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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Exército de Mutantes / K. H. Scheer
O Exército de Mutantes / K. H. Scheer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Exército de Mutantes

 

A Terceira Potência, criada pela técnica dos arcônidas e pela energia de Perry Rhodan, instalou-se na solidão do deserto de Gobi, onde estabeleceu um centro de atividades capaz de desafiar os ataques concentrados das superpotências terrenas.

Até mesmo a primeira luta travada contra inteligências extraterrenas ávidas de conquista, que procuraram aproximar-se da Terra depois de terem recebido notícia de sua existência através do sinal de socorro, emitido pela nave destroçada dos arcônidas, pôde ser decidida a favor da Terceira Potência e a bem da humanidade.

Mas Perry Rhodan sabe perfeitamente que precisará de mais gente para resistir a novos ataques e levar avante os seus planos. Por isso cria o Exército de Mutantes.

 

                  

 

— Perry!

A voz de Reginald Bell soou abafada no recinto de teto baixo e não produziu o menor eco. O homem de cabelo ruivo, olhos azul-claros e rosto largo comprimiu o botão de parada e, numa atitude de expectativa, virou-se para a porta. Perry Rhodan entrou.

— Não grite tanto, Bell! — disse, sem mover um músculo da face. Seus olhos irradiavam curiosidade. — Foi você que me chamou? Espero que o assunto seja importante.

Reginald Bell voltou-se novamente para o painel do equipamento de som. Durante três segundos comprimiu a tecla de retrocesso.

— Tenho uma mensagem de Genebra, dirigida a você. Chegou há poucos minutos.

Perry Rhodan aproximou-se do painel.

— Há algum resultado positivo? Esperava que as grandes potências levassem ao menos um dia para chegar a um acordo a nosso respeito. Se realizaram uma conferência-relâmpago, provavelmente se terão separado sem terem chegado a uma conclusão. Fale logo, rapaz! O que houve?

— Ouça! Quero que você mesmo desfrute todas as fases da sua vitória.

Bell ligou o aparelho e reclinou-se na poltrona.

— Aqui fala a Secretaria da Federação das Potências Mundiais. Estamos chamando o senhor Rhodan. Temos instruções para, logo após o término da conferência, informar-lhe o resultado que segue e que é tornado público simultaneamente por meio de um comunicado transmitido por todas as emissoras.

Os representantes dos países da OTAN, do Bloco Oriental e da Federação Asiática conferenciaram hoje sobre o status internacional da organização conhecida como Terceira Potência. As ocorrências dos últimos dias, em especial os acontecimentos que se desenrolaram fora da atmosfera terrestre, causaram sérias preocupações em todo o mundo. A aproximação de uma nave espacial pertencente a uma inteligência desconhecida, que sem a menor dúvida foi realizada com intenções hostis, deve ser encarada como uma ameaça a toda a Terra. Depois de discutido minuciosamente o assunto, os delegados da OTAN, do Bloco Oriental e da Federação Asiática chegaram à conclusão de que a destruição da nave inimiga na superfície lunar foi devida exclusivamente à atuação da Terceira Potência. Face a isso as potências que participaram da conferência admitem certa lealdade da Terceira Potência perante os interesses comuns da humanidade e decidiram reconhecer a Terceira Potência como estado soberano, com a extensão territorial que atualmente ocupa. Pede-se ao senhor Perry Rhodan que confirme o recebimento deste comunicado e apresente propostas concretas para o estabelecimento de relações diplomáticas.

Bell comprimiu a tecla de parada e voltou a reclinar-se na poltrona.

— Conseguimos — disse Rhodan em tom tranqüilo. — Aos poucos os homens começam a compreender que não somos nós os seus inimigos, mas o espaço imenso e misterioso. Mas convém que esses cavalheiros tirem da cabeça a idéia de extensas relações diplomáticas. Sem dúvida, gostariam de trocar uns vinte ou trinta embaixadores conosco. Acontece que sob o aspecto diplomático somos um caso todo especial. Ao que parece já estão se habituando a isso. Anote a resposta:

— Não quer falar pessoalmente?

— Tenho motivos para não fazê-lo.

Reginald Bell deu de ombros. Parecia não entender. Mas acabou assentindo com um movimento de cabeça.

— Transmitirei sua mensagem.

— Diga-lhes que fiquei satisfeito em receber uma resposta tão positiva. Considero altamente elogiável a compreensão com que o assunto foi tratado em Genebra. No entanto, prefiro deixar para outra oportunidade meu pronunciamento sobre o estabelecimento de relações diplomáticas, já que a reduzida extensão territorial de nosso pequeno reino ainda não justifica a presença de embaixadores. Apesar disso, sempre estaremos abertos a quaisquer contatos.

— Muito obrigado pela orientação. Quebrarei a cabeça para descobrir como devo redigir o texto...

— A resposta será transmitida imediatamente, meu caro! Não há tempo para quebrar a cabeça. Com a velocidade alcançada na conferência de hoje as superpotências da Terra estabeleceram um novo recorde. E você vai manter a mesma velocidade.

— Você sempre foi perito em dar ordens...

— E você tem sido perito em executá-las. O futuro exigirá de você um aumento considerável do grau de obediência e de iniciativa que já aprendeu.

— Obrigado pela confiança, chefe! Mais algum desejo?

— Você poderia pedir aos representantes de Pequim na conferência que começassem a estudar a possibilidade de nos vender um trecho de terra. Não pretendo instalar o estado soberano da Terceira Potência em território alugado.

— Qual deve ser o tamanho de nosso reino? — indagou Bell.

— A nave esférica ficará no centro. Ao redor dela se estenderá o território bloqueado da Terceira Potência. O mínimo de que precisamos é uma extensão de terra com um raio de cinqüenta quilômetros.

Perry Rhodan saiu, sem aguardar que o amigo confirmasse com um aceno de cabeça. Por mais importantes que as negociações em perspectiva fossem para ele e para o mundo, havia assuntos ainda mais prementes a serem tratados. Eram assuntos que ultrapassavam em muito o simples estabelecimento de contatos e os preparativos para uma série de decisões definitivas.

Saiu da nave. A pequena distância dali, bem no centro da cúpula energética, que atingia dez quilômetros de diâmetro, estava a nave esférica dos arcônidas. Mais ao longe outro objeto atraía a atenção. Era o gigantesco autômato positrônico, retirado da nave. Esse aparelho formava o núcleo definitivo da Terceira Potência; suas reações microfísicas poderiam conduzir os destinos da história da humanidade. Era o cérebro.

Rhodan utilizou o traje especial que lhe possibilitava vencer em poucos segundos um percurso relativamente extenso. Não se via ninguém. Perry esperava encontrar também no interior do grande recinto a solidão de que tanto precisava. Mas não estava mais sozinho; viu-se diante de Thora.

— Olá, Rhodan! — exclamou ela.

— Thora. Sente-se atraída pelo altar do seu poderio?

— Sinto-me bem em meio à civilização a que pertenço. Além das ruínas e dos vestígios de uma tecnologia arcônida, a Terra nada tem de atraente para uma mulher da minha origem.

Rhodan lançou-lhe um olhar penetrante. Não sabia se devia vestir a carapuça. Resolveu retribuir o elogio ambíguo.

— É difícil compreender a indiferença dos arcônidas. Quando encontram alguma coisa de atraente, o que é bastante raro, isso só acontece no ambiente a que estão habituados. Comigo, que sou um ser humano, acontece exatamente o contrário; o que me atrai é a novidade.

Atrás deles ouviram-se passos. Voltaram-se e viram Crest, o último descendente da dinastia reinante em seu mundo natal.

— Olá! — disse este em tom amável e com a maior naturalidade, como se em toda sua existência nunca tivesse conhecido outro cumprimento que esta fórmula terrena. — Está disposto a trabalhar com o cérebro, Rhodan?

— Quero que a máquina responda algumas perguntas das quais depende o destino da humanidade, da humanidade no sentido mais amplo.

— Quer dizer que você nos inclui nela?

— Perfeitamente — confirmou Rhodan. — São os arcônidas humanos. Sem dúvida estamos de acordo em que tudo aquilo que para nós representa a civilização galáctica está em perigo. Estamos empenhados numa causa comum, Crest. Não nos abandone.

— Isso soa como uma solicitação e uma censura.

— Desculpe, Crest! Uma censura contra você seria uma injustiça. Sem o seu auxílio não teríamos conseguido destruir a nave desconhecida. Mas bem sabe que esse ataque de surpresa talvez não passe de um primeiro indício do perigo que paira sobre nós. É possível que possamos dispor de alguns anos para nos prepararmos. Mas também é possível que já amanhã nos defrontemos com a tarefa de salvar a civilização galáctica da destruição total. Conto com a hipótese menos favorável. Por isso a decisão é tão premente.

— Veja só! Esse homem se arvora em advogado da civilização galáctica — disse Thora em tom monótono, como se não passasse do estágio final de um cérebro robotizado. — Implora nosso auxílio, através do qual pretende alcançar o poder, mas esquece quem somos.

Rhodan dominou-se.

— Você sabe perfeitamente que essa acusação não tem o menor fundamento. Não faz muito tempo que você se declarou disposta a rever seu juízo sobre os habitantes da Terra. Ainda sente uma inclinação irresistível de tratar-nos como criaturas semi-selvagens e subdesenvolvidas? Por favor, não responda! Vou responder por você. Como únicos sobreviventes da expedição dos arcônidas, você e Crest precisam da ajuda do planeta Terra. Precisam dos homens porque não existe nenhum caminho de volta, a não ser com o auxílio deles. E, quer queiram quer não, terão de partilhar dos perigos, das preocupações e das angústias dos terrenos, enquanto o perigo vindo do espaço cósmico representa uma ameaça para todos nós. Sua obstinação, gerada por uma ridícula presunção de casta, só poderá atingir você mesma. Será que precisa de outras provas além dos acontecimentos dos últimos dias?

— A humanidade terrena não passa de um conglomerado disforme — respondeu a arcônida. — Não posso negar que o destino nos impôs interesses comuns. Mas duvido da capacidade de uma humanidade corroída de rivalidades, que nem conseguiu superar os antagonismos em seu próprio planeta. Não se ofenda, Rhodan, mas continuo a afirmar que você pertence a uma raça primitiva.

Crest interrompeu-a.

— E uma raça jovem — disse. — E dotada de grandes reservas de vitalidade que devem ser mobilizadas. O destino de uma raça é determinado por seus grandes gênios. Não é necessário que, de um dia para outro, toda a humanidade seja conduzida a um estágio mais elevado. Umas poucas pessoas dotadas de bastante inteligência serão suficientes. Rhodan, sei perfeitamente do que é capaz depois de ter concluído o treinamento hipnótico; conseguimos mobilizar seu cérebro, que se encontrava em estado de ociosidade numa proporção de mais de quarenta e cinco por cento.

— Quer dizer — perguntou Thora em tom de dúvida — que a condição primitiva dos terrenos não resulta de uma estrutura biológica subdesenvolvida, mas apenas da renúncia inconsciente ao exercício de certas faculdades?

Crest confirmou com um aceno de cabeça.

— Certas áreas do cérebro humano são afetadas por uma curvatura, e por isso nunca são ativadas. Nas pessoas designadas como gênios são utilizadas. Os próprios homens já descobriram que o quociente intelectual do indivíduo nem sempre depende do volume do cérebro, muito embora de início essa interpretação fosse a mais óbvia. Einstein, um dos maiores terrenos de todos os tempos, constitui prova evidente disso. O volume do seu cérebro era igual ao de qualquer pessoa medíocre. Sua grande superioridade espiritual só pode ser explicada por um grau extraordinário de ativação de todas as áreas de seu cérebro. Com o treinamento hipnótico de Rhodan conseguimos um resultado semelhante.

— Então é por isso que devemos reconhecer em Perry Rhodan o chefe dos terrenos — disse Thora com um traço de ironia. — Como arcônida, dispenso uma colaboração nessas circunstâncias. Tal procedimento seria incompatível com o nível de desenvolvimento de nossa raça.

— Ninguém está falando num chefe dos terrenos — respondeu Rhodan, elevando ligeiramente o tom da voz. — Apenas procuro uma conciliação razoável entre os seus interesses e os nossos. Apelo para a razão, não para os preconceitos ou os ressentimentos. Você está pondo em prática aquilo de que acusa nossa raça. Não serei presunçoso a ponto de renunciar ao seu auxílio nesta hora difícil. Tenho o maior prazer em exprimir os meus agradecimentos pelo auxílio que já nos foi dispensado. Se você acha que pode dispensar o auxílio da humanidade, isso é problema seu. Não quero impingir minha colaboração. E agora, com sua licença, eu me retirarei.

Perry Rhodan cumprimentou com um gesto e deu as costas aos arcônidas. Dirigiu-se ao painel de comando do grande cérebro robotizado.

Depois de ter concluído as primeiras manipulações, sentiu a presença de Crest atrás de si.

— Podemos ajudar, Rhodan?

— Thora acaba de afirmar que não quer intrometer-se nos assuntos dos terrenos. Você pensa da mesma forma, Crest?

— Gostaria de ajudá-lo, Rhodan. Mas só se for necessário. Não seria correto se os arcônidas se intrometessem desnecessariamente nos assuntos dos terrenos.

— Obrigado, Crest — disse Perry, oferecendo a mão ao seu interlocutor. — Tentarei fazer o trabalho sozinho. Apesar disso sua presença representaria um conforto para mim. Jamais um homem teve de solucionar um problema como o que tenho diante de mim. Isso me deixa um pouco nervoso, compreende?

— Qual é a indagação que quer ver respondida?

— A indagação sobre o caminho que devemos trilhar juntos para o futuro.

Perry Rhodan voltou-se para a grande máquina. O significado das indagações que lhe transmitiria ultrapassa em alcance toda e qualquer decisão que até então alguém tivera que tomar. Toda a humanidade estava em jogo.

Um zumbido quase inaudível partiu das células positrônicas. O cérebro havia sido ativado. Aguardava as perguntas que teria de responder. O cérebro robotizado não estava sujeito a qualquer influência psicológica; trabalhava exclusivamente em conformidade com as leis da lógica. Era de todo imune ao significado de qualquer pergunta. Não conhecia os critérios valorativos que o homem adota inconscientemente. Só se interessava pelo significado e pelo conteúdo da matéria nele introduzida. Calculava as probabilidades do resultado de um jogo de futebol ou uma eleição política com a mesma naturalidade do desfecho de uma guerra mundial. Se qualquer resposta não correspondesse aos acontecimentos futuros, isso seria devido única e exclusivamente a uma formulação incorreta das perguntas. Tudo dependia, portanto, das perguntas que Perry Rhodan introduzisse na máquina.

Já nos preparativos, se valeu das potencialidades da formidável máquina. Introduziu nas células positrônicas todos os detalhes que lhe pareciam importantes para a avaliação da pergunta-chave. Levou algumas horas examinando a formulação definitiva das questões.

A memória da máquina apresentava uma reação tríplice. Através das células interpretativas do estágio final, fornecia o resultado em forma de palavra falada, de palavra escrita e de imagem. Os cristais de armazenamento de dados conservavam as respostas com todas as características. A fita escrita corria num carretel onde seu conteúdo era resumido automaticamente através de palavras-chave adequadas. A imagem e o som eram projetados em faixas paralelas da mesma fita e os impulsos positrônicos garantiam a perfeita sintonia.

O exame preliminar das questões produziu um resultado quase inacreditável.

A humanidade teria de optar entre 22,3 bilhões de possibilidades, para encontrar um caminho aceitável para o futuro. No entanto, não se poderia afirmar que só uma das soluções fosse correta, enquanto todas as outras eram erradas. A escala das vantagens e desvantagens deslizou na tela sob a forma de um espectro de cores. Realizados mais de cem processos de eliminação, ainda havia mais de mil soluções recomendáveis do lado positivo da faixa espectral. Perry Rhodan teve de encontrar novas perguntas limitativas, para chegar cada vez mais perto do problema básico.

No início, ainda surgiam ligeiras discussões com Crest e Thora. Mas, à medida que a experiência prosseguia, tornava-se cada vez mais calado. Quando o crepúsculo começou a entrar pela vigia, Thora levantou-se e declarou que desejava ir ao seu camarote. Precisava de descanso, e por isso queria desfrutá-lo fora da gravitação natural da Terra, que, com o tempo, estava se tornando desagradável para ela. Crest seguiu seu exemplo.

— Se surgir qualquer problema é só avisar, Rhodan. Estarei à sua disposição a qualquer momento.

Rhodan confirmou com um movimento distraído da cabeça.

— Está bem, Crest. Levarei algumas horas neste serviço. Mais tarde avisarei sobre o resultado. Descanse um pouco.

Nenhum dos dois arcônidas desconfiava de que seu aluno-modelo recorrera a alguns truques psicológicos bem eficientes para afastá-los dali. Perry Rhodan preferia estar só na hora em que tivesse de resolver as questões decisivas.

A atividade física desenvolvida durante a experiência era mínima. Apesar disso transpirava bastante e sofria a tensão formidável daquelas horas.

Mais tarde, ainda naquela noite, ele recebeu a notícia da ameaça de uma nova invasão. A resposta veio quase como um subproduto. Rhodan repetiu a experiência cinco vezes antes de aceitar a solução com todas as suas implicações: a invasão já começara.

 

Chamou Reginald Bell pelo aparelho de ondas ultracurtas.

— Onde você está neste instante, Bell?

— No mesmo lugar em que você me deixou. Esses rapazes de Pequim são duros na queda. Fazem a gente perder horas preciosas com detalhes insignificantes.

— Eu gostaria de saber qual é o assunto que você está debatendo com eles.

— Você é mesmo um prodígio de memória! Já se esqueceu que me pediu para que lhe arranjasse um terreno?

— Vamos deixar isso para depois. Quero que você desligue imediatamente e venha a bordo da nave. Manoli e os nossos três amigos dos serviços secretos devem apresentar-se o mais rápido possível. Daqui a dez minutos esta nave deve estar pronta para decolar. E não quero que ninguém desembarque, mesmo que eu chegue mais tarde. Dê o alarma a todo o pessoal da base.

— Afinal, o que houve, Perry?

— Você já vai saber. Por enquanto, faça o que estou dizendo!

A tripulação concluiu os preparativos para a decolagem dentro do prazo previsto de dez minutos, mas Rhodan os fez esperar até a meia-noite.

Finalmente, ouviu-se a voz do Capitão Klein:

— Aí vem ele!

Todos os olhos se voltaram para a tela de imagem que servia para vigiar a entrada da nave esférica. Perry Rhodan surgiu, em vôo baixo, no seu traje de arcônida, e entrou pela escotilha aberta. Pouco depois, chegou à sala de comando.

— Você pilotará, Bell. Decole imediatamente. Preciso falar com Kakuta.

Rhodan ligou a tela e chamou Tako Kakuta, que estava no posto central de comando da base. O rosto do japonês apareceu no vídeo.

— Decolaremos agora. Preste atenção à subida da nave e desligue a cúpula protetora por alguns segundos.

— O.K.!

A esfera disparou na vertical e desapareceu diante dos olhos do japonês como uma estrela que se apagasse.

Reginald Bell voltou a cabeça, enquanto as mãos executavam inconscientemente as operações de comando que aprendera.

— Perry, não quer nos contar o que significa tudo isso? Eric e o resto do pessoal já começaram a duvidar da minha sanidade mental, porque os detive durante algumas horas...

— Desde hoje de tarde estive conversando com o computador eletrônico. Formulei algumas perguntas decisivas. Foi por isso que demorei tanto. Precisaremos de um verdadeiro fio de Ariadne para encontrarmos nosso caminho por entre os problemas do futuro.

— E você encontrou esse fio?

— Encontrei — confirmou Rhodan. Por alguns segundos parecia mergulhado em profunda meditação. Depois endireitou o corpo. — Temos de vasculhar imediatamente a atmosfera terrestre, ao menos até a órbita lunar. Segundo uma das respostas do computador, a invasão que esperamos já está em andamento.

Manoli foi o primeiro a recuperar a fala.

— Está se referindo àqueles intrusos desconhecidos, cuja nave conseguimos destruir há alguns dias?

— Nunca tivemos a menor dúvida de que aquilo não passava de uma operação de vanguarda. As informações de Thora foram corretas. O emissor de raios ultraluz situado na nave dos arcônidas que foi destruída na superfície lunar mobilizou os inimigos das nossas civilizações, o nosso sistema para seres de elevado grau de inteligência. Uma raça empenhada na destruição, como a de Fantan, não se contentará com meias medidas ou com operações isoladas. Relatei a situação ao computador eletrônico, tanto quanto me permitiam as indicações fornecidas por Crest. A resposta da máquina foi a seguinte: “a invasão já começou”. Peço-lhes, portanto, que ocupem seus lugares. A divisão das tarefas já foi anunciada, e todos sabem o que deve ser feito.

Todas as operações que ainda não eram rotineiras teriam de assumir esse caráter. O dispositivo automático de observação anunciava a espaços regulares: resultado negativo. Não houve qualquer localização de corpos estranhos. Enquanto isso Perry Rhodan treinava suas tarefas com Bell, Eric Manoli, o capitão Klein, Li Shai-tung e Peter Kosnow.

A uma distância de pouco menos de 400.000 quilômetros do centro da Terra, Perry mandou que a nave fosse conduzida a uma órbita, mas não permitiu que seu deslocamento fosse espontâneo, em forma de satélite, pois com isso sua velocidade seria tão reduzida que a volta em torno do nosso planeta consumiria quase cinco semanas. Sem reduzir o desprendimento de energia, a nave deslocou-se em sentido quase vertical à tangente da órbita terrestre, a fim de anular a força centrífuga gerada pela alta velocidade.

— Isso! — murmurou Rhodan satisfeito, quando a gigantesca foice lunar desapareceu a estibordo.

— Dizem que o computador eletrônico é infalível, não é? — a pergunta de Manoli foi formulada de sopetão. — Onde está o inimigo, se a invasão já começou? Pelo que me consta, não existe qualquer campo de absorção para as radiações de localização emitidas por esta nave.

— Falível é o homem — confessou Perry Rhodan. — Se não houver a invasão, as perguntas que formulei à máquina positrônica não foram corretas. Até chego a desejar que eu tenha cometido um erro.

— Pois cometeu! — foi a voz de Thora que saiu no mesmo instante dos alto-falantes. — Fique sossegado e volte, Perry Rhodan. Crest e eu acompanhamos e verificamos seu trabalho. Não há nenhuma nave estranha na órbita de Marte. Seria preferível dedicar-se aos problemas mais prementes que o esperam na Terra.

— Obrigado pela lição. Crest está com você?

— Está no camarote dele. Não se lembra de que pediu que descansássemos?

— Estou acompanhando a palestra — disse a voz de Crest, que surgiu no mesmo instante. — Posso confirmar a informação de Thora, mas nem por isso as perguntas que você formulou ao cérebro positrônico são necessariamente incorretas. Se o cérebro responde que a invasão já está em andamento, não está fornecendo nenhuma indicação exata do pouso na Terra. É bem possível que o inimigo ainda se encontre a muitos anos-luz de distância e só chegue à Terra daqui a alguns dias. A viagem de patrulhamento que está sendo levada a efeito não me perturbou nem um pouco. Até acho que se trata de uma boa medida de precaução. Se me permite um conselho, direi que deve ser repetida a intervalos regulares.

