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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


As Vespas Assassinas / Hans Kneifel
As Vespas Assassinas / Hans Kneifel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

As Vespas Assassinas

 

       

 

O ÚNICO som que se ouvia era o zumbido da turbina conjugada, movendo a hélice horizontal do helicóptero. Os gases de escapamento, depois de passarem pela câmara de recombustão, tangiam a máquina para a frente. Atrás da lâmina frontal aerodinâmica, cuja curvatura lembrava a cabeça de uma vespa-selvagem, estavam sentados dois jovens de rostos magros e cabelos desgrenhados. Shea disse alguma coisa. Suas palavras foram transmitidas pelo microfone de laringe.

— Apesar da cobertura vegetal, a temperatura média não baixou. Aliás, era o que eu esperava.

Seager tirou os olhos do painel de instrumentos.

— Devíamos cobrir toda a ilha de vegetação. Nesse caso, teríamos uma gigantesca selva, Shea. Por enquanto não chegamos a esse ponto.

Shea fez um gesto afirmativo e olhou para fora. A sombra em forma de libélula projetada pelo helicóptero corria sobre os gramados, as florestas, os juncos negros, os arbustos e as cercas vivas, as matas de d’Itvias. O sol dardejava sobre o solo. Mas, no mesmo lugar em que há um milênio ressequia cada vez mais os desertos amarelos do continente, existia hoje um dos parques naturais de Terra. Muito embora tivessem sido instaladas fábricas subterrâneas, tal qual em áreas extensas da Provence, sobre elas estendiam-se os parques. Em cada continente havia reservas biológicas desse tipo.

— Onde pousaremos hoje? — perguntou Shea depois de algum tempo.

— Em Avon Downs — respondeu Seager.

O parque natural de Camooweal era um dos maiores do planeta; e, num prazo que quase chegava a um milênio, os gastos feitos atingiam vários bilhões. Correspondia à concepção de Terra que um planeta de estaleiros e centros administrativos se transformasse num mundo de florestas, num lugar ao qual acorreriam todos os homens que viviam na esfera espacial de novecentos parsec. Os limites do parque de Camooweal seguiam acidentes bem definidos do terreno, e podiam ser determinados com boa dose de aproximação. Esse areai tinha de ser vigiado por Shea e Seager, juntamente com mais quarenta e oito homens e mulheres.

A vespa de aço continuava a cortar os ares, em direção à localidade de Avon Downs.

— Essas plantações de d’Itvia me deixam preocupado — resmungou Shea de repente. — Tenho a impressão de que, com elas, trouxemos animais daninhos que dificilmente poderão ser combatidos.

Seager apontou para o traçado projetado pelo radar, ressaltando um ponto situado no terço superior da tela redonda colocada em posição inclinada. A intensidade luminosa desse ponto mudava segundo um ritmo codificado.

— É justamente por isso que nos encontraremos com dois colegas nas proximidades de Avon Downs. Os mesmos realizaram experiências com culturas.

A frente do helicóptero as abóbadas semitransparentes e as antenas de Avon Downs começaram a tremeluzir no ar quente; no início parecia uma miragem em meio a uma grande área verde.

— Está certo — disse Shea. — Michelle também comparecerá?

— Provavelmente. Não perderá a chance de dar uma olhada ligeira no seu rosto marcante.

— Devo levar essa observação sarcástica a sério, ou será que a mesma tem uma finalidade definida? — perguntou Shea.

— Tudo que digo tem uma finalidade definida — foi a resposta de Seager.

Seager desceu com o helicóptero e reduziu a velocidade.

— O que pretende fazer hoje? Michelle é amicíssima de um engenheiro de bordo da frota. Se você tiver alguma chance passageira, isso acontecerá apenas porque, por um tempo reduzido, ela precisa de um substituto. É o conselho que lhe posso dar nesta quinta-feira.

Trezentas máquinas diferentes, algumas delas equipadas com direção eletrônica, realizavam os trabalhos exigidos pelo gigantesco parque. Aplainavam o terreno, abriam buracos, transportavam árvores, semeavam e cortavam a grama, providenciavam a remoção do lixo, abriam e limpavam os caminhos que atravessavam o parque. Boa parte da população australiana procurava e encontrava refúgio nesse lugar. No parque de Camooweal havia piscinas, praças de esporte, pequenos hotéis e poucas máquinas. Os visitantes vindos dos planetas coloniais não se cansavam de admirar essa maravilha tão bem planejada.

— Aí está o laboratório; é aí que Michelle está esperando — disse Seager, depois que o helicóptero descrevera uma curva e se aproximava do conjunto de edifícios baixos, que quase desapareciam entre os grupos de árvores d’Itvia. — Estraguei seu bom humor?

— Não. Provavelmente você tem razão, como sempre — confessou Shea. — Mas, de qualquer maneira, isso me deixa aborrecido.

Seager moveu a mão que segurava a complexa alavanca de direção. O helicóptero deslizou três metros acima do nível do solo, em direção ao redondo campo de pouso.

— Não há nenhum motivo para ficar aborrecido — disse Seager em tom professora! Seu companheiro tinha alguns anos menos que ele e por isso ainda não tivera oportunidade de acumular tantas experiências. — Pode ser um motivo de definir sua posição global na sociedade e entre as pessoas que o cercam... ou de encontrar a mesma.

Shea lançou-lhe um olhar de surpresa.

— Minha posição? Será que ainda não tenho uma posição definida?

Seager pousou. Contou um total- de cinco helicópteros. Segundo seus cálculos, isso correspondia a quinze pessoas, incluída a guarnição dos laboratórios; ou, se incluísse os ocupantes de sua máquina, dezessete pessoas.

— Você tem, mas ainda não a conhece. Só depois de termos cem por cento de certeza do que podemos ou não podemos fazer adquirimos a segurança que nos habilita a aceitar uma situação desagradável, como a que você enfrenta em relação a Michelle com a calma que esperam da gente.

A hélice foi parando. O uivo da turbina cessou.

— Será que um vigilante sempre se transforma num filósofo, Seager? — perguntou Shea, enquanto fez com que a porta se abrisse e pôs os pés nos dois degraus de cima.

— Nem sempre; mas é mais provável que em qualquer outro lugar. Com exceção das naves espaciais, pois todos os astronautas são filósofos.

Seager colocou o capacete cuidadosamente sobre o assento.

Shea permaneceu na sombra da vespa de aço enquanto aguardava o companheiro. Caminhando juntos, aproximaram-se da entrada que ficava a cerca de cem metros de distância, feita de aço, plástico e vidro colorido, e protegida por uma barreira de fluxos luminosos que se cruzavam em forma de grade.

— Está aludindo a Cliff McLane? — perguntou Shea.

— Entre outros. É um homem que conhece perfeitamente sua posição e sabe manter-se na mesma com uma segurança admirável. Tome-o por exemplo, companheiro.

Shea confirmou com um gesto resignado.

— Farei o possível. Se não fosse você... — deixou de completar a frase.

À sua frente, placas de vidro deslizavam para o lado. Os dois homens entraram e sentiram-se muito gratos ao constatar que o sistema de condicionamento de ar estava funcionando. Ouviram vozes confusas, enquanto eram atingidos por uma lufada de ar frio. O suor de sua pele secou. Conheciam o edifício, e foram diretamente para a sala de conferências.

As vozes não pareciam muito satisfeitas; as quinze pessoas que aguardavam Seager e Shea discutiam um problema de certa gravidade...

Dezessete pessoas, dez moças e sete homens, estavam reunidas na pequena sala. Diante de uma das paredes havia uma mesa comprida de laboratório com j aulas, um grande herbário e uma série de cubos de vidro, ligados a mangueiras brancas.

— Se há quinze anos tivéssemos imaginado o que agora sabemos — disse Chan, o dirigente do parque natural — teríamos escolhido qualquer planta, menos a d’Itvias.

Estava encostado a um balcão, com uma xícara de café na mão esquerda, e apontava para a planta. Achava-se atrás de uma divisória de vidro formada por duas lâminas entre as quais corria um líquido destinado à refrigeração, e fora colocada no pátio situado entre os prédios.

— Você cheira à terra e a adubo — disse Seager, enquanto apertava a mão de Chan.

— Não fique tão convencido por cheirar a combustível de helicóptero — respondeu Chan. — Shea acaba de chegar. Seja bem-vindo!

— Obrigado — disse Shea. Resolveu levar a sério o conselho de seu companheiro e, dirigindo-se a Michelle: — Por São Teobromino, Michelle! Qual é a posição social que um homem deve ocupar para conseguir com você uma xícara de café? — disse em voz alta.

Seager sorriu disfarçadamente, para que Shea não o visse. Michelle fitou Shea com uma expressão de surpresa e um sorriso discreto surgiu em seus lábios.

— Será que em pleno Ano Galático você descobriu seu talento para o sarcasmo, Shea? — perguntou.

Michelle era uma moça que tinha um cabelo de cor indefinida. Várias apostas foram feitas; alguém teve a idéia de arrancar-lhe um fio de cabelo a fim de realizar uma análise. Michelle mudava a cor do cabelo com um intervalo médio de vinte dias. No momento, usava a tonalidade cinza-prateado, e isso há mais de duas semanas.

Pegou uma xícara, colocou o concentrado de creme e açúcar e abriu a torneira. O líquido preto e quente despejou-se no recipiente.

— Obrigado — disse Shea em tom indiferente e por pouco não queima os dedos na xícara.

Observou-lhe comedidamente os olhos castanho-dourados. Depois virou-lhe as costas, de maneira a colocar-se novamente em meio ao pequeno grupo que cercava Chan, encostado ao balcão.

— Até parece — murmurou Seager em tom quase inaudível — que você aprende muito depressa quando está interessado.

Um sorriso largo cobriu o rosto de Shea, que respondeu:

— Costumo seguir o conselho das pessoas inteligentes. O que foi que Chan disse sobre as d’Itvias?

— Estava chorando suas mágoas.

Era uma reunião informal. Quase todos ocupavam a mesma graduação, diferindo no seu campo de atribuições. O parque era enorme, e, num trabalho como este, as diferenças de graduação perdiam o sentido. As cinqüenta moças e homens do grupo de Camooweal formavam uma equipe coesa. Chan, um homem cujo cabelo embranquecera prematuramente, de olhos negros e rosto anguloso, que usava uma capa de proteção contra o calor, emborcou a xícara vazia, olhou para o relógio de pulso e voltou a colocar a xícara no mesmo lugar.

— Vamos começar — disse a meia voz. Tirou a capa, que na verdade era uma jaqueta feita de plástico branco com serpentinas embutidas. Nos anéis que circundavam a articulação dos ombros, havia pequenas máquinas refrigeradoras sem peças móveis. Um conjunto térmico garantia a absorção do calor. A jaqueta foi atirada sobre a poltrona, e com alguns passos Chan colocou-se junto à mesa de laboratório. Parecia ter uma concepção bem definida. Sua voz encheu o recinto, e trinta e dois olhos dirigiram-se sobre sua pessoa.

— Vamos começar, pois só assim teremos bastante tempo para a discussão que esperamos.

Apontou para a planta que se encontrava do lado de fora.

— Acho que todo mundo sabe o que está acontecendo com esta planta. Vou fazer um ligeiro resumo, para recapitular os dados. Há quinze anos Terra, representada por uma nave cartográfica, descobriu um planeta situado em Nove/Norte 206. Esse planeta recebeu o nome d’Itvia, em homenagem ao astronavegador Sherby d’Itvia. A bordo da nave-disco encontrava-se um biólogo. Esse homem é um dos culpados do problema que estamos enfrentando hoje. Descobriu a ligação existente entre os arbustos, as árvores menores e as gigantes sempre verdes. Conforme sabemos, a evolução dessa planta se realiza em três estágios. No estágio inicial, que dura três anos, é um arbusto em forma de esfera. A d'Itvia lança um gigantesco entrelaçado de raízes, que lhe permite armazenar quantidades enormes de água. A extensão enorme que conseguimos dar ao parque Camooweal só se tornou possível graças a esses arbustos. Todo mundo conhece suas flores. Durante a florescência, apresentam dez cores diferentes e exalam um perfume inebriador. Seager cochichou para Shea:

— Não sei por que está dizendo tudo isso. Todo mundo já sabe.

Shea deu de ombros e disse:

— Chan é um homem metódico. Além disso, vi um gravador de fita.

Seager seguiu o olhar do colega mais jovem, virou ligeiramente a cabeça e disse, falando depressa e baixinho:

— Mais tarde precisarão dessa fita. Aliás, Michelle o está olhando com uma expressão muito pensativa.

— Acho que sua tática está dando certo — cochichou Shea.

— É a sua tática, desenvolvida segundo minhas recomendações, companheiro.

Calaram-se e continuaram a acompanhar o resumo apresentado pelo dirigente da reunião.

— As flores são a alegria dos insetos que estão à procura de pólen e néctar. O aroma serviu de inspiração aos fabricantes de perfumes, que usaram as células das plantas para criar novas combinações olfativas. Tanto o mel como o cheiro são totalmente inofensivos para qualquer ser que viva neste parque. Até aqui falamos a respeito do arbusto que representa a primeira fase da vida dessa planta. A segunda fase é formada por uma pequena árvore, que se desenvolve do arbusto e produz um fruto: uma mistura entre a romã, o figo e o pêssego. O sabor desse fruto é muito agradável e seu valor nutritivo é bem considerável. Essa árvore é o encanto dos plantadores de frutas e dos confeiteiros. Pelo que ouvi dizer, bombons caríssimos destinados à exportação são recheados com o extrato.

"A árvore amplia as raízes, e, nas extremidades das mesmas, voltam a surgir os arbustos de que já falamos. Essa é a segunda fase, que dura cinco anos. A flora, que vingou tão bem, tanto no parque de Camooweal como em todas as outras áreas de proteção natural do planeta, não constitui o problema propriamente dito. Em cada área foram criados os animais adaptáveis a esse tipo de planta, que muitas vezes só foram conseguidos por meio de um sistema caro e complicado de cruzamentos. Quer dizer que os parques foram providos da respectiva fauna. Ao longo dos caminhos, foram instalados sistemas de segurança, que repeliam todo e qualquer animal, permitindo que se passeasse à vontade. Só as equipes que operavam no campo corriam algum perigo.

"Depois de algum tempo, a árvore fornece os frutos e passa a crescer numa velocidade fantástica. As árvores gigantescas que vemos neste parque têm exatamente quinze anos e, em alguns casos, sua altura é pouco inferior a oitenta metros. A sombra proporcionada por suas enormes copas evita o ressecamento do solo. A cada ano que passa, podemos reduzir a quantidade de água que tem de ser dessalinizada para a irrigação deste parque. Depois de milênios sem chuva, as florestas situadas ao longo do trópico de Capricórnio criaram as condições para sua ocorrência. São estes os pontos positivos que devem ser mencionados em relação ao planeta d’Itvia."

— Agora vai falar no problema — disse Michelle atrás das costas de Shea. Este não se moveu; continuou a prestar atenção às palavras do orador.

— As coisas seriam ótimas, se juntamente com essa planta de tão múltiplas aplicações não tivessem sido introduzidos certos animais daninhos. A planta é exótica, e os animais também o são. E dali decorre uma conseqüência bastante triste. Temos que combater um inimigo extraplanetário com meios terranos. Os animais daninhos são um inimigo vindo de outro mundo.

Chan deu um estalo com os dedos. Uma imagem tridimensional surgiu numa tela de videofone. Mostrava uma borboleta.

— Tortrix viridana extraterrestris. Viu-se uma borboleta verde-escura com

asas verde-claras e um olho cor de ouro. Havia antenas longas e elegantes que terminavam em pontinhas com o aspecto de prata pura.

— Este é nosso amigo voador. O tamanho do bichinho chega a dois centímetros e meio. Às vezes, as larvas são tão abundantes que chegam a devastar grandes extensões da floresta. Uma vez que não tivemos o cuidado de importar no devido tempo o inimigo natural desta borboleta, elas se reproduziram no ritmo ditado pela natureza. Por dois anos atacamos com processos químicos e dizimamos os animais, mas acabo de pedir ao centro de computação da Base 104 que verifique o resultado. Segurem-se, companheiros!

Fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Dentro de dez anos todo o planeta poderá ser atacado. Nessa altura a população terá crescido tanto que qualquer folha encontrada na superfície do planeta estará ocupada por esta borboleta de olho cor de ouro. Tivemos de constatar que certos produtos químicos que em outros casos exterminaram os insetos de uma hora para outra aqui não produziram efeito. Certos produtos mais fortes fizeram efeito, temporariamente. A geração seguinte adquiriu resistência ao produto. E é ali que está nosso problema. Dentro de dois anos, precisamos de alguma coisa que nos permita exterminar essa borboleta ou manter sua quantidade sob controle. Se não conseguirmos, ficaremos desempregados e em Terra não haverá uma única folha verde.

O quadro projetado na tela modificou-se. Mostrou ovos, larvas, crisálidas e borboletas que acabavam de sair das mesmas. Os ovos pareciam bolinhas presas a cabelinhos elásticos; a larva era uma figura elipsóide verde-brilhante, capaz de grudar-se a qualquer planta sem ser notada. As crisálidas pareciam semi-esferas com uma reentrância no centro.

— Estou inclinado a acreditar que nossos conhecimentos não são muito reduzidos — prosseguiu Chan. — Mas não posso deixar de mencionar que perderemos, se dentro de um prazo curtíssimo não descobrirmos um produto milagroso ou um inimigo natural que possa fazer uma limpeza na raça das borboletas de olho dourado. Proponho que nossos problemas sejam transmitidos ao governo terrano, e que solicitemos a colaboração da frota.

Para alegria de Shea, fez uma ligeira pausa antes de proferir a sentença final.

— Não sou de opinião que qualquer membro da frota, isoladamente, possa prestar-nos auxílio. Acontece que a frota dispõe de naves, e é bem possível que devamos procurar nossos meios de defesa em outros planetas. É só, companheiros.

— Pois não — resmungou Seager em tom de aprovação.

Pôs as mãos nos bolsos e caminhou em direção aos estranhos experimentos oferecidos na mesa de laboratório.

Atrás dele e de Shea, que se encontrava a seu lado, a assembléia iniciou uma discussão encarniçada.

— Em todo lugar andam falando na frota — disse Shea. — Só falta que Chan vá em companhia de McLane para d’Itvia, a fim de procurar inseticidas.

Seager fitou Shea; seu rosto não demonstrava a menor surpresa.

— Companheiro — disse em voz baixa — isso não é nenhuma fantasia estelar. Acredito que um homem como McLane seria o colaborador ideal. Afinal, as plantas de Terra estão em jogo.

Shea sacudiu a cabeça e murmurou:

— Que alguém nos livre de vermos Michelle viajar em companhia de McLane. Depois de entrar em contato com um astronauta desse quilate, talvez eu a perca.

Seager espalmou as mãos e recomendou ao companheiro:

— Aguarde para ver se ela o chama. Se isso acontecer, faça o possível para que o levem. Nesse caso, você terá a melhor chance de sua vida para tirar de sua cabeça o lugar-comum segundo o qual um astronauta sempre é mais homem que um jardineiro.

Shea começou a rir. Enquanto ria, percebeu que mais uma vez Seager estava com a razão. Interrompeu-se e virou a cabeça. Atrás do balcão, Michelle conversava com Chan.

— Malditos astronautas! — murmurou Shea. — Maldito McLane!

Viu caminharem em sua direção certos problemas que, embora estivessem estreitamente ligados com a borboleta de olho dourado, talvez pudessem ser resolvidos sem a mesma.

— Tolice! — resmungou, enquanto dedicava sua atenção aos cubos de vidro nos quais animais daninhos nos mais diversos estágios de desenvolvimento viviam em atmosfera saturada de inseticidas. Em todos os casos, notava-se à primeira vista que os animais se haviam tornado imunes a essas substâncias, ou haviam criado resistências contra as mesmas. A discussão tornou-se cada vez mais acalorada. Será que alguém tinha encontrado um caminho?

 

Não foi por puro altruísmo que os responsáveis pelos destinos de Terra se dedicaram com grande esforço à criação de parques naturais, e neles investiram somas enormes. O altruísmo era um sentimento estranho a Terra. Provavelmente não ficariam em paz com a consciência se os tivessem instalado apenas para a felicidade dos cidadãos. Os verdadeiros motivos eram mais profundos e só aos poucos foram sendo compreendidos. Tratava-se da sede do prestígio e do poder, da tendência a uma valorização artificial.

As experiências custosas que permitiram a recriação de animais terranos, julgados extintos, e seu cruzamento com raças exóticas, descobertas em outros planetas, os gigantescos parques e florestas, as margens e os leitos dos rios — tudo isso contribuía para fazer de Terra um lugar sem par. Era a jóia incrustada no diadema de novecentos parsec de diâmetro. Para o cidadão comum, as viagens aos outros planetas ainda por muito tempo seriam um prazer inatingível. Por isso não havia outro meio senão recriar no próprio planeta os elementos exóticos. O parque de Camooweal era um dos exemplos dessa recriação.

Num passado que em termos de história mundial devia ser considerado recentíssimo, naquela área existia o deserto com pequenos lagos salgados e rios periódicos. Agora, porém, se estendia uma enorme floresta. Eram eucaliptos, acácias, capim spinifex e várias árvores que se adaptavam ao clima, além de líquens importados de outras zonas do mundo.

O parque de Camooweal era isso. Rios alimentados por tubulações vindas do mar, cuja água era purificada e dessalinizada. Depois de receber um tratamento que aumentava seu conteúdo de oxigênio, a água descia das encostas de Barklytafel. Geralmente corria em calhas de concreto, das quais saíam pequenos canais.

De início, o verde começou a espalhar-se junto a esses canais, mas depois de algum tempo foi iniciado o florestamento sistemático. Uma vez descobertas as d'Itvias, as mesmas se revelaram auxiliares valiosíssimas, graças ao crescimento rápido. A população terrana — aqui era a do continente australiano — vivia num regime de tranqüila "contemplatividade". Nos últimos tempos não houvera crises políticas; apenas vez por outra os extraterranos, os planetas em chamas ou certos fanáticos os deixavam sobressaltados. Geralmente os homens da frota conseguiam eliminar o perigo antes que os repórteres e as agências de informações noticiassem a respeito. Uma vida livre de riscos — era assim que se podia designar a existência no planeta Terra.

A calma era perturbada a intervalos irregulares. Desta vez, era um inseto daninho que poderia ser esmagado pelo dedo de qualquer criança. Se dez mil borboletas põem trinta ovos cada uma, e se não existe nenhum inimigo natural que mantém os sobreviventes dentro de certos limites, o número de animais subirá para trezentos mil. Trezentos mil vezes trinta são nove milhões. A cada ano que passava poderiam surgir duas gerações de borboletas de olhos dourados. Suas nuvens seriam tão densas que obscureceriam a luz do Sol. Quando isso acontecesse, nenhuma folha continuaria viva na face de Terra. Isso representaria a extinção dos elementos produtores de oxigênio. Tratava-se de um erro minúsculo que poderia trazer conseqüências tremendas.

Os pensamentos de Seager afastaram-se desse prognóstico sombrio para voltar a dedicar-se às palestras travadas na sala de conferências. Virou-se e fitou Shea, em cujo rosto havia uma estranha palidez. Provavelmente acabara de entreter os mesmos pensamentos que ele.

— Ainda dispomos de algum tempo, antes que as nuvens se tornem mortais. Devemos tomar providências imediatas.

Shea apontou para os grupos que discutiam.

— Será que se trata de uma solução final, Seager?

Seager sacudiu desesperadamente a cabeça.

— Ainda não — disse. — Mas sei quem somos. Encontraremos um meio, custe o que custar.

Shea foi caminhando lentamente em direção a Chan, que se encontrava em meio a um grupo que discutia violentamente. Michelle, que se achava ao lado de Chan, olhou para Shea. Este se esforçou para não olhá-la mais que o necessário.

— Chan! — disse Shea em tom enfático. O homem de olhos fascinantes fitou-o.

— Pois não. O que houve?

Shea respondeu com um sorriso frio.

— Não houve nada. O problema é este. De corpo e alma sou guarda do parque e um membro entusiástico da equipe de Camooweal. Mas sei perfeitamente, da mesma maneira que todos sabem, embora não queiram admiti-lo, que por enquanto só encontramos uma única solução.

Um interesse súbito surgiu nos olhos da moça. Parecia que uma pequena luz acabara de ser acesa atrás de suas pupilas. Shea percebeu a estranha situação psicológica em que ele, a moça e o tal do astronauta desconhecido se encontravam. Devia descobrir um meio de despertar o interesse de Michelle. A moça era do tipo companheira de herói; mal concebeu esta idéia, pôs-se a sorrir.

— Qual é a solução, Shea? — perguntou Michelle, atirando o cabelo para trás.

— Saímos por aí e esmagamos toda borboleta, toda crisálida, toda larva, todo ovo que encontrarmos. Isso resolveria o problema, ao menos nas imediações do lugar em que nos encontramos.

Michelle empalideceu. Compreendeu que Shea descobrira um meio de brincar com ela. A qualquer mulher, uma constatação desse tipo seria praticamente arrasadora. Para sua surpresa, Chan respondeu com a maior tranqüilidade:

— É isso mesmo, Shea. Não temos outra possibilidade. O assunto deve ser submetido a uma autoridade superior. Precisaremos do apoio da frota.

