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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Príncipe Caspian / C. S. Lewis
Príncipe Caspian / C. S. Lewis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA

Príncipe Caspian

 

            

 

A ILHA

Era uma vez quatro crianças – Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia – que se meteram numa aventura extraordinária, já contada num livro que se chama O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Ao abrirem a porta de um guarda-roupa encantado, viram-se num mundo totalmente diferente do nosso, e nesse mundo, um país chamado Nárnia, tornaram-se reis e rainhas. Durante a permanência deles em Nárnia acharam que tinham reinado anos e anos; mas, ao regressarem pela porta do guarda-roupa à Inglaterra, parecia que a aventura não tinha levado quase tempo algum. Pelo menos ninguém notara a sua ausência, e eles nunca contaram nada a ninguém, a não ser a um adulto muito sábio.

Tudo isso tinha acontecido havia um ano. Os quatro encontravam-se, no momento em que vamos iniciar esta história, sentados numa estação de trem, rodeados por pilhas de malas. Estavam de volta ao colégio. Tinham viajado juntos até aquela estação, que era um entroncamento; dentro de alguns minutos devia chegar o trem das meninas e, daí a meia hora, o trem dos meninos.

A primeira parte da viagem fora como se ainda fizesse parte das férias; mas, agora que se aproximavam as despedidas, todos sentiam que as férias tinham acabado e que começavam outra vez as preocupações do ano letivo. Reinava grande melancolia, e ninguém sabia o que dizer. Lúcia ia para um internato, pela primeira vez.

Era uma estação rural e vazia: além deles, não havia mais ninguém na plataforma. De repente, Lúcia deu um grito agudo e rápido, como se tivesse sido mordida por um marimbondo.

– O que foi, Lúcia? – perguntou Edmundo, mas logo parou soltando um ruído parecido com hã!

– Mas que coisa... – começou Pedro, que logo também interrompeu a frase, dizendo, em vez disso: – Pare, Susana! Para onde você está me puxando?

– Nem toquei em você! – respondeu Susana. – Tem alguém me puxando. Oh, oh, oh, pare com isso!

Todos notaram que os rostos dos outros tinham ficado muito pálidos.

– Senti a mesma coisa – declarou Edmundo, quase sem fôlego. – Parecia que alguém estava me arrastando. Um puxão horrível! Epa! Lá vem de novo!

– Também estou sentindo – gritou Lúcia. – Que coisa desagradável!

– Cuidado! – exclamou Edmundo. – Vamos ficar de mãos dadas. Tenho certeza que isso é magia.

– Isso mesmo, de mãos dadas – disse Susana. – Será que isso não vai parar?

Mais um instante, e a bagagem, a estação, tudo havia desaparecido, sem deixar um sinal. As quatro crianças, agarradas umas às outras, ofegantes, viram então que se encontravam num lugar cheio de árvores, tão cheio de árvores que mal havia espaço para se mexerem. Esfregaram os olhos e respiraram fundo. Lúcia indagou:

– Pedro, você acha possível que tenhamos voltado para Nárnia?

– Pode ser um lugar qualquer. Com estas árvores tão cerradas, não se vê um palmo adiante do nariz. Vamos ver se encontramos um lugar aberto, se é que existe isso por aqui.

Com certa dificuldade, e levando arranhões dos espinhos, conseguiram desembaraçar-se dos arbustos. E foi outra surpresa. Tudo se tornou mais brilhante. Após andarem alguns passos, encontraram-se à beira da mata, olhando de cima para uma praia arenosa. A distância de alguns metros, um mar incrivelmente sereno avançava sobre a areia em vagas tão minúsculas que quase não se ouvia nenhum som. Terra à vista não havia, nem nuvens no céu. O sol estava onde devia estar às dez horas da manhã, e o mar era de um azul deslumbrante.

Pararam, cheirando a maresia.

– Como é bom! — disse Pedro.

Daí a cinco minutos, estavam todos descalços, patinhando na água fria e transparente.

– Muito melhor do que estar dentro de um trem abafado, de volta ao latim, ao francês e à álgebra! – disse Edmundo. E durante algum tempo só se ouviu o barulho da água.

– De qualquer modo – disse então Susana – , suponho que tenhamos de fazer alguns planos. A fome não deve demorar.

– Temos os sanduíches que a mãe nos deu para a viagem – lembrou Edmundo. – Eu, pelo menos, estou com os meus.

– Eu, não – disse Lúcia. – Deixei os meus na maleta.

– Eu também – disse Susana.

– Os meus estão no bolso do casaco, ali na praia – declarou Pedro. – São assim dois almoços para quatro. Não é lá grande coisa.

– Neste momento – disse Lúcia – , quero mais beber água do que comer.

Todos estavam com sede, como é natural acontecer quando se brinca na água salgada, sob o sol ardente.

– É como se a gente tivesse sofrido um naufrágio – observou Edmundo. – Nos livros, sempre se encontra na ilha uma fonte de água fresca e cristalina. É melhor a gente procurá-la.

– Vai ser preciso voltar para aquela mata fechada? – perguntou Susana.

– De jeito nenhum – disse Pedro. – Se há fontes aqui, elas têm de vir para o mar; assim, se formos andando pela praia, deveremos achá-las.

Foram caminhando, primeiro sobre a areia úmida e mole, depois sobre a areia grossa que se agarra aos dedos dos pés. Edmundo e Lúcia queriam seguir descalços e deixar os sapatos ali, mas Susana advertiu-os de que isso não seria bom:

– Podemos não os encontrar depois, e talvez precisemos deles se ainda estivermos aqui ao anoitecer, quando começar a esfriar.

Então pararam e começaram a calçar as meias e os sapatos.

Depois de novamente calçados, iniciaram a caminhada ao longo da praia, com o mar à esquerda e a mata à direita. Fora uma ou outra gaivota, era um lugar de todo tranqüilo. A mata era tão densa e emaranhada que quase não se podia olhar para dentro dela, e nada lá dentro dava sinal de vida, nem um pássaro, nem sequer um inseto.

Conchas, algas e anêmonas, ou pequenos caranguejos nas poças das rochas, tudo isso é muito bonito; mas, quando se está com sede, fica-se logo cansado de tudo. Os quatro sentiam os pés pesados e quentes. Susana e Lúcia tinham as capas de chuva para carregar. Edmundo, um momento an­tes de ser apanhado pela magia, deixara o casaco num banco da estação; assim, revezava-se com Pedro a levar o pesado sobretudo do irmão.

Daí a pouco a terra começou a encurvar-se para a direita. Cerca de um quarto de hora mais tarde, depois de atravessarem uma crista pontuda, o terreno descrevia uma curva bastante fechada. Estavam de costas para a parte do mar que haviam encontrado ao saírem da mata. Olhando para a frente, avistaram além da água outra região densamente arborizada.

– Será que é uma ilha? – perguntou Lúcia.

– Sei lá – disse Pedro. E continuaram em silêncio. O terreno em que pisavam se aproximava cada vez mais do terreno oposto, e eles esperavam encontrar a qualquer momento um lugar em que os dois se juntassem. Mas era sempre uma decepção. Chegaram a alguns rochedos que tiveram de escalar e do topo puderam ver bastante longe.

– Ora bolas! Não adianta – disse Edmundo. – Não vamos chegar nunca à outra mata. Estamos numa ilha!

Era verdade. Nesse ponto, o canal que os separava da outra costa não tinha mais de trinta ou quarenta metros. Mas era o seu ponto mais estreito.

– Olhem! – disse Lúcia de repente. – Que é aquilo? – e apontou para uma coisa sinuosa, comprida e prateada que se via na praia.

– Um riacho! Um riacho! – gritaram todos e, mesmo cansados, não perderam um segundo para descer os rochedos e correr para a água fresca. Como sabiam que bem mais acima, longe da praia, a água seria melhor para beber, dirigiram-se logo para o lugar em que o riacho saía da mata. O arvoredo ainda era denso, mas o riacho transformara-se num fundo curso d’água, deslizando entre altas margens musgosas, de modo que uma pessoa inclinada podia segui-lo por uma espécie de túnel vegetal. Ajoelhando-se junto da primeira poça borbulhante, beberam até ficar saciados, mergulhando o rosto na água, e depois os braços até os cotovelos.

– Bem... – disse Edmundo. – E aqueles sanduíches?

– Não seria melhor economizá-los? – atalhou Susana. – Pode ser que mais tarde precisemos ainda mais deles.

– Seria ótimo – observou Lúcia – se pudéssemos prosseguir sem ligar para a fome, como quando a gente estava com sede.

– É... mas e os sanduíches? – repetiu Edmundo. – Não vale a pena economizá-los, pois podem estragar. Aqui faz muito mais calor do que na Inglaterra, e eles estão em nossos bolsos já há algumas horas.

Assim, dividiram os dois sanduíches por quatro. Ninguém matou a fome, mas era melhor do que nada. Depois, começaram a imaginar o que seria a refeição seguinte. Lúcia queria voltar ao mar e apanhar camarões, mas desistiu quando alguém observou que ninguém tinha uma rede. Edmundo sugeriu que apanhassem nos rochedos ovos de gaivota, mas, pensando melhor, ninguém se lembrava de já ter visto um ovo de gaivota. Mesmo que encontrassem algum, não saberiam cozinhá-lo. Pedro não teve coragem de dizer que os ovos, mesmo crus, valeriam a pena. Susana ainda achava que não deviam ter comido os sanduíches tão cedo. Finalmente Edmundo disse:

– Só há uma coisa a fazer: temos de explorar a mata. Ermitões e cavaleiros andantes, e outra gente parecida, sempre conseguiram viver, de uma ou de outra forma, dentro de uma floresta. Encontravam raízes, sementes, sei lá o que mais...

– Que tipo de raízes? – indagou Susana.

– Acho que raízes de árvores – disse Lúcia.

– Vamos embora – disse Pedro. Edmundo tem razão. Temos de tentar qualquer coisa.

Começaram a andar ao longo do riacho. Não foi nada fácil. Quando não eram obrigados a se abaixar sob os ramos, tinham de passar por cima deles. Andaram aos trambolhões entre moitas de flores, rasgando as roupas, molhando os pés no riacho. E, em torno, apenas um grande silêncio.

– Olhem! Olhem! – exclamou Lúcia. – Parece uma macieira.

E era. Subiram arquejantes pela encosta, abrindo caminho pelo mato, e acabaram encontrando uma grande árvore carregada de maçãs douradas, rijas, sumarentas. Não podia ser melhor.

– E esta árvore não é a única – disse Edmundo, de boca cheia. – Olhe ali uma outra, outra lá...

– Há dezenas, não há dúvida – disse Susana, deitando fora a semente da primeira maçã e tirando outra da árvore. – Isto aqui deve ter sido um pomar, muito tempo atrás, antes que o mato crescesse.

– Houve então um tempo em que esta ilha foi habitada – disse Pedro.

– E o que é aquilo? – perguntou Lúcia, apontando para a frente.

– É um muro, um velho muro de pedra – disse Pedro.

Abrindo caminho entre os ramos carregados, alcançaram o muro. Era muito antigo, arruinado aqui e ali, cheio de musgos e trepadeiras, mais alto do que quase todas as árvores. Ao chegarem mais perto, encontraram um grande arco, que deveria ter tido antes um portão, mas agora estava quase totalmente ocupado pela mais frondosa de todas as macieiras. Tiveram de quebrar alguns ramos para poder passar. Quando atravessaram, começaram a piscar, pois a luz do dia se tornara de repente muito mais intensa. Achavam-se num amplo espaço aberto, cercado de muros. Sem árvores: só mato rasteiro, malmequeres, hera e paredes cinzentas. Mas o lugar era claro e sereno, pairando ali uma certa melancolia. Os quatro dirigiram-se para o centro dele, satisfeitos porque agora podiam esticar braços e pernas.

 

A CASA DO TESOURO

– Isto aqui não era um jardim! – disse Susana momentos depois. – Aqui havia um castelo, e este deve ter sido o pátio.

– É isso mesmo – concordou Pedro. – Aquilo ali, não há dúvida, é a ruína de uma torre. Aquilo lá deve ter sido um lanço de escada que levava para o alto da muralha. Olhem aqueles degraus naquela porta: deve ter sido a entrada do salão nobre.

– Pela aparência, isso foi há séculos – disse Edmundo.

– É, há séculos – falou Pedro. – Gostaria de saber quem viveu neste palácio e há quanto tempo!

– Tudo isso me causa uma sensação estranha – observou Lúcia.

– Verdade, Lu? – perguntou Pedro, olhando fixamente para a irmã. – Porque comigo está acontecendo a mesma coisa... A coisa mais estranha que nos aconteceu neste dia tão estranho. Pergunto a mim mesmo onde estaremos... o que pode significar tudo isso...

Enquanto falavam, atravessaram o pátio e transpuseram a porta do antigo salão, agora muito semelhante ao pátio, pois o telhado desaparecera, e havia muito o salão não passava de um enorme relvado salpicado de malmequeres, embora mais estreito e curto do que o pátio e com as paredes mais altas. Do outro lado, cerca de metro e meio mais alto que tudo, destacava-se uma espécie de terraço.

– Vocês acham que isto seria realmente um salão? – perguntou Susana. – Sendo assim, que vem a ser aquele terraço?

– Boboca! – replicou Pedro (que, de repente, ficara bastante excitado). – Não está vendo? Aquilo era o estrado da mesa real, ao redor da qual se sentavam o rei e os grandes senhores. Parece até que você se esqueceu de que nós mesmos fomos reis e rainhas e tivemos um estrado igual no nosso salão nobre.

– No castelo de Cair Paravel – continuou Susana, numa voz cantante e sonhadora – , na foz do grande rio de Nárnia. Como poderia me esquecer?

– Parece que estou vendo o nosso castelo! – disse Lúcia. – Este salão deve ter sido muito parecido com o grande salão onde demos tantos banquetes. Podíamos fazer de conta que estamos de novo em Cair Paravel.

– Infelizmente sem banquete... – comentou Edmundo. – Está anoitecendo. Vejam como as sombras estão compridas. E já repararam como está frio?

– Se temos de passar a noite aqui, o melhor é fazer uma fogueira – propôs Pedro. – Eu tenho fósforos. Vamos procurar lenha seca.

A proposta era sensata. Durante meia hora trabalharam a valer. O pomar que tinham atravessado não era grande coisa para uma fogueira. Experimentaram o outro lado do castelo. Passando por uma porta lateral, encontraram-se num labirinto de corredores e velhas salas, que não passavam agora de um emaranhado de espinheiros e rosas-bravas. Descobriram uma brecha na muralha e, penetrando num maciço de árvores mais antigas e frondosas, acharam muitos ramos caídos, madeira meio apodrecida, lenha fina e folhas secas. Juntaram uma boa pilha de lenha sobre o estrado. Junto à parede do lado de fora, acabaram descobrindo o poço, todo coberto de ervas. Quando as afastaram, viram que a água corria lá embaixo, fresca e cristalina. A volta do poço, de um dos lados, havia vestígios de um pavimento de pedra. As meninas foram colher mais maçãs, e os meninos acenderam o fogo sobre o estrado, bem no cantinho entre as duas paredes, que lhes parecia o lugar mais quente e abrigado. Foi difícil fazer pegar o fogo, mas por fim conseguiram. Sentaram-se os quatro de costas para a parede, voltados para a fogueira. Tentaram assar maçãs espetadas em pedaços de pau, mas maçãs assadas só são boas com açúcar. – Além disso, ficam tão quentes que não podem ser tocadas com a mão, e quando esfriam já não vale a pena comê-las. Tiveram, portanto, de se satisfazer com maçãs cruas, o que levou Edmundo a afirmar que, afinal, a comida do colégio não era tão ruim assim.

– Não ia achar ruim se tivesse aqui agora um bom pedaço de pão com manteiga – acrescentou ele.

Mas o espírito de aventura já acordara neles, e nenhum dos quatro, na realidade, preferia estar no colégio.

Depois de comer a última maçã, Susana levantou-se e foi ao poço beber água. Voltou com alguma coisa na mão.

– Olhem! Vejam o que encontrei. – Entregou a Pedro o que trazia e sentou-se.

Pelo jeito e pela voz, parecia que Susana ia chorar. Edmundo e Lúcia, ansiosos por ver o que Pedro tinha na mão, inclinaram-se para a frente... para um objeto pequeno e brilhante, que refletia a luz da fogueira.

– Confesso que não estou entendendo – disse Pedro, com a voz embargada, passando aos outros o objeto.

Era uma pequena peça de xadrez, de tamanho comum, mas extraordinariamente pesada, por ser de ouro maciço. Tratava-se de um cavalo cujos olhos eram dois rubis minúsculos, ou melhor... um deles, porque o outro se perdera.

– Nossa! – disse Lúcia. – É exatamente igual a um daqueles cavalos de ouro com que costumávamos jogar em Cair Paravel... quando éramos reis e rainhas.

– Nada de tristeza! – disse Pedro a Susana.

– Não posso evitar – falou Susana. – Estou-me lembrando daqueles bons tempos. Costumava jogar xadrez com faunos e gigantes simpáticos. Fiquei me lembrando das sereias que cantavam... do meu lindo cavalo... e... e...

– Bem – interrompeu Pedro, num tom de voz bastante diferente. – Vamos deixar de fantasias e pensar a sério.

– Em quê? – perguntou Edmundo.

– Será que ninguém adivinhou onde estamos?

– Fale logo – disse Lúcia. – Estou sentindo que há um mistério neste lugar.

– Vamos, Pedro, estamos ouvindo – disse Edmundo.

– Muito bem: estamos nas ruínas de Cair Paravel.

– Ora! – exclamou Edmundo. – Como é que você sabe? Estas ruínas têm séculos. Repare naquelas árvores. Olhe para aquelas pedras. Há centenas de anos que não vive ninguém aqui.

– Certo – concordou Pedro. – Aí é que está o problema. Mas vamos deixar isso para depois. Consideremos as coisas uma por uma. Primeiro: este salão é exatamente igual ao de Cair Paravel, na forma e no tamanho. Imaginando um telhado e um chão colorido, em vez da relva, e tapeçarias nas paredes, temos o salão nobre dos banquetes.

Todos ficaram calados.

– Em segundo lugar – continuou Pedro – , o poço é exatamente no local do nosso. E também é igualzinho em forma e tamanho.

Ninguém o interrompeu.

– Em terceiro lugar: Susana acaba de encontrar uma das nossas peças de xadrez... ou uma peça igualzinha às nossas. Em quarto lugar: não se lembram de que, na véspera da chegada dos embaixadores do rei dos calormanos, plantamos um pomar logo depois do portão norte? O mais poderoso espírito das árvores, a própria Pomona, veio abençoá-lo. E foram aqueles animaizinhos simpáticos, as toupeiras, que cavaram tudo. Será possível que tenham se esquecido da engraçada dona Alvipata, a toupeira-chefe, encostada na enxada, dizendo: "Acredite, Real Senhor, um dia ainda há de ficar contente por ter plantado estas árvores frutíferas." E ela estava com a razão!...

– Eu me lembro e muito bem – disse Lúcia batendo palmas.

– Mas repare, Pedro – disse Edmundo – , tudo isso que você está dizendo deve ser bobagem. Para começar, o pomar que plantamos não chegava até os portões! Não seríamos tão bobos para fazer uma coisa dessas.

– É claro que não: foi o próprio pomar que avançou até aqui – explicou Pedro.

– Além disso – continuou Edmundo – , Cair Paravel nunca foi uma ilha.

– Já pensei nisso também. Mas era... como é mesmo que se diz... uma península. Quase uma ilha. Você não acha que pode ter virado uma ilha? É possível que alguém tenha aberto um canal.

– Espere aí... – disse Edmundo. – Faz somente um ano que deixamos Nárnia. E quer me convencer de que, em um ano, os castelos caíram, as florestas cresceram, as árvores que plantamos se alastraram... e sei lá mais o quê? Tudo isso é impossível!

– Tenho uma idéia – disse Lúcia. – Se isto é realmente Cair Paravel, deve haver uma porta junto ao estrado. Devemos estar de costas para ela. Vocês se lembram... era a porta que dava para a sala do tesouro.

– Parece que não há porta nenhuma – disse Pedro, levantando-se.

A parede por detrás deles estava coberta de hera.

– É fácil verificar – declarou Edmundo, agarrando um pedaço de lenha. E começou a golpear a parede revestida de hera.

Tum-tum, batia a madeira contra a pedra, tum-tum... De repente, bum, um barulho muito diferente, um som oco de pancada na madeira.

– Opa! Acertamos em cheio! – exclamou Edmundo.

– Seria melhor arrancar esta hera toda – propôs Pedro.

– Deixem isso pra lá! – protestou Susana. – Amanhã teremos muito tempo. Se temos de passar a noite aqui, não acho a menor graça uma porta atrás de mim e um buraco escuro, de onde pode sair sei lá o que, fora a umidade e as correntes de ar. E não demora a ficar escuro.

– Que idéia é essa, Susana?! – disse Lúcia, lançando um olhar de reprovação. Mas os dois meninos já estavam tão entusiasmados que não deram ouvidos ao conselho de Susana. Arrancavam a hera com as mãos e com o canivete de Pedro, até que este se partiu. Pegaram então o canivete de Edmundo e continuaram. Não demorou para que o lugar onde estavam sentados ficasse coberto de hera. Mas, finalmente, a porta apareceu.

– Fechada, como era de esperar – comunicou Pedro.

– Mas a madeira está podre – disse Edmundo. – É fácil arrancá-la aos pedaços, e a gente até arranja mais lenha para a fogueira. Ajudem aqui!

Não foi tão fácil quanto supunham. Antes de terem terminado, o salão nobre estava envolto em penumbra e as primeiras estrelas brilhavam. Susana não foi a única a sentir um ligeiro calafrio quando os meninos, de pé sobre um monte de madeira, esfregaram as mãos e olharam para o buraco frio e escuro que acabavam de abrir.

– Precisamos de uma lâmpada – disse Pedro.

– Para quê? – perguntou Susana. – Como disse Edmundo...

– Disse, mas já não digo! É verdade que não estou entendendo muito bem, mas logo veremos. Suponho, Pedro, que você vai descer.

– Não tem outro jeito! Vamos, Susana! Coragem! Não vamos bancar as crianças, agora que voltamos para Nárnia. Aqui, você é rainha. E bem sabe que ninguém pode dormir descansado com um mistério destes por desvendar.

Tentaram fazer archotes de varas compridas, mas não deu certo. Se voltavam a ponta acesa para cima, a chama se apagava; se a voltavam para baixo, ficavam com as mãos chamuscadas e os olhos ardendo. Por fim, decidiram usar a lanterna que Edmundo ganhara como presente de aniversário, menos de uma semana atrás. Edmundo, com a luz, entrou primeiro; depois Lúcia, Susana e Pedro, fechando o cortejo.

– Estou no alto de uma escada – anunciou Edmundo.

– Conte os degraus – sugeriu Pedro.

– Um, dois, três – foi contando Edmundo, descendo com cuidado, até chegar a dezesseis. – Pronto, cheguei ao fim!

– Estamos em Cair Paravel! – exclamou Lúcia. – Eram exatamente dezesseis degraus. – E ninguém mais falou, até que todos se juntaram no fundo da escada. Foi então que Edmundo começou, lentamente, a descrever um círculo com a lanterna.

– O-o-o-oh! – disseram as crianças ao mesmo tempo.

Pois todos se convenceram de que era na verdade a velha sala de Cair Paravel, onde tinham reinado como reis e rainhas de Nárnia. Ao centro havia uma espécie de corredor e, de cada um dos lados, a pequena distância umas das outras, erguiam-se ricas armaduras, como cavaleiros guardando um tesouro. Entre as armaduras havia prateleiras cheias de coisas preciosas: colares, pulseiras, anéis, vasos de ouro, grandes dentes de marfim, diademas e correntes de ouro, e muitas pedras preciosas amontoadas ao acaso, como se fossem batatas – diamantes, rubis, esmeraldas, topázios e ametistas. Debaixo das prateleiras enfileiravam-se grandes arcas de carvalho, reforçadas com barras de ferro, muito bem acolchoadas por dentro. Fazia um frio horrível, e o silêncio era tal que podiam ouvir a própria respiração. Os tesouros estavam cobertos de poeira. A sala, abandonada havia tanto tempo, entristecia-os e assustava-os um pouco. Foi por isso que, nos primeiros instantes, ninguém conseguiu falar.

Depois, começaram a andar de um lado para o outro, a pegar as coisas, examinando-as bem. Era como se encontrassem velhos amigos. Se você estivesse lá, teria escutado exclamações como estas:

– Olhem! Os anéis da nossa coroação! Lembram?...

– Aquela não é a armadura que você usou no grande torneio das Ilhas Solitárias?

– Lembram que o anão fez isto para mim?

– E quando eu bebi naquela taça enorme?

– Lembram... Vocês lembram?... E, de repente, Edmundo disse:

– Não podemos gastar as pilhas desta maneira. Sei lá quantas vezes vamos precisar da lanterna. O melhor é cada um pegar o que lhe interessa e irmos lá para fora.

– Temos de levar os presentes – disse Pedro. Pois, há muito tempo, num Natal passado em

Nárnia, Susana, Lúcia e Pedro tinham recebido alguns presentes que, para eles, valiam mais do que todo o reino. Edmundo nada recebera porque não estava com eles. (A culpa tinha sido só dele: se quiserem saber como foi, podem ler no livro O leão, a feiticeira e o guarda-roupa.)

Todos concordaram com Pedro e avançaram pelo corredor, em direção à porta mais afastada da sala do tesouro, onde encontraram os presentes. O de Lúcia era o menor: só um frasquinho. Mas o frasquinho não era de vidro, era de diamante, e estava ainda cheio do elixir mágico que podia curar quase todos os ferimentos e doenças. Lúcia não disse nada e pareceu muito solene ao retirar o frasco do lugar onde estava e guardá-lo consigo. O presente de Susana tinha sido um arco e flechas e uma trompa. O arco ainda estava lá, bem como a aljava de marfim cheia de setas emplumadas, mas...

– Susana, onde está a trompa? – perguntou Lúcia.

– Puxa vida! – disse Susana, depois de pensar um pouco. – Agora é que me lembro: eu estava com ela no último dia, quando fomos caçar o Veado Branco. Devo ter perdido a trompa, quando voltávamos para... para o nosso mundo.

Edmundo assoviou. Perda irreparável, na verdade, porque a trompa era mágica: era tocar e nunca faltava o auxílio necessário.

– Justamente o que mais poderia nos ajudar agora – disse Edmundo.

– Não faz mal – disse Susana – , ainda tenho o arco.

– Será que a corda ainda está boa, Su? – perguntou Pedro.

Fosse pela magia na atmosfera da sala do tesouro ou por qualquer outra coisa, a verdade é que tudo estava funcionando bem. Havia duas coisas que Susana fazia realmente bem: manejar o arco e nadar. Agarrou o arco e deu um puxão na corda, que começou a vibrar. Um som agudo encheu a sala. E aquele som despertou nas crianças, mais que tudo, a lembrança dos velhos tempos, as batalhas, as caçadas, as festas...

Depois que Susana colocou a aljava ao ombro, Pedro foi buscar o seu presente: o escudo com o grande leão vermelho e a espada real. Bateu com os dois no chão para sacudir o pó. Colocou depois o escudo no braço e prendeu a espada na cintura. A princípio receou que esta estivesse enferrujada e não saísse da bainha. Engano. Com um movimento rápido, ergueu a espada bem alto, iluminando-a à luz da lanterna.

- É a minha espada Rindon: aquela com que matei o lobo!

Sua voz tinha uma nova vibração: todos sentiram que se tratava outra vez de Pedro, o Grande Rei. E em seguida se lembraram de que tinham de poupar as pilhas.

Subiram a escada, atiçaram a fogueira e deitaram-se juntinhos para não desperdiçar o calor. O chão era duro e incômodo, mas acabaram adormecendo.

 

O ANÃO

Dormir ao ar livre tem um grande inconveniente: a gente acorda cedo demais. E logo que acorda não há remédio senão levantar-se, porque o chão é duro e incômodo. A situação ainda piora se para a primeira refeição só houver maçãs, e se o jantar da véspera tiver consistido justamente em maçãs. Depois de Lúcia ter dito – com toda a razão – que fazia uma magnífica manhã, ninguém encontrou mais nada agradável para dizer. Edmundo exprimiu o que todos sentiam:

– Temos de deixar a ilha!

Após beberem água do poço e lavarem o rosto,

seguiram o riacho até a praia e começaram a olhar o canal que os separava do continente.

– Vamos ter de atravessar a nado – falou Edmundo.

– É fácil para Su – disse Pedro. (Susana ganhara prêmios de natação no colégio.) – Para os outros, não sei, não.

Por “outros” ele queria dizer Edmundo, que mal conseguia dar duas braçadas, e Lúcia, que mal se agüentava à tona.

– Seja como for – observou Susana – , é muito possível que haja correntes aqui. Papai vive dizendo que a gente não deve nadar em lugares desconhecidos.

– Escute, Pedro – disse Lúcia – , sei que pareço um prego nadando, no colégio; mas não se lembra de que todos nós nadávamos muito bem há muito tempo... se é que foi há muito tempo... quando éramos reis e rainhas em Nárnia? Também montávamos muito bem e fazíamos uma porção de coisas. Você não acha que...

– Ora – replicou Pedro – , naquele tempo éramos pessoas grandes. Reinamos durante anos e anos e aprendemos a fazer tudo. Mas agora estamos com a nossa verdadeira idade.

– Oh! – exclamou Edmundo, num tom de voz que obrigou todos a prestarem atenção. – Já entendi tudo!

– Entendeu o quê? – perguntou Pedro.

– Tudo! Ontem à noite estávamos intrigados porque saímos de Nárnia há apenas um ano, mas Cair Paravel parece desabitado há séculos. Não se lembra? Embora tenhamos passado muito tempo em Nárnia, quando retornamos pelo guarda-roupa parecia que não havia passado tempo algum. É ou não é?

– Continue – disse Susana – , acho que estou começando a compreender.

– Isso quer dizer – prosseguiu Edmundo – que quando se está fora de Nárnia a gente perde toda a noção de como o tempo passa aqui. Por que então havemos de achar impossível que em Nárnia tenham passado centenas de anos, enquanto para nós passou apenas um?

– Puxa vida! – exclamou Pedro. – Acho que você tem razão. Vendo as coisas desse jeito, já se passaram mesmo séculos desde que reinamos em Cair Paravel! Agora, voltamos a Nárnia como se fôssemos cruzados, ou anglo-saxões, ou antigos bretões, ou alguém de regresso à Inglaterra dos tempos modernos!

– Todos vão ficar emocionados ao nos ver... – começou Lúcia, quando foi interrompida por alguém:

– Silêncio! Olhem ali!

Estava acontecendo alguma coisa.

Na terra firme, um pouco à direita, havia uma floresta; todos tinham certeza de que a foz do rio ficava além dela. Agora, torneando aquela ponta, surgira um barco. Passou, deu meia-volta e começou a avançar ao longo do canal na direção deles. Um homem remava e um outro estava sentado no leme com um embrulho na mão, um embrulho que se torcia e contorcia como se estivesse vivo.

Os homens pareciam soldados. Usavam capacetes de aço e leves cotas de malha. Ambos tinham barba e a expressão severa. As crianças fugiram da praia e se esconderam no mato, onde ficaram imóveis, à espreita.

– Aqui está bom! – disse o soldado do leme, quando o barco parou em frente deles.

