Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Viagem do Peregrino da Alvorada / C. S. Lewis
A Viagem do Peregrino da Alvorada / C. S. Lewis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA

A Viagem do Peregrino da Alvorada

 

            

 

O QUADRO

Era uma vez um garoto chamado Eustáquio Clarêncio Mísero, e na verdade bem merecia esse nome. Os pais diziam Eustáquio Clarêncio, e os professores, apenas Mísero. Não posso dizer como era chamado pelos amigos, pois não tinha amigos. Não tratava o pai e a mãe por papai e mamãe, mas por Arnaldo e Alberta. Os pais eram gente moderna, de idéias abertas. Vegetarianos, não fumavam nem bebiam, e usavam roupa de baixo de fabricação especial. Havia muito pouca mobília em sua casa, pouquíssima roupa de cama e mantinham sempre as janelas escancaradas.

Eustáquio gostava de animais, especialmente de besouros quando estavam mortos e espetados num cartão. Também gostava de livros instrutivos, com gravuras em que se podiam ver armazéns para guardar cereais ou robustas crianças estrangeiras fazendo ginástica em escolas-modelo.

Eustáquio não gostava nada mesmo era dos primos, os quatro Pevensie: Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia. Mas ficou contentíssimo quando soube que Edmundo e Lúcia vinham passar uns tempos com ele, pois lá no fundo adorava bancar o mandão e chatear os outros. Apesar de ser um molengão, que na hora da briga não conseguia nem enfrentar Lúcia, e muito menos Edmundo, sabia que há muitas maneiras de aborrecer os outros, quando a casa é da gente e eles são nossos hóspedes.

Edmundo e Lúcia também não sentiam a menor vontade de ir para a casa do tio Arnaldo e da tia Alberta, mas não tinham outro remédio. Naquele verão, o pai arranjara uma vaga como professor nos Estados Unidos, durante quatro meses, e a mãe resolvera ir com ele.

Pedro, que tinha de preparar-se com todo o afinco para o exame, passaria as férias recebendo aulas do velho professor Kirke, em cuja casa as quatro crianças tinham tido aventuras maravilhosas, já havia muitos anos, na época da guerra. Se o professor ainda morasse na mesma casa, os garotos teriam ido para lá; mas, depois daquela época, ele perdera tudo o que tinha e vivia agora num chalé, com apenas um quarto vago.

Como ficaria muito caro levar os filhos todos para os Estados Unidos, somente Susana tinha partido com os pais. A gente grande achava Susana a mais bonita da família. Como era bem desenvolvida para a sua idade e não tinha grande queda para os estudos, a mãe dissera que “ela aproveitaria mais a viagem do que os outros mais novos”. Edmundo e Lúcia fizeram o impossível para não sentir inveja de Susana, mas era de fato horrível ter de passar as férias na casa da tia.

– Para mim ainda é muito pior – dizia Edmundo –, porque você terá um quarto separado, enquanto eu terei de dividir o meu com aquele nojento do Eustáquio.

A nossa história começa numa tarde em que Edmundo e Lúcia aproveitavam juntos alguns minutos preciosos. Como é óbvio, falavam de Nárnia, nome do país secreto deles. Acho que quase todos nós temos um país secreto, que, para a maioria, é apenas um país imaginário. Edmundo e Lúcia eram bem mais felizes: o país secreto deles era verdadeiro. Já tinham até visitado Nárnia duas vezes, de verdade, não sonhando, nem brincando. É claro que tinham conseguido chegar lá por Magia, que é a única maneira de atingir Nárnia. E tinham prometido que lá voltariam algum dia. Assim, você pode imaginar como eles falavam de Nárnia, sempre que podiam.

Naquela tarde, estavam sentados na beira da cama no quarto de Lúcia, olhando para um quadro pendurado na parede – o único quadro de que gostavam em toda a casa. Tia Alberta detestava o quadro, mas não podia jogá-lo fora, pois fora presente de casamento de uma pessoa a quem não queria ofender. Representava um barco navegando em nossa direção. A proa era dourada e tinha o formato de uma cabeça de dragão de boca escancarada. Tinha apenas um mastro e uma grande vela quadrada de um vivo tom de púrpura. As laterais do barco, só visíveis onde terminavam as asas do dragão, eram verdes. Estava exatamente na crista de uma grande onda azul, e o côncavo da vaga mais próxima, franjada de espumas e salpicos, parecia vir para cima da gente. Via-se que corria ligeiro, impelido por um vento forte, inclinando-se um pouco para bombordo. (A propósito, se você está mesmo resolvido a ler esta história, acho melhor ter em mente que a esquerda de um barco, quando se olha de frente, é bombordo, e a direita é estibordo.) A luz do sol incidia sobre o lado inclinado do barco e a água estava cheia de tons verdes e roxos. Do outro lado, o mar era azul-escuro, devido à sombra do barco.

– Ficar olhando para um navio de Nárnia sem poder chegar lá é pior ainda! – disse Edmundo.

– Olhar é sempre melhor do que nada – respondeu Lúcia. – E esse aí é um verdadeiro navio de Nárnia.

– Ainda brincam como antes? – perguntou Eustáquio, que andara escutando atrás da porta e agora arreganhava os dentes.

No ano anterior, quando estivera em casa dos Pevensie, conseguira flagrar os primos conversando sobre Nárnia e adorava aborrecê-los por causa disso. Achava que eles estavam imaginando aquilo tudo e, como era bestalhão demais para imaginar seja lá o que fosse, não via a menor graça.

– Ora, vá andando, não queremos você aqui – disse Edmundo secamente.

– Estou vendo se me recordo de uns versinhos – disse Eustáquio –, qualquer coisa mais ou menos assim:

Uns meninos que brincavam de Nárnia Foram ficando cada vez mais birutas...

– Pra começo de conversa, Nárnia e birutas não rimam – disse Lúcia.

– É uma rima toante – disse Eustáquio.

– Não pergunte para ele o que é isso! Está doido para que você pergunte! Não fale nada, talvez assim ele se mande.

Com uma recepção dessas, qualquer garoto teria ido embora, mas Eustáquio era diferente. Continuou a rondar de um lado para outro, arreganhando os dentes, e de repente voltou a falar:

– Você gosta deste quadro?

– Pelo amor de Deus, não deixe ele começar a falar de arte e outras coisas – interrompeu Edmundo depressa. Mas Lúcia, que era de muito boa-fé, já havia dito:

– Adoro!

– É uma porcaria de pintura – disse Eustáquio.

– Caia fora daqui, que você não vê mais a porcaria – respondeu Edmundo.

– Por que você gosta dele? – perguntou Eustáquio a Lúcia.

– Por um motivo especial – respondeu Lúcia. – Porque o navio parece que está andando, a água parece mesmo molhada, e as ondas sobem e descem.

Eustáquio podia dar-lhe meia dúzia de respostas, mas dessa vez nada disse. Naquele mesmo instante, ao olhar para as ondas, viu que realmente elas pareciam em movimento. Só havia andado de barco uma vez (uma pequena distância), mas tinha enjoado pra valer. Ao ver as ondas do quadro, ficou de novo enjoado. Já estava quase verde, mas tentou olhar mais uma vez. E aí as três crianças ficaram estupefatas e boquiabertas.

O que viram naquele momento é difícil de acreditar, mesmo nos livros; mas é muito mais difícil de acreditar quando acontece na vida real. Tudo no quadro estava em movimento. Não era como no cinema, não: as cores eram muito mais reais e vivas, como ao ar livre. A proa do navio afundava e tornava a subir nas ondas com uma grande franja de espuma. Quando uma onda ergueu o navio atrás, viu-se pela primeira vez a popa e o convés, que desapareceram logo no bojo da onda seguinte. Nesse mesmo instante, um caderno, que estava caído sobre a cama de Edmundo, começou a virar as folhas e foi levado pelo ar, batendo na parede; o cabelo de Lúcia enrolou-se em torno do rosto, como num dia de vento. Era um dia de vento, mas o vento soprava do quadro. De súbito, com o vento, vieram os barulhos... o marulhar das ondas, o bater da água de encontro ao costado do navio e, mais alto que tudo, o estrépito do vento e da água. Foi o cheiro (agreste, salgado) que convenceu Lúcia de que ela não estava sonhando.

– Acabem logo com isso! – disse Eustáquio, com uma voz rouca de medo e raiva. – Que brincadeira mais estúpida vocês arranjaram! Acabem com isso! Vou falar com Alberta... Oh!

Os outros dois já estavam bastante acostumados com essas aventuras, mas, no exato momento em que Eustáquio disse oh, também eles disseram oh. Pois uma grande rajada de água fria e salgada saltara do quadro, deixando-os sem respiração e completamente encharcados.

– Vou arrebentar essa porcaria de quadro! – gritou Eustáquio. Mas foi logo acontecendo uma porção de coisas.

Eustáquio correu para o quadro. Edmundo, que sabia alguma coisa de magia, saltou atrás, dizendo que ele não fizesse uma besteira. Lúcia quis agarrá-lo, mas foi arrastada para a frente. E, nesse mesmo instante, ou os garotos diminuíram de tamanho ou o quadro ficou maior.

Eustáquio deu um pulo para ver se retirava o quadro da parede, mas ficou encravado na moldura; na sua frente não havia vidro, mas um mar verdadeiro, com ventos e ondas batendo no caixilho, como se fosse de encontro a uma rocha. Perdeu a cabeça e se agarrou aos outros dois que já tinham pulado para perto dele. Houve um instante de confusão e gritaria; quando achavam que tinham recuperado o equilíbrio, surgiu uma grande onda azul que os fez rodopiar, atirando-os ao mar.

O grito desesperado de Eustáquio apagou-se quando a água lhe entrou pela boca. Lúcia havia praticado muita natação nas férias, o que foi a sua sorte. Talvez até se agüentasse melhor se desse braçadas mais lentas e se a água não estivesse muito mais fria do que parecia no quadro. Mas não perdeu a serenidade, chegando a tirar os sapatos – coisa que a gente sempre deve fazer quando cai vestida dentro de água funda. Fechou bem a boca e conservou os olhos abertos. Estavam muito perto do navio e a menina via o costado verde, erguendo-se lá no alto, e várias pessoas olhando do convés.

Então, como era de esperar, Eustáquio agarrou-se a ela, cheio de pavor, e os dois foram para o fundo. Quando voltaram à superfície, a menina viu uma figura vestida de branco mergulhando do costado do navio. Edmundo estava agora junto dela, bracejando e segurando os braços de Eustáquio, que não parava de gritar. De repente alguém cujo rosto lhe era vagamente familiar passou-lhe o braço por debaixo do corpo. Do navio gritavam o tempo todo; na amurada apinhavam-se cabeças e de bordo lançavam cordas. Lúcia sentiu que Edmundo e o desconhecido lhe atavam cordas ao corpo.

Seguiu-se o que lhe pareceu uma longa espera, durante a qual ficara com o rosto arroxeado e batendo queixo. Mas na verdade a espera não foi de fato grande; só estavam aguardando pelo momento em que poderiam içá-la para bordo, sem ir de encontro ao costado do navio. Mesmo com todas essas precauções, quando finalmente alcançou o convés, toda encharcada e tremendo de frio, tinha um joelho machucado. Puxaram depois Edmundo e o infeliz Eustáquio. Por fim, subiu o desconhecido – um rapaz de cabelos dourados, alguns anos mais velho do que a menina.

– Ca... Ca... Caspian – gaguejou Lúcia, logo que tomou fôlego. Porque era mesmo Caspian, o jovem rei de Nárnia, a quem haviam ajudado a subir ao trono quando visitaram aquele país pela última vez.

Edmundo também o reconheceu. Cumprimentaram-se os três, dando tapinhas nas costas uns dos outros, com grande alegria.

– Quem é o amigo de vocês? – perguntou logo Caspian, voltando-se para Eustáquio, com semblante risonho e acolhedor.

Mas Eustáquio, que chorava de maneira inacreditável para um rapaz da sua idade que não sofrerá mais do que uma simples molhadela, apenas gritou:

– Quero ir embora! Não gosto disto!

– Embora para onde? – perguntou Caspian.

Eustáquio correu para a amurada do navio

como se esperasse ver a moldura do quadro sobre o mar e, quem sabe, até mesmo um pedacinho do quarto de Lúcia. Mas só viu ondas azuis e o céu, de um azul mais claro, estendendo-se até a linha do horizonte. É compreensível que tenha ficado em pânico, e logo começou a enjoar.

– Chegue aqui, Rinelfo – disse Caspian para um dos marinheiros. – Busque vinho aromático para Suas Majestades. Precisam de calor depois desse

mergulho.

Tratava Edmundo e Lúcia por majestades, porque estes, como Pedro e Susana, haviam sido, muito tempo atrás, reis e rainhas em Nárnia. O tempo em Nárnia não corre como em nosso mundo. Mesmo que passemos cem anos em Nárnia, voltamos ao nosso mundo exatamente no mesmo dia e na mesma hora em que partimos. Mas, se quisermos voltar a Nárnia depois de termos passado uma semana aqui, podem já ter se passado mil anos em Nárnia, ou um dia só, ou até não ter passado tempo algum. Só quando se chega lá é que se sabe quanto tempo se passou. Assim, quando os Pevensie haviam estado em Nárnia pela última vez, na segunda visita, era para os habitantes de Nárnia como se o rei Artur tivesse voltado à Grã-Bretanha, como se diz que há de voltar. E eu digo que o quanto antes melhor!

Rinelfo apareceu com o vinho aromático, fumegando num jarro, e quatro taças de prata. Era justamente disso que precisavam. À medida que Lúcia e Edmundo iam bebendo, sentiam o calor percorrer-lhes todo o corpo. Eustáquio é que começou a fazer caretas e engasgar-se, lançando tudo fora e ficando ainda mais enjoado. Recomeçou a chorar e a pedir que lhe dessem um chá feito com água potável. Ou que o desembarcassem no porto mais próximo.

– Que companheiro de viagem mais gozado você nos trouxe! – murmurou Caspian para Edmundo, rindo-se disfarçadamente.

Porém, Eustáquio irrompeu de novo:

– Opa, Hã... Que troço é aquele? Tirem daqui essa coisa horrorosa!

Aí ele tinha certa razão de mostrar espanto: da cabine da popa saíra um ser muito curioso, que se aproximava deles devagar. Podia-se dizer que era um rato, e era realmente. Mas um rato com cerca de sessenta centímetros de altura, caminhando apoiado nas patas traseiras. Atada à cabeça, por baixo de uma orelha e por cima de outra, exibia uma fina fita dourada na qual se prendia uma pena vermelha. Como a pele do rato era muito escura, quase negra, o efeito era impressionante. Apoiava a pata esquerda no punho de uma espada quase tão comprida quanto sua cauda. Seu equilíbrio, ao caminhar solenemente ao longo do convés que balançava, era perfeito, e seus modos revelavam que estava habituado à corte. Lúcia e Edmundo viram logo quem era. Era Ripchip, o mais valente de todos os animais falantes de Nárnia, o rato-chefe, que ganhara glória imorredoura na segunda batalha de Beruna. Lúcia sentiu uma vontade enorme, como sempre lhe acontecia, de pegar Ripchip no colo e acariciá-lo. Mas sabia muito bem que nunca poderia satisfazer essa vontade, pois ele ficaria profundamente ofendido. Em vez disso, ajoelhou-se para conversar com ele.

Ripchip avançou a perna esquerda, afastou para trás a direita, fez uma reverência, beijou-lhe a mão, endireitou-se, torceu os bigodes e disse na sua voz aguda e chiante:

– Sou vosso humilde servo, assim como do rei Edmundo. (Fez outra reverência.) A esta maravilhosa aventura faltava apenas a presença de Vossas Majestades.

– Ai, ai, ai! Tirem-me daqui! – gemeu Eustáquio. – Tenho horror a rato. Não agüento ver bicho fazendo palhaçada. São uns idiotas que gostam de bancar os espertalhões.

– Devo compreender – disse Ripchip a Lúcia, de pois de olhar demoradamente para Eustáquio – que essa criatura singularmente descortês está sob a proteção de Vossa Majestade. Porque se não for assim...

Lúcia e Edmundo espirraram ao mesmo tempo.

– Mas onde estou com a cabeça! Deixei vocês aqui com a roupa molhada! – exclamou Caspian. – Vamos descer para mudar de roupa. Como é natural, Lúcia, cedo-lhe o meu camarote, mas o que não tenho é vestimenta feminina de acordo. Ripchip, mostre-lhes o caminho como um bom sujeito.

– Para servir a uma senhora, mesmo uma questão de honra pode esperar, pelo menos por agora... – e Ripchip olhou severamente para Eustáquio.

Mas Caspian os empurrou e logo Lúcia entrou por uma portinha para a cabine da popa. Ficou encantada. Na salinha abriam-se três janelas quadradas para o mar revolto; bancos baixos e almo-fadados cercavam os três lados da mesa; uma lâmpada de prata balançava sobre suas cabeças (viu logo que era trabalho de anões, pela delicada perfeição) e, na parede em frente, a efígie de ouro de Aslam, o Leão, pendurada acima da porta. Viu tudo isso num relance, pois Caspian imediatamente abriu uma porta a bombordo e disse:

– Este agora vai ser o seu quarto, Lúcia. Só vou tirar daqui umas peças de roupa para mim – e enquanto falava remexia as gavetas – e depois deixo você à vontade. Ponha sua roupa lá fora; mandarei que a levem para secar.

Lúcia sentia-se tão à vontade no camarote como se o ocupasse havia semanas. O movimento do navio não a incomodava nem um pouco, pois nos velhos tempos em que fora rainha em Nárnia tinha viajado muito. O camarote era pequeno, mas muito alegre, com painéis pintados (aves, outros bichos, dragões vermelhos e trepadeiras), e estava imaculadamente limpo. As roupas de Caspian eram demasiado grandes, mas ela conseguiu dar um jeito. Os sapatos, as sandálias e as galochas é que eram impossíveis de calçar, por causa do tamanho, mas Lúcia não se importava de andar descalça a bordo. Quando acabou de se vestir, olhou pela janela a água que ia ficando para trás, em torvelinho, e suspirou profundamente. Tinha a certeza de que passaria uma temporada maravilhosa.

 

A BORDO DO PEREGRINO DA ALVORADA

– Ah, aí vem Lúcia! – disse Caspian. – Estávamos à sua espera. Este é o meu capitão, lorde Drinian.

Um homem de cabelos escuros pôs um joelho em terra e beijou a mão de Lúcia. Os outros presentes eram só Ripchip e Edmundo.

– Onde está Eustáquio? – perguntou Lúcia.

– Na cama – respondeu Edmundo. – Acho que não podemos fazer nada por ele. Fica ainda pior quando tentamos ajudá-lo.

– Precisamos conversar – disse Caspian.

– É claro – concordou Edmundo. – Antes de tudo, acerca do tempo. Para nós passou um ano desde que o deixamos, antes de sua coroação. Quanto tempo passou em Nárnia?

– Três anos precisamente – respondeu Caspian.

– Vai tudo bem por lá? – quis saber Edmundo.

– Iria eu deixar o meu reino e viajar se alguma coisa não estivesse bem? – respondeu o rei. – As coisas não podem ir melhor. Não há agora nenhum problema entre os telmarinos, os anões, os bichos falantes, os faunos e todos os outros. E no verão passado demos uma lição tão grande naqueles turbulentos gigantes da fronteira, que agora já me pagam imposto. Deixei como regente, durante minha ausência, uma pessoa excelente, Trumpkin, o Anão. Lembra-se dele?

– O meu querido Trumpkin! – exclamou Lúcia.

– Claro que me lembro. Não podia ter feito melhor escolha.

– Leal como um texugo e valente como... um rato – disse Drinian. Estivera para dizer “como um leão”, mas notara os olhos de Ripchip fixos nele.

– Para onde se dirigem vocês? – perguntou Edmundo.

– Ah – respondeu Caspian –, isso é uma longa história. Talvez ainda se lembrem de que, quando eu era criança, meu tio Miraz usurpou o trono e livrou-se de sete amigos de meu pai (para que não ficassem do meu lado), mandando-os explorar os Mares Orientais além das Ilhas Solitárias.

– Sim – disse Lúcia. – E nenhum deles voltou.

– Isso mesmo. Pois bem, no dia da minha coroação, com a aprovação de Aslam, jurei que se um dia estabelecesse a paz em Nárnia navegaria durante um ano para encontrar os amigos de meu pai, ou ter a certeza da morte deles e vingá-los caso pudesse. Seus nomes eram lorde Revilian, lorde Bern, lorde Argos, lorde Mavramorn, lorde Octasiano, lorde Restimar e... oh!... há mais um...

como é mesmo?...

– Lorde Rupe, senhor – acrescentou Drinian.

– Exatamente, lorde Rupe – disse Caspian. – Esta é a minha intenção principal. Mas o Ripchip aqui tem mais altas esperanças. – Todos os olhos se viraram para o rato.

– Tão altas quanto o meu espírito. Ainda que, talvez, tão pequenas quanto a minha estatura. Por que não haveríamos de chegar ao extremo oriental do mundo? Que poderíamos encontrar lá? Espero encontrar o próprio país de Aslam! É sempre do Oriente, através do mar, que o Grande Leão vem encontrar-se conosco.

– É uma idéia – comentou Edmundo, em tom muito respeitoso.

– Mas acha – perguntou Lúcia – que o país de Aslam é desse jeito, quero dizer, do tipo que se pode navegar até ele?

– Não sei, minha senhora. Mas repare bem: estava eu ainda no berço, e uma dríade do bosque cantou assim:

Onde o céu e o mar se encontram,

Onde as ondas se adoçam,

Não duvide, Ripchip,

Que no Leste absoluto está

Tudo o que procura encontrar.

– Não sei o que isto significa, mas esse sortilégio me perseguiu a vida toda.

– E onde estamos agora, Caspian? – perguntou Lúcia, depois de ligeiro silêncio.

– O capitão poderá informá-la melhor do que eu. – Drinian puxou o mapa e estendeu-o sobre a mesa.

– Nossa posição é esta – disse, apontando com o dedo. – Ou, pelo menos, era, hoje ao meio-dia. Tivemos um vento magnífico desde Cair Paravel e paramos um pouco ao norte de Galma, aonde chegamos no dia seguinte. Estivemos no porto durante uma semana, pois o duque de Galma tinha organizado um grande torneio em honra de Sua Majestade, que desmontou muitos cavaleiros...

– E levei também umas tremendas quedas, Drinian – observou Caspian. – Ainda tenho as marcas...

– ... e desmontou muitos cavaleiros – repetiu Drinian, com um trejeito. – Pareceu-nos que o duque teria ficado muito contente se o rei tivesse casado com a filha dele, mas isso não aconteceu...

– Tem olhos tortos e sardas – disse Caspian.

– Coitadinha! – exclamou Lúcia.

– Saímos de Galma – continuou Drinian – e por dois dias pegamos uma grande calmaria que nos obrigou a remar, mas o vento voltou e levamos quatro dias para chegar a Terebíntia. Aí, o rei nos mandou um recado para que não desembarcássemos, pois havia peste no país. Assim, dobramos o cabo, ancoramos numa pequena enseada longe da cidade e recolhemos água. Tivemos de ficar ancorados três dias nesse lugar, antes que apanhássemos um vento sudoeste para seguir a caminho das Sete Ilhas. No fim do terceiro dia, um navio pirata (de Terebíntia, pela aparência) alcançou-nos, mas quando nos viu bem armados afastou-se, de pois de rápida troca de flechas...

– Devíamos ter ido atrás deles e liquidado todos aqueles piolhos – disse Ripchip.

– Cinco dias mais tarde estávamos à vista de Muil, que, como sabem, é a mais ocidental das Sete Ilhas. Remamos através dos estreitos e, perto do anoitecer, chegamos a Porto Vermelho, na ilha de Brena, onde nos receberam festivamente, e onde nos abastecemos à vontade de víveres e água. Deixamos Porto Vermelho há seis dias e temos navegado com tanta rapidez que esperamos ver as Ilhas Solitárias depois de amanhã. Em resumo, estamos no mar há uns trinta dias e já navegamos mais de quatrocentas léguas desde Nárnia.

– E além das Ilhas Solitárias? – perguntou Lúcia.

– Ninguém sabe, real senhora. A não ser que os próprios habitantes das ilhas saibam nos informar.

– Não sabiam na nossa época – respondeu Edmundo.

– Por isso – disse Ripchip –, é depois das Ilhas Solitárias que a aventura é pra valer!

Caspian sugeriu que talvez gostassem de ver o navio antes da ceia, mas a consciência de Lúcia a afligia muito.

– Acho que vou dar uma olhada em Eustáquio. Como sabem, o enjôo é uma coisa terrível. Se tivesse comigo o meu antigo elixir, poderia curá-lo.

– Pois está aqui – disse Caspian. – Tinha-me esquecido completamente. Como o deixou ao partir, achei que podia ser guardado como patrimônio do tesouro real e o trouxe. Se acha que deve ser desperdiçado em uma coisa como enjôo...

– Só vou gastar uma gota – garantiu Lúcia.

Caspian abriu uma gaveta e tirou o frasquinho de diamante de que Lúcia se lembrava tão bem.

– Restituo-lhe o que é seu.

Depois voltaram para a luz do sol. Havia no convés duas grandes escotilhas, sempre abertas quando o tempo estava bom, uma de cada lado do mastro, para deixar passar a luz e o ar para o interior do navio. Caspian conduziu-os por uma escada que levava à escotilha da frente. Acharam-se em um compartimento onde se enfileiravam lado a lado bancos para remadores; a luz, entrando pelo orifício dos remos, dançava no teto.

Claro que o navio de Caspian não se parecia nada com uma galera movida a remo por escravos. Só eram usados os remos quando não havia vento ou para entrar ou sair de algum porto. Todos, menos Ripchip, que tinha as pernas curtas demais, remavam muitas vezes. De cada lado do barco, debaixo dos bancos, havia um espaço para os pés dos remadores, e, bem no centro de tudo, uma espécie de poço que descia até a quilha, cheio de vasos das mais variadas coisas: sacos de farinha, tonéis de cerveja e água, barris com carne de porco, jarros de mel, odres de vinho, maçãs, nozes, queijos, biscoitos, nabos, fatias de toucinho. Do teto – isto é, da parte de baixo do convés – pendiam presuntos e braçadas de cebolas e, deitados nas suas redes, os vigias que estavam de serviço.

Depois foram para a popa, chegando a uma parede de madeira com uma porta, que Caspian abriu. Entraram numa cabine que ocupava a parte de baixo da popa e dos camarotes do convés. Não era tão bonita quanto a outra. O teto era muito baixo, e as paredes tinham uma inclinação muito acentuada. Embora de vidro grosso, as janelas não podiam ser abertas, pois ficavam quase debaixo do nível da água. Conforme o navio mergulhava, pareciam alternadamente douradas, com a luz do sol, ou verde-escuras, com o mar.

– Eu e você, Edmundo, vamos ficar alojados aqui – disse Caspian. – Cederemos ao seu parente o beliche e dormiremos nas redes.

– Rogo a Vossa Majestade... – disse Drinian.

– Não, meu amigo – replicou o rei –, já discutimos isso. Você e Rince (Rince era o ajudante) dirigem o navio e terão muito trabalho todas as noites, enquanto nós ficaremos a cantar ou a contar histórias. Por isso, vocês ficam no camarote superior. O rei Edmundo e eu ficaremos embaixo comodamente instalados. Como vai indo o estrangeiro?

Eustáquio, muito esverdeado, fechou a cara e quis saber se havia indícios de a tempestade acalmar.

– Que tempestade? – perguntou Caspian. E Drinian caiu na gargalhada, dizendo:

– Tempestade, meu jovem?! Não se pode pedir um tempo melhor!

– Quem é esse cidadão? – perguntou Eustáquio, irritado. – Mandem que ele se retire. A voz dele me dá nos nervos.

– Trouxe uma coisa que vai fazer-lhe bem, Eustáquio – disse Lúcia.

– Ora, deixem-me em paz! – resmungou Eustáquio. Mas tomou uma gota do frasco. Apesar de dizer que era uma droga horrenda (o cheiro que se espalhou pela cabine era delicioso), seu rosto retomou a cor natural, segundos depois de ter bebido.

Devia sentir-se melhor, pois, em vez de queixar-se da tempestade e da cabeça, começou a pedir que o desembarcassem e a garantir que haveria de “apresentar queixa” contra todos eles ao cônsul britânico, no primeiro porto a que chegassem.

Quando Ripchip perguntou que queixa era essa e como se apresentava (Ripchip achava que era uma nova maneira de arranjar um duelo), Eustáquio apenas pôde responder:

– Vejam só! Não sabe nem isso!

Por fim conseguiram convencê-lo de que estavam navegando o mais depressa possível para a terra mais próxima que conheciam, e que ir para a Inglaterra ou para a Lua seria a mesma coisa – impossível!

Acabou consentindo, de cara feia, em vestir outra roupa e subir para o convés.

Caspian acompanhou-os na visita ao barco, ainda que já o tivessem visto quase todo. Subiram ao castelo da proa e viram os vigias num pequeno compartimento dentro do pescoço dourado do dragão, olhando pela boca aberta. Dentro do castelo da proa estava a galé (ou cozinha do navio) e os alojamentos do contramestre, do carpinteiro, do cozinheiro e do arqueiro-mor.

Se você acha estranho que a cozinha esteja na parte da frente, pensando que o fumo da chaminé se espalha para trás, por todo o navio, é porque está imaginando um navio a vapor, onde há sempre vento de frente. Numa embarcação a vela o vento vem de trás, e qualquer coisa que deite cheiro é colocada bem na frente.

Subiram à torre de combate, onde, à primeira vista, era aflitivo olhar lá embaixo o convés, tão pequeno e tão longe. Quem caísse dali, tanto podia cair dentro, no navio, como no mar. Depois foram levados à popa, onde Rince e outro homem estavam de serviço na grande roda do leme, detrás da qual o dragão erguia a cauda de ouro, formando um pequeno compartimento com um pequeno banco.

O navio chamava-se Peregrino da Alvorada. Era uma coisinha à-toa se comparado aos nossos navios, e até mesmo às galeras que havia em Nárnia na época em que Lúcia e Edmundo ali reinaram, pois quase toda a navegação havia cessado com os antecessores de Caspian. Quando seu tio, o usurpador Miraz, mandou os sete fidalgos para o mar, teve de comprar um navio galmiano. Mas, agora, Caspian começara a ensinar aos narnianos a ser de novo gente do mar, e o Peregrino era o mais bonito dos barcos que mandara construir, mas tão pequeno que quase não tinha convés entre o mastro principal e a escotilha, de um lado, e o galinheiro, do outro (Lúcia deu de comer às galinhas). Em seu gênero, era uma beleza, como diziam os marinheiros, de linhas perfeitas, cores puras, todos os pormenores feitos com amor.

Não agradava nada a Eustáquio, que não parava de contar vantagens sobre os transatlânticos, barcos a vapor, aviões, submarinos (“Como se entendesse qualquer coisa disso” – murmurou Edmundo). Mas os outros dois estavam encantados com o Peregrino. Quando voltaram ao camarote para cear e viram o céu todo iluminado com um imenso pôr-do-sol, e sentiram o navio estremecer sob os pés, e o gosto de sal nos lábios, tudo isso aliado à perspectiva de terras desconhecidas, tiveram tão grande sensação de felicidade, que Lúcia não conseguiu dizer uma palavra.

Quanto ao pensamento de Eustáquio, é melhor sabermos por intermédio de suas próprias palavras; pois quando lhe devolveram sua roupa seca, na manhã seguinte, tirou do bolso um caderninho de capa preta e um lápis e começou a escrever um diário. Costumava apontar nesse caderno inseparável suas notas de colégio. Não se interessava de fato por nenhuma das matérias, mas adorava tirar boas notas e vivia perguntando a todos: “Quanto você tirou em Geografia? Eu tirei nove!” Como não era provável que lhe dessem boas notas no Peregrino, resolveu iniciar o diário. Eis o começo:

“7 de agosto. Se isso não é um sonho, já estou 24 horas neste barco abaixo da crítica. Durante todo esse período tem feito um mau tempo insuportável (ainda bem que não costumo enjoar a bordo). Ondas imensas avançam constantemente sobre a parte da frente do barco, e já o vi em perigo de ir ao fundo inúmeras vezes. Os outros fingem que não notam, ou por fanfarronice, ou por fecharem covardemente os olhos aos fatos (como Arnaldo afirma que fazem as pessoas medíocres). E uma autêntica loucura vir para o mar em uma miserável casquinha como esta. Não é mais espaçosa que um salva-vidas. O interior, claro, é de todo primitivo. Não tem um salão, nem rádio, nem banheiros, nem poltronas. Ontem à noite levaram-me quase de rastos para ver o barco todo, e era de morrer de rir ouvir Caspian gabar o seu barquinho como se fosse o Queen Mary. Ainda tentei explicar-lhe como eram os barcos de verdade, mas é burro demais. E. e L. não estão de acordo comigo. Acho que L. ainda não tem consciência do perigo, e E. vive botando azeitonas na empada de C, como fazem todos aqui. É chamado de rei. Disse-lhe que eu era republicano, e perguntou-me o que vinha a ser isso!!! Acho que não entende nada de nada. É desnecessário dizer que me puseram no pior camarote, um verdadeiro calabouço. À Lúcia deram um camarote no convés, só para ela. Se o compararmos com o resto do barco, dir-se-ia que é quase belo. C. diz que é por se tratar de uma moça. Tentei explicar-lhe o que Alberta sempre diz, que esse tipo de coisa inferioriza as moças, mas não conseguiu entender. Porém, podia bem compreender que vou adoecer se continuar por mais tempo neste covil. E. diz que não devemos queixar-nos porque o próprio C. divide o quarto conosco, cedendo o seu a L. Como se assim não ficássemos mais apertados e numa situação ainda pior. Quase me esquecia de dizer que há também aqui uma espécie de rato, que trata a todos com a mais incrível arrogância. Os outros que o suportem, se quiserem; quanto a mim, dou-lhe um bom nó na cauda na primeira em que se meter comigo. A comida também é detestável.”

