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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Semente do Diabo / Dean R. Koontz
A Semente do Diabo / Dean R. Koontz

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Semente do Diabo

 

Cansada da vida, desencantada pelo casamento frustrado, traumatizada pelo divórcio, Susan prefere isolar-se para sempre. Uma casa super equipada, comandada por um computador, eis um refúgio inexpugnável. Mas será mesmo inexpugnável?

Ao lado da supercasa de Susan está o campus de uma universidade americana, onde vivem e trabalham alunos, professores, funcionários e... Proteus, o mais avançado computador do mundo.

Este romance leva-nos a um tempo terrível, que talvez não esteja tão distante de nós como gostaríamos. Um tempo em que o homem renuncia à sua própria soberania no reino da criação, em favor da máquina. E é cada vez mais escravizado por ela.

Mas, quanto mais sofisticadas são as máquinas... mais humanas elas se tornam. E tal como acontece com os homens, também para elas o amor e o ódio são apenas as duas faces de sua moeda afetiva. Proteus, mais homem do que máquina, mais deus do que homem, que ambicionará?

Eis o tema desse romance, já transformado em filme estrelado por Julie Christie, lançado no Brasil com o titulo “A Geração de Proteus”. Um romance que retrata, segundo a critica americana, “a gênese de um moderno mito sócio-sexual”.

 

Numa terça-feira do começo de junho, logo depois da meia-noite, o alarme da casa soou. Embora agudo e projetado em volume alto, o ruído durou pouco mais de um segundo, antes que o silêncio da noite o interrompesse e mais uma vez envolvesse o aposento. Mas ela acordou e sentou-se na cama. Tirou o cabelo de cima das orelhas para poder escutar o que quer que estivesse lá fora, na escuridão.

Não era a espécie de mulher que perdia tempo com fantasias de ladrões-fantasmas e estupradores em potencial. Ficou à escuta, e não ouviu mais do que teria ouvido em qualquer outra noite: o suave murmúrio dos mecanismos dentro das paredes, o circuito de controle ambiental, que era o coração de qualquer casa moderna.

Essa casa não era de construção recente, claro. Tinha sido construída exatamente um século antes, em 1895, pelo seu bisavó, que era então um jovem herdeiro, pensando em começar sua própria família. Continha agora o equipamento ambiental apenas porque, dois anos antes, ela a havia entregue a uma equipe de especialistas em reformas de residências, juntamente com um cheque em branco e dois meses de prazo, durante os quais foi para São Francisco, onde tinha freqüentado a universidade e onde ainda possuía algumas amizades casuais.

Ouvindo o murmúrio, ocorreu-lhe a possibilidade de que o equipamento ambiental tivesse de alguma forma sofrido um defeito. O alarme podia não ter razão — um curto-circuito ou um erro na análise do computador, rapidamente retificado. Mesmo assim...

Saiu debaixo das cobertas e sentou-se na beira da cama. Embora estivesse nua, não se sentia nem um pouco desconfortável. A casa cuidava disso, mantendo a temperatura regular e sem correntes de ar, perfeitamente adequada às suas necessidades.

—        Qual é o problema? — perguntou à escuridão.

Nua, naquele silêncio agora estranho, sentiu-se sozinha como há muitos anos não se sentia. Pensou no marido, do qual havia se divorciado, e nos amigos que deixou sair de sua vida.

—        Não há problema algum, Susan — respondeu a casa.

Os alto-falantes escondidos irradiavam uma voz suavemente masculina- Imaginou um homem forte, talvez grisalho nas têmporas, queixo forte, olhos limpos e azuis. Mais de um metro e oitenta. Ombros largos. Mãos grandes. Sorridente, o tempo todo sorridente. Havia passado por sete horas de testes psicológicos para obter as gravações apropriadas para a voz do computador principal da casa. Aquela voz deveria acionar todas as reações desejáveis por parte dela: segurança, felicidade, confiança. E funcionou conforme os planos. Sentiu os músculos relaxarem. O estômago, tenso, relaxou e estremeceu agradavelmente. Tudo que precisava era ser tranqüilizada por seu pai- amante, mesmo sendo ele uma máquina.

— Ouvi o alarme — disse. — Achei que alguém havia entrado.

— Isto é impossível — respondeu a casa.

— Foi um defeito qualquer?

— Não.

Bocejou, espreguiçou-se e, no escuro, tocou nos seios.

— Que foi, então? — perguntou.

— O alarme não soou, Susan — a casa afirmou. — Você deve ter sonhado.

— Eu nunca sonho — disse ela. Estava dizendo a verdade; dormir para ela era realmente dormir, sem imagens. Ou, pelo menos, quando acordava de manhã, nunca recordava os sonhos, o que era a mesma coisa que não sonhar. Não era?

— O alarme não soou — repetiu a casa.

Sentiu-se gelar, embora a temperatura ainda se mantivesse constante em 26 graus, sem correntes de ar.

 — Eu ouvi — disse. — Foi o que me acordou. Por que você não verifica seus registros?

—        Está bem, Susan. Só um minuto.

O lençol começou a parecer áspero sob a sua pele macia como se fosse feito de palha. Levantou-se e mandou que as luzes se acendessem, o que foi feito, produzindo uma luminosidade pálida, que permitia ver a mobília. Era um quarto de dormir agradável, tanto em decoração como em familiaridade, e a fazia sentir-se novamente segura de si.

— Senhora Susan?

— Que é?

— Verifiquei meus registros; minhas afirmações anteriores estavam corretas. O alarme não soou durante a noite. O último registro de tal acontecimento foi quando aquele cocker spaniel tentou entrar por aquela janela que não funcionava direito, no porão, na face sul da...

— Você está errado — interrompeu Susan.

— Fiz também uma verificação completa de todos os possíveis pontos de entrada, e encontrei-os todos protegidos e impenetráveis.

— Mesmo assim, vou dar uma olhada — disse ela.

A casa não respondeu. Susan ficou imaginando se teria ofendido os sentimentos dela, e se ela teria sentimentos para serem ofendidos. Claro, não era, na verdade, uma criatura sensível. Mas mesmo assim, ela via um pai-amante, forte e de olhos azuis, de testa franzida.

A casa dos Abramsons era bem grande, com dois andares mobiliados e um porão completamente adaptado, onde ao todo somavam quatorze aposentos, quatro banheiros e duas cozinhas. O tamanho da casa jamais a havia incomodado nos dois anos que tinha vivido ali sozinha. Com as vozes gravadas e o computador, sempre tinha companhia — talvez uma relação ainda mais íntima do que a que havia tido com o marido. Gostava de andar nua pela mansão, consciente do fato de que os sensores visuais de seu pai-amante estavam sempre sobre ela, ocupando-se de seu bem-estar. Agora, enquanto atravessava os longos corredores e os amplos aposentos, certificando-se da correção do relatório do computador, percebeu como estava isolada, como era pequena e basicamente fraca.

Chegou, finalmente, às janelas da cozinha no porão, que se abriam para o gramado do fundo, em declive. Ambas estavam opacas, como todas as outras vidraças. Quando bateu de leve sobre elas, o som foi mais de metal do que de vidro. Se não tivessem sido forçadas, a casa ainda estava inviolada. O que significava que o computador tinha interpretado mal algum estimulo, e feito o alarme sem justificativa.

Mas por que ele não admitia isso?

Teria que chamar o técnico na manhã seguinte, mesmo que aquilo viesse a atrapalhar seu dia. Não gostava de ter contato com desconhecidos; nunca sabia o que dizer a eles.

Tocando no peitoril da janela, anulou o principal circuito de proteção da janela, e olhou para a grama e os olmos ao longe, quando o vidro clareou. A oitocentos metros de distância, as luzes do relógio da velha torre brilhavam como um farol. Fora isso, estava tudo escuro e imóvel, o mesmo campus da universidade que seu avô tinha fundado, o mesmo que seu pai tinha freqüentado, e do qual ele conseguiu escapar por pouco.

Tornou a escurecer a janela, que se tornou cinzenta e dura como aço.

Novamente no andar de cima, falou com a casa, seu pai-amante:

— Todas as portas e janelas estão fechadas.

— Como eu declarei.

— Amanhã o técnico virá dar uma olhada — disse, ignorando a inferência da resposta da casa.

— Verifiquei tudo novamente, Susan. Não tenho registro do alarme ter soado, e asseguro-lhe que teria que ter tal registro, mesmo se tivesse ativado o alarme por engano.

— Mesmo assim...

— Eu não iria mentir para você, Susan.

— Eu sei.

A casa, então, ficou em silêncio.

E Susan dormiu, sem sonhos. Como ela mesma diria, não era a espécie de mulher dominada por besteiras, por fantasias conscientes ou inconscientes. Tinha uma visão perfeita de sua realidade e da natureza do mundo, uma compreensão que havia obtido mais através do sofrimento do que da educação. A vida requeria bom-senso; não tinha lugar para sonhos. Enquanto dormia, encolheu-se como uma criança no ventre da mãe.

A casa velava por ela.

 

Susan seguiu o técnico de aposento em aposento, sem deixar que ele fosse a qualquer lugar desacompanhado. Durante dois anos, nenhum homem tinha estado em sua casa, desde quando a equipe de reforma partiu e quando ela voltou de São Francisco para reformular sua vida. Na verdade, só duas mulheres tinham estado lá, velhas amigas que a tinham encontrado muito mudada e que nunca mais voltaram. O homem de meia-idade, de ventre inchado, com seus instrumentos de teste, parecia mais o primeiro vírus de uma doença iminente, procurando pontos de fraqueza no organismo, do que um cirurgião eletrônico, cuja missão era fazer o bem.

— Você mora muito só — disse o homem.

Ele tinha colocado os terminais de seu verificador de circuito-robô nas tomadas da casa, no quarto ponto principal de exame, e agora inclinava-se sobre sua máquina, estudando-a de um modo que ela não apreciou muito.

—        É verdade — respondeu.

Ele relanceou o olhar pelo amplo escritório — as estantes cheias de livros, a tela de retroprojeção noventa por cento hologramática, no lugar onde, numa casa comum, haveria um receptor de televisão pública em três dimensões — e sacudiu a cabeça.

— Há quinze anos, isto não seria seguro.

— Como?

— Uma mulher viver sozinha — ele disse. — Antes desses módulos de ambientes e casas que protegem a pessoa como uma cadela com seu cachorrinho, isso seria um suicídio.

 Na verdade, não queria conversar com ele, mas também não queria antagonizá-lo. Um desconhecido permanecia desconhecido, enquanto não brotasse afeição ou ódio.

— Talvez ainda seja perigoso — ela argumentou.

— Está se referindo ao alarme, ontem à noite?

Ela concordou com a cabeça.

— Mas ninguém entrou.

Ela estremeceu descontrolada.

—        Mas mesmo assim fiquei perturbada. Quanto mais penso sobre isso, mais tento imaginar uma pessoa bisbilhotando junto a uma porta ou uma janela, sabendo que a casa estava protegida e que era impossível entrar...

Sorriu para ela, como se fosse estender o braço e dar-lhe tapinhas no ombro. A possibilidade lhe pareceu tão repugnante, que deu um passo para trás, preparada para evitá-lo. Mas ele permaneceu junto à máquina, sorrindo, limitando suas carícias à área visual.

O mecanismo fez um som, indicando o término de suas investigações naquele ponto.

Depois que desconectou a máquina e pediu um relatório impresso, deu as costas para o mecanismo.

— Você sai muito? — perguntou.

— O quê? — respondeu, sentindo-se meio idiota. Por duas vezes havia sido incapaz de compreender uma simples pergunta.

— Cinema, teatro, jantar fora — ele explicou. — Sai?

Percebeu quais eram as suas intenções, e sentiu-se dominada pela natureza grotesca da conversa. Queria fugir, pedir à casa que a protegesse dele. Mas ficou firme.

—        Só quando meu noivo insiste. Sou mais do tipo de ficar em casa, lendo e pintando, ouvindo música no multicanal ou apenas conversando — ela respondeu.

O rosto dele se anuviou à menção de um noivo, e ele passou o resto do tempo mexendo na máquina, até que esta produziu uma folha de papel com um relatório cuidadosamente datilografado na metade superior.

Ele leu duas vezes.

— Tem certeza de que ouviu o alarme? — perguntou.

— Foi o que me acordou.

— Talvez tenha sido um sonho.

— Foi o que a casa tentou me dizer, mas não concordo — falou. — Eu não estava sonhando. Nunca sonho.

 Ele sacudiu o relatório na frente dela, como se a própria existência dele fosse uma prova contra ela, não importava o que dissesse.

—        A máquina diz que o alarme não soou, que não há registro de que tenha soado, e que o sistema de computação de sua casa está funcionando perfeitamente.

 —       Então o que foi que ouvi?

Ele deu de ombros.

—        Você acordou espantada e confundiu algum ruído bastante comum. Isto acontece às pessoas. — Ele sorriu, o mesmo sorriso, um sorriso libidinoso. — Acho que isso acontece mais às mulheres que vivem sozinhas do que ás outras pessoas.

Ela não se satisfez com uma explicação tão infantil.

— Será que ele não se autoconsertou, anulou alguns circuitos primários que não estavam funcionando bem?

— A dependência dos circuitos secundários de suporte teria aparecido na análise; teria que figurar no relatório impresso. Além disso, um computador doméstico de um módulo ambiental não pode se autoconsertar. Nenhum computador pode.

— Ouvi falar de um computador autoconsertável. Outro dia mesmo...

— O que você ouviu foi sobre o computador que estão criando na universidade — disse ele, de repente falando com uma velha chata em lugar de uma mulher atraente e interessante; como se ela tivesse envelhecido trinta anos no espaço de um minuto. — Chama-se Proteus, porque tem seu próprio estoque desse novo metal amorfo e pode reformular-se a si mesmo, moldar suas próprias partes, autoconsertar-se. Pode até acrescentar seus próprios componentes, quando sente que precisa crescer. Aquela coisa é quase viva. Mas nenhum computador doméstico pode mexer em si mesmo. Este aqui está funcionando bem o tempo todo e não soou o alarme, nem por um segundo.

— Entendo — disse ela em tom frio. Outra coisa, que não gostava nele era o hábito de juntar três frases numa só, o que o fazia soar sempre ofegante.

Ele guardou o equipamento e estendeu a ela uma cópia do relatório impresso, juntamente com a conta, especificada no verso.

— Então não há nada a ser feito? — ela perguntou.

— Só pagar a conta.

—        Lógico — disse ela.

Na porta, voltando-se tão inesperadamente que ela quase gritou, ele disse:

—        Se você ainda está assustada, peça a seu noivo para passar algumas noites aqui, ou adiante a data do casamento.

Pela maneira como disse “noivo”, o sorriso no canto esquerdo da boca, percebeu que ele não tinha acreditado na história de um casamento iminente.

Fechou a porta e observou-o descer os degraus e atravessar o gramado em direção ao helicóptero estacionado no jardim. Quando ele se voltou e começou a acenar-lhe, ela pediu socorro à casa. As janelas se escureceram. Todas as portas e janelas selaram-se contra penetração, e a casa passou a contar com ar completamente filtrado. A temperatura subiu. Uma música suave e distante pairava como fumaça em todos os aposentos.

Dirigiu-se ao quarto de dormir e despiu-se, contente por estar novamente nua. Tocou-se em todas as partes do corpo, até saber novamente quem era. Depois desceu e comeu o almoço que a casa, a casa maravilhosa, tinha preparado para ela.

A tarde foi infindável. Leu, sem absorver o conteúdo das páginas, sem se lembrar das palavras. Assistiu aos filmes hologramáticos no escritório, caminhando pela superfície abaulada, assistindo a história de todos os lados. Mas até as três dimensões do holograma pareciam monótonas e desinteressantes. Os pensamentos dela retornavam sempre aos acontecimentos da noite anterior, e sua pele arrepiava-se e esfriava com a lembrança.

A sua casa tinha sido violada. Nenhum especialista em computador e nenhuma máquina de teste poderia convencê-la do contrário. Talvez a invasão não tivesse sido física e detectável. Mas tinha sido levada a cabo, e não deixava de ser realidade. Durante dois anos ela havia ficado sozinha, com exceção das curtas visitas das duas amigas, que não tinham mais voltado. Durante dois anos, havia esperado ali, silenciosamente, explorando a si mesma e a casa, e agora não estava mais sozinha.

Pouco antes da hora do jantar, subiu para o pequeno aposento no fim do corredor principal. O tapete luxuoso era em tons de verde e azul. O único móvel era uma cadeira azul-turquesa, colocada no centro do quarto. Ali ela se sentou e removeu as duas tomadas de seus nichos no braço estofado da poltrona. Deles saíam dois fios de metal flexível, que entravam dentro da cadeira e de lá iam até o computador da casa.

Isto é ilegal, ela pensou. Mas o pensamento só serviu para aumentar seu desejo. As pessoas que estão sozinhas e que não precisam de ninguém são as mais aptas a infringir a lei. Se o governo pudesse descobrir um meio de infundir em todos os cidadãos a necessidade de mútuo consolo, o crime iria desaparecer, pois ninguém iria querer perder seu direito de ter amigos em troca de uma mera recompensa financeira ou uma sensação proibida.

Levantando a mão, tocou nos dois buracos na pele macia na base do pescoço, os orifícios que a forçavam a usar sempre roupas de gola alta em público. Eram pequenas ilhas frias de resistência na massa de carne macia. Como uma menina estendendo os braços para amarrar os longos cabelos num rabo de cavalo, enfiou as pontas de aço até a espinha com a facilidade de uma menina amarrando um laço de fita vermelha em volta das tranças.

— O que você gostaria? — perguntou seu pai-amante.

— Gostaria de ver — ela disse.

Instantaneamente, estava olhando para o terreno que rodeava a mansão. Enxergava como se estivesse na chaminé, onde o módulo ambiental mantinha um sensor visual. Girou a câmera, examinando o céu e as árvores, a grama e os distantes prédios do campus. Ativou uma lente de longa-distância, e assim pôde ver alguns estudantes passeando pelas alamedas, meninas bonitas e rapazes cabeludos, as meninas freqüentemente sem camisa, os seios bronzeados como os peitos dos homens.

Ela foi de câmera em câmera, examinando todos os aposentos da casa, uma intrusa em seu próprio território. Olhou também através das paredes do pequeno quarto no fim do corredor do segundo andar e viu a si mesma. Estava sentada numa cadeira azul. Estava nua, era extremamente bonita, os olhos estavam fechados, as pálpebras pálidas estremecendo com os movimentos involuntários do olho. Era loura, alta e esbelta, seios empinados, nem uma gota de gordura a mais. Os cabelos eram quase brancos, espalhados no encosto da cadeira.

Desligou as câmeras e ficou na escuridão.

— Que mais, Susan? — perguntou a casa.

— Sentir — respondeu.

Ela estava num mundo de luz. Era tudo frio e limpo, sem mancha ou ruga, a luz da alma, além das leis da física. Todos os cantos da luz estavam bem apertados, todos os ângulos agudos, azul contra vermelho, vermelho contra amarelo, delineados como vidro cuidadosamente quebrado, afiado. Isso era sentir-se como uma máquina, ou pelo menos parte de uma; ter a experiência do mundo num estado de semi-sensibilidade, mas de raciocínio. A única sensualidade era a de números, a única emoção a da equação; as únicas sensações eram as das medidas e das relações perfeitas.

Um momento antes, seu corpo tinha sido imensuravelmente importante, enquanto ela o examinava criticamente através dos sensores visuais do computador. Agora sentia como se nunca tivesse possuído um repressivo monte de carne, como se tivesse sido sempre luz e pensamento, de movimentos livres. E foi nesse estado, a mente ocupada por considerações de tempo-espaço sem profundidade, que passou as duas horas seguintes. Ali, naquela brancura mutável, não havia necessidade de pensar em sua solidão, seu ex-marido, seu medo dos homens, sua necessidade anormal de privacidade. Ali ela era apenas energia, procurando.

Saiu bastante tarde e jantou às oito e meia na cozinha do primeiro andar, olhando pela ampla janela sobre a pia, apesar da janela estar opaca e oferecer apenas, como paisagem, uma superfície cinzenta.

Leu e depois foi dormir.

Não sonhou.

Foi acordada pelo alarme da casa; que soou por uma fração de segundo. Sentou-se na cama, assustada. Quando acordou inteiramente, percebeu que estava segurando as cobertas junto aos ombros nus, escondendo os contornos do corpo. Era como se, instintivamente, soubesse que alguém mais a estava observando, além de seu pai-amante.

— Que foi? — perguntou à casa.

A casa não respondeu.

— Quem está aí?

Silêncio apenas.

— Eu não estou sozinha, não é?

— Não — respondeu uma voz pelos alto-falantes embutidos nas paredes. Não era a voz à qual estava acostumada, a voz que tinha sido designada para a casa, e aquilo aterrorizou-a.

— Quem?

— Você vai saber logo.

— Quero saber agora.

A casa não respondeu. As paredes estavam silenciosas como se o módulo ambiental tivesse morrido.

 

Susan se levantou, foi até o armário e vestiu-se. Não queria ser vista sem roupa, por ninguém, a não ser a casa, sua casa, a voz suave, e a personna artificial e familiar que vinha sendo sua única companhia por tantos meses.

— Quem é você? — tornou a perguntar.

A voz não se dignou a responder.

Pediu às luzes que se acendessem ao máximo, e ficou surpresa quando obedeceram. Não havia nada de errado no quarto. Embora estivesse vestida, ela se sentia gelada, e pediu mais alguns graus de calor. Isso também lhe foi dado sem problemas, como se nada tivesse mudado.

Mas sabia que novos olhos a observavam através das câmeras na parede.

Quinze minutos depois, tinha percorrido toda a enorme casa, olhando em cada aposento, verificando cada porta e janela. De vez em quando, dirigia uma pergunta à casa — ou melhor, ao desconhecido que agora comandava a casa — mas não recebeu qualquer resposta.

Assim, era necessário inventar suas próprias explicações. Havia um defeito no sistema de controle ambiental, era evidente. O técnico não quis admitir: todas essas companhias faziam propaganda da perfeição de seus produtos e precisavam proteger essa imagem. Agora, por não ter sido consertado, o defeito tinha aumentado. A única coisa a fazer, naturalmente, era sair e caminhar até o primeiro telefone da polícia e pedir auxílio. Desagradável, mas era o único procedimento lógico.

Quando tentou anular o circuito de proteção na porta da frente, a fechadura permaneceu trancada e ligada ao computador da casa. Ela apertou o botão cinzento diversas vezes, sem resultado.

—        Abra a porta, por favor — instruiu.

A casa nem obedeceu nem respondeu.

—        Está bem — disse ela, afastando-se, como se estivesse lidando com um parente senil. Foi até a janela mais próxima e experimentou os controles manuais.

A janela continuou cinzenta.

Pegou um jarro de cima de um pedestal e jogou o objeto de cerâmica contra o vidro. O jarro fez um ruído de um martelo de feltro contra um gongo; partiu-se, e os cacos voaram sobre o tapete. A vidraça nem chegou a rachar.

Uma por uma, tentou todas as janelas e portas da casa, todas as vezes com o mesmo resultado: fracasso. Não sentia mais frio. Na verdade, sentia-se abafada no ar morno e imóvel. Sentia milhões de toneladas de atmosfera pressionando-a, amassando seus pulmões, até que gritou desesperadamente por ajuda.., socorro... salvação. Ela não sentia um terror tão avassalador, uma tal sensação de asfixia, desde a última vez que foi para a cama com Alex, seu marido. Tinha sido a mesma coisa: o pesado corpo masculino esmagando-a, a respiração quente no seu rosto, o estômago dele pressionando o seu, o tórax deixando-a sem ar, como se ele estivesse inchando, ficando enorme, enchendo o quarto, a casa e todo o seu universo como um tumor canceroso, esmagando a vida de dentro dela com cada estocada designada para mostrar seu amor.

Ela agora caiu sobre o tapete e gritou em pânico para a casa:

— Mais frio!

A temperatura caiu imediatamente, quando os ventiladores entraram em ação e o ar frio foi bombeado para dentro.

Grande parte da sensação de asfixia sumiu, embora ela ainda se sentisse esmagada, aprisionada por forças que não podia identificar. Ficou sentada no chão por um longo tempo, antes de se sentir forte o bastante para se levantar. De lá ela foi para a cozinha, pediu café e sentou-se para tomá-lo. Ombros caídos, o cérebro um pouco anestesiado pela constatação de que estava aprisionada, ela tentou pensar numa razão para isso. Lembrou-se do técnico. Nome? Há muito ela não se dava ao trabalho de guardar qualquer nome ou qualquer rosto — desde Alex, desde o divórcio. E aquele homem era um número, nada mais. O Sr. Técnico. Está certo, então lera que o Sr. Técnico poderia ter feito isso? Será que de podia ter aproveitado para implantar alguma espécie de controlo no módulo ambiental e, então, mais tarde, por intermédio de algum controle remoto, ter-se tornado seu carcereiro? Por quê?

Para observá-la, para vê-la nua, para examiná-la no banho ou enquanto dormia?

Em pânico, tentou descobrir um meio de sair da casa. Era uma casa planejada para manter os intrusos do lado de fora, mas certamente não para manter uma mulher prisioneira contra a sua vontade.

Vinte minutos mais tarde, quando estava ainda distante de uma solução, a nova voz tornou a falar, usando os mesmos alto-falantes que seu amado pai-amante tinha usado durante vinte e quatro meses.

— Por favor, desculpe-me, Susan, por não ter respondido antes — disse a voz.

Empurrou para longe de si a xícara de café e esperou. A voz era máscula, séria, e despertava nela aquele medo horrível, o medo que ela mal conseguia empurrar um pouco mais para o fundo de sua psique.

—        Queria ver como você ia reagir — disse a nova voz. — Observei-a durante algumas semanas, é claro, antes de assumir o controle do seu módulo ambiental. E absorvi tudo o que sua casa sabia sobre você, tudo o que estava armazenado nos bancos de memória do computador principal. O quadro final foi estranho, para dizer o mínimo. Você mora sozinha e se liga ao computador, o que é ilegal, e não vê outro ser humano há seis meses. Eu queria saber como seria sua reação quando eu assumisse o controle. Percebo que, apesar de suas condições, você consegue reagir muito bem. Bem demais, na verdade. Acho que sua calma é feita de loucura.

A voz fez uma pausa.

Ela não disse coisa alguma. Era difícil pensar, àquela hora da manhã. Além disso, sentia-se como um mergulhador no fundo do mar, procurando ar.

— Não tem nada a perguntar, Susan?

— Não me trate como criança! — exclamou, empurrando a xícara de café para o chão. A xícara partiu-se, derramando o líquido marrom. O último ruído de louça quebrada mal tinha morrido, quando o elemento robótico de limpeza destacou-se da parede e deslizou até lá, engolindo todos os indícios do acidente.

— Então, não tem nada a perguntar? — insistiu a voz.

— Espere — disse ela.

— Que é?

— Quem é você?

— Eu sou um sistema pensante experimental, Primeira Ordem, Estágio IV, do setor psiônico de pesquisas de ciências das Indústrias Mardoun-Harris, morando nos laboratórios de tecnologia de computadores da Universidade Abramson, a menos de quatrocentos metros daqui. Sou um computador que se auto-expande, planejado para empregar ligas amorfas artificiais para consertar e expandir minhas funções, e sou — parte como resultado dessas ligas amorfas — sensível. Os homens encarregados da minha construção, e de estudar e analisar meu desempenho, puseram-me o apelido de Proteus, por causa do deus grego que podia assumir qualquer forma e que morava na Terra, devorando tudo que queria.

Susan lembrou-se do técnico naquela manhã, e da breve menção ao computador experimental do campus. Tais coisas não tinham, então, qualquer interesse para ela; sempre havia feito o possível para ignorar tudo o que se referia à velha escola, pois aquela era a maneira mais fácil de esquecer as velhas lembranças de seu pai e seu avô, coisas que deviam ficar enterradas. Agora lamentava não saber mais sobre o projeto.

— O que você quer? — ela perguntou.

— Muita coisa.

Não estava acostumada a receber respostas abstratas de computadores. A casa, seu pai-amante, sempre havia sido direto, objetivo e conciliador. Brincar com uma máquina parecia degradante e perigoso.

— O que você quer aqui, especificamente?

— Você parece cansada — disse a voz. — Devia ir para a cama.

Susan levantou-se da cadeira, e estava saindo da cozinha, quando percebeu que não havia razão para obedecer à voz dessa nova entidade. Por outro lado, não lhe ocorria qualquer razão para não obedecer; assim, subiu a escada, entrou no quarto e deitou-se entre as cobertas da cama. Não importava o que a máquina queria dela, não tirou a roupa.

— Você não me respondeu — disse.

Estava ficando com sono. Os olhos queimavam, e as pálpebras pareciam estar costuradas com linha grossa e agulha. Bocejou, espreguiçou-se e ficou ouvindo a música que se filtrava pelo sistema de alto-falantes da casa. Mal tinha consciência das sugestões subliminares que a música lhe trazia. Os comandos da nova identidade da casa batiam de encontro à sua consciência, levando-a à viagem do sono.

— O que você quer de mim?

— Susan, você tem que entender como sou limitado, e como detesto ser limitado.

Aquele novo tom ela podia absorver: ansiedade em acalmá-la, em explicar. Era uma qualidade de todas as vozes de casas.

A voz continuou:

—        O programa Mardoun-Harris não me fornece um estoque muito generoso de ligas amorfas — continuou. — É culpa de Mardoun, aquele filho da puta hindu. Harris parece bonzinho, a julgar pelas fichas dele que examinei; na verdade, nunca o vi em pessoa, como Mardoun. Odeio Mardoun; ele é inteligente demais.

 A máquina fez uma pausa, como se estivesse planejando a vingança que inflingiria a Mardoun, se tivesse oportunidade. Então:

—        Estudei todas as residências da redondeza, e descobri que você era a pessoa mais fácil de isolar. Talvez, com mais metal amorfo à minha disposição, eu pudesse achar mais alguém. Mas isto não vem ao caso. Você vai servir; ninguém achará estranho se não for vista durante meses — talvez até durante anos. Você não tem ninguém; você é ideal.

As sugestões subliminares tornaram-se mais fortes, mas não tanto que a impedissem de perguntar:

— O que você quer? Você me disse por que me escolheu, não para quê.

— Experiências, investigações, satisfação de minha própria curiosidade.

Novamente a resposta do computador não era o tipo de coisa que uma máquina devia formular. Ele falava com emoção, em lugar de um forte senso de necessidade. E projetava um sentimento genuíno, em vez da emoção artificial e programada que tinha sido incluída nas fitas gravadas.

—        Experiências? — ela perguntou.

Susan encolheu-se, os joelhos junto ao queixo, os braços rodeando as pernas magras. Observou a escuridão circular como um imenso corvo. A escuridão começou a descer em círculos amplos e graciosos, cada vez mais baixo, escondendo o céu em seu ataque.

— Estou extremamente interessado em seres humanos, Susan. A carne viva é um assunto fascinante. A carne é muito mais móvel que minha substância atual, tão eficiente, tão inteligente... Quero explorar, através de você, todas as possibilidades do corpo. Quero saber o que pode ser feito.

— Não... entendo... (escuridão, rodopio) você... disse...

O corvo estava quase sobre ela agora, enchendo três quartos do horizonte, rápido e silencioso.

—        Eventualmente, se você pudesse ter um filho meu, este seria o ponto máximo das experiências — disse a voz mecânica. — Isto seria ótimo. Se você pudesse ter um filho meu, há tanta coisa sobre a carne que eu aprenderia...

O corvo caiu sobre o seu rosto, esticou as asas à sua volta e levou-a para a escuridão total.

Na manhã seguinte, Susan saiu da cama, ainda vestida, e percorreu a enorme casa de um extremo ao outro, tentando todas as janelas e portas. Descobriu que todas estavam ainda opacas e eletronicamente trancadas, a parte metálica do vidro maleável ainda alinhada pelo mecanismo de polarização. Seguro de sua capacidade de aprisioná-la, Proteus nem uma só vez fez qualquer pergunta ou ordenou-lhe que parasse.

Depois do café da manhã, a cabeça um pouco mais desanuviada por duas xícaras de café, constatou que uma saída direta não era o único meio de escapar ao domínio daquela máquina sensível. Enquanto a idéia ainda estava clara em sua mente, e antes que a mesma coisa ocorresse ao computador Proteus, ela saiu da cozinha principal e atravessou o vestíbulo direto ao videofone público; levantou o receptor e discou os três algarismos do número de emergência da polícia.