– Não seria bom amarrar uma pedra nos pés dele, cabo? – sugeriu o outro, descansando os remos.

– Besteira! – grunhiu o primeiro. – Além disso, não trouxemos pedra. De qualquer jeito, com pedra ou sem pedra, ele vai se afogar, pois as cordas estão bem amarradas.

Levantou-se e ergueu o fardo. Pedro percebeu que era mesmo uma coisa viva: um anão, de pés e mãos amarrados, que tentava com toda a força libertar-se. Ouviu-se qualquer coisa sibilando. O soldado levantou os braços, deixando o anão cair no fundo do barco, e tombou dentro da água. Então, nadou desesperadamente para a margem oposta: a seta de Susana acertara-lhe o elmo. Pedro voltou-se e viu Susana muito pálida, mas senhora de si, preparando uma segunda seta, que não chegou a atirar. Porque, assim que o outro soldado viu cair o companheiro, soltou um grito e atirou-se na água, e desajeitadamente chegou ao outro lado, desaparecendo entre os arbustos.

– Depressa! Antes que ele seja arrastado pela corrente! – gritou Pedro.

Susana e ele, tal qual estavam, mergulharam e, antes que a água lhes chegasse aos ombros, agarraram o barco. Em pouco tempo, tinham arrastado o anão para a margem, e Edmundo pôs-se ativamente a cortar as cordas com o canivete. Quando por fim o anão se viu livre, sentou-se, esfregou os braços e as pernas e exclamou:

– Digam o que disserem, vocês não parecem fantasmas!

Como quase todos os anões, era muito atarracado e peitudo. De pé, devia ter cerca de um metro de altura; usava uma barba imensa e suíças de cabelos ruivos e rebeldes, que lhe encobriam quase todo o rosto, deixando apenas à vista um nariz que mais parecia um bico e os negros olhinhos cintilantes.

– Seja como for – continuou ele – , fantasmas ou não, vocês me salvaram a vida. Muito obrigado.

– E por que haveríamos de ser fantasmas? – perguntou Lúcia.

– A vida toda me disseram que nestes bosques ao longo da costa havia mais fantasmas do que árvores. É o que reza a lenda. Por isso, sempre que desejam eliminar alguém, é para cá que o trazem, como fizeram comigo. Queriam entregar-me aos fantasmas. Por mim, sempre pensei que iriam me cortar o pescoço ou afogar-me. Nunca acreditei muito em fantasmas. Mas aqueles valentões que vocês alvejaram acreditavam. Tinham mais medo do que eu.

– Ah! – exclamou Susana. – Foi por isso então que fugiram!

– O quê?! – disse o anão.

– Fugiram – confirmou Edmundo – , fugiram para a terra.

– Não atirei para matar – falou Susana.

Ela não queria que pensassem que pudesse errar o alvo a uma distância tão pequena. O anão resmungou:

– Hum! Isso é mau. Pode trazer futuras complicações. A não ser que eles fiquem de bico calado para salvarem a pele.

– Por que queriam afogá-lo? – perguntou Pedro.

-Porque sou um terrível criminoso, sem dúvida alguma – disse o anão, alegremente. – Mas isso é uma história comprida. Neste instante só estou pensando se vocês me convidariam para comer alguma coisa. Não fazem idéia do apetite que dá ser condenado à morte.

– Só temos maçãs – lamentou-se Lúcia.

– E melhor do que nada, mas peixe fresco é ainda melhor – disse o anão. – No fim, parece que vocês é que serão meus convidados. Vi no barco caniços de pesca. Aliás, o barco tem de ser levado para o outro lado da ilha: não convém que as pessoas do continente apareçam por aqui e dêem com ele.

– Eu já devia ter pensado nisso! – falou Pedro. Acompanhadas pelo anão, as quatro crianças entraram no barco. O anão assumiu imediatamente o comando das operações. Como os remos eram grandes demais para ele, Pedro remou, e o anão foi conduzindo o barco para o norte, ao longo do canal, virando depois para leste e contornando o extremo da ilha. Daí via-se todo o curso do rio, todas as baías e cabos da costa. Pareceu-lhes que alguns lugares não lhes eram estranhos, mas a floresta, que crescera muito, dava a tudo um ar diferente. Quando chegaram ao mar alto, o anão começou a pescar. Apanharam uma grande quantidade de trutas coloridas, um peixe muito bonito, que se lembravam de já terem comido em Cair Paravel.

Depois, levaram o barco para uma angra, onde o amarraram. O anão, que era muito eficiente (existem anões maus, é verdade, mas não conheço nenhum que seja bobo), abriu os peixes, limpou-os e disse:

– Só nos falta a lenha.

– Temos alguma no castelo – falou Edmundo. O anão pôs-se a assoviar baixinho.

– Com trinta diabos! Quer dizer que existe mesmo um castelo?

– Só as ruínas – informou Lúcia.

O anão olhou para todos os lados com uma expressão esquisita.

– E quem é que... – mas não terminou a frase, dizendo: – Não interessa. Vamos primeiro à comida. Só quero que me digam uma coisa: vocês juram mesmo que ainda estou vivo? Têm certeza de que não morri afogado? Sabem mesmo se não somos todos fantasmas?

Depois de o terem tranqüilizado, o problema era saber qual a melhor maneira de levar o peixe. Não tinham cesto nem corda para o prenderem. Acabaram utilizando o chapéu de Edmundo, pois só ele tinha chapéu. Claro que Edmundo teria ficado uma fera se não estivesse caindo de fome.

O anão, a princípio, não se sentiu muito bem

no castelo. Olhava para todos os cantos, fungava e dizia:

– Hum! Tem um ar esquisito. E cheira a fantasma.

Mas, quando chegou a vez de acender o fogo e de mostrar como se assam trutas frescas, animou-se. Comer peixe tirado da brasa com um canivete, para cinco pessoas, não é mole; por isso, quando a refeição acabou, não é de admirar que houvesse alguns dedos queimados. Mas, como eram nove horas e estavam acordados desde as cinco, ninguém ligou muito para as queimaduras. Depois de arrematarem com um gole de água do poço e uma maçã, o anão tirou do bolso um cachimbo do tamanho do seu braço, encheu-o com cuidado e, soprando uma grande baforada de fumo aromático, disse apenas:

– Muito bem!

– Conte-nos primeiro a sua história – propôs Pedro. – Depois lhe contaremos a nossa.

– Como foram vocês que me salvaram a vida, é justo que lhes faça a vontade. Mas nem sei por onde começar. Antes de tudo, tenho de confessar que sou um mensageiro do rei Caspian.

– De quem? – perguntaram os quatro ao mesmo tempo.

– De Caspian X, rei de Nárnia (longo seja o seu reinado!). Isto é, ele é que devia ser rei de Nárnia, e esperamos que ainda venha a ser um dia. Por enquanto, é apenas o nosso rei, o rei dos antigos narnianos...

– Por favor – disse Lúcia – quem são os antigos narnianos?

– Somos nós, é claro – respondeu o anão. – Somos uma espécie de rebeldes.

– Já estou começando a entender – falou Pedro. – Então Caspian é o chefe dos antigos narnianos?

– Sim, de certa forma – respondeu o anão, cocando a cabeça, meio atrapalhado. – Se bem que ele seja, na verdade, um dos novos narnianos, um telmarino, não sei se me compreendem.

– Não entendo patavina! – disse Edmundo.

– Isto é mais complicado que a história da Inglaterra – declarou Lúcia.

– Que espeto! – exclamou o anão. – Eu é que não soube me explicar direito. Prestem atenção. Acho que, no fim das contas, é melhor recuar até o princípio da história para contar-lhes como Caspian cresceu na corte do tio e como agora passou para o nosso lado. Mas é uma longa história.

– Melhor! – gritou Lúcia. – Adoramos histórias! Foi assim que o anão se ajeitou para contar a sua história. Não irei contá-la para você com as palavras dele, nem com as perguntas das crianças, porque seria uma confusão danada, e sem fim. Mas o principal da história é o seguinte...

 

O ANÃO CONTA A HISTÓRIA DO PRÍNCIPE CASPIAN

O príncipe Caspian vivia num grande castelo no centro de Nárnia, com seu tio Miraz, rei de Nárnia, e sua tia, que tinha cabelo ruivo e se chamava Prunaprismia. Seu pai e sua mãe tinham morrido, e não havia ninguém que Caspian estimasse tanto quanto a sua velha ama. Embora fosse príncipe e tivesse belíssimos brinquedos, o seu momento preferido era aquele em que, depois de arrumados os brinquedos, a ama começava a contar-lhe histórias.

Caspian não gostava dos tios, mas, uma ou duas vezes por semana, o tio mandava chamá-lo e os dois passeavam durante meia hora, no terraço do castelo. Um dia, enquanto passeavam, o rei lhe disse:

– Já é tempo de você aprender a montar e a manejar a espada. Sabe que sua tia e eu não temos filhos, de modo que, quando eu me for, você provavelmente será rei. Não gostaria disso?

– Não sei, titio – respondeu Caspian,

– Não sabe como? O que você podia querer de melhor?

– Bem... é que eu gostaria...

– Gostaria de quê?!

– Gostaria... gostaria de ter vivido nos velhos tempos – disse Caspian, que ainda não passava de um garotinho.

Até aí, o Rei Miraz tinha falado naquele tom de voz indiferente que certos adultos costumam usar e que mostra que não têm o mínimo interesse no que lhe estão dizendo. Mas nesse instante, de repente, fitou Caspian com muita atenção.

– O quê?! De que velhos tempos está falando?

– Titio não sabe? Dos tempos em que tudo era diferente. Em que os animais falavam, em que as fontes e as árvores eram habitadas por bonitas criaturas, chamadas náiades e dríades. E havia também anões, e os bosques estavam povoados de pequeninos faunos, que tinham patas iguais às dos bodes, e...

– Conversa! – interrompeu o tio. – Conversa para tapear criança. Você já está grande demais para isso. Na sua idade, devia estar pensando em batalhas e aventuras, e não em contos da carochinha.

– Mas naquele tempo também havia batalhas e aventuras. Maravilhosas aventuras! Houve até uma Feiticeira Branca, que pretendia ser rainha de Nárnia. Era tão má que, enquanto ela reinou, foi sempre inverno. Vieram então, não sei de onde, dois meninos e duas meninas, que mataram a feiticeira e foram coroados reis e rainhas. Eram Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia. Reinaram durante muito tempo, e todos foram muito felizes... e tudo isso foi por causa de Aslam...

– Quem é esse Aslam? – indagou Miraz.

Se Caspian fosse um pouco mais experiente, teria percebido, pelo tom de voz do tio, que o melhor era calar-se. Mas continuou:

– Não sabe? Aslam é o Grande Leão, que vem de além-mar.

– Quem andou botando essas bobagens na sua cabeça? – a voz do rei era ameaçadora. Caspian teve medo e não respondeu.

– Nobre príncipe – insistiu Miraz, largando a mão de Caspian – , exijo que me responda. Olhe nos meus olhos e diga-me quem tem lhe contado essas refinadas mentiras.

– Foi... foi a ama – gaguejou Caspian, desandando a chorar.

– Acabe imediatamente com isso! – ordenou o tio, agarrando-o pelos ombros e sacudindo-o com força. – Já falei! E não me venha de novo com essas tolices. Esses reis e rainhas nunca existiram. Onde é que você já viu dois reis ao mesmo tempo? Aslam é pura invencionice. Não há leão nenhum, fique sabendo! E os animais nunca falaram! Compreendeu?

– Compreendi – soluçou Caspian.

– E, agora, ponto final nesta conversa.

O rei chamou um lacaio e ordenou friamente:

– Leve Sua Alteza aos seus aposentos e diga à ama que compareça aqui imediatamente!

Só no dia seguinte Caspian percebeu o que tinha feito, ao descobrir que a ama fora despedida sem poder sequer dizer-lhe adeus. Foi informado, então, que iria ter um preceptor.

Sentiu muita falta da ama e derramou muitas lágrimas de saudade. Muito infeliz, voltou a pensar nas velhas histórias de Nárnia, ainda mais do que antes. Todas as noites sonhava com anões e dríades, e tentava desesperadamente fazer com que os gatos e cães do castelo falassem com ele. Mas só conseguia que os gatos rosnassem e que os cães sacudissem a cauda.

Caspian tinha certeza de que ia detestar o preceptor; mas quando este apareceu, passada uma semana, viu que era uma dessas pessoas a quem é impossível querer mal. Nunca tinha visto um homem tão baixo e tão gordo. Usava uma barba pontuda e prateada, que lhe descia até a cintura; o rosto, moreno e enrugado, era muito feio, mas ao mesmo tempo muito bondoso e inteligente. Sua voz era grave, mas ele tinha olhos tão alegres que só quem o conhecesse bem podia dizer quando ele estava brincando ou falando a sério. Seu nome era doutor Cornelius.

De todas as aulas que tinha com o doutor Cornelius, aquela de que Caspian mais gostava era

História. Tirando as histórias que a ama lhe contara, nada sabia até então da história de Nárnia. Foi assim com grande espanto que aprendeu que só recentemente a família real se instalara no país.

– Foi um antepassado de Vossa Alteza, Caspian I, que conquistou Nárnia e fez dela o seu reino – disse o doutor Cornelius. – Foi ele quem trouxe a sua gente para cá. Porque vocês não são narnianos de origem, mas telmarinos. Vieram todos de Teimar, para lá das Montanhas Ocidentais. Por isso, Caspian I é chamado de Caspian, o Conquistador.

– Mas, doutor Cornelius, quem vivia em Nárnia antes que viéssemos de Teimar?

– Antes da conquista dos telmarinos não havia homens em Nárnia... ou melhor, havia poucos.

– O que, então, o meu antepassado venceu?

– O que não, Alteza, quem – corrigiu o preceptor. – Acho que está na hora de deixarmos a História e passarmos à gramática.

– Ainda não, por favor. Só queria saber se houve alguma batalha, e por que é que chamam Caspian de Conquistador, se não havia ninguém com quem lutar?

– Eu falei que havia poucos “homens” em Nárnia – disse o doutor Cornelius, olhando de um modo muito estranho para o jovem príncipe.

Durante um momento, Caspian não percebeu nada, mas de repente teve um sobressalto.

– Quer dizer que havia outras coisas? – perguntou, ansiosamente. – Quer dizer que era mesmo como nas histórias? Havia...?

– Psiu! Nem mais uma palavra! – interrompeu-o doutor Cornelius. – Já esqueceu que a ama foi despedida por falar da antiga Nárnia? O rei não gosta dessa conversa. Se me apanha revelando-lhe segredos, dá-lhe uma surra de chicote e corta a minha cabeça.

– Mas por quê?! – indagou Caspian.

– Vamos à gramática – disse o doutor Cornelius, voltando a falar alto. – Queira Vossa Alteza abrir na página 4 do seu Jardim gramatical ou Árvore morfológica aprazivelmente ao alcance de talentos jovens.

A partir desse momento, só falaram de verbos e substantivos até a hora do almoço; mas acho que Caspian não aprendeu muito. Estava muito nervoso. Tinha certeza de que o doutor Cornelius não lhe teria dito tanta coisa, caso não tivesse a intenção de dizer-lhe outras, mais cedo ou mais tarde.

Não se enganou. Dias depois, o preceptor disse-lhe:

– Esta noite vou dar-lhe uma lição de astronomia. Tarde da noite, dois nobres planetas, Tarva e Alambil, vão cruzar-se a menos de um grau um do outro. Há mais de dois séculos que não se observa essa conjunção, e Vossa Alteza não viverá para vê-la novamente. É melhor que vá deitar-se um pouco mais cedo; quando se aproximar o momento, irei acordá-lo.

Isso não tinha nada a ver com a antiga Nárnia, que era o que interessava a Caspian, mas, de qualquer forma, levantar-se no meio da noite é sempre uma aventura, e ele ficou contente.

Quando sentiu que o sacudiam de leve, achou que tinha dormido apenas alguns minutos. Sentou-se na cama e viu que o luar invadia o quarto. Doutor Cornelius, envolto num manto com capuz e segurando uma lamparina, estava ao pé da cama. Caspian lembrou-se logo do que tinham combinado. Levantou-se e vestiu-se. Embora fosse verão, a noite estava mais fria do que esperava. Mais satisfeito ficou quando o preceptor o envolveu numa capa igual à sua e lhe entregou um par de chinelos quentes e macios.

Assim vestidos, dificilmente seriam reconhecidos nos corredores escuros. Sem fazer barulho, aluno e mestre saíram do quarto.

Passaram por muitos corredores, subiram várias escadas, até que, entrando por uma portinha que dava para um torreão, chegaram ao ar livre. Lá embaixo, cheios de sombra ou reflexos, estendiam-se os jardins do castelo, enquanto no alto brilhavam a lua e as estrelas. Chegaram enfim à porta que dava para a grande torre central. Caspian estava cada vez mais excitado, pois nunca lhe fora permitido subir aquela escada. Era íngreme e comprida, mas, quando chegou ao terraço da torre, recobrou o alento. Valera a pena. À direita, muito ao longe, divisavam-se as Montanhas Ocidentais. À esquerda, rebrilhava o Grande Rio. Tudo estava tão calmo, que se ouvia o rugir da água no Dique dos Castores, a um quilômetro de distância. Não tiveram dificuldade em localizar as duas estrelas. Estavam muito baixas na linha do horizonte, ao sul, pertinho uma da outra, e brilhavam como duas luzinhas.

– Vão bater? – perguntou Caspian, receoso.

– Não, meu príncipe – disse o doutor, baixinho. – Os grandes senhores do céu superior conhecem muito bem os passos de sua dança. Olhe bem para elas. Seu encontro é auspicioso e indica que um grande bem vai acontecer ao triste reino de Nárnia. Tarva, o Senhor da Vitória, saúda Alambil, a senhora da Paz. Estão chegando ao ponto máximo de aproximação.

– Que pena aquela árvore estar na frente! – disse Caspian. – Veríamos muito melhor da torre ocidental, embora não seja tão alta.

Por uns momentos, o doutor Cornelius, de olhos fixos em Tarva e Alambil, ficou em silêncio. Respirou fundo e voltou-se para Caspian:

– Acaba de ver o que nenhum homem hoje vivo jamais viu ou verá. Tem razão: teríamos visto ainda melhor da outra torre. Mas tive um motivo para trazê-lo aqui.

O aluno levantou os olhos, mas o mestre tinha o rosto quase todo encoberto pelo capuz. O doutor continuou:

– A vantagem desta torre é que temos seis salas vazias abaixo de nós e uma longa escada; além do mais, a porta ao fundo está fechada à chave. Ninguém poderá ouvir-nos.

– Vai então dizer-me o que não quis dizer outro dia? – perguntou Caspian.

– Vou, mas não se esqueça de uma coisa: só aqui, no alto da Grande Torre, poderemos falar desse assunto. Promete?

– Prometo – disse Caspian. – Mas, por favor, continue.

– Preste atenção: tudo o que lhe disseram sobre a antiga Nárnia é verdade. Nárnia não é a terra dos homens. É a terra de Aslam, das árvores despertas, das náiades visíveis, dos faunos, dos sátiros, dos anões e dos gigantes, dos centauros e dos animais falantes. Foi contra eles que lutou Caspian I. Foram vocês, os telmarinos, que calaram os animais, as árvores e as fontes; que mataram e expulsaram os anões e os faunos; são vocês que pretendem agora desfazer até a lembrança do que existiu. O rei não consente sequer que se fale deles.

– Desejaria que não tivéssemos feito nada disso! – disse Caspian. – Mas estou muito feliz por saber que tudo é verdade, ainda que tudo tenha acabado.

– Muitos de sua raça desejam a mesma coisa, em segredo.

– Mas, doutor, por que me diz a sua raça? Você não é também um telmarino?

– Pareço um telmarino?

– De qualquer modo, você é um homem.

– Acha que sou? – insistiu o doutor, numa voz mais grave, ao mesmo tempo que deixava cair o capuz, descobrindo o rosto iluminado pelo luar.

Caspian compreendeu de súbito a verdade, espantado de não ter descoberto isso mais cedo. O doutor Cornelius era tão baixinho, tão gordo, e tinha uma barba tão comprida! Dois pensamentos lhe acudiram. Um de medo: “Não é um homem, é um anão e trouxe-me até aqui para me matar.” O outro foi de grande contentamento: “Afinal, ainda há anões, e vi um deles com os meus próprios olhos.”

– Adivinhou – disse o doutor. – Ou quase. Não sou um anão puro, pois parte do meu sangue é humano. Muitos anões escaparam, depois das grandes batalhas, e continuaram a viver, cortando a barba, usando sapatos de tacão alto, fazendo-se passar por homens. A raça misturou-se com a dos telmarinos. Sou um desses meio-anões; se algum dos meus parentes, algum anão verdadeiro, ainda vivesse em qualquer parte do mundo, iria desprezar-me como traidor. No entanto, ao longo de todos estes anos, nunca esquecemos a nossa gente, nem qualquer das outras felizes criaturas de Nárnia, nem os tempos de liberdade há muito perdidos.

– Sinto muito, doutor – disse Caspian – , sabe que não foi minha culpa...

– Não estou dizendo essas coisas para censurá-lo, estimado príncipe. Há de perguntar por que as digo. Pois muito bem! Por dois motivos. Primeiro: porque o meu velho coração está cansado de guardar esses segredos. Segundo: para que um dia, quando o meu príncipe for rei, possa ajudar-nos, pois sei que, embora telmarino, tem amor às coisas do passado.

– E é verdade – assentiu Caspian. – Mas como poderei ajudá-los?

– Você pode ser bom para aqueles que, como eu, ainda restam da raça dos anões. Pode reunir à sua volta sábios e magos e procurar os meios de reanimar as árvores. Pode vasculhar todos os esconderijos e lugares inóspitos, onde talvez ainda vivam faunos e animais falantes.

– Acha que ainda existem alguns? – perguntou Caspian ansiosamente.

– Não sei... não sei – disse o doutor, com um suspiro fundo. – Às vezes chego a recear que não haja mais nenhum. Passei a vida procurando os vestígios deles. Já me aconteceu julgar ouvir um batuque de anões nas montanhas. Por vezes, nos bosques, pareceu-me vislumbrar faunos e sátiros dançando. Mas, sempre que chegava ao local onde julgava tê-los visto, não encontrava nada. Muitas vezes perdi a esperança, mas sempre acontece algo que nos faz ter esperança de novo. Não sei... Mas você pode, pelo menos, procurar ser um rei como o Grande Rei Pedro dos tempos antigos, em vez de seguir o exemplo de seu tio.

– Quer dizer que é verdade o que dizem dos reis e rainhas e da Feiticeira Branca?

– Claro que é. O seu reinado foi a Idade de Ouro de Nárnia, e o país nunca o esqueceu.

– Eles viveram neste castelo, doutor?

– Não, meu caro príncipe. Este castelo é recente. Foi o seu bisavô que mandou construí-lo. Quando os dois filhos de Adão e as duas filhas de Eva foram coroados, pelo próprio Aslam, reis e rainhas de Nárnia, viveram no castelo de Cair Paravel. Nenhum ser vivo jamais contemplou esse lugar abençoado, e é possível que as próprias ruínas tenham desaparecido. Parece que ficava muito longe daqui, na foz do Grande Rio, à beira-mar.

– Ufa! – exclamou Caspian, com um arrepio. – Nos Bosques Negros? Onde... onde vivem os fantasmas?

– O príncipe fala de acordo com o que lhe ensinaram. Mas tudo isso é mentira. Não há fantasmas lá; isso é invenção dos telmarinos. Os monarcas de sua raça têm pavor do mar, porque não podem esquecer que, em todas as histórias, Aslam veio de além-mar. Não se aproximam dele, nem querem que ninguém se aproxime. Por isso deixam crescer as florestas que os separam da costa. E porque brigaram com as árvores têm medo dos bosques. E, porque têm medo dos bosques, acham que estes são povoados de fantasmas. E são os próprios reis que, odiando o mar, acreditam em parte nessas histórias e levam os outros a acreditar. Sentem-se mais seguros sabendo que ninguém em Nárnia ousa aproximar-se da costa e olhar o mar... olhar para o país de Aslam, para o nascente...

Houve um silêncio profundo. Então, doutor Cornelius disse:

– Vamos. Já ficamos aqui muito tempo. É hora de voltar a dormir.

– Já?! – protestou Caspian. – Podia ficar horas e horas falando dessas coisas.

– Podem começar a procurar-nos... – explicou o doutor.

 

AS AVENTURAS DE CASPIAN NAS MONTANHAS

Caspian e o preceptor conversaram muitas vezes a sós no alto da Grande Torre, e o primeiro foi aprendendo muitas coisas acerca da antiga Nárnia. Ocupava quase todas as suas horas livres (que não eram muitas) sonhando com os velhos tempos, desejando que eles voltassem. Sua educação agora começara a sério. Aprendeu esgrima e natação, a montar, a atirar, a tocar flauta, a caçar veados e esquartejá-los para aproveitar-lhes a carne, além de estudar cosmografia, direito, física, alquimia e astronomia. Das artes mágicas aprendeu apenas a teoria porque, segundo o doutor Cornelius, a prática não era estudo próprio para um príncipe.

– Eu mesmo – disse-lhe certa vez o doutor – sei muito pouco de magia; as experiências que faço não têm a menor importância.

De navegação (uma nobre e heróica arte, dizia o doutor) não aprendeu nada, porque o rei Miraz não gostava do mar e odiava os navios.

Caspian também aprendeu muito por si mesmo, a partir do que via e ouvia. Quando pequenino, não sabia explicar por que não gostava da tia, a rainha Prunaprismia. Agora compreendia: é que também ela não gostava dele. Ele também começou a ver que Nárnia era um país triste, com impostos excessivamente pesados, leis muito severas e um rei cruel.

Passado algum tempo, a rainha adoeceu, e houve grande movimento no castelo. Os médicos iam e vinham, e os cortesãos falavam em voz baixa. Foi no começo do verão. Uma noite, no meio de toda essa agitação, Caspian, que se deitara havia poucas horas, foi de repente acordado pelo doutor Cornelius.

– Astronomia, doutor? – perguntou ele.

– Psiu! Confie em mim e faça exatamente o que lhe disser: agasalhe-se bem, pois tem uma longa viagem à sua frente.

Caspian ficou muito surpreso, mas aprendera a ter confiança em seu preceptor e obedeceu sem demora. Quando acabou de se vestir, o doutor lhe disse:

– Trouxe-lhe um saco. Vamos colocar nele toda a comida que pudermos encontrar sobre a mesa.

– Mas os camareiros estão na sala!

– Dormem a sono solto e não acordarão tão cedo. Sou um mago sem grandes poderes, mas os que tenho ainda chegam para provocar um sono encantado.

De fato, os camareiros ressonavam alto, estendidos nas cadeiras. Sem perda de tempo, o doutor Cornelius cortou o que sobrara do frango, pegou algumas fatias de carne de veado, pão, maçã e uma garrafinha de vinho bom, colocando tudo dentro do saco, que entregou a Caspian.

– Trouxe a sua espada? – perguntou o doutor.

– Trouxe – respondeu Caspian.

– Vista este manto e cubra também com ele o saco e a espada. Isso! Agora vamos à Grande Torre, pois precisamos conversar.

Quando chegaram ao alto da torre (era uma noite enevoada), o doutor Cornelius lhe disse:

– Nobre príncipe, tem de abandonar imediatamente o castelo e tentar a sorte por este vasto mundo. Sua vida aqui corre perigo.

– Por quê? – indagou Caspian.

– Porque você é o verdadeiro rei de Nárnia: Caspian X, filho e herdeiro de Caspian IX. Vida longa para o rei! – E, de repente, para grande espanto de Caspian, o preceptor ajoelhou-se e beijou-lhe a mão.

– O que é isso? Não estou entendendo nada...

– O que me espanta – disse o doutor – é você nunca ter perguntado por que, sendo filho do rei Caspian, não era você mesmo o rei. Todos, menos você, sabem que Miraz é um usurpador. Quando começou a governar, não teve a coragem de apresentar-se como rei: intitulou-se apenas príncipe regente. Mas então sua mãe faleceu, ela que fora tão boa rainha, a única telmarina que me tratou bem. Um após outro, todos os nobres que tinham conhecido o seu pai foram morrendo e desaparecendo. Belisar e Uvilas foram atingidos por setas durante uma caçada: mero acidente, como se divulgou. A grande família dos Passáridas foi para o Norte lutar com os gigantes e por lá desapareceu. Arlian e Erimon foram condenados por alta traição, sem sequer serem julgados. Os dois irmãos do Dique dos Castores foram trancafiados como loucos. E, para terminar, Miraz convenceu sete nobres de que, entre todos os telmarinos, eram os únicos que não temiam o mar, e deviam partir para o Oceano Oriental, em busca de novas terras. Nunca mais voltaram, é claro. Quando já não havia quem pudesse defender o meu príncipe, os bajuladores pediram-lhe que se deixasse coroar rei: e ele concordou, naturalmente.

– E ele quer me matar também? – perguntou Caspian.

– Sem dúvida alguma.

– Mas por quê?... Por que não me matou há mais tempo? Que mal eu fiz?

– Míraz mudou de opinião a seu respeito, em virtude do que aconteceu há apenas duas horas. A rainha acaba de dar à luz um filho.

– O que uma coisa tem a ver com a outra?

– Não entendeu?! Então, que proveito tirou das minhas lições de história e de política? Ouça: enquanto o rei não tinha filhos, estava disposto a deixar que você fosse rei quando ele morresse. Mesmo sem ter por você grande amizade, preferia que o trono fosse seu, e não de um estranho. Mas agora, que tem um filho, quer fazer dele o herdeiro. Você passou a ser um empecilho, e ele fará tudo para afastá-lo do caminho.

– Ele é tão ruim assim? Será mesmo capaz de me matar?

– Matou também o seu pai – disse doutor Cornelius.

Caspian sentiu-se mal e calou-se.

– Um dia poderei contar-lhe essa história – continuou o doutor – , mas não agora. Não temos tempo a perder. Você tem de fugir imediatamente.

– Vem comigo? – perguntou Caspian.

– Não. Seria muito arriscado. É mais fácil seguir dois do que um, caro príncipe. Nobre rei Caspian, chegou a hora da coragem. Você tem de partir só e imediatamente. Veja se consegue atravessar a fronteira do Sul para chegar à corte de Naim, rei da Arquelândia. Ele poderá ajudá-lo.

– Nunca mais nos veremos? – perguntou Caspian, com a voz trêmula.

– Espero que sim, nobre rei – respondeu o doutor. – Pois não é você o único amigo com que posso contar? Tenho as minhas artes mágicas... Mas, por ora, o importante é ganhar tempo. Aqui estão dois presentes. Esta bolsinha de ouro... bem pouco, é certo, quando todos os tesouros do castelo pertencem a você, de direito. E aqui está outra coisa mais valiosa.

Passou às mãos de Caspian um objeto que ele mal distinguiu, mas que, pelo tato, percebeu que era uma trompa.

– É o mais sagrado tesouro de Nárnia – disse doutor Cornelius. – Quando era jovem, passei por muita coisa e proferi muitas palavras mágicas, na esperança de encontrar a trompa que pertenceu à rainha Susana. Ficou aqui quando ela desapareceu de Nárnia, ao findar a Idade de Ouro. Quem quer que a toque, receberá um estranho, um misterioso auxílio – que ninguém sabe dizer. Pode ser que tenha o poder de trazer do passado a rainha Lúcia e o rei Edmundo, a rainha Susana e o Grande Rei Pedro, para restaurar a ordem natural das coisas. Pode ser que tenha o poder de invocar o próprio Aslam. Fique com ela... mas só a utilize quando estiver em grande dificuldade. Depressa! A portinha que dá para o jardim está aberta. É lá que nos separamos.

