo de que seu interlocutor podia captar seus pensamentos. Num gesto automático, isolou o cérebro por meio de um bloqueio. Era outra faculdade que o doutrinador lhe havia conferido.

— Por que resolveu dirigir-se a mim?

John Marshall sorriu, meio sem jeito.

— Tive a intenção de utilizar minhas faculdades para um fim lucrativo — confessou com franqueza. — A partir de ontem, estou em negócios com várias instituições. Ofereceram-me quantias astronômicas. Mas acho que o destino me reserva uma missão mais importante. O senhor acaba de insinuar essa possibilidade em seus pensamentos.

Perry suspirou aliviado.

— Quer dizer que está disposto a trabalhar para mim?

— Estou.

— Ainda não estou em condições de lhe oferecer dinheiro.

— Existem coisas que valem mais que todo o dinheiro do mundo. Um ideal, por exemplo.

— Um ideal? O que quer dizer com isso?

— Por que o senhor luta contra todo mundo? Simplesmente pelo poder?

— Confesso que também luto pelo poder. Mas o próprio poder pode servir para a realização de um ideal.

— É isto mesmo. Estou à sua disposição, se me quiser.

Perry lançou-lhe um olhar perscrutador. Estava gostando daquele novo aliado, mesmo abstraindo das suas faculdades. Estendeu-lhe a mão. John retribuiu o aperto. Súbito, seus olhos se estreitaram por trás das lentes escuras e dirigiram-se para além de Rhodan. A expressão do esforço concentrado deu-lhe ao rosto um ar sério. Depois de alguns instantes, cochichou:

— Estão atrás do senhor, Rhodan. O carro que está estacionado junto ao seu táxi é da polícia. Dois homens acabam de descer. Não, não se vire. Estão falando com seu motorista. Agora vêm para cá, dirigem-se ã nossa mesa. E agora?

O cérebro de Perry trabalhou em ritmo vertiginoso. Um dos diretores com quem conferenciara deve ter revelado o fato, talvez sem qualquer intenção má. Os homens do CID não eram tolos. Depois de terem farejado uma pista, não desistiriam antes de capturar a caça.

Quando os dois homens de aparência absolutamente normal se aproximaram da mesa, Perry estava preparado. Fez um sinal quase imperceptível para John e colocou uma nota debaixo do prato. Depois, levantou-se.

— Encontramo-nos no aeroporto, a três quilômetros daqui. Dentro de uma hora. Espere por mim. Ninguém o importunará.

John retribuiu o sinal. Levantou-se e foi à mesa vizinha, fazendo de conta que nada tinha com o que estava acontecendo.

Os agentes hesitaram por um precioso segundo, depois aproximaram-se, resolutos. Um deles colocou a mão no bolso. O outro aproximou-se de Perry por trás e colocou a mão sobre o seu ombro.

— Perry Rhodan, em nome da humanidade...

Perry virou-se. Seus olhos cinzentos penetraram nos do agente.

— Que deseja?

— O senhor é Perry Rhodan...

— Sou Foster Douglas, se não se importar. Por que estão me importunando?

O homem hesitou. Parecia inseguro. Seu colega não estava tão impressionado. Tirou a mão do bolso. Nela se via uma enorme pistola.

— Rhodan, não faça tolices. Deixe as mãos no mesmo lugar em que se encontram e venha conosco.

Perry encarou-o.

— Sou Foster Douglas. Não chateie!

A cena começou a despertar a atenção dos freqüentadores do restaurante. Alguns viraram-se para acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. John Marshall levantara-se e saiu tranqüilamente em direção ao ponto de táxi.

O outro agente, indeciso, baixou a arma. Alguma coisa lhe dizia que se enganara e que esse homem não era Perry Rhodan. No entanto... uma outra ordem ainda o importunava.

— Agora, os senhores me deixarão em paz — disse Perry encarando-os fixamente. — Não encontraram Perry Rhodan. Informem seus superiores nesse sentido, entenderam?

Um deles fez que sim. O outro ainda hesitava.

Perry deu-lhes as costas e saiu. Não se sentia muito bem, pois seu corpo não era imune a uma bala traiçoeira, mas só ligaria a cúpula energética em caso de extrema emergência. E não poderia sair voando em pleno dia. Mandariam caças atrás dele.

Os dois agentes ainda estavam indecisos quando ele entrou no táxi. O carro da polícia esperava logo atrás. O motorista segurava um microfone e falava muito. O comportamento estranho dos dois colegas representava, para ele, uma verdadeira charada.

— Vamos para o aeroporto — ordenou Perry.

O táxi saiu da área de estacionamento e, uma vez na estrada, aumentou a velocidade.

Os dois agentes superaram o choque. Pareciam despertar de um sonho. A mesa diante deles estava vazia e Perry Rhodan sumira. Os freqüentadores do restaurante olhavam-nos espantados. Lá fora, o carro os esperava. O táxi em que Rhodan viera já não estava perto do carro policial. Também havia sumido.

— É um truque! — gritou o homem que segurava a pistola, e correu para o carro, onde começou a gritar com o motorista:

— O que houve? Por que o deixou escapar?

O homem colocou o microfone no suporte.

— Eu o deixei escapar? Foram vocês que o deixaram ir embora. Não era Rhodan?

O outro agente também se aproximara. A pressão do cérebro tinha desaparecido.

— Foi hipnotismo! O sujeito nos enganou. Em que direção fugiu?

O motorista apontou para a estrada.

— Para lá. Em direção ao aeroporto.

— Vamos atrás dele! Dê alarma geral! O carro arrancou, derrapando na curva. Enquanto isso, John Marshall conseguia um táxi e chegava à estrada quase ao mesmo tempo que o carro dos agentes secretos. Reclinado no assento, procurou captar os pensamentos dos agentes exaltados. Mas nada conseguiu distinguir na confusão causada pelos emissores numerosos. Só lhe restou pedir que o motorista não perdesse de vista o carro preto.

Os três carros seguiam em disparada pela pista larga. Todos se dirigiam ao aeroporto. O primeiro, de Rhodan, levava uma vantagem considerável sobre os demais, que seguiam bem próximos um do outro. O tráfego intenso não lhes permitia uma velocidade maior mas, mesmo assim, Rhodan chegou ao aeroporto bem antes dos demais, pagou o táxi e entrou, apressado, no amplo hall, mergulhando na multidão que lotava o recinto.