— Seus conselhos sempre serão bem-vindos. Obrigado, Crest!

— Devo aterrissar? — perguntou Bell.

— Depois de descrever mais uma órbita polar em torno da Terra, meu caro. Enquanto isso, conte-me o que discutiu com Pequim.

— A Federação Asiática é de opinião que o trecho desértico situado em torno do lago salgado de Goshun, ou mais precisamente a 102 graus de longitude leste e 38 graus de latitude norte é o terreno mais valioso que pode existir sobre a Terra.

— Já lhe deram o preço?

— É claro que sim; do contrário não estaria tão nervoso. Pedem sete bilhões de dólares. Por esse preço estão dispostos a ceder um terreno com cinqüenta quilômetros de raio em torno da nave.

— Você lhes explicou que não possuímos sete bilhões de dólares?

— É claro. Afinal, sou um rapaz inteligente.

— Um bilhão seria um bom preço, Bell.

— Esses cavalheiros de Pequim não cedem um centavo. Seria pura perda de tempo se você gastasse uma hora nisso. Temos de arranjar o dinheiro.

— Sete bilhões... — refletiu Rhodan. — Precisamos a metade disso para instalar nossas linhas de montagem na cúpula energética. E nem sequer essa quantia possuímos.

— O reino mais poderoso da Terra é o menor e o mais pobre. É um verdadeiro paradoxo, não acha?

— Bell, não se afaste do assunto. É verdade que Kakuta descobriu alguns fornecedores que dispõem de boa capacidade de produção. Mas nenhum deles fornece dinheiro. E as contas bancárias que mantemos em algumas grandes cidades chegam a ser ridículas. Precisamos de um ministro das finanças.

— Até mesmo um ministro das finanças fará questão de discutir antes de mais nada o seu ordenado. Por mais que façamos, precisamos antes de tudo de dinheiro. Depois poderemos comprar. Terras, fábricas e gente. Precisamos de crédito.

— E será que não dispomos de crédito? — interveio Eric Manoli. — Será que você não conhece a velha sabedoria dos banqueiros? Aquele que detém o poder dispõe do crédito.

— Esse tipo de sabedoria encerra uma sugestão de abusar do poder — respondeu Rhodan. — Suas palavras fazem vir à minha mente um assalto.

— Refiro-me às armas psíquicas. Ninguém de nós concordaria em que os ameaçássemos com a superioridade das nossas armas destrutivas.

— Para conceber uma arma psíquica precisamos de uma cabeça. Com isso voltamos ao problema do ministro das finanças.

— Será que não temos inteligência suficiente? — indagou Bell em tom de expectativa, como se quisesse candidatar-se ao posto. Rhodan formulou uma pergunta direta:

— Você pode garantir que dentro de seis meses influenciará os preços mundiais de tal forma que teremos os fornecedores aos nossos pés?

— Sou astronavegador e engenheiro eletrônico, estudei medicina espacial e geologia, submeti-me de bom grado ao treinamento hipnótico e tenho a impressão de ser um homem bem acima da média. Mas não tenho uma boa mão com o dinheiro.

— Quer dizer que desiste do lugar de ministro das finanças?

— Quanto à minha pessoa, sim. Não me sentiria muito bem se tivesse que desempenhar o papel de um gênio universal.

— De qualquer maneira terá que revelar o desempenho de um gênio universal. Espere até que aterrissemos. Preciso de Tako Kakuta para entrar no assunto sobre o qual quero falar com vocês.

A nave esférica desceu quase na vertical em direção ao deserto de Gobi. A cúpula abriu-se por alguns segundos, para permitir o pouso. Quando os homens deixaram a nave, os primeiros raios do sol despontavam no oriente.

 

Oito homens estavam reunidos em torno da mesa.

Eram Rhodan, Bell, Manoli, Haggard, Kakuta, Klein, Li e Kosnow.

— Companheiros, acredito que não será necessário perder muitas palavras para explicar a situação atual. Dispomos do poder e obtivemos o reconhecimento diplomático. Mas, apesar de já termos iniciado a montagem de uma indústria, somos uns pobretões. Acontece que de uma hora para outra esperamos a invasão, cujas dimensões ultrapassam nossa fantasia. Convoquei-os para explicar que me verei obrigado a exigir tudo de vocês. Terão de empenhar toda a sua pessoa no objetivo comum. Nosso trabalho não exigirá apenas uma soma enorme de energia, mas também boa agilidade e capacidade de reação. Bell, você e Tako Kakuta irão a Pequim fechar o acordo para a compra do nosso território. Você já elaborou um esquema de pagamento na base de quinhentos milhões de dólares por mês, e assim estará em condições de fechar a operação. Aos demais, pretendo apresentar alguns aspectos de um plano que nos permitirá acelerar imediatamente o ritmo produtivo de nossa indústria. Mas antes de iniciarmos a discussão dos detalhes peço-lhes que leiam atentamente este artigo de jornal e me digam se estão lembrados de algumas minúcias do assunto nele tratado. Finalmente, apresentem-me sugestões sobre como poderemos usar este caso em nosso próprio benefício.

 

 

Um denso nevoeiro impregnava a noite londrina. A umidade que subia do Tâmisa penetrava nas roupas e fazia as pessoas tiritarem de frio.

Um homem de aspecto pobre, que a altas horas da noite atravessara a Vauxhall Bridge e estava caminhando pela Grosvenor Road, junto à margem esquerda do rio, levantara a gola do casaco. O chapéu, que cobria as orelhas, talvez tivesse por finalidade cobrir o rosto.

Atrás do gasômetro o homem dobrou à direita, atravessou a Praça São Jorge em direção à Rua Lupus e entrou na Rua Alderney.

Parou diante de uma pesada porta de carvalho e puxou a sineta.

Depois de uma longa espera uma senhora corpulenta abriu e perguntou o que desejava.

— Por favor, quero falar com o senhor Barry.

— Sinto muito, cavalheiro. A esta hora não podemos perturbá-lo mais. O senhor Barry está se preparando para dormir. E conforme vê eu...

— A senhora também estava a ponto de ir para a cama. Mas com o senhor Barry a coisa é diferente. Assim que puser os olhos em mim, não pensará mais em dormir.

— Trouxe um cartão, cavalheiro?

— Não é necessário anunciar-me. Conheço o caminho. Muito obrigado.

— Cavalheiro! — disse ela, quando o homem se enfiou pela estreita fresta da porta e permitiu que à luz do corredor lançasse um olhar para sua figura estranha. — Quem é o senhor? Não posso deixá-lo entrar.

— Madame, não se incomode comigo.

Hiram Barry ainda estava sentado à escrivaninha. Não fazia menção de ir para a cama. O abajur projetava uma luz forte sobre o escrito, enquanto o restante do aposento estava mergulhado na escuridão.

— Você não disse que ia para a cama, Milly? — disse Barry quando ouviu a porta abrir-se atrás dele.

— Milly vai para a cama — disse o visitante.

Aquela voz grave fez com que Barry se virasse sobressaltado. Só viu uma sombra parada na escuridão. Mas aquela voz lhe revelara tudo. Para Hiram Barry era uma voz inesquecível.

— Adams! — gemeu.

— Homer G. Adams — completou o visitante. — Espero não ter vindo numa hora imprópria.

— É claro que não Adams. Para você minha casa está aberta a qualquer hora. Como sabe...

— As coisas que sei já ficaram muito longe. Mas ainda sei. E é o que importa. Não acha, Barry?

— Você sempre teve boa cabeça, Adams. Conseguiu fazer um bom dinheiro com sua memória, nada mais. Sempre o admirei. É claro que também o invejo um pouco.

— Não se esqueça do ódio, Barry. Gosto de ser admirado. E as pessoas que me invejam também devem viver. Afinal, a vaidade nutre-se da inveja. Mas o ódio pode ser perigoso. Meu caso é um bom exemplo disso. Não quero que ninguém me odeie.

— O que deseja, Adams? Não fale num ódio que já é tão velho. Não o odeio.

— É claro que não. Dentro de quatorze anos isso passa. Não preciso matá-lo mais, pois seu ódio transformou-se em medo. Por isso não me importo que continue a viver. Talvez assim lhe retribua alguma coisa.

— Veio só para me dizer isso? Levou quatorze anos pensando em vingança? Não acredito, pois isso o teria arruinado. Além disso, eram vinte anos, se não me engano.

— A sentença era de vinte anos. Mas depois de quatorze anos acharam que o castigo já era suficiente. Como deve saber, nesses casos costumam falar em bom comportamento.

— É o que dizem — confirmou Barry, que conseguira controlar-se um pouco. — Posso oferecer-lhe uma bebida?

— Se soubesse que não está envenenada, aceitaria.

— Deixe de gracejos, Adams. Vamos, beba! Ainda sei que gosta de uísque. E comece a contar. Gostaria de saber como estão as coisas entre nós depois desses quatorze anos.

— Não há nenhum motivo para discutirmos nossas relações. E os anos passados na penitenciária não oferecem nada para contar. Minha visita será breve, desde que cheguemos logo a um acordo.

— Um acordo sobre o quê?

— Preciso de um terno. Tem de ser um terno bom, bem na moda.

— E só isso? Tome dez libras.

— O dinheiro será outro assunto, Barry. Quero primeiro o terno e depois uma mesada. Deve estar lembrado de certa conta no Midland Bank. Naquele tempo o saldo era de cerca de dezesseis mil libras. Sei que não é muito. Parece que estou destinado a nunca ter dinheiro meu, a não ser uma pequena pensão. Ainda deve haver juros.

— Sua pergunta me deixa confuso, Adams. Como posso estar a par da sua conta no Midland Bank?

— Estou me referindo à conta que abrimos em seu nome. Deve estar lembrado de que a transação com Servey Limited produziu um lucro que de forma alguma poderia aparecer nos livros.

— Não sei do que está falando, Adams.

— Sabe, sim. Nunca procurou descobrir por que escapou sem castigo? Nunca se admirou porque um certo Homer G. Adams não quis prestar uma declaração que não o teria livrado da pena, mas que poderia ter enviado um certo Hiram Barry a uma viagem tão longa como a dele? Será que acredita que resolvi protegê-lo para que pudesse gastar meu dinheiro? Nada disso. Foi para proteger o meu dinheiro que permiti que continuasse livre. E agora estou aqui para buscá-lo. Inclusive os juros. Se descontar o valor do terno, deverão ser pouco menos de vinte e quatro mil libras. Se especulou com o dinheiro, talvez já sejam dois milhões. Mas nem quero saber disso. Para mim bastam vinte e quatro mil libras. Fique com o resto do que tiver ganho. Não quero vangloriar-me, Barry, mas acredito que dificilmente poderia esperar um tratamento mais generoso da minha parte.

Barry hesitou antes de responder. Seus dedos cravaram-se no canto da mesa.

— Adams, você sabe perfeitamente que vinte e quatro mil libras é muito dinheiro. Especialmente para mim. Nunca fiz os meus cálculos pelos seus padrões.

— Cada qual deve saber que padrões quer adotar. Você é um gatuno pequeno; ninguém lhe proibiu de transformar-se num grande. Além disso, parece que estão confundindo duas coisas completamente diferentes. Se enganei alguém em doze milhões de libras, isso foi feito exclusivamente com o dinheiro de outro. Meus negócios de bilhões nunca tiveram por objeto a ganância pessoal. Fiz isso... bem, digamos que fiz por esporte. Faço questão de ser considerado um amador e um idealista. Quero que o mundo veja em mim um ser altruísta que só se empenha pelas grandes causas.

— Ainda continua a pensar assim? — perguntou Barry.

Homer G. Adams confirmou com um movimento lento da cabeça.

— Ainda continuo a pensar assim. Nem pense que pretendo retirar-me da cena quando ainda me encontro nos melhores anos da vida. Voltarei. Tive muito tempo para refletir, Barry. E ouvi muita coisa. Mas acho que não está interessado nisso. Dê-me o terno e o dinheiro, e não o incomodarei mais.

Hiram Barry parecia ter chegado a uma decisão.

— Vamos ao meu quarto, Adams. Dou-lhe meia hora para inspecionar meu guarda-roupa.

Adams levou menos de meia hora.

— Ficarei com este — disse depois de três minutos. — Você é pouco maior que eu em estatura; por isso o casaco deve assentar bem em mim. Quanto à calça, poderemos encurtar a bainha por alguns centímetros. No escuro ninguém se incomodará com isso, e amanhã procurarei um alfaiate. Onde posso mudar de roupa?

— No banheiro. Faça o favor.

— Muito obrigado, Barry. Vejo que nos entendemos muito bem. Será que neste meio tempo pode preencher o cheque?

Dali a dez minutos Adams voltou à biblioteca. No cheque lia-se a quantia de vinte e quatro mil libras esterlinas e a assinatura floreada de Barry.

— Precisa de algum dinheiro em espécie? — perguntou Barry em tom gentil. — Decerto, pretende ir a um hotel.

— Muito obrigado. Você é muito gentil! Mas toda pessoa traz algum dinheiro consigo ao sair da penitenciária. Neste ponto o governo não é nada mesquinho. Não é necessário que me dê mais que aquilo que me compete. Homer G. Adams continua a ser o mesmo pão-duro de antes, mas também tem seu orgulho e nunca aceita presentes. Passe bem, Barry! Foi um prazer vê-lo tão disposto depois de todos estes anos e entreter uma palestra tão agradável.

Mal Adams acabara de sair, Hiram Barry discou o número do Midland Bank e instruiu o porteiro da noite a transmitir um recado ao gerente, na manhã seguinte, logo após o inicio do expediente. Depois discou outro número e, por estranho que parecesse, anunciou-se com um nome feminino.

— O que é que você quer me perturbando a esta hora da noite? Passei o dia todo atendendo a compromissos profissionais e tive de encher-me até a goela. Chame amanhã, mas só depois do jantar.

— Um momento! Você ficará curado da bebedeira se escutar um instante.

— Deixe de lorotas. Comigo isso não pega. Até...

— Vá para o inferno! Você não está só cheio de uísque, mas também anda com a água até o pescoço. Se desligar, vou arrombar sua porta daqui a meia hora e arranco você da cama.

— O que aconteceu?

— Tive de preencher um cheque de vinte e quatro mil libras, e isso sobre minha conta no Midland Bank.

— Espere aí! Será que você ficou louco? Ou será que uns bandidos armados entraram aí? Tanto faz! O que você tem de fazer, meu filho, é telefonar imediatamente ao banco para cancelar o cheque e notificar a polícia.

— O banco já foi avisado, mas de outra forma. Mandarei suprir a conta. No momento só há um saldo de quatorze mil libras.

O homem que falava do outro lado da linha despertara por inteiro.

— Vamos, fale logo! Será que foi o demônio em pessoa que veio buscar o cheque?

— Quase acertou. Foi Homer G. Adams, que hoje foi solto da penitenciária.

O outro interlocutor ficou sem fala. Antes de responder soltou um gemido.

— Adams foi solto? Nesse caso não diga nada à polícia.

— Era exatamente o que pretendia fazer. Só você vai ficar sabendo disso. E, caso não se lembre do expediente, é bom que saiba que o banco abre às nove da manhã.

 

A primeira pessoa que se apresentou no guichê do Midland Bank no dia seguinte foi Homer G. Adams.

Nem parecia perceber o rosto do funcionário, que se contorcia nervosamente. Como que entediado, olhava para o teto, onde uma fileira de lustres antigos parecia convidar à contagem de lâmpadas. Parecia ter muita paciência. Um observador por mais atento não teria percebido que seus olhos vigiavam tudo que se passava ao seu redor.

Havia uma indagação que atormentava aquele homem pequeno, de cabeça grande. Será que a conta apresentava saldo suficiente? Barry poderia tê-la liquidado, pois afinal lhe pertencia.

Depois de uma longa espera o funcionário voltou.

— Sinto muito, cavalheiro! O saldo da conta não é suficiente. Não podemos pagar-lhe o valor integral deste cheque.

— Qual é a diferença?

— Faltam cem libras.

— Só isso? Por que tanto espalhafato?

— Gostamos de ser corretos nos menores detalhes, cavalheiro — respondeu o funcionário.

— Se quisessem ser corretos poderiam ter concedido um crédito de cem libras ao titular da conta.

— Em princípio, o senhor tem razão.

Mas existe uma anotação de que esta conta deve ser tida como liquidada após o pagamento do cheque.

— Não há problema. Contento-me em receber o saldo, desde que não me faça esperar mais que cinco minutos.

Adams recebeu o dinheiro e saiu da zona bancária pelo caminho mais rápido, que era o metrô. Desceu no Picadilly Circus, fez compras e almoçou no aeroporto, em Croydon.

O garçom que o serviu viu nele um homem nervoso e desconfiado.

— Será que vai demorar muito? Não posso perder o jato para Tóquio.

— A partida é às 13,45, cavalheiro. Falta mais de uma hora e meia. Como nosso serviço é rápido, não haverá problema.

Homer G. Adams não parecia tranqüilizado. Logo após dirigiu-se em voz alta a um vizinho de mesa.

— Queira perdoar, cavalheiro. O senhor também viaja para Tóquio? No avião que parte às 13,45?

O homem fitou-o.

— Sinto muito. Meu vôo parte às 13,20 e não vou ao Extremo Oriente.

— Desculpe — cochichou Adams com a voz resignada.

Almoçou com uma pressa extraordinária, olhando constantemente para o grande relógio da parede. Pagou quando foi servido o último prato e saiu da mesa, ainda mastigando. Dirigiu-se ao guarda-volumes.

— Escute aqui! Será que o senhor pode verificar se as malas registradas neste ticket já se encontram a bordo?

— Ah, é o vôo destinado a Tóquio? — disse o homem depois de ter lançado um olhar para o talão. — Neste instante a bagagem está sendo colocada a bordo!

— Tem certeza de que não esqueceram minhas malas?

O homem respirou profundamente. Teve de esforçar-se para não perder a calma.

— É claro que não! Pois o senhor está com o recibo. Nosso trabalho é executado com toda cautela. Não há necessidade de controles adicionais.

— Queira desculpar. Se o senhor diz, deve ser verdade.

Na sua timidez fingida, Adams parecia satisfeito. Mas outras preocupações pareciam atormentá-lo. Depois que lhe tinham dito que os passageiros ainda não podiam subir a bordo, dirigiu-se apressadamente para a saída norte do aeroporto e chamou um táxi.

— Vamos para Epsom. Depressa!

O motorista fez o que pediu. Ao chegar a Epsom, foi regiamente recompensado. Um outro motorista recebeu a incumbência de levar Homer G. Adams a Dorking. Ali, Adams tomou um terceiro táxi para voltar a Croydon. Já eram 13,35.

— Será que o senhor consegue chegar a Croydon em dez minutos?

— É impossível, cavalheiro!

— Faça o possível — disse Adams em tom amável.

— Não é possível, cavalheiro. Conheço cada palmo do caminho. Se não houver o menor imprevisto, levaremos treze minutos.

— O.K.! Vá o mais rápido que puder. Às 13,45 decola um avião para Tóquio. Se conseguirmos vê-lo, dou-lhe uma gratificação de dez libras.

— Pretende viajar nele?

— Não. Só quero vê-lo decolar.

O motorista fez o possível e o tráfego ajudou. Ás 13,47 parou junto à entrada norte do aeroporto.

Adams correu para o hall e viu o avião desaparecer no nevoeiro. Inexplicavelmente, parecia satisfeito, ao contrário de um senhor que se encontrava perto dele e que deu vazão à sua ira em altos brados. De tão bem-humorado que estava, Adams teve vontade de dirigir-se ao homem.

— Não leve isso tão a sério, cavalheiro. Aqui está um companheiro de sofrimento que tem uma saída.

— Quem é você?

— Sou seu colega de infortúnio. Tenho de estar em Tóquio hoje de noite e espero consegui-lo, apesar de tudo.

— Possui um jato particular? — perguntou o estranho em tom mais acessível.

— Não. Mas daqui a vinte e cinco minutos deve decolar um avião com destino a Sydney, que fará escala em Zanzibar. Ali temos possibilidade de conexão com o vôo Cidade do Cabo—Tóquio.

— Bem, o diabo quando está com fome come mosca. A que hora o vôo da Cidade do Cabo chega a Tóquio?

— Pelas vinte e uma horas, tempo de Greenwich. Sugiro que adquira outra passagem.

— Muito obrigado. Quer dizer que estaremos em Tóquio antes do meio-dia.

 

A demora em Zanzibar foi de menos de uma hora. Foram ao restaurante do aeroporto. Adams já descobrira que o nome de seu companheiro de viagem era John Marshall, e que tinha vinte e seis anos. Marshall nada revelara sobre suas atividades profissionais. Aliás, Adams não estava interessado, pois ainda não desconfiava da importância daquele homem.

Mas, logo, o jogo de esconder teria um fim. Adams comprou um jornal que um menino oferecia de mesa em mesa. A folha mal saíra da rotativa e noticiava acontecimentos de menos de duas horas atrás.

Na segunda página, Adams descobriu uma notícia que não o surpreendeu muito, pois constava de suas previsões com um grau reduzido de probabilidades. Mas significava muito para ele. E também para John Marshall.

— Está interessado em saber o que aconteceu com o avião destinado a Tóquio, que perdemos em Londres?

— O que pode ter acontecido?

— Explodiu perto de Kiew.

— Não brinque!

— Leia.

Adams passou o jornal ao companheiro, que leu num instante a notícia redigida em poucas palavras.

— Santo Deus! Acho que podemos felicitar-nos pela sorte que nos protegeu.

— Se podemos! A vida é muito mais preciosa que os nossos pertences. De qualquer maneira espero que na sua bagagem não haja objetos de valor.

John Marshall esboçou um sorriso significativo.

— Não havia nada de importante, Adams. Tudo que é importante para mim cabe nesta pequena valise, que nunca largo das minhas mãos. Não haverá problema em substituir as roupas perdidas. Quer dizer que meu prejuízo não foi muito grande. Espero que no seu caso não seja diferente.

Adams sentiu o olhar perscrutador de Marshall, mas não sabia o que significava. Marshall era jovem, forte e sadio. Seu rosto era franco, e revelava uma honestidade incontestável. Sempre conseguia levar a palestra de cortesia para assuntos sem importância, quando a boa educação não lhe permitisse ficar calado.

Quando se encontravam sobre o Oceano Índico as coisas mudaram.

— Você traz muito dinheiro consigo, não é, Adams? — disse Marshall subitamente, depois de uma pausa prolongada.

— Por que diz isso?

— Deduzo que seja assim, já que observa regularmente sua pasta com a mesma atenção com que olho minha valise. Ninguém torce tantas vezes o pescoço para olhar para cima, se no bagageiro só traz uns sanduíches ou um jornal.

— Que interessante! Você estuda psicologia, Marshall?

— Isso mesmo. De um tempo para cá ocupo-me muito com isso. Mas você está se desviando do assunto.