– Posso levar Destro, meu cavalo?

– Já está selado, à sua espera, no alto do pomar.

Enquanto desciam a longa escada em caracol, o doutor Cornelius, muito baixinho, foi dando instruções e conselhos. Caspian sentiu que lhe faltava a coragem, mas procurou não esquecer nada. Uma rajada de ar fresco no jardim, um caloroso aperto de mão do doutor, o relinchar alegre de Destro – e assim Caspian X deixou o palácio de seus pais.

Ao olhar para trás, viu os fogos de artifício com que se festejava o nascimento do novo príncipe.

Cavalgou à toda para o Sul, atravessando a floresta por veredas e atalhos enquanto ainda se encontrava em terreno conhecido. Preferiu depois a estrada principal. A viagem inesperada excitara tanto o cavalo quanto o dono. Caspian, que se despedira do doutor com lágrimas nos olhos, sentia-se agora cheio de coragem e, até certo ponto, feliz, ao pensar que era o rei correndo rumo à aventura, espada à cinta, levando consigo a trompa mágica da rainha Susana. Quando, porém, o dia começou a clarear, acompanhado de chuviscos, e ele olhou em torno e viu apenas bosques desconhecidos, regiões áridas e montanhas azuis, o mundo pareceu-lhe imenso e misterioso, e ele sentiu-se pequenino e assustado.

Assim que o dia clareou de todo, deixou a estrada e encontrou uma clareira relvada, onde podia descansar. Tirou a sela de Destro para que este pastasse à vontade, comeu um pouco de frango, bebeu um pouco de vinho e adormeceu. A tarde já ia alta quando acordou. Comeu mais um pouco e recomeçou a viagem. Ao anoitecer, a chuva caía em bátegas. Os trovões enchiam o ar, e Destro começou a ficar nervoso. Entraram por um imenso pinhal, e Caspian lembrou-se das muitas histórias que ouvira sobre as árvores, inimigas do homem. Afinal (pensou) ele era um telmarino, pertencia à raça que derruba árvores e estava em guerra aberta com todas as coisas selvagens. Ainda que fosse diferente dos outros telmarinos, as árvores não podiam saber de nada.

E não sabiam mesmo. O vento virou tempestade, e as árvores rugiam e estalavam no caminho. Houve então um grande estrondo, e uma árvore caiu atravessando a estrada assim que eles passaram.

– Calma, Destro, calma! – repetia Caspian, acariciando a cabeça do cavalo. Mas ele mesmo estava trêmulo, sabendo que escapara à morte por um triz. Os relâmpagos faiscavam, e o ribombar dos trovões parecia despedaçar o céu. Destro corria em disparada; Caspian, ainda que bom cavaleiro, não tinha força para dominá-lo. A custo conseguia manter-se na sela, certo de que sua vida estava presa por um fio naquela louca cavalgada. Eis que, de súbito, quase sem ter tempo para sentir a dor, alguma coisa lhe bateu na fronte e ele perdeu os sentidos.

Quando voltou a si, Caspian estava deitado perto de uma fogueira, sentindo uma horrível dor de cabeça. Ouviu falar baixinho:

– Temos de resolver o que vamos fazer com ele, antes que acorde.

– Matá-lo! – disse outra voz. – Não podemos deixá-lo vivo: iria trair-nos.

– Deveríamos ter feito isso na hora, ou então deixado ele sozinho – atalhou uma terceira voz.

– Não podemos matá-lo agora; não depois de termos tratado seus ferimentos. Seria o mesmo que assassinar um hóspede.

– Senhores – disse Caspian, numa voz que era quase um murmúrio – , decidam o que quiserem a meu respeito, mas peço-lhes que tratem bem do meu cavalo.

– Seu cavalo fugiu muito antes de o encontrarmos – disse uma voz roufenha, que parecia vir da terra.

– Não se deixem iludir com palavrinhas doces – falou a segunda voz. – Por mim, insisto em...

– Calma aí! – exclamou a terceira voz. – É claro que não vamos matá-lo. Você devia ter vergonha, Nikabrik. O que acha você, Caça-trufas? Que vamos fazer com ele?

– Vou dar-lhe de beber – disse a primeira voz, provavelmente a de Caça-trufas. Uma sombra escura aproximou-se. Caspian sentiu que um braço lhe amparava cuidadosamente as costas – se é que era mesmo um braço. O rosto que se inclinou era também um tanto esquisito: pareceu-lhe que estava coberto de pêlos e que tinha um enorme nariz, com umas engraçadas manchas brancas dos lados. “Deve ser máscara”, pensou Caspian, “ou então estou delirando.”

Uma taça de um líquido quente e adocicado tocou seus lábios, e ele bebeu. Nesse instante, um dos outros atiçou o fogo, fazendo levantar uma labareda. Caspian quase gritou de susto, ao ver o rosto que o fitava. Não era um homem, mas um texugo! No entanto, o rosto deste era maior, mais amistoso e mais inteligente do que o dos texugos aos quais estava habituado. Fora ele que falara, sem dúvida. Viu também que estava deitado numa gruta, sobre uma cama de urzes. Ao pé do fogo encontravam-se dois homenzinhos barbudos, muito mais gordos, baixos e peludos que o doutor Cornelius. Caspian percebeu logo que eram anões verdadeiros, dos antigos, em cujas veias não corria uma só gota de sangue humano. Havia encontrado enfim os antigos narnianos. Sua cabeça começou a rodar de novo.

Nos dias seguintes, aprendeu a conhecê-los pelo nome. O texugo chamava-se Caça-trufas. Era o mais velho e o mais bondoso dos três. O anão que desejara matá-lo era um anão negro (isto é, tinha o cabelo e a barba negros, ásperos e duros como crina de cavalo): seu nome era Nikabrik. O outro era um anão vermelho, com cabelo da cor dos pêlos de uma raposa: chamava-se Trumpkin. Na primeira tarde em que Caspian teve forças para sentar-se e falar, Nikabrik disse o seguinte:

– Agora temos de resolver o que fazer com o humano. Vocês acham que lhe fizeram um grande favor, impedindo que eu o eliminasse. Agora, acho que a solução é conservá-lo prisioneiro pelo resto da vida. Porque não estou nada disposto a deixá-lo solto por aí... para que um belo dia encontre os outros de sua raça e nos denuncie.

– Com mil diabos, Nikabrik! – protestou Trumpkin. – É preciso ser tão descortês? No fim das contas, o pobre coitado não teve culpa de bater com a cabeça numa árvore aqui na frente da nossa caverna. E, por mim, acho que ele não tem cara de traidor.

– Mas – disse Caspian – vocês ainda não sabem se eu quero voltar para junto dos meus. Para ser franco, não quero. Preferia ficar por aqui mesmo... se me deixassem. Tenho procurado por vocês a vida toda!...

– Esta é boa! – rosnou Nikabrik. – Você é ou não é um telmarino e um humano? Como não quer voltar?

– Mesmo que quisesse, não podia – respondeu Caspian. – Quando caí do cavalo, estava fugindo para salvar a minha vida. O rei quer me matar. Se tivessem me matado, teriam feito a vontade dele.

– O quê?! – exclamou Caça-trufas.

– Que conversa é essa? – perguntou Trumpkin. – Com a sua idade, que fez você para cair no desagrado de Miraz?

– Miraz é meu tio – começou a dizer Caspian, e nesse instante Nikabrik levantou de um salto e agarrou o punhal.

– Não disse?! – gritou ele. – Não só é telmarino, mas parente e herdeiro do nosso maior inimigo. Vocês estão malucos?! Querem mesmo deixar viver esta criatura?! – Teria apunhalado Caspian ali mesmo, se Trumpkin e o texugo não se tivessem metido no meio, impedindo-lhe o avanço.

– De uma vez por todas, Nikabrik – disse Trumpkin – ou você se controla ou Caça-trufas e eu nos sentamos em cima de sua cabeça...

Nikabrik, mal-humorado, prometeu ter mais calma, e os outros dois pediram a Caspian que contasse a sua história. Quando acabou, houve um momento de silêncio.

– É o caso mais estranho que conheço! – disse Trumpkin.

– Não acho graça nenhuma! – rosnou Nikabrik. – Não sabia que os humanos se divertem falando de nós. Quanto menos souberem de nós, melhor. Foi então a velha ama? Era melhor que ela tivesse ficado de bico calado. E, ainda por cima, esse preceptor, um anão renegado. Odeio eles! São piores que os humanos! Ouçam o que eu digo: tudo isso só vai nos trazer aborrecimentos!

– Não diga besteira, Nikabrik! – disse Caça-trufas. – Vocês, anões, são tão esquecidos e inconstantes quanto os humanos. Eu, não, sou um bicho; mais que isso, sou um texugo, e os texugos sabem o que querem. Não andam por aí sempre a mudar de idéia. E eu digo que um grande bem está por vir. Temos conosco o verdadeiro rei de Nárnia: um verdadeiro rei, que volta à verdadeira Nárnia. E nós, os bichos, estamos lembrados (mesmo que os anões tenham esquecido) que Nárnia só foi feliz quando teve no trono um filho de Adão.

– Espere aí, Caça-trufas – falou Trumpkin – , não vá dizer que pretende entregar nosso país aos humanos?

– Quem disse isso? – replicou o texugo. – Nárnia não é terra dos homens (quem vai me ensinar isso?), mas é uma terra que deve ser governada por um Homem. Nós, os texugos, temos razões de sobra para acreditar nisso. Pois o Grande Rei Pedro também não era um Homem?

– Você acredita nessa história? – perguntou Trumpkin.

– Já disse! Nós não mudamos de opinião todos os dias. Não esquecemos facilmente. Acredito no rei Pedro e nos outros que reinaram em Cair Pa-ravel, com a mesma certeza que acredito no próprio Aslam.

– Com a mesma certeza? Mas quem é que ainda acredita em Aslam? – indagou Trumpkin.

– Eu acredito – disse Caspian. – E, mesmo que não acreditasse antes, acreditaria agora. Entre os humanos, os que se riem de Aslam também zombariam se eu lhes dissesse que existem anões e animais falantes. Já cheguei a perguntar a mim mesmo se Aslam de fato existiria, mas a verdade é que também muitas vezes duvidei da existência de gente como vocês. E vocês não estão aí?

– Tem razão, rei Caspian – disse Caça-trufas. – Enquanto for fiel à antiga Nárnia você será o meu rei, haja o que houver. Vida longa ao rei!

– Você me faz perder a cabeça, texugo! – resmungou Nikabrik. – O Grande Rei Pedro e os outros talvez tenham sido Homens, mas eram com certeza de uma raça diferente. Este não, este é um dos malditos telmarinos. Aposto que já andou caçando para se divertir! Diga que não, diga! – acrescentou, voltando-se bruscamente para Caspian.

– Sim, é verdade – concordou Caspian. – Mas nunca na minha vida cacei animais falantes.

– Dá tudo na mesma! – resmungou Nikabrik.

– Ah, isso não! – falou Caça-trufas. – E você bem sabe disso! Sabe muito bem que os animais que hoje se encontram em Nárnia não são como os de antigamente. São até menores do que antes! Entre eles e nós há uma diferença muito maior do que entre vocês e os meio-anões.

Houve ainda muita discussão, mas acabaram todos concordando que Caspian ficaria. Prometeram até que, logo que estivesse bom, seria apresentado ao que Trumpkin chamava “os Outros”. Pois, ao que parece, naquelas regiões selvagens viviam ainda, escondidas, inúmeras criaturas sobreviventes da antiga Nárnia.

 

O ESCONDERIJO DOS ANTIGOS NARNIANOS

Começara o tempo mais feliz da vida de Caspian. Numa bela manhã de verão, em que a relva estava coberta de orvalho, ele partiu com o texugo e os dois anões, através da floresta, rumo ao alto de um monte, descendo depois a encosta inundada de sol, de onde se avistavam os campos verdejantes de Arquelândia.

– Vamos visitar primeiro os três Ursos Barrigudos – disse Trumpkin.

Avançando por uma clareira, chegaram a um velho carvalho oco e revestido de musgo, em cujo tronco Caça-trufas deu três pancadinhas com a pata, sem que obtivesse resposta. Bateu de novo e lá de dentro uma voz rouca protestou: – Vá embora. Ainda não está na hora de acordar.

Mas, quando o texugo bateu pela terceira vez, ouviu-se um ruído como de tremor de terra, abriu-se uma porta e apareceram três enormes ursos castanhos, muito barrigudos mesmo, a piscar os olhinhos. Depois que terminaram de lhes contar tudo o que passava (o que demorou muito tempo, pois estavam caindo de sono), eles concordaram com Caça-trufas: um filho de Adão devia ser o rei de Nárnia – e todos beijaram Caspian, com uns beijos molhados e barulhentos. E o rei foi logo convidado para comer mel. Caspian não gostava muito de mel, sem pão, àquela hora da manhã, mas por delicadeza achou que deveria aceitar. Só depois de muito tempo deixou de sentir as mãos meladas. Continuaram depois a andar e chegaram perto de umas faias muito altas. Aí, Caça-trufas gritou:

– Farfalhante!

Quase imediatamente, saltando de ramo em ramo, apareceu acima da cabeça dos visitantes um magnífico esquilo vermelho. Era muito maior que os esquilos mudos que Caspian encontrava às vezes no jardim do castelo; na verdade, era quase do tamanho de um cachorro. Bastava olhar para ele para se ver que falava. O problema era justamente fazê-lo calar, pois, como todos os esquilos, era um grande falastrão. Deu as boas-vindas a Caspian e ofereceu-lhe uma noz. Caspian agradeceu e aceitou. Mas, quando Farfalhante se afastou para ir buscá-la, Caça-trufas disse-lhe baixinho:

– Não fique olhando. É falta de educação entre os esquilos seguir alguém que vai à despensa... ou olhar como se quisesse saber onde ele guarda as coisas.

Farfalhante voltou com a noz, que Caspian comeu. O esquilo perguntou se poderia ser útil, levando algum recado a outros amigos.

– Posso ir a quase todo lugar sem botar o pé no chão.

Caça-trufas e os anões acharam que era uma excelente idéia e pediram a Farfalhante que levasse recados a muita gente de nomes esquisitos, convidando a todos para uma reunião no Gramado da Dança, à meia-noite, dali a três dias.

– É bom avisar também os três Ursos Barrigudos – acrescentou Trumpkin. – Esquecemos de lhes dizer.

A visita seguinte foi aos sete irmãos do Bosque Trêmulo. Era um lugar solene, entre rochedos e altas árvores. Avançaram com cuidado. Trumpkin chegou junto a uma pedra achatada, do tamanho da tampa de uma talha de água, e bateu nela com o pé. Depois de demorado silêncio, alguém arredou a pedra. Apareceu então um buraco redondo e escuro, do qual saíam baforadas de fumaça e calor, e de onde emergiu a cabeça de um anão, muito parecido com Trumpkin. Conversaram durante muito tempo. Embora o anão parecesse mais desconfiado do que o esquilo ou os ursos, acabou convidando todos para entrar. Caspian desceu por uma escada escura, que levava a uma caverna iluminada. Estavam numa forja, e o clarão vinha da fornalha. A um canto passava um riacho subterrâneo. Dois anões trabalhavam no fole, um terceiro, com um par de tenazes, segurava na bigorna um pedaço de metal em brasa, que um quarto anão batia. Outros dois, limpando as pequenas mãos calosas num pano engordurado, foram ao encontro dos visitantes. Não foi fácil convencê-los de que Caspian era amigo, mas, uma vez convencidos, gritaram: “Viva o rei!”

Seus presentes eram preciosos: cotas de malha, elmos e espadas para Caspian, Trumpkin e Nikabrik. Também quiseram dar o mesmo ao texugo, mas este disse que era bicho, e bicho que não soubesse defender-se com as patas e os dentes não tinha o direito de viver. Caspian jamais vira armas tão perfeitas, e foi com grande alegria que aceitou a espada feita pelos anões, em troca da sua que, comparada com aquela, parecia frágil e tosca. Os sete irmãos (todos eles anões vermelhos) prometeram não faltar ao encontro no Gramado da Dança.

Um pouco adiante, numa ravina seca e rochosa, ficava a caverna dos cinco anões negros. Olharam desconfiados para Caspian, até que o mais velho disse:

– Se ele é contra Miraz, será o nosso rei. Outro propôs:

– Gostaria de ir ao despenhadeiro, onde ainda vivem dois ogres e uma feiticeira?

– Não! – disse Caspian.

– Também acho que não – concordou Caça-trufas. – Não queremos essa gente conosco.

Nikabrik era de opinião contrária, mas Trumpkin e o texugo conseguiram fazê-lo calar.

Caspian sentiu um calafrio ao saber que também as criaturas más das histórias antigas tinham deixado descendência em Nárnia.

– Perderíamos a amizade de Aslam, se nos aliássemos a essa ralé horrorosa – disse Caça-trufas, quando saíram da caverna dos anões negros.

– Aslam? – indagou Trumpkin, falando alegremente e em tom de ligeiro desprezo. – Muito mais do que isso: vocês perderiam a minha amizade!

– Você acredita em Aslam? – perguntou Caspian a Nikabrik.

– Acredito em qualquer um, ou em qualquer coisa que possa reduzir a pó os bárbaros telmarinos ou expulsá-los de Nárnia. Seja lá quem for, Aslam ou a Feiticeira Branca. Está entendendo?

– Cale-se! – ordenou Caça-trufas. – Você não sabe o que está dizendo. Ela foi muito pior do que Miraz e toda a sua raça.

– Para os anões, não – insistiu Nikabrik.

A visita seguinte foi mais agradável. As montanhas deram passo a um vale arborizado, atravessado por um rio caudaloso. As margens do rio estavam atapetadas de papoulas e rosas; no ar pairava o zumbido das abelhas. Caça-trufas gritou:

– Ciclone!

Passado um instante, ouviu-se o ressoar de cascos, cada vez mais alto e mais próximo, até que o vale inteiro tremeu. Por fim, pisando e esmagando flores, apareceu o grande centauro Ciclone e seus três filhos, as mais imponentes criaturas que Caspian vira em toda a vida. Os flancos do centauro eram de um castanho escuro e brilhante; a barba, que lhe cobria o peito, era vermelho-dourada. Profeta e vidente, o centauro não precisou perguntar ao que vinham.

– Viva o rei! – gritou. – Os meus filhos e eu estamos prontos para a guerra. Quando se trava a batalha?

Até aquele momento, nem Caspian nem os outros tinham pensado em guerra. Nutriam a vaga idéia de uma ou outra incursão nas terras de algum humano, ou talvez de um ataque a um grupo de caçadores, caso estes se aventurassem a penetrar nas regiões selvagens do Sul. No mais, porém, pensavam apenas em viver isolados nos bosques e cavernas, tentando reconstruir qualquer coisa parecida com a antiga Nárnia.

– Você fala de uma guerra de verdade para expulsar Miraz? – perguntou Caspian.

– E o que mais poderia ser? – indagou o centauro. – Que outro motivo teria Vossa Alteza para andar de cota de malha e espada à cinta?

– Será possível, Ciclone? – perguntou o texugo.

– É o momento oportuno – respondeu ele. – Eu observo os céus, texugo, porque compete a mim vigiar, como a você compete não esquecer. Tarva e Alambil encontraram-se nos salões do firma-mento, e na terra voltou a surgir um filho de Adão para governar e dar nome às criaturas. A hora do combate soou. O nosso encontro no Gramado da Dança deve ser um conselho de guerra.

Falou de tal maneira que nem por um momento alguém duvidou. Caspian e os outros achavam agora perfeitamente possível ganhar uma batalha. Estavam certos de que, fosse como fosse, deveriam ir em frente.

Como já passasse do meio-dia, descansaram junto dos centauros e comeram o que estes tinham a oferecer: bolos de aveia, maçãs, salada, vinho e queijo.

Era perto o lugar que pretendiam visitar, mas tiveram de dar uma grande volta, evitando uma região habitada pelos homens. A tarde já ia adiantada quando se acharam em terreno plano. Num buraco em uma valeta verdejante, Caça-trufas chamou alguém, e de lá saiu a última coisa que Caspian poderia esperar: um rato falante.

Claro que era maior que um rato comum – mais de trinta centímetros, quando ficava em pé sobre as patas traseiras – , e suas orelhas eram quase tão compridas quanto as de um coelho, só que mais largas. Chamava-se Ripchip e tinha um ar marcial e alegre. Da cinta pendia-lhe um minúsculo florete, e retorcia os longos pêlos do focinho como se fossem bigodes.

– Somos doze, Real Senhor – disse, com rápida e graciosa vênia – , e todos os recursos do meu povo estão incondicionalmente à sua disposição.

Caspian teve de fazer um enorme esforço para não rir, pois não pôde evitar o pensamento de que Ripchip e todo o seu exército podiam facilmente ser carregados às costas, dentro de um cesto de roupa.

Tomaria um tempo enorme enumerar todos os animais que Caspian conheceu nesse dia: Escava-terra, a toupeira, os três Trincadores (texugos como Caça-trufas), Camilo, a lebre, além de Barbaças, o ouriço. Descansaram finalmente junto de um poço à beira de uma campina relvada, à volta da qual cresciam choupos altos cuja sombra, ao poente, se alongava sobre o campo. As margaridas começavam a fechar as pétalas, e os pássaros buscavam os ninhos. Depois de cearem o que tinham trazido, Trumpkin acendeu o cachimbo (Nikabrik não fumava).

O texugo disse:

– Se pudéssemos despertar o espírito destas árvores e deste poço, poderíamos hoje nos dar por satisfeitos.

– E por que não? – perguntou Caspian.

– Não temos poder sobre eles. Desde que os humanos invadiram o país, derrubando as árvores e secando as fontes, as dríades e as náiades mergulharam num sono profundo. Quem sabe se algum dia voltarão a acordar? Essa é a nossa grande perda. Os telmarinos têm horror aos bosques, e bastaria que as árvores avançassem para eles em fúria, para que os nossos inimigos ficassem loucos de medo e fugissem de Nárnia a toda a velocidade.

– Que imaginação têm os animais! – troçou Trumpkin, que não acreditava nessas coisas. — E por que só as árvores e as fontes? Não seria ainda mais engraçado se as próprias pedras começassem a atirar-se contra o velho Miraz?

O texugo limitou-se a resmungar, e fez-se um silêncio tão longo que Caspian estava prestes a adormecer, quando lhe pareceu ouvir uma música suave, vinda do meio dos bosques. Achou que estava sonhando e voltou-se para o outro lado. Mas, ao encostar o ouvido à terra, sentiu ou ouviu o rufar longínquo de um tambor. Ergueu-se. O rufar do tambor tornou-se mais fraco, mas a música voltou, mais nítida agora. Pareciam flautas. Viu que Caça-trufas se sentara, olhando a floresta. O luar estava claro, e Caspian percebeu que dormira mais do que imaginara. A música estava cada vez mais nítida, uma melodia alegre e romântica, acompanhada pelo ruído de muitos pés ligeiros. Passando do bosque para a campina inundada de luar, surgiram por fim vultos bailando, aqueles com que Caspian sonhara a vida toda. Pouco mais altos que os anões, eram muito mais esguios e graciosos. Nas cabeças encaracoladas tinham pequenos chifres, e seu tronco nu brilhava à luz do luar; as pernas e os pés eram de bode.

– Faunos! – exclamou Caspian, pondo-se de pé num salto. Imediatamente todos o rodearam. Não tardou para que a situação fosse explicada aos faunos e estes logo aceitassem Caspian. E, antes mesmo que pudesse dar-se conta, Caspian se viu dançando. O mesmo aconteceu a Trumpkin, que acompanhava os outros com movimentos pesados e desajeitados. Caça-trufas ia correndo e pulando de qualquer jeito. Só Nikabrik continuou no mesmo lugar, olhando em silêncio. Os faunos rodopiavam à volta de Caspian ao som alegre das flautas de bambu. Tinham uma expressão estranha, a um tempo alegre e triste. Eram dezenas e

dezenas de faunos: entre eles estavam Mentius, Obentinus, Dumnus, Voluns, Voltinus, Girbius, Nimienus, Nausus e Oscuns. Farfalhante não se esquecera de nenhum.

Quando Caspian acordou na manhã seguinte, teve a impressão de que tudo não passara de um sonho. Mas a relva estava toda coberta pelos pe­queninos sinais dos cascos...

 

A ANTIGA NÁRNIA EM PERIGO

A campina onde se encontraram com os faunos era o próprio Gramado da Dança. Caspian e seus amigos ficaram lá até a noite do grande Conselho. Dormir ao ar livre, beber apenas água, alimentar-se quase exclusivamente de nozes e frutos do mato foi uma experiência completamente nova para quem, como Caspian, estava habituado a deitar em lençóis de linho no quarto atapetado de um palácio, a ter as refeições servidas numa antecâmara, em baixelas de prata e ouro, com muitos criados prestimosos. Nunca Caspian fora tão feliz. Nunca o sono o deixara tão descansado, nem a comida lhe parecera tão saborosa: assim, começou a ficar maduro de espírito, e seu rosto adquiriu uma expressão regia.

Quando a grande noite chegou, e os seus estranhos súditos começaram a entrar no gramado, Caspian teve um estremecimento de alegria, ao verificar que formavam uma multidão. Era quase lua cheia e estavam presentes todos aqueles com os quais falara antes: os Ursos Barrigudos, os anões vermelhos, os anões negros, as toupeiras, os texugos, as lebres, os ouriços, e mais, muitos que ainda não conhecia: os cinco sátiros de pêlo vermelho, todo o contingente dos ratos falantes, armados até os dentes e marchando ao som de uma trompa esganiçada, algumas corujas e o velho corvo da Brenha do Corvo. Por fim, deixando Caspian de boca aberta, veio com os centauros um jovem mas autêntico gigante: Verruma, da Colina do Morto. Trazia às costas um cesto cheio de anões muito enjoados, que tinham aceitado a carona e lamentavam agora não ter feito a viagem a pé.

Os ursos eram de opinião que se fizesse a festa primeiro e se deixasse o Conselho para mais tarde... talvez até para o dia seguinte. Ripchip e os ratos achavam que tanto a festa quanto o Conselho podiam esperar, e propunham que se atacasse o castelo de Miraz naquela mesma noite. Farfalhante e outros esquilos afirmavam que se podia comer e falar ao mesmo tempo. Queriam era começar logo. As toupeiras estavam dispostas, antes de tudo, a cavar trincheiras em torno do gramado. Os faunos achavam que se devia começar por um bailado cerimonial. O velho corvo pediu que lhe permitissem dirigir algumas palavras a toda a assistência. Porém, Caspian, os anões e os centauros puseram de lado todas essas idéias e resolveram reunir imediatamente um verdadeiro Conselho de Guerra.

Quando finalmente os bichos concordaram em sentar-se, em silêncio, num grande círculo, e depois de se ter conseguido (com a maior dificuldade) que Farfalhante deixasse de correr de um lado para outro e de gritar: – Silêncio! Silêncio! O rei vai falar! – Caspian, um pouco nervoso, levantou-se.

– Narnianos! – começou, mas não chegou a dizer mais nada, porque, nesse mesmo instante, Camilo, a lebre, gritou:

– Alto! Tem um Homem escondido por aí!

Eram todos criaturas do mato, habituadas a serem perseguidas; portanto, ficaram logo imóveis como estátuas. Os animais limitaram-se a voltar a cabeça na direção que Camilo indicara.

– Cheira a Homem, mas ao mesmo tempo não parece bem Homem – disse Caça-trufas, num sussurro.

– Está chegando mais perto – disse Camilo.

– Dois texugos e três anões, avancem devagarinho – ordenou Caspian.

– Vamos acabar com ele! – declarou um anão negro, ameaçador, preparando uma flecha.

– Se vier só, não disparem; tragam o Homem vivo – disse Caspian.

– Por quê? – perguntou um dos anões.

– Faça o que lhe ordenaram – disse o centauro. Todos guardaram silêncio, enquanto os três anões e os dois texugos se esgueiravam na direção das árvores, a noroeste do gramado. Ouviu-se de repente a voz aguda de um anão:

– Alto! Quem vem lá? – e logo em seguida um salto rápido. Instantes depois, uma voz bem conhecida de Caspian dizia:

– Pronto! Estou desarmado. Se quiserem, podem algemar-me, nobres texugos. Quero falar com o rei.

– Doutor Cornelius! – exclamou Caspian, louco de alegria, precipitando-se ao encontro do velho preceptor. Todos se aproximaram.

– Hum! – exclamou Nikabrik. – Um anão renegado! Quase não tem sangue de anão. Que tal se eu lhe enfiasse a espada?

– Quieto, Nikabrik – disse Trumpkin. – O pobre não tem culpa de sua ascendência.

– Este é o meu maior amigo, a quem devo a vida. Se existe alguém aqui que não goste da companhia dele, pode abandonar imediatamente minhas fileiras. Caro doutor, não calcula como estou feliz de vê-lo outra vez. Como conseguiu chegar aqui?

– Um truquezinho muito simples – respondeu o doutor, ainda ofegante da corrida. – Mas agora não há tempo para explicações. Temos de fugir daqui. Alguém traiu o meu Real Senhor e Miraz está a caminho. Amanhã, antes do meio-dia, estarão todos cercados.

– Traídos?! – exclamou Caspian. – Mas por quem?

– Por quem havia de ser? Algum anão renegado, é claro – disse Nikabrik.

– Foi Destro, o seu cavalo – disse o doutor Cornelius. – O pobre animal, não sabendo o que fazer depois da queda, simplesmente voltou para a cavalariça do castelo. Fugi, para não ser interrogado na câmara de tortura de Miraz. Por meio de minha bola de cristal, sabia muito bem onde podia encontrá-lo. Mas durante o dia todo – isso foi há três dias – os homens de Miraz percorreram os bosques. Ontem soube que o exército está a caminho. Parece que alguns dos seus... dos seus anões de puro-sangue... não têm o menor sentido de orientação. Deixaram pegadas por toda a parte. Grave descuido. Seja como for, alguma coisa avisou Miraz de que a antiga Nárnia não está extinta, como ele julgava, e por isso ele entrou em ação.

– Oba! – ouviu-se uma vozinha muito estridente, junto dos pés do doutor. – Podem vir! Só peço que o rei me coloque, a mim e aos meus, na linha de frente.

– Que negócio é esse? – perguntou o doutor. – Há gafanhotos... ou mosquitos incorporados ao exército? – Depois, inclinando-se e olhando atentamente através dos óculos, desatou a rir, exclamando: – Pela juba do Leão! É um rato. Senhor Rato, tenho grande prazer em conhecê-lo. É uma honra encontrar um bicho tão valente.

– Pode contar com a minha amizade, sábio doutor – guinchou Ripchip. – Qualquer anão... ou gigante... que se atreva a falar-lhe sem respeito terá de enfrentar esta espada.

– Ainda há tempo para essas palhaçadas? – perguntou Nikabrik. – Quais são, afinal, os seus planos? Lutar ou fugir?

– Lutar, se for necessário – declarou Trumpkin. – Mas acho que não estamos preparados para uma guerra, e aqui temos pouca defesa.

