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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Cadeira de Prata / C. S. Lewis
A Cadeira de Prata / C. S. Lewis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA

A Cadeira de Prata

 

            

 

Eu sei onde ela está. Só pode estar choramingando atrás do ginásio. Vou pegar ela.

Jill e Eustáquio entreolharam-se, mergulharam debaixo das árvores e começaram a escalar a encosta íngreme da mata de arbustos a uma velocidade de campeões. (Devido aos curiosos métodos de ensino do Colégio Experimental, lá não se aprendia muito Matemática ou Latim, mas todos sabiam desaparecer rapidamente e sem ruído, quando eles estavam atrás de alguém.)

Depois de um minuto de correria, detiveram-se para ouvir e concluíram que continuavam sendo perseguidos.

– Se ao menos a porta estivesse aberta! – suspirou Eustáquio, e Jill concordou com a cabeça.

No fim da mata de arbustos havia um alto muro de pedra, com uma porta que dava para um terreno relvado. Essa porta quase sempre estava trancada, mas já fora encontrada aberta uma ou outra vez. Ou só uma vez, quem sabe. Mas sempre havia uma grande esperança de que não estivesse trancada. Seria a oportunidade maravilhosa para que os alunos, sem ser percebidos, escapassem dos domínios do colégio.

Jill e Eustáquio, fatigados e desarrumados, pois tinham corrido quase de gatinhas por debaixo das árvores, chegaram ofegantes ao muro. A porta, fechada, como de hábito.

– Não vai adiantar nada – disse Eustáquio, com a mão na maçaneta, para suspirar em seguida: – O-o-oh!

A porta abriu-se. E eles, que não desejavam outra coisa, agora ficaram apalermados, pois deram com uma paisagem muito diferente da que esperavam.

Esperavam encontrar uma encosta cinzenta indo juntar-se ao céu tristonho do outono. Em vez disso feriu-lhes os olhos o clarão do sol, que entrava pelo portal como a luz do verão quando se abre a porta da garagem. As gotas deslizavam como contas pela relva. Via-se melhor o rosto de Jill lambuzado de lágrimas. A luz do sol parecia chegar de um mundo diferente. Mais macia era a relva. Umas coisas reluziam no céu azul como jóias ou borboletas gigantescas.

Apesar de esperar por alguma coisa parecida, Jill sentiu-se amedrontada. Eustáquio demonstrava o mesmo dizendo com dificuldade:

– Vamos, Jill.

 Será que podemos voltar? Não há perigo? Uma voz gritou lá de trás, cheia de maldade e escárnio:

– Já sei que você está aí, Jill. Não adianta se esconder.

Era a voz de Edite, que não pertencia à turma da pesada, mas era subserviente e delatora.

– Depressa! – exclamou Eustáquio. – Segure minha mão.

Antes que ela soubesse bem o que estava acontecendo, foi puxada para fora dos domínios do colégio, dos domínios do seu país, dos domínios do mundo.

A voz de Edite sumiu de repente como se apaga a voz de um rádio que se desliga. Outro som dominou os ares. Vinha das coisas que reluziam no alto: pássaros, para dizer a verdade. Faziam um barulho de algazarra, que, no entanto, parecia música, música de vanguarda, de que a gente não gosta logo. Contudo, apesar da cantoria, havia, envolvendo tudo, uma espécie de silêncio profundo. Este, combinado à leveza do ar, levou Jill a imaginar se não estariam no cume de uma alta montanha.

Segurando a mão da menina, Eustáquio avançava. Arregalavam os olhos para todos os lados. Arvores imensas, mais altas do que cedros, erguiam-se à direita e à esquerda, deixando abertas algumas brechas para a visão. Sempre a mesma paisagem: relva lisa, pássaros de cor amarela, com azulados de libélulas, ou plumagem de arco-íris e sombreados azuis... e o vazio. Era uma floresta solitária.

Na frente não havia árvores, só o céu azul. Caminharam sem falar até que Jill ouviu a voz de Eustáquio:

– Cuidado! – E viu-se empurrada para trás. Estavam à beira de um precipício.

Jill era uma dessas meninas felizes que possuem a cabeça boa para grandes alturas. Podia parar sem tremer à beira de um abismo. Não gostou, portanto, do puxão de Eustáquio (“como se eu fosse uma criança”), e soltou a mão do companheiro. Notando que ele ficou branco, chegou a sentir desprezo:

– Que é que há? – E, para mostrar que não tinha medo, parou na beirinha do precipício (uns palmos além da própria coragem) e olhou para baixo.

Só então percebeu que Eustáquio tinha razão de ficar branco, pois não há em nosso mundo um penhasco como aquele. Imagine-se à beira do precipício mais alto que você conheça. Imagine-se olhando lá para baixo. Pense agora o seguinte: o abismo não acaba onde devia acabar, mas continua, mais fundo, mais fundo, vinte vezes mais fundo. E lá embaixo você nota umas coisinhas brancas; à primeira vista parecem carneiros; olhando melhor, descobre que são nuvens, nuvens imensas e gordas. Enfiando o olhar entre as nuvens, você consegue afinal ver um pouquinho do fundo do abismo, mas é tão distante que se torna impossível afirmar se é feito de relva, de árvores, de terra ou de água.

Jill ficou olhando de boca aberta. Não deu um passo para trás por medo do que Eustáquio iria pensar. Mas – decidiu logo – “que me importa o que ele vai pensar?” O jeito era afastar-se daquele abismo e nunca mais zombar de quem tem medo de altura. Tentou, mas não conseguiu sair do lugar. As pernas pareciam feitas de massa. Estava tudo dançando diante de seus olhos.

– Que está fazendo, Jill ? Caia fora daí, sua boboca! – gritou Eustáquio. Mas a voz parecia vir de muito longe. Sentiu que ele procurava agarrá-la. Jill, no entanto, não tinha mais o domínio dos braços e das pernas.

Houve um instante de agonia na ponta do penhasco. O medo e a tontura impediam que ela soubesse de fato o que estava fazendo, mas de duas coisas se lembraria a vida toda, e sonharia com elas: uma, de que se libertara, com um safanão, das mãos de Eustáquio; outra, de que Eustáquio, no mesmo instante, tinha perdido o equilíbrio, precipitando-se, com um grito de terror, em pleno abismo.

Felizmente não teve tempo de pensar no que havia feito. Um imenso animal de cores brilhantes apareceu à beira do precipício. Estava deitado e (coisa estranha) soprando. Não estava rugindo ou bufando: simplesmente soprando com a boca escancarada, como se fosse um aspirador de pó trabalhando para fora. Jill estava tão perto da criatura que podia sentir as vibrações no próprio corpo. Por pouco não desmaiou. E até queria desmaiar, mas o desmaio não depende da nossa vontade. Por fim, lá embaixo, viu um pontinho escuro afastando-se do penhasco, flutuando ligeiramente para cima. A medida que subia, mais se afastava, movendo-se a grande velocidade, até que Jill acabou por perdê-lo de vista. Parecia que a criatura ao lado soprava o pontinho para longe.

Virou-se e olhou. A criatura era um Leão.

 

A MISSÃO DE JILL

Sem olhar para Jill, o Leão levantou-se e deu uma última soprada. Depois, satisfeito com seu trabalho, voltou-se e entrou lentamente na floresta.

– Só pode ser um sonho, tem de ser um sonho – disse Jill para si mesma. – Vou acordar agorinha mesmo. – Mas não era sonho. – A gente nunca devia ter atravessado o portão. Duvido que Eustáquio conheça melhor este lugar do que eu. E, se conhecia, não tinha nada que me trazer para cá sem me dizer antes como era. A culpa não é minha se ele caiu no abismo. Se tivesse me deixado em paz, não teria acontecido nada. – Lembrou-se novamente do berro de Eustáquio ao cair e debulhou-se em lágrimas.

Chorar funciona mais ou menos enquanto dura. Porém, mais cedo ou mais tarde, é preciso parar de chorar e tomar uma decisão. Ao parar, Jill sentiu uma sede enorme. Havia chorado de cara contra o chão, mas agora estava sentada. As aves não cantavam mais. O silêncio seria total, não fosse um barulhinho insistente que parecia vir de longe. Ouviu com atenção e teve quase certeza de que se tratava de água corrente.

Levantou-se e olhou em torno, atenta. Nenhum sinal do Leão, mas, com tantas árvores por ali, podia ser que ele estivesse por perto. A sede era intolerável e ela juntou coragem para localizar a água. Na ponta dos pés, escondendo-se de árvore em árvore, espreitando por todos os cantos, avançou. A floresta estava tão quieta que não era difícil descobrir de onde vinha o ruído. Numa clareira corria o riacho, brilhante como um espelho. Apesar da visão da água multiplicar sua sede, não correu logo para beber. Ficou paradinha, como se fosse de pedra, boquiaberta. Motivo: o Leão estava postado exatamente à beira do riacho, cabeça erguida, patas dianteiras esticadas. Não havia dúvida de que a vira, pois olhou dentro dos olhos dela por um instante e virou-se para o lado, como se a conhecesse há muito tempo e não precisasse dar-lhe muita atenção.

Ela pensou: “Se eu correr, ele me pega; se eu ficar, ele me come.”

De qualquer forma, mesmo que tivesse tentado, não teria saído do lugar. Não tirava os olhos de cima do Leão. Quanto tempo durou isso não saberia dizer. Pareciam horas. A sede era tão forte que chegou a pensar que pouco se importaria em ser comida pelo animal, desde que desse tempo de beber um bom gole.

– Se está com sede, beba.

Eram as primeiras palavras que ouvia desde que Eustáquio falara com ela à beira do abismo. Por um segundo procurou descobrir quem falara. A voz voltou:

– Se está com sede, venha e beba.

Lembrou-se naturalmente do que dissera Eustáquio sobre os animais falantes daquele outro mundo e percebeu que era a voz do Leão. Não se parecia com a voz humana: era mais profunda, mais selvagem, mais forte. Não ficou mais amedrontada do que antes, mas ficou amedrontada de um modo diferente.

– Não está com sede? – perguntou o Leão.

– Estou morrendo de sede.

– Então, beba.

– Será que eu posso... você podia... podia arredar um pouquinho para lá enquanto eu mato a sede?

A resposta do Leão não passou de um olhar e um rosnado baixo. Era (Jill se deu conta disso ao defrontar o corpanzil) como pedir a uma montanha que saísse do seu caminho.

O delicioso murmúrio do riacho era de enlouquecer.

– Você promete não fazer... nada comigo... se eu for?

– Não prometo nada – respondeu o Leão.

A sede era tão cruel que Jill deu um passo sem querer.

– Você come meninas? – perguntou ela.

– Já devorei meninos e meninas, homens e mulheres, reis e imperadores, cidades e reinos – respondeu o Leão, sem orgulho, sem remorso, sem raiva, com a maior naturalidade.

– Perdi a coragem – suspirou Jill.

– Então vai morrer de sede.

– Oh, que coisa mais horrível! – disse Jill dando um passo à frente. – Acho que vou ver se encontro outro riacho.

– Não há outro – disse o Leão.

Jamais passou pela cabeça de Jill duvidar do Leão; bastava olhar para a gravidade de sua expressão. De repente, tomou uma resolução. Foi a coisa mais difícil que fez na vida, mas caminhou até o riacho, ajoelhou-se e começou a apanhar água na concha da mão. A água mais fresca e pura que já havia bebido. E não era preciso beber muito para matar a sede. Antes de beber, havia imaginado sair em disparada logo depois de saciada. Percebia agora que seria a coisa mais perigosa. Ergueu-se de lábios ainda molhados.

– Venha cá – disse o Leão.

E ela foi. Estava agora quase entre as patas dianteiras do Leão, olhando-o diretamente nos olhos.

Mas não agüentou isso por muito tempo e desviou o olhar.

– Criança humana – disse o Leão –, onde está o menino?

– Caiu no abismo – respondeu Jill, acrescentando: –...Senhor. – Não sabia como tratá-lo e seria uma desfeita não lhe dar tratamento algum.

– Como foi isso?

– Ele estava querendo me segurar, para eu não cair.

– Por que você chegou tão perto do abismo, criança humana?

– Eu queria fazer bonito, senhor.

– Gostei da resposta, criança. Não faça mais isso. – Pela primeira vez a face do Leão mostrou-se um pouco menos severa. – O menino está bem. Foi soprado para Nárnia. A sua missão é que ficou mais difícil.

– Qual missão, por favor?

– A missão que me fez chamá-los aqui, fora do mundo de vocês.

Jill ficou intrigadíssima, achando que o Leão a tomava por outra pessoa. Não tinha coragem de revelar isso, apesar de sentir que podia dar numa confusão medonha.

– Diga o que está pensando, criança.

– Eu estava imaginando... quer dizer... não está havendo um engano? Acontece que ninguém chamou a gente aqui. Nós é que pedimos para vir. Eustáquio disse que devíamos chamar... alguém... não me lembro do nome... e que esse alguém talvez nos deixasse entrar. Foi o que fizemos, e então encontramos a porta aberta.

– Não teriam chamado por mim se eu não houvesse chamado por vocês.

– Então o senhor é o Alguém? – perguntou Jill.

– Sim. Mas ouça qual é a sua missão. Longe daqui é o reino de Nárnia. Ali vive um velho rei, que anda em aflição por não deixar um filho, um príncipe de seu próprio sangue, que venha a ser rei depois dele. Não tem herdeiro, pois seu único filho foi seqüestrado há muitos anos. Ninguém em Nárnia sabe onde está esse príncipe ou mesmo se continua vivo. Mas está vivo. Ordeno que vocês procurem o príncipe até encontrá-lo, para trazê-lo de volta, ou até morrerem, ou até voltarem a seu próprio mundo.

– Mas como? – perguntou Jill.

– Vou lhe dizer. Estes são os sinais pelos quais hei de guiá-la na sua busca. Primeiro: logo que Eustáquio colocar os pés em Nárnia, encontrará um velho e grande amigo. Deve cumprimentar logo esse amigo; se o fizer, vocês dois terão uma grande ajuda. Segundo: vocês devem viajar para longe de Nárnia, para o Norte, até encontrarem a cidade em ruínas dos gigantes. Terceiro: encontrarão uma inscrição numa pedra da cidade em ruínas, devendo proceder como ordena a inscrição. Quarto: reconhecerão o príncipe perdido (caso o encontrem), pois será a primeira pessoa em toda a viagem a pedir alguma coisa em meu nome, em nome de Aslam.

O Leão parecia ter acabado de falar. Jill achou que devia dizer alguma coisa:

– Certo, muito obrigada.

– Criança – disse o Leão, com a voz mais amável do que antes –, talvez não esteja tão certo quanto você imagina. Seu primeiro cuidado é lembrar-se de tudo. Repita para mim, pela ordem, os quatro sinais.

Jill não se saiu muito bem. O Leão a corrigiu e fez com que repetisse outra vez, e mais outra, e mais outra, até que a menina decorou tudo direitinho. Mostrava-se pacientíssimo, e Jill teve a coragem de perguntar:

– Por favor, como é que eu vou para Nárnia?

– De sopro. Vou soprá-la para o Oeste, como soprei Eustáquio.

– Será que eu chego a tempo de contar-lhe o primeiro sinal? Aliás, acho que isso não tem importância. Se ele encontrar um velho amigo, fatalmente irá falar com ele... é ou não é?

– Você não tem tempo a perder. Tem de ir imediatamente. Venha. Caminhe até a beira do abismo.

Se não havia tempo a perder, a culpa era de Jill, e ela sabia disso. “Se eu não tivesse bancado a boba, Eustáquio e eu teríamos ido juntos, e ele também teria ouvido as instruções todas.”

Era assustador chegar à beira do abismo, principalmente porque o Leão não ia na frente, mas ao lado dela – e sem fazer o menor ruído com as patas.

Já perto do precipício, ouviu uma voz atrás de si:

– Fique quieta. Daqui a pouco soprarei. Antes de tudo, lembre-se dos sinais! Repita-os ao amanhecer, antes de dormir e, caso acordar, durante a noite. Por mais estranhos que sejam os acontecimentos, de maneira alguma deixe de obedecer aos sinais. Em segundo lugar, aviso-a de que falei, aqui na montanha, com a maior clareza: não o farei sempre em Nárnia. O ar aqui na montanha é limpo, e aqui o seu espírito também é limpo; em Nárnia, o ar será mais pesado. Cuidado para que o ar pesado não confunda seu espírito. Os sinais que aprendeu aqui surgirão sob formas bem diferentes ao depará-los lá. É importantíssimo conhecê-los de cor e desconfiar das aparências. Lembre-se dos sinais, acredite nos sinais. Nada mais importa. Agora, Filha de Eva, adeus...

A voz tornara-se mais branda ao fim da fala e agora sumira de todo. Jill olhou em torno. Para seu espanto viu o penhasco mais de cem metros lá atrás; o Leão era um pontinho dourado. Ela havia cerrado os dentes e fechado os punhos, esperando uma terrível lufada; mas o sopro do Leão foi tão delicado que ela nem chegou a notar o momento em que deixou a terra. Sentiu medo só por um instante de medo. Era tão longe o mundo lá embaixo, que não podia ter com ele a menor relação. Flutuar na respiração do Leão era uma delícia. Podia deslizar de frente ou de costas, revirar-se à vontade, como se fosse dentro d’água. Não havia vento e o ar era cálido. Sem barulho e sem turbulência, era uma sensação bem diferente do que a de viajar de avião. Parecia mais com uma viagem de balão, até melhor, mas Jill nunca entrara num balão.

Ao olhar para trás pôde avaliar a altura da montanha onde estivera. Perguntava a si mesma como uma montanha tão colossal não estava coberta de neve e gelo. Essas coisas deviam ser diferentes naquele mundo. Olhando para baixo, não podia distinguir se estava flutuando sobre o mar ou sobre a terra, tão alto estava.

– Nossa! Os sinais! – disse subitamente. – Melhor repeti-los.

Passou por um estado de pânico durante dois segundos, mas ainda era capaz de dizer os sinais com perfeição. Estava tudo bem, pensou, recostando-se no ar como se fosse um sofá e dando um suspiro de satisfação.

– Bem – disse Jill para si mesma algumas horas mais tarde –, devo confessar que dormi. Dormi no ar, veja só! Será que isso já aconteceu a alguém no mundo? Acho que não. Ora bolas, vai ver que o Eustáquio também dormiu! Nessa mesma rota, só um pouquinho antes de mim. Vou dar uma espiada lá embaixo.

Parecia uma vasta planície azul-escura. Não se percebiam montes, mas havia coisas esbranquiçadas que se moviam devagar. “Devem ser nuvens”, pensou, “mas muito maiores que as do abismo; são maiores porque estão mais perto: devo estar indo para baixo. Que sol chato!”

O sol, que estava lá no alto no começo da viagem, feria-lhe os olhos, baixando à sua frente. Eustáquio tinha razão quando disse que Jill (não sei se as meninas em geral) não era muito entendida em pontos cardeais. Se o fosse, ao sentir o sol nos olhos deveria saber que viajava na direção oeste.

Olhando a planície azul lá embaixo, notou que existiam aqui e ali uns pontos bem brilhantes, mais pálidos. “É o mar”, pensou, “os pontos devem ser ilhas.” E eram. Teria sentido inveja se soubesse que Eustáquio já havia apreciado aquelas ilhas de um navio, e até percorrido uma ou outra. Mais tarde, começou a observar pequenas rugas na planura azul; rugas que deveriam ser ondas imensas se estivesse entre elas. Juntando-se ao horizonte, estendia-se uma linha cada vez mais espessa e acentuada. Era o primeiro sinal da grande velocidade em que viajava. A linha que se acentuava, ela sabia, só podia ser a terra.

Súbito, da esquerda (pois o vento era sul), uma grande nuvem branca veio a seu encontro, na mesma altura em que ela se achava. Antes de saber onde se encontrava, mergulhou naquele nevoeiro frio e úmido. Por um instante nem conseguiu respirar. Foi piscando que encontrou, do outro lado, a luz do sol.

Suas roupas estavam molhadas: vestia um casaco esporte, suéter, saia-calça, meias e bonitos sapatos. Foi descendo, descendo, e notou com surpresa alguma coisa pela qual já devia estar esperando: ruídos. Até aquele instante viajara em absoluto silêncio. Agora, pela primeira vez, ouvia o marulhar das ondas e o grito das gaivotas. Sentia também o cheiro do mar. A terra estava cada vez mais próxima, com montanhas à frente e à esquerda. Eram baías e cabos, campos, matas e praias. O espraiar das ondas, cada vez mais intenso, abafava os demais alaridos do mar.

A terra surgiu bem à frente – estava chegando à desembocadura de um rio. Voava a poucos metros da água. A crista de uma onda golpeou-lhe os pés e a espuma molhou seu corpo. Já perdia velocidade. Deslizava na direção da margem esquerda do rio.

Havia tanta coisa para ver que era impossível observar tudo: um lindo relvado, um navio tão brilhante que parecia uma jóia imensa, torres e ameias, bandeiras agitando-se ao vento, uma multidão, roupas festivas, armaduras, ouro, espadas, música. Mas viu tudo embaralhado. A primeira coisa que percebeu com nitidez foi que estava em pé, sob ramos de árvores, à beira do rio; a poucos metros, achava-se Eustáquio.

Seu primeiro pensamento foi: “Como Eustáquio está sujo e desarrumado!” Depois: “Como estou molhada!”

 

A VIAGEM DO REI

O que fazia Eustáquio parecer tão encardido e desalinhado (e Jill também, caso se visse no espelho) era o esplendor do ambiente.

De uma brecha da montanha, a luz do sol poente jorrava sobre a relva lisa. Do outro lado da relva, com seus cata-ventos cintilando, erguia-se um castelo de numerosas torres, o mais belo que Jill já havia visto. Perto ficava um cais de mármore branco; amarrado a este, um navio alto, com o castelo de proa e a popa empinados, todo dourado e carmesim, com uma grande bandeira no mastro central e flâmulas no tombadilho; escudos prateados enfileiravam-se no cais. A prancha de embarque fora colocada e um velho preparava-se para subir a bordo. Usava luxuoso manto escarlate, deixando entrever a malha de prata. Tinha na cabeça uma pequena coroa de ouro. A barba cor de lã quase batia-lhe na cintura. Mantinha-se firme, apoiando a mão no ombro de um senhor ricamente vestido, mais novo que ele. Muito velho e frágil, parecia que uma lufada de vento poderia carregá-lo, e trazia os olhos marejados.

Na frente do rei – que se virará para falar ao povo antes de embarcar –, havia uma poltrona sobre rodas, atrelada a um burrinho pouco maior que um cachorro. Sentado na poltrona estava um anãozinho gordo, vestido com o mesmo luxo do rei. Por ser muito gordinho e estar refestelado entre almofadas, parecia uma trouxa de peles, de seda e veludo. Era tão velho quanto o rei, porém mais saudável e animado, de olhos espertos. A cabeça, sem um fio de cabelo, lembrava uma grande bola de bilhar banhada pelo crepúsculo.

Mais atrás, os nobres postavam-se num semi-círculo, com roupagens e armaduras dignas de se ver. Lembravam mais um canteiro de flores do que gente. Mas o que fez Jill abrir mesmo a boca e arregalar os olhos foi o próprio povo, se é que povo é a palavra certa. Pois só um em cinco era gente humana. Os outros eram criaturas que não vemos em nosso mundo: faunos, sátiros, centauros. Jill havia visto aquelas figuras em livros. E havia também anões, e uma porção de animais que ela conhecia bem: ursos, castores, toupeiras, leopardos, camundongos, numerosos pássaros. Pareciam, entretanto, algo diferentes dos animais que conhecemos por esses nomes. Alguns eram bem maiores; os camundongos, por exemplo, erguiam-se nas patinhas traseiras e mediam meio metro de altura. Mas não só por isso pareciam diferentes. Pela expressão de suas caras, via-se que sabiam falar e pensar como nós.

“Que coisa!”, pensou Jill. “Quer dizer que é tudo verdade! Mas... será que são amigos?” Acabara de observar nos arredores uns dois gigantes e outras criaturas que não sabia o que eram.

Foi quando se lembrou de Aslam e dos sinais.

– Eustáquio! – cochichou, agarrando-lhe o braço. – Eustáquio, rápido! Está vendo algum conhecido seu por aí?

– Ah, você de novo? – disse Eustáquio, com desagrado (tinha certa razão para isso). – Será que não pode ficar quieta? Quero escutar.

– Deixe de ser pateta, Eustáquio. Não há tempo a perder. Não está reconhecendo aqui algum velho amigo? Porque você tem de ir e falar com ele imediatamente!

– Não estou entendendo nada.

– Foi Aslam... o Leão... que mandou – disse Jill, aflita. – Estive com ele.

– Ah, esteve com ele? Que é que ele disse?

– Disse que a primeira pessoa que você ia ver em Nárnia era um velho amigo, e devia falar com ele imediatamente.

– Acontece que não há nenhum conhecido meu aqui; aliás, nem sei ainda se isto aqui é Nárnia.

– Pensei que você já tinha estado aqui antes.

– Então pensou errado.

– Pois fique sabendo que você me disse...

– Pelo amor de Deus, vamos ouvir o que eles estão dizendo.

O rei falava com o anão, mas Jill não podia ouvir o que dizia. Pelo jeito, o anão não respondeu, apesar de sacudir a cabeça várias vezes. O rei ergueu a voz e dirigiu-se a toda a multidão; mas sua voz era tão velha e trêmula que ela entendeu pouquíssimo – e ainda por cima ele falava de pessoas e lugares desconhecidos. Terminado o discurso, o rei inclinou-se e beijou o anão nas duas faces, reergueu-se, levantou a mão direita como se abençoasse o povo, e subiu para o navio com passadas incertas. Os nobres demonstravam grande emoção. Agitavam-se lenços e ouviam-se soluços por todos os lados. A prancha foi recolhida, trombetas soaram na popa, e o navio afastou-se do cais. (Estava sendo rebocado por um barco de remos, mas Jill não o viu.)

– Bem, agora... – disse Eustáquio, mas não prosseguiu, pois naquele instante uma coisa branca – Jill imaginou que fosse um papagaio de papel – veio planando e pousou aos pés do menino. Era uma coruja branca, enorme, da altura de um anão de bom tamanho.

A coruja piscou os olhos, espreitando como se fosse míope, a cabeça meio de lado. A voz era como um pio suave:

– Turru, turru! Quem são vocês?

– Meu nome é Eustáquio, esta é Jill. Poderia ter a gentileza de dizer onde estamos?

– No reino de Nárnia, no castelo real de Cair Paravel.

– Foi o rei que embarcou agora mesmo?

– Turru, turru! – confirmou a coruja, balançando a cabeça com tristeza. – Mas quem são vocês? Há alguma coisa meio encantada em vocês. Eu os vi chegando: voando. Estavam todos tão entretidos com a partida do rei que ninguém viu. Só eu. Eu vi.

– Fomos enviados por Aslam – falou Eustáquio, em voz baixa.

– Turru, turru! – exclamou a coruja, ruflando as penas. – Isso é demais para mim, e tão cedo! Minha cabeça não é muito boa antes do anoitecer.

– Fomos enviados para procurar o príncipe perdido – informou Jill, que já se achava ansiosa para entrar na conversa.

– Só estou sabendo disso agora – falou Eustáquio. – Que príncipe?

– É melhor que vocês venham logo falar com o lorde regente – disse a coruja. – É aquele lá, sentado na carruagem com o burrinho; é Trumpkin, o anão.

A ave abriu caminho, murmurando para si mesma: “Turru, turru! Não consigo pensar com clareza. É cedo demais!”

– Qual é o nome do rei? – perguntou Eustáquio.

– Caspian X – respondeu a coruja.

Jill não entendeu por que Eustáquio levou um grande susto e ficou como se se sentisse mal. Não houve tempo de fazer perguntas; já estavam perto do anão, que recolhia as rédeas, pronto para retornar ao castelo. Os nobres, dispersos, seguiam em grupos na mesma direção, como depois de um jogo de futebol.

– Turru! Alô! Lorde regente! – chamou a coruja, abaixando-se um pouco e levando o bico para perto do ouvido do anão.

– Ei? Que é que há? – perguntou o anão.

– Dois estrangeiros, senhor – respondeu a coruja.

– Escoteiros!? Que história é essa? – estranhou o anão. – Só estou vendo dois filhotes humanos. Que desejam?

– Meu nome é Jill – disse a menina, adiantando-se, doida para explicar a importante missão que os trazia.

– O nome da menina é Jill – disse a coruja, na voz mais alta possível.

– Que história é essa? Ardil? Quem fez o ardil?

– Não, meu senhor, não há nenhum ardil. É uma menina... O nome dela é Jill.

– Fale alto – disse o anão. – Não fique aí zumbindo no meu ouvido. Quem fez o ardil?

– NINGUÉM – berrou a coruja.

– Calma, calma; não é preciso berrar. Não sou tão surdo assim. Mas por que você vem me dizer que ninguém fez um ardil?

– Melhor dizer para ele que o meu nome é Eustáquio – disse o menino.

– Este, senhor, é Eustáquio.

– Batráquio? – perguntou o anão, irritado. – E isso é motivo para trazê-lo aqui? Hein?

– Não é batráquio – disse a coruja –, é EUSTÁQUIO.

– É eu ou é ele? Não estou entendendo coisa nenhuma. Vou dizer-lhe uma coisa, Plumalume... – era o nome da coruja. – Quando eu era moço, aqui neste país os animais falantes sabiam falar de verdade. Não era esse blá-blá-blá confuso. Isso não era permitido, entendeu? Urnus, traga minha corneta acústica.

O pequeno fauno, que permanecera o tempo todo quietinho ao lado do anão, estendeu-lhe uma corneta de prata. Parecia aquele instrumento musical chamado serpentão, pois o tubo tinha de ser enrolado no pescoço do anão. A coruja, ou Plumalume, cochichou para as crianças:

– Minha cabeça agora está ficando melhor. Não digam nada a respeito do príncipe desaparecido. Explicarei para ele depois. Agora ia dar tudo errado, tudo, tudo, turru, turru!

– Bem – disse o anão –, se tem alguma coisa razoável para falar, Plumalume, pode começar. Respire fundo e procure não falar depressa demais.

Com o auxílio das crianças, e a despeito de um acesso de tosse do anão, Plumalume explicou que os estrangeiros haviam sido enviados por Aslam, em visita ao reino de Nárnia. O anão logo olhou para eles com uma nova expressão.

– Enviados pelo próprio Leão? – disse ele. – E vieram... hum... daquele Outro Lugar... além do Fim do Mundo... não é?

– Exatamente, meu senhor – berrou Eustáquio na corneta.

– Filho de Adão e Filha de Eva, é ou não é?

Mas como no Colégio Experimental não se falava em Adão e Eva, Jill e Eustáquio não souberam o que responder. O anão, entretanto, não parecia ter notado o pormenor. Segurando as mãos de ambos, disse:

– Muito bem, meus caros: é uma alegria tê-los aqui. Se o meu bom rei, bom e infeliz, não tivesse acabado de partir para as Sete Ilhas, seria dele a satisfação em recebê-los. A presença de vocês teria devolvido a mocidade ao meu senhor... pelo menos por um instante, um pequeno instante. Bem, já está passando da hora do jantar. Vocês me dirão o que desejam na reunião do Conselho amanhã de manhã. Plumalume, providencie aposentos e roupas próprias e mais o que for preciso para os nossos convidados de honra. Além disso, Plumalume, chegue aqui...