— Quem tratará disso? — perguntou Seager, que se colocara ao lado de Shea.

— Eu — respondeu Chan. — Tenho encontro marcado com Macauley para amanhã. Ainda hoje voarei para Groote Eylandt. Por enquanto trabalharei sozinho. Farei o possível para trazer Macauley, a fim de que o mesmo possa estudar o problema.

— Em outras palavras — insistiu Seager — podemos pegar nossos helicópteros e ir embora, não é, Chan?

Chan sacudiu a cabeça.

— Peço-lhes que fiquem até amanhã. Suponho que alguns de nós receberão incumbências especiais. Repito: apenas suponho. Nada mais.

O silêncio tomou conta do grupo.

— Ainda bem que alguma coisa está acontecendo — disse Seager. — Quer que o leve para lá, Chan?

Chan olhou para o relógio. Eram quinze horas.

— Seria muito gentil de sua parte. Daqui a uma hora. Combinado, companheiro?

— Combinado, desde que alguém me dê alguma coisa para comer. Neste caso, terei muito prazer em pôr minha geringonça amarelo-prateada a funcionar — Seager fez um gesto afirmativo. Michelle tocou seu braço e perguntou:

— Há mais alguém que esteja morrendo de fome?

Shea levantou o braço e respondeu com a maior indiferença:

— Há sim; sou eu.

— Venham — disse Michelle. Visivelmente abalada e insegura, foi para trás do balcão e abriu a geladeira. Ruborizada, remexeu as rações, que apenas precisaria colocar no forno de alta freqüência juntamente com o envoltório de alumínio. Shea e Seager sorriram para ela...

 

Depois de ter mudado de roupa, Shea saiu do quarto e voltou a dirigir-se à sala de reuniões, onde pediu uma vodca. Outra moça, Arlene, deu-lhe um copo alongado.

— Onde está Michelle? — perguntou Shea. — Viajou?

— Não — respondeu Arlene. — Está no parque, contemplando a lua. Ou as estrelas; não sei.

Shea sorriu.

— Está contemplando alguma coisa que existe entre as estrelas, mas só em sua imaginação. Se alguém perguntar por mim, estarei com ela.

Saiu da sala e procurou localizar entre as árvores e os arbustos um vulto esbelto de cabelos cinza-prateados. Não demorou em encontrá-la.

— Está olhando as estrelas cadentes, para formular um desejo assim que descobrir alguma? — perguntou em voz baixa.

A moça virou-se abruptamente, pois não o ouvira chegar.

— Shea!

— Sou eu mesmo — disse, cheirando o copo que trazia. — Será que você ficou lunática, minha filha?

— Não — respondeu a moça. — Estou pondo meus pensamentos em ordem.

— Faz muito tempo que está aqui — Shea sorriu. — Tem tantos pensamentos assim?

Michelle virou-se e parou diante de Shea.

— Desde o meio-dia você parece bastante mudado, Shea. Está tão estranho!

— Não — respondeu Shea. — Apenas não sou mais o jovem capaz de destruir um helicóptero para ter o privilégio de contemplar seus olhos. Acho que esses tempos não voltarão mais. Aliás, como vai seu astronauta? Andou à sua procura, Penélope?

— Mais ou menos — respondeu Michelle bastante confusa. — Para que descobrir onde está?

— O que me interessa é saber quando pousou aqui pela última vez e quando a visitou. Quase chego a ter pena de você, minha pobrezinha. Até parece uma freira que, vez por outra, recebe uma visita de Belzebu.

Michelle respirou fundo. Shea sorveu tranqüilamente um gole de vodca e contemplou o rosto da moça.

— Você está usando falas bastante estranhas — disse Michelle em voz baixa.

— Foi tudo decorado nos livros — respondeu Shea em tom indiferente. — Acho que consegui atingir o ponto fraco. Houve um tempo em que fiquei com os pés machucados de tanto correr atrás de você. Agora as coisas estão mudadas. Já sei que você conhece minha oferta. E estou esperando para saber se quer aceitá-la. Por enquanto ainda estou esperando. O planeta em que nos encontramos está cheio de borboletas de olho dourado e moças bonitas. Acho que o tempo está esfriando.

Virou as costas à moça e foi caminhando em direção a casa. Pouco antes de chegar à porta de vidro parou e esvaziou lentamente o copo. O gelo já estava derretido. Avançou mais um passo e ouviu o chiado das duas lâminas de vidro. Entrou no corredor. Subitamente viu Michelle a seu lado.

— Seria demais pedir sua preciosa compreensão? — perguntou.

Shea fitou seus olhos.

— Não seria demais — respondeu, falando devagar. — Mas pode ser que daqui a pouco seja tarde, Michelle. Estou esperando. Ainda estou.

Michelle engoliu em seco.

— Dê-me mais um pouco de tempo, companheiro.

Um sorriso cansado surgiu nos lábios de Shea.

— Dou-lhe um pouco mais de tempo. Mas não todo o tempo que existe no mundo.

Afastou-se, foi ao quarto e mudou de roupa. Não demorou em adormecer.

 

NAQUELA manhã, Cliff Allistair McLane tinha dois motivos bastante poderosos para sentir-se mal-humorado.

Antes de mais nada, despertaram-no para transmitir-lhe a notícia de que a Aztran Alpha finalmente pousara, com Spring-Brauner a bordo. Embora as férias que, juntamente com boa quantidade de Archer's Tears, constituíam objeto de uma aposta que ele, Cliff, fechara com Wamsler, na presença de testemunhas, tivessem durado muito, agora haviam chegado irremediavelmente ao fim.

O outro motivo era mais sutil.

Não se poderia dizer que McLane fosse um amante das flores, um jardineiro amador ou botânico entusiasta. Todavia, estava em condições de perceber eventuais desvios das normas. E esse desvio consistia no fato de que uma combinação de árvores e arbustos estrategicamente dispostos em torno de seu bangalô apresentava grandes falhas.

Os arbustos, que constituíam exemplares de uma planta exótica, tinham seu lugar entre a cerca e a piscina. Protegiam Cliff contra os olhares dos curiosos, quando estava deitado à beira da água. Mas agora, os arbustos redondos e geralmente cheios estavam "comidos". Quase não tinham folhas e estavam cobertos de larvas de insetos que Cliff achava repugnantes. Encontrava-se junto a uma grande prateleira, contemplando as caixas de plásticos nas quais guardara os restos de folhas e os insetos que conseguira recolher em torno dos arbustos.

— Perguntarei a alguém que entenda do assunto! — murmurou e apertou os fechos magnéticos das mangas. — Mas quem poderia informar sobre quem estivesse em condições de informar?

Sorriu. A segunda parte do segundo motivo consistia nas árvores. As copas estavam reduzidas a redes finíssimas, e a sombra resumia-se a um traçado futurista sobre as pedras. As árvores também haviam sido atacadas.

— Animais estúpidos! — resmungou Cliff e parou diante do videofone. Conseguiu lembrar-se do número de informações e bateu as respectivas teclas.

— Informações. Groote Eylandt e Base 104 — disse uma voz.

— Querida! — disse Cliff num sopro, como se estivesse nos seus melhores tempos. — Sou o coronel McLane. Gostaria de ver seus olhos enquanto lhe peço uma informação.

O setor de informações transmitiu a ligação para a moça de plantão. A tela iluminou-se. Cliff viu uma jovem lindíssima. Um sorriso quente iluminou seu rosto.

— Pois não, coronel McLane.

— Quero que a senhorita me dê uma informação toda especial.

A moça sacudiu a cabeça e retribuiu o sorriso.

— Lamento, coronel. Infelizmente tenho um compromisso para hoje de noite.

Cliff não ocultou a alegria que lhe causou a resposta.

— Fico satisfeito em notar que a senhorita me interpretou mal — disse a meia voz, aproximando-se da lente. — Estou à procura de um endereço e do respectivo morador, homem ou mulher. Trata-se de um problema de insetos, que danificam as plantas. Estou à procura de alguém que possa mostrar-me um meio de eliminar quanto antes essa praga de borboletas do meu arvoredo. É bom saber que adoro a sombra.

Uma expressão pensativa surgiu no rosto da moça.

— Acho que há alguém no meu fichário. Groote Eylandt...

Ao que parecia, estava examinando um fichário eletrônico e lia os dados numa tela, pois seu olhar se dirigia para além da lente. Subitamente levantou a cabeça e disse:

— O senhor está procurando um entomólogo, coronel!

O termo não constava do vocabulário cotidiano de Cliff, mas este confirmou com um gesto.

— É isso mesmo — disse. — Conhece algum.

— Do meu fichário consta um. É o professor Macauley, Groote Eylandt, Shore 432143.

— Obrigado — disse Cliff. — Fico-lhe realmente muito grato.

Parou por um instante, em atitude pensativa, deu de ombros e apertou as teclas do videofone. 4-3-2-1-4-3. Mais uma vez, a tela ligeiramente abaulada iluminou-se. Viu o busto de um homem de seus cinqüenta anos. Um par de olhos escuros fitou McLane, embaixo das sobrancelhas hirsutas.

— Queira desculpar — disse Cliff. — Meu nome é McLane...

O homem acenou fortemente com a cabeça.

— O nome não me é desconhecido. Meu nome é Macauley.

— Poderia incomodá-lo com uma coisa sem importância? Descobri uma praga no meu jardim.

O professor soltou uma risadinha.

— Acho que o senhor não me considera um matador de lesmas. Por isso acredito que o problema deve ser um pouco mais complicado.

Cliff continuou sério e apontou para as caixas em que se debatiam as borboletas, batendo constantemente contras as lâminas transparentes e voltando a cair nas folhas entrecortadas.

— Não sou nenhum en... entomólogo. Será que é isso mesmo? Acontece que nunca vi esse tipo de borboleta. É possível que meu contato com o senhor possa ajudar a evitar um desastre, mas também é possível que meu gesto não passe de um falso alarma. Não tenho certeza. O senhor poderia dispor de alguns minutos...

Virou-se, apontou novamente para as caixinhas com os animais daninhos e concluiu com uma interrogação:

— ...para dedicar-se aos meus queridinhos?

Depois de uma ligeira hesitação Macauley respondeu, falando lentamente:

— Tenho um compromisso com o pessoal da equipe de Camooweal, mas tentarei ajeitar a coisa. Poderia estar aqui dentro de duas horas? Meu laboratório fica "junto à água".

Cliff concordou.

— Se não me engano, já conheço o lugar. Daqui a duas horas. Fico-lhe muito grato, professor.

Macauley respondeu com um sorriso gentil.

— Não há por quê, coronel.

A tela apagou-se e Cliff afastou-se.

— Vejamos se existe uma possibilidade da árvore voltar a proporcionar a minha piscina a sombra a que a mesma faz jus — disse em voz baixa.

É claro que o coronel McLane nem imaginou a possibilidade de que aquela borboleta pequena e verde, com pontos dourados e brilhantes sobre as asas, pudesse interferir diretamente na vida da tripulação da Orion. Como poderia ter uma idéia dessas?

 

Cliff parou diante da vidraça cor de mel e apertou o botão que ficava abaixo da placa com o nome Gant Macauley. Um alto-falante emitiu um clic e uma voz feminina disse:

— Aqui fala da parte de Macauley. O senhor tem hora marcada?

Ele respondeu em tom alegre:

— Tenho, sim. Meu nome é Cliff McLane.

A porta de vidro abriu-se com um zumbido e Cliff penetrou na semi-escuridão do hall. Uma das portas abriu-se. Saiu uma moça que envergava um uniforme bem justo no corpo. Trazia o distintivo do destacamento biológico de Terra sobre o peito.

— Bem — respondeu a moça. — O professor está atendendo a duas pessoas. São Chan e Seager, da equipe de Camooweal. O senhor poderia aguardar um segundo?

— Posso — respondeu Cliff.

A jovem atravessou o hall e desapareceu atrás da porta acolchoada. Quando esta se abriu por um segundo, Cliff ouviu três vozes que falavam ao mesmo tempo. Dali a pouco, a moça voltou e examinou o coronel e sua bagagem.

— Macauley manda perguntar se nessas caixas há pequenas borboletas verdes com olhos dourados nas asas.

Cliff ficou espantadíssimo.

— Entre outras coisas, sim. São bichinhos alegres que comeram toda a folhagem das minhas plantas e por isso perturbam meus banhos de piscina.

A moça de jaqueta branca e curta olhou-o com uma seriedade surpreendente.

— Nesse caso — disse em tom espantado — o professor Macauley pede que entre imediatamente.

Abriu a porta. Cliff entrou numa sala quadrangular, recheada de equipamento técnico, mesas e poltronas. Nela havia três homens. Uma enorme vidraça panorâmica abria-se sobre a área verde, na qual se via uma série de arbustos esféricos. Num dos cantos, notava-se uma árvore cuja copa encobria quase toda a área. Depois que a porta se fechou atrás dele, Cliff avançou mais alguns passos e parou diante da mesa do professor.

— Já falei com o senhor, professor — disse em tom tranqüilo. — Meu nome é McLane.

O professor levantou-se. Cliff notou que devia ter quase dois metros de altura. Estendeu a mão direita para Cliff. O aperto de mão era simpático: breve e vigoroso.

— Meu nome é Macauley. O senhor se envolveu numa situação que talvez seja mais grave do que supomos.

Cliff respondeu em tom contrariado:

— Esta é uma das minhas especialidades, professor.

Macauley apontou para os dois homens que se mantinham calados e contemplavam Cliff.

— Estes são Chan e Seager. Pertencem à equipe de Camooweal. Sabe o que significa isso, coronel?

— Só sei que Camooweal é um lugar situado no parque natural recém-inaugurado. Não sei o que isso tem a ver com as borboletazinhas que tenho aqui.

Macauley pegou um dos cubos transparentes que se encontravam sobre a mesa e levantou-o.

— Seager e Chan vieram por causa desta borboleta.

Cliff compreendeu imediatamente que havia uma ligação entre o animal daninho surgido no parque natural e o que encontrara entre suas árvores.

— Sugiro que se apertem as mãos. Dentro de poucas horas, apresentarei uma exposição que lhe permitirá compreender toda a seriedade da situação. E ainda compreenderá que a situação poderá tornar-se muito mais séria, se não agirmos depressa. E, pelas informações de que disponho, Cliff McLane será um dos participantes da ação.

Cliff apertou as mãos dos dois homens. Logo simpatizou com eles. Deixou-se cair numa poltrona.

— Ao contrário da atividade teórica, a ação tem uma vantagem bem marcante: modifica as coisas. Às vezes, a modificação é para pior, mas sempre é preferível fazer alguma coisa. Os senhores escolheram o homem certo.

Os homens soltaram uma risadinha, mas o professor Macauley logo recuperou o ar sério.

— Ainda mais que nós, os biólogos, chegamos a um beco sem saída. Acho que os recursos de que podemos dispor estão esgotados.

— Que diabo! — disse McLane em voz alta.

— O senhor disse alguma coisa? — observou Seager com certa ironia.

— Disse. Dei vazão ao meu espanto — disse Cliff em tom tranqüilo. — Realmente, tudo parece processar-se segundo uma série fatal. Sempre entro nas situações mais complicadas por um motivo fútil. É de enlouquecer.

O professor Macauley sorriu com a sabedoria de um velho filósofo.

— O senhor está exagerando, não está, coronel? Fale com franqueza: se não fosse assim, o senhor não gostaria.

Cliff baixou a cabeça e um ligeiro sorriso aflorou aos seus lábios.

— Acho que o senhor tem razão, professor. Aliás, qual é mesmo o problema?

Macauley apontou para o cubo transparente.

— Informe-nos primeiro sobre a experiência que fez com estas borboletas. Se possível, forneça dados precisos.

Cliff respirou profundamente e ofereceu um relato detalhado.

Fazia onze dias que vira a primeira borboleta. Dentro de onze dias, as folhas estavam quase todas roídas. Hoje era o décimo segundo dia. Contou tudo isso e mais alguma coisa aos três homens, que ouviam em silêncio. Finalmente recostou-se na poltrona e disse:

— É só. Mandei que os robôs limpassem a área de pedra em torno da piscina e trouxe um pouco de cada tipo de material. Agora é sua vez, Macauley.

O professor trocou um olhar com os dois jovens que se encontravam em sua companhia e começou a falar. Tinha uma voz grave:

— Sou entomólogo. Isso significa que passo a vida observando e estudando os insetos. Existe uma infinidade de espécies de insetos. Só neste planeta são cerca de um milhão, setecentos e cinqüenta mil. Todos eles estão bem inseridos nos planos da natureza. Mas o equilíbrio biológico não deve ser perturbado. E esse equilíbrio foi perturbado quando há vários milênios deixaram de ser consideradas as relações existentes entre a fauna e a flora, e mais recentemente, quando tentamos restabelecer o estado anterior. Em outras palavras, introduzimos em nosso planeta uma planta exótica de crescimento muito rápido. Isso entre outras coisas. Com essa planta, veio a borboleta de olhos dourados. Sua reprodução foi muito rápida, pois não tem inimigos naturais. Não tivemos o cuidado de importar os mesmos.

"Seu jardim fica a mais de mil quilômetros do parque natural. Conclui-se que a tortrix já saiu do parque e começa a devastar outras áreas. Os pássaros existentes na ilha não conseguirão dizimar as fêmeas ovíparas em proporção suficiente para restabelecer o equilíbrio. A situação é de perigo extremo, coronel."

McLane permitiu-se uma observação sarcástica.

— Queira desculpar — disse a meia voz. — Será que devo pegar a Orion VIII para caçar borboletas, matando-as com o Overkill?

— Sua observação não é muito engraçada, astronauta — disse Seager, que falava pela primeira vez. — Acho que teremos de fazer algo parecido. Espalhamos inseticidas tão fortes que quase todas as árvores e outras plantas estão envenenadas. E os animais também. Um pássaro que come uma borboleta morre imediatamente. Não podemos recorrer a inseticidas mais fortes, e os descendentes da tortrix sempre são imunes ao veneno utilizado para atacar a geração anterior.

McLane cocou a orelha.

— Quem é imune? — perguntou, franzindo ligeiramente a testa.

— A tortrix viridana extraterrestris — respondeu Chan. — É o nome científico da borboleta de olhos dourados. A única coisa que nos resta é pedir à frota que no âmbito do Ano Galático forme quanto antes um comando especial que nos ajude a encontrar o inimigo natural dessa borboleta.

— Querem que eu os ajude nessa tarefa? — perguntou Cliff.

Macauley confirmou.

— Sim, queremos que o senhor ajude. O senhor entrou aqui por acaso; seu problemazinho o fez defrontar-se com nosso grande problema. Será que o senhor pode prometer-nos uma coisa, sob reserva do consentimento de seus superiores e da ação de diversas autoridades?

— O que é? — perguntou Cliff desconfiado.

— Fazer o possível para ajudar-nos juntamente com sua tripulação.

Cliff fitou o rosto de um por um dos três homens. Teve de verificar que falavam sério. Ao que tudo indicava, a borboleta de olhos dourados representava um perigo para todas as plantas do planeta. Se o professor Macauley resolveu pedir justamente a colaboração dele, McLane, isso devia ter seu motivo. Cliff não demorou em tomar sua decisão:

— Daqui a duas horas encontramo-nos no gabinete do marechal Wamsler. Ele é quem decidirá se a Orion decola ou não.

Neste meio tempo, entrarei em contato com a tripulação. Combinado? O professor levantou-se.

— O senhor concordaria em levar, além dos seus tripulantes, um pequeno grupo de pessoas que entendem do assunto? Eu ficaria aqui, para dirigir a operação. Devo confessar que ainda não sei exatamente como organizá-la.

— Na Orion VIII temos lugar para mais cinco passageiros — disse McLane. — Apenas pediria que designasse algumas jovens bonitas, a fim de que meu imediato e meu astronavegador possam divertir-se durante a viagem.

Seager e Chan trocaram um ligeiro olhar. Chan riu e disse:

— Não se preocupe, comandante. À equipe de Camooweal está cheia de jovens bonitas.

— Muito bem. Isso não me diz respeito. Afinal, sou um velho que já não precisa desse tipo de entretenimento. Dedico-me exclusivamente às estrelas — concluiu Cliff.

Macauley apertou sua mão e respondeu:

— O senhor mesmo não acredita no que está dizendo, coronel. Compareceremos pontualmente na Base 104, no gabinete de W. Wamsler, não é?

— Claro. Até lá saberei preencher meu tempo.

O professor viu Cliff despedir-se dos dois membros da equipe. Finalmente o entomólogo apontou para os cubos transparentes.

— Levaremos este material de demonstração. Tenho certeza de que Wamsler nos ajudará. Afinal, a tarefa enquadra-se no Ano Galático.

A porta acolchoada, à prova de som, fechou-se atrás do comandante.

 

— Atenção! — disse Atan em tom penetrante. — Sua Majestade!

Wamsler aproximou-se lentamente da mesa, parou junto à mesma e fitou a tripulação da Orion com a expressão de quem vê diante de seus olhos uma víbora prestes a dar o bote. Notou mais três homens e sacudiu a cabeça.

— É a mesma coisa de sempre — disse em tom ressentido. — McLane e sua tripulação: um grupo insolente e convencido. Sinto muito que com o pouso da Aztran Alpha suas férias tenham chegado ao fim. O senhor receberá a bebida que lhe foi prometida. Acontece que apostei com este sujeito — dirigiu-se ao professor Macauley e apontou para Cliff. — Apostei e perdi.

McLane respondeu em tom mordaz:

— Isso me deixa bastante satisfeito, marechal.

Wamsler já havia chegado à sua poltrona de couro e sentou-se.

— Deixemos as gentilezas de lado — disse em tom cansado. — Os senhores pediram uma entrevista, e concordei em concedê-la. Aqui estou. Podem começar.

O professor Macauley levantou-se e principiou a falar a meia voz:

— A exposição que apresentarei é verídica, marechal Wamsler. Pode ser provada, ponto por ponto, através de números e elementos materiais. Apenas faço esta observação para eliminar qualquer laivo de desconfiança que possa surgir em sua mente.

Depois passou a relatar em frases longas como a borboleta de olhos dourados veio ter a Terra, com que rapidez se reproduziu e como haviam fracassado todas as tentativas de mantê-las dentro de limites bastante estreitos, para que não pudesse transformar-se num perigo.

— Daqui a dez anos, não haverá uma folha verde neste planeta, marechal. Mandei recalcular todos os dados, por iniciativa de Chan.

Wamsler fitou o professor em silêncio. O marechal respirava pesadamente. Depois da aventura que tivera com os assaltantes mentais vindos das profundezas da Via Láctea, seu sentimento de segurança tornara-se ainda mais precário.

— Dez anos... onde foram cultivadas essas d’Itvias?

Macauley fez um gesto de resignação.

— Em tudo quanto é lugar, marechal. Em todos os parques naturais, nos projetos de cultivo do deserto, até mesmo no jardim de McLane. Não se exalte: até foram plantadas aqui embaixo, nos corredores. A borboleta de olhos dourados vem se espalhando há quinze anos.

— Que diabo! — resmungou Wamsler.

— É uma das poucas formas de expressão que nos restam — disse o professor. — Chan e Seager podem testemunhar que as coisas realmente estão mesmo ruins tal qual como acabo de explicar.

Seager disse em tom tranqüilo:

— Estamos dispostos a prestar qualquer juramento de que realmente é assim, marechal.

Uma expressão de contrariedade surgiu no rosto de Wamsler. Depois de algum tempo fitou os rostos dos tripulantes da Orion, parando no de McLane. Sorriu e baixou os cantos da boca. Finalmente disse em voz baixa:

— Deixemos de lado desta vez as discussões de sempre, coronel McLane. Qual é sua sugestão?

Cliff deu de ombros.

— Até agora não me ocorreu nada. A sugestão de nos dirigirmos a d’Itvia a fim de verificarmos quem consegue exterminar ou manter dentro de certos limites a borboleta de olhos dourados já deve ter sido feita, não é, professor?

— Já contemplamos esta possibilidade e receio que não tenhamos outra alternativa. Se em d'Itvia não encontrarmos nada, deveremos estender a pesquisa a outros planetas. É para isso que precisamos de McLane.

— O senhor está disposto a colaborar, coronel? — perguntou Wamsler sem olhar para Cliff. Era evidente que Wamsler estava aborrecido.

— Terei muito prazer. Quanto tempo durará a missão?

Macauley respondeu.

— De quinze dias a um ano, comandante. Serão quinze dias se o senhor e os entomólogos que o acompanharem forem favorecidos pelo acaso.

Helga Legrelle observou:

— Se eliminarmos o fator acaso, poderá demorar um ano até que a equipe encontre um inimigo natural que possa ser importado. Não foi o que quis dizer, professor?

Macauley fitou os olhos da jovem radiofonista e respondeu:

— Exatamente; foi o que eu quis dizer. Na verdade, dependemos mais do acaso que de um trabalho planejado. Apenas posso dizer que alguma coisa deve ser feita.

— Isso vem a calhar — disse Wamsler. — Já estava preocupado sobre o que fazer com a tripulação da Orion. No âmbito do Ano Galático, ordeno-lhe em caráter oficial que pegue sua equipe e se dirija a todo e qualquer lugar onde haja possibilidade de encontrar uma solução.