A questão entre Eustáquio e Ripchip estourou mais cedo do que se esperava. No dia seguinte, antes do almoço, quando os outros já estavam sentados à mesa esperando (o mar dá um apetite excelente), Eustáquio entrou correndo, apertando uma das mãos e gritando:

– Aquele animal quase me matou! Exijo que seja posto sob vigilância. Eu podia intentar uma ação contra você, Caspian. Podia até exigir que executasse o rato!

Ripchip apareceu, espada desembainhada, bigodes eriçados, mas cortês como sempre. Edmundo perguntou o que se passava.

– Peço perdão a todos, e especialmente a Vossa Majestade (referindo-se aqui a Lúcia). Se soubesse que ele se refugiara neste recinto, teria esperado melhor ocasião para castigá-lo.

Acontecera o seguinte: Ripchip, que nunca achava que o barco ia rápido o bastante, gostava de sentar-se na amurada, na cabeça do dragão, olhando o horizonte para as bandas do oriente e cantando na sua vozinha chiante a canção que a dría-de lhe dedicara. Nunca se agarrava a nada e, embora o navio pulasse, conservava facilmente o equilíbrio. Sua cauda, que se estendia pelo convés, devia contribuir para essa estabilidade. Todos a bordo conheciam esse hábito, e os marinheiros gostavam disso, pois é sempre bom ter alguém para conversar quando se está de vigia. A verdadeira razão que levou Eustáquio a ir escorregando, cambaleando, tropeçando por todo o caminho até o castelo da proa (ainda não se acostumara com os balanços do navio) é que eu nunca soube. Talvez esperasse ver terra, talvez tenha ido rondar a cozinha do navio para ver se abiscoitava alguma coisa. De qualquer modo, assim que viu aquela cauda estendida – realmente devia ser uma tentação – pensou que seria genial fazer Ripchip rodopiar preso pela cauda, uma ou duas vezes, para baixo e para cima, e sair depois correndo em grandes risadas. A princípio tudo parecia ir muito bem. O rato era pouco mais pesado que um gato grande. Eustáquio o fez girar umas três vezes e achou muito engraçado ver Ripchip com as patinhas afastadas e a boca aberta.

Mas, infelizmente, Rip lutara muitas vezes para defender a vida e não perdeu a cabeça um só instante. Nem a agilidade. Não é muito fácil desembainhar uma espada quando se está rodando no ar, preso pela cauda, mas ele conseguiu.

Dois dolorosos golpes na mão obrigaram Eustáquio a soltar imediatamente a cauda do rato. Endireitando-se logo, este saltou para o convés como uma bola e enfrentou o rapaz; manejava para a frente e para trás uma coisa comprida, brilhante, afiada como um espeto, apenas à distância de cinco centímetros da barriga do adversário.

 

– Pare com isso! – berrou Eustáquio. – Vá embora! Vou contar tudo para Caspian! Aposto que irão amordaçá-lo!

– Por que não tira a sua espada, covardão? – chiou o rato. – Tire-a e lute, ou lhe baterei tanto com a espada que vou deixá-lo roxo.

– Nunca usei uma espada – disse Eustáquio. – Sou um pacifista. Não me meto em brigas.

– Quer dizer – disse Ripchip, afastando a espada e falando com grande severidade – que não pretende conceder-me uma reparação?

– Não entendo o que quer dizer – disse Eustáquio, esfregando a mão. – Se você é incapaz de entender uma brincadeira, não vou perder meu tempo.

– Então, tome esta – disse Ripchip – e mais esta, e esta, para aprender a ter modos e a respeitar um Cavaleiro do Reino e a cauda de um rato. – E, a cada palavra, castigava Eustáquio com um golpe lateral de sua pequena espada, que era fina, de aço forjado por anões, e tão flexível e eficiente quanto um chicote.

Eustáquio, é claro, estudava em uma escola em que não havia castigos corporais: a sensação era completamente nova para ele. Assim, mesmo não tendo pernas de homem do mar, levou menos de um minuto para chegar ao castelo da proa, cobrindo toda a extensão do convés como um relâmpago e irrompendo pela porta do camarote ainda perseguido por Ripchip.

Não houve grande dificuldade em resolver a questão. Ao perceber que todos aderiram, muito a sério, à idéia de um duelo (ouviu Caspian oferecer-lhe sua espada, enquanto Drinian e Edmundo discutiam as condições que lhe deveriam impor, visto ser muito mais alto do que Ripchip), Eustáquio desculpou-se, emburrado. Depois retirou-se com Lúcia, para que esta tratasse do seu ferimento. Quando foi dormir, teve o cuidado de deitar-se de lado.

 

As ILHAS SOLITÁRIAS

– Terra à vista! – gritou o homem da proa.

Lúcia, que conversava com Rince na popa, correu escada abaixo e, no caminho, encontrou Edmundo. Quando chegaram ao castelo da proa, Caspian, Ripchip e Drinian já estavam lá.

A manhã era fria, com o céu muito pálido e o mar azul-escuro com pequenas cristas brancas de espuma. Longe, avistava-se a mais próxima das Ilhas Solitárias, Felimate, como montanha verde no meio do mar, e, mais longe ainda, as vertentes cinzentas de sua irmã Durne.

– Sempre a mesma Felimate! Sempre a mesma Durne! – exclamou Lúcia, batendo palmas. – Oh, Edmundo, faz tanto tempo que estivemos aqui!

– Nunca entendi por que pertencem a Nárnia – disse Caspian. – Foram conquistadas pelo Grande Rei Pedro?

– Não! – respondeu Edmundo. – Já pertenciam a Nárnia antes disso, desde o tempo da Feiticeira Branca.

De minha parte, nunca soube por que essas ilhas afastadas passaram a pertencer à coroa de Nárnia; se algum dia souber e se a história tiver realmente interesse, hei de narrá-la em outro livro.

– Vamos lançar âncora aqui? – perguntou Drinian.

– Acho que não vale a pena desembarcar em Felimate – disse Edmundo. – Era quase desabitada no nosso tempo e acho que não mudou. O povo vivia principalmente em Durne e um pouco em Avra, a terceira ilha, que não se vê daqui.

– Então teremos de dobrar aquele cabo – disse Drinian – e desembarcar em Durne. Isso quer dizer que precisamos remar.

– É uma pena que não vamos desembarcar em Felimate – disse Lúcia. – Gostaria de dar uma voltinha por lá. Era tudo tão solitário... Uma solidão linda. Tudo relva, trevo e ar puro do mar.

– Também gostaria de mexer as pernas – disse Caspian. – Tenho uma idéia: iremos de bote, e depois o enviamos de volta; atravessamos Felimate a pé e pegamos o Peregrino do outro lado da ilha.

Se Caspian já fosse tão experiente como veio a ser mais tarde naquela mesma viagem, não teria feito essa sugestão, que, de momento, lhe parecia excelente.

– Ótimo! – gritou Lúcia.

– Quer vir também? – indagou Caspian a Eustáquio, que tinha subido ao convés com a mão enfaixada.

– Qualquer coisa é melhor do que a droga deste navio!

– Droga! Que quer dizer com isso? – perguntou Drinian.

– Num país civilizado, como aquele de onde vim, os navios são tão grandes que, quando se entra neles, nem se chega a perceber que andou no mar.

– Nesse caso podiam ficar sempre em terra. – disse Caspian. – Drinian, pode mandar descer o bote.

O rei, o rato, os dois Pevensie e Eustáquio entraram no bote e foram levados à praia de Feli-mate. Quando o bote os deixou e voltou, olharam em torno: ficaram surpresos ao ver como o Peregrino parecia pequenino.

Claro que Lúcia continuava descalça, pois havia tirado os sapatos para nadar, mas não achava nada difícil caminhar sobre a relva macia. Era formidável pisar novamente no chão, sentir o cheiro da terra e da relva, ainda que a princípio o terreno parecesse balançar como no barco, o que acontece normalmente durante algum tempo, depois de uma viagem por mar. Era mais quente ali do que a bordo, e Lúcia gostou de pisar na areia. Uma cotovia cantava.

Subiram a um monte bastante escarpado, ainda que baixo. No alto, como é natural, olharam para trás e lá estava o Peregrino brilhando como um grande inseto reluzente, movendo-se lentamente para noroeste com os seus remos. Dobraram a crista do monte e não mais o viram.

Durne estava na frente, separada de Felimate por um canal com menos de dois quilômetros; à esquerda ficava Avra.

Via-se nitidamente a cidadezinha branca de Porto Estreito, em Durne.

– O que é aquilo? – perguntou Edmundo.

No vale verde, para o qual desciam, estavam sentados, à sombra de uma árvore, seis ou sete homens de má aparência, todos armados.

– Não  lhes  digam  quem  somos  –  falou Caspian.

– Pode-se saber por quê, Majestade? – perguntou Ripchip, que concordara em ser transportado no ombro de Lúcia.

– Ocorreu-me agora que talvez ninguém aqui ouça falar de Nárnia há muito tempo. É bem possível que já não reconheçam a nossa soberania.

De qualquer forma, não é muito seguro ser conhecido como rei.

– Temos as nossas espadas – disse Ripchip.

– Sim, é claro, mas se tivermos de reconquistar as três ilhas prefiro voltar aqui com um exército maior.

Já estavam muito perto dos homens, quando um deles, um homenzarrão de cabelo escuro, gritou:

– Bom dia!

– Bom dia! – disse Caspian. – Ainda há um governador nas Ilhas Solitárias?

– Claro que há – respondeu o homem –, o governador Gumpas. Sua Excelência está em Porto Estreito. Sentem-se e bebam conosco.

Caspian agradeceu, e, ainda que nem ele nem os outros gostassem da aparência dos novos conhecidos, sentaram-se todos. Mal tinham levado o copo aos lábios, já o homem de cabelo escuro fazia sinal aos companheiros, e num relâmpago os cinco visitantes viram-se agarrados por braços fortes. A luta foi rápida, e logo estavam todos desarmados e com as mãos amarradas às costas, com exceção de Ripchip, que se revirava nas mãos de seu captor e o mordia furiosamente.

– Cuidado com esse animal, Taco – disse o chefe. – Não o machuque. Vai alcançar o melhor preço de todo o lote. Quem haveria de dizer!

– Covarde! Poltrão! – guinchava Ripchip. – Passe a minha espada e liberte-me, se for homem!

– Puxa! – exclamou o mercador de escravos, pois era essa sua profissão. – Ele fala! Nunca pensei!

Quero ser mico de circo se não fizer com ele duzentos crescentes. (O crescente dos calormanos, que é a principal moeda da região, vale cerca de duzentos reais.)

– Então o seu trabalho é esse? – falou Caspian.

– Raptor de crianças e vendedor de escravos! Deve sentir-se muito orgulhoso...

– Ora, não comece com besteiras – interrompeu o mercador. – Quanto mais bonzinhos ficarem, melhor será para todos. Não faço isso por gosto. Tenho de ganhar a vida como todo o mundo.

– Para onde está nos levando? – perguntou Lúcia, pronunciando as palavras com dificuldade.

– Para Porto Estreito – respondeu o mercador.

– Amanhã é dia de feira.

– Existe lá um cônsul britânico? – perguntou Eustáquio.

– Existe o quê?! – estranhou o homem.

Mas, antes que Eustáquio se cansasse de explicar, o mercador disse apenas:

– Chega de conversa fiada. O rato é uma boa mercadoria, mas este aqui fala pelos cotovelos. Vamos andando, pessoal.

Os quatro prisioneiros foram amarrados juntos, não de maneira cruel, mas de modo que ficassem seguros. Tiveram de caminhar até a praia. Ripchip era transportado no colo. Tinha parado de morder, sob a ameaça de lhe amordaçarem, mas desforrava-se protestando. Lúcia estava boba de ver como o mercador agüentava as coisas que o rato lhe dizia. – Continue! – dizia ele, sem se irritar, sempre que Ripchip parava para tomar fôlego; e acrescentava de vez em quando: – Isto é melhor do que ir ao teatro de marionetes; chego a pensar que sabe o que está dizendo! Quem o ensinou a falar?

Isso enfureceu tanto Ripchip que ele acabou sufocado (com tanta coisa para falar ao mesmo tempo) e calou a boca.

Quando chegaram à praia, que ficava em frente de Durne, encontraram uma aldeiazinha e, um pouco mais longe, um barco comprido, que parecia sujo de lama.

– Agora, jovens – disse o mercador –, nada de confusões, para não terem o que lamentar. Todos a bordo.

Nesse mesmo instante, um homem barbado, de boa aparência, saiu de uma casa (uma estalagem, acho) e disse:

– Olá, Pug. Mais um pouco de sua mercadoria de sempre?

O mercador fez uma profunda reverência e disse num tom mesureiro:

– Pois é. Vossa Senhoria quer alguma?

– Quanto está pedindo por aquele rapaz? – perguntou o outro, apontando para Caspian.

– Ah, Vossa Senhoria sempre escolhe o melhor. Não se deixa enganar com coisa de segunda classe.

Aquele rapaz, ora essa, é também o meu preferido. Sinto simpatia por ele. Tenho um coração sensível, não devia ter entrado numa profissão como esta. No entanto, para um cliente como Vossa Senhoria...

– Diga-me o preço dele, seu verme – disse o senhor, severamente. – Acha que quero ouvir essa conversa mole?

– Trezentos crescentes, meu senhor, para a Vossa honrada Senhoria, mas para qualquer outro...

– Dou cento e cinqüenta.

– Oh, por favor, por favor! – interrompeu Lúcia.

– Seja como for, não nos separe. Não sabe que... – Mas calou-se logo, pois viu que Caspian, nem mesmo naquela situação, queria ser reconhecido.

– Cento e cinqüenta! – repetiu o senhor. – Quanto a você, menina, tenho muita pena, mas não posso comprar todos. Solte o rapaz, Pug. E trate bem os outros enquanto estiverem nas suas mãos; do contrário, será pior para você.

– Essa é boa! – exclamou Pug. – Quem já ouviu falar de um cavalheiro, nesse meu ramo de negócio, que tratasse a mercadoria melhor do que eu?!

Trato deles como se fossem meus filhos.

– E bem provável que sim – disse o outro, de modo sombrio.

O momento terrível chegara. Caspian foi desatado e o seu novo amo lhe disse:

– Por aqui, moço.

Lúcia desandou a chorar, e Edmundo ficou muito pálido. Caspian, no entanto, olhou por cima do ombro, dizendo:

– Coragem! Tenho certeza de que no fim dará tudo certo. Até mais ver.

– Vamos, menina – disse Pug –, não fique assim que estraga a sua aparência. Tem de ser vendida amanhã. Comporte-se, nada de choro. Entendeu?

Foram levados em um bote a remo para o barco de escravos e metidos num largo compartimento, bastante escuro e nada limpo, onde já se encontravam outros infelizes prisioneiros. Pug, sem dúvida alguma, era um pirata e havia naquela ocasião regressado de uma incursão pela ilha, onde apanhara tudo o que pudera. As crianças não encontraram nenhum conhecido; a maior parte dos prisioneiros era de Galma ou de Terebíntia. Sentaram-se na palha, imaginando o que estaria acontecendo com Caspian. E tentando calar Eustáquio, que queria culpar a todos, menos a si próprio, pelo acontecido.

Do lado de Caspian, as coisas eram mais interessantes. O homem o levou por um atalho até um campo atrás da aldeia.

– Não precisa ter medo de mim – disse. – Vou tratá-lo muito bem. Comprei-o por causa de sua fisionomia. Você me lembra alguém.

– Posso saber quem, meu senhor? – perguntou Caspian.

– O meu amo, o rei Caspian de Nárnia.

Caspian resolveu então arriscar tudo de uma vez:

– Meu senhor, eu sou Caspian, rei de Nárnia.

– Assim é muito fácil. – disse o outro – Como posso saber se é verdade?

– Em primeiro lugar, vê-se pela minha cara. Em segundo lugar, porque sou capaz de dizer quem é você entre seis outros. Você é um dos sete fidalgos que meu tio Miraz mandou para o mar: Argos, Bern, Octasiano, Restimar, Mavramorn, e... e... me esqueci dos outros. Se me der uma espada provarei, em combate leal, que sou Caspian, filho de Caspian, legítimo rei de Nárnia, Senhor de Cair Paravel e Imperador das Ilhas Solitárias.

-Justos céus! – exclamou o homem. – É exatamente a mesma voz e a mesma maneira de falar do pai. Meu senhor e meu rei!

Ajoelhou-se e beijou a mão de Caspian, que lhe disse:

– O dinheiro que desembolsou será restituído pelo nosso tesouro.

– Já não deve estar na bolsa de Pug, senhor – disse lorde Bern, pois era ele – e, segundo penso, nunca estará. Já disse centenas de vezes ao governador para acabar com esse infame comércio de seres humanos.

– Caro lorde Bern, temos muito o que falar sobre o que se passa nestas ilhas, mas quero ouvir primeiro a sua história.

– É muito curta, senhor. Vim dar aqui com os meus seis companheiros, gostei de uma moça destas ilhas e cheguei à conclusão de que havia andado muito tempo pelo mar. Enquanto seu tio estivesse no governo não seria possível voltar a Nárnia; assim, casei-me e aqui tenho vivido desde então.

– Como é esse Gumpas, o governador? Ainda reconhece o rei de Nárnia como soberano?

– Aparentemente sim. Tudo é feito em nome do rei. Mas ele não vai ficar nada satisfeito ao ver o rei de Nárnia, real e vivo, a pedir-lhe contas do que fez. Se Vossa Majestade aparecesse na frente dele sozinho e desarmado, bem... não negaria vassalagem, mas fingiria não acreditar.

– O meu navio está agora virando o cabo. Se for preciso combater, somos trinta espadas. Posso cair sobre Pug com o meu navio e libertar meus amigos, que ele tem cativos.

– Não o aconselho a fazer isso – disse Bern. – Logo que começasse o combate, sairiam de Porto Estreito dois ou três navios em socorro de Pug. Vossa Majestade tem de agir fazendo alarde de um poderio que na realidade não tem e debaixo do terror produzido pelo nome do rei. Não deve ir em combate. Gumpas não agüenta uma galinha pelo rabo e acovarda-se facilmente.

Falaram mais algum tempo e desceram até a costa, desviando-se para oeste da aldeia; aí, Caspian fez soar a trompa (não era a trompa mágica da rainha Susana, que ficara em Nárnia com o regente Trumpkin, para o caso de alguma urgência).

Drinian, que estava de vigia à espera de um sinal, reconheceu logo a trompa real, e o Peregrino começou a aproximar-se da praia. O bote foi de novo arriado, e em poucos momentos Caspian e lorde Bern encontravam-se no convés explicando para Drinian a situação.

Este, como Caspian, teria preferido acostar o navio de escravos e fazer uma abordagem, mas Bern apresentou a objeção anterior.

– Navegue reto pelo canal, capitão – disse Bern.

– Vire depois para Avra, onde tenho os meus domínios. Hasteie o pavilhão azul, suspenda todos os escudos, mande para a ponte de combate o maior número possível de homens. Cerca de cinco tiros de flechas daqui, quando chegar à entrada do porto, faça alguns sinais.

– Sinais? Para quem? – perguntou Drinian.

– Para os navios que não trouxemos, mas que é preciso que Gumpas julgue que trouxemos.

– Estou entendendo – respondeu Drinian, esfregando as mãos. – E eles irão ler os nossos sinais.

Que vamos dizer? Que a Armada vire ao sul de Avra e se reúna...

– No domínio de Bern – completou lorde Bern.

– Perfeito. Se existissem alguns navios, toda a travessia se faria fora das vistas de Porto Estreito.

Caspian sentia pena dos amigos, que definhavam no barco de escravos, mas não pôde deixar de achar o resto do dia muito agradável. Já muito tarde, entraram em um belo porto da costa sul de Avra, onde as ricas terras de Bern desciam até o mar.

Os habitantes de Bern, muitos dos quais trabalhavam no campo, eram todos livres; o domínio era feliz e próspero. Foram regiamente recebidos em uma casa baixa, sustentada por colunas, da qual se via toda a baía. Bern, sua simpática esposa e suas encantadoras filhas acolheram os visitantes com alegria.

Depois de anoitecer, Bern enviou um mensageiro de bote a Durne, para organizar alguns preparativos (não disse exatamente quais) para o dia seguinte.

 

UMA VITÓRIA DE CASPIAN

Na manhã seguinte, lorde Bern chamou os hóspedes bem cedo e pediu a Caspian que mandasse seus homens vestirem armadura completa.

– E especialmente – acrescentou – que tudo esteja tão limpo e reluzente como na manhã de um grande combate entre nobres reis, com um grande público assistindo.

Assim fizeram; Caspian com a sua gente e Bern com alguns de seus homens embarcaram em três botes com destino a Porto Estreito.

No cais, Caspian encontrou grande multidão a recebê-lo.

– Foi isto que mandei preparar na noite passa da – disse Bern. – São todos meus amigos e gente de bem.

Logo que Caspian desembarcou, a multidão rebentou em hurras e gritos: “Nárnia! Nárnia! Viva o Rei!”

No mesmo instante – também devido ao mensageiro de Bern –, começaram a tocar os sinos em vários lugares da cidade. Caspian mandou avançar seu pavilhão, ordenou que o corneteiro tocasse, que todos desembainhassem as espadas e que tivessem no rosto uma expressão de alegre serenidade. Marcharam de tal modo que toda a rua estremecia, e as armaduras brilhavam tanto ao sol da manhã que era impossível olhá-las fixamente.

A princípio, as únicas pessoas que davam vivas eram as que tinham sido avisadas pelo mensageiro de Bern, que sabiam o que se passava e gostavam disso; mas depois vieram as crianças, porque estas adoravam os desfiles e tinham visto ainda muito poucos. Em seguida, foram os garotos de escola, que também gostavam de desfiles e achavam que quanto mais barulho houvesse menor seria a probabilidade de irem à escola naquela manhã. E depois as velhas começaram a esticar o pescoço para fora das portas e janelas e a tagarelar... Um rei ia passar, e o que é um governador comparado com um rei? Vieram depois as moças, pela mesma razão, e também porque Caspian, Drinian e os outros eram muito simpáticos. E depois os rapazes vieram para ficar perto das moças. Já era quase a cidade toda aclamando quando alcançaram os portões do castelo. Sentado à sua mesa, remexendo contas, regulamentos e leis, Gumpas ouviu o barulho.

À entrada do castelo, o corneteiro tocou, gritando em seguida:

– Abram para o Rei de Nárnia, que vem em visita ao seu fiel servo, o governador das Ilhas Solitárias.

Naquela época, tudo quanto se fazia nas ilhas era com desleixo e de maneira descuidada. Abriu-se apenas uma portinhola do castelo e apareceu um homenzinho com um chapéu sujo na cabeça, em vez de elmo, e um chuço velho e enferrujado na mão. Pestanejou quando viu as figuras brilhando na sua frente e, falando de um jeito que mal se podia entender, disse:

– Não podem ver Sua Excelência. Não se concede audiência sem hora marcada, exceto das nove às dez nos segundos sábados de cada mês.

– Tire o chapéu perante Nárnia, cão! – trovejou Bern, dando-lhe tal pancada com sua mão imensa que o chapéu saltou-lhe da cabeça.

– Que é isto? – começou o porteiro, mas ninguém lhe deu importância. Dois dos homens de Caspian entraram pela portinhola e, depois de alguma luta com as trancas e ferrolhos (estava tudo enferrujado), escancararam as duas partes do grande portão.

O rei e seu séquito entraram no pátio, onde cochilavam alguns guardas, e muitos outros saíram aos tombos de várias portas, ainda limpando a boca. Apesar de terem as armas em péssimas condições, aqueles homens poderiam lutar se fossem levados a isso ou entendessem o que estava se passando. O momento era na verdade perigoso, mas Caspian não lhes deu tempo para pensar.

– Onde está o capitão? – perguntou.

– De certo modo sou eu, se é que está me entendendo – disse um jovem de aspecto lânguido, sem armadura.

– É nossa intenção – disse Caspian – tornar a nossa visita um motivo de alegria e não de terror para todos os nossos leais súditos das Ilhas Solitárias. Se assim não fosse, teríamos muito que falar sobre o estado das armas e das armaduras de seus homens. Por esta vez estão perdoados. Mande abrir um tonel de vinho para que bebam todos à nossa saúde. Mas, amanhã, ao meio-dia, quero vê-los neste pátio como gente de armas e não como vagabundos. Providencie para que se cumpra como ordenamos, sob pena do nosso real desagrado.

O capitão ficou boquiaberto, mas Bern gritou logo:

– Três vivas ao Rei! – E os soldados, que tinham ouvido qualquer coisa acerca de um tonel de vinho, mesmo sem terem entendido nada mais, juntaram-se a eles.

Caspian ordenou que a maior parte de seus homens ficasse no pátio. Ele, Bern, Drinian e mais quatro outros entraram no salão. O governador das Ilhas Solitárias sentava-se a uma mesa no extremo da sala, rodeado de vários secretários. Era um homem de aspecto doentio, com uma cabeleira que outrora fora ruiva, mas que estava agora toda grisalha. Ergueu os olhos quando os desconhecidos entraram e depois, olhando para os seus papéis, foi dizendo automaticamente:

– Não há audiência sem hora marcada, exceto das nove às dez nos segundos sábados de cada mês.

Caspian fez um sinal a Bern e afastou-se para o lado. Bern e Drinian avançaram, e cada um deles pegou de um lado da mesa. Ergueram-na, atirando-a de encontro à parede de um dos lados do salão, espalhando uma cachoeira de cartas, pastas, tinteiros, canetas, carimbos e documentos. Depois, delicadamente, mas firmes, como se as mãos fossem pinças de aço, arrancaram Gumpas da cadeira e o colocaram no chão, um metro mais longe. Caspian sentou-se imediatamente na cadeira e descansou a espada desembainhada sobre os joelhos. Olhando fixamente para Gumpas, disse:

– Meu senhor, não tivemos de sua parte a acolhida que esperávamos. Sou o rei de Nárnia.

– Na correspondência não vejo nada acerca de sua vinda – disse o governador. – Nem nas minutas. Não fomos notificados. Tudo isso é muito ir regular. Gostaria de considerar o assunto com mais vagar.

– Estou aqui para inquirir do desempenho de suas funções. E há especialmente dois pontos que exijo que me sejam explicados. Em primeiro lugar, não há qualquer registro que indique ter sido pago algum tributo por estas ilhas à Coroa... há cerca de cento e cinqüenta anos.

– Isto é uma questão para ser tratada em conselho no próximo mês. Se for necessário, formarei uma comissão de inquérito para apreciar o panorama financeiro destas ilhas, na próxima assembléia do ano que vem, e só então...

– E também vejo escrito muito claramente nas nossas leis – continuou Caspian – que, se o tributo não for entregue, todo o débito terá de ser pago pelo governador das ilhas de sua bolsa particular.

Aí Gumpas começou a tomar interesse verdadeiro pelo assunto.

– Oh, mas isso é inadmissível. É financeiramente impossível. Vossa Majestade deve estar brincando.

Lá no fundo, estava imaginando de que modo poderia ver-se livre daqueles visitantes indesejáveis. Se soubesse que Caspian só tinha um navio, teria pronunciado naquela ocasião palavras muito melífluas, esperando que a noite caísse para cercá-los e matá-los todos. Mas tinha visto um navio de guerra atravessar o estreito no dia anterior, fazendo sinais, conforme supunha, para outros navios. Não havia reconhecido o navio do rei, pois não havia vento suficiente para desenrolar a bandeira e tornar visível o leão de ouro, e assim esperara pelos acontecimentos. Julgava agora que Caspian tinha uma armada completa no domínio de Bern. Gumpas nunca seria capaz de supor que alguém entrasse em Porto Estreito para tomar as ilhas com menos de trinta homens; não era de modo algum uma coisa que ele mesmo tivesse coragem de fazer...

– Em segundo lugar – disse Caspian –, gostaria de saber por que permitiu que se desenvolvesse aqui esse ignominioso tráfico de escravos, contrariando antigos usos e costumes de nossos domínios.

– Não foi possível ser de outro modo – respondeu Sua Excelência. – Posso assegurar-lhe que é uma parte essencial do desenvolvimento econômico das ilhas. O nosso presente estado de prosperidade depende disso.

– Mas que necessidade tem dos escravos?

– Para exportação, Majestade. São vendidos especialmente para a Calormânia. E temos outros mercados. Somos um grande centro comercial.

– Em outras palavras, não precisa deles. Tem outra finalidade além de encher os bolsos de um tal de Pug?

– Os verdes anos de Vossa Majestade – disse Gumpas com um sorriso que pretendia ser paternal – impedem-no de compreender o problema econômico daí resultante. Mas eu tenho estatísticas, gráficos, tenho...

– Por mais verde que seja a minha idade, acho que entendo tanto de comércio de escravos quanto Vossa Excelência. O tráfico não traz para a ilha carne, pão, cerveja, vinho, madeira, couve, livros, instrumentos musicais, armaduras ou qualquer outra coisa. Mas, mesmo que trouxesse, não pode ria continuar.

– Isso seria o mesmo que impedir o relógio de marcar o tempo – articulou a custo o governador.

– Não faz idéia do que seja o desenvolvimento, o progresso?

-Já vi essas duas coisas num saco só. Em Nárnia chamamos a isso ir de mal a pior. Esse negócio tem de acabar.

– Não assumo a responsabilidade por essa medida – disse Gumpas.

– Então, muito bem! Está desobrigado de seu encargo. Lorde Bern, venha cá. – E, antes que Gumpas compreendesse o que ia acontecer, Bern ajoelhava-se como governador das Ilhas Solitárias, segundo os antigos costumes de Nárnia. E Caspian disse:

– Acho que já tivemos governadores demais – e assim concedeu a lorde Bern o título de duque, Duque das Ilhas Solitárias.

– Quanto ao senhor – falou Caspian para Gumpas –, está perdoado pela dívida do tributo. Mas, antes do meio-dia, o senhor e os seus homens todos têm de sair do castelo, que é agora residência do duque.

– Um momentinho – disse um dos secretários de Gumpas –, tudo isto está muito divertido, mas que tal se os senhores acabassem com a brincadeira e começássemos a tratar de negócios?... A questão que temos realmente perante nós é que...

– A questão é saber – disse o duque – se você e o resto da canalhada vão embora com açoites ou sem açoites! Podem escolher.

Quando tudo ficou satisfatoriamente resolvido, Caspian mandou buscar cavalos (havia, mas muito maltratados) e partiu com Drinian, Bern e alguns outros para a cidade, dirigindo-se ao mercado de escravos. Era um prédio baixo e comprido perto do porto. O espetáculo lá dentro era muito parecido com o de qualquer outro leilão: uma grande multidão e Pug no estrado, bradando com voz rouca:

– Agora, meus senhores, lote 23. Um belo agricultor de Terebíntia, próprio para minas e galés.

Menos de vinte e três anos. Bons dentes. Um rapaz sadio e forte. Tire a camisa dele, Taco, para que estes senhores possam ver melhor! Aqui os senhores têm músculos para servi-los! Olhem para este peito! Dez crescentes para aquele senhor ali do canto. Está brincando, cavalheiro? Quinze! Dezoito! Arremata-se o lote 23 por dezoito? Vinte e um. Muito obrigado. Arrematado por vinte e um crescentes.

De repente Pug calou-se e ficou de boca aberta ao ver as figuras vestidas de cota de malha que subiam ao estrado.

– Todos de joelhos perante o Rei de Nárnia! – clamou o duque.

Ouvia-se lá fora o relinchar de cavalos, e muitos que ali estavam já tinham ouvido rumores sobre o desembarque e os acontecimentos no castelo. A maioria obedeceu. Os que não obedeciam eram empurrados pelos vizinhos. Alguns davam vivas.

– A sua vida me pertence, Pug, por ter ousado ontem pôr as mãos na minha real pessoa – disse Caspian. – Mas perdôo sua ignorância. O comércio de escravos foi abolido em nossos domínios há quinze minutos. Declaro livres todos os escravos deste mercado.

Levantou a mão para deter as aclamações dos escravos e perguntou:

– Onde estão os meus amigos?

– A graciosa mocinha e o bonito rapaz? – perguntou Pug, com um sorriso bajulador. – Ah, já foram levados...

– Estamos aqui, estamos aqui, Caspian – gritaram Lúcia e Edmundo ao mesmo tempo. – E às suas ordens, Majestade – chiou Ripchip do outro lado.

Tinham sido todos vendidos, mas os seus “proprietários” continuavam a dar lances. A multidão afastou-se para deixar passar os três, e houve grandes apertos de mão e saudações entre eles e Caspian.

Dois comerciantes da Calormânia aproximaram-se imediatamente. Os calormanos têm rostos escuros e longas barbas. Usam vestes amplas e turbantes cor-de-laranja e são um povo sábio, rico, cortês, cruel e antigo. Inclinaram-se polidamente perante Caspian e endereçaram-lhe grandes saudações, falando em fontes da prosperidade que irrigam o jardim da prudência e da virtude – e outras coisas desse tipo –, mas o que pretendiam na verdade era o dinheiro que haviam pago pelos escravos.

– É absolutamente justo, senhores – disse Caspian. – Todos os que compraram escravos, hoje, têm de receber de volta o dinheiro. Pug, entregue a eles tudo o que ganhou.

– Vossa Majestade quer levar-me a pedir esmolas na rua da amargura? – gemeu Pug.

– Você viveu a vida toda à custa de corações despedaçados. Ainda que peça esmola na rua da amargura, sempre é melhor do que ser escravo.

Mas onde está meu outro amigo?

– Oh, aquele! Leve-o e faça bom proveito. Ainda bem que me livro dessa droga! Nunca vi nada pior. Já estava pedindo por ele só cinco crescentes e mesmo assim ninguém queria... Entrou como gratificação em outros lotes e nem assim... Nem olhavam para ele. Taco, traga aqui o Resmungão.