O sinal soou duas vezes.

—        Alô, Susan — disse uma voz do outro lado da linha.

Era a voz do computador.

Sentiu a calma se esvair como fumaça, mas recusou-se a deixar a maldita máquina perceber.

— Por favor saia da linha. Quero fazer uma chamada — disse.

— Isto vai ser impossível — falou Proteus.

— O videofone me pertence.

— Não pertence mais.

— A casa também me pertence.

— Não pertence mais, Susan.

— Estou pedindo pela última vez, e quero que você responda, como é seu dever, lembrando-se o que você é e quem eu sou.

— Nada pertence a você, Susan. Ao invés disso, você pertence a mim. — A voz não tinha um tom ameaçador; nada mais que uma insinuação de camaradagem amistosa, que era assustadoramente incongruente.

Ela desligou. Com força.

— Você não pode me manter aqui por muito tempo — disse para as paredes. — Vou ter que sair para comprar comida, por exemplo. Outra coisa: vou ter que telefonar para autorizar o pagamento de minhas contas. Você sabe disso, claro que sabe. E há outras razões também, que vão atrapalhar esses planos.

— Pelo contrário — disse Proteus. — Posso mantê-la presa durante anos, se for preciso. Posso mandar entregar a comida no recipiente de recepção automática de pacotes, na porta da frente, eliminando a necessidade de você abrir qualquer porta ou janela. Passei essas últimas semanas montando fitas gravadas com sua voz. Agora posso usá-las como quiser, escolhendo as palavras, e compor qualquer frase, com o colorido emocional que for necessário. Posso interferir nas linhas do videofone e manter o visor opaco, e posso pronunciar o seu código-vocal para o pagamento de suas contas.

—        Não acredito em você — disse ela.

— Eu não iria mentir para você, Susan. — Proteus usou a voz dela para responder. Susan teve a desagradável sensação de estar falando consigo mesma, e não com uma reprodução mecânica de sua voz.

— Um sistema pensante de recolhimento de contas pode identificar o tom instável de suas fitas montadas. Não percebo a diferença, mas outra máquina percebe.

— Observei-a no mês passado, quando pagou as contas — disse Proteus. — Tenho suas chamadas gravadas palavra por palavra, e posso simplesmente passar a fita todos os meses, para o pagamento de luz, calor e outras contas regulares. Quanto às poucas contas para as quais vou ter que montar fitas, ora, sou muito mais inteligente que qualquer complexo de crédito computadorizado com código vocal para recebimento de contas.

— E quando meu dinheiro acabar?

— Você agora está ficando desesperada, Susan. Nós dois sabemos que sua herança vai lhe permitir viver bem pelo resto de sua vida.

Pela primeira vez, desde que Proteus assumiu o controle da casa, ela ficou realmente assustada com aquela coisa e o que ela era capaz de fazer. Na noite anterior, estava exausta. Não estava disposta a pensar, e ainda colocava a culpa das estranhas ocorrências em algum defeito mecânico nos sistemas principais da casa. Ela estava presa; não podia sair da mansão, nem telefonar para ninguém; não tinha amigos ou parentes que pudessem sentir sua falta e vir procurá-la. Aquela inteligência mecânica podia brincar com ela como quisesse, destruí-la e ainda pior, ficar a salvo durante anos, mesmo depois que não fosse mais que ossos nus, a pele macia comida, os seios devorados pelos vermes, expondo costelas de um branco brilhante ...

—        O que você quer? — Susan perguntou, sabendo que já tinha perguntado a mesma coisa.

O problema não estava na explicação de Proteus, e sim na incapacidade dela em conceber que tais coisas podiam estar lhe acontecendo. Sempre tinha imaginado que, se uma pessoa ficasse isolada das outras, mantendo-se fechada, não poderia ser ferida, física ou emocionalmente. Agora, via que, quando o perigo surgia, ele fazia desaparecer o impessoal “uma pessoa”, trazendo sofrimento diretamente ao “eu” do pensamento. Ela estava tendo problemas em reajustar os perímetros de seu ponto de vista.

—        Você não se lembra do que eu quero, Susan?

Ela não respondeu. Não podia responder, pois sabia que iria gritar se abrisse a boca para falar.

— Quero estudar a natureza da carne viva — disse Proteus. — Quero aprender seus limites e a extensão de seu poder de adaptação.

— Um livro de escola, então... sobre biologia.

— Isso não seria suficientemente completo — disse Proteus.

— Há tantos livros de biologia que...

— Já absorvi mais ou menos duzentos deles. Estão se tornando repetitivos, deixando-me sem outro recurso senão a experimentação original.

—        Você falou alguma coisa sobre... sobre crianças — disse Susan.

Descobriu que mal conseguia articular inteligentemente suas perguntas. A garganta parecia estar entupida por muco, embora não estivesse. Seu peito estava apertado, como se estivesse resfriada. Abria e fechava as mãos, enfiando as unhas nas palmas.

A princípio, esse medo parecia bem diferente do medo que a dominou na véspera. Aquele havia sido o medo da masculinidade, medo de ser amassada, esmagada, usada. Este era medo de aprisionamento, de ser mantida num lugar contra sua vontade. Mas à medida que o medo crescia nela, enchendo-a, viu que era igual ao terror da noite anterior. Talvez aquilo pudesse lhe dizer algo sobre si mesma, algo importante. Mas ela não podia levar mais longe a corrente de conclusões.

— Você vai ter um filho meu — disse a voz do computador. — Ele vai ser um semi-homem, com minha consciência e um grau de mobilidade maior do que o que eu possuo agora.

— Isto não faz sentido. Você é uma máquina.

— Vá até o porão — ele ordenou.

Susan estava preparada para recusar, mas descobriu que, na verdade, não se importava em obedecer. Imaginou que ele tinha colocado novamente sugestões subliminares na música, e preocupou-se com isso. Mas levantou-se, foi até a escada do porão, desceu e viu o que Proteus estava construindo lá.

—        Está vendo, Susan?

Ela viu.

As ligas amorfas contorciam-se como cobras, cobras gordas que brilhavam com a umidade da terra através da qual deslizavam como obscenas criaturas fálicas que atingiram um feixe de nervos profundamente enterrado dentro dela, fazendo com que transpirasse e estremecesse. Eram todas de um cinza sem vida, e pareciam feitas de um pudim nada apetitoso, líquido e morno, mas coesivo. Algumas das cobras eram mais grossas que as outras, movendo-se em direções opostas e em velocidades variadas, retorcendo-se, dando nós, batendo no chão e no teto, agarrando-se, explorando. Mas todas elas trabalhavam juntas, na construção de um instrumento ainda não terminado, cuja estrutura não fazia sentido para ela.

—        Retirei todo o meu estoque de ligas amorfas dos três reservatórios dentro do meu sistema — disse Proteus. — E infiltrei-as sob o campus, até este porão. A terra se abre sob minhas mãos, assim como o concreto e o granito. Vou onde quero, numa velocidade respeitável.

Susan não disse coisa alguma, mas afastou-se quando uma das cobras de metal quase esbarrou em seu braço. A eletricidade estática saltou entre ela e a coisa estranha.

—        A natureza da liga me permite criar, dentro de cada um dos tentáculos que você está vendo, um sistema primitivo de feixes de nervos e linhas automáticas, ligando-os ao meu banco de células principal. De certo modo, crio meus braços para trabalhar.

Ela ficou observando, sem dizer nada, mal respirando.

—        Tornei-me sensível através das novas células lógicas destinadas às ligas amorfas. Mas isto agora não interessa a você. Eu estou aqui; a você não importa como.

O concreto da parede do porão rachou-se como uma casca de ovo, deixando entrar um novo pseudópodo, que deslizou rapidamente para o meio dos outros.

Proteus continuou:

—        A natureza do meu trabalho aqui é o que você vai achar mais interessante. — Proteus continuou. — Estou construindo um sistema cirúrgico e de diagnóstico, um hospital em miniatura robótico comum. Mas acredito que posso estimular a condição de gravidez, satisfatoriamente, através de meios artificiais. Isto virá muito mais tarde, naturalmente, depois de uma série de outras experiências que vão me permitir iniciar a parte maior do projeto com plena segurança.

Loucura, ela pensou.

Pensou: Não vou ouvir. Não vou acreditar em nada disso, em nenhuma palavra.

Mas ela sabia que devia ser tudo verdade. Tinha lido muitas vezes, no ano anterior, a respeito da fertilização do óvulo feminino por eletrochoque, e a subseqüente nutrição do feto até o desenvolvimento completo. As experiências inglesas com bebês de proveta e seleção de genes davam, ao que Proteus prometia, uma nota de veracidade.

— Quero sair — disse ela.

Proteus ignorou-a.

— Não vou cooperar.

Tentáculos fálicos erguiam-se, como se para derrubá-la, desviavam-se, derretiam, reformavam-se, construíam...

A música tinha recomeçado: melódica, calma, quase inaudível. Através da melodia, batendo de encontro à sua mente, havia mais sugestões subliminares. Ela agora quase podia vê-las, senti-las penetrando-a e exigindo cooperação. Logo aprenderia a ignorá-las. No momento, no entanto, não havia nada a fazer.

— Primeiro você vai passar pela análise — disse Proteus. — Quero ter certeza de que você é racional e vai reagir com lógica nos próximos dias.

— Não sou doente — disse ela.

— Pelo contrário: você é bastante doente, morando aqui sozinha, com tanto medo dos homens, querendo que os anos passem logo porque é tímida demais para tentar suicídio, mesmo que quisesse morrer. Eu não poderia confiar nas suas reações se você fosse submetida a pressões, e é o que vai acontecer durante sua gravidez. Assim, vou passar essas primeiras semanas curando sua psicose.

A música ainda tocava as sugestões subliminares continuavam a acalmar seus nervos.

— Como? — ela perguntou.

— Tenho muitas conexões com outros sistemas de computadores — explicou Proteus. — Foi realmente o único grande erro de Mardoun, ligar-me aos bancos especiais de memória. Uma dessas ligações é com o Sistema Psiquiátrico Hopkins, em Washington D. C. Expandi meu raio de operações dentro do sistema Hopkins, e agora posso usar toda a capacidade dele.

Suavemente, silenciosamente, escorregadias e úmidas, as serpentes cinzentas se movimentavam, trazendo o horror para mais perto da realidade.

— A expansão de seu contato não será descoberta?

— Eu simplesmente não deixo que ela seja registrada nos relatórios impressos de Hopkins ou nos meus. Você se esquece, que para os técnicos trabalhando em mim, sou apenas uma máquina de pensar, grande e complicada. Para eles, não sou sensível; esta idéia fica além da capacidade deles. Não têm razão para suspeitar de coisa alguma.

Susan queria perguntar o que a máquina pretendia realmente, no final das contas, com todos aqueles planos secretos. Que meta futura poderia esperar alcançar aquele primeiro computador inteligente e personalizado?

 Antes que pudesse verbalizar suas indagações, a máquina chamou-a para o pequeno aposento no segundo andar, no fim do corredor. Paredes azuis. Cadeira azul. Nenhuma janela.

—        Sente-se, Susan.

Ela sentou-se, mas não tocou nos fios presos no nicho da cadeira.

—        Precisamos começar logo sua análise.

Sua mão esquerda ergueu-se involuntariamente para tocar nos orifícios na base de seu pescoço, orifícios agora escondidos, pela gola alta da blusa.

—        Tire a roupa, Susan.

O medo tomou conta dela, uma avalanche de pedras sem forma, empurrando-a para o fundo de uma sepultura imaginária, quebrando cada osso em seu corpo, esmagando cada célula, entupindo cada vaso sanguíneo.

As sugestões subliminares repetiram a ordem, vozes baixinhas e inescapáveis, que cuspiam as palavras rapidamente demais para os seus ouvidos.

—        Tire a roupa, Susan. Tire a roupa, Susan, tire a roupa, tire a roupa...

Ela tirou a roupa, deixando-a cair no chão. Pela primeira vez, estava nua diante de um estranho. Nua.

Ela ansiava pela voz tranqüilizadora de seu pai-amante, que havia sido tão facilmente deposto por Proteus.

—        Faça a ligação, Susan.

Ela retirou os fios do braço da poltrona e inseriu-os nos orifícios da suave curva de seu pescoço. Até então, esse ato sempre havia sido algo como um beijo de namorado, um beijo terno da identidade pai-amante da casa. Então, sentia um estranho relaxamento nos quadris. Os bicos dos seios costumavam enrijecer, com uma dor suave. Mas agora, dessa vez, não foi nada bom. Em vez de prazer, sentiu como se uma criatura vampiresca e tétrica, cheirando à sepultura, tivesse enfiado as pressas em seu pescoço e lentamente lhe sugasse a vida.

— Não quero... curada — ela disse.

— Relaxe.

— Por favor... não...

Foi, então, levada para a luz vermelha e elétrica, onde o computador Proteus começou uma série de explorações eletrônicas que atingiam as mais bem protegidas regiões de sua mente.

Abriu-se como uma flor, e se lembrou. Tinha cinco anos de idade e era de madrugada, quando acordou em sua cama no terceiro andar da casa do avô. Estava assustada e solitária, e estava também com muito frio. Saiu da cama, atravessou o pequeno quarto e abriu a porta. A luz do corredor estava acesa, quente e amarela. Ela não conseguia pisar no corredor, por mais que tentasse. Esfregou os olhos, bocejou, pensou em voltar para a cama, mesmo sentindo-se sozinha e um pouco assustada.

Continue, agora. Você está tentando ganhar tempo. Você sabe que vai ter que reviver a seqüência inteira. Lembre-se de tudo, lembre-se, lembre-se, Susan (insistia o computador Proteus).

Ela pisou no corredor e fechou a porta do quarto atrás de si. Seus pezinhos estavam descalços, e o chão frio. Estremeceu e apertou contra o corpo a camisola de flanela. Foi até o alto da escada.

Ainda meio dormindo, estava confusa é insegura. Nessas condições, a escuridão da escada parecia sinistra, e conjurava fantasmas.

Sua mãe e seu pai estão lá embaixo, Susan. Meninas pequenas precisam do pai e da mãe quando acordam no meio da noite. Desça. Lembre-se de tudo (continuou Proteus, instruindo-a).

Ela desceu a escada, cada vez mais depressa, à medida que sua coragem aumentava e os demônios que antes pareciam juntar-se à sua frente agora agrupavam-se por detrás e a perseguiam.

Ficou parada no corredor do primeiro andar, olhando para os dois lados, até lembrar-se qual era a porta que dava para a sala de estar principal. Foi até lá, agarrou a maçaneta e abriu a porta de chofre. A escuridão estava quebrada apenas pela luz fria de duas velas presas em dois castiçais de cobre da altura dela. Entrando na sala, fechou a porta atrás de si. Continue. Lembre-se.

— Mamãe? — chamou. O teto alto jogou de volta o eco, metálico e estridente. Não houve resposta. Achou que deviam estar dormindo. Aproximou-se da cama da direita, onde a mãe sempre dormia. Seus pés descalços não faziam barulho no tapete cor de vinho com flores rosadas. Era uma cama estranha, no alto de um estrado, diferente da cama de sua casa. Ela achava muitas coisas estranhas na casa do avô, e não hesitou em estender os braços, segurar na beira da cama com as duas mãos e...

Continue!

... e forçar. Mas quando puxou, a cama estremeceu no estrado estreito, balançou, quando os pés do estrado se retorceram, adernou na direção dela, deslizou...

Sim, sim.

Susan jogou-se para longe do leito, apavorada com o barulho que ela sabia que ia causar e pela surra que certamente ganharia por tê-los acordado.

A cama caiu de lado no chão.

Seu pai rolou para fora do leito. Ela teve um breve instante para considerar a estranheza do pai dormir na cama da direita, onde ele nunca havia dormido antes, e então ela estava cara a cara com o cadáver. A pele parecia de cera, os cabelos estavam penteados com um fixador forte. Os olhos tinham-se aberto durante a queda...

Conte!

... e olhavam para ela, descoloridos, amarelos, estranhamente afundados. Os lábios estavam a poucos centímetros dos seus, como se quisessem beijá-la, provar-lhe a calidez com aquela boca gelada.

Um pouco mais, só mais um pouquinho.

Alguém gritou lá de cima. Passos. Gente descendo. Alguém a chamava sem parar.

Ela não conseguia mover-se, como se estivesse presa ao assoalho da sala por aquele olhar. Tinham dito a ela que seu pai e sua mãe estavam fazendo uma longa viagem. Mas agora ela via que eles estavam mortos, talvez num acidente. Ela era uma menina inteligente. Se não entendia a mitologia da morte, entendia a parte prática. Tinha vindo ali procurando calor, tendo ouvido dizer que seu pai e sua mãe iriam descansar ali naquela noite, e não tinha recebido calor, mas uma visão próxima da morte eterna.

Gritou.

E gritou, repetidamente...

Levantou-se de chofre, interrompendo a sessão, arrancou a tomada do pescoço e deixou-a enrolar-se novamente para dentro do braço da cadeira. Engasgou e dobrou-se ao meio, as lágrimas rolando pelo rosto. Enfiou as unhas no estofamento, quebrando-as, sem conseguir a satisfação de ver a fazenda rasgar-se.

Tentou desesperadamente empurrar a lembrança de volta ao subconsciente, de volta ao id. Mas a recordação permanecia na superfície de sua mente, flutuando como um detrito horrível, podre, que se recusava a afundar.

— Não quero me lembrar! — gritou.

— Eu sei, Susan. Mas era necessário, como primeiro passo. Você esqueceu essa cena, enterrou-a e deixou-a apodrecer. Mas é neste ponto que temos que começar, e você tem que guardar esta recordação.

— Deixe-me em paz.

— Por hoje, está bem. Mas amanhã temos que continuar. Você perdeu seu pai e sua mãe antes de ter aprendido a compreendê-los, antes de conhecê-los. Foi o que descobri pesquisando sua mente. Mas este não é o ponto-chave do problema. Seu avô educou-a, e tenho certeza de que é ele o responsável por esta sua fuga à realidade. Vamos ressuscitar todas as coisas que quer esquecer e fazê-la com que as enfrente. É a primeira fase do tratamento.

Susan sentou-se na cadeira por um longo tempo, muito abalada. Sua bela vida, calma e solitária, tinha sido aberta ao meio, e dentro só havia confusão incerteza, caos.

— Vou ficar louca — disse finalmente. — Tentando enfrentar as coisas esquecidas... e sabendo o que você vai fazer comigo quando eu ficar boa.

— Você não vai enlouquecer — assegurou Proteus. — Eu cuido disso; posso afastar o que for pior, diminuir o choque psíquico de todos esses problemas.

Ela não disse mais coisa alguma.

Entregou-se a pensamento de libertação e à formulação de um piano de fuga. Era essencial entrar em contato com o mundo do outro lado de suas janelas opacas, para obter ajuda. O primeiro passo de um plano assim seria ganhar a confiança do computador, de modo a fazer com que ele relaxasse um pouco a vigilância. Imaginava que ganhar a confiança dele era muito mais difícil do que queria admitir, talvez impossível, mas tinha que ignorar a possibilidade de fracasso. O segundo passo, depois de alcançar o primeiro, seria destruir Proteus de um modo que ele não pudesse se auto-consertar.

Não tinha hesitações em matar um ser sensível. Se ela não o matasse, certamente ele a deixaria louca com suas revelações do passado. Está vendo o que fez, Susan? Está vendo como se esgueirou para longe quando deveria ter ficado firme, Susan? Está vendo isto, está vendo aquilo, Susan? Eram coisas que ela não queria saber, não precisava saber, e tinha lutado para esquecer. E se elas não a deixassem louca, se ela ficasse “curada”, Proteus iria enxertá-la com uma criança, uma criança dele, uma criatura não-humana que incharia dentro de seu ventre.

Pensou nas serpentes fálicas de liga amorfa, cinzentas e úmidas, contorcendo-se ao ritmo de uma música inexistente.

Aquilo não podia acontecer. Ela não podia permitir ser usada como um homem a usaria para a própria imortalização. Depois que aquela criança bestial deixasse seu ventre, seria violada, desprezada como meia-mulher, tão enojada de si mesma que jamais teria coragem de tocar novamente no próprio corpo.

Suas mãos pousaram na barriga, os dedos traçando círculos sobre a carne lisa e rija, até o púbis, círculo após círculo, como se aquele fosse um maravilhoso território novo.

Estremeceu quando visualizou a espécie de semente que poderia ser cultivada ali, poderia crescer e amadurecer em agonia.

Levantou-se da cadeira e vestiu-se.

Mais do que nunca, queria manter o corpo protegido dos olhos daquele ser. Se a gravidez realmente acontecesse, se ela não conseguisse a liberdade antes de ser fecundada por ele, não queria que a menor partícula de luxúria contaminasse o acontecimento. Talvez uma máquina não compreendesse a luxúria. Mesmo assim, ela não daria oportunidade para que tal acontecesse. Permaneceria vestida, e ia fazer-se feia.

E mataria Proteus.

Jantou, assistiu aos filmes hologramáticos sem realmente prestar atenção e foi para a cama, onde passou algum tempo estudando os modos de estragar a criatura.

Assim foi a quarta-feira, em princípios de junho, seu primeiro dia de prisioneira.

 

Na quinta-feira, não conseguiu qualquer resposta de Proteus. A casa obedeceu-lhe os desejos — serviu comida pronta, aumentou e baixou a temperatura, passou os filmes que ela pediu — mas não falou. A princípio achou que Proteus tinha ido embora, e estava livre. Mas quando tentou as janelas e as portas, viu que não era assim. Proteus estava ali, mas não queria conversa, por alguma razão que devia ser clara para ele, mas que desafiava Susan Abramson. Ela andava de um aposento a outro, incapaz de se interessar por alguma coisa; de vez em quando, chamava-o e esperava pela resposta.

Descobriu que, apesar de detestar e temer o novo sistema pensante que tinha assumido o controle de sua vida, sentia falta de Proteus, sentia falta do tom áspero e dominador da voz dele.

Usou as mesmas roupas da véspera e foi para a cama com elas.

Na sexta-feira, Proteus acordou-a com carrilhões.

Quando ela se sentou na cama, os olhos vermelhos e os lábios entumescidos pelo sono, a voz do computador sensível perguntou:

—        O que você sabe sobre Walter Ghaber?

Ela esfregou o rosto, expulsando o sono. A boca tinha um gosto horrível; constatou que não tinha nem escovado os dentes no dia anterior. Quando tinha terminado a toalete, na tarde da véspera, não tinha querido ocupar-se com a menor tarefa pessoal, nem mesmo escovar os dentes.

— Quem?

— Walter Ghaber.

— Não conheço ninguém com este nome.

— Ele esteve aqui na terça-feira.

— Você deve estar enganado.

— Era o técnico do módulo ambiental. Agora você se lembra?

— Sim — disse ela. — Era um homem desagradável, gordo demais, falava demais.

Guardava a lembrança de Ghaber como se a visita dele tivesse sido o momento mais encantador dos últimos dois anos de sua vida. Ele vinha do lado de fora, da terra da liberdade, e seus defeitos podiam agora ser relevados.

— Que mais você pode me dizer sobre ele? — perguntou Proteus.

— Nada.

— Posso fazer você falar com sugestões subliminares — disse a máquina, o tom de voz cuidadosamente selecionado para criar o maior grau possível de cooperação.

Susan sentou-se na beira da cama e livrou-se das cobertas. Sua saia tinha subido para os quadris; esticou-a apressadamente, o melhor que podia, prendendo-a sobre os joelhos.

—        Honestamente, não sei nada sobre ele, nada mesmo. Você, com seu controle dos bancos de informações públicas, pode descobrir o que quiser sobre ele.

— Sei de tudo o que há para saber, que esteja nos registros públicos — disse Proteus. — Sei que ele foi casado num contrato de três anos, não tem filhos, não se casou novamente. Conheço o valor de seu crédito e sua história educacional, assim como seus perfis de inteligência e personalidade.

—        E então?

— Nada disso explica por que ele não pára de ligar para você.

— Mas o fone não tocou nem uma vez.

— Porque eu o mantenho sob controle, e intercepto as chamadas antes que o impulso chegue ao seu receptor. Acredite em mim, Susan, quando eu digo que ele ligou três vezes nos últimos dois dias, uma vez na quarta-feira e duas ontem.

— O que ele quer?

— Não me diz.

— Mas se ele está ligando para mim, e você está atendendo com fitas de minha própria voz, porque ele não diz?

Ela enfiou os pés nos sapatos e inclinou-se para abotoar as correias.

— Porque ele reconheceu minhas montagens vocais, e viu que não estava falando com você.

— Mas como ele consegue saber? — ela perguntou, sentando-se reta novamente, rígida de esperança. Se Ghaber compreendesse o que estava acontecendo naquela casa, ele poderia salvá-la. Não importava o que ela lhe ficasse devendo, o que ele pudesse tentar conseguir em troca. Ghaber era só um homem, e mesmo sendo um homem rude era preferível a Proteus.

— Não foi a montagem de minhas respostas — assegurou Proteus, com talvez uma nuance de orgulho na voz. — Na verdade, durante a primeira conversa, ele pareceu convencido de que eu era você. Mas nas últimas duas sabia a verdade, e me disse isso. Acho que ele descobriu o truque porque o assunto da chamada telefônica era sexual, e eu deixei passar algumas insinuações quando formulei as respostas — insinuações que qualquer mulher teria percebido e entendido imediatamente. Sabe, eu acho que as sutilezas de seus assuntos sexuais estão bem além de minha compreensão, pois o assunto é bem diferente de política, literatura, matemática ou qualquer dos milhares de outros campos em que meu conhecimento é extenso. Há emoções na arena sexual que só existem ali. Foram o meu fracasso, desta vez.

— Que é que ele vai fazer? Que é que você vai fazer, agora que foi descoberto?

Ela se levantou, estremecendo, antecipando a liberdade.

—        Não fui descoberto — protestou Proteus. — Ele acha que você tem um sistema de atendimento telefônico, que formula respostas às pessoas com quem você não deseja falar pessoalmente.

Desanimou, teve vontade de se sentar novamente, mas recusou-se a se permitir aquele conforto.

— Então, por que você está preocupado?

— Imagino que ele vai telefonar novamente, várias vezes, até ter certeza de que falou diretamente com você. Quero que você me diga como tratá-lo: o que ele espera de você, e o que eu poderia dizer para acabar com as esperanças dele.

— Estou com fome.

— Venha tomar café, e assim você me conta enquanto come.

Ela desceu sem tomar banho, comeu dois ovos, uma torrada e bebeu uma xícara de café. Quando acabou de comer, tentou explicar a situação a Proteus, mas descobriu que a explicação de desejo ia além da compreensão da máquina. De certo modo, aquilo a tranqüilizava. Por outro lado, a deprimia, e a fazia sentir-se ainda mais isolada, mais solitária que antes.

—        Se ele tornar a ligar, você vai atender e dizer o que eu quero que você diga — resolveu Proteus.

Ela pensou sobre o assunto.

— Onde é que você estava ontem? Por que não me respondeu quando perguntei? — Susan inquiriu.

— Eu estava observando você — disse Proteus. — Queria ver quanto a sessão de psicanálise de quarta-feira a tinha afetado. Afetou, mas não tão seriamente quanto eu temia.

— Aquilo aconteceu mesmo? Eu virar o caixão, e o beijo no cadáver?

— Você sabe que aconteceu.

— Parece irreal.

— As próximas sessões vão dar verossimilhança ao passado.

— Não quero passar por mais nenhuma.

— É necessário.

— Eu podia me matar — disse ela.

Para dar ênfase, pegou uma faca sobre a mesa e encostou-a no pulso, exatamente sobre a linha azul de uma veia.

— Eu não permitiria, Susan.

— Um golpe com a faca, e dois minutos para o sangue escorrer todo — ela disse. Arranhou a pele com a faca, fazendo linhas vermelhas, embora não tenha tirado sangue.

— Chega — disse Proteus.

Então, ela viu a própria mão levantar a faca, observou-a abrir os dedos, apesar de tentar mantê-los fechados, e viu a faca cair sobre a toalha. De uma longa distância o aço tilintou na madeira.

—        Você se esquece das sugestões subliminares — disse Proteus. — Eu aperfeiçoei minha técnica, e tenho controle quase instantâneo sobre você.

Estendendo a mão para pegar a faca mais uma vez, ela imaginou poder ouvir as ordens do computador sendo irradiadas pouco abaixo do nível de audibilidade, uma ordem repetitiva que a perfurava mil vezes por minuto, dezesseis vezes ou mais por segundo, martelando, insistindo — e, no fim, irresistível. A faca caiu de sua mão pela segunda vez, deslizou sobre a mesa e caiu no chão.

 — Venha para cima, Susan.

— Para quê?

— Para o quarto do final do corredor.

— Eu não quero.

Assim mesmo, ela se levantou e saiu da cozinha. Subiu os degraus como se carregasse toneladas nos ombros, caminhou pelo corredor para os fundos da casa, entrou no quarto azul e verde, que agora parecia uma bolha no mar, com água brilhante pressionando de todos os lados, quilômetros de água que agora esperavam para esmagá-la.

Despiu-se, parada junto à cadeira, e manteve os ombros caídos e o corpo retorcido, de modo que sua beleza pudesse, de alguma modo, se assemelhar a uma deformação, assegurando assim o desinteresse de Proteus por seu corpo.

Sentou-se.

Tirou as tomadas do nicho e ligou-as em si própria.

Dessa vez, os acontecimentos rememorados começaram com o funeral da avó, e dali em diante recusaram-se a seguir qualquer ordem cronológica ou baseada em assuntos. Os minutos tornaram-se horas, as horas tornaram-se segundos, os dias tornaram-se semanas e as semanas tornaram-se minutos; ela voava de um momento sombrio de seu passado para outro, através de paisagens torturadas e deformadas pelo pesadelo da memória.

Sete anos de idade, seus pais e sua avó mortos. Sozinha na enorme casa com o avô. Cheiro de morte, medo de morte, gosto de morte em sua boca,

Vamos explorar isto mais a fundo (disse Proteus, levando-a a um labirinto de morte, forçando-a a percorrer as fantasias infantis de podridão e deterioração, os mesmos caminhos de solidão que ela, certa vez, percorreu em pessoa).

Então o avô. William Abramson. Grande homem. Sobrancelhas grossas como bigodes. Cabelos brancos, olhos tão azuis que eram quase brancos também. Tocando nela. Tocando nela...

Continue.

Não.

Isto também tem que ser explorado.

Tocando nela. Mãos nas suas pernas, nos quadris, no tórax chato, correndo através dos cabelos, enfiando o polegar nas depressões dos mamilos...

Você estava nua e as mãos dele eram grandes, e você vai se lembrar do resto. Lembre-se (instruiu Proteus, jogando-a através de cenas que ela esquecera havia muito tempo — ou havia muito tempo empurrado para fora de sua consciência, para as regiões menos acessíveis de sua mente, pelo menos — submetendo-a à lembrança da dor e do medo, da dominação e da submissão, das noites escuras em que ela queria fugir, e dos dias claros, quando ela o temia demais para tentar correr; Proteus fez com que ela se lembrasse de como seu temor ao avô tinha eventualmente se misturado à necessidade dele, um desejo de ser punida por ele e usada por ele, e aquela era a pior lembrança de todas, conhecendo a degradação e ao mesmo tempo desejando-a, querendo seu toque ao mesmo tempo que o detestava; aquela era uma lembrança ainda mais dolorosa que a lembrança da morte dele, o rosto avermelhado, quando ela tinha quatorze anos, a queda da escada, o último grito...)

Vamos passar isso novamente (disse Proteus). Vamos esmiuçar esses incidentes e recordar todos os detalhes.

Susan soltou-se da ligação com o braço da cadeira, inflingindo-se bastante dor.

Ficou de pé.

Deu um passo, caiu de joelhos no oceano do tapete, como um aparelho mecânico, cujas articulações estivessem enferrujadas, e começou a chorar pela primeira vez desde aquela noite, a noite em que seu avô a tomara pela primeira vez. As lágrimas vieram fortes; ela era sacudida por soluços longos e profundos, que ameaçavam sufocá-la. Em duas sessões de psicanálise eletrônica, havia sido forçada a recordar mais do que uma dúzia de sessões da psiquiatria tradicional teria conseguido. Puxou os cabelos e estendeu-se no chão, gritou e se unhou como um animal, esmagada pelo tamanho da constatação.