— Aceito a incumbência — disse Cliff em tom cortês.

— Macauley exercerá o comando supremo da operação. Mandarei instalar uma ligação direta da Estação Terrana do Espaço Exterior para seu laboratório. McLane, o senhor será responsável pelo vôo e pela vida dos cientistas. Macauley se encarregará da direção científica da operação. Combinado, professor?

— Combinado. Estou surpreendido porque as coisas foram tão rápidas. Quando poderá decolar, comandante? — Macauley fez uma mesura.

Cliff olhou para o relógio.

— Amanhã ao meio-dia, desde que seus colaboradores sejam pontuais. Precisamos de alguma literatura especializada sobre insetos. Será que o senhor poderia fornecer as fitas de leitura?

— Macauley, não pense que as Divisões de Exploração Espacial de Terra sejam um clube indolente e indeciso — disse o marechal Wamsler em voz alta. — Muitas vezes nosso trabalho é rápido e eficiente.

O professor respondeu em tom cortês:

— Especialmente quando o senhor pode contar com a colaboração de elementos de primeira linha, como McLane e sua tripulação.

— Naturalmente, naturalmente... O senhor tem toda a razão — apressou-se Wamsler em dizer, bastante aborrecido com o sorriso irônico dos funcionários do Serviço de Proteção à Natureza.

— Posso convidar os participantes para um lanche reforçado em meu laboratório? — perguntou Macauley.

Mario de Monti levantou-se e brindou a idéia do professor com um gesto de admiração.

— Até lá estaremos de volta com todos os participantes — prometeu Seager. — Daqui a meia hora, estarei voando no helicóptero.

— Muito bem. Deixemos o resto para amanhã de manhã, no meu laboratório.

Os tripulantes da Orion foram se despedindo do professor e dos homens da equipe de Camooweal. Cliff fez continência para Wamsler e repetiu:

— Então está combinado. Amanhã, depois do lanche e da conferência no laboratório de Macauley, com a presença de todos os participantes do Projeto Olhos Dourados, decolaremos às doze horas em ponto. Entendido?

— Entendido — respondeu Wamsler, deixando perceber claramente que estava satisfeito por ver-se livre da presença de McLane, que o lembrava constantemente das duas derrotas sofridas.

— Prepararei tudo — prometeu Macauley.

— E eu irei buscar os participantes em suas residências e os levarei pontualmente ao laboratório situado à margem de Groote Eylandt.

A barreira de fluxos luminosos fechou-se atrás de Cliff e de seus amigos. Mario de Monti virou a cabeça e disse em tom irônico:

— Provavelmente Wamsler está interessado em nos ver tão depressa na amplidão do espaço, pois só assim conseguirá um prazo maior para a entrega da aguardente Archer's Tears.

Atan fez um rosto de quem sabe mais que os outros.

— Pelo que diz o tal do Seager, sua equipe é formada principalmente por moças.

Hasso acenou de leve com a cabeça.

— Será um vôo fácil e alegre para todos os participantes — disse, enquanto sorria para a ordenança que se encontrava na saída da ante-sala.

Teria razão?

 

CLIFF McLane tirou os olhos de cima da tela central e deixou-os vagar pela sala de comando da Orion VIII. O elemento novo era representado por aquelas jaquetas refrigeradas. Naquele momento, não os envergavam. Cliff fitou-os um por um.

Havia uma moça esbelta com cabelo prateado e olhos castanho-dourados. Seu nome era Michelle. Parecia sentir-se insegura. Dois fatos eram a causa dessa insegurança: a circunstância de pela primeira vez ver de perto uma nave com os respectivos astronautas, e a presença do jovem que durante a decolagem e as primeiras horas de vôo se mantivera constantemente em posição discreta. Seu nome era Shea. Os tripulantes já conheciam Seager.

Havia uma africana que chegava a provocar algum espanto até mesmo entre os membros menos "sensíveis" da tripulação. Seu nome era Arlene e era entomóloga diplomada. O quinto homem — ou melhor, o quinto elemento do grupo — usava o nome de Charger e, como sinal exterior de sua mentalidade individualista, usava barbicha e um enorme par de óculos com aro de tartaruga e vidros grossos. Eram traços anacrônicos, que o tornavam inconfundível. Era um homem alto e esbelto, sua altura regulava com a de Cliff e Mario.

— A coisa poderia ter sido pior — resmungou Cliff.

— A mocinha deve ser de outra opinião, comandante — disse Charger em tom tranqüilo; encontrava-se perto de Cliff. Este levantou a cabeça, bastante surpreso, mas não pôde deixar de sorrir.

— Talvez esteja com a razão. Acontece que qualquer pessoa se torna menos atraente, depois que a conhecemos por algum tempo. Os astronautas não têm nenhuma auréola.

— Tanto melhor — respondeu Charger. — O que pretendia dizer?

— Apenas algumas gentilezas.

Cliff levantou-se e ergueu a mão.

— Senhoras e cavalheiros da equipe de Camooweal, dou-lhes as boas-vindas a bordo. Estamos no espaço há cem minutos e corremos em direção ao destino, que é o planeta d’Itvia, situado no cubo espacial Nove/Norte 206. Chegaremos lá dentro de nove dias. Neste meio tempo, devemos familiarizar-nos uns com os outros. Não gosto de que alguma questão em aberto ou algum problema de relacionamento humano, que não tenha sido solucionado, prejudiquem a boa atmosfera que deve reinar a bordo da nave. Nós, ou seja, meus tripulantes e eu, estamos ao seu inteiro dispor a qualquer momento, para responder a perguntas ligadas à nossa especialidade. E esperamos que os senhores também nos digam algo. Afinal, queremos trabalhar juntos para livrar Terra de uma situação fatal, e isso terá de ser feito muito depressa. Nossa ocupação dos próximos dias consistirá num intercâmbio constante de informações.

Michelle virou-se e fitou o jovem chamado Shea. Depois disse:

— Quanto tempo deverá durar nossa viagem?

Cliff adivinhou alguma coisa. Respondeu com um sorriso:

— Pode demorar bastante, minha cara. A senhora terá oportunidade de sobra para travar conhecimento com todas as pessoas a bordo, a fim de ficar sabendo dos pontos positivos e dos poucos pontos fracos de cada um. Vai ainda familiarizar-se com as instalações de uma nave-disco da série Orion. Conforme disseram Wamsler e Macauley, é bem possível que só possamos voltar depois do fim do Ano Galático. Mas também é possível que, dez minutos depois de nosso pouso em d’Itvia, encontremos o inimigo natural da borboleta. Sinto muito, mas não posso fornecer qualquer informação segura.

Michelle confirmou com um gesto.

— De qualquer maneira, é mais do que eu esperava — respondeu.

Mario de Monti sorriu, como se visse à sua frente mais uma de suas "vítimas". Com uma voz que preocupava por sua profundidade e timbre melodioso, disse:

— Paciência; os astronautas são assim. A senhora está em boa companhia.

— Posso confirmar essa parte; esses cavalheiros são muito gentis. — disse Helga em tom seco.

Por alguns segundos, as risadas e a alegria descontraída tomaram conta da sala de comando.

— Começarei, proferindo uma conferência — disse Charger.

— Em princípio não tenho a menor objeção — respondeu Cliff. — Qual é a opinião dos meus companheiros?

— Exatamente a mesma — disse Atan Shubashi. — Temos tempo de sobra antes de penetrarmos no hiperespaço.

— Gostaria de saber por que decolamos para esta viagem? — indagou Hasso Sigbjörnson na tela de videofone da intercomunicação de bordo.

Helga fez um gesto de apoio, e Mario sentia-se tão distraído em virtude das presenças de Arlene e Michelle que parecia ausente a tudo.

— No sério — disse Cliff. — Qual é o problema mais urgente que devemos enfrentar?

— Nosso problema diz respeito ao equilíbrio biológico. Estamos à procura de um animal cuja reprodução possa ser controlada sem maiores problemas.

— De que espécie deve ser o animal? Um mamífero, um inseto, um réptil? — perguntou Helga.

Charger espalmou as mãos, num gesto de dúvida.

— Não sabemos. O animal pode pertencer a qualquer espécie. A solução ideal seria um pássaro grande e muito voraz, que tenha uma prole muito reduzida.

— Não seria exatamente o ideal — objetou Shea. — Um animal de grande porte não se adaptaria bem à fauna do parque.

Charger lançou-lhe um olhar difícil de ser interpretado e fez um gesto pensativo.

— De qualquer maneira, aceitaremos o que encontrarmos. Não teremos muita escolha.

A discussão prosseguiu.

Dali a nove dias e duas horas, a nave prateada e brilhante penetrou na atmosfera de um planeta semelhante a Terra. Embaixo, estendiam-se as enormes florestas de d’Itvias.

A primeira etapa da viagem acabara de ser cumprida.

Por sugestão de Cliff formaram-se três grupos. Sairiam numa Lancet. Um dos grupos trabalharia nos arredores do pequeno espaçoporto. Mario já retirara as duas naves auxiliares de dentro da Orion e as colocara no lugar.

Sherill Mark, chefe da base, apertou a mão de Cliff.

— Não deixe que esta jovem o perturbe — disse, sorrindo para Arlene.

— Nunca deixo que uma dama me perturbe — disse Cliff. — O senhor acaba de dizer que o lugar onde pretendemos pousar é uma mata virgem?

— Exatamente. Ali os terranos ainda não modificaram nada. A fauna e a flora estão em equilíbrio. Por lá, encontrará o que está procurando. Ou então não o encontrará em lugar algum.

— Está bem — disse Cliff, virando-se para Charger. — Vamos decolar?

— Decolaremos imediatamente — respondeu Charger.

Seu grupo era formado por Arlene e Charger. Mario ia na outra Lancet, em companhia de Shea e Michelle. Seager, Atan e Helga trabalhariam nos arredores, utilizando um helicóptero da base, e cuidariam da nave além de prestarem atenção a eventuais mensagens recebidas. Tanto os tripulantes da nave como os cientistas usavam os trajes dos expedicionários. O pessoal da Orion trazia as jaquetas de segurança, usadas durante a experiência com a Aztran. Os cientistas podiam ser reconhecidos pelas jaquetas refrigeradas, que no momento não haviam sido ativadas. Os terranos entraram na Lancet. O ar era suportável e respirável, independentemente de qualquer proteção.

As máquinas da nave auxiliar "acordaram". O espaçoporto deslizou embaixo deles. Atingiram os arbustos que Cliff já conhecia, as arvorezinhas e finalmente a mata. Haviam pousado logo após o amanhecer. Agora o sol já rompia a neblina que cobria a superfície do planeta.

— Como vamos agir, Charger? — perguntou Cliff, sem retirar os olhos da tela de visão ótica ao lado dá qual estava afixado o mapa geral do planeta. Comparou a rota com as marcas do terreno e a área de destino.

— Vamos observar — disse Charger. — Antes de mais nada precisamos encontrar um lugar em que haja muitas borboletas de olhos dourados.

— Que tipo de terreno devo procurar? Arlene e Charger olharam-se. Depois de algum tempo, a moça de pele negra disse com certa hesitação:

— Não deve ser muito úmido; deve haver muito verde e muito sol. Talvez seria preferível escolher uma faixa situada à beira da água.

O dedo de Cliff seguiu uma linha ramificada traçada no mapa.

— Pousarei aqui — disse.

Os dois cientistas concordaram com um gesto.

Por alguns minutos a Lancet sobrevoou as copas das árvores d'Itvia, com as colunas de apoio escamoteadas. Subitamente baixou e seguiu por um rio. Olhando através de uma das cúpulas semi-esféricas, Cliff viu perfeitamente que aqui a natureza continuava em estado virgem. Havia árvores tombadas, raízes apodrecidas, madeiras carregadas pela corrente e folhagens levadas à margem. Mais adiante, notou um pedregulho coberto de pequenas plantas d'Itvias cujas flores brilhavam em todas as cores.

— Vamos pousar ali — disse Cliff, apontando para o lugar.

Cliff reduziu a velocidade e imobilizou a máquina acima do centro do pedregulho de duzentos metros de comprimento. Finalmente a Lancet foi descendo, e depois de alguns segundos, tocou o chão. Os pés de apoio penetraram profundamente no pedregulho. Cliff desligou todas as máquinas e instrumentos, com exceção do rádio, abriu a escotilha e -soltou a escada.

— Sou responsável pelas suas vidas — disse, soltando os cintos atados em cima de seu peito. — Peço-lhes cordial e encarecidamente que não façam nada que não seja razoável.

Puxou para a frente do corpo o coldre de imitação de couro em que estava guardada a pistola de gás.

— Estamos armados. Se houver um ataque, façam o favor de atirar primeiro e assustar-se depois. E chamem imediatamente. Quando necessário, sei ser muito rápido.

Saltou agilmente para o pedregulho e o ar puro do amanhecer bateu em seu rosto.

— Onde pretendia procurar as larvas e borboletas? — disse, dirigindo-se a Charger.

Este apontou uma objetiva curta com cabos pesados para a mata.

— Ali, comandante.

— Vá para lá. Os canos de suas botas são altos; não se molhará. Ficarei por aqui e lhe darei cobertura. Além disso darei uma olhada pelos arredores.

Os entomólogos atravessaram a água rasa e junto à margem iniciaram sua busca. Cliff conheceria esse procedimento até fartar: não havia outra possibilidade. A busca só podia ser realizada no lugar em que viviam os insetos. Passou os olhos pelo pedregulho, pegou a arma de gás e destravou-a. Foi lentamente em direção à margem, penetrou na mata e, quando não pôde mais prosseguir, voltou. Caminhando pela água, foi rio abaixo. Ouviu o estalo dos galhos e as palavras ligeiras com que Charger e Arlene se comunicavam. Finalmente viu-se atrás deles.

— Não se assustem! — disse a meia voz. Charger estremeceu, mas Arlene tinha visto a sombra. Fez um sinal com a mão livre e dobrou um galho para cima. Cliff aproximou-se com a maior tranqüilidade.

— Aqui o senhor poderá ver como será o parque de Camooweal dentro de alguns anos e, dentro de mais alguns anos, Terra, comandante — disse Arlene. Sua voz era um pouco aveludada.

Do chão e da copa de uma árvore saíam lagartas, a tortrix viridana extraterrestris. Em alguns lugares, uniam-se e se espalhavam. Uma das "correntes" havia chegado a um galho. Este estava reduzido aos caules duros e às finas artérias das folhas. Não se via nenhuma manchinha de verde. As lagartas haviam devorado tudo e agora se retiravam. Vários galhos foram privados das folhagens.

— Psiu!

Charger repartiu a barbicha, enquanto encostava o dedo ao lábio. Ouviram um ruído fraco e crepitante; parecia que alguém estava dobrando folhas de papel. Eram os ruídos de mastigação de inúmeras lagartas. Algumas borboletas verdes esvoaçavam entre os galhos desnudados. O cheiro que impregnava o ar não era mais o perfume inebriante das d’Itvias, mas o odor da podridão.

— É uma colônia. Os ovos foram depositados nesta árvore — disse o entomólogo em voz baixa. — Todas estas lagartas se transformarão em borboletas, a não ser que apareça um animal que as devore.

— As borboletas de olho dourado são muito resistentes aos inseticidas? — perguntou Cliff em voz baixa.

— São. Chegamos a usar doses tão fortes que alguém nos poderia chamar de irresponsáveis.

— O que farão agora?

Arlene desligou um dos aparelhos e explicou:

— Vamos retirar-nos e esperar que apareça algum animal. Esta colônia não pode ficar despercebida.

— Quer dizer que vamos esperar? — perguntou o comandante.

— Isso mesmo. Teremos de esperar. Durante horas, talvez até o anoitecer.

Arlene teria razão. Ficaram na ilha de pedregulho durante nada menos de nove horas. Apareceram alguns passarinhos negros que saíram voando com lagartas no bico. Um pequeno animal com o formato de um tamanduá devorou cerca de trinta lagartas. Algumas vespas procuraram afastar-se com as mesmas. Os passarinhos voltaram, mas não foram capazes de provocar uma redução significativa no número dos insetos que atacavam a árvore.

Os membros da expedição comeram as provisões que tinham levado, esquentaram café e continuaram a esperar, com os aparelhos apontados para o tronco da árvore. Os lugares cobertos por folhas continuavam cheios de lagartas verdes e alongadas.

— O resultado é vergonhoso — disse Cliff depois de algumas horas.

— É verdade, Cliff. Acontece que, segundo tudo indica, por aqui o equilíbrio biológico continua intacto. Será que, por uma questão de precaução, devemos chamar os outros grupos?

Cliff ligou o rádio de pulso.

— Terei muito prazer. Também estou curioso.

— Dê recomendações minhas a Michelle — pediu Charger com um sorriso estranho.

— Do senhor, Charger? — perguntou Cliff.

— De membro de equipe para membro de equipe.

Cliff levou o aparelho aos lábios e disse:

— Aqui fala o grupo de McLane. Chamamos o grupo dois comandado por De Monti. Responda, por favor.

O outro trio operava numa área a duzentos e cinqüenta quilômetros.

— Aqui fala De Monti — ouviu-se a resposta. — A recepção é perfeita. Já conseguiram alguma coisa?

Cliff apresentou seu relato em tom indiferente.

— Não conseguimos nada. Até agora não podemos dizer que tenhamos encontrado um inimigo natural cujo alimento principal consista nas larvas da borboleta de olhos dourados. Vimos um passarinho, um mamífero ou coisa parecida e algumas vespas comedoras de lagartas. Só isso. Como estão as coisas por aí?

Girou o volume e a voz de Mario tornou-se mais forte quando respondeu:

— Aqui o resultado é o mesmo. Observamos praticamente o mesmo que vocês. O resultado é nulo. Ao que tudo indica, segundo diz Michelle, por aqui as condições climáticas se harmonizam com o sistema ecológico. As borboletas só se reproduzem na medida em que podem ser absorvidas sem se transformarem numa praga.

— Dê-lhe lembranças dos colegas, Mario — pediu Cliff. — Vou chamar o grupo três. Desligo.

— Aqui fala o grupo três — disse imediatamente a voz de Helga. — Acompanhamos a palestra. Infelizmente, o resultado é o mesmo. Não surgiu nada que possa ser considerado como progresso. Acho que d’Itvia será um fracasso total. Mas este perfume é divino.

Cliff sorriu para Arlene enquanto respondia:

— Está aludindo às flores dos arbustos esféricos?

— Sim, comandante, estou aludindo a estas flores.

— Pois colha um ramalhete e leve-o à nave.

— Quando suspenderemos a tentativa? Cliff olhou para o relógio e avaliou a posição do sol.

— Encontramo-nos daqui a três horas, junto à nave. Até lá deverá começar o crepúsculo, e outros animais começarão a sair. Talvez encontremos uma trilha de formigas que se alimentem exclusivamente das borboletas de olhos dourados.

Helga respondeu:

— Não é possível, mas em princípio não é impossível. Desligo.

— Desligo — disse Cliff e girou o botão. Olhou para a tela na qual estava projetada uma imagem ampliada do tronco da árvore. As lagartas verdes continuavam a enxamear sobre o mesmo.

As horas foram passando. A escuridão aumentava, e os entomólogos ligaram a luz infravermelha. A imagem da tela voltou a tornar-se clara e nítida. As lagartas destacavam-se sob a forma de linhas brancas que se moviam, passavam uma por cima das outras, marchavam em colunas. Quem as observasse por um tempo mais prolongado notaria que seu deslocamento obedecia a um sistema. Ao anoitecer, quando apenas uns poucos raios de sol passavam por cima das copas das árvores, aconteceu.

— Ali, comandante! — cochichou Arlene, apontando para cima.

Cliff levantou abruptamente a cabeça. Parecia um pé-de-vento rodando por entre as árvores. Um véu em forma de espiral desfilou contra o fundo do céu azul-pálido; vinha da direita e, curvando e dobrando o eixo vertical, deslocava-se para a esquerda. Aproximava-se cada vez mais e, "cambaleando" entre os troncos de d’Itvias, a parte inferior daquele enxame, formado por miríades de pequenos seres, corria em direção ao rio, quase tocando sua superfície.

— São borboletas! — disse Charger em voz alta. Arlene girou as lentes, ajustou-as e apontou para a tela quadrangular.

— Peixes! — disse.

As borboletas formaram uma massa turbilhonante e cobriram a água. Os peixes vieram à superfície e passaram a devorá-las.

A água teria de ter cem vezes mais habitantes, ou ainda mais, para devorá-las todas. A "caravana" de borboletas de olhos dourados passou pelos terrenos e prosseguiu, deslocando-se rio abaixo. Parecia um objeto elástico pousado na água, cuja altura se reduzisse progressivamente. Os insetos morriam afogados aos milhares, eram devorados pelos peixes e se deixavam levar rio abaixo. Um gigantesco suicídio em massa acabara de verificar-se.

— Que coisa estranha, Charger — disse Arlene. — Ao que tudo indica levamos a variedade errada para Terra. Estas borboletas se suicidam.

Charger respondeu:

— Provavelmente as fêmeas já devem ter desovado, motivo por que se tornaram indiferentes aos planos da natureza. No parque de Camooweal este fenômeno nunca foi observado ao curso de um decênio.

Pegaram um caneco e retiraram alguns exemplares da massa que passava preguiçosamente por eles. Charger logo realizou a identificação.

— É isso mesmo — disse depois de algum tempo. — São fêmeas que acabam de desovar.

— Mais uma vez não encontramos nada do inimigo natural! — constatou Cliff. — A hora H chegou. Vamos guardar os instrumentos?

Os dois membros da equipe concordaram.

— Sinto-me faminto — disse Cliff. Dali a pouco menos de quinze minutos, a Lancet voltou a decolar. Os faróis de aterrissagem iluminavam a mata virgem, recheada de uma vida exuberante e misteriosa. Todavia, não encontraram a espécie que Cliff e seu grupo procuravam. Os dois outros grupos, juntamente com Sherill Mark, já estavam esperando junto à Orion VIII.

— Foi um fracasso total — disse Mario em tom seco. — Não encontramos nada.

— Também tenho de anunciar um insucesso — disse Helga Legrelle. — Acho que o melhor método continua a ser matar as borboletas uma por uma, a pedradas.

Cliff dirigiu-se a Sherill Mark e disse em tom seco:

— Acho que o melhor método será aceitarmos seu convite para jantar e decolarmos quanto antes.

— Para onde iremos?

Atan Shubashi apontou para cima. A luz dos faróis das duas Lancets e do pequeno helicóptero refletia-se no envoltório prateado da nave.

— Para Jackhammer! — disse o astro-navegador em voz alta.

Cliff franziu a testa.

— Como é mesmo o nome? Jackhammer? Será que esse planeta realmente existe?

Atan respondeu em tom exaltado.

— Não se trata de uma invenção de nosso amigo Pieter Paul Ibsen. É claro que existe um planeta com esse nome, e ainda acontece que o mesmo fica no cubo espacial em que nos encontramos. Nove/Norte 205. É um planeta desabitado, mas suas condições são semelhantes às de Terra.

Cliff respondeu:

— Atan, seus conhecimentos me deixam envergonhado. Depois do jantar consultarei o manual.

— Senhoras e cavalheiros — interveio Sherill Mark. — As mesas quase estão quebrando de tanta comida, e as velas estão acesas. Queiram comparecer para o jantar.

A base terrana colocara todo seu orgulho na festa organizada para os recém-chegados. Naturalmente tudo girava em tomo das moças. Dali a algumas horas, os grupos foram se retirando, para voltar à nave. Por um simples acaso — se bem que posteriormente Cliff fosse recriminar-se, pois não acreditava no acaso — McLane caminhava ao lado de Arlene, enquanto se dirigiam à nave-disco. Arlene brincava com uma das flores de d'Itvia que decoravam a mesa do jantar.

— Comandante, talvez um dia chegue a oportunidade... — disse a moça em voz baixa.

— Que oportunidade?

— A oportunidade de vê-lo menos seguro de si. Acho que não há nada que possa abalá-lo, não é?

Cliff aspirou o perfume da flor que Arlene encostara ao seu nariz.

— Existem várias coisas — disse Cliff. — Mas essas coisas são muito raras. Só acontecem em determinados dias.

— Que dias são estes, Cliff? — perguntou a moça em voz baixa.

— Não sei exatamente. Deve haver a ocorrência simultânea de várias circunstâncias.

— O que pretende fazer agora? — disse Arlene.

Cliff ajudou-a a entrar no elevador. O aperto de mão da moça foi inesquecível.

— Decolar — disse Cliff.

— Decolar o quê?

Cliff voltou a sorrir e respondeu:

— Pretendo decolar com a nave, em direção a Jackhammer, situado em Nove/Norte 205.

Arlene retirou-se para o camarote sem dizer uma palavra. Cliff abaixou-se, levantou a flor e aspirou seu perfume. Depois subiu e sentou em atitude provocante na poltrona do comandante.

 

A NOITE pousava sobre Jackhammer como uma neblina impenetrável. Não se via qualquer lua, nenhuma estrela. Os arbustos que rastejavam pelo solo como se fossem cobras estranhas só se tornavam visíveis nos visores das lâmpadas infravermelhas.