— Se quer permanecer no campo da teoria, cabe observar que pouco lhe interessa se tenho em meu poder uma grande soma ou não.

— Estou perguntando no seu interesse, Adams. Se tiver dinheiro consigo, deve ser muito mais desconfiado. Um olhar para a pasta não é suficiente!

— Enquanto a pasta estiver ali, o dinheiro também está. Ou será que, como psicólogo, você pode interpretar a situação de outra forma?

— Sua pasta é nova, ainda traz a etiqueta de uma loja da Rua Regent. Aposto que foi comprada hoje de manhã.

— É verdade — disse Adams perplexo. — Onde quer chegar?

John Marshall inclinou-se ligeiramente para a frente e esforçou-se para falar devagar.

— É bem possível que alguém tenha comprado uma pasta igual. E se for essa pasta que se encontra no porta-bagagem, a conclusão que você acaba de formular não será mais válida.

Adams deu de ombros. Pensou na pistola, que se encontrava na pasta. Se Marshall quisesse fazer alguma coisa contra ele, este seria o lugar.

— O.K.! — disse. — Pelo que vejo está interessado em ver muito dinheiro junto. Farei sua vontade.

Levantou-se, pegou a pasta, sentou e abriu-a. Teve uma sensação igual à que se apoderara dele tempos atrás, quando seu grande golpe se revelou um fracasso total.

Fechou os olhos e contou até dez. Era um velho hábito seu, que lhe permitia conservar o sangue-frio numa situação crítica. Quando voltou a abri-los, era novamente o velho jogador de Bolsa que parecia não ter nervos.

— Como sabia que meu dinheiro foi roubado, Marshall? Exijo que fale sem subterfúgios e que deixe sua psicologia ambígua de lado.

— Acho que pouco lhe deve importar como sei. Seria preferível que perguntasse quem está com o dinheiro.

— Você sabe?

— Acho que sim. Mas gostaria de falar com calma sobre isso. Está disposto a acompanhar-me ao salão de estar? Procuraremos um canto bem isolado.

Saíram. No caminho, Adams disse:

— Antes de mais nada gostaria de notificar o comandante sobre o roubo. Faça o favor de reservar um lugar apropriado.

Não demorou em voltar.

— Tudo em ordem, no que diz respeito à notificação. Espero que possa fornecer mais alguns detalhes. As investigações policiais só serão iniciadas depois que pousarmos. É possível que isolem o aeroporto e não deixem os passageiros saírem.

— Mas isso não me dá muita tranqüilidade. Gostaria de resolver o assunto enquanto estamos em viagem. Na sua opinião, quem é o autor do crime?

— Não sei. As suspeitas recaem sobre uns seis ou oito passageiros.

— Os mesmos se encontram a bordo, ou será que a pasta já foi trocada em Zanzibar, ou antes que chegássemos lá? Um momento! Verifiquei no restaurante do aeroporto, e tudo estava em ordem. Quer dizer que nosso homem deve estar a bordo. A pasta só pode ter sido trocada durante o embarque. Tivemos de fazer fila e só avançamos devagar. É possível que tenha descansado a pasta no chão algumas vezes.

— A reconstrução dos fatos é correta. É exatamente o que imagino. Mas realmente não sei dizer quem foi. Só pode ter sido alguém que durante o embarque se encontrava próximo a nós. Já dei uma boa olhada em toda aquela gente, mas não descobri ninguém que andasse com uma pasta igual à sua.

— É estranho. Você sabe tão pouco! E apesar disso sua suspeita correspondeu exatamente à realidade.

— Mais uma pergunta — disse Marshall, mudando de assunto. — A importância desaparecida pode ser muito elevada para um homem comum. Esse dinheiro também faz muita falta a você?

— Não entendo — disse Adams em tom hesitante. Voltou a suspeitar de John Marshall. — Muitas vezes suas perguntas são bastante estranhas, Marshall. Mas não posso imaginar que o ladrão adotasse um comportamento tão estranho como o seu.

A resposta de Marshall morreu por entre um sorriso.

A porta do salão abriu-se de supetão e alguns homens barulhentos entraram. Dois deles voltaram a fechá-la e a trancaram, embora outros passageiros procurassem entrar.

Quase todos os passageiros que se encontravam no salão saltaram das suas cadeiras, o que contribuiu para aumentar a confusão. No meio da gritaria não se entendia uma palavra. Subitamente um dos homens pediu silêncio com a voz trovejante, reforçando seu pedido com a pistola que trazia em punho.

— Sentem! — ordenou o desconhecido. — Quero formular algumas perguntas. Qual dos senhores traz uma arma? Façam o favor de avisar imediatamente. Não pretendemos tomá-la, mas trata-se de fazer uso dela.

John Marshall foi o primeiro que levantou o braço. Vários passageiros seguiram seu exemplo, inclusive Homer G. Adams, depois de ligeira hesitação. Ao todo eram sete.

Logo começaram a perguntar o que significava tudo isso.

— Silêncio! — voltou a trovejar a mesma voz. — Encontramo-nos numa situação crítica. Alguns dos passageiros dominaram a tripulação e assumiram o comando do avião. Vários deles entraram na cabina de passageiros, para desarmar todo mundo. O que importa no momento é vigiar esta porta, para não deixar ninguém entrar. E peço que formulem sugestões de como podemos restabelecer a ordem a bordo.

— O senhor não pode manter essa porta trancada! — indignou-se uma senhora. — Meu marido e meus filhos estão na cabina de passageiros.

Outras pessoas formularam objeções semelhantes. Mas ficaram em minoria e suas palavras não encontraram receptividade.

— Neste momento não podemos preocupar-nos com problemas desse tipo. Peço-lhes que mantenham a disciplina e não se esqueçam do perigo em que nos encontramos.

— Seria conveniente não exagerar o perigo — disse alguém que se encontrava num ponto mais afastado. — Se enfrentarmos esses bandidos, poderemos levar a pior. Essa gente não deve estar interessada em matar-nos; sem dúvida só está atrás dos nossos pertences. Proponho que capitulemos imediatamente, para não arriscarmos a vida.

— Seu covarde! — protestou alguém.

Outro passageiro manifestou uma suspeita:

— Até parece que você é um dos bandidos.

— É bom que só fale um de cada vez — pediu John Marshall. — Creio estar em condições de explicar os acontecimentos. O importante é vigiar a entrada da cabina de passageiros.

Alguns homens armados adiantaram-se e se ofereceram para cuidar desse ponto.

— Conte! — pediu o passageiro que falara em primeiro lugar, dirigindo-se a John Marshall.

— De início quero ressaltar que não tenho certeza de nada — principiou este. — Mas o que sei me leva a desconfiar de que o perigo não é de ser menosprezado. Não há dúvida de que os bandidos estão interessados nos nossos pertences. E trata-se de algo bem definido, no valor de pouco mais de vinte e três mil libras esterlinas. Já se apoderaram desse dinheiro.

— Se é assim, por que fazem tanto espalhafato? — perguntou um dos presentes. — Não querem tirar nada dos outros, inclusive de mim?

— Provavelmente não. Dificilmente estarão atrás do seu dinheiro. Quando muito, estarão interessados nas jóias de sua esposa. Para nós o grande perigo resulta do fato de que os bandidos devem estar empenhados em matar a vítima do roubo, pois o dinheiro e algumas outras coisas que não vêm ao caso só estarão seguras em suas mãos se matarem esse homem.

— Quem é a vítima?

— Isso não interessa.

Adams não se conformou com a recusa de Marshall. Levantou-se e cumprimentou os presentes.

— A vítima sou eu. Queiram perdoar se minha presença lhes trouxe tantos problemas, mas a culpa não é minha.

Adams sentiu a mão de Marshall pousada em seu ombro. Voltou a sentar. Era preferível que John Marshall falasse.

— Senhoras e senhores, dentro de pouco tempo seremos obrigados a agir. Por isso peço-lhes que se abstenham de perguntas supérfluas. O perigo atinge a todos, por menos interessados que os bandidos estejam na maioria dos senhores. Estão atrás do senhor Adams. Para eliminá-lo, não hesitarão em desviar o avião para outro local. Talvez seja um trecho inóspito do litoral, a selva da índia ou as montanhas do Tibet. Acho que já compreenderam que devemos tomar alguma providência para defender-nos. Enquanto estivermos voando, não corremos nenhum perigo imediato. Mas isso pode mudar logo.

Até ali nenhum dos bandidos tentara arrombar a porta que ligava o salão à cabina dos passageiros.

Ainda havia alguns membros da tripulação no trecho não ocupado do avião. Eram dois cozinheiros, um garçom e três aeromoças.

Marshall dirigiu-se a eles.

— Deve haver um telefone para comunicação com a cabina de comando. Será que posso usá-lo?

A cortesia numa situação dessas nunca deixa de impressionar. Marshall foi conduzido imediatamente ao aparelho. Um dos garçons comprimiu o botão. Do outro lado da linha atenderam. Mas desta vez não se percebeu nada de cortesia.

— Que quer? Pretende fazer propostas de paz? Fale logo.

— Adivinhou! Se não fosse isso, não teria entrado em contato com vocês.

— Não haverá paz, a não ser que capitulem incondicionalmente.

— É isso que queremos evitar. Afinal, as negociações servem para alcançar uma solução conciliadora.

— Não gaste seu fôlego à toa, rapaz. Ainda precisará dele.

— Um momento! É claro que temos algo a oferecer. Sei muito bem que gente do seu tipo não dá nada de presente.

— O que é que você pode nos arranjar?

— Tenho dinheiro. Isto é, um dos passageiros tem.

— Muito obrigado pela informação. Ainda hoje apanharemos o resto da grana. Não se preocupem com isso antes do pouso.

— Acontece que o dinheiro não se encontra a bordo. Não convém falar tanto no telefone. Muita gente está escutando. Você me garante livre trânsito para ir à sala de comando e voltar?

— Se deixar a pistola para trás, pode vir.

Marshall ainda teve de enfrentar problemas com alguns dos passageiros. Uns achavam que a tentativa de negociação era inútil, face à situação de inferioridade em que se encontravam. Outros, sem rebuços, manifestavam a suspeita de que era um dos inimigos, e que apenas desejava escapar. Mas acabaram permitindo que fosse.

Na cabina de passageiros Marshall foi recebido pelos bandidos, que o conduziram à cabina de comando. Enquanto andava, procurou calcular seu número. Eram pelo menos dez, o que o deixou bastante impressionado.

O homem que se encontrava no assento do piloto era um estranho muito bem trajado. Assumira o comando, ajudado por dois elementos, e parecia dominá-lo perfeitamente.

— Johnny, ocupe meu lugar enquanto converso com este cavalheiro. Bom dia. Foi você que telefonou há pouco?

Marshall sentou sem esperar convite.

— Gostaria de expor meu ponto de vista sobre a situação. Vocês concluirão se estou com a razão ou não.

— Fale, seu profeta de meia-tigela.

— Vocês estão atrás de Adams. Já se apoderaram do seu dinheiro. Só precisam acabar com ele, para que não os possa incomodar mais. Mas não podem matá-lo e aterrissar em Tóquio conforme a previsão. Por isso pretendem pousar em algum ponto do sul da Ásia, de onde desaparecerão sem deixar vestígios. O que me importa é a sorte dos outros passageiros, nos quais vocês não devem ter o menor interesse. Consegui fazer-me entendido até aqui?

— Continue, meu filho. Não deve ser só isso que tem a dizer.

— Por enquanto é só. Minha oferta só faz sentido se a exposição que acabo de fazer for correta.

— Você disse que nos arranjaria algum dinheiro. Sabe onde Adams está guardando o resto? O dinheiro que nos oferece é de Adams, não é?

— É claro! São mais de quarenta mil libras depositadas no Banco de Montreal. A proposta que faço é a seguinte: sacrifico Adams e o resto do seu dinheiro, fora algumas despesas para mim, é claro. Em compensação os senhores garantem a segurança dos outros passageiros. Concordam?

— Em quanto calcula suas despesas? — perguntou o chefe.

Depois que Marshall mencionara a soma de quarenta mil libras, tornara-se muito mais cortês.

— Duas mil libras. Não quero prejudicá-los.

— De acordo. Sua proposta é razoável. Como faremos para pôr a mão no dinheiro?

— Terá de fazer de conta que está negociando com Adams. Descobriremos um meio de dissipar suas suspeitas. Afinal, ele estará pagando seu próprio resgate. Tenho certeza de que tem um código para transferências telegráficas. Dessa forma o assunto poderá ser resolvido sem maior perda de tempo. É verdade que ele só me conhece desde o meio-dia, quando nos encontramos em Croydon, mas já consegui captar a confiança dele. Mas vamos à segunda parte do nosso acordo. Onde pretendem pousar? — John Marshall manteve todo o auto domínio.

— Dispomos de um lugar muito bom perto de Rangun — disse o chefe, enquanto no íntimo evocava um ponto completamente diverso. — Dali será fácil entrar em contato com Londres. E seus cordeirinhos não demorarão em encontrar condução para Tóquio.

Poderia dizer como é seu campo de pouso secreto? Estou interessado nos detalhes, porque não quero correr o menor risco.

Era evidente que o chefe estava pensando no sul da índia, numa região situada entre as montanhas de Cardamon e a cidade de Madura. O que dava na vista era a transição de uma espessa mata virgem numa área extensa de estepes.

— Trata-se de um velho aeródromo para naves que pousam e decolam na vertical. Serve perfeitamente aos nossos objetivos. Nas proximidades só existe uma aldeia de nativos. Assim não correrei maiores riscos. Então, como é? Vai falar com Adams?

— Naturalmente. E é bom que seja logo.

— Muito bem. Vá. Cá entre nós, consideramo-nos em estado de armistício.

John Marshall voltou.

— Eles nos deixarão em Rangun — declarou aos passageiros. — Dali existe conexão para o Japão e a Coréia. A única exigência que fizeram é que após o pouso permaneçamos a bordo o tempo suficiente para que os bandidos se coloquem a salvo. Não consegui arrancar mais que isso.

— É muito, se for verdade. Mas é pouco se considerarmos que não dispomos de nenhuma garantia de que a promessa será cumprida.

Marshall procurou tranqüilizar seu interlocutor.

— Não podemos ser muito exigentes. Se achar que pode conseguir um acordo mais vantajoso, vá até lá.

A maior parte dos passageiros pôs-se do lado de Marshall, louvando sua coragem.

Enquanto o tom das conversas foi crescendo e uma das aeromoças anunciava que no momento estavam sobrevoando a parte norte do arquipélago das Maldivas, John Marshall, sem que ninguém o percebesse, retirou-se em direção ao toalete. Tirou do bolso um minúsculo transmissor, que pareceria um tanto estranho aos olhos de qualquer técnico terreno do século XX.

— É Marshall que fala, é Marshall. Estou chamando a Terceira Potência. Por favor, respondam. Aqui fala John Marshall. Por favor, Perry Rhodan, responda!

As sereias uivaram e campainhas estridentes tiniram no território bloqueado do deserto de Gobi.

A voz de Reginald Bell saiu retumbante dos alto-falantes fixados do lado de fora das barracas:

— Alarma número um! Os combatentes devem comparecer imediatamente ao comando central.

Perry Rhodan, que estava prestes a voltar para junto do cérebro robotizado para fazer realizar alguns cálculos detalhados, fez meia-volta e correu os duzentos metros. Chegou juntamente com Kakuta, o capitão Klein é o tenente Kosnow.

— Minha gente, já encontramos um ministro das finanças — explicou Bell. — Mas ele se encontra nas mãos de uns bandidos. Dentro de poucos minutos será largado na ponta sul da índia, onde por certo darão cabo dele.

Marshall acaba de transmitir o comunicado.

— Todos para a nave espacial! — ordenou Rhodan.

Quando saíram da barraca, cruzou com Thora.

— Mais uma vez a humanidade se encontra em estado de alarma — constatou esta em tom indiferente.

— Precisamos da nave, Thora. Não acredito que você ou Crest tenha outros planos com ela.

— Fique à vontade, Perry. Vejo que mais uma vez tem de resolver um assunto de repercussão mundial.

Rhodan não teve tempo de aborrecer-se com o tom irônico em que foram proferidas essas palavras. Continuou a correr, pois a senha “ministro das finanças” bastara para trazer-lhe à consciência a importância dos acontecimentos que se desenrolavam naquele instante.

Calculara de cabeça a distância entre o deserto de Gobi e o décimo grau de latitude e concluíra imediatamente que mesmo com seu traje de arcônida não chegaria a tempo. A única possibilidade era a nave espacial, cuja aceleração seria suficiente para vencer em poucos minutos a distância de quatro mil quilômetros.

Exatamente oitenta e cinco segundos se passaram do alarma até a decolagem da nave-gigante. Bell, profundamente reclinado na poltrona, dispensou todos os dispositivos de direção automática.

— Peter! — gritou, dirigindo-se a Kosnow. — Gire o mapa para o sul da índia. A coisa acontecerá a cento e cinqüenta quilômetros a oeste de Madura. Temos de ir ao encontro do avião um pouco mais ao sul, Perry. Se conseguirmos avistá-lo, tudo dará certo. Da última vez que Marshall anunciou sua posição, encontravam-se sobre as Maldivas.

— Não há problema — disse Perry Rhodan em tom tranqüilizador. — Com este balão mágico conseguiremos.

A nave esférica dos arcônidas voava a cento e trinta quilômetros de altura. Via-se perfeitamente que o globo terrestre girava abaixo deles, como se um punho titânico lhe tivesse desferido um tremendo soco. O planalto do Tibet, o Himalaia, o Nepal, o Ganges deslizaram abaixo deles. Por alguns minutos passaram sobre a água do Golfo de Bengala, entre Dchaipur e Madras. De repente Reginald Bell avistou o avião. Os homens acotovelaram-se à frente da tela.

— Deve ser o traço cintilante que se vê ali. Mantém uma rota bem definida. A altitude é de dez mil metros, aproximadamente.

— Tomara que não nos vejam! — disse Kosnow.

— É impossível! — Bell sorriu. — Colocamos a capa que nos torna invisíveis. Mesmo que esses cavalheiros examinem o céu por cima deles, o mecanismo defletor dos raios luminosos fará com que não vejam a menor mancha. Quer que desça mais?

Rhodan fez que sim.

— Aproxime-se a dois mil metros. Devemos aterrissar logo após o avião. Não quero dar muito tempo aos bandidos, para que não tomem qualquer medida defensiva.

— Será que podem fazer alguma coisa contra nossos armamentos?

— Têm muitos reféns a bordo — ponderou Rhodan. — Nestas condições nossa superioridade técnica não adiantará muito.

 

— Que história de quarenta mil libras é essa? — disse Homer G. Adams indignado. — Não tenho esse dinheiro. Se tivesse, não estaria disposto a...

— Sei que você é um pobretão — tranqüilizou-o Marshall. — Mas não é necessário contar isso aos bandidos. Basta entreter o chefão por algum tempo, até que recebamos auxílio. De qualquer maneira terá de fazer de conta que possui esse dinheiro e que está disposto a dá-lo em troca da vida.

— Até que recebamos auxílio? — disse Adams, esticando as palavras. — Será que você dispõe de relações que lhe permitem dar expressão a uma esperança desse tipo?

John Marshall esboçou um sorriso misterioso.

— Bem, você pode pensar no assunto. Ainda dispõe de exatamente três minutos até o pouso. Aí provavelmente o chefão não tardará a chamá-lo.

Adams olhou para o relógio e a pequena tela que se encontrava sobre a entrada da cozinha de bordo.

— Ainda faltam mais de dois mil quilômetros para Rangun. Acho que você errou na conta, Marshall.

— Nada disso! Vamos aterrissar perto de Madura.

Não havia tempo para outras perguntas. O chefão já iniciara as manobras de aterrissagem. O avião desceu como uma pedra que despenca num abismo. Os passageiros tiveram de segurar-se. Depois de um baque pesado, o avião parou.

— Aterrissamos! — disse alguém.

Na tela via-se uma paisagem de estepe coberta de arbustos e mais ao longe, que nem uma muralha, a beira de uma densa floresta.

Marshall voltou a usar o interfone. Ao voltar, disse:

— Adams, o pessoal quer que você venha comigo. Os outros devem esperar até que as negociações estejam concluídas. Peço aos cavalheiros que mantenham a calma e a disciplina por mais alguns minutos. Não há motivo para duvidar do desfecho feliz das negociações.

Marshall e Adams tiveram de usar o elevador para chegar à proa, já que o jato se encontrava em posição vertical. Os assentos dos passageiros haviam realizado um giro de noventa graus nas suas articulações.

— Sinto observar, chefe, que você não cumpriu nosso acordo — protestou Marshall ao entrarem. — Será que é tão ignorante de geografia que não sabe distinguir o Norte e o Sul da índia?

— Decidimos de outra maneira, Marshall. Mas isso não prejudica nosso acordo. Madura é tão boa quanto Rangun.

— Acontece que Madura fica a cento e oitenta quilômetros daqui. Como vai levar os passageiros para lá num curto espaço de tempo?

— Deixe isso por minha conta. O que me interessa saber é o que Adams acha da minha proposta.

— Por mais benevolente que se queira ser, sua proposta não passa de um ato de chantagem — disse Homer G. Adams em tom contrariado. — De qualquer maneira, tomei conhecimento da sua exigência e tenho de admitir que minha vida vale o dinheiro que possuo. Mas não pensarei em pagar um resgate enquanto minha segurança pessoal não estiver garantida. Peço-lhe que me dê suas idéias sobre este ponto.

— É tudo muito simples. Você assina um cheque, envio um mensageiro a Madura, onde temos possibilidades de entrar em contato com o Banco de Calicut, e aguardaremos para saber se o negócio está em ordem. Assim que a quantia combinada estiver em minhas mãos, solto você e os outros passageiros.

— O negócio não serve. Em primeiro lugar é muito demorado, pois com essa história de mensageiro perderemos ao menos dois dias. Depois, não há nenhuma reciprocidade de garantias. Como vou saber se me soltará quando estiver com o dinheiro nas mãos? Queira pensar numa solução melhor e procure ser objetivo.

— Até parece que você ainda não compreendeu a situação em que se encontra — respondeu o chefão em tom mordaz. — Acontece que todas as vantagens estão do meu lado, e não estou disposto a desistir delas por causa da sua paixão pela objetividade.

— Hum! — interveio Marshall, cujo rosto apresentou um estranho traço de otimismo. — Se alguém pode falar em vantagem somos nós, não você. Seria conveniente que se interessasse um pouco por aquela tela, que lhe pode revelar algumas belezas paisagísticas e outras surpresas.

Num movimento reflexivo todos olharam para a tela, onde se viam figuras estranhas que caíam do céu.

— Esses trajes não são de mergulhador — esclareceu Marshall em tom satisfeito. — Trata-se de uma pequena brincadeira técnica realizada por uma civilização superior. O azar é seu, pois esses homens são meus aliados. Que tal deixarmos de lado esse jogo de esconder e passarmos às realidades, chefe? Sugiro que coloquem suas armas sobre a mesa, levantem as mãos e nos digam onde esconderam os membros da tripulação, para que este jato possa chegar a Tóquio sem maior atraso.