Trouxeram Eustáquio, que tinha de fato um ar taciturno, pois, ainda que ninguém goste de ser vendido como escravo, mais doloroso ainda é não encontrar comprador. Caminhou ao encontro de Caspian para dizer:

– Estou vendo que, como de costume, você andou por aí se divertindo, enquanto estávamos prisioneiros. Acho que ainda nem procurou o cônsul britânico, é claro!

Naquela noite houve uma grande festa no castelo.

– Amanhã vão recomeçar realmente as nossas aventuras! – disse Ripchip, ao despedir-se de todos para ir deitar-se. Mas não seria no dia seguinte que partiriam.

O Peregrino da Alvorada foi descarregado e puxado para terra, sobre rodas, por oito cavalos. Cada pedacinho do navio foi examinado pelos mais hábeis construtores navais. Depois, lançado de novo ao mar, foi abastecido de mantimentos e água – o que dava para trinta dias. Mesmo assim, conforme notou Edmundo desapontado, só lhes permitia navegar durante quinze dias para oeste; depois teriam de abandonar a busca.

Enquanto se tratava de tudo isso, Caspian interrogava os capitães mais velhos para saber se tinham conhecimento ou tinham ouvido falar de terras mais afastadas para os lados do oeste. Despejou muitos jarros de cerveja do castelo para homens sedentos, de barbas grisalhas e olhos azuis, ouvindo em troca muitas histórias incríveis. Os mais dignos de confiança não conheciam terra para além das Ilhas Solitárias. Muitos pensavam que, se navegassem demasiado para oeste, chegariam às ondas de um mar sem terras que rodava perpetuamente em torno da crosta do mundo.

– E foi lá, acho, que os amigos de Vossa Majestade afundaram.

Os restantes só contavam histórias de terras habitadas por homens sem cabeça, ilhas flutuantes, trombas marítimas e um fogo que ardia em cima das águas. Para alegria de Ripchip, pelo menos um disse:

– E mais para longe fica o país de Aslam. Mas está além do fim do mundo, e lá não podem chegar.

Contudo, quando insistiram com ele, apenas soube dizer que ouvira seu pai contar a história.

Bern só podia informá-los de que vira os seus companheiros navegarem para oeste e que nada mais soubera deles. Dissera isso numa ocasião em que se encontrava com Caspian no ponto mais alto de Avra, olhando lá embaixo para o oceano oriental.

– Venho aqui muitas vezes pela manhã – disse o duque – ver o sol sair do mar. Penso nos meus amigos e no que existe realmente além daquele horizonte. O mais provável é que não exista nada, mas sempre fiquei envergonhado de ter ficado para trás. Preferia que Vossa Majestade não partisse. Podemos precisar de sua ajuda aqui. O fechamento do mercado de escravos pode criar novos casos. Desconfio que vamos ter guerra com os calormanos. Pense bem, meu soberano.

– Fiz um juramento, meu duque – disse Caspian. – Além disso, que iria eu dizer a Ripchip?

 

A TEMPESTADE

Três semanas após o desembarque, saía o Peregrino da Alvorada de Porto Estreito. As despedidas foram solenes; juntou-se grande multidão. Houve aclamações e lágrimas quando Caspian dirigiu-se pela última vez aos ilhéus e ao despedir-se do duque e sua família. Quando o barco se afastou, todos ficaram silenciosos, vendo a vela purpurina tremular e ouvindo a trompa de Caspian. A vela inflou, e sob o Peregrino da Alvorada rolou a primeira onda das grandes, dando-lhe de novo vida. Os homens que estavam de folga desceram, e Drinian fez a primeira inspeção à popa, enquanto o navio virava para leste, contornando o sul de Avra.

Seguiram-se dias deliciosos. Lúcia sentia-se a garota mais feliz do mundo quando acordava e via os reflexos do sol dançando no teto do camarote e olhava as lindas coisas que trouxera das Ilhas Solitárias – galochas, botas altas, capas, xales. Subia depois ao convés e olhava do castelo da proa para o mar, de um azul cada vez mais brilhante, e aspirava o ar cada dia mais quente. Depois chegava o café da manhã, e era aquele apetite que só se tem nas viagens por mar.

Lúcia passava um tempão na popa jogando xadrez com Ripchip. Era engraçado vê-lo pegar com as duas patas as peças muito grandes para ele e esticar-se na ponta dos dedos quando tinha de fazer jogadas no centro do tabuleiro. Era um bom jogador e, quando prestava atenção ao que estava fazendo, era certo e sabido que ganhava. Às vezes, porém, Lúcia ganhava, pois o rato fazia coisas incríveis, pondo um cavaleiro em perigo por causa de uma dama ou de um castelo. De repente, esquecia-se de que estava jogando xadrez, julgando-se em um combate real, obrigando o cavaleiro a proceder como ele faria se estivesse no seu lugar. Pois tinha o espírito cheio de arrebatamentos de outros tempos, de missões de morte ou glória, de decisões heróicas.

Não durou muito essa felicidade. Uma tarde em que Lúcia olhava sonhadoramente para o sulco ou esteira, viu amontoar-se com grande rapidez uma enorme massa de nuvens para os lados do oeste. As nuvens rasgaram-se num buraco e nele apareceu o sol, derramando os últimos raios amarelos do poente. As ondas atrás do navio tomavam formas nunca vistas, e o mar estava com uma cor castanha ou amarelada, como se estivesse sujo. O ar ficou mais frio. O navio parecia mover-se com dificuldade, como se sentisse o perigo perseguindo-o. A vela esticava-se toda e ficava lisa durante um minuto, para no minuto seguinte enfunar-se bruscamente. A menina reparava em tudo isso, perplexa com a sinistra mudança que se havia operado, quando Drinian gritou, dominando o barulho do vento:

– Todos ao convés!

Num instante começaram todos a trabalhar freneticamente. Fecharam-se as escotilhas, apagou-se o fogo da cozinha, e homens subiram lá no alto para recolher a vela. Antes de acabarem, caiu sobre eles a tempestade. Lúcia teve a impressão de que se cavara enorme vale atrás da proa e que se precipitavam num abismo incrível. Uma grande montanha de água, muito maior do que o mastro, arrojou-se sobre eles; a morte parecia certa, mas foram impelidos para cima da onda. Nessa altura o navio começou a rodopiar. No convés derramava-se uma catarata de água; a popa e o castelo da proa pareciam duas ilhas separadas por um mar tempestuoso. Os marinheiros esticavam-se lá no alto, tentando dominar a vela. Uma corda arrebentada estalava com o vento, dura e rija como um cabo de ferro.

-Já para baixo, minha senhora! – bradava Drinian, e Lúcia, sabendo que a gente da terra é um estorvo para a tripulação, tentava obedecer, mas não era nada fácil.

O Peregrino inclinava-se terrivelmente para estibordo, e o convés parecia o declive do telhado de uma casa. Ela teve de subir agarrada ao corrimão, esperar um pouco, para deixar dois homens subirem, e depois descer do melhor jeito que pôde. Foi uma sorte continuar firmemente agarrada, pois, ao chegar ao fim da escada, atingiu-a uma onda que a deixou ensopada. Sentindo frio, atirou-se de encontro à porta do camarote e fechou-se lá dentro, tentando esquecer a cena do convés, a velocidade com que corriam para a escuridão. Só não podia deixar de ouvir aquela horrível confusão de estalos, lamentos, pancadas, bramidos e estampidos, ainda mais alarmantes ali do que na popa.

A tempestade durou o dia todo, e o dia seguinte e mais outros. Demorou tanto a passar que já nem se lembravam do que acontecera antes. Havia sempre três marujos agarrados ao leme, vendo se descobriam uma rota. Trabalhavam nas bombas sem parar. Quase não havia descanso para ninguém. Não se podia cozinhar, nem secar roupa, um homem caíra no mar, e o sol sumira completamente. Quando por fim veio a bonança, Eustáquio escreveu em seu diário:

“3 de setembro. É o primeiro dia, desde há muito, em que posso escrever. Fomos arrastados por um furacão treze dias e treze noites. Sei que são treze porque os contei bem, embora os outros digam que foram só doze.

Que ótimo fazer uma viagem assim perigosa com gente que nem sabe contar! Passei um tempo horroroso: ondas enormes, para baixo e para cima, horas a fio, sempre molhado até os ossos, sem nunca se darem ao trabalho de fornecer refeições decentes. Como não temos rádio, nem foguetões, é impossível pedir socorro. Tudo isso prova o que estou sempre proclamando, que é a maior loucura viajar numa porcaria de banheira como esta. Já seria detestável com gente normal, o que se dirá com demônios em forma de gente. Caspian e Edmundo são uns brutos comigo. Na noite em que perdemos o mastro (agora só temos um toco), apesar de eu não me sentir nada bem, obrigaram-me a subir ao convés e a trabalhar como um escravo. Lúcia puxava pelo remo e dizia que Ripchip tinha muita vontade de remar, mas que não podia por ser muito pequeno. Será que ela não percebe que tudo o que esse animal faz é só para impressionar? Na idade dela já se deve ter mais bom senso. Hoje este navio diabólico está finalmente direito e discutimos todos o que temos de fazer. Há comida que chega para dezesseis dias, mas é quase tudo intragável (a criação caiu toda no mar, mas mesmo que não caísse a tempestade teria impedido que as galinhas pusessem ovos). O pior é a água. Arrombaram-se dois barris, que ficaram vazios (mais uma vez se põe à prova a eficiência de Nárnia). Ainda temos água para doze dias, distribuindo rações de meia caneca a cada pessoa. (Há ainda muito vinho, mas até eles, que não sabem nada, compreendem que, se bebessem, ficariam ainda com mais sede.)

O mais sensato seria virarmos para leste, se fosse possível, e voltarmos às Ilhas Solitárias. Mas levamos dezoito dias para chegar aqui, correndo como uns loucos, impelidos por um furacão. Mesmo que apanhássemos vento leste, demoraríamos muito tempo para regressar. Neste momento não há qualquer sinal de vento leste... Para dizer a verdade, não há vento nenhum. Não podemos voltar a remo, pois ainda levaria mais tempo, e Caspian diz que os homens não podem remar com uma ração de meia caneca de água por dia. Tentei explicar-lhe que a transpiração refresca os corpos e que os homens não necessitariam de tanta água se trabalhassem. Não deu a menor importância – que é a sua maneira de proceder quando não sabe o que responder. Todos os outros votaram para que se vá em frente, na esperança de encontrar terra. Era meu dever chamar-lhes a atenção para o fato de não sabermos se existe terra mais adiante e tentar fazê-los compreender os perigos da sua precipitação. Em vez de elaborar um plano melhor, tiveram a cara de me perguntar o que eu sugeria. Expliquei-lhes, com a minha habitual calma e firmeza, que havia sido raptado e trazido à força para esta viagem estúpida, não sendo portanto minha obrigação tirá-los dos apertos.

“4 de setembro. O tempo continua calmo. Rações muito pequenas para todos e para mim menos do que para os outros. Caspian é muito esperto ao servir-se, mas julga que eu não o vejo! Lúcia, não sei por que razão, quis reconciliar-se comigo e ofereceu-me da ração dela, mas o intrometido do Edmundo não deixou. O sol está quentíssimo. Tive uma sede horrível a tarde toda.

“6 de setembro. Dia pavoroso. Acordei de noite sentindo-me febril e tive de beber um copo de água. Qualquer médico teria me receitado isso. Sabe Deus que eu seria a última pessoa a tentar prejudicar os outros, mas nunca imaginei que o racionamento de água atingisse também um doente. De fato eu devia era ter acordado alguém para pedir-lhe água, mas não quis ser egoísta. Por isso levantei-me na ponta dos pés, peguei o meu copo e saí deste buraco escuro, tendo o máximo cuidado de não incomodar Caspian e Edmundo, pois dormem mal desde que o calor e a escassez de água se fizeram sentir. Tenho grande consideração pelos outros, sejam ou não amáveis comigo. Fui direto à sala grande, se é que se pode chamar aquilo de sala, onde estão os bancos dos remadores e as bagagens. A água está no lado de cá. Corria tudo às mil maravilhas, mas antes que conseguisse encher um copinho de água... quem haveria de me apanhar senão o espião do Rip! Quis explicar-lhe que viera tomar um pouco de ar no convés (a questão da água não era da conta dele), mas me perguntou por que estava de copo na mão. Fez tanto barulho que o navio todo se levantou. Trataram-me escandalosamente. Perguntei, como qualquer um faria, por que o Ripchip andava farejando em volta do barril de água em plena noite. Disse que era tão pequeno que não tinha qualquer serventia no convés, e que tomava conta da água todas as noites para que assim mais um homem pudesse dormir. E agora torna-se óbvia a tremenda má vontade: todos acreditaram nele. Como se pode lutar contra isso?!

“Tive de pedir desculpa para que o monstrozinho não caísse de espada em cima de mim. E então Caspian revelou toda a sua faceta de tirano, dizendo alto, para todos ouvirem, que quem fosse

 

apanhado “roubando” água, dali em diante, levaria “duas dúzias”. Eu não sabia o que isso queria dizer, mas Edmundo me explicou. Aparece nos livros que esse tolos vivem lendo.

“Depois desta covarde ameaça, Caspian mudou de tom, começando a tomar uns ares protetores. Disse que tinha muita pena de mim, mas que todos se sentiam tão febris quanto eu, que tínhamos de agüentar da melhor maneira possível a situação, etc. Requintado pedante! Fiquei hoje na cama o dia todo!

“7 de setembro. Hoje houve um pouco de vento, mas ainda de oeste. Fizemos algumas milhas para leste só com uma parte da vela, colocada em um mastro improvisado que Drinian chama de guindola – o gumpés é posto na vertical e amarrado ao toco do verdadeiro mastro. Continuo morrendo de sede.

“8 de setembro. Continuamos navegando para leste. Passo agora o dia todo no meu buraco e não vejo ninguém, a não ser Lúcia, até que os dois diabos vão dormir. Lúcia deu-me um pouco da sua ração de água. Disse que as meninas não sentem tanta sede quanto os meninos. Já sabia disso, mas os outros a bordo também deviam saber.

“9 de setembro. Terra à vista: uma montanha muito alta, lá longe a sudoeste.

“20 de setembro. A montanha está maior e mais nítida, mas ainda muito longe. Pela primeira vez, já não sei há quanto tempo, hoje vimos gaivotas.

“2 2 de setembro. Pegamos uns peixes, comidos no jantar. Lançamos âncora às sete da noite numa baía desta ilha montanhosa. O idiota do Caspian não nos deixou ir a terra porque já estava escurecendo e tinha medo de selvagens e animais ferozes. Tivemos esta noite uma ração extra de água.”

O que iria acontecer na ilha dizia mais respeito a Eustáquio do que a qualquer outro, mas não podemos sabê-lo por suas palavras, pois a partir de 11 de setembro não escreveu mais no diário.

Certa manhã, muito quente, com um céu pesado e cinzento, os aventureiros se achavam em uma baía rodeada de rochas e penedos, lembrando um fiorde norueguês. Em frente da baía elevava-se um terreno cheio de árvores frondosas, parecendo cedros, no centro das quais se precipitava uma impetuosa corrente.

O bosque estendia-se por uma ladeira íngreme, indo terminar numa cordilheira denteada, através da qual se vislumbrava ao longe a indecisa escuridão de montanhas, cujos cimos desapareciam no meio de nuvens baças. As rochas mais próximas estavam riscadas aqui e ali de fitas brancas, que todos sabiam ser quedas-d’água, mas que, àquela distância, pareciam imóveis, sem fazer qualquer ruído. A água lisa como vidro refletia o perfil das rochas. Numa pintura a paisagem poderia ser bonita, mas na vida real era opressiva. Aquela terra não acolhia os visitantes de braços abertos.

A tripulação desembarcou toda em dois botes, indo lavar-se e beber, deliciada, a água do rio. Depois comeram e descansaram, tendo Caspian mandado para bordo quatro homens para guardarem o navio. Só então começaram os trabalhos do dia. Tinham de trazer os barris para terra, consertá-los, se possível, e tornar a enchê-los de água. Era preciso derrubar uma árvore, de preferência um pinheiro, para fazer um mastro novo, e as velas precisavam ser remendadas.

Um grupo partiu à procura de qualquer caça que a terra pudesse oferecer. Havia roupa para lavar e coser, e um sem-número de reparações a serem feitas a bordo. O próprio Peregrino não era mais o mesmo navio elegante que partira de Porto Estreito. Parecia um casco velho e desconjuntado, um resto de barco. Os oficiais e a tripulação não tinham melhor aspecto – desfigurados, pálidos, esfarrapados, com os olhos avermelhados devido às noites em claro.

Quando Eustáquio, deitado sob uma árvore, ouviu os planos, seu sangue gelou. Não iriam então dar uma boa descansada? O dia de repouso em terra, tão desejado, iria ser tão cansativo como os dias no mar. Então ocorreu-lhe uma idéia genial. Ninguém estava olhando. Falavam todos sobre o navio, como se gostassem mesmo daquela coisinha. Por que não haveria de dar uma fugida? Dar um passeio pelo interior da ilha, tirar uma soneca num lugarzinho sombreado, voltando só depois de terminado o trabalho dos outros... Bela idéia! Só teria de ter cuidado para não perder de vista a baía e o navio, podendo assim achar o caminho de volta! Não seria nada divertido ficar ali sozinho.

Pôs imediatamente seu plano em ação. Levantou-se com muita calma e caminhou por entre as árvores, de um modo natural e lento: se alguém o visse, pensaria que ele estava só dando uma voltinha. Ficou admirado ao ver que o barulho da conversa morria atrás dele e o bosque se tornava logo escuro, silencioso e quente. Daí a pouco achou que já podia andar mais depressa, deixando em breve o bosque. O terreno começava a ficar íngreme. Com as mãos agarrava-se à relva seca e escorregadia. Apesar de gemer e ter de limpar o suor da testa, ia conseguindo avançar. De certo modo, isso demonstrava que a sua nova vida lhe fazia bem, pois o antigo Eustáquio de Arnaldo e Alberta teria desistido dez minutos depois de ter começado a subir. Parando muitas vezes para descansar, atingiu a crista do monte. Ali esperava ver o interior da ilha, mas as nuvens tinham descido mais e estavam mais próximas, misturando-se com ondas de nevoeiro. Sentou-se e olhou para baixo.

Tinha alcançado um ponto tão alto que a baía, lá embaixo, parecia bem pequena, e viam-se milhas e mais milhas de mar em torno. O nevoeiro fechou-se em volta dele, denso, mas não frio. Deitou-se, virando-se para um lado e para o outro, procurando uma posição confortável para descansar. Mas não por muito tempo, pois, pela primeira vez na sua vida, começou a sentir solidão. A princípio a solidão foi aumentando aos poucos, mas, de repente, ele começou a preocupar-se com as horas. Não se ouvia nada. Quem sabe já estaria deitado havia várias horas? Talvez, até, os outros já tivessem partido! Talvez tivessem feito aquilo de propósito, para que ficasse na ilha! Deu um pulo, cheio de pânico, e começou a descer. Com a pressa, escorregou e caiu quase de um metro de altura. Notou que a queda o levara para a esquerda, pois, quando subira, vira precipícios daquele lado.

Subiu de novo, quase até o cimo, e recomeçou a descida, desviando-se agora para a direita. As coisas pareciam correr melhor. Ia cautelosamente, pois não via um palmo adiante do nariz. O silêncio era completo. Mas era difícil andar com tanta cautela quando uma voz lá dentro gritava sem parar: Depressa! Rápido! Corre!

Se conhecesse bem Caspian e os primos, teria a certeza de que eles não fariam uma coisa daquelas, mas estava convencido de que eram como demônios.

– Até que enfim! – exclamou depois de ter descido por uma ladeira de pedras soltas (seixos é o nome que lhes dão) e ao achar-se em terreno plano. – Mas onde estão as árvores que eu vi? Há algo escuro ali na frente. Parece que o nevoeiro está sumindo.

E estava mesmo. A claridade aumentava a cada passo, fazendo com que ele piscasse os olhos. O nevoeiro desaparecera. Estava num vale desconhecido, e não se via o mar em parte alguma.

 

AS AVENTURAS DE EUSTÁQUIO

Naquele mesmo instante os outros lavavam o rosto e as mãos no rio, preparando-se para comer e descansar. Os três melhores arqueiros tinham subido a montanha na parte norte da baía e voltaram com duas cabras selvagens, que agora estavam sendo assadas no fogo. Caspian mandou buscar um tonel de vinho, vinho forte, que tinha de ser misturado com água, e assim daria para todos. O trabalho ia em bom andamento e a refeição decorria animada. Só depois de servir-se de carne pela segunda vez, Edmundo perguntou por Eustáquio.

Enquanto isso, Eustáquio olhava ao redor, no vale desconhecido. Era tão estreito e profundo, e os precipícios em volta tão a pique, que mais parecia uma fossa enorme. O chão era relvado, apesar de semeado de pedras. Aqui e ali viam-se trechos de terreno negro e queimado, como se costuma ver em verões muito quentes nos vaiados de estradas de ferro. Cerca de quinze metros mais longe havia uma lagoazinha de águas claras e mansas. A princípio nada mais havia no vale, nem um animal, nem mesmo um inseto. O sol descia, projetando na orla do vale as sombras de picos medonhos.

Eustáquio viu logo que, com o nevoeiro, tinha descido o desfiladeiro pelo lado errado, por isso voltou-se imediatamente para ver como havia de sair dali. Mas, ao olhar, estremeceu. Ao que parecia, tivera uma sorte espantosa ao descer pelo único caminho existente – uma comprida língua de terra, muito íngreme e estreita, com precipícios dos dois lados. Não havia nenhum outro caminho para voltar. Como subir, no entanto, agora que sabia como era o caminho? Ficava zonzo só de pensar nele.

Voltou-se de novo, achando que de qualquer modo era melhor beber primeiro um bom gole de água da lagoa. Mal se voltou, antes de dar o primeiro passo, ouviu um barulho. Era um ruído leve, mas soou muito alto naquele silêncio enorme. Durante um segundo ficou feito um morto, frio e paralisado. Depois virou a cabeça e olhou.

Na base do rochedo, havia um buraco baixo e escuro – talvez a entrada de uma caverna. Lá de dentro saíam duas finas colunas de fumaça. As pedras soltas à entrada do buraco moviam-se (era o tal barulho) como se alguma coisa rastejasse no escuro atrás delas.

Algo rastejava – ou, pior ainda, saía do buraco.

Edmundo e Lúcia (e você também) teriam percebido logo o que era, mas Eustáquio não tinha lido os livros que lhe convinham.

O ser que saía da caverna era algo que ele nunca imaginara existir – focinho comprido cor-de-chumbo, olhos vermelhos e tristes, sem penas, nem pêlo, corpo longo e flexível que se arrastava pelo chão, pernas com as articulações mais altas que as costas (feito aranha), unhas ferozes, asas de morcego raspando pelas pedras, metros de cauda. As duas linhas de fumo saíam das narinas. Eustáquio nunca dissera com os seus botões a palavra dragão, mas, se tivesse dito, não haveria de melhorar a situação. No entanto, se soubesse alguma coisa acerca de dragões, teria ficado um tanto admirado com o comportamento daquele.

Não se sentava, agitando as asas, nem lançava torrentes de chamas pela boca. O fumo que lhe saía das narinas era o de um fogo que está quase apagado. Nem parecia ter reparado em Eustáquio. Andava muito devagar para a lagoa, parando muitas vezes. Apesar de todo o medo, Eustáquio notou que se tratava de um animal velho e triste. O menino perguntava a si mesmo se não era a hora de sair correndo escarpa acima. Mas, se fizesse qualquer barulho, o animal poderia virar-se. Podia ser até que estivesse fingindo. Além disso, valia a pena sair correndo de um animal que também voava?

O bicho chegara à lagoa e estendia a queixada escamosa sobre o cascalho para beber, mas, antes que pudesse fazê-lo, soltou um grito e, depois de algumas contrações e reviravoltas, caiu de lado e ficou completamente imóvel, com as garras viradas para cima. Da boca escancarada saía-lhe um fio de sangue escuro. O fumo das narinas ficou negro um instante e desapareceu no ar. E não mais saiu.

Durante muito tempo Eustáquio não teve coragem de mexer-se. Talvez fosse um truque do animal. Mas não podia esperar eternamente. Aproximou-se dois passos, depois mais dois, parou de novo. O dragão continuou imóvel, e o rapaz reparou que o fogo vermelho desaparecera de seus olhos. Chegou perto. Tinha quase certeza de que estava morto. Com um arrepio chegou a tocar-lhe, e nada aconteceu.

O alívio foi tão grande que Eustáquio quase riu alto. Começou a ter a sensação de haver lutado com o dragão, de ter matado o dragão. Passou por cima dele e foi beber água na lagoa, sentindo um calor insuportável. Não ficou surpreso ao ouvir o barulho do trovão. O sol desapareceu daí a pouco e, antes que tivesse acabado de beber, caíram grandes gotas de chuva.

O clima da ilha era muito desagradável. Em menos de um minuto ele estava molhado até os ossos e meio cego com a chuvarada. Enquanto durasse a chuva, não poderia sair do vale. Correu para o único abrigo à vista, a caverna do dragão. Lá dentro deitou-se e tentou acalmar a respiração.

Quase todos nós já sabemos o que se pode encontrar numa toca de dragão, mas, como eu já disse, Eustáquio só lera livros que não servem para nada. Falavam de exportações e importações, de governos e de canos de esgoto, mas eram muito fracos em questão de dragões. Assim, achou esquisito o chão em que estava deitado. Em certos lugares era demasiado espinhoso para ser de pedra, e em outros sentia uma porção de coisas redondas e lisas, que chocalhavam quando ele se mexia. A luz que entrava pela porta da caverna era suficiente para ver de que se tratava. Qualquer um de nós teria pensado muito antes que ele acabara de descobrir um tesouro. Coroas (era o que picava), moedas, braceletes, barras de ouro, taças, pratas, pedrarias.

Eustáquio, ao contrário dos outros meninos, nunca tinha pensado muito em tesouros, mas começou logo a imaginar que vantagem poderia tirar daquele mundo no qual caíra tão estupidamente, por causa do quadro do quarto de Lúcia, lá longe, na Inglaterra.

– Aqui, ao menos, não cobram impostos; não temos de dar nada ao Estado. Com uma parte dessa mercadoria, passo uma boa temporada – talvez no país dos calormanos. Acho que é o melhor por aqui. Mas quanto poderei levar? Este bracelete aqui – as pedras nele devem ser diamantes, pensou – ponho logo no pulso. É grande demais, mas acima do cotovelo dá bem. Encho agora os bolsos com diamantes: são mais fáceis de transportar que ouro.

Não faço idéia de quando vai passar esta chuva!

Ajeitou-se em uma parte do tesouro que lhe parecia mais confortável e ficou à espera. Mas, quando se leva um grande susto, sobretudo um susto daqueles, fica-se horrivelmente cansado. E Eustáquio logo adormeceu. Enquanto ressonava profundamente, acabavam os outros de almoçar, já seriamente alarmados com a sua ausência. Gritavam:

– Eustáquio! Eustáquio!

Quando ficaram roucos, Caspian fez soar a trompa.

– Se estivesse perto, já teria ouvido – disse Lúcia, branca como cera.

– Que sujeito idiota! – exclamou Edmundo. – Por que foi tão longe?

– Temos de fazer alguma coisa – falou Lúcia. – Pode ter-se perdido, ou caído num barranco, ou ter sido apanhado por selvagens.

– Ou devorado por animais ferozes – disse Drinian.

– Até que não era má idéia – murmurou Rince.

– Senhor Rince – retrucou Ripchip –, jamais em sua vida falou outras palavras que tanto o inferiorizassem. A pessoa em questão não é das minhas relações amigáveis, mas, sendo do mesmo sangue da rainha, e pertencendo ao nosso grupo, é nosso dever de honra encontrá-lo para vingar a sua morte, se tiver morrido.

– Claro que temos de encontrá-lo (se pudermos) – falou Caspian, aborrecido. – Aí é que está a chateação. Temos de destacar um grupo de homens para procurá-lo e enfrentar uma infinidade de complicações. Mas que sujeito inoportuno, esse Eustáquio.

Eustáquio dormia, dormia e tornava a dormir. Só acordou por causa de uma dor no braço. A lua brilhava na boca da caverna, e a cama feita no tesouro parecia muito mais confortável; nem mesmo a sentia.

Primeiro ficou intrigado com a dor no braço, mas depois se lembrou do bracelete, que agora estava estranhamente apertado. O braço devia ter inchado enquanto ele dormia (era o braço esquerdo).

Começou a mexer o braço direito para ver se sentia o mesmo que no esquerdo, mas estacou, mordendo os lábios de terror, antes de movê-lo um centímetro. Na sua frente, um pouco à direita, num ponto em que o luar batia em cheio no chão da caverna, viu uma forma hedionda. Era uma garra de dragão. Tinha-se movido quando ele mexera a mão e ficara quieta quando ele parará.

“Fui um completo maluco!”, pensou Eustáquio. “O animal tinha um companheiro, que está deitado aos meus pés.”

Durante alguns minutos não ousou mexer um só músculo, e via as duas tênues colunas de fumaça, elevando-se escuras, contra a luz da lua, na frente de seus olhos – o mesmo fumo que saíra do focinho do outro dragão, ao morrer. Era tão aflitivo que suspendeu a respiração. As duas colunas de fumo desapareceram, mas, quando respirou de novo, o fumo reapareceu numa torrente. Nem mesmo assim compreendeu o que se passava. Resolveu virar-se muito sorrateiramente para a esquerda e rastejar para fora da caverna. Talvez o monstro estivesse adormecido. Fosse como fosse, era a única solução. Mas, antes de caminhar para a esquerda, olhou para aquele mesmo lado, e... oh! cúmulo dos horrores! Lá estava uma outra garra de dragão! Não se pode condenar Eustáquio por ter começado a chorar naquele momento.

Ficou bobo com o tamanho de suas lágrimas, quando as viu cair sobre o tesouro à sua frente. Pareciam estranhamente quentes e soltavam vapor.

Mas chorar não resolvia coisa alguma. Tinha era de tentar passar entre os dois dragões. Começou a estender o braço direito. A pata da frente do dragão, à sua direita, fez exatamente o mesmo movimento.

Resolveu experimentar com o braço esquerdo, mas a pata do dragão que estava daquele lado também se moveu. Dois dragões, um de cada lado, imitando tudo o que ele fazia! Seus nervos não agüentaram mais! E ele se jogou com tudo para fora.

Houve um barulho tal, estrondos tais, tinidos tais e um tal esmagar de pedras, quando saltou da caverna, que julgou que ambos o perseguiam. Nem ousou olhar para trás. Correu para a lagoa. A forma contorcida do dragão morto, à luz da lua, seria o bastante para aterrorizar qualquer pessoa, mas ele nem reparou. Sua idéia era meter-se dentro da água.

Ao chegar à beira da lagoa duas coisas aconteceram. Primeiro: reparou que tinha corrido de gatinhas... Por que diabo agora andava assim? Segundo: ao debruçar-se sobre a água, julgou ver outro dragão que o olhava da lagoa. De repente, apercebeu-se de toda a verdade.

A cara de dragão na lagoa era o seu próprio reflexo. Sem dúvida. Mexia-se quando ele se mexia, abria e fechava a boca quando ele abria e fechava a dele.

Tinha se transformado num dragão enquanto dormia. Ao dormir sobre o tesouro de um dragão, com pensamentos gananciosos, típicos de um dragão, ele próprio acabara se transformando em dragão.

Tudo estava explicado. Nunca haviam estado junto dele dois dragões na caverna. As garras à sua direita e à sua esquerda eram a sua pata direita e a sua pata esquerda; as duas colunas de fumo haviam saído de seu próprio nariz. Quanto à dor que sentia no braço esquerdo (ou no que havia sido o braço esquerdo), podia ver o que acontecera virando o olho esquerdo. O bracelete, que servira tão bem no braço do rapazinho, era agora demasiado pequeno para a gorda pata dianteira do dragão. Enterrava-se profundamente na carne escamosa, que tinha agora um inchaço de cada lado da jóia. Mordeu com os seus dentes de dragão, mas não conseguiu tirar o bracelete.

Apesar da dor, sua primeira sensação foi de alívio. Não precisava ter medo de mais nada. Ele próprio era agora uma coisa que metia medo. Nada neste mundo, exceto um cavaleiro (e nem todos!), ousaria atacá-lo. Podia mesmo fazer frente a Caspian e Edmundo...

Ao pensar nisso, viu que não tinha vontade de fazê-lo; preferia ser amigo dos dois. Desejava voltar para junto dos humanos, falar, rir e compartilhar com eles todas as suas coisas. Chegou à conclusão de que era um monstro, separado do resto da humanidade. Caiu sobre ele uma tristeza tremenda: via agora que os outros não eram tão maus como imaginara. E começou a pensar se ele próprio teria sido realmente aquela excelente pessoa

que sempre julgara ser. Tinha saudades de ouvir o som das suas vozes. Agradeceria agora uma palavra amável, mesmo de Ripchip.

Pensando assim, o dragão (que tinha sido Eustáquio) começou a chorar alto. Um poderoso dragão debulhando-se em lágrimas ao luar, num vale deserto, é uma cena rara de ver e ouvir.

Por fim resolveu voltar à praia. Compreendia agora que Caspian jamais partiria sem ele. E tinha a certeza de que, de uma forma ou de outra, havia de dar-lhe a entender quem era.

Bebeu demoradamente e depois (parece chocante, mas se você pensar bem verá que não) comeu quase todo o dragão morto. Já tinha comido mais da metade quando reparou no que estava fazendo, pois o entendimento era de Eustáquio, mas o gosto e o aparelho digestivo pertenciam ao dragão. E não há nada de que um dragão goste mais do que dragão fresco. É por essa razão que raramente se encontra mais de um dragão na mesma área.