Sereias começaram a uivar. De repente, policiais à paisana postaram-se em todas as entradas e saídas. Traziam as mãos nos bolsos, sinal seguro de que portavam armas. Os balcões das diversas empresas suspenderam as atividades. Os passageiros começaram a se inquietar. Um alto-falante começou a berrar:

— Mantenham-se calmos. A polícia acaba de cercar o edifício do aeroporto. Estamos realizando um exercício. Mantenham a calma. Continuem como estão.

Perry sabia que se encontrava num aeroporto civil. Mas também sabia que numa das extremidades do campo de pouso um caça-bombardeiro do CID estava pronto para decolar. Os tripulantes, quatro homens, deviam estar perto da aeronave.

Encontrava-se em meio a um grupo de comerciantes que vociferavam. A cinqüenta metros dali, John Marshall tentava se aproximar cautelosamente. Os dois agentes que vira no restaurante iam de um grupo a outro.

Perry Rhodan cerrou os dentes. Apertou um dos botões embutidos no cinto do equipamento dos arcônidas. O defletor de ondas luminosas entrou em funcionamento, tornando-o invisível.

Andando cautelosamente, para não esbarrar em ninguém, deslocou-se em direção a John. O antigo funcionário de banco sobressaltou-se quando sentiu, de repente, o toque vindo do nada. Mas os pensamentos de Perry logo penetraram no seu cérebro.

“Continue parado. Marshall. Estou invisível, não me encontrarão. Dessa forma, suspenderão a busca. Afinal, não podem fechar o aeroporto por horas a fio.”

John confirmou com um movimento da cabeça. Esperaram.

“Há um bombardeiro de alta velocidade estacionado na pista. Tentaremos alcançá-lo. Quer vir comigo?” John fez que sim. “Muito bem. Vá andando em direção à barreira. Assim que eu me tornar visível, grude-se em mim. Se necessário montarei uma cúpula em torno de nós. Assim, estaremos protegidos. Depois iremos ao avião. Entendido?”

John voltou a confirmar com um movimento de cabeça. Saiu andando devagar. Os passageiros começaram a se impacientar. Desrespeitaram as ordens da polícia saindo do lugar em que se encontravam. Ninguém pôde impedi-los.

John mostrou o passaporte. Deixaram-no passar pela barreira. Perry, invisível, seguia-o. Os dois homens estavam junto ao edifício, com o campo de pouso diante de si. Algumas aeronaves estavam com os motores ligados, aguardando os passageiros. Os funcionários das companhias e a polícia controlavam os passageiros que entravam.

“Continue andando”, pensou Perry.

John passou pelo primeiro avião. Viu o caça-bombardeiro estacionado à esquerda. Dois dos tripulantes estavam deitados embaixo de uma das asas, espreguiçando-se na sombra. O piloto examinava os trens de pouso. O quarto homem estava sentado na cabina, recebendo as mensagens radiofônicas. Do lugar em que se encontravam, não podiam vê-lo.

John foi andando tranqüilamente em direção ao avião. O piloto interrompeu seu trabalho, lançando-lhe um olhar curioso.

“Cuidado”, advertiu Perry. “Voltarei a tornar-me visível.”

O piloto e os tripulantes deitados embaixo da asa arregalaram os olhos quando, perto do desconhecido, subitamente outro homem se materializou a partir do nada. Só tiveram consciência da realidade porque era justamente por causa de Rhodan que se encontravam em regime de rigorosa prontidão. Quem senão Rhodan poderia estar em condições de tornar-se invisível a qualquer momento?

O radiotelegrafista surgiu à entrada do avião.

— Decole imediatamente! — ordenou Perry, lançando um olhar dominador sobre o piloto. — Iremos com você. Qual é a reserva de combustível? Será suficiente para cruzar o Pacífico?

O piloto já se recuperara da surpresa. Esboçou um sorriso débil. Mas o radiotelegrafista voltou à cabina e retornou com uma pistola. Apontou-a para Perry.

— Quem é o senhor?

— É Rhodan — disse o piloto. — Guarde a arma. Ela não lhe servirá de nada. Um homem que pode tornar-se invisível a qualquer momento saberá defender-se de uma bala. Não é verdade, senhor Rhodan?

— Você ainda não respondeu à minha pergunta.

— O combustível? Se desejar posso completar metade do caminho em volta à Terra. Entre. Apresse-se porque meus colegas já vêm vindo.

— As intenções dele são honestas — cochichou John ao ouvido de Perry. — Está com o senhor. É estranho.

— E os outros?

— Não sabem o que fazer.

Perry dirigiu-se ao piloto.

— Por que quer ajudar-me?

— O senhor me obriga, não é? Ei! Jim, Hal, vamos logo para dentro. Venha, Rhodan. Se demorarmos demais esses caras estarão aqui antes de decolarmos.

Perry manteve-se vigilante. Mesmo depois que o veloz caça correu pela pista e começou a ganhar altura, não perdeu a desconfiança. Afinal, essa gente era do CID — se bem que do capitão Klein podia-se dizer a mesma coisa. Não era por causa dos seus poderes de sugestão que a tripulação do bombardeiro lhe prestava auxílio. Faziam-no espontaneamente. Estavam com ele, contrariando as ordens que haviam recebido.

Enquanto o avião se deslocava para o oeste, atravessando o Pacífico, Perry teve um sentimento que parecia gratidão. Não estava só. Tinha amigos entre os homens, muito amigos. Subitamente, percebeu que a humanidade merecia governar o império cósmico, junto com os arcônidas.

 

O capitão Klein não estava bem disposto.

Parado na colina, olhava para o sul. A enorme nave esférica dos arcônidas destacava-se no horizonte. Perto dela, a Stardust parecia uma mancha escura, pequena e insignificante. As granadas detonavam a intervalos regulares na muralha energética que envolvia a base.

Bem abaixo de Klein, o solo vibrava, embora ele não o sentisse. As brocas faziam a galeria avançar numa velocidade assustadora. Os destacamentos especiais trabalhavam noite e dia. Lá no vale, um montão de terra se acumulava. As explosões pouco numerosas foram camufladas por meio de uma intensificação das salvas de artilharia.