– Não me agrada fugir – disse Caspian.

– Atenção! Ouçam o que ele diz – gritaram os ursos. – Haja o que houver, nada de fugir. E nunca antes da ceia. Nem logo a seguir, é claro.

– Os que fogem primeiro nem sempre são os que haverão de fugir no final – disse o centauro. – E por que havemos de deixar que o inimigo escolha posições, em vez de as escolhermos nós? Proponho que se procure uma praça forte.

– O plano é sensato, muito sensato – disse Caça-trufas.

– Mas para onde iremos? – perguntaram muitas vozes.

– Real Senhor – começou o doutor Cornelius – e todas vocês, criaturas, ouçam-me. Julgo que seria aconselhável fugir para oeste e, descendo o rio, penetrar na floresta. Os telmarinos odeiam aquela região. Sempre tiveram medo do mar e do que possa vir de além-mar. Por isso plantaram as florestas. Se a lenda é verdadeira, o velho castelo de Cair Paravel fica junto à foz do rio. Toda aquela zona nos é propícia; ao inimigo é fatídica. Vamos para o Monte de Aslam.

– Monte de Aslam? Que é isso?

– Fica além do Grande Bosque: é um enorme baluarte que os narnianos construíram há muito tempo, num lugar de grande poder mágico, onde estava – e talvez esteja ainda – uma pedra de grande magia. O Monte foi todo escavado por dentro em galerias e cavernas, e a Mesa de Pedra está na caverna central. Lá temos lugar para guardar provisões e, além disso, todos os que precisam de um teto, ou os que estão habituados a viver debaixo da terra, podem ficar acomodados nas cavernas. Em caso de necessidade, todos nós (com exceção do nosso digno gigante) poderemos refugiar-nos no Monte, onde estaremos ao abrigo de todos os perigos, menos da fome.

– É uma vantagem enorme ter conosco um homem instruído – disse Caça-trufas. Mas Trumpkin resmungou em voz baixa:

– Ora bolas! Seria muito melhor se os nossos chefes deixassem de lado essas histórias da carochinha e se preocupassem mais com armas e víveres.

Mas a proposta de Cornelius foi aceita, e meia hora mais tarde estavam a caminho. Antes do romper do dia chegaram ao Monte de Aslam.

O lugar era, na verdade, de assustar: um morro redondo e verde no cimo de outro morro, havia muito encoberto de árvores, com apenas um pequeno e baixo portal como entrada. Lá dentro, os túneis formavam um verdadeiro labirinto, e as paredes e o teto eram revestidos de pedras lisas, nas quais Caspian, olhando com atenção, viu caracteres estranhos e desenhos sinuosos e muitas imagens em que se repetia várias vezes a forma de um Leão. Tudo aquilo parecia pertencer a uma Nárnia ainda mais antiga do que a Nárnia de que ouvira falar.

Foi depois de instalados, dentro e fora do Monte, que as coisas começaram a correr mal. Os espiões do rei Miraz deram com o rasto deles, e não tardou que o rei e o seu exército aparecessem no extremo do bosque. Como acontece tantas vezes, verificou-se que o inimigo era muito mais forte do que se supunha. Caspian sentiu-se desfalecer ao ver chegar um batalhão atrás do outro. Se bem que os soldados tivessem medo de entrar na floresta, tinham ainda muito mais medo de Miraz; com este comandando-os, entravam fundo na batalha, chegando por vezes às proximidades do Monte. Claro que Caspian e os seus capitães fizeram também repetidas incursões no campo aberto. Quase não se passava um dia sem luta, e muitas vezes guerreavam de noite também. Mas, quase sempre, era o exército de Caspian que levava a pior.

Chegou por fim uma noite em que as coisas não podiam ter sido piores. A chuva, que caíra pesada durante todo o dia, só parou à tardinha, para dar lugar a um frio mortal. Para o amanhecer, Caspian planejara o grande ataque, no qual todos punham as suas esperanças. Caspian, com a grande maioria dos anões, deveria atacar de madrugada a ala direita do exército real. Quando estivessem no mais aceso da batalha, o gigante Verruma, acompanhado pelos centauros e pelos animais mais fortes, deveriam atacar em outro ponto, a fim de cortar a ala direita de Miraz do resto do exército. Mas o plano falhou. A verdade é que ninguém avisara Caspian (porque ninguém em Nárnia se lembrara disso) de que os gigantes não costumam brilhar pela inteligência. Ora, o pobre Verruma, se bem que corajoso como poucos, era neste aspecto um autêntico gigante. Atacara, pois, onde não devia, em momento pouco oportuno, causando graves perdas aos batalhões de Caspian e ao seu próprio, e quase sem causar danos às forças inimigas. O maior dos ursos ficara ferido, um centauro mais ainda, e era difícil encontrar no grupo de Caspian quem não tivesse derramado sangue. Nessa noite, foi uma multidão deprimida que se juntou debaixo das árvores gotejantes para comer uma ceia frugal. O mais triste de todos era o gigante. Sabia que a culpa era toda dele. Sentado em silêncio, derramou enormes lágrimas, que se juntaram na ponta de seu nariz para caírem depois, em cascata, sobre o grupo dos ratos, que nesse momento começava a se aquecer e a pegar no sono. Levantaram-se de um pulo, sacudindo a água que lhes entrara pelas orelhas, torcendo os minúsculos cobertores com que se cobriam, perguntando ao gigante, em voz esganiçada mas imperiosa, se achava que eles ainda não estavam suficientemente encharcados, mesmo sem aquela choradeira toda. Outros acordaram também irritados, lembrando aos ratos que tinham sido incorporados ao exército como sentinelas e não como banda de música. O infeliz Verruma afastou-se na ponta dos pés, à procura de um lugar onde pudesse chorar à vontade. Mas, por cúmulo do azar, pisou logo numa cauda e o dono desta (a raposa, como depois se verificou) tacou-lhe uma dentada. Nada havia a fazer. Estavam todos muito mal dispostos naquela noite.

Na caverna mágica no centro do Monte, o rei Caspian reunia um Conselho de Guerra, com Cornelius, o texugo, Nikabrik e Trumpkin. Velhas colunas maciças sustentavam o telhado; ao centro, a Mesa de Pedra, fendida de lado a lado, coberta com o que deviam ter sido caracteres de alguma escrita antiga. Anos e anos de chuva, vento e neve tinham apagado quase por completo os relevos da pedra, antes mesmo que o Monte fosse erguido sobre ela. O Conselho não se reunira à volta da Mesa, nem estava fazendo uso desta – o seu caráter sagrado tornava-a imprópria para fins vulgares. Os membros do Conselho tinham se sentado em troncos, junto de uma tosca mesa de madeira sobre a qual ardia uma lamparina de barro, iluminando-lhes o rosto e projetando nas paredes sombras imensas.

– Se o rei tenciona algum dia fazer uso da trompa, acho que chegou a hora – disse Caça-trufas.

– Sem dúvida, estamos numa situação desesperadora – concordou Caspian. – Mas quem poderá dizer-nos se as coisas não vão piorar? E se chegarmos a uma situação ainda mais desesperadora depois de termos tocado a trompa?

– Raciocinando desse jeito, a trompa só será tocada quando for tarde demais – objetou Nikabrik.

– É verdade – disse o doutor.

– Que acha, Trumpkin? – perguntou Caspian.

– Ora, quanto a mim, o rei sabe bem o que penso da Trompa... e desta pedra rachada... e do Grande Rei Pedro... e do seu Aslam. Tudo isso é cascata – declarou o anão, que seguira a conversa com a mais completa indiferença. – Tanto faz que se toque a trompa agora, como em qualquer outra hora. Só peço que não se fale disso com os soldados. Não vale a pena alimentar esperanças em auxílios mágicos, que (na minha opinião) sempre fracassam.

– Então, em nome de Aslam, farei soar a trompa da rainha Susana – disse Caspian.

– Temos de pensar ainda numa coisa – disse o doutor. – Não sabemos sob que forma nos chegará o auxílio. Pode ser que o próprio Aslam venha de além-mar, mas me parece mais provável que, saídos do passado, venham até nós o Grande Rei Pedro e os seus bravos companheiros. Num caso ou no outro, nada nos garante que o auxílio se manifeste aqui...

– Perfeito! – interrompeu Trumpkin.

– É possível – prosseguiu o sábio – que eles ou ele voltem a alguns dos velhos lugares de Nárnia. Este, onde nos encontramos agora, é o mais antigo e mais sagrado de todos, pelo que me parece provável que a resposta ao nosso apelo se concretize aqui. Mas não devemos esquecer dois outros. Um é o Ermo do Lampião perto da nascente do rio, a leste do Dique dos Castores. Segundo reza a lenda, foi aí que as crianças reais entraram em Nárnia. O outro é junto à foz desse mesmo rio, no local onde outrora se ergueu Cair Paravel. Se o próprio Aslam vier ao nosso encontro, será esse o local mais adequado para recebê-lo, pois em todas as lendas ele é filho do grande Imperador-de-Além-Mar. Quando vier, sem dúvida surgirá do mar. Seria bom que enviássemos mensageiros a esses dois lugares, para recebê-lo... ou recebê-los. – Já esperava por isso! – resmungou Trumpkin. – O resultado de toda essa tolice será perder dois soldados, em vez de obter auxílio.

– Os esquilos são ideais para cruzar o território inimigo – disse o texugo.

– Todos os nossos esquilos (e não são tantos assim!) são assustadiços – disse Nikabrik. – Farfalhante é o único no qual se pode confiar.

– Pois que se mande Farfalhante – decidiu Caspian. – E quem será o outro? Sei que você estaria pronto para partir, Caça-trufas, mas é muito lento. E o doutor também.

– Eu é que não entro nessa! – declarou Nikabrik. – Com todos esses humanos e animais por aqui, tenho de ficar para ver se os anões são bem tratados.

– Cale a boca! – gritou Trumpkin, colérico. – É assim que se fala ao rei? Se quer que eu seja o mensageiro, Real Senhor, estou pronto para partir.

– Mas, Trumpkin, pensei que você não acreditava na trompa... – disse Caspian.

– E não acredito mesmo! Mas o que uma coisa tem a ver com a outra? Sei quando se trata de dar um conselho ou de receber uma ordem.

– Nunca me esquecerei de sua nobre atitude, Trumpkin. Chamem Farfalhante aqui imediatamente. Quando devo tocar a trompa?

– Aconselho que espere o nascer do sol – disse o doutor Cornelius. – A madrugada costuma ser favorável às operações de magia branca.

Passados alguns instantes chegava Farfalhante, a quem explicaram o que tinha a fazer. Como à maior parte dos esquilos, não lhe faltava nem coragem, nem entusiasmo, nem energia, nem espírito de aventura (para não falar em vaidade); mal fora informado de sua tarefa, ficou louco para partir. Resolveu-se que iria para o Ermo do Lampião, enquanto Trumpkin faria o percurso mais curto até a foz do rio. Partiram com os votos de boa sorte do rei, do texugo e do doutor.

 

A PARTIDA DA ILHA

Trumpkin continuou... Você já percebeu que era ele quem, sentado na relva do salão em ruínas de Cair Paravel, estava contando a história para as quatro crianças:

– E assim meti no bolso um naco de pão e, só com o meu punhal, parti de madrugada na direção dos bosques. Já caminhava havia horas, quando ouvi um som diferente de tudo quanto ouvira até ali. E nunca mais me esqueci! Um som vibrante, forte como o estrondo do trovão, mas muito mais prolongado; melodioso e doce como a música sobre a água, mas com intensidade bastante para estremecer os bosques. Ao ouvi-lo, disse para mim mesmo: “Macacos me mordam, se isto não é a trompa!” E fiquei imaginando por que Caspian não a teria tocado mais cedo...

– A que horas foi isso? – perguntou Edmundo.

– Entre nove e dez.

– Exatamente a essa hora estávamos nós na estação – disseram as crianças, entreolhando-se com os olhos brilhantes de excitação.

– Por favor, continue – pediu Lúcia ao anão.

– Bem, como ia dizendo, fiquei pensando mas fui em frente, o mais depressa que podia. Andei a noite toda e, hoje de manhãzinha, quando começava a clarear, comportando-me como um gigante imbecil, resolvi encurtar caminho. Para evitar uma curva enorme do rio, meti-me a campo descoberto. Foi aí que me pegaram. Não caí prisioneiro do exército, mas de um idiota metido a besta, que toma conta de um pequeno castelo perto da costa, último reduto de Miraz. Não preciso dizer que não arrancaram de mim uma única palavra, mas eu era um anão, e isso bastava. Mas, com trinta diabos, foi uma sorte o oficial ser um bestalhão cheio de prosa. Outro qualquer teria acabado comigo ali mesmo. Ele, porém, só se contentaria com uma execução grandiosa: entregar-me aos fantasmas, com toda a pompa. Mas esta jovem (fez com a cabeça um sinal indicando Susana) recorreu à arte do arqueiro – que bela pontaria, parabéns! – e aqui estamos todos, sãos e salvos. No meio disso tudo, só perdi a armadura. Tendo chegado ao fim, o anão sacudiu o cachimbo e tornou a enchê-lo cuidadosamente.

– Fabuloso! – exclamou Pedro. – Então foi a trompa... a sua trompa, Su.. que ontem de manhã nos arrancou do banco da estação! É difícil acreditar nisso, mas a verdade é que tudo se encaixa...

– Não sei por que é difícil de acreditar, se você acredita em magia – disse Lúcia. – Não há tantos casos em que por magia as pessoas são chamadas a sair de um lugar... até a passar de um mundo para outro? Nas Mil e uma noites, quando o mago conjura o gênio, ele tem de aparecer. Foi mais ou menos o que aconteceu conosco.

– Exato – concordou Pedro. – Mas o que faz isso parecer tão estranho é que, nas histórias, é sempre alguém do nosso mundo que faz o chamado... E ninguém realmente pára pra pensar de onde vem o gênio.

– E agora podemos compreender como o gênio se sente – disse Edmundo, com uma gargalhada. – Caramba! Não é muito agradável saber que podemos estar à mercê de um assovio. Ainda é pior do que ser escravo do telefone, como papai se queixa tanto.

– Mas não estamos aqui de má vontade, desde que seja esta a vontade de Aslam – disse Lúcia.

– E agora? Que vamos fazer? – perguntou o anão. – Acho que o melhor seria dizer ao rei Caspian que afinal o auxílio não veio...

– Não veio, o quê! Essa é boa! Veio sim senhor, e aqui estamos nós!

– Bem... que estão aí, estão... Mas acho que... – gaguejou o anão, cujo cachimbo parecia estar entupido (pelo menos ele fingia estar muito ocupado limpando-o). – Mas... bem... quer dizer...

– Mas ainda não percebeu quem somos nós? – gritou Lúcia. – Que anão mais bobo!

– Devem ser as quatro crianças da lenda – disse Trumpkin. – Tenho muito prazer em conhecê-los, é claro. Não há dúvida de que este encontro é muito interessante... Mas, sem querer ofender... – e voltou a ficar hesitante.

– Vá em frente e diga o que tem a dizer – falou Edmundo, impaciente.

– Bem, não fiquem ofendidos... Mas, como já disse, o rei, Caça-trufas e o doutor Cornelius esperavam por auxílio. Não sei se estão me entendendo... Para falar mais claro: eles imaginavam vocês como grandes guerreiros. Não sendo assim... bem, nós adoramos crianças, mas a esta altura... em plena guerra... acho que vocês estão entendendo...

– Ah, você pensa que não agüentamos uma gata pelo rabo, não é? – disse Edmundo, corando muito.

– Por favor, não fique zangado! – interrompeu o anão. – Asseguro-lhes, caros amiguinhos...

– E ainda trata a gente por amiguinhos?! É demais! – protestou Edmundo, levantando-se de um pulo. – Não acredita então que fomos nós que ganhamos a batalha do Beruna? Bem, de mim pode dizer o que quiser, mas a verdade...

– Não vale a pena discutir – disse Pedro. Vamos à sala do tesouro arranjar uma armadura nova para ele e armas para nós. Depois conversamos.

– Isso não adianta... – começou Edmundo. Lúcia disse-lhe baixinho:

– Melhor fazer o que Pedro está dizendo. Ele é o Grande Rei e tem decerto uma idéia.

Edmundo concordou e, à luz da lanterna, todos (inclusive Trumpkin) desceram as escadas e penetraram na escuridão gelada, ao encontro das riquezas empilhadas na sala do tesouro.

Os olhos do anão brilharam ao ver prateleiras e prateleiras cheias de tesouros (embora tivesse de andar na ponta dos pés para ver alguma coisa) e disse para si mesmo: “Nunca Nikabrik ouviu falar de tanta riqueza, nunca!”

Não foi difícil encontrar uma cota de malha para o anão, elmo e escudo, arco e aljava, tudo do tamanho dele. O elmo era de cobre, incrustado de rubis; o punho da espada era de ouro. Trumpkin jamais vira coisas tão ricas, nem tampouco sonhara usá-las um dia. As crianças também vestiram cotas de malha e puseram elmos. Escolheram depois uma espada e um escudo para Edmundo e um arco para Lúcia... Pedro e Susana não precisavam, porque tinham os presentes. Quando subiram as escadas, ouvindo o tilintar das armaduras e sentindo-se mais narnianos do que meninos de colégio, os rapazes ficaram para trás, combinando qualquer coisa. Lúcia ouviu Edmundo dizer:

– Não, deixe comigo!

– Está bem, Ed – concordou Pedro. Quando chegaram lá fora, Edmundo voltou-se delicadamente para o anão:

– Tenho uma proposta a fazer. Não é todo dia que meninos da minha idade encontram um grande guerreiro como você. Quer fazer um pouco de esgrima? Acho que não há nada de mal...

– Mas, garoto, estas espadas estão afiadas...

– Sei disso! Mas não tenho a intenção de me aproximar, e você saberá como me desarmar sem me ferir.

– É uma brincadeira perigosa – objetou Trumpkin – mas, já que insiste, vamos lá!

Num abrir e fechar de olhos, desembainharam as espadas, enquanto os outros três pulavam do estrado, para ver o que aconteceria. E valia a pena. Porque não era um daqueles ridículos combates à espada, que a gente vê no cinema. Nem mesmo uma daquelas lutas de florete, que costumam ser um pouco melhores. Não, era um verdadeiro combate à espada. O principal num encontro desses é atacar as pernas e os pés do inimigo, visto serem as únicas partes do corpo sem armadura. E, quando o outro faz o mesmo, o jeito é pular, para que os golpes passem por baixo. Para o anão isso foi uma vantagem, pois Edmundo, sendo muito mais alto, tinha de abaixar-se a todo momento. E não acho que Edmundo teria tido alguma chance de ganhar, caso tivesse enfrentado Trumpkin vinte e quatro horas antes. Mas, desde que tinham chegado à ilha, a atmosfera de Nárnia estava atuando sobre ele; o entusiasmo dos antigos combates invadiu-o nos braços e nos dedos, e voltou a sentir a antiga destreza. Era outra vez o rei Edmundo! Os golpes seguiam-se, obrigando os combatentes a se moverem em círculo, e Susana, que nunca conseguira habituar-se a esse gênero de coisas, gritava:

– Cuidado! Cui-da-do!

A certa altura, num movimento tão rápido que ninguém conseguiu ver bem o lance (a não ser Pedro, que já sabia o que ia acontecer), Edmundo, dando um jeito especial à espada, desarmou o anão, deixando Trumpkin a esfregar a mão vazia, como a gente faz depois de ser picado por uma abelha.

– Espero que não tenha se machucado, amigo! – disse Edmundo, ainda um pouco ofegante, ao guardar a espada na bainha.

– Agora estou entendendo. – disse Trumpkin, secamente. – Você sabe um truque que eu não sei.

– É pura verdade – apressou-se a concordar Pedro. – O melhor espadachim do mundo não resiste a um golpe desconhecido. Por isso, acho justo que se dê a Trumpkin uma oportunidade, em qualquer outra coisa. E se fosse tiro ao alvo, ali com a minha irmã? Não pode haver truque!

– Estou vendo que vocês gostam de se divertir. Como se eu não conhecesse a pontaria dela depois do que aconteceu hoje de manhã! Mas, vá lá! Quero ver.

Falou como quem está mal-humorado, mas seus olhos brilhavam, porque, entre os seus, era atirador famoso.

Foram os cinco para o pátio.

– Qual é o alvo? – perguntou Pedro.

– Pode ser aquela maçã naquele ramo em cima do muro – propôs Susana.

– Perfeitamente! – concordou o anão. – E aquela amarelinha no meio do arco, não é?

– Não, aquela não! – replicou Susana. A outra, a vermelha, lá em cima, sobre as ameias.

O entusiasmo do anão sumiu.

– Parece mais uma cereja! – resmungou consigo mesmo, sem coragem para falar alto.

Jogaram cara ou coroa, para grande admiração do anão, que nunca tinha visto aquilo. Susana perdeu. O lugar escolhido para atirar foi o alto das escadas que conduziam do salão para o pátio. Pelo jeito de o anão tomar posição e preparar o arco, via-se logo que ele sabia o que estava fazendo.

Ziiim! – a corda vibrou. Foi um golpe esplêndido. A maçã estremeceu, quando a flecha roçou por ela e uma folha saiu voando. Susana foi para o alto das escadas e segurou o arco. Não estava tão à vontade como Edmundo na competição anterior. Não que sentisse medo de errar, mas era tão boa que lhe custava derrotar alguém que já tinha sido derrotado. Enquanto erguia o arco à altura do rosto, o anão não tirou os olhos dela. Um instante depois, com um barulhinho seco, perfeitamente audível, a maçã trespassada pela flecha tombava na relva.

– Sensacional, Su! – gritaram as crianças.

– Não é que a minha pontaria seja melhor do que a sua – disse Susana para o anão. – É que havia uma brisa soprando quando você atirou.

– Não havia brisa coisa nenhuma! – disse Trumpkin. – Não precisa se desculpar. Sei muito bem quando sou derrotado com lealdade. Logo que eu ficar bom do braço, nem vou me lembrar mais do ferimento...

– O quê! Está ferido? – perguntou Lúcia. – Mostre-me.

– Não é espetáculo para menininhas – começou Trumpkin, mas calou-se logo. – Já estou dizendo bobagens outra vez. Afinal, quem me garante que você não é uma excelente enfermeira, assim como seu irmão é um grande espadachim e sua irmã uma fabulosa arqueira?

Sentou-se num degrau, tirou a cota de malha, arregaçou a manga da camisa, mostrando um braço peludo e musculoso como o de um marinheiro em miniatura. Lúcia começou a tirar a ligadura que desajeitadamente envolvia o ombro do anão. O ferimento tinha um mau aspecto, e o braço estava muito inchado.

– Pobre Trumpkin! – exclamou ela. – Isto está muito ruim.

Com cuidado, deixou cair sobre a ferida uma gota do precioso elixir do frasco.

– Ei, o que é isso?! – perguntou Trumpkin, que, por mais que voltasse a cabeça e revirasse os olhos e sacudisse a barba, não conseguia ver o ombro. Sentia-se agora perfeitamente bem, conseguindo fazer com os braços e com os dedos movimentos difíceis, como se sentisse cócegas num lugar inatingível. Por fim gritou:

– Com trinta mil demônios! Parece novinho em folha! – E desandou a rir, dizendo: – Nunca um anão fez um papel tão imbecil quanto eu hoje. Apresento minhas humildes homenagens a Vossas Majestades. Agradeço-lhes terem salvo a minha vida, tratado do meu braço, o almoço, e agradeço também a lição que me deram.

Não havia nada a agradecer, disseram as crianças.

– Se agora está disposto a acreditar em nós... – disse Pedro.

– Claro que estou! – falou o anão.

– Então sabemos o que temos de fazer – continuou Pedro. – Devemos ir logo ao encontro do rei.

– Quanto mais depressa, melhor! – concordou o anão. – A minha burrice já nos fez perder uma hora.

– Se formos pelo caminho por onde você veio, serão uns dois dias de viagem – disse Pedro. – Para nós, é claro, pois não conseguimos andar dia e noite como os anões. – E voltando-se para os outros acrescentou: – O que Trumpkin chama de Monte de Aslam é, sem dúvida, a Mesa de Pedra. A gente andava uma manhã toda, talvez um pouco menos, para ir dali às margens do Beruna... Lembram-se?

– Ponte do Beruna – interrompeu o anão.

– No nosso tempo não havia ponte. E do Beruna até aqui era mais de um dia. Andando a passo normal, a gente costumava chegar no segundo dia, mais ou menos na hora do lanche. Com um pouco de esforço, talvez possamos fazer o caminho em um dia e meio.

– Não se esqueçam: agora é tudo floresta – disse Trumpkin – , e temos de evitar o inimigo.

– Mas será que precisamos seguir o caminho por onde veio o nosso caro amiguinho? – perguntou Edmundo.

– Pare com isso, Majestade, se me quer bem – implorou o anão.

– Pois não – concordou Edmundo. – Posso então chamá-lo de N.C.A.?

– Está bem, menino... quero dizer, Majestade – disse Trumpkin, com uma gargalhada. – E, a partir daí, muitas vezes o trataram por N.C.A., até quase se esquecerem do que significava.

– Mas, como ia dizendo – continuou Edmundo – , acho que podemos ir por outro caminho. Por que não vamos de barco em direção à baía do Espelho d’Água e seguimos depois lá por cima? Sairíamos por trás da colina da Mesa de Pedra e, ao menos enquanto estivéssemos no mar, estaríamos seguros. Se partirmos imediatamente, poderemos chegar ao Espelho d’Água antes do anoitecer, descansar ali um pouco e estar com Caspian amanhã de manhã.

– Não há nada como conhecer a costa – disse Trumpkin. – Nunca tinha ouvido falar do Espelho d’Água.

– E quanto à comida? – perguntou Susana.

– Teremos de nos contentar com maçãs – disse Lúcia. – Mas vamos embora! Há quase dois dias que estamos aqui e ainda não fizemos nada.

– Mas fiquem sabendo desde já que meu chapéu não servirá mais de cesto para peixe. Arranjem-se como quiserem! – declarou Edmundo.

Com uma capa de chuva fizeram uma espécie de saco, que encheram de maçãs. Depois, foram beber água no poço, porque só no Espelho d’Água voltariam a encontrar água doce. E seguiram para o barco. As crianças tiveram pena de deixar Cair Paravel, porque, mesmo em ruínas, sentiam-se bem lá.

– É melhor que N.C.A. fique no leme – sugeriu Pedro. – Ed e eu tomaremos conta dos remos. Um momento... Será melhor tirarmos as armaduras, senão daqui a pouco estaremos suando. As meninas vão na proa, para darem indicações ao N.C.A., pois ele não conhece a costa. Melhor pegar o mar alto até termos passado a ilha.

Daí a pouco, a costa arborizada e verdejante foi ficando para trás. As pequenas baías e cabos pareciam cada vez menores, e o barco vagava acompanhando a suave ondulação. O mar começou a alargar, e, se a distância a água parecia agora mais azul, perto era verde e borbulhante. Tudo cheirava a sal, e só se ouvia o chapinhar dos remos e o deslizar da água, que batia – clope-clope – contra os lados do barco. O sol começou a ficar quente.

Lúcia e Susana, na proa, se deliciavam brincando, tentando em vão enfiar as mãos dentro d’água. Embaixo via-se a areia branca, colorida às vezes de algas vermelhas.

– Tudo como antigamente! Você lembra quando fomos a Terebíntia... e a Galma... e às Ilhas Solitárias... e às Sete Ilhas...?

– Se me lembro! E me lembro também do nosso barco, o Esplendor Hialino, com a cabeça de cisne na proa e as longas asas entalhadas que chegavam quase ao meio do barco...

– Lembra das velas de seda? E dos grandes lampiões da popa?

– E das festas no convés? E dos músicos?

– E daquela vez em que os músicos foram tocar flauta no alto dos mastros e a música parecia vir do céu?

Passado algum tempo, Susana tomou o lugar de Edmundo no remo, e este foi sentar-se perto de Lúcia. Tinham passado a ilha e aproximavam-se agora da costa arborizada e deserta. Se não se lembrassem do tempo em que era aberta ao mar e

sempre cheia de amigos, é possível que a tivessem achado muito bonita.

– Puxa! Isso acaba com um homem! – disse Pedro.

– Posso remar um pouquinho? – perguntou Lúcia.

– Os remos são grandes demais para você – foi só o que Pedro disse, não porque estivesse aborrecido, mas porque não podia gastar energia falando.

 

O QUE LÚCIA VIU

Susana e os dois meninos estavam exaustos quando dobraram o último cabo, iniciando a etapa final rumo ao Espelho d’Água. Os reflexos na água e as longas horas ao sol tinham provocado em Lúcia uma tremenda dor de cabeça. Até Trumpkin estava ansioso pelo fim da viagem. O banco em que ia sentado junto ao leme fora feito para homens, e não para anões, de modo que não chegava com os pés ao chão. E todo mundo sabe como é incômodo ficar dez minutos sentado com os pés no ar. Quanto mais cansados, mais desanimados ficavam. Até esse momento, só tinham pensado em como alcançar Caspian. Agora já imaginavam o que haveriam de fazer quando o encontrassem e como é que anões e criaturas dos bosques poderiam derrotar um exército de humanos.

Enquanto contornavam lentamente as baías do Espelho d’Água, o crepúsculo ia descendo – crepúsculo que se adensava à medida que as margens se aproximavam e as copas das árvores se tocavam. O murmúrio do mar morria à distância, e reinava uma calma tão perfeita que se ouvia o deslizar dos fios de água que, vindos da floresta, se lançavam no Espelho d’Água.

Finalmente pularam para terra, tão cansados que nem pensaram em acender uma fogueira. Uma ceia de maçãs (embora não quisessem mais ver maçãs na sua frente) parecia-lhes melhor do que caçar ou pescar. Comeram em silêncio e deitaram-se sobre o musgo e as folhas secas, entre quatro grandes árvores.

Não tardou que adormecessem todos, menos Lúcia. Como não estava tão cansada quanto os outros, não conseguiu arranjar uma posição cômoda. Além disso, tinha-se esquecido de que todos os anões roncam. Sabia que para adormecer não há nada como deixar de se esforçar para isso; assim, abriu os olhos. Por entre os ramos avistava apenas uma mancha de água e o céu em cima. Então, numa vibração de memória, voltou a ver, depois de tantos anos, as estrelas cintilantes de Nárnia. Conhecera-as antigamente, melhor do que as estrelas do nosso mundo, porque, como rainha de Nárnia, costumava deitar-se muito mais tarde do que como criança na Inglaterra. E lá estavam elas agora. Distinguia pelo menos três constelações de verão: o Navio, o Martelo e o Leopardo.

– Querido Leopardo! – murmurou, feliz.

Mas, em vez de adormecer, estava cada vez mais desperta... desperta daquela forma estranha e sonhadora, como se está às vezes em plena noite. E o Espelho d’Água brilhava cada vez mais. Embora não visse a lua, sabia que se refletia nele. Lúcia começou a sentir que, com ela, toda a floresta despertava. Quase sem saber o que fazia, levantou-se rapidamente e afastou-se um pouco.

– Que lindo!

O ar estava fresco, e no ar pairavam aromas deliciosos. Ali pertinho, um rouxinol começou a cantar, parou, recomeçou. Um pouco adiante estava mais claro. Lúcia avançou para a luz e chegou a um lugar onde havia poucas árvores, mas muitas manchas de luar. O luar e as sombras penetravam-se de tal modo que se tornava difícil dizer onde estava uma coisa ou a outra. Nesse mesmo instante, o rouxinol, satisfeito com o ambiente, rompeu em pleno canto.