Depois começou a subir o vale. Quando quis saltar, viu que voava. Tinha-se esquecido completamente de que possuía asas, e foi uma grande surpresa – a primeira surpresa agradável em muito tempo. Elevou-se no ar e viu uma infinidade de picos de montanha, estendendo-se lá embaixo à luz da lua. Avistou a baía como uma lousa de prata, o Peregrino da Alvorada ancorado, a fogueira do acampamento ardendo no bosque perto da praia. Com um simples impulso lançou-se lá do alto na direção da fogueira.

Lúcia dormia profundamente, pois ficara esperando a volta do grupo de busca, na esperança de receber boas novas de Eustáquio. O grupo, chefiado pelo rei, tinha regressado muito tarde e extremamente cansado. Tinham encontrado um dragão morto no vale, mas nem sinal de Eustáquio. Tentaram encarar a situação da melhor maneira possível e asseguravam uns aos outros que era muito improvável existirem outros dragões por ali, e o que morrera naquela tarde, mais ou menos às três horas (quando o tinham encontrado), dificilmente teria matado alguém poucas horas antes.

– A menos que tenha comido o rapazinho e morrido por causa disso. Veneno não lhe faltava – disse Rince, mas entre os dentes, e ninguém o ouviu.

Naquela mesma noite, mais tarde, Lúcia foi acordada suavemente por Caspian; estavam todos reunidos em torno da fogueira cochilando.

– Que há? – perguntou ela.

– Temos de ter muita coragem – respondeu Caspian. – Agora mesmo um dragão voou sobre as árvores e foi pousar na praia. Temo que esteja entre nós e o navio. As setas nada valem contra dragões, e eles não têm o menor medo do fogo.

– Se Vossa Majestade me permite... – começou Ripchip.

– Não, Rip – disse o rei com firmeza. – Você não vai travar combate com ele. E, se não prometer solenemente obedecer-me, terei de mandar amarrá-lo. Temos de ficar vigilantes e, mal nasça o dia, vamos atacá-lo na praia. Eu assumo o comando. O rei Edmundo fica à minha direita e Drinian à esquerda. Daqui a uma hora comemos alguma coisa e bebemos o que resta do vinho. E que tudo se faça no maior silêncio.

– Talvez ele vá embora – disse Lúcia.

– Seria ainda pior – respondeu Edmundo – por que não saberíamos mais onde está. Quando um marimbondo entra no meu quarto, gosto de saber onde ele está.

O resto da noite foi horrível. Na hora de comer, a maioria não teve apetite. As horas pareceram intermináveis, até que a escuridão diminuiu e os passarinhos começaram a chilrear e a saltar nos ramos. O ar ficou mais frio e úmido. Caspian disse:

– Vamos a ele, amigos!

Levantaram-se todos com as espadas desembainhadas e formaram uma massa compacta, com Lúcia no centro, levando Ripchip ao ombro. Era preferível lutar a ficar esperando. Sentiam-se todos mais amigos uns dos outros do que em circunstâncias normais.

Já estava mais claro quando chegaram à orla da floresta. Deitado na areia, enorme, pavoroso e corcunda, lá estava o dragão como um gigantesco crocodilo flexível ou uma serpente com pernas.

Mas quando os viu, em vez de se levantar e lançar chamas e fumo, recuou (quase que se poderia dizer cambaleando) em direção às águas pouco profundas da baía.

– Para que ele está abanando a cabeça? – perguntou Edmundo.

– E agora está fazendo sinais – disse Caspian.

– Tem uma coisa saindo dos olhos dele – disse Drinian.

– Não está vendo? – disse Lúcia. – São lágrimas. Está chorando.

– Não se fie nisso, minha senhora. Os crocodilos também choram para apanhar os incautos – observou Drinian.

– Abanou a cabeça quando você disse isso – notou Edmundo. – Como se quisesse dizer não. Olhe, fez de novo.

– Acho que ele entende o que dizemos – falou Lúcia.

O dragão acenou energicamente com a cabeça. Ripchip saltou do ombro de Lúcia e lançou-se à frente.

– Dragão! – fez a voz chiante. – Entende o que falamos?

O dragão acenou que sim.

– Sabe falar?

Ele abanou a cabeça negativamente.

– Então é perda de tempo perguntar o que lhe aconteceu – continuou Ripchip. – Mas, se quiser fazer um pacto de amizade, levante a pata esquerda sobre a cabeça.

O dragão assim fez, mas desajeitadamente, pois estava com a pata esquerda dolorida e inchada por causa do bracelete.

– Olhe só! – exclamou Lúcia. – Está com alguma coisa na pata. Pobre bichinho! Vai ver que é por isso que estava chorando. Quem sabe quer que a gente faça com ele como Androcles fez com o leão...

– Cuidado, Lúcia – disse Caspian. – É um dragão muito inteligente, mas pode ser um mentiroso.

Mas Lúcia já se adiantara, seguida por Ripchip, e atrás deles, é claro, os outros.

– Mostre-me a pata – disse Lúcia. – Talvez possa curá-lo.

O dragão-que-fora-Eustáquio ergueu a pata doente, todo satisfeito, lembrando-se de como o elixir de Lúcia havia curado o seu enjôo. Mas ficou desapontado. O líquido mágico reduziu o inchaço e diminuiu um pouco a dor, mas não dissolveu o ouro.

Estavam todos em torno para observar o tratamento, quando Caspian, subitamente, reparou no bracelete:

– Olhem!

 

COMO TERMINOU A AVENTURA

– O quê? – perguntou Edmundo.

– Reparem no brasão gravado no ouro – disse

Caspian. – Um pequeno malho com um diamante por cima, como uma estrela.

– Ei, já vi isto em algum lugar! – exclamou Drinian.

– Claro que já viu – respondeu Caspian. – E a insígnia da grande Casa de Nárnia. Este bracelete era do lorde Octasiano.

– Canalha! – gritou Ripchip para o dragão. – Você devorou um fidalgo de Nárnia.

Mas o dragão abanou a cabeça com energia.

– Quem sabe – aconselhou Lúcia – se ele é o próprio lorde Octasiano transformado em dragão por encantamento.

– Nada disso – disse Edmundo. – Todos os dragões gostam de armazenar ouro. Mas acho que não estou muito longe da verdade se disser que Octasiano não passou desta ilha.

– Você é o lorde Octasiano? – perguntou Lúcia ao dragão. Ao vê-lo abanar a cabeça tristemente, acrescentou: – É alguém encantado, isto é, alguém

humano?

O dragão abanou a cabeça com toda a força. Aí alguém perguntou – mais tarde se discutiu quem, se Edmundo ou Lúcia:

– Você... você não é... por acaso, você não é o Eustáquio, é?

Eustáquio acenou com a cabeça de dragão e bateu com a cauda na água; todos tiveram de dar um salto para trás (alguns marinheiros exclamaram coisas que eu não escreverei aqui) para evitar as lágrimas enormes e ferventes que lhe caíram dos olhos.

Lúcia fez tudo para consolá-lo e chegou a beijar a face escamosa para levantar-lhe o ânimo. Quase todos diziam “Que azar!”, e muitos asseguravam a Eustáquio que ficariam junto dele e haveriam de achar um jeito para desencantá-lo. Dentro de um dia ou dois ele ficaria bem...

Claro, estavam todos ansiosos para ouvir a sua história, mas ele não podia falar. Nos dias seguintes tentou escrever na areia, sem consegui-lo. Antes de tudo, Eustáquio (como nunca tinha lido livros adequados) não sabia contar uma história direito. Por outro lado, os músculos e os nervos das patas de dragão, que teria de usar, nunca tinham aprendido a escrever, nem eram feitos para escrever. Assim, antes mesmo que chegasse ao fim, a maré vinha e lavava toda a escrita, exceto os pedaços que ele já tinha pisado ou que haviam sido apagados acidentalmente com a cauda. E tudo quanto conseguiram ler foi o seguinte (os pontos indicam os espaços apagados):

EU DORM... CAVERNA DORAG... QUERO DIZER DRAGÕES... ESTAVA MORTO E CHOR... ACORDEI... TIRAR MEU BRAÇO... DOÍA...

Todos perceberam que o temperamento de Eustáquio havia melhorado muito pelo fato de ter-se transformado em dragão. Estava ansioso por ajudar. Voou sobre toda a ilha e descobriu que era formada só por montanhas e habitada por cabras selvagens e manadas de porcos bravos. Trouxe muitos deles para a provisão do navio. Era um matador bondoso, pois liquidava o animal só com uma pancada da cauda, de modo que este não sabia (e provavelmente ainda não sabe) que tinha morrido. Claro que também comia alguma coisa, mas sempre sozinho. Como dragão, apreciava comida crua e não gostava que os outros assistissem às suas refeições nojentas. Um dia, voando devagar e com dificuldade, mas em grande triunfo, trouxe para o acampamento um grande pinheiro que tinha arrancado pela raiz num vale distante e que podia servir de mastro.

Se a noite estava úmida, o que acontecia sempre depois de chuvas fortes, era um conforto para todos. Sentavam-se encostados ao seu dorso quente e ficavam logo aquecidos e secos; uma assopradela de sua respiração ardente bastava para acender o fogo mais renitente.

Por vezes, levava um pequeno grupo para voar nas suas costas, e então podiam ver as encostas verdes desenrolando-se lá embaixo, os picos rochosos, os vales estreitos como poços e, mais longe, no mar, para os lados do oeste, um ponto azul mais escuro no azul do horizonte, que bem podia ser terra.

O prazer (absolutamente inédito) de gostarem dele e, ainda mais, de ele gostar dos outros impedia que caísse no desespero. Porque era horrível ser dragão. Estremecia sempre que, ao voar, se via refletido num lago. Odiava as enormes asas de morcego, o dorso denteado e as ferozes garras recurvadas. Tinha quase medo de ficar sozinho e, ao mesmo tempo, envergonhava-se de estar acompanhado. A noite, quando não servia de saco de água quente, escapava do acampamento e deitava-se como uma serpente entre o bosque e a água.

Em tais ocasiões, para sua maior surpresa, era Ripchip o seu companheiro mais fiel. O nobre rato esgueirava-se do círculo animado que se reunia em volta da fogueira do acampamento e sentava-se junto da cabeça do dragão, a favor do vento, para não receber a respiração fumegante. Então explicava a Eustáquio que o que lhe acontecera era um exemplo notável do girar da Roda da Fortuna; que, se Eustáquio estivesse em sua casa em Nárnia (de fato, era um buraco e não uma casa, no qual nem a cabeça do dragão caberia), poderia mostrar-lhe mais de cem casos parecidos, em que reis, duques, cavaleiros, poetas, apaixonados, astrônomos, filósofos e mágicos haviam caído da prosperidade para as mais desgraçadas situações, tendo muitos deles recobrado a posição anterior e vivido muito felizes dali em diante. No momento, não era muito consolador, mas, como a intenção era boa, Eustáquio nunca se esqueceu disso.

Mas o que pesava sobre todos como uma nuvem escura era o que haveriam de fazer com o dragão, quando tivessem de partir. Tentavam não falar no assunto quando ele estava por perto, mas, sem querer, ouvia frases como estas: “Caberá num lado do barco? Temos de pôr toda a carga do outro para contrabalançar”, ou “Poderíamos levá-lo a reboque?”, ou “Poderá acompanhar-nos voando?”, e “Como haveremos de alimentá-lo?”

E o pobre Eustáquio compreendia cada vez mais que, desde que entrara no navio, havia sido um empecilho constante, e agora era um empecilho maior. Isto lhe doía no espírito como o bracelete cravado na pata dianteira. Sabia que ainda era pior roê-lo com os dentes enormes, mas de vez em quando lá estava a roê-lo, especialmente nas noites muito quentes.

Certa manhã, Edmundo acordou muito cedo. Estava ainda escuro; só se viam os troncos de árvores na direção da baía, e nada se enxergava em qualquer outra direção. Ao acordar julgou ouvir uma coisa movendo-se; levantou-se apoiando-se num braço e olhou ao redor: parecia que uma figura escura andava na parte do bosque que dava para o mar. Ocorreu-lhe então uma idéia: “Será mesmo que não existem habitantes nesta ilha?” Depois pensou que fosse Caspian (era quase da mesma estatura), mas não podia ser, pois Caspian tinha adormecido ao pé dele e ainda não se mexera do lugar. Certificou-se de que tinha a espada e levantou-se para investigar.

Desceu sem fazer ruído até a orla do bosque, e a figura escura continuava no mesmo lugar. Via-se agora que era muito pequena para ser de Caspian e muito grande para ser de Lúcia. Não fugiu ao vê-lo. Edmundo puxou a espada e já estava prestes a atacar o estranho, quando este perguntou em voz baixa:

– É você, Edmundo?

– Sou eu, e quem é você?

– Não está me conhecendo? Sou eu, o Eustáquio.

– Caramba! É mesmo você, meu caro?...

– Silêncio! – respondeu Eustáquio, cambaleando como se fosse cair.

– Opa! Que tem você? Sente-se mal?

Eustáquio ficou tanto tempo em silêncio que Edmundo achou que tivesse desmaiado. Mas disse por fim:

– Foi horrível. Você não pode imaginar, mas agora já me sinto bem. Podemos conversar um pouco por aí? Não quero, por enquanto, encontrar-me com os outros.

– Naturalmente, onde você quiser. Vamos até aquelas rochas lá embaixo. Estou muito contente de vê-lo de novo. Você deve ter passado por maus lençóis.

Caminharam para as rochas e sentaram-se para olhar a baía, enquanto o céu se tornava mais pálido e as estrelas iam desaparecendo, com exceção de uma, muito brilhante e muito perto da linha do horizonte.

– Não vou contar como virei dragão, pois tenho também de contar para os outros para acabar de uma vez para sempre com isso tudo. Aliás, só soube que era dragão quando ouvi você usar essa palavra medonha naquela manhã em que voltei.

Mas vou lhe dizer como deixei de ser dragão.

– Vá em frente – disse Edmundo.

– Bem, na noite passada eu estava mais infeliz do que nunca. Este bracelete horrível me machucava como o quê...

– Não machuca mais?

Eustáquio sorriu – um sorriso diferente daquele que Edmundo conhecia – e facilmente deslizou o bracelete para fora do braço.

– Aqui está – disse Eustáquio. – Se alguém quiser, que fique com ele. Mas, como ia dizendo, estava ali deitado, pensando na minha vida, quando de repente... Mas, pense bem, isso pode ter sido um sonho. Não sei...

– Continue – disse Edmundo, com uma paciência espantosa.

– Bem, seja lá como for... Olhei e vi a última coisa que esperava ver: um enorme leão avançando para mim. E era estranho porque, apesar de não haver lua, por onde o leão passava havia luar.

Foi chegando, chegando. E eu, apavorado. Você talvez pense que eu, sendo um dragão, poderia derrubar a fera com a maior facilidade. Mas não era esse tipo de medo. Não temia que me comesse, mas tinha medo dele... não sei se está entendendo o que quero dizer... Chegou pertinho de mim e me olhou nos olhos. Fechei os meus, mas não adiantou nada, porque ele me disse que o seguisse...

– Falava?

– Agora que você está me perguntando, não sei mais. Mas, de qualquer maneira, dizia coisas. E eu sabia que tinha de fazer o que me dizia, porque me levantei e o segui. Levou-me por um caminho muito comprido, para o interior das montanhas. E o halo sempre lá envolvendo-o. Finalmente chegamos ao alto de uma montanha que eu nunca vira antes, no cimo da qual havia um jardim. No meio do jardim havia uma nascente de água. Vi que era uma nascente porque a água brotava do fundo, mas era muito maior do que a maioria das nascentes – parecia uma grande piscina redonda, para a qual se descia em degraus de mármore. Nunca tinha visto água tão clara e achei que se me banhasse ali talvez passasse a dor na pata. Mas o leão me disse para tirar a roupa primeiro. Para dizer a verdade, não sei se falou em voz alta ou não. Ia responder que não tinha roupa, quando me lembrei que os dragões são, de certo modo, parecidos com as serpentes, e estas largam a pele. “Sem dúvida alguma é o que ele quer”, pensei.

Assim, comecei a esfregar-me, e as escamas começaram a cair de todos os lados. Raspei ainda mais fundo e, em vez de caírem as escamas, começou a cair a pele toda, inteirinha, como depois de uma doença ou como a casca de uma banana. Num minuto, ou dois, fiquei sem pele. Estava lá no chão, meio repugnante. Era uma sensação maravilhosa. Comecei a descer à fonte para o banho. Quando ia enfiando os pés na água, vi que estavam rugosos e cheios de escamas como antes. “Está bem”, pensei, “estou vendo que tenho outra camada debaixo da primeira e também tenho de tirá-la”. Esfreguei-me de novo no chão e mais uma vez a pele se descolou e saiu; deixei-a então ao lado da outra e desci de novo para o banho. E aí aconteceu exatamente a mesma coisa. Pensava: “Deus do céu! Quantas peles terei de despir?” Como estava louco para molhar a pata, esfreguei-me pela terceira vez e tirei uma terceira pele. Mas ao olhar-me na água vi que estava na mesma. Então o leão disse (mas não sei se falou): “Eu tiro a sua pele”. Tinha muito medo daquelas garras, mas, ao mesmo tempo, estava louco para ver-me livre daquilo. Por isso me deitei de costas e deixei que ele tirasse a minha pele. A primeira unhada que me deu foi tão funda que julguei ter me atingido o coração. E quando começou a tirar-me a pele senti a pior dor da minha vida. A única coisa que me fazia agüentar era o prazer de sentir que me tirava a pele. É como quem tira um espinho de um lugar dolorido. Dói pra valer, mas é bom ver o espinho sair.

– Estou entendendo – disse Edmundo.

– Tirou-me aquela coisa horrível, como eu achava que tinha feito das outras vezes, e lá estava ela sobre a relva, muito mais dura e escura do que as outras. E ali estava eu também, macio e delicado como um frango depenado e muito menor do que antes. Nessa altura agarrou-me – não gostei muito, pois estava todo sensível sem a pele – e atirou-me dentro da água. A princípio ardeu muito, mas em seguida foi uma delícia. Quando comecei a nadar, reparei que a dor do braço havia desaparecido completamente. Compreendi a razão. Tinha voltado a ser gente. Você vai me achar um cretino se disser o que senti quando vi os meus braços. Não são mais musculosos do que os de Caspian, eu sei que não são muito musculosos, nem se podem comparar com os de Caspian, mas morri de alegria ao vê-los. Depois de certo tempo, o leão me tirou da água e vestiu-me.

– Como?... Com as patas?

– Não me lembro muito bem. Sei lá, mas me vestiu com uma roupa nova, esta aqui. É por isso que eu digo: acho que foi um sonho.

– Não, não foi sonho, não – disse Edmundo.

– Por quê?

– Primeiro: a roupa nova serve de prova. Segundo: você deixou de ser dragão... Acho que você viu Aslam.

– Aslam! – exclamou Eustáquio. -Já ouvi falar nesse nome uma porção de vezes, desde que estou no Peregrino. Tinha a impressão – não sei por quê – de que o odiava. Mas eu odiava tudo. Aliás, quero pedir-lhe desculpas. Acho que me comportei muito mal.

– Não tem a menor importância. Cá para nós, você foi menos chato do que eu na minha primeira viagem a Nárnia. Você apenas foi um pouco boboca, mas eu banquei o traidor.

– Bem, então não se fala mais nisso. Mas... quem é Aslam? Você o conhece?

– Ele, pelo menos, me conhece. É o grande Leão, filho do Imperador de Além-mar. Salvou a mim e a Nárnia. Nós todos o vimos. Lúcia sempre o vê. Pode ser que tenhamos chegado ao país de Aslam.

Nenhum dos dois falou durante algum tempo. Desaparecera a última estrela. Não viam o sol, mas sabiam que este surgia, pois tanto o céu quanto a baía em frente se tingiam de cor-de-rosa.

Uma ave da família dos papagaios gritou no bosque que ficava atrás; começaram a ouvir barulho entre as árvores e, por fim, o toque da trompa de Caspian. O acampamento acordara.

Houve júbilo geral quando Edmundo e Eustáquio, este na sua forma primitiva, chegaram ao círculo dos que tomavam a primeira refeição junto da fogueira.

Claro que todos ouviram a primeira parte da história. Imaginava-se se o dragão havia matado lorde Octasiano alguns anos atrás ou se o dragão velho havia sido o próprio Octasiano. As jóias com que Eustáquio atulhara os bolsos na caverna haviam desaparecido com as roupas que vestira, mas ninguém sentia vontade de buscar o tesouro.

Em poucos dias, o Peregrino, com mastro novo, bem sortido de provisões, estava pronto para partir. Antes de embarcarem, Caspian mandou inscrever numa rocha macia, virada para o mar, estas palavras:

ILHA DO DRAGÃO

DESCOBERTA POR CASPIAN X,

REI DE NÁRNIA,

NO QUARTO ANO DE SEU REINADO. AQUI, SEGUNDO PARECE,

LORDE OCTASIANO

ENCONTROU A MORTE.

Seria bonito e muito próximo da verdade dizer que, dali por diante, Eustáquio mudou completamente. Para ser rigorosamente exato, começou a mudar. Às vezes tinha recaídas. Em certos dias era ainda um chato. Mas a cura havia começado.

O bracelete de lorde Octasiano teve um curioso destino. Eustáquio não o quis, oferecendo-o a Caspian, que por sua vez o deu a Lúcia. Mas também esta não tinha grande interesse em conservá-lo.

– Muito bem, então é de quem pegar – disse Caspian, atirando a jóia para o alto. Isso se deu no momento em que estavam todos contemplando a inscrição na pedra.

O bracelete volteou no ar, brilhando à luz do sol, e, caindo, foi ficar pendurado, como uma ar-gola atirada de propósito, numa saliência na rocha. Não se podia subir para tirá-lo, nem era possível apanhá-lo pelo lado de cima.

Assim, lá ficou pendurado e, tanto quanto eu sei, lá ficará até que o mundo deixe de ser mundo.

 

DOIS SÉRIOS PERIGOS

Todos estavam contentes quando o Peregrino da Alvorada saiu da Ilha do Dragão. Tiveram logo vento favorável e no dia seguinte, muito cedo, chegaram à terra desconhecida, que alguns já tinham visto ao voar sobre as montanhas nas costas do dragão.

A ilha era baixa e verde, habitada apenas por coelhos e cabras, mas calcularam já ter vivido gente lá, não muito tempo atrás, pelas ruínas das cabanas de pedra e pelos lugares enegrecidos onde tinham ardido fogueiras. Havia também ossos e armas partidas.

– Coisa de piratas – disse Caspian.

– Ou de dragões – disse Edmundo.

A única coisa que encontraram foi um barquinho de couro encalhado na areia. Era muito pequeno, com cerca de um metro de comprimento, e o remo tinha um tamanho adequado às dimensões do barco. Segundo lhes parecia, ou o barco fora feito para uma criança ou aquela terra era habitada por anões.

Ripchip levou o bote para bordo, pois era do tamanho que lhe convinha. Chamaram à terra Ilha Queimada e partiram antes do anoitecer. Durante cinco dias foram empurrados por um vento sul, sem verem terra, nem peixes, nem gaivotas. Houve um dia em que choveu forte até a tarde. Eustáquio perdeu duas partidas de xadrez para Ripchip e começou a lembrar de novo o antigo e enjoado menino que fora. Edmundo disse que teria preferido ir aos Estados Unidos com Susana. Lúcia olhou pela janelinha do camarote e disse:

– Parece que a chuva parou. Mas o que é aquilo?

Correram todos para a popa e viram que a chuva tinha cessado; Drjnian, que estava de vigia, olhava atentamente para uma coisa do lado da popa. Ou melhor, para várias coisas. Pareciam pequenas rochas lisas, uma porção delas, separadas umas das outras cerca de quinze metros.

– Não podem ser rochas – disse Drinian. – Não estavam lá há cinco minutos.

– Agora mesmo desapareceu uma – exclamou Lúcia.

– Vem outra subindo – disse Edmundo.

– E mais perto – observou Eustáquio.

– E estão se movendo nesta direção – disse Caspian.

– E andam mais depressa do que nós. Daqui a um minuto baterão no navio – acrescentou Drinian.

Prenderam a respiração, pois não é nada agradável ser perseguido em terra ou no mar por um ser desconhecido. Mas o que estava para acontecer era muito pior do que suspeitavam.

Subitamente, quase junto a bombordo, ergueu-se do mar uma cabeça horrível. Toda verde e vermelha, com manchas purpurinas, exceto nos lugares a que se agarravam mariscos, e tinha o feitio da cabeça de um cavalo, mas sem orelhas. Os olhos eram enormes, feitos para enxergar nas profundezas escuras do oceano, e na boca escancarada alinhava-se uma dupla fileira de dentes, afiados como os dos peixes. A princípio, pareceu-lhes que a cabeça se apoiava num comprido pescoço, mas, à medida que emergia das águas, compreenderam todos que não era o pescoço, mas o próprio corpo... Viam finalmente agora o que tanta gente anseia por ver: a grande Serpente do Mar. As curvas da sua gigantesca cauda estendiam-se a uma grande distância, elevando-se, com intervalos, da superfície do mar. E sua cabeça agora erguera-se acima do mastro.

Correram todos para as espadas, mas nada podiam fazer, pois o monstro estava fora do alcance.

– Atirar, atirar! – disse o arqueiro-mor; alguns homens obedeceram, mas as flechas bateram no corpo da serpente como se este fosse de aço. Durante um angustiante minuto, ficaram todos em silêncio, olhando aterrados aqueles olhos e aquela boca, tentando imaginar a que parte do navio ela se lançaria. Mas não se lançou. Arremessou a cabeça para a frente cruzando o barco ao nível da verga do mastro. Sua cabeça estava agora bem ao lado da torre de combate. Estendeu-se ainda mais, até ficar com a cabeça por cima dos costados de estibordo. Depois começou a baixar, não para o convés apinhado de gente, mas para a água, de modo que todo o navio ficou debaixo do arco de

seu corpo. A seguir, o arco começou a diminuir; do lado de estibordo, a Serpente do Mar estava quase tocando o costado do Peregrino.

Eustáquio (que realmente estivera tentando portar-se bem, até que a chuva e o xadrez o fizeram recair) praticou o primeiro ato corajoso de sua vida. Tinha uma espada que Caspian lhe emprestara. Logo que o corpo da serpente ficou suficientemente perto do lado de estibordo, saltou para o costado e começou a golpeá-lo com toda a vontade. Na verdade nada conseguiu, a não ser partir em pedaços a melhor espada de Caspian, mas para um novato foi um feito notável. Ripchip impediu que os outros atacassem:

– Não lutem! Empurrem!

Não era hábito do rato aconselhar alguém a não lutar e, mesmo naquele momento terrível, todos os olhos se voltaram para ele. Quando saltou para o costado do barco, do lado de lá da serpente, e encostou o dorso felpudo à enorme espinha e ao corpo escorregadio e começou a empurrar, quase todos compreenderam a sua intenção e correram para fazer o mesmo.

Momentos depois, a cabeça da serpente apareceu de novo, desta vez a bombordo, com o dorso voltado para eles, e aí então não houve quem não entendesse a idéia do rato. O animal havia-se enrolado em volta do Peregrino e começava a apertar o laço com o seu próprio corpo. Uma vez bem apertado, só haveria pedaços de madeira no lugar do navio, e a serpente apanharia um por um os passageiros. A única salvação era empurrar o laço para trás, até que deslizasse sob o costado do barco, ou então (dizendo a mesma coisa mas de outro modo) impelir o navio para fora do laço.

Para Ripchip, fazer isso sozinho, era o mesmo que erguer uma catedral, mas quase se matou tentando, antes que os outros o empurrassem para o lado. Toda a tripulação, exceto Lúcia e o rato (que tinha desmaiado), formava dois longos cordões, cada homem com o peito apoiado nas costas do que estava na frente, de modo que todo o peso da fila vinha concentrar-se no último homem. Era questão de vida ou morte. Durante alguns penosos segundos, nada aconteceu. Ossos estalavam, o suor caía, a respiração era arquejante e rouca. Então sentiram que o navio se movia e que o laço da serpente estava mais afastado do mastro do que antes, mas também mais apertado. O verdadeiro perigo estava iminente. Haveria tempo de arrojá-lo pela popa? Ou já era tarde?

O corpo do animal já se apoiava nas amuradas da popa. Para lá saltaram logo dez ou mais homens. Era bem melhor. O corpo estava tão baixo que eles podiam formar um só cordão pela popa e empurrar uns ao lado dos outros. A esperança reinou de novo até se lembrarem da parte alta da ré, a cauda do dragão que o Peregrino imitava. Era completamente impossível fazer o animal transpor aquela parte do navio.

– Um machado! – gritou Caspian, com voz rouca. – E continuem empurrando.

Lúcia, que sabia onde estava tudo, foi correndo lá embaixo e apanhou um machado. Ao atingir o alto da escada da popa, ouviu-se um estrondo, como de uma árvore que tomba. O navio estremeceu todo e pulou para a frente. Naquele mesmo momento, a serpente fora empurrada com muita força, ou ela mesma resolvera estupidamente apertar o laço, e esmagou a ré do navio, libertando-o completamente.

Os outros estavam demasiado exaustos para ver o que Lúcia viu: a poucos metros, a argola formada pelo corpo da serpente tornava-se menor e desaparecia num espadanar de água. Lúcia sempre disse (pode ter sido imaginação dela, pois estava muito excitada) que vira na serpente uma expressão de contentamento imbecil.

O animal era mesmo muito estúpido, pois em vez de perseguir o navio virou a cabeça e começou a procurar ao longo do corpo com o focinho, julgando talvez encontrar os destroços do Peregrino. Mas este já seguia seu caminho, impelido por um vento suave. A tripulação espalhava-se pelo convés, uns deitados, outros sentados, gemendo e queixando-se. Breve, já comentavam o caso e até riam.

Enquanto se distribuía vinho e alimento, todos começaram a dar vivas e a elogiar a valentia de Eustáquio (embora nada tivesse feito de decisivo) e de Ripchip.

Depois desse incidente navegaram três dias entre céu e mar. No quarto dia o vento virou para o norte e o mar começou a agitar-se. À tarde, já era quase um furacão. Foi quando viram terra a bom-bordo.

– Se Vossa Majestade me permitir – disse Drinian –, vamos remar para a costa para ficar a sotavento, ancorados até isto passar.

Caspian concordou, mas só chegaram ao ancoradouro perto da noite, pois tiveram que remar uma grande distância contra a maré.

Ao lusco-fusco entraram num porto natural e ancoraram, mas naquela noite ninguém desembarcou. Viram de manhã que estavam numa baía verde, uma terra bravia e solitária que se elevava até um maciço rochoso. As nuvens desciam em torrente do alto maciço, impelidas pelo vento norte que soprava detrás dele. Baixaram o bote e encheram-no com alguns barris vazios.

– Onde vamos buscar água? – perguntou Caspian, ao sentar-se na popa. – Vêm desaguar dois riachos na baía.

– Tanto faz – respondeu Drinian. – Acho que a estibordo fica o riacho mais próximo.

– Vai chover! – avisou Lúcia.

– Já está chovendo! – exclamou Edmundo, pois já caíam mesmo grandes pingos de chuva. – Acho melhor irmos para aquele riacho. Vejo árvores onde

podemos ficar abrigados.

– Então, vamos – concordou Eustáquio. – A gente não precisa se molhar mais do que o necessário.

Mas Drinian insistia em continuar para estibordo, como as pessoas que teimam em dirigir a cem quilômetros por hora, apesar de avisadas de que se enganaram de estrada.

– Eles estão certos, Drinian – falou Caspian.

– Por que não vira o navio e segue para outro riacho?

– Como Vossa Majestade quiser – disse Drinian, um tanto secamente. O dia anterior fora extrema mente fatigante por causa do mau tempo e, além disso, ele não gostava de conselhos de gente de terra. Contudo, mudou de rumo, verificando-se mais tarde ter sido uma boa resolução.

Quando acabaram de recolher água, tinha cessado a chuva. Caspian, com Eustáquio, os Pevensie e Ripchip resolveram ir ao cimo do monte para ver o que podiam avistar de lá. Foi uma subida difícil pela relva áspera e espinhenta. Não encontraram nem animais nem gente, apenas gaivotas. Quando atingiram o cume, viram que se tratava de uma pequena ilha de poucos quilômetros. Lá do alto, o mar parecia maior e mais desolado do que visto do convés ou da torre do Peregrino.

– É uma completa loucura – disse Eustáquio a Lúcia, em voz baixa, olhando o horizonte para os lados do oriente – continuar a navegar nisso sem

saber aonde vamos parar!

Estava frio demais para continuarem lá no alto.

– Não vamos voltar pelo mesmo caminho – sugeriu Lúcia. – Continuamos mais um pouco e de pois descemos pelo outro riacho, aonde Drinian queria ir.

Todos concordaram e, cerca de quinze minutos mais tarde, encontravam-se na nascente do segundo rio.

O lugar era mais interessante do que haviam imaginado; um pequeno lago de montanha rodeado de penedos, exceto do lado de onde saía um canal estreito que levava a água para o mar.

Ali, abrigados do vento, sentaram-se todos no capim para descansar. Mas Edmundo levantou-se logo, de um salto.

– Esta ilha é feita de pedras pontudas? Ah, peguei... Ei, não é pedra, é um punho de espada.

Que nada, é uma espada inteira, o que a ferrugem deixou. Deve estar aqui há um tempo enorme.

– Pelo aspecto, parece de Nárnia – disse Caspian, quando se juntaram todos para ver.

– Também me sentei em cima de alguma coisa – disse Lúcia. – Uma coisa dura! – Eram os restos de uma armadura. Já todos estavam de gatinhas, apalpando o capim em todos os sentidos.

Aos poucos, a busca revelou um elmo, uma adaga e várias moedas. Não eram crescentes da Calormânia, mas autênticos “leões” e “árvores” de Nárnia.

– Acho que é tudo que resta de um dos nossos sete fidalgos – disse Edmundo.