O anão colocou a boca perto do ouvido da coruja, pretendendo falar em segredo; mas, como acontece com certos surdos, não dominava o volume de sua voz, e as crianças ouviram o que disse:

– Providencie também um banho caprichado para eles.

Depois disso, o anão tocou o burrinho na direção do castelo; também muito gordo, o animal partiu numa pisada que ficava entre o trote e o bamboleio. O fauno, a coruja e as crianças seguiram um pouco mais devagar. O sol escondera-se e o ar começava a ficar frio.

Atravessaram a relva e um pomar na direção do portão norte de Cair Paravel, que estava aberto. Dentro estendia-se um pátio gramado. Viam-se luzes das janelas do grande salão à direita e de outras salas à frente. Uma jovem muito simpática foi chamada para cuidar de Jill. Não era muito mais alta do que ela própria e bem mais magra, embora fosse totalmente desenvolvida. Conduziu a menina para um quarto redondo numa das torres, onde havia uma banheira embutida no chão, madeiras perfumadas queimando na lareira e um candeeiro pendurado da abóbada do teto por uma corrente de prata. A janela dava para oeste do estranho reino de Nárnia, e Jill ainda viu reflexos do sol poente fulgindo atrás de montanhas distantes. Ansiava por novas aventuras, sentindo que mal tinha começado.

Depois de tomar banho, pentear os cabelos e vestir as roupas que lhe foram separadas (que além de bonitas eram perfumadas e faziam barulhinhos gostosos quando ela se movimentava), Jill teria voltado à janela deslumbrante, mas foi interrompida por uma pancada na porta.

– Entre. – E quem entrou foi Eustáquio, muito bem lavado e magnificamente vestido com os trajes de Nárnia (dos quais, aliás, parecia não gostar muito).

Jogando-se numa cadeira, disse, meio zangado:

– Até que enfim! Estou há um tempão procurando você.

– Bem, agora já me achou. Não é formidável, Eustáquio? Nem dá para falar! – Por um instante ela havia esquecido os sinais e o príncipe desaparecido.

– Ah, acha isso? Pois acho que o melhor era a gente não ter vindo – replicou o menino.

– Mas por quê?

– Não agüento ver o rei Caspian assim velho e decrépito. É... é apavorante.

– Mas por que você sofre com isso?

– Você não pode entender. Não pode, é claro. Esqueci de contar-lhe que este mundo tem um tempo diferente do nosso.

– Troque isso em miúdos.

– O tempo que a gente passa aqui não leva tempo em nosso mundo. Entendeu? Vou explicar melhor: mesmo que fiquemos aqui durante muito tempo, quando voltarmos para o colégio será o mesmo momento em que saímos de lá...

– Que falta de graça!

– Não amole. E quando você estiver em casa... em nosso mundo... não saberá quanto tempo está passando aqui. Pode ser uma pá de anos em Nárnia e só um ano na Inglaterra. Os meus primos explicaram tudo para mim, mas banquei o bobo e me esqueci. Parece que passaram setenta anos em Nárnia depois que saí daqui. Está entendendo agora? É pavoroso voltar e descobrir que Caspian é um velhinho.

– Ah, quer dizer que o rei era amigo seu! – disse Jill, fulminada por um pensamento horrível.

– Devo confessar que era – respondeu Eustáquio, infeliz. – Amigo até demais. Da última vez, ele era só um pouquinho mais velho do que eu. Agora encontro aquele velhinho de barba branca e não me sai da cabeça a manhã em que capturamos as Ilhas Solitárias. Ou a luta com a Serpente do Mar. Oh, é de doer! É pior do que se ele estivesse morto.

– Chega! É ainda muito pior do que você imagina! – Jill mostrava toda a sua impaciência. – O caso é que já perdemos o primeiro sinal.

Eustáquio naturalmente não podia entender. Então Jill contou-lhe toda a conversa com Aslam, os quatro sinais, a missão de procurar o príncipe. E concluiu:

– Agora está entendendo? Você viu um velho amigo, exatamente como Aslam disse; devia ter ido falar com ele imediatamente. Ora, como não foi, tudo está dando errado, desde o início.

– Mas como eu podia saber?

– Muito simples: se tivesse prestado atenção quando tentei falar, estaria tudo certinho.

– Ah, é claro! E se você não tivesse bancado a idiota na beira do abismo, quase me assassinando... É isso mesmo, assassinando!... também teria dado tudo certinho...

– Foi ele a primeira pessoa que você viu, não foi? Deve ter chegado horas antes de mim. Não viu ninguém antes?

– Cheguei apenas um minuto antes de você. Ele deve tê-la soprado com mais força. Para tirar o atraso, o seu atraso.

– Deixe de ser bobão, Eustáquio... Ei, o que é isso?

Era o sino do castelo tocando para o jantar. A briga, que prometia ser das boas, foi logo interrompida, felizmente. Estavam os dois com excelente apetite.

Jamais haviam visto uma coisa tão deslumbrante. O próprio Eustáquio, que já estivera em Nárnia, passara todo aquele tempo no mar, e não chegara a conhecer o esplendor e a hospitalidade dos narnianos em seu próprio reino. As flâmulas pendiam do teto e as iguarias entravam com o som de trombetas e tímpanos. As sopas eram de dar água na boca, sem falar nos peixes fabulosos, nas finas caças, nas aves raras, nos pastéis, sorvetes, geléias, frutas, nozes, vinhos e refrescos. O próprio Eustáquio animou-se admitindo que era um banquete “pra lá de legal”.

Terminada a imensa refeição, um poeta cego contou uma história chamada O cavalo e seu menino, que se passava em Nárnia e no reino dos calormanos, na Idade de Ouro, quando Pedro era o Grande Rei em Cair Paravel. (Não tenho tempo de contá-la no momento, mas é uma história que vale a pena ouvir.)

Quando subiram para os quartos, bocejando, Jill falou:

– Aposto que a gente vai dormir feito uma pedra.

Isso mostra que jamais temos idéia do que poderá acontecer-nos daqui a pouco.

 

UMA REUNIÃO DE CORUJAS

É engraçado: quanto mais uma pessoa está com sono, mais tempo leva para cair na cama, especialmente se existe no quarto o conforto de uma lareira. Jill pensou que, se não se sentasse um tempinho diante do fogo, seria incapaz até de tirar a roupa. Sentou-se e não teve mais vontade de levantar-se, apesar de repetir para si mesma: “Vá para a cama, menina!” Foi quando se sobressaltou com um barulhinho na janela.

Ergueu-se, correu as cortinas, vendo a princípio só a escuridão lá fora. Depois deu um salto para trás: uma coisa grande lançava-se contra a janela, golpeando a vidraça. Passou-lhe pela cabeça uma idéia muito desagradável: “Imagine só se existem mariposas gigantes neste país! Ai!” Mas a coisa voltou e ela teve quase a certeza de ter visto um bico, e era este bico que golpeava a vidraça. “E um passarão”, pensou. “Será uma águia?” Não estava para visitas, nem mesmo de uma águia, mas abriu a janela e olhou. No mesmo momento, com um ruído farfalhante, a criatura pousou no peitoril, enchendo todo o vão da janela. Era a coruja.

– Quietinha! Turru, turru! Sem barulho – disse a coruja. – Agora diga-me: é verdade aquilo que disse?

– Sobre o príncipe? É, é pra valer. – Pois lembrava-se agora da cara do Leão, do qual quase se esquecera durante o banquete e a história de O cavalo e seu menino.

– Ótimo! – disse a coruja. – Então não podemos perder tempo. Tem de sair logo. Vou acordar o outro humano. Volto aqui em seguida. Melhor trocar essas roupas elegantes e vestir coisa simples para viajar. Não demoro nada. Turru, turru! – E, sem esperar resposta, partiu.

Jill, pouco habituada a aventuras, nem pensou em desconfiar da coruja: a idéia excitante de uma fuga à meia-noite fez com que esquecesse o sono. Vestiu o suéter e a saia-calça – havia no cinto um canivete que poderia ser útil –, escolhendo também algumas coisas que havia no quarto. Pegou uma capa, que lhe batia nos joelhos, um capuz (“pode chover”, pensou), alguns lenços e um pente. Sentou-se e ficou à espera. Já estava sentindo sono de novo, quando a coruja voltou para dizer:

– Estamos prontos.

– Melhor você ir na frente – disse Jill. – Ainda não conheço todas as passagens aqui.

– Turru! Está pensando que vamos por dentro do castelo? Nada disso. Tem de montar em mim. Vamos voando.

– Oh! – exclamou Jill, de boca aberta, não gostando nada da idéia. – Sou muito pesada para você.

– Turru, turru! Não seja boba. Já carreguei o outro. Vamos. Mas primeiro apague essa luz.

Apagada a luz, a noite ficou menos escura, meio cinzenta. A coruja postou-se no peitoril, de bico para fora, e abriu as asas. Jill teve de ajeitar-se sobre o corpo curto e grosso, apertando os joelhos sob as asas da ave. As penas eram quentinhas e macias, mas não havia nada em que se agarrar. Pensou: “Será que Eustáquio gostou do vôo?”

Com um assustador mergulho no vazio, ambas deixaram a janela. As asas abanavam perto das orelhas de Jill, e o ar da noite, meio frio e úmido, batia-lhe no rosto.

O céu estava encoberto, mas um fulgor prateado mostrava as nuvens que tapavam a lua. Os campos embaixo eram cinzentos; as árvores pareciam negras. O ar abafado era sinal de chuva.

A coruja deu uma volta e o castelo surgiu na frente dela. Havia poucas janelas iluminadas. Passaram por cima e cruzaram o rio. O ar ficava mais frio. Jill pensou ter visto o reflexo branco da coruja na água. Logo voavam sobre a floresta.

A coruja abocanhou qualquer coisa que Jill não podia ver.

– Por favor! Pare de sacudir desse jeito! Quase caí.

– Mil perdões. Agarrei um morcego. Não há nada mais alimentício do que um morceguinho rechonchudo. Quer que eu pegue um para você?

– Muito obrigada – respondeu Jill com um arrepio.

Voavam agora mais baixo e uma coisa escura avultava-se diante delas. Jill só teve tempo de ver que era uma torre, em parte arruinada e coberta de hera, pois logo em seguida teve de abaixar a cabeça para não bater no arco de uma janela cheia de teias de aranha. Estavam num lugar escuro e bolorento no alto da torre. No momento em que deslizou de cima da coruja, adivinhou (como às vezes acontece) que o local estava repleto. Vozes começaram a falar de todos os cantos: “Turru! Turru!” Repleto, portanto, de corujas. Foi um certo alívio quando uma voz muito diferente disse: – É você, Jill ?

– É você, Eustáquio?

– Acho que já estamos todos aqui – disse Plumalume. – Vamos dar início à sessão.

– Turru, turru! Quem está certo és tu! Aqui não tem urubu! – disseram várias vozes ao mesmo tempo.

– Peço a palavra – disse Eustáquio. – Antes de mais nada quero dizer uma coisa.

– Turru! Quem está certo és tu! – disseram as corujas.

E Jill para ele:

– Manda brasa. – Acho que os companheiros todos aqui... as corujas todas aqui não ignoram que Caspian X, no tempo da mocidade, navegou para o Extremo Oriente. Bem, tive a honra de acompanhá-lo nessa viagem, na companhia ainda de Ripchip, o rato, do fidalgo Drinian e muitos outros. Sei que parece difícil de acreditar, mas as criaturas não envelhecem em nosso mundo no mesmo ritmo que no seu mundo. O que pretendo dizer é o seguinte: sou fiel ao rei, e se esta reunião de corujas tiver qualquer caráter subversivo, minha presença aqui é um equívoco.

– Turru, turru! Somos todas fiéis ao rei, como tu!

– Então, por que motivo estamos aqui? – indagou Eustáquio.

– Muito simples – respondeu Plumalume. – Dá-se o seguinte: se o lorde regente, o anão Trumpkin, souber que vocês pretendem procurar o príncipe desaparecido, não os deixará partir. E há de mantê-los confinados, sob vigilância.

– Essa não! – exclamou Eustáquio. – Não vai dizer que Trumpkin é um traidor? Ouvi muito sobre ele, nos velhos tempos. Caspian... o rei, digo... tinha nele uma confiança absoluta.

– Mas não é isso – disse uma voz. – Trumpkin não é um traidor. O que se passa é o seguinte: mais de trinta dos nossos melhores guerreiros – centauros, bons gigantes e tantos outros – já empreenderam várias viagens em busca do príncipe. Nem um só voltou! O rei disse, por fim, que não permitiria que os mais valentes narnianos fossem aniquilados por causa de seu filho. Ninguém mais pode ir: é uma proibição real.

– Tenho certeza de que nos deixará partir – disse Eustáquio – se souber quem eu fui e quem me enviou.

– Quem nos enviou – acrescentou Jill.

– Acredito que sim – ponderou Plumalume. – Mas o rei está ausente; Trumpkin observará a letra da lei. Trata-se de um anão verdadeiro como a verdade, mas é surdo como uma porta e... uma pimentinha. Não conseguirá convencê-lo de que agora é o tempo adequado para abrir uma exceção na lei.

– Não se esqueça – observou alguém – de que ele prestaria atenção ao que disséssemos, pois somos corujas, e todos sabem como as corujas são sábias.

– É, mas agora ele está tão velho que simplesmente dirá: “Você não passa de um pinto. Eu me lembro de quando você era ainda um ovo. Não venha com lições para cima de mim. Ora bolas!”

A coruja que disse isso imitou tão bem a voz de Trumpkin, que foi uma gargalhada geral. As crian

as começaram a perceber que os narnianos olhavam para Trumpkin como alunos olham para um professor rabugento, do qual todos sentem medo, mas de quem no fundo todos gostam.

– Quanto tempo o rei passará fora? – perguntou Eustáquio.

– Ah, se eu soubesse! – respondeu Plumalume. – Há rumores de que o próprio Aslam foi visto nas ilhas (em Terebíntia, acho). O rei disse que fará tudo para vê-lo antes de morrer, a fim de aconselhar-se sobre seu sucessor ao trono. Mas receamos que ele não encontre Aslam em Terebíntia e continue a viagem até as Sete Ilhas e as Ilhas Solitárias... e siga em frente. Ele nunca se refere ao assunto, mas sabemos todos que jamais se esqueceu da viagem ao fim do mundo. No fundo do coração, deseja ir até lá outra vez.

– Assim sendo, é inútil esperar a volta do rei – disse Jill.

– Inútil! – concordou a coruja. – Oh, o que fazer? Se ao menos vocês tivessem falado com ele! Teria arranjado tudo... talvez mandaria um exército acompanhá-los.

Jill ficou calada, esperando que Eustáquio tivesse a gentileza de não contar para as corujas por que motivo isso não acontecera. Ele andou perto de contar, resmungando em voz baixa: “Culpa minha é que não foi.” Mas disse em voz alta:

– Muito bem. Temos de dar um jeito. Mas há uma coisa que desejo saber: se esta reunião é leal e acima de qualquer suspeita, por que tem de ser tão secreta, numa torre em escombros, na calada da noite?

– Turru, turru! – piaram diversas corujas. – E onde haveríamos de fazer a reunião? E não é só na calada da noite que as pessoas se encontram?

Plumalume interveio:

– Acontece que a maioria das criaturas aqui em Nárnia têm hábitos pouco naturais. Fazem coisas durante o dia, em plena luz do sol (oh!), quando todos deviam estar dormindo. Resultado: à noite ficam tão cegas e estúpidas que não se arranca delas uma só palavra. E por isso que as corujas têm o bom senso de fazer suas reuniões nas horas noturnas.

– Já vi tudo – disse Eustáquio. – Está bem, vamos continuar. Conte-nos tudo sobre o príncipe desaparecido.

Uma velha coruja, e não Plumalume, foi quem narrou a história.

Há cerca de dez anos, ao que parece, quando Rilian, filho de Caspian, era muito jovem, numa manhã de primavera, foi com a mãe a cavalo para o norte de Nárnia. Levaram consigo numerosos escudeiros e damas de companhia. Não levaram cães, pois não iam caçar, mas festejar a primavera. À tarde chegaram a uma clareira onde jorrava a água pura de uma fonte; aí descansaram, comeram, beberam e riram. Como a rainha sentisse sono, estenderam-lhe mantos na relva; o príncipe Rilian e os outros afastaram-se a fim de não despertá-la com suas risadas e conversas. Uma grande serpente surgiu da densa floresta e picou a rainha na mão. Ao ouvir o grito de dor, todos correram até ela. Rilian, espada em punho, partiu no encalço do animal, que era grande, reluzente e verde como veneno. Mas a serpente deslizou para dentro das moitas espessas e desapareceu. Ele voltou para perto da mãe, encontrando todos aflitos em torno dela. Era tarde demais.

Rilian, ao vê-la, compreendeu que nenhum médico do mundo poderia fazer qualquer coisa. Enquanto lhe restava ainda um pequeno hausto de vida, a rainha tentou dizer-lhe algo. Mas, incapaz de articular com clareza, morreu sem transmitir sua última mensagem. Tudo não durou mais que dez minutos.

A rainha morta foi transportada para Cair Pa-ravel e pranteada dolorosamente pelo filho, pelo rei e por todo o reino de Nárnia. Fora uma grande dama, cheia de sabedoria, de graça e alegria. O rei Caspian trouxera a noiva do Extremo Oriente. Diziam que corria em suas veias o sangue da estrelas.

O príncipe sofreu terrivelmente e, a partir de então, estava sempre a percorrer a cavalo as fronteiras do Norte, à caça da venenosa serpente. Ninguém dava grande atenção a isso, apesar de o príncipe voltar extenuado e agitado de suas peregrinações. Um mês depois da morte de sua mãe, entretanto, alguns passaram a notar certa mudança nele. Trazia nos olhos uma expressão de quem tivera visões; e, embora passasse todo o dia fora, seu cavalo não demonstrava se ressentir das duras caminhadas.

Seu maior amigo, entre os velhos fidalgos, era Drinian, que fora capitão do navio de seu pai na grande viagem para o Oriente.

Uma noite Drinian disse para o príncipe:

– Vossa Alteza deve cessar de caçar a serpente. Não há vingança em destruir um bruto irracional. É desperdício de energia.

O príncipe respondeu:

– Drinian, nesta última semana quase me esqueci por completo da serpente.

Drinian quis saber qual era, então, o motivo que continuava a atrair o príncipe às matas do Norte. E ele respondeu:

– Vi nas matas do Norte a criatura mais bela que jamais existiu.

– Meu bom príncipe – replicou Drinian –, permita que amanhã eu o acompanhe, para que também possa ver a bela criatura.

– Com grande prazer – concordou Rilian.

No dia seguinte, selaram os cavalos e partiram a galope para as matas, apeando na mesma clareira na qual a rainha encontrara a morte. Drinian estranhou que, dentre todos os lugares, o príncipe escolhesse aquele. Ali ficaram até o meio-dia, quando Drinian viu a mais bela criatura que jamais existiu. Estava ao pé da fonte e nada disse, mas fez um sinal para o príncipe, como se pedisse que se aproximasse. Era alta, viçosa, coberta por uma veste verde como veneno. O príncipe olhava para ela como se estivesse fora de si. Subitamente, no entanto, a dama desapareceu, sem que Drinian soubesse como. Ambos voltaram para Cair Paravel.

Drinian estava convencido de que aquela mulher fulgurante era maléfica. Pensou muito se devia ou não contar a aventura para o rei, pois não queria bancar o intrigante. Mais tarde arrependeu-se muito de ter silenciado o episódio, porque, no dia seguinte, o príncipe Rilian partiu sozinho e não voltou. Nunca mais foi visto em Nárnia, nem nas terras vizinhas. O cavalo e o manto também não foram encontrados. Penando na sua amargura, Drinian procurou o rei e disse-lhe: “Senhor, mate-me logo como grande traidor; pelo meu silêncio, causei a destruição de seu filho.” E contou-lhe tudo. Com um machete de guerra, Caspian precipitou-se sobre ele para matá-lo; Drinian esperou impassível o golpe mortal. Subitamente, porém, o rei lançou fora o machete e bradou: “Já perdi minha rainha e meu filho; devo também perder o meu amigo?” Caiu nos braços de Drinian e ambos derramaram lágrimas de dor e verdadeira amizade.

E essa a história de Rilian. E quando a coruja terminou de contá-la, Jill foi logo dizendo:

– Aposto que a serpente e a mulher eram a mesma pessoa.

– Turru, turru! – concordaram as corujas.

– Mas não acreditamos que haja assassinado o príncipe – disse Plumalume –, pois não se encontraram ossos...

– Sei disso – falou Eustáquio –, pois Aslam contou para Jill que ele está vivo em algum lugar.

– Isso é até pior – disse a mais velha das corujas. – Significa que ela dispõe do príncipe e trama algum plano terrível contra Nárnia. Há muito, muito tempo, no princípio de tudo, uma feiticeira branca, vinda do Norte, condenou nosso reino à neve e ao gelo durante cem anos. Essa outra deve ser da mesma laia.

– Muito bem – disse Eustáquio. – Jill e eu temos de encontrar o príncipe. Conto com a ajuda de vocês?

– E vocês sabem por onde começar?

– Sabemos que temos de tomar a direção norte. E sabemos que devemos atingir a cidade em ruínas dos gigantes.

Foi um turru-turru-turru por todos os cantos. As corujas começaram a falar ao mesmo tempo. Sentiam muito, mas não podiam acompanhar as crianças: “Vocês viajam de dia e nós viajamos de noite. Não dá pé, não dá pé.”

Uma coruja chegou a dizer que, mesmo ali na torre, já não estava tão escuro como no princípio. A reunião prolongara-se por muito tempo. Ao que parece, a mera menção de uma viagem à cidade em ruínas dos gigantes havia arrefecido o entusiasmo das aves. Mas Plumalume interveio:

– Se eles querem ir nessa direção... pela charneca de Ettin... devemos levá-los até um paulama. São as únicas criaturas que poderão ajudá-los de fato.

– Turru, turru! Quem está certo és tu!

– Então, vamos – disse Plumalume. – Eu levo um. Quem leva o outro? Tem de ser hoje à noite.

– Eu levo: até a terra dos paulamas! – falou outra coruja.

– Está pronta? – perguntou Plumalume para Jill.

– Acho que Jill caiu no sono – disse Eustáquio.

 

BREJEIRO

Jill estava mesmo dormindo, depois de ter bocejado o tempo todo durante a reunião. Não gostou nem um pouco de ser acordada e de se ver num campanário empoeirado e escuro, cheio de corujas. Gostou ainda menos quando ouviu que deviam partir para algum lugar que não parecia ser a cama – nas costas da coruja.

– Ora, vamos, Jill – disse Eustáquio. – É mais uma aventura, afinal de contas.

– Já estou cheia de aventuras – respondeu a menina, zangada.

Mas acabou subindo em Plumalume, e o vento frio da noite deixou-a totalmente desperta (por algum tempo). A lua sumira e não havia estrelas. Muito atrás, Jill conseguiu distinguir uma janela acesa, sem dúvida de uma das torres de Cair Paravel. Isso lhe deu saudades daquele quarto maravilhoso. Colocou as mãos sob a capa, aconchegando-se. Eustáquio, a uma certa distância, conversava com a sua coruja. “Nem parece cansado”, pensou Jill, sem saber que o clima de Nárnia devolvia ao menino a força que adquirira quando navegara com o rei Caspian pelos mares orientais.

Jill tinha de dar beliscões em si mesma para manter-se acordada, temendo escorregar e cair do dorso de Plumalume. Quando as corujas chegaram ao fim da viagem, ela pulou para o chão firme. Soprava um vento danado de frio. Não se via uma árvore.

– Turru! Turru! – chamava Plumalume. – Acorde, Brejeiro, rápido. É da parte do Leão.

Por um longo tempo não houve resposta. Depois, ao longe, surgiu uma luzinha, que começou a aproximar-se. E uma voz:

– Olá, corujas! O que há? Morreu o rei? Há inimigo em Nárnia? Enchente? Ou dragões?

A luz vinha de uma lanterna, mas Jill podia distinguir muito pouco da pessoa que a segurava. Parecia alguém feito só de pernas e braços. As corujas conversavam com ele, mas Jill estava cansada demais para prestar atenção. Tentou reanimar-se um pouquinho quando percebeu que se despediam dela. Nem mesmo mais tarde conseguiu se lembrar do que acontecera: sabia apenas que entrara com Eustáquio por uma portinha e (oh, até que enfim!) pôde estender-se sobre alguma coisa macia e quente. E de uma voz que dizia:

– Aí ficam vocês. O melhor que podemos dar. Chão frio e duro. E até úmido, é de se esperar. Não dá para tirar uma pestana, é claro, mesmo que não caia uma tempestade daquelas ou que a cabana não venha abaixo. Ajeitem-se como puderem...

Mas Jill caiu no sono antes que a voz terminasse...

Quando as crianças acordaram no dia seguinte perceberam que tinham dormido num lugar seco e quente, em camas de palha. A claridade entrava por uma abertura triangular.

– Estamos em terra? – perguntou Jill.

– Na cabana de um paulama – respondeu Eustáquio.

– Na cabana de quem?

– Um paulama. Não me pergunte o que é isso. Não consegui vê-lo ontem à noite. Vamos procurá-lo.

– Como é chato acordar hoje com a roupa de ontem – disse Jill, sentando-se.

– Engraçado: eu estava pensando como é bom a gente não ter de se vestir.

– Nem de se lavar, na certa – replicou Jill, com ar de pouco caso.

Mas Eustáquio já estava de pé, bocejando e espreguiçando-se, e logo caiu fora da cabana. Jill fez o mesmo. O que encontraram lá fora era bem diferente do pedacinho de Nárnia visto na véspera. Estavam num terreno muito plano, cheio de inumeráveis ilhazinhas, cortadas por incontáveis canais. As ilhas eram cobertas de capim e cercadas de juncos. Nuvens de aves pousavam e revoavam dos juncos: marrecos, narcejas, galinholas e garças. Viam-se por ali muitas cabanas iguais àquela em que passaram a noite, mas separadas a uma boa distância umas das outras, pois os paulamas apreciam muito a privacidade. A não ser a floresta, a muitos quilômetros de distância, não se via uma só árvore. Para o leste, o alagadiço estendia-se na direção de pequenas colinas arenosas. Ao norte ficavam outras colinas esmaecidas. O resto era alagadiço plano. Um lugar de dar tristeza numa tarde de chuva. Visto ao sol matinal, com um vento refrescante, o ar repleto com os pios das aves, era ainda um lugar solitário, mas tinha seus encantos.

As crianças ficaram mais animadas. Jill perguntou:

– Onde andará esse tal de paralama!

– Paulama – respondeu Eustáquio, orgulhoso de saber o nome certo. – Acho... olhe lá, só pode ser ele.

Viram logo o paulama, sentado de costas para eles, a uns cinqüenta metros, pescando. Não era fácil distingui-lo, assim tão quietinho e por ser quase da mesma cor do alagadiço. Disse Jill :

– Acho que o melhor é bater um papo com ele.

Sentiam-se um pouco nervosos, mas Eustáquio concordou. A medida que se aproximavam, a figurinha virou a cabeça, mostrando um rosto magro e comprido, sem barba, bochechas encovadas, boca apertada e nariz pontudo. Usava chapéu alto, pontudo como uma torre de igreja, de abas enormes. O cabelo, se é que se pode chamar de cabelo, caído sobre as grandes orelhas, tinha uma tonalidade cinza-esverdeada, e os tufos lisos lembravam juncos miúdos. A expressão era solene: via-se logo que levava a vida a sério.

– Bom dia, meus hóspedes. É verdade que quando eu digo bom dia não estou querendo dizer que não vá chover... ou nevar... ou trovejar. Aposto que vocês não conseguiram dormir nem um pouco.

– Pois dormimos muito bem – respondeu Jill. – Passamos uma noite maravilhosa.

– Ah! – replicou o paulama, sacudindo a cabeça. – Sei que você está querendo bancar a durona. Faz muito bem. Aprendeu a sorrir na desventura.

– Qual é o seu nome, por favor? — perguntou Eustáquio.

– Brejeiro. Mas não tem a menor importância se esquecerem. Não me custa nada continuar dizendo que meu nome é Brejeiro.

As crianças sentaram-se a seu lado, percebendo então que as pernas e os braços dele eram compridíssimos; apesar de o tronco não ser muito maior que o de um anão, ele devia ser, em pé, mais alto que a maioria dos homens altos. Seus dedos das mãos eram ligados por uma membrana, como os dedos de um sapo, e do mesmo jeito eram seus pés descalços, que ele balançava dentro da água lodosa. Usava roupas da cor da terra, que eram muito folgadas para ele.

– Estou tentando pegar umas enguias para fazer um cozido, mas acho que não vou pegar coisa alguma. E, mesmo que pegasse, vocês não iam gostar de enguias.

– Por que não? – perguntou Eustáquio.

– Ora, como é que vocês poderiam gostar da nossa comida? De qualquer maneira, enquanto fico aqui tentando, os dois podiam tentar acender o fogo; não custa nada tentar! Tem lenha detrás da cabana. Deve estar danada de úmida. Podem acender o fogo dentro da cabana e chorar com a fumaceira, ou podem acender o fogo do lado de fora, e aí a chuva chega e apaga tudo. Aqui está a minha binga; suponho que não saibam mexer com isso?

Mas Eustáquio aprendera essas coisas em sua aventura anterior. As crianças apanharam a madeira (que estava sequinha) e fizeram fogo mais depressa do que se costuma. Enquanto Eustáquio atiçava as chamas, Jill foi passar uma água no rosto no canal mais próximo. Depois foi a vez do menino. Sentiam-se muito melhor, mas com uma fome daquelas.

O paulama juntou-se a eles. Apesar do pessimismo, trouxe uma dúzia de enguias, já limpas. Pôs uma panela grande no fogo e acendeu um cachimbo. Os paulamas fumam um tabaco muito forte e esquisito (misturado com lama, dizem), e as crianças notaram que a fumaça não subia, pelo contrário, espalhava-se pelo chão como um nevoeiro. A fumaça escura fez Eustáquio tossir.

– Bem – disse Brejeiro –, essas enguias vão levar um tempo enorme para cozinhar; vocês são capazes de desmaiar de fome. Conheci uma menina... mas é melhor não contar essa história. Coisa que eu não gosto é de deprimir os outros. Para disfarçar a fome, podemos também falar dos nossos planos. Querem?

– Queremos! – gritou Jill. – Você pode ajudar-nos a encontrar o príncipe Rilian?

O paulama fez uma careta, encovando ainda mais as bochechas:

– Bem, não sei se vocês chamam isso de ajuda. Acho que ninguém é capaz de ajudar propriamente. O lógico é a gente não ir muito longe numa viagem para o Norte logo nesta época do ano, com o inverno na porta, e outras coisas mais... Mas não devem desanimar por causa disso: com tantos inimigos, e montanhas imensas, e rios caudalosos, e a dificuldade de achar o caminho certo, e a falta de comida, ora, com tanta coisa desagradável, nem vamos dar atenção ao frio de matar. Afinal de contas, se a gente não chegar muito longe, também não vai precisar voltar correndo.