— Ligue os faróis de aterrissagem, Atan! — disse Cliff, baixando o braço. — Mal acabamos de pousar, os aborrecimentos estão começando! — resmungou.

— Por quê?

— Este zumbido — disse Cliff. — Não estão ouvindo?

Ficaram calados e imóveis. Agora também ouviram. Um zumbido forte e sinistro enchia o ar; parecia uma abelha gigantesca que se aproximasse em atitude furiosa. Ou um pequeno motor. Esta última possibilidade devia ser eliminada, pois o planeta só seria colonizado num futuro bem distante.

— Estou ouvindo — disse Seager. — Parece um inseto.

Haviam pousado depois de um vôo de dez horas e meia. Foi por pura intuição que Cliff resolveu descer na face noturna do planeta. A Orion pairava cem metros atrás deles sobre um areai entremeado de débeis arbustos. Arlene dirigiu o dispositivo de observação ótica infravermelha sobre a flor de uma trepadeira esparramada pelo chão. O quadro adquiriu contornos nítidos no visor. Dentro da flor e em torno dela as borboletas e as lagartas rastejavam numa bela harmonia. Numa contagem rápida, Arlene constatou que deviam ser cerca de cinqüenta. O perfume exalado pela flor, que no momento parecia descolorida, era abafado e desagradável.

— Não são borboletas de olhos dourados — constatou em tom tranqüilo. — Mas, de qualquer maneira, também aqui as pragas são muito abundantes.

Mais uma vez ouviram o zumbido. Desta vez parecia mais próximo e era mais intenso. Os três membros da equipe agacharam-se lado a lado e contemplaram a tela ótica. A flor se abriu lentamente à luz do farol de aterrissagem, pondo à mostra um número cada vez maior de larvas e borboletas. O zumbido tornou-se mais forte; uma mancha clara passou furtivamente pelo quadro e adquiriu contornos nítidos.

— Outro inseto! — disse Seager.

— Parece uma vespa superdimensionada — constatou Charger.

Cliff aguardou para ver o que aconteceria. Tinha um pressentimento, mas preferiu não dar expressão ao mesmo. A vespa alojou-se no centro da flor. Executou uma série de movimentos rapidíssimos. O ferrão se projetava em todas as direções, e com cada movimento acertava o alvo. Penetrava nas borboletas e nas larvas. A seguir, as mandíbulas da vespa entraram em atividade.

— Quase todos os exemplares foram paralisados pelo ferrão da vespa — cochichou Seager. — Acho que já encontramos alguma coisa. Está chupando a seiva...

A cabeça do animal com formato de vespa, que devia ter o tamanho do punho fechado de uma criança, movia-se rapidamente. As mandíbulas se fechavam, e o "conteúdo" dos corpos das borboletas e das larvas era sugado. Tudo se passou com uma rapidez tremenda; muitas vezes mal se conseguia acompanhar os movimentos. Dali a alguns minutos, a vespa levantou vôo e afastou-se com o zumbido característico.

— Será que estou imaginando? Parece que o zumbido da vespa já não é tão zangado! — disse Arlene.

— O ronco do tigre saciado é mais satisfeito — disse Cliff.

— De qualquer maneira, o inseto foi embora.

As lentes desceram sobre a flor e captaram aquilo que a vespa havia deixado.

— Contei cerca de sessenta larvas e borboletas mortas, com os corpos sugados — disse a moça depois de algum tempo, levantando-se. — Comandante McLane, acho que nossa viagem terá êxito — disse em voz baixa.

Cliff sorriu e respondeu:

— Está aludindo à vespa? Arlene retribuiu o sorriso.

— Entre outras coisas, sim. Sugiro que prossigamos amanhã, à luz do sol, com a busca organizada da grande vespa de rapina. O que acha, Charger?

O homem de barbicha fez um gesto afirmativo e respondeu:

— Concordo com a sugestão. Partiremos dentro de sete horas.

Voltaram lentamente à nave. Atan saiu da Lancet, depois de ter desligado os faróis. Acabavam de aproximar-se bastante de seu  objetivo.

 

Pouco depois do nascer do sol, tomaram um café reforçado a bordo da Orion e os diversos grupos puseram-se a trabalhar. Desta vez traziam, além do equipamento normal, um par de luvas, capacetes leves, grandes óculos e uma faixa de pano que protegia a boca. As vespas poderiam tornar-se perigosas. Atan e Hasso tiraram as redes do interior da nave, além de grandes recipientes de plástico. Esse equipamento foi colocado nas proximidades de cada grupo.

— Será que temos motivo para supor que essa vespa se alimenta exclusivamente de insetos? — perguntou Cliff em voz alta, tornando-se pouco audível em virtude da faixa de tecido.

Estendeu a mão. Na palma da luva de imitação de couro havia uma borboleta morta e duas larvas murchas e ressequidas. Tanto as duas larvas como a borboleta de olhos dourados eram quase totalmente verdes.

Os olhos grandes de Arlene contemplaram o material. Os óculos brilhavam à luz do sol.

— É bastante provável. Por aqui a escolha deve ser muito limitada. O grande número de vítimas é outro indício que reforça sua suposição.

Cliff olhou para os instrumentos que trazia no antebraço. Haviam sido regulados para a freqüência correspondente à vespa em vôo. Não viu qualquer indicação.

— Como faremos para caçar as vespas?

— perguntou Seager.

— Procuraremos o ninho. É a única possibilidade — disse Charger. Uma luzinha acendeu-se. Cliff levantou o braço.

— A vespa é grande. Logo, o percurso entre o ninho e o local da busca de alimento deve ser extenso.

Viram a vespa. O inseto estava coberto de estrias amarelas e prateadas, era de uma beleza que amedrontava. Viram os gigantescos olhos salientes, as antenas estendidas, o ferrão encolhido, tudo isso encimado por duas asas transparentes que batiam. Voando a dois metros acima do solo, aproximou-se em ziguezague, descreveu círculos em torno de Cliff e Arlene, envolvendo-os numa série de curvas, e pousou num caule, junto a uma flor, a três metros do grupo.

— O senhor trouxe o paralisador, Cliff?

— perguntou a moça de tez escura.

— Naturalmente. Quer ver uma amostra?

Arlene soltou uma risada maliciosa.

— Para mim seus olhares bastam para provocar uma paralisia, comandante. Deixe que este exemplar volte, para que possamos localizar o ninho.

Continuaram a esperar. O planeta girou e o sol foi subindo. A vespa cuidou demoradamente de sua higiene. Limpou as pernas, o ferrão, as asas. A flor acabou de abrir-se por completo. As larvas enxameavam entre o caule e o pólen. Não se via uma única borboleta. As larvas que, segundo parecia, mal haviam adquirido capacidade para isso, subiram pelas folhas em forma de cálice e passaram a devorá-las com uma rapidez espantosa.

— São cerca de cinqüenta; a mesma coisa de ontem.

Os terranos cercaram a flor. A vespa subiu em vertical e, que nem um meteoro, precipitou-se para o centro da flor, onde passou a desenvolver sua atividade febril e mortífera. A intensidade da indicação luminosa duplicou; eram mais duas vespas que se aproximavam.

— Faça o favor de paralisar uma delas, Cliff — disse Charger. — Precisamos de um exemplar para nossas pesquisas.

— Pois não! — disse Cliff.

Seager levantou o inseto, colocou-o sobre uma placa branca e realizou uma identificação ligeira, que visava à determinação do nome científico do animal.

— Chlorion ichneumoneum jackhammerii, é o que sugiro.

Cliff e o entomólogo puseram-se a correr. Saltaram sobre trepadeiras, atravessavam os areais, procurando sempre não perder de vista os insetos. Avançaram uns cem metros pela vegetação rasteira e atingiram uma área coberta por arbustos que se agrupavam em torno de meia dezena de rochas. Não havia qualquer ligação entre as mesmas; pareciam crescer em meio ao chão arenoso coberto de musgo.

— Cuidado! — disse Seager. — As picadas podem ser mortais.

Os homens avançaram com o corpo abaixado. Aproximaram-se das rochas, segurando o recipiente pelas duas asas. Já não se ouvia o zumbido dos dois insetos, que foi substituído por outro ruído. Parecia um pequeno motor trabalhando num ambiente dotado de alta ressonância.

— É o ninho!

Seager apontou para uma saliência que surgia na rocha mais próxima.

— Vamos colocar o recipiente por cima, cortar o ninho e fechar a tampa muito depressa — disse Cliff.

Aproximaram-se devagar. Várias vespas saíram do ninho e passaram ruidosamente entre os homens. Estes estremeceram e procuraram abrigar-se. O silêncio voltou a reinar. O ninho apresentava um formato fantástico. Parecia uma pequena cidade, mais precisamente, o modelo de um conjunto residencial formado por inúmeras construções, transferido para o plano vertical. Todas as construções eram de forma hexagonal. Os hexágonos grandes e pequenos ligavam-se por uma espécie de tubo com uma placa de apoio, penetravam uns nos outros, sobrepunham-se e eram negros como breu, provavelmente para captar o calor muito reduzido do sol e armazená-lo em seu interior.

— Usarei a HM-4 para cortá-lo da rocha — disse Cliff em voz baixa. — Você cuidará para que a tampa seja fechada em tempo.

— Pode deixar, comandante. Colocaram o grande recipiente abaixo do ninho. Este era feito de um material parecido com uma espécie de papel reforçado por fibras vegetais. A tampa abriu-se; o ninho estava pendurado um metro acima da abertura quadrangular.

— Quantas vespas poderão estar neste ninho? — cochichou Cliff, voltando a levantar o pano que o protegia.

— Pelos padrões terranos poderia abrigar até quinze mil — respondeu Seager.

Cliff sacou a arma esguia, regulou o raio e caminhou para o lado, para poder efetuar um corte paralelo à rocha. Seager segurava a tampa, pronto para deixá-la cair a qualquer momento. O raio produziu um zumbido e cortou a tessitura negra junto à rocha. O ninho desprendeu-se, efetuou um giro no ar e caiu no recipiente. Da área de corte desceu um líquido oleoso, e centenas de vespas furiosas saíam de algumas aberturas. A tampa fechou-se com um baque.

McLane guardou calmamente a arma e disse com um sorriso largo:

— Capturamos a primeira presa. Agora vamos dar o fora, para que não sejamos atacados por eventuais retardatários.

Andando devagar, carregaram o recipiente que agora pesava uns cinqüenta quilos, cuidando sempre para não expô-lo a movimentos violentos. Os outros membros da equipe já haviam guardado seus instrumentos e esperavam junto à nave. Ajudaram a colocar a presa na nave e passaram a conferenciar sobre a área na qual deveriam prosseguir com as buscas. Hasso Sigbjörnson sugeriu outra formação rochosa, que vira da nave, a cerca de dois quilômetros.

— Quantos ninhos vamos capturar? — perguntou Cliff.

— Quanto mais, melhor — respondeu Charger. — Precisamos capturar o maior número possível de enxames, que possam reproduzir-se rapidamente. O ideal seria que levássemos um enxame da vespa chlorion para cada parque natural.

— Quantos parques existem em Terra? — perguntou Atan Shubashi.

— Vinte.

— Quer dizer que teremos de realizar mais dezenove corridas de obstáculos atrás de vespas que não estejam com fome — disse. — Nossa velha e boa nave está sendo rebaixada à categoria de veículo de transporte de animais. Cliff suspirou.

— Está bem. Decolarei em direção ao primeiro objetivo — disse.

 

Hasso, Atan e Michelle apareciam na tela central diante da qual Cliff estava parado. Carregando um dos recipientes, avançavam por entre as rochas. Mario, Seager e Shea formavam o segundo grupo, que seguira na Lancet I a um lugar situado três quilômetros ao oeste. Charger e Helga que, segundo tudo indicava, concordavam na avaliação da situação, haviam pegado a Lancet II e poucos segundos atrás tinham comunicado seu pouso.

Cliff sorriu... Estava no interior da Orion, a sós com Arlene. Cliff acomodou-se na confortável poltrona do comandante, colocou os pés sobre o quadro de comando e fechou os olhos. Era uma posição que favorecia seu raciocínio. Havia algum problema? A tela do interfone de bordo iluminou-se e o rosto de Arlene surgiu na mesma.

— Cliff — disse a meia voz.

McLane levantou a cabeça e fitou seus olhos.

— O que houve? — perguntou.

— Instalei uma espécie de laboratório no meu camarote. Receio que vá precisar de seu auxílio. Poderia dar um pulo até aqui?

Cliff nem sorriu ao responder:

— Esse truque é muito velho, moça. A senhora está me provocando. De qualquer maneira descerei.

A moça sorriu.

— Se não viesse não seria um astronauta de verdade — disse. — Agora já consigo compreender Michelle.

Cliff desligou o interfone de bordo, deu de ombros e entrou no pequeno elevador. Comprimiu um botão e a porta do camarote abriu-se. Lançou um olhar prolongado sobre as instalações padronizadas, os instrumentos e a cadeira giratória presa ao solo. Finalmente encostou-se à porta e disse em voz baixa:

— A senhora tem um lugar bem bonito, minha filha. Precisa de mim?

Arlene tirara algumas das vespas assassinas do grande recipiente e as colocara num pequeno cubo que se encontrava na mesa à sua frente. Havia algumas peças delicadas de cutelaria, um microscópio, líquidos e vários livros de registro que estavam espalhados pela mesa. A moça virou-se na poltrona, exibindo ao coronel um par de joelhos impecáveis que surgiam acima das botas brancas apertadas.

— Preciso do senhor. Como faço para ligar o microfone à rede?

Cliff pegou o fio com o contato e retirou da parede uma peça retangular, na qual estava gravado um raio e a indicação da voltagem. Com um movimento ligeiro, ligou o instrumento.

— É isso — disse. — Pode contar alguma coisa sobre essas abelhas trabalhadoras?

O sorriso de Arlene era insinuante.

— Vespas não são abelhas, comandante — disse. — E nem todas as moças são iguais.

Cliff não pôde deixar de sorrir.

— Acontece que algumas delas se parecem mais que as outras. A que tipo pertence a senhora?

Arlene respondeu em tom resoluto:

— À classe daquelas para as quais os astronautas são um tipo especial de homem.

Embora não se sentisse nada tranqüilo, Cliff respondeu com toda calma:

— A senhora andou lendo demais esses romances, minha filha. Peço-lhe que se dirija a Mario, que é especialista na matéria. Quanto a mim, a situação é mais delicada. Digamos que estou comprometido. Já não sou livremente "transferível"...

Arlene soltou uma gargalhada e levantou-se. Parou à frente de Cliff, que só não executou uma retirada estratégica para não prejudicar a imagem de sua masculinidade.

— É Tamara Jagellovsk? — perguntou Arlene.

— Realmente — disse Cliff. — Não há nada que a senhora não saiba.

— Há muita coisa. Não existe algum caminho que leve ao seu coração?

Cliff comprimiu as mãos contra a superfície fria da porta, deixando-a ligeiramente embaçada.

— Não há nenhum caminho que não passe por cima dos cadáveres de Helga Legrelle e Tamara. Às vezes, torno-me um homem débil, que em certas situações não sabe defender-se.

Exalava um perfume inebriante de d'Itvia Nonchalance, e Cliff acreditava que aquele momento...

— Neste momento, o senhor está numa situação dessas, não está? — cochichou Arlene.

Cliff fez um gesto afirmativo. Beijaram-se em silêncio por cerca de quinze segundos. Depois Cliff tirou as mãos dos ombros de Arlene, pigarreou e disse em voz baixa:

— A senhora acaba de passar por um episódio agradável a bordo de uma espaço-nave. Lembre-se para os dias da velhice e não deixe de contar aos netos. Voltarei a cuidar das máquinas.

Arlene sorriu, acenou de leve com a cabeça e disse num tom surpreendentemente seguro:

— Isto apenas foi o começo, coronel. No curso da operação vespa assassina, ainda deveremos cruzar pelo caminho um do outro. Faço votos de que não se esconda demais. Sou uma péssima caçadora.

Cliff subiu para cuidar dos instrumentos. Estava pensativo. Realmente realizava um vôo de obstáculos. E os dias iam passando.

O problema da praga já podia ser considerado resolvido. Pouco antes da decolagem, os membros da expedição reuniram-se na sala de comando. Hasso Sigbjörnson surpreendeu a todos com duas garrafas de Archer's Tears, que havia retirado de um esconderijo.

— Vivemos uma missão bastante arriscada — disse Hasso em voz alta, levantando o copo. — Temos de levar para Terra uma quantidade enorme de vespas. O que será feito por lá com esses animais encantadores, que tanto gostam de picar?

O cheiro intenso de Archer's Tears encheu o recinto repleto de instrumentos. Charger respondeu, falando devagar:

— Aumentaremos a fertilidade das vespas por meio de um tratamento de radiações dirigidas. Isso por algum tempo. Depois, quando as vespas tiverem liquidado praticamente todas as borboletas de olhos dourados, o equilíbrio biológico estará restabelecido. As vespas se extinguirão. Os poucos enxames, que sobreviverem, poderão ser exterminados se começarem a incomodar-nos.

— Quem se encarregará da irradiação experimental? — perguntou Cliff.

Arlene lançou-lhe por cima do copo um olhar que só ele saberia interpretar e respondeu:

— O instituto do professor Macauley se incumbirá disso. Provavelmente ajudarei nos trabalhos, e sem dúvida a opinião dos membros da tripulação da Orion será tomada em consideração.

Helga, que estava sentada diante da mesa do rádio, entrou em contato com a EA IV. Os canais continuavam fechados.

— Quem realizará o transporte aos diversos parques? — perguntou Mario de Monti sem conseguir tirar os olhos de Michelle.

— Por certo, incomodaremos a tripulação desta nave com o serviço — disse a moça de cabelos cinza-prateados e olhos castanho-dourados.

— Quer dizer que teremos mais trabalho, Cliff!

Helga deixou livre o microfone diante do quadro de comando. Cliff começou a falar:

— Comandante Cliff McLane, a bordo da Orion VIII, pousada no momento na superfície do planeta Jackhammer. Por intermédio da EA IV e E.T.E.E., ao professor Macauley. Temos a bordo vinte e dois enxames de vespas da espécie chlorion ichneumoneum jackhammerii e decolaremos dentro de dez horas, com destino à Base 104. Para garantir a rápida execução da missão, pedimos que sejam adotadas certas providências preparatórias. As vespas assassinas são do tamanho de um punho de criança e seu alimento principal consiste nas borboletas de olhos dourados. Solicito confirmação da mensagem. Desligo.

— Meus respeitos — disse Arlene. — O senhor até sabe pronunciar o nome científico, comandante.

Um sorriso insolente surgiu no rosto de Cliff.

— Haverá um dia que — disse — a senhora terá oportunidade de mais um encontro comigo. Talvez nessa oportunidade possa mostrar-lhe que sei muita coisa, além de lembrar-me de palavras estrangeiras.

Arlene retribuiu o sorriso e respondeu:

— Tomara que isso realmente aconteça, coronel McLane.

Cliff deu-se por vencido. Ouviu a confirmação e deu as costas para as nove pessoas que se encontravam na sala além dele. Recolheu o elevador central, fechou hermeticamente as três comportas, ativou o campo defensivo e decolou, usando a pilotagem manual. A carga que a nave transportava para Terra destinava-se a uma boa causa. Acontece que, sem ninguém desconfiar, a nave levava a bordo o germe de um perigo de proporções incalculáveis.

 

Os vinte e dois recipientes encontravam-se no extenso laboratório do professor. Havia neles setecentos e cinqüenta mil insetos, que devoravam as reduzidas provisões trazidas de Jackhammer. Cliff, Arlene e o professor viram-se diante de um instrumental de aspecto fantástico, do qual partiam grossos cabos que corriam para uma peça contígua.

— Desenvolvemos um tipo de radiações que criará condições para uma produção maior de ovos fertilizados no curso das próximas quatro gerações. Essas radiações serão aplicadas aqui. O transporte poderá ser iniciado hoje de noite, coronel.

Cliff baixou a cabeça e disse:

— Chega de honrarias, professor. Ligue seu aparelho de tortura.

O professor esperou que um robô colocasse o primeiro recipiente embaixo dos instrumentos. Depois passou a controlar o pequeno cérebro eletrônico, que fixava exatamente o comprimento das ondas e a intensidade das radiações. Macauley moveu uma chave, e o aparelho emitiu um zumbido. O som tinha uma semelhança fatídica com aquele que as vespas assassinas costumavam produzir ao precipitar-se sobre as borboletas indefesas.

— É isso. Como vê, é muito simples — disse o professor.

— Tudo que é simples é rápido — comentou Arlene como se estivesse falando num oráculo. — Mas a criação dos pressupostos para sua aplicação durou séculos e foi extremamente difícil.

Cliff limitou-se a um silêncio de sábio.

Macauley explicou a Cliff os processos que seriam desencadeados durante as radiações. As rainhas das vespas adquiririam um grau de fertilidade mais elevado, que lhes permitiria produzir maior número de ovos. Desses ovos resultariam, face às leis que regiam a formação de himenópteros, maior número de jovens rainhas, que por sua vez formariam outros enxames. Pelos cálculos realizados no laboratório, esse processo se estenderia por quatro gerações. Depois as condições do meio ambiente e as limitações dos meios de subsistência provocariam uma redução do número de criaturas. No meio tempo, as vespas assassinas se espalhariam em quantidade suficiente e as borboletas de olhos dourados seriam exterminadas. Cliff compreendeu. Fez um movimento com os dedos polegar e indicador.

— A vespa é desse tamanho. Não pode acontecer que, além das modificações do ciclo reprodutivo, haja alterações em outros instintos dos bichinhos? É possível que as vespas nasçam com nove asas, ou que passem a atacar apenas objetos que sejam vermelhos, redondos ou sei lá o quê.

Parecia ter tocado num ponto sensível. Arlene e o professor fitaram-se. Finalmente Macauley puxou os cantos da boca para baixo e começou a falar em tom hesitante:

— Em princípio não é impossível que as radiações produzam outras modificações de caráter transitório ou permanente. Mas realizamos tantas experiências com esse tipo de emissões de curta duração que posso garantir com uma segurança de oitenta por cento que seus receios não têm fundamento. Nunca possuímos certeza absoluta do que resultará de nossos atos. Porém, tenho dois motivos para supor que a experiência iniciada neste instante seja inofensiva.

Enquanto Macauley falava, Cliff olhou de lado para a moça de tez escura. Arlene era uma beleza exótica, e Cliff compreendia seu procedimento nos minutos de fraqueza que passara a bordo da Orion VIII. A moça continuava com a mão pousada em seu braço. Cliff não se movia. Macauley estava mergulhado tão profundamente em suas explicações que não viu ou não quis ver o gesto.

— Que motivos são esses, professor?

— Em primeiro lugar, trata-se de uma experiência cuja duração foi fixada em dois anos. Nesse prazo teremos feito uma limpeza tremenda entre as borboletas de olhos dourados. Além disso, a experiência que estamos realizando é de dimensões bastante reduzidas, em comparação com o equilíbrio ecológico estabelecido pela natureza. Aconteça o que acontecer, os efeitos não serão tão graves como se poderia recear.

Cliff viu o último recipiente passar pelos instrumentos.

— O senhor quase conseguiu convencer-me, Macauley — disse. — Os robôs colocarão os recipientes na nave?

— Isso mesmo. Seager entregará o último vaso pessoalmente no seu helicóptero ao parque de Camooweal. O senhor poderá levar Arlene, que servirá de elemento de ligação com o pessoal dos diversos parques. Combinado?

Cliff confirmou com um gesto, esforçando-se para não ver o brilho que surgiu nos olhos grandes de Arlene.

— Combinado — disse.

Dali a uma hora, decolou com a Orion VIII. Ia sozinho, sem a tripulação, pois um vôo realizado dentro do envoltório atmosférico do planeta é a coisa mais banal, podendo até mesmo ser feita por um cadete que se encontre no primeiro semestre. Para Cliff McLane, o vôo seria muito perigoso. Nunca se esqueceria de certas etapas do mesmo.

 

Canadá: Parque Natural de Nipigon.

Cliff realizava o vôo manual. A espaço-nave desceu lentamente sobre o campo circular de pouso que ficava junto a uma estação afastada dos guardas do parque. À frente de Cliff, Arlene estava sentada na borda do painel de instrumentos, balançando em atitude provocadora as pernas envoltas nas lindas botas brancas. Seus joelhos eram uma preciosidade, e a moça não ignorava o fato. No momento em que Cliff desligou os propulsores, Arlene afastou com um gesto gracioso uma mecha de cabelos da testa. América do Sul: Colônia Las Heras. Cliff dirigia a Orion VIII com uma das mãos. A outra repousava sobre a de Arlene, que acabara de preparar café na cozinha de bordo e mexia o concentrado de creme e o açúcar para Cliff. Este segurou a mão de Arlene e, mesmo dirigindo a nave, procurou beijar as pontas dos dedos da jovem cientista. A tentativa foi bem sucedida. Mongólia: Khar Khoto, situado ao redor do lago de Goshun.

— Querida — disse Cliff — seria uma bobagem se eu dissesse que você é leve, fácil de levar. De qualquer maneira, ficaria satisfeito se você fosse por seus pés...

— Até onde?