– Estava pensando justamente nisso – falou Caspian. – Resta saber qual deles. Não há nada na adaga que o indique. Nem faço idéia de como morreu.

– Nem de como haveremos de vingá-lo – acrescentou Ripchip.

Edmundo, o único do grupo que lera histórias policiais, pôs-se a pensar no caso.

– Olhem aí: há qualquer coisa de estranho nisso. Não pode ter sido morto em combate.

– E por que não? – perguntou Caspian.

– Não há aqui nenhum osso – respondeu Edmundo. – Um inimigo teria levado a armadura e deixado o corpo. Alguém já ouviu falar de um sujeito que depois de ganhar um combate leve o corpo e deixe a armadura?

– Talvez tenha sido comido por um animal selvagem – observou Lúcia.

– Tinha de ser um animal muito inteligente – respondeu Edmundo – para tirar a armadura de um homem.

– Talvez um dragão – disse Caspian.

– Nem por sombra! – exclamou Eustáquio. -

Um dragão seria incapaz de fazer isso. De dragão eu entendo!

– Se vocês estiverem de acordo – propôs Caspian, levantando-se – acho que não vale a pena levar nada daqui.

Contornaram o lago e desceram até a abertura por onde saía a água. Se o dia estivesse quente, alguns deles teriam tomado um banho. Eustáquio inclinou-se sobre a água para beber na concha das mãos, mas antes que pudesse fazê-lo foi interrompido pelo grito simultâneo de Lúcia e Ripchip: -Olhem! – Eustáquio deteve-se e olhou.

O fundo do poço era feito de grandes pedras azul-acinzentadas, a água era completamente transparente, e no fundo jazia uma figura de homem, que parecia feita de ouro. Tinha o rosto virado para baixo e os braços estendidos acima da cabeça. Enquanto observavam, as nuvens afastaram-se, deixando brilhar o sol, que iluminou a figura de ouro por completo. Lúcia pensou que nunca vira estátua tão bela.

– Puxa! – exclamou Caspian. – Vale a pena ver isto. Poderemos retirá-la de lá?

– Podemos mergulhar, senhor – disse Ripchip.

– Não pode ser – falou Edmundo. – Se for realmente de ouro, de ouro puro, é muito pesada para ser puxada. E o poço tem pelo menos uns três metros de profundidade. Esperem um pouco. Ainda bem que trouxe minha lança. Vamos ver a profundidade disso. Segure minha mão, Caspian, enquanto me debruço.

Caspian agarrou-lhe a mão e Edmundo, inclinando-se para a frente, começou a mergulhar a lança na água.

– Acho que não é de ouro – disse Lúcia. – A luz é que faz aquilo. A lança está da mesma cor da estátua.

– O que aconteceu? – perguntaram várias vozes ao mesmo tempo, pois Edmundo deixara cair a lança de sua mão.

– Não consegui segurá-la – articulou Edmundo. – Ficou tão pesada...

-Já está no fundo – disse Caspian. – Lúcia tem razão. Parece da mesma cor da estátua.

Mas Edmundo, parecendo ter qualquer problema com suas botas, pois estava inclinado a espiá-las, endireitou-se de súbito e gritou com aquela voz cortante que ninguém ousa desobedecer:

– Saiam da água! Todos! Já!

Todos se afastaram e ficaram olhando para ele, admirados.

– Olhem as minhas botas – gritou ainda Edmundo.

– Estão muito amarelas – ia dizendo Eustáquio.

– São de ouro, de ouro puro – interrompeu Edmundo. – Olhem bem. Peguem. Pesam mais do que chumbo.

– Por Aslam! – exclamou Caspian. – Você não está querendo dizer...

– Estou querendo, sim. Esta água transforma tudo em ouro. Transformou a lança e por isso ela ficou tão pesada. Os meus pés estavam quase lá dentro (ainda bem que não estou descalço!), e a parte da frente das botas também virou ouro. E aquele coitado lá no fundo... bem, vocês estão vendo.

– Então não é uma estátua – disse Lúcia, com a voz sumida.

– Não. Agora está tudo claro. Ele veio aqui num dia quente. Tirou a roupa no alto da rocha, onde estamos sentados. As roupas devem ter apodrecido, ou foram levadas pelas aves para fazer ninhos.

A armadura ainda está ali. Mergulhou e...

– Não fale mais nada – exclamou Lúcia. – Que coisa medonha!

– Escapamos por um triz! – disse Edmundo.

– Por um triz! – concordou Ripchip. – Mais um pouco e a gente enfiava o pé na água, ou os bigodes, até mesmo a cauda...

– Vamos tirar a prova – falou Caspian.

Arrancou um galho e, com muito cuidado, ajoelhou-se junto do poço mergulhando a haste. Foi vegetal o que mergulhou, mas o que tirou da água era um perfeito modelo de ramo feito de ouro, pesado e maciço como o chumbo.

– O rei que possuísse esta ilha – disse Caspian vagarosamente, e ao falar seu rosto se iluminou – seria em pouco tempo o rei mais rico do mundo.

Declaro esta ilha possessão de Nárnia para sempre! Será chamada Ilha das Águas de Ouro. Exijo que todos guardem segredo. Nem mesmo Drinian deve saber. E isto sob pena de morte, entenderam?

– Mas com quem está falando? – indagou Edmundo. – Não sou seu súdito. Só se for o contrário. Sou um dos mais antigos soberanos de Nárnia, e você jurou fidelidade ao Grande Rei, meu irmão.

– Ah, é assim, rei Edmundo? – perguntou Caspian, apoiando a mão no punho da espada.

– Parem com isso – interveio Lúcia. – E o que dá a gente andar com rapazes. Vocês são uns valentões bobocas. Oh!... – e a voz morreu-lhe num espasmo.

E todos viram o que ela havia visto.

Lá no alto, na falda cinzenta do monte, caminhava em passo lento, sem ruído, sem olhar para eles, e brilhando como se estivesse à luz do sol e não no crepúsculo, o maior leão que olhos humanos jamais viram.

Mais tarde, Lúcia, ao descrever a cena, diria “do tamanho de um elefante”, ainda que em outrás ocasiões dissesse apenas “do tamanho de um cavalo de circo”.

Mas não era o tamanho que interessava. Todos sabiam que era Aslam. E nunca ninguém soube como viera nem para onde ia. Olhavam uns para os outros, como se tivessem acordado de um sonho.

– De que estávamos falando? – perguntou Caspian. – Agi como um imbecil.

– Senhor! – disse Ripchip. – Este lugar está amaldiçoado. Voltemos para bordo imediatamente. Se me permitisse dar um nome a esta ilha, eu a chamaria de Água da Morte.

– Parece um nome adequado, Rip – respondeu Caspian. – Ainda que, pensando bem, nem mesmo eu saiba por quê. O tempo parece ter melhorado, e

tenho a impressão de que Drinian deve estar louco para partir. Quanta coisa teremos para contar!

Mas afinal não lhe contaram grande coisa, pois os acontecimentos daquela última hora haviam-se tornado um tanto confusos em suas mentes.

– Suas Majestades pareciam enfeitiçadas quando voltaram – disse Drinian a Rince algumas horas depois, quando o Peregrino já navegava e a Ilha da Água da Morte desaparecia no horizonte.

– Algo aconteceu a eles naquela terra. A única coisa que entendi foi que parece terem encontra do o corpo de um dos fidalgos.

– Não me diga! – exclamou Rince. – Então já são três. Só faltam quatro. Nesse ritmo, estaremos em casa depois do Ano Novo. Ótimo! Boa noite, senhor!

 

A ILHA DAS VOZES

O vento começou a soprar do leste, e todas as manhãs, quando a luz surgia, a proa recurva do Peregrino elevava-se na direção do sol.

E navegaram, navegaram, impelidos por uma brisa suave, mas contínua, e não viram peixe, nem gaivota, nem barco, nem praia. As provisões começaram a escassear outra vez, e entrou no espírito de todos a idéia de que talvez estivessem navegando por um mar sem fim. Mas, quando amanheceu o último dia que tinham fixado para continuar a leste, avistaram entre o navio e o sol nascente uma terra baixa e esfumada como uma nuvem.

Ao meio da tarde aportaram em uma grande baía e desembarcaram. Era um lugar muito diferente de todos os que já haviam visto, pois, ao atravessarem a praia arenosa, depararam com um silêncio e um vazio totais, como se fosse uma terra desabitada. Contudo, à frente estendiam-se campos com relva tão macia e aparada como a que se costuma encontrar nas grandes casas inglesas onde trabalham dez jardineiros. As árvores, em grande quantidade, estavam bem separadas umas das outras, e não havia no chão nem ramos partidos nem folhas caídas. Só se ouvia o arrulhar de pombos. Tomaram um caminho arenoso, extenso e reto, todo ladeado de árvores, onde não crescia uma só erva. Na outra extremidade, vislumbraram uma grande casa acinzentada, muito sossegada ao sol da tarde.

Lúcia reparou que tinha uma pedrinha no sapato. Numa terra desconhecida como aquela, teria sido mais ajuizado pedir que os outros esperassem por ela. Mas deixou-se ficar para trás e sentou-se para tirar o sapato. O cordão tinha um nó. Antes que tivesse desatado o nó, eles já estavam a uma distância razoável. Quando tirou a pedra e amarrava o sapato, já não os ouvia. Quase ao mesmo tempo ouviu uma outra coisa, mas o som não vinha do lado da casa.

Era um ruído de batidas, como se dúzias de robustos trabalhadores estivessem golpeando o chão com toda a força com grandes pilões de madeira. E aproximavam-se rapidamente. Ainda estava sentada e encostada à árvore, mas como não sabia subir, só lhe restava continuar assim, muito quieta, comprimindo-se de encontro à árvore, esperando que não a vissem.

Tump... Tump... Tump... – fosse o que fosse, estava muito perto, pois ela sentia o chão tremer. Mas nada via.

A coisa – ou coisas – devia estar bem atrás dela. De repente ouviu um estrondo no caminho, bem na sua frente. Compreendeu que era naquele lugar, não só por causa do som, como também porque viu a areia espalhando-se no ar como se tivesse sofrido uma forte pancada. Depois, todos os estampidos se reuniram a uns cinco metros de distância, cessando subitamente. Depois veio a Voz. Era horrível, porque ainda não tinha conseguido ver ninguém. Toda aquela região, que mais lembrava um parque, parecia tão sossegada e vazia como quando haviam desembarcado. No entanto, a poucos metros de distância, uma voz falou:

– Camaradas, eis a nossa oportunidade!

Imediatamente respondeu-lhe um coro de vozes:

– Ouçam, ouçam. Eis a nossa oportunidade!

Muito bem, chefe. Nunca falou tanta verdade.

A primeira voz continuou:

– O que eu acho é que devemos ir para a praia e ficar entre eles e o navio; e que cada um cuide de suas armas. Vamos apanhá-los quando tentarem embarcar.

– É a melhor maneira, sem dúvida alguma – gritaram as outras vozes todas. – Nunca alguém fez um plano tão bom, chefe. Nunca se poderá imaginar um plano melhor do que esse.

– Então, coragem, camaradas, coragem; vamos a eles – disse a primeira voz.

– Está outra vez cheio e repleto de razão, chefe – disseram os outros. – É a melhor ordem que nos podia dar. Exatamente o que estávamos querendo dizer. Vamos a eles!

O barulho começou forte, a princípio, e depois cada vez mais fraco, até morrer na direção do mar.

Lúcia sabia que não era o momento de ficar ali sentada matutando sobre quem seriam as criaturas invisíveis. Cessado o barulho, levantou-se e correu pela alameda atrás dos outros. Tinham de ser avisados o quanto antes.

Os outros tinham chegado à casa. Era um edifício baixo – só de dois andares – feito de bonita pedra esverdeada, com muitas janelas e parcialmente coberto de hera. Estava tudo tão silencioso que Eustáquio disse:

– Acho que não vive ninguém aqui! – Caspian apontou-lhe silenciosamente uma coluna de fumo que saía da chaminé. Entraram por um grande portão aberto que dava para um pátio pavimentado. E foi ali que tiveram o primeiro indício de que havia qualquer coisa de estranho naquela ilha.

No meio do pátio havia uma bomba d’água e, debaixo desta, um balde. Nada havia de estranho nisso, mas o braço da bomba movia-se para baixo e para cima, embora parecesse que ninguém o acionava.

– Tem magia por aqui – disse Caspian.

– Da mecânica, isto sim! – exclamou Eustáquio.

– Acho que finalmente chegamos a um país civilizado.

Nesse momento, Lúcia, vermelha e ofegante, irrompeu pelo pátio. Em voz baixa tentou explicar-lhes o que ouvira. E, quando compreenderam parte do que se passava, nem o mais valente ficou satisfeito.

– Inimigos invisíveis! – murmurou Caspian. – E cortam-nos a retirada para o barco. Vai ser duro descalçar esta bota!

– Você tem alguma idéia de que tipo de criaturas se trata, Lu? – perguntou Edmundo.

– Como poderia saber, se não os vi?

– Parecia barulho de ser humano ao andar?

– Não ouvi nenhum barulho de pé, só vozes e aquele horrível bater, incessante, como um martelão.

– Estou pensando se não se tornarão visíveis se lhes espetarmos uma espada na barriga – disse Ripchip.

– Acho que temos de experimentar – falou Caspian. – Mas vamos sair deste pátio; ali está um deles trabalhando na bomba e ouvindo tudo o que estamos conversando.

Voltaram ao prado, onde as árvores poderiam escondê-los melhor.

– Isto não adianta nada – falou Eustáquio –, querer se esconder de gente que não se vê. Podem estar todos aqui em volta.

– Escute, Drinian – disse Caspian. – Que tal se deixássemos o bote e fizéssemos sinal ao Peregri no para que nos recolhesse no fundo da baía?

– Não tem profundidade bastante – respondeu Drinian.

– Iríamos a nado – disse Lúcia.

– Ouçam, Altezas – chiou Ripchip. – É uma loucura fugir de um inimigo invisível com subterfúgios e artimanhas. Se essas criaturas estão resolvidas a dar-nos combate, pode ter a certeza de que o farão. Prefiro combatê-las frente a frente a ser agarrado pelas canelas.

– Creio que desta vez Rip tem razão – disse Lúcia. – Se Rince e os outros do Peregrino nos vissem combatendo na praia, haveriam de fazer alguma coisa.

– Não iriam nos ver combatendo, porque não veriam o inimigo – disse Eustáquio desconsoladamente. – Julgariam que estamos brandindo as espadas no ar, de brincadeira.

Foi um silêncio penoso.

– Bem – disse, por fim, Caspian –, temos de enfrentá-los. Apertem as mãos. Flechas nos arcos!

Espada desembainhada! Vamos em frente. Talvez queiram parlamentar.

Era estranho ver os prados e as grandes árvores tão serenas enquanto marchavam para a praia. E quando ali chegaram e viram o bote, a areia macia e deserta, mais de um duvidou se Lúcia não teria imaginado tudo aquilo que contara. Mas, antes de chegarem à areia, a voz falou do ar:

– Não avancem mais, cavalheiros, não avancem mais. Temos que falar primeiro. Somos aqui uns cinqüenta de armas na mão.

– Escutem o que ele diz, escutem o que ele diz – fez o coro. – É o chefe. Vocês dependem do que ele vai dizer. E ele nunca diz uma mentira, uma só.

– Não vejo esses cinqüenta guerreiros – observou Ripchip.

– Lá isso é verdade, lá isso é verdade – disse a voz do chefe. – Vocês não podem nos ver, porque somos invisíveis.

– Isso mesmo, chefe, isso mesmo – disseram as outras vozes. – Fala como um livro aberto. Nunca jamais poderia ter melhor resposta do que esta.

– Calma, Rip – murmurou Caspian; depois acrescentou em voz mais alta: – Gente invisível, que querem de nós? Que fizemos para merecer sua inimizade?

– Queremos uma coisa que essa mocinha pode fazer – falou a voz do chefe. E as outras vozes repetiram a mesma coisa.

– Mocinha! – exclamou Ripchip. – Esta senhora é uma rainha!

– Não entendemos de rainhas – disse a voz do chefe. (“Nem nós, nem nós!”, disseram as outras vozes.) Mas queremos uma coisa que ela pode fazer.

– O que é? – perguntou Lúcia.

– Se é algo contra a honra ou a segurança de Vossa Majestade – acrescentou Ripchip –, hão de ver quantos matamos antes de morrer.

– Olhem aqui, isto é, escutem aqui: a história é muito comprida. Que tal se nos sentássemos todos?

A proposta foi acaloradamente aprovada pelas outras vozes, mas os de Nárnia continuaram de pé.

– Bem – disse a voz do chefe –, o negócio é o seguinte: esta ilha pertence a um mágico há uma infinidade de tempo. Nós todos somos, ou talvez seja mais exato dizer, fomos servos dele. Para resumir um pouco, esse mágico, de que eu estava falando, disse-nos para fazer uma coisa de que não gostávamos. Por quê? Porque não queríamos.

Pois bem, então o tal mágico ficou louco de raiva.

Era o dono da ilha e não estava habituado a ser desobedecido. Era um homem muito rude! Esperem um pouquinho... O que eu estava dizendo?

Ah, sim, pois esse mágico foi lá para cima (ele guardava tudo o que era de magia em cima, e nós vivíamos embaixo). Então ele subiu e nos colocou um encantamento. Pois é, como eu ia dizendo... um encantamento que nos deixou feios, terrivelmente feios! Se nos vissem agora, acho que agradeceriam a seus deuses por não nos verem; não acreditariam como éramos antes do encantamento. Nem acreditariam que fôssemos os mesmos.

Ficamos tão feios que nem podemos olhar uns para os outros. Vou contar o que fizemos: quando chegou a noite, esperamos até que o mágico adormecesse, rastejamos pela escada e, com uma ousadia fora do comum, fomos até o livro mágico, para ver se era possível dar um jeito naquela feiúra. Não minto: tremíamos e suávamos dos pés à cabeça. Acreditem ou não, não encontramos nenhum sortilégio que curasse a feiúra. O tempo passando! E nós com um medo enorme que o homem acordasse de um momento para outro: eu estava coberto de suores frios, confesso, não minto; bem, para resumir a história, não sei se fizemos bem ou mal, mas demos por fim com um feitiço que tornava as pessoas invisíveis. E achamos que era preferível sermos invisíveis a sermos tão feios. Por quê? Questão de gosto. Então, a minha garotinha, que tem mais ou menos a idade da sua, e que era uma doce criança antes de ficar horrorosa, se bem que agora... quanto menos se falar nisso, melhor... Como ia dizendo, a minha menina pronunciou as palavras do encantamento, pois têm de ser ditas por uma garota ou pelo próprio mágico para produzirem efeito, entendem? Assim, a minha Clípsia disse as palavras mágicas. Já devia ter dito que ela lê muito bem, e ficamos todos invisíveis, como vocês agora podem ver, ou não ver. Juro que foi um alívio não ver mais as caras uns dos outros. Pelo menos a princípio. Mas acontece agora que já não agüentamos mais ser invisíveis. E há outra coisa. Nunca soubemos se o mágico, aquele do qual eu falava há pouco, também ficou invisível. Nunca mais o vimos. Não sabemos se está vivo ou morto, ou se foi embora, se está lá em cima, sentado e invisível, ou se desceu e está aqui agora, também invisível. Não há jeito de ouvi-lo, pois ele anda sempre descalço, mais silencioso do que um gato. Com franqueza, cavalheiros, os nossos nervos já não agüentam mais!

Foi essa a história do chefe, mas muito resumida, porque não incluí o que as outras vozes disseram. O chefe, de fato, não dizia mais de seis ou sete palavras sem ser interrompido por manifestações de aprovação ou encorajamento das outras vozes, o que levou a turma de Nárnia quase a perder a paciência. Quando terminou, foi um grande silêncio.

– Mas o que temos com isso? Não estou entendendo! – disse Lúcia, finalmente.

– Que diabo, que diabo! No fim das contas me esqueci do principal – disse a voz do chefe.

– Esqueceu mesmo, esqueceu mesmo! – grita ram as outras vozes, com entusiasmo. – Só o senhor seria capaz de se esquecer tão completamente de uma coisa tão importante. Muito bem, chefe!

– Bem – continuou o chefe, acho que não preciso contar tudo de novo, desde o princípio...

– Não, não mesmo! – disseram Caspian e Edmundo.

– Para resumir – recomeçou a voz do chefe –, há muito que esperávamos uma linda menina, de um país estrangeiro, para ir lá em cima, no livro mágico, procurar palavras que possam tornar a gente de novo visível. Ela terá de pronunciá-las, depois que encontrá-las. Juramos que os primeiros estrangeiros que aportassem a esta ilha, trazendo uma linda menina – pois, se não trouxessem, o caso seria outro –, não sairiam daqui vivos sem nos prestar o serviço. Por essa mesma razão, seremos obrigados a cortar-lhes o pescoço se a menina não for lá em cima procurar no livro a fórmula mágica. Como estão vendo, é uma questão à-toa. Espero que não se ofendam.

– Não vejo as suas armas – disse Ripchip. – Também são invisíveis?

Mal tinha acabado de pronunciar estas palavras, quando ouviram um zunido; numa das árvores cravou-se, vibrando, uma lança.

– É uma lança, é uma lança – disse a voz do chefe.

– É, chefe, é, pois é! – disseram os outros. – Não poderia nunca falar tão bem.

– E fui eu quem atirei! – continuou a voz do chefe. – Ficam visíveis quando saem da nossa mão.

– Mas por que desejam que eu faça isso? – perguntou Lúcia. – Por que não fazem vocês? Não há moças entre vocês?

– Não somos capazes, não somos capazes – disseram as vozes todas. – Não iremos lá em cima de novo.

– Em outras palavras – disse Caspian –, estão pedindo que a moça enfrente um perigo que não ousam pedir às suas irmãs ou suas filhas?

– Isso mesmo, isso mesmo – disseram as vozes, entusiasticamente. – Não poderia ter falado melhor. O senhor tem cultura, tem. Vê-se.

– É o mais ultrajante... – começou a dizer Edmundo, mas foi interrompido por Lúcia:

– Tenho que ir lá em cima de dia ou de noite?

– Claro que de dia, de dia! – respondeu a voz do chefe. – Não, de noite não. Ninguém iria exigir uma coisa dessas. Ir lá em cima de noite? Nem pensar.

– Muito bem, então vou lá – afirmou Lúcia. – Não! – disse, virando-se para os outros. – Não tentem impedir-me. Não percebem que não vale a pena? Estão aqui dezenas deles. Não podemos vencê-los. Assim, sempre teremos uma possibilidade.

– Mas... e o mágico!? – exclamou Caspian.

– Sei, o mágico! – disse Lúcia. – Mas não deve ser tão mau como o pintam. Vocês já devem ter percebido que esses invisíveis não são lá muito

valentes...

– Nem muito inteligentes – disse Eustáquio.

– Espere aí, Lu – disse Edmundo –, francamente, não podemos permitir que faça uma coisa dessas. Pergunte ao Rip.

– Mas é para salvar a minha vida também, não só a de vocês – disse Lúcia. – Não quero, tanto quanto vocês, ser cortada em pedacinhos por espadas invisíveis.

– A rainha tem razão – disse Ripchip. – Se tivéssemos qualquer condição de salvá-la em combate, o nosso dever seria óbvio. Mas acho que não temos. E o serviço que se lhe exige não é contrário à honra de Sua Majestade; é, sim, um nobre e heróico ato. Se é da vontade da rainha correr o risco com o mágico, não me pronunciarei em contrário.

Como ninguém jamais tinha visto Rip ter medo do que fosse, podia falar assim sem passar por covarde. Mas os rapazinhos, que já tinham sentido medo muitas vezes, ficaram vermelhos de vergonha. Mesmo assim era tão óbvio que tiveram de ceder.

Os invisíveis rebentaram em grandes aclamações quando a decisão foi anunciada, e a voz do chefe, acaloradamente secundada pelas outras, convidou os narnianos para jantar e passar ali a noite.

Eustáquio não queria aceitar, mas Lúcia disse:

– Tenho a certeza de que não são traidores. Não são dessa laia – e todos concordaram.

Acompanhados por enorme barulheira de pancadas, que se tornaram mais fortes ao atingirem o pátio, onde faziam eco, voltaram todos para a casa.

 

O LIVRO MÁGICO

O povo invisível acolheu regiamente seus convidados. Era muito engraçado ver as travessas e os pratos virem para a mesa sem ninguém trazê-los. Já seria engraçado se se deslocassem mantendo o mesmo nível em relação ao solo, como seria de esperar que acontecesse, sendo trazidos por mãos invisíveis. Mas não era assim. Avançavam pela sala de jantar aos saltos. No ponto mais alto de cada salto o prato distava do chão uns três metros, depois descia e parava subitamente a um metro de distância do chão. Se o prato continha qualquer coisa como sopa ou molho, o resultado era desastroso. Eustáquio murmurou para Edmundo:

– Estou ficando muito intrigado com essa gente. Acha que são humanos? Penso que são gafanhotos gigantescos ou imensas rãs.

– Parecem mesmo algo assim, mas não meta essa idéia de gafanhoto na cabeça de Lúcia. Ela não suporta insetos, especialmente enormes desse jeito.

A refeição poderia ter sido mais agradável se não fosse toda aquela sujeira, e também se a conversa não tivesse consistido inteiramente em aprovações. A gente invisível concordava com tudo. Aliás, era mesmo difícil discordar da maioria de suas afirmações:

– É o que eu vivo dizendo: quando uma pessoa tem fome, gosta de comer. – Ou: Está ficando escuro; de noite é sempre assim – Ou então: Vocês vieram pela água; é muito molhada, não é?

Lúcia não podia deixar de olhar para a bocarra escura da entrada, na base da escada, e punha-se a imaginar o que iria acontecer quando subisse na manhã seguinte.

De qualquer modo, foi uma boa refeição, com sopa de cogumelos, galinha cozida, fiambre, groselhas, passas, requeijão, manteiga, leite e hi-dromel. Todos gostaram de hidromel, mas Eustáquio, mais tarde, arrependeu-se de ter bebido.

Lúcia acordou no dia seguinte como se fosse manhã de prova ou de dentista. As abelhas zumbiam, entrando e saindo pela janela aberta, e o campo lá fora lembrava a Inglaterra. Levantou-se, vestiu-se e tentou falar e comer com naturalidade durante o café da manhã.

Depois de ter sido instruída pela voz do chefe sobre o que não tinha de fazer lá em cima, despediu-se dos outros, não disse mais nada, caminhou para o fundo da escada e começou a subir sem olhar para trás. Felizmente a luz era boa. No primeiro lance de escada havia uma janela. Enquanto subia, ouvia o tique-taque de um relógio antigo, ali embaixo, na entrada. Chegou ao patamar e virou para a esquerda para subir o lance seguinte, e não ouviu mais o relógio. Finalmente chegou ao alto, vendo um longo corredor com uma janela no fim. Devia correr por todo o comprimento da casa. Era todo decorado com entalhes, painéis e tapetes, e de cada lado havia muitas portas.

Ficou um instante parada e não ouviu nem o chiar de um camundongo, nem o zumbir de uma mosca, nem o abanar de um cortinado, nada mesmo – a não ser o bater de seu coração.

“A última à esquerda”, disse para si mesma. Achava uma crueldade ser logo na última porta. Tinha de passar por todos os quartos. Em qualquer um deles poderia estar o mágico: adormecido, acordado, invisível ou até morto. Até morto! Mas não valia a pena pensar nisso. Começou a caminhar. O tapete era tão espesso que abafava o ruído.

“Por enquanto não há nada que meta medo”, pensou Lúcia. Parecia mesmo um corredor tranqüilo, banhado de sol, talvez um pouco tranqüilo demais. Seria mais bonito se não fossem aqueles estranhos sinais pintados em vermelho nas portas: rabiscos complicados e retorcidos, que tinham obviamente um significado – significado que não deveria ser lá muito simpático.

E mais bonito ainda seria se não existissem aquelas máscaras dependuradas nas paredes. Não que fossem propriamente feias – ou pelo menos muito feias –, mas os buracos vazios das órbitas eram esquisitos, e não seria difícil imaginar que, mal virasse as costas, as máscaras começariam a se mexer.

Depois de passar a sexta porta, Lúcia levou grande susto. Teve quase a certeza de que uma cara espertinha, com uma barbicha, saltara da parede e lhe fazia caretas. Obrigou-se a parar e a olhar para ela. Descobriu que afinal não era uma cara, mas um pequeno espelho com o tamanho e o formato de seu próprio rosto, com cabelo no alto e barbicha pendente, de modo que, ao se olhar no espelho, o rosto dela ficou ali circunscrito, parecendo que a barba e o cabelo lhe pertenciam.

“Foi só o reflexo do meu rosto ao passar”, disse Lúcia a si mesma. “Não é nada. Não há nada a temer.”

Mas não gostou de ver a sua própria face com aquela barba e aquele cabelo. Continuou andando. “Eu é que não sei para que seria o espelho com barba e cabelo, pois não sou mágico.”

Antes de chegar à última porta, Lúcia começou a imaginar se o corredor não teria aumentado de tamanho desde que começara a percorrê-lo e se aquilo não seria uma parte do encantamento da casa. Por fim chegou lá. A porta estava aberta.

Era uma sala enorme, com três grandes janelas, cheia de livros do chão ao teto. Lúcia nunca vira tantos livros, tantos livros – livros fininhos, grossões, livros maiores do que qualquer Bíblia de igreja, todos encadernados em couro e cheirando a velhice, sabedoria e magia. Mas já sabia, pelas instruções fornecidas, que não devia preocupar-se com qualquer um deles, pois o livro, o livro mágico, estava numa estante de leitura, bem no centro da sala.

Viu logo que tinha de ler o livro em pé (não havia cadeiras) e com as costas voltadas para a porta. Foi logo fechar a porta. Mas a porta não se fechou.

Algumas pessoas podem discordar de Lúcia neste ponto, mas acho que ela tinha razão. Era de fato desagradável estar num lugar como aquele com uma porta aberta às costas. Eu sentiria o mesmo. Mas nada se podia fazer.

O que mais a preocupava era o tamanho do livro. A voz do chefe não soubera dizer-lhe em que parte do livro se encontrava a fórmula mágica para tornar as pessoas visíveis. Ficara até muito surpreso quando ela o indagara. Lúcia devia começar pelo princípio e continuar até achar. Claro que ela nunca pensara haver outro modo de encontrar uma coisa em um livro.

“Mas posso ficar nisso dias e até semanas!”, disse Lúcia, ao olhar para o imenso volume. “Tenho a sensação de que já estou neste lugar há séculos!”

Dirigiu-se para a estante de leitura e pôs as mãos no livro; seus dedos estremeceram como se o livro estivesse carregado de eletricidade.

A princípio não foi capaz de abri-lo, pois estava preso por dois fechos de bronze; abriu-se facilmente depois. Que livro, puxa!

Não era impresso. Estava escrito à mão numa letra clara e nítida, com as hastes das letras muito carregadas e as pernas escritas de leve; uma letra muito maior e muito mais fácil de ler do que a do jornal e tão bonita que Lúcia ficou algum tempo encantada, só a olhar, esquecida de ler. Do papel macio emanava um bom aroma. Nas margens e em redor das grandes letras com que começavam os encantamentos, havia desenhos.

Não tinha página de títulos, nem índice. Os encantamentos iam logo começando; nos primeiros nada havia de importante. Eram curas para ver-rugas (lavar as mãos numa bacia de prata ao luar), para dores de dentes, para convulsões, para se ver livre de um enxame de abelhas... A gravura que representava um homem com dor de dente era tão viva e real que os dentes começariam a doer se se olhasse muito tempo para ela. As abelhas douradas que salpicavam o princípio do terceiro

encantamento pareciam de repente que voavam mesmo.

Lúcia custou a passar da primeira página; quando a virou, viu que a seguinte era tão interessante quanto a primeira. “Tenho de continuar”, afirmou para si mesma. E assim continuou durante mais de trinta páginas. Se pudesse decorá-las, teria aprendido a achar um tesouro enterrado, a lembrar coisas esquecidas, a esquecer coisas aborrecidas, a adivinhar se os outros dizem a verdade, a evitar e chamar o vento, o nevoeiro, a neve, a geada, a mergulhar as pessoas no sono (como aconteceu ao pobre Príncipe das Orelhas de Burro). Quanto mais lia, mais reais e maravilhosas eram as gravuras. Por fim, chegou a uma página na qual havia tantas gravuras que quase não se viam os dizeres. Mal se distinguiam. Mas Lúcia viu logo as primeiras palavras:

UM FEITIÇO INFALÍVEL

PARA TORNAR MAIS BELA

DO QUE TODOS OS MORTAIS

AQUELA QUE O PRONUNCIAR.

Lúcia observou as gravuras com a face colada à página e, ainda que antes lhe tivessem parecido confusas e embaralhadas, eram agora nítidas.

A primeira representava uma garota lendo numa estante de leitura um livro enorme. A garota estava vestida exatamente como Lúcia. Na gravura seguinte, Lúcia (pois a garota da gravura era a própria Lúcia) estava em pé, de boca aberta, contando ou recitando qualquer coisa, com uma expressão bastante esquisita. Na terceira gravura, havia atingido uma tal beleza que passava os limites dos mortais. Era estranho, considerando que a gravura lhe parecera pequena a princípio, que a Lúcia da gravura parecesse agora tão grande como a verdadeira Lúcia. Olharam-se nos olhos, e a Lúcia real teve de desviar os seus, de tal modo ficou ofuscada pela beleza da outra Lúcia, ainda que visse uma espécie de semelhança consigo mesma naquela face deslumbrante.

O número de gravuras que lhe diziam respeito começou a aumentar, mais depressa e em maior profusão. Via-se num alto trono, num grande torneio em Calormânia, e todos os reis do mundo lutando por causa de sua beleza. Os torneios viravam guerras, e toda a Nárnia, a Arquelândia, Teimar e Calormânia, Galma e Terebíntia eram devastadas pela fúria dos reis e dos grandes fidalgos que lutavam em seu favor.