A única resposta consistiu num sorriso confuso. No rosto do chefe dos bandidos espelhavam-se a surpresa, a incredulidade, o medo e a raiva.

— Marshall, você é um sonhador incorrigível. Deixe de blefes. Esses dois esquisitões podem passear à vontade por aí. Devem estar curiosos por termos realizado um pouso não programado. Dificilmente representarão um reforço para você. Vamos voltar ao assunto.

— Estamos no assunto, chefe. Para falar com franqueza, sua leviandade me assusta um pouco. Se fosse você, já teria procurado liquidar esses visitantes que vieram sem serem convidados.

— Haja quem compreenda você, Marshall! Às vezes até parece que está se candidatando para ser um membro do nosso grupo. Mas está bem, vamos atirar. Jim, você pode dar conta do recado.

Jim levantou-se com um sorriso de escárnio no rosto e pegou uma pistola automática. O chefe acionou um mecanismo que abriu uma pequena escotilha. Jim tomou posição de tiro. Apertou o gatilho e manteve a mira centrada sobre os dois vultos estranhos até esvaziar o pente de balas. Ao abaixar a arma fez uma cara de espanto.

— Ainda estão aí, chefe. Aposto que acertei pelo menos um de cada três tiros. Alguém pode me dar mais um pente de balas?

— Você vai gastar munição à toa — disse subitamente uma voz masculina com sotaque japonês. Ninguém, a não ser John Marshall, estava preparado para a aparição. Os homens viraram-se sobressaltados e encararam o rosto de Tako Kakuta.

— Quem é este? — gaguejou o chefe. Estava tão confuso que o japonês não teve a menor dificuldade em quebrar a última resistência com o psicorradiador que trazia no bolso.

— Sou amigo de vocês, cavalheiros. Coloquem as armas aqui e recuem até a parede. Não lhes faremos nada.

Dentro de poucos segundos os bandidos estavam encostados à parede e deixaram que os algemassem. Dali a pouco o restante do bando foi dominado e os membros da tripulação puderam ser libertados.

John Marshall trocou algumas palavras com o comandante da aeronave, ao qual desejou uma boa viagem a Tóquio. Face ao desfecho feliz da aventura os homens rodearam-no, convidaram-no para uma lauta refeição e formularam inúmeras perguntas.

— Sinto decepcioná-los! Acontece que sairei de bordo em companhia do senhor Adams. Não estou habilitado a prestar todos os esclarecimentos. Peço-lhes que se contentem com o fato de terem escapado sãos e salvos e sem prejuízo no seu patrimônio.

 

— Fico-lhe muito grato — disse Homer G. Adams, dirigindo-se a Marshall, depois que o foguete havia desaparecido nas nuvens. — Evidentemente, peço que me forneça as explicações que recusou aos passageiros.

— Será que precisa de esclarecimentos?

— Por que não? Acha que sou algum vidente?

— É o que vamos descobrir. Afinal, você é o maior especulador de Bolsa e manipulador financeiro que já existiu sobre a Terra. Uma coisa dessas não acontece por nada. Em geral os supergênios possuem um sexto sentido. É claro que você possui dons sobrenaturais ou supersensoriais, conforme queira exprimir-se.

— Você acredita seriamente nessas lorotas? — perguntou Adams.

— Não — respondeu Marshall. — Não acredito. Não devemos confundir ciência com religião. Na primeira sabe-se alguma coisa, na última acredita-se. E a parapsicologia é uma ciência.

— Gosto muito de aprender — disse Adams com as sobrancelhas levantadas. — A única coisa de que entendi até hoje foi o dinheiro.

— E com isso revelou bons conhecimentos de psicologia das massas. E a distância entre a psicologia e a parapsicologia só é de um passo, mesmo que esse passo conduza por cima de uma muralha. Você deve estar surpreso com a aparição de meu amigo Kakuta. Quando tiver recebido alguma instrução parapsicológica deixará de surpreender-se.

— Quer dizer que você é um fenômeno parapsicológico? — perguntou Adams, dirigindo-se ao japonês. — Devo confessar que fiquei tão surpreendido com sua aparição quanto os bandidos. De qualquer maneira, deve haver uma explicação natural para isso.

— É claro que há — confirmou o japonês com um gesto amável. — Assim que a teleportação for um fenômeno natural para você, minha aparição também será.

— Tele... o quê?

— Sou filho de um casal de japoneses que por ocasião do lançamento da primeira bomba atômica, em 1945, ficou exposto a intensas radiações. Dali resultou uma mutação das características hereditárias. Tornei-me um mutante.

Homer G. Adams ficou calado. Seu sorriso já não apresentava o menor traço de ironia. Depois de algum tempo disse:

— Você é capaz de, independentemente de quaisquer recursos técnicos, transformar seu corpo em energia e fazê-lo ressurgir em outro lugar. É isso?

Tako Kakuta confirmou.

— Em princípio, sim. Acontece que o lugar em que posso ressurgir fica sujeito a limites bastante restritos. É possível que através de um treino persistente, eu possa ir aumentando a distância.

— Isso é formidável, meu caro. Com esse dom você poderia...

Adams interrompeu-se em meio à frase. Um contato importante parecia ter-se completado em seu cérebro.

— Continue — pediu Marshall. — Kakuta é um homem que sabe apreciar os bons conselhos.

— Um instante — pediu Homer G. Adams. — Como foi essa história da rajada de tiros disparada por Jim? Onde foram parar os dois homens naqueles trajes estranhos? Por que Jim não conseguiu matá-los?

— Você está formulando muitas perguntas de uma só vez. Jim não conseguiu nada porque os projéteis que disparou foram absorvidos por um envoltório energético. Os dois homens não sofreram nada. Retiraram-se para trazer nossa nave até aqui. Afinal, queremos dar o fora daqui o quanto antes. Poderei pedir ao nosso comandante que o leve a Tóquio.

— O que vou fazer em Tóquio, Marshall? Dali teria que seguir viagem e fazer outra baldeação em Pequim. Aqui estou muito mais perto do meu destino.

— Nesta estepe junto às montanhas de Cardamon?

— Vamos deixar de fingimento, Marshall? Desde Londres você está atrás de mim, não é verdade?

— É verdade. Quando descobriu?

— Meu cérebro deve ter sofrido bastante nos últimos quatorze anos. Só agora começo a enxergar as coisas. Nossos objetivos eram os mesmos, mas nenhum de nós sabia do outro.

— É um engano seu. Eu sabia.

— Conhecia as minhas intenções? Desde quando?

— Desde que saiu da penitenciária. Estávamos muito interessados na sua pessoa. Você compreenderá quando Perry Rhodan lhe expuser com todos os detalhes o estado lastimável das nossas finanças.

— Por que se lembraram justamente de mim?

— De quem iríamos nos lembrar? Não há dúvida de que você é um gênio financeiro. Ainda bem que, depois daquele processo sensacional, ao menos permitiram que continuasse a viver. Encontramos num arquivo diversas notícias de jornal que despertaram nossa atenção. Estudamos o seu passado. Rhodan decidiu conseguir um indulto para você e acompanhar seus passos, para que logo se encontrasse conosco.

— Espere aí! Afinal, minha pena foi comutada por bom comportamento...

— Isso não deixa de ser verdade. De qualquer maneira nossos agentes utilizaram certos recursos dos arcônidas para apressar a decisão da Justiça. Temos um aparelho psíquico, que estimula a capacidade decisória do indivíduo através de certas radiações de alta freqüência. Você já teve oportunidade de assistir ao seu funcionamento. Foi quando Kakuta desarmou os bandidos.

— Está certo — objetou Adams. — Você me apresentou Kakuta, que é um verdadeiro teleportador. Além disso, fez, num espaço de poucos minutos, uma demonstração das conquistas mais formidáveis da tecnologia. Mas ainda resta sua afirmativa de que já conhecia minhas intenções quando deixei a penitenciária. É verdade que nas últimas semanas acompanhei com o maior interesse todo o noticiário jornalístico sobre Perry Rhodan. Também é verdade que aos poucos foi surgindo em mim o desejo de ser útil a ele, se tivesse possibilidade para isso. Mas não falei com quem quer que seja sobre estes meus planos.

— Mas pensou neles. Para mim isso basta.

Mais uma vez, Adams não soube o que responder. O japonês veio em seu auxílio, esboçando um sorriso.

— É que John Marshall é nosso segundo exemplar parapsicológico. Isso explica tudo, Adams. É um telepata. Basta que você pense intensamente numa coisa para que ele possa tirar suas conclusões.

— Isso me deixa tonto, meus caros. Afinal, não sou tão jovem assim. Deviam ter um pouco de consideração por minha pessoa.

— Se quiser trabalhar para Perry Rhodan, deve acostumar-se a muita coisa aparentemente inacreditável. Mas pela nossa experiência no assunto podemos asseverar que o homem se acostuma muito depressa a essas coisas. Ah, aí vêm nossos amigos. Entregue-me sua pasta, Adams.

— Nem pense nisso. Não sou tão velho que precise de um carregador por causa de alguns quilos de papel moeda. Aliás, falta explicar uma coisa, se bem que a esta altura eu talvez devesse adivinhar tudo. O chefão dos bandidos disse que seu destino seria a cidade de Rangun. Apesar disso, você sabia que ele pousaria aqui. Também descobriu isso por via telepática?

— Só poderia ter sido. Minha aparente disposição para negociar não passou de um blefe. Só tive necessidade de um ligeiro contato com o homem para descobrir seus planos. Assim que soube que pretendia pousar a oeste de Madura, informei nossos amigos no deserto de Gobi. O resto ficou por conta deles.

A gigantesca nave esférica dos arcônidas pousou diante de Marshall, Adams e Kakuta e abriu uma das escotilhas. Quando se encontravam a cerca de duzentos metros de distância Perry Rhodan surgiu na escotilha e saltou para o chão. Foi andando devagar ao encontro deles. Dali a pouco o dirigente da Terceira Potência viu-se pela primeira vez diante de seu “ministro das finanças”.

— Seja bem-vindo, Adams. Fico satisfeito em saber que encontrou o caminho para junto de nós.

— Foi um caminho muito difícil, Rhodan, mas tive um prazer imenso em percorrê-lo. É que não sei ficar sem fazer nada. Foi o que mais senti nos últimos quatorze anos. Você tem problemas financeiros, não tem?

 

Nova Iorque.

Quem caminha da esquina da Broadway com a Quinta Avenida na direção norte encontra do lado esquerdo um edifício de vinte e dois andares, construído no fim da década de trinta. Mal se vê a fachada, já que mais de trinta firmas penduraram nela propagandas luminosas. Há anos ninguém se preocupa com a beleza ou a feiúra desse tipo de enfeite, pois o aspecto desse edifício em nada se distingue dos demais de Manhattam. Só os funcionários de alguns escritórios situados nas proximidades notaram que numa segunda-feira ensolarada alguns trabalhadores se puseram a executar obras na área situada entre o sétimo e o nono andar. Dentro de poucas horas foi retirada a propaganda de certa marca de pasta de dentes, de um xampu e um pneu antiderrapante. De noite, as letras GCC reluziam em tonalidades amarelo-azuladas. A única coisa notável foi a velocidade do trabalho, que permitiria a um observador atento tirar certas conclusões sobre a mentalidade do patrão.

No entanto, só no dia seguinte descobriu-se o que significavam as letras GCC. Um anúncio de página inteira do New York Times deu notícia de que a General Cosmic Company abrira seu escritório naquele local. A propaganda apontava a empresa como agência de consultoria e oferecia a qualquer interessado, fosse qual fosse seu ramo de atividade, assessoria e também maquinismos adequados a preços extremamente favoráveis que, em comparação com as vantagens oferecidas, podiam ser considerados sensacionais.

O gerente, Homer G. Adams, seguindo instruções do proprietário, Benjamim Wilder, contratara três funcionárias. A única coisa que trouxera foi muito papel em branco. Não havia documentos escritos. Na conversa dirigida às três funcionárias limitara-se a dizer o seguinte:

— O proprietário da firma confiou-me a direção do negócio. Somos um empreendimento novo, que não tem tradição nem antecessores. Faço votos de que com o auxílio das senhoritas dentro de pouco tempo as letras GCC adquiram fama mundial. Exijo o máximo de dedicação e uma correção absoluta. Trazem consigo a vantagem de serem tão novas profissionalmente como é a firma. Crescerão com ela e conquistarão boas posições, desde que nos entendamos bem. Para os serviços de registro, escrita e contabilidade dispõem de máquinas. Para certos trabalhos intelectuais, como os de cálculo e estatística, temos este aparelhozinho eletrônico, cujo funcionamento lhes explicarei daqui a pouco. Quanto ao mais, exijo dedicação ao trabalho e correção, conforme já salientei, e ainda cortesia para com toda e qualquer pessoa que entrar neste recinto. Obrigado.

O expediente começava às oito e meia. Das nove horas em diante eram recebidos os clientes e vendedores. Às nove em ponto, a senhorita Lawrence anunciou o primeiro visitante. Era um mensageiro de uma casa de flores, que trazia um buquê de duas dúzias de gladíolos. O cartão que acompanhava as flores trazia a assinatura do proprietário da firma, senhor Benjamim Wilder. Homer G. Adams guardou o cartão com um sorriso condescendente e despendeu uma palavra de elogio para com o chefe ausente. O mensageiro foi dispensado com uma gorjeta de um dólar.

No momento em que o mensageiro saía, um cavalheiro que se chamava Abraão Weiss, e cuja largura correspondia à metade da altura, chegava.

— Bom dia, senhor Adams! Li seu anúncio no New York Times...

— Queira sentar, senhor Weiss.

Weiss deixou-se cair numa poltrona. Parecia bem disposto.

— Bem, senhor Adams, como ia dizendo, li seu anúncio e resolvi dar uma chegada até aqui para saber um pouco mais. Pensando bem, o que o senhor promete não é pouco.

— Depende dos padrões que se queiram usar. O que posso fazer pelo senhor, senhor Weiss?

— Bem... como direi? De início, minha visita tem um caráter puramente informativo. Sou bom nos negócios. Mas tenho muita curiosidade para conhecer todo e qualquer tipo de progresso. Talvez estaria perdendo alguma coisa se não o procurasse, não é?

— É bem possível. Diria que toda pessoa que não procura a GCC perde alguma coisa.

— Muito bem! Isso é um ótimo slogan.

— Afinal, o que está precisando? — disse Adams em tom tranqüilo. Embora não apreciasse os modos do visitante, isso não o impressionou.

— Sim, do que estou precisando? — refletiu Weiss. — Estou interessado num projeto no Colorado. Talvez seja interessante para o senhor. Entende alguma coisa de usinas de eletricidade?

— Trata-se de usinas atômicas?

— Não, de usinas hidráulicas. É um projeto totalmente convencional. Trata-se de produzir eletricidade com água represada. Não me diga que o projeto é conservador demais.

— Nem penso nisso. Quer dizer que está construindo uma hidrelétrica?

— Isso mesmo. No trecho superior de Arkansas, perto de Cripple Creek. Ou melhor, ainda não estou construindo. Mas minha firma gostaria de receber o contrato.

— Quer dizer que precisa de uma base de cálculo favorável, para poder concorrer com os outros pretendentes?

— Não é bem isso, senhor Adams. Nossa proposta já foi formulada e acredito que temos as melhores chances. Afinal, somos a empresa mais importante no setor. Mas, a título meramente informativo, gostaria de saber se tem alguma coisa no seu arsenal que poderia ser de utilidade para nós. Quero conhecê-lo melhor, sabe? Gostaria de saber quem é a GCC e o que faz. Talvez em outra oportunidade possamos concluir um negócio. Tenho certeza de que também aprecia um contato deste tipo, pois uma firma nova precisa tornar-se conhecida e estabelecer relações. Neste ponto nossa companhia é muito valiosa para o senhor.

Homer G. Adams não precisava desse tipo de ensinamento. Apesar disso não deixou perceber seu desagrado. A experiência lhe ensinara que os fanfarrões como Abraão Weiss são as pessoas que mais precisam de auxílio.

— É exatamente o que penso — disse, em tom amável, estendendo a caixa de charutos ao seu interlocutor. — Aceite, por favor!

Ele esperou que seu visitante acendesse o charuto e, depois, continuou:

— Não quero negar que somos uma firma nova, que ainda tem de criar seu campo de relações. Por isso mesmo, fico tão satisfeito em cumprimentá-lo a esta hora da manhã como meu primeiro visitante. Queira prosseguir. Seu caso é muito interessante. A construção de uma hidrelétrica é um procedimento um tanto antiquado, mas estou convencido de que o ramo ainda tem futuro. A energia atômica representa uma concorrência mais barata, mas, no fim, tudo se resume a um problema de custos. É nesse ponto que posso formular sugestões e propostas bem convidativas.

Durante a longa fala, Adams não tirara os olhos de cima do visitante. Notara um movimento suspeito em seu rosto carnudo. Aos poucos Abraão Weiss deixaria de lado suas maneiras reservadas, pois era evidente que desejava muito mais que uma simples visita a título informativo.

— Queira desculpar, senhor Adams. Pelo que diz é especializado nesse terreno...

— Somos especializados em quase todos os terrenos. É precisamente nisso que reside nossa força. Quem promete muito nos seus anúncios há de cumprir muito. De outra forma nem deveria criar uma firma como esta. Mas voltemos ao seu projeto. Pelo que sei, o senhor tem que temer ao menos os concorrentes que formularam propostas baseadas na energia atômica. Hoje em dia a construção de uma hidrelétrica — especialmente numa zona montanhosa — é tão dispendiosa que suas chances devem ser muito reduzidas. Em compensação, a manutenção de uma hidrelétrica é mais econômica. Quer dizer, o senhor ganhará o jogo no instante em que puder realizar a construção aproximadamente ao mesmo preço que o de uma usina nuclear.

Por um instante Abraão Weiss arregalou os olhos de espanto. Mas logo se controlou.

— É verdade. Vejo que está bem informado. Por favor, prossiga a sua exposição. Compreendeu o problema. Qual é a solução que sugere?

Homer G. Adams deu um sorriso gentil.

— A resposta a essa pergunta já representa um assessoramento pelo qual devia cobrar honorários. Mas, para mim, hoje é feriado. O senhor é meu primeiro cliente, ou melhor, visitante e interessado, e por isso concedo-lhe uma entrevista gratuita. De qualquer maneira, meu conselho não lhe bastará se o projeto for levado avante. Precisará das nossas máquinas. Queira dar uma estimativa do custo de uma hidrelétrica a ser construída em Cripple Creek. Peço-lhe que informe também a proporção desse custo que corresponde aos trabalhos de terraplenagem. Depois disso ouvirá minha proposta.

O gorducho sugou o seu charuto, como se tivesse de refletir antes de revelar cifras. Finalmente tomou uma decisão.

— A relação entre as cifras será a correta. Na realidade não conferem, já que não estou autorizado a revelar qualquer coisa sobre nossa proposta. O senhor compreende, não é?

— É claro que compreendo! Só se trata de um exemplo — disse Adams com um sorriso significativo.

— Bem, admitamos que o custo total do projeto importe em 1,3 bilhão de dólares.

Nesse caso o custo dos serviços de terraplenagem, inclusive dos alicerces, atingiria quinhentos e cinqüenta milhões.

— Bem, essas cifras já servem para alguma coisa. Faço-lhe uma proposta. O senhor poderia adquirir minha máquina, que reduz o custo dos serviços de terraplenagem em cerca de 90%. Isso significaria uma economia de perto de quinhentos milhões de dólares e eliminaria qualquer concorrência.

Abraão Weiss ficou tão nervoso que fez um movimento desajeitado com a mão e espalhou a cinza do charuto sobre a calça. Depois respirou profundamente e exibiu um sorriso forçado.

— Vejo que tem senso de humor, senhor Adams. Pinta utopias que não podem deixar de representar um atrativo para uma pessoa que tenha um interesse real. Seria conveniente que não levasse a hipótese para o terreno das abstrações; devia partir do pressuposto de que o problema que acabo de formular pode transformar-se num problema real para um dos seus clientes.

— Se acredita que estou brincando comete um engano, senhor Weiss. Estou convencido de que o exemplo que acaba de expor representa boa parte das suas preocupações. Disponho das máquinas de que acabo de falar. Minha firma está à sua disposição para uma demonstração prática. Basta telefonar para combinarmos dia e hora, desde que tenhamos chegado a um acordo sobre o preço. Se não tiver um interesse real no assunto, a GCC não poderá dar-se ao luxo de realizar uma demonstração tão dispendiosa.

Weiss levantou-se. Estava muito impressionado. Adams percebeu que aquele negociante ágil se encontrava numa encruzilhada da sua carreira e refletia intensamente sobre o que devia fazer. Depois de algum tempo perguntou:

— Quer dizer que quer proporcionar-me uma economia de quinhentos milhões. De outro lado, porém, teria de computar o custo das máquinas. Como se apresentaria o cálculo após isso?

— Não há necessidade de preocupar-se com o custo das máquinas na construção da hidrelétrica do Arkansas. Essas máquinas representariam um investimento permanente, que lhe permitiria executar mais vinte ou trinta projetos desse tipo.

— Compreendo. Mas essas máquinas devem ter um preço.

— O preço é fictício. Se tivesse de ser pago, ultrapassaria o valor de cinqüenta hidrelétricas. Por favor, deixe-me concluir. O que quero dizer é que as máquinas não estão à venda. Entro na sociedade com elas, e ambas as partes terão feito um bom negócio.

Abraão Weiss teve de esforçar-se cada vez mais para manter a compostura.

— Quer dizer que está atrás de uma participação no negócio?

— Não estou atrás de uma participação, mas tenho receptividade para ela. Com isso o negócio se tornará mais sério. Sugira à diretoria de sua empresa que convoque uma reunião especial do conselho fiscal e proponha a esses cavalheiros um aumento de capital da ordem de 51%. Esses 51% são o meu preço.

Weiss esboçou seu décimo segundo ou décimo terceiro sorriso daquela manhã. Mas esse último sorriso malogrou-se por completo. Com um gesto nervoso pegou o chapéu e, andando de costas, dirigiu-se à porta.

— Espero que ainda possamos conversar sobre isso, senhor Adams. Nas condições que acaba de propor, minha firma nunca fechará um negócio com o senhor.

— Nesse caso só me cabe lamentar que tenha desperdiçado seu tempo precioso. A GCC não tem o menor interesse em realizar negociações em torno dos seus preços. Nossos cálculos sempre são corretos, e por isso não podemos ceder um centavo. São 51%, senhor Weiss. Pense no caso.

O representante da construtora de hidrelétricas convencionais limitou-se a uma mesura desajeitada e desapareceu na ante-sala.

O nome do próximo cliente em perspectiva era André Clèment. Os cabelos escuros e sua figura pequena e esguia, bem como o nome, revelavam a ascendência latina. Segundo as informações da senhorita Lawrence, o senhor Clèment esperara por mais de quarenta minutos. Homer G. Adams concluiu que se tratava de outro homem com água até o pescoço.

— Bom dia, senhor Adams — cumprimentou Clèment com uma ligeira inclinação do corpo.

— Bom dia, senhor Clèment. Queira sentar. Aceita um cigarro?