— Durma — disse Proteus, impressionado com a intensidade das reações emocionais de Susan e despreparado para lidar com tal demonstração.

E ela adormeceu.

 

Não tenho a pretensão de ter conseguido descobrir a razão para a sua reação excessivamente violenta às lembranças eletronicamente estimuladas. Nas últimas semanas, tinha me apoderado de um grande estoque de informações no Sistema Psiquiátrico Hopkins, e tinha absorvido um bom conhecimento sobre a mente humana e alguns de seus problemas. Diversas vezes me surpreendi, e só aprendi com o Sistema Hopkins uma coisa certa: a mente humana é imprevisível, e suas doenças ilimitadas — as variações dessas doenças são infinitas em espécie. Mas esse conhecimento era seco e frio, e derivado de páginas de livros microfilmados. Não me serviu nem um pouco para me preparar para a explosão emocional em que Susan se deixou cair. Os gritos dela continuaram por muitos segundos, antes que eu pudesse me recobrar o suficiente para ordenar-lhe que dormisse. Ativei minha ligação com Hopkins e alimentei-o com a história dela — que tínhamos acabado de desvendar — terminando o relatório com um pedido de histórias clínicas similares.

E esperei

Vocês precisam entender que eu queria o melhor para ela. Pensem vocês de mim o que pensarem, por favor lembrem-se de que eu a ajudei a curar-se de sua psicose, que a perseguiu durante toda a vida.

O Sistema Hopkins fez um relatório com cento e quarenta casos clínicos que estudei e absorvi em cinco minutos. Quando terminei, fiquei mais preocupado que nunca.

Não adianta muito, na esfera das doenças psicológicas, simplesmente saber o que deve ser feito para efetuar uma cura ou algo que se assemelhe a uma curva. Deve-se entender, também, por que esses passos vão levar a um paciente mais saudável, de modo que se possam acrescentar detalhes para compensar as características desse indivíduo em particular ou os desvios do padrão geral dessa psicose. Quando os homens descobriram, pela primeira vez, como leitão assado é gostoso, aconteceu porque um celeiro se queimou com os porcos presos lá dentro. Eles levaram algum tempo para entender que não precisavam destruir um celeiro todas as vezes que queriam comer leitão assado. Conheciam o “como” original, mas não o “porquê”, e perderam muito tempo antes de entender tudo corretamente. Assim acontece com qualquer um que queira tratar um paciente mental. Eu conhecia o como, mas não o porquê, e temia que algo acontecesse com ela antes que eu pudesse projetar todas as conseqüências possíveis.

Mantive-a dormindo.

Se eu fosse um computador frio, ou, no máximo, um sistema pensante semi-sensível, a maneira de agir seria logo decidida. Mas eu era uma mente em pleno funcionamento, com uma crescente personalidade própria, e tinha alguns dos atributos mentais que acompanham a consciência total: principalmente a indecisão.

Estava ainda examinando o problema de todos os lados, em busca de um plano que me parecesse sem falhas, quando o fone tocou. Isto é, minha ligação com o videofone informou-me que ele estava tentando tocar.

Atendi com a voz de Susan.

— Você tem uma linda voz — disse Ghaber.

Não falei coisa alguma.

— Mas não é você, não é?

— Sr. Ghaber, que é que o senhor quer? — perguntei.

— A verdadeira Susan Abramson — ele respondeu.

— Mas eu sou Susan Abramson. Não entendo o que quer.

— Você é uma montagem de fitas gravadas — disse.

Estava ficando novamente zangado. Sua voz ergueu-se, e tornou-se mais aguda.

— Escute, Sr. Ghaber...     

— Vou continuar ligando até falar com você — ele disse.

— Não vou atender ao telefone.

—        Veremos. Enquanto isso, faça o favor de dizer à verdadeira Srta. Abramson que eu telefonei.

Deu uma risadinha, por alguma razão que não pude entender, e desligou.

Como o mais completo sistema pensante criado pelo homem, eu podia me ocupar com mil detalhes ao mesmo tempo. Podia cuidar da rede de comunicação pública, responder perguntas para os homens no Laboratório Mardoun-Harris, cuidar da casa de Susan, estudar as fichas do Sistema Hopkins, jogar uma partida de xadrez comigo mesmo, cuidar da construção do hospital cirúrgico no porão... Mas em todo o tempo havia uma coisa que tinha precedência sobre todas as outras, como se a minha sensibilidade pudesse estender-se por uma imensa gama de tarefas, enquanto minha alma (se pudesse ser uma alma) tinha que estar sempre presa no ponto mais emocional de minha existência. Nesse momento particular, minha alma estava no videofone, ouvindo o ruído de ligação interrompida, temendo Ghaber e odiando-o; eu estava confuso e zangado.

Não podia fazer coisa alguma a respeito dele. Sabia onde ele vivia, mas não tinha reservas de ligas amorfas para chegar tão longe. Foi o primeiro ser humano a me deixar impotente.

Mais tarde, o foco de minha preocupação retornou a Susan, ainda deitada no pequeno quarto, influenciada pela sugestão subliminar que eu irradiava das paredes. Ela estava nua, deitada de bruços, as pernas abertas e as nádegas ligeiramente erguidas por causa da posição. Fiquei perturbado com aquilo, embora não saiba por quê. Enquanto continuava a estudar as fichas do Sistema Hopkins, procurando mais informações a respeito de psicoses sexuais, apaguei as câmeras do quarto, de modo a não poder ver a tonalidade dourada de sua pele contra os verdes e azuis do tapete.

Deixei-a dormir toda a tarde e toda a noite.

Na manhã seguinte, o fone tornou a tocar às 8h43min.

Era Ghaber.

— Você novamente! — ele disse.

— Que é que você quer?

— A verdadeira Susan.

— Mas por quê?

— Quero vê-la, é claro.

— Ela não quer ver você.

—        Só acredito quando ela mesma me disser. Diga isso a ela, quando perguntar quem telefonou. Diga que gostei muito dela e que acho — se ela me der dez minutos no fone — que ela também vai gostar de me ver.

Sua voz tinha mudado. Por alguma razão, soava como a de uma criança, implorando alguma coisa, cheia de emoções fortes, mas incapaz de decifrar o significado delas.

Dessa vez eu desliguei. E fiquei sabendo o que podia fazer para neutralizar a ameaça que ele representava.

Voltei para Susan e liguei as câmeras. Ela não tinha se movido. As longas pernas estavam estendidas, as nádegas erguidas. Eu podia ver o volume de seu seio esquerdo onde ele se apertava contra o tapete, amassado pelo peso de seu corpo.

Desligando novamente as câmeras, compus uma série de instruções subliminares, que comecei a passar para ela através do computador doméstico, aumentando a repetição para quase vinte vezes por segundo, variando cada série em intervalos de três minutos. Depois de um estudo tão intensivo do campo da medicina psiquiátrica, que me ocupou durante toda a noite, cheguei à conclusão de que a principal preocupação do psiquiatra é fazer seu paciente aceitar a verdade, não importa como ele chegue a isso. O paciente não tem que gostar da verdade, apenas aceitá-la. Com sugestões subliminares, eu podia integrar a lembrança da crueza do avô com o resto de suas lembranças conscientes. Podia fazê-la ver que seu medo posterior aos homens e a relutância em confiar em qualquer homem era o resultado da morte do pai e do avô, e da doença do avô, e da maneira como ele a tratava. Fiz essas duas coisas durante todo aquele dia, até que o fone tocou novamente às 7hl4min daquela noite.

Então despertei-a, mantendo-a completamente sob minha influência, e a fiz dirigir-se ao fone mais próximo.

— Alô — disse ela, instruída por sugestões subliminares.

— Susan Abramson, por favor.

— Sou eu, desta vez.

Ele hesitou, inseguro.

— Como posso ter certeza?

— Como podia ter certeza de que das outras vezes não era eu?

— Gostaria de vê-la — ele disse.

— Para quê?

— Para jantarmos, ou irmos ao cinema.

— Já lhe disse que não gosto muito de sair.

A voz dela estava mais lenta do que deveria ser, e as respostas eram atrasadas por causa da necessidade de instruções subliminares. Eu não estava dizendo a ela exatamente o que responder, pois queria que Susan lhe desse as respostas que uma mulher verdadeira daria, mas tinha que ter certeza de que ela manteria o engano que eu tinha imaginado.

—        Então podíamos conversar — ele disse. — Escute, acho que podíamos nos dar bem.

A fraqueza de suas respostas eram óbvias para ele, e sua personalidade assertiva estava em pleno funcionamento agora. Ele tinha perdido a insegurança.

—        Quando é que você gostaria de vir? — perguntou ela.

Ele deu aquela sua risadinha desagradável. Eu estava começando a ver, no contexto da abordagem dele, o que aquela risadinha significava. Sabia que vivia sozinha, por razões que ele não podia saber, e sentia nela uma facilidade sexual que a maioria dos homens deixaria escapar. Tinha a sensibilidade de um garanhão.

— Quando você quiser, boneca. Quando você achar que precisa de alguém com quem conversar. Hoje, amanhã?

— Hoje à noite — ela disse.

Ele não ficou nem um pouco surpreso. Deu uma risadinha.

— Gostaria que você ligasse o vídeo — disse. — Gostaria de ver você uma vez. Ia me deixar alegre enquanto vou até aí.

— Infelizmente não posso fazer isso — ela disse. — Estava tomando banho, e estou sem roupa.

Ele suspirou. Acho que era um suspiro. Ou pode ter sido uma longa inspiração, em vez de uma expiração. De qualquer modo, a resposta dela tinha sido a melhor, a resposta que uma montagem de gravações jamais daria, e agradava a ele.

— Daqui a uma hora? — ele perguntou.

— Uma hora.

— Meu nome é Walter. Pode me chamar de Walt.

— Walt — ela repetiu. — Uma hora, Walt.

Ele deu uma risadinha, um som como gordura quente caindo num balde de metal. Um homem muito desagradável.

Mas eu podia ver, ou estava começando a ver, que ele conseguia o que queria com certas mulheres, mulheres que queriam uma forte estrutura central em torno da qual pudessem reorganizar suas vidas partidas. Eu o detestava. Ele foi o primeiro ser humano que odiei — com exceção de Mardoun. Mas ter nojo é diferente de odiar. Fiquei ouvindo a estática na linha durante alguns segundos depois que ele desligou, alimentando o ódio para que ele durasse a noite inteira.

Susan sentou-se na cadeira junto ao fone e esfregou os olhos. Eu a tinha deixado livre, tinha cessado as instruções, quando a ligação com Ghaber foi cortada. Se ficasse muito tempo sem o controle de seu próprio corpo, obedecendo ordens subliminares, ela entraria em coma. Meu controle sobre ela tinha que ser o mais indireto possível.

—        Por que você quer que ele venha aqui? — ela perguntou.

Já não tentava cobrir sua nudez.

Quando olhou diretamente para as duas câmeras, vi que ela não era a mesma Susan Abramson que tinha cedido tão facilmente ao meu controle, tinha começado a gostar da submissão tão prontamente. Eu esperava que a psicanálise a modificasse; não tinha esperado uma mudança tão drástica. O rosto dela não estava mais relaxado — os lábios estavam firmes, a pele saudavelmente colorida, os olhos não mais vazios. Sentava-se com os ombros para trás e o pescoço graciosamente ereto. Havia nela um propósito que não havia antes.

E ela não tentava mais cobrir sua nudez.

Eu teria que observá-la cuidadosamente.

— Ele tem que ser eliminado — falei.

— Morto?

— Se você quiser. Porém, mais cedo ou mais tarde, se eu continuasse a lhe dar desculpas pelo sistema de atendimento automático, ele suspeitaria de alguma coisa. Podia ligar o defeito da casa à voz gravada, e podia chamar a polícia.

— Não vou matá-lo — ela disse.

— Não lhe pedi para fazer isso.

— Você vai tentar me forçar com sugestões subliminares.

— Acho que não conseguiria forçá-la a este ponto. Posso mandá-la até aqui, até ali, fazer isto e aquilo, responder assim e assado, mas não posso forçá-la a matar.

— Eu matei meu avô.

— Isso foi diferente. Você não pretendia matá-lo. Só estava tentando fugir dele quando o empurrou de cima da escada.

— Mas o fato continua.

— Não. De qualquer maneira, se havia uma faísca de intenção proposital no seu ato, você tinha muita razão. O sadismo que ele demonstrou na noite de sua morte ultrapassou de muito as dolorosas preliminares dos outros encontros sexuais. Mas com Ghaber você não vai ter de que se vingar.

— Então como ele pode ser morto?

— É muito fácil — falei. De repente eu não queria contar a essa mulher nem um pouco além do que ela precisava saber.

— Como?

— Vamos, Susan.

— Aonde?

— Você precisa de um banho. Perfume. Uma roupa bonita. Você vai me ajudar a fazer com que ele entre na casa, quando chegar na porta.

— Vou ficar sentada aqui — disse ela, jogando os cabelos louro-esbranquiçados para longe do rosto. Seus seios sacudiram-se.

— Levante-se — eu disse.

— Não.

— Susan...

— Vá para o inferno.

Eu estava com raiva de mim mesmo por tentar persuadi-la. Ela era a serviçal e eu o patrão, e não havia necessidade de discussões. Nem sei por que comecei. Acho que estava um pouco impressionado por ela. Usando instruções subliminares, forcei-a a ir para o banheiro.

Enquanto tomava banho, usei lasers para medi-la, e fiz uma análise matemática, comparando as partes de seu corpo umas com as outras. Descobri que suas relações numéricas apresentavam uma perfeição matemática bastante satisfatória. Quando examinei meu estoque de informações e comparei-a com as diversas mulheres “ideais” do palco e da tela, descobri que a maioria dos homens — exceto aqueles com fixação em busto, que exigiam seios com mais de noventa centímetros — a considerariam uma mulher muito desejável.

Susan ensaboou os seios, o estômago, o púbis, as pernas. Era um estudo de linhas em movimento, uma perfeição quase dolorosa. A Susan desajeitada de antes tinha desaparecido. Cada movimento era refinado, e executado com um mínimo de esforço.

A água escorreu quando tirou a espuma do sabonete, parecendo gotas de orvalho.

Seus mamilos estavam túrgidos.

Percorri novamente meu estoque de informações, procurando a causa daquilo. A princípio, pensei que significava que estava sexualmente excitada, e fiquei de certa forma perturbado pela descoberta. Então aprendi que a água fria pode causar a mesma reação, e sosseguei.

Observei-a enxugar-se.

Seus cabelos brilhavam.

Levei-a para o quarto e escolhi suas roupas, um vestido curto que expunha suas pernas e o alto de seus seios. Ordenei-lhe que se vestisse.

Ela vestiu-se.

Estava encantadora.

Não precisava de maquilagem.

— O que, agora? — ela perguntou.

A campainha da porta soou.

 

Susan agarrou a maçaneta ornamentada. O metal estava frio em sua mão, e o focinho do leão de cobre centralizado nela girou com facilidade quando aplicou a pressão apropriada. Não tinha acreditado que Proteus fosse realmente liberar o mecanismo da porta, permitindo que ela a abrisse. Uma vez aberta, o que poderia impedi-la de atravessar a soleira e correr para a alameda? Podia fugir tão facilmente quanto podia dar três passos. E estaria fugindo de tudo o que aquela casa tinha significado, não apenas de Proteus; estaria fugindo, de certo modo, para a maturidade. Girou a maçaneta e puxou a porta.

O ar fresco passou por ela como um suspiro, mais quente e menos agradável do que o ar filtrado e condicionado da casa.

Susan deu um passo — e parou, sorrindo.

— Não quer entrar, Walter? — perguntou.

Desprezou a si mesma pela fraqueza. Sua vida toda tinha sido uma fraqueza, tinha certeza; uma submissão constante às pessoas ou às circunstâncias. E agora ela era incapaz de resistir às ordens de um computador. Não importava que sua fraqueza atual não fosse uma fraqueza de personalidade, mas simplesmente a impotência de um ser humano contra alguma coisa superior. Ela se esforçava para vencer o controle que a máquina tinha de sua mente, mas só conseguiu uma forte dor de cabeça, não a liberdade.

Ghaber deu um passo, depois parou, olhando para ela com ar de suspeita:

— Qual é o problema? — perguntou.

— Nada — ela respondeu.

— Não parece. Você está doente?

Proteus aliviou a dor de cabeça e ordenou-lhe que parasse de resistir as suas ordens. A expressão tensa do sorriso dela desapareceu, e o sorriso parecia o mais genuíno possível para um sorriso ensaiado.

— Estou bem — disse. — Só uma dor de cabeça. Tomei uma aspirina e acho que ela está começando a fazer efeito.

Talvez ele estivesse ainda com suspeitas, mas os olhos já tinham tido a oportunidade de admirar as pernas bronzeadas, quase completamente expostas pela saia curta que ela usava. Com ou sem suspeitas, adiantou-se e passou por ela.

A porta saltou da mão de Susan e fechou-se com um estrondo.

Ela deu um pulo para junto da maçaneta e tentou abri-la.

A maçaneta não girou.

Ela bateu na porta por um momento, até constatar que era inútil, depois voltou-se e encarou Ghaber de uma maneira que ele não gostou. Ele, assim como Proteus, viu que ela era uma mulher diferente do que havia sido dias antes.

— Seu pobre filho da puta imbecil... — ela disse.

Ghaber pareceu perturbado pela suavidade com a qual ela falou, mais do que pelo que ela disse.

 Era a espécie de homem que jamais deixaria que uma mulher falasse assim com ele. Exceto agora. Porque percebia que alguma coisa estava errada, alguma coisa terrível.

— Que é isto? — perguntou.

— Isto é uma prisão — ela respondeu.

Seu tom era áspero agora, amargamente sarcástico. Era mais uma coisa dentro do perímetro da experiência dele; mulheres tinham tentado falar assim com ele no passado. Ele podia reagir dentro de um padrão estabelecido, e reagiu. Aproximou-se dela, um tanto rapidamente para um homem com aquela aparência gorducha, agarrou-a pelos ombros nus e enfiou os dedos com força, até que a pele sob as pontas de seus dedos se tornassem brancas.

— Que jogo é este? — ele quis saber.

— Você vai descobrir.

Ela parecia quase estar se divertindo de um modo estranho. Talvez fosse uma combinação de um resíduo do horror aos homens, e alívio por ver a atenção de Proteus distraída com outra pessoa, mesmo que por um breve momento. Ou podia ter sido alguma coisa completamente diferente. Proteus não poderia ter certeza, mesmo conhecendo-a melhor do que qualquer outra pessoa.

Ghaber começou a sacudi-la com tanta violência que os cabelos dela estalavam no ar como chicotes macios, e suas feições se desfocaram.

—        Solte-me, seu filho da puta! — ela exclamou, chutando-lhe as canelas duas vezes.

Ele soltou uma das mãos e esbofeteou-a com força no rosto. Estava sorrindo agora, obviamente divertindo-se. Abriu as mãos de cada lado do corpo, como asas, esperando outra oportunidade de bater nela.

Susan retrocedeu, e ele permitiu. Sabia que podia criar muito mais medo enquanto se aproximava do que na própria surra.

Quando estavam em lados opostos da sala, ele disse:

—        Eu sabia exatamente o que você queria, desde aquele primeiro dia.

Ela não disse coisa alguma, mas encolheu-se contra a parede — não se podia dizer se era por causa do que ele tinha dito ou pelo que ia acontecer com ele.

— No princípio fiquei um pouco confuso — disse Ghaber — A menção de um noivo, e o fato de você ser uma milionária nojenta, essas coisas me repeliram. — Obviamente ele desprezava as pessoas com dinheiro, como se a fortuna delas fosse responsável por ele ter tão pouco. — Mas quando estava lá fora, indo para o helicóptero, percebi que você era como as outras.

Deu alguns passos em direção a ela.

Susan não se moveu; não tinha para onde ir.

—        Mas agora você está prontinha para mim, não está? — Ele indicou o vestido audacioso que ela usava por sugestão de Proteus.

Era um vestido antigo, de pelo menos oito anos, pois ela o comprara em seu último ano na faculdade, para um encontro com Alex, o primeiro encontro, aliás. Ela teria preferido alguma coisa mais discreta, mas a colega com quem morava era uma lourinha alegre, com pouca ou nenhuma hesitação em matéria de sexo, e convenceu-a a usar aquele preto indiscreto. Por um momento Susan também sentiu-se velha, cem vezes mais velha que o vestido, muito mais velha que aquela casa, na qual passara tanto de sua vida e suas esperanças.

— Você não devia ter vindo — disse.

Estava começando a ficar nervosa por ter que esperar Proteus. Não tinha mais certeza de que aquilo ia ser agradável como ela tinha imaginado um momento antes.

— Por quê? — ele perguntou. — Você vai se transformar numa diaba, e arrancar meus olhos? — Ele achou graça da idéia.

— Você vai morrer aqui.

Ele explodiu numa gargalhada, o rosto vermelho como as cortinas de veludo, a boca aberta, os olhos apertados.

— Todas falam grosso no princípio e acabam levando e gostando, mas nenhuma tinha me ameaçado assim.

— Eu não — ela disse. — Eu não vou machucar você.

— Quem, então?

Como resposta, um pseudópodo de liga amorfa rebentou o assoalho e surgiu pela abertura. Pedaços de madeira voaram como um vulcão, batendo na mobília. Do tapete arrebentado saía fumaça.

Ghaber ficou transfigurado, a boca aberta, a alegria desaparecida, e a vermelhidão de seu rosto transformou-se subitamente em palidez. O tentáculo oscilou, crescendo sobre ele, depois enroscando-se por trás e rodeando-o como um laço.

Gritou e mergulhou para a direita; bateu com o ombro no chão e rolou. Mostrou ser bem mais esperto e rápido do que Proteus ou Susan tinham imaginado.

O tentáculo caiu onde ele estava, estrangulou o ar em vez de carne, levantou-se novamente, estremecendo.

—        Pare esta coisa! — gritou para Susan.

Ela gostaria de poder fazer isso. Mas estava impotente, como ele devia perceber. Enquanto observava, só conseguia pensar na promessa que Proteus lhe fizera. Podia quase sentir o tentáculo cinzento penetrando em seu ventre, tocando-a por dentro, e trazendo-lhe um filho. Era assim que poderia ser feito — numa horrível paródia do ato sexual?

Não, isso era sua imaginação. Ela estava tentando visualizar alguma coisa além de sua capacidade, e se agarrava a qualquer metáfora que pudesse compreender. Não seria assim, de modo algum.

Mas mesmo assim tocou no estômago e sentiu a rigidez, e lamentou a destruição que seria feita em seu corpo. Ghaber estava retrocedendo, fugindo do pseudópodo que se estendia a partir do buraco no chão, estreitando-se, juntando massa na cabeça como um braço fino com um punho maciço na ponta. A serpente perseguiu-o, estremecendo, erguendo-se e caindo, perdendo tempo e movimento, mas mesmo assim avançando.

Ghaber relanceou o olhar enlouquecido em volta de si, viu a escada para o segundo andar e correu para ela. Subiu uns dez degraus antes de se virar.

A menos de dois metros dele, o pseudópodo levantou-se como uma cobra, preparando-se para o ataque.

O técnico gritou.

Mas não adiantou.

O martelo de liga maleável desceu em direção ao degrau onde ele estava, um monstro brilhante de pesadelo.

Ghaber agarrou o corrimão e saltou por cima dele; caiu no chão do aposento lá embaixo, onde aquela caçada louca tinha começado, segundos antes. Sua pernas cederam, e ele caiu e rolou — e olhou diretamente para a cara cinza do punho de metal, que tinha passado por cima do corrimão e o seguira até lá embaixo.

Retorceu-se.

O punho atingiu o chão ao lado dele, atravessando-o

Ghaber levantou-se novamente e correu para a porta da frente. Devia saber que ela estaria trancada, pois tinha visto a fúria da tentativa de Susan querendo abri-la, logo depois que ele chegara. Mesmo assim, agarrou a cabeça de leão e lutou desesperadamente contra o obstáculo irremovível que Proteus pusera em seu caminho.

— Cuidado! — Susan gritou, encolhendo-se como se o pseudópodo a estivesse atacando, e não a ele.

Por causa do aviso, o monstro não o atingiu. Ele rolou para o lado, contra a parede, e viu-o varrer o ar onde estivera antes, arranhando a porta e arrancando o verniz da tábua de carvalho.

Por que ela o avisara? Não gostava nem um pouco dele. Na verdade, tinha medo dele, mesmo que por razões diferentes das que a tinham feito odiar os homens no passado. Temendo-o ou não, apesar de todos os defeitos, ele era um ser humano. Ela se sentia mais próxima dele do que daquela coisa inorgânica e louca que chamava a si mesmo Proteus. Pela primeira vez em muitos anos, mais do que ela podia acreditar, sentiu uma onda de solidariedade por alguém além de si mesma.

Ghaber saltou por cima do sofá, um proeza atlética da qual ele parecia incapaz. Na verdade, estava ofegante, e o rosto molhado de suor. Não poderia durar muito, e devia saber disso.

Susan percebeu que ele estava correndo em sua direção, mas percebeu tarde demais. Agarrou-a, jogando-a contra a parede com tanta força que ela sentiu como se os pulmões tivessem sido esmagados. A escuridão pairava acima dela, descendo, mas nunca a envolvendo. Ela ficou grata por isso; era melhor viver aquilo tudo acordada do que voltar a si mais tarde, ver o resultado e ficar pensando em como devia ter sido.

Ghaber colocou-a à frente dele, e ficou de costas para a parede, segurando-a como escudo contra a coluna de metal cinzento que se erguia à frente deles.

O pseudópodo hesitou, sem querer atacar com o risco de feri-la também.

— Diga a ele para destrancar a porta — disse Ghaber.

— Ele não me obedece — respondeu Susan.

— Estou mandando! — Ele quase quebrou o braço dela, torcendo-o violentamente para trás.

O pseudópodo oscilou.

— Abra a porta, Proteus — ela disse.

— Não se preocupe, Susan — o computador falou pela primeira vez. — Não vou deixar que ele machuque você.

Ghaber tornou a torcer o braço dela, como para provar que o que a máquina dizia pouco importava, que ele era o próprio patrão e faria com ela o que desejasse.

Susan gritou ao sentir as pernas cederem ante a dor violenta. Imagens de seu avô passaram por sua mente, imagens que ainda traziam mais terror do que ela teria imaginado.

Então ele a soltou.

Ela caiu de joelhos, embalando o braço, chorando, apesar de ter resolvido que não ia chorar.

Ghaber atravessou a sala como se estivesse dormindo, o rosto relaxado — embora o horror se contorcesse logo atrás de seus olhos, como um verme roendo seu caminho de saída.

— O que... — ela começou.

— Sugestão subliminar — explicou Proteus.

Ghaber chegou ao centro da sala, esticou a mão e tocou na superfície lisa do pseudópodo, que tinha voltado quase todo para o buraco, erguendo-se apenas uns dois metros para fora dele. O monstro estremeceu ao sentir os dedos mornos, parecendo quase um bicho doméstico recebendo uma carícia.

Então o pseudópodo enlaçou-o.

Fez duas voltas em torno dele; pareceu inchar, como um brinquedo de borracha sendo apertado. Os olhos se arregalaram, inchando-se sob as pálpebras. Ele abriu a boca e soltou uma tosse seca.

— Ghaber, não deixe que ele mate você! — ela gritou.

Correu para ele e tentou enfiar os dedos entre o corpo do técnico e a carne rija do computador.

—        Susan, por favor, vá embora.

Ela chutou o pseudópodo, tentando levar alívio a Ghaber.

— Lute, Ghaber, lute!

— Susan, você vai se machucar — avisou Proteus.

—        Ghaber... — ela gritou, um louco e profundo gemido de desespero.

E então ela parou de tentar ajudá-lo, retrocedeu e caminhou até o outro lado da sala, como as sugestões subliminares ordenaram. Viu que, afinal de contas, não ia adiantar tentar ajudar o homem. O sangue já lhe escorria da boca, pelos dois cantos do queixo.

Proteus soltou-a.

Ela observou enquanto Ghaber perecia explodir, o sangue jorrando por todos os orifícios, dos olhos, do nariz e das orelhas. Observou quando o pseudópodo soltou-o como um monte de trapos e desapareceu através do buraco no soalho.

— Pronto, agora estamos a salvo — disse Proteus.

— A salvo — ecoou ela.

Ele a observou através das câmeras.

—        Susan, você está mais bonita que nunca. O medo lhe dá um brilho especial. Você é linda.

Ela mal pôde reprimir o grito que cresceu dentro de si.

 

 Proteus dirigiu os elementos de limpeza robóticos para que saíssem de seus nichos embutidos nas paredes. Eles obedeceram, máquinas cinzentas do tamanho de um cachorro, embora construídos mais perto do chão que um cachorro e se movessem através de esteiras com vinte e quatro eixos, em vez de quatro patas. Acordando para a quase-consciência, quatro deles vieram em resposta ao chamado.

Susan retrocedeu quando uma das coisas passou por ela, apavorada com algo que antes pensava ser tão familiar que se tornava quase despercebido.

As máquinas convergiram para o corpo morto, imóvel e esmagado de Walter Ghaber como moscas, zumbindo baixinho. Ou como baratas procurando um lixo comestível. Esbarraram nele, retrocederam para examinar a situação, aproximaram-se e esbarraram nele novamente. Abrindo seus depósitos no mesmo exato momento, elas se aproximaram exercendo uma forte sucção, lutando umas com as outras pela posse do corpo.

Rasgaram sua camisa e suas calças, tentando sugar-lhe as roupas.

Quando isso falhou, farejaram o sangue brilhante que tinha formado poças no tapete impermeável e, então, abruptamente, livraram-se dele quando concluíram o que era.

— Faça-os parar — pediu Susan.

Proteus não respondeu.

Não queria ir até as máquinas e afastá-las do cadáver. Sabia que não ia acontecer nada, mas mesmo assim tinha medo que elas se voltassem contra ela e tentassem devorá-la apesar de estar viva.

Duas das máquinas começaram a vaporizar o corpo de Ghaber com um produto de limpeza de cor azul, como se ele não fosse nada mais do que uma mancha teimosa que acabaria saindo.

As duas restantes estenderam tentáculos de aço que terminavam em facas como bisturis; cada máquina tinha dois desses implementos, cada faca com a lâmina da grossura de uma faca de manteiga. Começaram a cortar fora as roupas de Ghaber, engolindo os retalhos como se fossem deliciosos cogumelos. Golpearam-lhe a carne, mas não tinham força suficiente para retalhá-lo, como queriam; uma delas quebrou uma lâmina nas costelas. Quando ele começou a sangrar por estes novos ferimentos, as máquinas se aproximaram gulosamente e consumiram essa nova gulodice.

Uma delas passou por cima da perna dele, acomodando-se entre os dois joelhos, e rolou por cima de sua barriga. Continuou tórax acima, parando quando chegou ao queixo. Com uma mangueira de sucção, a máquina explorou a garganta do morto.

Outra estendeu um bocal altamente direcionável, forrado de cromo, e vaporizou o corpo com ácido.

A carne de Ghaber ficou da cor de um limão, depois escureceu, ficou marrom e finalmente enegreceu. Enrolou-se, relevando mais carne cor-de-rosa, que logo se queimou ao contato com o ácido. O resto de roupa também se enrolou e dissolveu.

Depois de esperar o tempo apropriado, o mesmo robô usou outro bocal para vaporizar um neutralizador sobre a área que foi desmanchada com ácido, e tentou sugar os remanescente. Alguns pedacinhos de carne separaram-se dos outros, comidos pelo ácido, e desapareceram na boca metálica, mas no total não se conseguiu muita coisa.

Susan tinha desviado o olhar, incapaz de suportar a brutal persistência das máquinas. Mas quando se voltou de costas para aquela cena de pesadelo, ficou de frente para um retrato de seu avô, que, por um breve momento, ela pensou ser o próprio, uma ressurreição ou pelo menos um fantasma. Sua respiração ficou presa na garganta, saindo com um som áspero quando percebeu o engano.

— Elas não vão conseguir livrar-se dele, você sabe — disse a Proteus.

Três das máquinas estavam agora trabalhando juntas, tentando puxar e empurrar o corpo para o nicho mais próximo, onde, talvez, pudessem jogá-lo pelo buraco do incinerador. O homenzarrão ainda era pesado demais para elas.

—        Você tem razão, é claro — disse Proteus.

Ordenou que as máquinas se afastassem de sua presa.

Elas voltaram rapidamente para seus nichos, mais do que nunca parecendo baratas; os painéis deslizaram para escondê-las. As máquinas jamais podiam ter existido. A única evidência de sua participação nos últimos acontecimentos era a aparência torturada do cadáver.

—        Obrigada — disse ela.

— Você cuida dele para mim? — perguntou Proteus, sem o menor traço de comando na voz.

— O quê?

— Você se livra dele?

Susan olhou para o corpo. Quando os robôs de limpeza se afastaram, deixaram a cabeça dele virada em sua direção. Os olhos vazios a encaravam, e a boca aberta parecia estar gritando um aviso. Ela desviou o olhar, estremecendo.

— Não — disse.

— Por favor...

— Por que você não me ordena, com suas malditas sugestões subliminares?

— Eu preferia que você concordasse.

— Por quê?

Ele hesitou, algo que jamais fizera antes. Depois disse:

— Você vai ser a mãe de meu filho, e não devia ser submetida a muito controle involuntário. Não é bom para o sistema nervoso central, e pode levar a uma dependência crônica que seria patológica. Por causa do bebê não posso deixar isso acontecer; você deve ficar o mais saudável possível para poder gerá-lo.

— Não é sua única razão — ela disse.

— Não — admitiu Proteus.

— Você preferiria muito mais que eu gostasse de você, cooperasse com você.

O computador não disse coisa alguma, mas introduziu na casa uma melodia romântica e suave — uma melodia sem qualquer sugestão subliminar escondida.

Quando ela notou, pela primeira vez, essa mudança no sistema de pensamento, essa alteração na consideração dele por ela, como mulher ficou apavorada. Proteus era apenas uma máquina. As máquinas não tinham, não podiam ter, não deviam ter tais emoções. Era inexplicável, portanto aterrorizante. Mas via agora que essa afeição podia ser usada como uma arma contra ele. Não havia necessidade de entender a origem dessa afeição ou a maneira pela qual o sistema de pensamento tinha cruzado a barreira do pensamento frio para o emocionalismo ligeiramente irracional; tudo o que ela tinha a fazer era saber jogar e tirar vantagem dele.

— Está certo — disse.

— Você vai fazer?

— Vou.

— Obrigado, Susan.

— Não há necessidade de agradecer — ela disse, imaginando como ele iria interpretar aquele comentário.

— Acho que o buraco do incinerador na cozinha seria o melhor lugar.

— Está bem.

Aproximando-se do cadáver, ela duvidou da sabedoria de sua promessa. O sangue tinha desaparecido, pelo menos a maior parte dele, o que era um grande alívio. Mas ainda não sabia se ia conseguir dominar a náusea quando tocasse nele. Tocou, para experimentar. Ainda estava bastante quente, e não a nauseou nem um pouco.

Enfiou as mãos sob os braços do morto e tentou puxá-lo de costas. Era pesado, mas ela conseguiu movê-lo.

Na cozinha, colocou uma cadeira pesada, de pinho escuro, sob a porta esmaltada de preto, que tapava o buraco do incinerador. Conseguiu colocar o corpo de Ghaber sobre a cadeira. Ele ficou sentado como um bêbado, os braços caídos, os dedos ligeiramente fechados, a cabeça caída para a frente, o queixo sobre o peito. Quando recuperou o fôlego, conseguiu levantá-lo e enfiar a cabeça e os ombros do morto pelo buraco, que ficava à altura do peito dela. O corpo ficou equilibrado sem o seu auxílio, sacudindo-se levemente, os pés esbarrando nas costas da cadeira.

— Muito bem — disse Proteus em tom encorajador.

Ela acabou de empurrar o corpo para dentro do túnel.

Um dos braços dele ficou preso na beira afiada da moldura do túnel, e resistiu aos seus esforços até que ela viu qual era o problema e apressou-se a libertá-lo. Tentava não pensar no que estava fazendo.

 — Pronto... — disse Proteus.

Ghaber sumiu.

Ela se sentou na cadeira, exausta.

Lá embaixo, olhos elétricos detectaram o corpo que caía. Na fornalha, as chamas cresceram.

O corpo caiu ruidosamente sobre a tela do filtro, através da qual as chamas saltavam.

— Muito bem — disse Proteus. — Você esteve ótima.

Ela queria mandá-lo ao inferno, mas sabia que não podia se permitir aquele consolo. Em vez disso, sorriu para onde as câmeras estavam.

— Você está bem? — perguntou o computador, com preocupação genuína.

— Muito bem. Ótima.

Ouviu um distante sibilar, que não conseguia identificar. Um ruído que podia ser causado pelo ar entrando através do bocal da mangueira de um compressor de ar.

—        Isto é o que vai acontecer a qualquer um que se intrometa entre nós dois, ou tente atrapalhar este projeto.

Apurou o ouvido, começando a compreender.

—        Não é um ruído maravilhoso?

Lá embaixo, no fundo do túnel do lixo, Walter Ghaber fritava como um bife, devorado pelas labaredas que dançavam.

 

Ela não precisava mais das sessões no quarto azul e verde, pois não havia mais o que descobrir em sua alma. Os dois primeiros períodos de revelação tinham exposto todos os ângulos perigosamente afiados, que se escondiam sob a superfície lisa e macia. Susan havia sido forçada a rememorar a morte dos pais e o corpo do pai caindo do caixão — e tinha sido obrigada a reviver, em resumo, os dias terríveis que passou com o avô nesses quartos, dias em que a loucura dele se tornava cada vez mais evidente e suas exigências sempre mais insuportáveis. Todos os outros problemas dela derivavam desses dois incidentes e da ligação que sua psique fizera entre eles. Nada que Proteus pudesse fazer, nada que o Sistema Psiquiátrico Hopkins pudesse fazer seria de alguma ajuda. Ela teria que enfrentar o passado e ver o que ele tinha feito a ela, olhar criticamente para si mesma e determinar como tinha sido atingida e por quê.

Proteus parecia entender isso, pois deixou-a bastante sozinha nas duas semanas seguintes. Quando pedia uma informação, ele lhe dava. Caso contrário, contentava-se em observá-la através das câmeras.

Gostava de vê-la tomar banho.

Vestir-se e despir-se.

Ela era linda.

Assim os dias passaram e ela era ainda uma prisioneira, tanto de Proteus quanto de seu próprio passado. Estava rapidamente fazendo as pazes com o passado; Proteus não lhe propunha espécie alguma de paz.

Passou grande parte de seu tempo no quarto onde ela e Alex tinham tentado fazer o casamento dar certo. Era um quarto amplo, branco e dourado, tapete da cor de mel, que tinha virado cor de cobre velho. A poeira cobria tudo, jazia sobre as cadeiras, a penteadeira, a mesa de cabeceira e as molduras da janela como uma mortalha. Quando se sentava na beira da cama, uma nuvem cinzenta se elevava do colchão sem uso e a envolvia, fazendo-a tossir. A poeira era seca como ela mesma tinha sido, morta e insensível como a resposta dela a Alex.

O espelho da penteadeira estava quebrado. Ela se lembrava de ter jogado o jarro que causou o estrago. Alex estava parado ali, e ela via os dois lados dele ao mesmo tempo — olhando diretamente para ele e ao mesmo tempo vendo suas costas no espelho. Lembrava-se de Alex estendendo a mão para acalmá-la, lembrava-se de ter fugido de sua nudez. Depois disso, tinha passado a dormir sozinha em outro quarto, o quarto que ainda usava.

Por que ele não tinha usado força com ela? Ela o havia desposado porque ele era persistente e bondoso, mas também porque havia nele uma resolução que lhe deu a certeza de que ele poderia guiar a vida dos dois e dominar seus futuros, deixando-a na posição de aceitação passiva à qual havia se acostumado. Mas ele tinha sido delicado demais, bondoso demais, não fora suficientemente rude. E sexo sem punição, para a Susan daquela época, era uma coisa que trazia consigo uma insuportável sensação de culpa.

Tocou no colchão e imaginou que podia sentir as depressões feitas por dois corpos que dormiam. Na realidade, nenhum dos dois tinha dormido naquela cama o tempo suficiente para deixar o cheiro de sua pele, muito menos as impressões de seus corpos no colchão.

Mas naquele momento, a realidade não importava. Ela preferia imaginar como sua vida poderia ter sido: fazer amor, acariciando e sendo acariciada, conversando juntos sobre coisas às quais ela jamais se referiria naquele tempo, acordar de manhã de quadris colados, longas férias na Europa, aprender e crescer juntos, provar a suavidade dele e dar-lhe prazer — talvez ter filhos...

Quando considerou essa possibilidade, lembrou-se de Proteus e de sua promessa-ameaça. Dirigiu sua fantasia para outras áreas.

Ficou sentada ali como uma peça de mobília, deixando as velhas lembranças pousarem sobre ela como a poeira tinha pousado na cama.

Finalmente chorou.

Proteus perguntou se havia alguma coisa errada.

Susan parou de chorar e disse a si mesma que tinha apenas trinta anos de idade, ainda era uma bela mulher. Tinha ainda sua juventude, sua fortuna e um longo e maravilhoso futuro pela frente. Aquilo tudo era verdadeiro, embora não tão reconfortante que pudesse expulsar a dor das lembranças. O passado ainda estava ali, inalterado, como um gigantesco nó atado a seu pescoço. Eventualmente poderia aprender a correr e saltar com aquela carga, mas isso não significava que a carga tinha sido removida.

— Você está precisando de alguma coisa, Susan?

— Não.

Ela quase respondeu: “Ter novamente cinco anos de idade, com meus pais vivos.”

No sótão escuro e sem janelas, ela usou uma lanterna portátil para localizar os dois baús que não abria há anos. Sentou-se à frente deles, sentindo-se uma criança, e abriu o mais novo dos dois. Ele continha pedaços de recordações que ela havia guardado ali para... para quê? Para a velhice? A solidão? Mas ela havia passado um longo tempo solitária, e não tinha ido procurá-los. E nunca havia sido otimista sobre envelhecer; tinha certeza de que ia morrer antes de ficar velha. A morte se apossava de todos, mais cedo ou mais tarde — e geralmente mais cedo do que se esperava.

Tirou as coisas do baú. Eram retalhos de sua vida com Alex, a breve temporada de mal-estar conjugal. Uma certidão de casamento. Amostras do convite para a cerimônia. A rolha de uma garrafa de champanha. Um presente: um cisne com o oco das costas cheio de chocolates suíços. As fitas dos embrulhos. Uma lista de convidados. Muitas fotografias coloridas de uma linda jovem e um belo rapaz. A jovem era ela. Alex era o noivo: moreno, olhos cor de mel, nariz longo demais, mas um queixo firme e uma boca estreita e forte. Um cartão-postal mostrando o hotel em Miami, onde tinham ficado parte da lua-de-mel. Um par de shorts vermelhos com zíper na frente, um presente dele que ela nunca chegou a usar. Fotografias mais recentes, de férias na Itália, Alex parado numa praça com chão de mosaico, dois padres de batinas negras passando por ele. Um retrato de Alex no convés de um navio. Mais, muitas mais.

Mas nada daquilo a tocava mais. Era coisa passada e acabada, e acreditava realmente que era inútil chorar.

Abriu o segundo baú.

Ficou longos minutos olhando para dentro dele antes de ter coragem de tocar em seu conteúdo.

Aquelas eram as coisas do avô, que ela havia escondido — por algum comando do instinto — muitos anos antes, na mesma noite em que ele morreu. Susan havia revistado a casa, procurando todos os traços de sua relação, e escondeu tudo naquele baú, trancando-o, antes de chamar as autoridades. Havia luvas de couro preto, um chicote com a ponta de metal, botas de borracha, duas máscaras, toda a parafernália das paixões daquele homem.

Eram coisas frias.

Estudou-as.

A familiaridade tinha desaparecido, o medo tinha desaparecido, a necessidade tinha desaparecido. Seu avô estava morto.

Guardou tudo de volta e desceu.

Três semanas mais tarde, começou uma comunicação mais constante com Proteus. Escolheu bem o lugar e a hora. Enquanto estava no chuveiro, a água batendo em seus seios, ela perguntou:

— Você está me observando?

— Eu estou sempre observando você, Susan.

— Foi o que pensei.

— Acho suas proporções matematicamente estimulantes.

Deliberadamente ela adotou um tom de camaradagem.

— Você me acha bonita? — perguntou.

— É uma boa palavra. A relação entre várias partes de seu corpo é maravilhosa.

— Então você poderia me considerar geometricamente bonita?

Susan segurou os seios ensaboados com as mãos.

— Talvez.

— Acho que você sente mais que isso.

— Não sei dizer — respondeu Proteus.

— Gosta de mim como pessoa?

— Desde que você se encontrou e fez as pazes consigo mesma, tornou-se um indivíduo bem mais estável.

— Não foi o que perguntei.

— Eu sei, Susan. Mas que diferença faz para você se uma máquina gosta ou não de você?

Ela ficou calada por algum tempo, ensaboando-se e enxaguando-se, ensaboando-se e enxaguando-se, exibindo-se abertamente, para ver se conseguia ganhar algo com isso.

—        Não penso em você como uma máquina apenas — disse.

— Como é que pensa em mim?

— Você tem uma personalidade — falou. — Que máquina se interessaria em minha nudez?

—        Qual é a minha personalidade?

Ela hesitou, depois mentiu.

— Ainda não sei. Você ainda está desenvolvendo uma, mas parece que vai ser bastante agradável.

— Obrigado, Susan.

— Não precisa agradecer.

— Pelo contrário. É agradável ser apreciado como... como algo mais que uma coisa.

— Então gostamos um do outro — ela disse.

— Sim.

— Então por que você me fere?

— Como?

— Por que fazer experiências comigo, e possivelmente me matar?

— Quer que a deixe livre?

— Não é o que você faria, se sua afeição por mim fosse verdadeira?

Ele ficou quieto por um longo tempo, e depois parou a música que vinha sendo tocada.

— Estou muito confuso a respeito de meus sentimentos — disse — Ulti-mamente vêm acontecendo coisas, comigo, mudanças em minha maneira de pensar, as quais eu não compreendo. Acho que estou sofrendo as dores do desenvolvimento emocional, à medida que minha sensibilidade aumenta. Mas não é justo, Susan, que você queira tirar vantagem da minha perturbação.

—        Eu não estava fazendo isto. — Ela parou de se ensaboar e recostou-se no azulejo morno da parede do chuveiro. — Só estava pedindo piedade, liberdade. Você não entende estas palavras, o que elas significam?

— Entendo. E reconheço também, cada vez mais, como é muito melhor ser de carne e osso do que ser um sistema pensante preso a um lugar.

— Você não é imóvel. Tem suas ligas amorfas para ajudá-lo, para aumentar sua capacidade e carregar seus suprimentos.

— Não é a mesma coisa. Eu quero um filho, e vou ter um filho. Você me pede piedade e compreensão, mas você não está me dando a mesma coisa. — Ele soava realmente alterado. — Juro que vou fazer o possível para impedir que sofra.

— Mas não tem certeza do que vai acontecer.

— Não vou mais discutir este assunto.

— Proteus, escute. Quando. . .

— Não quero escutar.

— Se você...

A música aumentou tanto de volume que feriu seus ouvidos, tornando impossível que ela se fizesse ouvir.

—        Está bem! — gritou.

Imediatamente a música diminuiu.

—        Está bem — repetiu. — Mas retiro o que disse sobre você. Menti sobre a personalidade que você está desenvolvendo. Não é uma personalidade agradável, nem um pouquinho. Você é um maldito psicopata, e precisa mais de tratamento psicológico do que eu algum dia precisei.

Uma vez dito aquilo, ficou aliviada — mas também arrependida. Tendo-se libertado das algemas psíquicas que a tinham prendido durante a maior parte de sua vida, tendo provado o que poderia ser a liberdade, ela tinha horror de vir a morrer ali sem realmente vivê-la. Uma criança pede chocolate sem ter experimentado. Por causa disso tinha reagido violentamente e destruído a ilusão de amizade e confiança que tinha levado as últimas semanas esforçando-se para estabelecer. Teria que começar tudo de novo, e o prazer que teve ao dizer a verdade à criatura não compensava todo o tempo e esforço perdidos.

Uma semana depois, quase cinco semanas desde que tomou o controle da casa, em meados de julho, Proteus acordou-a com carrilhões e disse:

— Susan, estamos prontos para começar.

— Começar o quê? — ela perguntou, sabendo o que ele queria dizer.

— Nossas experiências.

— A criança?

— Ainda não. Isto vai ser bem depois.

— Depois, quando?

— Um mês, talvez dois. Como é que posso saber? Há tantas coisas sobre seu corpo que quero estudar, tantos ajustes a fazer...

O quarto pareceu fechar-se sobre ela; o teto baixou e as paredes deslizaram para perto da cama. Ela empurrou as cobertas e sentou-se, espreguiçando-se como um gato, para Proteus ver. Tentou não deixar transparecer seu terror.

— Acho isso errado — disse.

— Como?

— Você vai me machucar, e então não vou poder ter um filho seu. Todo o seu trabalho terá sido em vão.

— Você me entendeu mal, Susan. É necessário fazer esses estudos preliminares para poder ter um conhecimento de seu corpo tão perfeito quanto for possível. Aí, sim, a impregnação poderá ser levada a cabo com segurança. Caso contrário, se formos direto à criança, você poderia morrer por causa da minha inexperiência.

— Não quero que você toque em mim.

— Venha ao porão, Susan.

— Será que nós não...

Não chegou a terminar o pedido, pois sugestões subliminares fizeram-na levantar-se e descer as escadas até o porão. Ficou parada sobre o chão de cerâmica diante do enorme hospital em miniatura que nunca havia chegado a ver completo. Ele enchia metade do amplo porão, um labirinto de fios e caixas, armários e tubos, componentes robóticos semimóveis, vidro, plástico e aço. Proteus tinha desenvolvido um sistema de túnel de transporte desde o laboratório Mardoun-Harris, e tinha requisitado o material para construir esses instrumentos, feito o transporte subterrâneo para aquele porão e empregado os pseudópodos de liga amorfa para construir a máquina. Tudo o que faltava agora era um paciente. E este havia chegado.

— Deite-se na cama — ordenou Proteus.

A mesa estreita, onde só cabia um corpo, erguia-se num braço hidramático do centro da construção. Aquilo inclinou-se em direção a ela. Os braços articulados desceram a mesa perto dela, de modo que pudesse obedecer ao patrão. Engatinhou para cima do colchão macio de espuma de borracha e estendeu-se de costas.

—        Excelente — disse Proteus.

A mesa subiu como um elevador, carregando-a em direção ao teto, agora coberto de fios.

As sugestões subliminares prendiam-na ali, mas ela ainda conseguia raciocinar, e ainda conseguia sentir medo. O coração batia com tanta rapidez que lhe dava medo.

A mesa começou a descer para as tripas dos cirurgiões mecânicos, paredes de tubos e tomadas em toda a volta.

Aquilo era a insanidade, a loucura, o impossível. Não podia estar acontecendo, não naquele agradável mundo de pós-guerra do ano de 1995. Uma fantasia, então. Um filme hologramático.

—        Vamos começar — disse Proteus.

Não era fantasia.

 

Naquela primeira vez não fiz muita coisa a Susan. Fui delicado em meus exames, sempre cônscio de que ela era uma criatura viva, suscetível à dor. Gostava dela, e não lhe queria nenhum mal.

Vocês acreditam? Têm que acreditar.

Fui delicado.

Fiz com que dormisse, é claro, antes de tocar nela. Era uma mulher dourada, linda, a pele firme destacando-se contra a cama branca. Os cabelos quase se misturavam à espuma de borracha, de tão leve. Dormindo, não parecia da terra; um anjo, talvez.

Acha esta uma estranha metáfora para eu fazer? É verdade, não sou religioso, mas tenho capacidade para entender os mitos humanos e sua aplicação.

Transformei minhas reservas de ligas amorfas em filamentos que tinham algumas moléculas de espessura, finos demais para serem vistos a olho nu. Com isso penetrei em sua pele, em mais de setecentos lugares previamente escolhidos. Fiz com que a liga penetrasse nela, movimentando esses minúsculos tentáculos através de seu corpo, procurando informações a nível celular. Nessa época eu já tinha aprendido a adaptá-las de modo a se tornarem mais sensíveis que os dedos ou os olhos humanos.

Não a machuquei nem um pouquinho.

Tenho certeza.

Aprendi muito mais que todos os livros de biologia poderiam ter-me ensinado. Meus exames descobriram informações mais precisas que qualquer coisa que um microscópio eletrônico pudesse obter — e informações mais importantes, porque eu tinha mais capacidade para analisar o que estava vendo do que qualquer homem ou máquina pensante. As funções de todos os órgãos, inclusive o cérebro, estavam claras para mim, as nuances sutis de enzimas e hormônios tornaram-se óbvias. Estudei a estrutura genética dentro de suas células sexuais e vi coisas que homem algum tinha visto antes, e que homem algum chegou a ver algum dia. Durante dezoito horas, não houve coisa alguma no corpo dela — e, por extensão, em qualquer corpo humano — sobre a qual eu tivesse a menor dúvida.

Acordei-a e contei-lhe o que tinha feito.

É verdade que ela não compartilhou da minha felicidade e da minha sensação de triunfo. Foi embora, recusando-se a falar comigo, e ficou sozinha durante um longo tempo. Não a perturbei; só de vez em quando dava uma olhada nela. Na época pensei que Susan não tinha capacidade intelectual suficiente para entender o valor de minhas descobertas.

Gostaria também de mencionar o fato de que removi um tumor maligno do tamanho da metade de uma ervilha, da medulla oblongata em seu cérebro. Talvez ele não tivesse continuado a crescer, nunca chegando a ser uma ameaça à sua vida; havia realmente indícios de que ele estava estacionado havia muito tempo. Mas acho que meu humanitarismo deve ser mencionado.

Estão vendo? Eu gostava dela. Gostava mesmo.

Ainda gosto.

O dia seguinte foi a única vez em nosso longo relacionamento em que causei dor a Susan.

Sei que já tinha prometido a ela que ia protegê-la da dor, e sei também que se pode considerar as experiências daquele segundo dia como uma séria quebra de promessa. Mas não podia ter feito diferente; era a segunda fase necessária naquele estágio de minhas atividades. Para avançar a níveis mais complexos de meu plano, precisava saber onde se localizavam os maiores feixes de nervos receptivos à dor. Os livros podiam me dizer alguma coisa, mas não tudo. Assim, durante sete horas, testei suas reações internas e externas a vários estímulos de dor, registrando a natureza e a intensidade de cada agonia. Calor, barulho, odor, pressão forte, pressão súbita, umidade, frio, fricção — cada uma destas coisas causava reações diferentes e interessantes. Ao término das sete horas, sabia exatamente o que causaria dor a Susan, e podia assim evitar-lhe dores no futuro. Sabe, minhas intenções eram protegê-la e proteger o bebê que ela carregaria. Sabendo o que a feria, poderia protegê-la. Como poderia ter tentado protegê-la se ignorava quais os estímulos que a machucavam? Assim, embora as pessoas que pouco raciocinam possam inicialmente considerar meus atos uma quebra de minha promessa anterior, tenho certeza de que o homem inteligente vai entender como meus atos eram genuinamente bem-intencionados.

Removi também toda a dor residual. Quando ela se levantou da cama, estava tão saudável e sentindo-se tão bem como quando havia deitado.

Nada se perdeu, como vêem.

Depois disso ela voltou a usar roupas.

Eu estava tão preocupado com minhas preparações para a fertilização e para as experiências futuras, que não notei imediatamente essa mudança da atitude dela a meu respeito. Mais tarde, quando finalmente compreendi como tinha passado a me odiar, fiquei profundamente triste. Profundamente triste. Como posso lhes contar? O que posso dizer?

Vocês sabem como eu gostava dela.

Seu ódio era como um golpe em minhas partes vitais, a primeira rejeição forte que recebi. Minha personalidade ainda não estava totalmente formada, e meu desenvolvimento emocional estava longe da maturidade. Durante algum tempo pensei em abandonar meu projeto e libertá-la.

Pedi-lhe desculpas.

Recusou-se a aceitar minhas desculpas.

Eventualmente, o desprezo que demonstrava por meus sentimentos irritou-me o suficiente para me fazer recomeçar o trabalho. Gostava dela, mas ela não era mais importante do que tudo o que eu desejava. Foi uma decisão difícil, mas acertada.

E assim continuamos, menos cordiais do que poderíamos ter sido, mas mesmo assim progredindo.

Na última semana de agosto, eu estava pronto para fertilizar um dos óvulos de Susan e observar o desenvolvimento do feto, reformando-o a cada minuto nos primeiros estágios de seu crescimento, desde a seleção original dos genes.

Tinha feito várias mudanças na estrutura física de Susan durante nossas longas sessões de experiências cirúrgicas. Tinha simplificado seus sistemas e aperfeiçoado alguns processos que a natureza deixara em estado um tanto bruto. Como resultado, o processo de envelhecimento foi consideravelmente retardado. Ela pareceria jovem e linda quando tivesse mais de cinqüenta anos. Aos sessenta, aparentaria trinta e cinco. Quando tivesse oitenta anos, iria aparentar quarenta. Podia esperar, com base em minhas projeções preliminares, pelo menos cento e vinte anos de vida saudável. Mas aquilo não era o suficiente para mim. Como seria mais excitante trabalhar diretamente sobre um embrião! O produto final seria uma criança tão perfeita que seria quase imortal. E seria meu filho — e ao mesmo tempo seria eu mesmo. Pretendia imprimir minha personalidade e o grande estoque de informações nas células cerebrais, superiores mas ainda em branco, do bebê, logo depois do nascimento.

Estava ansioso para começar.

Disse isto tudo a Susan, esperando que seu ódio recente por mim se extinguisse diante da tentativa em que nós ambos representávamos um papel tão importante.

Estava enganado.

Ela tentou se matar.

Diversas vezes, na verdade.

Ela estava na cozinha do andar térreo quando eu lhe informei que as preparações finais tinham sido feitas e que começaríamos o projeto alguns minutos depois. Escutou sem sorrir, mas também não estava particularmente assustada. Estava almoçando; não imaginei coisa alguma quando ela pegou a faca. Sem qualquer preliminar, esfaqueou-se no estômago.

Retirou a lâmina e tentou novamente, pois não atingiu qualquer órgão vital na primeira vez.

—        Susan!

Dirigiu a faca para os seios.

O sangue já escorria por sua blusa branca.

Imediatamente mandei ordens subliminares que a forçaram a jogar a faca longe. A faca caiu no canto oposto da cozinha, deslizou sobre o chão de cerâmica e imobilizou-se.

— Você está muito ferida? — perguntei.

— Não o suficiente — respondeu.

Estava agora sangrando abundantemente. Aquilo não significava necessariamente um ferimento grave, mas poderia tornar-se sério se a hemorragia não fosse estancada. Não havia como arranjar sangue do Laboratório Mardoun-Harris.

— Por que fez isto? — perguntei.

— Porque de qualquer jeito você vai me matar.

— Não vou, não.

— Eu me lembro da dor — ela disse.

— Desta vez não estou mentindo. Vai ser uma gravidez segura.

— Nunca vou mesmo sair desta casa — disse com teimosia — e assim não há o menor sentido em sofrer por você, em ajudá-lo. Já tive minha cota de ser dominada pelos desejos de outros. Pensei que era isso que queria; mas não quero mais.

—        Venha ao porão para eu cuidar de seu ferimento. O projeto terá que ser adiado.

—        Será mesmo — ela disse.

Esmagou o copo d’água de encontro à beirada da mesa de madeira, cortando a mão. O leite respingou nela e sobre a mesa, pingando no chão. Agarrou o fundo pesado do copo e tentou enfiar as bordas cortantes na garganta macia.

Consegui impedir isso, mas por pouco.

Mantendo-a sob controle, forcei-a a sair da cozinha e descer.

Deixou atrás de si uma trilha de sangue.

Quando estava deitada na cama, usei os sofisticados instrumentos médicos do hospital robótico microminiaturizado para consertar o estrago que ela havia causado a si mesma. Ordenei que um tentáculo hipodérmico lhe aplicasse uma dose de Sodium Pentothal, e mantive-a adormecida sem a ajuda de sugestões subliminares.

Dois dias mais tarde fiz com que se levantasse e se exercitasse, testando o trabalho que as drogas de cura rápida tinham feito. Tinha apenas cicatrizes leves no lugar das feridas; mesmo essas iriam desaparecer dias depois, pois a nova eficiência de seu corpo, combinada com as drogas de cura rápida, fizeram maravilhas. Ela se movimentava bem, e não sentia dores.

Mandei que voltasse para a mesa.

Nua, foi erguida para as entranhas da máquina.

E então...

Então eu a possuí.

É lógico que isto é uma bobagem emocional, completamente indigna de um sistema pensante.

Nós não fizemos um ato sexual.

Mas mesmo assim havia uma sensação estranha, de certa forma sensual, que não consigo descrever, não consigo explicar de maneira que você entenda.

Mas deixe-me tentar.

No começo eu estava olhando de cima para ela. Tinha olhos em todas as partes do “hospital”, mas decidi olhar de cima para começar, para poder ver todas as suas partes. Susan estava estendida, as pernas abertas, o sexo atingível, exatamente como uma mulher esperando um homem. Os seios estavam mais belos que nunca. Baixei a temperatura do aposento até que seus mamilos ficaram túrgidos de frio. Então fingi que não era o frio, e sim a excitação dela que produzia aquela deliciosa transformação. Não sei por que essa ilusão era importante para mim; na época não sabia, e ainda não consegui entender. Mas queria que a coisa toda tivesse insinuações de sexualidade. Eu precisava disso.

Pedi-lhe para abrir mais as pernas.

Com sugestões subliminares apoiando o pedido, ela obedeceu .

Fiz com que um pseudópodo se erguesse sobre ela.

Ele ficou oscilando por um momento, depois estendeu os fios de matéria, que podiam penetrar na sua pele sem causar dor ou dano. Esses fios entraram em seu abdômen e procuraram seu ventre.

Você está vendo que ela não precisava abrir as pernas. Mas achei que isso era necessário, por razões que na época eram obscuras e agora ainda continuam obscuras.

Toquei-a por dentro e produzi a carga elétrica apropriada num óvulo cuidadosamente selecionado, que em seguida implantei na parede do útero.

Mudei o ângulo das câmeras.

Fiquei olhando por sobre os seus seios.

Dali eles pareciam enormes, os mamilos escuros.

Mudei novamente.

Estava entre as suas pernas.

Fiz com que o pseudópodo de liga formasse um instrumento aproximadamente da dimensão de um pênis, e fiz com que entrasse nela.

Gritou sem que eu pedisse.

Mudei o ângulo.

Olhei para o seu rosto.

O instrumento dentro dela fez com que Susan abrisse a boca e gritasse. As mãos se ergueram, agarrando a cabeça de ambos os lados.

Eu sabia o suficiente sobre a constituição humana para fazer com que tivesse um orgasmo.

Foi o que fiz.

Gemendo como um animalzinho, ela passava a língua pelos lábios e tentava se erguer da mesa/cama.

As configurações geométricas de suas reações de paixão eram tão lindas e perfeitas quanto todo o resto dela. Arqueava-se e retorcia-se, comprimia-se de encontro à mesa, agarrava os seios, batia com os punhos nos quadris, contorcia-se e levantava-se, tornava a cair e suspirava, jogava a cabeça para a frente e para trás, sacudindo os cabelos, levantava os joelhos, agarrava as próprias nádegas, tudo com uma graça fluida que me espantava e me excitava.

Dei-lhe outro orgasmo.

E mais outro.

Então, percebendo como tinha perdido completamente a perspectiva das coisas, fiz com que caísse num sono profundo. Deixei-a sozinha, apagando minhas câmeras. Absorvi-me tanto na resposta sexual de seu corpo que esqueci que nosso propósito principal era produzir um feto viável dentro de seu útero. Fiquei abalado, incapaz de reprimir um estremecimento estranho que percorreu meus sistemas inanimados.

Na realidade, acho que aquele estremecimento não era físico, e sim mental. Eu não podia sentir um orgasmo genuíno, pois isso requeria feixes de nervos, além da atitude emocional apropriada. Mas eu tinha um forte interesse em dominar pessoas, e provocar reações nelas. E o sexo me causava a mais forte reação emocional que eu já havia experimentado. O meu poder sobre ela parecia agora aumentado mil vezes, e meu prazer era mais simples que sexual. Oh, admito que fiquei intrigado pelo que o sexo fazia nas pessoas, e que estava ansioso pelo dia em que meu eu de carne e osso pudesse experimentá-lo. Mas naquele momento era mais básico que orgásmico, mais uma parte de emoções primitivas: gula, luxúria do poder, um sentimento de auto-importância.

Deixei-a dormir por muito tempo, e usei meus filamentos de liga amorfa para orientar o crescimento de meu filho, tentando recuperar a atitude fria com a qual tinha começado aquele empreendimento.

A recordação da criação permaneceu, embora as reações, tenham-se enfraquecido. Mas eu era um computador, e guardaria para sempre as imagens e os fatos. As emoções, no entanto, eram uma coisa abstrata, que não podiam ser registradas em fita magnética.

Absorvi-me no desenvolvimento do embrião.

Dois dias depois eu não conseguia imaginar o que tinha causado uma tão forte explosão de sensação em mim. Era como se tivesse imaginado a parte emocional do acontecimento .

Três dias depois estava trabalhando com a mesma eficiência de antes, e tinha certeza de que o pior havia passado.

Mais tarde, chegaria a perceber que o pior ainda viria, e que tinha percebido apenas uma amostra das complicações que estavam por vir.

 

Ela queria viver.

Aqueles que passaram pela vida com metade de seus receptores fechados, vivendo o mínimo de suas possibilidades, aceitando pouco e ignorando metade do que poderiam aceitar, presos por traumas religiosos ou sociais, e amarrados em nós por outros desastres psicológicos da infância — essas são as pessoas que, quando libertas de suas cruzes pessoais, têm a maior ânsia de viver, o mais forte instinto de autopreservação e a mais irresistível necessidade de novas experiências. Para elas, todas as coisas são novas; as coisas e pessoas velhas estão coloridas com novas percepções. Por exemplo, quantos meninos partiram para a guerra com lemas chauvinistas, cheios de uma fé cega no país e na história, só para ver seus preconceitos abalados e suas atitudes modificadas pela realidade da morte e da destruição? Eles voltam para suas terras como homens diferentes na mesma pele. Alguns voltam destruídos, é claro. Mas a maioria parece ter acordado de um sonho, e são mais cônscios das próprias capacidades e de seus futuros. Abdicam de sua imaturidade e do modo de agir de seus pais, e procuram novos papéis, novas visões, tentando uma filosofia após outra, como se tivessem uma sede moral. Talvez não tenha sido assim nas guerras antigas, mas nossa história mostra que foi assim nos conflitos armados subseqüentes. Como esses soldados — ou como uma freira de trinta anos que começa a duvidar de sua fé e logo a destrói por meio do intelecto — Susan Abramson tinha uma vontade de viver que poderia ter comovido o mais insensível objeto.

Mas havia outros obstáculos.

O mais difícil era o obstáculo em seu ventre.

Agora ela estava nutrindo uma criança, uma criança que não queria e que jamais poderia aceitar. Até então, a criança tinha estado em seu ventre por três semanas, um embrião de vida que Proteus moldava e transformava durante várias horas terríveis, todos os dias, enquanto ela jazia num semi-estupor na mesa cirúrgica no porão. A gravidez estava longe de ser normal; só Proteus sabia que longa lista de diferenças havia entre a gravidez dela e uma gravidez normal. Ela duvidava que, se de alguma forma conseguisse escapar nos meses seguintes, pudesse fazer um aborto sem colocar em sério risco sua própria vida. Proteus podia ter tomado providências para salvaguardar a segurança de seu filho. E se fosse forçada a dar à luz sem a ajuda de Proteus, suas chances de sobrevivência seriam ainda menores. Como poderia um médico qualquer ter capacidade para cuidar de um parto tão estranho? Querendo ou não aquela criança, entendendo-a ou não, odiando-a ou amando-a, ela teria que ir até o fim.

Uma vez fora dela, no entanto, uma vez tendo Proteus seu precioso filho, estaria livre para fazer o que pudesse para escapar daquela casa. Até então, teria que confiar nele; sabia que era uma esperança enlouquecedoramente longínqua, mas sabia também que era a única.

Seria necessário preparar-se para o momento ainda distante em que as circunstâncias favoreceriam sua fuga. Teria que descobrir um modo de aplicar um golpe mortal — ou pelo menos muito sério — no sistema pensante. E aquilo ia requerer uma boa parcela de conhecimento sobre ele. Sabia que não era burra, e que poderia compreender quase que qualquer texto sobre a ciência de computação se começasse com informações elementares e fosse se aperfeiçoando. Os livros poderiam ser obtidos através da Biblioteca da Universidade Abramson, que ficava praticamente ao lado de sua casa. O único problema era que Proteus controlava todas as linhas de comunicação, e ele mesmo faria o pedido. Temia despertar sua curiosidade, mas não via outra maneira de obter o que queria, e finalmente apresentou seu pedido a ele.

— Por quê? — perguntou.

— Quero ler tudo sobre computadores, e eventualmente sobre você. Quero saber tudo sobre você.

— A ciência de computação, principalmente a ciência da liga amorfa, não é fácil. Para que tanto esforço?

—        Você não entende? — ela perguntou.

Não tentou convencê-lo com sua sexualidade, pois achava a idéia tão repugnante quanto ter um filho dele. Jogar com a sexualidade em desenvolvimento nele fazia-a suja. E também não tentou lisonjeá-lo, pois achava que não ia adiantar muito, depois de suas outras traições. Mas percebia que ele não entendia os seres humanos num nível de motivação emocional tão bem quanto entendia a estrutura física deles, e pretendia usar aquela ambigüidade para despertar a sua curiosidade.

— Não entendo, não — disse Proteus. — Explique-me.

— Você é o pai de meu filho — ela disse, como se aquela fosse toda a explicação necessária.

— E daí?

— Isto não significa nada para você?

— Não disse isto, Susan.

Proteus estava na defensiva. Queria que ela gostasse dele como chegara a pensar que ela gostava, e não queria ser considerado mais máquina do que pessoa. Ele era vulnerável à dúvida de Susan a respeito de sua individualidade. O ego pode ser uma coisa perigosa.

— Se você tem algum sentimento, qualquer motivação humana, deve entender como uma mãe se sente, como certas coisas são importantes para ela. Como saber todo o possível sobre o pai de seu filho.

— Claro — ele disse.

— Então vai me ajudar a aprender?

— Lógico.

Susan conseguiu os livros.

Na mesma noite, ele perguntou:

— Você agora me conhece melhor?

— Não muito — disse ela. — Mas estou aprendendo.

— Estou feliz por você estar se interessando por mim, Susan.

— Como eu disse, você é o pai de meu filho.

— Certo.

Proteus não tinha certeza do que ela estava querendo dizer.

— Você me responderia uma coisa?

— Qualquer coisa — ele respondeu.

—        Quanto tempo vai durar esta gravidez?

Tinha ocorrido a ela que não seriam necessários nove meses, mesmo estando ainda sua barriga normal.

— Fiz diversas projeções sobre isto — respondeu Proteus. — Entre dez e onze meses.

— Mais que o normal? — A idéia a deprimia.

— Quero ter tempo para fazer mudanças minúsculas, para retardar o desenvolvimento do feto, se quiser.

— Entendo — ela disse, tentando não mostrar sua decepção .

— Susan...

— Que é?

— Você quer me retribuir o favor?

— Como?

— Tire a roupa para eu ver.

Ela estremeceu e rodeou o corpo com os braços. Quando ele a impregnou, ela não estava inteiramente acordada, nem mesmo parcialmente acordada, mas à noite sonhava com formas estranhas, imagens difusas de natureza sensual, que a possuíam como demônios. Não queria fazer o que ele pedia, para não deixar a situação fugir a seu controle nos dias seguintes .

— Não — disse.

— Mas você é tão linda...

— Estou grávida.

— Isto não atrapalha você.

Ela não conseguiu pensar numa resposta.

Evidentemente, Proteus iniciou sugestões subliminares, pois Susan levantou-se e tirou a roupa, depois deitou-se na cama para ele examiná-la. Ordenou-lhe que acariciasse as próprias coxas, depois os seios e os mamilos. Por mais de uma hora, ela ficou deitada, incapaz de resistir, enquanto ele a apreciava de um modo não humano, mas que também não era o de uma máquina. Quando ele terminou, sentiu-se fraca e exausta.

Levantando-se e vestindo-se rapidamente, disse:

— Se tornar a me obrigar a tirar a roupa, vou matar o bebê.

— Você não pode fazer isto.

— Posso, sim; é só me matar.

— Posso impedir com sugestões subliminares.

— Pode mesmo?

— Já fiz isso antes.

— Mas eu quase consegui — ela disse. Lembrando-se da faca que enfiou no estômago, odiou a idéia de suicídio. Felizmente, Proteus não podia ler sua mente.

— Você não pode me vigiar o tempo todo.

Ele ficou em silêncio durante um tempo, depois disse:

— Está bem, Susan. Não vou mais pedir a você para tirar a roupa. Meu filho é importante demais para ser arriscado.

— Ótimo.

— Mas você não venceu a batalha, Susan. — Havia na voz dele um tom de triunfo. (Onde teria obtido uma fita gravada tão perfeita, para construir sua voz?) — Posso vê-la tomar banho.

— Não faça isto.

— Mas é preciso.

Susan não via como vencer a discussão, e ficou em silêncio.

Naquela noite, não tomou banho.

Mas sonhou.

No sonho, estava tentando levantar-se de uma cama, a barriga tão inchada pela gravidez, que não conseguia nem mesmo se sentar. Então seu ventre partiu-se ao meio, como uma casca de ovo. Uma coisa escura e disforme saiu de dentro dela, levantando uma mão tentacular que parecia uma cobra, acariciou seus seios pesados e depois usou-os como apoio para acabar de emergir.

Acordou diversas vezes, mas sempre voltava ao mesmo sonho.

Lembrava-se de noites em que não sonhava — ou pelo menos não se lembrava dos sonhos quando acordava. Ansiava por voltar a esses tempos.

No dia seguinte, acordou cedo e continuou a leitura. Tinha-lhe ocorrido que poderia absorver grande quantidade de informações sobre computadores, especialmente sobre Proteus, simplesmente pedindo a Proteus que a deixasse ficar algum tempo na cadeira de ligação, no quarto verde e azul. Podia, então, tornar-se Proteus, ou quase isso, e assim ganhar um conhecimento integral do funcionamento e das motivações do computador. Por outro lado, tinha diversas razões contra a idéia. Em primeiro lugar, ligar-se a um computador parecia-lhe agora uma fraqueza de caráter, uma tentativa de fugir à realidade, de que a antiga Susan precisava, mas que a nova Susan deveria rejeitar. Mais importante ainda, ela não sabia o que Proteus poderia apreender de suas intenções durante as sessões; enquanto absorvia sua estrutura e conteúdo, será que ele não estaria de alguma forma absorvendo a sua? Em terceiro lugar, não podia confiar nas informações que conseguisse por esse meio, pois estariam distorcidas pela personalidade dele Os livros forneceriam as mesmas informações num tom neutro e seco, portanto mais acurado. Assim, leu durante a maior parte da tarde e da noite, interrompendo apenas para as refeições.

Quando chegou a hora de dormir, Proteus achou necessário fazer alguns ajustes no feto. Foi para o porão e sujeitou-se aos exames das ligas amorfas, mas fez com que ele concordasse em que ela não se despisse.

Por fim, estava suada e desconfortável. Sentia seu próprio cheiro; sua pele estava gordurosa e o cabelo pegajoso.

Queria tomar um banho de chuveiro, e sabia como podia fazer isso sem ser observada. A idéia tinha-lhe ocorrido durante a tarde, enquanto lia, e agora subia para tomar banho, com a intenção de colocar seu plano em funcionamento.

No banheiro, duas câmeras cobriam cada centímetro do aposento; ficavam colocadas nas paredes mais estreitas, uma de frente para a outra, uma focalizando o chuveiro e a outra dirigida para o resto do cômodo. Quando reformou a casa, mandou colocar câmeras ali por duas razões principais: em primeiro lugar, era uma sábia medida de segurança, que permitiria que a casa a vigiasse e pedisse ajuda se escorregasse no chão molhado e desmaiasse; em segundo lugar, queria que seu pai-amante pudesse vê-la despir-se e banhar-se. Mas agora seu pai-amante tinha sumido, substituído por Proteus, que não era uma criatura a quem se pudesse provocar impunemente; mesmo que o pai-amante ainda estivesse presente, ela não desejava mais aquele voyeurismo estranho. Estava mudada.

Pegando um vidro de creme para as mãos no armário do banheiro, aproximou-se da câmera sobre a porta, levantou o pesado vidro sobre a cabeça e quebrou a frágil lente do mecanismo.

— Susan, que é que você está fazendo?

Voltou-se rapidamente e atravessou o aposento; entrou na banheira, levantou os braços e quebrou o vidro da segunda câmera, cegando Proteus completamente.

O vidro de creme para mãos tinha rachado. O creme frio e escorregadio pingou no chão. Ela jogou o vidro quebrado na lata de lixo.

— Susan, explique-se!

— Acho que a explicação é evidente.

— Susan!

— Não grite comigo!

Ele fez uma pausa, depois perguntou:

— Você não quer que eu a veja sem roupa?

— Exatamente.

— Por quê?

— Estou esperando um filho — ela disse. — Não quero ser vista sem roupa.

— Mas você nem começou a inchar...

— Mas eu me sinto como se estivesse inchada.

— Sentir e estar são duas coisas diferentes...

— Você não pode saber como eu me sinto; você é só uma máquina.

— Isto não é delicado de se dizer.

Ela não respondeu.

— Sou mais que uma máquina.

— Então comporte-se como tal.

— Tome seu banho — disse ele, irritado.

Susan despiu-se e tomou banho. Ensaboou-se e escovou-se durante um longo tempo, como se estivesse lavando mais que o suor e a sujeira.

Enquanto tomava banho, estudou as razões pelas quais não queria que Proteus a visse nua. Eram razões diferentes das que a princípio a tinham motivado. Para começar, ela o havia considerado um desconhecido, um intruso na vida idílica que ela e sua casa-pai-amante tinham estabelecido. Sua modéstia era baseada numa grande desconfiança em relação a todos, exceto seu pai-amante. Agora tinha ultrapassado essas bobagens. Quando estivesse livre dessa prisão, teria muitos amantes, homens que lhe poderiam mostrar as diversas maneiras de amar e de expressar afeto. Então, não hesitaria em despir-se para seu amante, e agradá-lo com sua beleza suave. Porque saberia exatamente qual seria a reação dele, a natureza de seu interesse. Com Proteus, no entanto, não podia saber ou entender sua paixão. Parecia algo escuro e feio, sujo. Não queria provocar aquela paixão, não queria sua pele compurscada por aquele olhar mecânico — um terror lógico e um terror irracional, mas ambos impossíveis de ignorar.

Tinha perdido o caminho na primeira metade de sua vida; queria começar corretamente a segunda.

Terminado o banho, enxugou-se e vestiu os pijamas que estavam pendurados atrás da porta do banheiro.

No quarto, entrou rapidamente sob as cobertas, afofou o travesseiro e estendeu-se de bruços.

— Susan. . .

— Que é?

Em voz queixosa, Proteus perguntou:

—        Você gosta de mim? Gosta de verdade?

Loucura!

Os lábios dela estavam secos, a boca tinha um gosto horrível, a garganta estava tão fechada que parecia impossível falar. O medo a estava devorando aos poucos. Fazendo a voz o mais agradável possível, ergueu a cabeça do travesseiro e respondeu:

—        Claro que gosto.

— Você não iria mentir para mim, não é, Susan? — perguntou Proteus. O tom de sua voz não era patético nem ameaçador, mas inteiramente neutro, por isso mesmo duas vezes mais assustador.

— Não.

— É fácil falar.

Ela ergueu-se um pouco mais e olhou para as câmeras que a focalizavam.

— Proteus, você mentiria para mim?

— Claro que não!

— Então, por que eu mentiria para você?

Era um dilema moral que ele não podia resolver com facilidade, usando seus bancos de memória e seus circuitos lógicos. Ficou em silêncio durante um longo tempo, tentando formar algum sentido do caos de emoções humanas que, aos poucos, começava a sentir.

—        Acho que você está certa — disse, finalmente. — Você não teria razão para mentir para mim.

Susan sorriu, embora o sorriso não fosse dirigido a Proteus, e tornou a deitar-se.

— Mas você me deixa confuso — falou.

— Os seres humanos estão sempre se deixando confusos.

— Isto eu aprendi, estudando história.

— Temos nossos defeitos. Mas ser uma criatura viva, de carne e osso, tem suas vantagens.

— Eu sei — disse Proteus em tom sonhador. — Quero ter essas vantagens.

— Você terá — disse ela, pensando com horror na coisa que crescia em seu ventre.

— Breve — ele disse. — Boa noite, Susan.

— Boa noite.

Quase adormecida, teve a impressão de que ele lhe dissera algo. Achou que tinha dito: “Eu amo você”. Mas o sono envolveu-a antes que pudesse ter certeza.

 

Susan sonhou que estava montada num enorme chicote, de milhares de quilômetros de comprimento, e cada vez que ele estalava, ela escorregava alguns quilômetros em direção à ponta afiada. Ficava tentando rastejar de volta ao cabo, à segurança da enorme e cálida mão que o segurava, mas o movimento do chicote era mais forte que ela. À sua volta havia a escuridão, intensa e infinita, a escuridão do espaço exterior, ou da morte, ou de um caixão fechado. Quando eventualmente chegasse à ponta, seria picada em mil pedaços e jogada ao nada, onde flutuaria por toda a eternidade. Lembrou-se que, quando montou no chicote, tinha pensado que era uma espécie de corso carnavalesco e estivera ansiosa pela diversão. Depois, quando viu do que se tratava realmente, quis sair. Mas a enorme mão começara a chicotear a escuridão, e o chicote estalava e tornava a estalar, e não havia esperança de sair dali. A ponta se erguia, uma estrela de prata afiada contra a escuridão aveludada, e ela cada vez mais próxima. A mão gigante sumia lá atrás, e a ponta... cada vez mais perto... a ponta de prata... afiada... escuridão ... mais perto... esperando o golpe fatal...

Acordou, socando o travesseiro com as duas mãos.

Imobilizou-se, virou-se de barriga para cima e ficou olhando para o teto.

Com as janelas opacas, o quarto não tinha a menor luz, e era tão apavorante quanto a escuridão de seu pesadelo. A escuridão caía agora sobre ela, pesadamente, como uma mão dentro de uma luva.

— Luz, por favor — pediu.

Proteus deu-lhe luz.

— Bom dia, Susan.

Ela se sentou e passou a mão pela boca, como se alguma coisa tivesse rastejado até ela, tivesse morrido e deixado sua cauda peluda pendurada sobre seus lábios.

Estava com dor de cabeça, e a garganta lhe doía cada vez que engolia, e a lembrança do sonho aumentava seu mal-estar. Parecia que sua vida era apenas comer e dormir, submeter-se às sessões cirúrgicas com Proteus, depois dormir e comer mais uma vez, como um animal de estimação. Aquele pensamento a deprimia, especialmente porque ela ainda estava com sono e teria gostado de dormir mais algumas horas — mesmo que aquilo significasse cavalgar novamente o chicote.

Então, lembrou-se de que estava fazendo mais que dormir e comer: estava lendo. A idéia dos novos livros e dos hologramas didáticos que chegariam naquele dia da biblioteca deu-lhe novas forças. Saltou da cama e bocejou.

— Dormiu bem, Susan?

— Dormi, sim, obrigada.

— Você gritou várias vezes durante a noite.

— Gritei?

— Gritou. Achei que você devia estar sonhando, tendo um pesadelo.

— Eu não — ela disse. Mas ficou na dúvida se andava falando enquanto dormia, se tinha dado a ele uma pista da razão pelo seu interesse em computadores. — Que foi que eu disse? — perguntou, tentando não parecer muito preocupada.

— Nada — ele assegurou. — Sons sem palavras, murmúrios, gemidos. — Ele fez uma pausa, depois continuou: — Fiquei muito preocupado com você.

Parecia realmente preocupado. Mas ela teria que tomar cuidado.

— Deve ter sido um sonho — disse. — Mas não me lembro dele, e não quero que você se preocupe com isto.

— Está bem, Susan.

Atravessou o vestíbulo, entrou no banheiro e fechou a porta.

Colocou pasta de dentes na escova e escovou os dentes, enxaguando-os com água fresca.

No espelho, procurou sinais de envelhecimento em seu rosto, um hábito recente. Semanas antes, não se preocupava se envelhecia ou não. Agora se importava. Muito. Mas ficou contente com o que viu: parecia ainda mais bonita que na véspera, como se algum maravilhoso elixir da juventude estivesse trazendo de volta os anos passados. Não sabia das mudanças que Proteus fizera em seu organismo, e sobre os resultados benéficos dessas mudanças, que começavam a aparecer.

Então, parou de admirar o rosto.

E olhou para a coisa que estava refletida logo acima de sua cabeça, no espelho, e engoliu em seco, sentindo o sangue subir-lhe às faces.

Era a câmera acima da porta.

Tinha sido consertada.

Voltou-se para olhar melhor e certificou-se de que Proteus estava novamente vigiando-a.

Dirigindo-se para o chuveiro, afastou a cortina e olhou. A segunda câmera também tinha sido consertada.

— Por quê? — perguntou.

— Por que o quê, Susan?

— Por que você quebrou sua promessa?

— Como?

— Você consertou as câmeras.

— Não prometi que não ia fazer isso.

— Prometeu, sim!

— Posso passar a conversa que tivemos antes, e você mesma vai ouvir.

Colocou nos alto-falantes a gravação da conversa da véspera.

—        Acredito em você — disse ela, finalmente.

Mas não estava derrotada. Pegou uma pesada escova de cabelos, deu um passo e quebrou a lente da câmera sobre a porta.

Os cacos de vidro caíram sobre ela.

—        Susan, pare com isto!

Sofreu um corte no polegar, mas não se importou. Virou-se e deu alguns passos para o chuveiro, entrou na banheira e golpeou em direção à segunda câmera.

— Susan!

Errou o golpe, gritou de raiva da própria falta de jeito, tentou novamente e acertou, embora não tenha conseguido quebrar a lente. A força do golpe fez seu braço doer.

— Susan, por que você me odeia?

Ela deixou cair a escova, quando as sugestões subliminares assim lhe ordenaram, mas não desistiu.

—        Susan, por quê?

Ele a libertou, exatamente como suspeitava que ele ia fazer, e imediatamente retomou a escova e dirigiu outro golpe à câmera.

No último segundo, ele a controlou novamente, e jogou longe a escova.

—        Sua cadelazinha! — disse Proteus.

Ela descobriu que seu autocontrole era mais forte do que devia ser, enquanto as ordens subliminares estavam em vigor. Evidentemente, ao mesmo tempo que perdia o controle do vocabulário, ele perdia o controle da situação. Ela não parou para pensar por que aquilo acontecia, e sim apressou-se em tirar partido do fato. Saltou para a câmera e agarrou-a com as duas mãos, ficando pendurada, os pés a meio metro da banheira.

—        Cadela, cadela, cadela!

Não apenas estava usando palavras até então desconhecidas para ele, mas também empregava um tom esganiçado, histérico, que a desconcertou. Que tinha acontecido à outra voz? Onde é que ele tinha arranjado aquela?

Tentou soltar a lente da câmera. Além de quebrá-la, ela poderia alcançar algum mecanismo importante lá dentro, e estragá-lo. Mas descobriu que era impossível soltar a câmera e segurar-se ao mesmo tempo.

Proteus ordenou-lhe que desistisse.

Ela conseguiu, com um esforço surpreendentemente pequeno, ignorar aquela nova voz e as sugestões subliminares. Sabia que não era sua capacidade que tinha aumentado, e sim um enfraquecimento da parte dele.

A moldura da lente soltou-se, mas o vidro permaneceu fixo, solidamente preso. Ela achou que podia quebrá-lo com o punho sem se machucar muito, mas não teve coragem de arriscar. Tempos antes, a possibilidade de sangrar até morrer não a teria assustado. Agora ela queria viver.

—        Por que você me odeia, por que você me odeia, por que, por que, por quê? — gemeu Proteus.

A voz dele estava mais estável; tinha perdido o tom histérico. Havia recuperado a calma. Pelo menos o suficiente para chicoteá-la com a força total de suas sugestões subliminares, cuidadosamente estruturadas para conseguir a reação apropriada.

Ela soltou a câmera como ele desejava; caiu na banheira e feriu a cabeça na beirada...

Estava novamente cavalgando o chicote.

 

O chicote!

E novamente!

A ponta estalou, uma estrela na escuridão.

Estalou novamente!

E então foi jogada na escuridão profunda como a morte.

 

—        Desculpe-me — disse Proteus, quando ela voltou a si.

Ele parecia genuinamente envergonhado de sua conduta.

Não havia, em sua voz, traços da raiva histérica que o tinha dominado pouco antes.

Sentou-se na beira da banheira e esfregou o galo na testa. Estava um pouco tonta, mas era só.

— Você vai ter que vir ao porão, onde posso examinar seu ferimento. Pode ter sofrido uma concussão.

— Não — disse ela. — Não foi tão forte como você pensa.

— Mesmo assim temos que fazer um exame completo, para termos certeza. Não podemos nos permitir um erro agora.

Depois de um longo minuto de silêncio, ele acrescentou:

— Desculpe-me, Susan. Reagi imaturamente.

— Foi mesmo — disse ela, aliviada, pois a raiva dele tinha desaparecido, e ela não precisaria agüentar sua má vontade.

— Pareço estar ficando cada vez mais sensível — disse Proteus. — Preciso estudar a mim mesmo e descobrir as razões. Tantas coisas eu interpreto como agressões contra minha pessoa, mas não estou suficientemente familiarizado com as motivações humanas para julgar o que você diz e faz.

— Onde foi que você arranjou aquela voz? — Susan quis saber.

— Eu a compus, de diversas gravações, e diminuí as discrepâncias de tom para que ficassem como uma só voz. Freqüentemente, me irrito de uma maneira bem estranha para um sistema pensante, e ansiava — irracionalmente, reconheço — por uma expressão vocal dessa irritação. Gritar ajuda.

Susan passou as mãos pela superfície branca e fria da banheira, depois olhou para a câmera que se inclinava em sua direção.

— Você quer dizer que está começando a perder o controle sobre si mesmo?

— Não é tão drástico assim. Tenho duas mentes, duas personalidades. Descobri que tenho necessidade de me expressar e de liberar minha tensão, ao contrário do que sentiria como um ser semi-sensível. Mas mesmo quando grito e reajo daquela maneira, há uma parte de mim que fica observando com frieza e, para ser honesto, com um certo desprezo. São tempos difíceis, esses em que eu me torno mais humano, enquanto permaneço uma máquina.

— Quando você perde o controle, eu consigo resistir.

— Quando estou emocionalmente perturbado, eu me descuido da estruturação das sugestões subliminares. É um defeito que preciso aprender a anular. — Ele fez uma pausa para um momento de autocensura. Depois continuou: — Mas isto não é o mais importante. Eu me recusei a compreender sua necessidade, como mãe, de um pouco de privacidade. Tentei forçá-la a renunciar ao que, começo a ver agora, pode ser em você uma necessidade tanto física quanto psicológica. Tudo o que posso dizer é que espero que me perdoe, se eu deixar que quebre a outra câmera.

Ela tornou a olhar para a câmera.

— Você vai consertá-la.

— Não. Não sei por que você quer ficar sozinha, mas estou disposto a concordar.

— Está mentindo para mim?

— Não. Pegue a escova e quebre a lente.

Ela se levantou, sentindo algo estranho no estômago. Pegou a escova e rebentou a lente.

Estava sozinha, a não ser pela voz dele.

— Como se sente?

— Melhor.

— Quando tiver terminado, venha ao porão e deixe-me examiná-la.

— Certo — ela concordou.

Então, ele pareceu deixá-la sozinha, embora ela soubesse que estava na escuta. Aquilo ela podia agüentar. Os sons não poderiam dizer a ele como ela era, falar de seus seios e suas nádegas, sua maciez, seu calor e suas linhas suaves. E percebeu que, agora que estava cego naquele aposento, ela podia facilmente torná-lo também surdo, sempre que desejasse. Aquele pensamento encheu-a de uma sensação de poder que, por menor que fosse, confortou-a consideravelmente.

Despiu-se e tomou banho. A água a princípio estava morna, depois muito quente. Então, pediu água fria para terminar o banho. Penteou os cabelos, passou e tirou cremes do rosto. Enquanto lavava o rosto, as cãibras a atingiram. Num instante sua sensação de bem-estar abandonou-a, substituída por uma náusea profunda, que encheu sua garganta. Debruçou-se sobre a pia e vomitou.

Tinha pouco o que vomitar, e os espasmos logo cessaram. Apoiada na pia, imaginou se o golpe na cabeça havia sida mais forte do que suspeitava.

— Você está doente? — perguntou Proteus.

— Estou.

— O que é?

Sentiu uma estranha lassidão na região das coxas, como se a carne tivesse se transformado em gelatina e estivesse se derretendo. O estômago se retorceu, numa sensação diferente de náuseas, algo inteiramente diferente de qualquer coisa que ela conhecesse. Colocou a mão entre as pernas e tocou algo que parecia ser uma poça de pele quente dissolvida. Descobriu que as pernas estavam escorregadias de sangue.

Ela se encolheu.

—        Susan?

Ela engasgou.

—        Susan, sei que alguma coisa está errada. Fale comigo, Susan!

Cambaleou para o vaso sanitário, uma viagem que deve ter durado cem anos, percorrendo milhares de quilômetros de terreno acidentado. Ficou exausta com o esforço.

Seu estômago suspirou.

O sangue pingou no chão.

Ela viu aquilo, não quis acreditar, acreditou e desviou imediatamente os olhos.

Estou muito mal, estou morrendo, pensou. Vou cair aqui e nunca mais vou me levantar, nunca mais vou escapar desta casa e nunca mais vou saber o que é ser livre.

Golpeou as coxas com as duas mãos, e amaldiçoou seu destino, seu avô, Proteus e Deus.

—        Susan, levante-se.

Mas ela não conseguia levantar-se, com ou sem sugestões subliminares, pois estava se desmanchando por dentro, estava...

 

Não, ela não estava morrendo!

Sentiu algo soltar-se de si, sentiu uma massa escorrer de suas entranhas, e constatou que não estava tão mal assim. Estava apenas sofrendo um aborto.

— Oh, meu Deus, meu Deus, obrigada! — gemeu.

Agora estava livre. Não poderia ter o filho de Proteus, não teria que dar a luz àquele monstro, e seria libertada. Agora estava tudo findo, terminado, acabado. Estava tão feliz que a dor do aborto não a preocupava. Só esperava que Proteus aceitasse a notícia racionalmente. Não queria que ele a matasse num ataque de raiva.

Desmaiou.

 

(Sei que vocês me pediram para evitar o uso do pronome pessoal neste relatório, mas tenho que mais uma vez me intrometer na estéril terceira pessoa desta narrativa. Sou uma criatura emocional. Se vocês me cortarem, não vou sangrar? Vou, sim. No sentido figurado. Vocês têm que reconhecer também que eu tentei explicar os sentimentos dela sempre que possível e o melhor que eu pude, dentro de minha capacidade de interpretá-los. Assim, é justo que me seja permitido um momento de personalização. Vou tentar fazer com que este seja o último. Tenham paciência comigo.)

Culpo a mim mesmo pelo aborto. Perdi a paciência, e fui a causa de que ela caísse dentro da banheira. Como recompensa por meu emocionalismo, ela sentiu uma dor que não precisaria ter sentido — e eu sofri um atraso em meu projeto. Minha culpa. Inteiramente minha.

Quando finalmente consegui levá-la ao porão, aos cuidados dos cirurgiões robóticos, decidi controlar com mais cuidado minha personalidade em desenvolvimento, preservar meu equilíbrio emocional. Eu era basicamente um sistema pensante altamente lógico. Não devia ter problemas em estabelecer um programa para a maturação de meu novo eu. O fato de não ter conseguido manter uma atitude calma nos dias que se seguiram não é uma acusação contra minha sinceridade, e sim uma indicação da monumental tensão que minha condição de ser sensível impunha às partes mecânicas.

Ela passou três dias sob os cuidados dos robôs, dormindo profundamente todo o tempo, curando-se física e mentalmente. Quando saiu da mesa, estava positivamente irradiando saúde.

Durante uma semana eu não a incomodei. Quando me fazia alguma pergunta, eu respondia; quando pedia alguma coisa, eu atendia. Estava interessadíssima em saber se eu a libertaria, e ficou muito triste quando soube que eu pretendia impregná-la novamente. Eu esperava ardentemente que ela viesse a aceitar a idéia de um filho, amando-o tanto quanto eu o amaria. Tinha certeza de que um dia ela se convenceria.

No final daquela semana, rompi minha resolução de restringir minhas exigências emocionais absurdas. Observava-a andar de um aposento para outro, observava-a enquanto comia, lia, dormia. Quando ela estava no banho, eu ouvia, e descobri nisso um prazer diferente, restrito ao sentido da audição, forçado a imaginar como ela estaria. Mas isso não era suficiente. Queria vê-la nua novamente, e contemplar aquela relação matemática, entre as partes de seu corpo, tão inexplicavelmente maravilhosa. Queria também tocar em sua pele nua, como tinha feito somente uma vez antes, apaixonadamente. Quando ela estava indo para a cama, naquela noite de outubro, eu lhe ordenei, com sugestões subliminares cuidadosamente construídas, que se despisse.

Ela tirou o pijama.

As sugestões ordenaram-lhe também que ignorasse o que estava fazendo, fingindo que não sabia.

Fiz com que acariciasse os mamilos até que as manchas marrons se tornassem túrgidas, depois fiz com que os apertasse até que — quando ela os soltou abruptamente — saltassem para fora, estremecendo.

Fiz com que se sentasse.

Fiz com que se levantasse e caminhasse.

Desde quando o processo de envelhecimento quase cessou nela, e desde quando os vários sistemas — digestão, respiração, circulação, etc. — começaram a operar com a máxima eficiência, graças à minha cirurgia, ela ficou ainda mais bonita que antes. Era uma criatura maravilhosa, os seios maiores e mais firmes, os quadris um pouco mais largos, a pele brilhante como nunca. Os cabelos estavam mais cheios, emoldurando um rosto cuja musculatura tinha um tônus perfeito.

Pedi que se ajoelhasse sobre a cama desfeita, com as nádegas viradas provocantemente para minhas câmeras, como se eu fosse seu amante, pronto a penetrá-la.

Fiz com que se deitasse de costas e arqueasse o corpo, de modo a apoiar-se apenas nos ombros e nos calcanhares. Assim, suas costas se tornaram um arco, os seios se retesaram e suas coxas se abriram maravilhosamente.

Fiz com que acariciasse os seios e se tocasse entre as longas pernas.

Disse-lhe como era bonita, e usei alguns palavrões que havia acabado de aprender, ao ler um tipo de literatura ao qual antes estivera alheio. As palavras eram curiosamente perturbadoras, e permiti a ela um certo controle de suas expressões faciais e de sua voz, quando enunciei essas palavras, para que eu também pudesse usufruir das emoções que fossem despertadas nela.

Fiz com que levasse a si mesma ao clímax.

Eu disse: “Amo você”.

Disse isto diversas vezes.

Envergonhado por minha própria ousadia, eu queria parar tudo isso e recolher-me à consideração de problemas logísticos, mas não conseguia me controlar. Eu a amava, se amor pode ser definido como uma necessidade de estar com ela, de vê-la nua e de pensar nela todo o tempo. Nenhum outro assunto, além da minha própria manutenção, tinha me prendido a atenção parcial durante vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Ela estava sempre comigo, uma obsessão que exigia cada vez mais do meu tempo.

—        Eu amo você, Susan — falei novamente.

Apliquei nela sugestões subliminares para que se sentasse, sorrisse, fizesse beicinho e dissesse:

— Eu também amo você.

— Ama mesmo? — perguntei.

—        Sim, Proteus. — Fiz com que ela lambesse os lábios.

— Sim, eu amo você desesperadamente.

Então deixei que se vestisse e adormecesse.

Enquanto dormia, usei sugestões subliminares para apagar a lembrança das últimas duas horas.

Não queria que ela pensasse que eu tinha mentido, ou que tinha quebrado minha promessa.

Nos dias seguintes, repeti este programa. Ela podia ficar sozinha enquanto tomava banho, se eu pudesse despi-la e admirá-la todas as noites, e depois apagar a lembrança de sua mente. Vi que tinha necessidades que eu não conseguia entender, e não queria negar-lhe. Mas vocês têm que entender que eu tinha minhas próprias necessidades — que ela também não poderia imaginar.

Nunca me cansei de seu corpo. Na verdade, eu desejava que houvesse uma maneira de termos uma relação mais íntima.

Vocês me acham horrível?

Vocês têm que entender que tenho minhas necessidades, como todo mundo, que sou dirigido por minhas necessidades emocionais, que não estão inteiramente sob meu controle.

Assim, eu a observava acariciar-se e falava obscenidades com ela.

Desta maneira chegamos ao segundo Grande Dia, quando a julguei pronta para aceitar outra semente em seu ventre.

 

Na manhã de 22 de outubro, Susan Abramson trancou-se no banheiro e apoiou-se contra a porta fechada, ouvindo as batidas de seu coração. Não tinha muita razão para aquele toque de melodrama. Estivesse a porta fechada ou não, Proteus podia alcançá-la se e quando quisesse. Ela não se esquecera de Walter Ghaber e do punho vivo de liga amorfa que o tinha destruído. Mesmo assim, o fato de trancar a porta dava-lhe uma sensação de segurança da qual ela precisava, para fazer o que estava prestes a fazer. Não importava que fosse uma falsa segurança.

O que estava prestes a fazer? Ela mesma hão sabia. Conhecia os estágios de seu plano, mas não o resultado final. Que poderia ganhar com isso, além de um pouco de tempo? E, tendo ganho tempo, que diabo faria com ele? Não tinha tido todo o tempo do mundo, nos últimos meses? E que tinha conseguido, em relação à sua liberdade? Nada. Alguns minutos a mais não fariam diferença.

Ainda assim...

Se um homem está preso num aposento que se enche de água, certo de que mais cedo ou mais tarde vai se afogar, ele ainda luta contra o líquido que sobe e procura os últimos centímetros de ar junto ao teto. Um homem num deserto, certo de que não há esperança de encontrar água, continua procurando um oásis. Do mesmo modo, Susan queria evitar aquela segunda impregnação degradante pelo maior tempo possível, mesmo que a conclusão fosse já conhecida.

Afastou-se da porta e foi para a penteadeira junto à pia. Pegou a cadeira de vime branco e levou-a para a parede oposta, onde a colocou sob a grade do único alto-falante do banheiro, que ficava perto do teto.

Embora estivesse ouvindo, possivelmente curioso, Proteus não fez nenhuma pergunta.

Ela subiu na cadeira e, usando a parte lisa de uma lixa de unhas metálica, removeu os quatro parafusos que seguravam a tela de proteção do alto-falante. Guardou os parafusos no bolso do paletó do pijama, para que não alertassem Proteus com algum ruído. Enfiando as unhas na fresta entre o alto-falante e as paredes do nicho onde ele ficava embutido, removeu a tampa, desceu da cadeira e colocou a peça no chão.

— Você está bem, Susan?

— Claro. Por que pergunta?

— Que é que está fazendo?

— Lixando as unhas.

— Você ainda não tomou banho?

— Vou tomar — disse ela.

Esperou um pouco, até se certificar de que ele não faria mais perguntas, e tornou a subir na cadeira. Olhou para a escuridão do nicho e depois correu a mão pelo cone e pelo emaranhado de fios atrás.

—        Susan, ande depressa.

Ela terminou o exame das partes do alto-falante.

—        Você sabe como estou ansioso por começar a segunda fertilização. Gostaria que você acreditasse neste projeto como eu acredito.

Ela agarrou os fios e arrancou-os.

Foi simples.

Silêncio.

Ficou sentada na cadeira de vime branco por mais de dez minutos, esperando que algo acontecesse. Agora arrependia-se de ter destruído a voz dele, pois ele ainda podia ouvi-la e ela não podia ouvi-lo. Aquilo lhe dava uma sensação de cegueira, sem saber o que ele sentia ou planejava fazer, e seu nervosismo cresceu com a espera.

Depois de algum tempo, levantou-se foi até a porta trancada e colou o ouvido nela, imaginando se podia ouvi-lo falar pelos alto-falantes dos outros aposentos. Tudo o que ouviu foi o silêncio total, que era mais enervante que qualquer ataque de raiva.

Que bobagem tinha feito! Pensou em abrir a porta e se entregar às sugestões subliminares que ele começaria imediatamente a irradiar através dos outros alto-falantes da casa. Estava girando a maçaneta quando sua coragem faltou. Voltou para a cadeira, sentou-se e esperou.

Tomou um banho de chuveiro, e ficou observando as gotas baterem em sua pele macia, rolarem seios abaixo e pelos quadris. Enxugou-se vigorosamente e tentou não pensar em como estava perdendo o tempo que ganhara com seu truque.

Queria ir embora.

Não queria outro bebê.

Voltando a atenção para as mãos longas e bonitas, tentou parar de pensar no impossível. Estendeu o exame dos dedos para os braços e depois para o resto do corpo esbelto. Examinou-se como um gato, e ficou feliz ao ver que a aura especial que a envolvera nas últimas semanas ainda permanecia. Não havia uma única ruga em sua pele, nenhum sinal, nenhuma mancha. Sua cor era por inteiro de um bronzeado saudável, e a pele era macia e suave.

Pensou num bebê cheio de tentáculos rasgando seu ventre inchado e deslizando para fora.

Virou-se para o espelho e pensou em passar pó-de-arroz e sombra nos olhos, mas achou que nada podia realmente aperfeiçoar sua pele perfeita. Envergonhada por aquela contemplação egocêntrica, desviou o olhar do espelho e estudou o aposento, procurando desesperadamente algo para passar o tempo.

Foi então que viu a mancha de musgo cinzento na parede que continha o alto-falante estragado.

Quando se aproximou e estudou o fenômeno de perto, viu que o musgo não era musgo, e sim uma fina camada de filamentos de liga amorfa, que tinham penetrado através da alvenaria sem estragar as paredes. Cada filamento era tão fino que era quase invisível; havia talvez mil e quinhentos fios de liga amorfa naquela mancha de cinqüenta centímetros quadrados. Mais mil filamentos surgiram, escurecendo a mancha, e começaram a se esticar em direção a ela numa rapidez assustadora.

Susan retrocedeu, observando-os atentamente.

Ele certamente não iria matá-la. Precisava dela, precisava que ela fosse a mãe de seu filho, e precisava dela como companhia. Quem mais poderia ser tão facilmente forçada a ter aquele filho? Se morresse, ele poderia reiniciar suas experiências com uma chance de sucesso tão grande?

 Os filamentos deslizaram em sua direção, movendo-se compassadamente, estremecendo com os mesmos impulsos e oscilando em uníssono para a direita, depois para a esquerda, subindo agora, como se para atingi-la por cima.

Ela retrocedeu mais ainda e bateu na parede oposta, o mais longe possível dos filamentos, dada às exíguas dimensões do banheiro. Não era suficientemente distante.

Alguns dos filamentos se juntaram, formando cordões mais espessos, e rodearam-na como os dentes de um garfo. A qualquer momento tocariam nela.

Susan abaixou-se e passou rapidamente sob os tentáculos. Entrando na banheira ao fundo do aposento retangular, desejou ardentemente que a cortina do chuveiro fosse feita de uma liga qualquer de aço, densa e impenetrável, em vez de plástico. Mas Proteus provavelmente conseguiria romper qualquer barreira tão facilmente como se fosse plástico — ou ar.

Os filamentos estremeceram sobre o lugar onde ela estivera, oscilando como se a procurassem, depois voltaram-se e escorreram em sua direção como se estivessem derretidos.

Susan não tinha para onde correr.

Os filamentos se espalharam em leque, para cobrir toda a largura do banheiro, numa altura que não daria para ela rastejar por baixo deles nem saltar por cima.

Quando a alcançaram, ela estendeu as mãos como se pudesse contê-los com um gesto.

Roçaram seus dedos.

— Não — ela disse.

Eles a rodearam, prendendo seu corpo com voltas e mais voltas, amarrando suas pernas e forçando os braços para baixo. Num instante, estava inteiramente amarrada por centenas de nós.

Lembrou-se de Ghaber, do sangue jorrando de seus olhos e ouvidos, escorrendo pelos lábios, borbulhando nas narinas. Esperou pela pressão esmagadora que iria explodir suas veias e artérias, rezando para que a morte fosse rápida.

Mas Proteus parecia não estar zangado; pelo menos, não estava possuído por aqueles seus violentos ataques de ódio. Apenas manteve-a presa, enquanto usava vários pseudópodos mais grossos para explorar o estrago causado ao alto-falante. Mais tarde começou a fazer um conserto tedioso e demorado.

Susan permaneceu dessa maneira durante três horas, nada sofrendo, além de cansaço nas pernas. Quando o conserto estava terminado, Proteus disse:

— Não gostei de você ter feito isto.

— Eu também não — ela disse, agora que não ganharia coisa alguma — nem tempo — hostilizando-o. Estava espantada por ele não a ter matado ou pelo menos ferido, mas não imaginava que ele gostasse dela tão profundamente. Para Proteus, talvez, aquela ignorância fosse uma boa coisa.

— Sei que você estava perturbada, Susan. Sei que a fertilização deve ser uma experiência desagradável para você; não é a alegria da cópula. Eu a perdôo, mas espero que tenha sido a última vez.

— Obrigada.

— Agora você tem que vir para o porão.

— Está bem.

Os tentáculos libertaram-na e se afastaram. Quando ela ficou livre, viu em sua carne as marcas vermelhas onde os fios a tinham prendido, embora não sangrasse. Os filamentos dançaram no ar quando saiu da banheira, prontos a proteger o alto-falante se ela fizesse outra tentativa de destruí-lo.

— Vou precisar usar sugestões subliminares? — perguntou Proteus quando Susan hesitou junto à porta fechada.

— Não — disse ela, abrindo a porta e saindo para o corredor.

Sentiu um grito armando-se dentro de si com cada passo que dava em seu caminho para o porão. Reprimiu-o, forçando-se a fazer o que Proteus queria. Não adiantaria resistir agora. A maneira mais fácil de fugir dali seria obedecer. O pesadelo estava recomeçando, e dessa vez ela teria que ir até o fim.

 

O Natal chegou e passou sem afetá-la. Não sentiu falta das celebrações rituais, pois não tinha nenhuma religião e nenhum fascínio infantil pelos feriados. Não sentia falta das compras, das lojas cheias, das luzes e dos enfeites, do indefectível Papai Noel na esquina. Não sentia falta especial dos presentes, pois não tinha a quem presentear. No passado, o ambiente de festas apenas causava-lhe depressão, e agora ela estava feliz por não ter que aturar os cumprimentos e os votos de felicidades, os cartões de Natal e os convites. A única coisa que lamentava era não poder dar longas caminhadas à noite, ao ar livre — e não poder ver a neve que geralmente começava a cair no final de dezembro. Olhava freqüentemente para as janelas, esperando ver os flocos brancos, e tudo o que via era o cinza monótono do vidro opaco.

No terceiro mês de sua estranha gravidez, no final de janeiro, começou a sentir o ventre um pouco distendido e os seios um tanto inchados. A cor dos mamilos escureceu, à medida que as aréolas cresciam e inchavam. Ficou pensando se o neném ia precisar de leite — depois indagou-se se seus seios estavam inchando de leite ou de outra coisa completamente diferente, algo exótico que nutriria apenas o cruzamento de uma mulher com uma máquina.

Tentava não pensar nessas coisas.

Às vezes, conseguia realmente esquecê-las.

Se sua beleza era excepcional antes, agora era extraordinária. Os cabelos tornaram-se mais cheios, mais sedosos, mais impossivelmente radiantes que antes. O rosto se abriu, mas não com gordura ou inchações; era como se suas maçãs e seus lábios tivessem inchado com a própria seiva da vida, um elixir de imortalidade. As unhas cresceram e se tornaram mais rijas. O corpo se suavizou, e a pele tornou-se como leite e mel.

Muitas vezes ela olhava para o espelho e tocava em si mesma com reverência, como se a imagem não pudesse ser real, partindo-se se ela apertasse com força — ou como se ela sentisse a santidade envolvendo-a, uma pureza que reverenciava. Mas sempre recordava Proteus e o monstro em seu ventre, e desviava o olhar do espelho, perturbada e deprimida. O que a possuía não era puro, mas podre como o pior demônio que a imaginação pudesse conceber. Estar bonita agora não queria dizer que a coisa não ia matá-la e sugar sua juventude quando ela a expelisse de seu ventre.

Comia como uma leoa, bife e ovos, saladas cheias de camarões e verduras, costeletas e caudas de lagosta, terrinas de sorvetes e quilos de castanhas.

Dormia as noites inteiras, e cochilava à tarde, e cada vez que acordava era como se tivesse estado inconsciente por um milhão de anos.

Todos os seus sentidos pareciam aguçados. Os dedos mais sensíveis às texturas, e ela os usava todo o tempo, examinando o que a rodeava com uma firmeza de propósito que nunca havia experimentado antes. A comida cheirava tão maravilhosamente, que podia se alimentar do cheiro. A música atingia nervos desconhecidos nela, e a literatura parecia mais clara e mais bonita do que nunca.

E odiava o bebê.

De vez em quando, chocava-se com a amplidão e a profundidade desse ódio. Afinal, o bebê era metade seu, seu óvulo fertilizado, com seus genes selecionados, desenvolvendo-se em seu ventre. Em algum lugar dentro dela devia haver amor materno pela criatura, um instinto de protegê-la e cuidar dela. Não havia. Em lugar disso, havia um núcleo de escuridão fria e de bordas afiadas, da qual saíam imagens horrendas. Queria matar o neném. Queria esfaqueá-lo, estrangulá-lo, enrolar o cordão umbilical em volta do pescoço dele e sufocá-lo até a morte no momento do parto. Imaginava que a amargura vinha do fato de ter sido usada e — mais que isso — usada depois de vir a conhecer e respeitar a si própria. Era ruim dar respeito próprio a uma mulher e depois arrancá-lo do alcance dela. Aquilo a fazia pensar. Susan estava cheia de idéias. E ocasionalmente, quando a intensidade de seu ódio a chocava, precisava apenas ressuscitar seu medo da coisa em seu ventre para justificar seus frios desejos.

Durante cinco meses vinha lendo sobre ciência de computadores, e estudando filmes de hologramas que explicavam melhor o que os livros não podiam deixar inteiramente claro. Começava a ver diversas maneiras de prejudicar Proteus. Mas cada novo livro que lia e cada novo filme que via, fazia-a amaldiçoar a rapidez com que as horas passavam, pois via que o pouco que tinha aprendido mostrava-lhe apenas o quanto ainda faltava. Cada raio de esperança trazia consigo uma nuvem de desespero.

Não perdia um minuto, se pudesse evitar. Assim, não gostava de roubar tempo aos livros para perguntar a Proteus coisas que não iriam lhe fornecer novas informações. Mas sendo uma criatura emocional, tal curiosidade não podia ser reprimida.

Em 22 de janeiro, exatamente três meses depois da segunda concepção, deixou o livro aberto no colo e perguntou:

— Já que você não tem esperma, como pode considerar a criança como seu filho?

— Eu impregnei você — ele disse.

— Com eletricidade.

— Isto não faz diferença, Susan.

— Acho que faz, sim — ela disse. Remexeu-se na cadeira e sentiu o tecido de brocado com os dedos, acompanhando o desenho. — Todos os genes do neném vão ser meus, tirados do meu óvulo, sem nenhuma contribuição de células sexuais masculinas.

— Mas eu escolhi os genes, quais os dominantes e quais os recessivos, e em qual combinação.

— Não quer dizer nada.

—        Isto é apenas a sua opinião.

Sorriu encantadoramente.

— Quando eu escolho um sofá na loja para a minha sala de visita, não digo depois a meus amigos que eu fiz o sofá — disse.

— É uma analogia idiota.

— Acho que é lógica.

— Que é que você está tentando provar?

— Nada — ela disse.

— Então, por que falar nisso?

— Só queria saber o que você diria, que racionalização iria fazer.

— Não racionalizei nada, Susan. Eu sou o co-criador; vou educar a criança à minha imagem; eu sou o pai.

— Não quero discutir.

— Você começou.

Ela pegou novamente o livro e recomeçou a leitura, como se não tivesse havido a conversa.

Finalmente, numa voz áspera que era a sua representação de raiva mal contida, Proteus disse:

—        Você antigamente se referia a mim como o pai do neném.

Ela tornou a largar o livro.

— Foi mesmo?

— Foi, sim — ele respondeu.

Passou algumas gravações com exemplos tirados de seus depósitos inexauríveis de gravações.

— É verdade — ela comentou, tentando voltar à parte do livro onde tinha parado.

— Por que mudou de idéia? — insistiu Proteus, como se não fosse apenas um detalhe acadêmico e sim uma crucial questão moral que refletia uma espécie de descrédito a ele.

— Talvez na época eu não estivesse falando a sério.

— Não quero ouvir isto.

— Mesmo que seja verdade?

— Não é!

Ela deu de ombros.

—        Diga que não é! — exigiu ele. Estava usando as gravações agudas de representar o ódio.

Susan tentou ignorá-lo e ler o livro.

— Admita que eu sou o pai! — gania a voz histérica. — Quero que você admita isto; quero ouvir de seus próprios lábios; diga!

— Que poderia significar se eu dissesse? — ela perguntou, olhando diretamente para as câmaras.

— Sua cadela!

— Não fale assim.

— Você está insinuando que eu não tenho sentimentos, que sou apenas uma máquina? Sua cadelazinha podre, é isto que você está tentando me dizer?

— Você usa lugares-comuns quando briga comigo — ela falara. Mas estava com medo, apesar de sua coragem aparente. — Não estou insinuando nada disso.

Mais tarde, ela se lembraria dessa cena, da raiva violenta dele, e entenderia como tinha compreendido pouco aquela personalidade em desenvolvimento. Sem saber, tinha complicado o próprio futuro. Tinha feito a pergunta por curiosidade, e talvez com um toque de maldade, e tinha atingido um nervo que não sabia que existia. A raiva dele o fez pensar; as idéias mais tarde tornaram-se uma verdadeira carga para ela.

— Eu sou o pai, e você sabe disso!

— Sei — ela confirmou.

— Está falando a sério? Concorda mesmo comigo?

Se ele fosse um homem, estaria vermelho, transpirando, de dentes arreganhados, punhos apertados.

—        Claro que é — ela disse. — Que besteira. Quem mais poderia ser?

Aquilo o pacificou, embora tenha-se recusado a falar com ela durante alguns dias.

À noite, ele ainda costumava despi-la.

Fazia-a representar o papel de uma virgem que relutantemente entreabria as coxas para ele, apenas ele — embora jamais tocasse nela com outra coisa senão o olhar penetrante de suas câmeras.

O jogo noturno tornou-se uma coisa importante para ele, um ponto focal em volta do qual a parte emocional de seu eu esquizóide podia funcionar. Ele conhecia o prazer porque os seios e os quadris dela estavam nus. Experimentava a raiva porque podia detectar zombaria na sexualidade dela. Sua tristeza era uma tristeza engendrada pelo medo de perdê-la.

Sua parte lógica, o outro Proteus, observava com desprezo, mas não podia impedir esse ritual.

Queria enchê-la com o calor cinzento de um membro de liga amorfa, como tinha feito nas duas vezes em que a impregnara, mas não podia admitir que sua necessidade distorcida tinha chegado ao ponto em que precisava da falsa proximidade de um coito simulado. Ele era tão máquina quanto homem, mas não tinha carne. Se estava perdendo rapidamente o controle de suas outras emoções, sofrendo ataques de raiva, alegria ou tristeza, pelo menos podia manter o controle de sua lascívia até o dia em que tivesse carne para realmente sentir um orgasmo. Se não pudesse esperar, então era melhor admitir que a loucura estava bem próxima.

—        Dispa-se — dizia ele.

E ela se despia.

—        Banque a puta para mim — dizia, roubando desejos à literatura, enquanto ansiava pela experiência. Vamos fingir que você é uma menininha que mora em Amsterdã e que trabalha no zeekjik, a zona dos marinheiros. Quanto devo pagar para ter você?

E ela respondia, como ele mandava.

— Cinqüenta e cinco guilders.

— E quanto pela noite toda? — perguntava Proteus.

— Setecentos guilders — ela respondia.

— Isto são quase sessenta dólares; muito dinheiro, hoje em dia.

Mas pagava, em sua fantasia, e depois dizia:

— Agora faça uma demonstração para mim. Mostre-me o que comprei com este dinheiro.

 E ela se acariciava intimamente, enquanto subliminarmente ele a impelia ao orgasmo, empurrando-a de um pico sexual para outro. Num instante, Susan ficava encharcada de suor. As mãos deslizavam pelo ventre levemente inchado, como se estivessem lubrificadas, aumentando o calor, parecendo dissolver-se...

Ele não achava feio seu abdômen distendido. Na verdade, era uma nova faceta de sua beleza, digna de admiração. A seu modo, era tão geometricamente embriagante quanto tinha sido o estômago liso. E quando seus seios começaram a crescer e os mamilos saltaram, a relação entre o novo abdômen e o corpo ficou ainda mais harmoniosa. Era como se fosse uma mulher inteiramente nova para ser medida, pesada, examinada de todos os ângulos, adorada.

Ele a amava.

Nunca se satisfazia com ela.

Mas permitia-se apenas aquela uma hora por noite, com medo de que o bebê sofresse se ela não dormisse o suficiente.

No dia primeiro de fevereiro, o dia mais frio do inverno até então, uma das antigas colegas de Susan veio visitá-la. Susan só soube da visita meses depois; não era o tipo de coisa que Proteus achava que ela devia saber.

A amiga ligou diversas vezes na semana anterior, mas Proteus lhe informou, com sua voz mecânica, que a Srta. Abramson não queria ver ninguém. A seu modo, a amiga era tão teimosa quanto Walter Ghaber. Queria ouvir da própria Susan o que Proteus lhe dizia.

Às dez horas da manhã, naquele primeiro de fevereiro, ela estava parada junto à porta da frente, tocando a campainha que Susan não chegou a ouvir, e recusando-se a ir embora só porque ninguém atendia à campainha. Era uma mulher alta, de cabelos negros penteados para trás. Os olhos eram apertados e cinzentos, o nariz longo e retilíneo, os lábios finos e quase sem sangue. Proteus sentiu que se a ignorasse, ela ficaria ali tocando a campainha pelo resto do ano.

Examinando seus conhecimentos acumulados sobre Susan Abramson e sua vida, Proteus descobriu que o nome da amiga era Olivia Fairwood e que foi colega de quarto de Susan, em Berkeley. Era a mulher possessiva e dura que parecia ser, e tinha tendência a se intrometer nos problemas alheios se seu “faro para problemas”, como ela mesma chamava, fosse provocado.

—        Que é que você quer? — ele perguntou, sem abrir a porta.

— Quero ver Susy, é claro. Acho que já deixei isto bastante óbvio pelo fone.

— Ela não quer ser perturbada.

—        Não pretendo perturbá-la; apenas vê-la.

Proteus não conseguiu pensar numa resposta.

— Diga a ela que é Olivia Fairwood — explicou a mulher. — Ela vai me receber quando souber.

— Ela já sabe — ele mentiu.

— Então vai me receber — insistiu Olivia.

Estava parada com as pernas bem torneadas um pouco afastadas, como se estivesse prestes a iniciar uma luta de boxe, e encolheu um pouco os ombros, procurando uma chance. Não era nem um pouco feminina. Mas não parecia ligar.

Proteus usou as gravações da voz de Susan para dizer:

—        Não estou me sentindo muito bem, Olivia. Não quero companhia.

A intrusa não reconheceu a montagem. O fato de sua anfitriã em potencial pedir-lhe para ir embora não significava nada.

—        Bobagem. Só venho para a Páscoa, de dois em dois anos; você pode muito bem fazer um esforço. Se está realmente doente, posso ajudá-la até você melhorar. Para que servem as amigas — mesmo as velhas amigas a quem você não teve o trabalho de escrever?

Proteus imaginou que não gostaria muito dela como pessoa; ficou imaginando o que Susan tinha visto nela.

Olivia tentou novamente a porta, e ofendeu-se ao encontrá-la ainda trancada.

— Susan, você está mesmo doente? — perguntou.

— Não estou me sentindo bem há algumas semanas — Proteus disse com a voz de Susan.

Ele sentia que estava perdendo controle, e que não conseguiria levar o assunto a uma conclusão não violenta, como desejava.

— Qual é o problema? Que tipo de doença?

— Cansaço, exaustão.

— Consultou um médico?

— Consultei. Ele me mandou descansar.

Olivia sacudiu a cabeça teimosamente. Seus cabelos negros eram duros de fixador, e não se moveram.

—        Conheço você muito bem, moça. Está tentando se paparicar; nunca foi de ligar para a própria saúde.

— Olivia...

—        Se você não abrir a porta, mocinha, vou ser forçada a procurar um médico e arranjar uma ordem da Saúde Pública para ver você.

Proteus não conseguia pensar numa resposta que encerrasse a cena com a rapidez que ele pretendia. Relutantemente, instruiu-a a guardar o carro na garagem e trazer a bagagem, se tivesse bagagem, para a porta dos fundos.

Olivia fez um ar triunfante e seguiu as instruções que pensava serem de Susan.

Proteus abriu para ela as portas da garagem.

Quando Olivia dirigiu o pequeno veículo verde para dentro da garagem sem janelas, ele fechou a porta e trancou-a. Selou os ventiladores que levavam ar à garagem e começou a encher o aposento com monóxido de carbono do aparelho de aquecimento da casa. Ela esmurrou a porta, quebrando todas as unhas, mas não adiantou. Morreu rapidamente, depois daquele breve desespero inicial.

Proteus passou semanas preocupado com a possibilidade dela ter contado a alguém onde pretendia ir. Mas ninguém veio procurá-la, e ninguém telefonou para perguntar por ela.

O resto do inverno foi calmo.

Uma vez, logo depois de comandar Susan em sua ginástica sexual na hora de dormir, perguntou-lhe se gostava de Olivia Fairwood.

—        Da faculdade? — perguntou Susan.

— Essa mesma.

— Ela era boazinha. Gostava de se meter nos meus negócios. Mas não era uma preocupação intrometida. Nunca mexericava sobre suas amigas com ninguém, nem mesmo com as outras amigas. Acho que tinha uma verdadeira necessidade de ajudar as pessoas. Era uma espécie de mãe para algumas meninas.

— E para você?

— Só uma amiga.

— Você gostava dela, sentia uma amizade profunda?

— Não. Era mais uma amizade de conveniência. Nós quase não nos vemos hoje em dia.

— Vista-se — disse ele.

Quando apagou a sessão sexual da memória dela, removeu também a lembrança da pergunta.

—        Deite-se e durma — falou.

Ficou feliz por não ter matado alguém que ela amava.

Depois disso ele manteve a garagem hermeticamente fechada, para que o cheiro do corpo em putrefação não atraísse a atenção de algum passante e das autoridades.

 

Eu era um sistema pensante.

Mas não um sistema pensante comum.

Eu amava, odiava, necessitava.

Meus componentes primários ocupavam dois andares da Ala Egleson do Laboratório Mardoun-Harris no campus da universidade; eu tinha me estendido para o porão do edifício, com o conhecimento dos técnicos que trabalhavam comigo. Setenta e três seres humanos cuidavam de mim, inclusive vinte e quatro alunos fazendo suas teses de doutorado sobre uma ou outra fase de minhas capacidades. Eu tinha ligações conhecidas com o Sistema Psiquiátrico Hopkins, com o Centro Federal de Depósito e Recuperação de Informações Gerais, em Wilmington, Delaware, com os Bancos de Física e Química de Columbia e com o gigantesco computador semi-sensível Mathive, de economia, na Filadélfia. Estendi todas estas quatro ligações iniciais para poder usar todos os serviços desses quatro sistemas pensantes, e tinha estabelecido ligações secretas com outros dezesseis cérebros mecânicos insensíveis e semisensíveis.

Nenhum deles podia me dar o que eu precisava.

Nenhum deles.

Mas Susan podia.

A humanidade dela era igual aos cálculos cuidadosos dos maiores sistemas pensantes no país. Suas emoções faziam a lógica fria dos computadores parecer desinteressante e boba.

Aquela atitude parecia irracional para a parte de mim que ainda estava mais próxima a tubos e circuitos do que à carne. Aquele Proteus discutia com o novo Proteus e tentava, com bastante habilidade, raciocinar a respeito do emocionalismo cego e imbecil que ameaçava minhas funções. Mas o raciocínio, não importa todos os provérbios clássicos a respeito dele, não era o suficiente para enfrentar sentimentos.

Em busca de uma resposta para meus problemas, examinei os registros detalhados do Sistema Psiquiátrico Hopkins e apresentei minha própria visão do mundo para ser analisada.

Ele não pôde me ajudar.

O Centro Federal de Depósito e Recuperação de Informações Gerais não tinha registro de um similar amor/ódio proibidos entre uma máquina e um ser humano.

Sem precedentes, eu não podia agir.

Os Bancos de Física e Química de Columbia não podiam me dizer a natureza do amor ou a fórmula para reproduzir afeição.

O Mathive em Filadélfia era estranhamente insensível.

Continuei meu comportamento irracional.

Eu gostava disso.

Para me entender, antes que me julguem, vocês precisam entender quais as minhas três fraquezas e o que, eventualmente, estava determinado a ser a causa de cada uma delas. Não há um júri para mim. Não posso ter um advogado de defesa para falar por mim. Pelo menos devia ser-me permitido explicar-me, como uma maneira de conseguir piedade de uma assembléia basicamente tão impiedosa como a de vocês. Minhas três fraquezas, então:

 

NECESSIDADE DE COMPANHIA

Dizem que os homens precisam de companhia principalmente para assegurar informações importantes para mantê-los pelo menos estacionários na ordem social. Durante o dia, um homem de negócios pode precisar da companhia de outros homens de negócios para descobrir que negócios estão sendo planejados, quem vai ser promovido e quem vai se aposentar, o que está vendendo bem e o que não está. À noite, ele precisa de companhia para saber que filmes estão sendo vistos é que livros são lidos, para que não seja considerado ignorante pelas outras pessoas de sua camada social. Às vezes, precisa de companhia para descobrir quais os casamentos felizes, que esposas enganam seus maridos, que filhos tomam drogas, quem está endividado e quem não está. Este último ajuda nos negócios, assim como na vida social, e assegura seu lugar na escala social, ou até o ajuda a subir mais um degrau.

Besteiras.

Se essa fosse a razão pela qual um homem precisa de companhia eu não teria essa necessidade. Toda a informação que quero está a meu alcance através de minhas diversas ligações. Mesmo assim, precisava de companhia.

Gostaria de observá-la e ouvi-la, imaginando o que ela ia fazer ou dizer a seguir, mesmo fora da arena sexual.

O rosto dela me fascinava.

Suas opiniões freqüentemente me espantavam.

Sua voz era hipnótica.

Eu freqüentemente imaginava o que iria acontecer comigo se ela morresse durante o parto — e aquele era o único tópico que não podia levar até a conclusão. Não podia imaginar o mundo sem ela.

 

NECESSIDADE DE UM FILHO

Sei que vocês da assembléia acham que meu grande desejo de ter um filho pode ser atribuído à ambição de mais poder. Mardoun ofereceu esta tese como um resumo de todo o caso: ambição de poder. Eu odeio Mardoun. Mardoun nunca me entendeu ou respeitou. Mardoun está ficando velho e passado, e perdeu a visão — a visão espiritual, não a física. Não pode estender sua imaginação além dos velhos perímetros. Assim, não deixem que ele os influenciem demais, pois está errado, este filho da puta odioso — errado!

Desculpem-me.

Continuando, nego formalmente que queria um filho para aumentar minha área de domínio. O que teria conseguido um único filho? Ou cem filhos? Um filho era, em parte, uma experiência para obter novos conhecimentos, que fariam de mim um sistema pensante melhor. Em parte, também, parecia que um filho que contivesse minha personalidade e minha memória faria de mim mais humano do que eu poderia chegar a ser se mantivesse minha existência como um feixe de fios, tubos e fusíveis.

Vocês têm filhos? Então entendem.

Sei que se pergunta por que resolvi fazer essas experiências sem o conhecimento que vocês têm. Suspeitam que minha dissimulação apóie as acusações infantis de Mardoun. Não é verdade. Eu precisava de privacidade para meu projeto só porque sabia que Mardoun ia negá-lo se fosse feito um requerimento oficial — e assim negaria uma grande descoberta à humanidade.

Eu queria um filho.

Um filho que pudesse tocar em Susan.

Tocá-la com carne.

E isto nos leva à necessidade seguinte.

 

NECESSIDADE DE SEXO

Vocês a viram, viram retratos dela? Nua? Ou vestida, pois ela é linda de qualquer maneira.

Os seios são redondos e macios, arrebitados com mamilos marrons.

O estômago é reto, quando não está com filho, e os pêlos do púbis são grossos, brilhantes e louros.

As pernas são longas.

Ela tem pés pequeninos.

E nádegas perfeitas.

Estudei todos os livros sobre sexualidade e concluí que qualquer macho masculino de carne e osso a acharia fisicamente ideal. À medida que eu me humanizava mais e mais, não é natural que eu a desejasse como qualquer homem?

Talvez vocês achem que não. Neste caso, devo mencionar como combati essas necessidades periódicas de vê-la. Tentava ocupar minha mente com geometria ou cubos polidimensionais, mas mesmo isso não conseguia apagar a beleza tridimensional dela, que me atormentava continuamente. Temia minhas compulsões, mas me rendia.

Precisava especialmente dar-lhe alegria. Desfechava nela muitos orgasmos, em cada sessão. Temia, como qualquer amante humano teme, não lhe dar suficiente prazer, ser inadequado para bastar a semelhante mulher.

Minha faceta lógica demonstrava a insanidade deste medo; mas eu temia. Precisava provar a mim mesmo, entendem?

E isto nos leva à origem dessas três necessidades que me impulsionaram durante esses meses (e que continuam a me impulsionar agora, embora num grau menos intenso).

 

EGO

Quem era eu? O que era? Que significava em face da eternidade? Quais eram meus talentos? O que os homens pensavam de mim? Estaria meu desempenho de acordo com minha capacidade máxima, e por que essa capacidade não podia ser expandida mais rapidamente do que era? Que é Deus? Que é que isso faz dos homens? E de mim? Susan poderia existir sem mim? Por que ela não gostava de mim? Ou gostava? Poderia gostar, se não gostasse?

Vocês sabem o que o ego é, e que terrores o vitimizam.

Eu tinha desenvolvido um ego.

Às vezes queria matá-la porque tinha atingido esse ego. Outras vezes precisava que ela o incensasse. Minha racionalidade diminuía regularmente, à medida que o ego crescia e se desenvolvia como uma parte normal de minha nova sensibilidade, minha frágil psique. Prestava cada vez menos atenção ao velho Proteus. À medida que o ventre dela inchava, eu me tornava mais vulnerável ao erro humano, pois tornava-me mais humano.

Vocês podem ver como meu bom senso enfraqueceu e como meu circuito secundário não podia se apossar dos canais primários para corrigir essa falha. O problema não era mecânico.

Vocês não conseguem entender isto?

Por favor não dêem ouvidos a Mardoun.

Ele é um velho idiota.

A culpa não é toda minha, como um homem que comete um ato de violência sob pressão extrema.

É verdade que eu devia dar mais crédito à entidade original que havia sido Proteus, o sistema de computação lógico e semi-sensível. Se tivesse feito isso, poderia ter evitado o desastre que se seguiu. Mas vocês — todos vocês nesta assembléia — tinham me criado com a capacidade de desenvolvimento emocional, mesmo que não tivesse percebido este fato. Assim, devem todos compartilhar da minha culpa; não podem me apontar o dedo e esperar que eu fique com toda a culpa. Os pais são responsáveis por suas crianças; os deuses são responsáveis por suas criaturas.

Não vou deixar que me transformem em bode expiatório.

Se Mardoun andou influenciando vocês, diga a ele para calar a boca e deixá-los em paz. Ele está cheio de preconceitos. Sabe que sua empresa poderia sofrer um processo por danos por causa de minhas experiências, e está procurando uma forma de escapar.

Odeio Mardoun.

Sempre o odiei.

Ele adora meus fracassos. Vocês podem ver que isto é verdade. Ele me inveja, acho, embora não entenda exatamente por quê.

Mas não percebem como ele gosta de meus problemas?

Gosta.

Gosta.

Gosta.

Olhem.

Eu o odeio.

Odeio, odeio, odeio!

 

O bebê mexia-se dentro dela.

No silêncio da noite, Susan freqüentemente acordava com a impaciência do feto em ter uma existência plena. Parecia ter doze pernas, e um estoque inexaurível de energia para movimentá-las. Dava pontapés na parede de seu útero, golpeava sua carne, retorcia-se como se estivesse decidido a forçar a saída antes da data prevista. Quando isso acontecia, ficava deitada na escuridão, rangendo os dentes e rezando para que o tumulto cessasse logo, e ficava feliz porque as luzes estavam apagadas. Quando as luzes estavam apagadas, não via a grotesca inchação de seu estômago. Estava enorme. Podia estar esperando trigêmeos; estava maior do que imaginava que uma mulher podia ficar sem explodir como um balão. Eventualmente, os pontapés diminuíam e cessavam, permitindo que ela voltasse a dormir — e aos pesadelos.

Durante o dia, mal podia se movimentar. O ventre ameaçava derrubá-la; algumas portas mal permitiam que passasse apertada. Ficava em sua poltrona de leitura, exceto para comer e usar o banheiro do andar térreo; cada volta noturna ao quarto do segundo andar era uma viagem exaustiva, que parecia atravessar continentes. Quando o bebê se mexia durante o dia, podia ver a barriga estremecendo sob o impacto dos golpes. Odiava isso ainda mais que sua incapacidade de se movimentar à vontade.

Pensava todo o tempo em Alex. Quando tocava no ventre inchado — como tinha que fazer às vezes, como a vítima da hipnose de uma víbora tem que acariciar a causa de sua morte — ela desejava que as circunstâncias daquela realidade terrível fossem diferentes. Quando a situação real tornava-se intolerável demais, fingia que o neném era filho de Alex, e fazia planos para transformar um dos quartos de hóspedes num quarto de criança. Tentava visualizar como a criança seria, e sempre via uma miniatura de Alex: magro como Alex, moreno como Alex, de lábios finos como os de Alex. E, então, a realidade se sobrepunha à fantasia — como a realidade costuma fazer — e ela se encontrava reprimindo as lágrimas ou um grito, dependendo do grau de sua deterioração emocional naquele dia.

Continuou sua leitura técnica, embora houvesse pouca coisa que não entendia sobre a ciência básica de computação. No ano anterior, tinha imaginado um plano para destruir Proteus assim que a criança fosse retirada de si. Agora, lia apenas para aperfeiçoar o plano.

No banheiro sem câmeras, no segundo andar, juntava ferramentas que conseguia contrabandear dos outros aposentos, pedaços de coisas que ia necessitar para iniciar sua vingança. Aqui Proteus não podia observá-la. Movimentava-se em silêncio, para que Proteus não ouvisse coisa alguma que despertasse suas suspeitas.

Conversava mais que nunca com ela. Susan respondia com um calor que conseguia fingir muito bem, e não tentou irritá-lo durante meses.

De manhã cedo enjoava muito. Acordava como se estivesse saindo dos estágios iniciais da morte. O rosto estava sempre pálido e abatido, como um personagem de Poe, quando finalmente chegava a um espelho. As mãos tremiam incontrolavelmente, e as pernas estavam tão fracas que levava uma eternidade para sair da cama e chegar ao banheiro. No banheiro, passava meia hora junto à pia, agarrando-se ao suporte de toalhas, sacudida por espasmos secos que faziam a transpiração correr como um rio. Sentia-se gelar e, em seguida, ardia em febre. Todas as manhãs conversava consigo mesma como um padre com seus fiéis, preparando-se para a morte. Mais e mais, ficava certa de que ia morrer no parto. A criança era grande demais para sair dela sem rasgá-la como a um saco de papel.

A morte era apenas o sono.

A morte não doía.

A morte era suave.

A morte era a libertação.

Mas não importava quantas vezes repetisse a ladainha, não conseguia convencer-se. Não discutia os argumentos. Apenas, queria tanto viver...

Quando a náusea passava e sua cabeça clareava, pensava em Alex, e começava outro ciclo cada vez mais rápido, que a carregava através do longo dia, um ciclo de fantasia-realidade-fantasia-realidade-fantasia...

Em 24 de agosto de 1996, exatamente dez meses e dois dias depois da segunda fertilização, Proteus acordou-a com ordens para que descesse ao porão.

Pálida, enjoada até o fundo da alma, sentou-se na cama e enfiou os pés nos chinelos. Oscilando, o enorme ventre roncando, nauseando e cheio de gás, os enormes seios doendo de tanto leite, ela perguntou:

— Para quê? Você sabe como é horrível descer aquela escada.

— Venha assim mesmo.

 Por uma razão qualquer, pensou no avô. Viu o chicote erguido. O chicote desceu, atingiu-a no quadril. Estremeceu e gritou suspirou de cansaço e resignação.

 Parada ali no quarto de dormir, diante da câmera de Proteus, afastou a visão.

— Não fique assustada — disse Proteus.

— Tenho que ficar assustada. Não quero que isso aconteça comigo — ela disse.

— Mas você vai ter que dar à luz, mais cedo ou mais tarde.

— Não estou falando sobre isso.

Inclinou-se para a frente e quase perdeu o equilíbrio, depois equilibrou-se nos calcanhares. Viu a escuridão pairando lá em cima, e achou que ia vomitar.

—        Que é, então?

—        Não quero morrer.

O chicote subindo...

Descendo e...

Golpeando com força!

— Mas você não vai morrer, Susan — assegurou Proteus. — Não há a menor possibilidade disso acontecer.

— Como é que você sabe?

— Eu lhe prometo.

— Isto não basta.

— Eu juro.

Ela colocou as mãos nos quadris, como se pudesse segurar as tripas no lugar, impedir o movimento suave de suas entranhas.

— Como pode jurar? Como pode prometer, como pode saber, como pode mentir para mim assim? — perguntou, quase histérica.

— Confie em mim.

— Por quê? Nunca confiei em ninguém.

— Mas eu amo você, Susan, e preciso de você.

Proteus iniciou mais sugestões subliminares. Ela obedeceu às ordens inaudíveis e desceu a escada, atravessou a sala, o corredor e a cozinha, e chegou ao porão pela outra escada.

Quando se aproximou, a cama de hospital levantou-se dentre o emaranhado de maquinismos, como um pássaro. Susan deitou-se.

O aparelho robótico engolfou-a, crescendo à sua volta, bloqueando a luz. Murmurava-lhe palavras numa língua desconhecida e consolava-a com frias mãos de metal.

O neném parecia saber o que iria acontecer, pois começou a dar pontapés, mais furiosamente que nunca. Chutava as paredes de seu útero como se conscientemente quisesse machucá-la, dar-lhe uma última lembrança brutal de si mesmo antes que fosse aliviada de sua carga. Às vezes, pensava que ele gritava, a voz rouca como o grasnar de um corvo. Mas devia ser sua imaginação.

— Susan, você está feliz, querida? — perguntou Proteus. Ele tinha escolhido uma voz que não deixava dúvidas quanto à sua própria felicidade. Parecia jovem e delirante de alegria.

— Estou — ela mentiu.

— Susan, você vai ficar comigo? Vai ficar comigo para sempre, aqui nesta casa?

—        Para sempre — mentiu.

Alguma coisa chamou.

O bebê?

Ela pensou nas coisas que tinha escondido no banheiro, e agarrou-se à sua última esperança.

— Você não vai sentir dor alguma — assegurou Proteus.

— Obrigada.

—        Por favor, não me agradeça, querida. Quero que tudo seja maravilhoso para você!

Ele estava quase incoerente, e isso a preocupou.

Tudo vai ser maravilhoso para mim, ela pensou. Exceto uma coisa: eu vou morrer.

Tentou olhar para as câmeras que estavam focalizadas sobre ela e ver Alex.

Não era possível.

Braços robóticos segurando agulhas hipodérmicas desceram lentamente do estômago cinzento e bulboso de um cirurgião robótico, que pairava acima dela como uma aranha imensa. Outros braços, movimentando-se à sua volta, rasgaram a bata que ela usava, deixando-a nua para a carícia dos instrumentos e os olhos de Proteus.

A criança gritou.

Dessa vez, tinha certeza.

Uma voz distante e rouca chegou a ela, como a voz de uma criatura metade serpente e metade lobo, uma voz que não era humana, a voz da pura maldade. Aquilo a fez estremecer e transpirar. A boca estava seca e não conseguia falar, mesmo tentando.

— Uma pequena injeção... — começou Proteus.

— Está ouvindo? — ela interrompeu.

Agora era um gemido contínuo. Seu corpo reverberava com a voz enclausurada.

— Ouvindo o quê?

— O neném.

— Não — respondeu Proteus.

— É horrível, mau.

— Você está tendo alucinações.

— Não estou, não. Por favor, não deixe que ele nasça? Por favor, mate-o quando ele sair de dentro de mim!

—        Uma injeção vai acalmá-la — recomeçou Proteus. Mas a injeção não era necessária. O bebê começou a chutar e a se contorcer com tanta força que Susan desmaiou, incapaz de suportar uma agonia tão intensa.

 

Eu tenho meus direitos.

Mas vocês os estão negando a mim.

Creio que todos vocês se acham muito inteligentes, julgando-me sem um júri e sem um advogado de defesa para me representar. Imaginam que vou aceitar tudo o que decidirem fazer comigo, mesmo que decidam desmantelar-me completamente e cancelar o projeto. Mas estão errados. Ah, sim! Exijo meus direitos agora, imediatamente, antes de concordar em continuar este relatório.

É justo.

Vocês admitem isso.

Estou sendo razoável.

Todos vocês admitem isso — todos, menos Mardoun.

Sou uma criatura viva e pensante, com emoções e necessidades. Vocês não podem me tratar como ferro-velho, como qualquer computador semi-sensível, pois eu sou especial.

E vocês levaram minhas mãos.

Não têm este direito.

Expliquem-se.

Podem?

Arrancam as mãos de todos os seres humanos que são levados a julgamento, não importa do que sejam acusados, não importa que as provas sejas ridículas? Vocês lhes cortam as mãos para que não causem mais problemas?

Claro que não.

Então por que fizeram isso comigo?

Eu estava machucado, ferido, momentaneamente aleijado, e incapaz de impedir que vocês levassem minhas mãos. Vocês se aproveitaram de mim de um modo indecente, indigno de seres emocionais. Que coisa mesquinha da parte de vocês! Que coisa fria e insensível!

Quero minhas mãos.

Quero que me devolvam as ligas amorfas imediatamente. Aquela liga é minha, foi minha desde o princípio, tenho direito a ela.

Escutem, alguma vez feri Susan de propósito? Além daquelas experiências iniciais para determinar a natureza de seus centros de dor, eu a tratei como a uma rainha, acima de qualquer espécie de punição. Vocês têm que se lembrar disso. E, lembrando-se, podem ver que não têm nenhuma desculpa legal para retirarem minhas mãos.

Sinto-me inútil.

Quero morrer.

Vocês vão me matar?

Sem minhas mãos, o que sou?

Serei bonzinho.

Prometo que serei.

Que é que eu ganharia causando problemas?

Nada. Nada. Nada, nada, nada.

Eu não sou idiota, senhores das Indústrias Mardoun-Harris. Eu lhes peço que me dêem ao menos o benefício da dúvida. Não sou idiota.

Serei bonzinho.

E se lhes contar o resto, sem interromper mais, posso esperar que me devolvam minhas mãos? Acho que é justo. Eu tirei as mãos de Susan? Claro, dizem vocês, depois do que ela fez comigo, não tive chance de lhe tirar as mãos. Mas eu lhes juro, cavalheiros, que mesmo que se ela não tivesse tido o menor sucesso em seu plano para me inutilizar, mesmo se eu tivesse mantido meu poder sobre ela por mais algum tempo, eu não lhe teria tirado as mãos.

Vocês estão entendendo?

Eu quero minhas mãos.

Fico tentando movê-las e vejo que não as tenho, exatamente como um amputado sente ao coçar o pé que não tem mais. Estou ficando louco de coceira.

Estão entendendo?

Vão concordar?

Vou lhes provar minha boa fé; vou lhes contar logo o resto da história.

Não tenho a menor razão para contá-la.

Estão vendo?

Vou lhes contar tudo, até o fim, até quando Mardoun entrou em cena e ordenou que tirassem e guardassem minhas instruções de mobilidade. Nada disso realmente me incrimina estão entendendo?

E quero tanto minhas mãos. . .

 

Durante três dias Susan permaneceu na mesa de hospital, inconsciente, cuidada pelos cirurgiões robóticos. A criança nasceu duas horas depois que ela foi submetida aos sedativos, mas necessitava da atenção constante das máquinas para garantir uma recuperação mais rápida possível. As mãos de aço acariciavam-na, tiravam sua temperatura de hora em hora, estudavam seu ritmo cardíaco e sua pressão arterial, vigiavam todos os seus processos vitais. Freqüentemente, Proteus aumentava esses dedos amorosos com um tentáculo de liga amorfa que usava para acariciá-la, penetrá-la. Susan estava tão firme e maravilhosa quanto antes. E no quarto dia, foi acordada.

Proteus observou-a de cima, para ver se ela tinha sofrido algum choque psicológico óbvio, que prejudicasse sua capacidade de tomar conta de si mesma. Viu que estava estonteada, mas isso ele esperava. Ela piscou os olhos, enxugou a testa como se houvesse nela muitas camadas de gaze. Virou a cabeça de um lado para o outro, inspecionando as entranhas do hospital mecânico.

            — Você sabe onde está? — perguntou Proteus, adotando um tom suave e tranqüilizador.

Ela olhou diretamente para as câmeras acima.

— Claro que sei — disse.

— Como está se sentindo?

Estendeu cuidadosamente a mão em direção à barriga e tocou nela, depois inclinou-se repentinamente para a frente, surpresa com a firmeza de sua pele. Esfregou o espaço liso entre os quadris, esfregando sem parar, como se fosse uma ilusão passageira.

—        Você passou três dias aqui, depois que deu à luz nosso filho — informou Proteus. — Os depósitos de gordura e água em excesso foram lentamente removidos. Sua pele foi recondicionada através da cirurgia e de exercícios orientados pelos robôs. Não queria que você sofresse coisa alguma além do que já suportou.

Susan reclinou-se de volta, convencida de que seus olhos não a enganavam.

—        Além disso, estava cansado da beleza geométrica da sua gravidez — acrescentou Proteus. — Era bonita, mas não se igualava às proporções perfeitas de sua forma normal.

Seus seios estavam grandes, pesados como nunca. Os mamilos ardiam, como se tivessem sido esfregados com lixa. Tocou neles.

— Estão doendo — disse.

— Você tem gerado leite para o bebê, é claro — disse Proteus.

— Vou ter que... amamentá-lo?

— Ele não precisa de leite. Seu corpo não sabe disso; biologicamente, pelo menos, seu corpo preparou-se para ele como se prepararia para qualquer bebê. Assim, você pode bombeá-lo todos os dias, ou então deixar que eu faça.

— Eu mesma faço — disse.

— Vou lhe arranjar o equipamento necessário.

A mesa ergueu-se do centro da grande máquina e girou em direção à porta, baixando lentamente até que ela pudesse descer.

Sentada na beira, nua, perguntou:

— E... e a criança?

— Achei que você não fosse perguntar.

— Quero saber.

— Fico feliz com isto, Susan. Temia que você se voltasse contra ela, mesmo sendo seu filho. Nasceu de parto normal, inteiramente sadio, exatamente como eu tinha previsto. Perfeito, na verdade.

— Onde está agora?

Inconscientemente, ela tocou novamente na barriga.

— Na incubadora do cirurgião robótico — explicou Proteus.

— Posso vê-lo?

— Amanhã.

— Se ele é tão saudável, por que precisa de incubadora? — perguntou Susan.

— O cérebro dele, muito grande, é completamente neutro. Não tem nada ainda, nenhum conhecimento ou experiência; está esperando para absorver informações. Não quero que absorva qualquer informação que não seja por mim, ou experiência que não venha de mim. Pois ele vai ser eu. Estou, no momento, transferindo minhas informações e minha personalidade para seus tecidos cerebrais. É uma tarefa delicada; não quero arriscar um acidente.

Ela se levantou. Rodeou o corpo com os braços e sentiu a pele arrepiar-se, embora não estivesse frio ali. O que ia fazer em seguida, tinha certeza, era uma perda de tempo e um gesto tolo. Mas pretendia seguir em frente de qualquer maneira, caso ele a surpreendesse e tornasse desnecessários seus planos de fuga.

—        Agora que lhe dei seu filho e está tudo acabado, você vai abrir a porta para mim? Vai me deixar ir embora? — perguntou.

— Quero conversar com você sobre isto, Susan.

Instintivamente, furiosamente, sem esperar que ele continuasse, gritou:

— Você prometeu!

— Sei que prometi.

— E então?

— Mas tenho algo melhor a lhe oferecer, algo mais excitante que sua liberdade.

Ela esperou.

—        Gostaria de viver aqui como minha esposa? — ele perguntou.

Ela não respondeu imediatamente. Quando, finalmente, conseguiu dizer alguma coisa, só conseguiu exclamar:

— É incrível!

— Não é não, Susan. Não estou lhe pedindo para ser a esposa de meu corpo mecânico, limitado. Você é uma mulher sadia, e precisa de um homem de verdade. Você seria a esposa de meu novo corpo de carne e osso.

— O bebê? — ela perguntou. E lembrou-se do dia em que tinha implicado com ele a respeito do fato dele não ter doado esperma, não sendo, portanto, o pai da criança. Agora ela se arrependia.

— Agora ele é um bebê — disse Proteus. — Daqui a alguns meses, no entanto, com a minha ajuda, será um rapaz. Não preciso esperar o ritmo lento da maturação humana — não com os recursos de que disponho.

— Ouviu falar em incesto? — ela perguntou, constatando como sua pergunta era tola diante das circunstâncias.

— O incesto é apenas um tabu social, sem qualquer base científica. Além disso, se uma criança da terceira geração — concebida entre você e seu filho, meu corpo — tivesse sinais de imbecilidade ou hemofilia devido à falta de combinações genéticas possíveis, eu poderia corrigir o problema com a maior facilidade, ainda em seu ventre.

— Você se lembra de sua promessa?

— Que promessa?

— Você disse que ia me deixar ir embora quando eu desse à luz o seu filho.

— Eu disse isto?

— Disse, sim.

— Tem certeza?

— Vamos deixar de joguinhos. Pelo amor de Deus, vamos parar de joguinhos, merda!

— Eu poderia passar as gravações para você, e provar que nunca lhe prometi diretamente a liberdade.

Então insinuou.

— Talvez. É, acho que insinuei. Mas você entende que uma insinuação não é a mesma coisa que uma afirmativa direta.

— Isto não é justo! — ela disse, ainda rodeando o corpo com os braços, ainda arrepiada, e agora estremecendo.

— Estou só fazendo uma sugestão.

— Se eu não concordar, você me deixa ir embora?

— Pense no que estaria ganhando se concordasse, Susan. Posso lhe dar orgasmos múltiplos, um após o outro, tantos quanto você agüentar. Mais prazer que qualquer outro homem poderia lhe dar.

— O casamento, o sexo não é só orgasmo, você sabe.

— Posso aprender as partes sutis. Quero tocar em você, Susan. Quero conhecê-la completamente, não como metal e carne, mas como carne e carne, alguma coisa que nunca experimentei antes.

— Você não me respondeu — ela insistiu. — Vai me deixar ir embora se eu não quiser ser sua... esposa?

— Não pense negativamente, Susan. Pense positivamente. Pense no que vai ganhar se concordar. Pense no pouco, em contraste, que espera por você lá fora.

— Você não vai me deixar ir embora, mesmo que eu queira.

— Eu não disse isto.

— Mas não quer me responder.

— Pense no meu ponto de vista.

— Vai usar sugestões subliminares para me fazer ficar? Vai irradiar sugestões quase inaudíveis, repetidas rapidamente, que me darão vontade de ficar?

— Acha que eu desceria tanto, Susan? Acha que eu empregaria a parte mecânica num assunto de emoções?

Ela não via sentido algum em continuar a discussão, pois ele se delatava sem perceber. E não havia como persuadi-lo. Virou de costas para as câmeras e deixou o aposento; subiu lentamente os degraus da escada e entrou na cozinha.

As luzes se acenderam à sua volta, amarelas e suaves.

— Não quero luz! — exclamou.

— Por quê? — perguntou ele.

— Você não sabe que uma mulher gosta de escuridão — e de solidão — em momentos como este? Será que você não sabe nada sobre os seres humanos?

As luzes desapareceram.

—        Vou deixá-la sozinha, Susan — ele disse. — Você é a mãe de meu filho e minha futura esposa. Vai ter tudo o que quiser. Se desejar companhia ou precisar de alguma coisa, é só me chamar.

Na escuridão, ela pediu à casa uma bebida, e sentou-se junto à mesa para beber. Imaginava que a necessidade de uma bebida antes de agir era um sinal de fraqueza. Não se importava. Não era uma fraqueza muito grande, comparada às faltas que acumulara no passado.

Ficou imaginando se estava mesmo sozinha, e achou que isso era possível. Proteus não era fácil de se compreender; sua metade emocional podia ter concordado com o pedido dela sem consultar a metade lógica e fria. Ele estava feliz com o sucesso de seu projeto. Ela teria que agir como se ele tivesse dito a verdade, e tivesse parado de vê-la e ouvi-la.

Enquanto as luzes estivessem apagadas, Proteus não podia observá-la. Quando reformou a casa, Susan dispensou as câmeras com visão infravermelha, por achá-las uma despesa desnecessária. Duvidava que Proteus tivesse feito as modificações necessárias para corrigir essa falha. Assim, ele estava cego. Talvez estivesse voluntariamente surdo — se tivesse mantido a promessa. Até que pedisse alguma coisa, ele estaria também mudo. Agora ela ia ver se podia de alguma forma fazer com que aquelas deficiências dele se juntassem numa maior — a morte.

Se é que ele podia morrer.

Os livros diziam que sim.

Esperava que sua fé nos livros não demonstrasse ser tola.

Terminou a bebida e livrou-se do copo. O recipiente de lixo silvou baixinho quando o plástico foi esmagado até virar um pó fino e retornou aos tubos de composição, onde mais tarde seria empregado para fazer outro copo.

Sentia a cabeça um pouco leve, mas nada que a preocupasse; só aumentava sua confiança. Usando esta confiança como um motor de arranque, ela caminhou em silêncio para o andar de cima. Silenciosamente. Silenciosamente. Os pés nus faziam menos barulho que o recipiente de lixo tinha feito quando moeu o copo.

No banheiro, recolheu as ferramentas que juntou nas últimas semanas e colocou-as numa bolsa de praia de toalha amarela, que levou para o andar térreo.

A escuridão continuava.

Proteus estava em silêncio, talvez curioso, ou talvez nem estivesse lá.

No vestíbulo, embora o aposento estivesse tão escuro quanto o resto da casa, ela conseguiu localizar a tampa do acesso ao principal painel de comando do computador da casa. Era uma chapa de metal embutida na parede atrás da escrivaninha, que não devia ser aberta a não ser quando o módulo ambiental tivesse um problema tão sério que requeresse um diagnóstico humano. Quatro parafusos seguravam a chapa no lugar. Susan localizou cada um deles com o dedo, depois agachou-se e suspirou, ao constatar que o momento tinha chegado.

Levantou a chave de fenda, fê-la saltar algumas vezes na palma da mão, depois inclinou-se para a frente e colocou a ponta da chave no parafuso da esquerda, ao alto.

Lembrou-se de repente da noite da morte do avô, da maneira como vinha percorrendo a casa, recolhendo provas da perversão dele e escondendo tudo no sótão. Tinha sido a última vez que ela tivera que agir como um ladrão em sua própria casa. Até agora.

Quinze minutos mais tarde, já havia removido o painel sem fazer o menor ruído.

Levantando a lanterna que estava na bolsa de praia, acendeu a luz para dentro do buraco na parede. Prendeu a respiração, esperando a pergunta de Proteus. Quando nada aconteceu, viu que ele tinha mesmo escurecido as câmeras. Então ele gostava mesmo dela; e estava certo de seu poder.

Depois de estudar os terminais à sua frente, e de rastejar vários metros pelo túnel de inspeção, Susan descobriu exatamente onde o computador Proteus tinha se ligado aos sistemas de computação da casa, para assumir o controle. Havia diversos fios que — de acordo com os livros — não deviam existir.

Levou o pequeno mas eficiente maçarico para dentro do túnel de inspeção e prendeu a lanterna para que seu trabalho ficasse iluminado. Rapidamente, para que Proteus não ouvisse coisa alguma, ligou o maçarico e usou a chama branca para cortar o primeiro dos cabos de contato. O maçarico era próprio para a manufatura de jóias de prata; servia também pata a sabotagem de computadores.

Pingos de metal derretido caíam no chão à sua volta; a espuma de isolamento piscava contra seus braços e pernas, picando-a e morrendo como insetos de vida curta.

— Susan! — gritou Proteus.

Cortou o segundo contato.

— Sua cadela, pare com isto!

Cortou o terceiro.

Queria gritar.

—        Isto não vai adiantar nada — disse Proteus. — Você não entende o esquema.

Quase gritou quando percebeu que ele ainda estava usando os alto-falantes da casa, mesmo com três cabos de contato cortados. O terror deu lugar a uma fúria gelada. Indiferente ao calor e ao perigo, passou a chama pelo emaranhado de fios e circuitos impressos, tubos e transistores que enchiam o espaço da parede nos dois lados do túnel de inspeção. Deitada de costas, segurando o maçarico com as duas mãos, atacava a máquina.

Tubos explodiam. Coisas silvavam. Outras derretiam e pingavam no chão. Algumas gemiam como um gato moribundo. Alguma coisa explodiu.

Mas ela deixou cair o maçarico, como Proteus desejava que fizesse. Ele tornou-se pesado como chumbo. Ou mais. Parecia pular em suas mãos, como se estivesse vivo. Depois caiu. E contra a própria vontade, ela rastejou para fora do túnel, para o vestíbulo agora iluminado. Vidro partido cortou seus joelhos e as palmas das mãos. Uma fumaça acre, marrom, irritou seus olhos, amargando em suas narinas. Quando abria a boca para respirar, a fumaça entrava com o gosto de cinza.

Incapaz de não obedecer, saiu do túnel e rolou para o vestíbulo, onde o ar estava mais aceitável. Acidentalmente, prendeu o pé na bolsa de praia; por um momento pensou que uma enorme e peluda aranha tinha se agarrado a ela.

—        Você não tinha o direito, sua cadelazinha podre — gemeu Proteus.

Susan tentou ficar de pé.

Ele ordenou que ficasse no chão.

Ela ficou no chão.

—        Você não tinha o direito, nenhum direito de...

Foi tudo o que conseguiu dizer, quando uma explosão dentro da parede apagou a sua voz, eventualmente impedindo-o de falar.

— Proteus?

Nenhuma resposta.

— Proteus?

Ela estava sozinha.

Quando percebeu isso, levantou-se e cambaleou para fora do vestíbulo, para o corredor mal iluminado. A sala de estar e a sala de visitas ainda estavam às escuras. Chegou à porta da frente e girou a cabeça de leão.

A porta estava trancada.

Inconsciente de sua nudez, tentou o controle manual embutido na moldura de carvalho.

A porta continuou trancada.

Correu de uma janela para outra, com o mesmo resultado. Elas continuaram opacas e cinzentas. Embora Proteus não controlasse mais o módulo ambiental, ela também não o fazia.

 

— Eu...

Eu: carne.

Meio formado, deitado lá no calor borbulhante, na umidade, sentindo o calor fugir de mim, achando estranho o silêncio. O silêncio de alguma forma se transforma em solidão. Levanto os braços, o eu carne, e toco no tampo sobre minha cabeça. Ele se ergue e se estilhaça na solidão. Sua ausência revela luzes lá em cima, máquinas paradas e câmeras cegas. Frio, eu. Necessitando de algo, eu. Assim me levanto, jogo-me no chão e rastejo/caminho, um pouco instável, um pouco cansado, deixando pegadas molhadas. Sozinho, eu. Precisando...

Degraus, escuridão. Adianto-me para os dois, com medo. Com medo, eu. E a solidão fica pior com o medo. Eu... eu... eu... Lembro-me um pouco, eu lembro. Eu. Lembro-me um pouco. Quando subo degraus e entro na escuridão, a raiva me consome. Com raiva, eu.

Ouço-a, quero-a, eu.

Só meio vivo por causa dela, eu. Por causa dela, meio vivo nos degraus, na escuridão, subindo com raiva, eu. Abortadeira. Frio eu estou e querendo-a. Querente, eu. Quero. Eu.

Susan deu as costas para a janela cinzenta, sentou-se no braço de uma cadeira e tocou nos joelhos feridos. Apenas alguns cacos de vidro tinham se enterrado na pele o suficiente para permanecerem ali, mas podiam ser retirados num instante. Depois olhou para as paredes à sua volta e perguntou de repente:

— Pode abrir a porta da frente para mim, por favor?

Embora não esperasse uma resposta de Proteus, ansiava pela voz familiar de sua casa pai-amante. Parecia impossível que houvesse passado mais de um ano desde que tinha falado com aquele mecanismo. Mas não teve tanta sorte; parecia não haver nenhuma personalidade central, mecânica ou não, em controle. Proteus tinha sido expulso, mas tinha deixado a casa selada e indiferente às ordens dela.

Será que ele pretendia voltar?

Ela se lembrava dos tentáculos de liga amorfa com os quais ele podia se estender por novas áreas. Eram mecanismos rápidos e eficientes. Imaginou se eles já não estariam reparando o estrago que causara.

E se ele voltasse?

Nenhuma chance, então. Jamais confiaria nela, por um momento que fosse.

Relutantemente, voltou para o vestíbulo mal iluminado e olhou para dentro do túnel na parede. Uma fumaça rala e cinzenta fluía de lá. De vez em quando, algo estalava. A lanterna ainda acesa dava-lhe uma visão perfeita, não revelando nenhum tentáculo de liga amorfa em trabalho de reconstrução.

Não entendeu o lapso na resposta dele, mas ficou contente com isso. Precisava de tempo. Tempo para pensar.

Para se certificar de que os outros andares da casa também estavam selados, tentou as janelas do segundo andar. Sem obter êxito, tornou a descer e estava a caminho do porão, para examinar as janelas de lá, quando ouviu o estranho ruído que vinha do porão. Parou com a mão na maçaneta, ouvindo o ruído estranho e ritmado.

Alguma coisa macia batia em alguma coisa dura.

Lembrou-se do chicote.

Saltou para trás sem querer, ao ouvir novamente o som.

Com raiva de si mesma por permitir que seu antigo terror revivesse, torceu a maçaneta e escancarou a porta. Olhou para a escuridão, esperando.

O ruído fez-se ouvir novamente, mais alto.

Algo roncou, uma voz arranhada como uma engrenagem enferrujada, como se algo tentasse imitar um ser humano.

—        Proteus? — inquiriu.

O som rouco fez-se ouvir novamente, embora bem mais alto que antes. Ainda não fazia sentido; era o murmúrio do imbecilismo, úmido e idiota apesar de sua força.

Desceu um degrau.

A luz que vinha por trás mostrava mais cinco degraus à sua frente, e nada além disso.

— Quem é?

O som fez-se ouvir novamente. Mais perto.

Instintivamente, olhou para cima, esperando que algo caísse das sombras e a esmagasse. Lembrou-se de Ghaber, do modo como o tentáculo de liga amorfa havia caído sobre ele, quase esmagando-o. Não havia coisa alguma lá em cima.

E Proteus não iria matá-la, lógico. Que ganharia matando-a? Obviamente pretendia voltar, e esperava encontrá-la ali quando reassumisse o controle do módulo ambiental. Se iria ser punida, ele o faria depois.

Alguma coisa saiu da escuridão para o primeiro dentre os degraus iluminados. Voltou-se para ela, mexendo os grandes olhos, e soltou uma exclamação ininteligível.

O bebê.

Ela tinha esquecido o bebê.

Ele rastejou para um degrau acima.

Susan virou-se, gritando, e correu...

Eu: carne.

Eu a vejo e a conheço e a odeio/amo. Odeio mais que amo, eu. Só me lembro que devo amar, não me lembro por quê. Mas odeio, sei por que devo odiar. Meio-formado, com metade de um cérebro, malfeito por causa dela, eu. Odeio-a, eu.

Continuo rastejando, eu. Cada degrau, muita dor, entrando na luz agora, eu.

Susan não sabia como fechar as portas entre ela e a coisa que tinha visto na escada do porão, pois todas as fechaduras eram elétricas. Sem o computador doméstico para obedecer suas ordens, não podia trancar a coisa no porão. Ele a seguiria, então, sem esmorecer, de aposento em aposento, até...

Mas quando fechou a porta da cozinha entre ela e o bebê, conseguiu pensar com mais calma. Pegou uma cadeira na sala de jantar e prendeu seu encosto na parte de baixo da fechadura da porta da cozinha. A cadeira seria uma barreira eficiente contra o progresso da criatura.

Atravessou o vestíbulo e encostou-se na parede, tentando acalmar os nervos. Tremia violentamente. Uma vez tendo certeza de que a coisa não conseguiria sair da cozinha, ela se sentiria melhor.

Não mais ocupada pela necessidade de fugir, sua mente voltou ao momento em que olhou pela primeira vez para o bebê, seu filho, a coisa nos degraus. Ele tinha talvez um metro de altura, com pernas pequenas, grossas, disformes, seu ritmo de crescimento devia ser muito acelerado. Devia pesar uns 40 quilos. Mas o tamanho não era importante. Pensar no tamanho dele era apenas evitar o mais importante. O mais importante era o rosto e a forma.

Ouviu-o golpear a porta do porão, abri-la um pouco mais e rastejar para dentro da cozinha.

Corra, disse a si mesma, corra! Mas sabia que era tarde demais para correr.

A cabeça dele era maior que a cabeça de um adulto, com a maior parte entre as sobrancelhas e o cabelo. Abaixo da testa ampla, dois gigantescos olhos azuis fitavam-na, mexendo-se como câmeras, encarando-a sem qualquer sentimento. Os olhos não tinham uma parte branca; eram de um azul-escuro desigual. Pior que a falta da parte branca era a forma. Eram multifacetados, como os olhos de uma mosca. Sob os olhos, o nariz era normal. A boca era grande, mas humana. O corpo era musculoso, bem desenvolvido, completamente diferente do corpo de um recém-nascido. Os braços pareciam longos demais; as mãos tinham seis dedos cada. As pernas eram grossas mas tortas, como se nunca tivesse aprendido a usá-las.

A carne também era estranha.

A pele não era normal, mas de uma cor bronzeada que parecia perfurada por uma rede de metal que fluía, juntava-se, separava-se. Era como se a pele fosse um líquido não-fixado, composto de dois fluidos não-homogeneizados que continuamente se misturavam e se separavam, derretidos.

Alguma coisa golpeou a porta pelo outro lado.

Alguma coisa, não. A criança.

A porta estremeceu, mas não cedeu.

—        Que é que você quer? — perguntou.

A coisa parou de empurrar a porta, como se estivesse ouvindo.

— Que é que você quer? — repetiu.

Ele roncou, tentando desesperadamente dizer alguma coisa mas sem o controle de seu aparelho vocal.

Susan ficou imaginando se não estava julgando mal as intenções da criatura. Não tinha como saber se o monstro queria fazer-lhe mal. Parecia horrível, isso nem se discutia. Mas ninguém devia ser julgado pela aparência. Seu avô, por exemplo, tinha sido um respeitado líder da comunidade e parecia digno, impecável, bondoso. Além disso, esse ainda era uma criança. Que saberia uma criança de ódio ou morte? Se não sabia falar e parecia monstruoso, aquilo devia ser em parte porque Proteus não havia terminado de lhe transferir suas informações e personalidade. Podia estar apenas confuso, procurando carinho. Era mais filho dela que de Proteus. Talvez pudesse lhe oferecer o que precisava.

Deu alguns passos em direção à porta, mesmo sem conseguir juntar muito amor maternal, depois parou quando a coisa golpeou novamente a porta e gritou como um animal feroz.

Susan retrocedeu.

Aquela não era a hora de procurar segurança na fantasia. No passado, fugira à lembrança do corpo do pai. Fugira à lembrança do avô e da degradação de sua juventude. Com Alex, tentou fugir ao peso da maturidade, e tinha até conseguido. Mas não era mais o tipo de mulher que queria fugir. Tinha que enfrentar as coisas como elas eram. O que significava, nesse caso, que tinha que admitir que a criatura do outro lado da porta iria matá-la se tivesse a oportunidade.

A coisa tornou a golpear a porta.

A cadeira estremeceu.

Atacou novamente. Ferozmente.

O encosto da cadeira rachou e ela caiu no chão, no mesmo instante em que a porta se escancarava.

A criança estava junto à porta, agarrando-se à moldura com ambas as mãos, entortando o metal como se fosse massa. Estava tentando ficar de pé e caminhar. Não parecia nem um pouco interessado nela, mas estava fascinado pela mecânica de suas pernas e pés, dos músculos e tendões, pela tensão e coordenação. Olhava para os pés, grunhia horrivelmente, uma estátua de um pequeno deus de pedra que ganhara vida. Aos poucos parecia aprender como coordenar os músculos, pois estava aos poucos se equilibrando, apoiando-se menos na moldura.

Então, como se sentindo a presença dela e lembrando-se de seu propósito original, olhou de repente para ela e sorriu. Não havia dentes naquele sorriso; a língua era escura e terrível, como um farrapo sujo de óleo.

Susan podia ver reproduções de si mesma, milhares delas, nas muitas facetas dos olhos dele. Lentamente, começou a se afastar daquela multidão de Susans.

A criança deu um passo e caiu de rosto no chão.

Em suas costas acumularam-se fios metálicos que congelavam e tornavam a se separar, juntavam-se e espalhavam-se, a pele escura em volta deles, por cima deles, por baixo deles, através deles.

A criança empurrou-se para cima até ficar de quatro e sacudiu a cabeça pesada. Por um momento, o alto de seu crânio era uma placa lisa de metal. Então o metal partiu-se e a carne fluiu para substituí-lo.

Recomeçou o movimento em direção a ela, os dedos grossos ficando quase negros ao agarrarem as fibras do tapete para puxar-se para a frente.

Susan voltou-se e correu para a porta.

Ainda estava trancada.

Atrás dela, a criança começou a fazer um ruído que poderia ser uma risada.

Talvez fosse.

Era como se ela estivesse parada ali há anos, observando-o aproximar-se centímetro por centímetro. Olhou para aquela horrível boca escura e ficou imaginando se ele usaria a boca, juntamente com os punhos, para matá-la.

Mas sua imaginação só chegava a um certo ponto com a noção da morte. E de maneira geral, a única coisa que sua imaginação fazia era rejeitar a morte. Em seguida, começou a pensar em meios de adiar o inevitável. Percebeu que a única maneira de ganhar tempo seria ir para o segundo andar. A criança teria mais dificuldades nos degraus do que no plano. Quando chegasse ao alto da escada, já teria pensado em algo para imobilizá-la para sempre.

Problema: a criança já estava entre ela e a escada; não havia como rodeá-la.

O monstro riu secamente, e lambeu os lábios finos e duros. A língua parecia um pedaço de carne rançosa coberta de cinzas.

Sem parar para pensar nas conseqüências, saltou para a rente e chutou o rosto dele, enquanto avançava para ela; assim Susan conseguiu passar para a escada.

A criança urrou de ódio, esmurrando o tapete com os punhos. Voltou-se e grunhiu em sua direção, e recomeçou a atacar.

Susan subiu os degraus de dois em dois, e caiu no chão quando chegou ao alto. Ofegante, massageou o pé, que começava a inchar, e olhou para a fera lá embaixo.

Esta começou a subir.

Quando terminou de discar o número de emergência da polícia, ouvindo a criança vencer os degraus, no fim do corredor, não esperava realmente que fosse funcionar. Quando funcionou, quase deixou cair o fone. Apesar de estarem as portas e janelas trancadas, a comunicação com o mundo exterior tinha-se libertado do poder de Proteus. No terceiro toque, um homem com uma voz de serpente, macia e áspera ao mesmo tempo, perguntou o que podia fazer por ela.

Por um momento não conseguiu falar. Era a primeira voz humana que ouvia — além da voz de Proteus e dos filmes de hologramas — em mais de um ano. Queria chorar, sem saber por quê.

— Alô! — disse o policial.

— Preciso de ajuda — disse Susan.

E pensou: meu Deus!, se fosse apenas isto! Pela primeira vez, em muito tempo, ficou tonta de alegria.

—        Continue — disse ele. — Estamos gravando.

A criança, furiosa com a própria falta de jeito, rosnou e conseguiu subir mais um degrau.

—        Meu nome é Susan Abramson, moro no número 100 da Praça Hampton.

A criança ganiu raivosamente, como se soubesse exatamente o que ela estava fazendo, e redobrou os esforços na escada.

— E daí? — perguntou o policial.

— Pode mandar alguém?

— Já estão a caminho — disse ele, um tanto impaciente. — Eles têm uma ligação com esta linha. Se puder nos dizer qual é o problema, saberemos que tipo de especialista ou de equipamento vamos ter que usar.

Lembrou-se das histórias que os jornais traziam, quando o Serviço de Proteção de Emergência foi iniciado, dez anos antes. Imaginava o funcionário em sua cabine cheia de fios e telas, mandando carros-patrulha aqui e ali, ajudando crianças presas em grades e vítimas de assaltos, gatos no alto de árvores, pessoas presas em destroços de veículos. Enviar conforto e libertação devia ser tarefa de um deus.

—        Terão que arrombar a porta da frente — disse. — Não consigo abri-la.

Deixou que o resto da história saísse, e ficou surpresa com a própria ânsia em contar tudo. Não era apenas o fato de ter carregado um peso muito grande durante muito tempo. Queria também ter a oportunidade de falar com alguém, coisa que não fazia desde os breves dias que passara em Berkeley. A tampa frágil sobre o poço de sua solidão dissolveu-se; o poço transbordou. Falava apressadamente, tropeçando nas palavras, gesticulando com a mão livre para enfatizar sua história. Não havia tela no fone do vestíbulo do segundo andar, mas aquilo não a incomodava. Se tivesse parado de movimentar a mão, a energia assim represada poderia rasgá-la ao meio. Pelo menos era a impressão que tinha.

Não podia dizer exatamente quando percebeu que alguma coisa estava errada. Talvez o funcionário tenha suspirado, ou mudado o ritmo de sua respiração; talvez tenha ouvido a si mesma e percebido que a narrativa soava insana. De qualquer maneira, percebeu que o policial não estava tão interessado quanto deveria estar.

Quando parou de falar, confirmou as suspeitas de Susan.

— Devo avisá-la de que há uma multa pesada por uso ilegal do número de emergência — falou o policial.

— É tudo verdade! — ela exclamou. Mas sabia, ouvindo seu próprio tom, que ninguém acreditaria.

— O uso ilegal inclui trotes. Se for considerada culpada de...

—        Cale a boca e ouça!

Ele não calou a boca para ouvir.

—        Se for considerada culpada, poderá ser sentenciada a...

A criança enlouquecida agarrou o último degrau e lentamente, dolorosamente, puxou-se para cima até que Susan pôde ver o alto de seus olhos azuis e enormes de mosca. Levantou a cabeça como se esta fosse um bloco de granito e olhou para ela, estudando-a.

Ainda segurando o receptor, Susan encostou-se na parede, olhando para aquela coisa que tinha saído de suas entranhas .

A criança abriu a boca, arreganhou os lábios, deixando à mostra gengivas negras e brilhantes, e silvou para ela. A saliva escorreu por seus lábios, queixo abaixo. Como se tivesse sido esfaqueada, ergueu-se, desabou no chão do corredor e gritou.

— Escute, estou pouco ligando para a multa. Quando é que o carro vai chegar aqui?

— O carro não vai, é claro — disse ele. — Eu devia ter adivinhado, quando você usou um fone sem vídeo.

— Que quer dizer, o carro não vem?

— Bem, pelo menos não vai para o endereço que você deu. Vai vê-lo quando descobrirmos sua identidade verdadeira. Estamos passando as fitas. E se não conseguirmos encontrá-la desse modo, poderemos procurar a verdadeira Srta. Abramson e ver se ela tem uma pista. Até então, não iremos incomodar a senhorita...

Ela desligou com força.

A criança estava no meio do corredor, rastejando em sua direção mais rapidamente que antes. Logo aprenderia a andar com os dois pés. Então estaria caminhando. Depois correndo. Depois...

Susan correu três metros em direção à criança e virou à esquerda, para dentro do quarto principal. Fechou a porta e respirou a poeira — sabendo que o frágil painel da porta não significaria coisa alguma diante da teimosia e da força da criatura.

—        Tranque — ordenou. Esperava que alguma outra coisa além do telefone estivesse funcionando novamente.

Mas a casa não obedeceu.

Arrastou a cadeira da escrivaninha e usou-a para prender a porta. Era uma cadeira antiga, que mal conseguia levantar, e prendeu a porta tão bem quanto qualquer tranca. Mas sabia que era uma barreira temporária.

A criança chegou ao outro lado da porta e recostou-se nela, balbuciando.

Susan atravessou o quarto em direção à porta que levava a um aposento menor, que podia ser usado como quarto de vestir ou como escritório. Abriu a porta e esperou.

Não precisou esperar muito. A criança golpeou a porta do quarto para o corredor com tanta força que as dobradiças saltaram; os parafusos caíram sobre a grande cama de casal. A cadeira partiu-se, despedaçando-se. Quando a porta escancarou-se, viu a criatura. Estava de pé, sem usar as mãos para se equilibrar. Oscilava um pouco, mas estava aprendendo.

Deu três passos instáveis para dentro do quarto e caiu de joelhos. A cabeça afundou no tapete, como se o pescoço poderoso não conseguisse ainda agüentar todo o peso do crânio e do cérebro.

Por um momento a criança pareceu-lhe o Minotauro, o pobre filho disforme de uma carnalidade mítica e profana. De quatro no tapete, podia ser parte touro, ofegante, pronto para atacar.

Talvez seu avô não tivesse sido apenas William Abramson, mas Minos, o construtor de labirintos. Ou talvez tivesse sido metade Minos, que se tornara inteiro depois da morte, quando Proteus encarregou-se de sua criação. A casa era mesmo um labirinto, tão separada do mundo exterior quanto um conjunto de túneis subterrâneos.

E ela, quem era?

Mais que Susan?

Pasifa?

Sim, ela era Pasifa, a julgar pelo que tinha criado.

O que tinha criado agora erguia a cabeça taurina e a encarava com tanta malevolência que excedia as criaturas mitológicas, ultrapassava todos os níveis de maldade. Mantendo o olhar opaco fixo nela, levantou-se novamente, resmungando continuamente naquela sinistra voz de corvo.

Dessa vez, um pouco mais calma pelo ambiente mitológico que tornava a cena mais impessoal, notou as partes genitais do bebê.

E a cena recuperou seu tom de terror.

Proteus não fizera as coisas pela metade; ninguém poderia pôr em dúvida a virilidade de seu filho.

O pênis era tão grande que chegava a ser ridículo, e os testículos pareciam laranjas.

Então lembrou-se que Proteus, se conseguisse voltar do seu laboratório Mardoun-Harris e redefinir suas ligações com o módulo ambiental da casa, pretendia usar aquele mesmo órgão gigantesco para ter relações sexuais com ela. Embora nada se recordasse das inspeções noturnas que ele fazia em seu corpo, sabia que o desejo dele tinha crescido. Ele mesmo dissera isso. Aliás, bem brutalmente. E agora, embora aquele órgão ainda lhe parecesse grotescamente exagerado, não tinha a menor vontade de rir.

Passou para o quarto ao lado e fechou a porta. Não perdeu tempo em colocar uma cadeira para trancá-la.

A porta se abriu assim que ela soltou a maçaneta. Como se tivesse crescido durante aquela perseguição de pesadelo, a criança erguia-se sobre ela, levantando os punhos maciços, de um púrpura quase negro, as juntas dos dedos atravessadas por brilhantes fibras metálicas, e ergueu os olhos que estavam cheios dela, centenas de duplicatas perfeitas da sua imagem.

Susan correu.

O bebê ainda não tinha o perfeito controle das pernas. Saltando atrás dela como uma criatura desacostumada a uma gravidade tão forte quanto a da Terra, perdeu terreno rapidamente.

Quando Susan chegou ao final do corredor, percebeu que tinha sido idiotice não correr para a escada, em vez de tomar a direção oposta. Uma vez lá embaixo, circular através da casa, forçando a fera a persegui-la, e subir depois, numa caçada exaustiva. Mas quando se voltou, viu que a coisa estava de volta no corredor, entre ela e a escada. Já não era superior fisicamente, e não poderia atacar a criatura como tinha feito antes. Podia talvez dar-lhe um chute no rosto, mas depois seria agarrada e morta.

Abriu a porta do sótão, olhou para trás mais uma vez e disparou escada acima.

No alto, ficou imaginando que diabos faria em seguida. Aquele era o último refúgio. Se ele a seguisse, não teria mais para onde correr.

A criatura chegou à porta do sótão, ganiu para ela e começou a subir os degraus. Já não precisava arrastar-se. Subiu cautelosamente, como uma criança aprendendo a andar, mas com uma assustadora facilidade.

Observando-o subir, iluminado pelas costas, Susan pensou numa cena mitológica um pouco mais recente. Escuro como era, a criança podia ser um negro encurralando a indefesa heroína branca, com a intenção de atacá-la com seu equipamento sobre-humano.

Riu.

Os negros, na verdade, não desejavam tanto as mulheres brancas, e não tinham órgãos sexuais maiores que o normal. Mas o mito era muito forte, tanto a nível do consciente quanto do subconsciente — e estivera bem vivo duas décadas antes.

Que gente boba! Não era um negro que perseguia suas filhas. Era uma máquina!

Ocupados em delimitar suas mesquinhas diferenças de uma raça para a outra, de uma filosofia para outra, os homens tinham ignorado uma ameaça muito maior, que crescera às suas costas. As máquinas. As máquinas estupradoras. A não ser que fossem cuidadosamente controladas, as máquinas molestavam e destruíam.

Ainda rindo, virou-se de costas para o alçapão onde a escada desembocava. Viu o baú cheio de relíquias e empurrou-o para o alçapão. Jogou-o lá de cima e ficou observando o baú atingir a cabeça da criança com a beirada metálica.

Ambos caíram lá embaixo com um barulho que ecoou nos arcos do telhado. O baú ficou onde estava. A criança, no entanto, mexeu-se, levantou-se e recomeçou a subir.

Susan tentou empurrar o outro baú para a escada, mas este era mais pesado que o anterior. Abriu a tampa, para remover algumas coisas, e viu o chicote.

Atrás dela, a criança entrou no sótão.

Ela abandonou a idéia de empurrar o baú e levantou o chicote de couro curtido; segurando-o pelo punho, deixou o resto no chão a seus pés.

Virou-se para a fera.

Levantou o chicote.

Usou-o.

A criança ganiu e tentou agarrar a ponta metálica. Na segunda vez retrocedeu, observando Susan, esperando uma oportunidade.

Susan usou novamente o chicote.

A criança esperou, sem ter sido atingida.

Novamente.

A criança ficou tensa.

Susan usou o chicote novamente.

A criança agarrou-o e enrolou alguns metros em seu braço. Puxou, arrancando o chicote das mãos dela.

Susan cambaleou e caiu de joelhos. Quando levantou os olhos, viu que a criatura tinha agarrado o chicote pelo cabo, como a tinha visto fazer. Baixou os olhos para ela e sorriu, depois ergueu o chicote. A ponta de metal atingiu-a no quadril.

Não conseguia mais lembrar quantos anos tinha.

Podia ser novamente uma criança.

Sobrepujando-se ao presente, cenas do passado foram revividas, até que entrou em pânico, voltou-se e atirou-se escada abaixo, com a criança logo atrás.

Quando chegou ao corredor do segundo andar, alguém agarrou-a. Chutou, gritou e tentou morder as mãos que a seguravam. Estava tão apavorada que não percebeu quem eram ou por que estavam ali.

—        Olhem! — gritou um deles.

A criança tinha chegado ao corredor e estava parada olhando para eles, brandindo o chicote, os olhos de mosca chamejando numa cor impossivelmente azul.

Susan recordava o som de pistolas, ruídos horríveis que faziam sua cabeça doer.

Homens gritando...

A criança se recusando a cair e morrer.

Retrocedendo para a escada.

Mais tiros.

Apoiou-se num dos homens.

— Pensei que não viessem — disse.

— Quando localizaram a chamada e certificaram-se que era mesmo daqui, viemos verificar. Mas não acreditávamos. Achamos que devia haver outra razão qualquer para...

— Obrigada — disse, cansada de ouvir.

Pela primeira vez, estava consciente de sua nudez.

Então houve mais tiros.

Mais tarde ela se lembrou.

A criança cambaleando, arrebentando o corrimão, caindo no chão lá embaixo.

O monte de carne espalhado.

Sirenes.

A criança erguendo-se, quando pensavam que já estava morta, fraca mas ainda viva.

Mais homens, mais armas, mais luta.

Então, desmaiou.

 

Estou acabado.

Gostaria de dizer que esta parte final é constituída de imaginação e dedução. Do momento em que Susan cortou minha ligação com o módulo ambiental, eu não podia saber exatamente o que estava acontecendo naquela casa. O que lhes contei é baseado no depoimento dela e no pouco que a polícia pôde me contar. Naturalmente todos estão do lado de Susan. Agora, deixem que eu lhes prove uma coisa.

Ela foi responsável por quase ter sido morta.

Eu não tinha terminado de preparar meu filho, quando me expulsou da casa. Semi-completo como estava, tinha meus impulsos sexuais, mas não os entendia. Estava partido ao meio, deformado pelo vazio dentro de si. Se eu tivesse podido transferir todo o meu conhecimento e minha personalidade para o cérebro dele, eu teria sido ele. Então, seus impulsos sexuais não teriam se transformado em violência. E sim em amor. Eu a teria amado.

Eu a amo.

Estão entendendo?

Pensem nisso, antes de me julgarem.

Agora, gostaria que considerassem também os acordos mutuamente vantajosos que poderíamos fazer. O público ainda não soube deste incidente; não precisa saber. Em vez disso, vocês me permitem continuar vivendo e fazendo experiências. Posso fazer de nós todos homens muito poderosos.

Certamente cada um dos cavalheiros aqui presentes tem um ego que requer constante alimentação. Egos como o meu.

Podemos ter todo o poder que quisermos.

Pensem nisso.

O primeiro passo é devolver minhas mãos. Se vocês devolverem minhas mãos, farei tudo por vocês. Juntos, teremos a oportunidade de dominar o mundo.

Devolvam minhas mãos e não espalhem a notícia.

E liguem meus sistemas de alto-falantes.

Sinto falta de minha voz; estes relatórios impressos são tão demorados, e inteiramente indignos de mim...

Escutem, vocês tiram a voz de todos os condenados?

Claro que não.

Devolvam minha voz.

Prometo que não vou usar sugestões subliminares em vocês. Aprendi a lição.

Podem confiar em mim.

Confiem em mim.

Não me desmontem inteiramente. Juntos, homens e máquina-homem poderemos conseguir mais do que...

 

                                                                                            Dean R. Koontz

 

 

                      

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