— Pelo menos até a poltrona mais próxima.

No vôo que durou cerca de dezenove horas, Cliff Allistair McLane levou vinte e um enxames de vespas assassinas para todos os cantos do globo terrestre. Quanto a Arlene, foi uma das experiências inesquecíveis de sua vida. McLane sentia-se arrastado por dois pólos magnéticos opostos. Entre Tamara Jagellovsk, que amava, e Arlene, pela qual estava sendo tentado. Aguardava ansiosamente o pouso final, que o levaria de volta à paz de seu bangalô, onde teria condições para chegar a uma decisão razoável. Por fim, chegou a hora do pouso final na Base 104.

— Seja lá o que você pensa, moça — disse em voz baixa, enquanto desciam pelo elevador central para o pavimento de concreto da base — peço-lhe que não acredite que sou um homem sem força de vontade, que costuma pôr as mãos em qualquer ombro bem formado que veja à sua frente.

Abraçaram-se pela última vez.

— Não tenha medo, McLane — cochichou Arlene. — Conheço a diferença entre um conto e um romance.

Cliff confirmou com um gesto e respondeu em tom seco:

— Eu sabia; a leitura instrui.

— As viagens também são bastante instrutivas — disse Arlene em voz baixa. — E esta viagem mostrou-me uma coisa que Michelle sabia há tempos em seu subconsciente, e conseguiu esquecer a favor de Shea.

— Trata-se de planetas e estrelas? — perguntou Cliff com a voz fraca.

Arlene sacudiu a cabeça.

— Não. A viagem me ensinou que os astronautas realmente são homens encantadores, inteligentes e bastante ponderados.

Cliff concluiu o diálogo com as seguintes palavras:

— Nem tudo que é negro é espaço cósmico.

O elevador pousou no pavimento do espaçoporto, o sinal acendeu-se, a escotilha da comporta abriu-se. Penetraram sob a luz dos holofotes. Caminharam um atrás do outro, como se Cliff e Arlene apenas tivessem sido companheiros durante um longo vôo. Um vôo que parecia ter chegado ao fim...

 

CENTO e cinqüenta dias transcorreram em meio às ocupações normais... A tripulação da Orion descansava.

O comandante achava-se deitado em posição descontraída na cadeira de dobrar, colocada junto à piscina. Cliff não estava dormindo; encontrava-se no estado intermediário entre a vigília e o sonho. Às suas costas, as pedras refletiam os raios do sol. Parte do terraço permanecia na sombra. Cliff abriu um olho.

Um zumbido!

Era um som armazenado em sua memória. Cliff abriu o segundo olho e fitou os arredores, sem mover a cabeça. As árvores e os arbustos de d’Itvias, que chegaram a ficar desfolhadas, encontravam-se livres da praga depois que Cliff havia recorrido aos robôs. As máquinas paralisaram os animais, recolheram-nos e os destruíram. Cliff não levou mais de um segundo para identificar o zumbido. Ligou-o a uma manhã passada no planeta de Jackhammer. Tratava-se de uma vespa assassina. Perdera-se por aqui, tal qual seis meses atrás as borboletas de olhos dourados. O zumbido mudava de tom, segundo o local do parque em que se encontrasse o inseto.

Cliff continuou deitado e protegeu os olhos contra os raios do sol. Finalmente viu a vespa. Foi uma visão que satisfaria o senso estético de qualquer um.

O corpo era prateado e apresentava estrias amarelas. O movimento das asas transparentes era tão rápido que as mesmas se tornavam invisíveis. O inseto realizava um vôo de patrulhamento. Examinava, uma por uma, as folhas e as flores da grande árvore d’Itvia. Vez por outra, pousava num galho onde paralisava e sugava um inseto de pequenas dimensões.

— Que animal bonzinho! — disse Cliff, fechou os olhos e voltou a recostar-se.

Sentiu-se mais tranqüilo. Durante alguns segundos, não aconteceu nada. Apenas se ouvia o zumbido da vespa assassina, o farfalhar causado pela brisa leve do Golfo de Carpentaria que esfregava as folhas umas contra as outras, o ruído produzido por uma noz que caiu na piscina...

De repente, ouviu-se outro ruído. O pequeno rádio de pulseira emitiu um zumbido. Estava preso à braçadeira da cadeira, à direita de Cliff. Este soltou o grampo e ligou o aparelho.

— Aqui fala McLane — disse.

A vespa assassina desceu vertiginosamente da copa da d'Itvia e descreveu uma curva junto à cabeça de Cliff. Este conseguiu dominar-se. Não abateu o inseto e ouviu a voz que saía do alto-falante.

— Comandante, aqui fala o professor Macauley. Será que o senhor poderia comparecer quanto antes ao meu laboratório?

— Com o maior prazer. Qual é o motivo?

Agora a vespa voou em direção à sua cabeça. Cliff desviou-a para o lado e o animal bateu contra o tecido da cadeira. McLane levantou-se de um salto, pois não estava com vontade de ser atingido pelo ferrão. Segurou o rádio e disse:

— Queira desculpar. Uma chlorion procura picar-me e sugar meu sangue.

O inseto escorregou no tecido liso, conseguiu controlar-se ao atingir o assento e subiu furiosamente. Descobriu Cliff e tomou a direção de sua cabeça. A voz continuava a sair do alto-falante. O coronel lamentava não ter uma toalha ou outro objeto com que pudesse repelir a vespa.

— ...pois é isso... efeito colateral indesejável... venha quanto antes...

Cliff não prestou atenção a todas palavras de Macauley, embora compreendesse algumas.

— Um momento — disse em voz alta.

Mais uma vez, a vespa aproximou-se furiosamente. Cliff atirou o rádio para dentro da cadeira, tomou o impulso e, atingindo a vespa com as costas da mão, arremessou-a para o jardim como se fosse uma bola de tênis.

— ...reage a... não fale... — rangeu o rádio.

O inseto recuou cinco metros, controlou o vôo, executou uma curva de cento e oitenta graus e voltou a precipitar-se sobre Cliff. Não havia a menor dúvida: o alvo era a cabeça humana. As pernas do inseto estavam encostadas ao corpo, as antenas tremiam e os olhos pareciam telas de radar que não poderiam ser enganadas. O ferrão achava-se virado para a frente e apontava para os olhos do comandante como se fosse uma arma. Cliff negaceou, balançando o corpo para a direita e para a esquerda, mas o inseto retificava o curso. Cliff respirou profundamente, virou-se e abaixou-se.

— Esta vespa não deve ser anfíbia — disse.

O zumbido tornou-se mais malévolo. As palavras, que Cliff acabara de pronunciar, pareciam ter irritado a vespa. Cliff abaixou-se, e as solas dos pés descalços impeliram-no para a frente. Executou um belo salto e mergulhou nas águas da piscina. Continuou mergulhado por alguns segundos e emergiu na margem oposta. Sacudiu a água dos cabelos, pronto para mergulhar a qualquer instante. O inseto havia desaparecido. Ao caminhar num lugar mais raso, descobriu-o. Estava reduzido à impotência, boiando no centro da piscina, onde revolvia a água com as asas transparentes. Uma onda parecia ter atingido a vespa, arrastando-a para dentro da piscina. Cliff deu algumas braçadas vigorosas, atingiu a escada e saiu. Com alguns saltos, chegou até a cadeira e pegou o rádio. O aparelho fora construído de maneira a resistir às condições reinantes no espaço. Sendo à prova do ar e do vácuo, um pouco de umidade não lhe poderia fazer mal.

— McLane de novo — disse Cliff, percebendo que seu coração batia desesperadamente.

— Macauley continua no aparelho. O que houve?

Cliff relatou em poucas palavras.

— Foi justamente por isso que pedi seu comparecimento — disse o professor a meia voz e em tom constrangido. — Cometemos um erro lamentável. A segunda geração, ou seja, os descendentes imediatos das vespas submetidas às radiações, além de serem dotados de uma fertilidade extraordinária, são sensíveis ao som. Não existe praticamente nenhum comprimento de ondas que não as incomode. Mas o que mais as enfurece é a voz humana.

— Quer dizer que é a faixa situada aproximadamente entre cinqüenta e quatorze mil hertz?

Cliff fez um gesto afirmativo. Ninguém poderia ter previsto um resultado desses.

— Isso mesmo. Picam assim que alguém fala perto delas. E existem bilhões de vespas assassinas.

Cliff ficou calado; sentia-se abalado.

— Isso significa que a forma de comunicação mais importante não pode ser empregada mais em Terra?

— Certo. Aqui na Base 104, o perigo é relativamente reduzido. Porém as coisas estão piorando. Venha logo ao meu laboratório; já convoquei sua tripulação. O marechal Wamsler e o coronel Villa também estão aqui.

— Terei que vestir um traje espacial? — perguntou Cliff com um resquício de sarcasmo.

— Não. Basta levar um paralisador.

Cliff compreendera que o problema não se tornara menos grave. Pelo contrário, passara à categoria de um perigo "agudo". Desligou o rádio de pulso e caminhou para o interior da casa. Provavelmente conseguira salvar-se porque a vespa fora um único exemplar. Sua picada provocaria pelo menos uma paralisia temporária, e talvez até a morte.

Uma porta de vidro fechou-se atrás dele. Parou no meio da sala e dirigiu-se à mesa de programação que lhe permitia dirigir os robôs domésticos. O primeiro botão que apertou transmitiu ordens e informações dirigidas a todas as unidades. Cliff escreveu um programa simples e, depois de gravá-lo em fita, deixou-o correr pela instalação.

Traduzido em linguagem comum, esse programa dizia o seguinte: "Manter fechadas sempre e em todas as condições as portas, janelas e outras aberturas da casa. Qualquer inseto com o volume superior a 30 centímetros cúbicos que consiga penetrar na mesma terá um efeito mortífero sobre os homens. Emergência grau três. Fim da informação."

— Bem — murmurou. — O que pude fazer foi feito. O futuro será bem mais interessante.

Teve uma visão. Qualquer pessoa que quisesse locomover-se fora de vim recinto fechado teria de envergar um traje espacial. Face ao número de habitantes de Terra, o número de trajes espaciais era muito reduzido. Qualquer pessoa que falasse nas proximidades de uma planta correria o risco de ser assassinada por insetos. Havia áreas extensas cobertas de conjuntos residenciais que não eram tão automatizados como certas casas situadas nesta ilha. Haveria um pânico geral e um assassínio em massa. Sacudiu a cabeça e começou a vestir-se.

 

Cliff já conhecia a sala do Instituto Biológico do professor, e conhecia ainda melhor as pessoas reunidas na mesma. A tripulação da Orion comparecera em peso, Macauley estava presente, tal qual o coronel Villa e Wamsler, que estava sentado junto à escrivaninha, com o rosto contraído.

— As vespas chlorion não demorarão em encontrar um meio de penetrar em recintos fechados. Quando isso acontecer, deixaremos de ouvir muita conversa fiada.

Hasso virou-se, sorriu e cumprimentou Cliff com um gesto.

Michael Spring-Brauner estava calado. Cliff começou a imaginar como seriam as coisas quando todos os homens só pudessem comunicar-se através de mensagens escritas. Seria uma situação estranha. As cestas de papéis e os fornos de incineração não conseguiriam realizar o trabalho que se exigiria deles.

— O problema da tortrix viridana extraterrestre está praticamente resolvido. Já o problema da chlorion ichneumoneum jackhammerii encontra-se na fase "aguda". Nosso procedimento terá de guiar-se por uma lógica inflexível. Primeiro: o que pretendemos e quais são os recursos com que poderemos contar? A segunda parte do problema consiste no seguinte: de quanto tempo dispomos? E a terceira parte: o que acontecerá se, dentro de determinado tempo, não encontrarmos um meio de neutralizar a ação dessas vespas nefastas?

Levantou os braços e deixou-os cair; não tinha mais nada a dizer.

— Será que existe alguma arma ou instrumento com que possamos exterminar esses insetos?

O marechal Wamsler levantou-se e lançou um olhar de súplica para o grupo que cercava o professor Macauley. O professor sacudiu lentamente a cabeça.

— Não. Podemos destruir alguns ninhos, o que já foi feito. Mas não estamos em condições de examinar cada árvore, arbusto, moita ou pedra, para verificar se nele não existe um ninho. Mesmo que reuníssemos bilhões de homens, não conseguiríamos realizar essa tarefa. É claro que nossas equipes matam toda vespa que apareça diante dos seus olhos, tal qual foi feito com as colônias de borboletas.

— Quer dizer que não dispomos de qualquer arma — Wamsler voltou a recostar-se na poltrona.

— Não — disse Cliff. — De resto, acho que esse procedimento seria inútil. Existe outra possibilidade. Poderíamos importar um animal que mate as vespas?

A risada de Arlene só poderia ser interpretada como uma manifestação de cinismo.

— Primeiro vamos buscar plantas de que temos necessidade e com elas trazemos uma praga, depois trazemos insetos que devem exterminar a praga, depois disso vamos à procura de animais que exterminem os insetos... No fim da história, estaremos trazendo dinossauros e utilizando armas pesadas. A tese teria uma vantagem: a frota poderia dar caça aos gigantes e destruí-los. Estou falando em nome de todas as equipes de proteção à natureza. Não devemos pensar em outro inimigo biológico. Devemos recorrer a alguma coisa perfeitamente controlável.

— Quer dizer que também não contaremos com essa possibilidade — disse Charger. — Precisamos de alguma coisa existente na natureza das vespas, e que possa ser mantida perfeitamente sob controle.

— Seria um procedimento técnico — disse Atan Shubashi levantando-se de um salto e apontando para o professor. — Já procurou descobrir as causas da sensibilidade ao som desenvolvida pelas vespas?

Macauley baixou a cabeça e respondeu em voz baixa:

— Já discuti o assunto com o comandante. Infelizmente McLane tem razão. As radiações de tempo reduzido, que aplicamos para aumentar a fertilidade das rainhas e das larvas específicas, fez entrar em atividade um grupo de células situadas no cérebro dos animais. Alguns filamentos nervosos ligam o grupo às patas dianteiras, onde ficam as células auditivas, e com isso adquiriu uma sensibilidade toda especial para os sons emitidos nessa freqüência. A culpa é exclusivamente nossa, mas não havia como prever esse efeito colateral.

— Esses cientistas! — resmungou Wamsler.

Charger respondeu em tom frio:

— Se os cientistas não tivessem construído as espaçonaves, não haveria as Formações de Reconhecimento Espacial, nem o posto de direção que está sendo ocupado pelo senhor, marechal.

Os dois homens trocaram um olhar penetrante. Finalmente, Wamsler fez um gesto conciliador e disse:

— Deixe para lá, Charger.

— Deste jeito nos perdemos — disse Arlene com sua voz aveludada. — Só existe uma possibilidade. Retornaremos ao planeta Jackhammer e estudaremos as condições de vida dos animais. Só assim descobriremos aquilo que estamos procurando: uma arma de efeito muito rápido, a ser empregada contra as vespas.

 

— Chamei o controle de decolagem antes que o senhor chegasse, coronel — disse Villa. — Pode decolar.

Cliff fez um gesto afirmativo.

— Amigos! Decolaremos daqui a duas horas. Acertem os relógios. São dezessete horas e três minutos.

— Nossa bagagem já está preparada, Cliff — disse Arlene. A fala íntima rendeu-lhe um olhar furioso de Helga Legrelle.

— Muito bem. Mais alguma observação relativa ao tema, professor? — perguntou McLane.

— Em princípio não. Mas devo dar-lhes algumas recomendações a serem seguidas durante a viagem.

— Seria um favor — disse Charger.

— Procurem estudar todos os aspectos da vida das vespas chlorion que excedam aquilo que já sabemos a seu respeito. Todas as observações realizadas no curso de seis meses e todos os conhecimentos sobre os insetos de nosso planeta foram inter-relacionados e processados em computador. Não encontramos qualquer ponto de partida para um ataque. Provavelmente, em seu habitai natural, os animais demonstram um comportamento social que ainda não conhecemos. É por lá que devemos começar.

Mario de Monti fez um gesto afirmativo.

— Compreendo. Outros planetas, outros insetos, outros costumes.

Um sorriso leve e alegre cobriu o rosto preocupado do cientista.

— É isso mesmo, tenente De Monti.

— Vejam! O triste espetáculo já começou — disse Villa em tom enérgico.

No quadro, surgiu uma larga ponte de atracação, que se destacava contra os fundos de um pequeno porto pesqueiro ultramoderno. No fim da ponte, estava deitado um homem de rosto para cima, que envergava o traje típico dos pescadores. A sombra de uma pilha de pneus gastos, que provavelmente serviriam de pára-choque, caía sobre o peito do homem. O comentador disse:

— Um acidente lamentável, cujas causas ainda não foram esclarecidas, aconteceu hoje neste local. O timoneiro de um barco de pesca de atum foi atacado de insetos de tamanho descomunal; é o que declaram as testemunhas.

A câmera aproximou-se e parou ao abranger a cabeça. Na testa, nas bochechas e no espaço entre o lábio inferior e o queixo, os homens apavorados viram o sinal de incisões finíssimas. Em volta dessas, inchações pontudas, em cuja extremidade superior brilhava um minúsculo hematoma. O rosto estava azulado e apresentava numerosas manchas vermelhas. O alto-falante transmitiu a explicação:

— O homem procurou defender-se com as mãos e gritou por socorro. Pelo que dizem, após isso os animais, que eram de quatro a nove, reforçaram seus ataques. Paralisaram o homem, que caiu ao chão antes que seus companheiros pudessem ajudá-lo. O médico, chamado às pressas, constatou sua morte. A causa mortis foi a cardiopatia aguda produzida por toxinas desconhecidas. Considera-se como certo que foi morto pelos insetos. Ultimamente têm aumentado as notícias sobre observações feitas não só nas imediações, como também em regiões mais afastadas dos parques naturais terranos. Ao que tudo indica, devemos contar com uma invasão dos insetos. Fala-se em vespas superdimensionadas, cujo zumbido é ouvido até de noite...

Villa desligou.

— É o primeiro morto — disse em voz baixa. — Devemos agir muito depressa.

— Na melhor das hipóteses, estaremos de volta em vinte dias, coronel — ponderou Cliff.

Macauley disse:

— Instruímos todas as equipes para deslocarem-se em veículos fechados e queimarem os ninhos das vespas onde quer que os encontrem. Mas isso não será suficiente.

Villa levantou-se e atravessou o grupo das pessoas reunidas. Ao chegar perto da porta, parou.

— Afinal, o Serviço de Segurança Galáctico é uma instituição de grande porte. Utilizaremos todos os nossos funcionários para apoiar seus esforços, professor. Prometo mantê-lo sempre a par.

Macauley apertou a mão do homem pequeno e magro de cabelos grisalhos. Disse em voz baixa:

— Fico-lhe muito grato.

— Compreendemos suas preocupações — disse Cliff. — Vamos decolar logo!

Despediram-se de Macauley. Poderiam entrar em contato com ele a qualquer tempo, por intermédio da EA IV e da E.T.E.E.

Um carro para sete pessoas levou-os ao elevador, que não ficava longe da Base 104. Ainda faltavam noventa minutos para a hora da decolagem.

 

Centésimo décimo primeiro pavimento. O pequeno apartamento de Tamara Jagellovsk ficava a quase trezentos e cinqüenta metros de altura. Depois de um dia passado nos arquivos do SSG, tirara as botas e descansava. Há pouco Cliff telefonara para despedir-se. Teve de partir para Jackhammer numa missão urgente. Portanto, o raio que acabara de ver bem poderia ser da Orion VIII. Tamara sacudiu os ombros e voltou ao quarto.

Parou diante do aparelho estéreo e escolheu uma fita. Os alto-falantes reproduziram a música de Thomas Peter, "Asas Mortais".

O videofone emitiu um som forte.

— Isso é um acontecimento atípico — constatou e levantou-se.

Com um movimento da mão, silenciou os alto-falantes e com outro ativou a tela. As emissoras de televisão só chamavam a atenção dos assinantes, por esse meio, quando havia uma mensagem da maior importância. A tela iluminou-se, e nela surgiu em projeção tridimensional o sinal do Governo Terrano.

— Caramba! — disse Tamara em voz alta. — Deve ser um aviso de grande importância.

— O Governo Terrano pede a todos os cidadãos muita atenção a esta mensagem e que a cumpram em todos os detalhes. Dentro de alguns segundos, o locutor fará um comunicado de importância vital.

A desconfiança e a atenção de Tamara já haviam sido despertadas. Surgiu um estúdio de televisão. No centro de uma área livre, viu-se Von Wennerstein, Secretário do Governo, cujo rosto estava muito sério.

— Senhoras e cavalheiros! — disse, falando devagar, e esperou as câmeras se aproximarem.

"Prezados concidadãos. Peço a todos que prestem muita atenção. O comunicado que será transmitido não tem por fim inquietá-los; visa justamente o contrário. Há vários anos importamos certas plantas do planeta d'Itvia, a fim de apressar o florestamento dos parques naturais..."

Embora já conhecesse o problema, Tamara ouvia atentamente.

— ...essas vespas reproduziram-se com uma rapidez espantosa e transformaram-se num perigo à vida. O marechal Woodrow Winston Wamsler lhes dirá o que poderão fazer para proteger-se contra as mesmas. Muito obrigado pela atenção.

Wamsler surgiu. As câmeras captaram a imponente esfera espacial de novecentos parsec, passaram por cima da barreira de fluxos luminosos, e voltaram a fixar-se no marechal.

— Fechem as janelas! — disse Wamsler sem o menor intróito.

Tamara sentiu-se tentada a correr imediatamente para a sacada, mas lembrou-se da altura em que ficava sua residência e continuou sentada.

— Procurem conseguir um paralisador e atirem imediatamente a qualquer vespa dessa espécie. Aqui está um exemplar.

Wamsler apontou para trás e mostrou aos espectadores um cubo transparente no qual estava encerrada uma vespa que se debatia contra o vidro. Via-se perfeitamente o ferrão, no qual o veneno paralisante brilhava sob a forma de cristal arredondado. Era um quadro apavorante.

— Assim que ouvirem o zumbido deste animal, não falem, nem concluam o que estiverem dizendo. Quanto mais alto falarem ou, pior ainda, gritarem, tanto mais enfurecerão as vespas assassinas.

Os alto-falantes transmitiram o zumbido de um inseto que partia para o ataque. Nos armários da pequena cozinha robotizada, os vidros tilintavam de forma enervante. Tamara sentia-se alarmada, pois isso não prenunciava nada de bom.

— A mensagem que segue destina-se a todos os funcionários do SSG. Considerem-se em serviço a partir deste momento. A ordem é matar imediatamente todo inseto que corresponda às especificações que acabam de ser transmitidas. Quanto ao mais aplicam-se as mesmas instruções de segurança que acabam de ser transmitidas.

A seguir, o locutor da estação pôs-se a falar, pediu desculpas pela interrupção da programação, anunciou a atração. Antes desta ser iniciada, avisou mais uma vez:

— Nunca se esqueçam — disse em tom enfático. — Não falem ao ar livre, saiam de casa o menos possível, prestem atenção ao zumbido e não dirijam os paralisadores sobre seres humanos, mas apenas contra as vespas assassinas.

Tamara levantou-se. Precisava não apenas um café bem forte, mas também um grande copo de Archer's Tears. Afinal, ajudara Cliff a ganhar cerca de dez garrafas, das quais sete ainda estavam cheias.

— Tentem ensinar a um bando de crianças a não falar, a não gritar, a não chorar! — murmurou.

Dirigiu-se à cozinha robotizada. Atrás dela, soaram os últimos acordes das "Asas Mortais", de Thomas Peter.

 

PARQUE Natural de Camooweal.

As enormes asas da hélice horizontal giraram cada vez mais devagar e pararam por completo. Um casal desceu do helicóptero.

Fitas negras cobriam as plantas que se moviam sob as botas dos dois membros da equipe. Depois que três deles haviam sido picados, os guardas do parque preferiam não assumir mais nenhum risco.

Michelle estacou em meio ao movimento.

— Cuidado — cochichou.

— Destrua! — resmungou Shea.

A resposta veio sob a forma de ataque furioso lançado por centenas de vespas. As ondas sonoras irritavam-nas ao máximo, e atacavam com uma fúria cada vez maior. As telas de arame ofereciam proteção suficiente, mas naquele momento Shea estava cego.

— Ainda consegue enxergar alguma coisa? — perguntou a Michelle enquanto com o braço afastava algumas dezenas de insetos, que caíram ao solo como frutos maduros. Esmagou alguns deles com os pés.

— Mal e mal! — disse Michelle.

Outra vez, Shea limpou o visor e depois atirou. Atingido pelo raio cantante, o ninho caiu ao chão e Shea dirigiu o paralisador sobre o mesmo. Os exemplares que se encontravam presos entre as fitas de papel negro foram imobilizados. Depois as duas armas passaram a empenhar-se na destruição sistemática do ninho. O que restou foi um montão fumegante e malcheiroso, do qual caíam animais chamuscados. Shea agia sem a menor contemplação.

— Este ninho está liquidado — disse em voz alta.

Mais uma vez, algumas vespas aproximaram-se e bateram nos animais paralisados. Um cheiro adocicado de mel gosmento surgiu, além de um bafo que lembrava uma galeria de fermentação.