— Muito obrigado. É muita gentileza da sua parte, mas não fumo.

— O senhor que é feliz — disse Adams. Clèment deu uma risada forçada.

— Não sou tão feliz como acredita. Se fosse não estaria aqui.

— Precisa de auxílio? De que se trata? De algum aperfeiçoamento tecnológico? Ou de alguma forma de assessoramento?

— Preciso das três coisas. E preciso logo. Talvez minha exposição lhe pareça muito estranha, mas seu anúncio foi concebido em termos tão gerais que se pode imaginar qualquer coisa. Procurarei ser breve, senhor Adams. Assim que perceber que não é o homem que procuro, queira avisar-me. Na pior das hipóteses perderei o meu tempo.

— Conte tudo. Prometo ser franco com o senhor.

— Represento a Minneapolis Mining Company. Além da mineração, a empresa também se dedica à construção de túneis. Como deve saber, no momento está sendo construída uma estrada de ferro de Salt Lake City para São Francisco. Na Serra Nevada será aberto um túnel de cerca de setenta quilômetros de extensão, que deverá sair perto de Sacramento. Desses setenta quilômetros, dez quilômetros já foram concluídos. Isto é, foram perfurados. Nossa empresa avança a partir do leste, enquanto a concorrente trabalha no oeste. E esta já executou o dobro do nosso trecho. O trabalho transformou-se numa corrida e não há dúvida de que nós a perderemos.

— Por que acha que isso representa uma tragédia? É verdade que a introdução de um ingrediente esportivo em toda e qualquer competição constitui uma característica tipicamente americana, mas o senhor deve ter seus contratos com o governo e basta cumpri-los. Não vejo como a concorrência pode incomodá-lo.

— Se estiver interessado, explicarei. Sua firma dispõe de experiência no setor de escavações subterrâneas?

— Pois é bom que saiba que se trata de um dos ramos em que nos especializamos. Se quiser fazer um relato minucioso o senhor não estará perdendo seu tempo, senhor Clèment.

— Muito bem. O contrato com o governo não abrange a totalidade do projeto. As ordens de trabalho são emitidas por trechos. Cada trecho é contratado com a firma mais capacitada. Se avançarmos no ritmo atual, o governo nos concederá a execução de cerca de um quarto do projeto. Acontece que nossos cálculos foram realizados no pressuposto de que executaríamos exatamente a metade do projeto. É claro que, num empreendimento desse vulto, têm de ser tomadas providências de longo alcance, a fim de que a indústria possa fornecer no prazo o material de que se precisa. Por isso fizemos pedidos há um ano e mesmo mais, pedidos esses que são muito superiores às nossas necessidades, se mantivermos o ritmo atual dos trabalhos. Dessa forma, financiamos antecipadamente certos materiais e serviços de que nunca nos utilizaremos. O que pagamos equivale ao que pretendíamos ganhar. Se computarmos a manutenção de sete mil trabalhadores, o resultado será trágico. O prejuízo é de tal vulto que dentro de poucos meses a Minneapolis Mining Company estará falida. Senhor Adams, peço-lhe que considere minha exposição estritamente confidencial. Aliás, em seu anúncio o senhor garante a máxima discrição.

— Não perca seu tempo falando em coisas óbvias, senhor Clèment. Estou me interessando tanto pelo seu problema que já vejo nele um problema meu. Seu problema consiste em abrir um grande furo na montanha, por onde os trens vão transitar mais tarde. Tenho um dispositivo pronto para ser patenteado, que pretendo recomendar-lhe. De que tamanho será o furo?

— Terá seis metros de altura e dezoito de largura.

— Um momento, por favor!

Homer G. Adams pegou um papel e escreveu algumas cifras. Dali a alguns minutos disse:

— Com minha máquina especial o senhor avançará dois quilômetros por dia. Para isso é necessário que todos os trabalhadores e objetos de valor sejam retirados do túnel enquanto a máquina estiver funcionando.

André Clèment deu um sorriso amarelo. Não protestou como Abraão Weiss, mas sentiu-se muito abatido.

— Não brinque, senhor Adams! Sei apreciar uma piada, mas aqui se trata da existência de minha firma. Não pode apresentar uma solução realística?

— Estou pronto a fazer uma demonstração com a máquina, senhor Clèment. Não sou nenhum fanfarrão. Nossa máquina transforma a matéria em energia. É claro que não se trata de um processo espontâneo como a reação em cadeia que se processa numa bomba nuclear. A energia liberada é armazenada em recipientes especiais e pode ser vendida com um bom lucro. Compreendo seu ceticismo. Mas não se esqueça de que está falando com um representante da GCC, que tem por objetivo a mais ampla racionalização e modernização tecnológica. Permita que lhe dê um conselho, senhor Clèment. Assista a uma demonstração de nossa máquina. Uma prova realizada com um metro cúbico de material será suficiente. Quando estiver convencido, decida.

— Está bem — disse o homem. — Vamos admitir que o senhor consiga convencer-nos. Com uma técnica tão revolucionária de escavações subterrâneas deixaremos o mundo de pernas para o ar. Os resultados financeiros serão inconcebíveis. Qual seria o custo da utilização de sua máquina?

— Uma participação de 51% na sua empresa.

Pela primeira vez revelou-se um traço comum entre André Clèment e Abraão Weiss. Tal qual este, Clèment saltou da sua poltrona e encarou Homer G. Adams, como se este tivesse perdido o juízo.

— Isso é ridículo! Será que o senhor não sabe o que representa a Minneapolis Mining Company? É uma empresa de âmbito mundial, que o senhor quer enfiar no bolso de uma hora para outra.

— Ora, meu caro! O que lhe ofereço vale muito mais que 51% da sua firma de âmbito mundial. E o senhor acaba de pintar em todas as cores o que será da Minneapolis Mining Company daqui a seis meses se não aceitar minha proposta. Nessas condições um homem que se propõe a, num verdadeiro golpe de mágica, transformar sua firma num empreendimento da maior projeção em todo mundo, e se contenta com uma participação de 51%, só pode ser considerado um verdadeiro altruísta.

André Clèment não pôde ocultar o tremor das mãos.

— Prefiro retirar-me, senhor Adams.

— Fique à vontade! Foi um prazer conhecê-lo, senhor Clèment. Quando tiver outros problemas, não deixe de me dar a honra de sua visita.

A secretária anunciou mais sete pessoas que haviam acorrido ao anúncio. Mas nenhuma delas chegou a impressionar Adams. Livrou-se delas em cinco minutos. Finalmente pôde dedicar-se a um telefonema.

— Alô, Klein. Como foi sua entrevista?

— Já me livrei dela. Há duas horas um repórter do New York Post cruzou meu caminho. Senti-me à vontade para tomar um drinque com ele. Minha máscara escorregou para o lado, conforme havia sido programado. O rapaz logo me reconheceu. Você devia ter visto como arregalou os olhos. Logo se pôs de sobreaviso e disse de sopetão que sou o tal do capitão Klein, um desertor das forças armadas americanas, que tem todo o FBI no seu encalço. Respondi que, sendo um rapaz inteligente, devia saber para quem estou trabalhando. Ele retrucou, com toda ingenuidade que todo mundo sabia disso. Fiz-lhe uma proposta de acordo. Se ele não revelasse minha identidade e, assim, desistisse de um furo espetacular, eu lhe daria a compensação adequada. Contei-lhe tudo que há de interessante sobre invasores desconhecidos, especialmente que, de uma hora para outra, devemos contar com uma invasão de grandes proporções dirigida contra a Terra. Ele confiou plenamente nas minhas fontes de informação. Se conseguir convencer o redator-chefe, a notícia deverá ser publicada na edição de meio-dia.

— Muito bem. São onze e trinta e oito. Vá até a Bolsa. Mantenha-se em contato comigo pelas ondas ultracurtas. Se tiver qualquer dúvida, pergunte. O Dr. Haggard e o Dr. Manoli já se encontram no saguão. Tenha cuidado para não deixar perceber que os conhece. Aos olhos do público vocês devem ser adversários.

— O.K., Adams. Quando a situação se tornar crítica, estarei a postos...

 

Na manhã daquele dia, a Bolsa de Nova Iorque abrira com um desânimo completo. Às dez horas as ofertas oscilavam em torno de dez pontos abaixo dos níveis do dia anterior. Assim mesmo os compradores eram muito escassos. No entanto, os vendedores também se mantinham retraídos, motivo por que a maior parte dos corretores foi ao restaurante para tomar uma xícara de café. As cotações mantinham-se inalteradas.

Quem estivesse lembrado da evolução dos negócios nas últimas semanas chegaria à conclusão de que a calmaria constituía um fenômeno altamente favorável. Após o surgimento da Terceira Potência no deserto de Gobi todas as ações caíram rapidamente. Em alguns casos a queda chegava a 75%. Quando a terceira guerra mundial estava prestes a irromper as circunstâncias indicavam não apenas uma crise econômica, mas um colapso total. Após isso surgiram provas do poder dos arcônidas. Os blocos políticos do Ocidente e do Oriente aproximaram-se e promoveram a constituição de uma união de todos os países da Terra. A invasão de uma nave espacial desconhecida fora rechaçada por Perry Rhodan. Os negócios voltaram a animar-se. A fé e a esperança dos homens cresceram. E o melhor barômetro desse crescimento foram as cotações da Bolsa.

Nesse meio tempo, as coisas já se haviam ajustado. O mercado entrara em franca recuperação. A humanidade, farta de sensações, já se acostumara à existência desse Estado um tanto misterioso situado na Ásia Central, que costumava ser designado como a Terceira Potência, muito embora o homem da rua ainda não tivesse compreendido a situação real. As cotações da Bolsa tornaram-se mais estáveis. O estado de marasmo daquele dia era a melhor prova disso.

Essa situação perdurou até o meio-dia.

Às doze em ponto surgiu a sensação. Poucos minutos antes o Dr. Haggard oferecera algumas ações de companhias petrolíferas trinta pontos abaixo da cotação e as vendera imediatamente. Os presentes deram de ombros, mas contentaram-se com a explicação de que mesmo no mercado de capitais vez por outra surge um otário. Quando saiu a edição do meio-dia do New York Post, Haggard foi tido como um clarividente, pois era o único homem que conseguira pôr seu dinheiro a salvo.

O susto, que sacudiu os homens da Bolsa até a medula dos ossos assim que leram a notícia da invasão, não se ligava ao seu bem-estar pessoal, mas única e exclusivamente ao seu dinheiro. Por alguns minutos não se entendia uma palavra em todo o saguão. Finalmente o senhor Oliver conseguiu fazer-se ouvir através dos alto-falantes.

— Senhoras e senhores, seria um absurdo se nos deixássemos influenciar até esse ponto por uma simples notícia de jornal. Não existem informações oficiais. A direção da Bolsa procurará averiguar imediatamente a veracidade do artigo.

No mesmo instante, um cavalheiro entrou precipitadamente e declarou em altos brados que a emissora de Pequim acabara de transmitir a mesma informação.

— 970 pela General Electric — gritou uma voz.

Por alguns segundos reinou um silêncio total. Logo a seguir começou um murmúrio que foi crescendo, até transformar-se num verdadeiro furacão. As cotações da General Electric naquele dia haviam sido abertas a 995.

Enquanto o senhor Oliver, com o auxílio de alguns policiais, restabelecia a ordem no saguão, nos corredores começaram a ser fechadas operações paralelas. Os otimistas farejaram uma boa oportunidade, os pessimistas procuraram livrar-se do que podiam. Só pelas doze e trinta conseguiu-se exercer algum controle sobre a oferta e a procura. Depois das perdas vultosas, a disposição dos compradores diminuiu rapidamente. Correram boatos de que a Bolsa seria fechada, mas muita gente protestou.

Os encarregados da GCC ainda se mantinham retraídos. Pelas instruções recebidas, a hora de comprar ainda não chegara, embora as cotações fossem extremamente favoráveis. Mas quando os negócios entraram em estagnação, o Dr. Haggard fez uma jogada tímida. Fez com que as cotações da Standard Oil baixassem trinta e cinco pontos. Com isso os ânimos voltaram a exaltar-se. Os preços tornaram a cair. Caíram rapidamente. Durante dez minutos, Haggard retirou-se do cenário. Deixou que os outros trabalhassem. Depois de algum tempo a disposição de comprar excedeu a oferta. Às 12:55 h, a Opiat Limited começou a reagir. Homer G. Adams no seu escritório soltou um palavrão inofensivo e transmitiu suas instruções pelo microfone.

— Manoli, você acaba de comprar Opiat. Realize com o capitão Klein uma operação paralela que dê na vista de todos. Desça quarenta pontos. Não poderemos sofrer nenhum prejuízo, pois tudo ficará em família.

Às 12:57 h, a Opiat Limited havia perdido 75% do valor com que abrira naquele dia. Os outros papéis apresentavam um comportamento semelhante. Nos últimos minutos antes da hora do fechamento da Bolsa dificilmente se encontraria um corretor disposto a negociar. Apesar dos prejuízos enormes, tudo indicava que o dia terminaria tranqüilamente. Mas no último instante explodiu a maior bomba de Homer G. Adams.

Os rádios portáteis transmitiram uma notícia extraordinária vinda de Sydney. Uma nave espacial desconhecida levantara uma frota pesqueira que se encontrava no Mar de Timor a uma altura de vários quilômetros e a deixara cair. O locutor nova-iorquino concluiu o comunicado com as seguintes palavras:

 

“A hipótese de nos encontrarmos diante de uma ação da chamada Terceira Potência deve ser excluída. Face aos últimos contatos diplomáticos, não há mais dúvida sobre a lealdade absoluta da mesma. Depois da queda da frota pesqueira no Mar de Timor, na qual pereceram umas quatrocentas pessoas, a nave desconhecida voltou a descer e abriu numerosas escotilhas, ou melhor, comportas de ar. Milhares de seres grotescos saltaram sobre o mar, como se fossem pára-quedistas e, depois de nadarem por alguns minutos, deixaram-se afundar. Só pode tratar-se de seres não-humanos para cujo organismo a água é um habitat adequado. Resta aguardar os acontecimentos para ver se a operação representa um ato preparatório da invasão dos continentes. O quartel-general das Nações Unidas emitiu um comunicado, segundo o qual já foram tomadas as primeiras providências para repelir os invasores.”

 

Ninguém mais pensou em fechar a Bolsa. As ações pareciam arder nas mãos dos seus possuidores. Os corretores mais empedernidos perderam a calma e passaram a vender a qualquer preço. Grandes trustes e conglomerados mudaram de dono no espaço de quinze minutos. Eram apregoados como se fossem frutas podres. Ninguém parecia preocupar-se com o fato de que ainda havia gente que sacrificava suas pequenas economias por um cesto de frutas podres.

No fechamento da Bolsa não havia cotações definidas. O clima era idêntico ao do grande desastre financeiro dos anos trinta.

A economia mundial parecia encontrar-se num estado de paralisia total.

Alguns capitães de indústria arruinados gastaram seus últimos centavos para comunicar-se com os colegas de sofrimento em todas as partes do mundo, enquanto em certas empresas o silêncio da economia moribunda já parecia ter tomado conta de tudo. Era o que acontecia, por exemplo, com a GCC.

Homer G. Adams interrompera todas as comunicações telefônicas e radiofônicas com seus representantes. Não queria correr o risco de ser espionado por alguém. Sentia-se bem em meio àquele silêncio.

Sentado atrás da mesa, refletia e esperava.

Pelas dezesseis horas o telefone tocou. Era Abraão Weiss.

— Alô, senhor Weiss.

— Que tal lhe parece a situação, senhor Adams?

— É uma boa piada, senhor Weiss. Amanhã tudo estará esquecido.

— Até parece que o senhor é o último otimista do nosso planeta.

— Orgulho-me de ser otimista. Espero encontrar algumas pessoas que pensam como eu. Por que está telefonando, senhor Weiss? Refletiu sobre minha proposta?

— Ainda está interessado?

— Claro que sim. Para mim a vida continua.

— Está bem. Poderíamos marcar um encontro para amanhã? Arranjarei um avião para o senhor.

— Não é necessário. Iremos no meu. Não é mais lento que o aparelho mais veloz que o senhor poderia conseguir.

— O.K., senhor Adams. Muito obrigado. Então está combinado para amanhã, às...

— Um momento! Está lembrado das minhas condições?

— Cinqüenta e um por cento para o senhor. Naturalmente.

Marcaram encontro para o dia seguinte, às seis da manhã.

Homer G. Adams reclinou-se novamente na poltrona. Seus pensamentos voltaram a ocupar-se do jogo de cifras que havia sido interrompido, jogo este que tinha um fundo bastante real. A palestra com Weiss acrescentara mais um fator que podia ser retirado da lista dos duvidosos.

A próxima interrupção só surpreendeu Adams porque este supusera que Clèment também entraria em contato com ele por telefone. Acontece que o baixotinho moreno apareceu pessoalmente.

— Boa tarde, senhor Adams. Pensamos na sua oferta. A Minneapolis Mining Company concorda com sua proposta. Pedimos que faça a demonstração com suas máquinas amanhã de manhã.

— Amanhã de tarde, senhor Clèment. De manhã tenho um compromisso no Meio-Oeste. Depois do almoço terei tempo para dar uma chegada a Sacramento. Serve para o senhor?

— Serve muito bem. Assim teremos tempo para evacuar a galeria, a rim de que o senhor possa realizar a demonstração sem qualquer risco.

— Muito bem! O senhor já conhece minhas condições. Já que está aqui, quero apresentar-lhe a minuta do contrato. Peço-lhe que a examine. Assim poderemos assiná-lo amanhã. Hoje mandarei passá-lo a limpo.

Clèment leu atentamente. Terminada a leitura, disse:

— Estamos de acordo com as linhas gerais. Apenas gostaríamos de formular uma contraproposta quanto à participação. Os diretores da empresa acham que a participação majoritária do senhor os colocaria em situação desvantajosa. Pedem que se contente com quarenta e cinco por cento das ações.

Adams exibiu um sorriso paternal.

— O senhor ainda mantém a tática de negociação dos tempos antigos, senhor Clèment. Meus respeitos! Ainda têm tanto interesse em manter a maior parte do capital? Não ficaram desanimados com o colapso da Bolsa?

— Nem um pouco. Como deve saber, nossas ações baixaram mais de cinqüenta por cento. Apesar disso estou convencido de que se mantém um alto conceito sobre a Minneapolis Mining, ainda mais que outras ações tiveram uma baixa muito maior. Nas condições atuais, o negócio que o senhor vai concluir com nossa firma ainda é o melhor possível, mesmo sem a participação majoritária.

— Há uma hora alguém disse que sou o último otimista. Fico satisfeito em ver que existem outros.

O homenzinho moreno fez uma mesura elegante.

— Vejo que nos entendemos muito bem, senhor Adams. Se a Minneapolis Mining conseguir fazer escavações mais rápidas, daqui a três dias liderará a construção de abrigos antiaéreos. Depois da catástrofe do Mar de Timor pouca gente estará disposta a gastar dinheiro em outra coisa. Como vê, conhecemos nossa importância e as chances de que dispomos. E o senhor aproveitará essas chances tanto quanto nós. É claro que pode haver algum motivo para esse sentimento de fim de mundo que anda por aí. Mas nesse caso nosso prejuízo será inevitável de uma forma ou de outra. Estamos nos preparando para o caso de que a vida continue de alguma forma. Quanto a mim, posso estar errado, mas desde que a humanidade existe, ela sempre tem encontrado uma saída.

Homer G. Adams sentiu-se emocionado por tamanha confiança na humanidade.

— Mandarei passar o contrato a limpo e levarei para o senhor amanhã. A GCC contenta-se com 45%. Acho que combinaremos muito bem.

 

Dois dias depois.

A demonstração do trabalho das máquinas da GCC fora um êxito total. Os contratos tinham sido assinados. Homer G. Adams tomou um avião e foi ao território da Terceira Potência, no Extremo Oriente, para apresentar seu relatório. Até mesmo Thora e Crest, que geralmente preferiam manter-se alheios aos assuntos intraterrenos, haviam aparecido para presenciar o relato.

— Como está o ambiente lá fora? — perguntou Perry Rhodan. — Espero que não tenhamos colocado um peso muito grande na nossa consciência.

Por um instante Homer G. Adams baixou a cabeça. Depois encarou seus interlocutores.

— Para mim, aquilo que passei nos últimos três dias apenas parece a repetição de alguma coisa que já aconteceu. Anos atrás mandaram-me para a penitenciária por isso. Hoje sei que minha atuação conta com a aprovação dos demais. Faço questão de ressaltar que não me sinto responsável pelos suicídios cometidos por aí. Um homem que não consegue superar a perda de valores materiais carrega um problema que só ele pode resolver. Além disso, acredito que a causa principal dos suicídios seja o medo da invasão.

Todos os olhares dirigiram-se a Perry Rhodan.

— De qualquer maneira semeamos o desassossego entre os homens. Mas sabemos perfeitamente que esse desassossego era necessário. A invasão representa um perigo real, que nos ameaça a cada dia e a cada hora. A cena do Mar de Timor, que Bell apresentou ao mundo por meio dos projetores arcônidas como um simples filme tridimensional, poderá ser um episódio real de amanhã. Temos o dever de proteger a humanidade contra esse tipo de perigo, pois ninguém mais está em condições de cumprir essa missão. Por isso mesmo cabe-nos aumentar nosso potencial industrial numa proporção adequada, e para isso temos que exercer uma influência considerável sobre a economia mundial. Os resultados dos nossos esforços costumavam ser medíocres em comparação com as necessidades. Uma entidade que se propõe a proteger e unir um planeta precisa dispor da força necessária. No início da semana, quando você foi a Nova Iorque, éramos uns pobretões em matéria de divisas. Como estão as coisas hoje, Adams?

— O fator decisivo foi o espetáculo proporcionado por Bell com a invasão fictícia do Mar de Timor. As providências detalhadas que antecederam a operação também foram bem executadas. Em poucos dias conseguimos pôr a Bolsa de Nova Iorque fora dos eixos. Uma atuação semelhante foi desenvolvida por Kakuta, em Tóquio, por Marshall, na Cidade do Cabo, por Li, em Londres e por Kosnow, em Berlim. Com um pecúlio de alguns milhões de dólares conseguimos adquirir as maiores indústrias e obtivemos a maioria em quatro conglomerados. É claro que uma manobra destas não pode ser executada todos os dias, pois o mundo não vai cair pela segunda vez no mesmo truque.

— Podemos inventar outros truques — disse Reginald Bell com a voz indiferente e ligeiramente professoral. Provavelmente quis dar mostras da sua fantasia.

— Por melhor que disfarcemos o blefe, ele será descoberto. É que sua origem será a mesma. E isso bastará aos espertos corretores da Bolsa. Além disso, esse procedimento constituiria uma irresponsabilidade da nossa parte. Ninguém pode estar interessado em lançar a economia mundial num caos completo. Uma economia livre está sujeita a leis rígidas. Depois de um grande colapso da Bolsa costuma haver uma época de calmaria, seguida pela recuperação. A manobra que encenamos ontem só pode ser repetida no mínimo de trinta em trinta anos, pois um colapso total da economia não traria vantagens a ninguém. Também nós seriamos sepultados sob os escombros. Posso assegurar-lhes que disponho de ampla experiência no setor. Aquilo que alcançamos anteontem foi o máximo que se poderia esperar. Será que algum dos cavalheiros não concorda com a minha opinião?