Lúcia foi-se habituando à luz e via agora quase distintamente as árvores mais próximas. Invadiu-a enorme saudade dos tempos em que as árvores de Nárnia falavam. Sabia exatamente como é que cada uma daquelas árvores falaria, se ela tivesse o poder de despertá-las, e que forma humana assumiria. Olhou para uma bétula prateada: teria uma voz doce e cascateante e seria uma mocinha esbelta, com longos cabelos esvoaçando à volta do rosto, e que gostava de dançar. Olhou depois para o carvalho: velhote, alegre, de cabelo grisalho e barba frisada, rosto e mãos cheios de verrugas donde brotavam pêlos. Depois olhou para a faia, debaixo da qual parará, e pensou que seria ela a mais bela de todas – uma deusa graciosa, suave e imponente, a senhora dos bosques.

– Oh, árvores! – exclamou Lúcia (embora sua intenção não fosse falar). – Vamos acordar, árvores! Não se lembram mais? Será possível que não se lembram mais de mim? Dríades e hamadríades, acordem para falar comigo!

Não soprava a mais leve aragem, mas as árvores estremeceram, e o sussurrar das folhas era como um murmúrio de palavras. O rouxinol calou-se.

Lúcia sentiu que de um momento para outro seria capaz de compreender a linguagem das árvores. Mas esse momento não veio, e o murmúrio foi-se desvanecendo. O rouxinol recomeçou o canto. Embora inundado de luar, o bosque perdera o encanto. Lúcia teve a sensação (tão freqüente, quando se tem um nome ou uma data na ponta da língua e que não se consegue lembrar) de ter perdido alguma coisa por um triz: como se, por uma fração de segundo, tivesse dirigido o seu apelo às árvores cedo ou tarde demais, ou como se tivesse proferido todas as palavras certas, menos uma, ou tivesse acrescentado uma palavra errada.

De repente, começou a sentir-se cansada. Voltou ao lugar onde tinham acampado, aninhou-se entre Susana e Pedro e, dentro em pouco, dormia a sono solto.

Na manhã seguinte o despertar foi triste e desconfortável. O sol ainda não nascera e, na luz cinzenta da madrugada, os bosques surgiam, úmidos e sujos.

– Viva a maçã! – gritou Trumpkin com um trejeito gaiato. – Tenho de concordar que os reis e as rainhas de antigamente não estragam os cortesãos com agradinhos!

Levantaram-se, sacudiram-se e olharam em torno. O bosque era espesso. Para onde quer que olhassem, não conseguiam ver mais do que uns metros adiante do nariz.

– Suponho que Vossas Majestades conheçam bem o caminho – disse o anão.

– Eu não! – exclamou Susana. – Nunca vi esses bosques na minha vida. Sempre achei que deveríamos ter ido pelo rio.

– Devia ter falado isso na hora – disse Pedro, com perdoável impaciência.

– Ora, não ligue para o que ele está dizendo! – interrompeu Edmundo. – Susana não tem o menor sentido de orientação. Está com a bússola aí, Pedro? Ora, vejam. Estamos certinhos. É só continuar para noroeste... atravessar aquele riozinho... como é mesmo?... O Veloz, não é isso?

– É, o Veloz – concordou Pedro. – Aquele afluente do Grande Rio.

– Isso. Atravessa-se o rio, sobe-se a encosta, e lá pelas oito ou nove horas estamos na Mesa de Pedra, isto é, no Monte de Aslam. Espero que o rei Caspian nos ofereça um bom almoço!

– Se Deus quiser! – disse Susana. – A verdade é que não me lembro nada disso aqui.

– Mulher é assim – disse Edmundo, voltando-se para Pedro e para o anão – , nunca consegue guardar um mapa na cabeça.

– É porque já temos a cabeça cheia de outras coisas – replicou Lúcia.

A princípio tudo correu muito bem. Julgaram a certa altura ter encontrado um velho atalho. Se você entende alguma coisa de floresta, sabe que a todo momento a gente julga ter descoberto um atalho imaginário. Passados cinco minutos, o tal atalho desaparece, mas logo a seguir vem outro (que a gente espera que não seja outro, mas uma continuação do primeiro), volta a desaparecer, e, só quando já estamos de todo desnorteados, compreendemos que afinal não eram atalhos coisa nenhuma. Os rapazes e o anão, porém, muito acostumados à floresta, só por momentos se deixavam iludir.

Caminhavam havia cerca de meia hora (e três deles ainda tinham o corpo dolorido de remar), quando Trumpkin, de repente, disse baixinho:

– Parem! – todos pararam. – Estamos sendo seguidos – continuou, sempre em voz baixa. – Ou melhor, há alguém que nos acompanha ali do lado esquerdo.

Ficaram imóveis, esforçando-se para ouvir ou ver qualquer coisa.

– É melhor prepararmos as flechas – disse Susana ao anão. Trumpkin fez com a cabeça um sinal de assentimento e, quando os dois estavam prontos, a caravana voltou a marchar.

Muito atentos, avançaram uns metros por uma parte da floresta em que as árvores cresciam afastadas. Assim chegaram a um lugar coberto de arbustos espessos. Ao passarem por um maciço, alguma coisa rosnou, precipitando-se depois como um raio por entre os ramos partidos. Lúcia recebeu um esbarrão e foi derrubada. No momento em que caía, ouviu vibrar uma seta. Quando se recuperou do susto, viu um enorme urso cinzento, de terrível aspecto, trespassado no dorso pela seta de Trumpkin.

– Desta vez, Su, o N.C.A. saiu vencedor! – disse Pedro, com um sorriso amarelo. Porque até ele ficara um tanto abalado com a aventura.

– Atirei tarde demais – justificou-se Susana muito embaraçada. – Tive medo que fosse um daqueles ursos... sabe?... um daqueles que falam.

A verdade é que ela tinha horror a matar, fosse o que fosse.

– Pois aí é que está o problema! – concordou Trumpkin. Os animais, na sua maioria, ficaram mudos e tornaram-se inimigos. Nunca se sabe de que gênero são; se a gente espera, pode ser tarde demais.

– Coitado do urso! – murmurou Susana. – Acha que ele era dos maus?

– Claro que sim! – disse o anão. – Vi bem o focinho dele e ouvi seu rosnado. O que ele queria era uma garotinha para o café da manhã. E, a propósito, não quis desanimar Vossas Majestades, quando disseram há pouco que esperavam que Caspian lhes desse um bom almoço. Mas agora devo dizer que, no acampamento, a carne não costuma ser muito farta. E carne de urso não é nada má! Seria uma vergonha deixar aí a carcaça sem levar um pedaço; isso pode levar no máximo meia hora. Espero que os dois rapazes, quero dizer, reis... saibam como tirar pele de urso...

– Melhor a gente ficar longe – disse Susana para Lúcia. – Já estou imaginando que horrível espetáculo vai ser isso.

Lúcia concordou, toda arrepiada, e quando se sentaram disse:

– Sabe, Su, acaba de me ocorrer uma idéia terrível.

– O que foi?

– Não seria medonho se um dia, no nosso mundo, os homens se transformassem por dentro em animais ferozes, como os daqui, e continuassem por fora parecendo homens, e a gente assim nunca soubesse distinguir uns dos outros?

– Já temos preocupações que cheguem aqui em Nárnia – disse Susana, sempre muito prática. – Para que inventar ainda outros problemas?

Quando foram encontrar com os outros, estes já tinham cortado toda a carne que podiam carregar. Não é lá nada agradável encher os bolsos de carne crua, mas eles se arranjaram como puderam, embrulhando os nacos em folhas verdes. Sabiam já todos por experiência própria que, depois de uma boa caminhada e caindo de fome, seriam capazes de olhar com olhos gordos para aqueles embrulhos moles e repugnantes.

Continuaram a andar até o sol nascer. Os pássaros começaram a cantar e as moscas (mais do que seria de desejar) a zumbir entre as avencas. Pararam junto do primeiro regato que encontraram para lavar três pares de mãos, que precisavam mesmo ser lavadas. À medida que o cansaço desaparecia, voltava a boa disposição. Quando o sol começou a esquentar, tiraram os elmos da cabeça.

– Acho que estamos no caminho certo, não é?

– perguntou Edmundo, quase uma hora depois.

– Desde que não nos desviemos muito para a esquerda, acho que não haverá erro – declarou Pedro. – E, se formos demais para a direita, o máximo que pode acontecer é encontrarmos o Grande Rio mais abaixo.

Voltaram a avançar, num silêncio quebrado pelos passos e pelo tilintar das cotas de malha.

– Afinal onde se meteu esse maldito Veloz? – perguntou Edmundo, depois de grande silêncio.

– Já esperava que tivesse aparecido – confessou Pedro. – Mas agora não há remédio: é ir em frente.

– Ambos sabiam que o anão estava aflito, embora nada dissesse.

Daí a pouco, começaram a achar que as cotas de malha eram pesadas e aumentavam o calor. Pedro exclamou de repente:

– Que é isso aqui?!

Quase sem perceberem, tinham chegado a um pequeno precipício que se elevava sobre um desfiladeiro, no fundo do qual corria um rio. Do outro lado os rochedos eram imensos. Tirando Edmundo (e talvez Trumpkin), nenhum deles era grande alpinista.

– Desculpem! – disse Pedro. – Foi por minha culpa que viemos por aqui. Perdemos o caminho. Não faço idéia do lugar onde estamos.

O anão começou a assoviar baixinho entre os dentes. Susana disse, impaciente:

– O melhor é voltar e ir pelo outro lado. Sabia que a gente acabaria se perdendo neste mato!

– Susana! – exclamou Lúcia em tom de censura.

– Não vá implicar com Pedro. É feio e, além disso, é injusto. Ele fez o que podia.

– E você não implique com a Su! – interrompeu Edmundo. – Ela tem toda a razão.

– Com seiscentos milhões de macacos! – exclamou Trumpkin. – Se a gente se perdeu vindo, quem vai garantir que a gente não se perca indo? Se temos de voltar à ilha e começar pelo princípio... supondo que sejamos capazes, vou logo dizendo que o melhor é desistir já. De um jeito ou de outro, antes de chegarmos lá, Miraz já terá liquidado Caspian.

– Acha então que devemos continuar? – perguntou Lúcia.

– Não estou convencido de que o Grande Rei se tenha enganado – disse Trumpkin. – Afinal, por que aquele rio não pode ser o Veloz?

– Porque o Veloz não corre num desfiladeiro! Só por isso! – declarou Pedro, fazendo um esforço para não se mostrar irritado.

– Vossa Majestade diz “corre”, mas não seria mais certo dizer “corria”? Conheceu este país há centenas... talvez milhares de anos. Pode muito bem ter mudado. Um desabamento de terra pode ter arrastado parte daquela encosta, deixando a rocha a descoberto e dando origem aos precipícios do outro lado do desfiladeiro. E depois, durante anos e anos, o Veloz foi escavando o leito, até que deste lado se formaram estes pequenos precipícios. Também pode ter havido um tremor de terra ou qualquer coisa parecida.

– Não tinha pensado nisso – disse Pedro.

– De qualquer modo, mesmo que este não seja o Veloz, a verdade é que corre para o Norte e certamente vai desaguar no Grande Rio. Acho que, ao vir, passei por lá. Se formos para a direita, seguindo a corrente, chegaremos ao Grande Rio. Talvez não precisamente no ponto que pretendíamos, mas não será pior do que se tivéssemos vindo por onde eu dizia.

– Bem bolado, Trumpkin – disse Pedro. – Vamos embora! Por aqui, por este lado do desfiladeiro.

– Olhem, olhem! – gritou Lúcia.

– O quê? Onde? – disseram todos.

– O Leão! – disse Lúcia. – Aslam! Vocês não viram? – Estava transfigurada, com os olhos em fogo.

– Você acha mesmo que...? – começou a dizer Pedro.

– Onde você pensa que o viu? – indagou Susana.

– Por favor, não falem como pessoas grandes! – disse Lúcia batendo o pé. – Não penso que vi! Vi mesmo!

– Mas onde, Lu? – perguntou Pedro.

– Lá em cima, entre aquelas roseiras do mato. Não, deste lado do precipício. Lá em cima, não embaixo. Do lado contrário ao que vocês querem ir. Aslam queria que fôssemos por onde ele estava... lá em cima.

– Como é que sabe o que ele queria? – perguntou Edmundo.

– Bem... ele... pela cara dele!

Perplexos, os outros entreolharam-se em silêncio.

– Pode ser muito bem, Real Senhora, que tenha visto um leão – disse Trumpkin. – Dizem que há leões nestas florestas. Mas quanto a ser um leão amigo, daqueles que falam, sei lá: pode ser como o urso...

– Que besteira! – exclamou Lúcia. – Acha que não sou capaz de reconhecer Aslam se o vir?

– Se é um conhecido de outros tempos, deve estar bastante velho! – replicou Trumpkin. – E, ainda que seja o mesmo, quem é que nos garante que não se tenha tornado feroz como tantos outros?

Lúcia ficou vermelha de raiva. Se Pedro não a segurasse pelo braço, teria caído em cima do anão.

– O N.C.A. não entende. E como haveria de entender? Você tem de partir de um princípio, Trumpkin: nós realmente conhecemos Aslam... um pouco, é claro. E não deve mais falar dele desse jeito. Em primeiro lugar, não é coisa que lhe dê boa sorte. Além disso, é asneira grossa. O problema é saber se Aslam estava de fato lá em cima.

– Mas eu tenho certeza! – gritou Lúcia, com os olhos cheios de lágrimas.

– Ora, Lúcia, você tem certeza, mas nós não temos! – disse Pedro.

– O melhor é pôr em votação – propôs Edmundo.

– Apoiado! – concordou Pedro. – O N.C.A. é o mais velho. Seu voto: vamos por cima ou por baixo?

– Por baixo. Não entendo nada de Aslam. Mas sei que, se voltarmos à esquerda e formos lá por cima, poderemos andar um dia inteiro sem conseguir passar para o outro lado. Mas, se cortarmos pela direita e seguirmos por baixo, em poucas horas estaremos no Grande Rio. Além disso, se há mesmo leões, acho que é mais interessante fugir do que ir ao encontro deles.

– Qual a sua opinião, Susana?

– Não fique zangada, Lu, mas acho que realmente é melhor ir por baixo... Estou muito cansada, e o que me interessa é sair quanto antes desta mata horrível. E, para dizer a verdade, só você, ninguém mais, viu alguma coisa!

– Você, Edmundo?

– Bem, há uma coisa a considerar – disse Edmundo, falando depressa, muito corado. – Quando descobrimos Nárnia, há um ano... ou há mil, sei lá... foi justamente Lúcia quem descobriu primeiro, e nós não quisemos acreditar nela. Eu fui o pior, sei disso. Ora, ela tinha razão. Não seria justo que desta vez acreditássemos? Por mim, proponho que se vá por cima.

– Oh, Ed! – exclamou Lúcia, agarrando-lhe as mãos.

– É sua vez, Pedro – disse Susana – e espero que...

– Cale a boca... deixe-me pensar! Prefiro não votar.

– Você é o Grande Rei – censurou Trumpkin.

– Vamos por baixo – disse Pedro, depois de longo silêncio. – Pode ser que Lúcia tenha razão, mas não tenho certeza. Mas temos de decidir uma coisa ou outra.

Assim puseram-se a caminho, seguindo a corrente do rio pela margem direita. Lúcia ia atrás de todos, chorando amargamente.

 

O RETORNO DO LEÃO

Seguir à beira do precipício não era tão fácil como parecia. Mal tinham andado alguns metros, encontraram pela frente abetos novos. Depois de terem gasto uns bons dez minutos a querer avançar de rastos, compreenderam que, naquele passo, levariam uma hora para cobrir pouco mais de meio quilômetro. Voltaram atrás e resolveram contornar o pinhal. Foram sair muito para a direita, num lugar de onde não avistavam os penhascos nem ouviam o rio, e receavam tê-lo perdido de todo. Ninguém sabia que horas eram, mas o calor estava no auge.

Quando conseguiram por fim chegar à beira do desfiladeiro (cerca de quilômetro e meio abaixo do ponto de partida), viram que os rochedos ali eram muito menores e mais recortados. Não tardou que encontrassem um caminho, que os levou ao fundo do desfiladeiro, continuando depois pela margem do rio. Antes pararam para descansar e beber água. Já ninguém falava na possibilidade de almoçar ou mesmo jantar com Caspian.

Fora acertada talvez a decisão de seguirem o Veloz, em vez de irem lá por cima. Assim tinham a certeza do rumo; desde que se tinham perdido no pinhal, o que mais receavam era afastarem-se do caminho e se perderem na floresta. Era uma velha floresta, sem caminhos, onde não se podia pensar em seguir em linha reta. A todo o momento, maciços de arbustos, árvores caídas, charcos pantanosos e uma densa vegetação rasteira cortavam o avanço. Mas o desfiladeiro também não era convidativo para viajantes, isto é, nada agradável para gente apressada. Para um passeio ou um piquenique seria maravilhoso. Nada faltava ali das coisas que dão encanto a um momento desses: cascatas prateadas, profundos lagos nacarados, penedos musgosos, avencas de todos os tipos, insetos coloridos; de vez em quando, um falcão voando alto e até (pelo menos foi o que pensaram Pedro e Trumpkin) uma águia. E claro que agora queriam encontrar o mais depressa possível o Grande Rio, o Beruna e o caminho para o Monte de Aslam.

À medida que avançavam, o Veloz se fazia mais caudaloso. A viagem perdeu o ar de passeio e começou a parecer cada vez mais uma escalada, bem perigosa aqui e ali, pois tinham de passar sobre rochas escorregadias, que ameaçavam precipitá-los em abismos tenebrosos, do fundo dos quais se elevava o rugido furioso do rio.

Você não calcula com que ansiedade observavam os rochedos à esquerda, à procura de um caminho por onde pudessem subir; mas os rochedos permaneciam fechados, sem piedade.

Era de enlouquecer, tanto mais porque sabiam que, se saíssem do desfiladeiro, teriam à esquerda uma encosta suave, e pouco precisariam andar para se juntar a Caspian.

O anão e os meninos achavam que era hora de parar para acender uma fogueira e assar um pouco de carne. Susana se opunha. Só pensava em “ir em frente e acabar logo com tudo aquilo, saindo daquelas malditas matas!” Lúcia estava tão cansada e deprimida que nem chegava a ter opinião. Aliás, como ali não havia lenha seca, pouco valia a opinião de cada um. Esfomeados, os jovens chegaram a perguntar se a carne crua seria mesmo tão repugnante como se diz. O anão garantiu-lhes que sim.

– Finalmente! – exclamou Susana.

– Oba! – exclamou Pedro.

O rio acabava de fazer uma curva, e se desenrolava diante deles um vasto panorama. Rasgava-se a seus pés o campo descoberto, que alcançava a própria linha do horizonte, e a separá-los dele a larga fita prateada do Grande Rio. Reconheceram o sítio largo e baixo a que outrora chamavam de Passo do Beruna e por sobre o qual se elevava agora uma grande ponte com muitos arcos. Do outro lado da ponte via-se uma pequena cidade.

– Ora, viva! – exclamou Edmundo. – Foi ali que travamos a batalha do Beruna.

Essa idéia, mais do que outra qualquer, animou o grupo. Pois ninguém pode deixar de sentir-se mais forte em face do lugar onde, séculos antes, teve uma vitória retumbante, para não se falar de um reino. Passado um pouco, Pedro e Edmundo estavam de tal modo entusiasmados a discutir a batalha que se esqueceram dos pés doloridos e do peso incômodo das cotas de malha. O entusiasmo contagiara o anão.

O caminho parecia-lhes agora mais suave, e avançavam todos com o passo mais rápido. Ainda que à esquerda continuassem a ver somente penhascos, à direita o terreno ia ficando cada vez menos acidentado. Não tardou que o desfiladeiro se transformasse num vale. Depois desapareceram as quedas-d’água e voltaram a penetrar em floresta fechada.

Aí... de repente... zzzt! E logo em seguida um ruído que parecia coisa de pica-pau. As crianças, espantadas, se perguntavam onde é que (havia anos e anos) tinham ouvido um som parecido, e por que este lhes desagradava tanto, quando Trumpkim gritou:

– Todo mundo no chão!

No mesmo instante o anão obrigou Lúcia (era quem estava mais perto) a deitar-se sobre as avencas. Pedro, que estivera olhando para todos os lados, para ver se descobria um esquilo, viu do que se tratava: uma longa seta, passando-lhe por cima da cabeça, fora cravar-se no tronco de uma árvore. No momento em que obrigava Susana a deitar-se e se atirava ele próprio ao chão, outra seta raspou-lhe o ombro e cravou-se na terra.

– Depressa! Vamos fugir de rastos! – repetia Trumpkin, ofegante.

Voltaram-se e, ocultando-se nas avencas, rastejaram colina acima, perseguidos por verdadeira nuvem de moscardos, que zumbiam sinistramente. As setas cruzavam-se em torno. Com uma vibração metálica, uma foi bater no elmo de Susana, fazendo ricochete. Rastejaram mais depressa, encharcados de suor. Levantaram-se e, quase dobrados em dois, começaram a correr.

Era de matar... ter de subir outra vez a encosta toda, pelo mesmo caminho que tinham percorrido. Quando sentiram que mesmo para salvar a vida não conseguiriam dar nem mais um passo, deixaram-se cair ofegantes no musgo úmido, perto de uma cascata, detrás de um penedo. Ficaram admirados com a distância que tinham conseguido subir.

Nenhum som denunciava que estivessem sendo perseguidos.

– Parece que estamos salvos! – disse Trumpkin, respirando fundo. – Devem ser sentinelas. Agora já sabemos que Miraz tem aqui um posto avançado. Com trinta mil diabos! A coisa está feia!

– Eu merecia ser esfolado vivo por ter trazido vocês por este caminho – disse Pedro.

– De modo algum, Real Senhor – contrariou o

anão. – Até porque foi o seu Real Irmão quem primeiro sugeriu que viéssemos pelo Espelho d’Água.

– O N.C.A. tem razão – concordou Edmundo, que se esquecera completamente disso quando as coisas começaram a correr mal.

– Além disso – continuou Trumpkin – , se tivéssemos ido por onde eu dizia, o mais certo era cairmos direitinho neste novo posto. Ou pelo menos teríamos encontrado a mesma dificuldade em evitá-lo. Pensando bem, este caminho parece o mais seguro.

– Pode ser até uma bênção disfarçada – falou Susana.

– Muito bem disfarçada! – exclamou Edmundo.

– O jeito agora é voltar e subir o desfiladeiro – disse Lúcia.

– Muito bem, Lúcia! – falou Pedro. – Não há maneira mais delicada de dizer: “Eu não falei?”. Vamos.

– E quando chegarmos à floresta, digam lá o que disserem, acendo uma fogueira e faço o jantar – declarou Trumpkin. – Mas temos é de cair fora daqui. Quanto antes!

Nem vale a pena contar o que lhes custou subir o desfiladeiro. Mas, por estranho que pareça, todos se sentiam mais animados. A palavra “jantar” tinha produzido neles um efeito mágico.

Era ainda dia quando chegaram ao pinhal que tantas complicações lhes trouxera e acamparam numa cavidade que ficava por cima. Juntar lenha para a fogueira foi uma tarefa enjoada; mas depois foi esplêndido, quando as labaredas começaram a subir e todos tiraram da bolsa os embrulhos úmidos e engordurados da carne de urso, que teriam parecido repugnantes a quem tivesse passado o dia em casa. O anão era muito bom de culinária. Tinham ainda algumas maçãs: cada uma foi envolvida numa fatia de urso, como se fosse uma torta de maçã – só que, em vez de massa, era uma camada grossa de carne – espetada num pau, para ser assada. O sumo da maçã penetrou na carne, como acontece com a carne de porco com molho de maçã. Quando o urso se alimenta principalmente de outros animais, não é lá muito saboroso, mas quando come muita fruta e mel é pra lá de bom; por feliz coincidência, aquele urso era exatamente desses. Foi uma refeição de lamber os beiços. E no fim nem sequer havia louças para lavar... Deitaram-se, estenderam as pernas e ficaram conversando, observando o fumo que se elevava do cachimbo de Trumpkin. Estavam todos cheios de esperança de encontrar Caspian no dia seguinte; e tinham também a esperança de derrotar Miraz dentro de poucos dias. Claro que toda essa boa disposição não era muito lógica, mas a verdade é que se sentiam felizes.

Não demorou que adormecessem.

Lúcia acordou de um sono profundo, com a sensação de que uma voz (a que mais queria no mundo) a estava chamando. Pensou que talvez fosse a voz do pai, mas não tinha certeza disso. Pensou depois que fosse a de Pedro, mas logo viu que também não podia ser. Não tinha vontade de se levantar, não porque ainda estivesse cansada (pelo contrário, sentia-se extraordinariamente repousada e as dores do corpo tinham desaparecido por completo), mas porque se sentia bem e extremamente feliz. Olhava a lua de Nárnia, que é maior do que a nossa, e o grande céu estrelado, pois tinham acampado num lugar descoberto.

– Lúcia! – ouviu chamar, outra vez, uma voz que não era nem do pai nem de Pedro.

Sentou-se, tremendo de excitação, mas sem medo. O luar brilhava tanto que a paisagem florestal em redor tinha a claridade do dia, embora de aspecto mais fantástico. Por detrás dela ficava o pinhal; à direita, um pouco longe, o desfiladeiro terminava em penedos escarpados; em frente estendia-se um relvado que terminava ao alcance de uma flechada, dando lugar a uma clareira, onde cresciam algumas árvores.

– Parece que estão mexendo! – falou para si mesma. – Estão andando!

Com o coração batendo descompassadamente, levantou-se e avançou para lá. Pairava na clareira um certo murmúrio, como o que faz a ventania na copa das árvores, ainda que não corresse nem a mais leve aragem. Mas também não era o sussurro costumeiro da folhagem. Lúcia sentiu que naquele murmúrio havia uma certa melodia, que todavia não conseguia captar, assim como na véspera não fora capaz de entender as palavras, quando as árvores pareciam falar-lhe. Mas já não podia haver dúvida de que as árvores estavam andando., passando umas pelas outras e cruzando-se como se executassem uma complicada dança campestre.

Já estava quase entre as árvores. A primeira para a qual olhou pareceu-lhe ser não uma árvore, mas um homem enorme, de barba desgrenhada e grandes tufos cabeludos. Isso para ela já não era novidade, e não se assustou. Mas, quando voltou a olhar, a árvore, se bem que continuasse a mexer-se, era apenas uma árvore. O que não percebia bem era se tinha raízes ou pés, pois quando as árvores se deslocam não andam na superfície da terra: deslizam por dentro dela, como fazemos nós na água. O mesmo aconteceu com todas as outras árvores. Num momento pareciam encantadores gigantes, forma que assumem quando qualquer poder mágico amigo as chama plenamente à vida. Logo em seguida, voltavam a ser simplesmente árvores. O engraçado é que, como árvores, eram árvores estranhamente humanas, e, como pessoas, eram estranhamente folhosas e ramalhudas... e o tempo todo aquele ruído alegre, nascente, rumorejante.

– Estão quase despertando! – disse, sentindo-se ela própria mais acordada do que nunca.

Meteu-se pelo meio, muito confiante, dançando e saltando para um lado e para o outro, temerosa apenas de que algum daqueles gigantescos dançarinos esbarrasse nela. Mas isso só a preocupava um pouco, pois seu desejo era ir além das árvores, ao encontro de alguma outra coisa, porque fora de lá que chamara a voz querida.

Não demorou a atingir o outro lado, perguntando a si mesma se tivera de afastar os ramos com as mãos ou se fora levada pelos gigantescos dançarinos. Finalmente saiu da mobilidade confusa dos maravilhosos contrastes de sombra e luz.

Em redor de um macio relvado, árvores negras bailavam. E então... que alegria! No meio delas, o Grande Leão, branco de luar, projetava uma enorme sombra escura.

Se não fosse o movimento da cauda, poderia ser tomado por uma estátua. Lúcia nem sequer pensou nessa hipótese. Nem um instante duvidou... Correu para ele. Não podia perder um só momento. Envolveu-lhe o pescoço com os braços, beijando-o, enterrando a cabeça no sedoso pêlo de sua juba.

– Aslam! Querido Aslam! – soluçou. – Até que enfim!

O grande animal deitou-se de lado, de modo que Lúcia caiu, ficando meio sentada e meio deitada entre as suas patas dianteiras. Ele inclinou-se e com a língua tocou o nariz da menina, que se sentiu envolvida pelo seu bafo quente. Ela levantou os olhos e fixou-os no grande rosto sério.

– Foi bom ter vindo – disse ele.

– Aslam, como você está grande!

– É porque você está mais crescida, meu bem.

– E você, não?

– Eu, não. Mas, à medida que você for crescendo, eu parecerei maior a seus olhos.

Lúcia sentia-se tão feliz que nem queria falar. Aslam quebrou o silêncio.

– Lúcia, não podemos nos demorar muito aqui. Vocês têm uma tarefa a cumprir e hoje já perderam muito tempo.

– Que vergonha, não acha? Tinha certeza de que era você. Mas eles não quiseram acreditar... São todos uns...

Lá muito de dentro, das próprias entranhas de Aslam, veio qualquer coisa que, vagamente, sugeria um rosnar de impaciência.

– Desculpe! – disse Lúcia, ao entender tudo. – Não queria pôr a culpa nos outros. Mas a verdade é que a culpa não foi minha.

O Leão fitou-a bem nos olhos.

– Oh, Aslam, acha que eu errei? Como é que eu... podia deixar os outros e vir sozinha encontrar-me com você? Não olhe para mim desse jeito... bem... de fato... talvez eu pudesse. Sei que com você não estaria sozinha. Mas ia adiantar alguma coisa?

Aslam não respondeu.

– Mesmo assim teria sido melhor? – perguntou Lúcia, com a voz sumida. – Mas como? Aslam, por favor, diga-me.

– Dizer o que teria acontecido? Não, a ninguém jamais se diz isso.

– Oh, que pena! – exclamou Lúcia.

– Mas todos podem descobrir o que vai acontecer – continuou Aslam. – Se voltar agora e acordar os outros para contar-lhes outra vez o que viu, e disser que eles se levantem imediatamente e me sigam... que acontecerá? Só há um modo de saber...

– É o que quer que eu faça?

– É, minha criança – respondeu Aslam.

– E os outros também vão ver... você.

– A princípio, não. Talvez mais tarde.

– Mas aí eles não vão acreditar!

– Não faz mal.

– Ora essa, ora essa! E eu que estava tão feliz por tê-lo encontrado de novo. Pensei que ficaria a seu lado. Pensei que você viria rugindo e que os inimigos fugiriam de medo... como da outra vez. Afinal, vai ser horrível.

– Será difícil para você, querida, mas as coisas nunca acontecem duas vezes da mesma maneira. Todos nós já passamos momentos difíceis em Nárnia.

Lúcia escondeu o rosto na juba. Mas devia haver nela algum poder mágico, pois ela se sentiu invadida pela força do Leão. Sentando-se de repente, disse:

– Desculpe, Aslam. Estou pronta.

– Agora você é uma leoa – disse ele. – Nárnia inteira será renovada. Venha, não temos tempo a perder.

