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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A História de Anita / Corin Tellado
A História de Anita / Corin Tellado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A História de Anita

 

Um trauma de Infância confundindo o coração de uma jovem mulher.

Abandonada pelo pai quando tinha apenas oito anos, Anita se envolve com Carlos Guzmán, um homem maduro, cujo único prazer era namorar garotas ingênuas, a fim de reviver os momento inesquecíveis que tivera na juventude. Por sor­te, Basil, um jovem e atraente jor­nalista, aparece para abrir-lhe os olhos e dar-lhe o que Carlos jamais poderia lhe proporcionar: fidelida­de, amor,  desejo!

 

Quando comecei a escrever esta narrativa, tinha apenas oito anos, mas já naquela época me dava conta de que vivia uma realidade terrível. Foi mamãe, pessoalmente, quem me abriu os olhos para isso, sem procurar dissimular nada. Aliás, esse é um hábito carac­terístico de minha mãe: agora, que sou mais velha, mesmo antes, quando era criança, ela jamais tentou me iludir.

Mamãe é uma pessoa fantástica* Mas fui percebendo isso pouco a pouco, com o decorrer do tempo. Sei que passou por dificulda­des indescritíveis e que lutou por mim desesperadamente. Mas acho que agora ela está, por fim, começando a viver. É tão jovem ain­da... E eu faria tudo o que pudesse para vê-la feliz, recebendo o amor e o respeito que merece. Entretanto, isso é algo que só diz respeito a ela mesma: não devo, nem posso, invadir sua privacidade.

Reconheço, ao ler meus antigos rascunhos, que com oito anos, além dos inúmeros erros de ortografia, minha letra era infantil e minha narrativa um tanto quanto confusa.

De qualquer maneira, ao voltar a lê-los, sinto que estão carrega­dos de humanidade, dor e franqueza. Por isso, vou conservá-los na essência, tal como os fiz. A riqueza do que escrevi está no con­teúdo, não na forma infantil de me expressar.

A lembrança mais antiga que guardo de meu pai é de alguém fabuloso. Um ídolo de ouro que, de repente, se converteu em bar­ro. Devo tê-lo adorado muito, embora, pelo que sei, ele não tenha correspondido a essa adoração...

Era frequente ouvir discussões em casa e o som forte de portas batidas com violência. Mamãe vivia com os olhos marejados de lágrimas. E eu, pobre criança, não entendia nada. Às vezes, passa­va semanas sem ver meu pai.

Certo dia, fatídico dia para minha vida de apenas oito anos, ma­mãe pediu-me:

— Sente-se, Anita.

Reparei que naquele dia ela não havia chorado. Mas estava séria demais. Apesar de minha pouca idade, pude captar na aparência de mamãe a expressão de vários sentimentos: firmeza, resignação, dor  e — por que não dizer? — paz. Sim, parecia-me, enfim, perce­ber nela alguma forma de paz!

  • Anita, tenho que lhe contar unia coisa muito importante. Sei que fará você sofrer, mas é preciso que saiba agora, filha.

  • O quê, mamãe?

  • Papai se foi. Ele nos deixou, qticridu.

    Devo tê-la olhado muito espantada, pois acrescentou com extre­ma ternura:

    —        Seu pai e eu não nos amamos mais, Anita. E ele decidiu rei­ niciar sua vida bem longe daqui.

    Ela não me disse onde ficava aquele "aqui". Mas, também, para quê? Não me interessei mais em saber o paradeiro dele. Aos pou­cos, a distância física foi se tornando mais densa.

    Hoje estou com quase vinte anos c desde os oito muitas e muitas coisas importantes aconteceram em minha vida. Mas, como tenho a intenção de contar tudo, devo começar por esse momento cru­cial, por esse dia que marcou ,meu destino, meu comportamento e meu futuro.

    —        Sabe, Anita, sei o quanto você amava seu pai e acho que deve continuar a amá-lo. Mas temo que não voltemos a vê-lo, meu bem.

    Meu Deus! Aquilo para mim era inédito, incrível, desolador! Mamãe deve ter percebido meu sofrimento, pois tentou consolar-me, explican­do-me razões, motivos, fora do alcance de minha pouca idade...

    —        Filhinha, seu pai e eu nos casamos jovens demais e... o amor pode acabar, sabe? E, quando acaba, a convivência fica difícil. Por isso, é melhor uma separação, para evitar problemas maiores. Sei que você ainda não entende tudo o que estou lhe dizendo. Mas achei melhor falar: não quero que fique iludida, esperando a cada dia que seu pai chegue, nem que o considere desleal por não voltar. Por isso, não quero calar-me nem mentir para você. Minha cons­ ciência não me deixaria tranquila, se agisse assim.

    Quantos anos teria mamãe nessa época? Mais ou menos vinte e cinco. Ho jovem... Mas isso é o que acho agora. Naquele mo­mento não pensava nela, não. Estava voltada apenas para mim, para minha dor, sentindo a falta de meu pai e sabendo que não ia mais voltar a vê-lo. Hoje, sei também que ele retribuía o meu amor na mesma intensidade. Posso jurar, entretanto, que eu o adorava mais do que tudo no mundo.

    Meu pai trabalhava com comércio e precisava viajar sempre. Ausentava-se muito, portanto. Mas bem mais do que eu supunha que fosse necessário... Faltava aos seus deveres de marido, que eram quase maiores que os de pai.

    Mamãe continuou tentando fazer-me entender:

  • Você não pode viver enganada, Anita, por isso não quero que tenha má impressão de um fato que é natural ou, pelo menos, o foi para nós dois. Seu pai e eu decidimos nos separar de comum acordo.

  • Mas... e eu? — Nesse momento, meu egoísmo falava mais alto: era apenas uma criança!

    Mamãe passou os dedos pelos meus cabelos, num gesto de gran­de carinho.

  • Você ficará comigo, querida. Seu pai embarcou ontem para O exterior.

  • Sozinho?! — Dava-me medo pensar em meu pai andando só pelo mundo. Quanta ingenuidade!

  • Claro que não, Anita. Partiu acompanhado de outra mulher.

  • E você, mamãe?

  • Eu ficarei com você, filhinha. Estop procurando trabalho e espero encontrar algo. Assim que conseguir, tudo ficará como antes.

  • Mas, sem papai! — gritei, desesperada.

  • Claro, filha, sem ele. É melhor que você saiba agora, como já expliquei. Seria horrível se eu tivesse que dizer a cada dia: "Pa­pai chegará amanhã", e ele não chegasse nunca. Não quero mentir para você, Anita. Sei que hoje ainda não tem capacidade de me entender bem, mas algum dia compreenderá por que estou sendo tão sincera agora.

    Abracei-me a mamãe, soluçando. Mas não sei se, fazendo isso, procurava consolo nela para minha dor, pela perda de papai, ou se a culpava por havê-lo perdido. A verdade é que eu chorava co­mo louca e mamãe me consolava sem resultado. Parecia que nada, ninguém, poderia fechar uma ferida tão profunda...

    Tudo o que conseguia entender na confusão das minhas emo­ções era que papai partira com outro amor e havia me abandona­do, justo a mim, que tanto o amava e o admirava. E todo o consolo que mamãe tentava me dar não diminuía minha dor, não me fazia nenhum bem e, no fundo, eu a odiava tanto, naquele momento, quanto passei a admirá-la depois.

    Vivíamos numa grande cidade, capital de uma província. Eu es­tudava num colégio particular muito caro e essa foi a primeira mu­dança. Mamãe tirou-me dali: primeiro, porque não ficava bem, pois "um pai havia abandonado sua família"; segundo, porque o salá­rio dela não dava para tal luxo.

    Outras mudanças vieram, em seguida: tivemos que deixar o belo apartamento em que morávamos, seis meses depois, por falta de pagamento.

    Ah, mas não quero contar sobre nossa penúria, pois não é esse meu objetivo. Talvez, quando criança, até gostasse disso, mas hoje tudo é diferente. Agora sou eu quem rnuis se interessa pela narrati­va, quem a ocupa, quem a torna necessária, quem a vive, enfim.

    Entretanto, não posso deixar de reconhecer que aquele trágico momento de minha vida fez-mc taciturna c introvertida. Passei mui­tas horas çompletamente só, com minha dor. Estudava numa esco­la estadual em um bairro operário.

    Algum tempo depois, mamãe encontrou trabalho como funcio­nária de um conglomerado de grandes armazéns e começamos a viver melhor. Tirou-me da escola estadual e colocou-me num mo­desto colégio particular, de freiras. Mas eu não mudei nada: conti­nuava silenciosa, quase muda.

    Mamãe ia me buscar toda noite e dcsdobrava-se em contar fatos que pudessem me alegrar, mas sem sucesso. No entanto, jamais fa­lou sobre papai ou sequer tocou no seu nome.

    Meu pai foi cruel, pois nunca nos enviou noticias. Nunca falou de sua vida, de seu paradeiro, do carinho que parecia haver tido por mim e de que reconhecia minha adoração por ele.

    Em silêncio, comecei a odiar a ambos: meu pai e minha mãe.

    Quando estava com doze anos, mamãe melhorou no trabalho. Deixamos o bairro humilde e passamos a viver num gracioso sótão que ela mesma decorou. Nem por isso me senti melhor.

    A comunicação com mamãe era quase nula, apesar de reconhe­cer, hoje, que ela se esforçava muito. O problema era meu.

    Logo que mudamos para aquele sótão encantador, bem decora­do, eu, que já tinha uma certa malícia, achei que minha mãe talvez tivesse um amante rico que a sustentasse. Mas não. Assim que fui percebendo melhor a realidade, descobri o que havia acontecido: mamãe passara a ser chefe de seção em um dos grandes armazéns e seu salário lhe permitia uma vida mais confortável. Além disso, comprara os móveis por um preço menor, exatamente por ser em­pregada do grande armazém. Só que eu não sabia nada disso, no começo. Daí minhas conclusões maldosas.

    Uma menina de doze anos sabe coisas demais para sua idade, além de escutar outras, e entende quase tudo ao contrário, é a con­clusão a que chego hoje, passados vários anos.

    Fui uma boa estudante, sem suspensões ou reprovações. Mas esse sucesso, em parte, devia-se ao fato de não cultivar amigos. Era dema­siado introvertida, hermética, individualista. Vivia para os estudos.

    Mamãe me dava presentes quando lhe levava as notas no final do ano, mas eu nunca lhe demonstrava agradecimento, naquela época.

    Para que entendam melhor essa minha reação tão injusta, é ne­cessário explicar alguns fatos. Minha mãe era jovem e bela. Esbelta, gentil e, pelo cargo que ocupava, precisava vestir-se com elegância.

    Eu a admirava em silêncio e creio que a admirava tanto quanto a odiava por não ter sabido reter papai.

    De qualquer maneira, ou alheia ou, pelo contrário, muito cons­ciente de meu hermetismo, ela costumava dizer:

    —        Você cursará a Universidade, Anita. Será uma advogada ou médica, o que você quiser. Lutarei, nem que tenha que morrer, pa­ra que você consiga isso, querida.

    Mas nunca pensei em entrar para a Universidade. Quando ter­minasse o segundo grau, queria trabalhar, viver ao meu modo, ir embora... ficar só...  

    Além disso, continuava sem amigas, o que parecia não me inco­modar. Mas jamais deixei de sentir a falta de meu pai. Esse pai que nos leva no carro, que nos dá conselhos, que nos conta histórias... que nos senta em seus joelhos...

    Decididamente, mamãe não me bastava, não preenchia toda mi­nha carência de afeto.

    Eu nem sequer me dava conta do quanto ela se sacrificava por mim. Nosso sótão transformou-se num lar bastante acolhedor, mas eu não o apreciava, como não dava a menor importância para os livros que ela me trazia, nem para os vestidos ou os sapatos...

    Nada me empolgava e meu ânimo continuava o mesmo, sempre. Aos quinze anos, ainda não tinha amigas.

    Certo dia, mamãe me perguntou:

  • Você não tem amigas, Anita?

  • Não.

  • E por quê?! Não entendo...

  • Gosto de ficar sozinha...

  • A solidão não faz bem, Anita.

  • Pois eu gosto...

    — Dentro de dois anos você irá para a Universidade e... Brusca, eu a interrompi;

    —  Nunca irei para a Universidade!

    Mamãe olhou-me espantada. Não esperava aquela reação de mi­nha parte e tentou me convencer:

    —        Mas, filha, por quê? Minha situação nos grandes armazéns está cada vez melhor. Ganho bom salário e posso ajudá-la...

    Mas eu não queria a ajuda dela. E isso apesar de, até certo pon­to, reconhecer que mamãe não podia ser mais carinhosa comigo do que já era. Chegava a extremos tlc achar aquela atitude incon­cebível para uma mulher de sua idade e beleza. Mas lá vinha, atormentando-me o pensamento, a eterna dúvida: por que ela não havia retido meu pai? Por quê?

    —        Olhe, Anita querida, preciso que entenda. Não é necessário que você trabalhe. Esta casa, embora seja um sótão, é um bom lar, cálido, cheio de amor. Você sai comigo, sim. Às vezes, aos domin­ gos, vamos ao cinema, mas... Isso ó suficiente? Você já tem idade para perceber coisas...

    Mas eu, desesperada, como se tivesse aindu oito anos, gritei-lhe, acusadora:

    —        Por que deixou que papai se fosse?

    Meu Deus! Sabia que não devia reprová-la, mas não me contive.

  • Seu pai não me amava, Anita — ela disse, com seriedade. — E sem amor a convivência é horrível...

  • Mas você o ama.

  • Eu?

  • Não é verdade? Não o ama?

    Bem, se ela me dissesse que sim, que o amava, eu a teria odiado ainda mais por não ter sabido retê-lo.

  • Anita — respondeu-me mamãe, entretanto, com uma ternu­ra que hoje entendo, mas não entendia naquele momento.

    — Teu pai tem outra família, outros filhos...

  • Filhos?

  • Sim, filhos — confirmou ela, tranquila.

  • Onde?

  • No Brasil. É lá que ele vive hoje, Anita.

  • Com outra mulher...

  • E dois filhos gémeos, querida.

  • E como você sabe tudo isso? — perguntei, cheia de descon­fiança.

    Mamãe fez um gesto vago, mas deu uma resposta bastante ra­zoável:

  • Sempre há amigos que vão, vêm e dão notícias,..

  • E você? — indaguei altiva, cheia de suspeitas.

  • Eu... o quê?

  • Você... não tem nenhum amigo?

    Finalmente, minha mãe entendeu aonde eu queria chegar e me olhou reprovadora.

    —        Não, Anita, não tenho. Dediquei minha vida a cuidar de vo­cê. E, se não faço melhor, é porque minhas ocupações não permi­tem. Mas gostaria que pudesse ver em mim uma amiga.

    Não a via ainda como tal. Penso até que a odiava. E ela, com seu tato característico, não insistiu mais.

    Em agosto estava combinado que iríamos passar uma tempora­da em uma praia de Alicante. Odiei aquela praia e as amigas que se reuniam com mamãe. O fato de ela estar divorciada talvez já não tivesse tanta importância... o que doía era não ter meu pai. Por isso, eu não a perdoava.

    Desculpem se insisto tanto nessa ideia, mas é que foi esse o pro­blema grave que influiu tanto, mais tarde, na minha vida de mu­lher. Sim, porque não iria permanecer sempre uma adolescente. Mas a verdade é que cresci com uma espécie de síndrome de falta de pai, coisa que não conseguia perdoar nunca, embora hoje isso já pouco ou nada importe.

    Na escola particular onde eu estudava, mamãe ia me buscar, e ninguém perguntava pelo seu marido. Aquilo que na época da se­paração parecera uma falta total de moralidade, com o tempo foi se convertendo em algo normal para os outros. Eu é que não en­xergava assim, porque emocionalmente estava marcada demais....

    Aos dezesseis anos ainda continuava fechada em meu quarto, ou­vindo música, lendo, estudando, ocupando-me com o que quer que fosse, menos em buscar comunicação com mamãe.

    Pobre mamãe! Como não terá sofrido com minha atitude fecha­da e fria...

    Mas ela aprendeu a suportar-me. Todos os domingos convidava-me para sair, mas era raro eu aceitar. Por isso, ela acabava ficando em casa e assistindo à televisão.

    De repente, um fato novo aconteceu em minha vida. Naquele in­verno conheci Pepita. Era uma aluna nova no colégio e parecia mui­to aberta, extrovertida. Senti-me logo atraída por sua personalidade marcante.

    Pepita era uma garota de outra cidade, cujo pai, médico, havia sido contratado por um hospital perto de nosso colégio. Por isso ela entrou no meu curso e ficamos, inclusive, partilhando a mesma carteira na sala de aula.

  • Chamo-me Pepita — ela apresentou-se. — E quero me for­mar em Medicina.

  • Ah...

  • E você? O que quer ser?

  • Funcionária em alguma firma.

    —        Funcionária?! Pois me disseram que você estuda como louca...

  •  Mas não pretendo ir além do segundo grau.

  •  Por quê? Seus pais não podem pagar seus estudos? Mas se for isso, não é problema. Você pode recorrer a uma bolsa de estudos.

    —        Não é isso. Quero trabalhar.

    Estranho. Senti que com Pepita podia l alar livremente, o que para mim era uma novidade.

    Antes de continuar, preciso comentar muitas coisas que pode­riam passar em branco, mas que talvez valha a pena mencionar, já que se relacionam com a mesma enorme saudade de meu pai.

    Pepita, contra todos os empecilhos e, apesar de meu silêncio, in­troversão e(hermetismo, tornou-se minha amiga. Exatamente. Tal­vez porque não conhecesse mais ninguém ainda, ou por ser mais viva do que eu (embora não mais inteligente), agarrou-se a mim como um carrapato. A todo momento chamava-me pelo telefone. E mamãe me dizia, num tom feliz:

    —        Que bom! Você tem uma amiga, Filha!

    Eu costumava murmurar um "Bah!" e continuava em silêncio, fazendo minhas próprias coisas.

    Um dia Pepita convidou-tne para ir à sua casa. Como era linda! Enorme, bem decorada. Estávamos sozinhas e ela me confidenciou:

  • Sabe? Minha mãe não está mais casada com meu pai.

  • Quê?!

  • Esse senhor tão simpático que você vê por aí, Anita, é meu padrasto.

    Eu, furiosa, comentei:

  • Então é o segundo marido de sua mãe?

  • Claro. E daí? O que tem de mais?

  • Você o ama? — perguntei, ainda com a voz um tanto amarga.

  • Claro, Anita!

  • E seu verdadeiro pai, Pepita? O que é dele?

  • Eu o vejo nos fins de semana, Ani. Está casado com uma mulher maravilhosa e que também é muito simpática.

    Por mais que me esforçasse, não conseguia entender. Aquela con­fusão, para mim, era o cúmulo. E Pepita acrescentou, como se nem tivesse percebido o quanto eu estava perplexa:

  • Papai me dá uma mesada toda semana. Você nem imagina as coisas que posso fazer com esse dinheiro!

  • Mas você não se importa mesmo que sua mãe esteja casada com um homem que não é seu pai e que seu verdadeiro pai tenha se casado com uma mulher que não é sua mãe?

  • Claro que não! Talvez algum dia faça o mesmo... se não gos­tar do marido que escolher...

    É...Já tínhamos dezesseis anos e sabíamos coisas demais... Mas eu começava a entender que minha situação afinal de contas era melhor que a de Pepita, porque não tinha um segundo pai. O que me faltava era o primeiro. E que falta me fazia... Isso eu não con­seguia esquecer.

    Um dia Pepita me convidou:

  • _ Amanhã não preciso ir visitar meu pai e a esposa, pois vão passear nas montanhas. Que tal sairmos sozinhas por aí?

    —        Nunca saí sozinha, Pepi.

    Ela fez um gesto de descaso, levantando os ombros e comentou:

    —        Pois olhe que já temos bastante idade para isso... Por acaso você já se olhou no espelho?

    Que me lembrasse, poucas vezes ou quase nunca. De forma apreciativa ou analítica, jamais.

  • Não da maneira que você imagina, Pepi.

  • Então, está na hora de usar um espelho. Já passou da hora! Admire-se, Anita!                       

    Fiquei em frente do espelho de seu quarto. E olhei-me, por que não dizer, curiosa. Vi uma figura esbelta, frágil, ruiva, com o cor­po bem formado, quase adulto. Dois olhos azuis enormes refletiam-se no espelho, um pouco assustados com o que viam.

    —        Que tal? — perguntou-me Pepita que, agora sei, já tivera suas primeiras experiências amorosas.

  •  Bem...

    —        Você é muito bonita, menina!

  • Bah! — Foi meu comentário incrédulo.

  • Credo! Você não se importa com isso?

  • Ora, nem tanto assim...

  • Você parece uma boba... — Pepita observou. E, baixando o tom de voz, confidenciou: — Sei de uma discoteca... Vamos?

    Respondi que não iria. Não queria me iniciar como mulher. Que­ria continuar sendo a menina de oito anos, com o mesmo ressenti­mento, a mesma autopiedade daquela época. E com uma dor autêntica. Meu pai não se havia apagado de meu cérebro, de mi­nha lembrança, de meu coração. Mas Pepita não sabia nada disso. E era feliz, à sua maneira.

  • Sabe... - contou-me confidencialmente. — Paço me  Espera.

  • Paco?!

  • É um rapaz, Anita!

  • Você vai sair com um rapaz?

    —        E o que você esperava, .garota? Que saísse com crianças?, Eu não quis ir. Simplesmente não podia. Mas Pepita foi além e acrescentou com a mesma voz sussurrante:

    —        Já dormi com ele... E você não tem ideia de como foi bom... Aquilo para mim foi chocante! Não quis mais ouvi-la.            Depois disso, em meu mutismo, rcfugiei-me em casa. E como já estávamos de férias, mamãe me abordou, estranhando:

  • E sua amiga, Anita? Não vão mais se ver?

  • Não.

  • Mas... por quê?

  • Não gosto— respondi, seca.

  • E do que é que você gosta?

  •        Nada. Quero dizer, quando, no próximo ano, eu terminar o segundo grau, gostaria que você me indicasse um trabalho.

    Mamãe olhou-me longamente, com a expressão dolorida:

  • Você não vai cursar a Universidade, Anita?

  • Não, já disse.

  • Está bem certa disso?

  • Sim, claro que estou.

  • Quer dizer que todo o meu esforço não adiantou muito...

  • Nunca pedi a você que se esforçasse por isso.

    Sei que estava sendo muito injusta. Mas naquele momento julgava-me com razão.

  • Está bem — concordou mamãe, com uma expressão indefi­nida na voz, que soava cansada. — Pedirei uma colocação para você no próximo ano.

  • É só isso que eu quero.

    Fiquei sem amiga, pois Pepita, depois da minha atitude, embora me chamasse por telefone, de vez em quando, já não me convidava mais para sair. Mas eu não desejava mesmo sair.

    Nesse verão mamãe e eu voltamos, como todo mês de agosto, à costa de Alicante. Fechei-me mais do que nunca em mim mesma. Sabia coisas demais da vida, mas não por tê-las vivido, e sim por tê-las visto e ouvido.

    Por essa época já tinha idade para perceber que mamãe não ti­nha amante, nem sequer namorado. Trabalhava e ganhava para mim, comprava-me muitas coisas.

    Saberia ela quando, exatamente, me perdera? Sem dúvida, no dia em que me contara que papai não voltaria. E eu me tornei emocionalmente enferma, carente da proteção de papai, do seu amor, da sua orientação.

    Mas a culpa seria de mamãe? Hoje sei que não. E aos poucos fui entendendo isso, porque percebia como ela era bela, ainda jo­vem, porque a via ganhar dinheiro, com o qual, em vez de me aju­dar, poderia ter refeito sua vida.