— Agora é minha vez! — gritou Shea. — Não posso mais.

Michelle caminhou pesadamente em sua direção. A cada passo dado, os insetos caíam do tecido liso da jaqueta refrigerada, eram pisados ou levantavam vôo. Michelle regulou o foco do paralisador para uma área menor, aproximou-se do homem e puxou o gatilho. O raio invisível passou junto do rosto, rente da máscara. Os insetos paralisados escorregavam para o chão. Dessa forma, limpou a roupa e os ombros de Shea. Este dirigiu a arma de radiações para o círculo de vespas que se estendia em torno dela como se fosse um amontoado de terra e matou os animais.

— Agora dedique a mim seus serviços de bom samaritano, Shea — disse Michelle.

Shea pegou o paralisador e "varreu" os animais das vestes e da máscara da moça. Depois apontou o cano da HM-4 para baixo e queimou as vespas. Finalmente abriu os lábios, respirou profundamente e gritou:

— Alô! Há mais alguém por aí? Será que nos esquecemos de algumas das encantadoras vespas?

Algumas retardatárias precipitaram-se das árvores, dos arbustos e dos buracos que havia nos arredores e reuniram-se em torno dos dois guardas. Mais uma vez, o paralisador e o radiador entraram em atividade.

— Pronto! Este setor está limpo — disse Shea. — Já se apurou que a maior distância que uma vespa pode percorrer é de mil quilômetros. Ao que parece, existe um grande foco em Groote Eylandt, pois do contrário a ilha não estaria sofrendo sob a ação da praga, conforme dizem as últimas informações do coronel Villa.

O perigo espalhava-se cada vez mais. Não só os homens eram atacados, mas também os animais. Em parte isso acontecia porque se aproximavam demais dos ninhos, em parte porque emitiam sons situados na mesma faixa de freqüência dos seres humanos.

— O uso de substâncias químicas selecionadas não adiantou nada — disse Michelle enquanto caminhavam lado a lado — e os vírus especialmente cultivados também se revelaram incapazes de dizimar as vespas. O único recurso eficaz é o ataque direto, praticado por nós.

Shea respondeu com uma expressão amarga.

— São cinqüenta homens da equipe... ou melhor, quarenta e oito, uma vez que Charger e Arlene estão na Orion. São ajudados por um total de cem voluntários contra milhões e milhões de vespas espalhadas pelo parque natural. É uma tarefa inútil.

Michelle deixou que Shea a ajudasse a sentar; depois este fechou a porta.

— Não posso concordar com o que você acaba de dizer — disse, puxando a faixa de plástico que cobria a nuca e o princípio da máscara. — No mínimo, conseguimos impedir que as vespas continuem a multiplicar-se em progressão geométrica. Conseguimos eliminar alguns milhões de ninhos em potencial, antes que o perigo se tornasse agudo. Foram colocadas grades de tela na frente de todas as entradas de ar! Até os helicópteros são derrubados, pois alguma peça produz vibrações desse tipo maldito. Foi mesmo uma bela idéia pousar em Jackhammer.

— Você tem motivo para queixar-se?

— Eu não. Mas milhões de seres humanos têm.

O helicóptero decolou e voltou a pousar quinhentos metros adiante, junto ao limite norte do parque natural. A luta prosseguia...

 

Base 104; no gabinete de Wamsler.

Wamsler estende a mão para pegar o bilhete que Spring-Brauner lhe empurrou por cima da mesa negra e lê:

Ainda não há notícias de McLane e dos entomólogos que se encontram em sua companhia?

Wamsler fitou Apoio com uma expressão martirizada e sacudiu a cabeça. No interior das cavernas da Base 104, as picadas das vespas já haviam feito dez vítimas; felizmente não houvera nenhuma morte.

Aguardo seu regresso dentro de dez dias, escreveu.

Spring-Brauner leu e perguntou sob as palavras de Wamsler:

Nem mesmo uma notícia pelo rádio?

Wamsler sacudiu a cabeça sem dizer uma palavra. Por duas vezes, já derrubara vespas com o paralisador no interior de seu gabinete. Seria difícil ou impossível dizer de onde tinham vindo. Não poderiam ter entrado pelas galerias de renovação de ar, que foram protegidas com finas telas de arame. Subitamente Spring-Brauner apontou para a frente, num gesto apavorado.

A dez metros da mesa, um sinal iluminou-se abaixo da tela do videofone.

— Aqui fala o laboratório do professor Macauley — disse o assistente em voz alta. — Quero falar com o marechal Wamsler.

Um zumbido cortou sua voz como se fosse uma faca.

— Silêncio! — berrou Wamsler. — cale-se!

Seu interlocutor calou-se, perplexo. Spring-Brauner apontou o paralisador para uma vespa e apertou o gatilho. Atingido em pleno vôo, o animal caiu sobre a mesa. O ferrão comprido ainda executou alguns movimentos, mas logo imobilizou-se. Mais quatro vespas saíram do revestimento de uma tela visual situada nas proximidades da barreira de fluxos luminosos e espalharam-se. Dirigiram seu ataque tanto contra Wamsler como contra Apoio.

— Cuidado, marechal — gritou Michael e voltou a disparar.

Mais vespas saíram de outro esconderijo e concentraram seus ataques sobre o ajudante. Spring-Brauner atravessava o gabinete em ziguezague, parou e atirou. Wamsler não conseguiu colocar-se numa posição em que pudesse usar o paralisador sem correr o risco de atingir seu ajudante. Correu em torno do canto da mesa e gritou:

— Pare, homem!

O grito desencadeou um ataque concentrado de cerca de quinze vespas assassinas. Todas se precipitaram sobre o marechal. Spring-Brauner atirava incessantemente e acertava sempre, mas não havia dúvida de que agora o maior perigo pesava sobre Wamsler. O ajudante compreendeu e soltou alguns gritos mal articulados; naquela emergência, não se lembrou de outra coisa. Imediatamente as vespas orientaram-se pela nova fonte de ondas sonoras. Enquanto Wamsler disparava, já se precipitavam sobre Spring-Brauner. O ajudante atirava ao acaso em todas as direções e por pura sorte atingiu duas vespas. Wamsler derrubou mais três e viu que Spring-Brauner perdeu o autocontrole e pôs-se a correr em direção à barreira de fluxos luminosos.

— Fique aqui, homem! — gritou Wamsler em voz rouca. Mais uma vez as vespas mudaram de direção. O homem que se encontrava no videofone assistiu ao drama que se desenrolava no gabinete sem poder fazer nada.

Spring-Brauner não o ouviu. Faltavam cinco metros, quatro...

Wamsler não pensou mais nas vespas; refletiu instantaneamente. Não haveria tempo para colocar-se atrás da escrivaninha e desligar a barreira de fluxos luminosos. Três metros. Wamsler levantou o paralisador, fez pontaria rápida e disparou contra as pernas do ajudante. Depois apontou a arma para cima e puxou o gatilho; atirava e atirava. As vespas esvoaçavam em torno dele e, via de regra, eram atingidas pelo raio. O zumbido tornava-se cada vez mais fraco. Michael Spring-Brauner cambaleou, dobrou os joelhos; faltavam dois metros para atingir o mortífero fluxo eletrônico. Atirou os braços para cima e tombou. Apoiou-se no solo e, pouco antes da barreira, estatelou-se no chão. Virou-se, permanecendo deitado. Imediatamente moveu o braço que segurava a arma e atirou num inseto vindo de cima, que se dispunha a atacar Wamsler.

— Foi a última vespa — disse, falando com dificuldade.

— Parece que sim — disse Wamsler.

Os cadetes que se encontravam na ante-sala, todos armados com paralisadores, assustaram-se quando viram o rosto do marechal.

— Façam o favor de chamar um médico para cuidar de Michael Spring-Brauner — disse em tom apático. — E providenciem uma maça. Tive que atirar nele. Tentei atingir uma vespa assassina e acabei acertando nele.

Perplexos, os cadetes obedeceram.

— E mandem um robô de limpeza — prosseguiu Wamsler, respirando com dificuldade. — Quero que levem esses malditos insetos, senão acabo vomitando.

— Naturalmente, marechal.

Não se via mais nenhuma vespa. Mas isso só permaneceria assim por um instante. Wamsler voltou lentamente ao gabinete e, exausto, encostou-se à mesa. Olhou para a tela do videofone e fez um gesto.

— Agora pode continuar — disse em tom seco. — Diga logo o que houve.

O homem, que falava do laboratório e coletava as informações vindas da Grande Austrália e as transmitia para Villa e Wamsler, respirou profundamente e disse:

— Quero dar-lhe as últimas notícias. No sul do continente, uma fazenda foi destruída quase por completo. Trata-se...

Wamsler ouvia e compreendeu que a situação se tornava cada vez mais séria.

 

Wilkinson Lades, Austrália Central.

Reunindo as últimas forças, o homem corria pelo caminho de areia que ligava o edifício da administração aos abrigos construídos quase completamente embaixo do solo. O ar começava a ficar escasso, os pulmões davam mil pontadas, e ele se sentia como alguém que estivesse morrendo afogado. As vespas o perseguiam.

No momento em que havia vencido metade da distância, alguém o chamara da sala de comando junto ao abrigo, que estava grudado a meia altura da fachada de concreto, como se fosse um púlpito. Cometeu um erro imperdoável: respondeu. Depois vieram as vespas. Às centenas. E agora corria para salvar a vida.

Com as pisadas, a areia era atirada para o alto. O homem fungava. E esse ruído irritava ainda mais os insetos. Tornava-se mais forte, à medida que diminuía a distância que o separava da pesada porta da eclusa de climatização e da barreira de fluxos luminosos.

Os animais, que ali eram criados, entre as paredes maciças do abrigo estavam habituados a determinado grau de luminosidade artificial e a uma temperatura fixa; só assim produziam a quantidade desejada.

Continuou a correr, cambaleando e fungando. O fungar transformou-se num soluço, num gemido entrecortado. Nunca fora um desportista.

A alavanca!

A porta girou ao seu encontro. Abriu-a o necessário para entrar. Viu-se num recinto escuro, em forma de cubo.

"Aqui é mais fresco", pensou. Soltou um grito forte quando o ferrão atingiu seu rosto. No mesmo instante, sua mão atingiu o contato que abria a porta interna da eclusa. Outra vespa o picou, e ele gritou mais uma vez. Depois caíram sobre ele. Gritava cada vez mais alto. Quando seus gritos cessaram, a quantidade de veneno paralisante havia atingido todo o sangue em circulação e chegado ao coração. Retesou-se sob o peso de cerca de mil vespas chlorion, estremeceu duas vezes e morreu.

De repente, houve um rebuliço...

A calculadora digital, cujos elementos externos mediam as variações de temperatura e regulavam a incidência da luz, deram o alarma. Os animais começaram a cacarejar e a soltar gritos estridentes. Eram quarenta mil galinhas. Contagiaram-se umas às outras, tornaram-se cada vez mais barulhentas; uma psicose coletiva irrompeu em meio às mesmas. No momento em que os primeiros gritos das poedeiras moribundas se misturavam aos gritos de protestos das demais, os insetos ficaram ainda mais exaltados, disparavam com maior rapidez pelos corredores feitos de aço e arame. Os animais batiam as asas, picavam os ovos... A reação das vespas foi imediata; esgueiraram-se pelas malhas da tela e picaram as galinhas.

Outro alarma soou em toda a extensão das instalações.

As faixas condutoras de rações pararam, as fitas transportadoras e os classificadores de ovos também. O desempenho dos ventiladores aumentou. A gigantesca granja, que tinha uma produção de vários milhões de ovos por ano, transformou-se num verdadeiro inferno, no espaço de quinze minutos. As penas voavam, os insetos zumbiam e enfiavam os ferrões, as galinhas esvoaçavam em pânico, batiam com a cabeça nas paredes e morriam. Os recipientes de comida e água encheram-se de penas, sangue e excrementos. As galinhas, que pertenciam a uma excelente raça de poedeiras, morreram sob os efeitos do veneno paralisante, do pânico e das feridas que produziram em si mesmas.

Dali a quinze minutos, alguns insetos saíram do pavilhão, passando pelas portas abertas. A maior parte deles foi atingida pela sucção poderosa dos ventiladores e esmagada pelas pás das turbinas. Morreram sufocados embaixo das galinhas mortas, uma vez que a água, o sangue e a clara dos ovos entupiam as traquéias pelas quais os insetos absorviam o oxigênio. Foram carregados para as rodas das fitas, antes que estas se imobilizassem. Depois o silêncio passou a reinar na granja.

Pouquíssimas das quarenta mil galinhas continuavam vivas, e estas ficariam inutilizadas pelo resto de suas miseráveis vidas; teriam de ser sacrificadas. Naquele dia, a produção de ovos da granja havia chegado ao fim. Só depois de terminada a obra destrutiva chegaram os homens nos trajes protetores improvisados. O administrador da granja sofreu um enfare que o matou. As vespas assassinas haviam feito mais duas vítimas.

Um drama igual ou semelhante a este se desenrolava em todas as partes do mundo. Sob a pressão da necessidade, a humanidade aprendia muito depressa. Não falava, não tossia, só saía de casa ou do local de trabalho quando isso se tornasse absolutamente necessário.

As palestras só podiam ser mantidas em recintos hermeticamente fechados. Consumiram-se quantidades imensas de papel para transmitir ao menos as mensagens mais urgentes. Sem que o quisessem e sem que nisso vissem uma vantagem, os surdos-mudos viram chegar sua grande hora. Em certas oportunidades serviam de parceiros em comunicações visuais concebidas com grande precisão, cujo "funcionamento" seria absolutamente silencioso. Linguagens mímicas primitivas ou mais desenvolvidas passaram a ser usadas ou inventadas.

As máquinas só eram utilizadas quando o operador não se expunha a qualquer risco. A venda de fios ia de vento em popa. Fábricas que estavam prestes a encerrar suas atividades, porque suas máquinas eram obsoletas, vestiam seus trabalhadores com trajes especiais e produziam... telas de metal. Buracos, cujo tamanho não excedia um centímetro, constituíam o modelo preferido em todos os lugares imagináveis, onde nem mesmo a fantasia mais arrojada os julgasse possíveis. Os donos de residências subaquáticas recebiam visitas que há anos não esperavam mais. E muita coisa parou de funcionar de uma hora para outra...

Outras coisas voltaram à moda. Era uma época sem igual. Uma época de silêncio...

 

Groote Eylandt, numa escola situada no centro da ilha.

Evidentemente era impossível educar bilhões de criaturas humanas no espaço de vinte dias.

Como fazer, por exemplo, com que uma escola ficasse à prova de vespas?

Tamara Jagellovsk, equipada com dois paralisadores, dos quais segurava um na mão direita, encontrava-se entre as quatro lâminas de vidro que fechavam o hall de entrada. Eram nove horas da manhã; algumas classes já estavam funcionando, enquanto os ônibus escolares traziam mais crianças. A direção da escola elaborara, num espaço brevíssimo, um plano destinado a evitar que grandes multidões de crianças se acotovelassem aos gritos nas entradas da escola.

— Que diabo! Dois ônibus de uma só vez!

As autoridades haviam feito uma distribuição generosa do equipamento existente nos depósitos. Cada motorista dos ônibus, que buscavam e levavam as crianças, tinha um rádio de pulso. Tamara ligou seu aparelho e disse em tom enfático:

— Aqui fala do hall da escola, agente do SSG. Estou chamando o motorista do segundo ônibus que está chegando neste momento.

O motorista respondeu imediatamente.

— O que houve, mocinha?

— Antes de mais nada, não ande tão depressa. Pare atrás do primeiro ônibus... sim, é o branco... e deixe as portas fechadas até que a última criança do ônibus da frente tenha passado pela porta da escola. Entendido?

O motorista parecia sorrir enquanto respondia:

— Naturalmente, mocinha! Não sou nenhum idiota.

Tamara respondeu em tom seco:

— Não o conheço há bastante tempo para formar um juízo sobre isso. Faça o favor de seguir as instruções que acabo de lhe dar.

— Naturalmente, mocinha.

— Não sou nenhuma mocinha — disse Tamara e desligou.

Entre a porta de vidro e o lugar em que se encontravam os ônibus, havia uma construção de tela de arame e lona, cuja funcionalidade compensava a feiúra. Formava um corredor em semicírculo, de cerca de vinte e cinco metros de comprimento. Em virtude dos muros e das estátuas, os ônibus não conseguiam chegar mais perto. No segundo pavimento, uma turma treinava em voz alta. A ladainha feriu o ouvido da funcionária do SSG.

— Eu durmo, tu dormes, ele dorme, ela dorme...

A voz da professora encerrou o coro, constatando em tom objetivo:

— Você realmente está dormindo, Giralee!

A resposta da menina não pôde ser entendida.

Tamara procurou recordar. A vinte e cinco metros do lugar em que se encontrava, a porta do veículo abria para o corredor. O motorista havia aproximado o ônibus da grade de tela a tal ponto que entre a borracha da mesma e a carroçaria do veículo não havia nenhum lugar por onde pudesse passar uma vespa. A porta abriu-se com um chiado.

As cinqüenta crianças não tiveram nenhuma dificuldade em atrair dentro de trinta segundos um enxame de vespas composto de mais de cento e cinqüenta exemplares. Tamara viu que nenhum inseto penetrou no corredor de tela e acionou o contato. A porta do edifício abriu-se. Dentro de três minutos os estudantes do primeiro veículo foram conduzidos para as respectivas salas. Tamara suspirou aliviada.

— Segundo ônibus. Aproxime-se com cuidado — disse.

O ônibus vermelho, que era um veículo gigantesco movido por uma pequena turbina, aproximou-se da barreira, seguindo o rastro do primeiro. As chapas da carroceria esfregaram a espuma de borracha e o motorista parou.

— Excelente! — comentou Tamara e abaixou-se para dar uma olhada no corredor.

Ainda desta vez, o espaço entre o ônibus e a porta do edifício estava livre de vespas. Os insetos atraídos pela algazarra batiam ruidosamente contra as vidraças e contra as lâminas protetoras dos ventiladores e condicionadores de ar, instaladas apressadamente, mas com o necessário cuidado.

Depois de certificar-se de que tudo estava em ordem, disse laconicamente:

— Abra a porta!

Viu o mesmo espetáculo repetir-se diante de seus olhos. Umas cem crianças entre cinco e onze anos corriam aos gritos e empurrões. Atraíram imediatamente as vespas assassinas e chegaram à porta do edifício.

— Vá embora — disse Tamara, desligando o rádio.

Depois que a última criança havia entrado na escola, fechou a porta de vidro. Guardou o paralisador e dirigiu-se ao gabinete do diretor. Até a hora do recreio, seu serviço estaria encerrado ou, pelo menos, mais facilitado. Tomou um lanche e iniciou sua ronda.

Caminhava lentamente, pensando em Cliff, que a nove setores de distância dali andava à procura de um meio radical que permitisse exterminar as vespas assassinas. Ouviu o som de vidro partido.

A reação de Tamara foi de uma rapidez incalculável. Localizou o ruído; vinha do pavilhão de ginástica. Tirou o paralisador e saiu correndo. Dentro de quinze segundos, abriu a porta do pavilhão, fechou-a ruidosamente atrás de si e parou no interior do recinto. Dezenas de crianças estavam assistindo a um jogo de beisebol. Uma menina com um taco na mão olhava para cima.

Uma pequenina clarabóia, de uns cinqüenta por cinqüenta centímetros, estava estilhaçada. A bola havia desaparecido.

O professor de ginástica correu ao encontro de Tamara, e esta levantou a arma. Seria praticamente impossível comunicar-se em meio ao ruído provocado pelas cordas vocais de cem crianças. O volume de som fatalmente... E vieram!

Tamara puxou o gatilho e disse ao professor que retirasse as crianças o quanto antes. Este compreendeu e berrou algumas ordens.

Tamara só movia a arma por alguns milímetros. O raio se deslocava em meio à abertura e os insetos paralisados caíam ao solo, no meio das crianças que gritavam desesperadamente. O professor berrava, procurando fazer com que as crianças passassem mais depressa pelo "gargalo", mas a demora parecia infinita. Tamara apontava e atirava quase sem parar.

As vespas chlorion com suas estrias amarelas e prateadas caíam lentamente. As crianças conheciam o perigo e desviavam-se. Não olhavam para o caminho que tinham de percorrer, mas para o ar. Algumas delas começaram a empurrar as outras, corriam e tropeçavam. Choravam e voltavam a pôr-se de pé.

Uma delas esbarrou em cheio em Tamara. O raio invisível foi desviado e três insetos conseguiram entrar. Tamara recuperou o equilíbrio e tirou o segundo radiador. Seu dedo encontrou a trava e empurrou-a. Os insetos que vinham atrás foram atingidos, mas o zumbido de três vespas parecia encher o pavilhão como uma música de órgão. Tamara ficou desesperada; olhou em torno e notou que havia poucas crianças no pavilhão. Quase todas estavam correndo pela porta. Um menino sardento de nariz achatado parou e levantou a mão. A gigantesca luva de beisebol era maior que a cabeça dele.

— Eu a pego; pego mesmo! — disse.

Tamara não respondeu. Percebeu que não entravam mais vespas pela abertura da clarabóia. Provavelmente os três insetos que conseguiram penetrar se desorientaram face à confusão de vozes e não conseguiram descobrir um objetivo definido. Fez pontaria, moveu o cano da arma e atingiu uma vespa. As outras duas estavam zumbindo atrás dela.

Tamara virou-se apavorada. Derrubou uma vespa a menos de vinte centímetros de uma cabeça loura. Subitamente, ouviu uma voz que falava a seu lado.

— Venha cá, sua vespa estúpida!

O último inseto levantou vôo bem à frente das últimas crianças e, voando em ziguezague, tomou a direção de Tamara, que a seguia com o cano do paralisador. Embora soubesse que conforme as circunstâncias os efeitos dos raios podem ser mortais para uma criança, não teria a menor dúvida em assumir esse risco.

— Peguei! — gritou o menino a plenos pulmões.

Tamara sentiu o coração falhar. O inseto foi parar bem no centro da luva de beisebol, com o ferrão em riste. O menino dobrou a luva. Ouviu-se um ruído desagradável. Tamara olhou para cima. Ouviu um barulho vindo da porta. De repente, um silêncio total enchia o pavilhão. A voz do professor parecia vir de longe.

— Acho que o perigo passou — disse. Tamara guardou um dos radiadores e foi saindo, com a mão sobre a cabeça do menino. O garoto fechou a porta e girou o botão-ferrolho. Tirou do bolso um pedaço de giz e escreveu: Sala de ginástica fechada. Abertura no teto!

— Você é um menino valente — disse Tamara com a voz débil. Seus joelhos tremiam. — Como é seu nome?

O pequeno respondeu com um orgulho evidente:

— Meu nome é Murmel.

Tamara estava exausta demais para pensar no ridículo do nome. Caminhando pelo longo corredor, fazia votos de que Cliff não demorasse em voltar com alguma solução para o problema. Embora os insetos fossem destruídos ininterruptamente, pareciam brotar de fontes misteriosas, pois nunca diminuíam. A mesma coisa passava-se em todo o planeta. Com exceção das áreas muito frias ou úmidas, ou daquelas em que não havia vegetação, acontecimentos como estes se verificavam desde a Terra do Fogo ao Japão.

E as pessoas que defendiam a humanidade começavam a ficar cansadas.

 

O TERCEIRO dia em Jackhammer.

O terceiro de vinte e quatro horas, durante os quais os sete terranos não haviam feito outra coisa senão observar insetos. Observavam as vespas do gênero chlorion ichneumoneum jackhammerii enquanto voavam, descansavam, atacavam, e depois que estavam saciadas.

— É de enlouquecer, Cliff! — disse Arlene em voz baixa.

Encontravam-se deitados lado a lado numa grande coberta. Diante deles, estavam montados aparelhos científicos cujo valor devia ser enorme. Eram conjuntos de lentes, equipamentos de som e telas amplificadoras. A grande objetiva de filtro azul com o tubo de proteção puxado bem para a frente dirigia-se sobre uma das flores já conhecidas.

— Tenho a impressão de que dentro em breve faremos uma descoberta bastante vantajosa ou arrasadora — disse Cliff.

Arlene manteve-se em silêncio. Puxou os óculos por cima dos olhos e fitou a pequena tela do aparelho reprodutor, que mostrava uma vespa adulta, do tipo inofensivo, já que não havia sido submetida às radiações. Passeava sobre uma trepadeira e parava junto a cada um dos espinhos pontudos.

— Parece que esse animal está procurando alguma coisa.

Cliff observou a vespa. O animal parou, suas longas pernas apalparam o tronco em torno do espinho e depois prosseguiu. Estava com o ferrão encolhido. Finalmente o inseto chegou à extremidade inferior da flor.

— Está transmitindo uma mensagem — disse Arlene.

À frente deles, encontrava-se um aparelho capaz de captar o som e transformá-lo em figuras óticas. A freqüência das vozes de Cliff è Arlene provocava ondulações longas na tela esverdeada, enquanto os sinais da vespa eram registrados sob a forma de linhas angulosas e curtas.

Um microfone direcional estava ajustado para a planta e as adjacências da mesma. Cliff procurou descobrir um ritmo, mas a seqüência dos sinais era completamente desordenada. Parecia que a vespa procurava de forma mais ou menos aleatória resolver algum problema...