As crianças notaram que ele falava “nós” e não “vocês”. Perguntaram então ao mesmo tempo:

– Você vem com a gente?

– Oh, vou, naturalmente, é preciso. Acho que jamais veremos o rei de novo em Nárnia, agora que partiu para o exterior. E estava tossindo muito. E depois tem o Trumpkin, que já está bastante decadente. E vocês hão de ver: após este verão de fogo, a colheita só poderá ser muito ruim. E para mim não será nenhuma surpresa se um inimigo nos atacar. Podem escrever o que digo.

– E como a gente começa? – perguntou Eustáquio.

A resposta veio com muita lentidão:

– Bem... todos os outros que procuraram o príncipe Rilian começaram pela mesma fonte onde lorde Drinian viu a dama. Quase todos foram para o Norte. Ora, como nenhum deles voltou, não podemos saber o que se passou.

– Devemos começar – falou Jill – encontrando uma cidade de gigantes, em ruínas. Foi o que disse Aslam.

– Começar encontrando, não é? – perguntou Brejeiro. – Será que não é permitido começar procurando a cidade?

– Foi exatamente o que eu quis dizer. Depois de achada a cidade...

– Ah, depois! – exclamou Brejeiro com secura.

– Ninguém sabe onde fica a cidade? – perguntou Eustáquio.

– Eu não sei de ninguém. Mas não vou dizer que nunca ouvi falar dela. Não precisam partir da fonte; vão pela charneca de Ettin. É onde fica a cidade em ruínas, se é que fica em algum lugar. Mas já fui bem longe nessa direção, como quase todo mundo, e nunca topei com ruína alguma.

– Onde fica a charneca de Ettin? – perguntou Eustáquio.

– Lá para as bandas do Norte – respondeu Brejeiro, apontando com o cachimbo. – Estão vendo aqueles montes e aquelas lascas de penedos? Pois lá é o começo de Ettin. Mas daqui para lá há um rio no meio, o rio Ruidoso. Não há pontes, é claro.

– Espero que a gente consiga vadeá-lo – falou o menino.

– Bem, já foi vadeado – admitiu o paulama.

– E talvez encontremos em Ettin quem possa ensinar-nos o caminho – disse Jill.

– Perfeito! Quem possa!...

– Que espécie de gente vive lá? – indagou Jill.

– Não cabe a mim afirmar que eles não estão certos, ao modo deles – respondeu Brejeiro.

– Mas o que são eles? – insistiu Jill. – Há tanta gente esquisita neste país! Estou perguntando se são animais, passarinhos, anões ou sei lá o quê.

O paulama deu um longo assovio:

– Fiu! Você não sabe? Pensei que as corujas tinham contado... São gigantes.

Jill estremeceu. Jamais se dera bem com gigantes, mesmo nos livros, e já se encontrara com um durante um pesadelo. Notando depois a cara de Eustáquio bastante esverdeada, achou que ele estava pior do que ela (o que a fez sentir-se mais corajosa).

– O rei há muito me disse – falou Eustáquio –, quando andei com ele pelos mares, que derrotara esses gigantes e os forçara à submissão.

– Verdade – confirmou Brejeiro. – Não estão mais em guerra conosco. Desde que fiquemos do lado de cá do rio Ruidoso, não tocarão em nós. Mas do lado de lá... Sempre pode haver um jeito. Se não chegarmos muito perto deles, se algum deles não perder a cabeça, se não formos vistos, poderemos caminhar um bom pedaço.

– Olhe aqui – disse Eustáquio, perdendo o controle, como costuma acontecer com as pessoas amedrontadas. – Não acredito na metade do que está falando; as camas da cabana também não eram tão duras nem a lenha estava molhada. Aslam não nos teria enviado se o risco fosse tão grande.

Esperou que o paulama lhe respondesse enraivecido, mas não:

– É isso aí, Eustáquio. E assim que se fala. É ver a coisa pelo lado melhor. Só que devemos ter muito cuidado com os nervos, já que teremos de atravessar tantas dificuldades juntos. Não adianta brigar, pelo menos não desde já. Sei que as expedições desse tipo acabam em geral desse modo: um esfolando o outro antes da hora. Quanto mais tempo a gente suportar...

– Bem, se é tão pouca sua esperança – interrompeu o menino –, é melhor ficar. Jill e eu podemos ir sozinhos...

– Não banque o burro, Eustáquio – atalhou a menina, apavorada com a idéia de que o paulama pudesse tomar as palavras dele ao pé da letra.

– Não tenha receio – falou Brejeiro. – E claro que eu vou. Não posso perder essa oportunidade. Só irá me fazer bem. Eles sempre dizem... os outros paulamas dizem... que eu sou muito volúvel; que não levo a vida muito a sério. Já disseram milhões de vezes: “Brejeiro, você é todo empáfia e fanfarronada, um brincalhão. Precisa aprender que a vida não é só rã e enguia na barriga, e mais nada. Precisa achar algo que lhe sofreie um pouco. Estamos falando pelo seu próprio bem, Brejeiro.” É o que dizem sempre. Pois aí está a minha sorte: uma jornada para o Norte, na hora em que o inverno está começando! À procura de um príncipe que provavelmente não se encontra lá! Passando por uma cidade em ruínas que ninguém nunca viu!... Não podia ser melhor! Se uma aventura dessas não consertar um sujeito, é porque não tem mesmo conserto.

E esfregou as mãos de sapo como se estivesse falando em ir a uma festa ou ao circo.

– E agora – acrescentou –, vamos ver como estão aquelas enguias.

Pois foi uma refeição gostosíssima. No começo o paulama não acreditou que eles poderiam gostar; quando comeram tanto que não podia haver mais dúvida, começou a achar que aquilo poderia não lhes cair bem.

– Comida de paulama, veneno para gente humana. Está na cara.

Depois tomaram chá em latas, como os operários bebem café na estrada, e Brejeiro deu umas boas goladas numa garrafa preta e quadrada. Perguntou se as crianças queriam provar, mas a coisa parecia repugnante.

O resto do dia foi empregado em preparativos para a partida na manhã seguinte, cedinho. Brejeiro, sendo de longe o mais alto, carregaria três cobertores, com um bom pedaço de toucinho enrolado dentro. Jill devia levar as sobras das enguias, uns biscoitos e a binga. Eustáquio carregaria duas capas, a dele e a dela, quando não precisassem vesti-las. Eustáquio (que aprendera a atirar um pouco na viagem ao Oriente) levou o arco número dois de Brejeiro, que ficou com o melhor, dizendo que mesmo assim (com aquele vento, com as cordas úmidas, na luz de inverno, os dedos gelados) a possibilidade de acertarem em alguma coisa era uma em cem.

Ele e Eustáquio levavam espadas. Eustáquio trouxera a que deixaram para ele no quarto em Cair Paravel. Jill teve de contentar-se com um canivete. Ia saindo briga por causa disso, mas o paulama, esfregando as mãos, foi logo dizendo:

– Já sabia disso; é o que acontece em geral quando as aventuras começam.

Calaram-se logo. E foram dormir cedo na cabana. Dessa vez a noite para as crianças não foi de fato excelente. Pois Brejeiro, depois de dizer “acho que ninguém vai fechar o olho esta noite”, começou na mesma hora a roncar alto e sem parar. Quando Jill conseguiu por fim adormecer, sonhou o resto da noite com perfuratrizes de asfalto, cachoeiras e trens expressos atravessando túneis.

 

AS TERRAS AGRESTES DO NORTE

Na manhã seguinte, às nove horas, três figuras solitárias podiam ser vistas procurando o caminho através do rio Ruidoso sobre pedras e baixios. Era um riacho raso e barulhento; nem mesmo Jill chegou a molhar mais do que o joelho quando atingiram a outra margem. Uns cinqüenta metros além, começava uma elevação de terra pedregosa e penhascos.

– Acho que é este o nosso caminho – disse Eustáquio. E apontou para a esquerda, para onde um regato descia por um desfiladeiro raso.

O paulama balançou a cabeça:

– É na encosta desse desfiladeiro que os gigantes costumam viver. Para eles, o desfiladeiro é como uma rua. Melhor seguirmos em frente, apesar de ser um pouco íngreme.

Acharam um lugar por onde podiam subir agarrando-se às pedras e, em dez minutos, chegaram ofegantes lá em cima. Deitaram um olhar saudoso para o vale de Nárnia e viraram-se para o Norte. A vasta e solitária charneca estendia-se em todas as direções. À esquerda o terreno era mais rochoso. Puseram-se a caminho.

Era uma terra boa para caminhar ao sol mortiço do inverno. A medida que adentravam na charneca, a solidão crescia: ouviam-se pios de pássaros e via-se um ou outro falcão. Na metade da manhã, pararam para descansar perto de um riacho, e Jill começou a imaginar que, afinal de contas, as aventuras podiam ser divertidas. E disse isso.

– Ainda não tivemos aventura alguma! – falou o paulama.

Caminhadas depois do primeiro descanso – assim como as manhãs na escola depois do recreio ou as viagens de trem depois da baldeação – nunca são como eram antes. Quando se puseram outra vez a caminho, Jill observou que a borda rochosa do desfiladeiro estava mais próxima. E as pedras eram menos achatadas, mais verticais, como se fossem pequenas torres. E tinham formas muito engraçadas!

“Acho”, pensou ela, “que essa história sobre os gigantes começou com essas rochas engraçadas. Se a gente chegasse aqui ao escurecer, seria facílimo tomar aquelas pedras por gigantes. Olhem aquela ali! Não custa imaginar que aquele bola de pedra em cima é uma cabeça. Uma cabeça grande demais para o corpo, mas que não ficaria de todo mal num gigante horroroso. E aquelas moitas desgrenhadas – devem ser ninhos de pássaros – passariam por cabelos e barba. E aquelas coisas penduradas de cada lado parecem mesmo orelhas. Orelhas monstruosamente grandes, mas gigante deve ter mesmo orelhas de elefante. E... ooooh!”

Ficou gelada. A coisa se mexia.

Era de fato um gigante. Não havia mais dúvida: tinha virado a cabeça. Jill chegara a perceber a cara estúpida e bochechuda. Eram gigantes, não eram rochas, aquelas coisas. Uns quarenta ou cinqüenta, enfileirados. Tinham os pés pousados no fundo do desfiladeiro e os cotovelos apoiados na borda, como fazem os preguiçosos na beirada de um muro depois do almoço.

– Em frente! – cochichou Brejeiro, que também os notara. – Não olhem para eles! Aconteça o que acontecer, não corram! Cairão em cima de nós como um raio.

E assim continuaram, fingindo que não tinham visto os gigantes. Era como atravessar o portão de uma casa onde houvesse um cachorro feroz, só que muito pior. Os gigantes não demonstravam raiva... nem bondade... nem o menor interesse. Nem davam sinal de que tinham notado os viajantes.

Aí – zim, zim, zim –, um pesado objeto veio zunindo e um grande calhau explodiu uns vinte passos na frente deles. Depois – pimba! – caiu um outro, cinco metros atrás.

– Estão apontando para nós? – perguntou Eustáquio.

– Não – respondeu Brejeiro –, e estaríamos mais seguros se estivessem. Estão tentando acertar ali, naquele monte de pedras à direita. Não vão acertar nunca. Têm uma pontaria desgraçada. Passam a manhã quase toda brincando de pontaria. É a única brincadeira que são capazes de entender.

Foi um mau pedaço. A fila de gigantes parecia não acabar nunca, e não paravam de dar pedradas. E, além do perigo real, as caras e os vozeirões já eram suficientes para apavorar qualquer um. Jill fez tudo para não olhar.

Depois de quase meia hora, os gigantes, pelo jeito, começaram a brigar. Foi o fim do concurso de pontaria, mas não é nada agradável estar a um quilômetro de gigantes brigando. Agridem e escarnecem uns dos outros com palavras sem sentido, de vinte sílabas cada uma. Berram, espumam e saltam enfurecidos, fazendo a terra estremecer. Ferem-se uns aos outros na cabeça com martelões de pedra. As cabeças são tão duras que os martelos saltam, e os monstros deixam cair o martelo e uivam de dor com os dedos machucados. Mas são tão estúpidos que voltam a repetir a mesma coisa um minuto depois.

De qualquer forma foi bom, pois depois de uma hora os gigantes estavam tão machucados que se sentaram e começaram a chorar. Sentados, ficaram com a cabeça abaixo da borda do desfiladeiro, e assim não foram mais vistos. Mas, mesmo um quilômetro à frente, Jill continuava a ouvi-los uivar e abrir o berreiro, como se fossem bebês enormes.

Acamparam naquela noite em plena charneca. Brejeiro ensinou às crianças como fazer o melhor uso dos cobertores, dormindo uma de costas para a outra. (De costas, uma aquece a outra, e podem-se jogar os dois cobertores por cima.) Mas estava gelado mesmo assim, e o chão era duro e encaroçado. Disse-lhes o paulama que, para se sentirem melhor, bastaria lembrar que seria ainda muito mais frio quando se aproximassem mais do Norte. Mas isso não serviu de consolo.

Caminharam através de Ettin por muitos dias, poupando o toucinho e alimentando-se principalmente de aves (não eram, naturalmente, aves falantes) que Eustáquio e o paulama derrubavam. Jill chegava a invejar a habilidade de Eustáquio. Como havia riachos sem conta pelo caminho, água é que não faltava. Jill lembrou-se de que nos livros, quando as pessoas se alimentam de caça, nunca se faz referência ao trabalho malcheiroso, demorado e sujo que é depenar e limpar uma ave abatida. O melhor é que não tinham encontrado mais gigantes. Um deles os viu, mas deu uma gargalhada gigantesca e continuou a tratar da vida.

Por volta do décimo dia, chegaram a um lugar no qual a paisagem mudava. Tinham atingido a borda norte da charneca, que dava para um território mais íngreme e penoso. No fundo de uma encosta havia penhas: além destas, uma terra de montanhas altas, negros precipícios, vales pedregosos, abismos tão fundos e estreitos que ficavam escuros, e rios que jorravam de gargantas ressoantes para o fundo de sinistros despenhadeiros. Não é preciso dizer que foi Brejeiro quem apontou para um punhado de neve nas encostas mais distantes.

– Mas haverá mais neve para o Norte, sem dúvida – acrescentou.

Levaram algum tempo para atingir o sopé da encosta. Olharam então do alto dos penhascos para um rio que corria embaixo, de oeste para leste. Ladeado de precipícios, era verde e sombrio, pontilhado de rápidos rios e cachoeiras. O rugido das águas estremecia a terra.

– O melhor de tudo – disse Brejeiro – é que, se quebrarmos o pescoço ao descer do penhasco, estaremos salvos de morrer afogados no rio.

– E aquilo ali? – disse Eustáquio de repente, apontando rio acima, à esquerda. Todos olharam e viram o que menos esperavam – uma ponte. E que ponte! Era um vasto e único arco transpondo o abismo e firmado no topo de dois penhascos. O ponto culminante do arco elevava-se acima dos topos à mesma altura que está da rua a abóbada de uma catedral.

– Puxa! Só pode ser uma ponte de gigantes! – exclamou Jill.

– Ou de feiticeiras, é mais provável – replicou Brejeiro. – Precisamos estar atentos aos feitiços num lugar como este. Parece uma armadilha. Aquilo pode virar névoa e sumir quando estivermos no meio da travessia.

– Oh, francamente, deixe de bancar o pé-frio – falou Eustáquio. – Por que diabo aquilo não pode ser uma ponte de verdade?

– E você acha que algum dos gigantes que vimos até agora teria cabeça para construir uma ponte como aquela? – perguntou Brejeiro.

– E não poderia ter sido construída por outros gigantes? – perguntou Jill. – Quer dizer: por gigantes que existiram há séculos e tinham muito mais cabeça que os modernos? Só podem ser os mesmos que construíram a cidade gigantesca que andamos procurando. Se é assim, devemos estar no caminho certo: a velha ponte leva à cidade velha!

– Grande idéia, Jill – disse Eustáquio. – Só pode ser isso. Vamos.

Quando chegaram em cima, verificaram que a ponte era sólida. As pedras eram enormes e deviam ter sido talhadas por bons pedreiros, embora o tempo as tivesse rachado e desconjuntado. A balaustrada já devia ter sido coberta de entalhes, dos quais restavam alguns traços: gigantes, minotauros, lulas, centopéias e divindades medonhas. Brejeiro, apesar de continuar desconfiado, decidiu atravessá-la com as crianças.

A subida até o ponto mais alto do arco era longa e penosa. Em muitos lugares as grandes pedras tinham caído, abrindo buracos apavorantes pelos quais se via, lá embaixo, o rio a espumejar. Uma águia passou voando sob os pés deles. Quanto mais subiam, mais frio sentiam, e o vento era tão forte que dificultava a caminhada. Parecia sacudir a ponte.

Do alto viram na encosta à frente os restos de uma estrada que se dirigia para o coração das montanhas. Diversas pedras do pavimento tinham desaparecido; tufos de capim cresciam entre as que ficaram. E na direção deles, a cavalo, vinham pela velha estrada duas figuras do tamanho de um adulto humano.

– Continuemos – disse Brejeiro. – Num lugar como este todo mundo deve ser inimigo, mas não devemos dar demonstração de medo.

Quando chegaram ao fim da ponte e pisaram na relva, as duas figuras estranhas estavam bem próximas. Uma era um cavaleiro com armadura completa e a viseira abaixada. A armadura e o cavalo eram negros; não havia emblema no escudo, nem flâmula na lança. A outra era uma dama montada num cavalo branco, um cavalo tão bonito que dava logo vontade de beijar-lhe o focinho e oferecer-lhe um torrão de açúcar. Mas a dama, que montava de lado e usava um comprido e esvoaçante vestido verde, era ainda mais bonita.

– Bom dia, estr-r-angeiros – murmurou a dama numa voz mais doce que o canto dos pássaros, trilando os “erres” gostosamente. – Alguns de vocês são peregrinos nesta terra agreste?

– Pode ser, madame – respondeu Brejeiro, muito empertigado, em posição defensiva.

– Estamos procurando a cidade arruinada dos gigantes – declarou Jill.

– A cidade ar-r-ruinada? – fez a dama. – Que idéia! Que pretende fazer, se encontrá-la?

– Precisamos encontrá-la... – começou Jill, logo interrompida por Brejeiro.

– Com o seu perdão, madame. Acontece, porém, que não a conhecemos, nem a senhora, nem o seu companheiro... sujeito calado, hein... e a senhora também não nos conhece. Assim, melhor não confiar a estranhos nossos negócios. Parece que vai chover, não é mesmo?

A dama riu o riso mais comunicativo, mais musical que se pode imaginar:

– Muito bem, meus filhos, parabéns pelo guia sábio e solene que possuem. Não lhes quero mal por fechar seu coração, mas eu abrirei o meu para vocês. Já ouvi muitas vezes referências à gigantesca cidade arruinada, mas jamais encontrei quem me ensinasse o caminho para lá. Esta estrada conduz ao burgo do castelo de Harfang, onde vivem gigantes amáveis. São tão bonzinhos, educados e sensatos como os de Ettin são bobos, perversos, selvagens e dados a bestialidades. Em Harfang talvez vocês possam saber qualquer coisa sobre a cidade arruinada, talvez não; de qualquer forma, lá encontrarão bons alojamentos e anfitriões amáveis. Seria mais sensato passar aí todo o inverno ou, pelo menos, permanecer alguns dias para que descansem e se recuperem. Lá encontrarão banhos de vapor, caminhas macias, grandes lareiras; e o que há de bom, assado ou cozido, doce ou salgado, estará na mesa quatro vezes por dia.

– Que beleza! – exclamou Eustáquio. – Só de pensar em dormir de novo numa cama!

– Pois é... e banho quente?! – acrescentou Jill. – Será que eles nos convidam? Nós nem os conhecemos...

– É simples – respondeu a dama. – Diga-lhes que Ela, a Dama do Vestido Verde, manda lembranças e duas crianças do Sul para a Festa do Outono.

Jill e Eustáquio ficaram comovidos:

– Muito obrigado, muito obrigado... quanta gentileza...

– De nada, meus anjos. Mas tomem um cuidado: não cheguem tarde demais em Harfang; eles fecham os portões poucas horas depois do meio-dia e não abrem para ninguém.

As crianças agradeceram mais uma vez, com os olhos a luzir, e a dama acenou-lhes adeus. O pau-lama tirou o chapéu pontudo e fez uma reverência, muito empertigado. O cavaleiro calado e a dama conduziram os cavalos para a entrada da ponte com um grande tropel de cascos.

– Pois muito bem! – falou Brejeiro. – Daria um saco de rãs para saber de onde ela vem e para onde vai. Não é o tipo que a gente espera encontrar nas vastidões dos gigantes, não é? Não pode ser boa coisa!

– Besteira! – disse Eustáquio. – Mulher fabulosa. Pense numa comida quentinha... quartos aquecidos. Só espero que Harfang não esteja muito longe.

– Também acho – disse Jíll. – E que vestido esplêndido! E o cavalo!

– E daí? – fez Brejeiro. – Se a gente soubesse um pouquinho mais sobre ela não seria nada mau.

– Pois eu ia perguntar! – disse Jill. – Mas como é que eu poderia fazer isso se você não quis contar-lhe nada a nosso respeito?

– Isso mesmo – concordou Eustáquio. – Você ficou aí feito um pedaço de pau, bancando o antipático! Não gostou deles?

– Deles? Eles quem? – estranhou o paulama. – Só vi uma pessoa.

– Vai dizer que não viu o cavaleiro? – perguntou Jill.

– Vi uma armadura. Se era ele, por que não abriu a boca?

– Deve ser tímido – explicou Jill. – Pode ser também que ele fique satisfeito só de olhar para ela, só de ficar ouvindo aquela voz linda de morrer. Eu faria o mesmo se fosse ele.

– Pois eu – replicou Brejeiro – estou só imaginando o que a gente veria levantando a viseira do elmo e olhando lá dentro.

– Deixe disso – atalhou Eustáquio. – Não viu a forma da armadura? Só podia ter uma coisa lá dentro: um homem.

– E não poderia ser um esqueleto? – perguntou o paulama, com uma entonação lúgubre. – Ou talvez, nada. Nada que fosse visível. Um alguém invisível.

– Francamente, Brejeiro – falou Jill num sobressalto. – Você tem cada idéia.

– Deixe-o para lá – disse Eustáquio. – Ele está sempre esperando o pior, e está sempre errado.

Vamos pensar nos gigantes amáveis e chegar em Harfang o mais cedo possível. Gostaria de saber a distância que nos separa do castelo.

E quase acabaram caindo numa daquelas brigas previstas por Brejeiro: Jill e Eustáquio já tinham estado às turras antes, mas agora o desentendimento era de fato sério. Brejeiro não queria ir para Harfang de maneira nenhuma. Não sabia (disse) o que significava ser “amável” na cabeçorra de um gigante. Além disso, segundo os sinais de Aslam, nada havia a respeito de hospedar-se com gigantes, amáveis ou desagradáveis. Por sua vez, as crianças (cansadas de ventanias, de chuvaradas, de aves assadas nos acampamentos, do chão duro) estavam indiscutivelmente decididas a uma visita aos gigantes amáveis. Por fim, Brejeiro acabou concordando, mas sob uma condição: os dois tinham de prometer de pedra e cal que, a não ser que a proibição fosse levantada, jamais revelariam aos gigantes de onde vinham e que estavam à procura do príncipe Rilian. A promessa foi feita e eles prosseguiram.

Depois da conversa com a dama, as coisas pioraram de duas maneiras: o caminho era muito mais áspero e cruzava vales estreitos, onde o vento norte os castigava; nada se encontrava que pudesse ser usado como lenha e não havia bons lugares para passar a noite; o terreno era todo pedregoso, causando dores nos pés durante o dia e dores no corpo todo durante a noite.

Em segundo lugar, fosse qual fosse a intenção da dama ao referir-se às delícias de Harfang, o efeito sobre as crianças não foi nada bom. Não pensavam em outra coisa, só em camas quentes, banhos, jantares, aconchego. Já nem falavam mais em Aslam ou no príncipe perdido. Jill deixou de repetir os sinais todas as noites e manhãs. A princípio, dizia para si que estava cansada demais; depois, simplesmente se esqueceu de tudo. A idéia de passar uma boa vida em Harfang, em vez de mantê-los mais felizes e animados, produziu o efeito contrário: aumentou-lhes a insatisfação, tornando-os mais impacientes e irritados.

Uma tarde chegaram finalmente a um lugar onde o desfiladeiro abria-se e escuros abetos erguiam-se de cada lado. Tinham atravessado as montanhas. Diante deles estendia-se uma planície deserta e pedregosa; além, montanhas distantes, cobertas de neve. E entre eles e as montanhas longínquas elevava-se uma pequena colina com uma chapada irregular.

– Olhem! Olhem! – gritou Jill, apontando para além da planície.

Lá, na penumbra do crepúsculo, todos viram luzes. Luzes! Não a luz da lua, nem a luz de fogueiras, mas uma acolhedora fileira de janelas iluminadas. Quem nunca atravessou dias e noites numa terra deserta, dificilmente poderá saber o que eles sentiram.

– Harfang! – bradou Eustáquio, triunfante.

– Harfang! – gritou Jill, excitada.

– Harfang – repetiu Brejeiro numa entonação sombria e aborrecida. – Mas acrescentou logo: – Oba! Gansos selvagens!

Puxou o arco do ombro num segundo e derrubou um ganso gordo. Era tarde demais para ter a esperança de alcançar Harfang naquele dia. Assim, comeram carne quente ao pé do fogo e entraram na noite mais animados. Quando o fogo se extinguiu, a noite ficou fria de doer; ao despertarem na manhã seguinte, os cobertores estavam endurecidos pela geada.

– Não se preocupem – disse Jill, batendo os pés. – Hoje à noite tem banho quente.

 

A COLINA DOS FOSSOS ESTRANHOS

É inegável que foi um dia pavoroso. No alto, um céu sem sol, abafado por nuvens pesadas de neve; embaixo, uma geada escura, e um vento que soprava como se fosse arrancar-lhes a pele. Ao chegarem à planície, perceberam que esse trecho da velha estrada estava em condições muito piores. Tinham de achar passagem entre grandes blocos partidos, entre calhaus e pedregulhos. Dura caminhada para pés doloridos. E, por mais cansados que ficassem, o frio era demais para um descanso.

Lá pelas dez horas os primeiros flocos miúdos começaram a cair nos braços de Jill. Dez minutos mais tarde caíam com mais intensidade. Mais vinte minutos e o chão ficara branco. No fim de meia hora, uma boa tempestade de neve fustigava-os, ofuscando-lhes a visão e prometendo durar o dia todo.

Para que se entenda bem o que se segue, é preciso lembrar que eles não enxergavam quase nada. E não tinham nenhuma visão panorâmica da colina que os separava do lugar onde as janelas iluminadas haviam aparecido. Tudo o que conseguiam enxergar eram uns passos adiante, e assim mesmo arregalando os olhos. Desnecessário dizer que seguiam em silêncio.

Quando atingiram o sopé da colina, perceberam qualquer coisa como rochas de ambos os lados. Se tivessem olhado atentamente, o que ninguém fez, teriam notado que se tratava de pedras quadradas. Estavam todos atentos a um rebordo que lhes barrava o caminho. Devia ter mais de um metro. O paulama, com suas pernas compridas, não teve dificuldades de subir o obstáculo, ajudando depois os outros – um problema para estes, pois a neve acumulava-se sobre o ressalto. Avançaram com dificuldade – Jill caiu uma vez – por uma extensão de uns cem metros, chegando a um segundo rebordo. Havia quatro deles a intervalos bastante irregulares.

Quando se esforçavam para transpor o quarto, não tiveram dúvida de que haviam alcançado a chapada da colina. Até ali a própria encosta servia-lhes de certa proteção; agora pegavam de cara o vento furioso. Pois a colina, por estranho que possa parecer, era mesmo tão plana quanto parecera ao longe: como se fosse uma mesa enorme açoitada à vontade pelo temporal. Em muitos lugares o gelo ainda não estava bem assentado, e o vento atirava-lhes punhados de neve no rosto. Piorando tudo, a superfície era cruzada e entrecruzada de valas, que precisavam ser transpostas.

Lutando valentemente, capuz na cabeça abaixada, mãos enfiadas no capote, Jill percebia outras coisas estranhas no alto da colina – coisas à direita e à esquerda, que lembravam vagamente chaminés de fábricas e penhascos mais eretos do que os penhascos devem ser. Mas não estava nem um pouco interessada e não deu a isso a menor atenção. Só pensava nas próprias mãos enregeladas (no nariz, nas orelhas, no queixo) e em banhos quentes e camas em Harfang.

De repente escorregou, deslizando, horrorizada, por uma fenda escura e estreita. Menos de um segundo depois, havia chegado ao fundo de uma espécie de trincheira ou fosso de um metro de largura. Apesar de estremecida pela queda, uma das primeiras coisas que sentiu foi alívio, pois livrara-se da ventania, protegida pelas paredes do fosso. Notou em seguida, é claro, as expressões aflitas de Eustáquio e Brejeiro, com os olhos arregalados lá em cima.

– Está machucada, Jill ? – gritou Eustáquio.

– No mínimo com as duas pernas quebradas – berrou Brejeiro.

Jill se pôs em pé e explicou que estava bem, mas teriam de dar-lhe um puxão para sair do buraco.

– Onde você caiu? – perguntou Eustáquio.

– Numa espécie de fosso, talvez numa espécie de corredor ou coisa parecida.

– E a coisa vai para o norte – falou Eustáquio.

– Será um caminho? Se for, a gente se livra deste vento maldito. Há muita neve aí no fundo?

– Muito pouca.

– O que existe mais na frente?

– Um segundinho. Vou dar uma espiada – disse Jill, avançando ao longo do fosso. A passagem virava-se bruscamente para a direita.

– Aonde vai dar essa curva?

Mas Jill não sentia a menor vontade de percorrer escuros labirintos subterrâneos, sobretudo depois de ouvir a voz de Brejeiro:

– Cuidado, Jill. Este lugar está com cara de caverna de dragão. Além disso, em terra de gigantes devem existir minhocas gigantescas ou gigantescas baratas.

– Acho que isso aqui não vai muito longe, não – falou Jill, voltando apressada.

– Tenho de dar uma olhada – disse Eustáquio. – O que você quer dizer com não vai muito longe?

Ele sentou-se à borda do fosso (já estavam todos muito molhados, assim não fazia a menor diferença ficar um pouco mais) e saltou lá para dentro. Empurrou Jill para trás e, embora não dissesse nada, percebeu que ela estava apavorada. Ela acompanhou Eustáquio, tendo o cuidado de não lhe passar à frente.

O esforço acabou em decepção. Dobraram o cotovelo e avançaram uns passos. Aqui havia uma alternativa: seguir ainda em frente ou virar à direita.

– Não adianta – falou Eustáquio, examinando a entrada para a direita. – Esse caminho nos levará em sentido contrário.

E seguiu em frente, encontrando logo depois um segundo caminho para a direita. A essa altura já não havia como escolher: o fosso não tinha saída.