Depois mudou, e Lúcia, ainda mais bela do que todos os mortais, estava de volta à Inglaterra, e Susana, que sempre fora a beleza da família, voltava dos Estados Unidos.

A Susana da gravura parecia exatamente com a Susana verdadeira, apenas menos bonita e com uma expressão menos simpática. Susana invejava o esplendor da beleza de Lúcia, mas isso não interessava o mínimo, pois ninguém se importava agora com Susana.

– Vou dizer as palavras mágicas. Pouco me importo. Vou dizer! – Dizia que não se importava por que sentia que seu procedimento estava errado.

Mas ao olhar para as palavras iniciais do encantamento viu bem no meio da parte escrita, onde tinha a certeza de que não existia antes nenhuma gravura, uma grande cabeça de leão, o Leão, o próprio Aslam, olhando fixamente para ela. Estava pintado com um ouro tão brilhante que parecia saltar da página e vir ao encontro dela.

Nunca chegou a ter certeza, mais tarde, de que a gravura não se mexera um pouco. Conhecia muito bem aquela expressão. O leão rugia e mostrava os dentes. Ela ficou horrorizada e virou logo a página. Deu com um feitiço que permitia saber o que nossos amigos pensam de nós.

Ela desejara ardentemente experimentar o outro, o que tornava as pessoas mais bonitas que os outros mortais, e agora achava que podia usar este, já que renunciara ao primeiro. Depressa, com medo de mudar de idéia, disse as palavras que nada me obrigará a revelar. E esperou, vendo o que acontecia. Como não aconteceu nada, começou a olhar para as gravuras.

Viu de repente a última coisa que esperava ver: uma gravura representando um vagão de terceira classe de um trem, com duas garotas de escola sentadas lá dentro. Reconheceu-as logo: Margarida e Ana. Mas agora era muito mais do que uma gravura. Estava viva. Via os postes telegráficos passando pela janela e as duas garotas rindo e falando. Pouco a pouco, ela começou a ouvir o que diziam.

– Será que vou vê-la este ano? – perguntou Ana. – Ou você vai continuar grudada na Lúcia?

– Não sei o que você quer dizer com continuar grudada – disse Margarida.

– Sabe, sim! No ano passado você estava doida por ela.

– Estava coisa nenhuma. Não sou nenhuma boba, Ana. Lúcia não é má menina, mas antes do fim do ano eu já estava cheia dela.

– Pois quero ver este ano! Você vai ver! – gritou Lúcia. – Sua falsa!

O próprio som de sua voz lembrou-lhe que estava apenas falando com uma gravura e que a verdadeira Margarida estava muito longe, em outro mundo. Lúcia disse para si mesma: “Achei que ela fosse melhor. No ano passado eu a ajudei tanto! Ninguém faria o que eu fiz! E ela sabe muito bem disso! E logo com a Ana! Será que as minhas amigas todas são assim? Há mais gravuras aqui. Não quero vê-las, não quero, não quero!”

Com grande esforço, virou a página, não sem uma grande lágrima de raiva.

Na página seguinte, vinha um feitiço para “refrescar o espírito”. As gravuras eram em menor número, mas muito bonitas. Lúcia se pegou lendo qualquer coisa que mais parecia uma história do que um encantamento.

Antes de chegar ao fim da última página (eram três), esquecera-se completamente do que estava lendo. Vivia a história como se fosse real, e também as gravuras pareciam verdadeiras. Quando chegou ao fim, disse:

– É a história mais maravilhosa que já li ou ainda lerei em minha vida. Gostaria de continuar lendo isso durante dez anos inteiros! Ou pelo menos ler de novo!

Aqui entrou em cena um pouco da magia do livro. Não se podia voltar para trás. As páginas da direita podiam ser viradas, mas não as da esquerda.

– Que pena! Gostaria tanto de ler a história novamente. Bem. Lembrar dela pelo menos eu posso. Vamos ver: tratava de... de... Oh, não! Está sumindo tudo. A última página também está ficando branca. Que livro mais esquisito! Como é que eu fui esquecer? Falava de uma taça, de uma espada, de uma árvore, uma colina verde... disso me lembro bem. Mas não me lembro do resto. Que hei de fazer?

Nunca mais foi capaz de lembrar, mas, desde então, quando Lúcia acha que uma história é boa, é porque lhe lembra a história esquecida do livro mágico. Foi virando as folhas e, para sua surpresa, encontrou uma página sem gravuras, cujas primeiras palavras eram:

FEITIÇO PARA

TORNAR VISÍVEIS COISAS OCULTAS

Leu com a máxima atenção para ter certeza de todas as palavras essenciais, e depois disse-as em voz alta. Viu logo que dava resultado: à medida que ia falando as palavras, as cores se convertiam em letras grandes no alto da página e apareciam gravuras nas margens. Era como aproximar do fogo alguma coisa escrita com tinta invisível; as letras foram aparecendo aos poucos, só que, em vez da cor desbotada do sumo de limão (a tinta invisível mais fácil de empregar), estas eram douradas, azuis e escarlates.

As gravuras eram estranhas, com numerosas figuras de que Lúcia não gostou muito. E pensou: “Parece que tornei tudo visível, não só os barulhentos. Num lugar como este, deve haver uma quantidade imensa de seres invisíveis por toda parte. Não sei se tenho vontade de ver todos eles.”

Nesse instante ouviu atrás de si passos suaves, mas firmes, caminhando ao longo do corredor, e logo se lembrou do que ouvira acerca do mágico e do seu costume de andar descalço, silencioso como um gato.

É preferível a gente se virar quando sente alguma coisa caminhando atrás: foi o que Lúcia fez. E ficou com o rosto iluminado, quase tão bonita quanto a Lúcia da gravura. Correu com um gritinho de alegria e os braços abertos.

À porta estava o próprio Aslam, o Leão, o Supremo Rei de todos os Grandes Reis. Concreto, real e quente, deixando que ela o beijasse e se escondesse na sua juba fulgurante. Pelo som cavo e trovejante que ele emitia, Lúcia ousou pensar que ronronava.

– Que bom ter vindo, Aslam!

– Estive sempre aqui. Mas você acabou me tornando visível.

– Aslam! – exclamou Lúcia, quase com reprovação. – Não brinque comigo! Como se eu fosse capaz de fazê-lo visível!

– Pois fez. Acha que eu não obedeço às minhas próprias leis? – Depois de pequena pausa falou de novo: — Minha criança, acho que você anda escutando atrás das portas.

– Escutando atrás das portas?

– Ouviu o que as suas colegas disseram de você.

– Ah, isso? Não pensei que fosse a mesma coisa que escutar atrás das portas. Não era magia?

– Espiar as outras pessoas por meio de magia é o mesmo que espreitá-las pelo buraco da fechadura. Você julgou mal a sua amiga. Ela é fraca, mas gosta de você. Tinha medo da outra mais velha e a acatou dizendo o que não queria.

– Acho que não esqueço mais o que ouvi.

– Pois é.

– Oh, não! – exclamou Lúcia. – Acabei com tudo? Quer dizer que poderíamos ter continuado amigas, e talvez pela vida toda! E agora acabou!

– Minha filha, já não lhe expliquei uma vez que ninguém sabe o que teria acontecido?

– Sim, Aslam, explicou. Por favor, me desculpe... Mas...

– Pode falar.

– Poderei ler aquela história outra vez, aquela de que não me lembro? Conte a história para mim, Aslam! Conte, conte.

– Conto, sim. Levarei anos a contá-la. Vamos agora. Temos de encontrar o dono da casa.

 

OS ANÕEZINHOS DO MÁGICO

Lúcia seguiu o Leão pelo corredor e viu de repente, vindo na direção deles, um homem idoso, descalço e de túnica vermelha.

Coroava-lhe o cabelo branco uma grinalda de folhas de carvalho, a barba chegava-lhe à cintura, e ele apoiava-se num bastão todo trabalhado.

Fez uma reverência profunda ao ver Aslam e disse:

– Bem-vindo à mais humilde das casas, senhor.

– Está aborrecido, Coriakin, por ter de governar uns súditos tão apalermados como os que lhe dei?

– Não – respondeu o mágico. – São de fato muito estúpidos, mas não são perigosos. Já estou até gostando deles. Algumas vezes perco um pouco a paciência, esperando o dia em que poderão ser governados pela sabedoria e não por esta magia rudimentar.

– Tudo a seu tempo, Coriakin – disse Aslam.

– Vai aparecer para eles? – perguntou o ancião.

– Não – disse o Leão com um meio rugido, que queria dizer (pensou Lúcia) o mesmo que uma risada. – Ficariam assustados demais. Muitas estrelas envelhecerão e virão descansar nas ilhas antes que o seu povo esteja amadurecido para isso.

Amanhã tenho de visitar Trumpkin, o anão, lá no castelo de Cair Paravel, onde conta os dias até o regresso do seu chefe Caspian. Contarei a ele tudo o que está acontecendo, Lúcia. E não fique triste assim. Breve nos encontraremos novamente.

– Aslam, o que chama de breve? – indagou Lúcia.

– Para mim, todo o tempo é breve – respondeu Aslam; e ao dizer isso desapareceu, deixando Lúcia sozinha com o mágico.

– Lá se foi! – disse este. – É sempre assim, não conseguimos detê-lo; não é como um leão domesticado. Gostou do meu livro?

– De algumas coisas, gostei muito mesmo – respondeu Lúcia. – Sabia que eu estava aqui?

– Bem, ao permitir que os Tontos ficassem invisíveis, eu sabia que você apareceria um dia para libertá-los do encantamento. Não sabia era o dia certo. E esta manhã, por acaso, nem estava tomando conta. Eles também me tornaram invisível, e ficar invisível põe a gente meio sonolento. Oh... já estou bocejando outra vez. Está com fome?

– Um pouco, acho – respondeu Lúcia. – Nem faço idéia da hora.

– Venha. Para Aslam todo tempo é breve, mas na minha casa a hora da fome é à uma hora.

 

Conduziu-a pelo corredor e abriu uma porta. Lúcia achou-se numa sala agradável, cheia de luz e de flores.

A mesa estava vazia quando entraram, mas, como era uma mesa encantada, a uma palavra do velho mágico a toalha cobriu-se de talheres, pratos, copos e comida.

– Espero que goste. Tentei oferecer-lhe uma comida mais parecida com a da sua terra do que a que tem comido nos últimos tempos.

– E ótima – disse Lúcia, e era realmente: omelete quente, cordeiro com ervilhas, sorvete de morango, limonada, um copo de chocolate. Mas o mágico bebeu apenas vinho e comeu pão. Seu aspecto não era nada inquietante; em pouco tempo os dois batiam papo como velhos amigos.

– Quando o desencanto começa a agir? – perguntou Lúcia. – Os Tontos vão ficar visíveis outra vez?

– Já ficaram, mas ainda devem estar dormindo. Sempre fazem a sesta.

– E agora que já estão visíveis vai deixar que continuem tão feios? Não vão ficar como antes?

– Bem, isso é uma questão muito delicada. Eles é que se julgavam bonitos antes. Dizem que ficaram feios, mas esta não é a minha opinião. Muita gente diria que mudaram para melhor.

– São assim tão pretensiosos?

– São. Pelo menos o chefe é, e ensina os outros a mesma coisa. Acreditam em tudo que ele diz.

-Já notei isso.

– De certo modo, as coisas seriam melhores sem ele. Claro que eu podia transformá-lo em qualquer coisa; ou fazer com que não acreditassem em mais nada do que ele diz. Mas não quero fazer isso. Prefiro que eles o admirem a não admirarem ninguém.

– Não admiram o senhor?

– Admiram nada! Nunca me admirariam.

– Foi por isso que os pôs assim feios, quero dizer, o que eles chamam de feios?

– O caso é que não quiseram fazer o que lhes disse. O trabalho deles é tratar do jardim e cultivar alimento, não para mim, como imaginam, mas para eles próprios. Não fariam isso se eu não os obrigasse. Para tratar um jardim é preciso água. Há uma bela nascente a cerca de meio quilômetro daqui. Dessa nascente vem um riacho que passa pelo meu jardim. Só disse para eles que tirassem a água do riacho, em vez de subirem até a nascente com baldes, duas ou três vezes por dia, cansando-se e entornando metade da água pelo caminho. Mas não quiseram compreender. Por fim, recusaram-se terminantemente a fazer o que lhes dizia.

– São estúpidos a esse ponto?

O mágico suspirou:

– Você nem pode imaginar que problemas tenho tido com eles! Há uns meses estavam lavando pratos e facas antes do almoço, porque, segundo diziam, isso economizava tempo depois. Outra vez estavam plantando batatas cozidas para não terem de cozinhá-las quando as colhessem. Um dia o gato meteu-se na leiteira, e vinte deles começaram a tirar o leite, em vez de pensar em tirar o gato. Vamos dar uma olhadela nos Tontos, agora que você terminou de comer.

Foram para um outro aposento, cheio de instrumentos polidos e difíceis de entender – tais como astrolábios, cronoscópios, teodolito –, e chegaram à janela:

– Lá estão eles, os meus Tontos.

– Não estou vendo ninguém – protestou Lúcia. – Que são aquelas coisas parecidas com cogumelos?

As coisas que a menina apontava estavam todas espalhadas pela relva. Eram mesmo muito parecidas com cogumelos, mas muito maiores. As hastes tinham cerca de um metro de altura, e os chapéus eram quase do mesmo tamanho, de ponta a ponta. Ao olhá-los com atenção, reparou que as hastes não se ligavam ao chapéu pelo meio, mas por um dos lados, o que lhes dava um aspecto de desequilíbrio. E havia alguma coisa – algo parecido com pequenas trouxas – junto da base de cada haste. Na realidade, quanto mais os olhava, menos lhe pareciam cogumelos. A parte do chapéu não era realmente redonda como pensara antes. Era mais comprida que larga, mas arredondava-se numa das extremidades. Estavam ali muitos, cinqüenta, talvez mais.

O relógio deu três horas. E aconteceu uma coisa extraordinária. Os “cogumelos” de repente viraram-se para cima. As trouxinhas que estavam no fundo das hastes eram cabeças e corpos, e as hastes eram as pernas. Não duas para cada corpo. Cada corpo tinha uma única perna grossa no meio (não de lado, como a perna de um coxo) e, na extremidade da perna, um pé enorme, com grandes dedos recurvados, como uma canoa. Lúcia os vira deitados com as costas no chão, de perna levantada para o ar e o pé enorme tapando todo o corpo. Soube depois que era assim que eles descansavam, pois o pé os protegia da chuva e do sol. Era como se estivessem debaixo de uma barraca.

– Que gozado, que gozado! – gritou ela, estourando de rir. – Foi nisso que os transformou?

– Foi. Transformei os Tontos em Monópodes – disse o mágico. Ria-se tanto também que as lágrimas lhe corriam pela face. – Mas repare.

Valia a pena reparar. Aqueles anõezinhos de um pé só não corriam nem andavam como nós; andavam aos saltos, como as pulgas e as rãs. E que saltos! Como se cada pé imenso daqueles fosse um punhado de molas. E com que força quicavam quando desciam ao chão! Era o que produzia aquelas pancadas que intrigaram tanto Lúcia no dia anterior. Saltavam agora em todas as direções e gritavam uns para os outros.

– Oi, camaradas, já somos visíveis outra vez – disse um de barrete vermelho com borlas, que era sem dúvida o chefe. – Quer dizer, estou dizendo que, quando somos visíveis, podemos ver uns aos outros.

– Genial, isso mesmo, chefe – gritaram todos. – Ninguém pode ser mais genial. Nunca jamais poderia falar melhor.

– A mocinha apanhou o velhote dormindo – disse o chefe. – Ganhamos dele dessa vez.

– É o que a gente ia dizer — retrucou o coro. – Está mais inteligente do que nunca, chefe! Continue assim, continue assim.

– Mas como ousam falar assim do senhor? – perguntou Lúcia. – Pareciam ter tanto medo ontem. Não sabem que o senhor pode ouvi-los?

– Essa é uma das coisas engraçadas com relação aos Tontos. Num minuto falam como se eu mandasse em tudo, ouvisse tudo e fosse muito perigoso.

Um minuto depois, julgam que me apanham em armadilhas nas quais nem uma criancinha cairia.

– Têm mesmo de voltar à forma antiga? Não acho que seja maldade deixá-los assim como estão. Parecem tão felizes! Olhe o salto daquele!

Como eram antes?

– Anõezinhos vulgares. Não tão bonitos como os de Nárnia.

– É uma pena fazê-los voltar ao que eram antes. São tão engraçados, são até bonitinhos! Vale a pena dizer isso a eles?

– Vale, vale, se conseguir com que eles entendam.

– Vamos experimentar.

– Não, não; acho que é mais fácil ir sem mim.

– Muito obrigada pelo almoço – disse Lúcia, afastando-se rapidamente. Correu pela mesma escada e foi esbarrar lá embaixo com Edmundo.

Os outros também estavam à espera. Lúcia sentiu a consciência doer ao ver aquelas expressões ansiosas.

– Correu tudo muito bem! – gritou. – Tudo às mil

maravilhas! O mágico é formidável, e vi Aslam.

Disse isso e passou por eles correndo como o vento, entrando no parque. O chão tremia com os pulos, e o ar agitava-se com os gritos dos Monópodes.

– Aí vem ela, aí vem ela! – gritaram. – Três vivas para a mocinha! Tapeou o velhote completamente!

– É muito doloroso – disse o chefe dos Tontos – não podermos dar-lhe o prazer de ver-nos como éramos antes de ficarmos feios. Nem acreditaria na diferença. Sabemos que agora estamos feios de morrer. Você vê que eu não menti.

– Estamos horrorosos, chefe, horrorosos – fizeram os outros em coro, saltando como balões. – E como diz, exatamente como diz.

– Pois eu não acho – disse Lúcia, gritando para ser ouvida. – Acho vocês até bem bonitos.

– Escutem o que ela está dizendo, escutem. A menina está certa. Estamos muito bonitos. Não há raça mais bonita.

Disseram isso com a maior naturalidade, sem mesmo notar que tinham mudado de opinião.

– Ela está falando – disse o chefe – que éramos bonitos antes de ficarmos feios.

– Isso mesmo, chefe, isso mesmo. Ouvimos o que ela disse.

– Mas eu não disse isso – gritou Lúcia. – Disse que estão bonitos agora.

– Foi o que ela disse, foi – continuou o chefe. – Que éramos muito bonitos antes.

– Escutem o que os dois estão dizendo – clamaram os Monópodes. – Aí estão duas pessoas para lá de inteligentes. Têm sempre razão. Não podiam ter falado melhor.

– Mas estou dizendo justamente o contrário – berrou Lúcia, batendo o pé com impaciência.

– Pois é, pois é – responderam os Monópodes.

– Não há nada como o contrário. Continuem os dois assim.

– Vocês enlouquecem qualquer pessoa – disse Lúcia, desistindo de convencê-los. Mas os Monópodes pareciam tão contentes que ela se convenceu de que, no final das contas, a conversa tinha sido um êxito.

Naquela noite, antes de irem para a cama, aconteceu algo que os deixou ainda mais satisfeitos com a sua condição de seres de uma perna só. Caspian e todos os narnianos regressaram à costa, logo que lhes foi possível, para darem notícias a Rince e aos outros a bordo do Peregrino, que já estavam tremendamente inquietos.

Como é natural, os Monópodes acompanharam-nos, saltando como bolas de futebol, concordando uns com os outros aos gritos, até que Eustáquio disse:

– Seria preferível que o mágico tivesse tornado os Tontos inaudíveis, em vez de invisíveis. – Arrependeu-se logo depois de ter falado, pois teve de explicar que uma coisa inaudível é uma coisa que não se ouve. Apesar de a explicação ter sido uma obra-prima, nunca ficou muito seguro de que o tivessem compreendido. Pelo contrário, ficou muito aborrecido ao ouvi-los dizer:

– Não sabe explicar as coisas como o nosso chefe. Mas você acaba aprendendo, rapaz. Escute só quando ele fala. Como explica bem as coisas! Aquilo é que é orador!

Quando atingiram a baía, Ripchip teve uma idéia brilhante. Baixou o seu bote e começou a remar por ali, até que os Monópodes começaram a ficar profundamente interessados. Ergueu-se lá de dentro e disse:

– Nobres e inteligentes Monópodes: vocês não precisam de barcos. Cada um tem um pé que é uma lancha. Saltem bem devagar para a água e vejam o que acontece.

O chefe dos Tontos recuou e avisou aos outros que iam achar a água muito molhada, mas um ou dois dos mais novos experimentaram logo; outros seguiram o exemplo e, por fim, o grupo todo fez o mesmo. Era perfeito. O único pé dos Monópodes funcionava como flutuador ou barco natural. Depois de Ripchip ensinar-lhes a fazer uns remos toscos, começaram a remar pela baía em torno do Peregrino, parecendo uma flotilha de pequenas canoas com um anão gordo sentado na popa de cada uma.

Fizeram competições, e de bordo desciam garrafas de vinho que lhes eram oferecidas como prêmio. Os marinheiros debruçavam-se por todo o barco, rindo a bandeiras despregadas. Os Tontos estavam também muito encantados com o seu novo nome, Monópodes, que lhes parecia pomposo, apesar de não serem capazes de pronunciá-lo direito.

– Nós somos – diziam na sua voz rouca – os Tontópoles pomonodes, podemonos. Já quase sabíamos isso, que o nosso nome era esse.

Finalmente decidiram tomar o nome de Tontópodes, como provavelmente serão chamados por muito séculos.

Naquela noite juntaram-se todos lá em cima com o mágico, e Lúcia reparou como lhe parecia diferente o andar superior, agora que já não sentia medo. Os misteriosos sinais nas portas continuavam a ser misteriosos, mas davam a impressão de que tinham um significado alegre e simpático. Até mesmo o espelho com barbicha e cabelo parecia mais engraçado que tenebroso. Ao jantar, tiveram todos, por meio de magia, aquilo de que mais gostavam.

Depois do jantar, o mágico executou um trabalho de magia ao mesmo tempo muito útil e interessante. Colocou duas folhas de pergaminho sobre a mesa e pediu a Drinian que lhe desse uma descrição pormenorizada da sua viagem até aquela data. À medida que Drinian falava, tudo quanto dizia ia aparecendo no pergaminho em linhas seguras e nítidas, até que, por fim, cada folha era um esplêndido mapa do Oceano Oriental, com Galma, Terebíntia, as Sete Ilhas, as Ilhas Solitárias, a Ilha do Dragão, a Ilha Queimada, a Ilha da Água da Morte e a própria ilha dos Tontos, todas colocadas exatamente nos lugares próprios e nas devidas posições.

Eram os primeiros mapas daqueles mares e muito melhores do que os outros que se fizeram depois sem auxílio de magia. Aqueles, que à primeira vista pareciam mapas vulgares, quando observados por uma lente mágica que o mágico emprestou, revelavam imagenzinhas perfeitas de coisas reais, de modo que podiam ver o próprio castelo e o mercado de escravos e as ruas de Porto Estreito, perfeitamente nítidos, ainda que um pouco distantes, como objetos observados pelo lado contrário de um binóculo. A única imperfeição era a de ser incompleta a linha da costa da maior parte das ilhas, pois o mapa mostrava somente o que os olhos de Drinian haviam visto. Quando acabou, o mágico guardou um dos mapas e presenteou Caspian com o outro, que ainda hoje existe na Câmara dos Instrumentos em Cair Paravel. No entanto, o mágico nada lhes pôde dizer de mares ou terras existentes para lá dos lados do Oeste.

Mesmo assim, disse que cerca de sete anos atrás havia entrado naquelas águas um navio de Nárnia, trazendo a bordo os fidalgos Revilian, Argos, Mavramorn e Rupe. Daí os de Nárnia deduziram que o homem de ouro devia ser lorde Restimar.

No dia seguinte, o mágico consertou magica-mente a proa do Peregrino, danificada pela Serpente do Mar, e encheu tudo de presentes úteis. A despedida foi extraordinariamente amigável. Quando o barco partiu, pelas duas da tarde, todos os Tontópodes o acompanharam remando até a entrada do porto, gritando até que nada mais se ouviu.

 

A ILHA NEGRA

Depois dessa aventura, navegaram para o sul e um pouco para oeste, durante doze dias. O vento era suave, o céu quase sempre claro e o ar quente. Não viam ave ou peixe, mas uma vez avistaram muito longe o esguicho de baleias. Lúcia e Ripchip jogaram muito xadrez. No décimo terceiro dia, Edmundo avistou a bombordo da torre de combate uma grande montanha negra, erguendo-se no mar.

Alteraram a rota e dirigiram-se para aquela terra, quase sempre a remo, pois o vento não ajudava a navegação para noroeste. Quando escureceu, ainda estavam muito distantes da terra e tiveram de remar toda a noite. No dia seguinte o tempo estava bom, mas a calmaria era absoluta.

A massa negra estava na frente, mais próxima e maior, mas ainda muito obscurecida, de modo que alguns julgaram estar ainda muito longe, enquanto outros eram de opinião que se haviam metido no meio do nevoeiro.

Cerca de nove da manhã, repentinamente, ficou tão perto que puderam ver que não era terra, nem mesmo, no sentido comum, nevoeiro. Era a Escuridão. É um tanto difícil de descrever, mas vocês compreenderão como era, se se lembrarem da entrada de um túnel – um túnel tão comprido e dando tantas voltas que não se vê a luz no fim. Durante alguns metros ainda se vê a linha, depois chega-se a um ponto em que já é penumbra e, subitamente, mas sem linha divisória definida, desaparece tudo numa escuridão macia e densa. Foi o que aconteceu. Durante alguns metros ainda viam na frente da proa o ondear da água brilhante. Mais para além, já viam a água apagada e cinzenta como ao cair da noite. Mais longe ainda, era a escuridão completa, o limiar de uma noite sem lua e sem estrelas.

Caspian gritou ao contramestre para fazer o barco parar, e todos, com exceção dos remadores, correram para a frente e foram olhar da proa. Nada se via. Atrás deles, o mar e o sol; em frente, a escuridão.

– Vamos entrar ali? – perguntou, enfim, Caspian.

– A meu conselho, não – respondeu Drinian.

– O capitão tem razão – concordaram vários marinheiros.

– Também acho – disse Edmundo.

Lúcia e Eustáquio nada disseram, contentes em ver o rumo que as coisas tomavam. Mas a voz clara de Ripchip irrompeu no meio do silêncio:

– Por que não? Alguém quer me explicar por que não continuamos?

Como ninguém estava muito desejoso de explicar, Ripchip prosseguiu:

– Poderia supor que é covardia, mas espero que nunca se venha a dizer em Nárnia que um grupo de pessoas nobres e de linhagem real, na flor da idade, pôs o rabo entre as pernas porque tinha medo do escuro.

– Mas qual é a vantagem de nos metermos naquela escuridão? – perguntou Drinian.

– Vantagem? – replicou Ripchip. – Vantagem, capitão? Se vantagem é encher a bolsa e a barriga, confesso que não vejo vantagem nisso. Tanto quanto sei, não nos fizemos ao mar para procurar coisas vantajosas, mas para ganharmos honras e aventuras. Aí está a maior aventura de que já ouvi falar; se virarmos as costas, nossa honra ficará manchada.

Alguns marinheiros disseram, entre os dentes, coisas como “deixe a honra de lado”, mas Caspian disse:

– Que bobagem, Ripchip. Era quase melhor ter deixado você em casa. Pois bem. Já que coloca as coisas desta maneira, o melhor é ir em frente. A menos que Lúcia não queira...

Lúcia não queria mesmo, mas pegou-se a dizer em voz alta:

– Estou com vocês.

– Vossa Majestade quer que se acendam as luzes?

– Sem dúvida. Trate disso, capitão.

Três lanternas foram acesas: na popa, na proa e no mastro principal. E Drinian mandou pôr duas tochas no meio do navio. Mandaram para o convés todos os homens, fortemente armados, para ocuparem suas posições de combate, com as espadas desembainhadas, menos os que estavam nos remos. Lúcia e dois arqueiros foram postar-se na torre de combate com os arcos preparados e as flechas prontas a partir. Rinelfo estava na proa, com o prumo pronto para medir a profundidade. Acompanhavam-no Ripchip, Edmundo, Eustáquio, Caspian, com as armaduras reluzindo. Drinian tomou o leme.

– Em nome de Aslam! Para a frente! – bradou Caspian. – Remadas espaçadas e certas. Que ninguém fale e mantenham-se todos atentos às ordens.

Com estalos e rangidos de todo o cavername, o Peregrino lançou-se para a frente quando os homens começaram a remar. Lúcia, na torre de combate, teve a noção exata do momento em que entraram na escuridão. A proa já havia desaparecido nas trevas e a luz do sol ainda brilhava na popa. Viu-a sumir. Num instante a popa dourada, o mar azul e o céu estavam todos iluminados pela luz do dia; no instante seguinte, o mar e o céu desapareceram, e a única coisa que indicava onde terminava o navio era a lanterna da popa. Na frente da lanterna, via-se a silhueta de Drinian ao leme. Abaixo de Lúcia, duas tochas iluminavam um pequeno espaço do convés e refletiam-se nas espadas e nos elmos. Mais adiante, no castelo da proa, havia outra ilha de luz. Iluminada pela luz do mastro principal (que estava exatamente acima de Lúcia), a torre de combate parecia um pequeno mundo luminoso flutuando sozinho na escuridão. As próprias luzes, como acontece sempre que temos de acendê-las a uma hora triste, pareciam lúgubres e estranhas. Lúcia notou também que fazia frio.

Ninguém soube quanto tempo demorou a travessia nas trevas. Só os ruídos dos remos indicavam que o navio estava andando. Edmundo, olhando da proa, só via o reflexo da lanterna na água. O reflexo parecia oleoso, e as ondas provocadas pelo avançar da proa pareciam pesadas, pequenas e sem vida. À medida que o tempo ia passando, todos começaram a sentir frio, com exceção dos remadores.

Súbito, sem se saber de onde, veio um grito não humano. Ou de alguém em tal extremo de terror que havia perdido a humanidade. Caspian tentou falar, mas tinha a boca demasiado seca, quando se ouviu a voz chiante de Ripchip, mais alta que normalmente, no meio do silêncio.

– Quem chama? Se é um fantasma, não temos medo de fantasmas; se é amigo, os seus inimigos aprenderão a ter medo de nós.

– Piedade! – gritou a voz. – Piedade! Mesmo que vocês sejam um sonho, piedade! Recolham-me. Levem-me a bordo, mesmo que seja para me matar! Mas não desapareçam, pelo amor de Deus, não me deixem nesta terra horrível!

– Onde está? – gritou Caspian. – Suba a bordo.

Ouviu-se outro grito, de alegria ou de medo, e então perceberam que alguém nadava na direção do navio.

– Preparem-se para içá-lo – disse Caspian.

Segurando cordas, vários marinheiros juntaram-se na amurada; um deles, debruçando-se, empunhava uma tocha. Na escuridão da água apareceu uma cara branca. Após algumas reviravoltas e puxões, doze mãos amigas içaram o estranho para bordo.

Edmundo nunca vira homem de aparência tão selvagem. Embora não parecesse muito velho, tinha uma touceira de cabelos brancos, a face escaveirada, e apenas alguns farrapos dependurados no corpo. Mas o que mais impressionava eram os olhos, tão abertos que pareciam não ter pálpebras, e com uma expressão angustiada de terror. Mal tocou os pés no convés, gritou:

– Fujam! Virem o navio e fujam! Remem para longe desta maldita terra! Salvem suas vidas!

– Acalme-se – disse Ripchip – e diga-nos qual é o perigo. Não temos o hábito de fugir.

O estranho estremeceu terrivelmente ao ouvir a voz do rato, no qual ainda não havia reparado.

– Seja como for, têm de fugir – arquejou. – Esta é a ilha onde os Sonhos se tornam realidade.

– É a ilha que eu procuro há muito tempo – disse um dos marinheiros. – Se tivesse desembarcado aqui, já estaria casado com Alice.

– E eu teria encontrado Tomás vivo – disse o outro.

– Loucos! – vociferou o homem, batendo com os pés no chão num acesso de raiva. – Por causa de disparates como esses vim parar aqui, e seria melhor ter morrido afogado ou nunca ter nascido.

Ouvem bem o que digo? Aqui os sonhos tornam-se vivos e reais. Não os devaneios; os sonhos.

Houve um minuto de silêncio. Depois, com um grande chocalhar de armaduras, toda a tripulação correu pelas escadas e se atirou aos remos com toda a energia.

Drinian fez rodopiar o leme, e o contramestre aumentou o ritmo das remadas. Tinham levado meio minuto lembrando certos sonhos que haviam tido, sonhos que nos fazem ter medo de dormir outra vez... e imaginando o que seria estar num país onde esses sonhos se tornassem realidade. Só Ripchip ficou imóvel.

– Majestade, majestade! – clamou. – Vai permitir esse motim? Essa covardia? Isso é pânico! Uma perfeita rebelião!

– Continuem a remar – bradou Caspian. – Remem por suas vidas. Sempre em linha reta, Drinian. Pode dizer o que você quiser, Rip. Há coisas que um homem não pode enfrentar.

– Então agradeço ao destino por não ser um homem! – replicou Ripchip, empertigando-se todo.

Lúcia ouviu tudo lá do alto. No momento, um dos sonhos que tentara intensamente esquecer viera-lhe à lembrança, tão nítido como se tivesse acabado de acordar. Era então aquilo que estava à espera deles, naquela ilha mergulhada na escuridão? Desejou descer ao convés e ficar junto de Edmundo e Caspian, mas de que valia isso? Se era verdade que os sonhos se tornavam realidade, Edmundo e Caspian podiam transformar-se em qualquer coisa pavorosa antes que ela chegasse perto deles. Agarrou-se ao parapeito da torre e tentou acalmar-se. Agora remavam para a luz com força total. Tudo estaria bem dentro de alguns segundos. Que bom seria se tudo estivesse bem agora!