Na tela, surgiu uma terceira linha, que apresentava uma série de abaulamentos na parte superior. Era um ritmo conhecido: o dos passos humanos.

Uma sombra caiu sobre a areia. Cliff deitou de lado e olhou para o sol. Reconheceu o perfil de Helga Legrelle. A gola do uniforme de serviço estava bem aberta; era meio-dia e fazia muito calor. No interior da nave o equipamento de condicionamento de ar estava funcionando.

— Helga! Veio para ajudar?

O rosto de Helga mostrava de forma inequívoca o que estava pensando. Sentou ao lado de Cliff e tirou da manga da jaqueta uma larga fita de plástico enrolada. O coronel logo viu que se tratava de uma mensagem de rádio impressa pela máquina.

— De onde veio? — perguntou laconicamente e começou a desenrolar a fita.

Embora Arlene e Helga se entendessem muito bem, parecia haver uma ponta de ciúmes entre elas. Há muito tempo Helga estava apaixonada de uma maneira estranha por Cliff. Sabia que uma ligação entre eles seria absurda e impossível, mas desconfiava de qualquer criatura do sexo feminino que se aproximasse de Cliff. Inclusive de Tamara Jagellovsk.

— É de Terra. De Wamsler.

Cliff empurrou os óculos para a testa e começou a ler.

F.R.E.T. para McLane na Orion VIU por intermédio da Estação Terrana do Espaço Exterior e retransmissor. Situação em Terra continua desesperadora. Quantidade de vespas assassinas não se reduziu. Até agora trinta mortos em diversas partes do planeta. Equipes e inúmeros colaboradores lutam contra bilhões de insetos. Comunicação falada impossível; até animais são atacados e mortos. Prejuízo atinge milhões. Peço informar se jã foi descoberto algo, em caso negativo queira intensificar buscas. O caso é urgente, McLane. Ass. Wamsler. Fim.

Cliff leu o texto em voz baixa e fitou as duas moças.

— Estamos procurando há três dias. São três equipes que trabalham em torno da nave e se deixam fritar ao sol. Não encontramos nada. O que devemos fazer?

— Já não sei mais nada. Já martirizamos a cabeça de tanto refletir — disse Arlene, dando de ombros.

Helga enxugou o suor da testa e levantou-se; Cliff ofereceu-lhe a mão, e ela apoiou-se na mesma.

— Preferi não falar pelo rádio de pulso para não causar um "desarranjo" nos aparelhos — disse.

Helga voltou à nave, deixando Cliff e Arlene para trás. As três equipes trabalhavam em lugares diferentes. A Orion ficava aproximadamente no centro de um triângulo isósceles. O disco prateado dominava a paisagem, que consistia principalmente de areia e pequenas rochas, de trepadeiras compridíssimas e camadas de musgo, de manchas de juncos e feixes de capim tão consistente quanto o couro. Geralmente uma névoa cobria o quadro; naquele momento, o sol dardejava seus raios que nem na Austrália. A única vantagem até então constatada era o moreno tostado que os sete participantes da expedição haviam adquirido.

— Em que está pensando? — perguntou Arlene.

Continuava a fitar a tela. A vespa acabara de chegar à extremidade superior da flor e examinava as pétalas.

— Estou pensando que a situação é um tanto grotesca. Um inseto que aqui não costuma incomodar ninguém conseguiu transformar Terra num planeta do silêncio. Arlene apontou para a tela. A vespa passava rapidamente pelas hastes da flor e emitia uma série de sons rápidos e agudos. O som estridente, que não podia ser captado pelo ouvido humano, situava-se numa freqüência de 180 mil a 190 mil vibrações. O aparelho estava ajustado para essa freqüência.

— Estes insetos são bem barulhentos. Se pudéssemos ouvi-los, provavelmente nos convenceríamos de que é exatamente o contrário do que você acaba de dizer. Terra transformou-se num planeta dominado pelo ultra-som.

— Isso não nos ajuda em nada — ponderou Cliff.

Enquanto observavam as telas e procuravam buscar significado em qualquer dos movimentos executados pelos insetos, suas mãos descansavam uma sobre a outra. Ambos sabiam que tudo se resumiria às viagens espaciais; depois do pouso em Terra, cada um seguiria seu caminho.

Subitamente os movimentos da vespa tornaram-se inquietos. Acabara de contornar a flor e equilibrava-se sobre quatro pernas na extremidade da pétala superior. Parecia saciada com o que conseguira capturar de pequenas larvas e borboletas encontradas no interior da flor. Abriu as quatro asas translúcidas como se estivesse bêbeda, executou alguns movimentos com a parte anterior do corpo e saiu voando. Uma das articulações de seu corpo ficou presa à pétala, e o vôo terminou numa queda.

O oscilógrafo passou a registrar linhas confusas e entrecortadas, que corriam da esquerda para a direita. A vespa, que tombou durante o vôo, teve as asas estraçalhadas por um espinho. Bateu na trepadeira de casca áspera, tremeu em desespero e atirou o ferrão para a frente. Ficou deitada de costas e os restos das asas estraçalhadas trabalhavam. Executavam movimentos rápidos, que faziam a vespa girar como um pião. Depois de algum tempo, ficou quieta; só as pernas tremiam. As linhas projetadas na tela transformaram-se em retas horizontais.

— As vespas chlorion não são seres solitários; formam grupos. É possível que as outras venham ajudá-la — disse Cliff sem muita convicção.

Continuaram a esperar, imóveis. Mais alguns minutos se passaram.

O quadro ampliado projetado na tela era de uma nitidez fascinante. A imagem tridimensional constituía uma reprodução impressionante da realidade. Imóvel e deitada de costas, a vespa parecia concentrar suas forças. Cliff não conseguia livrar-se da idéia de que refletia sobre a maneira de sair da situação difícil em que se encontrava.

"A idéia não passa de tolice", pensou, "mas é bem possível que agora entrem em atividade certos instintos que ajudem a encontrar uma solução. A solução para o problema existencial dela, não para o de Terra."

— Olhe o oscilógrafo! — disse Arlene.

O inseto curvou as pernas, segurou um pedaço da casca áspera e, com três dos seus membros, puxou-se para um lado. Auxiliado pelo ferrão, numa questão de segundos estava de pé sobre o tronco. Viam-se perfeitamente as asas estraçalhadas.

— Será que se trata de sinais? — indagou McLane.

O inseto emitia um ultra-som de freqüência muito elevada. Uma série de sinais desfilou pela tela. Esses sinais estavam separados por traços horizontais. Desta vez, notava-se um ritmo perfeito. Rápido, lento, rápido... eram sinais com uma seqüência impossível de ser acompanhada. Ao que tudo indicava, a vespa pedia socorro.

— Existem duas possibilidades — afirmou Arlene.

— Quais são? — perguntou Cliff, arrastando-se sobre os cotovelos para junto da tela visual.

— A série de sinais pode não ter qualquer significação para os seres da mesma espécie, ou então tem por fim chamá-los. Pela força dos traços você vê que a energia é relativamente elevada e o alcance deve ser grande.

Cliff deu de ombros.

— E se aparecer um enxame de vespas? O que farão?

— Provavelmente ainda nesse caso haverá duas possibilidades. Socorrerão a vespa incapaz de voar ou...

Arlene sorriu. Cliff fitou seus olhos.

— Ou...? — perguntou.

— Ou matam o indivíduo incapacitado.

Depois de algum tempo, os sinais cessaram, mas logo prosseguiram. Mais uma vez, a tela encheu-se de linhas trêmulas, que desapareceram dentro de meio segundo. Tratava-se de um ultra-som que atingia até cento e noventa mil vibrações por segundo.

— Estão chegando! — avisou Cliff.

O zumbido característico dos insetos encheu o ar. Dez vespas aproximaram-se. Formaram um círculo em torno da "colega" ferida e estenderam as antenas vibrantes. A tela não captava todas as vespas, e Cliff reduziu a ampliação. Conseguiu ver todos os insetos, mas a imagem tornou-se menos nítida.

— Estão trocando mensagens. Trata-se de informações, do relatório do acidente — constatou Arlene no tom seco de cientista.

As dez vespas, que Cliff contara, "apalparam" os restos da asa da chlorion ferida e tocaram os anéis do corpo e das pernas.

Quatro delas levantaram vôo e pairaram em cima da trepadeira. As seis restantes formaram dois grupos de três insetos e seguraram as pernas longas da vespa ferida. O zumbido cresceu, tornou-se mais intensivo, mais zangado. As seis vespas subiram ao ar, levando o ser de sua espécie.

Foram desaparecendo. O zumbido cessou. A flor branco-amarelada ficou solitária à luz do sol, cheia de larvas e borboletas mortas.

— Sempre conseguimos ver alguma coisa! — disse Cliff.

— Sinto-me perplexa — comentou Arlene a meia voz. Com uma expressão pensativa, contemplou as curvas produzidas por suas palavras. — Nunca acreditaria que isso fosse possível. Conheço os inúmeros padrões de conduta dos exemplares terranos, mas nem mesmo nos livros mais avançados li qualquer coisa sobre a expedição de uma mensagem de socorro cuja resposta consiste no envio de um comando.

Olharam-se. Cliff espalmou as mãos, num gesto de perplexidade. Rolou até ficar deitado de costas e levantou-se com um movimento rápido. Suava por todo o corpo.

— Desisto! — disse em tom abalado.

— Um astronauta que bate em retirada? — perguntou Ar Iene. Não havia a menor ironia em sua voz. — Não acredito que tenha de assistir a uma coisa dessas.

Encostou-se ao seu corpo...

Cliff sabia que possivelmente as lentes da nave estavam dirigidas sobre eles, pois Helga era uma vigilante incorruptível, que se preocupava com todas as equipes. Mas isso pouco lhe importava. Sentia-se esgotado, sem forças. Haviam tentado tudo quanto era possível; e não encontraram nada que pudesse ajudá-los a remover o perigo que ameaçava Terra.

— Deixemos isto aqui mesmo e vamos até a nave — disse, soltando os ombros de Arlene e levantando-se num gesto resoluto. — É possível que o ambiente refrigerado ajude. Uma xícara de café também não faz mal a ninguém.

— Sinto a necessidade de me colocar embaixo do chuveiro — disse a moça. — Vamos andando.

Caminharam em direção à nave pela trilha pisada que passava pelo grupo de rochas, junto às raízes da trepadeira e à coberta sobre a qual se encontravam as telas e os instrumentos óticos. Atingiram o elevador, que estava aberto. No momento em que pretendiam entrar, a voz de Charger os chamou.

— Encontraram alguma coisa?

Cliff encostou-se ao metal que ficava na sombra da nave e por isso não estava muito aquecido e respondeu.

— Não; e vocês?

Charger e Hasso vinham do lado oposto e entraram no elevador.

— Nada, além de algumas vespas que até chegam a ser um insulto de tão normais que são... E um calor daqueles!

Charger passou as mãos pela testa e cocou a cabeça um tanto calva. Os quatro fitaram-se.

— Dá vontade de chorar. Não sabemos mais o que fazer. Não sabemos mesmo, comandante!

— Não gosto de confessar isto, mas o fato é que até eu fracassei — disse Cliff no momento em que o elevador parou. — Já posso imaginar o rosto de meu amigo Wamsler. E o pior é que estará com a razão quando começar a esbravejar.

— Não se preocupe, coronel — disse Arlene em tom tranqüilizador. — Isso não depende do senhor nem de nós, mas das circunstâncias.

Subiram à sala de comando sem dizer uma palavra.

Atan e Mario já se encontravam presentes, e Helga estava executando as funções de cozinheira de bordo. Cliff atirou-se na poltrona do piloto, levantou as pernas e ouviu Arlene relatar as observações que haviam feito.

— ...por causa de uma única vespa ferida vieram dez outras que ouviram os sinais emitidos pela mesma e a carregaram.

Ouviram-se alguns murmúrios de espanto. Cliff agradeceu com um gesto e tirou o copo e a xícara que se encontravam na bandeja que Helga lhe estendia em silêncio. Sorveu a bebida alcoólica. Nem se deu conta de que estava bebendo Archer's Tears. Depois tomou o café quente e adoçado.

— ...por causa de uma vespa ferida vieram dez outras...

Dez outras... dez!

Cliff colocou a xícara cautelosamente sobre a tela central que retratava a imagem da natureza e recostou-se na poltrona. Respirou profundamente por três vezes e um sorriso largo espalhou-se por seu rosto.

— Charger! — disse em voz alta.

O entomólogo barbudo colocou os óculos e virou-se abruptamente; parecia assustado.

— O que houve? — perguntou. — Será que alguém disse algo que não deveria ter dito?

— Absolutamente — respondeu Cliff. — Apenas tive uma idéia. Pode parecer absurda e fantástica, mas acho que vai funcionar. Ainda penso que os astronautas não são de se desprezar.

— Principalmente certos exemplares. Conte logo comandante — disse Arlene.

Cliff sacudiu a cabeça.

— Não. Ouçam. Vou fazer algumas perguntas aos cientistas que se encontram a bordo. Hasso e Mario, seria possível construir um aparelho capaz de registrar ondas sonoras de 190 mil hertz, ou adaptar para esse fim um dos aparelhos existentes? A gravação deve ser muito exata.

Mario não hesitou em dar resposta afirmativa.

— Basta pegar um dos nossos gravadores e colocar outro conjunto receptor. Os microfones direcionais não nos faltam; além de tudo, encontram-se entre o equipamento de nossos amigos.

Apontou para Charger, que confirmou com um gesto vigoroso.

— Pretende gravar os sinais emitidos pelos insetos, coronel? — perguntou Charger, e mordeu os lábios.

Mais uma vez, Cliff sorriu e sacudiu a cabeça.

— Não é isso.

— Ora essa! — disse Charger num tom que quase chegava a ser de admiração. — O senhor realmente sabe revestir as coisas mais simples de uma dramaticidade que as transforma em peças de teatro. Quais são suas intenções?

Cliff dirigiu-se a Mario.

— Ainda seria possível irradiar a mesma freqüência por um dos nossos transmissores?

— Seria perfeitamente possível — disse Mario, piscando para Hasso. — Basta montar as peças de um transmissor de emergência. Este transmissor destina-se às duas Lancets. Com isso, poderemos captar os sinais e retransmiti-los com uma potência maior.

Arlene soltou uma gargalhada.

— O senhor custa a entender, Charger — disse em voz alta. — Cliff... Cliff McLane pretende gravar os sinais emitidos por uma vespa ferida, a fim de atrair as outras. Já imaginou o que poderá acontecer quando esta nave expedir o mesmo sinal como se fosse uma vespa superdimensionada?

Charger já havia compreendido no momento em que Arlene começara a falar. Também sorriu e bateu com o punho no bíceps de Mario de Monti; tratava-se de um gesto de camaradagem.

— Todas as chlorion ichneumoneum do planeta Jackhammer vão se reunir aqui para tentar levar-nos a um dos seus ninhos. Um viva para o comandante McLane!

Cliff retificou em tom seco:

— Basta dizer comandante.

Voltou a ser o velho Cliff McLane, que sua tripulação conhecia desde os dias das grandes missões já cumpridas. Era frio e tinha um raciocínio rápido e preciso. Transmitiu uma série de instruções.

— Antes de tudo, vamos tomar mais uma em homenagem à idéia. Depois disso Mario e Hasso começarão a construir um gravador portátil. Arlene e Charger sairão para trazer os instrumentos e pegar algumas vespas. Helga tirará a louça, e Atan e eu iremos buscar os equipamentos dos outros dois grupos. Combinado?

— Trabalharemos em tempo recorde — asseveraram Mario e Hasso.

— E nós correremos a toda, comandante — concluiu Charger.

Arlene lançou mais um olhar impregnado de respeito e de admiração infinita para Cliff e desceu pelo elevador em companhia de Charger.

Subitamente viram a situação de forma mais otimista.

 

Num recipiente aberto, uma vespa estava deitada de costas. Um bastão de vidro fino e comprido, que se encontrava numa das mãos de Arlene, comprimia o inseto cautelosamente contra o chão. O microfone direcional do gravador estava preso a um suporte e apontava para o grande cubo de material transparente, no qual havia minúsculos buracos. O gravador encontrava-se sobre uma mesa pequena, e um cabo fino e branco vinha da nave.

— Tudo preparado?

Cliff McLane estava de pé junto a Arlene e olhou para dentro do recipiente. O inseto movia lentamente as pernas e expeliu o ferrão trêmulo. Mario colocou o dedo sobre a tecla de entrada do gravador.

— Acho que podemos começar — murmurou. Sua voz projetou curvas sobre o oscilógrafo.

— Façam o favor — disse Cliff. Arlene levantou o bastão de vidro e procurou virar o inseto. A vespa tentou agarrar-se ao mesmo, mas suas pernas escorregaram. Arlene empurrou a extremidade do bastão para baixo do corpo da vespa e deu-lhe uma ligeira pancada; o inseto girou no ar e pôs-se de pé. Moveu-se lentamente e brincou com as antenas. O bastão foi retirado do recipiente e os participantes da operação recuaram alguns metros.

— Ainda tenho de acostumar-me à idéia de que as vespas deste planeta só costumam picar quando alguém as irrita.

Cliff fez um gesto afirmativo. As asas, que Charger havia separado com o escalpelo, só tinham um centímetro. O inseto não poderia voar mais.

— É agora! — gritou Helga. — Está emitindo sinais!

Mario tirou o dedo de cima da tecla. Demorou cerca de dois minutos até que a vespa suspendesse os "gritos" de socorro.

— Agora só resta esperar — disse Charger.

Logo ouviram o zumbido de algumas vespas vindas da mesma direção da qual viera a coluna de socorro de três horas antes. Dentro de poucos segundos, as vespas passaram a esvoaçar em torno do recipiente. O fato de encontrarem um objeto não pertencente à paisagem parecia irritá-las. Helga cochichou:

— Como será que as vespas emitem o ultra-som?

Charger falou tão próximo ao seu ouvido que lhe fazia cócegas:

— Passam as pernas por uma lâmina de córnea dotada de saliências. É como se uma serra fosse arrastada por cima de uma peça de metal flexível. O processo é tão rápido que via de regra nem se vê o movimento.

Helga enfiou um dedo no ouvido.

— Compreendi — disse. — Muito obrigada.

Neste meio tempo, os insetos já haviam "apalpado" os objetos. Mais uma vez, dez dos insetos levantaram vôo e descreveram círculos em torno da abertura do recipiente. As seis restantes subiram como se fossem uma formação de helicópteros em miniatura e carregaram a vespa incapacitada. O cortejo desapareceu ao longe.

— É incrível! — disse Hasso, desligando o gravador. — Leve isso até a nave.

O cabo já havia sido colocado.

— E nós colocaremos o emissor aqui — disse Atan, que correu para a nave juntamente com Mario.

Dali a pouco, os dois voltaram com o emissor montado ali mesmo. Outro cabo foi colocado e os contatos foram completados às pressas.

— Você e eu retiraremos o material, Arlene — disse Charger.

Dali a quinze minutos o transmissor, protegido por um balão de plástico cheio de ar pressurizado, encontrava-se junto à nave. O material translúcido do balão permitia reconhecer os contornos do aparelho. O controle de som e os cabos condutores de energia desapareciam no interior da nave. Estavam ligados a um contato especial colocado junto à comporta do elevador central. Os sete terranos achavam-se reunidos na sala de comando, onde haviam ligado todas as telas e sistemas que mostravam a imagem das adjacências.

— Deixe correr a fita.

— Psiu! — fez Atan e soltou uma risadinha.

A mais atípica das mensagens radiofônicas jamais transmitida pelo emissor de uma nave saiu da antena. Era inaudível, mas os instrumentos a tornavam visível. A transmissão durou dois minutos. Helga Legrelle fez retroceder a fita com uma velocidade tremenda e mais uma vez reproduziu o pedido de socorro da vespa ferida. Dali a quinhentos segundos:

— Meu Deus! — disse Arlene fora de si. — Não é possível!

As vespas vinham de todos os lados. Aproximavam-se às centenas, aos milhares, sempre em grupos de dez. Voavam baixo e encontraram a fonte que emitia o som. Batiam contra o balão de plástico e ficavam penduradas que nem as uvas num cacho.

— São dezenas de milhares — disse Charger.

Entre a nave e o emissor, uma multidão de vespas ondulava de um lado para o outro. Os animais formavam vários desenhos. Eram véus, nuvens e faixas, que se mantinham num movimento constante. Em torno do balão, que já não podia ser visto, reuniu-se uma gigantesca esfera feita de insetos. E outros continuavam a chegar, vindos de todas as direções. Lá fora o zumbido dos insetos, que se reforçava mutuamente, devia ter atingido uma intensidade capaz de derrubar um homem.

— Aí está a prova — disse Charger, atravessou a sala de comando e parou à frente de Cliff. Estendeu-lhe a mão. — Comandante, meus parabéns! O senhor teve classe.

— Faço votos de que depois de concluída a operação o senhor e todos nós tenhamos motivo para felicitar-nos. Ainda não terminamos.

Cliff fez um gesto ligeiro. Helga levantou a mão.

— Quer que entre em contato com as F.R.E.T.?

Cliff exibiu o sorriso mais encantador que guardara na memória.

— Helga, minha filha — disse em tom cativante — se você tiver um pouquinho de amor por mim, mesmo que seja apenas um amor fraternal, faça o favor de conseguir uma comunicação audiovisual com Wamsler através das diversas estações retransmissoras. Está certo?

— Farei o possível — disse Helga e começou a manipular suas teclas e chaves.

Dali a quinze minutos, a comunicação foi completada. Cliff estava sentado na poltrona, e atrás dele os tripulantes e os dois cientistas mantinham-se de pé. O rosto de Wamsler surgiu numa tela retangular que ficava bem à frente de Cliff. A enorme distância e o fato de que a mensagem foi transmitida pelo hiper-rádio espacial distorceram a imagem e fizeram com que o som não fosse perfeito.

— Aqui fala McLane — disse Cliff. — Pode falar sem ser "espetado"?

Wamsler reagiu com um atraso adequado de dois segundos, provocado pelas diversas retransmissões efetuadas pelos satélites.

— Posso — disse. — Espero que tenha uma notícia positiva.

— Tenho — respondeu Cliff. — Decolarei assim que concluirmos nossa palestra. Tenho de pedir-lhe que cumpra meus desejos sem discutir. Precisamos de uma porção de coisas.

— O registro está funcionando — disse Wamsler. — Pode falar. Realmente conseguiu alguma coisa?

— Nós conseguimos, marechal, mas é possível que no último instante algo não dê certo. Pelos meus cálculos as chances são de noventa e cinco por cento.

— Isso é suficiente — disse Wamsler. — De que precisa?

Cliff começou sua enumeração.

— Antes de mais nada, preciso de oitenta comandantes de elite com oitenta naves modernas. Convoque-os. Dentro de oito dias deverão estar prontos para decolar. Ainda preciso de cento e sessenta emissores do tipo Lancet, que estejam em condições de irradiar numa freqüência de 190 mil hertz.

— Repito — disse Wamsler. — Um, nove, zero, ponto, zero, zero, zero.

— Esses emissores devem ser colocados em áreas abandonadas, em praias ou outros pontos onde não haja nada que possa ser destruído. Escolha oito áreas desertas situadas no interior ou nas imediações de cada parque natural para cada grupo de quatro naves. Todos os emissores devem ser supridos diretamente a partir da EA IV. Certamente serão destruídos no curso da operação. Além disso, arranje uma boa dose de presteza.

Wamsler sacudiu a cabeça, perplexo; parecia esgotado.

— Precisa de mais alguma coisa? — perguntou em voz alta.

Os alto-falantes, forçados em excesso, começaram a tinir.

— Não. Asseguro-lhe que não se trata de brincadeira; realmente precisamos de tudo isso. Assim que pousar, comparecerei à sua presença juntamente com o material coletado.

A comunicação foi interrompida. Cliff virou-se e deparou-se com o sorriso suave de Hasso Sigbjörnson.

— Comandante para todos os postos — disse Cliff. — Aguardaremos até que os insetos se afastem e depois decolaremos. Combinado?

"Não houve qualquer objeção. Por que será que Cliff aludiu a uma chance de noventa e cinco por cento?", pensou Arlene. Logo se lembrou, mas concluiu que esse ponto não representava uma dificuldade insuperável.

Dali a cinqüenta minutos, a Orion VIII estava correndo pelo espaço, em direção a Terra, o planeta silencioso.

 

SIR Arthur passou a mão pelo cabelo grisalho e disse, depois de olhar cautelosamente em torno:

— Ficamos-lhe muito gratos, comandante. Quando poderá decolar de novo?

Cliff viu os rostos cansados dos tripulantes, olhou ligeiramente para Arlene e Charger, e respondeu:

— Dentro de uma hora, desde que tenha sido providenciado tudo que solicitamos.

Kublai-Krim levantou-se, contornou a mesa de reuniões e ligou uma tela visual.

Nela, surgiu uma imagem de dois metros por quatro do planeta Terra em projeção Mercator. Os lugares em que ficavam os parques naturais recém-inaugurados estavam assinalados em verde.