Não havia qualquer possibilidade de prevenir Rhodan. Os agentes dos serviços secretos dos três blocos estavam à espreita nos postos avançados. A base do inimigo da humanidade estava totalmente isolada. Ninguém conseguiria aproximar-se sem ser percebido.

Embaixo da terra, a galeria já ultrapassara a linha que representava a continuação da cúpula sob o solo. Portanto, já estavam dentro da base. Bastava subir, e estariam na superfície, no interior da cúpula.

As máquinas especiais continuavam roendo a terra em direção ao sul e já se aproximavam do ponto previamente fixado; bem embaixo das duas naves. Dentro de dois dias, tudo estaria terminado. E a bomba de hidrogênio já estava a caminho da Ásia.

Klein ouviu passos atrás de si. Era Kosnow que se aproximava. O russo também parecia preocupado.

— Rhodan não se encontra na base — disse, em voz baixa, como se receasse ser ouvido ao longe. — Reconheceram-no em Los Angeles, quando tentou entabular negociações com alguns empresários. Pelo que dizem, conseguiu fugir num caça-bombardeiro do CID.

— Era só o que faltava — disse Klein, sorrindo. — Deve chegar daqui a pouco. O fogo será para valer.

— Tanto faz, desde que consigamos preveni-lo a tempo. Deve ser avisado do que pretendem fazer com ele. Daqui a dois dias a galeria começará a subir. O bombardeio será intensificado para abafar as vibrações. A bomba será detonada cinqüenta metros abaixo da superfície. Se isso acontecer, não sobrará coisa alguma de Rhodan e de seus amigos.

— Encontraremos um meio — tranqüilizou-o Klein. — Nem que eu mesmo vá até a cúpula para preveni-los.

— Ninguém conseguirá romper as áreas de bloqueio. Sabe muito bem que não confiam em nós. Não há dúvidas de que Mercant sabe do nosso ato de traição. Mas não faz nada. Quase chego a acreditar que, no íntimo, ele acha que Rhodan, e nós, temos razão. Mas, se for assim, por que permite o ataque? É isso que não consigo entender.

— Não lhe resta outra alternativa. Não pode dizer abertamente o que pensa. Ele sabe tão bem quanto nós que Rhodan agiu corretamente quando não permitiu que o poderio de que dispõe caísse nas mãos de um Estado, preferindo colocá-lo acima de todos. Mas não pode admiti-lo expressamente. Mas chegará o dia em que mesmo Mercant poderá dizer a verdade.

— E se Rhodan for destruído antes disso?

— Isso não vai acontecer. Se for necessário eu me sacrificarei. A bomba ainda está muito longe daqui. E a galeria ainda não foi concluída — completou Klein.

Lançaram um último olhar para a esfera distante e, caminhando em direção ao norte, desceram para o vale. Lá embaixo, os tratores empurravam para o fundo do vale a terra que as esteiras rolantes traziam da galeria. Em toda a parte viam-se grupos de técnicos. O coronel Cretcher e o general Tai-tiang conversavam.

Um homem surgiu correndo pela planície desolada, fez continência para os dois oficiais e entregou uma mensagem ao general. Este leu-a e passou-a ao coronel. Sem aguardar a resposta deste último, correu em direção a um dos abrigos subterrâneos. Cretcher ficou indeciso por alguns instantes, depois começou a andar em direção à galeria.

Kosnow franziu a testa.

— Aconteceu alguma coisa!

— Se andarmos depressa, poderemos alcançar o mensageiro. Talvez ele nos conte o que houve. Ei! O alarma! Deve ter sido algo de muito sério.

O telegrafista ia entrar em sua barraca quando Klein segurou-o pela manga do uniforme.

— O que houve?

— É Rhodan — disse o homem, um soldado chinês. — Roubou um avião...

— Isso nós sabemos desde ontem — interrompeu Kosnow. — E, por isso, não é preciso dar o alarma.

— É que ele vem para cá! Daqui a cinco minutos...

Klein olhou para Kosnow. Então era isso!

Deram as costas ao radiotelegrafista, ainda perplexo, e correram em direção à galeria. Se a notícia fosse correta, dali a cinco minutos as baterias entrariam todas em ação. Tentariam evitar a todo custo que Rhodan alcançasse sua base. Ou então...

Uma possibilidade relampejou no cérebro de Klein. Talvez nem deviam impedi-lo. Havia bons motivos para isso. Mas, será que o general Tai-tiang teria a mesma idéia?

— Vamos, Kosnow! Temos de falar com o general. Tive uma idéia.

Tai-tiang parecia espantado quando os dois agentes chegaram ao abrigo de comando. Fizera as ligações com as posições de artilharia e estava a ponto de transmitir as instruções adequadas.

— O que houve? Como se atrevem?...

— Revogue a ordem de fogo! — disse Klein.

— O que sabem a respeito disso?

— Rhodan apoderou-se de um avião e tentará pousar junto à base. O senhor pretende impedi-lo. Já pensou no que acontecerá depois? Ao perceber o perigo dará meia-volta e desaparecerá. O que nos adianta explodir a base, se Rhodan não explodir junto com ela?

Quando necessário, o general Tai-Tiang sabia reagir prontamente. Lançou um olhar perscrutador sobre Klein, depois, confirmou com um aceno de cabeça.

— A idéia não deixa de ser inteligente. Permitirei que Rhodan pouse e penetre na cúpula. Dali não escapará. A bomba já está a caminho. Terminaremos isso antes da data prevista, segundo comunicado do coronel Cretcher. Certo! Instruirei os caças que o perseguem.

Dirigiu-se à barraca em que funcionavam os serviços de rádio.

Klein e Kosnow voltaram a subir a colina para presenciar o esperado pouso de Rhodan.

 

Este não se fez esperar. Um ponto minúsculo surgiu no horizonte, cresceu vertiginosamente e assumiu a forma de um caça-bombardeiro dos mais modernos. Alguns dos aparelhos menores que o acompanhavam, procuravam forçá-lo a descer, mas não atiravam para não expor a tripulação do caça a um risco desnecessário.