Levantou-se e sem ruído dirigiu-se majestosamente para o círculo das árvores dançarinas. Lúcia pousava na juba sua mão trêmula. As árvores afastavam-se para deixá-los passar, assumindo nesse instante a plena forma humana. Num relance, Lúcia viu deuses e deusas da floresta, altos e graciosos, curvando-se perante o Leão. Daí a pouco, eram outra vez árvores, mas curvando-se ainda, com movimentos tão graciosos dos ramos e troncos, que a própria reverência era uma espécie de dança.

– Espero por você aqui – disse Aslam, depois de terem ultrapassado as árvores. – Vá acordar os outros: eles devem segui-la. Se não quiserem vir, você pelo menos terá de acompanhar-me.

É desagradável ter de acordar quatro pessoas mais velhas, ainda por cima cansadas, para dizer-lhes uma coisa em que provavelmente não irão acreditar, e para convencê-las a fazer aquilo que não querem. Lúcia disse para si mesma: “É melhor nem pensar! Tenho é de ir em frente e aceitar o desafio!”

Sacudiu Pedro, chamando baixinho:

– Pedro! Depressa, Aslam está aqui. Mandou que a gente vá atrás dele imediatamente.

– É claro, Lu! Como quiser – concordou Pedro, para o espanto dela. A resposta fora animadora, mas logo Pedro virou-se para o outro lado e continuou a dormir.

Voltou-se para Susana, que acordou mesmo, mas apenas para dizer, com o ar aborrecido de um adulto:

– Vá dormir, Lúcia. Você deve estar sonhando.

Resolveu tentar com Edmundo. Não foi fácil acordá-lo, mas, quando de fato acordou, sentou-se logo:

– Hein?! – disse, numa voz cheia de sono. – Que é que você está dizendo?

Ela repetiu tudo do princípio, e esta era a parte pior da missão, porque, cada vez que falava, a coisa lhe parecia menos convincente.

– Aslam! – exclamou Edmundo, dando um pulo.

– Puxa vida! Onde está ele?

Lúcia voltou-se para onde o Leão a esperava, com os olhos meigos fixos nela. Apontou: – Ali.

– Onde?

– Ali. Não está vendo? Perto daquela árvore. Edmundo olhou atentamente e disse:

– Está ali coisa nenhuma! Foi o luar que pôs você meio pateta! Isso acontece! Também achei que vi alguma coisa, mas foi uma daquelas coisas óticas... como é mesmo?...

– Mas eu estou vendo Aslam! – insistiu Lúcia.

– E ele está olhando para nós!

– Então, diga-me uma coisa: por que não vejo Aslam?!

– Ele disse... que talvez... você não pudesse vê-lo.

– Ora essa! Por quê?

– Não sei. Foi ele que disse.

– Mas que chateação! Seria melhor que você deixasse de ter visões. Enfim, de qualquer modo, vamos acordar os outros.

 

O LEÃO RUGE

Quando finalmente todos estavam acordados, Lúcia contou a história pela quarta vez. Nada podia ser mais desanimador do que o silêncio que se seguiu.

– Não consigo ver nada – declarou Pedro, depois de ter olhado tão fixamente que os olhos lhe doíam. – Está vendo alguma coisa, Su?

– Claro que não! – disse Susana, mal-humorada. – Pois se não há nada para ver! Ela anda é sonhando. É melhor você dormir, Lúcia.

– Só queria que vocês viessem comigo – disse Lúcia, com voz trêmula. – Porque... porque, se não quiserem, terei de ir sozinha.

– Não diga tolice – resmungou Susana. – Você sabe muito bem que não pode ir sozinha.

– Se ela tiver mesmo de ir, eu vou com ela – disse Edmundo. – Da outra vez quem tinha razão era ela.

– Sei disso – replicou Pedro – , e pode até ser que ela estivesse certa também hoje de manhã. A verdade é que aquela idéia do desfiladeiro foi um passo em falso. Mas... a esta hora da noite... E por que Aslam iria ficar invisível para nós? Nunca esteve!... Não é coisa dele! Que diz você, N.C.A.?

– Não digo nada – respondeu o anão. – Se todos forem, também vou. Se se dividirem, fico com o Grande Rei. Só assim poderei cumprir o meu dever para com ele e para com o rei Caspian. Mas, se querem o parecer de um anão ignorante, acho que não há grandes possibilidades de encontrarmos o caminho à noite, uma vez que nem de dia demos com ele. E não gosto nada desses leões milagrosos, que sabem falar mas não falam, que são bons mas não mostram isso, e que, ainda por cima, são enormes e aparecem de repente, e não há quem consiga vê-los. Para mim, isso tudo é lorota – na minha modesta opinião.

– Está batendo com a pata no chão para andarmos depressa – disse Lúcia. – Tenho de ir logo... pelo menos eu vou!

– Você não tem o direito de impor a sua vontade. Afinal, somos três contra um – declarou Susana – e você é a caçula.

– Vamos embora! – disse Edmundo, impaciente. – É claro que temos de ir; enquanto não formos, não ficaremos sossegados.

Estava firmemente decidido a apoiar Lúcia, mas a idéia de perder a noite lhe era incômoda; vingava-se então fazendo tudo com má vontade.

– Então, a caminho! – disse Pedro, com um ar cansado, passando o braço pela correia do escudo e colocando o elmo. Em outra circunstância, não deixaria de dizer a Lúcia uma palavra amável, mesmo porque era sua irmã favorita, e sabia também que ela não tinha culpa do que estava acontecendo. Mas, ao mesmo tempo, não podia deixar de sentir-se um tanto aborrecido com ela. Susana foi a pior.

– E imaginem se agora eu começasse a fazer a mesma coisa que Lúcia! Podia ameaçar de ficar aqui, mesmo que todos fossem embora. Acho até que vou fazer isso.

– Obedeça ao Grande Rei, Real Senhora, e vamos partir – disse Trumpkin. – Já que não me deixam dormir, tanto faz caminhar como ficar aqui conversando.

Puseram-se a caminho. Lúcia ia à frente, mordendo os lábios, dominando-se para não dizer a Susana tudo o que pensava dela. Mas, logo que encontrou o olhar de Aslam, foi-se a irritação. Ele avançava uns trinta metros à frente deles. Os outros tinham de guiar-se apenas pelas indicações de Lúcia, porque não ouviam nem viam Aslam. Suas grandes patas aveludadas pousavam na relva sem o menor barulho.

Aslam levou-os direitinho às árvores dançantes (se dançavam naquele momento é que ninguém sabe, pois Lúcia não tirava os olhos do Leão, e os outros não tiravam os olhos dela) e seguiu em direção ao desfiladeiro.

– Com mil bombas! – resmungou Trumpkin. – Espero que essa brincadeira toda não vá acabar numa escalada ao luar, com pernas e braços quebrados.

Durante muito tempo, Aslam manteve-se no cimo do desfiladeiro, mas, quando apareceu um tufo de árvores à direita, virou para lá e desapareceu entre elas. Lúcia teve um sobressalto, pois lhe pareceu que ele sumira no abismo. Não teve muito tempo para pensar. Apressou o passo e desapareceu também no arvoredo. Podia ver agora uma vereda íngreme que se contorcia entre penhascos, conduzindo ao desfiladeiro. Aslam avançava por lá. Lúcia bateu palmas de alegria e começou a descer atrás dele. Ouviu os outros gritarem:

– Lúcia! Pare! Espere, pelo amor de Deus! Você está na beirada do abismo! Volte!

Daí a pouco era Edmundo que dizia:

– Oh, ela tem razão! Está tudo bem. Há um caminho.

Quando Edmundo conseguiu alcançá-la, perguntou, excitado:

– Olhe, ali, uma sombra mexendo!...

– É a sombra dele – respondeu Lúcia.

– Acho que você tem razão, Lu. Como é que não vi Aslam antes? Mas onde ele está?

– Ao pé da sombra, evidente! Não está vendo?

– Bem... por um instante acho que vi qualquer coisa. Está uma luz tão esquisita.

– Para a frente, rei Edmundo – veio lá de trás e lá de cima a voz de Trumpkin.

E ainda mais atrás e mais acima Pedro dizia:

– Vamos, Susana, dê a mão. Deixe de enjoamento. Qualquer criança seria capaz de descer por aqui.

Passados alguns minutos, estavam no fundo do desfiladeiro, com a água rugindo-lhes ao ouvido. Avançando cautelosamente, como se fosse um gato, Aslam atravessou o rio, saltando de pedra em pedra. No meio da corrente parou, baixou-se para beber e, ao levantar a cabeça, sacudiu a juba orvalhada, virando-se para eles. Dessa vez Edmundo pôde vê-lo.

– Oh, Aslam! – gritou, precipitando-se a seu encontro. Mas o Leão deu meia-volta e começou a subir a encosta do outro lado do Veloz.

– Pedro, Pedro! – gritou Edmundo. – Você o viu?

– Vi, vi qualquer coisa. Mas está tudo tão confuso com este luar. Vamos em frente, e três vivas para Lúcia. Já nem me sinto tão cansado.

Sem hesitar, Aslam foi subindo à esquerda. Tudo naquela caminhada era estranho, como se acontecesse em sonho: o rio bramindo, a relva úmida, os penhascos cintilantes... Mais extraordinário que tudo, a marcha silenciosa do grande animal. Agora, todos o viam, menos Susana e o anão.

Outro atalho, tão íngreme como o primeiro, ziguezagueava por novos precipícios, muito mais altos do que os anteriores. Longa e difícil foi a subida. Felizmente a lua brilhava bem sobre a garganta, de modo que nenhum dos lados estava na sombra.

Lúcia estava quase desfalecendo quando a cauda e as patas traseiras de Aslam desapareceram no alto. Com um esforço final, arrastou-se atrás dele e encontrou-se, ofegante e trêmula, no cimo da colina que tinham tentado alcançar desde a partida do Espelho d’Água. Uma vasta encosta alongava-se suavemente por cerca de um quilômetro, coberta de espinheiros e relva e, de quando em quando, salpicada de grandes rochedos, brancos ao luar, desaparecendo depois numa confusão de árvores. Era a colina da Mesa de Pedra, que Lúcia conhecia bem. Com um tilintar de cotas de malha, os outros subiram atrás dela, continuando depois atrás de Aslam.

– Lúcia! – chamou Susana, baixinho.

– Que é?

– Agora estou vendo Aslam. Desculpe-me.

– Não tem importância.

– Mas sou muito pior do que você pensa. Acreditei que era ele... acreditei ontem mesmo... quando ele não queria que fôssemos pelo pinhal. E acreditei também hoje, quando você nos acordou. Isto é... no fundo acreditei... Ou podia ter acreditado, se quisesse... Mas estava com tanta pressa de sair da floresta... e... não sei como vou explicar. O que vou dizer a ele agora?

– Talvez não precise dizer mais nada.

Não tardou que se encontrassem junto das árvores e vissem através delas o Monte de Aslam, construído sobre a Mesa de Pedra, já tempos depois do tempo deles.

– A guarda não está no posto – resmungou Trumpkin. – Já deviam ter barrado a nossa marcha...

– Psiu! – fizeram os outros quatro, porque Aslam parará e, tendo-se voltado, olhava para eles com um aspecto tão majestoso que todos ficaram contentes, tão contentes quanto é possível a pessoas que sentem medo, e tão cheios de medo quanto é possível a pessoas que se sentem contentes. Os rapazes avançaram. Lúcia afastou-se para lhes dar passagem. Susana e o anão recuaram.

– Aslam! – exclamou Pedro, pondo um joelho em terra e levantando a pesada pata do Leão até tocar com ela no rosto. – Estou tão contente... e tão triste! Desde que partimos que os tenho trazido por caminho errado, e ontem foi pior do que nunca.

– Meu filho! – disse Aslam.

Depois voltou-se para Edmundo e deu-lhe as boas-vindas:

– Muito bem! – foram as suas palavras. – Depois de um silêncio terrível, disse com voz grave: – Susana! – Susana não respondeu e pareceu aos outros que estava chorando. – Você deixou que o medo a dominasse. Venha, deixe que sopre sobre você. Esqueça seus receios. Está melhor agora?

– Um pouco, Aslam – disse Susana.

– Pois bem! – continuou Aslam, em voz tão forte que quase parecia um rugido, fustigando os flancos com a cauda. – Onde está aquele anãozinho, esse famoso espadachim e arqueiro, que não acredita em leões? Aproxime-se, filho da Terra, venha aqui – A última palavra já não parecia um rugido, era quase um rugido de verdade.

– Com mil demônios! – murmurou Trumpkin, com a voz sumida.

As crianças, que conheciam Aslam o suficiente para perceber que ele gostava muito do anão, não ficaram impressionadas. Mas com Trumpkin, que nunca tinha visto um leão, e muito menos aquele, o caso foi diferente. Fez a única coisa sensata que poderia fazer naquele momento. Em vez de fugir, cambaleou na direção de Aslam, que se lançou sobre ele.

Você já viu alguma vez uma gata com o filhote entre os dentes? Pois foi muito parecido. O anão, encolhido num feixe miserável, pendia entre os dentes de Aslam, que o sacudia. A pequenina armadura tilintou como se fosse um guizo e em seguida... zztl... o anão foi atirado para o ar. Se estivesse na cama não estaria mais seguro, mas ele não se sentia assim. Ao cair, as enormes patas aveludadas envolveram-no como se fossem braços de mãe e depuseram-no no chão (com a cabeça para cima e os pés para baixo).

– Filho da Terra, seremos amigos? – perguntou Aslam.

– S... S... Sim! – respondeu o anão, ainda ofegante.

– Bem, não tarda que a Lua fique encoberta. Vejam como a aurora está rompendo. Não temos tempo a perder. Depressa, para o Monte! – disse Aslam.

O anão ainda não conseguia dizer uma palavra, e ninguém se atreveu a perguntar se Aslam iria com eles. Desembainharam as espadas, saudaram o Leão e, voltando-se com um tinir de armaduras, desapareceram na luz indecisa da manhã. Lúcia reparou que a expressão de cansaço lhes desaparecera do rosto, e tanto o Grande Rei como o rei Edmundo pareciam agora mais homens do que meninos.

As meninas, junto de Aslam, ficaram olhando até eles se perderem de vista. O dia estava clareando. No oriente, perto da linha do horizonte, Ara-vir, a estrela da manhã de Nárnia, brilhava como um pequeno sol. Aslam, que parecia muito maior, levantou a cabeça, sacudiu a juba e rugiu.

O som, a princípio grave e vibrante como o de um órgão que se começa a tocar em nota baixa, foi-se elevando e tornando mais forte, até fazer vibrar a terra e o ar. Partindo da colina, espalhou-se pelo país todo. No acampamento de Miraz, os homens acordaram, entreolharam-se assustados e precipitaram-se para as armas. Lá embaixo, no Grande Rio, onde o frio era intenso naquela hora, as cabeças e os ombros das ninfas e a grande cabeça barbuda e coroada de junco do deus do rio emergiram da água. Mais longe, em todos os campos e nos bosques, as orelhas atentas dos coelhos saíram das tocas, as aves sonolentas retiraram as cabeças de debaixo das asas, as corujas piaram, as raposas ganiram, os porcos-espinhos grunhiram, as árvores estremeceram. Nas cidades e aldeias, as mães, com olhos rasgados de espanto, apertaram os filhinhos ao peito, os cães latiram, os homens levantaram-se às pressas em busca de uma luz. Muito ao longe, na fronteira norte, os gigantes da montanha espreitaram pelos portões sombrios de seus castelos.

O que Lúcia e Susana viram foi uma coisa indefinida e escura que avançava para elas dos quatro pontos cardeais. Pareceu-lhes a princípio um nevoeiro negro e rastejante, depois ondas enormes de um mar negro crescendo, até que por fim compreenderam que era a floresta em marcha. Todas as árvores do mundo pareciam precipitar-se para Aslam. Mal se aproximavam, no entanto, já não eram árvores. Quando se juntaram ao redor dele, fazendo mesuras e reverências e acenando com seus braços longos e finos, o que Lúcia viu foi uma multidão de formas humanas. Pálidas bétulas-meninas balançavam a cabeça; salgueiros-mulheres afastavam os cabelos do rosto ensimesmado para olharem Aslam; faias majestosas adoravam-no imóveis; e havia carvalhos felpudos, olmos esguios e melancólicos, azevinhos desgrenhados (eles próprios escuros, mas suas mulheres lindas, enfeitadas com frutinhas), e as alegres sorveiras. Todos se inclinavam e se erguiam de novo aos gritos de “Aslam, Aslam”, nas suas vozes variadas: roucas, rangentes ou ondulantes.

A multidão era tão densa e o bailado tão rápido (porque de novo as árvores começaram a bailar), que Lúcia ficou tonta. E nunca chegou a perceber de onde vieram os bailarinos, que em breve cabriolavam por entre as árvores. Um deles era um jovem, vestido com uma pele de corça e trazendo uma coroa de parreira nos cabelos encara-colados. Se não fosse a expressão selvagem que o animava, o rosto teria sido quase belo demais para um rapaz. Na presença dele, sentia-se, como disse Edmundo dias mais tarde, ao vê-lo:

– Aí está um sujeito capaz de fazer qualquer coisa!...

Parecia ser conhecido por muitos nomes, dentre os quais Bromios, Bassareus e Áries. Acompanhava-o um grupo de moças, tão estouvadas quanto ele. E, coisa estranha, por fim apareceu até alguém montado num burro. Todos se puseram a rir e gritar:

– Euan, euan, ê-oooi!

– Isto é uma brincadeira, Aslam? – perguntou o jovem.

E bem podia ser. Mas cada um parecia ter uma idéia diferente sobre do que estavam brincando. Era muito semelhante a cabra-cega, só que se comportavam como se todos tivessem os olhos vendados. Lembrava o jogo do chicote-queimado, mas nunca ninguém encontrava o chicote. E ficou impossível definir a brincadeira quando o homem velho e imensamente gordo, montado no burro, de repente começou a gritar: “Bebidas! Hora das bebidas!,” e pulou do burro. Os outros voltaram a colocá-lo em cima do animal, enquanto este, julgando-se num circo, fazia exibições sobre as patas traseiras. Ramos de videira iam aparecendo em profusão cada vez maior. Eram videiras mesmo, que se enroscavam pelas pernas do povo da floresta. Lúcia levou a mão à cabeça para puxar os cabelos para trás e verificou que puxava um ramo de videira. O burro também estava envolto em vides e tinha a cauda toda emaranhada. De suas orelhas pendia alguma coisa escura. Lúcia olhou atentamente e viu que era um cacho de uvas. E, logo em seguida, quase nada restava do burro: só havia cachos, da cabeça aos pés.

– Bebidas! Bebidas! – gritava o velho.

Todos se puseram a comer, e tenho certeza de que você nunca provou uvas tão boas: firmes e rijas por fora, mas que explodiam numa fresca doçura quando postas na boca. Eram daquelas uvas que Susana e Lúcia nunca se cansavam de comer e que raramente tinham comido antes. Havia uvas aos montes, mais do que se poderia desejar, e absolutamente nada de boas-maneiras. Ecoavam gritos e gargalhadas, até que de repente sentiram que a brincadeira (fosse ela qual fosse) e a festa tinham chegado ao fim. Sentaram-se cansados, voltados para Aslam, à espera de ouvir o que ele ia dizer. Nesse momento, o sol começou a despontar. Lembrando-se de algo, Lúcia disse para Susana:

– Já sei quem eles são!

– Eles, quem?

– O rapaz de expressão selvagem é Baco; o velho é Sileno. Não se lembra de que o Sr. Tumnus nos falou deles... há muitos anos?

– É mesmo, é verdade, mas, Lu...

– Mas o quê?

– Se Aslam não estivesse aqui, não me teria sentido lá muito segura com Baco e suas estouvadas companheiras.

– Nem eu!

 

MAGIA NEGRA E REPENTINA VINGANÇA

Enquanto isso, Trumpkin e os dois meninos chegaram ao escuro arco de pedra que levava ao interior do Monte, e os dois texugos que estavam de sentinela (Edmundo só conseguiu distinguir as duas manchas brancas da cara) saltaram sobre eles, de dentes arreganhados, grunhindo:

– Quem vem lá?

– Trumpkin! – respondeu o anão. – Trago comigo o Grande Rei de Nárnia, vindo do passado.

Os texugos tocaram com os focinhos nas mãos dos meninos.

– Até que enfim! Até que enfim!

– Quer dar-nos uma tocha, amigo? – pediu Trumpkin.

Os texugos acenderam uma tocha, entregando-a ao anão.

– É melhor o N.C.A. ir na frente – disse Pedro – , já que não sabemos o caminho.

Trumpkin empunhou a tocha e avançou pelo túnel escuro. Era um lugar frio, cheio de teias de aranha; de vez em quando, um morcego esvoaçava em redor da luz. Os meninos, que tinham vivido quase sempre ao ar livre desde que deixaram a estação, tiveram a sensação de entrar numa masmorra ou de cair numa armadilha.

– Pedro, repare naquelas coisas gravadas na parede – disse Edmundo baixinho. – Parecem muito velhas e, apesar disso, somos muito mais velhos do que elas. Ainda não existiam quando aqui estivemos.

O anão continuou a andar, virou à direita, depois à esquerda, desceu alguns degraus e voltou a virar para a esquerda. Por fim avistaram luz à frente, por baixo de uma porta. Tinham chegado à entrada do subterrâneo central e, pela primeira vez, ouviram vozes. Vozes exaltadas, aliás. Alguém falava tão alto que a chegada do anão e dos meninos passou despercebida.

– Hum!... Isto não está me agradando! – segredou Trumpkin para Pedro. – Vamos escutar um pouco.

Ficaram imóveis do lado de fora da porta.

– Você sabe muito bem por que motivo não toquei a trompa naquela madrugada — disse uma voz. (“É o rei”, segredou Trumpkin.) – Já se esqueceu que, mal Trumpkin partiu, Miraz caiu em cima de nós e durante mais de três horas lutamos com todas as nossas forças para salvar a pele? Toquei a trompa logo que pude.

– Claro que não me esqueci – respondeu uma voz irritada. – Como ia me esquecer, se foram os meus anões que suportaram o ataque e se vários deles morreram no campo de batalha?

– É Nikabrik – informou Trumpkin.

– Você devia ter vergonha, anão – censurou uma voz grossa. (“Este é o Caça-trufas!” explicou Trumpkin.) – Todos lutaram tanto quanto os anões, e ninguém mais do que o rei.

– Não faz a menor diferença! – respondeu Nikabrik. – O fato é que ou se tocou a trompa tarde demais, ou ela não possui poder mágico coisa nenhuma. Não veio nem auxílio, nem meio auxílio. Você, seu feiticeiro, seu sabe-tudo, ainda acha que devemos ter esperança em Aslam, no rei Pedro... nessa cambada toda?

– Bem... devo confessar que... não nego que... estou bastante desapontado – foi o que se ouviu.

– É o doutor Cornelius – informou Trumpkin.

– Para falar às claras – declarou Nikabrik – , sua sacola está vazia, seus ovos estão estragados e suas promessas não se cumpriram... Seu peixe papou a isca e se foi! Agora o jeito é você ficar de fora e deixar os outros trabalharem. É por isso que...

– O auxílio ainda vem! – disse Caça-trufas. – Continuo a confiar em Aslam. Por que vocês não são persistentes como nós, os animais? O auxílio há de vir! Pode ser até que já esteja à nossa porta.

– Pois é – rosnou Nikabrik – , se dependesse de vocês, texugos, ficaríamos esperando que o céu viesse abaixo e a terra se abrisse. Já se foi o tempo de esperar! A comida é pouca, a cada embate sofremos mais baixas do que podemos suportar, e os nossos soldados começam a nos deixar.

– E por quê? – perguntou Caça-trufas. – Se você não sabe, eu digo. Porque se espalharam rumores de que invocamos em nosso auxílio os reis dos velhos tempos e eles não responderam. Lembrem-se de que as últimas palavras de Trumpkin antes de partir (quem sabe se ao encontro da morte?) foram estas: “Não deixem o exército saber por que estão tocando a trompa, se tiverem de tocá-la!” Pois na mesma tarde não havia um soldado que não soubesse de tudo!

– Com que direito está insinuando que fui eu que espalhei a informação? Por que não vai enfiar seu focinho numa colméia de abelhas bravas?! — vociferou Nikabrik. – Retire imediatamente o que acabou de dizer... ou...

– Acabem com isso! – pediu o rei Caspian. – Gostaria de saber o que Nikabrik sugere que façamos. Mas, antes de mais nada, quero saber quem são aqueles dois forasteiros, que estão ali parados, ouvindo o que se passa, sem dizer uma palavra.

– São amigos meus – declarou Nikabrik. – Por que razão você próprio está aqui, a não ser pelo fato de ser amigo de Trumpkin e do texugo? E por que está aqui aquele velho bobo, vestido de preto, senão por ser seu amigo? Por que só eu não poderia convidar os meus amigos?

– Você está falando com o rei, a quem jurou fidelidade! – disse Caça-trufas com voz severa.

– Mesuras da corte! – debochou Nikabrik. – Aqui neste buraco, cada um pode dizer o que pensa. Todo mundo sabe que este rapaz telmarino nunca será rei de coisa alguma e de ninguém, a não ser que o ajudemos a sair da embrulhada em que se meteu.

– Talvez os seus novos amigos prefiram falar por eles mesmos – sugeriu o doutor Cornelius. – Vocês aí, digam quem são e o que pretendem.

– Digno doutor e mestre — ouviu-se uma vozinha fina e lamurienta – , sou apenas uma velha, que, com sua licença, está muito grata a este digno anão. Sua Alteza, abençoado seja tão formoso jovem, nada tem a recear de uma velhinha quase entrevada pelo reumatismo e que nem mesmo tem lenha para acender o fogo. Conheço algumas artes mágicas... nada que se compare com as suas, digno mestre... pequenos feitiços e sortilégios, que poderia usar contra os seus inimigos, se todos estiverem de acordo. Porque detesto a todos eles. Mais do que ninguém.

– Hum! Tudo isso é muito interessante... Muito curioso! – disse o doutor Cornelius. – Creio que já sei quem é a senhora. E agora, Nikabrik, talvez o seu outro amigo também queira falar.

Um calafrio percorreu Caspian, quando uma voz cinzenta e pesada respondeu:

– Sou a fome e a sede. Aquilo que eu mordo, guardo-o comigo até morrer, e, mesmo depois da morte, têm de cortar do meu inimigo aquilo que eu mordi e enterrá-lo comigo. Posso dormir cem noites sobre o gelo, sem gelar. Sou capaz de beber um rio de sangue sem estourar. Mostrem-me os seus inimigos.

– É na presença desses dois amigos que você propõe expor o seu plano? – perguntou Caspian.

– É – respondeu Nikabrik. – E é com a ajuda deles que penso executá-lo.

Durante alguns minutos, Trumpkin e os meninos ouviram Caspian falar em voz baixa com os seus dois amigos, sem perceberem o que diziam. Por fim Caspian disse em voz alta:

– Pois bem, Nikabrik, ouviremos o seu plano. A pausa que se seguiu foi tão prolongada que os

rapazes chegaram a duvidar que Nikabrik iria mesmo falar. Por fim começou num tom muito baixo, como se ele mesmo não estivesse gostando do que dizia.

– Para ir direto ao assunto – murmurou – , nenhum de nós sabe a verdade sobre a antiga Nárnia. Trumpkin nunca acreditou em nenhuma dessas histórias. Quanto a mim, acho que, antes de acreditar, deveríamos colocá-las à prova. Já experimentamos a trompa e ela falhou. Se algum dia existiu um Grande Rei Pedro e uma rainha Susana, um rei Edmundo e uma rainha Lúcia, então eles não nos ouviram ou não têm o poder de aparecer... ou são nossos inimigos.

– Ou estão a caminho – acrescentou Caça-trufas.

– Você pode insistir nisso até que Miraz faça de nós ração para seus cães. Mas, como ia dizendo, experimentamos um dos pontos das velhas lendas e não adiantou nada. Pois bem! As lendas falam de outros poderes, além desses reis e rainhas do passado. Não seria bom invocá-los?

– Se está falando de Aslam, tanto faz invocá-lo ou invocar os reis – disse Caça-trufas. – Pois os reis são súditos dele. Se não manda os seus súditos (e eu não tenho dúvidas de que o fará), acha provável que ele próprio venha?

– Claro que não. Neste ponto estamos de acordo – replicou Nikabrik. – Os reis e Aslam são aliados. Portanto, ou Aslam morreu ou está contra nós. Ou então... algum poder maior do que ele não deixa que ele venha. E ainda que ele viesse... quem nos garante que ficará do nosso lado? A julgar pelo que tenho ouvido, nem sempre foi muito bom para os anões. Nem mesmo para todos os animais. Perguntem aos lobos. Seja como for, só esteve uma vez em Nárnia, pelo que me consta, e não se demorou muito aqui. O melhor, portanto, é a gente não contar com Aslam. Não era dele que eu falava.

Ninguém replicou, e por um momento o silêncio foi tão completo que Edmundo pôde ouvir distintamente a respiração ruidosa do texugo.

– Então, do que está falando? – perguntou Caspian.

– Falo de um poder muito maior do que o de Aslam e que, se a lenda diz a verdade, dominou Nárnia durante anos e anos.

– A Feiticeira Branca?! – exclamaram três vozes ao mesmo tempo. Pelo barulho que se ouviu, Pedro teve a certeza de que três pessoas tinham-se levantado de um salto.

– Sim! – disse Nikabrik, falando distinta e pausadamente. – Falo da Feiticeira Branca! Precisamos de uma força, de uma força que se ponha ao nosso lado. E não diz a lenda que a feiticeira derrotou Aslam e o algemou e o matou sobre aquela mesa que está lá perto daquela luz?

– A lenda diz também que ele ressuscitou – acrescentou o texugo com voz cortante.

– Sim, há quem diga isso... – respondeu Nikabrik. – Mas não se esqueça de que pouco se conta do que ele fez depois. Desapareceu logo da história. Se de fato ressuscitou, como se explica isso? Não acha muito mais natural que tenha continuado morto e que a lenda não fale mais dele pela simples razão de que não há nada mais a falar?

– Foi ele quem coroou os reis e as rainhas – disse Caspian.

– Um rei que alcança uma grande vitória pode muito bem coroar-se a si próprio, sem precisar da ajuda de um leão de circo – retrucou Nikabrik.

Nessa altura ouviu-se um rosnar irritado, muito provavelmente de Caça-trufas.

– Seja como for – continuou Nikabrik – , que aconteceu a esses reis e ao seu reinado? Desapareceram também! Com a Feiticeira Branca a coisa é diferente! Dizem que reinou cem anos... cem anos de inverno sem parar. A isso é que eu chamo poder. Isso tem sentido prático.

– Ora essa! — exclamou o rei. – Pois sabemos todos que ela foi o pior inimigo de Nárnia! Não foi uma tirana dez vezes pior do que Miraz?

– Talvez. Talvez ela tenha sido inimiga dos humanos, se é que havia alguns nesse tempo. Talvez tenha sido má para alguns animais. Parece que foi ela que exterminou os castores: pelo menos não há vestígios deles. Mas foi sempre leal com os anões, e eu, que sou anão, tenho de defender o meu povo. Afirmo uma coisa: nós, os anões, não temos medo da Feiticeira Branca.

– Mas vocês são nossos aliados! – observou Caça-trufas.