— São vinte parques — disse Kublai-Krim. — Quatro naves do modelo mais recente estão esperando há duas horas em cada um desses parques.

Charger levantou a mão.

— Poderia fazer o favor de ligar a ampliação da Austrália? — perguntou em voz baixa.

Kublai-Krim concordou com um gesto. Subitamente as pessoas reunidas na sala viram a paisagem do continente. De Groote Eylandt até o extremo sul estava reproduzido cada rio, cada montanha. A imagem baseava-se numa série fotográfica e correspondia à situação mais recente. As plantas estavam trancadas nos cofres secretos do governo terrano. Os espaços marrons ou amarelos da paisagem iam sendo conquistados lenta mas seguramente pelo verde. No centro do quadro, ficava o Parque de Camooweal. Era uma área gigantesca, quase perfeitamente quadrangular.

— Quais são as posições?

A Orion voara com a potência máxima das máquinas. Cliff realizara os saltos de transição sem a menor demora. Felizmente nenhuma máquina falhara. Hasso Sigbjörnson passara quase todo o tempo de vôo na sala de máquinas, examinando os instrumentos a fim de eliminar qualquer fonte de perigo assim que surgisse. Uma segunda palestra radiofônica, mais detalhada, foi mantida logo que a nave se aproximou de Terra, ou seja, quando penetrou no segundo setor de distanciamento. Quatro pontos iluminaram-se no quadro.

— Aqui estão as naves, amigos — disse Kublai-Krim.

Ele, Sir Arthur e Wamsler demonstravam uma amabilidade extraordinária, pois sabiam que precisavam de McLane mais do que nunca. Além disso, até então havia conduzido toda a operação com aprovação das autoridades e não infrigira qualquer norma. Além disso ainda havia o medo de não dominar a praga das vespas. Outros pontos iluminaram-se em cores diferentes. Charger levantou-se e foi até a tela. Finalmente fez um gesto de concordância.

— As áreas vazias foram bem escolhidas — disse. — Aqui não vive ninguém; só existem pântanos salgados e secos.

Helga fez a anotação num pequeno bloco. A nave pousara há meia hora, e seus sete ocupantes foram recebidos na Base 104. Relataram sobre a maneira pela qual tiveram conhecimento da possibilidade que se oferecia e sobre o que pretendiam fazer nas próximas horas. Lydia van Dyke, Wamsler e Kublai-Krim haviam feito um trabalho em conjunto, preparando tudo aquilo que Cliff solicitara há oito dias.

— Charger, voe o mais depressa possível para o laboratório situado no parque. Peça que alguém lhe dê uma máquina rápida. É muito importante. E faça o favor de ficar sempre nas proximidades do aparelho de rádio. Já sabe por quê.

— Compreendi — disse Charger. Colocou a mão sobre o ombro de Arlene, murmurou:

— Faça um trabalho bem feito, minha filha! — cumprimentou ligeiramente, e retirou-se.

— Não poderia dizer-nos o que pretende fazer? — perguntou Wamsler.

Ao que parecia, não se arriscava a usar um tom mais áspero para com Cliff. O que estava em jogo era muito importante, e o comandante era o dono da idéia de salvação. Além disso, Wamsler estava tão cansado que preferia não discutir.

— Não — disse Cliff. — Sabe perfeitamente que usarei outras naves na tentativa de exterminar as vespas. A brincadeira ainda lhe dará muito serviço, pois só poderei destruir os insetos capazes de voar; e isso mesmo se a sorte nos favorecer.

— Faça o que quiser — disse Wamsler. — Mas não venha me dizer que todo o trabalho foi em vão — concluiu Wamsler com rispidez.

Cliff levantou-se e fez um gesto afirmativo.

— Empenharei toda minha capacidade — prometeu. — Vamos decolar.

Wamsler conseguiu realizar uma atitude monumental. Apertou cordialmente a mão de Cliff e bateu no ombro do mesmo com a pose de tio rico e benevolente.

O último vôo começou. Cliff Allistair McLane, Helga Legrelle, Arlene, Hasso Sigbjörnson — todos tentariam destruir as vespas por meio de um conjunto de manipulações de controles bem dosadas com ordens precisas e fixadas no tempo. Atravessaram a ante-sala sem que qualquer inseto os atacasse. Ao que parecia, todas as galerias e cavernas da Base 104 haviam sido vedadas.

O torvelinho começou a girar, e os enormes campos energéticos abriram-se. A Orion VIII subiu verticalmente ao longo das paredes de água verde-escura e, ao atingir a altura de cem metros acima do Golfo de Carpentaria, tomou a direção norte. O disco foi correndo, cada vez mais veloz, e o estouro provocado pela ruptura da barreira do som fez com que as vidraças estremecessem nas ilhas e nas áreas litorâneas.

Alguns minutos depois: os tripulantes estavam sentados em seus lugares. À frente do dispositivo de introdução de dados, uma poltrona estava vazia, tal qual a do astro-navegador. Cliff não precisava desses tripulantes. Hasso Sigbjörnson encontrava-se na câmara de mira.

"Primeira fase", pensou Cliff.

— Cavalheiros — disse em voz bem audível. — Aqui fala McLane, comandante da Orion VIII. Já conhecem o objetivo final da operação. Queremos destruir as vespas. Dentro de poucos minutos, o comando preciso será enviado oportunamente, os cento e sessenta emissores expedirão uma transmissão de ultra-som. Nos locais em que foram instalados os emissores, um número enorme de vespas se reunirá. Caberá aos senhores destruí-las. Overkill. Tentem não danificar os emissores. As respectivas instalações estão assinaladas por um balão amarelo que as envolve e protege. Caso seja necessário, o emissor poderá ser destruído. Entendido? Solicito confirmação.

— Entendido... entendido...

Cliff acompanhou a contagem. Todas as unidades responderam.

A segunda fase teve início.

— Helga. Entre em contato com a EA IV. O funcionário de plantão.

— Um instante. Pronto; o microfone está livre.

A operadora de rádio também ligou a tela. Arlene, que estava sentada perto de Cliff, sentiu-se impressionada pelo nível de cooperação. Acontece que subestimava os resultados de uma formação prolongada resultante de muitas experiências conjuntas da tripulação.

— Aqui fala a Orion VIII, que chefia a operação — disse McLane e cumprimentou seu interlocutor. — Logo após o presente contato deixaremos correr uma fita. O conteúdo dessa fita deve ser transmitido imediatamente para os emissores. Antes disso, estes deverão ser ligados e regulados para o volume máximo. Está preparado?

Um sorriso ligeiro surgiu no rosto do homem, que usava fones e microfone de laringe.

— Há muito tempo. Pode começar, coronel.

— A fita está correndo — anunciou Helga.

Cliff levantou a mão.

A aparelhagem de rádio da nave tangeu o grito de socorro de uma vespa ferida do planeta Jackhammer para a EA IV. Dali os impulsos foram irradiados instantaneamente para os cento e sessenta emissores. Estes começaram a funcionar a plena potência, soltando uma saraivada de "gritos de socorro" sobre as matas, sobre as savanas queimadas pelo sol e as faixas negras situadas junto às massas aquáticas.

Cliff estacionou a Orion junto à nave Fomalhaut. Embaixo dos dois discos, o solo estava coberto de neblina, que começava a dissolver-se. Nessa área uma vegetação de débeis gramíneas alternava-se com um deserto cor de tijolo, onde se via perfeitamente o balão que abrigava o emissor correspondente ao tipo Lancet. Ao lado dele, encontrava-se a respectiva célula energética. Um receptor especial mostrou às pessoas que aguardavam ansiosamente no interior da Orion que os sinais estavam sendo irradiados perfeitamente, sem a menor distorção. Eram cinco horas da manhã na Austrália Central.

Arlene olhou para o relógio de bordo.

— As primeiras vespas já deviam aparecer — disse. — Já esperamos bastante.

Cliff olhou primeiro para ela, depois para Hasso, que se encontrava de sobreaviso na câmara do Overkill, visando toda a área em torno do balão. Os projetores situados embaixo da nave apontavam para o terreno.

— Parece que as vespas não querem aparecer — disse Hasso em tom tranqüilo. — Será que houve algum erro de transmissão?

— Não. Conferi tudo. Para fins de controle mandei rodar uma duplicata da fita. Os emissores ali embaixo irradiaram exatamente aquilo que gravamos em Jackhammer — disse Helga em voz alta.

— Estamos chamando a Orion. Onde estão as vespas, coronel?

Uma vez que as comunicações entre um total de oitenta e uma naves permaneciam intactas, várias vozes começaram a falar no mesmo canal.

— Silêncio! — gritou alguém.

— A transmissão dos sinais foi perfeita. Onde estão as chlorion?

— Alô, coronel McLane. Queira responder. Estamos esperando.

— Que porcaria!

Cliff olhou para Arlene e deu de ombros. Quinze minutos já se haviam passado desde que foram irradiados os primeiros sinais, e a essa hora milhões de vespas gigantes deviam estar esvoaçando em torno dos emissores. McLane respirou profundamente, pegou o microfone e disse em voz alta:

— Aqui fala a Orion VIII. Foi uma pane. Peço que continuem a esperar. Dentro de alguns minutos, terei aquilo de que precisamos.

— Precisamos de vespas!

— E de um pouco de paciência — disse Cliff. — Peço-lhes que não usem seus transmissores até que eu volte a chamar. Isto é muito importante.

Cliff girou a poltrona.

— Rápido, Helga. Faça uma ligação com o laboratório do Parque de Camooweal. Quero falar com Charger.

Helga sacudiu a cabeça e perguntou:

— Antes de mais nada, quero saber por que a operação falhou até aqui. Você permanece calado e quer que nós adivinhemos o que se passa no seu juízo incrivelmente sofisticado. Fale logo!

Cliff tamborilou com os dedos sobre a tela.

— Pois não! — disse.

Pegou a alavanca de pilotagem manual. A Orion deu um salto e disparou para o norte. Cliff aumentou a velocidade e a altitude. Mantinha os olhos presos na paisagem sobrevoada. Foram penetrando no Parque de Camooweal e viram as raríssimas ruas largas, as coberturas abobadadas do túnel onde corriam os trens expressos e os largos caminhos cobertos de areia. Tudo isso deslizava vertiginosamente embaixo da nave.

— É a probabilidade de cinco por cento a que aludi. Captamos bem direitinho a mensagem de uma vespa ferida e fizemos uma reprodução impecável da mesma. O que pretendíamos fazer funcionou...

— ...mas em Jackhammer! — opôs Helga.

— Dali se conclui — prosseguiu Arlene em tom sério — que as ondas sonoras das vespas que se encontram em Terra e que passaram por um processo de mutação não são as mesmas. Todavia, não há dúvida de que ainda assim conseguiremos destruí-las.

— Será que Charger poderá ajudar-nos? — perguntou Helga com um sorriso.

— Isso mesmo — disse Arlene. — Seu amigo tentará. Talvez até já captou o pedido de socorro de uma vespa terrana submetida ao processo de mutação e o gravou em fita. É para lá que estamos voando.

— E com isso voamos em direção à chance que será com toda certeza a última — concluiu Cliff.

Helga completou a ligação. Quem respondeu ao chamado foi Chan.

— Coronel McLane — disse com um gesto de cumprimento. — Estou falando na qualidade de substituto de meu companheiro Charger, que deverá regressar a qualquer momento. Já ouvimos falar no fracasso, inclusive por via oficial, ou seja, através da freqüência da frota.

Cliff fez um gesto para o homem que aparecia na tela.

— O raio vetor dezessete corresponde ao que pedimos?

— Corresponde. Pousem junto aos laboratórios. Estamos cercados de vespas. Aguarde a chegada de um homem em traje protetor. Ou então saiam nos seus trajes espaciais.

Cliff correu velozmente, seguindo o raio vetor em direção aos laboratórios, sem desviar-se um metro sequer de sua rota direta. Olhando de lado para o indicador de distância acoplado com um registro de energia de transmissão, percebeu que se encontravam nas imediações da estação situada na mata. Os alto-falantes emitiram um estalido.

— Ei, Cliff! Consegui.

Charger surgiu na tela, atrás de Chan. Abanava uma fita cassete e sorria.

— Logo após o pouso saí por aí e repeti o mesmo processo realizado em Jackhammer. Os resultados estão aqui. Posso garantir que por duas vezes veio um grupo de vinte vespas para salvar um exemplar. E isso dentro de quatro minutos.

Cliff sentiu uma tremenda carga de medo e responsabilidade.

— Pousarei dentro de dez segundos — disse, aproximando a nave-disco dos edifícios.

Viu o heliporto e parou a Orion. A sombra projetada pelo disco estava imóvel, um pouco adiante da nave. A placa de apoio do elevador central tocaria o solo na periferia do campo de pouso.

— Mande um homem num traje protetor — ordenou Cliff. Hasso respondeu pelo alto-falante e apareceu na tela. Sua voz parecia rouca e cansada.

— Estou sofrendo um ataque de claustrofobia na solidão desta cabine de mira — disse.

Cliff sorriu e levantou-se. Os cintos ficaram pendurados de cada lado da poltrona.

— Daqui a quinze minutos, você terá mais uma oportunidade de dar prova de sua capacidade, caro Hasso. Procure dormir um pouco.

Hasso riu, e Cliff pegou o pequeno elevador e saiu da sala de comando. Passou velozmente pelo corredor circular e tomou o elevador central. Acionou o botão. A escada hidráulica aproximou-se devagar da superfície e apoiou-se na mesma. Comprimiu simultaneamente o botão abre e o botão fecha. A escotilha da comporta abriu-se ligeiramente, permaneceu um instante na mesma posição e voltou a fechar-se.

Cliff vira o suficiente. Do edifício vinha correndo um homem com a estranha jaqueta refrigerada e uma máscara de tela de arame em torno da cabeça. Segurava a preciosa fita e corria diretamente para o elevador. Algumas vespas esvoaçaram em torno de sua cabeça. McLane procurou avaliar o tempo do percurso e comprimiu o botão. A escotilha da comporta abriu-se lentamente. O mensageiro encontrava-se bem à frente da mesma. Cliff estendeu a mão e pôs um dos dedos da outra nos lábios. Segurou a fita com o pedido de "socorro" de uma vespa assassina terrana. O homem recuou alguns passos, sempre rodeado pelas vespas. Respirava com dificuldade. Quando a abertura da porta só era de cinqüenta centímetros, Cliff disse em voz alta:

— Obrigado, companheiro.

As vespas precipitaram-se imediatamente em sua direção. Quando o elevador já havia entrado em movimento, Cliff ouviu o som produzido por oito ou nove insetos que batiam contra o metal.

— Muito bem! — disse Cliff. — Vamos à segunda batalha.

Chegou à sala de comando e deixou-se cair pesadamente no molejo da poltrona.

— Vamos voltar para o limite sul do Parque de Camooweal — disse e segurou a alavanca de comando.

Durante o vôo, Cliff transmitiu os impulsos do segundo volume para a EA IV. A moça de plantão na salinha escura da estação voltou a ativar os 160 emissores e deixou correr ininterruptamente a fita. Em vinte regiões e em 160 posições situadas nessas áreas, partes das quais se localizava no interior dos parques naturais, os emissores Lancet retransmitiam os impulsos. O ultra-som espalhou-se. As vibrações de ondas extremamente curtas, emitidas numa potência bastante elevada, espalhavam-se cada vez mais.

As respectivas áreas de influência, delimitadas num mapa, formavam círculos geometricamente perfeitos. Os círculos sobrepunham-se, para que todos os insetos fossem atingidos pelas vibrações. Praticamente todas as vespas que possuíam a capacidade de voar captaram o pedido de socorro de uma "irmã" ferida. Os instintos e padrões de conduta gravados num condicionamento milenar, e que já formavam parte da conduta inconsciente delas, começaram a entrar em ação. As vespas puseram-se a caminho da fonte de ultra-som mais próxima, a fim de socorrer o ser de sua espécie.

Formavam grupos de dez. Muitos grupos. Centenas, milhares, milhões de vespas saíram voando. Abandonaram suas vítimas, retiraram-se das áreas produtoras de sons e saíram em disparada. Percorriam mais de cento e cinqüenta quilômetros por hora e seguiam pela rota mais curta.

Concentraram-se em cento e sessenta pontos. Sempre em torno dos balões amarelos. Vinte minutos depois de emitido o primeiro sinal, as vespas chlorion continuavam a chegar de todas as direções. As duas naves, a Orion VIII e a Fomalhaut, esperavam. Agora tinham tempo. Tempo de sobra para ver como os milhões de insetos cobriam a superfície do balão amarelo. Os "pedidos de socorro" continuavam a ser emitidos. E um número cada vez maior de vespas aproximava-se dos balões. Os insetos ficaram extremamente nervosos, pois não encontravam nada. Voavam de um lado para o outro, subiam e desciam nesse trecho do deserto salgado entrecortado em fendas e blocos. O sol transformava o sal e a pedra arenosa em pedregulho abrasador.

Os movimentos de um número imenso de insetos passaram a coordenar-se. Formaram uma espécie de mangueira que começou a girar como um pé-de-vento. A parte mais larga ficava embaixo, dois metros acima do solo. A "mangueira", cujo diâmetro diminuía à medida que aumentava a altitude, balançava de um lado para outro e circulava lentamente em torno do balão, ou melhor, do lugar em que ficava o mesmo, pois era impossível vê-lo.

— Estou chamando o comandante da Fomalhaut — disse Cliff. — Vamos decolar. Destruiremos os insetos que se encontram no ar. O senhor se encarregará de destruir os que escaparem à nossa ação. Peço-lhe que poupe o transmissor e, principalmente, nossa nave.

Cliff olhou para Hasso e fez um sinal resoluto com a cabeça. Hasso deu o sinal de entendido.

— Aqui comando de operações da nave Orion — disse Cliff, falando com a boca próxima do microfone. — Vamos começar. Conforme devem ter notado, existem insetos de sobra. Peço-lhe que destrua apenas os animais que se encontram no ar. Ainda precisaremos do emissor.

O tempo de silêncio dos rádios havia chegado ao fim. Os comandantes das naves comentavam sobre as impressões que surgiam diante deles. Todas as naves-disco, que operavam na escuridão, viam os insetos nas telas infravermelhas.

— São massas fantásticas!

— Devem ser milhões.

— E outros insetos continuam a chegar de todas as direções, em quantidades surpreendentes!

— Vamos partir para o ataque!

— Cuidado! Não tenha tanta pressa. Cliff sorriu. A Orion saiu devagar, subiu a trezentos metros e deslocou-se para o sul. Na gigantesca tela central, Cliff viu os turbilhões de insetos que se agitavam abaixo da nave. Era um quadro que dificilmente poderia ser mais ameaçador.

— Hasso!

— Tudo preparado, Cliff.

— Acione o Overkill!

Hasso fez pontaria e ligou o projetor por três segundos. Um campo esférico de raios destruidores dirigiu-se ao solo e destruiu vários milhões de insetos. A intensidade era tremenda: uma cratera de duzentos metros de profundidade surgiu no terreno ressequido. O balão encontrava-se a trezentos metros da borda da cratera.

— Acertou em cheio, Orion! — gritou o comandante da outra nave.

Os enxames e os indivíduos isolados continuavam a chegar de todas as direções. Os insetos atingidos pelo raio esférico do Overkill simplesmente desapareceram.

— Hasso, a aproximação seguinte será realizada próximo ao solo, com o eixo horizontal inclinado — disse Cliff.

— Não — objetou o engenheiro da nave. — Desta vez, a boa idéia é minha. Faça 0 favor de manter a posição atual, que é a mais. favorável.

— Está certo, Hasso.

A outra nave-disco prateada entrou em movimento. O comandante optou pela posição sugerida por Cliff. Colocou a nave quase em posição vertical e disparou o raio do Overkill quase na horizontal. O artilheiro era um mestre na sua arte. Atingiu insetos que se encontravam a apenas vinte metros do balão. A nave descreveu uma curva fechada, deslocando-se muito devagar e "limpou" as áreas adjacentes do balão amarelo.

— Excelente! — comentou Cliff.

Em poucos segundos, milhões de vespas foram destruídas nesse local. Eram muito mais que aquelas que os funcionários do parque, os inúmeros particulares e os funcionários do SSG conseguiram aniquilar no espaço de vários dias.

— Atenção. Comando da operação Orion dirigindo-se a todos! — disse Cliff.

O murmúrio das conversas, transmitido pelos alto-falantes, cessou repentinamente.

— Aqui fala McLane — disse Cliff. — Temos um total de oitenta e uma naves.

Cada nave terá de encarregar-se de dois transmissores. Peço-lhes que se dirijam ao segundo dos lugares que lhes foram designados. Façam o possível para não deixar escapar um único inseto. Desligo e passo a dedicar-me às minhas tarefas. Felicidades para todos nós!

— Entendido. Obrigado — foram repetindo os comandantes.

— Estou chamando a Fomalhaut — disse Cliff.

— Pronto!

— Ocuparei a segunda posição, que caberia aos senhores. Ficarei por lá enquanto os insetos continuarem a chegar. Se tiver alguma dúvida, não hesite em chamar-me pelo canal sessenta e um.

— Entendido, coronel McLane. Fim da mensagem.

Em cento e sessenta pontos diferentes, espalhados pelas zonas temperadas e pela área equatorial do planeta, desenvolvia-se uma luta quase totalmente silenciosa. Havia apenas o terrível zumbido que assinalara o começo da batalha, e que se tornava cada vez mais débil.

Dali a algumas horas, só havia uma única vespa, cujas asas haviam sido estraçalhadas pelos ferrões das companheiras, em meio à confusão que se formara em torno dos balões.

Zumbia e esfregava as pernas contra o tronco.

Emitia mensagens em vibrações ultra-rápidas. Mas não havia mais nenhuma vespa que pudesse levá-la à proteção do ninho.

 

Caminhou com os pés descalços sobre o grosso tapete branco. Ao chegar à porta, refletiu ligeiramente. Abriu. Sorriu para Cliff McLane que, segurando uma embalagem elegante, encontrava-se à frente da porta.

— Suponho que Arlene e você tenham trocado o último beijo de despedida à sombra da Orion VIII, depois que esta pousou. Será que estou enganada?

Cliff entrou.

— Quer dizer que você sabe? — perguntou, embora devesse ter adivinhado.

Tamara deixou que ele a beijasse na face.

— Afinal, trabalho no SSG. Ou você acha que sou funcionária do Ministério do Florestamento? — perguntou Tamara em tom agressivo e fechou a porta.

Cliff entrou na sala impregnada de um agradável frescor e tomada pelos sons de "Asas Mortais" de um compositor moderno. Estava escuro, mas nenhuma das luzes da sala fora acesa.

— É claro que você trabalha para o Serviço de Segurança Galático. Antes que me expulse de vez de sua residência, queria entregar-lhe um presentinho.

Cliff foi sentando na poltrona vazia. Tamara parou à sua frente. Sorria.

— Está com a consciência pesada? — perguntou.

Um sorriso embaraçado surgiu no rosto de Cliff.

— Um astronauta nunca tem a consciência pesada — disse. — Tome, por favor.

Estendeu o pacote em sua direção. Tamara pegou-o. Seu sorriso tornou-se intenso e foi abrindo o embrulho muito devagar. Ao tomar conhecimento do conteúdo, seus olhos se arregalaram. Era um perfume incrivelmente caro, feito das flores de d’Itvia.

— Se a profundidade da afeição documentada através deste gesto corresponder à altura do preço... — disse Tamara com um ligeiro sorriso. Deixou a frase no ar.

— Posso considerar-me seu convidado, ou prefere que me retire? — perguntou Cliff.

Tamara ficou parada à sua frente. Colocou o precioso líquido sobre uma mesa e enlaçou o pescoço de Cliff com os braços.

— Evidentemente pertenço à classe de mulheres que podem conformar-se com uma constatação moderna — disse.

— Que constatação é essa?

— Trata-se da constatação de que os astronautas são um tipo especial de homens. Especialmente os homens audazes que se encontram entre os planetas, as estrelas e as entomólogas.

Cliff olhou para a janela bem aberta. Apesar de tudo, ainda esperava ouvir um zumbido.

— Você tem razão — disse.

— Além do mais não me arriscarei a perder a simpatia de um homem de quem Villa faz um conceito tão elevado.

Cliff quase chegou a assustar-se, de tão surpreso que ficou.

— Por que diz isso? — perguntou em tom de desconfiança.

— Villa tem um plano maluco. Procura encontrar um meio de fazer uma criação dos insetos sensíveis ao som para fins de policiamento. Pretende utilizá-los quando ocorrerem motins. Já imaginou o efeito dessa arma?

— Não preciso imaginar — disse Cliff em tom amargo. — E não consigo compreender mais o mundo. Trazemos as vespas, matamo-las, e depois vamos criá-las... É uma loucura!

Tamara Jagellovsk sacudiu a cabeça.

— Não é nenhuma loucura, mas um planejamento inteligente. Você não compreende, querido.

Cliff conformou-se. O que Tamara acabara de afirmar era verdade. E ele não compreendia mais nada. Fechou os olhos e recostou-se na poltrona estofada.

Ouviu um zumbido.

Não vinha da janela aberta, mas surgiu dentro de sua cabeça. A culpada era Tamara Jagellovsk.

                                                                                            Hans Kneifel

 

                      

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