Ainda que as remadas fizessem bastante barulho, não conseguiam quebrar o silêncio absoluto que rodeava o navio. Sabiam todos que era melhor não dar ouvidos aos sons que vinham da escuridão. Mas ouvir tinham de ouvir e, daí a pouco, todos ouviam, cada um de modo diferente.

– Estão ouvindo um ruído como... como uma tesoura enorme a abrir, a fechar... ali? – perguntou Eustáquio.

– Quieto! – disse Rinelfo. – Estou ouvindo alguma coisa subindo pelo costado.

– Foi para o mastro! – disse Caspian.

– Ai! – gritou um marinheiro. – Já começam os sinos! Sabia que isto ia acontecer!

Caspian, que tentava não olhar para nenhum ponto (especialmente não olhar para trás), dirigiu-se a Drinian, em voz baixa:

– Quanto tempo remamos até chegar ao lugar onde apanhamos o homem?

– Talvez cinco minutos – ciciou Drinian. – Por quê?

– Porque já levamos mais tempo do que isso voltando.

Pelo rosto de Drinian corriam bagas de suor. Ocorria a todos a mesma idéia.

– Nunca mais sairemos daqui! Nunca mais! – gemiam os remadores. – Não conseguimos ir para a frente. Andamos em círculo. Nunca mais sairemos daqui!

O estranho, que jazia enrodilhado no convés, sentou-se e estourou numa gargalhada horrenda.

– Nunca mais sairemos daqui! – gritou. – Isso mesmo. Nunca mais! Fui um louco pensando que eles me deixariam partir assim tão facilmente. Não, não, nunca mais sairemos daqui!

Lúcia apoiou a cabeça no beirai da torre e murmurou:

– Aslam, Aslam, se é verdade que alguma vez nos amou, ajude-nos agora.

A escuridão não diminuiu, mas Lúcia começou a sentir-se um pouquinho melhor. “Apesar de tudo, ainda não nos aconteceu nada”, pensou.

– Olhem! – gritou da proa a voz de Rinelfo.

Havia uma tênue luz na frente. Enquanto olhavam, caiu sobre o navio um largo facho de luz, proveniente daquele lugar. Não alterou a escuridão que os rodeava, mas todo o navio ficou iluminado como por um holofote.

Caspian pestanejou, olhou em torno e viu os rostos tensos e ansiosos dos companheiros. Olhavam todos na mesma direção, e detrás de cada um projetava-se sua sombra escura e irregular. Lúcia viu alguma coisa no facho de luz. Primeiro parecia uma cruz, depois um avião, depois um papagaio e, finalmente, quando passou sobre suas cabeças, ruflando as asas, viram que era um albatroz. Deu três voltas em torno do mastro e depois pousou um instante no dragão dourado da proa.

Numa voz alta, forte e doce, pronunciou algumas palavras, que ninguém entendeu. Abriu as asas de novo e recomeçou a voar lentamente à frente do navio. Drinian seguiu a ave, vendo nela um bom guia.

Só Lúcia soube que ao revolutear em torno do mastro o albatroz murmurara: “Coragem, querida!”. Era a voz de Aslam, e o seu hálito suave roçou-lhe a face.

Dali a momentos, a escuridão dera lugar, lá adiante, a um nevoeiro acinzentado e, logo depois, antes mesmo que começassem a ter esperança, surgiram à luz do sol e sentiram novamente o mundo cálido e azul. Compreenderam então que já não tinham nada a temer e que nunca haviam corrido perigo real. A claridade fazia-os pestane-jar. Olhavam admirados. O brilho do navio aturdia-os. Tinham chegado a pensar que a escuridão aderiria aos brancos, dourados e verdes do navio, sob a forma de espuma suja. Primeiro um, depois outro, todos desataram a rir.

– Bancamos os tolos – disse Rinelfo.

Lúcia imediatamente desceu ao convés, onde encontrou todos reunidos em torno do recém-chegado.

Durante algum tempo este nada falou, de tão feliz que estava, limitando-se a olhar para o mar e o sol e a tocar nas amuradas e nas cordas, como para certificar-se de que estava realmente acordado, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelas faces.

– Muito obrigado – disse por fim. – Salvaram-me de... não quero mais falar no assunto. Deixem que me apresente. Sou um telmarino de Nárnia; no tempo em que valia alguma coisa, chamava-me lorde Rupe.

– Sou Caspian, rei de Nárnia. Estou no mar para encontrar você e os outros, que eram amigos de meu pai.

Lorde Rupe caiu de joelhos e beijou a mão do rei.

– O senhor é o homem que mais desejaria ver em todo o mundo. Conceda-me uma graça.

– Diga.

– Não venha mais aqui – respondeu Rupe, apontando para trás. Olharam todos, mas viram apenas o céu e o mar, azuis e brilhantes. A Ilha Negra e a escuridão haviam desaparecido para sempre.

– Como foi isto? – gritou lorde Rupe. – Vocês a destruíram?

– Acho que não fomos nós – disse Lúcia.

– Senhor – disse Drinian –, este vento é bom para seguirmos para sudoeste. Posso mandar cá para cima aqueles pobres rapazes dos remos e sol tar as velas? Acho que devem descansar.

– Perfeito. Mande distribuir vinho para todos.

Acho que sou capaz de dormir o dia inteiro!

Com grande contentamento, navegaram a tarde toda para sudoeste, com vento favorável, mas ninguém reparou quando desaparecera o albatroz.

 

OS TRÊS DORMINHOCOS

O vento cada dia se tornava mais leve, a ponto de as ondas não serem mais que ligeiros frisos. O barco parecia deslizar num lago. À noite surgiam constelações que ninguém vira em Nárnia e que talvez, pensou Lúcia com alegria e temor, nenhum olhar humano ainda vira. As novas estrelas eram brilhantes e as noites, quentes. Dormiam quase todos no convés e entretinham-se a conversar ou debruçados na amurada, vendo a dança luminosa da espuma. Numa tarde de espantosa beleza, com um pôr-do-sol vermelho e purpurino, avistaram terra a estibordo. Foi-se aproximando lentamente. A luz produzia a sensação de que os cabos e os cumes da nova terra estavam pegando fogo.

Em pouco navegavam ao longo da costa, cuja ponta mais oriental se elevava do lado da popa, escura e afiada, recortada no céu vermelho, como feita de papelão. A terra não tinha montanhas, apenas muitas colinas suaves, ondulando como almofadas. Lançava um cheiro aliciante – que Lúcia classificou de “aroma confuso e lilás” e que Edmundo disse (e Rince pensou) ser bobagem, ao que Caspian respondeu:

– Entendo o que você quer dizer.

Navegaram durante bastante tempo, passando cabos e promontórios, na esperança de encontrar um abrigo fundo, contentando-se afinal com uma ampla baía de águas pouco profundas. Havia uma forte rebentação junto da praia, não sendo possível por isso trazer o Peregrino para tão perto da terra quanto gostariam. Lançaram âncora bastante longe da praia, e o desembarque de bote foi muito movimentado, deixando todos molhados. Lorde Rupe ficou a bordo: não estava nada interessado em ilhas. Durante todo o tempo que ficaram naquele lugar, o barulho do quebrar das ondas não lhes saiu dos ouvidos.

Deixaram dois homens de guarda no bote, e Caspian dirigiu-se com os outros para a ilha, não se afastando muito, pois já era tarde para uma exploração.

Não foi preciso ir longe para encontrar uma aventura. No vale além da baía não havia sinal que indicasse ser a ilha habitada, pois não se via caminho nem atalho.

A relva era viçosa e salpicada pelo que Edmundo e Lúcia pensaram ser urzes. Eustáquio, que sabia de fato um pouco de botânica, disse que não (e provavelmente ele tinha razão); mas era alguma planta da mesma espécie.

Haviam andado menos do que um tiro de flecha da praia, quando Drinian perguntou:

– Que é aquilo?

Pararam todos.

– Arvores grandes – disse Caspian.

– Acho que são torres – disse Eustáquio.

– Podem ser gigantes – murmurou Edmundo.

– A melhor maneira de saber é ir ao encontro deles – disse Ripchip, puxando a espada e passando à frente de todos.

– Acho que são ruínas – disse Lúcia, quando se aproximaram um pouco mais.

A suposição da menina era a mais acertada. Viam agora um grande espaço, lajeado com pedras macias, rodeado de colunas cinzentas, mas sem telhado. Dos dois lados havia cadeiras de pedra ricamente esculpidas, com almofadas de seda nos assentos. Na mesa estava um banquete como nunca se viu, nem mesmo quando Pedro, o Grande Rei, tinha corte em Cair Paravel.

Faisões, gansos, pavões, cabeças de javali, carne de veado, empadas com forma de barco ou de dragões e elefantes, lagostas lustrosas, pudins gelados, salmão resplandecente, nozes e uvas, ananases, pêssegos, romãs, melões e tomates.

Havia jarros de prata e ouro, curiosamente trabalhados, e o perfume da fruta e do vinho caía sobre eles como uma promessa de felicidade.

– Puxa vida! – exclamou Lúcia.

Aproximaram-se mais, devagarinho.

– E os comensais? – perguntou Eustáquio.

– Podemos providenciar isto, senhor – falou Rince.

– Olhem! – disse Edmundo, abruptamente. Estavam agora dentro das colunas, sobre o pavimento de pedra.

As cadeiras não estavam vazias, pelo menos nem todas. Na cabeceira e nos dois lugares seguintes havia qualquer coisa – ou, mais exatamente, três coisas.

– Que é aquilo? – perguntou Lúcia, num sussurro. – Parecem três castores sentados.

– Ou um ninho enorme – disse Edmundo.

– Parece mais um monte de ferro velho – opinou Caspian.

Ripchip correu para a frente, saltou para uma cadeira e desta para a mesa e, com a elegância de um dançarino, percorreu-a entre taças cravejadas de pedras, pirâmides de frutas e saleiros de marfim. Foi direto à misteriosa forma cinzenta lá na cabeceira; espreitou, tocou e por fim gritou:

– Estes, creio eu, não lutam mais!

Os outros chegaram e viram que nas três cadeiras se sentavam três homens, ainda que só fosse possível reconhecê-los como tal observando-os muito de perto. Os cabelos grisalhos tinham crescido tanto que lhes encobriam os olhos e quase lhes ocultavam o rosto; as barbas caíam sobre a mesa, subindo e enrolando-se em pratos e jarros, como espinheiros numa cerca, e toda aquela mata de pêlos descia da mesa e tocava o chão. O cabelo pendia-lhes das cabeças sobre as costas das cadeiras, que estavam totalmente ocultas. Eram quase só cabelos.

– Mortos? – perguntou Caspian.

– Acho que não, majestade – respondeu Ripchip, tomando com as patas uma das mãos, encontrada no matagal de cabelos. – Está quente e o pulso bate.

– Também este – disse Drinian.

– Estão apenas adormecidos – disse Eustáquio.

– Então já dormem há muito tempo – observou Edmundo –, para o cabelo ter crescido tanto.

– Deve ser um sono encantado – disse Lúcia. – Senti logo ao chegar aqui que a terra está cheia de magia. Será que viemos aqui para quebrar o encanto?

– Podemos experimentar – disse Caspian, chacoalhando um dos dorminhocos.

Por um momento, todos julgaram que iria ser bem-sucedido, pois o homem respirou pesadamente e murmurou:

– Não vamos mais para o Oriente. Fora com os remos de Nárnia! – Mas caiu de novo, quase repentinamente, num sono ainda mais profundo.

A cabeça pesada descaiu alguns centímetros na direção da mesa, e foram vãos todos os esforços para levantá-lo outra vez. Com o segundo aconteceu o mesmo.

– Não nascemos para viver como animais. Sigam para o oeste enquanto é possível. Terras atrás do sol – e tombou a cabeça.

O terceiro disse apenas:

– A mostarda, por favor – e adormeceu profundamente.

– Fora com os remos de Nárnia? – disse Drinian. – Acho que chegamos ao fim da busca. Olhem para aqueles anéis. Não há dúvida de que são seus brasões. Este é lorde Revilian, este lorde Argos e este lorde Mavramorn.

– Não podemos despertá-los. Que fazer agora?

– perguntou Lúcia.

– Com o perdão de Vossa Majestade – disse Rince –, por que não atacamos imediatamente o que está em cima da mesa, enquanto discutimos o problema? Não se vê jantar como este todos os dias.

– Nem pense nisso! – exclamou Caspian.

– Tem razão – concordaram alguns marinheiros. – Há muita magia aqui. Quanto mais cedo voltarmos, melhor.

– Creio que é por causa dessa comida que estes fidalgos estão ferrados no sono há sete anos – falou Ripchip.

– Não toco nisso nem para salvar minha vida!

– disse Drinian.

– Está escurecendo mais depressa do que o normal – notou Rinelfo. – Melhor voltar, melhor voltar.

– Também acho – disse Edmundo. – Resolveremos amanhã o que fazer com esses três dorminhocos. Não parece conveniente ficar aqui durante a noite. Este lugar transpira perigo e magia por todos os lados.

– Estou inteiramente com o rei Edmundo – disse Ripchip – no que diz respeito à tripulação, mas, quanto a mim, vou sentar-me aqui até o sol nascer.

– Por quê? – perguntou Eustáquio.

– Porque esta é uma aventura extraordinária, e para mim não há perigo maior do que regressar a Nárnia sabendo que, de medo, deixei de desvendar um mistério.

– Ficarei com você, Rip – disse Edmundo.

– Também eu – concordou Caspian.

– E eu – disse Lúcia. Eustáquio ofereceu-se também. Era uma grande valentia, pois nunca tinha lido dessas coisas, nem ouvido falar delas, até entrar no Peregrino, de modo que para ele era pior do que para os outros.

– Suplico a Vossa Majestade... – começou a dizer Drinian.

– Não, meu senhor: o seu lugar é no navio; teve um dia cheio de trabalho enquanto nós passeávamos. – Apesar de todos os argumentos de lorde Drinian, Caspian fez valer sua vontade. Ao verem a tripulação caminhar para a praia no lusco-fus-co, nenhum deles pôde evitar uma estranha sensação no estômago.

Levaram algum tempo escolhendo os lugares na perigosa mesa. Provavelmente tinham todos o mesmo motivo, mas ninguém o disse em voz alta. Era uma escolha terrível, pois não seria fácil passar a noite inteira ao lado daqueles medonhos cabeludos, que, se não estavam mortos, tampouco estavam vivos, no sentido comum.

Por outro lado, se se sentassem na outra ponta da mesa, deixariam de ver os dorminhocos, à medida que escurecesse, e não poderiam saber se se mexiam. Não! Nem pensar nisso! Andavam de um lado para o outro, dizendo:

– Que tal aqui?

– Talvez um pouco mais para lá.

– Aqui não é melhor?

Por fim instalaram-se mais ou menos no centro, a igual distância dos dorminhocos e da ponta da mesa.

As estranhas constelações brilhavam no oeste. Lúcia teria preferido que fossem Leopardo e Barco e outros velhos amigos do céu de Nárnia.

Enrolaram-se nos agasalhos de bordo e sentaram-se quietinhos à espera. A princípio ainda tentaram conversar, mas logo silenciaram. Ficaram sentados por muito tempo, ouvindo as ondas na praia. Depois de algumas horas compridas, viram que tinham adormecido um pouco e acordado de repente.

As estrelas encontravam-se em posições completamente diferentes das que haviam ocupado quando as tinham visto da última vez. O céu estava negro, exceto no leste, onde havia uma tenuís-sima mancha cinza. Tinham frio, estavam enrijecidos e sentiam sede. Ninguém falou, porque todos sabiam que se passava alguma coisa.

Além das colunas erguia-se a vertente de uma pequena colina. Na base desta, abriu-se uma porta, e uma luz surgiu no limiar. Lá de dentro saiu uma figura, e a porta fechou-se atrás dela. A figura trazia uma luz, e era a única coisa que se via distintamente. Foi-se aproximando devagar, até que ficou em pé, perto deles.

Era uma moça alta, com uma vestimenta azul-clara que lhe deixava os braços nus. Os cabelos louros caíam-lhe soltos pelas costas, e só quando a viram compreenderam o que era a verdadeira beleza.

Trazia acesa uma grande vela posta num candelabro de prata, que ela pousou sobre a mesa. A chama da vela elevava-se tão serena como se estivesse dentro de uma casa com as janelas todas fechadas. A prata e o ouro em cima da mesa refulgiam com a luz.

Lúcia reparou num objeto pousado sobre a mesa, que não notara antes. Era uma faca de pedra, afiada como se fosse de aço, parecendo muito antiga e muito perigosa. Ninguém dissera nada. Ripchip e Caspian levantaram-se, pois viram logo que se tratava de uma grande senhora. Disse a moça:

– Viajantes que vieram de tão longe para a mesa de Aslam, por que não comem e bebem?

– Minha senhora – respondeu Caspian –, tivemos receio de comer porque julgamos que foram as iguarias que lançaram nossos amigos neste sono encantado.

– Eles nunca provaram destes pratos – disse a moça.

– Então, o que aconteceu a eles? – perguntou Lúcia.

– Há sete anos aportaram aqui num barco, com as velas todas rasgadas e as madeiras em péssimo estado. Outros vinham com eles e, mal chegaram a esta mesa, disse um: “Que lugar maravilhoso!

Vamos parar com esta vida maluca de vela e remo.

Vamos viver aqui para sempre, em paz.” Mas disse o outro: “Não, vamos embarcar outra vez para Nárnia; pode ser que Miraz já tenha morrido.”

Mas o terceiro, um homem muito altivo, saltou e disse: “Somos homens e telmarinos, não somos uns brutos. Só temos uma coisa a fazer: correr atrás de aventuras. Já não temos muito tempo de vida; utilizemos o que nos resta procurando as terras despovoadas que estão além do sol nascente.” No meio da discussão, pegou a Faca de Pedra que está aqui na mesa e quis lançar-se com ela sobre os companheiros. Mal os dedos tocaram o cabo, caiu adormecido, assim como os outros dois. E até que se desfaça o encantamento nunca mais acordarão.

– Que Faca de Pedra é essa? – indagou Eustáquio.

– Ninguém sabe? – perguntou a moça.

– Acho – disse Lúcia – que já vi algo parecido antes. Foi com uma faca assim que a Feiticeira Branca matou Aslam, já há muito tempo, na Mesa de Pedra.

– É esta mesma – disse a jovem. – Está aqui para ser preservada enquanto o mundo existir.

Edmundo, que se sentia muito pouco à vontade nos últimos minutos, falou por fim:

– Espero que não me julgue um covarde, por não comer desta comida, quer dizer, não quero ser indelicado, mas já passamos por uma série de aventuras estranhas, e as coisas nem sempre são o que parecem. Quando olho para a senhora, não posso deixar de acreditar no que diz, mas o mesmo pode acontecer com uma bruxa. Como podemos saber se é realmente nossa amiga?

– Realmente não podem – respondeu ela. – Têm de acreditar ou não.

Ouviu-se a voz de Ripchip:

– Rei Caspian, queira ter a amabilidade de encher-me a taça com o vinho deste jarro; é pesado para mim. Quero beber à saúde desta senhora.

Caspian obedeceu, e o rato, em pé sobre a mesa, ergueu a taça de ouro entre as patinhas e disse:

– Minha gentil senhora, levanto esta taça em sua honra.

Atirou-se em seguida ao pavão frio. Todos lhe seguiram o exemplo, esfomeados como estavam. Foi uma ceia excelente.

– Por que disse que esta é a Mesa de Aslam? – perguntou Lúcia.

– Foi ele que a mandou para cá, para todos aqueles que vêm parar nesta terra tão longínqua.

– Como se conserva esta comida? – perguntou Eustáquio, com seu modo prático de ver as coisas.

– Todos os dias se come e se torna a pôr a mesa – disse a moça –, como terão ocasião de presenciar.

– Que faremos com os dorminhocos? – perguntou Caspian. – No mundo de onde os meus amigos vieram existe a história de um príncipe, ou de um rei, que chega a um castelo onde toda a gente está adormecida num sono encantado: o encanta mento só se desfaz depois que ele beija a princesa.

– Mas aqui é diferente – falou a moça. – Só se beija a princesa depois de desfeito o encanto.

– Então – replicou Caspian –, em nome de Aslam, diga-me o que tenho de fazer.

– Meu pai irá dizer – informou ela.

– Seu pai! – exclamaram. – Quem é ele? Onde está?

– Olhem! – disse a jovem, virando-se e apontando para a base da colina. Já se via mais facilmente, pois não havia mais estrelas, e grandes clarões de luz branca surgiam no oriente.

 

O PRINCÍPIO DO FIM DO MUNDO

A porta abriu-se e saiu uma figura tão alta e ereta quanto a jovem, mas não tão esguia. Não trazia luz, mas parecia irradiar luz. Era um homem idoso. A barba prateada caía-lhe até os pés descalços, o cabelo prateado até os tornozelos, e usava uma túnica que parecia feita de lã de carneiros de prata. Era uma figura tão suave e digna, que mais uma vez todos se levantaram, em silêncio.

O velho passou pelos viajantes sem falar e foi postar-se na outra extremidade da mesa, diante da filha. Ambos ergueram os braços ao alto e viraram a face para o Oriente. Nessa posição começaram a cantar. Gostaria de transcrever aqui a música da canção, mas nenhum dos presentes foi capaz de se lembrar dela, mais tarde. Lúcia disse que era uma melodia alta e aguda, mas muito bonita, “uma canção fria para ser cantada bem cedo”. Enquanto cantavam, as nuvens cinzentas se afastavam e os clarões ficavam cada vez maiores, até tudo ficar branco e o mar começar a refulgir como prata. Muito mais tarde (os dois continuavam sempre cantando), o Oriente começou a avermelhar-se e, por fim, sem nuvens, o sol surgiu no mar, fazendo incidir seus raios na mesa, no ouro, na prata, na Faca de Pedra.

Já várias vezes haviam pensando que o sol, ao nascer naquelas paragens, era maior do que em Nárnia, mas agora tinham a certeza disso. A claridade que se refletia no orvalho e na mesa era muito mais intensa do que em qualquer outra manhã. Como Edmundo disse mais tarde: “Apesar de nos terem acontecido muitas coisas sensacionais, aquele foi o momento mais perturbador.” Sabiam agora que tinham chegado ao princípio do Fim do Mundo.

Do centro do sol saiu algo que veio voando na direção deles, mas que não podiam identificar, pois não conseguiam olhar fixamente. O ar estava cheio de vozes – vozes que entoavam a mesma canção de pai e filha, mas de um modo mais suave, numa linguagem desconhecida. Em pouco tempo apareceram os donos das vozes. Centenas e centenas de grandes pássaros brancos pousavam por todos os lados: na relva, na mesa, nos ombros das pessoas, nas mãos, nas cabeças, até que se teve a impressão de que caíra uma grande nevasca. Lúcia, olhando por entre as asas que a cobriam, viu uma ave voar na direção do velho, transportando alguma coisa no bico, um fruto ou um carvão aceso, demasiado brilhante para se olhar.

As aves se calaram de repente e começaram a esvoaçar em torno da mesa. Quando a deixaram, desaparecera tudo quanto houvera para comer e beber. Levantaram vôo, levando todos os restos, ossos, cascas e conchas. Voavam novamente em direção ao sol mas, agora que não cantavam, o ar agitava-se com o ruflar das asas. A mesa estava limpa e vazia. Os três senhores dormiam. Só então o velho virou-se para os viajantes e lhes desejou boas-vindas.

– Senhor – disse Caspian –, poderia dizer-nos como se desfaz o encantamento destes três fidalgos de Nárnia?

– Com o maior prazer, meu filho. Para quebrar o encantamento, vocês têm de navegar até o Fim do Mundo, ou o mais próximo possível dele, e regressar depois, deixando lá pelo menos um de vocês.

– Mas que acontecerá a esse que ficar? – perguntou Ripchip.

– Terá de continuar até a parte mais oriental que existe e nunca mais voltar a este mundo.

– É tudo quanto desejo – suspirou Ripchip.

– E estamos já bem perto do Fim do Mundo, senhor? – perguntou Caspian. – Sabe alguma coisa dos mares e das terras que existem mais para leste?

– Há muito que as vi – respondeu o velho. – Mas de uma grande altura. Não posso lhes contar nada que tenha valor para os navegantes.

– Quer dizer que voou? – interrompeu Eustáquio.

– Estive muito acima do ar, meu filho. Sou Ramandu. Mas vejo que se entreolham admirados e percebo que nunca ouviram este nome. Não é para menos, pois quando deixei de ser estrela vocês ainda não existiam, e depois disso todas as constelações mudaram.

– Caramba! – disse Edmundo entre os dentes. – É uma estrela aposentada.

– Não é mais uma estrela? – perguntou Lúcia.

– Sou uma estrela em repouso, minha filha. Quando era uma estrela velha e decrépita, a tal ponto que vocês nem podem imaginar, trouxeram-me para esta ilha. Agora não sou tão velho quanto antes. Todas as manhãs uma ave traz para mim um fruto de fogo dos vales do Sol, e cada um desses frutos tira um pouco da minha idade. Quando estiver jovem feito uma criança que tivesse nascido ontem, subirei de novo e, uma vez mais, entrarei na grande dança do espaço.

– No nosso mundo – disse o judicioso Eustáquio – uma estrela é uma enorme bola de gás inflamável.

– No nosso também, meu filho, mas isso é de que uma estrela é feita, não o que ela é. Neste mundo vocês encontraram uma estrela, pois, creio, já estiveram com Coriakin.

– Ele também é uma estrela aposentada? – perguntou Lúcia.

– Bem, não exatamente – respondeu Ramandu.

– Não foi para descansar que lhe deram o governo dos Tontos. Pode-se até dizer que foi por castigo. Poderia ter brilhado mais milhares de anos se as coisas tivessem corrido bem.

 

– Que foi que ele fez, senhor? – perguntou Caspian.

– Meu filho, não é permitido, a um filho de Adão, tomar conhecimento das faltas cometidas por uma estrela. Mas estamos perdendo tempo.

Estão decididos? Querem navegar mais para leste e voltar deixando lá um dos seus, e assim quebrar o encanto? Ou preferem o oeste?

– Não há a menor dúvida, senhor – disse Ripi-chip. – Não há o que discutir! Faz parte fundamental da nossa missão libertar esses três fidalgos.

– Também acho o mesmo – falou Caspian. – E, mesmo que não fosse por isso, eu ficaria muito triste de não ir com o Peregrino até o Fim do Mundo. Mas tenho de pensar na tripulação. Foi contratada para encontrar os três fidalgos, não para chegar ao fim da Terra. Se partimos daqui na direção leste, vamos ao encontro do ponto mais oriental que existe. E não sabemos quanto tempo levaremos para chegar. São valentes, mas alguns deles já estão desejosos de embicar a proa no caminho de Nárnia. Não me parece que possa levá-los mais longe sem consultá-los. Além disso, temos o pobre lorde Rupe. Está tão fraco!

Ramandu interveio:

– Meu filho! Mesmo que quisesse, não poderia navegar para leste com homens levados de má vontade ou ludibriados. Não é assim que conseguimos desfazer os grandes encantamentos. Têm de saber para onde vão e por quê. Mas quem é o homem doente?

Caspian contou a história de Rupe. Ramandu disse:

– Posso dar a ele aquilo de que mais precisa.

Nesta ilha há um sono sem limite, e quem o dormir não terá a mais leve sombra de um sonho. É só ele sentar-se com os outros três e ficar no esquecimento até a volta de vocês.

Lúcia achou ótima a idéia.

Drinian e o resto da tripulação aproximaram-se. Pararam surpresos quando avistaram Ramandu e a jovem, mas tiraram logo os chapéus, adivinhando grandes personalidades. Alguns marinheiros olharam com desgosto os pratos e jarros vazios.

– Queira mandar dois homens ao Peregrino com uma mensagem para lorde Rupe – disse o rei a Drinian. – Diga-lhe que os seus últimos companheiros estão aqui adormecidos num sono sem sonhos, do qual ele poderá participar.

Cumprida essa missão, Caspian pediu a todos que se sentassem e expôs a situação. Quando acabou de falar, houve grande silêncio; depois, conversas em voz baixa; por fim o arqueiro-mor se levantou e disse:

– Já há muito tempo estávamos para perguntar a Sua Majestade como havemos de voltar, daqui ou de outro lugar qualquer. Temos tido sempre vento oeste e noroeste, tirando algumas calmarias ocasionais. Se isto não mudar, gostaria de saber que esperança temos de voltar para Nárnia. Acho que as provisões não chegarão para navegarmos este tempo todo.

– Conversa de homem de terra! – resmungou Drinian. – Ora, nestes mares há sempre vento oeste durante todo o fim do verão, mas muda sempre depois do Ano-Novo. Havemos de ter muito vento para navegar para o Ocidente, talvez mais do que precisaremos.

– Isso é verdade – disse um velho marujo, natural de Gala. – Em janeiro e fevereiro já sopra um terrível vento de leste. Com a sua licença, se eu estivesse no comando do navio ficaria aqui o inverno todo e só retomaria a viagem em março.

– E iriam comer o quê? – perguntou Eustáquio.

– Esta mesa – respondeu Ramandu – enche-se todos os dias, ao entardecer, com um banquete digno de um rei.

– Agora sim a conversa está ficando boa! – exclamaram alguns marinheiros.

– Majestades, meus senhores e minhas senhoras – começou Rinelfo –, gostaria apenas de lembrar uma coisa: ninguém veio obrigado a esta viagem. Viemos todos por livre e espontânea vontade. Muitos, que estão agora olhando para esta mesa como doidos, proclamavam em voz bem alta, no dia da partida, em Cair Paravel, que haveriam de correr as mais fantásticas aventuras e juravam não voltar sem ter chegado ao Fim do Mundo. No cais ficaram muitos que tudo dariam para vir conosco.

Não sei se entendem o que quero dizer. Mas, na minha opinião, aquele que desistir agora, depois de tantas aventuras por estes mares, será mais estúpido do que os Tontos. Ora, chegar ao princípio do Fim do Mundo e não ter a coragem de prosseguir!

Alguns marinheiros aplaudiram, mas outros não gostaram nada.

– Isto não vai ser brincadeira – murmurou Edmundo para Caspian. – Que iremos fazer se estes caras não quiserem ir?

– Calma: ainda tenho um trunfo!

– Você não diz nada, Ripchip? – sussurrou Lúcia.

– Não. Por que acha Vossa Majestade que devo falar? – respondeu o rato, numa voz que quase todos ouviram. – Os meus planos estão traçados.

Enquanto puder, navegarei para o oriente no Peregrino. Quando o perder, remarei no meu bote.

 

Quando o bote for ao fundo, nadarei com as minhas patas. E, quando não puder nadar mais, se ainda não tiver chegado ao país de Aslam, ou atingido a extremidade do mundo, afundarei com o nariz voltado para o leste, e outro será o líder dos ratos falantes de Nárnia.

– Eu digo o mesmo – gritou um marinheiro –, exceto quanto ao bote, que a mim não me serviria de nada. – E acrescentou em voz baixa: – Não posso ser humilhado por um rato.

– Amigos – falou Caspian, dando um salto –, ainda não entenderam a nossa intenção. Falam como se estivéssemos chegando até vocês de chapéu na mão, implorando tripulantes. Nada disso.

Nós, nossos reais irmãos e fidalgos, e Ripchip, leal cavaleiro, e lorde Drinian, demandamos o fim do mundo. Somos nós que escolhemos os que devem ir, os que são dignos de ir! Nunca dissemos que iria quem pedisse. Por isso, ordenamos a lorde Drinian e a mestre Rince que forneçam uma lista com os nomes dos homens mais fortes, dos marinheiros mais hábeis, daqueles de sangue mais valente, dos mais leais à nossa pessoa e os de costumes e vida mais limpos.

Fez uma pausa e continuou em voz mais rápida:

– Pela juba de Aslam! Acham que o privilégio de ver as últimas coisas é assim tão fácil de conquistar? Cada homem que nos acompanhar receberá o título de Peregrino da Alvorada, para si e seus descendentes, e terá, ao desembarcar em Cair Paravel, ouro e terras suficientes para o resto da vida. Dispersem-se agora e dêem uma volta pela ilha. Daqui a pouco examinarei os nomes que lorde Drinian achar por bem trazer-me.

Houve um silêncio parecido ao rumor de um rebanho; a tripulação espalhou-se em pequenos bandos, conversando.

– E agora vamos tratar do caso de Rupe – disse Caspian; ao virar a cabeça, viu que Rupe havia chegado e estava sentado ao lado de lorde Argos.

A filha de Ramandu, junto dele, parecia tê-lo ajudado a sentar-se, e o velho mágico, em pé, estendia as mãos sobre a cabeça grisalha de Rupe. Mesmo com a claridade do dia, via-se uma tênue luz prateada irradiando das mãos da estrela. Na face convulsionada de Rupe abriu-se um sorriso. Estendeu as mãos para Lúcia e Caspian e, por um momento, pareceu que ia dizer alguma coisa. O sorriso ficou mais brilhante, como se provasse uma deliciosa sensação; deu um longo suspiro de contentamento, a cabeça caiu-lhe para a frente e adormeceu.

– Pobre Rupe! – falou Lúcia. – Estou feliz! Deve ter passado coisas horríveis!

O discurso de Caspian produzira o efeito desejado. Muitos marujos, antes ansiosos para não continuar a viagem, estavam agora pensando justamente o contrário. Cada vez que um marinheiro anunciava que ia pedir permissão para acompanhar o navio, os outros sentiam-se cada vez mais como minoria e mais sem jeito ficavam.

Iam ficando em menor número os desertores. Daí a meia hora, quase todos estavam agradando Drinian e Rince, para que estes dessem boas informações a respeito deles. Restavam agora três que não queriam ir. Esses três tentavam convencer os outros a ficar com eles. Pouco depois, só restava um. Por fim, este mesmo começou a ter medo de ficar sozinho e mudou de opinião. E foram em massa até a Mesa de Aslam. Caspian aceitou todos os homens, menos o que mudara de opinião no último momento. Chamava-se Manteiga Rançosa e ficou na Ilha da Estrela durante o tempo todo que os outros levaram para alcançar o Fim do Mundo. Porém, desejaria muito ter ido, pois não era o tipo de pessoa que sabia apreciar uma conversa com Ramandu e sua filha.