– E temos lucrado imensamente com isso, sem dúvida! – ironizou Nikabrik. – Quem é que vocês mandam para as incursões perigosas? Os anões! Quando falta mantimento, cortam a ração de quem?! Dos anões! Quem...?

– Mentira! Tudo isso é mentira! – gritou o texugo.

– E é por isso que, se não são capazes de ajudar o meu povo, procurarei alguém que o ajude!

Nesse momento Nikabrik já gritava.

– Trata-se, portanto, de traição, Nikabrik? – perguntou o rei.

– Meta a espada na bainha, Caspian – disse Nikabrik. – É esse o seu jogo, assassinar-me em pleno Conselho? Não se atreva. Acha que tenho medo de você? São três do seu lado e três do meu: estamos iguais.

– Pois então, vamos! – rosnou Caça-trufas. Mas imediatamente uma voz o interrompeu.

– Parem com isso! – gritou o doutor Cornelius. – Estão indo depressa demais! A feiticeira está morta. Todas as lendas são unânimes nesse ponto. O que, pois, Nikabrik quer dizer com invocá-la?

A voz cinzenta e pesada, que até agora falara apenas uma vez, voltou a ouvir-se:

– Ah, sim. Está morta?...

E logo a voz estridente e lamurienta continuou:

– Oh! O meu querido principezinho não deve preocupar-se com o fato de que a Dama Branca (é assim que costumamos chamá-la) esteja morta. Eminentíssimo doutor, está apenas querendo brincar com uma pobre velha como eu, ao dizer isso. Amável doutor, sapientíssimo doutor, onde é que já se viu uma feiticeira morrer? É sempre possível invocar uma feiticeira!

– Invoque – ordenou a voz cinzenta. – Estamos todos prontos. Trace o círculo e prepare o fogo azul.

A voz de Caspian elevou-se sobre o rosnar cada vez mais forte do texugo e a exclamação irritada de Cornelius.

– Com que então é esse o seu plano, Nikabrik? Você quer recorrer à magia negra e invocar um espírito maldito? Já vejo agora quem são os seus amigos: uma megera e um lobisomem!

Seguiu-se grande confusão. Os animais rosnavam e ouvia-se o tinir do metal. Trumpkin e os meninos entraram correndo, e Pedro, de relance, viu uma criatura cinzenta, horrivelmente descarnada, meio homem e meio lobo, atirar-se a um jovem, que devia ter a idade dele. Ao mesmo tempo, Edmundo viu um anão e um texugo agarrados um ao outro, como se fossem dois gatos enfurecidos. Trumpkin encontrou-se frente a frente com a megera, cujo nariz e queixo se projetavam como se fossem um quebra-nozes, e seus cabelos cinzentos e imundos caíam-lhe sobre o rosto. Agarrara o pescoço do doutor. Com um só golpe de espada, Trumpkin fez-lhe saltar a cabeça. A luz apagou-se e durante algum tempo só se ouviu o ruído de espadas, dentes, garras, punhos e pés.

– Você está bem, Ed?

– Acho que sim – respondeu ele, ofegante. – Peguei o bruto desse Nikabrik, mas ele continua vivo.

– Com trinta diabos! – exclamou uma voz zangada. – Você está é em cima de mim! Parece um leão!

– Desculpe, N.C.A. – disse Edmundo. – Está melhor agora?

– Não! – rugiu Trumpkin. – Você está com os pés na minha cabeça. Quer tirá-los?

– Onde está o rei Caspian? – perguntou Pedro.

– Estou aqui – respondeu uma voz sumida. — Se é que ainda sou eu!

Alguém riscou um fósforo. Foi Edmundo. A pequena chama iluminou-lhe o rosto pálido e sujo. Às apalpadelas ele conseguiu encontrar uma vela (o azeite da lamparina tinha acabado) e colocá-la acesa em cima da mesa. Várias pessoas se levantaram com esforço, e seis rostos se fitaram na luz indecisa.

– Parece que acabamos com os nossos inimigos – disse Pedro. A megera está ali, morta – e rapidamente desviou os olhos dela. – Nikabrik está morto também. Acho que isto aqui é um lobisomem. Há tempos que não via um bicho desses! Tem corpo de homem e cabeça de lobo, o que significa que o matamos no momento em que passava de homem para lobo. Você, acho, é o rei Caspian...

– Sim, mas não faço a menor idéia de quem seja você.

– E o Grande Rei Pedro! – declarou Trumpkin.

– Bem-vindo, Real Senhor! – disse Caspian.

– Bem-vindo igualmente, Majestade. Não vim para tomar o seu lugar, mas para que ele lhe seja restituído.

– Majestade – ouviu-se uma voz à altura do ombro de Pedro. Este voltou-se e deu de cara com o texugo. Pedro inclinou-se, envolvendo-o com os braços, e beijou-lhe a cabeça peluda: não por sentimentalismo, mas por ser o Grande Rei.

– Valente texugo! Em nenhum momento duvidou de nós!

– Isso é de família, Real Senhor! – disse Caça-trufas. – Sou bicho, e os bichos não mudam assim de uma hora para outra. Além do mais, sou texugo, e os texugos são fiéis.

– Tenho pena de Nikabrik – falou Caspian – , ainda que me tenha odiado desde o momento em que nos conhecemos. De tanto sofrer e odiar ficou azedo por dentro. Se tivéssemos conseguido uma vitória fácil, é possível que em tempo de paz acabasse um bom anão. A única coisa que me consola é não saber quem de nós o matou.

– Você está perdendo sangue! – disse Pedro.

– Foi uma dentada – respondeu Caspian. – Daquela., daquela espécie de lobo.

Levou tempo a desinfetar e a limpar a ferida. Depois Trumpkin disse:

– Pois muito bem! Antes de qualquer coisa, vamos almoçar.

– Aqui, não! – disse Pedro.

– Oh, não! – concordou Caspian com um calafrio. – Temos de mandar retirar os corpos imediatamente.

– Que esses canalhas sejam atirados a um poço! – disse Pedro. – Quanto ao anão, proponho que seja entregue ao seu povo, para que o enterrem à maneira deles.

Almoçaram em outro dos escuros subterrâneos do Monte. Não foi um almoço ideal: Caspian e Cornelius teriam preferido pastéis folheados de faisão; Pedro e Edmundo gostariam de ovos mexidos e café bem quentinho. E, afinal, o que coube a cada um deles foi um pedaço da carne de urso fria (que os meninos traziam no bolso), um pedaço de queijo duro, uma cebola e uma caneca de água. Mas, julgando pela maneira com que se atiraram à comida, qualquer um de nós teria imaginado que saboreavam um petisco delicioso.

 

O GRANDE REI ASSUME O COMANDO

Quando todos acabaram de comer, Pedro disse:

– Aslam e as meninas (refiro-me às rainhas Susana e Lúcia) estão perto. Não sabemos quando Aslam intervirá; será quando ele achar melhor. Entretanto, sem dúvida, o seu desejo é que façamos antes o que pudermos. Dizia você, Caspian, que não podemos enfrentar Miraz em batalha campal...

– Receio que não, Grande Rei – disse Caspian, que sentia grande simpatia por Pedro, mas se encontrava um pouco atrapalhado. Era muito mais estranho para ele encontrar-se com os grandes reis das velhas lendas do que era para estes o encontrar.

– Pois bem – disse Pedro – , sendo assim, desafiarei Miraz para se bater comigo em duelo.

Ninguém tinha pensado nessa hipótese.

– Mas não poderia ser eu? – perguntou Caspian. – Sempre desejei vingar a morte de meu pai.

– Você está ferido – respondeu Pedro. – E, seja como for, é bem possível que não levasse a sério um desafio seu. Sabemos que você é um guerreiro, mas para ele é um garoto.

– Mas aceitará um desafio, mesmo seu? – perguntou o texugo, que não tirava os olhos de Pedro.

– Miraz sabe perfeitamente que o exército dele é mais forte do que o nosso.

– Provavelmente não, mas não custa nada tentar. E, ainda que recuse, levaremos grande parte do dia enviando emissários de parte a parte. Nesse meio-tempo, pode ser que Aslam faça alguma coisa e, pelo menos, também terei tempo de passar em revista o exército e fortalecer nossa posição. Vou escrever imediatamente o desafio. Tem aí papel e tinta, doutor?

– Um estudioso tem sempre à mão papel e tinta, Real Senhor.

– Então, eu dito – disse Pedro. E enquanto o doutor desenrolava o pergaminho, abria o tinteiro de chifre e afiava a pena Pedro recostou-se e, de olhos semicerrados, tentou relembrar os termos em que, havia muito tempo, na Idade de Ouro de Nárnia, costumava redigir tais mensagens.

– Bem! – exclamou, enfim. – Está pronto, doutor? O doutor Cornelius molhou a pena e esperou.

Pedro ditou o seguinte:

“Pedro, por graça de Aslam, por eleição, por direito e por conquista, Grande Rei, poderoso sobre todos os reis de Nárnia, Imperador das Ilhas Solitárias e Senhor de Cair Paravel, Cavaleiro da Mui Nobre Ordem do Leão, a Miraz, Filho de Caspian VIII, outrora Príncipe Regente de Nárnia e que arroga o título de Rei de Nárnia, saudações.”

– Pronto?

– ... vírgula, saudações – repetiu o doutor. Pronto, meu senhor.

– Então, parágrafo – disse Pedro.

Para evitar derramamento de sangue, bem como os demais inconvenientes, que é natural decorrerem das guerras que se travam em nosso reino de Nárnia, apraz-nos arriscar a nossa real pessoa em prol do mui fiel e bem-amado Caspian, propondo-lhe provar em combate real com Vossa Excelência que o já mencionado Caspian é, por dom nosso e segundo a lei dos telmarinos, legítimo Rei de Nárnia e que Vossa Excelência é réu de dupla traição quer por ter subtraído o domínio de Nárnia ao dito Caspian, quer por ter levado a cabo o abominável – não se esqueça do acento, doutor – , sanguinário e desumano assassínio de seu mui amável senhor e irmão, o Rei Caspian IX. Pelo que, de bom grado, provocamos e desafiamos Vossa Excelência para o dito combate, enviando estas cartas pelo nosso mui estimado e real irmão Edmundo, outrora Rei de Nárnia, sob a nossa jurisdição, Duque do Ermo do Lampião e Conde do Marco Ocidental, Cavaleiro da Nobre Ordem da Mesa, a quem foram conferidos plenos poderes para determinar, de acordo com Vossa Excelência, as condições do combate. Lavrado na morada nossa do Monte de Aslam, no décimo segundo dia do mês dos Prados Floridos, no primeiro ano do reinado de Caspian X de Nárnia.

– Creio que assim está bom – disse Pedro, respirando fundo. – Agora temos de escolher duas pessoas para acompanhar o rei Edmundo. O gigante pode ser uma delas.

– Bem... quer dizer... ele não é lá muito esperto – objetou Caspian.

– Sei disso – falou Pedro. – Mas qualquer gigante impressiona, desde que não abra a boca. E sempre o animará um pouquinho. Mas quem há de ser o outro?

– Se querem algum capaz de fuzilar só com os olhos, mandem Ripchip – propôs Trumpkin.

– É mesmo, ele não é de brincadeira – disse Pedro com uma gargalhada. – É pena ser tão pequenininho.

– Então mandem Ciclone – sugeriu Caça-trufas.

– Nunca ninguém riu de um centauro.

Uma hora mais tarde, dois grandes senhores do exército de Miraz, lorde Glozelle e lorde Sopespian, que passeavam ao longo das tropas alinhadas palitando os dentes depois do almoço, levantaram os olhos e viram que da floresta saíam o centauro e o gigante Verruma, a quem já tinham visto em combate, e, no meio deles, um vulto que não conseguiam identificar. Nem mesmo os colegas de Edmundo o teriam reconhecido, se o vissem. Porque Aslam soprara sobre ele, e uma grandeza qualquer o envolvia.

– Que será isto? Um ataque?

– Trazem ramos verdes. Querem parlamentar – disse o outro. – Devem estar dispostos a render-se.

– Aquele que vem entre o centauro e o gigante não tem ar de quem vai se render – objetou Glozelle. – Quem será ele? Não é o jovem Caspian.

– Não, não é. Mas é um guerreiro temível, seja lá quem for. Aqui pra nós, tem um ar bem mais majestoso do que Miraz. E que magnífica cota de malha! Nunca nas nossas forjas se fez uma coisa parecida!

– Aposto o meu cavalo como vem para desafiar – disse Glozelle.

– Bem, temos o inimigo na mão. Miraz não seria maluco de arriscar nossa superioridade para aventurar-se em duelo.

– Podemos dar um jeito de levá-lo a isso – sugeriu Glozelle, em voz baixa.

– Cuidado! – disse Sopespian. – Mais para cá, uma sentinela pode ouvir-nos. Aqui não há perigo. Entendi bem o que você disse?

– Se o rei aceitasse o desafio, um ou outro morreria...

– Certo – concordou Sopespian.

– Se ele vencesse, a luta estaria ganha.

– Claro. E do contrário?

– Do contrário, as probabilidades de que vençamos a guerra seriam as mesmas, com o rei ou sem ele. Toda a gente sabe que Miraz não é um grande guerreiro. Nós alcançaríamos a vitória, com a vantagem de ficarmos sem rei.

– Está sugerindo que nós dois poderíamos tomar conta do reino?

Glozelle franziu a testa, dizendo:

– Não devemos esquecer que fomos nós que o colocamos no trono. E afinal, durante todos estes anos de reinado, o que lucramos? Alguma vez ele mostrou gratidão por isto?

– Basta por ora – disse Sopespian. – Olhe, estão nos chamando à tenda do rei.

Quando lá chegaram viram que Edmundo e os seus dois companheiros, sentados do lado de fora da tenda, eram recebidos com doces e vinho. Entregue o desafio, tinham-se retirado, esperando que o rei tomasse uma decisão. Ao verem os três assim de perto, os dois lordes telmarinos acharam que tinham um ar temível.

Lá dentro, Miraz, desarmado, acabava de almoçar. Estava muito vermelho e parecia irritado.

– Vejam isto! – rosnou, atirando-lhes o pergaminho por cima da mesa. – Vejam só a infantilidade e a prosápia do meu sobrinho!

– Se me permite, Majestade – começou Glozelle.

– Se o jovem guerreiro que está lá fora é o rei Edmundo de que se fala aqui, isso não me parece nem um pouco uma brincadeira de crianças. Parece um cavaleiro perigoso.

– Ora, o rei Edmundo! – escarneceu Miraz. – Então acredita nessas lendas de Pedro e Edmundo e essa cambada toda?

– Acredito no que os meus olhos vêem, senhor

– respondeu Glozelle.

– Passemos adiante. No que respeita ao desafio, parece-me que não pode haver duas opiniões entre nós.

– Certamente, Real Senhor – concordou Glozelle.

– O que acha que se deve fazer? – perguntou o rei.

– Recusar, sem dúvida – disse Glozelle. – Nunca fui um covarde, mas tenho de confessar que me faltaria coragem para enfrentar aquele jovem em combate corpo a corpo. Se, como é muito provável, o irmão, o Grande Rei, é ainda mais perigoso do que ele... suplico que o meu senhor não queria nada com ele.

– Aos diabos! – exclamou Miraz. – Não foi essa a opinião que pedi. Não perguntei se devia ou não ter medo de enfrentar Pedro (se é que essa criatura existe!). Acha que tenho medo dele? Queria apenas saber a sua opinião sobre o aspecto político da questão. Estando a vantagem toda do nosso lado, devemos arriscar a vitória num combate individual?

– A minha resposta é que, por todos os motivos, o desafio deve ser recusado – declarou Glozelle. – Há no rosto daquele estranho cavaleiro uma ameaça de morte.

– Estamos voltando para a mesma coisa! – disse Miraz, zangado. – Acham que sou covarde como vocês?

– Vossa Majestade pode pensar o que quiser – replicou Glozelle, mal-humorado.

– Você está falando como uma velha maluca – disse o rei. – Que acha, Sopespian?

– Não se arrisque, Real Senhor – foi a resposta. – O aspecto político da questão vem mesmo a calhar, oferecendo-lhe excelente motivo para uma recusa, sem deixar que se ponham em dúvida a sua honra e a sua coragem.

– Chega! – exclamou Miraz, levantando-se de repente.

A conversa seguia exatamente o rumo que os dois lordes desejavam, e por isso nada disseram.

– Compreendo! – prosseguiu Miraz, depois de fitá-los com os olhos esbugalhados. – Vocês são uns coelhos medrosos e têm a ousadia de achar que sou também um covarde! Vocês são soldados? São telmarinos? São homens? Se eu recusar (como aconselham as razões de chefia e política militar) iriam pensar e levar os outros a pensar que o fiz por medo. É ou não é?

– Nenhum soldado sensato se atreveria a chamar de covarde um homem da sua idade, apenas por não querer bater-se com um grande guerreiro na flor da juventude – disse Glozelle.

– Ah, quer dizer que não só sou covarde, mas sou também um velho com um pé na cova?! Pois então, senhores, fiquem sabendo de uma coisa: seus conselhos de maricás (que sempre se afastaram do ponto essencial, que é a política) conseguiram justamente o contrário do que vocês queriam. A minha intenção era recusar. Mas agora aceitarei o desafio! Não vou cobrir-me de vergonha só porque a traição ou algumas artes mágicas (sei lá o quê!) gelaram o seu sangue!

– Majestade, suplico... – começou Glozelle. Mas Miraz já se precipitara para fora da tenda e os dois lordes ouviram-no gritando para Edmundo que aceitava o desafio.

Entreolharam-se e sorriram.

– Tinha a certeza de que, bem manejado, acabaria por aceitar – disse Glozelle. – Mas não esquecerei que me chamou de covarde. Há de pagar por isso!

No Monte de Aslam, houve grande agitação quando a notícia chegou e foi transmitida às várias criaturas. Edmundo e um dos capitães de Miraz já tinham escolhido o local para o combate, que foi cercado com cordas e estacas. Em dois dos cantos e no meio de um dos lados deviam ficar três teimarmos, como árbitros da peleja. Três outros seriam escolhidos pelo Grande Rei. Pedro estava justamente explicando para Caspian que ele não podia ser um dos árbitros, visto que estava em jogo o seu direito ao trono, quando uma voz grossa e sonolenta disse:

– Por favor, Majestade! – Pedro voltou-se e viu o mais velho dos Ursos Barrigudos. – Por favor, Majestade – repetiu. – Eu... eu sou um urso!

– Sem dúvida nenhuma, e um bom urso – disse Pedro.

– Bem, é um velho direito nosso que um dos árbitros da peleja seja um urso.

– Não deve permitir – segredou Trumpkin a Pedro. – É um bom urso, mas iria envergonhar a nós todos. Está sempre dormindo ou chupando os dedos. Será uma vergonha em frente do inimigo.

– Não posso opor-me – disse Pedro. – Ele tem razão. Ê um privilégio dos ursos. Não compreendo como é que, numa época em que tantas coisas foram esquecidas, esse privilégio foi mantido.

– Por favor – insistiu o urso.

– Você será um dos árbitros – declarou Pedro. – Mas prometa-me uma coisa: não vai chupar os dedos.

– Prometo, é claro – disse o urso, meio envergonhado.

– Mas se já começou a chupar desde agora! – gritou Trumpkin.

O urso tirou a mão da boca e fez de conta que não tinha ouvido.

– Real Senhor! – ouviu-se uma vozinha esganiçada, vinda do chão.

– Ah... Ripchip! – disse Pedro, depois de ter olhado para todos os lados, para cima, para baixo e em torno, como sempre acontecia quando o rato se dirigia a alguém.

– Real Senhor! A minha vida está inteiramente a seu dispor, mas tenho de defender a minha honra. O único trompeteiro do seu exército é um dos meus. Julguei por isso que nos enviariam para acompanhar os emissários que levaram a Miraz o seu desafio. O meu povo está magoado, senhor. Se fosse o seu desejo designar-me árbitro, talvez isso satisfizesse o meu povo.

Nesse momento o gigante Verruma desatou a rir, com aquelas gargalhadas pouco inteligentes a que são propensos mesmo os gigantes mais simpáticos. O riso lembrava o ribombar do trovão. Quando Ripchip descobriu de onde vinha o barulho, o gigante conteve-se imediatamente e ficou sério e vermelho como um rabanete.

– Acho que será impossível – disse Pedro, falando com grande seriedade. – Há humanos que têm medo dos ratos...

– Já notei isso, meu senhor.

– Assim sendo, não seria leal para com Miraz colocá-lo na presença de qualquer coisa que possa fazer-lhe perder o ânimo.

– Vossa Majestade é a própria encarnação da honra – declarou o rato, fazendo uma das suas mais rasgadas reverências. – Nesse ponto, não há motivo para discórdia... Mas, ainda há pouco, parece que ouvi alguém rindo... Se há alguém aqui que pretenda rir-se às minhas custas, estou à sua disposição... quando quiser... com a minha espada!

Essa observação foi seguida por um terrível silêncio, que Pedro quebrou, dizendo:

– O gigante Verruma, o urso e o centauro serão os nossos árbitros. O combate terá lugar às duas horas da tarde, e o almoço será ao meio-dia em ponto.

– Bom – disse Edmundo, quando os outros se afastavam – , acho que está tudo em ordem. Creio que você será capaz de vencê-lo, não é?

– Veremos! – disse Pedro.

 

CONFUSÃO GERAL

Um pouco antes das duas horas, Trumpkin e o texugo estavam já sentados com todas as outras criaturas na orla do bosque, olhando para a linha dos homens de Miraz, à distância de duas flechadas. Entre uns e outros, um relvado quadrado fora marcado para a luta. Nos dois cantos mais afastados postavam-se Glozelle e Sopespian, de espada desembainhada: nos dois mais próximos estavam o gigante Verruma e o Urso Barrigudo, que, apesar de todas as recomendações, tinha os dedos na boca e, para dizer a verdade, estava fazendo uma figura muito ridícula. Em contrapartida, Ciclone, o centauro, à direita, absolutamente imóvel, a não ser quando escarvava a relva com um dos cascos, tinha um ar bem mais imponente do que o barão telmarino que, à esquerda, estava voltado para ele. Pedro acabara de apertar a mão de Edmundo e do doutor e dirigia-se para o combate. Reinava uma grande tensão, como a que precede o sinal de partida numa corrida importante, com a diferença de ser bem maior.

– Quem me dera que Aslam tivesse aparecido antes que as coisas chegassem a este ponto! – disse Trumpkin.

– Quem dera! – concordou Caça-trufas. – Mas... olhe!

– Com trinta diabos! – exclamou o anão. – Quem é esta gente? Criaturas enormes... bonitas... parecem deuses e gigantes e deusas. Centenas... milhares! Quem serão?

– São hamadríades, dríades e silvanos – respondeu Caça-Trufas. – Aslam os despertou.

– Hum! – murmurou o anão. — Não há dúvida de que nos serão muito úteis, caso o inimigo tente atraiçoar-nos. Mas não há ajuda que valha ao Grande Rei, se Miraz se mostrar mais hábil do que ele no manejo da espada.

O texugo não respondeu, porque nesse momento Pedro e Miraz, de cotas de malha, elmos e escudos, entravam a pé na arena, vindos de lados opostos. Cruzaram-se numa saudação e pareceram trocar algumas palavras, que ninguém conseguiu entender. Logo depois, as espadas flamejavam ao sol. Apenas por um instante se ouviu o tinir do metal, logo abafado pelos partidários de ambos os la­dos, que gritavam como se estivessem numa partida de futebol.

– Muito bem, Pedro! – gritou Edmundo, quando Miraz foi obrigado a recuar quase dois passos. – Agora! Vamos!

Pedro atacou e, por uma fração de segundo, chegou a parecer que o combate estava ganho. Mas

Miraz recompôs-se e começou a tirar partido de sua altura e de seu peso.

– Miraz! Miraz! Viva o rei! – gritavam os telmarinos. Caspian e Edmundo ficaram brancos feito papel.

– Pedro está sofrendo golpes terríveis – disse Edmundo.

– E agora? O que aconteceu? – perguntou Caspian.

– Afastaram-se; acho que estão cansados. Mas estão recomeçando e agora com mais técnica. Cada um está experimentando a defesa do outro.

– Este Miraz parece ser bom com a espada – murmurou o doutor. Mal tinha pronunciado essas palavras, um barulho ensurdecedor de relinchos e palmas e bater de cascos elevou-se entre os antigos narnianos.

– O que está havendo? – perguntou o doutor. – Meus olhos cansados já não ajudam.

– O Grande Rei atingiu Miraz debaixo do braço – exclamou Caspian, ainda aplaudindo. – A ponta da espada entrou pela cava da cota de malha. É o primeiro sangue derramado.

– É... mas as coisas não vão bem – comentou Edmundo. – Pedro não está segurando o escudo como devia... Deve estar ferido no braço esquerdo.

Era verdade. Todos notaram que o escudo lhe pendia do braço, e os gritos dos telmarinos redobravam.

– Você, que está mais habituado a combater, acha que temos esperança? – perguntou Caspian.

– Muito pouca – respondeu Edmundo. – Com sorte, talvez Pedro ainda consiga vencer.

– Oh! Por que fomos permitir este combate? – lamentou-se Caspian.

De repente os gritos esmoreceram. Edmundo ficou perplexo por um instante e disse:

– Estou entendendo. Resolveram descansar um pouco. Vamos, doutor. Talvez possamos ajudar o Grande Rei.

Correram para a arena e Pedro saiu ao encontro deles, encharcado de suor, muito vermelho, respirando com esforço.

– Está com o braço ferido? – perguntou Edmundo.

– Não é bem um ferimento. Tive de agüentar o peso dele sobre o escudo... como se fosse uma carroça de tijolos... e a borda do escudo fincou-me no pulso. Se atarem o meu pulso bem apertado, acho que posso agüentar-me.

Enquanto fazia isso, Edmundo perguntou, ansioso:

– Que tal é ele, Pedro?

– Difícil, muito difícil mesmo. Talvez haja uma esperança, se conseguir agüentá-lo até que a falta de fôlego e o próprio peso o cansem... o peso e este sol de rachar. Para falar com franqueza, é com o que posso contar. Se acontecer alguma coisa, Ed, dê lembranças minhas a todos, lá em casa... Miraz está voltando. Adeus, meu velho. Adeus, doutor. Ed, não se esqueça de dizer a Trumpkin que me lembrei dele. Tem sido um amigão.

Edmundo não encontrou palavras para responder. Com uma horrível sensação de mal-estar, voltou com o doutor para junto dos seus.

O segundo encontro correu bem. Pedro parecia manejar o escudo com mais facilidade e não parava um instante. Quase que brincava de esconder com Miraz; mudava constantemente de posição, mantendo-se fora do alcance do inimigo e obrigando-o a mexer-se.

– Covarde! – gritaram os telmarinos. – Por que não luta de frente? Está com medo, hein? Aqui não é lugar de dançar, palhaço!

– Tomara que ele não se importe com o que dizem! – exclamou Caspian.

– Ele?! Você não conhece o Pedro, Caspian. Opa!

Miraz acabara de vibrar um golpe no elmo de Pedro. Este escorregou e caiu sobre um joelho. A gritaria dos telmarinos elevou-se como o rugido do mar.

– Vamos, Miraz! Mate ele logo!

Mas o usurpador não precisava que o incitassem. Já dominava Pedro. Edmundo mordeu os lábios até tirar sangue quando a espada baixou sobre o irmão. Teve a impressão de que a cabeça deste ia saltar. Mas (Deus seja louvado!) a lâmina atingiu apenas o ombro direito. A cota de malha, fabricada pelos anões, era resistente e não cedeu.

– Formidável! – exclamou Edmundo. – Está de pé outra vez. Coragem, Pedro!

– Não consegui ver o que aconteceu – disse o doutor. – Como é que ele se levantou?

– Agarrou-se ao braço de Miraz quando caiu – explicou Trumpkin, pulando de alegria. – Puxa! Como ele é valente! Usa o braço do inimigo como se fosse uma escada. Viva o Grande Rei! Viva a antiga Nárnia!

– Atenção! – disse Caça-trufas. – Miraz está furioso. A coisa vai indo muito bem.

Miraz e Pedro atiravam-se um ao outro como tigres irados. Os golpes se cruzavam tão rápidos que parecia impossível que algum deles viesse a escapar. A medida que a excitação crescia, os gritos diminuíam. Os espectadores seguravam a respiração. A luta era terrível e magnífica.

De súbito, levantou-se um clamor entre os antigos narnianos. Miraz estava no chão... não derrubado por Pedro, mas simplesmente caído, com a cara na terra, depois de ter tropeçado num tufo de relva. Pedro recuou, esperando que se levantasse.

– Ora bolas! Ora bolas! – repetiu Edmundo para consigo mesmo. – Que idéia é essa de ser tão delicado? Bem, vá lá! Trata-se de um cavaleiro e ainda por cima de um Grande Rei! Certamente que Aslam aprova a sua atitude. Mas não tarda que aquele bruto se levante e então...

Aquele bruto, no entanto, não chegou a levantar-se. Lorde Glozelle e lorde Sopespian tinham lá os seus planos. Logo que viram o rei caído, saltaram para a arena, gritando:

– Traição! Traição! O traidor de Nárnia apunhalou o rei pelas costas quando ele estava indefeso. Às armas! Às armas, Teimar!

Pedro mal teve tempo de compreender o que se passava. Dois homens enormes avançavam para ele, de espada em punho. Um outro saltou para a arena vindo da esquerda. Aí Pedro gritou:

– Às armas, Nárnia! Traição!

Se os três tivessem logo se atirado sobre Pedro, teriam acabado com ele. Glozelle, porém, deteve-se ainda para apunhalar o próprio rei, caído por terra.

– Tome! E em paga do insulto desta manhã – disse baixinho, ao cravar-lhe a espada.

Pedro voltou-se para enfrentar Sopespian, vibrou-lhe um golpe nas pernas e, invertendo imediatamente o movimento, fez-lhe saltar a cabeça. Nesse momento, Edmundo já estava junto dele, gritando:

– Nárnia! Pelo Leão!

O exército telmarino avançava em peso para eles. Mas o gigante começou a avançar também, baixando-se para um e para outro lado e fazendo vibrar sua clava. Os centauros iniciaram o ataque. Pam, pam, ouvia-se lá atrás. Por sobre as cabeças... zim, zim... zuniam as flechas dos anões. À esquerda lutava Trumpkin. Era a plena batalha.

– Vá-se embora, Ripchip, seu palerma! – gritou Pedro. – Isto não é lugar para ratos. Você vai acabar sendo morto.

Mas os ridículos animaizinhos continuaram a saltar de um lado para outro, espada na mão, entre os pés dos combatentes. Nesse dia, muitos telmarinos julgaram ter assentado o pé de repente numa dúzia de espetos, tentaram equilibrar-se numa perna só, amaldiçoando a dor, e muitas vezes acabaram por cair. Se caíam, os ratos acabavam com eles; se não caíam, alguém aparecia para resolver o caso.

Ainda os narnianos não tinham propriamente organizado o ataque, quando verificaram que o inimigo cedia. Guerreiros terríveis ficaram de repente brancos feito cal e, de olhos esbugalhados, fixavam não os antigos narnianos, mas alguma coisa que estava por detrás deles. Deixaram cair as armas e gritaram:

– O bosque! O bosque! É o fim do mundo!

Não demorou que seus gritos e o tinir das armas fossem abafados pelo rugir oceânico das árvores despertas, que se infiltravam pelas fileiras de Pedro e continuavam em perseguição aos telmarinos.