Homer G. Adams passou os olhos pelos seus interlocutores. A pergunta fora dirigida a todos, mas não havia ninguém que não soubesse que no fundo só se destinava a Perry Rhodan.

— Os resultados corresponderam inteiramente às sua previsões, Adams — respondeu Rhodan. — Sabe muito bem que no princípio tinha minhas dúvidas e também me teria contentado com menos. Na situação em que nos encontramos hoje só lhe posso manifestar meus elogios e minha gratidão. Além do mais conseguiu fechar alguns negócios excelentes com as máquinas dos arcônidas. Mas nesse terreno devemos agir com muita cautela.

— Naturalmente. Neste ponto o direito de veto de Crest continuará a ser reconhecido. Além disso, é você, Rhodan, que decidirá quais dos nossos segredos podem ser colocados ao alcance do público. O aparelho pendular matéria-energia, que foi colocado à disposição só da Minneapolis Mining e do senhor Weiss, da Steel & Concrete, deve ser considerado obsoleto sob os padrões arcônidas. Apesar disso foi muito valioso para nós. Essas empresas, na quais o senhor detém o controle acionário, sob o nome suposto de Benjamim Wilder, da GCC, já ocupam uma posição de monopólio na sua especialidade e exercerão uma liderança absoluta na época da recuperação econômica. Ao que parece, já não temos maiores problemas econômicos. Já dispomos dos sete bilhões exigidos pelo governo de Pequim. Não será mais necessário adquirir o território submetido à nossa soberania em prestações, conforme estava previsto. Pelos meus cálculos, poderemos contar com outros quatro bilhões nos próximos quarenta e cinco dias. Não é muito em comparação às nossas necessidades para a montagem de uma linha industrial. Mas teremos de arranjar-nos.

— As indústrias controladas por nós não valem muito mais que isso? — perguntou Bell.

— O valor das empresas medido pelas cotações de Bolsa sofreu uma queda acentuada. Mas voltará a subir. De qualquer maneira, se pensar que podemos utilizar prontamente o capital de uma empresa de, digamos, duzentos bilhões de dólares para levar avante os nossos objetivos, estará fazendo uma conta de quitandeiro. As indústrias que possuímos espalhadas pela Terra têm de continuar em nossas mãos. Precisamos conservá-las. Por isso só uma fração dos recursos disponíveis pode ser desviada para nosso empreendimento no deserto de Gobi. Compreendeu?

— Compreendi — respondeu Bell com um sorriso.

— Temos muito trabalho diante de nós — prosseguiu Rhodan. — Nos últimos dias conseguimos muita coisa. Criamos uma base financeira para nosso empreendimento. Adams terá de esforçar-se para conseguir o que ainda nos falta. Conforme acaba de dizer, tão depressa não voltaremos a ter dias tão grandiosos como os do grande colapso da Bolsa. Por isso torna-se necessária uma série cansativa de pequenos trabalhos, como por exemplo os da Steel & Concrete e da Minneapolis Mining. Mas não é isto que me preocupa. Levaremos meses, talvez anos, para montar um sistema econômico eficiente em nosso reino. Por outro lado, os problemas não poderiam ser mais prementes. A qualquer momento poderemos defrontar-nos com a invasão do povo de Fantan. O show que Bell ofereceu num passe de mágica poderá transformar-se em realidade de um dia para outro. Só que aí nossos inimigos não desaparecerão na água. Outro problema que me preocupa é a falta de material humano. Precisamos de colaboradores feitos de carne e osso, que defendam nossos interesses em todos os continentes. Para esse fim ainda hoje fornecerei instruções a alguns dos senhores. Há um detalhe que todos nós devemos ter em mente: sempre que alguém nos traga uma pessoa, deve estar plenamente convencido de seu valor e eficiência. Face ao reduzido número de pessoas que podemos abrigar em nosso minúsculo país e às exigências que cada um terá de cumprir, só a elite humana poderá aspirar à cidadania da Terceira Potência. Precisamos de gente dotada de capacidades extraordinárias.

— Em poucas palavras, precisamos de mutantes. De mutantes positivos.

Perry Rhodan confirmou com um gesto. Não revelou a visão estranha que as palavras proferidas por Bell desencadearam em sua mente. Formulou uma pergunta estranha.

— Adams, qual é o cubo de 2.369,7?

O homenzinho lançou um olhar de espanto para Rhodan. Pegou a calculadora.

— Não, não quero assim — disse Perry Rhodan. — Calcule de cabeça.

— Vai demorar um pouco...

— Pode deixar. É 13.306.998.429,873. Aliás, há uma coisa que ainda não compreendi. Você acaba de referir-se à nossa participação majoritária na Steel & Concrete e na Minneapolis Mining. Antes, porém, você havia declarado que só Weiss concordara com a participação acionária de 51%, enquanto Clèment conseguiu a redução para 45%.

— É simples. Antes disso já havíamos adquirido na Bolsa sete por cento das ações da Minneapolis Mining. É claro que Clèment não sabia disso.

Perry Rhodan esperou que cessassem as risadas.

— Muito bem. Acho que podemos dar-nos por satisfeitos. Vamos discutir os detalhes das próximas ações que programamos.

 

O aparelho desceu sobre o gelo da Groenlândia, preparando-se para o pouso.

O coronel Kaats enviara a Allan D. Mercant notícias inquietadoras vindas de Nova Iorque. Mercant, que não tinha mãos a medir para dar conta do seu trabalho, hesitara antes de viajar para lá. Sua fúria irrompeu sem rebuços quando Kaats se limitou a informar que a mutante Anne Sloane, que fora enviada ao Extremo Oriente em virtude de suas faculdades telecinéticas, havia desaparecido sem deixar o menor vestígio.

— Ora, Kaats. Por isso você não precisava fazer-me percorrer quatro mil quilômetros.

— Preciso falar com você, Mercant. Será que isso não basta? Será que um agente das forças armadas não é muito importante, ainda mais quando se trata de um espécime insubstituível como um mutante?

— Você devia dizer que se trata da defesa interna e da polícia federal — corrigiu Mercant sem conter sua indignação. — Vou dizer-lhe uma coisa, Kaats. Leve pelo menos um mês sem se preocupar com Anne Sloane. Para descobrir alguma coisa, ela precisará de tempo. É uma personalidade parapsicológica, mas ainda não compreendeu a seriedade da vida. Considero-a uma simples diletante e por isso recomendei-lhe pessoalmente que agisse antes com cautela excessiva que com muita precipitação. Espero que não se oponha a que me retire imediatamente. É que lá em casa estou afogando nos papéis.

— Fique ao menos para tomar um uísque — disse o coronel Kaats em tom conciliador. — Não permitirei que saia daqui nessa disposição.

Depois de esvaziar o copo, Mercant disse:

— Quer saber de uma coisa, Kaats? Se minha vinda aos Estados Unidos serviu para alguma coisa, foi por causa deste uísque. Não me leve a mal, mas não me venha outra vez com um alarma falso, senão ficarei furioso.

Allan D. Mercant ainda estava furioso quando desceu na enseada do fiorde de Umanaque e preparou-se para pousar. O que mais o aborreceu nessa viagem absurda aos Estados Unidos foi sua opinião pessoal sobre o caso Anne Sloane, que nunca poderia ter manifestado diante de Kaats. Anne era uma moça delicada, que não servia para trabalhar como agente. É verdade que ele mesmo insistira junto a ela para que aceitasse a incumbência. Mas agora sua opinião era outra.

Dois esquimós aproximaram-se num carro para recebê-lo. Mercant agradeceu.

— Andarei até lá para respirar um pouco de ar puro.

Pouco depois entrou no barracão onde se lia em grandes letras o nome de uma firma, a Umanak Fur Company. Ainda se lia que essa firma se dedicava ao comércio de peles. Tratava-se, evidentemente, de uma mentira. Seria uma imprudência permitir que centenas de mercadores ficassem andando nas proximidades da sede do Serviço Secreto.

Mercant tomou o elevador e foi ao décimo quinto pavimento, contado de cima para baixo. Lá teve de fazer baldeação, já que por questões de segurança nenhum dos quinze elevadores ia diretamente ao último pavimento. Era ali, a três mil metros de profundidade, que ficavam os compartimentos ocupados por Mercant. Os guardas postados nos corredores a nas portas cumprimentaram-no. Entre as quinhentas e tantas pessoas que estavam de serviço ali, nem dez conheciam todos os segredos das instalações. Só estes podiam deslocar-se livremente, sem apresentar seus documentos.

Para chegar ao escritório de Mercant passava-se por três ante-salas.

Uma vez lá, atirou-se na poltrona e reclinou-se confortavelmente.

Tocou a campainha para chamar o ordenança. O sargento O’Healey não demorou a entrar.

— Não houve nada de extraordinário na sua ausência, coronel.

— Obrigado, sargento. Que horas são?

— Onze e dezessete, coronel. Mercant ficou satisfeito, pois verificara que eram onze e dezesseis.

— Da manhã ou da noite? — prosseguiu.

— Da manhã, coronel.

Isso significava que era da noite. Com as indicações errôneas o sargento se identificara satisfatoriamente.

— Muito bem. Diga ao capitão Zimmermann que desejo falar com ele.

— No momento, o capitão não se encontra na base, coronel. Esta realizando um vôo rotineiro de patrulhamento.

— Será que ele ainda acredita que o inimigo virá rastejando pelo gelo, embora os agentes dos serviços secretos de outros países já estejam oferecendo a porta de entrada desta base uns aos outros?

— Coronel, não sei o que o capitão acredita.

— Perguntarei a ele pessoalmente. Quero que se apresente aqui dentro de dez minutos. Avise-o pelo telégrafo.

— Perfeitamente, coronel. O’Healey fez continência e saiu, mas voltou dali a pouco.

— A ordem foi cumprida, coronel. O capitão Zimmermann diz que talvez demore mais um pouco. Acaba de descobrir uma coisa estranha e quer averiguar de que se trata.

— Que descoberta é essa? — perguntou Mercant mal-humorado.

— Não me disse. Ao que parece ele mesmo não sabia.

O’Healey obteve licença para retirar-se. Assim que Mercant se viu só, abriu uma gaveta da mesa e ligou o radiotransmissor. Sempre que recebia alguma informação incompleta como a que O’Healey acabara de transmitir-lhe, preferia estabelecer contato direto.

— Alô, Zimmermann. Responda. Aqui fala o coronel Mercant.

Nenhuma voz se fez ouvir na freqüência sintonizada.

— Capitão Zimmermann! Responda imediatamente! O que houve com você? E que conversa fiada foi essa?

Mercant aguardou a resposta, que demorou mais de dez segundos. Zimmermann parecia falar com dificuldade. Sua mensagem teve início com um gemido.

— Alô coronel. Devo ter ficado inconsciente por um instante. Minha cabeça está zunindo e vejo faixas coloridas diante dos olhos.

— Que diabo! O que houve?

— Não sei, coronel. Voltarei imediatamente.

— Indique sua posição. Mandarei alguém ao seu encontro.

— Isso não é necessário, coronel.

— Será que conseguirá sozinho?

— Com o piloto automático não haverá problemas. O pior já passou. Dê ordens para que me forneçam um vetor de radar. Com isso conseguirei.

— Como queira. Falarei com o pessoal do controle de vôo e logo voltarei a ligar para a recepção. Entre em contato comigo se houver alguma dificuldade.

— Naturalmente. Obrigado pelo auxílio, coronel!

Mercant desligou e falou pelo interfone com o controle de vôo.

— Tenente, forneça um vetor de radar para a aterrissagem do capitão Zimmermann. E verifique sua posição atual. Você conhece a rota dele.

— Providenciaremos imediatamente, coronel.

Dali a pouco veio a informação de que Zimmermann sobrevoava o litoral norte perto de Proven e seguia a rota su-sudoeste. Parecia ter o avião sob controle.

O capitão Zimmermann realizou o pouso sem maiores problemas. Dirigiu-se imediatamente ao último pavimento, onde foi recebido por Allan D. Mercant.

— Capitão Zimmermann reportando, coronel. Peço desculpar o atraso. Devo ter entrado numa zona de baixa pressão. De qualquer maneira o avião sofreu uma repentina aceleração, o que fez com que minha cabeça caísse para trás. Devo ter ficado inconsciente por algum tempo.

— Deixe ver.

Mercant examinou a ferida.

— Isso está feio, capitão. Vá imediatamente à enfermaria para que cuidem da ferida. Pelo que vejo, ainda se encontra no pleno gozo das suas faculdades. Portanto, antes de se retirar diga-me que descoberta foi essa sobre a qual falou com O’Healey em termos tão vagos?

Enquanto proferia estas palavras, Mercant foi surpreendido por um choque violento. Ao examinar o ferimento, ele se colocara atrás de Zimmermann e, com a ajuda de sua pouco desenvolvida capacidade telepática, captou a impressão de um pensamento. Um pensamento que assustou-o profundamente. Por sorte, Mercant era dotado de uma fantástica presença de espírito. Um homem que num espaço de poucos anos conseguiu galgar o lugar de dirigente do Conselho Internacional de Defesa deve ser dotado de uma capacidade de reação extremamente rápida.

Ao captar a idéia mortífera de Zimmermann, iniciara a frase com que aconselhara o capitão a que se submetesse a tratamento. Conseguiu prosseguir sem qualquer interrupção perceptível.

— Que descoberta, coronel? Ah, sim, isso foi um gracejo.

— Quer dizer que se permitiu um gracejo comigo? — perguntou Mercant, que ainda se encontrava atrás do capitão, que continuava sentado. Na situação em que se achava não estava disposto a desistir dessa posição vantajosa.

— O gracejo foi dirigido ao sargento, coronel. Não podia imaginar que ele o transmitisse ao senhor.

— Zimmermann, que concepção estranha o senhor tem da organização dos nossos serviços. Enquanto realiza um vôo de patrulhamento para proteger a base, permite-se gracejos de mau gosto. Vamos lá, diga logo: o que viu?

— Nada, coronel.

— Fique sentado, capitão! — ordenou Mercant em tom enérgico, quando Zimmermann fez menção de levantar-se.

Mercant procurou concentrar-se ao máximo. Há algum tempo, lera sobre um funcionário de banco australiano que graças às suas faculdades telepáticas conseguira evitar um assalto. Há muito descobrira capacidades semelhantes em sua própria pessoa e começara a compreender o que significava poder “enxergar o coração” do próximo nos momentos críticos. A esta hora estaria disposto a sacrificar dez anos de sua vida se pudesse transformar-se num telepata de verdade. Mas nesse terreno não passava de um principiante. Não sabia como reconhecer com clareza o pensamento integral de uma pessoa. Não sabia reconstituir a frase que o outro pensara; apenas percebia o essencial.

Não poderia haver algum mal-entendido? Por que Zimmermann teria a idéia de matá-lo? Não havia dúvida de que o capitão pensava em matar. E o desejo de matar tinha por alvo a pessoa de Allan D. Mercant, chefe do Conselho Internacional de Defesa. Ainda haveria alguma dúvida?

Mercant olhou por cima do ombro de seu interlocutor e viu a arma no coldre. Logo abandonou a idéia de apoderar-se dela num gesto rápido. Zimmermann, que pensava em matar, devia ter suas atenções concentradas sobre a arma e se anteciparia a Mercant, que lhe era inferior em força física. Mercant precisava de sua arma, que ficava na gaveta inferior da direita da mesa, junto ao aparelho de rádio.

Num confronto com armas iguais Mercant levaria vantagem, já que o capitão não poderia imaginar que seu adversário estava prevenido. Mas antes de colocar-se nesta situação, teria que se arriscar durante cinco ou seis segundos, ao abandonar o lugar atrás de Zimmermann. Ao fazê-lo, proferiu palavras que aguçassem a curiosidade do outro e levaram-no a hesitar, conforme esperava.

— Vou dizer-lhe uma coisa, capitão. Acompanhei sua palestra com O’Healey e gravei-a em fita. Ouvi mais uma coisa e gostaria que o senhor me desse explicações a respeito. Acontece que tenho a impressão de que seu comunicado não foi nenhum gracejo. Como explica isto?

— O quê?

A marcha arriscada em torno da mesa começou. Zimmermann foi-se virando na poltrona para ficar de frente para seu interlocutor. Dali a pouco os dois estavam sentados um diante do outro. Entre eles ficava a enorme mesa. Zimmermann fora vencido pela curiosidade. Não atirou; esperou.

Mercant ligou o aparelho e no mesmo instante pegou a pistola. Sentiu-se seguro e desligou o aparelho.

Zimmermann ergueu-se sobressaltado.

— Por que desligou? Quer bancar o misterioso, coronel?

— Calma, capitão! Quero fazer-lhe mais uma pergunta. O que espera ganhar matando-me?

Essa pergunta pôs fim ao diálogo. Deixou o capitão Zimmermann tão perplexo que ele não conseguiu controlar mais os movimentos de seu corpo. Sentiu-se traído e procurou levar avante seu projeto através de uma reação precipitada.

Num gesto rápido arrancou a pistola do coldre. Mas antes que pudesse colocá-la em posição de atirar, já era tarde. Seu adversário — para falar em termos estratégicos — encontrava-se na linha interior. Enquanto Zimmermann teve de executar um movimento complexo antes de poder atirar, Mercant apenas precisava pressionar o gatilho.

O corpo do capitão Zimmermann caiu molemente ao chão. Antes que pudesse executar seu plano, estava morto.

 

O que se seguiu nunca acontecera em todos os anos decorridos desde a criação do CID. O sargento O’Healey entrou correndo sem que tivesse sido chamado e também sacou uma pistola. Ao ver o chefe são e salvo, conteve-se. O morto que se encontrava no chão representava um mistério para ele.

— O que aconteceu, coronel?

— Acabo de matar o capitão Zimmermann. Dê o alarma! Eu mesmo tomarei as providências para o bloqueio.

O’Healey fez continência e saiu. Dali a alguns segundos as sereias uivaram em todos os pavimentes.

Mercant voltou à mesa e tirou o microfone da gaveta em que se encontrava o aparelho de rádio.

— Aqui fala Mercant. A partir deste instante toda a base se encontra em estado de exceção. Ordem dirigida à Companhia de Vigilância do tenente Houseman: bloqueiem todas as saídas. Exerçam uma vigilância rigorosa sobre os poços dos elevadores. Todas as pessoas que se encontram na base devem dirigir-se imediatamente aos seus locais de trabalho ou de moradia. Os membros das delegações de países amigos são solicitados a reunir-se no hotel do pavimento superior. Posteriormente fornecerei outros detalhes. Peço que o coronel Cretcher e o Dr. Curtis compareçam ao meu gabinete. Obrigado.

Pouco depois o coronel e o médico entraram juntos. O Dr. Curtis aproximou-se de Zimmermann.

— Doutor, queira examiná-lo para verificar se está morto.

— Será que ainda precisa de uma confirmação?

Mercant fez que sim.

— Preciso. Quero que tudo seja feito segundo as normas.

— Acho que aqui não se pode falar em cumprimento de normas — disse Cretcher. — Foi você que matou o capitão?

— Não quis que ele me matasse.

— Quer dizer que você afirma ter sido atacado pelo capitão Zimmermann. Queira desculpar minhas palavras, coronel. Existem testemunhas que possam confirmar que você agiu em legítima defesa?

— Queira desculpar de sua parte se lhe falo sem rebuços, Cretcher. Neste momento você não está desempenhando as funções de acusador. Eu o chamei para ajudar-me a esclarecer os detalhes. O que sei sobre a cena que se desenrolou entre mim e Zimmermann é muito pouco. Ele tentou atirar contra mim e eu me antecipei. Os fatos são estes. Preciso conhecer os motivos que levaram um dos elementos de maior confiança de que dispúnhamos a tentar um ataque desses. O comportamento de Zimmermann é tão absurdo que logo faz surgir a suspeita de uma conspiração. Foi por isso que decretei o estado de emergência. Teremos de adotar medidas prontas e radicais se apurarmos que neste quartel-general existem, além de Zimmermann, outras pessoas que querem me eliminar e destruir nossa organização.

Mercant dirigiu-se ao médico.

— Você acaba de constatar a morte de Zimmermann, doutor Curtis. Acho que não pode haver a menor dúvida sobre a causa da morte. Todavia, quero pedir-lhe que examine a cabeça do morto. Vi uma ferida estranha, sobre cuja origem o capitão forneceu uma explicação nada convincente.

Curtis examinou a ferida e disse:

— Alguém deve ter desferido um golpe muito forte contra a cabeça de Zimmermann. Foi um golpe vindo de cima, na vertical. Que diabo, coronel, você não o matou a tiro?

— O que quer dizer?

— Você o matou a tiro, não a pancada e...

— Há quanto tempo foi produzida a ferida, doutor? Queira verificar.

— Há meia hora mais ou menos.

— Há meia hora o capitão ainda se encontrava fora desta base, pilotando seu avião. Há muitas testemunhas que podem confirmar isso.

— Não compreendo. Não percebeu nenhum sinal de fraqueza em Zimmermann? Se os conhecimentos que adquiri não me enganam, o golpe no crânio já deve ter sido mortal.

— Nesse ponto o senhor está enganado. Zimmermann estava bem vivo ao entrar aqui. De qualquer maneira seu diagnóstico é muito interessante. Estou interessado em saber como e onde o capitão foi morto da primeira vez e como conseguiu manter-se vivo com uma ferida dessas. Vamos dar uma olhada no seu avião. Queiram acompanhar-me.

O aparelho usado por Zimmermann era um avião para quatro passageiros. Mercant, Curtis e Cretcher puderam acomodar-se confortavelmente nele.

— Este é o assento do piloto — disse o chefe. — O capitão afirmou ter entrado numa área de baixa pressão. Com isso o avião sofreu uma aceleração repentina e fez com que sua cabeça fosse atirada para trás. Acontece que não vejo nenhum lugar em que possa ter batido.

A resposta era evidente. Zimmermann mentira. Atrás dele havia o assento número três e, para bater com a cabeça no teto da cabina, o capitão teria de levantar-se.

— Além disso, haveria manchas de sangue — disse Cretcher.

Mercant mandou chamar a sentinela do campo de pouso.

— Qual foi o avião que o capitão Zimmermann usou hoje?

— Foi este, coronel.

— Obrigado. É só isso. Acomodem-se, cavalheiros. Voltaremos a percorrer o trecho.

Mercant decolou e tomou o rumo norte, seguindo o litoral oeste.

— O comportamento do capitão durante o vôo foi muito estranho — disse Mercant. — Quando mandei pedir que voltasse, falou numa estranha descoberta. Pretendia verificar melhor. Depois disso levou algum tempo sem responder. Quando voltou a estabelecer contato disse ter estado inconsciente. Isso deve ter-se passado ao norte de Proven.

Depois de ter sobrevoado Proven, Mercant desceu para oitocentos metros. Pediu a seus acompanhantes que participassem intensamente da observação ótica.

O ar estava límpido e não havia vento. Se houvesse qualquer vestígio, este ainda devia estar bem visível, pois ainda não se passara uma hora. Pouco depois Cretcher anunciou uma descoberta.

— Olhe, Mercant! Ali há um rastro de aterrissagem. E há uma mancha redonda logo ao lado. O que será aquilo?

Mercant fez uma curva e voltou. Desceu para cem metros. A mancha redonda era um objeto semi-esférico. Parecia-se com os iglus dos esquimós. Só que era totalmente preto. Via-se nitidamente o rastro de aterrissagem. Não havia dúvida de que fora produzida pelo avião de Zimmermann.

Aterrissaram perto do iglu preto. Mercant chegou lá antes dos outros e pôs a mão no objeto.

— É de metal. Que coisa estranha! Quem iria construir um cogumelo destes em pleno Ártico? E olhe que não há janela, entrada, nem emenda de solda. Que lhe parece, Cretcher?

— É uma coisa estranha.

Mercant bateu no material desconhecido, que designara vagamente como metal. Ouviu-se um som surdo.

Mercant voltou a bater.

— Dêem alguns passos para trás. Isso não tem porta. Apesar disso vamos entrar. Quero saber a quantas ando.

Cretcher seguiu seu exemplo. Abriram fogo contra o cogumelo. Mas o material não cedeu.

— Assim não adianta. Vou pegar uma carga de explosivo no avião.

A carga de explosivo resolveu.

A semi-esfera preta foi erguida de um lado com a pressão e tombou. Embaixo dela encontraram um buraco na neve... e um corpo esfacelado. O corpo estava nu. Curtis pegou um membro, que poderia ter sido um braço. Mas não se parecia com aquilo que em nosso planeta se entende por braço.

— Tem seis articulações — murmurou o Dr. Curtis, que parecia fascinado. — Este ser vem de um outro mundo. Está morto e dificilmente poderemos reconstituí-lo. Mas não há dúvida de que se encontrou com Zimmermann. O que vamos fazer, coronel?

— Levem tudo que puderem reunir. Receio que Rhodan não saiba de nada sobre este monstro. Tanto mais interessado deve ficar. Acho que este é o começo da invasão que há semanas enche o mundo de pesadelos.

 

Nagasaki, Japão.

No Estádio de Kashiri estavam reunidas quarenta mil pessoas que desejavam assistir ao jogo final do campeonato japonês. Sobre as tribunas pesava um calor sufocante e a expectativa quanto ao resultado do campeonato.

No bloco F instalaram-se dois homens que traziam aparelhos bem complicados no bolso. Estavam sentados a mais de cinqüenta metros um do outro, mas assim mesmo mantinham-se em contato ininterrupto. Os instrumentos de captação de ondas cerebrais trabalhavam quase sem ruído. O leve zumbido que emitiam era abafado pelo vozerio das quarenta mil pessoas.

Dada a partida para o jogo, no gramado passaram a desenrolar-se acontecimentos que não interessavam a Tako Kakuta nem a Reginald Bell.

Apesar de tudo, os localizadores de mutantes de Rhodan haviam combinado não despertar a atenção dos presentes. Fingiam uma certa atenção e executaram um acompanhamento puramente ótico da bola, embora não houvesse a menor participação interior.

Subitamente Bell recebeu uma notícia de Kakuta. Os minirrádios que portavam eram verdadeiras obras-primas da mecânica de precisão. À primeira vista os emissores pareciam resumir-se em duas chapas de plástico sobrepostas, entre as quais, comprimidos ao máximo, estavam todos os elementos técnicos. Ambos traziam os emissores na parte interna da gola da camisa, onde eram capazes de transmitir uma fala quase cochichada, por meio dos ultra-sensíveis microfones de laringe. Os receptores localizavam-se no interior do ouvido, onde ocupavam o lugar equivalente a um chumaço de algodão.

— Um exemplar extraordinário de cérebro — soou o comunicado de Tako. — A 33.000 angstrom verifica-se uma estranha superposição. O que acha?

— Isso tem um valor extraordinário, Tako. Ainda que se queira considerar a excitação anormal dos espectadores, uma freqüência desse tipo afasta-se completamente dos padrões. Pegou a coordenada do lugar em que se encontra?

— Já anotei.

— Muito bem. Espera até que eu também tenha completado a operação.

Reginald Bell trabalhou com uma das mãos no bolso. A antena localizadora do seu eletromagnetoscópio, que não era maior que um dedal, fez deslizar seus raios sobre as pessoas reunidas no bloco F. Como Bell já conhecia a anomalia, o serviço tornou-se mais fácil. Seu receptor foi regulado para 33.000 angstrom e reagiu automaticamente quando o raio atingiu o corpo que irradiava essa freqüência.

— Minha coordenada já foi estabelecida, Tako. Pela disposição dos assentos é de 135 graus, sete minutos e trinta segundos.

— Obrigado. Minha coordenada é de 46 graus e doze minutos exatamente. Faça o favor de calcular a posição.

Tako e Bell realizaram seus cálculos independentemente um do outro e conferiram os resultados. Em ambos os casos indicavam o lugar no 844 do bloco F.

— O.K. — disse Bell. — Irei até a entrada principal. Ainda faltam vinte e cinco minutos até o fim do primeiro tempo do jogo.

— Muito bem — respondeu Tako Kakuta. — Cuide do comando robotizado.

O programa de ação fora estabelecido antecipadamente em todos os detalhes. Através das numerosas conquistas técnicas dos arcônidas já se conseguira localizar o presumível mutante. Durante o intervalo, Kakuta passaria pela fileira onde ficava o lugar no 844. Para evitar qualquer engano, o japonês preferia olhar seu patrício de perto.

Tratava-se de um jovem simpático de cerca de vinte e cinco anos.

De passagem, Tako ainda bateu uma fotografia do homem. Depois dirigiu-se à entrada, passando pela outra extremidade da fileira. Do lado de fora encontrou-se com Reginald Bell.

— Tudo O.K. Aqui está a fotografia do homem. Os robôs estão preparados?

Bell fez que sim. Guardou a fotografia.

Quando o jogo terminou, o homem do lugar no 844 saiu pela direita, onde Bell o aguardava. Estava acompanhado de dois amigos. Por isso os mutantes precisariam ter paciência. Lá fora se encontrava, em meio a milhares de veículos, o carro-robô, cujos instrumentos de localização haviam sido regulados para o mutante. Os homens visados entraram num carro que se encontrava a grande distância. Com o tráfego intenso não era possível segui-lo de perto. Teriam que depender do localizador de ondas cerebrais.

Bell e Tako comunicaram-se pelo rádio. Kakuta procurou aproximar-se de Reginald Bell em meio à multidão que se comprimia.

— É aquele carro vermelho. Está vendo?

— Tão depressa não chegaremos lá. Os robôs estão muito para trás. Pegue seu carro, Bell. É o mais certo.

— Antes que eu consiga sair dali aqueles rapazes estarão longe.

— Um momento. Estão indo para a direita, em direção à rodovia norte. Procure avançar depressa. Ultrapasse sempre que puder e procure grudar-se no vermelho. Será fácil reconhecê-lo. Eu pego um táxi.

— Que tolice! Isso é muito demorado. Tako limitou-se a fazer um gesto.

— Recuperarei o tempo. Não se preocupe. Mantenha contato comigo. Conversaremos enquanto seguimos nosso homem.

Separaram-se. Reginald Bell ocupava um lugar mais favorável em meio à fila de automóveis que se estendia por vários quilômetros.

O carro-robô seguia-o a uma distância de várias centenas de metros. O veículo não chamava a atenção dos transeuntes porque seus vidros polarizados não permitiam enxergar o interior.

Tako, no seu táxi, ocupava a posição mais desfavorável. Pediu ao motorista que se apressasse. Mas nas condições em que se desenvolvia o tráfego não se podia fazer muita coisa.

Depois de uma perseguição de quinze minutos chegou o momento em que o japonês teve de intervir.

— Pararam — anunciou Bell. — Prossegui no meu carro. Ao que parece estão entrando num restaurante que fica numa esquina à direita do primeiro cruzamento.

— Conheço o local — respondeu Tako. — Volte. Vamos nos encontrar ali mesmo. Instruções ao comando robotizado: continuar de olho no carro vermelho e estacionar perto dele.

Tako Kakuta sabia que seu táxi levaria pelo menos quinze minutos para chegar ao local indicado por Bell. Preferiu não mais insistir com o motorista para que se apressasse. Sem dizer uma palavra, colocou no assento traseiro uma recompensa generosa de cinqüenta ienes e concentrou-se a fim de realizar uma teleportação para a toalete do restaurante, lugar que conhecia perfeitamente.

O motorista de táxi ficaria dando tratos à bola pelo resto da vida para descobrir como seu freguês desaparecera de repente. O que lhe importava era que não saíra prejudicado.

O corpo de Kakuta passou ao estado energético e voltou a materializar-se no lugar em que se concentraram seus pensamentos. No momento em que entrou no restaurante também chegou o homem do lugar no 844 com seus amigos. Não foi difícil encontrar uma mesa próxima à sua. Quando Bell entrou, o maior problema já estava resolvido.

— Vamos tomar um drinque para celebrar. Conseguimos chegar perto do nosso homem.

Beberam. A espera não foi desagradável. O resto do trabalho seria executado pelos robôs.

Dali a três horas os três amigos se separaram. O mutante morava bem próximo dali. O nome escrito na porta de sua casa era Tama Yokida.

Quando já havia escurecido alguém tocou a campainha. Sem desconfiar de nada, abriu a porta. Não havia ninguém. Sobressaltou-se com um ligeiro chiado. Mas quando desconfiou do perigo, já era tarde. Respirou o narcótico e perdeu os sentidos. Algumas figuras de metal e de plástico carregaram-no para um automóvel e saíram em disparada.

Enquanto o comando robotizado executava o seqüestro do mutante Tama Yokida, agindo silenciosa e impessoalmente, Kakuta e Bell prosseguiam na busca de outras pessoas apropriadas aos seus objetivos. Para encerrar sua atuação no Japão adquiriram dois lugares dispendiosos nos camarotes do Teatro Metrópole. Envergando trajes a rigor, compareceram ao espetáculo de gala.

Quando chegou a hora do primeiro intervalo, já haviam descoberto três pessoas com um perfil extraordinário de ondas cerebrais. Acontece que, por questões de segurança, só podiam cuidar de uma pessoa de cada vez. Por isso escolheram a pessoa que apresentava o desvio mais acentuado da freqüência normal das ondas de pensamentos humanos.

A primeira suspeita de ser mutante era uma jovem chamada Ishi Matsu. Um cavalheiro a acompanhou até a casa. Ali, o comando robotizado fez com que chegasse à porta. Foi seqüestrada pouco depois da meia-noite.

Enquanto isso acontecia, Reginald Bell e Tako Kakuta estavam no seu quarto de hotel, fumando e tomando conhaque. Fizeram um balanço de suas atuações.

— Conseguimos doze mutantes. Rhodan pode dar-se por satisfeito. Só pediu dez. Voltemos a verificar a lista. Temos André Noir, filho de um casal de franceses residente no Japão e Ralf Marten, filho de pai alemão e mãe japonesa. Os outros são japoneses de verdade: Ishi Matsu, Wuriu Sengu, Son Okura, Tanaka Seiko, Doitsu Ataka, Kitai Ishibashi, Nomo Uatushin, Tama Yokida...

— São apenas dez.

— É verdade. Mas ainda temos Fellmer Lloyd, que prova a tese de que as mutações não têm sua origem exclusivamente na bomba atômica. E ainda Ras Tshubai, que fomos buscar na África. Com isso completamos uma dúzia.

— Você é supersticioso? — perguntou Tako de sopetão.

— Por quê?

— Porque penso no décimo terceiro homem. Ainda temos dois dias.

Colocou um recorte de jornal sobre a mesa.

— Ah, é a história daquele alemão de Munique. Para mim isso não passa de lorota — disse Reginald Bell.

— Não acha que devemos suspender nosso julgamento até examinar o caso? É claro que alguém pode chamar a atenção sobre sua pessoa formulando prognósticos sobre o futuro e fazendo com que os jornais os publiquem. Mas, ao que parece Ellert fez tudo para evitar que suas previsões chegassem ao conhecimento do público. A publicidade corre por conta de um amigo dele. A teletemporação nos abriria um campo de possibilidades inteiramente novas. Sinto-me interessado pelas qualidades desse homem, isto é, pelas suas qualidades inteiramente hipotéticas. Além disso, no caso, não precisaremos recorrer ao seqüestro. Ao que parece Ellert manifestou o desejo de visitar-nos no deserto de Gobi.

— Está bem — confirmou Bell. — Podemos atender ao desejo desse sujeito.

 

Quando os primeiros raios do sol nascente mergulharam no lago salgado de Goshum, ninguém desconfiaria de que o novo dia iria trazer uma série enorme de grandes acontecimentos. Perry Rhodan programara uma inspeção nos trabalhos que estavam sendo realizados nos pavilhões de montagem. As primeiras peças já tinham chegado de Petersburg, e as colunas de robôs haviam instalado os primeiros pavilhões.

Ao sair dos seus aposentos, que ficavam fora da nave, Rhodan sentiu sua atenção atraída por um estranho tumulto. Um grupo de quatro pessoas que gesticulavam animadamente aproximou-se dele. Parou. Percebeu que em meio aos homens havia uma mulher, que parecia um tanto acanhada.

— Bom dia, minha senhora. O que me dá a honra?

Anne Sloane estava próxima a um estado de prostração total.

— Bom dia, senhor Rhodan. Gostaria de falar com o senhor. Eu queria...

— Por favor, fale! Não se constranja. Já me conhece?

— Quem não conhece o senhor?

Num gesto desajeitado Anne Sloane tirou do bolso uma fotografia que mostrava a tripulação da Stardust.

— Onde arranjou isso?

— Foi meu marido que me deu. Nunca regressou. Foi o único que não voltou. Gostaria de falar-lhe por um instante. O senhor foi amigo de Clark...

— Amigo de Clark? A senhora é a senhora Fletcher?

Anne Sloane possuía o dom da telecinese, mas faltava-lhe a vontade poderosa necessária a um agente secreto. Reunindo suas últimas forças, confirmou com um movimento de cabeça.

— Ela está mentindo! — disse John Marshall em tom ríspido.

Anne lançou um olhar apavorado para o telepata. Desistiu de representar seu papel ambíguo. Seus olhos encheram-se de lágrimas.

— Como pode dizer o que estou mentindo?

— Porque seu nome é Anne Sloane e nunca foi casada. Porque foi gente como Mercant e Kaats que a mandou para cá a fim de praticar a espionagem. Porque, se fosse um ser humano como qualquer outro, nunca teria conseguido atravessar nosso anteparo energético. Você possui capacidades telecinéticas, não é verdade?

Era uma dose excessiva de verdades ministrada de uma só vez. Anne Sloane chorou sem o menor constrangimento.

— Cuide dela! — ordenou Rhodan. — Leve-a ao meu gabinete.

Anne Sloane não ouviu outras perguntas antes que se recuperasse. Depois disso até conseguiu sorrir. A xícara de café que Rhodan mandara servir-lhe fortaleceu o inexplicável sentimento de segurança que tomou conta dela.

Marshall cochichou alguma coisa ao ouvido de Rhodan. Este confirmou com um movimento de cabeça e voltou a dedicar-se à moça.

— Então Mercant teve conhecimento de seus dotes e procurou colocá-la contra nós?

— Será que você ainda não sabe disso? Se me lembro do que esse cavalheiro acaba de contar de improviso, percebo que nem mesmo o agente mais esperto terá qualquer chance contra vocês. Não compreendo como pode existir uma coisa dessas. O senhor Kaats vivia me dizendo que vocês dispõem de algumas vantagens técnicas, mas de resto não passavam de um pobre grupinho de gente abandonada.

— Somos um grupinho, mas não um grupinho pobre. O cavalheiro que tanto a impressionou é John Marshall. É um ótimo telepata. Aliás, Marshall acaba de me dizer que seu desejo de praticar a espionagem nunca foi muito intenso. No íntimo você nutre o desejo de unir-se a nós.

— Será que isso não é uma desculpa esfarrapada? — perguntou Anne com a voz insegura.

— Poderia parecer. Mas sabemos que esse desejo é tão real como as instruções que lhe foram ministradas por Mercant. Afinal, conhecemos seus pensamentos.

Anne fechou os olhos. O sentimento de segurança abandonou-a. Embora não fosse nenhum telepata, Rhodan sabia o que se passava no seu interior.

— Conheço a sensação que se apossa da pessoa que sabe estar à mercê de um telepata. Um homem desses penetra nos recantos mais íntimos de sua vida privada e isso a torna infeliz. Não é verdade?

Anne confirmou com um movimento assustado.

— Esperava encontrar por aqui algo de livre e grandioso. Mas isso não é liberdade.

Perry esboçou um sorriso conciliador.

— Posso restituir-lhe a liberdade, Anne. Eu já a conquistei.

— A liberdade? Pode libertar-me de um homem desse tipo?

Lançou um olhar de repreensão sobre John Marshall.

— Posso dar-lhe uma barreira mental. Eu lhe ensino. Trata-se de um misto de tecnologia e de estudos psíquicos. Levará apenas algumas semanas para aprender.

— Quer que fique tanto tempo?

— Quero que fique para sempre. Se tiver vontade.

Anne limitou-se a sorrir.

Rhodan dera ordens para que Marshall não se aproximasse com demasiada freqüência de Anne Sloane, a fim de não deixá-la mais chocada. O Dr. Haggard foi incumbido de providenciar um alojamento adequado para a moça.

Perry Rhodan, o chefe da Terceira Potência, foi caminhando sozinho em direção às linhas de montagem. Mas ainda assim seus pensamentos não se concentraram exclusivamente na inspeção que pretendia levar a efeito. Um novo problema apresentara-se ao seu espírito. Teria de avaliar todas as possibilidades que este problema lhe oferecia.

Fora enviada por Allan D. Mercant, chefe do Conselho Internacional de Defesa. Esse tipo de capacidade humana poderia transformar-se em certa forma de decepção na vida de Rhodan. Já o considerara uma figura de primeira ordem em seu grande jogo. Visitara-o no seu abrigo situado sob os gelos da Groenlândia, recebera-o ali mesmo, no deserto de Gobi, como embaixador do Ocidente, e sentira certo tipo de simpatia mútua. Mas subitamente Allan D. Mercant manda alguém superdotado para praticar a espionagem no Gobi...

Seus pensamentos foram interrompidos por um sinal de alarma emitido pelo rádio de Crest.

— Que diabo! — resmungou Rhodan e acionou o relê de seu traje altamente versátil, que imediatamente eliminou a gravidade e o fez vencer os trezentos metros de volta. Pousou numa comporta de ar e correu para a sala de comando em que Crest se encontrava.

— Localizou alguma coisa, Crest? Será que já é a invasão? Já? Seria a hora mais imprópria que poderíamos imaginar.

— Ainda não há nada de definitivo. Apenas localizei alguma coisa na órbita lunar. Acontece que desde a primeira tentativa frustrada sabemos perfeitamente que um belo dia os habitantes de Fantan trarão reforços.

Rhodan decidiu prontamente.

— Vamos verificar e atacar, desde que a situação o permita. Não podemos permitir que a Terra corra qualquer risco. Não podemos expor os homens nem os arcônidas. Permite que utilizemos sua nave?

Crest sentia-se dominado pela personalidade de Rhodan, motivo por que interpretou a solicitação como uma ordem. Confirmou com um simples movimento de cabeça, como quem se abstém de exercer qualquer parcela de autoridade.

As sereias de alarma mobilizaram a pequena tripulação da Terceira Potência. Rhodan transmitiu ordens que eram ouvidas em toda a parte.

— Klein e Li, queiram comparecer a bordo. Kosnow, você se encarregará de manter o contato pelo rádio. De resto os trabalhos serão executados de acordo com a programação normal. A posição dos robôs também permanecerá inalterada. Tudo pronto para a decolagem. Li e Klein, apressem-se!

A nave esférica decolou na vertical, depois que o anteparo energético foi retirado por alguns segundos. Depois de ter deixado a superfície da Terra, o antígravo sincronizado imprimiu-lhe uma aceleração de 50 g. Levaram pouco mais de uma hora para atingir a órbita lunar. Só Rhodan e Crest, graças ao seu treinamento hipnótico, estavam em condições de assimilar as posições que o radar robotizado transmitia numa seqüência vertiginosa. A capacidade de reação de um ser humano normal seria excedida de cerca de quinhentas vezes. Não foi por menos que Klein pediu desesperadamente que reduzissem a velocidade.

Rhodan fez-lhe a vontade, pois descobrira que a nave inimiga se deslocava com uma velocidade muito menor.

Mais uma vez recorreu-se ao antígravo, pois tornava-se necessário neutralizar a desaceleração de mais de 100 g. O inimigo não tardou a surgir nítido na tela.

— Isso não é uma nave-fuso e a tripulação não é composta de habitantes de Fantan — disse Li. — O que acha, Crest?

— Só posso dizer que se trata de uma nave oval motivo por que não pode pertencer aos arcônidas. Nos últimos séculos nossa raça sempre teve poucos amigos e muitos inimigos. Todas as probabilidades indicam que nos encontramos diante de um inimigo.

Perry Rhodan colocou a nave dos arcônidas em posição de ataque e acionou os raios de rastreamento.

— Essa gente tem uma cúpula energética. Precisamos descobrir a potência dela.

Tratava-se de uma indagação puramente retórica. Rhodan já estava interpretando o raio medidor. Depois de algum tempo disse:

— Se transformarmos essa nave em energia, colocaremos um novo sol em miniatura no céu da Terra. Não estou em condições de formular uma previsão exata sobre as conseqüências meteorológicas para nosso planeta, mas sem dúvida existe a possibilidade da ocorrência de enormes catástrofes climáticas.

— A nave oval reforçou sua cúpula energética porque nos aproximamos dela — explicou Crest. — Essa gente sabe perfeitamente que assim se tornam inexpugnáveis.

— Nossa única chance reside no uso de armas convencionais — disse Rhodan, falando quase de si para si. — Se conseguíssemos desencadear uma explosão interna. Acredito que uma carga de dez toneladas de TNT seria suficiente para eliminar o problema.

— Seu desejo é compreensível, mas irrealizável. A não ser que se lembre de algum truque.

— Já conheço o truque — disse Rhodan em tom áspero. — Só que para levá-lo a efeito devemos realizar alguns ataques fictícios, para que esse pessoal pense que só conhecemos o ataque frontal.

A nave dos arcônidas deu um salto e dentro de poucos segundos aproximou-se a quinze mil quilômetros do inimigo. Rhodan disparou raios energéticos, cujo impacto na cúpula protetora produziu um belo fogo de artifício, mas não causou nenhum efeito. Acontece que o ataque fictício trouxe um resultado com que ninguém contava. A nave oval desapareceu subitamente da tela. Não que se transferisse para o paraespaço ou criasse um campo invisível por meio de uma curvatura artificial do espaço. Acelerou simplesmente para mil metros por segundo e desapareceu no vazio, sob a forma de um ponto que sumiu na amplitude do espaço.