Perry encontrava-se junto ao piloto.

— Você agiu com bravura. Fico-lhe muito grato pelo auxílio. Quem sabe se, um dia, poderei retribuir-lhe o favor. Aterrize exatamente no ponto que lhe indicarei. Nada lhe acontecerá, pois você poderá declarar sob juramento que eu o obriguei a trazê-lo até aqui. Logo, Marshall e eu os deixaremos. Dali até a cúpula são poucos metros.

— Como vamos atravessá-la? — perguntou Marshall.

— Tenho um equipamento especial que nos permitirá neutralizar a cúpula em qualquer ponto. Dentro de alguns minutos estaremos em segurança. O importante é aterrizarmos antes que os pilotos dos outros caças saibam onde o faremos.

O avião iniciou a descida.

— Estou admirado por não nos terem recebido com fogo antiaéreo — disse o piloto.

O radioletegrafista, que trazia o fone no ouvido, murmurou:

— A ordem de fogo foi revogada. Não deram os motivos. Talvez nossa vida seja muito preciosa para eles. Também é possível que pretendam interrogar-nos... E os mortos não falam.

As rodas tocaram o solo. O enorme bombardeiro correu pela planície irregular, descontrolou-se e acabou batendo numa rocha. Pelos cálculos de Rhodan, estavam a menos de cem metros da muralha energética.

O piloto foi atirado contra o painel mas, com reflexo rápido, cortou a entrada de combustível. O radiotelegrafista caiu por entre os instrumentos destroçados. Os outros dois tripulantes, ilesos, abriram a porta de saída.

— Mais uma vez obrigado, e boa sorte! — disse Rhodan, arrastando Marshall. — Temos de correr, senão nos pegam antes de chegarmos à muralha. Fique junto de mim. Vou ligar a cúpula energética.

Saltaram para o solo pedregoso do deserto. Segurando Marshall pela mão, Perry correu em direção à nave esférica que ficava a cinco quilômetros de distância. Enquanto corria, comprimiu um botão colocado no cinto. Aparentemente, nada aconteceu. Apenas, não sentiram mais a ação do vento. Uma pequena cúpula os isolava por completo do mundo exterior.

Um dos caças descreveu uma curva ampla e aproximou-se a baixa altitude. As asas expeliram raios. Quatro fileiras de projéteis caíram sobre Perry e Marshall, que soltou um grito de pavor.

Os impactos logo cessaram.

— Não se preocupe, Marshall. Para romper esta cúpula, precisarão de calibres maiores.

O caça descreveu uma curva à direita, ganhou altitude e, de repente, bateu contra um obstáculo invisível. A violência do impacto fez o aparelho ricochetear, antes de perder o controle e mergulhar contra o solo. As chamas começaram a subir e, segundos depois, a munição explodiu, atirando destroços para todos os lados.

— É a cúpula energética. Está a poucos metros de distância. Cuidado! Vou ligar o campo neutralizador. Os outros caças não chegarão em tempo. Pronto, estamos em segurança. Agora podemos nos mover à vontade.

Perry soltou a mão de Marshall, virou-se e viu que os outros caças ganharam altitude, afastando-se em direção ao sul. Quatro homens estavam parados junto ao caça-bombardeiro, olhando para eles. Um dos tripulantes ergueu a mão, num aceno. Logo, os outros o imitaram. Depois, puseram-se em marcha em direção às posições do exército que cercava a base. Sabiam que algumas horas desagradáveis os esperavam.

— Venha, Marshall. A Stardust está esperando por nós. Conseguimos. Permita que lhe dê as boas-vindas ao meu reino.

— Obrigado — disse Marshall, entre alegre e ainda surpreso.

Caminhavam em direção às duas naves que pareciam esperá-los em meio ao deserto e, por pouco, quase tropeçaram em um homem que, de súbito, surgiu do nada, fitando-os com os olhos assustados.

Rhodan parou de chofre.

A planície de areia não oferecia a menor proteção...

 

A máquina em forma de torpedo penetrava na rocha com uma velocidade vertiginosa. A pedra triturada era atirada automaticamente sobre a esteira transportadora que a conduzia à superfície. Os cabos forneciam energia para as máquinas e a iluminação. A renovação do ar funcionava perfeitamente.

O coronel Cretcher estava parado junto a Klein e Li. Seu rosto irradiava satisfação.

— Klein, a idéia de não abrir fogo contra Rhodan foi excelente. Não me esquecerei de mencionar isso perto de Mercant.

— Ele ficará satisfeito — conjeturou Klein, em tom ambíguo.

O tenente Li apontou para a escavadeira mecânica.

— Quanto tempo ainda levaremos?

— Terminaremos amanhã ao anoitecer. A galeria vertical só terá largura suficiente para transportar a bomba. Depois de amanhã, Perry Rhodan não mais existirá — nem os arcônidas.

— O mundo respirará aliviado — murmurou Klein.

Cretcher olhou-o ligeiramente.

— É possível — disse, e voltou sua atenção às máquinas. Klein e Li foram andando em direção à saída distante.

A galeria era da altura de um homem e estava bem iluminada. As paredes eram quase perfeitamente lisas. À esquerda, a esteira transportadora deslizava em silêncio. Não havia ninguém por perto.

— Temos de prevenir Rhodan — cochichou Klein, desesperado. — Amanhã será muito tarde. A esta hora já não saberia como evitar a explosão, mesmo que tivesse conhecimento dela.

— Não fale tão alto — disse Li. — Lembre-se de que isso aqui é um bom condutor de som. Eu também não sei o que fazer. Até chego a ter a impressão de que estou prestes a trair Rhodan. O que será de nós se o plano tiver êxito e Rhodan for morto? Depois de amanhã a guerra fria será reiniciada, e, com ela, o eterno medo de uma catástrofe nuclear. Não sei se agüentaremos por muito tempo.

Klein parou.

— Hoje à noite tentarei atravessar a linha de posições montadas pelos serviços secretos.

O chinês sacudiu a cabeça.

— Mesmo que conseguisse, não arranjaria nada. Rhodan não pode manter um serviço de vigilância ininterrupto sobre suas fronteiras. Nem perceberá que você está por perto. O lógico seria despertar a atenção dele. Mas como?

— Silêncio! Vem gente por aí — cochichou Klein. Ouviram o ruído dos passos que se aproximavam. Um homem vinha ao encontro deles. Quando se encontrava bem próximo, reconheceram-no. Era Tako Kakuta, um técnico japonês. Seus olhos suaves fitaram-nos com uma expressão indagadora.

— Então, Tako! Estamos quase prontos, não é?

— Creio que sim — respondeu o japonês, cauteloso. — O coronel Cretcher está lá dentro?

— Está perto da escavadeira — confirmou Klein e foi andando. Li seguiu-o. O caminho para a saída era longo mas, quando se cansavam, sentavam-se na esteira transportadora. Assim, avançavam mais depressa.

Já podiam ver a claridade da entrada do túnel mais adiante, quando uma sombra se desenhou contra a luminosidade. Era um homem que também caminhava em direção à saída. Iam passando por ele quando uma lâmpada derramou uma luz forte. Ao reconhecer o homem, Klein arregalou os olhos. Virou-se, sem querer crer no que via e, de um salto, desceu da esteira. Li, que não reagiu com a mesma rapidez, foi carregado mais um pouco.

Klein parou e esperou que o homem se aproximasse.

Era Tako Kakuta.

A galeria não era muito larga. O japonês tinha ido à parte dos fundos, para falar com o coronel Cretcher. Fora há vinte minutos. Nesse meio tempo, tinham avançado, ele e Li, em direção à saída. E o japonês, inexplicavelmente, havia passado por eles, já voltando. Não era possível.

Klein estreitou os olhos. Seu cérebro trabalhava febrilmente. Tentou, em vão, encontrar a solução para aquele problema, que se afigurava fantástico.

Tako esboçou seu insondável sorriso. E, com um ar de humildade, disse:

— Devemos ter passado um pelo outro sem percebermos, senhor Klein.

Klein sacudiu lentamente a cabeça.

— Como você chegou até aqui? Como sabe, sou um agente de segurança e, por isso, tenho direito a certas perguntas. Você não pode ter passado por nós, Tako. Na verdade, a esta hora, ainda não poderia, ao menos, ter alcançado o ponto onde o coronel Cretcher está. Diga logo! Como conseguiu chegar até aqui?

O japonês continuava a sorrir.

— Passei na frente dos senhores.

— Você está mentindo. Nós o teríamos visto. Diga a verdade.

Pela primeira vez, o medo começou a desenhar-se nos olhos do japonês.

— O senhor não acreditaria — asseverou. — Por favor, senhor Klein, não dê importância ao que passou. Por favor!

— Pois eu tenho de dar importância a uma porção de coisas — respondeu Klein, segurando o japonês pelo braço. — Venha comigo.

Sua mão pegou no vazio. O japonês havia desaparecido. Parecia que se dissolvera no ar ou se tornara invisível. Klein estava petrificado quando Li chegou perto dele.

— O que houve, Klein? Onde está Tako?

Klein parecia despertar de um sonho.

— Sei lá! O homem desapareceu da mesma forma como surgiu. Devo sofrer alucinações, ou então...

— Ou então?

— Ou então o homem pode se tornar invisível, Li. Mas uma coisa dessas não existe. Ninguém pode tornar-se invisível.

Li encarou a parede lisa da galeria.

— Existe outra possibilidade. Já ouvi falar de casos em que pessoas desaparecem de repente, para aparecer em outro lugar.

— Ora, Li! Não me diga que você crê nessas coisas...

— Mas é verdade.

— Li, estamos no século vinte.

— Justamente! Isso é conseqüência dos acontecimentos do século vinte. Nunca ouviu falar em mutações? Na ativação de setores ociosos do cérebro? Os homens atingidos por esse fenômeno descobrem faculdades das quais ninguém suspeitaria. Talvez Tako seja um caso desses. Imagino que se trate de teleportação.

— De quê?

— Isso significa que Tako pode transportar-se de um lugar a outro por força única e exclusiva de sua vontade. Sei que isso parece lenda, mas também sei que é possível, uma vez presentes os respectivos pressupostos.

— Que pressupostos são esses?

Li assumiu um ar sério.

— As radiações produzidas pelas bombas atômicas. Só agora as crianças que não haviam nascido ao tempo da explosão de Hiroxima estão se tornando adultas. E eis que os primeiros mutantes surgem no mundo. Nem me atrevo a imaginar como será a humanidade daqui a cinqüenta anos. Klein tornara-se pálido.

— Você está brincando! Esses casos só podem ser exceções, se é que suas suposições são corretas.

— Um belo dia — disse Li, sacudindo a cabeça — o homem de hoje será a exceção. Venha comigo, precisamos encontrar Tako. Precisamos saber se ele é realmente um mutante.

Enquanto procuravam, Klein viu, repentinamente, a solução diante de si. Se conseguissem fazer de Tako um aliado, haveria uma possibilidade de prevenir Rhodan.

Mas será que Li tinha razão?

 

— É claro que poderia ter fugido — disse Tako Kakuta com a voz humilde. — Mas isso não adiantaria nada. Teriam ido em minha perseguição e, um belo dia, me encontrariam. Por isso foi que vim falar com os senhores. Podem perguntar o que quiserem.

A porta estava trancada. Estavam sós. Klein sabia que Li vigiava do lado de fora. Ninguém os surpreenderia.

— Você é um mutante?

— Meus pais estão entre os sobreviventes da catástrofe de Hiroxima. Nasci pouco depois. Minha mãe morreu em conseqüência das radiações. Meu pai ficou aleijado. Só eu fui poupado e cresci normalmente, se não levarmos em conta uma faculdade que descobri no ano passado. Já consegui desenvolvê-la, mas acredito que ainda pode ser aperfeiçoada. O que pretende fazer comigo, senhor Klein?

— Não tenha receio, Tako. Que distância pode percorrer dessa maneira?

— Uns quinhentos metros: daí não passo. Para vencer distâncias maiores tenho que realizar vários saltos.

— Só quinhentos metros? — Klein não ocultou o desapontamento. — Não é muito. O que acontece se você se materializar dentro de um objeto sólido e não ao ar livre?