    Foi um mês de agosto terrível, pois eu saía pouco, nadava algu­mas vezes, corria pela praia e retornava à casa de veraneio.

    Mamãe, entretanto, tinha amigos. Bem, nunca cheguei a conhe­cer alguém em especial, salvo os maridos de suas amigas. Fui en­tendendo que mamãe não era o tipo de mulher que cultivava amigos para programas.

    Voltamos das férias. No reinicio das aulas encontrei-me com Pe­pita, que, com grande desembaraço, me contou:

    —        Continuo com Paco. Fizemos uma bobagem, mas conserta­mos tudo em Londres.

    Londres? Desconfiava já que bobagem poderia ter sido, por ter escutado alguma coisa sobre isso.

  • E o que você foi fazer em Londres, Pepi?

  • Ora, Anita! Um aborto...

  • Quê?! — Apesar de desconfiar, não pude conter o espanto.

  • Foi facílimo. Paco tem dinheiro e tudo se arranjou muito bem.

  • E seus pais sabem disso?

  • E por que têm que saber? Eles vivem sua vida, não é? Eu vivo a minha.

    Nesse momento odiei Pepita. Odiei-a por haver destruído algo tão belo: um filho. Fosse de quem fosse, era um filho dela. Como podia destruí-lo assim com tanta frieza e desembaraço?

    Ah! Comecei então a entender minha mãe. E a admirá-la em si­lêncio. Mas ainda assim perguntei a Pepita:

  • E Paco?

  • Continuamos juntos. Vamos estudar Medicina.

  • E o filho?

  • Quando terminarmos a Universidade e pudermos, então sim. Agora é impossível.

  • Você... não sofreu? — minha voz saiu insegura, como que temendo a resposta.

  • Mas por que iria sofrer?

  • Por se desfazer de... algo tão belo!

  • Não seja boba, Anita, pelo amor de Deus...

    Bem, naquele caso concreto pareceu-me irreverente que falasse em Deus...

    Nessa noite, quando retornei a casa, beijei minha mãe. Foi um beijo espontâneo. Eu a admirava tanto que já não conseguiria admirá-la mais. Ah, mas continuava sentindo falta de meu pai. Um pai já quase desconhecido. Mas um pai profundamente íntimo, que vivia dentro de mim como uma marca  indelével e que influiu muito na minha vida futura...

     

    Aquele ano todo se passou sem grandes novidades. Pepita, evi­dentemente, por causa de sua inteligência bastante limitada, além do pouco esforço nos estudos, foi reprovada. Eu, entretanto, pas­sei ao último ano do curso quando completei dezesseis anos; bem de acordo com a minha idade, portanto.

    Mas continuava sem amigas, embora, em silêncio, começasse a ter mais consideração por mamãe. Pena que não conseguisse lhe demonstrar isso, exceto no dia em que lhe dei aquele beijo espon­tâneo, já há tanto tempo. Ela não interferia em minha vida. Agora sei que me observava em silêncio e que lhe doía muito meu hermetismo, sofria com meu modo de ser. Mas eu não percebia isso ain­da. Era, pois, inevitável.

    Desse modo, passiva, introvertida, quase muda, terminei o cur­so com brilhantismo. E de novo minha mãe voltou à carga, firme­mente, tentando convencer-me de seus propósitos sobre meus estudos.

    —        Bem... — disse-me ela, assim que começaram as férias de ve­rão, na casa que alugamos em Alicante. Parece-me que como uma mulher adulta, que viveu mais do que você, e que teve, e ain­da tem, experiências positivas e negativas da vida, sinto-me obri­gada a dar-lhe um conselho.

    Olhava-me fixamente, sem pestanejar. Eu era uma garota de de-zessete anos, esbelta, bonita, não muito alta, mas bastante femini­na, de porte um tanto altivo. Tinha consciência de que era bonita, mas não me importava muito com esse fato.

    Mamãe, ao contrário, devia levá-lo muito em conta. E foi com um olhar firme, mas carinhoso, que continuou a falar-me:

  • Meu conselho, Anita, é que você se matricule na Universida­de e escolha a carreira que lhe convier.

  • Mas já disse a você, de todas as formas possíveis, que não irei para a Universidade!

  • Anita, raciocine, seja compreensiva, madura. Assuma esta res­ ponsabilidade! Sou  encarregada-chefe dos grandes armazéns e ga­nho mais dinheiro do que nós duas podemos gastar. Tenho uma  boa poupança. E, além disso, no ano passado comprei o sótão. É nosso. Decidi comprá-lo, porque está bem localizado, decorei-o ao meu gosto e sinto-me bem vivendo ali. Por tudo isso, parece-me que você deveria aproveitar a oportunidade que estou lhe oferecen­do, não acha?

    Eu sabia que ela estava com a razão, mas teimava em trabalhar, ganhar dinheiro e ser independente. Era uma ideia fixa, do mesmo modo como continuava com as mesmas saudades dos anos que pas­sara com meu pai. Por isso, minha resposta foi cortante:

  • Quero trabalhar. Apenas isso. — Minha personalidade já se esboçava: teimosa e irredutível.

  • É o que você realmente deseja?

  • Sim.

    —        Vai se arrepender depois, Anita...

    Isso é problema meu, mamãe.

    —        Ouça, Anita... — Ela respirou profundamente, antes de com­pletar. — De que você me culpa?

    "Agora, de quase nada", pensei. Mas isso não evitava que eu con­tinuasse desejando a presença de meu pai junto a mina. Claro, não a culpava mais por isso, mas doía-me muito ter que odiar meu pai. Se redimia a culpa dela, sobrava, então, a dele. Sentindo que não poderia demorar mais para responder, falei:

    —        Não a culpo de nada, mamãe.

    Meu tom de voz talvez não a tenha convencido, pois ela conti­nuou, parecendo ter penetrado em meus pensamentos:

    — Eu não rompi laços, Anita.

    — Você se separou...

    —        Um dia você vai perceber que entre viver em guerra constan­te e separar-se a última alternativa é melhor, mesmo que cause so­frimento.

    Não quis discutir. Para quê? Ela não entenderia meu trauma, meu complexo. Pelo menos, era o que eu achava.

    —        Está bem — ela decidiu, depois de uma grande discussão que não vale a pena repetir. — Você vai trabalhar como funcionária em um dos grandes armazéns. Pedirei um lugar para você tão logo re­gressemos à capital. Tenho bastante influência e um cargo impor­tante. Sem dúvida, atenderão ao meu pedido.

    —        Obrigada — Foi tudo o que consegui dizer.

    Estava resolvido, então. Passei o resto de minhas férias em Ali­cante solitária. Apareciam rapazes à minha procura, mas não me atraíam. Eram jovens demais. Não sentia interesse por eles, nem amor e muito menos desejo de manter uma conversa banal, frívola.

    Logo desistiram de procurar-me. Mamãe, percebendo o que acon­tecia, aconselhava-me:

    —        Você anda sozinha demais, Anita. Esses rapazes do grupo são filhos de amigos meus, sabia?

    E daí? Isso pouco me importava, talvez até fosse pior. Para mim, uma coisa era bem clara: mamãe não tinha amantes, ou qualquer homem fixo com quem quisesse viver. Fazia amor com alguém? Pouco me importava. Eu sabia que, na época em que vivíamos, fa­zer amor era quase como tomar um sorvete...

    Mamãe era jovem è bonita. Vestia-se bem, num estilo moderno e esportivo. Vivia cercada de pessoas de sua idade e ria bastante. Era uma mulher alegre, aberta, atualizada.

    Eu, em silêncio, começava a admirá-la muito. Mas jamais lhe con­fessei isso em voz alta. Se dormia com alguém, o problema era de­la, não meu. Não a julgaria mal por isso. Eu sabia, então, que os jovens faziam amor até com extrema facilidade, mas não me consi­derava dentro desse padrão, simplesmente porque nem sequer ti­nha vontade.

    Mas em compensação descobri algo em mim que me assustou, quase me traumatizou! Os homens mais velhos me atraíam, e como!

    Sim, percebi que me sentia assim quando via os maridos das ami­gas de minha mãe. Por isso, cada vez me fechava mais em mim mesma.

    Lia tanto que já não encontrava nenhum livro novo nas casas vizinhas. Minha mãe sabia que o melhor presente para mim era um livro. Tanto devorava uma novela romântica, sentimental, como um clássico ou uma aventura policial. O que desejava era me distrair, deitada em minha cama. Hoje, a expressão mais adequada seria "fugir". Mas de quê? Ainda daquele trauma de carência paterna?

    Qualquer que fosse a razão, não parei para pensar. Logo regres­samos à capital e mamãe voltou ao trabalho. E também voltou à carga:

  • Ainda há tempo para você se matricular na Universidade. Pos­ so pagar a carreira que quiser, Anita.

  • Quero trabalhar, já disse.

  • Está bem, então.

    E não voltou mais ao assunto.

    Um mês depois, entrei como funcionária na seção de perfuma­ria dos grandes armazéns. Vestia um uniforme azul, com um mo­nograma no bolso. Pude ver como mamãe era eficiente e severa, mandava em todos e me tratava como qualquer um dos empregados, sem me desculpar de qualquer falha.

    Bem, mas isso não me importava. O que desejava, è muito, era ganhar dinheiro, poder viver sozinha e fazer o que bem entendes­se. Aliás, para cúmulo da ironia, não queria fazer nenhuma coisa do outro mundo: apenas manter viva minha solidão.

    Foi nesse exato momento que conheci Carlos Guzmán.

    Mamãe sempre ficava até mais tarde nos armazéns, prestando contas ao seu chefe. Eu saía com as outras funcionárias e habitual­mente entrava em um pub para beber algo. Em geral uma cerveja, acompanhada de alguns petiscos.

    No pub havia uma sala de festas numa espécie de porão, que fo­ra reformado para isso. Ouvia-se em cima a música que vinha dali. Minhas colegas, com frequência, deslizavam escada abaixo e dan­çavam com seus amigos, noivos ou "flertes".

    Eu jamais descia aquelas escadas. Costumava sentar-me em uma banqueta e pedir minha cerveja e meus petiscos. O garçom já me conhecia e servia-me o mesmo, sem que precisasse pedir.

    Nessa época eu já fumava, também. Tinha sido Pepita quem me ensinara.

    Pepita... não a vi nunca mais. Meu ambiente e o dela eram mui­to diferentes. Acabei por esquecê-la, como se esquece de um alfi­nete. Seus problemas de abortos e divórcios de seus pais não mais me preocupavam. Continuei uma vida solitária, o que trazia muito desgosto a mamãe. Minhas colegas de trabalho, depois de convidar-me para passear centenas de vezes, acabaram por desistir.

    Mas foi assim, sem grande estardalhaço, que conheci Carlos. E agora devo ser mais cautelosa e explícita, porque Carlos significou tudo em minha vida. Mas não como se imagina, não!

    Carlos era um homem maduro, uma figura atraente. Idade? A que me parecia certa. Por que será que imaginava meu pai com a mesma idade? Quem sabe teria mesmo? Pode bem ser que sim.

    Bem, de uma coisa eu estava segura: gostava de homens feitos, maduros mesmo, com cabelos grisalhos, algumas pequenas rugas na testa. Todos altos e fortes como meu pai. Ou... como eu imagi­nava papai...

    Certo dia, Carlos se aproximou, indiferente à minha presença, .   e pediu um uísque.

    Já era tarde. Anoitecia. Fazia frio, pois estávamos em pleno in­verno. Lembro-me de que estava vestida com uma calça comprida de veludo e um casaco de pelica. Um grande e macio cachecol envolvia-me o pescoço, com as pontas pendentes sobre cada ombro. Depois de comer os petiscos e tomar meio copo de cerveja, deu-me vontade de fumar. Costumava fazê-lo mesmo diante de mamãe, que me havia censurado, pois nunca fumara: "Algum dia vai lhe fazer mal..." Ainda não estava me fazendo mal, pensei, e quando ia acendê-lo uma pequena chama surgiu diante de mim. Surpresa, olhei em sua direção. Era ele.

    —        Por favor — disse, oferecendo-me fogo.

    Não tive dúvidas em aceitar. Estou certa de que se tivesse sido um rapazinho, não teria aceitado a oferta. Mas era um senhor ma­duro, elegante", charmoso. Papai poderia ser assim... Não. Depois de tantos anos...

  • Obrigada — agradeci, acendendo o cigarro.

  • Chamo-me Carlos Guzmán.

  • E eu Anita Pereira.

  • Está sozinha? Espera por alguém?

  • Não. Costumo vir até aqui todos os dias, depois de sair dos armazéns ao lado, onde trabalho — respondi, tranquila.

    Vejam só. Eu, o cúmulo do hermetismo, estava sendo comuni­cativa— e como! — E com aquele desconhecido!

  • Sou um industrial ligado ao café — continuou ele — e tam­ bém costumo frequentar este pub.

  • Ah, sim?

  • Você é muito jovem, não?

  • Sim, de fato sou — respondi.

  • Qual a sua idade? Oh, desculpe-me. Sei que não é elegante perguntar isso a uma mulher, mas quando ela é muito jovem a cu­riosidade não causa esse tipo de problema, não é?

  • Tenho dezessete anos.

  • E você não pergunta qual a minha idade? — indagou ele, cu­rioso da minha possível reação.

  • Não. Realmente não me interessa.

  • Que tipo de coisas interessam a você? — insistiu ele.

  • Bem poucas...

  • Você é muito bonita, sabe? — Olhou-me com uma expressão admirada.

  • E o que isso tem a ver com a minha idade?

  • Você deve ter algum noivo, não?

  • Não, não tenho respondi, sempre em tom conciso, quase seco.

  • Mas isso é raríssimo! espantou-se ele.

  • É, talvez...

  • Algum desengano de amor?

    Nesse momento resolvi voltar-me para aquele homem e olhá-lo com mais atenção. Deparei-rrie com um senhor moreno, muito bo­nito, olhos negros, fios prateados nos belos cabelos escuros. Alto e forte, físico de um esportista. Gostei muito do que vi. Senti-me um tanto balançada em minhas emoções. Sem deixar que perce­besse o quanto me impressionara, respondi rápido e firme:

  • Claro que não!

  • Você diz isso com tanta ênfase... — Parecia haver alguma dú­vida na voz dele.

    —        É porque nunca tive nenhum tipo de desengano amoroso. Ele bebia seu uísque e me olhava por cima do copo. Um olhar doce, de expressão cálida, que me atraiu. Senti-me à vontade, realizada.

  • Você é que é feliz... — comentou Carlos, de repente, deixando-me entrever que algo não ia bem.

  • Eu? Feliz? Por quê?   

  • Porque eu sou um homem muito infeliz em tudo, menos na minha profissão de comerciante de café. Os negócios vão bem, mas o resto de minha vida vai mal...

    Essa declaração fez-me sentir uma grande simpatia por ele, um desejo de proteger aquele homem já maduro, mas tão belo e infeliz.

  • Você foi abandonado por sua noiva? — indaguei, um tanto condoída.

  • Oh, não... Pior que isso! Sou casado, mas. minha mulher e eu não nos entendemos mais. Estou a ponto de divorciar-me.

    Não fiquei desiludida. Ao contrário. Mas pela minha cabeça pas­savam milhões de ideias. Entretanto, antes que tivesse tempo de fa­lar qualquer coisa, ele murmurou:

    —        Gostaria de dançar um pouco?

    Eu jamais havia descido até o pequeno salão de festas. De re­pente, porém, deu-me vontade de dançar com aquele senhor, que, além do mais, sem grandes mistérios, confessava ser casado e infeliz. Que loucura! Não parei para refletir sobre meus impulsos. De­sejava sentir os braços dele envolvendo-me a cintura. Só isso.

    Descemos e logo depois, recostada em seu peito, dançávamos. Terminada a música, sentamo-nos num canto afastado da pista. Sentia-me frágil, emocionada demais e feliz por ter encontrado al­guém que tinha tanta afinidade comigo. Mas como podia saber isso, se mal o conhecia? Era estranho...

    —        Como lhe disse, minha mulher e eu não nos entendemos mesmo. Desejo formar um novo lar, mais sincero e verdadeiro... Sou um homem que gosta de ficar em casa, amoroso e fiel... Minha mulher, ao contrário, ama a vida noturna e passa o tempo todo fora do lar. Como vê... não há entendimento possível. Ainda bem que o divórcio trouxe soluções...

    Nem me lembro de quantas coisas mais me disse... Eu o ouvia atordoada, feliz por ter encontrado finalmente alguém que me atraísse.

    Aceitei que ele me levasse para casa em seu carro. Enquanto di­rigia, ia me contando mais sobre sua vida:

  • Sab,e, mal acabei de completar quarenta anos. E posso ga­rantir a Você que estou louco para formar uma nova família.

  • Mas... você tem filhos? perguntei.

  • Dois. Só que nem me olham, não se interessam por mim. Vi­vem a sua vida, cada qual a seu modo. Sempre digo que a pessoa que faz o lar é a esposa e a minha não faz nada para manter a nos­ sa convivência como um verdadeiro lar.

    Beijou-me na boca ao despedir-se.

    Meu primeiro beijo! Mas um beijo delicado e respeitoso. Nesse momento, senti que o adorava por ser ele infeliz, arrogante, belo, maduro e delicado.

    Eu já conhecia bastante sobre a vida, por haver visto e ouvido mui­to, por isso senti que aquele homem me respeitava ao máximo: olhava-me com adoração, cuidava de mim como se me protegesse. Era tudo, tudo o que eu buscava.

    Não disse nada a mamãe, porém. Ela já estava em casa esperando-me com a mesa posta, quando cheguei. Senti que a compreendia melhor agora, mas não lhe contei nada sobre meu novo amigo, Car­los. Entretanto, ela me perguntou:

  • Quem a trouxe, Anita? Eu estava esperando você e vi um car­ro parar diante da porta.

  • Um amigo, mamãe.

  • Ah... — Ela andava de um lado a outro, fina e elegante, en­quanto servia a comida. — Trabalha na loja?

  • Não.

  • Não? — A expressão dela era de espanto.

  • Já disse que não — insisti.

  • Bem, pelo menos você começa a ter amigos — ela comen­tou, sentando-se. — Isso já é importante. Mas tenha cuidado com amigos novos. Você é uma moça linda, mas também bastante ingênua.

    Passamos a conversar sobre outros assuntos e ela não voltou a comentar nada sobre o fato. Eu, porém, não dormi essa noite, pen­sando em Carlos, em sua delicadeza, seu modo carinhoso de comportar-se, sua proteção e em sua sinceridade. Lembrava-me da última frase de mamãe.

    Já sabia que era bonita e fiquei com mais vontade de olhar-me no espelho nessa noite. Mas... ingênua? Bem, também o era, sim. Reconhecia isso, mas era bem menos do que minha mãe supunha.

    Essa noite quis admirar meu corpo nu diante do espelho. Seria irreverência? Ou imoralidade? Não, não o creio. Queria apenas co­nhecer meu próprio corpo, minhas formas, meu amadurecimento físico.

    Já era, pelo menos, madura moralmente: o sofrimento, os com­plexos e traumas parecem nos amadurecer.

    Estava ansiosa pelo dia seguinte, porque desejava ver Carlos. Não via a hora de terminar o trabalho.

    Quando saí dos grandes armazéns, ele já me esperava, sentado ao volante de seu carro. Mas não desceu, dizendo-me:

    —        Hoje não vamos tomar aqui nosso aperitivo. Vamos a outro lugar, certo?

    Concordei. Entrei no carro e fomos jantar em um restaurante da periferia, muito elegante. Em momento algum ele tentou abu­sar de mim ou convidou-me para fazermos amor. Sua delicadeza me encantava cada vez mais.

    Conversamos sobre mim, um pouco, e sobre a situação dele, que era das mais desesperadoras.

  • O negócio — disse-me — é meu e de minha mulher. Nós o montamos quando nos casamos. Você sabe, não é? Quando alguém namora jovem demais e engravida a namorada, precisa se casar e ponto final.

  • Foi isso o que aconteceu com você?

  • Exatamente, Anita.

  • E sua mulher... Por que não o deixa livre?

  • Ela pouco se importa. Vive, diverte-se, tem amigos, é fútil demais, adora ficar fora de casa... Sinto-me vítima de uma situa­ção de enlouquecer!

  • Mas... depois do primeiro filho vocês tiveram outro! — Meu comentário era um misto de surpresa e — por que não dizer —de reprovação.

  • E por que não teríamos? No início a relação tinha ainda al­gum atrativo. Logo em seguida, tudo acabou. Agora sinto-me só, infeliz, desanimado.

     

  • Seus filhos já são adultos, então?

  • Claro — confirmou ele — casei-me muito jovem.

  • Qual a idade de sua mulher, Carlos?

  • Tem a mesma idade que eu. Mas quase não a vejo. Garanto a você que vou para casa bem poucas vezes...

  • E ela não reprova essa sua atitude? — Minha curiosidade au­mentava.

  • Anita, para ela eu não sou mais nada...

  • Ora, divorcie-se, então! concluí, com raiva daquela mu­lher que o magoava tanto.

  • É o que estou tentando, mas ela prefere viver uma comédia, sem escândalo para a sociedade. Bem, você sabe como são essas coisas... Preciso ainda convencê-la.

  • E seus filhos, Carlos, o que dizem de tudo isso?

  • Nada. Pouco se importam. Vivem sua própria vida e o pro­blema dos pais já não os afeta em absoluto.

    Terminado o jantar, Carlos levou-me para casa. E, depois dessa noite, passamos a nos encontrar diariamente, sempre no mesmo lu­gar. Assim, não era de estranhar que mamãe acabasse por saber. Quem lhe contou? Bem, que importância tinha isso?

    Uma noite, dois meses depois, ela me abordou diretamente, sem disfarçar, como um dia já fizera, quando me comunicou sobre a partida de meu pai.

  • Anita, sei que você está saindo com um homem bem mais velho e casado.

  • Sim, e daí? — Desafiei-a.

  • Olhe, é assunto seu. Não a criei para isso, mas, se você dese­ja agir assim, pense que logo, logo, vai se lamentar... Por favor, se quiser um conselho...

  • Não, mamãe, sem conselhos!

  • Você o ama, Anita?

  • Bem... ele de certo modo me completa, me atrai, me protege. É extremamente delicado e jamais me faltou ao respeito! Jamais!

    Mamãe não procurou fazer rodeios: foi diretamente ao assunto e logo me dei conta do quanto estava atualizada:

  • Você já dormiu com ele, Anita?

  • Não! — gritei, quase com raiva.

  • Então ainda está em tempo, querida. É um homem casado. Não continue com ele...

  • Mas sinto-me realizada a seu lado — repliquei.

  • De que modo, filha? A realização tem dois aspectos: espiri­tual e físico. Podem estar juntos ou separados, entende?

  • É uma realização espiritual, mamãe.

  • Então, você o ama...

  • Já disse que sim! — repeti, com firmeza na voz.

  • Não, filha, não foi bem isso o que você me disse... —insistiu mamãe, não menos firme.

  • Está bem. Pois digo a você que me sinto bem ao lado dele, pela delicadeza e pela falta de interesse sexual que demonstra. E por ser um homem diferente dos outros...

  • Querida, esses homens são experientes demais... Quando vêem que a fruta já está madura, mordem-na. Cuidado!

  • Pois ele não me mordeu ainda e nem quero que faça isso! — falei então, furiosa.

  • Se você não deseja esse tipo de relação, Anita, que forma de sentimento a une a ele, então?

  • Talvez a maturidade, a delicadeza e a proteção que me dá... - respondi, pensativa.

  • Mas esse homem não é seu pai, Anita!

    Mamãe tinha acertado em cheio! Estaria eu buscando a imagem de meu próprio pai em Carlos? Na Verdade, não estava certa de amá-lo. Sabia, apenas, que ao lado dele sentia-me feliz, muito fe­liz. Mas isso poderia ser considerado amor? Paixão?

    Minha mãe, percebendo que eu estava indecisa, acrescentou, cheia de ternura:

    —        Cuidado, Anita. Não quero governar sua vida, mas orientá-la. É meu dever, querida... fez uma pausa e deu um profundo suspiro. Não sei quem é esse homem, nem o conheço. Sequer o vi. Mas, se você está procurando nele a proteção do pai que per­deu, está indo por um caminho bastante perigoso...

  • Mas...

  • Não me interrompa ainda, meu bem. Quero que você seja feliz e. lhe desejo isso mais do que a tudo no mundo. Lutei dia a dia para consegui-lo. Mas, quer que eu seja mais clara, mais dura e forte, nesta minha explicação? Quando você tiver a idade que ele tem hoje, esse homem terá o dobro, quer dizer, sessenta anos. Você estará na melhor fase de sua vida... Vai enganá-lo com outro, então?

  • Mamãe! — gritei, indignada.

  • É apenas uma pergunta franca, Anita. Saiba que é mais im­portante viver só do que mal-acompanhada. E também é preferí­vel amar a pessoa certa à ser infiel deliberadamente a alguém que não se consegue amar...

  • Não entendi o que você quis dizer...

  • Bem, Anita. Se esse homem se divorciar, como você me asse­gura que fará, mas tem vinte e três anos a mais, é quase certo que você acabará por enganá-lo. E essa é a pior situação que uma mu­lher pode viver. Ele não conseguirá satisfazê-la fisicamente.

    —        Mas meu interesse é espiritual... Sou assim...

    —        Você está segura disso?!

    —        É esse o meu modo de ser. Eu o admiro e respeito.

    —        E você o ama?

    —        Bem... eu ô quero...

    —        Anita, querer não é amar... — replicou mamãe.

    —        Foi o que aconteceu entre você e meu pai? — contestei, ma­goada, pois ela punha o dedo, bem fundo, na minha velha ferida.

    —        Ora, Anita, por favor! Isso são águas passadas... Por que es­tá sempre centrando tudo nesse mesmo ponto?

  • Já lhe disse que quero bem a Carlos — insisti.

  • Só que você não o ama...

  • E quem lhe disse isto? — voltei a enfrentá-la, com certa arro­gância.

  • Você vai perceber... Não sei como lhe explicar. Mas, se você não dormiu com ele ainda, é porque não o deseja... O perigo é que com a idade e experiência que tem ele esteja preparando o terreno para um dia... zás!

  • E daí? — repliquei.

  • Anita...

  • E daí, mamãe? Qual o problema?

  • Nada, nada... Se for essa a sua sorte, vá ao encontro dela, mas aviso quê vai sofrer...

    Bem, pensei um pouco sobre as palavras de mamãe, mas não mui­to. A delicadeza de Carlos tornava-se maior a cada dia. Sentia-me segura e protegida a seu lado. Amparada. Se o amava? Não me per­guntei, porque não saberia responder. Vivia de suas delicadezas, atenções... Jamais havia imaginado que um homem assim apare­cesse em minha vida, criando-me a possibilidade de realização.

    Entretanto, Carlos nunca me pediu que fizesse amor com ele. Beijava-me, olhava-me, protegia-me. E eu sentia doçura e necessi­dade de comunicação, mas nunca o desejo de ir para a cama com ele. Isso não!

    Mamãe dizia-me, quase todos os dias:

    — Tenha cuidado, Anita. Eu não me oponho a nada. Pelo con­trário, estou sempre a favor de tudo, mas... você é uma garota es­pecial. Ele é um homem casado... Será que pensa realmente em divorciar-se?

    Eu me achava segura disso...

     

    Assim, ouvindo sempre os conselhos de mamãe, mas saindo com Carlos todos os dias, apegando-me a ele cada vez mais, completei a maioridade: dezoito anos!

    Poderia agora, sem dúvida, deixar minha casa para viver com ele, mas Carlos não me pediu isso. Nossa relação parecia a de um casal de namorados que se prepara para q casamento, o que acon­teceria quando ele legalizasse a sua própria situação matrimonial, ainda na mesma. Carlos demonstrava a cada dia estar mais depri­mido, e eu mais ansiosa em poder consolá-lo.

    Chegava à minha casa bem tarde e, por isso, pouco via mamãe, que quase sempre saía, deixando-me a comida no forno.

    Minhas relações com Carlos, a quem mamãe não conhecia, nem ele parecia desejoso de encontrá-la, tornavam-se mais ternas e de­licadas a cada dia, Concretamente, não posso culpá-lo de nada. Só uma vez atreveu-se a perguntar-me se poderia ficar com ele duran­te um fim de semana fora da cidade. Mas não me senti com forças para isso.

    Não desejava uma intimidade maior do que aquela que já tínha­mos. Se o amava? Sem dúvida, mas não conseguia associar meu amor por Carlos a um prazer que incluísse a realização física.

    Ao mesmo tempo dava-me conta de outra coisa: mamãe saía bem mais, parecendo fugir à responsabilidade, que durante toda sua vi­da minha existência lhe representara. Eu a via muito nos armazéns, como chefe do pessoal. Havia um tal de Román Salinas, que, além de ser, como ela, chefe dos empregados, parecia que também era acionista e tinha bastante influência no negócio, segundo diziam. Era um homem alto, idade por volta dos quarenta anos, de boa aparência, sempre impecável. Que mamãe e ele eram bons amigos não havia a menor dúvida. Mas... amantes? Bem, nesse aspecto da sua vida eu não entrava, porque tampouco permitia que ela en­trasse na minha.

    Sabia que Román Salinas era solteiro, rico e um bom homem. Bem que poderia ser um segundo marido para minha mãe, embora eu tivesse a impressão de que ela detestasse o casamento. Mas, como era uma mulher aberta, moderna, atual, não estranharia se dormisse com Román, fato que aliás até me parecia natural.

    É... parecia que aos poucos ela e eu  íamos nos separando espiri tualmente. O problema maior, que mais nos afastava, era que mamãe estava contra minhas relações com Carlos Guzmán, por ser ele um homem casado, que afinal tinha mais que o dobro de minha idade e não conseguia legalizar sua situação matrimonial.

    Certo dia, Carlos me convidou:

    —Tenho um apartamento aqui perto. Que tal tomarmos um drinque?

    Respondi que não. Na verdade, não desejava um encontro desse tipo, embora desfrutasse, a seu lado, de muita ternura e delicadeza.

    —        Estou perdidamente apaixonado por você, Anita... — acres­centou ele, tentando me convencer.

  • Mas eu ainda não estou preparada para uma intimidade tão grande, Carlos...

  • Você é maior de -idade. Poderíamos até viver juntos...

  • E a sua família?

  • Mas eu a tenho? Não contam comigo para nada. Meu filho vive a seu modo, viajando por Ibiza e Marbella. Minha filha... es­sa nem percebe que eu existo. E minha mulher deve ter seis ou mais amigos diferentes, quando deseja dormir com alguém.

  • Mas para consertar tudo isso há o divórcio, Carlos. Você mesmo...

  • Claro que sim! E estou lutando para consegui-lo.

  • Faz cerca de um ano que você fala a mesma coisa — contestei-o, embora com suavidade.

  • E o que você quer que eu faça, quando há dinheiro metido no meio? A culpa é toda do maldito dinheiro!

    Eu não conseguia entender, mas ele, amável e sedutor, tratou de explicar-me.

  • Um negócio como o meu é excelente como está, sem dividi-lo com ninguém. Se precisar vendê-lo para dar a metade a minha mulher, ficará reduzido a nada. Por isso, estou tratando de vender uma bela propriedade que tenho no campo e, com o produto da venda, ficar sozinho com o negócio de café.

  • Vai demorar muito, Carlos?

    —        Acho que em dois meses tudo estará terminado. Passaram-se dois meses e... nada! Chegou o verão e mamãe per­guntou:

  • O que você vai fazer em agosto, Anita?

  • Pensava em ficar aqui... Não sair durante minhas férias.

    Na verdade, preferia que mamãe fosse a Alicante sozinha, dessa vez, apesar de, em silêncio, eu começar a admirá-la muito. Mas não  confessaria isso nunca, nem que me matassem. Demorei muito a  compreender os motivos dessa minha atitude.

     Mamãe, muito séria, olhou-me fixamente, parecendo refletir. Quantos anos teria ela nessa época? Casara-se com dezessete. Eu tinha dezoito e nasci no mesmo ano em que mamãe se casou... estava com trinta e seis, portanto. Mas não aparentava nem vinte e cinco, tão bela e conservada estava, além de moderna.

    A constatação desse fato não me fazia sofrer. De modo algum. O que me doía era que ela não se desse conta de que eu necessitava de Carlos e que assim que se divorciasse iria me casar com ele.

  • Bem... — replicou mamãe, sem mudar de expressão. — Parece que você me obriga a permanecer nesta cidade...

  • Faça o que lhe convier. Não tenho nada com isso!

  • Anita...

  • Mamãe, não posso e não quero reter você aqui, pois, assim como eu, você tem todo o direito do mundo de viver sua própria vida!

    —        O modo como você vive a sua é que é um equívoco, Anita! Quando ela me disse isso, fiquei louca de raiva e não me contive.

    Sei que agi mal, mas quem consegue conter-se quando a raiva ex­plode do fundo da alma?

  •             E você não estará também vivendo um equívoco com Román? - acusei.

    Notei seu sobressalto, sua dor, e meu coração pareceu encolher-se. Afinal, quem era eu para lançar-lhe qualquer tipo de acusação?

  • Román é livre ela replicou, sem me dar maiores explicações, assim que passou o primeiro impacto da surpresa. — E eu também, Anita. Estou legalmente divorciada e você sabe disso.

  • E caí? Qual a diferença? — minha voz soou atrevida.

  • Ora! Cari os, que não conheço nem desejo conhecer, é casa­do e há quase um ano está afirmando que irá se divorciar da esposa. Pois você sabia que hoje em dia um divórcio se tramita em pouquíssimo tempo, se alguém estiver realmente disposto a isso?

    E sem que eu replicasse, pois no fundo estava envergonhada, ma­mãe acrescentou:

  • Além disso, Román e eu somos companheiros, amigos, isso. Nenhum de nós pensa em legalizar nada.

    Essa noite mamãe foi deitar-se magoada, triste, sem me dar o beijo de costume. O dia seguinte era um domingo e eu não tinha pressa nenhuma para me levantar. Havia ficado com Carlos até as quatro da madrugada e, embora não tivesse aceitado ir a seu apar­tamento, havia decidido jantar com ele e depois irmos a uma dis­coteca.

    Mas mamãe apareceu em meu quarto perto das onze horas e le­vantou as persianas, deixando entrar os raios de um sol deslum­brante pela janela aberta de par em par.

    Recordo que despertei aborrecida por sentir a luz em meus olhos. O dia estava lindo. Mamãe vestia um traje esportivo: calça branca, afunilada nos tornozelos, uma camisa preta de manga curta, mas nada de colares ou adornos. Calçava mocassins também pretos. Es­tava linda! Ninguém lhe daria mais de vinte e oito anos. Nas mãos trazia uma bolsa de praia.

    Não havia mar na cidade onde vivíamos, mas bem próximo fi­cavam alguns povoados encantadores, com mar aberto, rochas e areia. Ainda não lhes contei que tínhamos um carro. Mamãe com­prara um de quatro lugares e o dirigia muito bem.

    —        Posso falar com você antes de sair, Anita?

    Eu não queria. Detestava diálogos, a menos que fossem com Car­los. Mas acabei por espreguiçar-me e sentei na cama, recostando sobre os travesseiros.

    —        Vou à praia e não voltarei até a noite.

    Não lhe perguntei com quem ia, pois era óbvio. Nos grandes ar­mazéns ninguém ignorava que mamãe e Román se entendiam tan­to. Até onde ia esse entendimento? Parece que eram bastante íntimos. De qualquer forma, ambos eram queridos e respeitados e ninguém criticava em nada o modo como viviam.

    Parecia-me natural que mamãe vivesse como quisesse, desde que não se intrometesse na minha vida particular. Era maior e podia fazer o que bem entendesse.

    A única coisa que desejava era estar com Carlos todas as noites, depois das sete. Antes dessa hora não podíamos nc« encontrar, pois cada um se ocupava de seu próprio trabalho.

  • Anita... — mamãe tinha uma voz solene, quando se sentou em um banquinho em frente a minha cama, deixando a bolsa de praia caída a seus pés. — Preciso falar-lhe algo muito importante.

  • Está bem. Pode falar, já que você quer e não está com pressa...

    —        A pressa, para mim, filha, eu a reservo apenas para você. Eu o sabia, mas algo, dentro de mim, impedia-me de reconhecer isso.

    —        Tudo para mim pode esperar — acrescentou. — Menos você, Você não pode esperar...

  • Está se referindo...

  • Às suas relações, Anita.

  • Eu quero bem a Carlos, mamãe. Já disse.

  • Pois esta é a questão, Anita. Eu também queria bem a seu pai. Fiquei  tensa imediatamente e senti o sangue ferver. Então ela o queria e havia permitido que se fosse e me abandonasse? Justo a mim, que era louca por ele?

  • Você precisa compreender que ter carinho é diferente de ter amor, Anita. Seu pai e eu nos casamos apaixonados. Mas éramos Imaturos demais, jovens demais. Não percebemos que o que sen­tíamos era apenas um desejo passageiro, que naquela época só se saciava casando-se. Bem, eu falo assim, com toda a franqueza, pa­ra que você não tenha medo de dizer-me se o que sente por Carlos é algo igual ou superior. Sabe, um dia seu pai e eu descobrimos que o amor verdadeiro não existia e que o carinho apenas não era suficiente para a convivência.

    —        Mamãe...

  • Não, querida, por favor, deixe-me terminar. Estou revelando tudo isso a você, tendo em conta que ambos éramos jovens e cheios de vida naquela época. Tínhamos quase a mesma idade. Agora, tente imaginar uma jovem da sua idade casada com um homem bem maduro. Num casal, Anita, o aspecto físico tem tanta importância quanto o psíquico. Quando você estiver desejando viver plenamente, esse homem que a corteja, mas que ainda continua casado, será um velho exaurido e sem desejo algum de divertir-se. E se há algo penoso, imoral e mesquinho é a infidelidade. Ou você mantém a cabeça erguida, permanecendo fiel, e sofre com isso, ou terá que Ne omitir para sempre, o que lhe trará dor também, se você tiver consciência.

  • Mas eu quero bem a Carlos! — insisti, pois não sabia acres­centar outra coisa, atordoada com todas aquelas razões que mamãe me demonstrava, mas que eu não queria admitir,

  • É possível — continuou mamãe, sem me deixar tempo para respirar — que eu seja culpada do que você está passando, mas não poderia comprometer minha vida toda somente por você...

  • Eu... — tentei interrompê-la.

  • Anita, espere. Você não poderá negar que lhe dediquei todo meu amor, cuidado e atenção. Só que eu sempre tive certeza de que chegaria o momento em que você me deixaria por um homem. Por isso, era lógico que seu pai e eu iniciássemos uma nova vida, sepa­rados, porque não havia mais amor entre nós. Manter uma união falsa não iria fazer bem a ele, a mim, nem a você.

    Emudeci. Olhava-a, apenas. Mas com um profundo rancor, ape­sar de reconhecer que o que me dizia era absolutamente razoável.

    —        E sem desejo, sem amor, a vida em comum é um inferno in­suportável. Já disse isso a você dezenas de vezes, Anita conti­nuou mamãe, destemida e lógica. — Pense, filha: este homem, Carlos, que insiste em continuar casado, embora divorciando-se "to­dos os dias" e "muito infeliz", denlro de dois ou seis anos, sei lá, não terá mudado de situação e você estará na plenitude da vida. E ele... casado, ainda por cima! Bem, se o que você está buscando nele é o carinho do pai que a deixou, está equivocada, e muito, porque um pai perdido não é recuperado em um amante. Levantou-se, pegou a bolsa e caminhou até a porta.

  • Mamãe! chamei-a.             Ela voltou-se, atenciosa:

  • Diga, filha.

  • Eu quero Carlos.

  • Você vai viver com ele? — a pergunta veio à queima-roupa.

  • Espero que algum dia sim...

  • Mesmo estando casado?

  • Bem... isso não sei, mamãe.

  • Você já dormiu com ele?

  • Carlos jamais me pediu isso, mamãe.

  • É... Ele é bem esperto...

  • O quê?! — perguntei intrigada.

  • Nada, nada. Esqueça, filha.

    Nessa mesma tarde saí com Carlos como havia previsto. Mamãe tinha ido a uma praia próxima. Suponho que com Ramón, ou seus amigos, mas isso não me incomodava muito.

    Desci correndo, pois Carlos me esperava em seu carro. Contei-lhe a conversa que tivera com mamãe; na verdade, mais um monó­logo que ela sustentara diante de mim.

  • É lógico que uma pessoa que não foi bem-sucedida no casa­mento desconfie — comentou Carlos, enquanto dirigia.

  • Mas não é a todo mundo que ocorre isso, não é?

  • Claro que não! Quanto ao problema de seus pais, os fatos estavam claros para os dois. No meu caso é diferente. Trata-se de dinheiro, de bens. E minha mulher é frívola, inconsequente. Pouco se importa que eu viva da maneira que queira.

    Nesse dia ele estava mais carinhoso e protetor do que nunca. E no final da tarde voltou a convidar-me:

    —        Vamos tomar alguma coisa no meu apartamento?

    Não me sentia com forças, nem com vontade. Eu o queria, mas... Era que o desejava? Carlos era meu par, meu noivo, talvez meu futuro marido, mas... ele me atraía sexualmente? Não sabia. Nem o soube nunca. Sempre, até me conhecer bem, duvidei disso. Tive que dar outra vez uma resposta evasiva:

  • Não estou preparada...

  • De que preparação você precisa, Anita?

  • Conhecer-me mais profundamente, talvez.

  • Você não se conhece? — a voz dele revelava um certo espanto.

  • Não o suficiente, Carlos.

  • Você me ama — Ele não fez uma pergunta, mas uma afirmação.

    Não respondi. Apenas pensei. Seria amor aquilo que sentia? Aquele amor inflamado que nos arrasta, mesmo sem querer?

    Não era assim. Com Carlos  sentia-me protegida, amparada, realizaada como ser humano. Mas, como mulher, não desejava me en­tregar a ele, dava-me muito medo. Na minha idade, poucas moças ainda eram virgens. Eu era. Mas não por convicção, isso não. Talvez  por temor, por educação ou por... sei lá o quê! Mais que tudo, por falta de desejo ardente. Isso eu não sentia. Não mesmo!

    Tinha um amigo único e querido: Carlos. Mas apenas isso. O resto não me importava.

    Entretanto, Carlos era gentil, amante, delicado ao máximo. Se­ria assim por me conhecer demais?

    Com voz suave, ele tentou persuadir-me:

  • Tenho um apartamento maravilhoso, Anita. Nesse momento ocorreu-me perguntar-lhe:

    —        E onde você mora com sua família? Ele titubeou, mas por fim declarou:

  • Num bairro elegante, longe do centro... Uma casa belíssima.

  • Onde você apenas vai...

  • Quase nunca. Não encontro ninguém lá. Os empregados e só.

  • E sua mulher, Carlos?

    —        Ah... passa o tempo todo em clubes, bingos, festas sociais. Ou... com outros amigos.

    Admirei-me de que ele tolerasse tudo isso. Estaria eu sendo tão Ingênua como mamãe me alertara?

  • Vamos? — insistiu Carlos, amável e carinhoso.

  • Bem...

    —        Prometo que tomaremos um drinque e nada mais, Anita. Não. Não pude. Sentia muito medo. Queria tê-lo apenas assim.

    Não me imaginava fazendo amor com ele, embora fosse um ho­mem belo, interessantíssimo, elegante.

  • Vamos deixar para outro dia, Carlos.

    Ele concordou. Meu Deus! Eu realmente não podia acusá-lo de nada! Era uma pessoa incrível, o melhor homem do mundo para mim. O homem que eu amava... Porém, lá no fundo do meu cora­ção, permanecia a dúvida: não seria esse o carinho que se sente por um... pai?

    Carlos levou-me de volta para casa, beijou-me levemente nos lá­bios e disse-me que me amava mais do que a própria vida. Acariciou-me os cabelos. Oh, eu o adorei por toda essa ternura!

    Quando subi, mamãe já havia voltado. Estava de pijama, bas­tante relaxada, num sofá em frente à televisão. Percebi que respi­rou tranquila ao me ver chegar. Será que ela temia que eu me fosse? Bem, um dia isso iria acontecer, de qualquer maneira. Logo vive­ria minha própria vida.

    Ao me ver, apenas disse:

  • Telefonaram para você, Anita.

    Não conseguia imaginar quem poderia ser. Além de Carlos, não tinha outros amigos.

  •             Quem era? — perguntei curiosa.

  • Disse chamar-se Basil.

  • Não conheço ninguém com esse nome...

     

  • Pois já telefonou duas vezes perguntando por você, Anita.

  • Estranho... Não compreendo.

     

  • Ele disse que voltará a chamá-la, filha.

  • Bem...

    Fui para meu quarto. Mamãe, para mim, tornava-se cada dia mais importante, mas nossa comunicação era cada vez menor. Creio que isto se devia mais à minha incompreensão, mas da parte dela tam­bém havia falta de confiança. Não devia ser assim e essa situação me revoltava, mas...

    Troquei de roupa no quarto, olhando-me nua ao espelho. O que estava se passando comigo, afinal? Poucas vezes havia feito isso: admirar meu corpo, minhas formas sinuosas. Reconhecia que meu corpo era belo e harmonioso, embora eu não fosse muito alta. Se­ria um gesto erótico ou apenas curiosidade normal, própria da idade que vivia?

    Resolvi tomar um banho e vestir um pijama leve, pois fazia mui­to calor. Estávamos no verão e breve chegaria agosto. Mamãe iria para Alicante, claro. Entretanto, eu ficaria. Não sei se desejava is­so, de fato. Minha decisão parecia mais fruto de um anseio por testar minha capacidade de viver sozinha, nem que fosse só por algum tempo.

    Interrompi meus pensamentos ao ouvir as batidas na porta. Era mamãe:

  • Anita, aquele rapaz está de novo ao telefone. Chama por você.

  • Está bem, eu atenderei, mamãe — falei, enquanto pegava o telefone sem ter a menor ideia de quem era o tal Basil.

    Setei-me na beira da da cama e atendi, com uma voz vazia, diferente  do meu natural, pois os telefonemas de desconhecidos costumavam me deixar nervosa:

  • Sim? Pronto. Fala Anita.

  • Alô — respondeu-me uma voz decidida, rude, de um homem.

  • Alô — confirmei.

  • Posso ver você? — perguntou-me bruscamente.

  • Ver-me? — Meu tom era de espanto.

  • Estou perguntando se posso.

  • Mas... Para quê?

     

  • Sou Basil — afirmou o rapaz, como se eu tivesse a obrigação de conhecê-lo. Basil? — O nome não me soava conhecido.

  • ... Guzmán.

    Nesse momento estremeci. Basil Guzmán? Engoli em seco. O que significaria aquilo?

  • Bem... — voltei a falar. — Continuo sem saber quem é você.

  • Sou o filho de Carlos Guzmán.

    Fiquei tensa. Com que finalidade estaria me chamando o filho de Carlos? Insisti:

  • Não o conheço...

  • Eu sei — a voz dele era áspera, fria, seca. — Posso vê-la amanhã?

  • Para quê?

  • Preciso vê-la; falar com você.

  • Não entendo o porquê... — tentei esboçar uma recusa.

  • Eu gostaria — a voz dele continuava áspera, sem admitir réplica.

  • Mas já lhe disse que não entendo a razão! — retruquei furiosa.

  • Nem dá para explicá-la por telefone... Intimamente já havia percebido do que se tratava, mas não queria que ninguém interferisse em minha vida, muito menos o... fi­lho de Carlos. A voz rude pareceu despertar-me de um pesadelo:

  • Às sete horas, na porta de sua casa.

  • Mas... — Estava assombrada. — Você sabe onde moro?

  • Sei tudo.

  • Tudo o quê?! — assustei-me.

  • Tudo.

  • Mas...

  • Bem, vamos nos ver ou não?

  • É que... — titubeei.

  • Se você tiver compromisso com meu pai, cancele. Por uma vez...

  • É;que não vejo razão... insisti.

  • Pode deixar. Eu explicarei a razão a você.

  • E por quê?

  • Logo veremos...

    Olhe, não quero. Decidi, por fim.

  • Por favor, estou lhe pedindo. É necessário — ele insistiu, um pouco mais brando.

  • Não consigo entender as razões para esse encontro.

  • Eu as explicarei todas, prometo.

  • E por quê?

  • Bem, você aceita ou não? perguntou ele categórico.

  • De acordo — acabei dizendo. — Então amanhã, às sete, na minha porta, se é que você sabe onde moro.

  • Não se preocupe. Eu sei.

  • Então, até amanhã. — Desliguei, confusa, sem esperar res­ posta. Permaneci um tempo olhando para o telefone como se fosse um inimigo me ameaçando.

    Quando voltei à saleta onde mamãe estava, ainda me sentia con­fusa, desconcertada. Contei a ela. Não podia mais evitar que isso acontecesse. Ela era minha amiga e confidente, sabia mais do que eu sobre a vida...

    Naquele momento, isso para mim era bem claro...

     

    Mamãe ficou tão confusa quanto eu. De fato, aquela era a primeira vez que falávamos de mulher para mulher. E naquele mo­mento eu sentia uma grande necessidade de comunicação que só ela poderia preencher.

  • Nunca perguntei a você a idade que têm os filhos dele... — disse mamãe, pensativa.

    Acendi um cigarro e, com gestos nervosos e apressados, comecei fumar.

  • Pela idade que Carlos tem, podem ser adultos — expliquei.

  • Adultos... até que ponto?

  • Bem... não sei! — confessei. — Não lembro qual a idade que ele me disse que teriam... Mas, segundo me parece, a esposa é frí­vola, vive sua vida própria, tem amantes e pouco se importa com o que o marido faça. O filho vive perdido em meio ao "jet set" na alta sociedade, entre Ibiza e Marbella, e não cuida de mais nada  na  vida. Por isso, não consigo encontrar uma razão para que queira me ver.

  • E a filha?

  • É a mesma coisa, mamãe. Quando vai ao palacete em que moram, num bairro elegante da periferia, encontra tudo à sua dis­posição. Cada um, naquela casa, vive sua própria vida, sem ligar para Carlos.

    —        Mas... se as coisas são assim, por que ele não se divorcia? - O tom de voz de mamãe estava carregado de inquietação e dúvida.

    Nem havia percebido que era a primeira vez que falava com ela sobre tudo aquilo, sem disfarces ou subterfúgios. Meu próprio tom era confidencial e o de mamãe cada vez mais suave.

    —        Bem, mamãe, o motivo é o dinheiro. Se ele vender o negócio do café, que pertence aos dois, a quantia deverá ser repartida e fi­cará quase reduzida a nada. Por isso, Carlos pôs à venda uma grande propriedade que herdou de seus pais, para poder dar à mulher o que ela exige.

  • Ora... é uma explicação bastante estranha... Você sabia o filho dele se chamava Basil?

  • Não tinha ideia...

  • Olhe, Anita. Meu conselho é que veja esse Basil, tente conhecê-lo e escute bem o que ele deseja dizer a você. Mas advirto- a de que há bem poucos filhos que vêem as noivas de seus pais com simpatia. Portanto, é bom preparar-se para enfrentá-lo.

    E, sem que eu fizesse algum comentário, pois contemplava ab­sorta o cigarro que trazia entre os dedos, acrescentou:

  • Você vai contar a Carlos o encontro com seu filho? Pela primeira vez, também pedia-lhe uma opinião:

  • O que você faria em meu lugar?

  • Não diria nada, filha, enquanto não soubesse o que pensa o filho dele sobre o caso.

  • E por que tenho eu que suportar a impertinência desse rapa­zinho? — impacientei-me.  

  • Se ele procura por você, Anita, se sabe onde mora e se pede um encontro, é porque conhece perfeitamente as relações entre vo­cê e o pai dele... Não acha?

    Isso era evidente, mas, para me consolar e convencer a mim mes­ma, repliquei furiosa:

  • Deve ser um playboy mimado, desses que se metem em tudo e pretendem ser heróis de nada!

  • De qualquer maneira, filha, se você quiser um conselho...— Mamãe calou-se, esperando que eu a interrompesse, negando.

    Mas naquele dia eu precisava como nunca desse conselho ou, mais ainda, da comunicação com uma outra mulher que, além de ser minha mãe, por sua experiência, sabia muito mais do que eu. E tinha que reconhecer isso, mesmo a contragosto.

  • Pode me dar o conselho...

  • Encontre-se com ele. Quero dizer, esteja na porta de casa às sete. Eu mesma darei permissão nos armazéns para que você saia meia hora mais cedo, para evitar que seu... amigo Carlos a veja no horário de saída. Você não aparecerá e pronto! Depois de falar com o filho, vai ter tempo para desculpar-se de sua ausência.

  • Bem pensado, mamãe. Farei isso mesmo!

  • Certo. Então, você está avisada desde agora: amanhã às seis ponha de lado o medo e saia. Antes das sete você estará aqui.

  • Plenamente de acordo!

    Beijei-a, mas de uma forma diferente. Ela percebeu isso e apertou-me contra si, dando-me dois beijos muito carinhosos.

    —        Anita, eu a amo muito, filha, e sempre quis ser sua amiga, desde que você era pequena. Pense que agora você tem idade bas­tante para compreender e discernir o certo do errado. Você amadu­receu, porque já cresceu madura, mas só para algumas coisas, para outras é como uma criança teimosa. Por favor, abandone as obses­sões que tanto a martirizam.

    Apertava-me a cabeça contra seiís seios túrgidos e jovens. Ma­mãe conhecia o amor. Sem dúvida, estava apaixonada por Román e devia ser correspondida por ele. Mas nunca vi em minha mãe, nem em Román, um gesto escuso em nossa casa. Se tinham uma vida íntima, não era ali em nosso sótão. Ou por respeito a mim ou por eles mesmos.

    Pela primeira vez me dava conta de que necessitava dessa comu­nicação plena com minha mãe. Não era próprio dela ficar calada, sem opinar: mas, por outro lado, nunca me obrigaria a fazer algo que eu não quisesse. Era uma mulher moderna, sem preconceitos. Havia lutado sozinha na vida, o que a fizera ter critérios mais am­plos. Minha relação com Carlos não a preocupava por ser ele casa­do, mas pela enorme diferença de idade entre nós.

    Separei-me dela emocionada. Já que não havia mais remédio, resolvi me dispor a receber o garoto mimado que, sem dúvida, de­via ser o filho de Carlos.

    Fui me deitar certíssima de que no dia seguinte toparia com um presunçoso e empertigado rapazola, hábil em jogar ténis, golfe e em conquistar garotas fáceis em Ibiza ou Marbella.

    Dava-me raiva ter que discutir o que quer que fosse com um tipo assim, mas que remédio... Resolvi arquitetar um plano e sabia bem o que queria lhe dizer.

    Se me pedisse que deixasse em paz seu pai, ia escutar poucas e boas. A primeira coisa que ele teria que fazer era passar a ser um bom filho. E sua mãe deveria cuidar da casa, deixando de ser frí­vola e caprichosa. Ah, e sua irmã que deixasse de gastar dinheiro em roupas finas e diversões.

    Nem é preciso dizer que dormi mal. Pouco e sobressaltada.

    Em geral, não ia com mamãe de carro aos armazéns. Costuma­va ir só, um pouco antes, fazendo exercício. Mas nesse dia, pela manhã, mamãe chamou-me quando eu ainda estava no banho.

    — Estou esperando por você, Anita!

    Aceitei a carona.

    Era a primeira vez que eu entrava em seu carro e também foi a primeira vez que mamãe falou-me de si mesma. Sem dúvida, a con­versa tão íntima que havíamos tido na noite anterior tinha destruí­do rótulos de ambas as partes e aberto uma nova perspectiva em nossas relações de pessoa a pessoa, de ser humano a ser humano.

    Ao ouvi-la, ia pensando em quanto tempo eu havia perdido, sem­pre sozinha com meus "fantasmas", culpando-a de tantas coisas sem nenhuma razão.

    Não lhes disse ainda que o nome de mamãe é Benita, mas que todos a chamam de Beni. É ruiva e nisso me pareço muito com ela, assim como tenho os mesmos olhos azul-turquesa, enormes e expressivos. Como falo pouco e sou muito introvertida, meus olhos são ainda mais expressivos que os dela.

    Mamãe, no entanto, é delicada, suave, mantém a voz sempre no mesmo tom, tem distinção em tudo: no vestir, nos modos, em sua maneira de expressar-se...

    Reconhecia nela esses valores naquele momento, mas, no ínti­mo, creio que sempre os havia admirado.

    —        Román e eu — confessou-me — nos amamos. Nós nos senti­ mos atraídos um pelo outro e nos'queremos apaixonadamente. Por isso sei diferenciar tanto .o carinho do amor. Ou ambos caminham juntos ou não há nada de concreto nem em um nem em outro sen­ timento.

    — Você pensa, então, em casar-se, mamãe?

  • Não vou me casar outra vez, Anita. Nem Román, que é sol­teiro, deseja isso.

  • Mas... e filhos? Vocês ainda podem...

  • Gostamos de crianças, mas dos filhos dos outros. Não que­remos ter filhos. Eu lhe faço essas confidências-para que não co­mece a imaginar coisas e nem pense que a estou enganando. Há alguns anos essa minha atitude era intolerável, censurável e até imo­ral. Bem, o que pode ser considerado moral ou imoral? É o que me pergunto. De qualquer maneira, acho que cada indivíduo deve viver a seu modo.

  • Bem, então...

  • Anita, no seu caso eu acho que há algo a considerar: a dife­rença de idade, mais do que o dobro, é uma loucura! Falando clara e concisamente: a sua vida sexual será, sem dúvida, um problema. Uma jovem de dezoito anos está na plenitude da vida, e um ho­mem de mais de quarenta fisiologicamente começa a decair. E vo­cê já sabe o que penso da infidelidade. Ou a pessoa enfrenta tudo com a cabeça erguida ou rompe com os esquemas legais.

  • Mamãe, você já sabe que eu quero bem a Carlos.

    —        Não duvido. Mas o que se passa com você é que sempre sen­tiu a ausência de seu pai e agora vê em Carlos o pai que perdeu muito cedo. Não me sinto culpada com o que aconteceu, tampouco quero acusar seu pai de culpas que ele não teve. Apaixonou-se por outra mulher. Seria absurdo se eu o retivesse.

  • Você soube mais alguma coisa sobre ele, mamãe?

  • Não quis saber, Anita. Está feliz com outra mulher, tem ou­tros filhos e os ama.

  • Mas... e eu?

  • Está vendo? É esse o seu ressentimento... Você ficou comigo. Seu pai sabia o quanto eu a amava. A condição, quando nos sepa­ramos, pois naquela época não havia divórcio, foi precisamente es­sa:  que ele não a levasse e que também não  aparecesse e desaparecesse a qualquer momento. Isso é pior para um filho do que perder um pai para sempre. Bem, pelo menos eu resolvi assim e seu pai aceitou.

  • Mas eu o adorava...      

  • Sim, eu sei, Anita. E você continua sofrendo as consequên­cias, não é?

  • Teria sido melhor vê-lo de vez em quando...

  • É... mas seria bem difícil, Anita. Seu pai vive no exterior. Se pensa que ele é mau, por ter deixado de vê-la, filha, você está en­ ganada. Acredite em mim.

    Não faço a menor ideia do quanto conversamos, só sei que fica­mos mais próximas do que nunca. Mas isso não significava que eu romperia com Carlos Guzmán.

    Passei o dia todo inquieta, até às seis, quando mamãe, de longe, fez-me um sinal e eu fui trocar de roupa para sair.

    O calor era sufocante, pois já estávamos no fim de julho. Falta­va uma semana para agosto e eu ainda estava em dúvida se iria pa­ra a praia de Alicante com mamãe ou se ficaria na cidade. De qualquer maneira, teria férias nesse mês.

    Já ganhava bem melhor, mas não que desse para me manter so­zinha. E não sentia mais tanta necessidade disso, pois desde a noi­te anterior passara a entender melhor mamãe e ela a mim.

    Román! Então, ele era mesmo amigo dela, talvez seu par amo­roso. A vida de mamãe era bem independente da minha e em nos­so lindo e bem decorado sótão eu não o havia visto nunca, o que indicava uma evidente delicadeza e respeito da parte de ambos.

    Às seis e quinze tomei o ônibus que me deixaria a duas quadras de casa.

    Não tinha ideia do que ia encontrar. E estava com muita raiva por deixar Carlos à minha espera no pub de sempre, sem que me visse chegar. Cheirava-me a traição...

    Mas aquele encontro era necessário e eu não iria faltar. Contudo, estava certa de que faria com que acabasse o mais rápido possível.

    Quando cheguei à calçada de casa, faltavam quinze minutos pa­ra as sete. De pé, em frente à porta, vi um rapaz. Quantos anos teria? Poucos, mas não tanto quanto eu tinha imaginado. Não de­via ser o filho de Carlos... Esperava encontrar um tipo playboy, muito bem vestido, e o que via era um rapaz alto, de calça jeans, blusa pólo e um suéter de algodão amarrado à cintura.

    De repente, parei. Fixando-o melhor, não tive dúvidas: era um Carlos Guzmán mais jovem. O retrato vivo dele, mas com muitos anos menos.

    Creio que o rapaz não me associou logo com a noiva de seu pai, porque passou os olhos por mim, sem fixá-los.

    Quando parei, olhou-me melhor e perguntou:

    —        Anita Pereira? — a voz dele soou tensa, vibrante.

    O tom de desprezo ofendeu-me: tanto na voz como no olhar que me lançou.

  • Sim, sou eu mesma — respondi desafiadora.

  • Bem, pois eu sou Basil Guzmán.

    Espantei-me. Era um homem feito, embora jovem. Um Carlos Guzmán com vinte anos menos.

  • E o que deseja de mim? — perguntei, áspera.

  • Sei tudo sobre sua relação com meu pai.

  • Ah...

  • E venho pedir a você que o deixe em paz.

  • Mas eu o quero — retruquei com firmeza.

  • O que você quer é aproveitar-se da posição dele!

    Ah! Essa não! Eu não tinha sequer um presente de Carlos. Além de nunca ter tentado dar algum, eu nem sei se teria aceitado! Evi­dentemente Basil Guzmán tomava-me por uma aproveitadora, vo­lúvel e, quem sabe, uma prostituta!

    —        Parece-me que você está bastante enganado. Eu trabalho, te­nho meu emprego. Quero bem a Carlos, mas nunca aceitei dele se­quer uma flor!

    Ele ficou desnorteado com o que lhe disse.

  • Podemos conversar em um lugar mais discreto? — pediu-me.

  • Não estou interessada.

  • Mas eu estou, e muito!

  • E por que tenho que compartilhar do seu interesse? — retru­quei, altiva.

  • Pelo menos por senso de humanidade, suponho.

  • Está bem — concordei. — Aqui perto há um pub.

    —        Vamos, então.

    Ao caminharmos, percebi que, como o pai, ele era bem mais al­to do que eu. Tinha um porte atlético, atraente, mas nada nele in­dicava ser um playboy frequentador da alta sociedade de Marbella ou Ibiza!

    Não conseguia imaginá-lo com uma raquete de ténis na mão, mui­to menos praticando golfe. Tinha todo o aspecto de uma pessoa íntegra, sofrida, e parecia surpreso também com minha fragilida­de, meu aspecto simples, sem estrelismo. "Será que estamos, os dois, enganados?", pensei.

  • Diga-me onde prefere se sentar — disse-me Basil Guzmán.

  • A seu ver é necessário mesmo que tenhamos uma conversa?

  • Não a teria chamado, se não julgasse isso indispensável.

  • Bem... não entendo.

    Em vez de explicar, ele me avisou:

    —        Aquela mesa está vazia. É melhor conversarmos tomando uma cerveja. O que acha?

  • O quê? Você não bebe apenas champanhe? Basil olhou-me aturdido:

  • Champanhe?

  • Coquetel de champanhe ou qualquer uma dessas bebidas de­ liciosas e caras...

  • Como?! Eu não tenho dinheiro! — ele interrompeu-me brus­camente.

  • Não?!

    Devo ter falado e olhado com tamanha surpresa que ele acres­centou:

    —        Trabalho como um burro de carga!

    Considerei a expressão bastante forte, mas, se ele me considera­va uma mulher vulgar, era lógico que a usasse. O que me pareceu insólito era que um rapaz que passava a vida no "jet set" falasse daquele modo! E além disso mencionasse um trabalho exaustivo.

  • Formei-me em Comunicações — explicou. — Para conseguir trabalho tenho que batalhar muito.

  • Jornalista?

  • Mas... o que há? — estranhou ele. — Pois se você é tão ami­ga de meu pai deveria saber por ele como estou lutando para con­seguir um lugar em uma das grandes revistas.

    Era incrível! Carlos dissera o contrário. Ambos estávamos enga­nados: Basil sobre mim e eu sobre ele... Aceitei o convite dele e sentama-nos numa mesa de canto. Colocou sobre ela uma caixa de cigarros comuns, fato que estranhei, em vista de saber de seu gosto por coisas finas pelo próprio pai. Pediu dois copos de cerveja e, de repente, falou-me, em tom agressivo:

  • Bem... Se é você que prefere uma bebida fina, posso raspar o bolso para pagá-la...

  • Prefiro cerveja — retruquei, seca.

  • Oh! Obrigado. Mas se está fazendo isso para desculpar-se...

  • Ouça aqui! — enfezei-me. — O que há? Por que você veio? De que está tentando me acusar?

  • Você ama meu pai? — interrompeu-me.

  • Eu o quero.

  • Querer... querer... O que significa isso?

  • Exatamente o que eu disse, nada mais.

  • Querer é uma coisa... — Para meu espanto, ele parecia repe­tir as palavras de minha mãe. — Amar é muito diferente!

    Enquanto o garçom nos servia a òerveja, ele acendeu um cigar­ro, dizendo:

  • Não ofereço, pois você deve fumar coisa bem mais fina.

  • Engana-se. Fumo cigarros comuns.

  • Bem, então... aceita um? — passou-me o maço já menos zan­gado. — Será que me enganei? — parecia fazer uma pergunta para si mesmo.

  • Em que você se enganou? — indaguei, disfarçando a an­siedade.

  • Vim disposto a enfrentar uma mulher sem caráter...

  • E mais velha, não?

  • Bem... sim — a voz dele parecia vacilante.

  • No entanto, você viu que...

  • Por quê? — interrompeu-me brusco.

  • Por que o quê? — repeti, sem entender aonde ele queria chegar.

  • Por que é que você sai com um homem que, sem dúvida, tem mais do que o dobro de sua idade?!

  • Ora... porque o amo.

  • Ama? Mesmo? — A pergunta dele propositalmente obrigou-me a pensar.

  • Eu... quero bem a ele.

  • Aí está! Voltamos ao mesirío ponto... Querer não é amar — concluiu ele, com uma lógica irrefutável.

    —        Pois eu me sinto bem ao lado dele. É um infeliz, ninguém o entende...

  • Como? O que disse? Quem não o entende?

  • Nem você, nem sua mãe, nem sua irmã!

  • Foi meu pai quem lhe disse isso? — A voz de Basil tinha um que de amargura.

  • É a verdade! — quase gritei, com raiva.

  • Ah... é? Verdade só porque você acredita nisso? Ou porque foi ele quem disse? Ou será que é mais cómodo você achar que de­ve ser assim?

  • Por tudo! Você passa sua vida em Ibiza e Marbella, sua mãe tem amantes e sua irmã vive de festa em festa!

  • Ah... E você acreditou nisso tudo! — A exclamação dele ti­nha uma ponta de ironia.

  • E por que não deveria? — defendi-me.

  • É o que eu não entendo... Poderia falar-me de você?

  • E por que tenho que lhe falar de mim? — retruquei.

  • Bem... digamos... por curiosidade.

  • Ah, não sou obrigada a saciar a sua curiosidade!

  • Tem razão. Mas como tudo o que você diz sobre minha  famí­lia é tão fora de propósito, quero saber de onde você saiu: se é uma mulher de vida fácil, o que não aparenta ser, ou se é apenas uma tola que está louca por um noivo...

    Levantei-me furiosa com os insultos. Mas ele segurou-me pelo braço.

  • Espere, não se vá... — pediu-me mais gentil. — Por favor...

  • É que esta conversa me parece sem nenhuma lógica... — mur­murei, sentando-me de novo.

    Ele me olhou, analisando-me minuciosamente e eu, da minha parte, fiz o mesmo. E o que vi foi um Carlos, só que mais jovem.

  • Por que você me olha tanto? — perguntei-lhe, desafiando-o. Basil balançou a cabeça, num gesto de dúvida, e respondeu:

  • Você é justamente o oposto do que eu imaginava encontrar...

  • E o que esperava encontrar?

  • Uma mulher vulgar, grosseira, louca por dinheiro.

  • Mas eu não sou assim! — protestei.

  • Claro que não! É evidente que você é o oposto disso! — Ele parecia refletir, enquanto falava.

  • Bem... e daí? — perguntei.

  • Nada... nada...

    Fumava com gestos nervosos. Tomou cerveja e depois respirou fundo, como se quisesse livrar-se de um grande peso. Em seguida, murmurou, quase para si mesmo:

  • Droga! Juro que não esperava por isso...

    —        O que você disse? perguntei.

    Como se não me escutasse, ele voltou a indagar:

  • No que você disse que trabalha?

  • Sou empregada num dos grandes armazéns.

  • E meu pai contou a você que sou um irresponsável e minha irmã Mey, uma garota cheia de caprichos...

  • Não sei como se chama sua irmã — interrompi.

  • Mey. Chama-se Mey. E é dentista.

  • Dentista?!

  • Sim. Ela e o noivo. E trabalham como loucos para construir uma vida independente.

    Fiquei tão surpresa que ele concluiu, em voz baixa:

    —        Anita, parece-me que você foi bastante ingênua... Fiquei furiosa, sem querer admitir o que ele me dizia. Repliquei

    com firmeza, como para provar-lhe minha maturidade:

  • Eu quero bem a seu pai e. quando se divorciar, caso-me com ele!

  • Quantos anos você tem?

  • Dezoito... — murmurei, rubra de vergonha.

  • Hum... para os quarenta e quatro do meu pai... Não é muita diferença, não?

    Senti-me gelar. Outra mentira?

  • Ele disse...

  • Sim, claro, que tinha, digamos... trinta e poucos...

  • Trinta e nove.

  • Pois não sei de onde, então, posso ter surgido! Saiba que te­nho vinte é quatro anos!

  • Oh! mas...

  • E já sou jornalista. Ganho a vida escrevendo umas drogas de artigos, entrevistando uns idiotas, para vendê-las por umas pou­ cas pesetas!

  • Seu pai disse...

  • É... Já vi que ele disse mentiras demais...

  • E por que eu devo acreditar, em você e não nele? — duvidei, replicando.

    Em troca, a pergunta que ele me fez foi rude, fria, áspera, mas direta:

  • Você dormiu com ele?

  • Carlos nunca me pediu. Sempre foi gentil e delicado...

  • Ah, ah, ah! — O riso dele era uma forma de romper com a dor que sentia. — Como  são vivos os homens de quarenta e qua­tro anos, quando encontram garotinhas ingênuas como você...

  • Eu o proíbo... — comecei.

  • A mim você não proíbe nada! Falo o que penso.

    Basil levantou-se e pôs o dinheiro na mesa. Ia embora? Sim, era isso!

  • Outro dia, se tiver tempo, aconselharei a se proteger. E não é por causa do vigarista do meu pai, não. Mas porque você é ingênua demais...

  • Ouça-me... — pedi.

  • Já sei onde você mora, onde trabalha... Será fácil encontrá- la — Basil disse. E, enquanto guardava a cigarreira no bolso da calça jeans, acrescentou, magoado, com a voz quase embargada. — E quanto aos amantes de minha mãe, sem dúvida imaginários, falarei com você outro dia. — Saiu.

    Fiquei só e desconcertada. Decidi ir para casa. Mamãe já havia chegado, pois o carro estava estacionado em frente à porta.

    Não sabia direito o que Basil pretendera me dizer. Nem por que, de repente, tudo me parecia confuso, sem explicações plausíveis...

    Com certeza, mamãe me ajudaria. Era minha amiga e, antes de mais nada, mulher. Sabia, sem dúvida, muito mais do que eu...

     

    Como supunha, mamãe estava me esperando. Sozinha e sentada num amplo sofá, mas bastante tensa e ansiosa, como pude notar.

    Contei tudo a ela, sem omitir nada. Depois ficamos as duas em silêncio durante muito tempo. Mamãe não me interrompeu duran­te todo o relato. Falei em voz baixa, em tom confidencial. Nunca, como naquele momento, me senti tão necessitada da sua orienta­ção. Eu havia percebido, finalmente, que ela era a melhor amiga do mundo, além de ser minha mãe. Isso, sim, significava muito.

  • Bem... — disse ela, por fim, depois de refletir muito. — Es­tamos diante de um dilema, de uma situação insólita. Se você achou que o rapaz é o oposto da descrição feita pelo pai, há duas hipóte­ses: podemos pensar que o pai mentiu ou que é o filho quem se disfarçou. Se a filha é dentista e trabalha com seu esposo, ou noi­vo... Noivo, não é? Então, o pai também mentiu quanto à filha. O que o rapaz não esclareceu, pelo visto, é a situação da mãe...

  • Afirmou que, quanto às "imaginárias relações" de sua mãe, falaria comigo outro dia.

  • O que me parece algo um tanto evasivo...

  • Mamãe, não sei o que pensar...

  • Quer um conselho, filha? Antes você não os aceitava, mas agora que está mais próxima de mim, sinto coragem de oferecê-los. Afinal, uma jovem como você sempre acha que sabe tudo, mas as vivências de cada dia acabam demonstrando logo que nessa idade não se sabe quase nada, embora a imaginação trabalhe demais...

  • Pode me dar o conselho, mamãe.

  • Estive pensando... Seria bom dar um tempo, ter uma espécie de trégua. Passe o mês de férias comigo em Alicante. Escreva um bilhete a Carlos e deixe-o no lugar onde vocês se encontram habi­tualmente. Em trinta dias, você terá tempo para refletir ou certificar-se de seus sentimentos sobre Carlos: se é, ou não, alguém indispen­sável. Mas, sabe, em tudo isso o que mais me dói é que o filho de­le, Basil, a considere uma garota fácil...

  • Não sei, não. Creio que nisso ele se sentiu tão confuso quanto eu. Nem Basil é como o pai o descreveu, nem eu sou como ele imaginava. Disso estou bem certa.

    Naquele momento o telefone tocou e mamãe levantou-se para atender, pois estava mais perto.

  • Alo! Pode falar.

  • Por favor, a srta. Ani?

  • Da parte de quem?

  • De Carlos.

  • Só um momento, por favor.

    Mamãe tapou o fone e me fez sinais. Entendi o nome de Carlos pela sua forma de mover os lábios. Antes de atender, ela aconselhou-me:

    —                        Não conte nada a ele sobre o filho. Não vai lhe faltar opor­tunidade.      

    Já havia decidido fazer isso. De nenhum modo, depois de co­nhecer a personalidade séria de Basil, falaria dele com Carlos. Por que razão? Talvez porque já estivesse desconfiando que o pai dele mentia.

    Além disso, começava a duvidar da tática de Carlos: ele ia me ganhando pouco a pouco, através de sua experiência, e se não ha­via me forçado a ir para a cama com ele era mais por eu não ter me animado a isso...

    Atendi ao telefone, sem saber ainda o que ia lhe dizer. Mas po­dia sentir o olhar de mamãe, cheio de expectativa, fitando o meu rosto, analisando minhas reações.

  • Pronto. Carlos?

  • Estive esperando por você, Anita.

  • Sei, sei. Não pude ir. Tive que fazer algumas coisas urgentes.

  • E amanhã?

  • Bem, não sei. Sabe, tenho planos de ir à praia, em férias.

  • À praia?

  • Todos os anos vou com minha mãe, Carlos. Este ano não pos­so deixá-la ir sozinha.

  • E eu?

  • Quando eu regressar, em setembro, voltaremos a nos ver.

  • E não posso ver você na praia, Anita?

    Pensei um segundo e por minha cabeça passou uma ideia bri­lhante.

  • Impossível, Carlos. Quando viajo com mamãe, fico só com ela. Já disse que ao regressar nos veremos.

  • Vou sentir sua falta, Anita. Não vou conseguir ficar tanto tem­po sem vê-la.

    —        Tentarei lhe escrever, Carlos.

    Foi aí que notei que a voz dele soou diferente, quase como em falsete:

  • Escreva para minha caixa postal, então, Anita.

  • Ah... está bem.

  • Anote o número, sim?

    Ele ditou um número que não anotei, claro. Não quis. Mamãe me fez sinais indicando se eu desejava lápis e papel. Neguei, me­neando a cabeça.

  • Escreva-me sem falta, Ani.

  • Está bem.

  • Faça uma boa viagem... Escute, não há alguma forma de nos vermos nem que seja só para a despedida?

    Disse que não podia. O que desejava, por enquanto, era que to­da aquela confusão, que me humilhava, se aclarasse.

    Supunha também que seria difícil esclarecer tudo, se Basil não voltasse a me chamar, mas tinha o pressentimento de que isso não tardaria a acontecer. De qualquer modo, naquele momento não de­sejava ver Carlos.

  • Estou fazendo as malas e viajo ao amanhecer. Sinto muito, Carlos.

  • Eu te amo, Anita.

    Despedi-me o mais rápido possível. Acreditava no amor dele. Por que não? Afinal, Carlos era um homem de quarenta e quatro anos, embora houvesse diminuído cinco, e eu uma jovem que mal chega­ra à maioridade...

    Depois que desliguei o telefone, mamãe murmurou com grande ternura:

  • Você quer bem a ele e o respeita, embora saiba que é menti­roso. Creio que ele a ama de verdade, mas você só o estima, Anita, nada mais.

  • É bem possível, mamãe.

    E, depois de dar-lhe um beijo, fui para a cama esperando que no dia seguinte, à noite, não de madrugada como havia dito a Car­los, fôssemos passar o mês de agosto na praia.

    Mal tivera tempo de entrar em meu quarto, quando mamãe apa­receu na porta com um ar conspirador.

  • É Basil. Chama por você ao telefone.

  • Basil?

  • Ele mesmo.

  • Eu atendo, pode deixar.

    Mamãe saiu, assim que me entregou o telefone.

  • Sim? — disse, atendendo ao chamado.

  • Ficaram muitas coisas sem explicação. Posso vê-la de novo, Anita?

  • Agora?! — estranhei.

  • São apenas dez horas e mal escureceu. No pub em frente à sua casa. Pode ser?

  • Bem...

  • Por favor, Anita.

  • O que você vai me dizer? E por quem vai me tomar?

  • Olhe, tenho apenas vinte e quatro anos, mas há três luto co­mo um desesperado para ganhar a vida. Tenho contato com gente de todo tipo e aprendi muito com isso. É uma psicologia interesan- tíssima. Isso quer dizer que, se fui vê-la pensando que você era uma coisa, agora acho que me enganei e gostaria de ter certeza.

  • Devo entender o que diz com um insulto ou um elogio?

  • Ainda não sei. Mas estou pedindo a você que venha ao meu encontro. Aceita?

  • Está bem. Logo descerei.

  • Estou esperando por você.

    Mamãe havia voltado e estava ouvindo da porta. Olhava-me fi­xamente e, antes que lhe dissesse alguma coisa, ela se adiantou:

  • Vá, filha. Todo mundo tem o direito de se explicar: Basil, vo­cê... menos Carlos, que, afinal, de algum modo a engana.

  • Irei sim, mamãe,

    E vestida assim como estava, com calça vermelha de tecido fino, justa no tornozelo e um camisão folgado, com um ar meio infan­til, por causa dos mocassins baixos, saí. Nem levei bolsa.

    O pub ficava em frente à minha casa. A rua era larga, mas tam­bém bastante central, movimentada e protegida pela farta ilumina­ção que acabara de ser acesa.

    De qualquer maneira, eu havia tomado uma decisão e não mu­daria, mesmo depois do encontro com Basil. Nada, nem ninguém, impediria que eu partisse com mamãe, no dia seguinte, para a praia de Alicante. E também tinha bem claro na minha mente, até então ofuscada, que havia encontrado minha mãe como amiga e conse­lheira e não queria perdê-la por nada no mundo.

    Enquanto caminhava, ia lembrando a conversa que tivera com ela:

    —        Se esse Basil for tão "verdadeiro" como o pai dele, cuidado. Venha embora.

    O pior é que Basil, para mim, era claro, sincero, transparente. Mesmo sem ter voltado a vê-lo, sentia-o assim, no meu íntimo.

    —        Não se preocupe, mamãe. Não se tropeça duas vezes na mesma pedra, quando ainda se sente doer a ferida da primeira...

    O calor na rua era terrível, embora a chegada da noite aliviasse um pouco o ar quente que subia do asfalto.

    Eu logo vi Basil. Estava de pé junto às portas de vidro do pub, abertas de par em par. Vestia a mesma roupa de antes, apenas o suéter estava agora pendurado ao pescoço, caindo-lhe pelas costas. percebia-se nele aquela aura de homem lutador, desembaraçado, sincero e vefdadeiro, embora jovem.

    Ao vê-lo, percorreu-me uma espécie de calafrio. Como se o sen­tisse me tocar fisicamente. Estava bem longe da realidade...

    Atravessei a rua. Ele me esperava imóvel. Cheguei um pouco ofegante.

    —        Não entendo como você pode ser noiva de meu pai — disse- me ele, sem me cumprimentar, mas segurando-me pelo cotovelo.

    O contato de seus dedos na minha pele me fez sentir o sangue correr mais rápido nas veias e creio que enrubesci.

    Conduziu-me ao interior do pub, onde o ambiente estava agra­dável, graças ao ar condicionado. Muita gente apinhava-se no bar, mas Basil, sem me soltar, conduziu-me ao lugar onde já havíamos estado.

    —        Reservei a mesma mesa. Venha, Anita, vamos nos sentar. Sobre a mesa vi dois copos de cerveja e a cigarreira de Basil.

    —        Por que você me chamou? — sentei-me, enquanto fazia a pergunta.

    Ele olhou-me, antes de responder, segurando com seus dedos fi­nos e morenos o copo de cerveja, cheio de espuma.

  • Bem... eu acho que fiz uma imagem bem diferente do que você é.

  • E daí?

  • Você é uma garota de fazer "programas"?

  • Não!

  • Podemos aprofundar mais nossa conversa, Anita?

  • Até que ponto?

  • Bem... você é que falou de minha mãe, de suas frivolidades...

  • Realmente...

  • Pois não existem! — a voz dele era firme.

  • Foi seu pai quem me contou...

  • Meu pai deseja sentir-se jovem... E qual a melhor forma de conseguir isso, senão enganando uma garota? Há homens que ao chegar a certa idade não se conformam, não se aceitam como são, renegam as rugas que começam a aparecer...

  • Você está acusando seu próprio pai!

    —        Se ele acusou minha mãe de ser frívola, meu dever é defen­der a verdade.

    De repente, por cima da mesa, ele buscou meus dedos e os aper­tou. Senti como se uma descarga elétrica atravessasse meu corpo! Jamais Carlos me fizera sentir algo igual. O que estava acontecen­do comigo?

  • Basil, o que você .quer me dizer?

  • Algo terrível, Anita. Primeiro, que você não me parece mes­mo a clássica garota de "programas"; e, segundo, que meu pai men­tiu para você em relação à família dele. Você espera o divórcio para casar-se com ele? Diga, sem titubear! Você o ama?

  • Não sei...

  • Deus! Você não sabe?! O amor é algo que se sabe, se conhe­ce, se apalpa, se vive! Não admite dúvidas!

  • Não estou certa de nada.

    Ao dizer isso, fui sincera, pois não conseguia agir de outro modo. Notei-lhe nos olhos negros uma espécie de surpresa.

  • Você não sabe? — repetiu ele.

  • Não.

  • Mas faz um ano que vem saindo com meu pai...

  • É verdade. E não posso dizer que ele me tenha coagido, obri­gado ou enganado.

  • Ah, isso não! Ele a enganou, sim! Minha mãe jamais teve um amante!           

  • Como?!

  • Jamais! Ela é uma mulher caseira, amiga dos filhos e uma esposa fiel. Quem não a ama é meu pai e, por isso, mamãe, que o adora, já tentou até o suicídio.

    Peguei o copo de cerveja imediatamente. Precisava beber, minha garganta ficara seca, subitamente; os olhos, arregalados pelo es­panto. Que loucura!

  • Como?! O que disse?!

  • O que você ouviu, exatamente, Anita. Nenhum de nós é frí­volo. Temos um lar  normalíssimo, mas graças a mamãe, que é o eixo da família. O único que destoa é meu pai. E para que você entenda melhor o que se passa, o negócio de café é de meu avô, que o passou à minha mãe. Meu pai apenas o administra.

  • E eu?! — falei, quase histérica. — Qual o meu papel nessa história maluca?

  • É o que eu me pergunto, Anita. E foi por essa razão que não voltei para casa e quis vê-la novamente. Que você pense que minha mãe seja uma mulher frívola, que usa seus amigos como amantes,

  • Quero uma trégua, Basil. Um tempo para refletir.

  • Mas eu desejo vê-la de novo, Anita.

  • Para quê?

  • Não sei ainda. Acho que você é uma garota honesta, interes­sante e gostaria de ser seu amigo. Só isso.

  • Preciso ir-me agora! — esquivei-me. Levantei-me e ele também.

  • Vou acompanhá-la até a porta de sua casa — falou-me. Não o  impedi. Estava muito confusa. Quando atravessávamos a passagem de pedestres, Basil continuou a aconselhar-me:

  • Não se engane, Anita, e pense só em você, pelo amor de Deus! Papai deseja rejuvenescer a seu lado, mas nem por isso pretende perder os privilégios que tem. Só que não se pode possuir na vida tudo o que se quer, não acha?

  • Eu...

  • Espere, logo termino. Você procura um pai que perdeu aos oito anos, e o meu busca uma garota que o rejuvenesça. É um tre­mendo engano! Admito as necessidades de ambos. É humano que papai tente sentir-se jovem e você, protegida. Mas... isso trará a você uma felicidade íntima, real? Nunca! Reflita um pouco. Por mim, diria a mamãe que deixasse papai ir embora de uma vez. Sa­be o que aconteceria? Ele voltaria. Voltaria para buscar a família perdida, porque você, mais cedo ou mais tarde, também iria pro­curar por um companheiro mais adequado. E ele acabaria só, de­samparado, vazio. Por favor, pense um pouco nisso, Anita.

  • Não sei se quero pensar — repliquei, já diante de minha por­ta. — Quero descansar de tudo. Vou a Alicante.

  • Não vai me dizer o lugar exato?

  • Não.

  • Você não quer saber nada de mirn, não é?

  • Para quê?

  • Bem... não sei, mas... gosto de conversar com você, de vê-la... senti-la...

    Nesse momento, sem me dar tempo de reagir, Basil segurou-me o queixo e levantou-me o rosto. Percebi que ia me beijar, mas senti que não queria fugir. Fixou-me com seus olhos escuros, profun­dos. Meu sangue parecia correr loucamente nas veias, fazendo meu coração pulsar, como se fosse explodir a qualquer momento.

    Beijou-me na boca. Bem lento, demorado, buscando-me a lín­gua, cheio de sensualidade, as mãos apalpando-me os seios.

    Quase sem fôlego, afastei-o de mim; mas, antes de entrar, olhei-o como se fosse quase translúcido. Ali estava ele, de pé, fitando-me, analisando-me... Apreciei-lhe os olhos escuros, cheios de ad­miração, ternura e prazer.

    Tomei o elevador. Meu Deus! O que se passava comigo? De re­pente, sentia que Basil me atraía muito mais do que o pai! Seria isso? Estaria buscando alguém tão jovem quanto eu? Teria esque­cido, por fim, o amor de meu próprio pai, perdido tão cedo?

    O elevador subia. Em meus lábios ainda saboreava a doçura e o calor do beijo de Basil, sentindo nos seios a pressão cálida de seus dedos. Carlos ia desaparecendo de minha mente, de minha vontade, de minhas lembranças...

     

    Entrei em casa como um furacão. Sentia que precisava chorar. Sensível demais, sempre que minha sensibilidade era profundamente atingida aliviava minha dor soluçando, em prantos.

    Mamãe me esperava; mas, como sempre, não me perguntou na­da. Querida mamãe! Respeitava-me mesmo nesse momento em que teria todo o direito de me fazer perguntas.

    Fui para meu quarto, sem ao menos tomar um banho. Tirei toda a roupa, tremendo de ansiedade ,e deitei-me, cobrindo-me até a ca­beça. Mamãe entrou e foi apagando as luzes, recolhendo minha roupa espalhada pelo carpete. Depois afastou um pouco o lençol e deu-me dois beijos.

    — Durma, Anita, descanse e não pense. Amanhã não iremos trabalhar, pois combinei com Romám, por telefone, que resolva na firma tudo o que é necessário para as nossas férias. Ele irá tam­bém para Alicante nos fins de semana.

    Nada mais disse. Quando consegui dormir, já devia ser bern tar­de. Por baixo da porta do meu quarto via uma nesga de luz, o que indicava que mamãe estava lendo ou deitada no sofá do living, re-fletindo.

    Eu achava que da minha parte poderia parecer crueldade não lhe contar tudo, mas sentia-me tão perdida e estranha que não se­ria capaz de transmitir com clareza meus pensamentos. As pala­vras sairiam soltas, sem sentido algum.

    Sabia que mamãe poderia consolar-me, aconselhar-me, preparando-me para emoções tão fortes, mas naquele momento eu voltava a ser a garota introvertida que preferia viver só, pensar só, sofrer só.

    Não estava agindo assim por causa da falta que sentia de meu pai, nem por culpá-lo. De modo algum. Aos poucos eu ia me en­tendendo melhor, sabendo o que queria e do que necessitava. No entanto, a consciência de ter sido enganada fazia-me sofrer, por­que realmente eu acreditava em Basil, não em Carlos. Por que so­fria? Ainda não sabia a razão, mas desconfiava...

    Para mim, aquele beijo na boca, suave, longo, porém ardente, tinha sido revelador. Em momento algum havia sentido emoção tão forte com Carlos. Nunca desejava que me beijasse e, quando ele o fazia, eu logo afastava minha boca.

    Pela manhã, não sei a que horas, mamãe apareceu. Trazia na mão uma revista e um envelope. Permaneci deitada, olhando-a interro­gativa. Ela já havia saído, porque estava, como sempre, vestida com elegância. Podia ser que não tivesse dormido em casa. Não pode­ria reprová-la. Era dona de seus sentimentos e ações.

  • Isto estava debaixo da porta — mostrou-me o envelope. — Saí e, quando cheguei, dei uma olhada na caixa do correio. Achei esta revista e, sob a porta, este envelope com o seu nome.

  • E a revista, o que significa? — perguntei espantada.

  • Bem... para ser sincera, nem a olhei, Anita.

    —        Eu gostaria de vê-la, mamãe —pedi, sentando-me na cama. Mamãe, enquanto isso, ia falando:

    —        O carro está pronto. Fui buscá-lo na oficina onde ficou des­de ontem para uma revisão completa. Minhas malas estão arruma­das. Agora falta você arrumar sua bagagem para um mês.

    Eu mal ouvia o que ela dizia. Estava ansiosa para abrir o envelo­pe e ler seu conteúdo. Era uma pequena carta.

    "Anita,

    Como pode ver, sou Basil, o jornalista. Na caixa de correio dei­xei uma revista onde assino uma reportagem feita com uma impor­tante personalidade da música atual. Não menti para você. Meu desejo é provar-lhe isso e que entenda que meu trabalho é duro, mas honesto. Não culpo meu pai, nem o desprezo por suas menti­ras. Afinal, cada um ganha sua batalha como pode. Mas, por fa­vor, o que não admito é que ele envolva nessas mentiras uma jovem terna e crédula como você. Eu a admiro. Perdoe-me, mas preciso lhe confessar que você me impressionou demais. Espero ansioso por setembro, para poder vê-la novamente. Não contrarie esse an­seio profundo que sinto por você.

    Seu fiel amigo, Basil."

    Mamãe, ao ver-me balançar inconscientemente a cabeça, enquan­to lia; adiantou o meu trabalho. Pegou as duas maletas, a bolsa de viagem e foi tirando algumas roupas do armário.

  • Mamãe—chamei-a. Ela voltou-se para me olhar.

  •  Sim?

  • Pode me dar a revista, por favor? Está sobre a poltrona. Ela entregou-me a revista e, em troca, eu lhe dei a carta para que lesse.

    Procurei, nas entrevistas, aquela que trazia o nome de Basil Guzmán. Lá estava ela. Via-se a foto do entrevistado e o texto assina­do por Basil. Era uma entrevista comum, nem melhor nem pior que qualquer outra. Mas o que interessava era que ele não havia mentido. Era um jornalista, sim, ainda abrindo caminho na pro­fissão.

    Mamãe já havia lido a carta e me observava, esperando que eu lhe desse minha opinião.

    —        É verdade que ele assina essa entrevista? — perguntou por fim. Entreguei-lhe a revista. Ela analisou-a lentamente. Pareceu-me

    passar um século, antes que a fechasse.

    —        É realmente um jornalista. Nisso ele não mentiu.

    Nada mais comentou, nem eu. Apenas agradeci. Em seguida fui arrumar as malas e vestir-me para a viagem que íamos fazer de carro até a praia. A viagem vinha a calhar: precisava fugir de tudo aquilo.

    Eu não sabia dirigir, mas mamãe era ótima motorista. Ela não havia ainda perguntado nada sobre meu encontro com Basil na noite anterior. E eu precisava muito falar sobre isso. Aguardava uma opor­tunidade.

    Lembro-me de que paramos para comer em um restaurante à beira da estrada. Aproveitei para dizer a mamãe:

  • Você não me perguntou nada sobre o que Basil me contou ontem à noite...

  • Bem... Decidi esperar que você tomasse a iniciativa de contar-me, quando quisesse.

  • Ah, mamãe... Não será indiferença?

    Ela apertou-me a mão com ternura e respondeu:

  • É por consideração pela sua idade, Anita — confessou-me. — Você tem todo o direito do mundo de viver sua própria vida, e eu desejo muito que você acerte em suas decisões. É difícil acer­tar, filha, e muitas vezes as pessoas se equivocam mais do que acer­tam. O importante é aceitar derrotas, levantar-se e continuar lutando.

  • É o que você tem feito, mamãe?

  • De certo modo, sim.

  • Você deve ter sofrido tentações, não? — comentei num tom amistoso.

  • Muitas, querida.

  • O primeiro desengano... fez com que você se tornasse mais madura?

    —        Creio que... Fez corn que visse a vida com maior clareza, Anita.

    Nesse ponto resolvi contar-lhe tudo o que Basil havia me dito. Mamãe não se alterou. Devia ser uma mulher feliz por ser tão cautelosa! Admirava seu temperamento reservado, sua inteligência. Des-se modo havia progredido nos grandes armazéns, onde já era a chefe de todo o pessoal.

    Comentei com ela que, na minha opinião, as pessoas não deve­riam ser nem sentimentais nem suaves, mas frias e calculistas.

    Ela imediatamente replicou:

  • Para algumas coisas é necessário ser fria, para outras, suave e sentimental. Depende do momento, da pessoa, da ocasião. Uma mulher que trabalha numa grande empresa, como eu, pode ser mui­to fria para calcular e mandar, mas bastante amorosa, sensível, pa­ra discernir os próprios sentimentos.

  • Você amava papai, quando decidiu deixá-lo?

    —        A chama foi se apagando, Anita. E nem ele a avivou, nem eu soube fazê-lo. Apagou-se completamente e fomos bastante cons­cientes para reconhecer isso.

  •  Entre ambos?

    —        Claro. De comum acordo, Anita.

  • Sempre pensei que você não quis reter papai.

  • Anita, você ainda é muito jovem e inexperiente. Falta-lhe aprender muitas coisas sobre a vida, mas a própria experiência irá ensinando. Escute: reter uma pessoa que deixou de amar você é co­mo beber água de um poço imundo. Um dia acaba por matá-la. E, se quiser um exemplo mais claro ainda, não resta dúvida que um morto nunca ressuscita. Dá para entender?

  • Sim, creio que sim... Se o amor morreu...

  • Bem, então veja. Há outra coisa importante, filha. A vida sentimental, as emoções de uma pessoa e a sua vida sexual devem se desenvolver juntas. Uma só não basta, não satisfaz plenamente. Ou andam juntas, ou não são nada. Não somos anjos ou santos, Anita, e, se fôssemos, estaríamos nos altares. Somos apenas seres humanos e nos comportamos como tal. Se não agirmos assim, ou nos transformamos em ditadores ou em amebas, inexpressivos e amorfos. Posso lhe garantir: seu pai e eu éramos seres humanos conscientes.

  • Quer dizer que você não...

  • Espere. Ainda preciso lhe explicar mais algumas coisas, filha, para podermos  falar sobre Basil e Carlos, que é o objetivo dessa nossa conversa, não? Quando o amor morre, é terrível suportar al­guém que você sabe que não mais a ama. Você se humilha e ao mesmo tempo sacrifica inutilmente a outra pessoa; é uma situação penosa e bem pouco edificante, pode crer. E quando você vai vi­vendo essa situação dia a dia, momento a momento, mesmo sem perceber, também deixa de amar. Afinal, por que dar seu amor a quem não o quer e não deseja retribuí-lo? Perde-se a dignidade, o amor próprio, a força vital que mantém a nossa identidade.

  • Sim, mamãe, concordo. Mas...

  • Foi o que me aconteceu, Anita. Quando casei com seu pai, eu o amava. Depois, pouco a pouco, dia a dia, ano após ano, o interesse físico acabou e os sentimentos e emoções já estavam des­ truídos havia muito tempo. Eu não fui infiel a seu pai. Jamais! Ele, sim. Não o fez por maldade, Anita, mas porque seus sentimentos mais profundos já estavam ligados a outra pessoa. Não se trata de falar em machismo ou feminismo, ou bobagens do tipo. São senti­ mentos que morrem, necessidades físicas que, por esse motivo, não se compartilham mais. Você está me entendendo?

  • Claro, mamãe!

  • Bem, quando seu pai e eu percebemos o que nos acontecia, antes de nos odiarmos até a morte decidimos ambos tomar cami­nhos diferentes. Se eu não fui infiel, foi porque não tive outro amor na época. Não senti necessidade de ser infiel, Anita. Se precisasse agir assim, tenho certeza de que falaria com seu pai sobre isso pri­meiro. Assim que eu soube que ele amava outra, seu pai não me negou o fato, filha. Foi bastante sincero. E olhe que uma mulher percebe fácil quando seu marido deixa de amá-la, porque sente que algo, fora da convivência do lar, completa-o de verdade.

  • Então vocês se separaram como amigos! — exclamei, encan­tada com a descoberta.

  • Sem dúvida, Anita. Só que não foi fácil, não. Como já lhe disse, é um processo lento, mas quando o moribundo vai se aca­bando dia a dia e, por fim, se converte em cadáver, o que lesta mais para se fazer? Por que o nosso imenso amor morreu? Não sei. Mo­notonia? Jovens demais? Imaturos? Pode ser até tudo isso junto. Há pessoas que se odeiam, como certamente acontece com esse Car­los que você tanto admira. Veja tudo o que ele faz! Mente, falseia situações, condena a própria família... Para quê? Seria bem me­lhor para ele e para todos que encarasse de frente o seu problema afetivo.

  • Mas você sabe que nessa situação concreta há interesses eco­nômicos.

    É... lamentável, Anita, lamentável... Basil tem razão. Parece-me um rapaz sensato e, digo mais, pela entrevista que li, elaborada por ele, nota-se que é um ser humano fantástico.

  • O que você faria se estivesse no lugar da mãe de Basil?

  • Pediria o divórcio — ela opinou com firmeza, segura de si. Imaginei-a diante de meu pai, sabendo-o infiel e procurando, mes-

    ho assim, trocar ideias com ele. Sofrida? Pode ser que sim, mas, orno ela mesma dizia, o sentimento sem reciprocidade já não é o mesmo e vai morrendo. Pelo menos para uma mulher como mi­nha mãe... Emocionada, senti desejo de confessar-lhe algo de mu­lher para mulher, de amiga para amiga:

    —        Mamãe... Bem... Agora estou sentindo que quem me causa emoção é Basil. Estou tão confusa...

    Nesse momento já estávamos no carro e ela dirigia. Repetiu, pen­sativa:

  • Basil a emociona...

  • Perto dele sinto minha pele se arrepiar, meu coração bater mais forte. Acho que eu...        

  • Que você o deseja — cortou-me ela, sem perguntar, adivi­ nhando o que se passava comigo.

  • Isso é desejo?!

    —        Suponho que sim, filha. Você já sentiu algo parecido com Carlos?

  • Jamais! — confessei.

  • Bem... é que em Carlos você vê seu próprio pai reencarnado e em Basil, um homem. Um homem que a atrai. Não sei que con­selho lhe dar. Ou melhor... no momento o que deve fazer é passar um mês tranquila, tomando sol, sem fugir dos rapazes, participan­ do dos grupos... Vivendo. Porque você não tem vivido, Anita. Até agora só imaginou que vivia...

    Reconheci que mamãe tinha razão. Atenta ao volante, ela acres­centou:

    —        Uma coisa é clara. Carlos a enganou. A esposa dele é uma boa pessoa. É caseira, ama o marido, que, em troca, desfruta do dinheiro dela... Além disso, não se pode chamar um filho de pilan­tra, folgado, quando o rapaz é trabalhador. Nem acusar uma filha de frívola, se é universitária e trabalha. E digo mais, Anita. Se eu estivesse no seu lugar, deixaria de trabalhar nos armazéns em se­tembro e procuraria cursar a universidade, buscar uma carreira...

  • Isso não, mamãe!

  • Pois algum dia você vai se dar conta de que está cometendo um grande erro.

    Esse assunto eu não desejava nem discutir. Mantinha uma posi­ção firme. Ganhava um bom salário, lia muito, porque era uma ca­racterística minha. Fazer carreira universitária não me atraía.

    Iá bem perto de nossa casa de veraneio, situada num pequeno povoado encantador, onde se misturavam lindas praias com uma bela vegetação, mamãe perguntou-me de supetão:

    —        Você vai continuar com Carlos?

    —        Não, não vou — respondi e isso era claro para mim. Mas tinha que encontrar a forma de romper com ele quando re­gressasse.

  • Por que não lhe diz a verdade? — aconselhou-me mamãe, sempre objetiva e simples. — Mentiras e falsidades você já sabe a que conduzem...

  • É que creio que ele me ama...

  • É certo. Mas porque ele a ama você se acha na obrigação de aguentá-lo?

  • E Basil?

  • Ah... — Nesse momento mamãe fez um gesto vago. — Isso sim, é o essencial...

    E ficamos por aí, sem aprofundar mais o assunto. Parecia que ela tinha medo de se tornar explícita demais e eu de ser pouco clara.

    Quando entrei em casa, respirei a plenos pulmões, aliviada! Fi­cara sabendo de tantas coisas que desconhecia... E havia faiado bas­tante sobre minhas dúvidas...

    Senti-me mais comunicativa com os amigos de mamãe. Deseja­va viver, ambientar-me com os jovens e, se possível, divertir-me muito.

    Foi um mês delicioso! Desliguei-me de tudo, até dos assuntos do governo, os quais, na cidade grande, era impossível deixar de acom­panhar, por causa da imprensa diária. Não quis ouvir rádio nem ver televisão.

    Passava o dia estendida na areia. À tarde, quando o sol era me­nos forte, ia com grupos de rapazes e moças a uma discoteca. Não quis me prender a nenhum namorado e fiz isso conscientemente. E descobri algo fundamental: esquecia-me de Carlos, não o acha­va necessário, querido. Ia perdendo significado na minha vida. É evidente que não lhe escrevi.

    Entretanto, lia todas as revistas onde havia entrevistas feitas por Basil, com personalidades de maior ou menor importância. Ma­mãe fazia o mesmo.

    Ah! Conheci Román melhor. Vinha todos os fins de semana. Ele e mamãe eram discretos em relação a mim, porque Román não fi­cava em nossa casa, hospedava-se num hotel. Não sabia quando se viam na intimidade, nem me importava com isso. Encontravam-se e parecia-me muito normal.

    Fui educada de um modo bastante liberal e, embora não fosse uma garota liberada, por opção minha, em meu contexto social eu O era. Por isso aceitava a relação de mamãe com Román, que era um homem aberto, amável, delicado, sincero.

    Se iriam se casar, ou não, era coisa deles. Creio que acabariam por fazê-lo algum dia, mas eram pessoas maduras e sabiam bem o que desejavam da vida.

    Formavam um casal maravilhoso! Ele, alto, delgado, de aspecto simpático, não muito bonito, mas interessante. Admirava mamãe, fato que era notório. Ambos eram dois lutadores, pessoas íntegras quanto ao caráter, e o que estabelecessem como relacionamento en­tre si eu aceitaria sem qualquer objeção.

    Creio que aquelas férias contribuíram muito para o meu ama­durecimento. Não quis viver nenhuma experiência amorosa exclu­siva, com alguém da minha idade. Aproveitei para ampliar e aprofundar a comunicação com mamãe e também com Román, que costumava comer conosco em nossa casa, na praia, ou convidando-nos para sair.

    Assim ia terminando agosto. A volta ao trabalho, ao nosso só­tão e aos problemas que precisaria enfrentar, aproximava-se. Não havia como fugir dela.

    Já na viagem de regresso, no carro, mamãe tocou no assunto cru­cial, que havia evitado durante todo o mês de férias em Alicante.

  • O que você pretende fazer com Carlos, Anita?

  • Deixá-lo.

  • Ah... Decidiu-se por isso, então?

  • Sim... — minha voz, porém, estava carregada de pena e in­certeza.

  • Está com coragem? — perguntou-me ela, percebendo minha insegurança.

  • Preciso ter, pois essa situação não pode continuar. O que acha?

  • Que você tem razão, mas... não lhe fale sobre o filho — aconselhou-me ela, depois de refletir um pouco. — Nem sobre as mentiras. Você é jovem. Diga-lhe que conheceu pessoas que estão mais de acordo com a sua idade. Que não vai sacrificar sua juven­tude pela maturidade dele.

  • Será que falar apenas isso vai ser suficiente? — duvidei.

  • Não sei. Suponho que ele tenha capacidade para entender.

  • E se não entender?

  • Bem... então seja mais explícita! Que remédio...

  • Mas... de que modo, mamãe?

  • Como uma mulher madura agiria.

  • Você me considera madura?

  • Não, Anita. Mas você precisa começar a ser... Fácil era dizer. O difícil era pôr em prática.

  • Está bem. Vou tentar.

  • Cuidado para não se deixar enganar de novo...

  • Não quero voltar a me iludir, mas também não desejo magoá- lo, mamãe.

  • Ora, ele não pensou em você, quando lhe mentiu.

  • É... mas até que ponto mentiu? Ainda não consigo estar to­talmente convencida...

  • Mas... em todos os pontos! — respondeu mamãe, enfática, apesar da paciência habitual. — Ele não tem o direito de jogar com os sentimentos de uma garotinha! O que esse tal Carlos pretende? Fala mal dos filhos, que.são leais e bons. E acusa a mulher de frí­vola e cheia de amantes... Quer mais do que isso?!

  • Será verdade que mente tanto? — voltei eu com minha dúvi­da absurda, criada pelo medo do que me esperava.

  • Você não acredita em Basil?

  • Ainda não estou segura... Devo acreditar?

  • Sim, deve. — A segurança dela surpreendeu-me. — Román averiguou tudo o que Basil lhe contou. É a mais pura verdade!

  • Ah, então... Carlos é mesmo um mentiroso... — minha voz soou ainda vacilante.

    A viagem foi dura para mim. Temia o que me esperava na Capi­tal. O que faria, meu Deus?

    Chegamos em casa e nosso sótão pareceu-me mais lindo do que nunca. Entretanto, nada havia mudado nele.

    Lá se fora mais um verão, como tantos outros, mas para mim diferente dos demais. É que entre mamãe e eu passara a existir uma comunicação que antes não havia. O sótão era o mesmo. Eu não.

    Mamãe tinha uma secretária eletrônica e colocou-a para funcio­nar logo que entramos. Não sei ainda se por ela ou se por mim. O fato curioso é que para mamãe não havia nenhum recado e para mim, muitos.

    Ela, discreta como sempre, começou a desfazer a bagagem. Con­tudo, estava .atenta aos recados que eu ouvia. O primeiro era de Carlos:

    — "Anita, espero por você. Assim que chegar, telefone-me, por favor."

    Depois, o recado de Basil:

     — "Anita, quando você chegar, ligue para a redação desta re­vista — citou-a. Trabalho nela como correspondente. Por favor, não deixe de chamar-me."

    Logo depois, um novo recado de Carlos, seguido de outro de Ba­sil. Fiquei quase louca entre os pedidos do pai e do filho!

    Finalmente, uma mensagem mais longa. Era Basil. Basil! Meu Deus! Por que influía tanto em mim aquele filho de Carlos? Estre­mecia só de ouvir-lhe a voz. Mamãe também o escutava, mas sem demonstrar, continuando a fazer seu trabalho de arrumação.

    —“Não deixe de chamar-me, Anita. Estou na redação. Ando buscando rumos para minha vida profissional, o que não é fácil. Ser formado em Comunicações não ajuda muito. Estou agora li­gado à política. Por favor, quando voltar, chame o número que vou lhe dar. Preciso vê-la.”       

    Quase morri de angústia, pois não sabia o que fazer. Mamãe continuava serena, pendurando minha roupa no armário. Por fim, pedi-lhe socorro:

  • Mamãe... que faço?

  • Sobre o quê?

  • Os dois...

  • Chame o filho.

  • E o pai, mamãe?

  • Você chamará mais tarde.

  • Quando?

  • Ora, filha. Depois de falar com Basil!

  • Mamãe, você gosta de Basil, não é?

  • É... pode ser. Ele me parece muito sincero.

  • E se você estiver enganada? — perguntei num tom ressabiado.

    —        Anita, deixe de ser desconfiada! Justo com o filho... Achei que ela tinha razão e chamei Basil pelo número que me deixara na secretária eletrônica. Logo ouvi a voz que me deixava tão excitada. Tinha um timbre diferente, marcante.

  • Sim? Quem fala?

  • Anita. É Basil?

  • Ah, até que enfim.

  • O que aconteceu? — indaguei, preocupada.

    —        Nada. Só que você chegou e eu quero vê-la. Podemos nos encontrar esta tarde?

    — Por quê?

  • Não sei, Anita.

  • Não sabe?!

    —        Bem... Até que sei, sim... Mas, antes de mais nada, tenho um; novidade: deixei a casa de meus pais. Você já sabia?

    Estremeci. Como poderia saber?

  • Não. Não sabia...

  • Pois fui embora. Olhe, o problema é deles, não meu.

  • Ah... — surpresa demais, não encontrei o que comentar.

  • Você considera isso engraçado?! — equivocou-se Basil, ao ou­vir minha expressão vacilante.

  • Não! De modo algum! — apressei-me a esclarecê-lo.

     — Estou morando num apartamento pequeno e simples.

  • Basil — interrompi-o, já menos assustada. — Que lugar ocupo eu em suas novas decisões?

  • Bem... o que eu sou para você, Anita, não sei. Para mim, vo­é quase tudo.

  • E... que faremos?

  • Queria vê-la mais tarde.

  • Onde?

    — No mesmo lugar de sempre: napub em frente à sua casa. Pode ser?

  • Tudo bem. A que horas?

  • Às sete.

    Desligamos. Mamãe olhava-me enquanto pendurava minhas rou­pas. Não sei se aprovava ou não o que eu havia combinado. Mas nesse momento eu não queria saber da opinião dela. A vida era minha e tomei a decisão que me agradava. Não conseguiria recu­sar esse encontro com Basil.

    Mamãe continuava seu trabalho. Parecia alheia a tudo, mas eu me enganava. Ela se inteirava de tudo...

     

    Fui ao encontro de Basil. Recordo que estava vestida ainda com a mesma roupa da viagem: calça jeans, camisa pólo vermelha e san­dálias de praia. Devia parecer uma menina, com os cabelos presos num rabo de cavalo. Estava com a pele dourada pelo sol de Alicante, contrastando com meus imensos olhos azuis. Com o rosto sem nenhuma pintura, podiam tomar-me por uma garotinha brincan­do de ser mulher. Bem, na realidade sentia-me como uma verda­deira mulher e até meus seios estavam sensíveis e túrgidos pela emoção.

    Uma emoção que até aquele momento jamais havia sentido, o que indicava que algo novo e belo estava nascendo em mim. Isso era evidente.

    Lá estava ele! Alto, porte altivo e atlético, embora delgado, fazia-me imaginar Carlos, na sua idade, e não me espantava em absolu­to que a filha de seu patrão tivesse se apaixonado por ele, que, por sua vez, casou-se com as lojas de café... Ora, eu estava sendo irô­nica. Quem sabe não havia sido desse modo. Entre ambos podia ter surgido um amor sincero que os levou ao casamento. Depois, oi sentimento em Carlos devia ter diminuído, até acabar, como ha­via acontecido com meus pais... O pior era que a mãe de Basil fos­se tão fraca e sem coragem de mandar o marido para o inferno.

    Mas nesses assuntos eu não tinha o menor direito de me imiscuir. Para mim, Carlos já nem era mais o símbolo da recordação de meu pai. Não passava de um mentiroso, de quem eu ainda gostava,  apesar de sua falsidade, e sentia pena (isso sim era o mais lamlentável). Tinha dó dele porque sabia que me amava, e eu fora ingênua o bastante para cair em seus braços. E se isso não aconte­ceu, foi porque ele também não me forçou... o que me levava a con­cluir que Carlos tivera, de certo modo, consideração para comigo.

    Seria fruto do amor? Basil veio ao meu encontro e espontaneamente tomou-me as

    mãos, apertou-as e, sem soltá-las, inclinou-se e beijou-me na bo­ca, de leve, mas com os lábios abertos, possessivos. A emoção to­mou conta de todo meu ser. Meu corpo vibrou.

    Qlhou-me longamente. Via-me refletida em seus belos olhos ne­gros. "Não", pensei, "Basil não pode ser um impostor como seu pai". Era jovem, sincero e trabalhador. Temia que ele quisesse ape­nas me entreter, para que eu abandonasse o pai. Enquanto isso, reorganizaria o casamento quase falido de Carlos com sua mãe, que da forma que estava devia fazê-lo sofrer, bem como à sua família.

    Mas o olhar franco, sereno e apreciativo de Basil fazia-me con­fiar nele, deixando de lado essa dúvida. Sem soltar-me as mãos e olhando-me como se não me visse há séculos, conduziu-me pelo pub até a "nossa" mesa de canto, onde já havia dois copos de cer­veja e a sua cigarreira.

    Mal nos sentamos, apertou com mais força minhas mãos, sobre a mesa, e falou:

    —        Sabe, Anita, saí de casa. Do lugar onde sempre vivi e consi­ derava meu lar. De repente, percebi que não suportava mais meu pai e, menos ainda, a fraqueza de mamãe com relação a ele. Estou farto disso! Não admito o amor, sem que os dois interessados sin­ tam o mesmo, reciprocamente. Minha mãe o ama, mas ele não a quer. Vive e se diverte a seu modo. Apega-se a uma juventude que já está lhe faltando...

    Respirou fundo, pois havia me confessado tudo num só fôlego, como se estivesse louco para desabafar comigo suas reflexões.

    De minha parte, quase não conseguia respirar, o peito doído de emoção, ouvindo-o extasiada. Basil continuou, com a voz grave, porém mais devagar:

    —        Logo que lhes disse o que queria e o que pensava de toda aque­ la loucura, fui embora. Deixei-os sozinhos. Mey, minha irmã, vai fazer o mesmo, a qualquer momento. Trabalha com o noivo, lu­tam, defendem-se e, assim que lhes conviver, irão se casar. Eu não sou tão fanático pelo casamento e Mey, vendo o desastre que é a união de nossos pais, talvez também não se entusiasme. Mas ela e Rafael se amam. Quando se casarem será por estarem prepara­dos para isso.

    Não podia negar a franqueza dele. Eu, ainda muda, apenas o olhava, compreensiva. Basil acrescentou:

    —        Anita, creio que a amo. Pensei em você durante todo esse tem­po, quase todos os minutos. Não faço o género do galanteador que procura tirar a noiva do próprio pai. Tampouco gosto de unir-me a alguém bobamente. Agora estou mais preocupado com minha pro­ fissão e com meu estado emocional, para ficar correndo atrás de namoricos ou de sexo. O sexo eu o aceito, por necessidade, por um lado, e por sentimento, quando possível. Se ambos puderem vir uni­dos, melhor ainda.

    Basil disse tudo sobre o que sentia e o que pensava em poucas .lavras. Eu não senti necessidade de acrescentar mais nada diante i que ouvira. Soltou-me as mãos e pegou o copo, convidando-me:

  • Vamos beber, Anita, e brindar, porque nos conhecemos!

  • Basil, nunca passou pela sua cabeça que eu podia haver men­tido para você quanto às relações com seu pai? Que poderia ter feito amor com ele?

  • Não — foi a resposta curta e simples dele.

    Depois de uma breve pausa, para beber um gole de cerveja, Ba­sil comentou:

    —        Ninguém passa por idiota, a menos que já o seja de nascença. Eu não me considero vaidoso, mas creio que sou até bastante esperto. Pouco a pouco você irá percebendo... Anita, querida, co­mecei a viver cedo demais. Aos quinze anos já tinha relações se­xuais. Algumas vezes com garotas de minha idade, outras com mulheres adultas, e com elas aprendi muitas coisas boas e más.

    Interrompeu-se, tomou outro gole de cerveja e olhou-me com mais intensidade, buscando os meus olhos. Depois suspirou, con­tinuando:

    —        A vida na minha casa não era tranquila. Dinheiro? Não fal­tava. Vivi numa mansão. Amigos ricos, quantos quisesse. Mas, e o amor, a comunicação sincera? Isso, nada! Prometi a mim mes­mo, vendo esse desastre sentimental, as desventuras de minha mãe, seu pranto, as mentiras de meu pai, sua frivolidade, que seria um homem de bem. E é desse modo que você deve me encarar. O mes­mo ocorreu com minha irmã, Mey... Há filhos de lares semidestruídos que se tornam marginais, drogados, imaturos, falsos. Nós dois, por sorte, não fomos deformados pela abundância de bens materiais. Aprendemos a suprir o que nos faltava quanto a com­preensão espiritual, afetiva, e construímos uma personalidade mo­ralmente forte.

    Não vou continuar narrando tudo o que Basil desafogou comi­go naquela noite. Recordo que, além da cerveja, comemos uma re­feição leve e fumamos. Ambos nos sentíamos profundamente emocionados por estarmos juntos.

    Assim, não era de estranhar que, ao chegar à minha porta, Basil me tomasse nos braços. Eu não sabia ainda o que era ser "possuí­da" por alguém, mas, aconchegada contra seu peito másculo, sentia-tae assim. A emoção era tanta que não me permitia falar.

    Basil beijou-me, acariciou-me, jurando-me que eu era a única mulher que o havia feito pensar em uma relação de amor duradou­ra. E senti que o amava profundamente. Não por ingenuidade, dessa vez. Mas porque Basil era o homem que o destino me reservara. Nem sei como tive forças para separar-me dele, pois queria con­tinuar abraçada a seu corpo, fazer amor ali mesmo. Que loucura! Ele não me pediu isso, mas creio que junto a Basil as sensações que eu vivia estavam muito próximas da realização do desejo e do prazer físico e afetivo...

  • Espero você amanhã, à mesma hora, no mesmo lugar — disse- me seguro de si, mas ao mesmo tempo suplicante.

  • Não faltarei... respondi, murmurando, com a boca ainda quase colada à dele.

    Quando cheguei em casa, encontrei Román jogando com ma­mãe uma partida de xadrez. Ambos muito tranquilos. Que coisa rara! Os dois eram amantes havia muito e, sem dúvida, para eles comunicação, sexualidade e compreensão eram uma coisa só.

    —        Sua comida está guardada, no forno — avisou-me mamãe. — Estou disputando esta partida com Román. Logo você nos conta­rá como foi seu encontro com Basil, querida.

    Tudo tão simples! Senti que mamãe queria me dar a entender que estar com Román, ali, era como se estivesse diante de meu pai. E a sensação foi tão forte que ao beijá-la espontaneamente beijei também Román. E ele, que se achava à vontade, em mangas de ca­misa, levantou a mão e passou-a com ternura em meus cabelos.

    —        Já jantei com Basil, no pub. Será que vocês poderiam inter­romper a partida um pouco e escutar-me?

    Os dois pararam imediatamente e olharam-me atentos.

    —        Basil me ama — confessei-lhes. — E eu não tenho a menor dúvida: estou apaixonada por ele...

    — Tudo o que Basil disser a você sobre ele, pode acreditar, Ani­ta — comentou Román. — Eu me informei. Amo sua mãe demais para esquecer-me de incluir você, de pensar na sua felicidade. Ba­sil tem futuro e batalha em todos os campos. No momento e só um repórter, mas logo será muito mais. Seus artigos políticos co­meçam a interessar. São imparciais e dizem a verdade. E há certas verdades que são necessárias e apreciadas como tais. Mesmo nesse ambiente social maluco, que não gosta de conhecer a verdade...

  • Quer dizer que Basil não mente... — murmurei ainda com aquelas dúvidas infantis, próprias da minha idade.

  • Quem mente é o pai dele! — replicou Román.

  • Mas me ama...

  • Ora, Anita! É lógico! — exclamou mamãe, tomando a pala­vra. — Ele a ama porque você representa a sua ressurreição! Seu anseio por uma juventude que não deseja perder. Mas, como você, encontrará centenas...

  • O fato de a mulher aguentá-lo — acrescentou Román — é por não ser uma pessoa decidida, forte. É pusilânime demais. Sua moral e costumes são de outra época e não faz questão de se ade­quar à que vivemos. Carlos Guzmán sabe disso e se aproveita. Sa­be que ela estará sempre ali, em sua casa, como uma escrava no seu amplo leito. Mas imagine se lhe interessa compartilhá-lo com ela... Embora todo mundo saiba que compartilha muito bem dos lucros que vêm dos negócios da mulher.

  • Estou sabendo... — murmurei.

  • Você deve acabar com isso o quanto antes. Mais ainda ago­ra, que sabe que Basil aprender a viver numa escola de sofrimento e não quer para si mesmo uma frustração semelhante.

  • Tampouco quer o casamento... — murmurei.

    Ambos se olharam por longo tempo, até que mamãe resolveu falar:

    —        A convivência é a mãe da continuidade, se for sincera. E, pa­ra saber, só convivendo.

    Parecia bastante claro, não é? Recordo-me, nessas reflexões in­termináveis, que quando comecei a escrever este diário, aos oito anos, jamais pensaria que me sucedessem tais fatos. Nem que ma­mãe chegaria a ser minha melhor amiga, ou que Román, amigo dela, acabasse sendo quase um conselheiro em momentos cruciais da minha vida... Como tudo foi mudando...

    —        Agora, filhinha, vá dormir e procure não pensar. Há muito tempo para isso. Logo os fatos acontecerão, naturalmente, sem que você precise apressá-los. Aliás, não adianta querer apressá-los...

    Mamãe tinha razão, como sempre. Fui para meu quarto. Percebi que Román foi embora logo depois. Gostaria de vê-los casados, mas jamais me intrometeria na intimidade dos dois, como sabia que respeitariam a minha.

    Basil e eu passamos a encontrar-nos com frequência, durante um mês ou mais. íamos nos habituando um ao outro.

    Um dia ele chegou dirigindo um carro modesto, comprado de segunda mão e me levou a passear fora do centro da cidade. Sem sairmos do carro, Basil mostrou-me, ao longe, a janela de seu apar­tamento, em um conjunto de prédios modernos.

    —        Tem dois quartos, cozinha, banheiro, uma sala pequena e... pode parar por aí! — brincou ele. — Mas eu o decorei bem a meugosto, meio futurista, ou vanguardista, como sou!

  • E seu pai, Basil? — ocorreu-me perguntar-lhe.

  • Quem deve perguntar sobre ele sou eu, Anita.

  • Tenho procurado me esquivar... Dou desculpas para não vê-lo...

  • Isso não é bom, Anita. Você precisa assumir a responsabili­dade, as consequências. Eu qualquer dia vou pedir a você que suba ao meu apartamento e... sabe bem para quê.

    Estremeci, surpresa, e balbuciei:

  • Vai... me pedir?

  • Você não quer?

  • É que...

  • Olhe, Anita, se você vai comparar a sua relação com meu pai com a que temos, saiba que é bem diferente! Logo, logo vou pedir a você que passe a conviver comigo...

  • Você está louco!

  • De modo algum. Estou em meu juízo perfeito! Além disso, nós dois sabemos que esse desejo é bastante natural em dois jovens que somente se conhecem por alguns beijos e carícias...

    Bem, as carícias já eram, na verdade, cada vez mais audaciosas, autênticos prelúdios de uma união mais completa. Aprendi com Basil, em três meses, mais do que durante um ano com Carlos.

    E talvez exatamente por ele não ter sido atrevido, por não ter me forçado a nada, é que o estimava ainda e dava-me pena. Não con­seguia enfrentá-lo frente a frente.

  • Como lhe dizer? Chama-me seis vezes por dia e nunca estou.

  • E você não está de fato ou...?

  • Estou, na maioria das vezes. Mamãe liga a secretária eletrônica com os recados.

  • Cuidado... Qualquer dia ele pode ir até a casa de sua mãe...

  • Não! Disso estou certa. Mamãe é uma espécie de freio para ele.

  • E você tem abusado desse fato, Anita.

  • Lógico... E por que não?

  • Não é nada lógico, Anita! Enfrente-o, diga-lhe a verdade! Ou, se preferir, conto-lhe eu, mas não é o ideal... Será pior.

  • Pior?!

  • Muito pior. Meu pai pode ser um patite, péssimo pai e mari­do, mas eu sou seu filho e não me agrada parecer o que não sou...

  • Ah! Compreendi. Não lhe agrada parecer o seqiiestrador das namoradas de seu pai...

  • Já não considero você apenas como minha namorada, Ani­ta. Mas como futura esposa...

  • Mas você não quer se casar...

  • Não — falou com firmeza. — Enquanto não estiver seguro de nossos sentimentos, de que combinamos.

  • Vai me pedir que passe a viver com você, em seu apartamen­ to, Basil?

  • Não vai demorar muito...

  • Basil...

  • A realidade é essa, Anita. O resto não passa de baboseiras sociais que só levam à frustração.

    Era o que eu mesma vivia em minha casa. Román ia cada vez mais ao nosso sótão. Não ficava lá a noite toda, mas eu não era idiota. Cada vez os via mais unidos, como um casal perfeito. Esta­va quase certa de que acabariam se casando.

    Basil apertava-me em seus brados, dentro do carro, beijando-me suavemente todo o rosto, enquanto ia murmurando:

    —        Algum dia nos casaremos, Anita. Não sou contra a institui­ ção do casamento... Mas não quero fazer isso apenas pelo desejo de possuir algo concreto... Depois de convivermos, de estarmos se­ guros como casal... Quando tivermos estabilidade económica...

    Seus beijos se tornaram mais possessivos. Parou de falar. Eu vi­brava, protegida por seus braços fortes. Basil continuou, mas mi­nhas emoções faziam a sua voz tão distante...

    —        Eu te amo, Ani, mas não conheço você, nem você a mim... Como nos sentiremos diante de gestos banais? Escovar os dentes... tirar os sapatos... a roupa... dormir juntos. Tudo faz parte da con­ vivência e, se não nos tolerarmos nas pequenas coisas, o resto será pura comédia.

    Convenci-me de que ele tinha razão. Nesse dia senti que o amor, o amor dele, era essencial. Suas carícias pareciam-me poucas e os beijos, cada vez mais ardentes, não bastavam. Eu queria mais e mais... Por que negá-lo?

    —        É melhor que você veja meu pai amanhã — recomendou-me Basil, quando nos despedimos, à porta do elevador. — Já sei que você vai sofrer, mas é preciso usar de sinceridade para destruir a mentira. Diga-lhe o que achar melhor. Pode revelar-lhe que conhe­ce suas mentiras ou não falar sobre isso, para que ele sofra menos... Sei que você tem simpatia por meu pai, mas simpatia não é amor. Assim, se quiser, fale de um modo mais suave... Se achar que é melhor...

    Quando o elevador começou a subir, ele ainda me deu um últi­mo conselho:

     

    —        Enfrente a realidade. Não tente consolá-lo, Anita. Não vai adiantar...

    Não consegui dormir durante aquela noite, só de pensar que no dia seguinte teria que enfrentar uma realidade que me dava arrepios.

    Mamãe me ajudou, enquanto íamos juntas de carro até os ar­mazéns. Comentou as ideias de Basil:

    —        Basil tem razão, Anita. Até demais! Se estima Carlos, não precisa feri-lo. Ele já deve saber, ou pelo menos desconfiar, que você e seu filho namoram. Diga simplesmente o que qualquer jovem da sua idade diria: que se apaixonou por um rapaz mais próximo de sua juventude...

    Passados alguns minutos, num repente, mamãe perguntou-me com franqueza:

  • Você e Basil já fizeram amor?

  • Não!

  • Mas isso vai acontecer, não é?

  • Sim, mamãe, vai.

  • Vocês vão se casar?

  • Não, não vamos.

  • Bem, não dou importância demais a isso e, paciência, se al­guém julgar que estou  enganada. Duas pessoas só sabem se po­dem, ou não, conviver, conhecendo-se a fundo. O amor é frágil: qualquer coisa o rompe ou o consolida. Ilido depende de que um e outro saibam se desculpar mutuamente.

    —        E se um dia eu disser que vou viver com Basil sem me casar? Enquanto estacionava o carro na garagem dos grandes armazéns, ela respondeu:

  • E problema seu. Quando seu pai e eu nos separamos, nada nos preocupou: se você ficaria traumatizada, ou se entenderia a nova situação. E você teve que vivê-la, não foi? Eu sofri, porque estava a seu lado e percebia tudo. Mas nós dois éramos o casal e não nos entendíamos. Continuar juntos por sua causa não ia fazer com que nos entendêssemos melhor...

  • Obrigada, mamãe.

    Ela saiu do carro e fechou-o. Depois acrescentou:

    —        Não vou negar que preferia ver você casada. Mas se não me casei pela segunda vez e tenho um companheiro, com que moral posso pedir para que se case?

    Apertei-lhe os dedos, demonstrando minha compreensão. Entra­mos juntas nos armazéns.

    Passei o dia todo inquieta. Encontraria Carlos às sete e meia, no pub onde o vira pela primeira vez. Já havia avisado Basil por telefone e nada mais poderia evitar aquele encontro. Todos esta­vam de acordo, até Román! Não adiantava escapar e já estava fu­gindo havia três meses... Não queria mais fugir. No fundo seguia o exemplo de minha mãe: enfrentar, fosse o que fosse...

    Como a admirava agora! Era uma mulher de papel relevante na empresa. Fazia compras, escolhia os artigos com os viajantes. De­senhava a decoração das vitrines que os empregados logo monta­vam. Passava horas no escritório com os diretores, que confiavam muito nas opiniões dela.

    Gostaria de chegar algum dia a ser como ela, subindo de posto na empresa. Pelo menos, tentaria.

    Às sete e quinze saí, com todo o pessoal, pelas portas principais. Ia tremendo, no íntimo, confesso. O que diria a Carlos? Que era a noiva de seu filho? Isso era bobagem. Se já não soubesse, logo iria sabê-lo.

    Apesar de me haver mentido, tinha dó de Carlos, não queria magoá-lo. Mas teria que fazê-lo...

    Eu o vi fumando dentro do pub, diante de um copo de uísque. Elegante como sempre, rejuvenescido pela roupa esportiva, porém já não me emocionava nem um pouco.

    Apenas o via como se fosse meu pai e, pior, um pai do qual re­cordava vagamente. Quase nada. Entretanto, ferir a um pai sempre dói, mesmo que seja pouco conhecido. Era o que eu sentia.

  • Oh! ele exclamou ao me ver. — Até que enfim! Levantou-se para receber-me.

  • Olá. — Cumprimentei-o sem sorrir.

    —        Como vai, Anita? Belíssima, pelo que vejo! Por que essa se­ paração? O que você tem feito? — Ele indagou, nervoso, as pala­vras se atropelando.

    Notei, pela sua expressão, que me amava muito; mas não podia me influenciar com isso. Esse fato para mim deveria ser secundário.

    —        Chamei por você mil vezes, Anita. O que tem contra mim? Segurou-me pelo braço. Não senti nada, apenas indiferença. Fosse

    Basil, eu já estaria inflamada.

    —        Vamos nos sentar? — pedi-lhe, dando à minha voz uma en­tonação serena, nem emocionada, nem cortante.

    À medida que me sentia dona da situação, fui me tornando mais calma.

    —        Quer dar um passeio? O carro está aí fora — convidou-me Carlos.

    Não, não queria passeios. Pretendia terminar o quanto antes tudo aquilo. Se ainda havia alguma confusão dentro de mim, era cau­sada pela associação que ainda fazia entre ele e um pai desconheci­do. Mas, como homem, Carlos para mim já não era nada.

    Isso eu compreendia, o difícil era explicar a ele. Senti que não era tão forte, nem tão valente quanto mamãe. Meu Deus! Seria pu­silânime e fraca como a esposa de Carlos?! Ah, não! Ser assim me doía. Precisava lutar comigo mesma e sair daquele esquema.

    Preferia falar com Carlos ali nopub e não no carro. Não queria sofrer coação, chantagem emocional. Por fim, decidi falar:

  • Carlos, nossa relação deve terminar.

  •  Quê?!

    —        Não há o que discutir. Está acabado, sabe? Ser mais explícita vai me fazer sofrer, apenas...

    —        Mas...

    O olhar desolado dele demonstrava o quanto me queria. Para me livrar do sentimento de pena, que me dominava, pensei em suas mentiras, farsas, armadilhas, na dor de sua mulher.

    Senti-me mais forte, como teria sido mamãe.

  • Refleti muito durante todo aquele tempo, analisei minha vi­da, olhei para dentro de mim. Não o amo, Carlos.

  • Meu Deus!!

  • Gosto de você como amigo, apenas.

  • Como?! O que diz?!

  • Por favor, volte para sua mulher. Ela, sim, que o ama de verdade!

    Percebi que meu aspecto decidido produzia algum efeito. Con­tinuei:

  • E o ama tanto, que para não perdê-lo é capaz de perder a própria vida...

  • Então você sabe...

  • Sobre sua vida? — minha voz vibrava. — Sim, sei de tudo.

  • Por Basil, meu filho...

  • Sim, e por que não por ele?

  • Você se encontra com Basil?

  • Eu o conheço;

  • E ele deve ter-lhe falado...

  • Carlos, não vamos continuar algo que não tem mais sentido algurn. Acabou. E acabou para sempre! Você volta para sua vida, ou faça o que bem entender, mas eu me afasto definitivamente de sua existência. E, por favor — minha voz soou cansada —, não insista...

  • Você sabe que menti...

  • Sei somente que você tenta continuar jovem e, em troca, des trói muitas outras coisas bem mais importantes. Sua mulher o adora...

  • E eu não a suporto.

  • Então, por que não se divorcia?

  • E você? — perguntou-me, desviando-se da questão que lhe impus.

  • De certo, só isso: não vou me casar com você.

    E assim terminou tudo. Uma discussão vazia, sem resultados po­sitivos, pelo menos naquele momento. Eu o via ainda como aquele pai distante...

    Logo depois nos separamos como bons amigos. Ele, sofrido, sim; mas eu, liberada.

    Nessa mesma noite, às dez, Basil chamou-me.

    Saí... Em seguida, direi aonde fui, embora vocês bem possam supor...                             

     

    Fui ao apartamento de Basil, já perto das onze horas. Era de­zembro e o frio, na rua, estava terrível. Podia ver ao longe as mon­tanhas nítidas à luz da Lua. A brisa gélida cortava como um estilete, mas no interior do apartamento a temperatura era agradável, gra­ças ao sistema de calefação.

    Eu havia deixado um bilhete para mamãe, pois ela e Román não estavam em casa, quando Basil me telefonara. Apenas dizia: "Che­garei tarde". Talvez chegasse no dia seguinte, indo direto para os armazéns. Seria o mais provável. Mas eles não ficariam preocupa­dos, pois já deviam adivinhar que eu ia ao encontro de Basil. Ma­mãe pouco antes me telefonara perguntando sobre a entrevista com Carlos e já lhe havia contado, então, que tudo finalmente terminara.

    Quando cheguei, Basil nem me perguntou sobre o resultado do encontro com seu pai, pelo que me senti muito agradecida. Era evi­dente que gastar palavras vãs seria apenas perder tempo. Além dis­so, os apaixonados são egoístas e para Basil e para mim só aquele momento precioso contava, íamos nos conhecer a fundo, sem ocul­tar nada um do outro, iniciar uma convivência, uma entrega íntima.

    Basil cada vez me causava mais admiração. Não era aquele clás­sico homem ansioso, egoísta e brusco, que leva pela primeira vez uma mulher a seu apartamento de solteiro e se lança sobre ela co­mo uma fera sobre uma presa desejada.

    Era tão sensível ou mais do que eu, cuidadoso, embora másculo. Talvez tivesse defeitos, mas nada que perturbasse nossa relação afetiva.

    Mostrou-me a casa toda, sem soltar minha mão: os dois quar­tos, decorados de acordo com o seu gosto, aliás bastante original; o banheiro; a cozinha, onde cabiam apenas duas pessoas, e uma saleta com janelas amplas que davam para a rua. Dali só se viam terraços e telhados.

    Na sala, havia uma escrivaninha, máquina de escrever, pilhas de papel, livros em uma estante, um sofá bastante amplo, uma mesa de centro com tampo de cristal e duas cadeiras confortáveis. Nas paredes, estantes com mais livros, quadros pintados por ele e posters muito criativos. Aqui e ali, cinzeiros limpos. Notava-se que Basil era um homem organizado. Não havia nada fora do lugar. Ou ele tinha previsto que ia me receber nessa noite... Não! Essa última hi­pótese não era provável, pois Basil era uma pessoa muito es­pontânea.

    —        Você prefere café ou um pouco de vinho? — perguntou-me, tirando o suéter e ficando em mangas de camisa.

    Também tirei o casaco de peles e fiquei de saia e blusa.

  • Um licor — respondi. — Café me deixa nervosa.

  • Então é muito fácil — Ele foi até uma mesa com rodas que servia de bar, repleta de garrafas e copos. — Sinto-me bem aqui, Anita. Trabalho, às vezes, noites inteiras. Procuro a notícia e a re­dijo. Em seguida, vou levá-la às redações dos jornais. Sou muito obstinado, teimoso, perseverante. Assim ganho terreno e, se em seis lugares me recusam o artigo, em dois o aceitam. Ganho o suficien­te para viver.        

    Sentou-se ao meu lado no sofá, entregando-me o licor, ficando com um copo de uísque.

    —        Sabe, Anita, não gosto das entrevistas. Se as pessoas entre­vistadas são muito importantes, tornam-se duras, pouco comuni­cativas; se são pouco conhecidas, ficam pedantes. Por isso, estou buscando outro enfoque para minha vida de jornalista. Além dis­so, nos momentos livres escrevo um livro sobre as diversas formas de costumes sociais.

    Passou-me os braços pelos ombros. Então, delicadamente, beijou-me a orelha. Senti como se uma descarga elétrica fizesse estreme­cer meu corpo.

    —        Anita, se você não quiser, não...

    Claro que eu queria. Precisava conhecer-me através dele, saber até que ponto o amava. E só a intimidade plena poderia me revelar isso.

    Não respondi. Virei-me e colei meu rosto ao dele. Reagiu beijando-me o pescoço suavemente, o queixo, a orelha e, por fim, os lábios. Seus beijos aumentavam de intensidade e calor. Seu co­po e meu cálice ficaram sobre a mesa de cristal. Estávamos abraça­dos e a mão de Basil acariciava-me o corpo, deixando-me tonta de desejo.

    Levou-me até o quarto enlaçada pela cintura e colocou-me sobre a cama com toda delicadeza. Não vou entrar em detalhes. Não gosto de intrometer-me em intimidades, mesmo que sejam as minhas. Ca­da um, nesse instante, vive só para si: o resto não interessa.

    Foi uma relação suave, mas indescritível! Basil não mencionou contratos, principalmente um matrimonial. Se o sentimento não for recíproco, de que vale o papel assinado?

    Nesse ponto me intrometi na conversa e contei-lhes o que acon­tecera com meus pais, como haviam decidido suas vidas. Todos ali acreditaram perfeitamente no que se passara.

  • Isso é ser civilizado comentou Basil.

  • Ou viver em outra época... — disse Rafael. — Numa separa­ ção sempre há marcas que podem nos influenciar para o resto da vida. Sua mãe, Anita, foi corajosa para decidir a separação, tam­ bém o- foi para seguir adiante sozinha. E isso, temos que ser since­ ros, não é nada comum.

    Gostei muito dos dois. Basil e eu os visitamos um pouco antes da noite de Ano-novo. Tinham um apartamento simples, compra­do a prazo. Enquanto tomávamos vinho, Rafael falou-nos de sua vida com Mey.