Você já viu algum dia uma grande floresta atacada por um vento furioso? Imagine o rugir do vento. Imagine também que a floresta não está imóvel, mas se precipita para você, e que já não é feita de árvores, mas de gente. Homens enormes, mas semelhantes a árvores, porque os braços que agitam parecem ramos, e, sacudindo a cabeça, deixam cair à volta uma chuva de folhas.

Foi a sensação que tiveram os telmarinos. A verdade é que o espetáculo era um tanto alarmante, mesmo para os narnianos. Dentro de instantes, todos os homens de Miraz fugiam em direção ao Grande Rio, na esperança de atravessarem a ponte para a cidade de Beruna e aí se defenderem, ao abrigo de barricadas e portões fechados.

Chegaram de fato ao rio, mas não encontraram a ponte, que tinha desaparecido na véspera. Tomados de pânico, todos se renderam.

Mas o que acontecera à ponte?

Naquela manhã, bem cedinho, as meninas, ao despertar, ouviram Aslam dizer:

– Hoje é dia de festa!

Esfregaram os olhos e olharam em redor. As árvores ainda podiam ser vistas ao longe, avançando para o Monte de Aslam, em mancha escura e maciça. Baco, as mênades (suas loucas e estouvadas companheiras) e Sileno tinham ficado. Lúcia, já refeita, levantou-se. Todos estavam acordados e riam ao som das flautas e timbales. De todos os lados apareciam animais, mas não falantes.

– Que aconteceu, Aslam? – perguntou Lúcia, com os olhos a bailar e os pés desejosos de fazer o mesmo.

– Vamos, minhas filhas – disse ele. – Hoje vão andar outra vez nas minhas costas.

– Que bom! – gritou Lúcia.

E as duas meninas subiram para o dorso quente e fulvo, como tinham feito sabe-se lá há quantos anos. Todo o grupo se pôs em movimento. Aslam à frente, seguido de Baco e das mênades – que corriam e saltavam e davam cambalhotas – , depois os animais cabriolando e finalmente Sileno, montado no seu burro.

Cortaram à direita, lançaram-se por uma encosta a pique e foram sair no Passo do Beruna. Da água emergiu uma cabeça coroada de juncos, maior

que a de um homem e com a barba a pingar. Olhou para Aslam e disse, numa voz grave:

– Salve, senhor! Liberte-me dos meus grilhões.

– Quem é? – perguntou Susana num murmúrio.

– Psiu! – disse Lúcia. – Deve ser o deus do rio.

– Baco, liberte-o das cadeias! – ordenou Aslam. “Deve estar falando da ponte” – pensou Lúcia. E era, de fato. Baco e sua gente avançaram chapinhando pela água pouco profunda; um instante depois, aconteciam as coisas mais estranhas. Troncos grossos e fortes enrolavam-se pelos pilares da ponte e, alastrando-se como o fogo, envolviam as pedras, separando-as, fazendo-as estalar. As grades da ponte transformaram-se por um momento em bonitas sebes de espinheiro branco. De repente, toda a construção desabou com estrondo e foi engolida pelas águas. Entre nuvens de salpicos e gritos de riso, parte do alegre grupo atravessou o rio a vau, enquanto outros o atravessaram a nado ou a bailar, saltando para a outra margem. Entraram todos na cidade.

– Viva! É outra vez o Passo do Beruna! – gritaram as meninas.

Ao vê-los, toda a gente da cidade desatou a correr.

A primeira casa que encontraram foi uma escola, uma escola de meninas, onde uma porção de alunas de Nárnia, com o cabelo muito esticado e golas muito apertadas e feias, e usando meias muito grossas, assistia a uma aula de História.

A História que se aprendia em Nárnia durante o reinado de Miraz era mais insípida do que a história mais verdadeira que se possa imaginar e muito menos verdadeira do que o mais apaixonante conto de aventuras.

– Goendolina, se continuar olhando para fora e não prestar atenção, dou-lhe um castigo! – disse a professora.

– Por favor... – disse Goendolina.

– Ouviu ou não ouviu o que eu disse?

– Mas, professora – insistiu Goendolina – lá fora tem um leão!

– Em vez de um, vou lhe dar dois castigos, para você não dizer bobagens. E agora...

Um rugido cortou-lhe a palavra. E a hera começou a crescer e a enroscar-se pelas janelas da sala de aula. As paredes ficaram atapetadas de um verde cintilante e o teto cobriu-se de folhas. De repente, a professora percebeu que estava na floresta, numa clareira relvada. Quis agarrar-se à carteira para apoiar-se e viu que esta se transformava numa roseira. Gente selvagem, como ela nunca imaginara que pudesse existir, comprimia-se ao redor. Ao ver o Leão, começou a gritar e a fugir, e com ela toda a classe, formada na maior parte por meninas rechonchudas e de pernas roliças. Goendolina hesitou:

– Quer ficar conosco, querida? – perguntou Aslam.

– Posso? Mesmo? Muito obrigada.

E imediatamente deu a mão a duas mênades, que a fizeram rodopiar numa dança frenética e a ajudaram a despir parte da roupa desnecessária e incômoda que trazia.

Por todos os lados por onde passavam, a cena se repetia. A maioria das pessoas fugia e umas poucas juntavam-se a eles. Quando saíram da cidade formavam um grupo muito maior e mais animado.

Correram pelos campos planos da margem esquerda do rio. De todas as quintas saíam animais que vinham ter com eles. Burros velhos e tristes, que nunca tinham conhecido uma hora de alegria, rejuvenesciam de um momento para outro; cães que estavam presos quebravam as correntes; os cavalos escoiceavam até deixar as carroças em frangalhos e acompanhavam o bando a galope – clope, clope, clope – , relinchando e sacudindo a lama dos cascos.

Junto de um poço, num pátio, um homem espancava um rapaz. O chicote transformou-se numa flor. O homem tentou soltá-la, mas estava agarrada à sua mão. Seu braço transformou-se num ramo, o corpo num tronco, os pés criaram raízes. O rapaz, que há pouco chorava, desatou a rir e foi com eles.

Numa cidadezinha, a meio caminho do Dique dos Castores, encontraram outra escola, onde uma mocinha com ar cansado ensinava Aritmética a uns meninos muito parecidos com porquinhos. A mocinha olhou pela janela e viu o grupo brincalhão. Tremeu de alegria. Aslam parou debaixo da janela e olhou para ela.

– Oh, não! Queria muito, mas não posso. Tenho de trabalhar. As crianças morreriam de susto se vissem você.

– Morrer de susto? – disse um menino que, mais do que qualquer outro, parecia um leitão. – Com quem está falando? Temos de dizer ao diretor que ela fica conversando com as pessoas à janela quando a obrigação dela é dar aula.

– Só quero ver quem é! – disse outro menino, e todos se levantaram.

Mas no momento em que as carinhas bobocas assomaram à janela Baco soltou o seu euan-euan-eoooi, e os meninos começaram a gritar assustados e atropelaram-se para sair pela porta ou saltar pela janela. Diz-se que esses meninos nunca mais foram vistos, mas que nessa região apareceu uma raça muito apurada de porquinhos que até então nunca havia existido.

– Venha, minha cara – disse Aslam à senhorita. E ela foi.

No Dique dos Castores voltaram a atravessar o rio e chegaram a uma casinha onde uma menina chorava.

– Por que chora, meu bem? – perguntou Aslam. A criança, que nunca vira um leão, nem mesmo desenhado, não se assustou.

– Minha tia está muito doente e vai morrer.

Aslam quis entrar pela porta, mas era pequena demais para ele. Enfiou a cabeça, fez força com os ombros (nessa altura, Lúcia e Susana escorregaram e caíram) e, levantando toda a casa, colocou–a abaixo.

Na cama, agora ao ar livre, via–se deitada uma velhinha franzina, que parecia ter sangue de anão. Estava às portas da morte, mas, quando abriu os olhos e viu a juba brilhante do Leão, não gritou nem desfaleceu. Exclamou apenas:

– Oh, Aslam! Sabia que era verdade. Esperei a vida toda por este momento. Veio para me levar?

– Sim, minha querida – disse Aslam. – Mas ainda não para a viagem final.

E, enquanto falava, como o rubor que se insinua nas nuvens ao nascer do sol, a cor voltou–lhe ao rosto pálido, os olhos readquiriram brilho e, sentando–se, ela disse:

– Estou muito melhor. Acho que seria capaz de comer alguma coisa.

– Aqui, titia – disse Baco, enchendo uma bilha no poço.

Mas a bilha, em vez de água, continha o mais perfumado dos vinhos, vermelho como geléia de groselha, suave como o azeite, forte como um bom bife, reconfortante como o chá, geladinho como o orvalho.

– Oh! – exclamou a velha. – O poço mudou, sem dúvida. Está muito melhor assim! – E saltou da cama.

– Suba às minhas costas – disse Aslam, e, para as duas meninas: – Vocês terão de ir a pé.

– Adoramos correr. – E partiram imediatamente.

Foi assim que, entre saltos, danças, cantos e ruídos de animais, o bando chegou finalmente ao lugar onde o exército de Miraz se alinhava, de espadas no chão e mãos para o ar, e onde os homens de Pedro, com uma expressão severa mas alegre, e ainda de armas nas mãos, cercavam, ofegantes, os vencidos. Então, a velha desceu das costas de Aslam e correu para Caspian... e caíram nos braços um do outro. Porque era, nem mais nem menos, a velha ama do príncipe.

 

ASLAM ABRE UMA PORTA NO AR

Ao ver Aslam, os soldados telmarinos ficaram lívidos, seus joelhos começaram a bater, e muitos caíram de cara no chão. Nunca tinham acreditado em leões, e a descrença aumentava ainda mais seu terror. Os próprios anões vermelhos, que sabiam que vinha como amigo, ficaram boquiabertos e mudos. Alguns dos anões negros, que tinham tomado o partido de Nikabrik, correram a esconder–se. Os animais falantes, porém, reuniram–se todos à volta do Leão. Alegres, rosnavam, guinchavam, relinchavam, ora acariciando o Leão, roçando–se nele, farejando–o delicadamente, ora andando de um lado para outro, por entre suas pernas. Se alguma vez você já viu um gatinho fazendo festas a um cachorro grande, no qual confia, poderá imaginar o que foi aquilo. Então Pedro, acompanhado de Caspian, abriu caminho por entre a bicharada.

– Permita que me apresente, Senhor! – disse Caspian, ajoelhando e beijando a pata do Leão.

– Bem–vindo seja, príncipe – disse Aslam. Sente–se bastante forte para reinar em Nárnia?

– Bem, não sei – respondeu Caspian. – Não passo de um garoto.

– Muito bem! – replicou Aslam. – Se dissesse que tinha a certeza, seria prova de que não estava apto a reinar. Por isso, abaixo de mim e do Grande Rei, será rei de Nárnia, Senhor de Cair Paravel e Imperador das Ilhas Solitárias. Você e os seus descendentes, enquanto durar a sua raça. A sua coroação... Mas o que vem a ser isso?

Nesse momento, um estranho cortejo aproximava–se: onze ratos, seis dos quais transportavam alguma coisa numa liteira feita de ramos. Nunca ninguém viu ratos mais tristes do que aqueles. Cobertos de lama (alguns também de sangue), as orelhas e os bigodes caídos, arrastavam a cauda pela relva. O que abria o cortejo tocava numa flauta uma melodia triste. O que jazia na maça parecia um monte de pêlo úmido: era tudo o que restava de Ripchip. Respirava ainda, mas estava já mais morto do que vivo, muito ferido, com uma pata esmagada; e onde antigamente era a cauda havia agora só um coto de rabo muito curtinho.

– É a sua vez, Lúcia! – disse Aslam.

Num abrir e fechar de olhos, Lúcia pegou seu frasco de diamante. Ainda que bastasse uma gota em cada ferimento, Ripchip tinha tantos que se fez um longo e pesado silêncio, até que ela finalmente acabou e o Senhor Rato saltou da maça. Levou imediatamente a mão ao punho da espada, enquanto com a outra torcia os bigodes. Fez uma reverência.

– Salve, Aslam! – disse, na sua vozinha aguda. –Tenho a honra de... – Mas parou de repente.

A verdade é que continuava sem cauda, ou porque Lúcia se esquecera desse pormenor ou porque o bálsamo, capaz de curar as feridas, não tinha o dom de fazer crescer as coisas outra vez. Foi quando fazia a reverência que Ripchip tomou consciência de sua perda. Talvez porque a falta de cauda lhe alterasse o equilíbrio. Olhou por cima do ombro direito. Não vendo a cauda, esticou o pescoço até conseguir voltar os ombros e depois todo o tronco. Mas nessa altura também as pernas se voltaram e nada viu. Estendeu de novo o pescoço sem resultado. Só depois de ter dado três voltas completas se apercebeu da amarga verdade.

– Estou perplexo! — declarou, dirigindo–se a Aslam. – Estou absolutamente fora de mim. Peço a sua indulgência pelo fato de apresentar–me de maneira tão imprópria.

– Pelo contrário, até lhe fica muito bem, pequenino – disse Aslam.

– Mesmo assim, se se pudesse fazer alguma coisa... talvez Vossa Majestade... – acrescentou, curvando–se para Lúcia.

– Mas para que você quer uma cauda? – perguntou Aslam.

– Senhor – replicou o rato –, é verdade que, sem ela, posso comer e dormir e dar a vida pelo meu rei. Mas a cauda sempre foi a honra e a glória de um rato.

– Parece que às vezes você se preocupa demais com a sua honra – disse Aslam.

– Rei poderoso sobre todos os Grandes Reis –respondeu Ripchip –, permita recordar–lhe que a nós, os ratos, foi dado um tamanho muito pequeno, de modo que, a não ser que conservemos a nossa dignidade, alguns dos que medem as pessoas aos palmos seriam bem capazes de se permitir brincadeiras de mau gosto às nossas custas. Por isso é que não perco a oportunidade de afirmar que todo aquele que não quiser sentir esta espada bem perto do coração deve evitar, na minha presença, toda referência a ratoeiras e queijo frito. Não admito, Senhor... nem ao mais alto idiota de Nárnia.

Nesse momento, olhou furioso para Verruma; mas o gigante, sempre atrasado, ainda não tinha conseguido descobrir o que se discutia lá embaixo, de modo que não entendeu o comentário.

– Por que todos os seus seguidores estão de espada na mão? – perguntou Aslam.

– Com licença de Vossa Majestade – disse o segundo rato, que se chamava Pipcik. – Estamos todos prontos a cortar a cauda se o nosso chefe ficar sem a dele. Não queremos ostentar uma honra que é negada ao Grande Rato.

– Ah! – rugiu Aslam. Vocês venceram! São muito corajosos. Não pela sua dignidade, Ripchip, mas pelo amor que o liga ao seu povo e, mais ainda, pela bondade que o seu povo mostrou para comigo, há muitos anos, quando roeu as cordas que me prendiam à Mesa de Pedra (se bem que tenham esquecido, foi nessa ocasião que começaram a falar), você terá de novo a sua cauda.

Mal Aslam acabara de pronunciar estas palavras e já a cauda estava em seu lugar. Então, seguindo as instruções de Aslam, Pedro conferiu a Caspian a dignidade de Cavaleiro da Ordem do Leão, e Caspian, uma vez armado cavaleiro, conferiu a honra a Caça–trufas, Trumpkin e Ripchip, declarando o doutor Cornelius seu Supremo Ma­gistrado e confirmando ao Urso Barrigudo o direito hereditário de Arbitro. Tudo isto no meio de grandes aplausos.

Os soldados telmarinos foram então conduzidos, firmemente, mas sem insultos nem pancada, para a outra margem do Beruna, e ficaram prisioneiros na cidade, recebendo aí carne e bebida. Fizeram grande berreiro quando atravessaram o rio a vau, porque detestavam a água corrente, tanto quanto detestavam e temiam os bosques e animais. Por fim, também essa balbúrdia acabou e começou a parte mais agradável daquele longo dia.

Lúcia, sentada junto de Aslam e sentindo–se divinamente feliz, perguntava a si própria o que é que as árvores estariam fazendo. A princípio achou que estivessem simplesmente dançando, pois moviam–se lentamente em dois círculos, um que girava da esquerda para a direita, outro que ia da direita para o meio dos círculos. Parecia às vezes que cortavam longas mechas de cabelos. Outras, porém, davam a idéia de que arrancavam pedaços dos dedos... mas, se assim era, deviam ter dedos para dar e vender e (parecia) não sentiam nem um pouquinho de dor. Fosse o que fosse que atirassem, ao tocar o chão se transformava em lenha seca. Três ou quatro anões vieram e atearam fogo à lenha, que começou a estalar e a fazer labaredas, até que crepitou como uma grande fogueira em noite de São ,’ João. Fizeram um círculo em redor.

Então Baco, Sileno e as mênades deram início a uma dança muito mais animada do que a das árvores. Não era apenas uma dança de divertimento e beleza, mas também uma dança mágica de abundância, porque, onde quer que as suas mãos ou os seus pés tocassem, surgia um verdadeiro banquete: nacos de carne assada, que enchiam o bosque com o seu delicioso aroma; bolos de aveia e trigo; mel e doces de muitas cores; creme de leite espesso, pêssegos, ameixas, romãs, pêras, uvas, morangos... verdadeiras cataratas de frutas. Depois foi a vez dos vinhos em taças de madeira e vasos entrelaçados com hera. Vinhos escuros e espessos como licor de amoras, outros de um vermelho–vivo como geléia rubra e derretida, e ainda outros amarelos e verdes, e outros amarelo–esverdeados e verde–amarelados.

Para as árvores a comida era diferente. Quando Lúcia viu que Escava–terra e suas toupeiras revolviam a terra em lugares que Baco lhes indicava, compreendeu que as árvores iriam comer terra e sentiu um arrepio. Mas, quando viu as terras que lhes eram oferecidas, mudou de opinião. Começaram a comer um esplêndido torrão castanho, que quase não se distinguia do chocolate, tão parecido que Edmundo provou um pouquinho, mas não achou nada bom. Depois de terem acalmado a fome com o torrão, as árvores voltaram–se para uma terra quase cor–de–rosa, da qual diziam ser leve e doce. Na hora do queijo, comeram uma porção de solo calcário, seguindo–se depois petiscos delicados, preparados com as areias mais finas e polvilhados com areia prateada. Beberam muito pouco vinho, mas mesmo assim as quaresmeiras ficaram muito falantes; quase sempre matavam a sede com longos goles de mistura de chuva e orvalho, aromatizada com flores campestres e perfumada com a suave fragrância das nuvens mais transparentes. Assim Aslam ofereceu aos narnianos um banquete, que durou até muito depois do pôr–do–sol e do despertar das primeiras estrelas. E a grande fogueira, agora mais rubra e menos crepitante, brilhava como um farol no meio dos bosques escuros. Ao vê–la, lá longe, os telmarinos, aterrados, perguntaram–se o que seria aquilo. O melhor da festa foi que ela não acabou, nem as pessoas foram embora. Simplesmente, à medida que a conversa se espaçava e perdia a animação, um e outro, sentindo a cabeça pesada, adormecia entre os amigos, de pés voltados para a fogueira. Até que finalmente caiu o silêncio e se ouviu de novo o parolar da água que saltitava de pedra em pedra no Passo do Beruna. Durante toda a noite, Aslam e a Lua contemplaram–se com imensa alegria.

No dia seguinte, despacharam–se mensageiros (principalmente esquilos e pássaros) por todo o país, com uma comunicação aos telmarinos dispersos, sem esquecer os que estavam presos em Beruna. Foi–lhes anunciado que Caspian era agora o rei e que, a partir daquele momento, Nárnia pertencia não só aos humanos como aos animais falantes, aos anões, às dríades, aos faunos e a todas as outras criaturas. Quem quisesse aceitar as novas condições poderia ficar; para aqueles que não estivessem satisfeitos, Aslam arranjaria outro país. Os interessados em mudar–se, deveriam apresentar–se a Aslam e aos reis dali a cinco dias, ao meio–dia em ponto, no Passo do Beruna.

Você pode imaginar a indecisão que isto causou entre os telmarinos. Muitos deles, principalmente os mais novos, como acontecera a Caspian, tinham ouvido histórias dos velhos tempos e ficaram encantados com a idéia de esses tempos voltarem. Já tinham até começado a fazer amigos entre as outras criaturas e resolveram ficar em Nárnia. Mas grande parte dos mais velhos, sobretudo os que tinham ocupado cargos importantes durante o reinado de Miraz, estavam irritados e não queriam viver num país onde não pudessem mandar.

– Era só o que faltava! Ficar vivendo aqui com um bando de animais de circo! E ainda por cima com fantasmas! – acrescentavam outros, tremendo de medo. – É, porque essas dríades são fantasmas, não passam disso! Seria uma loucura!

E também estavam desconfiados.

– Não confio neles – diziam. – De mais a mais, com aquele Leão medonho! Tenham certeza de que ele vai usar as suas garras, vocês vão ver!

Por outro lado, desconfiavam igualmente da tal proposta de um novo país.

– Vai é levar a gente para um covil e devorar um por um!

E, quanto mais discutiam entre si, mais irritados e desconfiados ficavam. No dia marcado, porém, mais da metade apareceu.

Num dos extremos da clareira, Aslam mandara espetar duas estacas, mais altas do que um homem e afastadas cerca de um metro. Outra estaca mais leve foi posta horizontalmente em cima das duas primeiras, reunindo–as de modo que parecessem uma porta, que vinha não se sabe de onde e dava não se sabe para onde. Em frente da porta postou–se Aslam, com Pedro à direita e Caspian à esquerda. Em torno, reuniram–se Susana, Lúcia, Trumpkin, Caça–trufas, doutor Cornelius, Ciclone, Ripchip e os outros. As crianças e os anões tinham aproveitado bem o guarda–roupa do antigo castelo de Miraz, que era agora de Caspian. Com sedas, brocados e linhos alvos, armaduras de prata e espadas incrustadas de pedras preciosas, elmos dourados e chapéus de plumas, ofereciam um espetáculo tão deslumbrante que feria a vista. Até os animais traziam ao pescoço colares preciosos. Mas ninguém reparava neles ou nas crianças. O ouro da juba de Aslam excedia a tudo. Os outros antigos narnianos estavam de pé, de ambos os lados da clareira; no outro extremo, os telmarinos. O sol brilhava intensamente, as bandeiras ondulavam ao vento.

– Homens de Teimar – começou Aslam. – Vocês, que procuram nova pátria, ouçam–me. Mandá–los–ei para a sua terra, que eu conheço e vocês não!

– Não nos lembramos mais de Teimar. Não sabemos onde fica nem como é – murmuraram os telmarinos.

– Vocês vieram de Teimar para Nárnia – disse Aslam. – Mas chegaram a Teimar provenientes de outro lugar. Não pertencem a este mundo. Chegaram aqui há algumas gerações, vindos do mesmo mundo a que pertence o Grande Rei Pedro.

Ao ouvirem isto, alguns dos telmarinos começaram a resmungar.

– Não falei? Vai liquidar a gente. Vai mandar a gente para o outro lado do mundo.

Outros começaram, empertigados, a dar pancadinhas nas costas uns dos outros, dizendo:

– Agora entendemos tudo. Não era tão difícil adivinhar que não pertencíamos ao mundo desta gente esquisita e detestável. Corre em nossas veias sangue real.

Até Caspian, Cornelius e as crianças se voltaram para Aslam, com ar de espanto.

– Silêncio! – disse Aslam, num tom de voz baixo que mais se aproximava do seu rugido normal. A terra pareceu estremecer um pouco, e todos os seres vivos ficaram imóveis como estátuas.

– Você, Caspian – disse Aslam –, bem podia ter adivinhado que não poderia ser o verdadeiro rei de Nárnia se não fosse, como os antigos reis, filho de Adão, vindo do mundo dos filhos de Adão. É o que você é. Há muitos anos aconteceu que, nesse outro mundo, em um lugar chamado Mar do Sul, um barco de piratas foi arrastado para uma ilha por uma tempestade. Os piratas fizeram o que costumam fazer: mataram os indígenas, tomaram as mulheres por esposas, dormiram à sombra das palmeiras, acordaram, discutiram, matando–se de vez em quando uns aos outros. Numa dessas refregas, seis deles, obrigados a fugir, foram com as mulheres para o centro da ilha; subiram depois a montanha e se esconderam numa caverna. Acontece que a caverna era um lugar mágico, uma das fendas abertas entre aquele mundo e este. E foi assim que caíram ou rolaram pela tal passagem e se encontraram de repente neste mundo, na terra de Teimar, que era então desabitada. Por que era desabitada é uma longa história, que não contarei agora. Os seus descendentes viveram em Teimar e formaram um povo arrogante e temido; passadas muitas gerações, houve em Teimar uma grande fome e por isso invadiram Nárnia, onde reinava então uma certa desordem (outra longa história), e conquistaram–na e submeteram–na. Está compreendendo, rei Caspian?

– Compreendo, Senhor. Estava pensando que gostaria de ter tido uma ascendência mais honrosa.

– Descende de Adão e Eva – tornou Aslam. – É honra suficientemente grande para que o mendigo mais miserável possa andar de cabeça erguida, e também vergonha suficientemente grande para fazer vergar os ombros do maior imperador da Terra. Dê–se assim por satisfeito.

Caspian baixou a cabeça.

– E agora, homens e mulheres de Teimar, querem vocês voltar para essa ilha no mundo dos homens, de onde vieram os seus pais? A raça de piratas que ali desembarcou já se extinguiu, e a ilha está desabitada. Há fontes de água fresca, solo fértil, madeira para construções, e as lagoas são muito ricas em peixes. Os outros homens desse outro mundo ainda não descobriram a ilha. A passagem está aberta para o regresso de vocês. Logo que estiverem do outro lado, ela se fechará para sempre.

Durante alguns segundos, fez–se silêncio. Depois, um dos soldados telmarinos, um sujeito forte e simpático, avançou e disse:

– Pois bem! Aceito a proposta.

– Aprovo a sua escolha – disse Aslam. – E, porque foi o primeiro a decidir–se, um poder mágico se exercerá sobre você. Será feliz nesse outro mundo. Em frente!

O homem, agora um pouco pálido, avançou. Aslam e os outros afastaram–se, deixando–lhe livre acesso à porta feita de estacas.

– Atravesse–a, meu filho – disse Aslam, inclinando–se e tocando o nariz do homem com o seu próprio nariz.

No momento em que sentiu o bafo do Leão, os seus olhos adquiriram uma expressão nova (um pouco de surpresa, mas não de tristeza), como se ele quisesse lembrar–se de alguma coisa. Endireitou–se e entrou pela porta.

Todos os olhares estavam cravados nele. Todos viam as três estacas de madeira e, através delas, do outro lado, as árvores, a relva e o céu de Nárnia. Viram o homem entre os dois postes; depois, de repente, desapareceu.

Do outro extremo da clareira ouviu–se o pranto dos telmarinos:

– Ai! Que terá acontecido? Quer matar a todos nós? Não iremos para lá.

Então um dos telmarinos mais inteligentes disse:

– Não vemos nenhum outro mundo além daqueles postes. Se quer que acreditemos no que diz, por que um dos seus não atravessa a porta? Os seus amigos mantêm–se bem afastados dela.

Logo Ripchip avançou e fez uma reverência.

– Se meu exemplo pode servir de alguma coisa, Aslam, a uma ordem sua passarei com onze ratos por debaixo daquele arco... sem a menor hesitação!

– Não, meu filho – disse Aslam, pousando de leve a pata sobre a cabeça de Ripchip. – Fariam coisas terríveis com vocês naquele mundo: seriam exibidos nas feiras. São outros que têm de passar.

– Vamos! – disse Pedro de repente, voltando–se para Edmundo e Lúcia. – Chegou a nossa hora.

– Que quer dizer com isso? – perguntou Edmundo.

– Por aqui – disse Susana, que parecia estar a par de tudo. – Temos de voltar à floresta, para mudar...

– Mudar o quê? – perguntou Lúcia.

– A roupa, naturalmente! – declarou Susana. – Bonita figura iríamos fazer na estação da estrada de ferro com estas roupas.

– Mas as nossas estão no castelo de Caspian –objetou Edmundo.

– Não! – disse Pedro, continuando no rumo da floresta mais cerrada. – Estão aqui. Vieram esta manhã. Está tudo em ordem.

– Era disso que Aslam falava com você e Susana esta manhã? – perguntou Lúcia.

– Era disso e de outras coisas – disse Pedro, com um ar muito solene. – Não posso contar–lhes tudo. Há coisas que ele queria dizer a Su e a mim, porque não voltaremos a Nárnia.

– Nunca mais?! – exclamaram Edmundo e Lúcia, consternados.

– Vocês hão de voltar – explicou Pedro. – Pelo menos, pelo que ele disse, fiquei convencido de que ele deseja a volta de vocês um dia. Su e eu é que não. Aslam diz que já estamos muito grandes.

– Mas, Pedro, que azar! – exclamou Lúcia.

– Acho que já estou conformado – replicou Pedro. – É tudo muito diferente do que eu pensava. Compreenderá quando chegar a sua vez. Agora vamos arrumar as coisas.

Foi uma sensação esquisita e não muito agradável despir os trajes reais e voltar a aparecer com os uniformes de colégio, já um tanto usados. Um ou dois dos telmarinos esboçaram uns risinhos de troça. Mas as outras criaturas levantaram–se e aclamaram o Grande Rei Pedro, a rainha Susana, da trompa mágica, o rei Edmundo e a rainha Lúcia. As crianças despediram–se afetuosamente dos velhos amigos, e Lúcia até chegou a chorar.

Os animais beijaram as crianças, os Ursos Barrigudos deram–lhes tapinhas amáveis, Trumpkin apertou–lhes a mão e, para terminar, não faltou um abraço bem apertado de Caça–trufas, que lhes fez cócegas com o bigode. É claro que Caspian voltou a oferecer a trompa a Susana, e é claro que esta lhe disse que a guardasse. Depois, magnífica e terrível, seguiu–se a despedida de Aslam. Pedro tomou então o seu lugar, com Susana atrás, pousando–lhe as mãos nos ombros, e as mãos de Edmundo nos ombros dela, e as do primeiro telmarino nos de Lúcia. E assim, numa longa fila, avançaram para a porta. Seguiu–se um momento indescritível, durante o qual as crianças viram três coisas ao mesmo tempo. Viram a boca de uma caverna, descobrindo o verde e o azul brilhantes de uma ilha do Pacífico – a ilha em que os telmarinos iriam encontrar–se no momento em que transpusessem a porta. Viram uma clareira em Nárnia e os rostos dos anões e dos animais e os olhos profundos de Aslam e as manchinhas brancas do focinho do texugo. A terceira visão, porém, foi aquela que rapidamente dominou as outras duas: uma plataforma cinzenta e arenosa de uma estação de estrada de ferro provinciana, um banco com malas ao lado, eles sentados no banco, como se nunca tivessem saído de lá... O espetáculo por um instante lhes pareceu um pouco monótono, depois de tudo o que tinham vivido, mas, inexplicavelmente, tinha também o seu encanto, com o cheiro característico e familiar das estações ferroviárias, e o céu da terra natal e as perspectivas do primeiro período de aulas.

– Bem – disse Pedro – foi uma esplêndida aventura!

– Ora bolas! – exclamou Edmundo. – Deixei minha lanterna nova em Nárnia...

 

                                                                                            C. S. Lewis

 

 

                      

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