Além disso, choveu o tempo todo e, ainda que tivesse havido todas as noites o espetacular banquete, o marinheiro chegou a perder o apetite.

Dizia que lhe dava arrepios sentar-se sozinho com os quatro fidalgos adormecidos. Tinha certa razão.

Quando os outros voltaram, sentiu-se tão separado de toda aquela aventura que desertou, na viagem de regresso, e foi viver na Calormânia, contando histórias tais acerca de suas façanhas no Fim do Mundo que, por fim, até ele próprio acreditava nelas. De certo modo, foi feliz dali em diante, mas passou a ter horror a ratos.

Naquela noite comeram todos na mesa entre as colunas, onde o banquete magicamente se renovava. No dia seguinte, o Peregrino largou mais uma vez, exatamente na hora em que as grandes aves vinham fazer a visita matinal.

– Senhora – disse Caspian –, espero voltar a falar-lhe depois de quebrado o encanto.

A filha de Ramandu sorriu.

 

AS MARAVILHAS DO MAR DERRADEIRO

Pouco depois de deixarem as terras de Ramandu, começaram a sentir que já navegavam para fora do mundo.

Era tudo diferente. Quase não precisavam dormir, nem comer, nem falar, a não ser em voz baixa. Outra coisa era a luz. Havia luz em demasia. Quando o sol se erguia parecia duas ou três vezes maior que o seu tamanho normal. E todas as manhãs (era a sensação mais estranha para Lúcia) apareciam lá no alto as imensas aves brancas, cantando a sua canção com vozes humanas, numa língua que ninguém sabia, desaparecendo depois em direção à Mesa de Aslam. Pouco depois, voavam de regresso e sumiam no Oriente.

– Como a água é transparente! – exclamou Lúcia para si mesma, encostando-se na amurada na tarde do segundo dia.

A primeira coisa em que reparou foi num pequeno objeto escuro, quase do tamanho de um sapato, movendo-se com a mesma velocidade do barco. Durante certo tempo, julgou que se tratava de algo flutuando, mas a certa altura a coisa passou por um pedaço de pão que o cozinheiro atirara da cozinha. Parecia que ia esbarrar no pedaço de pão, mas não; passou por cima dele, e Lúcia viu que o objeto escuro não podia estar na superfície. Logo depois tornou-se muito maior, voltando momentos depois ao tamanho de antes. Lúcia já vira algo semelhante em algum lugar, mas não se recordava onde.

No esforço de lembrar-se, levou as mãos à cabeça, franziu o rosto e pôs a língua de fora. Acabou conseguindo. Claro! Era como um vagão de trem num dia cheio de sol. A sombra escura do vagão corre pelos campos na mesma velocidade que o vagão. Quando se chega a um barranco a sombra se aproxima mais de nós e fica maior, correndo pela relva do barranco. Depois passa aquele barranco e pronto: a sombra fica outra vez do tamanho normal, correndo de novo pelos campos.

– É a nossa sombra, a sombra do Peregrinol -disse Lúcia. – A nossa sombra correndo no fundo do mar. Quando se torna maior é quando passa por cima de uma colina. Então é porque a água é mais clara do que eu pensava. Puxa! Estou vendo o fundo do mar, lá embaixo!

Compreendeu que toda aquela extensão prateada que vira (sem reparar) durante algum tempo era a areia do fundo do mar, e que todas aquelas manchas, ora escuras, ora brilhantes, não eram luzes, nem sombras na superfície, mas coisas reais lá no fundo. Naquele momento, por exemplo, passavam sobre uma sedosa massa de verde com reflexos avermelhados e uma larga faixa, cinza-claro, serpenteando no meio. Agora que sabia, reparava melhor. As coisas escuras eram muito mais altas do que as outras e se agitavam suavemente. Como árvores batidas pelo vento. Isso mesmo: uma floresta submarina.

Passaram sobre ela, e à faixa clara veio juntar-se uma outra. Pensou: “Se estivesse lá embaixo, aquela faixa haveria de parecer um caminho pela floresta. E o lugar em que se juntaram os dois seria uma encruzilhada. Quem me dera estar lá! A floresta está acabando. Afinal, a faixa branca é mesmo um caminho. Até se vê a continuação pela areia. Tem uma cor diferente. E está marcada com qualquer coisa dos lados; parecem linhas pontilhadas. Talvez sejam pedras. Agora está mais larga”. Mas não era verdade: a faixa estava era mais perto. Percebeu isso pela velocidade com que a sombra do navio aproximou-se dela. E o caminho – tinha certeza de que era um caminho – começou a ziguezaguear. Era claro que subia uma colina acidentada.

Quando olhou para trás, foi como se olhasse do alto de um monte para um caminho cheio de curvas. Viu até mesmo os raios do sol atravessarem a profundidade da água e banharem o vale arborizado. A uma grande distância, tudo se desvanecia numa neblina verde. Os lugares batidos de sol, no entanto, eram azuis, de um azul ultra-marinho.

Não podia perder tempo olhando para trás: o que lhe surgia na frente era também perturbador. O caminho agora parecia ter atingido o alto da elevação, correndo em linha reta, sempre em frente. Moviam-se nele, de um lado para outro, pequenas manchas.

De repente avistou algo maravilhoso, completamente iluminado pelo sol. Algo de contornos denteados e nodosos, cor-de-pérola ou marfim. Como Lúcia passava nesse momento por cima, não pôde distinguir muito bem o que era, mas, ao ver a sombra, compreendeu logo do que se tratava.

A luz do sol incidia nos ombros da garota, e a sombra dos objetos projetava-se na areia atrás deles. Pelas formas, viu nitidamente que era uma floresta de pináculos, minaretes e cúpulas.

– Epa! É uma cidade ou um castelo enorme! Gostaria de saber por que a construíram naquela montanha tão alta.

Muito tempo depois, já na Inglaterra, ao falar com Edmundo encontraram uma razão, e acho que é a verdadeira: no mar, quanto mais fundo se desce, mais escuro e frio se torna tudo. É ali no fundo, na escuridão e no frio, que vivem os seres perigosos – o Calamar, a Serpente do Mar e o Monstro Marinho das lendas. No mar, os vales são lugares selvagens. Os habitantes do mar sentem nos vales o que nós sentimos nos montes, e pensam dos seus montes o que pensamos dos nossos vales. É nas alturas que há calor e paz. Os caçadores destemidos e os cavaleiros valentes do mar descem às profundezas em busca de aventuras, mas voltam a seus lares nos montes para o descanso em sossego.

Passaram a cidade, e o fundo do mar continuava a subir. Estava a uns dois mil metros. O caminho sumira. Navegavam sobre uma região aberta e ampla como um parque, salpicada de maciços de vegetação de colorido brilhante.

Então, de repente – Lúcia quase gritou de exultação –, ela viu gente: cerca de quinze ou vinte criaturas montadas em cavalos-marinhos, não os pequenos, como os do aquário, mas bem maiores que as criaturas que os montavam. “Deve ser gente de alta estirpe”, pensou Lúcia, pois vislumbrava reflexos de ouro na cabeça de alguns, e serpentinas de esmeraldas e outras pedras cor-de-laran-ja flutuavam dos seus ombros na corrente.

– Que peixes chatinhos! – exclamou ela. Entre Lúcia e o Povo do Mar viera interpor-se um cardume de peixes gorduchos, nadando muito perto da superfície. No entanto, apesar de lhe terem tapado a visão, ofereceram-lhe um espetáculo do maior interesse. E, de súbito, um peixinho de ar atrevido, de espécie nunca vista, veio à superfície e voltou a mergulhar, levando na boca um peixe gorducho.

O Povo do Mar presenciou a cena rindo e conversando. Antes que o peixe caçador chegasse junto deles com a presa, já soltavam outro da mesma espécie.

– É uma caçada! – concluiu Lúcia. – É uma caçada com falcões. Cavalgam com aqueles peixes bravos nos pulsos como fazíamos em Cair Parável com os nossos falcões. Depois deixam que eles voem, ou melhor, que nadem para caçar os outros. Como...

Parou porque a cena agora era diferente. O Povo do Mar notara o Peregrino. O cardume de peixes se espalhava em todas as direções. Os cavaleiros dirigiam-se agora para a superfície para saber o que era aquela coisa escura e grande que se metera entre eles e o sol. Estavam tão perto da superfície que, se estivessem no ar, Lúcia poderia ter falado com eles. Usavam todos coroas, talvez de ouro, e muitos tinham colares de pérolas. Não usavam roupas. Os corpos eram da cor de marfim antigo, e o cabelo de um tom púrpura bastante escuro. O rei (só podia ser o rei) olhava orgulhosa e altivamente para Lúcia, agitando um tridente que tinha na mão. Os cavaleiros fizeram o mesmo com as lanças. Os rostos das mulheres mostravam espanto. Lúcia tinha a certeza de que não haviam visto antes um navio, nem um ser humano. E como poderiam ter visto, se aqueles mares ficavam para lá do Fim do Mundo?

– Para onde está olhando, Lu? – perguntou uma voz, atrás dela.

Ela estava tão absorvida que se sobressaltou, notando ao virar-se que tinha o braço dormente, por ter ficado tanto tempo encostada na amurada. Drinian e Edmundo estavam junto dela.

– Olhem só! – disse.

Olharam ambos, mas Drinian disse em voz baixa:

– Virem-se imediatamente, Altezas, com as costas viradas para o mar. E não dêem a impressão de que conversam algum assunto importante.

– Por quê? Que história é essa? – disse Lúcia, obedecendo.

– Os marinheiros não devem ver aquilo – respondeu Drinian. – Ficariam apaixonados pelas mulheres do mar e pulariam lá dentro. Já ouvi falar de casos como este. Dá azar ver aquela gente.

– Mas nós os conhecemos – disse Lúcia. – Nos tempos de Cair Paravel, quando meu irmão era o Grande Rei, vieram à superfície e cantaram em nossa coroação.

– Deviam ser de uma raça diferente, Lu – disse Edmundo. – Viviam tanto no ar quanto na água. Estes não devem viver no ar. Se pudessem, já teriam vindo à superfície atacar-nos. Parecem ferozes.

– De qualquer modo... – começou Driniam, sendo interrompido pelo ruído de um choque na água e um grito na torre de combate: – Homem ao mar!

Todos entraram em ação. Alguns marinheiros subiram ao mastro para colher a vela, enquanto outros corriam para os remos. Rince, às voltas com a roda do leme, procurava chegar ao homem que tombara. Nessa altura, porém, todos já sabiam que não era propriamente um homem, mas Ripchip.

– Diabos levem esse rato! – praguejou Drinian.

– Dá mais trabalho do que todo o resto da tripulação. Se há qualquer encrenca, ele está no meio.

Devia ser posto a ferros, atado na quilha, largado numa ilha deserta, ou ter os bigodes cortados!

Alguém está vendo o engraçadinho?

Na verdade, Drinian gostava de Ripchip. Por isso estava tão aflito, e, quando ficava aflito, enchia-se de mau humor. Sua mãe também se zangaria mais com você do que com um estranho, se você pulasse na frente de um carro. Ninguém tinha medo que Ripchip se afogasse, pois era excelente nadador, mas as três pessoas a bordo que sabiam o que se passava dentro da água temiam as lanças cruéis nas mãos do Povo do Mar.

O Peregrino deu uma volta e eles viram uma trouxinha escura na água: era Ripchip. Falava com grande excitação, mas como estava com a boca cheia d’água ninguém entendia o que dizia.

– Vai botar a boca no mundo, se não o fizer

mos calar – disse Drinian.

Para evitar isso, correu para o lado e baixou ele mesmo uma corda, gritando para os marinheiros:

– Tudo bem, todos nos seus lugares. Posso puxar um rato sem precisar de ajuda. – E quando Ripchip começou a subir pela corda, não muito agilmente porque o pêlo molhado o fazia mais pesado, Drinian inclinou-se e sussurrou-lhe:

– Nem uma palavra!

Mas ao chegar ao convés todo encharcado o rato não parecia nem um pouco interessado no Povo do Mar.

– Doce – guinchou –, doce, doce!

– Doce, o quê? – perguntou Drinian, desconfiado. – E não precisa sacudir-se em cima de mim.

– Estou dizendo que a água é doce. Não tem sal.

Por um momento ninguém atentou para a importância disso. Rip então repetiu a velha profecia: onde o céu e o mar se encontram, onde as ondas se adoçam.

– Um balde, Rinelfo – gritou Drinian.

O balde foi descido até a água e puxado de novo. A água brilhava lá dentro como vidro.

– Talvez Sua Majestade queira ser o primeiro a provar – disse Drinian a Caspian.

O rei tomou o balde nas duas mãos, bebeu profundamente e levantou a cabeça com o rosto transformado. Todo ele parecia mais brilhante.

– É doce. Esta é a verdadeira água. Tenho certeza de que não mata, mas escolheria a morte se soubesse que matava.

– O que você quer dizer? – espantou-se Edmundo.

– É mais transparente do que tudo que existe – disse Caspian.

– Perfeito! – disse Ripchip. – Água potável. Devemos estar muito próximos do Fim do Mundo agora.

Houve um instante de silêncio. Depois Lúcia ajoelhou-se no convés e bebeu do balde.

– E a água mais sensacional que já bebi na vida

– disse, com um suspiro. – Mata a sede e tira a fome. Não precisaremos comer mais nada.

E todos a bordo beberam. Sentiram-se tão bem e tão fortes que quase não agüentavam a sensação. E então começaram a sentir um outro efeito.

Desde que tinham deixado a ilha de Ramandu, sempre houvera luz em demasia, como já disse. O sol era enorme (mas não muito quente); o mar, incrivelmente brilhante; o ar, de uma resplandecência que ofuscava. A luz não diminuíra -até aumentara, se possível –, mas eles conseguiam suportá-la. Olhavam de cara para o sol, sem pes-tanejar. O convés, a vela, suas próprias faces e corpos, tudo resplandecia. Até as cordas iam ficando mais brilhantes. Na manhã seguinte, quando o sol nasceu, cinco ou seis vezes maior, olharam-no fixamente e distinguiram até as penas das aves que saíam dele voando.

Durante o dia, quase ninguém falou. Só na hora do jantar (que ninguém quis, pois a água bastava como alimento) Drinian disse:

– Não estou entendendo. Não há um sopro de vento, e a vela está caída como morta. O mar está liso como um lago. No entanto, navegamos tão depressa como se estivéssemos dentro de um furacão.

– Também notei isso – falou Caspian. – Pelo jeito fomos apanhados por uma forte corrente.

– Hum! – fez Edmundo. – Não é lá muito agradável saber que o mundo tem uma orla e que estamos chegando perto dela.

– Você quer dizer – perguntou Caspian – que corremos o risco de ser jogados para fora?

– É, é – gritou Rip, batendo as patas uma na outra. – Exatamente como imaginei: o mundo é uma grande mesa redonda, e as águas de todos os oceanos vão caindo da borda da mesa. O navio ficará suspenso um momento na orla da Terra e, depois, sempre para baixo, para baixo, a queda, a velocidade...

– E o que você acha que estará esperando por nós lá no fundo? – indagou Drinian.

– O País de Aslam, talvez – disse Rip com olhos brilhantes. – Ou talvez nem tenha fundo. Talvez se caia eternamente. Mas, seja lá o que for, vale a pena a gente olhar da beiradinha do mundo, mesmo que por um só instante.

– Isto é uma grande besteira – falou Eustáquio.

– O mundo é redondo, redondo como uma bola, não como uma mesa.

– O nosso mundo – disse Edmundo. – Mas este também será uma bola?

– Ah, é?! – exclamou Caspian. – Quer dizer que vocês vieram de um mundo redondo feito uma bola e nunca me disseram nada! Fizeram muito mal. Temos em nosso país histórias maravilhosas que falam de mundos redondos. Nunca acreditei que fossem verdadeiras, mas gostaria que fossem, e adoraria viver num mundo redondo. Faria tudo para isso. Por que vocês podem vir para o nosso mundo e nós não podemos ir para o de vocês?

Deve ser fabuloso viver em cima de uma bola! Já estiveram nos lugares onde as pessoas andam de cabeça para baixo?

Edmundo abanou a cabeça:

– Não é como você pensa. Não há nada de fabuloso em viver num mundo redondo.

 

O FIM DO MUNDO

Ripchip era a única pessoa a bordo, além de Lúcia, Edmundo e Drinian, que notara o Povo do Mar. Mergulhou mal vira o rei agitar o tridente, pois lhe parecera uma espécie de ameaça ou desafio, e quisera tirar o caso a limpo. Com a excitação de descobrir que a água não era salgada, esquecera-se do que ia fazer e, antes de lembrar-se do Povo do Mar, Drinian e Lúcia tinham pedido a ele que não contasse nada do que vira.

Navegaram a manhã toda em águas baixas, com o fundo do mar coberto de capim. Perto do meio-dia, Lúcia viu um grande cardume volteando por entre a erva. Comiam com vontade e moviam-se na mesma direção. “Como um rebanho de ovelhas”, pensou Lúcia. De repente viu, entre os peixes, uma donzela do mar, mais ou menos da sua idade, calma e solitária, com uma espécie de cajado na mão. Lúcia teve a certeza de que era uma pastora – uma pastora de peixes – e que o cardume era um rebanho pastando. Estavam perto da superfície. No instante em que a menina se elevava na água pouco funda, Lúcia inclinou-se na beira do navio. A menina olhou para cima e fixou atentamente o rosto de Lúcia. A pastora mergulhou depois e Lúcia nunca mais a viu. Não parecia assustada, nem zangada, como os outros habitantes do mar. Lúcia simpatizara com ela, e a simpatia parecera recíproca. Tinham ficado amigas num minuto. Seria difícil um novo encontro, mas se isto acontecesse correriam uma para outra de braços abertos.

O Peregrino ia sendo levado para o Oriente por um mar sem ondas, sem sombra de vento ou de espuma na quilha. A luz era cada vez mais brilhante. Ninguém dormia ou comia, mas tiravam do mar baldes de água brilhante, mais forte do que o vinho e mais úmida e líquida do que a água comum, bebendo-a em grandes goles, em silêncio.

Dois marinheiros, que começaram a viagem já com certa idade, iam ficando cada vez mais novos. Todos a bordo estavam muito alegres e animados, mas uma animação silenciosa. Falavam às vezes, mas apenas por murmúrios. Apossara-se deles a placidez daquele mar derradeiro.

Um dia Caspian perguntou a Drinian:

– O que está vendo aí em frente?

– Tudo branco.

– É também o que vejo. Não faço idéia do que seja.

– Se estivéssemos numa latitude alta, diria que era gelo. Mas aqui não pode ser. Em todo o caso, acho melhor pôr os homens ao remo e agüentar o barco contra a corrente. Não podemos ir contra aquilo com esta velocidade.

Começaram a navegar lentamente. A brancura não desvendou seu mistério quando se aproximaram. Se era uma terra, devia ser uma terra muito estranha, pois parecia tão macia quanto a água e no mesmo nível desta.

Perto, Drinian virou o navio para o sul, de modo que ficasse com ele atravessado na corrente, e remou um pouco ao longo da orla branca de espuma. Descobriram que a corrente tinha apenas uns vinte metros de largura e que o resto do mar estava tão calmo quanto um lago. A tripulação alegrou-se imensamente com isso, pois todos pensavam que seria bem difícil a viagem de regresso ao país de Ramandu, remando contra a corrente durante o caminho todo.

Isso explicava por que a pastora desaparecera tão rapidamente. Não estava na corrente; se estivesse, teria se deslocado para leste com a mesma velocidade do navio. Mas ninguém conseguira ainda compreender o que era a coisa branca. Baixaram o bote e resolveram investigar. Os que ficaram a bordo do Peregrino viram o bote cortar pelo meio da brancura e ouviram as vozes dos tripulantes na água em calmaria. Houve uma pausa, enquanto Rinelfo, na proa do bote, lançava o prumo. Depois regressaram.

Apinharam-se todos na amurada, curiosos:

– São lírios! – gritou Rinelfo. – Como num tanque de jardim.

Lúcia ergueu os braços úmidos, cheios de pétalas brancas e de largas folhas espalmadas.

– Qual é a profundidade, Rinelfo? – perguntou Drinian.

– Aí é que está, capitão. Ainda é muito fundo.

– Não podem ser lírios, pelo menos não aquilo que chamamos de lírios – resmungou Eustáquio.

Provavelmente não eram, mas pareciam. Conferenciaram e lançaram o Peregrino na corrente, começando a deslizar para leste, pelo Lago dos Lírios ou Mar de Prata, e aí começou a parte mais estranha da viagem. O oceano largo que haviam deixado nada mais era do que uma estreita fita azul perdendo-se no horizonte.

O mar parecia o Ártico e, se os olhos não tivessem se tornado tão agudos como os das águias, seria impossível suportar a visão daquela brancura, especialmente de manhã cedo. E a brancura, às tardes, fazia durar mais a luz do dia. Os lírios pareciam não ter fim. Dias e dias, elevava-se daquelas léguas de flores um odor que Lúcia achava quase impossível descrever: doce, sim, mas não estonteante, nem extremamente perfumado, um odor fresco, selvagem, solitário. Parecia entrar no cérebro e dar a sensação de que se pode galgar montanhas ou brigar com elefantes. Dizia:

– Sinto que não posso mais agüentar isso e, no entanto, não quero que acabe.

Fizeram muitas sondagens, mas só alguns dias mais tarde a água se tornou menos funda. A profundidade foi então diminuindo. Até que um dia tiveram de sair da corrente e avançar a passo de caracol para sondarem o caminho por onde seguiam. Tornou-se claro que o Peregrino não podia navegar mais para o Oriente, e só devido a manobras hábeis conseguiram evitar que encalhasse.

– Desçam o bote – gritou Caspian. – Depois chamem os homens cá para cima.

– Que vai fazer? – perguntou Eustáquio a Edmundo em voz baixa. – Ele está com uma expressão esquisita.

– Acho que estamos todos com a mesma expressão – respondeu Edmundo.

Juntaram-se a Caspian na popa, e toda a tripulação reuniu-se na base da escada para ouvir a palavra do rei.

– Amigos – disse Caspian. – Chegamos ao fim da nossa missão. Encontramos os sete fidalgos e, como Sir Ripchip jurou não voltar, sem dúvida que acharão acordados os fidalgos da ilha de Ramandu. Entrego-lhe, lorde Drinian, este navio, com a recomendação de navegarem com a maior velocidade possível para Nárnia e de não pararem na Ilha da Água da Morte. Recomende a Trumpkin, meu regente, que dê a todos os meus companheiros de viagem as recompensas que lhes prometi. São bem merecidas. Se eu nunca mais voltar, é meu desejo que o regente, o Mestre Cornelius, Caça-trufas, o Texugo, e o lorde Drinian escolham um rei para Nárnia.

– Senhor – interrompeu Drinian –, vai abdicar?

– Vou com Ripchip ver o Fim do Mundo.

Um murmúrio abafado de desagrado brotou entre os marinheiros.

– Levaremos o bote – disse Caspian. – Não precisam dele nestes mares tão calmos e podem fazer outro na terra de Ramandu.

– Caspian – disse Edmundo, rápida e gravemente –, não pode fazer isso!

 – Não pode, senhor, não pode! – confirmou Drinian.

– Não posso? – disse Caspian, com dureza, parecendo por um instante seu tio Miraz.

– Perdão, Majestade – disse Rinelfo, lá embaixo no convés –, mas se algum de nós fizesse o mesmo isto se chamaria desertar.

– Você está abusando demais dos seus grandes serviços, Rinelfo – disse Caspian.

– Senhor, ele tem razão – disse Drinian.

– Pela juba de Aslam! Achava que eram todos meus súditos e não meus chefes!

– Não sou seu súdito – falou Edmundo. – E também sou de opinião de que não pode fazer isso.

– Outra vez não pode! – exclamou Caspian. – Afinal, o que querem dizer com não pode?

– Se me permite, Majestade – interveio Ripchip, curvando-se numa profunda reverência –, queremos dizer que não fará. Não pode lançar-se em aventuras como qualquer um. Se Vossa Majestade não nos atender, os homens mais fiéis ver-se-ão obrigados a desarmá-lo e prendê-lo, até que recobre o bom senso.

– De acordo – disse Edmundo. – Como Ulisses quando quis chegar perto das sereias.

A mão de Caspian já segurava a espada quando Lúcia disse:

– Prometeu à filha de Ramandu que voltaria... Caspian deteve-se. Depois gritou para todo o navio:

– Ganharam! A questão está encerrada. Voltaremos todos. Puxem outra vez o bote.

– Senhor – disse Ripchip –, não voltaremos todos. Como já expliquei antes...

– Silêncio! – trovejou Caspian. -Já recebi minhas lições. Não há ninguém que faça calar esse rato?

– Vossa Majestade prometeu ser um bom rei para todos os Animais Falantes de Nárnia – disse Ripchip.

– Para os Animais Falantes, sim. Não para os animais que falam o tempo todo.

Precipitou-se pela escada enraivecido, batendo com a porta do camarote. Mais tarde, deram com ele completamente mudado. Estava pálido e tinha lágrimas nos olhos.

– Não valeu a pena ter-me irritado tanto. Aslam falou comigo. Não quero dizer que esteve aqui, nem caberia no meu camarote. Mas aquela cabeça de leão ali na parede tomou vida e falou comigo. Foi terrível com aqueles olhos. Não estava muito zangado, apenas a princípio um pouco severo. Foi horrível de qualquer modo. Disse... Oh! Não podia ter dito coisa que doesse mais! Vocês vão continuar: Rip, Edmundo, Lúcia, Eustáquio. Tenho de voltar, sozinho. Haverá coisa pior do que isso?

– Meu bom Caspian – disse Lúcia –, você sabia que mais cedo ou mais tarde teríamos de voltar para o nosso mundo...

– Mas nunca pensei que fosse tão cedo – suspirou Caspian.

– Vai sentir-se melhor quando estiver na terra de Ramandu – disse a garota.

Caspian animou-se um pouco mais, porém a separação era dura para ambas as partes e não insisto em descrevê-la.

Cerca de duas horas mais tarde, bem aprovisionados (apesar de acharem que não precisariam comer ou beber), e levando a bordo o bote de Ripchip, o bote maior afastou-se do Peregrino pelo tapete de lírios.

O Peregrino desfraldou todas as suas bandeiras e dependurou todos os escudos, em honra à partida dos amigos. Antes de perdê-lo de vista, viram-no voltar-se e dirigir-se lentamente para o Ocidente.

Lúcia derramou algumas lágrimas, mas não sentiu tanto quanto você pode pensar. A luz, o silêncio, o odor inebriante do Mar de Prata, a própria solidão eram muito emocionantes.

Não precisavam remar, pois a corrente os impelia continuamente. Nenhum deles comeu ou bebeu. Durante toda aquela noite e no dia seguinte foram arrastados para o Oriente. Na manhã do terceiro dia – aquela claridade seria insuportável para nós, mesmo com óculos escuros – viram a maravilha. Era como se entre eles e o céu se erguesse uma parede cinzento-esverdeada, tremente, vaporosa.

Depois nasceu o sol, e seus primeiros raios, vistos através da parede, transformaram-se num deslumbrante arco-íris. Compreenderam que a parede era de fato uma enorme onda caindo sem cessar, sempre no mesmo lugar, e produzindo a mesma sensação de quando se olha da beira de uma cachoeira. Parecia ter seiscentos metros de altura, e a corrente os fazia deslizar rapidamente na direção dela.

Fortalecidos pelas águas do Mar Derradeiro, agora podiam fitar o sol nascente e distinguir coisas além dele. A oriente, além do sol, viam uma cadeia de montanhas, tão altas que seus cumes não eram visíveis. Deviam normalmente estar cobertas de gelo, mas eram verdes e quentes, com cascatas e florestas.

De súbito soprou uma brisa, franjando de espuma o alto da onda e enrugando a quietude das águas. Durou um segundo só, mas nenhuma das crianças jamais se esqueceu. Trouxe-lhes ao mesmo tempo um aroma e um som musical. Edmundo e Eustáquio nunca mais quiseram tocar no assunto. Lúcia apenas podia articular:

– Era de cortar o coração.

– Por quê? – perguntei eu. – Era assim tão triste?

– Triste nada!

Nenhum dos que se encontravam no bote duvidava de estar vendo, além do Fim do Mundo, a terra de Aslam.

No mesmo momento, com um ruído cavo, o bote encalhou. Não havia fundura suficiente.

– Daqui em diante – falou Ripchip – continuo sozinho.

Nem sequer tentaram impedi-lo, pois sentiam que parecia estar tudo destinado de antemão ou que já acontecera anteriormente. Ajudaram-no a descer o bote pequenino. Então, puxou a espada:

– Não preciso mais dela! – E lançou-a para o mar de lírios. Ao cair, ficou virada para cima, com o punho aparecendo sobre a água. Despediu-se deles, tentando parecer triste, mas estremecia de felicidade. Lúcia, pela primeira e última vez, fez o que sempre desejou fazer: tomou Rip nos braços e o acariciou. Depois, depressa, o rato pulou para o botezinho e saiu remando, ajudado pela corrente, muito escuro entre o branco dos lírios. O bote foi andando cada vez mais rápido, até que entrou triunfalmente por uma onda. Durante um escasso segundo viram Ripchip no topo da onda, depois desapareceu. Desde então ninguém mais ouviu nada sobre Ripchip, o Rato. Acredito que tenha chegado são e salvo ao país de Aslam e que lá vive até hoje.

Quando o sol nasceu, desvaneceu-se a visão das montanhas. As crianças saíram do bote e começaram a patinhar para o sul, com a parede de água à esquerda. Não sabiam por que fizeram assim; era o destino. Apesar de a bordo do Peregrino se sentirem muito crescidos, agora tinham a sensação contrária e davam-se as mãos entre os lírios.

Nunca se sentiram tão cansados. A água estava morna e era cada vez menos funda. Por fim, caminhavam na areia e depois na relva – por uma extensa planície de relva rasteira e bela, que se estendia em todas as direções, quase no mesmo nível do Mar de Prata.

Como sempre acontece em uma planura sem árvores, parecia que o céu se juntava com a relva, lá longe. Quando avançaram mais, tiveram a estranha sensação de que, pelo menos ali, o céu descia de fato e unia-se à terra – em uma parede muito azul, muito brilhante, mas real e concreta, parecendo vidro. Depois tiveram a certeza total. Estavam agora muito perto. Entre eles e a base do céu havia algo tão branco que, até mesmo com seus olhos de águia, dificilmente poderiam fitar. Continuaram e viram que era um cordeiro.

– Venham almoçar – disse o Cordeiro na sua voz doce e meiga.

Notaram que ardia sobre a relva uma fogueira, na qual se fritava peixe. Sentaram-se e comeram, sentindo fome pela primeira vez desde muitos dias. E aquela comida era a melhor de todas as que haviam provado.

– Por favor, Cordeiro – disse Lúcia –, é este o caminho para o país de Aslam?

– Para vocês, não – respondeu o Cordeiro. – Para vocês, o caminho de Aslam está no seu próprio mundo.

– No nosso mundo também há uma entrada para o país de Aslam? – perguntou Edmundo.

– Em todos os mundos há um caminho para o meu país – falou o Cordeiro. E, enquanto ele falava, sua brancura de neve transformou-se em ouro quente, modificando-se também sua forma. E ali estava o próprio Aslam, erguendo-se acima deles e irradiando luz de sua juba.

– Aslam! – exclamou Lúcia. – Ensine para nós como poderemos entrar no seu país partindo do nosso mundo.

– Irei ensinando pouco a pouco. Não direi se é longe ou perto. Só direi que fica do lado de lá de um rio. Mas nada temam, pois sou eu o grande Construtor da Ponte. Venham. Vou abrir uma porta no céu para enviá-los ao mundo de vocês.

– Por favor, Aslam – disse Lúcia –, antes de partirmos, pode dizer-nos quando voltaremos a Nárnia? Por favor, gostaria que não demorasse...

– Minha querida – respondeu Aslam muito docemente –, você e seu irmão não voltarão mais a Nárnia.

– Aslam! – exclamaram ambos, entristecidos.

– Já são muito crescidos. Têm de chegar mais perto do próprio mundo em que vivem.

– Nosso mundo é Nárnia – soluçou Lúcia. – Como poderemos viver sem vê-lo?

– Você há de encontrar-me, querida – disse Aslam.

– Está também em nosso mundo? – perguntou Edmundo.

– Estou. Mas tenho outro nome. Têm de aprender a conhecer-me por esse nome. Foi por isso que os levei a Nárnia, para que, conhecendo-me um pouco, venham a conhecer-me melhor.

– E Eustáquio voltará lá? – indagou Lúcia.

– Criança! – disse Aslam. – Para que deseja saber mais? Venha, vou abrir a porta no céu.

No mesmo instante, abriu-se uma fenda na parede azul, como se uma cortina fosse rasgada, e uma luz impressionante brotou do lado de lá do céu, e sentiram a juba e um beijo de Aslam na testa. E encontraram-se no quarto dos fundos da casa da tia Alberta.

Só falta falar de duas coisas. Uma: Caspian e os seus homens chegaram a salvo à Ilha da Estrela, onde os quatro fidalgos já tinham acordado. Foram todos para Nárnia, e Caspian casou-se com a filha de Ramandu, que se tornou uma grande rainha, mãe e avó de grandes reis. Outra: de volta ao nosso mundo, toda gente começou a dizer que Eustáquio estava melhorando muito e que não parecia o mesmo rapaz. Todos gostaram disso, menos a tia Alberta. Ela achava que Eustáquio se tornara um garoto muito comum e enfadonho, talvez devido à influência dos primos.

 

                                                                                            C. S. Lewis

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades