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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MENINA SEM ESTRELA / Nelson Rodrigues
A MENINA SEM ESTRELA / Nelson Rodrigues

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MENINA SEM ESTRELA

 

Nasci a 23 de agosto de 1912, no Recife, Pernambuco. Ve­jam vocês: eu nascia na rua Dr. João Ramos (Capunga) e, ao mes­mo tempo, Mata-Hari ateava paixões e suicídios nas esquinas e botecos de Paris. Era a espiã de um seio só e não sabia que ia ser fuzilada. Que fazia ela, e que fazia o marechal Joffre, então apenas general, enquanto eu nascia? A belle époque já trazia no ventre a primeira batalha do Marne. Mas por que “espiã de um seio só”? Não ponho minha mão no fogo por uma mutilação que talvez seja uma doce, uma compassiva fantasia. Seja como for, o seio solitário é, a um só tempo, absurdamente triste e al­tamente promocional.

Mas a belle époque não é a defunta que, de momento, me interessa. Tenho mortos e vivos mais urgentes. Por outro lado, minhas lembranças não terão nenhuma ordem cronológica. Hoje posso falar do kaiser, amanhã do Otto Lara Resende, depois de amanhã do czar, domingo do Roberto Campos. E por que não do Schmidt? Como não falar de Augusto Frederico Schmidt? Seu nome ainda tem a atualidade, a tensão, a magia da presença físi­ca. Todavia, deixemos o Schmidt para depois. O que eu quero dizer é que estas são memórias do passado, do presente, do fu­turo e de várias alucinações.

Imaginem vocês que tive ontem, na esquina de São José com Avenida, uma experiência, e grave. Antes de prosseguir, porém, devo explicar que, para mim, nada é intranscendente. Pode ser um fato de infinita, exemplar modéstia. Digamos que a nossa galinha pule a cerca do vizinho. Pode haver uma peri­pécia de mais delicada humildade? Não. E, todavia, esse inci­dente, em que pese a sua aparente irrelevância, tem um toque de Graça e de Mistério. Se bem me lembro, é de Bernanos um romance que termina assim: — “Tudo é Graça”.

O que foi dito acima tem a intenção de valorizar e dramati­zar a tal experiência de ontem. Vamos ao fato: todos os dias, almoço com minha mãe, nas Laranjeiras. Somos muitos e, por isso, a nossa mesa é numerosa e cálida como a da Ceia. É curio­so! Depois de velho, dei para chamar minha mãe de “madre”, “madre mia”. E aqui confesso: — vou lá buscar a sua compai­xão. Ela tem pena de mim, sempre teve. Fosse eu um Walther Moreira Salles e minha mãe teria pena de me ver, boiando num lago de milhões como uma vitória-régia.

Pois bem, venho do almoço e salto do táxi na esquina refe­rida. Por toda a cidade, um calor de rachar catedrais. Fecha o sinal e paro em cima do meio-fio. De repente, ouço aquela voz. Era um camelô, como há milhares e, eu quase dizia, como há milhões. Viro-me e fico olhando o sujeito. O camelô tem de ser um extrovertido ululante. E aquele estava, ali, virando a alma pelo avesso. Passa todo mundo de cara amarrada. O brasileiro é um furioso nato. O que se vê, na rua, são indignados de am­bos os sexos.

Pois, enquanto os outros passavam exalando uma ira mis­teriosa, o camelô só faltava virar cambalhotas de alegria total. Não tem um dente, ou, melhor dizendo, tem uma antologia de focos dentários. O pior vem agora.

O sujeito está berrando:

— A nova Prostituição do Brasil! A nova Prostituição do Brasil!

E erguia um folheto, só faltava esfregar o folheto na cara da pátria. Todavia, não me espanto, ninguém se espanta. As pes­soas passam e nem olham. Há qualquer coisa de vacum no ler­do escoamento da multidão. O camelô continua empunhando o folheto como um estandarte dionisíaco:

— A nova Prostituição do Brasil! A nova Prostituição do Brasil!

Esse sinal não abre? Abriu. Lá vou eu, de roldão. Mas a Ave­nida, da Praça Mauá ao obelisco, está ressoante do berro imortal:

— A nova Prostituição do Brasil! A nova Prostituição do Brasil!

Um turista que por ali passasse havia de anotar no seu ca­derninho: “O Brasil acaba de promulgar a sua nova Prostituição”. Para mim, era uma experiência inédita: — pela primeira vez, via uma prostituição promovida como sabonete, coca-cola ou grapete. Já na outra calçada, estaco. O que eu reclamava de mim mesmo era todo o espanto que não sentia. Sim, eu devia estar espantado, todos deviam estar espantados. De outra cal­çada, ainda vejo o camelô com sua euforia absurda. E o povo passando. Que nem todos parassem, vá lá. Mas alguém, alguém devia parar. Um funcionário, um soldado, um marinheiro ou um velhinho de camisa fina e imaculada. Mas todos seguiam seu caminho, inclusive uma mulata de Gauguin. Portanto, eu e os outros que passavam éramos também irreais, tão irreais como o camelô.

Quando o sinal abre para os pedestres, decido: — “Vou vol­tar”. E volto. O que me põe doente é a falta de espanto. Preci­so me espantar com a maior urgência. Já atravessei o cruzamento e estou, de novo, na esquina do camelô, junto ao próprio. Pos­so apalpá-lo, posso farejá-lo. Talvez compre o folheto da nova Prostituição do Brasil.

Depois de cuspir para trás, por cima do próprio ombro, o homem recomeça:

— A nova Constituição do Brasil! A nova Constituição do Brasil!

Só então percebo o monstruoso engano auditivo. Onde é que meus ouvidos estavam com a cabeça? Ah, uma incorreção acústica pode levar o sujeito a sair por aí derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas.

Por outro lado, também o camelô perdera a sua euforia brutal. Era agora um vago pobre-diabo, igual aos outros pobres-diabos que florescem em todas as esquinas da pátria. Sua depressão era bem irmã da minha, da nossa. Estava mais desdentado do que nunca. E, então, larguei tudo e vim-me embora. Pouco depois, entro numa leiteria (o certo é “leitaria”, mas prefiro o errado). Trato minha úlcera a pires de leite como se ela fosse uma gata de luxo.

Tomando meu leite, faço as minhas reflexões de leiteria. Sem querer, e por causa de um engano acústico, eu descobrira o seguinte, dois pontos: — o que nos falta é o que chamaria de “espanto político”. Aqui, as coisas espantosas deixaram de espantar. Se um camelô brotasse de uma alucinação, invadisse a vida real e berrasse a “nova Prostituição do Brasil” — nin­guém cairia ferido de assombro.

Vejamos outra hipótese. Se baixassem um decreto mandan­do a gente andar de quatro — qual seria a nossa reação? Nenhu­ma. Exatamente: — nenhuma. E ninguém se lembraria de per­guntar, simplesmente perguntar. — “Por que andar de quatro?”. Muito pelo contrário. Cada um de nós trataria de espichar as orelhas, de alongar a cauda e ferrar o sapato. No primeiro desfi­le cívico, o brasileiro estaria trotando na Presidente Vargas, solidamente montado por um Dragão de Pedro Américo. E seria lindo toda uma nação a modular sentidos relinchos e a escoucear em todas as direções.

Mas como ia dizendo: — nasci em 1912. E, por um momen­to, me inclino sobre a belle époque, tão defunta como suas plu­mas e lantejoulas fenecidas e seus nostálgicos espartilhos.

Toda a minha primeira infância tem gosto de caju e de pi­tanga. Caju de praia e pitanga brava. Hoje, tenho 54 anos bem sofridos e bem suados (confesso minha idade com um cordial descaro, porque, ao contrário do Tristão de Athayde, não odeio a velhice). Mas como ia dizendo: — ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou raptado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos re­gressivos e fatais.

E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambu­co. Mas não era mais Capunga e sim Olinda. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso me deu a minha primeira relação com o universo. Ali, eu começava a existir. Ainda não vira um rosto, um olho, uma flor. Nada sabia dos outros, nem de mim mesmo. E, súbito, as coisas nasciam, e eu descobria uma pitangueira ou um cajueiro.

Que idade teria eu? Eis o que me pergunto: — que idade teria eu? Um ano, um ano e pouco, sei lá. Ou menos, talvez me­nos. Minha família morava diante do mar. Mas o mar antes de ser paisagem e som, antes de ser concha, antes de ser espuma — o mar foi cheiro. Há ainda um cavalo na minha infância pro­funda. Mas também o cavalo foi cheiro. Antes de ser uma figura plástica, elástica, com espuma nas ventas — o cavalo foi aroma como o mar.

1913. O que a memória consciente preservou de Olinda foi um mínimo de vida e de gente. Eu me lembro de pouquíssi­mas pessoas. Por exemplo: — vejo uma imagem feminina. Mas é mais um chapéu do que uma mulher. Em 1913, mesmo meu pai e minha mãe pareciam não ter nada a ver com a vida real. Va­gavam, diáfanos, por entre as mesas e cadeiras. Depois, eu os vejo parados, com uma pose meio espectral de retrato antigo. Mas nem meu pai, nem minha mãe falavam. Eu não os ouvia. O que me espanta é que essa primeira infância não tem palavras. Não me lembro de uma única voz. Não guardei um bom-dia, um gemido, um grito. Não há um canto de galo no meu primeiro e segundo ano de vida. O próprio mar era silêncio.

Falei do mar e volto a ele. Tenho umas poucas obsessões que cultivo, com paciência e amor. Uma delas é o mar. Qual­quer praia vagabunda, mesmo a de Ramos, tem para mim um apelo mortal. Às vezes, penso que já morri afogado em vidas passadas ou morrerei afogado em vidas futuras. Gosto até de cheiro de peixe podre.

Em 1914, houve o incidente de Sarajevo. Caçaram o arquiduque a tiros, bombas. Meu pai soube, e minha mãe, e meus tios, e as visitas. Mas, na hora do atentado, eu não sabia que o arquiduque, já ferido de morte, soluçava para a mulher: — “Vi­ve para os nossos filhos!”. Era um defunto falando para uma defunta. Aquele homem assumia, ali, a sua plena e inefável miserabilidade. Deixava de ser um uniforme, um penacho, um par de botas. As medalhas escorriam sobre as tripas à mostra. E as esporas triunfais estavam agora geladas. Na hora de morrer, e quando sabe que está morrendo — o homem tem um olhar sú­plice e insuportável de criança batida. Não, não, um olhar de contínuo. Sempre imagino que o arquiduque austríaco, com os intestinos de fora, morreu como o últimos dos contínuos.

Era a guerra. Um ano depois, nascia mais um, lá em casa. Era o sexto filho. Meu pai já espalhara por toda Recife: — “Se for menino, vai se chamar Joffre”. E veio um menino, de cabe­lo de fogo. Esse irmão, que se uniria a mim como um gêmeo, ia morrer, aos 21 anos, tuberculoso. Depois da Revolução de 30, e até 35, eu e toda a minha família conhecemos uma misé­ria que só tem equivalente nos retirantes de Portinari. Ainda ago­ra, quando me lembro desse período, tenho vontade — vonta­de mesmo — de me sentar no meio-fio e começar a chorar. Eu e meu irmão Joffre passamos fome e foi a fome que estourou os nossos pulmões. Mas não quero misturar datas e contarei tu­do isso, a seu tempo. (Naquela época, os jornais davam à tuber­culose o nome imaculado de “peste branca”. Por uma associação meio idiota, eu me lembro de Moby Dick, a “baleia bran­ca”. Mas estou divagando, e desculpem.)

Voltemos à guerra, isto é, à Primeira Grande Guerra. Meu pai embarcou para o Rio em 1915 (jornalista de combate, com tremendo potencial de ira, ele sempre imaginou que ia morrer assassinado). Pernambuco tornara-se pequeno para a sua ambi­ção jornalística. Largou emprego, largou tudo e disse à minha mãe: — “Você me espera. Se arranjar emprego, mando buscar você. Se não arranjar, volto”. Partiu. Meu pai era gago e daí, talvez, a ternura que eu tenho por todos os gagos. Que figura doce era meu pai e capaz de cóleras tamanhas. Cólera contra os outros, contra o mundo, mas trêmulo de ternura para a mu­lher e para os filhos. Morreu aos 44 anos de idade e jamais me deu um vago e merecido cascudo. Na hora, porém, do revide polêmico, era um Zola a decompor o exército francês. Mas meu pai não era homem de passar muito tempo longe de minha mãe.

No dia em que desembarcou no Rio, deu-lhe uma santa e provinciana pusilanimidade. Sua vontade foi voltar, correndo. O que ele não sabia, nem podia imaginar, é que minha mãe es­tava empenhando jóias, o diabo. Meu tio Augusto protestou: — “Não faça isso. É loucura!”. Ela não aceitou nenhum argumen­to, nenhum raciocínio: — “Vou porque vou, vou mesmo”. Lin­da, minha mãe. Tenho retratos seus da mocidade e posso repe­tir: — linda, minha mãe. Um dia, meu pai recebe o telegrama: “Embarco hoje, navio tal. Beijos”. E lá ficou ele, como uma barata tonta, lendo e relendo aquilo. Vinham minha mãe e seis fi­lhos, o último de colo. Esse batalhão de crianças ia inundar o Rio de Janeiro. Diga-se de passagem que, há muito tempo, mi­nha mãe vinha martelando meu pai: — “Vamos para o Rio. Vo­cê tem que ir para o Rio”.

Uma coisa é certa: — meu pai só ficou por causa de minha mãe. E quando entramos no navio, a Europa continuava mor­rendo e matando. Segundo dizia o Eu Sei Tudo, os alemães ar­rancavam o olho dos prisioneiros com o dedo em gancho. Só os alemães estupravam. Só os alemães espetavam criancinhas na ponta das baionetas. Durante a viagem, meus irmãos mais velhos, Milton e Roberto, estavam eufóricos. A campanha sub­marina alemã espalhava o terror por todos os mares. Meus ir­mãos queriam ser torpedeados e, se morrêssemos todos, seria ótimo, ótimo. Quanto a mim, não me lembro de nada, ou por outra: — o que me ficou do navio foi a lembrança de uma deli­cada escarradeira de louça, com flores desenhadas em relevo. Finalmente, chegamos. No cais, estavam meu pai e Olegário Mariano, o poeta.

Eu só imagino a pungência, a plangência da cena. Minha mãe descendo a escadinha, com a filharada atrás, e sem um tos­tão (o dinheiro das jóias fora todo gasto nas passagens e em pou­cas gorjetas de bordo); e meu pai, sem emprego, rigorosamen­te sem emprego, ou melhor: — meu pai arranjara um emprego e fora despedido. Saímos dali e fomos — meus pais com a filha­rada — para a casa de Olegário. Lá passamos não sei se vinte dias, um mês. Mas falei em Olegário e preciso contar um episó­dio que ocorreria trinta e poucos anos mais tarde. Tivemos um bate-boca, pelo telefone, de uma espantosa violência. Houve, de parte a parte, os insultos mais pesados. Olegário berrava: — “Eu te matei a fome! Eu te matei a fome!”.

Claro que o sujeito, seja ele um homem de bem ou um pu­lha, é um assassino falhado. Não há ninguém, vivo ou morto, que não tenha concebido a sua fantasia homicida. O melhor de nós já pensou em matar e já se imaginou matando etc. etc. (Aliás, envergonha-me estar aqui proclamando o óbvio.) No dia em que Getúlio morreu, vi meu colega Albert Laurence irromper na Úl­tima Hora, atropelando as cadeiras como um centauro trucu­lento. Crispou a mão no meu braço e me disse, com o olhar vazando luz: — “Eu vou matar Carlos Lacerda! Eu vou matar Carlos Lacerda!”.

Admirável Laurence! Francês e, se não me engano, de Mar­selha, era de uma emotividade de modinha antiga. Seu fervor assassino durou, se tanto, 24 horas. Dois, três dias depois, vol­tou a ser o mesmo enamorado de nossos clássicos e de nossas peladas. Mas como ia dizendo: — no dia em que Getúlio se matou, milhões de brasileiros assassinaram Carlos Lacerda. Eu próprio atendi, na Última Hora, cinqüenta telefonemas. O ódio vinha aos soluços: — “Eu vou matar Carlos Lacerda!”. E eram homens, senhoras, velhinhas.

Assim fui eu com Olegário Mariano. Durante o bate-boca, ele me matou e eu a ele. E tudo por quê? O que ainda hoje me assombra e me dilacera é o motivo espantosamente imbecil. Eis o fato: — minha peça Senhora dos afogados fora interditada. Recorri ao então chefe de polícia, general Lima Câmara. Homem de temperamento forte, ele foi comigo, e com minha peça, um doce, um terno. Pedi uma comissão de intelectuais, cujo pare­cer salvaria ou não Senhora dos afogados. Indiquei nomes, que o general aceitou. Olegário fora uma das minhas sugestões. Gilberto Freyre, outra. Muito bem: — Olegário votou contra, ve­jam vocês, contra (Gilberto a favor).

Tomei um baque quando vi o parecer da comissão: — a maioria estava com a polícia. Há, no meu texto, três ou quatro cenas fortes. Fortes por absoluta necessidade psicológica e dra­mática. E ai de mim! O nosso literato age e reage diante do se­xo como uma Bernarda Alba. Sofrendo na carne e na alma, dei uma entrevista feroz e fiz uma alusão grosseira a Olegário. De noite, ele bate o telefone para minha casa. Começou assim: — “Nelson, você é um cafajeste!”. Por minha vez, subi a serra: — “Cafajeste é você!”.

O resto veio numa progressão fulminante. Falamos em “ti­ro na boca”, em “te quebro a cara” etc. etc. Hoje, com Olegário morto, confesso: — eu não tinha razão. Olegário só podia votar contra. Ele seria um pulha se admitisse tal peça. Eu era o anti-Olegário, Senhora dos afogados era a anti-Olegário. Imaginem que, na peça, um personagem fazia a apologia dos “eczemas da avó”. Ora, o único, na comissão, sem preconceito contra eczema era Gilberto Freyre. Dois anos antes, a polícia interditara ou­tro original meu: — Álbum de família. E o dr. Alceu Amoroso Lima assumiu a corajosa defesa da polícia. Sim, o Tristão aplau­diu a polícia e quase pediu bis como na ópera. Também estava certo. Eu sou, e serei, do berço ao túmulo, o anti-Alceu.

Saí do telefone, exausto de odiar. Mas, por toda a noite, minha casa ficou ressoante do berro: — “Eu te matei a fome! Eu te matei a fome!”. Trinta e tantos anos já passaram. Eis o que me pergunto: — por que dei a tal entrevista e por que não aceitei um voto de uma honradez exemplar? Não quis ver que aquele sujeito ululante era o mesmo que há trinta e tantos anos estava no cais; e me carregou no colo; e nos deu mesa, cama e teto. Doce poeta! Foi um dos homens mais bonitos e mais ama­dos do Brasil. Mesmo velho, ainda inspirava paixões. Disse que me matara a fome. Então, eu penso em Os Maias. Você me deu, sim, uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima. Perdão, Olegário, eu sou uma boa besta.

Da casa do poeta não me lembro de nada. Minto: — me lembro de um pé de jambo, junto ao muro, e só. Passamos lá vinte dias, um mês e, depois, fomos morar na rua Alegre, ao lado de uma farmácia. Aluguel de cento e vinte mil-réis por mês. Amigos de meu pai fizeram uma vaquinha para comprar um mí­nimo de mobiliário.

Eu me lembro do nosso jantar, na nova casa. Veio uma mar­mita de pensão e toda a família se reuniu em torno de um cai­xote. De repente, rompe, no gramofone do vizinho, a valsa do “Conde de Luxemburgo”. Foi com Franz Lehar que comecei a ouvir o mundo. A partir da opereta, tudo começou a falar. Eu escutava. Ouvia a voz do meu pai, de minha mãe; os galos can­tavam; os passarinhos. Instalava-se uma fauna misteriosa e tris­te de ruídos noturnos. Uma vez, acordei de madrugada e fiquei escutando: — gargalhadas cínicas atravessavam a noite.

Nos primeiros tempos de Aldeia Campista não tínhamos em­pregada. Minha mãe precisou ir para a cozinha, para o tanque; fazia todo o serviço, varria, espanava. Milton e Roberto, os mais velhos, tomavam conta dos menores. De vez em quando, a vi­zinha tocava o “Conde de Luxemburgo”. E então minha mãe valsava, sozinha. E, nesse momento, ela se dilacerava de felici­dade. Continuei descobrindo as coisas: — o céu, a folha de tinhorão, a morte e o sexo. Uma das minhas lembranças de Aldeia Campista é a seguinte: — manhã ou tarde de chuva. Eu estava olhando um pé de tinhorão plantado numa lata de banha. Era garoto de pé no chão e calça furada. Fiquei, ali, um tempo infinito, espiando o tinhorão bebendo chuva. Uma gota caía em cima da mesma folha, com obtusa monotonia. E aquilo me deslumbrava.

Mas o que gostaria de contar é, se assim posso dizer, o meu primeiro feito erótico. Como aconteceu, com quem aconteceu ou quando aconteceu, não sei. Palavra de honra, até hoje não sei. Um dia minha mãe estava na cozinha, quando entra uma vizinha, uma tal de d. Maria. Dava-se muito lá em casa, empres­tava sal, açúcar, farinha, e era gorda como uma viúva machadiana. Maria chegou ventando fogo por todas as narinas. Entre parênteses, a santa senhora tinha uma filha única, menor do que eu, de bracinhos diáfanos e um respiro de passarinho.

A vizinha foi entrando e dizendo tudo:

— D. Ester, qualquer filho seu pode entrar na minha casa. Menos o Nelson. Desculpe, mas o Nelson, não.

Eu, não. Vejam vocês: — hoje, alguém poderia dizer, sem violentar a verdade: — “Proibido de entrar em casa de família aos quatro anos de idade”. Mas o que é que eu fiz? Estou vendo a menina, que seria minha vítima, com sua lancinante fragilida­de. Ainda por cima, tinha asma; e, nas crises, seus olhos se tornavam estrábicos de asfixia. Se Deus entrasse na minha sala e perguntasse: — “O que é que você fez? Conta pra mim. O que é que você fez?”, continuaria respondendo: — “Não sei”. De­ve ter sido um ultraje, uma coisa iníqua, abominável, à altura de tamanha indignação materna. Seja como for, o pecado é an­terior à memória.

Toda infância é varrida de tias. Umas mais velhas, outras mais moças. Muitas vezes, eu chegava em casa e caía sobre mim aquela saraivada de tias. Quando fui para a escola pública, uma tia me levava, outra me trazia. Mas não era bem isso que queria dizer. O que queria dizer é que, até certa idade, o menino tem uma certa semelhança com o Demétrio, pai dos Karamazov. Co­mo se sabe, para o velho bandalho, não há mulher feia. Qual­quer uma tem um charme, uma graça, uma beleza, secreta ou ostensiva. Eu, menino, até os sete anos, também via as mulhe­res sem nenhum cuidado seletivo. Achava todas lindas, fabulo­sas, fossem brancas, pretas, tordilhas, gordas etc. etc. A gravi­dez parecia-me de um gosto esplêndido, com aquele barrigão.

Até que, aos sete anos, vi, pela primeira vez, uma mulher nua. Aquilo ia influir por toda a minha vida.

Meu Deus, se alguém me perguntasse o que há de mais pa­tético no ser humano, daria a seguinte resposta fulminante: — “A nudez”. Para mim, não há nudez intranscendente. Explica­rei, mais adiante, por que um vago decote pode comprometer ao infinito. Mas o que me importa, de momento, é contar o gran­de espanto de minha infância.

Recentemente, no Correio da Manhã, o Paulo Francis fa­lava na “demência insuportável” de Dostoievski. De acordo, e daí? Outro “demente insuportável”, e de rasgar dinheiro, se­ria Tolstoi. E ainda outro, que também podia ser amarrado num pé de mesa, o Shakespeare de Ricardo III. Só o Pedro Calmon não é demente. (Estou divagando outra vez, e desculpem.) Eis o que eu queria dizer: — a palavra “demência” levou-me a uma loucura antiga, nada literária e, até, analfabeta. Vejamos. Já contei umas dez vezes que minha família morava na rua Alegre, Aldeia Campista, ao lado de uma farmácia. Na esquina, à esquerda da minha casa, residia um parente do marechal Hermes da Fonse­ca. E, ao lado, havia uma cabeça-de-porco. Morava aí, com a mãe, por sinal lavadeira, uma moça, dos seus 25, trinta anos. A velha era portuguesa e a filha, não sei.

Era a doida da rua, do bairro. Não gritava, não agredia nem falava. Ficava no quarto, dia e noite; e eu ouvia dizer que “to­mava banho de bacia”, com a mãe ensaboando, esfregando e berrando: “Fica quieta, fica quieta!”. Dizia-se também que a de­mente tinha horror de banho (também não sei).

Em torno dessa loucura, fora montado todo um folclore; e, de vez em quando, vinha uma comadre e acrescentava mais uma fantasia. Certa vez, ouvi uma conversa de vizinhas. Uma das mexeriqueiras contou que a louca, nas noites quentes (ou frias, sei lá), tirava a roupa, tudo. E ia assim, nua, até de manhã. De manhã, a portuguesa acordava e metia-lhe o chinelo.

Eu ouvi a história, de olho grande. Por muitos dias e mui­tas noites aquilo não me saiu da cabeça. Imaginava a nudez in­sone, nudez delirante, rodando pelo quarto.

Agora vem o tal grande espanto da minha infância. Eu já fi­zera sete anos, e estava na escola pública. Alguns alunos leva­vam merendas suntuárias. Lembro-me de um deles comendo pão com ovo. Pão com ovo! E a gema pendia-lhe do beiço, como uma baba amarela. Aquilo me apunhalava de inveja. Mas voltan­do à filha da lavadeira: — eu sentia pela demente um certo en­canto apavorado. Em casa, as tias avisavam: — “Não vai lá! Não vai lá!”. Mas eu escapulia e, com pouco mais, estava brincando com os meninos da casa de cômodos. Até que tomei coragem.

Tomei coragem, passei a mão no trinco e empurrei a por­ta. Passei lá um segundo fulminante. Mas vi. A louca estava no fundo do quarto, encostada à parede — e nua. Completamente nua. Essa imagem de nudez acuada está, ainda agora, neste mo­mento, diante de mim. Não esperei mais. Corri. Entrei em casa tão branco que alguém perguntou: — “O que é que você tem, menino?”. Disse, se é que disse: — “Nada, não”. Meti-me na cama; debaixo do lençol, tiritava de vergonha, pena, medo e, também, nojo. De repente, o mundo se enchia de nus. Cada qual tinha a sua nudez obrigatória. As donas da rua, se tirassem a rou­pa toda, estariam nuas como a filha da lavadeira.

Isso aconteceu em 1918, por aí. Um domingo, trinta e tan­tos anos depois, estou no portão. E ouço uma vizinha pergun­tar a outra vizinha, de janela a janela:

— Sabe quem morreu? A Marilyn Monroe.

— Morreu?

— O rádio está dando.

— Desastre?

— Suicídio.

Ora, quem se mata tem, automaticamente, o meu amor. E, além disso, prefiro as neuróticas (mais tarde direi por quê). Saí do portão, fui comprar cigarros e só pensava na suicida. Na sua adolescência, Marilyn posou nua para uma folhinha. E esse impudor mercenário foi, ao mesmo tempo, de uma fulminante efi­cácia promocional. Do dia para a noite, ela se tornou célebre: — célebre e nua, célebre porque se despira. Daí para Hollywood, a distância seria um milímetro.

A folhinha correu mundo. Foi desejada em todos os idio­mas. Nos botecos de Bombaim, ou do Cairo, ou de Cingapura, os paus-d’água sonhavam com o frescor implacável de sua nu­dez. Ao mesmo tempo, ela se tornava uma grande atriz. Trabalhou com sir Laurence Olivier. Não sei se antes ou depois, casou-se com Arthur Miller. Pouco importava o marido, o homem; o que a fascinou foi o grande dramaturgo (falso grande dramatur­go e pulha da pior espécie).

Tudo espantosamente inútil. Se ela fosse nomeada rainha da Inglaterra, ou promovida a madame Curie, ou carregada num andor — daria no mesmo. Nenhuma coroa, nenhuma estrela, nenhum manto — nada a salvaria de sua própria nudez.

Até que, num sábado, ou num domingo, ela se matou. A besta do Arthur Miller não entendeu nada. Fez uma peça infa­me. De seu texto, salva-se apenas uma única e escassa passagem. É quando Marilyn Monroe, de quatro, berra: — “Eu queria ser maravilhosa! Eu queria ser maravilhosa!”. Para morrer, Marilyn despiu-se como na folhinha. E morreu nua. Morreu folhinha.

Quero que vocês me entendam. São dois nus justapostos: — a demente de Aldeia Campista e a estrela de Hollywood. Essa relação é de uma nitidez apavorante, sem nenhum mistério. Não importa que uma seja doida e a outra não. Ou por outra: — que uma seja doida e a outra também. Na minha memória, uma e ou­tra estão unidas como se fossem (Deus me livre) duas lésbicas. E há uma terceira figura que acho igualmente desesperadora.

A do biquíni. Sou um obsessivo e houve alguém, se não me engano, o Cláudio Mello e Sousa, que me chamou de “flor de obsessão”. Exato, exato, e graças a Deus. O que dá ao ho­mem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obses­sões. Pois o biquíni é o meu cotidiano espanto. Todos os dias, o meu táxi vai do Forte ao Leme, seguindo a mesma orla de um­bigos. Não sei qual das três é a mais humilhada: — a louca da rua Alegre, Marilyn Monroe ou a moça do biquíni. Diria que a atriz merece a desculpa apiedada do impudor mercenário. Pos­so até insinuar que foi a ordem capitalista que a despiu. Mas o biquíni é a folhinha de graça, a folhinha não gratificada, a folhi­nha sem cachê.

Sei que, falando assim, lembro, talvez, o pastor de Chuva, antes do pecado. Não faz mal. Vivo a dizer que considero o ridículo uma das minhas dimensões mais válidas. O medo do ridí­culo gera as piores doenças psicológicas. Mas falei, falei, e não estava dizendo o essencial. Ouçam: — Marilyn Monroe morreu porque se despiu sem amor. E aí está a palavra: — amor, amor. Foi o remorso, foi a humilhação da nudez sem amor. Só o ser amado tem o direito de olhar um simples decote. É apenas um decote, mas só o ser amado pode olhar a linha nítida, tão nítida, que separa os seios.

Ontem, depois da missa, uma senhora me pedia, em voz baixa: — “Não escreva mais sobre velórios”. Vejam vocês: — o presente capítulo foi escrito no sábado da tempestade. No dia seguinte, meu irmão Paulo Rodrigues morria, com toda a família, no desabamento de Laranjeiras. Suspendi as Me­mórias. Só ontem é que fui reler o texto abaixo, disposto a rasgá-lo. Era uma meditação fúnebre e desesperada, quase pro­fética. E, então, resolvi publicar tudo, sem cortar uma vírgula.

 

Um dia — há coisa de uns seis meses — meu irmão Paulo Rodrigues veio me dizer: — “Não perde um filme que estão le­vando aí, italiano. Tem um velório genial”. Dois ou três dias depois, tive uma tarde livre. E fui ver o tal filme italiano. Era uma história de bandido, truculenta, e sem nenhum pudor do dramalhão. Algumas de suas peripécias estavam a um milímetro, se tanto, do nosso Vicente Celestino. Todavia, o grande mo­mento foi mesmo a morte do herói. Houve um pânico na platéia, quando ele apareceu, na mesa do necrotério — e cravejado de balas. E, súbito, invade a tela a mãe do bandido.

Qualquer dor tem seu repertório de gritos. Mas ninguém, em nenhum idioma, berra, soluça e uiva como a mãe daquele mor­to. Era siciliana e aí está dito tudo. Ao ver o cadáver, esganiçou gritos jamais suspeitados. Na minha cadeira, assombrado, confes­so: — tive uma sensação de deslumbramento. Há muito tempo não via uma dor tão feroz. Mas foi na cena subseqüente que o di­retor do filme entoou o dó-de-peito que trazia no bolso do colete.

Aquela mãe devoradora começou beijando o dedo grande do pé. Ou por outra: — não beijou apenas, o que seria pouco para a sua fome. Realmente, ela sorvia os dedos, um por um, como aspargos. A boca ativa, insaciável, continuou beijando: — a sola do pé, o calcanhar, as canelas. A imagem, monotonamente descritiva, não deixou escapar nada. Era uma dor vio­lentada, exagerada. A própria tela ampliava tudo, dando a cada esgar uma dimensão miguelangesca.

E, de repente, alguém ri, em falsete, na platéia. Logo, ou­tros focos de riso surgiram, aqui e ali. Na treva, eu, sério, fazia a seguinte e humilhante reflexão: — “Eu não serei beijado as­sim”. Mas por que o riso, eis a pergunta, por que o riso? Talvez porque a grande dor gesticule e vocifere como a canastrona do velho teatro. Só eu não achei graça. Eu e uns poucos mais. Com a cena do necrotério, deflagrou-se, em mim, um novo movi­mento proustiano, um novo processo regressivo.

Voltei à rua Alegre. Enquanto a siciliana beijava os pés do filho, eu era, novamente, menino de seis, sete anos. Era assim que se chorava nos velórios antigos. Em 1917, 18, 19, os enter­ros saíam mesmo de casa. Não era como agora. Agora despacha-se o cadáver pelos fundos. É uma espécie de rapto vergonhoso, como se a morte fosse obscena. Naquele tempo, o sujeito era velado, chorado e florido no próprio ambiente residencial. Tu­do era familiar e solidário: — os móveis, os jarros, as toalhas e, até, as moscas. De mais a mais, o enterro atravessava toda a ci­dade. Milhares de pessoas, no caminho, tiravam o chapéu. Nin­guém mais cumprimentado do que o defunto, qualquer defunto.

Mas havia o chapéu e repito: — tínhamos o chapéu. Pode parecer pouco, mas é muito. Sei que o nosso tempo não valori­za a morte e a respeita cada vez menos. Por vários motivos e mais este: — falta-nos o instrumento da reverência, que é o cha­péu. Era lindo ver toda a cidade cumprimentando um caixão, mesmo de quinta classe. Dirá alguém que a inovação da capeli­nha mudou tudo. A morte não mais desfila como um préstito. Há capelinhas, dentro e ao lado do cemitério. Mas o chapéu in­fluía, sim, em nossa relação com a vida eterna.

Um dia, em 1917, eu soube que se morria. Nem todos, cla­ro. Eu, papai, mamãe, meus irmãos não morreríamos, nunca. Só os outros. Às vezes, tento fazer uma antologia de mortos, dos meus mortos. O primeiro, ou a primeira, foi a menina da febre amarela. Ou por outra: — não foi a menina. Houve antes, um rapaz da rua, triste, asmático e cheio de espinhas na cara. Guardei o seu diminutivo: — Carlinhos. Todas as tardes, eu o via passar, de braço, com a noiva. Os dois iam de uma esquina a outra esquina. Lembro-me de que, certa vez, Carlinhos pagou-me sorvete de casquinha. Bem. E o fato é que, lá uma vez, o rapaz brigou com a menina. O motivo não sei, talvez ciúmes.

E ele a avisou:

— Olha. Amanhã, você vai ao meu enterro.

Ou a menina era geniosa ou não acreditou. Largou-o na cal­çada. Carlinhos saiu dali para a farmácia. Por acaso, eu estava lá, pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. Sem­pre que me via, ele passava a mão pela minha cabeça e me chamava de “batuta”. Desta vez, nem me olhou.

Disse para o homem da farmácia:

— Vou viajar. Vou fazer uma viagem.

Tomou o veneno, junto ao balcão. O homem da farmácia olhou sem entender nada. O freguês adernou e caiu, com as duas mãos no ventre e as entranhas em fogo. Ainda me pergunto se foi pó, líquido ou pastilha. Mas não importa. O farmacêutico começou a gritar. Apareceu, logo, uma multidão. Alguém me enxotou com uma palmada:

— Vai embora, anda, sai daí!

Foram avisar, correndo, à mãe do rapaz e à noiva. Quan­do, porém, as duas chegaram, ele estava morto. Lá de casa — ao lado da farmácia — eu ouvia os ataques.

Hoje, graças à capelinha, a dor tem uma disciplina, uma po­lidez, uma cerimônia prodigiosa. Não há mais ataques. Só na Zo­na Norte mais profunda, acima da Tijuca, talvez sejam ainda pos­síveis os velórios esganiçados, convulsivos.

Volto à farmácia. Meus irmãos maiores contaram, depois, tudo o que aconteceu. Primeiro, veio a mãe; depois, a noiva. A mãe entrou, atropelando os presentes. Atirou-se sobre o morto que lá estava, quieto, de pernas abertas, estirado no ladrilho. Por cima do filho, sacudia-o como se o agredisse, como se o odiasse. E, depois, rompe a noiva.

Vozes pediam:

— Não faça isso! Calma, minha senhora! Segura, aí, segura!

Os homens queriam arrastar uma e outra. A mãe, professo­ra e viúva, escouceava. A noiva meteu as unhas na cara de al­guém. E, finalmente, deixaram as duas em paz. Todos ficaram ali, parados, vendo aquele defunto possuído por duas mulheres. A professora montara no filho, com os dedos cravados no seus cabelos frios. E a noiva atracou-se com as pernas e os sapa­tos do ser amado. Estava, ali, com uma antecipação de quase quarenta anos, o puro Bandido Giuliano.

Mas como ia dizendo: — a noiva beijou os sapatos e, em seguida, os tirou e, não contente, arrancou as meias para beijar os pés nus e gelados.

Assim foi um suicida que me revelou a morte, e eu quase dizia: — foi um suicida que me ensinou a morrer. Quando Ge­túlio se matou, pensei na grande cena da farmácia. Imaginei que alguém, como a noiva antiga, podia beijar os seus sapatos ou, antes que o calçassem, os seus pés sem meias. Não me falem da carta-testamento, tão secundária diante do tiro no peito.

Bem me lembro do justo momento em que tive a notícia, pelo rádio, na voz de Heron Domingues. Getúlio morto. De re­pente, senti que Deus prefere os suicidas.

Quando meu irmão Mário Filho morreu, escrevi que a morte é anterior a si mesma. Ela começa muito antes, é toda uma lumi­nosa e paciente elaboração. Nos seus últimos dias, Mário Filho teve a lucidez, a sabedoria, a chama de quem vai morrer. Não vi no seu rosto, no seu último rosto, nenhum espanto, nenhum medo, nenhum ressentimento. Rosto tão doce, tão compassivo, tão irmão. Parecia uma morte consentida, quase desejada.

Mas vi meu irmão Mário e não vi meu irmão Paulo. Nem Maria Natália, nem Ana Maria, nem Paulo Roberto, nem d. Ma­rina. O que me pergunto é se também Paulinho, sua mulher, seus filhos, sua sogra — começaram a morrer antes. E só peço que nem meu irmão, nem meus sobrinhos, nem minha cunha­da tenham percebido nada. Imagino uma morte compassiva, sem tempo para o medo e para o grito. Mas o pior é que Maria Natá­lia percebeu, sim, e gritou.

Tudo começou no domingo. Eu e Lúcia, em nossa casa, li­gamos no Johnny Halliday; Paulinho, na dele, com toda a famí­lia, ouvia o mesmíssimo Johnny Halliday. Já na véspera e por todo o domingo, a terra deslizara por debaixo da pedra. Era a morte e ninguém sabia. João, amigo do meu sobrinho Paulo Ro­berto, estava lá. E Maria Natália fazia anos (tinha ódio da data). João fora buscar Paulo Roberto para um cinema. Eu, em casa, via o cantor arrancar a camisa e, seminu, atirá-la na platéia, num rompante erótico.

O que houve, em seguida, foi tremendo. No vídeo, estava o dorso, lustroso e crispado. E, embaixo, na platéia, correrias, atropelos, uivos. Cabeludos e meninas cavalgavam as cadeiras. A camisa foi possuída, violentada, estraçalhada. Na rua Cristóvão Barcelos, Paulo Roberto preferia Johnny Halliday (o cantor era a morte), preferia Johnny Halliday ao cinema. E, então, a pedra se desprende. Ia levar, de roldão, uma casa, o edifício se­guinte e, por fim, o de Paulinho. Maria Natália empurra o João: — “Corre, que a casa está caindo!”. O menino correu. Veio pe­la escada, enquanto o mundo desabava. Diz ele que ouviu, ain­da, o grito de Ana Maria. Mas por que seria o grito de Ana Maria e não um grito sem dono, desgarrado, perdido?

Na minha casa, bate o telefone. Lúcia atende. Está falando e eu pergunto: — “Quem é?”. Ela tapa o fone: — “Papai”. Men­tira. Era minha irmã, desvairada: — “Desabou o edifício de Pau­linho”. Lúcia sai do telefone; mente: — “Lá de casa. Papai che­gou de Petrópolis”. Depois, o telefone não parou mais e só ela atendia. Continua mentindo com medo do meu coração. Até que um amigo, o dr. Silva Borges, telefona, avisando: — “A Con­tinental deu que Paulo está no Souza Aguiar”. Só então minha mulher começou a dizer a verdade. Repetia, desatinada: — “Se está no Souza Aguiar, está vivo”.

Eu, Lúcia, meus filhos Joffre e Nelsinho, meus irmãos Au­gusto, Helena, Stella varamos a noite, de hospital em hospital. No Souza Aguiar, nada. De O Globo vieram Carlos Tavares, Me­nezes, Ricardo Serran, Carlos Alberto. Meu primo Augusto Ro­drigues e meu cunhado Francisco Torturra foram para General Glicério; e, lá, fizeram uma vigília de lama, pedra e vento. Eu só pensava em Paulinho, eis a verdade, só pensava em Pauli­nho. Ao meu lado, Mário Júlio Rodrigues só pensava em Paulinho (e os primeiros mortos vinham esculpidos em lama). No meio da madrugada é que, de repente, eu percebo tudo: se morressem a mulher, os filhos, se morresse toda a família ele não sobreviveria. Era uma estrutura doce e tão frágil. E havia entre ele e Maria Natália uma paixão de Pedro, o Cru, por Inês de Castro; e do casal pelos filhos um amor de loucura. Penso também em d. Marina, mãe e avó, que os seguia, trêmula de amor, como uma fanática.

Na segunda-feira, veio a notícia: — reconhecidos Maria Na­tália, Ana Maria, Paulo Roberto e d. Marina. Paulinho não fora ainda encontrado. Eu o imaginei vivo, por um milagre, vivo. Mas, quando visse os outros mortos, não tardaria a raiar para ele ou a estrela dos loucos ou a estrela dos suicidas.

O espantoso é que, desde o desabamento, eu me encon­tro a toda hora, com minha infância. Meus pais ainda moravam em Aldeia Campista, quando dois namorados se mataram no Alto da Tijuca, perto da Cascatinha. Daí para o jornal de modinhas foi um pulo. Três ou quatro dias depois, o pacto de morte ti­nha o seu verso, a sua rima, o seu canto. Eis o que eu queria dizer: — vem, de minha infância, o deslumbramento por todos os que se juntam para morrer.

Cada um de nós morre só, tão só, tão sem ninguém. E meu irmão Paulinho, sua mulher, seus filhos (e d. Marina) parecem unidos numa morte consentida e desejada. Sim, como os na­morados de velhas gerações. Mas eu falo em “irmão” e não é bem a verdade. Ou por outra: — seria convencionalmente ir­mão e, por sentimento, filho. Todos nós, seus irmãos mais ve­lhos, amávamos Paulinho como a um filho e pior: — como a um filho caçula. Por isso é que a sua morte nos fere, e tão fun­do, na carne e na alma.

Na madrugada de segunda para terça-feira, acharam seu cor­po. Graças, graças, iam ser enterrados juntos. Às nove da manhã estava eu na Capela Real Grandeza. Alguém veio me sussurrar: — “Ainda não chegaram”. Colocam as primeiras coroas nos cavaletes. Houve um instante em que me deu um ódio negro e cego contra o bar da capela, instalado no andar de cima. É um balcão que serve tudo, coca-cola, guaraná, grapete, sanduíche e cafezinho. A dor tem, ao fundo, um alarido de xícaras e de pires.

Enquanto os cinco caixões não chegam, penso que há en­tre mim e Paulinho não sei quantas coisas entrelaçadas. Naque­le momento, descobri que não se deve adiar uma palavra, um sorriso, um olhar, uma carícia. E como me doía não ter dito a ele tudo, não ter feito as confissões extremas.

Eu percebia, ali, que nós olhamos tão pouco as pessoas ama­das. Quantas palavras calei com pudor de ser meigo, vergonha de parecer piegas? Agora mesmo eu não chorava como queria. Meu Deus, por que havemos de sofrer como Rilke?

Eu queria falar, falar sobre meu irmão. O que me fascinava em Paulo Rodrigues era sua luminosa, ardente humildade. Essa humildade foi, primeiro, uma qualidade vital e, depois, uma vir­tude literária.

Tenho, na cabeça, quase tudo que ele escreveu. Foi talvez por humildade que, nos primeiros escritos jornalísticos, preferiu usar fatos miúdos, quase imperceptíveis. Num instante, per­cebemos que era o grande poeta da ocorrência menor, o esti­lista do fato insignificante. Deixava de lado as tragédias óbvias e enfáticas para trabalhar no lixo do noticiário. E como sabia ver, num vago incidente de tráfego, todo o mistério e dramatismo das coisas.

Está na sua obra romanesca o delicado, o incomparável vir­tuosismo com que sempre recriou as miudezas da crônica poli­cial. Vejam o seu último livro, O sétimo dia, que é uma exata, inapelável obra-prima. A rua, a esquina, o boteco, o pau-d’água, tudo tem para ele um apelo encantado. Seus vagabundos são de uma formidável tensão dionisíaca. Sabia, como nenhum ou­tro, dar ao miserável uma dimensão insuspeitada e fremente. O leitor ou crítico pode selecionar, nos seus escritos, uma an­tologia de pulhas magistrais.

Eu me lembro da nota que fez sobre o episódio da cusparada. Com uma meia dúzia de linhas, transmitiu ao incidente uma tremenda força lírica. Eis o fato: — um cidadão, que ia nu­ma Mercedes-Benz, teve vontade de cuspir. Verifica, porém, que alguém o olha, no táxi, ao lado. Deu-lhe uma espécie de escrú­pulo, cerimônia, pudor ou sei lá. E resolveu esperar das duas uma: — ou que a Mercedes ultrapassasse o táxi ou que este ul­trapasse a Mercedes. Nem uma coisa, nem outra. Os dois carros corriam juntos e juntos param no mesmo sinal. O passageiro do táxi não tira os olhos. O outro imagina: “Sabe que eu vou cuspir”. E pergunta, de si para si: — “Cuspo ou não cuspo?”. Entupido de saliva, rala-se de uma ira homicida e impotente. A coisa podia acabar em tapa, tiro, talvez em morte.

Paulo Rodrigues fez, com o episódio de tráfego, uma pági­na inesquecível, de uma qualidade machadiana. Eu disse Macha­do e já penso em Drummond. O “Caso da cusparada” tem a densidade do “Caso do vestido”.

Às onze horas de terça-feira, chegam os cinco caixões. De­cidimos que não seriam abertos. Eu os vi passando, carregados. E, então, imaginei que ninguém é mais importante, para nós, do que os mortos esculpidos na memória da família.

E eis que, na terça-feira, pela manhã, dobro a esquina e qua­se esbarro com a d. Odete. Com esse nome de Zona Norte, é minha vizinha em Ipanema. D. Odete não me via desde o desa­bamento. Imagino: — “Vai me dar os pêsames”. E ai de mim. Quando sinto que alguém vai me dar os pêsames, tenho vonta­de de correr e repito: — correr, fisicamente, com todas as po­tências do meu pânico. (E, ao mesmo tempo, gosto, desejo, pre­ciso de uma compaixão unânime e total. Por isso, não passo um dia sem ver minha mãe. Ela ainda não sabe que os dois estão mortos: — Mário Filho Paulinho.)

Falo em “dois” mortos e tenho uma brusca vergonha de ter, por um momento, esquecido Maria Natália, Ana Maria, Paulo Roberto e d. Marina. Mas como dizia, entre parênteses, minha mãe tem pena de nós. Seu amor é uma pena sem fim. Tem para mim um olhar compassivo, como se eu fosse um contínuo e ela precisasse me compensar de velhas e santas humilhações. Mas disse que minha mãe não sabe e já me vem uma dúvida. Talvez saiba e, por compaixão, pena de nós, simule uma ino­cência desesperadora. Nunca mais perguntou por Mário, Pauli­nho, nem pelos dois netos, nem pela nora. Só outro dia é que, de repente, suspirou: — “Eu quero aquele vestido preto”. Há um suspense na família. Uma das filhas ralha, alegremente: — Mas vestido preto é feio, é triste, mamãe”. Ela tomou um ar meio alado e ninguém entendeu aquela nostalgia do luto. E foi só.

Volto a d. Odete. Estava disposto a não vê-la e passar adian­te. Mas ela me trava, solidamente. Sua mão, voraz, está crispa­da no meu braço. Paciência. Vai me dar os pêsames (na Zona Norte, para lá da praça Saenz Peña, há várias Odetes). Perfilo-me diante da vizinha. Mas ela não me dá os pêsames. Diz e, até, com certa satisfação: — “Ontem, eu vi o senhor com a cabra”. Recebo um baque. Logo, porém, baixa uma luz em mim. Ti­nham posto, no ar, em “Noite de Gala”, o meu video tape, com o governador Negrão de Lima, o terreno baldio e a cabra.

Desatinado, começo a perguntar: — “Mas avisaram, hein, d. Odete? Avisaram que o programa foi gravado antes das chu­vas?”. Negou com a cabeça, ao mesmo tempo que respondia com uma dessas certezas radiantes: — “Em absoluto! Ninguém avisou nada!”. Repeti, numa fúria: — “Mas eu gravei antes das chuvas! Foi antes das chuvas, d. Odete!”. Ela suspirou: — “Pois é, pois é!”. Eu, em pé, na calçada, pensava no programa, no seu décor, nas suas figuras. A cabra é tão antiga como o homem e talvez anterior ao homem. Posta no vídeo, ela se impõe como uma imagem forte, obsessiva, ornamental.

Ainda por cima, o bicho passa 24 horas sem comer; quan­do entra em cena, não faz outra coisa senão devorar capim, is­to é, senão mastigar a paisagem. Esse humor atroz deve ter sido quase uma agressão para o telespectador. Ninguém entendia que eu, em plena tragédia, fosse para o vídeo dizer piadas. Largo d. Odete e saio, como um possesso. Pouco depois, encontro o Vieira, de O Globo. Sussurrou-me: — “A tua entrevista com o Negrão estava um troço!”. Mais adiante, um outro pisca-me o olho, com uma malícia torpe: — “Terreno baldio, hein?”. No mesmo dia e no dia seguinte, por toda parte, falavam. E eu, co­mo o réu de toda uma cidade, respondia: — “Gravei antes das chuvas! Antes das chuvas!”.

Até que, de repente, paro e pergunto, de mim para mim: — “Mas que é isso, meu Deus, que é isso?”. As coisas começa­ram a ficar bem claras. Eu fora colhido por um surto de pusilanimidade feroz. Era o medo puro, o medo abjeto, do que pudessem pensar ou dizer de mim. Por que explicar, por que jus­tificar, se o que importa é sofrer, apenas isso, sofrer? A estação não datou o programa? Melhor. Não importa a minha inocên­cia. O que importa é que Paulinho morreu e que minha mãe queria pôr um vestido preto.

Minha vida está agora dividida em dois tempos: — “antes das chuvas” e “depois das chuvas”. É um corte tão fundo, e tão violento, e tão sem piedade. Quando digo “antes das chuvas” estou falando de um outro mundo, de outro idioma, de outra encarnação e, mesmo, de outras chuvas. Tanta coisa mor­reu com o desabamento. Inclusive eu próprio. Não pensem que não morri também. Como poderia eu brotar, intacto, da catás­trofe? Naquele domingo, estava na minha casa, longe e protegi­do ouvindo e vendo Johnny Halliday contaminar a cidade com o seu erotismo ululante.

Agora me lembro: — não era somente Johnny Halliday. Também me preocupava a resenha esportiva dominical. Toda a cidade tremia de clarões. E eu queria comparecer ao progra­ma. Mas Lúcia teimava: — “Não vai! Não pode ir!”. Telefonei para o José Maria Scassa e o colega respondeu: — “O negócio aqui está preto. O Jóquei tem metro e meio de água. Estou pre­so, ilhado”. Em Santo Amaro, Luiz Alberto era outro acuado. Augusto Melo Pinto, o produtor da resenha, fora jogar nos ca­valos e naufragara no prado. No fundo, no fundo, estávamos achando uma graça infinita nas águas. Por fim, uma moça da Globo deu a última palavra: — “Não vai haver resenha”.

Enquanto me divertia com as chuvas, Paulinho estava mor­rendo. Pois algo de mim também foi sepultado em lama, pedra e vento. Sou outro “depois das chuvas”. E me admira que eu tenha mudado e os outros, não. As pessoas continuam indo à praia; meninas tomam grapete de biquíni. Uma catástrofe eufó­rica como a de Laranjeiras realmente não influiu na cor de uma gravata. O homem esquece antes de sofrer. Agora mesmo, te­nho diante de mim um recorte de jornal. É a croniqueta do poeta Drummond, sobre o desabamento. Já vasculhei o papel impres­so, já o apalpei, já o farejei, já o virei de pernas para o ar.

E o papel não diz nada. Mas como? O nosso poeta nacional escreve sobre a tragédia e não consegue dizer nada? Aí está di­to tudo: — nada. Aliás, tudo, no seu escrito, está errado. Preli­minarmente, uma catástrofe exige, para os seus largos movimen­tos, exige espaço, exige extensão. E a crônica miúda é um gê­nero próprio para o furto de galinhas. Duzentas mortes pedem a abundância de Jorge de Lima da “Invenção de Orfeu”. Ora, o poeta teria de dizer, em meia dúzia de linhas, verdades jamais concebidas. Não disse. E há, no meio da crônica, quase no fim, um alusão, de passagem, a Paulo Rodrigues.

Os dois se conheciam; Paulinho tremia de admiração pelo poeta; dedicou-lhe seu último livro, O sétimo dia. E Drummond faz-lhe a concessão de uma frase e repito: — Drummond pinga uma frase, e não mais, sobre os cinco corpos cravados na pe­dra. Gilberto Amado vem de longe e desembarca aqui, ferido de espanto. Sua primeira palavra é para Paulo Rodrigues, que ele “carregara no colo”. E o poeta Drummond? Pôs, numa fra­se escassa, toda a aridez de três desertos.

Já falei da louca, filha da lavadeira. Foi a primeira mulher nua que vi na minha infância. E, ainda agora, ao bater estas no­tas, tenho a cena diante de mim. Eu me vejo, pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. Empurro a porta e olho. O espantoso é que sinto uma relação direta e atual entre mim e o fato, como se a memória não fosse a intermediária. A de­mente tem a tensão e o cheiro da presença viva. Mas como ia dizendo: — no fundo, encostada à parede, está a nudez acuada.

Eu já vira meninas nuas, de três, quatro, cinco anos. Mas a filha da lavadeira era uma mulher feita. Estou espiando; a doi­da me olha também, estrábica de medo. O corpo parado. Mas eis que se torce e destorce, numa súbita danação. A última ima­gem que fica em mim, cravada em mim, é de uma nudez que se enrosca em si mesma. Fujo, então, apavorado.

E o estranho é que nunca, nunca, abri a boca para contar esse episódio de infância. Ninguém sabia. Eu jamais disse a um irmão, a um amigo, a ninguém: — “Aos seis anos de idade, vi uma doida nua”. E como a moça não falava — era louca e muda também ela não trairia o segredo inútil. Eis como, através das gerações, ninguém desconfiou, ninguém. Aos 54 anos de idade, começo as minhas memórias e decido: —”Vou contar”. Feita a confidencia, senti uma espécie de paz, tardia, mas reparadora.

Ela morreu há muito tempo. Uma demente e, ainda mais, fi­lha de lavadeira (e viúva) morre mais que os outros. E essa nudez, entrevista por um garoto, é talvez o único vestígio de sua passa­gem terrena. Não deixou um nome, um rosto, um gesto, um grito, e apenas, e para sempre, essa nudez acuada no fundo do quar­to. Um ano depois, vi a segunda mulher nua de minha vida.

Estamos, ainda, na rua Alegre, na mesmíssima Aldeia Campista. No fundo, à esquerda da minha casa, numa colina, o Ins­tituto João Alfredo; mais longe, em Maxwell, a chaminé da Fá­brica Confiança. Tudo aconteceu nas imediações do Carnaval. A cidade estava incendiada de batalhas de confetes. E houve uma na praça Saenz Peña. O Carnaval era, então, um alto aconteci­mento erótico. Hoje, não. Hoje, com a nudez indiscriminada e frenética, os jogos do sexo não ardem mais. O último Carna­val foi de uma aridez desesperadora na sua castidade absurda. Nunca a mulher foi tão pouco desejada.

Na minha infância, todos os nus estavam vestidos. Bem me lembro dos dominós, das caveiras, dos pierrots. O pudor não fazia concessão. E, uma noite, lá fomos nós, eu e outros meninos, leva­dos por senhoras vizinhas. A praça Saenz Peña era uma beleza to­tal. Em cima do meio-fio, eu olhava o lerdo escoamento do corso. Os carros abertos passavam, com meninas na capota, nos pára-lamas. E, súbito, ouviu-se um silêncio ensurdecedor. Lá adiante, vi­nha outro carro aberto, e dentro dele, em pé, uma odalisca.

Podia ser vinte vezes odalisca e não teria importância. O pior é que havia uma abertura na fantasia, por onde irrompia o cavo e deslavado umbigo. Eu falei em “nudez” e já retifico. Era uma modesta nesga de carne, insinuada no decote abdominal. Mas esse umbigo revelado era pior do que a nudez absoluta.

Poderão objetar que eu tivera, com a filha da lavadeira, uma experiência anterior. Mas aí é que está: — não me lembrava, ho­nestamente, não me lembrava do umbigo. Ou por outra: — o umbigo da demente se diluía na nudez geral. E, além disso, nin­guém sabia, ninguém. Ao passo que, ali, era o impudor público e radiante, era o escândalo insolente, glorioso. Repito: — para mim, foi uma agressão pior que a nudez da louca.

As vizinhas cochichavam entre si: — “Sem-vergonha! In­decente!”. O carro já ia longe, levando, em triunfo, o insuportá­vel umbigo. E, ao meu lado, as vizinhas ainda cacarejavam. Co­mo era ressentido, furibundo, o pudor daquelas senhoras gordas, honestíssimas e cheias de varizes. Fui puxado, quase rapta­do: — “Vamos embora! Vamos embora!”. Nos dias subseqüen­tes, não se falou em outra coisa, na rua. “Mas não é possível!”, diziam. Eu ia para o fundo do quintal e, lá, sozinho, ficava so­nhando. O umbigo tinha qualquer coisa de irreal. E essa nesga de carne, vista, entrevista num segundo fulminante, comoveu e marcou toda a minha infância.

Até que, uns três meses depois, uma vizinha entra em casa, com uma furiosa dispnéia emocional. Lembro-me de que a san­ta senhora tinha, no cangote, uma constelação de brotoejas. Ho­je as brotoejas atacam mais as crianças de colo. No meu tem­po floriam, de preferência, nas vizinhas obesas e machadianas. Ela entra e arqueja: — “Descobri a sem-vergonha!”. Não se per­guntou que sem-vergonha. Todos, em casa, inclusive eu, per­cebemos que era a odalisca e só podia ser a odalisca.

E, realmente, não me lembro se a própria vizinha, ou o ma­rido, ou sei lá, localizara no tempo e no espaço a abominável se­nhora. Eu não saberia reconhecê-la, jamais. Para mim, a “sem-ver­gonha” não era uma pessoa, uma cara, um corpo, nem mesmo uma odalisca: — era apenas e só o umbigo. (Esquecia-me de um dado fundamental: — a fulana podia ter usado uma máscara ou, digamos, uma meia-máscara. Mas não. Fez questão do rosto nu.) A vizinha sabia de tudo. A odalisca morava na rua Pereira Nunes, e pior: — estava se mudando para a rua D. Zulmira. Alguém faz a pergunta pânica: — “Rua D. Zulmira?”. Confirmado: — “Rua D. Zulmira”. A dois passos, portanto, lá de casa.

Era um novo escândalo, um novo ultraje, essa vizinhança. Mais uma semana, dez dias, e, finalmente, vi a própria. Ela mudara-se para um sobrado e apareceu na sacada, num fim de tarde. Eu ia passando e vi. Meu pequeno coração dava arran­cos. Olhou para mim ou nem sei se olhou. Sorriu, talvez, sei lá. Comecei a correr, num deslumbramento atroz.

Ah, esquecia-me de dizer: — eu era um pequenino Werther. Minha infância está varada de paixões funestas. E quando gostava — e quase sempre de senhoras de trinta, ou mais, e casadíssimas —, quando gostava sonhava com a morte. Queria morrer de amor e por amor. Assim seria velado, florido e, tal­vez, beijado pelas bem-amadas. Só de vê-la, tão loura (era lou­ra) na sacada, eu me tomei de tamanho amor.

Dias depois, outra vizinha entra em casa e também dispnéica. Chega e solta a notícia triunfal: — a odalisca traía o mari­do. Entre parênteses, eu já o conhecia. Não tinha um único es­casso fio de cabelo. Era só testa, uma testa que começava na frente e ia terminar cá atrás, no cangote.

Contarei, no capítulo seguinte, tudo o que aconteceu com a minha primeira paixão. Ali, eu estava conhecendo a mais an­tiga das figuras femininas: — a adúltera.

Já era loura, louríssima, na batalha de confete. Mas só me lembrava do umbigo, tudo era umbigo, um umbigo irreal, fan­tasiado de odalisca. Era como se o carro aberto não levasse mais ninguém, nem chofer, só ela, Mas, agora, eu a via de perto, e tão loura, sardas no rosto e pele de tordilha. Isso mesmo: — tordilha. No dia seguinte, passou por mim, juntinho de mim, olhou, sorriu e passou adiante.

Dois ou três dias depois, conheci o marido. Era terrível de ver a sua testa obsessiva, total, que vinha pela cara e a substi­tuía; e, depois, subia pela cabeça, e só parava cá atrás, na nuca poderosa, vacum. Mais tarde, vi um Buda no Eu Sei Tudo e o achei parecidíssimo com o fulano. O que me tortura, ainda ho­je, é que ele continua sendo uma testa e não cara, e não um olho, e não um nariz. (E como uma testa podia ser o Buda do Eu Sei Tudo?) Muitos e muitos anos depois, abro uma revista recentíssima e vejo Sophia Loren em página inteira. Todo me ilumino, numa certeza radiante: — o Carlo Ponti, da estrela, era o mari­do da tordilha. Muito mais parecido, de uma semelhança muito mais taxativa. O sósia era o Carlo Ponti e não o Buda.

Ainda os vejo, de braço dado, na calçada da rua D. Zulmira. E, súbito, completei a minha lembrança da batalha de confete. A odalisca não ia sozinha; lá estava a testa, lá estava o Carlo Ponti, dando ao umbigo uma solene cobertura familiar. Ainda hoje, quando penso nos dois imagino que a cara do marido pode influir no adultério. A cara, ou a obesidade, ou as pernas curtas, ou a papada, ou a salivação muito intensa. Lembro-me de uma senhora que também traía o marido. Quando lhe perguntaram por que, ela alçou a fronte e respondeu, crispada de ressentimento: — “Porque ele sua nas mãos”. Uma outra era infiel porque descobriu apenas o seguinte: — o marido tinha saliva ácida.

Às vezes, quero crer que foi uma dessas pequenas causas, um desses motivos insuspeitados, intranscendentes e, mesmo, humorísticos, que a induziu ao adultério. Eu me fixo na figura do homem. Era parecido com o Carlo Ponti. Muito bem. Mas o Carlo Ponti, da Sophia Loren, tem um gênio promocional ca­paz de fascinar a própria rainha de Sabá. E o outro, da rua D. Zulmira, era gordo e ourives. Vejam: — gordo e ourives. De­pois andaram dizendo que ele transpirava demais, tinha o suor grosso e elástico dos cavalos. Não sei o que havia de história ou de lenda nos mexericos da rua.

Não me recordo se, na mesma ocasião, havia outra infiel nas redondezas. Sabida, consagrada, não. A tordilha era a úni­ca. E as outras, todas as outras, se juntaram contra a adúltera. Deus me livre da virtude ressentida, da fiel sem amor.

Eu estou vendo uma das nossas vizinhas. Andava com os tornozelos enrolados em gazes e ela própria explicava: — “São as minhas varizes! São as minhas varizes!”. Essa andava, de porta em porta, dizendo o diabo. Descobriram ou inventaram que o amante da tordilha era outro ourives. Essa coincidência profissional — e não sei por que — levou o ódio ao delírio. Se fosse um dentista, um agrimensor, um arquiteto, mas um colega! Ainda se falava muito num senador que, traído, matara a mulher, a ti­ro, e lhe cuspira na cova. Pois a gorda das varizes queria fazer o mesmo: — “Se morrer, cuspo-lhe no caixão”.

E eu? Ficava de esquina, olhando a sacada. Se ela aparecia, já sabe: corria, numa vergonha brutal. Eu a via quase todos os dias, com o marido ou sozinha. Ninguém a cumprimentava, nin­guém. E o prodigioso é que o falso Carlo Ponti era cada vez mais amigo da infiel, mais solidário, mais compadecido.

A minha grande felicidade era me enfiar no fundo do quin­tal. E, só, engendrava as minhas fantasias de pequenino Werther. Sonhava, então, com a minha própria morte. Eu morria e ela chegava num luto feroz. E me imaginava, sem vida, com a cabeça no seu regaço. Claro que o morto estaria vendo e ou­vindo tudo. Mamãe e papai, meus irmãos chorando por mim; e ela, junto do caixão, rezando. Só de pensar em tal velório, eu mergulhava no caldeirão das delícias ferventes.

Mas quem se matou foi ela. Um dia, acordo com alarido em casa e por toda a rua. Vizinhas iam de uma calçada para ou­tra, de portão em portão, ou gritavam de janela para janela. A tordilha tomara um veneno e morrera na hora. O médico da Assistência só olhou e foi sumário: — “Morta”.

Dez minutos depois, fez-se, na rua, um folclore fulminan­te. O que se disse, o que se inventou. Uma das comadres jurou que o próprio marido a obrigara a tomar o veneno. Ela bebeu tudo e depois largou o copo, que se estilhaçou no chão. Eu a vira na véspera da morte. Estava de braço com o marido e pa­recia ver as coisas com a doçura atônita de um último olhar. Continuavam falando, sem parar. Um outro dizia que a mulher ainda agonizava e o marido acabou de matá-la a pontapés.

Hoje, há enterro até de kombi. Naquele tempo, não. O da tordilha foi bonito como o de Inês de Castro. Vi quando o coche parou na porta, com seis cavalos de penacho. Não fui espiá-la no caixão. Mas da calçada ouvia o choro do Carlo Ponti, choro abaritonado, choro mugido. Na hora de sair o caixão, ele pôs-se a bramar: — “Canalha! Canalha!”. Como canalha não tem se­xo, pensou-se que acusava a mulher. Mas logo se viu que o ca­nalha era ele mesmo. E, de fato, o ourives promovia, ali, uma autoflagelação ululante.

Ninguém podia imaginar que aquela morte abria lesões, fe­ridas na fragilidade indefesa do menino. Vi quando passaram os cavalos e os penachos. (Depois se disse que iam no mesmo táxi os dois ourives: — o marido e o amante.)

Vem assim dos meus sete anos casimirianos toda a minha compaixão pela infiel. É um sentimento que sobe, que se irra­dia de não sei que profundezas. Muito mais tarde, já homem feito, escrevi um drama cujas raízes estão cravadas na rua Ale­gre: — Perdoa-me por me traíres. Um dos personagens da pe­ça, num arranco de staretz Zózimo, cai aos pés de uma adúlte­ra e beija-lhe os sapatos. Eis o que aprendi em Aldeia Campista: — não se chama uma adúltera de adúltera, jamais.

Volto aos meus quatro anos. E, de repente, os cegos apare­ceram. Ou por outra: — antes dos cegos, vi uma menina, de pé no chão. A menina corre, atravessa a rua e vai beijar a mão de um padre. Durante toda a minha infância, na rua Alegre, ha­via sempre um padre e sempre uma menina para lhe beijar a mão. Mas como ia dizendo: — a pequena, dos seus sete anos, voltou para a calçada de cá. A batina continuou e sumiu, lá adian­te, na primeira esquina.

A menina sumiu também, como se jamais tivesse existido. Anos depois, mudamos para a Tijuca, rua Antônio dos Santos (depois seria Clóvis Bevilacqua). Perto de nós, morava o juiz Eurico Cruz e, ao lado, o senador Benjamin Barroso. Eis o que quero dizer: — nos dois ou três anos de Tijuca, não vi um úni­co e escasso padre. Havia uma igreja — e ainda há — na esqui­na de Barão de Mesquita com Major Ávila. Lembro-me da igre­ja, dos santos e não dos padres.

Fiz o parêntese e volto à rua Alegre. Depois que o padre dobrou a esquina, os cegos apareceram. Eram quatro e um guia. Estavam de chapéu, roupa escura, colarinho, gravata, colete, bo­tinas. Juntaram-se na esquina da farmácia e tocaram violino. Não acordeão, não sanfona, mas violino. Saí da janela, fiz a volta e fui ver, de perto, os ceguinhos. Eram portugueses. E o curioso e que, por muitos anos, só conheci cegos portugueses. Brasilei­ro, nenhum.

Fiquei ali, na esquina, em adoração. E os cegos — todos de chapéu — tocaram uns vinte minutos. Lembro-me bem: — um deles tinha, atravessando o colete de um bolso a outro bol­so, uma corrente de ouro. No fim o guia passou o pires. Cada um pingou seu níquel. E, então, voltei correndo para casa. Não falei com ninguém, meti-me na cama. Minha vontade era mor­rer. Fechei os olhos, entrelacei as mãos, juntei os pés. Morrer. Minha mãe entrou no quarto; pousou a mão na minha testa: — “O que é que você comeu?”. Comecei a chorar, perdido, per­dido.

E, de repente, uma certeza se cravou em mim: — eu ia fi­car cego. Deus queria que eu ficasse cego. Era vontade de Deus. Mas falei em quatro anos. Engano, engano. Eu tinha seis anos e não quatro. Nasci em 1912 e isso aconteceu em 1918, na es­panhola e antes da espanhola. Tenho certeza: — seis anos. Nunca mais me esqueci dos cegos e posso repetir, sem medo da ênfa­se: — nunca mais. Mas por que, meu Deus, por que pensava neles, dia e noite? Pode parecer uma fantasia de menino triste. E se disser que, já adulto, homem feito, a obsessão continuava intacta? Obsessões, sempre as tive. Mas essa nunca me abando­nou. Aos trinta anos, 35, quarenta, eu sonhava com os cegos; e os via escorrendo do alto da treva.

Quando minha família já ia sair de Aldeia Campista para a Tijuca, aconteceu o seguinte: — um menino, que brincava muito comigo, apanhou um canário e picou com o alfinete os olhos do passarinho. Eu me senti, eu, aquele canário de olhos fura­dos. E me imaginei cego, em casa, vagando por entre mesas e cadeiras. Meninas, senhoras, visitas teriam pena de mim, amor por mim. Na rua, diriam: — “Naquela casa, mora um menino cego”.

Mas quando mudamos para a Tijuca, já não estava tão cer­to se seria mesmo eu o cego. Podia ser minha mãe, ou um dos meus irmãos. Talvez Roberto. Milton, não, nem Mário. Sempre imaginei que meu pai, jornalista de fúrias tremendas, morresse, um dia, assassinado. Já minha mãe tinha um problema de visão. Mas fosse eu, minha mãe, meu irmão, alguém ficaria cego, al­guém. Eis a verdade: — ano após ano, me convencia de que os cegos do violino insinuavam um vaticínio. Meu Deus, não fora por acaso que, um dia, quatro cegos tocaram embaixo de minha janela, ou pertinho de minha janela. Tocavam para mim, não para os outros, não para ninguém, tocavam para um meni­no de seis anos.

Até os dez anos, doze, não tive medo da treva. Houve um momento em que teria a vaidade de ser o único menino cego da rua Mas o tempo foi passando. E o pavor veio com a idade. Adulto, eu não fazia mistério: — “Se eu ficar cego, meto uma bala na cabeça”. Não “uma bala na cabeça”; daria um tiro no peito como Getúlio. Ah, Getúlio estourou o coração mas pre­servou sabiamente a cara para a História e para a lenda. Pelo vidro do caixão, o povo espiou o rosto, o perfil intactos. Kennedy, não. A bala arrancou-lhe o queixo forte, crispado, vital. Tiveram que fechar o caixão. O povo precisa ver o seu líder morto. Nada, nem medalha, nem estátua, nem cédula, nem se­lo substitui o último rosto, o rosto morto.

Muitos anos depois, conheci Lúcia. Lembro-me de que, nu­ma de nossas conversas, falei-lhe assim: — “Desde criança, te­nho medo de ficar cego. Mas se isso acontecesse, eu...”. Fiz a pausa e completei: — “...eu meteria uma bala na cabeça”. Isso era e não era uma agressão sentimental, uma espécie de terro­rismo. Afinal, o amoroso é sincero até quando mente. No fun­do, no fundo, as minhas palavras queriam dizer outra coisa, ou seja: — “Mesmo cego, eu viveria se você me amasse”. Por ou­tro lado, sei que não é normal essa fixação numa fantasia infan­til. Mas não tenho medo de confessar a minha morbidez, nem ela me envergonha. Eu a compreendo e a recebo como uma gra­ça de Deus.

Mas estas notas não estariam completas, se eu não lhes acres­centasse uma explicação. Quero dizer que o medo de uma cegueira utópica, apenas sonhada, me tornou humanamente melhor. Ou, se não me tornou melhor, me deu a vontade obsessiva de ser bom. Mas, como ia dizendo, continuou o meu romance com Lúcia. Pouco a pouco, fui dizendo as coisas que são tudo para mim: — “Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”. E dizia: — “Quem nunca desejou morrer com o ser amado não amou, nem sabe o que é amar”. As nossas conver­sas eram tristes, porque o amor nada tem a ver com a alegria e nada tem a ver com a felicidade. Quando nos casamos, eu lhe disse: — “Nem a morte é a separação”. Ela concordou que na­da é a separação.

Depois, a gravidez. Ah, quando eu soube que ela só podia ter filho com cesariana. Não me falem em fio de navalha. O fio da navalha é um título de romance ou de filme. Mil vezes mais frio, e diáfano, e macio, e ímpio, é o fio do bisturi da cesariana. O marido, cuja mulher só pode ter filho com cesariana, terá de amá-la até a última lágrima.

“Se for menina, o nome é Daniela”, disse Lúcia. Achei um nome doce e triste (gosto dos nomes tristes) de personagem de Emily Brontë. Uma noite, Lúcia foi internada, às pressas, na Ca­sa de Saúde São José. Parto prematuro. Minha mulher chega com dr. Cruz Lima e d. Lidinha. Dr. Marcelo Garcia e dr. Silva já es­tavam lá. Foi uma correria de médicos, enfermeiras, irmãs. Dr. Waldyr Tostes ia fazer o parto.

Naquela noite, pensei muito no staretz Zózimo. Sim, na sua bondade absurda, senil e terrível do personagem dostoievskiano. Há um momento em que somos o staretz Zózimo. Dr. Mar­celo Garcia era o staretz, e o dr. Silva Borges, e o dr. Waldyr Tostes. Dr. Cruz Lima também era o staretz Zózimo. Tudo acon­teceu numa progressão implacável. Daniela nasceu e não que­ria respirar. Dr. Marcelo Garcia fazia tudo para salvar aquele so­pro de vida. De manhã, quase, quase a perdemos. A irmã, de­sesperada, batizou minha filha no próprio berçário. Dr. Cruz Li­ma, dr. Marcelo, Silva Borges lutaram corpo a corpo com a mor­te. Mudaram o sangue da garotinha. E ela sobreviveu.

Lúcia quis ver a filha no dia seguinte. E veio numa cadeira de rodas, empurrada por d. Lidinha. Voltou chorando, e dila­cerada de felicidade. Também fui espiar Daniela pelo vidro do berçário. Uma enfermeira aparece e me pergunta, risonhamente: — “O senhor é o avô?”. Respondi, vermelhíssimo: — “Mais ou menos”. Mais uma semana, Lúcia e Daniela vinham para ca­sa. Tão miudinha a garota, meu Deus, que cabia numa caixa de sapatos.

Dois meses depois, dr. Abreu Fialho passa na minha casa. Viu minha filha, fez todos os exames. Meia hora depois, desce­mos juntos. Ele estava de carro e eu ia para a tv Rio; ofereceu-se para levar-me ao posto 6. No caminho, foi muito delicado, teve muito tato. Sua compaixão era quase imperceptível. Mas disse tudo. Minha filha era cega.

Já contei o pedido que me fizeram na igreja. Depois da mis­sa, uma senhora veio me dar os pêsames. E sussurrou o apelo: — “Não escreva mais sobre velórios”. Eu não disse que sim, nem que não. A senhora passou adiante, e veio o seguinte da fila. E, depois, quando recebi o último abraço, saí para a rua. Mas aquilo continuava na minha cabeça. Não escrever mais so­bre velórios, nunca mais.

Mas o que a senhora pedia era uma rigorosa impossibilida­de. As nossas lembranças estão debruçadas sobre velórios e so­bre cegos. E eis o que me pergunto, ainda hoje: — o que é a memória senão um pátio de milagres? Um pátio de agonias, e de gemidos, e lágrimas de pedra? No capítulo de hoje, vou falar da espanhola, a epidemia fabulosa.

Falarei também do Carnaval que se seguiu à espanhola. Es­se Carnaval iria desfigurar a cidade, o seu povo, influir em nos­sos costumes, sentimentos, idéias, valores. Só não quero falar de cegos. Ou por outra: — vou dizer ainda uma palavra sobre minha garotinha. Terminei o capítulo anterior descendo com o dr. Abreu Fialho, o oculista que examinara os seus olhos.

Ah, me lembro da grande viagem da rua Visconde de Pira-já ao posto 6. Dr. Abreu Fialho guiava, ele mesmo, o carro; vou a seu lado, na frente. Ele fala. Estamos entrando em General Osó­rio; mais adiante, começa Francisco Sá. As pessoas que passam são as mesmas da véspera, e de outras vésperas, e de todos os dias passados, presentes e futuros. Eu sinto a bondade contra-feita do médico, a sua compaixão não confessa, apenas insinua­da. Minha vontade foi fazer-lhe, à queima-roupa, a pergunta: — “O senhor acredita na ressurreição de Lázaro?”.

Vou dizer a verdade, toda a verdade. Dr. Abreu Fialho, apesar de toda a cerimônia, de toda a polidez exemplar, não dava uma esperança à minha filha, não concedia uma hipótese compassiva, nada, nada. Agora vem a verdade: — eu odiei o dr. Abreu Fialho. Seu nome todo é Sílvio Abreu Fialho. Pois odiei o dr. Sílvio Abreu Fialho. Odiei o oculista que não acre­ditava em milagre.

Ele fora à minha casa a pedido de d. Lidinha, minha sogra. Examinara minha filha por bondade; e devia ter pena, quem não teria pena, mágoa de uma menininha cega? Quase, quase pedi: — “Dr. Abreu Fialho, quer me fazer um favor? Minta. Diga que talvez, quem sabe. Invente uma esperança, dr. Abreu Fialho!”. Mas não lhe disse nada, nem ele mentiu.

Deixou-me na porta da tv Rio. Eu estava tenso, mas cal­mo. Apertei-lhe a mão, agradeci a carona. E foi só. Mas mi­nha decisão estava tomada. Eu não acreditaria na cegueira de minha filha. Não era cega. Para mim, não. Sei que certos casos são clinicamente óbvios. Mas se era óbvio o de minha filha, pior para o óbvio. Ao mesmo tempo, me preparei para uma batalha feroz com todos os oculistas do mundo.

Eles diriam (todos, todos) que minha filha é cega. Mas eu não acreditaria, jamais. Viessem todos à minha porta. Saltassem de ônibus, caminhões na minha porta. E fizessem alarido na minha porta, jurando que Daniela é cega. Eu responderia à massa ululante de especialistas: — “Mentira, mentira, quinhentas vezes mentira!”. Lembro-me de que, ao chegar em casa, à noite, Lúcia falou-me de tudo, menos da garotinha. Eu estava exausto de odiar o dr. Abreu Fialho, ou por outra: — já não o odiava mais. Olho minha mulher, sinto a sua calma intensa, a sua apaixonada serenidade. Eu sabia, ela sabia. Mas não lhe disse nada, nem ela a mim. Houve um momento em que Lúcia me perguntou: — “O que é que o dr. Abreu Fialho te disse?”. Menti: — “Aquilo mesmo”.

No dia seguinte, fomos ao dr. Paulo Filho. Minto. O dr. Paulo Filho é que veio a nós. Era amigo do dr. Cruz Lima e meu amigo. D. Lidinha o chamara. Nos braços da mãe, Da­niela era infinitamente miúda. Dr. Paulo Filho pôs, em cada olho, a pequenina chama da lâmpada. Eu, ao lado, mudo. Ele acaba o exame e vai falar. Disse a sua verdade: — um olho, perdido; mas outro vivia. Pergunto: “Há esperança? Há!?”. Ele acreditava que, numa das vistas, a boa (ou melhor), a menina viesse a ter uns 20% de visão. Minha alegria morrera. Eu pensava: — “Está mentindo”. Quando se despediu, me precipitei: — “Vou com o senhor”.

Ainda no elevador, crispei minha mão no seu braço: — “Eu quero saber a verdade. Aquilo que o senhor disse é fato? Pode falar, doutor, não me esconda nada”. E repeti: — “Quero a ver­dade e nada mais”. Foi taxativo: — “É isso mesmo. Eu acredito que, na vista melhor, a menina venha ter uns 20% de visão”. Eu não queria mais do que os 20%. Ou até dez. Dez por cento. Se Daniela tivesse 10% de visão, numa das vistas, ela seria para mim uma nababa de luz.

Hoje, minha garotinha tem três anos e meio. Eu a carrego e vejo os seus olhos. São de um azul doce, triste e diáfano. Ain­da não enxerga. Não faz mal. Direi a todos os oculistas do céu e da terra: — “Não é cega”. De vez em quando, tenho vontade de telefonar para o dr. Abreu Fialho, e contar-lhe que, por um momento, fui colhido por um surto de ódio tremendo.

Aqui, deixo de falar dos cegos. Mas antes de passar para a espanhola, quero dizer uma palavra final. O oculista que desenganar os olhos de minha filha estará fazendo como aque­le menino da rua Alegre. Sim, aquele menino que furou, com o alfinete, os olhos do passarinho. Bem. Vamos pensar na es­panhola.

Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O veló­rio seria um luxo insuportável para os outros defuntos.

Era em 1918. A morte estava no ar e repito: — difusa, volatizada, atmosférica; todos a respiravam. Na minha janela, da rua Alegre, eu olhava a rua. As casas, tristes, inconsoláveis. Mais adiante, em Pereira Nunes, morava Adolpho Bloch. Teria seus dez anos, talvez. Andava perdido, pelas esquinas de Aldeia Campista, como um órfão total. Hoje, Adolpho mora num palácio; seu chão é de mármore. Vizinho do Copa, suas varandas pen­dem, por um lado, para a piscina; e, de outro lado, para o gran­de mar. Mas, em 1918, Adolpho era um menino miserável, e tão humilhado e tão ofendido.

Não, não. Estou fazendo confusão de datas. Em 1918, Adolpho ainda não estava em Pereira Nunes, nem no Brasil. Viria para cá em 1922, só em 1922. Mas como eu ia dizendo: — du­rante toda a espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão.

Escrevi, certa vez, uma crônica meio cruel, e da qual me arrependi. Dizia eu que não há ninguém mais narcisista do que o defunto. Ele está sempre bem posto; é solene, hierático, co­mo um mordomo de filme policial inglês. E me lembro que, na ocasião, contei um episódio de rara impiedade.

Eis o fato: — pouco antes, morrera um pastor protestante do meu bairro. Residia a duas quadras lá de casa. De noite, des­ci do bonde e passei pela sua porta. Seria deselegante (vá lá o deselegante) não entrar. Tomei coragem e fui cumprimentar a viúva e demais parentes. E comigo entrou um bêbado, vejam vocês. O sujeito não conhecia ninguém, ali. Mas vira o ajunta­mento e resolvera espiar. E, então, aconteceu esta coisa inédita e abominável: — ao ver o defunto de gravatinha-borboleta, o pau-d’água começou a rir e continuou rindo, num crescendo pavoroso.

Suas gargalhadas iam de uma esquina a outra e atravessa­vam a noite. Imediatamente, cães da vizinhança responderam. E esse alarido canino propagou-se de quintal em quintal, acor­dando os galos, que, por sua vez, começaram a cantar fora de hora. Nos terrenos baldios, faunos e vampiros também esganiçavam o riso torpe. E só o morto, com sua gravatinha-borboleta, permaneceu incomovível. O defunto não alterou, em nada, a sua correção atroz de mordomo de filme policial.

Contei a fábula para chegar à espanhola. Claro que, em 1918, isto aqui era um outro Rio, o Rio dos lampiões, dos bon­des e dos enterros residenciais. Se não existiam mais as carrua­gens de Dumas pai, ainda se podia passear em tílburis machadianos. Botafogo era Machado de Assis puro.

E foi nesse Rio absurdo que a gripe desabou. Na fábula aci­ma, vimos que o defunto no seu narcisismo obsessivo foi ao requinte da gravatinha-borboleta. Mas a espanhola não fazia ne­nhuma concessão à vaidade dos mortos. E o apavorante eram a solidão, o abandono e, sobretudo, a humilhação do cadáver.

Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: — na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos pa­rentes, amigos e desafetos. Na espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém. Nem um vira-lata vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho, nem ao menos inimigo.

O sujeito morria sem vela. Nós sabemos o que é e como é o brasileiro. Acontece, aqui, uma coisa misteriosíssima e lin­da. Se o sujeito morre na rua, atropelado ou por motivo outro qualquer, surge, instantaneamente, uma vela ao seu lado. É au­tomático. Não importa que seja na Presidente Vargas, no Man­gue, na avenida Brasil ou num descampado da Boca do Mato. Ninguém sabe, e não saberá jamais quem pôs a vela, e que fós­foro a acendeu. A chama trêmula, que nenhum vento apaga, tor­na a morte mais amiga, mais compadecida e mais feérica.

Pois essa estrela dos atropelados, essa estrela de esquina, de meio-fio, de asfalto, não ardeu pelos mortos da espanhola. Eu, da minha janela, espiava os caminhões passando. E não en­tendia mais nada. Antes da gripe, achava a morte rigorosamen­te linda. Linda pelos cavalos, e pelas plumas negras, e pelos dou­rados, e pelas alças de prata. Lembro-me de que, na primeira morte adulta que vi, cravou-se em mim a lembrança dos sapa­tos, inconsoláveis, tristíssimos sapatos. A espanhola arrancou tudo, pisou nas dálias, estraçalhou as coroas.

Diz alguém que a cama é um móvel metafísico, onde o ho­mem nasce, sonha, ama e morre. Em 1918, a esquina, e o bote­quim, e a calçada, e o meio-fio seriam metafísicos também. Por­que lá se morria, a toda hora. Mas eis o que eu queria dizer: — vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo e empi­lhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanha­dos no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gri­tar para a carroça de lixo: — “Aqui tem um! Aqui tem um!”. E então, a carroça, ou o caminhão, parava. O cadáver era atira­do em cima dos outros. Ninguém chorando ninguém.

E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes, Nada de túmulos exclusivos. Todo mundo era des­pejado em buracos, crateras hediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, de repente, um pé florescia na terra, ou emer­gia uma mão cheia de bichos.

Ninguém se lembraria de fazer uma missa de sétimo dia. O brasileiro é um homem de fé. Conheço patrícios que têm, ao mesmo tempo, três, quatro religiões. Pois, na espanhola, nin­guém acreditava em nada. O sujeito mal tinha tempo de morrer. E eu cada vez entendia menos aqueles enterros fulminan­tes, sem dourados, sem cavalos, sem penachos.

Por que a peste? Eu ouvia dizer que os culpados eram os mortos insepultos da guerra. O nome “espanhola” realmente era um mistério. Lá em casa, todos caíram de cama, menos eu. Meu irmão Augusto, recém-nascido, era um pequenino esqueleto, com um leve, diáfano revestimento de pele. Mas não cho­rava, nem gemia. Tão quieto que mais parecia um martírio con­sentido. Houve uma noite, uma tarde, não sei, em que parecia agonizar. Mas, de repente, abriu os olhos, sorriu numa euforia de anjo. E sobreviveu.

De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam, humi­lhados e ofendidos, numa promiscuidade abjeta. A peste dei­xara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: — “Quem não morreu na espanhola?”. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores.

E eis que o Hélio Pellegrino e o Mário Pedrosa foram pas­sar três dias em Cabo Frio. O Mário tem, lá, uma casa selvagem. Eu os imagino na praia, ouvindo o silêncio das ilhas. Nada de jornal, de manchete. Estavam espantosamente sós. E não leram, através das 72 horas, um único e escasso jornal, uma única e escassa manchete. Era uma solidão virginalmente analfabeta.

E, então, nos três dias e nas três noites, Hélio Pellegrino e Mário Pedrosa foram dois centauros e repito: — dois centau­ros esculpidos em areia, sal e vento. Depois voltaram, claro. Mas vinham convencidos de que o asfalto é homicida e suicida. Na vida urbana o homem mata e se mata. Eis o que eu queria dizer: — também homicida e suicida foi o Carnaval de 1919, logo de­pois da espanhola.

O Hélio Pellegrino não era nascido. O Mário Pedrosa, sim. Mas o Hélio Pellegrino não era nascido, nem o Otto Lara Resende e muito menos o Cláudio Mello e Sousa, nem o Alfredo C. Macha­do. Mas já andava por aí o Álvaro Nascimento, que hoje escreve no Jornal dos Sports sob pseudônimo de Zé de S. Januário. Na espanhola, ele foi caçado, quase laçado no meio da rua. O nosso Álvaro só adoeceu no fim da gripe e quase morreu quando já nin­guém morria. Como eu ia dizendo: — deram-lhe uma pá e disse­ram-lhe: — “Vamos enterrar defunto!”.

E ele os enterrou, aos borbotões. Foi coveiro. E, ainda ho­je, vê um morto, qualquer morto, como a um velho conheci­do. Mas voltemos ao Carnaval de 18, aliás, 19. Hoje, temos um sociólogo, o Sérgio Lemos, que liga tudo à epopéia industrial. Se a galinha pula a cerca do vizinho, se o caçula tem coquelu­che, se usamos cabeleira à Búfalo Bill — está explicado. As coi­sas acontecem, e só acontecem, porque o Brasil se industrializa.

Mas eu me permitiria insinuar que, em 1919, não foi bem assim. Começou o Carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, es­pectrais. As pessoas usavam a mesma cara, o mesmo feitio de nariz, o mesmo chapéu, a mesma bengala (naquele tempo, ain­da se lavava a honra a bengaladas). Mas algo mudara. Sim, toda a nossa íntima estrutura fora tocada, alterada e, eu diria mes­mo, substituída.

Éramos outros seres e que nem bem conheciam as próprias potencialidades. Cabe então a pergunta: — e por quê? Eu diria que era a morte, sim, a morte que desfigurava a cidade e a tor­nava irreconhecível. A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pen­sar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas.

Estou aqui reunindo as minhas lembranças. Aquele Carna­val foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal ves­tidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados. Ora, um defun­to que não teve o seu bom terno, a sua boa camisa, a sua boa gravata — é mais cruel e mais ressentido do que um nero ultra­jado. E o Zé de S. Januário está me dizendo que enterrou sujei­tos em ceroulas, e outros nus como santos. A morte vingou-se, repito, no Carnaval.

Eu poderia fazer, aqui, todo um capítulo sobre o pudor. O comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era medieval, feudal ou que outro nome tenha. Psicologicamen­te, ainda não ocorrera para nós a abertura dos portos. A mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera.

E tudo explodiu no sábado de Carnaval. Vejam bem: — até sexta-feira, isto aqui era o Rio de Machado de Assis; e, na ma­nhã seguinte, virou o Rio de Benjamin Costallat ou, ainda, do Theo Filho. — “Caímos muito de categoria”, dirão vocês. Res­pondo que até um verso de jornal de modinha, ou uma man­chete de O Dia, tem a sua dimensão sociológica. Desde as pri­meiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da es­panhola — e tão humilhados e tão ofendidos — que cavalga­vam os telhados, os muros, as famílias.

Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam uma modinha tremenda. Eis alguns versos: — “Na minha casa não racha lenha./ Na minha racha, na minha racha./ Na minha casa não falta água. / Na mi­nha abunda.” etc. etc. As pessoas se esganiçavam nos quatro dias; e iam assim de paroxismo em paroxismo.

Nos carnavais seguintes, a cidade teve medo dos próprios abismos; houve um certo recuo. Mas o Rio de Machado de Assis, ou de Macedo, ou sei lá, estava morto. O que quero dizer, ainda, sobre o Carnaval da espanhola é que foi de um erotismo absur­do. Daí a sua horrenda tristeza. Disse não sei quem que o desejo é triste. E nunca se desejou tanto como naqueles quatro dias. A tristeza escorria, a tristeza pingava, a alegria era hedionda.

Mas escrevi que o desejo é triste. Vejam o último Carnaval, o de 67. Nunca as mulheres se despiram tanto. Muitas usavam me­nos que a folha da parreira. Foi essa nudez difusa, multiplicada, oferecida, que matou todo o erotismo dos bailes e das ruas. Os homens nem olhavam os nus; ou olhavam com surdo ressenti­mento e um tédio cruel. Era como se, de repente, nascesse uma incompatibilidade maligna entre os dois sexos. E, por isso, foi um salubérrimo Carnaval, sem nenhuma obscenidade. O que víamos, nos bailes, nas ruas, nas avenidas, eram castíssimas multidões.

Todavia, de vez em quando, julgo perceber no Rio moder­no o clima de 1919, logo após a espanhola. Imaginem vocês que, há uns dez ou quinze dias, o Otto Lara Resende resolveu conhecer a noite. Como se sabe, há toda uma promoção tenaz e profissional da noite. Há sujeitos que pagam o leite do caçula e o sapato da mulher escrevendo sobre a vida noturna. E o Ot­to traçou o itinerário sábio e proveitoso e invadiu a madrugada.

É ele próprio quem o diz. Voltou da noite apavorado. Por exemplo: o Bateau. Todo mundo desgraçado, todo mundo no extremo limite da loucura e do suicídio. É uma excitação sem desejo. É uma obscenidade sem prazer. É um deserto interior, deserto inconsolável, sem uma pia, sem uma bica. De repente, o Otto viu um padre. Quem o trouxe, quem? Segundo o próprio Otto, ele veio pela mão de um velho conhecido nosso: — o Diabo. E podia ser também o próprio Satã, numa de suas inumeráveis caracterizações. De que igreja, ou de que deus, seria essa batina que florescia, ali, numa mesa do Bateau? Súbito, a batina come­çou a se encharcar de uísque. Aquele só podia ser o sacerdote de uma fé defunta e de um deus também fenecido. E todo mundo, ali, tinha a cara vingativa dos suicidas. No seu canto, o religioso passava a mão na cara para sentir a própria hediondez.

Foi o Hélio Pellegrino quem chamou a atenção: — “Você intrigou o Otto com o Bateau!”. Advertido pelo amigo, fui re­ler o capítulo de ontem. Realmente, o querido Otto Lara Re­sende faz uma série de comentários amargos sobre a noite, ou melhor dizendo, contra a noite. E uma das referências recai, jus­tamente, sobre o Bateau, que é apresentado como um caldei­rão de falsas delícias.

Sem querer e sem saber, teria eu cometido uma dessas in­confidências supremas. O Hélio Pellegrino esteve com o Otto, certa vez, no Bateau. E foi uma testemunha visual e auditiva do seu prestígio na casa. Quando o Otto chega, as paredes se abrem, as cadeiras disputam a sua preferência, os guaranás, as coca-colas e os sanduíches o atropelam. O Hélio estava a seu lado e viu tudo. O Otto passando por entre rapapés e os garçons, reve­rentes: — “Doutor, doutor!”.

O brasileiro chamado de “doutor” treme em cima dos sapatos. Seja ele rei ou arquiteto, pau-de-arara, comerciário ou ministro, fica de lábio trêmulo e olho rútilo. E só o Otto é cha­mado de “doutor” lá na praça Serzedelo Correia. Pois bem. E, súbito, sai, nas minhas Memórias, que o meu amigo acha o Bateau uma jaula onde estrebucham ou uivam todas as hienas da nossa depressão.

O pior não são as hienas. O pior é que o Otto viu, lá, uma batina. Eis uma presença estarrecedora. Ora, o Otto acredita no Diabo. Jantando comigo, o Zé Luiz, o doce Braga, o Armando Nogueira, o Sérgio Bernardes, ele foi interpelado. Sim, alguém Perguntou-lhe se acreditava no abominável Pai da Mentira. Não fez nenhum mistério: — “Só acredito no Diabo”.

Segundo Otto, o padre fora ao Bateau levado pela mão de Satã. Ou, repito, era o próprio Satã, num dos seus inumeráveis disfarces. Como se vê, a hipótese é fascinante. Jean-Paul Sartre costumava ver lagostas fantásticas. Elas subiam-lhe pelas pernas, ou escorriam-lhe do peito, ou desciam-lhe da cartola. Certa vez, na Ópera, ele as viu, no lustre, de cabeça para baixo, como trapezistas.

Essas lagostas eram o Diabo que assim se multiplicava para confundir e atormentar o mestre. Outras vezes, o Príncipe das Trevas assume forma de pequeninos chacais, do tamanho qua­se de uma pulga. No caso de Otto, Satã preferiu fingir-se de pa­dre. Sabia que o romancista ia ao Bateau, pôs uma batina e lá apareceu de repente. Ninguém o viu entrar, ninguém o viu sair. E, segundo consta, nem pagou a conta.

Todavia, ao escrever estas notas, sou assaltado por uma dú­vida. Não sei, francamente não sei, se incorri ou não num enga­no auditivo. Eis o que me pergunto: o Otto falou no Bateau, no Bistrô? O fato é que o sacerdote estava na noite, desgarrado na noite, e ardia em mil danações.

Mas falei em batina e volto à minha infância. Meu Deus, eu queria acreditar, como acreditei. Aos oito anos de idade, tinha uma fé deslumbrante. Quando via um padre, ficava na dúvida: — se ia, lá, beijar-lhe a mão. Umas tias me levavam para a Igreja protestante; outras, me arrastavam para a Igreja católica. Mas sempre fiz, ao protestantismo, uma objeção grave: — eu queria santos, eu não dispensava santos. De mais a mais, não via pa­dres, nem freiras protestantes.

Durante vários anos, quis ser coroinha. Mas como ia dizen­do: — aos oito anos e, portanto, ainda na rua Alegre, ocorreu um episódio que me feriu profundamente. Ainda outro dia, em conversa com o Carlos Tavares, na redação de O Globo, disse-lhe: — “Eu fui o maior pudor físico do Brasil”. Ele achou gra­ça, eu também e paramos por aí. Mas não mentia. O menino, que fui, não admitia, jamais, que o vissem nu. E, um dia, eu es­tava tomando banho. Estava tomando banho e...

O ferrolho da porta do banheiro tinha um defeito qualquer. De repente, alguém empurra e abre. Era uma velha tia que pas­sava uns tempos lá em casa. Enfiou a cara e me viu. Logo vol­tou atrás e fechou tudo. Mas me vira, eis a verdade, me vira. Num segundo, na fração fulminante de um segundo, o menino pôs as mãos em folha de parreira. E nada descreve, e nada se com­para ao sofrimento infantil, o espanto, o ódio e a cólera. Nunca houve uma nudez tão ofendida, tão humilhada, tão ressentida.

Reparem como, de vez em quando, ainda hoje falo em nudez. É uma tranqüila e, direi mesmo, confessa obsessão. O Paulo Francis há de achar uma graça superior e infinita no meu ressentimento contra o biquíni. Aí está: — o biquíni. Eu o vejo como uma nudez pior do que a nudez. Eis o que eu gostaria de explicar: — adulto, e já velho, ainda conservo muito do menino que foi visto, no banho, por uma tia que já morreu.

E o que me doeu é que vi, no seu olhar, faiscando no seu olhar, uma curiosidade divertida e maligna. Claro que isso não existia, só existia na minha imaginação. Mas a odiei. Fiquei, por toda a minha infância, com um sentimento de mácula na carne e na alma. Foi aí que pensei em ser coroinha, padre. E mais: — cheguei a pensar e a desejar minha crucificação.

Não entendia por que as meninas, os meninos não beija­vam a mão de freiras, só de padre. Lembro-me das vezes em que entrei na igreja. Ninguém me chamava, ninguém me leva­va. Eu ia por mim mesmo; era quase uma predestinação. Nada me tocava mais do que os dourados das colunas e, por toda a parte, a palpitação de luzes e de sombras. Queria viver ali, não sair dali, olhando os santos vergados e o sono dos círios nos altares.

Há poucos anos, fomos eu, o Otto Lara Resende e o Hélio Pellegrino ao Mosteiro de São Bento. Os dois amigos já o co­nheciam e avisaram: — “Uma beleza, uma beleza!”. D. Marcos Barbosa, a quem fui então apresentado, nos conduziu. E, per­correndo a igreja, me senti o mesmo menino de 1920, sim, o menino que precisava purificar-se da nudez vista por uma por­ta entreaberta. Lembro-me de que, de repente, começamos a pisar sobre túmulos de monges. Eram velhíssimas mortes de cem, 150, duzentos anos. Meus amigos não perceberam nada, nem eu lhes disse nada. Mas desejei ser uma daquelas ossadas e estar ali enterrado, eternamente.

Eis o que senti, na minha visita ao Mosteiro de São Bento: — o desejo de ser um punhado de ossos. Por cima, na pedra do túmulo, gravados um nome, uma data e uma cruz. A meu lado, d. Marcos Barbosa sorria para mim, para nós; e seus dentes eram os de Manuel Bandeira. Mas eu não pensava em d. Marcos Bar­bosa: queria ser uma fina, diáfana, meiga ossada de monge.

Ainda vimos uma missa, se não me engano das seis horas. Eu, o Hélio, o Otto olhávamos, do alto, os padres que iam che­gando de cabeça baixa. E era tão bonito que mais parecia uma missa de estúdio. Vinha não sei de onde um sol — não sei que sol — e a luz atravessava tudo; e a chama de um círio passava a outro círio; e os santos, e as toalhas e nós, todos tremíamos de beleza. Mas eu continuava tecendo a minha fantasia: — fora um monge, morrera há cem anos e o que restava de mim era um punhado de ossos.

Já disse que, em Aldeia Campista, a minha grande felicida­de era sonhar no fundo do quintal. Aos nove anos, ou oito, so­fri o grande encanto do cinema. Não havia então, que me lem­bre, nenhuma impropriedade. Se uma mãe resolvesse dar o seio ao recém-nascido na platéia — seria naturalíssimo. Era o tempo de Francesca Bertini, William S. Hart, Rolleaux, William Farnum, Tom Mix, e outros, e outros. Ia ao cinema e, no dia seguinte, estava no fundo do quintal, junto do tanque. Não queria nin­guém perto. De cócoras, recriava tudo que a tela ampliara.

Eu me imaginava Tom Mix, e William Farnum, e William S. Hart. Dava tiros; matava e morria; depois fugia, levando a mo­cinha na garupa. Mas falo dos mocinhos, dos cavalos, dos tiros e estou esquecendo alguém, alguém que assombrou minha infância. Eis a verdade: — antes de ser Tom Mix, ou outro des­lumbrante cowboy da época, me imaginei Cristo, fui Jesus. Tinha sete, oito, nove, dez anos e me via na cruz. E me crucifiquei mil vezes. Eu, Nazareno, eu, Filho de Deus, eu, de braços abertos, eu, de cabeça pendida, eu, Deus e sem rosto, eu, no regaço da Virgem.

Viva mil anos e não me esquecerei, jamais, do primeiro fil­me da Vida de Cristo. Esse primeiro filme é também o último. Continua sendo levado até hoje, com um descaro empolgante. Claro que, agora, só passa nos poeiras do subúrbio. E há sempre uma platéia de pobres-diabos para uma Vida de Cristo. Mas quando eu a vi, pela primeira vez, a cópia estava fresquinha e as pessoas que lá compareceram saíram em cacos.

Foi então que descobri esta verdade eterna do palco ou da tela: — a verdadeira vocação dramática não é o grande ator ou a grande atriz. É, ao contrário, o canastrão, e quanto mais lím­pido, líquido, ululante, melhor. O grande ator ou atriz é recen­te. Até poucos anos atrás, representava-se cinema e teatro aos uivos e às patadas. Era hediondo e sublime. Ao passo que o gran­de ator nada tem de truculento nem berra. É inteligente demais, consciente demais, técnico demais; e tem uma lucidez crítica, que o exaure. O canastrão, não. Está em cena como um búfalo da ilha de Marajó. É capaz de tudo. Sobe pelas paredes, pendura-se no lustre e, se duvidarem, é capaz de comer o cenário. Por isso mesmo, chega mais depressa ao coração do povo, deslum­bra e fanatiza a platéia.

Mas já estou divagando, novamente. Eis o que eu queria dizer: — o rapaz que fez no filme o Cristo era justamente o ca­nastrão nato e hereditário. E, porque era canastrão, feriu fundo a carne e a alma dos presentes. Também canastrões eram Pilatos, Madalena, José e todo o elenco. Não escapava ninguém. E o rendimento dramático foi uma loucura. Atracada às cadeiras, a platéia soluçava. A emoção vinha lá das profundezas e, eu quase dizia, vinha das tripas torcidas, retorcidas.

Bem me lembro que, ao sair do cinema, na esquina seguin­te, vi dois garotos e um deles disse um palavrão. E o nome feio, pois do martírio, me cegou de espanto e de ódio. Já falei do meu pudor físico. Até os onze anos de idade, não soltara, jamais, em momento nenhum, um palavrão. E nada se compara ao meu assombro e vergonha quando vi que os meus irmãos mais velhos diziam obscenidades horrendas. Ainda me ficou de Aldeia Campista um último pudor contra certas palavras. Uma delas: — “esculhambação”. Esta me ofende, me humilha, me dilacera. Fui, por isso mesmo, um menino só. Não tinha ami­gos, porque os outros meninos soltavam palavrões como pe­queninos canalhas.

Alguém há de perguntar por que uso eu palavrões no meu teatro. É uma velha história, que explicarei depois. Mas não pen­sem que me libertei do menino antigo. Ali, ele está cravado em mim. Ainda hoje me olho por dentro; e vejo em mim todo um movimento de padres, de santos, cristos, virgens e, até, coroi­nhas. Todo esse elenco não aceita os palavrões que, depois de adulto, venho largando pelo mundo. Ainda há pouco, passei por uma experiência reveladora. Foi o seguinte: tenho um amigo, de cinqüenta anos, que apanhou uma paixão como se apanha escarlatina (doença hoje obsoleta).

Aos cinqüenta anos, o sujeito só tem paixões de ópera, de Vicente Celestino, de primeira página de O Dia e da Luta Demo­crática. A menina (era menina) ainda não fizera nem a maioridade. Alguns idiotas da objetividade chegaram a adverti-lo: — “Abre o olho, que essa pequena é uma débil mental de babar na grava­ta”. Abrir que olho, se o meu amigo estava cego, surdo e mudo de desejo? E aquele sentimento tardio, funesto, ameaçava levar tudo de roldão, tudo. Quando brigava com a garota, o meu ami­go chegava a pensar: — “Ou mato ou me mato?”. Um dia, eu o encontro numa depressão atroz. Pisca o olho: — “Hoje, estou bom de cintura”. Não entendi a gíria. Ele, então, mostrou o re­vólver enfiado no cinto. Eu estava diante de um Tom Mix.

Como não a conhecia, fazia minhas suposições: — deve ser uma Maria Eduarda Maia aos dezessete anos; ou, então, a Natacha, de Guerra e paz. Já o meu amigo se confessava um candi­dato forte a uma manchete de O Dia e da Luta Democrática.

Passei uma semana sem o ver. Até que, ontem, esbarro com ele, na Avenida. Quase pergunto: — “Mataste?”. E, então, ali mes­mo, em cima da calçada, me contou tudo. Na véspera, tivera uma discussão intranscendente com a musa. E, de repente, ela o alve­ja com uma rajada de obscenidades jamais concebidas. Ele ouviu palavrões que não conhecia e que o próprio Bocage teria anota­do no seu caderninho. E, ali, a paixão morreu e estrebuchou co­mo uma víbora danada. Eu ouvia, sem uma palavra. E me deu um tédio brutal da humana pornografia. Passei o resto do dia achan­do que somos todos canalhas porque dizemos palavrões.

Eu durmo, mas a úlcera nunca. Essa está sempre em vigí­lia. Espera, com maligna paciência, que passe a ação do leite, das papinhas, dos biscoitos sem sal e sem açúcar. E, quando o estômago se esvazia, ei-la que se devora a si mesma. Quase to­das as madrugadas a coisa se repete. Acordo, às três, quatro da manhã, com fogo nas entranhas.

Saio da cama: vou tropeçando nas portas, esbarrando nas me­sas e cadeiras. Na cozinha está um prato de mingau coberto com outro prato. E a papa hedionda vai, pouco a pouco, pacificando a danação da úlcera. Ah, que coisa linda e que coisa santa quando a ferida deixa de doer. É a bem-aventurança. Foi o que aconte­ceu na noite de ontem. Às quatro da manhã sou acordado pela úlcera da madrugada. Como das outras vezes, fui tomar o mingau.

E quando, finalmente, a dor passou, comecei a pensar em Samuel Wainer. Não volto mais para a cama; vou para a janela, que se abre para o resto da noite. Samuel, Samuel. Num instan­te, todas as varandas da memória se debruçam sobre a Última Hora, não a atual, da praça da Bandeira, mas a suntuária, da Pre­sidente Vargas. Eu me lembro das nossas instalações. Na nossa frente estava o “Balança, mas não cai” ou “Mula Manca”, com seus vinte e não sei quantos andares.

No meio de pardieiros espectrais, tendo por fundo uma favela, o edifício da Última Hora era um pavão enfático. Em capítulos posteriores contarei o que foi, do princípio ao fim, a minha experiência pessoal, humana, jornalística, com Samuel Wainer e o seu jornal. Entre parênteses, diria que essa experiên­cia ainda não está cicatrizada em mim. Hoje, porém, o que me interessa é lembrar a ira de Carlos Lacerda, contra Samuel e contra a Ultima Hora.

Isso foi há, relativamente, pouco tempo. Mas como é anti­go, senil ou mumificado, o passado recente. Já me parece que tudo que aconteceu é anterior à primeira batalha do Marne, an­terior à vacina obrigatória. Todavia, antes de prosseguir, preci­so dizer ainda duas palavras sobre o nosso prédio. Era um edi­fício narcisista por fora e por dentro.

Por fora, era um soco visual no transeunte. Quem passava pela praça Onze, a pé, de ônibus, lotação ou bonde, tomava um susto. Aquele colosso agredia e humilhava o resto da paisagem. E, por dentro, a mesma coisa. Quando o Diário Carioca, ex-dono, saiu de lá, e passamos para o andar de cima, fiquei mais perdido. Sou um pobre nato e, repito, um pobre vocacional. Ainda hoje, o luxo, a ostentação, a jóia me confundem e me ofendem.

E, de mais a mais, eu vinha de redações pobres e, direi mes­mo, famélicas. De repente, despertava na Última Hora. Aquilo mais parecia um feérico, suntuário pesadelo. Imaginem vocês um salão irreal, infinito. Dir-se-ia uma redação de estúdio, com um Cecil B. de Mille a manobrar suas massas. E eu não entrava no gabinete de Samuel sem uma certa dispnéia emocional. Lá dentro, havia um décor meio lúgubre. Sim, a única coisa que faltava no gabinete do diretor era uma cascata artificial, com fi­lhote de jacaré.

Claro que nem Samuel, nem qualquer outro da Última Hora contribuíra com um vago e escasso enfeite para tamanha mise-en-scène. Tudo corria por conta do Diário Carioca, Horácio de Carvalho e sua equipe. Mas havia uma funesta coincidência entre a mania de grandeza de Samuel e aquela pompa. Samuel movia-se, ali, como um peixinho no seu aquário natal.

Vinha ele de experiências jornalísticas bem mais modestas. Milhares de vezes fora um pobre ser sem um tostão no bolso. E, agora, no palácio da Presidente Vargas, era o ex-pobre-diabo, o ex-Raskolnikov. O simples fato de estar ali, de sentar-se ali, parecia desagravá-lo de velhas humilhações. Mas era pouco pa­ra a sua fome. Sonhava com um império jornalístico.

E, de repente, veio Carlos Lacerda. O grande polemista sa­be deflagrar uma catástrofe e, depois, administrá-la. Depende do seu exclusivo arbítrio e de sua técnica demoníaca o movi­mento, a extensão, a profundidade da catástrofe. Um povo pos­sui trevas, que convém não provocar. Em 48 horas, Carlos La­cerda mobilizou todas as nossas trevas interiores contra Samuel Wainer.

Aconteceu, então, o seguinte: — de repente, tornou-se uma vergonha trabalhar na Última Hora. Primeiro, foi apenas Carlos Lacerda. Em seguida, começaram a aparecer outros Carlos Lacerdas milhares, milhões de Carlos Lacerdas. Mais tarde surge uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Meu Deus, pode-se pendurar um sujeito numa forca, ou crivá-lo de balas, ou beber-lhe o sangue como groselha. Mas ninguém tem direito de fazer o que a Comissão Parlamentar de Inquérito fez com Sa­muel Wainer.

Eu estava lá, vi e ouvi tudo. Com uma fidelidade obtusa, fiquei atrás da cadeira de Samuel, pedindo pelo amor de Deus que me fotografassem. E, de fato, no dia seguinte, saía na Tri­buna da Imprensa o clichê em três colunas com o título: — A vida como ela é.... E o jornal ainda lhe acrescentou as reti­cências. Nunca vi ninguém tão humilhado e tão ofendido. Nem crueldade mais covarde.

Enquanto isso a Última Hora deixara de pagar. Nada des­creve a pusilanimidade dos anunciantes. E foi uma fuga, também, de leitores. Todo o Brasil contra Samuel Wainer. Eu estava vendo a hora em que iam caçá-lo, no meio da rua, a pauladas, como uma ratazana prenha. Eu me perguntava: — “Por que ele não mata ou por que não se mata?”. Essa formidável paciência foi um dos maiores espantos de minha vida.

Eu não teria a paciência de Samuel. Ninguém a teria. Outro qualquer meteria uma bala ou em si mesmo ou em Carlos La­cerda. Ou por outra: — em Carlos Lacerda, não. O chamado escândalo da Última Hora fizera de cada qual um Carlos Lacer­da. Samuel não podia sair por aí chumbando milhares, milhões de Carlos Lacerdas. Mas eis o que eu queria dizer: — uma gera­ção não basta para explicar tamanha paciência. Ela é anterior a Samuel, começou a ser elaborada, trabalhada há 6 mil anos. Eu me espantava; outros se espantavam. Samuel não, em mo­mento nenhum. O que ele via por trás dos deputados, de La­cerda, dos artigos, dos discursos e da cólera popular era um ve­lho conhecido: — o martírio.

Lembro-me de uma noite em que chego em casa tarde, dez e meia, quase onze horas. Vou ligar o rádio. Queria ouvir uma melodia qualquer, intranscendente, de preferência um tango (sou um dos poucos nostálgicos do tango). Estou repassando as estações e paro numa delas. Alguém estava berrando: — “O tarado Nelson Rodrigues!”. Claro, era o Carlos Lacerda.

Eu só trabalhava na Última Hora e não recebia. Por que não morri então de fome? Explico: — porque juntara uns sua­dos, sofridos, amargurados oitenta contos. Era dinheiro, para a época era dinheiro. O Vilaça, de Os Maias, diria que, apesar da catástrofe, eu ainda tinha uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe borrar por cima. Mas gastei minhas econo­mias, até o último e mísero vintém.

Disse que a Última Hora deixara de pagar. Não foi bem as­sim. Na belle époque do jornal, havia um departamento de con­cursos. O sujeito ia lá e via brindes pendurados até no lustre. Eis o que eu queria explicar: — enquanto durou a campanha, recebi, a título de salário, liquidificadores, panelas, colchões, cinzeiros, bandejas etc. etc. Era tão funda a minha depressão que me sentia remunerado com generosidade e abundância.

No caso da Última Hora, aprendi que toda unanimidade é hedionda. Poderão objetar que estou generalizando. Exatamen­te: — estou generalizando. O Brasil inteiro, sem exceção, esta­va contra Samuel Wainer, contra a Última Hora. Carlos Lacer­da conquistara a unanimidade e a manipulava. Se ele trepasse numa mesa e berrasse: — “Lincha!” — estejam certos de que a unanimidade iria caçar Samuel no meio da rua. E sua carótida seria chupada como tangerina. E suas postas ficariam suspensas dos ganchos no açougue.

Realmente, a unanimidade nada tem a ver com a vida moral. Mas eu também sofri um massacre. Carlos Lacerda dizia de mim o diabo. Eu fazia, então, A vida como ela é... (durante dez anos, eu a escrevi, dia após dia, com uma pertinácia monótona e desesperadora). Se as novas gerações me perguntassem o que era A vi­da como ela é..., diria: — “Era sempre a história de uma infiel”.

Apenas isso. E o leitor era um fascinado. Comprava a Últi­ma Hora para conhecer a adúltera do dia. Claro que, na minha coluna, também os homens traíam. Mas o que o público exigia era mesmo a infidelidade feminina. Quando saí da Última Ho­ra e acabei A vida como ela é..., o telefone não parava. Ho­mens e mulheres queriam saber se não ia sair mais e por quê. Dir-se-ia que o problema do brasileiro é um só: — ser ou não ser traído.

Carlos Lacerda teve a paciência de selecionar trechos de um mês de minha coluna. Com uma pinça, catava uma frase ou um episódio e o isolava de seu ambiente e de sua justificação psicológica e dramática. O destaque feito valorizava o extrato ao infinito. E, além do mais, ele criava suspense, inflexionava, representava. No fim, até um bom-dia ficava obsceno.

Lembro-me de uma fala que ele selecionou para a antologia de A vida como ela é... . Certo personagem dizia o seguinte: — “Amor entre marido e mulher é uma grossa bandalheira”. A coisa dita assim, em tom de ópera, sem uma motivação lógica, causou o maior efeito na Câmara dos Deputados. Segundo me disseram, o então deputado Antônio Balbino teve um esgar de nojo supremo; e outros congressistas abriram os braços pa­ra o lustre, num mudo escândalo desolado.

A meu ver, porém, a coisa é menos abjeta do que parece. O personagem que dizia aquilo tinha lá a sua teoria. Segundo ele, no fim de certo tempo de rotina matrimonial, o amor, a paixão ou que outro nome tenha é substituído por um sentimento mais sereno, mais estável, mais benigno. Digamos a palavra e o sentimento: a amizade. De sorte que um desejo inopinado que ve­nha turvar a pura e desinteressada estima — é quase incestuoso.

Mas não é só meu personagem que pensa assim. Ainda outro dia, um amigo meu — que o Carlos Lacerda também conhece — apareceu-me, de olho rútilo e lábio trêmulo. Puxou-me para um canto e gemeu: — “Imagina, rapaz, imagina”. Faz um suspense e continua: — “Fui com minha mulher à praia. Fui e me aconte­ceu uma que...”. Parou, sem coragem de ir até o fim. Pergunto: — “E daí?”. Ele explode: “Desejei a mãe dos meus filhos!”.

De fato, esse meu amigo (e de Carlos Lacerda) tem quatro filhos, sendo o mais velho de dezessete anos. Com dezoito anos de vida conjugal, acha ele que o amor não cabe mais no seu lar. E o fato de desejar a esposa, ainda que por um segundo fulminante, o dilacerou de vergonha e de remorso. Sentia-se um des­ses faunos de tapete que, nos terrenos baldios, atropelam as ninfas desacompanhadas.

E o certo é que A vida como ela é... foi mais um pretexto para exasperar a unanimidade. Os vizinhos que me viam che­gar em casa, com um liquidificador debaixo do braço, olhavam para mim com escândalo e ira. “Lá vai o tarado”, deviam co­chichar entre si. Eu podia abrir o embrulho e argumentar: — “Estão vendo esse liquidificador? É o meu salário”. No fundo, no fundo, eu achava o seguinte: — aquele liquidificador prova­va minha pureza, provava minha inocência. O sujeito que rece­be, como remuneração profissional, uma panela, uma fruteira, é quase um são Francisco de Assis.

Uso muito nas minhas crônicas de esporte a imagem do pobre-diabo que se senta no meio-fio e começa a chorar. Eis o que eu queria dizer: — essa figura me ocorreu, pela primeira vez, durante a campanha contra a Última Hora. E era eu o pobre-diabo, era eu o Marmeladov de Crime e castigo. Vendo que a unanimidade também se voltava contra mim, e me chamava de “obsceno”, de “tarado”, sentia exatamente a vontade de me sentar no meio-fio para chorar lágrimas de esguicho.

A verdade é que eu não tinha a paciência multimilenar de Samuel. Se ele fosse enforcado; se seu corpo pendesse de uma árvore; e se os urubus o devorassem — ainda assim ele sobrevi­veria. Samuel é de um povo que não morre. Mas era a primeira vez que eu via a face horrenda, a face obscena da unanimidade. Muitas vezes, eu ficava em casa, até duas, três da manhã, pen­sando. Punha a vitrola tocando valsas em surdina e ficava te­cendo as hipóteses mais furiosas. Imaginava: — “E se eu matas­se o Carlos Lacerda? Se lhe desse um tiro?”. Via-o morto, com seu perfil de John Barrymore, e morto. Também imaginava a unanimidade uivando pelas ruas. Que faria ela, sem o líder que a criara e todos os dias a recriava? Mas sou muito mais suicida do que homicida. Só de me imaginar assassino de Carlos Lacer­da, me sentia hediondo.

Mas Carlos Lacerda não morreu. Não. Quem morreu foi Ge­túlio. Com uma bala no peito, Vargas desfez a unanimidade. Ain­da não morrera o som do tiro, e já a unanimidade sumia, até o último vestígio. Minto. Não sumiu. Simplesmente, mudou de dono. A Última Hora estava morta, enterrada. Foi exumada às pressas. A unanimidade queria agora o sangue de Carlos Lacerda.

Qualquer devoção é linda. Não importa que o santo não a mereça. E mesmo que seja um santo falso. (Quero crer que tam­bém existam os santos canalhas.) Mas repito: — não importa. O belo, o patético, o sublime são as duas mãos postas e a fé ingê­nua e forte que se irradia de não sei que abismos radiantes. Tam­bém a solidariedade, a grande solidariedade, é comovente.

E com Samuel e a Última Hora fui solidário total. Era co­mo se estivesse disposto a morrer com um e outro e por eles. Hoje, ninguém entende abnegação tamanha. O tempo passou e o tempo deu ao que parecia sublime um perverso e fatal to­que humorístico.

O que me pôs a favor de Samuel foi a unanimidade contra. A verdade é que vinha, de longe, a minha admiração por Carlos Lacerda. Eu achava que o Brasil precisava, inclusive, dos seus defeitos. Ouvia dizer: — “É um louco!”. Mas não via o menor inconveniente nas suas danações. Entre a mediocridade e a insânia (com uma orla de gênio), eu preferia a insânia. Sim, antes um possesso na presidência do que os idiotas, passados, pre­sentes e futuros.

Assim pensava eu. E, de repente, vem o insano genial e co­meça a berrar: — “O tarado Nelson Rodrigues!”. Por outro lado, quando se referia à equipe da Última Hora, ele clamava: — “Ca­nalhas ! Canalhas!”. Não concedia nem uma compassiva exceção ao pessoal da faxina. Seria ótimo se, por um forte movimento inte­rior, eu passasse a achar o gênio da véspera a besta do dia seguinte.

Lembro-me de que, de vez em quando, ligava o rádio para ouvi-lo. Dentro de mim, estava aberta a ferida e repito: — a fe­rida pingava sangue. Mas o homem começava a falar e eu reco­nhecia, de mim para mim, numa amargura medonha: — “Como fala bem esse desgraçado! Que orador formidável! Rui não chegava nem aos pés! Nem Joaquim Nabuco!”. Se o meu nome surgia, eu desligava. Quantas vezes disse, lá em casa: — “Um cachorro! Só dando um tiro na boca!”. Bem que eu queria sapatear em cima da admiração como se esta fosse uma víbora.

Na manhã em que Getúlio se matou, vim para a Última Ho­ra cedinho. Passara a noite em claro, ouvindo as notícias; e pas­mara para a covardia de quase todo o ministério. Apanho o ôni­bus, na esquina de Maxwell, e viajo em pé, pendurado numa argola. Todo o ônibus ali ria do baixinho.

Parecia consumada a renúncia. Ou por outra: — não a re­núncia, mas a deposição mais deslavada. O pobre velho volta­va para São Borja. O máximo que sua humilhação inspirava era a piedade cínica da piada. O Brasil amadurecera para a voraci­dade de Carlos Lacerda. Sim, Carlos ia ser primeiro-ministro, presidente, rei; e se quisesse sairia de casa para o Catete monta­do num elefante como um rajá.

E, então, Getúlio meteu uma bala no peito. Eu o imagino apanhando o revólver. Fico tecendo minhas fantasias e imaginan­do que Vargas terá pensado na guerra civil. Ele apertou o gati­lho e, antes que morresse o som do tiro, já Carlos Lacerda caía, lá de cima, do alto de sua ambição cesariana. Sim, Lacerda estava à beira da onipotência e subitamente a perdia.

Eu estava na Última Hora quando Heron Domingues irra­diou a notícia. Sua voz era terrível. Aí é que está: — a voz de Heron Domingues transforma o fato, mesmo banal, em histó­ria. Olhei em torno. Lembro-me de que Marita Lima, redatora da Última Hora, pulou na cadeira. Perto de mim, Samuel Wainer batia à máquina e continuou batendo à máquina. Tinha qual­quer coisa de irreal aquela insensibilidade no momento em que o Brasil se preparava para matar ou para morrer.

Só depois me disseram que Samuel já sabia. Com furioso élan, estava datilografando a manchete, os títulos, os subtítulos da edição do suicídio. Para ele, para a Última Hora, era a salva­ção. Pouco depois entrava, ali, o meu caro e fraterno Albert Laurence. Disse-me, com um olhar de louco: — “Eu vou matar Car­los Lacerda!”. Todas as emissoras estavam alucinadas. Sentei-me, num canto; e pensava: — “Vai começar a guerra civil!”.

E Carlos Lacerda, que era deposto antes do poder? Eu con­tinuava sonhando com uma guerra de secessão, com os brasi­leiros bebendo o sangue uns dos outros. Mas não pode haver secessão quando existe uma unanimidade. A mesma unanimidade que pedira a cabeça de Samuel Wainer agora queria beber o sangue de Carlos Lacerda. Eu a sentia por toda parte. Carlos Lacerda era o assassino de um suicida. E a unanimidade a exibir a sua face escavada e hedionda.

Todos os jornais despejaram extras na rua. O cadáver de Getúlio ainda estava quente quando a Última Hora lançou a sua edição especial. Pode-se dizer que Vargas acabou de agonizar em nossa primeira página. O gesto suicida me aproximou de Getúlio. Eu me sentia profundamente seu irmão. Por outro la­do, queria me parecer que, no episódio, não havia apenas um morto; politicamente, Carlos Lacerda era outro cadáver.

De tarde, apanhei um ônibus. O chofer parou num jorna­leiro e pediu, forte: — “Me dá aí a Última Hora, o jornal do ho­mem!”. No meu canto, eu fazia uma série de reflexões torpes: — o jornal ia ter dinheiro; não mais pagaria seu pessoal com liquidificadores etc. etc. No mesmo ônibus, um passageiro dizia a outro que Carlos Lacerda devia se enforcar no próprio cinto.

Pouco depois, via eu e via todo o Brasil que Carlos Lacer­da era um falso defunto político. Voltaria potencializado, da ca­beça aos sapatos. Hoje, diz coisas e faz coisas absurdas. Mas an­tes o absurdo do que a imbecilidade. Outro dia, aconteceu uma que me parece lapidar. Carlos Lacerda estava num salão, senta­do no meio de cavalheiros e damas da maior cerimônia. Os pre­sentes sorviam, com inexcedível delícia, cada uma de suas pa­lavras. Ele estava num desses momentos em que o sujeito não diz um bom-dia sem lhe pingar gênio. E, súbito, baixa nele um tédio macio, insidioso, mas irresistível. Carlos Lacerda ainda con­cede três ou quatro frases mais. Boceja. Ajeita-se na poltrona, estica as pernas, põe a cabeça para trás, entrelaça as duas mãos no ventre. Todo mundo acompanha, magnetizado, cada um dos movimentos. O sono veio instantaneamente.

Sim, o sono veio, brotou, sem nenhuma preparação. E, diante das visitas, lá estava a boca aberta, e tão aberta que se via o ouro da obturação mais recôndita. Os presentes se entreolham e não sei se contrafeitos ou maravilhados. Em seguida, veio o ronco. Há ain­da alguns momentos de espera. Passada a surpresa, as visitas começavam a ver o fato na sua dimensão precisa. Eram vários casais. Cada qual se levantou e foi saindo, na ponta dos pés. Aquele ron­co deslavado parecia caracterizar o grande homem e ao mesmo tempo, profetizar o nosso De Gaulle sem esporas e sem penacho.

Em recente capítulo, dizia eu o que me parece ser uma ver­dade exata e inapelável: — Samuel Wainer pertence a um povo que não morre; e, se morre, estejamos certos de sua ressurrei­ção urgente e triunfal. O caso do próprio Samuel está aí, diante de nós, como uma lição de vida. Veio a Revolução de 64 e o cassou. Ei-lo sem direitos, sem nada; e, por fim, sai do Brasil como um enxotado.

Outro qualquer estaria liquidado. Vejam Juscelino. Ah, o Juscelino do exílio é outro. Não tem nada daquele cafajeste dio­nisíaco que fascinava até os inimigos. Longe do Brasil, ninguém mais plangente, ninguém mais pungente. É um Juscelino des­conhecido e terrível, esse que arrasta, pelos hotéis da Europa, a sua lúgubre e inconsolável nostalgia.

E das duas uma: — ou o deixam voltar ou ele não sobrevi­ve. Para Samuel, o exílio nada tem de destrutivo. Está em Paris. Mas tanto faz Paris como Cairo, ou Cingapura, ou Tóquio, ou Constantinopla. Floresce em qualquer vaso. E se o colocarem num deserto, há de inaugurar uma bica, uma pia, em plena e brutal aridez. Entra nos cafés de Paris, tropeçando nas mesas e cadeiras. Em seguida, é visto em Atenas, filmando. E não pá­ra. Alguém que o cumprimentou em Londres fala de suas so­brancelhas.

As sobrancelhas de Samuel! Segundo meu informante, es­tão mais agressivas que as cerdas bravas do javali. E não só isso: — não é a mesma cara que daqui saiu, uma cara não isenta de doçura. Lá fora, Samuel se tornou mais feio. Mas há nesse feio não sei que sortilégio ou luminosidade. Eis o que me pergunto: — de onde vem a magia de Samuel?

Ele não odeia ninguém, nunca. Lembro-me daquele sujei­to de anedota que achava o ódio uma perda de tempo e de di­nheiro. Samuel é mais ou menos assim, ou melhor dizendo: — é exatamente assim. Não há, nele, o desgaste do ressentimento. Quando era mais cruel a campanha contra a Última Hora, Sa­muel não teve jamais um movimento de ira.

Esquecia-me de uma observação, que me parece vital: — naquela ocasião, a ira contra ele não era unânime. Há mulheres que estão sempre dispostas a enxugar, na fronte do humilhado, o suor do martírio. Fartei-me de atender a telefonemas desvairados. Uma das fanáticas soluçava: — “É um santo! É um santo!”. Enquanto ele vagou, perdido e degradado, teve a devoção de uma meia dúzia. Mas quando o suicídio de Getúlio o reabilitou e promoveu, elas o execraram.

Mas eu falava da impotência de Samuel para o ódio. Antes da Revolução, encontrou-se ele com o meu amigo Otto Lara Re­sende. Foi, de parte a parte, uma efusão tremenda. Sentaram-se num bar e começaram a conversar. O Samuel a fazer charme para o Otto, e o Otto a fazer charme para o Samuel. Durante quatro horas, só falaram de um homem: — o abominabilíssimo Carlos. E o Samuel ainda sangrava de ultrajes não cicatrizados.

Otto imaginou que o outro espumasse de ódio ou subisse pelas paredes como uma lagartixa profissional. Pelo contrário: — uma ternura evocativa inundou Samuel. Perguntava, nostál­gico da convivência perdida: — “Como vai ele? Ainda tem aquele charme?... Continua bonito?”. O Otto ia respondendo. O hedion­do inimigo de Samuel já não era inimigo, nem hediondo. E, ali numa conversa vadia, fazendo uma trama de lembranças, os dois acabaram montando um mito adorável. Samuel era só amor.

Talvez seja este o último capítulo que escrevo sobre a Últi­ma Hora. E eu queria contar, ainda, um episódio, que me espanta até hoje. Bem. Tudo começou quando me operei da vesícula. Fez a intervenção o dr. Hugo Cota dos Santos, um virtuose do bisturi. Entre parênteses, o Hugo é doce como um irmão. E foi perfeito na prudência, lucidez, sabedoria e amor. Assistiu à operação minha irmã médica, Stella.

Ora, vesícula não assombra ninguém. Pouco antes de mim, um vizinho meu fizera a mesma operação. Três dias depois, es­tava na calçada, radiante; abria o paletó do pijama e mostrava a barriga cortada. Mas como ia dizendo: — fui operado, voltei para o quarto e, com pouco mais, começava a sofrer. Mas o meu sofrimento nada tinha a ver com a carne ferida. Era uma angús­tia como eu não conhecia. Suor, queda de pressão, o diabo. Ou­ço o meu próprio gemido: — “Ai, meu Deus, ai, meu Deus!”.

Pânico no quarto. O dr. Hugo veio correndo. Põe o olhar em mim e imagina: — “Quadro de enfarte”. Eu via as pessoas entrando: — meus irmãos, Mário, Augusto, Milton, Paulo. E eu não sabia que um espírita avisara: — “Nelson vai morrer da ope­ração”. O Hugo está debruçado sobre mim: — “O que é que você quer que eu faça? Eu faço o que você quiser”. Respondo: — “Quero água, água!”. Alguém vai encher um copo. A minha voz continua: — “Água”. Apanho o copo com as duas mãos; bebo, em ânsias pavorosas. A água volta, como uma baba. Não consigo beber, a garganta está fechada.

De repente, sobe, do fundo da agonia, o apelo: — “Quero fazer pipi”. Mais uns dez minutos e começo a melhorar. Não era enfarte. Eu não queria dormir, com medo de passar de um sono a outro sono mais profundo. Uma voz me dizia: “Precisa dormir, dorme, dorme”. Finalmente adormeci como quem mor­re. Dois dias depois, vou para casa. E passei três meses com qua­renta graus de febre.

Na primeira noite de minha volta, acordei com a Assistên­cia na porta. Tivera um acesso de tosse tão espantoso que re­bentara os pontos. O meu sangue vivo ensopava o lençol. As transfusões iam começar. Mas eis o que me pergunto até hoje: — por que a febre? Ela se irradiava das profundezas e parecia iluminar os cabelos. Nem sei quantos médicos me examinaram. Genésio Pitanga viu o problema pulmonar. Dauro Mendes, o estado geral; Orlando Vaz, o bom Orlando Vaz; e o Hugo Cota não saía do meu quarto. Nenhum médico, nenhum achou uma causa física para a febre que estava me matando.

Amanhã, vou contar como reagiu Samuel no caso de mi­nha doença. Por hoje, desejo apenas dizer que ninguém me vi­sitou. Estava morrendo e ninguém me visitava. Eu pensava: — “Ninguém gosta de mim. Não tenho amigos”. E uma obsessão não me largava: — “Eles me acham um canalha”. Até que, de repente, apareceu alguém para me ver: — Pinheiro Júnior, da Última Hora. Chegou com um fotógrafo e vinha me entrevis­tar. Eu estava com 39,9.

E me sentia tão perdido que, naquele momento, teria bei­jado a mão de qualquer visita. Entrevista? Pois não, pois não. E queria que o Pinheiro ficasse muito tempo, ao meu lado, co­migo, meu Deus. Se eu tivesse de morrer, queria que muitos, que todos viessem. Arquejei: — “Como é, Pinheiro? Tudo azul?”. E sorria para o companheiro. Ele faz perguntas, que vou respondendo. Pinheiro curva-se para mim: — “Nelson, escuta. Se você tivesse de morrer, quais seriam as suas últimas pala­vras?”. Suspense. Começo: — “Minhas últimas palavras?”. E Pinheiro: — “Vamos fazer de conta. Suas últimas palavras”. Digo: — “Põe aí. Mas publica mesmo, ouviu?”. Ele jurou que publicava. Então digo: — “Que boa besta é o Carlos Marx!”.

Disse eu que, durante os três meses de febre (febre e disp­néia pré-agônica), não recebi uma única e escassa visita. Mas já retifico. Realmente, durante noventa noites e noventa dias, ti­ve três visitas, não mais, três visitas. Sim, três amigos bateram à minha porta. Um, foi o ex-contínuo, hoje sargento da Aero­náutica; outro, Paschoal Carlos Magno; e o terceiro.

O Pinheiro Júnior lá esteve profissionalmente. Não via em mim o amigo, o companheiro, o moribundo. Eu era o assunto, a fotografia, a chamada na primeira página. Mas e o terceiro, exis­tiu mesmo o terceiro? Já quero crer que os três eram dois. Bem me lembro da tarde em que o Paschoal apareceu, num chapa branca lindo. Ele trabalhava com Juscelino; e tinha automóvel oficial com chauffeur, libré, o diabo. Vira a reportagem sobre mim na Última Hora.

Eu aparecera, na primeira página, de barriga aberta. Eram várias fotografias e todas de um mau gosto cruel, abominável. Alguém veio me dizer que tinha um ministro lá fora. Era o Pas­choal, o ministro. E quando o vi, me veio o sentimento de gra­tidão selvagem. Para mim, que estava no fundo de uma cama, um simples bom-dia era um bem lancinante. Paschoal passou comigo uma hora ou duas, sei lá. E, quando saiu, fiquei tecendo as fantasias mais lúgubres. Eis o que me passava pela cabeça: — “Talvez o Paschoal não me veja nunca mais. E, se eu morrer, pelo amor de Deus, não me enterrem em gaveta. Tudo, menos gaveta”.

Também não queria um túmulo lá em cima do morro. No alto, não. Quem iria subir tamanha escadaria para me levar flores? Mas deixemos Paschoal e o São João Batista. Não sei se o ex-contínuo me visitou antes de Paschoal ou depois. Eu não o via há séculos. Ele trabalhava comigo em Ponce & Irmão, na altura de 1933. Os Ponce representavam a rko Rádio e eu fazia-lhes o noticiário dos filmes. E lá o meu visitante era contí­nuo. Vira também o meu retrato de barriga aberta.

Vejam como valorizo e dramatizo as duas visitas. Naquele momento, elas significaram muito para mim e, eu diria mes­mo, significaram tudo. Quando ouço falar mal de Paschoal Carlos Magno, imagino: — “Foi me visitar”. E isso que pare­ce pouco é tanto, tanto. Quanto ao ex-contínuo, agora me lembro do seu nome: — é Ademar, isso mesmo, Ademar. On­de quer que esteja, Deus o abençoe, a ele e ao Paschoal.

E, de repente, a minha rua começou a sussurrar: — “É câncer, é câncer”. Digo “minha rua” porque não tenho co­mo individualizar. Eram tantos os implicados no mexerico. E não pensem que minha rua era pior do que as outras. Já contei o que aconteceu na minha infância. Não sei se a rua D. Zulmira, ou Luiza, ou Maria (era vizinha da rua Alegre) induziu uma senhora ao suicídio. Notem bem: — a rua ma­tou uma pobre adúltera (e talvez nem fosse adúltera).

O certo é que a rua amou o meu câncer. A Assistência parava lá de vez em quando, com as janelas escancaradas, eu me submetia a transfusões sucessivas. E, certa vez, sofri uma punção horrenda. Lembro-me de tudo. Sentei-me, seminu, de costas para o médico. E, então, ao lado do clínico Dauro Mendes, o Hugo Cota dos Santos enfiou-me, entre duas costelas, uma agulha enorme. O que senti foi, exatamente, a dor de uma punhalada. Nas costas e entre duas cos­telas. Nem gemi. Eis a verdade: — naqueles três meses, eu aceitava a dor com uma sujeição fatalista e alvar. Dr. Hugo, com pena, remorso, pergunta: — “Você agüenta outra vez?”. Respondi: — “Agüento”. Houve uma nova tentativa e uma terceira sem um gemido.

Mas o câncer explicava a febre, as transfusões, a vista turva, as pernas bambas e todos os meus sintomas. Lembro-me de que, um dia, fui me olhar no espelho. Era como se, por equívoco, o espelho estivesse retransmitindo outra ima­gem. Minhas olheiras eram tão fundas que pareciam feitas de rolha queimada. Só o vilão de cinema mudo tinha nos olhos aquele halo negro.

Vamos e venhamos: — a hipótese do câncer era extremamen­te persuasiva. E Samuel Wainer deve ter sabido. Deve, não: — soube. Soube e que fez ele? Foi me visitar? Apareceu lá em casa? Chorou por mim? Ou, por um momento, crispou-se de pena? Eu era fundador da Última Hora. Desde o primeiro dia, eu me en­tregara ao jornal. Passava dias e noites na redação, trabalhando como um louco. Durante a campanha de Carlos Lacerda, sofri ultrajes inenarráveis. E que fez Samuel pelo meu falso câncer?

Onde estava a sua amizade por mim? Eis o que eu me per­guntava: — do mesmo modo que é um impotente para o ódio, será também impotente para o amor? Digo amor porque amiza­de é amor. Muitos anos depois, quando morreu meu irmão Má­rio Filho, dizia-me, no caminho do cemitério, Carlos Heitor Cony: — “Tive amor por Mário”. E Samuel não saberia amar o companheiro que agoniza? Que morre?

Não foi me visitar nunca. Não me deu um telefonema per­guntando: — “Já morreste?”. Não me ofereceu um níquel, um vale, nada. E quando soube do câncer, reagiu assim: — man­dando descontar as minhas férias; e já se preparava para sus­pender o salário. Com um suposto câncer, eu já não seria pro­fissionalmente válido. Portanto, rua, rua. Disse ele, certa vez, se não me engano a Edmar Morel, que não podia se amarrar às suas eventuais gratidões.

Pode parecer que, ao contar o episódio, eu o esteja chaman­do de pulha. Mas não é bem assim, nem as coisas têm esta sim­plicidade estúpida. Não. Ele agiu assim comigo; não teve por mim esse mínimo de compaixão que se tem por um cachorro atro­pelado. Mas foi, em outros casos, de uma bondade perfeita, irretocável. Seria mentira apresentá-lo como um canalha integral.

Por exemplo: — o que Samuel fez por sua primeira mulher, Bruma Wainer. Estavam separados; não restara nenhum víncu­lo do matrimônio falhado. E nós sabemos que, normalmente, o homem e a mulher são dois ressentidos contra o ex-amor. Um dia, Bruma cai doente. Câncer. Eu não fui testemunha de nada. Mas o que me dizem é que ninguém foi mais doce, mais solidá­rio, mais compassivo e de mais funda e infeliz ternura. Eu me lembro de Samuel no dia em que Bruma morreu. Apareceu na redação. Estava transfigurado de compaixão e de amor. Andan­do de um lado para outro, dando ordens de serviço, era um co­ração atormentado e puro. E houve um momento em que me pareceu pálido e varado de luz como um santo.

 “Eu te vingo”, soluçou meu pai. Era o último a beijar o meu irmão Roberto. A família toda já se despedira: — os irmãos, as irmãs e minha mãe. Lembro-me de que, de repente, um linotipista se arremessou; e beijou também o jovem morto. Então al­guém veio sussurrar: — “Dr. Mário, pode fechar? O caixão? Pode fechar?”.

Meu pai veio. Não era a primeira vez em que o via choran­do. Quando perdeu uma filhinha de oito meses, Dorinha, tam­bém rebentara em soluços. E houve um momento em que fui até a esquina do largo. Era a rua Inhangá, nos fundos do Copa­cabana Palace. E, de lá, eu ouvia o choro tremendo de meu pai. “Papai chora, também chora”, eis o que eu pensava. Até então, eu não vira um adulto, homem feito, chorando. E me humilhou que os outros meninos vissem meu pai chorando.

Na morte de minha irmã Dorinha, eu tinha oito anos; e quando meu irmão Roberto morreu, já fizera quinze. Agora o choro do meu pai não me humilhava. Eu queria que ele choras­se e cada vez mais alto, mais forte, e que todos vissem Mário Rodrigues chorando. Pedi a Deus que ele se demorasse muito — mais que os outros — beijando meu irmão. E, por fim, disse, cortando o choro: — “Eu te vingo”. Que bem me fez, que bem ainda me faz, a fragilidade ferida do meu pai. Eu o via, ali, tão órfão do próprio filho.

Tenho comigo todas as sucessivas caras do meu pai na noite do velório. Alta madrugada, ele dizia para minha mãe: — “Es­tou com sono. Meu filho morreu. Não posso ter sono”. Toda a cidade vinha abraçá-lo. Era uma procissão espantosa. Lembro-me de Paulo Magalhães. E sempre que aparecia mais um, ele repetia: — “Essa bala era para mim”. Dizia isso, gritava isso. Era verdade. Roberto morrera porque meu pai não estava. Nem meu pai, nem Mário Filho, que também foi procurado. Roberto era o terceiro na ordem de preferência. E se ele não estivesse, seria eu: e se não fosse eu, seria outro irmão, ou irmã, alguém que fos­se filho de Mário Rodrigues, que fosse amor de Mário Rodrigues.

“Eu te vingo, eu te vingo”, era o que estava em mim. Um dos funcionários, se não me engano o gerente Faria Lemos, quis tirar o revólver do meu pai. Todo mundo, ali, achava que meu pai ia acabar metendo uma bala na cabeça. Ele agrediu o fun­cionário e retomou o revólver. Naquele momento, fechavam o caixão. O enterro ia sair. O vice-presidente da República, Me­lo Viana, segurou uma das alças.

Uma babá trouxera, no colo, o filho mais velho de Rober­to, Serginho (o hoje arquiteto Sérgio Rodrigues). Mas preciso falar ainda de alguém. Quando o corpo do meu irmão veio pa­ra a Crítica, eu era talvez o único da família que estava lá. Meu pai, meus irmãos viriam depois. Subi a escada do jornal e, ao entrar na redação, vi aquela senhora de preto, junto do caixão. Chorando, ela estava florindo o corpo de Roberto. Depois, sou­be que fora a primeira a chegar, que chegara antes do caixão; e já trazia não sei se braçadas de rosas ou dálias. Quando insta­laram a câmara-ardente, usara, primeiro, as suas flores e, depois, as outras. Beijara meu irmão; falara a seu ouvido. Quando che­garam minha mãe e minhas irmãs, ela recuou e ficou de longe, como se a simples presença de minha mãe a escorraçasse. Eu não parava; andava de um lado para outro; ia da redação para a oficina; e, quando voltava, eu a via, no seu canto, taciturna, inescrutável, o rosto erguido, os lábios cerrados; sua dor tinha uma dignidade pétrea.

(Meu irmão Roberto, pintor, escultor, ilustrador, era um Rimbaud plástico. E não vi jamais, no romance, no cinema e na vida real, um homem tão bonito. A morte parecia ser a sua utopia, mais doce e mais funda. Roberto punha a própria cara nos amantes, suicidas, enforcados de suas ilustrações. Anos de­pois de sua morte, dizia-me Carmen Miranda: — “Seu irmão era lindo”. Inspirou paixões absurdas.)

A senhora de preto só se aproximava do caixão quando as mulheres da família saíam, por um momento, para o gabinete de meu pai. E vinha ela; deixava correr as lágrimas não choradas; passava a mão no rosto de Roberto. Ainda a vejo pondo uma dália no seu peito como uma estrela. Ela teria seus quaren­ta e não sei quantos anos, beirando os cinqüenta. E nunca a vi­ra, em toda a minha vida, nunca. Mas era uma presença tão for­te, tão obsessiva, que acabei perguntando a um repórter: — “Quem é? Aquela ali. Quem é?”. Naquele exato momento, mi­nha mãe e minha irmã voltavam. A senhora de preto fugiu para o seu canto.

Na sua veemência cochichada, o repórter disse tudo: — “Não conhece? A sem-vergonha da fulana?”. Recuei o rosto co­mo um agredido. O outro continuava, baixo e feroz: — “Fula­na, a caftina!”. Repetiu, na sua impiedade radiante: — “A caftina!”. Segundo o repórter, era dona de pensão de mulheres etc. etc. Disse mais: — “Tão cínica que vem pra cá. Nem respeita”. Eu já sabia; larguei o repórter, que ainda rosnava, e continuei o meu itinerário desesperado, da redação para a oficina, da ofi­cina para a redação.

Tudo o que o repórter me dissera me deixara ressentido contra o idiota. Até hoje, não sei quem era (nunca mais a vi). Mas estava chorando meu irmão; e o beijara. A própria palavra “caftina” era um som leve, tênue, remoto, quase inaudível. E fosse ela, além de caftina, leprosa, ah, poderia roçar os lábios de meu irmão com o seu beijo ferido. Isso aconteceu nos últi­mos dias de 1929; meu irmão caiu — e a bala cravou-se na espinha no dia 26 de dezembro; e morreu, dois dias depois. Portanto, 37 anos me separam de sua morte. A senhora de preto deve estar morta. Mas se estiver viva, velhíssima e viva, eis o que eu queria dizer: — ela foi, na sua ternura furtiva, nas suas flores humilhadas, um momento de bondade desesperadora. A última vez em que a vi foi no cemitério, acompanhando o cai­xão. E imaginei que ela ia ficar, ali, abraçada a um túmulo, eter­namente.

Um dia, Lúcio Cardoso me disse: — “O assassinato de seu irmão Roberto está naquela cena assim, assim, de Vestido de Noi­va”. Era verdade. Eu não sei se vocês se lembram de Vestido de Noiva. Como todos os meus textos dramáticos, é uma meditação sobre o amor e sobre a morte. Mas tem uma técnica especialíssima de ações simultâneas, em tempos diferentes. E, além disso, há, no seu desdobramento, na sua estrutura, o rigor for­mal de um soneto antigo.

Já minhas outras peças são muito mais selvagens. Mas o que tocou Lúcio Cardoso foi uma cena, ainda no primeiro ato, cena de uma mulher matando um homem. E, segundo o romancista, eu estaria fazendo, ali, uma imitação da vida. Era Roberto que morria outra vez, assassinado outra vez. E confesso: — o meu teatro não seria como é, nem eu seria como sou, se eu não ti­vesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto.

Comecei pelo dia seguinte. E não falei da véspera e da antevéspera. Quero dizer que Roberto sempre me parecera mui­to mais um suicida. Teve sempre um olhar, uma atmosfera, um halo de quem vai morrer cedo. Vejam sua obra. Não sei se já escrevi que ele desenhava a própria cara nos bêbados, loucos e enforcados de sua ilustração. Lembro-me de uma ilustração: — um homem era esfaqueado; e a vítima era ele.

A vítima, a vítima. Era sempre ele que morria, assassinado pelos outros. E era sempre ele que pendia de uma forca; ou se dei­tava num caixão. Eu tive uma doce tia que, meses antes de mor­rer, unia, entrelaçava as mãos. A filha vinha corrigir o gesto fúne­bre. Minha tia perguntava: — “Não é assim que se morre?”. Eis o que eu queria dizer: — também Roberto ensaiou a própria morte.

Morrera antes, e muitas vezes, nas ilustrações, nos quadros, nas esculturas. E nunca, nunca, em momento nenhum, ele foi o que mata, ele foi o que fere. Era sempre o morto, sempre o ferido, e sempre o enforcado. Mas repito que jamais pensei no assassinato. Eu o via muito mais como o suicida (e era belo co­mo o suicida).

Foi uma tragédia que quase destruiu minha família. Pensei, em certos momentos, que nenhum de nós sobreviveria; e que aquilo era o fim de cada um e de todos. Foi o fim de meu pai, que morria dois meses depois. A mesma bala que se cravou na espinha de Roberto matou o velho Mário Rodrigues. Mas o que preciso dizer, aqui, é que eu me sentia mais ferido do que os outros.

Minha mãe quase enlouqueceu; meu pai morria, em segui­da. E meus irmãos e minhas irmãs uivavam — digo “uivavam” — de desespero e de ódio. Todos nós tínhamos vergonha de estar vivos e Roberto morto. Mas só eu vira e ouvira. Só eu fora testemunha ocular e auditiva de tudo. De vez em quando, an­tes de dormir, começo a me lembrar. Vinte e seis de dezembro de 1929. E as coisas tomam uma nitidez desesperadora. A me­mória deixa de ser a intermediária entre mim e o fato, entre mim e as pessoas. Eu estou em relação física, direta, com Roberto, os outros, os móveis.

São duas da tarde ou pouco menos. É a redação da Crítica, na rua do Carmo. Ao lado, há uma serraria; e, em seguida, um restaurante, chamado Virosca ou coisa que o valha. Estamos eu, Roberto, o chofer Sebastião, que servia meu pai há anos e anos; o detetive Garcia, que ia muito lá, conversar fiado. Roberto acaba de tomar uma cajuada. Eu não me lembro do contínuo que fo­ra buscar o refresco. É essa a única presença que me falta.

Ouço a voz perguntando, cordial, quase doce: — “Dr. Má­rio Rodrigues está?”. Não ocorreu a nenhum de nós a mais le­ve, tênue, longínqua suspeita de nada. Como desconfiar de uma naturalidade total? O chofer Sebastião respondeu: — “Dr. Má­rio Rodrigues não está”. Nova pergunta: — “E Mário Rodrigues Filho está?”. “Também não”. Continua, perfeita, irretocável, a naturalidade de maneiras e de tudo. Vejo os passos que vão até a sala da frente. É empurrada a porta de vaivém. Ninguém lá. Os passos voltam.

A voz pede (e já um vago sorriso): — “O senhor podia me dar um momento de atenção?”. Roberto está do outro lado da mesa, sentado. Ergue-se: — “Pois não”. Enquanto ele faz a volta, passando por mim e por Sebastião, os passos vão na frente, en­tram pela porta de vaivém. Roberto entra, em seguida. Ele tinha 23 anos. Era pai de duas crianças, Sérgio Roberto e Maria Tereza. Sua mulher estava grávida (e Vera Maria seria a filha póstuma).

Enquanto Roberto caminhava para a sala, eu me dirigia pa­ra a escada. Ia ao café, na esquina da rua do Carmo com Sete de Setembro. Lá dentro, não houve tempo para uma palavra. Roberto levou o tiro ao entrar. Parei com o estampido. E veio, quase ao mesmo tempo, o grito. Não apenas o grito do ferido, mas o grito de quem morre. Não era a dor, era a morte. Ele sa­bia que ia morrer, eu também sabia.

Todos corremos. Na frente, de revólver na mão, ia o dete­tive Garcia. Atrás, Sebastião, eu me lembro, agora me lembro: — um bom crioulo, o Quintino, cego de um olho. Eis o que vi: — Roberto caíra de joelhos; crispava as duas mãos na mão que o ferira. O detetive apontava o revólver. A voz estava di­zendo: — “Vim matar Mário Rodrigues ou um dos filhos”. Sim­plicidade, doçura. Matar Mário Rodrigues ou um dos filhos.

Naqueles cinco, seis minutos, acontecera tudo (e como, nes­ses momentos, a figura do criminoso é secundária, nula. Eu não me lembrei da ira; eu não pensei em também ferir ou em tam­bém matar. Só Roberto existia. Estava ali, deitado, certo, certo de que ia morrer. Pedia só para não ser tocado. Qualquer mo­vimento era uma dor jamais concebida). Vinte e seis de dezem­bro de 1929. Nunca mais me libertei do seu grito. Foi o espan­to de ver e de ouvir, foi esse espanto que os outros não sentiram na carne e na alma. E só eu, um dia, hei de morrer abraça­do ao grito do meu irmão Roberto. Roberto Rodrigues.

O espantoso no assassinato de Roberto é que não houve ódio. Ele não foi odiado em nenhum momento. Não foi o ódio que apertou o gatilho (e era um revólver pequenino, sim, um revólver liliputiano, que mais parecia de brinquedo). Não hou­ve ódio nem irritação, repito, nem irritação. Eu estou ouvindo a voz: — “Dr. Mário Rodrigues está? Dr. Mário Rodrigues está?”.

Estou ouvindo a voz e, pior, lembro-me até do perfume. Trinta e sete anos depois, eis-me aqui pensando: — “Matar sem paixão, sem nenhuma paixão, simplesmente matar e nada mais”. Podia ser Mário Rodrigues, pai, ou um dos filhos, ou filha, ou minha mãe. (E a polidez, a quase humildade da pergunta: — “O senhor podia me dar um minuto de atenção?”. Roberto ergueu-se: — “Pois não” — faz a volta na mesa. Mas já contei isso.)

Outra presença, daquela tarde: — Carlos Cavalcanti, hoje crítico de arte, professor, ensaísta. Mas como ia dizendo: — Ro­berto estava deitado no soalho. Vários telefones ligando para a Assistência. O pessoal da serraria, ao lado, subira; redação in­vadida. Naquele momento, o nosso gerente, que almoçava com meu pai, no Leblon, ligava para a Crítica. Alguém berrou: — “Roberto levou um tiro!”.

Como era jornal, a Assistência foi instantânea. O bom ne­gro Quintino, com o seu olho vazado, dizia: — “Eu levo no co­lo! Deixa que eu levo no colo!”. A maca estava ali. E volto ao meu espanto: — não existia a figura do criminoso; estava ali, e era como se não existisse. Roberto não teve um olhar para ela, ou uma palavra, nada.

(A rua do Carmo tinha então uma delegacia. Veio de lá um soldado.) Quintino curva-se para carregar Roberto. Meu irmão pede: — “Cuidado, cuidado”. Eu tinha medo das brutais, inapeláveis hemorragias internas. E o crioulo Quintino levou Roberto nos braços e, com a ajuda de um e de outro, pôs o corpo na maca. Vozes dizendo: — “Sai da frente! Sai da frente!”.

(Ah, o Quintino era um crioulão imenso. Com menos bar­riga, e nu, seria um plástico, elástico, lustroso escravo núbio de Hollywood. Sempre me impressionara, sempre. Desde menino que todo cego de um olho só me fascina. Eu achava que esse olho ferido era uma marca de funda, sofrida bondade.)

Lá foi Roberto de maca. Imediatamente depois, saía a cri­minosa, levada pelo soldado. E eu esperava alguém, o meu pai, ou um dos meus irmãos, para ir ao pronto-socorro. Súbito, entra na redação o contínuo Evaristo. Subira as escadas, atropelando quem subia e quem descia. Chegou lá em cima, espalhando rútilas patadas como um centauro. Veio para mim; atirou-me o berro triunfal: — “Mataram o Souza Filho! Mataram o Souza Filho!”.

Na sua euforia, tinha um bolinho de espuma do canto do lábio. Quase o agredi. Berrei-lhe: — “Sua besta! Roberto levou um tiro! Não interessa Souza Filho!”. Evaristo era contínuo da noite. Viu morrer sua notícia; e sua cara tomou a expressão de um descontentamento cruel. Sem uma palavra, retirou-se para um canto. E, lá, num silêncio ressentido, ia tirando o paletó, humilhadíssimo. O paletó cheira a suor velho.

Era verdade. Quase no mesmo momento em que Roberto era ferido, o deputado Souza Filho caía, pouco adiante, assassi­nado. Morreu, se não me engano debaixo de uma cadeira ou mesa (não sei, ao certo; e talvez a mesa ou a cadeira seja uma alucinação da memória). E o que senti, ao receber a notícia dos crimes simultâneos, foi um despeito cruel. Eu queria que, na­quele dia, não acontecesse nada; e que toda a cidade só falasse e só vivesse a tragédia da Crítica. E a coincidência me deu uma ira impotente e absurda. Eu pensava, secretamente: — por que não matar Souza Filho na véspera ou dois dias antes, ou no dia seguinte, ou três dias depois?

Entra meu pai. Fizera a viagem, do mais profundo Leblon até a rua do Carmo. O carro veio, pelo caminho, estourando todos os sinais. E meu pai entrava, mais gago do que nunca. Ah, meu pai. Eu o amava mais por ser gago e direi ainda: — desde menino, acho que o gago está certo e os outros errados. (Coisa curiosa! Tenho 54 anos e jamais encontrei uma mulher gaga.) Meu pai entrou na redação e começou a dizer o que iria repetir até morrer: — “Essa bala era para mim”.

Esquecia-me de contar que quase fui na ambulância com Roberto. Mas um medo me travou: — se ele morresse na via­gem? Se eu o visse morrer? Eu e ele sozinhos? Pedi que outro fosse no meu lugar. Faço a pergunta, sem lhe achar a resposta: — “Quem foi com Roberto na ambulância?”. Depois do meu pai, chegaram Milton e Mário. Chamei um e outro: — “Vamos, vamos”. Apanhamos um táxi na esquina.

Havia uma dúvida no pronto-socorro: — opera ou leva para uma casa de saúde? Meu pai deu a ordem pelo telefone: — “Ope­ra já”. Eu, Milton e Mário fomos para a varanda que se debruçava sobre o Campo de Santana. Parece incrível que se possa odiar uma paisagem. Pois sou, até hoje, um ressentido contra o Campo de Santana. Seus pavões foram expulsos. Mas olho, hoje, sem ne­nhuma bondade, seus gatos vadios e suas furtivas cutias.

Roberto fora operado; sobrevivera. E, então, o pronto-socorro se encheu de amigos. Um deles era Gondin da Fonse­ca. Agarrou Milton no corredor. E quando soube que era um tiro na barriga, explodiu em soluços: — “Ele vai morrer! Ele vai morrer!”. Naquele tempo, bala na barriga era quase a morte certa. Alguém trouxe as últimas edições. Os jornais davam des­taque, sim, à tragédia de minha família. Mas as manchetes eram de Souza Filho. E as letras garrafais no alto das primeiras pági­nas ofendiam e humilhavam a nossa desgraça.

Passei a noite em claro. De vez em quando, vinha para a varanda. Roberto passava bem. Perguntavam: — “Tem febre?”. Não, não tinha febre; ou a febre era a mínima. De qualquer lu­gar do hospital, eu ouvia os pavões estraçalhando no ar suas gar­galhadas. E não só os pavões. Havia, no Campo de Santana, to­da uma fauna triste e misteriosa de ruídos. Hoje, estou certo de que muito do que ouvi nas duas noites era pura alucinação au­ditiva. Na minha insônia, pensava: — “Se não fosse o assassina­to de Souza Filho, as manchetes seriam de Roberto”. Essa fixa­ção idiota, ou vil, estava encravada em mim.

Muitos e muitos anos depois, eu visitei o túmulo do meu irmão. Uma cruz pobre, e por baixo, no mármore frio, o nome — Roberto Rodrigues. Não me ajoelhei com vergonha de me ajoelhar. E pensei que não há nada que fazer pelo ser humano. Disse, de mim para mim: — “O homem já fracassou”.

Não sei se escrevi que eu tinha quinze anos quando Rober­to morreu. Engano, engano. Nasci em 1912, em agosto de 1912. Portanto, em dezembro de 1929 já completara dezessete anos. Dezessete e não quinze. Eis o que eu queria confessar: — o que me dá um certo pânico do adolescente é a minha própria ado­lescência. Eu fora um menino tenso, patético e repito: — um menino que vivia de paroxismo em paroxismo.

Esse o menino, esse o garoto. E o menino e o garoto se transformaram num péssimo adolescente. Aos seis anos de ida­de, ou sete, ou oito, eu teria vivido muito mais a morte, o es­panto da morte. Bem me lembro que, na rua Alegre, guri de calça curta, imaginava: — “Se papai morrer, ou mamãe, ou um irmão, eu me mato”. Pedia a Deus para morrer antes dos outros. Se um de nós tivesse de ficar cego, eu queria ser o cego, ou lepro­so, eu queria ser o leproso.

Eis o que me fascina no menino que fui: — o pequenino sui­cida. E acho lindo, ainda hoje, esse amor pela morte que lateja no fundo de minha infância. Aí está por que não entendo os ve­lhos que, hoje, adulam e chegam a lamber, fisicamente, a juven­tude. Leio, no dr. Alceu, que a juventude é uma das potências da nossa época. Sim, todos querem estar bem com os jovens.

Pelo amor de Deus, não me falem da Guarda Vermelha. Não é jovem, nunca foi jovem. Eis o óbvio ululante, que ninguém quer ver: — a Guarda Vermelha tem exatamente a idade de Mao Tsé-tung. Nada mais senil do que essa massa de adolescentes, a urrar de ódio apócrifo. Eis a palavra: — apócrifo.

Aos seis anos, eu era muito mais eu mesmo do que aos de­zessete. E, por isso, uma das coisas mais vis que conheço é o que escreveu Jean-Paul Sartre sobre a própria infância. Seu li­vro As palavras é a cínica, a hedionda falsificação de um menino. Ou mais do que falsificação. É como se o adulto Sartre es­tuprasse o menino Jean-Paul, num terreno baldio.

Volto aos jovens. Eu os vejo montados, cavalgados por ve­lhos e só por velhos. E suas palavras, seus ódios, seus punhos cerrados, seus palavrões — são apócrifos. (Ao mesmo tempo que falo assim, me dilacero de compaixão pelo adolescente que fui. Mas não me acho, não me sinto, não me reconheço aos dezessete anos. Só voltei a ser eu mesmo quase aos trinta.)

De repente, Roberto piorou. Febre, angústia. Ventre cres­cido. Meu pai estava na redação, otimista, dilacerado de espe­rança, quando teve a notícia. O dr. Castro Araújo apareceu no seu gabinete. Foi vago, mas ainda assim alarmante. Falou numa alteração de temperatura. Sem uma palavra, meu pai apanhou o paletó. Saíram para o pronto-socorro. No caminho, Castro Araújo falou numa nova operação.

Estou vendo Castro Araújo, já de avental, lavando as mãos, os antebraços. Dr. Adayl Figueiredo fizera a primeira interven­ção. Castro Araújo, como médico da família, faria a segunda. Tudo se resumia em colocar o dreno. Mas nem Castro Araújo, nem Adayl Figueiredo, ninguém no hospital acreditava em na­da. A peritonite já se instalara e, naquela época, peritonite era a morte. Presentes, meu pai, minha mãe, meus irmãos.

Vejo uma enfermeira aplicando uma injeção de óleo canforado no braço do meu pai. Minha mãe chorava. E eu, então, febril de insônia, deitei-me numa cama e adormeci. Acordei qua­se ao amanhecer. Sento-me na cama, espantado. Entra meu pai; pergunta a alguém: — “Nelson já sabe que ele morreu?”. Ouço o choro de minha mãe. Meu pai está junto da cama; repetiu, so­luçando: — “Morreu, morreu”.

Deitei-me, novamente; tremia tanto como se todas as malárias estivessem no meu sangue, assanhadíssimas. Eu queria chorar, como os outros; queria soluçar como meu pai. Roberto morrera há horas. Minha mãe levara minha irmã Dulce, a caçula, então com dois meses. E, ainda no hospital, dera de mamar à Dulcinha, cobrindo o seio com um pano.

Um médico veio ver-me; examinou meu pulso. Vira-se pa­ra a enfermeira: — “Óleo canforado”. E todos nós, um por um, tomamos óleo canforado. E eu não chorava. Comecei a pensar numa menina que morrera, de febre amarela, na rua Alegre. Eu era garotinho e ouvia tudo, lá de casa. A mãe da menina se es­ganiçava: — “Minha filha não morreu! Minha filha não morreu!”. Queria bater com a cabeça nas paredes; agredia os que a segu­ravam; e mordeu a cara de uma comadre. Assim varou toda a madrugada e assim a amanheceu: — era um ataque depois do outro. E, na hora de sair o enterro, quis deitar-se no pequenino caixão de anjo.

Eu vira, nos jornais, a fotografia de Souza Filho no necro­tério. Ainda tenho, na cabeça, a sua cara gorda e mais: — vejo também a pulseira de barbante, da qual pendia um cartão com a identidade e o número do cadáver. E essa pulseira, que põem em qualquer morto, como uma desfeita, uma humilhação — essa pulseira me dava cólera cega e inútil. Que fizessem isso com qualquer, morto e não com meu irmão, não com um morto ama­do por mim.

(Quando, ao anoitecer do dia 26, Roberto acordara da anes­tesia, minha mãe estava a seu lado. Ele, ainda meio delirante, arqueja: — “Mamãe, mataram o seu filhinho”. Os dois tinham um idioma só feito de diminutivos. Pouco depois, Roberto pe­dia para ver Dulcinha.)

Mas falei na menina da febre amarela e de sua mãe. Eu que­ria que minha dor tivesse igual demência. Queria estar gritando (e não queria ver Roberto no necrotério, com a pulseira do Souza Filho). Lembro-me da volta para casa. Morávamos na rua Joa­quim Nabuco, 62, se não me engano. Quando saíamos, em vá­rios táxis, estava amanhecendo; e ainda não sumira a última es­trela da noite.

Nunca vi uma manhã de uma beleza tão absurda, de um azul tão frenético, de uma luz tão inconcebível. E era como se a morte de Roberto estivesse abrindo os meus olhos para uma paisagem jamais sonhada. Foi, de repente, quando cheguei em casa, na rua Joaquim Nabuco, que comecei a chorar. Sofria finalmente como um menino, era de novo um menino e me sentia atraves­sado, e tão ferido, pelo grito do meu irmão. Roberto estava mor­to, mas ficara comigo seu grito, para sempre.

O verdadeiro grito parece falso. Eu me lembro de uma certa manhã, há uns dez anos, ou doze, ou quinze, sei lá. E, súbito, alguém começou a gritar. Grito grosso, quase mugido. Sim, um sujeito mugia, um sujeito fazia uma paródia vacum. Eu batia à máquina e interrompi meu trabalho. E não entendia a moleca­gem, em pleno expediente e numa empresa séria.

Mas eu soube, em seguida, de tudo. Não era alguém imi­tando a dor da carne ferida. Não. Um operário, insone e exaus­to de horas extras, cochilara no serviço; e lá deixara as duas mãos, inocentes e também insones e também exaustas. A gui­lhotina caiu, guilhotina de papel. Foi um golpe só, exato, e tão macio, quase indolor. O rapaz não sentira nada. O grito veio antes da dor; e veio porque ele via os braços sem mãos. Lá esta­vam elas, lado a lado, unidas, como duas amigas, duas gêmeas.

E, depois, o rapaz subiu das oficinas para a gerência. Atrás, vinha um companheiro, carregando, numa almofada de algo­dão, as mãos amputadas. E o desgraçado gemia grosso (e eu con­tinuava com a mesma e absurda sensação de um falso grito, de um falso gemido e de um falso soluço).

Contei o episódio para concluir: — a verdadeira dor repre­senta muito mal. Tem esgares, uivos, patadas, arrancos, modu­lações inconcebíveis. E me lembro das caras, na morte de Ro­berto. A do meu pai, de minha mãe, de minhas irmãs. Eu diria também que a grande dor não se assoa. Eis a verdade: — não se assoa.

Digo isso e penso na minha vizinha, citada por mim não sei quantas vezes. A filha, de cinco anos, morrera de febre ama­rela. Era ainda o Rio dos lampiões e da febre amarela. A menina morreu e, durante meses, a mãe ainda chorava. Eu a vejo no meio de outras vizinhas. E o que me impressionou, a mim, ga­roto, era a coriza, o pranto nasal. De vez em quando, alguém oferecia um lenço, que ela repelia, furiosa. Nunca se assoou, nun­ca, como se enxugar a coriza fosse uma desfeita à pequenina morta.

Não vi meu pai usar o lenço. O soluço do gráfico — sim, do gráfico sem mãos — lembrou-me o choro do meu pai. E, agora, estou pensando em mim mesmo. Vejo a família entran­do em casa. Subimos todos para o quarto de meu pai. Eu pensava: — “Não quero que me falem da autópsia”.

Autópsia. Eu vivera uma experiência de reportagem poli­cial. E sabia do martírio de um cadáver, no necrotério. Velhos, moços, meninas, mocinhas, garotos são espantosamente despi­dos. Ficam tão nus. Nas minhas memórias falo muito da nudez humilhada. Citei a demente da rua Alegre, citei Marilyn Monroe. Mas não há nudez mais humilhada, mais ofendida, mais res­sentida do que a da autópsia. Ah, meu Deus, os nus violados do necrotério.

Também vira, nas fotografias dos jornais (O Globo, A Noi­te), Souza Filho na mesa do necrotério. Não era mais o político, o deputado, o importante. Era apenas e tão-somente o cadáver numerado. E me subia, de negras entranhas, uma náusea cruel contra a burocracia hedionda que despe os mortos e exige a au­tópsia. Fui, ao meio-dia, meio-dia e pouco, para a Crítica.

Eu precisava chorar e pensava: — “Chego lá e choro”. E estava disposto a não ouvir uma palavra sobre a autópsia. Na porta, vejo um grupo de funcionários do jornal e, no meio, um repórter de polícia. Estava excitado, o olho rútilo. Alguém me trava o braço e sussurra: — “Meus pêsames”. E o repórter esta­va dizendo, enquanto os outros ouviam: — “Não puderam ti­rar a bala. Tiveram que serrar a espinha”.

Deu-me um ódio cego, uma vontade de partir a boca que dizia aquilo. E, então, vim subindo os degraus. Era uma escada antiga, que velhas gerações tinham gasto. No meio, paro; encosto-me ao corrimão. Mãos batem-me nas costas: vozes es­tão dizendo: — “Meu sentimento”, “Meus pêsames”. Um ve­lho pára. Abraçou-me: — “O nosso Roberto”. E eu só pensava na nudez crucificada da autópsia.

O repórter vira tudo. Conhecia o médico-legista e cada fun­cionário do necrotério. Não saía de lá; e, mesmo em dia de fol­ga comparecia, por hábito e prazer de estar com os defuntos desconhecidos. Momentos depois, passei por ele. Dizia a um outro: — “Serraram a espinha”. Fugi.

Hoje, a dor não justifica nem uma gravata preta. Ninguém põe luto. Ainda outro dia, eu ouvia uma mocinha: — “O senti­mento não está na cor”. Está. O sentimento está, sim, no terno chegado da tinturaria. E no vestido negro. Em 1929, minha fa­mília vestiu-se pesadamente de luto. Meu pai, minha mãe, to­dos os meus irmãos. Cheguei a pensar em nunca mais tirar o luto, nunca mais.

Quatro ou cinco dias depois da morte de Roberto, eu ia para a redação. E, lá, apanhava a coleção de jornais. Queria ler tudo que saíra sobre a morte de Souza Filho. Fora também assassina­do, quase na mesma hora. Eu revia a sua fotografia no necroté­rio. Ficava olhando a cara gorda, com as pessoas em torno, po­sando. As manchetes, os títulos, todo o noticiário — davam-me uma satisfação maligna. Souza Filho também andara no necro­tério.

Comecei também a ler anúncios de missas. Abria um jor­nal e ia, direto, aos avisos fúnebres. Não se morria só na nossa família. Roberto estava no São João Batista; mas os outros es­tariam lá, mais cedo ou mais tarde. Sim, outros continuavam morrendo; a toda hora e em todos os idiomas, alguém morria. E os anúncios de missa eram, para mim, uma espécie de repa­ração.

Três anos depois, descobri o teatro. De repente, descobri o teatro. Fui ver, com uns outros, um vaudeville. Durante os três atos, houve, ali, uma loucura de gargalhadas. Só um espec­tador não ria: — eu. Depois da morte de Roberto, aprendera a quase não rir; o meu próprio riso me feria e envergonhava. E, no teatro, para não rir, eu comecei a pensar em Roberto e na nudez violada da autópsia. Mas, no segundo ato, eu já acha­va que ninguém deve rir no teatro. Liguei as duas coisas: — tea­tro e martírio, teatro e desespero. No terceiro ato, ou no inter­valo do segundo para o último, eu imaginei uma igreja. De re-pente, em tal igreja, o padre começa a engolir espadas, os co­roinhas a plantar bananeiras, os santos a equilibrar laranjas no nariz como focas amestradas. Ao sair do vaudeville, eu levava comigo todo um projeto dramático definitivo. Acabava de to­car o mistério profundíssimo do teatro. Eis a verdade súbita que eu descobrira: — a peça para rir, com essa destinação específi­ca, é tão obscena e idiota como o seria uma missa cômica.

Bem me lembro de que, em janeiro de 1930, pensei muitas vezes naquela mãe de Aldeia Campista. Sim, a mãe da menina que morrera de febre amarela. Chamava-se d. Laura e era mulher de seu Clementino. Ao lado, moravam três mocinhas: Odete, Nair e Dulce (estou escavando a memória e desenterrando nomes como velha prata). A menina morrera (de febre amarela, já disse); estava no caixão pequenino, de arminho e vestida de anjo.

Vinte anos depois, um dos personagens de Vestido de noi­va diria, lânguida e nostálgica: — “Enterro de anjo é mais boni­to que de gente grande”. Esse personagem era Alaíde, a heroí­na da tragédia. Também se chamava Alaíde a filha mais velha de d. Laura e, portanto, irmã da menina morta. Eis o que eu que­ria dizer: — remontei, em Vestido de noiva, o velório de mi­nha infância. E, por todo o meu teatro, há uma palpitação de sombras e de luzes. De texto em texto, a chama de um círio passa a outro círio, numa obsessão feérica que para sempre me persegue.

Ouço d. Laura gritando para o anjo de cera: — “Minha fi­lha não morreu! Minha filha não morreu!”. Não morrer e nunca morrer. Em 29, quando saí do cemitério, baixou em mim esta certeza: — Roberto não estava morto, Roberto não morrera, Roberto não era o morto que acabava de ser enterrado. E logo veio outra e furiosa certeza: — um dia, eu veria Roberto, eu me encontraria com Roberto e diria muitas vezes o seu nome, eter­namente o seu nome.

Há poucos meses, fui, com o Hélio Pellegrino, de automó­vel, à Barra da Tijuca. É diante do mar que gosto de tecer as minhas fantasias fúnebres. No meio do caminho, paramos o car­ro e descemos. Ficamos no alto, olhando, sem palavras.

E eu, então, comecei a pensar nos que morreram e nos que vão morrer. Um dia, despertaremos entre os mortos. Eu veria Roberto. E veria minha avó, mãe de meu pai. Minha avó sabia fazer aquarelas; tinha um álbum de versos; pintava em pratos. Eu me lembro de uma de suas figuras; uma escrava, loura, de sandálias; outra: — uma morena de cântaro no ombro. E minha avó era linda. Dizem todos: — linda.

E morreu de parto, quando meu pai tinha oito anos de ida­de. Uma cesariana a teria salvo. Naquele tempo, porém, não se fazia cesariana no Brasil. Minha avó morreu e tão lúcida. As tias mais antigas contam a sua agonia. Gritou três dias e três noites. Morria, sabendo que morria. Primeiro, gritava — “Não quero mor­rer”. E, depois, exausta, não tinha mais forças para o grito. Mas repetia numa voz inaudível como o hálito: “Não quero morrer”.

Ao lado do Hélio Pellegrino, eu pensava, novamente, em Roberto. Poucos dias depois de sua morte, passei na avenida onde ele morava. Vi sua capa vazia; os chapéus; gravatas. E, de repente, me lembrei de que, no pronto-socorro, eu o vira com um lenço na mão. Por que não pensei em furtar o seu lenço usa­do? Depois da morte, por que não escondi o seu lenço, não o limpo, mas o sujo? Também não pensara em roubar o pijama que ele despira para a segunda e inútil operação? Que pobre ou que parente de enfermeira ganhara o último pijama, o pijama embebido de sua agonia e de sua morte?

Cinco anos depois, estava eu no consultório de um tisiólogo: — Aloísio de Paula. Minha irmã Stella, médica, me levara lá, por indicação do clínico Isaac Brown. Vejo Aloísio de Paula examinando a minha chapa, contra a luz; mostrava a lesão a Stel­la. Infiltração bem discreta. Por outras palavras: — era a tuber­culose que tinha, então, p nome lindo, nupcial, de “peste bran­ca”. Mais uma semana e eu entrava no sanatorinho de Campos do Jordão. Fiquei não num quarto particular, mas numa enfer­maria de quinze ou vinte leitos.

Num instante, todo o sanatorinho dizia: — “Tem um jor­nalista aí”. O jornalista era eu. Um dia, um dos internados, Oswaldo não sei de que, avisou: — “Meu irmão chega amanhã”. E chegou mesmo. Eu o vi entrar, carregado, já com a dispnéia pré-agônica. Vinha para morrer e estava morrendo.

Ah, o irmão de Oswaldo tinha tantas cavernas que o fato de estrebuchar era um milagre respiratório, Eu me lembro de Oswaldo abrindo as malas e tirando as roupas, as camisas, as gravatas. Antes da doença, o moribundo era elegantíssimo. Setenta e duas horas depois, ele foi levado da enfermaria para o isolamento. Lá morreu, no mesmo dia. Não sei, não me lembro se teve ou não uma agonia de sangue.

Oswaldo foi enterrar o irmão e voltou, correndo, do cemi­tério. Eu o vejo chegar, com as ventas arregaladas. Arremes­sou-se para as roupas do morto e as possuiu, ali mesmo, à nossa vista. Atracava os paletós, as calças, as camisas, como um sátiro brutal; e dizia, arquejando de euforia: — “Foi Deus que mandou meu irmão para cá. Eu estava sem roupa. Andava de calça fura­da”. Virou-se e mostrou os fundilhos. O remendo aparecia, deslavado. No dia seguinte, estava ele namorando com o guarda-roupa do irmão.

A cena de Campos do Jordão pôs diante de mim a morte de Roberto. Eu tinha, de novo, dezessete anos. Já disse e aqui repito que sou um ressentido contra a minha adolescência. Não me vejo, não me reconheço nos meus atos, sentimentos e pai­xões adolescentes. Em 29, 30, fui outro e não eu mesmo. Fiz coisas que não se pareciam nada comigo. Por exemplo: — her­dei ternos e gravatas de Roberto. Quando acabou o luto, eu os vesti. E o chapéu era dele também. A roupa parecia feita sob medida para mim. Não tive pena, nem remorso de andar vesti­do de Roberto. Ou por outra: — talvez, no primeiro momento, tenha sentido uma certa angústia, mas tão rala, tão escassa.

A angústia veio cinco anos depois, em Campos do Jordão. Por trás de Oswaldo estava eu, adolescente. Eu experimentan­do o paletó, eu escolhendo a gravata de Roberto. Metia a mão nos bolsos de Roberto e não me ocorria esta verdade doce, persuasiva e fatal: — eram os bolsos de Roberto. (Por que, ao me­nos, não guardara, para sempre, o lenço usado?)

Continuava, ali, diante do mar, com o Hélio Pellegrino. Depois o amigo me chama. Entrei no automóvel e pensando que era “outro”, e não eu, que vestira os ternos de Roberto. Eu sa­bia mais do que nunca que, um dia, verei todos os mortos da família, inclusive a avó que pintava, na louça, escravas de sandá­lia. Mas onde, onde os verei? Talvez eu os encontre nas absur­das profundidades marinhas, onde as águas têm frio e sonham.

Conheci, na minha infância, o Brasil dos velhos. Hoje, não. Hoje, por toda parte, o que se vê e o que se ouve é o alarido dos jovens. Não há velhos, ou por outra: — ninguém quer ser velho. Sujeitos de setenta anos adulam a juventude. Ainda on­tem dizia-me um setuagenário: — “O jovem tem razão, sempre”.

O ancião falava assim e tinha o olho rútilo e a salivação in­tensa. Achei graça, ou, por outra, não achei graça nenhuma. Não me ocorreu uma palavra, uma objeção, nada. Num escândalo mudo, apenas ouvia. E, de repente, passa por nós um rapaz, um latagão eufórico, solidamente belo como um bárbaro. O velho pareceu lambê-lo com a vista. Saiu atrás, num deslumbramento alvar.

Confesso: — esse pequeno episódio deixou-me uma impressão profunda. Penso em certos velhos que fazem uma promo­ção frenética dos novos. Pergunto: — não há, em alguns casos, uma certa pederastia retardatária, utópica, idealizada? Não estou afirmando nada; insinuo tão-somente um tema para a me­ditação dos outros.

Volto à minha infância. Na rua Alegre, não era ainda degra­dante ser velho. O sujeito podia ter, impunemente, setenta, oi­tenta anos. Conheci crioulos de cem anos. Ah, os veteranos da Guerra do Paraguai! Eram velhinhos ainda tesos. Estavam sempre mascando fumo de rolo e cuspiam negro. Eu, com sete, oi­to anos, achava os velhos muito mais fascinantes do que os jo­vens. Um dos nossos vizinhos era um ancião hemiplégico. Até a doença me parecia linda.

E a rua, os bondes, as sacadas, tudo era uma paisagem de velhos. Quando penso no Brasil de minha infância, me lembro, sem querer, de Confúcio. Vocês conhecem a história. Um dia, em certo jardim, uma virgem sonhava. De repente, veio um raio de sol e tocou-lhe o ventre. Assim nasceu Confúcio, filho de uma virgem com um raio de sol. Mas nasceu com noventa anos, já de sapatos e já de guarda-chuva.

Para mim, garoto de calça curta, acontecera algo parecido com Rui Barbosa. Era como se ele tivesse nascido com setenta anos, e já conselheiro, e já Águia de Haia. E, hoje, me dá uma certa pena notar que não há mais, como outrora, os setuagenários natos.

Em 1919, ia muito, lá em casa, um amigo do meu pai, tam­bém jornalista. Chamava-se Nepomuceno e, se não me engano, trabalhava no País ou na Gazeta de Notícias. Era velhíssimo. Vocês conhecem o nosso contemporâneo Salim Simão. Só fala aos berros e o seu suspiro é ainda um berro. Quando entro no Estádio Mário Filho e não ouço o seu berreiro, me sinto um frus­trado.

Nepomuceno era um Salim Simão das velhas gerações. Igual­mente ululante, seu bom-dia era uma agressão. E, quando apare­cia, eu vinha para perto, como um pequenino magnetizado. E o Nepomuceno dizia uma coisa que marcou toda a minha vida. Ainda o vejo, no meio da sala, atirando patadas e bramando: — ‘‘A opinião pública é louca! Louca!’’. Isso dito, aos arrancos, me assombrava. E eu, meio acuado pelos berros, acreditava piamente na demência tão rumorosamente anunciada.

E, para demonstrar a loucura da opinião pública, Nepomu­ceno falava da vacina obrigatória. Ouvi a mesma história umas cem vezes. Mais tarde, fui ler, nas velhas coleções da Biblioteca Nacional, o que acontecera na época. E, de fato, toda a cidade se levantara a favor da peste e contra a vacina; a favor das rata­zanas e contra Oswaldo Cruz; a favor da varíola e contra a saúde.

O que se disse de Oswaldo Cruz, nos lares, esquinas, bote­cos e retretas. Ninguém a seu favor e todos contra. Foi chama­do de escroque, moleque, ladrão e analfabeto. Cada geração tem um “inimigo do povo” de feitio ibseniano. Oswaldo Cruz foi o da sua. E, até hoje, não se entende por que o povo não o ca­çou, no meio da rua, a pauladas, como uma ratazana prenha. O clamor popular não era bastante. Houve um levante armado. E tudo por quê? Porque a opinião pública, repito, estava com a peste e disposta a matar e morrer pela peste.

Anos depois, morria Oswaldo Cruz de morte natural. Men­tira. Não foi natural. Morreu assassinado pela unanimidade. E, através dos anos, nunca mais me esqueci de Nepomuceno. Quando vejo o Salim, tenho vontade de dizer-lhe: — “Conheci um que berrava tanto quanto você”. Mas o tempo passou e, hoje, posso dizer que tive várias e patéticas experiências pessoais com a opinião pública.

O assassinato do meu irmão Roberto. O julgamento coin­cidiu com o meu aniversário. Eu fazia, se não me engano, de­zoito anos no dia 23 de agosto de 1930. Meses antes morrera meu pai; pode-se dizer que a mesma bala assassinara os dois. Meu Deus, não havia muito que discutir. Eis a questão: — po­dia alguém “matar Mário Rodrigues ou um dos seus filhos”? Te­mos direito de matar o filho, ou a filha, ou a mulher do nosso inimigo?

Não assisti ao julgamento. Fiquei, em casa, ouvindo pelo rádio. Eis a verdade: — a opinião pública achava que se podia matar um dos filhos de Mário Rodrigues; não diretamente o pró­prio Mário Rodrigues, mas um dos filhos, e tanto podia ser Ro­berto como Mário, Mário como Milton, Stella como Nelson ou, até, a recém-nascida Dulcinha. Lembro-me de um jornal que re­sumia, no título, um juízo final: — “Justo atentado”. E, em ca­sa, antes de dormir, eu ficava pensando: — e a espinha serrada, por que não conseguiram extrair a bala? E o algodão nas nari­nas? E a filha ainda por nascer? E o meu pai morto?

O júri fez o que a opinião pública exigia. Eu estava, no meu canto, em casa, esperando o pior. E veio o resultado: — absol­vição, por uma maioria de três votos, se não me engano, três votos. O locutor dava berros triunfais. E o resultado mereceu uma ovação formidável. Um clima de auditório de rádio, de TV e mais de rádio do que tv. Naquele momento, instalou-se em mim uma certeza, para sempre: — a opinião pública é uma doente mental. E pensei numa fuga impossível. Viver e morrer numa ilha selvagem, só habitada pelos ventos e pe­lo grito das gaivotas.

 “Pára, para!”, berrou meu irmão Joffre para o chauffeur. O táxi vinha de Copacabana, rua Souza Lima, e entrara em Sete de Setembro pela praça Quinze. A Crítica era, justamente, na rua do Carmo, quase esquina de Sete. E víamos, de repente, a multidão. O jornal estava sendo empastelado. Enquanto Joffre mandava parar, eu berrei: — “Contínua, continua!”.

Era a revolução. Vinte e quatro de outubro de 1930. Na­quela madrugada eu voltara para a casa às três, três e pouco. Vínhamos eu e Aldemar Baía, quando dobramos na esquina do hospício, a caminho do Túnel Novo, olhei e não vi um solda­do. Noite quieta, passiva; as ruas lívidas e mais longas e, por toda parte, um silêncio de cidade abandonada. O túnel vazio também.

O táxi me deixou em casa. E o Baía, que voltou sozinho, já encontrou o túnel ocupado. O Terceiro Regimento saíra e, numa progressão fulminante, ocupava todas as posições. Em ca­sa, sem desconfiar de nada, eu fazia a minha ceia solitária. E, depois, apanhei um romance e li, se tanto, umas dez páginas. Fui dormir. Comecei a sonhar, imediatamente. Ouvia gritos; mu­lheres alucinadas se esganiçavam nas sacadas; buzinas acorda­vam os galos; e o medo escorria das paredes.

Acordei e continuava ouvindo. Joffre veio correndo: — “Revolução”. Pulei da cama. Fomos para a janela, olhar a rua. O pânico era só de mulheres, algumas de camisola na sacada. Do lado, um vizinho punha uma trouxa de roupa no automó­vel. Carros passavam em pânica velocidade. Sujeitos na calça­da, berrando. Eu, Joffre, os outros irmãos, numa exaltação, nu­ma euforia, como se a revolução fosse uma festa delirante.

E não tive medo. Minha mãe acordou, minhas irmãs e todas sem medo. Não percebemos que aquilo, para nós, era a catástro­fe. Só senti o medo, o grande medo, a solidão brutal, horas de­pois, quando passamos, de automóvel, pela esquina da rua do Car­mo. Estavam empastelando o jornal; e, então, o medo baixou em mim. Joffre, não. Nunca o vi ter medo de nada e de ninguém. Que­ria saltar e brigar, sozinho, contra a multidão enlouquecida.

O chauffeur reduzira a marcha. Vinham dois sujeitos pela calçada e um deles disse: — “Olha os filhos de Mário Rodri­gues!”. Berrei para o chauffeur: — “Depressa! Depressa!”. Ou­tros jornais eram empastelados também: — A Noite, Jornal do Brasil etc. etc. Eu me crispava dentro do automóvel; cerrava os dentes. E se o automóvel parasse? E se nos reconhecessem? E se eu fosse linchado? Linchado pela multidão. A meu lado, Joffre explodia em palavrões.

O grande medo. Não era a primeira vez que o sentia na car­ne e na alma. Meses atrás, vivera um desses momentos de pa­vor que ninguém esquece. Foi quando meu irmão Roberto le­vou um tiro e gritou. O que senti, naquele momento, e antes do amor, da compaixão, da infinita solidariedade — antes de tudo, foi o medo. Durante anos, eu o escondi de mim mesmo; dei-lhe outro nome. Não era medo, era outra coisa. E me imagi­nava apenas solidário, apenas compassivo, e só possuído de amor. Foi muito depois, em Campos do Jordão, que eu admiti para mim mesmo a verdade.

Eu estava na minha cama de enfermaria. Dez e meia, onze da noite. Um frio atroz; os meus cabelos estavam gelados. E, de repente, alguém grita na cama do lado: — “Sangue! Sangue!”. Era um rapazinho, estrábico, chamado Tico-Tico. Outro pula e acende a luz. E vimos Tico-Tico, sentado, com um olho prodigiosamente azul e atônito. As golfadas vinham, umas atrás das outras, e o afogavam no próprio sangue. “Vou morrer”, pensa­va ele, “vou morrer”. E tinha medo.

Tico-Tico agonizava, e só então confessei a mim mesmo o medo de 26 de dezembro de 1929. Um medo maior que o amor, que a pena, maior que todos os outros sentimentos so­mados. E, de novo, em 24 de outubro, quase um ano depois, eu o sentia cravado em mim, profundamente. Já disse e repito: — olho toda a minha adolescência sem nenhuma ternura, ne­nhuma indulgência. Naquele tempo, eu era outro.

Voltamos, desta vez, pelo Túnel Velho. Tudo ocupado pe­lo Exército. Soldados faziam parar o carro, olhavam a cara dos passageiros e davam passagem. E então comecei a me sentir sal­vo. Meu pai fizera toda a campanha de Júlio Prestes; e, depois de sua morte, a Crítica seguira a mesma linha. E eu não imagi­nava que a vitória de Getúlio Vargas era quase a destruição de minha família.

Meus irmãos Milton e Mário, diretores da Crítica, podiam ter fugido. Mas não acreditaram na prisão. No dia seguinte, Danton Jobim apareceu lá em casa. E, no meio da conversa, entra uma das minhas irmãs, apavorada: — “Polícia! Polícia!”. De fa­to, uma meia dúzia de tiras estava no portão. Milton, Mário e Danton saíram pelos fundos e pularam o muro do vizinho.

Morava, ao lado, uma família amiga. O dono da casa, po­rém, não teve uma dúvida, um escrúpulo. Viu os três no seu quintal e veio correndo chamar a polícia: — “Estão aqui! Estão aqui!”. Danton pôde sair, porque não era Rodrigues. Milton e Mário passaram quase arrastados. Minha cunhada, Célia, estava na calçada, ainda de luto por meu pai e por Roberto. Viu o ma­rido com um tira em cada lado. Atirou-se nos seus braços, aos soluços. Mário dizia, pálido: — “Escuta, Célia, escuta. Olha. Cal­ma, Célia”. Finalmente, entrou no carro. Milton foi na frente. E o automóvel partiu, a toda velocidade.

Foi Cândido Pessoa que os soltou. Avisado por um de nós, invadiu a chefatura. Portou-se, lá, aos berros e arrancos, como um Tartarin paraibano. Falou de dedo na cara; e exigia a liber­dade imediata. João Pessoa, companheiro de chapa de Getúlio, fora assassinado por um Dantas. Como Cid, que mesmo depois de morto ainda vencia batalhas, assim o morto político tem mais poder do que em vida. Pessoa. Ao simples som desse nome, as paredes se abriam, os edifícios se agachavam. Milton e Mário voltavam, cerca de meia-noite. Pouco depois, Getúlio entrava na cidade. Era o suicida.

Eu me lembro da chegada de Getúlio (o que nos sobrara da Crítica eram oitocentos mil-réis. Sim, oitocentos mil-réis de uma última cobrança. Por acaso, meu irmão Mário Filho ficara com o dinheiro. Durante dois anos, uma família de doze pes­soas ia viver de oitocentos mil-réis). Toda a cidade pôs um len­ço vermelho no pescoço, para receber o chefe da revolução.

Disse lenço vermelho. E não foi só. A cidade vestiu-se de cáqui, de botas, até de esporas. Getúlio lembrava a chegada de Nilo Peçanha, ou a passagem de Gago Coutinho e Sacadura Ca­bral. Mas era o suicida. Muitos anos depois, conversei com João Neves da Fontoura. E este falou, com um cordial desprezo, do tiro no peito.

João Neves, já surdo (não ouvia ninguém, nem a si mesmo), fingia uma inteligência que não tinha. Segundo ele, Lacerda, ma­jor Vaz, Gregório, mar de lama, tudo fora mero pretexto. Em verdade, Getúlio trazia uma clara predestinação. Sua morte era anterior a Lacerda, à Última Hora. Só por milagre não se mata­ra antes. E se não fosse Lacerda, seria outro, e outro, e outro. Getúlio sempre fora um fascinado pelo suicídio.

Ouvi João Neves e nada objetei. Mas não acreditei em ne­nhuma de suas palavras. Ou por outra: — ele estaria certo se generalizasse. A verdade é que a vocação suicida existe, preexiste, em qualquer um. Quem não pensou em se matar? Claro que sempre há um Carlos Lacerda, sempre há um Gregório, sem­pre há uma Última Hora para cavar o abismo. Mas as pessoas mais serenas, mais equilibradas, têm, de vez em quando, uma brusca e violenta nostalgia da morte.

E nem se pense que temos medo da morte. É mentira. Ou por outra: — é um falso medo, um medo induzido por uma sé­rie de injunções morais, sociais, religiosas. A verdade é que o nosso cotidiano está cheio de pequenas imprudências, de pe­quenos vícios, de riscos propositais. O cigarro que se fuma, ou a cerveja que se bebe, o que exprime senão a secreta vontade de autodestruição?

Insisto em Getúlio porque, muitas vezes, de 30 a 35, pensei na morte e a desejei. Não a morte natural; essa, não. Lembro-me de um jornalista que, logo após a revolução de 30, foi a Paquetá, com a família, num amorável piquenique. Levou a mulher e toda a filharada. E voltou de Paquetá carregado. Comera um pastel estragado, ou uma coxinha, não me lembro bem, e assim morreu. Há na morte por intoxicação alimentar um inevitável toque hu­morístico que humilha o cadáver e compromete o velório.

Mas escrevi que nos sobraram da Crítica, exatamente, os oitocentos mil-réis de uma última cobrança. E éramos doze pes­soas, inclusive a caçula, Dulcinha, que vivia e sobrevivia do lei­te materno. Claro que os homens não iam cruzar os braços. Os mais velhos eram válidos, tinham experiência profissional, re­lações. Uma semana depois, e com todo o élan do nosso otimis­mo, fomos bater, de porta em porta. A única coisa que sabíamos fazer era jornal. Eu tinha apenas dezoito anos, mas fizera a minha iniciação jornalística aos treze. No fim de um mês de tentativas diárias, fazíamos a amarga constatação: — todas as portas esta­vam fechadas para nós.

Ninguém queria empregar os filhos de Mário Rodrigues. Em vida de meu pai e enquanto circulou a Crítica, tínhamos ami­gos por toda parte. Eu era tratado, desde os treze anos, como um pequeno gênio. Mas morto Mário Rodrigues e morta a Crítica, os rapapés sumiram até o último vestígio. Ninguém era ami­go. E adquiri, naqueles dias, uma experiência de Balzac. Todo mundo tinha medo e ódio de meu pai. O ódio era amável, era risonho, era cínico por causa do medo.

Todos desempregados e os oitocentos mil-réis viviam os seus últimos tostões. E, então, para não morrer, fisicamente, de fome, nós começamos a vender tudo. Falei dos pratos pintados pela minha avó paterna (a escrava de sandália e a morena de cân­taro no ombro). Pois bem: — os pratos foram oferecidos e hu­milhados com a recusa. Mas havia a vitrola.

A nossa vitrola. Era, para a época, um móvel esplêndido, em forma de catedral liliputiana. E uma maravilha de som. Em 1930, não saía lá de casa um rapaz, Cadinhos, que foi um ami­go prodigioso de nossa família. Já era tuberculoso. (De vez em quando, passava o lenço no lábio e espiava o sangue.) Pois vi­via para a nossa família e morreu por nós. Carlinhos saiu para vender a vitrola.

Ele achou que o grande mercado era o Mangue. E foi para lá. Ah, em 1930, o Mangue era feérico como uma Broadway. Em cada janelinha, uma mulata de Di Cavalcanti. E mais: — as francesas, e as polacas que também eram francesas. Hoje, não há mais mon chéri, mon chéri. Carlinhos andou por lá ofere­cendo a vitrola às donas, às meninas, aos botequins. Achou um luso e tentou o luso. Pôs a vitrola nas nuvens. E arrancou oito­centos mil-réis.

Lembro-me, exatamente, da quantia: — oitocentos mil-réis, a mesma que sobrara da Crítica. Quando ele chegou em casa foi uma festa tremenda. Era dinheiro. A casa já estava sem luz, sem gás; não havia manteiga para o pão. Tínhamos dinheiro contadinho, para o bonde. E os oitocentos mil-réis eram, para cada um de nós, a própria ressurreição. Tratamos primeiro de com­prar pão, manteiga e bolachinha de água e sal.

O diabo era o emprego. Os oitocentos mil-réis da vitrola iam acabar como acabaram os outros, da Crítica. A esperança era O Globo. Conhecíamos o Roberto Marinho de cumprimen­to, de sorriso; e trabalhava lá uma bela figura humana, o Costa Soares. Mas, antes de falar no Globo, eu queria dizer alguma coisa sobre Carlinhos.

Vinha ele do tempo de meu pai e de Roberto. Os dois ain­da viviam quando um sujeito, por outro jornal, insultou a mi­nha avó paterna. Por conta própria, e só por amor a meu pai, Carlinhos apanhou o revólver e foi procurar o sujeito. Encontrou-o na rua Sete, em hora de movimento. Deu-lhe um tiro na nádega e fugiu. Preso, finalmente, foi submetido a tor­turas inimagináveis. A polícia queria que dissesse: — “Foi Má­rio Rodrigues que mandou”. Carlinhos respondeu até o fim: — “Não, não e não”. Quando saiu, era um homem liquidado. Pas­sou dias e dias vomitando sangue.

De pé, ó vítimas da fome. Mas eu ia aprender muito com a miséria. Por exemplo: — aprendi que a fome não deixa nin­guém de pé, ninguém. Eu a conheci, minha família a conheceu. Enquanto duraram os oitocentos mil-réis, ainda tivemos pão e manteiga para o pão; e bolachinha de água e sal; e almoço e janta. Por algum tempo, ainda fizemos as três refeições, ou por outra: — quatro, se acrescentar o lanche.

A bolachinha era para o lanche. Bolachinha (com mantei­ga) e café com leite. De vez em quando, eu ficava, no meu can­to, perdido, meio alado. E ninguém podia imaginar que estava pensando no destino de nossa vitrola. Muitas vezes, pensei em dar um pulo no Mangue. Queria ver a vitrola na rua das mulhe­res. Segundo o Cadinhos, ela tocava dia e noite. Como o novo dono era luso, só punha fados. E a pungência, a plangência dos fados apaziguava o desejo do povo.

Até que gastamos o último tostão dos oitocentos mil-réis. Nada de emprego, nada. Fui, um dia, falar com o Costa Soares, na redação de O Globo. Era um bom homem e nos daria a mão, se pudesse. Na varanda, que pendia sobre o Largo da Carioca, pedi-lhe um emprego, qualquer um. Costa Soares foi de uma polidez irrepreensível; e eu podia sentir, por trás de suas pala­vras, a inútil compaixão. Mas me desiludiu. Por enquanto, na­da, nada era possível. Lá adiante, numa mesa, Roberto Marinho lia um jornal. Aquele tinha tudo e eu nada — foi o que pensei.

E veio a fome. Começamos a vender garfos, facas, pratos, terrinas, toalhas, o diabo. Mas era a fome. Catava-se, lá em casa, tudo que era possível de venda. Lembro-me da última lata de azeite. Azeite serve de manteiga, azeite finge de manteiga. E, então, nós passávamos azeite no pão. Ótimo, ótimo. Até que a lata ficou vazia. Foi virada, revirada e não pingou nada. Então, passa­mos a comer pão sem manteiga e sem azeite (enquanto houve pão).

E nem imaginávamos que Euricles de Mattos teria de mor­rer, para que um de nós (Mário) entrasse no Globo. Mas eis o que queria dizer: — fui a fome mais desfibrada que se possa ima­ginar. Lembro-me do Carnaval. Para economizar três tostões, vim a pé da cidade até o Leme. No Leme, apanharia o bonde e gastaria cem réis. E compraria três pães de tostão.

Se cruzasse com o Walther Moreira Salles, eu o olharia sem revolta, ira ou inveja. Bem sei que, naquela ocasião, o Walther Moreira Salles não seria Walther Moreira Salles. Mas admitindo que passasse por mim num carro suntuário, seria incapaz de odiá-lo. Eis a verdade: — a fome varre, a fome raspa qualquer sentimento forte. O ódio exige boa alimentação e repito: — para odiar, o sujeito precisa de um sanduíche, pelo menos um sanduíche.

Lembro-me de que, certa vez, encontrei o André Romero, velho jornalista, que trabalhara comigo na Manhã, primeiro jor­nal do meu pai. Romero veio para mim de braços abertos. Ora, tamanha era minha depressão que um sorriso, ou um bom-dia, me empolgava. Crispei a mão no seu braço, numa emoção ab­surda (eu ia acabar chorando, meu Deus, eu ia acabar choran­do). E o grande momento do nosso encontro foi no fim, quan­do ele propôs: — “Vamos almoçar? Te convido. Vamos!”.

Foi fígado. Eu preferia, confesso, bife com batatas fritas. Mas a fome não é muito seletiva. Comeria qualquer coisa, até pão sem manteiga. Pão sem manteiga é triste, mas eu o come­ria. Ah, me lembro da travessa imensa, com fígado e cebolada. Era uma casa de pasto, ali, atrás da Lapa. Nunca vi tanta mosca na minha vida. E, de repente, um casal de moscas amou à nossa vista. Comecei a comer. Viro-me para o garçom: — “Quer me trazer pires com manteiga?”. E minha voz, a minha inflexão, a minha cara, tudo devia ter a humildade abjeta da fome.

Comi com um furioso élan. E, de repente, pensei em mi­nha mãe e nas minhas irmãs. Tinha mais pena das mulheres da família. Minha mãe ainda dava o seio à caçula. E eu punha mais manteiga no pão, arquejante de volúpia. Continuava pensando nas meninas, lá em casa, sem azeite para passar no pão. Acabei, afrontado. E me dilacerava de felicidade. E, ao mesmo tempo, não me saíam da cabeça minha mãe e minhas irmãs.

Não sei se houve sobremesa. Se bem me lembro, Romero vira-se para mim e fala: — “Não quero sobremesa. Você quer?”. Respirei fundo: — “Não”. E, ao mesmo tempo, começava a ter náuseas do fígado. Saímos. Em casa, não disse uma palavra so­bre o almoço. Lembro-me de que, nessa noite, acendi a vela e olhei: — um percevejo. Depois, viriam os outros. Mas aquele estava ali, sozinho.

Não confundam percevejo com asseio. É a fome que o fa­brica. Um Walther Moreira Salles, mesmo imundo, não será mor­dido por um percevejo. O último que eu vira era ainda de Al­deia Campista, nos primeiros anos da minha infância. Depois, meu pai tornou-se diretor de jornal, dono de jornal. Passamos da rua Alegre para a Tijuca, e, mais tarde, para Copacabana. Nos­sa vida mudou. A casa em que moramos, na rua Joaquim Nabuco, era um palácio. E tínhamos hábitos e despesas de família mi­lionária. Uma vez, o Roberto Marinho dizia a mim e a Mário: — “Vocês tomavam táxi para atravessar a rua”. Era uma verda­de exagerada, violentada, mas uma certa verdade.

Não matei o percevejo. Era tão pouco Raskolnikov, e mi­nha fome tinha tal impotência para a reação que não o esma­guei na unha. Eu o aceitei com um fatalismo quase doce. No dia seguinte, passei na Noite Ilustrada. Conhecia lá o Aquarone e pedi-lhe um emprego. Nada, nada. Ofereci-me para escre­ver de graça, artigos assinados. Nem assim.

Continuou o desemprego. Muitas vezes senti as faces ar­dendo como um esbofeteado. Era apenas a febre da fome. Mi­nha distração era ir para a praça Mauá. Ficava olhando o perfil dos navios, o mastro. Nunca me ocorreu a idéia de ser faxinei­ro, de lavar pratos. Só queria jornal. Pensava no Globo. Quan­tas vezes estive para falar com Roberto Marinho. Mas ouvia di­zer que ele não mandava nada. O Globo era Euricles de Mattos. Lá dentro, sua vontade era a lei. Certa noite ouvi o Eloy Pontes esbravejar, no meio da escada da Crítica — “Roberto Marinho, que é um cretino, ganha mais do que eu!”.

Estou vendo Eloy Pontes. Sua cara era a própria máscara mortuária de Beethoven. E de Euricles de Mattos sabia apenas o seguinte: — um probo. Ninguém mais incorrupto. Era, po­rém, um jornalista de velhas gerações. Fazia um jornal honrado como ele, e de uma mediocridade desesperadora, como ele. Um dia, Euricles de Mattos morreu e Roberto Marinho assume a di­reção. Era a esperança.

 

O Globo tinha vinte e poucos dias (se não me engano), quan­do morreu Irineu Marinho. Minha família morava, então, na rua Inhangá, nos fundos do Copacabana Palace. Lembro-me do te­lefonema para meu pai, dando a notícia. Irineu Marinho morre­ra, pela manhã, no banho. E, como demorasse, alguém foi ba­ter na porta. Nenhuma resposta.

Foram chamar Roberto, o filho mais velho. E ele, com vin­te e poucos anos, forte (remava no Boqueirão do Passeio), me­teu o ombro e arrombou a porta. O pai estava morto. A pessoa que telefonou lá para casa ainda fez o comentário: — “O Geral­do tem uma sorte danada. Agora O Globo fecha. Fecha”.

Geraldo Rocha estava com A Noite, e Irineu Marinho era o seu único concorrente. Para ele, Geraldo, aquela morte, an­tes da consolidação de O Globo, era a sorte grande. Irineu Ma­rinho fundara A Noite, jornal que é, digamos, talvez um caso único em toda a história jornalística. Lia-se não por necessida­de, mas por amor. Sim. A Noite foi amada por todo um povo.

Penso nas noites de minha infância, em Aldeia Campista. O jornaleiro vinha de porta em porta. Os chefes de família fica­vam, de pijama, no portão, na janela, esperando. E lá, longe, o jornaleiro gritava: — “A Noite, A Noite!”. Ainda vejo um su­jeito, encostado num lampião, lendo à luz de gás o jornal de Irineu Marinho. Estou certo de que se saísse em branco, sem uma linha impressa, todos comprariam A Noite da mesma ma­neira e por amor.

Um dia, Irineu Marinho saiu de A Noite e fundou O Globo. Lá ficou Geraldo Rocha, baiano demoníaco, de uma empolgan­te falta de escrúpulos. Morre Irineu Marinho, ótimo. Segundo me contaram, houve quem pensasse em Roberto para a dire­ção. Mas o próprio foi de um senso comum magistral. Disse: — “É Euricles, tem que ser Euricles, só pode ser Euricles”.

Euricles (não sei se com i ou com y) era um homem de bem. Aí está dito tudo. Inútil procurar outras virtudes. Minto. Euri­cles tinha, sim, a outra virtude: uma capacidade de trabalho qua­se desumana. Fisicamente pequeno, cara amarrada, era o cha­mado pé-de-boi. Mas essa taciturna, áspera probidade foi vital para O Globo.

E, de repente, também Euricles morreu. Da mesma reda­ção, saía o segundo defunto. O Globo parecia um jornal conde­nado. Logo se soube que Roberto Marinho seria o novo dire­tor. Foi um escândalo. E os velhos profissionais não sabiam qual era pior para O Globo, se a morte de Euricles, se a direção de Roberto.

Hoje, os jornais têm toda uma rapaziada nova e irresistí­vel. Meninas de dezesseis anos fazem estágio nas redações. Na­quele tempo, não. Bem me lembro de uma vez em que fui a O Globo, ainda em vida de Euricles. Lá não se dava um passo sem esbarrar, sem tropeçar numa figura trêmula e nostálgica. Era a geração ainda da vacina obrigatória, da primeira batalha do Marne. O próprio Euricles estava ali como um sobrevivente dos velhos tempos. E Roberto? Que vinha ele fazer com a sua ultrajante vitalidade? Muitos daqueles homens o tinham carre­gado no colo. E eis que o antigo garoto punha-se a dar ordens, a visar matérias.

No tempo de Euricles, nenhum Marinho tinha autoridade para tirar uma cadeira do lugar. E as virtudes possíveis e impre­visíveis de Roberto estavam inéditas. Sabia-se que freqüentava o Boqueirão e lá remava; que, ainda no Boqueirão, treinava bo­xe com o fotógrafo Moacir Marinho, seu primo; era visto guian­do automóveis, em disparadas suicidas. Bem. Para diretor de um jornal grave, como era O Globo, tais dados biográficos pro­metiam pouco.

Fosse como fosse Roberto Marinho significava para nós uma esperança viva. Ao bater estas notas, não me lembro se foi ele que nos chamou ou se fomos nós que aparecemos lá, oferecen­do o nosso trabalho. O certo é que o meu irmão Mário Filho interessava a O Globo. Eu me lembro da nossa primeira con­versa, na rua Almirante Barroso, na porta dos fundos do jornal.

Em pé, na calçada, depois do expediente, Roberto expli­cou o seu papel. No Globo, ninguém cuidava de espanar o pó do tempo, o pó que, desde A Noite, cada geração legava à gera­ção seguinte. Ele estava disposto justamente a usar o espanador. Mas sem assombrar os redatores antigos. Queria também mudar, sem choque e gradualmente, a página de futebol. Mas confessou que tinha medo dos nossos exageros. Disse mesmo: — “Vocês, um dia, puseram a fotografia de Jaguaré no penico”.

Não era verdade, claro. Puro folclore. Em suma: — queria ele que Mário começasse a trabalhar imediatamente. Saímos, de lá, numa gratidão selvagem. Mário era casado, mas combinou com a mulher o seguinte: — enquanto os irmãos não se empre­gassem, ele daria à minha mãe todo o ordenado de O Globo. No dia seguinte, tivemos um encontro com Costa Soares, que vinha combinar tudo, em nome de Roberto Marinho. Ficou as­sentado que, para dirigir a página de esporte de O Globo, Mário ganharia 550 mil-réis mensais. Para a época, era um salário de primeiríssima ordem.

Eu não ganhava um tostão e continuava desempregado. Mas, para ajudar meu irmão, passei a trabalhar como qualquer funcionário de O Globo e mais que qualquer funcionário de O Globo. Chegávamos eu e o Mário às sete da manhã; e saíamos às cinco da tarde. Eu estava curioso de ver o comportamento de Roberto como diretor.

Já contei o desabafo ressentido de Eloy Pontes. “Ganha mais do que eu! Mais do que eu!”, dizia ele. Na sua opinião, Roberto era um cretino. Outros colegas falavam na “besta do Roberto”. Na própria redação de O Globo, homens e até móveis, até reló­gios amavam a rotina de Euricles, que era, exatamente, o homem de rotina. Roberto ameaçava posições e hábitos mumificados. Mas eu veria, com o tempo, que ele potencializava e salvava O Globo.

Um ano depois, comecei a ganhar. Eis o meu primeiro or­denado: — duzentos mil-réis. E, então, aconteceu esta coisa prodigiosa: — enquanto não recebi um tostão, era gratíssimo a Roberto. Tinha-lhe afeto: olhava-o como a um irmão. Mas, re­munerado, passei a olhar com ressentimento, despeito, o jovem diretor. Foi aí que eu aprendi que os sentimentos fortes, como a ira, o ódio, a inveja, exigem um salário.

Roberto Marinho estava me pagando duzentos mil-réis por mês. E entrei na folha, como redator esportivo de O Globo. Mas a minha fome continuou, eis a verdade, minha fome continuou. Só almoçava de vez em quando, só jantava de vez em quando. Todo o dinheiro que recebia, deixava em casa. De manhã, na hora de sair, minha mãe dava o dinheiro do bonde e só.

“Minha fome continuou”, disse eu. E já retifico: nem tan­to, nem tanto. Pelo menos, tomava o café da manhã, com pão e manteiga. E, em certos dias, ousava um vale de dois mil-réis, que Roberto visava, e ia apanhar o dinheiro no caixa. Com dois mil-réis almoçava no Reis. Meia porção custava 1200 réis; pão, duzentos réis; banana, gorjeta e ainda me sobravam dois tostões.

Entre parênteses, no tempo do desemprego e, portanto, da fome maciça, compacta, tinha as minhas compensações. Ia pa­ra a praça Mauá ou praça Quinze; e a minha alegria era passar horas olhando e só olhando. Esse prazer visual, intensíssimo, me fazia esquecer de mim mesmo. Lembro-me de que, certa vez, na praça Quinze, fiquei espiando uma tangerina que boiava. Para mim, eis a questão: — por que não afundava a tangerina?

Ao mesmo tempo, me pergunto: — vi mesmo essa tangeri­na boiando no mar da praça Quinze? Já não sei, porque a fome é, por vezes, delirante. Naquele época, as coisas, as pessoas e mesmo as palavras tinham, em certos momentos, um halo intenso e lívido. Outras vezes, ficava passando a mão na barriga, como se pudesse prender a náusea. Mas vomitar o que não co­mera?

Um dia, eram quatro ou cinco horas da tarde, e vi uma ca­ra surpreendente. Ou por outra: — não era bem a cara, mas o nariz inverossímil. Parecia um falso nariz, carnavalesco, de pa­pelão. Comecei a suar de angústia. “Não estou vendo aquilo”, eis a minha certeza. Aproximei-me da pessoa. O nariz continuava como um bico encarnado, recurvo, quase obsceno. Desespera­do, fui me debruçar na amurada.

Mas não disse que a minha felicidade absurda eram os bar­cos. Eu os via de todos os feitios, partindo, chegando ou sim­plesmente parados. Para mim, ainda hoje, não há nada mais bo­nito do que um nome de barco. Há pouco, passei na praça Mauá. Vi, encostado, um transatlântico. Olhei o nome: — Andrea Doria. Pareceu-me um nome azul, lunar e, ao mesmo tempo, ressoante como uma concha marinha.

Fecho aqui o parêntese. O que me importa, no momento, é valorizar e dramatizar o salário. Enquanto não tive ordenado, assumia, diante de Roberto Marinho, uma atitude de humilda­de, de subserviência. Eis a palavra e a verdade: — subserviên­cia. Se ele me batia nas costas ou simplesmente sorria, sorria para mim, me crispava de alegria. E o pior foi quando, certa vez, no fim do expediente, ele perguntou: — “Vais pra Copacaba­na? Eu te levo”.

(Copacabana. Até hoje, não sei por que não saímos de lá. Minha família passava fome em Copacabana. E jamais ocorreu a um de nós mudar para o subúrbio. Podíamos morar no Méier, Encantado ou Brás de Pina. Seria tão fácil alugar uma casinha em Todos os Santos, ou em Padre Miguel. Mas nenhum de nós teve a modéstia de pensar num aluguel barato. Morríamos agar­rados a Copacabana. Ou Copacabana ou Ipanema. Essa fideli­dade obsessiva à praia, ao mar, à avenida Atlântica quase nos destruiu, quase.)

Realmente, ainda não ia para casa. Mas respondi, trêmulo: — “Vou sim, vou”. Saímos, lado a lado, pelo corredor ladrilhado da antiga redação (O Globo estava ali no edifício do Liceu). Meu coração batia mais forte; a felicidade, naquele momento, deu-me uma violenta dispnéia. Ele próprio guiava o automóvel. Eu ia na frente, conversando. Imaginava o momento em que, em casa, diria: — “O Roberto me deu carona”. E, de fato, ele me deixou na porta de casa. Entrei e disse, pálido: — “O Ro­berto me deu carona”.

E, por muito tempo, quis ao diretor de O Globo um bem enorme. Comecei a fazer o seguinte: — na hora de sair eu, na esperança de uma nova carona, ia rondá-lo. Não era a gratuida­de da condução. O que queria era a companhia do diretor. Era a intimidade que ia nascendo. Outros o chamavam de “dr. Ro­berto” e eu de Roberto. Não invejava os seus carros, a sua casa, os seus ternos (eu tinha um terno único; usava a mesma cami­sa, três, quatro dias).

Não sei se isso que estou contando é ingênuo ou humilhan­te. E, por vezes, ao bater estas notas, me pergunto: — “Não es­tarei me rebaixando?”. Não, não. Assim como não me reconheço na adolescência, também não me reconheço na fome. Durante aquele período, a fome apagou minha identidade. Eu não era eu mesmo. Ou só era eu mesmo olhando os barcos e à sombra dos barcos. Tinha que ir à praça Quinze ou à praça Mauá. E, então, olhando o nome dos barcos, eu voltava a ser, por um momento, eu mesmo (estou pensando na tangerina que não se afogou).

E, súbito, comecei a ganhar de O Globo. O salário mudou tudo. Duzentos mil-réis no fim do mês. De um momento para outro, voltavam a mim os sentimentos antigos do homem. Aí aprenderia, como já disse, que o Raskolnikov exige um salário. O ódio que leva o sujeito a matar uma usurária, ou a dinamitar um czar, precisa de um ordenado. Mesmo o homicida sexual tem que ser um remunerado. Ou então não chega nem ao desejo. (Um Raskolnikov desempregado convence menos.)

Eis o que eu queria dizer e não encontrava palavras: — du­rante o meu desemprego e, portanto, durante a fome total, não desejei ninguém. Não pensava em mulher. De vez em quando, procuro me lembrar se, naquela fase, em algum momento da­quela fase, quis alguma mulher. Não me lembro de nenhuma figura feminina, nenhuma, nenhuma. Só me lembro da minha castidade.

E, agora, o sexo, a luta de classes, o amor, o ódio, a inveja, os pecados capitais ou subsidiários trabalhavam novamente a minha carne e a minha alma. E repito: — fui, por muito tempo, uma espécie de Raskolnikov de Roberto Marinho. Odiei a sua casa, as suas varandas, os seus automóveis, os seus ternos, os seus cristais.

E eis que o brasileiro está fazendo a sua autocrítica. Toda semana, alguém faz o próprio retrato, a convite de Manchete. Seria fascinante que um dos convidados declarasse à queima-roupa, alçando a fronte: — “Eu sou um pulha”. Isso, dito assim, dessa forma sucinta, translúcida, inapelável, havia de arre­piar o leitor e, ao mesmo tempo, deslumbrá-lo. Até agora, que eu saiba, ninguém se dispôs a essa sinceridade abnegada e bru­tal. Cada autocrítica tem a imodéstia de um necrológio redigi­do pelo próprio defunto.

O sujeito se apresenta, em Manchete, como se fosse no mí­nimo o Disraeli. O último a falar foi um dos nossos autores mais ilustres, o único talvez de ressonância mundial: — Pedro Bloch. E, desde a primeira linha, verificamos que ninguém ama tanto Pedro Bloch como o próprio Pedro Bloch. O fato de ser um Pe­dro Bloch nato devia dar-lhe a naturalidade de um velho hábi­to. Em absoluto e pelo contrário: — não há tal hábito. Pedro Bloch está cada vez mais nervoso, mais fremente, mais dispnéico de ser ele mesmo e não outro qualquer.

Li e reli sua autocrítica. E só esbarrei, só tropecei em virtu­des. Não tem defeitos? Exatamente: — nenhum defeito. No meio da leitura, só uma coisa espanta o público: — por que Pedro Bloch não se demite da vida prática e não se transfere, de san­dálias, para um vitral? Sim, um vitral atravessado de luz?

Falo da autocrítica de Pedro Bloch e penso nos primeiros tempos de O Globo. Tudo em mim era turvo, envenenado, cruel, vingativo. Ou por outra: — tudo, não. Por vezes, queria amor, dar e receber amor. Mas o amor era um momento, e tão breve, tão escasso. Fui, já disse, naqueles tempos, o Raskolnikov de Roberto Marinho.

Por vezes, deixava de trabalhar e punha-me de esguelha a olhar “o querido diretor”, como o chamávamos (hoje na tv Globo, é “o mais velho”, nome que dá uma sensação de ve­lho chefe índio). Eu era ressentido até contra os sapatos de Roberto Marinho. E, além dos sapatos, os ternos, as cami­sas, as gravatas. Eu tinha um único terno, um único par de sapatos. Durante três ou quatro anos, não pensei, em mo­mento nenhum, na minha aparência pessoal. Andava de sa­patos sem meias, porque não tinha meias. E já contei que passava três, quatro dias com a mesma camisa.

Talvez o meu ressentimento tenha começado contra o guarda-roupa de Roberto Marinho. Um dia, soube que ele ganhava, por mês, sete contos e quinhentos. Não sei por que associei as duas imagens: — Roberto Marinho e o rei da Abissínia. Depois de vários anos de O Globo, houve um episó­dio, desses que o homem não esquece nunca mais. É uma experiência que se tornou obsessiva para mim e que se in­corporou à minha literatura.

Mas vamos ao fato: — um dia, Roberto Marinho chama meu irmão, Mário Filho, e os dois conversam naquela varanda que dava para o Largo da Carioca. Roberto começa a falar de mim. Disse que eu precisava cuidar mais de mim mesmo. Falou do meu desleixo, do meu cabelo, da minha roupa. Eu andava de barba por fazer. E, por fim, disse tudo: — “On­tem, o seu irmão estava cheirando mal”.

Mais tarde, numa mesa no Café Nice, junto do espelho, Mário teve uma conversa comigo. Com muito tato, muita do­çura, foi falando: — “Roberto me disse isso, assim, assim”. Recebi um baque no peito. Ninguém sente o próprio chei­ro; mas acreditei. Olhei-me no espelho e pensava: — “É isso mesmo. Deve ser verdade”.

Daí a pouco, levantei-me. Queria ficar só. Fui, a pé, até a praça Mauá. Eis o que dizia a mim mesmo: — “Não sou eu. É o terno. É o terno que cheira mal”. O que ainda hoje me espanta é que a minha humilhação não foi, de momen­to, tão funda e tão desesperadora. Eu viria sofrer, em verda­de, mais tarde. Agora mesmo, sofro ainda.

Naquele tempo, não me importaria de me cobrir de trapos imundos. A minha obsessão era trabalhar para dar dinheiro em casa. E só. Disse que a minha vida não tinha amor, nenhum amor. Não é bem assim. O dinheiro que levava para minha mãe era amor. O meu trabalho era amor. E o que me espantava, a caminho da praça Mauá, era que eu não estava ofendido, eu não estava humilhado. Cheirava mal e não começara a sofrer.

Na verdade, na verdade, estava muito mais ferido do que imaginava; e ferido para sempre. Através dos anos, e já traba­lhado pelo sofrimento, transpus o episódio para o conto, o romance e ainda hei de remontá-lo no teatro. No meu livro O casamento, há um Xavier que um amigo chama de lado e co­meça: — “Olha. Vou te dizer uma coisa. Mas promete que não fica zangado?”. O Xavier prometeu. E o outro continua: — “É o seguinte: — talvez porque você só use um terno (eu vejo você sempre com este terno), o fato é que...”. Suspense de uma pausa e a palavra definitiva: — “Você, às vezes, até cheira mal”.

O Xavier põe no outro um olho de puro terror. Eis o que eu queria dizer: — esse pobre-diabo de um terno só sou eu. Nu­ma história de A vida como ela é..., um sujeito diz ao outro: — “Não sei se é porque você usa sempre o mesmo terno. O fato é que você, às vezes, cheira mal. Queria te avisar, porque sou teu amigo”. A vítima suspira: — “Obrigado, fulano”. E co­mo acaba a história?

O sujeito do terno só aceita, como verdade última e eterna, que cheirava mal mesmo. Era cobrador de uma firma. Acabava de apanhar dinheiro no banco para o pagamento do pessoal. E decide ficar com dois mil contos e não sei quantos quebrados. Chama um táxi e diz para o chofer: “Você está por minha conta. Dinheiro há, dinheiro há”. Desde menino, o táxi era a sua mais doce e secreta utopia. Andou um mês de táxi. E, no fim, fez as contas com o chofer e brada: — “Vamos dar a última volta”. O carro parte. E, então, ele puxa o revólver de cobrador (tinha porte de arma), enfia o cano na boca e puxa o gatilho.

Aí estão os dois reescritos, em não sei quantas páginas: — eu e Roberto Marinho. Até que caio doente. Doente para mor­rer. Minha cama dava para o espelho. Via em cada olho um ha­lo negro; as minhas faces estavam escavadas; e tinha a sensação de que olhava o meu próprio cadáver. Pedi, pelo amor de Deus, que cobrissem o espelho com um lençol. E foi aí que Roberto Marinho me salvou a vida.

De vez em quando, me pergunto: — “Que fim levou o Isaac Brown?”. Era médico e, ao mesmo tempo, chefe de taquígrafos da Câmara. Em 1934, quando caí doente, foi chamado por minha irmã Stella. E lá vinha ele, a qualquer hora do dia e da noite, da Tijuca para Ipanema. Morávamos, então, na rua Pru­dente de Morais, sobrado, quase esquina com Montenegro.

Bem sei que a medicina é, hoje, um voraz, um escorchante sacerdócio. E Brown nunca me cobrou um tostão, nunca. Vi­nha da Tijuca, o que era quase outro país, quase outro idioma. Lembro-me da primeira vez em que entrou lá em casa. Era de uma bondade grave, quase triste. Pôs o ouvido nas costas, de um lado e de outro. Eu o vejo, ainda mais grave e ainda mais triste, dizendo: — “Sinais discretos”.

O que se escondia, ou, por outra, o que não se escondia por trás da suavidade da voz e das maneiras, era uma doença mortal. Eu estava tuberculoso. E o dr. Brown foi, na minha vi­da, um momento da bondade humana. Ao entrar na sala, vira a miséria; no corredor, a miséria; no quarto, a miséria. Falou com o radiografista, que não cobrou a chapa; falou com o Aloísio de Paula, que também não me cobrou a consulta. E ainda arranjou remédios, tudo de graça.

Com 35, quarenta de febre, ninguém tem medo. Naquela época, os jornais chamavam a tuberculose pelo nome nupcial, voluptuoso e apavorante de “peste branca”. Hoje, não. Hoje, há lesões que somem em quinze dias. Em 1934, porém, havia ainda o terror. Lembro-me de um vizinho que apanhou, como então se dizia, uma “fraqueza”. Ao saber que estava tuberculo­so, chorou três dias e três noites. Nem começou o tratamento. Ao amanhecer do quarto dia, meteu, como Getúlio, uma bala no peito. E seu feio medo descansou na morte.

Se me perguntassem por que fiquei doente, diria apenas: — fome. Claro que entendo por fome a soma de todas as priva­ções e de todas as renúncias. Não tinha roupa ou só tinha um terno; não tinha meias e só um par de sapatos; trabalhava demais e quase não dormia; e quantas vezes almocei uma média e não jantei nada? Tudo isso era a minha fome e tudo isso foi a minha tuberculose.

E mais: eu estava sem auto-estima. Não tinha amor, nenhum amor por mim mesmo. Certa vez, descia as escadas de O Globo e cruzo com um boxeur e meu amigo de infância, o Camarão. Ele solta um berro jucundo e fraternal: — “Filósofo! Filósofo!”. Os outros também me chamavam de “filósofo” por causa do meu desleixo agressivo e constrangedor. E ainda outros pergun­tavam, numa curiosidade séria: — “Esse cara é maluco?”.

Brown e Aloísio de Paula achavam que eu devia ir para Cam­pos do Jordão. Segundo se dizia, inclusive os dois médicos, o clima de lá era uma maravilha. Aloísio de Paula tinha uma dra­mática experiência pessoal. Fora doente pulmonar e curara-se em Campos do Jordão. Imediatamente Brown escrevia para o Sanatorinho pedindo uma vaga gratuita. Vejam vocês: — gra­tuita.

Ele achava que eu não podia pagar nada. Seu amigo de Cam­pos do Jordão, e interno do Sanatorinho, dr. Hermínio, respon­deu dias depois: — “Arranjei uma vaga de indigente. Pode man­dar o homem”. Era eu o indigente; e teria o meu teto, a minha cama e meu pão, sem pagar nada, graças à minha indigência. Bem me lembro do dia em que subi. Talvez não voltasse, talvez morresse lá.

Mas havia uma dúvida: — e Roberto Marinho? Ele teria que dar licença, com vencimentos integrais. Mas eu imaginava: — “Apenas licença e sem vencimento, não serve”. Não podia su­bir, sem um tostão no bolso. Meu irmão Mário Filho foi falar com o “querido diretor”. Na mesa grande, Roberto ouvia e, ao mesmo tempo, fazia desenhos, a lápis, num papel. Mário disse tudo. E quando acabou, Roberto, sem parar de desenhar, res­pondeu: — “Claro. Continua recebendo, do mesmo jeito. O tempo que for preciso. Quero que fique bom. O resto não inte­ressa”.

Na viagem, de trem, tive remorso e vergonha. Quase todos os dias, ia para o arquivo e, lá, dizia horrores do diretor. Era uma besta, um analfabeto, um cretino e não sei mais o quê. Roberto fizera outro jornal, não euclidiano. Antes dele, a página de es­porte de O Globo era algo de antigo, obsoleto, nostálgico, como o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Roberto chamou Má­rio Filho e tudo mudou. O futebol, o boxe, o basquete encon­traram todo um novo tratamento plástico, lírico, dramático.

Isso aconteceu no esporte e no resto. Mas Roberto não mu­dou sem ferir, sem humilhar uma rotina sagrada. Os velhos, os velhos. Eles ficavam, no canto, rosnando os seus rancores ou entretidos com velhíssimas nostalgias. Dizia-se de Roberto: — “Não entende nada, não sabe nada”. E agora, no trem, vinha-me uma vergonha tardia, um remorso inútil. Ao mesmo tempo pensava na morte. E se eu morresse em Campos do Jordão?

Só não queria a morte de sangue. Já em Campos do Jordão, fui, certa vez, testemunha de uma cena que ainda hoje está em mim. Vejo uma moça entrando numa sala. Ela pára. O rádio to­cava, se bem me lembro, uma rumba. A mocinha faz um movi­mento de dança. Ia visitar o namorado. Mas como eu ia dizen­do: — dá uns passos e sente um gosto esquisito. Põe o dedo na língua e olha: — saliva e sangue. A hemoptise começava. Veio a primeira golfada. Nunca imaginei que o sangue pudesse ser tão vermelho. Todos correram. A moça foi carregada, deitada numa cama. Quando o médico veio, pedia, entre uma golfada e outra: — “Doutor, me salve, doutor!”. O sangue não parava, nem parou. Morreu ao amanhecer. Estava morta, e teve uma úl­tima golfada de vida.

A fome é casta. Era isso que repetia para mim mesmo, a ca­minho da montanha. Fiz baldeação em Pindamonhangaba (nem sei se é assim que se escreve). Lá tomaria o bondinho. A casti­dade da fome era minha experiência recente. E ia aprender, em Campos do Jordão, que não há doença mais erótica do que a tuberculose.

Bem. Agora não é assim. Falo do tempo em que a tubercu­lose tinha o nome parnasiano de “peste branca”. Em 1934, ain­da não se esgotara a boa época do pneumotórax. E, se não me engano, saltei em Pindamonhangaba em abril. O frio já come­çara em Campos do Jordão. Mas falei nas tremendas fixações eróticas da velha tuberculose. E vou contar, rapidamente, cer­to episódio do sanatório.

É o caso de um cantor de tango que veio de Santos para a montanha. Cantor de tango, mas brasileiro de Jaboticabal. Ti­nha uma cavidade num dos pulmões e fazia pneu. Ganhou uma cama de canto, na minha enfermaria. No meio do tratamento, apanhou uma pleuris. Mais um pouco e a água virou pus.

E aí começou o martírio. Era queimado, ao mesmo tempo, pelo frio e pela febre. Trinta e nove, quarenta, trinta e nove, qua­renta. Tinha uma mulher, uma filhinha, e não recebia carta de ninguém. Repetia, dia e noite: — “Ainda não morri e já me es­queceram”. Falava como se o tuberculoso fosse o mais traído dos seres. Uma noite, ouve-se o seu grito: — “Sangue, sangue!”. Alguém acende rapidamente a luz. Era a hemoptise. Veio o mé­dico de plantão. Ainda me lembro do olho enorme do medo.

Depois soube que ele cantava tango em cabarés ordinaríssimos de cais. Mas não tinha salário; punha um pires ou um prato, no chão, como um cego, e os crioulões da estiva, marinhei­ros louros e as prostitutas bêbadas pingavam, lá, a sua moeda. Mas ele estava morrendo. E, súbito, começou a odiar a mulher. Cachorra, cachorra. Xingou-a de todos os nomes. Era terrível de se ver a sua agonia pornográfica.

Quiseram levá-lo para o isolamento. Reagiu, babando san­gue: — “Morro aqui, aqui”. Queria morrer no meio dos outros, olhando alguém, alguém. E, então, foi deixado em paz. Horas antes de morrer, deixou de odiar a esposa. Agora o ódio era um desejo triste, tardio, inútil. A enfermaria toda, numa unanimi­dade homicida, queria a sua morte. Nenhuma pena e só irrita­ção. E o que assombrava era que ainda tivesse sangue para jor­rar no balde.

Bem me lembro de sua última manhã. Só os olhos viviam, só os olhos vazavam luz. Cerca de umas nove, dez horas, entra a crioula, baiana, d. Maria, que todas as manhãs varria a enfer­maria. O médico e o enfermeiro tinham acabado de sair. Os ou­tros doentes estavam na varanda, tomando sol nas pernas. E, na enfermaria, o moribundo levantava-se do fundo de sua ago­nia. Via a preta (magra e velha), varrendo, mudando os lençóis e as fronhas. Saltou da cama e veio, cambaleando, atropelar a criada. Esta pula para trás, desprende-se, uma fúria. As canelas finas e espectrais não sustentam mais o moribundo. Quando os outros entraram, viram, no chão, a ossada aluída. Era, sim, ape­nas uma ossada com uma pele diáfana por cima.

A baiana apanhara a vassoura, a mão ambas, e ia fender-lhe o crânio. Os outros carregavam o homem de Jaboticabal, en­quanto a arrumadeira esganiçava palavrões. E, ali, morreu o can­tor, agarrado ao seu último desejo. Daí a pouco, o corpo era retirado para a capelinha. Mas a agonia lasciva contaminara to­da a enfermaria. Não se falou em outra coisa, só de mulheres. E cada qual teve uma súbita e inconsolável nostalgia de antigos, espectrais namoros. Um era viúvo; e pôs-se a falar, com som­brio élan, da falecida. Era gorda. E, na enfermaria, o sujeito, lembrando os desejos fenecidos, gabava as graças físicas da mulher. E dizia-lhe do seio: — “Parecia gelatina”. A saudade carnal dava-lhe uma salivação intensa.

Mas tudo isso que contei acima aconteceu muito depois. Preciso falar do primeiro dia de Campos do Jordão. Salto na es­tação e sou ferido pelo frio. Lembro-me de um sujeito que me dizia: — “Em Campos do Jordão, até os pardais são tuberculo­sos”. Pois bem. Tomo o táxi: — “Me leva no Sanatório Popu­lar”. O chofer diz: — “Ah, o Sanatorinho”. Eu estava tão bati­do que o diminutivo me fez bem. Sanatorinho. Gostei da ter­nura inesperada do nome. Sanatorinho.

Da estação até lá, era uma distância bem pequena: — tal­vez uns cinco minutos. Mas ia olhando, pessoas, casas, árvores, animais, com uma curiosidade intensa, devoradora. De 1934 pa­ra cá, já rolaram 33 anos. E tudo está vivo, tenso, em mim. Ain­da hoje tenho de pinheiro, de certos verdes, de penhascos, uma espécie de ódio paisagístico. É que não perdôo nada em Cam­pos do Jordão, nem seus luares, nem suas estrelas e céus.

Salto no Sanatorinho. Era todo construído em madeira. Ima­ginei, apanhando o troco do chofer: — um incêndio, ali, havia de lamber tudo, num minuto. Pouco depois, estava apertando a mão do dr. Hermínio, o amigo do dr. Brown. Dou-lhe a carta. Estou vendo a cara de Hermínio cheia de espinhas (naquele tem­po, o brasileiro tinha mais espinhas). Ele acabou de ler; guarda a carta. E começa.

“O Brown diz que você não pode pagar nada. Você não pode pagar?”

Um escrúpulo doeu em mim; mas tomei coragem e respon­di, vermelho, mas firme: — “Não posso pagar”.

Hermínio enfiou as duas mãos nos bolsos do avental: — “Você vai ficar na enfermaria de indigentes”.

Acho que fiquei branco. No Rio, ouvira falar em “indigen­te”. Mas a palavra me soara impessoal; havia entre mim e ela uma distância; não me sentira “o próprio indigente”. Agora a indigência me tocava, e comprometia, e feria. Vamos andando eu e o Hermínio para a outra ala. Ele ia explicando: — “Lá, os doentes em bom estado, como você, varrem a enfermaria, mu­dam a roupa de cama. Serviço leve”.

Paro: — “Quer dizer, dr. Hermínio, que vou ter que var­rer, mudar a roupa de cama, não é, dr. Hermínio? É só?”.

Ele completou: — “Uma vez por semana, serve à mesa”.

A ala dos indigentes era do outro lado. Parei no meio do corredor. Na dispnéia da fúria, comecei: — “Quer dizer, dr. Hermínio, que eu vou, eu vou ter que varrer, mudar a roupa de cama, e, ainda por cima, servir à mesa?”.

O médico dizia, risonhamente: — “Mas é o que todos fa­zem. Quem precisa faz”. Disse “quem precisa faz” de uma ma­neira cordial, quase doce e, ao mesmo tempo, firme, inapelável.

Até aquele momento tudo me parecia irreal. Irreal a tuber­culose; fantástico, Campos do Jordão. E o próprio Sanatorinho, feito de madeira, como se fosse de brinquedo, era tudo falso. Olhei em torno. Nunca me esqueço: — vi um doente apanhan­do e desatarraxando uma escarradeira de bolso e lá cuspindo. Comecei a detestar o dr. Hermínio, os internados e até a tarde que descia, invisível, sobre os pinheiros.

Todo mundo me olhava. E a nossa conversa, no fim do corredor, era a vida real. Comecei a viver, e só então, a minha tuberculose. Disse-lhe: — “Dr. Hermínio, vamos fazer o seguinte. Quanto é que se paga aqui por mês?”. E me imaginava mudando a fronha dos travesseiros e varrendo a enfermaria.

Dr. Hermínio respondeu: — “Bem. Tem quarto particular e enfermaria. Enfermaria, 150 mil-réis”.

Ergui o rosto: — “Pago os 150 mil-réis. Pago”.

Ele me olhava com uma simpatia divertida: — “Como qui­ser”. Havia um leito vago na enfermaria. Pouco depois, vinha a mala e fui ocupar a minha cama. Ficava numa extremidade, junto da janela. O dr. Hermínio explica, sumariamente: — “Ca­fé na mesa, das sete às nove; almoço, às onze e meia; repouso absoluto, de uma às três; jantar às seis; silêncio, às nove”. Era a casa dos mortos. Casa dos mortos.

Na enfermaria, existiam todas as formas da doença: a mais comum, pulmonar; de laringe; óssea; e outras, sei lá. Hoje, o tuberculoso nem tosse; e não deixa a sua casa, os seus móveis, os seus afetos. Ainda outro dia me dizia um tuberculoso recente: — “Eu não sei o que é tosse, o que é expectoração, o que é febre”. Mas, em 34, fui encontrar, na enfermaria, lesões de quinze, dez, oito anos; e, à noite, era uma fauna misteriosa e tristíssima de tosses.

Saiu dr. Hermínio e fiquei, junto da cama, mudando a rou­pa. Vesti o pijama de lã e, por baixo deste, um suéter grosso. Troquei as meias por outras de lã. E sentei-me na cama. Tinha medo, eis a verdade, tinha medo. Nunca houve um homem tão só, homem mais só. Pensava: — “Se eu piorar, desço imediata­mente. Quero morrer em casa”.

Vou comparar outra vez o velho doente e o novo. O tuber­culoso de hoje, salvo os casos agudos, namora, casa, beija. Na­quela época, havia o pavor do contágio. Eu me lembro de que, nos primeiros dias de Campos do Jordão, perguntei aos médicos: — “Entre marido e mulher, há contágio?”. Dependia. Falaram em contágio maciço. Beijo era contágio maciço.

Dizia eu, num capítulo recente, que o tuberculoso era, en­tão, o mais traído dos seres. Na minha segunda ou terceira noi­te de sanatório, conversamos sobre o nosso feio destino. Lembro-me de um baiano, comerciante de jóias (não sei se de jóias, se de espelhos). Fizera, há pouco, toracoplastia, a mons­truosa operação. Sem várias costelas, ele adernava para um la­do. E dizia numa fúria de mutilado: — “O sujeito, aqui, recebe carta na primeira semana; menos na segunda; menos ainda na terceira; e nada, a partir da quarta”.

Agora me lembro: — chamava-se Lemos. Falava muito nas próprias costelas: — “O sujeito que faz essa operação não po­de amar nu”. E havia, por trás de suas palavras, uma vaidade absurda do ombro aluído e da cicatriz. Levantava a camisa e mos­trava o corte, radiante. Suspirava: — “Vou ficar aqui, morrer aqui. Se descer, mato a minha mulher. Mato”. Estava casado, continuava casado. E há dez anos não recebia uma carta, um bilhete, um recado, nem da mulher, nem dos filhos. Lembro-me de que, certa vez, no almoço, comendo cozido, afirmou com uma satisfação terrível: — “Eu estou morto, eu morri”.

A partir de certa hora, na treva, começavam as tosses da madrugada. Eis o que queria dizer: — as tosses tinham o seu horário como o canto dos galos. E me lembro de que, por ve­zes, a enfermaria ficava acordada, até tarde, tecendo no escuro as suas fantasias eróticas. Um dizia: — “Eu preciso de um ro­mance. Um romancezinho. Sem romance, não vai”. E, uma noi­te, me perguntaram: — “E você?”. Queriam a minha opinião. Como jornalista, redator de O Globo, era muito ouvido e mui­to adulado.

Diziam de mim: — “Tem o intelectual muito desenvolvi­do”. Respondi: — “Eu sou do amor eterno”. O baiano da toracoplastia teve um riso feroz: — “Você fala assim porque tem todas as costelas. Eu, não. A mim dão bola de cachorro”. Ah, o desejo era triste no Sanatorinho.

Eu estava lá havia um mês, um mês e pouco, quando apa­receu uma égua em nosso mato. Lindo, lindo animal. E como era uma figura plástica, elástica, ornamental, e de nariz fino, e crinas violentas, alguém disse: — “Cavalo árabe”. Até que, uma tarde, aparece no mesmo terreno um cavalo. Era o casal. Por certo, o recém-chegado não era bonito, nem elástico, nem escultural como a companheira. Mais vira-lata do que árabe. Ti­nha um russo manchado e as orelhas pendiam humilhadíssimas.

Já tocara o repouso absoluto. Duas e tanto da tarde. E to­dos os doentes, inclusive os febris, apinhavam as janelas. Fui um dos que subiram na cama e espiaram a cena. O cavalo ron­dava, grave e triste, a companheira. Entre os dois, uma distân­cia de uns dez metros. Os doentes esperam cinco, dez, quinze minutos. Um de nós grita: — “Vai, seu bobo!”. Outro esbrave­ja: — “Não quer nada!”. Houve um momento em que o animal se afastou. Rompeu um desespero no Sanatorinho.

Ele está longe, olhando para o fundo da tarde. Até que, de repente, volta. O sanatório, em peso, deixa de respirar. Ardiam, em todas as janelas, as fomes de sexo. O desejo anônimo e ge­ral também pastava. Ninguém dizia nada. Um internado, que ia morrer dois dias depois, agarrava-se ao vidro, na dispnéia pré-agônica. Não sei quanto tempo passamos, ali, com as sacadas debruçadas sobre aquele amor. Depois, ainda olhamos o cava­lo que se retirava, levando a tristeza grave da posse acrobática. Os doentes saíram das janelas, numa desesperada euforia. Só o baiano da toracoplastia teve uma prodigiosa crise de choro. Soluçava: — “Vou descer pra Salvador. Vou matar minha mulher”. Ninguém disse nada. O sonho subia de nossas entranhas como uma golfada.

 “Se disser mais uma palavra, te parto a cara!” O chofer esbravejava, cara a cara com Simão. Era um comovente e lúgubre cabaré do interior paulista. E o outro espetava o dedo no peito do Simão: “Tu não é homem. E quando me encontrar, atravessa a rua!”. O homem diz isso, enche o peito e olha, uma por uma, as caras que o rodeiam. Ao lado de Simão está a sua pe­quena vestida de amarelo. Na mesa, uma garrafa de cerveja, dois copos. E súbito, o chofer apanha o copo e atira a cerveja na cara do Simão.

Imaginei que, aí, encharcado de cerveja, haveria reação. Nada, nada A enfermaria estava ouvindo a história do Simão, contada pelo próprio Simão. Ele vinha de uma cidadezinha paulista (só não me lembro do nome). Sua cama era ao lado da minha. Alguém perguntou: — “E você? Você?”. A cerveja escorria da cara descia, pelo pescoço, entrava por dentro do colarinho. E Simão não fez nada. Baixou a cabeça e começou a chorar.

Ele passou uma hora contando, sem parar. Todos nós ou­vimos, sem uma palavra, e fascinados pela covardia do Simão. A coisa começara meses atrás. Simão e o outro gostaram da mes­ma prostituta e ao mesmo tempo. E a pequena o escolheu. As­sim começara o ódio. Onde quer que o chofer visse o Simão, vinha desfeiteá-lo.

Nunca, em momento nenhum, alguém foi tão humilhado. E o chofer dizia: — “Te dou na boca! Na boca!”. Até que, um sába­do, Simão apareceu na casa de mulheres. Veio a pequena e sentou-se a seu lado. Pouco depois, entra lá o chofer. Entra, olha e vem direto. Diz, alto, forte: — “Simão, levanta para apanhar na cara”. Simão ergue-se: parecia oferecer o rosto. Disse: — “Bate”.

O outro bateu. Simão esperava pela bofetada, desejava a bofetada. Deu um pulo para trás. Ao voltar, tinha o revólver na mão. Foi atirando. Primeiro, na barriga, depois no peito, na bar­riga novamente e outra vez no peito. Continuou atirando. Mu­lheres de verde, amarelo, vermelho tinham ataques. O chofer girou sobre si mesmo e ainda levou duas balas nas costas. Sua cara era de espanto, apenas de espanto, e não de medo. Morreu de bruços. Espantado.

Só quando Simão contou o crime é que se desfez a tensão desesperadora dos ouvintes. Uma alegria feroz inundou a en­fermaria. Uns sentaram-se na cama; outros acenderam, com a mão trêmula, o cigarro; e um paraibano, com cara de sagüi, riu em falsete como índio de filme. E todos se sentiam os felizes co-autores do crime antigo.

A enfermaria tinha um jornalista, que era eu; um negociante de espelhos; um ator de circo, Scaramouche; um cantor de tan­go; um farmacêutico; um campeão de bilhar francês; o Tico-Tico, que não era nada, senão tuberculoso mesmo e estrábico; e um assassino, o Simão. Era espanhol e deixara, na cidadezi­nha, uma portuguesa, que era seu amor. Havia nove ou dez anos que ele estava em Campos do Jordão. Era outro que dizia: — “Se eu sentir que vou empacotar, desço. Quero ser chorado por minha mãe”.

Um dia, o Simão me chamou: — “Vem ver. Olha ali”. Era uma mulher, atarracada, descalçada, que subia o caminho do morro. (Diante do Sanatorinho havia um morro. Os doentes em bom estado podiam ir até lá em cima, pela manhã e à tarde.) Lembro-me de que, de repente, a mulher parou e acenou para o Sanatorinho. Não sei quantas janelas retribuíram. E o curioso é que, desde o primeiro momento, Simão saltou: — “É minha! Vi primeiro!”.

Uns oitenta doentes tinham visto, ao mesmo tempo. Mas o Simão era um assassino. Como ele próprio dizia, sem ódio, quase com ternura, “matei um”. E o crime pretérito intimidava os demais. Constava que trouxera, na mala, com a escova de dentes, as chinelas, um revólver. Naquela mesma tarde, foi pa­ra a cerca, esperar a volta da fulana. E conversaram na porteira. Simão voltou, desatinado. Conversara a fulana. Queria um en­contro, na manhã seguinte, no alto do morro.

A outra não prometera nada. Ia ver, ia ver. Simão estava possesso: — “Dez anos!”, e repetia, quase chorando: — “Dez anos não são dez dias!”. Campos do Jordão estava cheio de casos parecidos. Nada mais cruel do que a cronicidade de cer­tas formas de tuberculose. Eu conheci vários que haviam completado, lá na montanha, um quarto de século. E o pró­prio Simão falava dos dez anos como se fosse esta a idade do seu desejo.

Pouco antes do toque de silêncio, entrou na enfermaria um dos enfermeiros. Se não me engano, chamava-se Aparecido. (Guardei do Sanatorinho muitas caras e pouquíssimos nomes. Lembro-me também de pijamas, de chinelões e mais: — de um copo de prata, de atarraxar, e com flores desenhadas em rele­vo. Mas não era copo, era escarradeira de bolso.) O enfermeiro entra e senta-se na cama de Simão. Começa: — “Não te mete com aquilo. É doida. Já esteve internada”. O outro reagiu: — “Doida é melhor. Não faz mal. Igual às outras”. De noite, o Si­mão quase não dormiu. De vez em quando, até alta madruga­da, eu o via, no escuro, acender o cigarro. Virava-se, revirava-se, debaixo de cinco, seis cobertores.

Na manhã seguinte, foi o primeiro a acordar. Quando fui, de toalha no pescoço, para o banheiro, estava lá, na pia, esco­vando os dentes, com feroz élan. Depois, na enfermaria, ape­sar do frio, mudou a camisa-de-meia. Antes, lavara com álcool debaixo do braço. Pôs um suéter, de quadradinhos, presente da portuguesa. Nunca o usara, nunca. Alguém disse: — “Estás cheiroso pra burro”. Ele saiu dizendo que ia se casar.

Havia uma tosse da madrugada e uma tosse da manhã. Eu me lembro daquele dia. Nunca se tossiu tanto. Sujeitos se tor­ciam e retorciam asfixiados. E, súbito, a tosse parou. Todo o Sanatorinho sabia que, no alto do morro, o Simão ia ver a tal mulher do riso desdentado. E justamente ela estava subindo a ladeira. Como na véspera, deu adeus; e todas as janelas e varan­das retribuíram. Uma hora depois, volta o Simão. Foi cercado, envolvido: — “Que tal?”. Tinha uma luz forte no olhar: — “Tem amanhã outra vez”. Durante todo o dia, ele quase não saiu da cama: — sonhava. Às seis, seis e pouco, um médico entra na enfermaria. Falou pra todos: — “Vocês não se metam com essa mulher que anda por aí, uma baixa. Passou, hoje de manhã, subiu a ladeira. É leprosa”. Ninguém disse nada. O próprio Simão ficou, no seu canto, uns dez minutos, quieto. Depois, levantou-se. No meio da enfermaria, como se desafiasse os ou­tros, disse duas vezes: — “Eu não me arrependo, eu não me arrependo”.

Eu me tornei, e cada vez mais, amigo de Simão, o assassi­no. Mas se era assassino, não devia ser meu amigo. Depois da morte de Roberto, eu vivia dizendo: — “Tudo, menos assassi­no”. Seria amigo do canalha, amigo do ladrão, do cáften. Ad­mitiria todas as abjeções. Abraçaria o pulha integral. Não o as­sassino. E quando Simão falou dos seis tiros, pensei na bala única que matou Roberto.

Mas ouvira Simão dizer: — “Quero morrer junto de minha mãe, chorado por minha mãe”. E se ele falava assim, e sentia assim, talvez não fosse tão assassino. Ainda agora, batendo à má­quina, penso no chauffeur varado de balas. O sujeito que leva seis tiros não tem tempo para o grito. E o chauffeur há de ter sentido apenas o espanto, sem entender aquela constelação de estampidos. Era covarde o Simão; mas, de repente, a covardia tornara-se homicida e cuspia fogo.

E quando ele falou em morrer em casa, imaginei a minha própria morte. Ao subir para Campos do Jordão, e durante to­da a viagem, repetia para mim mesmo: — “Se eu morrer, quero morrer em casa. Não no Sanatorinho, em casa”. E me imagina­va segurando a mão de minha mãe e minha mãe chorando por mim. Eu me lembro de meu irmão Joffre. Tempos depois, ele estaria morrendo em Correias, no sanatório de lá. Disse, no fun­do do seu delírio: — “Quero morrer em casa”. É o que o Si­mão queria, o que todos querem.

No sanatorinho, aprendi a olhar no fundo da nossa brutal e indefesa fragilidade. Ninguém é forte. Essa vontade de ser cho­rado geme em nós. Ah, os meus amigos atuais: — o Hélio Pellegrino, o Otto Lara Resende, o Borgerth da Ducal e o Cláudio Mello e Sousa. Eu os quero e eles me fascinam porque são débeis, e tão meninos. Certa vez, há um ano, ano e pouco, o Cláu­dio viveu uma dessas provações que ninguém esquece. O caso é que ele passa na caixa do Jornal do Brasil para receber. En­fiou a cara no guichê com uma boa-fé lancinante. E soube de tudo: — estava demitido. Ainda gaguejou, branco: — “O quê? Como?”. Essa demissão, à queima-roupa, sem nenhuma insinua­ção anterior, devastou-o. O pânico baixou, ali mesmo. Era co­mo se ele visse, cara a cara, a própria morte. Desceu não sei se pela escada, não sei se pelo elevador. Embaixo, rangia os den­tes de orfandade. Olhava em torno. Era como se até os edifí­cios o espreitassem para esganá-lo.

A cara do Cláudio demitido. Era assim que olhavam no Sanatorinho os que iam morrer, os que estavam morrendo e os que simplesmente tinham medo. De vez em quando, vejo, no Otto, no Hélio, no Borgerth e por um brevíssimo momento, a mesma cara de espanto que faziam em Campos do Jordão. É o olhar de quem está pedindo que alguém os chore, imediata­mente.

Bem, eu me perdi e volto ao Sanatorinho. Quando o médico falou em “leprosa”, toda a enfermaria parou (e o Simão estava no seu canto, acuado). Mas ninguém duvidou, nem o próprio Simão. A verossimilhança era irresistível. Aquela mulher, que ia buscar lenha todas as manhãs, tinha, sim, orelhas, nariz, beiços mais que suspeitos. E o pior eram as bochechas de máscara de Carnaval. Ninguém disse nada. O médico ainda foi de cama em cama, olhan­do o gráfico da temperatura. Disse a um que estava com 38 de febre: — “Repouso absoluto. Come na cama”.

Quando o dr. Hermínio saiu (com as duas mãos enfiadas no avental), três ou quatro correram para o lado do Simão. Lembro-me de que o baiano dos espelhos teve um comichão no braço. Passou as unhas na coceira imaginária, coceira induzida. Foi aí que o Simão disse e repetiu, num desafio maligno: — “Eu não me arrependo, eu não me arrependo”.

Não houve horror. Um espanto moderado, uma pequena an­gústia. Em 1934, o tuberculoso só era fiel, estritamente fiel à pró­pria doença. Uma tosse mais intensa soltava todos os nossos pa­vores. Estávamos, ali, numa construção de madeira e tão frágil, quase de palito, Muitas vezes, na mesa, na cama, na varanda, me sentia indigente. Era pagante, mas aí é que está: — me senti indigente. A maioria não esperava nada da vida, nem de ninguém. Eu me lembro de como se morria no Sanatorinho. O sujeito man­dava chamar a mãe, a mulher, o filho. E não vinha ninguém. O próprio Sanatorinho desaconselhava à família: — “É melhor não vir. Não adianta”.

E ninguém vinha. Minto. Certa vez, apareceu, lá, a mãe de um garoto. Mas chegou tarde: — o filho já estava enterrado. E o que nos preservava era um desespero cínico, um fatalismo jucundo. Vejo um sujeito, junto da pia, escovando os dentes e dizendo: — “Eu acredito na minha mãe e só na minha mãe”. Havia na ala dos indigentes um finlandês que, de vez em quan­do, vinha visitar os pagantes. Naquela manhã, apareceu lá; dis­se, com alegre impiedade: — “Tuberculose ou lepra é a mesma coisa”. Essa autoflagelação radiante fez todo mundo rir. Mas o riso puxava a tosse. O doente procurava disciplinar-se para não chegar jamais à gargalhada.

Na manhã seguinte, estava todo mundo na varanda. E, de repente, ouve-se o grito: — “Lá vem ela!”. Era a fulana que su­bia a ladeira. Durante vários meses, nós a veríamos passar, to­das as manhãs, mesmo na geada. E foi um alarido nas janelas e nas varandas. A mulher fazia gestos, esganiçava o riso, pulava como um índio de cinema. O médico da véspera passou; viu aquilo e disse: — “Vocês não têm vergonha?”. Mas ele próprio sabia que ninguém, ali, podia ver mulher. E depois que a fulana sumiu no alto do morro, houve de repente um silêncio. Rom­pia de todos os cantos uma voluptuosidade triste.

Alguém veio perguntar ao Simão: — “Você teria coragem?”. Ele estava na cama, debaixo de uns cinco, seis cobertores. Res­pondeu outra coisa: — “Estou com temperatura”. Tiritava. Fui perguntar: — “Quanto?”. Ele respondeu: — “Trinta e oito”. Passou o dia todo de termômetro na boca: — 39, 39,5, 40, 39,8. Esteve, de tarde, na radioscopia. O dr. Hermínio espiou e dis­se: — “Uma pequena piora”. Ao voltar para a enfermaria, Si­mão dizia: — “Vou chamar minha mãe”. Sentei-me na cama: — “Mas que é isso e por quê?”. Ele sabia que, em Campos do Jordão, a morte não esperava. O sujeito corado da véspera, gor­do da véspera, podia ser o defunto do dia seguinte.

Meu amigo Simão, o assassino. Um insinuou: — “E a por­tuguesa?”. Respondeu, arquejando: — “Não interessa a portu­guesa. Quero minha mãe”. No dia seguinte, telefonaram para a velha espanhola: — “O Simão pediu para a senhora subir”. Tudo aconteceu numa progressão fulminante. Os médicos ex­plicavam que eram velhas doenças não curadas da mocidade. E o pulmão estava pegando fogo. Estou vendo o médico entrar e dizer para o Simão: — “É melhor você ir para o isolamento”. Lá se foi o Simão. No corredor, e na cama empurrada, repetia: — “Quero minha mãe”. Quando estive no isolamento, ele agar­rou minha mão: — “Não morro antes de minha mãe chegar”. Sua dispnéia era de se ouvir no fundo do corredor.

Mas a velha espanhola chegava de vestido preto, magra, uma cara pétrea de dor. Simão não enxergava mais. Com os olhos de cego, pediu: — “A mão, a mão”. Apanhou a mão, guardou-a no peito. E de repente, a sua agonia ficou tão doce, e tão man­sa. Quando ele morreu, foi a velha que entrelaçou as mãos do filho e com que estremecido amor.

Com a morte de Simão, o assassino, tudo ficou mais triste. De repente, mais triste. Comecei a achar que o Sanatorinho era feito de madeira de caixão. E também os pinheiros, e a lenha que a leprosa ia buscar no alto do morro. Tudo era madeira de caixão.

Vejo a mãe de Simão na volta do cemitério. Entrou na en­fermaria. Apertou a mão dos doentes, um por um (e sua mão era áspera e máscula). Deu-me a sensação de que tinha um olho maior que o outro e que o olho enorme não pestanejava. Disse para mim: — “Apareça”. E, de preto, firme, ereta, a fronte al­çada, parecia uma velha morta há muito tempo. Defuntos os seus modos, e vestido, e meias, e sapatos, e o coque antigo.

Já não sei se disse “apareça”. Por que diria “apareça”, eis o que me pergunto, por que diria? Ela apanhou as coisas de Si­mão, nem tudo. A escova de dentes estava num copo. Mas por que levar a escova de dentes? (E, ao mesmo tempo, teve por um momento a tentação de levá-la.) Depois, fomos olhar a sua par­tida. O táxi a esperava. Enquanto a vimos, Simão parecia menos morto. Mas entrou no táxi, sem dar adeus, com as coisas do filho num embrulho (embrulho amarrado com barbante).

E quando o automóvel arrancou e sumiu mais adiante, sen­timos como se o Simão estivesse morrendo outra vez. O pior foi a cama sem lençol, sem travesseiro e o colchão tão nu e ca­da vez mais nu. Foi nessa noite, de repente, que começou a minha gratidão por Roberto Marinho.

Quando morria um doente antigo, a tosse da madrugada vinha mais cedo. Sim, vinha antes do canto dos galos. (Eu não me lembro de nenhum galo e o Sanatorinho não tinha galos. Mas eu ouvia o seu canto subindo na noite.) Simão estava lá ha­via muitos anos; dava-se com todo o Sanatorinho. E, além dis­so, era assassino, o único assassino entre duzentos ou trezentos doentes. Duas, três da manhã, e começou a tosse.

E tossindo o sujeito tinha medo. Ouço um companheiro dizer, numa cama próxima: — “Estou com um gosto horrível de sangue”. Outros sentavam-se na cama para tossir melhor. Al­guém gemia: — “Meu Deus, meu Deus”. Havia um menino na enfermaria, dos seus catorze anos; começou a chorar. Enquan­to os outros tossiam, eu pensava em Roberto Marinho.

Na minha insônia, imaginava as hipóteses mais cruéis. Via Roberto Marinho chamando Mário Filho e dizendo: — “Vou sus­pender o dinheiro do Nelson. O Globo está fazendo economia etc. etc.”. Se Roberto dissesse isso, cortasse meu ordenado, eu estaria morto. Poderia passar para a ala dos indigentes. Nova­mente me imaginei varrendo o chão, mudando a roupa de ca­ma, fazendo pequenos serviços. E o que mais me humilhava era servir à mesa.

“Não faço isso”, eis o que decidia. E, ao mesmo tempo, comecei a imaginar outras e outras cenas. Caso fosse despedido, desceria imediatamente. Desceria e iria falar com Roberto. Eu me via entrando em O Globo. Todos me fariam festa. Na mesa, estaria o Manoelzinho Gonçalves. Mais adiante, o Rafael Bar­bosa reescrevendo a matéria alheia.

Ninguém, ali, imaginaria o meu ódio. E eu diria: — “Ro­berto, você me despediu. Eu vou morrer, mas você vai morrer comigo”. Faria com o Roberto o que o Simão fizera com o chauffeur. E me imaginava, em plena redação, ali no antigo edifício do Liceu, atirando, atirando. Bem me lembro de que, na­quela ocasião, dizia o Sodré Viana: — “Se me despedirem, e se minha família passar fome, mato o patrão. Mato”. E o patrão ou era o Herbert Moses ou era o Roberto Marinho.

Passei a noite em claro. Fiz a minha fantasia homicida com toda a sorte de variações. Se eu desandasse a dar tiros, que fa­riam os redatores? Sim, como reagiria Horácio Cartier, o estilis­ta? Cartier andava pela redação chamando todo mundo de “mi­nha flor”. E que faria ele se eu começasse a dar tiros? Subiria na mesa? E os outros, derrubariam cadeiras?

Depois, eu preso. Alguém berrando: — “Chama a Assistên­cia”. E, de repente, o crime imaginário ficava tão parecido com o assassinato do meu irmão. E quando arrancaram o queixo de Kennedy com um tiro, era o meu irmão que morria. Onde quer que matem alguém, é ainda meu irmão que morre, assassinado, eternamente assassinado.

Fumando no escuro, ouvia agora a voz de Roberto Mari­nho: — “O que me interessa é que o Nelson fique bom”. E, de repente, enquanto o Sanatorinho tossia, começou a minha gratidão. Ali, descobri subitamente tudo: — sou muito mais suicida do que homicida. Ainda hoje, não posso chegar numa janela alta. Basta olhar para baixo. E me vem o apelo doce, persuasivo, da morte. Pergunto: — “E se me atirasse?”. Se me atirasse, começaria para mim o tempo dos mortos: eu seria um deles; e ficaríamos unidos, mortos e unidos, docemente mor­tos e irmãos.

(Trinta e tantos anos depois, Roberto Marinho me chama. Conversamos no seu gabinete da rua Irineu Marinho. E ele me disse: — “Nelson, vou fazer o seguinte. Estive pensando e vou transferir as minhas ações do Jornal dos Sports para o Paulinho”. Ainda conversamos algum tempo. Ali estava, na minha frente, com seus 62 anos, Roberto Marinho, e era menino, tragicamente menino.)

Na manhã seguinte ao enterro do Simão, o diretor de O Glo­bo deixara de ser a “besta do Roberto”, o “cretino do Rober­to”. Ainda hoje, há quem o chame de pulha, de canalha. E eu o vejo inclinar-se para meu irmão Paulo com tanto amor. E co­migo? Passei três anos sem trabalhar. Ele me deu cada tostão do meu tratamento. No fim do segundo ano, eu já estava bom. Mas meu irmão Joffre caiu doente. Joffre era amado por mim como um filho. Quis acompanhá-lo. Roberto Marinho me disse: — “Vai, vai”. Passei sete meses, em Correias, ao lado de Jof­fre. Só desci quando ele morreu. E Roberto Marinho solidário, momento a momento. E quando, muito mais tarde, passou pa­ra Paulinho as suas ações, sai do seu gabinete arrasado. Lembro-me de que alguém, que vinha passando, quis sair comigo. Eu disse: “Vou ali um instantinho”. Fui chorar no mictório.

Se me perguntarem quando é que comecei a ser Nelson Rodrigues, eu diria que foi na Escola Prudente de Morais, na Tijuca. Eu estava, se não me engano, no quarto ano primário. A escola ficava perto do Hospital Evangélico. E, um dia, houve, na aula, um concurso de composições.

Geralmente, escrevíamos sobre vacas de estampa. Desta vez, porém, a professora deu-nos liberdade de assunto. E hou­ve, ali, entre meninos e meninas, uma furiosa competição. Era o tempo em que eu me apaixonava, obrigatoriamente, por to­das as professoras. Já disse que fui, por toda a minha infância, um Werther, pequenino e cabeçudo. No dia em que me matri­culava, eu começava a amar minha professora. Ainda não a co­nhecia, não a tinha visto e me crispava de amor.

Houve o concurso e ganharam dois alunos: — eu e outro garoto. Por coincidência, os vencedores eram os dois gênios da classe. O meu rival escrevera sobre um rajá, que passeava num elefante. Não acontecia nada, rigorosamente nada. Ou por ou­tra: — só acontecia o passeio. Mas julguei notar, no texto inimi­go, um lapso grave: — seu rajá não tinha um diamante na testa, o diamante que eu poria se fosse o autor.

Minha composição era todo um gesto de amor desespera­do. Eu escrevia para a professora, isto é, para o ser amado. E me lembro de que começava assim: — “A madrugada raiava san­güínea e fresca”. Confesso que fiz o plágio com um secreto ter­ror. E se a professora gritasse: — “Esse ‘sangüínea e fresca’ é do Raimundo Correia!”? Seria a humilhação feroz, a vergonha total. As meninas já me chamavam de maluco. E que diriam elas se eu fosse pilhado saqueando o pobre soneto?

Eu não sabia que também Raimundo Correia furtara de um outro. E, na verdade, o que eu cometi, aos sete anos, foi o plá­gio de um plágio. Mas a “sangüínea e fresca” madrugada havia de doer, por muitos e muitos anos, na minha consciência lite­rária. Já adolescente, descobri que o poeta patrício metera a mão no pombal de Théophile Gautier. E, mais adiante, verifiquei que o plágio é menos incomum de que imaginavam os meus sete anos.

Falo do nosso Carlos Drummond de Andrade. Quem não conhece os seus “mortos de sobrecasaca”? Versos maravilho­sos, não há dúvida. Mas a imagem final, admirável, suscitou-me uma vaga ou, por outra, uma obsessiva dúvida. De onde a co­nhecia? E quanto mais relia, mais aquele som me parecia fami­liar e comprometedor. Até que, subitamente, baixa uma luz e um nome brota da minha perplexidade: — Victor Hugo.

Eis a verdade: — a imagem do Drummond era uma goiaba que o nosso poeta nacional fora caçar no pomar hugoano. Fei­ta a constatação, eu me aliviei, e para sempre, do sentimento de culpa. Mas a professora não percebeu nada. Parou na primeira frase. Disse, pondo o dedo na imagem: — “A madrugada raiava sangüínea e fresca”. Estava deslumbrada (ainda a vejo. Tinha papada e eu a amava). O menino do rajá olhou para mim com um ódio adulto. E as meninas, que me chamavam de maluco, já sorriam. Se eu quisesse, se não fosse fiel à professora, teria arranjado umas duas namoradas por conta do plágio.

Em seguida, porém, veio o pânico. Eu passava do soneto para a mais deslavada A vida como ela é... E, por isso, escrevi que, ali, comecei a ser Nelson Rodrigues. A vida como ela é... é muito anterior à Última Hora, a Samuel Weiner. Data de 1922; nasceu de um plágio, na sala do quarto ano primário da escola pública. Com oito anos incompletos, eu contava um adultério, com todos os matadouros. O marido saía e a mulher, nas bar­bas indignadas dos vizinhos, chamava o amante.

Eu era um moralista feroz. E não fui, confesso, nada compassivo. Um dia, o marido volta mais cedo. Ao entrar em casa, vê aquele homem saltar da janela, pular o muro e sumir. A mulher caiu-lhe aos pés, soluçando: — “Não me mate! Não me mate!”. O marido agarrou-a pelos cabelos. E o que houve, em seguida, foi uma carnificina. Lembro-me de que a composição termina­va assim: — “Acabou de matá-la a pontapés”.

A professora acabou de ler e olhara para mim, aterrada. De­pois, levantou-se e foi mostrar o texto à diretora. Daí a pouco, apareciam, na porta, a professora e mais duas ou três. Uma de­las perguntou, baixo: — “É aquele? Da cabeça grande?”. Era eu, sim. Fui chamado. Levantei, vermelhíssimo. Todo mundo estava interessado no erotismo e na crueldade da história e dos personagens. No elogio, não. Quase me farejaram como se eu fosse um pequeno tarado.

Mas era ainda um escândalo risonho, um escândalo terno. Riam entre si. Perguntavam: — “Como é que você tem essas idéias?”. Eu baixava a vista, rubro de vergonha. E amei, como nunca, a professora da papada. Depois, veio o resultado: — eu e o garoto do elefante em primeiro lugar. Desprezei o rival, que não tinha posto o diamante na testa do rajá.

E, de repente, comecei a sentir que ninguém me compreen­dia. O plágio me reabilitou, por um momento, aos olhos das meninas. Pouco depois, porém, voltavam a me chamar de ma­luco. E, uma vez, eu escutei uma conversa de professoras. A mi­nha estava dizendo: — “Ele me olha como se. De um jeito que”. E outra baixava a voz: — “Não é normal”. Quando me viram, eu senti o julgamento. Era como se eu estivesse nu e todas me olhando.

E não sabiam de nada. Não imaginavam que eu era de uma pureza desesperadora. É certo que, uma vez, eu vira uma demen­te nua. E a pobre, humilhada e feia nudez fora meu espanto e meu medo. Eu amava a minha professora. Mas não olharia no buraco da fechadura o seu banho. Sempre, sempre, quis um amor eter­no; e que nem a morte fosse a separação.

Aos sete anos e, aos vinte e tantos, no Sanatorinho, eu que­ria amar para sempre e não trair. Mais tarde, eu saberia que trair um amor é uma impossibilidade. Mesmo com outra mulher é o ser amado que estamos possuindo. Ainda na Escola Prudente de Morais, eu li, certa vez, no jornal, o pacto de morte de um rapaz e uma menina. E pensei então, por outras palavras: quem nunca morreu com o ser amado, não sabe o que é amor e é um impotente da alma.

 “Mário Rodrigues era um passional”, disse Carlos Lacerda, acrescentando: — “E morreu de paixão”. Conversávamos na casa do José Luís Magalhães Lins, que fazia anos, ontem. Fomos uns vinte ou trinta amigos abraçar o aniversariante e comer-lhe a feijoada inexcedível. O curioso é que, ao comer a feijoada, eu me sentia abissínio e até agora me pergunto: — por que abissínio?

Cheguei lá, graças à fraterna carona do Otto Lara Resende. E todos, ali, eram meus amigos, desde o Almeida Braga, o doce Braga, até o Miguel Lins, o Armando Nogueira, o Celso Bulhões, o Adolpho Bloch. (Ah, o velho Adolpho da Manchete, com o seu perfil de Nero.) Eis o que eu queria dizer: antes do almoço, Carlos Lacerda começou a falar de Mário Rodrigues, o jornalis­ta que fascinara a sua infância.

Ora, meu pai é, na minha vida, uma figura obsessiva. Eu não seria o que sou, não teria escrito uma frase, uma linha, uma peça, se não fosse seu filho. Estou todo embebido de sua vio­lência e de sua fragilidade. Ainda agora, eu o vejo, doente, na cama, com a face escavada pela agonia. Eu me lembro de sua última noite. Da esquina, já se ouvia a sua dispnéia.

Morreu há 37 anos. Eu direi tanto tempo depois: — Mário Rodrigues foi o maior jornalista brasileiro de todos os tem­pos. Desde os sete anos, eu lia os seus artigos e me crispava de beleza. Ainda hoje, eu os releio: e eles preservam, através das gerações, o verbo fremente de justiça e de procela. E, no entanto, ninguém fala de Mário Rodrigues. Nas histórias jorna­lísticas, o seu nome não aparece. Há um silêncio e repito: — um vil silêncio.

Eu diria que o silêncio iníquo é também a glória. No almo­ço de ontem, Carlos Lacerda lembrou um episódio, que o feriu de espanto, quase de medo. Foi, se bem me lembro, em 1925. Carlos era então um menino de calças curtas e eu também um menino de calças curtas. Ele entra na rua Treze de Maio e vê um espetáculo, desses que ninguém esquece. Sim, a rua Treze de Maio estava transformada num súbito, gigantesco pátio de milagres.

E, então, aconteceu uma cena muito parecida com um pe­sadelo: mutilados largavam as muletas, ou as erguiam, para acla­mar um homem: — Mário Rodrigues. Mas que fizera este ho­mem para que, de repente, os aleijados, os cancerosos, os tísicos se prostrassem diante de sua imagem como de um santo?

O pátio de milagres não se instalara por acaso, debaixo de nossas sacadas. Meu pai premeditara tudo; ele chamara, pelo jor­nal, os pobres da cidade. E por quê? Imaginem vocês que meu pai fazia, na ocasião, uma campanha feroz contra o governo de Pernambuco.

O governador era, então, Sérgio Lorêto. E Mário Rodrigues não escrevia uma linha sem paixão. Hoje, o profissional de im­prensa pode ser um péssimo jornalista, mas é sempre um exí­mio datilógrafo. Naquele tempo, não. Meu pai jamais bateu no teclado de uma máquina. Escreveu milhares de artigos e tudo à pena. Eu o vejo na mesa enchendo tiras e tiras de papel almaço. E era, sempre, um Zola.

Mesmo escrevendo sobre um cano furado, tinha, sim, as iras de um Zola. Dizia horrores de Sérgio Lorêto. Dizia horrores de Sérgio Lorêto e de sua administração. Primeiro, foi ameaçado. A política pernambucana ainda se nutria de ódios shakespearianos. E eu não me esqueci, nunca, do caso de Trajano Chacon.

Durante toda a minha infância, eu ouvira falar de Trajano Chacon. Era um jornalista pernambucano “sem papas na língua”, como se dizia. Desafiou a onipotência de um poderoso local. Uma noite, foi cercado por quatro ou cinco sujeitos. E o mata­ram, ali mesmo, num canto de rua. O pior é que não foi a faca, nem a tiro, nem a navalha. Os assassinos usaram cano de chum­bo. Eu me lembro de alguém contando, lá em casa, o crime. Era um velho, que fazia o cigarro de palha e explicava: — “Tra­jano estava morto e ainda batiam. Os ossos ficaram que nem mingau”.

Durante a campanha contra Sérgio Lorêto, eu só pensava em Trajano Chacon. E se viessem capangas do Recife? E se ma­tassem meu pai a cano de chumbo? Nas minhas fantasias infan­tis, eu imaginava as ruas, as esquinas dizendo: — “Mataram Má­rio Rodrigues!”. E meu pai teria um enterro como nunca se viu no Rio de Janeiro. Quando passasse o carro de penacho o povo havia de chorar em cima do meio-fio.

Mas o governo de Pernambuco não queria matar meu pai. Mandou um conhecido perguntar: — “Quanto você quer?”. Era um Geraldo não me lembro de quê. Meu pai pensa, pensa e co­meça: — “Bem. Depende. Eu paro se”. E acabou pedindo uma quantia que, para a época, era astronômica. O intermediário toma um susto; objetou que “os outros” eram muito mais ba­ratos. Mostrou recibos de altas figuras da imprensa. Meu pai encerrou a discussão: — “Ou isso ou nada”. O sujeito saiu, pro­metendo uma resposta para o dia seguinte.

O fulano não voltou. Quem apareceu foi Souza Filho, esse sim, amigo de meu pai. Fechou o negócio. E meu pai recebia, em seguida, o dinheiro. Não precisaria escrever nada a favor; apenas não seria contra. E, com efeito, não houve, na época, um silêncio tão bem remunerado. No dia seguinte, A Manhã abre, em festa, as suas manchetes, contando todo o processo do suborno; e, ainda, nos cabeçalhos garrafais, meu pai anun­ciava que ia distribuir o dinheiro, até o último tostão, entre os pobres do Rio de Janeiro.

Daí o pátio de milagres que, em 1925, assombrou o meni­no Carlos Lacerda. Alguém que passasse por lá e visse aquela massa apavorante, havia de imaginar que éramos uma popula­ção de mutilados, de entrevados, de cancerosos. Quando meu pai surgiu, lá em cima, ergueu-se da multidão um gemido gros­so, vacum. Eu estava também na sacada. E quando o dinheiro começou a ser distribuído começou um lúgubre alarido. Foi da­do, como já disse, até o último tostão. Eu vi seres incríveis que, em vida, apodreciam em chagas. No fim, meu pai tirava o di­nheiro do próprio bolso e dizia: — “Dá, vai dando”.

E assim, ao cair da noite, desfez-se o pátio de milagres em­baixo das sacadas de A Manhã. Meu pai desceu, então; o Ford, de bigodes, o esperava, na porta. Na calçada, parou, um mo­mento, olhando a rua. E, então, alguém, agachado na treva, pu­la sobre meu pai. Eu me lembro apenas de um olho que era uma chaga. Tudo aconteceu tão depressa. Uma cara baixou e beijou a mão do meu pai. Depois, eu vi a sombra fugir, rente à parede. Não sei por que, mas quando penso nesse beijo ferido, eu acre­dito mais em mim mesmo e nos outros.

Bem. Vamos falar de teatro. Começarei perguntando: o que é reputação? Eis a verdade: — o que nós chamamos de reputa­ção é a soma de palavrões que inspiramos através dos tempos. Não sei se em toda parte será assim. No Brasil, é. Nada mais por­nográfico, no Brasil, do que o ódio ou a admiração. E uma das minhas experiências dramáticas mais consideráveis foi a seguinte.

Era ali, no antigo Teatro Serrador. A companhia da minha irmã Dulce Rodrigues estava levando a minha peça A mulher sem pecado, remontada por Rodolfo Mayer (A mulher sem pe­cado fora o meu primeiro texto teatral). Silêncio total na platéia. A peça vivia esse ponto de crise, que um poeta chamou de tensão dionisíaca. Eis o que acontecera no palco: — o per­sonagem central, que passara, até então, por paralítico, ergue-se da cadeira de rodas. “Não sou paralítico, nunca fui paralíti­co”, é ele próprio quem o diz.

Pois quando o mistificador se levanta, e confessa, ele pró­prio, a farsa crudelíssima, acontece o absurdo. Uma senhora da platéia — e que comia pipocas na primeira fila — deixa escapar um palavrão. E não em surdina. Foi, realmente, um palavrão ní­tido, límpido, inequívoco. Como havia um silêncio de morte, o som torpe ocupou todo o espaço acústico do teatro. Foi ou­vido da primeira à última fila, inclusive no palco.

Todo o elenco olhou a espectadora, gorda como uma viú­va machadiana. E como fazia calor, alguém julgou perceber, no seu pescoço, um colar de brotoejas. O falso paralítico, que se mata no final, ao encostar na fronte o cano do revólver, ainda a olhava, num mudo escândalo desolado. Eis o que eu queria dizer: — a obscenidade não foi, de modo algum, um protesto.

Pelo contrário: — era a adesão mais frenética ao espetáculo. Há um momento, numa peça, em que rompe, das profundezas da platéia, um êxtase cálido, irresistível. E o palavrão da gorda marcou, justamente, o instante de graça plena. Na minha perple­xidade, quis parecer-me que só a admiração pornográfica é válida.

Muito tempo depois do espetáculo, e com o teatro já va­zio, ainda estava no ar o palavrão em flor. Contei o episódio para concluir: — fora montado, na cidade, e no resto do país, todo um folclore pornográfico em torno do meu nome e de mi­nha obra. Sim, durante muito tempo a minha glória foi a soma de todos os palavrões que eu merecia das salas, esquinas e bo­tecos.

Tudo começou quando? A partir de Álbum de família, con­tinuando em Anjo negro, Senhora dos afogados, até meu texto mais recente, Toda nudez será castigada. Diziam de mim o dia­bo. Lembro-me de uma senhora que afirmou o seguinte: — eu dormia, vejam vocês, eu fazia a minha sesta num caixão de de­funto. E se o ouvinte fazia um esgar de dúvida, logo a santa se­nhora jurava: — “Pela vida dos meus filhos!”. Uma outra des­cobriu que eu sou necrófilo.

Eu me imaginava pulando o muro do cemitério e violando túmulos recentes. Ou, então, de mãos entrelaçadas, num cai­xão, ensaiando a minha própria morte. Tudo, rigorosamente tu­do, eu devo ao meu teatro. Sim, a imagem que as minhas peças vendem do autor é a de um sujeito agarrado às abjeções mais tenebrosas. Certa vez, um garoto perguntou festivamente ao meu filho Joffre: — “Teu pai é pederasta?”. Joffre, ainda adolescen­te, teve de agredir, fisicamente, o amigo ingênuo.

Lembro-me também da estréia da minha peça Perdoa-me por me traíres, no Municipal (foi produtor do espetáculo, e um dos intérpretes, o ator Gláucio Gil, que morreria, anos depois, diante das câmaras e microfones, fuzilado por um enfarte). Me­tade da platéia aplaudia, outra metade vaiava. E, súbito, num dos camarotes, ergue-se o então vereador Wilson Leite Passos. Empunhava um revólver como um Tom Mix. Simplesmente, queria caçar meu texto a bala.

Não creio que haja, no drama, desde os gregos, outro exem­plo de um original dramático quase fuzilado. Aos 54 anos de vida, eu paro um momento e penso nos amigos e inimigos dos meus textos. Sempre os tive, uns e outros, em generosa abundância. E ainda não sei, francamente não sei, qual o mais perni­cioso para o artista, se o que admira, se o que nega. Ou por ou­tra: — sei.

Eu devo muito e, quase dizia, eu devo tudo aos que me cha­mam, por exemplo, de “cérebro doentio”. Quando o vereador puxou o revólver, eu me senti justificado, teatral e humanamen­te. Eu estava no palco, representando (embora sabendo que sou o pior ator do mundo, quis me unir à sorte de uma peça que eu sabia polêmica). Eu me lembro de que, a propósito de Perdoa-me por me traíres, o dr. Alceu Amoroso Lima escreveu: — “Uma peça cuja abjeção começa pelo título”.

Quando li isso no dr. Alceu, fui possuído por uma certeza feroz: — “Estou certo”. Certo, moral, social, dramaticamente certo. E mais certo ainda como cristão. O Tristão, que anda es­casso de Jesus, indigente de Cristo, disse isso. Eu me lembrei de meu pai, que, na sua justiça muito mais lúcida e mais compassiva, escrevia: — “Quantas mulheres existem sem o direito de se conservarem fiéis?”.

Mas dizia eu que devo muito aos inimigos e muito pouco, ou quase nada, aos admiradores. Os meus admiradores quase me perderam. Quando escrevi Álbum de família, Manuel Ban­deira declarou, em entrevista a O Globo, entre outras coisas, que eu era, “de longe, o maior poeta dramático que já apareceu em nossa literatura”. É, como se vê, um elogio de ardente serieda­de. E quem o assina é um dos maiores poetas da língua.

Mas não sei se, hoje, Manuel Bandeira diria o mesmo. Há anos e anos que deixei de merecer o seu louvor. E é maravilhoso que assim seja. Os admiradores, inclusive o poeta, quase provo­caram a minha morte artística. Eis a amarga verdade: — durante algum tempo, eu só escrevia para o Bandeira, o Drummond, o Pompeu, o Santa Rosa, o Prudente, o Tristão, o Gilberto Freyre, o Schmidt. Não fazia uma linha sem pensar neles. Eu, a minha obra, o meu sofrimento, a minha visão do amor e da morte. Tudo, tudo passou para um plano secundário ou nulo. Só os admiradores existiam. Só me interessava o elogio; e o elogio era o tóxico, o vício muito doce e muito vil. Pouco a pouco, os que me admiravam se tornaram meus irresistíveis co-autores. E quando percebi o perigo, o aviltamento, comecei a destruir, com feroz humildade, todas as admirações do meu caminho.

Já falei do cantor de tango que foi parar no Sanatorinho. Era, em Santos, uma espécie de Gardel ou, mais modernamen­te, de Hugo del Carril. E cantava por esmolas, como um cego. Anos depois, vim a conhecer os falsos cegos da vida literária. Eles faziam o seu romance, o seu poema, o seu conto, a sua pe­ça. Em seguida, corriam o pires, recolhendo e embolsando os elogios.

Por exemplo: o doce e formidável Jorge de Lima. Era um cego, meu Deus, docemente cego, como um que toca acordeão, na rua do Ouvidor. Outro dia, fui ver o Zé Luís, no Banco Na­cional de Minas Gerais. O ceguinho tocava, na sanfona, a “La cumparsita”. E Jorge de Lima era exatamente assim. Quando saiu Invenção de Orfeu, ele andava de pires, esperando que cada qual pingasse o seu ditirambo.

A meu ver, ele era, e é, o maior poeta brasileiro. E, no en­tanto, comportou-se na vida literária como o ceguinho da rua do Ouvidor ou o falso cego do Sanatorinho. Quando percebi que ele estava de pires na mão, fiz-lhe os elogios mais alucina­dos. Lembro-me de que, certa vez, respondendo a uma enquete de Paulinho Mendes Campos, disse: — “Depois de Invenção de Orfeu, o Brasil está cheio de ex-grandes poetas”. E Jorge de Lima retribuiu logo, crispado de gratidão. Mandou-me um livro e me chamou, na impulsiva dedicatória, de “o grande” Nelson Rodrigues.

Eis o que eu queria dizer: — eu também andei de chapéu, ou de pires na mão, pedindo pelo amor de Deus que me elo­giassem. Se me perguntarem se eu fiz os papéis mais humilhan­tes, eu direi que fiz, sim, os papéis mais humilhantes. Tudo o que eu escrevia saía mostrando, de porta em porta. Eu me lem­bro de minha primeira peça, A mulher sem pecado. Minha in­tenção inicial, e estritamente mercenária, era fazer uma chan­chada e, repito, uma cínica e corajosa chanchada caça-níqueis.

Todavia, no meio do primeiro ato, começou a minha am­bição literária. E o curioso é que, até então, eu me sentia ro­mancista e não teatrólogo. Era a história de um paralítico que, nos seus delírios eróticos, induzia a mulher ao adultério. No fim, apelei para uma solução dramática que não estava nos meus cál­culos: — o paralítico não era paralítico. Simplesmente, testava a fidelidade da mulher. E quando, finalmente, ergue-se da ca­deira de rodas, era tarde, tarde demais. A mulher fugira com o chofer.

Com o texto debaixo do braço, eu pensei menos nos direi­tos autorais. Pouco importava que o meu texto fosse ou não remunerado. Eu queria o elogio, não simplesmente falado, co­chichado. Queria o elogio impresso. Certa vez, eu vira o Marques Rebelo entrar no Globo com o volume de Três caminhos. Ofereceu não sei a quem e lá deixou um retrato. Eu também queria ver a minha cara no jornal.

Eu me vejo entregando o original a Henrique Pongetti ali no Palácio Tiradentes. Dois dias depois, voltei. Ia desesperado. Pensava: — “Pongetti não vai gostar. Vai achar uma porcaria”. Eu me imagino trêmulo (e abjeto) de humildade. Pongetti me devolveu a cópia, dizendo: — “É uma peça universal”. Essa opi­nião, sucinta, taxativa, inapelável, me assombrou. Senti as fa­ces em fogo como um esbofeteado. Minha úlcera crispou-se co­mo uma víbora (ou por outra: — eu ainda não tinha úlcera). Saí de lá borracho, como se dizia nos velhos tangos. Desci a rua São José e me sentia um Ibsen.

Eu era, então, cronista esportivo. E me humilhava, e me ofendia estar escrevendo sobre futebol. Saíram vários retratos meus, mas ao lado de nadadores, de jogadores e do Homem-Peixe. Sodré Viana me dizia: — “Você tem que deixar o esporte, rapaz.” Uma tarde, levei o Roberto Marinho para a sacada e pedi-lhe para ser crítico literário de O Globo. Ele achou, no meu pe­dido, uma graça compassiva. E eu continuei fazendo futebol.

Minto. Já trabalhava, então, no Globo Juvenil. Era uma re­vista de história em quadrinhos, que estava fazendo um impres­sionante sucesso. E eu me sentia mais seguro de mim mesmo, porque escrevera uma peça e porque saíra do futebol. O problema agora era a representação. Foi meu irmão Mário quem me disse: — “O Vargas Netto manda no Abadie”. Abadie era diretor do Serviço Nacional de Teatro, que subvencionava uma companhia oficial: — a Comédia Brasileira.

Corri ao Vargas Netto. Ele não conhecia nem o autor, nem a peça. Mas gostava do Mário e escreveu ao Abadie com uma larga e cálida efusão. Entregou-me a carta e dizia: — “Fui eu que dei o emprego ao Abadie”. Estávamos em pleno Estado Novo. Ao nome de Vargas abriam-se as paredes, assanhavam-se as ca­deiras. Pobre Abadie. Sem ler uma vírgula de A Mulher sem pe­cado, incluiu-a no repertório e ainda datou a estréia. O êxito fulminante deu-me uma dispnéia: eu arquejava, ouvindo o di­retor do snt.

E, então, comecei a apelar para as minhas relações jorna­lísticas. Agredia os conhecidos no meio da rua: — “Escreve, escreve”. Esse impudor voraz irritava alguns. Um redator do Correio da Noite, que então circulava, reagiu: — “Não te conheço!”. E quando saía uma notícia, eu ia, pela redação de O Globo, mostrando de mesa em mesa. No ensaio geral de A mulher sem pecado, eu pensava muito em Gilberto Amado.

Por que em Gilberto Amado, se ele não tinha nenhuma relação com o teatro? Eu explico: — aos doze anos de idade, eu lia de José do Telhado a Dumas pai, de Xavier de Montepin a Zola. E, um dia, apanhei A chave de Salomão. Na terceira, quarta página, descobri esta imagem: — “O Pão de Açúcar tinha qualquer coisa de humoristicamente nu dentro da luz”. Reli, atônito de beleza. E aquilo não me saía dos ouvidos. O Pão de Açúcar, humoristicamente nu, e dentro da luz, foi meu espanto e meu deslumbramento.

Mais adiante, outra imagem: — “A luz tremia como uma pétala sensível”. E voltei à pedra colossal e à sua nudez hu­morística. Repeti, a meia voz, fascinado pelo som: — “O Pão de Açúcar”. Posso dizer que a frase de Gilberto Amado, lida aos doze anos, foi o afrodisíaco auditivo que me potenciali­zou para a vida literária. Ali, eu quis ser escritor, bom, péssi­mo, medíocre ou formidável, mas escritor.

Eu me lembro do grande dia. A mulher sem pecado ia estrear. Lembro-me de que, às seis, seis e pouco da tarde, eu fiquei um momento, só, na platéia. Os artistas estavam no camarim comendo sanduíches. No palco, o décor feito. E, então, baixou a mim o medo. Eu senti que só é sagrado o tea­tro de cadeiras vazias. A mulher sem pecado era ainda uma le­ve, ágil, diáfana pirueta. O grande salto mortal seria Vestido de noiva.

Nós sabemos que o sujeito mais livre do mundo é o leitor. Nada interfere no pudor, na exclusividade e na inocência de sua relação com a obra de arte. Está só, espantosamente só, com o soneto, o romance ou com o drama. Já o espectador é o mais comprometido, o mais impuro e, por outra, o menos inteligen­te dos seres.

Eu percebi isso, de repente, na estréia de A mulher sem pe­cado. Não foi um texto que me fez autor; nem a representação, nem o décor. Eu não era ainda autor no ensaio geral. Foi preciso que, de repente, o público invadisse o teatro. Lembro-me de uma senhora gorda, de chapéu, e que entrou — comendo pipocas. Naquele momento, eu descobri uma verdade jamais suspeitada: — o teatro é a menos criada das artes, a mais incriada das artes.

Gide tinha horror do teatro, porque este é a síntese de to­das as artes. Nem isso. O teatro não chega a ser arte. E a senho­ra gorda, devoradora de pipocas, tinha um prodigioso valor sim­bólico. Afinal, eu escrevera para ela e pensando nela; e não só eu. Dos gregos a Shakespeare, de Ibsen a O’Neill, todos escre­vem para a senhora gorda. Portanto, eu diria, ainda hoje, que ela é co-autora de cada texto dramático.

Um Shakespeare é apenas co-autor de si mesmo; o outro co-autor é cada sujeito da platéia. Seria válido o público, se ti­vesse uma função estritamente pagante; ou, mesmo sem pagar, se fosse passivo e grave como uma cadeira. Mas o público pen­sa, sente, influi, aplaude e vaia. O autor não tem nada a ver com o sucesso. Quem o faz é o público.

Mas dizia eu que o espectador jamais consegue ser inteli­gente. Está inserido na multidão: é um contra os demais. Essa inferioridade numérica esmaga um gênio. Como se pode ser lú­cido se, ao lado, está a tal senhora gorda comendo pipocas? Nada mais obsessivo do que o movimento de suas mandíbulas. Eu tive essa experiência na primeira noite de A mulher sem peca­do. Estava perdido no meio de umas quinhentas pessoas.

Durante duas horas e meia de representação, nunca se tos­siu tanto. Até hoje, não sei se a tosse geral existiu mesmo ou se foi uma alucinação auditiva do autor. Deu-me a vontade pue­ril, absurda de pedir: — “Não tussam, não tussam!”. De resto, eu vinha do Sanatorinho. Lá, aprendera que só há uma tosse admissível: — a nossa.

De repente, começo a pensar: — “Estou chato! Estou cha­to!”. Essa constatação me devastou. No palco, o paralítico ber­rava: — “A fidelidade devia ser facultativa”. Achava eu que tal frase devia ser um impacto. Mas a platéia não teve uma reação, nada. Novo surto de tosse. Eu me afundei na cadeira, desvairado.

No meio do segundo ato, estava mais do que nunca con­vencido de que é o público que faz do teatro uma arte bastar­da, uma falsa arte. Comecei a imaginar uma representação utó­pica, ideal, para cadeiras vazias. Só seria autor, ou atriz, ou ator aquele que estivesse disposto a trabalhar para ninguém. A peça aproximava-se do fim e eu devaneava, furiosamente. Comecei a achar que também as igrejas vazias são as mais belas. O que comprometia e debilitava a fé eram os fiéis. E, de repente, o paralítico pula da cadeira de rodas.

A surpresa geral deu-me uma satisfação maligna. Houve, no teatro, um momento sem tosse. Alcei a fronte. E o que me hu­milhou é que ninguém, por perto, viu em mim o autor. Imbe­cis, imbecis. Agora estava com medo. Convidara parentes, vizi­nhos, conhecidos. E se não me chamassem à cena? Em outras peças, inclusive chanchadas, três ou quatro sujeitos punham-se de pé, aplaudindo e berrando: — “À cena, o autor! À cena, o autor”. E quem me aplaudiria de pé? Quem me chamaria, quem?

Baixou o pano e subiu. Realmente, não apareceu vivalma chamando o autor. Na saída, um vizinho veio me abraçar. Dis­se: — “Gostei”. Sorri, pálido. Pouco depois, estou numa leiteria próxima, com a família, tomando média. Comendo pão com manteiga, eu pensava: — “O teatro não existe. O que existe é a platéia”. E, depois, enxugando a boca com o guardanapo de papel, concluía: — “O teatro já morreu”.

(Uns vinte anos depois, tenho uma conversa com o Vianinha, ou, por extenso, Oduvaldo Viana Filho. O colega tomava cerveja e eu água da bica. E o Vianinha, depois de lamber a es­puma dos bigodes imaginários, dizia-me, com uma convicção forte: — “Teatro é platéia”. Deixei passar um momento e per­guntei, com a minha timidez de velho: — “Você tem certeza, Vianinha, que teatro é platéia?”. Primeiro, o Vianinha fala com o garçom: — “Traz outra”. Em seguida, vira-se para mim e confirma que teatro é, sim, duzentas senhoras gordas comendo pi­pocas, com um pavoroso trabalho de mandíbulas.)

Ao voltar para casa, de bonde, eu já pensava em Vestido de noiva. Mais dois ou três dias e tinha tudo na cabeça. Ressen­tido com o público, estava disposto a agredi-lo. A dúvida era o título. Véu de noiva? Ou vestido? Preferi “vestido”, porque queria um título sem nenhum ornato. E comecei a escrever a peça. Eu trabalhava, como já disse, no Globo Juvenil. Foi lá que, uma tarde, bati à máquina a primeira tira de Vestido de noiva (tudo em espaço um). E, súbito, vem o secretário da revista, Djalma Sampaio, espiar por cima do meu ombro. Viu que era um texto teatral e pulou: “Fazendo teatro aqui? Aqui?”.

Passei a trabalhar em casa. Eu imaginara, para Vestido de noiva, o processo de ações simultâneas, em tempos diferentes. Uma mulher morta assistia ao próprio velório e dizia do pró­prio cadáver: — “Gente morta como fica”. Morrera, assassinada, em 1905, e contracenava com uma noiva de 1943. Eu acre­ditava no êxito intelectual, mas acreditava ainda mais no fracasso de bilheteria.

“O público não vai entender nada”, era o que eu pensava, numa euforia cruel. Como da vez anterior, saí, de porta em porta, com o original debaixo do braço. Escrevera Vestido de noiva com uma seriedade desesperada, suicida. Mas sonhava com o elogio supremo. O primeiro a ler foi Manuel Bandeira. Dois dias depois, telefonei: — “Leu?”. Ele ia respondendo: — “Li. Achei muito mais interessante do que A mulher sem pecado”. Disse ainda: “O que me agrada é que não tem nenhuma literatice”. Atraquei-me ao telefone: — “Você escreve? Escreve?”. E, ao mesmo tempo, eu sentia asco do meu próprio apelo.

Ainda ouço a minha voz e, sobretudo, o tom insuportável, a humildade transida e infeliz: — “Você escreve? Escreve?”. E se Manuel Bandeira respondesse como o outro: — “Nem te co­nheço. E não escrevo sob pressão”. Imaginei o poeta batendo com o telefone. Mas ele foi amigo, solidário, quase terno. Pri­meiro, suspirou: — “Caso sério, caso sério”. E foi acrescentan­do: — “Ainda bem que você tem talento. A gente pode escre­ver sobre você”. Eu disse, trêmulo de gratidão: — “Muito obri­gado, ouviu? E um grande abraço”.

Saí do telefone varado de luz. Com o lançamento de A mu­lher sem pecado, fora marcado por duas crônicas: — uma de Álvaro Lins, em Diretrizes, outra de Santa Rosa, no Diário Carioca. Ambas altamente elogiosas. Mas era pouco para mi­nha fome. Eu ainda me sentia fora, marginal da vida literária. Lúcio Cardoso, que fora meu vizinho e era meu amigo de in­fância, merecera todo um rodapé de Álvaro Lins no Correio da Manhã.

Doeu-me que Álvaro Lins escrevesse sobre mim em Dire­trizes e não no Correio da Manhã. Antes isso do que nada, cla­ro. Mas era óbvio que o crítico não valorizara, não dramatizara minha estréia. “Um rodapé, todo o rodapé de Álvaro Lins”, eis a utopia que comecei a cultivar na minha angústia. Entre A mu­lher sem pecado e Vestido de noiva, vivi todo um período de frustração e ressentimento.

Qualquer êxito literário me agredia e me humilhava. Não perdia um rodapé de Álvaro Lins. De véspera, eu me pergun­tava: — “Vai escrever sobre quem?”. Se elogiava, havia em mim todo um surto de inveja. Inveja mesmo, sem nenhum disfarce, nenhum pudor. Eu não aprendera ainda a posar para mim mes­mo, a retocar ou a idealizar meus sentimentos.

Entre as duas estréias, de A mulher sem pecado e Vestido de noiva, escrevi, certa vez, uma croniqueta que marcou a mi­nha vida. Era Edmundo Lys que tomava conta da coluna de rá­dio de O Globo. Coincidiu que Joracy Camargo escrevesse elan­çasse, com grande élan promocional, uma novela radiofônica. Eu odiava Joracy Camargo.

Claro que era um sentimento, ou ressentimento, de origem estritamente literária. Joracy escrevera Deus lhe pague, que eu não vira, nem lera; e eu não perdoava o sucesso tremendo. Deus lhe pague era uma espécie de Dama das camélias do teatro bra­sileiro. Onde quer que a levassem, no Municipal ou no Circo Dudu, as pessoas aplaudiam de pé e só faltavam pedir bis como na ópera.

Eu desculparia, talvez, a bilheteria prodigiosa. E, com efei­to, Deus lhe pague era representado, sempre, para casas lota­das. Mas vá lá. O que me ofendia, me desfeiteava, era a consa­gração intelectual. Não me esquecia de um almoço de literatos ao autor. E, lá, Gilberto Amado teria dito que Deus lhe pague era “a única peça universal do teatro brasileiro”. Esse elogio causou-me um intolerável dano físico.

A novela caía do céu. E cometi, então, sem a menor dúvida, uma pequena vileza. Confesso que o elogio de Gilberto Amado, mais que o sucesso de Deus lhe pague, serviu-me de maligno afrodisíaco. E saiu uma nota extremamente eficaz na sua per­versidade inexcedível. Ao redigi-la, eu tinha um ressentimento de Raskolnikov.

Pergunto: — assinei a torpeza? Não. A minha assinatura te­ria sido, sim, uma atenuante. Mas usei um pseudônimo. Para to­dos os efeitos, era um vago leitor, um Zezinho dos Anzóis Ca­rapuça. Fui falar com Edmundo Lys e o convenci a publicar aquela miséria. Quando a croniqueta saiu foi um espanto, um escândalo na redação. No dia seguinte, apareceu lá o Vadeco, o genro da vítima. Vinha falar com Edmundo Lys, com Rober­to Marinho. Estava arrasado.

Ninguém entendeu a gratuidade da agressão. Mas Joracy Ca­margo não foi o único. Contra o autor de Deus lhe pague, es­crevi; e, contra os outros, falava nas esquinas, nos cafés e nas redações. Eu não admitia um nome do teatro brasileiro, fosse do passado, fosse do presente. Lembro-me de que Renato Via­na era outro. Tinha uns restos de prestígio intelectual; uma meia dúzia de fiéis ainda o adulava. Certa vez, disse-me o Schmidt: — “Ninguém consegue ser nada no Brasil se não acreditou, um dia, em Renato Viana”.

Todas as manhãs, eu saía de casa, furioso, como se fosse destruir o teatro brasileiro e os grandes nomes literários. Não deixava em pé um único autor dramático: — Raymundo Maga­lhães Júnior era uma besta; Joracy Camargo, outra; Roberto Go­mes, já morto, uma terceira besta. E assim os outros, todos os outros.

E só respeitava os que tinham gostado ou de A mulher sem pecado ou de Vestido de noiva ou de ambas, Bandeira era o maior poeta brasileiro, porque admirava as minhas duas peças; outro “maior poeta brasileiro” era Carlos Drummond de Andrade, que me dizia: — “Vestido de noiva é mais complexo do que A mulher sem pecado”. Ou o sujeito gostava do meu tea­tro ou era uma besta, um cretino.

Naquele tempo, A Manhã anunciava, de véspera, o artigo assinado do dia seguinte. Estou me lembrando do telefonema do irmão Augusto: — “O Manuel Bandeira vai escrevei amanhã sobre Vestido de noiva”. Saí do telefone, desatinado, para o jor­naleiro. Na primeira página de A Manhã, vinha anunciado — “Amanhã: — Vestido de noiva, de Manuel Bandeira”. Branco ou vermelho, não sei, o coração em arrancos, eu vivia um dos maiores momentos da minha vida.

Parecia pouco, mas era muito, era demais. Comecei a me sentir, fisicamente, com febre. E não dormi, nessa noite, não dormi. E o pior, ou melhor, é que se tratava de uma frase, de uma referência. Não. Manuel Bandeira escrevia todo um artigo sobre mim, sobre a minha peça. No dia seguinte, antes do padeiro, antes do leiteiro, comprei o jornal. Lá estava o artigo, grande, sobre Vestido de noiva. Perto do jornaleiro, em cima do meio-fio, li o artigo. Não encontrei uma restrição. O “maior poeta brasileiro” — e mais do que nunca “o maior poeta brasileiro” — fazia um elogio total. Ofegante, vim caminhando. E sentia que Manuel Bandeira estava abrindo para mim as portas, as paredes, os muros da vida literária

No primeiro momento, a glória é casta. Desde garotinho, a minha vida fora a desesperada busca da mulher primeira, úni­ca e última. No período da fome, o amor passara a um plano secundário ou nulo. Mas a glória é ainda mais obsessiva, mais devoradora do que a fome. Eis o que eu queria dizer: — com o artigo de Manuel Bandeira, só eu existia para mim mesmo. Tudo o mais era paisagem.

Saí, mostrando a opinião de Manuel Bandeira. Todo O Glo­bo a leu. Antes, mostrara em casa, à minha mãe, meus irmãos. A encenação de A mulher sem pecado não bastara. E Vestido de noi­va, ainda inédita, era a glória fulminante e jamais sonhada (se Ál­varo Lins tivesse publicado o seu artigo no Correio da Manhã, e não em Diretrizes, eu tremeria de igual deslumbramento).

Sim, ainda me lembro do primeiro dia do artigo de Manuel Bandeira. Depois do trabalho, fui para casa. Tranquei-me no quarto como se fosse praticar um ato solitário e obsceno. Co­mecei a reler o poeta. Primeiro, repassei todo o artigo, da pri­meiro à última linha. Depois, reli certos trechos. O final dizia assim: — “Vestido de noiva, em outro país, consagraria um au­tor. No Brasil, consagrará o público”. Antes de mais nada, o poe­ta influiu na minha auto-estima.

Se eu morresse naqueles dias, alguém poderia gravar no meu túmulo: — “Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado por um artigo de Manuel Bandeira”. No dia seguinte, saí de casa, com o recorte do poeta no bolso. E ninguém poderia imaginar que eu estava prodigiosamente embriagado de mim mesmo. Eu, eu, eu, eu. Se a mulher amada me aparecesse, não a reconhece­ria; e, se a reconhecesse, passaria adiante.

Agora era tratar da encenação. Corri à Dulcina e, depois, a Jayme Costa; outro: — Odilon Azevedo. Dulcina não quis; nem Odilon, nem Jayme Costa. Alguém, irritado com a estrutura da peça, esbravejou: — “Perca essa mania de ser gênio incompreen­dido” . Já Abadie Faria Rosa foi mais generoso. Ou porque o au­tor fosse amigo de um Vargas, ou porque, realmente, gostasse da tragédia, disse: — “Muito interessante, muito interessante”.

Quanto a Pongetti, o descobridor de A mulher sem peca­do, abominou Vestido de noiva. Via, no meu texto, o puro e desvairado caos. Ninguém podia pôr de pé semelhante espetá­culo. Fui ao Schmidt. Este não lia nada, ou por outra: — passa­va a vista numa frase aqui, outra frase ali, e pronto. Mas era de uma leviandade fascinante. Vira o artigo de Manuel Bandeira, falou-me em Proust, achou a peça proustiana. Comecei: — “Schmidt, é o seguinte: — eu estou fazendo um teatro difícil. Sabe como é: — preciso de apoio. Você podia escrever um ne­gócio sobre Vestido de noiva”.

Excelente Schmidt! Escreveu-me uma carta, na qual me cha­mava de “inovador e renovador”. E mais adiante: — “Vestido de noiva é mais que uma peça: — é um processo e uma revolu­ção”. José César Borba escreveu, no suplemento literário de O Jornal, um fremente artigo. E cada elogio que pingava no meu pires estendido me pagava de velhas e santas frustrações. Mi­nha vida era um território só ocupado por mim mesmo.

E, de repente, eu me encontro com Os Comediantes, o gru­po de Brutus Pedreira e Santa Rosa. Vestido de noiva estava com­prometido com a Comédia Brasileira do Abadie. Mas Brutus Pe­dreira leu a tragédia e me procurou: — “Te pago dois contos e você dá a peça aos Comediantes”. Dois contos eram, na épo­ca, uma dessas quantias utópicas, estarrecedoras. Todavia, um escrúpulo me travou: — “Preciso falar antes com o Abadie”. Para Brutus, Abadie era um cretino e o próprio teatro brasileiro uma massa de imbecis de ambos os sexos.

Quando eu ia ao Serviço Nacional de Teatro, Abadie pu­nha em mim um olho enorme de terror. O que via ele, por trás de mim, era a onipotência dos Vargas. Mas, quando pedi para tirar a peça da Comédia Brasileira, o bom velho, transido de alegria, balbuciou: — “Nelson, por mim, não há dúvida. Eu faço o que você quiser”. Só então percebi que Vestido de noiva era a sua abominação secretíssima. E, assim, o texto foi salvo (a Co­média Brasileira seria a perdição da minha peça).

Dois dias depois, conheci Ziembinski, o diretor polonês. Viera para o Brasil fugido da guerra. E era um outro Ziembins­ki, quase louco. O público o vê, hoje, fazendo o velho mágico da novela da tv Globo. Mas, em 1943, era um ensaiador em furioso estado de graça. Quantas vezes o vi, nos botecos, ber­rando, na sua ferocidade jucunda: — “Jouvet é uma besta”.

Quanto ao teatro brasileiro, Ziembinski não deixava um nome de pé. Derrubava tudo e ainda sapateava em cima dos cacos. Percebeu, instantaneamente, o potencial plástico de Vestido de noiva. Ele sonhava com um grande espetáculo; e a minha tragédia deu-lhe espaço para soltar todas as suas fantasias cênicas. Durante os seis, oito meses de trabalho, Ziembinski ardeu em mil e uma danações.

(Ah, foi uma luta arrancar os dois contos de Carlos Perry, então tesoureiro dos Comediantes. Por vício da função, ele chorava cada vintém. Sua posição era o seguinte: — eu de­via dar o texto de graça. Os Comediantes eram amadores etc. etc. Mas Brutus e Santa Rosa queriam me pagar; e o primeiro havia empenhado sua palavra. Perry, embora furioso, aca­bou dando o dinheiro.)

Ninguém entendia como eu, sem nenhuma obra ante­rior, e num país sem tradição dramática — pudesse ousar a experiência formal de Vestido de noiva. Queriam saber quais os meus autores preferidos. Eu falava por alto: — “Gosto dos gregos”. Lembro-me de que alguém me perguntou: — “Vo­cê lê muito Shakespeare?”. Bocejei e fiz um gesto de quem leu todo Shakespeare. Se me falavam dos modernos, eu res­pondia: — “Gosto” ou “Gostei”. Certa vez, pediram a mi­nha opinião sobre Giraudoux. Disse: “Perfumaria”.

Minha experiência teatral começou a criar deveres pe­nosos. Vinha uma companhia francesa e eu precisava ser visto no Municipal. Nos intervalos, era interrogado por um, por outro: — “Estás gostando?”. Olhava para outro lado: — “Mais ou menos”. Um dia, sentou-se ao meu lado uma ve­lha de nariz adunco. Era outra companhia francesa. Começa a representação e a velha me pergunta: — “O que ele dis­se?”. Vacilo: — “Não ouvi direito”. Daí a pouco, nova per­gunta: — “E agora? O que é que ele disse?”. Desesperado, reajo: — “A senhora não sabe francês?”. Retruca: — “E o se­nhor, sabe?”. Apelei para o desaforo: — “Não é da sua conta”. A velha desinteressou-se do palco. Não tirava o olho de mim. Por fim, aderna para o meu lado e sussurra: — “Analfabeto”.

Isso foi em 1943, princípio do ano. Vinte e quatro anos de­pois, o meu amigo Luís Eduardo Borgerth me pergunta: — “Vo­cê lê francês, não lê?”. Respondi, num escândalo risonho: — “Mas claro”. E, ao mesmo tempo, pensava na velha do Munici­pal. No dia seguinte, Borgerth ofereceu-me, num maravilhoso volume branco, a obra completa de Camus. Agradeci e não tive coragem de confessar que não sei francês, não falo, não leio fran­cês. Lá está o presente do caro Luís Eduardo na minha estante. Não será jamais lido por mim.

O ensaio geral de Vestido de noiva foi o próprio inferno. Ziembinski tinha, então, uma resistência quase infinita. Os in­térpretes sabiam o texto, as inflexões e cada movimento. Du­rante oito meses, à tarde e à noite, a peça fora repisada até o extremo limite da saturação. Mas faltava ainda a luz.

Não posso falar da luz sem lhe acrescentar um ponto de exclamação. E, com efeito, o velho teatro não era iluminado artisticamente. Havia, no palco, uma lâmpada de sala de vi­sitas, e só. E a luz fixa, imutável — e burríssima — nada tinha a ver com o texto e com os sonhos da carne e da alma. Ziem­binski era o primeiro a iluminar poética e dramaticamente uma peça.

Bem me lembro de Alaíde, quando apareceu, pela primei­ra vez, de noiva. Ficamos atônitos com a beleza. Dentro da luz, era um maravilhoso e diáfano pavão branco. Ziembinski exigi­ra dez ensaios gerais. Era pedir demais ao nosso Municipal. Os dez foram reduzidos a três. Por três dias e por três noites, o bár­baro polonês esganiçou-se no palco.

Ninguém faz uma idéia da paciência e martírio do elenco. A 27 de dezembro de 1943 e, portanto, véspera da estréia, atri­zes e atores tinham, em cada olho, um halo negro. Alguém que, de repente, entrasse ali havia de imaginar que os intérpretes le­vavam olheiras de rolha queimada. Ziembinski tinha a obses­são da luz exata.

Meia-noite e todos presentes. Eu me lembro de um figu­rante que, de repente, começou a chorar. Perguntaram: — “Que é isso? Não faça isso”. E ele, num gemido maior: — “Estou can­sado! Estou cansado!”. De fato, a exaustão enfurecia e desumanizava os presentes. Os intérpretes passaram a se detestar uns aos outros.

E, por fim. às cinco da manhã, houve entre Ziembinski e Carlos Perry um bate-boca quase homicida. Não lembro qual foi o motivo, nem sei se houve motivo. Já amanhecendo, o sim­ples cansaço enlouquecia autor, diretor, artistas, contra-regra, eletricistas. E Ziembinski e Carlos Perry andaram por um fio. Quando subi ao palco, estava certo de que não ia haver estréia, não ia haver nada.

Vejo Ziembinski saindo do teatro e jurando que não volta­ria para o espetáculo. Fui para casa, desatinado. Já me parecia que Pongetti tinha razão: — Vestido de noiva ia se perder no puro e irresponsável caos. A caminho de casa, uma súbita cer­teza instalou-se em mim: “Vestido de noiva vai ser vaiada!”. A peça estava dividida em três planos: — em cima, realidade; em­baixo, memória e alucinação.

O meu processo — de ações simultâneas, em tempos dife­rentes — não tinha função no Brasil. O nosso teatro era ainda Leopoldo Froes. Sim, ainda usava o colete, as polainas e o sota­que lisboeta do velho ator. E ninguém perdoaria a desfaçatez de uma tragédia sem “linguagem nobre”. Ao entrar em casa, eu não acreditava mais em mim mesmo. E me perguntava: — “Como é que fui meter gíria numa tragédia?”.

Dormi pouco. Depois do almoço, corri para a cidade. Mas era um ex-Narciso, que tinha agora horror da própria imagem. Eis o que eu pensava: — “Foi por isso que o Álvaro Lins escre­veu em Diretrizes e não no Correio da Manhã”. Baixou em mim a certeza de que jamais teria o rodapé de Álvaro Lins. Deus lhe pague já ia para três mil representações.

Quanto a Ziembinski e Carlos Perry, fui encontrá-los mais unidos, mais solidários do que nunca. Ainda me vejo no Muni­cipal, andando sozinho pelos corredores ainda vazios, mas já iluminados. O teatro ia abrir as portas às oito horas. E eu estava presente quando os porteiros, ainda com o uniforme do prin­cípio do século, olharam o relógio. Por fim, um deles, de bigodões espectrais, abriu o primeiro portão. Ninguém para entrar.

Minto. Alguém vinha subindo, lentamente, a escadaria. Crispei-me ao reconhecê-lo, e numa emoção tão doce e tão fun­da. Era Manuel Bandeira. Vim para ele, transido de felicidade: — “Ah, Manuel! Grande figura, grande figura”. No hall, conversando com o poeta, eu tiritava. Um súbito otimismo dava-me febre como a maleita. Voltei a acreditar num rodapé sobre mim, mas todo um rodapé. Sim, um rodapé com o mesmo títu­lo do artigo de Manuel Bandeira: — “Vestido de noiva”.

O poeta foi comigo até à porta da caixa. Lá, apertou a mão de José Sanz, que, vestido de médico, faria uma ponta. Mas o público começava a entrar; despedia-me de Manuel Bandeira; ele ainda me perguntou: — “Animado?”. Rangi os dentes de ter­ror: — “Mais ou menos”. E o poeta saiu para sentar-se na se­gunda fila (enxergava bem, mas ouvia mal.)

E começou a peça. Nove e meia, se bem me lembro. Fi­quei eu no fundo de um camarote. Platéia, balcões nobres, fri­sas e camarotes lotados (Carlos Drummond viria no segundo dia; Schmidt, meses depois). Eu não via, nem queria ver nada. Estava desvairado de pusilanimidade. E o pior foi o silêncio do público durante todo o primeiro ato. Ninguém ria, ninguém tos­sia. E havia qualquer coisa de apavorante nessa presença nume­rosa e muda.

Termina o primeiro ato. Três palmas, se tanto, ou quatro ou cinco, no máximo. Gelado, imaginei que seriam aplausos das minhas irmãs, de meus irmãos. Continuei, no fundo do cama­rote, agarrado à cadeira. Repetia para mim mesmo: — “Fracasso, fracasso”. Comecei a me lembrar do almoço que André Romero me pagara, num restaurante da Lapa. Era a época da fome. Bem que eu queria bifes com batatas fritas; qualquer brasileiro ama o bife com batatas fritas. Mas Romero, com a autoridade de quem paga, pediu fígado, com cebolada, para dois. E, na mi­nha estréia de Municipal, eu me sentia aquele mesmo sujeito comendo numa casa de pasto abjeta.

Termina o segundo ato. Menos palmas. “Até minhas irmãs têm vergonha de aplaudir.” Pongetti tinha razão. Vestido de noi­va era o caos. A platéia estava furiosa com o caos. Até que bai­xa o pano sobre o terceiro ato. Silêncio. Ninguém bate palmas, nem minhas irmãs.

Ainda silêncio. E, de repente, começaram palmas escassas e esparsas. Um aplaudia aqui, outro ali, um terceiro mais adian­te. Atracado à minha cadeira, me sentia perdido, perdido. Mas comecei a sentir a progressão. Focos de palmas, em muitos pontos da platéia. E, súbito, todos acordaram do seu espanto. Ergueu-se o uivo unânime.

Os aplausos subiam até a cúpula e multiplicavam as cintilações do lustre. Era como se o grande Caruso tivesse acabado de soltar um dó-de-peito. Os artistas iam e voltavam; veio Ziembinski, arrastado; em mangas de camisa, com o suor do gênio pingando de fronte alta. E, súbito, uma voz (possivelmente de José César Borba) se esganiça: — “O autor, o autor!”. Não foi só um grito. Muitos outros, inclusive mulheres, pediam, exigiam: — “O autor, o autor!”.

Minha irmã Helena veio me puxar. Eu, que me esvaía em suor, gemi: — “Não, não!”. E ela: — “Vem, vem!”. Não podia, ali, explicar que eu entrara no teatro um pobre-diabo; e ainda não me sentia o autor glorioso. Helena, porém, crispada de von­tade, arrancou-me da cadeira. Rindo, apareci na varanda do ca­marote.

Esperava eu, e esperavam minhas irmãs, que a platéia se vol­tasse para mim e todos gritassem: — “Ele! Ele!”. Mas o que acon­teceu foi muito parecido com um pesadelo humorístico e crudelíssimo. Estava o autor, em pé, pronto a receber a apoteose. E ninguém me olhava, ninguém. Era como se eu não existisse, simplesmente não existisse.

A platéia exigia o autor, mas virada para o palco. Senti como se fosse um puro espírito que vagava invisível, inaudível, por entre os vivos. Veio-me a vontade gritar: — “Sou eu! Sou eu!”. E nada. Por todo um minuto sem fim, fui excluído da apoteose e me senti um marginal da própria glória. Recuei nova­mente para o fundo, dilacerado de vergonha e frustração.

Quando saí do camarote, o primeiro a me abraçar, radian­te, foi Roberto Marinho. Em seguida, o maestro Piergile. Todos diziam: — “Formidável! Formidável!”. Mas, fora Roberto e Pier­gile, ninguém mais viu em mim o autor. Uma senhora ia na mi­nha frente; dizia uma das falas da peça: — “As mulheres só de­viam amar meninos de dezessete anos”.

Desço a escadaria e, embaixo, sou envolvido, abraçado, quase beijado. Vejo Álvaro Lins, José César Borba, e outros, e outros. Álvaro Lins puxou-me pelo braço: — “Vem cá, que eu quero te apresentar a Paulo Bittencourt”. Lembro-me, exatamente, das pa­lavras de Paulo: — “Sua peça é extremamente interessante”. Alguém ciciou no meu ouvido: — “Genial!”. Isso, dito baixinho, como se fosse uma obscenidade, deu-me vontade de chorar.

Fui para a caixa. Precisava abraçar Ziembinski, o elenco. Quando entrei, vi uma multidão. Ziembinski berrou: — “O au­tor! O autor!”. Recebi uma tremenda ovação. Estava exausto, emocionalmente, as pernas bambas, a vista embaciada. Abraço, longa e desesperadamente, Ziembinski. Ah, o polaco dera ao que parecia o caos uma ordem translúcida e implacável. Depois de Ziembinski, saí abraçando os intérpretes, um por um: — Evangelina Guinle Rocha Miranda, uma Alaíde inesquecível; Stella Perry, uma admirável Lúcia; e Carlos Perry, Graça Melo, Expedito Porto, Carlos Mello, Isaac Paschoal.

Da caixa do teatro até a porta dos fundos, não dei um pas­so sem esbarrar, sem tropeçar numa admiração patética. Uma senhora, enchapelada, me atropelou: — “Parece Pirandello”. Quis saber se eu gostava de Pirandello e eu, que jamais o lera, assumi um ar de pirandelliano nato e hereditário. Passo a pas­so, ouvi a mesma pergunta: — “É sua primeira peça?”. Só en­tão percebi que A mulher sem pecado era solidamente ignora­da. Naquela época, acontecia o seguinte: — qualquer peça de um nível mínimo, que não fosse débil mental, tinha de ser pirandelliana, a muque.

(Eis a verdade: — até a estréia de Vestido de noiva, eu não lera nada de teatro, nada. Ou por outra: — lera, certa vez, co­mo já disse, Maria Cachucha, de Joracy Camargo. Sempre fui, desde garoto, um leitor voracíssimo de romance. Eu me consi­derava romancista e só o romance me fascinava. Não queria ler, nem ver teatro. Depois de A mulher sem pecado é que passei a usar a pose de quem conhece todos os autores dramáticos pas­sados, presentes e futuros. Na verdade, sempre achei de um té­dio sufocante qualquer texto teatral. Só depois de Vestido de noiva é que tratei de me iniciar em alguns dramaturgos obriga­tórios, inclusive Shakespeare.)

Finalmente, desvencilhei-me dos admiradores e cheguei à rua. Estou andando pela calçada da Avenida, atravesso a rua Al­mirante Barroso, caminho na direção da Galeria Cruzeiro. A gló­ria era recente demais. Uma hora antes, eu não passava de um pobre rapaz que ganhava setecentos mil-réis no Globo (quinhen­tos na folha e duzentos por fora). E as coisas me pareciam de uma irrealidade atroz. Até a Avenida era irreal e os edifícios, os transeuntes, os carros, tudo irreal.

Perto, no próprio edifício do Liceu de Artes e Ofícios, quase ao lado de O Globo, havia uma casa que era, a um só tempo, leiteria e restaurante. Lá, serviam um prato chamado almoço Ne­vada, típico da classe média. Era um bife, que podia ser acom­panhado de batatas fritas ou dois ovos estrelados; e mais: — man­teiga, pão e pudim de sobremesa. Tudo ao preço compassivo, generoso, de doze mil-réis. Entrei na leiteria deserta, sentei-me num canto. Disse, sem olhar o menu: — “Traz um almoço Ne­vada, com batatas fritas”.

O garçom trouxe o pão e a manteiga. Comecei a comer com sombrio élan. Tinha na imaginação o lustre do Municipal, ar­dendo em cintilações inumeráveis. Eis o que eu pensava: — “Agora o Álvaro Lins escreve o rodapé”. Manuel Bandeira fora o primeiro a entrar e o primeiro a sair. Álvaro Lins estava apai­xonado por Vestido de noiva. (Anos depois, quando saiu em livro Álbum de família, o crítico do Correio da Manhã escreveu um rodapé contra. Minha reação foi odiosa. No meu ressenti­mento, escrevi textos ferozes, e os publiquei, com o nome de amigos meus. Eu nunca assinava, nunca assumia a responsabili­dade. Minha vaidade tinha alguma coisa de suicida e de homicida. Simplesmente, queria destruir Álvaro Lins.)

Vinha o garçom. Pôs o prato na mesa. Digo-lhe: — “Traz mais pão, que eu pago por fora. Manteiga também, sim?”. Eu continuava febril de sonho. Mas o prato estava diante de mim. o bife era a vida real.

Passei a noite em claro. Fechava os olhos e via a cúpula in­candescente do Municipal. Ouvia ainda o grito de José César Borba: — “O autor! O autor!”. E me lembrava de que a apoteo­se começara no uivo da platéia. Eu morava, então, na rua Joa­quim Palhares, entre Paulo de Frontin e o Estácio. Era uma casa de avenida, que dava fundos para uma garagem. E, quando cho­via forte, a água enchia a sala, o quarto, a cozinha. Tínhamos que trepar nas mesas, nas cadeiras; e víamos as caixas de sapa­tos boiando, boiando.

No dia seguinte, vim para a cidade, cedinho. Dei “bom dia” aos vizinhos com uma desesperada euforia. Mas ninguém, na avenida, sabia de nada. E tive uma pena tardia de não ter convi­dado toda a vizinhança. Tomei, na esquina, o bonde: — Lapa-Praça da Bandeira. Veio o condutor e paguei. Era outro que não sabia. E as esquinas, as ruas, os outros bondes estavam cheios de sujeitos que também não sabiam.

Quarenta e oito horas depois, saíram as primeiras notas. Di­zia o Correio da Manhã, num texto não assinado de Álvaro Lins, que, com Vestido de noiva, pela primeira vez o teatro brasileiro entrava na literatura. Também no Correio, embaixo do artigo de fundo, Paulo Bittencourt escrevera um tópico em que celebrava minha estréia ‘‘como o nascimento do moderno teatro brasileiro’’.

E o pior é que a celebridade era, para mim, uma tensão per­manente quase intolerável. Quando saiu o rodapé de Álvaro Lins (rodapé mais esperado do que um messias), eu o li em ânsias, numa dispnéia que me asfixiava. E quando José César Borba fez uma série sobre Vestido de noiva, também senti palpitações, falta de ar.

O tempo passava e a glória não era, na minha vida, um há­bito, uma rotina, quase um tédio. Não. Eu me comovia com os elogios impressos, como se fosse a primeira vez, sempre a pri­meira vez. A verdade é que eu estava muito mais comprometi­do com as velhas renúncias, as antigas humilhações. O Sanatorinho ainda vivia em mim. De vez em quando, na rua Joaquim Palhares, eu sonhava com uma tosse. Acordava e a tosse conti­nuava. Ficava tenso, escutando. Mas ninguém tossia. Era uma alucinação auditiva.

(A minha angústia diante da fama não foi uma reação indi­vidual. O brasileiro não sabe ser glorioso. Aí está o nosso Gui­marães Rosa. Ele inspira, nos suplementos literários, os mais vee­mentes rapapés críticos. É chamado, no mínimo, de “o maior prosador do Brasil”. Se não me engano, Sérgio Milliet jurou que o Grande sertão é o maior romance do século. Se fosse inglês, francês, alemão, o Guimarães Rosa estaria farto de promoção tamanha. Mas é brasileiro. Ainda outro dia eu o vi na rua, com o Otto Lara Resende. De cara empinada, as duas mãos cruzadas nas costas, ele é o Guimarães Rosa em fremente lua-de-mel com Guimarães Rosa. A gente tem vontade de pedir-lhe: — “Seja Gui­marães Rosa com mais naturalidade”.)

Todavia, continuei sofrendo. Meu nome estava em todos os jornais. Por essa época, o Getúlio, impressionado, pergun­tou ao então ministro Capanema: — “O que é que há com o teatro, que os jornais só falam em teatro?”. Capanema respon­deu: — “São os Comediantes e é Vestido de noiva”. Mas eu an­dava na rua e ninguém me conhecia, ninguém me apontava. E aí estava a duplicidade alucinante: — eu era nominalmente cé­lebre e fisicamente desconhecido. Minha cara não significava nada para ninguém.

Uma semana depois da estréia de Vestido de noiva, acon­teceu um pequeno e assombroso episódio. Imaginem vocês que entrei na rua Alcino Guanabara. Vinha andando e passei por uma porta de engraxate. Olho e vejo, sentado, engraxando os sapa­tos, alguém que eu conhecia. Era Gustavo Capanema, ministro de Getúlio. Eu ia passar adiante sem nenhuma veleidade de cumprimentá-lo. Mas foi o ministro que tomou a iniciativa: — abria o riso. Estava de chapéu e, se não me engano, tirou o chapéu (mas não afirmo que tenha tirado o chapéu). Por um lapso fulminante, esqueci-me da apoteose recente, do uivo da platéia e do lustre pingando diamantes. Eu me crispei de humildade diante do ministro. Mas Capanema inverteu tudo, impulsivamen­te: — era ele quem fazia questão do cumprimento, questão do riso, questão de ser reconhecido. Fora de mim, vermelhíssimo, acenei. Apressei o passo, como se fugisse. Sentira no ministro toda uma cálida humildade diante do artista.

Fui andando e ia dilacerado de alegria. E, então, comecei a pensar no futuro. O cumprimento de Capanema deu-me uma sensação de plenitude. Imaginei que Vestido de noiva ia ser tra­duzido em não sei quantos idiomas, representado em Tóquio e na Broadway, filmado em Hollywood. Bom sujeito, o Capa­nema. O episódio do engraxate tocou-me como se fosse um mo­mento da bondade humana.

Mas eu era outro. Três ou quatro dias depois da estréia, o telefone me chama no Globo. Era David Nasser: — “Nelson, o Freddy Chateaubriand quer falar contigo”. Ainda perguntei: — “Sobre quê?”. E David: “Só conversando”. Havia um restau­rante na rua Rodrigo Silva. Podíamos almoçar lá, no dia seguin­te. E assim se fez. Almocei com Freddy Chateaubriand, David, Millôr Fernandes e Geraldo de Freitas. Freddy chamou-me pa­ra trabalhar nos Diários Associados. Dava-me um ordenado mui­to maior; e oferecia-me a direção de duas revistas: — Detetive e O Guri. Comendo meu bom bife, que o Freddy ia pagar, sen­ti que, por trás do convite, estava Vestido de noiva, e estava o berro do José César Borba chamando o autor, o autor. E, ali, passando a manteiga no pão, eu era o autor.

Roberto Marinho deixou-me ir e ainda me deu, a título de indenização amiga, dez contos. Quando entrei na antiga reda­ção de O Cruzeiro, a revista começava sua formidável ascen­são. Mais tarde, eu diria que a equipe daquele tempo era uma geração tão brilhante como fora, em Portugal, a dos Vencidos da Vida. Lá estavam David Nasser, Millôr Fernandes, Franklin de Oliveira, Hélio Fernandes, Geraldo de Freitas, todos reuni­dos sob a fraterna e inteligentíssima autoridade de Freddy Chateaubriand. Imediatamente depois da minha chegada, Accioly Netto publicava quatro páginas sobre Vestido de noiva. Se não me engano, David escreveu o texto.

Minha peça teria uma promoção natural. Mas ainda era pou­co para o meu desesperado narcisismo. Lembro-me de que, eu mesmo, escrevi não sei quantas páginas sobre minha própria obra. E pedia ao companheiro mais próximo: — “Posso botar teu nome?”. O outro assinava e a matéria saía em três, quatro páginas. Até que, um dia, sinto um gosto esquisito. Penso: — “Não volto para o Sanatorinho”. Levanto-me, caminho até o fundo do escritório. Repetia a mim mesmo: — “Sanatorinho, não”. Tranco-me e examino: — veio sangue na saliva. Lembrei-me da mocinha que, em Campos ao Jordão, sentiu o mesmo gosto. A princípio, fora uma mancha vermelha ou, nem isso, rósea. Em seguida, começara a hemoptise. No dia seguinte, ao amanhecer, morria a menina, boiando no próprio sangue. Na velha redação de O Cruzeiro, disse para mim mesmo: — “É a hemoptise”.

Quando vi o sangue na saliva, voltei para a redação e avi­sei: — “Vou ao médico”. Saí. Descendo a rampa, comecei a pen­sar: — “Pode ser da úlcera e não do pulmão”. Eu tinha uma úlcera que, por vezes, se torcia e retorcia como uma víbora. Mas a hipótese pulmonar era a mais provável. Sanatorinho, não. To­mei um táxi e fui ver Genésio Pitanga, no sétimo andar do edi­fício Cineac.

Mas não falarei, hoje, da minha visita ao tisiólogo famoso. No momento, o que me interessa é contar a minha primeira ex­periência sexual. Desde que comecei as memórias, penso, e de uma maneira obsessiva: — “Preciso contar a minha primeira ex­periência sexual”. Já falei da demente, filha da lavadeira, que eu vira, por um momento fulminante, nua, encostada na pare­de e nua. Ainda vejo a nudez crispada diante do menino.

Eu tinha meus seis, sete anos. E acreditava, até então, que só os meninos e as meninas ficam nus. A nudez adulta me parecia absurda. Daí o meu espanto quando vi a doida, mulher feita, com­pletamente nua. Lembro-me de que, de noite, no quarto atormen­tado de percevejos, pensava que as senhoras, as tias, as vizinhas, as visitas também ficam nuas. Comecei a ter medo e asco.

Também contei que, aos quatro anos, fui proibido de en­trar na casa da vizinha. Lá havia uma menina da minha idade ou pouco menos. Devo ter feito algo com a garota, de que não me lembro. Portanto, o meu primeiro feito erótico é anterior à memória e à vontade. (Estou repisando certos momentos de vida para chegar à minha primeira experiência sexual.)

Estou, novamente, na rua Alegre. Quando eu queria tecer as minhas fantasias, ia para o fundo do quintal, junto do tanque. Lá, ficava horas, falando sozinho ou calado e sonhando. Lembro-me de que, uma vez, comecei a imaginar uma mulher. Absurda, mas ideal que jamais ficasse nua. Ela poderia tirar to­da a roupa, toda, e ainda assim não estaria nua. Essa mulher, de nudez impossível, tomou as feições e toda a figura da pro­fessora que era, no momento, o meu grande amor.

Depois, tive outra professora e esqueci a anterior. Mas, por vários anos, continuei agarrado à minha utopia da rua Alegre. Queria para mim a nudez impossível. Mas fui crescendo; meus amigos diziam palavrões, meus irmãos diziam palavrões. Che­gou um momento em que tive horror dos outros e de mim mes­mo. Foi então que um moleque da rua falou-me do Mangue.

Eu tinha doze anos, quando um outro, pouco mais velho, me perguntou: — “Vais?”. E eu, branco: — “Aonde?”. Respon­deu: — “Lá”. Eu sabia que era o Mangue. Não sei o que respondi, nem se respondi. Já me lembro; disse: — “Não sou maluco”. No outro dia, perguntei: — “Lá é como?”. O garoto contava as coisas mais espantosas.

Um dia, meu pai trouxe para casa o Crime e castigo, de Dostoievski. Lembro-me de que ele escreveu, sobre Raskolnikov, um artigo chamado “Paradoxos vermelhos”. Fui ler o livro no quarto trancado. Comecei às sete da noite, antes do jantar, e não jantei. Não parei mais. O que me feriu não foi o crime de Raskolnikov. Claro que me assombrou a morte da velha usurária e de sua irmã. O que me doeu mais, porém, foi a figura de Sônia. A princípio, não percebi tudo. O livro falava em “livrinho amarelo”. Não entendi e voltei atrás. Acabei entendendo que era prostituta. Sônia, prostituta! Comecei a sentir uma pe­na absurda, e tão funda, e tão doce, uma pena que nascera co­migo, que existia antes de mim.

Fui um menino capaz de todas as paixões. A revista daque­le tempo, mensal, era Eu Sei Tudo. Amei, como um perdido, retratos de Eu Sei Tudo. E Sônia foi, desde o primeiro momen­to, o meu dilacerado amor. Lendo Dostoievski, eu pensava que ela se despia por dinheiro; e imaginava que devia ter uma nu­dez infeliz e crispada como a da demente. Não, como a da de­mente, não. Eu sonhei uma nudez de menina para Sônia. Bêba­dos, velhos, doentes a possuíam; e ela se entregava por pena dos irmãos e da madrasta tuberculosa.

E, como ela amava Raskolnikov, eu passei a ser assassino da usurária. Tremi de beleza quando os vi no quarto e sem que um desejasse o outro. Era uma ternura desesperada, um querer bem sem esperança nenhuma, nenhuma. Súbito, há o lance de ópera ou pior, pior — de Rádio Nacional. Raskolnikov ajoelha-se aos pés da prostituta e brada: — “Não foi diante de ti que me ajoelhei, mas diante de todo o sofrimento humano”. Cho­rei ao ler isso; e chorava por Sônia, pelo assassino e por mim.

Depois, através dos anos, reli, muitas e muitas vezes, a mes­ma cena. Adulto, e já com um mínimo de lucidez crítica, pude perceber o mau gosto hediondo. Mas aí é que está: — a grande ficção nada tem a ver com o bom gosto. Acabei de ler o Crime e castigo. Eram oito horas da manhã, ou nove, quando os dei­xei na Sibéria. Ou por outra: — era eu que estava na Sibéria, e Sônia comigo. E era um amor sem desejo, nada lascivo, cálido como um martírio.

Vivessem os dois mil anos e jamais se possuiriam. Eu tinha, então, treze anos e começava a freqüentar, de calças curtas, o jornal do meu pai A Manhã. Ia para a redação de manhã e vol­tava à tarde. E comecei a achar que o adulto é um canalha. Via os redatores, os repórteres, os fotógrafos, os revisores em fe­roz e permanente euforia pornográfica. No Glória, teatro do bair­ro Serrador, estava a companhia de Jardel Jercolis, Tro-Ló-Ló. No fim de cada espetáculo, o pessoal da redação ia atropelar as atrizes, coristas e bailarinas.

Eu voltava para casa, ferido pelas gargalhadas, palavrões e ges­tos obscenos. Vejo o fotógrafo Vítor Teófilo, de revólver na cin­ta, perguntando: — “Por que você não usa calças compridas?”. Estava na moda um vício hoje obsoleto, nostálgico: — a cocaína. Dois ou três, na redação, eram cocainômanos. Certa vez, um su­jeito, cara de índio, fumando de piteira, perguntou-me: — “Você é filho do Mário?”. Era o famoso Zeca Patrocínio, filho do aboli­cionista. Uma noite, Zeca cheirou cocaína e deixou-se fotografar, seminu, bêbado de êxtase, e tinha um olhar absurdo de santo.

Até que, um dia, entro, na redação, de calças compridas. Estava de roupa nova, chegada do alfaiate. Foi um sucesso. Al­guém bateu-me nas costas: — “Agora sim. Você está vestido de homem”. Andei algum tempo na redação, falei com um, com outro; e, por fim, disse: — “Vou ao cinema”. Não era cinema; eu ia, pela primeira vez, ao Mangue. Desejo nenhum, não era desejo. Eu procurava o amor.

Quando o ônibus passou pela praça Onze, começou a mi­nha angústia de menino. Teria que saltar dois postes adiante. A noite já caía sobre a torre da Brahma. Desde a véspera, eu só pensava na demente da rua Alegre e na sua nudez cravada na parede. Mas não queria ter medo. Disse de mim para mim: — “Vou pensar em fulano”.

Fulano era um caricaturista de A Manhã, que se matara no Leblon. Eis como tudo aconteceu: — o rapaz sentou-se na areia, tirou os sapatos, as meias, o paletó; depois, arregaçou a calça até o meio da perna. E, então, caminhou para o mar, descalço, de fronte alta. A minha imaginação o via entrando no mar (e ninguém sabia por que se matara o caricaturista sem talento).

Assim desapareceu, “tragado pelas ondas”, como dizia o jornal. Durante três dias e três noites, o corpo andou perdido. No ônibus que me levava ao Mangue, imaginei a solidão do afo­gado. O cadáver boiando na corrente e só velado pelo grito das gaivotas. E quando o rapaz tornou à praia eu e outros da reda­ção fomos vê-lo. Estava seminu, de calça e cinto. E ainda vejo a sua cara. Muitos anos depois, fiz esta imagem para uma das minhas tragédias: — “O afogado tem os olhos brancos e a boca obscena”. Era o caricaturista morto, na areia.

Saltei no segundo poste. E, como pensava no afogado, já não tinha medo. Atravessei a avenida do Mangue, e era meni­no, tão menino. Na redação falavam muito na rua Benedito Hipólito, que teria as mulheres mais bonitas. “Elas te chamam”, explicavam. Cinco mil-réis. Eu tinha vinte no bolso. E ia olhan­do tudo, dilacerado de curiosidade.

A rua Benedito Hipólito era cheia de janelas feéricas. Vou de uma esquina a outra e volto; tudo incendiado de lâmpadas. E era como se, em cada casa, ardesse a chama dos velórios. Ainda vejo uma prostituta velha, lendo, na janela, um romance da co­leção das moças (se não me engano, de Guy de Chantepleure). Passam caras de nortistas; lembro-me de um português alto, de chapéu, colarinho, gravata. Passeava e baixava os olhos para as mulheres. Seu desejo era triste e humilde.

E, de repente, comecei a pensar no afogado boiando na cor­rente. Imaginei uma gaivota furando os seus olhos. Mas os olhos não estavam feridos: — estavam brancos. Vi o português en­trar, como um suicida, numa porta; ele passou e uma mulata gorda (mulata de Di Cavalcanti, antes do Di Cavalcanti) fechou a porta. Sumiram os dois.

Na esquina, parado, comecei a pensar que deveria escolher uma velha. Numa janela próxima, vi a leitora da coleção das mo­ças. Teria pena de mim; perceberia que era a primeira vez que eu. E se eu fosse embora? Na redação, contavam que um pa­raense, conhecido não sei de quem, fora à rua das mulheres em Belém. Depois viera para o Rio, num navio da Costeira. No últi­mo ou penúltimo dia de viagem, vira, no pescoço, uma espi­nha; no dia seguinte, outra. Desembarca no Rio e as espinhas se multiplicaram. Que é isso, meu Deus? Depois, uma das espi­nhas floresceu; e era triste e lívida como uma gangrena. Aca­bou indo ao médico de pele. Fez exames e foi saber do resulta­do. O médico o recebeu por último e ainda mandou embora a enfermeira. E, então, sozinho com o cliente, tirou o avental. O nortista perguntou: — “E então, doutor?”. O médico respon­deu com outra pergunta: — “Tem família aqui? Onde mora seu pessoal?”. Atônito, ia respondendo. Apanhando o resultado dos exames, o médico começou: — “Está vendo? Positivo”. Silên­cio. Insistiu: — “Positivo”. O paraense custou a perceber que estava morfético.

Só conseguia pensar no paraense. Se eu passasse uma ho­ra com uma daquelas mulheres (inclusive a velha da coleção das moças). Saí da esquina e vim caminhando. Não havia nin­guém mais só, ninguém tão só. A velha do romance me trata­ria como um menino; teria pena de mim; e me chamaria de “meu filho”. Mas, se eu estivesse com uma delas e se, dois dias depois, descobrisse espinhas, muitas espinhas, no meu corpo? Iria ao médico; e este, olhando o resultado dos exames, diria: —”Positivo”.

Meu irmão Roberto falava nas leprosas do Mangue. Entrei num café e pedi uma média. Pão com manteiga. Do outro lado da rua, uma das mulheres se esganiçava na janela: — “José! Traz uma Cascatinha!”. O José vai na geladeira Ruffier, apanha uma garrafa. Vejo o garçom, em mangas de camisa, gravatinha-borboleta, atravessando a rua. Depois da média, pago e saio.

“Essa não tem cara de leprosa”, imagino. Paro, no meio da calçada. Sorriso da mulher (vinte e poucos anos); ela abre a porta; e continua sorrindo. Entro, o coração dando arrancos. Devia ter preferido a velha. Sim, a velha me sentaria no colo; e, depois, tiraria os meus sapatos. Entro por um corredor; divi­sões de madeira. Grito de mulher, ao lado. A minha cochicha: “É a Ariete que está apanhando”. Fecha a porta.

Quando voltasse à redação diria a todo mundo: — “Fui ao Mangue”. Quero tirar o paletó. A mulher ralha: — “Não tira a roupa”. Já me tinham falado do cheiro de sabonete. Mas não é de sabonete. A demente da rua Alegre. Ah, quando ela me im­pediu de tirar o paletó, vi que não era Sônia. Não era cheiro de sabonete, nem de Lysol, nem de nada. No quarto ao lado, o homem está dizendo: — “Engole o choro, engole o choro”. Puxo o dinheiro do bolso: — “Está aqui. Não estou me sentin­do bem”. A mulher apanha a cédula. Fujo.

Estou na rua. Vou depressa, quase correndo e quase gri­tando. Por detrás da torre da Brahma, vi uma constelação erguer-se em todo o seu patético esplendor. E, de repente, rompe em mim uma desesperada alegria. “Não volto mais”, eis o que pen­so. Parado, na esquina do ônibus, sonho com a missa da minha infância. Lá estava o coroinha e, por trás do padre, o sono dos círios nos altares. Imaginei-me velho e vestido de monge, monge para ser enterrado no chão das igrejas.

Tomo o ônibus, de volta. Sento-me no último banco. Nu­ma felicidade absurda, pago a passagem. Não vira ninguém pa­recido com Sônia. A mulher não me tocou, não me passou ne­nhuma doença. O meu corpo está puro, limpo, branco, sem uma mácula. E foi ao dobrar a Avenida que, de repente, nasceu o desejo — tardio, cruel, desesperado.

E veio também, com a volúpia fora de hora, a humilhação de ter falhado. Se soubessem na redação? Ninguém podia sa­ber, nem eu diria a ninguém. Podia ter ido para casa, mas saltei na Galeria Cruzeiro. Entrei no jornal e vi o Pimentel, chefe da revisão. “Vem cá, vem cá”, chamei-o. Fomos para a sacada. Bai­xo a voz: — “Fui ao Mangue”.

Pimentel chama os outros. Fui cercado por uns quatro ou cinco. Menti. Disse que era francesa. Uma beleza. Um corpo, que corpo. Já não pensava em Sônia, nem nos monges enterra­dos no chão das igrejas. Voltaria no dia seguinte. E, num instante, a notícia foi de mesa em mesa, chegou à revisão, às ofici­nas. Bem me lembro de um redator velho, míope, que tinha uma dilatação da aorta. Disse: — “Mas cuidado”. Um outro sabia de um remédio, uma bisnaga, a última palavra.

Pouco depois, tomo um ônibus para Copacabana; e ia pen­sando: — “Amanhã, volto”. Desta vez, não precisava escolher; seria a mesma da véspera. E, ao mesmo tempo, eu pensava na velha que lia, na janela, o romance da coleção das moças. Além de velha, era feia. Eu achava que a feia é mais doce, paciente, compassiva. E tinha medo das bonitas. No ônibus, me sentia com uma vontade áspera, forte, de adulto. Saltei na avenida Atlânti­ca, esquina de Joaquim Nabuco. E mudei de opinião: — “A velha, não; a moça”. A moça talvez viesse a gostar de mim. E me deitei com aquilo na cabeça: — ser amado por uma mulher do Mangue.

Minto. Não me deitei imediatamente. Quando chegava tar­de, fazia a volta na casa e olhava, por fora, o banheiro das cria­das. Se havia luz, subia na árvore, em frente. Os galhos fortes pendiam sobre o banheiro. Lá em cima, eu ficava olhando o ba­nho de uma criada qualquer. E, ao mesmo tempo, sabia que ia me arrepender, ia ter nojo de mim mesmo. Passei pelo banhei­ro das empregadas: — apagado. Só então subi para o quarto.

Dormi até o meio da madrugada; e, de repente, acordei. Minha cabeça estava cheia de imagens de uma voluptuosidade triste e vil. Apanhei um cigarro; fumava no escuro e pensava: — “Chego lá e digo a ela que é a primeira vez”. Se ela soubesse que era a primeira vez, talvez não cobrasse nada. E me imagina­va, na redação, dizendo aos outros: — “Ela não cobra. Comigo faz de graça”. Se ela começasse a gostar de mim, eu diria: — “Você vai ter de deixar essa vida”. Estava na janela. Joguei fora o cigarro e voltei para a cama.

Todas as manhãs, eu fazia um pequeno saque nos bolsos do meu pai. Ele acordava tarde; geralmente, saía dez e meia, on­ze. E eu podia apanhar, no bolso da calça, dez mil-réis, quinze, até vinte. Desta vez, tirei vinte. Se a mulher tiver pressa, direi: “Te dou dez mil-réis”. Não, quinze — dez. Ou oito. É melhor dez. A pressa me dava uma sensação aguda de orfandade.

Saí de casa depois do almoço, com os vinte mil-réis furta­dos. E pensava: — “Podia ter tirado cinqüenta”. A moça esta­va escolhida definitivamente. Eu imaginava a velha, na janela, lendo o mesmo livro, eternamente. Não olhava para os ho­mens, não os chamava, nem lhes dizia mon chéri. Pois bem. Comecei a imaginar as minhas longas conversas com a moça. “Você tem que sair dessa vida! Tem que sair!” E ela choran­do. Depois, talvez eu arranjasse um emprego de datilógrafa no jornal do meu pai.

Mas, quando o ônibus entra na Avenida, tive a certeza sú­bita e inapelável: — ia falhar como na véspera; e se voltasse no dia seguinte, a mesma coisa de sempre. Em seguida, passei a ou­tra certeza: — eu iria fracassar até com uma namorada. O medo bateu em mim. Passei pela torre da Brahma e não saltei. Fui até a Praça da Bandeira. Os redatores de A Manhã não tinham a minha angústia. E comigo acontecia sempre a mesma coisa: — o desejo ia morrendo à medida que me aproximava do Man­gue. Da praça da Bandeira, voltei para a redação.

E foi aí que vi, ou melhor dizendo, ouvi uma história que me feriu tão fundo. Na redação, estava o Valdemar, no meio de um grupo, falando do caricaturista sem talento. A princípio, nin­guém entendera o suicídio. Dizia-se: — “Um homem cheio de mulheres”. E, de fato, antes de ficar noivo, o caricaturista pare­cia ter uma amante em cada esquina. O Valdemar, confidente do morto, explicava tudo.

Simplesmente, o caricaturista estava amando. Amando de verdade e amando para sempre. Ele desabafava com o Valde­mar: — “Pela primeira vez, amo”. Pediu a mão da menina; e deixava o tempo passar, como se a solução fosse um noivado eterno. O futuro sogro começou a fazer a pressão. E, um dia, o caricaturista agarra o Valdemar, que, por sinal, era também investigador. Disse: — “Quando amo, não desejo. Até hoje, não dei um beijo na boca da pequena”. Ele não entendia que alguém pudesse desejar o ser amado. Pensava, por outras palavras: — “Todo desejo é vil”. Agarrou o investigador pelos dois braços e o sacudia: — “Desejo qualquer vagabunda, menos a minha noiva”.

A conselho do próprio Valdemar, foi ao médico. Contou todo o problema. O médico olhou, impressionado com aquela face escavada de angústia. Em arrancos, o caricaturista pergun­tava: — “Isso é doença, doutor? O que é que é isso?”. O médi­co não dizia nada; por fim, o desgraçado fez o apelo: — “Pelo menos, doutor, receite uma injeção, uma pastilha. Alguma coi­sa pra eu tomar na noite de núpcias. Pelo amor de Deus!”. O outro tirava os óculos e passava nas lentes o lenço fino. Suspi­ra: “Meu filho, não vou receitar nada”. Atônito, o caricaturista sentiu-se num abandono total. O médico repôs os óculos e com­pletou: — “Isso é amor! O amor é assim”.

O caricaturista saiu de lá, numa dilacerada euforia. Estava agora certo de que ninguém deve possuir o ser amado. Uma tar­de, procurou o Valdemar. Falou num tom de folhetim antigo: — “Acabei de assinar a minha sentença de morte. Estou morto. Morri”. O outro não entendia: “Como? Como?”. E o caricatu­rista, pálido como um santo: — “Marquei a data do casamen­to”. Espanto do Valdemar: — “E daí?”. Explodiu: — “O que é que eu vou dizer à menina na noite do casamento? Ela não vai entender, ninguém vai entender”. No dia seguinte, o pobre-diabo entrava no mar, com a calça arregaçada até o meio da per­na. E morreu. Eu ouvia, mudo e atônito. E, naquele momento, achei, como o afogado, que nenhum homem deve possuir a bem-amada.

A morte do caricaturista me persegue até hoje. Como es­quecer esse rapaz doce e apavorante que podia desejar qualquer uma, menos a mulher amada? E tão comovente como o suicida é o médico que o atendeu. Médico que jamais conheci, nem de vista, nem de nome, nem de nada. Por uma leviandade de ficcionista, eu o descrevi de avental e óculos. O avental é pro­vável. Mas não sei se usava os óculos.

Realmente, é fascinante um médico que justifica e promo­ve uma impotência, dizendo: — “É amor”. O caricaturista ou­viu, numa euforia total. Saiu purificado, reabilitado de toda a vergonha, de toda a humilhação. Só ele estava certo, os outros estavam errados. Do consultório, partiu para o suicídio.

E assim morreu, certo de que o mundo não é a casa do amor. Mas como eu ia dizendo: — a história do caricaturista es­tá encravada em mim, para sempre. Ouvi o Valdemar e saí, nu­ma perplexidade que me dilacerava. Desci as escadas da reda­ção e fui tomar sorvete de creme no Ponto Chic (na pequena rua Bethencourt da Silva). A sorveteria tinha um delicado e evocativo clima de belle époque.

Eu pensava que o amor não é o amor. Ou por outra: — o amor, como o imaginamos e como o fazemos, é tão falso, tão vil e, pior, tão sem amor. “Não possuir o ser amado”, dizia o médico do suicida. E não desejar o ser amado, nunca. Eu ouvia falar muito nos instintos. Não me lembro se cheguei a concluir, aos treze anos, que o amor começa depois dos instintos e con­tra os instintos.

(A natureza nos dotou de instintos por lapso, engano, le­viandade ou sei lá. Ainda me pergunto por que os temos e por que os suportamos.) Quarenta e um anos depois, estou eu, na casa de um amigo comum, conversando com Antônio Galotti e Aloísio Salles. E os dois me contaram um episódio que me en­sinou, que me ensinou tudo. Imaginem vocês um grande escri­tor brasileiro, ensaísta, romancista, poeta, jurista, o diabo.

E, um dia, no Velho Mundo, ele conhece o amor. Normal­mente, o brasileiro vive atolado em cavas depressões. Não esse. Esse vive de paroxismo em paroxismo. Tem, a qualquer hora, uma luminosidade de sátiro vadio. E, além disso, tinha o ambiente ilustre. Na Europa, ama-se com paisagem. Por trás do homem e da mulher, tudo tem mil anos: — as pontes fluviais, as igrejas, os telhados, as flores e os pombos.

O nosso patrício tremia de beleza como se cada momento fosse o último e o primeiro. Não dava um bom-dia à mulher ama­da sem lhe pingar gênio. Até que, um dia, marcam um encon­tro num interior secretíssimo. E o brasileiro queria amar aquela mulher como o D’Annunzio dos bons tempos, isto é, dos tem­pos em que era uma honra ser amante de D’Annunzio.

Ora, para o brasileiro não há nada mais solene do que o primeiro momento da intimidade carnal. E outra verdade deci­siva: — podemos ter todas as modéstias, menos a sexual. O bra­sileiro finge um desejo indiscriminado e voraz por todas as mu­lheres, vivas ou mortas. E o grande escritor foi para o encon­tro, ébrio de si mesmo; e jamais houve, na Terra, um ser exa­lando tamanha luminosidade.

Há o encontro. Estão sós, maravilhosamente sós, como se fossem o primeiro e último casal da Terra. Ela espera, com ar­dente paciência; e nada. O brasileiro usa todo o seu gênio ver­bal. Palavras, palavras e mais palavras. Mas eis a verdade: — ele tem amor e não desejo. Duas horas, três, toda uma tarde. Diga-se que, depois dos primeiros quinze minutos, ela percebe tu­do; ama-o mais por isso, porque sente todas as fragilidades lu­minosas do homem amado.

Durante um mês, repetiu-se, todas as tardes, o insucesso nítido, límpido, inequívoco. Chegou um momento em que ele foi apenas o espectador atônito. Era ela, com sábia obstinação, quem ousava tudo o que nenhuma outra mulher imaginaria. Por trinta vezes, o brasileiro foi a humilhação mais violenta, a ver­gonha mais crispada do mundo.

Terá pensado no suicídio? Não sei. Em ocasiões semelhan­tes, a primeira idéia do brasileiro é meter uma bala na cabeça. Até que, uma tarde, vai o grande escritor a um médico da Itália. Ele estava não sei se em Roma ou Florença ou Veneza (prefiro Florença). Entra no consultório, conta tudo e pergunta: — “O que é isso, doutor?”. Disse o outro: — “Amor”. Simplesmente amor. Apenas amor.

A história acaba aqui. O que houve depois interessa pou­co. E o que importa é a semelhança entre as duas histórias, do caricaturista e do escritor. Com o suicida dos meus treze anos aprendi para sempre. Aprendi, entre outras, esta verdade tão evidente e jamais suspeitada: — pode-se amar sem posse, e amar até a última lágrima de paixão e de vida. Lembro-me de uma jovem senhora que me dizia: — “Meu amor acabou na primei­ra noite do casamento”.

Engano. O amor que acaba não era amor. Todo amor é eter­no. Eu diria que a nossa tragédia começa quando separamos o sexo do amor. Vejam as doenças da carne e da alma, do câncer no seio às angústias sem consolo. Os nossos males têm quase sempre esta origem fatal: — o sexo sem amor.

Mas estou divagando, e desculpem. Quero contar, em se­guida, a minha grande viagem pelo Mangue. Eu ia conhecer uma figura que não morrerá jamais: — a prostituta, que, segundo um poeta, “pertence à mais antiga das profissões”. A mulher de um homem só é recente na história do coração humano.

E, de repente, descobri a prostituta vocacional. Ou por ou­tra: — não foi de repente. Primeiro, tive de passar por uma sé­rie de experiências, de tentativas, de agonias, de espantos. Que­ria encontrar Sônia. Três vezes por semana, estava eu na rua Be­nedito Hipólito. Via um entrar e, depois, outro, mais outro. Só eu não tinha coragem.

Certa vez, houve um tiroteio. Eu passava pela porta de um café, quando um sujeito puxou o revólver. Descarregou a ar­ma. Tiro quase à queima-roupa. E tudo isso dentro do café. O outro, ágil, elástico, acrobático, saltava por cima das mesas, das cadeiras, do balcão. Corri alucinado de medo.

E, já na Avenida do Mangue, parei um momento junto à palmeira. Naquele momento, me senti perdidamente menino. “Não volto mais”, decidi. Comecei a pensar no banho noturno das criadas. Não havia o perigo de uma bala perdida, ou de uma doença, e eu não sentia nem a vergonha, nem o medo. Nessa mesma noite, chego em casa e passo pelo banheiro das empre­gadas: — iluminado. Subo na árvore, instalo-me e fico de olhar parado como um cego.

Dias depois, começo a trabalhar no jornal de meu pai. Se bem me lembro, foi o meu irmão Milton que me mandou para a reportagem policial. A Manhã saíra da rua Treze de Maio, pas­sara para a Avenida, em frente à Galeria Cruzeiro. Ainda me ve­jo, na redação, com os meus treze anos, nome na folha e orde­nado de trezentos mil-réis, escrevendo a minha primeira nota.

Não vou me esquecer nunca: — era uma notícia de atrope­lamento. Um rapaz, ao atravessar a rua São Francisco Xavier, fora apanhado por um automóvel. Eu me torturei como Flaubert fazendo uma linha de Salambô. E a prosa saiu-me concisa, pre­cisa, objetiva, como a atual.

Comecei pelo nome, claro. Escrevia à mão. E procurei, in­clusive, trabalhar a caligrafia. “Fulano de tal, de 27 anos” (não sei se era essa a idade). O morto era preto. Muito bem: — pre­to. Mas a reportagem policial tinha, então, certos achados esti­lísticos. Por exemplo: — preto era pardo. E eu continuei: — “Pardo, solteiro”. Realmente, o estado civil do atropelado está na minha memória. Não há a menor dúvida: — solteiro. E fui adiante: — “Pardo, solteiro, foi colhido”. Ninguém era simples e crassamente atropelado, e sim “colhido”.

“Colhido e morto”, parei. Tinha uma dúvida: — “Colhido e morto por um automóvel” parecia-me escasso e frouxo. Pen­so, penso e não me ocorre nada. Sim, é pouco “colhido e mor­to por um automóvel”. Faltava algo. Desde que me destinaram à reportagem policial, eu andava lendo, relendo e meditando as notas de atropelamento. Puxo pela memória. E, de repente, baixa uma luz e completo a frase: — “Colhido e morto por um automóvel em disparada”.

Para o repórter de polícia, era sempre um automóvel “em disparada” que atropelava o brasileiro. E o resto. Desde a pri­meira audição de “Danúbio azul” que a nota de atropelamento é espantosamente igual a si mesma. Muda a vítima e nunca as palavras. Todavia, o “disparada” lisonjeou-me como se fosse uma criação minha. Estou parado. “Como é que acabo a no­ta?”, é o que me pergunto.

E, súbito, brota uma idéia que a mim próprio surpreendeu. No Brasil, quando alguém morre na rua, aparece uma vela ace­sa, ao lado do cadáver. Ninguém sabe, e jamais saberá, quem a pôs ali, quem riscou o fósforo, quem deixou aquela chama que vento nenhum apagará. É um uso brasileiro, que as gera­ções preservam, piedosamente. E eu me lembro de terminar com uma menção à vela.

Primeiro, eram só a vela e a respectiva luz. Em seguida, co­mecei a enriquecer a idéia. Podia dizer que uma senhora, vesti­da de preto, acendera uma vela etc. etc. “Senhora de preto” era bom. Ou, em vez de “senhora”, mulher de preto? Mulher, mulher. Fosse como fosse, era a primeira vez, absolutamente a primeira vez, em que se punha uma vela numa nota de atro­pelamento.

Faltava muito pouco para concluir a notícia. Bastava um em­purrão e pronto. Mas comecei a duvidar de mim mesmo. Mais tarde, fazendo meus textos teatrais, sentiria, por vezes, o mesmíssimo medo de trair uma rotina sagrada. E terminei limpa e honradamente assim: — “O chauffeur fugiu”. Foi esta a minha primeira pusilanimidade de ficcionista.

A coisa parecia estar concluída. Não. Faltava o título. E, en­tão, sofri, na carne e na alma, um tédio cruel, quase o asco do trabalho jornalístico. O título era uma outra batalha. Já me sentia até fisicamente cansado. Imagino: — ponho “Atropelado e mor­to”. O som era bom: — “Atropelado e morto”. Mas quem? Al­guém seria o “atropelado e morto”. Por um instante, entrego-me a uma meditação ardente e vazia. E tenho uma idéia: — Por que não simplesmente “Atropelamento”? Só. Escrevi, com um no­vo e triunfal élan: — “Atropelamento”. Isso mesmo. É a solução.

(Anos depois, fiz Vestido de noiva, a minha primeira tragé­dia carioca. A princípio, em vez de “carioca”, pensei em defini-la como “tragédia de costumes”. E o mesmo medo que me im­pediu de incorporar uma vela, uma pobre vela, ao meu primei­ro texto jornalístico — o mesmo medo, dizia eu, impediu-me de inaugurar um gênero dramático. Precisei de vários anos pa­ra, com Perdoa-me por me traíres, lançar a primeira “tragédia de costumes”. Voltando a Vestido de noiva: — o ponto de par­tida da peça é, justamente, uma notícia de atropelamento. Aliás, em toda a minha obra teatral, o repórter de polícia é uma pre­sença obsessiva.)

Entreguei a notícia ao Costa Ramos, que substituía o Costa Soares na chefia da polícia, Ainda perguntei: — “Que tal?”. Res­pondeu: — “Bom”. Saí feliz, realizado; o atropelamento soou-me como a minha estréia literária. Foi nesse momento que um repórter me puxa pelo braço; pergunta: — “Vamos ao Man­gue?”. Minha alegria morreu ali. Digo, com um princípio de an­gústia: — “Não tenho dinheiro”. E o outro, rápido: — “Te em­presto”. Começo: — “Vamos fazer o seguinte”. Interrompe: — “Ou tens medo?”. Reajo: — “Já fui lá umas cinqüenta vezes”.

Odiei aquele sujeito. Das outras vezes, eu era o único es­pectador da minha própria humilhação. Ninguém me vira fugir sem ser tocado. E, agora, teria uma testemunha. No ônibus, o repórter me dizia: — “Vamos numa que eu vou te mostrar. Cor­po formidável. Te deixo ir primeiro. Depois vou eu”. Eu ouço e calo. E o outro tirando a mão do bolso: — “Toma. Dez mil-réis. Dá dez mil-réis”.

Bem me lembro do repórter, no ônibus, a caminho do Man­gue. Não parou de falar. Ainda vejo a cara forte, o olho rútilo, o movimento das mandíbulas e a saliva espumando nos dentes. Eu era levado; ele me carregava. E, de repente, começou a falar da própria família. Disse: — “Vou te contar uma, que vais ficar besta”. O cobrador apareceu e ele teve um gesto radiante: — “Deixa que eu pago”. Pagou as duas e embolsava o troco. Riu: — “Sabe o que eu fiz?”.

O cobrador passava adiante. E o repórter continuou: — “Moramos numa casa velha, na Tijuca. Perto de onde morou um almirante. Não me lembro do nome: — um almirante”. A conversa me distraía do medo do Mangue. E ele, baixo, crispado: — “Então, fiz o seguinte. Subi no forro e abri um buraco em cima do banheiro”. Parou, espiando a minha reação; repe­tiu: — “Bem em cima do banheiro”. Limpa um pigarro e conti­nua: — “Se vê tudo, percebeu? Tudo. Subo lá, de manhã, quan­do as minhas irmãs vão tomar banho”.

As irmãs. Foi como se ele me enfiasse o pé no peito. Não primas, ou tias, mas irmãs. Quis duvidar: — “Irmãs?”. E ele, feliz: — “Irmãs. Tenho quatro irmãs. Você se lembra de Zezé Leone? A que foi miss?”. Fiz que sim; prosseguiu: — “A minha irmã mais velha é a cara dela, a cara. Igualzinha”. E, sem transição, agarra o meu braço; pergunta, num apelo: — “Queres ir lá? Olha: — tu vais e eu faço outro buraco no forro. Dormes lá e, de manhã, subimos e já sabe”.

Digo, no meu desespero: “Depois a gente fala”. Tenho von­tade de mudar de banco; e dizia a mim mesmo, crispado: — “Se fossem primas e não irmãs. Primas”. Olho-o, de lado, como se o visse pela primeira vez. Durante a semana, aquele rapaz vaga­va, por entre mesas e cadeiras, como obscuro repórter, transi­do de humildade. Como é que aquele sujeito, ao passar a mão na cara, não sente a própria hediondez?

Só nos sábados é que mudava até fisicamente. Agora eu sa­bia: — sábado era o dia ou a noite do Mangue. Quando salta­mos, perto da Brahma, digo, impulsivamente: — “Com a tua não vou”. O outro pára; parecia um desfeiteado: — “Não vai por quê?”. Respondi, com raiva: — “Escolho uma. Por que a tua?”. Olho, sem pena, o canalha dos sábados.

Ou por outra: — não só dos sábados. Era mais canalha to­das as manhãs, quando as irmãs iam tomar banho, antes do ca­fé. Ainda me convidava para espiar também no buraco do for­ro. Atravessamos a avenida do Mangue, discutindo e, ao mes­mo tempo, fugindo dos automóveis. Ele insistia, indignado; quando entramos na rua Benedito Hipólito, perdeu a fúria. Pe­diu, implorou.

“Você vai primeiro”, repetiu. Parecia um daqueles chefes índios, ou esquimós, que, num arroubo de anfitrião, oferece a própria esposa ao visitante. Mas se eu fosse na tal fulana, teria duas testemunhas: — o próprio repórter e a pequena. Ele trata­ria de saber, com a outra, tudo. E eis a verdade: — estava certo de que ia fracassar outra vez. “Vou fazer feio”, repetia para mim mesmo. Imaginei o repórter, entrando depois e fazendo pergun­tas sobre o menino que acabara de sair. “Não sou besta”, pen­so. Em suma: meu plano era deixar o meu companheiro entrar e, só então, escolher uma qualquer, que não conhecesse nem a mim nem a ele.

Caminhamos, lado a lado, numa das calçadas da rua Bene­dito Hipólito. Ele, mudo, ia numa tristeza total. Sumira toda a sua euforia dos sábados. E, passo a passo, fui me saturando das luzes, das sombras, dos risos, das caras. De repente, me imagi­nei no forro, espiando, pelo buraco, o banho das meninas. A imagem está em mim, e com uma nitidez tão intensa, que o meu coração bate mais rápido. Penso numa ideal nudez molhada, com as gotas estilhaçadas nas costas e no seio.

E sinto uma voluptuosidade cruel e tão vil. Pela primeira vez, no Mangue, o desejo se irradia por todo o meu ser. Falo com uma voz que parece de outro e não de mim mesmo: — “Onde é tua pequena?”. Teve um movimento tão vivo de surpresa, de alegria, que esbarrou num marinheiro que vinha em sentido contrário. Disse, transfigurado: — “É ali. Está vendo? Ali”. Voltava a ser o feliz canalha dos sábados.

Caminhamos mais depressa e mais eufóricos. O banho das meninas não me saía da cabeça. Eu, no forro, espiando (deu-me vontade de perguntar: “E se vê bem?”). Agora era varado pela certeza inversa: — Não ia fracassar. Mas precisava pensar muito no banho. Enquanto pensasse no banho, estaria salvo do medo. De repente, o repórter estaca. Bate em mim com o coto­velo: — “Aquela. Olha. A morena”. E, de fato, era morena, cheia de corpo, as ventas de forte e plebéia volúpia.

Pergunta: — “Que tal?”. Continuo me imaginando no for­ro. Eis a fantasia que me queima: — Uma moça que interrompe o banho para apanhar, no ladrilho, o sabonete que escorregou da mão. Vejo o dorso curvado, o movimento do músculo puro e elástico. O repórter baixa a voz, no apelo: — “Vai, anda, vai”. Ainda vacilo. Ele tem medo que outro se antecipe. As calçadas estão inundadas de gente. Ouço a voz: — “Vou depois. Anda, anda”. Digo: “Calma, calma”. E ele, em ânsias: — “Deixa de ser chato!”.

(Boa época em que “chato” era palavrão.) E, então, tomo coragem. Caminho por entre os que passavam. A morena abre a meia porta. Não há palavras. Vai na frente. Pequenas divisões de madeira. Sigo atrás. Não direi que é a primeira vez, porque ela contaria ao repórter. Entro no pequeno quarto. Ela cantaro­la de costas para mim. Desfaz um laço. Ouço a minha própria voz: — “Te dou dez mil”.

Estou saindo e não penso mais no banho. O repórter me espera, em cima do meio-fio. Assim que me vê, corre ao meu encontro. Balbucia: — “Que tal? Que tal?”. Respondo: — “Sei lá”. E ele, com a boca encharcada: — “Me espera, me espera”. Agora sou eu que estou parado, no meio-fio. Fico lá uns dez minutos, se tanto. Já ia-me embora quando o repórter aparece.

Seguimos, calados, para a avenida do Mangue. Num silêncio torturado, o outro puxou um cigarro. Mais adiante, começou a falar: — “Olha aqui. Aquilo que te disse é mentira. Não olhei ba­nho nenhum das minhas irmãs. Mentira. Só uma vez, quando garotinho, espiei, pelo buraco da fechadura, uma tia. Empregadas, sim. Minhas irmãs, nunca. Juro, nunca”. Pausa. Repete, olhando para mim: — “Eu não faria isso”. E começou a chorar.

Vi o repórter cobrir o rosto com uma das mãos. Escondeu-se detrás de uma palmeira, como se os automóveis, em dispara­da, pudessem vê-lo. E, ao mesmo tempo, trincava as palavras nos dentes: — “Não é nada, não é nada”. Eu, em pé, apoiado nas grades do canal, olhava para a torre da Brahma. (E há sem­pre uma estrela que sobe por trás da torre da Brahma.)

Tive asco — e nenhuma pena — daquele pranto de adulto. Ele tirava um lenço; assoava-se. E ainda o detestei mais por causa do lenço. O outro tentou um riso: — “Sou uma besta! Sou uma besta!”. Enfiou o lenço amarrotado no bolso traseiro. Tinha vin­te anos e eu era um menino. O rapaz vira-se para mim, trêmu­lo: — “Vamos embora?”. Mais adiante, tomamos o ônibus. E, então, ele me perguntou: — “Gostou da pequena?”. Seu olho era de uma humildade insuportável. Respondi, crispado: — “In­teressante”.

Talvez porque eu fosse o filho do diretor, ele insistia: — “Mas não achou formidável?”. Respondi: — “Gostei”, olhan­do para outro lado. E, porque eu não a achara formidável, o ou­tro calou-se, numa frustração cruel. De repente, me lembrei da dívida. Disse: — “Te pago amanhã”. Protestou, desesperado: — “Não tem pressa. Paga quando puder, e se quiser”. Ajuntou, sofrido: — “Você foi meu convidado”.

Saltou muito antes de mim; e continuei, sozinho, até o posto 6. Desde que deixara a mulher, estava decidido: — “Não volta­rei mais, nunca mais”. Enquanto o repórter chorava, detrás da palmeira, eu repetia para mim mesmo: — não voltar, nunca. Des­ta vez, fizera o que todos fazem. Não saíra corrido de vergo­nha. Não. E me considerava um canalha. Tinha nojo do repórter, de mim mesmo e da mulher (mais tarde, veria as ventas da mulher nas cópias de Gauguin).

No banco do ônibus, me via no pequeno quarto. Ao lado da mulher, não pensava na mulher, não, não. Não me saía da cabeça a cena do banho utópico, ideal. Imaginava a nudez molhada e as gotas deslizando por entre seios. E ao entrar em casa, naquela noi­te, eu tinha asco, não de uma mulher, mas de todas, de todas. Lembro-me da minha casa, em Joaquim Nabuco. Entrei pelo por­tão do lado; havia uma pequena rampa, que subi devagar. Nor­malmente, eu teria contornado a casa para ver se tinha luz no ba­nheiro das empregadas. Naquela noite, passei ao largo.

Minto. Fiz o caminho de sempre. Vi luz, sim, no banheiro. Mas não fui olhar, não quis olhar. E estivessem lá, amontoadas, todas as irmãs do repórter, eu não lhes daria, pelo vidro, um úni­co olhar. Entrei em casa; subi a primeira escada, apoiado no cor­rimão. E parei, de repente. Lembrei-me de que, ao me inclinar para a morena, ela fugira com o rosto, dizendo: — “Não gosto de beijo”. Seu rosto, ao dizer isso, era uma máscara vingativa.

Essa recusa que, na ocasião, mal percebera agora me fazia sofrer. Parado, no meio da escada, senti a humilhação tardia e tão funda. Ao mesmo tempo, percebi o que ainda hoje me pare­ce ser uma verdade eterna do amor: — a verdadeira posse é o beijo na boca e repito: — é o beijo na boca que faz do casal o ser único, definitivo. Tudo mais é tão secundário, tão frágil, tão irreal.

Subo a primeira escada. Ainda passei na copa e fui beber água gelada (e tive nojo da água). Comecei a subir a segunda escada. Mas ia sem pressa nenhuma de chegar ao quarto. Sabia que ia me virar horas na cama, com todas as danações da insô­nia. Chego em cima. Algo de mim morrera na rua Benedito Hipólito. Eu não seria nunca mais o mesmo. Tivera uma delícia fulminante e vil; e me vinha uma pena cruel de mim mesmo.

Fui dormir com a sensação de que um pouco de mim mor­rera no Mangue. Deixara de ser eu mesmo e começava a ser um outro. Pensei em Sônia e Raskolnikov; nenhuma voluptuosidade entre eles; até o fim do Crime e castigo os dois não têm um movimento erótico. E, como Sônia não beijava nenhum homem na boca, era a prostituta jamais possuída. Não voltar ao Man­gue, nunca mais.

No dia seguinte, vou cedo para a redação. Quando entro, vejo o Danton Jobim num canto, recortando, com a tesoura, uma fotografia. Danton com menos quarenta anos. Era grave sempre foi grave (naquele tempo, fazia versos. Escreveu, certa vez, um soneto que terminava com o velado esplendor de es­trelas mortas). Mas, como ia dizendo: - entrei e logo começo a falar, numa euforia desesperada e maligna. No meio de qua­tro ou cinco, contei tudo: — “Pequena formidável”. Virei-me para o repórter, que lia jornal num canto. Gritei-lhe: — “Vem cá, vem cá”.

O outro veio, do fundo da redação, meio atônito. Não era mais o dionisíaco canalha dos sábados. Assumia agora a sofrida humildade dos dias úteis. Explorei o seu testemunho subservien­te. Puxei-o: — “Conta aqui. Não é formidável? A tal pequena Não é? Fala, rapaz”. Ah, ele confirmaria tudo o que eu dissesse E fui mais longe: — “A zinha não queria nem receber”

Naquele momento, resolvi que, na próxima vez diria: — “Não aceitou o meu dinheiro. Faz de graça, comigo”. E ao mes­mo tempo que falava, gesticulava, eu era um observador espan­tado e infeliz de mim mesmo. Não me reconhecia nas minhas palavras e nas minhas gargalhadas. Era como se outro falasse e risse por mim. E pensava, com desesperada volúpia, nas ir­mãs do repórter e no seu banho encantado. Se alguém me vis­se, havia de pensar: — “Eis um jovem pulha”. Mas sofria eis a verdade, eu sofria.

Falei na prostituta vocacional. Eu ia conhecê-la Dois ou três dias depois, voltei. E já sabia que voltaria outras vezes, todas as vezes. Por um momento, pela tal delícia fulminante e vil, o homem mata e se mata. Assim aprendi que o homem começa a morrer na sua primeira experiência sexual.

Eu falava no telefone com o comissário e via, no fundo da redação, o caricaturista Álvarus (na véspera Álvarus tivera um bate-boca com um repórter francês, se não me engano de Mar­selha. Discute daqui, dali, e Álvarus deu-lhe um soco na boca). Dizia o comissário: — “Vem logo. Chispa. Morreram agorinha”.

Hoje, ninguém imagina o que eram as velhas gerações ro­mânticas da imprensa. Mudaram o jornal e o leitor. No ano pas­sado, houve uma chuva inédita, uma chuva bíblica, flagelando a cidade. Desde Estácio de Sá, não víamos nada parecido. E to­do mundo morreu e desabou, e se afogou, menos o repórter. Pasmem: — “Não houve uma única baixa na reportagem. Fez-se toda a cobertura do dilúvio e ninguém ficou resfriado, nin­guém espirrou, ninguém apanhou uma reles coriza”.

Por aí se vê que há, entre a nossa imprensa moderna e o fato, uma distância fatal. O repórter age e reage como um marginal do acontecimento. Antigamente, não. Antigamente, o profissional sofria o fato na carne e na alma. Podia morrer no incêndio como um bombeiro; e, se era um naufrágio, o sujeito podia se afogar briosamente. Havia o risco e, não raro, o martírio.

Saímos dois, ou três, e mais o fotógrafo. Antes, um de nós passou na caixa e apanhou o vale do táxi. Partimos em dispara­da. Naquele tempo, ainda cultivávamos a utopia do “furo”; que­ríamos chegar antes dos outros. Mas era quase impossível “fu­rar” A Noite. Nada acontecia sem que A Noite soubesse. Alguém telefonava, avisando. Lembro-me de um sujeito que ligou para o fabuloso vespertino; e disse: — “Vou matar minha mulher. Pode vir”. Deu nome, endereço, o diabo. A reportagem che­gou quase com o primeiro tiro.

A rigor, eu, menino de treze anos, não discriminava o reles atropelamento e a grande, hierática tragédia passional. Tudo me chispava; e era como se. naqueles dias, eu estivesse descobrin­do o ser humano. Havia, porém, um acontecimento policial que me fascinava mais que os outros: — o pacto de morte. Lembro-me de que, nos meus sete aros, dois namorados se mataram nu­ma mata de Santa Teresa. E li, como um fanático, tudo o que se publicou a respeito. A polícia só descobriu o jovem casal uma semana depois da morte.

A imprensa, hoje, numa afetação de ética e bom gosto, evi­ta a fotografia de morto. Defunto só no caixão e bem vestido como um mordomo de filme policial. Em 1926, tais escrúpulos não existiam. Bem me lembro dos namorados. O jornal abria um primeiro plano das caras comidas pelos urubus. Não o fíga­do, o baço, mas a cara exatamente, a cara.

Eis o que eu queria dizer: — nascia, imediatamente, entre mim e os suicidas de amor um vínculo tão íntimo, tão sofrido, uma espécie de parentesco ardente e desesperado. Era como se eu tivesse feito a mesma coisa em vidas passadas. E assim fui para Aldeia Campista ou Andaraí. Já não me lembro se era a rua Perei­ra Nunes ou Maxwell. Em Pereira Nunes, Adolpho Bloch vivera a sua infância humilhada e ofendida; e passara fome. À noite, a rua era lívida e comprida como a ponte Buarque de Macedo. Mas como ia dizendo: — saltamos, primeiro, na porta da menina.

Já da esquina, ouvíamos gritos de mulher. Era a mãe da mor­ta, as irmãs e até vizinhas. Sempre digo que, para além da praça Saenz Peña, os mortos são muito mais chorados. E mais ainda naquele tempo. Hoje, pode-se dizer que o ataque está entre os velhos e fenecidos usos cariocas. Nem a catástrofe justifica o ataque. Ninguém tem mais clima interior para bater com a ca­beça nas paredes e agredir portas, mesas e cadeiras.

Fomos encontrar mulheres rolando por cima umas das ou­tras em ataques; e, de repente, uma solteirona (soube depois que era solteirona) entrou lá e começou a rir. Estraçalhava no ar a própria gargalhada como os pavões. Um latagão a segurou pelos pulsos. Alguém explicava: — “Histerismo! Histerismo!”. E eu, andando de um lado para outro, desatinado, tinha vonta­de de chorar também.

A pequena estava no fundo do quintal, coberta com um len­çol (enquanto não vinha o rabecão). Ouvindo aqui e ali, vizinhos, parentes, criadas, a reportagem soube de tudo. A menina parecia mais alegre do que nunca; sentou-se no colo da mãe, brincou com as irmãs. Houve um momento em que disse: — “Mamãe, se eu morrer, quero que meus vestidos fiquem para fulana”. A fulana era uma parenta pobre; não sei se prima; e, se não era parenta, era vizinha. Todos acharam graça e passou. Pouco depois, ela vai ao telefone e fala com o namorado. Sai do telefone e se tranca no quarto.

De repente, começou a gritar. Corre-corre na casa. Ela pró­pria abre a porta e passa, correndo. Ardia como uma estrela. Embebera o vestido em querosene, ou álcool, riscara o fósforo e rompera em gritos. Numa chama só, corria, tropeçando nas cadeiras. Uma tia foi buscar um cobertor ou toalha. E ela fugia, agora, pelo corredor. Foi morrer no fundo do quintal — e negra.

Agora, o pai andava pelos cômodos da casa como um de­mente; e só repetia: — “Eu vi a gordura escorrendo. A gordura escorrendo. Era minha filha”. E, então, desesperado, comecei a perguntar pelo rapaz. Contaram que os dois tinham combina­do morrer, ao mesmo tempo, cada qual na sua casa. Marcaram uma hora exata e acertaram os relógios. E, como moravam na mesma quadra, ele há de ter escutado os gritos da bem-amada, e ela os gritos do bem-amado.

Peguei uma vizinha gorda (há sempre uma vizinha gorda como uma viúva machadiana). Fiz-lhe a pergunta: — “Por quê?”. Ninguém se mata de graça, pelo puro gosto de morrer. Eu que­ria o motivo. Eis a verdade: — ninguém sabia, nem havia moti­vo. Estavam noivos e de casamento marcado. Nenhuma oposi­ção familiar, nada. Então por quê?

Quando já íamos voltar, um senhor veio cochichar para a reportagem: — “A menina era débil mental. Tinha manias”. O outro falava chiando e aos arrancos, como um asmático. Não me convenceu. Ora, isso acontecia no tempo em que Adolpho Bloch passava fome. E, agora, tantos anos depois, eu penso: — morremos tão pouco de amor, e nos matamos tão pouco de amor. Não quererá isso dizer que somos uns pobres, uns des­graçados impotentes do sentimento?

Quando voltamos, no mesmo táxi, começou a chuva. Re-lampejou. No alto, abriu-se um clarão de espanto. Os ventos as­sanhavam as sombras das esquinas. E eu com os outros no tá­xi, sofria e tinha medo. Um de nós andara no quarto da suicida — remexendo gavetas e roubando retratos. Tremi diante da ver­dade súbita, jamais suspeitada: — o suicida não precisa de mo­tivo, nenhum, nenhum.

Inútil perguntar por que uma moça ou um rapaz fere a pró­pria vida. É um gesto de graça plena e nada mais. Continuei pen­sando, pensando. Cada qual tem a sua própria morte ou por outra: — cada qual é o seu próprio cadáver (só o Mário Faustino não foi cadáver, nunca. Ia para a Europa. Europa, não. Ia para os Estados Unidos. Seu jato bateu numa montanha. Tudo se desintegrou, terno, sapatos, obturações, o anel. O poeta, o crítico, o editorialista Mário Faustino morreu e não foi jamais cadáver).

Lembro-me de que, mais tarde, em casa, sonhei a noite to­da com o pacto de morte. Os dois olhando o relógio e morren­do na hora marcada: — ele, tomando formicida, ela, “ateando fogo às vestes”. E, depois, o diálogo de gritos. O rapaz gritou menos, porque morreu antes. Podia ter apenas gemido. Mas uivara para ser ouvido. Foi a noite toda assim. A gordura pinga­va, a gordura deslizava. Banha humana.

Acordei exausto de sonhar. E assim fui me tornando cada vez mais íntimo dos suicidas. Antes de prosseguir, porém, de­vo explicar que justaponho, de propósito, as minhas experiên­cias de Mangue e da reportagem policial. Umas e outras me ensinaram muito e, eu quase dizia, me ensinaram tudo; e, mais tarde, iam influir em todo o meu teatro. Reparem que falo no Man­gue e não na rua Conde Lage. Esta última era uma prostituição aristocrática, melíflua, bem educada, com jardins antigos e caramanchões nostálgicos.

Muitos anos depois, estou presente a um dos ensaios de Ves­tido de noiva. Não sei se vocês se lembram. A tragédia começa num lupanar, digamos lupanar. A heroína fora atropelada na al­tura do relógio da Glória; fratura do crânio, do braço, escoria­ções generalizadas. Quase agonizando, ela se imagina num pros­tíbulo.

E o ambiente é muito mais a rua Conde Lage do que o Man­gue. Antes de morrer, a jovem e exemplar senhora precisava viver o seu momento de prostituta. Eis o que eu queria dizer: — o deslumbramento com que, em todos os tempos, a atriz representa a meretriz. Num dos ensaios do Vestido de noiva, uma das intérpretes gritava: — “Quero um papel de prostituta”. Bem me lembro da paixão com que dizia isso.

A Alaíde de Vestido de noiva precisou morrer para realizar a sua mais doce e secreta utopia. E não há uma atriz que não queira usar o vestido, os modos, as caras, as inflexões, os risos das “filhas da desgraça”. Isso aqui, em toda parte e em todos os idiomas. Deve ter sido assim no tempo dos gregos e antes dos gregos. Não importa que a atriz seja uma mulher fidelíssima, mãe de não sei quantos filhos, dona de casa etc. etc. As me­ninas que apareciam no vestíbulo também tinham, na vida real, um comportamento irretocável, imaculado.

Mas, representando a prostituta, elas se transfiguravam. Bem me lembro dos ensaios, que acompanhei com a pertinácia fa­nática dos estreantes. Percebia-se que estavam crispadas de so­nho, doentes de voluptuosidade. E tinham a naturalidade, e a graça, e o movimento exato, e a inflexão certa. Era como se, naquele momento, cada uma estivesse cumprindo um imortal hábito feminino.

Depois das estréias, uma peça perde muito da sua potên­cia. A presença do público, isto é, a presença de duzentas se­nhoras comedoras de pipocas — compromete o mistério, o sortilégio e a sabedoria de um texto. Já nos ensaios, aparece em seu furioso estado de graça. Eu vi isso durante os meses em que Ziembinski, como um demente, preparava Vestido de noiva.

Era a cena inicial, do prostíbulo, que me fazia tremer. Eu ficava, no meu canto, tecendo inumeráveis fantasias. Eis o que pensava, observando o meu próprio elenco: — não há atriz, por mais inepta, mais incompetente ou medíocre, que represente mal a prostituta. Aí está o papel irresistível. A meretriz do tea­tro é perfeita. Não importa que a intérprete seja uma canastra. De repente, ela se põe a dizer, a inflexionar, a gesticular como uma Duse.

Citei o poeta que falou na mais antiga das profissões. Não sei se será bem assim. Minha experiência de Mangue, de repór­ter e de dramaturgo insinua outra verdade, ou seja: — a primei­ra prostituta não era mercenária. Fazia o que fazia por um dom, por uma graça, quase por uma destinação poética. Talvez seja mais válido falar-se na mais antiga das vocações.

O êxito de Vestido de noiva foi, para mim, outra experiên­cia decisiva. Já expliquei que, até a estréia, achava impossível um sucesso de público. Com seu processo de ações simultâneas, em tempos diferentes — a peça devia ser hermética para o es­pectador médio. E, no entanto, a bilheteria de Vestido de noi­va foi de estarrecer.

Realmente, a multiplicidade de planos estonteava a platéia. Raros conseguiam dar uma ordem ao caos. E, apesar disso, a tragédia fascinava. Lembro-me de senhoras que saíam trêmulas de beleza. E por quê? Em primeiro lugar a pergunta: — o que é Vestido de noivai Um delírio põe a heroína num prostíbulo. Logo se percebe que ela estava ferida pela nostalgia da prosti­tuta. Alaíde procura madame Clessy, a meretriz antiga e feneci­da. E assim o mito da prostituta se irradiava para a platéia e ca­da espectadora ficava tensa de sonho.

Escrevi que fui, no Mangue, um menino à procura de amor. E, em seguida, na reportagem de polícia só o amor me fascina­va. Lembro-me de um desastre de trem que assombrou a cida­de. Morreram oitenta, cem pessoas. Quando nós, da reportagem, chegamos, muitos ainda agonizavam; e uma moça, com as duas pernas esmagadas, pedia pelo amor de Deus: — “Me matem, me matem!”. Tinha eu treze anos, ainda não completa­ra os catorze. Via os vagões trepados uns aos outros; lá estava a locomotiva entornada. Era espantoso: — um trem cavalgan­do outro trem. E, ainda pior, a promiscuidade de feridos e mor­tos. De vez em quando, uma mão brotava das ferragens; e um repórter tropeçou numa cabeça — uma cabeça sem corpo.

Cem mortos, não sei quantos feridos. Mas faltava o amor. Houve um momento em que me encostei num poste e tranquei os lábios, crispado de náusea. Faltava o amor, disse eu. E a mas­sa de gemidos, mutilações e agonias — me feria menos do que um simples pacto de morte. Para mim, mais patético do que cem mortos é o casal que se mata de amor e por amor.

Ainda agora, quando sei que alguém ama, simplesmente ama, paro, espantado. (Hoje, estaremos no banquete a Gilberto Amado. Os oradores vão dizer tudo, menos o que essencialmen­te importa: Gilberto Amado ama. Mesmo que não tivesse escri­to uma linha, merecia essa homenagem e outras. É um brasilei­ro que chega aos oitenta anos e ama. Oitenta anos — portanto mais velho do que o século — e ama. Estamos salvos, estamos salvos. É como se Gilberto Amado amasse por todo um povo.)

Rapidamente, deixei de ser apenas o repórter do atropela­mento. Escrevera sobre o pacto de Pereira Nunes uma boa meia página. Desta vez, mais seguro de mim mesmo, inundei de fan­tasia a matéria. Notara que, na varanda da menina, havia uma gaiola com um canário. E fiz do passarinho um personagem ob­sessivo da história.

Descrevi toda a cena: — a menina, em chamas, correndo pela casa, e o passarinho, na gaiola, cantando como um louco. E era um canto áspero, irado, como se o canarinho estivesse entendendo o martírio da dona. E fiz a coincidência: — enquan­to a menina morria no quintal, o pássaro emudecia na gaiola.

Quase, quase matei o canário. Seria um efeito magistral. Mas como matá-lo se a rua inteira ia vê-lo, feliz, vivíssimo, cantando como nunca, na sua irresponsabilidade radiante? O bicho sobre­viveu. E foi um sucesso no dia seguinte. Lembro-me de que me perguntaram muito: — “Quem escreveu a história do passari­nho?”. Eu era apontado. Muitos vinham perguntar: — “Mas aquilo foi verdade mesmo?”. Respondia, cínico: — “Claro!”.

Entre parênteses, a idéia do passarinho não era lá muito ori­ginal. Eu a tirara de uma velha e esquecida reportagem de Castelar de Carvalho. Anos atrás, ele cobrira um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém e a mediocridade do sinistro irritava o repórter. E, então, lembrou-se ele de inventar um passarinho. Enquanto o prédio era lambido e, depois, comido, o pássaro can­tava, cantava. Não parou de cantar. Só emudeceu para morrer.

O brasileiro gosta do horror e a nossa cidade é emotiva co­mo uma senhora gorda. A deslavada invenção de Castelar fez a massa tremer de pena e de beleza. Não se falou em outra coi­sa. E o Castelar, fascinado pelo próprio êxito, não pensou duas vezes: — a partir de então não fazia um incêndio sem lhe acres­centar um passarinho. Sim, um passarinho que morria cantan­do e repito: — que emudecia morrendo.

Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da ob­jetividade. O repórter mente pouco, mente cada vez menos. A geração criadora de passarinhos acabou em Castelar. Eis o dra­ma: — o passarinho foi substituído pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí por que a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira.

Houve, naquela época, uma tragédia (nós chamávamos tra­gédia) que apaixonou a cidade. (Eu continuava dentro dos meus treze anos.) Um deputado, ou senador, desconfiou da mulher. Ao contrário do que pretende a ópera-bufa, o marido é o pri­meiro a saber, exatamente o primeiro. Antes da mãe, da sogra, do vizinho, do fornecedor — o marido sabe. Eis como o sena­dor percebeu tudo. Uma noite, chega em casa e, como fazia sem­pre, inclinou-se para beijar a mulher na boca. Beijava de leve, mas nos lábios.

Muito bem. E o senador, que se julgava uma espécie de Disraeli, cumpriu o hábito doce como todos os hábitos. Aconte­ceu então o seguinte: — ao ser beijada, a esposa desvia ligeira­mente o rosto. Em vez de oferecer a boca, deu a face. Só fora um movimento quase imperceptível. E tanto bastou para o nosso Disraeli. Pensa, imediatamente: — “Me trai”.

Senta-se para o jantar, mas já começava a sofrer. Durante a sopa, o ensopadinho, o bife, aquilo não lhe saía da cabeça. Era traído. Como, quando e com quem, não sabia, ou por ou­tra: — ainda não sabia. “Evitou o beijo na boca”, repetia para si mesmo. O curioso é que jamais, em momento nenhum, aquela senhora tivera um gesto, ou sorriso, ou olhar suspeito. Nada. Mas o marido estava prodigiosamente certo do adultério.

E, por influência da traição hipotética, mudou até fisicamen­te. Em casa, mesmo de pijama, parecia estar de sobrecasaca. De vez em quando, parava, ereto, perfilado, como se ouvisse o Hi­no Nacional. E, com essa desesperada pose, ele se compensava da vergonha e do ridículo. Começou a vigiar os passos da mu­lher, a espreitá-la. Até que, um dia, a viu entrar numa porta. Pré­dio de três andares, com uma sorveteria embaixo. Por uma des­sas intuições exatas e fulminantes, achou que ela ia pecar no terceiro andar e não no segundo ou no primeiro. Como sofria do coração, subiu devagar as escadas, descansando de três em três ou de quatro em quatro degraus. Ainda ficou um momen­to, junto à porta, preocupado com os arrancos cardíacos. E foi então que veio, lá de dentro, um som abominabilíssimo: — era o riso da mulher, riso agudo, cantante, de soprano.

O nosso Disraeli chegara a duvidar. Era velho e os velhos perdoam. Mas o som o enfureceu. Puxa o revólver e faz saltar, à bala, a fechadura. Em seguida, invade o quarto. O amante se enfiou debaixo da cama. Mas a adúltera, mais ágil, mais elástica, mais acrobática, quase alada, teve tempo de se atirar do alto do terceiro andar. Por aí se vê que ela pecava por sexo e não por amor. O sexo corre e sobrevive. E se fosse amor, ela se deixaria varar de balas como uma santa; e ainda morreria agradecida.

Terminei o capítulo com a adúltera pulando pela janela. Era na cidade, dia útil, hora de movimento. Se me perguntarem se ela morreu, eu lembrarei Machado de Assis. Segundo este, é me­lhor cair das nuvens do que de um terceiro andar. Pois a infiel caiu de um terceiro andar em cima de um toldo. Foi um assom­bro na rua. De repente, todos viram aquela mulher voar pela janela, virar duas cambalhotas e derramar-se dois andares abaixo.

E vinha de camisola, aí é que está, vinha de camisola. Ho­je, não há nada mais intranscendente do que o ato de se despir. A mulher faz dois ou três gestos e a nudez brota, instantânea. Se, em nossos dias, uma senhora cair de um terceiro andar e de camisola — será um escândalo total. Todos hão de pergun­tar, numa amarga perplexidade: — “Por que a camisola?”. Na­quele tempo, o pudor era obrigatório no jogo amoroso e entra­va nas devassidões mais frenéticas.

Era uma senhora gorda, e, portanto, de uma beleza um tanto pesada. Tinha os flancos fortes, potentes de fecundidade. E, to­davia, o toldo suportou o baque e não houve morte, nem fratu­ra, nada. A adúltera foi recolhida, salva. Alguém lhe deu uma capa, que ela vestiu por cima da camisola. Quanto ao amante, nós o deixamos debaixo da cama. No quarto, está um marido armado e homicida. A adúltera saíra pela sacada e o amante de­via ser a vítima obrigatória.

E, no entanto, aconteceu o seguinte: — a partir do momento em que mulher se atirou de cabeça, o amante passou a ser um pobre-diabo secundário, irrelevante e, eu diria mesmo, inexis­tente. O nosso Disraeli foi na sacada espiar o resultado da que­da. Do alto, viu a mulher, de camisola, esperneando em cima do toldo. E voou pelas escadas. O que houve depois qualquer um pode imaginar. O amante saiu, de gatinhas, vestiu-se, calçou-se, pôs o chapéu, desceu e sumiu, para sempre. Não deixou, atrás de si, um vestígio de identidade. Até hoje, ninguém sabe quem foi esse único e escasso amante, como era, qual o feitio do seu nariz, o número do seu sapato ou se usava pérola na gravata.

Dois ou três latagões retiraram a adúltera do toldo. Rouca de pavor, só dizia: — “Ele quer me matar! Ele quer me matar!”. Perguntaram: — “Quem? Quem?”. Disse: — “Meu marido”. E era uma menina de medo: — “Não quero morrer! Não quero morrer!”. Eis que surge, ali, o marido, arquejante. Ainda empu­nhava o revólver, mas era evidente que passara toda e qualquer intenção agressiva. Passa a outro a arma. Em seguida, ele se lan­çou nos braços da mulher, ela nos dele, os dois aos soluços.

Esse perdão fulminante causou, entre os presentes, um es­cândalo mudo. O senador (ou talvez deputado) não teve uma palavra dura, nada. Ela é que, atracada ao marido, gemia: — “Vo­cê me perdoa? Perdoa?”. O outro retrucou, nobremente: — “O que passou, passou”. O pior foi quando os dois embarcaram num táxi. Juntara gente e nós sabemos que o povo não enten­de o perdão e prefere o tiro. O casal partiu debaixo de uma vaia triunfal.

Disse eu que, num fim de certo tempo, o repórter de polícia adquire uma experiência de Balzac. Com um ano de atividade profissional eu conhecera todas as danações do homem e da mu­lher (é forte dizer “todas”, mas vá lá). E, sobretudo, tinha um prodigioso elenco de adúlteras. Sempre que, na reportagem de polícia, cruzava com uma infiel, eu me perguntava: — “Porquê?”. E ia com uma tenaz e não sei se compadecida ou perversa curio­sidade — apurando todas as causas de adultério.

Umas traíam por vingança, outras por passatempo, ou té­dio, ou experiência erótica, ou dinheiro. Uma pequena e seletíssima minoria era infiel por amor. Eis o que aprendi lidando com o sangue e excremento da crônica policial: — o marido enganado perdoa muito menos o adultério por amor. Se a mu­lher vive uma aventura estritamente física, carnal, se trai por um, digamos assim, capricho erótico, ele sofrerá menos. Mas o amor ofende, agride muito mais.

Ainda no meu primeiro ano de repórter de polícia, traba­lhei num caso que me empolgou. Imaginem vocês um rapaz e uma menina que se casam, ela com dezesseis, ele com dezoito anos. Já pelas duas idades, percebemos que tal casamento fra­cassou na primeira noite e não poderia nem ter lua-de-mel. A mulher pode ter qualquer idade. Não o homem. O homem não pode ter dezoito anos, ou quinze. Aos dezoito anos, não sabe­mos nem como se diz “bom dia” a uma mulher e não podemos fazê-la feliz, em hipótese nenhuma. Para o homem, o amor não é gênio, não é talento, e sim tempo, métier, sabedoria adquiri­da. Fiz as considerações acima para concluir: — o homem de­via nascer com trinta anos feitos.

O amor do adolescente casal morreu na primeira noite. No dia seguinte, bem cedinho, a menina queria voltar para a casa dos pais. Claro que a mãe de um lado, a sogra de outro, e o pai servindo de coadjuvante, impediram a separação. Dois dias de­pois, segundo o testemunho dos vizinhos, ela já estava flertan­do com um, com outro. Moravam na rua Barão de Bom Retiro. E contam que, ainda não fizera um mês de casada, e já atirava beijos para os desconhecidos que passavam no bonde. Mais um pouco e tinha o primeiro amante. E os outros viriam, às dúzias.

Passou de mão em mão e sem gostar de ninguém. O mari­do soube, a mãe, o pai, a sogra, todos souberam. Mas a própria abundância quantitativa era uma espécie de desculpa: — se ti­nha tantos, não havia amor. E só uma coisa horrorizava os vizinhos, os conhecidos: — o marido manso, que ia para a sinuca, enquanto a mulher o traía até com desconhecidos.

De repente, ela mudou. Começou a ficar triste, não ria al­to, nem atirava beijos aos homens dos bondes e dos automó­veis. Deixou de se pintar. Uma noite, vira-se para o marido: “Ou você dorme na sala ou eu”. O outro não entendeu nada. Passou a dormir na sala. E começou a ter um pudor feroz do marido. Até que, num final de tarde, foi vista, não sei onde, passeando com um desconhecido, de mãos dadas. E tudo ficou espanto­samente claro. Era agora a mulher de um homem só. Amava. E porque era amor, houve ódio do marido, da sogra, dos cunha­dos. O ser amado era já um senhor, grisalho e triste. E, então, a sogra passou a telefonar; e dizia-lhe palavrões. E, uma noite, estava sentada diante do espelho, pondo papelotes no cabelo. Súbito, o marido puxa o revólver. Ela não fugiu, nem gritou. Nenhum medo. Ainda o desafiou: — “Atira”. O outro puxou o gatilho três vezes. A menina crispou-se por um momento. Depois, a cabeça tombou; e quando os outros entraram, ela estava quieta na sua morte, pendida de sonho.

Por vício de velho, vivo eu a fazer comparações entre a im­prensa antiga e a nova. Sou do tempo em que o diretor do jor­nal era tudo e o resto paisagem. Bem me lembro do meu pai, na Manhã e na Crítica. Quando ele estava presente, o riso era escasso e os redatores cochichavam os palavrões.

Ninguém ousaria uma gargalhada plena, livre, deslavada. E meu pai era tratado de “dr. Mário” as 24 horas do dia. Quando um redator o chamava pelo nome, eu me sentia duramente ul­trajado. Daí o meu horror a Danton Jobim. Danton era, na época, um rapazola de vinte, vinte e poucos anos. Chamava meu pai de “Mário”, de “você”. E essa intimidade soava para mim como uma desfeita. (Só depois é que me tornei seu amigo fra­terno.)

Já o José Jobim, atual embaixador, dizia: — “Dr. Mário”. E assim a maioria dos funcionários. Hoje, não. Hoje, não há mais doutores na direção dos jornais. Minto: — há o Britto. Certa vez, estava eu no terceiro andar do Jornal do Brasil, quando ouvi o Mário Faustino falar em “dr. Britto”. E como o simples som me pareceu antigo, obsoleto, espectral.

Tive a curiosa sensação de que o “dr.” Britto era um con­temporâneo de Evaristo da Veiga, Zé do Pato e Quintino Bo­caiúva. Imaginei-me a espanar, na sua figura, o pó de velhas ge­rações. Mas eis o que eu queria dizer: — o antigo diretor era como as imagens santas que os barcos levavam esculpidas na proa. Diante dele, até as procelas se prostravam para lamber-lhe as botas.

Ao passo que, em nossos dias, todos mandam num jornal, inclusive o diretor. A figura deste perdeu o halo intenso; vaga por entre as mesas e cadeiras como um qualquer. Mas citei o dr. Britto e volto a ele. Certo dia, um anunciante forte dirigiu-se ao Jornal do Brasil. Chegou e foi recebido na diretoria, se não me engano, no oitavo andar, com larga e cálida efusão.

Sim, envolveram-no em rapapés, os mais encomiásticos. Ofe­receram-lhe água gelada, cafezinho, o diabo. E, então, o homem tirou do bolso um recorte. Era um artigo anticomunista, publi­cado não sei onde, nem importa. Lá se dizia que os poetas russos eram laçados, no meio da rua, pela carrocinha de cachorro.

E o anunciante tivera a idéia de republicar aquilo nas colu­nas do Jornal do Brasil. A reação do dr. Britto foi esplêndida. Desmanchou-se: — “Pois não, pois não, claro”. O outro, radian­te, achou que escolhera o jornal certo. Nenhum outro mais apro­priado para apresentar, em forte e crespo relevo, uma matéria anti-soviética. O visitante levantou-se; tinha que sair, pois a sua senhora o esperava (disse senhôra, com acento circunflexo). O dr. Britto o acompanhou ao elevador.

O anunciante desceu achando um lindo jornal, onde uma condessa entra na redação como num jardim. E ficou o dr. Britto com o recorte na mão. Agora era publicá-lo. Aqui, começa uma página de Os Matas ou uma carta que o Fradique teria assina­do, sem lhe tirar ou acrescentar uma vírgula.

Na velha imprensa, nada mais intranscendente do que a pu­blicação de uma notícia, fosse ela sublime ou vil. Bastava o vis­to do diretor. A casa não pagava, mas havia respeito, hierarquia, subserviência. Mal remunerado, o funcionário vergava os om­bros até os sapatos. Agora, tudo mudou.

E o dr. Britto começou a se perder no labirinto de sua pró­pria organização. O leitor, que é um simples, não pode imagi­nar a sombria complexidade de uma redação. O Jornal do Bra­sil tem uma antologia de editorialistas, uma frota de copy desks, um Departamento de Pesquisas, um Departamento Feminino, uma suntuária seção esportiva, uma indescritível seção de polí­cia. Só falta ter psicanalista próprio, bombeiro particular, cas­cata artificial (com filhote de jacaré).

O dr. Britto, para publicar a nota, precisou enfrentar essa tre­menda, complexa e implacável estrutura. Eu não estava lá e só conheço de ouvido o abominável episódio. Mas eis como me con­taram os fatos: — o itinerário da matéria anticomunista começou no editor geral, se não me engano o Dines; deste passou para não sei quem; e a coisa foi rolando, de escalão em escalão.

Todos os dias, o dr. Britto, ainda em casa, abria o Jornal do Brasil e lia, de fio a pavio. Nada. E mal sabia ele que a maté­ria caminhava, de mão em mão. Foi lida pela equipe de copy desks, essa mesma equipe que é capaz de reescrever o Proust, se por lá aparecer o Proust. Também foi repassada pelo Depar­tamento de Pesquisas, o mesmo que descobriu alface na Hun­gria, o mesmo que afirmou, fremente de certeza: — Lisboa é a capital portuguesa!

Todo mundo leu a matéria e ninguém a publicou. Eis a ver­dade deprimente: — ninguém a publicou. Todo santo dia, o dr. Britto reclamava do Dines; o Dines reclamava do chefe de redação; e este de não sei quem e, assim, sucessivamente, até o último dos últimos. Assim os dias e as semanas iam passando, rumo à eternidade. As manhãs do dr. Britto eram amarguradas pela mesma frustração. Lia o seu jornal (e agora descobria que era falsamente seu) e não encontrava nada.

O anunciante estava furioso; a mulher do anunciante, idem; e o dr. Britto, não furioso, mas humilhadíssimo. De repente, co­meçou a baixar nele uma humildade total; já se considerava con­tínuo de si mesmo. Os menos informados poderão achar uma graça cruel no episódio. Mas aí está a dessemelhança entre o velho jornal e o novo: — antigamente, o redator não pensava. Morria de fome e simplesmente não pensava. Se vendessem a hiléia amazônica, ele havia de bocejar, num tédio cesariano. Na redação moderna, todo mundo pensa; a menina estagiária pen­sa; o faxineiro pensa; e todo sujeito tem no bolso a sua ideolo­gia feroz.

Dizia eu que a condessa entra na redação como num jar­dim. E cada um é uma flor das esquerdas; os reacionários for­mam uma minoria acuada e impotente. Resultado: — não saiu a nota anticomunista. Aquela estrutura suntuária rosnou para o dr. Britto e o devorou.

Outro dia, passo por um guardador de automóveis. Ao me reconhecer, ele se pôs a berrar: — “Óbvio ululante! Óbvio ulu­lante!”. Volto-me e faço um aceno amigo. E, então, ele pergun­ta, numa luminosa humildade: — “Está certa a pronúncia?”. Fiz que sim com a cabeça. Assim nos separamos: vim para a redação, enquanto o guardador, iluminado, ia passar estopa num pára-lama.

Contei o episódio para completar: — ali estava um admira­dor anônimo e jucundo. Quando um deles se atravessa em meu caminho, me sinto enriquecido, denso; e é como se uma luz súbita pousasse na minha vida. Essas admirações de rua, de es­quina, de boteco dão ao artista uma sensação de plenitude. Já os admiradores literários causam um desgaste homicida.

Volto a 1944. Depois das primeiras representações de Ves­tido de noiva, fui um narciso extremamente maligno, que se dispôs a destruir todas as outras imagens. Para mim, só eu de­via existir. Nada de Joracy Camargo, Magalhães Júnior, Fornari e outros, e outros. Pouco me interessava a qualidade dramática ou poética dos competidores; o que me ofendia, como uma des­feita, direta e crudelíssima, era o sucesso alheio.

Antes de Vestido de noiva, Magalhães Júnior fizera Carlota Joaquina, peça histórica, quase uma ópera. Vi nele ressenti­mento, abominei o autor bem-sucedido. Paulo Magalhães era outro que fazia sucesso. Só me referia a ele assim: — “cretino”, a “besta”, o “cavalo” do Paulo Magalhães.

Ao mesmo tempo, todos os suplementos literários falavam de mim. Álvaro Lins abriu meia página do Correio da Manhã sobre Vestido de noiva. Dizia: — “Nelson Rodrigues ocupa no teatro brasileiro uma posição excepcional e revolucionária como a de Carlos Drummond na poesia”. Só esse paralelo era de causar vertigem. Eu e Carlos Drummond, lado a lado. Pompeu de Sousa lançou toda uma série de artigos. Em São Paulo, ou­tros escreviam e com a mesma exaltação.

“Sou um gênio”, eis o que me dizia, “sou um gênio”. Lembro-me de que Carlos Drummond foi ver a segunda repre­sentação de Vestido de noiva. No final, estava eu à sua espera. Atropelei-o no meio da escada. “Desiludido?”, foi a minha per­gunta. E aquele magro, aquele áspero, teve uma luz na sua ari­dez; respondeu: — “Formidável!”.

Nas minhas atuais crônicas de futebol, digo que certos jo­gadores são carregados na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado. Essa metáfora também me cabia nos tempos de Vestido de noiva. Por vezes, me sentia carregado numa pro­digiosa bandeja. Todas as noites, antes do sono, baixava em mim uma obsessão linda: — “Hollywood vai me descobrir”.

Eu, na Broadway, eu, em Tóquio. Lembro-me de que, cer­ta vez, fui, à tarde, ao Teatro Municipal, fazer não sei o quê. Parei um momento no palco imenso e vazio. E, de repente, uma tensão dionisíaca inundou o teatro deserto. No alto, a cúpula estava ressoante das palmas espectrais. O lustre apagado ardia em cintilações frenéticas. Ouvi de novo a voz de José César Bor­ba chamando: — “O autor!”. Saí do teatro, febril de glória.

Mas não conseguia fazer a minha segunda peça. Comecei e recomecei umas cinqüenta vezes. E não escrevia sem pensar nos meus admiradores. Eis o que me perguntava: — “O que di­rá o Álvaro Lins? E o Manuel Bandeira? E o Pompeu? O César Borba? E o Drummond?”. Um belo dia, descobri que todos os citados, e mais outros, e outros, seriam meus co-autores fatais. Eu era um território ocupado pelos bandeiras, álvaros, pompeus, borbas, prudentes. Cada admiração me comprometia ao infinito.

O heróico da minha descoberta é que o elogio não perde­ra, para mim, a sua graça plena. Ver o meu nome no jornal ain­da me fascinava. Mas e eu? E eu? Eis a verdade que, em tempo, percebi: — o elogio era uma falsa e perversa delícia. Ainda ago­ra, vejo a figura ameaçada de Guimarães Rosa. Não sei se ele fará algo que se pareça ao Grande sertão. Das nossas figuras li­terárias, é, que eu saiba, a mais acuada pela horda bestial dos admiradores. Quando ouço alguém dizer do Rosa que é o “nosso maior prosador”, tenho vontade de pedir, pelo amor de Deus: — “Não o matem antes do tempo”.

O nosso romancista está em crise de solidão, Falta-lhe soli­dão. Tem de sair, de picareta, ceifando, demolindo as admira­ções que hão de corrompê-lo fatalmente. Foi isso, pouco mais ou menos, que fiz, depois da apoteose de Vestido de noiva. O furioso Álbum de família foi, sim, uma tentativa de solidão, de ruptura, de aniquilamento.

Concebi uma peça em que todo mundo era incestuoso. Ve­jam bem: — não um único incesto, mas cinco, seis, sete. Essa “abundância numérica”, como a chamou Álvaro Lins, teria que levantar contra mim a fúria crítica. Eu queria e não queria agre­dir o bom gosto literário. Queria, para sobreviver como poeta dramático; e não queria, porque ainda estava ferido pela nos­talgia de Vestido de noiva.

Uma meia dúzia aceitou Álbum de família. A maioria gritou. Uns acharam “incesto demais”, como se pudesse haver “incesto de menos”. De mais a mais, era uma tragédia “sem linguagem nobre”. Em suma: — a quase unanimidade achou a peça de uma obsessiva, monótona obscenidade. Augusto Frederico Schmidt falou na minha “insistência na torpeza”. O dr. Alceu deu toda razão à polícia, que interditaria a peça; meu texto parecia-lhe da “pior subliteratura”.

Assim comecei a destruir os meus admiradores. Foi uma carnificina literária. Mas não me degradei, eis a verdade, não me degradei.

Sim, a partir de Álbum de família, a minha vida teatral tem sido uma batalha entre um autor e seus admiradores. É uma fú­ria recíproca e total. Os admiradores querem me destruir, com a sua incompreensão apoteótica e homicida; e eu reagindo, co­mo um possesso. Claro que, por vezes, me venha a funda e inconsolável nostalgia do sucesso.

Parece que minha resistência tem sido bem-sucedida. Olho o meu chão literário; está juncado de admirações abatidas. Por exemplo: — como mudou o dr. Alceu Amoroso Lima. Saudou Vestido de noiva como “a obra-prima do moderno teatro bra­sileiro”; e entende que Álbum de família é da pior subliteratu­ra. Álvaro Lins ousara um paralelo entre mim e o Carlos Drummond. E quando viu as minhas peças interditadas, declarou que eu saíra da literatura; era agora “um caso de polícia”.

Se quisesse, faria com os nomes dos meus ex-admiradores uma lista telefônica. E eu não movia uma palha para reconquistá-los. Pelo contrário: — antes, delirara com o sucesso; e, agora, agia e reagia como se preferisse, inversamente, o fracasso. Ál­varo Lins lançou, contra Álbum de família, um rodapé escan­daloso: — “Tragédia ou farsa?”.

A pergunta era realmente uma afirmação: — farsa. Dois ou três dias depois, apanhamos o mesmo bonde, 33, Lapa — Praça da Bandeira. O crítico sentou-se no banco da frente e foi, co­migo, de uma cordialidade risonha e exemplar. Disse, entre ou­tras coisas, o seguinte: — esperava que o tal rodapé não modi­ficasse, em nada, as nossas relações; ele continuava o mesmo amigo etc. etc. Respondi, com a mais cínica efusão: — “claro, claro, evidente”.

Ele ia para a redação do Correio, na Gomes Freire. E, até lá, a ternura foi de uma reciprocidade deslavada. Não sei o que poderia ele pensar de mim naquele momento. É possível que tivesse um certo remorso e havia, na sua efusão, algo de apiedado, sim, algo de compassivo. Mas não podia nem imaginar que eu era, ali, um monstro de perfídia e ressentimento.

Eis o que me passava pela cabeça: — “Cretino. Oswaldo Teixeira da crítica. Não entende nada de teatro. Dengoso do es­tilo”. E o pior é que ia sair na página de livros de O Cruzeiro um artigo redigido por mim, e assinado por outro, arrasando o crítico. Rimos um para o outro, até a Gomes Freire. Antes de saltar, Álvaro Lins ainda perguntou: — “Continuamos amigos?”. Respondi lívido com descaro: — “Sempre”.

Durante anos, porém, o seu rodapé foi, em mim, um res­sentimento literário altamente vingativo. Eis a minha duplici­dade: — de um lado, a fome de solidão; de outro, uma vaidade militante e, não raro, vil. Os jornais começaram a publicar artigos contra Álvaro Lins. Era eu que os escrevia e outros que os assinavam. Muitos anos mais tarde, ele foi, primeiro, chefe da Casa Civil de Juscelino e, depois, nosso embaixador em Portu­gal. Quando os dois brigaram, ou, melhor dizendo, quando o antigo crítico brigou com o presidente, exultei.

Álvaro escreveu, se bem me lembro, vários artigos, nos quais explicava o incidente e justificava o rompimento. E eu, por onde andava, dizia o diabo de sua atitude: — “Não tem di­reito de romper. Romper por quê? Não existia politicamente. Juscelino o inventou. E, antes de Juscelino, o Correio da Ma­nhã foi seu Frankenstein. Diz que apoiou, apoiou. Que apoio tinha para dar? Seu apoio era o Correio”. Assim me encarniça­va nas redações, nos cafés.

(Paro aqui. Eis a verdade: — estou exausto de tal assunto e uma náusea me interrompe. Eis o que me pergunto: — se o simples fato de estar aqui, repetindo o que então dizia, se não será o último vômito de um ressentimento mal curado? Seja co­mo for, quero dizer que a minha opinião sobre a briga de Álva­ro com Juscelino não foi uma posição ética ou política. Era ain­da o rodapé a origem da minha ira.)

O número de ex-admiradores aumentava. E, pouco a pou­co, ia fundando a minha solidão. Fora proibida a representação de Álbum de família. Em seguida, houve a interdição de Anjo negro. De peça para peça, me tornava, e cada vez mais, um ca­so de polícia. Escândalo nos jornais. E, um dia, encontro-me com Carlos Lacerda. Pediu o meu novo texto: — “Você me dá, que eu escrevo contra a censura”. Ótimo. No dia seguinte, fui levar-lhe uma cópia.

Carlos Lacerda era um admirador de Vestido de noiva e, sobretudo, de sua linguagem. Fazendo uma conferência, no an­tigo Teatro Phoenix, chamou-me de “o maior autor dramático brasileiro de todos os tempos”. Eu estava certo, não sei por que, de que ele ia se apaixonar pelo meu Anjo negro. Três dias de­pois, fui buscar sua opinião. Ele me devolveu a cópia sem uma palavra. Exatamente: — sem uma palavra. Não me deu nem bom-dia. Ainda fiquei, um momento, rondando sua mesa. Não me disse nada e repito: nada. Estendi-lhe a mão: — “Até logo”. Res­pondeu: — “Até logo”.

Uma meia dúzia gostou de Anjo negro: — Pompeu de Sou­sa, Prudente, Manuel Bandeira, José Lins de Rego, Rachel de Queiroz, Rubem Navarra. Tristão de Athayde (sempre o dr. Al­ceu!) achou que o autor se divertia com a abjeção. Seja como for, ia me tornando cada vez mais solitário. Mas ainda não estava com o coração bastante amadurecido para a solidão.

Desde aquela época, cada um, na vida literária, tinha que ser um engajado. Ninguém ia à rua sem a sua pose ideológica. Lembro-me de Isaac Paschoal me perguntando, depois de um discurso de Prestes: — “E você? Qual é a sua contribuição?”. Baixei a vista, rubro de vergonha. E, como ainda não contri­buíra, senti-me um fracassado nato e hereditário.

Daí por que não posso ver, hoje, o Guimarães Rosa, sem uma sensação de deslumbramento. Durante anos, pratiquei a solidão com certo pânico e certa vergonha. E eis que vem o au­tor de Sagarana e ergue a sua torre de marfim, assim como um cigano põe a sua barraca. Nada existe: — só a sua obra. Estão brigando no Vietnã? Pois o nosso Rosa escreve. Há a guerra nu­clear, o fim do mundo? Guimarães Rosa funda outro idioma. A torre de marfim fez dele o maior artista brasileiro do século.

Posso dizer que, durante três ou quatro anos, vivi às ex­pensas de uma fabulosa admiração: — Manuel Bandeira. Sem­pre que saía uma peça minha, eu mandava alguém entrevistar o poeta. E, no dia seguinte, saía o elogio infalível na primeira página de O Globo. Quando publiquei Álbum de família, não falhou o velho Bandeira. Disse, entre outras coisas, o seguinte: — que eu era, de longe, “o maior poeta dramático que já apa­receu em nossa literatura”.

Devia dar-me por satisfeito. Nós sabemos como é a vida li­terária. Os sujeitos se chamam uns aos outros de “cretinos”, “bestas”, “débeis mentais”. Há pouco tempo, dizia-me certo sociólogo de Gilberto Freyre: — “Um analfabeto”. Somos, real­mente, uns impotentes da admiração. Cochichamos o elogio e berramos o insulto.

Dirá alguém que estou exagerando. Paciência. Mas, se é as­sim, Manuel Bandeira saiu-nos uma cálida e generosa exceção. Admira com abundância, admira com amor. Num belo soneto, Vinicius chamou-o de “áspero irmão”. Pode ser bonito e con­fesso — o “áspero irmão” soa bonito. Mas a inveracidade salta à vista. Pelo contrário: — ninguém foi, comigo, tão doce e tão irmão.

Chamado de “maior poeta”, devia eu deixar em sossego uma admiração já tão solicitada. Mas estava só, cada vez mais só. Desejava e, ao mesmo tempo, temia a solidão (ainda não le­ra O inimigo do povo. O que aprendi, lendo o gigantesco dra­ma, é que o artista precisa de solidão para não apodrecer).

Disse que, em todas as minhas estréias, mandava buscar a opinião do poeta. Até que escrevi Senhora dos afogados. Liguei para o Bandeira. Ele quis saber: — “O que é que achou o Prudente?”. Ri, feliz: — “Achou a minha melhor peça”. Fui ao apartamento do poeta levar-lhe a cópia. Três dias depois, vol­tei. Eu estava apaixonado por Senhora dos afogados. Cuidei que o velho Bandeira diria: — “Formidável”.

Abriu-me a porta, entrei e senti que não era o mesmo. Per­guntei, com um princípio de angústia: — “Leu?”. Estava contrafeito: — “Li”. Primeiro hesitou e foi dizendo: — “Desta vez, senti um certo cansaço do processo”. Comecei a sofrer. Senti, imediatamente, que “cansaço” era a palavra inapelável, exata. Falara tanto de mim, de meus textos, de minhas encenações; e o que restava era uma admiração gasta, exausta. Descemos jun­tos, no elevador. Mas ele teve pouco que acrescentar. Quando me disse adeus, na calçada, falou, novamente, em “cansaço do processo”.

Perdera a admiração que mais queria preservar. O rodapé de Álvaro Lins fora um golpe, sim; não vital, porém. Mais im­portante do que o crítico era o poeta. E eis que também o poeta me abandonava. Quando o deixei, tive uma sensação de orfandade total. Mais tarde, estreou minha peça Valsa nº 6. Manuel Bandeira assistiu, a meu convite, à primeira representação. No dia seguinte, chamam meu companheiro de Última Hora, Galba Menegale: — “Faz um favor. Entrevista Manuel Bandeira sobre Valsa nº 6”.

Galba telefonou. Pouco depois, vinha a mim, furioso: — “Imagina: — me recebeu com quatro pedras. Tratou mal”. Ater­rado, balbuciei: — “Mas vem cá. Tratou mal como? E por quê?”. Menegale contou tudo. Depois de se dizer da Última Hora, pe­dira, no tom mais delicado, mais reverente, a opinião de Ban­deira sobre a minha peça. O outro o destratara, no telefone. E eu, pasmo, não entendia que, a troco de nada, a polidez do poeta se transformasse em súbita truculência.

Certa vez, o meu amigo Vinícius de Moraes contou-me o seu maior desastre literário. Eis o fato: — ainda adolescente, entre­gara os originais do seu primeiro livro de versos a João Lyra Fi­lho. Este, que era amigo da família, levou o livro. E o Vinícius foi, dias depois, buscar a opinião. João Lyra Filho disse-lhe tudo, à queima-roupa: — “Desista. Você não dá pra isso. Não é poeta, nunca será poeta”. O poeta não disse uma palavra, nada. Apa­nhou, de volta, os originais; e saiu, dali, com vontade de morrer.

É o próprio Vinícius quem conta: — “Não dormi um segun­do. Passei a noite toda chorando”. E, por pouco, o sr .João Lyra Filho não assassinava uma das mais formidáveis vocações da poe­sia brasileira. Lembrei o episódio para voltar à Valsa nº 6. A re­cusa do velho Bandeira em opinar, simplesmente opinar, mes­mo contra, chegava a ser uma agressão. Eis o que me pergunta­va: — “Por quê?”. Disse para o Galba: “Obrigado”. E andei, de um lado para outro, desatinado. Horas depois, tomei o ônibus para casa; e me sentia tão órfão de Manuel Bandeira.

Depois disso, o poeta nunca mais conseguiu me elogiar. Quando Manchete pediu-lhe uma opinião sobre meu teatro, pin­gou escassamente esta opinião: — “Interessante”. Hoje, enten­do perfeitamente. Uma admiração não volta; nós a perdemos para sempre. Por outro lado, foi rigorosamente justa a sua exaus­tão. Um admirador precisa ter férias, fim de semana, dias san­tos, feriados. Mas o poeta vivia sob um sítio implacável. Falara mil vezes sobre mim em enquetes inumeráveis. E, um belo dia, o que era admiração virou ressentimento. “Basta de Nelson Rodrigues”, há de ter decidido o poeta’

Mas vejam os mistérios da experiência artística. Como ór­fão de Manuel Bandeira, sofri o diabo. Durante anos, minha vai­dade fora gratificada, remunerada pelo seu elogio. Quando tão alto louvor emudeceu, criou-se um espantoso silêncio. Manuel Bandeira povoava, edificava, umedecia o meu deserto. Mas agora a solidão era apenas e cruelmente a solidão. Embora mais ve­lho, mais sofrido, fui um quase assassinado como o Vinícius do João Lyra Filho.

Coincidiu que, naquela ocasião, eu estivesse brigado com Pompeu de Sousa, grande amigo literário; perdera também con­tato com o Prudente. Tive uma feroz luta comigo mesmo; e ven­ci. Hoje, estou certo de que o silêncio de Bandeira foi muito melhor para mim, e mais exaltante, do que o elogio. (Note-se que o admiro cada vez mais.) Bandeira me ensinou, como Ibsen, que o bom artista é o que está “mais só”.

Ontem, falei na torre de marfim do Guimarães Rosa. Não sei se, ao me ler (se é que me leu), ele gostou de se ver posto na sua formidável solidão. Uma coisa é a torre de marfim, e ou­tra confessá-la, proclamá-la, aos berros. Não importa. Mas quer ele o confesse, ou o desminta, a torre está encravada. Eis a ver­dade que Guimarães Rosa nos diz com seu exemplo: — o escri­tor que faz mais do que a própria literatura ou não é escritor ou é um pulha.

Dizia eu, num dos meus últimos capítulos, que passou a épo­ca dos diretores de jornal. Eles não existem ou, por outra, só existem nominalmente. Figuram no cabeçalho porque a lei exi­ge um responsável. E mandam cada vez menos (uns dois, ou três, como Roberto Marinho, ainda preservam o antigo absolu­tismo. O Globo é Roberto e ponto final. Lá, as esquerdas an­dam pelos cantos, exalando impotência e frustração).

Fiz o comentário acima pensando em J. E. Macedo Soares. Ontem, abro o jornal e, ao ler a notícia de sua morte, quase ex­clamei: — “Outra vez?”. E, de fato, tive a sensação de que não morria pela primeira vez. Há tanto tempo não via o seu nome nem no poste-jornal. Reli a notícia. Fora escrita entre dois bo­cejos, sem dramatizar o fato e sem lhe conceder um ponto de exclamação.

E, de repente, o nosso J. E. Macedo Soares perde toda a importância, passada, presente e futura — torna-se ninguém. Ca­be então a pergunta: — e por quê? A explicação me parece sim­ples. Não há ninguém mais obscuro, mais anônimo, mais invá­lido do que o diretor de jornal — sem jornal. J. E. devia morrer em vida do Diário Carioca.

Imagino o fúnebre alarido se, por acaso, o Diário Carioca ainda circulasse. Toda a primeira página estaria chorando. As manchetes vestiriam um luto desgrenhado e siciliano. Por sua vez, os outros jornais fariam necrológios menos sóbrios e mais exaltados. E toda a pátria estaria pranteando o gênio.

Mas o nosso J. E. cometeu a gafe realmente indesculpável de morrer sem jornal. Ousarei afirmar que o seu atestado de óbi­to tem a data errada. Em verdade, faleceu com o Diário Carioca (lembro-me do que me dizia Gilberto Freyre: — “Como es­creve bem o Macedo Soares!”. Pausa e acrescentou: — “Escre­ve cada vez melhor”).

E assim morreu, outra vez, o Senador (os íntimos o chama­vam assim), sem um jornal próprio que lhe promovesse à pos­teridade. (Mesmo que não mande nada, um diretor tem, sem­pre, um necrológio deslumbrante.) Lendo a nova morte de J. E., acabei pensando no meu próprio caso. Até o meio de minha carreira, tive a obsessão da posteridade.

Ser ou não ser esquecido. Vimos que J. E. foi esquecido antes de morrer. Eu corria o mesmo risco. Os admiradores es­tavam desaparecendo. Lembro-me de alguém que ousou o vaticínio: — “Daqui a cinco anos ninguém falará mais em Nelson Rodrigues”. Em pânico, olhava em volta. A maioria dos cole­gas já fazia pose para a posteridade.

Um dia, escutei de Marques Rebelo: — “Daqui a vinte anos, todo mundo falará da Estrela sobe”. Fazia-se, então, sobre o seu romance, um silêncio que lhe parecia, a um só tempo, injusto e burro. Ele contava com as gerações seguintes. Já se esgotou o prazo de vinte anos (ou quase). Ninguém se lembra, ninguém fala da Estrela sobe. E quem sabe se o nosso Marques não tem uma forte, uma taxativa vocação, para o esquecimento? Bem. Citei o episódio para caracterizar o artista e a sua pueril e ob­sessiva vontade de sobreviver.

Durante largo período, também tive a nostalgia da posteri­dade. Li, um dia, uma crônica antiga do Zeca Patrocínio sobre a morte do Tigre da Abolição. E o filho concluía que o pai mor­rera no momento errado. Devia ter morrido antes, muito an­tes, em plena glória tribunícia. Num discurso famoso, o aboli­cionista berrara: — “Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciú­mes da minha pátria”. Eis o que pensava o Zeca: — aí estava a grande hora de morrer. Se o Tigre caísse fulminado de apoplexia após tal frase, teria arranjado um enterro maior ou igual ao do barão do Rio Banco. Mas como sobrevivera à própria re­tórica, morrera numa solidão de indigente. Por muito favor, apa­recera, lá, o Coelho Neto. Só.

A crônica de Patrocínio Filho deu-me uma angústia feroz. Comecei a pensar que também passara a minha hora de mor­rer, o momento ideal fora a estréia de Vestido de noiva. Por toda uma noite, em casa, teci as fantasias mais absurdas. E me via morrendo na caixa, durante a representação. Ou por outra: — não durante a representação, mas depois da apoteose. Ou ainda: — em plena apoteose. Enquanto José César Borba e outros exi­giam a presença do autor, eu, nos bastidores, no sofá de mada­me Clessy, expirava nos braços de alguém, de preferência uma atriz.

E viria um sujeito, ao palco, chorando. Pediria silêncio à platéia alucinada. Quando passassem as palmas, os vivas, a pes­soa diria: — “Nelson Rodrigues, o autor de Vestido de noiva, acaba de morrer”. Ou melhor: — não “de morrer”, mas “de falecer”. Seria um corre-corre no palco e na platéia. O elenco, aos soluços. Morreu como? De quê? Eu próprio, na cama, fan­tasiando a minha morte, repetia a pergunta: — “De quê?”. E não me ocorria uma doença, nada. Talvez uma lesão cardíaca, jamais suspeitada.

A rigor, não precisaria morrer na própria noite da estréia. Podia ser no dia seguinte. Seria um pavoroso impacto no Bra­sil. Eis o que queria dizer: — se eu morresse naquele momento ninguém me esqueceria, jamais. Era a posteridade tranqüila. E o morto seria o gênio absoluto. Os críticos escreveriam bateladas, não sobre Vestido de noiva, mas sobre todas as peças futu­ras e que o defunto jamais escreveria.

Passei uma semana, dez dias, quinze dias, com aquilo na cabeça. Se tivesse morrido na estréia de Vestido de noiva ou no dia seguinte. Até que, um dia, acordei com uma furiosa co­ragem. Pouco depois, estava diante do espelho, fazendo a bar­ba; e pensava: — “Dane-se a posteridade. Não faz mal que eu seja esquecido”. Mais um pouco e digo para mim mesmo: — “Quero ser esquecido”. Naquele momento, eu percebia, com implacável lucidez, que essa disposição era vital. Tinha que re­ceber o fracasso com desesperada alegria suicida. Um dia, o Pau­lo Francis veio me entrevistar. Dei as minhas respostas por es­crito; e terminava assim: — “Quero ser esquecido para sempre”.

Ainda outro dia, alguém me perguntava: — “Por que é que você fez o Anjo negro?”. Aí está uma peça que continua me fas­cinando. Tenho, de cor, passagens inteiras. Lembro-me, por exemplo, do coro das solteironas. Uma delas balbucia: — “Num enterro, sempre sobra uma flor”. Outra acrescenta: — “Uma flor fica boiando no assoalho”. Está na rubrica que as solteiro­nas sempre falam num mesmo tom monótono e lascivo.

Quase posso dizer que Anjo negro nasceu comigo. Eu não sabia ler, nem escrever e já percebera uma verdade que até ho­je escapa a Gilberto Freyre: — não gostamos de negro. Nada mais límpido, nítido, inequívoco, do que o nosso racismo. E como é humilhante a relação entre brancos e negros. Os bran­cos não gostam dos negros; e o pior é que os negros não rea­gem. Vejam bem: — não reagem.

Em vez de odiar o branco, o preto brasileiro é um ressenti­do contra o próprio preto. Lembro-me de que, certa vez, escre­vi não sei onde: — “Abdias é o único negro do Brasil, o único”. O que se esconde ou, por outra, o que não se esconde por trás da minha blague é uma verdade desesperada. Zé do Patrocínio não amava a sua cor. Nem Rebouças, nem Filipe Camarão. Esses e outros, milhões de outros, gostariam de ser brancos de armi­nho. Só Abdias do Nascimento não se arrepende de ser retinto. Único preto consentido, exultante e saturado de ódio racial.

A “democracia racial” que nós fingimos é a mais cínica, a mais cruel das mistificações. Quando andou por aqui, Jean-Paul Sartre fez cinco, seis ou dez conferências. E sempre que o gê­nio falava, era um sucesso tremendo. Gente em pé, sentada, pen­durada, trepada etc. etc. Na última palestra, o filósofo perdeu a paciência. Vira-se para dois ou três brasileiros, que o lambiam com a vista, e perguntou: — “E os negros? Onde estão os negros?”.

Perfeitamente justa a irritação do francês. Até então, nas suas conferências, só vira uma platéia loura, alvíssima, de olho azul, caras sardentas. Repetiu: — “E os negros?”. Um brasileiro co­chichou, no ouvido de outro, a graça vil: — “Os negros estão por aí, assaltando algum chauffeur”. Mas ninguém teve o que explicar ao visitante. E Sartre voltou para a Europa sem saber onde é que se metem os negros do Brasil.

Era tão apaixonante, para mim, o nosso problema racial, que Anjo negro ia ser a minha primeira peça. Acabei fazendo A mulher sem pecado. Depois, viria Vestido de noiva. Em se­guida, comecei o Anjo negro. À última hora decidi-me por um outro projeto dramático: — Álbum de família. E não adiei mais: — a seguinte foi a tragédia racial.

No início da minha carreira, conhecera Abdias do Nascimen­to. Que eu saiba, é o único negro que assume, com lúcida fero­cidade, uma posição racista. Até hoje, não mudou. Quando Pelé se casou, dizia-me Abdias, como que ofendido e humilhado: — “Por que não se casou com uma preta? Devia ter se casado com uma preta”. E essa paixão negra do Abdias, esse potencial de ira — deram quase toda a substância do herói Ismael.

Confesso que há muito de Abdias no meu texto. Abdias é doutor e meu personagem também. Mas a grande semelhança está no ódio, o grande, puro, luminoso ódio. É a história do negro Ismael e da branca Virgínia. Começa a peça num velório de anjo. Os filhos do casal morrem, um por um. Não vou con­tar todo o drama. Direi apenas que os anjos, naquela casa, são negros. E é a própria Virgínia, a mãe sem amor, que os afoga. Ela, muito loura e muito linda, tem, pelo marido, pavor e des­lumbramento. Sente-se, no leito conjugal, a esposa “sempre vio­lada”. A peça termina com o vaticínio do coro: “Vosso amor! vosso ódio/ não têm fim neste mundo/ Negro Ismael/ Branca Virgínia”.

Fiz o Anjo negro e distribuí umas seis cópias. Por toda par­te encontrei a mais feroz resistência. Um ator negro de talento, o Agnaldo Camargo, que morreria, mais tarde, atropelado, leu o original com um tédio cruel: — “Mas isso não existe! Não há esse problema no Brasil. Você acha que uma diferença epidér­mica vale alguma coisa?”. Não encontrei um único preto que gostasse de Anjo negro e que o levasse a sério. Como já espe­rasse uma reação parecida, tratei da encenação. Os Comedian­tes iam fazer uma temporada no Municipal e incluíram meu texto no seu repertório.

Fui conversar com a comissão do teatro. Sinto que os seus membros reagem. Um deles quer saber: “Naturalmente, o Is­mael não será um preto”. Não entendo: — “Como?”. Um ou­tro foi mais claro: — “Escuta, Nelson. Não é interessante um negro no Municipal. Não fica bem”. Digo: — “Mas o persona­gem é negro”. Toda a comissão se entreolha. Um dos seus com­ponentes, amassando a brasa do cigarro no cinzeiro, fala pelos outros: — “Faz o seguinte: — põe um branco pintado”.

Aí está: — o Municipal não admitia que o herói negro fosse negro. Tinha que ser um branco pintado. Sim, pintado com ro­lha queimada, carvão, piche. Eu imaginava, para o papel, uma figura plástica, crispada, uma obsessiva presença vital. Sim, um negro belo e voluptuoso, como Paul Robeson. Ismael não ti­nha nada dos moleques gaiatos das burletas domésticas. Creio que foi o primeiro herói negro do teatro brasileiro. Que auten­ticidade racial e cênica se poderia esperar de um branco pin­tado?

Foi Sandro Polônio que encenou a peça, fazendo, se não me engano, a sua primeira produção. Anjo negro seria a estréia dramática de Maria Delia Costa. Itália Fausta, tia de Sandro, en­carnou a Velha. Conversei com Ziembinski, o diretor. Também este preferiu o branco pintado. Talvez achasse que o preto bra­sileiro tem uma estrutura doce demais para viver o ódio mara­vilhoso de Ismael. E, assim, a figura de um Paul Robeson para o papel não passou de uma utopia derrotada.

Cada silêncio, e fala, e gesto de Maria Delia Costa tinha a voluptuosidade assassina da heroína. Ainda a vejo, em cena, como uma possessa, cheirando as próprias mãos, os braços, os lençóis, as fronhas. Sente em tudo, até nos retratos, o suor do negro. E quando Ismael chora os filhos — as suas lágrimas apo­drecem na face escavada.

Como é antigo o passado recente! — eis a exclamação que não me farto de repetir. E, realmente, como a melindrosa de 1929 é anterior a Sarah Bernhardt. Como o Ford de bigode é mais velho do que a charrete de Ben-Hur. Aí está o óbvio que ninguém enxerga. E, no entanto, qualquer memorialista tem es­crúpulo de fazer a história da véspera. Meu Deus, o que aconte­ceu ontem ou, menos do que ontem, o que aconteceu há quin­ze minutos pertence tanto ao passado defunto como a primeira audição do “Danúbio azul”.

Bem. Fiz este breve reparo para referir uma dura experiên­cia que acabo de sofrer, na carne e na alma. Foi sexta-feira e, portanto, há 72 horas. Saímos os dois casais: — eu e Lúcia, Cel­so Bulhões da Fonseca e Teresa. Eis o nosso destino: — Bruni-Copacabana, íamos ver Terra em transe, de Glauber Rocha. Na própria tarde de sexta-feira, perguntei a um conhecido: — “Bom o filme?”. E o sujeito, que é um legionário da esquerda idiota, respondeu: — “Fascista”. Insisti: — “Rapaz, não perguntei se era fascista. Perguntei se era bom”.

(Singular geração esta que anda por aí. Imaginem rapazes e raparigas — digamos “raparigas”, como Júlio Diniz — que se fingem mais imbecis do que são. E assim desponta nas esquer­das brasileiras um tipo único, inédito, empolgante, de cretino. É o débil mental por simples pose ideológica; e o sujeito se põe a babar na gravata, achando que só assim serve ao socialismo.)

Diga-se de passagem que tivemos, eu e o desafeto de Ter­ra em transe, uma discussão truculenta. Disse-lhe que, para meu gosto, tanto fazia o filme comunista, fascista, espírita, budista, macumbeiro ou jacobino. Eu queria, apenas, com minha feroz simplicidade, que fosse um bom filme e nada mais. O bate-boca não chegou a nenhuma conclusão inteligente. Por fim, perdi a paciência e fiz-lhe o apelo: — “Não me cumprimente mais. É favor. Me negue o cumprimento”.

Largo o falso idiota (realmente, é um rapaz de talento), apa­nho um táxi e passo na casa do Hélio Pellegrino. Lá encontro o Gilberto Santeiro, jovem cineasta patrício. O cinema brasilei­ro tem uma meia dúzia (não mais) de rapazes prodigiosos. São possessos de sua arte. Potencializados de paixão, chegam a me­ter medo. E o nosso Gilberto Santeiro é um dos que matam e morrem por cinema. Pergunto-lhes: — “Que tal Terra em tran­se?”. Deu-me a resposta fanática: — “Genial!”.

A fé sempre me comove, mesmo que o santo ou o deus não a mereça. Duas mãos postas e mais a luz de um círio fazem uma cena irresistível. O Gilberto Santeiro não tinha a vela, mas estava quase de mãos postas. E assim, crispado de uma fé au­têntica, ele me tocou. Levantei-me: — “Gilberto, vou ver o fil­me e depois te falo”.

Confesso que, na casa do Hélio Pellegrino, comecei a gos­tar de Terra em transe. Mais tarde, entrando no Bruni-Copacabana, não tinha mais dúvida: — “Gostei”, eis o que pensava. E já me via dizendo ao Gilberto Santeiro: — “Genial”. Na porta do cinema, paro um momento. Outro rapaz, flor das esquer­das, veio me dizer: — “O elenco não gosta do filme. Está indig­nado. Acha o filme fascista”. O sujeito afirmou-me, quase sob palavra de honra, que Paulo Autran, Danuza, e outros, e outros, estrebuchavam de furor impotente e sagrado. Não sei se é ver­dade. Passo adiante o que me foi dito.

A indignação de um elenco não é um fenômeno novo para mim. A maioria dos meus intérpretes representam os meus tex­tos com o maior desprazer e humilhação. Mas, como ia dizen­do: — entrei no cinema e vi o filme. Entre parênteses, acho co­movente a figura de Glauber Rocha por muitos motivos, inclusive este: — é um neurótico. Está a um passo da loucura; e essa proximidade me parece vital para a obra de arte. Não me ve­nham falar de Goethe, que era um suicida e o mais lúgubre dos suicidas: — o fracassado. E nós sabemos que o brasileiro não tem nenhum motivo para ser neurótico. Cada um de nós há de morrer agarrado à sua angústia.

Fiz, durante Terra em transe, o que fez, tempos atrás, Cyro dos Anjos. Ao lado de Carlos Castelo Branco, o autor de Abdias assistia à minha peça Dorotéia, no já demolido Teatro Phoenix. E o tempo todo Cyro cochichava para o Castelinho: — “Que mistificação! Que mistificação!”. Sexta-feira, sessão de dez a meia-noite, eu repetia: — “Que mistificação! Que mistificação!”. E o Celso Bulhões da Fonseca ouvia e calava. Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiquei maravi­lhado com uma das cenas finais de Terra em transe.

Refiro-me ao momento em que dão a palavra ao povo. Man­dam o povo falar e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de re­pente, o filme esfrega na cara da platéia esta verdade, mansa, translúcida, eterna: — o povo é débil mental. Eu e o filme dize­mos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será as­sim, eternamente. O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir, volta a babar na gravata.

Saio do cinema e, antes de entrar no automóvel do Celso, faço este resumo crítico: — “Terra em transe é um texto chi­nês de cabeça para baixo”. A platéia não entendera nada, mas, coisa curiosa: — suportara as duas horas com uma paciência ou, mais do que isso, com um respeito e um silêncio totais. Era como se estivéssemos, todos, numa igreja. E se por lá aparecesse uma mosca, seu vôo faria um ruído insuportável (súbito, des­cubro que não há moscas na missa). Domingo encontrei-me, no Estádio Mário Filho, com o Luís Carlos Barreto. Desfechei-lhe a piada: — “Um texto chinês de cabeça para baixo”. Cuidei que ele ia revidar, irado. Pelo contrário: — achou uma graça infini­ta. Soube, posteriormente, que anda por toda parte, fazendo uma promoção feroz da graça cruel.

E, no entanto, Terra em transe não morrera para mim. Da madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. De repente, no telefone, com o Hélio Pellegrino, houve o berro simultâneo: — “Genial!”. Estava certo o Gilberto Santeiro, quase um menino. Sim, pálido de certeza como um fanático. Nós está­vamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas so­mos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda.

Um dia, estou escrevendo sobre futebol. O assunto era, se não me engano, Pelé (ou seria Garrincha?). No meio da crôni­ca, escapou-me esta verdade translúcida, perfeita, eterna: — “Só os profetas enxergam o óbvio”. E, desde então, não faço outra coisa senão promover o óbvio como um sabonete. Hoje, veri­fico, e não sem vaidade, que a minha pertinácia foi bem-sucedida.

Até os lavadores de automóvel sabem, em nossos dias, que o importante é ver o óbvio. Nada mais interessa. Quem o viu pode morrer como Ponce de León, certo de que está mirando “algo de nuevo”. E assim — o novo, o inédito, o nunca visto, o revolucionário, o jamais desconfiado — é o óbvio.

Por isso, diria, sem medo de erro, o seguinte: — Gilberto Amado, o profeta. De vez em quando, vem o óbvio e ilumina o seu verbo. Ainda outro dia, no banquete dos oitenta anos, di­zia ele patético: — “Pelo amor de Deus, não acreditem na ami­zade entre os povos. Nenhum povo é amigo de outro povo”. Ao ouvi-lo, os presentes sentiram toda a embriaguez do óbvio. E, mais uma vez, Gilberto estava sendo profético.

Realmente, os povos não são amigos dos povos. E vou além. De igual modo, os homens, individualmente, não são amigos dos homens. Domingo último, escrevi sobre a nossa questão racial (outro óbvio que ninguém quer ver). Disse então que, no Brasil, os brancos não gostam dos pretos, ao passo que os pre­tos não gostam dos pretos.

Isso entre brancos e negros. Mas, entre os homens (e já não importando o dado racial), tudo é feio, áspero, cruel desamor. O ódio começou, obviamente, quando, pela primeira vez, um homem viu outro homem. Era o inimigo. E assim tem sido, atra­vés de todas as manhãs e de todas as noites: — o “outro” con­tinua sendo o inimigo de cada um de nós e de todos nós.

Daí por que o grande acontecimento é, sempre, o amigo. Bem me lembro do dia em que conheci Hélio Pellegrino. Foi o puro e deslavado milagre. O Hélio é, de um lado, o mineiro; de outro lado, o calabrês. Digo calabrês como diria siciliano. Na verdade, a Itália é toda uma Sicília frenética. Mas como ia dizendo: — de repente, todo o meu horizonte vital se povoou e se tornou mais denso, mais úmido, mais crispado.

E veio, depois, José Lino Grünewald. Claro que dois ami­gos, dois únicos e escassos amigos formam toda uma multidão inverossímil. Eu poderia citar também o Marcello Soares de Mou­ra, o Claudino Borges Neves, mas paro. Eis o que me importa dizer: — o amigo é a desesperada utopia que todos nós perse­guimos até a última golfada de vida.

Lembro-me de certo episódio da minha vida jornalística que me feriu para sempre. Imaginem vocês que tive, no Globo, um companheiro admirável: — Pereira Rêgo. Não me lembro do primeiro nome (talvez Alfredo). Disse “admirável” e preciso ex­plicar. Inteligência mediana, nada brilhante, Pereira Rêgo limitava-se a redigir notas de aniversário, casamento, batizado, missas. Mas era de uma bondade fascinante. Como gostava de servir e repito: — servia como um santo. Tinha o riso mais do­ce que já vi na Terra.

Uma tarde, Pereira Rêgo vai empenhar uma jóia, ali, na Cai­xa Econômica da rua Treze de Maio. Foi lá a pé e voltou a pé, para O Globo. Ao atravessar, na altura do “Tabuleiro da Baia­na”, foi atropelado. Havia, na época, um tipo de ônibus que o povo batizara como “Arrasta Sandália”. E foi esse, justamente, que apanhou o meu companheiro. Dizem que o “Arrasta San­dália” passou por cima. Não sei. Houve corre-corre na rua. Um crioulo, que chegou antes de todos, apanha a cabeça do atropelado e a pôs no regaço. E, então, veio, com sangue pisado, o apelo de Pereira Rêgo: — “Me beija, me beija”.

(O episódio me tocou tanto que, anos depois, escrevi O bei­jo no asfalto, encenado pelo Teatro dos Sete. Todo o núcleo lírico e dramático da peça é um beijo pedido por um atropela­do.) No instante de morrer, Pereira Rêgo pediu o amigo, sonhou com o amigo. Eis o que eu queria dizer: — desde garotinho eu quis o amigo como um atropelado.

Pereira Rêgo foi, para mim, uma dilacerada experiência de vida. Outra experiência, e também extremamente dramática, eu teria, muitos anos depois, e com quem? Vejam vocês: — com o dr. Alceu Amoroso Lima. Quis ser seu amigo e Deus sabe que, para isso, fiz o diabo. Já contei, e repisei nas minhas memórias, a posição do dr. Alceu diante do meu teatro. Sua única conces­são foi chamar Vestido de noiva de “obra-prima”. De Álbum de família disse: — “pior subliteratura”. Anjo negro pareceu-lhe de uma torpeza inexcedível. De Perdoa-me por me traíres afirmou que “a abjeção começava no título”. E fez mais a se­guinte síntese do meu teatro: — “peças trágicas, mas obscenas”.

(Falei de meus amigos e me esquecia de citar o Luís Eduar­do Borgerth; e ainda, ainda, o Gustavo Corção, o meu mais re­cente amigo de infância.) Eu podia me doer. Mas ai de mim, ai de mim. Nunca, em momento nenhum, deixei de ser o atrope­lado que morre pedindo um amigo. Quis ser amigo do dr. Al­ceu. Ele me atacava com a maior veemência e sempre acreditei que os veementes são portadores de verdades totais.

Fui levar-lhe, em mãos, uma cópia de Senhora dos afoga­dos. Dias depois, deu-me sua opinião em forma de carta. De­vastou o meu texto, não deixando pedra sobre pedra. E, por fim, sugeriu que eu seguisse o exemplo de d. Marcos Barbosa. Minha vontade foi replicar-lhe: — “Eu já quis ser até coroinha”. Tudo o que ele dizia, em tal documento, encontrou em mim uma acústica de catedral.

Outro qualquer teria desistido de uma amizade esbravejante como o abade anatoliano de Thais. Mas sou, repito, o atropela­do faminto de amor. Fui de uma paciência a um só tempo obtu­sa e terna. Ano após ano, em toda véspera de Natal, ligava para o dr. Alceu. A cena se repetia, quase textualmente: — “Aqui fa­la o Nelson Rodrigues. O senhor vai bem? Não vai bem? Dr. Al­ceu, vim lhe desejar um feliz Natal, um grande Ano Novo. Para si e para os seus”. Mas isso eu dizia em parcelas, porque ele me interrompia: — “Ah, Nelson, estava rezando por você”. Eu acha­va linda, se bem que suspeita, a coincidência. E se ele dizia que rezava por mim, a minha vontade era retrucar: — “Da mesma forma, da mesma forma”.

Um Natal, dois, três, quatro. Sempre a mesma coisa. E co­mecei a notar que era uma relação inteiramente desigual: — ele, um santo; eu, um fauno, desses que atropelam as ninfas nos ter­renos baldios. Saía eu desses telefonemas natalinos me sentin­do um canalha total. E não passava a mão na cara para não sen­tir a minha própria hediondez. Até que, um Natal, dr. Alceu sus­pira, não sei se do alto ou do fundo de sua bondade: — “Ah, Nelson. Você aí na sua lama”. Tomei um baque: — lama, eu? O respeito me travou, mas quase dizia-lhe: “Um momento, dr. Alceu. Não lhe ocorre que o senhor também tem sua cota de lama, a sua lamazinha, o seu pântano, os seus sapos, as suas rãs, os seus marrecos, hein, dr. Alceu?”. Não disse nada. E as­sim os dois, ele, um puro, eu, um obsceno, perdemos cada qual um amigo maravilhoso.

Já disse e aqui repito: — o episódio da véspera é tão passa­do, e passado tão defunto como a vacina obrigatória. Faço esta ressalva para incluir, nestas Memórias, o meu almoço de on­tem com o Otto Lara Resende. Tudo aconteceu, ali, num restaurante amigo da rua Santa Clara. Éramos cinco: — o Otto, eu, meu filho Joffre, o Hélio Pellegrino e o Vinícius de Moraes.

O almoço foi uma página de Os Maias. Não era um Otto qualquer que estava diante de nós, mas um Otto recém-chegado. E aquele que chega é sempre um ser comovido e transcenden­te. Vinha ele da fabulosa Escandinávia; andara no pólo, vejam vocês, no pólo; passara três ou quatro dias em Paris (não fale­mos de Paris, que é um lugar-comum irrespirável).

Como o Otto vivera uma experiência polar, nós o reconhe­cemos como se fosse um Byrd, um Amundsen. Se ele saltasse de um trenó, puxado por uma dúzia de caninos brancos, não me admiraria nada. E coincidiu a chegada do Otto com a passa­gem de uma mulata grávida. Improvisou-se uma relação cine­matográfica entre as duas imagens: de um lado, a mulata com os flancos plenos, saturados de vida fecunda; de outro lado, o escritor, prenhe também de experiências, descobertas, espan­tos, visões. Houve um momento em que me veio a tentação fa­tal de perguntar-lhe: — “O pólo existe mesmo?”.

Vocês se lembram dos Sertões, quando Euclides diz que o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Foi mais ou menos assim, com esse tom euclidiano, que o Otto declarou o seguinte: — “O norueguês é um bobo”. Mas não vejam, aí, nenhuma inten­ção restritiva. Em absoluto. O que ele quis dizer, se bem o en­tendi, é que falta ao norueguês a luminosidade da molecagem brasileira. Por toda a Escandinávia, não ouviu ele uma única e escassa piada. E como pode um povo viver, e sobreviver, sem piada?

Otto desembarcara em Olso e quinze minutos depois, não mais, já bocejava num tédio de Negro de Cecil B. de Mille. Du­rante os dias que lá permaneceu, não foi olhado por ninguém, jamais. O brasileiro tem por tudo um entusiasmo visual que não existe na Escandinávia. Lá as pessoas olham pouco. E, por ve­zes, o Otto perdia a noção da própria identidade. Na emergên­cia, puxava a carteirinha do Félix Pacheco, via a própria cara e repassava o próprio nome. E, então, certo de que continuava sendo Otto Lara Resende, de São João del Rey, suspirava: — “Ainda, bem, ainda bem”.

Mas o Otto que partiu era um e o Otto que voltou é outro. Na sua viagem, aprendeu esta coisa estarrecedora: — “O desen­volvimento não é solução”. Ao sair do Brasil, era um paladino do desenvolvimento, disposto a atirar o seu dardo contra a soldadesca inimiga. Mas salta na Noruega, o país mais desenvolvido do mundo, e percebe todo o seu equívoco funesto. Imaginem que entra numa fábrica. Ele e seus companheiros são conduzi­dos por um funcionário norueguês, que é um bobo integral, de uma polidez hedionda. Cada operário, ali, tinha um automóvel. Era de uma espessa, inconsolável tristeza.

Sem ser olhado por ninguém (nenhum operário lhe conce­deu a graça de um olhar), o Otto foi varado por uma certeza inapelável: — o desenvolvimento humaniza a máquina e maquiniza o homem. O escritor patrício teve vontade de conver­sar com as máquinas e de lubrificar as pessoas. E baixou-lhe uma náusea total das novas técnicas. Viu uma máquina de fazer em­brulhos que o deslumbrou. Visitou outras fábricas. Em todas, o mesmo operário inverossímil. Não havia a menor dúvida: — na Escandinávia as máquinas são mais tratáveis, mais sensíveis, mais inteligentes, de uma sociabilidade muito mais fina do que as pessoas.

E ele, só pensando na volta, continuou somando dados so­bre o desenvolvimento. Outra descoberta: — não há mulher bo­nita no país desenvolvido. Pode parecer mentira: — não há. E o Otto explica:— a beleza tem de ser uma exceção. A partir do momento em que todos são bonitos, ninguém é bonito. A norueguesa é sempre igual à outra norueguesa. Os noruegueses são parecidos entre si como soldadinhos de chumbo. E olhando para todos os lados, e não vendo um único bucho, o Otto começou a sentir um absurdo tédio visual.

Como se não bastasse a padronização de caras, corpos, cos­tumes, usos, idéias, valores, há também a estandardização da paisagem. Tudo prodigiosamente igual. Aquele que viu uma pai­sagem norueguesa pode ir tratar da vida, porque já conhece to­das as outras paisagens. É trágica a falta de imaginação da paisa­gem no país desenvolvido.

E há tanta ordem, tanto asseio, tanta disciplina, tanta orga­nização de vida, que o Otto compreendeu por que o escandi­navo se mata. Ao apertar a mão de um norueguês tinha vontade de perguntar-lhe: — “Quando é o suicídio?”. Quanto a amar, o que se vê é um amor sem mistério, suspense, angústia e abra­ços sem um mínimo de morbidez. Ora, sem um mínimo de mor­bidez, ninguém consegue gostar de ninguém. O amor ou é pu­ro desejo ou, menos do que isso, a posse sem desejo.

Em plena Oslo, o Otto experimentou uma dilacerada nostal­gia do subdesenvolvimento brasileiro. Revirava-se, insone, na ca­ma, pensando no Ponto de 100 Réis, nos oitis do Boulevard (não há mais oitis no Boulevard, mas ele queria vê-los assim mesmo).

Tinha saudade até dos gatos vadios do Campo de Santana. Ainda por cima, estava gripado. Só o brasileiro tem a desfaça­tez de ir ao pólo gripado.

Finalmente, tomou o avião de volta. Desceu em Paris e achou Paris abominável. Passou, lá, uma tarde inteira, fazendo a seguinte e desesperadora constatação: — todo mundo usava o mesmo sapato. Fosse como fosse, descobrira que o desenvol­vimento é burro. Ao passo que o subdesenvolvimento pode ten­tar um livre, desesperado, exclusivo projeto de vida. O desen­volvido para se realizar tem que ser o suicida.

O Otto desembarca aqui, finalmente. Entre parênteses, de­vo dizer que não incluí o seu nome na lista dos meus amigos. Mas ele o é. Por ressentimento eu o excluí. Mas é, repito, meu amigo. E como ia dizendo: — o Otto salta e cruza com um vago conhecido. O sujeito abre-lhe os braços, num berro: — “Otto, meu amor!”. Foi um abraço tremendo, de meia hora. Nem era conhecido, ou por outra: — o sujeito só o conhecia de televi­são. O recém-chegado viu, nessa cordialidade ululante, o Bra­sil. Np país desenvolvido, tal efusão seria considerada deslavada pederastia. Almoçando na rua Santa Clara, o meu amigo contou-me essas e outras passagens que não posso referir. Eis o vaticínio do Otto: — as máquinas norueguesas, de tão humanizadas, acabarão dando bananas em todas as direções.

Sento-me para escrever e vem, de fora, pela janela, a nos­talgia da rua Alegre. Eis a verdade: — sou, antes de tudo, a rua Alegre. Não Olinda, não Tijuca, ou Copacabana, mas rua Ale­gre. E foi lá que, aos seis anos, tornei-me testemunha ocular e auditiva de uma cena desesperadora. O episódio ocorreu de­pois de um Carnaval. Estávamos em mil novecentos e vinte e poucos. E o Carnaval antigo era a mais lúgubre das festas.

(Quem olhasse as nossas fantasias havia de imaginar que o carioca é um defunto vocacional. E, realmente, a caveira era a máscara de toda uma cidade. Ainda hoje, pensando na minha infância, me pergunto se não será a morte a paixão mais senti­da do brasileiro.) Mas como ia dizendo: — perto da nossa casa, morava a família de um funcionário dos Correios e Telégrafos. E eu não saía de lá.

Uma tarde, vejo um hediondo bate-boca entre o funcioná­rio e a sogra. Ela, gorda, com gazes enroladas nas varizes das canelas; ele, magro, peito fundo de asmático. Discutem, não sei por que, e, de repente, ela o vara com o insulto: — “Canalha! Canalha!”. Eu não sabia direito o que era canalha. Bem me lem­bro: — o dono da casa recua, lívido, já com dispnéia. Desabou numa cadeira, enfia a cara nas duas mãos e começa a chorar.

O filho da vítima, um garoto da minha idade, fugiu para o fundo do quintal. Eu, não: continuei ali, fascinado. Todavia, o importante para mim não era o choro do adulto, nem as vari­zes da sogra, nem o dano moral do funcionário. O importante, repito, era a palavra inédita. Sim, a palavra que eu ouvia pela primeira vez e que me feria para sempre. Aquilo não me saía da cabeça: — canalha, canalha.

O sentido era obscuro. Mas a palavra valia pelo simples som, e por uma espécie de halo e, mais, pela íntima ferocidade. Daí por diante, aquele homem deixou de ser alguém. Não era um funcionário, ou um vizinho, ou um velho. Era uma palavra, ou, melhor dizendo, era “o canalha”. Claro que sogra e genro fize­ram as pazes dois ou três dias depois. E o vi dizendo, num ges­to largo, que começou no chão e chegou ao teto: — “Uma san­ta, uma santa”.

Até que o canalha morreu. Fui lá. Eis a verdade: — a partir dos seis, sete anos, não perdia um enterro de vizinho. Pequeni­no e cabeçudo como um anão de Velásquez, metia-me no veló­rio; e ficava, de longe, espiando o morto, enquanto ardia, no alto, a chama tão fiel e tão compadecida dos círios. Mas o que me deslumbrava, ainda, não era a morte, era a palavra. A sogra chorava mais do que a esposa. E o som cruel me perseguia, sem­pre o mesmo: — canalha, canalha.

E passou o tempo. Saímos de Aldeia Campista para Tijuca e desta para Copacabana. Ah, Copacabana em 1923, 1924, era docemente residencial como o Botafogo de Machado de Assis. E, um dia, sou convidado para fazer alpinismo. Um grupo de rapazes e moças ia escalar o Dedo de Deus. Confesso, relutei a princípio; sempre achei o alpinismo vagamente idiota, e ain­da mais o alpinismo brasileiro. Mas tanto insistiram que cedi.

Era um domingo parnasiano, de um azul quase insuportável. Sempre me parecera que as cores brasileiras não têm caráter. O azul brasileiro não é bem azul; e assim o amarelo, o verde, o roxo. Tudo manchado. Naquele dia, não. Cores violentas, pas­sionais. E, de repente, brota um desconhecido na excursão. De onde saíra, quem era, como se chamava, eis as perguntas que fazíamos sem lhes achar a resposta. Eu disse “desconhecido”, mas já retifico: — menos para mim. E, de fato, eu já vira aquela cara não sabia onde, nem quando. Súbito, uma luz baixa em mim e me lembro: — era meu vizinho de infância e, pior, filho do canalha.

Eis o que eu pensava: — filho do canalha e, por morte do pai, canalha também. Desde o primeiro momento, ele conquis­tara, de assalto, a intimidade das meninas e dos rapazes. Era um desses encantos pessoais absolutos. Quando parávamos para to­mar água, comer um sanduíche, ele nos divertia com um élan e um virtuosismo de profissional. Lembro que, uma vez, pôs-se de quatro na paisagem. Puxou uma laranja do bolso e a equili­brou no nariz. Sempre de gatinhas, andou circularmente. Foi um êxito desvairado. Dos presentes, um único não riu, um úni­co não achou a menor graça! — o noivo de uma das moças, jus­tamente a mais linda do grupo.

O canalha foi, durante a excursão, um deslumbramento. Sa­bia ler mão, fazer mágicas de baralho; e, em dado momento, abriu a boca e pôs um fósforo aceso em cima da língua. As me­ninas vinham espiar e podiam observar uma saúde dentária inexcedível, sem uma única e escassa obturação. Só o noivo, com um ciúme de ópera, de Cavalleria rusticana, continuava inconquistável. Tomava conta da noiva e rosnava a qualquer tentati­va de aproximação. Seja como for, o canalha nos caíra do céu. Estávamos todos convictos de que o alpinismo era mesmo um esporte de débeis mentais. E ele nos salvava do tédio mortífe­ro. Além de todas as outras habilidades, tinha mais uma: — can­tava tangos, com um jogo cênico de Rodolfo Valentino nos Qua­tro cavaleiros do apocalipse.

No meio do caminho, aparece um rio lindo. E, então, num rompante de gênio, o canalha berra a idéia: — “Vamos tomar banho?”. Sucesso fulminante. Todo mundo estava neurótico de alpinismo. Num segundo, houve uma unanimidade feroz. Tu­do ficou combinado: — as meninas tomariam banho num lado e os rapazes no outro. E assim se separaram os sexos.

Todos os rapazes, inclusive o noivo de ópera, retiraram-se para o trecho da paisagem que lhes competia. Tiraram a roupa e se jogaram no rio, com uma desesperada volúpia. Felizmen­te, o rio tinha profundidade e todo o mundo mergulhava e na­dava, com uma gana paradisíaca. Súbito, o noivo lança a per­gunta pânica: — “E fulano?”. Fulano era o canalha. Não estava. A hipótese do afogamento não convenceu ninguém. E, então, uma intuição bateu no noivo. Por coincidência, usou ele a pa­lavra que assombrava minha infância: — “Canalha, ah, canalha!”.

Todos aqueles nus se juntaram na expedição punitiva. Eis a certeza que se instalara em cada um de nós: — estava espian­do o banho das moças. Começou a caçada. E quando a turma chegou, rastejando, no lugar certo, alguém arriscou um olhar na direção das meninas que se banhavam, dentro da luz. E logo todos espiaram. Lá estava aquela nudez múltipla, molhada, to­tal, A noiva do ciumento era a própria Ava Gardner aos dezessete anos. Ninguém pensou mais no canalha, ninguém. Cada qual se pendurou no seu galho e ficou olhando, como um sátiro esplêndido.

Depois, as meninas saíram, enxugaram a nudez, puseram a roupa. E, então, os rapazes, com o noivo à frente, saíram atrás do canalha. Justamente, vinha descendo de sua árvore; e seu olhar ainda vazava luz. Levou uma surra medonha. Quase o mataram.

Se me perguntarem qual é o grande e irredutível abismo entre a velha imprensa e a nova, direi: — a linguagem. Claro que existem outras dessemelhanças, além da estilística. Tudo o mais, porém, é irrelevante. Basta a redação de uma e outra para datá-las. Examinem duas manchetes: — uma de 1908 e ou­tra de 1967.

Dos fatos que, em 1908, deram manchete, o mais patético foi o assassinato do rei de Portugal e do príncipe herdeiro. Muito bem. Um dia, fui à Biblioteca Nacional repassar os jornais da época. Eis o que quero dizer: — não sei o que comovia mais o leitor, se o furor da carnificina, se o alarido dos cabeçalhos.

A primeira manchete era de um tremendo impacto visual, um soco no olho. E, depois de contar, sempre em oito colunas, a iniqüidade, o jornal, não satisfeito, punha uma derradeira man­chete: — “horrível emoção!”. Quando e onde o atual copy desk do Jornal do Brasil admitiria esse apavorante uivo im­presso?

(Boa figura, o rei de Portugal, d. Carlos I tinha olho azul e cabelos de fogo, não vermelhos, mas de fogo intenso ou dourado. Vinha na carruagem ao lado da rainha, d. Amélia, e do príncipe herdeiro Luiz Filipe. E, de repente, pularam os assassinos. Eram Buiça e Costa, ambos de capa preta. Ati­raram à queima-roupa e assim morreram pai e filho, o peito, o ventre furados. Em pé, a rainha gritava. Ali mesmo, a guar­da matou os assassinos. Os dois, o rei e o príncipe, tiveram uma breve, fulminante agonia. E d. Carlos ficou quieto co­mo se aquilo fosse, não um crime, mas a morte consentida e desejada.)

Vejam vocês: — diante da catástrofe, a primeira medida da velha imprensa era cair nos braços do adjetivo ululante. Hoje, não. Quando Kennedy morreu (quando uma bala arrancou o seu queixo), o copy desk do Jornal do Brasil redigiu a manchete sem nada conceder à emoção, ao espanto, ao horror. O aconte­cimento foi castrado emocionalmente. Podia ser a guerra nu­clear, talvez fosse a guerra nuclear. E o nosso copy desk, na sua casta objetividade, também não concederia ao fim do mundo um vago e reles ponto de exclamação.

A rigor, só conheço um lapso nessa intransigência estilísti­ca. Foi por ocasião da visita do papa a Portugal, o mesmo Por­tugal de d. Carlos, o rei de olho azul. Ora, não é três vezes por dia que um papa vai à terra portuguesa. E eu estava curioso de ver como reagiria o copy desk à transcendência do fato.

Sua santidade desembarcou e, no dia seguinte, atropelei o primeiro exemplar do Jornal do Brasil que encontrei na vida real. Ignorei os telegramas. O que me interessava era o estilo do jornal. E tremi em cima dos sapatos. Contando a chegada do papa, o copy desk admitia que o sol estava “radioso”. A prin­cípio, duvidei de mim mesmo; reli e lá estava, inequívoco, con­tundente, o palavrão: — “radioso”. Para a velha imprensa, o sol mais vagabundo era “radioso”. Agora, não. E vamos reconhecer a singularidade da coisa: — pela primeira vez, um sol é “radioso” na primeira página do Jornal do Brasil.

E o fato é tão escandaloso que, por um momento, roçou-me o espírito a seguinte e desprimorosa suspeita: — estaria bê­bado o copy desk ao fazer tal concessão ao papa, a Portugal, ao sol e ao vocabulário? Seja como for, acho que o rei de olho azul morreu na hora certa. Fosse ele contemporâneo do copy desk, e não teria as manchetes que só a velha imprensa, só o jornal não desenvolvido concedia à tragédia oficial ou privada.

Fiz todos os devaneios acima para chegar à minha inicia­ção jornalística. Tenho, de novo, treze anos; acabo de inaugu­rar as minhas calças compridas. Vejo-me, na redação, vagando por entre os mais velhos. Na época, eu procurava me valorizar com rompantes insolentíssimos. Ouço a minha voz de menino: — “Rui Barbosa é uma besta”. Mas a verdade é que era uma segurança de papelão. Começava a duvidar de mim mesmo: ti­nha cavas depressões literárias. Ricardo Pinto me dizia: — “Rui Barbosa é gênio! É gênio!”. Sem o confessar, era o que eu acha­va também, às escondidas.

A partir da minha primeira nota de polícia (um atropelamen­to), começou a minha guerra com a linguagem. Eu era, confes­so, um pequeno Flaubert, ou melhor dizendo: — um “baiano” torturado. Queria escrever como um orador baiano. E o que me preocupava era a metáfora. Fui um autor correndo, ofegan­te, atrás das metáforas mais desvairadas. Escrevi que o copy desk do Jornal do Brasil caiu, pela primeira vez, nos braços do adje­tivo. Não fiz outra coisa no começo da carreira jornalística. Tam­bém o adjetivo era minha tara estilística.

Depois de passar pelos casos miúdos, redigi a minha pri­meira tragédia. Uma mulher matara o marido. Não me lembro onde (talvez na rua Mariz e Barros). E, na polícia, quando per­guntaram pelas razões do crime, foi sucinta: — “Não gostava do meu marido”. Não entendi, ninguém entendeu. Matar por­que não gostava, e só por isso? Eu ainda não sabia que não gos­tar do marido, simplesmente não gostar, é pior do que o ódio. Numa palavra: — não fora o ódio, que não existia, mas a sim­ples e terrível falta de amor. Na delegacia, na embriaguez da pri­meira grande chance profissional, tomei todas as notas. E fui para a redação escrever.

Eu não via nenhuma dessemelhança entre literatura e jor­nalismo. Já ao escrever o primeiro atropelamento, me comovi como se fosse a minha estréia literária. E a minha primeira tra­gédia também me soou como outra estréia. Sentei-me para es­crever. Não podia pensar muito. Mas precisava de uma metáfo­ra como ponto de partida. Lembrei-me da imagem plagiada das Pombas: — “a madrugada raiava sangüínea e fresca”. Em úl­timo caso, reincidiria no plágio. “Sangüínea e fresca” era bom. E, súbito, me veio outra idéia. Todo mundo ali conhecia Rai­mundo Correia. Então, desesperado, imaginei a criminosa, den­tro da tarde, sonhando com o crime. No horizonte o sol morria numa “apoteose de sangue”. A imagem me pareceu original, revolucionária. E não parei mais. A “apoteose” foi o meu afrodisíaco autoral. Horas depois, ainda comovido, fui para casa. “Apoteose de sangue”, repetia para mim mesmo. Pela primeira vez, me sentia um grande escritor.

Numa de minhas peças, diz um personagem que usamos, na Terra, um falso nome e uma falsa cara. Vejam bem: — nem a cara, nem o nome têm nada a ver com a nossa identidade pro­funda. E, quase sempre, o homem nasce, vive e morre sem ter contemplado jamais o seu rosto verdadeiro e sem ter jamais co­nhecido o seu nome eterno. Por isso, direi que o Maracanã é quase um milagre.

O Maracanã jamais foi Maracanã. Ou por outra: — como acontece com os homens, o estádio também recebeu um nome errado. E foi preciso que Mário Filho morresse, de repente, nu­ma madrugada de setembro, para que todos percebessem a ver­dade jamais desconfiada. O Maracanã era Mário Filho e não Ma­racanã. E devia ter-se chamado Mário Filho antes da primeira estaca e quando era apenas um sonho riscado num papel.

Sempre que penso em meu irmão Mário Filho é como se ele morresse de novo. Tudo aconteceu de repente, na madru­gada. Célia liga para minha irmã médica, Stella. O próprio Mário fala: — “Stella, essa dor que eu estou sentindo no braço não pode ser normal. Não é normal”. Stella, que não gosta de tratar de pessoas da família, disse que ia telefonar para o médico. Má­rio deixou o telefone; deitou-se de bruços. Um minuto depois não respondia mais. Estava morto.

Vejam: — morreu às quatro da manhã. Estive, no seu quar­to, da meia-noite à uma. E o que me espanta, até hoje me es­panta, é que eu não tenha percebido a morte. Sempre digo que a morte é anterior a si mesma. E Mário Filho começara a morrer muito antes. Há uma bondade de quem vai morrer, há uma lu­cidez de quem vai morrer. Lembro-me de que, nos últimos dias, foi um ser prodigiosamente bom, tão úmido de ternura, tão crispado de compaixão, e de amor estremecido.

Falei dos “últimos dias”. Mas sempre foi, desde menino, desde a rua Alegre, de uma bondade desesperadora. Bom a ca­da minuto. Bom de uma bondade que, por vezes, nos agredia e nos humilhava. E tinha a alegria de ser bom. Vejam os seus retratos: — era uma cara toda feita de alegria. Grato à vida, nunca se arrependeu de ser humano, de ser nosso semelhante (o que me está doendo, na carne e na alma, é que não dissemos tudo um ao outro. Aquele que está morrendo tem palavras extremas para dizer e palavras extremas para ouvir. Mas algo me travou a mim e a ele; tive talvez vergonha de ser meigo e calei a pala­vra do amor tão ferido).

Meu Deus, gostaria de dar uma idéia da extensão, movimen­to e profundidade de sua obra. Quem era Mário Filho? Foi um desses homens fluviais, que nascem de vez em quando. Disse “fluvial” e explico: — imaginem um rio que banhasse e fertili­zasse várias gerações. Assim foi Mário Filho. Durante quarenta anos, não houve cronista, não houve talento, vocação, em to­do o Brasil, que não tenha sido por ele fecundado.

Hoje, eu e meus colegas andamos por aí, realizados, bem-sucedidos, temos automóveis e freqüentamos boates; e o nos­so palpite tem a imodéstia de uma palavra. Mas pergunto: — o que era e como era a crônica esportiva antes de Mário Filho? Simplesmente não era, simplesmente não havia. Sim, a crônica esportiva estava na sua pré-história, roía pedra nas cavernas. (Não exagero; vejam nas minhas palavras a simples e crassa veracida­de histórica.)

Bem me lembro do antigo cronista. Era um tipo de alto pa­tético, mais humilhado e mais ofendido do que o Marmeladov do Crime e castigo. Quando via, ou sorria, mostrava uma anto­logia de focos dentários. Era uso, então, entre os clubes, ofere­cer um lanche à crônica. Nada mais pungente e plangente do que a voracidade com que então agredíamos os biscoitos e os sanduíches. Lembro-me de um colega que agarrou pelo garga­lo, e quase esganou, uma garrafinha. Tive a sensação de que ia engolir aquilo, com chapinha e tudo, como os elefantes de circo.

Até que, um dia, surgiu Mário Filho. O cronista esportivo passa a existir, profissionalmente, a partir de sua entrevista com Marcos Mendonça. A matéria inundava um espaço jamais concedido ao futebol: meia página. E o pior era a linguagem estarrecedora. Os melhores jornalistas da época escreviam de fra­que. E Mário Filho usava a palavra viva, úmida, suada. A entre­vista de Marcos Mendonça foi, para nós, do esporte, uma Se­mana de Arte Moderna. Pouco depois, graças a Mário Filho, os clássicos e as peladas invadiram o espaço sagrado da primeira página. Antes, só o assassinato do rei de Portugal merecia man­chete. E, súbito, o grande jogo começou a aparecer, no alto da página, em oito colunas frenéticas. O cronista mudava até fisi­camente. Por outro lado, seus ternos e gravatas acompanhavam a fulminante ascensão social e econômica.

E o rio continuou o seu curso generoso, umedecendo e fe­cundando a aridez do caminho. Mas não vou contar tudo o que fez Mário Filho porque ele não parou nunca. Com seu formidá­vel élan promocional, trouxe novas massas para o futebol. A ge­ração do Maracanã não imagina como a multidão é coisa recen­te. Olhem as fotografias do Rio antigo. O brasileiro andava só, sim, o brasileiro andava desacompanhado. Quando três sujeitos se juntavam, as instituições tremiam. O público era escasso, era ralo nos velhos campos. Eis o que eu queria dizer: — Mário Fi­lho criou e dinamizou as multidões do futebol brasileiro.

Como ele recriou o Fla-Flu. Ora, o Fla-Flu, sem esta abre­viação, existia desde 1912 ou 11. E, um dia, Mário resolveu po­tencializar o velho clássico, tão velho que era anterior à primei­ra batalha do Marne. Preliminarmente, mudou o nome para Fla-Flu. Em seguida, montou um folclore fascinante sobre o jogo superconhecido e desgastado. E, de repente, o Fla-Flu extroverteu todo o patético, todo o sortilégio que trazia no ventre. O mito, por ele projetado, magnetizou todo um povo.

Mas dizia eu que o verdadeiro nome do Maracanã sempre foi Mário Filho. Nós é que éramos cegos para o óbvio ululante. Quando se pensou no estádio, nasceu uma discussão de um ab­surdo feroz: devia ser no Derby ou em Jacarepaguá? Mário Fi­lho via Jacarepaguá quase como outro país, outro idioma. O es­tádio teria de ser encravado aqui. Todas as manhãs, vinha ele, como o paladino do certo, do justo, arremessar seu dardo con­tra as hordas do erro. E assim salvou o estádio. Foi uma de suas vitórias mais lindas. Depois, lançou a Copa Rio, um aconteci­mento do futebol mundial; e faria também o Torneio Rio—São Paulo, que se transformaria no Roberto Gomes Pedrosa. Quando trouxe os remadores de Cambridge, a cidade veio para a Lagoa. Meio milhão de pessoas.

Devemos a ele os Jogos da Primavera, os jogos Infantis. Pou­co antes de morrer, deu-nos o Torneio de Pelada, empreendi­mento único no Brasil e no mundo, com mais de mil times e uma massa de 16 mil jogadores. Sempre teve a nostalgia do gi­gantesco. E era um maravilhoso escritor. Amigos, o verdadeiro rosto é o último e repito: — o rosto do morto não mente, não trai, não finge. Eu me vejo, naquela tarde, velando o seu cor­po. Debrucei-me tantas vezes sobre ele. Jamais alguém teve, em vida, um rosto tão doce, e tão compassivo, e tão irmão; e ja­mais duas mãos entrelaçadas foram tão santas.

A companhia de um paulista é a pior forma de solidão. Es­crevo isso e paro de bater à máquina. Eu queria dizer outra coi­sa e vocês vão achar graça: — acordei pensando no Eça, e não em São Paulo. Falarei do paulista, a seu tempo. Por hoje, dese­jo apenas comparar a geração portuguesa do Eça e a geração brasileira do Vianinha.

O leitor há de cair em depressão ao vislumbrar, nas minhas palavras, um desses absurdos paralelos literários. O próprio Via­ninha, ou, por extenso, o Oduvaldo Viana Filho, há de se tor­cer e retorcer, numa dessas modéstias totais: — “Mas eu não mereço tanto”, dirá ele. Mas sosseguem o leitor e o próprio Via­ninha. Não cabe nenhum paralelo e eu explico: — os Vencidos da Vida eram uma geração estrita e ferozmente literária, ao pas­so que os Falsos Cretinos são uma geração atroz e obsessiva­mente política.

Que eram o Eça, o Antero, o Ramalho, o Batalha dos Reis, o Junqueiro, o Oliveira Martins e outros, e outros, senão, e pre­cisamente, literatos? Tudo o mais era subsidiário. A política servia-lhes às frases e só. E quando Antero meteu uma bala na cabeça (e não me lembro se foi na cabeça) estava cometendo, sem o saber, o mais literário dos suicídios. Era mais um soneto.

E eu comparo os Vencidos da Vida e os Falsos Cretinos por­que são duas gerações fortemente caracterizadas e militantes. Mas deixemos os literatos portugueses que são, hoje, diáfanas e nostálgicas ossadas. Falemos dos nossos que estão aí, vivos, sólidos, vorazes e ululantes. Podemos apalpá-los, podemos farejá-los e, até, pedir-lhes dinheiro emprestado.

Imagino que o leitor há de estar fazendo a impaciente per­gunta: — por que “falsos cretinos”? Porque não o são, assim como os Vencidos da Vida também não o eram. Pode haver, aqui e ali, um ou outro caso de debilidade mental cristalina. A maioria, porém, se o quisesse, teria talento, teria imaginação, teria originalidade, teria uma enorme potência criadora. Mas sa­crifica todas essas virtudes nobres e uma pose política, socialis­ta, marxista ou que outro nome tenha.

Bem. Como dizia eu outro dia, não importa que o teatro seja político, que a poesia seja social, que o romance seja espí­rita, que a pintura seja budista, fascista ou macumbeira. Impor­ta apenas que seja bom teatro, e boa poesia, e bom romance, e boa pintura. O que interessa ao burro do leitor que Balzac se­ja integralista, se é o Balzac? Os falsos cretinos, não.

Nós os encontraremos por toda parte: — no cinema, no tea­tro, na poesia, no romance. Quando sou apresentado a um ci­neasta, tremo. Ainda ontem dizia o Otto Lara Resende: — “O cinema é uma maneira fácil de ser intelectual sem ler e sem pen­sar”. Realmente, poucos são como o Glauber Rocha, um artista desvairado, ou como Gilberto Santeiro, muito mais jovem, e de uma apaixonada sinceridade. Ou Jabor, que, na pior das hi­póteses, é uma potencialidade. Eis o que eu queria dizer: — não só o cinema dá uma carteirinha de intelectual profundo. Tam­bém o socialismo. Sim, socialismo é outra maneira facílima de ser intelectual sem ligar duas idéias. Reparem como todo idiota que se conhece é um socialista feroz.

Ninguém precisa mais escrever a Comédia humana, a Di­vina comédia, Guerra e paz, As obras completas de Shakes­peare. O artista se sente feliz e realizado de ir, ali, no Castelinho, rosnar contra os Estados Unidos e pingar duas ou três frases sobre o Vietnã. E aí está todo o “falso cretino”. Vi, há tempos, um seminário de teatro. Ao primeiro olhar, percebi um clima inequívoco de falso cretinismo. E, de fato, ergue-se um rapaz e firma o seguinte princípio: — “Teatro não interessa. O que interessa é a revolução socialista”. Ali estava a geração de que me ocupo: — o sujeito, aqui, acha que o revolucionário tem de ser, preliminarmente, débil mental de babar na gravata.

Na semana passada, passei por um boteco na rua Visconde de Pirajá. Estava lá o Vianinha tomando cerveja. (No tempo do Dumas Filho, seria absinto.) Quando o vejo, me crispo de es­panto. Que talento suicida! Que grande poeta dramático seria ele, se fosse analfabeto e apenas ditasse as suas peças. De vez em quando, ponho-me a imaginar um Vianinha utópico, ideal; um Vianinha que, ao ouvir falar em Marx, perguntasse: — “Que Marx? Joga pelo Manufatura ou pelo Rosita Sofia?”. Ah, um Via­ninha de tamanha inocência e de tão paradisíaca ignorância, se­ria o maior dramaturgo do mundo subdesenvolvido.

Em vez disso, ele e seus companheiros estão fazendo um teatro sem precedentes, desde os gregos. De vez em quando, o brasileiro abre o jornal e lê que vai ser levada a peça tal. Pro­cura o autor e tem a surpresa. É a autoria mais numerosa da Ter­ra. Por exemplo: — Onde está a saída? é assinada, se não me engano, por cinco autores. Vejam: — cinco. Um dia, teremos uma assistência de Fla-Flu escrevendo um texto dramático. E o pior é que está metido nisso um artista do valor de Ferreira Gullar.

Trabalhei com Ferreira Gullar na Manchete. Era, então, um grande poeta. Sua Luta corporal comunicou instantaneamente aos contínuos da revista. Mas o nosso Ferreira era, na época, vagamente reacionário. Depois mudou. E nós o vemos, agora, amontoado com outros, numa promiscuidade autoral inacredi­tável. Renunciou àquela solidão mais áspera do que as cerdas bravas de um javali. Deixou de ser um só. E quando o vemos, temos vontade de saudá-lo assim: — “Como vai vocês?”.

Excelente Gullar! Ainda hei de vê-lo de um reacionarismo torvo, de um obscurantismo hediondo, mas novamente gran­de poeta. E Guarnieri, o meu amigo Augusto Boal, o Flávio Ran­gel? Uma geração talvez mais brilhante do que os Vencidos da Vida. Outro dia, na casa do Otto Lara Resende, suspirava o poeta Vinícius: — “A solução é a burrice”. E ele era socialista por is­so mesmo, porque o socialismo é burro. Estavam lá o anfitrião, Otto, o Hélio Pellegrino, eu e não sei mais quem. Ninguém pro­testou. No fundo, todos, ali, pareciam achar que o bom no so­cialismo não é a justiça, não é a paz, nem os bons sentimentos — é a burrice.

 “Eu bem n’a sinto! Eu bem n’a sinto!” — assim começa uma página de Fialho que li há muitos e muitos anos. Se não me en­gano, o autor falava da boa primavera portuguesa. Ou por ou­tra: — não era a primavera. Falava da uva translúcida de Portu­gal, de sua doçura afrodisíaca. Teria eu dez, onze anos. E o “bem n’a sinto” de Fialho deu-me a sensação de que eu já fora portu­guês algum dia.

Ontem, quarenta e poucos anos depois, volto a sentir, na minha carne e na minha alma, esse maravilhoso passado luso. Imaginem que me acordam com a notícia: — “Morreu o Zé Gon­çalves!”. E nem fora a boa, consentida, compadecida morte na­tural. Zé Gonçalves, ou, por extenso, José Gonçalves dos San­tos, maquinista do Municipal, cenotécnico, fora assassinado, em casa, exatamente às quatro da manhã.

Ninguém mais português, ninguém tão português. Chegou menino ao Brasil; ia fazer setenta anos. E tinha, setuagenário, o sotaque de quem desembarcou na véspera. E a memória uniu em mim as duas coisas: — a retórica de Fialho e a morte do amigo. Novamente, senti que já fui português em vidas passadas. Em ca­pítulo recente, disse eu que o amigo é o grande acontecimento.

Exato, exato. E José Gonçalves foi, para mim, um grande acontecimento. Estou batendo estas notas e voltando à minha pré-história teatral. Quando fiz a minha primeira peça, A mu­lher sem pecado, eu não era ninguém. Fazia esporte no Globo, no tempo em que era humilhante ser cronista esportivo. E, mes­mo num setor estreitamente especializado, não tive jamais um destaque forte. A crônica esportiva era um território solidamente ocupado por Mário Filho.

(Mas preciso retificar. Ao escrever A mulher sem pecado, eu já deixara a seção de esporte. Isso mesmo. Estava no Globo Juvenil, que Roberto Marinho acabara de fundar.) Com a peça debaixo do braço, saí de porta em porta. Ninguém quis encená-la, ninguém. Vargas Netto apresentou-me a Abadie Faria Rosa, então diretor do Serviço Nacional de Teatro e da companhia oficial Comédia Brasileira. Era o Estado Novo e Vargas Netto tinha a onipotência do nome.

Automaticamente, o meu texto instalou-se no repertório da Comédia, com uma prioridade feroz.

Restava uma dúvida, e desesperadora. Abadie queria repre­sentar a peça, o elenco, idem. Mas a companhia não tinha um tostão para o cenário. Era em dezembro e a verba estava esgo­tada, até o último vintém. Só havia dinheiro para a quinzena dos artistas. E começou o meu desespero. À beira da glória, subita­mente a perdia (para mim, a estréia era a glória fulminante). Foi então que Rodolfo Mayer, intérprete e diretor de A mulher sem pecado, cochichou-me: — “Depende do José Gonçalves”.

O velho Zé. Tinha tremendas varizes nas pernas e andava mancando. Não precisei pedir. Foi ele que veio me dizer: — “Dei­xa o cenário por minha conta”. Eis o que eu queria dizer: — a bondade desse homem, a bondade tímida, humilde, envergonha­díssima. Tenho defeitos inumeráveis. Tenho. Mas há em mim uma virtude confessa: — um gesto bom, um simples gesto bom ou, menos do que isso: — um simples olhar ou sorriso bom me dila­cera. Eu me lembro de uma senhora que, na minha infância pro­funda, cruzou por mim, na rua D. Zulmira. E, de passagem, ela me olhou, de passagem. Não mais, apenas um olhar, a pura carícia de um olhar. Nunca mais a vi; sumiu, como se jamais tivesse existido. Esse breve olhar de uma desconhecida, esse olhar de uma doçura insuportável, está eternamente comigo.

Também jamais esquecerei o olhar do Zé Gonçalves. Posso dizer que houve a minha estréia porque José Gonçalves a pagou. E, através dos tempos, ele continuou português. Tinha sessen­ta anos de Brasil e era português como uma metáfora de Fialho. O bem que me fazia o som, a vista, a luz do seu riso. E o pior é que, há dias, fiz uma pequena seleção de amigos. Lá não está este nome: — José Gonçalves dos Santos. E me pergunto que lapso cruel o excluiu da lista dos que me querem bem para sem­pre. Eu o esqueci porque ele era um simples? Por causa do seu nobre, lindo, luminoso, esforço braçal? Porque era um francis­cano maquinista?

Até que chegou a grande noite de ontem. Meus filhos Jof­fre e Nelsinho contam que o Zé Gonçalves estava numa euforia total. Pôs o melhor terno, a melhor camisa, a melhor gravata, o melhor sapato. Seus últimos momentos foram de uma felici­dade absurda. Era já a morte e ninguém sabia. À meia-noite, to­dos vão dormir. E, naquele momento, já os bandidos que iam matá-lo estavam assaltando.

Chegaram num carrinho que ficou numa rua próxima à Silva Teles. A rua Agostinho Meneses é uma rua indefesa como toda a cidade (não há polícia, não há nada). Os sujeitos sobem para a varanda do Zé Gonçalves; cada um entra por uma janela. To­da a família dorme. Os meus filhos estão lá (foi seu José e podia ser Joffre ou Nelsinho). Segundo o repórter Amado Ribeiro, os três assaltantes deviam estar maconhados.

E, de repente, o barulho acordou seu José. Ou por outra: — não foi o barulho, foi a luz da lanterna. Seu José pula da ca­ma. E, logo, a casa encheu-se de gritos. Meu filho Joffre tam­bém acorda. Atraca-se com o bandido que atravessava o seu quarto. Veio de outro quarto Nelsinho. É a luta na treva. O ban­dido se desprende dos meus filhos; e salta pela varanda. Lá em­baixo, ergue-se e corre. Outro o acompanha.

Ninguém imaginava que um terceiro ficara. Seria o assassi­no de José Gonçalves e estava de dedo no gatilho. E, súbito, aparece atrás de José, Joffre e Nelsinho. Apontava a arma e ia atirar para fugir. Não foi sorte, não foi azar, não foi destino. Se­riam meus filhos, um dos meus filhos. E seu José saltou na fren­te do revólver. Levou a bala no coração para salvar.

José Gonçalves dos Santos. Falando dos meus amigos, eu o esqueci. E ele morreu. Meu amigo, disse. Mas que fosse meu inimigo. Morreu para salvar meus filhos. Será enterrado hoje e para sempre amado por mim. De manhã bate o telefone. Lúcia atende. Era a notícia. Ela não me acorda. Vela meu sono e nem sinto a sua desesperada proteção. É a compadecida que chora antes de mim e por mim. Só quando acordo é que me conta, aos poucos, lágrima por lágrima.

José Gonçalves dos Santos. Outro dia, falando dos meus amigos eu o esqueci. “Meu amigo”, posso agora dizer, tardia­mente. Mas que fosse inimigo. Morreu para salvar meus filhos. Vão enterrá-lo hoje. Será para sempre amado por mim.

Já disse, e repeti não sei quantas vezes, que me iniciei no jornalismo aos treze anos. Na idade em que muitos tomavam carona de bonde, e outros raspavam pernas de passarinho a ca­nivete, tornei-me profissional. Ainda hoje me perguntam, no espanto da precocidade: — “Treze anos?”. Respondo, na minha vaidade feliz: — “Comecei na profissão de calças curtas”. Bem. De calças curtas, nem tanto. Mas quase.

Eis o que eu queria dizer: — naquela época, fazíamos, to­dos, jornalismo subdesenvolvido. O sujeito que apanhava, na caixa, um vale de cinco, dez mil-réis, para comer ou para be­ber, estufava o tórax, arredondava a barriga, como um nababo. Assim era a velha imprensa, famélica, não raro fétida, mas ro­mântica. Hoje, não. O jornal desenvolvido é um fato sólido, um fato que podemos apalpar, fisicamente.

Meses atrás, o Cláudio Mello e Sousa passou por mim, tumul­tuosamente, como um centauro. Chamei-o: — “Vem cá, rapaz”. Retrocedeu. Perguntei: — “Que pressa é essa?”. E ele: — “Vou a Roma”. Dizia isso com uma naturalidade não isenta de tédio. Ia a Roma como, outrora, o repórter ia, ali, ao Largo do Machado. O jornal o escalara para entrevistar não sei quem. E o Cláudio, abarrotado de dólares, ou liras, sei lá, estava com o pé no avião.

No antigo jornalismo, cena como a descrita era inviável. Roma só existia para o diretor. Outra figura inexeqüível, na im­prensa subdesenvolvida, seria o Otto Lara Resende. Em capítu­lo recente, descrevi a viagem do colega e amigo à Noruega. O Otto andou por lá e voltou furioso. Vagando por Oslo, e farto de tanto desenvolvimento, começou a ter saudades até da nos­sa mortalidade infantil. Mas era o tédio em dólar.

Mas como eu ia dizendo: — ao começar a minha carreira, conheci o último profissional fascinante. Refiro-me ao revisor. Hoje, ele anda por aí, de fronte alta, bem vestido, bem calçado. Ainda ontem, um revisor deu-me carona no seu Aero Willys suntuário. Em 1925, esse mesmo revisor andaria de taioba, se tan­to. Bem me lembro da primeira vez em que entrei numa revisão.

A redação sempre foi lírica, mesmo nas etapas mais sofri­das da história jornalística. Sim, o redator tinha uma estrutura prodigiosamente doce e cálida. A revisão, nunca, e repito: — a revisão era um pátio de milagres de ressentidos, frustrados, humilhados, deformados. Era um pessoal que se retorcia em danações impotentes.

E, de repente, descobri uma rútila exceção. Era um rapaz até bonito, de um bigodinho bem aparado, um olho claro e mei­go e uma permanente euforia de anjo. Usava muito terno bran­co, uma calça de vinco antológico e gravatas lindas. Os outros, todos os outros, eram portadores de não sei que lesões da al­ma, não sei que úlceras do sentimento. Ele, não. Tão fino, tão delicado e melífluo, que lembrava a afetação de um marquês de rancho, desses que usam peruca e sapatos de fivela. Até ho­je não se sabe quem estava por trás de sua elegância, de sua nu­trição e dos seus cosméticos. Seu ordenado de revisor não jus­tificava nem suas boas roupas, nem seus bons sentimentos.

E aqui vem a surpresa: — era um canalha, ou, para ser nu­mericamente exato: — o terceiro canalha que conheci na vida real. Já me referi com abundância aos dois primeiros. O cana­lha nº 1 foi o funcionário dos Correios e Telégrafos; o canalha nº 2, o que espiou o banho das meninas. O revisor seria o ca­nalha n° 3. Aprendi, no métier jornalístico, dramático ou sim­plesmente vital, que o pulha costuma ter uma fluorescente au­ra de simpatia.

Poderão perguntar: — que atos, ou palavras, ou sentimen­tos definiam o canalha? Como tal, vamos aos fatos. Um dia, fi­zeram no jornal um time de futebol. Em dez minutos arranja­mos titulares para cada posição. Entre parênteses, eu, filho do diretor, fui escalado na meia-direita. A dúvida era o goleiro. Co­mo se sabe, o goleiro há de ser, eternamente, uma figura vital. Todos podem errar, menos ele. Foi aí que, num rompante dra­mático, o canalha nº 3 apresentou-se como “a solução”.

Segundo o próprio, era ele um goleiro nato e mais do que isso, hereditário. Já o seu pai fora, na posição, uma autêntica bastilha. E o canalha n° 3 afirmava os seus méritos com um descaro tão radiante que ninguém duvidou. Lembro-me do nosso primeiro treino em conjunto. Curioso! Havia entre o nosso jo­go e o nosso salário uma relação nítida e taxativa. Era um fute­bol triste, lívido, depressivo. Vejo um córner batido por um re­pórter de polícia. Chutou como se a pelada fosse uma ópera e como se ele encarnasse o Alfredo da Traviata.

Só havia em campo um ser dionisíaco: — o revisor. Foi, debaixo dos três paus, uma maravilha elástica. Defendeu tudo. Numa das vezes, fiquei, com o élan dos meus treze anos (já fi­zera catorze), fiquei sozinho, vejam bem, cara a cara com o canalha nº 3. Enchi o pé. A bola subiu e se enfiou na última gave­ta. E todos vimos o goleiro tornar-se leve, alado, incorpóreo. Com a ponta dos dedos, transformou em córner o gol infalível.

No fim, quase o carregamos na bandeja. Todavia, era ape­nas um treino. No domingo seguinte, houve um jogo de verda­de contra não sei que time. Resumindo, direi que apanhamos de 10 x 5. O revisor engolira, exatamente, dez frangos. No último gol, a bola ia saindo; o cínico curvou-se, apanhou a mãos ambas a redonda e a pôs nas redes como no basquete.

No nosso vestiário havia um espanto de catástrofe. Eis se­não quando o canalha nº 3 começa a berrar: — “Me quebrem a cara! Me quebrem a cara! Eu sou um venal!”. Dava murros no próprio peito: — “Eu me vendi!”. Antes de tomar o primei­ro tapa, levou uma cusparada na cara. Sem enxugar, na face, a saliva alheia, insistia: — “Mereço mais! Mereço mais!”. E só sossegou quando apanhou a surra. Debaixo dos pescoções, ainda pedia: — “Mais! Mais!”.

Passou. No outro domingo há o segundo jogo. Chamam o canalha n° 3. Disseram: — “Se você papar algum frango, já sa­be: — depois do jogo, tu levas outra surra!”. O revisor olha pa­ra os lados, toma coragem e arrisca: — “Tem que ser depois do jogo? Não podia ser agora? Vocês não podiam bater antes do jogo?”. E teimava de olho rútilo e lábio trêmulo: — “Eu que­ro antes, antes!”. Crispava as mãos, no apelo. Tudo aconteceu numa progressão fulminante: — houve um primeiro tapa e, lo­go, por imitação, outros, e outros. Depois do espancamento, entramos em campo. O goleiro caminhava, de fronte alta, o olho incandescente, como um profeta. Agarrou tudo, fez defesas im­possíveis. E só então descobri, com secreto deslumbramento, que estava, ali, o perfeito, irretocável canalha n° 3.

O que nós chamamos infância é a soma das nossas desco­bertas (isso é óbvio e novamente me confrange estar aqui pro­clamando o óbvio). Lembro-me do meu assombro quando ou­vi alguém chamar alguém de canalha. Já referi o episódio: — foi um bate-boca entre sogra e genro. E, súbito, a velha o xinga de canalha. Pela primeiríssima vez, eu ouvia a palavra. E, garo­to, tremi em cima dos pés. Acho que o meu espanto iluminou a sala.

Sempre que um menino ou mesmo um adulto vê o nasci­mento de uma palavra, seu horizonte vital se torna mais denso, elástico, luminoso. A descoberta do “canalha” mudou, ampli­ficou a minha realidade. Tinha meus seis, sete anos. E, durante meses e anos, aquele som andou comigo. E, depois, viriam ou­tras descobertas também prodigiosas.

Outra lembrança que me persegue até hoje. Era em 1926, na rua Joaquim Nabuco. Morávamos numa casa branca que me parecia um palácio (e como fui sempre um pobre vocacional, o nosso luxo me parecia lúgubre e profético. Lá perdemos Ro­berto e meu pai). Estou pensando no jardim. Vejo o portão cen­tral, com dois ciprestes, que ali se erguiam como dois irmãos tristes.

Mas, se havia um jardim, precisávamos de um jardineiro. Quando nos mudamos, alguém indicou um português que tra­balhava na vizinhança. Veio o jardineiro luso, de bigodões, camisa-de-meia listrada, tamancos e uma pupila verde e diáfana. Queria combinar o serviço. Minha mãe dizia: — “Vem um dia por semana”. Com as duas mãos, o português segurava o chapéu. Minha mãe pergunta: — “Não prefere sábado?”.

Sábado, sábado. O outro, que ouvia e falava de olhos bai­xos, levantou a vista. Disse apenas: — “O sábado é uma ilusão”. E parou. “O sábado é uma ilusão” e nada mais. Minha mãe não ouviu direito ou, se ouviu, não entendeu. Perguntou: “Como?”. E o outro, numa certeza cruel: — “O sábado é uma ilusão”.

Ninguém jamais dissera isso de um sábado. Nem dirá. Por­tanto, eu vi, ali, o nascimento de uma frase. Nascimento e mor­te, quem sabe? Talvez nem o próprio português repetisse mais que o sábado é uma ilusão. Ficou então combinado que ele vi­ria, cada sexta-feira, fazer o serviço.

Fosse como fosse, a frase me pôs diante do desconhecido, do inédito, do jamais desconfiado. Lembro-me de que, duran­te semanas, meses, conversei com o homem. Provocava-o. Que­ria que ele repetisse a frase. Nada. Fiz-lhe a pergunta frontal: — “Você não gosta de trabalhar nos sábados?”. Nunca vi um ve­lho de olhar tão límpido. Respondeu: — “Tanto faz”. Até que, num começo de angústia, eu próprio disse: — “O sábado é uma ilusão”. Nem assim respondeu. A frase resvalou por ele, sem contudo feri-lo. Continuou a muda tarefa, misturando estrume.

Ainda hei de fazer uma peça, ou um romance, e lhe darei por título: — O sábado é uma ilusão. E, assim, através dos tem­pos, criança, adolescente, homem feito, velho, tenho acumulado minhas descobertas. Hoje, reconheço que tenho uma dívida séria com várias frases fundamentais. Fiz peças de uma frase. E, aqui, entra em cena o meu amigo Otto Lara Resende.

Nem preciso falar do seu brilho verbal. Ao chegar, há pou­co, da Noruega, ele foi inexcedível. Contou a viagem (nem um mísero bacalhau o reconhecera em Oslo); e nos deslumbrou com o seu gênio histriônico. Era o Carlitos, fazendo com Buster Keaton os números de show em Luzes da ribalta. Só que falta a Charles Chaplin a molecagem mágica do Otto e o supremo vir­tuosismo da frase.

Mas preciso contar justamente a história de uma frase do meu amigo. Volto ao tempo em que Jânio Quadros era nosso presidente. Como se cavou entre nós e Jânio uma distância in­finita, espectral. Foi, se não me engano, o Zé Aparecido que fa­lou ao então presidente sobre o Otto. E este é chamado a Brasília.

Imagino que a conversa há de ter sido algo assim como uma página de Os Maias. Jânio queria o Otto de qualquer maneira. Houve um momento em que, pondo a mão no joelho do Otto, e aproximando a cara, disse: — “Tenho duas fraquezas: — mu­lher bonita e homem inteligente”. Ao dizer isso, Jânio parecia uma paródia de si mesmo. Era como se estivesse imitando a pró­pria voz, o próprio riso, a própria inflexão. Tinha um olho pa­rado, outro móvel. Depois de uma hora, ou duas, sei lá, de con­versa, o Otto declara que vai pensar. Mas estava disposto a não ser assessor da presidência, nem que o laçassem no meio da rua.

Na volta para Minas, parou em Belo Horizonte. Foi seu mal, ou seu bem, não sei. Parou lá e começou a fazer descobertas. Sempre que vai a Minas, ele volta menos mineiro. E quando en­trava numa casa, era recebido com uma saraivada de tias. Coin­cidiu que chovesse; e elas pareciam pingar das goteiras. Tias iné­ditas, jamais suspeitadas. E o Otto, vagando por entre tias, co­meçou a achar tudo muito parecido com um pesadelo humo­rístico.

Agora vem a coincidência. Por motivos teatrais, que não vêm ao caso, tive de ir a Belo Horizonte; e lá o encontrei. O Otto exalava depressão por todas as esquinas de Belo Horizon­te. Ah, esquecia-me de um dado capital: — a sua Mercedes-Benz, que ele trouxera da Europa. Já percebera que o carro suntuário deflagrara o ressentimento de toda uma cidade. Afinal, volta­mos. Claro que eu não ia perder a nababesca carona de Merce­des.

E foi então, no meio da viagem, que assisti ao nascimento de uma de suas frases mais famosas. Não sei se ele a improvi­sou, ou se foi uma inspiração fulminante e abençoada. Só sei que, de repente, Otto vira-se para mim e diz: — “O mineiro só é solidário no câncer”. Não direi que ele pôs mais sociologia numa frase do que Euclides nas seiscentas páginas de Os ser­tões. Mas aquilo se cravou em mim para sempre. Ainda comen­tei, gravemente: “Bonito”. Quando entramos no Rio, eu tinha na cabeça o título de minha nova peça: — Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária.

De vez em quando, vem Hollywood e lança uma nova e apaixonante versão de Moby Dick. E, então, platéias de todo o mundo, de Cingapura a Londres, de Paris a Istambul, revêem a história prodigiosa da baleia branca. Bem me lembro da últi­ma vez em que a vi. E, de quando em quando, sonho com a cena final, de uma beleza desesperadora.

Como se sabe, o comandante mutilado perseguia Moby Dick, por todos os mares, com a demência do seu ódio. A baleia alva de sol e de lua era o sonho de sua carne e de sua alma. Não a es­quecia nunca, porque o ódio é, sabemos, muito mais voluptuo­so do que o amor. Até que, um dia, os dois se encontram. Tudo aconteceu numa progressão fulminante de catástrofe.

Eu estava na platéia, crispado na platéia, quando o arpão fere Moby Dick. A baleia se torce, e retorce, em estertores des­lumbrantes. Quando cai, cava ela mesma o seu abismo de espu­mas delirantes. O capitão possesso abre a boca, mas o grito mor­re no fundo do ser. E, súbito, é arrastado também pelas cordas do arpão. A última imagem do filme mostra o mutilado crava­do no dorso da fera. E lá está o olho de Moby Dick, enorme de espanto e mistério.

Eis o que eu queria dizer: — o olho da baleia encantada levou-me de volta à Aldeia Campista. Era, de novo, a minha in­fância profunda. Como se sabe, qualquer rua tem a diversidade de um elenco de circo. Há de tudo nos seus portões, janelas, quartos, salas, alcovas e varandas. Assim era a rua Alegre. Tinha adúlteras, suicidas, funcionários, arquitetos, santos e canalhas. Como se não bastassem os já citados, morava lá, também, um bandeirinha de futebol.

E o olho cruel de Moby Dick lembrou-me, justamente, do bandeirinha. Ah, como era romântico o velho futebol. Por exem­plo: — o bandeirinha antigo. Hoje, a função está profissionali­zada. E ele deixou de ser um marginal dos clássicos e das pela­das. Na sua vida, alternam o apito e a bandeira. Naquele tempo, não. Ainda não começara a sua ascensão social e econômica.

No fundo da rua, quase esquina de Maxwell, morava um rapaz admirável. Digo admirável porque era bom pai, bom ma­rido, bom filho, bom vizinho. De mais a mais, tinha o gênio do cumprimento. Tirava o chapéu até para desconhecido, até para inimigo. Pois bem. E o nosso herói cultivava uma utopia na vi­da, uma desesperada utopia: — ser bandeirinha de futebol.

Por que escolhera uma função tão humilde, tão irrelevante, só comparável à dos gandulas? Ninguém sabe. Só uma resposta vinda do Alto poderia desvendar o mistério de tamanha vocação. Alta madrugada, ele acordava, banhado em suor; agarrava a mu­lher e a sacudia: —’’ Fulana, ainda hei de ser bandeirinha!’’. Dizia isso de fronte alta como um fanático, como um vidente.

Mas o tempo ia passando e nada. Lá estava a função à sua espera e ninguém o convocava. Pediu a todos os paredros da época. E quem o visse tão empenhado havia de imaginar que o homem estava cavando algum ministério. O sonho já contagiara a mulher, filhos, criada, vizinhos, demais parentes e for­necedores. Perguntavam: — “Quando é o grande dia?”. Exa­lando frustração e impotência, gemia: — “Sei lá, sei lá”.

Um dia, entra em casa, aos berros, atropelando mesas e cadeiras. Anunciou: “Domingo, domingo!”. Era tal a sua exalta­ção que o fazem sentar-se, dão-lhe água da moringa. Por coinci­dência, eu estava lá, brincando com o filho do casal. E, ainda ofegante, contou tudo: — ia ser bandeirinha, no domingo se­guinte, e no jogo Mangueira x Vila. A mulher fizera promessas, simpatia, o diabo. E, agora, atendida nas suas preces, desatou a chorar. Depois, abaixou-se e enxugou a coriza na própria saia.

Note-se que o jogo Mangueira x Vila deflagrava, na época, ódios shakespearianos. E o patético da partida valorizava e dra­matizava a estréia do bandeirinha. A feliz esposa, transida de vai­dade, era invejada pelas irmãs, cunhadas e vizinhas. E eu me lembro do rapaz, chegando do emprego, olhado por toda uma rua. Domingo, bem cedinho, lá estava eu na casa do bandeiri­nha. Ele passava alvaiade no sapato de tênis. Fiquei, de longe, olhando o dono da casa, e o lambendo com a vista.

Comigo presente, houve o almoço às dez e meia da manhã. Lembro-me de que, comendo um ensopadinho de abóbora, di­zia o herói: — “Faço questão que meu filho veja!”. O garoto, meu amigo, de sete anos, baixou a vista no prato. E a mulher, encantada, tinha a graça plena da lua-de-mel. Mais bonito foi quando saímos, todos, com o homem na frente. Lá fui também. Toda a família o acompanhava. Transfigurado, o bandeirinha dava adeus para as escadas.

Não sei se disse que a mulher do bandeira era magrinha. Pelo contrário, ou melhor: — talvez não fosse propriamente gor­da, mas tinha cadeiras abundantes. Era a época em que uma se­nhora, para atravessar uma porta, tinha que se pôr de perfil. Ao lado do marido, porém, ela parecia mais leve, miúda, de qua­dris menos pesados e menos fecundos. Lembro-me do momento em que chegamos ao campo apinhado.

Enchente no campo, bandeiras, bombas, e o clamor de duas torcidas homicidas. Mulheres de leque, homens de ventarola. Ficamos numa extremidade do campo, unidos, solidários, crispados. E começa o jogo. Ao meu lado, o garoto gritava: — “Pa­pai, papai”. No atual Estádio Mário Filho, há uma distância infi­nita, milenar, entre a multidão e o jogo, entre a multidão e o craque. Outrora, o torcedor estava cara a cara com o jogo, com os times, juiz e bandeirinhas. E quando o nosso bandeirinha veio apanhar a bola, junto à cerca, levou uma cusparada na testa (de­via ser na face e foi na testa). Mas não sabíamos que era pouco.

O martírio veio depois. Eu me lembro de tudo. Começou a lavrar o ódio entre os dois times. E, súbito, o nosso bandeiri­nha erra numa marcação. O resto aconteceu juntinho de nós. Um latagão, não sei se do Mangueira, do Vila, veio correndo. Vi a mão aberta e, logo, a bofetada. A bofetada passaria. Pior foi o som. Se não fosse o som, não existiria ofensa, vergonha, dano moral. Uma bofetada muda não humilha ninguém. E, de repente, foi tudo silêncio. Só se ouvia a bofetada. Não me es­quecerei, nunca, nunca, do olho do bandeirinha. Era o mesmo olho de espanto que eu vi, quarenta anos depois, na baleia feri­da. Assim olham as baleias agonizantes, assim olham os bandei­rinhas esbofeteados.

Para mim, há uma nítida relação entre a adúltera e o suici­da. Aquela que trai e aquele que se mata estão fazendo um jul­gamento do mundo. Agora mesmo, enquanto bato estas notas, penso nas infiéis que conheci na minha infância. Deixo de lado os suicidas. Eis o que queria dizer: — há, na minha memória, todo um patético, todo um crispado elenco de adúlteras e ma­ridos enganados.

Dirá alguém que, em nosso tempo, o adultério é o que há de mais intranscendente. Os maridos só matam na primeira pá­gina de O Dia e da Luta Democrática. E essa falta de risco, mis­tério, desafio e fatalismo faz da infidelidade uma pobre e árida experiência de vida. Dizia certa senhora com um desesperado impudor: — “Não sei qual é mais chato, se meu marido, se meu amante”.

Todavia, na rua Alegre, a adúltera era um dos meus espan­tos. Quando uma mulher traía, eu sofria como se fosse o enga­nado, como se fosse o traído. E me lembro de uma menina, em lua-de-mel, que veio morar na rua dos Artistas. Era o que se cha­ma jeitosa de corpo e de rosto. Entre parênteses, foi uma pai­xão dos meus sete anos. E uma coisa me fascinara na garota: — o seu estrabismo.

Era, sim, estrábica. Anos depois, o mundo conheceu e se enamorou de uma estrela norte-americana: — Norma Shearer. Foi o amor de todo o Brasil. E Norma Shearer tinha, justamente, um pungente estrabismo promocional. Tivesse os olhos nor­mais, e seria uma qualquer. Mas Hollywood descobriu que ha­via no seu olhar torto um apelo erótico válido em todos os idio­mas e, por isso, só por isso, deu-lhe uma obsessiva promoção.

A recém-casada foi, em termos naturalmente modestos, a Norma Shearer antes da Norma Shearer. Mas como ia dizendo: — no fim de um mês, dois, solteiros, casados e até velhos tomaram-se de amores pela estrábica. Passei, quantas e quantas vezes, pela sua porta. Na humildade dos meus sete anos, eu acha­va que ninguém jamais gostaria de mim. Não seria amado nun­ca, por nenhuma menina, nenhuma mulher. Mas isso não me fazia sofrer, Eu começava a aprender que ninguém se compara à mulher amada e não possuída.

Como era o marido da estrábica? Não sei. Eis a verdade, não sei. Não me lembro de um gesto, um sorriso, um olhar, do pobre-diabo. Bem. Morava na rua Pereira Nunes, e numa casa de caramanchão (só me lembro do caramanchão), um joalheiro, com feérica loja na cidade. Era riquíssimo, diziam. Lembro-me de que um dos seus filhos andava de sapato de borracha. E o sapato de borracha foi uma das invejas e, ao mesmo tempo, uma das utopias da minha infância.

E o joalheiro, senhor já, grisalho e obeso, apaixonou-se pela estrábica. “Obeso”, disse eu. Era célebre, no bairro, o seu ape­tite. Mandava comprar caranguejos em Ramos, ou em Meriti, e os devorava, na mesa, com sombrio élan. Não sei se os caran­guejos explicavam a barriga, não sei. Mas o homem estava aman­do e toda vizinhança acompanhou maravilhada o romance. De vez em quando, o joalheiro bebia demais. E, então, berrava: — “Dinheiro há! Dinheiro há!”. E, outras vezes, num rompante de ébrio, arrancava do bolso e atirava para o ar cédulas de cem, duzentos mil-réis, quinhentos, um conto.

Lembro-me de uma tarde em que passei, mais uma vez, pela porta da bem-amada. Não vi nada, ou por outra: — ver as gra­des, o pé do tinhorão, as janelas e o mato do jardim, tudo isso era amor. Passo por lá e, na esquina, vejo o joalheiro. Chama: — “Vem cá, menino, vem cá”. Estou diante dele, esperando. O outro tira do bolso uma moeda grande de quatrocentos réis. Começa: — “Quer ganhar isso aqui?”. E diz o resto: — “Vai naquela casa, ali, está vendo? Aquela. Dá isso à moça. Diz que fui eu que mandei”.

(O meu amigo Alfredo C. Machado reclama que, por ve­zes, certas lembranças minhas parecem A vida como ela é... . Eu me justifico facilmente. Eis a verdade: todos os sonhos da carne e da alma estão em A vida como ela é....)

Embolsei os quatrocentos réis e fui, com o coração aos ar­rancos, bater na casa da estrábica. Levava um embrulhinho, en­rolado com cordão dourado. Depois se soube que era uma cai­xinha de veludo, com um colar de pérolas. Não imitação, mas verdadeiras, pérolas verdadeiras. Bati e a própria abriu a porta. Disse-lhe: — “Aquele moço mandou”. Entreguei o embrulhi­nho e saí correndo em desespero.

O joalheiro ainda me chamou. Com uma sensação de cri­me, atravessei correndo a rua, e fui me enfiar em casa, numa dessas angústias totais. Eu me sentia culpado e não sabia de quê. Eis o que aconteceu: a estrábica abriu o embrulhinho, viu as pérolas e leu o bilhetinho que ia junto. De longe, o joalheiro tirava-lhe o chapéu. E, então, a menina sai de casa, vem falar com o homem. Ele não tem tempo de dizer uma palavra. Dois ou três que iam passando, e senhoras das janelas vizinhas, vi­ram tudo. Usando o colar, como um relho, a menina bateu-lhe na cara. E não parou. Sem um gesto, sem uma palavra, ele to­mou aquela surra de pérolas.

Depois, num passo firme, o perfil empinado, e mais estrá­bica do que nunca, ela voltou para casa. E, então, o joalheiro põe-se de cócoras na calçada e, penosamente, com uma angús­tia de míope, começa a catar as pérolas espalhadas. A história devia acabar aí e eu daria tudo para que acabasse aí. Mas conti­nuou. No dia seguinte, a menina junta um grupo de vizinhas no portão e conta, de rosto duro: — “Meu marido me chamou de burra porque eu não aceitei o colar. Quero que vocês sejam testemunhas. Me chamou de burra”. Dois ou três dias depois, apareceu de colar no pescoço. Chamou as mesmas vizinhas e gabava as pérolas: — “Verdadeiras! Verdadeiras!”. Era o come­ço. Logo a rua começou a chamá-la de cachorra.

Vocês se lembra de que, em Hamlet, acontece o seguinte: — de repente, o palco shakespeariano é invadido por um ban­do de comediantes. E os recém-chegados fazem piruetas, dão saltos mortais, dançam e declamam. A platéia fica atônita de be­leza. É o teatro dentro do teatro, a poesia dentro da poesia, o sonho dentro do sonho.

Eis o que eu queria dizer: — nas velhas redações subde­senvolvidas, havia também uma simultaneidade igualmente má­gica e igualmente fascinante. De um lado tínhamos os funcio­nários da casa, redatores, repórteres, contínuos; de outro lado, todo um elenco de visitantes estranhíssimos. Essas caras, que não paravam de entrar, de sair, tornavam a vida do jornal cáli­da como um sonho.

Quando A Manhã estava na rua Treze de Maio, vivia cheia de políticos, atrizes, camelôs, aleijados, arquitetos e prostitu­tas. Na redação de hoje, esta troupe seria inviável. A visita é es­cassa e filtrada. Ferozmente seletiva, a portaria barra o pobre-diabo, o enxota, da maneira mais ignominiosa.

Outrora era possível um demente entrar numa redação e lá permanecer como um funcionário. Lembro-me de uma ve­lha que invadiu A Manhã e berrava: — “Eu sou a consciência da República”. E o pior é que ninguém se espantava. Um contí­nuo passou uma hora de grave conversa com a louca. Ela não dizia outra coisa: — “Eu sou a consciência da República”. E os mutilados, e os portadores de doenças hediondas? De vez em quando, alguém vinha me cochichar: — “Aquele é leproso”.

E, assim como na peça shakespeariana, existiam duas vi­das, duas realidades na redação antiga. Certa vez, foi lá o professor Mozart. Dizia-se profeta e queria fazer milagres, apenas. De um dia para o outro, a redação virou um pátio de milagres. Paralíticos, cegos, dementes, sujeitos que ardiam em chagas. Lembro-me de uma criança que, de repente, começou a cho­rar, não lágrimas, mas pus. E o professor uivava para os paralíti­cos: — “Anda, anda! Vamos, anda!”. Eu estava lá, aterrado. E, de repente, o entrevado caminhou. Deu um passo, dois, três. Vendo o próprio milagre, o professor começou a chorar.

Numa redação, repito, entravam os tipos humanos mais in­verossímeis. Até esquimó apareceu e, uma tarde, entro e quem vejo eu, em cima de uma mesa, apavorado com as caras que o cercavam? Um pingüim. Vinha do pólo, não sei de onde e es­tava lá. Mas como eu ia dizendo: havia uma figura obrigatória no velho jornal: — o canalha.

Até hoje, não sei por que o jornal fascinava os pulhas da velha geração. Eram escroques, punguistas, cáftens, gatunos. To­dos os dias iam para a redação e se tornavam amigos, íntimos, de todos nós. De vez em quando, sumia uma capa, um relógio e já se sabia: — era um deles. E coisa curiosa. Aparentemente, os canalhas eram semelhantes, em tudo, ao homem de bem; ou por outra: — eu diria mesmo que, via de regra, eram mais do­ces que o homem de bem.

Três ou quatro não saíam de A Manhã. E quando meu pai fundou a Crítica, outros três ou quatro passavam o dia e a noi­te na Crítica. Um dia, depois do almoço, vou para a redação. Na porta encontrei o canalha. Era ali na rua do Carmo, quase esquina de Sete. Março de 1930. Getúlio, o suicida, já conspira­va. Roberto morrera havia dois meses. E quando eu ria pensava em Roberto. Tinha vergonha de não sofrer como devia.

O canalha (um mulato dionisíaco) pergunta: — “Já sabe?”. Paro: — “O quê?”. E ele: — “Seu pai está doente”. Sobe comi­go e vem dizendo: — “Sentiu-se mal depois do almoço”. Sinto no outro uma euforia cruel. Ligo para casa. Dizem: — “Comeu e passou mal. O Sílvio Moniz está aqui”. Desligo e começo a pensar na morte.

Venho de táxi para casa. Quando era menino, eu vivia pen­sando: — “Se alguém morrer na minha família, me mato”. Nas minhas meditações no fundo do quintal (sempre junto ao tan­que de roupa), não queria acreditar na morte dos meus pais ou dos meus irmãos. Os outros morriam e nós jamais. Mas, se alguém tivesse de morrer, que fosse eu. Na morte de Roberto, faltou-me o fervor do menino. Pensei muitas vezes: — “Devia me matar”.

Sempre achei e, o que é pior, ainda acho que cada um de nós tem, na vida, três ou quatro seres decisivos. Se um deles morre, não devemos sobreviver, eis a verdade, não devemos sobreviver. A vida continua, mentira. Morremos com o ser ama­do. E se o outro ser amado morre, novamente morremos. Não há pior degradação do que viver pelo hábito de viver, pelo ví­cio de viver, pelo desespero de viver.

Morávamos então na rua Joaquim Nabuco. O dr. Sílvio Moniz, clínico que nos fora recomendado por Edmundo Bitten­court, já saíra. Alguém me disse: “Derrame”. Subo para ver meu pai. Na morte de Roberto, em plena madrugada, meu pai repe­tia: — “Estou com sono. Meu filho morreu. Eu não devia ter sono”. E, porque teve sono, ele se dilacerou de vergonha e de pena. E amou mais o filho, porque teve sono.

Meu pai estava tão quieto, e era tão manso, tão doce o seu coma. Também o amei mais porque eu não estava sofrendo, e não sentia a compaixão que queria sentir. Não voltei para o jor­nal. Se meu pai morresse, seria um abalo na cidade. Os jornais dariam a metade da primeira página. Ele era um dos maiores no­mes de sua época. Se ele morresse, toda a cidade desceria para acompanhar o enterro. E só se falaria na sua morte. O retrato do meu pai em todos os jornais. Mil carros acompanhando. Melo Viana, o vice-presidente, fora ao enterro de Roberto; com mais razão, ao do meu pai.

Todos os filhos se revezavam na cabeceira do meu pai. Lembro-me de que, na primeira noite, saí um momento e fui caminhar um pouco na calçada, diante da casa. Não queria ter sono. E ouvia a voz do meu pai: — “Estou com sono. Meu filho morreu. Eu não devia ter sono”. E o sono lhe parecia uma des­feita à própria dor ou ao jovem morto. Eu também não queria ter sono. Na calçada, olhei a nossa casa. Na treva, e tão branca, a casa era uma grande máscara exânime. Na treva.

Já disse que sempre um de nós, durante a madrugada, ficava junto do meu pai. Não vi, jamais, uma agonia tão mansa. Ele não sofreu em momento nenhum, como se finasse num doce e consentido martírio. Ou por outra: — só o vi crispar-se uma vez. Foi quando Sílvio Moniz fez uma punção na espinha. O mé­dico avisara: — “Líquido róseo, mau sinal”. A agulhada feriu meu pai e tão fundo. Gemeu como um menino.

Sílvio Moniz ergueu, contra a luz, a seringa. Vimos, no vi­dro, o líquido róseo e translúcido. Contei que, esperando a mi­nha hora, fora andar um pouco na calçada, de uma esquina a outra esquina. E parei um momento, olhando a casa alta e bran­ca. E ela, assim branca e diáfana, era uma maravilhosa imitação da máscara humana.

(Até hoje, não sei por que, de repente, a casa me dava a sensação de grande, e alvo, e inescrutável rosto.) Entrei, por­que chegara a minha hora. Subi a pequena rampa que dava pa­ra a garagem. E comecei a ter medo da casa. Hoje, nós mora­mos tão pouco e nos mudamos tanto. O sujeito passa seis meses, um ano no apartamento. Outrora, a casa era para sempre, co­mo um túmulo. Várias gerações passavam por ela, e nela viviam, amavam e morriam.

Sim, seus quartos e salas eram cômodos metafísicos, povoa­dos de invisíveis agonias, velórios e bodas. A nossa casa já ma­tara Roberto; e, agora, meu pai começava a morrer. Mas, como ia dizendo: — entrei e comecei a subir a primeira escada. E, de repente, veio a fome.

Lembrei-me de que me ficara, da morte de minha irmã Dorinha, uma mágoa que ainda me fere. Era uma menina de oito meses: e, de repente, finara-se na mais leve, na mais impercep­tível das agonias. Não havia então a capelinha. Armou-se o ve­lório de anjo na sala de visitas. Rodei, pela casa, até alta madru­gada. E, de repente, chegou a fome.

Eu achava que não devia comer. Tive pena, remorso, ver­gonha da fome. Fui beber água para enganar o estômago. E vi­nha para a sala espiar o sono dos círios. Saía da sala e ficava, um momento, no portão. As janelas, portas abertas, as coroas chegando. De bonde, as pessoas viam as quatro chamas e sa­biam que ali morrera alguém. Mas não imaginavam que era uma menina e que não há nada mais casto que o velório de um anjo.

Dentro da noite, ouvi o primeiro canto de galo. O primei­ro canto de galo errante da noite. Um crioulo, que ia passando, parou e pergunta: — “Quem morreu aí’?”. E eu: — “Uma me­nina”. O homem se foi. Mas eu não pensava na morte. Lembrava-me do recreio da escola pública, na rua Alegre. Eu ficava circu­lando, pelo pátio, e olhando as merendas das outras crianças. E nunca me esqueci — até hoje me lembro — de um sanduíche de ovo. A mãe fora levar o sanduíche ao filho. E a gema ainda escorria do pão como uma baba amarela. Tive uma inveja e tão sofrida, e tão dorida.

Junto ao portão, era no sanduíche que eu pensava. Pão com ovo. Entrei em casa. Minha irmã era, entre os círios, uma bele­za em cera. Atravessei a sala, passei pela copa e entrei na cozi­nha. Em cima da mesa, vi um prato de sonhos. Cada sonho ti­nha uma franja de mel. Por um momento, resisti em desespero. Sonho, não. Se ainda fosse comida de sal. Mas não mel, não açú­car. E não resisti. Comi o primeiro sonho, e com que delícia mortal. Outro, não. E apanho o seguinte: como depressa. Não quero que alguém, entrando ali, seja testemunha da minha fo­me. Comi dois sonhos, sobraram outros dois. Nesses dois, não toco. São sagrados.

Muitos e muitos anos depois, vou subindo para o quarto do meu pai, e paro, um momento, na copa. E me crispei de no­vo, atormentado pela fome antiga. Penso se o próprio sentimen­to de morte não deflagra essa vontade, brutal e fatal, de comer. Comecei a me justificar: — há uma fome da angústia, uma fo­me da solidão, uma fome do medo. Não. Do medo, não. O me­do tira a fome. A angústia, sim. A angústia dá ao homem uma fome de miserando. Mas resisti a mim mesmo. “Não vou comer nada”, decido. E subi a outra escada, tenso como se aca­basse de vencer uma tentação hedionda. No quarto, pergunto a Mário Filho: — “Como vai papai?”. Mário estava maravilha­do: — “Abriu os olhos e sorriu para mim”. Digo: — “Ótimo sinal! Ótimo!”. E, então, Mário saiu para dormir no quarto ao lado. Sentei-me numa extremidade da cama e fiquei olhando pa­pai. Fumava para enganar a fome. Era, sim, a fome do desespe­ro, da morte.

Acabei me levantando e vim para a varanda. Se meu pai abri­ra os olhos, reconhecera Mário e lhe sorrira, estaria, talvez, acor­dando do coma. Talvez não morresse. E, se morresse, teria uma coroa do presidente da República. Brigara com Washington Luís, mas fazia a campanha do Júlio Prestes. Washington Luís man­daria uma coroa. De Júlio Prestes, era certo. De Washington Luís, talvez.

E veio o sono, cruel, voluptuoso, mortal. Vontade de dor­mir como de morrer. Saí da varanda. Ouvia a voz do meu pai: — “Tenho sono. Meu filho morreu. Não posso ter sono”. Eu não queria dormir, nem podia dormir. Tinha que tomar conta do meu pai, tão indefeso e tão menino em seu coma. Ninguém mais frá­gil do que ele, ninguém mais abandonado, ninguém mais órfão. Apenas um rosto, um rosto pousado na fronha, e não crispado.

Mas eu daria tudo para dormir. E, de repente, o importan­te não era a morte, não era a agonia, não era a apaixonada sua­vidade de sua agonia. Era o sono. Caminhei no corredor e só pensava no sono. Minha vontade era chorar de sono, sair gri­tando de sono. Quantas horas faltam para que outro venha me substituir? Como é miserável, vil e triste ter sono diante da mor­te, não mais que sono.

Passo água no rosto. Odeio minha vigília. O sono é uma embriaguez. Sento-me na cama, e logo me deito, ao lado do meu pai. Penso: “Vou beijar a mão de papai”. Beijo não a mão, mas o rosto de meu pai.

 

                                                                                            Nelson Rodrigues

 

 

                      

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