    —        Mey e eu combinamos muito bem. Sou crítico, quando ne­ cessário, ela também. E acho que, quando o casal combina, não há razão para continuarem solteiros. Sou daqueles que preferem o casamento. Assim que estivermos com uma situação mais está­ vel, casaremos no civil. Já pensamos em tudo. Talvez, dentro de um ano, vocês sejam os nossos padrinhos. Não queremos filhos logo, mas somos loucos por crianças. Só optaremos por filhos quan­ do a situação económica estiver resolvida, pois trazê-los ao mundo para passar dificuldades parece-me puro egoísmo!

    Basil e eu concordamos com ele, sem dúvida.

    Na véspera da noite de Ano-novo, mamãe avisou-me:

  • Vou passar a noite de Ano-novo com Román, num hotel.

  • Ótimo, mamãe!

  • E você, o que fará?

  • Ficarei com Basil.

    Só que essa noite seria diferente. Nada, ninguém interromperia. Podíamos passá-la juntos o tempo que quiséssemos, inclusive todo o dia seguinte, que era feriado.

  • Já faz muito tempo que você e Basil se encontram, Anita. O que pretendem fazer no futuro?

  • Não sei ainda, mamãe.

    Mas naquela noite fiquei sabendo. Basil mesmo tomou a ini­ciativa:

  • Ou compartilhamos tudo juntos, como um casal, ou logo já não conseguiremos partilhar nada. Do jeito que estamos vivendo, cada um para seu lado, não dá para continuar, Anita.

  • Você acha...

    —        É o que acho, sim. Ás coisas foram mudando: eu ganho mais agora. Minha teimosia está abrindo caminhos. Você tem um salá­ rio. Juntos podemos ampliar nosso círculo social e económico; e, acima de tudo, estaremos mais unidos afetivamente. Eu sinto falta dessa proximidade maior, querida. O que você pensa a respeito?

    Para mim estava claro. Era o que eu queria. Entretanto, demorei um pouco para responder e Basil aproximou-se de mim, abraçou-me forte e murmurou, pouco antes de pousar os lábios nos meus:

  • Pense bem, querida. Ou passamos a viver juntos ou essa si­ tuação acabará se eternizando...

  • Penso o mesmo, Basil, e quero ficar com você...

  • E sua mãe?

  • Falarei com ela. Mamãe não vai me impedir. Pelo contrário.

  • Mas nós ainda não nos casaremos, Anita.

  • Eu sei. Tudo bem...

  • Casaremos quando estivermos bem certos de que é isso o que queremos...

  • Concordo, querido.

    Creio que essa foi a melhor noite da minha vida... Basil e eu des­frutamos de cada carícia, de cada beijo. Nosso amor era sempre vivido em sua totalidade, no gozo de um prazer mútuo.

    Fiquei surpresa com o que vi!

    No dia seguinte ao do Ano-novo, entrei em casa e quem encon­tro nela, de pijama e roupão? Nada mais, nada menos que Román!

    Ele riu ao ver minha expressão de espanto. Minha mãe havia per­mitido aquilo?!

  • Nós nos casamos no civil, Anita — comunicou-me ele.

  • Mesmo?!

    Minha voz atraiu mamãe, que estava no quarto, de pijama, ínti­ma e mais bela do que nunca. Pegou-me pela mão e levou-me até o quarto.

    —        Venha, filha, preciso lhe contar. Imagine! Fomos a um hotel passar o Ano-novo e, de repente, descobrimos que separados não éramos tão felizes! Faltava algo mais... Resolvemos, então, nos ca­ sar. Você já sabe o que penso a respeito do casamento, mas Román é para mim alguém essencial. Como vê, quando se chega a esse ní­vel de união com alguém, a tradição acaba imperando. Casamos absolutamente certos de que era o que desejávamos...

    Em resposta, dei-lhe um beijo cheio de ternura. Eu amava muito a ambos e preferia vê-los casados, embora estivesse disposta a vi­ver com Basil sem casar.

    O importante naquele momento era que estivessem juntos e que isso seria aceito pela sociedade em que viviam, mais tradicional que a do meu mundo e de Basil.

    Nós éramos jovens e nosso tipo de vida, diferente. De qualquer modo, o casamento de mamãe enchia-me de orgulho. No fundo, não me casava com Basil porque ele não queria e eu não o forçaria a isso jamais.

    Mamãe pediu-me que chamasse Basil para vir comer conosco.

    Durante o jantar, percebi que os três se entendiam às mil mara­vilhas. Falamos de tudo. Basil, entretanto, não tocou em casamen­to. Mamãe e Román não o forçaram. Eu menos *ainda.

    Contudo, foi nessa noite que Basil lhes disse que a nossa união, morando juntos dali para a frente, era fundamental. Mamãe não se Opôs, nem Román comentou nada. Ficou combinado que me mudaria para seu apartamento no dia seguinte.

    Mamãe ajudou-me a fazer as malas. Percebi nela um pouco de tristeza, mas nenhum ressentimento.

    —        Você está sofrendo, mamãe? — acabei por perguntar-lhe, após algum tempo.

    Ela olhou-me e murmurou:

  • Bem, eu preferia...

  • Já sei... — interrompi.

  • Será que algum dia, Anita...

  • Espero que sim, mamãe.

  • Você sabe, filha. Eu não pensava em casar-me de novo, mas... Román e eu, de repente, decidimos. E nos sentimos melhor. Talvez sejam costumes ultrapassados... Será que são mesmo? Mas não é isso o que importa. O que nos levou a casar foi a necessidade de compartilhar tudo, pois partilhar problemas e alegrias pela meta­de parece tão pouco... vai-se perdendo dia a dia uma troca de ex­periências necessárias: Mas no meu caso é diferente... Não somos jovens...

  • Mas.Basil e eu...

  • Querida, não vou censurá-la porque resolveu viver com ele...

  • Eu o Tadoro, mamãe.

  • E ele a você. Isso é evidente. Mas a vida é dura, Anita, e se Basil prefere esperar para resolver o futuro... Bem, agora vou dei­xar de falar como mãe e fazer de conta que sou apenas sua amiga: se vocês deixarem de se amar, de nada servirá o contrato matrimo­nial, a menos que você seja como a mãe de Basil, fraca e pusilâni­me. E não me parece que você seja assim!

  • Pelo amor de Deus! Nada neste mundo me fará ser uma mu­lher assim!

  • Então, por nada, por ninguém, deixe de trabalhar, pois isso é o que lhe dará independência. Se houver um rompimento, você estará sossegada quanto à sua subsistência. Pode não parecer, mas é tremendamente importante...   .

  • Mas, aqui entre nós, mamãe... Você bem que preferiria que eu me casasse, não é? — perguntei, num tom brincalhão, para ten­tar desvanecer-lhe o ar melancólico.

  • Bem... sim. Mas se você vai viver com Basil solteira, quem sou eu para dizer alguma coisa? Vivi um fracasso matrimonial e bem duro! Entretanto, ser "muleta" de meu marido, jamais! Por­ tanto... que você seja bem feliz, querida!

    Algumas horas mais tarde, Basil veio me buscar. E lá fui eu, com minhas malas, iniciar uma nova vida.

    Uma vida em comum: trabalho, amor, conversa, discussões... Sim, discussões também! Por que não? Basil e eu discutíamos al­gumas vezes, mas sempre procurávamos sair de nossas discussões mais experientes. Solteiros ou casados... ninguém é imune à diver­gência de opiniões. Aliás, isso me parece até bem saudável...

    Basil começou a colaborar em jornais com seus artigos políti­cos. Aos poucos ia penetrando nesse mundo incerto e confuso que é a política e fazia todo o possível para analisá-lo com honestidade.

    O que ele ganhava, mais o meu salário, formava um fundo co­mum. Era quase cómica a maneira como dividíamos o dinheiro. Vivíamos fazendo contas. E era muito divertido! Não que fôsse­mos frívolos, não! Ao contrário: éramos até maduros demais, sé­rios e "quadrados" quanto aos gastos. Mas... nossa vida sexual, nosso amor... Ah! aproveitávamos ao máximo! Se o dinheiro era pouco, amor é que não faltava...

    Assim fomos nos conhecendo profundamente. Mamãe nunca me ofereceu ajuda econômica. Conhecia-me bem e sabia que fazer is­so só poderia me ofender. Às vezes nos reuníamos, os seis, para comer à noite, principalmente nos fins de semana. Digo seis por­que Mey e Rafael já faziam parte do nosso grupo. -:

    Uma coisa muito engraçada foi descobrirmos que Basil se saía muito bem como cozinheiro. Algumas vezes, quando chegava tarde dos armazéns, sentia um aromazinho delicioso na casa, assim que abria a porta. Lá estava ele, de avental, sorrindo para mim, com iuma colher na mão, fazendo-me caretas. Nunca faltava o bei­jo nos lábios, suave ou ardente, conforme o momento ou o espaço de tempo que havíamos ficado separados.

     

    Conheci a mãe de Basil em um momento crucial para todos. Car­los havia sofrido um enfarte e Marta se preocupou muito com e!e. Talvez aquele tenha sido o momento em que Carlos se deu conta realmente do que significava o amor irreversível de sua mulher, o afeto dos filhos e a consideração de seus amigos.

    Quando me viu, não havia reprovação em seu olhar. E penso que Marta jamais veio a saber que eu fui a garota que a separou de ,s,eu marido durante um tempo.

    De qualquer maneira, a vida para eles mudou. E embora Basil não me pedisse para ir à casa de seus pais todos os dias, também não me negava que desse uma passadinha diária para vê-los, de­pois que Carlos saiu do hospital.

    Foi necessário abordar o assunto da administração das lojas de café. Basil falou com firmeza que não esperassem quase nada da parte dele: era jornalista, seu prestígio estava crescendo e não se sentia realizado atrás de um balcão ou de uma máquina registra­dora. Mey e Rafael disseram o mesmo, mas todos, também eu, nos oferecemos para controlar as lojas e ajudar na contabilidade.

    E foi assim que me converti numa pessoa com vários empregos ao mesmo tempo. Saía dos armazéns e ia ao escritório central das lojas de café. Algumas vezes encontrava Basil, ou Rafael, Mey ou até mesmo Marta. Em outras ocasiões, ficava sozinha. E, como sa­bia escrever muito bem à máquina, passava a limpo todos os traba­lhos de Basil. De outro lado, nos armazéns, fosse por meu mérito ou pela posição de mamãe e Román, eu havia subido de posto. Era chefe de seção e ganhava o dobro.

    Carlos voltou do hospital para sua casa e, egoísta como era, agarrou-se à esposa, o que deixou Marta nas nuvens! Ela era uma mulher frágil, ainda bela, amorosa, à moda antiga, sem entender nada de movimentos feministas... Ao contrário: era o tipo de mu­lher que se consagra ao macho, que no lar passa a ser considerado um deus.

    Ora, se isso a fazia feliz, por que criticá-la? Se na sua juventude havia tolerado tantas coisas, que poderia fazer na meia-idadé, se­não dedicar-se àquilo que realmente a encantava: cuidar do marido?

    Isso era um assunto que já não me dizia respeito, mas tinha que escutar Basil acusando de estúpido o desvelo de sua mãe para com o pai enfermo. Eu replicava, dizendo que ela cumpria um papel hu­manitário e caritativo, além de gostar de fazê-lo...

    Basil costumava balançar a cabeça, concordando, mas sem ne­nhuma convicção. O que eu notava era que a cada dia Basil me desejava mais, e eu também a ele.

    Um dia nos colocamos a possibilidade de vir a ter um filho. Ba­sil refletiu:

    Nossas economias estão aumentando. Minha posição sólida na editora é fundamental e eu a estou conseguindo. Meu prestígio como cronista político imparcial está ganhando terreno. Ganho bem mais e você também. Não sou machista, por isso não quero que você dependa só de mim. Bem, Anita, o dia que resolvermos ter filhos, se assim decidirmos, vamos nos casar. Mas... não acho que já estejamos preparados para tê-los.

    Concordei com Basil, pois entendia os seus argumentos. Chegou agosto e, com ele, o verão. Desta vez fomos viajar sozi­nhos. Eu estava de férias, mas Basil levou vários trabalhos do seu jornal para fazer. Entretanto, nos sobrava tempo para tomar sol e sair durante as noites, embora nenhum dos dois fosse boémio. Havíamos escolhido Ampurdán para passar as férias. Alugamos uma casa de veraneio em Verges, um lugar tranquilo, delicioso, não muito longe do mar. Da casa onde estávamos podíamos descorti­nar toda a vegetação indescritível de Ampurdán.

    Alugamos também um barco e saíamos para alto-mar; Basil co­mo timoneiro e eu tomando sol, deitada perto dele.

    À noite, quando não saíamos, trabalhávamos, os dois, no livro de Basil, porque seus trabalhos como cronista político, no verão, tinham uma pausa. Mesmo assim, ouvindo notícias pelo rádio, es­crevia algumas crónicas e as enviava ao jornal.

    Foi um mês de solidão a dois, que nos uniu mais, muito mais. Às vezes, relaxados no leito, depois de um prazer infinito, faláva­mos sobre o futuro. Aos poucos íamos como que desenhando o perfil de nosso futuro, cada um acrescentando a sua parte para for­mar uma noção do todo.

    Foi em Verges que recebemos a notícia do casamento súbito de Mey e Rafael. Falaram conosco por telefone. Mey, por descuido, ou porque tinham querido, ou pela razão que fosse, ficara grávida. Eles preferiram legalizar sua união.

    Já era quase fim de agosto e logo retornamos à capital. Recordo que Basil, enquanto viajávamos, comentou:

    —        Imagine se nos ocorre algo assim...

    Eu o encarei, antes de falar. Apesar de meu liberalismo, não dei­xava de dar certo valor à tradição.

    —        O que aconteceria?

    Basil dirigia o cano e riu muito:

    —        Pois se ocorrer, tudo bem. Só que não há que legalizar nada...

    Assim era Basil e eu o amava do jeito que era. também recordo que essa noite paramos em um pequeno hotel de turismo e nos ama­mos com loucura. Os beijos de Basil eram para mim sempre no­vos, como se os sentisse pela primeira vez, e eu, para Basil, era a amante eterna.

    Antes de falar do que ocorreu dois anos depois, gostaria de dizer-lhes algo sobre Carlos. Depois do enfarte, não voltou à vida social e ficou à mercê da esposa. E ela, por incrível que pareça, era feliz  com isso porque pela primeira vez em sua vida podia ter o marido só para si, cuidar dele, mimá-lo, atendê-lo... Há mulheres que nascem, educam-se e vivem para ser mães e amantes de seus maridos...

    Oh, mas não a estou censurando, não. No fundo até a admirava. Quem sabe se eu, no seu lugar, não faria o mesmo? Com uma dife­rença: sabendo que Basil me era fiel, amava-me e desejava-me em todos os sentidos.

    Comentando isso com Basil, numa noite, ele beijou-me posses­sivo e me disse, enquanto eu me apertava ao seu corpo:

    — Não me agradaria ter você só por compaixão...

    Pode ser que ele tivesse razão. Mas eu também não o atenderia, só por compaixão, se soubesse que ele me fora infiel.

     

    Passaram-se dois anos, durante os quais tive mais comunicação com mamãe e nem preciso falar de Román, a quem terminei por considerar como um pai.

    Um dia mamãe anunciou-me que meu verdadeiro pai tinha mor­rido no Brasil. Não chorei. Apenas parei para pensar em quantas coisas haviam ocorrido por causa daquela ausência...

    — Soube da sua morte por um amigo de Román que regressou há pouco do Brasil. Deixou a esposa e três filhos... Mas não creio que saibam que você existe, Anita.

    Nunca soube deles e jamais procuraram por mim. Também não tive desejo de vir a conhecê-los, porque em um curto espaço de tem­po me aconteceram coisas demais.

    Continuei subindo em meu emprego, tal como ocorrera com ma­mãe. Sentia-me mais madura. Aprendia muito com Basil, em to­dos os sentidos. Ele também se tornou conceituado como cronista político e suas análises da situação do país eram bastante respeita­das. Agora não precisava se esforçar tanto para publicar seus arti­gos. Jornais especializados o procuravam e Basil colaborava em quase todos.

    Apesar de seu sucesso, não deixei meu trabalho. Mamãe e Ro­mán construíram uma vida feliz, cheia de compreensão. Formavam um casal formidável.

    Mey teve gêmeos e ficaram quase loucos para poder cuidar de­les. Mas aos poucos se firmaram como bons profissionais no bair­ro operário e começaram a ganhar dinheiro. Assim puderam contratar uma babá que os ajudasse a criar seus dois filhos.

    Engraçado... comecei a escrever tudo isto quando tinha oito anos... Agora lenho... Bem, não muitos, mas o suficiente para sentir-me mais liberada e ao mesmo tempo presa e... solteira.

    Mas jovem, sim! Basil e eu continuamos ainda muito jovens e felizes em nosso amor, até mais do que quando nos conhecemos.

    Sabem que fiquei muito amiga de Marta, a mãe de Basil? Pois ela, tão antiquada, aceitava bem nossa união sem casamento. Erauma boa mulher, humana e cheia de ternura para com seus filhos e seu marido tão delicado.

    Ah! Carlos... Na verdade, nunca mais pôde voltar a dar suas "sai-dinhas", porque no fundo era um egoísta e adorava ser mimado pela mulher. Além do que, não queria morrer. Isso é bem lógico, se levarmos em conta a personalidade que tem. No fundo, penso que não é mau, só que a rotina o obrigou, digamos, a buscar "no­vidade»"...

    E amo ainda mais Basil pelo respeito que demonstra pelo pai, que nos aceita assim, como um casal, e nos olha sem nenhum ran­cor, talvez compreendendo que fomos feitos um para o outro... Basil tem ternura por sua mãe e admiração pela minha...

    Mas... vejam só: ocorreu o inevitável!

    Ou fui eu que me esqueci, ou Basil, ou... alguma coisa falhou.

    O certo é que um dia percebi que algo me perturbava. Não falei com mamãe, mas com Basil:

  • Hum... estou me sentindo mal...

  • Mal?!

  • Estou com enjoos...

  • Epa! — exclamou Basil. — Não será...

    Era. Eu não tinha percebido logo. Havia perdido a conta. Re­cordava de uma noite, depois de uma festa, em que nos deu vonta­de de dormir num hotel. E nos amamos perdidamente. Era isso...

    Abracei-me a ele, apertando-me contra seu peito. Recordo que Basil, com uma ternura incrível, depois de tanto tempo de vida em comum, passou-me os braços pelos ombros e acariciou-me os ca­belos, como se fosse aquela a primeira vez que me tivesse a seu lado.

    —        Se for gravidez... — disse, procurando com os lábios a mi­nha boca — temos que aceitá-la, querida.

    E fomos os dois sozinhos ao ginecologista, sem dizer nada a nin­guém. O médico, amigo de Basil, confirmou nossa suspeita.

  • É gravidez, Basil. Você deve dizer...

  • Mas... dizer o quê?!

  • Se querem tê-lo ou não.

  • Você está louco, Raul? É claro que teremos! — a voz de Basil soou emocionada, os olhos negros mais brilhantes.

    —        Então, Anita deve vir fazer uma consulta a cada mês. Quando saímos, Basil colocou o braço forte sobre meus ombros e, abaixando-se até o meu ouvido, murmurou:

    —        Querida, se aconteceu desse modo, vamos aceitá-lo de bom grado...

    De casamento? Nem se lembrava.

    Mas, nessa mesma noite, depois de passarmos horas maravilho­sas que só ele e eu conhecíamos, disse-me, de súbito, com o corpo completamente relaxado depois de fazermos amor:

    —        Vamos nos casar, Anita, está decidido! Afinal, somos como todo mundo, não?

    Abracei-me a ele, comovida. Não queria mudar os critérios de Basil. Sentia que éramos como uma só pessoa.

  • Não é por causa...

  • Vamos ter um filho... Se tudo anda bem e está provado que nossa convivência é quase perfeita, além de termos uma situação económica estável, não vejo por que tenha que nascer um filho sem pai... Epa! Sem pai reconhecido...

  • Mas é só uma questão de lei...

    Ele interrompeu-me sem palavras, buscando meus lábios e beijando-me muito, acariciando meus seios, o que rne deixava lou­ca de prazer.

    —        Eu não estou fazendo isso porque a lei obriga, mas porque há uma "lei" nascida dos nossos sentimentos. Essa é que nós dois vamos seguir...

    Passamos quase a noite toda conversando, fazendo planos. No dia seguinte fui surpreendida pelo telefonema de mamãe. Era um feriado.e eu não havia saído de casa, mas Basi! sim.

  • Já estou sabendo que vocês vão se casar, Anita.

  • Quê?!

  • E vai ser a semana que vem, às sete da noite...

  • Mas...

  • Soube tudo por Basil, filha. Contou-me também que você vai ter um bebé. E ele quer legalizá-lo.

  • Ah, por isso? — murmurei meio desanimada.

  • Basil é um rapaz e tanto, Anita. Cuide dele. Felicidades, querida!

    Quando nos encontramos, à noite, abracei Basil, falando num tom de voz quase histérico:

    —        Pela criança não quero me casar! Por amor, sim, Basil. Só por amor!

    Ele acariciou-me o rosto e consolou-me com uma expressão muito terna:

  • Não seja tola, querida. Um dia ou outro tinha que acontecer...

  • E se não nascer?

  • Ora. Pois nascerá outro!

  • Basil!

  • Anita, meu amor, conheço você tanto, tanto que com filho ou sem filho quero tê-la como esposa, como minha mulher...

    Fui eu quem o beijou, Porque com Basil aprendi a ser espontâ­nea, a tomar a iniciativa quando quisesse, sem esperar que fosse o homem o primeiro, sempre.

  •  A convivência durante todo esse tempo, Anita, foi suficiente para saber como deverá ser nosso futuro... Está bem claro, não é, querida? Nem eu sou um aproveitador, como meu pai, nem você é uma mulher frívola. Vamos esperar o quê? Foi bom aguardar­mos um tempo, mas já bastou.

    E não esperamos mesmo. Nosso casamento no civil foi realiza­do na semana seguinte. Pedi férias antecipadas e viajamos para Ver-ges. Nem esperamos pelo clássico jantar de núpcias. Mamãe, Román, Mey, Rafael e Marta festejaram mesmo sem a nossa pre­sença. Carlos não pôde ir.

    Toda a região do Ampurdán estava belíssima nessa época. A pai­sagem era de inverno, mas para nós parecia tão linda quanto a do verão.

    Os quinze dias que ali passamos foram inesquecíveis...

    Já vou chegando ao fim dessas minhas lembranças. E sabem? Basil, que se considera um homem forte, seguro de si, quando lhe dei esta narrativa para ler, pôs-se vermelho, os olhos brilhantes de emoção.

    Ele me ama e eu sinto isso sem que precise me dizer.

    Pouca coisa mais me resta para contar-lhes.

    Claro, nossa filhinha nasceu meses depois. Mas, com ela, temos agora três! Basil já avisou que vamos parar por aí...

    É um escritor famoso e comentarista político. Eu continuo tra­balhando, depois da licença que pedi para criar meus filhos.

    Moramos em uma casa mais ampla, com jardim, piscina e qua­dra de ténis. E todo este conforto é resultado do nosso esforço, meu e dele. Nossos filhos são criados dentro de um lar feliz. B em... não vou negar que mamãe tem dado uma certa "mãozinha “, sempre que preciso.

    Román e ela não quiseram filhos. Mas são avós fabulosos!

    Dizer que Basil e eu continuamos apaixonadíssimos é pura re­dundância. Portanto, como casal, continuamos tão ardentes como antes. Fazemos o possível para não aumentar a família, embora go­zemos o amor com a mesma intensidade, favorecida pela experiên­cia e sabedoria que adquirimos com os anos...

 

                                                                                            Corin Tellado

 

 

                      

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