Jill não perdeu tempo, recuando logo. O paulama, com seus braços compridos, não teve a menor dificuldade em alçá-los para fora. Mas era horrível estar lá em cima de novo. Lá embaixo, as orelhas de ambos já começavam a descongelar e por um instante puderam enxergar direito, respirar com facilidade, falar sem ser aos gritos. Era uma desgraça retornar ao frio devastador. Brejeiro escolheu justamente esse momento para dizer:

– Você ainda sabe de cor aqueles sinais, Jill? O que devemos procurar agora?

– Ora, faça-me o favor. Os sinais que se danem – protestou a menina. – Creio que é qualquer coisa sobre alguém mencionando o nome de Aslam. Mas não estou nem um pouco disposta a dar um recital de declamação aqui.

Como se vê, ela invertera a ordem dos sinais, pois deixara de repeti-los todas as noites. Se fizesse um esforço, ainda seria capaz de dizê-los: só não sabia mais a lição na ponta da língua, a ponto de ir falando os sinais sem pestanejar. A pergunta de Brejeiro aborreceu-a, pois, no fundo, já estava aborrecida consigo mesma por não saber a lição do Leão tão bem quanto deveria.

– Você deve estar embaralhando os sinais – insistiu Brejeiro. – Bem, acho que vale a pena dar uma olhada nesta colina...

– Não! – retorquiu Eustáquio. – Esta não é uma boa hora para se olhar a paisagem! Vamos em frente, caramba!

– Oh! Olhem, olhem, olhem! – gritou Jill.

Na direção norte, bem acima do lugar onde estavam, via-se uma fileira de luzes. Não havia mais dúvidas; tratava-se de janelas, janelinhas que os faziam pensar nas delícias de um quarto, e janelonas que os faziam pensar em espaçosos salões com lareiras crepitantes, sopa quente e lombos fumegantes.

– Harfang! – exclamou Eustáquio.

– Perfeito! – comentou Brejeiro. – Mas eu estava dizendo...

– Oh, cale a boca! – replicou Jill, zangada. – Não temos um minuto a perder. Não se lembra do que disse a dama? Temos de chegar cedo, temos e temos. Vai ser de morte, mesmo, se ficarmos do lado de fora numa noite como esta.

– Ainda não é bem noite... – iniciou Brejeiro. Mas as duas crianças começaram a seguir aos

trambolhões, tão depressa quanto possível. O paulama ia atrás, falando sempre, embora não fosse mais possível entender o que dizia. E nem queriam. Pensavam em banhos, camas e bebidas quentes. A idéia de um atraso era insuportável.

Apesar da pressa, levaram longo tempo para cruzar o topo da colina. Depois tiveram de descer para o outro lado. Só então tiveram a oportunidade de ver o que era Harfang.

Harfang ficava no alto de um elevado rochedo. Apesar de possuir muitas torres, parecia mais uma casa enorme que um castelo. Era evidente que os gigantes amáveis não receavam um ataque. Havia janelas no paredão externo quase rentes ao chão – coisa que não encontramos em fortalezas sérias. Havia até umas bizarras portinhas, aqui e ali, que permitiam entrar no castelo sem ter de atravessar o pátio. Isso melhorou o moral de Jill e Eustáquio. O lugar parecia mais amistoso e menos proibitivo.

A princípio, o rochedo alto e íngreme os assustara, mas reparavam agora que existia um caminho mais suave à esquerda. Foi uma escalada penosa depois da longa jornada, e Jill quase chegou a desistir; Eustáquio e Brejeiro tiveram de ajudá-la nos últimos cem metros. Finalmente pararam diante do portão do castelo. A porta levadiça estava erguida e a entrada era franca.

Por mais cansados que estejamos, é preciso ter nervos de aço para entrar na morada de um gigante. E, apesar de todas as suas advertências anteriores sobre Harfang, foi Brejeiro quem demonstrou mais coragem.

– Agora, agüentem a mão. Não mostrem sinal de medo, de jeito nenhum. Já fizemos a coisa mais imbecil do mundo vindo até aqui. Mas... já que aqui estamos, temos de fazer cara de valentes.

Com essas palavras o paulama parou debaixo do arco do portão, onde o eco poderia dar uma ajuda a sua voz, e gritou com o resto de suas energias:

– Ei! Porteiro! Gente buscando pousada!

Enquanto esperava que alguma coisa acontecesse, tirou o chapéu, sacudindo da aba uma grossa camada de neve. Eustáquio cochichou para Jill :

– Ele pode ser um pé-frio... mas não há dúvida de que é ousado.

Abriu-se a porta, deixando passar um delicioso brilho de fogo, e o porteiro apareceu. Jill mordeu os lábios para não dar um berro. Não era um gigante propriamente enorme, quer dizer, era mais alto do que uma macieira, mas menor do que um poste. Cabelos vermelhos, eriçados, uma túnica de couro com aplicações de metal, joelhos de fora (muito cabeludos) e coisas parecidas com perneiras. Inclinando-se, esbugalhou os olhos para Brejeiro:

– E que tipo de criatura é essa?

Jill tomou coragem, gritando para o gigante:

– A Dama do Vestido Verde saúda o rei dos gigantes amáveis: aqui manda duas crianças do Sul e este paulama (o nome dele é Brejeiro) para a Festa do Outono. Caso não haja, é claro, alguma inconveniência...

– Oooh! – respondeu o porteiro. – Agora é outra história. Entrem, pequeninos, entrem, por favor. Fiquem na portaria enquanto mando um recado para Sua Majestade.

E olhou para as crianças com curiosidade, acrescentando:

– Caras azuis... Não sabia que existiam caras dessa cor.

– Nossa cara está azul assim é de frio – disse Jill. – Essa não é a nossa cor de verdade.

– Então entrem e se aqueçam. Entrem, camarõezinhos.

A porta fechou-se atrás, e isso não foi nada agradável; mas tudo esqueceram ao depararem com o que mais desejavam ver desde a ceia da noite anterior – uma lareira! E que lareira! Era como se quatro ou cinco árvores inteiras ardessem lá dentro, tão quente que não foi possível dar mais do que uns passos. Deixaram-se cair pesadamente no chão de tijolos, dando grandes suspiros de alívio.

– Garoto! – disse o porteiro para um gigante que estava sentado no fundo da sala com os olhos a saltar das órbitas. – Leve correndo esta mensagem ao aposento real. – E repetiu as palavras de Jill.

O jovem gigante, depois de dar uma olhada final nas crianças e soltar uma grande risada, saiu correndo. O porteiro dirigiu-se ao paulama:

– Cá para nós, seu Sapo, acho que você está querendo algo quentinho. — E apareceu com uma garrafa preta muito parecida com a do próprio Brejeiro, só que vinte vezes maior. – Espere aí, espere aí. Se eu lhe der um cálice você vai morrer afogado. Espere aí. Este pequeno saleiro vai resolver. Mas não comente isso lá dentro.

O saleiro não se parecia muito com os nossos e serviu bem como cálice, ao ser colocado no chão do lado de Brejeiro. As crianças achavam que este ia recusar, tal era sua falta de confiança nos gigantes amáveis. Porém ele murmurou:

– É tarde demais para tomar precauções, agora que estamos presos aqui dentro. – E cheirou a bebida. – Não cheira mal. Mas isso não quer dizer nada. Melhor provar. – Deu uma golada. – Bom. Mas pode ser só o primeiro golpe. – Deu uma golada maior. – Ah! Será a mesma coisa até o fim? – Outra golada. – Lá no fundo deve ser horrível, é claro. – E bebeu o resto. Lambeu os beiços e observou para as crianças: – Isso é um teste, estão entendendo? Se eu ficar torto, ou estourar, ou virar lagartixa, ou qualquer coisa parecida, aí vocês não devem aceitar nada aqui dentro.

O gigante, que estava muito em cima para ouvir os cochichos de Brejeiro, deu uma gargalhada gigantesca e disse:

– Boa, seu Sapo, bebeu feito um homem!

– Homem coisa nenhuma! Paulama! – respondeu Brejeiro numa voz meio sumida. – E nem sapo! Paulama!

A porta abriu-se e o jovem gigante entrou:

– Eles devem ir imediatamente para a sala do trono.

As crianças puseram-se de pé, mas Brejeiro permaneceu sentado, a resmungar:

– Paulama. Paulama. Um paulama de respeito. Um paulespeito.

– Mostre a eles o caminho, garoto – disse o porteiro. – É melhor carregar o seu Sapo. Ele bebeu um pouco mais do que podia.

– Bebi coisa nenhuma! Estou bem – protestou Brejeiro. – Sapo coisa nenhuma! Paulespeito.

Mas o jovem gigante o agarrou pela cintura e fez sinal para que as crianças o seguissem. Assim, sem muita dignidade, cruzaram o pátio. Brejeiro, preso na mão do gigante, dando uns vagos chutes no ar, parecia mesmo um sapo.

Entraram no portal do castelo principal com o coração a pular. Depois de vários corredores, percorridos em acelerado, a fim de acompanhar as

passadas gigantescas, entraram piscando na luminosidade de uma sala enorme, onde lâmpadas cintilavam e o fogo crepitava na lareira, refletindo-se tudo no teto dourado.

Gigantes, que não era possível contar no momento, estavam em pé, à direita e à esquerda, todos suntuosamente vestidos. No fim da sala, em dois tronos, estavam sentadas duas coisas imensas, que deviam ser o rei e a rainha.

A uns cinco metros do trono, pararam. Eustáquio e Jill fizeram reverências desajeitadíssimas; o jovem gigante, cuidadosamente, colocou Brejeiro no chão, onde o paulama ficou mais amontoado do que sentado. Com suas pernas e braços muito compridos, parecia, para dizer a verdade, uma enorme aranha.

 

A CASA DE HARFANG

– Vá em frente, Jill, e faça o que é preciso – murmurou Eustáquio.

Ela estava com a boca tão seca que não pôde articular uma palavra. Acenou rispidamente com a cabeça apontando para Eustáquio.

Achando que jamais a perdoaria, Eustáquio passou a língua nos lábios e gritou para o rei gigante:

– Com licença de Vossa Majestade, a Dama do Vestido Verde, por intermédio de nós, manda saudações e diz que Vossa Majestade apreciaria a nossa participação na Festa do Outono.

O rei e a rainha olharam um para o outro com um ar de inteligência e sorriram de um jeito que não foi do total agrado de Jill. Estava gostando mais do rei que da rainha. Ele usava uma bela barba encaracolada, tinha um nariz de águia e, para um gigante, sua aparência até que era boa. A rainha era horrendamente gorda, tinha um queixo gordo e duplo e uma cara gorda toda empoada – o que normalmente já não é bonito, ficando dez vezes pior numa pessoa dez vezes maior. O rei botou a língua de fora e lambeu os beiços. Todo mundo faz isso: acontece porém que a língua dele era tão grande e vermelha, e pulou para fora tão inesperadamente, que a pobre Jill levou um susto.

– Oh, que boas crianças! – disse a rainha. “Vai ver, ela é que é simpática”, pensou Jill.

– Verdade, verdade! – replicou o rei. – Excelentes, excelentes crianças! São bem-vindas à minha corte. Apertem a minha mão.

Estendeu a mãozona, muito limpa e cheia de anéis, mostrando, no entanto, umas unhas pontudas. Não foi possível um aperto de mão.

– E que coisa é esta? – perguntou o rei, mostrando Brejeiro.

– Res..pei..to..la..ma – protestou Brejeiro.

– Oh! – gritou a rainha, juntando a saia até os tornozelos. – Que coisa mais horrível! Está viva!

– É uma pessoa de bem, Majestade, dou-lhe a minha palavra – interveio Eustáquio, afobado. – Gostará mais dele quando o conhecer melhor. Tenho certeza.

Espero que você não fique desapontado com Jill se eu lhe disser que, nesse momento, ela começou a chorar! Tinha seus motivos, coitada: seus pés, mãos, orelhas e nariz estavam começando a degelar; neve derretida encharcava suas roupas; não tinha comido praticamente nada durante aquele dia; e as pernas doíam tanto que ela mal se agüentava em pé. De qualquer modo, parece que foi o melhor que poderia ter feito naquele momento, pois a rainha interveio:

– Ah, coitadinha! Senhor meu rei, é uma maldade o que estamos fazendo com nossos hóspedes, deixando-os aqui em pé. Servos! Levem-nos. Precisam de comida, de vinho e de banho. Consolem a menininha com pirulitos e bonecas, tudo o que for bom – morangos com creme, bombons, passas, cantigas de ninar, brinquedos. Não chore, meu benzinho, você assim vai ficar feia para a Festa do Outono.

Jill ficou indignada com aquela referência aos brinquedos. E, embora bombons e morangos com creme não fossem nada maus, torceu para que alguma coisa mais substanciosa fosse servida. Mas a intervenção gaiata da rainha deu excelentes resultados, pois Brejeiro e Eustáquio foram imediatamente erguidos por serviçais; coube a Jill uma gigantesca dama de honra. Foram carregados para os quartos.

O de Jill era mais ou menos do tamanho de uma igreja e seria mesmo um pouco sombrio se não dispusesse de uma crepitante lareira e de um grosso tapete escarlate. Coisas deliciosas começaram a acontecer. Foi entregue aos cuidados da velha ama da rainha, que, do ponto de vista dos gigantes, era só uma mulherzinha vergada pelo tempo; do ponto de vista humano, era uma giganta que não chegava a bater com a cabeça no teto. Eficiente era, e muito. Jill só ficou desejando que ela parasse de falar coisas assim: “Que bebê mais lindo!” – “Levante o bracinho.” – “Mais um instantinho só, minha bonequinha adorada.”

Ajudou a colocar Jill na banheira. Felizmente a menina sabia nadar e aproveitou ao máximo o banho tépido. Quanto às toalhas gigantescas, por um pouquinho ásperas que sejam, também valem a pena, pois são metros e metros de pano. Nem é necessário enxugar-se nelas: basta enrolar-se e ir aproveitar as delícias da lareira. As roupas que ela vestiu, limpas, quentinhas e lindas, eram meio grandes, mas, sem dúvida nenhuma, tinham sido talhadas para gente humana e não para gigantes. O que fez Jill pensar: “Se a Dama do Vestido Verde freqüenta o palácio, eles devem estar acostumados com hóspedes do nosso tamanho.”

Viu pouco depois que estava certa a esse respeito, pois mesa e cadeira de dimensões normais para uma criatura humana adulta foram trazidas para ela; garfos, facas e colheres eram igualmente da medida humana.

Que maravilha sentar-se, sentindo-se agasalhada e limpa! De pés ainda descalços, era uma delícia andar pelo tapete gigante. Mergulhou nele até os tornozelos e não podia existir coisa melhor para pés doloridos. A refeição – que talvez deva ser chamada de jantar – consistiu em caldo, carne de peru, pastelão, castanhas assadas e frutas, à vontade.

Só houve uma coisa aborrecida: a ama entrava e saía a todo momento, trazendo de cada vez um gigantesco brinquedo, bonecas imensas (maiores do que a própria Jill ), um cavalo de pau sobre rodas (do tamanho de um elefante), um tambor (que parecia uma caixa-d’água), um carneiro de lã... Eram grosseiros, muito malfeitos e tingidos de cores berrantes. Jill, que os detestava, disse inúmeras vezes que não os queria. Mas a ama respondia:

– Tuc-tuc-tuc. Meu benzinho vai gostar de brincar quando estiver descansadinha. Sei disso, sei disso. Tic-tic-tuc. Agora caminha, bonequinha linda.

Não era uma cama gigante, apenas uma dessas camas esquisitas que ainda podem ser vistas nos hotéis fora de moda. Parecia minúscula no enorme aposento. Jill pulou alegremente para cima dela, perguntando:

– Ainda está nevando?

– Não, minha graça. Agora está chovendo. A chuva vai acabar com essa neve horrorosa. Amanhã a bonequinha vai poder brincar lá fora. – A ama ajeitou as cobertas de Jill e deu boa-noite.

Não há nada pior do que ser beijada por uma giganta, ficou pensando Jill, mas não por muito tempo, pois logo adormeceu.

A chuva caiu durante a noite toda, chicoteando as janelas do castelo. A menina não ouviu nada, dormindo profundamente até meia-noite. Quando chegou essa hora morta e só os camundongos faziam um pouco de barulho na casa dos gigantes, teve um sonho. Sonhou que tinha acordado naquele mesmo quarto, com o clarão da lareira iluminando o enorme cavalo de pau. E, por conta própria, o cavalo veio rodando em cima do tapete, parando perto de seu rosto. E já não era mais um cavalo, mas um leão tão grande quanto o cavalo. Depois não era mais um leão de brinquedo, mas um leão de verdade, o Leão de Verdade, tal qual o vira na montanha além do fim do mundo. Um cheiro bom encheu o quarto. Mas Jill estava confusa, embora não soubesse por quê, e lágrimas correram por seu rosto, molhando o travesseiro. O Leão disse-lhe que repetisse os sinais, mas ela os esquecera completamente. Foi tomada de horror. Aslam agarrou-a com as mandíbulas (ela sentia seus lábios e sua respiração, mas não os dentes) e levou-a até a janela. A lua brilhava. Em letras grandes, estampadas no mundo ou no céu (não sabia dizer ao certo), estavam estas palavras: DEBAIXO DE MIM. Aí, o sonho desapareceu. Acordou bem tarde na manhã seguinte e já não se lembrava mais do que sonhara.

Já havia tomado a primeira refeição quando a ama abriu a porta e anunciou:

– Aqui estão os amiguinhos para brincar com a bonequinha.

Entraram Eustáquio e o paulama.

– Bom dia — disse Jill. — Dormi umas quinze horas. Estou me sentindo muito melhor, e vocês?

– Eu também – respondeu Eustáquio –, mas Brejeiro queixou-se de dor de cabeça. Ei, sua janela tem um banco para olhar a vista... Se subirmos nele poderemos dar uma olhada lá fora.

E foi o que fizeram. Ao deparar com aquela visão, Jill exclamou:

– Ai, que coisa assustadora!

O sol brilhava e a neve tinha sido quase completamente lavada pela chuva. Embaixo, estendida feito um mapa, estava a chapada que tinham percorrido com tanta dificuldade na véspera. Vista do castelo, não podia haver dúvida de que se tratava das ruínas de uma cidade gigantesca. Parecera lisa porque ainda conservava um pouco da velha pavimentação. As bordas laterais eram o que sobrava das paredes de imensos edifícios, certamente palácios e templos no passado. Um pedaço de parede, com mais de cento e cinqüenta metros de altura, ainda permanecia em pé; era o que tinham tomado por um penhasco. O que parecera chaminés de fábricas eram colunas enormes, partidas em diferentes alturas; os fragmentos jaziam perto das bases como monstruosas árvores tombadas. Os rebordos que tinham galgado no lado norte da colina eram os restos dos degraus de uma escada de gigantes. Para completar, em letras grandes e escuras ao longo da pavimentação, estavam escritas estas palavras: DEBAIXO DE MIM.

Os três entreolharam-se desapontados. Depois de dar um assovio curto, Eustáquio disse o que todos estavam pensando:

– Segundo e terceiro sinais pifados.

Foi então que, de repente, Jill se lembrou do sonho. E disse, desesperada:

– A culpa é minha... Parei de repetir os sinais na hora de dormir. Se tivesse prestado atenção a eles, teria visto logo que isso aí era uma cidade, mesmo com aquela neve toda.

– Pois eu sou pior ainda – disse Brejeiro. – Eu vi que era... ou quase... Parecia mesmo uma cidade em ruínas.

– Você é o único que não tem culpa alguma – disse Eustáquio. – Tentou fazer com que a gente parasse.

– Não tentei com bastante força – replicou o paulama. – Devia ter feito isso, ora essa! Como se não fosse fácil segurar vocês!

– A verdade é a seguinte – disse Eustáquio: – A gente estava tão ansioso para chegar aqui, que não demos bola para mais nada. Eu, pelo menos. Desde o momento em que encontramos aquela mulher com o cavaleiro que não dizia bulhufas, não pensamos mais em coisa nenhuma. E quase esquecemos o príncipe Rilian.

– Para mim – comentou Brejeiro –, era isso o que a mulher estava querendo.

– O que não entendo direito – disse Jill – é a gente não ter visto o letreiro. Será que ele só apareceu depois? Será que Aslam não o colocou aí durante a noite? Tive um sonho tão esquisito!

E contou a eles o sonho. Eustáquio exclamou:

– Sua boboca! Nós vimos o letreiro! Nós andamos no letreiro. Entramos na letra E de DEBAIXO lá onde você caiu. Andamos no fundo do E, viramos primeiro à direita, a primeira perninha, depois viramos outra vez para a direita, a perninha do meio, depois fomos até o fim do E e voltamos. Como somos idiotas!

Eustáquio deu um chute e continuou:

– Nada feito, Jill. Sei o que você estava pensando porque eu estava pensando a mesma coisa. Você estava pensando como seria bom se Aslam só tivesse colocado as instruções nas pedras da cidade em ruínas depois que a gente tivesse passado. Assim, a culpa seria dele, e não nossa. Ótimo, não é? Nada disso. Temos de aceitar as coisas como elas são. A gente tinha somente quatro sinais para seguir e já falhamos nos três primeiros.

– Está querendo dizer que eu falhei! – replicou Jill. – E é a pura verdade. Estou estragando tudo desde que você me trouxe para cá. Desculpe, desculpe, desculpe, mas, de qualquer jeito, quais são as instruções? DEBAIXO DE MIM não faz muito sentido.

O paulama interveio:

– Faz! O sentido é este: devíamos ter procurado o príncipe debaixo da cidade.

– Mas como fazer isso? – perguntou Jill.

– Aí é que está – respondeu Brejeiro, esfregando as mãos de sapo. – Como fazer isso agora? Se a gente estivesse com a cabeça no lugar ao passar pela cidade em ruínas, teríamos achado um jeito, uma portinha, uma gruta ou um túnel; teríamos encontrado alguém que nos ajudasse. Pode ser que até o próprio Aslam, quem sabe. O fato é que a gente teria entrado de qualquer maneira debaixo daquelas pedras. As instruções de Aslam sempre funcionam: nunca houve uma exceção. Como fazer isso agora, é um caso completamente diferente.

Jill falou:

– Bem, já que é assim, acho que temos de voltar...

– Facílimo! – ironizou Brejeiro. – Para começar, é só tentar abrir aquela porta...

Olharam todos para a porta e viram logo que nenhum deles poderia alcançar a maçaneta. E, mesmo que pudesse, não iria ter força suficiente para virá-la.

– Quem sabe eles nos deixam sair... se pedirmos? – disse Jill.

Ninguém respondeu nada, mas todos pensaram: “E se não deixarem?”

Não era uma idéia simpática. Brejeiro tinha verdadeira repulsa por qualquer idéia que os levasse a contar aos gigantes o verdadeiro motivo da sua visita. Sem contar, não teriam decerto permissão para ir lá fora. Contar não podiam, por causa da promessa. E todos concordavam que não haveria jeito de escapar do castelo durante a noite. Com as portas dos quartos fechadas, seriam prisioneiros até o amanhecer. Poderiam, é claro, pedir que deixassem a porta aberta, mas isso iria despertar suspeitas.

– Nossa única chance – disse Eustáquio – é tentar cair fora durante o dia. Será que os gigantes não gostam de tirar uma soneca durante a tarde? Será que na cozinha não existe uma portinha aberta?

– Isso não é bem o que eu chamo de uma chance – replicou o paulama. – Mas é a única que temos.

Na verdade, o plano de Eustáquio não era tão despropositado quanto se pode pensar. Se a gente pretende sair de uma casa sem ser visto, durante a tarde é de certo modo melhor do que durante a noite. É mais provável encontrar janelas e portas abertas. Se você for apanhado, sempre pode fingir que não pretende ir longe e que está aí à toa. Mas é muito difícil fazer um gigante ou uma pessoa» grande acreditar nisso, se você for apanhado em cima da janela depois da meia-noite.

– Temos primeiro de desfazer as desconfianças

– falou Eustáquio. – Devemos fingir que adoramos estar aqui e que estamos ansiosos pela Festa do Outono.

– A festa é amanhã à noite – informou Brejeiro.

– Ouvi um deles dizendo isso.

– Já vi tudo! – exclamou Jill. – Devemos fingir que não pensamos noutra coisa. É ficar perguntando sobre a festa o tempo todo, encher de perguntar. Eles vão pensar que somos mesmo crianças, e assim ficará mais fácil.

O paulama suspirou:

– Alegres! É isso: devemos bancar os alegrões! Como se não tivéssemos a menor preocupação. Os brincalhões. Vocês dois nem sempre estão de bom humor. Já notei. Eu mostro como é ser alegre. Assim, ó... – E fez uma cara sinistra de enterro. – Se prestarem atenção em mim, não custarão a aprender. Aliás, eles já me acham muito divertido, é ou não é? Também vocês, aposto que me acharam um tiquinho bêbado ontem... Pois dou minha palavra que eu estava... bem, em grande parte... representando. Senti que isso de algum modo poderia ter utilidade.

As crianças, ao se referirem mais tarde a essas aventuras, nunca tiveram certeza de que a afirmação de Brejeiro fora realmente sincera. Mas estavam certas de uma coisa: na hora, Brejeiro estava crente de que dizia a verdade.

– Perfeitamente: alegria é a palavra de ordem – arrematou Eustáquio. – No momento, o problema é encontrar alguém que abra aquela porta. Enquanto estivermos representando e bancando os inocentes, devemos descobrir tudo o que for possível.

Nesse exato instante a porta se abriu. A ama entrou toda espalhafatosa:

– Então, meus bonecos, que tal ir ver o rei e sua corte partirem para a caça? É uma beleza!

Não perderam tempo: deixando a ama no quarto, desceram a primeira escada que apareceu. Pelo barulho dos cães de caça, das trompas e das vozes gigantescas, acharam logo o caminho do pátio. Os gigantes estavam a pé, pois não há cavalos gigantes naquelas bandas do mundo. Os cães eram do tamanho comum. Jill, não encontrando cavalos, ficou a princípio muito decepcionada, pois sabia que a rainha gordalhona de maneira alguma participaria de uma caçada a pé, e não seria nada promissor tê-la em casa o dia todo. Mas, em seguida, viu a rainha recostada numa espécie de liteira sobre os ombros de seis jovens gigantes.

Vinte ou trinta gigantes, inclusive o rei, estavam reunidos, prontos para a caça, falando e rindo numa algazarra de ensurdecer. A altura de Jill, mexendo os rabinhos, latindo, fungando, estavam os cachorros.

Brejeiro estava para assumir uma daquelas poses que só ele mesmo achava irresistivelmente alegres e descontraídas (o que poderia ter entornado o caldo), quando Jill “ligou” o seu mais adorável sorriso infantil e correu para a liteira da rainha, berrando:

– A senhora não vai embora, não é?... A senhora vai voltar?

– Claro, querida, volto logo à noitinha – respondeu a rainha.

– Oh, que bom! – gritou Jill. – E nós também iremos à festa amanhã, não é? Mal posso esperar. Que bonito aqui! rainha, enquanto a senhora estiver passeando, a gente pode correr aí pelo castelo? Por favor!

A rainha disse “pode”, mas a gargalhada dos nobres quase abafou sua voz majestosa.

 

UMA DESCOBERTA QUE VALEU A PENA

Os outros concordaram mais tarde que Jill tinha sido mesmo maravilhosa naquele dia. Assim que o rei e os outros caçadores partiram, ela começou a fazer uma visita “turística” pelo castelo, indagando tudo, mas de um jeito tão inocente e criançola que ninguém poderia suspeitar de uma intenção secreta. Apesar de falar sem parar, não se deve afirmar que conversava: tagarelava e ria infantilmente. Fez agradinhos a todo mundo: lacaios, porteiros, mucamas, damas de honra, velhos lordes gigantes que já não caçavam mais. Agüentou os beijos e os agarros de várias gigantas, muitas das quais, parecendo sentir pena dela, suspiravam “coitadinha”, sem no entanto explicar o porquê. Ficou especialmente amiga do mestre-cuca e descobriu o fato importantíssimo de que havia uma porta dando da copa para fora do castelo; não era preciso atravessar o pátio ou passar pelo grande portão de entrada.

Na cozinha bancou a gulosa, comendo todos os beliscos e raspas que o cuca e os ajudantes lhe ofereciam com satisfação. Lá em cima, entre as damas, perguntava sobre que roupa usar na grande festa, até que hora poderia ficar, se devia dançar com algum gigante pequenininho. Depois (ficava vermelhinha quando se lembrava disso mais tarde), inclinava a cabeça para um lado, toda boboca (os adultos, gigantes ou não, acham isso muito engraçadinho), e, enrolando os cachinhos e fazendo um trejeito, perguntava: “Ah, eu queria tanto que a festa fosse amanhã mesmo; você não? Vai demorar muito para chegar?” E as gigantas todas achavam isso um amor; algumas tapavam os olhos com o lenço como se fossem chorar.

– Eles são uma gracinha, nessa idade – disse uma giganta para outra. – Chega a ser uma pena...

Eustáquio e Brejeiro também se esforçaram muito, mas a verdade é que as meninas fazem esse tipo de representação muito melhor que os meninos. E os meninos ainda fazem melhor que os paulamas.

Na hora do almoço aconteceu uma coisa que os deixou ainda mais ansiosos para dar o fora. Almoçaram no grande salão numa mesinha especial, perto da lareira. Numa mesa enorme, um pouco adiante, comiam também uns seis gigantes. A conversa deles era tão barulhenta que as crianças deixaram de prestar atenção ao que diziam, do mesmo modo que a gente se “desliga” da barulhada do tráfego na rua. Estavam comendo carne fria, uma caça que Jill nunca tinha provado antes, mas estava gostando.

De repente Brejeiro virou-se para os dois, e a cara dele estava tão pálida que era possível enxergar a palidez sob o aspecto enlameado de sua fisionomia.

– Parem de comer – disse ele –, nem mais uma garfada!

– Que está acontecendo? – perguntaram.

– Não estão ouvindo o que os gigantes estão dizendo?”Que bom pernil macio”, disse um. “Então aquele cervo era um mentiroso”, disse o outro. “Por quê?”, perguntou o primeiro. “Ué, quando foi agarrado, ele implorou: ‘Não me matem, minha carne é muito dura, vocês vão detestar’.”

Jill só entendeu tudo quando Eustáquio arregalou os olhos e exclamou:

– Epa! Estamos comendo um cervo falante!

A descoberta não produziu sobre os três um efeito idêntico. Jill, que era novata naquele mundo, sentiu pena do pobre cervo e pensou horrores dos gigantes que o haviam matado. Eustáquio, que lá estivera antes e que fizera pelo menos uma grande amizade com um bicho falante, ficou indignado com aquele crime a sangue-frio. Mas Brejeiro, narniano de nascença, sentiu-se muito mal, como se sentiria um ser humano que tivesse almoçado um bebê.

– Provocamos a ira de Aslam – disse ele. – É o que acontece quando não obedecemos aos sinais. Pesa sobre nós uma maldição. O melhor que poderíamos fazer era cravar estas facas em nossos corações – se isso nos fosse concedido.

Pouco a pouco, até Jill passou a aceitar esse ponto de vista. Uma coisa foi certa: ninguém quis comer mais.

Estava chegando a hora decisiva da qual dependeria a esperança de fugir. Todos se encontravam nervosos. Postaram-se na passagem e esperaram. Os gigantes ficaram ainda um bom tempo no salão, depois de terminado o almoço. O careca contava um caso. Ao final, os três, como quem não quer nada, foram caminhando devagarzinho para a cozinha. Ainda havia uma pá de gigantes na copa, lavando e arrumando as coisas. Foi de morte esperar que terminassem o trabalho. Por fim lavaram as mãos e se foram, um atrás do outro. Só ficou na cozinha uma velha giganta, que mexia numa coisa, mexia em outra, até que os três compreenderam, horrorizados, que ela não tinha a intenção de sair.

– Bem, meus amorecos – disse ela –, façam-me um favorzinho: vejam se a porta da copa está aberta.

– Está – respondeu Eustáquio.

– Ótimo. Assim o gatinho pode entrar e sair quando quiser.

A giganta sentou-se numa cadeira, pôs os pés sobre uma banqueta, dizendo:

– Acho que vou dar um cochilo. Se a droga daquela caçada não acabar cedo demais...

As crianças se animaram quando ela se referiu ao cochilo, mas ao ouvi-la mencionar a volta dos caçadores quase desfaleceram.

– A que horas eles costumam voltar? – perguntou Jill.

– Ninguém sabe. Mas fiquem quietinhos, só um pouco, meus amorecos.

Os três foram para o fundo da cozinha, de onde teriam deslizado para a copa se a giganta não abrisse os olhos para espantar uma mosca.

– Só depois que ela estiver dormindo mesmo! – murmurou Eustáquio.

Agrupados num canto, ficaram observando. A idéia de que os gigantes poderiam chegar a qualquer momento era de arrepiar. E a giganta se revirava sem parar!

“Não agüento mais isso”, pensou Jill, procurando com os olhos alguma coisa que a distraísse. Bem em frente, estava uma mesa limpa com duas travessas e um livro aberto em cima. Travessas gigantescas, é claro. Jill achou que uma delas daria uma boa cama. Subiu no banco ao lado da mesa e deu uma espiada no livro. Leu o seguinte:

PATO ASSADO – Esta ave realmente deliciosa pode ser feita de várias maneiras.

“Um livro de receitas”, refletiu Jill sem maior interesse e espiou por cima do ombro. Os olhos da gigante permaneciam fechados, mas não demonstravam que ela estivesse de fato dormindo. Jill deu outra espiada no livro, que era escrito em ordem alfabética. Acima de pato assado, estava uma receita que fez seu coração ficar gelado.

PASTELÃO HUMANO – Este elegante bipedezinho há séculos é apreciado pela delicadeza de seu paladar. Constitui uma tradição da Festa do Outono e é servido entre o peixe e o assado. Para temperar pastelão humano...

Não conseguiu ir adiante. Virou-se. A giganta sofria um acesso de tosse. Jill deu uma cotovelada nos outros dois e apontou o livro. Ambos subiram no banco e curvaram-se sobre as páginas imensas. Eustáquio estava ainda lendo como fazer de um homem um delicioso pastelão, quando Brejeiro mostrou o que vinha logo abaixo:

PAULAMA SUPERCOZIDO – Grandes mestres da culinária não recomendam este animal para o consumo dos gigantes, por causa de sua consistência fibrosa e do sabor de lama. No entanto, esse sabor pode ser reduzido...

Jill fez aos dois um sinal. A boca da giganta estava meio aberta e de seu nariz saía um barulho que, naquele momento, era mais doce do que a música mais linda: ela roncava.

A questão agora era andar na ponta dos pés, não se afobar, respirar leve, passar pela copa (copa de gigante cheira muito mal) e ganhar a luz fraquinha de uma tarde de inverno.

Chegaram ao alto de um caminho agreste que descambava numa ladeira. Do lado direito do castelo, felizmente, podia-se ver a cidade em ruínas. Em poucos minutos encontravam-se de novo na estrada larga e íngreme que descia do portão principal do castelo. Podiam ter uma vista completa das janelas daquele lado. Se fossem umas poucas janelas teriam alguma chance de não serem vistos, mas o caso é que eram umas cinqüenta. Também percebiam agora que a estrada e toda aquela extensão do terreno entre eles e a cidade em ruínas não poderiam servir de proteção nem a uma raposa; era tudo pedra e capim. Para piorar, usavam as roupas arranjadas pelos gigantes – menos Brejeiro, para quem nada servira. Jill usava uma veste verde, de tonalidade viva, com um manto escarlate debruado de pelica branca. Eustáquio ia de calção escarlate, túnica e manto azuis, uma espada de punho– dourado e um gorro emplumado.

– Que cores mais lindas! – resmungou Brejeiro. – O pior arqueiro do universo não erraria os dois. Por falar nisso, vamos sentir falta dos nossos arcos muito em breve. Meio leves também estas roupas, não?

– Levíssimas, estou tiritando de frio – respondeu Jill.

Poucos minutos antes, lá na cozinha, ela achava que, se conseguissem escapar do castelo, estaria tudo resolvido. Agora compreendia que estava apenas no começo da parte mais perigosa da aventura.

– Ânimo firme! – falou Brejeiro. – Não olhem para trás. Sem pressa. Aconteça o que acontecer, não corram. Vamos fingir que só estamos dando uma voltinha; se encontrarmos um gigante, não é de todo impossível que ele não desconfie de nada. Mas, se parecer que estamos fugindo, estaremos fritos.

A distância até a cidade em ruínas parecia maior. Ouviram um barulho. Jill perguntou o que era.

– Trompas de caça – cochichou Eustáquio.

– Nada de correr! – falou Brejeiro. – Só quando eu mandar.

Jill não resistiu à vontade de dar uma olhadela para trás. A menos de um quilômetro, os caçadores retornavam, à esquerda.

Continuaram a passo. De repente ouviu-se um grande clamor de vozes e gritos. Brejeiro bradou:

– Já nos viram: corram!

Jill juntou as saias compridas – “Que coisa mais chata fugir desse jeito!” – e correu. Não havia engano possível. Já podia distinguir a melodia das trompas. Ouvia a voz do rei, berrando: “Peguem, peguem, não deixem fugir meus pastelões.”

Era a última na corrida, atrapalhada com o vestido, escorregando em pedras soltas, os cabelos entrando na boca, o peito doendo. E as trompas cada vez mais próximas. Tinha agora de subir a colina, galgando a encosta pedregosa que conduzia ao primeiro degrau da escada dos gigantes. Não sabia o que poderiam fazer chegando lá, mas não adiantava pensar nisso. Sentia-se uma caça: com a cachorrada atrás dela, tinha de correr até não poder mais.

O paulama ia na frente. Chegando ao primeiro degrau, deu uma parada, olhou à direita, e entrou velozmente por uma fenda; as compridíssimas pernas, quando desapareceram, fizeram lembrar outra vez uma aranha. Eustáquio, depois de certa hesitação, sumiu atrás dele. Jill, cambaleando e ofegante, chegou ao local um minuto depois. A fenda nada tinha de convidativa: aberta entre a terra e a pedra, tinha menos de um metro de comprimento e pouco mais de trinta centímetros de altura. Era preciso raspar o chão para entrar. Levava algum tempo. Jill tinha a certeza de que seu calcanhar seria agarrado por um cachorro antes de chegar lá dentro.

– Rápido. Pedras. Tampem a saída.

Era a voz de Brejeiro no escuro, a seu lado. Só chegava ao buraco a luz cinzenta que coava pela fenda. Jill ainda conseguia ver as pequenas mãos de Eustáquio e as grandes mãos de sapo de Brejeiro a empilhar grandes pedras com a rapidez do desespero. Entendeu logo a importância daquilo e começou a ajudar. Antes que os cães começassem a latir e ganir, a boca da fenda estava tampada. Agora, naturalmente, a luz se fora.

– Mais adiante, depressa – comandou a voz de Brejeiro.

– De mãos dadas – gritou Jill.

– Boa idéia – falou Eustáquio, mas não foi muito fácil encontrar as mãos no escuro.

Os cães já fungavam lá fora.

– Vamos ver se podemos ficar em pé – sugeriu Eustáquio.

Podiam. Brejeiro estendeu a mão para trás a Eustáquio, este estendeu a mão para Jill, que teria preferido mil vezes ser a do meio, e não a última. Começaram a avançar experimentando o chão com os pés e tropeçando para a frente na escuridão. Brejeiro deu com uma parede de rocha. Viraram-se um pouco para a direita e prosseguiram. Existiam outras curvas e voltinhas. Jill não tinha o menor senso de direção, ignorando por completo onde ficara a boca da caverna. Ouviu-se a voz de Brejeiro:

– O problema é saber o que seria melhor: voltar (se for possível) e proporcionar um grande prazer aos gigantes; ou enfrentar os dragões que devem existir neste buraco. De minha parte...

Tudo aconteceu num átimo. Ouviu-se um grito selvagem, um ruído de pedras despencando, e Jill viu-se a escorregar, escorregar, escorregar sem esperança, cada vez mais velozmente, por uma descida cada vez mais íngreme. E não era uma descida macia e firme, mas feita de pedrinhas e detritos. Ia escorregando mais deitada do que em pé. E quanto mais os três deslizavam para baixo, mais coisas se desconjuntavam, mais barulhento, mais empoeirado, mais precipitado ficava aquele escorregar sem fim. Jill pensou que as pedras que ela ia descolando ao passar deviam estar machucando horrivelmente Eustáquio e Brejeiro. Deslizando a uma velocidade espantosa, estava certa de que se partiria em pedacinhos quando chegasse ao fundo.

Nem tanto. Ela tinha ferimentos por todo o corpo, é verdade, e a coisa espessa e úmida em seu rosto parecia sangue. Havia tanta terra, tanta pedra e tanta coisa ao redor dela, e até em cima, que não conseguiu levantar-se. A escuridão era tanta que dava no mesmo abrir ou fechar os olhos. Silêncio absoluto.

Foi o pior momento da vida de Jill, que se pôs a imaginar se estaria ali sozinha... se os outros...

Percebeu movimentos perto. Os três começaram, com a voz trêmula, a verificar se alguém tinha quebrado algum osso.

– A gente não vai ficar em pé nunca mais – disse a voz de Eustáquio.

– Já notaram como está quentinho aqui? – Era a voz de Brejeiro. – Devemos ter escorregado um bocado, um quilômetro, por aí.

Depois de um silêncio, voltou a voz de Brejeiro:

– Minha binga sumiu.

Nova longa pausa. A voz de Jill :

– Estou com uma sede danada.

Nenhuma sugestão. Não havia nada a fazer: isso era óbvio. Por enquanto, não se sentiam tão horrorizados quanto seria de se esperar: é porque se encontravam exaustos.

Muito tempo depois, sem o menor aviso, ouviu-se uma voz completamente estranha. Sentiram logo que não era a única voz no mundo pela qual secretamente esperavam: a voz de Aslam. Era uma voz escura, monótona e cavernosa, que perguntou:

– Que fazem aqui, criaturas do Mundo de Cima?

 

VIAGEM SEM SOL

– Quem está aí? – bradaram os três.

– Sou o guardião do Submundo e comigo estão armados cem terrícolas – foi a resposta. – Digam logo: quem são vocês e qual a missão que os traz ao Reino Profundo?

– Caímos aqui sem querer – disse Brejeiro, com toda a sinceridade.

– Muitos caem e poucos retornam às terras ensolaradas – replicou a voz. – Preparem-se: irão comigo à rainha do Reino Profundo.

– Ela deseja alguma coisa de nós? – perguntou Eustáquio, cauteloso.

– Não sei – respondeu a voz. – A ela não fazemos perguntas: obedecemos.

Enquanto dizia essas palavras, ouviu-se o barulho de uma pequena explosão, e uma luz fria, cinzenta e um tanto azulada invadiu a caverna. A esperança de que o porta-voz estivesse só contando vantagem a respeito dos cem homens armados morreu no momento. Jill viu-se de olhos pregados numa multidão compacta. Eram de todos os tamanhos, desde pequenos gnomos que mal chegavam a trinta centímetros de altura a figuras imponentes, mais altas que um homem. Todos carregavam forcados e eram horrendamente pálidos e imóveis quais estátuas. Afora isso eram todos diferentes: alguns tinham rabo, outros não; alguns usavam grandes barbas; outros tinham o rosto redondo e liso, grande como uma abóbora. Havia narizes compridos e pontudos, narizes moles e compridos como pequenas trombas e narigões embolotados. Vários deles tinham um chifre no meio da testa. Mas, sob um aspecto, eram todos parecidos: ninguém seria capaz de imaginar expressões tão tristes. Eram tão tristes que, depois do primeiro susto, Jill quase se esqueceu de ter medo deles. Sentia até certa vontade ou obrigação de animá-los um pouco.

– Bem! – interveio Brejeiro, esfregando as mãos. – É disso que estou precisando. Se esses caras não me ensinarem a levar a vida a sério, não sei quem seria capaz disso. Olhem só aquele ali com bigode de foca... ou aquele outro...

– Sentido! – comandou o chefe dos terrícolas. Não havia mais nada a fazer. Os três viajantes perfilaram-se e tocaram-se nas mãos. Precisamos encontrar uma mão amiga num momento como esse. Os terrícolas cercaram-nos, pisando com pés grandes e moles; alguns pés tinham dez dedos, outros doze, outros nenhum.

– Marchem – comandou o guardião. E eles marcharam.

A luz fria vinha de uma grande bola na ponta de um varapau, conduzido à frente do batalhão pelo mais alto dos gnomos. Sob essa luz nada estimulante, puderam reparar que se encontravam numa gruta natural, cujas paredes e teto se retorciam em mil formas fantásticas.

O chão pedrento ia descendo à medida que avançavam.

Era pior para Jill que para os outros: ela tinha horror a escuridão e a grutas. Então, quando a caverna ficou mais baixa e mais estreita, e o porta-luz colocou-se de lado, enquanto os anões agachavam-se (todos, menos os menorzinhos) e desapareciam numa pequena fenda escura, ela sentiu que não ia agüentar mais.

– Não posso entrar aí! Não posso! Não posso! Não entro! – gritou.

Os terrícolas nada disseram, só apontaram as lanças para ela.

– Agüente firme, Jill – falou o paulama. – Esses caras maiores não iam entrar nesse buraco se ele não se alargasse mais adiante. E há uma vantagem nessa coisa de subterrâneo: chuva não teremos.

– Oh, você não entende; eu não posso.

– Lembre-se do que eu senti naquele penhasco, Jill – falou Eustáquio. – Você vai na frente, Brejeiro, e eu vou atrás dela.

– Perfeito – respondeu o paulama, pondo-se de joelhos e mãos no chão. – Você toca em meus calcanhares, Jill, e Eustáquio toca nos seus. Assim nos sentiremos mais seguros.

– Seguros! – exclamou Jill entrando afinal na fenda.

Que lugar mais repugnante! Foi preciso quase arrastar o rosto no chão por um tempo que pareceu meia hora, embora não tivesse sido de fato mais do que cinco minutos. E como era quente ali; Jill sentiu-se sufocada. Por fim uma luzinha apareceu à frente; o túnel foi ficando mais largo e mais alto e eles chegaram, sujos e avermelhados, a uma caverna tão vasta que nem parecia uma caverna.

Era banhada por uma luminosidade vaga e modorrenta; já não precisavam da estranha lanterna dos terrícolas. O chão, com uma espécie de musgo, era macio, e dele cresciam muitas formas estranhas, altas e cheias de ramos como as árvores, mas com a consistência de cogumelos. A luz, cinza-esverdeada, parecia irradiar dessas formas e do musgo, e não dava para iluminar o teto da gruta, que devia estar muito lá no alto. Seguiam agora por esse lugar macio e sonolento. E muito triste, mas de uma tristeza que traz quietude, como certas músicas suaves.

Passaram por dezenas de animais esquisitos estendidos sobre a relva, mortos ou adormecidos. Muitos lembravam dragões e morcegos, mas Brejeiro não sabia distingui-los.

– Esses bichos são daqui mesmo? – Eustáquio perguntou ao guardião. Este mostrou-se muito surpreso por lhe terem dirigido a palavra, mas respondeu:

– Não. São bichos que chegaram aqui através de abismos e grutas, vindos do Mundo de Cima para o Reino Profundo. Muitos descem até cá, mas poucos retornam às terras ensolaradas. Dizem que todos despertarão ao final do mundo.

Ao dizer isso, sua boca selou-se; no grande silêncio da gruta, as crianças sentiram que não teriam a audácia de falar outra vez. Os pé descalços dos anões, palmilhando o musgo espesso, não faziam o menor ruído. Os estranhos animais não produziam o menor som ao respirar.

Depois de terem andado vários quilômetros, chegaram a uma parede de pedra com um arco que dava para uma outra gruta. Mas era bem melhor do que a última entrada. Penetraram numa caverna menor, comprida e estreita, com a mesma forma e o mesmo tamanho de uma catedral. Aí, tomando quase todo o espaço, estava um homem imenso a dormir profundamente. Era muito maior do que qualquer um dos gigantes, mas o rosto não era igual ao dos gigantes: era nobre e belo. Seu peito arfava um pouco sob a barba de neve que o cobria até a cintura. Uma luz prateada (ninguém viu de onde vinha) caía sobre ele.

– Quem é este? – perguntou Brejeiro. Havia tanto tempo que ninguém dizia uma palavra, que Jill ficou a imaginar como ele tivera coragem.

– Este é o velho Pai Tempo, que já foi rei do Mundo de Cima – respondeu o guardião. – Agora está mergulhado aqui no Reino Profundo, sonhando com as coisas que são feitas no mundo superior. Muitos caem aqui, mas poucos retornam às terras ensolaradas. Dizem que despertará no fim do mundo.

Passaram em seguida a uma outra gruta, depois a uma outra, e outra, tantas que Jill perdeu a conta, mas sempre descendo. E cada gruta era mais baixa que a precedente, até que só de pensarem no peso e na profundidade da terra acima deles sentiam-se sufocados.

Chegaram finalmente a um lugar no qual o guardião ordenou que o varapau de luz fosse de novo aceso. Entraram numa gruta tão larga e escura que nada podiam enxergar, a não ser, à direita, uma pálida faixa de areia cercando uma água parada. Perto de um pequeno caís estava um barco sem mastro e sem velas, mas cheio de remos. Foram obrigados a embarcar na proa, num espaço vago à frente dos bancos dos remadores.

– Uma coisa eu gostaria de saber... – observou Brejeiro. – Se alguém de nosso mundo... lá de cima, quero dizer... já fez esta viagem.

– Muitos já tomaram o barco das praias pálidas – replicou o guardião – e...

– Já sei – interrompeu Brejeiro –, poucos retornaram às terras ensolaradas. Não precisa mais dizer isso. Você é um sujeito de idéia fixa, não?

As crianças chegaram-se para mais perto de Brejeiro, uma de cada lado: tinham dito lá em cima que se tratava de um pé-frio, mas ali embaixo ele era o seu único conforto.

A lanterna pálida foi pendurada no meio da embarcação; os terrícolas pegaram os remos e o barco começou a deslizar. A lanterna pouco adiantava: nada avistavam à frente; só água, lisa e escura, a desmaiar na escuridão total.

– Que será de nós? – perguntou Jill, agoniada.

– Não se deixe abater agora, Jill – disse o pau-lama. – Há uma coisa da qual você deve sempre se lembrar: estamos de novo seguindo o texto. Devíamos ir por baixo da cidade em ruínas, e cá estamos. Estamos novamente de acordo com as instruções.

Serviram-lhes então comida – uma espécie de bolacha que não tinha gosto de nada. Depois um a um pegaram no sono. Quando acordaram, tudo continuava na mesma: os anões remando, o barco deslizando, a escuridão. Quantas vezes acordaram e dormiram, e comeram e dormiram de novo, nenhum deles seria capaz de dizer. E o pior era isto: parecia agora que tinham passado a vida inteira naquele barco, naquela escuridão, sem saber se o sol, o céu azul, o vento e os pássaros não passavam de um sonho.

Já estavam quase desistindo de ter esperança ou medo de qualquer coisa, quando viram luzes à frente: luzes sinistras como aquela da lanterna. Uma luz de repente aproximou-se e perceberam que estavam cruzando um outro barco. Encontraram vários outros. Depois, arregalando os olhos até doer, viam que algumas luzes iluminavam o que parecia um conjunto de cais, muros, torres e gente a caminhar. Ainda assim, quase nada se ouvia.

– Caramba! – exclamou Eustáquio. – Uma cidade!

Uma estranha cidade. Tão poucas as luzes e tão distanciadas umas das outras, que mal dariam para iluminar umas poucas casas em nosso mundo. Os pequenos trechos iluminados lembravam lampejos de um grande porto marítimo. Num lugar, havia vários barcos sendo carregados ou descarregados; em outro, fardos de mercadorias e armazéns; num terceiro, paredes e colunas que sugeriam grandes palácios e templos. E, onde caísse a luz, viam-se centenas de terrícolas acotovelando-se em silêncio através de ruas estreitas, praças largas, ou galgando lanços de escada. O movimento contínuo produzia uma espécie de ruído macio à medida que o barco se aproximava. Música nenhuma. Nem som de sino. Nem o ruído de uma roda. A cidade era tão quieta e quase tão escura quanto o interior de um formigueiro.

Depois que o barco parou à beira do cais, os três foram levados para terra e conduzidos à cidade. Multidões de terrícolas (não existiam dois iguais) roçavam por eles nas ruas, exibindo caras tristes e grotescas. Nenhum deles demonstrou o menor interesse pelos estrangeiros. Os anões pareciam tão ocupados quanto tristes, embora Jill não conseguisse entender o que faziam. Mas a movimentação continuava, com pressa, com empurrões, com o macio ruído – pá-pá-pá – das passadas.

Chegaram finalmente ao que parecia um grande castelo, embora poucas luzes estivessem acesas. Cruzaram um pátio e subiram por numerosas escadarias, chegando a uma sala sombriamente iluminada. Mas a um canto – que alegria! – havia uma arcada com uma luz bem diferente: a luz cálida, amarelada e honesta das lâmpadas usadas pelos homens. A luz mostrava o patamar de uma escada que subia em caracol entre paredes de pedra, e parecia vir do alto. Dois terrícolas postavam-se nos dois lados do arco como sentinelas ou lacaios.

O guardião caminhou até os dois e falou, como se fosse uma senha:

– Muitos mergulham no Subterrâneo.

Os dois responderam em coro a contra-senha:

– E poucos retornam às terras ensolaradas. Depois conversaram até que um dos anões de guarda disse:

– Já lhe afirmei que a rainha saiu daqui em sua grande missão. Melhor conservar esses viajantes na prisão até que ela volte. Poucos retornam às terras ensolaradas.

Nesse momento a conversa foi interrompida pelo que pareceu a Jill o mais maravilhoso ruído do mundo. Vinha de cima, do alto da escadaria, e era uma clara e ressoante voz humana, a voz de um homem jovem.

– Que confusão você está fazendo aí embaixo, Mulungu? Ah! Mundanos de Cima! Que venham aqui imediatamente!

– Queira Vossa Alteza ter a fineza de recordar – começou a dizer Mulungu, mas foi bruscamente interrompido.

– Minha Alteza gosta antes de tudo de ser obedecido, seu velho resmungão. Traga-os imediatamente.

Mulungu balançou a cabeça, fez um sinal para que os três o seguissem, e começaram a subir. A cada degrau a intensidade da luz aumentava, mostrando reflexos dourados através de delicadas cortinas no alto da escada. Os terrícolas abriram as cortinas e se colocaram dos lados. Os três entraram. Acharam-se numa bela sala, ricamente atapetada, com uma lareira crepitante e uma mesa onde reluziam uma garrafa de vinho vermelho e cristais. Um jovem de cabelos louros levantou-se para cumprimentá-los. Era de bonita aparência e parecia ao mesmo tempo destemido e bom, embora algo em sua expressão revelasse que havia alguma coisa errada. Vestia-se de preto.

– Bem-vindos! – bradou. – Mas esperem um momentinho! Perdão! Já vi vocês, as duas crianças, e este outro aí, antes. Não eram vocês que estavam na ponte de Ettin quando passei a cavalo com a minha dama?

– Oh... você era o cavaleiro negro que não falava nada! – exclamou Jill.

– E era aquela dama a rainha do Subterrâneo? – perguntou Brejeiro, em tom não muito amistoso.

Eustáquio, que estava pensando a mesma coisa, explodiu:

– Nesse caso, foi uma sujeira da parte dela ter mandado a gente para um castelo de gigantes que pretendiam colocar-nos no cardápio. Que mal fizemos a ela, era o que eu desejava saber...

– Como? – disse o cavaleiro negro, franzindo a testa. – Se você não fosse um guerreiro tão jovem, rapaz, íamos decidir esta afronta num duelo de morte. Não tolero uma só palavra contra a honra da minha dama. Mas de uma coisa pode estar seguro: ela jamais diria uma palavra com má intenção. Você não a conhece. É um poço de virtudes, de verdade, de clemência, de constância, de coragem, de bondade, de tudo. Digo aquilo que sei. Só a bondade dela para comigo, que jamais poderei retribuir-lhe, daria uma linda história. Mas vocês aprenderão a conhecê-la e a amá-la. Agora lhes pergunto: que missão os traz às Terras Profundas?

Antes que Brejeiro a impedisse, Jill soltou o verbo:

– Por favor, estamos procurando o príncipe Rilian, de Nárnia. – E só então se deu conta do quanto se arriscara. Mas o cavaleiro não se mostrou interessado, dizendo vagamente:

– Rilian? Nárnia? Que país é este? Nunca ouvi falar neste nome. Deve estar a milhares de quilômetros das partes do Mundo de Cima que eu conheço. Mas que idéia estranha a de procurar, como é mesmo o nome?... o príncipe Bilian? Trilian?... no reino da minha dama. Tanto quanto eu saiba, esse homem não está por aqui. – E deu uma risada alta ao dizer isso.

Jill disse para si mesma: “Acho que é isso que está errado na cara dele! Será que ele é meio maluco?”

– Disseram-nos para procurar uma mensagem nas pedras da cidade em ruínas – informou Eustáquio. – E lá encontramos as palavras DEBAIXO DE MIM.

O cavaleiro riu-se ainda com mais vontade.

– Pois estão completamente errados. Essas palavras não significam nada para a busca de vocês. Se tivessem perguntado à dama, ela lhes teria aconselhado melhor. Pois essas palavras são o que resta de um texto mais longo, que, nos velhos tempos, como ela bem se lembra, consistia nestes versos:

Sob a Terra agora destronado estou,

Embora tenha tido, quando vivo,

A Terra inteira debaixo de mim.

– Conclui-se claramente – continuou o cavaleiro – que algum grande rei dos antigos gigantes, que ali jaz enterrado, ordenou que esse epitáfio fosse talhado na pedra; com o tempo, sobraram apenas três palavras. Engraçado é terem acreditado que essas palavras pudessem ter sido escritas para vocês.

Foi como jogar água fria em Eustáquio e Jill, pois parecia-lhes agora muito improvável que as palavras tivessem alguma coisa a ver com a sua peregrinação; tudo não passava de um acaso.

– Não liguem para ele – disse Brejeiro. – Não existem acasos. Nosso guia é Aslam; e ele estava presente quando o rei ordenou que as letras fossem gravadas; e já sabia todas as coisas que viriam, inclusive esta.

– Esse guia de vocês deve ter vivido um bocado, meu amigo – disse o cavaleiro com mais uma das suas risadas, que Jill já começava a achar um pouco irritantes.

– Pois me parece, Alteza – observou Brejeiro –, que a sua dama também deve ter vivido um bocado, já que se lembra dos versos como foram gravados.

– Muito perspicaz, Cara de Sapo! – disse o cavaleiro, dando um tapinha no ombro de Brejeiro e caindo outra vez na risada. – E a verdade é que acertou no alvo. Ela é de raça divina, acima da velhice e da morte. Por isso mesmo ainda sou mais reconhecido a ela, ao conceder a um miserável mortal como eu a sua infinita bondade. Pois saibam que sou um homem atormentado por estranhas aflições, e ninguém, a não ser a rainha, teria paciência comigo. Prometeu-me um grande reino no Mundo de Cima, e, quando eu for rei, ela me dará a mão em casamento. Mas é uma história longa demais para ser ouvida em pé e em jejum. Ei, servos! Tragam vinho e comidas de Cima para os meus convidados. Sentem-se, por obséquio. Sente-se nesta cadeira, gentil senhorita. Vocês saberão de tudo.

 

NO CASTELO ESCURO

Quando a refeição foi servida (pombo, presunto, salada e doces), e todos começaram a comer, o cavaleiro negro prosseguiu:

– Vocês antes de tudo precisam saber, meus amigos, que nada sei sobre quem fui desde que cheguei a este Mundo Escuro. Não me lembro de qualquer outro tempo no qual não estivesse morando, como agora, na corte desta celestial rainha; tenho a impressão de que ela me salvou de algum feitiço e para cá me trouxe em virtude de sua inexcedível bondade. (Meu amigo Pé-de-Sapo, sua taça está vazia. Permita, por favor, que eu lhe sirva.) Isso me parece muito provável, pois até o momento sou vítima de um encantamento, do qual só a minha dama tem o poder de livrar-me. Há uma hora, todas as noites, na qual o meu espírito transforma-se horrivelmente e, logo depois, o meu corpo. Pelo espírito, passo por uma crise de fúria, que me faria precipitar-me sobre o melhor amigo para matá-lo, caso não me amarrassem. Depois, tomo a forma de uma grande serpente, esfomeada, venenosa, mortal. (Por favor, jovem cavalheiro, queira servir-se um pouco de pombo.) Assim me dizem, e deve ser verdade, pois a minha dama diz a mesma coisa. Quanto a mim mesmo, não sei de nada, pois, passada a hora, desperto esquecido de meu vil acesso, em perfeitas condições físicas e espirituais... apenas um tanto ou quanto fatigado. (Senhorita, prove um desses bolos de mel que vieram de uma terra bárbara do extremo sul do mundo.) A rainha sabe, por virtude de sua arte sobrenatural, que me libertarei do encantamento quando ela mesma me fizer rei de uma terra do Mundo de Cima. Essa terra já está praticamente escolhida, assim também como o lugar da nossa ultra-passagem para Cima. Os terrícolas trabalham dia e noite cavando o acesso, e tão adiantados estão que os habitantes superiores estão pisando poucos metros acima do Mundo Escuro. A hora e vez desses habitantes superiores está próxima. Ela própria visita a escavação esta noite, e só aguardo um recado para ir encontrá-la. O delgado teto de terra que me separa do meu reino será rompido; com ela servindo-me de guia e mil homens à minha retaguarda, avançarei no meu cavalo para cair de chofre sobre os meus inimigos; eliminarei os principais cabeças, dominarei as praças fortes e, sem dúvida, serei coroado rei em vinte e quatro horas.

– Que sorte a deles! – exclamou Eustáquio.

– Ah, que perspicácia tem este rapaz! – exclamou por sua vez o cavaleiro. – Palavra de honra, nunca tinha pensado nisso antes. Estou entendendo o que você quer dizer. – Por um momento o cavaleiro pareceu levemente, muito levemente, perturbado; mas seu rosto logo se desanuviou e rompeu numa daquelas sonoras risadas: – Que coisa mais cômica e ridícula pensar que eles continuam na vidinha deles, sem lhes passar pela cabeça que debaixo de seus campos tranqüilos, ali pertinho, está um grande exército pronto a irromper da terra como água de uma fonte! Nunca suspeitaram de nada! Mas, logo que passar a dor da derrota, eles próprios acabarão achando graça no que aconteceu.