Tako sorriu.

— Isso não é possível. O salto subseqüente segue-se logo após. É automático. Tenho pouca influência sobre isso. Mas posso regular o primeiro salto com bastante precisão. Praticamente, não corro o menor risco.

Klein respirou profundamente.

— Quero fazer-lhe uma pergunta, Tako. Você odeia, ou tem qualquer razão para desejar a morte de Perry Rhodan, o homem que queremos destruir com uma bomba atômica?

O sorriso de Tako continuava inalterado.

— Capitão, o senhor é um agente de segurança. Seu dever é velar para que esta missão tenha êxito e para que ninguém tente sabotá-la. Se eu não odiasse Rhodan, não iria dizê-lo justamente ao senhor. Não é verdade?

— Concordo. Tako. Mas esta pergunta não é uma armadilha. Apenas gostaria de saber sua opinião. Arrisco muita coisa, Tako, mas confio em você. Veja bem: esta missão que ajudo a fiscalizar não pode ser coroada de êxito. Rhodan não pode ser morto, compreende? Se isso acontecer, amanhã à noite a ameaça do holocausto atômico voltará a surgir sobre nossas cabeças. Só a terceira potência pode impedir esta guerra. É difícil admitir este fato, mas ele constitui uma conclusão lógica dos acontecimentos passados. Bem, você já conhece a minha opinião. Posso saber qual é a sua?

A expressão do rosto de Tako Kakuta não se alterou.

— Perry Rhodan já possui mais amigos do que ele mesmo imagina. Ainda têm de se manter ocultos, pois o medo que o poderoso sente do poderoso ainda é mais forte que a razão. Como vê, senhor Klein, suas preocupações não têm o menor fundamento. Mas, o que nos resta senão executar as ordens dos nossos governos? O indivíduo isolado não pode rebelar-se contra os mesmos. Se pudesse, teria êxito?

— Um indivíduo isolado, não; muitos indivíduos, sim. Unidos, constituirão um elemento de força que ninguém poderá vencer. Mas vamos à pergunta que acaba de formular: pode Tako, um indivíduo isolado, às vezes, pode ter êxito.

— Como?

— Você deve transportar-se para junto de Rhodan a fim de preveni-lo. Só você pode penetrar naquela fortaleza. Creio que o anteparo energético não poderá detê-lo.

— Não — disse Tako. — Ele não me detém.

Klein parecia perplexo.

— O quê? Como você sabe?

— Já que não existem segredos entre nós, e temos os mesmo propósitos, vou contar tudo. O senhor queria que eu fosse para junto de Rhodan para preveni-lo, não é? Pois bem, também tive esta idéia. Perry Rhodan já foi prevenido, capitão Klein. Recomendo-lhe que não entre mais na galeria depois da meia-noite. Foi este o prazo que Rhodan nos concedeu quando teve conhecimento do projeto.

Klein ficou boquiaberto; encarou Tako e, depois de alguns segundos, disse:

— Você tem razão, Tako. Rhodan tem mais amigos do que ele pode imaginar.

 

Perry logo notou que o homem que se encontrava diante dele era um japonês. Este, assumiu uma posição quase humilde, baixou o rosto jovem e sorridente e fez uma mesura.

— Não se assuste, senhor Rhodan. Vim para preveni-lo de um grande perigo.

— Como conseguiu atravessar a barreira energética? — perguntou Perry, já recuperado do espanto. O homenzinho devia ter escapado à sua vista em meio ao deserto. — O senhor surgiu de repente...

— Possuo o dom da teleportação. Meus pais passaram pela catástrofe de Hiroxima. Talvez compreenda...

Marshall cochichou ao ouvido de Rhodan:

— É um mutante, tal qual eu. Pode trasladar-se instantaneamente de um lugar para outro. Vem de um ponto abaixo da superfície.

— Sob a superfície? — inquiriu Rhodan, surpreso.

— É — confirmou Tako — venho de uma galeria cavada embaixo desta área. Como foi que o senhor soube disso?

Marshall aproximou-se.

— Sou um mutante, tal qual você, Tako. É este o seu nome não é? Tako Kakuta. Você possui o dom da teleportação; e eu sei ler pensamentos. — Estendeu-lhe a mão. — De certa forma somos companheiros. Também você está ajudando Perry Rhodan.

Tako apertou a mão estendida com um sorriso nos lábios.

Perry Rhodan tranqüilizou-se. Encontrara mais um mutante. Suas suposições se confirmavam. Com isso, seu plano de formar um exército de mutantes dedicado à ajudá-lo a vencer os inimigos que o cercavam ganhou uma base mais realista.

— Qual é o perigo contra o qual veio me prevenir, Tako?

— Trata-se de um destacamento especial que está cavando uma galeria por baixo da terra e que irá até um ponto sob as duas naves espaciais. Amanhã, pretendem introduzir nela uma bomba de hidrogênio de alta potência. A galeria terminará cinqüenta metros abaixo da superfície. Não creio que reste muita coisa, caso o senhor não tome as providências necessárias.

— Uma bomba embaixo da terra! — Num instante, o cérebro de Rhodan pôs-se a trabalhar velozmente, e logo ele teve ciência das medidas defensivas a serem adotadas.

— Obrigado, Tako. Acredito que não poderá retornar mais ao seu destacamento. Se quiser, pode ficar conosco.

— Mais tarde — disse o japonês, em tom modesto. — Suponho que pretendem defender-se. Tenho o dever de evitar que aconteçam baixas entre os trabalhadores. Posso saber o que pretende fazer?

— Ainda não sei — disse Rhodan. — De qualquer maneira, não pretendo tomar qualquer medida defensiva antes do anoitecer. Esta informação basta?

— Providenciarei para que hoje à noite não haja ninguém na galeria.

Perry colocou a mão sobre o ombro do japonês.

— Você é muito humano, Tako...

— Qualquer um faria a mesma coisa, ao menos qualquer pessoa cujos pais passaram por um ataque atômico. Ainda nos veremos, senhor Rhodan...

Tako Kakuta sumiu diante deles como se nunca tivesse estado ali. Só o deserto cercava os dois homens. Ao longe, viam-se os contornos reluzentes das naves. Um vulto surgiu perto delas. Vinha ao encontro deles.