O resultado foi um espanto geral. Nem mesmo Crest conseguiu escapar a essa impressão.

— Já viu tamanho desempenho de um mecanismo propulsor?

Crest sacudiu a cabeça.

— Afinal, nada sabemos sobre as novidades que o progresso faz surgir diariamente no centro da galáxia durante nossa ausência. Existem várias raças que seriam capazes de um desenvolvimento tecnológico dessa ordem. E há outros detalhes que devem corresponder às características da nave oval. Convém indagar ao cérebro.

Perry Rhodan dirigiu a nave para a Terra. A idéia de ao menos ter espantado o inimigo deu-lhe esperança de ter ganho um tempo precioso.

Pousaram e dirigiram-se imediatamente ao compartimento em que se achava instalado o cérebro positrônico robotizado.

Mas o dia parecia ser de bruxaria. Kosnow dirigiu-se ao grupo e disse que tinha um assunto importante a tratar com Perry Rhodan.

— O que houve desta vez?

— Há alguém do outro lado da cúpula energética que insiste em falar com o senhor. Chegou há meia hora com um avião que regressou imediatamente. Avisou que não precisa mais dele, pois pretende ser seu hóspede por muito tempo.

— O homem disse seu nome?

— Não, mas afirma ser amigo do senhor.

— Mande-o entrar e traga-o ao meu gabinete. Deve ser vigiado rigorosamente.

Rhodan avisou que dali a meia hora se encontraria com os outros junto ao cérebro robotizado. Após isso entrou em seu gabinete, onde aguardou o visitante desconhecido.

Kosnow retirou a cúpula energética por alguns segundos e mandou um carro robotizado até a fronteira. Quando se deparou com o visitante misterioso, perdeu a fala por alguns segundos.

— Mercant! De onde vem?

— Diretamente da Groenlândia. Bom dia, Kosnow. Como vai você?

O tom coloquial da fala de seu interlocutor fez com que o russo se retraísse subitamente.

— Bem, obrigado, coronel. Queira vir comigo. Rhodan está esperando.

— O que é isso? Será que encontrou uma mosca na sua comida? Ou não suporta este tempo maravilhoso?

Kosnow manteve-se num silêncio obstinado. Conduziu Mercant ao gabinete de Rhodan, onde mais uma vez se desenrolou uma cena que era um misto de cordialidade e reserva. Apenas desta vez o próprio Mercant assumiu um ar sério em meio à frase.

— ...perfeitamente, Rhodan. É claro que não vim a passeio. Uma viagem para o Gobi custa um bom dinheiro e as normas burocráticas exigem que apresente um bom motivo para obter o reembolso da despesa. Por ocasião de nosso último encontro você se mostrou muito mais franco e cordial. Não posso negar que compreendo a mudança. Digo-lhe isto para que saiba que não jogo com as cartas escondidas. Está zangado comigo por causa da história da senhora Fletcher, ou melhor, Anne Sloane, não é?

— É verdade — disse Rhodan laconicamente.

Mercant prosseguiu:

— Sabia perfeitamente que jamais poderia confiar muito em Anne Sloane. Pelo menos não poderia confiar nela para a missão que Kaats quis confiar-lhe. Se, com tudo isso, dei essa incumbência à moça, não lhe deve ser difícil adivinhar para onde se inclinam minhas simpatias.

— Não me venha dizer que elas se inclinam para o meu lado, Mercant. Hoje não estou com muita receptividade para bajulações.

— Não leve tudo para o lado pessoal. Vim para cá somente porque simpatizo com a Terceira Potência. E não vim por nenhum motivo pessoal. Estou interessado tão-somente no bem-estar da humanidade. Vim por estar convicto de que só você está em condições de repelir a invasão vinda do espaço.

— E veio para ficar por algum tempo, não é?

— Isso depende de você.

Já fazia tempo que Perry Rhodan não ouvia palavras tão francas. Sentiu-se bem.

— Bem, veremos. Por enquanto quero levá-lo ao seu alojamento. Depois conversaremos mais demoradamente. Agora peço que me dê licença, pois tenho um encontro importante.

— Há pouco vi quando pousou com a nave dos arcônidas. Não duvido que seu trabalho seja muito importante. Apesar disso peço que me ouça mais um instante. Não foi por capricho que vim justamente a esta hora.

Ao dizer estas palavras, Allan D. Mercant colocou sua mala sobre a mesa e abriu-a. Rhodan não teve tempo para formular qualquer objeção. Viu os membros estranhos que seu visitante trouxera dos gelos da Groenlândia e percebeu imediatamente a importância daqueles fragmentos.

— O que é isso, Mercant?

— Bem que gostaria que você me dissesse. Ou Crest. Encontramos bem ao norte do fiorde de Umanaque uma formação estranha, parecida com um iglu. Abrimo-la com uma carga explosiva e encontramos os restos deste ser estranho. Não é do nosso planeta.

Perry Rhodan dirigiu-se ao rádio e pediu que Crest, Marshall, Haggard e Thora comparecessem ao seu gabinete. Pouco depois surgiram os três homens. Thora não apareceu.

Depois de uma breve apresentação Allan D. Mercant forneceu um relato minucioso das recentes ocorrências na Groenlândia. O destino do capitão Zimmermann e os despojos guardados na mala provocaram um enorme impacto. Ninguém duvidou de que o planeta Terra havia chegado a uma encruzilhada do seu destino. Os olhares indagadores concentraram-se em Crest.

— Não há mais necessidade de formular indagações ao cérebro robotizado, pois já sabemos de tudo. O capitão Zimmermann não foi nenhum desertor ou traidor. Foi uma simples vítima desses seres.

— Não são habitantes de Fantan, são?

— Não. São seres muito mais perigosos e traiçoeiros. O sinal de emergência desencadeado automaticamente pela destruição de nossa nave deve ter concentrado as atenções de numerosas inteligências sobre este setor do espaço. Devemos nos conformar com o fato de que a posição da Terra tornou-se bastante conhecida entre os habitantes da galáxia. Algumas raças, tangidas pela curiosidade, pela ganância ou pelo vandalismo, tentarão invadir o sistema solar. Depois dos habitantes de Fantan chegaram os DI. Os DI são criaturas de rebanho. Quando se avista um, deve-se contar com muitos.

— O que significa DI?

— Procurarei explicar com o exemplo do capitão Zimmermann. O nome desses seres não pode ser expresso na linguagem dos arcônidas, já que nos faltam vocábulos adequados. DI significa Deformadores Individuais. Posso adiantar que esses seres se contam entre os inimigos mais temíveis do nosso Império. Dispõem de uma qualidade inata que lhes permite abandonar seu corpo em espírito e transferir-se a outro organismo. Seu ego pode manter-se por muito tempo num outro ser e isso de tal forma que o eu é trocado por esse tempo. O capitão Zimmermann deve ter-se encontrado com um ser desse tipo nos gelos da Groenlândia. Quando compareceu ao seu gabinete, Mercant, estava possuído pela vontade do DI. O corpo deste encontrava-se sob a cúpula protetora que lhe pareceu tão misteriosa e serviu como prisão martirizante ao espírito de Zimmermann.

— Que coisa horrível! — interveio o Dr. Haggard. — Será que esse poder inconcebível dos DI está ligado a certas capacidades metabólicas?

Crest sacudiu a cabeça.

— Você está pensando numa substituição orgânica, não é? Acredita que haja uma trasladação total, inclusive do protoplasma? Não é nada disso. Não há nenhuma deformação metabólica. A investidura de um espírito estranho em nosso corpo já é um fenômeno demoníaco.

Não houve quem não concordasse com a opinião de Crest. Mas Haggard continuou a desenvolver suas idéias. Subitamente, afastou-se de Mercant. Ainda num movimento súbito segurou a pistola e apontou-a para o visitante.

— Estamos conversando sobre os DI, mas esquecemos que Mercant esteve com Zimmermann pouco antes de sua morte.

Crest compreendeu o raciocínio de Haggard. Fez um gesto tranqüilizador.

— Guarde sua arma, doutor. Os DI têm de partir do corpo deles para penetrar num corpo estranho. Para realizar uma deformação têm de abrigar-se no seu próprio organismo. Portanto, não há possibilidade de o DI ter passado do corpo de Zimmermann para o de Mercant.

— E o que é feito do DI? Será que ele se conformou com a morte de Zimmermann?

— Morreu tal qual o capitão. O retorno ao próprio corpo requer um certo preparo espiritual. Quase diria que se trata de uma concentração de forças. É este um dos poucos pontos em que podemos encontrar uma compensação para nossa fraqueza.

— Quer dizer que ambos estão mortos? O DI e Zimmermann?

Crest confirmou com um movimento de cabeça.

Dali a pouco o debate chegou ao fim. Mercant ainda ponderou que era bem possível que a deformação de Zimmermann não fosse um caso isolado. Crest confirmou a possibilidade.

— É bem possível que a situação seja muito mais séria do que pensamos. O exemplo de Zimmermann prova que os DI estão realizando ataques isolados pelo menos há uns dois ou três dias. Devemos pensar em um alarma geral dirigido a toda a humanidade. Cada homem deve vigiar seu vizinho e reportar prontamente qualquer tipo de comportamento estranho ou hostil.

— Sabe o que significa isso? — perguntou Rhodan.

Crest fez que sim.

— Significa o pânico geral disseminado entre os homens. Se encontrar um caminho adequado, recomendo-lhe que o use.

— Mais uma pergunta, Crest. Os DI precisam realizar uma aproximação física para dar seus saltos espirituais, ou estão em condições de vencer distâncias maiores?

— Operam de perto e de longe. Quando se torna difícil atingir determinado indivíduo que se encontra em meio a outros, chegam bem perto. Mas se a vítima se encontra num local isolado, conseguem atingi-lo a partir de uma nave espacial que se encontra a milhares de quilômetros de distância.

 

Uma hora depois.

— Tako acaba de anunciar sua chegada — disse Rhodan, dirigindo-se a Mercant e ao Dr. Haggard, que ainda se encontravam em seu gabinete. — Trazem treze mutantes.

— Mutantes? — perguntou Mercant, esticando a palavra. Pelo modo de olhar percebia-se que não entendera nada.

— São mutantes destinados à Terceira Potência. A tripulação de nossa base, ou melhor, a população de nosso Estado, deverá manter-se reduzida por muito tempo. Por isso devemos substituir a quantidade pela qualidade. Só as pessoas mais capazes podem ser recrutadas para o serviço da Terceira Potência. Fundarei um exército secreto de mutantes. Trata-se de uma tropa menor e menos vistosa que qualquer outra. Por outro lado, porém, é mais rápida, forte e digna de confiança.

— O exército secreto dos mutantes — repetiu Mercant, como se fosse o eco de seu anfitrião. Procurou pôr as idéias em ordem. Apesar do impacto das impressões que recebera nas últimas horas, conseguiu formar uma linha coerente de raciocínio, que em última análise se fundava no seu desejo.

— Rhodan, eu o admiro! Suas palavras poupam-me o trabalho de tomar uma decisão séria. Sinto que confia em mim. Considere-me um dos seus.

— Obrigado, Mercant. Há muito desejo isso.

Depois de um aperto de mão, que haviam omitido ao se cumprimentarem, voltaram a falar em Tako Kakuta. Quando começaram a tirar as primeiras baforadas de um cigarro, ouviram a informação de que o avião de transporte se preparava para pousar.

Por alguns segundos a cúpula energética do território da Terceira Potência deixou de existir. O avião pousou. Tako foi o primeiro a descer.

— Suas ordens foram cumpridas, Rhodan! Temos doze mutantes a bordo. A disposição que prevalece entre eles não lhe é muito favorável. A maioria pretende citá-lo perante a Corte Internacional assim que se ofereça a oportunidade.

— Obrigado, Tako — disse Rhodan com um sorriso significativo. Peça aos cavalheiros que desçam. Mas não procure esconder nenhum deles. No seu primeiro comunicado você não falou numa dúzia, mas em treze.

— O décimo terceiro vem da Alemanha. Bell o trará num avião fretado. Sua chegada está prevista para hoje de tarde.

— Muito bem! Gostaria de ver os doze que já chegaram.

O primeiro encontro de Rhodan com seus mutantes foi muito menos dramático do que estes haviam previsto. Tomados de indignação, apressaram-se em sair do avião e falavam em altas vozes. Mas a demonstração de indisciplina logo cessou. À medida que os mutantes se aproximavam de Perry Rhodan, silenciavam.

— Senhoras e senhores, tenho muito prazer em cumprimentá-los como hóspedes da Terceira Potência — principiou Rhodan. — Peço-lhes que desculpem a forma estranha pela qual lhes foi transmitido o convite. Asseguro-lhes, porém, que nenhum dos senhores está sujeito à menor restrição em sua liberdade pessoal. Poderão morar por oito dias nos alojamentos mais confortáveis de que dispomos, sem que isso lhes acarrete qualquer despesa. Nesses oito dias terão oportunidade de participar de um interessantíssimo treinamento hipnótico, que terá por fim revelar suas verdadeiras capacidades espirituais. Posso assegurar-lhes que pouco sabem sobre suas potencialidades. Considerem o processo como uma forma de jogo espiritual de que participarão. Daqui a oito dias estarei à disposição dos senhores e terei prazer em responder a quaisquer perguntas que desejem formular. E então este avião estará preparado para levá-los para casa, se assim desejarem.

Perry Rhodan ainda dirigiu um cumprimento aos mutantes. Após isso entregou-os à equipe formada pelo Dr. Haggard, Dr. Manoli e Marshall.

Rhodan aguardou seu amigo Reginald Bell. Mas esse dia repleto de acontecimentos ainda não havia chegado ao fim. Na hora do almoço receberam novo alarma expedido por Crest.

— A nave espacial dos DI voltou a aproximar-se. Encontra-se na mesma órbita de hoje de manhã. Rhodan, você não disse que dispunha de um truque?

Perry largou o talher e pôs-se de pé.

— Isso mesmo, disponho de um truque. E ai da humanidade se ele não for bom. Alô, Tako! Compareça imediatamente à nave. Decolaremos dentro de um minuto.

Perry Rhodan sempre fora um homem extraordinário. Depois do treinamento hipnótico recebido dos arcônidas talvez tivesse atingido um grau de genialidade inalcançável pelo comum dos seres humanos. Mas naquele instante nem imaginou que serviço estava prestando a si mesmo e à Terceira Potência.

A cúpula energética deixou de funcionar. A nave esférica subiu na vertical. O anteparo voltou a fechar-se.

Aceleração: 50 m/seg. O velho jogo, o sonho imorredouro da humanidade: vencer a distância que separa a Terra da Lua em pouco mais de uma hora.

Ingressaram na órbita do satélite apesar da formidável força centrífuga. Só depois de realizada essa manobra foi acionada a energia de frenagem. As ordens e os movimentos de Perry Rhodan eram breves e objetivos. Não desperdiçavam um suspiro.

Uma decisão estava presente ao espírito de todos: eles ou nós!

Tako Kakuta, que recebera instruções minuciosas, entrou na pequena nave de serviço, que não tinha mais de cinco metros de comprimento, e manobrou em direção à comporta pneumática. Foi quando chegou uma mensagem de rádio vinda do Gobi. Tratava-se de uma notícia desalentadora expedida por Kosnow.

— Alô, Rhodan. Acabo de receber um pedido de socorro de Bell. Está se aproximando num pequeno avião. Queixa-se de fortes dores de cabeça e pede que o ajudemos. Diz que não consegue manter o avião sob controle. O que devemos fazer?

— São os DI! — exclamou Crest.

— Transmita a mensagem de Bell pelos amplificadores, a fim de que eu mesmo possa falar com ele.

— Alô, Bell. Está me ouvindo?

— Perry! Ajude-me. Não consigo pensar mais. Não sei o que houve comigo...

Ordem de Rhodan dirigida a Tako Kakuta:

— Salte e tente a teleportação dentro de dez segundos.

Resposta de Rhodan dirigida a Reginald Bell:

— Defenda-se, Bell! Defenda-se. Não é nenhuma dor de cabeça. É uma agressão espiritual dos invasores. Encontramo-nos na órbita lunar e atacaremos num instante. Você me ouve, Bell? Responda!

— Perry! Não agüento mais! A dor é insuportável. Minha cabeça está explodindo. Vou...

— Controle-se! Você é mais forte que eles. Lembre-se do treinamento hipnótico dos arcônidas. Você tem uma vontade poderosa. Não ceda! Se o fizer, estará perdido. Esses seres querem devorar seu eu. Controle-se, Bell. Mais um minuto. Meio minuto. Daqui a pouco tudo passará...

Perry Rhodan não sabia se poderia cumprir a promessa. Tudo dependia do êxito do seu truque, do golpe tático com o qual pretendia derrotar os DI.

O ataque desfechado na manhã daquele dia provara que nada se conseguiria com o uso da energia física aplicada do lado de fora. A cúpula protetora dos DI era muito potente. Mas também o seria quando não se sentissem atacados? Tudo dependia disso.

Depois de ter desprendido sua minúscula nave da gigantesca esfera dos arcônidas, Tako Kakuta aproximou-se velozmente da nave dos DI. A nave esférica realizou um ataque simulado e empreendeu uma retirada aparente em direção à Terra.

A primeira etapa do plano de Rhodan foi coroada de êxito.

Os DI não viram naquele ligeiro bombardeio energético nenhum motivo para desaparecer precipitadamente. Havia um motivo evidente para essa conduta. Realizavam uma agressão espiritual contra Reginald Bell, que se encontrava a pequena altitude sobre o deserto de Gobi, e por isso tinham de manter-se em sua posição atual.

Com isso abriu-se a possibilidade para a teleportação de Tako.

Assim que a nave dos arcônidas se havia afastado um pouco dos DI, a vigilância destes diminuiu. A nave de Tako era tão pequena que não poderia ser localizada à primeira tentativa.

O japonês gastou a quarta parte de um segundo para igualar a velocidade de sua nave à do inimigo. Distância para a nave dos DI: sete mil quilômetros.

Foi então que saltou...

...e foi parar na sala de comando da nave inimiga.

O segundo durante o qual os cinco Deformadores Individuais que se encontravam presentes foram dominados pelo susto bastou para acender a bomba. Tako voltou a teleportar-se para sua nave e no mesmo instante presenciou a explosão da nave oval.

Muitos outros a presenciaram: a tripulação da nave esférica, a base terrestre do deserto de Gobi e Reginald Bell, que subitamente se sentiu livre dos incômodos que o atormentavam.

Aterrissou são e salvo com o visitante que trazia da Alemanha.

 

Oito dias depois.

A notícia da nova vitória de Perry Rhodan sobre uma nave espacial inimiga ocupou as manchetes em toda a Terra. A simpatia pela Terceira Potência, que até então vinha sendo encarada com certa dúvida, cresceu vertiginosamente.

Enquanto isso, no deserto de Gobi, foi concluído um dos cursos mais estranhos da história da humanidade. Na sala de conferências montada pelos robôs estavam reunidas todas as pessoas que se encontravam no território da Terceira Potência. No rosto dos seqüestrados não se percebia o menor sinal da indignação que os dominava uma semana atrás.

— ...e assim vou concluir, meus caros — terminou Perry Rhodan. — Todos depositaram em mim uma confiança irrestrita, que nunca ousaria esperar. Garanti que poderiam voltar para casa quando o desejassem. É claro que, se resolveram ingressar no serviço da Terceira Potência, terão direito a férias regulares. O bloqueio hipnótico não os deixará cair na tentação de revelar quaisquer segredos aos que se encontram do lado de fora. Peço-lhes que se levantem. Com a presente cerimônia ficam engajados pelo resto da vida no exército secreto de mutantes da Terceira Potência, exército que hoje, no dia de sua fundação, é formado de dezoito pessoas. Durante a palestra que acabamos de travar, os senhores deram mostras de estarem cônscios da importância histórica da instituição no contexto cósmico. Conhecem as limitações da humanidade, que ampliamos ligeiramente com a primeira viagem da Stardust. Também conhecem a enorme expectativa de que a humanidade se sente possuída no limiar da era espacial. Sabem que dentro de pouco tempo penetraremos em mistérios de que há poucos anos nenhum habitante de nosso planeta teria suspeitado. Esse salto para a amplidão do espaço cósmico até mesmo no terreno puramente psicológico representa um martírio para o espírito de nossa raça que ainda se move em limites muito estreitos. Dependerá dos senhores o bom êxito da tarefa de livrar a humanidade de terríveis pesadelos e de vencer o desafio do cosmo. Muito obrigado!

Os participantes da reunião foram se afastando. Perry Rhodan ficou aborrecido ao notar que Thora fora a primeira a retirar-se.

— O que há com ela? — perguntou, dirigindo-se a Crest. — Pensava ter me aproximado mais de sua pessoa. De qualquer maneira nestes últimos tempos já se podia conversar com ela; chegou mesmo a demonstrar alguns sentimentos. Mas há uma semana não fala uma palavra comigo e me evita sempre que pode.

— Há uma semana? — disse Crest com um sorriso benevolente. — Não está lembrado do que aconteceu há uma semana?

— Tivemos um dia muito quente. A invasão dos DI, a visita de Mercant, o problema que houve com Bell...

— Até parece estar esquecido do começo desse dia. Qual foi a primeira surpresa?

— Ah, sim. Foi miss Sloane. Não vá me dizer que Thora está com ciúmes.

— Pois é isso — disse Crest.

— Nesse caso perdôo tudo. Ver Thora com ciúmes era a única coisa que faltava para completar minha felicidade.

Crest também saiu. Rhodan pensou que estivesse só. Mas subitamente sentiu a presença de uma pessoa. Virou-se. Homer G. Adams estava de pé bem nos fundos da sala. Uma figura de pigmeu com a cabeça enorme que parecia pender para a frente. O ministro das finanças da Terceira Potência fez um sinal. Parecia tímido.

— Então, Adams. A viagem o deixou cansado?

O homenzinho aproximou-se e sacudiu a cabeça.

— Nessas suas máquinas uma viagem de Nova Iorque ao deserto de Gobi não é nada, Rhodan. Mas há uma coisa que me preocupa. Não vou brincar de esconder. Acontece que um bom financista não chega a ser um mutante. Assim mesmo incorporou-me ao seu exército. Não terá sido um engano?

Perry sorriu. Parecia absorto nos seus pensamentos.

— Diga-me uma coisa, Adams. Qual é o cubo de 2.369,7?...

— 13.305.998.429,873.

— Calculou neste instante?

— É claro que não. Acontece que há poucos dias o senhor formulou a mesma pergunta.

— E você guardou o resultado?

— Guardei — disse Adams, como se fosse a coisa mais natural deste mundo.

— Pois bem — disse Perry Rhodan, colocando a mão sobre o ombro de seu interlocutor. — Nenhum homem normal seria capaz de lembrar-se de um resultado desses, enunciado casualmente em meio a um debate acalorado. Nenhum homem que possua apenas os cinco sentidos seria capaz disso. Você possui uma memória fotográfica.

 

                                                                                                  K. H. Scheer

 

                      

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