– Pois eu não vejo a graça – disse Jill. – Para mim você será apenas um cruel tirano.

– Hein? – fez o cavaleiro, rindo-se ainda e dando palmadinhas nervosas na cabeça da menina. – A senhorita por acaso dedica-se à política? Nada receie, minha graça. Governarei essa terra sob a constante orientação da minha dama, que será aliás a minha rainha. Sua palavra será a minha lei, assim como a minha palavra será a lei do povo por nós conquistado.

– No lugar de onde eu venho – disse Jill, cada vez gostando menos dele –, não é grande coisa a reputação dos homens mandados pelas mulheres.

– Pois vai pensar diferente quando tiver o seu homem – disse o cavaleiro, achando isso engraçadíssimo. – Com a minha dama é diferente. Ficarei contente de obedecer a quem me salvou de milhares de perigos. Mãe alguma no mundo fez para o filho o que ela fez para mim. Vejam só: apesar de todas as suas obrigações e trabalhos, várias vezes percorreu comigo o Mundo de Cima, para habituar meus olhos à luz do Sol. Vou na minha armadura, com a viseira abaixada, a fim de que homem algum veja o meu rosto e eu não fale com ninguém. Por arte mágica ela descobriu que isso criaria dificuldades à conjuração do sortilégio que pesa sobre mim. Assim, pois, não se trata de uma dama digna do culto fanático de um homem?

– Parece mesmo uma dama fora de série – falou Brejeiro, com uma inflexão que significava exatamente o oposto.

Já estavam cheios daquela conversa antes que o prato de sopa esvaziasse. Brejeiro pensava: “Gostaria de saber qual a jogada que essa feiticeira está tramando com esse jovem tolo.” Eustáquio pensava: “Que crianção, francamente; amarrado à roda da saia daquela mulher, o bobão.” E Jill pensava: “Esse aí é o sujeito mais bobo, mais metido a besta, mais egoísta que vi nos últimos anos!”

Mas quando terminou a refeição, os modos do cavaleiro negro haviam mudado. A risada desaparecera.

– Meus amigos – falou ele –, minha hora está próxima. Apesar do meu horror de ficar sozinho, tenho vergonha de que me vejam agora. Eles vão entrar e amarrar meus pés e minhas mãos naquela cadeira. Que se há de fazer? Pois em meu acesso (dizem), eu destruiria tudo o que estivesse ao meu alcance.

– Entendo – falou Eustáquio – e sinto muito pela sua maldição, é claro, mas o que esses caras farão conosco quando chegarem para amarrá-lo? Falavam em trancar a gente na cadeia. E não apreciamos muito aquelas escuridões. Preferimos muito mais ficar aqui até que você... se sinta melhor... se for possível...

– Bem pensado – respondeu o cavaleiro. – O costume é ninguém ficar comigo durante a minha hora, a não ser a rainha. Não admitiria que outros ouvissem as palavras que pronuncio durante o acesso. O problema é convencer os gnomos. Acho que já estão subindo a escada. Entrem por aquela porta e se escondam. Fiquem lá até que voltem e me desamarrem; ou, se quiserem, voltem para cá e assistam ao meu delírio.

Os três aceitaram a sugestão. A porta, felizmente, dava para um corredor iluminado. Experimentaram várias portas e encontraram (o que lhes fazia muita falta) água corrente e até um espelho. Disse Jill :

– Ele nem para nos oferecer uma pia antes da ceia. Egoísta sujo!

– Quero saber uma coisa – disse Eustáquio. – Vamos ficar aqui ou vamos assistir ao encantamento?

– Acho melhor ficar aqui – disse Jill, sem dominar, no entanto, a própria curiosidade.

– Nada disso: iremos para lá – falou Brejeiro. – Podemos obter uma informação qualquer. Não ponho a mão no fogo por aquela rainha; só pode ser uma bruxa, uma inimiga. Aqueles terrícolas não vão demorar a nos dar uma paulada na cabeça. Há um cheiro forte de perigo e de mentira, de mágica e de traição nesta terra; um cheiro que nunca senti em minha vida. Olho vivo, orelha em pé!

Voltaram ao corredor e empurraram levemente a porta.

– Tudo bem – disse Eustáquio, querendo dizer que os terrícolas não estavam mais por lá.

Voltaram todos assim para a sala onde tinham ceado.

A porta principal agora estava fechada, escondendo a cortina pela qual tinham entrado. O cavaleiro negro estava sentado numa estranha cadeira de prata, à qual se achava amarrado pelos tornozelos, joelhos, cotovelos, pulsos e cintura. Com a testa gotejada de suor, mostrava um rosto angustiado.

– Entrem, meus amigos – disse ele, erguendo depressa os olhos. – Ainda não chegou o acesso. Não façam barulho, pois falei para o fofoqueiro do camareiro que vocês estavam dormindo. Agora... estou começando a sentir. Depressa! Escutem enquanto sou dono de mim. Durante o acesso, pode ser que eu lhes implore, que os ameace para que me desamarrem. Dizem que faço isso. Posso pedir em nome do que há de mais sagrado e do que há de mais horrível. Mas não me obedeçam. Fechem o coração e os ouvidos. Enquanto eu estiver amarrado, estarão salvos. Mas se eu me livrar desta cadeira, terei primeiro um ataque de fúria e depois – ele estremeceu – serei transformado em monstruosa serpente.

– De nossa parte pode ficar tranqüilo – disse Brejeiro –, ninguém irá soltá-lo. Não estamos com a menor vontade de enfrentar um homem selvagem e muito menos uma serpente.

– Isso mesmo – disseram Eustáquio e Jill ao mesmo tempo.

– De qualquer jeito – acrescentou Brejeiro num cochicho –, é melhor não ficarmos tão confiantes. Já estragamos outras coisas. Ele vai ficar astuto quando a coisa começar, podem crer. Podemos confiar uns nos outros? Vamos prometer todos que, aconteça o que acontecer, não tocaremos nessas cordas. Prestem atenção: aconteça o que acontecer, diga ele o que disser!

– Claro! – disse Eustáquio. E Jill :

– Não existe neste mundo nada que ele diga que me faça mudar de opinião.

– Silêncio. Está acontecendo alguma coisa – disse Brejeiro.

O cavaleiro começava a gemer. Seu rosto estava pálido como cal. O corpo se contorcia nas amarras. Por compaixão dele ou por outro motivo qualquer, Jill o achava agora melhor pessoa do que antes.

– Ah – gemeu o cavaleiro – o encantamento... as teias geladas, duras e viscosas da magia negra. Arrastado pelas profundezas da terra, pela negra escuridão... há quantos anos? Há quanto tempo estou na fossa? Há dez anos? Há mil anos? Estas larvas humanas que me rodeiam por todos os lados! Oh, piedade! Quero sair, quero voltar. Quero sentir de novo o vento e contemplar o céu... Havia um poço. Quando eu olhava lá dentro via as árvores de cabeça para baixo, tão verdes, e mais abaixo, no fundo profundo, o céu azul.

Falava em voz baixa, mas ergueu a testa e fixou os olhos neles, dizendo com voz clara:

– Depressa! Estou bem agora. Todas as noites é assim. Se pudesse livrar-me desta cadeira, continuaria bem para sempre. Seria outra vez um homem. Todas as noites eles me amarram, e todas as noites a minha esperança se desfaz. Mas vocês não são inimigos. Não sou prisioneiro de vocês. Depressa! Cortem as amarras.

– Não se mexam! – comandou Brejeiro.

– Imploro que me ouçam – disse o cavaleiro, esforçando-se para falar com serenidade. – Disseram que se eu me libertar da cadeira iria matá-los e virar uma serpente? Pela expressão de vocês, foi o que disseram. É mentira! Agora, neste momento, é que estou em minhas condições normais: durante o resto do tempo vivo enfeitiçado. Vocês não são terrícolas, nem a menina é uma feiticeira. Vão ficar do lado deles? Cortem as amarras, por obséquio.

– Não se mexam! Não se mexam! – disseram os três.

– Corações de pedra – disse o cavaleiro. – Acreditem em mim: contemplam um desgraçado que já sofreu mais do que um mortal poderia suportar. Que mal lhes fiz? Por que ajudam o inimigo a manter-me nesta infelicidade? Os minutos correm. Agora poderão salvar-me. Terminada a hora, ficarei novamente sem juízo... voltarei a ser o brinquedo, o cachorrinho, o instrumento de uma diabólica feiticeira que planeja a desgraça dos humanos. E logo hoje, que ela não está, vocês me privam de uma chance que poderá jamais reaparecer!

– Isso é de matar! Teria sido melhor se a gente tivesse ficado lá dentro até que terminasse o acesso – disse Jill.

O prisioneiro começou a esganiçar.

– Soltem-me! Quero a minha espada! Minha espada! Durante mil anos os terrícolas se lembrarão da minha vingança!

– O delírio está começando – disse Eustáquio. – Espero que estes nós agüentem o repuxo.

– Pois é – disse Brejeiro. – Vai ficar com a força duplicada. E eu não sou muito bom na espada. Ele vai nos liquidar primeiro e Jill ficará para enfrentar a serpente.

O prisioneiro estava tão tenso que as amarras lhe cortavam os pulsos e tornozelos.

– Cuidado! – disse ele. – Cuidado! Uma noite parti as amarras. Mas a feiticeira estava aqui. Livrem-me agora, e serei seu amigo. Do contrário, serei um inimigo mortal.

– Esperto, hein? – falou Brejeiro.

– De uma vez por todas – bradou o prisioneiro –, peço que me libertem. Em nome de todos os terrores, em nome de todos os amores, em nome dos céus luminosos do Mundo de Cima, em nome do grande Leão, do próprio Aslam, eu ordeno...

– Oh! – gritaram os três como se doesse.

– É o sinal – disse Brejeiro.

– A palavra anunciada pelo sinal – replicou Eustáquio, mais cauteloso.

– E agora? – clamou Jill.

Terrível problema. De que valia ter prometido jamais libertar o cavaleiro, se o fizessem agora? Por outro lado, de que valia ter aprendido o valor dos sinais caso não obedecessem a eles? Aslam desejaria que eles soltassem qualquer um... mesmo um doido varrido... que pedisse em seu nome? Ou poderia ser uma coincidência? E se a rainha do Submundo, sabendo a respeito dos sinais, tivesse ensinado ao cavaleiro o nome de Aslam para atraí-los à armadilha? Mas, supondo que fosse de fato o sinal... Já tinham falhado em três; seria demais deixar fugir o quarto.

– Se a gente pelo menos soubesse! – suspirou Jill.

– Acho que sabemos – disse Brejeiro.

– Acha que dará tudo certo se o desamarrarmos? – perguntou Eustáquio.

– Não, isso eu não sei – respondeu Brejeiro. – Vejam: Aslam não contou para Jill o que aconteceria. Disse apenas o que fazer. Esse sujeito vai ser a nossa morte, não tenho a menor dúvida. Mas, mesmo assim, não podemos deixar de obedecer aos sinais.

Miraram-se com os olhos luzindo e assim ficaram durante aqueles detestáveis instantes.

– Pronto! – gritou Jill subitamente. – Vamos logo. Adeus, pessoal! – Despediram-se, enquanto o cavaleiro começava a berrar e a botar espuma pela boca.

– Vamos, Eustáquio – disse Brejeiro. Puxaram as espadas e caminharam até o cativo.

– Em nome de Aslam – disseram, passando imediatamente a cortar as amarras.

Ao ver-se livre, o cavaleiro negro cruzou a sala decidido e empunhou a própria espada (que estava sobre a mesa).

– Você em primeiro lugar! – bradou, atacando a cadeira de prata.

Devia ser uma excelente espada. A prata cedeu a seu gume, e num momento só uns fragmentos brilhantes da cadeira restavam no chão. Mas, ao ser destroçada, a cadeira soltou um clarão, trovejando; um cheiro nauseabundo percorreu a sala.

– Fique aí, imundo instrumento de feitiçaria — disse ele –, para que jamais sirva ao tormento de outra vítima.

Observou então seus salvadores; o que havia de errado na sua expressão, fosse o que fosse, desaparecera.

– Não me diga! – bradou, ao dar com Brejeiro. – Será que estou vendo na minha frente um paula-ma... um paulama de verdade, um narniano?

– Ah, enfim já ouviu falar de Nárnia?! – disse Jill.

– Tinha me esquecido quando enfeitiçado. Bem, agora esta e outras artes do diabo chegaram ao fim. Conheço bem Nárnia, estejam bem certos, pois sou Rilian, príncipe de Nárnia, filho de Caspian, o Grande.

– Real Alteza – murmurou Brejeiro, vergando um joelho (e as crianças o imitaram) –, aqui viemos apenas para buscá-lo.

– E quem são os outros dois libertadores? – perguntou o príncipe, voltando-se para Eustáquio e Jill.

– Fomos enviados por Aslam de além do fim do mundo para que o encontrássemos, Alteza – respondeu Eustáquio. – Meu nome é Eustáquio. Viajei com seu pai até a Ilha de Ramandu.

– Tenho para com os três uma dívida que jamais poderei pagar – disse o príncipe. – Mas... meu pai... ainda está vivo?

– Viajou para o Oriente antes que deixássemos Nárnia, meu senhor – informou Brejeiro. – Mas Vossa Alteza deve considerar que o rei está muito idoso. Tem uma possibilidade em dez de sobreviver à viagem.

– Está velho, diz você. Por quanto tempo então estive sob o poder da bruxa?

– Há mais de dez anos que Vossa Alteza se perdeu na floresta ao norte de Nárnia.

– Dez anos! – exclamou o príncipe, levando a mão ao rosto como se quisesse limpar-se do tempo. – Acredito. Pois agora que sou eu mesmo posso me lembrar de minha existência encantada, embora não pudesse saber quem eu era quando vivia sob a maldição. E agora, meus amigos... um momento! Ouço as passadas deles nos degraus. Não é de enlouquecer essa pisada de novelo de lã? Feche a porta, rapaz. Não, espere. Tenho uma idéia melhor. Vou tapear esses terrícolas, se Aslam me ajudar. Representem de acordo com o que eu fizer.

Caminhou resolutamente e escancarou a porta.

 

A RAINHA DO SUBMUNDO

Dois terrícolas surgiram, mas não entraram na sala; postaram-se nos lados da porta e fizeram uma grande reverência. Foram seguidos logo pela última pessoa que os quatro esperavam ou desejavam ver: a Dama do Vestido Verde. A rainha do Submundo estacou imobilizada no portal. Podiam ver seus olhos se movimentando enquanto ela se inteirava de toda a situação: os três estranhos, a cadeira de prata em frangalhos, o príncipe solto, de espada em punho.

Ficou branquíssima, de um branco (pensou Jill) que sobe à face de certas pessoas, não quando estão com medo, mas quando estão furiosas. Por um instante fixou os olhos no príncipe, olhos de quem vai matar. Depois pareceu mudar de idéia.

– Saiam – ordenou aos terrícolas. – Não quero ser perturbada até que eu chame, sob pena de morte.

Os gnomos saíram com suas passadas fofas e a rainha-bruxa trancou a porta.

– Como está, meu príncipe? Seu acesso noturno ainda não veio, ou será que passou depressa? Por que está aí desamarrado? Quem são estes estrangeiros? Foram eles que destruíram sua cadeira, a sua única salvação?

O príncipe Rilian estremeceu. E não é de se admirar, pois não é fácil libertar-se em meia hora de um sortilégio que nos escravizou durante dez anos. Falando com grande esforço, disse ele:

– Senhora, não há mais necessidade desta cadeira. E a senhora, que me falou cem vezes sobre a compaixão que sentia por mim, vítima de horrendas feitiçarias, saberá com alegria que estas acabaram para sempre. Houve, parece, certo erro na sua maneira de tratá-las. Estes, meus amigos sinceros, libertaram-me. Agora, em perfeitas condições de juízo, há duas coisas que gostaria de dizer-lhe. Primeiro: quanto ao seu desejo de enviar-me à frente de um exército para submeter o Mundo de Cima pelas armas e coroar-me rei de uma nação que jamais me fez o menor mal, assassinando seus chefes e derrocando o trono como um tirano sanguinário, agora que sou eu mesmo, devo declarar que me repugna completamente tal vilania. Segundo: sou filho do rei de Nárnia, Rilian, o filho único de Caspian X, e que alguns chamam de Caspian, o Navegador. Assim sendo, senhora, é meu dever partir imediatamente da corte de Vossa Majestade, seguindo para minha pátria. Queira conceder salvo-conduto a mim e a meus amigos, e alguém que nos guie em seu reino de sombras.

A bruxa nada disse, mas andou vagarosamente pela sala, conservando os olhos fixos no príncipe. Ao chegar a uma arca não longe da lareira, abriu-a, apanhando lá dentro um punhado de pó verde, que atirou ao fogo. Não fez o fogo arder muito, mas um aroma muito doce e inebriante encheu a sala. Durante a conversa que se seguiu o cheiro foi ficando mais intenso, dificultando o ato de pensar. Em seguida, ela pegou um instrumento meio parecido com um bandolim e começou a tocar um repenicado monótono que se fez despercebido depois de poucos minutos. Também isso atrapalhava o raciocínio. Depois de ter tocado por algum tempo, com o aroma doce cada vez mais forte, começou a dizer numa voz macia:

– Nárnia? Nárnia? Ouvi Vossa Alteza pronunciar esse nome durante os delírios. Querido príncipe, você está muito doente. Não há nenhuma terra chamada Nárnia.

– Há sim, madame – interrompeu Brejeiro. – Eu mesmo passei lá minha vida inteira.

– Que interessante! – disse a bruxa. – Mas diga-me por favor uma coisa: onde é essa terra?

– Lá em cima – respondeu Brejeiro, decidido, apontando para o teto. – Mas onde fica exatamente, não sei.

– Como assim? – perguntou a rainha, com uma risadinha musical. – Existe então um país lá em cima, no meio das pedras e do reboco do teto?

– Não – respondeu Brejeiro, respirando com certa dificuldade. – O país fica por cima. É o Mundo de Cima.

– E onde fica... como é o nome... esse Mundo de Cima?

– Oh, deixe de bancar a boba – disse Eustáquio, que lutava contra o encantamento produzido pelo doce aroma e o repenicar do bandolim. – Como se não estivesse cansada de saber! É lá em cima, lá onde você pode ver o céu, o Sol e as estrelas. Esta é boa! Você já esteve lá! Nós nos encontramos lá!

– Peço seu perdão, irmãozinho – riu-se a bruxa, uma delícia de riso. – Não me lembro desse encontro. Quando sonhamos é que costumamos encontrar os nossos amigos em lugares estranhos. Mas, a não ser que sonhemos o mesmo sonho, não é razoável pedir que se lembrem.

– Senhora – disse o príncipe gravemente –, já lhe disse que sou filho do rei de Nárnia.

– E será, meu amigo – disse a rainha numa voz ciciante, como se estivesse acalmando uma criança –, será rei de muitas terras imaginárias.

– Também estivemos lá – falou Jill com impertinência. Estava furiosa por perceber que o feitiço ia tomando conta dela.

– E você também é rainha de Nárnia, não é, minha belezinha? – disse a feiticeira, na mesma voz insinuante, mas meio zombeteira.

– Negativo – respondeu Jill, batendo com o pé. – Nós somos de outro mundo.

– Ah, que maravilha! Diga-me, senhorita, onde fica esse outro mundo? Quais os navios e carruagens que fazem o transporte de lá para cá?

Uma cachoeira de lembranças caiu sobre Jill : o Colégio Experimental, sua casa, aparelhos de rádio, automóveis, aviões, engarrafamento, filas. Mas pareciam imagens apagadas e distantes. (Drum-drim-drim, repenicava o bandolim.) Jill não conseguia lembrar-se das coisas de nosso mundo. E dessa vez não lhe ocorreu que estava sendo enfeitiçada, pois a magia atingira o auge. Surpreendeu-se dizendo (e era um alívio dizê-lo) o seguinte:

– Acho que o outro mundo deve ser um sonho.

– Claro. O outro mundo é um sonho – disse a bruxa, sempre repenicando.

– Um sonho – repetiu Jill.

– Nunca existiu esse mundo – disse a feiticeira. Jill e Eustáquio falaram ao mesmo tempo:

– Nunca existiu esse mundo.

– Só existe um mundo – continuou a bruxa –, o meu.

– Só existe o seu mundo – disseram eles. Brejeiro ainda tentava resistir:

– Não sei direito o que você entende por um mundo – disse, como alguém que não respira ar suficiente. – Mas pode tocar essa rabeca até que seus dedos caiam no chão; mesmo assim nunca vou me esquecer de Nárnia. E nem do Mundo de Cima. Imagino que nunca mais o veremos, pois é bem provável que o tenha obscurecido como fez a este mundo. Mas vou saber sempre que estive lá. Já vi o céu cheio de estrelas. Já vi o Sol nascendo no mar e sumindo atrás das montanhas ao cair da noite. E vi também o Sol ao meio-dia, cujo brilho nos fere a vista.

As palavras de Brejeiro tiveram um efeito estimulante. Os outros três respiraram de novo e se olharam como pessoas que despertam.

– Que Aslam abençoe o nosso bom paulama – disse o príncipe. – Estivemos sonhando. Como iríamos esquecer? Todos nós já vimos o Sol.

– É claro que sim! – gritou Eustáquio. – Muito bem, Brejeiro. Você é o único aqui que não perdeu o juízo.

E mais uma vez se ouviu a voz da feiticeira arrulhando como uma pomba-rola no alto da árvore de um velho quintal, às três horas de uma sonolenta tarde de verão:

– De que sol vocês estão falando? Essa palavra significa alguma coisa?

– Significa muito! – respondeu Eustáquio.

– Poderiam contar-me como é o sol? (Drum-drim-drum.)

– Por obséquio, Majestade – disse o príncipe, com fria polidez. – Vê aquela lâmpada redonda e amarela iluminando a sala? O que chamamos Sol é parecido, só que é muito maior e muito mais brilhante e ilumina todo o Mundo de Cima. E em vez de estar preso no teto, está solto no céu.

– Solto onde? – E enquanto pensavam na resposta, ela prosseguiu, com uma de suas risadinhas melodiosas: – Estão vendo? Quando vocês procuram saber o que deve ser realmente o tal de sol, não conseguem. Só sabem dizer que parece uma lâmpada. O sol de vocês é um sonho, e não há nesse sonho nada que não tenha sido copiado de uma lâmpada. A lâmpada é real; o sol não passa de uma invenção, uma história para crianças.

– Ah, sim, é verdade – disse Jill com uma voz pesada e sem esperança. – Deve ser isso mesmo. – E acreditava que estava sendo muito sensata.

Lenta, gravemente, a feiticeira repetia: “Não há Sol.” E eles nada mais diziam. “Não há Sol” – ela repetia, com a voz mais branda e profunda. Depois de uma pausa e de um conflito em seus espíritos, todos os quatro disseram: “Certo. Não há Sol.” Era um alívio desistir e reconhecer que o Sol nunca existira.

Nos últimos minutinhos Jill sentira que havia alguma coisa da qual, a todo custo, tinha de se lembrar. E agora conseguia. Era entretanto tremendamente difícil dizê-la. Sentia como se enormes fardos pesassem em sua boca. Por fim, com um esforço que pareceu exauri-la, disse:

– Aslam existe.

– Aslam? – disse a feiticeira, apressando ligeiramente o repenicado de seu instrumento. – Que lindo nome! Que significa Aslam?

– Aslam é o grande Leão que nos chamou de nosso mundo – disse Eustáquio – e aqui nos enviou em busca do príncipe Rilian.

– Leão, o que é um leão? – perguntou a bruxa.

– Ora, não amole – respondeu Eustáquio. – Não sabe? Como é que eu vou descrever um leão? Já viu um gato?

– Claro, adoro gatos – respondeu a feiticeira.

– Bem, um leão é um pouquinho... só um pouquinho, hein... parecido com um gato enorme com uma juba. E é amarelo. E é incrivelmente forte.

A feiticeira balançou a cabeça:

– Acho que o leão de vocês vale tanto quanto o sol. Viram lâmpadas, e acabaram imaginando uma lâmpada maior e melhor, a que deram o nome de sol. Viram gatos, e agora querem um gato maior e melhor, chamado leão. É puro faz-de-conta, mas, francamente, já estão meio crescidos demais para isso. Já repararam que esse faz-de-conta é copiado do mundo real, do meu mundo, que é o único mundo? Já estão grandes demais para isso, jovens. Quanto ao meu príncipe, um homem feito, que vergonha! Brincando depois de grande! Venham. Esqueçam essas fantasias infantis. Tenho trabalho para vocês no mundo real. Não há Nárnia, não há Mundo de Cima, não há céu, nem Sol, nem Aslam. Agora, cama. E vamos começar vida nova amanhã. Primeiro, cama. Dormir. Dormir bem, um travesseirinho macio, um sono sem sonhos bobos.

O príncipe e as duas crianças estavam de cabeça caída, as faces coradas, os olhos semicerrados; fugira-lhes toda a energia, o sortilégio era quase total. Mas Brejeiro, juntando desesperadamente o resto de suas forças, caminhou até a lareira. E praticou então uma proeza de rara coragem. Sabia que não doeria tanto quanto em um ser humano, pois seus pés (sempre nus) eram membranosos, duros e frios como pés de pato. Mas sabia que iria doer bastante; mesmo assim o fez: espezinhou as brasas, apagando um pouco o fogo. Três coisas aconteceram.

Primeiro: o doce e pesado aroma diminuiu muito. O cheiro de paulama assado, que não é inebriante, predominou na sala. O cérebro de todos ficou mais limpo. O príncipe e as crianças ergueram as cabeças e abriram os olhos.

Segundo: a feiticeira, num tom terrível, completamente diferente da voz doce que havia usado até então, deu um berro:

– O que está fazendo? Se ousar tocar no meu fogo outra vez, porcalhão imundo, vou transformar em fogo o sangue de suas veias!

Terceiro: a própria dor esclareceu completamente a cabeça de Brejeiro, pois não há nada como um impacto doloroso para desfazer certas espécies de magia.

– Uma palavrinha, dona – disse ele, mancando de dor –, uma palavrinha: tudo o que disse é verdade. Sou um sujeito que gosta logo de saber tudo para enfrentar o pior com a melhor cara possível. Não vou negar nada do que a senhora disse. Mas mesmo assim uma coisa ainda não foi falada. Vamos supor que nós sonhamos, ou inventamos, aquilo tudo – árvores, relva, sol, lua, estrelas e até Aslam. Vamos supor que sonhamos: ora, nesse caso, as coisas inventadas parecem um bocado mais importantes do que as coisas reais. Vamos supor então que esta fossa, este seu reino, seja o único mundo existente. Pois, para mim, o seu mundo não basta. E vale muito pouco. E o que estou dizendo é engraçado, se a gente pensar bem. Somos apenas uns bebezinhos brincando, se é que a senhora tem razão, dona. Mas quatro crianças brincando podem construir um mundo de brinquedo que dá de dez a zero no seu mundo real. Por isso é que prefiro o mundo de brinquedo. Estou do lado de Aslam, mesmo que não haja Aslam. Quero viver como um narniano, mesmo que Nárnia não exista. Assim, agradecendo sensibilizado a sua ceia, se estes dois cavalheiros e a jovem dama estão prontos, estamos de saída para os caminhos da escuridão, onde passaremos nossas vidas procurando o Mundo de Cima. Não que as nossas vidas devam ser muito longas, certo; mas o prejuízo é pequeno se o mundo existente é um lugar tão chato como a senhora diz.

– Boa! Viva! Cem por cento, Brejeiro! – gritaram Eustáquio e Jill.

Mas ouviu-se de súbito a voz do príncipe:

– Vejam! A feiticeira!

Quase ficaram de cabelos em pé.

O instrumento caíra-lhe das mãos. Os braços pareciam ter entrado para dentro do corpo. As pernas estavam entrelaçadas. Os pés tinham desaparecido. A cauda do vestido foi-se engrossando e acabou sólida, juntando-se com a coluna de suas pernas entrelaçadas. E essa coluna era mole, revirando-se, como se não possuísse articulações. Sua cabeça era empurrada para trás, enquanto o nariz ia ficando mais comprido, mais comprido; as outras partes do rosto foram sumindo, menos os olhos, agora uns olhos imensos e chamejantes, sem sobrancelhas nem cílios. Tudo isso exige tempo para ser escrito, mas aconteceu tão depressa que só houve tempo de ver. Antes que se pudesse fazer qualquer coisa, a transformação estava completa: a grande serpente, verde como o veneno, grossa como a cintura de Jill, já enrolara três anéis de seu repulsivo corpo nas pernas do príncipe. Rápida como um relâmpago, deu um outro bote, tentando agarrar o braço que segurava a espada. Mas Rilian ergueu os braços, safando-se; o nó vivo apertou seu peito, pronto para partir-lhe as costelas.

O príncipe agarrou o pescoço da criatura com sua mão esquerda, tentando apertá-lo até sufocá-la. A cara da feiticeira (se é que se pode chamar de cara) estava então a um palmo do rosto dele. A língua bifurcada tremelicava horrivelmente para dentro e para fora, sem poder atingi-lo. Com a mão direita, Rilian puxou a espada e golpeou com toda a força. Eustáquio e Brejeiro também puxaram das armas e correram em auxílio. Os três golpes foram desferidos simultaneamente: o de Eustáquio (nem chegou a ferir as escamas) no corpo da serpente, abaixo da mão do príncipe; os golpes deste e de Brejeiro, no entanto, atingiram o pescoço. Não foi suficiente para matar, mas a coisa começou a soltar as pernas e o peito de Rilian. Golpes repetidos deceparam-lhe a cabeça. A medonha coisa continuou a enroscar-se e a mover-se muito tempo depois de morta. O chão ficou uma imundície.

O príncipe, quando pôde respirar, agradeceu a cooperação dos amigos. Os três vencedores ficaram olhando um para o outro, arfantes, durante longo tempo, sem uma palavra. Jill, com muita sabedoria, sentou-se a um canto e ficou quieta, pensando apenas: “Espero não desmaiar... não choramingar... nem fazer qualquer outra coisa idiota.”

– Minha mãe está vingada – disse Rilian por fim. – Sem dúvida nenhuma, era este o mesmo verme que persegui em vão perto da fonte da floresta de Nárnia, há muitos anos. Durante todo este tempo fui o escravo da assassina de minha mãe. De qualquer modo, alegra-me que a feiticeira tenha tomado a forma de uma serpente. Não ficaria bem ao meu coração e à minha dignidade matar uma mulher. Mas vamos ver a nossa dama.

Referia-se a Jill.

– Senhorita – disse o príncipe, inclinando-se –, louvo a sua grande coragem. Deve correr sangue nobre em suas veias. Venham, meus amigos. Temos ainda um pouco de vinho. Vamos a um brinde e a uma pausa antes de estabelecer nossos planos.

– Excelente idéia, Alteza – disse Eustáquio.

 

O SUBMUNDO SEM RAINHA

Naquele momento, todos sentiam merecer o que Eustáquio chamou de uma “pausa para um descanso”. A feiticeira trancara a porta, dizendo aos terrícolas que não a perturbassem; não havia assim, por enquanto, perigo de interrupção. O primeiro problema era naturalmente o pé queimado de Brejeiro. Duas camisas apanhadas no quarto do príncipe, desfeitas em tiras e untadas com manteiga e óleo de cozinha, serviram de curativo.

Depois sentaram-se para espairecer um pouco e discutir os planos de fuga.

Rilian explicou que havia muitas saídas para a superfície; já havia passado por quase todas em diversas ocasiões. Mas jamais fora sozinho, somente com a feiticeira; e sempre alcançara tais saídas depois de uma viagem de barco através do Mar sem Sol.

O que os terrícolas diriam se ele fosse até o cais sem a feiticeira, na companhia de três estrangeiros, e, sem mais nem menos, pedisse um barco, ninguém podia imaginar. O mais provável é que fizessem perguntas embaraçosas. A nova saída, destinada à invasão do Mundo de Cima, era do lado de cá do mar, a uns poucos quilômetros. Estava quase terminada, com pouquíssimos metros de terra a separá-la do céu aberto. Talvez até estivesse terminada. Era possível que a feiticeira tivesse voltado para informar-lhe isso e preparar o ataque. E, ainda que a obra não estivesse pronta, eles próprios poderiam acabá-la em poucas horas, desde que conseguissem atingi-la sem serem detidos... e desde que não houvesse guardas no túnel.

– Se querem a minha opinião – começou a dizer Brejeiro, imediatamente interrompido por Eustáquio.

– Que barulho é esse?

– É o que estou me perguntando já há algum tempo – falou Jill.

Todos de fato já estavam ouvindo o ruído, mas este começara e aumentara tão gradativamente que não sabiam quando o perceberam. Durante algum tempo fora apenas como o farfalhar de brisas ou como o barulho do trânsito ao longe. Depois era como se fosse o mar se espraiando. Então vieram estrépitos e roncos. Agora parecia haver vozes e também um bramido que não era de vozes.

– Pelo Leão – disse o príncipe Rilian –, parece que esta terra silenciosa aprendeu finalmente a falar. – Foi à janela e afastou as cortinas. Os outros juntaram-se em torno.

Um grande clarão vermelho foi a primeira coisa que notaram. O reflexo produziu uma mancha rubra no teto do Submundo a centenas de metros acima deles, e assim puderam ver um teto rochoso que talvez estivesse oculto nas trevas desde que o mundo fora criado. O clarão vinha do lado mais distante da cidade, de modo que muitos prédios, imponentes e sinistros, estampavam-se sombrios. Mas o clarão também iluminava muitas ruas que se dirigiam para o castelo. Nessas ruas algo de muito estranho se passava. As multidões compactas de terrícolas tinham sumido. No lugar delas, figuras disparavam de um lado para outro, sós ou em grupos de duas ou três. Comportavam-se como pessoas que não desejavam ser vistas: emboscando-se na sombra de colunas ou portais e lançando-se depois, rapidamente, em novos esconderijos. O mais estranho de tudo, para quem conhece os gnomos, era o barulho. Gritos vinham de todas as direções. Do cais chegava um bramido surdo que foi crescendo a ponto de quase fazer estremecer toda a cidade.

– O que está acontecendo? – perguntou Eustáquio. – Estão mesmo berrando?

– Não creio – respondeu o príncipe. – Nunca ouvi nenhum desses salafrários ao menos erguer um pouco a voz em todos esses anos de cativeiro. Alguma novidade diabólica, não pode haver dúvida.

– E aquela luz vermelha lá em cima? – perguntou Jill. – Será que alguma coisa está pegando fogo?

– Se você me perguntasse – interveio Brejeiro – eu diria que é o fogo central da terra irrompendo para produzir um novo vulcão. Estaremos bem na boca, é claro.

– Vejam aquele barco! – disse Eustáquio. – Por que vem tão depressa? E não tem remador!

– Olhem, olhem! – bradou o príncipe. – O barco está em cima da rua! Olhem lá! Todos os barcos estão entrando pela cidade. O mar está subindo. Este castelo, louvado seja Aslam, está bem no alto, mas as águas estão subindo terrivelmente depressa.

– Que diabo pode estar acontecendo? – perguntou Jill. – Fogo e água e aquela gente esquivando-se pelas ruas.

– Vou dizer-lhes o que se passa – disse Brejeiro.

– A feiticeira lançou eflúvios mágicos para que o seu reino fosse destroçado depois de sua morte. Não se importava muito de morrer, desde que também morresse queimado, ou enterrado, ou afogado, aquele que a matasse.

– Acertou no alvo, meu amigo – disse o príncipe. – Quando nossas espadas deceparam a cabeça da feiticeira, os golpes puseram fim ao seu poder de magia: as Terras Profundas estão se arrastando. Estamos assistindo ao fim do Submundo.

– Exatamente, Alteza – falou Brejeiro. – A não ser que seja o fim de todos os mundos.

– Espere aí, gente: vamos ficar aqui... aguardando? – perguntou Jill.

– Não por mim – respondeu o príncipe. – Vou salvar meu cavalo e o da feiticeira (um nobre animal, que merecia um dono melhor); estão no está-bulo do pátio. Depois vamos procurar uma terra mais alta e torcer para encontrar uma saída. Cada cavalo poderá levar dois; creio que conseguirão atravessar a correnteza.

– Por que Vossa Alteza não coloca a armadura? – perguntou Brejeiro. – Não gosto do jeito daqueles ali – e apontou para a rua. Dezenas de criaturas (percebiam agora que se tratava de terrícolas) vinham do caís. Mas não caminhavam como uma multidão sem objetivo. Agiam como soldados de uma tropa de assalto, ocultando-se depois de cada corrida, procurando não ser vistos das janelas do castelo.

– Não tenho coragem de meter-me outra vez dentro daquela armadura – disse o príncipe. – Cavalguei naquilo como se estivesse dentro de um calabouço ambulante; aquilo cheira mal, a magia e escravidão. Mas pegarei o meu escudo.

Deixou a sala e voltou com um estranho brilho nos olhos:

– Vejam só, meus amigos – e exibiu o escudo para eles. – Há uma hora este escudo era negro e não tinha emblema. Vejam agora. – Brilhava como prata e, mais rubra do que uma cereja, estampava-se nele a figura do Leão. – Sem dúvida – continuou o príncipe – isso quer dizer que Aslam será nosso guia, quer nos reserve a morte ou a vida. Ajoelhemos primeiramente para beijar sua imagem; depois apertemos as mãos uns dos outros, como sinceros amigos que em breve se despedem. Desceremos em seguida à cidade e aceitaremos o nosso destino.

O príncipe abriu a porta, e desceram as escadas: os três com as espadas em punho e Jill com seu canivete. Os serviçais tinham desaparecido e a sala estava vazia. As luzes cinzentas e lúgubres ainda ardiam, não sendo assim difícil vencer uma galeria depois de outra e descer as numerosas escadas. Os ruídos do lado de fora do castelo já não eram tão perceptíveis como antes. Tudo continuava quieto e abandonado. Só quando dobraram um corredor que dava para o salão nobre é que encontraram o primeiro terrícola – uma criatura gorda e esbranquiçada, com uma cara de leitão, e que estava a deglutir vorazmente os restos de comida deixados sobre as mesas. Guinchou (e esse guincho também lembrava a voz dos porcos), sumiu para debaixo de um banco, sacudindo a cauda, e antes que Brejeiro o atingisse, disparou na direção da porta sem que pudesse ser perseguido.

Do salão passaram ao pátio. Jill, que freqüentara uma escola de equitação aos domingos, sentiu o cheiro de estábulo (um cheiro simpático e familiar quando aspirado num lugar como o Submundo).

– Caramba! – disse Eustáquio – Olhem ali! Um belo foguete subia de alguma parte e estourava em lágrimas verdes.

– Fogos de artifício! – exclamou Jill, intrigada.

– Certo – disse Eustáquio –, mas não vá pensar que esses terrícolas estão se divertindo. Deve ser um sinal.

– Um sinal vermelho para nós, apesar de verde – disse Brejeiro.

– Amigos – disse o príncipe –, quando um homem se lança numa aventura como esta, deve dar adeus à esperança e ao medo; do contrário, tanto a morte quanto a libertação podem não chegar a tempo de salvar-lhe a honra e a razão. Alô, belezas! – com esta frase, abriu o estábulo. – Quieto, Carvão! Calma, Floco de Neve!

Os cavalos estavam assustados com as luzes estranhas e com o barulho. Jill, que se sentira tão acovardada ao caminhar por um buraco escuro, aproximou-se sem medo dos bichos inquietos, ajudando o príncipe a colocar arreios e rédeas. Estavam lindos ao cruzar o pátio, meneando a cabeça. Jill montava Floco de Neve com Brejeiro à garupa. Com um ecoar de cascos, atravessaram o portão principal e ganharam a rua.

– Bem, não corremos o risco de morrer queimados – observou Brejeiro, apontando à direita. – Gosto de olhar sempre o lado bom das coisas. – A água batia ruidosamente contra as paredes das casas.

– Coragem! – disse o príncipe. – Esta rua é uma boa ladeira. A água subiu apenas até a metade da colina mais alta. Deve subir muito na próxima meia hora e pouco nas próximas duas horas. Tenho mais medo daquilo... – e apontou com a espada para um comprido terrícola com focinho de javali, seguido de mais uns seis de formas sortidas, que tinham deslizado de uma esquina e se ocultado na sombra.

O príncipe os conduzia, sempre na direção do clarão avermelhado, um pouquinho mais para a esquerda. Seu plano era contornar o fogo (caso fosse fogo) e subir às terras altas, na esperança de encontrar o caminho do túnel novo. Ao contrário dos outros três, parecia bem satisfeito. Assoviava e às vezes cantarolava uma velha balada sobre o lendário Corin Punhos de Ferro, da Arquelândia.

A verdade é que estava tão feliz por ter-se libertado da magia negra, que os perigos do presente não passavam de uma brincadeira. Para os outros, é claro, a cavalgada era tenebrosa.

Atrás deles ouvia-se o ruído de barcos abalroados ou de prédios que desabavam. Acima via-se a grande mancha de luz lúgubre. À frente, o misterioso clarão. Da mesma direção chegava um continuado alarido de gritos, choros, assovios, risos, guinchos, bramidos. Fogos de artifício riscavam o ar. Ninguém era capaz de imaginar o que significavam. Nas cercanias, a cidade era em parte iluminada pelo clarão e pelas diferentes luzes dos sinistros lampiões dos gnomos. Mas existiam muitos lugares sem luz alguma, mergulhados em treva. Desses lugares ou para eles é que saíam ou entravam correndo os terrícolas, sempre de olhos pregados nos quatro, sempre aflitos em busca de esconderijos. Havia carinhas e carões, olhões de peixe e olhinhos de urso. Havia alguns emplumados, outros peludos, outros com chifres e trombas, alguns com nariz em tira, outros de queixo tão comprido que batia no peito. Às vezes um grupo chegava bem perto. O príncipe brandia a espada e fingia atacá-los. E as criaturas, com todos os tipos de pios, guinchos e cacarejos, mergulhavam nas sombras.

Quando já tinham subido várias ladeiras e se achavam longe da inundação, quase fora da cidade, a coisa começou a ficar mais séria. Estavam próximos do clarão vermelho, embora ainda não soubessem o que fosse. Os inimigos, entretanto, podiam ser vistos com mais nitidez. Centenas – talvez milhares – de gnomos vinham na direção deles. Mas aproximavam-se em investidas curtas; quando paravam, encaravam os quatro cavaleiros.

– Se Sua Alteza me perguntasse – disse Brejeiro –, eu ia dizer que aqueles caras pretendem cortar a nossa frente.

– É o que eu também acho. E não poderemos romper uma coluna tão numerosa. Vamos levar os cavalos para bem perto daquela casa. Chegando lá, apeie e corra para a sombra. A senhorita e eu iremos uns passos adiante. É claro que algum desses capetas irá nos seguir; então você, que tem os braços compridos, pegue um deles vivo (se conseguir). Podemos arrancar alguma verdade dele ou saber o que têm contra nós.

– Mas os outros todos não vão cair sobre nós para salvar o companheiro? – perguntou Jill, esforçando-se para que sua voz não saísse trêmula.

– Se acontecer isso, minha dama, morreremos em combate para protegê-la; encomende-se pois à proteção do Leão. Agora, Brejeiro!

O paulama deslizou para a sombra como um gato. Os outros continuaram. De repente, ouviram-se gritos de gelar o coração, misturados à voz de Brejeiro: “Quieto! Assim você acaba se machucando. Puxa! Parece um porco entrando na faca.”

– Boa caçada – exclamou o príncipe, voltando à sombra da casa. – Eustáquio, por favor, segure as rédeas de Carvão.

Apeou. Os três se olharam em silêncio quando Brejeiro trouxe a presa para a luz. Era um pobre gnominho com menos de um metro. Tinha uma espécie de crista de galo no alto da cabeça, olhinhos rosados, a boca e o queixo tão grandes que parecia um mini-hipopótamo. Se não estivessem numa situação tão difícil, teriam caído na gargalhada.

– Bem, terrícola – disse o príncipe, mantendo a espada pertinho do pescoço do prisioneiro. – Agora você vai falar como um gnomo de bem, para conquistar a liberdade. Banque o patife conosco e será um terrícola morto... – e voltando-se para Brejeiro: – Meu caro, como é que o gnomo poderá falar se você está lhe tapando a boca?

– E também não poderá morder – disse Brejeiro. – Se eu tivesse a mão fraca e mole que vocês humanos têm (com todo o respeito a Vossa Alteza). Agora já estaria sangrando. Nem mesmo um paulama agüenta ser tão mastigado.

– Meu velho – o Príncipe disse para o gnomo –, uma mordida e você morre. Deixe que ele abra a boca, Brejeiro.

– Oo-ee-ee – guinchou o terrícola. – Solte-me! Solte-me! Não fui eu. Não fui eu que fiz isso.

– Não fez o quê? – perguntou Brejeiro.

– O que Vossas Senhorias estão dizendo que eu fiz – respondeu a criatura.

– Diga-me como se chama – disse o Príncipe – e o que vocês terrícolas estão tramando hoje.

– Ah, por favor, gentis cavalheiros – choramingou o gnomo. – Prometam que não contarão à reverendíssima Rainha nada do que vou contar.

– A reverendíssima Rainha, como você a chama – disse o Príncipe, muito sério –, está morta. Fui eu que a matei.

– O quê? – exclamou o gnomo, escancarando sua boca ridícula, espantado. – Morta? A feiticeira morreu? E pelas mãos de Vossa Senhoria?

Ele deu um profundo suspiro de alívio e acrescentou:

– Bem, então Vossa Senhoria é um amigo!

O príncipe puxou a espada um centímetro ou dois. Brejeiro deixou a criatura ficar de pé. O gnomo olhou para os quatro viajantes, piscando seus olhos vermelhos, deu uma ou duas risadinhas e começou.

 

O FUNDO DO MUNDO

– Meu nome é Golgo – disse o gnomo. – Vou dizer tudo o que sei. Há cerca de uma hora, estávamos todos indo para o trabalho – o trabalho dela, quero dizer – quietos e tristes como sempre. De súbito aconteceu um grande estrondo. E cada um de nós pensou: “Ei, o que é isso? Há anos e anos que não canto, não danço, nem solto um buscapé! Eu devia estar encantado. Ora, não vou carregar mais este peso, dane-se.” E nós todos atiramos no chão sacos, pacotes, ferramentas. E aí todos vimos aquele grande clarão vermelho. Todo mundo pensou: “O que será isso? Qualquer coisa deve ter-se arrebentado e um belo clarão entrou aqui vindo da Terra Realmente Profunda, milhares de metros lá embaixo.”

– Caramba! – exclamou Eustáquio. – Ainda existem outros lugares embaixo deste?

– Oh, existem! – respondeu Golgo. – Lindos lugares; é o que chamamos de Bismo. Este país, o país da feiticeira, é o que nós chamamos de Terras Rasas. São muito próximas da superfície. Puxa! Horrível! É quase como se a gente estivesse vivendo lá fora. Somos apenas pobres gnomos de Bismo, trazidos aqui por força dos chamados mágicos da feiticeira. Ela precisava de mão-de-obra. Tínhamos esquecido de tudo até que o estrondo quebrou o encantamento. A gente não sabia mais quem era e de onde era. Só pensava o que ela punha dentro das nossas cabeças. Durante estes anos todos só tivemos pensamentos sombrios e tristes. Cheguei quase a esquecer como contar uma piada ou dançar. Mas no instante em que o estrondo aconteceu, e uma brecha se abriu, e o mar começou a subir, eu me lembrei de tudo. É claro que buscamos logo o caminho da brecha para voltar à pátria. Vocês podem ver os meus companheiros lá em cima soltando fogos de artifício. Ficarei muito agradecido se me soltarem logo.

– Que coisa maravilhosa – exclamou Jill. – Que bom a gente ter libertado também os gnomos ao decepar a cabeça da serpente. Que bom saber que eles não são de fato sinistros, como o príncipe também não era... bem, aquilo que ele parecia ser.

– Tudo muito certinho, Jill – disse, cauteloso, Brejeiro. – Mas para mim estes gnomos não estão apenas fugindo. Parecem mais uma expedição militar. Olhe bem nos meus olhos, Sr. Golgo: vocês estão ou não estão se preparando para uma batalha?

– É claro que estamos – respondeu Golgo. – Ninguém sabia que a feiticeira estava morta. A gente acreditava que ela estivesse espiando do castelo. Estávamos tentando cair fora sem ser vistos. Quando vocês apareceram a cavalo com as espadas, todo mundo pensou: “É agora.” Não sabíamos que vocês não eram a favor da feiticeira. E estávamos dispostos a lutar até o fim, mas não desistir da esperança de voltar para Bismo.

– Juro que aqui está um gnomo honesto – disse o príncipe. – Pode soltá-lo, Brejeiro. Fique sabendo, meu bom Golgo, que também estive encantado como você e seus amigos, e só há pouco me recuperei. Mais uma perguntinha: sabe o caminho para as escavações do túnel novo, aquele por onde a bruxa queria conduzir o exército?

– Riiii – ganiu Golgo. – Claro; conheço esse caminho horroroso. Vou lhe mostrar onde começa. Mas não me peça para ir com vocês: prefiro a morte.

– Por quê? – perguntou Eustáquio, aflito. – Que há de tão terrível?

– Perto demais do Sol – disse Golgo, com um arrepio. – Foi a pior coisa que a feiticeira nos fez. íamos ser levados para o aberto... para o lado de fora do mundo. Dizem que lá não existe teto: só um vasto vazio chamado céu. E as escavações andam tão adiantadas que mais umas picaretadas furam o resto do teto. Não quero nem chegar perto.

– Oba, oba! – exclamou Eustáquio. – Agora sim você está falando bonito!

E Jill acrescentou:

– Mas o lugar não é horrível como você pensa. Gostamos de lá. Moramos lá.

– Sei disso. Mas pensava que só moravam lá porque não sabiam o caminho para cá. Só não acredito que gostem mesmo de lá... de viver como moscas no topo do mundo!

– Que tal se nos mostrasse logo o caminho? – perguntou Brejeiro.

– Boa idéia – disse o príncipe.

Partiram todos. O príncipe e Brejeiro subiram no cavalo; Golgo abria o cortejo. À medida que avançava, ia gritando a boa nova: a feiticeira estava morta e os quatro cavaleiros do Mundo de Cima não eram perigosos. Os que ouviam iam gritando a sensacional notícia para os outros e, em poucos minutos, todo o Submundo estava em festa com gritos e vivas; aos milhares, os gnomos vinham saltando, dando cambalhotas, plantando bananeiras, rodeando Carvão e Floco de Neve. O príncipe teve de contar a história do encantamento e da libertação pelo menos umas dez vezes.

Foi assim que acabaram chegando à beira da fenda. Tinha mais de trezentos metros de comprimento e uns duzentos de largura. Desceram dos cavalos e foram olhar da beira da fenda. Um calor forte bateu-lhes no rosto, misturado a um cheiro bem diferente de todos os outros conhecidos: intenso, agudo, excitante, e provocava espirros. O fundo da brecha era tão brilhante que a princípio os deslumbrou; nada puderam ver. Quando se acostumaram puderam distinguir um rio de fogo e, nas margens deste, campos e bosques de um fulgor quente e insuportável – embora fosse fosco, comparado ao rio. Azuis e vermelhos, verdes e brancos, tudo se misturava. Pelas laterais ásperas da brecha, como pontos escuros contra a luz de fogo, centenas de terrícolas desciam.

– Meus senhores – disse Golgo (e quando se viraram para ele nada viram durante alguns segundos) –, meus senhores, por que não fazem uma visita a Bismo? Seriam mais felizes lá do que naquela terra nua e desprotegida lá de cima. Não precisam demorar, se não quiserem.

Jill estava certa de que ninguém daria atenção ao convite. Mas, horrorizada, ouviu o príncipe dizer:

– Está aí, Golgo amigo, já estou meio inclinado a ir com você. Não devemos perder uma aventura maravilhosa como esta; talvez nenhum homem mortal tenha visitado Bismo. E eu não saberia, à medida que os anos fossem passando, como agüentar o arrependimento de não ter experimentado o que estava ao meu alcance: conhecer as profundezas da Terra. Mas pode um homem viver lá? Vocês não moram no próprio rio de fogo?

– Oh, não! Nós, não! Só as salamandras vivem no próprio fogo.

– Que espécie de salamandra? – perguntou o príncipe.

– Difícil dizer de que espécie. Doem na vista. Parecem uns pequenos dragões. Falam conosco lá do fogo. São incrivelmente inteligentes, muito engraçadas e talentosas.

Jill deu uma olhada para Eustáquio. Tinha certeza de que ele gostaria ainda menos do que ela da idéia de descer por aquela brecha. Seu coração gelou quando viu que a expressão dele mudara. Parecia-se muito mais com o príncipe do que com Eustáquio do Colégio Experimental. Pois todas as aventuras que viveu em sua viagem com o rei Caspian estavam outra vez a excitá-lo.

– Alteza – disse ele –, se aqui estivesse meu velho amigo Ripchip, ele diria que recusar as aventuras de Bismo seria desacreditar a nossa honra.

– Lá embaixo – disse Golgo – posso mostrar-lhes ouro de verdade, prata de verdade, diamantes de verdade.

– Besteira! – disse Jill grosseiramente. – Como se a gente, mesmo aqui, não estivesse por baixo das minas mais fundas do mundo...

– Já ouvi falar – disse Golgo – que na crosta da Terra há uns fiapinhos de metal que vocês chamam de minas. Mas lá encontraram somente ouro morto, prata morta, diamante morto. Em Bismo eles são vivos e crescem. Lá poderão comer um galho de rubis ou tomar um suco de diamante. É outra coisa.

– Meu pai foi até o fim do mundo – disse Rilian pensativo. – Seria uma coisa formidável se o seu filho fosse até o fundo do mundo.

– Se Vossa Alteza ainda quer apanhar seu pai vivo – disse Brejeiro –, e acho que ele gostaria disso, já é tempo de tomar o caminho do túnel novo.

– Eu, por mim, não vou para aquele buraco de jeito nenhum – acrescentou Jill.

– Bem, se querem mesmo voltar para o Mundo de Cima – disse Golgo –, há um trecho de estrada um pouquinho melhor.

– Oh, vamos logo, vamos! – implorou Jill.

– Que se há de fazer? – suspirou o príncipe. – Mas deixo um pedaço de meu coração em Bismo.

– Por favor! – insistiu Jill.

– O caminho é todo iluminado – disse Golgo. – Vossa Alteza pode ver o princípio da estrada do outro lado da brecha.

– Por quanto tempo ainda duram as luzes? – perguntou Brejeiro.

Nesse instante uma voz cortante e sibilante como a voz do próprio fogo (ficaram a imaginar mais tarde se não seria a voz de uma salamandra) assoviou das profundezas de Bismo:

– Rápido! Rápido! Para o fosso, para o fosso! A fenda está fechando! Rápido! Rápido!

Imediatamente, com estrépito, as rochas estremeceram. A brecha ficara mais estreita. De todos os lados gnomos atrasados corriam para ela. Nem esperavam para descer pela rocha; pulavam de cabeça – ou porque um bafo de ar quente soprava do fundo, ou por outra razão qualquer, o fato é que desciam planando como folhas. Eram tantos que quase ofuscaram o rio de fogo e os bosques de gemas vivas.

– Adeus para todos, já vou indo – gritou Golgo, mergulhando.

A brecha agora era da largura de um riacho e logo depois da largura de uma rachadura na parede. Por fim, como milhares de trens batendo em milhares de molas, a boca de pedra fechou-se. O cheiro quente desapareceu. Estavam sozinhos num Submundo que agora parecia mais escuro do que antes. As lâmpadas, pálidas e lúgubres, assinalavam a direção da estrada.

– Aposto dez contra um – disse Brejeiro – que já é tarde demais, mas não custa tentar. Aposto também que essas lâmpadas não vão agüentar mais do que cinco minutos.

Puseram os cavalos a galope e seguiram em bonito estilo pela estrada em penumbra. Mas o caminho começou a descer, e teriam pensado que Golgo lhes ensinara errado, caso não avistassem, do outro lado do vale, a fileira de luzes estendendo-se para cima. Mas no fundo do vale as luzes brilhavam sobre a água em movimento.

– Rápido – bradou o príncipe.

Galoparam pela encosta. A maré invadia o vale aos borbotões. Se tivessem de nadar, dificilmente os cavalos o conseguiriam. Mas a água subira somente um meio metro, e puderam chegar salvos ao outro lado.

Começou aí a lenta e cansativa marcha colina acima, sem outra coisa à vista a não ser as luzes que subiam até se perderem na distância. Atrás, a água se espalhava, transformando em ilhas as colinas do Submundo. A cada instante sumia mais uma lâmpada, coberta pelas águas. Em breve a escuridão era total, menos na estrada que percorriam.

Embora tivessem excelentes razões para galopar, os cavalos não agüentariam sem um descanso. Pararam. Ouviam no silêncio o bater ruidoso da água.

– Acho que ele... como é mesmo o nome?... o Pai Tempo... foi coberto pelas águas – disse Jill. – E aqueles animais sonolentos.

– Acho que não – disse Eustáquio. – Não se lembra de quanto tivemos de descer para chegar ao Mar sem Sol? Acho que a água não chegou à caverna do Pai Tempo.

– Talvez, talvez – comentou Brejeiro. – Estou mais interessado nas lâmpadas. Parecem um pouco fraquinhas, não é mesmo?

– Sempre foram assim – disse Jill.

– Não, agora estão mais verdes – disse Brejeiro.

– Você não quer dizer que elas vão se apagar, não é? – perguntou Eustáquio.

– Bem, não se pode esperar que elas durem a vida inteira – replicou o paulama. – Mas não se deixem abater por isso. Estou também de olho na água, e creio que ela não está subindo tanto quanto antes.

– Grande consolo, meu amigo – disse o príncipe –, se a gente não achar a saída. Peço perdão a todos. A culpa é minha; por presunção e romantismo atrasei a viagem. Vamos em frente.

Durante algum tempo, Jill ora admitiu que Brejeiro pudesse estar certo em relação às lâmpadas, ora que fosse mera imaginação.

O teto do Mundo de Cima estava tão próximo que, mesmo com aquela luz mortiça, podia ser avistado. As vastas e enrugadas paredes do Mundo de Cima já eram visíveis. A estrada os conduzia de fato para um túnel íngreme. Passavam por picaretas, pás, carrinhos de mão e outros sinais de trabalhos recentes. Se tivessem a certeza de estar saindo do buraco, tudo isso era muito animador, mas a hipótese de seguir por um túnel cada vez mais estreito, mais difícil no caso de um retorno, era extremamente desagradável.

O teto já estava tão baixo que Brejeiro e o príncipe lhe batiam com a cabeça. Desceram e começaram a puxar os cavalos. A estrada ficara irregular e tinham de pisar com cuidado. Jill notou a escuridão crescente. Não havia mais dúvida. Os rostos dos outros pareciam estranhos e lívidos no palor esverdeado. De repente Jill deu um gritinho. Uma luz, a primeira em frente, apagara-se. A de trás também. Estavam na escuridão total.

– Coragem, meus amigos – ouviu-se a voz do príncipe Rilian. – Vivos ou mortos, Aslam será nosso guia.

– Perfeitamente, Alteza – era a voz de – Brejeiro. E sempre se pode lembrar que há uma vantagem em morrer aqui: não se gasta dinheiro com enterro.

Jill mordeu a língua. (Quem não quer mostrar o medo que está sentindo, deve ficar em silêncio; é a voz que nos denuncia.)

Brejeiro e Eustáquio seguiram na frente de braços estendidos, com receio de um encontrão indesejável; Jill e o príncipe vinham atrás, puxando os cavalos.

Bem mais tarde ouviu-se a voz de Eustáquio:

– Ou os meus olhos estão ficando meio esquisitos ou estou vendo luz lá em cima. Que acham?

Antes que alguém tivesse tempo de responder, Brejeiro bradou:

– Parem. Cheguei a um lugar que não vai mais para frente. E é terra, não é pedra. Que estava dizendo, Eustáquio?

– Pelo Leão – disse o príncipe –, Eustáquio está certo. Há uma espécie de...

– Mas não é a luz do dia – falou Jill. – Só uma luz azul e fria.

– Melhor do que nada – replicou Eustáquio. – Podemos subir até lá?

– Não dá – disse Brejeiro. – Jill, que tal se você subisse nos meus ombros e tentasse chegar até lá?

 

O DESAPARECIMENTO DE JILL

Os outros apenas podiam ouvir, mas não viam o esforço feito por Jill para subir aos ombros do paulama:

– Tire o dedo do meu olho... Olhe o pé na minha boca... Aí... Agora seguro suas pernas... Firme-se com as mãos na terra...

A sombra de Jill desenhava-se contra a luz.

– Como é? – gritaram todos ansiosos.

– É um buraco – gritou Jill. – Espere um pouco, Brejeiro: é melhor eu ficar em pé nos seus ombros, em vez de sentada.

A figura recortou-se mais contra a luz, pondo-se de pé.

– Parece... – começou a dizer Jill, mas de repente ouviu-se um grito, não um grito agudo, mas como se sua boca estivesse sendo abafada. Depois ela começou a gritar alto, mas não conseguiam entender o que dizia. O foco de luz por um segundo sumiu; ouviram ao mesmo tempo um ruído de coisa arrastada e a voz do paulama:

– Depressa! Agarrem as pernas dela! Alguém está puxando Jill para cima! Já! Não, aqui! É tarde demais!

A abertura ficou novamente clara. Jill sumira.

– Jill! Jill! – berraram sem resposta.

– Que droga! Por que você não agarrou os pés dela? – perguntou Eustáquio.

– Não sei – gemeu Brejeiro. – Já nasci fracassado. É o destino. Estava escrito que eu seria a causa da morte de Jill, como estava escrito que eu tinha de comer carne de Cervo Falante. Minha culpa, minha culpa!

– Não poderia ter acontecido nada mais triste e vergonhoso – disse o príncipe. – Entregamos uma valente senhorita às mãos do inimigo, e aqui ficamos nós em segurança.

– Será que eu consigo passar por aquele buraco? – perguntou Eustáquio.

Havia sucedido a Jill o seguinte: assim que pôs a cabeça para fora, percebeu que estava olhando como se fosse do alto de uma janela, e não como se fosse de um alçapão no teto. Permanecera tanto tempo no escuro que seus olhos não puderam distinguir logo o que viam, a não ser que não estava diante do mundo ensolarado que esperava. O ar parecia mortalmente gelado e a luz era azul e pálida. Havia ainda muito barulho e uma porção de objetos brancos voando. Foi nesse momento que ela pediu para subir aos ombros de Brejeiro.

Feito isso, pôde ver e ouvir muito mais. Havia dois tipos de ruído: a batida rítmica de vários pés e a música de quatro rabecas, três flautas e um tantã. Percebeu também qual era a sua posição. Olhava de um buraco para um terreno em declive. Tudo era muito branco, e muitas pessoas se agitavam de um lado para outro. Aí começou a arquejar. As pessoas eram elegantes faunos e dríades com os cabelos coroados de folhas a flutuar. Agitavam-se. Não, dançavam – uma dança de figuras e passos tão complicados que era preciso algum tempo para entendê-la. Súbito ocorreu-lhe que a pálida luz azulada vinha do luar, e que a matéria branca no chão era neve. E, naturalmente, as estrelas luziam no céu escuro. As coisas altas e escuras, além dos dançarinos, eram árvores. Não tinham chegado a um lugar qualquer no Mundo de Cima, mas ao coração de Nárnia. Jill achou que ia desmaiar de prazer. E a música – uma música agreste e muito suave, mas também meio fantástica e impregnada de magia como o repenicado da feiticeira – aumentava o deslumbramento.

Leva-se tempo para contar, mas curto foi o tempo de ver tudo isso. Virou-se logo para transmitir aos outros a mensagem, gritando: “Parece que está tudo ótimo. Estamos em casa.” Não passou do “parece”, e o motivo é o seguinte: rodeando sem parar os dançarinos, havia um bando de anões, todos festivamente vestidos, quase todos de escarlate, com capuzes debruados de peles, borlas douradas e grandes botas peludas. Enquanto giravam iam atirando bolas de neve (eram as coisas brancas que Jill tinha visto a voar). Não as atiravam nos dançarinos. Atiravam-nas nos espaços vazios, com uma precisão perfeita. Era a chamada Grande Dança da Neve, que se realizava em Nárnia na primeira noite de neve com luar. Era ao mesmo tempo uma dança e uma brincadeira, pois o dançarino que errasse um pouquinho recebia uma bolada de neve na cara, e todos davam risadas. Nas noites mais bonitas, com o luar, o pio das corujas, o tantan do tambor, a festa costumava prolongar-se até o raiar do dia.

Jill calou-se depois do “parece” porque uma bola de neve acertara-lhe em cheio na boca. Não deu a mínima importância; só que não podia falar, por mais feliz que se sentisse. Depois de recuperar a fala, chegou a esquecer-se de que os outros ainda não sabiam sobre aquelas grandes novidades: simplesmente inclinou-se para fora do buraco e gritou para os dançarinos:

– Socorro! Socorro! Estamos enterrados na colina!

Os narnianos, que ainda não tinham notado o buraco, olharam em várias direções, muito surpresos. Logo que deram com a figura de Jill vieram correndo e umas dez mãos se estenderam para ela. Jill pulou para fora e deu uns passos, para depois dizer:

– Há mais três lá dentro; e um deles é o príncipe Rilian; cavem, por favor.

Já estava cercada pela multidão quando disse isso, pois outras criaturas que assistiam à dança chegaram correndo. Esquilos choveram das árvores, e também corujas. Ouriços apareceram correndo, tão depressa quanto lhes permitiam as curtas perninhas. Uma grande pantera, remexendo a cauda com inquietação, foi a última a juntar-se ao grupo.

Logo que entenderam o que Jill estava dizendo, entraram em atividade.

– Picaretas e pás, pessoal, pás e picaretas! – disseram os anões, disparando para os bosques.

– Acordem as toupeiras. São ótimas para cavar, tão boas quanto os anões – disse uma voz.

– Que foi que ela disse sobre o príncipe Rilian? – perguntou outra voz.

– Calma! – comandou a pantera. – A pobre criança está enlouquecida, depois de tanto tempo perdida dentro da colina. Não sabe o que diz, é claro.

– Isso mesmo – falou um velho urso. – Disse que o príncipe Rilian era um cavalo!

– Disse coisa nenhuma! – protestou um esquilo atrevido.

– Disse sim! – falou outro esquilo, ainda mais atrevido.

– É v-v-verdade! Não b-b-banque o b-b-bobo! – disse Jill, falando desse jeito porque seu queixo batia de frio.

Uma das dríades enrolou-lhe um manto de pele que um anão deixara cair ao passar correndo em busca de ferramentas. Um fauno obsequioso foi até uma gruta no bosque buscar-lhe uma bebida quentinha. Antes que ele voltasse, os anões reapareceram com as ferramentas e atacaram a colina. Então Jill ouviu-os gritar: “Ei, o que você está fazendo?” – “Abaixe essa espada, rapaz!” – “Nada disso, menino!” Eustáquio era um pouco mais pesado e bem mais desajeitado que Jill e assim, quando olhou para fora, bateu a cabeça contra o lado da abertura, causando uma pequena avalancha de neve que caiu na sua cabeça, tapando-lhe os olhos. Por isso, quando conseguiu se safar da neve e viu dezenas de pessoas correndo rapidamente para o seu lado, tentou se defender.

Jill correu para o local e não sabia se chorava ou se ria ao dar com a cara de Eustáquio, muito pálida e suja; com a mão direita, ele brandia a espada, ameaçando quem tentasse aproximar-se.

E claro: ele experimentara nos últimos minutos sensações bem diferentes. Ouvira o grito que antecedeu o desaparecimento da menina. Pensou, com o príncipe e Brejeiro, que ela só podia ter sido agarrada por inimigos. Lá embaixo não podia saber que a pálida luz azulada era o luar. Achou que o buraco dava passagem a uma outra gruta, iluminada por uma fosforescência fantasmagórica e repleta sabe-se lá de que criaturas maléficas do Submundo.

Assim, quando colocou a cabeça de fora, ajudado por Brejeiro, e brandiu a espada, estava cometendo um ato de bravura. Os outros também o teriam feito, caso coubessem na abertura.

– Pare com isso, Eustáquio – gritou Jill. – São amigos, não está vendo? Estamos em Nárnia. Tudo bem!

Só então ele percebeu o que se passava e pediu desculpas aos anões.

– Não há de quê! – responderam os anões, estendendo as mãozinhas cabeludas para ajudá-lo.

Então Jill enfiou a cabeça na pequena abertura e gritou as boas-novas para os prisioneiros. Quando retirava a cabeça, ouviu Brejeiro resmungar:

– Coitada da Jill! Foi demais para ela: está começando a ver coisas.

Jill e Eustáquio deram-se as mãos, as duas, e respiraram profundamente o ar livre da meia-noite. Um manto foi colocado sobre Eustáquio e bebidas quentes foram trazidas. Os anões quase já haviam retirado a neve e o capim que rodeavam o buraco: picaretas e pás dançavam agora no chão como os pés de faunos e dríades. Dez minutos apenas! Mas para Jill e Eustáquio já era como se os perigos passados nas trevas do labirinto fossem um sonho. Lá fora, no frio, com a lua e as estrelas no alto (as estrelas de Nárnia, mais próximas do que as estrelas em nosso mundo, parecem maiores), e rodeados de tantas carinhas alegres, era difícil acreditar no Submundo.

Antes que tivessem acabado de beber, umas dez toupeiras, recém-acordadas e não muito satisfeitas, vinham chegando. Logo que souberam do que se tratava, mudaram de disposição. Até os faunos ajudaram, carregando a terra em carrinhos. Os esquilos pulavam e dançavam com grande animação. Ursos e corujas limitavam-se a dar conselhos e a perguntar se as crianças não gostariam de comer alguma coisa no calor da gruta. Mas os dois faziam questão de esperar os amigos.

Não há quem faça esse tipo de trabalho melhor do que anões e toupeiras. Para estes aquilo nem é trabalho, pois adoram cavar. Não demoraram, portanto, a abrir na colina uma grande brecha. O primeiro a emergir do escuro para a luz da lua foi o paulama; depois, puxando os cavalos, Rilian, o príncipe em pessoa.

Quando saiu Brejeiro, brados surgiram de todos os lados:

– Ei, um paulama... Não é o velho Brejeiro? Aquele Brejeiro da outra banda... Que aconteceu, Brejeiro?... Estão buscando você por toda a parte... Trumpkin espalhou por aí avisos, prometendo uma recompensa...

Mas ficou tudo em absoluto silêncio de repente – como acontece no dormitório do colégio quando o chefe de disciplina abre a porta. Pois tinham visto o príncipe.

Não duvidaram de quem era ele nem por um momento.

Muitos bichos, muitas dríades e muitos faunos ainda se lembravam dele nos velhos tempos. Os mais velhos até se recordavam de que seu pai, o rei Caspian, quando jovem, era a cara do filho.

Apesar de pálido, depois do longo cativeiro nas Terras Profundas, vestido de preto, empoeirado e cansado, havia no seu rosto alguma coisa que não enganaria ninguém. Essa coisa existia no rosto de todos os verdadeiros reis de Nárnia, que governam em nome de Aslam, coroados em Cair Paravel, no mesmo trono de Pedro, o Grande Rei.

Todas as cabeças se descobriram, todos os joelhos se curvaram. Logo depois, vieram os vivas, e os gritos, e pulos de alegria, e apertos de mão, e abraços, e beijos. Lágrimas emocionadas correram dos olhos de Jill. A peregrinação, apesar de suas durezas e perigos, valera a pena.

– Por favor, Alteza, há uma ceia preparada naquela caverna para depois da dança...

– Com muito prazer – disse o príncipe; e na verdade os quatro amigos tinham um apetite imbatível naquela noite.

A multidão começou a caminhar para a caverna sob as árvores. Jill conseguiu ouvir Brejeiro dizer para os que o rodeavam:

– Não, não, a minha história pode esperar. Não há o menor interesse no que aconteceu comigo. Eu, sim, quero saber de notícias. E de uma vez! O navio do rei naufragou? Há guerra com os calormanos? Apareceram os dragões? – Todos caíram na risada, comentando:

– É ainda o mesmo Brejeiro! Não mudou nem um pouco!

As crianças estavam caindo de fome e cansaço, mas reviveram com o calor da gruta, com a beleza do clarão da lareira, que iluminava as paredes, o guarda-louças, as xícaras, os pires, os pratos e o chão de pedra lisa.

Mesmo assim, caíram no sono enquanto a ceia estava sendo preparada. Enquanto dormiam, o príncipe Rilian contou a aventura para os bichos e anões mais velhos e sábios. Souberam então que uma feiticeira perversa (sem dúvida uma do mesmo tipo da feiticeira Branca, que trouxera para Nárnia há muitos anos um inverno sem fim) havia matado a mãe do príncipe e encantado o próprio Rilian. Souberam também que ela invadira Nárnia pelo caminho subterrâneo, planejando subjugar o país por intermédio do próprio Rilian – que jamais sonhou que o país onde seria rei (rei só no nome, mas na verdade escravo da feiticeira) era seu próprio país. Souberam também que a feiticeira era aliada dos perigosos gigantes de Harfang.

– A lição de tudo, Alteza – concluiu o anão mais velho –, é que essas feiticeiras do Norte sempre miram o mesmo objetivo: em cada época da História, mudam apenas de tática.

 

REMATE DE MALES

Ao acordar no dia seguinte numa gruta, Jill passou por um momento horrível, pensando que estava novamente no Submundo. Ao perceber que se achava deitada num leito de relva coberta por um manto de pele, ao dar com o fogo crepitante (recentemente aceso) numa lareira de pedra, e vendo mais adiante a luz da manhã entrando pela boca da gruta, recordou-se da venturosa verdade.

Fora deliciosa a ceia, apesar de todo o sono que sentira antes que ela terminasse. Tinha a vaga impressão de anões defronte do fogo com frigideiras quase maiores do que eles, do chiado e do aroma delicioso de salsichas, e mais salsichas, e mais salsichas. Não salsichas mixurucas, com um pedacinho de pão e molho de soja, mas salsichas legais, suculentas, temperadas, estourando de gordas, só ligeiramente tostadas. E canecões de chocolate espumoso, batatas e castanhas assadas, maçãs de forno recheadas com passas; e, depois de tudo, os sorvetes que refrescavam.

Sentou-se e olhou em torno. Brejeiro e Eustáquio estavam deitados a pouca distância, ambos a dormir profundamente.

– Vocês dois aí! – gritou a menina. – Vão ficar dormindo o resto do dia?

– Psiu! Psiu! – murmurou uma voz de algum lugar em cima dela. – Hora de dormir. Tire uma soneca. Não vai fazer turru. Turru!

– Só pode ser – disse Jill, distinguindo um monte de penas brancas e fofinhas em cima de um velho relógio –, só pode ser Plumalume!

– Turru, turru! — concordou a coruja, espichando a cabeça para fora da asa e abrindo um olho. – Trouxe uma mensagem para o príncipe. Os esquilos nos levaram a grande notícia. Mensagem para o príncipe. Ele já partiu. Vocês também devem partir. Bom dia... – e a cabeça da coruja desapareceu.

Como, pelo jeito, não seria possível arrancar qualquer informação da coruja, Jill levantou-se e começou a procurar um modo de lavar o rosto e comer alguma coisa. Quase no mesmo instante um pequeno fauno entrou trotando na caverna, fazendo clique-claque com seus cascos de bode no chão de pedra.

– Ah! Acordou finalmente, Filha de Eva! – disse o fauno. – Acho que é melhor acordar o Filho de Adão. Dois centauros se ofereceram para levá-los até Cair Paravel. – E acrescentou com a voz mais baixa: – Você deve saber que montar um centauro é uma honraria especialíssima. Não sei de mais ninguém que possa dizer o mesmo. Assim, não ficaria bem fazê-los esperar.

– Onde está o príncipe? – foi a primeira pergunta de Eustáquio e Brejeiro.

– Foi encontrar-se com o rei, seu pai, em Cair Paravel – respondeu o Fauno que se chamava Orruns. – O navio de Sua Majestade está sendo esperado no porto a qualquer momento. Parece que o rei teve um encontro com Aslam... não posso afirmar se em visão ou se com o próprio Leão... antes que se afastasse no mar. Aslam disse-lhe que encontraria o filho perdido a esperá-lo em Nárnia.

Eustáquio já estava de pé, e Jill começou a ajudar o fauno a fazer o café. Um centauro, chamado Mão de Nuvem, famoso curandeiro, viria tratar de Brejeiro, que permaneceu deitado a resmungar:

– Já sei, vai cortar minha perna pelo menos à altura do joelho. Aposto. – Mas era bom continuar na cama.

O café da manhã consistiu em ovos mexidos e torradas; e nem parecia que Eustáquio devorara uma lauta ceia durante a noite.

O fauno, olhando para as valentes garfadas do menino, observou:

– Não precisa se apressar tanto, Filho de Adão. Acho que os centauros ainda não terminaram a primeira refeição.

– Então esses centauros levantam muito tarde – disse Eustáquio. – Lá pelas dez...

– Nada disso – respondeu Orruns –, acordam antes de raiar o dia.

– Ai, ai, ai! Então eles esperam alguém para fazer a primeira refeição.

– Não, nada disso. Começam a comer no instante em que acordam.

– Caramba! Então a refeição deles deve ser enorme.

– Não está entendendo, Filho de Adão? Um centauro tem um estômago humano e um estômago de cavalo. E, é claro, os dois estômagos precisam de alimento. Assim, primeiro de tudo, eles comem presunto, omeletes, torradas, geléias, frutas, mingau, café e cerveja. Depois é que cuidam da parte cavalar, pastando durante uma hora e arrematando tudo com farinha de malte, aveia e um pacote de açúcar. Por isso é que se trata de uma coisa muito séria convidar um centauro para passar o fim de semana com a gente.

Ouviu-se nesse momento um barulho de cascos a ressoar nas pedras. As crianças olharam. Os dois centauros (um de barba negra, outro de barba dourada) estavam a esperá-los na boca da gruta. Muito educadamente, as crianças terminaram depressa a refeição.

Um centauro não é nada engraçado quando à nossa frente. É solene, majestoso, deixando transparecer toda a sabedoria antiga que aprendeu das estrelas. Não se alegra nem se irrita facilmente. Mas, quando se enfurece, sua raiva é tão terrível quanto um maremoto.

– Adeus, querido Brejeiro – disse Jill, aproximando-se da cama do paulama. – Desculpe-me por tê-lo chamado de pé-frio.

– Eu também peço desculpas – falou Eustáquio. – Você foi o maior amigo do mundo.

– Espero encontrá-lo de novo um dia – acrescentou Jill.

– Não creio muito nisso – replicou Brejeiro. – Acho que nem mesmo a minha cabana vou encontrar de novo. E o príncipe – um ótimo sujeito, mas vocês acham que ele vai resistir? Viver debaixo da terra estraga a melhor saúde. Claro. O príncipe não pode durar muito.

– Brejeiro! – disse Jill –, você no fundo é um conversa-fiada. Apesar dessa cara de enterro, tenho certeza de que se sente maravilhosamente bem. Além do mais, fala como se tivesse medo de tudo, mas na verdade é valente como... como um leão.

– Por falar em cara de enterro... – começou a dizer Brejeiro, mas Jill, para surpresa dele, deu-lhe um beijo na face cor-de-barro, enquanto Eustáquio apertou-lhe a mão.

Em seguida, as crianças correram para os centauros, e o paulama afundou-se de novo na cama, dizendo para si mesmo: “Nunca poderia imaginar que ela me desse um beijo. Por mais simpático que eu seja.”

Montar um centauro é mesmo uma grande honra (concedida provavelmente só aos dois desde que o mundo é mundo), mas não é nada confortável. Pois ninguém com amor à vida iria insinuar que um arreio tornaria a coisa melhor; e montar em pêlo não é fácil, especialmente (como no caso de Eustáquio) quando a pessoa nunca aprendeu a montar.

Os centauros foram muito gentis, apesar de graves; enquanto trotavam pelas terras de Nárnia, conversaram com as crianças, sem voltar as cabeças, discorrendo sobre as propriedades de ervas e raízes, sobre a influência dos astros, sobre os nove nomes de Aslam e seus significados, e outras coisas desse gênero. Apesar de sacolejados e doloridos, Jill e Eustáquio dariam tudo para que a jornada não terminasse. Que beleza! As colinas e as clareiras reluzindo com a neve da véspera! Encontrar coelhos, esquilos e passarinhos que diziam bom-dia! Respirar o ar de Nárnia! Ouvir as vozes das árvores de Nárnia!

Chegaram finalmente ao rio – que à luz do sol de inverno fluía azul e brilhante – bem mais abaixo da última ponte (que fica numa cidadezinha de telhados vermelhos chamada Beruna). Ali foram transportados numa barcaça para o outro lado, sob os cuidados de alguns paulamas, que quase sempre se encarregam, em Nárnia, dos assuntos aquáticos.

Quando atingiram a outra margem, cavalgaram de novo os centauros e logo estavam em Cair Paravel, onde distinguiram imediatamente aquele mesmo navio reluzente que viram ao pisar em Nárnia pela primeira vez. Parecia um grande pássaro deslizando pelo rio. Toda a corte, a fim de saudar o rei, estava outra vez reunida no relvado entre o castelo e o cais. Rilian, que havia trocado sua roupagem negra por um manto escarlate sobre uma blusa de malha prateada, estava à beira do cais, sem chapéu, à espera do pai. O anão Trumpkin sentava-se a seu lado, na cadeirinha puxada pelo burro.

Viram logo as crianças que não haveria chance de alcançar o príncipe, cercado pela multidão. Além disso, sentiam-se agora meio tímidos. Perguntaram então aos centauros se poderiam ficar montados um pouco mais de tempo, do contrário nada veriam. Os centauros não fizeram objeção.

Uma fanfarra de trompas prateadas veio do convés do navio; os marinheiros lançaram uma corda; ratos (ratos falantes, naturalmente) e paulamas puxaram logo o navio, que se encostou ao cais. Músicos, ocultos pela multidão, começaram a tocar uma marcha solene e triunfal. Os ratos estenderam, pressurosos, o portaló.

Jill esperava ver o velho rei descer os degraus, mas alguma coisa devia estar acontecendo. Um nobre de rosto pálido desceu ao cais e ajoelhou-se diante do príncipe e de Trumpkin. Os três conversaram alguns minutos com as cabeças quase coladas; nada se ouvia do que diziam. A música continuava, mas era evidente que todos se sentiam um pouco inquietos. Quatro nobres, carregando algo muito lentamente, surgiram no convés. Quando chegaram ao portaló já era possível distinguir o que conduziam: o velho rei estendido sobre uma cama, muito pálido e inerte. A cama foi deposta no chão. O príncipe ajoelhou-se e abraçou o pai. O rei Caspian ergueu a mão direita e deu a bênção ao filho. Todos ergueram vivas, mas não eram ovações muito animadas, pois sabiam que alguma coisa ia mal. Subitamente a cabeça do rei baqueou nos travesseiros; os músicos pararam de tocar; o silêncio era de morte. O príncipe, ajoelhado ao pé da cama, começou a chorar.

Houve murmúrios e agitações. Todos de cabeça coberta foram tirando os chapéus, os gorros, os elmos e os capuzes – inclusive Eustáquio. Ouviu-se em seguida um farfalhar acima do castelo: o pavilhão narniano, com o Leão em ouro, estava sendo hasteado a meio-pau. Lentamente, implacavelmente, com gemidos de cordas e doloridas queixas de trompas, a música recomeçou: uma ária de cortar o coração.

As duas crianças escorregaram dos centauros (que nem chegaram a notar).

– Preferia estar em casa – falou Jill. Eustáquio concordou com a cabeça, sem dizer nada.

– Aqui estou – disse uma voz profunda atrás deles.

Era o próprio Leão, tão luminoso, real e forte, que tudo o mais começou a parecer pálido, embaçado. Antes que pudesse respirar fundo, Jill se esqueceu do rei morto de Nárnia e se lembrou apenas de como causara a queda de Eustáquio no penhasco, dos sinais esquecidos, das brigas e impertinências acontecidas. Queria dizer “sinto muito” mas não conseguia falar. O Leão, com os olhos, puxou as crianças para perto dele e tocou-lhes os rostos pálidos com a língua. E falou:

– Não pensem mais nisso. Não me zango o tempo todo. Vocês cumpriram a missão que lhes foi confiada.

– Por favor, Aslam – disse Jill –, podemos ir para casa agora?

– Podem. Vim para levá-los.

Aslam abriu a boca e soprou. Dessa vez não tiveram a impressão de voar: em vez disso, era como se estivessem firmes no chão, e o hálito de Aslam soprasse para longe o navio, o rei morto, o castelo, a neve, o céu de inverno. Todas essas coisas flutuavam no ar como anéis de fumaça. Viram, de súbito, que estavam envolvidos por uma brilhante luminosidade de verão, em cima de um gramado, entre árvores grossas, à margem de um riacho límpido. Perceberam que se encontravam de novo na Montanha de Aslam, muito acima e muito além da terra de Nárnia. Estranho é que a marcha fúnebre do rei Caspian prosseguia, sem que se pudesse dizer de onde vinha. Caminhavam à beira do riacho com o Leão à frente: ele estava tão belo e a música era tão angustiante, que Jill não sabia de onde lhe subiam as lágrimas.

Aslam parou e as crianças olharam para o riacho. Lá dentro, nos seixos dourados do leito do rio, estava o rei Caspian, morto, com a água deslizando por ele como se fosse um cristal líquido. As longas barbas brancas balouçavam como plantas aquáticas. Todos os três choraram. Até o Leão chorou: enormes lágrimas de leão, e cada lágrima era mais preciosa que toda a Terra, ainda que esta fosse um imenso diamante. E Jill observou que Eustáquio não parecia um menino chorão, mas um homem ferido de dor adulta. Ali, naquela montanha, as pessoas não pareciam ter uma idade determinada.

– Filho de Adão – disse Aslam –, vá até aquele matagal e traga para mim o espinho que por lá encontrar.

Eustáquio obedeceu. O espinho tinha três palmos de comprimento e espetava como um punhal.

– Enfie este espinho em minha pata, Filho de Adão – disse Aslam, estendendo uma pata dianteira para Eustáquio.

– Devo mesmo fazer isso? – perguntou o menino.

– Sim – respondeu Aslam.

Eustáquio apertou os dentes e enfiou o espinho na pata do Leão, de onde correu uma grande gota de sangue, mais vermelha do que se possa imaginar. E a gota correu e espalhou-se no riacho sobre o corpo do rei. E este começou a transformar-se: a barba branca ficou cinzenta, depois amarela, depois mais curta e desapareceu; as faces encovadas tomaram cores e formas; as rugas alisaram-se; os olhos abriram-se; olhos e lábios sorriram; de repente, o rei ergueu-se, ficando em pé perto deles. Era um homem muito jovem, talvez um rapaz. (Não se podia dizer com certeza, pois as pessoas não têm uma idade precisa no país de Aslam.) O rei passou os braços em torno do pescoço de Aslam, dando-lhe beijos viris de rei, respondidos com beijos agrestes de leão.

Por fim Caspian voltou-se para os outros, rindo-se com espantada alegria:

– Eustáquio! Eustáquio! Quer dizer que você conseguiu alcançar o fim do mundo! Que aconteceu com a minha espada que você quebrou na Serpente do Mar?

Eustáquio deu uns passos na direção dele, as duas mãos estendidas, recuando logo com uma expressão perturbada.

– Olhe aqui – gaguejou o menino. – Está tudo muito bem, mas... é você mesmo? Quero dizer...

– Não seja tolo – falou Caspian.

– Mas – prosseguiu Eustáquio, olhando para Aslam – ele afinal não... morreu?

– Morreu – respondeu o Leão tranqüilamente, quase como se estivesse satisfeito (foi o que Jill achou). – Ele morreu. Isso acontece muito, como você deve saber. Até eu morri. Há muitos poucos que não morreram.

– Ah – disse Caspian –, estou entendendo: você está pensando que eu sou um fantasma ou outro absurdo qualquer. Mas pense melhor: eu seria um fantasma em Nárnia, pois de Nárnia não sou mais. Mas ninguém é fantasma em sua própria terra. No seu mundo eu seria um fantasma. Será? Já que estão aqui, talvez aquele mundo também não seja mais de vocês.

Uma grande esperança alvoroçou o coração das crianças. Mas Aslam balançou a cabeça felpuda.

– Não, meus queridos. Quando me encontrarem aqui outra vez, então ficarão. Agora, não. Precisam voltar ao mundo de vocês por algum tempo.

– Senhor – disse Caspian –, sempre quis dar uma espiada naquele mundo. Estarei errado?

– Você não pode mais querer nada de errado, agora que morreu, meu filho – foi a resposta de Aslam. – Poderá espiar o mundo deles durante cinco minutos – cinco minutos do tempo deles.

Aslam então explicou a Caspian que Jill e Eustáquio iriam de volta para o Colégio Experimental, que ele parecia conhecer tão bem quanto eles.

– Minha filha – disse Aslam para Jill –, apanhe um galho daquela moita.

Na mão de Jill a vara transformou-se logo num bonito chicotinho. Aslam prosseguiu.

– Agora, Filhos de Adão, saquem as espadas, mas não usem as pontas, pois eu os envio para a companhia de crianças e covardes, não para enfrentar guerreiros.

– Vem com a gente? – perguntou Jill a Aslam.

– Eles me verão apenas de costas – respondeu o Leão.

Foram conduzidos pelo bosque e, pouco depois, encontravam-se diante do muro do Colégio Experimental. Aslam rugiu fazendo com que o sol tremesse no céu; um pedaço de muro caiu, abrindo uma brecha. Podiam ver a alameda da escola e o telhado do ginásio, sempre sob o mesmo sol tristonho de outono.

Aslam virou-se para Jill e Eustáquio, soprou-lhes no rosto e passou-lhes a língua na testa. Depois deitou-se na brecha que havia feito no muro, dando as costas para a Inglaterra e dirigindo o olhar senhoril no sentido de sua própria terra. No mesmo instante Jill percebeu as carinhas (que já estava cansada de conhecer) correndo sob as árvores na direção deles.

De repente pararam todos e mudaram de cara: a mesquinharia, a pretensão, a crueldade, a baixeza, tudo isso desapareceu quase completamente das expressões deles, dando lugar a uma única expressão: de terror. Pois tinham visto um leão do tamanho de um filhote de elefante deitado na brecha do muro; e três figuras armadas, vestidas com roupas rutilantes, partiam para cima deles. Com a força propiciada por Aslam, Jill tacou o chicotinho nas meninas, enquanto Caspian e Eustáquio castigavam os meninos com as espadas; em dois minutos os fanfarrões já estavam correndo feito doidos, aos gritos.

– Assassinos! Comunistas! Leões! Assim não vale!

O diretor do colégio (aliás, era uma diretora) chegou correndo para ver o que se passava. Ao ver o Leão e o buraco no muro, e Caspian, Jill e Eustáquio (que ela não reconheceu), teve um ataque histérico. Voltou ao gabinete para informar à polícia, pelo telefone, que um leão devia ter fugido de um circo, que baderneiros arrebentaram o muro armados de espadas, que... No meio da confusão, Jill e Eustáquio entraram calmamente e vestiram roupas comuns, enquanto Caspian voltava para o outro mundo. O muro, por graça de Aslam, foi recomposto. Quando a polícia chegou, não encontrou leão nenhum, nem brecha no muro, nem baderneiros. Ali havia somente uma diretora que se comportava como uma louca. Um inquérito foi aberto. Nesse inquérito surgiram cobras e lagartos a respeito do Colégio Experimental; dez pessoas acabaram expulsas. Depois disso, os amigos da diretora perceberam que ela não prestava para diretora, e nomearam-na inspetora-geral. Quando viram que ela não era também grande coisa como inspetora-geral, conseguiram elegê-la para a Câmara dos Deputados, onde ela viveu para sempre feliz.

Eustáquio enterrou suas bonitas roupagens, durante a noite, no campo do colégio; Jill preferiu carregar as suas para casa, pensando numa festa especial.

A partir daquele dia, as coisas melhoraram no Colégio Experimental, que acabou virando uma escola bastante boa. Jill e Eustáquio ficaram amigos para sempre.

Lá longe, em Nárnia, o rei Rilian fez os funerais do pai, Caspian, o Navegador, o décimo com aquele nome. Rilian governou muito bem uma terra feliz, apesar de Brejeiro (cujo pé ficou bom em três semanas) estar sempre dizendo que tempo bom é sinal de tempestade. A abertura na colina foi mantida aberta; às vezes, nos dias quentes, os narnianos costumavam ir lá com barcos iluminados, e entoavam seus cantos e se divertiam no escuro mar subterrâneo. E contavam histórias de cidades que ficavam ainda muito mais abaixo...

 

                                                                                            C. S. Lewis

 

 

                      

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