— O que foi que ele pensou? — perguntou Rhodan.

John Marshall respondeu:

— Pensou o que disse.

— Quer dizer que disse a verdade. Vamos andando, aí vem Bell.

— Quem é Bell?

— Reginald Bell, co-piloto e técnico de bordo da Stardust. Um ótimo sujeito e um grande amigo.

Encontraram-se com Bell a poucos metros da nave.

— Olá, Perry! Tudo bem? Quem é o cavalheiro que nos visita?

Antes que Perry pudesse fazer as apresentações, Marshall foi logo dizendo:

— Em primeiro lugar, não uso brilhantina, senhor Bell. Meus cabelos são lisos por natureza. Em segundo, o senhor também não é um modelo de beleza. E em terceiro, não é da sua conta como foi que me aproximei do senhor Rhodan.

Os cabelos ruivos de Bell arrepiaram-se.

Olhou perplexo para o estranho e, depois para Rhodan.

— Santo Deus! Será que este cara sabe ler pensamentos?

— Adivinhou! — confirmou Rhodan sem conter o riso. — Ele os lê com perfeição. Se eu fosse você, passaria a utilizar o bloco protetor sempre que quiser se entreter com pensamentos secretos. Permita que lhe apresente John Marshall, o primeiro telepata de uma humanidade que aos poucos vai se tornando adulta.

— Muito prazer — disse Bell, refeito do susto.

— O prazer é meu — John apertou a mão estendida. — Fico satisfeito em saber que, daqui por diante, controlará seus pensamentos.

Perry interrompeu-o.

— Tudo em ordem, Bell?

— Tudo perfeito, Perry.

— Ótimo. Vamos andando. Preciso falar imediatamente com Crest. O assunto é muito urgente. Estão preparando um ataque contra nós. Pretendem explodir-nos amanhã. É uma gente muito simpática, não é?

— Muito — concordou Bell. — E como é que querem nos explodir?

— Cavaram uma galeria que termina embaixo das naves.

— Como soube disso?

— Depois eu conto.

Crest aguardava-os diante da nave esférica. Eric Manoli estava a seu lado. Haggard, um pouco afastado, observava o trabalho dos robôs, controlados por Thora.

Crest cumprimentou seu aliado.

— Fico satisfeito em tê-lo de volta. Conseguiu alguma coisa?

— Muita! Crest, quer fazer o favor de chamar Thora, imediatamente. Se não agirmos depressa, estaremos perdidos. As potências da Terra trabalham em conjunto e, quando isso acontece, elas se tornam perigosas. Não conseguiram romper a cúpula energética, mas encontraram outro caminho. Abriram uma galeria que termina embaixo das naves. Amanhã pretendem detonar uma bomba atômica.

— Como vejo, trouxe alguém — disse Crest, sem fazer a menor referência sobre o perigo que os ameaçava. — Sinto que é um telepata. Com isso a humanidade saltou um estágio na evolução. Seja bem-vindo, senhor Marshall. Como vê, meu cérebro também possui esta capacidade. O que acaba de dizer, Rhodan? Cavaram uma galeria? Tencionam detonar uma bomba? Thora vai ficar satisfeita.

Se ficou satisfeita, Thora não o demonstrou.

— Eles nunca compreenderão — disse ao ouvir a notícia. Os cinco homens estavam sentados, em companhia de Crest e Thora, num confortável camarote da nave esférica. O crepúsculo já descia sobre o deserto. — Está na hora de dar-lhes uma lição da qual jamais se esquecerão.

— Recomendo-lhe que se abstenha de qualquer ato precipitado — disse Crest, sacudindo a cabeça. — Se conseguirmos impedir a explosão, devemos dar-nos por satisfeitos.

— Se dependesse de mim, exterminaria esta raça — respondeu Thora, exaltada.

— Além de insensato, seria perigoso. Se não pudermos contar com o auxílio deles, jamais chegaremos a Árcon. E ninguém sabe se, num raio de quinhentos anos-luz, existe outra raça inteligente.

A constatação de Crest não deixou de produzir efeito. Thora concordou. Com alguma relutância, é verdade.

— Muito bem. Acato a decisão da maioria. O que faremos?

Perry inclinou-se para a frente.

— Existe alguma possibilidade de destruir a galeria sem sairmos daqui?

Thora fez que sim.

— O localizador está indicando a posição exata da galeria. Posso ligar o combustor centralizado.

— O que é isso?

— Trata-se de uma fonte de energia. Esta sai do gerador sob a forma de radiações inofensivas. O conversor faz com que, no ponto escolhido, ela se transforme numa força destrutiva. Em outras palavras, daqui, posso fazer com que um raio energético atravesse a matéria sem produzir o menor dano. O efeito devastador só começará a cinco, cinqüenta ou quinhentos metros abaixo da superfície. O localizador indica a posição exata do objetivo, regulo o combustor para esse ponto e, com isso, é possível derreter a galeria. Por dias a fio será transformada num inferno incandescente e, portanto, intransitável. Será que isso basta? Rhodan esboçou um sorriso suave.

— Basta. Muita coisa poderá acontecer antes que decidam desencadear outro ataque. Não acredito que continuem por muito tempo a nos considerar como inimigos mortais. Aos poucos, a idéia de que só oferecemos vantagens à humanidade vai ganhando terreno. Já temos mais amigos pelo mundo do que podemos imaginar.

— Fico satisfeito em saber disso — observou Crest.

Thora interrompeu-o.

— A que horas devo começar? Perry olhou para o relógio.

— Exatamente daqui a dez horas, Thora. Às quatro da manhã não haverá ninguém na galeria.

Thora encarou-o.

— Muito bem. Mas asseguro-lhe que é esta a última vez que levo em consideração os sentimentos alheios. A defesa contra o próximo ataque que for lançado representará a destruição de sua raça. Convém comunicar isso a sua gente.

Levantou-se e saiu de cabeça erguida, sem se voltar.

Marshall dirigiu-se a Rhodan, rompendo o silêncio:

— É estranho. Ela está mentindo. Não pensa o que diz...

 

O dia estava amanhecendo no leste.

Todos dormiam. Só Rhodan e Bell esperavam na cabina de comando da Stardust. Viviam olhando para o relógio. Os ponteiros avançavam muito devagar. Ainda faltavam alguns minutos para as quatro.

No interior da nave esférica havia uma luz acesa. Vez por outra via-se uma sombra esbelta que se movia atrás da vigia. Era Thora. Estava diante do mecanismo que designara como combustor centralizado. Talvez sua mão descansasse sobre uma chave.

— Será que ela cumprirá a palavra? — cochichou Bell.

— Cumprirá — disse Perry. — Não há dúvidas de que o japonês conseguiu evacuar a galeria, senão ele nos teria comunicado e pedido um adiamento. — Está na hora.

Uma luminosidade esverdeada saiu da vigia da nave esférica, dando um brilho fantasmagórico ao romper do dia. A leste, o primeiro tom rosado surgia no horizonte.

Lá embaixo, a energia liberada iniciava sua ação fulminante, transformando produtos da técnica humana em montões de metal derretido. A rocha gotejava e, ao endurecer, assumia formas bizarras. A terra deslizava, emitindo um chiado ao volatizar-se. Aos poucos, a marcha destrutiva foi prosseguindo em direção à saída da galeria.

De início, a sentinela postada ali percebeu o aumento da temperatura. Depois de algum tempo, os vapores corrosivos começaram a sair da galeria e abriram caminho até os pulmões do homem. Este, vencendo o pavor que começava a dominá-lo, deu o alarma. Dentro de poucos segundos, todos estavam de pé no acampamento. A rocha liquefeita saiu da galeria e, em contato com o ar frio da manhã, endureceu, fechando a entrada fumegante.

 

Klein afastou-se da janela. Eram quatro e dez da manhã.

— A galeria deixou de existir, Tako. Você prestou um grande serviço à humanidade. Além de prevenir Rhodan, fez com que a esta hora não houvesse ninguém na galeria.

— Não foi fácil convencer o coronel Cretcher da existência da radioatividade. Ainda bem que consegui introduzir alguns gramas de urânio na galeria.

Li e Kosnow levantaram-se e, em silêncio, apertaram a mão do japonês.

— Dê lembranças a Rhodan — disse Klein. — E diga-lhe que poderá contar sempre conosco. Diga-lhe, também, que aguardamos o dia em que poderemos estabelecer contato com ele em caráter oficial.

— Não esquecerei — prometeu Tako, apertando a mão dos três homens. — Podem ter certeza. Ainda teremos oportunidade de dar provas de lealdade e coragem. Passem bem e até a vista...

No mesmo instante, os três se viram sós. E Tako Kakuta voltou a materializar-se na cabina de comando da Stardust.

Bell, de costas para a vigia, bocejava.

— Está no fim — disse. Estou cansado; vou dormir um pouco.

De repente, a dois metros de distância, um ser humano surgiu do nada. O homem inclinou-se ligeiramente e, dirigindo-se para Rhodan, disse:

— Minha missão foi cumprida, senhor Rhodan. Vim para oferecer meus serviços.

Embora o cérebro de Bell funcionasse com uma extraordinária rapidez, a surpresa sobrepujou a razão. Rhodan lhe havia falado a respeito do poder de que Tako era possuidor. Mesmo assim, o impacto de ver um ser humano surgir vindo não se sabe de onde surpreende pelo que tem em si de fantástico.

— Feche a boca, Bell, senão Tako é capaz de cair dentro do seu estômago — recomendou Perry, rindo, antes de dirigir-se ao japonês.

— Aceito os serviços que me oferece, Tako. Juntamente com Marshall, você representa um poder imenso. Tenho certeza de que conseguiremos nosso objetivo.

— Se eu não acreditasse nisso, não estaria aqui — respondeu o japonês com humildade. Mas, nos seus olhos, brilhava o orgulho.

Bell aproximou-se e, com um sorriso, colocou a mão sobre o ombro de Tako, murmurando em seguida:

— É verdadeiro!

— Claro que é! — interveio Rhodan. — Acreditava que fosse um fantasma?

— Escute. Você pode deslocar-se para qualquer lugar a qualquer momento?

— Posso, senhor Bell.

Um brilho estranho surgiu nos olhos de Bell.

— Mesmo para o interior da nave dos arcônidas?

— Por que não?

Bell sorria.

— Tako, será que você pode verificar se Thora já concluiu o contra-ataque? Acho que não há nada demais em saber, não é, Perry?

Perry Rhodan concordou.

— Claro que não! E pouparíamos uma caminhada até lã. O que acha, Tako?

O japonês aproximou-se da vigia e olhou para a nave esférica.

— Está bem...

Antes que Bell pudesse dizer qualquer coisa, ele desapareceu. Dali a alguns segundos, Bell começou a falar:

— Fico satisfeito só em pensar no susto que Thora vai levar quando, de repente...

Quem levou um susto foi ele. No mesmo instante, Tako voltou a aparecer em sua frente. Seus olhos sorriam como se pedissem perdão. Disse:

— Sinto muito, mas a senhorita Thora não pôde me atender. Estava indo para a cama.

Um sorriso galhofeiro brincou em torno dos lábios de Perry.

— E daí?

— É, e daí? — perguntou Bell, triunfante. — Ela se assustou?

— Não chegou a me ver — explicou Tako. — Materializei-me atrás das suas costas. Estava tirando a roupa.

— Tirando a roupa?! — Bell arregalou os olhos. Mas logo se controlou. Seu rosto iluminou-se. Colocou as mãos nos ombros de Tako.

— Já somos bons amigos, concorda? Nossa amizade só tende a crescer, não é?

— Naturalmente — gaguejou o japonês, sob o peso das mãos do gigante. — Por que pergunta?

Bell cochichou-lhe ao ouvido:

— Que tal você me ensinar a teleportação?...

E arrastou Tako Kakuta, surpreso, para fora da cabina.

Perry Rhodan seguiu-os com os olhos. Sorria. Antes de deitar, lançou um olhar pela vigia.

O deserto estava vazio. A paz reinava nele.

Lá longe, ao leste, o céu tornava-se rubro. Um novo dia raiava. O que traria?

 

                                                                                            Clark Darlton

 

                      

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